Você está na página 1de 4

Sneak

Carlos tinha um problema com comida. Sua esposa parecia não


perceber. Ninguém parecia perceber. Então, inconscientemente, ele se
esforçava mais e mais no seu problema com comida para ver se alguém
percebia e o notava. Fazia essas coisas absurdas para ver se, finalmente,
conseguiria chamar atenção. Para ver se alguém notava e considerava sua
presença. Ele queria ser notado. Ele queria ser amado. Queria ser punido.
Queria qualquer coisa. Queria se sentir uma pessoa.
Muitas vezes por semana, umas três, pelo menos, depois que sua
esposa começava a roncar e a dormir profundamente a seu lado, ele ainda
estava de olhos abertos, deitado, olhando para o teto na escuridão. Quando
certificava-se de que de fato ela estava dormindo e não ia acordar com ele
levantando, ele saía de fininho do quarto, fechava a porta silenciosamente e
ia até a cozinha.
Abria a geladeira e começava. Ele sempre começava com algo doce e
depois comia algo salgado e ia alternando.
Carlos fazia dieta, uma dieta bem restritiva, e sua esposa, graças a
Deus, aceitava e entendia o porquê dele comer daquela forma. Entendia que
ele se sentia melhor comendo assim.
Mas o que sua esposa não fazia (e isso irritava Carlos) era ser parceira
com ele nesse sentido. Sua esposa queria continuar comendo o que lhe
agradava, e isso era justo, mas nos confins da sua mente ressentida, Carlos
achava aquilo egoísta do lado dela. Como ela podia não entender o quão
difícil aquilo era para Carlos e colaborar, não deixando toda aquela sorte de
comida e besteiras disponível aos olhos dele? É claro que ele nunca tinha
verbalizado isso para ela, mas de que adiantaria?
Agora na cozinha. Já deve passar de uma hora da manhã, pensa Carlos.
Abriu a geladeira. Encontrou um pote com uma calda de chocolate, feita de
algum chocolate com leite condensado. Ele pega uma colher na gaveta. Dá
umas três colheradas, direto do pote para a boca. A corrida começou.
A porta da cozinha está fechada, para minimizar o barulho. Ele vai para
o armário e pega o pacote de pão de Cinthia, sua esposa. Escolhe duas
fatias, descartando a bundinha do pão. Prepara um sanduíche de pão,
mortadela, manteiga e queijo. Coloca na sanduicheira.
Come de pé mesmo. Terminado o sanduíche, lava e guarda a
sanduicheira, para que ela não perceba que foi usada, mas na sua mente, diz
que só está mantendo a cozinha limpa, como ela gosta.
Então volta para a geladeira. Pega três uvas verdes e joga direto na
boca. Foi a parte do doce. Agora voltemos ao salgado. Prepara uma pipoca
salgada de microondas, tentando ao máximo não fazer barulho, fechando o
microondas vagarosamente. Sua mente está atenta a todos os barulhos. Ele
pode ouvir os carros lá fora, o barulho de alguns passarinhos perdidos com o
tempo, bem de longe, ele pode até mesmo ouvir a respiração pesada e o
ronco de sua mulher.
Se senta na mesa da cozinha e come a pipoca, devagar e vorazmente,
ao mesmo tempo, crunch, crunch, crunch, está crocante.
Terminou a pipoca. Acha uma barra de Twix no armário. Come o Twix.
Carlos continua assim por cerca de duas horas. Leva a mão ao peito. O
coração está batendo desesperadamente. Seu estômago está inchado,
querendo estourar na altura da barriga. Ele se sente mal, deprimido. Tem
vontade de sentar e chorar, mas não consegue. Diz pra si mesmo que está só
se vingando, se vingando de Cinthia, que não entende e não ajuda ele.
Ele está sentado na mesa da cozinha, a cozinha está um brinco, não há
nada usado e sujo por aí, ele está com as mãos limpas, está engolindo o
choro, mas não parece estar à beira do choro. Só parece insone.
Há um cheiro de comida pela cozinha, sim, mas não é identificável, visto
a mistureba toda de alimentos que Carlos fez.
Cinthia abre a porta da cozinha, esfregando os olhos. “O que está
fazendo aqui?” pergunta ela. “Estou sem sono” responde ele. Uma parte da
sua mente está gritando por ter sido descoberta e a outra parte está
insanamente feliz, pensado “eu finalmente vou ser notado!”.
Cinthia caminha vagarosamente na direção dele, encosta a cabeça dele
em sua barriga, ainda de pé e acarinha seus cabelos. Carlos se sente
profunda e tristemente feliz. “Ela me ama” ele pensa.
Ela ainda está esfregando os olhos. “Vou me deitar” ela diz. “Tudo bem”
responde Carlos, com a voz suave.
Ela sai da cozinha e deixa a porta aberta.
Uma parte da mente de Carlos, a parte obscura e irracional, fica muito
irritada. Fica ressentida. Fica odiosa. “Como ela pôde não me notar? Como
ela pode não notar meu problema e não me ajudar?”.
Ele sabe que aquilo não faz o menor sentido, mas pensa mesmo assim.
Usa o banheiro da lavanderia pra dar uma mijada, volta ao quarto,
escova os dentes no banheiro do quarto e se deita na cama. Amanhã é um
novo dia.

***

Esse ciclo se repete de tempos em tempos e Carlos não sabe como


pará-lo.
Ao passo que ele quer ser descoberto ele faz de tudo para não sê-lo.
Sempre escolhe as comidas de Cinthia estrategicamente, para que ela nunca
perceba de fato que ele está comendo, para que ela fique em dúvida “ué,
será que eu já comi tudo isso?”.
É perverso, ele sabe, mas parte de sua mente justifica isso com o fato
dele ser a vítima, e dele estar em posição de fazer isso, afinal, ninguém tenta
ajudá-lo a cumprir essa dieta rigorosa que ele mesmo se aplicou.
Carlos vive uma vida infeliz, onde não gosta do seu dia a dia, não gosta
do seu trabalho e não gosta de si mesmo.
Cinthia continua levando uma vida serena, onde gosta de seu trabalho,
onde sequer pensa em comida (exceto nos horários que percebe que está
com fome e decide comer) e profundamente feliz por ter um marido tão
carinhoso e amável.
Há uma dissonância de percepções aqui, mas como nenhum dos dois
comunica o que sente — Carlos porque acha que não seria entendido e
Cinthia porque acha que ele sente o mesmo e essas coisas não precisam ser
ditas — eles continuam na escuridão, com Carlos se esgueirando à noite para
tentar matar seus próprios demônios.

Você também pode gostar