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lutando por dinheiro e
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Capa
Arte: Dri K. K. Design
https://www.instagram.com/drikkdesign/

Revisão
Rayane Marqueli

Seja um doador. Informe à sua família.


Confiro a hora no relógio e praguejo baixinho, vou me
atrasar de novo. Bianca vai ficar super irritada e espero que Igor
ainda não tenha chegado. Tudo culpa da maldita porta do
banheiro, que emperrou de novo.
Bianca é minha cunhada, irmã do meu momentaneamente
noivo, nosso casamento é em dois meses e moro com ela por
enquanto. Seu apartamento é no segundo andar de um prédio de
dois andares que não possui portaria, hall de entrada ou
interfone. O portão de entrada está sempre aberto e nossa única
proteção é mesmo a porta sempre trancada. Mesmo tendo
condições de morar em um lugar melhor, ela tem um apego
especial pelo apartamento onde seu pai viveu assim que chegou
ao Brasil, anos atrás. De forma que não aceita sair dele. Também
não é muito boa em administrá-lo, as manutenções estão
atrasadas e entre portas emperradas e choques no chuveiro
elétrico, temos levado nossas vidas.
Bianca é dois anos mais nova do que eu e, provavelmente,
o mais perto que já tive de uma amiga, embora às vezes sinta
que ela só me suporta por causa de seu irmão. Não que ela me
trate mal, nem nada assim, ela é cordial e legal na maior parte do
tempo, mas não é comigo como é com as amigas dela. Tudo
bem, posso aceitar isso. Em breve estarei vivendo com meu
marido, teremos cinco filhos e terei uma família numerosa e
barulhenta para me ocupar.
Chego finalmente à boate e estaciono o carro de Bianca na
primeira vaga que encontro. O local está cheio, é sábado à noite,
jovens dançam animadamente, outros se pegam animadamente
e, absorta em sua bebida enquanto se balança ao ritmo da
música, avisto minha cunhada. É aniversário dela hoje, suas
amigas também estão aqui e apenas por isso tive que concordar
em vir a uma boate. Um ambiente nada familiar a mim.
Igor ainda não chegou quando me aproximo dela. Ela
procura pelas amigas ao me ver, mas como não as encontra,
resolve falar comigo mesmo.
— Ei, Anna, está vendo aqueles dois ali? Acho que os
conheço de algum lugar!
Observo os dois homens próximos a nós que ela citou, um
está de costas, tem o porte alto, o cabelo escuro liso bagunçado
e um corpo atlético. O outro está de frente, mas não me lembro
de tê-lo visto em lugar algum.
— Acho que não os conheço.
— Eles são lindos! — Ela ri e passa a língua pelo canudo
da bebida que toma tentando seduzir o rapaz que olha em nossa
direção agora.
A música está muito alta, o chão parece vibrar com o som e
até quero me mover ao ritmo da música, mas tenho medo de
pagar mico. Nunca dançávamos no orfanato onde cresci, temo
que ter essa experiência pela primeira vez em público não seja
uma boa ideia.
— Há mais deles, um mais lindo do que o outro, de onde
eles estão saindo? — Ela me puxa animada para mostrar que
agora há mais três homens próximos aos dois por quem ela já
babava.
Desvio os olhos à procura de Igor, ele já deveria estar aqui.
De repente, um gritinho agudo de Bianca me assusta e ela está
rindo por nada e cochichando comigo.
— Não consigo ouvir você! — grito por conta da música
alta.
Ela revira os olhos impaciente.
— Eu disse que eles estão olhando para nós duas! Ah, um
deles está vindo para cá! Ah, meu Deus, Anna, é ele, é mesmo
ele!
— Ele quem?
Olho para frente para entender de quem está falando,
quando avisto Igor. Sorrio para ele e no segundo seguinte um
homem me pega pela cintura, me puxa de encontro ao seu corpo
e sua boca cobre a minha em um beijo de tirar o fôlego.
Não é que eu corresponda ao seu beijo, é que ele domina
meus lábios com uma maestria que me deixa sem reação e sua
língua faz coisas na minha boca que não podem ser reais. Estou
atordoada quando ele me solta e faz uma careta ao observar
meu rosto.
O homem que me agarrou é alto demais, tem olhos claros,
embora não seja possível identificar a cor deles à pouca luz e um
sorriso atrevido que me irrita imediatamente.
— Você não é a Letícia, eu confundi você, me desculpe —
diz com tranquilidade, como se não fosse nada demais ter
simplesmente me agarrado no meio de tantas pessoas.
— O que você está fazendo? — Escuto Igor gritar antes de
puxar o safado pela camisa e tentar acertá-lo com um soco.
O pervertido desvia e acerta Igor de primeira, um golpe no
nariz que o joga imediatamente para trás.
— Igor!
Bianca e eu corremos até ele, caído no chão, e o ajudamos
a levantar. Tony, o subchefe de Igor e seu melhor amigo, parte
para cima do pervertido para revidar a agressão, os amigos do
pervertido vêm defendê-lo e, de repente, estamos em uma
imensa confusão. Parece que todos os homens da boate
resolveram se bater por nada e a noite termina com Igor e o
pervertido dividindo as despesas pelas coisas quebradas, eu
sendo banida para sempre da boate, mesmo sem entender o
motivo, e Igor indo embora emburrado antes que eu consiga
explicar que não conheço o pervertido e que ele simplesmente
me agarrou.
Tento ligar para Igor enquanto levo Bianca para casa, mas
ele não me atende.
— Bianca, você poderia ligar para o seu irmão? Talvez você
ele atenda — peço, mas ela sequer olha em minha direção ao
responder de má vontade.
— Se ele não te atende é porque não quer falar com você.
— Eu só preciso explicar a ele que eu...
— Você conhece Lucca Baltazi e nem me falou nada! Poxa,
Anna Maria! Você me viu babando por ele a noite toda e o beijou
na minha frente! E você é noiva do meu irmão! Espero que o Igor
termine de vez com você!
— Mas eu não o beijei. Ele me agarrou do nada!
— Não vi você protestando.
— Você viu o tamanho dele? Eu mal conseguia respirar,
imagine me defender!
Ela dá de ombros e liga o som do carro a um volume
altíssimo deixando claro que não quer mais conversar. E não
posso fazer mais nada, já que o carro é dela.
Tento manter a calma e ligar de novo para Igor, mas
novamente não tenho resposta. Começo a temer que a vida
planejada e certa que tenho agora, que foi tão difícil conquistar,
esteja por um fio. E tudo por culpa de um pervertido babaca que
sequer sabe diferenciar as mulheres com quem fica.
— Letícia! Era só o que me faltava!

Na manhã seguinte chego mais cedo ao Bella Itália, o


restaurante conceituado onde meu noivo é o chef. Ele também é
o dono e eu sou a hostess. Ele não está na cozinha, onde
deveria, e sim em seu escritório. Bato à porta e não espero uma
resposta, entrando em seguida. Ele me observa com um olho e o
nariz em tonalidades distintas de roxo. Além de um corte na
boca.
— Ah, meu Deus, você está bem?
— O que você acha? Você está satisfeita, Anna? Você me
fez de bobo, beijou outro na minha frente, me fez brigar em uma
boate por você e ainda pagar a conta! Você acabou comigo de
todas as formas possíveis!
— Mas eu não...
— Não quero falar com você!
— Igor, eu não...
— Eu disse que não quero falar! Sou seu patrão, estou
ordenando que saia!
Respiro fundo e saio, apenas por enquanto, para que ele se
acalme antes de termos uma conversa onde vou explicar toda a
verdade a ele. As horas vão passando e em nenhum momento
ele olha em minha direção. Sempre que tento me aproximar sou
recebida com olhares frios e indiferença. Até que ao final da
tarde, entro em sua sala e tranco a porta, jogando a chave no
sutiã. Seus olhos estão arregalados e ele não parece nada feliz,
mas precisamos ter essa conversa.
— Escuta, você vai me ouvir! Eu não traí você, nunca faria
isso. Eu te vi entrar, sorri para você e de repente aquele babaca
pervertido me agarrou e me beijou. Assim! Do nada! Eu nunca
tinha visto aquele homem antes.
Ele me encara sério, logo, um sorriso debochado surge em
seu rosto. Odeio esses sorrisos.
— Você, Anna Maria, quer que eu acredite que Lucca
Baltazi beijou você sem ao menos conhecê-la?
— Mas foi o que aconteceu! Depois ele disse que me
confundiu com uma tal de Letícia e teve a cara de pau de rir da
confusão!
Ele parece começar a ceder e começo a rezar
internamente.
— Igor, vamos nos casar em dois meses. Você me
conhece, nunca tive família, amigos, não tenho ninguém, você é
a única pessoa que tenho na vida, acha mesmo que eu jogaria
tudo fora beijando um homem qualquer na frente da sua irmã?
Na sua frente?! Eu jamais faria isso! Você precisa acreditar em
mim!
Ele se levanta e passa por mim. Sei que quer ceder, mas
ainda se sente enganado.
— É que, Anna, se fosse um homem qualquer em uma
boate, mas estamos falando de Lucca Baltazi, o famoso Lucca
Baltazi. Se ele deu em cima de você naquele lugar... Além do
mais, me parece impossível que alguma mulher no país não
saiba quem ele é!
— Meu Deus! Mas eu sequer havia visto esse homem até
ele me soltar depois de ter me beijado. E mesmo agora quando
vocês ficam repetindo o nome dele eu continuo sem saber quem
ele é!
— Não quero mais discutir isso com você, abra a porta,
preciso começar a preparar o jantar. Conversamos outra hora.
Cedo, porque ele ao menos parece estar me ouvindo,
parece estar começando a entender que não fiz nada.
— Vem pegar a chave... — provoco abrindo os dois
primeiros botões do uniforme que uso, mas acho que é cedo
demais. Ele vem até mim impaciente, enfia a mão em meu sutiã
sem o menor cuidado e pega a chave, abrindo a porta e
passando por ela em seguida.
Assim que deixo a sala de Igor, apesar de todos os olhares
tortos sobre mim aqui no restaurante desde que cheguei de
manhã, vou direto pesquisar quem diabos é esse tal Lucca
Baltazi, vulgo: pervertido babaca. Digito seu nome no Google e
imediatamente milhares de fotos dele pipocam na tela. Muitas
sozinho, mas a maioria delas acompanhado de belas mulheres.
Passo fotos e mais fotos até perceber que ele não repete
mulheres como não repete roupas.
— Um babaca — constato.
Além de pervertido e babaca, ele também é milionário. Ele é
fundador e dono da Atenas, a maior rede de agências de viagens
da América. Ele é grego, nascido na Grécia, mas se mudou para
o Brasil ainda criança com os pais. Sua mãe é brasileira e o pai,
grego. Atualmente, para qualquer lugar do mundo ou do país que
uma pessoa queira ir, seu primeiro passo é procurar a Atenas.
Eles dominam desde as vendas de passagens nas principais
companhias do mundo, como reservas em hotéis, pacotes
turísticos e canais de viagens na internet.
— Um babaca com sorte — defino melhor.

A semana parece se arrastar enquanto recebo olhares


atravessados e meu nome é cochichado pelo restaurante. Em
casa as coisas não estão melhores, Bianca mal fala comigo e
parece ainda me culpar por ter beijado o crush babaca dela. Não
adianta tentar falar com ela, então passo uma semana na minha,
sem falar com quase ninguém, grudada no fone de ouvido
ouvindo músicas, tentando não me lembrar que foi exatamente
assim que me senti a vida toda. Sozinha, deslocada, deixada de
lado. O que me anima é que sei que isso é temporário, a cada
vez que peço desculpas a Igor e repito o que aconteceu, ele
parece ceder mais.
Até que finalmente, ele me recebe com um sorriso e fala
algo sobre o cardápio do nosso casamento, que será escolhido e
montado por ele e sua equipe e estamos de volta aos eixos.
Os dias transcorrem mais calmos então, minha vida está de
volta ao seu lugar, meu futuro com a família que tanto sonho está
garantido. A primeira coisa pela qual me apaixonei em Igor foi
sua vontade de ter uma família grande, assim como eu. A partir
daí ele se tornou um príncipe encantado aos meus olhos. Faço a
última prova do vestido na terça. Tenho um jantar romântico com
Igor onde ele me apresenta o que será servido no casamento, na
quarta. Falta um mês para a tão sonhada data e pareço estar
cada dia mais nas nuvens por isso.
E então na quinta, como se trata da minha vida e nada
poderia dar tão certo, tudo desanda. É fim de tarde e estou
sozinha em casa, Bianca foi dormir na casa de alguma amiga.
Ela ainda me culpa pelo beijo e mal fala comigo desde então, de
forma que ao constatar que tenho a casa só para mim, me sinto
livre pela primeira vez em anos. Ligo minha playlist romântica na
televisão da sala porque estou me sentindo assim com os
preparativos do casamento e vou tomar um banho. De repente,
escuto um barulho muito alto, como uma moto derrapando na
pista pouco antes de um barulho mais alto ainda, como um
baque. Houve um acidente na rua.
Desligo o chuveiro e abaixo um pouco a música na sala,
tento ver pela janela o que aconteceu, mas não é possível ver
nada. Não há pessoas aglomeradas na rua, então talvez não
tenha sido um acidente. A noite já começa a cair e alguém bate à
minha porta. Estou apenas de roupão e penso seriamente em
não atender e voltar para o meu banho, mas a pessoa bate
novamente e diz:
— Socorro! Bati minha moto aqui em frente, preciso de
ajuda.
Abro a porta imediatamente e me deparo com ele: o
pervertido babaca.
— Você! — dizemos juntos.
O babaca tem o rosto ensanguentado, assim como a
camiseta branca que usa. Ele entra em minha casa mesmo sem
pedir permissão e só me resta fechar a porta. Ele anda de um
lado ao outro agitado, passa a mão pelo rosto ensanguentado e
faz uma careta ao ver os dedos sujos de sangue.
— Letícia, não é? Obrigado por me deixar entrar.
— Meu nome não é Letícia e eu não deixei você entrar!
— Eu só preciso de um pouco de água e lavar esse rosto.
— Ele observa a blusa branca ensanguentada com uma careta
de nojo e tira a jaqueta preta de couro que usa, revelando braços
fortes e bem definidos. — Na verdade, eu poderia tomar um
banho?
— Não! — respondo imediatamente. — Melhor não. Sente-
se, vou te dar água e olhar esse machucado. Posso limpá-lo para
você, mas é melhor você ir a um hospital. Você sofreu um
acidente.
— Foi apenas um tombo. Me machuquei assim porque a
moto derrapou pelo asfalto, e uma parte do meu corpo foi junto.
— Ainda é um acidente. É mais seguro se você for a um
hospital.
Ele assente, parece meio zonzo ao se sentar no pequeno
sofá de Bianca e só posso imaginar o quanto ela vai me odiar se
souber que ele esteve aqui quando ela não estava. Ele olha em
volta o pequeno apartamento com uma careta.
— Este apartamento é seu?
— Não, da minha cunhada, eu moro aqui com ela.
— Bem, isso é bom. Este lugar é horrível!
— Como? — pergunto aumentando o tom da voz sem
querer.
— Que curioso que eu tenha batido a moto justo em frente
à sua casa, não é Letícia? Achei que nunca mais a veria.
— Meu nome não é Letícia e isso é mesmo muito curioso.
Você não sabia mesmo que eu morava aqui?
Ele me observa confuso por um tempo, então cai na risada.
Ri até dobrar a barriga, como se eu fosse muito engraçada.
— Você acha que eu estou perseguindo você? Ah, Letícia,
sei que você teve uma experiência incrível naquela boate, mas
só a beijei porque a confundi com uma amiga minha. Se não
fosse por isso meus olhos não buscariam sua direção duas
vezes. E foi totalmente um acaso eu bater na sua porta. Acho até
que estou começando a me arrepender.
Ele se levanta de repente e olha em volta.
— Acho que vou tomar um banho até que meu segurança
chegue. Água quente sempre me acalma — diz se dirigindo ao
corredor onde fica o banheiro.
— Não! Eu disse que você não pode tomar um banho aqui!
— repito seguindo-o, mas ele já entrou no banheiro e observa
curioso minha calcinha pendurada no box.
— Um rabo? Você é bem peculiar, não é, Letícia? Acho que
acabou de se tornar um pouquinho interessante.
Tomo a calcinha de sua mão. A peça é preta e faz parte de
alguma fantasia, já que possui um rabo. Mas me foi dada por
Bianca e não perguntei de onde ela a tirou.
— Você tem cinco minutos embaixo do chuveiro ou eu
chamo a polícia para levá-lo a um hospital — decreto deixando o
banheiro quando o imbecil começa a tirar a calça na minha
frente.
Não se passaram nem trinta segundos que ele está no
banheiro e já começo a me preocupar. Quais as chances de o
homem maluco que me beijou bater justo na minha porta quando
estou sozinha em casa? Mando uma mensagem a Igor, que
confirma que não virá hoje. Por um lado, me sinto aliviada, já que
ele encontraria justo o pervertido tomando um banho e sozinho
comigo. Mas por outro, me sinto chateada que tão próximo ao
casamento ele pareça tão desinteressado em ficar sozinho
comigo no apê.
Minhas divagações são interrompidas quando o babaca
solta um grito no banheiro. Ele levou um choque no chuveiro. As
luzes do apartamento se apagam e corro até ele para socorrê-lo,
sei o quanto esses choques são dolorosos, imagina quando você
acabou de se acidentar e tem um sangramento na cabeça?
Abro a porta com tudo no escuro e trombo com ele,
desequilibrando a nós dois. Ele cai para trás, no vidro do box e
me leva junto. De repente a luz volta, me afasto dele e fecho o
roupão que abriu com a confusão que arrumamos, então reparo
que ele está completamente nu. Seus olhos passeiam
preguiçosamente por meu corpo e o seu está aqui, descoberto e
diante de mim. Tento evitar, mas não consigo, meus olhos
descem por seu abdome sarado, acompanham cada gota que
desce por sua pele e param direto em seu pau, então abro a
boca em choque. Um sorriso convencido está em seu rosto e
quando me viro para deixá-lo sozinho, dou de cara com Igor
parado na porta, olhando a cena incrédulo.
— Ah, merda!
Ele se vira e sai andando irritado e o sigo imediatamente.
— Igor, amor, não é o que parece!
— Jura? Vai me dizer o que agora, Anna Maria? Que ele
invadiu o apartamento e te agarrou no banheiro sem saber quem
você é?
— Sim! Foi quase isso que aconteceu!
Ele vem até mim nervoso e me segura pelos braços.
— Você acha que sou retardado? Você sozinha em casa,
confirmou que eu não viria, a música romântica baixa, vocês dois
nus no banheiro e no escuro e você quer que eu acredite que foi
sem querer?
— Mas foi. Merda!
Não consigo mais me defender porque começo a entender
como tudo isso parece para ele e se fosse eu em seu lugar,
nunca acreditaria em minha inocência.
— Já sei! Chame-o aqui, você deve ter visto sua moto ali
embaixo, ele teve um acidente, bateu aqui para pedir ajuda. Ele
pode te contar tudo, vamos chamá-lo.
Tento me afastar para chamar o babaca que só me causa
problemas, mas Igor não deixa. Ele segura meu braço de novo,
forçando-me a olhar para ele e diz:
— Não precisa, não é necessário. Não quero ouvir mais
nada. Chega, Anna!
Então me solta e sai do apartamento, batendo a porta. E
não faço ideia de como vou reverter isso desta vez.
— Letícia, o seu chuveiro está dando choque, você pode vir
aqui e ligá-lo? — o babaca chama e o encaro com toda raiva que
sinto por ele agora.
— Eu vou matar você! — grito e corro em sua direção, mas
antes que eu consiga alcançá-lo, ele fecha a porta do banheiro e
bato com tudo nela.
— Tudo bem, eu tomo frio mesmo — grita de lá de dentro.
Me deixo cair recostada à parede do corredor com os
pensamentos a mil tentando entender como é que vou ajeitar
minha vida agora.
Após o pequeno acidente e um banho gelado, finalmente
meu segurança me avisou que estava na porta esperando por
mim. Então abri a porta com medo da maluca descontar em mim
sua ira assassina, mas ela estava sentada no chão do corredor,
chorando copiosamente.
— Obrigado pelo banho, bom final de semana — desejei e
passei por ela, que sequer deixou de chorar para me responder,
saindo finalmente de seu apartamento pequeno e esquisito.
Agora, já atendido e deitado em minha cama, me pergunto
quais as chances de eu ter sofrido o acidente em sua rua e
batido justamente em sua porta? Foi a única em que ouvi algum
barulho e vi luzes acesas, por isso bati lá. A tiro da cabeça assim
que a ruiva cujo nome não consigo me lembrar se aproxima e
deixo a tensão do dia cansativo e estranho ir embora me
afundando nela incontáveis vezes.

Na sexta de manhã, estou criando um roteiro novo pela


minha terra com Leandro, quando Açucena bate à porta. Minha
assistente entra em minha sala envergonhada por interromper
meu processo criativo, o que sabe que detesto, e diz:
— Senhor Baltazi, desculpe interrompê-lo, tem uma mulher
ali fora procurando pelo senhor, ela está muito agitada e disse
que é urgente.
Reviro os olhos e a encaro impaciente.
— Se eu for parar minha vida para cada mulher que tem
urgência em falar comigo, Açucena, não farei mais nada.
— Ela disse que não é sua amante, senhor. Disse que Deus
a livre quando perguntei. Ela disse que o senhor acabou com a
vida dela e ela precisa muito falar com o senhor.
Leandro já está rindo e estou cada vez mais confuso. Não
conheço nenhuma mulher que não gostaria de ser minha
amante, exceto, as que já foram minhas amantes e não acabou
bem, então a visita inesperada só pode estar mentindo.
— Seja mais específica, Açucena, não tenho o dia todo.
Quem está aí?
— Ela se chama Anna Maria Costa, senhor. — A encaro
ainda confuso, não faço ideia de quem seja essa pessoa. — Mas
disse que o senhor a reconheceria como a Letícia da boate e do
banho.
Leandro ri alto agora, olha para trás curioso em vê-la e me
sinto ainda mais irritado.
— Era só o que me faltava! Mande-a ir embora, Açucena,
não posso recebê-la agora.
— Mas senhor, a pobrezinha está chorando muito, disse
que é urgente.
— E daí, Açucena? Acaso ela é a primeira mulher a
aparecer aqui chorando?
— Não senhor, mas...
— Açucena, suma com essa maluca daqui antes que eu
suma com você daqui! Não vou receber ninguém! E não tenho
nada a falar com ela, você entendeu?
Ela assente assustada finalmente deixando a sala e volto
minha atenção ao programa à minha frente, ignorando os
comentários idiotas de Leandro sobre o destino estar agindo para
me juntar com a maluca.
Passam-se alguns segundos depois que Açucena sai da
minha sala e escutamos um burburinho lá fora. Vozes altas
demais, alguém parece estar gritando. Leandro se levanta e vai
até a porta ver o que está acontecendo, quando alguém passa
por ele como um furacão. Os cabelos marrons estão
desgrenhados e os olhos de mel parecem puro fogo. A maluca
está diante de mim, o rosto tingido de vermelho e os olhos
inchados.
— Acho que fui bem claro sobre não poder recebê-la agora,
Letícia.
— Você vai me receber agora! Não tenho todo tempo para
esperá-lo — diz decidida.
Percebo o olhar de Leandro sobre ela, avaliando-a, assim
como de mais alguns funcionários lá fora e faço um sinal para
que ele nos deixe a sós. Basta um olhar para os funcionários e
eles se dispersam imediatamente, voltando ao trabalho.
— Sente-se, Letícia, já que entrou aqui. Vou recebê-la
apenas porque você me recebeu no seu apartamento na outra
noite.
— Eu não o recebi, você invadiu e acabou com a minha
vida! — grita.
Faço um gesto com a mão que a faz ficar calada e aponto a
cadeira.
— Não grite, por favor, sente-se e vamos conversar ou vou
chamar os seguranças para tirá-la daqui.
— Não vou me sentar.
— Então me conte que diabos aconteceu para você invadir
minha sala desse jeito.
— Você me beijou naquela boate na frente do meu noivo.
— Ah, então o fracote que tentou me acertar era seu noivo?
Bem, foi apenas um engano, ele não precisava ter partido para a
agressão daquele jeito.
— Cale a boca! Eu não terminei — manda irritada. —
Demorei dias para convencê-lo que não conhecia você e que
você é só um pervertido babaca que sequer se lembra das
mulheres com quem fica e finalmente o convenci. Nosso
casamento é em quatro semanas e então ele o flagra nu no
banheiro comigo.
Entendo onde ela quer chegar e começo a rir.
— Não é a primeira vez que passo por esse tipo de coisa,
acredite — confesso divertido.
— Eu posso imaginar! — responde revirando os olhos, nem
um pouco surpresa. — Mas imagino que seja a primeira vez que
a mulher em questão não tenha culpa de nada!
— Tudo bem, você venceu, foi um grande mal-entendido.
Você não faz o meu tipo, explique isso para o seu noivo e me
deixe em paz.
Ela anda até a cadeira e se joga nela. Abre o pote de
jujubas que tenho sobre a mesa e joga uma quantidade grande
delas na boca.
— Você acha que eu não tentei? Mas depois da merda do
beijo na boate e de nos pegar nus no banheiro, ele não quer nem
mesmo me ouvir!
Encaro essa mulher diante de mim e estendo as mãos
diante de seu rosto irritado.
— Não entendi até agora o que eu tenho a ver com isso. O
que você quer de mim?
— Que você vá falar para o meu noivo que foi tudo um mal-
entendido.
— Eu?
— Claro! A culpa de tudo isso é sua! Ele não vai me ouvir,
mas vai ouvir você. Quer dizer, espero que acredite em você.
Você troca de mulher como troca de roupa, talvez seja difícil ele
acreditar que existe uma mulher no mundo que você não tentou
pegar.
A encaro em choque por sua audácia.
— Pois há uma mulher no mundo que eu não tenho o
menor interesse e é você. Pode ter certeza que ele acreditaria
em mim!
— Ótimo, vá falar com ele.
Sorrio de seu jogo. Pego o telefone e chamo os
seguranças, ela não percebe o que estou fazendo. Assim que
avisto Jorge e Marcos se aproximando, digo a ela de maneira
clara para que entenda de uma vez por todas:
— Não tenho a menor intenção de resolver sua vida
amorosa. Gostaria de nunca mais vê-la, então suma da minha
empresa e me deixe em paz!
Ela abre a boca para retrucar, mas os seguranças entram, a
pegam pelos braços e a arrastam para fora da empresa. Então
posso finalmente trabalhar em paz. Quase em paz, Leandro entra
de novo para continuarmos com um sorrisinho irritante e, como
não podia deixar de ser, um comentário mais irritante ainda.
— Muito bonita a maluca que você beijou.
— Cale-se e vamos trabalhar. Por causa dela estamos
muito atrasados.
Rindo, ele se senta e volta ao trabalho finalmente.

Se eu pensava que havia me livrado da maluca, estava


muito enganado. Foi um dia cansativo, estou entediado e
cansado, duas combinações que detesto e quando entro em meu
carro no estacionamento da empresa, a porta do carona é aberta
e a maluca se joga ao meu lado.
— O que pensa que está fazendo? — pergunto encarando-
a.
— Não vou deixá-lo em paz até que vá consertar a bagunça
que você fez!
A encaro mais uma vez surpreso por sua coragem. Preciso
admitir que há muito, muito tempo uma mulher não me
surpreende assim.
— É você quem sabe, Letícia — digo arrancando com o
carro e dirijo a mais de cem por hora, ultrapassando sinais
enquanto a maluca está agarrada ao banco, branca feito papel,
com olhos arregalados e sequer consegue gritar.
Quando chegamos à porta da minha casa, ela demora um
pouco a se mover, o que me diverte. Ajeita o cabelo que já
estava desgrenhado antes do vento e confere as mãos
vermelhas pela força com que estava apertando o cinto de
segurança.
— Meu nome não é Letícia — diz quando é capaz de dizer
algo.
Ela é divertida. Corajosa, meio maluca e divertida. E
Leandro estava certo, é mesmo muito bonita. Por isso a beijei na
boate, era a mulher mais linda daquele lugar e em nenhum
momento olhou para mim. Por isso precisei beijá-la. Ninguém
ignora Lucca Baltazi.
— O que você quer, Letícia?
Ela revira os olhos ainda mais irritada.
— Eu já disse! Vá falar com o meu noivo! Você tem que
corrigir a bagunça em que me meteu.
— Ele terminou com você por conta daquela ceninha no
banheiro?
— É claro! Ele me pegou nua no banheiro com você
também nu, alguns dias depois de você ter me beijado na frente
dele! O que você acha?
— Não acho nada, não entendo essa coisa de fidelidade. O
mundo seria um lugar bem mais feliz se todos fossem livres para
curtir todos sem ter que ficar dando explicações.
Ela sorri, um sorriso carregado de deboche.
— Ah, que doce o mundo imaginário de Lucca Baltazi, não
esperava menos! Agora desça dessa sua bolha de perversão e
volte à vida real. Você é um mimado e safado que provavelmente
tem tudo o que quer, mas as pessoas à sua volta não são assim.
Será que você tem consciência disso?
— Tenho toda consciência disso, Letícia.
Ela faz uma careta, mas continua.
— Ótimo! Então você não é nenhum atrasado mental. Logo,
será possível que entenda que as suas atitudes prejudicam as
pessoas à sua volta, que não tem a vida perfeita que você tem.
Não estou falando sobre suas amantes, que se envolvem com
você e se ferram, porque imagino que recebam algo em troca.
Mas o que eu fiz para merecer isso? Eu fui sua vítima duas vezes
e você acabou com a minha vida!
— Você não precisa exagerar...
— Eu não acabei! — grita e me calo, o que me deixa
levemente irritado. — Meu casamento é em quatro semanas,
tudo o que eu tenho na vida é meu noivo. Ele é meu único amigo,
meu único amor é a única pessoa no mundo que se importa
comigo. Então você pode ter o mundo aos seus pés, pode pagar
todos os bajuladores possíveis, mas eu não. Só estou te pedindo
que vá até ele e explique o que aconteceu. Não é nada demais,
não vai ferir você. Vai fazer muita diferença para mim.
Merda! Odeio mulheres que conseguem atingir de algum
jeito esse sentimentalismo que está quase desligado em mim.
Encaro esses olhos cor de mel cheios, o medo e solidão em seu
rosto e não acredito que vou mesmo fazer isso, mas minha
consciência não me deixará em paz se não fizer.
— Tudo bem! Você venceu! Eu falo com seu noivo. Deixe
nome e endereço dele aí e assim que eu puder irei até lá — digo
e desço do carro, mas ela desce atrás de mim.
— Quando puder? Como assim quando puder? Nada disso!
Você vai até lá agora!
— Você ficou maluca? Não vou sair agora, é sexta à noite,
estou cansado e além disso, tenho outros planos.
— Você não ouviu que meu casamento é em quatro
semanas? Não posso esperar sua boa vontade em se sentir
entediado para ir corrigir o estrago que você fez! Você vai comigo
agora!
Rio de seu desespero, viro as costas e coloco a chave na
fechadura. A maluca então segura minha mão e se pendura em
minhas pernas, quase me fazendo perder o equilíbrio.
— O que está fazendo? Você é louca!
— Você vai comigo agora, ou vou atormentar você até que
tenha pesadelos comigo.
— Isso não seria muito difícil. Me solte ou vou chamar a
polícia!
— Faça isso e farei uma cena dizendo que você me trouxe
até aqui contra a minha vontade e tentou me tocar.
— Isso não é verdade!
— Até você provar o mundo todo vai saber que você tentou
agarrar uma mulher indefesa e sua agência de viagens vai perder
clientes, ações, valor comercial.
— Merda, mulher! Seu noivo deve estar dando graças aos
céus por ter se livrado de você.
Penso no que poderia fazer para me livrar dessa maluca,
mas então entendo que deve mesmo amar muito o noivo para se
dispor a toda essa confusão por causa dele.
— Tudo bem! Me solte! Vamos até a merda do seu noivo!
Ela se levanta com um sorriso tão bonito que nem parece a
mesma maluca de segundos atrás. Caminha graciosamente até o
carro e entra nele, como não o faço de imediato, ela começa a
buzinar e entro antes que realmente me enlouqueça.

— Ele é dono do Bella Itália, ele só tem um ano, mas é um


sucesso — ela conta animada.
— Nunca ouvi falar, então não é um sucesso.
— Claro! Porque a medida para o mundo do que é bom ou
não depende exclusivamente da sua opinião. Como alguém pode
ser tão egocêntrico?
Sorrio.
— Eu sou o rei do meu mundo, tenho o direito a ser
egocêntrico, Letícia.
— Anna! Meu nome é Anna, você precisa se lembrar disso
ao falar com meu noivo!
— Não prometo nada.
Ela fica finalmente calada, até avistarmos o restaurante de
esquina do seu noivo. Ao contrário do que ela pensa ele está
longe de ser famoso ou reconhecido. Mas não digo isso a ela.
Paro o carro em frente ao restaurante e espero suas instruções,
ainda não acreditando que são quase dez da noite e estou em
um subúrbio com uma maluca no meu carro para salvar a vida
amorosa dela. Leandro vai rir disso o resto da vida.
— Sabe, é legal tudo o que você tem — ela diz de repente.
— Todo o dinheiro, os bens, o prestígio e as pessoas dispostas a
fazer o que você quer na hora em que você quer. Mas a vida é
bem mais do que isso. Um dia você vai perceber, vai olhar em
volta da sua enorme mansão e entender que não tem nada.
Nada disso você vai levar embora. Nada disso vai importar
quando se sentir sozinho. Você pode comprar companhias, mas
não pode comprar sentimentos.
— Não tenho o menor interesse em comprar sentimentos.
Não os quero nem de graça.
— Ainda não. Mas você vai sentir um dia, vai ligar seu lado
emocional ao menos uma vez, vai precisar de alguém que o
entenda, no mínimo, que o aceite como é. Que não desista de
você. E essa pessoa não poderá ser comprada por dinheiro
nenhum no mundo.
Sorrio de sua ingenuidade.
— Não sei quem você é, de onde veio ou o que viveu, já
que esse noivo é tudo o que você tem, mas você é ingênua,
Anna. Você não sabe porque provavelmente não o tem, vestindo
esses trapos e morando naquele apartamento minúsculo, mas o
dinheiro compra tudo. Absolutamente tudo! Esse papo que
dinheiro não traz felicidade é balela para gente pobre. Lembre-se
disso. Seja mais gananciosa e menos fantasiosa, busque sua
independência financeira, suas próprias conquistas e não um
casamento.
Seus olhos cor de mel parecem puro fogo agora, ainda
assim, ela tem um sorriso no rosto que me irrita, como se eu
fosse o errado aqui e não ela a inocente.
— O nome dele é Igor, chef Igor para você. Você pode
entrar.
— Espero que já esteja longe do meu carro quando eu sair.
— Prometo.
Desço do carro e entro no restaurante, olhando em volta e
entendendo o quão pouco essa garota conhece da vida. Se ela
acha isso aqui o auge, não consegue sequer imaginar o que é de
verdade um bom restaurante. Passo direto pela funcionária que
nem tenta me impedir até a cozinha, mas o chef não está lá. O
que imagino ser o subchefe dele indica a direção de sua sala e
entro sem bater porque não tenho esse costume, e ali está o
babaca que tentou me acertar na boate, se atracando com uma
funcionária qualquer. Enquanto a maluca da noiva dele chora
pelos cantos achando que perdeu seu sentido na vida.
Um otário.
Ele se assusta ao me ver, se afasta da mulher tentando me
intimidar na maneira como me encara, então falo antes que ele
comece com uma ladainha qualquer:
— Estou aqui a pedido da Anna. Ia dizer a você que não
temos nada, tudo foi uma coincidência estranha do acaso e eu
nunca toquei na sua noiva mais do que o beijo que dei nela sem
querer naquela boate, mas olhando você agora...
Ele veste rapidamente as calças, o rosto já atingindo uma
tonalidade vermelha.
— Ela é boa demais para você, não é? Linda demais,
esperta demais, delicada demais. Não, você não merece alguém
como ela. Pensando bem, vou dizer a verdade. Fizemos sexo
selvagem o dia todo, como é doce a Anna, como é receptiva e
calorosa! O que você interrompeu naquele banheiro minúsculo,
fizemos muito melhor na minha casa agora pouco. Ela nem vai
sentir sua falta. Estarei disponível para ela sempre que ela quiser
repetir a dose. Enfim, só queria dizer isso.
Saio de sua sala e ele vem atrás de mim praguejando algo
que sequer presto atenção. Avisto Anna na porta do restaurante,
os olhos esperançosos, sorri quando vê o imbecil do noivo me
seguir e caminho mais rápido para alcançá-la antes dele. Seu
sorriso de gratidão é tão bonito que me sinto um pouco mal pelo
que fiz a ela, mas vai ser bem melhor assim para ela. Ele não a
merece. Ela precisa querer mais da vida do que um homem.
— Tudo resolvido, linda — digo acariciando seu rosto e ela
parece imediatamente confusa. — Me agradeça depois —
completo enfiando os dedos em seus cabelos e puxando sua
boca de encontro a minha para mais um beijo delicioso.
Ela é maluca, simples demais e inocente, mas é deliciosa.
O beijo dela é delicioso. Há um calor nela, como um incêndio
contido por sua personalidade pacata, mas esse fogo queima
dentro dela e vem à tona em seus lábios. Sempre receptiva,
sempre corresponde, mais uma vez me deixa duro com apenas
um beijo.
A solto então, atordoada e confusa. Ela encara o noivo em
choque e deixo o restaurante. Ela queria minha ajuda, minha
parte está feita.
Caminho pelas ruas escuras da cidade. Tudo o que tenho
está em uma mochila nas minhas costas. Há exatos vinte
minutos fui expulsa de casa por Bianca. Ainda bem que seu
apartamento não é longe do abrigo onde passei algumas noites
anos atrás, ao sair do orfanato.
Viro a conhecida rua e vejo a fila esperando por uma vaga
no pequeno abrigo. Me recosto na parede de uma loja qualquer e
pego o celular para tentar de novo, só mais uma vez, ligar para
Igor. Mas então suas palavras duras ditas uma hora atrás voltam
à minha mente e escolho manter ao menos um pouco do meu
orgulho já que não tenho mais nada.
— Esse babaca egoísta!
Ralho sozinha minha raiva pelo pervertido babaca ter
fingido que ia me ajudar para então me beijar na frente do Igor.
Não sei o que disse a ele, mas com certeza ele apenas se vingou
por eu tê-lo forçado a ir até ali comigo. Ele estava certo, fui
mesmo muito ingênua ao acreditar que ele me ajudaria de
alguma forma. Quando ele deixou o restaurante e encarei um
Igor vermelho como um tomate, não esperava menos do que ser
demitida e expulsa de sua vida. O que eu não esperava de jeito
nenhum foi o que ele disse depois.
— Suma deste restaurante e da casa da minha irmã. Fomos
bons demais com você, Anna, e você não passa de uma parasita
interesseira que só enxerga em mim uma casa para morar, um
bom salário e uma garantia que não ficará sozinha de novo. Mas
quer saber? Você nasceu sozinha e cresceu sozinha porque
merece ser sozinha. Gentinha como você morre sozinha.
Não tive forças para respondê-lo, porque ele atingiu onde
mais me dói e ele sabia muito bem o que estava fazendo. Fui ao
apartamento de Bianca apenas pegar minhas coisas e ela já me
esperava em meu quarto, tomou tudo o que deu a mim nesses
últimos dois anos em que moramos juntas e me colocou para
fora apenas com o que eu tinha quando me mudei para lá.

A fila em frente ao abrigo acabou agora e torço que ainda


haja alguma vaga. Tenho pouco dinheiro, não receberei acerto e
não gostaria de ter que pagar um hotel esta noite.
Para minha sorte, há uma última vaga, me aconchego no
colchão duro e desforrado, sem nem mesmo conseguir tomar um
banho e apenas durmo porque estou mesmo realmente cansada.

No sábado, pago por um banho em um motel barato do


centro, penteio os cabelos desgrenhados e visto minha melhor
roupa. Vou conseguir um emprego.
Chego à sede da Atenas e sorrio docemente para o
segurança. Digo que estou aqui para uma entrevista de emprego
com Lucca Baltazi, mas o armário me comunica que a empresa
não funciona aos finais de semana, portanto, seu patrão rico e
metido não está ali.
Deixo meu plano de conseguir um emprego na Atenas para
segunda, agradeço a informação e ando de volta ao ponto de
ônibus com minha mochila nas costas. Detesto essa sensação
de não saber o que vai ser da minha vida hoje à noite. Passei por
isso por um longo ano até conseguir um emprego em um
restaurante, onde Igor trabalhava, onde o conheci. Como algo em
uma lanchonete barata, passeio um pouco pelo centro da cidade
e quando a noite cai, decido voltar ao abrigo, quanto mais cedo
eu chegar melhor para garantir mais uma noite sob um teto.
Uma chuva começa a cair quando viro a conhecida rua do
abrigo e corro sobre meus saltos, apenas para ficar duas longas
horas enfiada lá dentro com mais um monte de pessoas que não
têm para onde ir. Há muitas crianças esta noite, são de duas
famílias do interior que só tem passagem de volta para a manhã
seguinte e não tem onde passar a noite. As freiras que cuidam do
abrigo começam por essas famílias, pegando seus nomes e
dados para que eles possam descansar. Faço uma contagem
mental rápida e percebo que não terei espaço aqui esta noite.
— Anna, minha querida, se você tem qualquer trocado que
pague a pensão da esquina, por favor, durma lá. Não temos vaga
esta noite, sinto muito.
— Tudo bem, obrigada irmã Dulce — respondo, mas não
pretendo pagar a pensão da esquina.
Pego o ônibus de volta à empresa do pervertido e agradeço
mentalmente o quanto sou boa em decorar ruas e como as contei
na noite em que ele dirigiu feito um louco até sua casa. Então,
aos prantos por gastar meu dinheirinho, chamo um táxi e vou até
sua casa.
Paramos na porta do condomínio e temo que não vá passar
pela segurança, mas quando digo que Lucca Baltazi está me
esperando, o segurança me avalia com uma expressão que não
entendo, e, com um sorrisinho de lado, me deixa entrar. Ainda diz
ao taxista que irá pagá-lo, o que me faz finalmente abrir o
primeiro grande sorriso do dia.
Nem quero imaginar quantas mulheres chegam aqui todas
as noites para que o porteiro pague o táxi de uma desconhecida
só porque ela citou o nome de Lucca Baltazi, mas estou grata por
sua perversão sem limites e babaquice.
Subo as escadas até a porta da frente e dou três leves
batidas. Demora um pouco até que a porta seja aberta, é o
próprio Lucca quem o faz. Ele me encara como se eu fosse um
fantasma no começo, mas logo, sua expressão se torna irritada.
— O que é que você quer, Letícia?
Ele usa uma blusa social branca aberta, deixando à mostra
seu abdome sarado e uma calça jeans que ao meu ver está
apertada demais. Os cabelos negros estão molhados e ele
prende um relógio dourado no pulso enquanto espera minha
resposta.
— Meu nome não é Letícia. Não tenho onde dormir hoje.
Seus olhos deixam o relógio e voltam a mim e um sorriso se
estende em seu rosto.
— E eu com isso?
— Você com isso? Você com isso que a culpa é toda sua!
— grito apontando um dedo para seu rosto. — Você disse que ia
me ajudar, então foi lá e me beijou na frente dele, que merda
você tinha na cabeça?
— Eu disse que iria ajudá-la, e acredite, eu a ajudei. Não
tenho tempo esta noite, então, adeus Letícia.
Antes que eu possa responder, ele bate a porta na minha
cara.
Volto a bater, incontáveis vezes, cada vez mais forte, mas
sequer escuto seus movimentos pela casa, como se ele nem
estivesse mais aqui. Pouco depois, seu carro passa pela rua,
saindo da garagem e ele ainda buzina e me dá tchau, sumindo
pela noite.
— Se eu chamar um táxi até a pensão da esquina, será que
o porteiro paga de novo? Acho que não.
Com essa constatação, me sento recostada à porta do
pervertido e decido esperar que ele volte. Mas a chuva volta a
cair, estou encharcada e tremendo de frio e nem um pouco afim
de ficar aqui a noite toda. Dou a volta pela casa procurando
alguma entrada, até que avisto o portão da garagem por onde ele
saiu. Este é um condomínio de mansões sem muros, graças aos
céus. Entro em sua garagem, mas a porta de acesso à sua casa
está trancada. Então dou a volta de novo, estou em um quintal
amplo, com a maior piscina que já vi na vida. Caberia toda a
família que estava no abrigo dentro dela.
Encontro sua área gourmet, encantada com a beleza do
lugar e então avisto justamente o que procurava: uma janela
aberta.
Ainda bem que nunca reclamei da minha baixa estatura.
Passo pela janela e estou em uma área de serviço. Abro a
porta e estou em uma cozinha cinematográfica, grande,
imponente e melhor equipada do que os restaurantes onde
trabalhei. Tomo um copo de água, e, pingando pela casa, passeio
pela mansão procurando um quarto com toalhas para me secar.
Encontro três quartos enormes e pego uma toalha no
primeiro deles. Tiro a roupa molhada e a levo até a lavanderia
para pendurá-la e visto uma blusa confortável da minha mochila.
Então reviro sua geladeira em busca de algo para comer.

Estou vendo televisão quando ouço o barulho de um carro


se aproximando, logo, ouço uma voz feminina além da dele e a
porta da frente sendo aberta. Eles derrubam alguma coisa pelo
caminho, provavelmente se pegando. Abaixo o volume da
televisão e torço que eles passem direto sem me ver aqui, mas
claro que não acontece.
Eles passam pela porta da sala de televisão se beijando e
tirando as roupas, mas então, o barulho da sucção exagerada
dos beijos cessa e ele volta para trás, com uma careta nada boa
ao me ver aconchegada em seu sofá.
— Que merda você está fazendo aqui? — grita irritado.
— Eu disse, não tenho onde dormir por culpa sua. Não vou
atrapalhar, vocês podem subir, eu durmo aqui mesmo. Esse sofá
mais parece uma cama.
Ele ri de incredulidade, não há felicidade alguma em seu
riso.
— Dormir aqui? Nem pensar! Saia da minha casa agora
mesmo antes que eu chame a polícia.
— O que está havendo, amor?
A mulher seminua aparece na porta. Ela tem o cabelo
platinado e usa uma lingerie atrevida que eu não teria peitos para
usar.
— Nada, Francesca, só um engano, ela já está de saída.
— Não vou sair, eu não tenho onde dormir!
— E eu não tenho nada a ver com isso!
— A culpa é toda sua!
— Anna, saia da minha casa agora mesmo!
— Você nem vai saber que estou aqui.
— Estou ciente disso neste momento! Saia!
Nego com a cabeça, ele se aproxima irritado e me pega
pelo pulso. Me arrasta por sua casa como se eu não pesasse
nada, enquanto a Barbie seminua nos segue assustada. Sem
saída, começo a chorar imediatamente.
— É assim que você vai agir? Me engravida e depois me
coloca para fora?
Ele para de andar e me encara, em seguida, olha para a
Barbie que já está vestindo as roupas.
— O quê? Eu não... Fran, ela está mentindo! Eu sequer a
conheço, nunca tivemos nada!
— Você acabou de chamá-la pelo nome! E você disse que
estava mudando, que queria sossegar, você não muda, Lucca!
Ela passa irritada por mim e bate a porta.
Lucca ainda aperta meu braço em sua mão e quando meus
olhos encontram os seus, acho que vou morrer.
— Opa!
— Minha vontade é matar você! Sua maluca! Suma da
minha casa e não apareça na minha frente de novo!
Então ele me joga pela porta, joga minha mochila pouco
depois e reclamo por mais uma roupa molhada.
— Que espécie de monstro atira uma mulher indefesa na
chuva no meio da noite? — apelo para sua culpa, mas só recebo
o baque da porta batendo como resposta.
Espero um tempo escondida atrás de uma árvore até que
as luzes de sua casa sejam apagadas e entro pelo mesmo
caminho de antes. A mesma janela, a mesma área de serviço.
Vou a passos leves até a sala de televisão e não me atrevo a
ligar a tela dessa vez. Me aconchego no sofá enorme e espaçoso
e durmo.

Tive uma das melhores noites da minha vida em uma cama


confortável, um cômodo escuro e um silêncio que me faz manter
os olhos fechados por mais alguns minutos após acordar apenas
para apreciá-lo. Geralmente eu acordo com o som de carros,
motos e pedestres na rua movimentada onde fica o apartamento
da Bianca.
Mas claro, não estou mais no apartamento da Bianca.
— Preciso sair daqui — sussurro baixinho ao me dar conta
de onde estou e abro os olhos para dar de cara com um rosto
próximo demais ao meu e olhos cinzas nada amigáveis cravados
em mim. — Merda! Você é louco? Não se acorda uma pessoa
assim! — reclamo sentando-me o mais distante possível dele,
que permanece calado, os olhos cinzas perscrutando meu rosto
e uma expressão nada amigável me deixando com medo.
Sorrio, ele não sorri de volta, mas tento assim mesmo já
que ainda não se moveu para me atirar na rua de novo.
— Bom dia, senhor Baltazi. Como foi a sua noite? — Ele
não responde, mantém a expressão séria enquanto me avalia e
seu silêncio somado a maneira estranha como me olha, está
começando a me assustar. — Imagino que solitária. Graças a
mim, claro. Não foi proposital, eu só queria um teto para passar a
noite, você sabe, eu morava com a minha cunhada.
Paro de falar porque ele ainda não responde. De repente,
um sorriso surge em seu rosto e imediatamente sorrio de volta.
Com um tom de voz bem baixo, tão baixo que preciso aproximar
meu rosto do seu para ouvi-lo, ele diz calmamente:
— Acho que eu sei como fazer isso.
Apenas isso, nenhum indício ou conclusão do que está
falando.
— Isso o quê? — pergunto finalmente algum tempo depois.
— Esconder um corpo! — diz alto e antes que eu possa
impedir, me pega pelos ombros e me levanta do sofá sem
dificuldade. — Como foi que você entrou aqui, Anna?
— Pela porta — minto.
— Estava trancada. Todas as janelas fechadas e,
aparentemente, nada foi arrombado.
— Então eu atravessei a parede.
Embora seu olhar assassino esteja me assustando, não
posso revelar minha janela secreta, ou não poderei entrar de
novo esta noite caso ele me expulse.
— Você está calado a tempo demais! Pode ao menos me
soltar? — reclamo após alguns segundos em que ele apenas me
observa, como se estivesse tramando a minha morte.
— Estou machucando você?
— Não, mas também não está me deixando confortável.
Ele ri, ri alto, os ombros sacudindo e por consequência os
meus ombros sacudindo também.
— Ela não está confortável. Eu aqui me decidindo entre
chamar a polícia ou assassiná-la e esconder o corpo e ela está
preocupada com as minhas mãos em seus ombros — comenta
olhando para o lado, como se alguém estivesse ouvindo.
— Com quem você está falando?
— Com o diabinho no meu ombro me mandando matar
você! — responde com tanta convicção que engulo em seco e
minha voz falha quando tento acalmá-lo.
— Será que podemos conversar como dois adultos?
Espero que ele vá me sacudir até eu me calar, mas
surpreendentemente, ele me solta. Se vira e sai andando, faz um
gesto com a mão sem olhar para trás ao passar pela porta e o
sigo imediatamente. Ele vai até a cozinha, pega uma garrafa de
água na geladeira e me encara. Me sento na bancada com o
melhor olhar inocente que posso e me explico:
— Eu sei que o obriguei a ir comigo na outra noite e você
não queria isso, mas eu não tinha outra saída. Ainda assim,
mesmo ciente disso, você me fez perder tudo o que eu tinha. Eu
pedi a sua ajuda, custava uma vez na vida fazer algo por
alguém?
Ele coloca a garrafa sobre a bancada e não diz nada. Seus
olhos estão em mim e sua expressão continua fechada. Penso
que manter o silêncio agora é a melhor resposta, mas então ele
sussurra algo que não sou capaz de decifrar virando o rosto
levemente para a esquerda. Como se alguém estivesse ali,
falando em seu ouvido. Do lado esquerdo só pode ser o diabinho.
— Você me beijou na frente dele! Que parte você não
entendeu quando eu disse que ele era tudo o que eu tinha? Eu
morava com a irmã dele, trabalhava com ele, planejava um futuro
com ele e você me beijou! Eu não tinha para onde ir!
Estou nervosa, minhas mãos tremem, meus olhos estão
cheios e ele continua aqui, maquinando algo, ouvindo o maldito
diabinho, pensando em que lugar do seu quintal enorme poderia
esconder meu corpo.
— Você tem ciência que o que fez é um crime, não tem,
Anna? — Assinto e ele continua. — Tem ciência de que se eu
chamar a polícia, não importa que historinha você vai inventar,
você invadiu a minha casa e vai parar atrás das grades, não
tem? Eu espero mesmo que você não seja tão burra quanto está
demonstrando ser.
— Mas seu porteiro me deixou entrar. Ele até pagou o meu
táxi — tento me justificar.
— Por que você está aqui? E não venha me dizer que é
porque não tem para onde ir, porque isso não é da minha conta!
— Não é obvio? — pergunto irritada. — Uma vez que você
me fez perder o meu noivo, o meu emprego e o meu teto, é justo
que você se vire para me dar tudo isso de volta!
Ele ri alto agora. Está dando voltas pela cozinha com as
mãos no rosto e não parece nem um pouco compreensivo.
— Você, Anna Maria, é uma maluca! Você é alguém que
invade a empresa de uma pessoa que não conhece, invade o
carro e se não fosse o bastante, invade a casa. Que acha que
tem justificativa você estar no meu sofá quando acordei de
manhã. Me pergunto se você é tão ingênua que pensa que eu
apenas a deixarei ir sem puni-la por isso ou se é mesmo maluca
e não tem noção do quanto está me irritando agora — seu tom é
ameaçador. É calmo em contraste com a tempestade em seus
olhos, ele fala baixo, com a mandíbula travada e parece se
conter para não me estrangular pelos movimentos estranhos que
está fazendo com os dedos. Se aproxima de mim
desnecessariamente, perto demais, tanto que sua respiração se
mistura com a minha, mas não cedo. Não posso demonstrar que
estou quase fazendo xixi nas calças, porque estou no meu direito
aqui.
— Eu quero um emprego — digo de repente. — Seja
razoável, ok?
— Razoável? Você invadiu a minha casa!
— Supera isso, já passou.
— Mas você ainda está aqui!
— Mas você já sabe disso! Se não me expulsou é porque
não estou mais contra a sua vontade. Então para de agir como
um riquinho mimado e me arruma um emprego. Então eu terei
como pagar um lugar para dormir e saio da sua preciosa casa.
— Acho que você não entendeu, eu vou chamar a polícia
para você.
— Pois então chame! Ótimo! Assim vou ter onde dormir
esta noite. Mas você ainda será responsável por eu ter perdido o
meu emprego. E o meu teto.
Ele se afasta respirando ruidosamente e abre a geladeira.
Acho que só para refrescar as ideias, já que não parece estar
procurando nada lá dentro. Logo, seus olhos se voltam a mim e
espero outro acesso de fúria, mas ele diz de maneira calma:
— Você vai ser minha nova cozinheira. Pode ficar aqui, lá
atrás, na dependência de empregados. Você começa agora
mesmo já que não tem para onde ir. Só tome um banho e lave
esse rosto, então prepare meu café da manhã.
Assinto me levantando imediatamente. Seus olhos
percorrem meu rosto vagarosamente e depois seguem pela
roupa que uso até os pés descalços. Então voltam ao meu rosto.
— Por que mesmo estou fazendo isso? — pergunta mais
para si mesmo.
— Porque a culpa foi sua — respondo prontamente e ele dá
um passo em minha direção, a ira tomando de novo seu rosto.
— Suma da minha frente antes que eu mude de ideia,
porque já sei exatamente onde esconder seu corpo!
Saio correndo da cozinha de volta à sala de televisão, pego
minha mochila e volto para a cozinha procurando a dependência
de empregados da casa.

Tomo banho cantarolando, o alívio que sinto por saber onde


vou passar minha noite parece deixar minha alma com apenas
metade do peso de minutos atrás. Encaro o banheiro espaçoso o
suficiente, com água quente e que não dá choque. E eu ficaria
aqui por horas se não tivesse que fazer o café do meu novo
chefe.
Visto um vestido leve, prendo os cabelos em um coque
rápido e vou fazer o seu café. Abro a geladeira ainda com
vontade de cantarolar, quando me dou conta que não faço a
menor ideia do que fazer a seguir.
— Você pode fazer ovos mexidos cremosos, um suco
natural de laranja com acerola e torradas. Algo simples para seu
primeiro dia — uma voz ordena atrás de mim e me viro para
encontrar meu novo chefe sentado, observando meus passos.
Sorrio e assinto, procurando os ovos nessa geladeira
enorme.
— Se você não achasse um lugar no seu quintal para
esconder um corpo, poderia fazê-lo tranquilamente nessa
geladeira — comento e escuto um riso. Dura pouco, mas sei que
ouvi. — Ovos, ah, claro, laranjas. Achei a acerola.
Coloco tudo sobre a bancada e volto a geladeira. Como
será que se faz ovos mexidos cremosos? Com alguma espécie
de creme? Não parece ter creme algum aqui. Por que raios Igor
nunca fez isso para mim em um café da manhã qualquer?
Sob o olhar atento do meu chefe, pego os ovos que saparei,
encontro uma variedade de temperos enorme e demoro um
pouco para saber o que é o sal, então fico mais vinte minutos
procurando a frigideira. Tento esconder o leve tremor em minhas
mãos quando quebro os ovos na frigideira e adiciono o sal. Ele
me observa em silêncio, então ainda não fiz nada errado. Viro os
ovos pouco depois e ele se levanta. Aproxima-se em silêncio e
finalmente diz:
— Que merda você está fazendo? Eu disse ovos mexidos.
Balanço a frigideira bem diante dos seus olhos que agora
não estão mais cinza. Não consigo decifrar qual a cor deles
agora.
— Estou mexendo, não está vendo?
Ele me encara prestes a chorar, é essa sensação que
tenho.
— Você está brincando comigo, não está? Anna, você sabe
o que são ovos mexidos?
— Claro que eu sei! Eu trabalhei em restaurantes nos
últimos três anos!
— Então você só está fazendo isso para me irritar? Você
trabalhava em que função no restaurante do seu estimado noivo?
— Hostess.
— Não na cozinha.
— Eu raramente ia à cozinha.
— Estou percebendo. Você sabe cozinhar alguma coisa,
Anna?
— Não sou nenhuma tapada, ok?
— Ok. O que você sabe cozinhar? Porque ovos mexidos
você não sabe! — pergunta irritado desligando o fogão e
abandono a frigideira admirada com meus ovos fritos tão bonitos.
— Outras coisas — tento enrolar, mas encaro seu olhar
impaciente e decido ser sincera — quase nada — respondo
baixinho.
— O que você disse? Fale mais alto. Repita em alto e bom
som sua resposta, porque tenho certeza que você não aceitaria
um emprego de cozinheira se sua resposta fosse mesmo quase
nada.
— Oras, mas eu aprendo a cozinhar em um segundo.
— É mesmo? — Ele cruza os braços, nada divertido. —
Como?
— YouTube, claro — respondo pegando o celular, mas ele o
tira da minha mão e o arremessa longe.
— Saia da minha casa agora mesmo! Eu ainda tentei ser
legal com você, mas você não passa de uma maluca!
Oportunista e maluca! Pegue suas coisas e suma daqui!
— Mas eu juro que aprendo... — tento argumentar, mas ele
já saiu da cozinha e não me resta outra coisa a não ser ao
menos por hora, pegar minhas coisas e sair.
Vou tentar mais uma noite no abrigo e amanhã de manhã
estarei de prontidão em sua empresa até que ele me dê algum
cargo lá. Algo que eu possa realmente fazer.

Não tive sorte no abrigo esta noite, então, antes que seja
tarde demais, pego um táxi até a casa dele, de novo. Como
ontem, vou esperar que durma e entrar pela janela. O porteiro me
deixa passar e paga o táxi mais uma vez. Uma garota poderia se
acostumar com isso. A casa parece escura quando me aproximo,
o que me faz questionar se ele não tem empregados numa casa
tão grande! Dou a volta pelo imóvel e não parece ter ninguém em
casa, o carro da outra noite não está na garagem, ele não está
em casa.
Sorrio, feliz com minha sorte, já que estou faminta e
cansada e vou até minha janela secreta, passo por ela sem
dificuldade e saio na lavanderia escura. Acendo a luz para
enxergar o caminho e dou de cara com alguém alto, trajando
camisa social branca e uma expressão carrancuda, que me faz
gritar imediatamente de susto.
— Então foi por aqui que você entrou.
— Não! Foi uma feliz coincidência — minto.
— Saia! — ele ordena com uma sombra de sorriso surgindo
em seu rosto.
— Você parece estar rindo, então não sei se está mesmo
me mandando embora ou...
— Não me irrite, Anna, saia daqui agora mesmo! Ande! Vou
chamar a polícia, saia!
Sem saída, saio pela mesma janela por onde entrei, e o
monstro cruel que me tirou tudo a fecha e a tranca, certificando-
se de que não vou entrar de novo. Pouco depois, seu carro
passa por mim e ele ainda buzina ao se despedir.
— Ele nem ia ficar em casa e não me deixou ficar também.
Esses ricos metidos! — reclamo sozinha andando de um lado a
outro em frente sua casa enquanto penso no que fazer.
— Boa noite, princesa, está perdida? — uma voz alta
demais e alegre me faz perceber a presença de dois homens
jovens. Sorrio em resposta, já que eles exibem sorrisos calorosos
para mim.
— Não exatamente, era pra eu dormir aqui, mas parece que
não poderei mais.
— Você não tem para onde ir? — um deles pergunta.
Percebo que, apesar do porte alto e forte, ele tem o rosto jovem
demais. Não tenho certeza que já seja maior de idade, mas
possui um copo de alguma bebida colorida na mão.
— Na verdade, não.
— Gostaria de participar da nossa festa? Vai durar até de
manhã. Você pode comer alguma coisa, beber um pouco, se
divertir. E quando se sentir cansada, há muitas camas
disponíveis onde pode dormir.
Abro o meu maior sorriso, mal acreditando em tamanha
sorte.
— Jura? Não vou atrapalhar vocês?
Ele aponta para a mansão ao lado da de Lucca, de onde
saem várias luzes, música alta e há tantos carros estacionados
na porta, que sequer consigo contá-los.
— A casa está cheia, uma pessoa a mais não vai
incomodar em nada, além do mais, você é minha convidada.
Vamos?
— Claro! Meu nome é Anna, a propósito, como vocês se
chamam?
Assim, os sigo até sua casa, como algo logo que entramos,
e mesmo me sentindo tão deslocada aqui dentro, pois
claramente as pessoas nessa festa tem muito dinheiro, eles me
tratam como se eu fosse a convidada de honra aqui. Provo um
pouco da bebida colorida que estão tomando e logo estou
enturmada e dançando pela primeira vez em público.
— Chupa Lucca, pervertido babaca! — grito amimada,
recebendo apoio e peço mais um pouco da bebida colorida. A
noite vai ser ótima.
— Parece que vai chover —
Larissa comenta ajeitando os fios que insistem em se rebelar ao
vento.
Não parece que vai chover, mas ela quer que eu suba de
novo o teto do carro para não bagunçar seu cabelo, então o faço,
afinal de contas, não ganhei minha fama de cavalheiro por nada.
Estar com esta mulher no meu carro é uma honra, não conheço
um único homem do nosso círculo social que já tenha saído com
ela. Larissa Crepaldi é uma herdeira bastante conhecida,
engajada em muitas causas sociais e conhecida como santinha.
O apelido não veio apenas pelas instituições que ajuda e os
eventos beneficentes que organiza, mas também porque tem um
lema de vida bastante retrógrado quando se trata de sexo. Ela
acha que uma mulher não deve ter experiências sexuais com
muitos homens. Na verdade, ela defende isso veementemente.
Me é confuso porque uma mulher poderosa e tão bem informada
tenha tamanho machismo impregnado em sua cabeça, para
defender que mulheres não podem viver o prazer e fazer o que
quiserem com seus próprios corpos porque seria errado. No meu
lema de vida, errado seria uma mulher se privar do que deseja
por medo de errar. E até acho uma pena que uma mulher tão
influente como ela não seja um exemplo para outras de que elas
precisam ser livres. Mas é a opinião dela e só me resta respeitá-
la.
O que quer dizer que, se ela está indo para a cama comigo
esta noite, espera que tenhamos um relacionamento sério que
acabe em casamento. Quase rio ao seu lado ao constatar isso. O
que não faço por uma mulher bonita.
Meus vizinhos estão dando uma festa de novo. Há jovens
bêbados espalhados por toda rua, é a terceira na última semana,
desde que seus pais viajaram para a Grécia, seguindo um
conselho meu.
— Uh! Seus vizinhos são animados! — ela comenta quando
paro o carro na rua, já que a entrada da minha garagem está
impedida e descemos.
— São uns idiotas. — Estendo a mão ajudando-a a sair do
carro e seu sorriso é a garantia que a noite vai ser do jeito que eu
planejei. — Posso te garantir que nossa festa particular vai ser
muito mais animada esta noite, senhorita.
Seu sorriso agora é carregado de malícia. A guio até a
entrada da minha casa, e então direto até a cozinha, em busca
do Malbec para começarmos do jeito certo. Abro a garrafa e
enquanto sirvo duas taças, escuto uma risada alta demais vinda
de não tão longe, é aí que a vejo. Preciso esfregar os olhos para
ter certeza que não é uma alucinação, mas não é. A maluca que
invadiu minha casa está na festa dos vizinhos. Ela tem o resto de
alguma bebida na mão, cambaleando perto demais da piscina,
enquanto o caçula dos meus vizinhos tem suas mãos na cintura
dela, impedindo que caia. Ao lado dele, um amigo qualquer a
olha da mesma maneira como estive olhando a mulher em minha
cozinha a noite toda.
— Merda!
Abro a porta de acesso a área externa e me aproximo o
bastante para que ela me ouça.
— Anna! O que você está fazendo aí? Está tudo bem?
Ela demora um pouco a me encontrar, quando o faz, ri alto
e engasga com a bebida. Dá de ombros e tenta andar em minha
direção, mas está tonta demais.
— Psiu! Cale a boca, pervertido babaca! Eu tenho onde
passar a noite agora, você vê? Nem todo homem rico é um
babaca como você!
Não dá para ter uma conversa com ela, definitivamente.
— Diego — chamo o caçula igualmente bêbado — o que
ela está fazendo aí?
— O que você acha? — responde fazendo um gesto
ridículo com o quadril do que pretende fazer com ela, ganhando
como apoio o riso e palmas do amigo.
Encaro Anna esperando que ela tenha visto as pretensões
de seu anfitrião, mas ela está olhando para o céu e rindo. Não
parece capaz de entender o que vai acontecer.
— Querido — a voz delicada de Larissa soa atrás de mim.
— O que está havendo? Vamos entrar?
O que acontece com essa maluca não é problema meu.
Então me viro para a mulher diante de mim e ela me beija,
guiando-me de volta à cozinha. Mas escuto a risada da maluca,
pedindo alto demais que alguém não toque a perna dela, levando
aquilo na brincadeira em seu estado alto. E merda, por algum
motivo sinto que a culpa é minha.
— Por que não chamei a polícia? — pergunto a mim
mesmo e vejo o olhar confuso de Larissa. — Sinto muito, gata.
Acho que você não vai gostar disso — advirto afastando-me dela
e pulando a cerca até o quintal dos vizinhos. — A festa acabou
para você, Anna, você vem comigo — ordeno pegando-a pelo
braço, mas Diego a segura pelo outro.
— Ela é minha convidada, você não vai levá-la daqui.
Encaro o garoto franzino que se acha um homem, ele tem
marcas no abdome provenientes de alguma bomba e acha
mesmo que pode me enfrentar. Sorrio para ele, já impaciente.
— Solte a minha amiga e me deixe sair logo daqui, Diego,
vai ser melhor para você.
— Ela é minha esta noite, você não vai entrar aqui e tomar
minha mulher assim.
Seus amiguinhos gritam o apoiando e se aglomeram à
nossa volta. Encaro Anna quase desistindo e deixando-a aqui
com eles, mas ela está olhando o liquido vermelho em seu copo
e rindo como se tivesse encontrado um tesouro.
— Solte-a, Diego, último aviso.
— Ou o quê?
Encaro os amiguinhos nos cercando, gritando
repetidamente briga como um bando de adolescentes chapados.
E então essa maluca com seus cabelos marrons rindo para o
nada e me irrito.
— Vou brigar mais uma vez por sua causa! Satisfeita?
Ela franze o cenho confusa e a solto. Diego tem o maior
sorriso no rosto achando que me venceu.
— Um — começo a contar e seu sorriso some, a irritação
tomando suas feições. — Dois. Ainda não está com medo,
bebezinho? Não é assim que sua mãe faz? — Ele dá um passo
em minha direção, tentando me acertar, mas ainda segura Anna
pelos braços. — Três.
Encerro a contagem e o acerto com um soco no nariz. Um
soco rápido e forte o bastante para desequilibrá-lo. Ele solta
Anna e cai para trás. Sua horda de seguidores se aglomerando
em volta dele enquanto jogo a maluca nos ombros e a tiro daqui.
Encontro Larissa na cozinha, sua taça já vazia e sua
expressão ao ver Anna não é das melhores.
— Você está brincando comigo? — pergunta irritada.
— Sinto muito, eu avisei que você não ia gostar.
— Você é inacreditável, Baltazi! — reclama jogando a taça
com força desnecessária sobre a bancada e saindo da cozinha.
A sigo em silêncio com Anna nos ombros e nem tento
impedir quando ela pega a bolsa, o casaco e bate a porta ao sair.
— Mais uma perda para sua conta, sua maluca —
resmungo jogando-a no sofá.
Ela se senta e me encara, olha em volta, reconhecendo
onde está e ri. Ri alto, dobrando a barriga e perdendo o fôlego.
Me sento em uma mesa de centro de frente para ela e espero.
Por que mesmo ela está na minha casa agora? Que merda estou
fazendo?
— Sua companhia da noite foi embora. Mas não se
preocupe, o porteiro vai pagar o táxi dela — comenta arrastado.
— Eu também não tenho companhia essa noite — comenta
depois, o riso sumindo. — Nunca tenho companhia.
— Coitadinha de você. Deite-se aí e durma — ordeno
levantando-me para ir tomar um banho e dormir, mas então ela
soluça e começa a chorar.
Ela chora alto, deita em uma das minhas almofadas e não
tenho certeza se está passando mal.
— Ela não me quis, me abandonou na porta de um
convento. Não parece uma novela mexicana triste? A pobre
menina órfã. Mas é minha vida. Minha mãe não me quis. As
crianças não me quiseram, eu não tinha amiguinhas. Nem na
escola. Eu não gostava de ninguém porque achava que todo
mundo ia me deixar.
Ela chora mais alto e não sei o que fazer.
— Ok, fique aí chorando, quando terminar você deita
nessas almofadas e dorme, tudo bem?
Me viro para deixar a sala e encerrar a noite de um jeito
totalmente oposto ao que eu havia planejado, mas ela se joga em
minhas pernas, quase me desequilibrando.
— Não! Não me deixa você também! Conversa comigo! —
pede aos prantos.
— Isso é mesmo necessário?
— Por favor.
— Cinco minutos — me viro levantando-a do chão e a
ajeitando no sofá da maneira mais confortável possível.
Ela leva as mãos à cabeça, como se sentisse dor.
— Antes que você comece com sua novela mexicana, é
possível que esta seja a primeira vez que você bebe, Anna? Eu
preciso providenciar um balde?
Ela parece confusa.
— Eu não bebo — responde, deixando claro que sim,
preciso de um balde.
— Continue com a ladainha, seu tempo está passando.
— Eu esperei por anos alguém me adotar, mas ninguém me
escolhia. Eu nunca fui boa o bastante. Então eu desisti, parei de
me arrumar quando era dia de visitação, parei de sorrir e tentar
parecer inteligente. Eu nunca fui muito inteligente — confessa
como se isso fosse um grande segredo.
— Não diga!
Volto a me sentar na mesa de centro enquanto ela fala sua
verdadeira vida de novela mexicana. Se ela não viu isso que está
contando numa tarde qualquer no SBT, sua vida foi mesmo uma
merda. E então reparo o quanto seu rosto está vermelho por
conta da bebida e como ela ri e chora, como uma maluca. E
ainda assim é tão bonita!
— Quantos anos você tem, Anna? — interrompo curioso.
— Vinte e três!
— Como foi que você se virou quando saiu do orfanato? Eu
imagino que tenha saído aos dezoito, certo? Como é que você
está viva até hoje?
Ela parece confusa por um momento, há um toque de
hostilidade em seus olhos, mas logo desaparece e ela sorri. Tem
um sorriso imenso e lindo no rosto. Os olhos de mel fixados em
mim.
— Eu dormia em abrigos, ou na rua. Então arrumei um
emprego em um restaurante e conheci o meu noivo. O meu ex-
noivo, graças a você — corrige pouco depois. — Trabalhei anos
lá e depois ele abriu o próprio restaurante e foi assim que me
mantive viva, se é o que você queria saber.
— Então seu noivo a manteve viva, deve ter tido um belo
trabalho.
— Não preciso de homem nenhum para me virar —
responde irritada.
— Até hoje de manhã você precisava de mim para ter onde
dormir e comer.
Ela nega, mas o gesto parece fazer sua cabeça doer.
— Não, não é que eu precise é que a responsabilidade é
sua. Você quem acabou com a minha vida. Eu posso me virar
sem você, mas não seria justo.
Sorrio, não consigo evitar. Ela aproxima o rosto do meu,
como se reparasse alguma coisa extraordinária, chega a franzir o
cenho tentando entender algo.
— Qual é a cor dos seus olhos? — pergunta de repente, o
rosto próximo demais ao meu.
— Como?
— Estavam azuis quando você me beijou na boate, mas
pareciam chocolate quando se acidentou. E cinzas na empresa.
E cinzas hoje de manhã, definitivamente. E agora dourados.
Estou bêbada demais ou eles mudam de cor?
— Por que você não dorme, Anna? Vai se sentir melhor.
Ela sorri, me pergunto se é a hora de buscar o balde, antes
que ela faça uma bagunça em meu tapete, mas de repente ela
toca meu rosto. Com a ponta dos dedos passeia sua pele quente
pela minha, um movimento tão delicado, uma deliciosa carícia.
Não consigo contê-la.
— Você é tão bonito! — Há tanta admiração na maneira
como fala que meus olhos caem como um ímã para seus lábios
vermelhos e tentadores. — Pena que é um imbecil — completa e
começa a rir.
Por algum motivo me pego rindo também. Me levanto e
pego um balde na lavanderia. Ela está olhando para o teto
quando volto e estendo o balde a ela.
— Isso é para mim? — pergunta encantada, como se
estivesse ganhando um presente.
— Não tenho certeza se você consegue identificar o que é
isso, mas sim.
Ela o pega da minha mão e acaba completamente com
minha dúvida ao colocar o balde na cabeça, cobrindo seu rosto,
como uma criança. Não sei se eu deveria filmar isso, mas apenas
me sento de novo na mesinha de centro e espero.
— Anna? — chamo um tempo depois, ponderando se ela
teria dormido sentada com o balde na cabeça.
Ela tenta tirar o balde e diz algo que não entendo, mas a
coisa não sai. Ela puxa de novo e de novo. Então começa a
puxar com força. A cena é tão engraçada que me pego rindo. É
ridículo, ela está bêbada demais e ainda assim não consigo ir
dormir e deixá-la aqui. Depois de um tempo, quando acho que
ela está mesmo ficando desesperada, puxo o balde de sua
cabeça, tirando-o com pouca dificuldade. Seus olhos de mel se
focam nos meus e ela estende as mãos gritando:
— Achou!
Rio alto. Não sei há quanto tempo não rio assim, mas essa
maluca bêbada, agindo como uma criança me faz mesmo rir. Ela
ri também, me observando atenta. De alguma forma me sinto
mais leve quando consigo parar de rir.
— Você me fez rir, Anna, confesso que estou surpreso por
ter me feito sentir algo além de irritação.
Ela dá de ombros com um sorriso no rosto.
— Você me faz sentir coisas também. Você me irrita muito,
e me aborrece. E me deixa excitada — diz a última coisa
baixinho, tão baixinho que automaticamente aproximo meu torso
dela.
— O que você disse?
— Que você me excita. Você me beija de um jeito...
— Como? Como é que você se sente quando eu te beijo?
Há um alerta em minha cabeça que escolho ignorar. Me
aproximo mais, posso sentir seu hálito e quase reconhecer o que
bebeu esta noite. Ela não se afasta.
— Eu me sinto acesa. Todo meu corpo parece aceso. E
você me domina com os braços e com os lábios. Não sei como
consegue fazer isso, não é um beijo, é mais como uma posse.
Seus olhos caem até meus lábios e ela aproxima ainda
mais o rosto do meu. Espero que me beije, mas ao invés disso,
ela apenas passeia a boca pela minha, bem de leve. Não sei se
ela faz ideia do quanto está me provocando agora. Então fecha
os olhos e passeia seu rosto pelo meu. Nossas peles se tocando
levemente, mas o contato causando esse efeito que ela
mencionou. De repente estou aceso. Cada terminação nervosa
do meu corpo está acesa agora por ela. Sua carícia termina onde
começou, e dessa vez ela me beija. Se joga sobre mim,
montando em meu colo e me beija. E correspondo ao beijo no
início, maravilhado demais com sua ousadia, deliciado com sua
língua brincando com a minha. Sinto seu corpo quente sobre o
meu, seus dedos se enfiam em meu cabelo e meu controle vai
para o espaço. Aperto sua cintura aprofundando o beijo, não
apenas correspondo, eu a domino. Prendo sua língua na minha e
nosso contato ainda não é o bastante.
Um raio soa lá fora, uma chuva forte começa a cair. Não é
que choveu mesmo? Ela se assusta num primeiro momento com
os raios, parece temê-los, interrompe o beijo e se encolhe.
— Alexa, feche todas as cortinas — ordeno imediatamente
e as cortinas se fecham. — Não tenha medo — digo baixinho e
seus olhos estão nos meus de novo. Ela está ainda em meu colo
e volto a beijá-la.
Suas mãos passeiam por meu cabelo, sua boca doce
acompanha a minha. Meu pau está duro e latejando como um
louco agora. E ela geme baixinho em minha boca. Meu corpo
todo é fogo. Quero tanto possui-la aqui, agora, que choramingo
como um bebê quando a afasto.
Ela deita a testa na minha, nossas respirações aceleradas.
Meu corpo todo tem consciência de cada parte do corpo dela
sobre mim agora. E então, do nada, ela sai do meu colo, procura
o balde e vomita nele, quebrando completamente o clima.
A observo vomitar por alguns minutos, não entendendo bem
a calma que sinto agora. Estou com um humor maravilhoso
apesar da noite desastrosa. Enquanto observo essa menina
vomitando no pequeno balde e a sinto ainda em meus braços,
sobre o meu corpo, me pego rindo. Rindo da situação, rindo dela,
rindo de mim mesmo. Não me lembro quando foi a última vez
que agi assim, por puro impulso, atitudes injustificadas
logicamente e entendo que ela é um perigo para minha sanidade.
Talvez a loucura seja contagiosa no fim das contas.
Ela para de vomitar e deita sobre a almofada.
— Sabe o que vai ajudar você, minha linda? — digo
aproximando-me e pegando-a nos braços. — Um banho frio.
Banho frio é um santo remédio contra a bebedeira.
Ela sorri e ando a passos leves com ela em meus braços.
Os raios não soam mais lá fora, mas a chuva cai forte. Abro
então a porta da frente e a jogo na grama. Ela grita
imediatamente ao ficar encharcada em segundos.
— Pronto, banho frio. Uma maravilha! Quando voltar a si
sabe por onde entrar — decreto e bato a porta deixando-a
perplexa do lado de fora.
Sem sequer tentar entender o que estou fazendo vou até a
lavanderia e abro a janela para que ela entre. E me sinto tão
quente que subo para um banho gelado antes de dormir.
— Vou tirar você da minha vida, Anna, você é perigosa
demais aqui.

Me visto para o trabalho pensando no que fazer com a


maluca adormecida em algum lugar desta casa. Nem por um
segundo passa pela minha cabeça que ela esteja certa em me
culpar pelas tragédias mais recentes em sua vida, mesmo
porque, sua vida inteira foi de tragédias, algo que ela parece não
perceber. E nada então foi culpa minha. Encaro o reflexo no
espelho e preciso admitir a mim mesmo que ainda a sinto em
meus lábios. Há algo nela, algo além da loucura e falta de noção,
algo que me atrai completamente. Mas também há outro lado
dela, esse que me desperta para a consciência constantemente e
preciso mesmo cortar isso de uma vez por todas.
Não sei o que dizer para que ela entenda que não sou seu
amigo, não sou responsável por ela e que ela deve sumir da
minha vida. Ela não está na sala de televisão, onde imaginei que
estivesse. Olho na cozinha, mas também não está.
— Anna! Você já acordou?
Subo de volta até os quartos e não a vejo em lugar nenhum.
Nem sei se ela passou a noite aqui ou se saiu sorrateiramente
pela manhã, mas me sinto aliviado que não esteja mais aqui.

Chego à Atenas mais irritado do que o normal para as


segundas de manhã. Mal entro em minha sala, Leandro surge
com um sorriso no rosto.
— Porra, Baltazi, a herdeira Crepaldi. Finalmente você
conseguiu a santinha que todos tentam conquistar. Como foi?
Como ela é na cama? Fresca? Barulhenta? Vamos, não faça
essa cara, você sabe que a fama de inalcançável dela existe há
anos. Como foi a noite com ela?
Me jogo na cadeira e o encaro nem um pouco feliz.
— Quer saber como foi a minha noite? Pois eu vou lhe
contar, sente-se.
Ele se senta animado e ansioso.
— Cheguei em casa com a santinha, ela estava mais do
que disposta a uma festa particular comigo, nos servi duas taças
de Malbec, e então ouvi o riso bêbado da maluca na festa da
casa dos vizinhos. Você lembra deles? Aqueles pirralhos.
Ele assente confuso.
— Perguntei se estava tudo bem com ela, mas percebi que
ela seria abusada por dois jovens idiotas e estava tão bêbada,
que nem se daria conta. Tive a merda de uma crise de
consciência fora de hora, fui lá e resgatei a maluca.
— Bem, não havia outra coisa que você pudesse ter feito
nessa situação — ele defende.
— Sim, pois é, diga isso pra santinha, porque quando ela
viu a Anna pendurada em meus ombros, apalpando minha bunda
e rindo como uma maluca, ficou irritadíssima, pegou suas coisas
e foi embora. Resumindo, nunca mais terei outra chance com ela.
Ele parece tão chateado quanto eu, como se tivesse sido
ele mesmo a perder uma noite tórrida com uma mulher
inalcançável.
— Não entendo, por que você levou a Anna para sua casa?
Por que não a colocou em um táxi de volta para a casa dela?
— Ela não tem casa. Não tem para onde voltar. Eu te contei
isso.
— Ah, sim, ela invadiu sua casa e dormiu lá. Bem, então
por que não a colocou em um quarto qualquer e foi aproveitar a
noite com a santinha?
Abro a boca para explicar, mas nada sai. Por que mesmo
não fiz isso? Os olhos dele estão focados em mim e um sorriso
irritante já começa a surgir em seu rosto. Me ajeito na cadeira e
pigarreio antes de responder.
— Oras, ela estava bêbada, precisava de alguns cuidados.
— Então você trocou uma noite de sexo com uma mulher
que vem tentando conquistar há três anos pelo trabalho de babá
de uma maluca bêbada? Muito interessante.
— Não tem nada de interessante. Além do mais, essa
maluca é passado. Deve estar tão envergonhada pelas coisas
que fez ontem à noite, que se mandou antes que eu acordasse,
dificilmente a verei de novo. Problema resolvido.
Duas batidas soam na porta e Açucena surge.
— Bom dia, senhor Baltazi, senhor Romero. Senhor Baltazi,
há uma candidata à vaga de recepcionista, o senhor gostaria de
entrevistá-la ou posso fazer isso?
— Faça você, Açucena, não estou com paciência para
essas chatices.
Ela concorda com um sorriso que me faz estranhar. Assim
que passa pela porta, me levanto, interrompendo o que Leandro
começou a dizer e observo. E quase caio para trás quando a vejo
guiar Anna até a sala de entrevistas.
— Mas nem fodendo!
Abro a porta imediatamente e entro na sala como um
furacão. Anna parece acabada, há um cansaço em seus olhos e
suas feições, que indica que a ressaca está pesada nela agora.
Ainda assim está aqui, trajando uma blusa creme leve colada ao
seu corpo, com rendas delicadas em seus seios e uma saia mais
apertada ainda, preta, que me obriga a parar um segundo para
apreciar as curvas de suas pernas.
— Anna, bom dia! A que devo a honra da sua visita? Depois
da noite passada achei que finalmente havia me livrado de você.
— Não sei do que está falando, senhor — responde com
tanta calma, que por um momento acredito que ela realmente
não se lembra de nada.
— Como não sabe? Não se lembra de ontem? De quando
bebeu como um marinheiro e foi parar nas garras dos meus
vizinhos tarados, então eu tive que brigar com um deles para
salvá-la?
Açucena suspira como se eu estivesse contando uma
história de amor. E Anna parece genuinamente confusa.
— Acho que está me confundindo outra vez, senhor. Estou
aqui para uma entrevista para a vaga de recepcionista. O senhor
deve ter passado sua noite com a Letícia, não?
— Anna, não se lembra que a levei para meu sofá, você me
perguntou qual é a cor dos meus olhos e me beijou? Depois
vomitou num balde e eu a joguei na chuva?
— O que foi uma grosseria sem tamanho! — responde
irritada e sorrio ao pegá-la.
— Eu sabia! Sua pequena mentirosa! Aposto que sua
cabeça está explodindo pela ressaca neste exato momento.
Ela abre a boca para se defender, mas me aproximo
segurando seu rosto em minhas mãos e o sacudo. Ela grita
imediatamente, com certeza sentindo a cabeça explodir.
— Você ficou maluco? Vou acusá-lo de agressão! — acusa
irritada levantando-se.
— Suma da minha empresa agora mesmo, Anna! E não
ouse aparecer na minha casa, não quero você perto de mim! —
Me viro para sair da sala, mas ela segura minha mão, pedindo
que eu a escute. Não sei porque, mas o faço.
— Por favor, eu tenho experiencia, vocês têm uma vaga. Só
estou pedindo uma chance. Juro que sequer vou dirigir a palavra
a você, você mal vai me ver aqui, só me dê um emprego.
Observo esses olhos marrons suplicantes. Estamos
precisando de uma recepcionista e ela seria perfeita. Mas algo
me diz que tê-la tão perto não vai acabar bem para mim de
maneira nenhuma. Então prefiro não arriscar.
— Não vai ser possível, Anna.
Ela fixa o olhar atrás de mim e solta minha mão. Leandro
está parado aqui, olhando-a como se ela fosse a coisa mais linda
que ele já viu.
— Bom dia, senhor — Anna fala diretamente com ele.
— Bom dia, Anna, não é necessário esse senhor, pode me
chamar de Leandro.
— Tudo bem, Leandro. O senhor não sabe de alguém que
esteja precisando de uma funcionária? Posso ser recepcionista,
tenho experiência em restaurantes, mas também posso ser
faxineira, diarista, qualquer vaga que o senhor tenha.
Leandro desvia o olhar para mim e por algum motivo tira o
casaco, como se sentisse calor de repente. Então volta o olhar
para ela com um sorriso que já o vi dar milhões de vezes.
Sempre antes de levar alguma mulher para a cama.
— Claro! Há uma vaga para você. Aqui mesmo, como
recepcionista.
— Leandro! — advirto, mas ele me enfrenta.
— Sou sócio desta empresa e nunca exigi que você me
fizesse qualquer favor aqui dentro, certo? Você disse ontem
mesmo que me devia uma, Lucca. Estou cobrando agora, quero
a Anna trabalhando aqui.
Encaro de novo Anna, que agora tem um sorriso de puro
alívio no rosto, ela parece prestes a chorar de emoção, e não há
nada que eu possa fazer, então apenas deixo a sala, nada
contente por tê-la todos os dias nesta empresa.

Anna deixa o RH alguns minutos depois, já pronta para


trabalhar. A espero com um remédio para dor de cabeça e ela
parece desconfiada por minha gentileza, mas o toma.
— Você se sente bem para trabalhar? Não prefere voltar
amanhã quando não estiver de ressaca? — pergunto, fazendo
com que um sorriso surja em seu rosto.
— E você me demitiria no meu primeiro dia? Não, obrigado,
estou ótima!
— Então você aguenta o trabalho pesado hoje?
— Aguento qualquer trabalho hoje.
— Isso é ótimo, Anna — digo e pego atrás de mim o balde e
o esfregão. — Então comece, você não vai trabalhar aqui como
recepcionista, e sim como faxineira.
Sua expressão desafiadora cai. Ela observa os objetos em
minha mão e parece não acreditar. Ela precisa entender que não
pode brincar comigo assim. Que não vai simplesmente impor sua
presença em minha casa, em minha empresa, da maneira como
quer. Ela precisa aprender que ninguém me contraria e sai
impune a isso.
Espero que vá pedir ajuda a Leandro, ou desistir, mas ela
pega o balde e o esfregão das minhas mãos. Abaixa a cabeça
como uma funcionária obediente e diz com a voz calma e segura:
— Sim, senhor. Irei começar agora mesmo.
Então se afasta e pouco depois a vejo com o uniforme das
faxineiras limpando o piso. É uma vitória para mim, Leandro
reclama por minutos, mas o recordo que seu pedido foi que ela
trabalhasse na empresa, não especificamente como
recepcionista e ele não tem mais argumentos, embora não esteja
nada feliz. Ele chega a se desculpar com ela, o que é ridículo.
Mas eu me sinto assim também, me sinto ridículo.

Quando chego em casa, tarde da noite, foi um dia bastante


agitado, a encontro sentada na porta de acesso da garagem,
esperando por mim. Espero que tenha vindo dizer que desiste.
Passo por ela sem dizer nada e ela me segue para dentro da
casa.
— Veio me dizer que desiste? — pergunto um tempo
depois, estranhando a confusão em seu rosto.
— Não, claro que não! Estou aqui apenas para dormir.
— O quê? Anna, você não vai dormir aqui!
— Eu ainda não tenho onde dormir!
— Isso não é problema meu! Você é funcionária da
empresa, não vai dormir aqui.
— A culpa disso é sua, não finja que não se lembra. —
Cubro o rosto irritado e ela percebe, pois seu tom de voz se torna
mais calmo, quase suplicante. — Eu fico lá na dependência dos
empregados, você nem vai me ver!
— Não se trata disso! Anna! Você não pode realmente
achar que tem o direito de ficar aqui! Vá procurar um hotel onde
possa passar a noite, uma pensão, a casa de algum amigo,
implore o perdão do seu ex, faça o que quiser, mas suma da
minha casa!
— Mas eu...
Abro a porta da rua e aponto a saída, nada disposto a ouvir
suas ladainhas, então ela sai. Tomo um banho demorado, como
alguma coisa, e quando estou apagando as luzes para ir dormir,
a vejo dormindo na calçada.
— Não é possível.
Abro a porta pronto para brigar com ela e expulsá-la daqui,
mas ela dorme profundamente. Parece exausta. Então a pego
com cuidado nos braços, pego sua mochila surrada que ela
carrega para toda parte e a levo para dentro de casa. Não para o
sofá onde ela dormiu antes, não para a dependência de
empregados onde deveria deixá-la, a levo para um quarto de
hóspedes. Não sei porque estou fazendo isso, mas tiro seus
sapatos para que fique mais confortável, ajeito o ar a uma
temperatura boa, a cubro e a deixo dormir aqui.
Prometo que esta será a última vez.
Acordo me sentindo confortável e abraçada pelo colchão
macio de uma maneira como nunca me senti antes. O clima à
minha volta é tão fresco! Os travesseiros têm cheiros suaves e
deliciosos e se não fosse o sol aquecendo meu rosto, diria que
estou sonhando. Abro os olhos preguiçosamente e me deparo
com um quarto de algum hotel, embora não faça a menor ideia
de como vim parar aqui.
Sento-me na cama e, aos poucos, conforme meu cérebro
vai despertando e meus sentidos vão saindo de sua bolha
maravilhada pelo conforto, reconheço este lugar.
— Isso não pode ser bom!
Me levanto rapidamente, aliviada por estar vestida com as
mesmas roupas que usava ontem à noite. Giro a cabeça apenas
para confirmar que não estou de ressaca, então eu não bebi.
Minha mochila está em uma poltrona num canto do quarto e me
arrumo o mais rápido possível para então sumir desta casa antes
que meu chefe pervertido e babaca acorde.
— Como eu vim parar aqui? — me pergunto baixinho ao
chegar à sala e uma voz atrás de mim me faz dar um pulo pelo
susto.
— Estou me perguntando a mesma coisa.
Lucca está parado com os braços cruzados me encarando.
Porém, estranhamente, parece ter uma expressão divertida e não
irritada, o que não faz o menor sentido.
— Bom dia, senhor Baltazi.
— Você está ficando exigente, Anna. Primeiro era o sofá,
depois a dependência de empregados, agora você se apossou
de um quarto de hóspedes. Me pergunto qual será o seu próximo
passo, o que mais você almeja? Minha cama?
Ele usa uma camiseta branca que deixa seus braços
definidos à mostra, calça social preta bem colada às suas pernas
e tem os cabelos negros meio molhados e bagunçados. Vem em
minha direção vagarosamente, os olhos cinzas cravados em mim
e um sorriso cafajeste e relaxado no rosto.
— Estou disposto a ajudá-la com isso — diz em um tom
baixo, meio rouco, tocando uma mecha do meu cabelo. Os olhos
cinzas fixados nos meus e sinto minha respiração começar a
falhar.
— Isso o quê? — pergunto quase em um sussurro, já que
minha voz traiçoeira falha miseravelmente.
— Chegar até minha cama, claro. Você só precisa pedir,
docinho — seus olhos miram minha boca e me sinto hiperventilar.
Ele aproxima o rosto do meu devagar, os dedos que tocavam
meu cabelo agora passeiam por meu queixo, levantam minha
cabeça de leve e sua boca está perto demais da minha.
De repente esse cabelo molhado, esses olhos cinzas e
esses braços definidos à mostra parecem demais para eu
suportar, todo meu corpo aquece, minha respiração que
segundos atrás falhava, agora está acelerada e estou a um
passo de puxar esses cabelos negros para mim e beijá-lo eu
mesma para acabar com essa tortura.
— Você está desconfortável com o que estou fazendo,
Anna? — pergunta baixinho, os lábios se movendo próximos
demais aos meus, roçando-os de leve.
Assinto, um movimento apenas, bem de leve, nem sei se
ele notou.
— Ótimo! — continua em um sussurro. — Então talvez você
se sinta mais confortável em outro lugar. — Ele se afasta de
repente com um sorriso irritante de quem sabe que me venceu,
completando sua sentença em alto e bom tom: — Lá na rua! Fora
da minha casa!
— Não me venha com essas besteiras agora! — respondo
rapidamente tentando muito disfarçar que quase peguei fogo
agora mesmo nesta sala. — Como eu fui parar naquela cama?
Que eu me lembre eu estava dormindo ali! — digo apontando
para a calçada através do pé direito alto de vidro da sala.
— O que é ridículo, você não acha? Este é um condomínio
de classe, Anna, você não pode simplesmente dormir na porta de
alguém assim. Ia manchar minha imagem se meus vizinhos a
vissem.
Cruzo os braços e dessa vez sou eu que tenho um sorriso
no rosto.
— Você me carregou até a cama? Ao invés de me levar
para o sofá, ou a dependência dos empregados, me levou para o
quarto de hóspedes. Você está ficando exigente, Lucca, me
pergunto qual o seu próximo passo.
Ele sorri, se vira de costas e segue em direção à cozinha,
faz um gesto com a mão sem sequer olhar para trás e me pego
irritada por simplesmente segui-lo prontamente como um
cachorrinho.
— Sente-se e aproveite o melhor café da manhã da sua
vida.
Ele me estende um copo de suco e um prato com torradas
e ovos mexidos.
— Quem cozinhou isso? — pergunto desconfiada.
— Eu cozinhei. Só para você ver como se faz.
Provo os ovos louca para reclamar deles como uma
profissional, mas estão deliciosos. Tão bons que me pego
gemendo sem querer, o que o faz rir abertamente. Ele
provavelmente já comeu, já que apenas se senta ao meu lado e
mexe no celular enquanto eu quase tenho orgasmos com a fatia
de bacon em minha boca.
Mal termino de comer, ele gira sua cadeira em minha
direção, e faço o mesmo.
— Satisfeita? Você teve uma boa noite de sono? Se
alimentou bem pela manhã, está calma e centrada, certo?
O encaro desconfiada com sua calma e gentileza
repentinas.
— Por quê? O que é tudo isso? Me descansou e alimentou
para então me matar? É isso, é agora que você me mata, não é?
Ele sorri como resposta, aproxima sua cadeira da minha e
mantendo a voz calma, seus olhos agora estão mais claros,
quase azuis, e seu sorriso por pouco me engana. Mas então ele
diz:
— Anna, doce Anna, entendo que você possa estar
passando por uma fase difícil agora. Entendo que você não teve
uma vida fácil, não teve pais que lhe ensinassem a ter limites e
lhe dessem ao menos uma noção de bom senso, mas sabe, você
é uma adulta agora. Há coisas que aprendemos por nós
mesmos, não é necessário que alguém explique, mas bem, estou
disposto a ensiná-la se isso for nos livrar de todo esse incômodo.
Me sento mais ereta na cadeira e deixo que continue.
— Prossiga — ordeno quando ele não diz nada e
prontamente ele obedece.
— Se você, Anna Maria, que não é minha amiga, não é
minha parente, não é absolutamente nada minha, não tem onde
morar agora, isso não é problema meu. Você não pode
simplesmente invadir uma casa e decidir se aboletar nela. Isso,
querida, além de ridículo e sem sentido, é contra a lei. O mundo
não funciona como você vê em sua cabecinha inocente.
Apenas o encaro sem conseguir ter qualquer reação e ele
continua.
— Na sua cabecinha iludida, você acha que tem o direito de
vir aqui e invadir minha casa, tomando-a como sua para viver
aqui. Mas você não pode. Você só poderia ficar se fosse
convidada. Você está me acompanhando?
Reviro os olhos começando a me irritar com seu tom calmo
e devagar demais, como se estivesse falando com uma criança
pequena.
— Prossiga!
— Tudo bem, estamos conversando numa boa, não é?
Você não precisa se exaltar. Bem, eu não a convido, eu sequer
permito sua entrada aqui, nem mesmo para uma visita. Para ser
o mais claro e direto possível, você, Anna, não é bem-vinda
nesta casa. Então por mais que às vezes você se pareça com um
cachorrinho perdido que caiu da mudança, você não pode ficar.
Eu fui bem claro? Tenho tratado você como a maluca que é, mas
da próxima vez que você entrar na minha casa, vou chamar a
polícia.
Ainda estou presa na comparação com um cachorrinho que
caiu da mudança, quando tento me explicar.
— A culpa...
— Não tenho culpa de absolutamente nada do que
aconteceu com você, não me venha com isso! Sua vida está
dando errado desde que você nasceu, se você não percebeu, e
eu não estava lá desde essa data, não é mesmo?
Abro a boca para respondê-lo, mas suas palavras me
atingem.
— Você está me deixando desconfortável, Anna. Invade
minha casa, se infiltrou em minha empresa, nunca me escuta,
não me atende, não me respeita. Como se eu fosse obrigado a
aceitar sua presença e eu não sou. Na posição em que estou
agora, há poucas coisas na vida que faço por obrigação,
infelizmente aturar você tem sido uma delas. E eu estou cansado
disso.
Eu que me canso desse tom condescendente e sua falsa
bondade, como se ele fosse uma vítima de uma perseguidora
maluca, e escolho não parar para pensar se sou mesmo isso. Me
concentro no estrago que ele me causou, não o contrário.
— Você está cansado? — pergunto alterada e nem permito
que ele responda. — Quando você me beijou naquela boate, eu
não tive escolha. Quando invadiu o apartamento da minha
cunhada e tirou a roupa no banheiro, também não foi por
escolha, sequer consentimento meu. Você se impôs a mim, e
diferente do desconforto que causo a você, a sua presença
acabou com a minha vida! E sim, tudo pode ter dado errado
desde sempre, mas não estava dando agora. Pela primeira vez
na minha vida toda, eu estava feliz. E você, com sua arrogância e
egoísmo impôs sua presença na minha vida e me tirou isso. Você
quer mesmo comparar quem de nós dois é mais sem noção?
Me levanto e ele me encara sério, não tem palavras para
me responder.
— E tudo bem, eu posso parecer uma maluca por invadir a
sua casa, mas você tem uma casa enorme de dependência de
empregados que sequer usa!
— O que não quer dizer que só por isso você tenha que
ficar lá.
— Mas por que não? Se foi você que me tirou o teto que eu
tinha antes!
Ele leva as mãos à cabeça e parece finalmente irritado.
— Meu santo Deus, você não ouviu nada do que eu disse a
você, não é? Vai ver sua mãe a abandonou porque você tem
certa dificuldade em entender as coisas.
— Vai ver você está fazendo seu próprio café da manhã
porque não tem um empregado que ature você! Aliás, você nem
usa a dependência de empregados, você sequer os tem!
— Eu tenho funcionários que vem todos os dias, fazem o
que tem que fazer e vão embora, eles não ficam para dormir
porque não gosto de ninguém no meu espaço.
— Besteira, desculpa esfarrapada de um homem
insuportável. A questão é que você tirou meu teto, e você tem
todo esse espaço que ninguém usa e eu não entendo porque
você precisa de um espaço tão grande!
— Nem tem que entender, você está se ouvindo? Anna, não
volte mais à minha casa! Não sou responsável por você! Por
nada do que acontece com você. Aliás, não a quero na minha
empresa também, você está invadindo meu espaço. Eu vou
demitir você!
Ele se levanta também, estamos entre as cadeiras, perto
demais um do outro, a mesma raiva que sinto aquecer todo meu
corpo agora, está refletida nesses olhos sem cor definida.
— Você não pode, porque não foi você que me contratou —
respondo e saio de perto dele, pego minha mochila ao pé da
escada na sala e passo pela porta, quase me sentindo tremer de
tanta raiva.
O babaca faz meu noivo terminar comigo, me tira o teto, o
emprego e o futuro, e acha que eu sou a maluca por querer que
ele me dê tudo isso de volta? Caminho apressada sem nem
mesmo prestar atenção em para onde estou indo, até que me
dou conta. Paro de andar e me sento na calçada.
— Quando foi que você se tornou alguém que planeja todo
seu futuro em torno de uma pessoa, Anna? Você nunca teve
ninguém, perder alguém deveria mesmo te desestabilizar assim?
Espero a resposta, a conclusão da minha conversa
particular, mas ela não vem.
— Sua covarde! — ralho comigo mesma e chamo um táxi
de onde estou.

Estou na cantina finalizando a limpeza quando Açucena, a


secretária super legal do meu chefe babaca, entra com mais
algumas funcionárias. Elas cochicham algo que parece irritar
Açucena, mas as outras três funcionárias à mesa com ela olham
para mim e riem.
Continuo meu serviço, mas os cochichos aumentam ao
ponto de eu ouvir meu nome. Deixo o esfregão de lado, me
aproximo da mesa e cruzo os braços, encarando-as. Seus rostos
se tingem de vermelho e elas desviam o olhar, como se não
estivessem fazendo nada demais.
— Vamos, desembuchem, o que estão falando de mim? —
pergunto.
— Elas acham que você é amante do senhor Baltazi, Anna
— Açucena as entrega e elas ficam ainda mais sem graça.
— Me digam uma coisa, o senhor Baltazi por acaso é
comprometido? — As quatro negam imediatamente. — Então
não posso ser sua amante, certo? No máximo eu seria mais uma
na cama dele, mas, por favor, eu não sou. Na verdade, Deus me
livre!
Elas parecem confusas e puxo uma cadeira sentando-me
com elas.
— Na verdade, eu não suporto esse pervertido e babaca
que desde que entrou na minha vida, só me fez cair ladeira
abaixo e sequer admite seus erros ou sua falta de noção. Ainda
acha que pode me tratar como um cachorrinho e que devo ser
muito grata por ele ter me carregado até a cama ontem à noite e
ter feito o café da manhã para mim esta manhã! Como se não
fosse obrigação dele!
As quatro agora me encaram com a boca aberta, em
choque.
— Acho que falei demais — percebo me calando
imediatamente, mas já é tarde demais.
Eu até tento explicar que não foi nada romântico como
parece e sim uma sessão torturante de humilhação. Que até
mesmo sua gentileza tem um propósito ruim depois, mas não
adianta. Elas sequer me escutam enquanto falam sem parar
sobre os sentimentos que o senhor Baltazi tem por mim, até
mesmo Açucena, minha única defensora, caiu na delas. Falam
tanto a palavra amor, que me pego rindo, finalmente atraindo a
atenção das maluquinhas.
— Sentimentos, sim, ele tem muitos sentimentos por mim,
ele até mesmo já escolheu em que lugar de seu quintal poderia
enterrar o meu corpo.
— Besteira, ele dorme com muitas mulheres, às vezes elas
vêm até aqui e ele sequer sabe o nome delas. Jamais permitiria
que uma delas dormisse em sua casa ou faria café da manhã
para elas. E ele nunca mesmo quer vê-las de novo, sem
exceção, então para ele mantê-la aqui, perto dele todos os dias,
é porque está apaixonado por você — Açucena diz convicta.
— Uau! Que imaginação! Bem, digamos que você esteja
certa, que espécie de amor é esse em que ele me coloca como
sua faxineira? — pergunto e isso as faz pensar, mas então
Brenda encontra a solução.
— Ele não quer que você e mais ninguém saiba que ele
está apaixonado. Mas é isso, ele está apaixonado.
Minha careta não deve ser das melhores, já que Açucena
disfarça um sorriso ao olhar para mim, e imaginar esse babaca
sentindo coisas por mim que não sejam uma necessidade
assassina, me faz ter embrulhos no estômago.
— Credo! — digo de repente. — Credo mesmo! Bem, não
vou discutir com vocês, se vocês acham que ele está apaixonado
por mim, eu acredito. É uma pena que eu não esteja por ele. Não
mesmo, nem um pouco, nunca. Então, é isso, se ele se declarar
vai levar um fora — declaro e me levanto, deixando a cantina,
ouvindo suas conversas emboladas e altas demais sobre a
primeira mulher a dispensar o chefe.
Daqui a pouco todo mundo estará sabendo que ele morre
de amores por mim, uma reles faxineira, e eu não o quero. Até
me pego rindo, eu adoraria ver a cara dele quando ouvir isso.

Ligo para o abrigo no final da tarde e garanto minha vaga.


Assim que eu começar a receber aqui, vou para uma pensão,
mas por enquanto, com o pouco dinheiro que tenho, preciso
conseguir mais alguns dias dormindo de graça. Açucena passa
por mim apressada, meu trabalho do dia está terminado, mas
preciso cumprir horário, então estou escondida no banheiro
passando o tempo. Se Lucca me vir sem fazer nada, vai arrumar
algo para eu fazer, é sempre assim. Açucena entra agitada com
alguns papéis na mão, pede que os segure enquanto corre até a
cabine, seu telefone tocando sem parar. Pouco depois ela sai,
lava as mãos e o rosto, respira fundo e pega os papéis da minha
mão prestes a chorar.
— Está tudo bem?
— Por que ainda não pedi demissão? Por que eu aturo
esse ser cruel e sem coração me tratando como lixo?
— Nunca é tarde, você pode pedir agora.
— Não posso, não seria fácil conseguir outro emprego que
pague tão bem! Estou muito endividada, mas também, muito
cansada. Tenho que imprimir isso porque ele precisa disso para
dez minutos atrás. E tenho que fazer duas ligações que ele
precisa para vinte minutos atrás. Meu dia tem quarenta e oito
horas dentro desta empresa, Anna, quarenta e oito horas de
sofrimento.
— Como eu posso ajudá-la?
— Será que você pode imprimir isso para mim? — pede me
passando um pen drive. — Tudo o que está aqui, imprima três
cópias agora e leve até a sala do senhor Baltazi.
Pego o objeto e corro em direção a impressora. Há duas
pastas no pen drive e imprimo o conteúdo das duas. Em seguida,
levo até a sala do babaca pervertido, que não parece nada feliz
ao me ver entrar com o documento.
— Aqui, senhor Baltazi, Açucena pediu que eu entregasse
ao senhor — explico estendendo os papéis.
— Achei que você fosse a faxineira, não minha assistente.
— Deus me livre ser sua assistente! — digo sem querer e
seus olhos cinzas se cravam em meu rosto, sua expressão nada
contente. — Acho que vou voltar ao meu trabalho.
— Se você não estiver fazendo nada...
— Estou ocupada! — grito saindo de sua sala. Faço um
sinal de positivo para Açucena que fala ao telefone e ela sorri em
agradecimento.

Penso em voltar ao banheiro, faltam vinte minutos para que


eu vá embora agora, mas imagino que Lucca tenha muitos
documentos para ler agora e não vá aparecer por aqui para me
dar trabalho, então me sento entre as meninas e as vejo
trabalhando, prestando atenção ao que fazem para o caso de um
dia ser promovida aqui dentro. Sonhar não custa, não é?
De repente, um burburinho se inicia, levanto os olhos em
busca do que o causou e Lucca Baltazi vem andando a passos
largos pelo corredor. Ele tem alguns papéis na mão e procura por
algo claramente irritado. Penso em me esconder, mas é tarde
demais, ele me vê. Então vem até mim, Leandro atrás dele
tentando acalmá-lo. Quando ele para diante de mim, me sinto
encolher na cadeira, sua sombra imponente parece me diminuir.
— Você nunca deveria ter cometido o erro de tentar fazer
algo além da sua alçada, Anna! Você aqui dentro é uma faxineira.
Sua função é lavar o banheiro que frequento e limpar o chão que
eu piso, não imprimir documentos. Agora, quem te deu isso para
imprimir?
Pelo canto do olho vejo Açucena engolir em seco. Há o
silêncio no ambiente e todos os olhos da empresa estão sobre
nós agora.
— Há algo errado, senhor Baltazi?
— Se há algo errado? Ainda bem que a incompetente da
Açucena não conseguiu contato com meu cliente, porque ele
receberia ao chegar aqui, cópias da minha conversa por e-mail,
com meu sócio, onde falamos mal adivinha de quem?
— Mas, senhor, apenas imprimi o que estava no pen drive.
— Era para ter feito isso com as pastas da reunião, não
com uma conversa particular que nem deveria estar neste pen
drive!
Ele então se volta a Açucena.
— Foi você que deu essa função a ela?
Açucena está tremendo quando concorda com um gesto de
cabeça.
— Junte suas coisas agora mesmo, Açucena. Você está
demitida!
Ela parece preses a chorar e não posso permitir.
— A culpa foi minha! Ela me pediu que imprimisse uma
pasta, eu me distraí e imprimi as duas, não foi culpa dela!
Ele demora um pouco a voltar a atenção a mim, quando o
faz, preferia que não tivesse feito. Seus olhos são pura fúria
agora, parecem negros como o buraco onde queria me enfiar
neste momento.
— A culpa é sempre sua, não é mesmo? Se você tivesse
um pouco que seja de amor próprio, não estaria nesta empresa
depois da conversa que tivemos esta manhã, Anna.
— Se você tivesse o mínimo de senso, teria me pedido
desculpas — respondo imediatamente, arrependendo-me em
seguida.
Ouço os murmúrios pela empresa e a careta de Leandro
indicando que falei a coisa errada. Lucca se afasta tão rápido
quanto surgiu, mas retorna pouco depois com um esfregão e
uma vassoura nas mãos. Joga os dois em minha direção e diz:
— Toma! Isso aqui é seu material de trabalho, este é seu
lugar nesta empresa, espero que aprenda ao menos a
permanecer nele.
Então se vira e sai andando com sua arrogância e seu porte
imponente. Todos os olhares ainda estão sobre mim e me seguro
para não chorar. Não vou dar esse gostinho a ele. Queria ser a
maluca que ele diz que sou para ir atrás dele agora mesmo e
enfiar essa vassoura em um lugar de onde ela nunca mais
poderá ser retirada sem que ele fique sem pregas, mas me
levanto mantendo a cabeça erguida e, caminhando devagar, vou
guardar meu material de trabalho no armário. Como se nada
tivesse acontecido.
Entro no elevador alguns minutos depois, e Leandro me
pede ao longe que segure para ele, o faço, mas ele não entra
sozinho e recebe meu olhar de reprovação quando Lucca Baltazi
entra com ele. O babaca pervertido sequer olha em minha
direção, mas Leandro tenta desfazer a tromba que tenho agora
no rosto.
— Você está bem? — pergunta genuinamente preocupado,
dou de ombros e ele sussurra de volta: — Sinto muito. — Noto
então uma pontada de culpa em sua voz.
— Está tudo bem — minto.
— Você tem onde passar a noite, Anna?
Vejo Lucca desviar os olhos do celular por alguns
segundos, depois volta sua atenção ao aparelho. Então respondo
com um gesto afirmativo de cabeça para que Lucca não saiba a
resposta.
— Se você quiser, pode dormir na minha casa. — Lucca o
encara imediatamente, mas ele parece não se importar. — Minha
casa é bem grande, você pode ficar em um quarto de hóspedes
até encontrar um lugar para morar. Eu até posso ajudá-la com
isso, conheço ótimos lofts aqui no centro, se você quiser dar uma
olhada.
Sorrio, Leandro é mesmo uma pessoa maravilhosa. Não
entendo como atura seu sócio, esse babaca, egoísta e arrogante.
— Duvido muito que os lofts que você conhece caibam no
meu orçamento, Leandro, mas obrigada.
As portas do elevador se abrem e Lucca está na frente, ele
parece não ter percebido, pois permanece mexendo em seu
celular e não se move para deixar o elevador. Passo por ele
empurrando-o, e ele quase deixa o celular cair.
— Perdão, achei que o senhor ia sair pela porta.
Ele abre a boca para dizer algo, mas Leandro passa por ele
também e segura minha mão.
— Anna, eu insisto. Não vai me custar nada deixar que
você durma em um quarto qualquer da casa. Não vai me dar
trabalho algum, você pode vir comigo, se quiser.
— Tudo bem — concordo, claro que não vou dormir em sua
casa, apenas pedir uma carona até o abrigo, assim chego mais
cedo e ainda economizo na passagem.
— Você já foi mais seletivo com as mulheres que leva para
sua cama, Leandro — a voz reprovadora de Lucca o faz parar
para encará-lo.
— Levando em conta que você fez isso ontem, acho que
ele não está tão mal assim — respondo e Leandro
imediatamente me guia até o estacionamento, dando um boa
noite seco ao sócio.

— Aqui está ótimo! O abrigo é logo ali — explico a um


Leandro contrariado, apontando para o lugar que já tem uma
pequena fila.
— Anna, você não precisa...
— Preciso. Você já me ajudou muito me dando um
emprego, não posso abusar da sua bondade, não seria legal ter
uma funcionária vivendo em sua casa. Ainda que
temporariamente. Além do mais, o abrigo é ótimo! E eu chego tão
cansada que apago logo. Não se preocupe, está tudo bem ficar
aqui.
Ele ainda parece contrariado, mas não tem mais como
insistir que eu vá até sua casa. Ele não gostou nem um pouco
quando comecei a ditar a direção que deveria seguir ao invés de
apenas ir com ele.
— Você tem certeza que pode passar a noite aí? Parece
que há uma fila para entrar.
— São pessoas em busca de uma vaga, mas são poucas.
Garanti a minha por telefone mais cedo, não se preocupe,
Leandro.
— Você garantiu por esta noite, certo? — Assinto,
reparando seus olhos negros preocupados e sua expressão nada
contente.
Leandro é um homem bonito, tem o porte alto, a pele negra
e tranças compridas que dão um charme a ele. Está sempre
vestido com roupas sociais, ao contrário do Lucca, que vai
trabalhar de jeans e camisas comuns. É sempre gentil e
sorridente, o que também é um contraste com seu sócio que está
sempre emburrado, nunca sai de sua sala e grita com todos o
tempo todo.
— Então você precisa me prometer que na noite em que
não encontrar uma vaga, vai me ligar, Anna. Vai me deixar
buscá-la e vai dormir na minha casa. Me prometa.
— Eu prometo, mas por que você se importa?
Ele sorri, desvia os olhos de volta à fila e parece pensar
bem no que vai responder.
— Eu sou legal. Faria isso por qualquer funcionária minha.
Ou qualquer amiga, caso você queira esse título.
— Eu adoraria. Obrigada pela carona e pela preocupação.
Boa noite, Leandro.
— Boa noite, bela Anna.
Deposito um beijo rápido em seu rosto e desço do carro, me
sentindo vip por passar pelas pessoas da fila entrando direto até
meu colchão. Então vou ajudar as irmãs a acomodarem as
pessoas que vão chegando.

Lucca está, mais uma vez, no elevador quando chego de


manhã, ele segura a porta até que eu entre e observa
atentamente atrás de mim, procurando alguma coisa.
— O Leandro já chegou? — pergunta secamente.
— Não sei, acabei de chegar. Bom dia, senhor Baltazi.
Ele me olha com desdém e atende uma ligação, sequer
respondendo meu bom dia. Quase me atropela quando as portas
do elevador abrem e se afasta até sua sala.
O dia passa mais devagar que de costume, diariamente,
Lucca deixa uma lista absurda do que preciso fazer e a faço, que
escolha tenho? Embora perceba que Elaine, a outra faxineira,
não tem essa lista extensa e sem sentido e trabalha bem menos
do que eu.
— Ainda saio daqui e te meto um processo, seu babaca
arrogante — resmungo sozinha quando escuto um som
semelhante a um choro.
Encontro Açucena sentada nas escadas, chorando sozinha.
Penso se devo ir embora, mas ela me vê, se levanta rapidamente
e limpa o rosto, tentando disfarçar as lágrimas.
— Ei, o que houve? Por que está chorando?
Ela nega com a cabeça num primeiro momento, mas então
volta a chorar e me conta o que está passando. O período de
chuvas se aproxima e sua casa está com problemas no telhado.
Ela tem um bebê de poucos meses e goteiras dentro de casa
quando chove. Estava economizando com o marido para trocar o
telhado, mas ele a deixou na semana passada.
— Você não poderia pedir um adiantamento ao senhor
Baltazi? — pergunto. — No restaurante onde eu trabalhava, isso
era permitido. Meu noivo, desculpe, meu ex noivo, concedia
adiantamento do décimo terceiro ou férias quando um funcionário
tinha alguma necessidade.
— Na verdade, estou com férias vencidas, mas voltei há
pouco de licença maternidade, não quero abusar.
— Mas você deveria falar com ele, é um direito seu, de toda
forma. Talvez se explicar a situação, ele entenda.
— Será que você poderia falar por mim?
— Não! Açucena, acredite, se eu pedir ele não vai atendê-
la.
— Vai sim, Anna, ele a ama!
— Não, ele não ama. Você viu como ele me tratou ontem,
ele me odeia.
— Não é verdade, ele só fez aquilo para mascarar o que ele
sente, ele a ama, eu o conheço, sei disso.
— Você é maluca! Quem é que ama desse jeito?
— Anna, por favor. Por favor, esse é o Miguel, meu filho de
seis meses, você vai mesmo deixá-lo molhando na chuva? —
joga baixo me mostrando uma foto no celular do seu lindo e
sorridente bebê.
Derrotada, reviro os olhos e espero até depois do almoço,
então bato na porta dele quando ninguém mais está e ele parece
não estar fazendo nada. Ele olha quem é, vê que sou eu e baixa
a cabeça, não me permitindo entrar, mas entro assim mesmo.
— Não dei permissão para você entrar, Anna — reclama
sem levantar os olhos da pasta que tem nas mãos.
— Mas também não disse que não podia.
Seus olhos se levantam em minha direção imediatamente e
ele joga a pasta sobre a mesa, cruza as mãos por cima dela e
me encara.
— O que é que você quer? Não se sente! — ordena quando
estou prestes a fazer isso e me irrito por ele ser tão ranzinza.
— Preciso falar com o senhor sobre a Açucena. O marido a
deixou, sua casa está em péssimas condições e o período de
chuvas está começando. Ela precisa trocar o telhado dela
urgentemente, mas não tem dinheiro. Ela pensou que talvez o
senhor pudesse dar um adiantamento a ela, ou então dar suas
férias vencidas, ela poderia então usar o dinheiro para...
Sou interrompida por sua gargalhada. Ele ri com genuína
diversão, o que me deixa confusa.
— Por que você veio aqui me dizer isso e não ela?
— Porque ela acha que você me... — me dou conta a
tempo dos seus motivos e disfarço. — Ela achou que o senhor
poderia brigar e teve medo. Então pediu que eu viesse.
Ele se debruça na mesa e diz baixinho:
— Então ela me conhece muito bem. Não vou dar
adiantamento algum, muito menos férias.
— Mas, senhor Baltazi, o período das chuvas está
começando, ela tem um bebê de poucos meses e...
— Ah, eu me lembro disso. Ela ficou fora por meses, em
sua licença, por causa desse bebê, se isso é tudo volte ao seu
serviço, Anna.
— Mas, o senhor não vai ajudá-la?
— Acaso eu sou alguma espécie de Papai Noel para sair
presenteando as pessoas?
Vejo que ele está falando sério, não é para me irritar, ele
realmente não se importa. E não sei porque, se já tive tantas
provas de seu egoísmo, me sinto tão desapontada com ele. Tão
decepcionada. Ele parece perceber isso na maneira como o olho,
pois sua postura muda, ele se sente incomodado.
— Achei que ao menos fosse humano — digo antes de me
virar para sair de sua sala, mas ele passa por mim a passos
rápidos e fecha a porta, me impedindo de sair.
— Acho que você não entendeu ainda qual é o seu lugar
nesta empresa, Anna. Não vá achando que é alguma espécie de
heroína para os funcionários daqui, ou que tem qualquer regalia
aqui dentro. Você se olhou no espelho hoje? Reparou bem seu
uniforme?
Assinto, a decepção apenas aumentando, e isso parece
irritá-lo ainda mais.
— Não, acho que não. Acho que essa decepção no seu
olhar quer dizer que você esperava mesmo que eu fosse atendê-
la. Fique aqui, não saia desta sala.
Ele abre a porta e chama por Açucena. Por um momento
tenho a esperança que ele vá dar uma bronca nela e depois
aceitar o adiantamento, mas não é o que acontece.
— Pegue os materiais de trabalho da senhorita Anna e
traga até aqui, Açucena.
Ela parece confusa, mas obedece. Ele permanece olhando
para o corredor até que ela volte. Pega as coisas de sua mão e
estende a mim o esfregão e a vassoura, coloca o balde no chão
e o pano sobre ele, então finalmente me encara. Há um sorriso
superior em seu rosto, uma superioridade até mesmo na maneira
como me olha, como se eu fosse tão menor do que ele. E é
assim que me sinto.
— Comece a limpar — ordena.
— Onde? Tudo aqui está limpo!
— Então limpe de novo! Limpe direito! Não se preocupe, eu
vou dizer o que você deve fazer, por todo o dia.
— Todo o dia? — repito quase chorando.
— Todo o dia. Agora, você vai limpar essas janelas. Pode
começar.
Ele volta ao seu lugar e começo a limpar a janela que está
brilhando, sentindo meu sangue ferver e uma vontade maior
ainda de matar suas pregas com essa vassoura, mas me
contenho.
Leandro entra na sala pouco depois e pergunta o que está
acontecendo. Lucca se levanta imediatamente e o guia para fora
de sua sala.
— Você não interfere aqui, Leandro, não vai defender sua
namoradinha. Você a terá após o horário de trabalho dela, até lá,
ela vai fazer o que eu mandar.
Leandro tenta discutir, e sequer questiono sua ideia ridícula
de que estou com Leandro, faço calada meu serviço. Mesmo que
ele repita incontáveis vezes que não está bom, que não estou
fazendo direito. Me calo, porque sei que tudo o que ele precisa é
de uma resposta minha e não a darei a ele.

— Seu emprego aqui é temporário, Anna. Pedi um favor a


um amigo meu, dono de um restaurante, um restaurante de
verdade. Ele vai arrumar algo para você em breve e você vai
finalmente sumir da minha vida — ele diz pouco depois, quando
enfim aprova a limpeza da maldita janela.
— Então eu irei finalmente agradecê-lo, senhor.
Ele entende a ironia em minha voz, sua resposta é um
sorriso. Um sorriso e os olhos que hoje parecem azuis escuros
por tempo demais em meu rosto.
— O que mais o senhor quer que eu faça pela milésima
vez?
Ele ignora minha impaciência, me manda limpar o piso.
Passo pano por toda a sala, mas ele manda fazer de novo. Faço
outra vez, enquanto ele trabalha, atende ligações e responde e-
mails. Açucena vem entregar alguns papéis a ele e quando ela
sai, ele aponta para o piso onde ela pisou e tenho que limpar
tudo de novo.
Quando termino, Leandro entra de novo na sala.
Imediatamente, Lucca aponta para o piso e resmungando
baixinho volto a limpá-lo.
— Você vai mantê-la aqui até quando, Lucca? Os
funcionários já estão indo embora, o horário dela já encerrou.
— Ela ainda não acabou o serviço.
— Ela sequer tinha serviço aqui!
— Não misture o seu pessoal com o profissional, Leandro,
ou as coisas vão começar a desandar aqui!
Eles se fulminam com os olhos por algum tempo, até que
interfiro. Deixo o rodo, a vassoura e tudo o mais de lado e
decreto:
— Acabei, está limpo, o mais limpo que pode ficar. Não vou
fazer hora extra, adeus, senhor Baltazi.
— Volte aqui e limpe direito, Anna.
— Você poderia lamber esse chão e nem uma poeira sairia
na sua língua — desafio.
— Você se acha mesmo tão melhor do que é! Me pergunto
a festa que deve ser nessa sua cabecinha, as fadinhas cantando
em coro o quanto você é boa, quando na verdade você não
passa de uma oportunista. — Seu olhar se dirige a Leandro
quando diz isso.
Não sei do que está falando, se é sobre essa sua ideia fixa
que dormi com seu sócio, mas caminho até ele, abro o pote de
jujubas que ele tem sobre a mesa e que estive namorando por
toda a tarde, encho minha mão com uma variedade delas e me
aproximo dele tão rápido, que ele não consegue impedir que eu
puxe seu cabelo de uma vez, deitando sua cabeça. Ele grita e
aproveito a boca aberta para enchê-la de jujubas.
O solto e imediatamente ele engasga. Deve ter engolido um
monte delas inteiras. Leandro está perplexo e eu estou rindo.
Tenho uma crise de riso enquanto ele engasga e cospe jujubas
para todos os lados.
Passo por Leandro e dou dois tapinhas de leve em seus
ombros, me despedindo.
Sim, estou demitida, isso se não for presa, mas pelo menos
lavei a alma.
Há muito tempo não me sentia tão bem.
— Essa maluca tentou me matar! Vou chamar a polícia
agora mesmo! — esbravejo indignado enquanto ela sai rindo,
como se houvesse realizado o feito de sua vida ao tentar me
matar.
— E vai dizer o quê? Que sua funcionária tentou sufocá-lo
com jujubas? Faça isso, você vai ser piada o resto da sua vida.
Volto a me sentar ainda sentindo uma bala gigante presa à
minha garganta e praguejando mentalmente de todas as
maneiras possíveis contra essa maluca. Leandro, ainda com um
sorriso de orelha a orelha da situação, se senta à minha frente e
seu sorriso some, quando começa a me aborrecer.
— O que foi tudo isso aqui hoje, Lucca?
— Você se refere a mulher que passou a noite na sua cama
fazendo o trabalho dela com supervisão? Nada demais! Nunca
gostei dela e nunca escondi isso. Ressaltei de todas as maneiras
possíveis o quanto não a queria aqui, não entendo a sua
surpresa.
Ele cruza os braços e me observa, o tom de
desapontamento em sua voz me lembra o olhar decepcionado da
maluca mais cedo e já me sinto irritado de novo.
— Você sempre foi meio egocêntrico e nada voltado a
gentilezas. Mas o que fez com ela foi desumano. Primeiro, a
humilhação desnecessária ontem. Agora, isso. O pior é que isso
nem faz sentido, Lucca, mantê-la o dia todo presa a você, sob
sua supervisão, com serviços desnecessários. Um dia depois de
levá-la para uma cama confortável em sua casa e fazer o seu
café da manhã. Você já parou para analisar suas atitudes em
relação a ela? Porque você parece estar ficando maluco, amigo.
E não de um jeito engraçado, como o dela.
Tomo um copo de água e penso no que ele disse, mas não
há nada demais na maneira como a tratei.
— Eu não a humilhei, apenas a coloquei no seu lugar
porque foi necessário, ontem e hoje.
— Também estava fazendo isso quando a levou para o seu
quarto de hóspedes? Era o lugar dela? Ou quando deixou de
passar a noite com a santinha para cuidar da bebedeira dela?
Você é um anjo e de repente um demônio com ela e nunca o vi
agir assim. Você é cortês e gentil quando quer algo, depois, frio e
indiferente. Nunca bom ou mau demais.
— Onde você quer chegar com toda essa ladainha,
Leandro?
— Há algo diferente na maneira como você age com a
Anna, Lucca, e você sabe bem disso.
— Sim, eu sei, ela é a primeira pessoa após trinta anos que
quero matar. Quero mesmo, já imaginei mil maneiras diferentes
de fazer isso, sei até onde esconder seu corpo, eu simplesmente
não a suporto. E você só a está defendendo porque passou a
noite com ela.
Ele mantém um sorriso no rosto, não confirma que o fez,
mas também não desmente. Não é necessário, ela disse sim à
sua proposta na noite anterior e foi dormir na casa dele, o que
mais eles fariam lá, conhecendo Leandro como conheço?
— Esse dia já deu. Acho que não é necessário ressaltar,
mas sua querida está demitida. E me agradeça por não chamar a
polícia — digo quando me levanto para deixar a sala e ele não
diz nada, apenas mantém seus olhos sobre mim e um sorriso
idiota de alguém que sabe algo que eu não sei.

Espero Anna vir bater à minha porta logo pela manhã com
um pedido de desculpas. Do seu jeito maluco, com desculpas
que não tem nada a ver, mas se colocando em seu lugar e se
desculpando. E irei desculpá-la para que Leandro me deixe em
paz.
Só que isso não acontece. O dia passa e ela não vem
trabalhar. Confirmo com Açucena que não ligou para demiti-la,
tampouco Leandro, então entendo que a imbecil se demitiu.
Desconfio que o fez porque está aboletada na casa de Leandro e
não precisa mais de emprego. Vai quebrar a cara. Leandro não
vai cuidar dela por muito tempo.
— No fim das contas, você achou um rico idiota para dar-
lhe um teto, não foi, oportunista? — pergunto para a foto em seu
currículo, sozinho em minha sala ao final do dia.
Não costumo sair muito da minha sala, mas nas vezes em
que o fiz durante o dia, percebi que os funcionários tinham
risadinhas e cochichos que cessavam abruptamente quando eu
aparecia. Comecei a desconfiar que o motivo de seus cochichos
era eu. Ao ir embora, confirmo minhas suspeitas ao ouvir
Açucena rindo alto com Amélia enquanto imita alguém se
engasgando e Amélia joga uma bala de goma em sua boca. As
duas parecem horrorizadas quando me veem parado aqui,
analisando a cena e digo apenas:
— Demitidas.
Entro no elevador e Leandro vem logo atrás, garantindo a
elas:
— Não estão demitidas, mas parem de rir do chefe.
Qualquer homem adulto que se preze poderia sofrer um atentado
com jujubas.
— Seu idiota! — ralho quando as portas do elevador se
fecham. — Como ficaram sabendo?
— Eu contei, claro! Não podia deixar passar. Agora você é
conhecido como o homem que quase perdeu a luta para balinhas
coloridas. Uma maneira bem doce de morrer, eu diria.
Volto minha atenção ao celular, mais precisamente a um e-
mail que recebi do meu amigo, Lorenzo Carvalho, e a vaga de
hostess que consegui para Anna.
— Onde está a Anna? Diga a ela que a vaga de hostess no
Le Bistrot é dela, isso, claro, se ela vier até mim e me pedir
desculpas. Ela tem até hoje à noite para fazer isso.
Há o silêncio como resposta e quando olho para Leandro,
ele me encara com sua melhor expressão de desgosto.
— Você está brincando, não está? Você foi inumano com
ela, ela não lhe deve desculpas.
— Não quero sua opinião, Leandro, apenas dê o recado à
sua namorada, eu a espero com um humilde e sensato pedido de
desculpas, ou nada de vaga no restaurante.
— Sabe, — ele grita quando deixo o elevador — Anna está
certa. Você vai terminar a vida sozinho, tentando pagar suas
companhias, mas não encontrando nenhuma que aguente
conviver com você.
Sorrio para ele, como se isso fosse possível! Eu sou o dono
do meu mundo e todos nele vivem ao meu redor. Não corro risco
de perder isso, pois foi o que conquistei e é meu por direito.

A noite está estrelada e a música baixa que soa nos


autofalantes consegue me acalmar de um dia particularmente
entediante. Estou na terceira taça de Malbec quando minha
campainha soa. Vejo Anna pela tela do monitor, ela parece
desconfortável, tem uma expressão fechada e nada contente por
ter vindo até aqui me pedir desculpas. De repente minha noite
acaba de melhorar.
Vou girando a taça nos dedos, andando a passos lentos,
deixando que ela espere. Abro a porta devagar e logo que a
encaro, sua expressão emburrada some e um falso sorriso surge
em seu rosto. É um sorriso engraçado.
— Anna, que surpresa! A que devo a honra?
— Ah, senhor, desculpe vir sem avisar, estou fazendo por
pura e espontânea chantagem!
— Você veio reclamar?
— De jeito nenhum! — Sua voz é calma e o sorriso forçado
deixa seus dentes à mostra de uma maneira engraçada, mas ali,
em seus olhos cor de mel eu vejo, ela está prestes a explodir. —
Vim apenas me desculpar.
— É mesmo? E pelo que você veio se desculpar?
Ela revira os olhos, o sorriso forçado ainda ali.
— Por ter sido um pouquinho agressiva e ter te dado
balinhas quando o senhor não as queria.
— Não foi o que você fez, meu bem. Você tentou me matar
sufocado com tantas balas.
— E falhei, ou não precisaria passar por isso agora.
— Graças a Deus — confirmo com um sorriso e ela revira
os olhos de novo, seu sorriso falso sumindo. — O sorriso, Anna,
esperava suas mais doces e sinceras desculpas, não essa cara
fechada de quem não se arrepende.
O sorriso volta, sua voz doce e calma quando diz:
— Soube que o senhor foi o centro das atenções hoje,
senhor. De nada por isso.
Sorrio, a observo por um momento, tomo um pouco do
vinho. Ela usa uma blusa colorida demais e um short jeans. Tem
os cabelos marrons presos em um rabo de cavalo, e nada de
maquiagem. Aprecio mulheres mais sofisticadas e bem vestidas,
mas Anna tem de beleza o que lhe falta em sanidade. Entendo
perfeitamente o fascínio de Leandro por ela.
— Acho que não vai funcionar, Anna, você é assim, atrevida
demais, respostas rápidas, zero noção. Sua cabecinha está em
um mundo à parte. Você não vai se dar bem com Lorenzo e o
chef dele, não. Mancharia nossa amizade se eu indicar você —
digo e tento fechar a porta, mas ela me impede colocando o pé.
A abro sentindo-me vitorioso e não há sorriso falso em seu
rosto. Nem raiva em seus olhos. Há algo como desespero.
— Sinto muito, senhor Baltazi. Vamos ser sinceros aqui,
não sinto muito pelas jujubas, você não ia morrer por elas, vamos
ser realistas. Mas sinto muito por ter invadido seu espaço e ter
ido trabalhar em sua empresa. Foi um erro e eu verdadeiramente
sinto muito. Por favor, eu prometo que vou me comportar. Eu não
sou assim, sou calma e centrada. Em três anos nunca tive uma
discussão com o Igor, e trabalhávamos juntos.
— É difícil acreditar nisso.
— É você que desperta o meu pior lado.
— A culpa então é minha?
— E de quem mais seria? O fato é que eu preciso desse
emprego. Por favor. Prometo que não irei desapontá-lo. Se eu o
fizer, você pode encher minha boca com jujubas.
Não queria rir, mas não consigo evitar. Abro a porta e deixo
que ela entre. Ela o faz desconfiada, ofereço uma taça de vinho e
suas bochechas coram quando diz que se comporta diferente
quando bebe.
— Eu sei bem, doce Anna, sei muito bem.
Seu rosto parece prestes a explodir e pego no escritório os
papéis enviados por Lorenzo com os documentos que ela precisa
para se candidatar a vaga de hostess. Explico por alto como
funciona o restaurante, já que ela achava a espelunca do ex algo
grandioso. Vai cair para trás quando entrar no Le Bistrot.
— Tente não demonstrar que está deslumbrada, aja como
se você trabalhasse em lugares assim a vida toda, como se eles
lhe fossem familiares.
— Tudo bem, eu posso fazer isso.
— Não levante a voz, nunca, não importa o que aconteça.
Lorenzo odeia isso. Ele também odeia relacionamentos entre
funcionários. Estou avisando porque seu ex não se importava,
mas ele se importa. É apenas uma chatice dele, mas é
importante que você saiba.
Ela parece surpresa, mas assente, garantindo que
entendeu.
— Você vai se sair bem, Anna, é sua área de trabalho, você
tem experiência, espero que dê tudo certo.
Seu olhar agora é desconfiado.
— De verdade ou você está caçoando de mim?
Sorrio.
— Quem sabe? Você comeu algo esta noite? Acabei de
preparar o jantar, sobrou um pouco, você quer?
— Eu não entendo você.
Seu olhar confuso faz as palavras de Leandro voltarem à
minha mente: o anjo e o demônio. Mas me esqueço delas ao
guiá-la até a cozinha, ela come devagar, prometo dar uma carona
a ela, que está preocupada com o horário. Como se a casa de
Leandro fosse tão longe daqui. O céu não está mais estrelado, o
que acontece muito nesta cidade, a chuva vem quando menos se
espera, e uma irá cair em breve. Convenço Anna a tomar um
pouco de vinho, provavelmente é a última vez que nos vemos, a
menos, claro, que eu vá ao Le Bistrot, então ela irá apenas me
atender e não conversaremos. Apenas por isso conto a ela sobre
a morte dos meus pais, alguns anos antes. Sobre o império que
montei com meu suor e influência.
Não sei há quanto tempo estamos em uma conversa
amigável quando a campainha soa, já tarde da noite. Anna
imediatamente vai abrir, a sigo pensando ser Leandro para
buscá-la, mas é Larissa. Estou tão surpreso com sua presença,
quanto ela está ao ver Anna aqui de novo.
— Ah, achei que estivesse sozinho — diz sem graça e
esclareço antes que ela decida ir embora.
— Eu estou, ela é minha funcionária, mas já estava indo
embora. Boa noite, Anna.
Anna me encara assustada e olha o tempo se fechando lá
fora. Entendo que eu deveria levá-la, ela não vai mais encontrar
ônibus a essa hora, então pego algum dinheiro na minha carteira
e dou a ela, os olhos atentos em Larissa, que me observa
dispensá-la com certa curiosidade.
— Aqui, chame um táxi, adeus, Anna.
A empurro gentilmente porta afora e a fecho imediatamente,
recebendo como resposta o sorriso lindo de Larissa. Ofereço
vinho a ela e iniciamos uma conversa carregada de segundas
intenções. Não acredito que tive uma segunda chance.
Porém, menos de dez minutos depois que ela chegou, as
luzes das ruas se apagam. Uma chuva bem forte cai por poucos
minutos, raios soam, o vento canta pelas janelas e tudo está
escuro. Dura mais uns vinte minutos em que aproveito Larissa
perto de mim no sofá para acalmá-la do meu jeito. Ela
corresponde com o mesmo desejo que eu e começo a tirar sua
roupa aqui, no sofá mesmo.
É quando as luzes voltam e observo a bela mulher diante
de mim, me lembrando de outra mulher que esteve aqui dias
atrás e que coloquei para fora tão tarde esta noite. Será que ela
conseguiu um táxi antes da chuva? Será que chegou bem?
— Um minuto, querida — peço e ligo para Leandro para
saber de Anna, mas ele não atende o celular.
Bem, eu tentei. Volto a Larissa, mas a preocupação com o
horário em que Anna saiu daqui não me deixa seguir. Interrompo
o beijo após ela tirar minha camisa e acaricio seus braços. Sua
expressão vai se fechando quando percebe que não correspondo
mais seus beijos.
— O que houve?
— Estava muito tarde quando minha funcionária foi
embora?
— Bem tarde, por quê?
— Você acha que deu tempo de ela conseguir um táxi antes
da chuva?
— Pouco provável.
— Merda. Por que você não disse que sim? — questiono
levantando-a do meu colo com cuidado. — Sinto muito, minha
linda. Você é o que mais quero no momento, mas minha
consciência me diz que preciso saber se ela chegou bem.
Ela cruza os baços irritadíssima.
— Ela é namorada do meu amigo, o Leandro. Ele não me
perdoaria se algo acontecesse a ela. Você se importa em ir
comigo até a casa dele? É rápido, é aqui pertinho, nós
confirmamos que ela chegou bem e voltamos direto para o meu
quarto.
Ela parece indecisa com a proposta.
— Ela é namorada do Leandro?
— Sim.
— Tudo bem, não vamos demorar, não é?
— Prometo que não.
Vestimos nossas roupas e vamos até a casa de Leandro,
cerca de quinze minutos da minha. Me causa certa irritação ter
que ir até ele para saber de Anna, mas isso vem do fato dessa
pequena oportunista estar usando meu amigo para ter onde
dormir. Ligo de novo, ele não atende, então toco o interfone
diversas vezes. Tudo está escuro e sua voz é sonolenta quando
me responde.
— Leandro, Anna chegou bem?
— Lucca? Que merda está fazendo aqui?
— Anna saiu da minha casa muito tarde, não consegui falar
com você para saber dela, só vim confirmar se ela chegou bem.
— Você está de brincadeira, não está? — Ele respira fundo
e diz: — Anota aí o endereço de onde espero que ela esteja.
— Ela não está com você?
— Por que ela estaria comigo? Anote.
Ele me fala um endereço, que anoto rapidamente no celular
e desliga o interfone sem me dar maiores satisfações. E me pego
rindo pelo fato de não estarem juntos, até entrar no carro e dar
de cara com uma careta. Claro que Larissa não gosta nada
quando digo que teremos que ir a outro lugar, principalmente
quando o gps anuncia que o lugar fica a pouco mais de uma hora
de onde estamos. Mantém a expressão emburrada por todo
caminho e nem mesmo uma música romântica ajuda.
Finalmente chego ao endereço indicado e algo parece
errado. Não pode ser aqui. O que ela estaria fazendo em um
lugar como este? Bato na porta assim mesmo, está tarde, mas
escuto conversas vindas de lá de dentro e sou recebido por uma
freira.
— Desculpe, acho que estou no lugar errado. Estou
procurando por Anna Maria, a senhora a conhece?
— É importante, filho? A menina já foi se deitar.
— Sou o chefe dela.
A freira assente e pede que eu espere. Há colchões
espalhados por todos os lugares, algumas freiras cuidando do
local e pessoas dormindo no chão. Muitas pessoas. Anna se
levanta de algum lugar lá no canto do espaço. Vem caminhando
com uma expressão emburrada e desconfiada, usa uma blusa
velha xadrez e tem os cabelos presos em um coque torto. Sua
cara de sono não melhora nada quando me vê.
— É aqui que você dorme? — pergunto e, confusa, ela
assente. — Aqui que tem dormido nos últimos dias?
Ela confirma de novo, então ela nunca dormiu com Leandro.
Não estava aboletada na casa dele como imaginei, se ele a
tivesse levado para a cama, jamais permitiria que ela dormisse
em um lugar com esse de novo.
— O que você quer, Lucca? Por que está aqui? Por que
está rindo como um bobo?
— Nada, é que isso é um abrigo.
— Sim, eu sei.
— Você dorme aqui, quer dizer, empreguei mesmo uma
moradora de rua — digo e começo a rir. Não estou rindo do lugar
em si, estou rindo da situação, do golpe que já a imaginei dando
em Leandro com uma falsa gravidez num futuro bem próximo,
enquanto ela estava dormindo em um abrigo, com moradores de
rua e não na cama do meu amigo. Estou rindo porque sou um
babaca e não sei como explicar a ela o quanto isso me tira da
minha zona de conforto.
— Saia daqui! Agora mesmo, suma daqui, Lucca! — ela
grita de repente cessando minha crise de riso inoportuna.
— Você não precisa ficar...
— Sai! — ela grita.
As freiras se aproximam preocupadas e, para evitar um
constrangimento ainda maior, me retiro.
— A gente se fala amanhã, tudo bem? — tento.
— Vá embora!
Saio do abrigo e quando entro no carro, Larissa não está
mais.
— Ah, essas mulheres!
Ainda assim me sinto com um ótimo humor pelo resto da
noite.

São quase dez da manhã e nem sinal do Leandro. Já liguei


algumas vezes para seu celular, mas ele não me atende. Não sei
porque ele tem um celular se nunca o atende. Apenas por
curiosidade, ligo para Lorenzo, para saber como está sendo o
primeiro dia da Anna, mas ele diz que ela não apareceu. Consigo
o número dela em seu currículo, mas ele sequer chama quando
tento. Será que aconteceu alguma coisa?
Repassando a noite passada na cabeça começo a me dar
conta que, mais uma vez, fui um babaca com ela. Primeiro, a
convidei a entrar, conversamos por horas, bebemos juntos e
então a coloquei para fora com uma chuva iminente sem ao
menos pensar duas vezes. Será que ajudaria contar a ela que
nem transei na noite passada porque fui atrás dela reparar meu
erro? Bem, espero que sim, porque da próxima vez em que a vir,
depois da bronca que darei nela por não ter aparecido para a
entrevista, vou me desculpar por tê-la enxotado daquele jeito. E
claro, por ter rido como um maluco no abrigo. Ela provavelmente
pensa que ri dela, do lugar, não da situação.
As horas vão passando, nem Leandro, nem Anna me
atendem. Ele não vem trabalhar e é a primeira vez em anos que
não vem. Não consigo comer nada durante o almoço. Sinto um
zumbido em meus ouvidos, como o presságio de uma mudança,
algo ruim se insinua no ruído do vento.

Leandro chega ao final da tarde. Estou há horas nesta sala


preso em lembranças, em sentimentos, esperando a mudança.
Não é nada que eu não posso controlar, sou o dono do meu
mundo, eu controlo tudo. Leandro se senta à minha frente e
pergunto se está tudo bem, ele diz que sim, que estava com
Anna, se despedindo dela.
— Para onde ela foi? — pergunto e volto a mexer no
celular, como se não me importasse.
— Ela saiu da cidade. Foi tentar a vida em outro lugar. Ela
não tinha nada aqui mesmo.
— Ela tinha um ótimo emprego que consegui para ela,
talvez não fosse tão bom assim aos olhos dela, já que preferiu
dispensá-lo, não é mesmo?
— Ela não queria nenhum favor seu. Como você a coloca
para fora de sua casa, Lucca? E depois vai atrás dela e a
humilha? Você riu do lugar onde ela estava, a chamou de
moradora de rua. O que você tinha na cabeça?
Alívio. Alívio por saber que você e ela não estavam
dormindo juntos, mas não vou dizer isso. Não vou dizer nada.
Dou de ombros, como se não fosse nada demais.
— Quer saber? Eu achei pesado quando li, mas acho que
você merece. Cada linha aqui, você merece. Ela deixou isso para
você.
Ele coloca um papel sobre a mesa e deixa a sala. Demoro
um pouco a pegar o tal papel porque sei que esta é a mudança.
Se vem de Anna não é algo que possa me afetar, ainda assim
temo tocar o papel e descobrir seu conteúdo. Espero mais alguns
minutos, recuso ligações, desligo o celular e observo o papel. O
pego finalmente, olho pela janela os carros abaixo de mim. O dia
está perto de se despedir, e Anna também, esta deve ser uma
carta de despedida. Bem, melhor assim, não é? Eu não a queria
por perto.
Abro o papel finalmente e leio de pé, o céu acima da minha
cabeça através do vidro enorme da janela, a cidade abaixo dos
meus pés, meu lugar seguro. O lugar a que pertenço.

Quanto vale uma pessoa? Se a importância de alguém for


um número, um valor real que você possa pagar por ela, quanto
acha que você valeria? Mais do que eu por ser homem? Por ser
rico? Branco? Bem sucedido? Por suas escolhas e
descendência? Quanto vale uma pessoa qualquer em sua
cozinha à noite, esperando que uma tempestade caia, segura
porque sabe que não estará sozinha quando ela chegar. Para
você, menos do que um sobrenome em sua sala, disposta a tirar
a roupa. Para você, pessoas podem ser definidas por seus erros,
por suas casas, pelo lugar onde dormem, pelo cargo que
ocupam. Como se um uniforme roxo de faxineira diminuísse o
valor de alguém que antes usava uma roupinha social de
recepcionista.
Sabe, sua vida é vazia. Seus cofres estão cheios e talvez
você mereça parabéns pelo seu império. Mas talvez você só
mereça um sinto muito. Nem todo dinheiro do mundo vai comprar
a pessoa por quem você vai se apaixonar um dia. Nem o perdão
do amigo que você vai ferir, porque acredite, você vai. Nenhuma
mansão bem equipada vai preencher o vazio de quando olha
pela janela todas as noites com sua taça de Malbec e não vê
nenhum reflexo além do seu. Não porque você goste de ser
sozinho, mas porque você não gosta de verdade de ninguém,
não gosta de ninguém o bastante para desejar que esteja ali,
refletindo na janela ao seu lado.
Você é o dono do seu mundo agora, mas seu mundo é só
um ponto no universo. Há tantas pessoas, tantos lugares, tantos
mundos como o seu e como o meu, se colidindo todo dia, se
destruindo toda hora, e isso não muda o fato de que o seu
mundo perfeito é apenas mais um em muitos. Você não é melhor,
nem superior a ninguém. Mas quem sou eu tentando te dizer o
quanto você vale como ser humano, não é mesmo? Sou apenas
uma maluca, uma moradora de rua que sequer teve pais para lhe
dar senso, como você fez questão de ressaltar. Alguém a quem
você apenas coloca para fora se algo mais interessante surge.
Eu não sou ninguém. O que é uma pena para você, porque se
não posso te mostrar isso, a vida vai. E vai ser da pior maneira
possível. Você vai se ver sozinho, no escuro, pedindo ajuda,
esperando uma mão amiga e não terá nada. Só seu dinheiro.
Poderá se deitar sobre ele, mas ele não lhe trará conforto, não
lhe trará ninguém. Ao menos ninguém de verdade.
Eu sou Anna, a dona do meu mundo e no meu mundo
maluco, você vale menos do que o que tenho agora no bolso.
Uma nota apenas é o que resume o seu valor. É uma pena que
você possa ser reduzido a um número.

Ando até a cadeira e me jogo sobre ela. Leio a maldita carta


de novo, e de novo, até meus olhos estarem turvos e eu
perceber, com assombro, que essa maldita maluca conseguiu me
atingir. Porque suas palavras já me foram ditas antes. Antes de
uma tragédia que mudou minha vida. E sei que elas não são
reais, são só pragas de uma mulher machucada, não passam
disso. Não sou frio. Todos têm um preço, ela é ingênua por não
entender isso. Mas vai entender um dia. Vai entender e vai me
procurar para se desculpar.
E isso é tudo o que terei dela? Será esse o seu adeus?
Me levanto imediatamente e pego a carteira. Passo por
Leandro como um furacão, sequer escuto o que ele tenta me
dizer. Chego ao abrigo em menos de quarenta minutos e bato na
porta como se minha sanidade dependesse disso. Parece que
depende. A mesma freira da noite anterior a abre. Não há
julgamento por minha atitude em seu olhar.
— Onde ela está? — pergunto com a voz mais baixa do que
pretendia.
— Anna? Ela foi embora, sinto muito, filho.
— Para onde? Onde ela está agora?
— Eu não sei. Só sei que saiu da cidade. O outro chefe dela
a levou até a rodoviária, não sei para onde foi. Você está bem?
Precisa de algo?
Nego com a cabeça e agradeço. Então volto imediatamente
para a empresa. Leandro está em uma reunião com alguns
funcionários quando entro.
— Para onde você a levou? Onde está a Anna? Ela precisa
voltar atrás, precisa voltar aqui e retirar as palavras escritas
nessa maldita carta!
Todos os olhares estão sobre mim, mas não me importo.
Leandro se aproxima cauteloso.
— Se acalme, vamos conversar.
— Para onde você a levou? Não quero conversar com você,
quero falar com ela!
— Eu não vou dizer, Lucca. Ela não quer que você vá atrás
dela. Você não tem esse direito, ela foi embora por sua causa!
— Você é amigo de quem, afinal?
— Dela, ao que parece! Você devia ir para a casa e se
acalmar. O que há com você?
Ele nunca entenderia. Mas ouço o que ele diz, vou para a
casa. Passo horas na jacuzzi, tento assistir a um filme, mas suas
palavras ficam voltando à minha mente. Assim como as palavras
da minha mãe:
Pessoas possuem valores incalculáveis. Você precisa
aprender isso antes que seja reduzido a um número.
E agora, finalmente, eu fui.
Desde ontem, minha cabeça dói ininterruptamente, não
importa quantos remédios eu tome. Meu humor não anda dos
melhores desde a semana passada. Quando saio do elevador na
Atenas, as pessoas se afastam rapidamente, correm para longe,
como se eu tivesse uma doença contagiosa. Prefiro assim. Me
jogo em minha cadeira e o programa que eu deveria estar vendo
agora me irrita. Essa sala ensolarada com tantas janelas de vidro
refletindo o céu, me irrita. Chamo Açucena para resolver isso.
— Feche tudo, todas as janelas, não quero ver o céu,
Açucena.
— Entendo, senhor.
— Quero ficar no escuro — confesso. As palavras escritas
naquela carta que já decorei me tomam de novo, ela disse que
estarei no escuro. Não vou permitir que ela vença. — Deixe,
Açucena, pode abrir tudo de novo.
Ela me olha confusa, como se eu fosse uma espécie de
louco.
— Abra, Açucena, você não me ouviu? — Ela volta a abrir
as cortinas, a luz do sol entrando pela sala e eu permitir que
Anna continue me atingindo após todos esses dias me irrita mais
do que a luz. A maneira como lamento que talvez nunca mais a
verei, me irrita de uma maneira diferente e a culpa que sinto por
tê-la afugentado me irrita a um nível que sequer posso
compreender.
Açucena me encara por um tempo, diz baixinho, a voz meio
tremida:
— Obrigada por ter consertado meu telhado, senhor. O
senhor pode descontar no meu salário.
— Não é necessário, Açucena. Só não conte isso a
ninguém, como combinamos.
Vejo Leandro chegar quando Açucena deixa a sala, há dias
ele não fala comigo, como se me culpasse por ter perdido sua
Anna. Ele não entende que também a perdi.
É mais um dia como os outros antes desse, chato,
cansativo, onde me sinto fora do lugar, o que não faz sentido.
Nem mesmo olhar pela janela ao final da tarde, vendo o pôr do
sol atrás dos prédios, confirmando o posto que ocupo agora,
consegue aliviar essa sensação de que algo está faltando.
Resolvo ir pegar meu próprio café desta vez. Prestes a entrar na
copa, escuto o que os funcionários estão dizendo entre
risadinhas e deboches.
— Ele está insuportável, quer dizer, mais do que já era.
Alguém tem o número da Anna? Peçam pelo amor de Deus para
ela voltar — alguém comenta e outros concordam.
— Não sejam tão cruéis, vocês não veem o quanto ele está
sofrendo? — É a voz da Açucena. — Ele se apaixonou pela
primeira vez na vida e levou um belo pé na bunda. Coitado, o ego
dele não sabe lidar com isso. De verdade, não está sendo fácil
para ele.
Há condescendência e talvez um pouco de maldade em sua
voz. As pessoas riem, até que alguém diz:
— Ele a fez ir embora do estado, nunca vi uma mulher
correr tão longe para se livrar de um homem. — E voltam a rir.
Apareço então e todos se calam, em seus rostos
estampado o medo.
— Não é profissional vocês estarem aqui fofocando sobre a
vida do seu chefe, eu poderia demitir todas vocês, já que ao que
parece, estão sem serviço. Devo ter mais funcionários do que
preciso aqui.
Apenas o silêncio, cabeças baixas, funcionárias fofoqueiras
se colocando em seu lugar. Isso realmente me anima um pouco.
— E não que seja da conta de vocês, mas não sou
apaixonado pela faxineira, nunca fui e nunca serei. Jamais me
declarei a ela, ou tentei qualquer envolvimento amoroso, ela não
me deu pé na bunda algum. Foi embora porque é uma fraca, não
tive nada a ver com isso. E se eu pegar vocês falando sobre isso
mais uma vez, vou demitir na mesma hora.
Vou pegar meu café, elas saem da mesa, mas alguém diz
baixinho:
— Isso é dor de amor.
Viro-me para trás imediatamente.
— Quem disse isso?
Elas saem correndo e rindo e percebo que preciso lembrá-
las de que eu sou o chefe aqui.

Então tudo melhora nas semanas que se seguem. Graças


ao meu esforço, as pessoas voltam a correr ao me ver, abaixam
suas cabeças e não me dirigem a palavra. Não há risinhos, nem
conversas. Açucena treme de novo ao bater em minha porta. O
mundo está de volta aos eixos. Depois de semanas, Leandro
volta a conversar comigo. Anna nunca é mencionada. Queria
saber dela, saber se está bem, em que encrenca se meteu
agora. Se já tem um emprego ou está em algum abrigo fora do
estado, mas não ouso perguntar. Anna é nosso ponto fraco. Não
vou perder meu único amigo por causa dela. Por mais que já
tenha aberto a boca para fazer essa pergunta ao menos dez
vezes na última hora.
Até que Leandro me surpreende completamente ao ser ele
a tocar no assunto. São quase onze da noite e ainda estamos na
Atenas, uma chuva torrencial cai lá fora escurecendo a cidade,
através da janela da minha sala, vemos apenas luzes fracas e o
barulho gostoso da água descendo. É o fim do período de
chuvas, são os últimos dias para apreciarmos o cheiro da terra
molhada, o céu escuro e o barulho reconfortante. Encaro meu
amigo pensativo com sua cerveja e brinco:
— Não, este mundo não está aos seus pés, está aos meus.
Ele sorri, mas então seu sorriso some e ele diz:
— Estou aqui me perguntando quanto tempo mais vai
demorar pra você me perguntar sobre ela.
Minhas mãos parecem esfriar de repente, um zumbido
baixo soa em meus ouvidos e nem sou mais capaz de engolir. O
coração agitado no peito me faz perceber o quanto estou
caminhando em terreno perigoso.
— Não tenho interesse em saber dela — minto.
— Não mesmo? Não quer saber se ela chegou na cidade
nova e encontrou um homem qualquer que abusou de sua
ingenuidade?
— Isso aconteceu? — pergunto imediatamente. — O que
houve com ela? Como ela está? Quem é ele?
Seu sorriso está ali, mas seus olhos também estão
preocupados.
— Não sei, na verdade, nunca mais nos falamos. Ela
provavelmente mudou de número. E sim, eu sei em que cidade
ela está, mas se não quer contato comigo, não vou agir como um
maluco e ir atrás dela.
Concordo, fechando os punhos ao imaginá-lo fazendo
exatamente isso.
— Mas é o que você quer fazer? — pergunto.
— Seria. Anna é uma mulher notável. Há algo nela, ela é
diferente de qualquer outra pessoa que eu tenha conhecido na
vida. É autêntica, ingênua, bondosa, divertida. Até mesmo seu
jeito peculiar de enxergar as coisas é uma graça e não um
problema.
— Acho que discordamos quanto a isso. Ela só meu causou
problemas. Se quer ir atrás de alguém que não lhe deu qualquer
notícia nos últimos dois meses, vá. O que o impede?
— Você ficaria bem com isso?
— Por que eu não ficaria?
— Chegamos ao ponto aqui, Baltazi. Há semanas quero
falar com você sobre isso. Assim que minha irritação por você a
ter enxotado passou, eu quis falar com você sobre isso, mas
você nunca me deu abertura.
O encaro esperando que ele vá declarar seu amor por ela e
viro a cerveja de uma vez, pegando outra. Não posso estar
completamente sóbrio se vamos ter essa conversa.
— Eu poderia me apaixonar por ela. Por tudo o que
mencionei, eu poderia. Mas não vou. Porque você já fez isso.
Engasgo com a cerveja em um primeiro momento, então
começo a rir. Ele ignora minha reação e continua.
— Eu tenho pensado em suas atitudes com ela e,
principalmente, em como reagiu à sua partida. Você é alguém
que está sozinho há tempo demais, você nunca sentiu algo
parecido por ninguém antes e não sabe o que fazer com isso.
Então você passou por um processo visivelmente doloroso desde
que ela se foi. Se tornou ainda mais rabugento e frio, faz questão
de permanecer sozinho, não gosta mais da luz do sol, não
saímos para beber. Você se dá conta que não dorme com uma
mulher há dois meses?
Cerveja não será suficiente, então encho um copo com
uísque. Seu olhar reprovador apenas me incentiva a encher o
segundo.
— Estou do lado de fora aqui — ele continua. — E do lado
de fora é nítido que você sente alguma coisa por ela. É nítido que
não sabe o que fazer com a falta que sente, nem com a culpa.
Você precisa de ajuda, amigo. Precisa de alguém ao seu lado.
Entendo que seja difícil assimilar isso, mas até quando você vai
se esconder na chuva e esperar o sol sumir para sempre?
Ele se cala e percebo que espera uma resposta minha.
Primeiro, sua afirmação me assustou, depois, me pareceu
divertida, agora, me sinto apenas com raiva. Dele, dela, de mim,
de tudo. Ele quer que eu vá atrás dela e isso me faz rir. Não vou
atrás de alguém que me deixou, não vou atrás de alguém a quem
eu não controlo. Eu controlo tudo e Anna já fez estragos demais
na minha sanidade.
Leandro ainda espera uma resposta, resmunga pela minha
falta de maturidade, pela minha falha em manter um diálogo.
— Você não vai querer ouvir minha resposta ao que acabou
de dizer, Leandro — advirto virando a quarta dose.
— Estou aqui esperando por isso, então acho que sim,
quero ouvi-la.
— Mas lembre-se que foi você quem pediu. É ridículo que
pense que eu me apaixonaria por alguém como ela. Mais ainda,
que depois de tanto tempo de convivência, acredite mesmo que
eu precise de mais alguém além de mim. Olhe à sua volta, veja
bem onde estamos agora, Leandro! Esta é minha sala! É o meu
prédio! O meu império, é o meu reino. Você não vê por essa
janela agora porque a chuva impede, mas eu sou o rei deste
mundo. As pessoas lá fora estão aos meus pés. Ainda não
conheci alguém que se encaixe ao meu lado, e com certeza essa
pessoa não é uma moradora de rua órfã que não bate bem da
cabeça.
— Todo esse seu egocentrismo não passa de uma defesa,
você não pensa mesmo nada do que diz. Você tem trinta anos,
cresça, Lucca! Assuma seus erros, suas necessidades! Você não
é Deus!
— Nunca pensei que fosse. Mas sou mais do que você
enxerga. Não a quero, não preciso dela. Não preciso da sua
pena ou dos seus conselhos idiotas. Meu sol não depende de
outra pessoa, nada na minha vida depende de outra pessoa para
funcionar. Vocês acham que vou ficar sozinho e solitário
chorando pelos cantos pela companhia de alguém, mas isso
nunca vai acontecer. E sim, ela pode ter me desestabilizado um
pouco, e eu realmente senti por tê-la feito perder uma grande
oportunidade, mas não passou disso. Nem chega a ser culpa. Ela
foi só um inconveniente, assim como você está sendo.
Leandro ri agora, mas é um sorriso incrédulo, como um
escape.
— Você gosta de verdade de alguém? Será que me vê
mesmo como seu amigo? — pergunta um tempo depois.
— Eu confiei em você para administrar esse império
comigo, eu dei a você a melhor chance da sua vida sem pedir
nada em troca, o que o faz pensar que, apesar do grande favor
que fiz a você, não o tenha em grande estima? Eu não faria isso
por qualquer outra pessoa.
— Então sua prova de amizade é me fazer o favor de me
deixar trabalhar ao seu lado? Você tem ideia do quanto isso é
difícil? Você é insuportável, mandão, egocêntrico, mimado e um
idiota na maior parte do tempo. Estou aqui por amizade, não por
mendigar seus favores. Meu Deus, como a Anna acertou em
cheio sobre você! Sobre tudo! Ela o leu em algumas semanas e
só depois de anos minha máscara sobre você está caindo!
— Anna, Anna, sempre a Anna! — Grito irritado deixando o
copo de lado. — Se está infeliz aqui, vá embora! Ninguém vai te
impedir! Com certeza eu não vou.
Ele deixa a cerveja sobre a mesa com força desnecessária
e concorda com um gesto repetitivo de cabeça.
— Você está certo. Eu desisto. Desisto de você, Lucca,
você é quase um robô, não tem sentimentos. Estou me
demitindo, encontre outra pessoa para fazer o favor de permitir
trabalhar ao seu lado. Quer saber? Eu vou atrás dela, onde ela
estiver e vou te mandar um cartão de natal com a foto da nossa
família linda e feliz em poucos anos, seu grande filho da puta!
Ele deixa a sala batendo a porta, como um adolescente
mimado.
Há um zumbido alto nos meus ouvidos, quase me atrapalha
ouvir a chuva. O coração acelera tanto, que penso que irá
explodir. Espero um pouco até que melhore. Consigo me mover
finalmente e pego minhas coisas, essa noite precisa ser
encerrada. Leandro estava certo em uma coisa, não durmo com
alguém a tempo demais. Esses são os únicos momentos em que
preciso de alguém, quando tenho uma mulher embaixo do meu
corpo. Ou por cima dele. É o que preciso agora.

O carro de Leandro ainda está no estacionamento, embora


não o veja em lugar algum. A chuva parece mais forte agora,
mas que se dane! Não vou ficar um segundo mais aqui. Saio do
estacionamento para o escuro da noite. O limpador de para-brisa
quase não dá conta da quantidade de água, no alto falante do
carro, a voz doce de Verônica me confirma que está à minha
espera. Pego o caminho das serras então. Ela mora em uma
cidade vizinha, não é tão distante, vale a pena. Não há carro
algum além do meu na rua e isso me faz rir. Ninguém se atreve a
sair em uma chuva como essa. São fracos. Medrosos. Coisas
que nunca vou ser.
A maldita carta que ela me deixou volta à minha mente. É
como se ela casasse com as palavras ditas por Leandro, como
se me conhecessem tão melhor do que eu mesmo. Ele sabe
onde ela está, vai atrás dela, mas quem liga? Eles que sejam
felizes, que tenham dez filhos iguais a ela, dez cópias de seu
sorriso e maluquice, quero ver ele lidar com isso. Estou irritado,
lamento não ter trago a garrafa, ela seria necessária nesse longo
caminho. A placa de sinalização anuncia uma curva sinuosa à
frente, eu deveria diminuir a velocidade. Minha mente parece
confusa, por que peguei essa estrada? Piso no freio, mas o carro
acelera. Não consigo ver o que está lá fora, ouço o barulho de
um carro próximo, então há uma buzina. Uma buzina alta
demais, perto demais, que me assusta e o barulho infernal não
cessa. Uma luz forte bate em meu rosto e fecho os olhos, piso
mais uma vez no freio. O que há com esse carro? E então a luz
some, a buzina vai soando ao longe e parece que estou caindo.
Caindo...
Caindo...
E não vejo mais nada.
Um ano depois...
Nathalia me encara e tenta mesmo disfarçar um revirar de
olhos, mas não consegue. Sei que é minha sexta vez aqui em um
ano, mas bem, a culpa realmente não foi minha. Em nenhuma
das seis vezes. Sento-me diante dela e ela para o que está
fazendo para me encarar. Como não digo nada, ela faz um gesto
com a mão enquanto pede:
— Vamos, Anna, explique-se.
Encaro a minha agente de empregos com um sorriso
amigável. Nathalia me ajudou a conseguir um emprego quando
cheguei à Monte Verde, um ano atrás. Então me ajudou nas
quatro vezes seguintes, todas no período de duas semanas, até
o emprego que finalmente deu certo. No qual estive até ontem,
quando, injustamente, fui mandada embora. Bem, era mesmo o
que eu queria, para ser sincera.
— Eu arrumo os quartos melhor do que qualquer outra
arrumadeira daquela pousada. E também preparo os melhores
ovos mexidos cremosos. Sempre fiz hora extra, já fiquei na
recepção mais vezes do que posso contar a você sem cobrar
nada mais por isso, e no primeiro pequeno deslize eles me
dispensam — lamento suspirando alto exageradamente.
Ela mantém um sorriso no rosto, daqueles de quando a
pessoa não quer realmente rir. Do tipo que me dão sempre que
não acreditam no tamanho da minha cara de pau.
— Anna, eu não chamaria destruir a cozinha da pousada de
pequeno deslize.
— Mas não foi assim, isso é um exagero! Eu vi um rato, me
assustei, tentei subir em algum lugar apenas para me salvar e
não sei como as coisas começaram a cair uma atrás da outra
sem parar! Mas eu não podia impedir! Havia uma ratazana
enorme no chão!
— Que só você viu. O seu gerente vai ficar sem salário por
no mínimo três meses, você sabia? Ele é responsável por
qualquer dano à propriedade na ausência dos donos, mas tenho
certeza que você sabe disso.
Dou de ombros e tenho um sucesso incrível ao esconder
meu sorriso.
— É uma pena, claro! Eu não quis prejudicar ninguém. Se
ao menos a higiene daquele lugar estivesse em dia!
— Você era uma das arrumadeiras, isso não deveria ser
tarefa sua?
— Mas você já viu o tamanho daquele lugar? Uma Anna
não daria conta! Além do mais, a cozinha não era minha área, e
sim, os quartos.
Ela respira fundo e tira os óculos, isso não pode ser um
bom sinal. Nunca a vi tirar os óculos na presença de alguém.
— Anna, infelizmente não tenho nada para você, talvez seja
melhor você voltar para Belo Horizonte.
— Mas nos classificados havia tantas vagas!
— Vou ser mais clara, não tenho nenhuma vaga para a qual
tenha coragem de indicar você, será melhor se você voltar para
Belo Horizonte.
— Não posso voltar. Eu gosto daqui. Tem que ter alguma
coisa. Eu posso passear com cães.
— Jura? Você não os deixaria fugir se visse algo que a
assustasse na rua?
— Não! Posso prender a guia deles no meu próprio
pescoço, para garantir.
— Não tenho esta vaga. Você está tomando meu tempo, é
melhor que você... — Ela para de falar de repente e encara a tela
diante de si, como se tivesse tido uma ideia arriscada, a julgar
por sua expressão ora sorridente, ora amedrontada. — Talvez
isso dê certo, bem, nenhuma funcionária ficou mais do que cinco
dias. Você provavelmente não ficará, mas não custa tentar.
Talvez você o enlouqueça antes disso e ele reaja.
— Preciso continuar fingindo que não estou ouvindo? —
pergunto irritada e seu sorriso doce me assusta de verdade.
— Tenho algo para você. Veja bem, não é um trabalho fácil,
mas o salário compensa. — Ela rabisca algo em um papel e o
coloca na minha mão.
Quando vejo o valor escrito ali quase caio para trás.
— Isso não pode ser sério, do que é esse emprego? Cuidar
de um leão? Limpar um viveiro de cobras?
— Cuidar de um senhor cego, na verdade.
A encaro por alguns segundos, ela parece estar suando frio.
Então empurro o papel pela mesa de volta a ela e nego com a
cabeça.
— Ninguém pagaria uma quantia tão absurda para que
alguém cuide de um senhor idoso. O que há de errado com ele?
— Bem, ele pode ser mal-humorado.
A encaro esperando mais informações, mas parece que
isso é tudo o que ela está disposta a dar.
— Precisa ser pior do que isso. Tem cinco dígitos aí.
— Ele pode ser agressivo. Só o fez uma vez, na verdade, e
não foi nada grave, mas pode acontecer.
— Agressivo como? — pergunto temerosa que seja o
mesmo tipo de agressão pela qual quase passei na pousada.
— Do tipo que atira coisas. E claro, ele com certeza vai ser
agressivo verbalmente. Como eu disse, ele tende a ser bastante
mal-humorado.
— Acho que posso lidar com isso. Quer dizer, um velhinho
mal-humorado me irritando é fichinha perto de cinco dígitos.
Seu sorriso se torna quadrado, ela quer dizer algo, mas não
diz. Ao invés, pega sua bolsa, volta os óculos para o lugar e se
levanta.
— Venha, vou levá-la até seu novo emprego.
— Me levar? Por que? Você nunca me levou antes —
pergunto enquanto a sigo escada abaixo.
— Quantas perguntas! Você quer ou não a vaga?
— Quero! Claro! Mas...
— Sem mas, entre no carro.
Entro rapidamente e ela coloca uma música alta para tocar
impedindo que eu faça mais perguntas. Mas algo aqui na minha
mente sussurra que isso parece bom demais para ser verdade.
Vinte minutos depois, chegamos a uma casa espetacular
localizada entre montanhas, afastada do centro e de toda
agitação do pequeno distrito. Monte Verde mais parece uma vila
europeia com suas casas pequenas em estilo europeu, o frio
congelante que faz o ano todo e o quanto chove no verão. Mas é
uma cidade tão calma e bonita, que me apaixonei por ela
imediatamente ao ver as fotos que Leandro me mostrou, um ano
atrás, quando eu precisava ir para longe e ele me sugeriu esta
cidade, alegando que eu a adoraria. Ele estava certo.
Nathalia desliga o carro e, ao invés de descermos, encara a
casa com uma expressão pensativa.
— Quem quer que viva aqui, ele gosta de privacidade, não
é? — pergunto e ela assente.
— Ah, sim, ele não é muito sociável.
— Ele vive sozinho?
— Sim, completamente sozinho.
Um velho cego vivendo sozinho em uma casa tão afastada
como essa não pode ser por um bom motivo.
— Nathalia, confio que você me diria se fosse o caso, mas,
dado ao meu pequeno azar com chefes a minha vida toda,
preciso perguntar. Ele é algum criminoso?
Ela ri, aliviada com a pergunta.
— Por Deus, não! Ele é um homem respeitado, muito
importante, que apenas não teve sorte, coitado. Anna, eu sei que
vai parecer confuso, mas acredite, ele precisa mais de você do
que você precisa desse emprego. Ele não teve sorte na vida, o
que aconteceu com ele o fez desistir de tudo. Ele desistiu de
viver. Por isso está aqui isolado, sozinho, há meses sem trocar
uma palavra sequer com ninguém. Ele se mudou para cá há
quatro meses, desde então eu já apresentei a ele doze
candidatas diferentes e ele expulsou todas sem ao menos dirigir
uma palavra a nenhuma delas. Ele as faz desistir. Elas saem
chorando, traumatizadas, três se mudaram da cidade. Não sei
como ele faz isso — ela parece prestes a chorar.
— Tudo bem. Se sua intenção é me assustar você está
conseguindo.
— Estou tentando ser o mais sincera possível com você,
querida. O que você vai encontrar aqui é assustador, mas
também é triste. Não desisto de encontrar alguém com quem ele
ao menos consiga lidar porque ele não pode continuar sozinho.
Se você entrar aí, esteja ciente do que vai encontrar e só me faça
apresentar mais alguém a ele se estiver mesmo disposta a tentar.
— Claro! Estou disposta a tentar. Estou com medo, mas
não será o primeiro chefe ruim que terei, na verdade, eu tenho
uma vasta experiência com eles. Vamos entrar — digo convicta e
desço do carro.
Nathalia o faz em seguida, um sorriso satisfeito no rosto.
Abre a porta com uma chave e estranho que tenha a chave da
casa de um cliente. Estamos em um imenso jardim abandonado.
Caminhamos entre espinhos o caminho apertado até a porta de
entrada.
— Estamos entrando, senhor — grita para avisar que
estamos chegando, não há qualquer resposta, nenhum barulho,
como se ninguém estivesse em casa.
Entramos em um hall pequeno, mas lindamente decorado.
O local parece empoeirado, mas com certeza foi limpo há pouco
tempo. Há uma poltrona ao lado de uma luminária de piso,
alguns quadros de paisagens e uma iluminação amarela,
aconchegante. Passamos por esse pequeno hall e chegamos em
uma sala enorme, equipada com uma televisão gigante, uma
lareira, mais sofás do que uma família precisaria e poltronas
combinando. O lugar é lindo. Ao fundo da sala avisto alguém
sentado em uma das poltronas, como se estivesse olhando pela
janela. Ele não se move quando nos escuta entrar.
— É só um velhinho chato — repito baixinho para tomar
coragem.
— Eu nunca disse que ele era velho — Nathalia corrige
quase aos sussurros.
— Disse sim! O chamou de senhor — sussurro de volta.
— Não quer dizer que seja velho — retruca antes de se
dirigir ao homem. — Boa tarde, senhor. Sou eu, Nathalia, trouxe
a pessoa certa para cuidar do senhor. Tenho certeza que vão se
dar muito bem.
Ele não diz nada, não se move.
— Vá se apresentar — Nathalia ordena sussurrando.
Me aproximo meio tremendo, como se o clima aqui dentro
fosse mais frio do que lá fora, talvez a lareira devesse estar
acesa. Abro a boca para me apresentar, mas minha voz falha. Os
pelos do meu corpo estão eriçados e há um aperto na boca do
estômago, como se eu estivesse prestes a levar um tombo e
soubesse disso. Paro atrás da poltrona onde ele está sentado e
abro a boca para tentar mais uma vez. É quando ele se levanta
em um rompante e gira em minha direção e não posso acreditar
no que estou vendo.
Dou um passo para trás, cobrindo a boca com as mãos, os
olhos imediatamente cheios e as palavras nem perto de
aparecerem.
— Anna? É você?
Não consigo responder. Não consigo reagir. Na minha
frente está Lucca Baltazi, o cabelo mais comprido, caindo sobre o
rosto, óculos escuros escondendo os olhos sem cor definida, a
barba bagunçada tomando seu rosto de um jeito desleixado, em
sua mão direita uma bengala de apoio.
— Anna? Eu sei que é você, eu posso sentir o seu cheiro.
— Lucca? — minha voz sai como um sussurro. — O que
você... Como você...
Não consigo dizer mais nada. Ele não pode ser o homem
cego e solitário que vive aqui. Não ele. Ele é forte, o rei do seu
mundo, egocêntrico, mimado. Não um cego abandonado.
Ele dá um passo em minha direção e me afasto, mas ele o
faz de novo e de novo. Vou andando para trás, as lágrimas
tomando meu rosto, e ele parece estar me vendo, já quem vem
em minha direção, até que há o sofá atrás de mim. E ele me
alcança. Para perto demais e com a luz daqui, consigo ver uma
pequena cicatriz em sua bochecha esquerda, algo mínimo que
toma toda sua feição. Ele não a tinha antes. Tenho certeza que
não, passei tempo demais reparando seu rosto nas vezes em
que nos vimos.
Ele respira meu cheiro e choro, não consigo conter. Então
ele tira os óculos, seus olhos lindos se converteram em espaços
vazios. Duas bolas opacas que mal podem ser vistas por conta
das cicatrizes em volta.
— Olha como estou agora! Veja o que me tornei! Você está
satisfeita, Anna? Você estava certa o tempo todo, disse que eu
ficaria sozinho na escuridão e você não podia estar mais certa. É
exatamente onde estou. Olha para mim! — grita quando não
respondo nada. — Você está feliz?
— Não — consigo sussurrar de volta. — Eu sinto muito.
Passo meus braços por seu pescoço e choro.
— Eu sinto muito. Não era pra ter sido assim, não é justo,
sinto muito. — Não consigo controlar o choro agora. Soluço em
seus ombros enquanto ele fica parado, não corresponde meu
abraço, mas também não me afasta.
Quando tiro meus braços do seu pescoço, acontece, sinto
suas mãos em minhas costas, ele me abraça de volta. Então
passo os braços novamente por seu pescoço com força. Ele está
me consolando por não saber lidar com sua situação. Ele me
balança levemente, tentando me embalar, e acaricia minhas
costas devagar, toques leves, porém acalentadores.
Quando me afasto toco seu rosto, as cicatrizes em volta dos
seus olhos, ele se afasta, coloca os óculos de novo e volta com a
ajuda da bengala até sua poltrona.
— Não preciso de você aqui, você deve ir embora —
ordena.
— Mas, eu...
— Não a quero aqui, Nathalia, encontre outra pessoa.
— Claro, senhor. — Ela confirma e sua voz parece
embargada, percebo que ela também estava chorando. —
Vamos, Anna.
Ainda não sei bem o que fazer, Lucca se senta de novo na
poltrona e me parece errado deixá-lo aqui, tão errado quanto
permanecer aqui quando não posso fazer nada por ele.
Atordoada, sigo Nathalia de volta ao carro e não falamos nada o
caminho todo até a agência de empregos. Por fim, quando para o
carro lá, ela diz:
— Você precisa aceitar esse emprego.
— Ele foi bem claro sobre não me querer lá.
— Mas vocês já se conheciam. Há uma história entre
vocês.
— Não exatamente. Quer dizer, já nos conhecíamos, mas
não foi uma experiência boa para nenhum de nós, eu acho. O
que aconteceu? Como ele ficou cego? Os olhos dele... — Me
vem à mente aqueles olhos cinzas, ora claros, ora tempestuosos
que nunca consegui definir e agora, olhos brancos, sem vida,
cercados por cicatrizes. Então quero chorar de novo.
— Foi há dez meses, ele sofreu um acidente gravíssimo,
caiu de um penhasco, não era para ter sobrevivido. É tudo o que
sei. Anna, não sei que tipo de relação vocês tiveram, nem como
isso acabou, mas este homem vive aqui há quatro meses recluso
naquela casa. Eu te disse quantas funcionárias levei até ele e ele
nunca trocou uma palavra com nenhuma delas. Ele mal fala
comigo, sempre trocou palavras curtas. Hoje ele disse a primeira
frase na minha frente. Eu não sei se você consegue entender
onde quero chegar, mas você foi a única pessoa nesses últimos
meses que o fez ter algum tipo de reação. Eu nunca o vi fora
daquela poltrona, nunca o vi falar com alguém, menos ainda
abraçar alguém, consolar, como ele fez com você. Ele precisa de
você, Anna. Por favor, pense bem, você tem que aceitar trabalhar
para ele.
— Jurei a mim mesma que nunca mais me permitiria ser
inferior a homens como ele, Nathalia. Você não faz ideia de como
ele me tratava, do quanto me humilhou. Ele foi o motivo para eu
ter saído da cidade e vindo para tão longe.
— E o destino o trouxe para o lugar onde você está. Isso
não quer dizer alguma coisa?
— Quer dizer que sou muito azarada, só pode.
— Anna, só pense com calma. Ao menos faça um teste. Se
não der certo você pode se demitir.
— Você não entende, não é tão fácil. Não é apenas dizer
adeus, é difícil esquecê-lo, não funciona assim. Não quero esse
emprego, sinto muito. Tomara que você encontre a pessoa certa
para cuidar dele — decido, descendo do carro em seguida,
tentando planejar meus próximos passos, mas falhando
miseravelmente, pois tudo o que vem à minha mente é a imagem
dele sozinho, no escuro, e sua voz carregada quando perguntou
se eu estava feliz com isso.

A noite está mais fria do que o comum, o termômetro da


cidade acusa oito graus agora, entro em meu quarto pequeno,
numa pensão pequena, porém aconchegante, e a primeira coisa
que faço é ligar o aquecedor. Me pergunto se Lucca fez o
mesmo. Será que acendeu a lareira? Ela nem devia estar
apagada com o frio de mais cedo. Então penso em como ele faria
isso, como seria capaz se não enxerga?
Eu devia ir embora daqui, sair dessa cidade, de perto dele.
Como é que ele veio parar justo aqui? Pego o aparelho que
quase não uso, já que não tenho para quem ligar e disco um
número que espero que ainda seja da mesma pessoa.
A voz surpresa de Leandro responde do outro lado da linha.
— Oi, Leandro, tudo bem?
— Anna! Quanto tempo! Nem acreditei quando vi seu nome,
eu pensei que nunca mais saberia de você. Estou muito feliz por
você ter ligado. Você está bem?
— Sim, eu... — engulo em seco antes de continuar. — Você
o mandou para cá? Disse a ele para se esconder em Monte
Verde?
— Ah, vocês se encontraram. Não, Anna, não tive nada a
ver com isso, eu nem sabia que ele estava aí, para ser sincero.
Ele simplesmente sumiu quatro meses atrás. Não responde e-
mails, não atende ao telefone, achei que estivesse fora do país.
É uma grande coincidência vocês estarem no mesmo lugar.
— Jura? Um distrito tão pequeno e tão distante, qual é a
probabilidade de ele ter vindo parar aqui sem querer?
— Eu não sei, nunca disse a ele onde você estava, posso
lhe garantir. Não há como explicar, Anna, foi apenas um acaso.
Um acaso, o destino, tantas explicações que não explicam
nada. A verdade é que o homem que me fez fugir para um distrito
pequeno e pouco conhecido está aqui agora. Mas nossos
encontros sempre foram tão ao acaso que eu nem deveria estar
surpresa.
— Você está bem? Precisa de algo?
Preciso de respostas, muitas. Talvez ele nem possa me dar
todas.
— Como isso aconteceu? A agente da agência de
empregos daqui me disse que ele sofreu um acidente. Como?
— Foi terrível, Anna. Estava chovendo muito, ele não devia
ter saído com aquele tempo. Caiu de um penhasco, ninguém
achou que pudesse ter sobrevivido. O carro em que estava ficou
completamente destruído. Não sobrou nada, Anna, virou sucata
amassada. Era impossível que ele, preso lá dentro, estivesse
vivo, mas ele estava. Contra todas as probabilidades ele estava
vivo. As duas córneas foram perfuradas no acidente, não podiam
fazer nada. Sei que parece péssimo, mas acredite, era para ter
sido bem pior.
— Duvido muito que ele pense assim — comento ao pensar
em seu atual estado. Sozinho, distante, afastando qualquer
pessoa que tente se aproximar.
— Ele preferia ter morrido no acidente. Ele não disse isso,
mas é claro que é o que queria. Mas não é como se ele estivesse
realmente vivo agora. Quer dizer, ele chorava no começo, ficou
em negação, depois afastou todo mundo. Isso é algo que vocês
têm em comum, vocês não têm muitas pessoas. Ele só tinha a
mim, mas me afastou também. Não falava com ninguém, não
quis mais voltar à empresa, sequer se importa com o que
acontece com ela agora. Eu nem sabia onde ele estava até você
me dizer. Como ele está?
— Como você acha? Ele é um homem arrogante, dono do
seu mundo, que se acha superior a todos, que controla tudo e
que agora vive na escuridão. Não consegue controlar nem
mesmo que caminho deve seguir para chegar à cozinha, ele está
péssimo. Como você disse, afasta todos, não fala com ninguém,
faz questão de ficar no frio, porque parece que o escuro apenas
não é o bastante. Ele me pediu para ir embora, mas sinto que é
errado deixá-lo. Tanto quanto é inútil ficar perto dele, não sei o
que fazer.
— Acho que você sabe. Acho que você sempre soube
exatamente o que fazer com ele, Anna. Cada passo, cada
palavra, cada atitude. Você vai saber o que fazer, não se
preocupe.
— Você precisa ser mais específico, isso realmente não me
ajuda em nada.
Ele ri do outro lado da linha, uma voz feminina chama seu
nome e entendo que ele precisa desligar.
— Foi um prazer falar com você, Anna, ligue sempre que
quiser.
— Igualmente. Até mais, Leandro.
Encerro a ligação e tomo um banho rápido antes de
encerrar um dia emocionalmente exaustivo. Mas então, enquanto
estou quentinha em minha cama, não consigo desligar minha
mente de Lucca Baltazi. Quando deixei a capital e vim embora
para quase a fronteira com outro estado, pensei que me
desligaria completamente dele. Eu tinha um futuro para sentir
falta, um ex-noivo, uma vida planejada e pensei que fosse ficar
amargando tudo isso por meses. Ao invés disso, senti falta dele.
O quão ridículo é isso? Eu vim embora por causa dele. Mas junto
com o ódio e a mágoa, havia aquela necessidade de saber se ele
estava bem. A cada dia. Demorou muito para eu realmente me
acostumar a não o ver mais.
E parece que bastou vê-lo de novo apenas uma vez para
que tudo isso volte. Eu não perdoo a maneira como me tratou e
as coisas que me fez, não mesmo! Não quero sua amizade ou
qualquer tipo de relação com ele, eu apenas me sinto mal por
ele. Mal o suficiente para estar em um táxi no meio da noite em
direção às montanhas onde vive. Mal o bastante para pular sua
cerca de murta e ralar o joelho como uma criança travessa. Mal
ao ponto de pegar lenha atrás da casa e entrar pela janela
carregando as pequenas madeiras desajeitadas para acender
sua lareira.
A casa está gelada e escura. Acendo a luz sem medo, não
é como se ele pudesse ver mesmo. Ele não está na sala e
imagino que, seguindo os outros modelos de casas da cidade,
esteja em seu quarto onde também possui uma lareira
indevidamente desligada. Caminho na ponta dos pés, sem fazer
nenhum barulho e ele está no banho. A lareira, como eu previ,
apagada. Coloco a lenha com cuidado para não fazer barulho e a
acendo sem dificuldade. Meses fazendo isso na pousada
serviram para alguma coisa. Por um momento me pergunto se
ele não vai acabar queimando algo por não saber que a lareira
está acesa, mas decido arriscar.
Quando me viro para ir embora, ele está parado atrás de
mim, completamente nu. O cabelo negro agora comprido desce
por seu rosto pingando, ainda há vestígio de sabão em seu tórax
e tento mesmo não olhar para baixo, mas é para lá que meus
olhos seguem. Dura alguns segundos antes de eu me virar e
soltar um palavrão.
— Anna, é você? Você é maluca? Não se entra na casa de
uma pessoa cega sem anunciar sua presença! Claro que é
maluca, a quem estou perguntando?
— Foi mal.
— Foi mal, isso é tudo o que tem a dizer? Você é
inacreditável! — Ele se vira de volta para o banheiro, mas posso
jurar que está sorrindo. — O que você quer? — grita de lá de
dentro e ouço o barulho da água de novo.
— Só vim acender sua lareira, achei que pudesse estar com
frio — respondo.
— Não consegui ouvi-la. — Ele grita lá de dentro do
banheiro e me aproximo da porta, não me atrevendo a observá-lo
tomando banho, claro.
— Eu disse que só vim acender sua lareira. Está frio e
pensei que você não conseguiria acendê-la.
— Não dá para te ouvir, fale mais alto.
— Eu já estou gritando! — grito de volta.
— O que disse?
Dou um passo para dentro do banheiro para que ele me
escute, mas ao ver seu bumbum sob a água, já que ele não
possui box no banheiro, entendo seu jogo e vou embora irritada.
— E eu ainda vindo aquecer esse babaca! — ralho comigo
mesma antes de chamar outro táxi até o centro da cidade.

Mas passo a noite em claro preocupada se ele colocou fogo


na casa, se se queimou de alguma maneira, me recriminando
porque devia ter ressaltado que a lareira estava acesa. E
amanheço o dia me sentindo um zumbi. Ainda assim me levanto
e visto três casacos ao observar o céu escuro para então ir ao
meu destino: a agência de empregos. Ela sequer abriu quando
chego, mas espero na porta, se eu voltar para a pensão, posso
mudar de ideia. Vejo o carro de Nathalia estacionando e ela
desce. Não parece surpresa por me ver aqui, vem até mim com
um sorriso satisfeito no rosto e diz:
— Eu sabia que a encontraria aqui esta manhã, Anna. Está
pronta para começar?
— Não acredito que vou dizer isso, mas estou. Estou pronta
para me mudar para a casa de Lucca Baltazi.
— Excelente!
— É só uma experiência. Se ele for babaca comigo vou sair
de lá na mesma hora.
— Sem problemas.
— E vou querer receber semanalmente, só por garantia.
— Posso conseguir isso.
— Será o valor que você havia me dito, certo? Só estou
fazendo isso pelo dinheiro.
— É claro que o motivo é esse. Sim, será o mesmo valor
que mencionei e vou garantir que você receba semanalmente.
— Tudo bem.
E assim selo mais uma vez meu destino, indo contra a
razão que me manda ir embora só para quebrar a cara em um
futuro bem próximo, eu sei, não vai demorar pra eu me
arrepender disso.
O dia deve ter nascido, os pássaros cantam e o frio que
acompanha a despedida da madrugada se foi. A lareira que ela
acendeu também apagou, sei disso porque não ouço mais o
crepitar do fogo no quarto. Pego uma roupa qualquer em meu
armário, não é como se alguém fosse me ver mesmo. Mas então
me ocorre que ela pode me ver. Ela se importou o bastante para
vir até aqui à noite acender a lareira. Esta é Anna, ela é alguém
que se importa. Tateio entre as blusas e encontro uma social, não
sei se está passada, se a última funcionária enviada por Nathalia
fez um bom serviço nas minhas roupas, mas torço que sim, já
que não tenho escolha.
Não acredito que estou mesmo trocando de roupa para
agradar alguém depois de tanto tempo.
Sei exatamente quantos degraus há nesta escada, e
quantos passos preciso dar até a poltrona de sempre. Não posso
ver o sol, mas posso senti-lo. E ele é mais forte neste canto da
sala, então é onde fico. Também sei quando anoitece, o
momento exato em que o sol se despede, porque a temperatura
aqui muda drasticamente. Me jogo na poltrona e tento afastar os
pensamentos que tentam me tomar sempre que me pego sem
nada para fazer. É sempre a mesma pergunta.
Por que não morri naquele acidente?
Afasto logo essa pergunta e tudo o que ela implica. Não há
muita coisa que eu possa fazer. Tem sido assim nos últimos
meses, então eu penso, muito. Penso na pessoa que era, na que
sou agora. Penso nas pessoas que tive durante a minha vida, na
importância de cada uma, no que significaram para mim, e isso
me leva a quantas pessoas tenho agora: nenhuma. Não sobrou
ninguém. Nem mesmo Leandro. Mas eu não o culpo. Eu afastei
todos de mim, antes do acidente, fiz questão que ninguém
tivesse amor o suficiente por mim, nem mesmo compaixão, para
estar ao meu lado agora.
— Oi, sou eu, sei que não nos falamos muito durante a
minha vida, mas sempre fui grato pelo que você me deu. Eu sinto
muito pela maneira como reagi depois do acidente. Não era eu
falando e sim o desespero, mas acho que você sabe disso, já
que ainda estou aqui. Sei que não sou de pedir coisas, mas
preciso pedir agora, eu realmente preciso. Faça com que ela
fique. Por favor, a faça voltar aqui. Eu preciso dela, preciso da
vida que ela traz, preciso da sua compaixão. Por favor, sei que
não mereço, mas a traga de volta.
Então espero. Espero que minha primeira oração seja
atendida. Eu preciso disso. É como ela previu, mesmo pagando
por minhas companhias, elas não ficam. Elas não me aceitam
como sou agora, elas esperam que eu seja bom e paciente, mas
não é como me sinto, e então elas vão embora. Mas não Anna,
ela é diferente, ela sente de verdade, ela se importa. Talvez ela,
entre todas as pessoas, possa ficar comigo.
— Senhor, estou entrando! — a voz de Nathalia anuncia e
luto para conter um sorriso. — Bom dia, senhor Baltazi, como
passou a noite?
Não sinto o cheiro de Anna e também não ouço nenhum
passo além do de Nathalia. Ela não veio.
— Bem — respondo desapontado.
— Desculpe vir tão cedo, eu consegui alguém para
trabalhar para o senhor. Pensei em vir antes para avisá-lo, já que
vou entregar a chave da porta a ela.
— Ok.
Não importa quem virá, em breve ela irá embora. Todas
sempre vão embora.
— O senhor disse que não a queria aqui, mas ela é
realmente nossa única opção, senhor. Anna aceitou se mudar
para cá e começar hoje mesmo, mas caso o senhor não goste do
serviço dela...
— Anna? Anna Maria? Ela é quem vai trabalhar aqui?
— Sim, senhor.
— Nathalia, dê a ela o salário que ela pedir. Não importa o
valor. Dê também benefícios.
— O salário já inclui muitos benefícios, senhor.
— Então dobre-os. Ela não pode ir embora. Faça o que for
preciso, faça-a querer ficar.
— Vou fazer o que estiver ao meu alcance, mas na sua
atual situação financeira não seria prudente dar tanto dinheiro a
ela, senhor.
— Não importa, apenas faça com que ela fique.
— Tudo bem — Nathalia está rindo, mal consegue conter a
alegria em sua voz. Provavelmente por finalmente cessar sua
busca por alguém que me ature. — Tenha um bom dia, senhor.
Pela primeira vez no último ano, acho que terei.

Não sei quanto tempo depois Anna chega, parece que se


passou uma eternidade. Ouço o barulho das rodinhas da sua
mala e seu jeito barulhento de andar. Ela abre a porta, respira
fundo, então vem até mim.
— Bom dia, senhor Baltazi, sou eu.
— E sei que é você, Anna. Bom dia.
— Você está pagando um salário muito alto para alguém
aturar você!
Sorrio, tento evitar, mas não consigo.
— E não tem adiantado muito.
— Bem, quem pode culpá-las por não aguentarem você,
não é mesmo?
— Anna, devo lembrá-la que você está nesta casa como
minha empregada e não como uma coleguinha faladeira?
Quase posso ouvir seu sorriso, sei que o tem porque sua
respiração muda, me lembro exatamente de como ela é sorrindo,
é como se pudesse vê-la parada aqui agora, sorrindo da minha
rabugice.
— Eu diria que senti falta da sua grosseria e mal humor,
mas eu não senti. — Seu tom de voz muda quando me adverte:
— Se vou ficar nesta casa, você não vai me tratar como alguém
inferior a você, não vou mais aceitar isso, senhor Baltazi.
— Juro que não vou, se eu o fizer, você sempre pode tentar
me matar com jujubas, tenho bastante delas. E pode me chamar
de Lucca, Anna, vamos ficar em pé de igualdade aqui.
— Você está com fome?
— Por favor, me diz que você trouxe o café.
— Não, eu vou fazer. Não faça essa cara! — ralha
imediatamente. — Eu aprendi a cozinhar, trabalhei por meses em
uma pousada local.
— E por que você saiu dela?
— Não tenho sorte com chefes, são todos babacas —
responde, mas não deixo de notar a tristeza em sua voz.
— O que seu chefe fez?
— Eu disse, foi babaca. Vou fazer seu café. A propósito,
você está elegante hoje.
— Elegância é meu nome do meio.
— E me disseram que você não falava muito — comenta se
afastando.
Espero ansioso pelo café, não porque sinta fome, eu quase
não sinto, mas para tê-la por perto de novo. Para ouvir seu
atrevimento, seu riso, suas reclamações. Sinto falta de seu tom
irritado, da maneira como levanta a cabeça e empina o nariz,
como se fosse superior a mim em uma discussão. Eu queria
muito poder ver isso de novo.
Alguns minutos depois a ouço se aproximar.
— Vamos?
— Para onde?
— Para a cozinha, claro! Comer.
— Eu como aqui, você pode me servir aqui, Anna.
— Não, você vai comer na mesa. — Abro a boca para
protestar, mas ela me corta: — Você precisa andar pela casa,
conhecê-la, se adaptar a ela. Não vai conseguir isso sentado
vinte e quatro horas no mesmo canto da sala todos os dias.
Então ou você vem comigo até a cozinha, ou vou deixá-lo morrer
de fome.
— Você não seria capaz.
— Eu fui embora da cidade onde nasci e cresci para me ver
livre de você. Você agora é cego e indefeso, então não duvide da
minha capacidade de me vingar se necessário.
Ela toca minha mão para que eu me levante, mas
permaneço onde estou. Será que foi uma boa ideia trazê-la?
Anna é imprevisível, meio maluca, e está certa, a magoei demais,
a fiz ir embora uma vez. Por que ela seria legal comigo?
— Tem veneno na minha comida? — pergunto finalmente e
ela ri, pensa um pouco fazendo um barulho irritante com a boca,
por fim, responde:
— Não.
— Laxante?
— Não!
— Algo que vá me fazer mal.
— Não.
— Neste caso, estou ansioso em comer o que você
preparou e criticar, porque sei que estará horrível.
— Está aí uma coisa que você vai ingerir e vai te fazer mal,
suas palavras maldosas.
Sorrio enquanto ela me guia até a cozinha e me ajuda a
sentar. O cheiro está delicioso, mas não tenho muitas
esperanças. Anna mal sabia quebrar um ovo quando cozinhou
para mim da primeira vez. Ela coloca o garfo em minha mão e
encontro o prato sem dificuldades. Ela se senta ao meu lado, vai
tomar café da manhã comigo. Abro a boca para provocá-la antes
de provar a comida, mas ela se antecipa e diz:
— Se você vai reclamar por eu estar tomando café ao seu
lado, saiba que você está na cozinha, aqui é a área dos
empregados, você está no meu lugar, não eu no seu, portanto,
não vou sair.
— Foi você quem me trouxe até aqui, ao invés de me levar
até a sala de jantar.
— Então me agradeça.
Desisto de tentar entender sua lógica e provo a comida, me
surpreendendo completamente. O sabor está perfeito, não está
sem sal, nem salgado. Ela não usou sal no tempero, não está
quente demais, tampouco morno, a temperatura é perfeita. A
textura dos ovos está incrível. Tateio o prato e pego uma fatia de
bacon e como previ, está perfeitamente grelhada. O espanto
deve estar em meu rosto já que ela está rindo.
— Anna 1, pervertido babaca 0. Estou esperando os
elogios, comece.
— Parabéns, Anna, isso não está horrível como eu pensei
que estaria.
— Ah, corta essa. Está delicioso. Repita comigo, de-li-ci-o-
so.
Sorrio.
— Nem morto. Está bom e pronto, já comi melhores.
— Mentira sua, mas vou deixar essa passar.

Estou há horas nesta poltrona, aqui é meu lugar preferido


agora e isso diz muito sobre minha situação. Meu lugar preferido
antes era a minha sala, a vista da cidade abaixo dos meus pés e
do céu acima da minha cabeça. Eu me sentia superior lá, como
se todos estivessem abaixo de mim. Agora me contento com
uma poltrona velha num canto onde o sol bate o dia todo,
ouvindo o ruído de pássaros que não posso ver, de frente para
montanhas belíssimas que não posso apreciar.
— Agora entendi o salário alto, esta casa é grande demais
para se limpar — Anna reclama entrando na sala. Ouço o barulho
do balde sendo depositado no chão e da vassoura que ela passa
pelo carpete.
— Você não precisa fazer tudo de uma vez.
— Você está certo, na verdade, se eu não limpar direito
você não vai ver mesmo.
— Isso não é coisa que se diga a um chefe cego, Anna —
provoco.
— Sinto muito. Prometo que vai ficar limpo, mas você pode
tirar a prova depois, se quiser, com a língua, como eu já sugeri a
você uma vez.
— Tudo o que vejo há meses é a escuridão. Tudo o que
ouço agora é você. Você não sente pena?
— De você? Não mesmo! Talvez a escuridão te faça algum
bem, no fim das contas. Acho que você enxergava o mundo de
uma maneira muito errada, talvez não o ver agora o permita
finalmente enxergar a si mesmo.
— Esse é o meu maior medo, Anna. Eu não gostaria de me
ver.
O movimento da vassoura cessa e ela se aproxima. Senta-
se no braço da cadeira onde estou, sua roupa tocando minha
mão.
— Dez lugares disponíveis na sala, mas você precisa se
sentar na minha poltrona comigo — reclamo.
— Como você reclama! Achei que depois de cego fosse
ficar menos rabugento.
— Não achou, não.
— Tem razão, não mesmo. Você se quebrou muito no
acidente?
— Muito, acho que você teria ficado satisfeita. Bacia,
clavícula, os dois braços, os dois pés. Digamos que eu tenha
morado em um quarto de hospital por um bom tempo.
— Você está na fila para um transplante de córneas? Quero
dizer, é possível que volte a enxergar?
— Sim e sim. Mas não tenho muita esperança, há muitas
pessoas na fila e sabemos que há poucos doadores.
— Bem, tomara que as pessoas morram e doem as córneas
o mais rápido possível, não é? — Seguro o riso e ela tenta
consertar o que disse. — Não, desculpe, não foi o que quis dizer.
Quero dizer, isso é algo que seu dinheiro não pode resolver, não
é?
— Não pode. Não o faria se pudesse. Eu mereço passar
por isso.
Ela fica em silêncio tanto tempo, que começo a me
incomodar.
— Acho que não, você precisa passar por isso, é diferente.
Por que você veio para tão longe?
— Tenho algumas propriedades em algumas cidades de
interior, como esta. Mas esta é minha preferida, por conta das
vistas das montanhas. Era a preferida da minha mãe também.
— Entendo, me apaixonei completamente por esta cidade.
— Eu não sabia que você estava aqui, Anna.
— Eu sei. Foi uma coincidência.
— Não acredito em coincidências.
— Por que ninguém vem te ver? Nathalia disse que você
ficou meses sem dizer uma única palavra.
Sorrio.
— Por que você acha? Eu era amável e gentil com todos,
as pessoas adoravam minha companhia quando eu não era um
cego triste e resmungão, imagina agora!
— E o Leandro?
Sinto aquele mesmo aperto no peito ao ouvir o nome dele.
Meu humor muda imediatamente e me afasto dela, na poltrona.
— Anna, que horas são? Não vamos almoçar hoje?
— Ah, você quer comer.
— Eu gostaria de não morrer desnutrido, por favor.
— Vou preparar algo bem rápido.
Ela deixa a sala e infelizmente o silêncio só fica do lado de
fora. Aqui dentro da minha cabeça há pensamentos demais,
lembranças demais, culpa demais.

Quando Anna toca minha mão, me apoio na bengala e a


sigo até a cozinha. O cheiro delicioso de bacon está no ar. Me
sento ansioso em provar sua comida, se for tão boa quanto seu
café da manhã estarei feito. Mas então coloco o garfo na boca
para comer ovos mexidos cremosos com bacon de novo.
— Tem o dobro de bacon, então é almoço — ela provoca.
Não digo nada porque imagino que foi o que deu para fazer
rápido o bastante. Mas espero um jantar mais completo do que
ovos mexidos.
Mas então, quando ela me guia até a cozinha de novo, à
noite, o cheiro de bacon no ar entrega. Ela deposita o prato
ruidosamente à minha frente e nem preciso provar para sentir o
cheiro dos ovos.
— Ovos mexidos de novo?
— Achei que você tivesse gostado.
— Não para comer o dia todo. Por que estamos comendo
isso pela terceira vez hoje, Anna?
— Porque eu quis agradá-lo fazendo algo que você gosta.
— Ou porque você não sabe cozinhar outra coisa.
— Bem, também tem isso, mas é só um detalhe.
— É só um detalhe? Você é inacreditável! — Penso um
pouco e encontro a solução perfeita. — Vamos, se levante e vá
cozinhar. Irei auxiliá-la, vou te dizer o que deve fazer, o que deve
usar, vamos ter um jantar de verdade.
Digo a ela os ingredientes para um jantar simples, já que é
o primeiro dela. A ouço mexer na dispensa enquanto pede que
eu repita inúmeras vezes o que vem depois da salsa, para só
depois de eu falar vezes o suficiente para ser possível decorar,
ela me dizer que a dispensa está vazia e não há nenhum dos
ingredientes que pedi nela.
— Então por que você me fez repetir os ingredientes tantas
vezes?
— Porque foi divertido. Agora sente-se e coma os ovos
mexidos frios.
— Não, que horas são? Ainda há mercados abertos?
— Sim, mas...
— Ótimo! Vá comprar os ingredientes. Imagino que com o
tanto de vezes que repeti você os tenha decorado.
— Sim, mas...
— Anna, não questione, apenas vá. Meu Deus, você me
cansa!
— Tudo bem.
Ela se move pela cozinha resmungando baixinho algo como
“uma chuva pode cair”, mas não há cheiro de chuva no ar, então
imagino que esteja exagerando. Escuto quando bate a porta da
cozinha ao sair e tento voltar para a sala, para minha poltrona.
Apesar da bengala, esbarro em algumas paredes e me sinto
completamente irritado ao chegar finalmente a poltrona. Não sou
capaz nem mesmo de me mover pela minha própria casa, um
lugar onde estive tantas vezes!
Faz pouco tempo que ela saiu quando um raio soa lá fora.
— Está de brincadeira!
Uma chuva forte começa em seguida e torço que ela tenha
chegado a tempo ao mercado. Não fica longe daqui de carro,
tudo depende da rapidez com que pegou o táxi. A chuva parece
que não vai embora, é daquelas comuns nesta cidade, que
duram a noite toda e boa parte da manhã. O tempo demora a
passar ou Anna está demorando demais. Já estou andando de
um lado ao outro na sala quando finalmente ela chega. Vai direto
até a cozinha e tento chegar até ela, mas ao esbarrar na terceira
parede desisto e volto para trás, não quero que ela veja o quanto
sou inútil aqui. Que sou um homem que sequer consegue andar
por sua própria casa.
Demora alguns minutos até que ela apareça, algo cheira
deliciosamente bem e ela me pede para me sentar de novo.
— Você demorou — observo.
— Não tinha táxi, nenhum táxi disponível, você acredita?
Esse é o lado ruim de cidades pequenas.
— Então como você foi?
— A pé.
— Anna, debaixo dessa chuva? É uma longa distância,
você não devia ter feito isso.
— E lidar com seu mal humor? Muito mais fácil enfrentar a
chuva e a caminhada. Mas como eu ia demorar pensei em trazer
algo pronto para você comer ou morreria de fome até que eu
preparasse algo.
Ela coloca um guardanapo na minha blusa e gotas geladas
pingam de seus braços em mim.
— Anna, vá se trocar, você está pingando pela casa.
— Estou molhando seus carpetes, ainda bem que você não
pode ver a bagunça que eu fiz na cozinha. De todo jeito, não vá
até lá, você pode cair.
Ela coloca a bandeja na poltrona e o garfo em minha mão.
— Consegue comer?
— Claro que consigo. Vá se trocar e então coma alguma
coisa.
Ela não responde, mas deixa a sala. Pouco depois, a
escuto comendo na cozinha e parece errado estarmos jantando
em cômodos separados. Só há nós dois nesta casa, por que ela
não está aqui? Volto a comer a sopa fria, já que esperei muito
para comer com ela e não me atrevo a convidá-la a se juntar a
mim. É melhor mesmo mantermos alguma distância, não posso
me acostumar demais a ela. Daqui a pouco farei ou direi algo que
a machucará e ela irá embora. Isso, claro, se ela não se vingar
de mim antes e não lhe restar mais nada a fazer aqui. De todo
jeito, em todos os cenários que consigo imaginar, ela vai embora
e não quero passar pela dor de perdê-la outra vez.

Anna acende a lareira e espirra. A sinto mover-se pelo


quarto e logo ela está arrumando a cama. Espirra mais uma vez
e geme baixinho.
— Anna, você está bem?
— É só um resfriado, vou tomar um chá de alho e amanhã
estarei nova em folha.
Assinto e ela deixa o quarto com um boa noite rápido,
sequer espera uma resposta. E como em todas as noites, não
consigo dormir. É a única coisa certa nos meus afazeres todos os
dias, a única coisa que posso fazer: dormir. Mas claro que não
seria tão fácil. São poucas as noites em que realmente consigo
fazer isso, descansar, me desligar, relaxar. Tudo anda tão triste e
tão pesado aqui dentro, que parece impossível que minha mente
se desligue o suficiente. Já é madrugada quando ouço a voz de
Anna. Ao longe, chamando meu nome repetidas vezes. Sento-
me na cama e espero, ela volta a falar meu nome, parece baixo
demais, será que ela precisa de ajuda?
Me levanto e tateio em volta da cama à procura da maldita
bengala. Vou batendo com ela nas coisas até a porta do quarto e
do corredor consigo ouvir com mais clareza. Anna diz meu nome
de novo, mas não é como se estivesse me chamando. Ela
também diz coisas ininteligíveis e sem sentido.
— O monstro, foi o monstro. Eu vou ir embora. Posso
quebrar tudo? Lucca, me ajuda — ela não diz coisa com coisa,
mas isso é o suficiente para me fazer ir até ela.
Vou a passos rápidos pelo corredor, mas bato com tudo em
algum móvel. O desvio ignorando a dor e me lembro então da
maldita bengala, porque agora sou isso, alguém que não pode
dar dez passos sozinho. A porta de seu quarto está aberta e ela
continua repetindo coisas estranhas. Me aproximo chamando seu
nome, mas ela não parece me ouvir, chora baixinho e chama
meu nome.
— Lucca, não seja mau comigo, me deixa ficar. Me deixa
ficar.
— Anna, Anna, acorde.
Começo a trombar em tudo em seu quarto, não faço ideia
de como está agora, tropeço em uma mala no chão, praguejo
alto e ela não acorda. Finalmente consigo alcançar sua cama.
Toco sua mão, está gelada. Todo seu braço também está. Toco
seu rosto e sinto a pele gelada e molhada. Seus olhos estão
fechados, as lágrimas descem por eles, ela está delirando.
— Anna! Anna, acorde! Anna, abra os olhos, é só um
sonho, querida!
— Me ajuda, me deixa ficar. Quero ficar com você, Lucca.
— Anna, abra os olhos! Você pode ficar, meu bem, o quanto
quiser. Anna!
Sento-me ao seu lado na cama, toco seu cabelo, seus
ombros, tento acordá-la, mas não funciona. Seu corpo todo está
gelado. Não faço ideia de onde seja seu armário, mas preciso
encontrá-lo. Tropeço de novo na maldita mala e a arrasto para
um canto do quarto finalmente. Vou tateando o ar até alcançar o
armário, pego todas as cobertas e lençóis que encontro e volto
até ela, lamentando o quão devagar estou fazendo isso.
Com muito custo encontro a lareira, quase caio na tentativa
de conferir se há lenha nela, mas não há, está vazia. Por que
Anna não a acendeu quando foi dormir? Eu não poderia pegar na
lareira do meu quarto porque está quente e jamais conseguiria ir
lá fora e pegar a lenha a tempo de aquecê-la. Me deixo cair no
chão completamente impotente.
— Lucca, me ajuda — ela volta a chamar e não sei o que
fazer.
— Me perdoa, Anna, me perdoa. Não sou capaz de cuidar
de você, me perdoa.
Ela continua chamando meu nome e choro pela minha
invalidez. Não me importo quando estou sozinho, não poder fazer
nada por mim mesmo é algo que mereço, mas não poder ajudá-
la está me matando. É por isso que não permito que ninguém
fique. Ninguém pode contar comigo, não podiam contar antes,
não podem agora.
Ficar aqui chorando não vai fazer a hipotermia dela passar,
então me levanto. Se não posso trazer o fogo até seu quarto,
tenho que levá-la para o meu. Para não a machucar no percurso
volto para meu quarto, contando os passos. Trombo de novo no
maldito móvel e o tiro do caminho. Faço isso com cada obstáculo
que encontro, vou tirando tudo do caminho. Por fim, deixo a
bengala próxima a lareira, não poderei usá-la com Anna nos
braços. Volto pelo corredor com a ajuda da contagem de passos
e entro em seu quarto.
— Está frio, estou com frio. Lucca, me ajuda.
— Já vai passar, meu bem. Vou ajudá-la, eu prometo.
Tiro a montanha de cobertas que joguei sobre ela e que não
serviram para nada e demoro um pouco a deixar seu corpo livre.
Então a pego com cuidado. Estou fraco, não tenho me
alimentado bem, nem feito exercícios nos últimos meses, mas
consigo levá-la. Ando devagar, contando os passos, rezando que
não a machuque no caminho, mas consigo entrar em meu quarto
sem nenhum percalço. Então caminho até próximo da lareira.
Quando sinto o calor e o cheiro do fogo me abaixo e mantenho
Anna em meus braços. Espero que isso sirva, que o fogo seja o
bastante para aquecê-la, pois não sei mais o que fazer se não
funcionar.
— Reaja, meu bem, acorde, vamos. Você consegue, reaja.
Ela resmunga baixinho e algum tempo depois seu corpo
começa a aquecer. Me sinto tão aliviado que me permito enfim
respirar fundo. Ela dorme agora, um sono tranquilo, sem
palavras. E quando acho que está quente o bastante e mal
consigo segurá-la, a levo para minha cama. A cubro
imediatamente com meu cobertor, caminho até o armário, é um
caminho familiar que faço sem dificuldades e pego mais um
cobertor para ela. O dia já vai nascer, sei pelo canto dos
pássaros madrugadores, ainda assim me deito ao seu lado e
espero. Espero até ouvir sua respiração leve, até seu ronco baixo
e espaçado. Até que ela se vira e joga as pernas por cima das
minhas. O cheiro do seu cabelo é tudo o que sinto agora e o
calor da sua pele na minha.
Então fecho os olhos sentindo o sono me tomar e digo
baixinho:
— Oi, Deus, sou eu de novo, por favor que ela esteja bem.
Você não a mandaria para mim de novo apenas para eu matá-la
no primeiro dia, não é? Eu sei que não. Então que tenha
funcionado, que ela fique bem, por favor.
E assim adormeço.
Acordo me sentindo quebrada.
Um gemido me escapa tão logo abro os olhos, meu corpo todo
parece dolorido e olha que estou em uma cama deliciosamente
confortável. O sol brilha forte pela janela aberta do enorme
quarto, que não é o meu.
— Como é que eu vim parar aqui?
Me levanto devagar e vou até meu quarto me arrumar,
preciso de um banho para tirar a sensação de algo pegajoso na
pele e pareço realmente melhor do resfriado. Bendito chá de
alho! Só quando olho no relógio é que me dou conta que já é
tarde. Será que Lucca comeu alguma coisa?
Desço depressa e avisto seu cabelo negro bagunçado na
poltrona de sempre. Me preparo mentalmente para a senhora
bronca que vou levar e me aproximo já me explicando:
— Boa tarde, Lucca, eu não sei como consegui dormir
tanto, mas prometo que já vou... — Ele se levanta enquanto falo
e vem em minha direção, me prendendo em seus braços por um
longo tempo.
Não entendo porque está me abraçando, mas não o
impeço. Deixo que me mantenha em seus braços por tempo
demais, que acaricie meu cabelo do jeito intenso e fofo dele,
espero para perguntar depois o motivo dessa demonstração de
afeto inesperada e gratuita.
— Você me deu um susto enorme, Anna. Tive medo de não
ter conseguido ajudá-la.
— Não sei do que está falando.
Ele se afasta e toca meu rosto. E olhando seu rosto bonito
lamento esses óculos escuros no lugar daqueles olhos cinzas tão
lindos.
— Você esteve mal durante a madrugada. Teve hipotermia.
Está se sentindo bem?
— Por isso eu estava na sua cama?
— Era o único cômodo da casa com a lareira acesa.
Infelizmente, eu não seria capaz de acender uma, então não tive
outra escolha.
Começo a entender que durante a madrugada ele foi
sozinho até meu quarto e me carregou até o seu e o quanto isso
dever ter custado a ele na situação em que está, e algo em meu
peito parece derreter.
— Obrigada — digo baixinho, recebendo um sorriso como
resposta.
— Vamos combinar algo? Infelizmente você tem mais juízo
do que eu agora, o que acredite, me assusta muito, então não
me obedeça se qualquer ordem minha puder ferir você.
— Você diz fisicamente ou posso refutar sua babaquice
também?
Seu sorriso aumenta, ele tenta disfarçar e parecer irritado,
mas falha.
— Não abusa, Anna, você está bem hoje?
— Nova em folha. Já vou fazer seu almoço.
— Eu já providenciei isso. A senhora Bello é proprietária de
um conhecido restaurante no centro e me trouxe comida algumas
vezes nas últimas semanas. Hoje, especialmente, ela me trouxe
dois pratos, estava apenas esperando que você acordasse para
comermos juntos.
Abro a boca, mas nada sai. Me esperando para comermos
juntos? Será que morri e acordei em um mundo paralelo onde
tudo é ao contrário? Isso explicaria esse abraço repentino. Será
que estou em coma por hipotermia em algum lugar real e nessa
realidade paralela Lucca Baltazi é um ser humano? Como
demoro demais a responder alguma coisa, sua expressão se
torna impaciente e ele reclama irritado:
— Nós vamos ou não comer? Gostaria de almoçar hoje, se
não for muito incômodo para você.
— Ah, sim, esse é o Lucca Baltazi que conheço. Pare de
ser legal comigo, você está me confundindo.
Ele resmunga algo e enquanto o levo até a cozinha tem um
sorriso irritante no rosto que fica marcado ali por todo o almoço.
E ele acaba com minha felicidade em comer algo delicioso
quando informa que eu vou preparar o jantar esta noite. Isso não
vai dar certo, mas começo a rezar desde já para que não coloque
fogo em sua cozinha cara. Meu salário de cinco dígitos de dois
dias não pagaria nem mesmo uma panela dela.

É fim de tarde quando me aproximo de Lucca com a


tesoura e o aparelho dele de barbear na mão. Me sento no braço
da poltrona e ele diz mal-humorado:
— Dez lugares diferentes onde você poderia se sentar,
Anna.
— Mas eu me sentei aqui, pertinho de você. Vou direto ao
ponto, você é bonito e usa roupas elegantes, mas está
parecendo um homem recém resgatado de uma ilha deserta com
esse cabelo comprido. Que tal cortarmos ele?
Ele toca o cabelo e nega com a cabeça.
— Não gostaria de sair na rua.
— Podemos chamar o barbeiro até aqui.
— Não gostaria que ele me visse assim.
— Você o conhece?
Ele assente.
— Bem, estava contando que você dissesse algo parecido
porque adivinha só o que tenho em minha mão? — Abro e fecho
a tesoura e ele reconhece o barulho, pois se levanta em um pulo,
se afastando assustado de mim, as mãos estendidas como se
me pedisse misericórdia.
— Saia de perto de mim com essa tesoura, Anna.
— Mas eu só quero cortar o seu cabelo.
— Não, obrigado.
— Mas eu sei fazer isso. Era sempre eu quem cortava o
cabelo do Igor, lembra dele? Meu ex-noivo que você afugentou
da minha vida.
— O cabelo dele não estava bem cortado nas vezes em
que nos encontramos. E de nada por isso, a propósito.
— Lucca, eu não vou machucar você.
— Não consigo acreditar nisso. Primeiro, você teria que
realmente não querer me machucar, o que não acredito de jeito
nenhum, você tem motivos de sobra para querer me machucar.
Segundo, mesmo que você não quisesse e me convencesse
disso, você me machucaria sem querer. Além do mais, ninguém
vai me ver, Anna. Não há necessidade.
— Quanto tempo você leva todos os dias para
desembaraçar esse ninho de passarinho que tem na cabeça?
Ele parece ofendido, no mínimo, irritado.
— Na verdade, faço isso muito rápido.
— Então você não faz direito, o que explica a aparência
dele agora. Vai por mim, ainda bem que você não pode enxergar
o que está carregando na cabeça.
— Isso não é coisa que se diga a um cego, Anna, você
realmente não tem senso!
— Tudo bem, não precisa ficar nervoso. O ninho de
passarinho de cima fica, vamos cuidar do de baixo.
Imediatamente, ele fecha as pernas e protege o pênis com
as mãos.
— Nem pensar!
— Eu não estava falando de tão baixo, e sim da sua barba.
— Ah!
Ele parece sem graça e eu me sinto constrangida porque
agora começo a imaginar o ninho de cabelos negros próximos
demais ao seu pênis, que eu sei que é de tamanho avantajado e
pensar nisso não é uma boa ideia agora, uma vez que um calor
estranho começa a tomar meu rosto.
— Vamos fazer sua barba? Ou você também tem medo?
Ele toca a barba pensativo, por fim, parece ceder.
— Não, acho que tudo bem você fazê-la para mim, está
mesmo me incomodando. Meu aparelho de barbear está...
— No seu armário, eu já peguei.
— Você mexeu nas minhas coisas?
— Eu sou paga para mexer nas suas coisas, agora sente-
se aqui e me deixe fazer meu trabalho.
Ele se senta irritado e tiro os óculos para facilitar, mas ele
segura minhas mãos e não permite. Volta os óculos para o lugar
com a expressão completamente fechada.
— Você não tem que ficar olhando para os meus olhos
agora, Anna. Sei que a aparência deles não é das melhores.
Quero dizer que não me importo, mas não o faço. Apenas
cubro seu rosto com o creme de barbear e me aproximo para
deixá-lo limpo como antes. Apoio meu joelho na poltrona onde
ele está sentado, entre suas pernas e toco seu rosto com
gentileza para que ele não estranhe demais meu toque. Começo
bem devagar, o emaranhado de pelos caindo pelos lados
conforme o aparelho vai tocando sua pele. Aos poucos, o rosto
bonito dele vai se tornando visível de novo. Me concentro por
tempo demais nos lábios dele, limpando em volta deles para
ressaltá-los.
Então preciso me distrair com qualquer coisa que não seja
o quão próximos estamos agora.
— Você conhece muitas mulheres aqui? — pergunto de
repente.
— Algumas.
— Tem tido contato com elas?
— Você quer que eu fale enquanto tem um objeto cortante
na minha cara?
— Quero, tenta a sorte.
Ele sorri.
— Não, não tenho tido contato com ninguém, Anna, como
você bem sabe.
— Bem, conhecendo você como conheço, imagino que não
precisa de um contato social com uma mulher para fazer outras
coisas com ela.
— Nem sempre o diálogo é necessário, meu anjo —
provoca.
— Então a resposta é sim, você teve alguns encontros
desde que chegou aqui.
— A resposta é não. Minha aparência é horrível, Anna. Sou
a merda de um cego que sequer consegue andar por sua própria
casa, o que a faz pensar que alguma mulher se sentiria atraída
por mim?
— Não é assim, você sempre teve a mulher que quis aos
seus pés, não acho que muita coisa mudou agora. Exceto, claro,
na sua cabeça. Claro que ajudaria se você me deixasse cortar
seu cabelo.
Ele sorri, mas o sorriso é triste.
— Me empresta o telefone.
Estranho o pedido, mas termino de fazer sua barba e vou
até meu quarto pegar o celular velho que quase não deixo ligado.
Ele me pede que pesquise uma socialite conhecida com quem
saiu uma vez. Conta que esta mulher sempre estava ligando e
mandando mensagens querendo repetir a dose. Me faz ligar para
essa mulher e manter a chamada no viva voz. A mulher atende e
quando ele se identifica, é nítido como ela fica desconcertada.
— Helena, tudo bem? Estou em Monte Verde agora, cidade
fria, estilo europeu, com belíssimas paisagens, pensei que você
pudesse gostar de um bom vinho em volta da lareira e um velho
amigo com tesão no carpete da sala, o que me diz? Posso
mandar buscá-la?
Ela gagueja ao responder.
— Lucca, que surpresa! Eu soube do que aconteceu, que
fatalidade! Você ainda está...
Ela parece buscar a palavra certa e ele completa para ela.
— Cego? Sim, estou.
— Ah, que pena! Eu agradeço seu convite, Lucca, mas não
posso me ausentar agora, quem sabe quando você voltar para a
capital não possamos beber algo juntos?
— Claro, a gente combina.
Ele desliga o telefone e o deixa cair ao seu lado, na
poltrona.
— Você viu. Ela não é a primeira, não será a última.
Não sei o que dizer. Queria confortá-lo, mas não acho que
seja possível. Ele não governa mais seu império, não pode ver as
montanhas que tanto aprecia e não alivia sua tensão com a
atividade que mais gosta.
— Talvez, se me deixar cortar o seu cabelo...
Funciona, ele sorri.
— Claro, todas as mulheres vão se atirar aos meus pés de
novo porque não haverá mais um ninho de passarinho na minha
cabeça.
— É óbvio.
— Corte o meu cabelo, Anna. Como você mesma diz, se
ficar ruim não vou ver mesmo.
— Você está pegando o espírito.
Pego a tesoura e a água que havia trago, molho seu cabelo
com cuidado, acendo as luzes já que a noite começa a cair agora
e penteio bem devagar para desembaraçá-lo antes de iniciar o
corte. Vou separando as mechas lisas de seu cabelo e cortando
aos poucos. Me lembro perfeitamente do corte de cabelo que
usava, claro que não vou conseguir reproduzi-lo com perfeição,
não sou profissional nem tenho equipamento profissional. Mas
vou fazer o meu melhor. Ele fica tão quieto que penso que está
dormindo. Sua respiração está leve e ele não resmunga quando
sem querer o acerto com a ponta da tesoura na nuca, então só
pode estar dormindo.
— Dez meses desde o acidente. Se você morou em um
quarto de hospital por meses e depois se escondeu aqui, então
tem dez meses que você não transa. Acho que isso explica seu
mal humor — comento baixinho.
— O que é essa condescendência em sua voz, Anna?
Pena? — Ele pergunta de repente me assustando e travo as
mãos no ar, completamente sem graça. — Você quer resolver
isso para mim?
— Babaca! Não me irrite, estou com um objeto cortante na
sua cabeça, caso não se lembre.
— Eu me lembro, por isso não estou reclamando da
quantidade de vezes que você me acertou com essa tesoura. E,
para corrigir sua informação, não transo há um ano. Não se pode
esperar bom humor e paciência de um homem que não transa há
tanto tempo, então, se você quiser que nossa convivência seja
mais fácil, sabe o que fazer.
O acerto de novo com a ponta da tesoura, de propósito
dessa vez e o descarado ri. Finalizo o corte, louca para sair de
perto dele e observo minha obra de arte. Queria que ele pudesse
enxergar agora, engoliria sua desconfiança no meu talento.
— Você está lindo! Me agradeça, se sair na rua agora todas
as mulheres vão se jogar aos seus pés — brinco.
— Isso inclui você?
— Pare com essas cantadas baratas. Parece que sou a
única pessoa que você tem agora, então me trate melhor do que
isso, Baltazi.
Ele se levanta e toca o cabelo, aprovando com um
movimento de cabeça.
— Parece que você fez um bom trabalho no fim das contas.
Muito obrigado, Anna.
— Onde está o Leandro? Por que você não fala mais com
ele?
Sua expressão relaxada muda e ele parece triste.
— Você vai me contar o que o seu último chefe fez com
você? — pergunta ao invés de responder.
— Não.
— Então também não vou te contar nada.
— Ele não me fez nada.
— Você é uma excelente mentirosa, Anna. Mas é péssima
em dizer a verdade quando ela é difícil de ser dita, por isso sei
que está mentindo. Quando se sentir pronta para conversar
sobre sua coisa difícil, eu converso sobre a minha coisa difícil.
Estarei no meu quarto se mudar de ideia — diz e se afasta,
procura pela bengala e sobe devagar as escadas.

Ele não quer jantar esta noite, diz que posso pedir a
senhora Bello algo para comer pois ele está sem fome e não
tenho certeza se isso tem a ver com Leandro, ou com as pessoas
que ele conhecia o evitando porque está cego. Como algo do que
trouxe na outra noite do mercado e vou acender sua lareira.
Quando chego na porta de seu quarto ele está saindo do
banheiro, a toalha envolta em sua cintura enquanto ele tateia
algo no armário, logo, as gotas da água do banho escorrem por
seu peito e me pego parada, prendendo a respiração, torcendo
que ele não sinta meu cheiro enquanto o observo.
Ele não parece me perceber, pois tira a toalha em seguida e
se seca vagarosamente. Do corredor, em frente sua porta,
aprecio seu corpo de costas. Ele possui algumas cicatrizes nas
pernas e nas costas e quando estou observando melhor sua
bunda, ele se vira devagar. Prendo a respiração de novo, mas ele
não me nota. Seca o cabelo enquanto observo seu corpo em um
belíssimo nu frontal. Antes, Lucca tinha muitos gomos no
abdome e um peitoral muito forte, agora, tem os ombros largos,
braços definidos e o peitoral bem marcado. Não há mais gomos
em seu abdome, mas em nada sua beleza foi diminuída. As
coxas possuem ainda mais cicatrizes na parte da frente, como se
sua pele tivesse se rasgado. Essas cicatrizes também estão em
sua barriga e peito. E, de alguma forma, ele tem um ar perigoso,
misterioso, algo que me faz ficar aqui olhando cada uma delas
até quase decorá-las. E então meus olhos, como sempre, caem
para seu pênis. O membro descansa entre suas pernas e mesmo
assim é tão grande! Claro que o único outro pênis que vi na vida
foi o do Igor, o que me faz afirmar com certeza que Lucca tem o
membro avantajado. Ele pega uma blusa no armário e a veste e
isso parece evidenciar ainda mais seu pênis.
Sei que preciso sair daqui, vou ser demitida se ele me
descobrir, isso se não for presa, mas não consigo. Minha cabeça
tomba para o lado enquanto observo seu membro, a cabeça
maior que todo seu comprimento, a pele levemente rosada tem
uma aparência tão macia! Mordo o lábio inferior enquanto ele
veste uma boxer e ajeita o pênis nela. Espero que vá vestir uma
calça, mas percebo que não pegou uma. Ele pretende dormir
assim. Espero que vá se deitar agora, ou me chamar para
acender a lareira, mas ele coloca os óculos e me sinto confusa.
— Acho que posso considerar isso como seu abono
salarial, certo, Anna? — pergunta de repente me tirando do meu
transe.
Meu rosto todo esquenta, abro a boca para responder, mas
nada sai. Ele tem um sorriso preguiçoso no rosto enquanto se
aproxima. É como se ele pudesse me ver, para diante de mim e
respira fundo.
— Eu sinto seu cheiro — diz baixinho. — Foi o único cheiro
que eu tinha na minha mente quando acordei do acidente. Eu
sinto sua respiração, está acelerada agora, quase posso ouvir
seu coração disparado no peito e adoraria ver a maneira
deliciosa como deve estar mordendo os lábios agora. Eu tenho
você tão perfeitamente em minha mente, Anna, eu decorei cada
traço do seu rosto, cada gesto, mania, sorriso. É como se eu
pudesse vê-la. O rosto vermelho, o lábio levemente marcado pela
força com que você o morde, mesmo sem perceber. O que
vamos fazer com essa sua indiscrição, Anna? Ficar assim, perto
demais de mim, me observando nu por tanto tempo. Talvez você
precise de uma lição.
Ele dá um passo para mais perto de mim e, como a criança
que juro não ser, saio correndo. Entro em meu quarto, fecho a
porta e a tranco, apenas por segurança. Minha respiração está
mesmo acelerada e meu coração bate tão rápido que também
posso ouvi-lo. Minhas pernas parecem ceder e me jogo na cama
até que isso passe.
Talvez eu devesse juntar minhas coisas e sair na surdina
pela manhã, para evitar a vergonha que vou passar, mas meu
salário tem cinco dígitos agora. Onde mais eu ganharia cinco
dígitos?
Onde mais eu poderia observar Lucca Baltazi nu?
— Ai, Anna, você vai se meter em encrenca! — aviso a mim
mesma enquanto não consigo tirar a imagem de seu corpo nu, a
visão de seus movimentos lentos enquanto se secava e se
vestia, da cabeça.

Passo o dia todo fazendo tarefas no jardim. Lucca fica meio


abandonado dentro da casa, mas não posso ter uma conversa
normal com ele depois do que fiz. Consigo me livrar do almoço
porque a própria senhora Bello vem nos trazer comida. Ela
parece maravilhada ao ver Lucca de cabelo cortado e barba feita.
Se ele pudesse ver, entenderia o quanto a gentil senhora o quer.
Mas eu não sou ninguém para julgá-la.
Então, na hora do jantar, não consigo me livrar. Estou com
Lucca na cozinha, enquanto pego tudo o que ele pede, e vou
colocando sobre a ilha. Lucca toca cada ingrediente com calma,
sente o cheiro, prova alguns, avalia a qualidade da maneira como
pode. Percebo como isso faz bem a ele, como ele mantém um
sorriso no rosto e fico em alerta, esperando que venha com
alguma piadinha sobre a minha indiscrição, mas ele ainda não
disse nada.
— Lucca, por que você não cozinha? Parece que você
gosta de fazer isso, ao contrário de mim, eu auxilio você para que
não coloque fogo na casa.
— Não, cozinhar sem ver é perigoso, não estou pronto para
isso ainda, você não vai fugir, Anna. Você vai aprender a
cozinhar.
— Algo me diz que isso não vai dar certo — advirto quando
ele me manda descascar as cebolas.
— Você vai fazer um macarrão, não é difícil, não tem como
dar errado.
— Você parece não me conhecer, foi você quem ressaltou
grosseiramente que minha vida tem dado errado desde que
nasci, lembra?
— E olha onde estamos agora. Eu estava tentando expulsá-
la da minha casa e agora estou disposto a fazer de tudo para que
você fique.
— Todo mundo sabe que os humilhados serão exaltados
um dia, meu dia está chegando.
Ele sorri e começa suas ordens.
— Pegue o penne e coloque para cozinhar com pouco
azeite. Você pode colocar uma pitada apenas de pimenta do
reino na água.
Meio tremendo, faço o que ele disse e não parece tão difícil.
— Feito, e agora?
— Corte a cebola, meu anjo, o manjericão e os tomates
para o molho. Eu normalmente usaria cogumelos também, mas
não os temos.
— Eu teria comprado se você tivesse pedido.
— Acho que isso estava na lista que você me fez repetir
incontáveis vezes naquela noite.
— Eu acho que não. Sou muito boa de memória, eu me
lembraria. Há algum tamanho específico que devo cortar os
ingredientes?
— O menor que você conseguir.
— Já aviso que isso não é muita coisa. Estão ficando do
tamanho do seu dedo.
Ele sorri.
— Que susto, Anna! Achei que fosse dizer que estão do
tamanho do meu pênis, já que você gosta de observá-lo.
Quase corto o dedo com a faca e ainda bem que ele não
pode me ver agora, porque meu rosto está em chamas. Eu
juraria que posso sentir o cheiro de queimado em minha pele.
— Achei que não fosse falar sobre isso depois de tantas
horas de maturidade — reclamo baixinho, completamente sem
graça, porque eu estava mesmo observando seu pênis e não tem
desculpa plausível para isso.
— E não vou, para sua sorte. Não quero ficar duro de novo.
Erro o corte de novo e quase arranco metade do meu dedo.
— Não fale essas coisas quando estou com uma faca em
direção aos meus dedos! Você ficou louco? — ralho.
Ele sorri, tem uma expressão tão calma enquanto aprecia o
cheiro das cebolas no ar. Olhando para sua figura curvada e
triste de agora, ninguém acreditaria que na verdade é o homem
mais arrogante e imbecil que já conheci na vida. Como a vida é
imprevisível!
— E agora? — pergunto um tempo depois, ao terminar de
picar tudo.
— Você precisa tirar a pele do tomate.
— O quê? — Pego os tomates picados e observo onde é
que ele pensa que tem uma pele aqui. — Será que você compra
uma espécie diferente de tomate?
Ele está rindo e eu estou completamente perdida.
— Isso é um penne grego, anjo. Tire as sementes e a pele
do tomate. Não a casca, apenas a proteção mais fina da casca.
— Quanta frescura!
Me parece difícil demais tirar “pele” do tomate, e muito
trabalhoso, então apenas tiro as sementes e deixo para lá. Não
imagino como isso vai fazer qualquer diferença no sabor do
macarrão mesmo, e Lucca nem vai ver a “pele” aqui.
— Desligue o macarrão, ele precisa estar ao dente. Há
iscas de filé mignon na geladeira, vamos prepará-las.
Vou até a geladeira e separo o que pediu, seguindo suas
instruções, desligo a panela com o penne e ele me manda
colocar pouco azeite na frigideira. Mas uso óleo mesmo, porque
está mais perto. Acendo o fogo da frigideira e vou temperar as
iscas. Estou me sentindo uma verdadeira cozinheira fazendo
tantas coisas ao mesmo tempo. Tempero com tudo o que ele
manda e ele me diz para colocar a frigideira em fogo baixo antes
de adicionar as iscas. Mas também me manda escorrer o
macarrão antes que esfrie.
— Como você é mandão! Quer controlar até mesmo o fogo!
Você diz vamos prepará-los, mas você só está aí sentado me
dando ordens. Onde isso é cozinhar?
— Você gostaria de fazer isso sozinha?
— Eu não queria fazer isso nem acompanhada.
Deixo as iscas temperadas de lado e pego a panela com o
penne para escorrer com medo que esfrie, mas desequilibro um
pouco minha mão e uma quantidade de água cai na frigideira. O
fogo começa imediatamente. A frigideira está pegando fogo, me
esqueci completamente do óleo quente.
— Anna, está tudo bem? Que barulho foi esse? — Lucca
pergunta preocupado.
— Tudo bem. Não é como se eu tivesse colocado fogo na
sua cozinha. — Não faço ideia de como apagar isso. Com medo,
corro de um lado a outro em busca de uma tampa. — Por que
frigideiras não possuem tampa?
— Anna, o que está acontecendo? — Ele se levanta
tateando em volta em busca da bengala.
— Está tudo bem eu só preciso... — Estico a mão e consigo
finalmente desligar o fogo, mas Lucca está assustado.
— Você está bem?
Preciso de uma tampa que caiba nessa frigideira gigante e
enquanto procuro, o alarme de incêndio é ativado e os detectores
jogam água em nós dois e por toda cozinha, com um barulho
infernal que me deixa ainda mais nervosa.
Lucca vem em minha direção, parece desesperado, mas
tropeça em uma cadeira e me empurra abruptamente, caio para
trás e bato a cabeça com força na pia.
— Anna? Anna, você está bem?
Ele parece ainda mais desesperado, tenta passar pela
cadeira, que está entre suas pernas. Me sinto um pouco tonta e
sinto uma dor chata na nuca. Preciso apagar o fogo ou Lucca vai
se machucar. Me levanto ignorando a dorzinha chata e pego
outra panela colocando-a por cima do fogo, fazendo as vezes de
uma tampa. O fogo some, a sirene do alarme continua apitando,
preciso desativá-la, mas minha visão está turva e não vejo muita
coisa antes de tudo à minha volta girar.

Quando recobro a consciência, estou no chão, a cabeça no


colo de Lucca. Toco onde dói e percebo que está sangrando. Me
sento devagar e finalmente olho para Lucca, ele parece
destruído. Há tanto medo e culpa na maneira como treme as
mãos levemente e tem a boca entreaberta. Está travado, não diz
nada quando me afasto.
— Está tudo bem, Lucca. Não foi nada demais, está tudo
bem. — Ele não reage e continuo. — Eu, sem querer, coloquei
fogo na sua panela. Mas já apaguei, isso não é bom?
— Eu machuquei você.
— Foi sem querer. Estávamos assustados, você não teve
culpa. Além do mais, foi um corte bobo.
— Foi um corte na cabeça, Anna, fez um barulho alto
quando você caiu. Vamos ligar para um médico agora, vá para
sua cama.
— Isso não é necessário, eu já me sinto...
— Anna! Agora!
Me levanto devagar e ele continua ajoelhado no chão.
— Você precisa de ajuda para se levantar?
— Não, vá para seu quarto e ligue imediatamente para um
médico.
Obedeço, porque ele não parece realmente aberto a
discussões. Ligo para o médico local e espero, preocupada se
Lucca conseguiu sair da cozinha sem se machucar. Não o ouço
andar pela casa. Quando a campainha soa, vou atender a porta.
O doutor me examina na sala mesmo, me receita algo para dor e
diz que foi apenas um corte, mas, acredito que por conta da
insistência de Lucca, pede que eu vá fazer uma tomografia na
manhã seguinte.
Tão logo o médico se vai, Lucca se aproxima.
— Como você se sente?
— Lucca, eu estou bem. Não precisava de um médico me
examinar e com certeza eu não preciso de uma tomografia. Eu
vivo me machucando, acredite, isso não foi nada.
Ele fica em silêncio por tempo demais, por fim, diz:
— Você tem razão. Você está sempre metida em
encrencas, mas agora não posso mais ajudá-la. Você não pode
contar comigo para nada, Anna, ninguém pode. Ao invés de
ajudá-la na cozinha eu piorei tudo. Que bom que não foi nada
grave, mas podia ter sido, e se eu a tivesse empurrado sobre o
fogo?
— Mas não empurrou, detesto essa coisa de sofrer pelo se.
— Mas eu vivo agora com medo do se, Anna. Se eu tivesse
empurrado você sobre o fogo, se eu não tivesse conseguido
levá-la até a lareira na outra noite, se eu não fosse um
irresponsável por deixar você sozinha comigo tão afastada da
cidade. Você tem noção que se fosse algo mais grave eu não
conseguiria pedir ajuda? Tem noção que você desmaiou, não me
respondia, tinha sangue saindo da sua cabeça e eu travei, não
sabia o que fazer porque não sou capaz de fazer nada?
É impressão minha ou sua voz está soando embargada
agora? Ele se vira de costas para mim, a mão que não segura a
bengala sobre a cabeça.
— Você precisa ir, Anna.
Entendo perfeitamente o que quer dizer, ainda assim
pergunto.
— Ir para onde?
— Embora, para um lugar seguro, um emprego seguro.
Aqui não é seguro para você, eu não sou seguro para você.
— Não vou a lugar algum. Foi um incidente, Lucca, não há
motivo para tanto.
— Eu decidi que era capaz de dirigir bêbado até uma
cidade bem próxima a onde eu estava em uma noite chuvosa, e
agora sou a merda de um cego que não consegue fazer nada.
Incidentes podem se tornar muito mais do que isso e eu não
estou disposto a pagar para ver, Anna, não vou colocar você em
risco.
— Claro! Porque você sempre se importou tanto comigo! —
grito irritada.
— Muito mais do que você imagina.
— Não seja ridículo! Você é cego agora, mas se formos ser
realistas, você sempre foi um cego, Lucca. A maneira como você
via o mundo, as outras pessoas, a si mesmo, nunca foi real. Era
distorcida, feia, hipócrita e agora você está na sua melhor fase.
Foda-se se você não vê as montanhas pela janela, você vê a si
mesmo. Se viu o bastante para começar a mudar, mas parece
que não percebe isso.
— Você que não percebe isso! Não quero machucar você,
será que você não entende? Saia desta casa, Anna.
— Não!
Ele dá voltas pela sala, ainda de costas para mim e me
sinto tão irritada, ferida, enxotada de novo.
— Meu Deus, parece que estamos em um círculo vicioso.
Você vai embora, Anna, não vou arriscar sua segurança, isso não
está em discussão. Vá dormir, você precisa descansar e amanhã
junte suas coisas e deixe esta casa.
— Lucca, eu não...
— Não temos mais nada para falar, vá embora!
Desisto. Ele é o mesmo imbecil de sempre. Por que achei
que seria uma boa ideia me colocar a mercê dele de novo? Por
que eu quis ajudá-lo? Igor dizia que minha gentileza e empatia
ainda iam se voltar contra mim e ele estava certo. Eu quis ser
gentil, ajudá-lo, cuidar dele, ele parecia tão perdido. Mas é só o
mesmo homem egoísta de sempre! Que se dane o que sinto, que
se dane se quero ficar com ele, ele sempre me manda ir embora.
Bato a porta do quarto e me jogo na cama, irritada. Não sei
quanto tempo fico aqui, relembrando todo esse passado que
tentei muito esquecer, me sentindo de novo humilhada por ele.
O escuto entrar em seu quarto batendo nas coisas. Escuto
os palavrões que solta, o som da água do chuveiro, o momento
em que ele o desliga. Espero um pouco até que se vista então
vou até ele. Se ele quer que eu vá embora, eu vou, mas não sem
dizer umas verdades nessa cara arrogante.
Estou prestes a entrar em seu quarto quando escuto um
soluço. Paro no corredor e o observo. Ele está sentado na cama,
a cabeça entre as mãos e chora. Chora baixinho, não faz barulho
algum, apenas seu corpo se sacode com espasmos. Volto para
meu quarto porque não quero que saiba que vi seu momento de
fraqueza.
Não posso ir embora, será que ele não entende que não
tem mais ninguém? Por que é tão difícil que ele aceite que
precisa de mim?
Passo a noite em claro e quando saio ele já está na
poltrona. Desço empurrando a mala e ele chama meu nome com
algum envelope na mão, mas não paro para ouvi-lo. Não quero
pagamento, não quero nada dele. Alugo outro quarto na pensão,
já que minha moradia foi alugada e espero. A recepcionista da
pensão me diz que estão precisando de uma copeira caso eu
tenha interesse na vaga, mas respondo que não tenho. Não sei o
que estou fazendo, mas sinto que só preciso esperar.
Então vou esperar, é ridículo pensar que ele viria atrás de
mim de qualquer forma. Lucca Baltazi não vai atrás de ninguém.
Ainda assim deixo meu celular ligado e espero. E se ele não ligar
até a noite de hoje, não sei mesmo o que vou fazer.
As horas passam, o clima muda, as pessoas conversam
pelo corredor, quartos são esvaziados, quartos são preenchidos.
Ainda estou aqui dentro, vendo a cidade pela janela, esperando.
Confiro o celular pela milésima vez e nem sinal de uma ligação
perdida, uma mensagem de texto, nada. Alguém bate à minha
porta e penso ser Ruth, a recepcionista, com o jantar, mas
quando a abro, dou de cara com Lucca Baltazi no corredor.
Ele saiu de casa.
— Me perdoa, Anna. Me perdoa por ter feito o seu ex-noivo
babaca terminar com você. Me perdoa por não ter deixado que
você ficasse na minha casa, você estava certa. Eu odiava
quando o lado certo da discussão não era o meu. Mas eu tinha
uma casa grande demais, com quartos demais e não me custaria
nada ter deixado você ficar. Me perdoa por tê-la rebaixado
quando você foi contratada na Atenas, isso foi ridículo em um
nível que me envergonha. Me perdoa por todas as vezes em que
gritei com você ou a tratei mal desnecessariamente. Me perdoa a
minha falta de paciência e empatia, eu não sei o que são essas
coisas. Me perdoa por ter sentido ciúmes de você com o
Leandro, a ponto de quase enlouquecer, e ao invés de lidar com
isso, ter descontado em você. Você está tão calada. Você está
mesmo aqui?
Ele tateia o ar e toco sua mão, para que saiba que estou
aqui.
— Ah, bem, achei que estivesse falando com uma porta.
Bem, me perdoa por ter colocado você para fora da minha casa
quando prometi que a levaria em segurança. Me perdoa por ter
ido atrás de você para conferir se havia chegado bem, mas ter
rido na hora errada, eu não estava rindo do abrigo. Estava
comemorando internamente porque você não estava indo para a
cama com meu sócio. Me perdoa por ser tão cego e tão odiável
com você. Achei que não poderia pedir perdão pela cegueira de
agora, se não me desculpasse primeiro pela de antes. Você não
precisa voltar se não quiser, como eu disse, não é seguro para
você. Sou como uma criança, Anna, você precisa cuidar de mim
para tudo, mas eu nunca poderei cuidar de você. Nunca. Isso me
mata.
Meus olhos transbordam agora e ele permanece aqui, de
frente para mim no corredor, dizendo coisas que nunca pensei
que ouviria de sua boca.
— Se você for uma garota esperta, não vai voltar para
minha casa. Mas se você não voltar, Anna, eu não terei mais
nada. Eu preciso de você. Muito mesmo. Então, por favor, volta
comigo.
Ele saiu de casa, ele se desculpou, o que imagino que deve
estar sendo difícil demais para ele, ele admitiu que precisa de
mim. Será que estou no mundo invertido de novo? Me belisco
levemente, mas dói, isso é real.
— Você saiu de casa só para vir aqui? — pergunto
baixinho, não quero que ele saiba que estou emocionada.
— Claro, onde mais eu iria? Quem mais me faria sair de
casa, quando era a última coisa que eu queria fazer, Anna?
Sorrio.
— Se você não quiser voltar... — ele começa, mas o
interrompo pulando sobre ele e abraçando-o. Passo meus braços
à sua volta e deito a cabeça em seu peito. Me sinto aliviada,
encantada, feliz, segura de novo. — Como você gosta de
abraços — resmunga.
— Cala a boca e me abraça de volta, isso é ter empatia.
Ele obedece prontamente. E nem quero começar a pensar
no motivo de eu me sentir assim, tão feliz, por ele ter vindo no
final das contas.
Anna está em meus braços e
ainda não tenho certeza que isso signifique que ela vai voltar
comigo. Talvez esta seja sua nova maneira de dizer adeus. Antes
foi uma carta, agora, um abraço. Se for este o caso,
definitivamente prefiro o abraço. Seu cabelo macio faz cócegas
em meu queixo e sua pele é quente, consequentemente,
aquecendo todo meu corpo. E tem esse cheiro gostoso do cabelo
dela. O cheiro que nunca saiu da minha mente.
Sei que não deveria estar aqui, ter Anna comigo é perigoso,
para nós dois. Posso machucá-la, como fiz, e ela pode me
machucar de maneiras bem mais profundas. E ela sequer tem
noção disso. Sair de casa depois de tanto tempo, ter que pedir
ajuda a alguém que mal conheço para chegar até a porta dela, e
então dizer na frente dela o quanto fui idiota e que ela não tem
nenhum motivo para querer ficar perto de mim foi a pior parte.
Mais do que pedir perdão, o que acabou sendo menos difícil do
que eu havia imaginado, assumir as coisas que fiz para a pessoa
a quem mais magoei foi difícil. Ela estava certa, mais uma vez.
Eu já era cego bem antes do acidente, um tipo diferente de
cegueira, mas era. Começo a pensar que Anna é sábia demais
para a pouca idade que tem.
Cedo demais ela se afasta, segura minhas mãos e me guia
alguns passos para a frente.
— Entre, sente-se, nós vamos conversar primeiro. — Ela
diz pouco antes do barulho da porta sendo fechada. Ainda
segurando minhas mãos, me guia devagar até que sinto a cama
tocar minhas pernas. Me sento então, como ela pediu. — Se vou
voltar à sua casa, Lucca, vamos ter algumas regras.
— Não vou concordar com nada que proíba sexo entre nós
dois — aviso de imediato.
Há o silêncio como resposta e ela solta minhas mãos.
— Não vamos fazer sexo. Não tem a menor chance de isso
acontecer, então não precisamos de uma regra sobre isso —
garante com tanta certeza que sua inocência chega a ser
engraçada.
— A sua sorte, linda Anna, é que não enxergo mais. Não
tocarei você se não for para te proporcionar uma experiência
maravilhosa. E como não posso vê-la, não posso garantir sua
satisfação. Apenas por isso você está salva.
Há novamente o silêncio e ela pigarreia antes de voltar a
falar.
— Não vamos fazer sexo, também não vamos falar sobre
isso!
— Isso é uma regra?
— Quer calar a boca e me ouvir?
— Desculpe.
— A primeira e mais importante regra que você não pode
quebrar de maneira nenhuma é que você não pode me mandar
embora. Nunca. Por motivo nenhum. Não importa o que
aconteça, Lucca, você não vai me mandar ir. Se eu me sentir
mal, ou tiver vontade de ir embora, eu irei, mas será uma decisão
minha. Você não vai mais me mandar ir embora da sua casa, ou
nada feito. Não vou mais aceitar isso.
— É justo. Juro que não vou — garanto notando o quanto
isso a fere.
Há um barulho infernal de carros passando lá fora, Anna
está no segundo andar, não entendo como alguém consegue
dormir e relaxar em um lugar barulhento como este. A julgar pela
quantidade de passos que dei da porta até a cama, é um lugar
pequeno. Espero que ela não precise nunca mais dormir em
lugares assim.
— Você também não vai mais ser um babaca comigo. Nada
de ordens desnecessárias, mal humor ou grosseria. Não pode
reclamar das coisas que eu disser para você fazer, nem
perguntar demais, nem ficar o dia todo sentado naquela poltrona.
Nem perder a paciência com minha inexperiência na cozinha.
Sorrio de sua ingenuidade. Esta é sua essência. Acho que
não importa quanto tempo passe ou o que ela viva, será sempre
essa menina ingênua e doce que acha que pode consertar tudo.
— Anna, estou desesperado que você volte a morar
comigo, mas se quer regras para isso, seja realista. O que você
está exigindo basicamente é morar com outra pessoa. Eu posso
prometer que vou tentar ser menos mal-humorado e com certeza
serei educado com você o máximo de vezes possível, mas não
posso prometer mais do que isso. Estou em processo de
mudança, Anna, quero me tornar humano, não um santo.
— O que quer dizer com isso?
— Você colocou fogo na minha cozinha. Admita, às vezes
você me deixa louco. Quase sempre, na verdade. Você é
atrevida, questiona quase todas as ordens e não sabe respeitar
meu espaço, como exatamente você espera que eu reaja a isso?
— Com gratidão e paciência! — responde ironicamente. —
É você quem está implorando a minha companhia, não o
contrário.
— E você já está abusando disso. Há mais alguma regra?
— Só mais uma, você precisa viver. Precisa ao menos
tentar.
Não entendo bem o que sua exigência implica, mas sei que
já estou fazendo isso bem mais do que pensei que faria.
— O que acha que estou fazendo aqui? — pergunto um
tempo depois.
— Lutando bravamente contra a solidão e isso é admirável,
mas viver vai além de sobreviver, Lucca. Você não fala com
ninguém, não sai de casa, passa o dia sentado naquela poltrona.
Não ouve música, não tenta aprender a andar pela casa. Você
nem liga para saber da sua empresa. Se quer que eu cuide de
você, precisa se cuidar também, ou nada feito.
— Deus, como você é exigente! — O passado que há entre
nós está mais presente agora em minha cabeça do que esteve o
dia todo, jogando na minha cara o quanto a vida que eu tinha e o
homem que eu era não existem mais. — O jogo virou, não é
mesmo? Antes eu queria que você se fosse, agora estou aqui,
fora da minha zona de conforto, disposto a fazer o que você
quiser para que fique.
— Quanto mais você diz essas coisas, mais espaçosa eu
fico. E você continua me dando corda.
Sorrio. Escuto enquanto ela anda pelo cômodo e o barulho
da rodinha de sua mala.
— Você não tem mais uma mochila surrada — observo.
— Você não vai acreditar, mas ela se desfez.
— Ah, eu acredito.
Quando está pronta, ela pega minha mão e diz que
podemos ir. Me ajuda a descer as escadas, o que faço bem
devagar e ela tem uma paciência admirável. Encontramos
Nathalia no hall, foi ela quem me trouxe. Por acaso ela apareceu
na minha casa para saber como estavam as coisas justo hoje. A
sensação de pedir um favor a alguém e realmente depender
dessa pessoa não foi nada agradável. Mas a sensação que tenho
agora, com Anna tagarelando sem parar no banco da frente do
carro de Nathalia, compensa o sacrifício.

— Anna, não sei se pretende acender a lareira apenas pela


manhã, mas quero que saiba que ela não vai se acender
sozinha! — reclamo alto o bastante para que ela escute de seu
quarto, enquanto o frio da noite congela meus ossos.
— Como você prometeu! Delicado feito um coice de mula!
— observa quando entra no quarto e me corrijo:
— Minha querida Anna, você pode acender a lareira para o
seu chefe cego e congelado antes que o dia amanheça, por
favor?
— Ah, como você é péssimo sendo doce! Mas claro que
acendo, preciso justificar meus cinco dígitos.
— Não provoca, Anna, posso pensar em mil maneiras
diferentes de você justificar os cinco dígitos que recebe —
provoco e ela resmunga um palavrão.
Logo, ouço o barulho do fogo, o cheiro toma o quarto, o que
significa que Anna já vai se afastar. Um som estridente vem de
seu quarto, Like a Virgin toca alto demais e Anna sai correndo
pelo corredor, embora o barulho tenha cessado assim que ela
deixou meu quarto. Procuro pela bengala e quando a encontro,
vou pelo corredor com cuidado até seu quarto. Já deve ser bem
tarde da noite, quem ligaria para ela a essa hora?
Ela não está falando com ninguém quando entro e chuto
sua maldita mala.
— Por que você não utiliza esse armário que está ocupando
toda essa parede, Anna? E tire essa mala do caminho!
— Mas eu já utilizo o armário. Não há roupas na mala.
— Então o que tem aqui que quase quebrou meus dedos?
— Livros.
— Preciso perguntar porque você tem livros em uma mala?
— Em uma mala bem localizada logo depois da porta, para
alguém que entrar aqui sem convite machucar os dedos e não
entrar mais.
Começo a rir, não consigo controlar.
— Você ficou com medo, não ficou? Acha que vamos
acabar fazendo sexo na sua cama. Pode deixar a mala aqui, não
tem problema. De todo jeito você sempre precisa entrar em meu
quarto. Todas as noites. Lá também há uma cama.
— Sabe como eu acabo com esse seu sorrisinho idiota? Te
contando quem estava me ligando. O Leandro.
Funciona. Meu riso cessa, minha expressão fecha e meu
peito volta a apertar.
— Agora, eu posso retornar a ligação e descobrir o que
aconteceu, ou você pode me contar. Claro, ligando para ele vou
ouvir a versão dele.
— Provavelmente ela estará correta — admito
envergonhado.
— Você não quer me contar?
— Não. Anna, hoje eu estive na sua frente, ouvindo sua
respiração, sentindo seu cheiro e tive que lembrá-la do quanto eu
fui babaca, egoísta e idiota com você. Por favor, não me faça
fazer isso de novo hoje. Podemos ter essa conversa outro mês?
— Podemos. Mas posso fazer só uma pergunta?
— Não.
— Você sente falta dele? — ela pergunta assim mesmo,
arrastando a mala pesada e me guiando pela mão até sua cama,
onde me sento.
— Claro! Ele foi o único amigo que já tive.
— Não é verdade, eu sou sua amiga.
— Você está mais para o meu pesadelo. Mas não nos
encontramos há tempo demais, seis meses para ser mais exato.
E mal nos falamos nesse tempo também.
— Espera! Você sofreu o acidente e ficou quatro meses no
hospital e está aqui há quatro meses. Se o viu há seis meses,
quer dizer que ele não foi vê-lo desde que saiu do hospital? —
Sua voz está tão alterada, que me sinto confuso.
— Ele não foi, mas ele tinha motivos.
— Não há motivo justificável para um amigo abandonar o
outro em um momento desses!
Ela digita algo em seu telefone e escolho não a alertar que
esse barulho de teclas sendo digitadas é insuportável e ninguém
usa, pouco depois, o barulho de uma ligação chamando está alto
demais.
— Você vai acabar surda se não diminuir isso — alerto, mas
ela não diz nada. — Não revire os olhos para mim.
— Mandão! Oi, Leandro? Tudo bem o caralho! Você não o
vê há seis meses? Seis meses, Leandro! Não é porque você não
sabia onde ele estava, é porque não quis ir vê-lo. Ele ficou dois
meses sozinho aí e onde você estava? — Ela para de falar por
dois segundos, sequer ouve o que ele tem a dizer. — Não
justifica! Ele sempre foi um babaca e você estava ali, do ladinho
dele, pelo menos dessa vez ele tem motivos para ser babaca.
Você era o único amigo dele, Leandro! Não importa a situação,
não se abandona um amigo assim.
De repente, me sinto diferente. Ela ligou para ele apenas
para me defender. Nem quis saber o que fiz, apenas o que sofri.
Está brava de verdade, sua voz está alterada, ela se mexe
agitada na cama ao meu lado, uma pequena leoa, é o que ela é
agora. E me sinto estranho sobre isso. Meu coração parece fora
do lugar, algo que sequer sei explicar. Anna se importa de
verdade, além dos seus amados cinco dígitos, ela não quer que
eu sofra depois de tudo o que a fiz sofrer. Será que a escuridão
que paira sobre mim não vai acabar por escurecer essa luz que
emana dela? Espero que não, porque não vou abrir mão dela por
nada.
— Venha corrigir isso, Leandro. Não quero desculpas,
quero ações. Você tem dois dias para estar aqui, se desculpar
com ele e recomeçarem essa amizade. Ele precisa de você.
Então ela desliga. E até abro a boca para agradecer, para
brincar sobre o quanto ela está agitada e nervosa, mas nada sai.
Não sei o que dizer, não sei como agradecer. Sou novo nessas
coisas, não tenho interagido com ninguém por meses e até é
mais fácil quando é com ela, ainda assim não é fácil agora. Então
apenas me levanto apoiado na bengala e vou para meu quarto.
— Você é mais perigosa para mim do que sou para você
agora, Anna — admito a mim mesmo enquanto vago pelo quarto
vazio.

Dois dias depois, indo contra tudo o que achei que


aconteceria, alguém bate na porta e Anna, com uma voz alegre
demais, diz que é Leandro. Não sei como me sentir quando ela
vai recebê-lo. Ele vai contar a ela o que fiz, será que ela vai
desistir de me ajudar para defendê-lo como me defendeu?
Escuto a voz de Leandro enquanto Anna diz algo animada
com ele e escuto quando eles entram na sala. Não sei como agir
perto dele, mas me levanto para recebê-lo e estendo a minha
mão. Não faço ideia se ele irá devolver o gesto, mas é o que
devo fazer. Imediatamente ele a toca, me cumprimentando.
— Lucca, Anna, vocês dois juntos aqui nas montanhas.
Acho que o destino uniu vocês, Anna — ele comenta.
— Para com isso, meu passado já foi ruim o bastante, o
futuro precisa ser melhor do que isso.
— Sua mal agradecida! — ralho imediatamente e Leandro
está rindo.
— Vou fazer um café, vocês podem conversar, eu já volto
— ela diz se afastando em seguida, nos deixando a sós.
— Então, o que ela está fazendo aqui? — Leandro pergunta
e tento entender em seu tom de voz se está chateado por isso,
mas não consigo.
— Sendo minha babá, óbvio.
— Trinta e um anos nas costas e precisando de babá, onde
foi que você errou, Baltazi?
— Bem, se eu fosse responder a isso ficaríamos aqui o ano
todo. Leandro, quando você mandou que me trouxessem para
cá, quatro meses atrás, sabia que ela estava aqui?
— Eu não fazia ideia. Não foi para cá que ela disse que
viria. Acredite, Lucca, o encontro de vocês aqui foi pura armação
do destino.
Não digo nada, a verdade é que Anna estar justo aqui, um
lugar tão distante e incomum, me parece mais um presente do
destino. Nenhuma outra pessoa no mundo poderia estar aqui
comigo agora.
— Anna sabe? Sabe de tudo? — Ele pergunta quando não
digo mais nada.
— Não, e você não pode contar!
— Mas Lucca, e a Atenas? Você não pretende mesmo lutar
por ela?
— Eu mereci, Leandro. Devia tê-la deixado sob seus
cuidados, mas o orgulho falou tão alto, não foi? Não a mereço.
Os passos de Anna podem ser ouvidos agora e peço a ele
o mais baixo que consigo:
— Por favor, não conte a ela.
— Tudo bem — concorda assim que o cheiro de café
invade a sala. — Uma mulher tão linda que sabe cozinhar, você
devia se casar, Anna.
— Ela não cozinha — corrijo. — Na verdade, ela colocou
fogo na cozinha quando tentou fazer isso.
— Não foi nada demais, o alarme de incêndio resolveu tudo
— justifica pegando minhas mãos e me guiando até a poltrona.
Coloca a bandeja em volta das minhas pernas como sempre e a
xícara de café sobre ela. Então pega minha mão direita e leva até
a xícara.
— O que você tem feito de divertido aqui, Anna? Você
andou de quadriciclo nas trilhas? Fez escalada? Ou tirolesa? —
Leandro pergunta.
— Na verdade, desde que cheguei aqui só fiz trabalhar.
Mas não estou reclamando, isso é uma coisa boa.
— Ah, para com isso, você merece um descanso. Eu posso
levá-la, se você quiser, para um dia de atividades em Monte
Verde. Você precisa realmente conhecer este lugar!
Claro! Porque o cego inútil aqui não poderia mostrar nada a
ela.
— Meu salário de cinco dígitos não permite folga — ela
responde e ele engasga, ao que parece, já que começa a tossir e
Anna pergunta se ele está bem.
— Cinco dígitos? Lucca Baltazi deve estar com muito
dinheiro para pagar tanto assim — ralha comigo e faço um gesto
negativo com a cabeça para que entenda que está pisando em
terreno perigoso. Ele prometeu.
— Ele sempre teve dinheiro, agora só o está gastando da
maneira correta — ela responde confusa e Leandro entra em sua
brincadeira, tirando o medo que pesava meu peito. — Onde
estão suas malas? Você não vai embora hoje.
— Não, estão em uma pousada maravilhosa no centro. Vou
ficar uns dias.
— Ah, mas você pode ficar aqui — ela oferece e queimo a
língua com o café quente na pressa de desfazer esse convite.
— Em que quarto você sugere, Anna? Só há dois nesta
casa.
— Ele pode dormir no meu quarto. — Estou prestes a ter
um treco quando ela completa. — Eu durmo aqui na sala.
Leandro tem aquela risada irritante agora, o maldito
provavelmente percebeu minha reação, por fim, diz:
— Ou você poderia dormir na sua cama, junto comigo.
— Leandro! Não está tarde? Você não tem que ir? —
pergunto irritado.
— Lucca! Ele acabou de chegar! — ralha Anna.
Ouço os passos de Leandro ao meu redor. Sei que não é
Anna, porque seus passos são sempre leves. Ele se senta e diz
tranquilo:
— Não, vou ficar mais um tempinho aqui. Estou adorando
revê-lo, amigo.
Assim, Anna começa a perguntar por todo mundo da
empresa, o que me deixa tenso de novo, se Leandro falar
demais, ou falar a coisa errada e ela descobrir o que aconteceu...
Se descobrir minha real situação financeira não vai mais aceitar
seu salário de cinco dígitos e vai me abandonar.
Leandro fica tempo demais, mas confesso que sentia falta
de ter sua companhia. Ele nos serve um uísque antes do jantar, o
líquido desce rasgando minha garganta. Não bebo há muito
tempo! Quando Anna vai receber o entregador da comida que
pediu para o jantar, Leandro aproveita para dizer o real motivo de
estar aqui.
— O Aquiles está falindo a Atenas, Lucca. Ele fechou dois
setores, quatro filiais e não pagou os direitos dos funcionários
demitidos. No momento, a Atenas tem cerca de vinte processos.
Ele não fala muito comigo, não sou alguém de sua confiança,
mas tenho certeza que está tramando algo ainda maior.
Continuo com o copo na mão, a expressão serena por fora,
mas por dentro, sinto minha alma gritar. Minha empresa, levei
anos para construí-la, cada segundo, cada centavo da minha
juventude foi por ela. Meu império, sendo destruído nas mãos do
meu primo. Quero chorar, quero questionar de novo porque não
posso ir até lá e resolver isso, quero mais do que tudo esquecer.
Porque lembrar tudo o que me trouxe até aqui é doloroso demais.
— O que você quer que eu faça?
— Volte para lá, lute! Uma parte desta empresa ainda é
sua! Exija sua parte, esteja ali dentro, investigue. Lucca, eu já o
vi fazer coisas que julgava impossíveis para levar essa empresa
ao patamar que está agora. Então faça de novo! Salve o seu
trabalho, Lucca.
— Não é mais meu! É dele! Não posso fazer nada, eu sou
um inválido agora, Leandro! Aceite isso. Atenas não me pertence
mais. Eu nem sei o que você ainda está fazendo lá!
— Estou tentando cuidar da sua empresa por você! É isso
que estou fazendo lá! Vigiando o inimigo, trazendo informações.
Você podia ser ao menos grato!
Anna surge nos convidando à mesa de jantar. É a primeira
vez que a usaremos, mas estou grato por isso. A bancada da
cozinha é pequena demais, ela e Leandro teriam que ficar muito
próximos nela. Enquanto conta a Leandro sobre o que pediu para
o jantar, segura minhas mãos e me guia devagar até a sala de
jantar. Ela deve ter imaginado que não vim aqui desde que me
mudei para cá, pois vai me dizendo em que direção ir e o que
tem em meu caminho, bem baixinho, de forma que não tropeço
em nada, nem bato em parede alguma até chegarmos à mesa.
Ela me ajuda a me sentar e me sinto desconfortável. Sou
grato por tê-la aqui, não poderia fazer nada disso sem ela, mas
me incomoda que Leandro presencie o quão dependente estou
de alguém que faça até mesmo as pequenas coisas comigo.
Tenho certa dificuldade com a comida, já me acostumei a comer
sozinho, mas a presença de Leandro está me desestabilizando.
As notícias sobre a Atenas, o iminente fim do sonho do meu pai,
o quanto falhei com ele, com a empresa, com todos os que
fazem parte dela. O medo que sinto de Leandro contar a Anna a
verdade. Isso me tira a fome, a concentração, pelo visto a
coordenação motora já que derrubo vinho na calça.
Anna rapidamente pega um guardanapo e limpa a bagunça
que fiz. Enquanto tagarela sem parar com Leandro, sua mão
esfregando o tecido se aproxima demais do meu pau e tento
alertá-la, mas ela não se cala tempo o suficiente para que eu
faça isso. E logo, sua mão está ali, esfregando com força onde
não devia.
— Anna você não precisa... Anna sua mão... Anna!
Ela para de falar e fica em silêncio. Aquele silêncio
constrangedor, tira sua mão rapidamente dali e Leandro, como
não podia deixar de ser, diz alto de sua cadeira:
— Uau! Acho que quero uma babá como você.
— Não tem graça, Leandro! — ela ralha imediatamente.
— Eu sei, desculpe.
— Aliás, não ouvi vocês se desculpando ainda, vou dar
espaço para que façam isso — diz deixando a sala de jantar.
Sei que eu deveria começar, mas não estou pronto. Assumir
meus erros e pedir desculpas é difícil demais! Poucas vezes na
vida tive que fazer isso. Por que com Anna é mais fácil?
— Temos mesmo que ter essa conversa pesada hoje? Para
ser sincero estou bem cansado — pergunta Leandro.
— Por mim podemos deixar para amanhã — concordo.
— Maravilha. Neste caso, vou me retirar.
— Para a pousada, eu espero.
— Lucca, o que há com você? Estou começando a achar
que você não me shippa com a futura mãe dos meus filhos.
— Se eu pudesse revirar os olhos, estaria fazendo agora —
respondo, mas minha careta deve ter sido o suficiente, já que ele
me deixa sozinho na sala de jantar e se afasta rindo. Me levanto
com cuidado, temendo derrubar mais alguma coisa, mas ele
retorna pouco depois.
— Opa! Esqueci que tenho que rebocar você, se eu chegar
à sala sem você, Anna me expulsa de lá aos berros.
— Anna! — grito imediatamente. Pouco depois ela
responde, entrando na sala de jantar. — Você pode me ajudar a
chegar até a sala?
— Claro!
Ela passa o braço pelo meu e vai me guiando. Em algum
ponto, antes de deixarmos a sala de jantar, Leandro acusa em
meu ouvido:
— Seu malandro!

Os dois se despedem com a promessa de Leandro de levar


Anna para passar o dia fora, se divertindo amanhã. Ela tenta se
esquivar porque não quer me deixar sozinho e sei que eu deveria
dizer a ela para ir, se divertir, conhecer a cidade de verdade, mas
não consigo.
— Ah, quase vou embora e esqueço de mencionar o quanto
você está linda com esse cabelo, Anna! Loiro combinou com
você, ficou radiante como o sol! Você está maravilhosa, querida.
Anna mudou o cabelo? Sei que ela ainda o usa comprido,
pude tocá-lo quando nos abraçamos, mas não fazia ideia que
havia mudado a cor. Gostaria de vê-la agora, saber o que mudou
nela nesse ano que passou.
— Obrigada, neste caso, posso comentar que amei seu
novo visual. Quer dizer, eu adorava as tranças, mas você ficou
ótimo assim, com esse visual mais limpo — ela responde
prontamente e sinto uma vontade repentina de vomitar.
— Eu sei, fico lindo de qualquer jeito. Obrigado por
mencionar.
Eles trocam mais alguns elogios e Leandro finalmente vai
embora. Ela vai então acender a lareira do meu quarto. Ela tem
feito isso nos últimos dois dias, acendido a lareira correndo logo
após o jantar para não ficar sozinha comigo lá dentro. Só para
me dar o trabalho de inventar outros motivos para fazê-la entrar
no quarto comigo.
Subo as escadas devagar, tentando imaginar Anna com os
cabelos loiros. Ela deve estar linda, ela é linda! Mas eu realmente
adorava seus fios marrons, eles pareciam uma extensão dos
seus olhos cor de mel. A ouço se movendo pelo quarto enquanto
arruma minha cama e tudo o que quero é vê-la. Apenas por um
segundo, só quero abrir os olhos um pouco e ver sua imagem,
saber como está agora. É horrível não a conhecer mais.
— Você está bem? — ela pergunta um tempo depois e
confirmo com a cabeça.
O cheiro do seu cabelo ainda é o mesmo. O cheiro de sua
pele também. Ela não usa produtos que possuem cheiros fortes,
mas seu cheiro natural é delicioso. Ao menos isso ainda conheço
nela. Mas claro, ela sempre pode comprar outro shampoo, trocar
o perfume e então será como qualquer outra pessoa para mim.
Não a reconhecerei mais.
— Tem certeza que está bem? — pergunta de novo quando
consigo ouvir o barulho do fogo na lareira. Ela já vai se afastar.
Num impulso, dou um passo para a frente soltando a
bengala e toco seu rosto. Espero que vá se afastar assustada,
mas ela não o faz. Me deixa tocá-la. Toco sua testa, sentindo os
fios macios do seu cabelo encostados na pele. Então contorno
seus olhos, toco seus cílios, me lembrando com perfeição como
eles são. Desço os dedos devagar por sua pele quente. Contorno
sua bochecha, os lábios, o queixo. E faço de novo.
— O que está fazendo? — ela pergunta baixinho.
— Reconhecendo você. É engraçado, eu toco seu rosto e
posso vê-la aqui, agora, Anna. Cada detalhe dele, eu me lembro.
Mas não mais seu cabelo. — Toco seu cabelo sentindo sua
textura. Tentando entender seu novo cabelo, se usa um penteado
diferente. Antes, estava sempre com um rabo de cavalo frouxo,
um coque bagunçado ou os cabelos soltos em ondas marrons
brilhantes.
— Não mudei muita coisa.
— Você pintou de loiro?
— Não, fiz apenas luzes. São poucas na verdade, clareou
pouco.
— Ainda tem os fios marrons?
— A maioria dos fios ainda são marrons. Eu ia pintar tudo,
cabelo marrom parece tão sem graça! Mas não tive coragem.
— Nada em você é sem graça, Anna. Você emana luz em
cada traço, em cada gesto. Você é deslumbrante.
Ela fica em silêncio, não sei se ultrapassei algum limite,
mas ela não se afasta.
— Você devia ir amanhã com o Leandro conhecer a cidade,
você vai amar tudo o que ela tem a oferecer — sugiro, por mais
que isso me incomode ao ponto de eu saber que vou passar a
noite em claro imaginando os dois juntos o dia todo, mas ela
merece isso.
— Eu quero ir com você.
— Eu não vou mais poder fazer essas coisas, meu bem.
Você deve ir, vou ficar bem.
— Não, você não entendeu, eu só vou fazer isso com você.
Então, ou você me leva para andar de quadriciclo pelas trilhas ou
vamos ficar os dois trancados para sempre nesta casa triste —
brinca.
Meus dedos tocam seus lábios, finalmente. Seus lábios
cheios, macios, deliciosos. Como me lembro do beijo dela!
Aquele beijo quente, intenso, que me deixa duro em segundos. E
quero tanto beijá-la que me sinto aquecer imediatamente.
Aproximo meu rosto do seu, esperando que se afaste e reclame,
mas ela não se afasta. Roço seus lábios de leve com os meus e
meu corpo tem uma reação tão poderosa, me sinto vivo pela
primeira vez em um ano. Sinto um desejo avassalador, tesão,
vontade de tomá-la aqui, agora mesmo, neste quarto. Foda-se se
não posso vê-la com os olhos, posso tomá-la com as mãos,
posso conhecer cada centímetro de seu corpo delicioso e fazê-la
entender cada parte nova que conheço.
Minha reação a ela é tão forte, que me assusta. Como se
ela fosse a luz. A visão. A resposta. Preciso que ela se afaste,
não posso fazer isso sozinho.
— Acho que o Leandro pode ficar aqui. Ele fica no seu
quarto, como você sugeriu, e você dorme aqui, comigo, na minha
cama, no meu corpo. Posso me abrigar em você por toda a noite,
minha deliciosa Anna.
Funciona, ela diz algo tão baixo que não consigo entender e
depois se afasta. Gagueja um pouco quando ralha comigo, mas
vai embora em seguida, deixando o quarto quente, meu corpo
quente, minha imaginação aguçada. Ela me faz vivo de um jeito
que beira a loucura.

Quando desço na manhã seguinte, escuto a voz de Leandro


e a de Anna, provavelmente do hall de entrada da casa. Vou
tateando as paredes tentando chegar até eles, quando escuto o
barulho de um beijo. Algo estranho acontece, meu coração
dispara e me sinto em pânico, do nada, jogo a bengala no chão e
grito, me deixando cair no chão também, torcendo muito que não
estejam me vendo simular isso.
— Lucca! — Anna grita e corre até mim, me ajuda a
levantar e toca meus braços e rosto para se certificar que estou
bem. — Você está bem? O que houve?
— Eu tropecei e caí, não foi nada demais, estou bem.
— Tropeçou em quê? Isso é um corredor vazio — Leandro
pergunta desconfiado.
— Como é que eu vou saber? Se não se lembra, não posso
ver. Mas posso ouvir, muito bem, aliás. Desculpem se interrompi
o beijo de vocês.
Anna não diz nada, mas Leandro está rindo. Ele apoia sua
mão em meu ombro e me obriga a andar, dizendo a direção
enquanto Anna nos segue. Ouço seus passos leves atrás de mim
e Leandro diz baixinho:
— Tropeçou nos seus ciúmes.
— Seu babaca! Agora me lembro porque não quis mais ser
seu amigo.
Anna vai preparar o café, o que ela realmente faz muito
bem, e Leandro se senta ao meu lado.
— Acho que a Anna seria mais útil na Atenas comigo,
Lucca. Você consegue outra babá, com os cinco dígitos que está
disposto a pagar, acho que pode conseguir qualquer babá.
— Anna fica. Ela não tem nada para fazer na Atenas.
— Ela pode me ajudar a observar seu primo. Ela é esperta,
amiga de todos lá, rapidamente vai saber de coisas que não
consegui ter acesso.
— Não é necessário. Aceite que perdemos a empresa,
Leandro, encontre outra coisa para fazer e siga sua vida.
Ele está rindo, mas ralha assim mesmo.
— Você prefere abrir mão da empresa do que dela. Que
curioso!
— Ela é a única pessoa que eu tenho — justifico.
— Não é verdade, mas ela é a única pessoa que você quer
ter. Essa é a diferença, Lucca. Às vezes acho que você enxerga
muito melhor do que admite enxergar, só está aí se fazendo de
bobo. Você vai assumir que sente algo por ela?
— Sim, vou assumir que sinto necessidade de tê-la aqui.
Então ela fica comigo e você fica longe dela. Podemos combinar
assim?
— Não. Mas vou deixá-la com você por enquanto.
Anna surge com o café, se senta no braço da minha
poltrona como sempre, mas desta vez adoro tê-la tão perto.
Adoro o costume que tem de ficar perto de mim mesmo tendo
tantas opções diferentes. Adoro que esteja aqui, ao meu lado,
sua saia tocando meu braço, seu cabelo fazendo cócegas em
meu ombro. Leandro finge espirrar e diz a palavra “cego” e,
espero que disfarçadamente, mostro o dedo do meio para
ele.
Chega a hora de Leandro se despedir, Anna me guia até o
hall de entrada para que eu também possa acompanhá-lo. Estive
o dia todo ansioso que ele fosse embora, mas agora, sinto sua
partida. Apesar de tudo, apesar do rompimento que tivemos e
que foi totalmente culpa minha, ao contrário do que Anna diz, ele
fez tudo parecer mais fácil. Na maneira como brincou, me irritou,
tentou me fazer reagir, foi o mesmo Leandro que conheci dez
anos atrás, o mesmo a quem confiei metade do meu império,
todos os segredos e a quem tenho essa identificação de amigo.
Isso foi muito melhor do que pensei que seria um reencontro
nosso.
— Lucca, eu sinto muito por não ter vindo antes. É difícil ver
seu amigo em uma situação tão ruim e não poder fazer nada
para ajudá-lo. Eu me senti impotente, inútil e preferi evitar você
para não me sentir assim. Isso foi uma falha imperdoável minha.
Estou feliz que você tenha me recebido, que tenha sido o meu
amigo de sempre, rabugento como sempre, um pouco menos
forte, mas isso se resolve com o tempo. Enfim, estou feliz por ver
você. Espero que não se importe se eu voltar em breve — ele diz
me surpreendendo completamente.
— Você não pode ver, mas os olhos dele estão cheios —
Anna dedura.
— Não estão, não — ele se defende.
— Estão sim!
— Você é bem-vindo aqui quando quiser, Leandro, sabe
disso. Obrigado pelo que está fazendo, não consigo imaginar o
tamanho do seu sacrifício agora, então, obrigado. Você sabe que
não mereço isso. E me perdoa por aquela noite. Tudo o que eu
disse foi da boca para fora. Absolutamente tudo. Eu só estava
assustado como um menino bobo, tentando me defender da pior
maneira possível. Mas acho que você sabe tudo isso, você me
conhece melhor do que eu mesmo. Me perdoa.
— Lucca Baltazi pedindo perdão. Anna, você está
estragando ele — ele brinca, mas me dá um abraço apertado, diz
baixinho: — Quando eu cheguei aqui hoje, cumprimentei a Anna
com um beijo no rosto. Você sabe, um beijo de amigos que fez
você tropeçar.
— Será melhor para nossa recém retomada amizade que
você mantenha sua boca longe dela no futuro — advirto e ouço
sua risada quando se despede e deixa a casa.
E espero mesmo que nos encontremos de novo em breve.
Acompanho Leandro até seu carro, ele se despede com um
longo abraço, sinto que sua presença aqui, mesmo que por
apenas dois dias, fez muito bem a Lucca. Foi nítido que ficou
emocionado ao receber as desculpas do amigo, e vai fazer tão
bem a ele saber que tem sim, seu único amigo, quando precisar
dele! E ele vai precisar.
— Você está fazendo muito bem a ele, Anna, nem sei como
te agradecer por ter aceitado ficar aqui.
— Engraçado, estava pensando a mesma coisa sobre você.
Juro que pensei que você não viria, vocês não se falavam há
tanto tempo e não sei de verdade o que houve, então achei que
não fosse atender meus apelos.
— Apelos ou ameaças? — brinca, mas então sua
expressão tranquila some e a mesma culpa de quando se
desculpava com Lucca minutos atrás surge em seu rosto. — Eu
precisei me afastar dele porque a culpa pelo seu acidente foi
minha.
— Do que está falando?
— Estávamos na Atenas naquela noite, trabalhamos até
tarde. Lucca bebeu muito e nós brigamos feio. A chuva estava
muito forte, era óbvio para qualquer pessoa em plena
consciência que era impossível dirigir naquele tempo, mas Lucca
não estava em plena consciência, estava bêbado. Anna, eu o
conhecia o bastante para saber que ele tentaria ir para a casa,
que não se importaria com o tempo. Eu devia ter previsto isso,
devia ter evitado. Eu podia tê-lo trancado em sua sala, não ter
caído em suas provocações ou ter esperado por ele no
estacionamento para uma carona quando a chuva cedesse, mas
eu não fiz nada disso. Eu não o impedi e olha como ele está
agora. Tudo o que ele perdeu a partir daquela noite foi culpa
minha.
— Não fala isso — ralho abraçando-o quando parece difícil
demais para ele segurar a culpa. — Não foi culpa sua, foi um
acidente. Leandro, foi por isso que você se afastou dele? Porque
sentiu-se culpado?
— A culpa foi minha. Eu tinha medo que ele jogasse isso
sobre mim quando nos encontrássemos e um dia ele vai parar
para analisar aquela noite e vai se dar conta disso, então vai me
odiar.
Seguro seu rosto em minhas mãos, sinto a aflição em seus
olhos.
— Querido, um acidente é um acidente. Você podia ter
evitado se o tivesse trancado em sua sala. Lucca podia ter
evitado se estivesse sóbrio. São Pedro podia ter evitado se não
tivesse mandado um dilúvio. Você entende? Tudo levou a esse
fim e não foi culpa de ninguém. Lucca está passando por um ano
terrível e é difícil entender, mas ele precisa passar por isso. É o
caminho dele. Ninguém é culpado pelo caminho dele. Eu sei que
ele não foi uma boa pessoa antes, e acho que esse castigo é
exagerado demais! Mas quem sou eu para decidir, não é? Assim
como você não é ninguém para mudar o que já aconteceu. Se
prender a culpa é bobagem, seu amigo precisa de você bem.
— Você está certa, Anna. Deus, como ele precisa de você
aqui! Ao menos nisso eu acertei.
— Nisso o quê?
Ele parece desconcertado, mas logo desconversa e se
explica:
— Eu sempre disse a ele que deveria ter deixado você ficar.
Eu estava certo.
Ele beija minhas mãos e entra em seu carro e espero
mesmo que volte em breve. Volto para dentro de casa e encaro o
homem que me espera no hall de entrada. A bengala em sua
mão, os óculos escuros cobrindo os olhos. O cabelo agora bem
penteado e curto, como ele gosta. A barba feita ressaltando seu
queixo quadrado e o rosto bonito. No dia em que nos
reencontramos, ele usava uma roupa mais larga, desleixada,
como sua aparência. Agora se parece com ele mesmo de novo,
elegante, confortável, mais seguro de si.
— Se não está parada aí observando meu pênis não faço
ideia do que está observando, Anna — provoca com um sorriso.
— Você tem outros atributos além do tamanho do pênis —
respondo imediatamente arrependendo-me com a mesma
rapidez.
— O quê? — Pergunta com um sorriso ainda maior.
— O quê? — repito aos gritos. — Estou esperando você
dizer o que sei que quer dizer — desconverso.
Seu sorriso aumenta. Ele dá um passo em minha direção
com a ajuda da bengala. O hall é pequeno, toco sua mão de leve
para avisar que já está perto de mim.
— Obrigado, Anna.
— Meu Deus, eu vou gravar você dizendo isso porque
duvido que alguém vá acreditar se eu contar!
— Faça isso, grave também minha gratidão pelo elogio ao
meu pênis.
— Babaca — ralho e o deixo sozinho no hall, ele que se vire
para voltar à sala.

Encaro a elegante e apaixonante cozinha enquanto coloco


o avental. Ao contrário do resto da casa que tem uma decoração
mais rústica, a cozinha é moderna e muito bem equipada. Como
era a cozinha de sua mansão na capital. Lucca se acomoda em
uma cadeira e, pela última vez, tento convencê-lo que esta não é
uma boa ideia.
— Por que não podemos continuar pegando comida no
restaurante da assanhada senhora Bello? Você sabe quanta
coisa pode dar errada, não sabe?
— Estou disposto a arriscar.
Reviro os olhos e respiro fundo enquanto ele tem um
sorrisinho irritante de chefe. Esses de quando eles dão uma
ordem que não queremos de jeito nenhum cumprir, mas não
temos escolha e isso parece satisfazê-los.
— Por favor diga que será algo mais fácil do que macarrão
grego.
— Me fala tudo o que temos na dispensa e prometo que
vou pedir algo bem fácil a você.
Listo tudo o que há aqui, como na geladeira e sua escolha
me surpreende.
— Podemos começar com seus deliciosos ovos mexidos
cremosos, mas, ao invés de bacon, você vai preparar salmão
grelhado.
— Só isso? — estou gritando sem querer de tanto alívio.
— Só isso. E olha que nem vou te dizer como deve
temperá-lo.
Eu daria um abraço nele se não fosse tão rabugento. Isso
eu posso fazer sem medo. Cantarolo enquanto pego tudo o que
preciso na dispensa. Depois, na geladeira. Tempero primeiro o
salmão e ligo a grelha e enquanto espero que ela aqueça, já que
os ovos preparo bem rápido, começo a dançar pela cozinha. Não
estou mais cantarolando, a música está em minha cabeça. Lucca
parece desconfiado, mas não pode ver o que estou fazendo.
— Você está mesmo dançando pela cozinha como uma
maluca?
— Sim. Como é que você sabe?
— Estou ouvindo seus passos estranhos e até mesmo os
movimentos dos seus braços contra o vento.
— Isso é impossível.
— Por que você não presta atenção no que está
cozinhando, meu bem?
— Não é necessário. Sei fazer o que você me pediu, é fácil.
— Estou começando a me arrepender.
— Não me irrite ou vou cuspir na sua comida e você nem
vai saber.
Rodopio pela cozinha e ele mantém um sorriso no rosto.
Até que diz calmamente:
— Senhorita cozinheira, acredito que enquanto você
rodopia pela cozinha, a grelha já tenha aquecido.
— Eu estou de olho nela — retruco, mas ele está certo.
Coloco o peixe temperado e preciso esperar mais um pouco
antes de preparar os ovos mexidos ou não conseguirei servi-los
na temperatura certa até que o salmão grelhe. — Eu sempre tive
medo de dançar em público. Nunca fiz isso então penso que vou
passar vergonha. Mas é bom fazer isso com você, porque você
não pode me ver mesmo!
— Mas posso te ouvir e você está me incomodando girando
pela cozinha feito uma maluca ao invés de prestar atenção no
que está fazendo. Você devia mesmo parar de se divertir no seu
horário de trabalho e começar a prestar atenção, Anna. Você
com dois olhos em algo já consegue provocar desastres, imagine
não prestando atenção.
Ignoro sua chatice, vou para a frente da grelha para prestar
atenção com os dois olhos, mas continuo tentando sapatear,
apenas porque é o que faz mais barulho com o sapato que estou
usando e adoro irritá-lo. Que ele pense que ainda estou
rodopiando pela cozinha.
— Anna! Pare de dançar e preste atenção na cozinha!
— Você não sabe se estou dançando, não está me vendo!
— Mas estou ouvindo! — grita.
— Você devia ter ficado surdo também — provoco.
— E você devia parar de me rogar pragas, caso não tenha
percebido, elas pegam.
Rapidamente vou em sua direção e me sento diante dele.
— Não diga isso! Eu não roguei nenhuma praga, eu disse
tudo aquilo metaforicamente. Achei que fosse ficar cego por ser
egocêntrico demais para enxergar, não por conta de um acidente.
Você não vai ficar surdo, desculpa.
Ele não diz nada, se levanta e não entendo o que vai fazer.
— Alexa, toque “Por uma cabeza” — ordena.
— Isso é sério? Você se afasta dos amigos, demite todas as
funcionárias, mas conversa com a Alexa?
Ele sorri e me estende a mão.
— Se você quer dançar pela cozinha, faça isso direito. —
Um som delicioso começa a tocar dos alto-falantes da cozinha.
Toco sua mão, embora não faça a menor ideia de como se
dança tango. Ele me puxa de encontro ao seu corpo e sua mão
descansa na parte baixa das minhas costas. No começo, ele se
move devagar, se balançado.
— Você só precisa me seguir — diz.
Ele dá um passo para trás e o sigo, então para o lado e
também o faço, depois para a frente. Cada passo me leva junto
com ele já que nossos corpos estão próximos demais. Repete
esses movimentos até que me acostumo a eles e, quando menos
espero, me gira e rio alto, voltando de encontro ao seu corpo. Ele
também está rindo e voltamos a dançar. Mas estamos mais
próximos agora, nossos corpos colados e sua mão me aperta
forte de encontro ao seu corpo. Apoio minha testa em seu rosto
enquanto sigo seus passos.
— Eu nunca desejei que nada de mal acontecesse com
você — digo.
— Eu sei, só estava te provocando, não vou mais repetir
isso.
— Você é importante para mim, Lucca.
Ele não responde, há um sorriso em seu rosto, ele se afasta
e me gira de novo, quando me puxa de volta ao seu corpo, solta
minha mão e rodeia minha cintura com os braços. Meu corpo
está levemente sustentado por seus braços agora e estamos tão
próximos que sua respiração brinca em meus cabelos, meus
seios estão pressionados por seu torso e minhas mãos passeiam
por seus braços.
— O que você está fazendo, Lucca? — pergunto baixinho.
Ele move o rosto um pouco para baixo e sua boca está
próxima demais à minha.
— O que estou fazendo? — pergunta em um sussurro.
— Você está perto demais.
— Não tenho muita noção de espaço agora. É você quem
precisa se afastar.
Seus braços ainda me seguram firme de encontro ao seu
corpo, impedindo que eu me afaste. E me sinto tão bem aqui!
Meu coração parece estar dançando seu tango particular, minha
respiração antecipa loucamente uma queda brusca de
capacidade e minhas pernas começam a ceder. Ao invés de
tentar me afastar, porque sei que ele vai me soltar se eu o fizer,
subo minhas mãos por seus braços e toco seu rosto.
— Você não vai se afastar, Anna? — ele pergunta, e não
sou capaz de responder.
Ele tampouco espera uma resposta, em segundos uma mão
sobe por meu corpo e se encaixa em meus cabelos, ele puxa
levemente minha cabeça para trás e sua boca alcança a minha.
É como se nos reencontrássemos agora. Meus lábios conhecem
os dele, eles se conectam. Logo, seus lábios me dominam, sua
língua me invade e a maneira como ele me beija, a intensidade, a
forma como desesperadamente me mantém presa ao seu corpo.
Como se eu fosse capaz de me afastar dele agora. Me sinto
derreter em seus braços, seu beijo se torna mais lento, ele
mordisca de leve meu lábio, acaricia em seguida com a língua e
não quero que isso acabe.
Mas então um barulho infernal nos afasta em um pulo
quando o alarme de incêndio soa seu barulho alto e irritante. O
salmão está completamente queimado e sua fumaça ativou o
sensor. Desligo a grelha ainda meio aérea quando Lucca
provoca:
— Não me diga que você colocou fogo na cozinha.
— Se alguém colocou fogo nesta cozinha, não fui eu.
— Está tudo bem, Anna?
— Com a cozinha, sim. Mas perdemos o jantar.
— Com você, está tudo bem com você?
— Acho que não, acho que tenho febre.
Me viro em sua direção e ele tem um sorriso no rosto, mas
não um daqueles provocantes ou de chefe chato. É um sorriso
preguiçoso, relaxado, feliz de verdade. Isso me faz sorrir de volta.
— Acho que você estava mesmo muito quente — ele
responde.
— Foi o fogo. O que você colocou.
— Você está distante demais agora, Anna.
— Estou a uma distância segura.
— Não há distância segura o bastante, para ser sincero.
Você pede o jantar?
— Foi o que sugeri desde o começo.
Ele ri abertamente agora.
— É, às vezes eu deveria ouvi-la mais.
— Não faça isso de novo — peço.
— Então não fique tão perto de novo.
O ar entre nós ainda está carregado por algo. Algo além do
fogo. Como um ímã que me faz querer ir até ele de novo, me faz
querer chegar ainda mais perto, perto o bastante para provocar
uma reação dele. Perto o suficiente para ele me tomar em seus
braços de novo. Dou um passo em sua direção e outro. Ele
percebe o que estou fazendo, pois sorri, ele espera por mim. Mas
meu juízo vence essa batalha e passo por ele, perto demais, mas
direto, até o telefone para garantir nossa janta.

Na semana que se segue, me mantenho ocupada cuidando


do jardim. Me sinto culpada por deixar Lucca meio abandonado,
mas agora que descobri que a Alexa está entre nós, peço
músicas para que ele escute enquanto tem o meu silêncio. Já
arranquei todos as plantas espinhosas e as ervas daninhas do
jardim da frente. Agora estou tirando o mato, ignorando minha
consciência que me diz que eu deveria estar lá dentro, com ele.
É que toda vez que olho para ele, tenho vontade de chegar mais
perto.
— Anna, você não pode ter um momento de calmaria na
vida que já quer correr para estragar tudo — ralho comigo
mesma e, como a covarde que sou, não tenho resposta.

Uma mensagem de Leandro me acorda cedo demais.


Hoje faz um ano do acidente.
Me levanto imediatamente, o sol ainda nem nasceu, mas
Lucca já se levantou. Está sentado na poltrona de sempre, a
janela aberta, o frio provavelmente o está congelando, mas ele
está ali. Como se pudesse ver essas montanhas e talvez ele
possa. Talvez se lembre delas como se lembra de mim e esteja
agora visualizando-as exatamente como são. Não digo nada ao
me aproximar, há lenha na lareira da sala então a acendo. Toco
seu ombro mostrando que estou aqui se precisar e o deixo
sozinho. Ele não diz nada, não pede que eu fique, ele quer
pensar.
Não consigo dormir depois disso, fico rolando de um lado a
outro na cama tentando encontrar uma maneira de tirar o peso
desse dia para ele. Me levanto mais cedo para fazer seu café.
Ele está calado, não me deseja bom dia, não comenta que errei a
mão no tempero do ovo. Não quer conversar. Ele vai se fechar de
novo em sua dor e sua culpa e não posso permitir isso.
Então a ideia perfeita me vem.

Subo para seu quarto pouco antes do almoço e separo sua


roupa. Nunca fiz isso desde que me mudei para cá, mas esta
ocasião pede. Isso, claro, se ele aceitar o que vou propor. Então
vou até meu quarto e separo a minha, não tenho muitas roupas,
mas ele nem vai ver mesmo. Porém me ocorre que estarei ao
seu lado, as pessoas não precisam saber só de olhar para nós
dois que sou sua empregada e não sua amiga. Separo então um
vestido que nunca usei, que foi baratinho, mas que é minha
roupa mais elegante. Então vem a parte mais difícil: convencê-lo.
Paro diante dele na poltrona e não digo nada, ele sabe que
estou aqui, não quero invadir seu silêncio, então espero que ele
diga alguma coisa.
— O que você quer, Anna?
— Ah, que bom que você voltou a falar, a senhora Bello não
vai trazer o almoço hoje. — Ele não diz nada, não pergunta o
motivo, não pergunta o que vamos comer. Me ajoelho diante dele
e seguro suas mãos, brinco com elas então continuo: — Você
vem comigo, vou arrumar você.
— Para quê?
— Nós vamos almoçar no restaurante dela hoje. Vamos
comemorar um ano da sua cegueira.
Espero sua reação, espero que vá me culpar, me chamar
de sem noção e se afastar, mas ele sorri.
— Você acha que esse dia merece ser comemorado?
— Acho que você estar vivo merece ser comemorado.
Vamos, você não pode ver, que chato, mas você é bem mais
legal agora! — provoco e funciona, ele agora tem um sorriso
enorme no rosto.
— Anna, você não pode dizer uma coisa dessas a um cego,
uma hora dessas vai levar uma bengala na cabeça.
— Mas não vai ser agora, vai?
— Não, não vai.
— Que alívio! Por um segundo você me deu medo. Então
nós vamos almoçar fora?
— Você entende tudo o que isso implica?
— Nós dois tomando sol na pele e comendo em um
restaurante?
— Um monte de gente vendo que não sou capaz de comer
sozinho.
— Quem liga? Não conheço ninguém que seja capaz de
gerir a vida sozinho e não estou rindo deles. Além do mais, você
não vai ver mesmo.
Temo estar ultrapassando algum limite e espero.
— Você vai ficar perto de mim o tempo todo se sairmos? —
pergunta um tempo depois, após pensar bastante.
— Como uma sombra.
— Então eu aceito. Vamos almoçar no restaurante da
senhora Bello.
Nem acredito que ele disse sim. Só não grito e danço pela
casa em comemoração porque entendo que ele só aceitou para
passar mais tempo comigo, porque o estou deixando sozinho
demais. E mesmo que isso o incomode, em nenhum momento
ele reclamou ou exigiu minha presença.
O guio até seu quarto, embora ele saiba esse caminho
sozinho, mas sou eu que dou as ordens agora e ele só faz
obedecer.
— Vá tomar um banho, sua roupa já está separada em cima
da cama.
Ele resmunga algo sobre eu estar exagerando, mas tira a
camisa aqui, sem qualquer pudor, na minha frente. Também tira a
calça e saio resmungando de seu quarto, ouvindo sua risada.
Quando o barulho da água cessa, espero mais um pouco e volto
para verificar se conseguiu se vestir sozinho. O encontro
completamente nu, parado, esperando por algo.
— Você não se vestiu!
— Achei que você fosse me vestir também.
— Você é inacreditável! Vista essa roupa agora mesmo! —
ralho e saio de seu quarto, não sem antes observar seu pênis
descansando ali entre suas pernas e comento baixinho: — Tão
avantajado.
— Obrigado! — ele grita de volta, me lembrando que não
enxerga, mas ouve que é uma beleza!
Termino de me arrumar e volto ao quarto temendo encontrá-
lo nu, sentado na cama para me provocar, mas ele está vestido
quando entro, passando algum perfume delicioso. Escolhi uma
calça social branca que agora percebo que fica colada demais às
suas pernas e bunda. E uma blusa de linho creme, com uma
abertura na frente que deixa à mostra uma de suas cicatrizes no
tórax. Ele tem os óculos escuros no rosto, como sempre e o
cabelo liso bagunçado. Mas de um jeito que o deixa charmoso.
Está usando as meias, mas não os sapatos. Então escolho um
sapato em seu armário e o guio até a cama para calçá-lo.
Enquanto o calço, ajoelhada diante dele observando-o
lentamente, sinto meu rosto em chamas. Lucca é bonito demais!
— Você está muito bonito, as mulheres vão se atirar aos
seus pés — brinco para descontrair minha tensão que ele sequer
percebeu.
— Como você está? — pergunta.
— Literalmente aos seus pés agora, mas não se gabe, sou
paga para isso.
Ele sorri.
— Quero saber o que está usando, Anna.
— Um vestido que você chamaria de trapo.
Ele ri agora, e me sinto um pouco mais relaxada.
— Ele é longo ou curto?
— Curto.
— Atrevida. É largo ou colado ao seu corpo?
— Vou apressar essa conversa, é curto, colado ao meu
corpo e possui um decote que vai quase até o umbigo — minto.
— Você pretende seduzir alguém esta tarde, senhorita
Anna?
— Não você, querido, você não pode me ver.
— Não preciso vê-la para ficar duro por você.
Pronto! Estou de novo com o rosto em chamas e me
sentindo tensa.
— Você é um babaca! Meu vestido é longo, largo e possui
um laço do tamanho da sua babaquice onde deveria estar um
decote. Satisfeito?
Ele ri abertamente, mas balança a cabeça afirmativamente
e nem paro para perguntar o que quer dizer com isso. O ajudo a
se levantar, coloco a bengala em sua mão e chamo um táxi
enquanto descemos as escadas.
Presto atenção em Lucca no trajeto até o restaurante, se
sentir que ele está desconfortável demais vamos voltar para a
casa. Paramos em frente ao restaurante e ele não faz qualquer
menção de descer do carro.
— Lucca, você não precisa fazer isso se não estiver se
sentindo bem. Podemos voltar para casa, pedir algo e comer
enquanto eu vejo um filme e você o escuta e critica. Prometo que
vou ficar do seu lado o resto do dia.
Ele procura minha mão e a leva até seus lábios,
depositando um beijo.
— Não, meu anjo, viemos até aqui, vamos entrar. Vou ficar
bem.
Então ele abre a porta e, segurando a bengala, dá o
primeiro passo para a rua. Desço imediatamente após pagar o
taxista e o ajudo a sair do carro. Entramos de braços dados no
restaurante. Por acaso sou sua empregada, mas eu poderia ser
sua namorada, não poderia? Estamos de braços dados, então
por que essas garçonetes atrevidas estão olhando para ele?
Escolho a mesa mais fácil para que ele se sente e onde há
menos movimento, na esperança que isso o ajude a se sentir
melhor. Pego o menu pronta para lê-lo para ele, mas a própria
senhora Bello vem nos atender e faz isso. Lê todo o menu com
toda atenção e ainda sugere o que ele deveria pedir. Gentilmente
ele acata a sugestão dela e faço o mesmo.
— Você está bem? — pergunto quando ela se afasta.
— Não, na verdade. Não me sinto confortável aqui. Ouço
barulhos demais para identificar cada um e não consigo ver
nada. Não me lembro da decoração deste lugar, estou
completamente no escuro.
— É por isso que você não sai de casa? Porque não
conhece os lugares onde vai?
— Eu sei cada cômodo de cor naquela casa, Anna. Não
posso vê-los de verdade, mas sei exatamente como é à minha
volta. Estar assim, em um restaurante qualquer que não tenho de
cor na cabeça, no escuro, evidencia para mim que sou um cego.
Eu sei que isso parece ridículo, mas é como me sinto.
— Na verdade, não parece. Acho que podemos tornar isso
mais fácil. O lugar tem cerca de sessenta metros quadrados,
passamos por uma porta francesa dupla, o hostess é careca. Ele
possui uma pinta curiosa logo abaixo da boca, do lado esquerdo.
— Afonso, me lembro dele.
— Bem, o piso é de granito, na cor cinza, passamos por
doze mesas até este canto afastado onde estamos. As mesas
são quadradas, de uma madeira escura. Elas não estão forradas,
o que é pouco comum em restaurantes. Estou entediando você?
— De maneira alguma, estou imaginando tudo o que você
está dizendo, continue.
— Bem, há detalhes no encosto da cadeira com o formato
de montanhas, na cor preta. Há um quadro logo atrás da sua
cabeça da Serra da Mantiqueira. Foi pintado a óleo por um artista
local. Atrás de você está uma parede, ela é decorada com ripas
de madeira e possui várias obras de arte de artistas locais, a
maioria delas são das serras e trilhas aqui da cidade. As paredes
à sua frente são de um tom laranja, mas não é nada forte
demais.
— Algo como um salmão?
— Na verdade sim. Só para constar, salmão não é uma cor.
Ele ri e me sinto aliviada que esteja dando certo.
— Se você vai descrever cores para alguém que não pode
vê-las, precisa ser um pouco mais criativa.
— Vou ser mais sincera, então. As garçonetes usam preto e
branco, que surpresa! E não param de olhar para você. A
senhora Bello deve ter uns cinquenta anos, tem os cabelos
louros e curtos, se maquia muito bem, está muito bem vestida e
abriu dois botões da blusa quando você entrou. Acho que ela
esqueceu que você é cego e não pode ver seus melões saltando
para fora.
Ele ri alto.
— Sobre a mesa à sua frente há um copo com água gelada,
logo a sua direita.
Ele levanta a mão devagar e alcança o copo sem
dificuldade, bebe um pouco da água e parece temer ao devolvê-
lo, mas o faz sem problemas.
— Como é o teto?
— Como todos os tetos desta cidade, em forma de casinha.
Ele ri da minha descrição.
— Como são os clientes da mesa mais próxima a nós?
— Dois homens muito gatos, na verdade. Mas usam a
mesma aliança, então não posso babar por nenhum deles. Do
outro lado, há duas mulheres, jovens e muito assanhadas já que
não tiram os olhos de você.
— Por que você parece irritada por isso?
— Bem, estamos aqui juntos. Elas não sabem se sou sua
esposa ou sua babá, por que não podem ter o mínimo de
respeito? — digo a última parte um pouco mais alto e as
assanhadas disfarçam as olhadelas.
Esta é uma cidade pequena e a curiosidade sobre o novo
morador cego, exigente, mal-humorado e que nunca aparece é
grande. Provavelmente é por isso que estão olhando para ele e
não porque ele está delicioso com essa roupa que eu escolhi.
— Da próxima vez vou vesti-lo com sacos de lixo —
resmungo, mas ele escuta.
— E como você está realmente vestida?
— Que golpe baixo, Baltazi!
— Preciso saber como é a minha acompanhante. Senão me
sinto no escuro.
— Estou usando um tubinho preto — confesso.
Ele fica alguns segundos em silêncio, penso que
imaginando isso.
— Você está brincando comigo.
— Você nunca vai saber, vou deixar minha vestimenta de
hoje para sua imaginação.
— Eu tocaria todo seu corpo agora mesmo só para
confirmar o que está usando se não estivéssemos em um local
público.
A garçonete traz a comida cortando esse clima que
começou entre nós e tento voltar minha mente para o lugar.
Estou aqui para ajudá-lo, não para ser seduzida por ele. Espero
ela se afastar e digo baixinho exatamente onde está cada coisa
em seu prato, também o oriento a como pegar os talheres e ele
consegue comer sem qualquer dificuldade. Isso parece animá-lo
um pouco, já que finalmente está conversando comigo sobre as
experiências que teve fazendo trilhas na cidade e rindo quando
faço alguma observação que ele considera inocente demais.
Infelizmente nossa conversa é sempre interrompida por alguma
garçonete vindo se certificar se ele precisa de algo. Quando a
quarta se aproxima vou logo avisando.
— Ele não está sozinho à mesa, se ele precisar de alguma
coisa, eu peço! — Ela se afasta com uma careta, Lucca está
rindo e estou irritada.
Não escolhemos a sobremesa, ela é servida por conta da
casa. Junto com ela vem de brinde a senhora Bello, que se senta
à mesa conosco mesmo não tendo sido convidada. Ela repete
pela trigésima vez o quanto está feliz que Lucca tenha saído de
casa e faço uma nota mental de levá-lo a outro restaurante na
próxima vez. Enquanto conversa com ele, ela toca toda hora em
sua mão, em seu braço, chega a tocar seu cabelo. Quando o faz,
engasgo com a calda do pudim e pigarreio para ver se ela
recobra um pouco o seu senso, mas não funciona. Ela falta
convidá-lo a subir sobre a mesa para que possa saboreá-lo aqui
mesmo.

— Você quer andar um pouco pela cidade? — pergunto


quando saímos do restaurante, na esperança de adiar que ele
volte a ficar trancado em casa e, para minha surpresa, ele
concorda.
Passo o braço pelo seu e vou descrevendo os lugares por
onde passamos, ele tem muitas memórias da cidade, o que
significa que vinha muito aqui. Falo sobre as pessoas, o clima, o
dia, o sol que brilha no céu e o friozinho costumeiro que ainda faz
aqui. Ele ouve tudo com um sorriso, embora seja nítido seu
desconforto em precisar usar a bengala, e em determinado
momento, segura minha mão.
— É mais fácil assim, assim as pessoas não percebem que
preciso que você me guie por ruas onde estive milhares de vezes
— explica.
— Claro!
Começo então a encarar as assanhadas que viram o
pescoço para olhá-lo de novo, com o queixo erguido, como se eu
fosse mesmo a namorada dele. Afinal, estamos de mãos dadas,
ninguém precisa saber que sou só sua empregada.
E caminhar com ele assim, relaxado, rindo mais do que o
normal, me contando coisas que viveu aqui, se distraindo um
pouco, de mãos dadas, me deixa em um estado extremamente
feliz. Claro que por conta da alegria dele no dia de hoje. Ainda
assim, gosto desse grau diferente de felicidade.

Voltamos para casa ao final da tarde e tenho agora um


Lucca falante. Deixo que fale, que conte as coisas que viveu, que
se anime com algo. Presto atenção a tudo o que diz, me imagino
em suas aventuras com ele, pergunto sobre tudo, e quando
acendo sua lareira para que ele possa descansar, espero mesmo
tê-lo ajudado.
Caminho apressado até Aquiles, o vejo ali, sobre a minha
mesa, na minha sala, na Atenas. Ele tem pequenas fotografias
nas mãos. Os funcionários estão à sua volta e parecem chorar,
eles gritam, desesperados, pedindo que ele pare. Ao me
aproximar da sala noto que essas fotografias são minhas. São
imagens minhas, da infância, adolescência, com meus pais.
Minha faculdade, a formatura, várias fases da minha vida até
chegar aqui, onde estou hoje. Aquiles joga tudo para o alto
enquanto ri e repete que fui tolo, as pessoas continuam chorando
e abro a porta com tudo para entrar em minha sala e tirá-lo daqui,
mas então não vejo mais nada.
Escuto as pessoas chorando, a risada de Aquiles, sinto a
mesma raiva por vê-lo jogando todo o meu trabalho fora, como
se não fosse nada, deixando escorrer trinta anos da minha vida
pelos dedos. Mas não posso mais vê-los, não vejo nada. Tento
chegar até ele através do som de sua voz, mas como então eu
poderia impedi-lo? Experimento fechar e abrir os olhos repetidas
vezes esperando um resultado diferente em alguma dessas
vezes, mas nada de novo acontece. Então as vozes somem. Ao
invés da minha sala estou agora em um buraco. Há o escuro, a
chuva cai forte, um carro freia muito alto próximo demais a mim,
mas não consigo ver nada. Não sei se estou no meio da rua, sei
que estou em um buraco embora não possa vê-lo. Caminho para
todos os lados, mas estou cercado por paredes de barro que não
me deixam sair.
— Foi para isso, filho? Foi para isso que você abriu mão de
cada segundo dos últimos doze anos? Para jogar tudo o que
construiu no lixo? — A voz do meu pai questiona próximo a mim
e me desespero para vê-lo.
— Não foi culpa minha, pai. Não posso mais ver. Como eu
poderia impedi-lo?
— Foi culpa sua, tudo foi culpa sua. Quem dirigia o carro?
Quem escolheu ser sozinho e afastar todos ferindo-os para
garantir que nunca voltassem? A culpa é toda sua!
Uma angústia enorme me toma, eu já passei por isso. Ao
acordar no hospital todo quebrado, ao ter de ficar em uma cama
por meses, sem enxergar nada, a mercê de pessoas que não
conhecia, dependendo delas até mesmo para necessidades mais
básicas, eu sentia essa angústia. Parecia um pesadelo e eu só
esperava acordar. Mas não acordei, nunca acordei dele. Isso é
um pesadelo e talvez eu nunca mais vá acordar dele também.
Mas meu pai está certo, eu mereço. Foi o que plantei, foi o que
colhi. Quero aceitar meu destino e seguir a partir daqui, mas não
consigo. A angústia está aqui, gritando em meu peito, repetindo
que falhei, impedindo que eu aceite onde estou agora. Dizendo
que este buraco é frio demais para mim. Eu tenho que sair dele.
Então alguém toca minha mão, um toque quente,
reconfortante.
— Acorda! É só um pesadelo! Acorda!
Acordo de repente e sinto a cama debaixo do meu corpo. A
escuridão ainda está aqui, um pouco daquela angústia também.
— Está tudo bem, foi só um pesadelo — a voz de Anna
repete várias vezes enquanto ela aperta minha mão e acaricia
meu rosto.
— Obrigado por me acordar, Anna — digo sentando-me,
deixando sua mão embora não esteja pronto ainda para isso.
Ela está sentada na cama comigo, sinto sua presença tão
próxima agora, de alguma forma ela é a luz. Sua respiração me
faz sentir quente. O frio da chuva do sonho se dissipando. Toco o
peito esperando que a angústia aqui também dissipe, mas ela
não parece disposta a ir embora.
— Você vai ficar bem? — ela pergunta ao se levantar da
cama, já vai me deixar. Não vou ficar bem, mas não digo isso a
ela. Que pelo menos um de nós tenha uma boa noite de sono.
— Bem o bastante — respondo. — Você já vai?
Ela demora um pouco, mas por fim diz:
— Sabe, a lenha da minha lareira acabou e não queria ir lá
fora no meio da madrugada. Será que eu poderia...
— Fica aqui comigo — respondo imediatamente batendo ao
meu lado no colchão. — Aqui está quente e confortável, você
pode ficar.
— Obrigada, Lucca.
Ela sobe no colchão e se deita ao meu lado. Nossos corpos
não se tocam, mas não é necessário. Sinto seu cheiro, sua
presença, sua respiração suave. Ela está aqui e não me sinto
mais sozinho. Me deito de novo e mesmo não podendo vê-la, me
viro em sua direção. Sua respiração quente está em meu rosto,
nossos joelhos se tocam de leve. Ela vai mesmo ficar.
— Obrigado, Anna.
— Não me agradeça ainda, se você roncar eu vou voltar
para meu quarto frio e silencioso.
Sorrio.
— Não vai, não. Você não vai me deixar sozinho. E já que
está disposta a fazer esse sacrifício de dormir do meu ladinho,
por que não chega mais perto? Está mesmo frio, ainda que a
lareira esteja acesa, há um frio em mim que o fogo não é o
bastante para aplacar.
— Eu adoraria ser seu cobertor particular, mas você mesmo
me disse para não chegar perto demais — responde com a voz
arrastada de sono.
— Você está segura esta noite — prometo.
— Não estou, não.
Não entendo o que quer dizer, mas deixo que durma. Ela
deve estar cansada após um dia todo andando pela cidade, após
todo o esforço que fez para me fazer sentir melhor. E funcionou.
Há meses não me sentia tão bem, tão mais próximo ao normal,
como hoje. Quando percebo que dormiu me atrevo a aproximar-
me mais, o máximo que consigo. Seu cabelo faz cócegas em
meu rosto agora, o cheiro delicioso dele me acalmando, nossas
pernas estão emboladas e seu corpo quente está todo recostado
ao meu. Cedo demais ela se vira de costas e aproveito para
abraçá-la. Talvez vá acordar e sair do meu quarto irritada, mas
arrisco.
E ela não acorda. Dorme tranquila em meus braços,
enquanto afundo o rosto em seu pescoço e durmo também. Um
sono completo, tranquilo, gostoso. Um sono regado a bons
sonhos apenas.

Quando acordo ela ainda está aqui, nos meus braços,


dormindo tranquilamente. Me levanto devagar para não a
acordar. Caminho a passos leves até o banheiro onde me
arrumo. Escuto ainda sua respiração de sono. Então encontro a
bengala e deixo o quarto, deixo que durma, ela merece
descansar um pouco mais. Pela primeira vez em meses não vou
direto até minha poltrona ao levantar. Ao invés, decido aprender
a andar pela casa. Pelo menos da sala até a cozinha, posso
surpreender Anna aparecendo lá qualquer dia desses sem que
ela precise me levar. Isso é o que tenho agora, sou um homem
com muitas limitações, para alguém que adorava se ver acima
dos outros, agora não posso ver nada. Para quem não admitia
depender de ninguém, não posso mais ficar sozinho. E ter Anna,
a pessoa a quem mais feri, comigo agora é um presente.
Enquanto ela estiver aqui posso tornar seus dias mais fáceis.
Enquanto estiver aqui, posso fazer de tudo para que não queira ir
embora.
Depois de decorar como chegar à cozinha posso aprender
a chegar ao hall de entrada e ao jardim, onde ela passa muito
tempo. Será que assim em algum momento ela pode me achar
menos inútil? Esbarro na primeira parede e faço uma anotação
mental para virar mais à esquerda na primeira curva. Volto ao
início, recomeço, não bato mais na primeira parede, mas bato na
segunda. Volto ao início, recomeço, e assim passo as próximas
horas até ouvir Anna no andar de cima, então volto à minha
poltrona e deixo que ela presuma que passei a manhã toda aqui.

— Você não precisa fazer isso, podemos ligar para a


senhora Bello e...
— Não! — ela me interrompe decidida. — Eu vou fazer o
almoço. Terei que fazer isso em algum momento, não é? Vai ser
hoje. Vamos lá, me diga o que tenho que fazer.
Não tenho certeza quanto a isso.
— Anna, se você colocar fogo na minha cozinha de novo...
— Eu não vou! Não sou nenhuma tapada, ok? Além do
mais a segunda vez foi culpa sua.
Sorrio.
— Nem vou discutir isso. Não era eu quem estava
dançando como uma maluca pela cozinha ao invés de prestar
atenção.
— Comece a resmungar e vou fazer de novo.
Passo as instruções para um almoço simples, o tempo todo
buscando o cheiro de gás no ar, ou de fumaça. Enquanto ela
cantarola baixinho começo a pensar na vida dela. Estou sozinho
há alguns meses, houve noites em que estive a ponto de
enlouquecer, como Anna lida com isso mantendo essa alegria, eu
não entendo.
— O que você fez quando chegou à Monte Verde? —
pergunto esperando não a desconcentrar. — O que fez durante
esse ano?
— Consegui cinco empregos diferentes em duas semanas.
Não sei se está brincando, mas conhecendo Anna, acho
que não.
— Com a Nathalia?
— Sim.
— E ela ainda te conseguiu mais esse emprego depois
disso?
Sua risada gostosa causa um calor bem-vindo em meu
peito.
— Dá para acreditar? Acho que ela não é alguém que
desiste das pessoas. Bem, depois fiquei o ano todo na pousada.
E há dois meses estou aqui, com você.
— Você já pensou em procurar seus pais?
— Eu nem teria por onde começar. Não sei absolutamente
nada sobre eles. Mas acho que se soubesse não iria até eles,
quer dizer, eles não me quiseram antes, não tem porque correr
atrás deles agora.
— Você não sabe o que os levou a abandonar você. Talvez
não era o que queriam fazer.
— Talvez. Mas eles tiveram tempo demais para se redimir.
Eu estive no mesmo orfanato por dezoito longos anos. O que
quer que tenham passado para me abandonar, uma hora foi
embora e ainda assim, eles não se importaram o bastante.
Quando era pequena eu esperava que fossem me buscar, mas
depois entendi que sou assim, há pessoas que são esquecíveis,
eu sou uma delas.
Não há tristeza em sua voz, e sim aceitação. Me pergunto
se vou chegar nesse ponto de dizer que sou cego e pobre sem
rancor ou tristeza por isso.
— Você não podia estar mais errada, Anna. Você é como
um furacão, onde passa muda tudo, é impossível esquecê-la.
— Ainda que seja porque eu destruí tudo — brinca.
— Você sente falta dele? Do seu noivo?
— Como você muda de assunto! Não. Isso vai parecer
horrível, mas vou te confessar uma coisa — diz baixinho, como
se fosse um segredo, ouço quando arrasta uma cadeira e sei que
se sentou perto de mim porque seu joelho esbarra no meu.
Sempre invadindo meu espaço. — Eu senti mais pelo futuro que
perdi. Teríamos uma casa e muitos filhos correndo por ela e eu
nunca mais estaria sozinha. Senti falta disso. Não sei se terei
esse futuro com alguém um dia. Às vezes eu invejo você, você
parece acostumado à solidão, não agora, mas desde sempre.
— É diferente quando você escolhe ser sozinho e quando
você não tem outra escolha. Antes eu adorava a solidão, agora a
tenho como um castigo. Você não o amava?
Ela se afasta e volta a mexer em alguma panela, o cheiro
começa a tomar o ar.
— Sim, eu o amava. Mas eu não era apaixonada por ele.
Claro que só percebi isso quando vim embora da cidade e senti
falta de outra pessoa mais do que dele.
— Você sentiu falta de quem?
— Como você pergunta! O que faço com essa salsinha
agora?
A instruo em como cortá-la e adicioná-la ao molho e me
sinto de repente um pouco mal-humorado. A pessoa que ela
sentiu falta foi o Leandro, há alguma ligação entre eles e isso me
incomoda muito.
— Você tem planos para o futuro? — ela pergunta
sentando-se de novo perto de mim. Quero mandar que volte a
prestar atenção às panelas, mas não quero que ela se afaste,
então escolho arriscar, enquanto torço que o alarme de incêndio
funcione de novo. — Você planeja por exemplo, volta a enxergar
e pisar em todo mundo que te abandonou?
Uma risada alta me escapa.
— Acho que você está vendo isso por uma ótica invertida,
Anna. Não sou a vítima, sou o vilão. Este é meu castigo, é o fim
da história. Não vai ter reviravolta, vingança, milagre, nada. Meus
dias vão acabar exatamente como são agora, é o que colhi pelo
que plantei. As pessoas se afastaram de mim porque as feri, não
tenho que me vingar delas.
— Sabe, você se enxerga por uma ótica errada desde
sempre. Eu acho que sua história está começando agora, aqui,
com essa plantação. Você também nunca se apaixonou por
ninguém, não é? Você não sente falta? Não sente que é estranho
que não tenha sentimentos como as outras pessoas?
— Está preocupada que você esteja com defeito porque
não se apaixonou pelo homem sem graça e imbecil com quem
quase se casou?
— Na verdade, estou.
Sorrio enquanto ela se afasta e vai até as panelas.
— Eu já me apaixonei — confesso.
— O quê? — sua voz é tão surpresa que chega a soar
estridente. Ela se aproxima de novo imediatamente e tenho um
sorriso satisfeito por surpreendê-la. — Quando? Como? O que
aconteceu? Não me diga que você ficou cego e ela o deixou,
porque isso seria bem a cara das mulheres com quem você
convivia.
— Não vou dizer. Na verdade, não vou dizer nada.
— Você não pode soltar essa informação e parar por aí.
Não me faça perguntar ao Leandro.
— Ele não vai dizer.
— Mas ele sabe quem foi?
— Todo mundo sabe, Anna, só eu não sabia. E ela, eu
acho.
— Você precisa ser mais específico, vamos, não seja
malvado.
Eu poderia dar essa resposta a ela agora, mas isso
causaria sua pena. Resultaria em sua rejeição, terminaria com
ela indo embora para não me ferir. Ou talvez ela se prendesse a
mim porque agora sou um cego solitário, ela tem ciência que é a
única pessoa que tenho agora, ela é boa o suficiente para se
prender a mim pelo meu bem. Mas eu não faria isso com ela.
— Já passou. Passou o tempo, passou a oportunidade. Não
deu em nada.
Será possível que alguém tão viva e pura como ela se
apaixone por alguém como eu? E agora eu virei um adolescente
bobo.
— Eu sempre sonhei em me casar — ela diz de repente. —
Quero ter filhos, muitos. Eu nasci para ser mãe, já que não fui
filha. Vou ter uma família imensa e nunca mais ficarei sozinha.
Igor queria isso também, foi o que amei nele. Espero um dia
encontrar alguém que queira o mesmo.
— E você vai se casar com essa pessoa ainda que não
esteja apaixonada por ela?
— Eu vou. Quando você escolhe a paixão, abre mão de
segurança. Quando escolhe o amor, pode abrir mão da paixão.
Eu abriria mão das duas coisas pelo meu sonho. Você consegue
imaginar? Cinco cópias minhas correndo por aí?
— Deus me livre, isso parece um pesadelo — provoco e ela
ri alto.
Mas me vejo ao seu lado em dez anos, cinco crianças
correm pela casa, duas delas se machucam e Anna grita que eu
podia ter feito alguma coisa. A vejo infeliz por ter de lidar com
tudo sozinha, a casa, os filhos, eu. Não posso ser pai. Este
nunca foi um sonho meu, mas agora é algo que realmente não
quero. Não quero ter um ser pequeno em meus braços que não
posso ver. E ter as pessoas à minha volta dizendo com quem se
parece enquanto não sou capaz de imaginar. Não quero meu
filho buscando um pai substituto para ensiná-lo a jogar bola, ir às
suas reuniões de escola ou brincar com ele aos finais de
semana.
— Você nunca quis ter filhos? — a voz dela soa mais
distante agora, ela está pegando algo na geladeira, nem vi em
que momento se afastou.
— Não, não queria antes, quero ainda menos agora. Não
vou ter um filho que não posso cuidar. Não posso cuidar de mim
mesmo, Anna, não consigo chegar ao banheiro a tempo às
vezes, como vou ter um filho?
— Não foi o que quis dizer, de toda forma, o Lucca de antes
seria um péssimo pai, se você vai ser responsável por uma
criança tem que ser como é agora.
— Um cego inútil?
— Um ser humano!
— Tem razão, a quantidade de vezes que você diz o quanto
eu sou babaca está me deixando triste. Liguei meus sentimentos,
satisfeita?
— Não me venha com essa! O dia em que você ligar seus
sentimentos vou fazer questão de pisar neles.
Não sou o futuro dela. Como ela mesma disse, seu futuro
precisa ser melhor do que isso. É melhor que eu me afaste dela,
que ela seja minha amiga, já que é a única companhia que
suporto. A quem quero enganar? A única companhia que desejo.
Ela será uma amiga que vou fazer o possível para não afastar,
nada mais do que isso. De agora em diante serei apenas gentil e
amigável com ela.
— Consegui! O almoço está pronto e está com cara de
comida, e eu não ativei o alarme de incêndio! Eu consegui!
Me levanto para cumprimentá-la, quando de repente ela
pula sobre mim me abraçando. Seu cheiro delicioso me atinge
em cheio quando eu não esperava, seu corpo quente está em
meus braços, sua risada gostosa em meu ouvido, afundo o rosto
em seu pescoço e mordisco sua pele. Ela se afasta
imediatamente.
— O alarme de incêndio, Lucca!
Ah, merda! Isso vai ser difícil demais. Desejei Anna por
tempo demais antes, não a tive para saciar esse desejo e agora
ela é tudo o que tenho aqui, tão perto, ao meu alcance. Preciso
mesmo me lembrar que eu sou pouco demais para ela.

Anna assiste a uma comédia romântica que tem cenas


demais em silêncio, de forma que às vezes me perco no que está
acontecendo. Aproveito a deixa para irritá-la.
— O que está acontecendo agora? Estão se pegando de
novo?
— Sim.
— Descreva.
— Como é que eu vou descrever isso? Estão tirando as
roupas e se beijando, não há o que descrever!
— Você era uma dessas só “papai e mamãe” na cama, não
era?
Ela ri, mas não cai na minha.
— Não vou te responder isso.
— Vamos, Anna, não vou fazer sexo de novo, alimente
minha libido com sua extinta vida sexual.
— Você perdeu a visão, não o pênis. Por que acha que não
vai transar de novo?
Tiro os óculos e viro a cabeça em sua direção.
— Olha para mim, você se excitaria olhando para isso?
Ela demora um pouco, mas finalmente responde:
— Isso é uma pegadinha e eu não vou cair nela.
— Bem, eu tentei. Levando em conta que você é a maior fã
do meu pênis, estou realmente desanimado.
A campainha soa nos pegando totalmente de surpresa.
Anna vai atender e espero ser Leandro ou Nathalia. É fim de
tarde, não chove agora, mas o tempo está fresquinho, de forma
que Anna acendeu a lareira antes de começarmos a ver o filme.
Ouço seus passos se aproximando e o salto de alguém a
acompanha. Nathalia não costuma usar saltos.
— Lucca, tem uma mulher...
— Boa tarde, senhor Baltazi — uma voz que não conheço
cumprimenta. — Sou Andreia Veiga, corretora, gostaria de falar
com o senhor, se não for um problema.
— Claro que não, por favor, sente-se.
Anna se senta ao meu lado no sofá e a mulher
desconhecida explica a que veio.
— Sou corretora aqui na cidade e no momento tenho uma
produtora em busca de um local para filmagens de um longa.
Sua casa preenche todos os requisitos exigidos por eles. Está
em um local afastado, com pouco barulho além da natureza. É
linda e a paisagem atrás dela é tudo o que precisamos.
— Entendo, mas como pode ver, Andreia, se importa se eu
a chamar assim?
— Não, claro que não!
— Como pode ver moramos nela, não posso alugá-la.
— Acho que posso fazer você mudar de ideia.
Percebo a malícia em sua voz.
— Anna, você poderia nos trazer duas taças de Malbec, por
favor? — peço.
— Malbec? Não o vi beber desse vinho desde que me
mudei para cá.
— Vou beber agora.
— Acho melhor não, é que ele toma muitos remédios por
conta do acidente que sofreu, não pode beber — ela mente
descaradamente. — Vou trazer café, está frio, não faz mal, muito
melhor.
Concordo, não entendo a lógica de Anna ou o que passa
por sua cabeça, mas acredito que esteja tentando me ajudar de
alguma forma. Só não faço ideia de como.
— Prossiga, Andreia, por favor.
— Bem, você poderia ir para uma pousada por poucos
meses enquanto eles filmam aqui. Estão dispostos a pagar um
valor muito alto.
Não tenho a menor vontade de sair da minha casa, o lugar
que conheço, onde sei como são os cômodos, os móveis, o
caminho até a cozinha. Mas dependendo do valor que ela
oferecer, eu poderia quitar as dívidas recém adquiridas por
Aquiles na Atenas e quem sabe...
O que estou fazendo? Perdi a Atenas para Aquiles quando
confiei a ele todo meu trabalho e assinei papéis que não podia
ler. Não é mais minha responsabilidade.
— Agradeço sua oferta, mas não estou interessado.
— Que pena! Ouvi falar muito sobre você pela cidade, mas
não imaginava que fosse tão jovem! Nem tão elegante!
Ela se levanta, senta-se ao meu lado, seu pé está tocando
minha perna agora, propositalmente o bico de seu salto
suspende um pouco a calça que uso ocasionalmente. Faz tanto
tempo que não flerto, que não sei mais como fazer isso. Nem
estou com vontade de fazer isso, na verdade.
O cheiro de café antecede a chegada de Anna.
— Obrigado pela sua gentileza — agradeço os elogios e ela
ri alto, como se eu tivesse dito algo muito engraçado.
— Os cafés — Anna anuncia e espero que me sirva, como
sempre, mas ouço quando deposita a bandeja sobre a mesa de
centro, não nas minhas mãos.
— Anna, você poderia...
— Claro! Desculpe.
Ela coloca então a xícara em minha mão e Andreia parece
engasgar ao meu lado. Imagino que tenha queimado a língua
com o café quente, mas quando o provo, entendo o que houve.
Cuspo o café na hora, ele está salgado.
— Algum problema com os cafés? — Anna pergunta com
tanta inocência, que preciso segurar o riso. Essa pequena cara
de pau.
— Acho que você colocou sal ao invés de açúcar, meu bem
— explico.
— Oh! Sinto muito, eu me confundi.
— Não imagino como, já que eles não ficam próximos.
— Agora ficam, mudei tudo na cozinha, você não pode ver
mesmo.
— Oh! Você fala assim com seu chefe cego? — Andreia
parece horrorizada.
— Ela é mais uma amiga querida, não uma empregada. E
realmente não posso ver a cozinha, não há motivos para alarme
sobre isso — defendo minha pequena maluca.
Escuto os passos de Anna enquanto se senta do outro lado
da sala.
— Anna, você poderia por favor nos trazer o Malbec já que
o café não deu certo? — peço
— Você ainda quer beber? — pergunta desanimada.
— Por favor.
Ela sai batendo os pés com força desnecessária e Andreia
se senta ainda mais perto.
— Imagino que não possa fazer muitas coisas nesta cidade
sem poder realmente vê-la, Lucca, mas se você quiser, posso vir
aqui uma vez ou outra para descrever a você o que os turistas
têm feito. Você já esteve aqui antes, certo? Imagino que posso
reviver em sua mente muitas das diversões oferecidas aqui.
Ouço Anna se aproximar enquanto penso em uma maneira
educada de dizer não a ela, mas então de repente um líquido
gelado me atinge, Andreia grita e Anna mais uma vez, com sua
cara de pau, finge lamentar seu desastre.
— Ah, sinto muito, Lucca. Vamos ter que trocar sua roupa,
melhor subirmos!
— Minha blusa! — Andreia reclama de algum lugar da sala.
— Você quer uma minha para ir embora? Eu realmente
sinto muito — Anna oferece.
— Não, obrigada. Eu volto amanhã, Lucca, tenha uma boa
noite — ela anuncia se despedindo e Anna a acompanha,
voltando em seguida para me ajudar a me limpar.
— O que foi tudo isso?
— Eu sendo desastrada, sinto muito.
Ela me leva pela escada e não engulo nem por um segundo
sua desculpa.
— Sério? Você não acabou de dizer que perdi a visão e não
o pênis e que deveria transar?
Ela tropeça na escada e a amparo, num reflexo intuitivo.
— Você quer transar com ela? Mas você nem a conhece!
— Anna...
— O velho Lucca transava com um monte de mulheres
desconhecidas, o Lucca humano vai se apaixonar primeiro.
— Anna...
— Você não transa há tanto tempo e tem tantos traumas e
de repente você vai transar assim, com a primeira a bater na sua
porta? — Sua voz está alterada e ela se afasta quando subimos
as escadas, me deixando andar sozinho pelo corredor sem a
bengala, que está com ela.
— Por que você está nervosa?
— Não estou nervosa!
— Me dê a mão, Anna! Preciso que você me guie já que
tirou a bengala de mim!
— Desculpe — ela volta para perto de mim e segura minha
mão.
— Não disse que vou transar com ela, é diferente agora que
não posso vê-la, não sei se é atraente, acho que não importa
mais se ela é atraente. Não vou saber de todo jeito. Por que você
não me diz?
— O quê?
— Como ela é? É atraente? Eu gostaria de dormir com ela?
— Ela é normal. Tem o cabelo preto, usava uma blusa de lã
branca e uma saia curta demais. Além de um salto de uns quinze
centímetros...
— Não quero uma aula de moda, quero saber os atributos
dela. Seios grandes, pequenos, bunda grande, cintura, lábios...
— Não vou dar essas descrições a você! Ficou maluco?
Entramos em meu quarto e ela está gritando agora.
— Por que não? Anna, esta pode ser a primeira vez que
vou transar em meses, quero saber como é a mulher.
Ela deixa alguma coisa cair perto demais de mim e dou um
pulo para o lado, não tendo certeza se deixou cair, ou atirou algo
em mim. Está tão irritada que começa a resmungar.
— Você deveria aprender a acender a lareira. Eu busco a
lenha e deixo aqui e você a acende. Aliás, você devia ir lá fora
buscar a lenha, não quer fazer tudo sozinho? Conheço pessoas
cegas que fazem de tudo, elas pintam, escrevem livros e dão
aulas. E você aqui se escondendo atrás dos meus serviços, com
medo de andar da sala à cozinha. É isso! A partir de amanhã
vamos começar a fazer coisas rotineiras até que você se
acostume! Isso vai ocupar seu tempo.
Ela continua falando, reclamando, sua voz alterada, anda
agitada pelo quarto. Chega um ponto que encontro um padrão no
som de seus passos e me pego rindo baixinho. Anna está com
ciúmes. Está criando coisas para ocupar meu tempo para que eu
não queira passá-lo com outra pessoa. Ela tira a blusa que
provavelmente está perdida pelo vinho com raiva, seca o líquido
em meu corpo com a própria mão, não com uma toalha. Então
joga outra blusa em mim, resmungando que começarei a fazer
essas tarefas sozinho. Se despede de uma maneira curta e a
sinto se aproximar.
Ouço seus passos em minha direção, sinto seu cheiro mais
próximo. Num movimento consigo tocá-la, a pego pelo braço e a
puxo de encontro a mim. Sua respiração quente está em meu
rosto e posso jurar que sinto seu coração descompassado
batendo junto com o meu.
— Você quer ir para a cama comigo, Anna? Quer transar
comigo a noite toda e ocupar meu tempo? Você quer fazer isso?
— Na-não. Claro que não!
— Então por que a incomoda tanto que outra mulher
queira?
— Não me incomoda, eu não ligo!
A imagino agora, tem o nariz empinado e a expressão
fechada. Seu rosto está em chamas e ela quer morder os lábios,
mas não vai fazer isso para não ceder.
— Então amanhã, quando a senhorita Andreia voltar, a trate
muito bem. Descreva para mim despistadamente qual vestimenta
ela usa para que eu possa imaginar na hora de tirar e nos deixe a
sós quando eu disser a você para sair, tudo bem?
— Tudo bem! — praticamente grita e me empurra,
afastando-se e batendo a porta de seu quarto segundos depois.
Como é fácil irritá-la!

Mas então, na manhã seguinte, alguém bate à porta e Anna


sai praticamente correndo. Apenas por garantia, deixo a bengala
próxima a poltrona e consigo, devagar, chegar ao hall de entrada.
De longe já é possível ouvir o que Anna diz a Andreia.
— Um problema muito triste, eu sei. Um homem tão jovem,
bonito, elegante! Tinha tanto para viver e uma tragédia dessas!
— Anna parece realmente lamentar seja sobre quem for que
esteja falando.
— Mas, você tem certeza? Ele não tem mais o pênis?
— Não! Foi arrancado no acidente. Você pode pesquisar
sobre o acidente no Google. Não vai achar a informação sobre o
pênis porque é íntima demais, eles não noticiaram. Também não
fale sobre isso com ele, isso o fere muito.
— Posso imaginar.
Essa malandra! O que pensa que está fazendo?
— O que está fazendo, Anna? — pergunto de repente e ela
grita pelo susto.
— Ah! Meu Deus! Como chegou em silêncio? Onde está o
som da sua bengala batendo no chão?
— Não preciso dela para vir até aqui.
— Desde quando?
— Anna! O que pensa que está fazendo? Quem você
conhece que perdeu o pênis em um acidente?
Ela gagueja, gagueja e começo a abrir o zíper da minha
calça. Espero que ela me impeça ou vou mesmo expor meu
pênis para uma estranha. Funciona. Ela segura minhas mãos
antes que o zíper chegue ao fim do seu caminho e ri sem graça.
— Foi só uma brincadeira, ele estava disposto a mostrar,
mas era só uma pegadinha, ele não perdeu o pênis no acidente
— confessa.
— Ah, não? Que brincadeira mais sem graça, essa sua! —
Andreia está irritada, e com razão.
— Acho que vou deixar vocês dois a sós, vou dar uma volta
no mercado — Anna tenta se safar e a escuto pegar a bolsa, mas
seguro seu braço quando passa por mim e a advirto baixinho:
— Você vai me pagar caro por isso, sua maluca!
— Mas foi só uma brincadeira. Você prometeu paciência e
gratidão, lembra? Até mais!
Ela passa pela porta e a bate, e então começo a rir. Rio
alto, de dobrar o corpo, sinto um alívio tão grande que nem sei
explicar. Devo estar parecendo um louco para a já assustada
Andreia, mas não consigo evitar. Anna está com ciúmes, chegou
ao ponto de inventar que perdi o pênis no acidente para espantar
Andreia. Ela não quer outra mulher na minha cama. Ela é quem
vai para a minha cama e acredito que tenha acabado de se dar
conta disso.
Quando consigo me acalmar só me resta uma coisa a fazer,
dispensar a pobre e assustada senhorita Andreia. E então contar
os segundos até a volta de Anna, mais cedo do que poderia
sonhar ela vai ser minha.
Me pergunto se já posso voltar para a casa. Fui para o
centro a pé, vi esquilos por trinta minutos no shopping, pesquisei
as trilhas, passeios e seus valores, passeei entre vitrines tendo,
pela primeira vez, dinheiro para comprar o que gostasse e passei
no mercado. Há dez minutos estou então em frente esse portão
esperando a coragem para entrar. Não sei se a corretora ainda
está aí, se Lucca teve finalmente seu momento de prazer, se já
acabaram, se ainda vou morar nesta casa ou ele vai me colocar
para fora por conta de uma brincadeirinha inocente.
Bem, quase deu certo, para ser sincera. Se ele não tivesse
aprendido a andar até o hall sem a bengala, com certeza teria
dado certo, mas fico feliz por essa conquista. Fico feliz que ele
esteja tentando depois de tantos meses de entrega. Abro
finalmente o portão e observo as luzes pela janela. A casa
parece totalmente escura, não há nenhuma luz acesa. Mas é
assim que estaria se eles estiverem na cama, não é?
Só em pensar nisso uma careta se forma em meu rosto e
um gosto amargo estranho surge em minha boca. Abro a porta
devagar e decido não acender nenhuma luz, para não chamar
atenção, posso me refugiar na cozinha caso ainda estejam no
quarto. Eles nem precisam saber que estou aqui.
— Ou talvez eu possa ativar o alarme de incêndio sem
querer e fazer ela sair correndo.
Pela primeira vez ao falar comigo mesma, tenho uma
resposta imediata.
— Não faça isso, Anna. Ele precisa disso. A você só resta
aceitar.
Consciência chata! Preferia quando ela ficava em silêncio.
Caminho devagar até a cozinha para guardar as compras,
ainda no escuro e, ao esbarrar na quinta parede percebo como
isso é difícil para Lucca. Entro na cozinha e um vulto se levanta
do nada à minha frente.
— Ahhh! Ahhh! Socorro!
— Anna! O que houve? Por que está gritando? — a voz
preocupada de Lucca me faz parar de gritar.
— É você? Mas por que está aí no escuro? Você ficou
maluco? Quase me mata de susto!
— Eu não sei se a luz está acesa ou não, caso tenha
esquecido.
Me sento ao seu lado e deposito as sacolas sobre a
bancada da ilha. Ele volta a se sentar e parece estar comendo
algo. Quando me acalmo, me levanto e acendo a luz, ele está
sozinho aqui, usa uma calça de moletom e uma camiseta branca.
Os cabelos molhados indicam que acabou de tomar um banho.
Se tomou banho cedo assim é porque se sujou de alguma
maneira. Começo a guardar a compra sentindo uma irritação
irracional que não consigo controlar.
— O que a compra te fez? — Lucca pergunta um tempo
depois, comendo calmamente seus amendoins e outros petiscos.
— Andreia já foi embora?
— Não tão rápido quanto você queria, mas foi.
— Foi só uma brincadeira, Lucca!
— Mas não pareceu. Isso não é brincadeira que se faça.
Você é meio sem noção e isso na maioria das vezes é
engraçado, mas não foi dessa vez, Anna.
— Bem, não deu certo de todo modo! Então, como foi?
Me sento ao seu lado e me obrigo a ser apenas sua amiga
e dividir um momento que deve ter sido especial para ele. Mas
ele está rindo enquanto come um amendoim, me fazendo reparar
por tempo demais nesses lábios.
— Eu sabia que sua intenção era que eu não ficasse com a
senhorita Andreia, mas o que me intriga agora é o porquê, Anna.
De qualquer forma, estou desapontado com você.
Não consigo dizer nada em resposta. Eu poderia repetir
essa mentira lavada de que foi uma brincadeira, poderia apenas
me desculpar, mas me sinto envergonhada. Me sinto
amedrontada e tudo o que sai da minha boca quando consigo
dizer algo é:
— Também pensei em acionar o alarme de incêndio para
fazê-la ir embora.
Ele para o movimento de levar o amendoim à boca no ar.
Parece pensativo por alguns segundos. Por fim, deixa a vasilha
de lado e se vira em minha direção.
— Se você puder acender a lareira do meu quarto, eu
agradeço. Estou cansado, vou me deitar.
Então se levanta e deixa a cozinha e me sinto péssima. Eu
o desapontei. Estou tão acostumada a me desapontar com ele,
mas não sei lidar com tê-lo assim comigo. Fui eu que pisei na
bola, fui egoísta e ciumenta.

Tomo um banho na esperança que isso me acalme e


esqueço sua lareira. Mal desligo o chuveiro, escuto seus gritos:
— Você pretende acender essa lareira hoje? Será que quer
que meu pênis caia congelado já que não foi arrancado no
acidente?
Me enrolo em uma tolha e vou acender a maldita lareira. Ele
está em pé, em frente seu armário e sequer presto atenção ao
que está fazendo. Pego a lenha e a coloco dentro da lareira,
então procuro pelo acendedor. O fogo logo pega, o barulho é
reconfortante já que de Lucca só tenho o silêncio. Arrumo sua
cama imaginando o que eles fizeram aqui. Eu devia ser legal e
parabenizá-lo por ter dado esse passo quando ontem mesmo
achava que nunca o faria?
— Quando você perde a visão, os outros sentidos ficam
mais aguçados — Lucca quebra o silêncio finalmente. — Eu ouço
melhor agora, ouço tudo o que acontece à minha volta. Porque
esta é toda a visão que tenho. Também sinto qualquer cheiro
diferente no ambiente. Por isso sei quando você está por perto,
ainda que não faça nenhum barulho. E você não cheira ao seu
perfume habitual agora. Estava tomando banho?
Fico surpresa que ele tenha percebido algo tão sutil.
— Sim.
— Interrompeu para vir me atender?
— O que você acha? Você estava gritando feito um bebê
chorão.
Ele não responde a provocação e quando me viro, está
parado, os óculos escuros no rosto bonito, ele está de frente para
mim e não diz nada.
— Deu certo? Você conseguiu? Quebrou seu jejum? —
pergunto mesmo não querendo realmente ouvir a resposta.
— Deu tempo de você vestir roupa? — pergunta ao invés
de responder.
— O que isso tem a ver?
— Deu tempo? Sim ou não?
— Você transou hoje?
— Não. Você está vestida?
Sorrio, quero rir, mas consigo impedir que um som saia da
minha boca. Só não consigo impedir o quanto estou feliz e
aliviada com sua resposta.
— Não estou vestida, mas eu posso vir atendê-lo sem
roupa, não faz diferença, você não vai ver mesmo.
Ele sorri, é sua única resposta. Decido cortar esse clima
entre nós do início, já terminei o que precisava ser feito em seu
quarto. Vou em direção a saída, mas quando passo por ele, ele
me segura pelo braço, seu corpo guiando o meu até a parede
atrás de mim. Ele afunda o rosto em meu pescoço e aspira meu
cheiro, me causando arrepios deliciosos por toda pele. Juro que
algo em meu útero parece pulsar. Suas mãos tocam minhas
coxas e sobem ávidas, ele toca meu corpo sobre a toalha e ri.
— Não, você está vestida demais. Não teria coragem de vir
aqui nua. Porque o perigo não é o que posso ver, Anna, mas o
que você pode.
Fecho os olhos e sua voz baixa, rouca, tão próxima aos
meus ouvidos envia ondas de eletricidade por todo meu corpo.
Suas mãos descem pela toalha até minhas coxas de novo, sua
pele quente tocando a minha. Então ele sobe os dedos devagar,
tocando levemente, mas por baixo da toalha dessa vez. Seus
dedos sobem pela lateral do meu corpo, não entendo como
toques tão leves podem me deixar tão acesa. Seus lábios
passeiam por meu pescoço e mordiscam minha pele. Seus
dedos se movem em direção à minha bunda e a contornam de
leve, preciso de mais, isso não é o bastante.
Ele parece ler minha mente, pois seus lábios vão subindo
pelo meu pescoço, alcançam meu queixo, e mais em cima, meus
lábios. É um toque leve primeiro, mas então, ele me beija do seu
jeito. Sua língua invade a minha boca no mesmo instante em que
suas mãos apertam minha bunda. Ele pressiona meu corpo de
encontro à parede com o peso do seu. Jogo meus braços em seu
pescoço e correspondo ao seu beijo, com tudo de mim. Seu beijo
é voraz, suas mãos são ávidas. Enquanto me perco em seu
toque, seus lábios, seu corpo pressionando o meu, seu cheiro,
ele passeia a mão devagar por minhas costas, acariciando de
leve, em contraste com a mão que me toca sem o menor pudor.
Suas carícias leves voltam a descer, ele interrompe o beijo e
afasta um pouco nossos corpos.
Estou prestes a resmungar como um bebê quando ele
desce a mão por minha coxa e levanta minha perna. Seus lábios
voltam aos meus, de leve dessa vez, mordiscando, chupando e
seus dedos alcançam meu centro. Da mesma maneira, bem leve,
provocando. Um gemido alto me escapa e ele sorri em meus
lábios, domina minha língua com a sua e quando a suga, seus
dedos apertam meu clitóris com mais força. Voltam os carinhos
leves, nos lábios e lá embaixo, e quando ele suga meus lábios,
seus dedos apertam meu clitóris. Estou esperando de novo os
toques leves, mas dessa vez sua boca toma a minha e seus
dedos sem piedade me tiram tudo.
A força das minhas pernas se vai e ele me sustenta. Meus
braços ao redor do seu pescoço são o que me seguram de pé,
seu corpo sobre o meu não me deixa cair e seus dedos se
movem sem piedade. Me sinto pulsar, não consigo pensar e sinto
todo meu corpo ganhar vida. Seus beijos se tornam leves de
novo, grito agora, não consigo me conter, meus gritos morrem
em seus lábios, na provocação deliciosa deles, nas mordidas
leves, nos beijos suaves e dedos ágeis.
Sua boca desce por meu pescoço de novo, ele mordisca
minha pele e a suga e seus dedos me penetram, primeiro um
dedo, sem cerimônia, se movendo com pressa. Então mais um,
estou choramingando agora, sua boca se apossa da minha pele
e seus dedos me preenchem com pressa. Eles entram e saem,
cravo as unhas em seus ombros descobertos e grito quando é
demais para segurar. Grito quando por um momento meus
sentidos se perdem e se encontram. Grito quando um êxtase que
jamais senti me toma, em meus ouvidos há um zumbido alto e
meu coração parece que vai saltar do peito. Grito alto quando
seus dedos ainda se movem dentro de mim, embora quase não
suporte a deliciosa tortura que eles provocam e grito de novo
quando gozo outra vez, perdendo até mesmo a força nos braços,
me jogando completamente sobre seu corpo e só então seus
dedos me deixam.
Ele me abraça, mantendo-me de pé. Me prende em seus
braços até que me acalme, até que me encontre de novo. Vou
recobrando os sentidos aos poucos, ele beija meus ombros
carinhosamente, segue os beijos por minha pele até alcançar
minha boca. Seu beijo agora é suave, doce, como uma canção
lenta. A toalha abriu e, assim que ele tem certeza que consigo
ficar de pé e se afasta devagar, ela cai ao chão.
— Você está bem? — ele pergunta agora a uma distância
curta, mas que ainda parece distante demais.
Não consigo responder, as palavras não saem, é como se
ainda não estivesse totalmente em mim. Consigo me abaixar e
pegar a toalha. Tento sair de seu quarto, mas ele pergunta de
novo, mais alto desta vez:
— Anna, você está bem? Só me responda, por favor.
— Bem. Estou muito bem. Obrigada.
— Disponha.
Sorrio, ele sorri também. E deixo seu quarto antes que faça
a pergunta que martela em minha mente: isso é tudo o que você
vai fazer? Porque isso já foi demais. Porque nunca me senti
assim. Volto à água quente do chuveiro e me pego rindo como
uma louca. Parece que me sinto livre, meio boba, muito feminina.
Me sinto até bonita agora, o que é uma coisa louca neste
momento. E enquanto a água quente lava minha pele o sinto em
mim, sua boca, seus toques, seus dedos.
Estou perdida!

Na manhã seguinte, ele já está em frente a poltrona quando


me levanto. Passo por ele quase correndo e preparo seu café.
Não sei como agir com ele agora, o que dizer, o que não dizer.
Estou pisando em ovos entre me recriminar ou pedir mais.
Preparo o café e levo até ele. Ele não diz nada quando me
aproximo, mas sabe que estou aqui. Deixa a bengala com que
brincava distraído de lado e espera. Coloco a bandeja à sua volta
em sua poltrona preferida. Pego sua mão e a levo até a xícara, a
outra, até o prato com a comida.
Então vou saindo de fininho para mais uma semana no
jardim, ou quem sabe, um mês, mas ele impede:
— Onde você vai? — pergunta.
— Ao jardim, eu...
— Você não precisa ficar mais uma semana fugindo de
mim, Anna. Somos adultos, podemos lidar com isso como dois
adultos. E, de qualquer forma, isso não vai mais acontecer. Me
desculpe se ultrapassei algum limite.
— Bem, tecnicamente você ultrapassou, mas fisicamente,
faltou muito pra você ultrapassar — respondo e ele parece
confuso. Tem agora um sorriso no rosto e demoro um pouco a
entender o quão sem sentido soei, a besteira que disse e voltar a
mim. — Tudo bem. Não vai mais acontecer — concordo e vou
tomar meu café.
Mas fico com essa sensação de que vou ficar louca.

Termino de arrumar a casa quando já é fim de tarde. Mais


uma vez consegui fazer o almoço, algo simples, mas Lucca
esteve ali, ao meu lado na cozinha e, de alguma forma, não foi
estranho. Foi natural. Suas provocações, as broncas, as
discussões bobas. Como se nada demais tivesse acontecido.
Como se eu não fosse a responsável pelos arranhões em seus
ombros e não tivesse me derretido literalmente em seus braços
enquanto gritava na noite passada.
A campainha soa e antes de ir abrir, já me pego irritada
porque sei quem é. Andreia entra mesmo sem permissão e
passa por mim com cara de poucos amigos. Não a julgo, não fui
legal com ela. Ela vai direto até a sala, como se fosse íntima da
casa e encontra Lucca ouvindo um livro que a Alexa lê para ele.
Ele pede que a Alexa pare e sorri cordialmente para ela.
— Olá, Andreia, que surpresa sua visita! Anna, você
poderia nos trazer...
— O Malbec, já sei, já trago.
De má vontade encho as duas taças de seu vinho preferido.
O vinho que tomava quando ia seduzir alguém antes, e sirvo a
eles, deixando-os sozinhos antes que ele peça, afinal, é um
direito dele. É sua vida e não posso me intrometer. Por mais que
ainda queira acionar o alarme de incêndio, me sento na cozinha
enquanto observo o teto, as pequenas peças tão fáceis de serem
ativadas e me contenho. Cedo demais Lucca entra na cozinha e
vai até a geladeira. Deixei sua garrafa de água e as coisas que
mais gosta a fácil acesso e ele consegue pegar sem dificuldades.
— Andreia já foi? — pergunto surpresa.
— Sim.
— Por quê?
— Porque ela não mora aqui.
— Não seja irritante, por que ela foi tão cedo?
— Eu não sabia que você queria convidá-la para o jantar.
Reviro os olhos e Lucca me diz o que pegar para o jantar.
Assim, ele me ensina mais um prato, não aciono o alarme de
incêndio, e, embora não tenha ficado bom, pois fiquei com
preguiça de pesar os temperos e ficou salgado, ele ainda elogia e
diz o quanto está orgulhoso pelo meu empenho.
— Quem te viu, quem te vê, Lucca Baltazi — comento após
o jantar recebendo um sorriso como resposta.

Andreia volta na tarde seguinte, e na seguinte. Nunca fico


na sala com eles, sempre sirvo a bebida que Lucca pede e me
afasto. E pouco depois, Lucca entra na cozinha, responde
minhas perguntas com provocações e me deixa curiosa. Até
imagino que tenha dado um fora nela, mas ela volta na tarde
seguinte.
Nesta tarde a curiosidade me vence. Sirvo o licor que ele
pede e deixo a sala, mas fico no corredor, ouvidos colados à
parede na esperança de ouvir a conversa e entender porque ela
vai embora cedo e porque ainda volta. Será que ele a está
enrolando, mas dando esperanças a ela?
Ela começa comentando como é sexy a cicatriz que ele tem
no peito, ele usa uma blusa de linho com uma abertura na frente
esta tarde. Reviro os olhos, eu reparei isso primeiro. Ele
responde cordialmente agradecendo a ela. Então ela insiste que
ele a permita levá-lo com ela até sua casa. Ela diz que seu
marido morreu há dois anos e desde então ela tem trabalhado
tanto, que não teve tempo para o prazer. E não sentia falta disso
até encontrar Lucca.
Ela é boa nisso! Seguro a respiração esperando sua
resposta e o que ele diz é:
— Sabe uma coisa curiosa sobre não poder ver? Posso
sentir um cheiro que me é familiar à distância! É algo curioso,
você não acha?
Merda, fui pega. Ignoro seu aviso e continuo ali, quando
Andreia diz:
— Ontem você disse que mereceu o que aconteceu, por
que disse isso?
— Eu não era uma pessoa legal, Andreia. Era egocêntrico,
egoísta e por muitas vezes, desumano. Quando deixei o hospital
tive meses para pensar. Era tudo o que eu fazia por todo o dia:
pensar. Comecei culpando todo mundo pelo que havia
acontecido. Mas então voltei meus pensamentos a mim mesmo.
Eu era horrível. Quando entendi que eu mereci o que aconteceu,
foi menos difícil aceitar. Foi o que plantei. Conheci pessoas com
mais limites do que eu, presas a cadeiras de rodas ou máquinas,
que eram boas pessoas. Não mereciam estar ali como eu
mereço o que estou passando, então acho que no fim das
contas, alguém lá em cima ainda gosta de mim.
— É admirável que você encare essa deficiência com tanta
aceitação e naturalidade! Não consigo imaginá-lo como o homem
que você descreve. Talvez você se enxergasse de uma maneira
que realmente não era.
— Infelizmente não é este o caso. A pessoa a quem mais
feri, a quem mais humilhei, a quem mais lutei para afastar é a
única pessoa que tenho agora. A Anna. Você não faz ideia do
quanto tê-la aqui é importante para mim. Ela é um presente, está
aqui por ser boa demais, não porque eu mereça sua companhia.
Ela é como um anjo. Sua presença, de alguma forma, me traz
luz, o cheiro dela me acalma. E eu continuo sentindo-o ainda que
esteja à distância! — diz mais alto para que eu ouça, mas não
me importo.
No momento meu coração erra batidas e um sorriso bobo
está pregado em meu rosto.
— Ela é uma amiga incrível. Mas você precisa de mais do
que isso, Lucca. Você é um homem, é jovem, tem desejos.
Precisa aliviá-los, vai fazer bem a você — Andreia responde e
meu sorriso some.
Então ouço o barulho de um beijo. Vou na ponta dos pés
espiar e ela está beijando o pescoço dele. Me sinto sem ar de
repente. Ele não deu essa liberdade a ela, ao menos não no
trecho da conversa que ouvi. O que ela acha que está fazendo?
Vou imediatamente à cozinha, encontro um acendedor e aciono o
alarme de incêndio. Em questão de segundos o barulho infernal
está por toda casa. Volto correndo ao corredor e espiono. Lucca
está rindo, Andreia se afastou dele e olha em volta assustada.
Então o babaca ordena que a Alexa desative o alarme.
Desde quando a configurou para fazer isso? Me escondo de
novo enquanto Andreia, preocupada, pergunta se ele não prefere
verificar o que ativou o alarme, mas ele a tranquiliza:
— Não é necessário, o alarme está com defeito, vive
ativando por nada. Se algo tivesse acontecido Anna já estaria
aqui para me salvar. Ela é minha salvadora.
— Que bom! Neste caso, acho que podemos voltar para
onde paramos.
Não sei o que fazer agora. Só me resta sair e dar
privacidade a eles, não quero ouvir o que vai acontecer. Mas
então, quando dou o primeiro passo para longe, escuto a
resposta de Lucca.
— Sinto muito, Andreia. Adoro a sua companhia, você é
uma mulher admirável e eu me sinto lisonjeado que tenha
interesse por mim ainda que eu esteja nessa situação. O Lucca
de antes não pensaria duas vezes em levá-la para a cama. Mas
o Lucca de agora pensa demais nessa menina ciumenta e doce
que por algum motivo teme a sua presença. Teme o suficiente
para inventar que perdi o pênis e ativar o alarme de incêndio.
Eles ficam em silêncio e me aproximo para observar. Lucca
tem um sorriso preguiçoso no rosto e Andreia, ainda que com
uma expressão de desagrado, está se afastando dele.
— Entendi o que está acontecendo aqui, Lucca. É uma
pena! Eu irei embora e vou deixá-lo em paz então. Mas, se um
dia você mudar de ideia, estarei disponível para você.
— Eu agradeço sua compreensão.
Não faço ideia do que acabou de acontecer aqui, mas
quando Andreia se vira em direção a saída, saio correndo pelo
corredor até a cozinha. Me sento e espero, e pouco depois Lucca
aparece. Ele não foi mesmo para a cama com ela. Espero que vá
me dar uma bronca por eu ter ativado o alarme de incêndio, mas
não o faz. Vai até a geladeira, pega sua garrafa de água e depois
se senta ao meu lado.
— O que vamos ter para o jantar hoje, senhorita?
— Ela não vai mais voltar?
— Não.
Não consigo conter o sorriso, ainda bem que ele não pode
me ver.
— Por que não? Ela é bonita, é linda, na verdade. Sensual,
segura de si. Usa roupas sensuais e elas lhe caem tão bem! Ela
é o tipo de mulher por quem você se interessaria — confesso.
— E você só me diz isso depois que ela vai embora —
comenta despreocupado.
— O que o impediu?
— Você estava mesmo ouvindo do corredor, Anna? —
provoca, mas sorri. — Você tem um sério problema em respeitar
minha privacidade.
— Você não precisa de privacidade, seu banheiro não tem
porta, a do seu quarto nunca é fechada, aceite que tenho total
acesso a você.
— Não me lembre isso assim, você me assusta. É que se
fosse uma pessoa normal com total acesso a mim, tudo bem,
mas você é meio desequilibrada.
— Cale essa boca! Você mesmo disse que sou um
presente.
— Eu estava mentindo, ela foi embora agora, mas acha que
sou encantador.
— Ela não estava preocupada com sua índole, estava
satisfeita que ainda tenha seu pênis.
Ele ri alto agora. Mas ali, em seu sorriso, há algo mais. Uma
tristeza que ele esconde bem. A mesma que havia ali quando
nos reencontramos dois meses atrás.
— Você me tocou uma vez, e nunca na vida eu tinha
sentido tanto prazer, Lucca. Eu nem sabia que era possível sentir
tanto prazer. Então não foi porque você não pode enxergá-la que
você a dispensou. Acho que já percebeu que isso não vai impedi-
lo de dar prazer a uma mulher.
— Ainda tenho medo disso, tudo é mais fácil com você, mas
não sei como seria com outra pessoa.
— Mas não foi isso que o impediu, o que foi?
— Ela só me viu com os óculos, Anna. E ela acha sexy a
cicatriz que tenho no peito, mas ela é a menor delas. Imagina
quando eu tirar a roupa e ela vir o resto delas. Pior, quando eu
tirar os óculos. Eu toco meu rosto, ao redor dos olhos e sinto,
Anna, as cicatrizes, não faço ideia de como minhas córneas
estão agora, mas sei que a visão não é bonita. Recebi visitas de
alguns amigos quando deixei o hospital e a reação quando eu
tirava os óculos era sempre a mesma. Nojo, repulsa, eram
reações audíveis, não vou impor isso a mais ninguém.
Quero dizer a ele que não é tão ruim quanto ele pensa, mas
não digo. Por algum motivo fico calada. Lucca Baltazi era
vaidoso, se achava o centro do universo, tinha todas as mulheres
aos seus pés. Agora é um homem que nega seus desejos por
medo de rejeição. Agora ele se enxerga pequeno demais.
Ele se levanta diante o meu silêncio e toca meu braço e
ombro avisando que não sente fome e que posso pedir comida
para mim, ele vai se deitar. Cedo demais, ele vai. Acendo sua
lareira, arrumo sua cama e o deixo sozinho.

Quando estou indo me deitar, paro na porta de seu quarto e


o observo na cama. Os óculos estão ao lado e percebo que as
cicatrizes que ele tanto tenta esconder não são tão feias quanto
ele pensa. São apenas cicatrizes. Lucca sempre foi
absurdamente lindo, tão bonito que me irritava, mas agora sua
beleza é algo mais sereno, mais deslumbrante. O queixo
quadrado, os lábios perfeitos, as maçãs do rosto fortes. Até
mesmo seu porte, antes musculoso, agora apenas largo,
continua sexy. Talvez as pessoas mesquinhas com quem
convivia não o aceitem como é agora, mas qualquer mulher que
o conheça agora, se entregaria a ele.
Penso em dizer isso a ele, mas desisto. Talvez ele precise
de um tempo maior para se aceitar antes de buscar aceitação.
— Quanto tempo mais você vai ficar parada aí me olhando,
Anna? Eu sinto seu cheiro, ouço sua respiração. Quase posso
vê-la parada aqui, olhando para mim e sentindo pena.
— Você pode conhecer meu cheiro, mas não meus
pensamentos, Lucca.
— Então os diga para mim, acabe com esse mistério.
Me aproximo devagar da cama onde está deitado, usa uma
calça de moletom confortável e uma camisa comum. Sento-me
ao seu lado, não sei o que estou fazendo, apenas preciso fazê-lo.
Toco sua mão e subo os dedos de leve por seu braço, sua pele é
quente e macia, seus braços largos ainda são firmes por baixo da
pele. Ele está totalmente parado agora, me deixando tocá-lo.
Toco seu queixo e contorno seus lábios, não me atrevo a tocá-
los. Então toco seu rosto e contorno seus olhos sem vida, as
cicatrizes de que ele tanto se envergonha.
— Você se preocupa tanto com isso — digo ao tocá-las. —
Mas isso não é nada. São apenas cicatrizes, Lucca. Quando eu o
conheci, você tinha atitudes bem mais repulsivas do que essas
cicatrizes. Talvez tivesse mil pessoas aos seus pés, mais mil ao
seu redor. E talvez essas pessoas não o aceitem agora, mas as
pessoas que você tinha antes são como você era. Você acha
mesmo que elas valem a pena?
Ele respira fundo e segura minha mão. Não a afasta de seu
rosto, apenas busca esse contato.
— Não posso julgá-las, Anna, eu era o rei delas. E não é
como se eu fosse melhor do que elas agora. Eu só estou sozinho
agora, esta é a diferença.
— Você ainda é um chato, mal-humorado e resmungão,
mas sua mudança é tão nítida! O Lucca de antes, ainda que
precisasse muito, jamais deixaria alguém como eu se aproximar
assim.
Ele sorri, leva meus dedos até os lábios e deposita um beijo
leve neles, afastando minha mão em seguida.
— Você não faz ideia do que está dizendo, Anna.
— Onde estão seus amigos, Lucca? Onde está aquele
bando que estava com você na boate quando nos conhecemos?
— Não ficou nenhum, e acredite, eu liguei para cada um
deles quando me senti sozinho. Alguns até tentaram, mas eu era
alguém triste demais para que outra pessoa suportasse. Como
eu imaginava, a única pessoa que poderia ficar aqui comigo é
você.
— Você disse que não sabia onde eu estava, mas é tão
estranho nós dois estarmos aqui!
Ele sorri. Se senta na cama, seu rosto próximo ao meu.
— Bem, você não acredita em coincidências, mas acho que
esta foi uma das boas — brinco, para quebrar o clima estranho
que existe entre nós agora.
— Se eu soubesse que você estava aqui, eu teria vindo
atrás de você, Anna. Sem pensar duas vezes. Tão logo
descobrisse isso, eu viria.
Algo em meu peito parece estar agitado demais, não
respondo, de forma que apenas o crepitar das chamas da lareira
que acendi mais cedo é ouvido agora. Bastaria apenas um
movimento meu para beijá-lo, e como eu quero isso! Estou
ficando louca.
— Viria até você para te fazer me pedir perdão por aquela
carta mal criada que você deixou. Mas, no fim das contas, como
pode ver, sua praga pegou — há um sorriso descansado em seu
rosto, ainda assim, me sinto mal por ele.
— Não fala isso, não joguei praga alguma. Seu babaca!
Me levanto irritada e deixo o quarto, mas por toda noite me
sinto estranha, como se algo estivesse faltando. Tive uma
sensação assim a vida toda, de pais faltando, amigas faltando,
um amor faltando. Mas a falta que sinto agora é diferente, ela
está em minha pele, em meu corpo. Ela me torna sensível e
atenta demais a Lucca Baltazi.

Na semana seguinte, a campainha soa e me surpreendo


completamente ao encontrar Leandro. Pulo em seus braços, feliz
com a surpresa. O guio pela mão para a sala, e Lucca parece
realmente feliz por saber que ele está aqui.
— Que surpresa você aqui no meio da semana, Leandro!
Está tudo bem? — Lucca pergunta e não deixo de perceber a
expressão preocupada no rosto de Leandro. Dura apenas alguns
segundos, mas esteve ali, tenho certeza.
— Claro, tudo bem! Mas preciso falar com você, Lucca. E
estou faminto, Anna.
Entendo a deixa, eles precisam se falar a sós.
— Eu já ia mesmo cuidar do jantar. Não sei fazer sem o
Lucca, então vou dar um pulinho rapidinho no centro e já volto.
Posso usar seu carro? — pergunto a Leandro que me observa
com certo receio nos olhos antes de finalmente ceder. — Sabe,
eu sei dirigir, nunca arranhei um carro. Até agora! — aviso e saio
antes que ele mude de ideia.

Os dois estavam estranhos durante o jantar, mas Leandro,


como sempre, tagarelou o tempo todo sobre suas aventuras aqui
em Monte Verde, desviando o assunto sempre que eu
perguntava por alguém da Atenas. Os deixei a sós logo após o
jantar porque senti que ainda havia algo a ser dito entre eles e
estou na cozinha, derretendo um chocolate, já que a noite está
particularmente fria, quando Leandro se aproxima.
— Oi, eu já ia levar isso até vocês.
— Anna, antes de voltarmos à sala, há uma coisa que
preciso pedir a você. É muito importante que você faça. — Sinto
a tensão em sua voz, ela também está refletida em seus olhos.
Assinto e me sento quando ele faz o mesmo. — Preciso que
você convença o Lucca a voltar para a capital. O mais rápido
possível, é muito importante que ele esteja lá o quanto antes.
Sou pega de surpresa por seu pedido, algo está
acontecendo, noto isso por toda essa tensão entre eles desde
que Leandro chegou.
— Não posso, Leandro. Ele está bem aqui. Está
conhecendo a casa, se aceitando, aprendendo a fazer as coisas
sozinho. Não vou levá-lo para o lugar onde todos o
abandonaram. Não vai fazer bem a ele.
— Eu entendo, Anna, acredite, eu não pediria isso se
tivesse outra saída. Eu sei que tudo parece ótimo aqui, mas não
está. Há um lado inteiro dele escondido de você, esse lado não
vai permitir que ele fique bem de verdade. Há coisas que
somente ele pode corrigir, Anna, e ele precisa fazer isso.
— Você precisa ser mais específico. Eu sei que ele não era
das melhores pessoas, mas os amigos dele o abandonaram!
Aquelas mulheres que viviam correndo atrás dele, agora o
rejeitam só porque ele é cego! Eu não vou...
— Elas não o rejeitam só pela deficiência. O estão
rejeitando porque ele está pobre.
— O quê? — Me levanto imediatamente pelo choque. Isso é
impossível, Lucca me paga um salário alto demais. Ele nunca
mencionou nada sobre não ter dinheiro, isso não pode ser
verdade! — Não é verdade, Leandro.
— Sim, Anna, é. Ele vai me odiar, mas preciso te contar
isso. Ele e eu brigamos feio na noite do acidente, lembra?
Quando ele acordou no hospital, ainda enraivecido comigo,
deixou que seu primo, vindo da Grécia para vê-lo, comandasse a
Atenas em sua ausência. Eu havia me demitido na ocasião e a
empresa estava um caos. Lucca assinou alguns documentos que
o primo precisaria para tomar decisões por ele. Mas bem, Lucca
não podia ver esses documentos. Ele teve a ajuda do advogado
em quem confiava, mas isso não impediu que ele caísse em um
golpe de seu primo.
Leandro se levanta também, se sente culpado pelo que está
contando, é nítido isso.
— O advogado traiu o Lucca e ajudou o Aquiles a tomar
tudo o que ele tinha. A empresa, a casa, os carros, o dinheiro.
Ele não ficou com nada.
— Isso é impossível! Ele está cego! A justiça não pode ter
permitido que ele perdesse tudo assim!
— Ele cedeu a presidência da empresa e seus bens ao
primo por livre e espontânea vontade e havia dois advogados
presentes que testemunharam isso. Lucca então se culpou,
aceitou que merecia o que havia perdido e se escondeu aqui.
Me deixo cair na cadeira atrás de mim. Lucca tem passado
por tudo isso esse tempo todo e não me disse nada. Não
demonstrou nada. Não me admira a situação em que estava
quando cheguei, entregue, sobrevivendo apenas.
— Isso não é possível, Leandro. Ele me paga um salário
alto demais!
— Lucca tinha algumas propriedades pequenas, como esta
casa e mais três em litorais que não entraram nos documentos
que assinou. Acredito que seu advogado não tinha ciência
dessas propriedades. Ele vendeu uma para pagar a você, Anna.
— Ele não faria isso.
— Não mesmo? Olhe à sua volta, ele está escondido aqui e
a única companhia que aceita é a sua. Você é como a luz dele,
seu motivo para acordar todos os dias, sua distração. Ele faria
qualquer coisa para mantê-la aqui, Anna.
Nego com a cabeça, meus olhos estão cheios e não sei
como reagir. Não consigo assimilar o que Leandro está dizendo.
Decido falar com Lucca, mas nem consigo deixar a cozinha antes
que Leandro me puxe de volta a ela.
— Me escuta, antes de ir confrontá-lo ou confortá-lo, é bom
que saiba que ele não queria que você soubesse. Ele acha que
ciente da situação financeira real em que está, você não aceitaria
o salário que recebe e então iria embora.
— Eu nunca o deixaria!
— Ele não pensa assim. Me fez prometer que não contaria,
mas preciso fazer isso porque só ele pode corrigir o que fez e
conseguir a empresa de volta, Anna. Você entende agora? Não é
justo que o Aquiles fique com tudo o que é dele. Os pais dele
começaram isso, seu pai deu a vida pelo conceito da Atenas,
morreu tentando realizar o sonho de vê-la. E Lucca tomou para si
como meta de vida concluir o que o pai começou e ele o fez!
Anna, ele criou todo um império do nada! Você não faz ideia do
quanto ele abriu mão para conseguir isso, do quanto se
sacrificou. Não pode desistir de tudo agora porque acha que
merece isso. Você entende que não é justo?
Entendo. Entendo e não sei o que fazer.
— Não sei como eu poderia convencê-lo — confesso a
Leandro.
— Também não sei, Anna, mas sei que só você pode fazer
isso. Sinto muito por jogar essa responsabilidade nas suas mãos
assim, você tem que dar um jeito de levar o Lucca para a capital.

Sirvo o chocolate quente nas xícaras e sigo Leandro de


volta à sala. Lucca está com cara de poucos amigos quando
chegamos.
— Banheiro demorado esse seu, Leandro — comenta.
— Acabei me perdendo e fui parar na cozinha, encontrei a
Anna lá e você sabe o resto...
— Não sei, o que é o resto?
Leandro está rindo e Lucca está irritado.
— A ajudei a trazer as xícaras fumegantes de chocolate, é
claro. Já entendi que você vive por ela e não posso tocá-la, vira a
página, Baltazi.
Lucca profere algum palavrão e tenta acertá-lo com a
bengala. Sirvo a ele a xícara com o chocolate quente e não faço
ideia de como vou convencê-lo a ir embora daqui, justo agora
que ele está aprendendo a andar sozinho pela casa. Essa
mudança vai ser péssima para ele. Por outro lado, é seu império,
seu trabalho, era seu maior orgulho. Será que Lucca mudou o
suficiente para abrir mão da empresa e realmente não sofrer por
isso? Ou será que não quer ir com Leandro porque desistiu de
tentar?
Me sento no braço de sua poltrona e ele sorri, ao invés de
resmungar. Não sei como vou fazer isso, mas vou convencer
Lucca a voltar para a capital e lutar pelo que pertence a ele.
A visita de Leandro aqui não pode ser por um bom motivo.
Assim, no meio da semana, sem ao menos avisar, ele não viria
por nada. Tão logo Anna se afasta e nos deixa a sós, espero que
diga a que veio, mas ele não diz nada.
— Sei que me tornei uma pessoa adorável, mas não deu
tempo de você sentir minha falta, Leandro. Então por que você
está aqui?
— Eu vim ver a Anna — provoca.
— Não veio, não. Você sabe que ela é terreno proibido para
você. Por que está aqui?
Escuto seu riso, mas como imaginei ele logo cessa e
Leandro finalmente diz porque está aqui assim, tão
repentinamente.
— Aquiles está exigindo a sua presença na capital o mais
depressa possível, Lucca.
Suas palavras parecem entrar em minha mente devagar, de
forma que demoro a assimilar e entender o que disse. Quando o
faço, me pego rindo.
— Nem pensar!
— Você não tem escolha.
— Por que ele me quer lá? Ele não está satisfeito com tudo
o que me tirou?
— Eu não sei. Lucca, eu não viria até aqui se não fosse
importante. Com certeza ele não o está convidando para
devolver sua empresa e pedir perdão. Ele está aprontando algo,
estou a ponto de enlouquecer tentando descobrir e não consigo.
Se você for, seja qual for o motivo dele, não vai ser bom para
você.
Me sento na poltrona e deixo a bengala de lado porque
sinto minhas mãos começarem a tremer e não quero que
Leandro perceba.
— Então você entende porque não irei. Não há a menor
chance.
— Ele disse que precisa de algo de você e se você o fizer,
vai devolver a Atenas.
— Ele está blefando.
Leandro não diz mais nada e por mais que eu queira
apenas dizer não e me esconder aqui, minha mente funciona a
mil por hora tentando entender, antecipar os riscos, calcular as
chances de ter de volta minha empresa.
— O que ele quer de mim?
— Ele não disse. Ele assinou um documento, Lucca, foi
preciso para que eu aceitasse vir até aqui. Ninguém sabe onde
você está, eu não revelei por nenhuma promessa ou chantagem
dele. Então ele assinou um documento, se você voltar e fizer o
que ele vai te pedir, ele vai devolver a empresa. Isso está
registrado em cartório.
— Não faz sentido.
Sinto um medo de repente que me faz perceber o quanto
estou impotente. Se eu não fosse cego, iria até ele, o enfrentaria,
o acusaria, tiraria dele a minha empresa como ele tirou de mim.
Mas sou alguém indefeso agora. O quão fácil é que ele me faça
assinar de novo o mesmo tipo de documentos que passaram
tudo o que eu tinha para o nome dele? O quão fácil é que me
atinja de qualquer maneira quando não posso ver nada do que
acontece à minha volta? O que mais ele pode tirar de mim? Não
posso arriscar.
Por outro lado, minha empresa de volta. Não que eu
pudesse voltar a dirigi-la, mas poderia dá-la a Leandro. Afinal de
contas, eu sou o responsável por ele também tê-la perdido.
Leandro ficou com apenas vinte por cento das ações da Atenas e
me cedeu dez quando Aquiles me deu um golpe. Eu poderia
recuperar a Atenas e dá-la a ele. Ele saberia o que fazer. Eu
poderia aconselhá-lo, e talvez voltasse a ter boas condições
financeiras.
E o que faria então com o dinheiro que ganhasse?
Compraria córneas novas? Me pego rindo, não há saída. Não
para mim.
Anna retorna pouco depois para nos buscar para o jantar.
Ela se senta no braço da poltrona, aqui do meu lado e toca de
leve meu ombro.
— Está tudo bem?
— Claro, vamos jantar, meu anjo.
Ela me guia com sua calma e paciência e decido que não
vou abrir mão disso. Estou aqui recluso, apenas ela é minha
companhia, apenas eu sou a dela. Não vou para um lugar onde
estarei exposto e arriscar então o quão delicioso é nosso
relacionamento agora. Já perdi tudo e mais um pouco, devo ter o
direito de ficar aqui escondido com ela.
Mas parece que não tenho.

Estamos tomando um chocolate quente agora, Anna está


ao meu lado, no braço da poltrona, como sempre. Há um silêncio
carregado entre nós, e não faço ideia do porquê Anna estar tão
calada. Leandro é quem quebra o silêncio ao elogiar o chocolate.
— Anna, que chocolate delicioso! Sabe, em meus sonhos,
minha vida perfeita inclui você como esposa e mãe dos meus
filhos.
Anna ri e me sinto irritado. Finjo espirrar e balanço a
bengala na direção da voz de Leandro, mas não o acerto.
— Opa! Cuidado com isso, Lucca! Então, Anna. Desde o
Igor você teve algum namorado? — Leandro insiste.
— Ah, só uns seis — ela responde e queimo a língua com o
chocolate quente. — Brincadeira, eu só trabalhei nesse último
ano, não tive tempo para namorados. Está tudo bem, Lucca?
— Agora está — respondo ouvindo a risada irritante de
Leandro.
— E você tem interesse em ter um namorado agora? — ele
insiste.
Lanço a bengala na direção da voz de Leandro e dessa vez
realmente o acerto. Ele grita um palavrão e vem até mim,
segurando meu rosto.
— Você está mesmo cego? Como foi que me acertou?
— Leandro, me solte, não seja ridículo!
— Uau! O ciúme te dá até superpoderes — comenta
baixinho antes de finalmente me soltar.
— Você está pronto então para se casar com a Anna,
certo? — pergunto e Leandro concorda. — E está pronto para ter
cem filhos? Porque ela quer tem cem.
— Não é verdade! Não seja babaca! Só quero ter cinco.
— Cinco filhos? — Leandro está gritando e me pego rindo
enquanto tomo calmamente meu chocolate quente. — Por que
alguém iria querer cinco filhos?
— Porque nunca tive família! Quero ter uma bem numerosa
— ela justifica.
— Cinco, Anna? Um marido e dois filhos já são uma família
numerosa, você não acha?
— O que é isso que estou sentindo em seu tom de voz,
Leandro? Acaso está desistindo de se casar com a mulher dos
seus sonhos? — provoco.
— Cara, um homem precisa estar muito louco ou muito
apaixonado para querer cinco filhos.
Terminamos o chocolate e, como uma tempestade soa lá
fora, Leandro não tem saída a não ser ficar para dormir. Anna
oferece sua cama e se ajeita no sofá, embora eu tenha oferecido
minha cama a ela. E agora estou aqui deitado, sentindo o cheiro
da chuva e ouvindo o barulho dos raios e trovões pela janela. Me
lembrando de uma noite chuvosa em que esses mesmos sons a
assustaram, uma noite em que ela estava bêbada, em meu colo
e tremia levemente em meus braços com medo da chuva. Uma
noite em que apenas a minha promessa de protegê-la a fez
acalmar-se.
Deixo a bengala e desço as escadas devagar, não quero
acordá-la com o toc toc no piso caso já esteja dormindo. Sinto
seu cheiro tão logo alcanço os últimos degraus. Anna cheira a
flores, tem um perfume delicioso que consegue me acalmar com
a mesma facilidade com que me incendeia.
— Está tudo bem? Você não consegue dormir? — ela
pergunta, confirmando que está acordada. — Você desceu sem a
bengala?
— Não queria acordar você. Imagino que já seja tarde, por
que está acordada? O sofá está desconfortável?
— Não, muito confortável, na verdade. Só não consegui
desligar meus pensamentos.
Me sento ao seu lado com sua ajuda e incentivo que fale.
— Onde seus pensamentos estão presos que não a deixam
dormir, minha linda Anna?
— No que o Leandro disse. Um homem tem que estar louco
para aceitar ter cinco filhos.
— Ou muito apaixonado, ele também disse isso.
— Você está falando com a mulher que nunca se
apaixonou, Lucca. E ninguém nunca se apaixonou por ela. Sei lá,
de repente percebi que esse é um sonho bobo. Não vou realizá-
lo, é só mais uma das minhas ilusões.
— Bem, você quase se casou com um completo imbecil que
queria ter muitos filhos também. Não é impossível.
Ela fica um tempo em silêncio e temo estar colocando
ideias em sua cabeça. E se de repente ela entrar em contato com
o ex e voltar para ele?
— Eu não era mesmo apaixonada por ele. Talvez agora eu
não queira mais um relacionamento sem paixão — diz baixinho
um tempo depois.
Um raio soa lá fora e ela se aproxima mais de mim, suas
mãos segurando meus braços, buscando proteção. Toco suas
mãos para acalmá-la.
— Se eu não fosse cego, eu teria cinco filhos com você —
digo e escuto sua risada sonolenta.
— Mentira.
— Teria até dez se você quisesse. Com certeza eu adoraria
fazer esses filhos todos.
Ela ri alto agora. Se aproxima mais de mim, encostando seu
corpo ao meu e abro os braços aconchegando-a melhor.
— Então você seria louco se não fosse cego — comenta
baixinho.
Logo, sua respiração se torna mais leve, a mão que
segurava a minha some, ela dormiu.
— Eu seria o apaixonado — confesso baixinho. — Será que
arrisco levar você em meu colo por essas escadas?
Decido arriscar. Me levanto com cuidado, a pego em meus
braços e bem devagar subo com ela as escadas até o meu
quarto. A deposito com cuidado na cama, me deito ao seu lado e
cubro nossos corpos. E pela primeira vez em meses me sinto um
homem normal. Alguém que conseguiu carregar sua mulher até a
cama sem maiores problemas, sem medo de dar errado. Alguém
que apenas confortou-a e cuidou dela e foi capaz disso.

Uma chuva fina cai ainda pela manhã, Anna ainda dorme,
mas Leandro já vai embora.
— Tem certeza que você não vem comigo? — pergunta
pela milésima vez.
— Não vou, Leandro, não estou interessado no que o
Aquiles quer.
— Sabe, você aceitou até bem sua cegueira e tudo o que
perdeu. Entendeu que merecia e pronto. Mas não é só isso. A
gente não se redime só com os castigos, Lucca.
— O que quer dizer?
— Que é fácil para você ficar aqui com ela. Seu lugar
seguro, calmo, longe do mundo, ignorando o que está
acontecendo lá fora. Talvez antes não fosse, era sozinho, triste,
entediante. Mas agora? Agora você tem a mulher que ama do
seu lado. Agora é fácil que você aceite onde está e se conforme,
afinal, mas e os outros? Suas atitudes não feriram apenas você,
Lucca. Pessoas estão perdendo seus empregos e não estão
recebendo um centavo do que lhes é devido. Um mau-caráter
domina sua empresa, maltrata seus empregados e brinca com as
vidas deles. Foi você que levou a Atenas a onde ela está agora.
Então você deveria fazer mais do que apenas aceitar que a
perdeu. Você deveria ao menos tentar corrigir seus erros.
Não respondo. Suas palavras dominam minha mente, meus
pensamentos, trazem de novo a culpa. Ele diz que onde estou
agora é fácil. Fácil? Ele não faz ideia de como é aqui dentro. Não
faz ideia do quanto me odeio e me culpo todos os dias. Ele nem
imagina que se fosse fácil, se eu já tivesse me aceitado, estaria
com essa mulher, de verdade, não apenas como seu chefe.
Estou bem longe do fácil, do confortável, até do aceitável.
— Você quer provar para a Anna que a merece, eu sei que
quer provar isso até para si mesmo. Mas não vai conseguir isso
apenas pagando por seus erros. Você também precisa corrigi-los.
Pensa nisso. — Ele se despede e vai embora.
E por todo resto da manhã fico nessa poltrona, não há sol
para aquecer minha pele, apenas o vento fresco da chuva. E as
palavras de Leandro continuam martelando em minha cabeça
como um eco.

Dois dias depois da visita de Leandro, Anna me pede o


laptop emprestado. Permito que ela pegue, afinal de contas, não
o uso há meses. Por toda tarde ela fica digitando algo sem parar
nele, sentada na poltrona ao lado da minha. Tento conversar
sobre o tempo, a falta do sol nesses dias nublados, os filmes
novos que a Alexa cita que estão disponíveis para que ela
assista, mas nada funciona. Imagino que esteja conversando
com alguém e aquela ideia de ela entrar em contato com o ex,
em busca desses cinco filhos com que ela tanto sonha, começa a
me assombrar.
— Anna, estou com fome.
— Ah, vou preparar um café e trazer algo para você comer.
Ela deixa a sala e, com a ajuda da bengala, a sigo até a
cozinha. Espero que ela tome o café comigo, mas ela deixa o
café, alguns pães e queijo sobre a bancada da cozinha e volta
para a sala.

Estou de mal humor após o jantar, pois Anna continua


digitando sem parar nesse laptop ao invés de me dar atenção.
— Anna, eu emprestei o laptop a você, não o dei de
presente — reclamo.
— Que diferença faz o tempo que vou ficar com ele? Você
nem usa mesmo!
— Agora resolvi usar!
— Ah, é? Para quê? Quer ver pornografia? Ah, não, espera,
você não pode — provoca.
— Pode ser, não posso ver, mas posso ouvir os gemidos
profissionais, sabia? O que tanto você faz aí?
Ela suspira e escuto o barulho quando fecha o aparelho,
finalmente.
— Estou escrevendo um livro.
— Você? Escrevendo um livro? Sobre o quê? Os cinco
filhos imaginários que você vai ter?
— Sobre um babaca! O livro se chama Um Babaca Com
Sorte, conta a história de um homem muito rico, muito mimado,
metido, egoísta, insuportável, egocêntrico, que limpa a bunda
com dinheiro e se acha o dono do mundo por isso.
Sorrio.
— Se o título inclui a palavra sorte, imagino que ele não vá
sofrer um acidente.
— Ah, mas ele vai. A sorte dele é que vai perder a visão e
não o pênis.
— Porque quem pensaria em arrancar o pênis de um
personagem em um livro? Somente uma mente muito má e
perturbada — provoco.
— Pois é, meu personagem é um babaca com tanta sorte,
que o acaso ou o destino, ainda envia um anjo para cuidar dele.
A melhor pessoa que ele conheceu na vida volta para cuidar
dele. Fala que isso não é muita sorte?
Estou rindo agora.
— Muita, mas provavelmente esse anjo merecia pagar por
seus erros também, por isso o destino a mandou de volta a ele.
Por exemplo, ela passa tempo demais no laptop ao invés de dar
atenção a ele.
— Ah, então esse era o problema? Você só precisava ter
dito.
Ela pula sobre mim na poltrona e me abraça, bagunçando
meu cabelo com seu carinho exagerado.
— Você quer carinho? Eu te dou carinho, não precisa ficar
mal-humorado.
— Quero sexo, você me dá também? Senão vou ficar mal-
humorado.
Ela deixa meu colo e me arrasta até a frente da televisão
para nossa sessão cinema, mas não responde um “não”, nem
mesmo um “nunca” ao meu pedido.

Estou no banho quando Anna pigarreia e me diz alto do


quarto:
— Tenho uma proposta para te fazer.
— Anna? Durante o banho? Estou curioso, prossiga.
— Que tal se você se vestir como se fôssemos sair para
uma noite de bebedeira hoje?
— Isso não é o que eu esperava quando você está mais
uma vez observando meu pênis.
— Não estou vendo você, estou de costas.
— Não tenho como ter certeza disso, então vou acreditar na
minha versão onde você está aí babando pelo meu pênis.
— Quer saber? Vista a porcaria da roupa que separei para
você sobre a cama e me encontra lá embaixo! — ordena irritada
e bate os pés ao deixar o quarto.

A lareira da sala está acesa quando desço, o que é atípico.


Ouço Anna andar de um lado a outro, ela parece usar salto e
carregar garrafas de vidro.
— O que está fazendo? — pergunto ao me aproximar.
— Tenho uma proposta para te fazer. Estamos bem-
vestidos, bem chateados e entediados. Que tal uma noite de
bebedeira?
Estranho seu convite, ela quase nunca bebe.
— Por quê?
— Por nada em especial, por tudo o que acabei de dizer.
Sei lá, pra gente beber um pouco, se desligar do mundo, da
realidade, só rir um do outro.
— No caso eu rir de você. Você bêbada é hilária.
— Que seja, vou ser sua palhacinha bêbada esta noite,
você topa?
Anna me propondo algo assim, num dia de semana
qualquer, por nenhum motivo aparente é estranho. Sinto que ela
tem algo a me dizer, mas não sabe como e vai fazer isso através
da bebida.
— Anjo, você é fraca para bebida. Vai amanhecer passando
mal, tem certeza que quer isso?
— É, eu tenho — responde, mas não transmite essa
certeza em sua voz. Pega minhas mãos e me guia até o sofá. —
Se eu ficar bêbada e te pedir para fazer uma coisa que você não
deve fazer com uma mulher bêbada, você não vai fazer, não é?
— pergunta preocupada ao me acomodar e me seguro para não
rir.
— Exatamente o que seria essa coisa?
— Qualquer coisa que não se faz com uma mulher bêbada.
— Seja mais específica.
— Deixa de ser irritante!
— Tudo bem, então vamos beber. O que você tem aí?
Ela anda pela sala e escuto quando serve dois copos, mas,
antes de colocar algum na minha mão, se abaixa entre minhas
pernas e pede:
— Lucca, se eu beber e pedir pra você fazer sexo comigo,
por favor, não faça.
Sorrio.
— Você já está antecipando que vai pedir isso? Quer dizer
que isso está em sua mente? Por isso você já sabe que vai
pedir?
— Por que eu tento falar sério com você? Você é um
babaca! — responde irritada se afastando, em seguida, coloca o
copo em minha mão com força desnecessária.
Brindamos a nenhum motivo aparente e viramos a primeira
dose. A vodca desce rasgando minha garganta e gosto de
relembrar a sensação do calor descendo o peito.
— Então, você gosta de morar aqui? Gosta de viver
comigo? — pergunto enquanto ela serve a segunda rodada.
— Acho que não estou bêbada o suficiente para responder
essa pergunta.
— E você precisa beber para responder uma pergunta tão
simples?
Ela se joga ao meu lado no sofá e suspira, parecendo
cansada.
— Eu sempre acho que cada pergunta sua, por mais
simples que possa parecer, é uma pegadinha e eu vou cair direto
nela.
Sorrio. Viramos a segunda dose e por fim ela responde.
— Eu gosto.
Apenas isso. Mas por hora é o bastante.
— E do que você gosta mais? Aprender a cozinhar, o clima
frio, ter uma lareira no quarto ou ficar observando meu pênis?
— Eu não estava observando seu pênis! — defende-se
indignada enquanto enche novamente nossos copos.
— Esta noite, talvez não, mas nas outras... — Ela me acerta
com um tapa, mas está rindo. — É você quem está aqui
preocupada de acabar na minha cama quando me implorar por
sexo.
— Ah, meu Deus! Eu não disse que vou implorar. Disse que
talvez eu vá pedir, na verdade eu nem preciso mais me
preocupar, você já me irritou o suficiente para eu ter certeza que
não vou pedir nada!
— Então não preciso prometer nada? Se você pedir...
— Beba isso logo e não me irrite! — grita e viro o copo de
uísque de uma vez.
— Uau! Uma bela mistura essa que você está fazendo.
Anna, se você me pedir por sexo eu não vou ceder, mas se você
implorar...
— Ah, céus, você nunca vai me deixar esquecer isso, não
é?
— Não mesmo. Mas você não precisa se preocupar, meu
bem. Eu jamais tocaria em uma mulher bêbada. E eu jamais faria
nada que pudesse machucar você.
— Eu sei — ela responde e se senta de novo ao meu lado,
enquanto vira mais um copo. — Nós poderíamos fazer algo
diferente esta noite, que tal se contarmos segredos um ao outro?
Coisas que não contaríamos se não estivéssemos bêbados.
— Acho que não bebi o bastante para isso.
— Jura? Essa mistura toda que fiz não foi o bastante?
Porque eu posso piorar isso.
Sorrio. Ela quer me dizer alguma coisa e aceitar seu jogo é
a única maneira de deixá-la à vontade para desabafar.
— Tudo bem, mas eu quero saber do seu chefe. Você
acabou por descobrir sobre o Leandro, mas me enrolou e não
contou nada.
Ela vira mais uma dose e apenas enrolo com o resto do
líquido em meu copo. Um de nós precisa estar bem para cuidar
do outro quando esta noite acabar.
— Eu tinha quatro chefes na pousada, mas o que mais
tinha contato, o meu chefe imediato, era o gerente, Jorge
Cardoso. Quando comecei a trabalhar lá, percebi que as
funcionárias se demitiam, assim, do nada. Mas eu tinha tanto
trabalho e, como você sabe, não sou boa em fazer amizades,
não ficava sabendo do que acontecia. Até que um dia eu fingi ver
um rato na cozinha e quebrei propositalmente toda ela para ser
demitida também.
Ela vira mais uma dose e preciso controlar a mão que
segura o copo para não o quebrar. Minha mão livre já está
fechada em punho e sinto uma onda de raiva me tomar do dedão
do pé ao último fio de cabelo.
— Ele tocou em você?
— Ele tentou. Não funcionou comigo, ele não foi longe
demais. Começou com umas cantadas fora de hora que me
deixavam sem graça. Depois, ele começou a me observar
enquanto eu trabalhava. Então, uma noite, ele passou a mão nas
minhas costas ao final do meu expediente e sugeriu que eu
deveria acompanhá-lo se quisesse manter meu emprego. Eu fingi
estar me sentindo mal e fui embora. No dia seguinte não fui
trabalhar e no seguinte, descobri que qualquer coisa danificada
na pousada seria descontada do salário dele se os donos não
estivessem. Me certifiquei de que os donos não estavam e
quebrei a cozinha toda. Imagino que ele não esteja recebendo
salário até hoje! — Ela ri ao final, mas isso não alivia em nada a
raiva que sinto. — Mas eu não sei se ele conseguiu isso com
alguém, como eu disse, não sou boa em fazer amizades. Você
está tremendo — observa tirando o copo da minha mão.
— Você não o denunciou?
— Acho que ele não fez o bastante para que eu o
denunciasse. Mas de certa forma eu me vinguei, então ficou tudo
bem para mim.
— Não ficou, não. Tanto que você nem queria me contar
isso. Mas você está certa, se vingou de uma maneira brilhante.
Estou orgulhoso de você, Anna. Para alguém tão ingênua e
iludida, você se saiu bem.
Ela resmunga um palavrão e segura minha mão. Por algum
motivo mantém sua mão na minha, enquanto está sentada ao
meu lado.
— Sua vez — pede e há tantas coisas que não conto a ela
que sequer saberia por onde começar.
— Eu não confundi você com uma amiga naquela boate. A
beijei porque você era linda demais e não estava me dando mole.
— O quê? — ela grita e aperta minha mão. — Seu imbecil!
— Anna, você vai quebrar meus dedos. Você é tão
pequena, de onde saiu tanta força?
— Você bem merecia que eu quebrasse! Então uma mulher
não olhar para você te dá o direito de simplesmente beijá-la?
— Não, de jeito nenhum. Mas você sabe melhor do que
ninguém o grande babaca que eu era, não entendo porque está
surpresa.
— Você está certo. Acho que preciso beber mais.
Ela solta minha mão e enche o copo, vira mais algumas
doses, a julgar pela quantidade de vezes que a ouço enchê-lo e
se senta de novo ao meu lado, segurando de novo minha mão.
— Sua vez de novo — peço e ela fica calada, acho que
pensando no que dizer.
Alguns minutos depois, ao invés de responder, Anna ri
muito alto e ainda segura minha mão. Como eu adoraria vê-la
agora! Adoraria ver seu rosto perfeito vermelho, adoraria que
ficasse observando meus olhos tentando descobrir a cor deles.
Adoraria beijá-la até perder o juízo. Só queria voltar no tempo,
quinze meses atrás, tê-la em minha sala de novo, ouvi-la pedir
para ficar e oferecer tudo a ela. Não apenas a dependência de
empregados, mas a casa toda, meu quarto, minha cama, meu
corpo e meu coração. Queria voltar no tempo e abrir os olhos no
momento certo.
— Eu fui uma menina má — ela diz pouco antes de soluçar.
— É mesmo? O que você fez de errado?
— Inventei que você perdeu o piupiu.
Rio baixo da maneira como fala.
— É, isso não foi legal. Por que você fez isso?
— Ah, você não podia dormir com ela. Você acha que
ninguém vai querer você, mas está errado. — Ela solta minha
mão, se move no sofá e sinto seu toque forte demais em meu
rosto. Ela o segura com as duas mãos agora, uma perna sobre a
minha, e soluça. — Você é tão bonito!
— Você me quer também, Anna? Foi por isso que você foi
uma menina má?
Ela ri como resposta, deixa meu rosto, se joga ao meu lado
e volta a segurar minha mão.
— Me desculpa. Não gostei de ter desapontado você.
Posso deitar no seu colo?
Seu pedido me surpreende, mas respondo mais do que
depressa:
— Você pode fazer o que quiser comigo, sou todo seu.
Ela ri e solta minha mão, meio desajeitada, deita a cabeça
em minhas pernas e acaricio seu cabelo macio. Ela respira fundo
e fica quietinha, até penso que dormiu após alguns minutos, mas
então ela diz:
— Eu quero você — sussurra. — E isso me faz ser uma
menina má. Eu vejo você nu e não vou embora. Eu gosto de ver
você. E eu gosto quando você me toca. E eu vou mentir e
acionar o alarme de incêndio e fazer o que for preciso se outra
corretora aparecer.
— Ah, Anna, você não precisa fazer nada disso, meu anjo.
É você que eu quero.
Ela se afasta e imediatamente sinto falta de tê-la aqui, no
meu colo, ao meu alcance. Mas então ela monta sobre minhas
pernas, como na outra noite em que bebeu, suas mãos estão
apoiadas em meus braços e quero tanto vê-la que essa
necessidade chega a doer.
— Você não pode nunca beber em público, meu bem —
aviso.
— Por que não?
— Porque você é minha. É só comigo que você pode ficar
assim, tão livre, tão leve, tão assanhada.
Ela deita a cabeça em meu peito e estou a ponto de
derreter por ela. Não é o desejo desenfreado que ela me
provoca, não é o tesão, a necessidade de estar dentro dela, é
muito mais do que isso. É a satisfação por ela buscar o meu colo,
meus braços, meu peito. É o cheiro do seu cabelo bem debaixo
do meu nariz, e sua respiração e suas risadas de encontro à
minha pele. É seu corpo sobre o meu me dizendo que ela está ao
meu alcance, mesmo que eu saiba que não é assim de verdade.
É tudo o que ela é capaz de me fazer sentir com um toque, tudo
o que sempre foi capaz de me fazer sentir. Antes eu a via tão
distante do meu mundo, agora ela se converteu em todo ele.
— Você quer me beijar? — ela pergunta baixinho, ainda
deitada em meu peito.
— Muito. Sempre. O tempo todo. E você? Quer me beijar?
— Muito. Vou beijar muito você.
— Então me beija.
Espero seu beijo delicioso, seu toque quente, mas ela fica
quietinha em meu peito. Sua respiração se torna mais leve e
suas mãos não seguram mais meus braços.
— Anna! Acorda! Anna!
Ela ronrona como uma gatinha, mas não acorda.
— E você ainda diz que sou um babaca com sorte! —
resmungo ajeitando-a melhor em meu colo.
Algum tempo depois, a ajeito no sofá da sala, pego uma
manta e a cubro. A lareira aqui está acesa, enquanto eu jamais
conseguiria acender a do seu quarto ou do meu. Me deito ao seu
lado, debaixo da mesma coberta e adormeço com ela sob o som
das chamas próximas e do vento na janela.

Na manhã seguinte, chamo Anna bem baixinho ao acordar,


mas ela sequer responde, ainda está dormindo. Então subo até
meu quarto e faço algo que achei que não faria tão cedo, ligo
meu celular. Espero que todas as notificações parem de chegar e
ordeno que ele ligue para uma pessoa específica.
— Leandro? Preciso de um favor e é urgente. Existe uma
pousada aqui em Monte Verde, cujo gerente, um tal Jorge
Cardoso, está assediando as funcionárias. Preciso que você
descubra o que puder sobre ele e então acabe com ele. De todas
as maneiras possíveis, apenas perder o emprego não basta, ele
precisa pagar.
Leandro logo entende que a pousada que cito é que a Anna
trabalhava e mais do que depressa me promete que mais cedo
do que posso imaginar, esse imbecil vai receber o que merece.
Anna não está falando muito hoje e acredito que isso se
deva à sua ressaca. Pedi o almoço na senhora Bello ao invés de
deixar que ela fizesse e tentei mesmo fazer com que
descansasse, mas ela parece agir de maneira estranha, agitada
demais e falando de menos. Por fim, numa tentativa de tê-la de
volta, a provoco:
— Você se lembra de tudo o que falamos ontem, Anna?
Você propôs que contássemos segredos, se lembra disso? —
pergunto me sentando na bancada enquanto ela prepara um chá.
— Eu não sonhei com isso?
— Quando você bebe demais e tem parte da noite anterior
apagada, saiba que nada do que você sonhar que fez ou falou é
sonho — informo e ela choraminga.
Se senta de frente para mim, sei disso porque seu joelho
está encostado ao meu.
— Vamos, me mate de uma vez, o que mais eu disse?
— Vejamos, você me disse que ia implorar para fazer sexo
comigo e eu devia dizer não.
— Pare, eu não disse isso.
— Disse sim. E você é tão sem noção que se ajoelhou no
meio das minhas pernas para pedir para eu não transar com
você, ainda que você me implorasse. No meio das minhas
pernas, Anna! E eu só conseguia pensar nessa sua boca linda
falando tanta besteira e tão próxima ao meu pau.
— Babaca! — ralha e me acerta com um pano de prato. —
Eu disse que se eu pedisse isso, você deveria ter a decência de
dizer não. Todo o resto do que você contou foi imaginado. E
depois eu que sou a iludida. Vou acrescentar essas
características ao meu babaca sortudo do livro.
Sorrio. Ao menos a tenho de volta.
— Você se lembra de subir no meu colo, segurar meu rosto
e ficar dizendo o quanto eu sou bonito?
Dessa vez, ela ri.
— Não mesmo, mas não duvido que eu tenha feito isso. Eu
me lembro de você dizer que não posso beber em público
porque... — sua voz vai ficando baixinha e cessa quando ela se
lembra do motivo. Então ela não diz mais nada, mas não estou
pronto ainda para perdê-la.
— Você disse que é uma menina má porque fica olhando
meu pênis. Que vai mentir, acionar o alarme de incêndio e fazer o
que for preciso para me afastar de qualquer outra mulher e
depois subiu no meu colo e disse que ia me dar muitos beijos,
mas então dormiu e não cumpriu sua promessa.
Ela ainda está em silêncio, mas sua respiração parece
acelerada agora.
— Você também não disse qual foi o real motivo de ter
proposto uma noite de bebedeira. Mas confesso que estou mais
desapontado por sua promessa quebrada. Eu fiquei esperando
seus beijos, Anna, e eles nunca vieram.
Ela se move na cadeira e espero que vá se afastar de volta
ao seu chá, mas ao invés disso ela se encaixa entre minhas
pernas e segura meu rosto. Então seus lábios cheios e deliciosos
tocam os meus. Sua língua passeia por meus lábios de leve,
provocando, pouco antes de ela me beijar. E ao contrário de tudo
o que poderia imaginar, não é um beijo leve, ela invade minha
boca com a língua, encosta seu corpo completamente ao meu e
me beija sem nenhuma reserva. Seus braços estão em volta do
meu pescoço, me prendendo a ela e sua boca domina a minha
com uma paixão que me tira os sentidos.
A prendo em meu corpo de volta, não vou permitir que se
afaste nunca. Acompanho seu ritmo mesmo sem perceber,
porque ela me domina, porque é fácil demais me perder nela.
Tenho ciência de cada parte do seu corpo encostada ao meu e
do quanto sua doçura e sua paixão são malditamente excitantes.
Estou duro em segundos, minha respiração parece falhar e a
dela também, já que interrompe o beijo e mantém a testa
encostada à minha. Não sei se porque não quer se afastar, ou
porque não consegue, já que a mantenho aqui, presa em meus
braços. Ela beija meu rosto e segue os beijos por meu pescoço,
então vai até minha orelha e diz baixinho:
— Eu sei de tudo, Lucca. Sei que você perdeu a empresa, a
casa e tudo o que tinha. Mas quando eu voltei para cá com você,
você me prometeu que ia viver, que ia ao menos tentar. Então me
diz, Lucca, você realmente não quer mais sua empresa ou está
apenas desistindo?
A aperto em meus braços, porque sinto que isso é um
adeus.
— Leandro não tinha o direito de te contar isso.
— Eu tinha o direito de saber.
— Por favor, Anna, não vá embora. Não me deixe. Por
favor, não vá. — A prendo em meus braços o máximo que posso,
um desespero que só senti duas vezes na vida começa a me
tomar de novo e não quero senti-lo.
A primeira foi quando ela foi embora pela primeira vez e me
deixou aquela carta. Quando eu tive certeza que nunca mais a
veria. A segunda vez, foi há poucos dias, quando eu a mandei
embora e ela foi. E agora parece me tomar de novo esse medo
do vazio que sei que virá a seguir.
— Não vou a lugar nenhum, não sem você. Mas por favor,
seja sincero comigo.
Afundo o rosto em seu pescoço. Não consigo soltá-la,
sequer me afastar.
— Estou machucando você? — pergunto e ela nega
imediatamente, me abraçando mais forte também. — Então você
só estava me seduzindo para cravar a faca em seguida —
observo.
— Lucca, por favor. Me responda.
— Eu quero desistir, quero que isso não importe mais, que
diferença vai fazer, Anna? Se por um milagre eu recuperasse a
empresa, não poderia dirigi-la. De todo jeito eu a perco.
— Mas não desistiu?
— Mas não desisti — confesso. — Aquiles exige a minha
presença com a promessa de devolvê-la a mim, mas sei que isso
é uma armadilha. E ainda assim, desde que Leandro se foi, não
tem uma hora do meu dia em que eu não me sinta culpado por
ainda estar aqui.
Ela fica calada enquanto me sinto acalmar aos poucos. Ela
não tentou se afastar, disse que não vai a lugar algum sem mim.
O medo irracional vai indo embora, enquanto um medo diferente
se aproxima. Eu virei mesmo um maricas para a vida, sempre
temendo que tipo diferente de foda ela vai praticar comigo agora.
Ela se afasta então, finalmente. Não posso impedi-la, não
posso mantê-la para sempre em meus braços.
— Eu vou com você — diz. — Mas só se você diminuir o
meu salário.
Sorrio, sinto um alívio imenso agora. Sentir quando você
não enxerga é como andar em uma montanha russa de olhos
fechados. Uma queda atrás da outra, um frio na barriga atrás do
outro, gritos presos na garganta e gritos que você não consegue
conter. E mesmo quando é divertido, dá medo. No fundo, você
sabe o que esperar, ainda assim, sempre se surpreende. Para
um homem que cinco minutos atrás estava prestes a cair, agora
me sinto de pé de novo.
— Não vou diminuir seu salário, a menos que você aceite o
restante do pagamento de outras maneiras, e se for o caso, eu
posso sugerir muitas, Anna. Todas elas incluem você gritando
meu nome e meu pau se afundando em você.
— Você está ficando perigosamente atrevido — retruca.
— E você não está mais conseguindo me dizer não.
— Vou dizer agora o que você vai fazer, você vai diminuir
meu salário e essa sua perversão — decreta deixando a cozinha
e me pego rindo.
Sim, vou voltar para a capital, deixar minha zona de
conforto recém-adquirida, conviver de novo com aqueles a quem
feri e que me viraram as costas, me expor sem qualquer defesa a
alguém que provavelmente só quer me ferrar mais e, ainda
assim, tudo o que consigo pensar agora é que preciso fazer amor
com ela antes de deixarmos esta casa.
Lucca não está na poltrona esta manhã. Após nossa
conversa na noite anterior, após eu beijá-lo cedendo a uma de
suas muitas provocações, acabamos encerrando um dia que foi
emocionalmente cheio. E agora não tenho certeza de novo de
como agir perto dele. Bem, fui eu quem bebeu e confessou um
monte de coisas que não devia e depois ainda o beijou.
Enquanto subo as escadas até seu quarto para verificar se
está bem, me pego dando de ombros em mais uma conversa
comigo mesma.
— Aja normal, como tem que agir. Você já deveria ter
aprendido que não dá para ter controle de como seus dias com
Lucca Baltazi vão progredir.
O encontro sem camisa, enquanto toca as camisas que
possui no armário. Sua cama está uma verdadeira bagunça de
roupas espalhadas e ele claramente procura por algo.
— Sabe, se você tivesse me chamado e pedido ajuda, eu
não teria o trabalho que vou ter para dobrar e guardar toda essa
roupa depois — reclamo e escuto seu riso baixinho.
— E passar. Não gosto de roupas amassadas.
— Você vai diminuir meu salário, então eu vou diminuir
minhas funções — brinco.
— Nada disso, eu ofereci pagar a você com prazer, suor e
gemidos, é você quem não se decide.
Me sento em sua cama e não consigo esconder o sorriso.
— Olha só quem acordou afiado hoje.
Ele deixa o armário e, completamente contra a vontade, me
pede ajuda.
— Anna, você poderia encontrar para mim uma blusa preta,
de manga comprida com um cordão na frente?
— Claro que posso!
Me aproximo de seu armário e enquanto procuro a tal blusa,
ele fica parado atrás de mim, respira o cheiro do meu cabelo e
tem um sorriso idiota no rosto. Percebo então que essa blusa que
ele quer não está na porta onde a procuro e preciso procurar na
porta em que ele está parado na frente.
— Você pode me dar licença? — peço.
— Não, vou ficar aqui mesmo, faça seu trabalho.
Vou até a porta e como eu previa, nossos corpos ficam
próximos demais assim. Cada movimento meu faz meu corpo
tocar o seu, e cada vez que isso acontece, sua respiração se
torna mais forte, enquanto a minha falha.
— Achei! — Encontro finalmente e a entrego a ele, que a
veste. — Onde você vai hoje? Por que toda essa bagunça?
— Onde nós vamos hoje. Já que vamos deixar a cidade em
breve, eu pensei que não seria justo que você fosse embora sem
conhecê-la de verdade. Então eu vou te levar para fazer uma
trilha de quadriciclo.
— Isso é sério?
Ele assente com um sorriso e nem sei o que dizer. Imagino
o quanto vai ser difícil para ele andar por trilhas em que já
esteve, sem estar no controle do veículo e não poder ver nada,
nem prever nada, nem se proteger. Para ele vai ser mais um dia
no escuro enquanto eu me divirto. Não quero fazer isso com ele,
mas por outro lado, é tão difícil ele se animar a sair de casa! E
não sabemos o que está por vir quando voltarmos à capital,
talvez isso faça algum bem a ele, o contato com a natureza
depois de tantos meses. Posso fazer o possível para que ele
perceba que não precisa romper para sempre esse contato por
conta de sua deficiência.
— Vou me vestir em um segundo — prometo e corro até
meu quarto.

O guia nos explica detalhadamente várias trilhas e passeios


que podemos fazer no dia de hoje, uma vez que milagrosamente,
não está chovendo. O que mais me chama atenção é a trilha feita
no quadriciclo, a que Leandro havia mencionado, mas como
Lucca não pode pilotar, não escolho essa. Escolho uma trilha
mais calma, mais fácil, que não inclui quadriciclos, tirolesa,
escalada e nada perigoso. Porém, Lucca não permite.
— Ela quer uma trilha com quadriciclo, Carlos.
— Você pode ir na garupa, senhor Baltazi. É bastante
seguro — o guia promete enquanto manda alguém me trazer um
quadriciclo e me entrega um pequeno mapa da trilha.
Subo no veículo sentindo uma excitação imensa. Nunca
pilotei algo assim, estou ansiosa em andar com ele em caminhos
pedregosos e penhascos. Mas então encaro Lucca parado, meio
perdido, procurando por mim em um espaço aberto e o convido,
desistindo das trilhas mais perigosas.
— Vem, senta aqui comigo. Prometo levar você em
segurança.
Ele tem um sorriso e penso que vai dar uma desculpa
qualquer, mas me surpreendendo completamente, vem até mim
com a bengala e sobe no quadriciclo. Carlos guarda a bengala,
uma vez que Lucca não vai precisar dela na trilha que escolhi e
Lucca passa os braços pela minha cintura, apertando meu corpo
de encontro ao seu.
— Vamos, Anna, acelere essa coisa, mas saiba que estou
confiando minha vida a você, o que é assustador porque você
tem uma estranha tendência a pequenos desastres.
Sua voz baixa no meu ouvido só não me causa mais
arrepios, porque o que ele diz me irrita.
— Não é verdade. Eu dirijo muito bem, vou tirar de letra
pilotar essa coisa. Além do mais, incidentes acontecem com todo
mundo.
— Não tanto quanto com você. Você é um ímã para
encrenca, agora vamos, antes que eu mude de ideia.
— Bem, se você não quer um acidente, pode começar
parando de falar assim no meu ouvido.
Ouço sua risada e me pergunto porque foi que eu disse
isso. Dou uma olhadinha no mapa, decorando o percurso e
acelero o quadriciclo, correndo com ele enquanto a trilha permite.
Lucca está quieto atrás de mim, suas mãos me seguram firme e
vou narrando a ele onde estamos. E logo, um vento frio sopra, e
isso parece animá-lo. Não vamos pela trilha fácil, vamos por uma
das longas, pedregosas e beirando penhascos.
— Estamos em um penhasco? — Lucca pergunta quando
passamos por um, quando eu diminuo a velocidade.
— Sim. Você está com frio no estômago?
— Agora estou.
— Bem, é justo, eu estou desde a primeira vez que olhei lá
para baixo — confesso.
— Anna, não olhe para baixo! — ralha.
— Por que não?
— Você pode perder a direção, pode ficar tonta, pode
desviar o caminho sem perceber. Há inúmeros motivos para você
olhar apenas para frente.
— Olha só quem tem medo de morrer agora — provoco.
— Não temo pela minha vida, anjo, mas pela sua. Não
quero que se machuque.
Não tenho resposta para isso, suas mãos quentes e
grandes demais estão em meu corpo me prendendo a ele. Sua
respiração está em meus ouvidos há duas horas agora, e seu
corpo todo ampara o meu nesse quadriciclo.
— Não se preocupe comigo, estou segura pilotando isso.
Posso até chegar mais perto do penhasco, sinta.
Viro o quadriciclo para o lado, não há mais penhasco,
estamos em uma clareira agora, mas ele me aperta mais forte
esperando cair. O que me faz rir alto e o faz resmungar:
— E todos acham que você é tão boazinha!
— Você está bem? Quer voltar para casa?
— Não, na verdade estou até gostando. O vento frio, o som
dele balançando as árvores, os pássaros. É engraçado, acho que
nunca tinha prestado atenção ao som da natureza antes, estou
fazendo isso agora.
— Bem, também não estou prestando atenção ao som, a
visão atrapalha. Vou fechar os olhos...
— Não faça isso! — grita imediatamente e começo a rir, o
que resulta em mais uma vez suas mãos apertando minha pele e
meu riso morrendo em um quase gemido.

Um tempo depois, enquanto ando devagar pela trilha


rodeada de árvores e uma belíssima paisagem, tento fazê-lo
conversar um pouco mais, interagir comigo, se divertir.
— É muito ruim? Fazer isso sem poder ver? É pior do que o
que você imaginava?
— É ruim estar em lugares em que já estive, mas não tenho
familiaridade para imaginar à minha volta, é como um tapa de
cegueira bem na minha cara. Mas bem, eu sou cego. Preciso
aceitar isso. Comparando a como eu imaginava que seria este
passeio, posso dizer que está sendo melhor do que eu esperava.
Mas acho que isso é culpa unicamente da companhia.
Me pego sorrindo como uma boba.
— O que você mais gostava de fazer aqui?
— Trilhas. Eu fazia tirolesa de vez em quando. Mas mais as
trilhas. E claro, nadar. Amo cachoeiras. Por isso amo Minas
Gerais, nenhum lugar tem mais cachoeiras do que nosso estado.
Eu conheço quase todas.
Me lembro que alguma trilha que Carlos me mostrou havia
uma cachoeira. Paro o quadriciclo, pego o mapa e procuro. Há
uma cachoeira não muito longe daqui, mas é uma trilha que não
pode ser feita com o quadriciclo. Lucca está sem a bengala e,
provavelmente não vai aceitar fazê-la, mas não custa tentar. Vou
de quadriciclo até onde dá e então, quando a trilha se fecha, o
estaciono.
— O que você está fazendo? Já voltamos? — ele pergunta
confuso quando o ajudo a descer.
— Não, mas tenho uma proposta para te fazer.
— Aqui, sozinhos no meio do mato? Seja o que for eu topo.
Sorrio, não consigo evitar.
— Se formos em frente a pé por alguns quilômetros, vamos
encontrar uma cachoeira onde você poderia nadar. Você topa?
— Você quer que eu faça uma trilha a pé, sem enxergar
onde estou pisando?
— Bem, se você parar para pensar, não pode ser mais
perigoso do que andar de quadriciclo em penhascos comigo.
Ele sorri. Pensa por um momento, mas não parece tão
disposto.
— Estou sem a bengala, Anna, eu realmente não
conseguiria saber onde estou pisando de maneira nenhuma.
— Tudo bem, podemos voltar para trás e perder a
oportunidade só porque você está com medo. Ou, você pode
aceitar que sua deficiência não o torna inválido, fazer a trilha
comigo e encontrar uma cachoeira onde vai poder nadar. O que
me diz?
— Você vai ficar desapontada se eu disser não?
— Com certeza. Mesmo porque, estou ansiosa em andar
por esses matos grudadinha em você para que você não caia.
Ele não parece muito seguro, ainda assim me estende a
mão, mesmo estando com medo. Ele precisa mesmo ultrapassar
as limitações que ele mesmo se coloca.
— Obrigado, Lucca — digo pegando sua mão e o guiando
para dentro da trilha.
No começo, vou dizendo a ele onde pisar e o que vai
encontrar. Mas logo, ele se lembra daqui, consegue andar
sozinho, nem segura mais minha mão. Fico de olho onde está
pisando para o caso de haver alguma pedra, ou galhos de
árvores, e deixo que ele ande na frente, me guiando pela trilha,
embora o alerte sempre quando há alguma descida, buraco ou é
necessário virar a direção. Ele está visivelmente mais animado.
Em questão de minutos estou cansada e ele continua com o
pique todo, e preciso correr para conseguir observar à sua frente,
onde vai pisar, mas mal dou conta de acompanhá-lo.
— Lucca, pare. Sou eu que tenho limitações e você não as
está respeitando — reclamo caindo de joelhos.
— Que limitações você tem?
— Cansaço, sedentarismo e pernas curtas. Você pode
andar mais devagar?
— Posso carregá-la. Mas se eu tropeçar e cair, cairemos
juntos, como um casal unido, o que diz?
— Eu digo que você, por favor, não caia, e digo que vou
subir nas suas costas.
Ele ri alto quando se abaixa e monto em suas costas. Ele
anda um bom pedaço comigo pendurada nele narrando a cada
segundo onde ele vai pisar. Mas até mesmo ele começa a se
cansar. No mapa parecia ser tão mais perto!
— Acho que nos perdemos um pouco — comento quando
desço de suas costas e paramos para beber água.
— Onde está o mapa? — ele pergunta calmamente para
um cego perdido no meio do mato.
— Então, eu o decorei e o deixei no quadriciclo.
Espero sua bronca, mas ele está sorrindo.
— Claro, sua cara fazer isso. Só nos resta seguir em frente,
meu bem. Não podemos estar tão longe.
Concordo e o sigo. Estou exausta, minhas pernas parecem
ter alteres presos a elas e mal consigo movê-las, quando Lucca
para na minha frente e com um sorriso lindo diz:
— Ouça, Anna. Onde acha que estamos?
Tento controlar minha respiração quase-morte audível para
ouvir o que ele pede, e percebo além dos pássaros cantando e
do vento balançando as folhas das árvores, não muito distante, o
som da água.
— É a cachoeira?
— Sim, o passeio estava guardando o seu melhor para o
final.
Ele me estende a mão e a toco, indo com ele até o som que
o atrai. O sorriso fica ali em seu rosto e percebo o quanto este
passeio fez bem a ele! Avisto finalmente a água. Não há mais
ninguém na cachoeira, provavelmente por conta das chuvas
recentes e porque o tempo está frio. A água deve estar gelada.
Admiro a beleza da cascata de água sobre as rochas, não é uma
queda grande, mas é uma paisagem maravilhosa.
Quando olho para o lado, Lucca está sem camisa.
— O que está fazendo?
— Vou dar um mergulho, você vem?
— Não, eu não sei nadar.
— Vamos, Anna, não há perigo, esta não é uma das fundas.
Eu estou cego, achei que nunca mais fosse entrar em uma
cachoeira e veja bem o que estou prestes a fazer.
Sorrio, não consigo evitar ao ver sua empolgação.
— Você deveria mesmo entrar. Vou te levar até o ponto
exato onde pode pular.
— Espera, preciso tirar essa roupa, não tenho outra, caso
esta molhe.
Ele tira a calça e desvio meus olhos para a paisagem, para
a cachoeira, para o céu acinzentado, para minhas unhas, meus
pés, todos os lugares que não sejam seu corpo seminu.
— Pronto, me leve onde eu possa pular, Anna. Você bem
podia vir comigo.
Dou uma olhadinha rápida em seu corpo antes de pegar
sua mão e guiá-lo até o ponto onde não há perigo que ele pule.
Não vai bater nas rochas daqui e a água parece funda o
bastante. Ele começa uma contagem, mas pula no dois, me
fazendo gritar em expectativa.
Então ele está nadando, ri alto enquanto joga água para
cima e joga o corpo sem medo na água. Me sento na beirada da
pedra e o observo rir, os óculos foram deixados junto com sua
roupa, pela primeira vez desde que nos reencontramos, ele está
livre.
— Anna! — ele chama procurando por mim.
— Atrás de você!
Ele se vira em minha direção, aquele sorriso lindo ainda em
seu rosto. A água escorre de seu cabelo negro e ele é uma
paisagem à parte. Uma paisagem que prende meus olhos ainda
mais do que a da natureza à nossa volta.
— Venha, entre aqui comigo, prometo que não vou deixar
nada acontecer a você.
— Está frio, a água deve estar gelada.
— De congelar os ossos — confirma com um sorriso, como
se isso fosse uma coisa ótima.
— Não tenho vocação para picolé, mas obrigada.
— Eu posso ensiná-la a nadar — sugere.
Quero dizer que ele está apenas de sunga e ficar agarrada
com ele na água gelada não é uma boa ideia, mas digo apenas:
— Tenho medo. Não sou corajosa como você, sinto muito.
— Você pode se aproximar? Preciso que segure algo para
mim.
Desço pela encosta e me sento, não me atrevo a colocar os
pés na água porque está realmente gelada, mas o guio em minha
direção. Ele mergulha na água e some, aparece pouco depois já
perto demais de mim. Estendo a mão para segurar o que quer
que ele tenha levado na água, quando ele coloca sua boxer nela.
Encaro a peça preta sem acreditar.
— Você tirou a cueca?
— Está me incomodando, eu costumava nadar nu.
Encaro o tecido molhado e gelado em minha mão e encaro
o homem diante de mim, ele está na parte rasa agora, sobre uma
rocha pronto para pular de novo. Completamente nu. Gotas de
água descem por seu corpo, percorrendo os percalços, se
desviando em seu peitoral definido, passeando por seu abdome
e descendo por suas coxas. Seu pênis descansa ali, e não
consigo tirar os olhos dele.
— Você está olhando meu pênis? — ele pergunta
despreocupado ao invés de entrar logo na água e salvar minha
sanidade.
— Na-não. Tantos lugares para olhar, por que eu olharia
seu pênis? — respondo, mas meus olhos só se desviam dele
para seu rosto. Ele morde o lábio inferior, tem um sorriso
cafajeste e não podia estar mais lindo.
— Tem razão, aprecie a natureza a seu dispor, doce Anna.
— Estou apreciando. Ela é maravilhosa! Chega a dar água
na boca.
— O quê?
— O quê? A natureza! Árvores, troncos, água, tudo é lindo!
Desvio meus olhos de seu corpo e tento conter o riso, ele
está rindo descaradamente.
— É seguro pular daqui? — pergunta.
— Estava me fazendo a mesma pergunta — murmuro
baixinho, meus olhos voltando ao seu corpo lindo, nu, molhado.
— Não é seguro para você pular aqui, Anna, mas se estiver
disposta, eu garanto que será uma aventura que vai valer a pena.
Claro que ele ouviu! Ainda bem que ele não pode ver o
quanto meu rosto pega fogo agora e me pego irritada pela
maneira como ele mexe com meus sentidos e órgãos com tanta
facilidade.
— Estou falando da cachoeira!
— Eu também! Se você quiser pular, não é seguro, já que
não sabe nadar, mas eu garanto que vai ser uma aventura que
você vai adorar! — seu sorriso cafajeste está ali, revelando seu
duplo sentido.
— Pule, Lucca, é seguro para você pular onde está —
ordeno.
— Não tenho certeza se posso confiar na sua palavra
agora, você parece um tanto irritada.
— Eu? De jeito nenhum! Só estou aqui olhando a natureza!
Ela é tão... grande!
Onde é que eu estou com a cabeça? Ele ri alto agora.
— Você sabe que ela está ao seu alcance, não sabe? Não
importa o tamanho da natureza que você vê, ela cabe
perfeitamente dentro de você. Ela parece gostosa, convidativa?
Espere até realmente se jogar sobre ela! É uma experiência que
você nunca mais vai esquecer.
— Lucca, pule nessa água e me deixe apreciar a natureza
em paz!
Ele pula, eu consigo sair do meu transe, minha respiração
está acelerada e algo em mim pulsa. E quando penso que posso
respirar, ele diz:
— Você devia realmente apreciar a natureza à sua volta,
Anna. O tipo de natureza que você está apreciando até agora
estará disponível para você em casa. Essa natureza aqui, você
quase nunca vai ver de novo.
— Babaca! — ralho baixinho, mas ele escutou já que está
rindo e volta a nadar.
Fico ainda um tempo apreciando o quanto está feliz e livre.
Mas a tarde começa a ir embora, temos um longo caminho de
volta pela trilha e será mais seguro se não o fizermos no escuro.
Então aprecio a verdadeira natureza, as árvores, as pedras, a
queda da água, a tranquilidade que este lugar passa. É como se
estivéssemos em outro lugar, um lugar mágico, encantado, verde
e avantajado.
Meus olhos se focam no pênis cujas gotas de água
escorrem, bem de frente ao meu rosto. Olho para cima e Lucca
está fora da água, ele balança a cabeça agitando o cabelo,
respigando água por toda minha roupa. A visão daqui de baixo
começa por seu pênis, está tão próximo que vejo com perfeição
as veias ressaltadas em sua extensão. Então subo meus olhos
por seu abdome molhado, pelas gotas que escorregam por ele,
pelas cicatrizes que, ao contrário do que ele pensa, o deixam
ainda mais sexy. Estou paralisada. Vejo sua boca se mexendo,
mas não escuto o que diz. Ele está tão perto de mim que nem
precisaria esticar meu braço para tocar seu membro, tão perto
que isso é tudo em que consigo pensar.
— Anna? Anna? Eu ouço sua respiração, está tudo bem?
— O quê? — pergunto, voltando a mim finalmente.
— Onde você está?
Me levanto rapidamente e dou dois passos para trás,
embora meus olhos continuem pregados em cada detalhe do seu
corpo.
— Casa — respondo.
— O que disse?
— Temos que ir, está anoitecendo.
— Imaginei isso, o clima começou a mudar. Você pode
pegar minhas roupas, por favor?
Não! Continue assim! Quero gritar, mas claro que vou até
suas roupas a passos lentos e as pego. As levo até ele,
depositando-as em suas mãos.
— A boxer ainda está molhada — comunico e ele tem um
sorriso irritante e provocante agora.
— Imaginei que estivesse. Vou voltar sem ela.
Vai voltar sem ela sentado atrás de mim no quadriciclo.
Para que essa tortura?
Ele veste primeiro a blusa, que se molha em seu corpo
molhado, depois a blusa de frio e por fim, a calça. Acompanho
seus movimentos um por um, quando ele passa um pé, depois o
outro, e vai subindo o tecido pelas pernas molhadas devagar,
ajeita o pênis antes de concluir o gesto e então fecha o zíper com
cuidado.
Juro que a baba chega a escorrer.
O que está acontecendo comigo?
Junto nossas coisas, inclusive sua boxer molhada e pego
sua mão, guiando-o pela trilha de volta ao quadriciclo. Sua mão
está gelada em contato com a minha e ainda assim, meu corpo
continua quente. Minha pele parece pegar fogo, acho que tenho
febre. Com certeza estou em estado febril. Ando devagar para
que ele acompanhe, e não dizemos nada o caminho até o
veículo, mas, curiosamente, consigo fazer a trilha toda dessa
vez, com uma energia que não sei de onde veio. Monto sobre o
veículo e o oriento a sentar-se atrás de mim.
Seu cabelo molhado pinga gotas geladas em minhas
costas, mas isso some quando ele passa os braços ao meu
redor. Seu peitoral completamente encostado às minhas costas e
suas mãos espalmadas nas laterais do meu corpo, me mantendo
perto demais dele. Ligo o quadriciclo e vou devagar, lutando para
prestar atenção, mas a respiração dele em meus ouvidos, o calor
de seu corpo no meu, suas mãos à minha volta, me
desconcentram. Tento controlar a respiração, o coração saltando
e o quanto me sinto pulsar desde que ele saiu da água e agir
como alguém normal. Mas então, do nada, bato com o
quadriciclo em uma árvore.
— Mas de onde essa árvore veio? — pergunto assustada.
— Você está bem?
Lucca está indo, ri muito, alto, enquanto suas mãos
passeiam pela lateral do meu corpo, então imagino que esteja
bem. Não foi uma batida brusca porque eu estava bem devagar,
apenas não enxerguei a árvore. Desvio o veículo e volto para a
trilha, as mãos de Lucca voltam ao lugar e ele diz baixinho em
meu ouvido:
— Você pode prestar atenção na estrada, por favor, meu
bem?
— Acho que não — respondo.
— Você tem febre?
— Em cada poro do meu corpo.
— Vamos passar por algum penhasco?
— Não, o caminho é seguro.
— Ainda bem. Anna, concentre-se na estrada. Não quero
que você se machuque.
— Então não devia ter me deixado febril.
— Minha intenção era deixá-la assim e então curar sua
febre, mas você, meu anjo, é medrosa demais.
Me concentro no caminho, consigo acelerar um pouco, por
fim, minha concentração volta e acelero um pouco mais,
diminuindo o tempo do percurso que seria a noite toda se eu
continuasse como estávamos.
Chegamos finalmente ao ponto e, antes de nos
aproximarmos do guia que já nos aguarda, digo a ele:
— Você não teria ido até o fim. Você tem medo. Ia me
deixar acesa, em chamas e então me dar prazer e acabaria
assim. Você não se satisfaria. E não quero isso. Você tem que
entender que gosto das aventuras e prazeres com você, desde
que você também esteja sentindo tudo isso. — Sua respiração
está acelerada em meu pescoço agora. — Boa noite, Carlos,
demoramos?
— Não, ainda tem turistas nas trilhas, gostaram do passeio?
— Adoramos! Apreciei bastante a natureza. E o Lucca a
sentiu, com toda certeza.
Lucca não diz nada, ele desce do veículo e apenas se
despede do guia. O táxi que o guia chamou logo chega e o ajudo
a entrar nele. Vamos então em silêncio pra casa. Entramos em
silêncio, subimos em silêncio e quando chegamos ao corredor
dos quartos, ele diz:
— Vá tomar um banho, Anna. Eu estava molhado, acabei
molhando sua roupa, está frio e não quero que pegue um
resfriado.
— Você também. Está gelado.
Ele assente e me viro para entrar em meu quarto, mas ele
segura meu braço, me puxa de encontro ao seu corpo e sussurra
em meu ouvido:
— Eu não sinto medo quando toco você, Anna. Eu não
tenho juízo, não tenho idade ou deficiência. Eu só sinto você.
Não duvide nem por um segundo que eu iria até o fim, porque de
verdade, sonho com isso desde o momento em que você entrou
aqui com sua mala de rodinhas e disse que ia ficar. Você é a
única pessoa no mundo de quem não tenho medo.
Então ele me solta e entra em seu quarto e me deixa aqui,
parada no corredor, derretendo por ele, a pele em chamas, os
órgãos em uma bagunça completa. Caminho até meu quarto e
sigo direto ao banheiro. Tiro a roupa devagar, realmente está
molhada atrás, mas me sentia tão quente que nem percebi. Entro
no box e escuto a água descendo do seu chuveiro. Não consigo
abrir o meu. Sei que é loucura, mas não posso mais suportar
isso. Esse desejo, essas provocações, essa necessidade quase
palpável de tocá-lo como ele me tocou.
Deixo o banheiro e caminho decidida pelo corredor, entro
em seu quarto devagar e sigo até o banheiro, ele está de costas,
debaixo da água quente. A água cai sobre suas costas e desce
por seu corpo. Ele tem a cabeça baixa e as mãos apoiadas na
parede. Caminho até ele devagar e o abraço por trás. A água
quente me molha agora e sinto sua pele firme em meus dedos.
Meus seios estão pressionados em suas costas e fecho os olhos,
sentindo algo tão intenso, tão avassalador, que parece me tirar o
ar.
— O que está fazendo, Anna? — sua voz é rouca, suas
mãos tocam as minhas, prendendo-as em seu corpo.
— Torcendo muito que você esteja certo — digo. Porque se
ele não for até o fim, vou enlouquecer.
Ele afasta minhas mãos de seu corpo e, por um segundo,
temo que vá dizer que não estava certo e eu deveria ir. Mas ele
se vira em minha direção, seus braços cercando meu corpo,
puxando-o de encontro ao dele. Sua boca toma a minha de uma
maneira voraz, devorando meus lábios, dominando minha língua,
enquanto me guia até a parede. Suas mãos passeiam por todo
meu corpo em desespero, seus toques começam leves, mas logo
se intensificam, apertando minha pele, preenchendo seus dedos
com meus seios, beliscando meus mamilos e me prendendo de
novo de encontro a ele.
Seu pênis já está duro entre nós agora e o toco, finalmente
matando a curiosidade, o desejo de senti-lo em meus dedos.
Passeio por toda sua extensão, sentindo a pele macia e firme, as
veias ressaltadas, a cabeça se encaixando em meus dedos. Ele
geme em meus lábios, sua língua penetra minha boca em
movimentos que me arrancam os sentidos. Seguro mais forte seu
pênis em meus dedos, instigando-o, sentindo-o endurecer ainda
mais, enquanto seus lábios lambem a água que corre por meu
pescoço, colo, até meus seios. Ele preenche a boca com um
deles, chupa com força, mordisca de leve o mamilo, os dedos
brincam com o seio livre. Beliscam, acariciam, atormentam.
Estou a ponto de me perder quando ele sobe os lábios de
novo por minha pele, tomando minha boca, prendendo-me nele
de uma maneira que me faz soltar seu pênis cedo demais.
— Anna — sua voz não passa de um sussurro — não
posso mais esperar, eu quero você.
Observo seu rosto tão lindo, os olhos estão fechados, em
volta deles as cicatrizes que não diminuem em nada sua beleza.
A boca entreaberta pelo desejo, passeio minhas mãos por seu
peito firme, sinto seu coração descompassado como o meu, logo
abaixo da minha palma. Lucca é mais alto do que eu, de forma
que tudo o que vejo agora é ele. Ele parece dominar tudo. Suas
mãos estão presas em mim, me mantendo perto.
— Anna — pede mais uma vez em um sussurro
desesperado.
— Sou toda sua — respondo no mesmo tom, fechando os
olhos quando sua boca toma a minha de novo, quando me
pressiona na parede atrás de mim, quando suas mãos me
levantam, abrindo minhas pernas à sua volta e seu pênis toca
meu centro.
Apoio meus braços em seus ombros, a água quente
descendo sobre nossos corpos, e, devagar, ele me penetra.
Centímetro por centímetro. Vai entrando aos poucos, me abrindo
para ele, se acomodando dentro de mim. Seu beijo se torna mais
intenso quando se acomoda todo dentro de mim. Ele fica assim,
dentro de mim, me mantendo em seus braços por alguns
segundos, parado, e o incômodo que sinto por seu tamanho me
deixa ainda mais ansiosa em senti-lo se mover. De repente sorri,
seus lábios nos meus sorriem e ele diz baixinho:
— Você é incrível!
Então me segura mais firme e deixa minha boceta entrando
com tudo de novo. E de novo. Seu pênis me invade sem pena,
me preenche completamente, me arranca gritos e sai, para então
voltar, mais forte, mais duro, me tirando tudo. Ele afunda o rosto
em meu pescoço, meus seios estão pressionados em seu peito,
nossos corpos estão em uma dança frenética. Suas mãos firmes
me seguram, e seu pau entrando com tudo em mim. Suas
estocadas são fundas, fortes, rápidas. Ele geme agora, sua
angústia morrendo em minha pele, enfio as mãos em seus
cabelos e puxo seu rosto para o meu. Sua respiração está
acelerada, seus olhos estão fechados e ele geme. Beijo sua boca
de leve, gemendo enlouquecidamente, ele retribui com um beijo
delicioso, retribui dominando minha língua, sugando meus lábios,
me estocando mais forte.
Algo avassalador começa a se formar em mim. Não consigo
mais abrir os olhos, não consigo pensar direito, afundo as minhas
unhas em sua pele e choramingo. Chamo seu nome repetidas
vezes, implorando, exigindo, a febre de antes explode agora.
Meu corpo todo está em chamas. Isso parece crescer, me toma
completamente, me desmancha e então me lança a outro nível, a
um prazer absurdo, a um sentimento que me cega. Grito seu
nome, me sinto tremer, meu corpo todo vibra e choro. Suas
estocadas continuam mais firmes, mais rápidas, então ele
também grita, se perdendo em meu corpo, afundando o rosto em
meu pescoço, me prendendo a ele com tanta força, entrando
ainda mais fundo uma vez, e mais uma, se derramando em
seguida. Ele se deixa cair me levando junto.
Quero abrir os olhos e admirá-lo, mas não consigo. Me sinto
mole, exausta, saciada. Me sinto feliz. Me pego rindo do nada,
por nada, como uma louca. Mas ele ri também, me mantendo em
seus braços ele ri. É uma loucura compartilhada.
Quando consigo me mover me ajeito sobre ele no chão do
banheiro. O abraço e ficamos assim, abraçados, a água quente
nos cobrindo. Estou confortável sobre seu corpo, mas ele deve
estar no chão frio e nada macio, sei que temos que sair daqui, e
quando tento, ele não permite.
— Só mais um pouco, Anna. Me deixa mais um pouco no
paraíso — pede baixinho e quem sou eu para negar-lhe alguma
coisa agora?
Me acomodo em seu peito, ele acaricia meu cabelo e faço o
mesmo em seus braços. Meu coração vai se acalmando, a
respiração normaliza. Toco seu peito e pressiono a palma ali, seu
coração também está voltando ao seu ritmo normal.
— Você quer se levantar, meu amor? — pergunta alguns
minutos depois em meu ouvido, ainda acariciando meus cabelos.
— Não. Mas vou.
Com muita dificuldade me afasto dele e me levanto. O ajudo
a levantar-se também. Imediatamente sinto falta de seu colo,
seus braços, seu corpo. Seu pênis me preenchendo e me tirando
tudo. Como é possível que eu sinta essa falta se acabamos de
fazer isso? Pego o sabonete e esfrego em minhas mãos, então
as passo em seu peito. Ele entende o que estou fazendo, tem um
sorriso no rosto, os olhos fechados.
— Por que você não abre os olhos? — pergunto enquanto
ensaboo seu abdome, descendo para suas coxas, ensaboando
também as cicatrizes.
— Não quero assustar você.
— Tudo em você é bonito para mim, Lucca. Absolutamente
tudo. E eu já vi você todinho.
Ele sorri, mas não abre os olhos, não insisto porque é algo
dele, um medo dele. Ele precisa dar um passo de cada vez.
Ensaboo suas costas, a bunda e pernas. O vejo lavar-se e
então preciso ir. Preciso me afastar agora, o prazer já passou,
embora ainda o sinta estocando em mim quando me movo. A
névoa de desejo já se foi, então eu não deveria ter recuperado
também o juízo? Por que ainda quero me jogar em seus braços e
pedir por mais?
Deixo o banheiro sem me despedir, vou até meu quarto,
visto um roupão qualquer e me jogo sobre a cama. E como a
louca que sou, sozinha aqui sentindo-o em mim, sorrio. Fecho os
olhos, sinto seu cheiro, seus toques, seus beijos e esse sorriso
não some.
Ele estava certo. Foi uma experiência que nunca mais vou
esquecer.

Na manhã seguinte, Leandro chega cedo para buscar


Lucca. Tem um sorriso no rosto ao me ver, mas quando olha para
Lucca, parece estranhar algo. Ele olha para mim, para Lucca de
novo e de volta para mim. Então pega nossas malas e as leva
até o carro. Lucca está parado agora, em frente a mesma janela
onde sempre fica. Ele está se despedindo. Vou até ele cautelosa,
não quero que faça nada que vá feri-lo ainda mais.
— Lucca, você está pronto? Quer esperar mais alguns
dias?
— Não, nunca vou estar pronto, Anna. Tudo isso é
assustador demais para mim. Mas tenho que fazer isso. Está
tudo bem, vamos.
Ele se vira com a bengala e passa por mim, em direção ao
hall de entrada.
— Vai dar tudo certo. Se não der, a gente volta.
Ele para de andar, ainda está de costas para mim, mas
pergunta baixinho:
— Você volta comigo se eu fracassar? Volta comigo se eu
não conseguir reaver a empresa e desistir?
— Eu volto com você a hora em que você quiser.
Ele não diz nada, volta a andar e o sigo. Leandro o
acomoda no banco da frente do carro, ao seu lado. E me
despeço dessa cidade enquanto o carro passa por suas ruas de
pedras. Me despeço das casas europeias, das lojas
apaixonantes, das pessoas. Do frio que adoro sentir na pele. São
mais de seis horas de viagem que terei para pensar, colocar a
cabeça no lugar. Me colocar em meu lugar. Tudo vai ser diferente
agora.
Lucca estará no mundo dele de novo. Não um cego solitário
em uma casa afastada nas montanhas, numa cidade pequena de
interior. Mas entre as pessoas com quem sempre conviveu,
lutando por seu império, lidando com seus obstáculos, sendo de
novo o Lucca que ele abandonou meses atrás. Talvez voltar a ser
esse Lucca, em seu ambiente, traga o antigo Lucca de volta. Não
mais culpado, solitário e triste. O mesmo Lucca confiante, seguro
e mandão e isso seria ótimo para ele. O mesmo Lucca frio,
inalcançável e fechado, e isso seria extremamente difícil para
mim.
Passo a viagem martelando na cabeça que a noite passada
foi, como ele disse, uma experiência maravilhosa. Algo para se
lembrar para sempre. Algo que nós dois precisávamos depois de
meses convivendo juntos. E pronto. Ainda sou sua funcionária,
órfã, sem noção ou um diploma. Preciso começar desde já a me
colocar no meu lugar.
— Para onde você está nos levando, Leandro? — Lucca
pergunta quando Leandro anuncia que estamos entrando na
capital.
— Para minha casa, claro!
— Você não precisa...
— Lucca, isso não está em discussão. De jeito nenhum vou
deixá-los em um hotel, se você sugerir isso vou me sentir
ofendido.
— Não tinha pensado nisso. Ia dizer para vender a casa de
Búzios e alugar um apartamento para mim e Anna.
— Anna vai ficar na minha casa, eu já a convidei e ela
aceitou. Mas se você quiser ficar em um apartamento, tudo bem,
Anna fica comigo — Leandro responde e Lucca fica em silêncio,
enquanto ele está rindo.

A casa de Leandro é semelhante a que Lucca tinha. É uma


mansão. Logo da porta me sinto deslocada. Leandro nos
apresenta aos funcionários que tem e faz de tudo para nos
sentirmos em casa. Ele reservou um quarto para Lucca no andar
de baixo. É o único no andar de baixo, de forma que eu estarei
longe dele, aqui em cima. E se ele precisar de mim à noite?
— Anna, aqui é quente, tem ar condicionado e aquecedor
nos quartos. Ele pode acioná-los por comando de voz, não vai
precisar de você. A menos, é claro, que ele precise para outras
coisas — Leandro provoca com um sorriso irritante.
— Que coisas? Por que está com essa cara? Vou ficar bem
aqui em cima, obrigada, você pode ir.
Ele deixa meu novo quarto rindo, enquanto me sinto irritada
e envergonhada. Será que ele sabe o que Lucca e eu fizemos?
Fico me perguntando se Lucca está bem, se conseguiu se
acomodar, se guardou suas roupas no armário da maneira mais
fácil para que consiga pegá-las. Não estou acostumada a estar a
tantos metros de distância dele.
— Anna, o que está pensando? Claro que ele não
conseguiu guardar as roupas. Como ele faria isso? — ralho
comigo mesma e vou atrás dele.
Mas o encontro no meio das escadas, subindo com as
malas.
— Onde você pensa que vai? — pergunto.
— Não gostei daquele quarto.
— Qual o problema com ele?
— É longe demais do seu — responde baixinho e sobe
mais um degrau.
— O que disse?
— É pequeno demais, fico tropeçando em tudo. E não
gostei do clima no andar de baixo também.
Vou até ele e pego uma mala, ajudando-o a subir as
intermináveis escadas. Leandro não gosta nem um pouco de vê-
lo no corredor.
— Lucca, será mais fácil para você não ter que subir
escadas.
— Ele pode andar, Leandro. Degraus não são um problema
para ele. Deixe-o escolher o quarto — explico e Lucca fica rindo.
Ele se vira para a direita no corredor, mas Leandro o pega
pelo ombro, guiando-o na direção contrária.
— O quarto dela é para cá, você quer ao lado do dela, não
é?
— Não, claro que não. Mas o quarto ao lado do dela está
vago? É um quarto bom?
— É para o caso de ele precisar de mim — sinto a
necessidade de explicar.
— Ah, isso eu já sei, Anna, não tive a menor dúvida —
Leandro responde rindo e recebe uma bengala de Lucca nas
pernas, o que faz seu sorriso sumir e eu estou rindo então.

Ajeito suas roupas no armário, as coisas em seu banheiro


de forma que tudo fique fácil para ele. Tiro qualquer coisa que
possa ficar em seu caminho, para que ele não precise transitar
pelo quarto com a bengala. Ao menos aqui ele tem que andar
sem medo. O ajudo a se acostumar com o enorme banheiro da
suíte. Espero até que decore onde estão suas roupas, suas
coisas de higiene, as coisas de trabalho, o celular, que já está
carregando, indicando a segunda grande mudança em nossos
dias. Vamos ter de novo contato com o mundo lá fora e
egoistamente, sinto medo por isso.
Quando ele já circula pelo quarto com tranquilidade, o deixo
sozinho e vou preparar algum lanche. Alberta, uma funcionária
de Leandro, está abrindo a porta de entrada quando desço
procurando pela cozinha. Esta casa é enorme! Lucca vai demorar
uma vida para aprender a se virar nela.
— Alberta, onde fica a ... — minha voz morre quando vejo
quem entra atrás da gentil senhora. É a mulher que estava com
Lucca na noite em que ele me colocou para fora de sua casa.
— Ah, olá. Você por aqui? — ela não parece nada feliz ao
me ver aqui.
— Oi, pois é, eu trabalho para o Lucca, estou aqui com ele.
— Ah, não sabia que você ainda trabalhava para ele. Eu
sou a Larissa Crepaldi — se apresenta me estendendo a mão.
— Anna Maria — respondo, tocando sua mão cordialmente.
Mas por dentro começo a reparar que está bem vestida,
elegante, gentil, tem uma pele linda e cabelos lisos como um
espelho. Os traços no rosto são de uma boneca, não é possível
alguém nascer tão abençoada assim.
— O Lucca está? Eu moro aqui do lado há seis meses,
Leandro e eu nos tornamos amigos. Ele disse que estava indo
buscar o Lucca, que ele vai ficar um tempo aqui. Gostaria muito
de vê-lo.
Alberta nos deixa, voltando aos seus afazeres e aproveito
para cuidar dessa mulher sorridente atrás do Lucca antes que ele
se machuque.
— Sim, ele está. Mas antes que eu vá chamá-lo, vamos
esclarecer algumas coisas, Larissa.
— Pode me chamar de senhorita Crepaldi, por favor.
Respiro fundo, mas obedeço, me colocando no meu lugar,
como vim fazendo por toda a viagem.
— Senhorita crepe, há algumas coisas...
— Crepaldi — me interrompe. — Você entendeu errado.
— Não, eu entendi muito bem. Continuando, ele está cego,
frágil e ainda se encontrando. Ele também perdeu a empresa, a
casa e todo dinheiro que tinha, você sabe disso, certo?
Ela cruza os braços nada feliz, me olha de cima, o que não
é difícil com os saltos que usa, mas vai além da diferença de
altura entre nós. Era exatamente assim que Lucca me olhava.
— Não entendo onde você quer chegar com isso, Anna.
— A lugar algum, só estou confirmando que você está
ciente de sua situação financeira e física antes de se aproximar
dele. Não o faça se uma dessas coisas a incomodar.
Ela sorri, ajeita o cabelo espelhado e seu sorriso fingido
some.
— Você não precisa proteger o Lucca, Anna, ele é alguém
que não precisa de proteção. Não se preocupe com ele, sei muito
bem como cuidar dele. Somos iguais. Agora, se você puder
chamá-lo, eu vou esperar aqui.
— Antes, há mais algumas coisas que você precisa saber,
senhorita crepe.
— Crepaldi! — corrige irritada, mas não me importo.
— Ele está frágil, muito mal-humorado e facilmente irritável.
Não fale alto demais, nem baixo demais perto dele. Não fale do
acidente. Não comente sobre suas cicatrizes, ele tem um monte
delas, nem sobre a aparência de seus olhos. Não o toque, ele
quase não suporta ser tocado. Não se sente próxima demais
dele. Ele está com uma neura sobre respeitarem seu espaço.
Ela assente, prestando atenção a cada coisa que invento.
Me sinto de novo uma menina má, mas não tenho escolha.
— Não fale sobre o que ele perdeu ou a casa que ele tinha,
bem, sobre nenhum desses amigos que o abandonaram. Estou
alertando para que ele não a coloque para fora, como fez com
todo mundo que tentou se aproximar dele. — Ela assente, me
ouvindo atentamente. — A mente dele não está cem por cento
certa ainda, ele pode não dizer coisa com coisa de vez em
quando, finja que não percebeu. E se ele tiver espasmos nas
pernas, são reflexos do acidente, finja que não está vendo. —
Sua expressão agora é tão assustada e desanimada que me
seguro para não rir. — Deixe-me ver o que mais...
— O que você pensa que está fazendo, Anna?
Um frio cortante atravessa minha espinha quando escuto a
voz de Lucca atrás de mim. Me viro para trás e ele está com
Leandro, Leandro o guiou, por isso não usa a bengala.
— Lucca, como está? — a senhorita perfeita se adianta.
— Larissa, que prazer ouvir sua voz. Espero que
desconsidere tudo o que minha assistente disse a você, ela só
estava brincando.
— Ah, claro, eu até já esqueci — responde cordialmente,
mas me lança um olhar enviesado antes de ir até ele e abraçá-lo.
— Senti sua falta, Lucca. Muito mesmo. Tentei te ligar, te mandei
e-mails, não sabia onde você estava, você desapareceu!
— Sinto muito pelo transtorno, querida. Eu precisei desse
tempo sozinho. Leandro, você pode acompanhar a Larissa até
sua sala? Não faço ideia de onde fica.
Ela e Leandro riem e Leandro a guia pela antessala, e
quando penso em sair de fininho, Lucca segura meu braço.
— Você fica, vamos ter uma conversinha, Anna.
Merda! O pior é que não faço ideia do que responder
quando ele perguntar o motivo de eu ter mentido tanto sobre ele
para sua amiguinha preferida. Agora sim estou ferrada.
— Anna, não estamos mais em nossa casa. Estamos aqui
de favor, então por favor, se controle.
Ainda estou presa no “nossa casa” quando tento responder.
— Eu sei, eu...
— Não acione o alarme de incêndio do Leandro, tudo bem?
— Eu não ia fazer isso! — me defendo indignada.
— Ótimo. Agora, por favor, me leve até a sala.
— Você não vai me perguntar o motivo de eu ter feito isso?
— Você sabe o motivo?
— Não!
— Bem, então não adiantaria perguntar, não é mesmo? Me
leva até a sala?
— Não quero.
— Mas vai levar assim mesmo. Não se preocupe, meu bem,
ela só está sendo amiga, ela é uma pessoa gentil e bondosa. Só
quer me confortar, mas não vai olhar para mim com outros olhos
que não sejam de pena.
Seguro sua mão de má vontade e o guio até a sala.
Escutamos ao longe a risada exageradamente alta dela. Assim
que entramos de mãos dadas o riso dela cessa, sua expressão
se fecha e seus olhos se focam em nossas mãos unidas. Ela se
levanta imediatamente e afasta Lucca de mim, dizendo que vai
ajudá-lo a se acomodar.
— Ah, Lucca, como você é cego! — lamento baixinho, mas
ele está sorrindo quando se senta, não sei se da ajuda da
bondosa crepe, ou da minha lamentação.
Só sei que preciso dar um jeito de tirar essas unhas
postiças gigantes dos braços dele o quanto antes.
Poucas vezes, em nossos muitos
anos de amizade, estive na casa de Leandro. E nas vezes em o
que fiz, estivemos no escritório ou na área externa da casa, de
forma que não faço a menor ideia de como é sua sala. Enquanto
Larissa e ele engatam uma conversa animada, só consigo
imaginar como deve ser o ambiente onde me encontro agora. É
difícil me sentir tão cego. Sei que Anna está por aqui, sinto seu
perfume em algum lugar no ambiente. O perfume mais forte que
Larissa usa quase apaga os rastros do delicioso cheiro de Anna,
mas não apaga.
A voz de Alberta avisa sobre o lanche que trouxe e Anna
continua em silêncio em algum lugar desta sala. Espero que ela
venha até mim, que coloque uma bandeja à minha volta, ou que
se sente ao meu lado e me oriente, mas é Larissa quem vem em
meu auxílio. Ela coloca a xícara quente em minha mão, depois se
dá conta que estou queimando os dedos e a tira da minha mão,
depositando-a em algum lugar próximo. Ouço o baque da xícara
em algum lugar. Logo, um prato, a julgar pelo barulho, é colocado
próximo a mim, tateio em volta à procura dele, mas Larissa já
está colocando um pedaço de queijo em minha boca.
Isso me é completamente estranho, onde está Anna?
— O chá ainda está bem quente, assim que esfriar um
pouco coloco na sua boca, Lucca — Larissa avisa de boa
vontade.
Onde está Leandro? Ele não está vendo essa situação?
— Larissa, não é necessário que você coloque nada em
minha boca, eu agradeço, querida, mas se você deixar perto o
bastante, eu consigo me virar.
— Oh, eu sinto muito! Achei que não fosse possível você
comer sozinho. Vou fazer isso já! O prato e a xícara estão à sua
frente.
— Obrigado.
Tateio o ar em busca deles, mas nada. Começo a me sentir
frustrado. Rapidamente, a mão de Anna toca a minha, finalmente
ela veio. Me sento ereto no sofá e ela coloca a bandeja sobre
minhas pernas.
— Xícara à direta, petiscos à esquerda — avisa afastando-
se e finalmente consigo comer meu lanche.
Larissa me atualiza sobre todas as pessoas que tínhamos
em comum. Pessoas que não fazem mais parte da minha vida e
preciso fingir estar interessado quando na verdade, não dou a
mínima. Bem, eu podia não ter aparecido e tê-la deixado
acreditar nas coisas que Anna disse. Isso teria me livrado dessa
conversa chata.
— O que você fazia em Monte Verde? — Larissa pergunta e
não faço ideia de em que momento parou de falar sobre seus
amigos.
— Nada, na verdade, estava sempre em casa. Não há
muitas coisas que um cego possa fazer em uma cidade como
aquela.
— Não há muitas coisas que um cego preguiçoso possa
fazer, você quer dizer — Leandro corrige.
— Exatamente, amigo. Bem, a despeito de todos os meses
que passei trancafiado na minha casa, no meu último dia lá, saí
para fazer trilha, andar de quadriciclo e nadar em uma cachoeira.
Leandro parece animado com isso, e Larissa inicialmente
não tem reação. Pouco depois, seu tom de voz tem um toque
acusador quando resmunga.
— Anna levou você? Que irresponsabilidade! E se você se
machucasse nas trilhas? Ou na cachoeira? Como você permitiu
algo assim, Leandro?
Será que onde quer que eu vá as pessoas vão achar que
sou mesmo incapaz de fazer qualquer coisa? Que sou incapaz
até mesmo de tomar decisões por mim mesmo? Abro a boca
para responder, mas Anna o faz por mim.
— Pois é, eu poderia lembrá-la que ele perdeu a visão, não
a capacidade de raciocinar, porém nesse caso específico eu o
arrastei mesmo para a trilha e para a cachoeira. Mas é normal
que você se confunda, não precisa se sentir envergonhada,
senhorita crepe.
— Crepaldi! — Larissa corrige e me pergunto como Anna
sabe o sobrenome dela. — Sinto muito, Lucca, realmente meu
convívio com deficientes visuais foi bem pouco, tenho muito o
que aprender. Agradeceria se você desculpasse minha falta de
conhecimento.
— Claro, não se preocupe, Larissa.
— É encantador o quanto sua assistente se dedica a você,
Lucca, mas você devia ter um pouco mais de juízo. Sei que
pessoas cegas podem fazer de tudo, mas esse tipo de atividade
eu mesma não faria. Você se arriscou demais!
Sei que sua intenção é me proteger, me ajudar de alguma
forma, mas estou começando a realmente ficar irritado com sua
insistência em minha incapacidade. Como se eu fosse feito de
vidro e pudesse me quebrar a qualquer instante. Respiro fundo,
buscando a empatia que tenho que ter, quando Anna, como
sempre, me salva.
— Lucca, está na hora do seu remédio, acho melhor irmos.
— Você não pode trazer até aqui? — Larissa questiona.
— Não, ele é injetável. Na bunda. Não dá para fazer isso na
sala. Se vocês me dão licença, vou levá-lo até o seu quarto —
inventa e concordo.
Ela tira a bandeja do meu colo e me ajuda a levantar. Não
faço ideia de onde está minha bengala, mas como Anna se
afasta, imagino que tenha ido pegá-la. Leandro foi quem desceu
com ela. Porém, uma mão toca a minha e Larissa me guia pela
sala. Ela anda devagar e vai repetindo que vai ficar tudo bem.
Seu braço está em volta do meu corpo e me sinto de repente um
velho que mal consegue se aguentar nas próprias pernas.
— Doze passos à frente, nada está em seu caminho, sua
bengala estará à direita — Anna diz em um tom irritado e ouço
seus passos indo para longe.
— Como essa garota é grosseira! — reclama Larissa, mas
me afasto dela aproveitando a deixa.
— Obrigado pela ajuda, Larissa, mas Anna está certa, eu
consigo me virar. Adorei a visita, por favor, venha mais vezes.
Boa noite.
Então me viro, conto os passos e encontro a bengala à
direita, deixo a sala finalmente e escuto as instruções de Anna ao
longe, guiando-me até a escada. Ela me deixa subir assim, longe
de mim, apenas dando instruções. Faz o mesmo até que eu
chegue ao meu quarto.
— Você não vem me aplicar o remédio? — provoco quando
a escuto se afastar.
— De nada por isso, a propósito.
— Como eu disse a você, ela sente pena.
— O que não a impede de sentir outras coisas.
— O que quer dizer?
Ela passa por mim e me guia para dento do quarto.
— Bem, você acha que mulher nenhuma vai olhar duas
vezes para você, mas se aquela ali tivesse seis olhos, todos eles
estariam grudados em você. Devia ser proibido essa falta de
senso!
Sorrio, a escuto mover-se por meu quarto. Sinto falta de
saber exatamente onde ela está, como no quarto pequeno da
casa das montanhas. Aqui é grande demais, ainda não me
acostumei e tenho medo de machucá-la tentando chegar até ela.
Ou de parecer ridículo aos seus olhos.
— Por falar em senso, minha linda Anna, que pena que
todas as outras pessoas do mundo não são sem noção como
você. Acho que devo me acostumar com esse tipo de tratamento
a partir de agora, não é? Aos olhos de todos serei um incapaz.
Consigo chegar à cama com a ajuda da bengala e me jogo
sobre ela, desanimado.
— Talvez não. Talvez as pessoas ainda o odeiem e fiquem
rindo de você tropeçar nas coisas ao invés de tratá-lo como um
bibelô de gesso — provoca.
— Então preciso torcer para que as pessoas não gostem de
mim?
— Ah, você sempre amou isso.
Ela não diz mais nada, mas se senta ao meu lado na cama.
Acho que mereço no fim das contas a maneira como vão me
tratar agora, seja com a frieza que Anna supõe ou com excesso
de condescendência como Larissa. Ninguém além da mulher
sem noção ao meu lado vai me tratar como alguém normal de
novo. E isso me faz perceber, mais uma vez, que há algo que
não mereço de jeito nenhum e é essa mulher incrível ao meu
lado. Anna não tem noção do quanto é especial. Mas eu tenho, e
às vezes tenho essa noção de uma maneira tão intensa que me
assusta. Anna, constantemente, me deixa sem ar.
— Ela quer transar com você — Anna diz de repente.
— Meu Deus! De onde saiu isso?
— Só estou comentando. E você, obviamente quer transar
com ela também.
— Em que momento desse lanche estranho você chegou a
essa conclusão?
— Bem, você me apresentou para a corretora como sua
amiga. Mas me apresentou para a bonequinha de luxo lá
embaixo como sua assistente.
É incrível como uma frase dela, ainda que sem intenção,
consegue me animar de repente assim. Anna é o ponto de luz
nos meus dias sombrios.
— Aí está, o motivo de você ter inventado tudo aquilo para
a Larissa mais cedo — constato com um sorriso satisfeito.
— Não sei do que está falando.
— Você sabe o que é ciúmes, Anna?
— Não.
— Não mesmo? É curioso, porque você é bastante
ciumenta.
Ela ri alto agora, se mexe desconfortável ao meu lado e
tenta se explicar.
— Eu não sinto ciúmes de você. Na verdade, eu nunca
senti ciúmes. Só tive um namorado e não era apaixonada por ele.
Então, com toda certeza, não estou com ciúmes de você!
Seguro sua mão na minha, encaixando nossos dedos,
calculando a que distância ela está de mim.
— Ciúmes, meu anjo, é quando você tem medo de perder
uma pessoa para outras. É quando alguém mais está interessado
na pessoa que você ama e você sente tanto medo, que seu peito
aperta, sua respiração falha e você tem atitudes irracionais, como
inventar que a pessoa perdeu o pênis e ativar o alarme de
incêndio.
Ela ri baixinho agora.
— Se você não fez tudo isso por ciúmes, então por que fez?
— Porque sou maluca. Minha cabeça não funciona da
maneira correta, você mesmo já me disse isso inúmeras vezes.
— É, acho que a loucura faz parte do amor — provoco.
— De todo jeito, você achava que nunca mais tocaria em
uma mulher assim, mas eu abri a porteira. Agora não há nada
que o impeça de ir para a cama com a herdeira mimada.
— Como assim você abriu a porteira?
— Bem, você sabe. Nós fizemos isso e agora você sabe
que pode fazer.
Há uma irritação em sua voz que me encanta. Anna não
pode ser real. Eu devo estar sonhando com todos esses dias
desde que ela voltou para minha vida. Aperto mais forte sua mão
e puxo seu braço desequilibrando-a e jogo meu corpo sobre o
seu na cama. Sinto sua respiração em minha boca, seus seios
em meu peito, seu corpo quente sob o meu.
— Está dizendo que posso fazer com você? — pergunto
baixinho e passeio a boca por seu pescoço.
Ela geme ao invés de responder. Sua respiração está
acelerada, suas mãos presas sob as minhas no colchão. Beijo de
leve a pele logo abaixo de sua orelha e subo os beijos até
alcançar sua boca.
— Admita que está com ciúmes, Anna — provoco,
mordiscando seu lábio inferior.
— Não, porque não estou.
— Então você não se importaria se eu dormisse com ela?
— Não! — responde mais alto, quase aos gritos. — O pênis
é seu, você o usa com quem quiser!
Sorrio. Beijo sua boca de leve, ela quer mais, pede por isso
na maneira como seus lábios buscam os meus a cada simples
toque.
— Então eu quero afundá-lo em você agora mesmo.
Incontáveis vezes, quero atingir seu ponto e fazê-la tremer, até
que você esteja mole, implorando por mais. Então vou fazê-la
admitir que me quer o bastante para sentir ciúmes. Vai admitir
que você não quer a minha boca em outro seio, minhas mãos em
outra pele, você não quer meu pênis se afundando em outro
corpo e mais do que isso, não quer meu coração disparado por
mais ninguém que não seja você.
— Lucca — sua voz é um sussurro, uma prece. E mais do
que depressa a atendo. Porque não posso dizer não a ela.
A beijo com toda essa vontade que ela me desperta, com a
necessidade que tenho de sua confissão, de sua paixão. Nossas
línguas se embolam e me sinto em chamas em segundos. Seus
gemidos baixos em minha boca me deixam duro, solto suas
mãos e ela enfia os dedos em meus cabelos, me puxando para
mais perto, enquanto minha mão passeia por seu corpo, numa
tentativa louca de tocar sua pele macia por baixo da roupa que
usa.
Mas então três batidas fortes na porta nos obrigam a parar.
Resmungo irritado, espero que quem quer que esteja no corredor
vá embora, mas Leandro grita lá de fora:
— Lucca, preciso falar com você sobre amanhã. É
importante!
— Merda.
Saio de cima dela, que se levanta rapidamente. Pego um
travesseiro e posiciono sobre meu pau duro. Anna tem a
respiração agitada e abre a porta.
— Ah, desculpe, não queria interromper — Leandro diz.
— Você não interrompeu, eu já estava de saída — Anna
responde.
— É, estou vendo. Eu achei que era uma desculpa, mas
você não estava brincando quando disse que ia tocar as partes
íntimas dele.
— Leandro! — ralho e Anna deixa o quarto sem dar uma
resposta verbal, porque Leandro está rindo da má influência que
estou sendo para ela, então imagino que tenha respondido de
algum jeito. — O que é que você quer, Leandro? Que não podia
esperar mais uma hora? Ou duas?
— Foi mal, cara. Vou acompanhá-lo amanhã, porém preciso
advertir que não importa o que o Aquiles diga, não assine nada
sem que eu leia primeiro.
— Este é um erro que não vou cometer de novo — garanto.
— Lucca, sinto muito por todo esse constrangimento com a
Larissa. Eu imagino o quanto isso é difícil. Você vai encontrar
pessoas amanhã que não tem qualquer consideração por você.
Não vai ser fácil.
— Eu sei, não se preocupe. Não espero entrar lá e ser
recebido com todo respeito e ter a empresa de volta,
simplesmente. Algo vai acontecer, Leandro, algo ruim, eu sei
disso. É como se o ruído do vento sussurrasse em meu ouvido.
— Sua mãe costumava dizer isso, ela raramente errava.
Infelizmente dessa vez, amigo, eu também ouço esse ruído. Por
favor, se cuida. Se sentir que é demais, você só precisa ir
embora. A qualquer momento, você só tem que pedir, tudo bem?
Concordo com um gesto de cabeça, ele me deseja boa
noite e deixa o quarto. E passo a noite em claro temendo o que
está por vir.

Leandro fala sobre o clima nas últimas semanas e murmuro


algo de vez em quando para fingir que estou prestando atenção.
Sinto um incômodo no estômago e minha respiração não quer se
normalizar. Quem dera eu ainda tivesse a confiança de outrora.
Agora não passo de um cego medroso e perdido. Se Anna
estivesse aqui, estaria falando sobre as pessoas na rua de um
jeito divertido. Ela me distrairia. E esta é outra coisa que me
deixa tenso agora, estar tão longe dela.
Leandro estaciona o carro e me ajuda a descer. Me apoio
na bengala, caminho devagar, espero muito não tropeçar em
nada, nem esbarrar em coisa alguma. Por que não fiz mais
esforços em me acostumar a esse objeto que é essencial para
mim agora? Leandro vai ao meu lado, ele avisa quando há algum
degrau ou rampa apenas. Então fica em silêncio enquanto
andamos até o elevador. É estranho como esta foi minha casa
por tantos anos, meu orgulho, meu maior mérito e agora é um
lugar desconhecido. Sei de cor cada parede deste lugar, mas
será que ainda estão do mesmo jeito?
Entramos no elevador e mais pessoas estão conosco.
Mulheres, a julgar pelo barulho dos saltos e pelos perfumes no
ar. Elas cochicham algo que consigo ouvir perfeitamente.
— É mesmo ele? O que está fazendo aqui?
— Será que ele voltou?
— Ele ficou mesmo cego. Achei que fosse uma desculpa
para deixar a empresa.
— Senhoras, bom dia. Só quero lembrá-las que sou cego,
não surdo — advirto incomodado.
— Bom dia, senhor Baltazi — elas respondem em uníssono
e não faço ideia de quem sejam. Eu realmente não prestava
atenção em ninguém além de mim mesmo.
Os cochichos só aumentam quando saímos do elevador.
Leandro caminha ao meu lado, cumprimentando as pessoas, me
dando assim dicas de quem está por perto.
— Açucena — diz de uma maneira diferente e para de
andar. Paro também porque não sei o que está havendo.
— Bom dia, senhor Baltazi. Que bom vê-lo de novo! —
Açucena, só pode ser ela.
— Bom dia, Açucena, como tem passado? Como está seu
filho?
— Ah, ele está ótimo, obrigada, senhor. Está correndo por
toda parte.
— Fico feliz.
— Vou anunciar ao senhor Aquiles que vocês estão aqui.
Ah, senhor Baltazi, — há uma excitação em sua voz, como se
temesse algo. — Posso dar-lhe um abraço? Bem rapidinho?
Sou pego de surpresa por seu pedido incomum. De todas
as pessoas nesta empresa que trabalhavam comigo, Açucena
deveria ser a que menos me tem em boa conta.
— Eu agradeço, mas prefiro que na...
— Claro que pode! Ele adoraria! — Leandro me interrompe
e os braços dela estão à minha volta, meio desajeitada. Só me
resta abraçá-la de volta enquanto escuto a risada baixinha de
Leandro ao meu lado. Ele me paga por isso.
— Por favor, nos ajude — diz baixinho afastando-se em
seguida. — Vou avisar ao senhor Aquiles.
Assim que ela se afasta, Leandro comenta:
— Ela está cumprindo aviso prévio.
— O quê? Por quê?
— Não faço ideia, sou só um funcionário aqui. Mas todos
temem perder o emprego. Muitos estão cumprindo aviso, eles
sabem que os outros funcionários demitidos não receberam
nada, estão em pânico. O clima aqui está péssimo.
— Vocês podem entrar — Açucena diz e Leandro me guia
para dentro daquele que foi meu refúgio por tantos anos.
A porta é fechada atrás de mim e me sinto tenso, temeroso
e fraco. Eu não devia voltar aqui assim. Saí daqui como um rei,
estou voltando como um condenado.
— Lucca, quanto tempo! Achei que nunca mais fosse vê-lo.
Precisei apelar para ter notícias suas de novo — a voz de Aquiles
me cumprimenta.
— O que é curioso, uma vez que graças a mim você tem
tanto, não é Aquiles? Não deveria ser necessário uma
chantagem para me ver de novo.
— Ah, primo, pare com isso. Não foi uma chantagem, foi
uma proposta e não estava brincando sobre ela. Leandro, você
pode nos deixar a sós?
— Não, Aquiles. Enquanto ele estiver aqui, também estarei.
— Entendo, Lucca Baltazi agora é um homem com medo.
— Somente um homem muito tolo não sente medo, Aquiles.
Todos temem alguma coisa. Você, com certeza, deveria —
respondo.
Ele ri sem graça, ordena que nos sentemos, mas
permaneço de pé. Não me sinto mais confortável aqui. Talvez
não me sinta mais confortável em lugar algum.
— Como tem sido sua vida agora que está cego e falido,
Lucca? — ele pergunta com um sorriso mal disfarçado na voz.
— Na verdade, melhor do que eu pensei que seria, dadas
as circunstâncias, não posso reclamar — minto. — Agradeceria
se você pulasse o papo furado e me dissesse o que estou
fazendo aqui.
— Bem, educação nunca foi seu forte, não mudou nada
quanto a isso. Eu já tive o que queria daqui Lucca, não tenho
mais interesse em presidir esta empresa.
— Talvez tenha percebido que não é capaz de geri-la, uma
vez que aparentemente a está afundando.
— Isso são apenas boatos.
— E os funcionários demitidos? E todos os que você não
pagou?
— Desde quando você se importa com a plebe, primo?
Estou começando a achar que esse acidente afetou seu cérebro
também. Bom, se você quer ir direto ao ponto, a empresa está
em perfeitas condições, os processos e demissões são boatos
apenas de algum concorrente. Eu apenas me cansei. Effie não
se adaptou ao Brasil, quer voltar para a Grécia e não posso
deixar minha esposa sozinha.
— Isso eu posso entender, primo. Todo o dinheiro que você
possui é dela. Realmente seria imprudente arriscar perdê-la.
Você perderia muito.
Leandro ri baixinho ao meu lado.
— Você não tem a menor noção do que está dizendo,
Lucca! Não sabe nada do que possuo ou do que vivo! — sua voz
alterada mostra que estou conseguindo atingi-lo, devolvendo
suas provocações na mesma moeda.
— Sei que precisou enganar seu primo cego e roubar tudo
o que era dele para ter algo que não foi dado por sua esposa.
Ainda assim, não foi capaz de manter o que roubou.
— Você teria feito o mesmo! Se a situação fosse contrária,
você enganaria quem fosse e tiraria tudo. Tivemos a mesma
criação, ou você se esqueceu? A mesma ganância e soberba
que você critica em mim está em você. Como foi mesmo que
vocês começaram todo esse império? Destruindo os outros.
Começando por sua família — provoca atingindo meu ponto
fraco: meu pai e seu corte de relações com toda a família.
— Não se atreva a falar do meu pai! Ele se afastou de
vocês porque vocês não valem nada! Nunca foram família!
Leandro me segura, tentando me acalmar. Estou gritando,
ouço os burburinhos lá fora e Aquiles tem um riso baixo,
contínuo, satisfeito.
— Diga o que você quer ou eu irei embora, Aquiles! —
exijo.
— Não, você não vai. — Escuto sua cadeira se arrastar
pelo piso e sua voz soa mais próxima. — Porque você não tem
outra escolha. — Ele parece estar andando à minha volta, ouço
seus passos atrás de mim. — Está desesperado por sua
empresa de volta, ela é sua vida, não é mesmo? E eu a tirei de
você! Então você, Lucca, vai ficar aqui e fazer o que eu mandar
se quiser tê-la de volta.
Eu o acertaria agora se pudesse prever onde está. Eu o
encararia e o desafiaria. Iria embora pela porta de entrada e o
deixaria a ver navios, mas não posso fazer nada disso. Porque
ele está certo. Porque sou inútil agora e devo esta empresa a
Leandro e a todas as pessoas que, junto comigo, se dedicaram a
ela nesses últimos anos. Tento controlar minha respiração,
minhas mãos parecem tremer, estão fechadas em punho. A
direita aperta a bengala com força demais. E não respondo nada
porque não há o que responder.
— Assim que eu gosto — ele provoca. — Agora Lucca, me
responda uma coisa, como você se sente estando aqui, na sua
sala, no seu castelo e ter de calar sua voz e abaixar a cabeça
para o verdadeiro rei de tudo? Hein? Como se sente estando
aqui sem poder ver nada do que construiu, como um simples
visitante, não o dono? Aliás, como é não ser dono nem mesmo
dos seus próprios passos?
A diversão em sua voz faz suas palavras ferirem mais
fundo. Não respondo, não digo nada, não vou cair em sua
provocação. Por dentro me sinto gritar, me sinto morrer, explodir
em milhões de pedaços, mas aqui fora, exibo um sorriso. Aqui
fora controlo minha ira e sorrio.
— Essa última pergunta você poderia responder com mais
propriedade, primo. Não me lembro quando, na sua vida inteira,
você foi dono de si.
Ele profere um palavrão e Leandro interrompe o que quer
que fosse fazer, repetindo que ele se controle, pois estou cego e
ele não pode encostar em mim.
— Vou te fazer uma oferta, Lucca, apenas uma vez. Se
você disser não, não haverá segunda chance. Se você disser
não, amanhã as ações da sua empresa estarão à venda aos
seus inimigos a preço de banana. Não me importo em perder o
real valor dela, não precisei de muito para conquistá-la, não vai
me doer perdê-la.
— O que você quer?
— Eu devolverei a Atenas a você, tenho aqui um
documento assinado e registrado garantindo isso se você, Lucca,
trabalhar para mim por um mês.
— O que você pretende com isso? — Leandro pergunta
irritado. — Aquiles, isso é tão ridículo! Você é uma espécie de
adolescente bobo? Que tipo de exigência é essa?
— Não é uma exigência, é uma oferta. Lucca será meu
assistente por um mês e ao final de trinta dias a empresa será
dele de novo. Ou ele pode dizer não e amanhã mesmo a Atenas
não existirá mais. A escolha é dele.
— Isso é ridículo! — Leandro continua repetindo indignado,
mas eu só consigo assimilar o que ele chama de oferta e então a
entendo. Ele vai fazer comigo tudo o que já fiz na vida com
outras pessoas. Não se trata apenas de uma vingança ridícula e
infantil do meu primo imbecil, mas de uma pegadinha da vida.
Aquilo que eu fiz retornando a mim. Por todas as vezes em que
fechei os olhos, perdi a visão. Por todas as vezes em que me
achei superior aos outros, perdi meu dinheiro. E agora, por todas
as vezes em que humilhei, ofendi e destratei quem julgava ser
inferior, eu receberei tudo isso de volta.
— O tempo está passando, Lucca o que você me diz? —
Aquiles pressiona.
Eu não devia aceitar isso, eu estou cego! Sou a merda de
um cego que não pode nem mesmo dizer o que sente à mulher
que ama, porque ela merece alguém capaz de cuidar dos cinco
filhos que quer ter. Isso não é castigo suficiente? Abro a boca
para dizer não, mas há Leandro aqui, me defendendo irritado
depois de tudo, há Açucena, me pedindo socorro com um
abraço, há todos esses funcionários que nunca tiveram um pingo
de empatia minha, e que agora dependem de mim para
continuarem em seus empregos. Há Anna, meu anjo, minha luz,
e ela vai apoiar o que eu decidir, assim como Leandro, mas será
que se eu disser não, mudei mesmo alguma coisa? Será que
isso não é uma resposta egoísta diante de todas as
possibilidades?
— Ele não vai aceitar isso! Vamos embora, Lucca —
Leandro ordena.
— Leandro, você pode pegar o documento que ele diz ter e
confirmar com um advogado de confiança se ele é válido? —
peço.
— O quê? Você não está pensando em aceitar isso? Lucca!
Isso é uma armadilha!
— Por favor, Leandro.
— Mas Lucca...
Não digo mais nada, sei que isso é difícil para ele e sua
relutância só mostra o quanto é meu amigo, a despeito do que eu
fui para ele. Contra a vontade, ele pega o tal documento, a
garantia de que a empresa será minha de novo e deixa a sala.
Aquiles fica rindo até que Leandro volte. Ele diz coisas sobre
nosso passado. Sobre minha família ter desertado para o Brasil e
ter abandonado nosso avô. Ele fala sobre tudo o que conquistou,
sei que está mentindo, exagerando, inventando, eu o conheço
bem. Tudo o que possui agora, com exceção do que roubou de
mim, é de sua esposa, Effie Nomikos, uma herdeira importante
na Grécia.
Não sei quanto tempo Leandro demora a voltar, mas parece
uma eternidade. Por fim, ele vem até mim.
— Lucca, este documento é verdadeiro e é válido. Ele
garante que a empresa será sua se cumprir uma vontade do
Aquiles. Mas Lucca, não vale a pena. A menos que você pense
em assumir seu lugar de novo, e eu concordaria cem por cento
com isso, não o faça. Você não me deve isso, Lucca. Não faça.
— É, eu devo. Aceito sua oferta, Aquiles. Quando quer que
eu comece?
— Fico feliz em ouvir isso, primo. Você começa agora.
Leandro, você pode ir, meu assistente e eu devemos ficar
sozinhos.
Leandro reluta em deixar a sala e Aquiles chama por
Açucena em seguida.
— Ensine a ele tudo o que precisa saber, Açucena. Ele é
quem vai ficar no seu lugar.
— Sim, senhor. Venha comigo, senhor Baltazi.
— Não! — Aquiles corrige imediatamente. — Não o chame
de senhor. Ele é alguém como você aqui dentro, você vai tratá-lo
pelo nome.
— Sim, senhor. Vamos, Lucca.
Ela segura meu braço e me guia para fora da sala. Sinto
suas mãos tremendo levemente e tento confortá-la.
— Está tudo bem, Açucena. Não se preocupe. Só preciso
que tenha um pouco de paciência comigo, como sabe, não posso
ver, isso vai dificultar um pouco meu aprendizado.
— Não vou chamá-lo de Lucca. Só na frente dele, você é o
senhor Baltazi, meu chefe. E não vou mandar que o senhor faça
nada. Sente-se e relaxe, eu faço tudo.
— Não, querida, não é necessário. Faça o que ele manda.
E ele está certo, somos iguais, não sou mais o chefe aqui,
Açucena. Você deve me tratar pelo nome, tudo bem?
— Não é justo! Ele roubou o senhor, não é justo!
— Escute, você não precisa ter medo. Vou aguentar isso
por trinta dias, e ao final deles, a empresa será do Leandro e
você será recontratada. Você e todos os que foram demitidos vão
ter seus empregos de volta, tudo bem?
— O senhor jura?
— Eu juro.
Ela me acomoda melhor em uma cadeira, espero por suas
instruções, mas ela está rindo baixinho. Um riso nervoso, um riso
aliviado, uma resposta a toda tensão em que devia estar. Não sei
quantas horas passo aqui com Açucena, mas foram o suficiente
para entender como Aquiles trata os funcionários. Por isso
Açucena ficou feliz em me ver, se eu era carrasco, Aquiles chega
a ser ridículo. São regras que impedem até mesmo que eles
tragam suas próprias comidas, o que é contra as leis trabalhistas.
Muito do que ele faz é, mas ninguém parece disposto a brigar por
isso.
Ao final da tarde, após almoçar na sala de Leandro e ser
arrancado de lá por um Aquiles furioso, Aquiles ordena:
— Você vem comigo, Lucca, tenho uma reunião.
— Senhor, o senhor não tem nenhuma reunião... —
Açucena tenta corrigi-lo, mas ele a interrompe.
— Quem está te perguntando? Lucca, levante-se e venha
comigo! — ordena de novo e escuto seus passos se afastando.
Me levanto, encontro a bengala e não sei para onde ir. Não
faço ideia de para que lado ele foi. Vou caminhando devagar,
com a ajuda da bengala, temendo o momento mencionado por
Anna, em que vou esbarrar em algo ou tropeçar e cair e todos
vão rir. Minhas pernas parecem pesar agora, não quero dar um
passo à frente, então alguém segura meu braço.
— Em frente, senhor Baltazi, vou guiá-lo.
— Quem é você?
— Sou Elaine, faxineira.
— Obrigado pela ajuda, Elaine, pode me chamar de Lucca.
Sou o assistente.
Ela me leva até o elevador, escuto o riso de Aquiles quando
entro nele, ele aperta algo e o elevador desce.
— Onde estamos indo, Aquiles?
— Não tenho que te dar satisfações.
O elevador chega ao térreo, as portas se abrem e ele sai.
Tenho certa dificuldade em segui-lo, o faço como posso,
tropeçando nas coisas, quase caio na rampa que dá acesso ao
estacionamento, e não faço ideia do que fazer a seguir. Ouço o
barulho de um carro e ele freia perto demais de mim, me
assustando.
— Entra! — Aquiles ordena e tateio à minha frente,
alcançando a porta aberta.
Não sei onde estamos indo e me sinto nervoso, irritado,
tenso. Aquiles não diz nada no caminho, roda comigo por poucos
minutos, uns dez talvez, então ordena que eu desça. Escuto
carros, pessoas, anunciantes. Acho que estamos no centro
comercial.
— Você não vai precisar disso — ele diz tirando a bengala
da minha mão. — Mas ela está aqui, à sua frente.
Então ele se afasta, ouço a porta do carro ser fechada, em
seguida ele arranca.
— Aquiles? Aquiles? Que brincadeira é essa? Onde você
está? Aquiles?
Dou um passo à frente, temoroso, em busca da bengala,
mas não a encontro. Dou outro e mais um. Um carro buzina perto
demais de mim. Pessoas passam à minha volta, ninguém diz
nada, estão apressadas deixando seus empregos. Estou
completamente perdido. Um carro buzina mais alto, não sei se
estou na rua ou na calçada.
— Alguém pode me ajudar? — tento, mas não tenho
qualquer resposta.
Procuro de novo pela bengala, mas ela não está. Dou outro
passo e alguém me segura.
— Cuidado, você vai cair! — alguém avisa afastando-se em
seguida, nem tenho tempo de agradecer.
Me viro para o lado oposto e não sei o que fazer. Me sinto
perdido, inútil, em pânico. Como vou pedir ajuda, como vou sair
daqui? Por que ainda estou aqui? Por que não morri naquele
acidente? Por quê?
Não sei quanto tempo fico assim, no meio das pessoas,
com medo de dar um passo, um pânico me tomando, uma
sensação forte de que preciso acordar deste pesadelo. Mas não
é pesadelo. É pior do que os pesadelos que tive, porque não há
ninguém. Ninguém fala comigo, ninguém me diz o que fazer.
Mais uma vez um carro freia perto demais e são tantos barulhos
que não consigo ouvir nada. Não consigo sentir cheiro nenhum,
não sinto nada!
E então a sinto. Sinto Anna, o cheiro dela, a voz dela, seu
toque em minhas mãos.
— Lucca? Lucca, o que está fazendo aqui? Ei, sou eu.
Lucca, sou eu, estou aqui, está tudo bem.
Ela me abraça e começo a me dar conta que está mesmo
aqui.
— Está tudo bem, estou aqui. Vou te levar pra casa, está
bem?
— Anna? Você está mesmo aqui? Eu...
— Sim, está tudo bem, querido. Vem, você está perto
demais da rua, está aqui sozinho?
— Aquiles me trouxe e me deixou aqui. Não sei onde está a
bengala, eu não consigo dar um passo sem ela, eu não consigo
fazer nada.
— Eu sei, está tudo bem. Ela não está aqui, mas eu estou.
Vem comigo, você vai descer um degrau agora, o carro do
Leandro está aqui, vou te colocar nele, tudo bem?
Assinto, deixo que ela me guie. Ela me ajuda a entrar,
coloca o cinto de segurança à minha volta e fecha a porta. Logo,
está ao meu lado. Segura minha mão enquanto arranca com o
carro.
— Está tudo bem, vamos pra casa agora, está bem?
Aperto sua mão e assinto. E o tempo todo ela mantém a
mão na minha, me acalmando, dizendo que vai ficar tudo bem.
Por fim, consigo respirar, consigo me acalmar um pouco e
entender então o que Aquiles fez. Se eu achava que esse mês
seria difícil, não estava nem um pouco preparado para isso.

Anna liga para Leandro assim que chegamos em sua casa.


— Eu o encontrei, ele está comigo, está tudo bem. Mas
esse tal Aquiles é um homem morto, eu vou matá-lo, Leandro!
— Anna, como você me encontrou? — pergunto enquanto
ela me ajuda a subir as escadas.
— Pura sorte. Eu estava indo buscar você, peguei um dos
carros do Leandro, ele deixou, e ia buscá-lo na saída e te levar
para dar umas voltas. Eu imaginei que o dia não teria sido fácil,
então íamos apenas tomar sorvete em algum lugar tranquilo pra
você se distrair um pouco. Leandro me ligou assim que saí de
casa e disse que você havia sumido, que ninguém na empresa
sabia onde estava. No caminho para a Atenas errei uma entrada
e avistei você, por acaso, parado na calçada. Eu dei a volta no
quarteirão com o carro para poder parar onde você estava. Tive
medo que você sumisse enquanto eu fazia a volta, mas graças a
Deus você não sumiu. Venha, vou preparar um banho para você.
Ela me ajuda a sentar na cama e sai de perto de mim. E de
repente parece que tudo isso é demais. De repente, abaixo a
cabeça nas mãos e choro. Meu corpo treme, minha alma treme e
choro. Estou cansado, me sinto exausto e perdido de novo.
Quando é que isso vai passar? Quando vou me encontrar de
novo?
Anna está aqui de novo, sinto seu cheiro, ouço seu choro
baixinho. Ela está me vendo chorar, vai me achar um fraco.
— Vem, um banho quente vai te fazer bem. Vai fazer tudo
passar.
— Você acha que vai passar como mágica?
— Claro! Há uma banheira no seu banheiro, se isso não
cura tudo, não sei para o que ela serve!
Permito que ela me levante e tire minha blusa. Toco seu
rosto, sentindo-o molhado.
— Não chore, meu bem. Você está certa, vai ficar tudo bem,
a banheira cura tudo, não é?
— Tira sua calça — pede.
— Achei que você estivesse cuidando de mim.
Ela ri, escuto sua risada gostosa e me sinto melhor, me
sinto aliviado. Como algo quente no meio do peito, derretendo o
gelo.
— Você não precisa de ajuda para tirar a calça, Lucca.
O faço então, tiro a calça e a boxer junto. Sua respiração
muda, está acelerada, ela não chora mais.
— E agora, meu bem?
Ela pega minha mão e me leva até o banheiro. Me ajuda a
entrar na banheira, estou de pé na água quente e borbulhante.
— Pode se sentar, mas faça isso devagar — ela diz.
— Vem comigo, Anna. Entra aqui comigo.
— Eu não acho que seja uma boa ideia — responde, mas
não há certeza em sua voz.
— Não vou tocá-la, não vou fazer nada, eu só preciso de
você perto de mim. Não é a água quente que faz tudo passar, é
você. Por favor.
Ela não responde, mas escuto seus movimentos.
— O que está fazendo?
— Tirando a roupa, sente-se eu vou entrar com você.
Sorrio. Depois do dia de hoje, inacreditavelmente, sorrio.
Me sento devagar, seguindo suas instruções e logo, sinto seu pé
tocar o meu. Ela se ajeita entre minhas pernas e se senta. Seu
corpo está recostado ao meu agora. Seu cabelo está preso em
um coque, daqueles que eu sempre amei nela. Consigo imaginá-
la com ele agora. A abraço por trás, puxando-a para mais perto
ainda, respiro seu cheiro e tudo se acalma. Suas mãos
descansam em minhas pernas, à sua volta, ela deita em meu
peito e a sinto relaxar também.
Então o resto do mundo é apenas o resto. Ela está aqui e
ela é tudo o que importa. No final das contas, ela está certa, sou
um babaca com sorte.
Lucca ainda dorme quando me
levanto. Fico parada na porta de seu quarto, meio perdida.
Passei a noite em claro, mil pensamentos na cabeça e nenhuma
solução. Quando Leandro me contou o que Aquiles queria em
troca de devolver a empresa a eles, nem por um segundo achei
que Lucca teria aceitado. Mas ele o fez. Sua culpa é tanta, que
acha que merece passar por isso. Ser um empregado em sua
própria empresa, ainda mais do homem que a roubou dele já
seria ruim o bastante, mas parece que Aquiles é um monstro.
Isso me lembra que preciso pegar de novo o laptop de Lucca,
agora mais do que nunca.
Depois de alguns minutos na banheira com ele, nós dois
nus, suas mãos me tocando carinhosamente. Depois de eu secá-
lo e esperar que dormisse para então sair de seu quarto, para
minha segurança, ficou essa sensação de que preciso fazer
alguma coisa. Se não posso fazer nada para mudar sua situação,
então preciso ao menos me vingar de algum jeito.
Por isso, após acordá-lo com seu café da manhã na cama e
ajudá-lo a escolher sua roupa, separando as que pode usar para
o trabalho e deixando-as de fácil acesso, entro em contato com
alguém com quem não falo há um ano. Espero muito que o
número de Açucena ainda seja o mesmo.
— Anna? Não acredito que você está me ligando! — a
alegria em sua voz é genuína e me sinto mais aliviada pelo que
vou pedir a ela.
— Eu senti sua falta. Queria muito te ver, posso te encontrar
na porta da empresa, na hora do almoço, talvez?
— Ah, não tenho horário de almoço, mas tenho alguns
minutos. Vou adorar encontrá-la, só você me avisar quando
estiver aqui.
Fica combinado assim com ela e antes que Leandro saia
com Lucca, vou até ele.
— Leandro, eu poderia usar seu carro de novo hoje? Só
mais uma vez?
— Claro, querida.
— Leandro, você pode providenciar a venda da casa de
Búzios e então comprar um carro seguro e confortável para a
Anna? — Lucca pede me pegando completamente de surpresa.
— Não! Quer parar de tentar se livrar da casa de Búzios?
Eu não preciso de um carro, o Leandro tem três! Eu uso os dele.
— Pisco para Leandro, que entende a deixa e confirma.
— Não vamos comprar um carro para ela, ela usa os meus.
Nada de vender a casa de Búzios.
Lucca resmunga algo sobre não poder fazer isso ele
mesmo, e Leandro o leva porta afora antes que um de nós ceda
a seu pedido maluco.

Espero Açucena no meio da tarde e finalmente ela aparece.


Tem os cabelos, antes compridos, agora curtos e lisos. Também
estão tingidos de castanho, ao invés do loiro de antes.
— Anna! Como é bom vê-la!
Nos abraçamos, ela me fala sobre Miguel e vou direto ao
ponto já que ela não tem muito tempo.
— Eu preciso muito ir ao banheiro, você acha que consegue
me colocar para dentro?
— Claro! Vamos aqui no da recepção.
Ela entra de braços dados comigo e ninguém na portaria
tenta me impedir, pelo contrário, eles me cumprimentam com
alegria. Ao invés de entrarmos no banheiro, guio Açucena até o
estacionamento.
— O que estamos fazendo aqui, Anna? — pergunta
desconfiada.
— Como está sendo o dia do Lucca hoje?
— Pior que o de ontem, se é que isso é possível. Aquiles é
um monstro, Anna. Ele coloca as coisas no caminho dele de
propósito. Não suporto mais vê-lo tropeçando pela empresa o
tempo todo. Ele se sente inútil aqui, Aquiles está cuidando que se
sinta assim.
Sinto um aperto no peito e quero tanto acertar as bolas
desse babaca que minhas mãos tremem.
— Açucena, você precisa cuidar dele.
— Estou tentando. Todos estamos, bem, quase todos.
Lucca era um chefe mal-humorado e afastado. Mas Aquiles é
cruel. Lucca nos prometeu que vai recuperar a empresa e
devolver nossos empregos. Até quem não gostava dele está
disposto a ajudá-lo agora, Anna. Estamos nos revezando para
ajudá-lo sem que o Aquiles perceba.
— Que bom, eu conto com você para cuidar dele.
— Vocês estão juntos?
— Sim. Não! Não como você pensa. Eu trabalho para ele,
sou meio que sua babá.
— Sei... — há um sorriso em seu rosto e ela me avalia dos
pés à cabeça com curiosidade.
— O que foi? Por que está me olhando assim? Açucena,
não temos tempo, qual desses carros aqui é do seu chefe?
— O quê?
— O carro do Aquiles, qual é?
Ela me pega pela mão e me leva até o carro dele. Um SUV
preto, com certeza caro demais, que vai ser levemente
danificado. Tiro o canivete do bolso e Açucena leva as mãos à
cabeça assustada.
— Mas o que você vai fazer?
Com todo esforço, porque esses pneus são duros, consigo
rasgar um. Meus dedos doem, minha mão também, mas rasgo o
segundo. Então o terceiro e o quarto.
— Só vou fazer isso, vamos.
— Anna você é maluca! Há câmeras de segurança aqui!
Dou de ombros e a sigo. Os seguranças estão nos
esperando quando chegamos a recepção. Acho que estou
encrencada, mas então Otavio, um dos seguranças, diz:
— As imagens das gravações de hoje foram apagadas.
Quem sabe o que aconteceu? Vá, Anna.
Agradeço a ele e a Açucena e deixo a Atenas. Isso não vai
diminuir em nada o que ele está fazendo Lucca passar, mas
diminuiu um pouco a raiva que estava acumulada em mim.

Espero ansiosa pela chegada de Lucca. Torço que Açucena


tenha conseguido ajudá-lo de alguma forma. Quando a
campainha soa, vou abrir porque já estava aqui dando voltas
próxima a entrada, me deparo então com Larissa, vulgo a
bonequinha metida.
— Ele não está — digo antes mesmo de cumprimentá-la.
— Eu sei, falei com o Leandro agora, eles estão chegando.
— Ele vai chegar cansado e não precisa de uma visita para
ter que receber — alerto e ela me encara com uma careta.
— Anna, qual é o seu problema comigo?
— Além de você o fazer se sentir um completo inútil? Mais
nenhum, senhorita crepe.
Ela fecha os olhos e respira fundo. Quando os abre, tem um
sorriso no rosto que me irrita.
— Minha intenção não era ofendê-lo de nenhuma maneira.
Gosto do Lucca, mais do que posso explicar, você não
entenderia.
— Estou entendendo muito bem, na verdade.
— Bom, isso nos poupa tempo. Eu gosto dele. Muito.
Sempre gostei. Tive duas chances com ele perdidas graças a
você. De alguma forma, você está sempre em meu caminho,
Anna, então eu gostaria de saber exatamente qual é sua
pretensão com ele. Eu sei que não estão juntos, ele nunca ficaria
com alguém como você, mas você parece demarcá-lo como seu
território, o que me leva a conclusão que você também está
apaixonada por ele.
Não respondo de imediato, mas me sinto ameaçada por
suas palavras. Algo estranho acontece comigo, só quero que ela
vá embora sem que eu precise respondê-la.
— Eu acertei? — insiste com sua presunção.
— Você não passou nem perto — respondo só para destruir
essa certeza em seu rosto de que sabe como me sinto. — Não
estou no seu caminho, você está. Se continuar tratando-o como
um completo inútil, não vai demorar para que ele corte você de
sua vida. E eu não terei nada a ver com isso.
Ela parece sem graça e me sinto um pouco melhor. Logo,
ouço a voz de Leandro e Lucca vem atrás dele. A expressão de
Leandro não é das melhores, então o dia de Lucca não foi fácil.
Sei que o sorriso que coloca no rosto ao ver Larissa é falso. Ele
também não a queria aqui.

Após todos acomodados na sala, vou à cozinha ajudar


Alberta com os aperitivos. Separo um prato e uma bandeja para
Lucca e vou direto até ele antes que a senhorita apaixonada
tente alimentá-lo e acabe piorando seu dia. Coloco a bandeja
com cuidado sobre suas pernas e explico como estão dispostos
nela. Então me sento ao seu lado, no braço do sofá. Ele tem um
sorriso no rosto e Larissa, um olhar irritado.
Leandro conta a ela a condição em que Lucca está na
empresa, e assim como todos com um pouco de senso, ela não
concorda que ele continue lá. Após tentar convencê-lo a desistir,
tem outra ideia:
— Posso me aproximar dele. Posso fingir ser sua amiga,
fingir estar interessada na empresa e descobrir o que ele planeja.
Eu não saio com muitos homens, mas sou capaz de seduzir
qualquer um — seus olhos buscam a mim quando diz isso com
tanta certeza.
— Ele é casado — anuncio cortando seu plano. — E é fiel.
— Como você sabe disso, Anna? — Leandro pergunta e
percebo que Lucca está com a mão parada no ar, esperando
minha explicação.
Opa!
— Eu li na internet.
— Tem esse tipo de informação sobre ele na internet? —
Leandro pergunta ainda mais desconfiado.
— Sim, Leandro, senão como eu saberia?
Isso parece servir, eles voltam a atenção a que ajuda
Larissa, sendo influente como é, pode dar. Lucca está calado,
imagino que louco para descansar. E, finalmente, Leandro
comenta sobre os pneus do carro de Aquiles rasgados.
— E as câmeras de segurança não pegaram nada. Ele ficou
furioso! Foi embora de Uber! — Leandro comenta rindo e Lucca
também tem um sorriso satisfeito.
Então meu esforço não foi em vão.
— Para onde você foi com o carro do Leandro hoje, Anna?
— Lucca pergunta de repente, despreocupado, com um sorriso
que me é estranho.
— Por aí, pelo centro.
— Curioso, Açucena não parou de falar de você por toda
tarde e do quanto ficou feliz em te ver.
— Nos encontramos por acaso — enrolo, mas pressinto
que ele sabe de alguma coisa que não deveria saber.
— Ela até mencionou que o Aquiles teria uma surpresa que
você deixou para ele.
Reviro os olhos derrotada e Leandro me encara em choque.
— Você fez isso? Rasgou os pneus do carro dele?
— Mas ele mereceu! — me defendo, esperando a bronca.
— Anna, você é incrível! Eu te amo! — Leandro brinca e
vem até mim, me puxando para um abraço, cobrindo meu rosto
com beijos.
Lucca grita em seguida e percebo que derramou café
quente em sua roupa. Me afasto de Leandro e tiro a bandeja de
seu colo, ajudando-o a levantar-se.
— Não está na hora da minha injeção? — ele pergunta.
— Sim, vamos subir. Vamos limpar isso e aplicar seu
remédio.
Coloco a bengala em sua mão e ele se despede de Larissa.
Deixamos a sala, mas antes de alcançarmos as escadas, Larissa
corre atrás dele.
— Lucca, eu só preciso te pedir uma coisa, é bem rápido.
Eu sei que este não é o momento e vou entender se você não
estiver se sentindo bem para isso, mas nós poderíamos jantar
qualquer dia desses?
— Claro! Você pode ficar aqui e...
— Não, você não entendeu. Só nós dois, um jantar
particular. Que não vai acabar na sala de jantar.
Estou boquiaberta com seu atrevimento, mas ela não se
importa. Lucca parece surpreso. Ele demora bastante a dar uma
resposta e me sinto suar frio. Claro que ele vai dizer não!
— Larissa, não sou mais o mesmo homem que saiu com
você antes. Tenho muitas cicatrizes agora, não são bonitas.
Meus olhos foram destruídos no acidente, assim como a pele em
volta deles. Querida, eu acredito que seja muito para alguém
suportar.
Eu poderia interrompê-lo e dizer que não são. Que ele é
lindo e desejável e ela está certa por querê-lo, mas não digo. Me
sinto egoísta por isso, mas não abro a boca. Prefiro que ele a
dispense.
— Eu realmente não me importo, Lucca. Poxa, achei que
você me conhecesse melhor do que isso. Vamos fazer assim,
você pensa com carinho, escolhe o dia e a gente só janta. Vamos
ver no que dá.
Ele concorda, então minha boca se abre e palavras saem
dela sem que eu possa controlá-las.
— Ah, que legal, se é só um jantar Leandro e eu vamos
adorar participar!
Lucca agora tem um sorriso e Larissa uma careta.
— Acho que ela ainda quer um jantar privado, Anna — ele
explica com calma.
— Tenho certeza que ela entendeu — a senhorita
apaixonada completa.
— Que seja! — Os deixo a sós e subo as escadas me
sentindo completamente irritada.
Lucca sabe escolher sua roupa sozinho, vou esperar
apenas para pegar a suja e conferir se sua pele não está
queimada e então deixá-lo se virar. Já que ele quer fazer a coisas
sozinho, que faça! Por que parece que estou tendo um dèjá vu?
— Anna! — ouço-o chamar, provavelmente perdido após
subir as escadas.
— Vinte e três passos, Lucca.
Logo, escuto o som da bengala e ele está no quarto, tem
um sorriso de orelha a orelha irritante.
— Então, como vai ser isso? Você vai tirar a minha calça e
me limpar?
— Você, por acaso, é um bebê?
— Se isso acabar com você tirando minha calça, então eu
sou.
— Não vou, não. Mas alguém vai, não é? O jantar não vai
acabar na sala de jantar.
Ele tira a calça devagar, aquele sorriso irritante ainda em
seu rosto. Aproveito para arrumar sua cama enquanto ele fica
parado.
— Você pode ir para o banho, o que está esperando? —
ralho ao verificar que sua pele não está queimada.
— Estou esperando seu pedido.
Aproximo-me dele e cruzo os braços, esse sorriso está
mesmo me irritando.
— Que pedido?
— Para eu não jantar com a Larissa. Vamos, eu sei que
você quer, peça e irei atendê-la.
Será que é uma pegadinha? Eu vou pedir, ele vai dizer que
tem razão e que estou com ciúmes e vai sair com ela assim
mesmo? Encaro esse homem lindo, com esse sorriso irritante e
essa expressão completamente oposta a que estava quando
chegou de mais um dia difícil, e entendo que ele quer isso. Está
feliz porque as mulheres ainda se interessam por ele e deveria
mesmo estar. São poucas as coisas que gostava de fazer e que
pode fazer agora, seja por sua condição física, financeira ou
psicológica. E eu não deveria estar tão irritada por isso. Respiro
fundo e respondo.
— Fico feliz que você tenha percebido que não perdeu seu
prazer, Lucca.
Ele parece surpreso.
— Fica? De verdade? Não vai pedir para eu não jantar com
ela?
— Não, por que eu faria isso?
— Tem razão, você não sente mesmo ciúmes de mim. Bom,
neste caso, vou mesmo jantar com ela. Foi bom ter tido essa
experiência primeiro com você, Anna. Eu estava desesperado,
você me deixou louco, eu precisava tanto entrar em você que
não dei muito tempo para as preliminares. Também gozei bem
mais rápido do que costumava. Você sabe, muito tempo sem
prazer. Agora posso fazer isso direito, com calma, do jeito certo.
Pronto. Aqui estou eu irritada ao extremo de novo.
— Como assim jeito certo? Por acaso o que você fez
comigo foi errado?
— Não foi errado, meu bem, mas foi incompleto, rápido
demais. Eu não apreciei você como deveria, não te dei o prazer
que você merecia. Agora que não estou tão afoito, vou fazer isso
devagar.
Estou torcendo a barra da minha blusa e não faço ideia do
motivo.
— Não sabia que tinha tempo certo — comento tentando
conter meu descontentamento para deixar seu quarto como a
vencedora dessa batalha.
— Ah, mas tem. O tempo de eu conhecer cada centímetro
do seu corpo. Não posso mais fazer isso com os olhos, então
precisarei fazer com as mãos, com a boca, com a língua. O
tempo de eu perceber onde minha boca vai tocá-la e você vai
gemer mais alto. Onde estão seus pontos fracos. — Sua voz é
baixa e rouca e minha respiração começa a falhar. — O tempo de
eu saboreá-la até você se derramar na minha boca, para eu
saber qual é seu gosto. O tempo de tocá-la devagar, mas com
força, só para torturar você, para você ficar ansiosa que eu a
penetre e acabe com isso. O tempo de eu experimentá-la em
várias posições diferentes, até descobrir em qual delas meu pau
vai mais fundo...
Saio correndo de seu quarto e vou direto para o chuveiro do
meu. Mudo a temperatura para fria e fico aqui, de roupa e tudo,
me sentindo pulsar lá embaixo, me sentindo cair aqui em cima.
Ele vai fazer isso, tudo o que disse, com ela. Não é meu corpo
que ele vai conhecer assim, tão intimamente, tão
prazerosamente, é o dela.
Por que isso me parece tão errado?

Esta manhã, pedi a Alberta que fosse auxiliar Lucca e não o


vi antes que ele saísse. Agora, ao final da tarde, me sinto horrível
por isso. Ele não se sente bem com pessoas vendo o que não é
capaz de fazer sozinho e eu não devia ter imposto isso a ele só
porque estou irritada que ele vá transar com outra mulher. Como
se eu fosse algo dele para ter o direito de me irritar!
Para piorar a má pessoa que estou me sentindo, ainda
precisei entrar em seu quarto e ligar seu laptop sem seu
consentimento. Mas bem, eu preciso mesmo fazer isso e ele nem
usa esse laptop mesmo. Não sei há quanto tempo estou aqui,
esperando que ela apareça, fazendo hora na internet, de olho no
relógio para sair daqui antes que Lucca chegue, quando de
repente a porta de seu quarto é aberta e ele entra.
Estou deitada em sua cama, meus sapatos provavelmente
em seu caminho, e torço muito que ele vá direto ao banheiro e
não me perceba aqui.
— Por que você está aqui, Anna? Achei que não quisesse
me ver hoje.
— Eu vim usar seu laptop. Antes que você brigue por minha
pequena invasão, vou deixar claro que seu quarto é meu
ambiente também, e você nem usa esse laptop — me defendo.
— Eu não ia brigar — comenta e se senta na cama, tirando
os sapatos. — O que você está fazendo no laptop? Pesquisando
sobre o Aquiles?
Minha respiração chega a acelerar com o quão perto ele
chegou.
— Estava escrevendo meu livro, claro.
— Mesmo? E o que aconteceu no capítulo de hoje?
— Meu babaca teve um encontro com uma mulher fútil e
sem graça. Ele estava muito feliz, porque ia transar de novo, mas
não conseguiu chegar lá.
— Sério? E você o chama de babaca com sorte?
— O acidente mudou a vida dele, sua cabeça, sua alma,
seu coração. Ele só vai sentir prazer com a mulher a quem amar
de verdade.
Ele pensa um pouco, logo, um sorriso surge em seu rosto.
— Então ele vai ficar transando com várias mulheres até
sentir prazer com uma e descobrir que ela é a mulher de sua
vida? Isso é um livro erótico? Que safada, você, Anna!
— Não! Como você é babaca! Isso é um romance!
— Hum, achei que fosse um relato da vida do seu babaca.
— Também. A história dele vai se encaminhar para um
romance, para um amor desses de tirar o juízo.
Ele se levanta e começa a tirar a blusa. Observo seu corpo
se revelando e ainda não acho certo que outra mulher vá
apreciá-lo também. Só eu conheço suas cicatrizes, as marcas, o
caminho que as gotas de água percorrem quando ele está
molhado. Ele pode ter tido muitas mulheres antes, mas não
agora quando está tão diferente. Ele só teve a mim agora. Por
que então ele quer outra pessoa?
— E você sabe como é um sentimento assim para escrevê-
lo? — pergunta quando está apenas com a boxer.
Observo seu corpo, seu rosto cansado, noto a diversão em
seu tom de voz por me provocar. Me imagino seguindo-o ao
banheiro agora, entrando com ele, ensaboando seu corpo e
fazendo com ele tudo o que disse que devia ter feito comigo.
— É, estou começando a achar que sei — respondo sem
pensar.
Ele para o movimento de tirar a boxer. Me levanto de sua
cama para deixá-lo à vontade, mas quando passo por ele, ele
segura meu braço.
— Você está bem, Anna?
— Eu é quem deveria te fazer essa pergunta. Como foi
hoje?
— Pior do que ontem. Vai ser assim todos os dias. Sou um
inútil agora, eu sou toda a munição que ele precisa para
continuar se divertindo.
— Então não seja. Não permita. Seja você.
— Se eu soubesse como fazer isso...
Sua mão continua em meu braço e, devagar, ele puxa meu
corpo de encontro ao seu. Estamos bem próximos agora. Toco
seu rosto, acariciando-o e ele sorri.
— Você só precisa pedir, Anna — sussurra. — Peça e
nunca mais eu tocarei outra mulher.
— Você não está falando sério.
— Experimenta.
Me liberto de sua mão sobre meu braço e o abraço. Ele me
abraça de volta. Ficamos assim algum tempo, porque quero pedir
a ele que não saia com ela, mas não entendo o que sinto. Minha
cabeça parece uma bagunça, meu peito também.
— Você tem todo tempo do mundo — ele sussurra beijando
meu cabelo.
— Então você não vai jantar com ela por agora?
— Amanhã à noite — responde.
— Amanhã? — grito me afastando. — Mas você disse que
tenho todo tempo!
— De quanto tempo mais você precisa? — pergunta com
um sorriso. — Seja qual for, se não for agora, para mim é tempo
demais — explica caminhando até o banheiro como se isso não
fosse nada demais.
— No próximo capítulo do meu livro, meu babaca vai sofrer
um acidente e perder o pênis! Pronto! Nunca mais vai encontrar o
amor da sua vida!
— Então você vai ter que mudar o título do livro! — grita de
dentro do banheiro e o barulho da água começa em seguida.
Saio de seu quarto irritada e me sinto assim por toda noite.

É sábado, Lucca está livre de ter que lidar com Aquiles


hoje, mas também, é a noite de seu encontro. Estou sentada nas
escadas perdida na bagunça da minha cabeça, quando alguém
se senta ao meu lado.
— Bom dia, o que se passa por essa sua cabecinha linda?
— Leandro pergunta.
— O que aconteceu no serviço ontem? Como ele se saiu?
— Uma hora ele ficou feliz, porque quase todo mundo lá
dentro quer ajudá-lo. Mas depois ele se deu conta que essas
pessoas contam com ele, esperam que ele vá salvar seus
empregos.
— Mas ele vai, não vai?
— Espero que sim. Anna, há algo de errado em tudo isso. E
não vou dizer que o Lucca vai recuperar a Atenas de um jeito
fácil, porque eu não suportaria o que ele tem suportado, mas não
acho mesmo que o Aquiles vá devolver a empresa. Mesmo
depois de trinta dias infernais para o Lucca.
— Mas você viu o documento.
— Eu sei, eu vi. Mas ainda assim, algo não bate.
— Eu queria poder fazer alguma coisa para ajudá-lo.
— Todos nós, linda. Infelizmente, ninguém pode.
Observo sua sala de estar enorme, com móveis demais que
estão sempre no caminho do Lucca. Se esta casa fosse dele eu
mudaria tudo isso, a deixaria o mais adaptável possível para ele.
— Leandro, você se importaria se mudássemos algumas
coisas aqui? Quer dizer, há coisas demais na sua casa, ele
nunca vai aprender a se locomover assim. Precisamos facilitar
para ele.
Me levanto já pensando no que poderíamos tirar. Leandro
me segue, tem um sorriso no rosto, mas não fala nada.
— Você não é obrigado a fazer isso, de jeito nenhum. É só
uma ideia para ele se sentir em casa. Mas apenas para que
saiba, você seria um bom amigo se fizesse.
Ele está sorrindo quando o encaro esperando a resposta.
— Anna, o que eu mais quero é que ele se sinta em casa.
Ele precisa sentir que está em um lugar dele. Por mim você pode
tirar todos os móveis desta casa. O que você sugere?
— Vamos começar com esse vaso. Ele vai acabar por
acertá-lo com a bengala mais dia, menos dia, podemos tirá-lo? É
só temporariamente.
Leandro pega o vaso que fica logo no começo das escadas
e chama por Alberta, pedindo ajuda para guardar tudo o que
vamos tirar. Para minha surpresa, Alberta concorda com a ideia e
nos ajuda a eliminar tudo que possa ficar no caminho de Lucca.
Ao menos a sala de estar, de jantar e o hall de entrada estão
agora livres para que ele circule.
Quando Lucca desce, o aviso assim que chega aos pés da
escada.
— Doze passos até o sofá, à sua esquerda. Dezesseis até
as poltronas. A sala de jantar está depois das poltronas, mais
dezoito passos.
Ele sorri. Suspende e bengala e conta os passos, se
sentando assim no sofá.
— E a mesa de centro? — pergunta.
— Quem precisa de uma mesa de centro? — é Leandro
quem responde.
— Por que você se sentou? Vamos tomar o café da manhã
na sala de jantar hoje — aviso.
Ele se levanta e conta os passos, chegando sem problemas
à sala de jantar. Leandro e eu o seguimos, menciono os passos
até a cadeira mais próxima, ele não tem dificuldades em chegar
até ela, puxá-la e se sentar. Nos sentamos em seguida e ele está
sorrindo.
— Você não precisava ter feito isso, Leandro — diz.
— Eu devia ter feito isso antes mesmo de você ter chegado,
amigo. Ainda bem que nossa Anna é tão esperta.
Ele estende a mão e deposito a minha sobre a sua, então
ele a leva aos lábios em um beijo leve.
— Obrigado, meu anjo.
E por todo dia me sinto feliz, leve, quase radiante.
Até que a noite chega. E com ela, o jantar que não vai
acabar na sala de jantar de Lucca e a senhorita apaixonada. Ele
me pede ajuda para escolher a roupa, e o faço só porque sou
obrigada. Deixo isso claro para ele, que tem esse sorriso irritante
no rosto há tempo demais.
— Você não prefere descansar? Você tem saído todos os
dias, trabalhado duro, por que não deita um pouco? Escute umas
músicas, uns livros... — sugiro como quem não quer nada e
minha resposta é sua risada. — Vai jantar, então! Tomara que
você fique bem cansado!
Então ele ri mais alto.
Fico sentada na cama de braços cruzados observando-o se
arrumar. Por que escolhi uma roupa tão elegante? Ele usa uma
blusa social azul escura de manga curta e calça social branca.
Seus cabelos, um pouco mais compridos, conferem um ar
bagunçado e quando passa o perfume e seu cheiro me atinge,
quero chorar.
— Se você quiser, posso dar detalhes do meu encontro a
você quando acabar — oferece.
— Por que eu ia querer isso?
— Para você colocar no seu livro. — Reviro os olhos e não
respondo mais. — Se eu sentir prazer, talvez seja uma coisa boa,
Anna. Larissa tem um apelido entre os membros masculinos da
sociedade: santinha.
— Não consigo imaginar o motivo — comento de má
vontade.
— Ela não sai com muitos caras, ela quer se entregar ao
homem com quem vai se casar.
Estou de pé tão rápido que nem sei explicar como isso
aconteceu. Lucca pega a bengala e abre a porta me fazendo
correr até ela e a fechar impedindo que ele passe.
— Como assim se casar? Está dizendo que ela quer se
casar com você?
— Sim. Não é incrível? Apesar de eu ter perdido tudo e
estar cego.
— Então, você sabe disso e ainda assim vai jantar ela?
— Vou jantar com ela — corrige. — Sim, o Lucca de antes
tentou levá-la para a cama duas vezes para depois dar o fora
nela sem o menor remorso, mas esse Lucca de agora, jamais
faria isso com uma mulher.
Ele tenta passar por mim, mas não permito.
— Lucca! Você está falando sobre se casar com ela! Ela
não faz mais o seu tipo, você mudou, ela é fútil demais, vocês
não vão dar certo!
— Anna, mas por que é que você está gritando? Quer que
ela escute da casa dela?
— Na verdade eu quero! Você é mesmo um cego! Ela se
mudou para a casa ao lado do seu melhor amigo, esperando por
você!
— E como ela adivinhou que eu ia morar aqui?
— Não sei! Talvez ela seja uma bruxa!
Sei que isso é ridículo, mas algo está errado, não é possível
que ele não perceba.
— Anna, pare de bobagem e me deixa passar. A não ser,
claro, que você queira me pedir para não fazer isso.
— Não faça isso! — peço imediatamente. Ele sorri, tem um
sorriso tão lindo que meu peito quase derrete.
— Por que não?
— Você não disse que eu teria que dar um motivo.
— Mas tem. Por que não? Me fale o motivo e se for
convincente eu não faço.
— Porque você não devia se casar assim, com a primeira
mulher que te dá mole. Muitas outras ainda vão dar em cima de
você. Meu Deus, agora estou percebendo que muitas mulheres
dão em cima de você, você dá muito trabalho! Quer dizer, vai dar
muito trabalho. Que saber? Vai logo para o seu jantar!
Vou para meu quarto e não me sinto mais irritada. Me sinto
ferida. Lucca está me machucando.
Não, eu estou me machucando.
Nunca na vida senti tanto medo de perder algo que não é
meu. Isso é ter ciúmes? É não fazer mais nenhum sentido?
Leandro bate na porta e quando a abro, me chama para jantar
fora com ele e Açucena.
— Você vai jantar com a Açucena?
— Vamos com algumas pessoas do trabalho, a mencionei
porque é sua amiga.
— Sei... não, obrigada.
— Você sabe que precisa sair e dar privacidade a eles, não
sabe?
— Não, por que? Vou ficar quietinha no meu quarto.
— Vai mesmo? Se você ouvir algo acontecendo no quarto
ao lado, vai ficar quietinha aí?
— Vou pegar minha bolsa.
— Eu te espero lá embaixo.
Assim, me arrumo sem a menor vontade e desço as
escadas para encontrar Leandro. Ele comemora por Lucca estar
dando um passo que é tão importante para ele, um passo que o
leva de volta à normalidade, ao Lucca de sempre. Enquanto eu,
egoistamente, só quero chorar. Larissa chega quando estamos
saindo. Está tão bonita que se Lucca pudesse ver, a pediria em
casamento. Ela diz a Leandro que pediu comida no restaurante
preferido de Lucca e eu não sei nem mesmo qual é a comida
preferida dele, ainda mais o restaurante. E praticamente nos
coloca para fora, guiando Lucca pela mão até a sala de jantar.
Ele vai mesmo fazer isso.
Leandro abre a porta do carro para que eu entre e o faço.
Ele entra também, diz algo que não escuto e arranca com o
carro. E para no quarteirão seguinte, chamando minha atenção.
— Qual é o seu problema, Anna? Você não está mesmo
apaixonada por ele? Porque seus olhos, a maneira como se
move ao redor dele, e, principalmente, sua expressão agora
dizem o contrário.
— Leandro, se eu estivesse apaixonada por ele, meu
coração estaria sangrando agora?
— Acho que sim, minha linda. Você o está deixando com
outra pessoa. Isso machuca. Estou falando por conhecimento de
causa.
Encaro meu amigo aqui, vejo a tristeza em seu rosto, ele
está apaixonado por alguém também.
— Como a gente faz para melhorar?
— No seu caso desça do carro, vá até lá e diga a ele o que
você sente. Simples assim.
— Não é simples assim. Ele nunca se apaixonaria por
alguém como eu.
— Anna, meu Deus, será que cegueira é contagiosa? —
pergunta colocando as mãos nos cabelos. — Olha pra mim! —
Obedeço e ele diz sério. — Você quer mais do que tudo no
mundo ir até lá e mostrar para ele que você é melhor para ele do
que ela?
— Sim! Como você sabe?
— Você, querida, está apaixonada. Essa dor no peito é
amor, essa raiva nos olhos é ciúmes.
— E a loucura que está em minha cabeça?
— Acho que isso faz parte de você desde sempre, meu
bem — brinca sorrindo.
O encaro aqui, ele liga de novo o carro, mas tiro meu cinto
de segurança e abro a porta.
— Tchau, Leandro, boa noite para você e a Açucena.
— Terão mais pessoas lá, mas boa noite, Anna. Boa sorte.
— Valeu.
Volto para trás, caminhando apressada em meus saltos. Ao
invés de entrar como uma pessoa normal, assumo minha loucura
e dou a volta pela casa, até a janela da sala de jantar. Eles estão
jantando à luz de velas. Como ela é ridícula! Ele não pode ver e
ela está arriscando que ele comece um incêndio por nada!
Eles jantam devagar e ainda estou aqui fora, sem saber
como faço isso. Se eu abrir essa porta e for até lá estarei
arriscando muito. Larissa está certa, Lucca nunca se apaixonaria
por alguém como eu, o que sente por mim é diferente, carinho,
gratidão, tesão, afinal, eu era a única mulher perto dele todos os
dias. Mas não amor. Isso não. Então eu posso abrir a porta, dizer
a ele que fique comigo e ele pode até pedir a ela que nos deixe a
sós para não me ferir, mas não vai passar disso. Eu seria sua
companheira de cama, mas ele só ficaria de verdade com
alguém como ela.
Ainda assim, ao invés de ir embora, fico aqui, colada na
janela como uma maluca, observando a interação entre eles.
Lucca chega a girar a cabeça na direção da janela que estou.
Mas claro que não tem como saber que estou aqui. Me escondo
antes que Larissa faça o mesmo e me veja.
Nunca me apaixonei por ninguém. Mas se esse medo, essa
tristeza, essa bagunça interior, essa vontade de dar a cara a tapa
e tirá-lo dela não forem paixão, é loucura. Bem, é paixão e não
quer dizer que não seja louco. Porque me sinto assim, fora de
órbita, confusa, completamente maluca.
Quando volto a olhar da janela, eles não estão mais. Corro
até a janela da sala de estar e os vejo subindo as escadas. Ele a
está levando para o quarto. E eles nem terminaram de jantar!
Depois que fizerem isso, esse Lucca por quem me apaixonei terá
tocado em outra mulher. Terá sentido prazer com ela, não serei
única para ele em nada. Ele vai se casar com ela, o vejo fazendo
isso, o que mais ele espera da vida?
Desesperada, entro em casa pela porta dos fundos. Vou até
o disjuntor de energia e desligo a luz. Então volto para fora, a
noite está nublada, quase não vejo nada na área externa e
espero. Espero que ela vá embora, mas não acontece. Claro que
não! Para Lucca não faz diferença e para ela, acabei de dar a
desculpa perfeita pra eles ficarem na cama ao invés de se
aventurarem a descer as escadas. Corro de volta a área de
serviço e ligo de novo o disjuntor. A luz volta, volto para fora e
tento observar. Nenhum barulho, nada. Vou para a parte de trás,
onde fica a janela de seu quarto. A luz lá está apagada, essa
sem vergonha apagou a luz. Será que não precisam mais da luz
acesa? O que eles estão fazendo? A janela de seu quarto está
aberta, e se eu jogasse alguma coisa lá dentro? Isso os distrairia,
os assustaria, talvez?
Me viro para trás para procurar uma pedrinha, que não seja
muito grande, mas também não muito pequena, quando piso em
falso, me desequilibro e caio para trás. Dentro da piscina.
Tento ficar de pé, apesar de beber muita água, mas meus
sapatos escorregam e me desespero com medo de morrer
afogada. Tento pedir ajuda, mas não consigo ficar de pé. Só
preciso ficar de pé. Os saltos escorregam, a piscina é funda
demais, ela me cobre. Preciso ficar de pé, mas não há mais ar.
Meus olhos fecham, a respiração para e tudo para então.
Como eu imaginava, consegui derramar algo em minha
roupa antes que o jantar agradável chegasse a seu fim. Larissa
prontamente me acompanhou até meu quarto para me ajudar a
trocar de roupa, mesmo eu tendo insistido que não era
necessário. Ela disse que a luz acabou em seguida e sugeri que
voltássemos então para a sala, já que não seria possível que ela
me ajudasse de alguma maneira no escuro.
Agora, enquanto desço as escadas e ela segura minha mão
e vai avisando degrau por degrau, como se eu não tivesse
capacidade para perceber o tamanho dos degraus a partir dos
primeiros, me pergunto o que estou fazendo. Eu esperava
mesmo que Anna fosse assumir algum tipo de sentimento por
mim apenas pela pequena chance de eu dormir com outra
mulher. Ainda que fosse uma espécie de posse pela noite que
passamos juntos ou pela amizade que temos agora. Mas não. E
se toda a maluquice dela quando outra mulher se aproxima de
mim não é porque ela possa me desejar de alguma maneira, não
sei mais o que é. Anna é diferente de qualquer outra pessoa que
eu já tenha conhecido, é imprevisível e indecifrável. Quando
penso que estamos avançando, parece que dou dois passos
para trás.
— Vamos nos sentar na sala de estar — Larissa oferece e
concordo, mas então escuto um barulho estranho, como um grito.
Seguido do barulho de alguém mergulhando na água.
— Há mais alguém aqui? — Larissa pergunta, mas não sou
capaz de responder porque tenho um sentimento estranho agora.
Uma corrente de vento entra por alguma janela próxima, algo
está errado. Penso em Anna e quase me sinto sem ar.
— Anna! Anna!
Tento me lembrar de que lado fica o hall de entrada, eu já
fui até ele uma vez, não posso ter esquecido.
— O que foi, Lucca? Por que está tão agitado?
— A piscina, ela não sabe nadar. Me leve até a piscina.
— Quem não sabe nadar?
— A piscina, Larissa! Me leve até lá! — grito desesperado.
— Tudo bem!
Ela pega minha mão e me puxa pela entrada da frente,
damos a volta na casa, vou tropeçando nas coisas, mas não me
importo. De repente ela para e seu tom de voz é assustado.
— Ah, meu Deus! Anna!
Não preciso ouvir mais nada. Deixo a bengala de lado e
corro. Tenho noção de onde a piscina fica, era o lugar que eu
mais frequentava quando vinha à casa de Leandro antes.
Esbarro em uma espreguiçadeira, sinto a dor na perna, mas a
ignoro. Corro em frente e caio na piscina.
— Anna! Anna!
Tateio a água, tento andar por sua extensão, mas não
posso vê-la.
— Meu Deus, eu preciso vê-la! Preciso vê-la!
— À sua esquerda, Lucca. Vá mais para a esquerda —
Larissa grita e o faço.
E finalmente a alcanço. Me abaixo e a pego no colo. Ela
está desmaiada, ou estaria gritando. Se estivesse acordada ela
se penduraria em mim para se salvar. Ando para a frente,
encontro a borda da piscina e deposito Anna com cuidado sobre
ela, saindo da água em seguida. Seu pulso está fraco, tateio seu
corpo até achar seu peito e faço pressão. Uma vez, duas, mais
uma vez. Não funciona.
— Anna, não faça isso comigo. Acorda, amor, responda.
Anna!
Subo as mãos por seus braços, seguro seu rosto cobrindo
seu nariz e levo meus lábios aos seus. Sopro o ar com força,
mais uma vez e mais uma. Finalmente ela se mexe. Anna cospe
água, escuto o barulho do líquido caindo, ela está viva. Tosse em
seguida, e se joga sobre mim.
— Lucca — ela está chorando, assustada, seu corpo está
gelado, mas sei que seu tremor não é apenas pelo frio que sente.
— Está tudo bem, amor. Está tudo bem. Fica calma, já vai
passar, está tudo bem.
— Eu não conseguia ficar em pé.
— Eu sei, essa piscina é funda demais, eu disse ao
Leandro uma vez que alguém acabaria se afogando, eu sinto
muito, meu anjo.
Ela chora baixinho abraçada a mim. A sustento em meu
colo, tento acalmá-la e faço uma oração interna agradecendo a
Deus por eu ter conseguido.
— Anna, você precisa se trocar, precisa de um banho
quente, você está tremendo — a voz de Larissa faz Anna se
afastar de mim, mas não estou pronto para me afastar dela.
Anna me ajuda a levantar e seguro forte sua mão para que
ela entenda que não posso perder nosso contato ainda.
— Você pulou na água — ela comenta baixinho. — Pulou
na água e me salvou. Você salvou a minha vida, Lucca. — Há
tanta admiração em sua voz, um calor bem-vindo surge em meu
peito, desse calor que só ela me causa. Esse calor que tira todo
o frio, o susto, o medo. Ela se lança sobre mim de novo e a
abraço.
— O que você estava fazendo aqui, Anna? — Larissa
pergunta, não há acusação em sua voz, apenas curiosidade.
— Não é hora para isso, Larissa. Eu sinto muito, preciso
cuidar dela, podemos terminar esse jantar outra noite? — peço.
— Mas você a salvou, não há nada que possa fazer agora,
eu... — ela desiste e por fim, concorda. — Tudo bem, claro. Nos
vemos outra noite. Espero que você fique bem, Anna.
— Obrigada — Anna responde, se prendendo ainda mais a
mim.
Assim que o som dos passos de Larissa soa distante, Anna
me guia para dentro de casa de novo. Subimos as escadas em
silêncio, pingando pelo piso de madeira de Leandro.
— Você precisa de um banho quente, Anna. Está gelada.
— Você também.
— Por incrível que pareça não sinto frio — respondo, mas
me dou conta do que estou dizendo e me corrijo antes que seja
tarde demais. — Na verdade, eu estou com muito frio, a água
estava gelada, você me deu um susto enorme, acho que deveria
tomar banho comigo. Só para eu ter certeza que você está bem.
Escuto sua risada baixa. Ela não solta minha mão, vem
comigo até meu quarto. Não sei se para atender ao meu apelo ou
apenas para me deixar aqui.
— Eu não estou pronto para ficar longe de você agora,
Anna — admito. — Fica comigo.
— Não vou me afastar de você. Vamos tirar essas roupas.
Só então permito que solte minha mão.
— O que houve com sua calça?
— Derramei vinho. Viemos aqui para trocá-la, mas a luz
acabou bem na hora, não foi possível.
— Então eu acertei! — ela grita animada, mas se corrige
em seguida. — Vou te ajudar com isso.
Anna desligou a luz, estava aqui porque não foi capaz de
me deixar sozinho com outra. Apesar do susto de agora pouco,
no momento, enquanto constato o quanto ela se importa,
enquanto me guia até o banheiro e me ajuda a tirar minha roupa,
me sinto calmo. É como encontrar meu lar de novo. E eu não
fazia ideia que o lar podia ser uma pessoa.
Anna liga o chuveiro, entro sob a água quente e ela não
vem comigo, estendo a mão encorajando-a. Funciona. Ela toca
minha mão e logo, seu corpo está próximo demais ao meu.
— Eu achei que fosse morrer — confessa baixinho.
— Eu sei, meu bem. Mas você sabe que não pode me
deixar aqui sozinho, não é? O que seria de mim sem você,
Anna?
Ela ri baixinho, sua respiração se normalizando, acha que
estou brincando.
— Sinto muito por ter estragado o seu jantar — diz.
— Não, você não sente.
— Tem razão, mas deveria sentir, então me desculpo assim
mesmo.
— Não deveria, Anna. Precisa mesmo de tudo isso para
você admitir que...
— Eu quero você. O bastante para sentir ciúmes, o
bastante para não querer que você toque outra mulher, para não
querer suas mãos em outra pele, sua boca em outros lábios, nem
seu coração acelerado por mais ninguém. Eu quero ser sua de
novo. Quero que faça comigo tudo o que disse que faria com ela.
Eu...
Seguro seu rosto entre minhas mãos e baixo minha boca de
encontro a sua. Tenho ciência de uma maneira deliciosa de como
seus seios estão encostados em minha pele e seus toques leves
em meus braços. Em pensar que poucos minutos atrás quase a
perdi! A prendo em meus braços sem qualquer cuidado, só com
esse desespero, com essa fome que tenho dela. O beijo, antes
calmo, agora é como uma tempestade, mexendo com todo meu
corpo, agitando meu peito, me desligando do mundo. Ficamos
um tempo abraçados sob a água quente. Até que sinto seu
corpo, antes gelado, aquecer. Deslizo as mãos por sua pele
macia e ela está quente agora. Sua respiração está acelerada,
suas mãos apoiadas em meu peito.
— Eu não ia para a cama com ela. Nem estava pensando
nisso. Só queria irritar você.
— Eu devia odiá-lo por isso. Mas bem, você venceu, me
irritou muito, quase me deixou maluca.
— Então faça amor comigo agora, minha Anna. Não aqui,
de pé sob a água, mas faça amor comigo direito. Quero amá-la
devagar, com calma, conhecê-la como anseio há mais de um
ano. Quero provar você, tocar você, tirar você de órbita, como faz
comigo.
— Você não precisa de muito para conseguir isso —
comenta baixinho, sorrindo quando nossos lábios se encontram.
Desligo o chuveiro e ela se afasta, logo, passa a toalha por meu
corpo, secando a água que deixa um rastro frio ao ser soprada
pelo vento. A abraço quando termina, enrolando-a na toalha. A
beijo de novo, porque posso fazer isso, porque ela está aqui, está
em meus braços, nua, disposta, carinhosa e quente.
Como eu queria poder vê-la! É o que mais queria neste
momento. Mas vou fazer isso da melhor maneira que posso
agora. A guio até a cama. Antes de me jogar sobre ela, caminho
até a porta e a tranco, para o caso de Leandro chegar cedo
demais. Então caminho devagar até ela. Até meu presente, meu
lugar. Subo na cama onde ela está deitada, queria poder
imaginá-la nua agora sobre esta cama esperando por mim. Toco
seu pé e ela ri. Subo devagar meus dedos por sua pele macia,
passo por suas coxas, seu riso morre aqui. Com a ponta dos
dedos a contorno, subo mais devagar, chegando à sua barriga. A
toco tão de leve e Anna emite um pequeno gemido, se move um
pouco, ela está ansiosa, mas não tenho pressa, tenho todo o
tempo do mundo para amá-la esta noite. Subo devagar as duas
mãos tocando sua pele, conhecendo suas curvas até chegar aos
seus seios. Eu já os toquei antes, já os provei antes, e ainda
assim é excitante e delicioso tocá-los agora. Anna geme baixinho
de novo, sinto seu corpo se mover sobre o colchão.
— Quietinha, amor, estou conhecendo você — peço
baixinho e sua resposta é um suspiro.
Minhas mãos seguram seus seios entre elas, apertam de
leve, brincam, tocam a pele sensível, o mamilo intumescido.
Belisco de leve cada um deles, aperto mais forte, conheço suas
reações, aprendo do que ela gosta. Então os deixo, subindo
devagar por seus ombros, pescoço, rosto. Desço os dedos por
seus braços e seguro suas mãos. As levo até meus lábios e as
beijo de leve. Então volto ao começo. Anna protesta, mas não se
afasta. Toco sua perna desde o começo, subindo os dedos
devagar, me encaixo entre elas de forma que toco as duas ao
mesmo tempo, e vou subindo as pontas dos dedos em toques
leves até alcançar seu centro. Passeio os dedos pelos lábios e os
abro devagar. Anna geme mais alto agora e ainda nem toquei
seu ponto. Então toco de leve seu clitóris, ela está molhada,
receptiva, quente. Brinco um pouco com seu botão e ela geme,
abre as pernas instintivamente, pois me encaixo melhor entre
elas agora. Passeio os dedos por sua boceta molhada e
escorregadia até encontrar sua entrada, então a preencho
devagar. Testando sua reação, ouvindo seu gemido rouco,
imaginando a boca aberta, os olhos perdidos, como será sua
expressão de prazer? Insiro todo meu dedo e o retiro, girando-o,
alargando-a para me receber. Anna é tão apertada!
Provavelmente a machuquei na nossa primeira vez e ela nem por
um segundo reclamou ou pediu que eu fosse mais devagar. Mas
vou fazer isso agora. Devagar insiro dois dedos, os giro dentro
dela e ela grita, então os tiro. Faço de novo, dobrando-os
levemente, Anna choraminga, seu corpo não consegue mais ficar
parado. Suas mãos passeiam por meus braços, apertam minha
pele, sua unha a arranha e a toco mais devagar. Ela protesta
meu nome em choramingo, acelero um pouco e ela geme mais
alto. Arqueia o corpo de encontro aos meus dedos, ela quer
mais. E dou mais a ela. Meus dedos se movem ágeis agora,
entrando e saindo, girando dentro dela, alcançando aquele ponto
em que ela se perde. Faço repetidas vezes, meu pau lateja
ansioso em preenchê-la. Ele também quer atenção. Mas não
posso parar. Ou posso?
Paro de repente e tiro meus dedos de sua boceta, levando-
os à boca, provando finalmente seu gosto.
Anna é deliciosa!
— Lucca — choraminga.
Deito meu corpo sobre o seu e a beijo. Um beijo voraz,
intenso, tomando dela tudo o que toma de mim sem qualquer
esforço. Suas mãos estão em minha pele, ela busca contato.
Meu peito aperta seus seios, sinto seus mamilos em minha pele,
meu pau descansa em sua perna e pulsa por ela. Me afasto
descendo os lábios por seu pescoço. Sinto o gosto de sua pele,
decoro seus gemidos em aprovação. Minha língua saboreia seu
calor, seu suor, conhecendo cada centímetro de sua pele. Até
alcançar seu seio. O sugo com força como sei que ela gosta e
ela grita. Faço de novo e de novo. Seu mamilo está duro em
minha boca, seu seio a preenche completamente e ainda assim
não sou capaz de colocá-lo todo na boca. Dou atenção ao outro
seio, sugando forte, mordiscando de leve, ela grita de novo. Meu
nome é uma súplica em sua boca. Ela a repete várias vezes. Seu
corpo se mexe sob o meu. E minha boca segue seu caminho,
lambendo sua barriga, tocando sua pele, acariciando suas
curvas.
Até chegar onde mais quero. Até sentir seu cheiro ali, até
me lembrar da prova de seu gosto em meus dedos. Sem rodeio
minha língua toca seu clitóris e a chupo com força. Anna grita
agora, grita sem parar. Me pede que não pare e não pretendo
decepcioná-la. Chupo seu botão como um faminto, encaixo
minhas mãos em sua bunda e levanto seu quadril, melhorando
meu acesso ao seu centro e chupo melhor. Chupo até ela se
desfazer, até suas mãos, que puxam meus cabelos, não terem
mais forças. Até seus dedos deixarem os fios e ela gritar alto, se
derramando dentro da minha boca. E chupo mais leve então,
acariciando, acalmando-a, bebendo tudo dela. Sua mão acaricia
meu cabelo quando enfio a língua nela e a aprovo.
— Agora sim você está molhada o bastante.
Ela apenas geme enquanto toco meu pênis, duro a ponto
de explodir, pulsando por ela, o acaricio com o gozo de Anna,
umedecendo-o para deslizar dentro dela. Me ajoelho entre suas
pernas e com facilidade a posiciono para me receber. Suas
pernas ao meu redor, para o alto, ela deve estar aberta o
bastante agora. Quero tanto vê-la que isso me faz pulsar inteiro.
A toco mais uma vez comprovando quão molhada está e a
penetro. Bem devagar, deixando-a me acomodar. Sentindo suas
paredes se abrindo para me receber. Dessa vez presto atenção
aos seus ruídos, seu gemido é de dor, então paro.
— Não para! — ela pede imediatamente e a obedeço.
Volto a preenchê-la, indo um pouco mais fundo. Ela geme
de novo, a estou machucando, mas ela segura meus braços
apoiados na cama, um pedido mudo que eu não pare agora. Vou
mais fundo e volto o caminho tortuoso, apertado e delicioso de
volta, repetindo o processo, preenchendo-a mais um pouco. Seus
gemidos são tão gostosos que por um momento me perco. Me
afundo dentro dela de uma vez, uma estocada forte. Ela grita e
faço de novo. Não tenho mais controle, não posso mais ir
devagar. Me afundo em Anna várias e várias vezes, deslizando
mais rápido, mais fundo, mais forte. Ela mexe o quadril para me
receber acompanhando meu ritmo desesperado. Não quero que
isso acabe nunca.
Além de seus gemidos e do som do meu pênis atingindo
seu limite, há meus gritos. Estou perdido nela, não sou capaz de
pensar em nada quando estou dentro dela. E de novo. E de
novo. Minha mão está cravada em sua pele agora, mexendo
mais rápido seu quadril, trazendo-o mais alto, tentando ir mais
fundo. Ela é uma sucessão de gemidos e gritos e pedidos que eu
não pare. E eu repito seu nome como um delírio, sentindo meu
corpo todo pegar fogo. Me deixo cair sobre seu corpo e suas
pernas estão sobre meu quadril. Sinto seus seios balançando
com os movimentos, eles tocam minha pele suada repetidas
vezes quando estoco mais e mais forte. Há uma energia em meu
corpo agora que também está no dela, como se eu fosse
explodir, como se eu precisasse gritar, como se eu estivesse
próximo de chegar ao ápice de um prazer arrasador.
Suas unhas aranham minha pele, seus gemidos estão perto
demais dos meus ouvidos. Caio de lado na cama e ela vem junto.
Monta sobre mim e em segundos, me sinto inteiro dentro dela.
Ela sobe e desce por meu pau, seu corpo sobre o meu, seus
seios em minhas mãos, suas mãos apoiadas em meu peito. Seu
cabelo macio faz cócegas em meu rosto e ela cavalga. Aperto
sua pele quando está quase impossível suportar o prazer. Anna
parece entender, parece sentir o mesmo, deixo que tome o
controle, que tome seu tempo, enquanto ela quiser cavalgar,
estarei duro e pronto para ela. Mas ela também se perde, grita
meu nome quando rebola, me leva ao limite.
Que tolo! Como se eu tivesse essa escolha!
Explodo dentro dela enquanto ela grita, explodo enquanto
ela cavalga mais uma vez e mais uma. Explodo com tudo de mim
enquanto ela pulsa sobre meu corpo, deixando seu torso cair
sobre o meu, sua pele suada e quente cobrindo a minha. Explodo
enquanto ela morde meu peito e geme uma última vez. E logo
seu corpo está completamente sobre o meu, sua respiração é
rápida, pesada, descompassada, como a minha. Ela parece sem
forças, mas tampouco eu tenho forças agora. Consigo apenas
passar meus braços por seu corpo para mantê-la aqui. Para me
manter dentro dela. Para manter esse contato delicioso após um
sexo melhor ainda.
— Eu gostei do seu lado descobridor — ela sussurra me
fazendo rir.
— Fico feliz, minha Anna.
— Não acho que seja capaz de me mover hoje — confessa,
com um sorriso na voz, totalmente entregue.
— Não há porque, durma sobre mim, me deixe dormir em
você.
— Amanhã não vou conseguir andar.
— Então passaremos o dia na cama.
— Isso parece um sonho e parece assustador ao mesmo
tempo.
— Você está com medo? — provoco.
— Ah, não, não mesmo! Não do quanto você vai acabar
comigo se passarmos um dia inteiro na cama. Mas do depois.
Isso é bom demais, é quase surreal. Uma garota poderia se viciar
em se sentir assim.
— Para a sorte desta agora aqui, eu sou um vício acessível.
— Não se engane. Seu risco, meu querido, é bem alto.
Sua voz é arrastada, ela está exausta.
— Puxe o lençol sobre nossos corpos, meu bem. Essa
garota vai dormir aqui, sobre mim esta noite, aquecida e saciada.
Como deveria dormir todos os dias.
Sinto o lençol tocando meus braços. O ajeito cobrindo seu
corpo e tão rápido ela dorme. O rosto em meu peito, sobre meu
coração. Suas pernas sobre as minhas, meu pênis abrigado
dentro dela. É assim que eu deveria dormir todas as noites.

Conto a Leandro o que aconteceu na noite passada e, a


julgar por seu tom de voz, ele está assustado.
— Como ela está?
— Agora está bem, acredito que ainda esteja dormindo.
Mas foi um susto e tanto. Eu pensei que não conseguiria salvá-la.
— Mas você conseguiu, Lucca. Você foi lá e a resgatou, a
reanimou, salvou a vida dela. Você fez isso. Não é um inútil como
vive repetindo. O que importa mais? Enxergar a cara do Aquiles
para acertá-lo ou salvar a vida da mulher que você am...
— Bom dia — a voz de Anna o interrompe e me sinto tenso,
temendo que ela tenha escutado e entendido o que Leandro
estava dizendo.
— Como você está, Anna? Lucca me contou tudo.
— Ah, eu... eu... — ela parece completamente sem graça e
me pego com um sorriso que só Anna é capaz de colocar em
meu rosto.
— Ele está falando sobre seu afogamento, meu bem —
esclareço antes que ela entregue demais.
— Ah! — Ela parece tão aliviada quando se senta ao meu
lado, no braço do sofá, sua perna tocando meu braço. — Foi
horrível. Eu tentei ficar de pé, mas estava de salto e quando eu
alcançava o fundo da piscina minha cabeça ficava
completamente coberta. Eu não conseguia me firmar.
— Ela tem uma parte muito funda onde eu treinava
mergulho. Mas há uma parte rasa também, você caiu justo na
parte mais perigosa, Anna — Leandro lamenta.
— É impressionante o quanto você se machuca, Anna —
observo. — Meu bem, você precisa ter mais cuidado.
— Eu tento, juro que tento! Mas as coisas simplesmente
acontecem!
— Ainda bem que você tem um salvador, não é mesmo? —
Leandro provoca.
— Ainda bem — ela concorda e toca meu ombro. Um toque
breve, mas muito bem-vindo. — Você sempre me salva, por mais
que diga que não é capaz você dá um jeito. Eu nem tenho como
te agradecer, Lucca.
— Você não tem que agradecer, Anna, salvando sua vida
estou salvando a minha.
Um silêncio se segue, mas ela toca minha mão e a aperta.
Sinto meu coração agora, não apenas batendo, mas delirando,
se derretendo, não entendo esse sentimento tão maravilhoso.
Leandro pigarreia como se algo precisasse ser desviado. E Anna
desconversa.
— Vocês já tomaram café da manhã? Estou faminta.
Leandro e eu já tomamos o café, então ela se afasta cedo
demais. Ouço seus passos se afastando e Leandro em seguida
comenta:
— Por que você está andando estranho, Anna?
— Eu? — ela grita em resposta e aquele sorriso divertido e
preguiçoso volta ao meu rosto. — Eu não! Por que acha isso? Eu
caí na piscina, quase morri, posso estar com dores.
— Tudo bem, você tem razão, não precisa gritar — Leandro
concorda e ela sai em seguida. Assim que não está mais,
Leandro comenta: — Pelo visto o salvamento teve recompensas,
não é?
— Não vou falar sobre isso com você.
— Como não? Você sempre me contou sobre as mulheres
com quem dormia.
— Não mais, amigo. Por falar em mulheres, você e a
Larissa...
— Ah não, ela só tem olhos para você. Até me animei
quando descobri que ela era a nova vizinha, mas desde sempre
todo assunto dela girava em torno de você, desisti antes mesmo
de tentar.
— Entendo. Então por quem é que você tem perdido noites
de sono?
— Não sei do que está falando.
— Ah, para com isso. Estou falando da playlist brega
romântica no seu carro, do perfume feminino nele, do quanto
você boceja a caminho do trabalho e do quanto tem ido dormir
cedo, o que não faz o menor sentido. Por que você não quer me
contar? Sempre me contou tudo.
— Não mais, amigo — devolve minha decisão e entendo
que não é o momento de pressioná-lo, por mais curioso eu
esteja.

Duas semanas se passaram desde que comecei a trabalhar


para Aquiles. Hoje o dia é pior do que os outros, porque Açucena
não está mais aqui. Pelos corredores da empresa ouço sempre
os cochichos dos funcionários esperando que eu os salve,
enquanto espero que alguém me salve. A maneira como Aquiles
me trata não é uma surpresa para mim. Isso vai além de uma
vingança boba, vai mais longe, numa briga entre nossos pais que
resultou em meu pai deixando o berço da família e vindo para o
Brasil sem um tostão no bolso. Resultou em seu total corte de
relações com o pai e o irmão, consequentemente, meu
afastamento de Aquiles. Quando nos reencontramos, anos
depois, logo após a morte dos meus pais, ele e meu tio não
foram exatamente legais comigo, assumindo que poderiam
decidir o meu destino. Enquanto tudo o que eu queria era cumprir
o sonho do meu pai e abrir a Atenas. Minha recusa em voltar
com eles para a Grécia, para os negócios da família, culminou
em outra grande briga familiar da qual nunca nos recuperamos.
Quando o encontrei de novo anos depois, já era dono da Atenas,
a maior agência de viagens da américa, e a inveja de Aquiles fez
o resto, tornando nossa relação impraticável.
O que vivo agora é só um reflexo de quão pouco esforço fiz
em manter uma amizade entre nós.
Açucena está se despedindo das pessoas, quando me dá
um abraço repentino, diz baixinho:
— O livro de contas está sobre a mesa dele agora, ele
nunca o deixa em sua sala. Algo não está certo.
— Não é Eurico quem cuida dele? — pergunto pelo
contador da empresa desde que ela nasceu.
— Eurico foi o primeiro que ele demitiu assim que a
assumiu. A empresa que toma conta dos registros financeiros é
terceirizada, nunca os vimos. Sou sua secretária e não faço ideia
de quem seja. Por isso estou dizendo, pegue o livro, ele nunca
fica aqui.
Concordo, nos afastamos finalmente e Açucena se despede
confiando em mim para trazê-la de volta. Leandro se aproxima
quando ela se vai e diz:
— Cara, também estou confiando em você para trazê-la de
volta.
— Não enche, o livro de contas está na minha sala. Na sala
do Aquiles. Temos que pegá-lo.
— Vou cuidar disso.
— Esperava que você dissesse algo do tipo, afinal de
contas, eu não poderia fazê-lo sem chamar atenção.
— Reclame menos e aja mais. Vamos, faça o que faz todos
os dias. Tropece em alguma coisa, mas finja que se machucou,
assim que Aquiles deixar a sala vou entrar e pegar o livro.
— Isso é mesmo necessário? Já não me humilhei o
suficiente?
— E você quem sabe responder isso, amigo — provoca.
Será que esta é a única contribuição que posso dar em seu
plano?
— Merda!
Na primeira semana, Aquiles me fazia cair todos os dias,
mais de uma vez por dia. E podem pensar que isso é o de menos
comparando-se a tudo o que tem me acontecido, mas cada vez
que tropeço em algo colocado propositalmente em meu caminho,
um pouco da minha dignidade quebra. É assim que sinto. É
degradante não saber se estão rindo de mim, pior, se estão com
pena. É degradante não ser capaz de usar essa bengala e evitar
esse tipo de coisa. Agora estou ficando mais esperto. Devo
parecer ridículo pelos corredores, balançando a bengala por
todos os lados conforme dou cada passo, mas assim evito essas
quedas. E claro, tenho a ajuda dos funcionários que esperam que
eu os devolva a segurança de seus empregos. Cada vez que
algum me ajuda, me sinto mais responsável por ele. Sempre
pego seus nomes, não quero ser ingrato a ninguém nunca mais.
A queda de hoje precisa ser em frente a sala de Aquiles, ou
não conseguirei chamar sua atenção. Espero que Leandro esteja
a postos. Há momentos em que ter essa escuridão como única
visão são mais difíceis do que outros. Agora é um dos momentos
difíceis. A bengala bate em algo, uma cadeira, provavelmente e
vou com tudo em sua direção. Acontece, tropeço na cadeira e
caio, faço questão de gritar, como se tivesse me assustado com
o tombo. Aquiles sempre aparece nessas ocasiões, faz questão
de rir de mim. Sinto mãos me ajudando a levantar, pessoas
perguntam se estou bem. Sinto uma dor chata na lateral da
perna, porque caí de lado entre as pernas da cadeira e nada de
Aquiles. Ele não veio.
Leandro me confirma isso pouco depois, quando nos
encontramos no elevador. Ao menos ele o viu guardar o livro
numa gaveta em sua escrivaninha. Então o plano agora é mais
simples, vamos chegar amanhã bem mais cedo do que Aquiles,
cuidar para que as imagens da câmera de segurança de sua sala
se percam e então roubar o livro.
— Não podíamos ter feito apenas isso? Era mesmo
necessário aquele tombo? — reclamo com Leandro tendo como
resposta apenas sua risada.

Assim que chegamos na casa de Leandro, Anna me


abraça. Ela se mantém em meus braços, como se não quisesse
me soltar.
— Está tudo bem, Anna? — pergunto acariciando seus
cabelos.
— Sim, por quê?
— Você pretende me abraçar pelo resto do dia então? Não
estou reclamando, só curioso.
— Ah, desculpe — diz afastando-se. — Vamos fazer sua
barba?
Concordo e ela sobe comigo até meu banheiro. Me senta
em uma cadeira próxima a pia, ouço o barulho da água perto
demais do meu ouvido. Ela apoia a perna entre as minhas na
cadeira e devagar, começa a fazer minha barba. Minhas mãos
sobem pela lateral de seu corpo, apenas buscando contato com
sua pele macia. Ela cantarola enquanto limpa meu rosto e se
senta no meu colo quando vai barbear a lateral dele.
Adoro isso, essa intimidade, a maneira como é natural para
ela invadir meu espaço, ter algum contato comigo. Conto a ela
sobre o livro de contas e como vamos pegá-lo. Ela termina seu
trabalho e acaricia meu rosto.
— Vai dar certo, vocês vão conseguir. Você está lindo!
— Obrigado, Anna.
Alberta bate na porta e avisa que Larissa está aqui.
Sinceramente, eu preferia não a ver hoje, mas não vou ser
grosseiro, uma vez que já furei com ela na outra noite. Me
levanto assim que Anna se afasta, mas ela me empurra de volta
à cadeira.
— O que houve, Anna?
— Por que você está se levantando?
— Imagino que você já tenha acabado.
— Não! Não acabei, sente-se aí. Vou fazer sua
sobrancelha.
— Nem pensar! As mulheres sempre dizem que isso dói pra
caralho!
— Então vou cortar seu cabelo, seu cabelo cresce muito
rápido!
Toco meu cabelo, mas ele não cresceu quase nada. Me
levanto, mesmo contra a vontade dela, não entendo o que está
havendo. Vou até o quarto e troco de roupa, imagino que esta
tenha vestígios da barba recém feita. Ouço Anna andar de um
lado ao outro pelo quarto.
— Anna, está tudo bem?
— Sim! — responde irritada. — Pare de perguntar isso!
— Você está agindo de maneira estranha, meu bem.
— Acho que não me sinto bem — ela diz pouco depois. —
Estou doente.
— O que você tem?
— Não sei dizer, acho que quero me deitar.
Ouço seus passos pelo quarto, até que cessam.
— Acho que você deveria se deitar aqui comigo, só um
pouco, só para se certificar que não é nada demais — pede.
Sorrio. Entendo seu jogo. Ela não quer que eu vá até
Larissa. Caminho até a cama e me deito com ela.
— O que você está sentindo? — pergunto.
— Meu coração, acho que está louco.
Sorrio.
— O sintoma da sua doença é coração louco?
— Sim.
Me viro de lado na cama e toco seu braço.
— Você quer se deitar aqui no meu peito? Talvez isso
acalme seu coração louco.
— Eu quero. Acho que é exatamente isso que eu preciso.
Ela se aconchega em meu peito, a abraço e espero. Sua
respiração está mesmo acelerada. Alguém bate na porta, mas
explico:
— Não vamos descer, se desculpe com a convidada, por
favor. Anna não se sente bem, vou ficar aqui com ela.
Alberta concorda e deseja melhoras a Anna. Minha
pequena maluca ri baixinho, se mantém aqui, em meus braços,
sobre meu peito, quietinha.
— Está melhorando, Anna? — pergunto acariciando seu
cabelo.
— Sim, mas você ainda deve ficar aqui, só mais um pouco.
— Só até a convidada ir embora? — provoco.
— Mais um pouco.
— Até a hora do jantar?
— Mais um pouco.
— Então também não vamos jantar?
— Não podemos fazer isso aqui? Só nós dois?
— Podemos, meu bem. Mas por que vamos comer aqui
sozinhos? Não importa o motivo, se você quer ficar aqui, vamos
ficar, só nós dois. Só estou mesmo confuso.
— Porque meu coração está louco — é sua única resposta.
Espero que explique o que isso quer dizer, mas ela não o faz.
— Vamos ficar aqui até a hora do banho? — pergunto.
— Mais um pouco — há um sorriso em sua voz.
— Então vamos tomar banho juntos. E depois? E na hora
de dormir? Vamos ficar aqui?
Ela se afasta e não gosto nem um pouco disso.
— Não, prometo que na hora de dormir vou ir para o meu
quarto.
— Jura? Mas não seria arriscado? Talvez seja melhor você
ficar aqui até amanhã de manhã, só por garantia.
— Está bem — concorda rapidamente e volta a deitar sobre
meu peito.
Algo está estranho, Anna está estranha, mas se isso faz
com que queira ficar mais perto de mim não vou reclamar.

Leandro e eu saímos cedo demais na manhã seguinte. Nem


precisamos insistir com o segurança, ele desliga a câmera da
sala da presidência ao primeiro pedido de Leandro, sem ao
menos perguntar o motivo.
— Otavio, você faria o mesmo quando eu ainda era o
presidente? — pergunto curioso.
— O que você está fazendo? — Leandro pergunta
apreensivo.
— Sim, senhor Baltazi. O senhor não era um bom chefe —
responde com sinceridade. — Sinto muito.
— Entendo. Pode me chamar de Lucca, Otavio. Não sou
mais o chefe.
Será que eu era tão ruim como chefe quanto Aquiles?
Acompanho Leandro até a sala e resolvo esperar no
corredor, mas Leandro, desanimado, constata que a sala está
trancada. Ele deixou o livro ali, mas levou a chave da sala para
não o pegarmos.
— Merda! Por que nunca fiz uma maldita cópia dessa
chave? — praguejo.
— Arrombamos a porta? Não, isso daria muito na cara. Não
podemos fazer nada. A não ser esperar que ele chegue e torcer
para que não a tranque na hora do almoço.
— Arriscado demais, primeiro que com certeza ele irá
trancar, mas se não o fizer e um de nós entrar aí, vai atrair muita
atenção. Alguém pode contar a ele. Ele só precisa de um motivo
para usar como desculpa e não cumprir sua parte do nosso
acordo.
— O que faremos então? — ele pergunta preocupado.
— Temos que conseguir que outra pessoa entre na sala.
Isso se ele a deixar aberta. Alguém que não chame atenção, que
não levante suspeitas. Mas pedir isso a qualquer funcionário
seria arriscado demais.
Leandro concorda e ficamos um tempo tentando encontrar
outra solução, percebendo que não há.
— A não ser que não seja um funcionário de verdade. Mas
alguém que se passe por um — Leandro comenta animado de
repente.
Não entendo o que quer dizer, mas ele parece estar ligando
para alguém. De repente, a voz de Anna é ouvida no viva-voz.
— Anna, bom dia, minha princesa. Preciso de um favor seu,
você pode vir para a Atenas hoje?
— Não vai dar certo. Anna entrar em algum lugar sem ser
vista é quase impossível. Ela é a pessoa mais notável que já
conheci, é impossível estar em um lugar e não ter todos os
olhares sobre ela — advirto.
— É mesmo? E quantas vezes ela invadiu sua casa?
A bem da verdade, ela é ótima em invadir lugares. Sou a
prova viva disso. Até mesmo na casa de Monte Verde ela
conseguiu entrar para acender a lareira durante a noite. Talvez,
no fim das contas, isso possa realmente funcionar. Só temos que
torcer que seu ímã para desastres esteja desativado. E que nada
aconteça a ela na tentativa.
Presto atenção na estrada à minha frente e tento desligar
meus pensamentos desordenados. Lucca precisa de mim e
preciso estar com cem por cento da minha concentração por ele.
Lucca.
Pensar nele traz toda a confusão de volta. Estou
apaixonada, já entendi isso. Muito apaixonada mesmo. Mas o
que eu faço agora com esse sentimento? Como se lida com
isso? Parece que me tornei outra pessoa da noite para o dia, só
quero ficar com ele, tê-lo em meu campo de visão, de preferência
ao meu alcance. Me dá vontade de tocá-lo o tempo todo, ainda
que muito pouco, ou bem de leve, só para sentir seu contato, só
para saber que ele está por perto. Me dá vontade de prendê-lo
em seu quarto e ficar com ele lá, sem que o mundo aqui fora o
veja, mantê-lo perto de mim apenas. Por que nos apaixonamos
se não podemos controlar aquilo que amamos? Eles podem ir,
ficar longe por tempo demais, conhecer outras pessoas,
enquanto você está uma bagunça interna esperando que ele
volte.
Ontem o mantive trancado comigo no quarto e ele aceitou
ficar ali, sozinho comigo, por toda noite. Mas hoje não posso
mais ser tão estranha. Daqui a pouco irei assustá-lo se continuar
assim. Preciso me controlar perto dele, agir normalmente, não
deixar transparecer que tenho vontade de sequestrá-lo quando
olho para ele.
Chego a Atenas e estaciono o carro de Leandro em um
estacionamento próximo. Decido não o deixar no da empresa
para não chamar atenção de Aquiles. Passo pelos seguranças
sem nenhum problema e, quando chego ao andar principal,
encontro Elaine, a faxineira que trabalhava comigo. Ela me
abraça feliz por me ver e a ideia perfeita me vem. Pego um dos
uniformes roxos dela e o visto. Se Aquiles é um pouco como
Lucca era, ele não vai prestar atenção em uma simples faxineira.
De cabeça baixa e touca na cabeça, consigo passar por todos
até a sala de Leandro sem chamar atenção.
Quando me vê, Leandro tem um sorriso enorme e bate
palmas por minha ideia.
— Anna, você é um gênio! Espere até o Lucca saber que
você está vestida assim!
Lucca. Ele está sentado na mesa de assistente, do lado de
fora da sala que um dia foi dele. A sala que ainda deveria ser
dele. Os óculos escuros cobrem boa parte do seu rosto e a
bengala descansa ao lado de sua mesa. Ele digita algo devagar
e o telefone em sua mesa toca sem parar. Provavelmente seu
chefe ligando e ele ignorando sem a menor cerimônia.
Algum tempo depois, Aquiles deixa a sala e vai até a copa
ao celular. Está se servindo de um café e essa é minha primeira
deixa. Não vai dar tempo de procurar o livro de contas, menos
ainda passar com ele pelos funcionários, então apenas destravo
a janela do banheiro de sua sala, que dá para as escadas e saio
de fininho. Quando passo por Lucca, ele gira a cabeça em minha
direção, como se soubesse que estou aqui. Há um sorriso em
seu rosto, ele sabe. Aquiles está voltando, então volto à sala de
Leandro e me escondo lá.
Enquanto esperamos o horário de almoço, Leandro suspira
treze vezes contadas.
— Se você suspirar mais uma vez, vou deixar esta sala —
aviso
— Desculpe-me, querida, não consigo controlar. Por que
você não está suspirando pelos cantos também?
— Não sei, pessoas apaixonadas sempre suspiram?
Ele assente e me sinto de alguma forma errada.
— Bem, eu não suspiro. Mas estou completamente louca,
então acho que a paixão está se manifestando diferente em mim.
Leandro tem um sorriso irritante no rosto.
— Que sorte a do Lucca então.
— Por quem você está apaixonado?
Ele deita a cabeça de lado e mantém o sorriso. Mantenho
meus olhos nos seus, estou muito curiosa para saber a resposta,
mas quando ele abre a boca para dizer alguma coisa, a porta de
sua sala é aberta e Lucca entra. Ouço sua voz antes de vê-lo, e,
antes de olhar para trás, me concentro em meu novo mantra.
— Aja normalmente, aja normalmente.
Me viro para trás enquanto ele diz que Aquiles saiu e ele
parece tão lindo! Minhas pernas se movem sem controle até ele
e quando dou por mim, já passei os braços por seu pescoço em
um abraço.
— Oi, meu bem. Sabia que você estava aqui — Lucca me
cumprimenta com um sorriso, abraçando-me de volta.
— E está vestida como uma faxineira. Anna é brilhante! —
Leandro comenta animado.
— Bem, vou fazer o meu trabalho, encontro vocês aqui em
dez minutos.
— Ele trancou a sala. Chamamos um chaveiro ou isso
atrairia muita atenção? — Lucca pergunta.
— Muita atenção — Leandro concorda.
— Eu já cuidei disso. Encontro vocês aqui em doze
minutos, porque vou precisar entrar pela janela.
— Você o quê? — Leandro começa a perguntar, mas deixo
a sala.
De cabeça baixa, com uma vassoura nas mãos, passo pelo
corredor até as escadas. Jogo a vassoura pela janela e em
seguida me apoio no parapeito e passo sem dificuldades. Não é
como se eu não tivesse feito isso antes. Pulo do outro lado e
estou dentro da sala de Aquiles. A primeira coisa que faço é
destrancar a porta por dentro, para o caso de ser pega aqui,
alegar que a porta estava aberta e só estou limpando. Reviro a
primeira gaveta e nada. A segunda e nada. Abro uma porta de
um armário pequeno na lateral de sua mesa e aqui há um
caderno semelhante ao que Leandro descreveu. Abro no meio e
vejo os números. É o livro de contas. Fecho tudo o que havia
aberto, tranco a sala de novo, jogo a vassoura pela janela e
apoio o livro no parapeito. Então me penduro e passo para o
outro lado, derrubando o livro escada abaixo. Corro até ele
rezando que não tenha danificado muito, mas foram só uns
amassadinhos de leve, eles nem vão notar. Vou direto até o
armário das faxineiras e pego um carrinho de limpeza, escondo o
livro nele e vou para a sala de Leandro.
Ele e Lucca andam de um lado ao outro quando entro e os
dois vem até mim. Fecho a porta, retiro o livro do carrinho e
estendo a Leandro.
— Aqui está. Como eu sentia falta de pular janelas!
— Anna, você é maravilhosa! — Leandro diz animado.
Lucca está calado, mas de repente vem até mim, segura
meu rosto e me beija. Assim, do nada, na frente do Leandro,
mantém meu rosto entre suas mãos e seus lábios deliciosos
pressionam os meus em um beijo carinhoso.
— Você é incrível, meu anjo — ele diz admirado. —
Obrigado.
Me sinto derreter aqui mesmo, neste piso. Daqui a pouco a
Anna líquida vai vazar por essas portas, posso prever.
Leandro dá uma olhada rápida no livro, mas não temos
muito tempo.
— Você precisa escondê-lo — sugiro. — Quando der falta
dele, o primeiro lugar onde Aquiles vai procurar é aqui.
— É melhor Anna levar este livro com ela pra casa, antes
que Aquiles volte — Lucca sugere.
— Você tem razão. Anna, este livro é todo seu. Vamos vê-lo
em casa.
Volto o livro para o carrinho, me despeço deles e dou uma
boa olhada em Lucca antes de deixar a sala. Me troco
rapidamente na área dos funcionários e escondo o livro dentro da
blusa. Ando de braços cruzados, como se sentisse frio e consigo
deixar a Atenas carregando o livro sem o menor percalço. O
guardo na cama de Lucca e volto ao seu laptop, para tentar mais
uma vez resolver as coisas do meu jeito.

Quando ele e Leandro chegam, tento não agir como uma


maluca com saudade, e os cumprimento ao longe. Eles vão
direto até o livro de contas no quarto de Lucca. Vejo que Lucca
está agoniado, ansioso, queria ser ele a conferir o livro, mas não
pode. Leandro fica tempo demais em silêncio, concentrado no
que vê no livro. Por fim, quando Lucca parece prestes a ter um
troço, Leandro tem um enorme sorriso no rosto ao dizer:
— Está tudo na mais perfeita ordem. Essas notícias sobre a
empresa estar quebrada realmente são falsas, Lucca. Tudo está
bem, o livro está bom, não há dívidas, de alguma forma ele
conseguiu diminuir os gastos. Você vai pegar uma empresa
pronta para ser dirigida, meu amigo.
— Não, você vai pegar, não vou dirigir a Atenas, Leandro.
Mas fico feliz e aliviado que todo esse sacrifício para tê-la de
volta não seja em vão.
Quando Lucca diz isso, alguma coisa em mim entra em
alerta. Todo o sacrifício que está fazendo deveria mesmo resultar
em ter de novo uma empresa nos eixos, mas algo me diz que
não será assim. Afasto esses pensamentos e rezo baixinho,
Lucca já sofreu demais, não merece passar por tudo isso e ainda
perder a empresa depois.
— Vamos comemorar, vamos sair para comer fora —
Leandro sugere animado.
— Claro, vamos — Lucca concorda, não tem muita vontade,
provavelmente por conta de suas limitações, mas não quer cortar
a alegria do amigo.
Leandro vai se arrumar e vou ajudar Lucca a escolher uma
roupa. Me jogo em sua cama enquanto ele pega blusas, tenta
reconhecê-las tocando-as e me pergunta se são as que ele
pensa que são. Ele já pegou pelo menos três blusas com que
poderia sair, mas continua procurando. Acredito que esteja
apenas enrolando.
— Por que você está afastada hoje, Anna? — pergunta de
repente.
— Como assim, afastada?
— Você não se sentou ao meu lado, geralmente você não
tem noção de espaço, mas agora está distante desde que
cheguei. Está tudo bem?
Não, queria estar em cima de você agora.
— Sim, tudo bem. E com você? Tudo bem sair esta noite?
Ele dá de ombros.
— Isso ia acontecer em algum momento.
— Seus limites não são motivo para vergonha, Lucca, além
do mais, em breve você não os terá mais, vai se acostumar. Acho
que sair esta noite, fazer algo fora da sua bolha de conforto vai
ser bom para você.
Ele tem um sorriso cafajeste e parece que escolheu uma
blusa.
— Eu preferia comemorar me afundando em você a noite
toda, mas se você prefere o restaurante, eu topo.
— Você não me disse que sexo era uma opção — reclamo.
Ele larga a blusa no chão e se aproxima da cama
rapidamente, batendo nela com os joelhos.
— É uma opção, é minha preferência inclusive, o que você
prefere?
Sorrio. Me levanto para me arrumar e ele parece
desanimado ao constatar isso. Mas quando passo por ele digo
baixinho:
— Eu prefiro estar sobre você a noite toda, mas vamos ao
restaurante — completo me afastando e ele mantém um sorriso
no rosto. O escuto resmungar antes de deixar seu quarto:
— Tão atrevida! Não se provoca um homem assim, Anna!

Termino de me arrumar, usando pela primeira vez um dos


muitos vestidos que comprei em Monte Verde com meu primeiro
salário alto. Ele tem um decote atrevido que me faz sentir
estranhamente bem, o busto é bem justo, a cintura bem marcada
e a saia é levemente rodada. Assim que desço as escadas avisto
Leandro e Lucca já esperando por mim. Leandro assovia
exageradamente e segura minha mão, girando-me diante de
seus olhos.
— Anna, você está linda! Em outras circunstâncias eu a
pediria em casamento agora mesmo, juro que pediria.
Adoro Leandro e seu jeito divertido. Mas quando olho para
Lucca, ele parece triste. Caminho ao seu encontro e seguro em
seu braço para guiá-lo, mas seu sorriso quando faço isso ainda é
triste.
— Vai na frente, Leandro, nós já vamos — peço e ele
concorda.
Pego as mãos de Lucca, parada diante dele e as levo às
alças do meu vestido.
— Me toca — peço. — Saiba como estou vestida esta noite.
Um sorriso surge em seu rosto e ele deixa a bengala de
lado. O som de seu encontro com o chão é a confirmação disso.
Ele toca as alças do vestido e desce os dedos pelo busto,
contorna o decote bordado levemente, seu sorriso aumenta
então.
— Adorei esse decote. Você deve estar tentadora, minha
Anna.
Sorrio, deixo que continue sua inspeção. Ele desce os
dedos pelo tecido fino e contorna minha cintura.
— Qual a cor desse vestido?
— Usando sua definição de cores, champagne.
Ele ri baixinho, desce as mãos mais devagar agora,
contorna os bordados da saia e penso que já conheceu o
bastante, mas vagarosamente, ele se abaixa, ficando de joelhos
diante de mim. Continua tocando a saia, descendo lentamente os
dedos até sua barra. Então seus dedos estão em minha pele, em
minhas coxas, logo acima dos joelhos.
— Você está linda, meu anjo. Você é linda. Consigo
imaginá-la perfeitamente com este vestido. Obrigado por me
deixar vê-la, Anna.
Olho para ele diante de mim, suas mãos descansam em
minha pele e só quero me ajoelhar com ele e beijá-lo. Quero
dizer o quanto estou apaixonada e que tê-lo assim, de joelhos
diante de mim, não ajuda em nada minha leve obsessão por ele.
Mas apenas acaricio seu rosto, lembrando-me de agir como uma
pessoa normal e o ajudo a levantar-se. Ele o faz devagar, as
mãos subindo por meu corpo conforme se levanta e, ao ficar de
pé, me puxa pela cintura de encontro ao seu corpo e me beija.
Um beijo leve, carinhoso, delicioso.

— Leandro, por que você não para o carro por aqui? —


sugiro há quatro quarteirões do shopping onde estamos indo,
quando paramos no sinal vermelho.
— E vamos andar até lá? — pergunta desanimado.
— Está perto, além do mais, vai ser bom para o Lucca
andar um pouco entre as pessoas. Ele precisa se acostumar com
isso.
Leandro concorda prontamente enquanto Lucca reclama
que a opinião dele sequer foi consultada. Mas não nos
importamos, ele desce do carro e se apoia com uma mão na
bengala para andar pela rua. Vamos devagar, não o alerto sobre
nada, deixo que ele aprenda a realmente utilizar essa bengala. E
funciona. Ele desvia sempre que há algo em seu caminho. Mas
então ele busca minha mão, a toco e ele a segura, guiando-se
com a bengala e me levando com ele. E me sinto flutuar por estar
de mãos dadas com ele aqui, onde é seu território.
— Você estava certa mais uma vez, Anna, me fez bem esta
pequena caminhada. Sinto falta de me exercitar — ele comenta
ao entrarmos no shopping.
— Há uma academia na casa do Leandro, ao menos há
tantos aparelhos quanto em uma. Você devia se exercitar —
sugiro.
— Ainda não estou pronto. É perigoso fazer isso sozinho na
minha condição.
— Eu faço com você, quer dizer, não vou malhar, mas não
me importo nem um pouco em ficar te observando, assim, só
para dizer se está fazendo certo ou te alertar dos riscos e te guiar
até os aparelhos. Eu faria esse sacrifício — ofereço-me.
Lucca tem um sorriso no rosto, não solta minha mão e entra
na minha pilha.
— Você ficaria por horas ali, sem fazer nada, apenas me
olhando?
Consigo imaginá-lo sem camisa, o corpo suado dos
exercícios, os músculos sendo forçados conforme seus
movimentos, ele abre uma garrafinha de água para se refrescar e
a joga em câmera lenta sobre os cabelos negros. As gotas vão
descendo por seu corpo suado à mostra e eu ficaria por horas
acompanhando o percurso delas até seu destino sem o menor
problema.
— Sim, seria um sacrifício ver você suado, se exercitando,
mas eu faria.
Seu sorriso está bem maior agora.
— Me pergunto, minha doce Anna, se você não precisa
lubrificar de vez em quando essa sua cara de pau!
Rio alto, Leandro está rindo também.
— Não, eu faço isso com lágrimas.
Ele é quem ri agora.
Leandro comenta algo sobre um console na vitrine e reviro
os olhos quando arrasta Lucca até lá. Paro onde estou para
esperar por eles, quando escuto uma voz conhecida chamar meu
nome. Me viro para encontrar Igor parado a poucos metros de
mim. Ele tem um sorriso no rosto, seu cabelo loiro está bem
aparado, como sempre, e ele se veste de forma casual.
Provavelmente está apenas dando um passeio no shopping.
Ele se aproxima e me abraça, um abraço longo demais e
sou eu a me afastar.
— Como tem passado? — pergunto cordialmente.
É estranho vê-lo aqui, assim, tanto tempo depois.
Deveríamos estar casados se Lucca não tivesse aparecido feito
um furacão na minha vida. Será que já teríamos nosso primeiro
filho? Será que eu estaria grávida? Toco levemente minha barriga
quando penso nisso e sequer escuto sua resposta. Então volto a
prestar atenção ao que está dizendo.
— Você sumiu. Eu te liguei diversas vezes. — Mente. —
Que bom encontrá-la aqui. O que você tem feito?
— Ah, eu... — antes que eu consiga responder, a mão de
Lucca contorna minha cintura me puxando para próximo ao seu
corpo de maneira possessiva.
— Igor, boa noite, como vai? — ele cumprimenta.
— Ah, Lucca. Não sabia que você ainda trabalhava para
ele, Anna. Eu soube que você estava na Atenas, mas não achei
que voltaria para lá ao voltar para a capital.
— Ela não trabalha para mim, é minha namorada — Lucca
responde e o encaro em choque. Ele mantém a expressão
tranquila. Os óculos escuros escondem seus olhos e há tanta
confiança na maneira como se porta, que me lembra demais o
Lucca de antes.
— Ah, eu não sabia. Que bom que ainda estão juntos. Foi
um prazer vê-la, Anna. Lucca, sinto muito pelo acidente.
— Obrigado, estou me recuperando bem.
— Claro, posso ver. Que vocês tenham uma boa noite —
Igor se despede afastando-se em seguida.
Lucca me solta pouco depois, mas segura minha mão de
novo, mantendo-me perto dele. Não falamos sobre isso porque
Leandro se aproxima animado com seu novo brinquedo e vamos
jantar. Descrevo para Lucca todo o restaurante, seus detalhes, as
pessoas, a comida. Logo, sua tensão se vai, Leandro entra em
meu jogo descrevendo as coisas que deixo passar e Lucca está
rindo. Tem um pouco de dificuldade com a comida, mas nada que
o desanime e temos um jantar agradável.

Quando chegamos à casa de Leandro, após Lucca ficar


estranhamente calado o caminho todo de volta, vou direto ao seu
quarto arrumar sua cama. Ele permanece parado, passando a
bengala de uma mão a outra, pensativo. Não responde nada do
que comento, parece perdido em seu próprio mundo. Termino de
arrumar a cama e paro diante dele.
— Então eu sou sua namorada.
Espero seu sorriso ou uma resposta engraçadinha, mas ele
mantém a expressão séria, tensa de antes. Penso que nem me
ouviu, mas pouco depois responde baixinho:
— Eu ainda posso sonhar.
— Você está bem? — pergunto preocupada.
— Faz amor comigo — pede como resposta.
Minha respiração falha e meu coração já está frenético em
meu peito. Abro a boca para responder, mas ele dá um passo
para mais perto de mim, deixa a bengala de lado e toca meus
braços, subindo os dedos por minha pele de leve.
— Anna, por favor, faça amor comigo.
Toco seu rosto e o seguro entre minhas mãos, como ele fez
comigo mais cedo, aproximo meu rosto do seu e o beijo. Bem de
leve, um roçar de lábios apenas, mas é o bastante. Ele me
prende em seus braços e seu beijo é quente, dominante, intenso
como o fogo que acende em meu corpo em segundos. Começo a
abrir os botões de sua blusa enquanto ele me beija e ele se
afasta apenas para me ajudar a tirá-la. Tento tirar seus óculos
também, mas ele não permite.
— Ainda não, anjo. Quando você estiver tão febril que não
consegue mais abrir os olhos, eu os tiro. Não antes disso.
Ele ainda tem medo que eu sinta qualquer repulsa por suas
cicatrizes. Me afasto dele e vou até seu guarda-roupa. Encontro
na gaveta o que procuro e me aproximo dele de novo. Pego sua
mão e deixo que ele reconheça o que tenho nas mãos agora.
— O que vai fazer com essa gravata? — pergunta confuso.
— Conhecer você, da maneira como você me conhece. Vou
vendar meus olhos, Lucca. Você pode tirar os óculos. Mas quero
que saiba que mesmo quando você me deixa em chamas, ainda
vejo você, cada detalhe de você, eu adoro observá-lo. Tudo em
você é lindo pra mim, você é como uma força que me atrai sem
que eu possa controlar e tudo o que vejo quando você me toca é
o quanto você é lindo.
Ele tem um sorriso, toca meu rosto acariciando-me. Coloco
a gravata nos olhos, amarrando-a firme, de repente não vejo
mais nada. Há apenas o escuro, o incômodo da peça em volta da
minha cabeça e a respiração de Lucca descompassada em meu
ouvido. Ele toca meu rosto com o seu, aspirando meu cheiro,
passeando os lábios de leve por minha pele. Não usa mais os
óculos.
— Bem-vinda ao meu mundo esta noite, Anna. Estou nu
diante de você agora. Me conheça, anjo, faça o que quiser
comigo.
Estendo as mãos sem saber ao certo como fazer isso. Mas
logo sinto sua pele firme em meus dedos. Estou tocando seu
peitoral, passeio os dedos bem devagar. De um lado, sinto sua
cicatriz, a contorno com a ponta dos dedos, conhecendo-a de um
jeito que a visão não permite. Do outro, sinto seu coração
batendo acelerado bem debaixo de onde toco. Isso é
maravilhoso. Não tenho mais cuidado, minhas mãos tocam sua
pele com tudo o que podem. Contorno seus ombros, braços e
mãos. Subo novamente, apressada e toco seu rosto. É diferente
tocá-lo assim, sem vê-lo. É como se tivesse visões sobre ele.
Toco seu queixo e o vejo perfeitamente à minha frente. Seu rosto
quadrado, as maçãs, os lábios. Eu o vejo agora com as
lembranças que minha mente tem dele, eu o vejo de dentro.
Ele beija de leve a ponta dos meus dedos e imagino sua
boca linda em minha pele agora. Quase posso vê-lo. Mas não
posso. Será que isso seria tão bom se eu não tivesse a opção de
tirar a venda a qualquer momento e apreciá-lo detalhadamente
agora?
Subo os dedos por seu rosto e toco as cicatrizes em volta
de seus olhos. Espero que vá se afastar, ou desviar meu toque,
mas ele não o faz. Me deixa tocá-lo. Me deixa ver da maneira
como ele me enxerga, até mesmo aquilo que quer esconder do
mundo. Toco as cicatrizes ainda mais levemente, tenho medo de
assustá-lo, contorno os olhos sem vida e sua testa. Desço as
mãos devagar de volta aos seus braços e tento beijá-lo. Meus
lábios alcançam seu queixo, mas isso é bom, assim posso
conhecê-lo de outras maneiras. Beijo de leve seus lábios e
queixo. Desço os beijos por seu pescoço, chegando ao peitoral.
Minha língua passeia por sua pele, passa por sua cicatriz,
contorna seu mamilo e segue para o outro lado. Sua respiração é
audível agora, está acelerada. Minhas unhas estão arranhando a
pele das suas costas levemente enquanto minha língua o
conhece dessa maneira tão íntima.
Desço a boca por seu corpo, contorno seus músculos, e
desço mais, como ele fez comigo. Me ajoelho diante dele
apoiando-me em suas pernas, não tenho ideia de como fazer
isso sem vê-lo. Toco suas pernas devagar no começo, mas
minhas mãos ávidas buscam seu pênis e o encontro sem
dificuldades. Lucca já está duro e o acaricio, sentindo-o pulsar
em meus dedos. Lucca geme baixinho e espero mesmo fazer
isso direito uma vez que não consigo vê-lo para levá-lo à minha
boca. Me aproximo mais de seu corpo e sigo minhas mãos,
tocando com a língua a cabeça de seu pênis. A contorno
devagar, com a língua, conhecendo-o, sentindo-o pulsar mais em
meus dedos. Sinto as veias ressaltadas em meus dedos agora,
ele parece ainda mais duro conforme minha língua passeia por
sua cabeça. E assim, devagar, a encaixo em minha boca.
Vou levando sua extensão para dentro da minha boca bem
devagar. Uma mão apoiada em sua perna e a outra segurando
sua haste. Lucca é grande demais, é difícil acomodá-lo em minha
boca, o sinto preenchendo-a e, vagarosamente, o tiro. Lucca
geme mais alto agora. Então o levo de novo até minha boca,
sugando-o de leve, conseguindo levá-lo mais fundo dessa vez. O
tiro da boca e repito o processo, levando-o mais fundo agora.
Quase no limite do que posso aguentá-lo dentro da boca. Agora
já senti sua pele aveludada, suas veias e suas pulsações na
língua. Já senti sua cabeça dura tocando o céu da minha boca,
preenchendo-a de uma maneira que eu julgaria impossível.
Então faço isso mais rápido. Sugo mais forte, o tiro da boca e o
abocanho de novo. Levando-o mais fundo, mais rápido, sugando
mais forte. Lucca se move para dentro da minha boca, suas
mãos estão em meus cabelos, ele puxa de leve quando me
afasto, mas deixa que eu o leve até onde posso.
Só que eu quero mais. Quero senti-lo muito mais. Apoio as
duas mãos em suas pernas e o levo mais fundo, sugo mais forte,
arranho sua pele e ele deixa minha boca para entrar mais forte. A
sensação de tê-lo dentro de mim assim, de sentir seu gosto, suas
vibrações, é deliciosa. Ele invade meus lábios sem piedade
agora. Suas mãos seguram meus cabelos, guiam minha cabeça
e facilitam com que seu pênis preencha minha boca
completamente. Me apoio nele e o levo mais fundo, ao limite da
minha garganta, Lucca grita, se afasta e faço de novo. E de novo.
Não posso vê-lo, mas o sinto como nunca senti nada antes. Não
o vejo, mas escuto seus urros, sua respiração acelerada, a
maneira como chama meu nome baixinho e o som da sucção dos
meus lábios em seu membro, de seu pênis invadindo minha
boca, escuto quando o chupo mais forte, escuto quando ele entra
invadindo tudo, escuto quando se afasta e chupo sua cabeça
para saboreá-la.
Uma gota de seu líquido toca minha língua e isso me faz
chupar mais forte. Me sinto em chamas, meu corpo todo está em
alerta, meus mamilos doem e me sinto pulsar loucamente. Quero
chupá-lo mais, levá-lo ainda mais fundo, mas ele segura meus
cabelos puxando-os de leve para trás. Me ajuda a levantar e me
vira de costas.
— Você quer tirar a venda agora, meu amor? — sua voz é
quase um sussurro.
— Não, quero que você me foda agora. Quero senti-lo
desse jeito.
Ele beija meu pescoço e mordisca minha pele. Se atrapalha
um pouco com meu vestido, mas logo sinto-o escorregando por
meu corpo. Me livro dele rapidamente e Lucca toca minha
calcinha pelas laterais, descendo-a com pressa. Assim que a
passo pelos pés ele me gira de frente para ele de novo. Tateio o
ar esperando tocar seu abdome, mas não há nada. Suas mãos
estão agora em minhas coxas. Consigo tocar seu cabelo, ele
está ajoelhado diante de mim.
— Segure-se em mim, amor — pede e obedeço. Me seguro
em sua cabeça quando ele levanta uma perna minha, colocando-
a sobre seu ombro e em seguida, sua língua está em mim.
Não há cuidado ou gentileza agora. Ele tem pressa. Seus
dedos se cravam em minha pele enquanto sua língua e lábios me
sugam com força. Minhas pernas ficam bambas muito rápido,
sua língua é implacável. Ele chupa, acaricia com a língua e volta
a chupar. Puxo seus cabelos porque o prazer é quase
insuportável. Mas ele faz ainda mais forte. Sua língua invade
minha boceta, seus dentes raspam de leve meu clitóris e me
sinto delirar. Então sua língua está de novo ali, chupando com
força, acariciando, arranhando. É tão intenso e tão gostoso! Não
posso olhar para ele, não posso ver seu cabelo negro entre
minhas pernas, mas o sinto de uma maneira que nem sei
descrever. O vejo do jeito como ele descreve, o imagino aqui, sua
língua em mim, seus lábios nos meus, minha perna sobre seu
ombro largo e seu cabelo negro entre minhas pernas.
Estou prestes a me perder, a me deixar cair sobre ele e
desmoronar, quando ele se afasta. Quero reclamar e exigir que
termine o que começou. Mas ele me abraça então, sua boca
toma meus lábios, aqui em cima dessa vez e ele me guia até a
cama. A sinto atrás de mim, caio sobre ela e seu corpo cai sobre
o meu. O beijo volta, mais intenso, mais delicioso. Seu pênis está
duro entre nós, ele se ajeita entre minhas pernas e não preciso
pedir. Ele me preenche com pressa, as estocadas já se iniciam
com desespero, com força, indo fundo. Estou tão molhada que
ele desliza sem dificuldades. Entrando e saindo. Me preenchendo
completamente, me abrindo, alcançando aquele ponto dentro de
mim que me desfaz. A cabeça que a pouco estava em minha
boca, preenchendo tudo, tocando meu céu, está fazendo isso de
novo. Me preenche completamente, sua extensão vem em
seguida, me toma, toca meu céu, e quero levá-lo mais fundo.
Meu quadril se movimenta ao ritmo de suas estocadas.
Preciso que vá mais fundo, que vá mais forte. Ele parece
entender, toca minhas pernas levantando-as e afastando-as
mais. Suas mãos estão em minha bunda e ele suspende meu
quadril, mantendo-o elevado, indo ainda mais fundo. Seus gritos
se misturam aos meus gemidos e ele entra de novo, mais fundo
agora, mais forte. Sinto toda extensão de seu pênis dentro de
mim. Aperto o lençol da cama entre os dedos. É tão mais intenso
do que antes! Tão mais gostoso! Não sei se é a venda, se é não
poder vê-lo e só poder senti-lo agora, ou se é porque sei que
estou completamente apaixonada por ele, mas é bem melhor
dessa vez. E não achei que isso fosse possível.
O corpo de Lucca cai sobre o meu, suas mãos estão por
baixo do meu corpo, em minhas costas e ele me levanta. Me
monta sobre ele, sentando-se na cama. Apoio meus joelhos no
colchão e sou eu que guio nossos movimentos agora. Me sento
sobre ele, sobre seu pau duro e grande, o sinto entrando em mim
com tudo, grito loucamente, pareço alucinar. Meus seios
deslizam pelo suor do seu peito. Seus braços estão à minha
volta, me elevando, me prendendo. Não posso vê-lo, mas o sinto
em cada pedaço da minha pele, o sinto dominando cada sentido,
cada poro, cada respiração. O sinto de uma maneira que só
existe ele. Todo meu mundo agora se resume a ele.
Ele volta as mãos à minha bunda guiando meu quadril, me
ajudando a ir mais rápido, e explodo quando ele afunda o rosto
em meu pescoço e mordisca ali, explodo ao redor de seu pau,
sentindo-o ainda entrar em mim, sentindo-o prolongar a explosão
e me perco de um jeito irreversível nele. Ele se joga na cama me
levando junto. Ainda estou pulsando quando seu corpo está
sobre o meu e suas estocadas continuam. Desesperada me
movo de encontro a ele. Sinto-me saciada, completa, mas quero
mais. Quero muito mais dele. Ele sussurra meu nome, beija
minha boca e estoca mais devagar, quase uma tortura, entrando
e saindo, atingindo aquele ponto, provocando, me puxando de
novo com ele. Indo mais fundo, tão devagar, que quase choro.
Entra uma vez, mais uma, mais uma e me perco de novo,
gritando seu nome, sentindo-o se derramar em mim. Seu corpo
todo pulsa junto ao meu, ele me aperta mais forte em seus
braços e seus gritos estão em meu ouvido. Seu pau está dentro
de mim e pareço ainda pulsar por ele. Então ele se acalma, se
deixa cair sobre meu corpo, ajeita a cabeça sobre meus seios e
nossas respirações aceleradas se misturam em uma sinfonia
audível.
Cedo demais ele se move, beija meus seios e sobe os
lábios por minha pele até alcançar os meus. Então me beija
docemente, devagar, saboreando meus lábios, brincando com
minha língua, seu corpo nu e suado sobre o meu, seus braços à
minha volta. Seus lábios me tomando ainda mais para ele.
— Você precisa ser minha, Anna. Só minha — sussurra
antes de me beijar de novo. E só consigo pensar que seria
impossível ser mais dele do que sou agora.

Me sinto meio nas nuvens durante toda a tarde. Quando


Lucca e Leandro chegam da Atenas, é difícil não pular sobre ele
e me pendurar em seu pescoço para sempre. Quero beijá-lo,
tocá-lo, sentar em seu colo e sentir sua pele na minha. É uma
necessidade tangente e é difícil controlá-la. Mas passamos a
noite juntos de novo. Após eu arrumar sua cama, Lucca não
permite que eu deixe seu quarto, me pede um beijo de boa noite
e esse beijo acaba com nós dois nus em sua cama.

Larissa aparece esta tarde. Leandro havia comentado mais


cedo sobre seu sumiço após o jantar com Lucca e parece que ele
a conjurou. Ela me encara dos pés à cabeça quando abro a
porta, um sorriso de escárnio está em seu rosto então.
— Boa tarde, senhorita crepe.
— Imagino que o Lucca não tenha chegado ainda —
comenta ao invés de responder meu cumprimento e confirmo
com a cabeça. — Isso é bom, Anna, porque precisamos
conversar.
— Eu acho que não.
— Mas eu acho que sim. Você o quer, não é? Esse seu
papo de não estar em meu caminho foi uma estratégia sua. Mas
entenda, Anna, que você pode passear na cama dele quantas
noites forem, homens como Lucca Baltazi não ficam com
mulheres como você.
Abro a boca para responder, quando escuto a voz de
Leandro. Penso em subir para meu quarto e deixar que eles se
virem com ela, uma vez que não fazemos a menor questão da
companhia uma da outra, mas então suas palavras ficam se
repetindo em minha cabeça. Lucca tem um sorriso cansado no
rosto, Leandro parece bem mais animado do que ele, mas
quando vê Larissa, seu sorriso se desfaz um pouco. Ainda assim
ele a cumprimenta com alegria e gentileza, abraçando-a e
comentando que sentiu sua falta. Lucca sequer tem tempo de
cumprimentá-la antes que ela o abrace assim, do nada, por
nenhum motivo. Eu já estava quase deixando o hall de entrada,
mas giro o corpo de volta no mesmo instante.
Assim que Lucca consegue se desvencilhar dela, pego sua
mão, pergunto por seu dia e o arrasto para longe da senhorita
apaixonada. Uma mulher segura de si não se deixaria abater
pelas palavras de escárnio de sua rival. Uma mulher que sabe o
que está fazendo daria corda, não cercaria o objeto de desejo em
comum, o deixaria livre. Ela saberia que ele a procuraria, mesmo
tendo outras opções ali, diante dele, buscaria por ela. E isso seria
toda a resposta que a recalcada precisaria.
Mas eu não sou uma mulher segura e não faço ideia do que
estou fazendo.
Assim que Lucca se acomoda no sofá me sento ao seu
lado, colada nele. Tão próxima que quando ele mexe o braço o
meu mexe junto, estão colados. Ele responde à pergunta de
Larissa sobre a empresa e não reclama por eu estar invadindo
seu espaço. Larissa tem seus olhos sobre mim enquanto seu tom
de voz é doce ao se dirigir a Lucca.
— Você ainda me deve um jantar — cobra dele.
— Ele não está com fome — respondo sem querer, quando
me dou conta, já falei.
Lucca tem um sorriso e Leandro tenta mesmo disfarçar uma
risada. Estou sendo ridícula e sei disso, mas não consigo me
afastar dele com ela tão perto.
— Eu não estava falando sobre agora, Anna. Podíamos
marcar para sábado à noite, o que acha, Lucca?
— Ele não estará com fome — respondo antes que Lucca
diga alguma coisa. Agora ele ri baixinho, mas está relaxado ao
meu lado.
— Como sua assistente é brincalhona, Lucca! Mas eu
gostaria que nós dois pudéssemos resolver isso entre nós
apenas — ela ralha e reviro os olhos.
Alberta entra com as guloseimas e me encara confusa. Eu
deveria ajudá-la, mas temo sair do meu lugar e Larissa voar nele
no mesmo instante. Ela está assim, tão desesperada quanto eu.
Sirvo Lucca sem me levantar e ele tem dificuldade de levar a
xícara até à boca, porque não sei que horas eu fiz isso, mas
estou de braços dados com ele no sofá.
— Ah, me desculpe — peço sem graça afastando-me um
pouco.
Ele aproxima o rosto do meu ouvido e pergunta baixo.
— Está tudo bem, Anna?
— Sim, tudo bem. Vou me afastar, desculpe.
— Você quer subir? Quer conversar um pouco?
É minha chance perfeita. Ele está disposto a deixar sua
convidada aqui e subir comigo. Sorrio, algo em meu peito parece
derreter e penso que já nem tenho mais um coração aqui, ele
virou líquido há muito tempo com Lucca agindo assim.
— Não precisa, Lucca, mas obrigada — respondo indo
contra a voz em minha cabeça gritando que eu o leve para a
segurança do seu quarto.
Mas não posso ser assim. O que está havendo comigo? Se
apaixonar é se perder tanto assim? O quanto mais vou
enlouquecer? Será que quanto mais me apaixono por ele, mais
louca fico? Porque se for assim, isso não tem como acabar bem.
Vou terminar meus dias em um hospício e ele estará livre para
outra.
Meu telefone toca e levo um susto, pulando no sofá. Não
costumo andar com o celular por perto, mas coloquei meu
número como contato de emergência no celular de Lucca de
forma que se ele precisar de mim consegue me ligar por
comando de voz rapidamente. Apenas por isso tenho andado
com o aparelho pelos bolsos das roupas que uso.
Vejo o nome de Igor na tela no momento em que Larissa
repete sua pergunta e espera uma resposta de Lucca. Não
entendo porque Igor está me ligando depois de tanto tempo.
Quando terminamos, esperei por uma ligação dele, ao menos um
toque, uma mensagem, um sinal qualquer, mas não houve nada.
Ele apenas me esqueceu e seguiu sua vida. E agora, tanto
tempo depois, uma chamada dele me faz sentir estranha.
— Você não vai atender? — Lucca pergunta ao invés de
responder Larissa e atendo ao telefone finalmente.
— Anna, que bom que você me atendeu! Eu realmente
adorei rever você. Tenho muitas lembranças boas de tudo o que
tivemos. Eu sei que você está comprometida, mas preciso muito
falar com você. Será que podemos jantar hoje?
— Ah, eu não acho que seja necessário, Igor, já faz muito
tempo — respondo e percebo a careta de Larissa. Estou
atrapalhando sua conversa, então desisto de sair da sala para
falar ao telefone e fico aqui mesmo, atrapalhando de propósito.
— Eu sei, eu só queria mesmo conversar. A gente terminou
assim, tão de repente, ficou tanto por ser dito. Eu só queria vê-la
mais uma vez, esclarecer algumas coisas que ficaram
pendentes, só para poder ficar com o coração em paz de uma
vez por todas. Como amigos, Anna, você até pode trazer seu
namorado, se quiser.
Não tenho a menor vontade de vê-lo, mas ele não se
importaria se eu levasse Lucca, o que indica que só quer ser meu
amigo. Não acho que uma amizade entre nós seja possível
agora, depois de tudo, mas geralmente não acho que uma
amizade seja possível entre mim e qualquer outra pessoa.
Preciso aprender a ser mais sociável, manter uma relação com
as pessoas que entram em minha vida, fazer amizades.
Isso e o fato de Larissa estar agora sentada sobre uma
poltrona que sem o menor pudor arrastou para a frente de Lucca,
arrastando suas unhas postiças pela mão dele enquanto repete
pela terceira vez sua pergunta, me fazem tomar uma decisão.
— Tudo bem, podemos jantar hoje, onde devo encontrá-lo?
— No restaurante. Vou fechar mais cedo, seremos só você
e eu. E claro, seu namorado se você quiser trazê-lo.
— Tudo bem, nos vemos em breve.
Desligo o telefone e me levanto para ir me arrumar, olho
para Lucca antes de me afastar e ele está completamente
parado. Larissa ri e fala algo enquanto toca sua mão e ele não
tem qualquer reação, nem parece presente.
— O que me diz, Lucca? — ela insiste e ele parece voltar a
si.
— Vou me retirar, com licença — aviso indo em direção a
saída, mas escuto a resposta de Lucca à pergunta de Larissa
— Desculpe, Larissa, eu adoraria jantar com você, mas não
posso. Eu sinto muito por desapontá-la, mas não vai haver
nenhum jantar romântico entre nós. Eu não estou à procura de
nenhum tipo de relacionamento agora.
Paro onde estou e olho para trás. Ele não vai sair com ela.
Está cortando suas investidas finalmente. Quero voltar para trás
e pular sobre ele, um sorriso bobo está colado em meu rosto e
me obrigo a deixar a sala, uma vez que já anunciei que estava de
saída e ir me arrumar. Não tenho a menor vontade de ir agora,
mas vou cumprir minha palavra.

Quando estou de saída, procuro por Lucca para saber se


ele precisa de alguma coisa, mas não o encontro. Seu quarto
está trancado pela primeira vez em meses. Bato na porta e
pergunto se está tudo bem e ele responde que sim e que não
precisa de nada. Deixo a casa com uma sensação estranha e
uma vontade de entrar por sua janela apenas para me certificar
que ele está mesmo bem.

O Bella Itália não mudou nada desde a última vez em que


estive aqui. Os últimos clientes deixam o restaurante quando
chego e Igor me recebe com um sorriso caloroso, sorriso que
poucas vezes foi direcionado a mim enquanto estávamos juntos.
Como eu era tola! Ia me casar com ele e nunca saberia como é
me sentir assim, louca, apaixonada, suspirando pelos cantos e
andando nas nuvens por coisas pequenas. Deixo que ele me
guie até a mesa que preparou em sua sala. Pergunto pelos
funcionários e por Bianca. Ele nos serve a entrada: crostini, meu
prato preferido antes de eu provar os ovos mexidos de Lucca.
Igor fala sobre nosso namoro, relembra bons momentos
que passamos juntos, como se todo o relacionamento tivesse
sido feito deles. Enquanto ele fala o comparo a Lucca, é
impossível não o fazer, e percebo que sequer tínhamos química.
Nosso sexo nunca foi nem a sombra do incêndio que sinto com
Lucca, nós mal tínhamos faíscas. E toda a atenção que ele
dispensava a mim não era mais do que sua obrigação, afinal de
contas, eu não estava em um relacionamento sozinha. Eram
migalhas, vejo agora, Lucca é só meu chefe, um amigo na
maioria das vezes, e a maneira como se importa comigo é muito
superior a qualquer coisa que Igor já tenha feito por mim.
De repente Igor serve a sobremesa e percebo que sequer
prestei atenção ao que ele disse nos últimos minutos. Começo a
me preocupar que seja um sintoma de paixão não parar de
pensar na pessoa que se ama e não se concentrar em mais nada
que não seja sobre essa pessoa.
Sacudo a cabeça tentando organizar meus pensamentos. A
sobremesa está à minha frente, Igor também. Nem sei o que vim
fazer aqui, não vamos ser amigos. Mas quando olho para ele, o
homem que acreditei cegamente que seria meu marido, meu
para sempre, e não sinto nada além de gratidão por não ter
seguido meus planos, entendo que não importa a loucura em que
eu esteja agora, ou o quanto posso ser estranha sobre Lucca,
sou grata por ter me apaixonado por ele. Se vou acabar em um
manicômio por isso, então que seja. Não quero mais meios
sentimentos, meios relacionamentos, faíscas frias e um sexo
comum. Quero o fogo, o tremor, a loucura, o medo de perder, eu
quero viver tudo isso.
Consigo prestar atenção em Igor já prestes a me despedir,
quando o que ele diz faz tudo sumir da minha mente.
— O que ele viu não significou nada. Sim, eu estava com a
Viviane em uma situação íntima, mas não foi nada. Eu só estava
chateado porque você havia me traído e quis descontar com a
mesma moeda. Eu me arrependo tanto disso, Anna!
— Espera, o que disse? Lucca pegou você e a Viviane
transando na sua sala naquele dia?
Ele parece confuso, logo, arrependido. Tem um sorriso
amarelo no rosto.
— Não exatamente, ele achou que eu...
— Não me enrola, Igor. O que Lucca viu naquele dia?
— Ele não contou nada a você?
— Não, mas você vai me contar.
— Anna, foi sem querer, foi por impulso, por vingança, eu
não senti nada quando a toquei.
— Ele pegou mesmo vocês dois aqui?
Igor assente, dispara a repetir suas desculpas, mas minha
cabeça está longe agora. Lucca o pegou com outra, por isso me
beijou na frente dele. Ele me deu minha própria vingança sem
que eu soubesse. Mas por que não me contou?
Me levanto de repente e Igor para de falar.
— Onde você vai?
— Isso foi um erro, Igor. Eu sinto muito ter tomado seu
tempo. Achei que pudéssemos ser amigos, mas não podemos.
— Anna, espere. Eu chamei você aqui porque tenho algo a
te propor. Eu sei que você quer uma família numerosa como eu,
mas não vai conseguir isso com Lucca Baltazi! Ele está cego,
Anna! Não pode ser o pai que você espera, está falido, tem
muitas limitações, você se dá conta que ele não será o marido
que você precisará ao seu lado? A vida que você sempre sonhou
é comigo, Anna. Deixe-o, case-se comigo, vamos ter nossos
filhos, vamos começar imediatamente.
Sempre quis ouvir isso dele. Uma vez ele me pediu em
casamento, me propôs essa família numerosa e feliz e então não
passou de promessas. Quando terminamos eu sonhava que
alguém me fizesse essa proposta de novo, e tinha certeza que
ninguém nunca mais a faria. Esperei tanto ouvir isso outra vez,
mas agora não sinto nada. Não tenho a menor vontade de
começar uma vida a dois sem paixão em nome de um sonho.
— Não — respondo interrompendo-o. — Não vai acontecer,
Igor. Eu não... eu não... eu estou apaixonada por Lucca Baltazi,
muito apaixonada. Eu o amo, não quero ter filhos que não sejam
dele.
Igor não diz mais nada, apenas assente, resignado. Pego
minha bolsa e deixo o restaurante, mas me sinto em uma
bagunça tão grande! Ainda maior da que eu estava quando
cheguei aqui. Lucca não vai ser o pai dos meus cinco filhos, sei
disso, ainda assim estou disposta a ficar com ele. Então estou
abrindo mão do que mais quis a vida toda por ele?
Chamo um táxi e volto para a casa de Leandro. Está tarde,
Lucca provavelmente está dormindo. Agora entendo sua atitude
naquele dia, ao invés de me ajudar a voltar com Igor, ele me
livrou de uma vez dele. O fez sair por baixo, achando que eu o
havia traído, que o havia trocado por Lucca Baltazi. Mas por que
ele não me contou?
Entro pela porta e quando chego em frente as escadas,
Lucca está ali. Sentado nos degraus, a bengala ao seu lado, se
levanta quando sente que estou aqui.
— Lucca, está tudo bem?
— Me diz você. Ele queria que você voltasse para ele, não
é? Foi por isso que a chamou para jantar?
— Sim, como você sabe?
Ele fica em silêncio. Me aproximo da escada observando-o.
— Ele a propôs casamento? — pergunta.
— Sim.
— E a lembrou dos cinco filhos que vocês podem ter
juntos? Ele quer que vocês comecem a ter esses filhos o quanto
antes — é uma constatação e não mais uma pergunta.
— Como você sabe? — pergunto assustada. — Como pode
saber tudo o que ele disse?
Ele dá de ombros. Tateia o chão e pega a bengala, então se
vira e começa a subir os degraus.
— Por que você não me contou? — pergunto, parada onde
estou e ele para também. Continua de costas, mas entende do
que estou falando.
— Primeiro, porque você ficaria arrasada. Você estava
parada na porta daquele restaurante, seus olhos de mel
brilhavam, você brilhava achando que o teria de volta, mas ele
não a merecia, Anna! Se eu te contasse isso você ficaria
arrasada, eu não consegui. Depois, não contei porque não me
importava, não fazia diferença para mim. Então, desde aquela
noite em que você bebeu, disse que eu a fazia sentir coisas e
montou no meu colo me beijando desse jeito que só você é
capaz de beijar, eu não contei porque queria você pra mim. E não
queria que você fosse tirar satisfações com ele, que acabasse
esclarecendo que não estávamos juntos e perdoando seu deslize
por amor. Não queria que você ficasse com ele. Enfim, não contei
porque sou egoísta.
Não sei como me sentir sobre isso. Sim, eu teria ficado
arrasada. Isso teria me destruído mais do que tê-lo perdido. Mas
eu não iria até ele, eu não o perdoaria por amor nenhum no
mundo.
Lucca sobe mais um degrau e faço o mesmo, quero
encerrar esse dia. Passo por ele e vou direto ao seu quarto,
arrumo sua cama rapidamente e ele chega quando já estou de
saída.
— Você está bem com o que descobriu? Isso mexeu com
você? — pergunta.
— Sim, estou bem. E sim, mexeu comigo, mas não por ele
e sim por você.
— Sinto muito não ter te contado.
— Não éramos amigos, Lucca. Acho que você não tinha
obrigação.
— Mas nos tornamos amigos há muito tempo.
— Eu desculpo você. Vou me deitar, se precisar de alguma
coisa é só me chamar.
Passo por ele e vou para o meu quarto. Tiro a roupa
vestindo em seguida uma blusa confortável que peguei
emprestado do guarda-roupa de Lucca. Duas batidas soam na
porta antes que eu me deite.
— Você aceitou, Anna? — Lucca grita lá de fora. — Disse
sim? Vai ter com ele os cinco catarrentinhos começando agora?
Abro a porta indignada e ele está parado no corredor, sem a
bengala, os óculos escuros no rosto. Imagino que seja cansativo
ficar tanto tempo com ele no rosto.
— Meus filhos não serão catarrentinhos, eu vou ser uma
boa mãe! — defendo-me.
— Então você disse sim — sua voz é baixa, seus ombros
estão caídos e suas mãos parecem tremer levemente.
As toco imediatamente. Será que ele se sente mal?
— Não, eu disse não. Lucca, você está bem?
— Você não aceitou se casar com ele?
De repente seus ombros estão eretos de novo, sua voz soa
mais alta, suas mãos apertam as minhas prendendo-as ali.
— Não, não vou me casar com ele, nem ter filhos com ele,
não seremos nem mesmo amigos.
Ele sorri, é um sorriso lindo, aliviado, feliz, tímido. Me pego
sorrindo de volta.
— Ele não é a pessoa certa para você, Anna, ele nunca te
mereceu. E eu sei que você vai encontrar a pessoa certa um dia.
Alguém bom de verdade, que vai ter com você essa família
numerosa e barulhenta que você tanto sonha. Vai encontrar essa
pessoa porque você merece ser imensamente feliz.
Tiro minhas mãos das suas, sinto algo em meu peito se
partir, ele vai me dar um fora também. Não são só as investidas
da Larissa que ele vai cortar hoje, ele não quer um
relacionamento. Nem com ela, nem comigo. Dou um passo para
trás, mas ele parece sentir, dá um para frente, entrando em meu
quarto.
— Mas até que você encontre essa pessoa, Anna, até que
encontre a pessoa certa, fica comigo.
Meu coração bate tão acelerado agora, que não consigo
reagir.
— O que exatamente você está me propondo? — pergunto
temendo sua resposta. Talvez eu tenha entendido tudo errado e
vou ficar mesmo arrasada se for assim.
— Estou propondo que fique comigo, namore comigo. Seja
minha namorada, Anna. Fica comigo, mas de verdade. Durma
comigo todas as noites, ande de mãos dadas comigo, diga a
todos que você é minha e que eu sou seu. Me deixa beijar você
sempre que eu sentir vontade. Me deixa acordar sabendo que
você está ao meu lado na cama, me deixa dormir em você mais
vezes, porque não me lembro de já ter estado tão feliz.
Meus olhos estão cheios, Lucca dá mais um passo para
dentro do quarto, está perto demais agora. Nossos corpos se
tocam levemente e ele continua:
— Me deixa amar você, Anna. Me deixa cuidar de você da
melhor maneira que eu puder. Me deixa te fazer delirar em
muitas outras noites de amor e tocar você sabendo que é minha,
que está comigo, que não vou perdê-la por ser um cego
fracassado, porque não aguento mais ter medo disso.
Me lanço sobre ele e o beijo. As lágrimas descem por meu
rosto, mas não me importo. São de felicidade, de alívio, de
genuína alegria. Ele me abraça de volta, me prendendo ao seu
corpo, respirando em meu cabelo, afundando o rosto em meu
pescoço.
— Diga sim para mim, meu amor — pede baixinho em meu
ouvido.
— Sim, eu aceito ser sua namorada.
Ele sorri, seu beijo agora é aliviado, seguro, feliz. Suas
mãos descem pela lateral do meu corpo e ele segura a barra da
camisa que uso.
— Essa camisa é minha — comenta.
— Tudo o que você tocar aqui é seu — respondo.
Seu sorriso aumenta. Ele tira a camisa do meu corpo
rapidamente e logo estou em seus braços de novo, sua boca
está na minha, a cama está sob nossos corpos e sua roupa não
está mais. Logo ele está dentro de mim, cumprindo sua
promessa, me fazendo ainda mais dele. Mas eu também estou
dentro dele de alguma maneira, porque ele também é meu aqui,
quando nossos corpos se encontram, quando nossos sentidos se
perdem. Ele é meu quando seu líquido está em mim e sua boca
também. É meu quando nos ajeita na cama e me pede que cubra
nossos corpos porque vai ficar aqui. É meu quando me abraça
bem forte e me faz dormir em seu corpo, saciada, segura e feliz.
Hoje o dia amanheceu mais belo do que me lembro de já ter
estado. Anna dorme tranquila em meus braços, sua respiração é
calma, seu corpo está entrelaçado ao meu, ela é minha.
Finalmente minha.
Minha namorada.
Se casar e ter uma família numerosa é o que ela sempre
quis, não sei o que a fez recusar a proposta do babaca do ex,
provavelmente a descoberta de sua traição, então, apesar de
tudo, sou grato por não ter contado nada a ela na época. Ela
poderia já tê-lo perdoado a essa altura e ter dito sim à sua
proposta. E sinceramente não sei o que seria de mim se isso
tivesse acontecido. Eu não sei o que vai ser de mim quando ela
for embora. E eu sei que um dia ela vai.
Anna é o meu amor, é a mulher da minha vida. Não vou
amar mais ninguém da maneira singular e verdadeira como a
amo. Eu sei disso. E mais do que ter a empresa de volta, do que
recuperar meu patrimônio ou voltar a enxergar, eu queria ser o
suficiente para ela.
Ela se mexe um pouco, sua respiração altera o ritmo e
então seus lábios tocam de leve meu rosto.
— Bom dia, meu bem — digo acariciando seu cabelo.
— Bom dia, namorado — responde com a voz arrastada de
sono.
De repente, ela se levanta.
— Está tudo bem, Anna?
— Sim, vou providenciar seu café.
— Não precisa ter pressa, anjo. Deita aqui um pouco,
relaxa.
— Eu já volto — diz e deixa o quarto e não entendo o que
está havendo.

Já estou de banho tomado, escolhendo uma roupa quando


Anna entra em meu quarto. Sinto o cheiro do café, roscas e pão
de queijo. Ela me faz parar o que estou fazendo e comer primeiro
antes que esfrie. Me ajuda a escolher uma roupa e, quando a
puxo para meus braços e a beijo, ela se afasta de novo.
— Anna, o que está havendo? Não me diga que você
mudou de ideia! — pergunto temendo que a resposta seja sim.
— Não mudei, mas você pode mudar — responde
temerosa. — Talvez. Acho que é provável.
— Do que está falando?
— Ainda está cedo, você pode se sentar aqui um pouco?
Preciso falar sobre uma coisa com você.
Me sinto tenso com seu tom de voz. Caminho devagar até a
cama, ainda não consegui vestir uma blusa, de forma que uso
apenas uma calça jeans. Me sento ao seu lado e espero.
Primeiro, ela sussurra algo que não consigo entender. Isso não
pode ser um bom sinal.
— O que você tem, meu anjo? — pergunto em um tom
calmo, o total oposto de como me sinto por dentro.
— Você é tão bonito! Devia ser proibido alguém ser tão
bonito! — Sorrio, aliviado com o tom carinhoso de sua voz.
Procuro sua mão e a prendo entre as minhas. Ela entende o que
estou pedindo, respira fundo antes de contar o que está havendo.
— Ninguém nunca foi tão importante para mim quanto você é.
Nunca tive medo de perder alguma coisa desse jeito. E agora
isso mudou e eu não sei lidar com o que estou sentindo. Estou
muito encantada com você, com tudo o que você me faz sentir,
mas também isso me desequilibra. Estou percebendo que não
sei lidar com um relacionamento que envolve sentimentos tão
intensos, ainda mais sentimentos como os que você me
desperta.
— Estou aqui para ajudar você, Anna. No que precisar. É a
primeira vez que tenho um relacionamento sério. Minha vida
inteira foi dedicada a Atenas. É a primeira vez que estou tão
encantado por alguém também. Você não precisa ter medo.
— Não, você não entendeu. — Ela está apertando meus
dedos agora. — É você quem vai ter medo, não eu.
— Anna, quanto mais você fala, menos sentido você faz.
— É disso que estou falando! Lucca, eu sinto ciúmes de
você e não sei controlar isso. E quando vejo já me sentei colada
em você, me pendurei em seu braço e respondi por você. Mas
não faço isso de propósito, eu quero você e isso parece me dar o
direito de agir como uma maluca. Antes, você era só meu objeto
de uma leve obsessão, antes eu me controlava para não ser tão
estranha, mas agora você é meu namorado! Não tenho mais que
me controlar e saber disso me assusta!
Seguro o riso que quer escapar, tanto de alívio, quanto por
sua inocência.
— Amor, você não era exatamente controlada antes.
— Você não faz ideia de como vou agir agora.
Há tanto medo em sua voz e um sorriso incontrolável já
habita em meu rosto.
— O seu medo é que eu desista de você porque é maluca?
— Bem, sim.
— Eu adoro você porque é maluca. Eu adoro seu jeito único
de ser, a maneira como sua mente funciona, sua pureza, sua
coragem. Adoro que sinta ciúmes de mim.
Ela deita a cabeça em meu colo e acaricio seu cabelo.
— Vou ser mais clara, pra você não dizer que não avisei. Se
a Larissa der em cima de você de novo, ela vai se ver comigo.
— Como a Andreia quando você inventou que perdi o
pênis?
Ela ri baixinho.
— Pior. Isso foi eu tentando me controlar.
— Escute, meu bem, você não tem que se controlar por
mim. Quero você e a quero exatamente como é. Apenas seja
você, mesmo que pense que é maluca, não perca tempo se
preocupando em tentar se esconder, tudo bem? Pode vir com
tudo, eu juro que aguento.
Ela continua em meu colo, espero que esteja mais tranquila.
Anna não tem noção do que está dizendo, ela não sabe que não
há nada neste mundo que me faria desistir dela.
— Eu não tive família, nem amigos. Exceto o Igor, que não
foi um bom exemplo de relacionamento, eu não sei estar em um
relacionamento — confessa.
— Então vamos aprender.
— Eu tenho vontade de ficar com você o tempo todo.
— Sou todo seu, Anna, pode ficar comigo o quanto quiser.
— Eu pensei em trancá-lo neste quarto e jogar a chave fora.
— Vou comer você de tantas maneiras diferentes se fizer
isso...
Ela ri alto agora. Se levanta e sinto falta desse contato. Mas
então ela sobe em meu colo e beija meu rosto.
— Você não está assustado? — pergunta em meus lábios.
— Nem um pouco. Nada do que você fizer vai me assustar,
minha Anna. O que você me faz sentir me assusta, muito, mas é
tão bom que não me importo com os riscos.
Subo as mãos por seu corpo e seguro seu rosto entre elas
com todo cuidado.
— Entenda uma coisa, meu bem, em paralelo a tudo de
ruim que tem acontecido na minha vida, há você, a única coisa
boa. Você é tudo de bom que tenho, Anna e não há nada neste
mundo que me faria desistir de você. Nunca. Se um dia isso
acabar, vai ser porque você me deixou, e você vai levar minha
vida embora com você quando fizer isso. Mas eu nunca vou pedir
que você se vá.
Ela encosta a testa na minha. Sua respiração está alterada
em um ritmo que não conheço. Não é comum nela. Conheço
todas as suas reações, mas não esta.
— Eu não suportaria se você me mandasse embora de
novo. Porque eu só quero ficar com você. Não me afaste, Lucca.
— Nunca, meu anjo, eu prometo. Eu sei que sempre se
sentiu sozinha, mas você não está mais sozinha, Anna. Estou
aqui com você, eu sou para sempre se você quiser. Nunca irei
deixá-la, você nunca mais vai ficar sozinha.
Ela me abraça, passa os braços por meu pescoço e fica
assim um bom tempo em meu colo. Até Leandro bater na porta
porque precisamos ir. Só então ela se afasta, me beija, um beijo
tão doce e convidativo que só queria ser de novo meu próprio
chefe para tirar o dia e ficar em casa, na cama, com ela.

A movimentação de Aquiles hoje está diferente. Tão perto


disso tudo acabar, ele me deixou em paz por toda manhã e isso
não pode ser uma coisa boa. Faltando tão poucos dias para eu
me livrar dele, ele deveria estar se esforçando ao máximo para
me humilhar e estar se divertindo com isso.
Ao final da tarde, ele deixa sua sala e diz:
— Vem comigo, Lucca.
Nenhuma explicação, como sempre. Confiro se o celular
está em meu bolso, caso ele me deixe sozinho de novo posso
ligar para Anna, e sigo até o elevador. Já decorei esse caminho.
Nem pergunto onde vamos, porque sei que ele não vai dizer. Mas
percebo que ele parece agitado. Anda de um lado a outro no
elevador, escuto seus passos, sua respiração está alterada,
alguma coisa está errada.
Ele dirige por tempo demais, no mais completo silêncio.
Não faço ideia de onde estamos quando ele diminui a velocidade
do carro e o estaciona. Espero suas instruções, mas ele apenas
me manda descer. Odeio a sensação de estar em um lugar
desconhecido.
— Não vou descer se não me disser onde estamos —
aviso.
— Em um lugar seguro, não é no meio de uma rua, nem
nada assim. Só vim pagar uma pessoa que fez um serviço para
mim, temos apenas que esperar que ele apareça e logo vamos
embora.
Desço, a bengala presa entre meus dedos. O cheiro aqui é
diferente do da cidade, tem um cheiro ruim de algo podre e
diferentes odores mais fracos. Não há qualquer barulho, nem
carros, pessoas, lojas, nada. É um lugar deserto, não cheira bem,
isso não pode ser bom.
Logo, escuto passos. Aquiles cumprimenta amigavelmente
quem quer que esteja conosco.
— Você não devia trazer um cego para essas bandas,
Baltazi — a pessoa o alerta.
— Ele sabe se defender e já estamos de saída. Não
estamos?
— Não sou eu que vou prender vocês aqui — o cara
responde com certa diversão na voz. — Você trouxe o que
prometeu?
— Aqui está — Aquiles responde e entrega algo a pessoa
que está conosco.
— O que você fez para ele? — pergunto.
— Não seja tão curioso, Lucca — Aquiles ralha.
— Se não vou saber o que está acontecendo, por que você
me trouxe?
— Ele quer mais, Baltazi, essa quantia não cobre — o cara
avisa antes que Aquiles possa me responder.
— Foi esse o valor que combinamos, Pescoço.
— Isso foi antes, você está pagando com dois dias de
atraso, tem multa.
— Urso sabe que não posso dispor de mais do que isso
agora.
Eles entram em uma discussão sobre o dinheiro e começo
a me perguntar que tipo de serviço Aquiles pediu a esse tal de
Urso, que claramente, é o chefe de alguma gangue. A discussão
não parece se encaminhar para algo bom. O tal Pescoço chama
por alguém, Aquiles parece ainda mais alterado e começo a
pesar as opções. Estamos a uma distância boa do carro agora.
Mais passos podem ser ouvidos, há mais pessoas chegando.
— Foi por isso que eu trouxe você — Aquiles diz de
repente. — Você é só um cego, talvez nos deixem ir sem cobrar
a multa.
— Do que está falando?
Ele não responde mais, há pelo menos mais cinco pessoas
aqui. Posso contar os passos, as vozes. Não sei o que está
havendo, tudo parece em silêncio de repente até Pescoço
perguntar mais uma vez.
— Você não vai mesmo dar o resto do dinheiro, Baltazi?
— Posso trazer amanhã — Aquiles concorda enfim.
— Não serve. Você sabia que não. Você vai pagar agora.
E tudo acontece rápido demais. Aquiles não responde mais,
ouço seus passos para longe, ele tenta fugir, mas duas das
pessoas que se aproximaram correm atrás dele. Porém, os
outros três parecem vir em minha direção. Um deles me acerta
um soco inesperado na barriga. Imediatamente outro me acerta
por trás, pego minha única arma de defesa, a bengala, lançando-
a por todos os lados, consigo acertar alguém, mas logo a
bengala é arrancada da minha mão. Quando outro soco chega,
na lateral do meu corpo, consigo segurar a mão de quem me
acertou e o atinjo com um chute, mas são três contra um e não
há como vencer essa luta.
O som das sirenes é minha salvação. Grito por ajuda, eles
tentam me calar, mas consigo gritar. É uma questão de segundos
para eles saírem correndo e me deixarem caído no chão. Não
faço ideia de onde está Aquiles e meu corpo todo dói. Nunca
havia entrado em uma briga e não gostei nem um pouco de por
quem entrei nesta.

A polícia não encontrou Aquiles após eu contar o que havia


acontecido, mas reconheceram os nomes citados: Pescoço e
Urso. Estou agora em um hospital, apenas esperando que
alguém venha me buscar. Não tenho nenhuma fratura, ou nada
mais grave. Sinto o cheiro de Anna, um alento entre os cheiros
presentes ao meu redor, antes mesmo de ouvir sua voz. Antes de
ela se jogar com tudo sobre mim, me abraçando apertado.
— Ai, Anna, amor, cuidado.
Ela se afasta.
— Ah, me desculpe, você está muito machucado?
— Não foi nada, meu anjo. Podemos ir?
Ela me guia até o carro segurando as perguntas que sei
que ainda quer fazer. Leandro não está em casa, não sabe o que
aconteceu. Liguei para Anna assim que fui medicado e pedi que
viesse me buscar. Ela se assustou quando passei o endereço e
precisei contar a ela o que havia acontecido.
Chegamos em casa e vamos direto ao meu quarto. Ela tira
minha roupa devagar, enquanto reclamo do incômodo e escuto
seu arfar assustado quando me vê sem roupa.
— Quantas pessoas bateram em você? — sua voz parece
falha.
— Acho que três.
— Lucca! E onde estava o Aquiles? Por que ele o levou até
lá?
— Eu não sei.
— Você contou à polícia? Contou que ele tinha contratado
algum serviço dessa gangue?
— Sim, eu contei. Provavelmente irão procurar por ele.
Não sei o que se passa na cabeça dela agora, fica em
silêncio por tempo demais sendo ela, depois pega minha mão e
me guia ao banheiro. Escuto o barulho da água. Termino de tirar
a roupa e o calor é bem-vindo em meu corpo dolorido. Sei que
Anna está aqui no banheiro comigo porque sinto sua respiração,
seu cheiro, mas está tão calada!
— Está tudo bem, Anna — digo para acalmá-la. — Uma
vez, quando éramos crianças, Aquiles arrumou briga com um
aluno muito forte na escola. Ele me pediu ajuda, mas eu fui direto
para casa e deixei que ele se virasse sozinho. Ele apanhou muito
naquele dia. Acho que está apenas se vingando. Você sabe,
estou pagando por todos os erros que cometi, isso ainda está
longe de acabar, meu bem.
Ela ainda não diz nada e começo a me preocupar. Mas
então, ela toca minha barriga, de leve, analisando se vou
reclamar de dor. Logo, suas mãos estão em meu peito, ela
passeia os dedos por meu corpo. Então seus lábios tomam o
lugar de seus dedos. Beija minha pele de uma maneira tão
suave, que não resisto a tê-la em meus braços. A abraço
apertado, mantendo-a aqui, em mim, o mais perto possível.
— Não funciona assim, a vida não pode ser assim, Lucca.
Todos cometemos erros, você não vai pagar na vida por cada
pequeno erro que cometeu. Vai pagar por aqueles que forem
essenciais para seu aprendizado. Você ter deixado seu primo se
virar sozinho na infância não justifica o que ele fez hoje. Nada
justifica. Talvez eu tenha puxado a trança de outra menina no
orfanato aos cinco anos. Talvez tenha escondido os presentes
que todas ganharam em um natal. Você entende? Eram
travessuras, não vou pagar caro por isso. Você mudou, Lucca,
aprendeu, se conheceu de novo, está se tornando o verdadeiro
Lucca, não aceite mais essas armadilhas e humilhações, você
não tem mais que passar por isso! Chega, Lucca!
— Faltam poucos dias, meu anjo. Isso logo vai acabar.
Ela se afasta, saindo dos meus braços. Ainda a tenho sob
meus dedos, mas não tão próxima quanto antes.
— Você ainda está pensando em voltar à empresa?
— Sim, Anna, eu preciso.
— Não, Lucca! Isso é ridículo! Você não tem que voltar lá.
Você só está se punindo! Pare de achar que merece tudo o que
está acontecendo!
— Só faltam quatro dias, Anna! Quatro dias. Não posso
parar agora. Tudo o que ele precisa é que eu desista para
quebrar sua parte do nosso acordo. Não posso desistir, amor, eu
preciso fazer isso. Muitas pessoas contam com isso, Anna, elas
dependem disso.
Ela volta a me abraçar e não está nem um poco contente
com minha decisão. Mas quando Leandro chega e conto o que
aconteceu, depois de esbravejar e ameaçar Aquiles, concorda
comigo, eu devo voltar à empresa. E só consigo pensar que tipo
de serviço Aquiles contratou, porque algo me diz que isso vai
sobrar para mim. Então cuido de pedir que Leandro mande
descobrirem quais serviços a gangue contratada por Aquiles
presta.

Aquiles não apareceu na Atenas durante a manhã, chega


na hora do almoço, nada feliz por eu ter dito seu nome à polícia.
Ele passa um bom tempo gritando comigo, mas como não dou a
mínima, desiste um tempo depois. Se passam minutos antes que
barulhos altos soem muito próximo. Todos estão cochichando, as
pessoas parecem assustadas e não faço ideia do que está
acontecendo, até que Leandro vem em meu auxílio.
— Ele surtou, está quebrando toda a copa.
— Ele não pode destruir um patrimônio que em quatro dias
não será mais dele! — ralho irritado.
Pior do que ouvir minha empresa sendo destruída, é o que
vem a seguir. Aquiles me manda limpar tudo. Por um momento,
quando ele coloca a vassoura em minha mão, me lembro de uma
cena bem parecida, meses atrás, onde eu fiz o mesmo com
Anna, rebaixando-a de cargo por puro orgulho. Em pensar que
em pouco mais de um ano ela mandaria e desmandaria em mim
com meu total consentimento! Apenas por isso não retruco que
não sou obrigado a isso porque esta não é minha função.
— Não espere um serviço bem feito, não consigo ver o
estrago que você causou — aviso antes que Aquiles se afaste e
eu seja deixado sozinho aqui. Não há um lugar livre onde meus
pés possam pisar.
Não se passam dez minutos que estou aqui varrendo cacos
quando alguém tira a vassoura da minha mão.
— Sente-se, Lucca, eu faço isso, é meu trabalho.
— Olá, Elaine. Agradeço, mas ele deu esse serviço a mim,
pode se zangar se você me ajudar.
— Não me importo, é meu serviço. O senhor pode se sentar
e conversar comigo, se quiser.
— Vamos dividir o serviço então. Me diz o que posso fazer.
Ela me leva até onde julga não ser perigoso para um cego e
a ajudo varrendo ali enquanto ela junta os cacos reais do que foi
quebrado. Pouco depois, Lucia e Vanessa me cumprimentam,
uma delas tira a vassoura da minha mão e a outra está ajudando
Elaine.
— O que eu faço? — pergunto parado.
— Fica quietinho aí, se você der um passo vai cortar o pé
— Elaine responde.
Em seguida, uma mão me guia até uma cadeira, para que
eu me sente.
— Sente-se aqui, Lucca, já acabamos isso. — É a voz de
Eva, copeira.
Não importa o que eu diga ou o quanto proteste, me tornei
alguém visivelmente incapaz para as pessoas à minha volta.
Entendo que elas só querem me ajudar, então relevo e apenas
aceito o cuidado que todas têm comigo.
— Como está seu marido, Eva? Se recuperando bem após
o acidente? — pergunto.
— Ah, sim, obrigada por perguntar. Está quase novo em
folha!
— E o seu noivo, Vanessa? Parou de beber?
— Ele nem está tentando — responde e faço um gesto
negativo com a cabeça.
— Você sabe o que penso sobre isso.
— Sim, eu sei. Sei que deveria ouvi-lo também, mas quem
manda no coração, não é mesmo? E você? Não pensa em se
casar, Lucca? — Vanessa pergunta.
— Um dia, se a Anna quiser. Claro, se ela mudar de ideia
sobre ter cinco filhos.
Elas riem, me sinto um completo inútil sentado aqui sem
fazer nada, mas conversamos sobre amenidades até que
informam que tudo está limpo e Eva ainda passa um café para
comemorarmos. Aquiles me proibiu de passar meu horário de
almoço na sala de Leandro, forçando-me a passar aqui, no
refeitório. E isso me ajudou a conhecer cada funcionária que o
frequenta no mesmo horário que eu. Foram essas as pessoas
que me ajudaram desde que voltei, ainda que eu não merecesse.
Ao final do dia, elas contam comigo ao entrarmos no
elevador.
— Três dias agora, Lucca. Está acabando.
— Graças a Deus! — confirmo.

Quando chegamos em casa, Leandro tem uma surpresa.


Espero ansioso que tenha descoberto a solução de todos os
problemas da Atenas, mas então escuto o som de patas no piso
de madeira e logo, algo peludo e pesado pula em mim, quase me
desequilibrando.
— Oh! Que coisa mais linda! Como você se chama, bebê?
— Anna brinca com uma voz infantil, completamente derretida
pelo animal.
— Leandro, o que é isso? Por que você trouxe um
cachorro?
— É um cão-guia. Ele será seus olhos a partir de agora. O
nome dele é Apolo, não é demais ter um nome grego? Achei
muita coincidência!
— Não acredito em coincidências e não quero um cachorro.
— Ah, ninguém pode dizer não para essa coisa tão fofa! Oi,
Apolo, como você é lindo! Por que ele não está brincando
comigo? — Anna questiona ainda com sua voz alterada.
— Eles são muito focados, está aqui para ajudar Lucca, não
costumam ser brincalhões. Ele tem um ano e meio, Lucca, é um
Golden Retrivier — explica Leandro.
— Ele é caramelo, peludo e muito lindo — completa Anna.
— Oi, bebê lindo, brinca comigo.
— Eu esperando você resolver as coisas na Atenas e você
me aparece com um cachorro — resmungo. — E agora ela vai
dar mais atenção ao cachorro do que a mim.
— É para sua proteção, Lucca. Só Deus sabe o que Aquiles
pode fazer nos próximos três dias — explica Leandro, mas
apenas resmungo como resposta.
— Seu papai é mal-humorado, tadinho de você, bebê, vai
ter que aturar ele — continua Anna me irritando mais ainda.

O cão está comigo em todos os lugares. Não entendo como


ele sabe que eu sou o cego que deve guiar, mas até mesmo ao
banheiro ele me acompanha. Ouço o som de suas patas, seu
cheiro e sua respiração sempre à minha esquerda. De vez em
quando ele lambe meus pés, como que para avisar que está
aqui. Ao final da noite, Anna coloca alguns obstáculos em meu
caminho e Apolo me faz desviar de todos. Testamos nos degraus
da frente da casa, e ele me avisa que há degraus aqui, me
impedindo de continuar e latindo. E agora, além de óculos
escuros e bengala, também preciso carregar um cão como
acessório. Um bicho pesado, que respira ruidosamente e deixa
baba o tempo todo no meu sapato.

Todos param para mexer com Apolo na Atenas. Não dou


dois passos sem que alguém se aproxime com a voz alterada
falando com ele como se fosse uma criança pequena, mas o
bicho não parece dar atenção a ninguém, uma vez que todos
reclamam que ele não aprecia as brincadeiras. Talvez eu me
identifique um pouco com esse cachorro. Leandro me
acompanha porque teme a reação de Aquiles a ele. E claro que
sua reação não é nada boa. Assim que chego à minha mesa,
Aquiles sai de sua sala. Leandro me alerta que ele está se
aproximando, mas nem seria necessário, seus gritos podem ser
ouvidos já ao longe.
— O que esse animal está fazendo na minha empresa?
Tire-o daqui agora mesmo!
— Não vai dar, não — respondo.
— Lucca, faltam três dias para que nosso acordo acabe,
mas durante esses três dias você ainda tem que me obedecer.
Tire esse animal daqui agora mesmo!
— Não posso. E você não pode me impedir, ele é um cão-
guia e tenho direito a vir trabalhar com ele de acordo com as leis
brasileiras. Você pode pesquisar se quiser, mas, uma vez que
empregou um deficiente visual, tem que aceitar seu cão-guia.
— Isso não é possível! Esse cachorro não vai ficar aqui!
Vou consultar meu advogado agora mesmo!
De repente Apolo late, parece agitado e Aquiles reclama
mais ainda.
— Mas o que é isso? Ele está avançando em mim!
— Ele é um cão adestrado, muito bem treinado, não avança
nas pessoas — Leandro explica calmamente.
— Ele não me deixa chegar perto do Lucca.
— Ele está aqui para me ajudar e proteger. É o trabalho
dele, não podemos fazer nada — respondo e Aquiles sai
resmungando, bate a porta ao entrar em sua sala e, pela primeira
vez desde que me tornei seu empregado, me sinto vitorioso.
— Ainda estou esperando o seu agradecimento — Leandro
provoca e respondo derrotado:
— Obrigado, Leandro. Por que você não me deu esse bicho
antes? Ele teria me poupado todos esses hematomas que tenho
agora.
— Como você reclama! Não se esqueça que seu
treinamento de adaptação com ele começa hoje à noite.
— Como se você me deixasse esquecer.

Aquiles não consegue chegar perto de mim por toda


manhã, mas se vinga disso me ligando a cada cinco segundos.
Chega um momento em que o ignoro, ele tenta chegar até mim
para chamar minha atenção, mas Apolo não permite. E tenho
uma das manhãs mais divertidas da minha vida. Que só melhora
após o almoço, logo que a tarde se inicia quando o aroma
delicioso de flores preenche o ambiente, nem preciso ouvir sua
voz para saber que está aqui.
— Você está disfarçada como faxineira? — pergunto.
— Sim — ela responde baixinho.
— E ninguém a reconheceu?
— Sim, mas ninguém vai me dedurar.
— O que você veio fazer aqui, meu bem? — pergunto
divertido.
— Um pequeno acerto de contas.
O tom ameaçador em sua voz me deixa em alerta.
— Anna, tome cuidado. — De repente imaginar Aquiles
vingando-se dela de alguma maneira similar a como se vinga de
mim, faz meu estômago revirar. — Aquiles é uma pessoa ruim,
anjo, por favor não se arrisque.
— Ele feriu você, mais do que alguém seria capaz de
entender. Estou cavando a cova dele há semanas, Lucca. O que
vou fazer aqui agora não é nada, só travessuras de uma menina
criada em um orfanato. O tombo dele vem depois.
— Do que você está falando?
Mas ela não me responde mais, se despede com um beijo
rápido na testa e entra na sala de Aquiles. Isso me faz pensar
que Aquiles em momento nenhum perguntou ou falou nada sobre
o livro de contas desaparecido. Ele não deveria ter enlouquecido
à procura dele? Pego o telefone e aperto o botão três, ele disca
direto para a sala de Leandro.
— Leandro, você já conseguiu descobrir que serviço a
gangue que Aquiles contratou faz?
— Ainda não, mas Lobato está cuidando disso — esclarece
referindo-se ao melhor detetive do estado. — Daqui a pouco ele
deve entrar em contato. Você desconfia de algo?
— Espero muito que não — respondo e começo a torcer
que a impressão que tenho sobre a calma de Aquiles em relação
ao sumiço de seu precioso livro de contas não seja o que estou
desconfiando que é. — Anna está por aqui, por favor, fique de
olho nela.
— Já estou cuidando disso. Aquiles não vai colocar nem
mesmo os olhos sobre ela.
Encerro a ligação sentindo-me um pouco mais tranquilo.
Mas algo ainda mantém minha respiração pesada. O vento.
Sempre o maldito vento.

Aquiles volta pouco depois, Anna não saiu de sua sala e me


sinto tenso quando ele entra nela. Mas os minutos se passam e
não escuto seus gritos, nem Anna sai. Deve ter saído por algum
outro lugar. A janela, talvez. Tateio o ar até alcançar Apolo, ele
está calmo, ouço sua respiração tranquila, em contraste com o
vento frio que insiste em soprar minha espinha. Pouco depois,
Eva me cumprimenta e entra na sala de Aquiles. Quando a deixa,
pergunto:
— Anna estava lá dentro, Eva?
— Não, senhor, Anna está na cozinha.
Agradeço aliviado. Se passam alguns minutos e Apolo se
levanta emitindo um rosnado que até então foi reservado a
Aquiles. Aquiles parece passar correndo por mim, escuto seus
passos apressados. As pessoas estão rindo, os cochichos se
iniciam e fico em alerta tentando entender o que está havendo.
Sinto o cheiro de Anna, ela se senta em meu colo e está rindo.
— O que você fez, minha maluquinha?
— Nada demais, digamos que dei a você a tarde livre do
babaca do seu primo.
— Como?
— Só um pouco de laxante no café.
— Esta é a cova que você tem cavado para ele?
— Você queria mais? — pergunta ao invés de responder. —
Está decepcionado?
— Amor, de jeito nenhum! Na verdade, estou muito feliz que
esteja aqui nesta tarde tão agradável, minha princesa.
— Adoro quando você me chama por esses apelidos
carinhosos — ela diz baixinho acariciando meu cabelo.
— E eu adoro tê-la no meu colo. É incrível como todo o meu
corpo reage imediatamente a você. Eu disse TODO o meu corpo
reage, Anna.
— Estamos em público, Lucca Baltazi.
— Jura? Porque não vejo ninguém à nossa volta, Anna
Maria Costa — provoco mordiscando seu pescoço, fingindo que
deixei para lá o que ela disse mais cedo. Anna está aprontando
alguma coisa contra Aquiles. É uma mulher inocente contra uma
cobra criada. Temo pelo que possa acontecer a ela. — Costa era
o sobrenome dos seus pais?
— Não, só um sobrenome qualquer que alguém escolheu
ao me registrar. Eu não tenho um sobrenome.
Vai ter em breve e será Baltazi. Sonho acordado, mas não
digo isso a ela. Apenas acaricio suas mãos e mantenho esse
contato gostoso enquanto posso. Um dia, Anna irá embora. Vai
se casar com alguém que possa dar a ela a família que sonha
ter. Mas até lá... até lá posso sonhar que esse homem com quem
ela divide o resto de sua vida serei eu.

À noite, Anna, Apolo e eu vamos dar uma volta pelo


condomínio de Leandro. O cão precisa se exercitar. Desta vez
não uso a bengala, Anna segura minha mão e a outra segura a
guia de Apolo. Escuto crianças na rua, cachorros latem para
Apolo, mas o cão não emite qualquer ruído de volta. Anna para
de andar de repente e aperta mais forte minha mão antes de
dizer:
— Estamos em frente a casa de Bruno Alencar Petri.
— Eu deveria saber quem é essa pessoa?
— Um vizinho, ele é cego. Ele é casado e tem três filhos.
— Entendo — é tudo o que sou capaz de responder porque
entendo realmente sua intenção trazendo-me até aqui.
— Ele ficou cego ainda criança, por conta de uma doença.
Mas ele vive, Lucca, ele não apenas sobrevive. Ele se casou
assim mesmo, se formou na faculdade e teve filhos. E ele os cria.
O conheci quando estava caminhando pelo condomínio com a
Alberta em uma tarde e ele estava com as crianças. E sua
deficiência não o impede de ser um bom pai.
Não sei como responder a ela que não sou Bruno Alencar
Petri. Não sei como explicar de uma maneira que não a
machuque, que embora a ame com tudo de mim, não vou
condená-la a uma vida inteira cuidando de mim. Não vou ser o
homem que vai ter cinco filhos com ela. Mas não quero machucá-
la, não quero nem mesmo deixá-la triste.
— Há algum lugar onde possamos nos sentar, Anna? —
pergunto.
Ela me guia até um banco próximo. Se senta ao meu lado,
sua mão enfim deixa a minha, mas a seguro de volta. Brinco com
seus dedos. Ela está calada, provavelmente decepcionada.
— Acho, meu bem, que você está me convidando para ser
o pai dos seus cinco filhos barulhentos e eu me sinto honrado
que você tenha pensado em mim. Mas Anna, você está falando
sobre alguém que teve anos para se aceitar. Anos para aprender
a viver. Anos para se sentir normal de novo. Não é o meu caso.
— Não agora, mas um dia...
— Não vai ser o meu caso, anjo. Eu sei que com o tempo
vou aprender a me virar sozinho e vou ter uma vida normal para
um deficiente. Mas por mais independente que eu seja, eu nunca
mais vou ser normal, Anna. Porque eu vivi trinta anos antes deste
em que enxergava e era capaz de cuidar de mim. Este é o meu
normal. Alguém capaz de enxergar. Você entende isso? Se pesar
em uma balança o vizinho teve mais anos de sua vida com essa
deficiência do que sem ela, este é seu estado normal. Não é o
meu.
— Você não pode rejeitar para sempre algo que não pode
mudar — sua voz está embargada e me sinto péssimo.
— É mais fácil falar do que fazer, meu bem.
— Você ao menos pensa em tentar?
— Anna, o que eu mais penso em cada hora de cada dia é
em tentar. Por você. Porque eu sei que você vai embora um dia e
eu faria qualquer coisa para que você não fosse. Qualquer coisa,
menos isso. Porque não se trata apenas de não poder ajudá-la
como eu gostaria, mas de um pedaço nosso que não conhecerei.
Eu enlouqueceria tentando imaginar os rostos dos nossos filhos,
Anna, os traços, os sorrisos, as caretas. Eu me sinto mal em
lugares que não conheço, em espaços que não sou capaz de
imaginar, como acha que seria tendo um pedaço meu nos braços
sem fazer ideia de como ele é?
— Você tem razão, desculpe, eu não quis pressionar você.
Não estou pedindo-o em casamento, nem nada assim, nós
começamos a namorar agora e eu apenas pensei...
— Eu sei, meu amor. Eu entendo. Mas ainda estou na fila
de transplante, não é mesmo? Temos alguma esperança, afinal.
Ela se levanta, quando volta a falar, sua voz parece menos
triste.
— Claro, algum doador sempre pode morrer e condenar
você a pai de cinco catarrentinhos.
— Vamos torcer por isso — brinco.
O passeio acaba depois disso. A cada passo que dou ao
seu lado, com sua mão na minha, com a calmaria de sua
respiração tão perto de mim, tenho vontade de dizer a ela que
foda-se meus limites, podemos ter esses filhos. Ela pode parar
de tomar o remédio e vamos fazê-los hoje mesmo. A cada vez
que ela suspira ao meu lado, penso em pará-la e dizer que topo,
que ela só precisa me pedir e vou fazer tudo o que ela quiser a
cada dia. Mas não quero ser responsável por enchê-la com
ilusões que não serei capaz de realizar. É como um tipo diferente
de limite, um que não consigo ultrapassar.
Não fazemos amor nesta noite. Anna come mais calada do
que o normal, Leandro também está calado, quieto e a noite se
torna de repente estranha. Até temo que ela queira dormir em
seu próprio quarto esta noite, que queira repensar nosso
relacionamento, uma vez que ficou nítido para ela que não sou
seu futuro. Mas ela não o faz, ela toma banho comigo e se deita
comigo. Não fazemos amor, o ato em si, mas praticamos amor
quando ela se deita em meus braços e enrosca as pernas nas
minhas. Quando dorme em segundos, tranquila comigo, segura,
em casa. E passo um bom tempo acordado ouvindo sua
respiração, sentindo o cheiro de seu cabelo, sua pele quente na
minha, porque não vou ter isso por tempo suficiente.

Anna entra no carro na manhã seguinte, quando Leandro e


eu estamos saindo.
— Onde você vai, Anna? — Leandro pergunta.
— Para a Atenas, trabalhar. Tenho um chefe cruel e babaca
para atormentar.
— Você sabe que pode ser pega, não sabe, meu bem? —
pergunto.
— E o que ele poderia fazer comigo? Me demitir? Eu não
trabalho para ele.
— Dizemos a ela que ele pode chamar a polícia? —
Leandro brinca.
— Não, deixe-a ir. Se ela for pega nós fingimos que não a
conhecemos — provoco.
Anna ri baixinho e não responde mais, e volto a pensar no
que está aprontando contra Aquiles. Seja o que for preciso estar
a postos para protegê-la dele.

As pessoas na empresa ainda tentam brincar com Apolo,


passo pela mesma cena repetidas vezes. Elas o cumprimentam
com suas vozes engraçadas, ele não dá a mínima, elas
reclamam e se afastam. E então tudo acontece de novo. Ele
começa seu rosnado antes mesmo de chegarmos à minha mesa,
o que indica que Aquiles está por perto.
— O que você quer, Aquiles?
— Bom dia, primo. Seu penúltimo dia. Tenho algo especial
reservado a você hoje.
— Isso acaba amanhã, certo Aquiles? Amanhã você me
devolve a empresa e some da minha vida, como combinamos.
— Claro, como combinamos. A partir de amanhã não
estarei mais na Atenas. Acredite, estou tão ansioso quanto você
em deixá-la de uma vez por todas. Agora, tenho um trabalho para
você, acredito que isso vá ocupar todo seu tempo. Há uma pilha
de planilhas sobre sua mesa, são as contas da empresa desde
que a assumi. Eu tinha tudo bem anotado em um livro de contas
que a contadora cuidou, mas ele desapareceu. Então você vai
juntar nota por nota e refazer esse livro de contas em uma
planilha e me enviar até o final da tarde. Acredito que possa dar
conta disso, certo, Lucca?
Por um lado, me sinto aliviado que ele tenha citado o livro
de contas roubado. Isso faz minhas suspeitas sobre um livro de
contas com informações falsas deixado propositalmente para que
o pegássemos, caírem por terra. Por outro, me sinto irritado que
ele saiba que não tenho condições de fazer o que pede e esteja
fazendo esse teatro todo apenas para me lembrar o grande inútil
que seria se assumisse a presidência da empresa, como ele
acredita que vou fazer.
— Você sabe que não, Aquiles, não entendo porque perde
seu tempo me passando uma tarefa que não tenho como
cumprir. Como acha que vou enxergar os números e identificar
os gastos?
— Ah, claro, você é cego. Quase me esqueci disso. O que
me faz questionar porque quer tanto esta empresa de volta. Por
que se pôs a toda a essa humilhação se no fim das contas será
incapaz de presidi-la? O que você pretende, primo? Deixá-la com
alguém de sua confiança? Porque a essa altura já deveria ter
aprendido que não pode confiar em ninguém.
Sorrio. Vou até minha mesa e o rosnado de Apolo faz
Aquiles se afastar. Escuto seus passos para longe conforme me
aproximo.
— O que vou fazer com esta empresa não é da sua conta.
Você quer a planilha? Você a terá. Até o final do dia.
— Esperarei ansioso.
Quando Aquiles se afasta, ligo para Leandro e peço que
venha me ajudar com as planilhas. Ele está certo, não posso
fazer isso sozinho, mas está errado sobre confiança. Felizmente,
nem todas as pessoas são más e sem caráter como ele. Leandro
vai me ajudar e o livro de contas refeito ao final da tarde será
minha resposta a ele sobre o que pretendo fazer com esta
empresa. Mantê-la com a ajuda daqueles em quem confio.
— Anna acabou de sair da cozinha com um saleiro na mão.
Espera, o sal parece preto?! — Leandro comenta.
— Pimenta — deduzo já com um sorriso divertido.
— Alguém vai ter um almoço caliente hoje — ele completa.
— Lucca, alguma coisa não bate nessas notas que o Aquiles
pediu. Os números não batem com os do livro.
— Estão fora de ordem, talvez?
— É uma pegadinha. Se você questionar sobre qualquer
diferença nos números ele saberá que o livro está conosco.
— E isso poderia romper nosso acordo.
— Ele é esperto. O que fazemos? Continuamos com isso?
— Melhor desperdiçarmos nossas horas com essas notas
falsas do que meus últimos trinta dias quebrando o acordo.
— Você está certo.
Aquiles sai para almoçar, sei porque Apolo rosna antes
mesmo de ele abrir sua porta.
— Claro que você precisaria de ajuda. Não é mais capaz de
fazer nada sozinho, não é mesmo? — provoca com um toque de
diversão na voz.
— Claro! Ainda que eu enxergasse, se posso ter ajuda,
fazer isso sozinho seria tolice, você não acha?
Ele não responde e a risada baixinha de Leandro ao meu
lado é meu aviso de que foi para a cozinha. Leandro conta até
sessenta, mais uma vez e mais uma. Quando começa a quarta
contagem, o grito de Aquiles é ouvido. As pessoas estão
cochichando, risos podem ser ouvidos. Leandro gargalha ao meu
lado enquanto Aquiles grita pela empresa em busca de água.
— O que houve com a água? — pergunto a Leandro.
— Curiosamente, ninguém tem água potável hoje, ele vai
ter que lavar a boca no banheiro se quiser que pare de arder —
Anna responde se aproximando.
— Como você é malvada! Deve estar deliciosa com essa
postura de menina má — provoco e escuto sua risada.
— São apenas travessuras. São divertidas, mas não aliviam
o que ele fez a você.
— Aliviam, Anna. Aliviam muito. Ele acabou de sair do
banheiro — Leandro responde. — Aí vem ele, se esconda.
O cheiro dela se vai, Aquiles está nervoso, o que diz aos
berros é ininteligível e deixa a empresa em seguida. Então o riso
é livre agora. Todos riem. Os cochichos são tão altos, que penso
que ninguém mais vai trabalhar pelo resto do dia. Mas Aquiles
volta ao final da tarde. Leandro me informa assim que ele desce
do elevador, acompanhado.
— Quem está com ele?
— Não conheço. São três homens, espera, um deles é o
advogado do Aquiles. Isso não é estranho?
O cheiro de Anna está no ar agora, ela serve a Leandro e a
mim xícaras de café. Abro a boca para alertá-la sobre Aquiles,
mas escuto quando ele grita, em seguida, o barulho de uma
xícara caindo ao chão indica que ela derramou café quente nele.
— Sinto muito, se... — a voz dela morre de repente.
Me levanto imediatamente tenso com seu silêncio. Aquiles
profere vários xingamentos, se desculpa com quem quer que
esteja ao seu lado e entra em sua sala. Anna está aqui, sinto seu
cheiro, mas não diz nada.
— Anna? Está tudo bem? — pergunto.
— O que houve, Anna? — Leandro se levanta
imediatamente.
— Anna, diga alguma coisa — suplico.
— O documento que estava na mão dele. O documento...
— sua voz parece baixa demais. — Eu virei a xícara de café e li o
que estava escrito. Eu acho que... — ela para de falar, sua voz
está embargada.
— Anna, você está nos assustando — Leandro avisa.
— É um contrato de venda da empresa. Ele não vai
devolver a Atenas, a está vendendo.
— Você tem certeza? — Leandro pergunta, não ouço sua
resposta, mas ele se afasta e invade a sala de Aquiles.
Vou atrás dele e Anna vem comigo.
— O que pensa que está fazendo, Aquiles? Você assinou
um documento! A partir de amanhã a empresa volta para o nome
do Lucca, você não pode vendê-la! — ele grita.
— Assinei? Vocês não esperavam mesmo que eu fosse
cumpri tal acordo, qual é, Romero? A esta altura vocês sabem
que não sou confiável.
— Seu idiota!
— Calma! Leandro, acalme-se! — Anna grita,
provavelmente contendo-o.
Minha ficha começa a cair aos poucos. Eu deveria ter
esperado por algo assim, não deveria?
— Você não pode vender a empresa, Aquiles! — Advirto em
um tom calmo. — Você assinou aquele documento,
independentemente da sua falta de caráter e palavra, ele está
registrado.
— Então me processe, primo. Você ia esperar por mim
amanhã, mas eu não viria, porque amanhã já estarei bem longe
deste país. Não seria hilário? Tenta me processar. Até que você
consiga uma prova deste documento, sua empresa já era.
— Você não pode vendê-la! — grito. A ficha finalmente
caindo, a raiva me dominando.
— Acho que você não entendeu — sua voz soa alta e
próxima agora. — A empresa já foi vendida, Lucca. Ela já tem
um novo dono. Não há nada que você possa fazer. Não há nada
que nenhum de vocês possa fazer. Vocês caíram como patinhos.
Minhas mãos estão cerradas em punhos, me sinto tremer.
Não sei o que fazer com a raiva que sinto, a dor, a necessidade
de vingança.
— Quatro passos, à sua esquerda — a voz de Anna soa em
meu ouvido e seguindo suas instruções, acerto Aquiles com um
soco perfeito no rosto.
Dois homens me seguram, nenhum é Leandro, nenhum tem
o porte dele. Alguém chama pelos seguranças, vozes começam
a ser ouvidas. A raiva ainda me faz tremer, me deixa agitado,
nervoso, irracional.
— Vou fazer um favor a você e não chamar a polícia, Lucca
— Aquiles diz um tempo depois.
— Por que, Aquiles? Por que você fez isso? Por que fez
tudo isso? Você me odeia tanto assim? — pergunto aos berros,
não consigo me controlar. No momento em que esses homens
me soltarem vou para cima dele, estou ansiando por isso.
— Porque eu o tinha como um irmão! Nossos pais
brigaram, o tio Petros levou você embora da minha vida de
repente e eu senti sua falta! Por anos eu queria meu irmão de
volta. E quando finalmente ele morreu e você não tinha mais
ninguém neste país, preferiu ficar aqui do que voltar com sua
família! Isso, Lucca, é porque ninguém nunca importou para você
além de si mesmo! Você nunca se importou com o que deixou
para trás. Queria construir seu império, dar vida ao sonho tolo do
seu pai, você sacrificou sua família por isso! Eu vim prestar
condolências a você e você mal olhou para a minha cara! Você
se lembra?
Consigo me soltar dos homens que me seguram. O que me
lembro é que meus pais estavam mortos. De repente, eu estava
sozinho. Quando Aquiles e meu tio vieram me consolar, eu não
queria ser consolado. Queria honrar o nome do meu pai, que seu
sacrifício nos últimos anos de sua vida não fosse em vão. Eu
queria a Atenas, porque ele a queria. Eu devia isso a ele. Mas
não me lembro de ter dito isso a Aquiles, ou ao meu tio. Eles
compraram a passagem, iam me levar embora como se eu fosse
uma criança órfã e eu apenas disse não.
— Eu apenas disse não. Eu nunca disse a você porque não
queria voltar. Eu sinto muito, Aquiles. Sinto não ter sido o primo
que você esperava. E me desculpo porque eu era exatamente
assim, egoísta, só me importava com minhas vontades, você
está certo.
Quase posso ouvir o arfar à minha volta após minhas
palavras.
— Mas os meus erros não justificam os seus. Minhas falhas
não são desculpas para sua falta de caráter. Eu falhei com você
uma vez, e quantas depois disso você falhou comigo? Quando
eu mais precisei de você, quando estava cego e deprimido
naquela cama de hospital, você me apunhalou pelas costas.
Agora espera o quê? Que eu entenda seu lado e voltemos a ser
uma família? Só o que você fez foi me mostrar que mesmo pelos
motivos errados, a melhor coisa que fiz foi me manter afastado
de vocês. Pode rir agora, Aquiles, você venceu. Mas olha bem
pra mim, olha bem pra esse homem que um dia foi egoísta,
egocêntrico, frio e tudo o que você diz, olha só como eu acabei.
Eu paguei por tudo, por cada erro que cometi, por cada mínima
falha. Não pense que onde está agora é seu final, primo, porque
você vai cair. Vai cair muito mais fundo do que jamais imaginou.
Vai pagar por cada dia em que me humilhou, por cada passo
errado, por cada golpe, por todos os dias do último ano, você vai
pagar.
Começo a rir, de repente me sinto aliviado. Estou destruído,
não só por ter passado pelo inferno nesse último mês por nada,
mas pelas pessoas que contavam comigo e mais uma vez, falhei
com elas. Mas rio, rio alto, um riso aliviado, solto, livre. Porque eu
sei que ele vai pagar. Não importa sua posição agora, irei vê-lo
de novo, assim como ele me vê agora, no fundo do poço,
pagando por tudo. É a lei da vida.
— Vamos embora, Leandro, Anna, não temos mais nada a
fazer aqui — digo. Então percebo que o cheiro de Anna não está
no ambiente. Tampouco tenho uma resposta dela, enquanto
Leandro está ao meu lado. — Onde está Anna?
— Não faço ideia. Estava aqui agora, não sei em que
momento saiu — Leandro explica.
Ele me guia para fora da sala enquanto tenta ligar para ela,
mas seu telefone está desligado.
— Você acha que Aquiles...
— Não, ele não sabe quem ela é. Sequer olhou na direção
dela esse tempo todo que estivemos em sua sala. Ele não fez
nada a ela.
— Ainda não — completo temeroso. — Anna está tramando
algo contra ele há muito tempo, desde Monte Verde. Não faço
ideia do que seja, mas não existe outro momento para ela agir,
senão agora. Ela vai agir, Leandro. Está sozinha, ela não faz
ideia de quem ele é.
— Vamos protegê-la. Não importa o que ela faça, vamos
encontrá-la e protegê-la. Não se preocupe, vamos encontrá-la —
ele me garante, mas não há certeza em sua voz. Tenta ligar de
novo e de novo enquanto deixamos a empresa.
Ainda bem que não posso ver seus rostos, a decepção, as
acusações, a minha falha refletida em todos os funcionários. Vou
proteger Anna, descobrir o que ela fez, como vai agir e protegê-
la. Essa é minha meta agora, depois voltarei aqui, me encontrarei
com essas pessoas e vamos dar um jeito de cumprir o que
prometi a elas.
Ninguém mais tem que pagar pelos meus erros.
O imenso e luxuoso hotel onde Aquiles está hospedado não
lembra em nada a casa onde morava até poucos dias. A casa
que vi diversas vezes em minhas conversas longas durante as
tardes com ela. Eles provavelmente devolveram a casa alugada,
confirmando a informação de Aquiles de que estarão de partida
amanhã.
Precisa dar tempo de corrigir o que Aquiles fez.
A recepcionista me olha com expressão desconfiada,
provavelmente por conta do uniforme roxo de faxineira da Atenas
que uso.
— Boa tarde, estou procurando por Effie Nomikos.
Sua expressão desconfiada permanece em seu rosto
enquanto digita algo em seu laptop, finalmente exibe um discreto
sorriso ao informar que Effie não está mais no hotel. O que não
faz o menor sentido. Tenho certeza que está aqui, foi para cá que
ela disse que viria.
— Ela me disse esta manhã que estava hospedada aqui e
que eu a procurasse se precisasse dela. Então você poderia, por
favor, verificar de novo? Tenho certeza que ela está aqui.
Seu sorriso discreto se torna quase inexistente quando
digita novamente e me diz de má vontade:
— A senhora Nomikos não quer ser incomodada.
— Você não entendeu, eu preciso falar com ela, ela disse
que eu poderia procurá-la.
— Mas o senhor Baltazi deu ordens expressas que ninguém
deve incomodar sua esposa, portanto, não posso contatá-la.
Sinto muito.
— Isso é urgente! Eles vão deixar o Brasil amanhã, preciso
falar com ela hoje.
— Não posso fazer nada para ajudá-la — é sua resposta
final, já que me deixa de lado e vai atender outra pessoa no
balcão.
Encaro desanimada meu reflexo no espelho, o uniforme
roxo de Elaine, que fica parecendo uma capa em mim por conta
do meu tamanho. Só tenho hoje para fazer isso, só tenho agora.
Não fiquei as últimas semanas cuidando de tudo para desistir
agora. Effie está aqui e vou falar com ela de qualquer jeito!
Maldito celular que descarrega sempre na hora errada!
Deixo o hotel até uma loja de roupas próxima. Me certifico
que estou com minha carteira, graças aos céus está aqui. Então,
com lágrimas nos olhos, compro uma calça social e uma blusa
que custam mais do que já imaginei pagar em uma roupa,
apenas para conseguir me infiltrar entre os hóspedes do hotel
caro.
— Você parece outra pessoa! — a atendente comenta
admirada quando deixo o provador.
— Também estou me sentindo outra pessoa.
Pago a conta com dor no coração e volto ao luxuoso hotel.
O uniforme roxo escondido na sacola da loja cara. Eu poderia
tranquilamente entrar com outros hóspedes, acessar o elevador e
procurar por ela. Mas isso levaria horas e não tenho todo esse
tempo. O hotel tem ao menos vinte andares, não sei quantos
quartos por andar e não posso ir batendo de quarto em quarto
até encontrar Effie. Preciso de um plano.
Me aproximo de um funcionário que usa um uniforme cinza
e carrega carrinhos com malas.
— Olá, boa tarde, querido. Estou procurando por uma
amiga, Effie Nomikos, você poderia me ajudar a encontrá-la?
— A senhorita pode encontrá-la na recepção. É nesta
direção. — Responde apontando a recepção.
— Eu já tentei isso, mas Effie está descansando, ela não
sabia que eu viria, vim fazer uma surpresa para ela. Não gostaria
de ser anunciada.
Ele me olha desconfiado, olha para os lados se certificando
que não estamos sendo vistos e um sorriso surge em seu rosto,
um sorriso que só pode significar encrenca.
— Sei... a madame quer entrar no hotel por algum motivo
secreto. Não pode ser registrada na recepção nem como
visitante, não é?
— Sim! Isso mesmo!
Seus olhos percorrem meu corpo de cima a baixo e aquele
sorriso encrenqueiro aumenta.
— Posso te falar onde a grega está hospedada, mas isso
terá um preço.
Cubro o decote discreto da blusa com a sacola da loja e
retruco irritada:
— Se você fizer qualquer insinuação sexual, vou fazer um
escândalo.
Ele ri, olha em volta mais uma vez e diz seu preço.
— Não ia fazer isso, moça. Eu quero dinheiro. Te dou a
informação sobre o quarto da grega se você me pagar — explica
fazendo um sinal com os dedos que quer dinheiro.
Esse plano vai acabar por me falir. Espero mesmo que dê
certo.
— Não tenho dinheiro, só cartão — retruco.
— Eu passo cartão — responde tirando do bolso um
aparelho de celular e abrindo um aplicativo para receber seu
pagamento. Me deixando boquiaberta com sua audácia.
— Como assim você passa cartão? Então você está
sempre vendendo informações sigilosas para hóspedes? Se seu
gerente sonhar com isso... — aumento meu tom de voz e ele me
pede silêncio, assustado. Guarda o celular imediatamente, tem a
expressão fechada e volta a segurar o carrinho de malas.
— Quarto 101, o único aqui no primeiro andar, não tem
como a senhorita errar.
— Muito obrigada, querido — agradeço com um sorriso
gentil que parece irritá-lo ainda mais.
— Tão bonitinha e tão má! — lamenta afastando-se.
— Bonitinha... ninguém merece.
Olho em volta onde poderia haver um quarto neste primeiro
andar. Avisto a recepção, o hall de espera, as placas indicam o
restaurante, a área da piscina, mas nenhuma indica um quarto.
Meus olhos varrem todo o local buscando uma luz, quando se
cruzam com o da recepcionista, que me olha desconfiada, como
se já tivesse me visto em algum lugar. Então estufo o peito,
empino a bunda e saio do hotel nos meus saltos, esperando que
minha encenação de dama rica e metida a tenha convencido.
O hotel é enorme, sei que a área da piscina fica lá atrás por
conta das placas. Então, como quem não quer nada, vou
andando em volta dele em busca de qualquer sinal de um quarto.
Passo pelas janelas do restaurante, da cozinha, da área de
serviço, chegando à piscina. E lá atrás, ao final de toda essa área
de lazer, há uma varanda com portas duplas que só pode ser um
quarto.
Apressada, me encaminho direto até ela. Olho em volta
fingindo desinteresse, me certifico que ninguém está me vendo.
A área de lazer está quase vazia a esta hora, a noite está prestes
a cair e as pessoas estão buscando o conforto de seus quartos.
Há algumas pessoas no bar molhado daqui, apenas. Mas
nenhuma delas parece olhar para mim.
A varanda possui uma grade baixa, muito fácil de ser
pulada. Encaro as pessoas no bar molhado logo aqui atrás, a
grade à minha frente e lamento minha sina neste mundo.
— Até parece brincadeira — resmungo antes de jogar a
sacola da loja e minha bolsa na varanda. Se eu não conseguir
pular, também não vou conseguir ir embora.
Observo mais uma vez as pessoas na área de lazer e o
mais depressa que consigo, usando toda minha agilidade em
pular muros, janelas e cercas, me penduro na grade, passo a
perna por ela e passo para o outro lado. Me certifico de novo que
ninguém me viu, mas ninguém parece estar olhando em minha
direção e bato na porta, afinal, não posso simplesmente entrar no
quarto de Effie pela porta dos fundos.
Sua expressão ao abri-la é de desconfiança. Ela tem o
cenho franzido e parece demorar um pouco a me reconhecer.
Effie é uma mulher muito bonita. Ela possui longos cabelos
negros, presos em uma trança bem feita, usa roupas sociais na
cor creme, o que combina com seus traços angelicais. Gostei
dela automaticamente desde a primeira vez que vi sua rede
social, quando mandei a primeira mensagem.
— Anna? É você, Anna? — pergunta surpresa e abre a
porta. Seu sotaque é mais carregado que o de Aquiles. Aquiles
tem boa dicção com as palavras, embora converse rápido
demais, mas Effie ainda embola um pouco as palavras. E olha
que estou há semanas ajudando-a com isso.
— Olá, Effie, desculpe vir sem avisar e pela porta dos
fundos. Eu precisava muito falar com você antes que fosse
embora.
Ela fecha a porta depois que entro e a tristeza em seu rosto
quando me encara de volta até me faz sentir um pouco culpada
pelo que vim informar.
— Ele fez? Devolveu a empresa para seu babaca? —
pergunta esperançosa.
Nego com a cabeça e vejo sua expressão desmoronar.
— Aquiles vendeu a empresa, Effie. Vendeu para outra
pessoa, não vai devolvê-la ao Lucca.
Ela caminha até um divã e se deixa cair sobre ele, as mãos
cobrem o rosto e ela respira fundo.
— Eu sinto muito, Effie.
— Você me avisou que ele faria uma coisa assim.
— Mas eu esperava muito estar errada. Vocês vão embora
amanhã, não é? Acha que conseguimos fazer alguma coisa até
lá? Lucca precisa dessa empresa, Effie. Ela é dele! Ele tem se
sacrificado tanto! Mas o Aquiles já a vendeu e não sei se há
como reverter...
— Se acalme, Anna, vamos resolver tudo — garante,
embora pareça perdida em seus próprios pensamentos. Seu
olhar se mantém perdido por algum tempo, mas enfim se levanta.
Em seu rosto, além da decepção, há obstinação. Effie tomou
uma decisão, sabe o que fazer agora.
Aproxima-se de mim e olha em meus olhos quando
pergunta:
— Anna, toda essa história que você me contou, Aquiles fez
mesmo todas essas coisas com o primo? É verdade tudo aquilo
que eu li?
— É tudo verdade, Effie. Eu não inventei nada do que
contei a você, nem mesmo exagerei, tudo o que fiz nas últimas
semanas foi relatar a você os dias do Lucca, e o que ele estava
passando nas mãos do Aquiles.
Seus olhos estão cheios, Effie não queria acreditar que seu
marido fosse capaz de tamanha crueldade, ela lutou até o último
instante para defendê-lo, por fim, ficamos esperando o último dia
de Lucca na Atenas. Effie tinha certeza que ele devolveria a
empresa ao primo, uma empresa que ela acreditava que Lucca
havia dado de bom grado a ele. Mas agora vejo na decepção em
seus olhos que ela sabe a verdade.
— Me leve até ele, Anna, até o Lucca. Aquiles vai me
procurar lá. Vamos resolver isso. Se não for possível até
amanhã, ficarei mais tempo.
— Obrigada, Effie — agradeço aliviada.
Ela pega apenas sua bolsa, o celular e me segue. Chamo
um táxi até a casa de Leandro. Já é noite agora e imagino que
não estejam mais na Atenas. O celular de Effie começou a tocar
na metade do caminho, vi o rosto de Aquiles na tela, mas ela não
o atendeu. Ele continuou insistindo por toda a viagem então.
Chegamos à casa de Leandro finalmente. Effie respira
fundo antes de descer do carro, parece tão tensa que penso tê-la
visto tremer.
— Lucca não vai culpar você por nada disso, você sabe não
é, Effie?
— Será que não? Meu marido tirou tudo dele, o humilhou
de todas as formas, eu não receberia em minha casa a esposa
de alguém que me ferisse assim. Pelo que você escreveu, Lucca
mudou muito nos últimos meses, mas o Lucca de quem sempre
ouvi falar não me receberia.
Não respondo porque não sei mesmo essa resposta. Sim, o
Lucca de antes provavelmente a culparia também, culparia todos
de alguma maneira por seus problemas. Mas agora prefiro
acreditar que ele vai ouvi-la, uma vez que é um homem pagando
por seus erros e sabe melhor do que muitos que ninguém é
perfeito.
Abro a porta e assim que chegamos à sala de estar, Lucca
vem até mim e me prende em seus braços. Ele respira aliviado,
beija minha testa, meu rosto e cabelo e me abraça de novo.
— Onde você estava? Como você some assim? Não
atendia ao telefone, não disse onde ia, estava a ponto de
enlouquecer de preocupação, Anna.
— Sinto muito, meu celular descarregou e eu não podia vir
aqui para carregá-lo. Eu saí por um bom motivo, Lucca.
Ele se afasta e percebo Leandro boquiaberto atrás dele.
— Quem está com você? — Lucca pergunta.
— Sou eu, Lucca, Effie Nomikos.
Por um segundo prendo a respiração temendo que Lucca
vá tratá-la mal de algum jeito. Effie não sabia da verdadeira
personalidade de Aquiles, não sabia nada sobre ele até quatro
dias atrás, quando Lucca apanhou por ele. Foi só então que
resolvi contar tudo a ela.
— Bem-vinda, Effie. É bom finalmente conhecê-la, sinto que
seja nessas condições. Quero dizer, na minha condição — desvia
incerto sobre o quanto Effie sabe do que tem acontecido.
— Eu sei de tudo, Lucca. Agora apenas eu sei. Anna me
contou tudo. Eu sinto muito, não sabia o que Aquiles fazia, não o
conhecia de verdade. Ele me disse que precisaríamos passar um
tempo neste país porque você estava cego e pediu a ele que
tomasse conta da empresa em seu lugar. Até semana passada
eu nem sabia que a empresa estava em nome dele. E então,
agora sei que ele a vendeu ao invés de devolvê-la, assim como
tirou todos os bens que você possuía. Mas não se preocupe,
Lucca, ele vai reverter isso. Ele vai corrigir e vai devolver a
empresa e tudo o que era seu a você, eu te garanto.
— É um prazer conhecê-la, Effie, sou Leandro Romero,
amigo e sócio do Lucca — Leandro a cumprimenta aproximando-
se e pegando sua mão.
— Aquiles vai me ligar de novo em breve e mandarei a ele a
localização de onde estou. Ele virá até mim e só vai sair daqui
quando garantir que tudo o que é seu voltará para suas mãos,
Lucca. — Effie explica. — Se ele não o fizer, eu pagarei a você
todo o valor que ele roubou.
— Não posso aceitar isso, Effie. A Atenas significa mais do
que um valor comercial para mim. É minha história. Eu quero
muito a empresa de volta, me sacrifiquei por isso e me
sacrificaria quantas vezes fossem necessárias. Há muitas
pessoas contando com isso, com a empresa de volta, com seus
empregos de volta. Mas se Aquiles não a devolver a mim, eu
jamais aceitaria que você pagasse por isso. São os erros dele,
não os seus.
Effie não diz nada, mas é nítido o alívio que sente por não
ser julgada pelos erros do marido. Ela recusa mais uma ligação
de Aquiles e envia a ele sua localização. É uma questão de
minutos para que ele venha buscá-la. Será que vai perceber, ao
receber o endereço, onde Effie está?
— Entre, Effie, por favor, sente-se. Vou servir uma bebida,
você aceita? — Leandro oferece.
— Sim, por favor.
A guio até um sofá mais próximo, ela segura minha mão
antes de se sentar, entendo seu pedido e me sento com ela.
Lucca está em uma poltrona e Leandro no outro sofá em frente a
nós duas. Ele me encara com o cenho franzido e a confusão em
seu rosto chega a ser engraçada.
— Como exatamente você chegou aqui, Effie? Quer dizer,
como você e a Anna se conheceram? — Leandro pergunta
finalmente.
— É uma história divertida, na verdade, Anna é uma pessoa
singular — Effie responde.
— Ah, nós sabemos muito bem disso — Lucca confirma
com um sorriso.
— Ela se apresentou a mim como uma escritora, e seu livro
era tão diferente e viciante, que nos tornamos amigas.
Effie tem um sorriso, mas ele some quando se dá conta que
meu livro não passou de relatos verdadeiros do que temos vivido
nas mãos de seu marido.
— Quando Leandro foi a Monte Verde e contou sobre o
Aquiles, o golpe que ele havia dado no Lucca e tudo o mais, eu
pesquisei sobre ele no laptop do Lucca. — Esclareço. —
Descobri que era casado e que havia poucas fotos ou
informações sobre sua esposa. Mas eu passei um dia todo
buscando, mexendo, indo em perfis sociais de parentes dele,
amigos, conhecidos. Procurei qualquer pessoa, em qualquer
lugar que me levasse diretamente a ela. Foi assim que descobri o
perfil da Effie numa rede social. Eu pedi adição e disse que era
uma escritora brasileira que precisava de ajuda com um livro de
romance. Eu contei por alto sobre um homem rico, arrogante, um
babaca, que perdia tudo em um acidente e se transformava em
um cego solitário e triste.
Lucca tem um sorriso no rosto agora.
— Conheço bem esse seu livro, anjo. Prossiga — pede.
— Bem, no dia em que peguei seu laptop a primeira vez e
você perguntou o que eu estava fazendo, eu não menti. Mas
estava pensando em como me aproximar da Effie e quando você
perguntou e a ideia do livro me veio, foi a ideia perfeita do que
dizer a ela também. E funcionou. Ela se interessou, me adicionou
e começamos a conversar. Temos conversado quase todos os
dias desde então.
A surpresa no rosto de Leandro não está refletida no de
Lucca. Os óculos escuros parecem mascarar suas expressões
agora.
— Ela me contava diariamente sobre o dia desse babaca do
livro. As coisas que ele passou, a volta à empresa que um dia foi
dele, e o que sofria nas mãos do primo cruel — a voz de Effie
falha. — E pensei que era uma história apenas. Mas então, na
semana passada, descobri que a Atenas está em nome do
Aquiles, não do Lucca, como eu tinha imaginado. Ele estava
agitado, precisando de uma quantia alta em dinheiro, me pediu
esse dinheiro, não deu muitas explicações, mas esqueceu alguns
papéis em casa, ele nunca leva nada do trabalho para casa.
Acabei descobrindo que a Atenas pertencia a ele. Demorou
alguns dias, mas então liguei a história que minha escritora
brasileira favorita escrevia com o fato de Aquiles ser o dono da
empresa do primo cego. Achei que seria coincidência demais.
Mas percebi que se Aquiles havia roubado a empresa de você,
Lucca, significava que ele estava fazendo todo o resto que Anna
contava. Eu não queria acreditar, então pedi a ela que não me
escrevesse mais.
— Mas então você apanhou daquela gangue e isso foi a
gota d’água pra mim. Eu tirei fotos suas no banheiro naquela
noite, Lucca. E as mandei a Effie, e disse que não escreveria
mais se ela preferisse assim, mas que o babaca do meu livro era
você e o monstro que estava tirando tudo dele era o Aquiles.
Effie aperta minha mão.
— Anna só me pediu ajuda, espero que você não se sinta
traído, Lucca. Ela fez o que qualquer mulher apaixonada faria —
Effie explica quando Lucca permanece calado.
Ele ainda não tem qualquer reação. Apenas assente, me
irrita esses óculos escuros encobrindo seu rosto, mas não faria
diferença sem eles. Seus olhos não tem mais vida, eu não
saberia mais o que ele está sentindo de qualquer maneira.
— E você acreditou nela? — Lucca pergunta um tempo
depois.
— Não no começo. Mas apenas por estar em negação. Eu
havia visto o documento da empresa, Aquiles tinha pedido uma
quantia alta para pagar alguém, Anna não tinha como saber
disso. As histórias se entrelaçavam demais! Eu soube desde o
primeiro instante que ela estava dizendo a verdade, eu só não
queria acreditar. Não nos falamos depois disso, mas ontem
Aquiles decidiu ir embora. Assim, de repente e achei que alguma
coisa estava errada. Reli o livro que Anna me mandava e conclui
que a data do final do acordo de vocês seria agora e que Aquiles
estava planejando algo ruim se pretendia sair tão rápido assim do
país. Ele devolveu a casa que alugávamos e nos hospedou em
um hotel. Não quis me dar satisfações e eu não consegui mais
fingir que não sabia de nada. Entrei em contato com um
advogado de minha confiança, deixei tudo preparado e escrevi a
Anna esta manhã dizendo onde estava e que ela deveria me
procurar se fosse preciso. Mesmo torcendo muito que não fosse.
— Mas foi preciso — esclareço.
O telefone de Effie toca, ela não atende novamente, mas
uma mensagem chega em seguida de Aquiles.
Estou chegando.
— Ele está chegando — Effie avisa e Lucca se levanta.
Apoiado na bengala ele vai até a janela mais próxima, a
abre e deixa que o vento refresque sua pele, acho que também
seus pensamentos.
— Você acha que ele está chateado comigo? — pergunto
baixinho a Effie.
— Por que estaria? Você o está ajudando.
— Mas eu escondi isso dele por semanas, Effie. Eu
passava os dias dele a você como um diário sem ele saber. Não
sei, talvez ele esteja mesmo se sentindo traído — comento
preocupada.
— Lucca ama você, Anna? — pergunta ao invés de me
acalmar.
— Como é que eu vou saber?
— A gente sabe essas coisas, Anna. Um verdadeiro amor
não precisa ser declarado, não precisa ser declamado, a gente
sente. A gente se vê no reflexo do outro. Eu o vejo em você
desde a primeira vez em que a vi hoje. Você não se vê nele?
Não sei o que responder. Observo o homem que amo de
costas para mim, ele não me dirigiu uma palavra desde que eu
disse que Effie estava aqui.
— Sim, ele me ama — respondo baixinho. — Ou eu o amo
por nós dois — corrijo. Effie me olha com uma expressão
divertida. — Há amor entre nós, isso é suficiente?
— Me diz você, Anna.
— Será que ele está nos ouvindo? — pergunto observando-
o, ele não parece estar ouvindo, não tem qualquer reação.
— Acho que não, parece estar com a mente em outro lugar
e estamos falando muito baixinho.
— Bem, estamos cochichando, mas depois que ficou cego,
ele parece estar ouvindo dez vezes mais.
A campainha soa e meu coração parece dar um salto. O de
Effie também, já que ela aperta minha mão. Lucca se vira
finalmente, caminha devagar, penso que em direção a porta, mas
ele vem até mim. Acaricia meu cabelo e beija carinhosamente
minha testa.
— Anna, você...
— Effie, o que você... — a voz de Aquiles interrompe o que
Lucca ia dizer quando ele entra na sala de Leandro agitado. Fica
completamente parado quando vê Leandro e Lucca aqui. Ele
observa em choque Effie no sofá ao meu lado. Abre a boca, mas
nada sai. Sua expressão desmorona completamente. É algo
divertido de se ver.
Effie solta minha mão e se levanta. Não posso imaginar o
que está sentindo, não sei como eu agiria em seu lugar.
— Eu sei de tudo, Aquiles, de absolutamente tudo — ela
diz.
— Effie, não acredite em nada do que eles disserem. Eles
estão contra mim! Depois de tudo que fiz, do ano que sacrifiquei
por eles, Lucca se voltou contra mim, vamos embora, não
precisamos ouvi-los mais — Aquiles tenta e vem até Effie,
tentando levá-la pela mão.
Mas ela se mantém firme, desvencilha a mão da dele e não
titubeia ao responder decidida.
— Devolva tudo o que você roubou do Lucca, Aquiles. Não
vamos a lugar nenhum até que faça isso.
— Os bens do Lucca são quase inexistentes agora, investi
quase tudo em prol da Atenas e a empresa foi vendida, Effie, os
contratos já foram assinados.
— Então rasgue-os!
— A empresa é minha, Lucca a deu a mim! Eu tenho o
direito de vendê-la!
— Você a roubou! Roubou a empresa e a vida do seu
primo! — ela grita — Quem é você, Aquiles? Quem é esse
homem cruel e frio que deixa um cego no meio da rua e foge?
Que leva alguém para receber por ele os golpes que deveria
receber, quem é esse homem que quebra uma promessa sem
qualquer remorso? Porque eu não conheço mais você, Aquiles!
Eu nunca conheci você — sua voz vai baixando, imagino o
quanto queira chorar e colocar a dor que sente para fora.
Observo seu rosto e lágrimas descem por ele, mas ela se
mantém firme. Aquiles não tem reação, ele abre a boca diversas
vezes, mas não é capaz de proferir palavra alguma. Aquiles ama
Effie, ela me disse isso inúmeras vezes, ela me contou várias
provas do amor dele ao longo das semanas em que temos nos
falado. É difícil imaginar que alguém tão cruel com o próprio
primo possa conhecer um sentimento como o amor, mas o que
vejo quando olho para Aquiles é mais do que desespero. Ele
perdeu Effie e está se dando conta disso. A dor em seus olhos
não é fingimento, nem mesmo a falta de ar que parece acometê-
lo.
— Me peça qualquer coisa, Effie, qualquer coisa menos
isso. Eu devolvo o que resta dos bens dele, mas a empresa já foi
vendida. Os contratos já foram assinados e reconhecidos em
cartório, não tenho como voltar atrás — ele pede desesperado.
Mas também me sinto assim, decepcionada, desesperada.
Não é possível que Lucca vá mesmo perder a empresa depois de
tudo.
— A empresa foi vendida, você diz. A empresa que nunca
pertenceu a você e que você jurou devolver ao seu verdadeiro
dono. Mas você a vendeu, não é mesmo? Para um comprador
anônimo, tudo foi resolvido e assinado por seu advogado, Emilio
Dantas, não foi? Você não conheceu quem de verdade comprou
a empresa, Aquiles, porque fui eu quem a comprou. Porque por
um segundo temi que você não fosse devolvê-la como havia
prometido, então pedi um favor a um amigo. Mas eu torci, muito
mesmo, que a ajuda dele não fosse necessária. Eu acreditei, até
Anna aparecer em minha porta, que você era mesmo o homem
por quem me apaixonei.
— Effie, eu não... eu não queria... me perdoa — Aquiles
tenta.
— A empresa estará em seu nome de novo até amanhã à
tarde, Lucca — Effie garante a ele.
— Me perdoa, Effie. Por favor, nunca mais vou fazer algo
como isso, eu prometo! Eu te amo, Effie, você é minha vida, me
perdoa — Aquiles continua tentando.
— Não ama, você não sabe o que amor significa. E os bens
do Lucca?
— Eu vou devolver, eu juro que vou. Vou ligar para o
advogado agora mesmo, vamos resolver tudo.
Effie assente. Pega sua bolsa e se dirige a Lucca.
— Ele vai cumprir esta promessa, Lucca, eu garanto que
vai. Amanhã você vai ter tudo o que era seu de volta. Me
desculpa por tudo.
— Eu agradeço, Effie, por sua ajuda. E sinto muito. Espero
que fique bem — Lucca responde e ela se despede de Leandro
em seguida.
— Effie, nós podemos conversar... — Aquiles insiste.
— Com você não quero falar mais, Aquiles. Não vamos
embora amanhã, não vamos embora até que tenha resolvido
tudo. Depois que você devolver tudo o que tirou do seu primo,
vamos cuidar do nosso divórcio.
— Não! Effie, de jeito nenhum! Não vou dar o divórcio a
você, não vamos nos separar, nós vamos dar um jeito!
— Anna, você é uma boa amiga — ela diz carinhosamente
segurando minhas mãos. — Obrigada por tudo. Espero vê-la de
novo em breve.
— Eu também. Você tem meu e-mail, sempre estarei aqui.
Assim ela deixa a casa de Leandro com Aquiles a tiracolo
implorando que ela o escute. Achei que me sentiria melhor ao vê-
lo sofrendo, depois de tudo o que fez a Lucca, mas a dor dele
não retira tudo o que fez Lucca passar, então não me sinto de
verdade melhor. Encaro Lucca que agora abraça Leandro com
um sorriso aliviado. A Atenas será deles de novo, seus bens
serão devolvidos, as coisas parecem estar voltando aos eixos.
Assim que Leandro se afasta, Lucca toca os braços aquecendo-
os, parece sentir frio de repente.
— Lucca, você está bem? — pergunto aproximando-me,
quando o telefone de Leandro toca.
— É o detetive — Leandro diz e seu tom parece temeroso.
Não entendo o que está havendo, os dois estão tensos
repentinamente, quando estavam sorrindo aliviados agora
mesmo. — Oi, Lobato, o que descobriu? Sim, entendo. Você tem
certeza?
Leandro abaixa a cabeça na mão livre e faz um gesto
negativo, respirando profundamente como se tentasse se
acalmar.
— O que houve, Leandro? — Lucca pergunta antes mesmo
de Leandro encerrar a ligação.
— Entendo, agradeço, Lobato, vou agora mesmo imprimir
tudo.
Ele encerra a ligação e respira fundo mais uma vez antes
de dar a notícia a Lucca.
— A gangue com a qual Aquiles estava envolvido é
procurada pela polícia por falsificação de documentos e notas
fiscais. O serviço que Aquiles contratou com eles foi...
— O livro de contas — Lucca completa.
— Sim. O livro era falso, toda informação contida nele era
falsa.
— Tudo bem, temos que encontrar as informações
verdadeiras então. Vamos ter a empresa de volta, só temos que
encontrá-las e descobrir em que situação a empresa realmente
está. — Lucca tenta se manter animado e otimista, mas o
desespero em seu tom de voz evidencia o quão preocupado
está.
— Lobato fez isso, eu disse, melhor detetive do estado. Ele
está me mandando agora as contas verdadeiras. Vou ao
escritório imprimi-las.
— Eu vou com você — Lucca responde e seguro sua mão,
guiando-o até o cômodo onde ele não esteve desde que nos
mudamos para cá.
O escritório de Leandro é espaçoso, possui uma mesa
grande e duas poltronas confortáveis em frente a ela. Há uma
estante com alguns livros, um sofá, mais duas poltronas e uma
mesa de centro, além de um pequeno frigobar. Ele me disse uma
vez que enquanto Lucca esteve em Monte Verde, trabalhava
muitos dias no próprio escritório para não ter que lidar com
Aquiles.
O barulho da impressora faz essa tensão que paira no ar
aumentar, Leandro está impaciente, anda de um lado ao outro,
brinca com os dedos fazendo um barulho irritante na mesa,
passa a mão pelo cabelo, ajeita a roupa, não consegue ficar
parado. Enquanto Lucca está sentado em uma das poltronas em
frente sua mesa completamente imóvel. Apenas o movimento de
sua respiração pode ser percebido observando-o atentamente.
Penso que são coisas demais para processar em um dia só.
O barulho da impressora cessa, Leandro pega as folhas e
parece puxar o ar antes de analisá-las. Lucca se mantém imóvel,
quieto, esperando. Espero que Leandro diga alguma coisa, mas
conforme vai olhando os números corretos das finanças da
Atenas, sua expressão desmorona. Não há outra palavra para
explicar o que acontece em seu rosto. Os minutos parecem se
converter em horas. Por fim, ele se deixa cair na cadeira atrás de
si, levas as mãos à cabeça e chora.
Leandro está chorando. Vou até ele e o abraço, tento
consolá-lo de alguma forma. Lucca permanece parado, quieto,
não pergunta nada. Mas sua postura caiu completamente.
— É tão ruim assim? — pergunto quando Leandro se
acalma.
— Não temos dinheiro nem mesmo para pagar os
funcionários este mês. A empresa tem dívidas em todos os
bancos do país, as ações despencaram, várias filiais foram
fechadas, programas foram cancelados, perdemos metade dos
funcionários e eu nem me dei conta. Lucca — chama quando
Lucca ainda não tem qualquer reação — vamos assumir a
Atenas para decretar falência. Não há mais nada que possamos
fazer.
Não é possível! Lucca não pode ter perdido a empresa. Não
machuquei Effie contando a ela a verdadeira face de seu marido
por nada. Isso tem que estar errado. Esse não pode ser o fim, até
quando Lucca vai continuar pagando?
— Leandro, você tem certeza? Não podemos levantar o
dinheiro de alguma forma? Quitar as dívidas, pagar aos
funcionários. Começar do começo para depois reabrir as filiais e
recontratar... — tento.
— Não, Anna. Nem que eu vendesse tudo o que possuo e
Lucca fizesse o mesmo. Não conseguiríamos quitar nem metade
do valor que a Atenas deve. São empréstimos, investimentos
errados, ações vendidas a preço de banana. São dívidas de
processos, tanto de funcionários quanto de clientes, não
conseguiríamos um valor tão alto, não tem jeito. Aquiles pegou a
Atenas apenas para destruí-la.
— Não diga isso, tem que ter um jeito! Olha de novo, olha
com calma, encontre a solução! — suplico.
— Aquiles vai me devolver os bens que tirou de mim,
Leandro. Como você sabe, possuo muitos imóveis, muitos
mesmo. Talvez, se vendermos todos eles... — Lucca diz de
repente.
— Ele perdeu tudo, Lucca. Vendeu quase todos os imóveis.
Desviou o dinheiro, não conseguiria gastar tanto em tão pouco
tempo. Lobato também me mandou toda a movimentação
financeira dele. Ele deve ter algum valor em alguma conta, mas
até que consigamos acessar isso, estamos de mãos atadas.
A noite depois disso acaba. Ninguém vai dormir, Leandro
anda de um lado a outro em sua sala tentando encontrar uma
solução. O dia nasce e estamos aqui, na sala de estar, entre
desesperados e otimistas, evitando a todo custo que um de nós
admita que nada mais pode ser feito. Lucca ainda não surtou,
não gritou, não quebrou nada, ao contrário de Leandro que está
extravasando a raiva a cada passagem de horas.
O dia nasceu lá fora, Leandro deu folga aos empregados,
ficando somente Alberta que mora na casa, eles continuam
buscando soluções. Leandro lê algumas das folhas impressas a
Lucca e ainda assim ele não coloca para fora a dor que sei que
está sentindo.
Estou passando o quarto café desde a leitura dessas folhas
e o levo para a sala, quando encontro Larissa sentada no sofá,
ao lado de Lucca, tentando consolá-lo.
— Quais bens ainda permanecem comigo, Leandro? —
Lucca pergunta um tempo depois.
Estou sentada com Leandro de frente para eles, encarando
Larissa sem sequer piscar os olhos. Não sei se minhas pálpebras
estão paralisadas pelo sono, ou pelo iminente ataque a Larissa,
se ela ousar tocar Lucca mais uma vez.
— Dois carros, a Lamborghini e o Porsche, e a mansão do
condomínio.
— A mansão onde eu morava?
— Sim.
— Ela vale milhões. Se a vendermos poderemos pagar os
salários dos funcionários por algum tempo.
— O que ganharíamos com isso? — Leandro pergunta
desanimado.
— Tempo.
— Não vai funcionar — a senhorita prestativa diz. — Assim
que vocês assinarem os documentos pegando a empresa de
volta, o banco vai embargar qualquer bem que vocês tenham em
nome de vocês para abater nas dívidas. Vocês não vão ficar com
a mansão, os carros, nem mesmo esta casa onde estão agora.
Lucca finalmente tem uma reação, depois de mais de doze
horas, ele leva as mãos à cabeça e puxa os cabelos, grita alto,
um grito carregado de dor e incapacidade. Não posso imaginar
como é sentir seu trabalho escorrer pelos dedos.
— De todo jeito ele ganha! Parece que o Aquiles sempre
vence! — ele esbraveja levantando-se em seguida, andando
irritado de um lado a outro.
Não sei o que fazer para ajudá-lo agora.
— Há uma solução, não vai salvar a empresa, mas pode
dar vocês o que mais precisam agora: tempo — Larissa comenta
e Lucca para de andar e espera que ela diga sua ideia. —
Apenas o Lucca assina os documentos, apenas ele se torna o
acionista majoritário e único dono da empresa. O Leandro abre
mão da parte dele na empresa para você, Lucca. Assim, os bens
do Leandro ficam a salvo. E os bens do Lucca devem quitar uma
boa parte das dívidas da Atenas, dando a vocês crédito de novo.
— Assim não conseguiríamos pagar os funcionários —
Leandro responde — tudo iria para as dívidas da empresa.
— Mas o Lucca possui outros imóveis, certo? Vendendo
esses imóveis vocês não conseguiriam pagar os salários dos
funcionários atuais por uns três meses? — ela insiste.
— Possivelmente — Leandro concorda. — Um desses
imóveis é bem valorizado.
— Mas esses imóveis também serão embargados assim
que eu assinar os documentos, Larissa. Assim que a Atenas e
todas as dívidas estiverem em meu nome, vou perder tudo o que
possuo — Lucca diz.
— A menos que não possua nada em seu nome — Larissa
responde.
— O que está sugerindo?
— Que você passe os bens que possui agora para o nome
de outra pessoa. Como se os estivesse doando. Alguém de sua
confiança, de preferência que não seja o Leandro, porque ele
ainda vai manter dez por cento das ações da empresa. É
improvável que os bancos tomem qualquer bem dele, mas não
impossível. Melhor não arriscar.
— Isso pode funcionar — Leandro comenta após alguns
segundos de silêncio.
— Você passa os imóveis que possui para o nome de
alguém em quem confie, Lucca. Assina os documentos pegando
para si a maior porcentagem das ações da empresa. A mansão e
os carros quitarão boa parte das dívidas e você vende esses
imóveis depois para pagar aos funcionários. Você não vai ficar
com nada além da empresa, mas assim vai ganhar tempo —
Larissa conclui.
Lucca assente, volta a andar de um lado para o outro e não
entendo como isso pode ser uma solução. Pegar tudo o que
restou a ele e dar assim a alguém, confiando que a pessoa vai
devolver depois, e então vender tudo para pagar aos
funcionários. E depois? A empresa ainda terá dívidas, ele não
terá mais nada.
— Eu posso fazer isso por você, Lucca — Larissa diz pouco
depois. — Você pode passar seus bens para o meu nome, eu os
vendo e dou o dinheiro a você em seguida.
Lucca para de andar finalmente, Leandro está ligando para
o advogado dele e explicando tudo o que aconteceu. Algum
tempo depois, o advogado o aconselha a fazer exatamente o que
Larissa propôs, os bens que Lucca possui devem ser passados
imediatamente para outra pessoa. Antes que ele assine os
documentos que tornarão a Atenas dele de novo.
O advogado de Aquiles entra em contato e agenda para às
dezesseis horas, ele virá até nós para que Lucca assine os
documentos reavendo os bens e a empresa. Lucca tem pouco
tempo para decidir.
— Obrigado, Larissa, sua ideia realmente vai nos dar
tempo. Ajudou muito — Lucca diz e ela abre um enorme e
satisfeito sorriso. — Leandro, o seu advogado pode vir aqui
agora?
— Ele já está a caminho. Vai precisar dos documentos e
assinaturas de você e da Larissa, apenas. Já está
providenciando todo o resto.
— Não, Larissa não, vou passar meus bens para a Anna,
ele pode colocar as casas e o dinheiro que ainda possuo em
nome dela — Lucca informa. — Ele também deve tentar vender
os imóveis, exceto, a casa de Monte Verde. Só a venderei
quando não tivermos mais recursos. As outras casas ele pode
vender e deixar o dinheiro na conta da Anna, por favor.
Minha boca está aberta e não sei como reagir. Lucca vai
colocar tudo o que possui em meu nome. Larissa está agitada, se
levanta incrédula e me olha como se eu fosse uma espécie de
ladra, mas não consigo reagir à sua acusação velada, não
consigo reagir a nada. Mal ouço o que acontece à minha volta,
mas ouço quando ela se aproxima de Lucca contrariada.
— Você não pode colocar tudo o que possui nas mãos de
alguém que conhece a tão pouco tempo! Nas mãos de alguém
que não tem nada, Lucca! As chances de isso dar errado são
muitas, você não percebe? Anna não tem nada, você vai encher
sua conta de repente, o que acha que pode acontecer?
Lucca dá de ombros, está exausto, triste e impaciente.
— O que você disse que aconteceria — responde. — Anna
vai usar o dinheiro para pagarmos aos funcionários e ficar com a
casa de Monte Verde. Tentarei mesmo não a vender.
— Você não entende! Por que ela? Eu estou aqui, Lucca,
eu tive essa ideia, ofereci meu nome a você! Eu nunca o
roubaria, tenho muito dinheiro, não preciso do seu! Se você
colocar tudo em nome da Anna, está arriscando nunca mais
recuperar seus bens...
— Não ofenda minha namorada na minha presença,
Larissa! Anna é a pessoa em quem mais confio neste mundo, eu
confiaria minha vida a ela sem pensar duas vezes. Você nos
ajudou com suas ideias, e sou imensamente grato por isso, mas
não vou admitir que a ofenda.
— Sua namorada? — pergunta incrédula. Está de costas
para mim, de forma que não posso ver sua expressão agora,
mas a pergunta foi sua única reação.
Lucca disse a ela que sou sua namorada. Totalmente fora
de hora, um sorriso enorme prega em meu rosto. Ainda assim ele
não vem até mim. Larissa volta a se sentar, Lucca diz que
precisa de um tempo sozinho e sai com Apolo para a área dos
fundos da casa e eu continuo nesta escada, meio fora do ar entre
entender o quanto Lucca confia em mim, e comemorar porque
ele me assumiu diante a minha maior rival.
É um sentimento tão bom de confiança o que sinto agora,
que quando Larissa se aproxima com sua cara de poucos
amigos, não tenho mais ciúmes, raiva, medo, nada. Lucca não a
quer. Será que não sou mais louca?
— Você sabe onde isso vai acabar, não sabe, Anna? —
pergunta baixinho enquanto Leandro está ao telefone com o
gerente de algum banco.
— Acho que posso imaginar. Você entendeu que ele está
comigo, vai colocar seu rabinho entre as pernas e voltar para sua
casa. Então vai finalmente nos deixar em paz.
Ela ri, ri baixinho, mas vejo a raiva em seus olhos, um total
oposto ao riso.
— Lucca vai vencer, Anna. Ele é um homem brilhante! Não
tinha nada, construiu um império em pouco tempo, o elevou a
todo continente e se tornou um dos homens mais ricos do mundo
em poucos anos. Ele vai conseguir a empresa de volta, em
meses, vai ter quitado todas as dívidas. Ele é inteligente,
obstinado, vai reerguer seu império, recuperar seu nome, seus
bens, seu status. Vai se tornar Lucca Baltazi milionário de novo
em pouco tempo.
Seu tom é ameaçador, como se a vitória de Lucca também
fosse a dela.
— Espero muito que sim, senhorita crepe, porque ele
merece — confirmo.
— Você não entendeu, não é? Então se lembre bem do
homem que ele era quando você o conheceu, porque é
exatamente esse homem que ele vai voltar a ser. E quando ele
estiver de novo no topo do mundo, você não vai mais servir para
ele. Você, uma órfã, sem sobrenome, sem bens, sem educação,
sem nada a oferecer, é o bastante agora para um cego falido,
mas não vai ser suficiente para o dono do mundo. Como não era
quando ele a conheceu. Eu me lembro bem de quando ele a
expulsou de sua casa, numa noite chuvosa, sem pensar duas
vezes. Vai fazer isso de novo. É só questão de tempo.
Me levanto finalmente, cansada de ouvir suas ameaças,
cansada de me sentir rebaixada e sorrio de volta, devolvendo o
deboche.
— Se eu me lembro bem, ele me expulsou de sua casa em
uma noite chuvosa para ficar com você. Mas então, quantos
minutos se passaram para ele deixá-la de lado e ir atrás de mim?
Acho que você não entendeu. O que nós temos, o que sentimos,
já é o topo do mundo. Não precisamos de nenhum sobrenome ou
conta bancária, porque esse sentimento é incalculável. Ele vai
sim voltar a ser o Lucca milionário, importante, vai ocupar de
novo seu lugar de direito para o mundo lá fora, mas dentro dele,
já está no auge, senhorita crepe. Internamente ele já chegou
exatamente onde deveria chegar, é essa a parte dele que se
conecta comigo. É essa parte que o faz confiar sua vida a mim,
que o faz reconhecer meu cheiro onde quer que eu esteja, que o
faz sentir minha presença e buscar meu toque. É algo que você
não deve entender, porque você tem o mundo aqui fora, mas não
passa de um lote vazio aí dentro.
Larissa abre a boca, mas não tem qualquer resposta.
Espero qualquer reação, mas o que faz é virar as costas e deixar
esta casa. E me sinto vitoriosa de tantas maneiras que mal
consigo compreendê-las.
— Vou ao banco agora. O gerente me espera para vermos
quanto de empréstimo eu conseguiria colocando minha casa
como garantia. — Leandro informa.
— Quer que eu vá com você? — Lucca pergunta voltando à
sala.
— Não, a Açucena vai comigo. Você fica aqui e pelo amor
de Deus, descanse um pouco. Está com uma aparência horrível
— Leandro responde.
— Por que a Açucena vai com você? — pergunto
desconfiada.
— Porque não durmo há mais de vinte e quatro horas e ela
lê contratos com uma rapidez assustadora. Vai apenas me
auxiliar para que eu não faça nenhuma besteira e não acabe
perdendo a moradia que temos agora.
— Entendo — respondo, realmente entendendo tudo.
Leandro deixa a casa e de repente estamos só nós dois. E
apesar da confiança com que defendi o que Lucca e eu temos,
quando olho para ele ali, no meio da sala acariciando a cabeça
de Apolo, quando penso há quanto tempo ele não me dirige uma
palavra, uma parte em mim sente medo que eu ter escondido
minha amizade com Effie dele por todo esse tempo, e ainda ser a
nova proprietária de seus bens, acabe por esfriar essa paixão
entre nós.
— Você precisa tomar um banho e se deitar um pouco. Não
vamos poder fazer nada até que Leandro retorne e o advogado
do Aquiles chegue — sugiro. — Um banho de banheira, você
sabe, cura tudo.
Ele não diz nada, mas tem um sorriso no rosto. Um raio soa
lá fora, o dia estava feio e fechado desde que a manhã chegou,
agora anuncia seu previsível final, uma chuva. Lucca assente,
pega a bengala e vem com Apolo em direção as escadas,
passando por mim. O sigo, tentando encontrar algo que possa
dizer para começarmos uma conversa. Não suporto mais seu
silêncio.
Ele entra em seu quarto e começa a tirar a roupa para o
banho. Ainda é metade do dia, mas o céu escuro faz parecer ser
fim de tarde. Acendo as luzes para auxiliá-lo e coloco a banheira
para encher. Ele ainda não diz nada. Quando está nu, caminha
até o banheiro. Não o sigo, porque não sei o que fazer. Encaro a
porta me decidindo entre ir para o meu quarto e dormir um pouco
também, dar espaço a ele, foram coisas demais nas últimas
horas. Ou entrar nesse banheiro e confrontá-lo, mas ele se
aproxima de repente, me abraça por trás, beijando meu pescoço.
— Lucca — chamo seu nome baixinho, aliviada, em paz de
novo quando me viro em seus braços e ele me beija. — Eu sinto
muito, não queria esconder nada de você, mas se te contasse
sobre a Effie, você poderia interferir. E eu tinha esperança que
não fosse necessário dizer a verdade a ela. Desculpa ter
escondido. E os seus bens, eu vou devolvê-los a você. Vou fazer
o que você me disser, nunca tiraria um centavo seu.
Ele sorri. Não diz nada, mas tira minha blusa.
— Por que você não está falando comigo?
O sorriso em seu rosto aumenta e ele dá de ombros, abre a
calça caríssima sem o menor cuidado e a tira, acompanhando
seu trajeto por minhas pernas.
— Lucca, pare com isso, fala comigo! A última vez que falou
comigo foi para dizer... na verdade, você não disse nada. Aquiles
chegou na hora, o que ia me dizer?
— Quando você estava se questionando com sua nova
melhor amiga se eu a amo, Anna?
Estaco imediatamente e sinto meu ar parar também. Ele
ouviu. Mas nós estávamos cochichando. Ele tira meu sutiã e a
calcinha. Suas mãos tocam minha pele, passeiam por minhas
pernas e ainda estou calada, como se tivesse sido pega no pulo
de novo.
— Ou quando você declarou o que sente por mim para ela,
ao invés de para mim?
Ele segura minha mão e me guia para o banheiro. Não
pode entrar na banheira sozinho sem minha ajuda, então para e
espera. Me desvencilho de sua mão para guiá-lo, mas ele segura
meu rosto entre suas mãos e diz calmamente:
— Eu ia dizer uma coisa, Anna, não deu tempo, mas posso
dizer agora. Posso dizer o resto das nossas vidas, se for preciso.
Espero ansiosa, mas ele me beija primeiro, um beijo leve,
um roçar de lábios, uma provocação.
— Você é o meu único, verdadeiro e grande amor. Nunca,
por motivo nenhum, duvide disso. Você é minha heroína, a
mulher maravilhosa e única que cuida de mim mesmo quando eu
não sei que preciso dos seus cuidados. Você é o anjo que trouxe
a luz de volta, que aqueceu minha alma, dominou meu coração e
roubou cada pensamento meu tomando conta de tudo. Que me
fez ter esperança em um momento tão difícil, sussurrando a outra
pessoa o que sente por mim, mas me aquecendo por
inteiro do mesmo jeito. Você, meu amor, não faz ideia do
quanto a admiro agora. Ainda mais do que admirava ontem,
porque você é minha menina doce, inocente e maluquinha, mas
também é uma mulher incrível, forte, inteligente e esperta. O que
você fez com a Effie, a forma como se aproximou, como esteve
cuidando de mim por todos esses dias e como me devolveu o
que você acredita ser meu bem mais precioso, eu nem sei como
agradecer, Anna. Mas eu quero que você saiba, meu anjo, que
não é a empresa, minha mansão, os carros, o sobrenome ou o
dinheiro. Meu bem mais raro e precioso é você.
As lágrimas descem por meus olhos quando sua mão desce
por meus braços e param em minha cintura, puxando-me de
encontro ao seu corpo. Sua boca passeia por minha pele
acendendo cada poro do meu corpo e descansa na minha.
Nossos lábios se tocam, mas ele não me beija. Ao invés, diz
baixinho:
— Você não tem que me devolver imóvel nenhum. Se
precisarmos usá-los para pagar aos funcionários, pagaremos,
mas se não precisarmos, eles são seus. O que eu conseguir
agora, qualquer bem material, imóvel, dinheiro, tudo será seu. Eu
darei a você. Para que você entenda que tudo o que eu preciso
na vida é você. Só você, nada mais.
— Eu também amo você — respondo, mantendo ainda
esse contato leve dos nossos lábios. — Muito mesmo.
— Eu sei, você me mostrou isso ontem. Eu sou mesmo um
babaca com sorte — ele diz e sua boca toma a minha em um
beijo apaixonado, completo, intenso.
Seus braços estão à minha volta, mantendo meu corpo no
seu, seu toque é leve e ainda assim me deixa em chamas. Cedo
demais ele se afasta, espera que eu o guie até a banheira e o
faço. Ele entra primeiro e entro em seguida. O oriento a se
sentar, e seu corpo se acomoda na água quente.
— Vem, amor, sente-se aqui — chama.
Não consigo tirar os olhos dele agora. O cabelo negro
bagunçado, o rosto quadrado, seus lábios carnudos. Ele tira os
óculos, mantém os olhos fechados, e é tão bonita a visão que
tenho dele, que parece não ser real. Metade de seu corpo está à
minha vista, fora da água. O peito definido, os braços fortes, os
poucos pelos que formam um caminho em seu abdome e então a
outra metade está dentro da água. Mas consigo vê-lo, duro, em
pé, esperando por mim.
Me sento entre suas pernas, recostada em seu peito, seu
pênis descansa entre nós dois, recostado em minha bunda e
preciso conter o gemido que quer escapar pelo mínimo contato.
Gentilmente, Lucca pega um pouco da água e joga sobre meus
ombros. Em seguida, pega o sabonete líquido, e tira meu braço
da água, passando o sabonete devagar. Ele vai me dar banho.
Deixo que suas mãos passeiem por todo meu corpo, acariciando,
lavando, excitando. Até que descem por minhas coxas. Ele as
posiciona abaixo das minhas coxas e levanta minhas pernas,
passando-as por cima das suas, me deixando assim
completamente aberta.
Rapidamente, sua mão me toca ali. Não é um toque leve,
ao contrário, ele me toca com força, se movendo com pressa,
pressionando com tudo de si. Os movimentos são rápidos, quero
fechar as pernas, mas seus braços estão à minha volta,
impedindo. Os gemidos me escapam incontrolavelmente. Chamo
seu nome entre eles, me lanço para trás em seu corpo, e ele não
para. O prazer me atinge rapidamente, tira meus sentidos, me faz
tremer levemente e Lucca continua. Seus movimentos agora são
suaves, mas estou tão sensível após o orgasmo que cada leve
toque parece demais. Choramingo, mas não peço que pare e ele
entende. Os toques leves aos poucos vão se tornando mais
fortes, seus dedos pressionam de novo sem piedade. Sua boca
alcança meu pescoço e mordisca minha pele. Sua mão livre
aperta meu seio, belisca o mamilo, brinca com ele. E aquela mão
presa lá embaixo faz coisas que me fazem esquecer até mesmo
meu nome.
Quando o segundo orgasmo me atinge, peço que pare.
Lucca deixa meu clitóris, mas seus dedos passeiam por minha
perna, a contornam por baixo e ele alcança minha entrada.
Insinua um dedo ali, devagar, brincando, testando e então esse
dedo some. Lucca me puxa para seu colo, colocando-me por
cima de suas pernas, seu dedo volta até minha entrada e dessa
vez ele tem total acesso a mim. Ele me preenche com rapidez,
com maestria. São dois dedos entrando e saindo, me invadindo
sem pena e me proporcionando um prazer arrasador. Um prazer
que quase não consigo suportar. Quero que pare, mas não quero
que pare nunca.
— Ainda tenho muito a te agradecer — Lucca comenta com
a voz rouca, baixa.
Mais um dedo me preenche agora e meus movimentos são
para acomodá-los mais fundo, para que alcancem aquele ponto
que Lucca conhece tão bem. Rebolo em seus dedos, o braço de
Lucca me ampara pela cintura, me mantendo em seu colo
enquanto me contorço em busca desse prazer mais uma vez. Ele
logo vem. Estou sensível demais. Grito alto dessa vez, Lucca
prolonga a explosão e seus dedos ficam aqui, dentro de mim, até
que recobre meus sentidos. Só então ele os tira, bem devagar.
Me sinto zonza e preguiçosa. Mas Lucca não está nem
perto de acabar.
— Você faz uma coisa para mim, meu amor? — pergunta
em meu ouvido, causando arrepios em minha pele.
— Claro, o que você quer?
— Quero você de quatro, apoiada na banheira, pode ser?
Levo cinco segundos para me perguntar se sou capaz de
me mover agora. E mais dez para me levantar e ficar na posição
em que pediu. A água ainda está quente, mas as mãos de Lucca
tocando minha bunda estão muito mais. Elas pegam fogo,
incendiando meu corpo no processo. Lucca toca seu pau, escuto
os movimentos quando sobe e desce a mão por seu membro.
Seu gemido é rouco, ele se aproxima mais, seu pau passeia por
minha bunda, me causando uma excitação assim como uma
apreensão por saber onde ele vai me preencher. Mas Lucca
procura minha boceta, sinto a cabeça de seu pau aqui, ele ri
baixinho, percebeu minha tensão.
— Você está pronta? — provoca e entendo o duplo sentido.
Estou pronta para tentar coisas novas? Me pego rindo
baixinho também.
— Com você estou sempre pronta para qualquer coisa,
amor — respondo.
Lucca não reage por alguns segundos.
— É a primeira vez que você me chama assim — diz
baixinho antes de me preencher com seu pênis. Ele entra
devagar, torturando, mostrando que o que seus dedos fizeram
agora pouco não foi nada, o que ele vai fazer agora, com o
membro que me preenche por inteiro, vai ser muito melhor. — Eu
gostei disso, pode me chamar assim mais vezes. Prometo
recompensá-la. Desse jeitinho.
Seu pau sai e entra de novo, um gemido me escapa,
minhas paredes já o acomodam todo dentro de mim. Suas mãos
estão cravadas em minha pele agora, ele segura meu quadril e
comanda essa dança que me tira o juízo. Seu pau entra e sai,
suas mãos levam e tiram meu quadril, facilitando o acesso,
tirando-o em seguida. Seus dedos estão cravados em minha
pele. Além dos meus gemidos e os seus, há o som da minha
bunda encontrando seu corpo. O som de quando nossos corpos
se chocam, de quando ele está todo dentro de mim, de quando
alcança aquele ponto que me desmonta.
— Temos cinco horas, anjo, como quer passá-las? — ele
pergunta enquanto estoca mais rápido, mais forte e sequer sou
capaz de pensar. — Diga, Anna, responda ou vou parar de me
mover.
— Não! Assim, quero passá-las assim. Não pare, por favor,
não pare.
Seu riso baixinho é ouvido, o som do encontro dos nossos
corpos aumenta, seu pau me preenche completamente e começo
a duvidar que serei capaz de me apresentar a um advogado para
assinar qualquer documento às dezesseis horas de hoje.
É incrível como o sol pode surgir até mesmo nas mais frias
situações, quando menos se espera. E o efeito do seu calor é
maior e mais intenso do que se poderia prever. Ele derrete o frio,
aquece a alma, ilumina o caminho antes escuro. Eu estava ali,
sentindo-me perdido, o futuro da minha empresa nas mãos de
uma mulher a quem nunca havia conhecido. A mulher dele, do
meu inimigo. Minhas expectativas não eram nada boas naquele
momento, eu me sentia inseguro e, mais do que isso, incapaz.
Mas então ela sussurrou algo que não pude deixar de ouvir.
Anna, meu sol. Ela disse que me ama por nós dois.
Ela disse que me ama.
Isso fez toda a minha perspectiva mudar rapidamente. A
noite virou dia, a luz entrou de volta, de repente Effie era uma
excelente oportunidade de fazer tudo dar certo, de repente o
mundo se tornou um lugar maravilhoso e a esperança me fez
acreditar que mesmo contra todas as expectativas, eu venceria.
Tudo por causa dela.
Sinto sua respiração tranquila em meus braços. Seu cabelo
macio está preso entre meus dedos, ele faz cócegas no meu
rosto e brinco com seus fios cuidadosamente para não a acordar.
O relógio apita as dezesseis horas, o advogado vai chegar a
qualquer momento e Anna está em um sono profundo. Sinto ter
de acordá-la, mas não sinto o porquê não a deixei dormir.
— Anna, amor, acorde. O advogado já chegou. Anna!
Balanço seu corpo devagar, ela resmunga algo, se
desvencilha de mim e vira-se para o outro lado.
— Eu não vou — resmunga sonolenta.
Me sento na cama com um sorriso. Adoraria vê-la agora,
mas é incrível o quanto posso imaginá-la.
— Tudo bem, fique aqui dormindo. Larissa deve vir, se você
não descer acredito que posso passar tudo para o nome dela.
Anna se senta imediatamente. Sei disso porque sinto seu
movimento no colchão.
— No mínimo, ela o obrigaria a se casar com ela depois
disso — resmunga.
— Eu gostaria de ser um homem casado em breve. Claro,
não com ela.
Anna ri alto.
— Você se livrou de levar um travesseiro no meio da cara
por poucos segundos.
Rio de volta.
— Bom dia, meu amor — tento.
— Bom dia, namorado chantagista.
Alberta bate na porta e avisa que o advogado chegou e
Anna mais do que depressa vai escolher uma roupa para mim,
correndo em seguida ao seu quarto para escolher a dela.
Já vestido, desço direto até a sala para encontrar André
Freitas, o advogado de confiança de Leandro. Apolo está ao meu
lado e não se importa quando o homem aperta minha mão,
embora se posicione entre nós dois, em cima dos meus pés.
— Alberta, você pode trazer algo para comermos, por
favor? Anna está com fome — peço ao ouvir sua voz e ela aceita
prontamente.
Sinto um perfume feminino no ar, não me é estranho.
Contando com o que aconteceu mais cedo, posso presumir quem
seja.
— Açucena, como tem passado?
— Ah, senhor Baltazi, muito feliz por vê-lo assumindo de
novo a empresa!
— Infelizmente ela não está em boas condições, querida —
informo.
— Eu sei disso. Mas você é Lucca Baltazi, se alguém pode
reerguer um império é o mesmo homem que conseguiu construí-
lo. Você vai nos tirar dessa em breve.
A confiança em sua voz me faz ter um pouco de medo.
Assim como Açucena, muitos outros funcionários contam comigo
para devolver a eles um emprego seguro. Eles não se lembram
que antes, quando ergui um império do nada, eu era jovem,
sozinho e enxergava. Agora, sou um cego apaixonado que não
está nem um pouco disposto a se afastar da mulher que ama em
nome do trabalho. E mais, não poderia jamais gerir uma empresa
quebrada, estando nas condições em que estou. Mas confio que
Leandro dê conta do recado. Estarei aqui por ele a qualquer
momento, se precisar.
Anna chega pouco depois, cumprimenta Açucena e o
advogado e senta-se ao meu lado, no braço do sofá. Sua perna
tocando meu braço em seu jeitinho único de invadir meu espaço,
que confesso amar. O advogado lê os contratos, o que agradeço,
já que eu não poderia fazê-lo e assinamos primeiro a
documentação passando todos os meus bens para o nome de
Anna.
— A partir de agora você deve me tratar como uma rainha,
se você me irritar, vai perder tudo — ela brinca.
— Eu nem sonharia em irritá-la, minha rainha.
Pouco depois, os advogados de Aquiles e Effie chegam. O
advogado de Effie ordena que o de Aquiles aja primeiro,
contrariado, este lê os documentos que garantem a devolução
dos bens que Aquiles me tirou. O que resta deles, ele faz
questão de mencionar. Em seguida, o advogado de Effie lê o
documento pelo qual tenho esperado ansiosamente nos últimos
trinta dias. A Atenas passa a ser minha de novo.
— Senhor Baltazi, esteja ciente de que assim que assinar
este documento, todos os bens em seu nome serão embargados
pela justiça para quitar parte das dívidas que a empresa possui
— o advogado de Effie me lembra.
— Estou ciente, Arthur, obrigado.
— O senhor pode assinar o documento.
Assino o documento com a ajuda de Leandro e oficialmente
tenho de volta minha empresa. Leandro é o primeiro a me
abraçar, está emocionado, apesar da situação em que nos
encontramos, Açucena vem em seguida feliz por ter seu emprego
de volta. Então Anna segura meu rosto entre suas mãos e me
beija. Um beijo rápido, contido, mas carregado de amor.

A primeira parte mais desafiadora de tudo isso acontece na


segunda pela manhã. Todos os funcionários foram chamados a
uma reunião, inclusive os que foram demitidos e possuem
processos contra a Atenas. Nossa intenção é conseguir um
acordo com esses que foram demitidos para que retirem os
processos. E claro, explicar a real situação da empresa para que
só permaneça aqui quem não tem medo de se arriscar. O salário
de todos eles está garantido por um semestre com os cortes que
Leandro e eu passamos a noite pensando, mas não mais do que
isso.
Ouço as pessoas cochicharem, tento não prestar atenção
ao que estão dizendo, mas é difícil quando não posso vê-las.
Automaticamente meu cérebro se concentra em conversas e
acabo escutando. O medo delas, a incerteza, o quanto esperam
que eu diga o pior.
— Como vocês sabem, um ano atrás eu passei esta
empresa ao meu primo Aquiles, acreditando que estava apenas
autorizando-o a ser o presidente interino enquanto eu estivesse
impossibilitado. Sei que muitos de vocês se perguntam até hoje
porque não passei essa responsabilidade ao Leandro, uma vez
que era meu sócio, melhor amigo e braço direito, e bem, foi por
orgulho, por arrogância, por tolice. Vocês sabem bem o Lucca
que conheceram quando chegaram aqui e com quem
conviveram. A minha soberba, minha arrogância e ganância me
levaram ao lugar onde estou hoje: um cego falido, tentando mais
uma vez construir um império. Eu peço sinceras desculpas a
qualquer pessoa que eu possa ter ofendido por qualquer motivo
em todos esses anos que temos estado juntos.
Os cochichos aumentam agora, Leandro pede silêncio e
espero que estejam ouvindo para prosseguir.
— Como vocês também sabem, Aquiles afundou a
empresa. Todas as notícias que veicularam sobre processos,
filiais fechadas, programas cancelados e demissões não pagas
são verdadeiras. Ele também vendeu a maior parte dos imóveis
que eu possuía, os bens como os carros, e zerou a minha conta
bancária.
Os cochichos agora são mais altos e Leandro precisa
intervir de novo.
— Imagino que estejam se perguntando o que vai ser de
nós agora, que não há uma empresa, não há dinheiro, nem
qualquer capital que possamos usar para investir. E a resposta é:
trabalho. É isso o que teremos aqui a partir de agora. Nosso
intuito é reerguer a Atenas, voltá-la à maior agência de viagens
da América. Para isso, boa parte das dívidas será quitada hoje
com o embargo de alguns bens que ainda tenho. E o resto será
alcançado com nosso trabalho, nosso empenho e dedicação.
Convoquei esta reunião hoje para dizer a todos que foram
demitidos, que vocês receberão seus pagamentos, e quem
quiser o emprego de volta, a vaga é de vocês. Apesar da
situação da empresa, ninguém vai ficar sem salário. Mas vamos
ser sinceros, temos em caixa seis meses de salários para todos
garantidos. Após esses seis meses vai depender do quanto
teremos conseguido aqui.
Paro de falar porque sei que eles precisam falar agora.
Precisam discutir a situação em que estão, acreditar que somos
capazes de reerguer uma empresa quebrada. Eles precisam se
arriscar.
— Estou pedindo a vocês que fiquem e lutem ao nosso
lado. Claro que, a qualquer momento em que tiverem uma
oportunidade melhor vocês podem e devem agarrá-la. Mas até
lá, quero a mão de vocês para reerguer nosso império. O que
temos a oferecer são seis meses de salário e benefícios
garantidos. Se conseguirmos reerguer a empresa neste prazo, os
salários de vocês serão aumentados, vocês serão promovidos.
Novas filiais serão abertas e vocês redirecionados. Mas se em
seis meses não tivermos conseguido isso, se não tivermos nem
mesmo o salário de vocês, vamos fechar a Atenas.
— É você quem vai ficar à frente da empresa, Lucca? —
Eva pergunta.
— Não, será o Leandro. Como vocês sabem possuo agora
uma deficiência, ela me limitaria muito. Mas estarei sempre
disponível para qualquer um de vocês, vou auxiliar como puder
em tudo.
Os cochichos continuam e espero ansioso uma resposta.
Espero saber quantos vão ficar conosco, sei que não são todos,
acredito na verdade que seja a minoria.
— Eu aceito, vou com vocês onde estiverem. Vamos
reerguer esta empresa, eu não tenho dúvidas — Açucena diz. —
Eu fico e peço que quem tem qualquer processo contra a
empresa o retire.
— Estamos dispostos a negociar. Mas independente de
retirarem ou não os processos, vamos pagar a todos. Só
precisamos de um pouco de tempo — Leandro explica.
Me sinto tenso, além de Açucena mais ninguém parece
disposto a arriscar perder o tempo e o esforço em um barco
furado.
— Eu retiro meu processo com toda certeza — Eurico, o
antigo contador da empresa diz. — Você era um homem
intragável na maior parte do tempo, Baltazi, mas nunca conheci
alguém mais correto. Você nunca atrasou um salário, negou um
benefício ou deixou qualquer funcionário na mão. Do seu jeito
grosseiro, você ajudava a todos.
— Você nunca atacou a concorrência para erguer esta
empresa. Sempre foi o mais correto dos presidentes. Por isso, eu
retiro meu processo e estou disposta a voltar à empresa —
alguém se manifesta.
— Desculpe, qual o seu nome?
— Helena.
Anoto seu nome no meu caderninho de nomes para
agradecer. Peço que Anna o leia para mim com frequência.
— Obrigado, Helena.
— Eu fico e falo por todas nós que almoçamos com você no
último mês, nós ficaremos e se for preciso diminuir nossos
salários após seis meses, nós aceitaremos — é a voz de
Vanessa.
— Obrigado, Vanessa.
As pessoas começam a concordar, não faço mais ideia de
quantas aceitaram ficar, mas os quatro processos desta sede que
tínhamos serão retirados, o que já é uma grande ajuda.
— Senhor Baltazi, posso fazer uma pergunta? — alguém
pergunta e concordo. — O senhor e a Anna Maria estão juntos?
Não entendo o que isso tem a ver com a reunião, mas
afirmo.
— Sim, por quê?
— Um ano atrás eu apostei que toda aquela rixa acabaria
em casamento, vou ganhar uma bolada! Vou ficar aqui e esperar
o casamento para cobrar meu dinheiro.
Sorrio. As pessoas riem junto.
— A partir de agora vocês não devem me tratar de maneira
tão formal. Me chamem apenas de Lucca, não há um superior
aqui, estamos todos no mesmo barco.
Dessa vez os cochichos são mais altos.
— Quantas pessoas aceitaram ficar? — pergunto baixinho a
Leandro.
— Todas. Todas elas aceitaram ficar — ele responde com
um sorriso na voz e por alguns segundos não tenho reação.
— Eu... agradeço por vocês ficarem. Agradeço a
oportunidade que estão nos dando.
— Eu volto também — Anna diz de repente. — Se você
assumir a presidência da empresa.
As pessoas na sala concordam veementemente com ela.
— Você sabe que não posso, anjo.
— Eu sei que pode. E acho que deve. Acho até que é o que
você quer.
Sorrio, busco sua mão e ela responde ao meu toque.
— Não posso, mas tenho certeza que o Leandro vai dar
conta.
Assim, encerramos a reunião, ficam apenas os funcionários
que possuem processos contra a empresa e entramos em acordo
com todos eles. Eles nos dão tempo, nos deixam pagar aos
poucos.
Leandro entra em contato com os gerentes das filiais
fechadas, pretendemos reabri-las em seis meses, ele busca
informações sobre a quantidade de funcionários demitidos e a
situação em que estão agora. Se estão empregados, se passam
necessidades, para que possamos ajudá-los se preciso. Estamos
na sala presidencial. A sala que agora pertence a Leandro.
Açucena faz ligações de sua mesa lá fora. A porta está aberta e
é possível ouvi-la falando com antigos investidores, Anna faz o
mesmo. Liga para antigos acionistas e tenta convencê-los a
investir na empresa. E eu fico aqui parado, brincando com um
cachorro que não gosta de brincar, porque não posso fazer nada
para ajudá-los. Embora queria estar fazendo alguma coisa,
qualquer coisa.
— É o ex-prefeito, fale você com ele — Anna diz de repente
colocando o telefone em minha mão.
Gaguejo um pouco no começo, mas conto a ele sobre o
golpe de Aquiles, a situação da empresa e nossa tentativa de
uma retomada e ele pergunta se eu vou dirigir a empresa.
Quando digo que não, ele não aceita voltar a investir.
— Ele desistiu quando soube que você não será o
presidente, não é? — Leandro pergunta e assinto.
— Tudo bem, Vitor Montenegro. Sim, você vai falar com ele
— Anna diz e coloca o telefone em minhas mãos de novo.
Vitor Montenegro era o maior acionista da Atenas. Ele
possuía sozinho doze por cento das ações da empresa. Com
certeza perdeu um bom dinheiro com a queda dela e me sinto
tenso em lhe pedir um favor que o Lucca que ele conheceu
nunca faria para ele.
Conto a Vitor toda a história, o golpe, meu mês de
empregado e falamos por vários minutos porque ele também era
um amigo. Não um amigo próximo, porque ele era uma ameaça a
mim. Eu o enxergava como alguém próximo demais ao meu
patamar, portanto, alguém a ser diminuído. Agora, enquanto ele ri
das minhas lutas e lamenta minha situação, me sinto ridículo por
um dia ter pensado assim.
— Estou disposto a comprar de novo minhas ações na
empresa, Baltazi, na verdade, estou disposto a investir nela. Se
você me apresentar um plano convincente de retomada. Algo
que faça o preço dessas ações triplicar de novo. O que
pretendem fazer? O que vocês possuem de diferente para atrair
outros investidores? Para trazer de volta clientes que não
confiam mais em vocês? Quais as possíveis garantias que
justifiquem os riscos de investir em vocês agora?
— Leandro Romero será o presidente da Atenas agora,
Vitor. Teremos novos programas, roteiros de viagens nunca
vistos. Roteiros acessíveis para todos. E não estou falando
apenas de passagens e hospedagem, mas de um passeio
completo que a sua cozinheira terá condições de fazer. Já
estamos em contato com fornecedores, representantes e
hoteleiros. Vamos oferecer o melhor a um preço popular.
— Isso é quase o que eu queria ouvir, Baltazi. Mas você
não estará à frente da empresa, amigo. Sei que Leandro é capaz,
mas você é a estrela. Não estar à frente da sua empresa agora
vai soar para possíveis investidores como o capitão
abandonando o barco.
— Não é o caso, estarei sempre aqui, vou auxiliar o
Leandro e...
— Não é a mesma coisa, Lucca! Olha, por nossos anos de
amizade eu compro de volta minhas ações, pelo preço que estão
agora, e você sabe que não é quase nada. Você tem duas
semanas para me convencer a fazer o maior investimento da
minha vida. Porque cara, estou ansioso para fazer uma loucura
dessas. Me apresente ao menos cinco acionistas ou investidores
e algo sólido em duas semanas e vou fazer as ações da sua
empresa dobrarem. Nos falamos em breve, Baltazi — ele desliga
e fico um tempo com o telefone na mão, o cérebro a mil
pensando no que fazer para convencer um bilionário excêntrico a
confiar em mim.
Anna ainda me faz falar com vários antigos investidores,
fornecedores, parceiros. Ela me diz quem é, as ações que tinha,
o quanto a pessoa perdeu, o que está fazendo agora e isso me
deixa orgulhoso. Ninguém pediu isso a ela, mas Anna faz uma
verdadeira pesquisa antes de tentar contato com alguém e me
faz fazer esses contatos. Ela acha que assim vai ficar mais
evidente que não estou abandonando o barco, apenas com
medo, segundo ela.
A maioria dos acionistas diz não, mas o fato de Montenegro
voltar a investir acaba convencendo meia dúzia deles a
comprarem de volta as ações. Ao preço que estão agora, isso
não é grande coisa, mas assim que seus nomes forem de novo
associados à Atenas, as ações da empresa vão começar a subir.
Voltamos para a casa após um dia exaustivo e não consigo
dormir porque só consigo pensar em algo diferente o bastante
para ser o carro chefe da empresa. Algo que atraia o público,
todos os públicos, que seja acessível a todos. Algo que ainda
não tenha sido feito. A Atenas foi construída à base de muito
esforço e sacrifício, sim, mas também de grandes ideias. Eu era
um jovem determinado e criativo. Agora me vejo em um homem
limitado e medroso, como Anna bem observou. No começo, os
pacotes que incluíam desde a passagem, hospedagem, comida,
passeios e guias turísticos foi o diferencial. A pessoa comprava
um programa conosco e não precisava se preocupar com mais
nada, apenas em chegar ao ponto de embarque e aproveitar a
viagem. Isso nos trouxe uma enxurrada de clientes logo de cara.
Mas o que podemos fazer de diferente agora? Como posso
criar um programa se não posso nem mesmo ver as passagens,
as locações, os hotéis, para analisar preços e montar
experiências?

Leandro me passa as duas ideias que teve durante a noite


para convencer Montenegro, mas nenhuma delas será o
bastante. Não preciso dizer isso a ele, ele entende após dizê-las
em voz alta.
— Onde está a Anna? — pergunta quando terminamos o
café da manhã.
— Dormindo. E a Açucena?
Ele engasga com o café e me pego rindo.
— Por que eu saberia?
— Não foi na casa dela que você passou a noite?
— Eu passei a noite trabalhando nessas duas ideias.
— E não estava prestando atenção a julgar pela qualidade
delas.
— Babaca! — ralha rindo.
— Me pergunto o que distraiu você. O cansaço, o medo ou
uma mulher casada com um filho pequeno com quem você tem
um caso?
— Ela está se divorciando. E o Miguel vê mais a mim do
que ao próprio pai.
— Desde quando?
— Desde uns três meses para cá.
— Então é mesmo ela.
— Inferno, Lucca! Eu não queria falar!
— Mas falou. Então agora explique isso melhor.
— Não vou contar minha desastrosa vida amorosa para um
babaca que tem um sorriso irritante no rosto há uns três dias. O
que aconteceu? Você aceitou finalmente ser o pai dos cinco
filhos da Anna?
— Deus me livre, claro que não! Não se trata de não querer
filhos com ela, se eu encontrasse um doador amanhã,
começaríamos a fazer esses filhos na semana seguinte.
— Você a ama tanto assim?
— A amo mais do que isso.
— Ela sabe disso? Quer dizer, você se declarou?
— Mais ou menos.
— Como alguém se declara mais ou menos? Você disse
que a ama mais ou menos? E ela ainda está com você?
— Eu não disse que a amo. Eu disse, mas não diretamente,
Anna Maria, eu te amo. Você sabe que não posso fazer isso. Ela
vai encontrar o homem certo para ela um dia e não quero que
sinta pena de mim.
— Você está em um relacionamento onde sabe que a
pessoa vai deixá-lo e destruí-lo um dia?
— Anna nunca vai me destruir. Ela é feita de coisas boas,
tudo o que ela toca, o que ela ama se torna bom. Mesmo quando
ela for embora, ainda serei feliz porque a tive.
— E por que o homem certo para ela não pode ser você?
— Porque sou cego! Porque eu queria olhar naqueles olhos
cor de mel e dizer que a amo, mas não posso! Porque não a
quero sozinha criando cinco filhos e cuidando de um incapaz.
Não vou impor isso a ela. Ninguém tem qualquer obrigação
comigo, Leandro, e não vai ser ela a ter. Ela é livre, o meu amor
não é uma prisão. Ele é seu paraíso. Eu a amarei e cuidarei
quando estiver comigo, e continuarei amando quando for
embora. Ela pode voltar quando quiser, sempre estarei
esperando, mas não vou prendê-la a mim. Isso nunca.
— E se for a vontade dela?
— Vai passar um dia, ainda que seja o que ela mais quer
agora, e eu sei que ela me ama, vai passar quando ela sentir
falta desses filhos, dessa família numerosa. Vai passar quando a
Açucena começar a frequentar esta casa com seu filho pequeno
chamando-a de mãe pelos cômodos. Vai passar quando sentir
que seu tempo está passando, que quer filhos demais e resta
pouco tempo e ela vai me deixar.
— Eu acho, meu amigo, que ela nunca vai deixar você. Eu
acho que você está com os olhos fechados para as
possibilidades, e veja bem, eu disse olhos fechados, não cego. O
que indica que você pode abri-los a qualquer momento. Quando
sentir que a está perdendo porque é um medroso, faça um favor
a si mesmo e os abra.
Ele para de falar e não tenho uma resposta. Saber que
Anna irá embora não tira em nada a felicidade por tê-la agora. Se
formos olhar nossa história desde o começo, eu não a merecia
ao meu lado em momento nenhum. Então só posso apreciar
esse presente.
— Bom dia! — Anna grita de repente e levo um susto, o que
a diverte. — Eu consegui! Assustei você! Estava me sentindo
uma otária por nunca conseguir assustar um cego!
Sorrio.
— Anna...
— Já sei, isso não é coisa que se diga a um cego, eu já sei.
Bom dia, Leandro. Você pode ir para a Atenas sozinho hoje, vou
levar o Lucca a um lugar.
— Nenhum motel abre a esta hora — Leandro provoca.
— Jura? Não foi de um que você veio agora pouco? — ela
rebate.
— Posso te dar umas dicas de lugares diferentes onde
vocês podem transar — Leandro continua.
— Não faz diferença o lugar, o que importa é a... — Ela
para de falar e tento conter uma risada. — Companhia, claro.
— É claro — Leandro concorda.
— Mas se eu quiser um lugar diferente, sempre posso
procurar sua cama, afinal de contas, você não a usa nem para
dormir mesmo.
— Anna, como você está atrevida! — provoco e ela ri.
— Venha, Lucca, vamos a um lugar diferente.
Me levanto imediatamente, derrubo a cadeira no processo e
sou obrigado a aturar a risada irritante de Leandro até Anna me
acomodar dentro do carro.

— Você vai me dizer onde estamos? — pergunto quando


ela abre a porta do carona para que eu desça.
— Estamos na sua mansão. Ela vai a leilão na semana que
vem — ela informa cautelosa.
— Entendo. Por que estamos aqui?
— Porque achei que você deveria se despedir dela. Sei lá,
você saiu daqui tão transtornado sabendo que a havia perdido,
acho que deveria dar o devido adeus ao lugar que foi o seu lar.
— Foi a primeira coisa que comprei quando finalmente tive
dinheiro com a Atenas. Uma casa. Quando mais novo eu dormi
muito em pensões. Meus pais e eu vivíamos nelas — relembro.
— Mais um motivo para você se despedir da sua casa.
— Você está certa. Mas não temos chave.
— Desde quando eu preciso de chaves?
Desço do carro, Apolo desce em seguida e me apoio na
bengala para me guiar pela rua onde estive tantas vezes. Ouço
alguns poucos barulhos pela vizinhança, o vento frio da serra. A
casa fica na parte alta do condomínio. Daria tudo para vê-la uma
última vez, para observar seus cômodos, decorá-la. Digo isso a
Anna e ela responde:
— Mas é o que você vai fazer. Você vai vê-la, mas da sua
maneira.
Ela se afasta e escuto seu grito pouco depois.
— Anna, está tudo bem? — pergunto preocupado.
— Tudo, eu só tropecei. Já volto.
Duvido muito que haja alguma janela aberta pra essa
puladora de janelas entrar, mas indo contra qualquer dúvida, ela
abre a porta da frente. Escuto-a sendo aberta e Anna toca minha
mão para que eu entre na casa em seguida.
— Por onde você entrou?
— Eu atravessei a parede — retruca, lembrando uma
manhã meses atrás, quando me deu a mesma resposta.
Entrar aqui depois de tanto tempo é diferente.
Principalmente por todas as mudanças, tanto na minha vida
quanto na minha alma. Não sou mais o dono do mundo, não sou
o dono desta, que é a melhor casa do condomínio, não posso
nem mesmo vê-la agora. De algum jeito, enquanto Anna me guia
pelos cômodos desta casa, noto que não sou capaz de me guiar
por nenhum cômodo dela, porque não tenho nenhum cômodo na
mente. Tudo sobre ela se apagou. Enquanto a casa de Monte
Verde estava tão viva na minha mente que mesmo após anos
sem ir até lá eu me lembrava de cada cômodo, dos móveis, as
cores, a decoração. As montanhas atrás dela, a posição das
janelas e até mesmo as trilhas da cidade. Acho que isso diz
muito mais sobre mim do que uma conta bancária.
— Aqui nunca foi de verdade meu lar — digo a Anna. — Eu
não me lembro desta casa. Sei um móvel ou outro, talvez uma
cor de parede. Eu sei da cozinha, talvez, mas nada mais. Eu não
guardei essas memórias no coração, como guardei você, por
exemplo.
— Me sinto lisonjeada por valer mais do que sua mansão
caríssima — ela brinca.
— Você vale mais do que o mundo todo, meu amor.
Anna me guia por todos os cômodos. Curiosamente, em
cada um deles tenho uma lembrança dela, o que nos faz rir e
torna esse, que deveria ser um momento pesado, em algo leve e
gostoso.
Ela me pergunta algo, mas paro a resposta pela metade e
finjo estar ouvindo alguém à minha esquerda.
— Com quem você está falando? — pergunta em pouco
tempo.
— O diabinho no meu ombro, ele acha que você devia me
levar até meu quarto agora.
Ela ri alto.
— O diabinho que queria me matar? Não vou obedecê-lo.
Viro a cabeça para o outro lado e tento de novo.
— O anjinho também. Ele acha que devo me despedir de lá.
Era o cômodo onde eu mais ficava nesta casa.
— Porque você sempre tinha uma companhia, não é
mesmo?
— E estou com uma companhia agora.
— Vai sonhando que vou transar com você na mesma cama
onde você transou com metade das herdeiras desse estado.
— Pouco mais da metade — provoco.
— Pois então suba sozinho, aproveite cada degrau para
falar o nome de uma mulher que você magoou e pedir perdão.
— Não tenho memória de elefante, anjo, mas posso tentar.
Ela ri, sigo o som de sua voz até as escadas. Subo degrau
por degrau devagar, amo isso em Anna, ela não me faz sentir um
inútil guiando-me até mesmo por escadas. Com ela, às vezes é
como se eu fosse alguém normal de novo. Subo os degraus e
sigo em direção ao quarto.
— Claro que o quarto ele acharia sozinho — ela provoca.
— Qual a situação da minha cama? Está muito suja?
Empoeirada? Desforrada?
— Não, está com uma colcha suja, mas... ah, tirei a colcha,
está limpa. Alguém tem vindo limpar a casa, está bem limpa para
uma casa fechada há tanto tempo. Por que será que o Aquiles
não quis morar aqui? A casa era dele e ele vivia de aluguel.
— Effie provavelmente a achou grande demais. Effie foi
criada por pais muito ricos, é de uma família tradicional, mas não
no luxo. Seus pais a ensinaram a dar valor ao que possui, a
gostar das coisas mais simples.
— Isso explica porque ela se contentou com o Aquiles.
Sorrio, Anna ri de volta. Dou um passo em sua direção. É
fascinante como posso senti-la, quase como se pudesse vê-la.
Algo em mim pode. É essa sensação que tenho.
— O que está fazendo? — pergunta baixinho.
— Guiando você até a cama, eu espero. Se não, vamos os
dois cair no chão.
— Não vou transar com você aqui.
— Você estava bêbada naquela sala uma noite. Você subiu
no meu colo, disse que eu a fazia sentir coisas e me beijou. E
Anna, eu nunca quis tanto algo na minha vida. Naquela noite,
depois de jogá-la lá fora na chuva e abrir a janela pra você voltar,
eu vim até este quarto e prometi que tiraria você da minha vida.
Porque você era perigosa demais. Porque você despertava todos
os meus sentidos, todos os sentimentos, tirava meu juízo com
uma facilidade assustadora. Por noites eu sonhei com você nesta
cama. Por noites eu acordei no meio da madrugada procurando
você só para descobrir que não estava aqui de verdade. Era
sonho. Cada vez que você entrou nesta casa depois disso eu
olhava para você e por segundos me imaginava jogando-a nos
ombros e trazendo-a para cá. Me imaginava tocando você,
beijando-a, ouvindo-a sussurrar meu nome em desespero. Você
foi tudo o que eu mais quis por muito tempo. E nunca deixou de
ser. Ter você nesta cama é quase uma questão de honra para
mim.
Consigo chegar até ela e, como imaginei, a cama está logo
atrás de suas pernas. Sua respiração está acelerada e ordeno
que Apolo deixe o quarto.
— O diabinho no meu ombro diz que preciso tirar sua roupa
agora e tê-la aqui, nesta cama, onde você deveria ter dormido
desde que pisou nesta casa a primeira vez. E o anjinho do outro
lado, diz que você precisa fazer amor comigo agora, nesta cama,
porque você será a única a fazer amor comigo sobre ela. Nunca
antes eu amei alguém. Nunca antes eu desejei tanto alguém.
Nunca eu enxerguei tanto uma mulher como eu enxergo você,
Anna.
— Lucca — sua voz é baixa, um sussurro apenas. Sua
boca alcança a minha em segundos, seu beijo é tão doce e tão
quente, que me sinto aceso e apaixonado, meio bobo e excitado,
faminto e fascinado em segundos.
— Tira sua roupa — sussurro em seus lábios e sinto-a se
mover. — Agora deite-se, meu bem, vou me despir para você.
Ouço quando ela se joga na cama, a imagino nua aqui
agora, imagino o lençol preto, aquele que mais usava, e Anna
sobre ele. Sua pele em contraste com o lençol, suas pernas
abertas me convidando a me unir a ela, imagino seu cabelo
marrom espalhado enquanto ela morde o lábio sem se dar conta
que o está fazendo. Tiro minha roupa devagar. Primeiro a blusa
social, botão por botão, até passá-la por meus braços. A jogo ao
chão e vou à calça. Abro o botão e o zíper bem devagar. Ouço a
respiração acelerada de Anna. A desço sem pressa e passo
meus pés por ela, livrando-me da peça. Então tiro a boxer, ainda
mais lentamente. Anna choraminga, escuto um som diferente,
como um gemido, junto ao som de seus dedos se movendo.
Ela está se tocando. Se tocando para mim.
Meu pênis está livre e consigo imaginá-la agora, aberta, se
tocando, gemendo enquanto me observa, lutando para não
fechar os olhos, marcando o lábio com os dentes e seus dedos
delicados entre suas pernas. Meu pau já está duro, pulsando por
ela. Chamo seu nome em uma prece e toco todo o membro.
Contorno a cabeça com os dedos e desço devagar por toda
extensão, o prazer é bom, mas nada comparado a entrar nela.
Acelero o movimento e Anna choraminga. Seus movimentos
param, os meus aumentam. Ela se move na cama e suas mãos
estão em mim, ela toma meu pênis em suas mãos pequenas.
Continua meus movimentos, subindo e descendo.
Tiro os óculos e os jogo sobre a cama. Anna então para o
movimento com a mão e me leva até a boca. Saboreia no início,
passeando com a língua por minha pele, levando meus nervos
ao limite.
— Anna, ah, Anna, não seja tão cruel — peço.
Mas ela é uma boa menina. Sua boca suga a cabeça do
meu pau e ele invade sua boca, passeia por ela até seu limite.
Então seus lábios estão de novo me levando à loucura e ela me
suga mais uma vez. Aumenta o ritmo em seguida, sugando com
força, me levando ao limite, quase me fazendo me perder nela,
explodir em sua boca deliciosa.
— Anna, Anna — repito seu nome como uma prece, me
sinto alucinado e quente. — Eu quero você, meu amor.
Sua boca some, ela se afasta e não posso suportar mais do
que um segundo sem tocá-la. Subo na cama e sinto suas pernas
à minha volta. Mordisco seu pé enquanto minhas mãos descem
por suas pernas. Com facilidade encontro seu centro, abro os
olhos. Não acredito que estou fazendo isso, mas não consigo
mais mantê-los fechados. A toco no mesmo instante e ela geme
alto. A febre que a acomete enquanto a toco sem piedade e ela
se mexe e grita, é a mesma que sinto em mim agora. Anna está
molhada, ouço o som dos meus dedos penetrando-a, deslizando
por sua excitação sem dificuldades. Lubrifico meu pau com o que
tiro dela e a preencho finalmente.
Fico parado assim, dentro dela, sentindo-a me acomodar,
me encontrando dessa maneira deliciosa que só existe dentro
dela. É um tipo diferente de lar. Um tipo que meu corpo
reconhece instantaneamente. Que meu prazer aprova
alucinadamente, que minha alma venera sem qualquer reserva.
Me movo dentro dela, devagar, finalmente a tendo onde tanto a
imaginei. Nesta cama.
E ela estava certa, não importa o lugar, mas a companhia,
importa estar com ela, dentro dela, sobre ela. Importa ter sua
boca ao redor do meu pau, suas mãos em minha pele, meus
dedos em sua boceta, seus gemidos enlouquecidos e a maneira
como meu nome desliza em sua boca quando está louca de
prazer.
Suas pernas estão ao meu redor, ela se prende a mim e
deixo meu corpo cair sobre o seu, sentindo seus seios sob meu
peito, movendo seu corpo junto com o meu a cada estocada.
Suas unhas arranham minha pele, sua boca busca a minha e a
beijo. Seus gemidos morrem em meus lábios, nossas línguas se
misturam e esse contato completo do nosso corpo faz tudo ser
mais gostoso, mais intenso, mais real.
Ela segura meu rosto nas mãos e o beija, beija todo ele,
inclusive esses olhos sem vida. Os fecho ao contato de seus
lábios e ela continua gemendo meu nome e me acariciando
enquanto a fodo. Sem qualquer repulsa, só com esse desejo
avassalador e esse amor que me completa.
Seguro suas mãos nas minhas, as prendo no colchão e
acelero os movimentos porque preciso explodir dentro dela.
Estou no limite em pouco tempo, solto uma de suas mãos e a
toco, sem deixar de penetrá-la. Pressiono com força seu botão,
ela grita, joga o corpo de encontro ao meu com mais força, e se
perde em minutos, gritando meu nome quando o orgasmo a
atinge. Aproveito e a acompanho, explodindo nela, me perdendo
nela, deixando meu corpo cair sobre o seu.

Estamos nus, embolados e saciados sobre a cama.


— Me diga que o lençol aqui é preto — brinco.
— Sim, como você sabia?
Sorrio.
— Cada sonho que tive com você neste quarto envolvia
esse lençol.
— Você tem algo que o faz conseguir realizar cada sonho,
não tem?
— Quem me dera, minha Anna.
— Lucca, eu acho que você precisa assumir a presidência
da empresa.
— Não posso, Anna, eu sou cego agora, você me imagina
fazendo programas e roteiros de viagem sem poder ver os
lugares?
— Mas você já viu muitos lugares. Você já viveu tantas
aventuras! Use isso, sua história, seus sentimentos, seus
sentidos. Lucca, não é impossível. E não estou dizendo que será
fácil, mas é seu trabalho. Você percebeu o quanto todos esperam
que você assuma seu lugar de direito, só você se importa assim
com sua deficiência, ninguém mais.
— Talvez porque só eu saiba o quanto ela me limita.
— Você repete isso e só o que eu escuto é o medo falando.
Me diga uma coisa que você se propôs a fazer, mesmo que algo
impossível, que não tenha feito.
— Você deposita fé demais em mim, anjo.
— E você não tem fé alguma em si mesmo. Eu vou estar
com você, posso ser seus olhos, posso auxiliá-lo no que precisar.
E se estiver difícil demais, puxado demais, você faz o que planeja
fazer agora. Mas até que tenha tentado com tudo de si, não
desista do que você é, Lucca. Você tem tanto a alcançar! É uma
pena que não consiga aceitar isso.
Não respondo, a verdade é que isso tem me passado pela
cabeça, mas Anna, como sempre, está certa. Eu tenho muito
medo de fracassar. Seriam pessoas demais dependendo do meu
sucesso. Não sei se posso suportar tamanha pressão.
— Você acha que merece passar por tudo de ruim que
passa, mas não acha que mereça as coisas boas que alcança.
Me pergunto como funciona esse espelho na sua cabecinha,
Lucca Baltazi.
— Ele reflete você. Quando me olho nele só vejo sua
imagem. E Deus, Anna, você é tão linda que não há mais nada
que eu queira ver.
— Você devia ver a si mesmo, só para variar.
— Eu fiz isso por um ano inteiro.
— Então fez de olhos fechados.
— Estou pensando seriamente em enfiar algo na sua boca
para você parar de falar — brinco.
— Me convença a abri-la — ela desafia.
— Como eu poderia descrevê-lo? É mágico. — Ela ri, rio
também e continuo. — Como você mesma disse tantas vezes:
avantajado, grosso também.
— Minha boca está aberta, senhor. Estou esperando você
preenchê-la.
— Você sabe exatamente o que dizer para agradar um
homem, senhorita.
Ela ri e a beijo, porém, antes que comecemos o segundo
round, alguém bate na porta lá embaixo.
— Merda — Anna grita e se levanta. — É o segurança,
alguém deve ter nos visto entrar aqui.
— Nós saímos pelos fundos? — pergunto.
— Dá para sair pelos fundos?
— Claro! Pulando a cerca do vizinho.
— Olha só quem está louco para pular muros agora.
Vamos, levante-se.
— Mas você prometeu, meu pau avantajado está
esperando.
— Ele vai ficar esperando, invadimos uma propriedade e
transamos nela, vamos embora.
Me levanto rindo de seu medo, me visto mais devagar do
que ela gostaria e saímos pelos fundos. Fico com a perna presa
na cerca e Anna precisa me rebocar. Por fim, o jardineiro dos
vizinhos nos vê, me cumprimenta e nos dá cobertura. E assim
chegamos a Atenas sujos, despenteados e cobertos de folhas.

O advogado de Effie entra em contato ao final da tarde, eles


estão buscando o dinheiro que Aquiles tirou da minha conta, Effie
também acredita que ele não tenha gastado uma quantia tão alta
em tão pouco tempo. Isso me dá um pouco mais de esperança.
Esse dinheiro quitaria as dívidas da empresa definitivamente.
Teríamos créditos altos nos bancos de novo. Poderíamos fazer
qualquer coisa então. Dou a notícia a Leandro, mas ele parece
tenso.
— Lucca, você pode se sentar, por favor? Há algo que
preciso falar com você. — O faço, temendo que mais alguma
coisa tenha dado errada. — Não sei se sou a pessoa certa para
comandar a Atenas agora.
— Do que está falando? Claro que você é. Ninguém a
conhece como você!
— Sim, Lucca, você a conhece. Quantas vezes nos últimos
anos estávamos em situações impossíveis e você enxergava a
solução? Nunca eu. Porque eu não nasci para presidir uma
empresa. Eu me formei em turismo, planejava só viajar o mundo
e quase não ter responsabilidade. Você me deu uma
oportunidade incrível aqui, me fez conseguir tudo o que possuo,
mas eu não tenho a mente de um CEO, Lucca. Eu não sei
encontrar soluções, enxergar à frente. Eu sei criar roteiros de
viagem. Estou dizendo que temos muitas pessoas dependendo
do nosso trabalho e eu não me sinto à altura dessa
responsabilidade. Não gostaria de fechar a empresa em seis
meses porque não fui capaz.
— Leandro, isso não vai acontecer. De todo jeito irei auxiliá-
lo. Você não tem experiência porque nunca fez isso, mas com o
tempo vai pegar o jeito.
— Só que não temos tempo! Eu não sei porque você não
entende que você é o presidente deste lugar, Lucca. Os
investidores dispostos a voltar só o farão se você assumir, todas
as ideias válidas que tivemos até agora vieram de você. Você
sabe exatamente o que fazer, ainda que esteja tão limitado
quanto supõe. Este lugar é seu. Adoraria ser promovido a vice-
presidente finalmente, mas não a presidente.
Duas batidas soam na porta e o perfume de Anna invade o
ambiente.
— Você já teve a conversa com ele? Não adiantou, não é?
Sorrio.
— Anna, você me subestima — provoco. — Vocês têm
certeza que querem confiar uma empresa na situação desta a um
cego?
— Não a estamos confiando a um cego, mas ao dono dela.
Ao brilhante e fantástico dono dela — Leandro provoca de volta.
— Babaca. Anna, você...
— Estarei ao seu lado vinte e quatro horas, se for preciso.
Serei seus olhos. Vamos nos adaptar juntos. Prometo fazer tudo
ser mais fácil para você. Está na hora de você entender que sua
deficiência não o torna um inválido, Lucca.
Assinto e de repente uma ideia me vem. Quando penso em
um cego criando programas de viagem por lugares que não pode
ver, me pergunto para onde cegos viajam. E se houvesse um
lugar onde todos os outros sentidos fossem agraciados? Não
enxergaríamos com os olhos, mas com as mãos, com a boca,
com o nariz, os ouvidos. E se houvesse vários lugares assim?
Tantos lugares que pudéssemos criar roteiros de viagem para
que cegos possam conhecer o mundo enxergando-o de todas as
maneiras possíveis a um deficiente visual? Onde tenham outras
experiências, experiências tão boas, que não queiram mais ficar
presos em casa?
— Anna, preciso de você. Há alguns lugares que você deve
pesquisar para mim. E quais atividades podem ser feitas nesses
lugres. Claro, poderíamos ter guias especialistas em deficiência
visual. Poderíamos ter um guia por família. Um deficiente não
sentiria medo em momento algum. Ele sentiria toda a viagem.
— Do que você está falando? — Leandro pergunta.
— Acho que tive uma ideia. Anna, comece pela Grécia, por
favor. Pesquise lugares onde deficientes visuais possam ter
experiências auditivas inesquecíveis. Depois, pesquise onde
poderiam se aventurar com segurança, sentir o vento na pele,
pular de alturas que não podem ver, mas podem ouvir, sentir,
viver. Pesquise hotéis próximos a esses lugares para eu saber
com quais conseguiríamos uma parceria.
— Você está criando exatamente o quê? — ela pergunta
curiosa.
— Um programa que deficientes visuais possam fazer e ter
toda experiência durante a viagem, como se enxergassem.
Ela não responde, tampouco Leandro. Começo a temer que
esta tenha sido uma péssima ideia.
— Cara — Leandro me levanta da cadeira onde estou
sentado e me guia. — Sente-se aqui, na sua cadeira. Você é o
presidente dessa porra! Vou buscar meu laptop, vamos criar um
programa para deficientes visuais.
— Se isso funcionar podemos criar para todos os tipos de
deficiência. Você já imaginou? Você teria programas acessíveis a
todos — Anna comenta animada.
— Isso vai funcionar, Anna. Foi ideia do Lucca, tudo o que
sai dessa mente dá certo, ele é o preferido do universo, eu
sempre disse isso.
Sorrio com a empolgação deles. Me sento de novo nesta
cadeira, que foi meu orgulho por tantos anos, mas agora não
passa de uma cadeira, uma que traz responsabilidades demais.
Ela dá um pouco de medo agora. Mas confesso que é libertador
sentar aqui. É como se finalmente eu fosse eu. No lugar que
devia, fazendo o meu melhor, enxergando pela primeira vez na
vida.
Uma movimentação estranha acontece lá fora. Leandro
deve ter deixado a porta aberta ao ir buscar seu laptop, que não
entendo porque não estava aqui na sala da presidência. Ouço
vozes, cochichos, passos e cheiros e de repente aplausos. Os
funcionários estão aplaudindo por eu estar de volta ao comando
da empresa.
Fico imóvel num primeiro momento, não consigo assimilar
que essas pessoas, que trabalham agora em uma empresa
prestes a fechar as portas, que não tem qualquer segurança em
seus salários e futuro profissional. Que conviveram com o Lucca
Baltazi dono do mundo, arrogante, insensível e babaca, estejam
agora comemorando porque me tornei de novo o chefe delas.
Sinto-me emocionado, Anna segura minha mão, está ao meu
lado, como prometeu. E tenho certeza que tudo vai dar certo.

Quatro dias depois temos um programa montado. Um


programa tão incrível que eu adoraria fazê-lo agora mesmo se
não tivesse uma empresa para reerguer. Antes de apresentar
esse programa a Montenegro tenho que conseguir mais
investidores, mas ninguém parece disposto a me ouvir. Sequer
querem saber nossa proposta. Ao longo desses dias
conseguimos mais dois acionistas de volta. Só faltam três para
chegarmos até Montenegro. Por isso, Leandro marcou um jantar
com alguns amigos próximos, investidores. Eles nunca investiram
na Atenas em si, mas fazem fortuna comprando ações. Larissa
Crepaldi é uma delas, e é a que temos mais certeza que vai
investir, afinal, Larissa é nossa amiga. A ideia que nos deu
tempo, veio dela.
Cumprimento pessoas que não me lembro como são,
apenas memórias vagas sobre elas. Me sinto tenso trajando de
novo um terno, agindo como um CEO em busca de investimento.
Antes eu conseguia olhar nos olhos das pessoas, convencê-las,
dominá-las, era mestre nisso. Agora só tenho minhas ideias para
seduzi-las. Me encaminho em direção a sala de jantar, ao aviso
de Alberta, embora Anna ainda não tenha descido. Mas uma mão
segura meu braço e Larissa pede que eu espere um momento
porque quer falar comigo.
— Lucca, seja qual for a ideia que você teve, quero que
saiba que estou disposta a investir na Atenas. Fiquei muito feliz
quando o Leandro disse que você havia reassumido a
presidência, você precisava se ver agora, este é seu lugar. Há
tempos não o via tão feliz!
— Agradeço, Larissa, de verdade — respondo tocando sua
mão de volta. Mas de repente, ela me dá um abraço.
— Você vai reconquistar tudo o que perdeu, seus bens, sua
casa, seu estilo de vida. Vai ser o Lucca de antes. Então me diga
se você se vê como o rei desse império tendo ao lado alguém
como a Anna?
Me afasto de seus braços imediatamente.
— Seja qual for a situação em que estarei amanhã, depois
ou daqui a dez anos, eu só me vejo tendo-a ao meu lado.
— Lucca, ela é...
— A mulher da minha vida! A mulher que eu amo. Você me
vê de novo com uma conta bancária extraordinária, mas esquece
que ainda serei um cego. Essa deficiência não vai sumir da noite
para o dia, as coisas não serão como antes. Além disso, há algo
que você não vê, mas a Anna sim, a mudança maior aconteceu
aqui dentro, Larissa. Nunca mais serei o rei do mundo de novo,
não importa quanto dinheiro tenha. Isso é o de menos. Eu quero
minha empresa em primeiro lugar de novo, porque foi lá que
consegui colocá-la, lá é o lugar dela. Quero garantir os salários
dos meus colaboradores, quero investir em programas de
capacitação a deficientes, eu quero coisas diferentes de você
agora. Acho que não precisamos mais ter essa conversa.
Me viro para ir à sala de jantar, mas ela ainda segura minha
mão. Como se eu precisasse esperar por algo. É aí que escuto
passos. Alguém se aproxima, devagar, a passos lentos. Larissa
solta meu braço e não entendo o que está havendo. O cheiro de
Anna toma o ambiente, mas está diferente agora. Um cheiro bem
mais forte, que não é característico dela. Mas há o perfume das
flores ali, o cheiro de sua pele. Há sua presença, sua respiração,
seus passos. Sorrio e estendo os braços.
— Oi, meu amor, até que enfim você veio.
— Com quem você está falando? — Larissa pergunta.
— Com a Anna. Por quê? O que está havendo?
De repente, Anna pula em mim, me aperta em seus braços
e cobre meu rosto de beijos. Seu rosto está molhado, ela esteve
chorando. O seguro entre minhas mãos preocupado.
— O que foi, meu anjo? Por que você está chorando?
— Sinto muito, Lucca, eu... eu deixei que a senhorita crepe
me convencesse que você não me reconheceria se eu mudasse
de perfume, então ela me desafiou a usar um mais forte e...
— Eu a reconheceria com qualquer perfume, Anna. Porque
nossas almas se conhecem, nossos corações se conectam. Não
depende do lugar, nem do perfume que você usa por cima do
cheiro da sua pele, que é o cheiro que eu sei de cor. Você
duvidou disso?
Ela acaricia meu rosto, está sorrindo agora, sinto o
movimento em meus dedos.
— Eu te amo, Lucca Baltazi. Quero passar o resto da minha
vida com você. Você é minha família e meu lar. Eu não sabia que
o lar podia ser uma pessoa.
Sorrio, quero chorar, mas sorrio. Eu também já me
encontrei nela, encontrei o lar nela e pensei a mesma coisa. A
beijo finalmente, escuto os passos de Larissa para longe. Não sei
se foi embora, se perdemos a única investidora garantida que
teríamos esta noite. Mas sei que amo essa menina em meus
braços mais do que sou capaz de expressar e ela é o que mais
importa.
O jantar transcorre da melhor maneira possível. Larissa não
foi embora, afinal. Foi a primeira a investir na empresa, levando
com ela mais duas pessoas. Embora ainda esteja tentando
entender como fez Anna cair em um teste. Temos mais cinco
investidores ao final do jantar. Todos amam a ideia do roteiro de
viagens para deficientes visuais. Eles acreditam que isso vá dar
certo. A maioria das pessoas à mesa conosco são mulheres,
mulheres com muito dinheiro e visão. Mulheres inteligentes que
comandam seus próprios impérios, e elas confiam que nossa
ideia vai funcionar.
Ao nos despedirmos das pessoas, abraço Larissa e a
alerto:
— Estou imensamente grato por toda sua ajuda, Larissa,
você é uma excelente amiga. Mas é melhor que você não se
atreva a machucar a Anna de nenhuma maneira. Ela é o que
mais me importa neste mundo e eu sou capaz de tudo para
protegê-la.
— Eu já entendi, Lucca. Vou me manter bem longe da
Anna.
— Ótimo, fico feliz por podermos manter nossa amizade,
senhorita Crepaldi.

Acordo de repente com o celular tocando. Anna resmunga


algo em meus braços e tateio a mesa de cabeceira em busca do
aparelho. Atendo meio sonolento e ouço Anna dizer que são
quatro da manhã.
— Senhor Lucca Baltazi? Aqui é Edna, da Clínica de Olhos
da Santa Casa. Temos um doador para o senhor, precisamos que
venha para o hospital para realizar o transplante de córneas.
Não tenho certeza que estou mesmo acordado, ou isso é
um sonho.
— Senhor Baltazi? O senhor poderia vir ao hospital com
urgência?
— Claro! Claro! Estou à caminho.
Encerro a ligação e me sento na cama. Algo toma meu
peito, algo que não sei explicar, uma emoção tão grande, como
nunca senti antes.
— O que foi, Lucca? Onde você vai a essa hora? — Anna
pergunta preocupada.
— Anna — chamo seu nome e estendo as mãos, ela está
de pé à minha frente em segundos, segura minhas mãos. Me
deixo cair da cama, estou de joelhos em frente a ela agora. —
Case-se comigo.
— O quê?
— Por favor, Anna Maria, case-se comigo. Divida sua vida
comigo, me deixa ser o pai dos cinco catarrentinhos barulhentos
que vamos ter. Me deixa te dar meu sobrenome.
— O que está havendo? Você bateu com a cabeça ao
acordar? — ela pergunta, mas sua voz está emocionada.
— Era da Clínica de Olhos da Santa Casa, tenho um
doador. Chegou a minha vez, sou o próximo da fila.
— Ah, meu Deus!
— Amanhã à noite, vou olhar nos seus olhos e dizer o que
eu sinto por você, como tenho sonhado todos esses meses,
Anna. Mas por hora, diga que você vai se casar comigo.
— Sim, claro que vou me casar com você. Você tem um
doador, você vai voltar a ver, Lucca!
Ela se joga sobre mim, completando sua resposta com um
beijo apaixonado e logo nos desvencilhamos para nos
arrumarmos e irmos ao hospital. E mal posso acreditar que tudo
esteja dando tão certo assim.
Lucca já fez todos os exames
pré-operatórios e agora aguardamos em um quarto que tudo
esteja certo e a médica venha buscá-lo para a cirurgia. A doutora
responsável será a oftalmologista Paula Mercedes, segundo
Lucca, uma médica conhecida e renomada, especialista em
transplantes de córneas. Ela nos explicou que Lucca vai receber
apenas uma córnea, pois não é comum que pacientes recebam
as duas córneas de uma vez, assim, podem beneficiar dois
pacientes cegos ao invés de um. E o corpo de Lucca irá se
adaptar a uma córnea primeiro, que já permitirá que ele volte a
enxergar.
Lucca está tenso, não consegue ficar parado e mantém
esse sorriso no rosto que me deixa extremamente satisfeita.
A doutora Paula entra no quarto pela terceira vez e espero
ansiosa que tenha vindo buscá-lo, mas ela veio apenas conferir
se ele está bem. De novo. Ela o cobre de atenções e
informações repetidas e Lucca mantém esse sorriso e é gentil e
cordial com aquela que em horas irá operá-lo. Em nenhum
momento, percebo eu, a doutora atenciosa fala comigo ou parece
notar que estou aqui.
Isso é interessante. A Anna de poucos dias atrás surtaria
com tamanha atenção e quantidade de vezes em que ela toca
sua mão sem qualquer necessidade, mas a Anna de agora até
acha isso engraçado. Lucca é um homem lindo. Ele exala sua
beleza e sensualidade em cada poro. Na maneira como sorri,
como fala baixinho e gentilmente, como embola os dedos das
mãos, ansioso, esperando pelo grande momento. Não a julgo por
estar encantada por ele, mas a julgo por fingir não estar me
vendo aqui. A mudança é que a Anna de agora sabe que Lucca
jamais se envolveria com outra mulher que não seja ela. Ela
sente isso. E isso faz toda diferença.
— Você tem alguma dúvida, Lucca? — a médica pergunta.
— Na verdade, o meu noivo gostaria de saber a que horas
será feita a cirurgia — respondo por ele e finalmente a doutora
olha em minha direção.
— Não sabia que eram noivos, você não usa aliança.
— Ouviu isso, não ouviu, querido? Eu não uso uma aliança
— repito num tom mais alto.
Seu sorriso aumenta convertendo-se em uma risada baixa.
— Vou cuidar disso assim que sair desse hospital, meu
amor — ele promete.
— Acho bom. Você ouviu, certo, doutora? Ele vai cuidar
disso. — Ela está rindo de mim, mas finalmente se afasta de
Lucca. — E quanto tempo mesmo falta para a cirurgia?
— Estamos apenas esperando que a córnea chegue do
banco de olhos. Não deve demorar. A cirurgia dura em média
uma hora, é tranquila. Como eu disse antes, vamos transplantar
apenas uma córnea hoje. É um procedimento com poucos riscos,
a recuperação é rápida, vocês não têm o que temer — informa
deixando o quarto.
— Então você quer uma aliança... — ele provoca ao
ficarmos sozinhos.
— Geralmente, o homem dá a aliança à mulher quando a
pede em casamento.
— Mas como eu saberia que era minha vez na fila e que eu
voltaria a enxergar tão brevemente, minha doce noiva?
— Então você não me pediria em casamento se não fosse o
próximo da fila?
Seu sorriso diminui agora, lentamente ele nega com a
cabeça.
— Então seus sentimentos por mim dependem da sua
capacidade de ver ou não? — pergunto confusa.
Ele nega de novo e bate a mão no colchão, indicando que
eu me sente ao seu lado. O faço e ele segura minha mão
enquanto responde.
— O que eu sinto por você depende apenas de estar vivo. A
cada vez que eu respiro, eu sinto mais, Anna. Mas você sonha
com uma família grande e você nasceu para ter essa família. Vai
ser uma mãe maravilhosa! Eu nunca a pediria em casamento se
não tivesse certeza que sou cem por cento capaz de ajudá-la
nela. Que sou capaz de ser o pai de todas essas crianças e o
marido que você merece. E eu sei que um cego pode fazer
qualquer coisa, mas isso seria demais para mim.
— E se nunca chegasse a sua vez na fila de transplante? —
pergunto.
— Eventualmente você me deixaria para buscar esse
sonho.
— E se eu não o fizesse?
— Você faria. Se você não fizesse, eu jamais te diria para ir,
mas não a deixaria ao meu lado se não estivesse feliz, Anna.
Mas bem, isso ficou para trás, vou voltar a enxergar em breve,
teremos todos os filhos que você quer e nunca na vida vou me
afastar de você.
Aperto sua mão concordando, mas por dentro sinto um
medo pesar meu peito. Ele negaria o destino lindo que podemos
ter juntos porque uma vida feliz é algo que não suportaria se não
pudesse enxergar? Então todo o futuro que imaginei ao seu lado,
tudo o que ele sente por mim não é incondicional, nosso amor
depende de sua condição física. É uma pena que ele ainda não
tenha entendido que a felicidade não depende de condição física
ou financeira. Mas da condição emocional e espiritual.
— Sabe, eu poderia desistir de você — comento. — Você
dá muito trabalho. Já reparou que onde você vai as mulheres se
jogam em você? Ficar marcando território cansa, eu nem me
livrei da Larissa e já tem essa doutora atenciosa rondando o
quarto como um cachorrinho em volta de um frango assado.
Ele ri alto, leva minha mão aos lábios e mordisca de leve
meus dedos.
— Você não desistiria de mim, Anna. Onde mais você
encontraria vinte e três centímetros?
Seguro o riso e finjo pensar.
— No sex shop?
Ele ri ainda mais.
— Os vinte e três centímetros do sex shop viriam
acompanhados dessa língua viciada no seu gosto? Eles viriam
equipados com ouvidos que amam seus gemidos? Teriam dedos
que se divertem brincando em seu centro? Eu acho que não.
— Olha só você, nem voltou a enxergar ainda e já se acha
o centro do universo de novo. Já aviso de antemão que se voltar
a ser o Lucca de antes vou colocá-lo no seu lugar à base da
força.
— Eu adoraria vê-la fazendo isso, minha Anna. Aliás, eu
adoraria vê-la agora. De qualquer jeito, fazendo qualquer coisa.
Eu apenas adoraria vê-la. Quando os dias passarem e eu for
abrir os olhos, quero que você seja a primeira coisa que verei,
Anna. Porque você foi a última que eu vi antes do acidente.
— Do que está falando?
— Eu estava bêbado demais, senti seu cheiro no carro, vi
seu rosto quando senti o carro cair. Eu vi você por dias, sorrindo
para mim, me convidando a acompanhá-la. Então acordei no
hospital e tudo parecia tão real, que seu cheiro ficou impregnado
na minha mente por semanas. Seu cheiro era tudo o que eu
sentia. Você era tudo de que me lembrava por um bom tempo.
Aperto seus dedos nos meus e meu coração reage como
um louco.
— Você está falando sério?
— Cada palavra. Sabe essa doença que você sente? Que
deixa seu coração louco? Eu a senti primeiro, por você, Anna
Maria.
— Eu amo você, Lucca — sussurro.
— Ama, e promete aceitar as mulheres dando em cima de
mim pelo resto de nossas vidas — provoca.
— Eu prometo afugentar cada uma delas.
— Amor, eu vou adorar isso — ele responde com um
sorriso e o beijo.

Uma hora se passa e temo que algo esteja errado, já que


ninguém veio buscar Lucca ainda. Digo a ele que vou beber
alguma coisa, enquanto procuro pela médica. Ela parece agitada,
anda de um lado a outro, mas quando me vê, sorri e vem até
mim.
— Há algo errado? — pergunto preocupada. — Por que
está demorando tanto?
— Não, com o Lucca está tudo certo. Tivemos um problema
com o outro doador de hoje, mas a cirurgia do Lucca será em
breve. Não se preocupe.
Agradeço e volto ao quarto. Então avisto duas pessoas
paradas na porta. A julgar pela semelhança da mulher e da
criança, são mãe e filha. A menina tem longos cabelos negros e
usa óculos escuros. A mãe, uma mulher um pouco mais velha,
tem os olhos inchados como se estivesse chorando.
— Posso ajudá-las? — pergunto aproximando-me.
— Ah, boa tarde. É nesse quarto que está Lucca Baltazi?
Minha respiração falha por três segundos contados.
Observo a menina, ela deve ter uns oito anos. Se Lucca tem uma
filha perdida por aí eu juro que o mato. Procuro semelhanças
entre eles, mas além da cor do cabelo, não há nada.
— Sim — respondo entredentes. — O que vocês querem
com ele?
— Ah, me desculpe. Meu nome é Soraia Medeiros, essa é
minha filha, Samantha.
A menina tem um sorriso contido, tenho a impressão de tê-
la visto tremer levemente. Ela aperta a mão da mãe, como se
estivesse com medo, e isso me parece estranho.
— Samantha é a pessoa na frente do Lucca na fila de
transplante. Foi chamada com ele hoje aqui — Soraia explica.
— Ah, que bom! — digo, mas alguma coisa não parece
certa na expressão desesperada dela.
— Tivemos um problema com seu doador, a família
recorreu e não autorizou a doação, embora fosse sua vontade
em vida. Todos os pacientes que receberiam seus órgãos foram
mandados de volta para casa.
— Eu não sabia que isso era possível. — Lamento a
situação da criança por alguns segundos, até começar a
entender o que ela quer com Lucca. Samantha era a pessoa na
frente de Lucca na fila do transplante. Seriam duas cirurgias hoje,
a dela deu errado. A de Lucca não. Há uma córnea pronta para
ser transplantada neste hospital, a de Lucca.
Nego com a cabeça imediatamente.
— Tenho certeza que ela vai encontrar um doador em breve
— digo.
— Ela está na fila há um ano. Após anos de tratamentos,
lentes de contato, remédios e muita dor. Ela tem uma doença,
perdeu a visão rapidamente, nos dois olhos.
Continuo negando com a cabeça.
— Tenho certeza que em breve ela terá um doador. A fila
diminuiu, não é? Quem sabe o que pode acontecer amanhã?
Talvez ela não tenha que esperar mais um ano.
— Minha filha nunca foi à escola. Ela tem vergonha das
outras crianças, elas riem dela. Ela não se lembra qual é a cor do
céu. Eu tentei de tudo para que ela tivesse uma vida normal com
a perda da visão, como tantas outras crianças têm, mas ela
desistiu. Ela não quer aprender, não quer tentar. Não suporto
mais ver minha filha assim. Eu só quero um minuto com Lucca
Baltazi. Não vou forçá-lo a nada eu só quero vê-lo.
— Não — levo as mãos ao rosto, um desespero repentino
me tomando. — Não me peça isso.
— Por favor, só me deixe vê-lo, me deixe falar com ele por
um minuto. Prometo que só preciso de um minuto. Eu não vou
insistir, mas eu preciso ao menos tentar.
As lágrimas descem agora. A menina se encolhe
prendendo-se a mãe. Penso em Lucca, em como o encontrei em
Monte Verde, sozinho, escondido do mundo, achando-se um
inválido. Penso em como se limita e o quanto o incomoda que as
pessoas percebam esses limites. Olho essa menina, uma
criança, como a mente dela poderia lidar com algo assim?
Não respondo ao apelo de sua mãe, mas abro a porta.
Respiro fundo antes de fazê-lo. Lucca está de pé, andando de
um lado a outro.
— Ah, é você, Anna — me reconhece com um sorriso.
— Lucca, tem alguém aqui que gostaria de vê-lo — anuncio
e ele franze o cenho, provavelmente por conta do tom da minha
voz.
— Está tudo bem? — pergunta preocupado buscando
minha mão, mas faço um sinal para que Soraia entre.
Ela toca a mão de Lucca no meu lugar.
— Lucca, meu nome é Soraia. Estou aqui com a minha
filha, Samantha. Diga oi, Samantha.
— Oi — a menina responde baixinho, ainda se escondendo
na mãe. Sussurra algo como “não vai funcionar” e pede que a
mãe a leve embora.
— Lucca, minha filha era a pessoa na sua frente na fila de
transplante. Ela foi chamada hoje aqui para se submeter a
mesma cirurgia que você. Mas o doador dela... a família desistiu
de doar os órgãos. Minha filha tem oito anos, ela sofre de
ceratocone. Suas pupilas mudaram rapidamente por conta da
doença, tentamos todos os tratamentos e lentes e remédios e
nada impediu que perdesse a visão. Foi gradativamente, ela
enxergava embaçado, depois apenas vultos, apenas luzes e
agora não enxerga nada. Há pouco mais de um ano minha filha
não enxerga nada.
Lucca engole em seco e não diz nada. Soraia me encara,
percebo que isso é difícil para ela, mas decide continuar quando
Samantha pede:
— Vamos embora, mamãe.
— Lucca, minha filha não vive há mais de um ano. Ela só
fica em seu quarto, sua única companhia são as bonecas. Ela
não tem mais amigos nem vontade de viver. Eu tentei de tudo
para ajudá-la, até mesmo ajuda psicológica, mas ela não
entende, ela não se aceita. Como eu explico isso para uma
criança de oito anos? Como eu explico que ela é diferente das
amiguinhas porque Deus quis assim? Eu jurei que tudo ia dar
certo, que tudo ia ficar bem, mas ela chegou aqui e sua córnea
não estava... — ela respira fundo e continua. — A médica nos
mandou ir embora e esperar, de novo, na fila. Sabe-se Deus por
quanto tempo mais.
Soraia para de falar e chora. Lucca está parado, quieto, não
tem qualquer reação.
— Mamãe, vamos embora — a menina pede de novo,
chorando baixinho.
— Desculpe, Lucca, eu só queria vê-lo. Sei que não posso
te pedir isso, mas eu não seria mãe se não tentasse.
Lucca assente. Se vira de costas e leva as mãos à cabeça,
não consigo ver seu rosto e ele não diz nada por algum tempo.
— Você só está sendo mãe, Soraia. Não se culpe por isso
— diz enfim. — A gente faz o que pode por quem ama, não é
mesmo? Eu a entendo e é claro que a Samantha pode pegar
meu lugar na fila. Sua filha pode receber a córnea no meu lugar.
— Ah, obrigado, obrigado — ela repete emocionada.
A menina finalmente deixa a mãe e, com sua ajuda, abraça
Lucca. Ela chora e repete várias vezes sua gratidão. Estou
chorando também porque não é justo. Por que a família desistiu
de doar? O que vão fazer com essa córnea que poderia mudar a
vida dessa menina? Que teria mudado a vida do homem que eu
amo.
Me sinto em suspenso a partir de então. Soraia chama a
médica. A doutora atenciosa pergunta a Lucca repetidas vezes
se ele tem certeza que quer fazer isso.
— Você vai voltar para o final da fila, Lucca, tem certeza?
— Eu tenho. Estou abrindo mão do transplante hoje.
— Você é um ser humano admirável, Lucca. Samantha,
volte ao quarto, uma enfermeira irá auxiliá-la, seu novo amigo
acabou de te dar uma córnea nova.
Em um segundo, parece que tudo muda. O quarto estava
lotado, Soraia, Samantha, a doutora, duas enfermeiras, e de
repente, está vazio demais. Estamos apenas Lucca e eu. Ele tem
as duas mãos no rosto e chora. Ele grita.
Me aproximo cautelosa e o toco, ele se vira e me abraça,
me prende em seus braços.
— Você vai me odiar? — pergunta. — Me perdoa, Anna. Eu
tinha que fazer isso. Ela só tem oito anos, Anna! Oito anos!
— Eu sei, eu sabia que você faria. Era a coisa certa a se
fazer — garanto. — Você vai encontrar outro doador, em breve,
vai dar tudo certo, Lucca. Vamos passar por isso, vai dar certo.
Ele assente e me aperta mais forte. E começo a rezar que
isso se resolva o mais rápido possível de verdade. Porque uma
coisa era saber que ele estava na fila e um dia isso poderia
acontecer, mas outra é vir até este hospital para receber uma
córnea nova e voltar para trás sem ter ideia de quando outra
oportunidade dessa vai aparecer de novo. Vai ser mais difícil
para ele agora, tenho certeza.

Algum tempo depois, Lucca é liberado do hospital.


Enquanto dirijo ele permanece calado. Tento falar com ele,
animá-lo de algum jeito, mas ele sequer parece me ouvir.
Entendo que precisa do seu tempo e não insisto mais. Ao
chegarmos em casa, Leandro está confuso por nos ver tão cedo.
— A cirurgia já foi feita? — pergunta animado e Lucca
passa por ele direto, sem dar nenhuma resposta.
— Não foi, Lucca passou sua vez para uma criança de oito
anos. Ele voltou para o final da fila.
— Puta merda! — Leandro leva as mãos ao rosto, em seu
olhar, o mesmo medo presente nos meus. Medo do que vai ser
dele agora, de como vai reagir, do quanto isso irá abalá-lo.
— Pois é. Não sei o que fazer, Leandro, como eu o ajudo?
Ele parece tão perdido quanto eu.
— Eu também não sei, Anna. Eu nunca sei o que fazer com
ele.
Espero algum tempo e subo com algo para ele comer. Ele
está de pé, em frente a janela de seu quarto, no escuro. Acendo
a luz e digo que trouxe comida, mas ele não tem fome, porém,
aceita tomar um banho quando sugiro isso, nem sugiro a
banheira porque sei que essa dor ela não pode curar.
Ele toma banho enquanto arrumo sua cama para que
descanse. E durante esse tempo permanece calado. Sai do
banho, se veste sem minha ajuda, segura minha mão e diz:
— Obrigado por estar ao meu lado, meu anjo. Eu gostaria
de dormir um pouco agora.
Começo a temer que sua reação será afastar-se, se fechar
de novo.
— Claro, vou deixar você sozinho.
— Não, eu quero que você fique comigo. Por favor.
Um peso parece ser tirado do meu peito, sinto um alívio tão
grande, que ele enche meus olhos.
— Tudo bem. Deite-se, vou tomar um banho rápido, vestir
uma roupa sua e já me deito também.
Ele concorda e se deita e tomo um banho rapidamente,
apenas porque passei o dia num hospital, me juntando a ele em
seguida.
— Coma o lanche que você trouxe, Anna, você não come
nada há horas — ele pede.
— Não estou com fome — respondo e me deito em seu
peito. Ele acaricia meu cabelo e não diz mais nada. Seu silêncio
parece me fazer sentir sufocada, como um mal pressentimento.
— Eu nem saberia explicar o quanto estou orgulhosa de você,
Lucca. Se você tinha alguma dúvida do quanto mudou, do quanto
merece agora apenas as coisas boas... — digo e ele não
responde, não reage, nem sei se me ouviu. E depois disso não
dizemos nada, porque não há mais nada que possa ser dito.
Meus olhos começam a pesar, o sono vai me roubar em
breve e Lucca ainda está acordado. Mas não consigo evitar,
adormeço antes dele.

Quando acordo Lucca não está mais no quarto. Vou ao meu


e me arrumo o mais depressa possível, procurando por ele em
seguida, mas ele não parece estar em lugar nenhum. Alberta me
informa que ele levantou cedo e foi caminhar com Apolo. Talvez
isso seja bom, talvez uma caminhada o ajude a espairecer,
respirar, renovar sua fé. Espero ansiosa que volte, mas quando o
faz, em nada melhora minha ansiedade, ou ameniza esse meu
medo.
Ele continua calado, não quer ir à empresa, não aceita
atender Montenegro quando este entra em contato. Leandro me
pede que tenha paciência, Lucca sempre teve certa dificuldade
em não controlar sua vida. Por mais que tenha mudado, é uma
característica dele, ele precisa entender o que aconteceu, aceitar
e então seguir com a vida de novo.
Mas a noite chega e ele ainda não comeu nada. Está há
horas em seu quarto e não quer falar com ninguém. Ele não me
pede para sair quando entro, mas também não me responde,
penso que sequer me escuta e entendo que ele ainda precisa
ficar sozinho.
— Quanto tempo mais ele precisa para pensar? — pergunto
a Leandro durante o jantar.
— Acredite, sei o que você está sentindo, eu me senti assim
também após o acidente. Estou me sentindo assim de novo
agora. Falei com ele por vinte minutos mais cedo e ele nem
estava me ouvindo. Mas se serve de consolo, da primeira vez,
quando descobriu que estava cego, ele se tornou agressivo.
Culpava todo mundo, chorava muito, atirava coisas o tempo todo,
era impossível falar com ele. Ele só gritava e acusava quem quer
que se aproximasse. Acho que seu silêncio, por mais assustador
que possa parecer, é um bom sinal.
Assinto, tentando pegar um pouco dessa positividade de
Leandro.
— E depois? E depois que ele parou de acusar todo
mundo? Qual foi sua reação? — pergunto temerosa.
— Essa mesma que ela está tendo agora. Mas ele deixa
você entrar, Anna. Ele a recebe, reage a você de alguma forma,
então não será como antes. Ele está reagindo diferente agora,
ele tem você, ele vai deixá-la entrar — tenta me acalmar,
acariciando minha mão sobre a mesa, mas sinto que não. Lucca
não está me deixando entrar.

Estou em meu quarto, pensando se devo ir me deitar com


ele ou deixar que tenha seu tempo quando duas batidas soam na
porta e a voz de Lucca é ouvida lá fora.
— Anna, você pode vir aqui um pouco?
Imediatamente o atendo, o sigo até seu quarto, aliviada que
ele tenha procurado por mim. Leandro está certo, ele vai me
deixar entrar.
Ele anda até a janela onde tem estado por todo o dia, mas
se vira de frente para mim. Os óculos escuros cobrem metade de
seu rosto, ainda assim o vejo tão cansado! Abatido, fraco. Apolo
está deitado ao pé da cama e tem as orelhas caídas, me olha
com seus olhos enormes, mas sequer abana o rabo. Como se
estivesse triste também.
— Eu estive pensando, Anna, em tudo o que aconteceu.
Em absolutamente tudo. Você estava certa quando me mandou
aquela carta, meses atrás. Estava certa em cada palavra de cada
linha escrita nela. Eu paguei caro por cada erro que cometi, pela
pessoa que eu era, e parece que nunca vou deixar de pagar.
Acho que isso, essa paz, felicidade, isso não é mais pra mim.
Preciso me colocar no meu lugar.
Ele para de falar e respira fundo.
— Não entendo onde você quer chegar — digo baixinho.
— A lugar nenhum. É isso o que estou dizendo, não vou
chegar a lugar nenhum. Este é meu lugar, eu já deveria ter
entendido isso. Uma vez o Leandro me disse que não pagamos
pelos erros que cometemos apenas sentindo a dor. Ele estava
certo.
Me aproximo e pego sua mão, mas ele se afasta.
— Você sabe que isso é passageiro, não sabe? Você vai
encontrar um doador, vai recuperar sua visão. Não foi agora,
porque não era pra ser. Mas vai ser no momento certo. Eu acho...
— Pare, Anna, chega com essa condescendência e essa
falsa esperança que você nem tem mais! Chega disso! Estou
cansado de me banhar com isso por todos os dias só para dar
sempre com a cara no muro de novo. As coisas não vão mudar,
você não entende?
— Você mudou a vida de alguém ontem, Lucca, como pode
dizer que isso não acontece?
— Porque ela é uma criança! Não pode ter feito nada para
merecer o que estava passando. A vida estava sendo injusta com
ela e ela merecia sair disso. Mas sabemos que este não é o meu
caso.
— A vida tem sido injusta com você também!
— Tem, Anna? Tem certeza? Eu não mereci tudo isso que
aconteceu?
— Lucca...
— Essa é a diferença! Sabe, não podia ter acontecido nada
que me mostrasse isso de uma maneira mais clara! Eu mereci, é
a diferença. E não vai passar, não vai haver outro doador ou uma
fila que diminui magicamente em dias, porque eu não vou
recuperar a visão. Eu não mereço. Eu mereço pagar, Anna.
Me sento em sua cama e um suspiro cansado me escapa.
Lucca procura a direção da minha respiração, está de frente para
mim e de repente estou tão cansada quanto ele. Eu o entendo.
— Você está ouvindo a voz da dor, do medo, do desespero.
Acho que posso entender — digo a ele. — Quer dizer, não
entendo o que você está passando, não sei como reagiria se
estivesse em seu lugar, mas entendo o quanto é difícil para você
manter a esperança agora. Vai passar, Lucca. Você não tem que
ouvir a voz da dor para sempre.
Ele ri, não é um riso feliz, mas um riso debochado. Um riso
tão característico daquele antigo Lucca que por alguns segundos
não tenho reação.
— Por que você me chamou até aqui? — pergunto enfim.
— Para me dizer que você desiste?
Ele assente.
— Da empresa?
Ele assente de novo, mas completa dessa vez.
— Da empresa, de um transplante, de recuperar meus
bens, de você, de tudo. O advogado do Leandro vendeu os
imóveis e o dinheiro já está na conta da Atenas, vamos pagar
aos funcionários como prometido, certo? Deus me livre cometer
mais erros, quem sabe como vou pagar por eles? A casa de
Monte Verde não foi vendida porque eu quero dá-la a você. Ela é
sua.
— Não quero sua casa. Lucca, você está ferido, mas não
está sozinho. Estou com você. Sempre estarei com você —
prometo e me levanto, segurando sua mão de maneira mais
firme.
Funciona, ele não me afasta dessa vez, ao invés, as segura
de volta, as leva até o peito e diz:
— Você deve ir embora, Anna. Deve ir atrás dos seus
sonhos, do seu futuro. Eu não sou seu futuro. Não sou homem
para você.
Minhas mãos estão presas nas suas, em seu peito, onde
sinto seu coração batendo disparado, e assim permanecem
porque não tenho reação.
— Estou terminando nosso noivado, nosso relacionamento.
Estarei aqui por você sempre que precisar de mim, mas por hora,
você deve ir. Deve se afastar, se libertar de mim.
Ainda não reajo, mas a lança está aqui. A mesma de cada
vez em que ele ou todas as outras pessoas que passaram por
minha vida me mandaram ir embora. Aponta para o meu peito,
apenas esperando para entrar.
— É melhor para você ir embora, você entende? — sua voz
parece embargada agora. — Nunca vou ser homem para você,
Anna, não vou me casar com você, nem ter filhos com você
porque sempre estarei pagando, e se você estiver comigo eu
arrasto você para isso. Arrasto você para minha escuridão. Você
não merece isso, anjo, você é feita de luz.
Tenho a impressão que suas mãos estão tremendo, mas
não posso afirmar se é ele, ou eu. Meu corpo todo parece tremer.
Não consigo nem mesmo abrir os olhos agora, respiro fundo
tentando assimilar, mas não dá certo, não consigo.
— Você prometeu que nunca mais me mandaria ir embora.
Você disse que a escolha seria minha, mas você, Lucca Baltazi,
nunca mais me pediria para ir — recordo-o com o fiapo de voz
que consigo projetar.
Suas mãos estão tremendo, tenho certeza disso agora.
— Não sou um homem de palavra, então. Talvez eu vá
pagar caro por isso também. Mas eu sei, Anna, que vamos nos
encontrar de novo um dia e você vai me agradecer por isso. Vai
doer agora, mas você vai perceber em breve que foi melhor
assim, que eu estou salvando você. Você é a luz, preciso salvá-la
da escuridão que me cerca, Anna!
Solto suas mãos finalmente, rompo esse contato e sinto
tanta vontade de chorar. De me deixar cair nesse chão, como ele,
me entregar, desistir. Por um segundo eu quero implorar, quero
me impor e dizer que não vou deixá-lo, que é uma escolha
minha. Mas então olho meu reflexo no espelho. Não vou mais
implorar para fazer parte da vida de ninguém. Não vou mais pedir
para ficar. Eu prometi isso a mim mesma um dia, ainda assim,
quando ele me mandou ir embora fiquei parada, esperando por
ele, torcendo que viesse. Quantas vezes mais vou ficar à espera
de quem me manda ir?
Se Lucca está agora destinado a pagar por seus erros e
sofrer por eles, parece que eu estive desde sempre destinada a
ser sozinha. Então aceito, entendo, assimilo muito mais rápido
agora. Lucca dá um passo em minha direção, mas dou um para
trás.
— Você está me mandando embora porque as coisas não
saíram do seu jeito — acuso, a voz soando alta de novo. — E
quando algo não sai como o seu planejado, você desiste? Sério?
Você não planejou o acidente, não planejou o ano que teve, não
planejou levar um golpe do seu primo, perder a empresa, ficar
cego, mas aí está você. Vivendo tudo o que nunca planejou. Se
tudo o que você passou não serviu para você entender que a
vida não é como a gente planeja então nada mais vai te ensinar
isso. Nada vai, Lucca — as lágrimas descem por meu rosto, mas
não paro. — E cada vez que as coisas não saírem do seu jeito
você vai ter uma desculpa para me mandar embora. Você disse
que era meu para sempre, disse que era meu lar, mas você não
é! Você não é seguro!
— Anna...
— Você está certo! — digo mais alto. — Eu não tenho
mesmo que ficar. Não vou mais implorar para fazer parte da sua
vida. Adeus, Lucca.
Assim, deixo seu quarto e vou direto ao meu.
Meu quarto. Quase rio em meio as lágrimas ao pensar
nisso. Não tenho um quarto aqui, não tive um quarto em lugar
nenhum. Pego minha mala e jogo as roupas de qualquer jeito
nela. Sinto uma dor que me deixa sem ar, sinto medo e raiva.
Sinto muita raiva. E me sinto incapaz, vazia de novo. É ruim
quando você se sente vazia por toda sua vida, essa sensação de
que falta algo, que nada é o bastante, é angustiante. Mas ser
plena, completa, feliz e depois voltar a ser vazia é muito pior.
Ter aceitado esse emprego em Monte Verde foi um erro. Eu
devia ter ido embora, nunca devia ter voltado para a vida de
Lucca Baltazi, ele está certo. Ele é a escuridão, e não há luz que
vá conseguir tirar isso dele.

O dia está nascendo quando termino de arrumar tudo e


finalmente não tenho o que fazer. Não tenho nada para me
concentrar, nenhuma bolsa para socar, ou uma mala para bater e
descontar essa raiva que me toma. Então me deixo cair ao lado
da mala e chorar. Porque a dor precisa sair de algum jeito. Choro
toda essa dor, deixo que saia, me liberto dela. Vão ficar ainda
tantos outros sentimentos, o medo fica, a incerteza fica, a
impotência. Mas a dor não, essa vai sair agora. Não costumo
sofrer para sempre por aquilo que me machuca.
Quando as lágrimas não saem mais e nem sou capaz de
dizer se estou melhor, me levanto. Lavo o rosto, pego minhas
coisas e deixo o quarto. Nem olho na direção do quarto dele.
Leandro está na sala com Açucena e seu filho. Por um segundo,
ao olhar a criança correndo pela casa e Açucena exasperada
chamando sua atenção, me pergunto porque nunca terei isso.
— Anna, onde você vai? — Leandro pergunta assustado,
levantando-se.
— Estou indo embora. Obrigada por tudo, Leandro, você é
um amigo maravilhoso.
— Como você está indo embora? Embora para onde?
— Não sei, você sabe, onde o destino me levar.
— Anna...
— Ele quis assim! Ele me mandou ir embora e eu não vou
mais insistir pra ficar!
Ele olha para Açucena, é nítida sua preocupação, não sabe
o que dizer, porque não há o que ser dito.
— Tudo bem, você está certa. Mas Anna, e o Lucca? —
Açucena pergunta aproximando-se.
Dou de ombros.
— Ele não vai ficar bem comigo ou sem mim. Vou me cuidar
agora, ele sobrevive — respondo, mas a certeza em minha voz
não está em minha mente. Essa resposta me fere.
Leandro gagueja, passa as mãos pelos cabelos, abre a
boca para dizer algo, mas nada sai.
— Anna, eu sinto muito — diz finalmente. — Isso é um erro,
eu sinto muito.
— Venha para minha casa comigo, Anna. Vou adorar ter
você lá — Açucena pede.
— Não, mas obrigada, de verdade, Açucena. Eu quero ir
para longe. Vocês são ótimos e eu vou sempre ser grata por ter
vocês como amigos, agora não sou mais sozinha, não é? Não
importa o quanto me sinta assim — choro de novo, quando achei
que nem tinha mais lágrimas.
Leandro me abraça, Açucena faz o mesmo, até mesmo o
pequeno Miguel abraça minhas pernas. Me despeço deles e não
estava mentindo, vou mesmo ser sempre grata por ter amigos.
Pego minha mala, a bolsa e saio.
O sol está escondido atrás de nuvens, é um dia nublado.
Pego um táxi e peço que me leve até a rodoviária. Lá decido para
onde vou. O primeiro ônibus disponível para o próximo lugar será
meu destino. Deixarei que o acaso escolha.

Encaro a cerca de murta e o portão fechado diante de mim


e suspiro irritada.
— A vida não vai com a sua cara, Anna, definitivamente.
Deixo a mala ali e ando ao redor observando em volta. Está
frio demais para o pouco agasalho que uso, não está chovendo,
mas vai em breve a julgar pela noite feia, o céu escuro e liso,
sem estrelas. As montanhas que minha vista alcança não
remetem mais a paz, e sim a solidão. Volto para o portão e chuto
de novo a mala.
— Você nunca vai ter a merda da chave! Pule o muro,
Anna, entre pela janela, pule a cerca também, você nunca entra
pela porta da frente, nunca! — ralho com a vida chutando a mala.
Então me acalmo, respiro fundo e olho para o céu escuro.
— Sério, Deus? O primeiro destino do primeiro ônibus era
esse? O que você quer me dizer com isso?
Olho de novo esse portão e uma noite, meses atrás, vem
em minha mente. Quando pulei essa mesma cerca para acender
uma lareira.
— Bem, ao menos agora essa casa é minha. É isso o que
você quer me dizer? Que não vou ter outro lugar para chamar de
meu? Esse é meu lar?
Não há resposta, claro. Apenas o céu feio e escuro acima
da minha cabeça e esse frio congelando os ossos. Ainda assim,
irritada, confusa e cansada, jogo minha mala com dificuldade por
cima da cerca, em seguida a bolsa. A pulo então, sem
dificuldades, como poderia? Pego as coisas e sigo em direção a
casa. Pareço louca, mas quando a observo sinto que ela está
rindo de mim.
Entro por uma janela, amanhã vou pegar a chave reserva
que ficou com a Nathalia, abro a porta por dentro e vou direto
pegar lenha. A casa mais parece um freezer. Exatamente como
estava na primeira vez em que entrei nela.
Acendo a lareira enquanto reclamo:
— Uma criança é o que ele é. Se a gente parar cada vez
que algo não dá certo, vamos morrer parados no mesmo lugar.
Olhe para mim! O que deu certo na minha vida? Nada! Se eu for
pensar como Lucca Baltazi, não vai fazer sentido algum estar
aqui. O que estou fazendo? Sobrevivendo? Anna, você é uma
louca! É isso o que você é! — decido, mas não me importo.
Durmo aqui na sala mesmo, com a mesma roupa da
viagem, porque não tenho ânimo para nada.
Na manhã seguinte, vou ao mercado, pego a chave com
Nathalia, que também me entrega a escritura da casa e volto
para dentro dessa casa.

Uma semana depois, observo as montanhas pela janela da


sala. Aquela mesma janela onde ele passava cada hora dos seus
dias. Entendo agora porque ela era a preferida. O vento entra
diferente por ela, mais fresco, também dá para sentir os raios do
sol, ainda que fracos. Há o som dos pássaros lá fora, quase dá
para ouvir as montanhas. Fecho os olhos por horas aqui, me
pego vivendo como ele vivia. Sentindo tudo o que ele sentia, só
para me irritar comigo mesma em seguida e repetir a
necessidade que tenho de apagar Lucca Baltazi de mim.

Duas semanas depois, já estou mais calma. Aquela dor no


peito não existe mais, se tornou apenas um incômodo. Ela fica
aqui, pesando meu peito e está tudo bem. Posso conviver com
ela. O medo não existe mais, nem a incerteza, nem a raiva.
Porque eu me sinto apenas cansada. Ainda não procurei um
emprego, ainda não falei com ninguém. Decidi que essa vai ser
minha casa, é minha mesmo, também não vou ficar brigando
para devolvê-la. Se ele quis me dar, tudo bem, é minha. Não
importa o valor sentimental que ela tenha para ele. Vou ficar com
ela, ele que lide com mais essa perda.
Na terceira semana, percebo que ficar aqui não está me
fazendo bem. A minha vida toda as coisas deram errado e eu
soube lidar com isso. Me mudei quando foi preciso, não tive lar
quando não era para ter, raramente tive companhia e eu sempre
me virei. Nada do que me aconteceu me fez parar. Então por que
estou aqui chorando pelos cantos há três semanas? Por que ele
pareço não ser capaz de superar?
Vou procurar outra casa, algo que me permita seguir em
frente. Com certeza não vou fazer isso olhando para a cama dele
e lembrando da sensação de tê-lo em meu corpo. Não vou
superar enquanto observo os detectores do alarme de incêndio e
escuto seu barulho em cada vez que o ativei. Não. Eu preciso
sair daqui. Amanhã faço isso, amanhã vou voltar a ser a Anna de
sempre e voltar a agir. Nem que eu tenha que tentar por meses,
vou encontrar a vontade de viver de novo. Amanhã, porque hoje
só quero ficar aqui, nesta sala, deitada sem fazer nada.
Um barulho no quintal chama minha atenção. Confiro a hora
no relógio, são quase dez da noite. A casa fica afastada da
cidade, deserta, isolada, quem viria até aqui uma hora dessas?
Meu coração dispara, é um ladrão. Procuro por uma arma que
possa usar, o barulho está mais próximo agora. A única coisa
que encontro é uma tora de madeira que eu havia separado para
colocar na lareira. A pego com dificuldade por conta do seu peso
e a apoio no ombro. Aproximo-me da porta a passos leves, assim
que entrar por ela, vou acertar o ladrão na cabeça.
Mas ele não entra, escuto-o se mexer lá fora, procurando
alguma coisa, tentando não fazer barulho. Não aguento mais a
ansiedade em saber se ele vai ou não entrar, então abro a porta
e, antes que ele possa reagir, o acerto com a tora de madeira na
cabeça. Ele cai ao chão e sinto uma onda de adrenalina
percorrer todo meu corpo. É aí que vejo em sua mão uma
espécie de caderno. Me aproximo cautelosa e acendo a luz da
entrada. Então quase caio para trás. Ele está desmaiado, imóvel.
Abaixo-me em pânico e chamo por ele, giro seu corpo, mas isso
faz o sangue que sai de sua cabeça sujar todo seu rosto.
— Ah, meu Deus!
Me levanto de novo e corro para dentro da casa. Ligo para
a emergência, mas até que cheguem às montanhas ele terá
perdido muito sangue. Pego uma blusa limpa na minha mala, que
ainda está na sala, já que ainda durmo aqui, e percebo que, na
verdade, ela é de Lucca. Não me lembro de tê-la colocado aqui,
mas bem, vai voltar para ele. O seguro com cuidado e amarro a
blusa em volta de sua cabeça, numa tentativa de estancar o
sangramento. Apoio sua cabeça em meu colo e toco seu pulso,
mas não sinto nada.
Eu acabei de matar Lucca Baltazi.
Duas semanas atrás...
As batidas na porta me acordam de um sono conturbado.
Tento ignorar, mas elas soam mais fortes agora e mais
insistentes. Tão insistentes que o cão está latindo e puxando
minha coberta para que eu vá atender. Me levanto meio
atordoado e a abro.
— Você está horrível! — Leandro diz alto demais entrando
no quarto sem qualquer convite.
— O que você quer, Leandro?
— Quando bati na porta? Saber se estava vivo. Agora,
quero apenas ter certeza. Você não come há uma semana, não
sai deste quarto, não fala com ninguém, parece que não tem
tomado banho também.
Caminho até a cama ignorando-o, me sento sobre ela e
acaricio a cabeça do cão.
— Há comida na vasilha do cachorro, não há? — pergunto.
— Sim, mas...
— Há água também. Não entendo a sua preocupação.
— Não sabia que meu hóspede nesta casa era o cão e não
você. Apolo, gosto muito de você, querido, mas quero seu
humano fora desta casa — diz ao cão irritando-me.
— Leandro, não estou no clima para essas brincadeiras.
— Você mandou a mulher da sua vida embora. Abandonou
a empresa quando as pessoas que você prometeu ajudar mais
precisam de você. Vitor Montenegro acabou de me ligar aqui no
meu celular, para informar que seu prazo venceu e ele não vai
mais ser condescendente. Ele desistiu do investimento. Agora,
estou indo para a empresa porque um de nós precisa fazer isso,
mas o que devo dizer a eles, Lucca?
— Leandro... — ele não entende que não posso pensar
nisso agora?
— Agradecemos o sacrifício que vocês fizeram por nós, a
confiança que depositaram, mas o babaca do seu chefe mandou
a mulher embora e agora está se lamentando em uma cama há
mais de uma semana! Isso que eu deveria dizer?
— Por que você está gritando?
— Porque cansei de tentar falar! Você não ouve! Não está
pronto para uma conversa talvez esteja pronto para uma bronca
então. Eu vi você fazer isso um ano atrás, Lucca! Vi você se
fechar para o mundo, se prender a uma cama e lamentar. Em
que isso o ajudou?
Ele está certo. Em absolutamente tudo. Mas pensar nisso
faz minha cabeça doer, essa maldita dor aumenta conforme ele
fala. Me levanto finalmente em direção ao banheiro. Se ele faz
tanta questão que eu tome um banho, vou tomar. Mas antes que
consiga entrar no cômodo e me livrar dele, Leandro diz a única
coisa que me faria parar e ouvi-lo.
— Ela estava destruída. Os olhos tão inchados que mal se
podia vê-los. Ela chorou ao se despedir.
Paro onde estou e sinto a força nas pernas me abandonar.
Me apoio na parede e um nó se forma na minha garganta,
dificultando a respiração.
— Ela disse que sempre será grata por minha amizade,
mas não quis a minha ajuda — ele continua. — O problema é
que eu a amo, Lucca, ela é minha amiga. Aprendi a amá-la e
cuidá-la como a uma irmã e você a tirou de mim. Eu queria saber
onde ela está, porque com certeza não está bem, mas você me
privou disso também. Ela vai me cortar de sua vida porque eu a
faço lembrar do que mais a machucou.
— Sinto muito, Leandro — digo, não tenho certeza se ele
ouviu, porque minha voz está falha. É aquele nó na garganta.
— Você sente. Agora, me pego pensando na vida que a
Anna teve até aqui, depois de tudo o que ela passou, como você
se sente sabendo que foi você o acontecimento que mais a
machucou?
— Não fala isso, Leandro. Não fala assim. — Minha voz soa
embargada e só quero abraçá-la bem apertado até que tudo de
ruim que fiz a ela passe. — Anna vai ficar bem, eu fiz isso para o
bem dela, ela vai entender...
— Ela vai odiá-lo. Assim que a dor passar, que ela aceitar,
vai odiá-lo. Agora, vamos ser sinceros aqui. Você se tornou um
mimado que não sabe ouvir um não da vida, e admito que seu
último ano foi um inferno e você precisou se reinventar e se
provar de maneiras que eu não suportaria. Estou te dando os
créditos por sua luta, Lucca. Mas também vou apontar seus
erros, porque nada justifica ferir a pessoa que você ama só
porque você está ferido. A culpa não foi dela.
— Você acha que eu não sei disso? — grito voltando-me na
direção de sua voz. — Acha que não morri por dentro quando ela
saiu por essa porta? Que não me arrependi da merda que fiz no
mesmo instante? Acha que não passo cada segundo dos meus
dias me perguntando como ela está agora? Nada mais ocupa
minha mente além dela. Não há mais o cheiro dela no ar, não há
mais sua luz à minha volta, estou em um poço tão profundo que
temo nunca mais conseguir sair dele.
— Se você está me dizendo isso para que eu sinta pena,
não vai funcionar. Ela não foi embora porque quis, você a
expulsou. De novo.
— Eu prometi a ela que nunca mais a mandaria ir embora.
Isso era um limite para ela. Eu não ultrapassei meus limites por
ela, mas a obriguei a ultrapassar os dela. Eu a feri de tantas
maneiras...
Espero mais acusações, mas elas não vêm. Ao invés, ele
vem até mim e apoia a mão em meu ombro.
— É bom ver que você mudou de verdade, amigo. A dor às
vezes nos cega, eu entendo. Mas você, como bem sabe, é o
único que pode corrigir seus erros. Então continue aí, deitado
nesta cama, lamentando seu destino cruel e injusto enquanto ela
sofre. Ela vai sofrer até superar, até esquecer e depois vai te
odiar. E você terá conseguido o que queria, não é? Ela vai seguir
a vida dela.
— Você tem um jeito encantador de ser cruel, amigo.
— Ainda não acabei. Continue aí, desista de seguir, ou você
pode se levantar agora, porque você tem pouco tempo, Anna é
alguém que supera suas dores rapidamente, e tentar corrigir a
merda que você fez. E Lucca, eu nem sei dizer se eu torço que
você consiga.
Assinto. Minha cabeça está prestes a explodir, um zumbido
habita em meus ouvidos há uma semana, desde que ela fechou
a porta. Se assemelha ao som das rodas de sua mala quando foi
embora.
— Anna merece alguém melhor do que eu — digo enfim. —
Mas Deus me perdoe, Leandro, não posso viver sem ela. Não dá
mais, não consigo. Eu vivo sem enxergar, eu aceito isso, mas
não sem ela. A luz dela é essencial. Ela é toda luz que ilumina
meu interior, sem ela aqui dentro só há escuridão. Mas eu não
sei o que fazer.
— O que você está esperando então? — pergunta
afastando-se. Escuto seus passos e a porta sendo aberta. —
Estou indo para a empresa, todos estão se questionando sobre o
Montenegro e sequer faço ideia de que desculpa vou dar. Quanto
ao que você deve fazer, isso é óbvio, abra os olhos.
Ele fecha a porta ao passar por ela e me deixa aqui,
culpado além de perdido. Mas também decidido.

Chamar um táxi foi a parte fácil. Anna deixou o número da


cooperativa em uma das teclas de discagem rápida do meu
telefone. Dou o endereço da empresa e espero estar ao menos
apresentável. Tiro um petisco do bolso e o entrego a Apolo, ao
meu lado no banco. O taxista não reclamou por eu levá-lo, o que
agradeci, pois foi uma dor de cabeça a menos. Cumprimentei as
recepcionistas e o segurança ao chegar, a ideia do que dizer a
esses funcionários que contam comigo se moldando em minha
mente conforme os andares avançam.
— Me leve ao Leandro, Apolo — peço quando descemos do
elevador e só preciso seguir o cão.
Há um caos de vozes aqui, pessoas falam ao mesmo
tempo, apressadas, amedrontadas, mas todas se calam quando
bato com a bengala com força demais no vidro da porta.
— Opa! Ela está fechada — observo quando o barulho do
vidro se estilhaçando é ouvido.
Logo, Leandro está rindo. Um riso aliviado, conheço esse
riso.
— Bem-vindo de volta, Lucca Baltazi — ele diz e me ajuda
a chegar até um lugar seguro.
— Vou limpar esta bagunça, que bom que está de volta,
Lucca — Elaine diz animada.
— Sinto muito por isso, Elaine. Bom dia ou boa tarde, eu
não faço ideia de que horas são.
— Nove e meia agora, senhor — alguém responde.
— Nove e meia? Que horas você me acordou? Às oito? —
ralho com Leandro. — Infelizmente, perdemos o investimento de
Vitor Montenegro. O motivo? Eu, claro. Estou tentando melhorar,
mas isso não significa nem de longe que eu não vá fazer umas
merdas dessas de vez em quando.
As pessoas riem baixinho e me sento, abrindo os primeiros
botões da camisa porque pareço estar sufocando.
— Bem, precisamos de novos investidores. Conseguimos
acionistas nas últimas semanas, o que é maravilhoso, mas
sabemos que não é o bastante. Então, agora que o chefe babaca
de vocês estragou a melhor oportunidade que tinham, que ideia
vocês têm para consertarmos isso?
Primeiro, há o silêncio. O total e completo silêncio. Então,
todos começam a falar ao mesmo tempo. Um assovio de
Leandro é o bastante para eles se calarem.
— Eu tenho uma ideia. Um grupo de ricaços oferece todo
ano um baile beneficente famoso no Palácio da Liberdade —
Açucena diz.
— Já ouvi falar, prossiga.
— Se tivéssemos o presidente da empresa nessa festa
contando sobre suas ideias acessíveis de um novo roteiro de
viagens, poderíamos conseguir mais investidores. Você sabe, um
presidente cego, em busca de um programa de acessibilidade a
deficientes visuais. Eles não teriam como dizer não.
— Você quer que eu use minha condição para cativar
investidores? Açucena, você é brilhante! Nos consiga esses
convites, eu cuido do resto.
As pessoas deixam a sala de reuniões animadas. Apenas
Leandro fica, escuto quando arrasta uma cadeira e se senta ao
meu lado.
— Então você saiu da cama. E só depois desses anos
todos descubro que gritar com você ajuda mais do que falar —
ele comenta debochado.
— Ela merece alguém melhor — confesso. — Anna. Ela
merece alguém melhor do que eu. Então eu preciso ser melhor.
Não posso aparecer diante dela sendo o mesmo fracassado que
ela deixou aqui, o mesmo medroso e desistente. Não. Anna
precisa ser cuidada, amada, apreciada. Coisas que nunca teve
na vida. Preciso ser seu herói, seu companheiro, não seu carma.
— Você vai abrir mão dela então?
— Deveria. Não quero ser altruísta? Eu deveria. Mas não
vou. Ela precisa de alguém melhor e eu preciso ser esse alguém
melhor por ela. Não vou voltar a enxergar, Leandro, e não é
pessimismo, é só a realidade. Eu sou cego, esta é minha
realidade. Então tenho que viver sendo assim. Anna me fez
ultrapassar limites bobos por todos esses meses. Ela me fez
sentir normal, nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, eu
conseguia ter uma rotina com ela, uma rotina onde a visão não
era o essencial. E é isso o que tenho que dar a ela. Uma vida
normal, um relacionamento normal. Filhos, família, casamento,
rotina. É o que ela sonha, que merda de homem eu seria se não
fosse capaz de dar isso a ela? Mas eu sou cego, Leandro. Como
eu faço isso? Como eu faço tudo ser normal?
— Quem disse que você precisa? Anna não é alguém
normal, Lucca. Ela é peculiar, especial do jeito dela. Talvez
normalidade não seja o que ela precisa. Ela sempre esteve
pronta para começar uma família com você, sua deficiência está
mais na sua cabeça do que nos seus olhos, amigo. É bom ver
que você está se aceitando.
— Normalmente eu levaria anos preso aos meus limites
para finalmente amadurecer, mas quem precisa de tempo
quando se tem o amor? Foi no susto mesmo, na marra, mas foi.
Só que eu preciso convencê-la disso. E se tem alguém em quem
ela não confia agora, esse alguém sou eu.
Leandro ri baixinho.
— Isso tudo é tão você, que nem sei por onde começar,
Lucca! Você sempre quis o impossível, sempre almejou as metas
mais altas, os planos mais difíceis, as maiores conquistas. E
você foi lá e fez tudo, alcançou tudo, venceu tudo. Só faça o que
sabe fazer — ele diz e se levanta, deixando a sala e me deixando
sozinho nela.
E finalmente tenho uma ideia de por onde começar.

Alberta deixa seus afazeres e me acompanha. Ela fala


sobre a neta no caminho, uma criança ativa por quem ela parece
cada dia mais encantada. Andamos poucos quarteirões, Apolo
respirando ruidosamente ao meu lado, quando ela para e diz:
— É aqui. O senhor quer que eu fique?
— Não, minha querida, muito obrigado. Eu assumo daqui.
Alberta se afasta e me aproximo da porta, tocando o
interfone.
— Olá, gostaria de falar com Bruno Alencar Petri. É o
vizinho, Lucca Baltazi.
— Um momento — alguém responde.
Espero um pouco, ansioso com a conversa que terei, meio
temeroso também. Este é um passo grande demais que nunca
me imaginei dando. Um passo que não me preparei para dar.
Mas se é necessário o farei. O que tiver que fazer eu farei.
— Ah, Lucca, que bom finalmente conhecê-lo. Você é o
Lucca da Anna, certo? — Uma voz alegre soa atrás de mim.
— Sim, sou eu.
— Há dias ela não aparece. Está tudo bem com ela, eu
espero.
— Eu também. Você tem um minuto, Bruno? Preciso da sua
ajuda.

Dois cegos conversam em um banco qualquer por horas. O


som da bengala de Bruno batendo no chão está em meus
ouvidos nas duas últimas horas. É alguma mania dele ficar
batendo o objeto repetidas vezes sem parar. Mas eu tenho ao
meu lado um cão babão que parece soar um apito ao respirar, o
que também deve estar irritando-o, então não posso reclamar.
Depois de contar a ele toda a minha história com Anna,
inclusive as partes mais vergonhosas: o começo e o presente
dela, escuto sua própria história de vida. Uma criança que ficou
cega cedo demais, que mal se lembra das cores, que não está
na fila para um transplante de córneas, que venceu na vida,
construiu seu próprio patrimônio no ramo têxtil e é alguém
normal.
— Não entendo. A visão apenas deixou de fazer falta? —
pergunto confuso.
— Você tem tantas coisas para amar e apreciar na vida,
que deixa de perder tempo sentindo falta daquilo que não pode
ter. É tolice se prender a lamentações, Baltazi — sua voz é
calma, confiante, tranquila. Ele não é alguém mentindo para si
mesmo, tentando fazer as coisas parecerem melhores do que
são. Há sinceridade na maneira como fala.
— Você faz parecer tão fácil!
— Não é, não se engane. Nenhuma limitação é fácil,
nenhuma situação que você não tenha o poder de mudar é
facilmente aceitável. Nunca será. Eu queria poder ver meus filhos
com os olhos. Queria muito. Ao menos uma vez. Eu adoraria ter
visto minha mulher vestida de noiva. Mas eu a tenho todas as
noites na minha cama. E eu tenho três filhos lindos e saudáveis.
Não vou perder tempo lamentando o que não posso ver, quando
tenho tanto.
— E as tarefas mais simples que você não pode fazer? Isso
não te frustra?
— Não, eu faço tudo o que quero fazer. Sempre há um
meio, pode não ser do jeito mais fácil, mas há sempre um jeito. E
se há algo que eu realmente não posso fazer, eu não faço. Nós
não temos que fazer de tudo nessa vida, quem somos nós? Sabe
algo que minha mãe costumava dizer? Eu perdi a visão porque
sou capaz de viver sem ela. Se não fosse, não a perderia. É um
jeito rude de dizer que você tem aquilo com que você pode lidar.
Simples assim.
— No começo eu perdi muito tempo tentando entender. Por
que eu perdi a visão? Por que meu vizinho de quarto no hospital
perdeu as pernas? Agora entendo o que você diz. Não adianta
tentar entender, é só aceitar e viver.
— Acho que nós evoluímos espiritualmente, mentalmente,
bem mais rápido que esses outros, os normais — ele brinca me
fazendo rir. — Nós apreciamos até as coisas mais simples
quando não podemos vê-las, tocá-las, correr até elas. Coisas que
alguém fisicamente perfeito não vai aprender a apreciar. Por que
aprenderia? Não encare essa deficiência como um castigo, mas
como uma lição. Você vai aprender muito com ela, Lucca. Não é
o fim do caminho, é só um desvio. Não pude ver o gol que meu
filho fez ao vencer o campeonato escolar na semana passada.
Mas eu estava lá, eu vibrei com ele, ouvi a plateia gritando seu
nome. Ele correu até mim para comemorar. Eu poderia ser um
CEO com dois olhos funcionais que vive para o trabalho. E não
veria esse momento do meu filho porque estaria preocupado
demais com bens materiais. O homem que você vai ser, o pai
que vai ser, não depende de sua condição física, mas da mental.
Não pense que você não é capaz, pelo contrário, nós deficientes
somos muito mais capazes. Somos capazes de coisas que
pessoas normais nunca seriam. Nós somos extraordinários.
— E humildes também — brinco e ele ri. — Obrigado pela
conversa, Bruno. Foi muito bom conhecê-lo.
— Anna disse que eu ia adorar você. Muito esperta, a sua
Anna.
— Ela é, é a mais brilhante, inteligente e esperta mulher do
planeta.
— Então vá buscá-la.
— Eu vou. Obrigado, mais uma vez.
Nos despedimos com um abraço e me sinto feliz por ter um
novo amigo. Me sinto em paz de alguma maneira. Acho que ouvir
de alguém na mesma condição física que eu, o quanto sua vida
não é normal, mas é extraordinária, era tudo o que eu precisava.
Como Anna bem havia previsto.
— Ah, Anna. O que você está fazendo agora?

Na manhã seguinte, invado a sala de Leandro.


— Você quase quebra a minha porta com essa bengala,
precisa ter mais cuidado — ele ralha.
— Você deveria parar de deixar a porta fechada se sabe
que não posso vê-la. Agora me ajude. Preciso escrever algo.
Acho que sou capaz de escrever, mas ajudaria se houvesse
algum relevo na folha para eu saber quando mudar de linha. O
que você sabe sobre isso?
— O quê? Você está me pedindo um curso para cegos?
Cara, eu não sou cego — zomba. — Você quer um caderno de
braile?
— Ainda não, já me matriculei no curso, mas não tenho
esse tempo. Eu posso escrever, me lembro bem das letras, só
preciso de uma ajuda com as linhas.
— Vou resolver isso.

Ao final do dia, Leandro me presenteia com um caderno.


— Este não é de braile, mas é um caderno de pautas
ampliadas.
Ao deslizar os dedos pela folha posso sentir as pautas, são
bem marcadas.
— Maravilha. Você me trouxe uma caneta?
— Claro! Esta caneta precisa que você a pressione bem à
folha para funcionar, então você não vai conseguir identificar as
palavras que escreveu tocando-as, mas vai saber qual linha já
está escrita. Ela marca a folha conforme você a força sobre o
papel.
— Leandro, se um dia já te critiquei, não lembro, mas
prometo não criticar nunca mais — respondo pegando a caneta.
Escuto quando ele puxa uma cadeira e se senta. Escrevo a
primeira linha e ele ri alto.
— Que merda é “um babaca apaixonado”?
— Acho que você já pode ir. Se você conseguiu ler é
porque estou fazendo certo.
— Ah, não. Eu quero ficar.
— Tchau, Leandro, isso é pessoal, pode ir.
— E isso é toda gratidão que vou ter por meus esforços?
Não vou poder ler o que você vai escrever?
— Não vai. Tchau, Leandro.
Ele deixa minha sala resmungando e me pego rindo num
primeiro momento ao começar este pequeno livro. Quem diria
que um dia eu estaria aqui, no topo da cidade, na minha cadeira,
do prédio mais alto, no coração do centro, sentado em um fim de
tarde escrevendo um livro de romance para uma mulher?
— Você foi pego pelas bolas, Lucca — comento quando
começo o que espero seja o que vai convencer Anna a me dar
outra chance.

Uma semana depois, após dedos doloridos e muitas horas


de dedicação, finalizo meu primeiro e com certeza único livro.
Não posso ler o que escrevi, mas me lembro com exatidão cada
palavra, porque elas me fizeram conhecer meus sentimentos e
entendê-los de uma maneira assustadora. Constatar o quanto
amo Anna foi assustador. E também delicioso.
O coloco em minha mala e desço as escadas arrastando-a
pelos degraus, fazendo um barulho insuportável que com certeza
vai acordar Leandro. Ele chegou pela manhã, conversou comigo
em seu escritório um pouco e disse que ia dormir até a noite.
Mas não será possível.
Funciona. Não demora para ele descer ruidosamente as
escadas resmungando.
— Que barulho infernal é esse?
— Leandro, que bom que você acordou, preciso de uma
carona.
— Onde você vai com essa mala?
— Buscar minha mulher.
Ele ri, aproxima-se e dá dois tapas condescendentes no
meu ombro.
— Nós nem sabemos onde ela está. Vou te dizer o que ela
disse, deixe o destino me levar a algum lugar. Não temos como
saber, o celular dela está desligado desde então, como você vai
achá-la?
— Sei exatamente onde ela está.
— Isso, meu amigo, não é possível. Eu admiro esse novo
Lucca otimista e tudo, mas não vou rodar o país com você atrás
da Anna. Vou dormir, boa noite.
— Não sou o Lucca otimista, sou o Lucca apaixonado. Eu
sei onde a Anna está, eu sempre soube. Você pode, por favor,
parar de ser babaca e me dar uma carona? Eu não tenho
dinheiro pro táxi.
— Por que agora? Quer dizer, você decidiu que ia atrás
dela semanas atrás, por que só está indo agora?
— Porque eu não posso mais oferecer incertezas a ela.
Quero ser seu futuro. Não posso mais ter limites, não existem
limites, eu faço qualquer coisa pela felicidade dela e ponto. Não
posso me dar ao luxo de conseguir seu perdão para magoá-la de
novo por medo. Eu não posso mais sentir medo, Leandro. Eu
precisei desse tempo para aceitar e assimilar isso. Agora sim
posso ir atrás dela.
— Ela não vai recebê-lo. Você sabe disso, não sabe? Não
vai ser fácil.
— Não precisa ser. Anna vale qualquer esforço.
Ele respira fundo, acredito que esteja pensando em alguma
outra desculpa que possa me fazer desistir. Ele vai perceber
rapidamente que não há.
— Cara, eu quero muito dormir, mas vou me sentir muito
babaca se não levar você até ela. É muito longe?
— Nenhuma distância que seu carro não possa percorrer
hoje — respondo evasivamente.
— Isso devia me animar?
— Você vai me levar ou vai ficar aí fazendo perguntas?
— Tudo bem, vou vestir algo e já venho.
— Você está esse tempo todo falando comigo sem roupa?
— Você não está me vendo! Qual o problema?
— Você é desagradável, Leandro! Muito desagradável. Isso
é falta de respeito! Seu ridículo!
Ele sobe rindo e me pego irritado enquanto espero que ele
se vista.

Estamos há dez minutos no carro, o tempo que levamos


para sair do condomínio de Leandro, quando ele finalmente
pergunta:
— Para onde estamos indo mesmo?
— Monte Verde.
— O quê? — Ele freia o carro me fazendo dar um
solavanco para a frente. — Não vou à Monte Verde com você
ainda hoje! Vamos chegar lá tarde da noite, isso se o trânsito
contribuir!
— Esse horário está ótimo para mim.
— Lucca, você disse que ela está logo ali.
— Não disse, eu disse que era uma distância que seu carro
podia percorrer ainda hoje e vamos chegar ainda hoje. Claro, não
se você continuar aqui parado discutindo.
— Lucca, Monte Verde fica a quinhentos quilômetros daqui!
— Leandro, você sabe que vai acabar essa discussão
desnecessária fazendo o que estou pedindo porque você não vai
ser o otário que vai atrapalhar meu amor com a Anna, quando foi
você o otário que me mandou para a cidade onde ela estava,
contando que fôssemos nos encontrar um dia! Então acelere
esse carro e me leve até ela.
Ele está rindo baixinho quando liga o carro.
— Você devia me agradecer por isso, aliás. Se a Anna
perdoar você, e eu espero que ela dê muito trabalho, vou ser o
padrinho desse casamento.
— Então seja um padrinho melhor e acelere essa coisa,
você desaprendeu a dirigir?
— Cara, você é muito chato! Mandão! — reclama, mas
acha finalmente o acelerador. Em meu peito também há algo
acelerado, vou finalmente ouvir a voz dela de novo, sentir seu
cheiro, sua presença. Finalmente depois de três semanas vou
viver outra vez. Abro os primeiros botões da blusa que uso, não
importa a roupa que eu coloque, sempre pareço sufocar. Começo
a entender que não é a roupa.

— Não acredito que trouxe você até Monte Verde apenas


com a roupa do corpo sem ao menos avisar a ninguém. Você me
deve essa, Baltazi — Leandro reclama pela décima vez.
— Levando em conta que você veio reclamando pelas
longas últimas seis horas na minha cabeça e eu fui
extremamente bondoso ao não o mandar calar a boca, vamos
dizer que estamos quites, padrinho.
Seu riso baixo é ouvido e percebo que ele só está fazendo
isso para me irritar. Mas me presenteia com dois minutos de
silêncio finalmente.
— Obrigado por esse minuto de silêncio, Leandro —
provoco.
— Ah, claro! Depois de seis horas de viagem apenas com a
roupa do corpo, finalmente tenho sua gratidão.
— Vai perdê-la se continuar reclamando.
— Estamos chegando — ele informa. — Você está
ansioso? Nervoso? Com medo?
— Estou com saudade. E com um pouco de falta de ar
também.
Ele para ao carro no alto da rua, o clima aqui é diferente do
resto da cidade, é ainda mais frio. Ao abrir a porta do carro e
descer, percebo como senti falta do vento frio das montanhas
sobre a pele. O som da minha mala sendo colocada no chão é
ouvido e Leandro diz:
— Você que entrar sozinho primeiro ou podemos entrar
juntos?
— O quê? Você não vai ficar aqui! Preciso da noite sozinho
com ela.
— E para onde eu vou? — pergunta indignado.
— Para um hotel, uma pousada, uma pensão. Durma no
carro no meio da rua, eu não ligo. Você só não pode ficar aqui!
— É inacreditável! E o cachorro?
— Vai com você — respondo e me volto para atrás ao ouvir
o choro de Apolo. — Você volta com o Leandro, amigão. Não
chore, não seja chantagista, eu também sinto a falta dela. Mas
tenho que precisar da ajuda dela, se você estiver comigo, vai
atrapalhar que ela precise me ajudar, você entende? Enfim, eu
sei que entende, vai com o titio e se comporte, amanhã nos
vemos. — Tiro o último petisco do bolso e dou a ele, acariciando
sua cabeça.
— Dirijo por seis horas e ainda viro titio do cachorro
enquanto o bonitão vai transar a noite toda, eu mereço! —
Leandro resmunga como uma velhinha com dores de
reumatismo.
— Você já pode ir, Leandro. Apenas abra o portão para mim
e pode ir. — Ouço quando, ainda resmungando, ele abre o
portão, deposita a chave na minha mão com força desnecessária
e caminha a passos ruidosos até a porta do carro. — Leandro,
muito obrigado.
— De nada, Lucca, de nada! Estarei por perto para o caso
de ela não abrir a porta e você precisar ir para o meio da rua
comigo.
— Agradeço, mas não é necessário. Anna vai me receber.
— O que eu faço amanhã? Volto para a capital?
— Não, espere um sinal meu para o caso de ela não me
receber você me levar de volta.
Ele ri, ri alto, abre a porta do carro e escuto quando a fecha.
Arranca com o carro em seguida e localizo a mala, respirando
fundo antes de abrir o portão e ir atrás da mulher da minha vida.
Arrasto a mala com cuidado, não faço ideia de que horas
são, Anna provavelmente está no quarto, dormindo e não quero
assustá-la. Vou abrir a porta e chamar seu nome da sala. Acordá-
la suavemente. Caminho a passos lentos, abro mais dois botões
da blusa, ainda pareço estar sufocando, acho que o medo do que
está por vir atrapalha ainda mais minha respiração.
Sei que vou encontrar uma mulher ferida, magoada, com
raiva e com razão. É uma combinação perigosa demais para um
homem enfrentar sozinho. Mas um sacrifício pequeno demais
para um homem apaixonado. Vou deixar que desconte em mim
toda sua raiva, sua ira, sua mágoa. Que desabafe, me acuse e
extravase a dor. Então irei cuidar dela, consolá-la, amá-la. Ela
não vai me perdoar fácil, mas não vou desistir. Tudo o que sei é
que não vou desistir.
De repente tropeço em um desnível próximo a porta de
entrada e caio com tudo no chão.
— Merda!
Antes de me levantar, procuro o livro que escrevi para ela,
me certificando que não rasgou na queda, então escuto a porta
da frente sendo aberta e o cheiro dela me atinge. O cheiro dela
preenche tudo em um segundo e não há mais falta de ar. De
repente me sinto completo de novo, feliz, como se a esperança
voltasse a me tomar e, do nada, algo acerta minha cabeça com
força e perco os sentidos.

Minha cabeça dói. Muito. A sinto latejar. Estou deitado em


algum lugar nada confortável e o sinal de uma sirene muito
próximo parece fazer essa dor na cabeça aumentar. Onde estou?
Onde está Anna?
— Anna? — chamo baixinho e ela segura minha mão.
— Estou aqui, está tudo bem, estou aqui.
Abro os olhos devagar e sinto o cheiro de Anna. Estou
deitado, mas meu corpo para estar em movimento. Sinto
pequenos solavancos sacudindo-o e fazendo a dor na cabeça
latejar.
— Onde eu estou?
— Em uma ambulância, mas está tudo bem — Anna
responde agitada.
— Por que estou em uma ambulância? Ai! — Tento me
mover, mas minha cabeça dói muito.
— Porque eu acertei você com uma tora de madeira na
cabeça. Com muita força — há culpa em sua voz e demoro um
pouco a entender o que aconteceu.
— Você o quê?
— Sinto muito!
— Sente muito? Anna, você tentou me matar?
— A culpa é sua! — acusa irritada. — Não se entra na casa
das pessoas assim!
— Ah, claro! Falou a puladora oficial de janelas. Quantas
vezes mesmo você fez isso comigo?
— Foi diferente!
— Diferente em quê?
— Vocês são um casal? — Uma voz que não conheço
pergunta, me atentando para o fato de que há mais pessoas
conosco nessa ambulância.
— Sim — respondo imediatamente ao passo que Anna
responde junto comigo:
— Não!
— Entendi tudo. Estamos chegando ao hospital, senhor
Baltazi. O senhor já será atendido.

Após alguns exames e muitas especulações de um médico


desconfiado, finalmente sou medicado e a dor chata na cabeça
começa a ceder. Curiosamente, percebo quando a dor já está
fraca, que não sinto mais falta de ar. Anna está aqui comigo,
sinto seu cheiro, ouço sua respiração, reconheço sua presença
no ambiente. Está calada demais e busco algo que possa dizer
para fazê-la falar comigo, quando passos são ouvidos no quarto
e o médico diz:
— O senhor tem uma concussão, senhor Baltazi, por conta
da pancada. Não é nada grave, mas é estritamente necessário
que se mantenha em repouso nas próximas horas. Posso
perguntar como isso aconteceu?
— Ela tentou me matar — respondo para provocar Anna,
que praticamente engasga com o ar ao meu lado.
— Não é verdade! Não diga isso! Doutor, eu só estava me
defendendo.
Estou rindo baixinho e o médico prossegue:
— Então não devo chamar a polícia?
— Acho que deve — provoco.
— Não! Foi uma confusão, não é necessário envolvermos a
polícia — Anna responde mais firmemente e após alguns
segundos de silêncio e meu riso baixo, o doutor percebe que não
deve mesmo chamar a polícia.
— O senhor vai receber alta em breve, senhor Baltazi, mas
precisa saber que é possível que apresente alguns sintomas nas
próximas horas como náusea, tontura, confusão mental, perda de
memória, zumbido nos ouvidos, sonolência, dor de cabeça e falta
de coordenação. São sintomas cognitivos e são comuns devido a
pancada que o senhor recebeu na cabeça. Mas, se achar que
está demorando a passar ou se os analgésicos não surtirem
efeito contra a dor, o senhor pode voltar aqui.
— Obrigado, doutor.
Ele deixa o quarto e provoco Anna.
— Você ouviu o que ele disse, não ouviu? Você tentou
mesmo me matar.
— Lucca, pare com isso, eu não tentei matar você! Eu nem
vi que era você. Mas, apenas para que saiba agora que não há
testemunhas, se eu tivesse visto que era você teria batido com
mais força.
Consigo segurar o riso, amo minha pequena bruxinha. Finjo
sentir algo, me contorcendo na cama.
— Lucca, está tudo bem? O que você tem? Lucca? — Anna
se aproxima imediatamente.
— Quem é você?
— O quê? — a voz dela beira o desespero.
— Onde eu estou? Quem é você?
— Lucca, pare com isso. — Ela sobe na cama comigo e
segura minha mão, apertando-a em seu peito. — Sou eu, Anna,
sua Anna. Você não se lembra de mim?
Há mesmo um certo desespero em sua voz e decido parar
de assustá-la.
— Anna — chamo baixinho, de forma que ela mal escute e
ela aproxima o rosto do meu para me ouvir melhor. Sinto seu
movimento na cama, sinto sua respiração mais próxima. Tenho
pouco tempo, enfio as mãos em seus cabelos e puxo seu rosto
de encontro ao meu, beijando-a finalmente. Dura alguns
segundos, alguns deliciosos segundos em que ela corresponde e
me sinto de novo no paraíso. Mas então ela se afasta irritada e
desce da cama.
— Você está fingindo? Você é ridículo! Eu vou embora
agora mesmo e vou deixá-lo sozinho aqui!
— Você não pode, Anna!
— Estou indo embora! — repete convicta, movendo-se pelo
quarto.
— Você não pode, você ouviu o médico, eu preciso de
repouso nos próximos dias. Vou ficar com você para que possa
cuidar de mim.
— Não vou cuidar de você! E ele não disse dias, disse
horas!
— Tenho certeza que disse dias. Você não pode ir, precisa
me levar para a casa.
— A casa que você me deu, ela agora é minha e você não
pode ficar nela!
— Por que não?
— Porque eu não quero!
— Você não pode fazer isso, Anna.
— Já estou fazendo, não sei como você veio parar em
Monte Verde, mas sugiro que pegue o mesmo caminho de volta
para a capital, não vou mais me preocupar com você.
— Anna, você não pode ir. Não pode me deixar sozinho e
me negar abrigo. Sou só um cego, você acabou de tentar me
matar, tenho uma concussão na cabeça por sua causa, você
danificou o meu cérebro!
— Quem dera eu o tivesse consertado!
— Se você for embora e não me der abrigo vai para o
inferno, você sabe disso, não sabe? Não se nega abrigo a um
cego. Você ainda tem zero noção de como agir com um
deficiente.
— Lucca, você...
Ela para de falar porque alguém está rindo. Há duas
pessoas aqui, escuto duas risadas diferentes.
— Vocês são muito engraçados! — é a mesma paramédica
da ambulância. — O médico assinou sua alta, senhor Baltazi. A
enfermeira vem logo para ajudá-lo. Não temos mais pacientes e
nenhuma emergência, vim perguntar se vocês precisam de uma
carona.
Ouço Anna respirar fundo para se acalmar antes de
responder:
— Sim, por favor.
— Os levo para a casa onde os pegamos? — a paramédica
pergunta divertida.
— Sim, por favor — Anna responde entredentes e me pego
rindo baixinho, o que resulta em um xingamento não tão baixinho
dela.

Entro a passos lentos com Anna me apoiando, já que me


sinto realmente meio tonto. Quando ela abre a porta de entrada,
me lembro de algo.
— Anna, o livro, onde está o livro?
— Acalme-se, não fique agitado assim. Está comigo, eu o
peguei quando a ambulância chegou e o guardei na bolsa. Está
aqui.
— Você o leu?
— Não, não ia ler uma coisa sua sem sua permissão.
— Não? Desde quando?
Ela ri baixinho e me guia até a sala. Fico feliz por ainda
reconhecer este lugar, por saber exatamente onde estamos,
como é à minha volta. Me sinto em casa de novo, em um
ambiente familiar. Tropeço em algo antes de chegar ao sofá e em
seguida piso em uma coisa mole que parece ser um pano. Anna
me acomoda com cuidado e parece andar de um lado a outro.
Pouco depois, a escuto arrastar sua mala de rodinhas pelo piso
da sala. Percebo que há uma coberta no sofá e enquanto ela
acende a lareira, tateio em volta apenas para confirmar minhas
suspeitas, também há travesseiros aqui.
— Pronto, logo o cômodo vai aquecer. Vou arrumar sua
cama e acender a lareira do seu quarto. Você está com fome?
Quer comer alguma coisa?
— Por que você está dormindo na sala, Anna? Por que não
está usando seu quarto? Ou o meu?
— Eu não... eu não entrei no seu quarto ainda, não deu
tempo — mente. — E eu não quis dormir no meu, eu só quis
dormir aqui, não há um motivo.
Há mágoa em sua voz. Não está dormindo nos quartos
porque tem lembranças neles. Mas também há lembranças neste
sofá. Ouço sua respiração acelerada e me levanto em um
rompante, na esperança de apenas abraçá-la, mas me sinto
tonto e ela me ampara rapidamente.
— Não tente se levantar, você deve fazer repouso.
Minha cabeça gira e ela me guia de volta ao sofá, mas
passo meus braços em volta de seu corpo, mantendo-a perto de
mim.
— Me desculpe, Lucca, pela concussão. Eu não queria
machucar você. Na verdade, eu queria, ainda quero, mas não
assim, não fisicamente.
— Eu sei, meu amor.
— O que você veio fazer aqui?
— O que você acha? Me desculpar, me humilhar se for
preciso. Eu vim porque não posso mais ficar sem você, eu vim
pedir perdão. Vim levá-la de volta.
— Lucca, eu não vou voltar com você. Não posso mais
fazer isso.
— Não, eu sei que não pode, você não tem motivos para
confiar em mim.
— E não confio. Não confio nada em você.
— Eu sei, anjo, eu mereço isso. Mas por favor, me escuta.
Por favor, o livro, leia o livro. Ele é seu, é para você.
— O livro que estava em sua mão?
Ela se afasta e permito, porque imagino que vá pegar o
livro.
— Espero que não tenha danificado muito quando caiu, em
nenhuma das vezes que caiu.
— Não, amassou um pouco algumas folhas e sujou um
pouco de sangue.
— Sujou de quê?
— De nada! O livro está perfeito!
Sorrio. Um pouco da tensão se vai.
— Como eu senti sua falta, Anna! Eu sei que não mereço,
mas se você puder me fazer o favor de ler este livro, eu ficaria
muito grato.
— Eu vou ler, parece que é minha noite de te fazer favores,
não é? Mas primeiro vou buscar algo para você comer e vou
acomodá-lo no seu quarto. Depois, quando você estiver bem e
dormindo eu vou ler seu livro, tudo bem?
— Só vou ficar bem quando tiver você de volta.
— Lucca, isso não vai acontecer, então por favor, não fale
assim.
— Como você está? Como tem passado essas semanas
aqui?
— Bem, estive mal, mas agora estou bem. Como você me
achou?
— Eu não precisei procurar, Anna, eu sempre soube onde
você estaria.
— Eu não estava aqui esperando por você. Você me deu
esta casa, ela é minha. Estou aqui porque seria tolice ir para
qualquer outro lugar.
— Eu sei e você está certa. Esta casa é sua, você devia
mesmo tomar posse dela. Eu sou seu também, meu coração é
seu, minha alma, meu corpo, cada pensamento e cada batimento
cardíaco...
— Vou pegar um lanche para você — ela me corta e se
afasta e começo a rezar que a ideia do livro funcione.

Após comermos algo e Anna me levar até o quarto, ouço o


crepitar do fogo quando a lareira é acesa.
— Onde está o Apolo? — ela pergunta.
— Em uma pousada com o Leandro.
— Então ele te trouxe.
— Ele não sabia onde estávamos indo até estar dentro do
carro. Ele ficou bastante irritado.
Ela ri, escuto sua risada e preciso parar por um momento
para apreciá-la. É como se algo se aquecesse e trouxesse luz
por toda a profundidade de onde me encontro agora. Tiro a blusa
e a calça, escuto Anna se mover arrumando a cama e, quando
seus movimentos cessam, solta um palavrão.
— Por que você está nu?
— Porque vou tomar um banho. Me sinto cansado e sujo,
foram horas de viagem, dois encontros com o chão, dois
passeios de ambulância e uma visita a um hospital. Preciso de
um banho.
— Vou deixar você sozinho para que possa ficar à
vontade...
— Anna, você sabe que posso ficar tonto no chuveiro e cair,
não sabe?
Ela se aproxima bem devagar, passa por mim sem me tocar
e liga o chuveiro. Escuto o som da água.
— Por que eu acho que você está me manipulando? —
pergunta ao voltar para o quarto.
— Juro que não.
— Você já pode ir tomar o seu banho, acredito que ainda
saiba o caminho — ela avisa.
— Onde você vai estar?
— Perto o bastante para levantá-lo se você cair.
— Me sentiria melhor se estivesse perto o bastante para
não me deixar cair — respondo enquanto caminho até o
chuveiro, sentindo-a mover-se atrás de mim.
— Eu me sentiria melhor se você não tivesse me mandado
embora, mas quem se importa com nossos sentimentos, não é
mesmo?
Me viro para trás e ela esbarra em mim, a prendo então em
meus braços.
— Eu sinto muito, Anna, sinto muito, meu amor — peço
baixinho beijando seu cabelo. Mas ela fica em meus braços por
pouco tempo, sequer tenho a chance de respirar seu cheiro ou
acariciar seu cabelo quando ela me afasta.
— Entre na água, Lucca.
O faço, não posso forçá-la a nada. A água quente é bem-
vinda, já que me sinto desconfortável, cansado, dolorido.
— Anna? — chamo para me certificar que está dentro do
banheiro, e ela responde. Sim, ela ainda está aqui dentro comigo.
— Tudo bem, só queria saber se ainda estava aqui, pode
continuar aí observando meu pênis.
Ela respira fundo, como que tentando se acalmar, por fim,
responde:
— Ah, Lucca, estou cansada demais para começar uma
discussão quando estou mesmo observando. Acabe isso, o dia
está nascendo e não tenho todo o tempo do mundo.
Sorrio, sinto o sorriso em sua voz ao final da frase. Tomo
banho com movimentos lentos, ela resmunga, me apressa, mas
ri. Ela ri, me pego rindo também e rimos como dois loucos por
nada em especial. Rio porque estou feliz por estar de novo perto
dela. Meu riso é a paz que ela traz, o amor que me toma, o alívio
por estar com ela.
Me visto em seguida e deixo que ela me acomode na cama.
Seguro sua mão antes que se afaste e tento de novo:
— Onde você vai dormir? O sofá é desconfortável, anjo.
— Não é da sua conta.
— Anna, por favor, leia o livro. Por favor.
— Eu vou ler. Prometo que vou ler.
Assinto e a deixo ir. Ela disse que o dia está nascendo.
Deve estar cansada, com sono, abalada por minha chegada
repentina e tudo o que aconteceu depois. Então só me resta
rezar que leia mesmo o livro e rezar que ele sirva para ela
entender o quanto a amo. E que isso acalme sua mágoa, cure
suas feridas e ajude com que ela me dê uma última chance.
Deixo Lucca em seu quarto e enquanto desço as escadas
até o meu novo quarto, me pergunto o que estou fazendo. A essa
altura eu já deveria saber que tudo relacionado a Lucca Baltazi é
um erro, mas bem, eu quase o matei, e minha consciência jamais
me permitiria não o deixar ficar hoje. E a bem da verdade, há
algo em meu coração que está genuinamente feliz por tê-lo aqui.
Algo que está extasiado, em paz, aliviado de novo. Isso devia
servir para me mostrar mais uma vez o quanto é um erro deixá-lo
ficar.
Me acomodo em minha nova cama: o sofá e pego o livro
que ele tanto insistiu que eu leia. É um caderno comum, possui a
capa dura toda preta, mas, quando abro a primeira página, algo
em meu peito parece parar. Há um título escrito à mão:
Um babaca apaixonado
Por Lucca Baltazi
É a letra de Lucca. De forma meio bagunçada, mas
seguindo corretamente a pauta, é a letra dele. Passo a folha e a
próxima está completamente escrita, assim como a próxima e a
próxima. Folheio o caderno apenas para confirmar que ele todo
está escrito. Ele todo contém sua letra, Lucca escreveu um livro.
Me pego rindo, maravilhada ao constatar isso. O quanto de seus
limites ele ultrapassou para fazer isso?
Me ajeito no sofá e começo e a ler.
Um charmoso e egocêntrico babaca, que até poucos meses
fora o dono de seu mundo, passava seus dias no topo da cidade,
no ponto mais alto. Achando-se superior a todos os outros. Um
homem que vivia por seu dinheiro, para apreciá-lo, ostentá-lo e
aumentá-lo, sem valores ou sentimentos reais. Um coitado,
cercado por pessoas tão vazias quanto ele, mas sempre sozinho.
Até que um dia o destino lhe dá uma sacudida, em uma boate
qualquer, em uma noite como qualquer outra, bastou apenas um
olhar para que todas aquelas pessoas sumissem. Não havia mais
música, dança, bebidas ou amigos.
Havia ela.
Os lindos cabelos marrons eram como as montanhas, os
olhos cor de mel brilhantes eram como um adorno em um rosto
perfeito. Havia algo além de beleza nela. Esse babaca conhecia
muitas mulheres belas, mas nenhuma como ela. Talvez fosse seu
ar inocente, a alegria em seu rosto ou a pureza naqueles olhos
cor de mel. Ela foi a única mulher que o fez perder o fôlego. E a
única que não olhou em sua direção uma vez sequer. Talvez seu
ego tenha se sentido desafiado por sua indiferença ou talvez sua
necessidade de tocá-la fosse tamanha, que não deu a ele outra
escolha.
Ele a beijou. Assim, do nada, por nenhum motivo aparente.
E ela conseguiu estragar todos os outros beijos que ele já dera
na vida.
Essa é minha história, um babaca apaixonado.
Um babaca completamente apaixonado por você, Anna.

Por mim. Não é apenas o quanto ele superou limites para


escrever este caderno, ele o fez para mim.
Termino as primeiras cinco páginas, lendo aquilo que já sei
de cor, aquilo que vivi, aquilo que escrevi uma vez para Effie,
sendo contado pelas palavras dele. É diferente conhecer os dois
lados de uma história, ainda mais algo que você viveu. O sol está
escondido atrás de nuvens, me levanto e subo na ponta dos pés
até seu quarto. Ele está dormindo de barriga para baixo, o que
não é comum dele, provavelmente por conta da dor onde o
golpeei.
Me aproximo cautelosa e adiciono mais lenha à lareira, o
cubro direito e deixo seu quarto. Eu deveria dormir, me sinto
cansada e Lucca vai ser um hóspede trabalhoso durante o dia,
tenho certeza disso. Mas o que possuo em minhas mãos é
incrível demais para que eu consiga deixar de olhá-lo agora.
— Vou ler só mais duas folhas — decido satisfeita.

Com você a normalidade se torna algo mágico, o simples é


extraordinário. Cada dia é um presente e amar é tão natural
quanto respirar. Porque eu a amo, amo cada detalhe de você.
Tanto os que posso imaginar, os que sou capaz de lembrar e os
que consigo tocar. Eu amo você. Foi preciso não poder mais abrir
os olhos para que eu enxergasse meus sentimentos. E para ouvir
seu amor mais uma vez eu passaria por tudo de novo. Eu
fecharia os olhos para sempre se isso a fizesse permanecer ao
meu lado.
Com você não sou cego, posso vê-la com as mãos, quando
toco sua pele macia, contorno suas curvas e a tenho em meus
dedos. Posso ver seu sorriso, quando seus lábios estão nos
meus e você sorri, vejo o contorno, a forma, a música nele.
Posso ver você, mais do que todos veem, porque a vejo por
dentro, eu a conheço por completo. Quando você está nua sobre
o meu corpo, seus seios pressionados em meu peito e seu
coração dança com o meu. Sinto suas batidas em meu peito, eu
a vejo como nunca pensei ver ninguém, como nunca enxerguei
nada. Será que mais alguém sabe o ritmo em que seu coração
bate quando está saciada? Ou quando adormece tranquila? Ou
sabe dizer que você está bem pelo ritmo da sua respiração?
Porque eu sinto você, meus sentidos se conectam com os seus,
eles dançam juntos.
Eu não estou aqui para ser um exemplo, um filho dedicado,
um CEO de sucesso ou um homem com uma deficiência. Estou
aqui unicamente para amar você. Este é o meu propósito, dar a
você o lar que não teve, o amor que não conhece, a paz que
deseja, a segurança de que necessita. Estou aqui por você. Me
perdoa se demorei a entender isso, se deixei que a minha dor se
tornasse a sua. Me perdoa por quebrar minha palavra e mandá-la
ir. Não foi de coração, no fundo eu estava desesperado que você
ficasse, que me dissesse que não me deixaria nunca, por motivo
nenhum. Mas você não tinha como saber isso, é meu dever
cuidar de você e não o contrário. E eu deixei que a dor falasse
através de meus lábios só para feri-la.
Como eu previ, você levou a minha vida com você. Levou
toda a alegria, a paz, a música, a luz. Ficou apenas esse poço
profundo em que me escondi e a saudade que não me deixou
dormir um dia sequer. Ficaram esses dias cinzas, os dias
comuns, e para um cego como eu, as cores com que você
preenche meus dias são o paraíso.

— Anna, você está bem? Anjo, por que está chorando? O


que houve?
— Lucca? — Olho para cima ao ouvir sua voz e ele está
aqui, assustado. Não sei há quanto tempo estou lendo este livro,
meus olhos se derramam e, aparentemente, o acordei.
— Eu a ouvi chorar, o que houve, meu amor? É porque
estou aqui? Você quer que eu vá embora? Anna, não chore, eu
vou embora.
— Não, eu... você escreveu isso? Escreveu todo esse livro?
Quem o ajudou?
— Você. Eu escrevi todo esse livro, espero que minha letra
não esteja muito ruim.
— Está um garrancho — confesso e ele sorri.
— Você me ajudou. Isso é apenas o que sinto, tudo o que
foi possível colocar em palavras. É por ele que você está
chorando? Você ainda não dormiu? Anna, você deve estar
exausta. Vem aqui.
Ele estende os braços e se aproxima.
— Mas faltam apenas três folhas. Eu preciso terminar de
ler.
— Você gostou então?
— Você me escreveu um livro. Eu amo livros. Esse foi um
golpe muito baixo.
Ele abre aquele sorriso lindo. Tira o livro da minha mão e o
deposita no sofá, ao meu lado. Toca gentilmente meu rosto,
secando as lágrimas.
— Vamos dormir, meu amor. Você precisa descansar um
pouco.
Deixo que ele me levante, que me pegue no colo e me leve
em direção as escadas.
— Você não devia estar me carregando. Teve uma
concussão, e se ficar tonto?
— Vamos cair os dois escada abaixo.
Rio alto, afundando o rosto em seu pescoço, me sentindo
assim, tão bem, tão feliz.
— Isso deveria me acalmar?
— Apenas alertá-la, se sentir que estou sem equilíbrio, pule
dos meus braços e se salve.
— E você?
— Estou disposto a rolar escada abaixo por você.
Continuo rindo, mas ele sobe as escadas sem dificuldades.
Me leva até seu quarto, me acomoda em sua cama e se deita ao
meu lado. Não preciso de convite, me acomodo em seu peito,
ouço seu coração, sinto seus braços à minha volta. O cheiro do
seu corpo, seu calor. É meu lar de novo. Mas não é seguro. Não
é para sempre.
Escolho não pensar sobre isso agora. Fecho os olhos e em
segundos, depois de tantos dias, adormeço.

Se eu achava que Lucca seria um paciente trabalhoso,


definitivamente não estava preparada. Ele tem sido insuportável.
— Anna, estou me sentindo tonto — comenta pela décima
vez, mas já conheço seu jogo. Está fingindo para eu me
aproximar e ele me abraçar. Fez isso mais duas vezes hoje, me
prendeu em seus braços provando que estava apenas se
aproveitando do meu pequeno golpe em sua cabeça.
— Se vira, não vou mais cair nessa — respondo e sigo em
frente, mas escuto um barulho e quando me viro, Lucca está no
chão. — Ah, meu Deus!
O ajudo a levantar-se com dificuldade e o acomodo em sua
poltrona preferida, a mais próxima a nós, por conta de seu peso.
— Você está bem?
— Você me deixou mesmo cair? Quase me mata e me
deixa cair?
— A culpa foi sua! Fingiu tantas vezes que estava tonto que
não acredito mais em você.
Ele leva as mãos à cabeça e começo a me preocupar que
esteja piorando ao invés de melhorar. Toco seu rosto e tento
ajudá-lo de alguma maneira, acalmá-lo, ou apenas mostrar que
embora o tenha deixado cair, estou aqui por ele.
— Pra você ver que apesar das suas certezas ainda há
verdade em mim — provoca baixinho, está sentindo dor.
— Vou pegar um remédio para você.
O faço tomar um remédio e me sento ao seu lado, no braço
da poltrona. Ele tem um sorriso que não entendo no rosto.
— Sabe uma coisa legal? — pergunta. — Eu amo você.
Muito mesmo.
Meu ar falha por um segundo, mas consigo controlar essa
respiração traiçoeira e dar a resposta que ele espera após
perguntar vinte vezes se terminei de ler o livro.
— Lucca, o livro que você escreveu foi a coisa mais linda
que alguém já fez por mim. E eu sei que nunca mais na minha
vida alguém vai fazer algo como isso por mim. E sim, eu perdoo
você.
Seu sorriso é tão lindo que quase desisto de falar, mas não
posso. Precisamos deixar as coisas claras. Observo seu rosto
que tanto admiro, essa beleza impactante, mais do que ela, a
beleza da pessoa que ele é. A verdadeira pessoa que ele é. Mas
ainda sinto aquele medo no peito travando a coragem de arriscar
de novo.
— Mas não confio mais em você. Não o bastante para
termos de novo um relacionamento.
Seu sorriso some. Desde que chegou a Monte Verde ele
não tem usado os óculos. Ele fecha os olhos agora e mais uma
vez quase desisto e volto atrás. Mas não posso.
— Eu não vou confiar de novo em você. Nunca. Você me
machucou de uma maneira que parece que nunca mais vai sarar.
— Anna...
— Não, me deixe falar. Eu sempre fui sozinha, sempre. Em
cada dia. E mesmo quando eu tive um relacionamento, eu ainda
era sozinha. Presa no meu mundinho, nas minhas loucuras, nas
minhas ilusões bobas. Um marido, uma família grande, eu não
vou ter isso, Lucca! Eu nasci para ser sozinha. É sobre aquilo
que você falou, sobre ser destinado a algo.
— Não diga isso, não pense nisso, era a dor falando eu não
penso de verdade nada daquilo.
— Mas você estava certo. Alguma coisa morreu em mim
naquela noite, Lucca e isso não pode ser revivido. E eu amo
você, amo muito, desesperadamente. Eu olho para você e só
quero me atirar em seus braços e esquecer de tudo, mas não
posso fazer isso comigo. Porque eu confiei em você, mais do que
meus planos ou meus dias, eu confiei a minha vida a você. Eu te
entreguei tudo, sem qualquer reserva e você me destruiu.
— Anna, por favor não...
— Não posso, Lucca. Não dá. Há algo aqui em meu peito e
cada vez que você se aproxima demais, isso me sufoca. Como
um lembrete que você me destruiu porque eu dei esse poder a
você e não vou fazer isso de novo. Eu sempre fui sozinha, eu
aprendi a me virar, eu nunca sofri mais do que o necessário por
nada que passou pela minha vida, por ninguém. Mas você é
difícil de superar, você parece impossível de esquecer e eu não
vou mergulhar de novo no mesmo mar onde sei que não é
seguro. Não vou mais me afogar. Preciso cuidar de mim porque
ninguém mais vai fazer isso.
— Anna, eu...
— Você não vai! Eu acreditei que fosse, mas você não é
seguro. E não tem que ser meu protetor, eu preciso me cuidar
sozinha. Não posso depender de você. Não posso depender de
ninguém.
Ele sorri. Seu corpo treme levemente, sua postura agora
está caída, eu o destruí também e não me sinto bem por isso.
Não me sinto bem sabendo que basta uma palavra minha para
que ele volte a ficar bem, feliz e não a estou dizendo. Parece
errado. Esse sorriso triste em seu rosto está errado.
— Você sabe se cuidar sozinha, Anna. Você sabe se virar
muito bem. É a mulher mais inteligente, viva e corajosa que
conheço. Mas isso não quer dizer que você precise se cuidar
sozinha para sempre. Não quer dizer que seja ruim alguém a
amar tanto, que queira fazer isso por você, só para você ser feliz,
para não precisar ficar se perguntando do que precisa se
proteger agora. Não é errado que alguém cuide de você para que
você possa apenas viver. Acho que a magia do amor é isso. É o
conforto, a proteção, o lar que ele proporciona. Mas eu entendo.
Eu realmente a entendo e você está certa. Eu precisava dizer
que a amo e tentar, mas você não tem que confiar em mim de
novo, não há motivo para isso, não é? Esta é sua resposta final?
Abro a boca para confirmar, mas minha voz não sai. É
preciso que eu feche os olhos, respire fundo e encontre essa
coragem que ele tanto elogia para responder:
— Sim.
— Se esta é sua resposta final eu entendo. Não vou insistir
mais. Fico feliz que tenha me perdoado.
Eu deveria estar satisfeita por sua aceitação, segura por
não ter que passar mais pela tortura de suas tentativas. Mas não
me sinto assim. Me sinto vazia, quebrada. Errada.

À noite, ele está tirando a roupa quando entro no quarto.


Paro na porta por um segundo, admirando seu corpo de costas,
recuperando o fôlego, tentando agir como alguém normal.
— Por que estou sempre tentando agir como alguém
normal perto de você? — me pergunto baixinho e ele responde:
— Única e exclusivamente porque você quer assim. Eu amo
sua loucura, e se formos ser sinceros ainda estou nesta casa
depois do seu fora só porque você danificou o meu cérebro, o
que quer dizer que você não age como alguém normal, só perde
tempo tentando agir.
— Você é irritante, sabia? Assim que melhorar desses
sintomas deve ir embora.
— Eu irei, não se preocupe, Anna, não pretendo tomar
muito do seu tempo. Agora, se você puder, por gentileza, abrir o
chuveiro eu agradeceria.
— Você sempre soube abri-lo, por acaso desaprendeu? —
resmungo, mas sigo em direção ao banheiro para fazê-lo. Só
porque me sinto culpada pelo curativo em sua cabeça agora.
— Estou tendo dificuldades com minha coordenação
motora. Apenas por isso estou pedindo que você abra.
— Ah, me desculpe — não sei se ele está mentindo ou não.
Olho seu rosto em busca de um sorriso cafajeste que indique a
pegadinha, mas não há nada.
Quando meus olhos se desviam do seu rosto, caem direto
em seu pênis, descansando ali, entre suas pernas, e diferente
daqueles dias em que eu o observava com a imaginação a mil,
agora sei exatamente como é tê-lo dentro de mim. A sensação
de quando me preenche, quando invade minha boca, seu gosto
em minha língua. Estou ficando louca!
Passo por ele e ele entra no banheiro, tem um sabonete
nas mãos, entro logo atrás apenas para me certificar sobre sua
coordenação motora, se estiver falando a verdade vou ligar para
o médico imediatamente. O sabonete escorrega de sua mão e
instintivamente me abaixo para segurá-lo, mas Lucca se vira e
toco seu pênis. O solto rapidamente, mas agora já senti sua
textura macia e firme em meus dedos. Agora já senti seu calor e
peso. Agora já me sinto hiperventilar enquanto esse babaca tem
um sorriso satisfeito no rosto.
— Devo admitir que seu serviço de hospedagem tem
benefícios muito bons. Você vai continuar isso ou devo
prosseguir sozinho? — pergunta calmamente.
— O quê?
— Você vai... deixa para lá, você não quer mais fazer isso
comigo, eu faço sozinho — responde e toca o pênis, apertando
entre seus dedos, descendo-os por sua extensão bem devagar.
Acompanho seus movimentos vidrada, sei que devo sair
daqui, mas não consigo. A pele desce com seus movimentos e
sua cabeça está mais exposta, em destaque, me fazendo salivar.
Lucca geme baixinho e estou mordendo os lábios com força
demais.
— Anna, ah, Anna — sussurra com olhos fechados,
enquanto acelera os movimentos e meus olhos conseguem se
desprender do seu pênis para irem até seu rosto. Até sua boca
levemente aberta, até seus gemidos roucos. Dou um passo em
sua direção, quase não posso me controlar.
Quase.
Volto a mim quando seu celular toca uma música estridente
e saio correndo. Seja quem for ao telefone preciso agradecer por
ter me salvado de cair em tentação.

Quando Lucca termina o banho e já está vestido, subo com


algo para ele comer.
— Te trouxe algo de comer — anuncio entrando no quarto e
ele sorri.
— Que gentileza a sua, Anna.
— Mas acho que depois da ceninha no banheiro, você não
merece.
Ele fica um tempo parado, esperando, por fim, um
sorrisinho irritante surge em seu rosto.
— Você vai me servir ou vai ficar aí se lembrando do meu
pênis? Não responda, você vai me servir, é uma boa menina e
me causou um dano físico na cabeça. Então, antes de me dar
sua sopa, me prometa que não cuspiu na minha comida.
Sorrio de volta. Lucca tem um jeito especial de me irritar. É
incrível como é fácil cair em seu jogo, me envolver em sua
conversa fiada e fazer justamente o que ele espera que eu faça.
— Prometo que não cuspi na sua comida — respondo
baixinho, docemente, seu sorriso aumenta, me aproximo dele e
viro a tigela de sopa em sua cabeça. — Está muito quente?
Perdão se estiver.
O líquido desce por seu rosto, suja todo seu cabelo e a
roupa que acabou de vestir. Ele permanece parado, não diz
nada, não briga, ao contrário, exibe um sorriso tranquilo.
— E agora vou precisar tomar outro banho — finge
lamentar. — Você pode ligar o chuveiro por favor, Anna? Vamos
começar tudo de novo.
Respiro fundo sentindo-me completamente irritada e
tentada também. Saio de seu quarto batendo os pés e escuto
sua risada enquanto desço as escadas para o mais longe
possível dele.

Estou me aprontando para dormir quando ele aparece. Usa


uma camiseta que deixa seus braços à mostra e uma calça de
moletom. Consigo ver perfeitamente o contorno de seu pênis
pela calça. Ele não está usando boxer. Abro a boca e seguro o
riso. Lucca sabe provocar, irritar e causar todo tipo de
sentimentos em mim. Ele estava certo, me conhece até mesmo
do avesso.
— O que você está fazendo, Lucca? — pergunto quando se
senta ao meu lado no sofá que se tornou a minha cama.
— Você sujou a minha cama e vou dormir aqui.
— Não é necessário! É só trocar o lençol, podemos fazer
isso em três segundos — explico rapidamente e me levanto, mas
ele aproveita minha ausência para achatar meu travesseiro e
deitar a cabeça nele. Em segundos ele está deitado no sofá, os
olhos fechados, nem um pouco disposto a se levantar. — Lucca,
por favor, venha comigo.
— Você pode me cobrir? Não achei o cobertor — responde
sonolento e dorme.
— Você está brincando comigo! — ralho e me aproximo,
chamo seu nome baixinho, toco seu rosto e ele realmente está
dormindo.
Sua respiração está calma, contínua, ele dormiu.
— Ah, Lucca! Que merda! — ralho aos sussurros sentindo-
me derrotada.
Ou eu durmo com ele nesse sofá, ou em sua cama, já que
teria que ir lá fora pegar lenha para acender a lareira do meu
quarto e está frio demais. Ele sabia disso, ele sabia que eu não
iria lá fora. Completamente irritada, o cubro sem o menor cuidado
e subo para seu quarto. O babaca trocou o lençol da cama. Ela
está limpa e pronta para ser usada. Me jogo sobre ela irritada,
me cubro com sua coberta e tudo o que sinto é seu cheiro
quando fecho os olhos.

— Quando você vai fazer o almoço? — ele pergunta de sua


poltrona enquanto estou limpando a sala na tarde seguinte.
Por um momento me pego rindo baixinho, isso me é tão
familiar que me faz sentir algo estranho, como um conforto no
peito. Poucas vezes vivi situações de rotina familiares.
— Quando você pretende ir embora? — retruco.
— Amanhã pela manhã. Tenho um baile importante para ir
amanhã, Leandro virá me buscar.
— Ah — é tudo o que consigo responder. Ele vai mesmo
embora. Apesar do quanto me irrita e provoca, não estava
mentindo quando disse que aceitou minha resposta final. — Não
vou fazer o almoço. Se quiser comer, faça você.
Ele se levanta, pega a bengala e vem em minha direção.
— Se tiver algo em meu caminho dos seus produtos de
limpeza, por favor me avise para que eu não tropece. Acho que
você ainda pode impedir que um cego se esborrache no chão,
não pode, Anna?
— Não tenho certeza — respondo e isso o faz sorrir.
Ele passa por mim e segue em direção a cozinha. Fico me
perguntando o que está tramando, quando ele para e chama:
— Se você não quiser que o alarme de incêndio seja
ativado por um motivo real, é melhor vir comigo e me avisar se
eu estiver prestes a colocar fogo na cozinha.
— Você vai mesmo cozinhar? — minha pergunta soa
estridente, quase como um grito, tamanha minha surpresa.
— Bom eu vou tentar. Vamos torcer que dê certo —
responde e segue pelo corredor, fazendo aquele gesto com a
mão que me irritava, sem ao menos olhar para trás, mas me
fazendo segui-lo como um cachorrinho.
Ele toca tudo o que há na geladeira. Reconhece os
ingredientes tocando-os ou sentindo seu cheiro, os que não tem
certeza confirma comigo o que é. Não faço ideia do que vai fazer,
mas observo admirada enquanto ele procura pelos utensílios
com calma, encontra o que procura e coloca tudo sobre a
bancada da ilha. Ele pega o pimentão e quando vai cortá-lo mira
a faca na direção do dedo, me fazendo dar um salto da cadeira.
— Não! Acho que essa parte eu devo fazer para você, para
evitarmos mais acidentes — explico e tiro a faca de sua mão,
respirando aliviada.
— Claro, vamos evitar que eu me machuque e precise ficar
mais dias, quem quer isso, não é? — provoca. — Se vai cortar os
ingredientes, corte-os bem pequenos e tire a pele do tomate. Eu
percebo as sementes e a pele nele, só para que saiba.
Resmungo algo que o faz rir enquanto ele passeia pelos
armários, tocando panelas, conhecendo-as, medindo seus
tamanhos com as mãos. Quando me dou conta estou parada, as
mãos no ar, a boca aberta, admirando o quanto ele está
tentando. Percebendo que seus limites não estão sendo
lembrados aqui.
Ele encontra a panela que procura e a leva ao fogão. Me
pede ajuda com alguns temperos, acende o fogo, temo que vá
queimar a mão e o oriento. Ele consegue colocar o macarrão
para cozinhar.
— Não estou ouvindo você picar, Anna, isso já está pronto?
— pergunta parando ao meu lado e deixo a faca de lado me
lançando sobre ele.
— Você está cozinhando. Como alguém normal, você está
agindo como alguém normal, não está mais preso aos seus
limites. Lucca, isso é maravilhoso!
Ele me abraça de volta. Seu rosto afunda em meu pescoço,
ele aspira meu cheiro, beija minha pele e diz baixinho em meu
ouvido:
— Meu único limite é viver sem você. Só isso não posso
suportar, no mais, não existem limites, Anna.
Ele encosta a testa na minha e sinto tanta falta dessa
proximidade que não consigo me afastar. Ainda não.
— Achei que tivesse dito que havia desistido de tentar —
lembro.
— Nunca. Eu nunca disse isso, eu disse que entendo a sua
decisão, não que desisto de você. Isso nunca. Desistir de você
seria desistir de viver, Anna. Eu posso ser o marido que você
procura, posso ser o pai dos seus cinco catarrentinhos, nós
podemos começar a fazê-los agora mesmo.
— Você... — minha voz falha. Penso que estou sonhando
isso. — Você está pronto para ser pai? Mesmo que não possa
enxergar esses filhos? Está pronto para ter uma vida normal?
— Normal, não. Estou pronto para ter uma vida
extraordinária ao seu lado. Sim, posso ser o pai dos nossos filhos
e você não vai ter que cuidar de mim e deles, eu vou ajudar você.
Vou me esforçar, me superar, vou fazer tudo o que qualquer
homem faria, vou fazer melhor do que qualquer outro homem
faria. Porque eu a amo, Anna. Porque por você não tenho mais
limites. Este sou eu, seu Lucca, CEO de uma agência de viagens
quebrada, não possuo nenhum bem material, sou cego e sou seu
futuro marido.
São meus lábios que buscam os seus. Meus lábios buscam
esse contato desesperadamente. Me sinto derreter de novo e de
alguma forma, a Anna líquida está em chamas agora. Suas mãos
me cercam e me prendem ao seu corpo. Seu beijo é delicioso,
intenso, seguro. Nossas línguas rapidamente se embolam. Só se
separam quando ele interrompe o beijo e diz baixinho:
— Tire a faca de cima da ilha se não quiser que um
incidente ocorra.
Sorrio, tiro a faca depressa e também minha blusa. O ajudo
a tirar a dele e logo nossos corpos estão juntos de novo. Sua
pele quente na minha, seus braços à minha volta, tocando-me
possessivamente, carinhosamente, me tirando o juízo. Lucca se
abaixa um pouco, segura minhas pernas e me suspende,
colocando-me sentada sobre a bancada da ilha. Ele se encaixa
entre minhas pernas e nos beijamos. Dessa vez o beijo dura
pouco, parece que nos sentimos desesperados por um contato
mais íntimo, mais intenso. Lucca desce os beijos por meu
pescoço e logo encontra meus seios. Os suga sobre o sutiã, me
arrancando gemidos. Preciso de mais do que esse contato. Tiro o
sutiã e sua língua finalmente alcança meu mamilo. Ele o
mordisca de leve, chupa com força, brinca com ele. A textura de
sua língua molhando minha pele.
Lentamente, empurra meu corpo fazendo-me deitar sobre a
bancada enquanto tira minha calça e a calcinha. Suas mãos
sobem por minhas pernas, as pontas dos dedos, lentamente, os
toques são tão leves que fazem cócegas. Até que alcançam
minha bunda. Elas se cravam ali, debaixo da minha bunda,
levantando um pouco minha pélvis, e então sua boca passeia
pela parte interna da minha coxa. A barba por fazer provocando
uma sensação deliciosa, como se arranhasse minha pele. Até
que alcança meu centro e sua língua o toma sem pressa. Ela
passeia por mim, pressionando, brincando, provocando. Sinto
arrepios percorrerem meu corpo. É uma tarde fria, a pedra sob
meu corpo é gelada e a língua de Lucca em minha boceta é puro
fogo. Ele brinca mais um pouco, lambendo, provando, até que
finalmente me chupa. Do seu jeito, com sua intensidade, no seu
ritmo delicioso, meus gritos já não podem ser controlados, meu
corpo não fica mais parado sobre a pedra. Ele segura minhas
pernas e sua língua vai fundo dentro de mim, seus dentes me
arranham, seus lábios me sugam e me sinto me perder
rapidamente.
Só existe ele aqui, o que ele é capaz de me fazer sentir,
essa intimidade deliciosa, sua língua insaciável em meu clitóris e
sua barba arranhando onde ele chupa, me perco tão rápido, que
uma explosão me toma, ela é tão intensa que o alarme de
incêndio dispara. Por um segundo, meio perdida, penso que por
conta das chamas em meu corpo. Mas então percebo que há
fumaça saindo do fogão.
Lucca se afasta e me levanto, minhas pernas ainda estão
moles, mas de algum modo consigo chegar ao fogão e desligar o
fogo.
— Alexa, desative o alarme de incêndio — Lucca ordena
rindo.
Então estou rindo também. Os sentidos voltando, o torpor
passando. Estou rindo aliviada e longe de estar saciada.
— Nós dois nesta cozinha nunca dá certo — comento.
— Não? Eu acho que deu muito certo. Quase todas as
vezes. Vem, Anna, não terminamos isso — ele pede estendendo
a mão.
Não penso duas vezes antes de tocá-la e ele me leva
apressadamente pelo corredor até o sofá. Tira sua calça
libertando seu pênis e o empurro sobre o sofá, montando sobre
ele com pressa. Preciso senti-lo em mim. Deixo que me preencha
devagar. E como é bom senti-lo em mim de novo! Como é bom
acomodá-lo, meu fôlego falha, minhas forças somem, meu corpo
cai sobre o seu e ele me ampara.
— Eu sei, meu amor — diz baixinho, beijando meus lábios
com doçura. — Também me perco em você, também me
encontro em você. Também senti tanta falta disso que estava a
ponto de enlouquecer.
— Lucca — faço apenas uma prece e ele a atende.
Suas mãos se cravam de novo em minha bunda, ele guia
meus movimentos, me fazendo subir e descer por sua extensão,
me preenchendo e me deixando, alcançando um ponto delicioso,
indo fundo e mais fundo. Devagar no começo, meus braços estão
à sua volta, me prendo a ele no começo. Mas então isso é
demais para me controlar. Ele me move mais rápido e me afasto
para apoiar as mãos em seu peitoral e cavalgar ao meu ritmo.
Mais rápido, levando-o mais fundo, sentindo-o inteiro em mim.
Rebolo em seu pau e ele grita, seus dedos se cravam em minha
pele e ele implora que eu não pare.
Ele move nossos corpos para deitarmos no sofá, mas
acabamos caindo ao chão, sobre o tapete. Nosso riso dura
pouco, rapidamente ele se move de novo, aqui, sobre o tapete
mesmo, seu corpo cai sobre o meu, minhas pernas estão em
volta do seu quadril e nos balançamos no mesmo ritmo. Suas
mãos prendem as minhas, suas estocadas ficam mais fortes. Sua
boca morde meu mamilo e chupa, me perco fácil, deliro em
segundos, ele me domina e me entrego completamente a ele.
Grito quando o orgasmo me atinge, ele continua
arremetendo em mim, mais forte ainda, sua barba arranhando
meu seio, o prazer me tomando de novo. Lucca grita mais alto e
se move rapidamente, me levando com ele, está de joelhos,
sentado sobre os pés e me move sobre seu pau, se derramando
em mim, gritando meu nome e me apertando em seus braços.
Nossas respirações são como um misto de batuques de
escola de samba. Vamos nos acalmando aos poucos. Ainda
estou sobre ele, ainda presa em seus braços. Ele beija
docemente meu seio e diz baixinho:
— Queria nunca mais deixá-la ir. Queria que nunca mais
você se afastasse dos meus braços, Anna. Mas não sou seu
dono. Ainda é sua decisão final que isso acabe?
— Eu não consigo pensar agora, não consigo com você
dentro de mim e seus braços à minha volta — confesso.
— Tudo bem, eu entendo.
Ele me solta finalmente, mas não quero que me solte. Me
levanto e o ajudo a levantar-se. Precisamos sair pela casa
catando nossas roupas.
— Pedimos comida na senhora Bello? — ele pergunta.
— Acho melhor. Acho que acabamos com todo o estoque
de macarrão da casa. Eu ligo e faço o pedido.
— Tudo bem, vou tomar um banho — concorda se
afastando e isso parece estranho, errado. Eu devia ir com ele,
ficar sob a água quente com ele, me manter em seus braços,
como ele sugeriu.
— Por que amar é tão complicado? — me pergunto
baixinho, mas ele responde ao pé das escadas:
— Não é. É fácil demais se você para pra pensar. — Então
sobe os degraus e me sinto meio perdida por nada.

Lucca foi dormir em seu quarto esta noite. Por toda a noite
ele foi gentil e divertido, ele me lembrou muito o Lucca de antes,
mas de um jeito bom. Não havia mais o medo em sua voz, nem a
culpa, tampouco a vergonha por seus olhos estarem expostos.
Ele sorriu mais vezes, brincou, foi gentil, arrumou a cozinha
quando jantamos e arrumou sua cama sozinho. E então foi se
deitar, assim, sem qualquer tentativa de me irritar, me provocar
ou me fazer dormir com ele. E isso deveria ser bom, deveríamos
poder manter essa amizade gostosa quando nos
encontrássemos eventualmente. Mas pensar em encontrá-lo
apenas eventualmente faz meu peito sangrar. Saber que ele vai
embora em poucas horas, para sempre, me deixa sem ar.
Não consigo dormir, ando de um lado a outro, abraço o livro
e tenho medo. Não posso confiar nele de novo, mas quero tanto!
Por fim, no meio da madrugada entendo que não vou
conseguir dormir. Subo até seu quarto na ponta dos pés. Ele está
quieto em sua cama, os braços cruzados atrás da cabeça, usa
apenas a calça de moletom e seu torso à mostra é iluminado pela
luz da lua que entra pela janela.
— Está tudo bem? — pergunta sem ao menos se mover.
Ele sempre me sente por perto.
— Sim, eu só... Minha lareira apagou, a lenha acabou —
minto. — Estou com medo de ir lá fora sozinha, você poderia ir
comigo?
Ele sorri. Se move então, sentando-se na cama.
— Imagino que haja lenha na minha lareira — comenta.
— Eu coloquei bastante lenha na sua e pouca na da sala,
você devia me agradecer por tanto cuidado.
— Obrigado — ele diz com um sorriso. — Venha, não há
porque você ir lá fora no meio da madrugada. Durma aqui, aqui
está quente e confortável.
— Tudo bem.
Caminho em direção a sua cama, mas ele se levanta.
— Onde você vai?
— Dormir na sala. Você fica com a cama e eu com o sofá
esta noite, anjo.
— Mas lá está muito frio! Não há fogo na lareira, você não
devia descer! — Insisto entrando em sua frente e impedindo que
ele passe pela porta.
— Tem certeza? Não vou chegar à sala e escutar o crepitar
do fogo na lareira?
— Lucca...
— Vem aqui, Anna — chama estendendo a mão e a toco,
deixando que ele me guie de volta aos seus braços.
O abraço de volta, fecho os olhos e sinto seu cheiro, seu
calor, sua pele quente. Ele me abraça forte também.
— Fica comigo então — diz baixinho. — Me deixa ficar em
você esta noite — pede tirando a blusa de frio que uso.
— Lucca, eu não...
— Eu sei, você não pode confiar em mim, por mais que
queira. Isso é uma despedida, nossa última noite. Eu entendo.
Mas esta noite, faça amor comigo, Anna, mesmo que seja a
última vez.
Minha resposta é guiar meus lábios até os seus, ele me
beija de volta, ele me domina em segundos. Caminhamos
lentamente até a cama, em um minuto estamos nus, no outro,
seu corpo está sobre o meu. Suas mãos acariciam onde
alcançam, meus olhos estão fechados porque quero senti-lo, vê-
lo do seu jeito. Em minutos ele me preenche e fazemos isso
lentamente, nos amamos lentamente, nos entregamos aos
nossos sentimentos mais de uma vez e tenho uma das melhores
e mais tristes noites da minha vida.

Lucca está vestido e fechando o zíper da sua mala quando


acordo.
— Você já vai? — Me levanto rapidamente e ele confirma.
— Nós já vamos. Você tem cerca de meia hora para fazer
suas malas.
— O quê? Lucca eu não...
— Não vai voltar para mim, já entendi. Mas eu tinha um
plano sabe, Anna, um plano conciso e seguro. Eu recuperaria a
empresa e a daria nas mãos do Leandro. Até que você me disse
que eu deveria voltar, sentar de novo naquela cadeira, assumir a
responsabilidade. Você prometeu que estaria comigo, ao meu
lado, que seria meus olhos ali dentro. Eu atendi ao seu pedido.
Ele termina de fechar a mala e se volta em minha direção.
Usa um sobretudo preto sobre uma calça branca social. A barba
por fazer, os cabelos desgrenhados, está tão bonito que me tira o
fôlego.
— Você não vai voltar para mim, mas vai voltar para
completar o que começamos na Atenas. Você me deve isso.
— Você prometeu que nunca me mandaria ir embora, mas
sua palavra não serviu de garantia nenhuma. Por que a minha
deveria servir?
— Porque você é melhor do que eu. É mais forte, mais
corajosa, mais sincera. Mas não quero forçá-la a nada, cabe a
você decidir. Se não quiser voltar, tudo bem. Eu vou ao baile
sozinho, cuido das coisas sozinho e sigo meu plano. Isso não é
uma chantagem, não faz diferença na sua vida onde estarei no
mês que vem, se na Atenas ou não. Só estou mesmo
conversando com você.
Não é uma chantagem, mas soa como uma. Soa porque me
importa o que vai acontecer com ele, porque quero que ele
permaneça em sua empresa. Em seu lugar de direito. Ele não
insiste mais. Pega sua mala, a bengala e deixa o quarto. É claro
que não vou deixar que sua chantagem disfarçada me convença
a passar mais tempo com ele do que já passamos. Eu escolhi
tirá-lo da minha vida, não posso ir correndo de volta à capital
para viver e trabalhar com ele. Não importa o que ele diga.

Quarenta minutos depois, Leandro me abraça por tempo


demais.
— Na próxima vez em que você sumir e desligar seu
celular, vou instalar um chip de comunicação na sua testa, sua
mal criada!
Sorrio, correspondo ao seu abraço e um sorriso enorme
surge em seu rosto quando avista minha mala e minha bolsa no
chão ao meu lado.
— Não estou voltando para ele — explico e vejo Lucca
sorrir pelo canto dos olhos ao meu lado.
— Não, claro que não, apenas voltando com ele.
— Exatamente.
— Sua inocência é encantadora, Anna. Então, como foi o
final de semana de vocês? — pergunta enquanto guarda nossas
malas.
— Anna me acertou com uma tora de madeira na cabeça e
tive uma concussão — Lucca informa e Leandro me olha
espantado.
— Você o quê? Estava tentando matá-lo?
— Não! Ele entrou sem avisar, eu só estava me
defendendo!
— Lucca, você está bem? Está bem para fazer essa
viagem?
— O baile é esta noite, não tenho escolha a não ser fazer
essa viagem — Lucca responde. — E não, não estou bem, mas
não tem a ver com a concussão. É uma ferida mais profunda.
Vamos?
Reviro os olhos repensando essa decisão de ir com eles.
Mas ainda assim entro no carro quando Leandro abre a porta.
Porque parece que não há outra escolha lógica a fazer. Nem
emocional.
Apolo está no banco de trás e abana o rabo quando me
reconhece, vem até mim e lambe meu rosto. Dura poucos
segundos antes que ele volte à sua posição longe de mim, mas
para um cachorro que nunca brinca, considero isso uma vitória.
— Ele me lambeu! Apolo me lambeu! — comento animada.
— Ele também estava morrendo de saudade de você. Não
é só minha alegria que a sua ausência tira — Lucca responde em
seu drama e reviro os olhos, não o respondendo mais.
O carro passa pela antiga pousada onde eu trabalhava e
me lembro de algo que Nathalia contou quando fui buscar as
chaves da casa com ela.
— Ah, esqueci de comentar, a Nathalia disse que o Jorge
foi preso.
Leandro olha para Lucca pelo canto do olho e Lucca parece
tenso por alguns segundos.
— Jura? Que bom então, não é? — Lucca comenta.
— Ela disse que a polícia recebeu uma denúncia anônima,
procurou as funcionárias que se demitiram da pousada e uma de
suas vítimas acabou contando a verdade, ela tomou coragem e o
denunciou. Então todas as outras o fizeram também.
— Isso é bom, a justiça foi feita, elas vão se sentir bem
melhor agora. Tomara que consigam superar — Leandro
comenta ao invés de perguntar quem é Jorge ou porque ele foi
preso.
— Vocês dois não tiveram nada a ver com isso, não é? —
pergunto desconfiada.
— Não — respondem em uníssono.
— Entendo — respondo de volta realmente entendendo.
Eles fizeram isso. Me pego sorrindo por um bom tempo, Lucca
estava certo, nem sempre precisarei me cuidar sozinha.

Leandro está bastante agitado, Açucena está aqui na casa


dele quando chegamos. Eles se abraçam por um longo tempo,
querem se beijar, percebo, mas Miguel está por perto. Então o
pego no colo e vou passear com ele pela área externa, dando um
pouco de privacidade para que possam matar a saudade. Do
quintal, avisto Lucca através de sua janela, parado, como
sempre, deixando que o vento refresque sua pele. Os óculos
escuros me impedem de perceber se está triste, cansado,
ansioso pelo baile. Observo sua figura na janela, tão perto e tão
distante, desvio os olhos para a criança linda em meus braços e
algo me toma de repente: Lucca e eu transamos três vezes
ontem. Três vezes ele explodiu dentro de mim. E há três
semanas não tomo o remédio.
— Ah, merda!
Volto para dentro da casa, pensando no que fazer, mas não
tenho tempo. No momento em que Açucena me vê, tira Miguel
dos meus braços e me arrasta escada acima até o antigo quarto
que eu ocupava. Há dois trajes envoltos em sacolas pendurados
em um cabide de chão.
— Nossos vestidos. Tomei a liberdade de escolher o seu
por você, espero que goste. Mas se não gostar, ainda temos
tempo para correr até uma loja no centro e comprar qualquer
outra roupa — ela explica.
— Ah, obrigada, Açucena. Como você sabia que eu viria?
Ela sorri.
— Jura, Anna? Tinha como não saber? Você o acertou bem
forte na cabeça, acho que já se vingou pelo quanto ele foi
babaca.
— Não foi de propósito, por que todo mundo fica repetindo
isso?
Ela ri, abre o zíper do primeiro vestido e me apresenta o
que é o vestido mais belo que já vi na minha vida. E ele foi o que
ela escolheu para mim. Estou boquiaberta e nem sei o que dizer,
então apenas a abraço e ela entende meu gesto, pois aliviada
me diz:
— De nada, amiga.
Toco a peça de repente ansiosa em colocá-la no corpo.

A noite chega, não vejo Lucca desde que voltamos. Ele não
saiu de seu quarto e não me atrevi a ir procurá-lo. Fui eu quem
disse a ele que não podia confiar nele. Essa resposta ainda é
nítida em minha mente, por mais que eu o ame e esteja
tremendo pela mínima chance de realmente acabar tudo, há essa
trava em meu peito, que aperta minha respiração sempre que
passo por sua porta e penso em bater nela. Até me pergunto se
não devia ir ajudá-lo com seu traje de gala, deve ser difícil para
ele fechar tantos botões, se certificar que a roupa não está
amassada, será que ele fez a barba?
Derrotada, vou até seu quarto. Ele não fez a barba, mas
penteou os cabelos. Usa um smoking preto e está tão bonito!
— Só vim saber se você precisava de ajuda — explico.
— Obrigado, mas Karen já me ajudou. Pensei que estava
indo bem, mas ela disse que eu havia fechado todos os botões
da camisa nas casas erradas — comenta com um sorriso e me
pego apertando a mão em punhos.
— Que prestativa, a Karen, não é?
— Na verdade, a encontrei no corredor quando estava
descendo, ela apenas me ajudou, não foi nada demais.
— Sei, claro que não foi! Ela deve estar muito feliz.
Ele franze o cenho como se não entendesse o que estou
dizendo e desisto. Karen é uma das diaristas de Leandro. É
jovem, bonita e pelo visto bastante gentil. Volto ao meu quarto e
vou me arrumar. Estou começando a pensar que voltar com ele
não foi uma boa ideia.

O evento acontece no Palácio da Liberdade, um ponto


histórico e turístico da cidade. O elegante local tem uma
decoração maravilhosa. Lucca toca minha mão assim que
descemos do carro, ele não trocou uma palavra comigo por toda
a viagem.
— Como você está vestida? Não precisa responder isso se
não se sentir à vontade, eu só fiquei curioso — pergunta.
— Açucena fez a gentileza de escolher um vestido para
mim e ele é incrível! Ele é vermelho, com um decote razoável,
não possui alças, é colado ao corpo e possui uma abertura na
perna esquerda.
Por um momento ele estende as mãos para me tocar, mas
parece se dar conta do que está fazendo e as abaixa.
— Você com certeza está linda, Anna. Consigo imaginá-la
exatamente como descreveu.
Leandro e Açucena entram e guio Lucca e Apolo para
dentro do museu também. O segurança até olha torto para o cão
enorme e peludo, mas sequer tenta barrar sua entrada. O local
está repleto de pessoas bem vestidas, elas ostentam joias caras
e pedras que brilham ao longe. De repente me sinto nua ao tocar
meu pescoço e não encontrar sequer uma bijuteria em forma de
colar. Mas talvez seja melhor assim.
— Anna, eu ia me esquecendo. Estou aqui em busca de
investidores, como você bem sabe, mas acredito que vou passar
mais credibilidade se eles pensarem que estamos juntos. Você
sabe, um homem cego administrando tudo sozinho pode não
passar a confiança que precisamos esta noite, eles precisariam
de certa convivência com deficientes visuais para confiarem
plenamente em mim. Então pensei que seria mais fácil se
acharem que tenho uma noiva brilhante dirigindo tudo ao meu
lado. Tudo bem por você fazer isso?
— Você quer que eu finja que somos noivos?
— Não é como se eu nunca a tivesse pedido em
casamento, não é mesmo?
— Claro! Tudo bem, posso fazer isso.
Um sorriso está em seu rosto e me pego sorrindo de volta.
— No que é que estou me metendo? — penso alto e seu
sorriso se transforma em uma risada gostosa.
— Em nada demais, anjo. Agora, me dê sua mão — ele
pede e deposito minha mão sobre a sua, então ele desliza por
meu dedo um anel. — O homem costuma dar o anel quando
pede a mulher em casamento — repete as palavras que eu disse
a ele no hospital, pouco antes de tudo desandar. — Eles vão
desconfiar se você não estiver usando um.
— Claro! — concordo, mas minha voz soa embargada.
Lucca solta minha mão e vejo a peça. O anel é de prata,
possui uma pedra que deve ser um diamante delicada no centro
e possui asas, como asas de anjo, com pequenos cristais nos
desenhos de suas penas. É a coisa mais linda que já vi na vida.
— Onde você conseguiu este anel?
— Ele é seu, na verdade. Eu o havia comprado para você,
quer dizer, eu pedi ao Leandro especificamente esta peça antes
de irmos para o hospital naquele dia. Ele a encomendou e ela
chegou na semana passada.
— Ah — é tudo o que digo, mas não consigo deixar de
admirar e bela peça em meu dedo.
— É de um designer grego, era o preferido da minha mãe.
Ela era apaixonada pelo que chamava de sua arte. Me lembro de
tê-lo visto uma vez, em uma joalheira na Grécia, o achei
encantador. Quando achei que voltaria a enxergar e a pedi em
casamento, não consegui pensar em outra joia para dar a você.
Não é a peça mais cara desse estilista, claro, eu não poderia
pagar pela mais cara agora, mas pensei que você fosse gostar.
— Ela é perfeita — minha voz soa baixa, a peça é
encantadora.
— Fico feliz que tenha gostado. Eu sei exatamente como é
esta peça, é curioso, não é? Que eu me lembre tão bem de um
anel de noivado quando nunca havia pensado em casamento
antes do acidente.
— Talvez porque ela seja de uma beleza incomum. Não
consigo imaginar alguém que a veja e seja capaz de esquecê-la
depois.
— Então escolhi a peça certa, porque você acabou de
descrever a si mesma para mim, Anna — comenta com um
sorriso e meu coração erra todas as batidas possíveis.
Ele pega minha mão e circulamos entre as pessoas. Lucca
fala com o máximo de pessoas possível, imagino que isso não
seja fácil para ele, pedir favores a pessoas com quem não se
dava bem, contar sua atual situação financeira, mostrar sua atual
situação física. Mas ele o faz com tanto encanto, que é difícil
alguém que resista às suas palavras, à empolgação em sua voz,
ao incrível roteiro que ele oferece. Ele sabe o que está fazendo, o
faz com maestria, ele domina essas pessoas, seus olhares, a
atenção delas. Ele as entretém. As faz rir e se emocionar. Ele as
oferece uma possibilidade de ajudar. E uma ideia começa a se
formar em minha mente. Lucca podia fazer bem mais por
acessibilidade. Ele tem a voz, a posição, pode conseguir os
meios.
O tempo todo ele segura minha mão, a todos ele me
apresenta como sua noiva Anna. Ele é amável e gentil por toda
noite. Atencioso como sempre e busca em mim apoio quando
alguém de quem vai se aproximar faz parte de seu passado.
Quando é algum dos amigos que o abandonaram. Ele me deixa
fazer parte disso com ele. Me dá voz, me dá uma importância
que eu percebo assombrada que tenho mesmo em sua vida, em
suas decisões na Atenas.
E quando a música lenta soa pelas caixas de som do salão,
seu sorriso é a coisa mais linda da noite. Ele consegue superar o
anel. Lucca segura minha mão, sua outra mão está à minha
volta.
— Não sei dançar valsa, eu nunca dancei em público,
lembra? — aviso assustada quando vários casais se juntam no
centro do salão à nossa volta.
— Não precisa saber, só me abrace, anjo, deixa que eu
guio você.
— E se eu parecer ridícula?
— Você não vai. Confie em mim — provoca com um sorriso
por saber que não confio mais nele.
— Você é inacreditável! — resmungo, mas toco sua mão,
deixo que me guie, que me faça deslizar pela pista.
Não dançamos ao ritmo dos outros casais, que parecem ter
uma coreografia ensaiada, temos nosso próprio ritmo. Mas não
importa muito, já que em segundos todas essas pessoas somem.
Estou em seus braços, deslizando com ele, dançando em público
pela primeira vez. E ele torna esse momento mais um dos muitos
inesquecíveis.
O cheiro dela está em meu terno. O sinto nitidamente
quando estou me despindo. Até mesmo a sensação da sua mão
na minha ainda sinto. Não precisei insistir que ela se passasse
por minha noiva, ela encantou a todos com seu jeito único. Ela
também não tentou me devolver o anel. Talvez a emoção do
momento, das coisas que alcançamos esta noite, de dançarmos
juntos, de estarmos assim, tão próximos, a tenha feito não
perceber isso. Mas com certeza quando foi despir seu vestido
vermelho no quarto ao lado, viu a peça brilhando em seu dedo.
Ainda assim ela não veio devolvê-lo.
Me pego sorrindo, a esperança tem um sentido diferente
quando você está apaixonado. Ela parece mais quente, mais
doce, mais gostosa. Enquanto estiver com aquele anel em seu
dedo, ela é minha noiva. Posso provocá-la lembrando-a disso,
não posso?
Perceber o quanto a machuquei, quando ela me disse que
não vai ter sua família numerosa e acha que nasceu para ser
sozinha, me destruiu novamente. Eu consegui tirar seus sonhos,
suas esperanças, essas ilusões que fazem dela alguém tão mais
especial que qualquer outra pessoa que eu já tenha conhecido.
Por um momento me questionei se sou mesmo o homem certo
para ela. Por um momento quis ligar para Leandro, ir embora de
Monte Verde e deixá-la em paz. Mas se não sou o homem certo,
por que a amo tanto? Não faz parte do meu castigo amá-la para
sempre, porque isso é bom. Ainda que nunca mais a tivesse em
meus braços ou em meus lábios, amá-la ainda seria uma coisa
maravilhosa. E então entendi que eu causei essa ferida nela, eu
fiz com que desistisse dos seus sonhos, só cabe a mim consertar
isso.
Se no final de tudo ela quiser seguir sua vida sem mim, se
escolher que a confiança que quebrei não pode mesmo ser
restaurada, a deixarei partir. Mas ela irá a mesma Anna que
conheci, a mesma menina doce e cheia de sonhos, com ilusões e
esperança. Que enxerga na vida os verdadeiros sentidos e dá
valor a eles. Não vou deixar que uma Anna quebrada siga sua
vida por culpa minha. Pela felicidade dela, não vou.
Abro a janela e o vento frio entra no quarto. Apolo
resmunga um rosnado baixo em sua cama, provavelmente pelo
barulho tê-lo acordado, e tento não fazer mais barulho. E se for
isso? E se eu tiver apenas que curar suas feridas para que ela
siga sua vida? E se eu não for o futuro dela? Será que não irei
machucá-la mais insistindo em algo que não é para ser?
Passo a noite em claro em busca de uma resposta, um
sinal, uma certeza. Mas a única certeza que tenho é que a amo
demais para desistir.
Me sinto meio aéreo por toda a manhã. Alguns dos contatos
que fiz no baile ontem à noite estão entrando em contato para
agendar reuniões. Eles querem o roteiro acessível em detalhes.
Estão dispostos a investirem seu dinheiro em algo que acreditam
vai dar certo.
Leandro entra em minha sala e comenta animado:
— Adivinha? As ações da empresa subiram dois por cento.
Mesmo sem Montenegro, elas subiram. Você sabe, isso não
parece nada falando assim, mas levando em conta que temos
uma empresa que tem agora uma imagem de caloteira e falida,
qualquer meio por cento é uma vitória. Sabe o que é isso? Nossa
ida ao baile de ontem. Fomos vistos, ouvidos e vamos ser
recompensados. As pessoas estão voltando a ter credibilidade na
Atenas, meu amigo, ouça o que eu digo.
Sorrio de sua alegria, seu alivio, até. Espero que ele esteja
certo. Tudo parece promissor na Atenas.
— Leandro, aproveitando essa sua alegria contagiante me
diga uma coisa — tento. — Anna ainda está usando o anel?
Sua resposta é uma risada.
— Pergunte a ela, acaso sou seu espião?
— Isso é uma pergunta simples. Você a viu hoje, certo?
Tem ou não uma pedra brilhando em seu dedo?
— Não reparei.
— Leandro...
— Pergunte a ela, tchau.
Ele deixa a sala e não me dá uma resposta. Fico esperando
que Anna apareça, posso inventar qualquer desculpa para tocar
sua mão e tirar a prova. Será que ainda posso usar a concussão
para fingir ficar tonto e assim tocá-la? Eu fiquei tonto por um dia
inteiro depois da pancada, Anna me deve uma visita nesta sala
esta manhã.
Mas as horas passam e nem sinal de Anna. Sequer
almoçamos juntos. Após o almoço, começo a realmente
estranhar que Anna ainda não tenha vindo à minha sala. Ela está
lidando com os possíveis investidores que conseguimos no baile,
os está atendendo e passando o roteiro de viagem a eles. Mas
não significa que não possa vir aqui pelo menos um pouco, só
pra eu sentir seu cheiro um pouco. Não faria mal algum se
viesse.
Três batidas soam na porta e Açucena entra.
— Lucca, tem um certo Marcelo Medeiros aqui para ver
você. Ele se desculpou por não ter marcado hora, mas disse que
é muito importante.
Não me lembro de conhecer ninguém com este nome, mas
peço que Açucena o deixe entrar. Também peço que ela procure
Anna e peça que ela venha até minha sala. O que ela está
pensando afinal? Pretende ficar longe de mim o dia todo?
Ouço os passos do visitante desconhecido, será que falei
com ele no baile de ontem e não me lembro? Seu nome não me
é familiar, o sobrenome sim, mas esse não é um sobrenome tão
incomum na cidade.
— Boa tarde, Baltazi, meu nome é Marcelo, eu vim aqui
devolver a você uma coisa que fez por mim.
Franzo o cenho me levantando da cadeira e estendo a mão.
O Lucca de antes pode ter feito algo ruim a ele, algo como ter
dormido com sua mulher e isso me deixa tenso.
— Desculpe, Marcelo, mas não me lembro se nos
conhecemos.
— Você não me conhece, mas conhece minha esposa e
minha filha.
Merda! Volto a me sentar e tento manter a expressão
relaxada. Espero que ele tenha se dado conta de que sou cego e
qualquer coisa contra mim seria no mínimo covardia. Espero
também que Apolo esteja a postos, afinal de contas, a função
desse cão babão e barulhento é me proteger. O cutuco com o pé
e ele rosna. Ao menos está acordado.
— Por favor, Marcelo, sente-se.
Duas batidas soam na porta e o cheiro de Anna toma o
ambiente.
— Mandou me chamar? — ela pergunta.
Será que é bom ou ruim que ela esteja aqui como
testemunha?
— Entre Anna, isso claro, se não for incômodo para você,
Marcelo.
— Não, imagina, ela é sua noiva, certo? Não há problema
algum ela estar aqui. Aliás, eu gostaria que Leandro Romero
também estivesse presente, se possível.
— Vou chamá-lo — Anna responde pegando meu telefone e
me sinto confuso.
Com certeza é algo relacionado à sua esposa. Anna, minha
noiva, poder ouvir é até normal se ele for me agredir por dormir
com ela. Mas Leandro estar presente é estranho. Será que nós
dois dormimos com sua mulher? Nós nunca dormimos com a
mesma mulher, ao menos não que eu me lembre.
Leandro chega em seguida, cumprimenta o visitante e se
senta ao seu lado. Ao menos ele deve levar o soco primeiro e
assim dará tempo de Apolo reagir e me defender antes que
chegue minha vez. Me sinto um mau amigo, mas um pouco mais
calmo.
— Baltazi, primeiro quero dizer que é um prazer conhecê-lo.
Andei lendo sobre sua empesa e o programa de acessibilidade
que vocês estão criando é algo inovador! Então quero começar
essa nossa conversa dizendo que estou aqui para investir na
Atenas. Estou disposto a pagar todas as dívidas que sua
empresa possui, assim como os processos e dar o capital que
vocês precisam para criar esse programa. Todo o capital.
Anna emite uma reação surpresa. Leandro tenta falar algo,
mas gagueja e eu demoro a ter uma reação.
— Marcelo, confesso que estamos surpresos por sua
intenção. Posso perguntar porque você quer investir tanto
dinheiro na empresa? Me desculpe, mas não consigo me lembrar
da sua esposa ou sua filha.
— Não se preocupe, eu não me apresentei direito. Quero
investir em sua empresa, além de achar esse programa brilhante,
porque é minha forma de agradecer a você, Baltazi. Você não se
lembra da minha família, mas você nunca será esquecido por ela.
Você foi o nosso herói. Graças a você minha filha não vai usar
seu programa para deficientes visuais. Sou marido de Soraia
Medeiros, quatro semanas atrás, você passou sua vez na fila de
transplante para minha filha, Samantha. Ontem minha filha
conseguiu ver o sol. Sua visão está voltando aos poucos, mas
ela olhou para o céu e viu o sol. Você, Lucca Baltazi, é um ser
humano incrível!
Ouço Anna chorando ao meu lado, ela chora baixinho, sua
mão está em meu ombro, ela soluça emocionada.
— Eu fico feliz de verdade que o transplante tenha dado
certo. Fico feliz que sua Samantha tenha recuperado a visão.
Mas eu não fiz isso por nenhum tipo de recompensa, então você
não precisa investir tanto dinheiro na minha empresa, não é
necessário. Mas se quiser ser um dos nossos acionistas, vamos
te receber de braços abertos. E isso já nos ajudaria muito.
— Não, Baltazi, isso para mim não serve. Acho que você
ainda não está reconhecendo meu nome, sou o presidente da
CABHE.
Finalmente reconheço quem ele é. Nunca havíamos nos
encontrado, mas a Atenas já fez parceria com sua empresa
muitas vezes em nossos programas. Marcelo é o CEO da
Companhia Aérea Belo Horizonte, a maior companhia aérea
nacional na atualidade.
— Minha esposa não podia ter filhos. Procuramos todos os
tratamentos e medicamentos possíveis. Samantha veio quando
havíamos desistido. Ela foi um presente. Mas teve essa doença
de repente, perdeu a visão de repente e a vontade de viver. Você
não tem noção do que é ter tanto dinheiro e não poder ajudar sua
própria filha. E não faz ideia do que foi chegar em casa e ver
minha filha sorrindo depois de meses, de ouvi-la dizendo que
conseguiu ver minha silhueta. De vê-la correndo ao meu
encontro quando chego do trabalho e cada dia que passa ela me
enxerga mais. Você não sabia quem ela era quando cedeu a sua
vez, porque teria feito isso por qualquer criança no lugar dela.
infelizmente, não posso dar a você córneas novas, como não
podia dar a ela, mas isso é o que posso fazer para ajudá-lo de
algum jeito. Estou investindo na sua empresa, vou tirar a Atenas
da situação em que está e não aceito não como resposta,
Baltazi.
Não sei o que dizer. Leandro agradece a ele. Ele o abraça
pelo que percebo. Anna o agradece emocionada. Pergunta por
Samantha e a mãe, está genuinamente feliz por ter dado tudo
certo. E ainda estou aqui tentando processar tudo. Ele vai quitar
o restante das dívidas da Atenas. Vai pagar os processos, os
funcionários vão receber o que lhes é devido de uma vez. Ele vai
bancar o programa de acessibilidade.
— Marcelo, se você está disposto a investir tanto na Atenas
é justo que seja nosso sócio. Vamos dividir a Atenas em três
sócios, você, eu e o Leandro, cada um com trinta por cento das
ações. Os outros dez por cento pertencem aos acionistas
minoritários que conseguimos recentemente.
— Não é necessário, mas se você faz questão, eu aceito.
Leandro se levanta e deixa a sala em contato com seu
advogado. Anna vai buscar Eurico, o contador, para que e mostre
a Marcelo toda a movimentação financeira da empresa.
— Você sabe que não precisa fazer isso — tento de novo.
— Eu quero fazer isso. Estou me sentindo feliz e realizado
fazendo isso — ele assegura. — Você vai levar esta empresa
ainda mais longe, Baltazi. É um homem inteligente e bom. A vida
não pode ser tão ruim com uma pessoa assim.
Ele está se referindo à minha deficiência e dou de ombros.
— Isso é o de menos agora. Deixou de ser minha
prioridade.
— A bela mulher que esteve ao seu lado é sua prioridade —
observa.
— Exatamente.
— Você está no caminho certo. Vou adorar fazer parte
disso.
Anna retorna rapidamente com Eurico. O advogado chega
uma hora depois e durante toda a tarde ficamos nesta sala
decidindo o futuro da Atenas. Ao final do dia, quando já não
suporto mais a distância de Anna, entramos juntos no elevador e
não ligo se há outros funcionários conosco aqui dentro.
— Anna, chega com isso, me dá um abraço! — exijo e ela
atende. Sob os risos das funcionárias e seus suspiros, Anna se
aproxima finalmente e me permite abraçá-la. Só então consigo
comemorar de verdade que ao menos dessa vez, a vida me
devolveu algo bom que fiz.
Acho que é sobre isso, afinal. Sobre plantar mais coisas
boas e colher mais coisas boas. Acho que estou finalmente
entendendo.

Dois dias depois, Marcelo retorna à empresa para assinar


os documentos. Porém, algo parece errado, já que Leandro lê o
contrato e parece gaguejar.
— Não foi isso o que combinamos, Marcelo. Você fica com
trinta por cento das ações da Atenas — ele diz confuso.
— Não é necessário, só quero dez por cento das ações.
Estou cedendo os outros vinte por cento a Lucca Baltazi. Eu
prefiro assim.
Eu não esperava por isso. Assinamos os documentos que o
tornam nosso acionista apenas. Toda a transação financeira já foi
feita pela manhã. A Atenas está oficialmente livre de dívidas e
com dinheiro em caixa para reabrirmos todas as filiais fechadas,
recontratarmos os funcionários e realizarmos o roteiro acessível
a deficientes visuais.
Quando Marcelo deixa a empresa, os funcionários o
aplaudem. Ele se despede emocionado, mas vamos nos
encontrar em breve.
— Estamos livres! — Leandro grita e todos comemoram, as
pessoas se abraçam, muitas me abraçam, mas não Anna.
Nesses dois dias, desde que exigi seu abraço no elevador,
ela não se aproximou de mim mais do que o necessário. Começo
a pensar que Anna está mesmo apagando o que sente por mim.
Como Leandro previra, ela está superando. Será que como ele
previu, em breve ela irá me odiar?
— Vamos dar uma festa — Leandro diz de repente. —
Sábado à noite, no terraço. Vamos comemorar.
Todos concordam animados e minha empolgação não é
completa porque a mulher que amo está mais distante agora do
que já esteve.
Deixo que tenha seu tempo, não a procuro, não invado seu
espaço, por mais que queira fazer isso. Sempre que ouço sua
voz, não importa onde estejamos, pergunto se está bem. Mas sei
que não está. Leandro não me dá notícias dela, nem mesmo
Açucena. Vou esperar até a festa para confrontá-la. Ela e
Açucena estão organizando. Se até lá Anna ainda não tiver
conversado comigo, vou perguntar o que está havendo. Vou
perguntar se ela precisa de algo. Se conseguiu, como fez sua
vida toda, me superar rápido assim. Só não posso mais ficar com
essa dúvida.

Chega a tão esperada festa. Fico na porta do quarto de


Anna esperando que saia para perguntar como está vestida. Mas
Alberta me vê aqui um tempo depois e avisa que Anna foi mais
cedo para resolver algumas coisas da festa com Açucena.
— É, Apolo, parece que fomos deixados de lado.
— Cara, não aja como se eu não fosse ninguém, irei
acompanhá-lo até a festa — Leandro ralha saindo de seu quarto.
— Não sou uma mulher linda como a Anna, mas dou pro gasto.
— Imbecil! — ralho e o sigo, o que mais poderia fazer?

— Tá legal, por nada no mundo se aproxime da mureta do


terraço. É perigoso que você caia lá embaixo — Leandro alerta
quando chegamos à festa.
— E como você sugere que eu saiba quando estiver perto
da mureta?
— Pois é, parece que vou ter que ficar de olho em você
enquanto você queria que o investidor me batesse primeiro. Mas
tudo bem, não é como se eu pudesse passar esta noite
agradável e estrelada com a Açucena mesmo. Preciso fingir que
não somos sequer amigos aqui, então que seja, fico de babá
para você.
— Por que vocês não se assumem logo e param de agir
feito adolescentes?
Ele ri e bebe algo, colocando um copo na minha mão
também.
— Se fosse assim tão fácil você estaria com a Anna, não é
mesmo? Mas tudo o que envolve sentimentos é complicado, meu
amigo. Vamos fazer um brinde — propõe — somos os maricas
apaixonados agora, um brinde a nossas bolas presas.
Sorrio e brindo com dele.
— Que bom que se vou ser abandonado em breve não vou
sofrer sozinho — provoco.
— Por falar na Anna, vocês se desentenderam?
— Não, para isso teríamos que ter conversado, coisa que
não fizemos a semana toda. Estou sendo evitado com estilo.
— Estranho.
— O que é estranho?
— Ela parece irritada com algo, já que virou uma taça de
Malbec de uma vez.
— Anna não pode beber — informo imediatamente,
deixando meu copo de lado. — Leandro tire o copo da mão dela.
— Tarde demais, ela virou mais um. Por que ela não pode
beber?
— Porque ela... — de repente me pergunto se Anna vai ser
apenas engraçada e maluquinha bêbada, ou se vai vir até mim,
como nas outras vezes, se vai finalmente procurar qualquer
contato comigo. — Não, não precisa. Deixe-a se divertir, não
posso controlar sua vida, não é mesmo? Deixe que beba e se
divirta.
— Uau! Estou impressionado. Isso mesmo, cara!
— Mas se ela estiver vindo para cá, faça um favor ao seu
amigo e desapareça de perto de mim.
— Por quê?
Dou de ombros e aproveito sua proximidade para falar
sobre outro assunto que estive pensando.
— Leandro, há algo que eu queria falar com você. Sou
muito grato por você ter me recebido na sua casa, muito mesmo.
Mas agora que o Marcelo quitou o restante das dívidas e colocou
dinheiro em caixa para os próximos programas, eu posso pegar
de volta o valor das vendas dos meus imóveis. E bem, posso
comprar um lugar para mim.
— Claro! Claro que pode! Cara, sempre morei sozinho e
adoro a liberdade de viver sozinho, mas devo confessar que ter
você e a Anna em casa tem sido uma experiência maravilhosa.
Me fez perceber que não quero mais ser sozinho. Sabe, as
risadas dela pelos cômodos, seu mal humor, tomar café da
manhã juntos, jantar, isso é legal. Você poderia comprar algo no
condomínio mesmo, assim não ficaria tão distante.
— Não preciso de uma casa grande, na verdade.
— Sei de uma casa muito boa, com um quintal excelente à
venda lá. A Anna está vindo para cá.
— Então suma daqui.
— Por quê?
— Porque você vai ficar de vela, quer ficar de vela?
Ele se afasta resmungando e sinto finalmente o cheiro de
Anna. Ela tem estado tão afastada que já me sentia em
abstinência de seu cheiro. Ela parece tropeçar em algo já que
emite um gritinho e cai sobre meu peito. Consigo ampará-la e
impedir que se esborrache no chão.
— Você me salvou, de novo! Não é legal ter um herói? —
pergunta com a voz estridente e rindo.
Ela está bêbada.
— Você andou bebendo. Achei que a tivesse alertado para
não beber em público, amor.
— Não me chama assim que me sinto derreter — responde
docemente.
Sorrio, ela vai finalmente conversar comigo. Só preciso
mantê-la ao meu lado pelo resto da noite e terei uma boa dose
de Anna como recompensa por essa semana sem ela.
— É mesmo? Eu te amo, Anna, você é a mulher mais linda,
inteligente e brilhante que já conheci. Você é minha vida. Não
suporto mais tê-la tão longe.
— Pare, Lucca, pare. Daqui a pouco vou me desfazer, você
me faz derreter e não sei o que acontece, mas a Anna líquida
consegue pegar fogo. Isso faz algum sentido para você?
— Faz todo sentido, anjo. Você me ama, Anna? —
pergunto, temendo sua resposta.
— Muito. Eu o amo muito.
— Então por que você tem me evitado?
— Não, não tenho. Estou sempre olhando você, você é tão
lindo, não consigo deixar de olhá-lo — diz e se joga sobre mim.
Seus lábios estão em meu pescoço, em meu rosto e então nos
meus.
A beijo de volta. Sinto tanto a sua falta que meu corpo
acende em segundos por ela. Todos os sentidos, os órgãos,
minha pele, minha respiração. Tudo reage a ela.
Quando o beijo cessa ela deita a cabeça em meu peito e
fica aqui em meus braços. Por mais de uma hora fica aqui
comigo. Comenta sobre a festa, a empresa, o vestido que está
usando. Ela ri, diz que me ama o tempo todo, pede que eu não
duvide disso.
Até que uma música dançante começa a tocar e Anna se
afasta.
— Vamos dançar! — grita arrastado e some.
Tento encontrá-la, mas ela se perdeu entre essas pessoas
dançando. Se passam minutos e todos estão rindo, Leandro se
aproxima rindo também.
— Anna é um show à parte. Agora entendo porque ela não
podia beber.
— O que ela está fazendo?
— Deitada no chão, girando por ele com as pernas. Não sei
o que pensa que está fazendo, mas o que está realmente
fazendo é isso. E ela está sendo filmada.
Sorrio.
— Vou levá-la embora, você me ajuda?
Ele me leva até ela. Me abaixo e a toco com cuidado.
— Anna, vamos embora, meu amor?
— A gente vai transar? — pergunta aos gritos, arrancando
mais risos.
— Não enquanto estiver bêbada assim.
— Então eu não vou.
— Vamos transar assim que eu jogar você em uma água
fria e você ficar consciente — prometo.
— Então eu vou. Tchau, Açucena, Diana, Elaine, boa noite
— vai dizendo enquanto a levanto nos braços. — Vamos transar!
— grita e as pessoas aplaudem, rindo dela.
Também me pego rindo enquanto Apolo nos guia até o
elevador. Leandro nos acompanha, não consegue parar de rir e
chama um táxi para mim, já que não vai embora agora.

Carrego Anna até meu quarto sem dificuldades. Ela está


rindo há dez minutos e não faço ideia do motivo. A deposito com
cuidado sobre a cama e pergunto:
— Você quer tomar um banho frio, anjo?
— Não, eu quero que você tire sua roupa! — responde se
levantando. Suas mãos tocam meu abdome por baixo da blusa,
sua unha arranhando minha pele. — Quero que entre em mim de
novo. Muitas vezes, que me foda bem forte, daquele jeito que
você faz. Porque estou a semana toda esperando por isso.
— A semana toda?
Seus lábios macios tocam a pele do meu abdome e me
afasto, pegando-a nos braços.
— Vamos fazer assim, amor. Vamos tomar um banho juntos
e quando você estiver consciente, vou foder você com toda essa
saudade acumulada que é inteiramente culpa sua.
Ela ri alto e concorda, deitando a cabeça em meu ombro
enquanto a carrego até o banheiro. Entramos juntos sob a água
fria. Anna grita num primeiro momento, mas permite que eu tire
sua roupa. O faço devagar, ela está apoiada em mim e ri.
Quando está nua, ela me beija. Seu beijo é tão doce, tão íntimo,
delicioso, é como encontrar aquele paraíso que você espera a
vida toda, que te trás aquela sensação de não poder estar mais
feliz do que agora. Ficamos um tempo aqui, a água fria sobre
nossos corpos. Até Anna dizer que está com muito frio.
Então desligo o chuveiro e a pego nos braços de novo.
Vamos pingando pelo quarto, a deposito na cama com cuidado e
pego minha toalha em seguida, secando-a lentamente.
— Eu amo você — ela diz. — Amo tanto, eu queria ficar
com você, queria apenas confiar em você de novo.
— Eu sei, meu amor. Eu juro que vou fazer todo o possível
para que você possa confiar em mim de novo. Não vou parar até
que você possa confiar em mim, Anna.
— Isso pode levar anos.
— Não me importo.
— Você vai lutar por mim por tantos anos?
— Vou lutar por você pelo resto da minha vida.
Ela fica quietinha um tempo. Termino de secá-la e pego
uma blusa minha no armário. A visto nela com cuidado, ela ri
quando passo seus braços pelas mangas da blusa. Volto ao
banheiro e pego outra toalha, então seco seu cabelo. Bem
devagar para não a machucar. Passo o tecido macio por seus
fios de seda tirando o excesso de água.
Tiro então minha roupa, estou pingando pelo quarto e
começando a sentir frio. Me troco rapidamente, vestindo algo
confortável para cuidar dela.
— Você comeu hoje, anjo? Quer comer alguma coisa?
— Eu quero você — ela responde. — Por que está tão
longe? Fica comigo. Você precisa me acalmar, me fazer sentir
que vai ficar tudo bem.
Me sento atrás dela e a encosto em meu peito, com os
dedos, lentamente, vou desembaraçando seu cabelo. Ela ri
quando percebe o que estou fazendo. E fica quietinha, me
deixando mimá-la.
— Você não vai mais me amar — ela diz em um tom baixo,
culpado quase.
Me afasto um pouco e seguro seu rosto gentilmente.
— Anna, amanhã você vai se lembrar de algumas partes do
que aconteceu esta noite. Então presta atenção no que vou dizer
para que se lembre disso, tudo bem? Eu amo você, você é a
mulher da minha vida. E não importa o que aconteça, vou fazer
de tudo para curar as feridas que te causei e vou fazer o
impossível para que possa confiar em mim. Não haverá outra
mulher para mim que não seja você.
Ela deita a cabeça em minhas mãos e diz sonolenta:
— Você é tão adorável! Até sendo irritante é adorável.
Como eu consigo não voltar para você? Como consigo me
controlar tanto para não me pendurar em seu pescoço e ficar aí
para sempre? Porque eu quero fazer isso. Quero me pendurar
em seu pescoço e morar no seu corpo. Você me acha maluca?
— Eu te acho linda. Vou adorar ser sua casa se você quiser
morar aqui.
— Eu fui uma menina má, não devia ter bebido. Você vai
ficar muito bravo quando souber o que eu fiz. Vai ficar muito
bravo mesmo — sua voz arrastada não soa mais engraçada, ela
parece estar com medo.
— Por que você não dorme um pouco, anjo?
— Você não quer fazer amor?
— Quero, muito. Mas você ainda não está sóbria, então
vamos fazer isso amanhã, tudo bem?
Ela toca meu pênis pela boxer.
— Você vai dormir duro por mim?
— Vou fazer esse sacrifício. Mas claro, você vai me
compensar depois, não é?
Ela ri se lançando sobre mim e a ajeito na cama. A cubro
com cuidado e quero muito me deitar com ela, ao seu lado,
agarrado com seu corpo, mas não faço. Anna tem me evitado a
semana toda, ela pode não querer esse contato íntimo entre nós
quando estiver sóbria. Então me ajeito na poltrona. Vou ficar no
quarto para o caso de ela passar mal, mas vou deixar que tenha
sua liberdade para que não acorde presa em meus braços
quando não é o que quer.

Estou cochilando na poltrona quando Anna chama meu


nome.
— Lucca! Me desculpe, Lucca — sua voz soa chorosa,
alterada, como se Anna sentisse medo. Ela chora baixinho,
percebo e me levanto imediatamente.
— Anna? — chamo, mas ela continua dizendo coisas
ininteligíveis e chorando.
Ela está dormindo, está tendo um pesadelo. Me sento ao
seu lado na cama, tocando-a para que acorde.
— Anna, amor, acorde. Anna! É só um sonho, meu amor,
acorde! — seguro sua mão e a aperto, Anna para de resmungar,
de se mover e desperta.
Se senta na cama, sinto seu movimento.
— Lucca?
— Está tudo bem, você teve um pesadelo.
Ela fica calada, mas escuto sua respiração acelerada. Ela
parece tentar se acalmar, toma um pouco de água, ouço o som
de seus movimentos.
— Você está se sentindo bem? Você quer vomitar?
Ela nega e segura minha mão.
— Tive um pesadelo por causa da culpa — confessa
baixinho e não faço ideia do que está falando. — Eu omiti uma
coisa de você, algo muito importante e acho que você vai me
odiar depois disso, Lucca.
— Anna, do que você está falando?
— Eu fiquei confusa, não sabia o que fazer. Eu ainda não
sei o que fazer ou o que sentir e talvez isso nem seja nada
demais e eu esteja tão mal por nada — ela diz e tenta se
levantar, mas sua mão ainda está na minha e a seguro, trazendo-
a de volta para perto.
— Anjo, você pode me contar o que está havendo. Estou
aqui com você, seja o que for vamos resolver. Você não está
sozinha, Anna, sei que não acredita nisso, mas não está. Me
conte, amor, divida o que tem passado comigo, me deixa cuidar
de você.
— Você vai ficar com raiva — sua voz sai em um sussurro.
— De você? Dificilmente.
— Acho que vai.
— Anna...
— Nós transamos em Monte Verde, três vezes. E por três
vezes você se derramou dentro de mim. E desde que você me
mandou ir embora, eu estive tão atordoada e desligada e eu... —
ela para de falar e respira fundo de novo. Aperto sua mão para
que tome coragem de prosseguir. — Eu não tomei o
anticoncepcional desde que fui embora.
Meus dedos se moviam pelos seus na tentativa de acalmá-
la. Quando processo o que ela disse, eles congelam. Meu corpo
todo congela, acredito que minha respiração também.
Anna pode estar grávida.
— Eu não o tomei por nenhum dia naquelas três semanas
— ela completa.
Ainda não consigo ter qualquer reação.
— Você está bem? Vai ter um ataque cardíaco ou algo
assim? Será que eu não podia assustá-lo desse jeito depois da
concussão? — ela pergunta se movendo na cama, ajoelhando-se
nela, de frente para mim, sinto isso porque seus joelhos estão
encostados em mim. — Lucca, por favor reaja. Não é o fim do
mundo, talvez eu não esteja grávida, talvez isso não signifique
nada!
Ela solta minha mão e se levanta. São tantas coisas
passando pela minha cabeça que não consigo colocar algo em
palavras.
— Eu não fiz de propósito — ela diz desesperada. — Não
deixei que você explodisse em mim de propósito. Eu nem me
lembrei do remédio, eu me lembrei no dia seguinte. E sim, eu
podia ter tomado uma pílula, mas foi tudo tão corrido e teve o
baile e você me deu um anel e eu ia pedir que passássemos em
uma farmácia naquela noite, mas eu não sei... não pedi... — sua
voz agora é chorosa e me levanto, indo em direção a sua
respiração acelerada. Seguro suas mãos então. Estão geladas,
ela treme.
— Anna, se acalme, tudo bem? Eu não acho que você fez
isso de propósito, por Deus, jamais pensaria isso! Eu conheço
você, anjo. A conheço do avesso, lembra? Por favor, se acalme,
talvez não seja bom que fique tão agitada. Se formos ser
realistas sempre transamos sem camisinha e só depois da
segunda ou terceira vez você me disse que tomava remédio.
Quer dizer, você podia não tomar e estar esperando um filho meu
neste momento, em uma gestação já avançada. E quem poderia
culpá-la?
Sua mão some da minha e ela se afasta. Quando volta a
falar, sua voz não parece em nada mais calma ou segura.
— Você não me odeia? Não vai dizer que me vinguei de
você? Que eu poderia ter evitado isso? Porque vou te responder
que não fiz isso sozinha! Foi você quem gozou dentro de mim
nas três vezes. Foi você quem apareceu em Monte Verde e ficou
me tentando, me seduzindo e me provocando. Se fosse por mim
nós nem teríamos transado! — Ela para de falar e ri. É um riso
nervoso, mas está rindo do que está falando. — Desculpe, estou
há uma semana com a cabeça cheia de pensamentos e não sei
como lidar com isso.
Rio de volta, finalmente respiro um pouco toda a tensão que
estou sentindo desde que ela acordou.
— Mas você teria sim transado comigo, você sabe disso,
não sabe? Mesmo que eu não tivesse provocado você um
pouquinho — brinco para acalmá-la. — Você me viu tomando
banho, é compreensível que não tenha se lembrado do remédio
então.
— Babaca!
Não sei o que estamos fazendo, desde que ela disse que
não estava tomando o remédio parece que estou meio fora de
órbita. Meus pensamentos não são mais coerentes e menos
ainda meus sentimentos. Há um misto louco de sentimentos
agora. Um filho com ela, um pedaço nosso, parece bom demais
para ser verdade. Mas uma criança tão rápido, quando ainda não
sou capaz de cuidar de uma, quando não tive tempo para me
preparar, principalmente, percebo, quando Anna ainda está tão
magoada comigo.
— Anna, se o seu desespero é porque acha que não quero
um filho com você, então se acalme. Eu quero. Deus, Anna, eu
quero muito! Mas se você não confia em mim para termos uma
família e está arrependida, eu entendo. A decisão do que fazer é
sua. Mas se você estiver grávida e decidir que não quer ter um
filho comigo, não conte comigo, não quero fazer parte desse
boicote ao destino — aviso.
— Não quer fazer parte do quê? — pergunta, e percebo em
seu tom que sua voz soa divertida, emocionada, ela não está
mais com medo.
— Desse boicote. Anna, por que não deixamos que o acaso
resolva isso? Você pode estar grávida, mas pode não estar. Por
que não deixamos que o destino decida? O acaso, o destino, o
universo, seja o que for algo tem nos unido de diferentes formas
desde o início. E na situação em que estamos agora, sinto que
estamos nos encaminhando para um fim. E talvez o destino
esteja gritando em nossa cara que não temos que nos separar.
Então talvez nada aconteça e você vá embora da minha vida em
pouco tempo ou talvez você esteja grávida e... — Paro de falar
porque meus pensamentos não se dirigem para uma perspectiva
que seja boa para ela. — Você não consegue mais confiar em
mim e imagino que ter um filho com alguém em quem você não
confia não seja o que você quer.
Ela não diz nada. A sinto por perto, seu cheiro, sua
respiração, mas ela não diz nada. Não diz o que quero ouvir, o
que peço desesperadamente aqui dentro que ela diga.
— Se serve de algum consolo, quando você foi embora eu
amadureci em duas semanas! Assim, do nada, porque eu tinha
que ir atrás de você. — Ela ri, escuto sua risada baixinha. —
Talvez você tenha que confiar em mim no tranco — concluo e a
resposta que tenho é sua cabeça em meu peito.
A abraço, a prendo em meus braços, me sinto meio
tremendo, acho que tenho um pouco de medo do que o destino
vai reservar, mas por algum motivo louco me sinto feliz. Como se
minha alma sorrisse agora. Anna está calma em meus braços.
Não há mais o desespero, a agitação, se não estivéssemos de
pé eu diria que ela dormiu aqui.
De repente é como se eu tivesse recebido uma resposta a
todas aquelas dúvidas que vem rondando minha mente na última
semana. Se Anna estiver grávida, se tivermos um filho, estarei
para sempre em sua vida. Eu serei seu futuro. Talvez o destino
tenha resolvido isso por nós dois. De repente me pego rindo.
— Por que você está rindo? — ela pergunta.
— O destino tem um jeito engraçado de agir às vezes. Você
se afastou de mim por toda a semana ao invés de me dizer o que
estava acontecendo. E você foi a uma festa e bebeu. Isso não foi
muita irresponsabilidade da sua parte?
— Eu não ia beber! Sabia que tinha que contar a você, mas
estava muito tensa, então planejei tomar um gole apenas para
conseguir falar, mas tudo saiu errado. E não sabemos se estou
grávida, quer dizer, só temos que torcer que eu não esteja, não
é?
— Temos? — pergunto ao invés de responder. — Você quer
continuar assim? Quer se manter afastada como tem estado
todos esses dias? Você se sentirá melhor longe de mim até que
tenhamos certeza?
— Não! — ela responde, aquecendo meu peito
instantaneamente. — Não, eu quero que você fique comigo. Eu
não fiz isso sozinha, já privei você demais de se preocupar.
— Você quase me matou essa semana toda longe de mim.
Isso sim eu chamo de vingança por eu ter sido um idiota com
você.
— Se você está assim com tanta saudade, eu posso dormir
aqui com você, não posso?
Sorrio.
— Você deve. Daqui a pouco tudo o que você bebeu vai
voltar, quem mais estaria aqui para cuidar da sua ressaca, minha
doce Anna?
Ela me guia até a cama. Nos ajeitamos nela, e Anna nos
cobre em seguida. Mas está longe demais. Estamos na mesma
cama e nossos corpos não se tocam.
— Sabe, você não está tomando o remédio, mas não vai
ficar grávida esta noite se por acaso se deitar só um pouco mais
perto — tento.
Ela se move na cama e sinto sua respiração em meu rosto.
Ainda longe demais.
— Para com isso, Anna, venha aqui.
Ela vem, se deita sobre mim, sua cabeça sobre meu peito,
a cerco com meus braços e ela dorme em seguida. Toco sua
mão que descansa em minha barriga, o anel está aqui. Ainda
está em seu dedo. Ela deixou que o destino decidisse ao invés
de tomar a pílula, ela não tirou o anel que dei. Ela escolheu voltar
pra mim e nem se deu conta disso.
Leandro entra cantarolando na minha sala na segunda de
manhã.
— Sabe quanto as ações da empresa subiram? Vinte e seis
por cento! Vinte e seis! Isso é só a primeira semana. Cara, essas
ações vão disparar! Ouça o que eu digo! Ouça o que eu digo! Por
que você não está ouvindo o que eu digo? — grita atraindo
minha atenção.
— Anna pode estar grávida — solto de repente e escuto
algo cair no chão.
— Como grávida? Quando? O que isso significa?
Ele arrasta uma cadeira e se senta sobre ela.
— Ela me contou que não estava tomando remédio desde
que foi embora para Monte Verde. E bem, nós transamos
algumas vezes naquele final de semana. Então existe essa
possibilidade.
— Ah, Lucca, achei que ela estivesse atrasada ou sentindo
enjoos, ou algo assim. Ela atrasou o remédio, mas o toma há
anos, talvez não esteja grávida. Já transei com mulheres assim e
elas não engravidaram, graças a Deus.
— Você acha que tem mais chances de ela não estar
grávida então?
— Acho que não, não faço ideia, vamos perguntar a uma
mulher. Açucena!
— O que está fazendo? Não é pra sair contando para todo
mundo, ela pode nem estar — ralho, mas é tarde. Escuto os
saltos de Açucena pelo piso e antes que eu possa impedir
Leandro abre a boca e conta a ela.
Anna vai me matar.
— Ah, seu filho vai ter pouca diferença de idade para o
meu, eles vão poder brincar juntos — ela comenta animada e
levo as mãos à cabeça exasperado.
— Eu não disse que ela está grávida disse que pode estar.
E não repitam isso, se Anna souber que vocês sabem vai ficar
irritada. Além do mais, seu amante acha que tem mais chances
de ela não estar grávida do que de estar — provoco e ouço o
palavrão de Leandro por eu tê-lo chamado assim.
— Ela tomou remédio por muitos anos? — Açucena
pergunta sentando-se também.
— Como é que eu vou saber disso?
— Bem, o remédio demora um pouco a sair do organismo.
Três semanas parece um prazo curto demais para que tenha
deixado de fazer efeito. Mas você está falando com alguém que
engravidou usando camisinha. Então impossível não é — ela
completa.
— Se você engravidou usando camisinha, tem muitas
chances de a Anna estar mesmo grávida! Meu Deus, eu vou ser
padrinho! — Leandro comemora.
— Vai com calma, não temos certeza, continuamos na
mesma. Vamos ter que esperar que o tempo dê essa resposta —
concluo desanimado.
— Você quer que ela esteja, não quer? — Açucena
observa.
— Estou me apegando a isso desesperadamente.
— Lucca, eu não acho isso. Não quero chatear você,
amigo, mas você precisa manter esses pés no chão ou vai se
decepcionar de novo. E devido ao seu histórico tenho medo de
quando você se decepciona — Leandro alerta. — Mesmo que
esteja grávida, e queira esse bebê, porque nós sabemos que
esse é o sonho dela. Isso não quer dizer que ela vai voltar para
você. Vocês podem ter um filho juntos, serem amigos, e não
viverem juntos, você entende, não é?
— De jeito nenhum! Anna vai se casar comigo e vamos
criar nossos filhos juntos.
— Vocês estão separados. Ela não confia em você, é tudo
muito recente. Eu sei que vocês se amam, e sinceramente acho
que o fato de ela estar aqui de novo, sob o mesmo teto que você,
na sua empresa, significa que ela quer voltar. Só estou dizendo
que você não deve pressioná-la.
— Você não a conhece como eu conheço, Leandro. E sim,
ela está magoada comigo, mas existe algo entre nós dois que é
maior do que todo o resto e que não morreu: o nosso amor. Se
Anna estiver grávida, o destino estará nos dando outra chance.
Eu tenho certeza disso.
— Desculpe, Leandro, mas para ser sincera acho que o
Lucca está certo — Açucena concorda. — Qual é, o amor deles é
nítido! Por quantas coisas eles já passaram? Se existe um casal
destinado a ficar junto é esse. Anna estando ou não grávida, ela
vai voltar para você, Lucca. Só dê a ela tempo.
— Obrigado, Açucena.
Eles se calam de repente e sinto o cheiro de Anna.
— Você comeu hoje? Não a vi tomando o café de manhã —
Leandro pergunta a ela.
— Eu estava sem fome pela manhã, mas tomei um chá com
a Elaine agora — ela responde.
— E está se sentindo bem? — Açucena pergunta dessa
vez. — Não se sente nem um pouco indisposta?
— Estou bem, vocês estão bem? — Anna pergunta
desconfiada e eles confirmam. — Vocês têm cinco pessoas para
receber hoje. São as que captamos no baile. Eu estou atendendo
as ligações e resolvendo isso, mas achei melhor que as reuniões
presenciais sejam feitas por vocês. Vai dar mais credibilidade os
donos da empresa explicando do que uma funcionária.
— Noiva! — corrijo. — Eles acham que você é minha noiva,
então tecnicamente, também uma dona do lugar. E você está
usando meu anel, então tecnicamente é mesmo minha noiva —
arrisco.
— Você disse que esse anel era meu. Você o deu para
mim. Então não tenho que devolvê-lo — ela responde irritada
confirmando que está usando o anel.
— Mas isso é um anel de noivado, um símbolo de um
compromisso para a vida toda. Se você ficar com ele quer dizer
que aceitou o meu pedido. Então é minha noiva!
— Você precisa parar de me dar as coisas e querer tomar
posse delas depois! Primeiro se aboletou na casa, agora quer me
tomar para si por causa do anel!
— Anna, não fique irritada — Açucena alerta.
— Lucca, você quer parar de irritá-la? — Leandro ralha.
— O que vocês estão fazendo? — pergunto baixinho,
entredentes. Esses imbecis não sabem que ela não pode saber
que contei a eles?
— Vocês estão muito estranhos — Anna diz desconfiada. —
Enfim, o primeiro casal chega às onze, estejam preparados.
Ela deixa a sala e Açucena e Leandro ficam rindo enquanto
dou uma bronca neles.

É fim de tarde, já recebemos quatro dos possíveis


investidores novos e falta apenas um. Não precisamos mais
desses investidores, uma vez que Marcelo bancou todo o projeto
acessível a deficientes visuais. Mas Anna parece empenhada
demais em trazer essas pessoas para a Atenas e talvez elas
sejam a chave para que possamos ter mais programas
acessíveis. Não apenas a deficientes visuais, mas a todo tipo de
deficiências. E não precisaríamos esperar que o programa que já
está sendo montado tenha retorno para começarmos outros.
De repente um barulho estranho soa lá fora, a voz de
Açucena está alterada e ela grita por Leandro segundos antes de
alguém entrar em minha sala.
— Lucca, preciso falar com você — é a voz de Aquiles.
Apolo está rosnando ao meu lado e me levanto para
recebê-lo.
— O que você quer, Aquiles?
— Como ousa aparecer aqui depois de tudo o que você
fez? Saia daqui agora mesmo! — é a voz de Leandro.
— Não estou aqui para falar com você — Aquiles responde,
mas é interrompido por Leandro que o acerta com um golpe.
Não faço ideia de onde o acertou, mas sei que Leandro
estava com esse golpe guardado para Aquiles há muito tempo.
Os seguranças entram na sala e Leandro ordena que Aquiles
nunca mais pise aqui, quando Aquiles grita:
— Effie está em perigo! Preciso de ajuda, ela está em
perigo!
— Espere, Otavio, espere. Do que você está falando?
— O que houve com a Effie? — Anna pergunta entrando na
sala.
— A gangue que fazia serviços para mim, a que você
conheceu, Lucca. Estão atrás de mim, eles querem me calar.
Eles vão chegar à Effie, eu preciso tirá-la do país o quanto antes.
Mas ela não quer ir! Não quer voltar para mim, não me deixa tirá-
la daqui!
Ele está realmente desesperado. Sua voz soa engasgada,
estridente, nada parecida ao seu tom sempre arrogante.
— Achei que vocês estivessem separados.
— Estamos, é temporário.
— Diga a ela que ela corre perigo e deve deixar o país —
Anna diz.
— Eu tentei! Vocês não entendem! Não sei onde ela está,
ela não fala comigo, não me atende! Não consigo chegar até ela.
Effie precisa sair do país, Lucca, preciso de ajuda! Ela não quer
sair até que encontrem o seu dinheiro — ele confessa enfim. —
Ela contratou detetives e estão buscando. Os seus bens que eu
vendi, o dinheiro deles está dividido em contas, assim como todo
o dinheiro que você possuía, tudo ainda existe. Effie está
determinada a recuperar isso.
Leandro está rindo agora. Um riso debochado, impaciente.
— Então diga a sua esposa onde o dinheiro está, ela o
devolve ao seu verdadeiro dono e vai embora do país, eu
imagino.
— Você está inventando isso, Aquiles. Quer que
convençamos a Effie que ela corre perigo para que ela vá
embora e não encontre o dinheiro. Acha mesmo que vamos
acreditar em você? — acuso.
— Não é verdade! Eu só quero protegê-la. Lucca, estou
pedindo que tire a Effie do país, ela não pode voltar para a
Grécia, ela deve se esconder, ir para outro lugar, se proteger. Eu
vou dizer onde está o dinheiro assim que vocês a tirarem daqui
eu juro que vou, mas primeiro proteja a minha esposa!
Anna se aproxima de mim e diz baixinho:
— Acho melhor eu ligar para a Effie. Apenas para
confirmarmos que está bem.
— Lucca, por favor. Por favor, proteja a minha esposa. Por
favor, eu imploro. Eles vão matá-la, vão matá-la antes de me
matarem, eu sei disso. Você não faz ideia de quem são eles,
Lucca.
Anna tenta falar com Effie diversas vezes, mas o telefone
está desligado.
— Isso é estranho, Effie não tem o costume de desligar o
celular, ela já me disse isso — Anna comenta assustada.
— Ela não o desliga, Lucca, eles a pegaram. É tarde
demais, a pegaram — Aquiles repete e parece mesmo
desesperado.
Então sinto aquele vento, o vento que sopra em meu
ouvido, entrando de algum lugar nesta sala. Não sei se isso é um
plano de Aquiles, ou o que pretende além de tirar Effie do rastro
do dinheiro que roubou de mim. Mas Effie foi a responsável por
eu ter de volta a Atenas e não posso arriscar sua segurança
porque não confio nada no traste do marido dela.
— Vamos até a Effie — decido. — Você fique longe dela,
Aquiles. Se estão atrás de você, não pode ir ao encontro dela ou
os levará direto até ela. Nós vamos até ela, e vamos mantê-la em
segurança.
— Obrigado, Lucca, obrigado — sua voz soa realmente
grata e aliviada até.
Os seguranças deixam Aquiles ir, Anna vai buscar sua
bolsa para que possamos ir até Effie. Leandro não vem conosco,
enquanto espero Anna, ele me diz que prefere não ir.
— Você acha que ele está mentindo? — pergunto.
— Seu primo é um mentiroso profissional e não possui
qualquer vestígio de caráter. Mas não, não acho que esteja
mentindo. Não dessa vez. Assim como não acho que ele vá dizer
onde está o dinheiro. Mas, para o caso de estar tramando algo,
tirando-o da empresa para aprontar alguma coisa com essa
gangue com a qual está metido, prefiro ficar aqui. Mas Otávio vai
com você e a Anna, só por precaução.
— De todo jeito, temos que manter Effie segura. Vamos
apenas nos certificar que ela está bem, talvez levá-la a um lugar
seguro se não quiser sair do país. De certa forma, tenho uma
dívida com ela.
— Você está certo. Por favor, me mantenham informado.
Anna vem finalmente e Otavio aceita ir conosco. Anna pega
o carro de Leandro, me ajuda a entrar nele e Otavio vai no banco
de trás. Ela segue em direção ao hotel onde Effie estava quando
se falaram pela última vez. Mas conecta o celular no carro e
continua tentando ligar para Effie. Até que, finalmente, o celular
de Effie chama.
— Anna? Acho que estou sendo seguida. Não tenho
certeza, mas o motorista está assustado — Effie diz assim que
atende ao telefone.
— Onde você está? — pergunto.
— Indo para o hotel. O que eu faço?
— Nos envie a localização de em qual hotel está, Effie,
estamos indo buscá-la — Anna pede.
Effie encerra a ligação e manda a localização.
— Ela não está mais no mesmo hotel, é para o outro lado
— Anna diz.
— Otavio, você pode entrar em contato com sua equipe? —
peço.
— Agora mesmo, Lucca, já estou em contato com eles. Vou
direcioná-los para lá.
Anna pisa no freio com tanta força, que o carro desliza pela
pista. Gira o carro de qualquer jeito e faz a volta. E então dirige
como uma maluca para chegarmos até Effie enquanto torcemos
que Aquiles esteja mesmo aprontando uma das suas e Effie
esteja a salvo.
Effie está tremendo quando descemos do carro na casa de
Leandro. No início, não estava tão assustada, pois acreditava
que o carro perseguindo o seu fosse apenas uma coincidência.
Mas quando alguém da equipe de segurança de Otavio
reconheceu o carro como um usado pela gangue com que
Aquiles se envolveu, ela realmente teve medo. De forma que não
foi difícil convencê-la a vir para a casa de Leandro e ficar
conosco até seu voo, daqui alguns dias.
A estou ajudando com suas malas pelas escadas, quando
Leandro parece ter visto um fantasma. Ele corre até mim e tira a
mala de Effie das minhas mãos.
— Mas o que você pensa que está fazendo? — pergunta
alterado. — Não pode fazer esforço assim, Anna.
Olho para Effie confusa e de volta para ele.
— Por que não?
— Porque... porque... você é uma mulher, não pode fazer
tanto esforço, essa mala está pesada e eu sou homem e estou
aqui para isso.
Algo está entranho com Leandro desde cedo.
— Bem, então pegue a mala das mãos da Effie também,
afinal de contas, ela também é uma mulher.
— Claro, eu já ia pegar — ele responde e tira a mala das
mãos de Effie e mal consegue subir com o peso das duas.
Ajudo Effie a ajeitar as roupas que mais usa no armário,
para facilitar para ela até sua viagem e percebo que ela parece
além de assustada, bastante triste. Enquanto ajeito as coisas de
Effie no banheiro, me certifico mais uma vez que ainda não
desceu, estou atrasada há dois dias. Um frio no estômago me
toma quando comprovo que não e meu coração se agita. Tenho
medo, mas mais do que isso, me sinto feliz. Se eu tiver um filho
do Lucca, nunca mais ele vai poder me mandar embora. E
mesmo que não estejamos juntos como um casal, nunca mais
serei sozinha, terei ele e Leandro para sempre e meu filho. O
terei para sempre também. Toco a barriga esperançosa e volto
ao quarto quando alguém bate na porta.
Lucca veio se certificar que Effie está bem, ao seu lado, seu
fiel companheiro Apolo. E vê-lo aqui me faz ter vontade de me
pendurar nele e me manter em seu abraço até que saibamos se
estamos ou não esperando um bebê, porque por toda a semana,
desde que perdi o prazo de tomar a pílula do dia seguinte, minha
mente esteve cheia, meu peito cheio, eu senti mais medo do que
qualquer outra coisa. Mas então, quando conversamos na outra
noite e ele me acalmou, me abraçou e dormiu comigo, parece
que tudo ficou bem. Porque ele me faz bem. Não é seguro, não é
para sempre, mas me faz tão bem!
— Você está bem? — ele pergunta baixinho enquanto Effie
fala ao telefone com alguém.
— Sim. E você?
— Estou um tanto excitado, devo confessar. Você dirigiu
feito uma motorista de corrida hoje, acelerando segura, chegou
tão rápido até a Effie e foi tão segura com ela que tive vontade de
beijá-la ali mesmo, no hotel. Você sabe, está usando minha
aliança, de alguma forma você aceitou que é minha.
— Não começa — ralho protegendo meu anel, como se ele
pudesse tirá-lo do meu dedo. — E você está dizendo isso porque
não pôde ver como eu estava tremendo.
Ele sorri.
— Effie, você pode ficar o tempo que for preciso. Se não
quiser ir embora em poucos dias, vamos te dar proteção pelo
tempo que precisar. Há seguranças na porta de casa e do
condomínio. Onde você quiser ir, seguranças irão com você. São
muito bem treinados, você não tem o que temer — Lucca garante
a ela.
— Agradeço, Lucca, mas tudo está encaminhado aqui, é
melhor mesmo que eu me vá. Vou voltar para casa, na Grécia.
— Aquiles disse que você não deve voltar para lá, Effie —
comento.
— Aquiles não pode mais intervir em para onde vou. Ele
perdeu esse direito. Acho que isso é culpa minha, na verdade. Eu
disse a ele que para dar outra chance ele teria que corrigir tudo o
que havia feito. Que ele teria que entregar a gangue e devolver o
dinheiro do Lucca. Mas ele me disse que o tal chefe dessa
gangue sabia sobre o dinheiro, eles o ajudaram a desviá-lo e eles
o queriam. Então eu disse que ele deveria escolher qual caminho
seguir.
Ela abaixa a cabeça e tenta ser forte.
— Não sei o que é pior, ele não ter escolhido ou eu estar
mentindo para puni-lo. Não importa o que ele faça, não vou voltar
para ele. Não vou me deitar na mesma cama e dormir tranquila
ao lado de alguém que mente tanto. Sabe o que é não conseguir
mais confiar em alguém? Eu não consigo.
Lucca está tenso e eu também. Sim, não confio mais nele.
Mas durmo melhor em seus braços do que longe dele. Ficar
longe dele por uma semana foi um martírio, um sacrifício grande
demais. Eu o observava de longe na empresa, chegaram a criar
a “hora de olhar o Lucca” onde as meninas se juntavam a mim
observando-o, de tanto que eu o fazia.
— Eu sinto muito, Effie. Apesar de tudo o que Aquiles fez e
de acreditar que você merece alguém melhor, acho que se vocês
se amam, as coisas vão se resolver. O destino vai dar um jeito —
Lucca diz. — Você está olhando para mim agora e não faz ideia
do grande imbecil que eu era, se eu tive conserto, talvez o
Aquiles também tenha. O amor faz toda diferença, Effie, não
deixe de acreditar nisso.
Effie sorri. Pela primeira vez desde que a pegamos mais
cedo, ela sorri.
— Eu acreditaria nisso se nos conhecêssemos agora, se os
erros dele fossem antes de nós dois, como é o seu caso. O amor
o transformou, mas o amor não foi o bastante para o Aquiles.
Mas agradeço, Lucca. E Anna, esse anel é perfeito. Esse é meu
designer preferido também. Parabéns pelo noivado.
— Ah, não, nós nãos estamos mais juntos — informo meio
sem jeito e a expressão de Lucca se torna triste.
— Não? Desculpe, mas vocês não parecem nem um pouco
separados. Vocês brilham quando estão próximos. Não posso
acreditar que tenham se separado.
— Vou deixar vocês a sós. Effie, se precisar de qualquer
coisa é só pedir — Lucca diz e deixa o quarto com Apolo, sempre
à sua esquerda guiando-o.
— Anna, o que você está fazendo? Como pode não estar
com seu babaca? Eu não entendo.
Me sento com ela na cama e toco minha barriga, quando
percebo o gesto afasto as mãos.
— Ele não é seguro. Ele disse que era meu para sempre e
eu confiei nele, mas quando conseguiu um doador e passou sua
vez para que uma criança recebesse a córnea em seu lugar, me
mandou ir embora. E foi atrás de mim algumas semanas depois,
mas então eu já estava ferida demais. E parece que isso não
sara. E por mais que eu o ame, quando penso em esquecer e
voltar, algo me diz que não devo.
— Você não confia mais nele.
— Não.
— Anna ele é uma pessoa, um ser humano como você,
como eu, como Aquiles. Ele pode ser seu para sempre e pode
querer isso mais do que tudo. Mas pode ter um momento de
fraqueza e dor onde diz o que não queria dizer. Porque é isso o
que humanos fazem, eles erram. Isso não quer dizer que ele não
seja seu para sempre realmente. Só que por um momento se
sentiu fraco para ser. Mas se você sente que é mais seguro não
estar com ele, faça o que seu coração manda.
— Mas meu coração só faz querer ele! Ele não manda
direito, Effie.
Ela ri, Effie segura minhas mãos e ri. Um riso aliviado,
divertido.
— Anna, como eu precisava disso, conversar assim, rir um
pouco com uma amiga. Estou muito feliz por ter conhecido você.
A abraço para confortá-la e passamos mais algumas horas
conversando sobre tudo e nada em especial até que ela esteja
calma o bastante para ir dormir.

Na manhã seguinte, me sinto sem fome. Não vou à


empresa hoje porque quero ficar com Effie. Ela não vai se sentir
bem sozinha em uma casa desconhecida com tantos
seguranças. Estamos tomando o café da manhã, quando
Leandro tira a xícara de café da minha mão, substituindo-a por
suco.
— O que está fazendo?
— Você não acha muito mais saudável tomar um suco
natural do que café? — responde.
Observo sua xícara de café pela metade e cruzo os braços.
— Você acha? Então por que está tomando café?
— Eu? Não — responde arrastando a xícara para longe e
se servindo de um copo de suco. — Acho melhor cortarmos o
café desta casa por uns dias, você não concorda, Lucca?
Encaro Lucca que tem um sorriso no rosto. Ele respira
fundo, como se Leandro o estivesse irritando, mas por fim
assente.
— Nada de café a partir de agora.
— O que está acontecendo? Por que você está agindo
estranho? — questiono Leandro.
— Não estou, só quero o seu bem. — O celular dele toca e
ele parece aliviado ao afastar-se para atender.
Contrariada, acabo tomando o suco mesmo porque Leandro
colocou minha xícara de café longe demais e estou me sentindo
muito cansada para ir pegá-la. Quando se senta à mesa de novo,
ele diz a Lucca:
— Lucca, o corretor ligou. Ele virá hoje para mostrar a casa
que te falei a um comprador interessado, você tem certeza que
não a quer?
Engasgo com o suco e Effie me socorre. Lucca está
comprando uma casa?
— Eu sei que você disse que prefere um apartamento, algo
pequeno, mas a casa é tão boa, Lucca! — Leandro insiste.
— Na verdade, acho que uma casa seria uma opção
melhor. Você disse que ela possui um quintal grande, não é?
— Sim. Sendo sincero, acho que você deveria ficar com a
casa. Eu posso ir vê-la para você, se quiser.
Não entendo nada do que está havendo nesta mesa. Lucca
está comprando uma casa, ele ia comprar um apartamento, mas
parece ter mudado de ideia. E eu não estava sabendo de nada.
— Você vai sair desta casa, Lucca? — Effie pergunta
finalmente dando voz a pergunta que ronda minha cabeça.
— Sim, mas não enquanto você estiver aqui. Assim que
você for, devo me mudar também. A situação na empresa está
tão boa quanto pode ficar, então não há mais motivos para
continuar aqui, na casa do Leandro.
De repente me dou conta que não sei para onde vou se
Lucca sair desta casa. Ele é o motivo para eu ainda estar
morando nela. E me dou conta que não possuo uma casa aqui.
Minha casa fica longe. Se Lucca e eu não estamos mais juntos,
no que eu estava pensando quando vim para cá com ele? Agora
ele vai deixar esta casa e eu não sei para onde vou, pois se
voltar para Monte Verde, vou viver longe dele. Aquela sensação
de pânico, de saber que não pertenço a lugar nenhum começa a
me tomar.
Até que Lucca diz:
— Você pode ir olhar a casa que está citando para mim por
favor, Leandro? Anna, você devia ir também para ver se a
agrada, se o quintal é mesmo tudo isso que o Leandro está
prometendo.
— Por que eu iria?
Ele para o movimento de levar a xícara à boca no ar.
Parece sem graça, até meio sentido.
— Porque não vou a lugar nenhum sem você. Uma vez que
não posso vê-la e você vai morar nela, acredito que deva ir
conhecê-la.
— Você estava planejando sair desta casa e me levar
junto?
Ele não responde de imediato, mas aquele pânico que
havia começado a surgir some. Ele nunca pretendeu me deixar
de fora.
— Podemos nos falar por um minuto? — ele pede
levantando-se e o sigo.
Ele anda sem a bengala, apenas com Apolo até o escritório
de Leandro. Passamos pela porta e ele a fecha.
— Eu fiz errado? Você não quer sair desta casa? Achei que
agora que temos o dinheiro da venda dos imóveis poderíamos
comprar algo para nós e poderíamos deixar o Leandro em paz.
Você sabe, estamos aqui de favor há tanto tempo!
Sorrio. Um sorriso bobo brota em meu rosto e quero pular
sobre ele, então preciso me controlar. A maneira como ele diz
nós, sempre nós, nunca eu, ele não me tirou de seus planos
ainda que eu tenha dito que não vamos mais ter um
relacionamento.
— Não, não por isso. Eu só não pensei que fôssemos viver
juntos... nós estamos separados — explico.
— Ah, me desculpe, eu... — ele se vira de costas e coloca
as mãos nos bolsos da calça jeans que usa. — Se você estiver
grávida, não quer dizer que vai ficar comigo, não é? Não quer
dizer que vamos ter uma família. Só vamos ter um filho juntos e
vamos viver separados.
A dor em sua voz é tão nítida, que quero abraçá-lo
imediatamente.
— Lucca...
— Eu entendo, Anna, eu entendo. Não estamos mais
juntos. Acho que você vai ter que repetir isso mais um milhão de
vezes para que entre em minha mente e eu seja capaz de
aceitar. Porque em cada plano, em cada pensamento, você está
comigo. Não me imagino sem você. Eu passei uma semana sem
você e quase enlouqueci, você não faz ideia do escuro em que
estive quando você se afastou. E eu me perguntei por toda essa
semana se sou seu futuro, uma vez que machuquei você. E
quando você disse que pode estar grávida, eu achei mesmo que
o destino estivesse me dando uma resposta.
— Eu não quis dizer isso. Eu não pensei no depois, Lucca,
estava assustada demais com a simples ideia de estar
esperando um filho seu. Me desculpe, eu realmente não quis
dizer isso. Sim, nós estamos separados, e você não pode se
culpar por estar confuso, porque moramos sob o mesmo teto,
trabalhamos juntos e todos acham que estamos juntos. E eu te
procuro quando me sinto mal porque você é minha alegria, então
isso soa confuso mesmo.
Ele ri de repente. Não é um riso feliz, nem aliviado.
— Sabe o que é engraçado? Uma vez você me perguntou
se o meu amor, se nosso futuro juntos dependia da minha
condição física. Agora sou eu que pergunto se seu amor, se
nosso futuro juntos depende da sua. Mas você não precisa me
responder agora. Se você estiver grávida, não vou abandoná-la,
Anna, nem ao meu filho. Se quiser viver em uma casa separada
e não termos uma relação, é seu direito. Ainda assim você devia
ir ver a casa. Porque você e o bebê podem viver nela se você
achar que é boa.
Meu coração está apertado agora, quero tanto abraçá-lo e
dizer que vamos viver juntos e ter uma família juntos, que chega
a doer não dizer isso. O que é esse medo me travando? Nunca
fui alguém que perde para o medo, é a primeira vez que me
acovardo assim. Por que tudo com Lucca é tão diferente?
— Você me disse que nasceu para ser sozinha, mas acho
que o destino também te deu uma resposta — ele diz em
seguida, seu rosto de alguma forma mais leve, seu tom mais
leve. Até tem um sorriso disfarçado em seus lábios.
— Vamos esperar para saber.
— Só quero que saiba que você está usando meu anel de
noivado. A culpa é sua se me confundi.
— Isso de novo! Já disse que esse anel é meu! Você não
disse que eu teria que devolver!
— Essas coisas não se dizem, porque se você aceita um
anel de noivado é porque aceitou o pedido de casamento. Isso
não é óbvio? Que noivo dá o anel à noiva e diz: mas se você
mudar de ideia tem que me devolver? Isso fica subentendido.
— Quer saber? Eu vou ir lá ver a casa com o Leandro,
porque você é um babaca irritante! — digo e saio do escritório,
deixando-o lá. Mas um sorriso bobo teima em ficar em meu rosto.

O corretor nos recebeu mais cedo do que havia marcado


com outros possíveis compradores a pedido de Leandro. A casa
fica próxima à casa de Leandro, próxima também a casa de
Bruno, é possível ver seus filhos brincando no quintal dos fundos
da casa dele, da entrada desta casa. Ela não é grande demais,
como a de Leandro, o que é uma coisa maravilhosa. Não me
sinto deslocada, embora possua tanto luxo no acabamento, que
sequer sou capaz de identificar os nomes que o corretor vai
citando. Começamos pela porta da frente, uma porta enorme na
cor preta, que adorei.
Assim que entramos na casa, o cheiro de poeira do lugar
fechado nos atinge. Imediatamente, Leandro me guia para fora
dela.
— Você não pode entrar aqui, vai acabar pegando um
resfriado.
— O quê? Claro que não! Não sou alérgica.
— Está muito sujo, Anna. Você vê o quintal e eu vejo dentro
da casa.
— Leandro, quer parar com isso? O que deu em você?
O encaro irritada e ele parece assustado. Me solta então,
com um sorriso no rosto e dá de ombros.
— Nada demais, só estou cuidando da sua saúde.
— Por quê? Acaso tenho alguma doença? Estou prestes a
morrer e não estou sabendo?
— Não! Deus que livre, Anna, não fala isso.
— Ótimo! Então pare de ser estranho e me deixa entrar na
casa!
Ele sai da minha frente finalmente, peço desculpas ao
corretor e somos guiados por uma casa linda, em cada cômodo
consigo imaginar o quanto poderia ser um lar. A cozinha é
espaçosa e possui alarme de incêndio. Sorrio ao ver os
detectores no teto. E quando o corretor abre as cortinas de uma
grande porta de vidro, temos a vista do quintal que Leandro havia
falado.
Ele é maravilhoso! Espaçoso, possui uma piscina, área
gourmet e brinquedos para crianças. Quem morava aqui antes
tinha filhos pequenos. Por um segundo consigo ver cinco
crianças barulhentas correndo para todos os lados, se
amontoando no pequeno escorregador, rindo alto. Consigo ver
uma delas tropeçar em sua pressa e Lucca se aproximar,
ajudando-o a se levantar. É quase como se eu estivesse
assistindo a um filme na televisão.
— Anna? Anna, está tudo bem? — Leandro pergunta e
volto a mim. A visão se desfazendo.
— Sim, tudo bem. Só estou encantada com este lugar.
Leandro pede licença ao corretor para conversarmos e me
guia pela grama que está um pouco alta até dois enormes
balanços. Me sento em um e ele em outro.
— Você consegue se ver aqui, não é? Com os filhos que
deseja. Com o Lucca ao seu lado. Você imagina o seu futuro com
ele. Não importa que diga que não estão mais juntos.
Assinto.
— Eu o amo. Mas é estranho, é diferente. Eu nunca tive
alguém para amar assim, não a ponto de ser indispensável para
mim. Eu sempre soube superar, seguir em frente. Eu chorei pelo
Igor por três dias, Leandro. Três dias e mais nada. Mas chorei
pelo Lucca por três semanas e só parei porque ele estava lá
comigo depois disso. E ainda o amo e o sinto em mim e não
consigo fazer planos em que ele não esteja. Mas também não
consigo simplesmente dizer que podemos ficar juntos. Alguma
coisa está me travando.
Começo a me balançar no balanço, mas Leandro se levanta
imediatamente e o segura.
— Não! Esta casa está vazia há mais de um ano, não
sabemos como foi feita a estrutura deste suporte e você não vai
ficar balançando nele. Tudo bem?
Não discuto, por mais estranho ele esteja, porque se eu
caísse daqui poderia prejudicar o bebê. Isso é, se é que há
mesmo um bebê aqui.
Leandro volta a se sentar e diz:
— Acho que você não consegue simplesmente voltar para
ele porque o está punindo. Porque ele a feriu.
— Não, eu não sou assim!
— Não de propósito. Mas há uma coisa curiosa na sua
reação, Anna e vou te falar isso porque você é como uma irmã
para mim e ele é meu melhor amigo. E não aguento mais ver
vocês dois, cabeças duras, sofrendo desnecessariamente.
Assinto, ansiosa pelo que ele vai dizer.
— Uma vez, um ano atrás, você me acusou de ter
abandonado meu melhor amigo quando ele mais precisou de
mim. Na ocasião, eu o havia abandonado porque ele se fechou,
eu havia permitido que ele me tirasse de sua vida e você disse
que eu não podia ter feito isso, que Lucca tinha motivos para ser
babaca e eu deveria ter tido paciência.
Começo a entender onde essa conversa vai acabar.
— E agora você está fazendo a mesma coisa. O mesmo
Lucca, ferido do mesmo jeito, reagindo da mesma maneira. Você
agiu como eu, da mesma forma que você julgou errada.
— Não, Leandro.
— Não? Tem certeza? Pensa bem, na primeira vez ele
estava desesperado por ter perdido a visão e tudo o que possuía.
Você disse que era justificável que ele agisse como um babaca.
Agora ele achou que voltaria a enxergar, ele a pediu em
casamento, me fez encomendar um anel difícil pra caralho de
encontrar, para sair do hospital na mesma condição em que
entrou. É compreensível que ele tenha se sentido destruído,
Anna. É normal que tenha reagido como reagiu. Era a dor e não
ele. E não estou dizendo que ele agiu certo, porque dessa vez
ele tinha responsabilidade emocional com você, afinal vocês
estavam juntos, mas que talvez você o esteja julgando um pouco
duro demais.
Abro a boca para retrucar, mas nada sai. Leandro está
certo. Isso não diminui a mágoa que sinto, nem o medo de fazer
dele meu porto seguro de novo. Mas me coloca em outra
perspectiva aqui. Onde eu poderia ter agido diferente, ter feito o
que ele disse em seu livro, dito que ia ficar e pronto. Quantos
dias ele demoraria para superar a tristeza e me pedir desculpa?
— Vamos? O corretor está nos chamando. Vamos voltar
mais cedo da Atenas hoje, está bem? Você, por favor, se cuide.
Concordo e deixamos a casa. Passo a tarde com Effie, mas
minha mente está longe, nas palavras de Leandro.
Quando eles chegam da Atenas, Effie e eu vamos recebê-
los. Açucena está com eles já que Miguel é o primeiro que
avistamos. Ele corre até mim e me pede colo. O pego, jogando-o
para o alto e o abraçando em seguida, ouvindo sua risada
gostosa. Vou dar um beijo em seu rosto quando ele é arrancado
das minhas mãos.
— O que você está fazendo? Não pode pegar um bebê tão
pesado! — Leandro ralha. Foi ele quem tirou Miguel da minha
mão.
Açucena está com olhos arregalados e Lucca acerta um
peteleco nele.
— Está legal, o que está acontecendo? Por que você está
agindo tão estranho? E não venha me dizer que é porque quer o
meu bem.
— Mas é — ele diz.
Estendo os braços diante dele, que ainda segura o bebê.
— Me devolve o Miguel.
Ele dá um passo atrás.
— Não posso.
— Leandro, me devolve a criança! Ele quer vir para o meu
colo! — reclamo quando Miguel estende os bracinhos em minha
direção. Mas Leandro nega.
— Você não pode pegar esse peso!
Abro a boca para protestar, quando Leandro confessa,
claramente envergonhado.
— Me desculpe, Anna, é que o Miguel despertou em mim
um lado paterno que nunca tive. Só que não posso extravasar
isso com ele, porque não sou seu pai. Não posso agir como seu
pai, tenho medo que a Açucena ache que estou invadindo seu
espaço se cuidar dele como gostaria. Então estou extravasando
tudo isso em você.
Açucena parece se derreter, se aproxima dele e deposita
um beijo carinhoso em seu rosto.
— Você pode agir como o pai dele, há quanto tempo é você
quem cuida dele comigo? Foi você quem esteve com ele no
hospital naquela vez, você comprou os remédios, você me
ajudou a dá-los nos horários certos. Quantas fraldas você já
trocou? Leandro, o Miguel foi abençoado pela vida com dois pais.
Graças a Deus um deles é maravilhoso, porque é você.
Effie suspira ao meu lado, estou emocionada com a cena
diante de mim. Os dois se abraçam, Açucena tem lágrimas nos
olhos, e quando olho para Lucca, entendo tudo.
— Seu imbecil! Você contou a eles! É por isso que o
Leandro está agindo tão esquisito! Porque posso estar grávida.
— Amor, se acalme... — Lucca pede se aproximando.
— Nós nem fizemos um teste, Lucca! Nem sabemos se
estou mesmo grávida e você saiu contando!
— Em minha defesa eu só contei ao Leandro, ele que saiu
espalhando. — Lucca se defende e encaro Leandro.
— Em minha defesa eu só contei.... mentira, eu contei para
um monte de gente porque estou muito empolgado em ser
padrinho, foi mal, Anna.
— Um monte de gente? Quantas pessoas sabem?
— A empresa inteira, eu acho — Açucena comenta
cautelosa.
— Eu não sabia, parabéns, Anna! — Effie diz emocionada e
me abraça.
— Obrigada, mas ainda não sabemos se estou grávida. O
Lucca não devia ter aberto a boca.
Olho para ele que está rindo. O babaca está achando
divertido.
— Bem, agora todos sabem que vamos ter um bebê. O que
vocês não sabem é que ela não quer ficar comigo ainda assim,
então bem-vindos ao meu martírio — ele provoca.
Açucena pega algo da bolsa e diz empolgada:
— Vamos resolver logo isso. Eu trouxe um teste de
farmácia.
De repente me sinto tensa. Meu coração parece saltar pela
boca e minha respiração falha. Lucca está do mesmo jeito. Ele
mexe os dedos impaciente e parece estar suando frio. Açucena
me orienta sobre como fazer o teste e todos ficam no quarto
esperando atrás da porta.
Respiro fundo, tiro a roupa íntima para o teste e então
percebo o sangue. Minha menstruação desceu. Não estou
grávida. De repente parece que minhas forças se vão. Não estou
grávida. Não haverá um bebê, não haverá nada que faça Lucca
me manter em sua vida para sempre.
Eu tinha tanta certeza! Eu tentei não me apegar a falsas
esperanças, mas eu quase podia sentir a vida dentro de mim.
Alguém bate na porta e a voz de Leandro soa do outro lado.
— Anna, por que está demorando?
Respiro fundo, segurando as lágrimas.
— Não, não estou grávida! — grito de volta.
Há alguns segundos de silêncio e depois Açucena diz:
— Às vezes um teste pode falhar. Vamos comprar mais
três.
— Não é necessário, Açucena. Eu não estou grávida. Não
preciso de teste, eu tenho certeza.
Finalmente ela entende, eles conversam baixinho lá fora,
mas não me importa o que estão dizendo. Encontro forças para
me limpar e sair do quarto. Passo direto por eles, desço as
escadas e saio da casa. Vou andando pela rua. A noite já caiu,
está um clima fresco, uma noite estrelada. Abraço meu corpo
pelo vento fresco que sopra minha pele e continuo andando.
Quando me dou conta estou em frente à casa onde estive com
Leandro mais cedo.
A porta com certeza está trancada, mas, para minha sorte,
a cerca da lateral da casa que dá acesso ao quintal é fácil de ser
pulada. Nem reclamo pela minha sina, apenas a pulo e vou até o
quintal. Ignoro os brinquedos aqui, o balanço, encontro um ponto
na grama e me deito sobre ele. E fico aqui, olhando as estrelas e
a lua. É lua nova esta noite.
Não estou grávida. Ainda vou continuar sendo sozinha. E
tudo bem, posso ser sozinha, está tudo bem.

Estou sentindo frio, mas não quero me levantar. Não sei há


quanto tempo estou aqui, quando escuto um barulho e alguém
grita. Me levanto depressa e encontro Lucca caído com a cara na
grama para o lado de cá da cerca e Apolo de pé do outro lado
dela. Lucca tentou pular a cerca. Encaro a cena e começo a rir.
Ao invés de ajudá-lo, tenho uma crise de riso. Ele vira-se de
barriga para cima e permanece deitado, deixa que eu ria dele.
Logo, está rindo também.
— Um cego tentando pular uma cerca, não é uma boa ideia
— comento quando consigo parar de rir.
— Isso não é coisa que se diga a um cego, Anna.
— Mas eu só disse o óbvio. Você caiu com a cara no chão,
não foi?
— E acho que comi grama. Espero que seja apenas grama.
Você vai ficar aí rindo ou vai me ajudar a levantar?
O ajudo a levantar-se, passo Apolo pela cerca e o guio até
onde eu estava antes. sua roupa está amassada e cheia de
grama.
— Como você me encontrou?
— Não precisei procurar. Leandro disse que você se
apaixonou pela casa, que parecia estar com a mente em outro
lugar, como que imaginando nosso futuro aqui. Me fixei no fato
de ele ter dito nosso futuro e não seu futuro, então achei que viria
para cá quando se sentiu triste. E que não se importaria se eu
viesse também, uma vez que esta casa também seria minha e o
bebê também seria meu.
— Me desculpe por ignorar a sua dor.
Ele assente. Respira o vento fresco, algo que ele adora e
joga o corpo para trás, deitando-se na grama, como eu estava.
Faço o mesmo, me deitando ao seu lado.
— Você me disse que o destino nos deu uma resposta, mas
não deu — comento. — A nenhum de nós dois.
— Talvez não tenha dado, mas mostrou um caminho, você
não acha? Nos mostrou exatamente o que queremos para nosso
futuro. Agora, você não está grávida ainda, mas isso, Anna, é tão
fácil de resolver!
Sorrio. Na verdade, estou rindo baixinho. Percebo
assombrada que não há mais angústia, nem tristeza agora.
— Nós sabemos o que queremos, Anna. Talvez não seja
agora, mas é o que queremos. Então tudo bem, tenho uma
proposta a te fazer e vou te dar o benefício de pensar primeiro.
Você não tem que me responder agora.
— Me surpreenda — desafio.
— Vamos morar nesta casa. Nós dois. Como amigos
primeiro. Se você não se sentir bem, ou achar que não vai
mesmo confiar em mim, então seguimos caminhos diferentes.
Não respondo de imediato, mas me parece uma boa
proposta. De algum jeito, sua proposta me acalma. Sinto que não
vou estar sozinha tão cedo e isso me estabiliza.
— Esse foi o lado idealista da coisa, claro — ele comenta
diante meu silêncio.
— O que quer dizer?
— Na prática, vamos morar juntos, transar sempre, vou ficar
cada dia mais apaixonado por você e um dia você vai decidir que
nunca voltará a confiar em mim e vai embora. Eu vou me afundar
em bebida, desistir do mundo e magoar alguém. Você vai se
meter em confusão onde quer que esteja e vai acabar voltando.
Então eu vou te receber, eu sempre vou te receber. Só vamos ser
amigos e vou provocar você até que vá para a cama comigo de
novo. Então vamos transar sempre, vou ficar cada dia mais
apaixonado por você e um dia você vai decidir que nunca voltará
a confiar em mim...
Estou rindo e acabo interrompendo seu drama.
— E vou acabar magoando alguém — ele completa.
De repente ele se vira na grama, seu corpo próximo demais
ao meu, sua boca próxima demais da minha. Ele acaricia meu
rosto, meu cabelo, de uma maneira tão gentil que me acalenta.
— Eu sinto muito que você não esteja grávida, meu amor.
Eu sei que você queria muito isso. E acho que se formos morar
juntos, ainda que como amigos, você não precisa voltar a tomar o
remédio. Assim, só para o caso de acabar caindo em tentação.
— Você está me avisando com antecedência que vai me
provocar?
— A cada minuto de cada dia.
— Babaca!
Ele me beija de leve, só encosta seus lábios nos meus.
— Eu te amo, Anna. Sempre vou amar. Você tem todo
tempo do mundo para decidir. Você sempre vai ter um lar comigo.
Sempre vai ter um amigo em mim independentemente de
estarmos juntos ou não. Não vai chegar o dia em que vou desistir
de você. Então se você quiser voltar para Monte Verde, ou ir para
qualquer outro lugar no mundo, conhecer pessoas, culturas,
lugares, você pode ir. Na hora em que sentir falta de ter um lar,
estarei esperando por você. Eu sempre esperarei por você, não
vai haver outra mulher para mim.
Meus olhos estão cheios e algo parece derreter na minha
garganta. Porque sei que ele está falando a verdade. Suas
palavras são sinceras, são carregadas desse amor que conheço
tão bem, que reconheço porque também o sinto.
— Eu amo você, Lucca — digo.
— Se não respondermos até amanhã de manhã ele vai
vender a casa para o outro casal que veio aqui — ele informa
afastando-se e se levantando.
— O quê? Mas você disse que eu tinha todo tempo do
mundo!
— Não sei por qual motivo você precisaria de mais tempo
do que agora!
— Você é inacreditável! Eu não vou viver com você! Você
me deixa louca! Vou ir embora assim que o sol nascer.
Ele sorri e me estende a mão, me ajudando a levantar.
— Vamos voltar, amor? Eles devem estar preocupados.
— Você vai me deixar do...
— Você dorme comigo hoje, não dorme? Só para eu não
me sentir triste — ele pede e me pego rindo.
— Eu te faço esse favor.
— Que bom que ao menos isso você não precisa pensar.
— Se me irritar no caminho daqui até a casa de Leandro
vou mudar de ideia e dormir com a Effie.
Ele ri alto enquanto o ajudo a pular a cerca de volta e
caminhamos de mãos dadas, Apolo à sua esquerda, como
sempre, de volta a casa de Leandro.

São três horas da tarde, Lucca estava em uma reunião,


mas agora está sozinho em sua sala. Geralmente eu fico cinco
minutos o observando à uma da tarde, quando ele volta do
almoço, mas hoje estava em reunião e não foi possível. Então
estou aqui, em um horário incomum, na ponta dos pés para
observá-lo. Ele sempre deixa sua porta aberta, uma vez que
tende a quebrá-las, o que me auxilia a examiná-lo
minuciosamente como se eu já não soubesse de cor cada
detalhe de seu rosto.
— Você quer um binóculo? — a voz de Açucena me
assusta de repente.
— Açucena, não faça isso! Se eu estivesse grávida o bebê
teria saído pela bunda agora.
Ela ri alto e me observa atentamente. Então olha para
Lucca e de volta para mim. Faz um gesto negativo com a cabeça
e me pega pela mão, me levando até as escadas.
— O que viemos fazer aqui? — pergunto quando ela se
senta e dá tapinhas no degrau de cima para que eu me sente
também.
— Viemos porque uma vez eu contei a você sobre o que
estava passando com meu marido e casa nesta escada, lembra-
se? — Assinto e ela continua. — Você foi embora pouco depois,
mas nunca deixou de ser minha amiga, porque você parou para
me ouvir e tentou me ajudar.
— Não deu certo — lembro com uma careta.
— Deu sim. Lucca trocou todo o telhado da minha casa no
dia seguinte. Não apenas o telhado, ele mandou um engenheiro
ir à minha casa e tudo o que era perigoso para o tempo de chuva
foi consertado.
Estou boquiaberta e ela tem um sorriso satisfeito.
— Antes disso, Leandro organizou um chá de bebê para
mim, quando eu estava saindo de licença. Lucca não quis
participar, claro. Ele sequer se despediu de mim no meu último
dia. Na semana seguinte eu recebi na minha casa todos os
móveis do quarto do Miguel. Tudo. E um cheque absurdamente
gordo para comprar o enxoval. Eu não faço ideia de como ele
percebeu que eu não tinha quase nada, mas ele me deu tudo.
Ela está emocionada enquanto conta e também me sinto
assim.
— Antes disso, o marido da Elaine deixou a cadeia e não
conseguia um emprego por ser ex detento. Ela pediu a Lucca
uma carta de recomendação para que o marido pudesse
conseguir algo e Lucca se recusou. Mas no dia seguinte, o
marido dela foi contratado como segurança. Ninguém sabe que
ele me ajudou, demoraram a descobrir que o marido dela estava
aqui e pensam que ele fez isso por culpa. A verdade é que Lucca
era estranho, não gostava de ter contato com ninguém, mas
ajudava a todos. O problema é que ninguém tinha coragem de
chegar perto dele para pedir nada.
Rio e ela ri também, secando as lágrimas.
— Por isso quando ele sofreu o acidente e perdeu a
empresa eu o defendi. Eu fiquei aqui aguentando todo tipo de
humilhação, e acredite, Lucca perto de Aquiles era fichinha. Mas
eu fiquei, porque tinha certeza que ele voltaria. Agora eu vou te
contar o que acontece na minha casa de novo. Tenho um bebê e
como você sabe, o pai dele me deixou quando ele tinha poucos
meses. Você foi embora, o Lucca saiu da empresa, e tudo
desandou. Eu tinha um filho pequeno e nenhuma noção de como
criá-lo. Quando decidi descobrir algo sobre Aquiles para
desmascará-lo, me uni a Leandro. Leandro começou a me dar
carona todos os dias, começamos a nos encontrar vez ou outra
fora da Atenas para conversarmos sem que ninguém ouvisse.
Não sabíamos quem aqui dentro estava do lado de Aquiles ou
não. E um dia, quando tinha um ano, o Miguel adoeceu. Ele ficou
muito ruim. O hospital onde o levei disse que era virose e passou
remédios que não resolviam nada. Leandro foi até minha casa
durante a noite, pegou a mim e meu filho e nos levou a um
hospital bom. Miguel ficou internado por uma semana e ele
bancou tudo.
Ela suspira, seus olhos são tão apaixonados que não faço
ideia de como ninguém além de mim percebeu isso na empresa.
— Mas isso não se trata do dinheiro e sim, do gesto. Ele
também ficou lá todos os dias comigo. Ele saía da Atenas e ia
para lá. E então recebemos alta. Ele contratou uma enfermeira
para me ajudar e, Anna, ela me ensinou tantas coisas! Ela me
deu uma segurança tão grande para cuidar do meu filho! E
depois, ele ia todos os dias se certificar que Miguel estava bem.
Brincava com ele, dava os remédios, me ajudava em tudo. E
quando percebi estava perdidamente apaixonada por ele e não
foi difícil, isso foi tipo, uma semana depois de começarmos a nos
encontrar fora daqui para falar do Aquiles.
Sorrio.
— Mas então o Edgar, pai do Miguel, quis voltar para mim.
Eu não voltei, claro, mas ele voltou a frequentar minha casa, por
causa do Miguel. E o Leandro passou a ir menos para que Miguel
convivesse com o pai. E apenas quando você e o Lucca foram
morar com o Leandro foi que ele começou a ir à minha casa
assim mesmo. Foi como se o amor de vocês o inspirasse. Ele
esperava o Edgar ir embora e ia dormir comigo. Só que um
homem como ele não tem que ficar escondido no carro em uma
esquina qualquer esperando que possa entrar para ver a mulher
com quem está. E ele não quis mais isso. Ele quis que eu
tomasse uma decisão, que dissesse ao Edgar que segui minha
vida, que tenho outra pessoa e o enfrentasse. E Anna, eu não sei
que merda havia na minha cabeça para duvidar. Eu não devia ter
apenas dito sim?
Assinto.
— Mas não disse. Eu disse que tinha que pensar, precisava
ver, precisava preparar o terreno. Anna! O que Edgar tem a ver
com a minha vida? O Miguel tem uma mãe que vive por ele e ele
não precisa de mais ninguém. Ainda assim ele tem dois pais e
isso não é uma coisa ruim. Mas por algum motivo eu pensava
que se fizesse isso o Edgar ia transformar a minha vida em um
inferno de novo e o Leandro ia desistir e arrumar outra mais
jovem, menos descomplicada, que não tenha uma bagagem para
ele lidar. Eu tive medo e pronto. Me rendi ao medo e não fiz o
que ele pediu, então ele terminou comigo.
— Eu sinto muito — digo e ela nega com a cabeça.
— Não sinta, eu mereci. Foi o que ganhei por ser covarde.
Então ontem eu fui ver você, com o teste de farmácia. Saímos
daqui e pegamos o Miguel na creche, eu havia comprado o teste
na hora do almoço e fomos para a casa dele. E então ele disse a
você aquelas coisas sobre se sentir o pai do Miguel e ter medo
de me chatear com isso e eu entendi que ele não vai desistir. Ele
não vai. Ele me escolheu e escolheu o Miguel e não tem porque
eu ficar escondendo isso se eu o amo e estamos juntos. Então
finalmente nós conversamos, colocamos as coisas em seus
devidos lugares, eu me desculpei e pedi que ele me desse outra
chance e dormi pela primeira vez em sua casa. Com meu filho.
Para ele se acostumar com a casa nova dele. Porque é lá que
vamos viver. Porque ele me pediu para viver com ele.
— Ah, Açucena, que coisa boa de se ouvir! — A abraço
empolgada. — Parabéns! A vocês dois. Vocês vão ser muito
felizes.
Ela assente, segura minhas mãos e diz:
— Você não precisa de um filho para ficar com ele, só
precisa de amor. Medo todos nós sentimos e tudo o que é
importante dá medo, Anna, tudo. Ser mãe é apavorante, você
não faz ideia. Mas compensa. Amar alguém é assustador, mas
não deixe o medo te travar. Não arrisque perder o Lucca por
medo. Eu quase perdi o Leandro, Anna, não seja como eu.
Assinto. Eva vem nos chamar e saímos das escadas. Tento
observar Lucca mais um pouco ao passar por sua sala, mas ele
não está mais nela. Não faço ideia de onde pode estar. Até que
chegamos à cantina e o vejo sentado em uma mesa rodeado de
mulheres. Elas juntaram duas mesas e o estão cercando,
enquanto Vivi conta sobre o que aconteceu com sua vizinha.
Lucca ri alto, comenta e pergunta a Vanessa se ela já se livrou do
noivo beberrão.
Fico parada, boquiaberta, como se tivesse sido lançada a
outra dimensão.
As meninas me notam aqui e começam a se dispersar. Mas
uma por uma quando passam por mim me parabenizam pela
gravidez. Todas elas. Estão fazendo isso desde que cheguei de
manhã. Quando estamos apenas nós dois aqui, me aproximo
devagar e me sento com ele.
— Uau! Lucca Baltazi Fifi, um novo nome para você, nunca
pensei, juro que não.
Ele tem um sorriso enorme no rosto.
— Nós gostamos de conversar.
— Eu percebi. — Olho para os lados me certificando que
estamos sozinhos aqui antes de falar sobre isso. — Todos estão
me parabenizando pela gravidez desde que cheguei, sabia? O
Otavio me trouxe flores.
Seu sorriso some e ele procura minha mão, a deposito na
sua e ele aperta meus dedos.
— Sinto muito, anjo. Está sendo muito difícil desmentir
todos?
— Eu não estou desmentindo — confesso.
— Como não?
— Não fui em quem contou a elas, apenas estou sorrindo e
acenando. Se eu fosse desmentir ia ter que explicar de onde
Leandro tirou isso e ia dar muito trabalho. Ele que se vire quando
o tempo passar e minha barriga não crescer.
Lucca tem um sorriso agora.
— Também não estou desmentindo. Mas no meu caso é
porque tenho esperança de transar com você a semana que vem
inteira, na casa nova, e em breve você estará mesmo grávida. E
olha que estou me preparando para tentar com muito afinco,
muitas vezes, até dar certo. Você pode não se lembrar disso,
mas quando bebeu, me pediu para foder você com força e muitas
vezes.
— Não pedi, não.
— Pediu sim. Ainda lamentou porque não quis tocá-la
bêbada e ficou com pena por eu ter ido dormir duro por você.
Você prometeu que ia me compensar.
Tiro minha mão da sua e não consigo acreditar em sua cara
de pau.
— Eu não fiz promessa nenhuma! Só fiquei com pena, mas
já passou.
— Então você se lembra.
— Vai trabalhar, Lucca — ordeno me levantando e
deixando-o na cantina com um sorriso irritante no rosto.
Não dei uma resposta a ele, ainda assim ele comprou a
casa. Vamos nos mudar na semana que vem, depois que Effie
tiver voltado à Grécia.

Na tarde seguinte, bato na porta de Lucca enquanto


Leandro está lá dentro. Eles estão montando algum roteiro
acessível de novo. Desta vez, a deficientes físicos. Vão usar o
capital que está entrando dos clientes que conseguimos no baile
beneficente para esse novo roteiro.
— Lucca, posso te perguntar uma coisa? Você pode dizer
não — tento.
— Leandro, nos dê licença agora mesmo se não quiser ficar
de vela — ele ordena levantando-se. — A resposta é sim, Anna,
vamos fazer nossos filhos.
Leandro me encara confuso e sinto meu rosto pegar fogo.
— Não seja ridículo, tem a ver com trabalho.
Ele volta a se sentar e tem um sorriso irritante no rosto.
— Peça, meu amor, eu a atenderei.
— Uma nova agência de marketing, a que alugou o andar
de baixo aqui no seu prédio, está lançando uma campanha que
você deveria apadrinhar. Eles são pequenos, começaram há
poucos meses e tem pouco capital, então a campanha deles
pode não atingir o público que poderia se algum CEO bondoso e
rico investisse nela.
Ele cruza as mãos em cima da mesa e pergunta curioso:
— Você quer que eu invista em ações de uma agência
desconhecida?
— Ou na campanha em si.
— Qual é a campanha?
— Doção de órgãos. É uma campanha de conscientização.
Eles não têm um cliente e não receberam por isso, é uma
campanha filantrópica. Achei que depois do que aconteceu com
você, seria importante que ajudasse mais pessoas a ter a chance
de ter consciência sobre doação de órgãos.
Ele assente, há um sorriso em seu rosto.
— Você está sempre me surpreendendo, não é? Quem
diria, Anna Maria. Vamos investir nesta campanha. Vá você até
eles, conheça a campanha, veja do que eles precisam, você
pode cuidar disso, não pode?
— Eu? Sozinha?
— Claro! Por que não?
Me sinto tão feliz que corro até ele e me lanço em seu colo.
— Posso, eu posso fazer isso! Eu sei fazer isso!
— Eu sei que sabe, amor.
— Obrigada.
— Não precisa agradecer.
— Agora sim eu vou sair e deixar vocês porque estou me
sentindo uma vela — Leandro reclama deixando a sala e mal
passa pela porta quando Lucca enfia os dedos em meus cabelos,
puxa minha cabeça e me beija.
E quarenta segundos depois saio de seu colo irritada por
ele ter feito isso em nosso local de trabalho. Ele diz que sou sua
já que estou usando seu anel e começamos de novo toda essa
discussão gostosa.

No sábado, estou em uma reunião com algumas


representantes da agência de marketing na casa de Leandro.
Açucena está aqui para me auxiliar, Effie está porque também vai
investir e estamos no quintal dos fundos, é um dia ensolarado e
bonito. De repente, as três mulheres da agência de marketing
têm suas bocas abertas e olham para um ponto específico não
prestando mais atenção ao que estou falando. Sigo seus olhares
e vejo Lucca caminhando tranquilamente em direção a piscina,
apenas de sunga.
Minha boca também está aberta, mas não por admirá-lo e
sim por não acreditar em sua cara de pau. Como ele consegue?
— Com licença — peço às meninas e me levanto,
aproximando-me dele que estica os braços na beirada da piscina
enquanto se prepara para pular. — O que pensa que está
fazendo? — pergunto baixinho.
— Vou nadar um pouco, já vamos nos mudar e a piscina na
nossa casa não é tão grande quanto essa. Por quê?
— Por quê? Porque estou com três mulheres aqui que
quase tiveram orgasmos só de olhar para você.
— É mesmo? Em que direção elas estão?
— À sua direita.
Ele se vira e acena para elas.
— Quer parar com isso? Você está atrapalhando minha
reunião. E se exibindo!
— Você quer que eu volte para dentro de casa com esse sol
tão quente no dia de hoje? — pede com um tom que daria pena a
uma desavisada.
— Exatamente.
— Você quer que elas parem de admirar meu pênis
avantajado?
— Lucca, volte para dentro de casa.
— Eu voltaria, para fazer sua vontade, se fôssemos mesmo
noivos. Mas como não somos, somos apenas amigos, não tenho
que fazer sua vontade. Lide com seus ciúmes, Anna. Você não
precisaria ter medo se estivesse comigo, mas você não está.
Tente agir como alguém normal — provoca.
Estou tão irritada que me pego rindo. Não vou cair em seu
jogo. Não vou mesmo.
— Tudo bem, fica aí nadando. Elas vão se cansar de olhar
em algum momento — respondo e caminho em direção à mesa
de novo.
— Ele é seu noivo? — Rita pergunta.
— Sim, meu noivo.
Ela parece desapontada e Clara, outra funcionária da
agência de marketing pergunta:
— Quando vocês vão se casar?
— Vamos morar juntos a partir da semana que vem. Aqui
no condomínio mesmo, aqui perto — confirmo. Effie e Açucena
estão rindo e percebo que Lucca está certo e minha cara sequer
queima.
Por fim, quando encerramos a reunião e percebo que as
senhoras presentes estão fazendo hora para irem embora, avisto
Lucca saindo da água. A água escorre por seu corpo escultural e
ele sacode os cabelos um pouco compridos livrando-se das
gotas. Sei bem como essa visão pode ser hipnotizante, então me
levanto, peço licença às meninas, vou a passos rápidos até ele e
o abraço, cobrindo seu corpo.
— O que você está fazendo agora? Pare de se exibir e
entre! — peço me molhando quando ele me abraça de volta
— Não, vamos nadar — responde se jogando para trás, me
levando junto.
As meninas finalmente vão embora. Effie e Açucena
também entram, e quando vou segurando na borda da piscina
até a escada para sair dela, Lucca me segura por trás, e sussurra
em meu ouvido:
— Você não vai sair agora. Vou entrar nessa casa agora,
um monte de vezes, bem forte, do jeito que você pediu —
comenta tocando minhas pernas.
— Ah! — é tudo o que respondo, mas me apoio na borda
como ele manda, abro as pernas, deixo que tire minha calcinha
por baixo do vestido e me perco nele quando me penetra aqui,
por trás, me preenchendo completamente e me tirando tudo.

Effie está com as malas prontas para ir embora no domingo.


Vou sentir muita falta dela. Seu voo é apenas no final da noite e
estamos terminando o almoço quando o telefone dela toca. É um
dos detetives que contratou para encontrar o dinheiro do Lucca.
Ela fica calada por quase toda ligação e quando desliga o
telefone, parece assustada.
— O que houve, Effie? — pergunto.
— Aquiles fez o que pedi. Ele contou onde está seu
dinheiro, Lucca. Passou os números das contas, meu pessoal
está cuidando disso, tudo o que pertence a você estará em sua
conta em poucos dias.
Isso me parece uma notícia maravilhosa, mas ela ainda
parece assustada.
— Isso é bom, não é? — pergunto temerosa.
— Ele entregou à polícia os nomes de todos que participam
da gangue que o está perseguindo. Aquiles entregou os
esconderijos e nomes de todos.
— Eles irão matá-lo — Leandro diz de repente.
— Não diga isso, Leandro! — ralho. — Tenho certeza que a
polícia cedeu proteção a ele até que toda a gangue esteja presa,
não é, Effie?
Ela assente, mas parece ter medo. Lucca também está
travado. Seguro sua mão por baixo da mesa e ele aperta meus
dedos. Sua mão está gelada. Sei que temos que acalmar Effie e
tento dizer isso a Leandro. Por fim ele entende, a convida para
uma volta por sua biblioteca para ver alguns livros raros que tem
e tenta distraí-la.
— Você acha que irão matá-lo? — pergunto assim que se
afastam e Lucca assente. — Mas ele tem proteção, não tem?
Lucca, e se comprarmos uma passagem para que ele vá com
Effie para a Grécia. De lá ele vai para outro lugar.
— Isso pode funcionar. Compre a passagem, vou entrar em
contato com Aquiles.
Temo que Effie não goste da ideia, mas faço assim mesmo.
Corro atrás dela e ela me informa imediatamente a
documentação de Aquiles para que eu compre a passagem. Por
sorte, encontramos uma última vaga no mesmo voo de Effie.
Lucca está então tentando falar com Aquiles para informar a ele
que vá para o aeroporto. Estamos todos tensos, andando de um
lado a outro. Apenas Effie está sentada, parada, em choque,
percebo eu.
Faltam duas horas para o voo de Effie quando Lucca
consegue falar com Aquiles. Ele agradece a Lucca e promete
encontrar Effie no aeroporto. Faltando uma hora e meia para seu
voo, vamos levá-la. Lucca, Leandro e eu vamos no carro com
Effie. Otavio e sua equipe estão em três carros nos cercando.
Uma chuva forte demais cai na cidade agora, impedindo que
cheguemos mais rápido até um local fechado para a segurança
de Effie.
Esperamos na sala de espera, a quantidade de seguranças
chama muita atenção e penso que seria melhor se se
dispersassem, mas Lucca não permite. Ele cola em mim como
uma sombra para o caso de Effie ser encontrada e, junto com
ela, nós. Faltam quarenta minutos para seu voo e nada de
Aquiles.

Faltam vinte minutos agora, o nome de Effie é chamado no


alto-falante e imediatamente Otavio a leva para trocar sua
passagem e a de Aquiles para outro destino um pouco mais
tarde. Ter o nome dele anunciado no alto-falante agora seria
péssimo. Effie consegue trocar as passagens para Paris, o voo
sai às três da manhã e vamos permanecer aqui com ela até este
horário. Leandro decide que assim ela estará mais segura do que
voltarmos em casa e de novo aqui.
Mas o tempo vai passando e nem sinal de Aquiles. Falta
uma hora para o voo para Paris quando o celular de Lucca toca e
vejo o nome de Aquiles na tela. Lucca atende e imagino que
Aquiles quer informar que está no aeroporto, ou chegando a ele.
A julgar pelo horário é mais provável que já esteja aqui. Mas
então Lucca leva a mão livre à boca, e sei que a notícia não é
boa. Leandro imediatamente vai até Effie e a segura.
— O que houve? Quem é ao telefone? O que houve,
Leandro? — ela pergunta desesperada.
Lucca troca poucas palavras com quem está com ele ao
telefone e se levanta em seguida, parece completamente
perdido.
— Effie, temos que ir. Infelizmente, Aquiles sofreu um
acidente enquanto fugia, o médico disse que provavelmente ele
tem pouco tempo de vida. Precisamos correr se você quiser se
despedir.
Effie não tem reação. Ela fica olhando para Lucca imóvel.
Então deixa seu corpo cair, sendo amparada por Leandro.
— Effie! — chamo. — Você quer se despedir dele? Ou você
quer ir embora? Effie!
— Vamos! — ela responde finalmente e vamos direto até o
hospital.
Só que, infelizmente, não chegamos a tempo.
Effie está gritando. Anna, Leandro e eu não entramos com
ela para ver Aquiles. Nós não chegamos a tempo de ela se
despedir e deixamos que faça isso agora. Nós ouvimos seus
gritos lá de dentro. Anna chora baixinho ao meu lado e choro
com ela. Depois de tudo, apesar de tudo, não queria que o final
dele fosse esse. Sou eu a ligar para meu tio e dar a notícia. Effie
não consegue agora e eu preciso fazer isso. Meu tio está
arrasado.
Quando Effie finalmente deixa o quarto de Aquiles, ela se
senta ao lado de Anna e diz baixinho:
— Eles precisam retirar os órgãos agora. Alguns não
podem esperar depois da morte cerebral — explica.
— Ele vai salvar muitas vidas, Effie. Você deu a ele uma
morte honrosa — Anna diz.
— Se eu o tivesse perdoado e tivesse aceitado voltar para a
Grécia com ele isso não teria acontecido — diz e chora baixinho.
— Mas ele soube que você estava disposta a tentar de
novo, Effie, ele soube que você o perdoou. Ele estava indo ao
seu encontro, acredite, isso fez toda diferença para ele — tento.
— Você deve estar certo. Sinto muito, Lucca, sei que era
seu primo, apesar de tudo.
— Vem cá, Effie. — Estendo os braços e ela me abraça. —
Você vai ficar bem, vai demorar um pouco, mas vai passar. Vai
ficar tudo bem. Independentemente do que aconteceu você é
família, Effie, é minha prima, vai ser sempre. Será sempre bem-
vinda na minha casa.
— Obrigada, Lucca. Quem dera eu pudesse escolher para
quem seus órgãos vão, não é? Você poderia ter os dois olhos
agora mesmo.
— Isso é o de menos, com certeza alguém vai voltar a
enxergar em breve graças a ele.

A convencemos a ficar mais alguns dias, para que


descanse a mente e se acalme antes de ir embora. Por isso,
Anna e eu adiamos nossa mudança, para ficarmos com ela onde
ela se sente mais segura, que é a casa de Leandro. A notícia da
morte de Aquiles saiu nos jornais, por conta de seu envolvimento
com a Atenas e com uma gangue. A maioria dos membros da
gangue que ele denunciou foi presa. Mas não todos, dois
estavam livres para matá-lo. Ficamos em choque quando
Leandro lê na internet que o acidente aconteceu na mesma
estrada onde me acidentei. Quase na mesma curva. Eu poderia
ter tido o mesmo final de Aquiles. Eu tive sorte.

Dois dias depois, sou acordado com uma ligação. Anna não
está comigo, ela tem dormido com Effie desde a morte de
Aquiles, Effie tem pesadelos. Mas não posso garantir que estaria
comigo se Effie não estivesse aqui. Atendo ao telefone sonolento
e a voz do outro lado da linha me surpreende:
— Bom dia, Lucca, que bom nos falarmos de novo. Sou a
doutora Mercedes, como tem passado?
— Ah, bom dia, doutora. Bem, e a senhora?
— Soube do que aconteceu com seu primo, meus
sentimentos.
— Obrigado.
Penso que sua ligação é apenas para me desejar suas
condolências, mas ela diz:
— O senhor está pronto para voltar a enxergar?
— Como?
— Temos um doador, Lucca. Você pode vir realizar o
transplante.
— Isso é impossível! Eu esperei um ano da primeira vez,
agora fazem o quê? Dois meses?
— Havia muito mais pessoas na sua frente da primeira vez,
quando você voltou para o final da fila dessa vez, havia bem
menos pessoas na sua frente. O senhor não consultou sua
posição na fila nenhuma vez sequer desde aquele dia?
— Não, eu pensei que fosse demorar.
— Nosso estado está quase zerando a fila de transplante
de córneas, senhor Baltazi. Em breve poderemos enviar córneas
para o Banco de Olhos, vamos ajudar receptores de outros
estados. Mas podemos falar sobre isso depois, você pode vir?
— Estou indo.
Dormi bem pouco e não quero acordar Anna ou Leandro,
que também não dormiram nada. De qualquer forma, tenho uma
sensação, como um pressentimento, não vai dar certo. Vou
chegar lá e ser procurado por outra mãe desesperada. Ou então,
a família vai impedir que a córnea destinada a mim seja
transplantada. Algo vai acontecer. Pego meus documentos,
Apolo e chamo um táxi pelo aplicativo.

As enfermeiras estão me cumprimentando desde que entrei


no hospital. Não me lembro de seus nomes, mas as cumprimento
de volta.
— O senhor é um herói aqui, senhor Baltazi — uma delas
diz. — Todas nós contamos sobre quando o senhor passou sua
vez para a menina Samantha. O senhor é um exemplo.
Agradeço desconcertado e sou guiado até os exames pré-
operatórios.

Estou esperando no quarto e sinto falta de Anna. O dia já


nasceu agora, o sol está forte lá fora, ele entra pela janela do
quarto, aquecendo minha pele. Apolo ronca de algum lugar deste
quarto e estou apenas esperando que a doutora Paula venha me
informar que houve um equívoco e posso ir embora. É estranho
como quero isso, quero muito, mas parece que não tenho mais
esperanças. Ou tenho medo de ter esperanças de novo.
Passam-se algumas horas após os exames pré-operatórios
quando finalmente alguém aparece.
— Lucca, bom dia, sou a doutora Mercedes, como você
está?
Sorrio, apesar de já ter certeza que isso ia acontecer ainda
me sinto decepcionado.
— Você veio dizer que não vai ser possível fazer o
transplante hoje, não é?
— Eu vim dizer que você tem duas córneas disponíveis
hoje, são do mesmo doador. Se tivesse feito o transplante
naquele dia, só receberia uma córnea. O senhor teve sorte.
Por algum tempo não tenho reação. Minha cabeça enche
de pensamentos confusos e penso que não estou ouvindo direito.
— O que a senhora quer dizer? — pergunto enfim.
— Que você pode me acompanhar, Lucca. Vamos
transplantar duas córneas em você hoje. Onde está sua noiva?
Você vai precisar de alguém para acompanhá-lo no pós-
operatório.
As palavras custam a sair. Não posso acreditar que estou
mesmo ouvindo isso.
— As duas córneas? Vou voltar a enxergar dos dois olhos?
— Sim, você vai. Há um risco de rejeição, como eu havia
explicado, mas na maioria das vezes pode ser resolvido com
colírios ou tratamentos. Como você receberá duas córneas,
haverá esse risco em dobro, ainda assim vamos esperar que
tudo ocorra bem e em poucos dias você terá sua visão
recuperada.
— Ah, meu Deus!
Procuro o celular no bolso, meio agitado, e acabo
derrubando-o. Uma enfermeira vem em meu auxílio.
— Deixa que eu faço isso para o senhor, para quem devo
ligar?
— Obrigado, querida. Ligue, por favor, para minha noiva,
Anna. É o botão de discagem número um, só pressioná-lo e vai
ligar para ela.
— Tudo bem. Boa cirurgia, senhor Baltazi.
— Obrigado — percebo que minha voz soa embargada.
Meio tremendo, acompanho a doutora até a sala de cirurgia
e não acredito que estou mesmo passando por isso.

— Lucca, você vai ficar aqui por algumas horas apenas, em


observação, até que o efeito da anestesia passe. Então será
liberado. Você deve manter repouso nas próximas horas.
Amanhã irei à sua casa retirar os curativos e vamos saber como
está sua visão — a doutora explica enquanto entram comigo no
quarto, em uma maca.
— Ele pode já voltar a enxergar ao abrir os olhos? —
Leandro pergunta, e assim descubro que está aqui.
— Ele vai recuperar uma parte da visão ao abrir os olhos.
Pode ser pouca assim, de imediato, ele pode ver apenas vultos,
silhuetas ou enxergar embaçado. É muito comum. Também pode
acontecer de sua visão já estar mais limpa. Mas a recuperação
mesmo da visão pode demorar algumas semanas para
acontecer. Devo dizer que me sinto muito feliz por ter realizado
sua cirurgia, Lucca. Depois do que você fez, estava ansiosa que
chegasse sua vez de novo.
— Obrigado, doutora.
Sou acomodado na cama, Apolo está aqui, ouço sua
respiração acelerada e Leandro ralha que ele tire as patas da
cama. Assim que estamos sozinhos no quarto, Leandro chora.
— O que houve? Por que está chorando? — pergunto
preocupado.
— Cara, como você me dá um susto desses? Nós
acordamos e você tinha sumido. Ficamos loucos, Lucca. Então
uma enfermeira liga e me pede para vir buscá-lo que você estava
na cirurgia de transplante de córnea. Você é maluco? Como vem
até aqui sem avisar?
Estou rindo de sua emoção. Me sinto meio tonto, mas não
sinto dores. Tenho dois curativos nos olhos e não me lembro
quando foi a última vez em que estive tão animado, tão feliz
assim.
— Amigo, eu achei que ia dar errado de novo, por isso não
disse nada. Pensei que chegaria aqui e haveria um equívoco e
eu voltaria para casa. Não quis incomodar ninguém.
— Você é mesmo um babaca! Dá o maior trabalho do
mundo todos os dias, mas na hora mais importante não quer
incomodar.
— Onde está Anna?
— Com a Effie. Saíram cedo para ir buscar as coisas do
Aquiles no hotel, Effie decidiu ir embora. A enfermeira não
conseguiu falar com ela e eu não quis dizer nada até chegar aqui
e ver você, mas ela vai surtar.
Sorrio. Leandro é a discagem número dois do meu telefone.
Ao não conseguir falar com Anna a enfermeira deve ter tentado o
próximo contato.
— Você quer que eu ligue para ela?
— Não, não é necessário, deixe ser surpresa.

Anna liga para Leandro quando estamos a caminho de casa


e ele não diz nada, diz apenas que estamos chegando. Mal
posso esperar por sua reação. Mal posso esperar para olhar de
novo naqueles olhos cor de mel e tirar sua roupa. Anseio em ver
seu corpo nu, conhecê-lo com os olhos. Ficarei olhando-a por
horas conhecendo cada pedaço de sua pele como conheço a
sensação.
Leandro entra finalmente no condomínio e me sinto
ansioso. Sinto um buraco no estômago e o peito acelerado. Ele
me ajuda a descer e me faz ir devagar quando tudo o que mais
quero é correr até ela. A voz de Anna é ouvida assim que
entramos em casa, ela conversa com Effie sobre o voo, Effie irá
embora em poucos dias. Com a ajuda de Leandro paro aos pés
das escadas e chamo seu nome.
— Anna!
Ouço seus passos, seu cheiro está mais próximo agora e
não tenho uma resposta. Ouço sua respiração acelerada, quase
posso imaginar sua expressão surpresa, feliz, incrédula, mas ela
ainda não disse nada.
— Você... — finalmente escuto sua voz e percebo que ela
tenta falar. — O transplante, você fez o transplante — sua voz
está emocionada, ela está chorando. — Lucca?
— Sim, amor, das duas córneas. Amanhã vou olhar para
você e dizer que te amo olhando em seus olhos.
— Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!
Ela pula sobre mim e Leandro imediatamente ralha:
— Anna, cuidado, ele acabou de operar.
— Me desculpe, sinto muito eu não quis machucar você —
pede se afastando, mas impeço.
— Não machucou, vem aqui. Me abraça, Anna, vem cá.
Ela me abraça, está chorando emocionada em meu peito.
— Isso é real? Você vai mesmo enxergar?
— É real, amor.
— Lucca, você precisa repousar, está a tempo demais de
pé — Leandro alerta, percebo que sua voz também parece
emocionada.
— Eu vou precisar de uma enfermeira — brinco.
— Eu cobro caro por hora — Anna responde. — Vamos,
você comeu alguma coisa? Vou trocar os lençóis da sua cama e
colocar uns mais confortáveis. Aqueles mais velhos que você
gosta. Você devia tomar um banho, não é? Mas não pode molhar
os curativos, eu suponho, vou encher a banheira, então.
Ela me guia devagar pela escada, Apolo ao meu lado, e
cuida de mim como se eu fosse algo tão precioso que ela não
quer arriscar danificar. Ela dorme na cama comigo, embora tenha
sido necessário eu insistir muito, ela tinha medo de me machucar
sem querer e fica ao meu lado quando acorda.

— A que horas a médica disse que viria? — pergunta pela


terceira vez.
— No final da tarde, anjo, vá com calma, você vai chegar a
tempo.
— Eu prometo que estarei aqui.
— Está muito cedo para uma pequena chantagem? —
pergunto quando a escuto andar de saltos pelo quarto.
— Como assim? — pergunta de volta, mas há um sorriso
em sua voz.
— Você vai ser a primeira coisa que vou ver ao abrir os
olhos, Anna. Foi a última que vi ao fechá-los. Então eu quero que
você esteja aqui quando essa hora chegar. Eu faço questão.
— Estarei.
— Mas só se você estiver disposta a ir morar naquela casa
como minha mulher.
Ela ri baixinho.
— Senão o quê? Não vou ser a primeira pessoa que você
vai ver ao abrir os olhos?
— Senão não vou abrir os olhos. Só vou abri-los quando
você estiver aqui e isso significar que estamos juntos. Não
suporto mais essa incerteza.
— Vamos ver onde estarei — responde misteriosa e me
beija de leve nos lábios antes de deixar o quarto.
Aquiles estava em uma pensão barata no centro da cidade
por todo esse tempo. Effie foi chamada para retirar suas coisas
de lá pelo dono da pensão. A polícia já revistou o lugar e pegou
toda as provas que Aquiles alegou ter, então o dono alertou que
o lugar está bagunçado, aparentemente, destruído. Disse que há
bebidas pela metade e uma mochila com itens pessoais dele,
como o celular. As malas de Aquiles estavam em outro hotel,
onde ele fingia estar hospedado. Ele se escondia nessa pensão e
Effie não tem coragem de ir até lá. Ir ao hotel ontem já foi difícil
demais para ela, então Anna e Leandro vão à pensão no lugar
dela. Mas o local não fica longe do condomínio e acredito que
eles retornem bem rápido. Com certeza antes da doutora chegar
para tirar os curativos.

Mas as horas passam e nem sinal de Anna. Effie e eu


almoçamos no meu quarto, ela faz a gentileza de trazer comida
para mim já que Anna não chegou a tempo. Ela me traz também
uma sobremesa e tenta ligar para Anna. Mas não obtém
resposta.
— Lucca — Effie diz um tempo depois. — Recebi uma carta
de agradecimento pelos órgãos doados do Aquiles, a carta dizia
que ele salvou e mudou vidas. Fiquei pensando, não foi muita
coincidência você ter encontrado um doador para as duas
córneas dois dias depois da morte dele? Não há como você ter
sido o receptor, não é? Isso seria coincidência demais, eu sei! Só
fiquei me perguntando.
— Eu não acredito em coincidências, Effie. Provavelmente
não fui eu quem recebeu as córneas de Aquiles — respondo,
mas em minha cabeça há várias teorias, uma vez que o
impossível quase sempre acontece comigo.
— Eu gosto de pensar que sim. Seria uma forma de ele
compensar você por tudo o que fez.
Alguém bate na porta e Alberta avisa.
— Lucca, a doutora Mercedes está aqui.
— Como está aqui? Ela disse ao final da tarde.
— Mas já chegou. A mando subir?
— Effie...
— Já estou ligando para ela — ela confirma e volta a tentar
ligar para Anna.

Uma hora depois, a doutora tem um tom levemente irritado


e sou grato internamente por sua paciência. Pela que deve ser a
vigésima vez ela diz:
— Senhor Baltazi, precisamos retirar os curativos para que
eu possa avaliar suas córneas e assim vermos como estará sua
visão!
— Entendo doutora, mas como eu disse, não vou abrir os
olhos até que Anna esteja aqui.
— Mas eu não posso esperar mais! Você pode vê-la depois!
— Não, eu não posso. Fizemos um acordo, ela tem que
estar aqui!
— Ela claramente não se importou o bastante para estar
aqui! Me deixe tirar os curativos!
E com essa discussão consigo levar mais vinte minutos
torcendo que Anna chegue, até que não tenho mais o que fazer.
A doutora praticamente me faz sentar na cama e retira os
curativos. E Anna ainda não chegou. Nós temos um acordo, ela
deve estar vindo, eu sei disso. Ela não pode estar dando sua
última resposta não estando aqui comigo nessa hora. Tenho
certeza que não.
— Abra os olhos, Lucca — ela pede, e mesmo de olhos
fechados, noto a diferença.
A luz do dia incomoda meus olhos agora. Me pego sorrindo.
— Anda, Anna, chega — peço baixinho.
— Lucca, é inadmissível que me faça esperar tanto tempo
para examinar seus olhos! — a doutora está irritada e não sei
mais o que fazer. — Você precisa abri-los.
— Tudo bem — concordo apenas para acalmá-la a ganhar
mais tempo. — Irei fazê-lo, mas antes, doutora, me diga uma
coisa. A senhora já se apaixonou? Já amou alguém em um nível
que sente a pessoa na alma? Já teve alguém que fosse tão
importante, que a simples ideia de não cumprir um acordo com
essa pessoa a faça ficar sem ar? A senhora já amou assim?
— Não, sou divorciada, não tenho filhos e estou solteira há
cinco anos. Então não faço ideia do que o senhor está falando.
Abra os olhos.
Merda.
— Tudo bem — tento de novo desanimado. Até Effie já
tentou distrai-la contando sobre sua história com Aquiles
detalhadamente, o que me ajudou a manter a doutora aqui por
todo esse tempo.
Me levanto, temendo que a médica irritada acabe por enfiar
os dedos em minhas pálpebras e as levante.
— Vou abrir — prometo. — Assim que a Anna chegar.
— Senhor Baltazi!
— Lucca! — o grito de Anna é ouvido ao longe.
— Ela chegou! — interrompo a médica. — Anna chegou.
Ela respira irritada, exasperada e começa a resmungar nos
ouvidos de Effie sobre minha falta de senso e noção. O que me
faz rir baixinho.
— Lucca — a voz de Anna antecede o furacão que são
seus passos apressados pelas escadas. Ela entra no quarto,
respirando alto, cansada, quase gemendo. — Ah, você já tirou os
curativos?
— Ainda não abri os olhos.
— Graças a Deus! Tive medo que você achasse que eu
desisti e abrisse os olhos. A polícia estava lá, tivemos que
acompanhá-los para dar depoimentos, Leandro perdeu as
chaves do carro, depois pegamos um engarrafamento e para
ajudar, o portão de entrada do condomínio travou, ia levar horas
para consertarem, eu passei pelo de pedestres, mas ia ter que
andar muito até chegar aqui. Por que o Leandro mora na última
rua de um condomínio tão grande? Effie não parava de ligar. A
última mensagem dela dizia que a médica havia chegado trinta
minutos antes, então eu corri, mas não ia dar tempo. Então eu
pensei que poderia cortar caminho ao invés de dar a volta em
todas essas ruas. Encontrei a direção da casa e passei pelo
quintal de algumas pessoas, pulei as cercas, uma após a outra,
até sair aqui. E subi essas escadas com a força do amor, porque
pulmões eu já não tenho, mas você não abriu os olhos.
— Anna, respire. Se acalme, eu estava esperando por você.
Se você fez tudo isso para chegar aqui, significa...
— Eu te amo. Quero passar o resto da minha vida com
você, mas eu quero dizer isso olhando nos seus olhos. Abra os
olhos, Lucca.
Respiro fundo, o coração parece prestes a saltar no peito.
Suas mãos estão nas minhas, o calor delas me acalmando de
alguma forma. Sorrio. De repente tenho medo, tanto quanto
ansiedade. Então abro os olhos. O primeiro contato com o clarão
do dia me faz fechá-los de novo. Os abro novamente, me
acostumando ao claro. E então vejo. Vejo o rosto de Anna.
Está um pouco embaçado, mas consigo vê-lo bem. As
sobrancelhas, os olhos cor de mel cheios, o sorriso bobo, os
cabelos marrons agora com fios dourados. lágrimas descem por
seu rosto e consigo vê-las.
— Você é linda! É muito mais bonita do que eu me
lembrava.
— Você consegue me ver? Consegue me ver direito?
— Consigo vê-la perfeitamente, meu anjo.
Ela me abraça e vejo Leandro, que acabou de entrar no
quarto, está abaixado, com as mãos apoiadas nos joelhos
provavelmente por ter corrido atrás de Anna por todo o caminho.
Ele está rindo, está rindo alto. Vejo Effie. Ela tem cabelos negros
compridos e um sorriso sincero. Seus olhos também estão
cheios. Vejo o quarto onde estive nos últimos meses pela
primeira vez. A textura do papel de parede caramelo. A cama
espaçosa com lençóis pretos, os que Anna colocou ontem para
mim. Vejo Apolo, ele está sentado me olhando atentamente. Gira
a cabecinha de um lado a outro, tentando entender o que está
havendo. Ele é um cão lindo. E vejo a doutora, que entra em meu
campo de visão, sua expressão não é a de alguém irritada, como
eu imaginava.
— Lucca, você consegue ver meus traços? — ela pergunta.
— Sim, doutora. Não vejo com exatidão a cor dos seus
olhos, ou se tiver alguma marca na pele, não estou vendo, mas
vejo com clareza seu rosto. Eu poderia reconhecê-la se a
encontrasse amanhã.
— Está identificando as cores?
— Sim, normalmente.
— Há vultos ou luzes?
— Não, tudo tem cores normais, não há sombras, vultos,
nem pontos de luz. Está apenas embaçado.
Ela levanta o braço direito diante dos meus olhos.
— Você vê algo no meu braço?
— Há uma tatuagem, mas enxergo apenas um borrão dela.
Não poderia identificar sua forma.
— Maravilha! Isso é maravilhoso! Agora, se me derem
licença, gostaria de examinar suas córneas.
Anna se afasta e quero olhá-la. Observo a roupa que está
usando. Ela abraça Effie emocionada.
— Olhe para mim, Lucca — a médica pede.
— Desculpe.
Ela ri, examina meus olhos, me faz sentar e girar os olhos
para todos os lados. Me faz um monte de perguntas mais. Por
fim, conclui:
— Perfeito! Seu transplante foi um sucesso! Acredito que
em pouco mais de uma semana você estará enxergando tudo
com clareza. Vou deixar aqui a lista de remédios que você deve
usar, são para evitar infecção e rejeição e um para dor, caso você
precise. Não se esqueça de usar esses remédios. E você deve
usar óculos por alguns dias, principalmente ao sair ao sol, para
que a luz não encontre seus olhos diretamente. Você deve
repousar mais alguns dias, não precisa ficar apenas na cama,
mas não faça movimentos bruscos.
Concordo e ela repete.
— Lucca Baltazi, não faça movimentos bruscos, descanse.
Meu sorriso some, minha expressão murcha e Leandro está
rindo.
— O senhor entendeu, não entendeu, Lucca?
— Ele entendeu, doutora — Anna confirma.
— Ótimo. Por ao menos um ano não faça atividades mais
fortes, como cavalgada, escalada, saltos, motocross. Guarde seu
lado aventureiro por alguns meses. O transplante dura em média
vinte anos, mas depende muito de como seu corpo vai reagir às
córneas, de como você vai cuidar delas, então nunca se esqueça
que você precisa cuidar dos seus olhos.
— Entendido, doutora. Vou tomar todo cuidado.
— Mesmo usando o remédio, ainda há o risco de rejeição,
como eu o havia alertado. Então se sentir que está incomodando,
com dores, ou a visão diminuindo, por favor volte ao hospital. No
mais, te desejo muita sorte e muitas felicidades ao casal.
— Obrigado, doutora. De verdade, a senhora foi incrível.
— Foi um prazer conhecê-lo, Lucca. — Ela responde e se
vira, pegando suas coisas. Se despede de Effie, Anna e Leandro
e deixa o quarto.
E estou de novo olhando Anna. Ela sorri, seu sorriso é tão
lindo! Percebo que a guardei tão bem na memória por todos
esses meses e seu sorriso na minha mente não era nem de perto
lindo como é na verdade. Leandro me abraça emocionado, Effie
também e os dois deixam o quarto.
— Eu já disse que você é linda? — pergunto a Anna. —
Estou ansioso em vê-la nua.
— Não senhor, nada de movimentos bruscos. A médica
falou e repetiu porque você, aparentemente, estava em negação
— avisa aproximando-se devagar.
Sorrio.
— Podemos fazer bem devagar.
— Eu amo você — ela diz quando se aproxima o bastante
para que eu possa tocar suas mãos. — Me desculpa por deixar
que o medo me guiasse por tanto tempo. Eu perdoei você nas
primeiras páginas daquele livro. Foi a coisa mais linda que
alguém já fez por mim, acho que já o li tantas vezes que poderia
recitá-lo. Mas a confiança, essa parte chata de algo me travar e
eu não conseguir apenas sentir, foi porque você é minha vida. E
quando eu olhei para os lados em Monte Verde, e tudo o que
tinha eram as lembranças do que vivemos lá, achando que não
teríamos mais momentos juntos, eu percebi que não sobrou
nada. Não sobrou nada sem você. Nada que eu quisesse viver
ou sentir. Então sim, eu tive muito medo quando você apareceu
de novo, parecia bom demais para ser verdade, parecia um
sonho e eu me prendi ao medo de acordar. E Lucca, eu não sei
quando isso aconteceu, mas quando o Aquiles se foi e a Effie
disse que poderia ter evitado tudo, eu percebi que você estava
aqui, tão perto de mim, e ainda assim não estávamos juntos. E
antes, quando descobrimos que não estou grávida e você foi me
fazer essa proposta, aquele bolo na garganta me impedindo de ir
em frente sumiu. Você me disse hoje para estar aqui se fosse
para ser sua mulher e eu não precisei de dez segundos
pensando no medo para entender que eu confio em você. Porque
você é para sempre. Você me disse que não, e me mandou ir,
mas depois me mostrou de tantas formas que estava falando da
boca para fora e eu só estava mesmo punindo você e me sinto
péssima por isso.
— Não sinta. Ainda que você fizesse isso propositalmente,
você estaria em seu direito, Anna. Porque eu feri você. Ainda que
você me fizesse esperar por mais um ano, ou dois, seria um
direito seu. Eu estava disposto a isso, porque você tinha que
extravasar a dor que lhe causei de alguma forma. Tinha que
colocar esses pensamentos ruins e o medo para fora. Então que
bom que você descontou isso em mim, como fez com a tora de
madeira.
— Mas não foi de propósito! — ela responde exasperada e
sorri. Seus olhos estão cheios, seu rosto tem uma tonalidade
vermelha adorável, seu sorriso é perfeito.
— Você não percebeu, mas eu sim. Eu a conheço melhor
do que você mesma, Anna. Quando você se lembrou que não
tomava o remédio e teve a chance de tomar uma pílula, mas
optou por esperar e ver o que ia acontecer, você escolheu ficar
comigo. Você voltou a confiar em mim ali, porque você não
arriscaria ter um filho com alguém em quem não confiasse. Você
me perdoou completamente e me escolheu naquele momento,
Anna. E eu esperei que você assumisse isso, eu fiquei ansioso,
eu tive medo que você não percebesse e precisasse viver outras
experiências antes de entender que sempre seremos nós. Mas
eu esperei, porque você tinha que ter seu tempo. Tinha que
colocar tudo isso para fora. E eu tentei várias vezes fazê-la
entender, porque estava agoniado de estar com você e não estar,
ainda bem que a chantagem de hoje funcionou. Eu já estava
ficando sem ideias.
Ela ri alto.
— Eu te amo, Anna. Que bom que finalmente posso dizer
isso olhando em seus olhos. Eu te amo.
— Eu também te amo.
Seguro sua mão, a peça está em seu dedo, mas não
consigo vê-la. Não consigo ver nada dela.
— Não consigo ver esta peça em seu dedo, mas você ainda
a está usando. Isso quer dizer que você disse sim ao meu pedido
de casamento, você vai se casar comigo, não é?
— Esse foi o pedido de casamento mais estranho que eu já
ouvi — comenta com um sorriso.
— Anna!
— Sim, vou me casar com você.
— Obrigado. Não foi tão difícil, foi? — provoco e ela ri alto.
Mas aqui dentro meu coração está em festa. Aqui dentro minha
alma ganha cor. Aqui só consigo olhar essa menina em meus
braços e entender o quanto a amo e agradecer ao acaso e ao
destino por tê-la imposto em minha vida, ainda que na marra.
Ela se aproxima e me beija e tudo parece perfeito como o
final de uma linda história de amor.

Um mês depois do transplante, consigo enxergar


normalmente. Finalmente não vou mais usar os óculos, tanto
para leitura, quanto para o sol. Me olho no espelho e o reflexo do
que vejo é o mesmo homem que era quando sofri o acidente. A
roupa, a postura, me pareço muito a ele. Mas então há meus
olhos, e embora tenham a mesma cor, são diferentes. Dizem que
os olhos são as janelas da alma, e isso se reflete nos meus
agora, porque minha alma está diferente. As cicatrizes em voltas
deles são a prova de tudo o que passei. A doutora Mercedes
sugeriu que eu fizesse uma plástica para escondê-las, mas não
vou. É bom que as tenha, que me lembre delas, que as sinta
aqui. É bom que quem olhar para mim tenha um lembrete
imediato de que sou outra pessoa agora. Anna não se importa
com elas, eu não me importo com elas, por que as tirar?
Effie foi embora dois dias depois do transplante, mas
mantém contato com Anna quase diariamente. Acabamos não
nos mudando ainda para nossa casa, porque quero fazer isso
direito. Quero que entremos lá quando estivermos casados, para
começar nossa vida a dois. Estamos decorando a casa aos
poucos, escolhendo os móveis, as cores, deixando tudo do nosso
jeito. Leandro estava certo, a casa é perfeita. Ela tem cara de lar,
como Anna diz.
Encaro de novo o reflexo no espelho. Pensei que nunca
mais o veria. Mais uma vez, internamente, agradeço a Deus pelo
presente. Por todos os presentes, penso quando Anna pergunta
se estou pronto.
— Deixe-me ver como você está — peço.
— Feche os olhos, vou me descrever para você.
Os fecho, ansioso. Ela se aproxima, pega minhas mãos e
leva aos seus seios.
— Meu vestido é dourado e brilha. Aqui, no busto, é bem...
— Decotado. Bem decotado, que delícia você está,
senhorita.
Desço as mãos por sua barriga e contorno sua cintura.
— Ele é leve, não é colado ao corpo, nem largo demais —
ela continua.
Desço as mãos por seu corpo e me abaixo, toco sua bunda
e pernas através do vestido.
— Só estou medindo seu comprimento — explico e ela ri. —
Bem comprido.
Abro os olhos e a vejo daqui de baixo. O vestido é mesmo
dourado e brilha, Anna brilha, se assemelha a um anjo. Seu
cabelo marrom e dourado em ondas perfeitas ao redor de seu
rosto, combinados a esse vestido, a deixaram mais do que linda,
ela está deslumbrante. Me levanto admirando-a com verdadeira
adoração. A beijo devagar, prendendo sua língua na minha,
sentindo meu corpo todo excitado por ela. Mas ela se afasta e dá
a volta por mim observando meu traje.
— Uau! Sua bunda fica uma tentação nessa calça — ela
brinca.
— Você está mesmo me provocando depois de negar sexo
por um mês? Vem aqui, Anna. — Vou em sua direção e ela corre.
— Nem pensar!
— Anna, já se passou um mês! O que você está fazendo é
maldade!
— É cuidado! A médica disse que não podemos, ela
enfatizou. Acho não a ouvi liberando isso na sua última consulta.
— Ela não disse que essa seca deveria durar um ano todo!
Pelo visto terei que suborná-la — resmungo.
— Você o quê?
— Vamos então?
— Vamos, noivo.
Esta noite temos uma festa importante. A festa de
lançamento da campanha que Anna cuidou. A campanha que ela
ajudou a ganhar a extensão e importância que tem hoje. Ela foi
brilhante! A campanha de doação de órgãos já é um sucesso
antes mesmo de ser lançada nacionalmente. E por ideia de
Anna, eu fui a estrela dela. Anna disse que nada melhor do que
um exemplo real de como a doação muda e salva vidas para
inspirar as pessoas a se conscientizarem e avisar suas famílias
que são doadoras.
Anna e eu estamos há três semanas em um hotel.
Preferimos não esperar a reforma da nossa casa e deixamos a
casa de Leandro para não empatar mais seu já complicado
relacionamento. Agora Açucena e Miguel vivem com ele e posso
afirmar que nunca vi meu amigo tão feliz. Leandro parece brilhar
o tempo todo. Ainda mais desde que Miguel começou a chamá-lo
de pai. Ele fica fazendo o menino repetir isso o dia todo quando
vamos lá.
A festa está ótima, a campanha já foi liberada e sua
repercussão nas redes sociais está maior do que o esperado por
todos nós. A hashtag #SomosTodosDoadores está nos trending
tops e a popularização dessa campanha promete salvar muitas
vidas. Ela não fala apenas sobre informar a família que você é
um doador, mas sobre o que se pode doar em vida. Ela informa,
incentiva, conscientiza de uma maneira linda e real, com
receptores reais. Com pessoas que foram salvas por doadores.
Seja órgãos, sangue, medula.
Estou com Leandro tomando algo em um canto enquanto
observo minha noiva. Isso é o que mais faço, olhá-la. Anna está
radiante, talvez seja apenas o vestido dourado, mas sinto como
se tivesse algo mais.
— Anna está diferente — Leandro comenta.
— Você também percebeu?
— Sim, mas não sei dizer o que é. É algo em sua
aparência, acho. Ou nos olhos, parece mais feliz, não sei. Não
sei explicar, mas é algo bom.
— Leandro, eu tenho essa mesma sensação.
Quando Larissa se aproxima de Anna, decido que já passei
tempo demais longe da minha noiva. Vou em direção as duas,
quando escuto o que Larissa está dizendo:
— Ele voltou ao seu trono, como eu alertei a você que
voltaria. É o mesmo Lucca agora, isso está nítido até em sua
postura. O mesmo dono do mundo por quem me apaixonei e que
se apaixonou por mim. Você foi necessária enquanto ele era
cego e ferido, mas não será mais em pouco tempo, Anna. Você
não será suficiente para ele em pouco tempo.
Me escondo entre as pessoas para que não me vejam. O
que ela pensa que está fazendo? Escuto então a resposta de
Anna.
— Sabe, eu não entendo o que você ganha me diminuindo
assim, eu sei que não poderíamos ser amigas se você realmente
tem algum sentimento por ele, mas não significa que você
precisasse ser tão mesquinha.
A voz de Anna é confiante, Larissa não a está afetando.
— Se você não tivesse aparecido... — Larissa começa, mas
Anna a interrompe.
— Se eu não tivesse aparecido, se eu não estivesse aqui,
não faria diferença. Ainda assim ele não ficaria com você. Porque
você está naquele nível onde ele estava antes, quando vocês
tinham alguma sintonia. Naquele nível baixo e feio. Mas agora
ele evoluiu, agora ele está no meu nível e você, Larissa, não está
à altura dele.
Larissa não responde e Anna se afasta, caminhando
tranquila e confiante em seus saltos. Seu vestido dourado
reluzindo as luzes do ambiente. Ela é toda a luz da festa. Meu
primeiro intuito é ir atrás dela e beijá-la apaixonadamente, mas
antes, preciso dar um jeito nisso. Me aproximo de Larissa, ela
tem a expressão fechada, mas abre um sorriso quando me vê.
— Lucca, que campanha incrível! Estou emocionada e
encantada com tudo o que vocês fizeram nela.
— Foi ideia da Anna, na verdade. Ela é mesmo brilhante.
Sua expressão se fecha um pouco, mas ela tenta de novo:
— É muito bom ver você assim, no seu lugar de direito,
enxergando de novo, com tudo o que era seu de volta. É bom ver
que a vida é sempre generosa com pessoas como nós.
Começo a rir e ela para de falar, franze o cenho confusa.
— Se você acredita mesmo nisso é porque não passa de
uma menina mimada e protegida, Larissa. Você não passa de
uma criança. Qualquer adulto sabe que a vida te dá de volta
aquilo que você faz, e como ninguém é perfeito, é impossível que
você tenha apenas coisas boas dela. Pois se assim fosse, como
você poderia evoluir, não é mesmo? Se não precisasse lutar por
nada, se não tivesse que aprender nenhuma lição. Não teria
graça.
— Claro, você está certo. Não foi o que quis dizer.
— Mas eu tenho algo a dizer a você, Larissa. Sou grato por
toda ajuda que você nos deu, mas por mim, nós encerraríamos
agora mesmo nossa parceria. Estou disposto a devolver a você o
valor que investiu em suas ações, todo ele, corrigido e com os
lucros alcançados. Assim, não teríamos mais que ter qualquer
contato. Mas, se você preferir manter suas ações, o que é um
direito seu, a partir de agora você vai tratar sobre a Atenas
apenas com a minha secretária. Não vamos nos falar mais.
Ela parece assustada. Olha para os lados e engole em
seco.
— Lucca! Mas por que isso? O que a Anna disse para
você?
— Por falar na minha futura esposa, espero que se algum
dia nos encontrarmos eventualmente em algum lugar, você tenha
a decência de não se aproximar dela. Espero que tenha a
decência de nem mesmo falar seu nome. Porque se eu a vir
ofendendo a minha noiva de novo, vou tratar de colocá-la no seu
devido lugar, senhorita Crepaldi.
— Lucca, mas eu...
— Você me tem como exemplo, então use-o. Tenha medo
do que a vida vai devolver a você, senhorita, porque você
deveria.
Então me afasto e espero que esse capítulo tenha se
encerrado de uma vez por todas.

Anna passa por minha porta para entregar alguns papéis a


Açucena. Meus olhos se desviam do computador imediatamente
para seus movimentos. Ela volta e meus olhos ainda estão fixos
nela. Por toda a manhã e tarde, não consigo tirar os olhos dela. É
como um ímã. Leandro já perdeu a paciência e desistiu do
programa que tentávamos montar.
Na hora do café, estão todos na cantina quando ela entra e
então meu cérebro se concentra unicamente nela. Não existem
mais pessoas aqui, nem conversas, não ouço nada, não vejo
nada além dela. Seus olhos também estão nos meus. Ela sorri
timidamente e não conseguimos deixar de nos olhar.
Até que, com o final da tarde se aproximando, não aguento
mais isso.
— Anna, chega, você vem comigo! Não aguento mais isso,
nada de termos cuidado, já chega! — ralho irritado pegando-a
pela mão e a arrastando ao elevador.
— O que está havendo? Aonde estamos indo?
— Fazer amor, Anna. Estamos indo fazer amor. Não
aguento esperar mais, você tem ideia de há quantos dias não
toco você como gostaria? Tem ideia que tudo em que penso é
em vê-la nua?
Ela abre a boca, mas a interrompo.
— Não, sem desculpas, nós vamos fazer amor.
Ela ri então e não diz mais nada, indo comigo de bom
grado.

Ela nos leva até nossa futura casa. Os trabalhadores não


estão mais, a tarde está acabando, o sol já se prepara para se
despedir. Não estamos com as chaves aqui, agora, então
pulamos a cerca. O faço com cuidado por conta do transplante.
Vamos caminhando até o quintal dos fundos, a piscina já foi
reformada, a grama está aparada e Anna se senta sobre ela.
— O sol já vai se por — ela diz.
— Quero ver isso dentro de você.
Ela deita de costas na grama e espera. Me ajoelho ao seu
lado e abro primeiro o zíper de sua calça. Estou tão ansioso que
tenho certa dificuldade, o que a faz rir.
— Até você acabar isso o sol já vai estar nascendo de novo
— provoca.
Me sento então ao seu lado e espero.
— Faça seu show, me deixe vê-la, minha Anna, me deixe
saboreá-la com os olhos. Quero ver cada detalhe do seu corpo
pelo menos cem vezes.
— Isso vai demorar demais! — ela resmunga, mas se
levanta.
Começa pela blusa, a tira primeiro e a joga sobre a grama.
O sol está esplêndido atrás de seu corpo, então ela tira o sutiã. E
meus olhos só se concentram em como os raios de luz tocam
sua pele. Seus seios estão expostos agora e só quero tocá-los,
senti-los na boca, brincar com eles. Mas a olho. A vejo abrir o
zíper da calça devagar, quase me sinto salivar em expectativa.
Ela desce a calça pelas pernas e sua calcinha branca de renda é
como um convite.
— Minha vez, amor — aviso me ajoelhando diante dela.
Daqui posso ver seu corpo perfeitamente. Cada centímetro de
sua pele. Toco sua barriga, com as pontas dos dedos e subo os
dedos até seus seios. Os contorno, provocando-a, descendo-os
de novo até a lateral da sua calcinha.
Tiro a peça devagar, revelando seu centro aos poucos. Ela
passa os pés pela calcinha e está finalmente nua diante de mim.
Toco suas coxas, vendo a reação de seu corpo, a reação de seu
rosto a cada toque, a cada sentido. O sol está se pondo atrás de
seu corpo lindo, e só quero vê-la inteira, vê-la molhada, aberta,
quero ver seu rosto quando a fizer gozar na minha boca, quero
ver sua boca aberta, os olhos perdidos, a maneira deliciosa como
imagino que morda os lábios quando sente prazer. Eu quero vê-
la.
Seguro sua perna e a passo por meu ombro, Anna está
aberta diante de mim. A noite já vai cair e preciso vê-la. O sol
ainda está se despedindo quando minha língua alcança seu
centro, ela geme alto, se apoia em mim e tenho pressa em fazê-
la se perder. A chupo com força, sugo seu botão e o prendo entre
meus dentes. Anna grita, se mexe, puxa meus cabelos e faço
com mais força, com mais fome. Apoio minhas mãos em sua
bunda, a puxo para cima da minha boca, ela está basicamente
sentada em minha cara enquanto minha língua a penetra.
Enquanto meus dentes a arranham e meus lábios a chupam.
Enquanto a acaricio e puno por todos esses dias esperando para
vê-la assim.
— Lucca! Lucca eu vou...
Afasto o rosto de seu centro e a observo. São os últimos
raios do sol acariciando sua pele quando a penetro com os dedos
e ela goza, explodindo em minha mão, gritando meu nome e se
perdendo, os olhos estão fechados, a boca deliciosamente
aberta. Sua expressão é um êxtase e ela parece pulsar. É a visão
mais linda que já tive.
Me sento então e a trago comigo. Ela se senta sobre mim e
giro nossos corpos deitando-a na grama.
— Está desconfortável? — pergunto e minha voz soa rouca,
baixa, quase primitiva.
— Não, só está fazendo um pouco de cócegas.
— Então está tudo bem, já que vou fazer mais um pouco de
cócegas em você agora.
— Não! Eu quero você na minha boca. Quero que me veja
enquanto eu o saboreio.
— Ah, Anna, você brinca demais com fogo. Venha.
Me ajoelho de novo e ela fica de quatro, tão deliciosa na
tarde escura. Não há luz acesa no quintal onde estamos, mas há
a luz da lua, um pouco fraca nesse início, mas me permitindo
enxergar o suficiente enquanto meu membro vai sumindo em
seus lábios. Ela fecha os olhos e geme baixo e sinto a vibração
de sua garganta no membro, quase me perco. Ela tira meu pau
da boca e seus lábios rosados sugam a cabeça. Meus dedos
estão em seus cabelos, mas não pretendo guiar seus
movimentos. Estou adorando vê-la brincar, me provocar, fazer
devagar até me enlouquecer.
Ela volta a me levar em sua boca, meu pênis sumindo
dentro dela, até o limite de sua garganta, ela me mantém ali por
alguns segundos e estou a ponto de perder as forças. O que
sinto e o que vejo fazem amor de uma maneira deliciosa quase
me levando ao limite. E quando ela acelera os movimentos,
quando vejo meu pênis saindo e entrando em sua boca, ela abre
os olhos e me olha, e vou explodir, não posso segurar mais. Puxo
seu cabelo de leve para afastá-la e ela se joga para trás na
grama. A lua já está a postos e ilumina o quintal com uma luz
perfeita agora.
— Adoraria ficar horas observando cada parte desse seu
corpo delicioso, mas só quero vê-la gozar no meu pau agora,
meu anjo — aviso com a voz rouca, meio falha e ela assente.
Então me jogo sobre ela, ela abre as pernas para me
encaixar. Seguro o pênis nos dedos e observo enquanto a
preencho devagar. Quando olho seu rosto, Anna morde os lábios
e seus olhos brilham olhando para mim.
— Agora não sei mais qual visão é mais bela — assumo e
ela sorri.
A preencho então, saindo e entrando, devagar no começo
para admirá-la, mas logo me perco nela e faço com o desespero
que sinto, com a urgência que tenho. Arremetendo mais forte,
suas pernas à minha volta e minhas mãos sob sua bunda,
levantando seu quadril para me receber mais fundo. Seus seios
perfeitos balançam com os movimentos. De repente me sinto
quente demais. Anna deve ter sentido, pois abre os botões da
minha blusa. Paro de me mover por alguns segundos para tirar a
roupa e Anna resmunga. Logo, volto a preenchê-la, nu como ela,
sentindo o vento em minha pele e essa menina deliciosa me
apertando, me recebendo, me aconchegando dentro dela.
Quando a cabeça do meu pênis brinca em seu clitóris pouco
antes de penetrá-la de novo, ela grita mais alto. Seu corpo se
contorce, suas unhas se cravam na grama e amo a visão de
fazê-la se perder.
Ah, quando chegarmos ao hotel vou fodê-la devagar, vou
chupá-la mais devagar ainda, até vê-la gozar em cada parte de
seu corpo onde minha boca pode estar. Onde meus dedos
podem brincar, onde meu pau pode preencher.
Mas agora, só quero vê-la se perder, quero me perder nela,
com ela. Espero conseguir manter os olhos abertos, já que Anna
já tem os dela fechados enquanto repete meu nome e pede que
eu vá mais rápido. Atendo ao seu pedido, cravando os dedos em
sua pele, entrando mais rápido e mais rápido, a sensação me
toma. Estou chegando e ela precisa vir comigo. Meus dedos
deixam sua bunda e pressionam seu clitóris enquanto arremeto
dentro dela e ela grita, se perdendo, os olhos fechados, a boca
aberta, o rosto em chamas. Seu corpo tem espasmos conforme
os movimentos dos meus dedos nela e paro por um segundo,
meu pau a preenchendo, meus dedos a provocando, até que ela
se perca de novo, choramingando, os olhos abertos, mas turvos.
Como eu queria ver seus olhos assim! Perdidos de prazer,
acesos pelo fogo, brilhantes pelo sentimento. Suas unhas se
cravam na grama mais uma vez e volto a arremeter, só para
completar esse êxtase, pois ele é um conjunto. Começa quando
ela grita meu nome em perdição revirando os olhos e termina
quando me derramo dentro dela, perdendo toda força,
encontrando tudo nela.
Me mantenho deitado sobre seu corpo por alguns minutos.
Estrelas brilham no céu agora e Anna as admira, mas eu apenas
a admiro. Ela é linda, uma visão perfeita demais para que eu não
pudesse mais tê-la.

Estamos almoçando na casa de Leandro umas semanas


depois. Anna parece estar se sentindo um pouco indisposta. Não
quis comer nada e tem dormido bastante nos últimos dias. Ela
está escolhendo um vestido de noiva em uma revista com
Açucena.
— Você não parece tão empolgada — Açucena reclama.
— Bem, eu já fiz tudo isso antes. Já escolhi um vestido,
igreja, música, decoração e não significou nada. Era tudo
superficial, só porque as regras ditavam assim.
— Você não quer se casar vestida de noiva? — Açucena
pergunta assustada.
— Sim, mas nada tão convencional. Eu quero me casar no
nosso quintal, o que acha, Lucca? Chamamos poucas pessoas,
penduramos umas luzes e pronto!
— Por mim está perfeito.
Observo Anna mais uma vez e acho que entendo o que
está havendo. O que há de diferente nela. De repente assim, ao
olhar sua barriga, eu entendo. Como pudemos não ter percebido
isso antes? Me pego rindo entre emocionado e meio fora de
órbita ainda.
— Que tal esse? — Açucena pergunta mostrando um
colado ao corpo.
— Acho que para ela usar esse, teríamos que nos casar em
uns três dias — retruco.
— Por quê? — Anna pergunta confusa.
— Porque sua barriga pode impedir que você o vista na
semana que vem, amor.
Ela fica parada num primeiro momento, depois ri meio
incrédula.
— Voltamos a fazer amor há poucos dias, mesmo que eu já
esteja grávida, minha barriga não cresceria tão rápido assim.
— Porque você está grávida, pelas minhas contas, há umas
dez semanas agora, amor — explico devagar.
Ela nega com a cabeça num primeiro momento. Depois,
parece confusa.
— Isso não é possível — repete baixinho.
— Anna tem tido sono, preguiça, não quer comer direito,
teve enjoos esta manhã e está indisposta — digo e Açucena se
levanta imediatamente.
— Você está grávida! Não importa que o teste tenha dado
negativo, eles falham, vamos comprar outros. Vamos comprar
mais cinco.
— O teste não deu negativo, eu não cheguei a usá-lo.
Minha menstruação havia descido, eu não podia estar grávida.
— Foi isso o que a fez pensar que não estava grávida? Isso
não é impossível, Anna! — Açucena diz. — A mulher com quem
dividi meu quarto no pós-parto sangrou durante metade da
gestação. Você voltou a sangrar depois disso?
Anna não responde, mas se levanta.
— Onde está o teste? — Leandro pergunta se levantando
também.
— Ficou no banheiro, quer dizer, eu não o levei embora
naquele dia, deve estar no armário se você não tirou — Anna
responde.
— Ninguém mais ficou naquele quarto, deve estar lá.
Saímos os quatro apressados pelas escadas e Anna entra
no banheiro e encontra o teste.
— Não precisamos de um teste, você está grávida. Está
esperando um filho meu, Anna. O destino havia sim nos dado a
resposta. Que bom que não precisamos dela para aceitarmos
que somos o destino um do outro — afirmo emocionado.
Ela sorri, mas fecha a porta. Sai pouco depois com o teste
em mãos, o coloca na janela e esperamos. E então acontece, a
palavra aparece.
— Está escrito grávida, tem grávida escrito aqui — Leandro
repete alterado. — Anna você está grávida!
Ela leva as mãos ao rosto, lágrimas saem de seus olhos,
dos meus também. Me aproximo e a prendo em meus braços.
— Você esteve grávida esse tempo todo — observo
enquanto ela me abraça e chora. — Anna, vamos ter um bebê.
— E nós nem decoramos o quarto de bebê — responde
emocionada.
Se afasta para abraçar Açucena e Leandro e acho que
nunca me senti assim antes. É uma sensação diferente, porque
já estou feliz há tantos dias que seria injusto dizer que nunca
estive tão feliz. Mas acho que nunca estive tão completo.
É isso, olho a mulher que amo, os amigos que tenho, toco
sua barriga que mesmo pequena, já é possível notar que está
mudando de forma e nunca antes havia me sentido tão completo.

9 meses depois...

Abro os olhos ao ouvir a voz de Anna cantando baixinho.


Ela anda pelo quarto com o pequeno nos braços, balançando-o
para que ele durma. Me levanto e encontro os olhos do nosso
filho vidrados nela. Ele tem mania de ficar olhando para ela, por
vários minutos, admirado.
— Ele não quer dormir — ela diz exasperada.
— Por que iria querer quando ele pode ficar apenas
observando você? Você não percebe o quanto ele está
encantado com sua beleza?
Ela sorri.
— Não seja bobo. Você acha a mamãe bonita, Pedro? Está
gostando de olhar para ela e não quer fechar os olhos por isso?
Porque se for o caso vou começar a usar máscaras quando for
fazê-lo dormir.
O bebê sorri, sua boca banguela quadrada nos faz derreter
sempre. Parece que esse encanto não passa nunca.
— Me dê ele, vá descansar, amor. Eu o faço dormir. Vamos
ter nosso momento noturno de pai e filho.
Ela beija Pedro com carinho e o entrega a mim.
— Agora somos só nós dois, campeão. Vamos ver quem de
nós vai dormir primeiro.
Caminho com ele até a cama, me deito e o acomodo em
cima da minha barriga. Ele fica fazendo sons deliciosos enquanto
Anna tem um sorriso lindo rosto. Colocamos seu nome de Pedro
em homenagem ao meu pai, Petros. Desde que Pedro nasceu,
não fomos trabalhar, o fazemos apenas de casa e em períodos
menores do que faríamos na agência. Leandro reclama que nos
tornamos preguiçosos, mas a agência está em sua melhor fase
desde sua criação. Leandro e Açucena estão dando conta de
tudo com facilidade e queremos ficar ao menos um ano em casa
com nosso filho. Acompanhar seu desenvolvimento de perto.
Temos o dobro de filiais pelo mundo do que tínhamos antes e
conseguimos vincular tantos programas sociais a essas viagens!
As pessoas não apenas passeiam e se divertem, elas se
emocionam, se reencontram, elas ajudam outras. Cuidamos que
cada pacote oferecido, ofereça também uma oportunidade de
ajudar. Nós instruímos que elas façam as plantações, para que
colham depois os frutos. E tem dado certo. Anna e eu viajamos a
um desses programas e a experiência foi uma coisa incrível!
Uma parte do dinheiro recuperado de Aquiles foi usada para
mais programas de treinamento de cães-guia, como Apolo. Foi o
preço para que ele pudesse ficar conosco. Me disseram que o
treinamento de um cão-guia era muito caro, e Apolo teria que ser
passado a outro deficiente visual quando voltei a enxergar, era a
missão dele. Foi bem quando o dinheiro que Aquiles havia
roubado voltou para minhas mãos, e boa parte dele foi investida
em mais centros de treinamento, mas treinadores e mais cães
prontos e acessíveis a deficientes visuais pelo país. Assim, Apolo
se aposentou novinho e ficou conosco. Ele ainda não é um cão
brincalhão, acho que ainda não entendeu que não precisa mais
me guiar, uma vez que está sempre à minha esquerda e continua
me protegendo. Mas, aos poucos, com a insistência de Anna,
está começando a se permitir brincar um pouco. Não pode vê-la
que abana o rabo cumprimentando-a, coisa que antes não fazia.
— Ele dormiu — Anna sussurra. — Como você consegue
fazê-lo dormir tão rápido?
— O que posso dizer, eu tenho um dom. E você é bonita
demais, fica distraindo a criança.
Ela ri enquanto ajeito o bebê no berço, que fica no nosso
quarto, atrás de uma divisória colorida de madeira que Anna fez
questão de colocar para que o bebê não consiga ver a cama,
preservando nossa intimidade. Quando retorno, vejo minha
esposa cansada, sonolenta, mas com um sorriso lindo e um
brilho no olhar que desde que abri os olhos de novo esteve ali.
— Por quanto tempo mais você vai amamentar? —
pergunto.
— O quanto for possível, por quê?
— Porque você quer ter mais quatro, estará sempre
amamentando e quando é que eu vou poder mamar aí? Isso é,
sem o risco de sair leite na minha boca.
Ela ri alto e se controla, lembrando-se do sono leve do
nosso filho agitado.
— Sinto muito, amor. Se você não quer beber leite, vai ter
que esperar um pouco, meus seios pertencem a outro agora.
Porém, há outro lugar onde você pode colocar a boca e o que vai
sair nela é bem propício a essa sua safadeza.
— Você está falando demais, anjo. Abra as pernas, agora é
a vez do papai mamar.
Assim, me perco nela. Não do jeito cuidadoso e lento com
que gostaria de apreciá-la, porque o bebê vai acordar em três
horas, mas com intensidade suficiente para saciar a nós dois.
Quando coloco Pedro de novo nos braços dela e a vejo dar
de mamar a ele, com seu olhar apaixonado pela criança que tem
seu sorriso, entendo que nada do que fiz foi o bastante para ter
recebido de volta tanto. A vida foi mesmo generosa comigo. Sou
um babaca com sorte.
8 anos depois

— Leticia, cuidado com sua irmã, ela é menor do que você!


— grito e minha filha de cinco anos faz uma careta como
resposta, mas a ajuda a pequena Luana, de três, a subir no
escorregador.
Leticia é a cara do pai, uma cópia tão fiel que chega a ser
assustador. Também puxou seu gênio e me dá um pouco de
trabalho. Ela tem esse nome porque é um nome memorável para
Lucca e eu. Foi com ele que tudo começou. Já a pequena Luana
é tão desligada que me pergunto de onde puxou essa cabecinha
na lua. Quem escolheu seu nome foi Miguel, o filho mais velho de
Leandro e Açucena, porque, segundo ele, Luana é a junção de
Lucca e Anna.
Sophie resmunga algo em meu colo e embola meus
cabelos em seus dedos. Minha caçula tem 9 meses agora, seu
nome foi escolhido por Pedro. Sophie é o nome da garota por
quem meu filho é apaixonado desde o jardim de infância. Estou
me balançando com ela nos braços e Pedro no balanço ao lado,
quando Lucca chega. Ele tira o casaco, se joga no chão e as
meninas pulam sobre ele, como se ele fosse uma espécie de
cama elástica. Elas amam isso. Lucca quase não vai trabalhar
fora com Sophie tão pequena, passamos o período de férias das
crianças sempre em Monte Verde, o lugar preferido delas, mas
desta vez estamos na capital e hoje teve uma reunião e Lucca
precisou ir.
— Elas são muito crianças, mamãe! — Pedro reclama ao
meu lado. — Quando vão parar de pular no papai assim?
— Você pulava no papai assim até a semana passada, se
bem me lembro.
— Eu pulava? Não me lembro disso — responde com a
maior cara de pau, que Lucca diz que ele herdou de mim. Pedro
é mestre em fazer as coisas mais inesperadas e fingir que não
sabe de nada.
Sophie resmunga mais alto.
— Ela quer uma fruta? Eu posso dar a ela, ela é minha irmã
preferida — Pedro diz tirando Sophie do meu colo, ela o adora, e
indo com ela em direção a cozinha.
Mas não consegue passar ileso pelo pai, Lucca o abraça,
abraçando aos dois e os gira pelo quintal, deixando nosso
menino mais velho com um sorriso radiante, como o das irmãs,
que ele considera duas pirralhas.
Lucca vem em minha direção com um sorriso lindo. A barba
por fazer, o cabelo bagunçado, abre os primeiros botões da blusa
social branca, como se precisasse respirar e me beija.
— Como foi seu dia? — pergunto.
— Longo, cansativo, estava louco para voltar para casa.
— Ah, claro. Porque aqui você descansa, com quatro
crianças!
— Esse é o tipo de cansaço que me dá energia, meu amor.
Como foi o seu?
— Curioso — respondo.
— O que isso quer dizer?
— Que tenho uma notícia.
— Também tenho uma notícia. Açucena está grávida.
Finalmente vão ter o terceiro filho. Agora só ficaremos um na
frente deles.
— Ah, que notícia linda! Mas Açucena esteve aqui hoje e
não me disse nada então aposto que ela ainda não fez o teste e
o Leandro já está abrindo a boca, não é?
— Exatamente. Qual a sua notícia?
— Tudo bem, respire fundo e tenta não surtar.
Ele franze o cenho e se afasta um passo para atrás, me
tirando de seus braços.
— Anna, toda vez que você começa a notícia me pedindo
para não surtar, eu surto mais rápido. Fale logo. O que
aconteceu?
— Não vamos ter um filho de diferença do Leandro e
Açucena, e sim, dois.
Ele parece confuso, por fim entende o que estou falando.
— Você está...
Assinto e temo sua reação. Sophie ainda é muito pequena,
demos um tempo maior nos outros filhos.
— Anna Maria Baltazi, você não estava brincando quando
disse que queria uma família numerosa! Meu Deus, cinco filhos!
Ele me puxa para seus braços e me beija
apaixonadamente, quando nos afastamos, seus olhos estão
molhados. Esses olhos lindos, sem cor definida, que no momento
refletem o céu acima de nossas cabeças.
— Tomara que esse puxe seus olhos — digo.
— Eu amo os seus, amo que nossos filhos tenham olhos
cor de mel. Tomara que seja um menino.
— Ah, não! — a voz de Pedro é ouvida. — Quando vocês
vão parar de ter bebês?
— Esse é o último — Lucca diz. — É o último, não é? Você
não decidiu ter seis!? — me pergunta com olhos arregalados.
— De jeito nenhum, eu nem queria ter cinco. Esse
escapuliu — garanto. — Pedro, pense pelo lado positivo, pode
ser um menino dessa vez.
— Seus olhos brilham e ele tem um sorriso enorme agora.
Lucca pega Sophie de seu colo e Pedro não para de pular
enquanto comenta animado:
— Sim, precisa ser um menino! Estou guardando todos os
meus cards dos heróis para um irmão. Vou ensiná-lo a jogar bola
e Free Fire. Vou dar minha bicicleta a ele e vamos aprender a
andar de skate juntos. Mamãe, com quantos anos ele vai poder
andar de skate?
— Acalme-se, filho, ainda não sabemos se é um menino. E
você ainda tem o Miguel.
— Mas o Miguel não me obedece, ele é mais velho, sou eu
quem o obedeço. O meu irmão será mais novo, portanto, eu vou
mandar nele!
Encaro Lucca que tem um sorriso disfarçado e vamos torcer
que seja um menino.

As crianças brincam nos brinquedos do restaurante,


enquanto Pedro e Miguel jogam videogame e Sophie dorme no
colo do pai. Os bebês sempre dormem melhor com Lucca, não
entendo o porquê. Açucena foi socorrer Marianna, sua filha de
cinco anos que caiu do brinquedo, mas já está de volta.
— Vamos fazer um acordo — Leandro propõe. — Se nosso
filho for menino, vamos chamá-lo de Lucca. Se o de vocês for
menino, vocês o chamam de Leandro.
— Eu aprovo. Mas é injusto, porque o nosso com certeza é
menino e vocês têm ainda mais duas meninas para nos alcançar
— Lucca responde.
— Nem fodendo, não vamos ter cinco filhos! — Leandro
responde imediatamente e Açucena está rindo. — Não vamos,
não é amor? Três está de bom tamanho.
— Por que você está me perguntando? Quem decide isso é
o destino ou o acaso, vamos ver quantos filhos teremos.
Lucca e eu rimos e Leandro parece prestes a ter um treco.
Uma atendente vem recolher os pratos na mesa e percebo que é
Larissa.
— Oi, Larissa, como você está? — pergunto, mas ela tem a
expressão fechada, recolhe os pratos rapidamente e sai andando
sem me dar uma resposta.
— Ela ainda tem que muito o que aprender da vida, às
vezes eu sinto até pena — Lucca comenta.
Uns quatro anos depois que Lucca e eu nos casamos,
Larissa conheceu um sheik árabe podre de rico. Pelo menos
assim ela acreditou. Se casou com ele quando o conhecia havia
apenas dois meses. Acabou que esse homem era um charlatão
que deu um golpe na família dela, tirando tudo o que eles tinham.
O pai de Larissa trabalha na Atenas hoje e ela trabalha como
garçonete em um restaurante próximo ao condomínio onde
morava. Seu pai e sua mãe são sorridentes e muito gentis, adoro
o pai dela, ele sempre manda balas a Pedro e as meninas. A
mãe dela é a babá que chamamos sempre que vamos trabalhar
ou jantar fora. Ela é maravilhosa e carinhosa com as crianças.
Mas Larissa é a única que nunca mais trocou uma palavra com
nenhum de nós e nem olha pra gente. Como se a culpa pelo que
aconteceu a ela fosse nossa. Ou minha, uma vez que acredita
que se eu não tivesse aparecido, teria se casado com Lucca.
Mas bem, sei que um dia ela vai entender, porque não temos
para onde correr, a vida exige que a gente aprenda.

8 meses depois...

— Ele tem seus olhos — comento emocionada ao pegar


pela primeira vez meu pequeno Leandro nos braços. O bebê me
observa, exatamente como Pedro fez quando nasceu e tem os
olhos da cor dos de Lucca.
— Os olhos dele ainda vão mudar de cor — a obstetra diz,
mas acredito que vão ficar iguais aos do pai. É coincidência
demais que tenha nascido justamente com essa cor indefinida,
esse cinza claro que amo.
— Diga oi para o papai, Leandro! E para o padrinho!
Leandro está aqui, quando soubemos que era um menino
que se chamaria Leandro, ele me deixou louca. Manteve seus
cuidados exagerados comigo e Açucena por toda nossa
gestação, e não víamos a hora de termos os bebês apenas para
nos livrarmos dele. Leandro chora emocionado, como se o
pequeno Leandro fosse também seu filho. Lucca, seu filho,
nasceu há quatro dias. Açucena já está em casa com ele, e para
ser justa, Lucca também acompanhou o parto dela como o
padrinho babão que ele é. Isso porque também é padrinho de
Marianna. E de Raphael, o lindo bebê da Effie, que fomos à
Grécia conhecer dois meses atrás.
Lucca segura o pequeno nos braços e a primeira coisa que
diz é:
— Doutora, a senhora pode ligar as trompas dela agora?
Todos na sala de parto riem, mas quando a doutora
concorda, ele diz:
— Brincadeira, não ligue. Acho que podemos ter mais um
menino um dia, quem sabe. Para equilibrarmos a família. Não
sei. São cansativos, mas quando olho para um assim, sinto tanto
amor que não quero que esse amor pare de crescer.
Seus olhos estão turvos. O pequeno Léo, como o
chamaremos, segura seu dedo e ele parece derreter. Fecho os
olhos cansada, feliz, aliviada por isso ter passado. E me pego
agradecendo pela vida maravilhosa que tenho, a família
maravilhosa, barulhenta e feliz que construímos. Tudo o que eu
passei antes serviu para me mostrar o quanto tenho agora.
Nunca mais vou ser sozinha, e olha que às vezes eu quero ser
sozinha e é impossível com tantas crianças. Mas nunca mais
serei triste também, nem terei medo, porque eu tenho um lar. Um
lar enorme e cheio de amor e felicidade. Um marido maravilhoso,
cinco filhos incríveis, amigos especiais e uma vida que mais
parece um conto de fadas.
Quem dera todos pudessem viver uma história assim.
Nota da autora
Olá e muito obrigada por chegar até aqui com Anna, Lucca
e eu. É um prazer que você tenha escolhido este livro para ler e
espero muito que tenha se divertido e se apaixonado durante sua
leitura.
Há algumas considerações que achei importante dividir com
vocês. Em relação à deficiência visual do Lucca e aos dois
transplantes de córneas que acontecem no decorrer do livro.
Para escrever este livro e essas cenas, em especial, foi
necessária muita pesquisa. Eu não seria capaz de fazê-la
sozinha, e tive ajuda de mais duas pessoas pesquisando e
perguntando comigo. Eram muitas as coisas que tínhamos que
nos preocupar e somos completamente leigas no assunto. Até
mesmo se um transplante alterava a cor dos olhos do receptor
nos preocupamos em saber. (Não altera).
Como muitas respostas não podiam ser encontradas na
internet, ainda tive ajuda de uma médica maravilhosa que me
esclareceu bastante sobre o cadastro e como funciona a fila de
transplante de córneas. De uma pessoa que passou pelo
transplante aqui na minha cidade dois anos atrás e, de uma das
clínicas de olhos aqui de Belo Horizonte, onde a recepcionista,
muito prestativa, me tirou diversas dúvidas com toda paciência.
Minha intenção era mostrar as coisas da maneira mais real
possível, para que você, ao ler este livro, pudesse sentir tudo de
verdade com Lucca e Anna e pudesse se informar. Mas claro que
apesar dos nossos esforços, não somos profissionais da área e
nunca passamos por isso, então é possível que alguma
informação esteja incompleta ou equivocada. Peço desculpas se
isso ocorreu, tentei mesmo dar o meu melhor para deixar tudo o
mais perto da realidade para vocês.
Muito obrigada, mais uma vez, por chegarem até aqui.
Espero vê-la(o) em breve!
Um beijo enorme e um ano iluminado!
Carlie
Dedicatória
Este livro é dedicado às minhas ANNAS. Cada N no nome da
nossa protagonista é uma homenagem às Anas da minha vida.
A Ana, minha avó, uma das pessoas mais lindas e divertidas que
tive o prazer de conhecer. Que com certeza agora está alegrando
os anjos no céu.
E Ana, minha irmã, minha pessoa, meu porto seguro. Muito
obrigada pelo amor, companheirismo e amizade a cada dia.
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus, por mais uma vez não
ter soltado a minha mão quando eu quis desistir. Obrigada por
cuidar de mim e me fazer ser capaz.
A minha família, minha base a cada dia.
A Daniele, minha prirmã, melhor pessoas do mundo,
melhor amiga, melhor prima, melhor fazedora de booktrailers. Te
amo!
A Maria Rosa Morais, minha amiga guerreira e vitoriosa,
obrigada por sua inspiração, paciência e amizade a cada dia,
minha amiga. E ao Rafael, meu sobrinho que está cada dia mais
lindo.
A Ellen Souza, por nunca desistir de mim, pela amizade
sincera e incondicional, pela irmandade verdadeira. Te amo,
amiga!
A Bia Tomaz, minha amiga e escritora mais linda! Ansiosa
em betar seu novo livro e me apaixonar mais uma vez!
Às betas deste livro, que se não fosse por elas eu ainda
estaria perdida lá no capítulo 15. Obrigada Iandra T.F. Dias,
Jennifer Torres e Erica Nascimento por toda paciência e retorno.
Vocês são incríveis!
A Ellah Castro, por todo apoio e carinho sempre, por
dividir comigo cada passo. Obrigada por tudo, vaquinha.
A Cleidi Alcântara, pela amizade, por todo apoio e carinho.
Pela pessoa incrível que você é. E ao mô, Paulo, obrigada
sempre por cuidar dela.
A Tati Pinheiro, escritora maravilhosa e pessoa mais
maravilhosa ainda! Obrigada por todo apoio desde o primeiro
post sobre esse livro. Saudade demais!
A Amanda Lopes, vai achando que você não vai ler este
livro. Rsrsrs Te adoro e admiro sempre!
A Cristiane Navarro e sua princesa Ayla. Ainda não tenho
palavras para agradecer esse presente lindo e tão significativo!
Que Papai do céu as cubra sempre com toda proteção e
bênçãos!
A essas meninas lindas que fizeram postar este livro no Wattpad
ser uma verdadeira festa. Obrigada por cada palavra de apoio,
carinho e amor. Vocês são as melhores leitoras do mundo! Sei
que eu não conseguiria citar todas, mas sintam meu carinho.
Obrigada, Laysa_Muller, Gouveiat, Ericanet, Gihh_Sousa27,
issahh18, jujusacre, GesselmaMartins, lanapwrrilla,
DayaneMusshauser, cah_ferreira, girassolliteraria222, Andreian9,
danipcoelho57, Costaar, DianaBortolinBarbosa, Dayab2020,
MarinaSakae, Brennalodh, HeloiseCabral, NessaMoraes27,
umainutilqualquer, Emmy_Maldonado, HeniET, Dreia25,
Fa_0986, clarapinto2, Naggifer, KatrinaCrane17,
TatianeNascimento933, ClaudiaDilsha, niana_lua, BrunaCavill,
LeilaRaquel2, CamiAthenaMS, NaianeRenata, franncisouza123,
edilmabrito, VanessaPereira269, ariadnesilva231,
FrancyAlmeida7, ccscacasil, GabrielaLacerda9, rosinha3371,
FranciellyMorais2, Rosimeire20, BrunaSilva090427,
GreyceFerreira1, alemp2001, AlexandraLima3, belzfaria767,
RobertaMaria111, stelaalmeida12, lericiaaaaa13, Slethy,
LeticiaPinheiro5, nessa_pavan31, TatySad, SuelemSales6,
LeticiaEduarda727, Luanasb37,
MarcelleTerra9, MarcelaJuliana200, LucieneCarmem,
MikelyBarcellos, Thay_Braz, LannySantana9, Swannysilva,
lauramachado23, 2002noemy, 1222nm, zaybsmirror155,
userAnaLima10, Mallysoliveira, naramaria1222, silmessias,
raisinhabarros, menezesjuliana, veralindas, MichellyCaroline,
NathGomes5, TaisCaldeira, BrunaNery96, Hashi_senju,
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Louisesousa77, Lamourr, Juh_Moraes, Bolinjo, Juh_2021,
RobertinhaCesario, RenataaFagundez, SherlaneAlexandre e
tsmenezes.
Aos perfis que me ajudam muito através do IG, obrigada
de coração por todo apoio! Literalmente Rosa, Leio e Não Nego,
leituras_da_ma, vicio.em.livros, umlivroumamor1, booksdamayy,
amorliterario5, pequena_sonhadora_literaria,
paginas_marcadas_, resenhandoerabiscando,
paixao.em.ler,ebooksdathata, vibeliteraria.anapaula,
lethy.literando, lerporamor_, entresonhoseresenhas.
Obrigada a essas meninas lindas, que estão sempre
comigo pelo IG, também não vou conseguir citar todas, mas sou
grata demais por ter vocês comigo em cada novo trabalho.
sarahbrunas, ronielsen, lludmilacardoso, pathiyprates, yy_suzuki,
alinemeyck, gleicy.navarro, Hylanna, Brenda, Mayara, dikiarareal,
mitilans, geisa.neves.7, milla_cardoso2, tathiane_86, pri2s2,
szgibs, simeiasaracg, alinesans3.
E obrigada a essas amigas, leitoras, apoiadoras, pessoas lindas
que estão comigo sempre. Vocês são as melhores! Thamires
Lemes, Shirley Nonato, Luciana Satos, Larissa Ligoski, Vanessa
Fausto, Mah Rina, Amanda Pessoa, Kethy Camargo, Aline
Flores, Alinne Leite, Thatyana Seraphim, Rosiane Conrado,
Natália Assunção, Alessandra Regina, Alessandra Costa, Viviane
Nicole, Anna Oliveira, Carla Carvalho, Patrícia Tatiane, Bruna
Souza, Jully Lancy, Delielma Pereira, Tatiane Serafim, Josi
Nascimento, Eduarda Andrade, Lorena Siqueira, Maria Augusta
Farias, Evelyn e Deborah, Jéssica Santos, Andrea Lima, Marcia
Pereira, Tanise Espilma, Renata Ferreira, Dolores Gaspar,
Francisca Kelyanne, Elaine Gomes, Ana Cristina, Adriana Dutra,
Giovana Cristina, Juliana Cardoso, Suelen Xavier,Brunna
Nascimento, Mayara Lopacinski, Roseane Silva, Daniela Chultes,
Júlia Lopes, Sâmala Marques, Rozzy Lima, Fernanda Lopes,
Amanda Anaguely, Geicy Carol, Luciana Machado, Deise
Cristiane, Bárbara Restani, Luanna Mayara, Nanda Pereira,
Nadia Nunes, Simone Batistela, Maristela Pires, Marlene Morais,
Morgana Priesnitz, Bruna Gonçalves, Debora Gomes, Adrielly
Oliveira, Sergio Henrique, , Raiza Silva, Nathalia Karoline,
Maristela Pires, Sayonara Araújo e meu quarteto preferido:
Elizabete, Priscilla, Lethy e Drih.

A essas meninas que me aturam no grupo do zap,


OBRIGADA POR TUDO! Amo vocês: Drika, Camila Lemes,
Emilene, Tatiana, Flavia, Gil, Hanna, Erika, Andrea, Cleria,
Jéssica, Jhenniffer, Larissa, Danny, Rosa, Tati, Xanda, Aysha,
Thamara, Roberta, Preta, Mony, Nessah, Kehry, Ana, Lais,
Emanuela, Gabi, Jessica Ray, Duda, Grazyela, Geovana, Atilia,
Deize, Raissa, Danielle, Nete, Carol, Jana, Josiane, Helena,
Bruna, Nina, Amanda, Patricia, Joyce, Sil, Aline, Tatiane, Vitória,
Andreia, Luana, Geovana, Talita, Juliete, Jennifer, Gaby e
Danielle.

A essas autoras maravilhosas que leio, amo e admiro,


obrigada por toda inspiração e apoio! Thais Martins, Adriana
Brasil, Ana Paula Vilar, Jussara Leal, Sara Fidelis, Priscila Tigre e
Elissande Tenebrarh, muito obrigada!

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