Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
José abriu os olhos e não pôde acreditar no que
estava vendo. O despertador tocara às 6:30 da manhã,
e ele mal havia dormido novamente. Ele já conhecia
bem aquela rotina, noites mal dormidas e um dia cheio
de trabalho desgastante, dia após dia, repetidamente
era o que o esperava, sem folgas e sem o descanso que
ele julgava merecido.
2
Pão dormido, borrachudo, café frio e solidão
foram os companheiros que o ajudaram a rememorar o
tormento da noite anterior, na qual, exausto de seu dia
de trabalho, caíra na cama e adormecera quase que
instantaneamente. Depois de um breve minuto,
desperta-se em uma zona horrenda, cheia de monstros
e seres bizarros, que lhe puxavam de um lado para o
outro, causando-lhe medo e episódios de estresse, que
se manifestavam em seu corpo como uma ansiedade
gigantesca que o faziam despertar com o coração
palpitando e o peito queimando, como se tivessem
tentado arrancar-lhe a alma durante o sono.
4
amistosos, perguntando que horas ele iria almoçar. Ele
responde automaticamente:
- No horário de sempre.
8
era Universalista, um tipo de espírita que acredita em
tudo segundo ela.
9
Vinte e sete anos, dez meses a alguns dias, esse
é o tempo gasto pra se chegar a lugar nenhum, pensou
José, enquanto lia e relia inúmeras vezes os e-mails
recebidos no trabalho das reclamações dos clientes que
nunca se satisfaziam com nada. Nenhuma informação
mais entrava na sua cabeça, tudo era um emaranhado
de reclamações dele mesmo, que se somavam às dos
clientes e do mundo a sua volta. Seu rendimento
profissional havia decaído consideravelmente e, se não
fizesse algo, com certeza em breve aquela vaga não
seria mais dele.
10
olhou pra dar aquela comparada, mas daí a ser
igualado a esse tipo de gente não, ele não admitia isso.
12
ser só mais um louco, pensou... inclusive devemos estar
muito parecidos, eu só tomei banho; e ele, não.
13
advertência, para que melhore seu comportamento e
seus números, caso não deseje ser demitido.
14
Faltava pouco tempo para encerrar o
expediente quando Mariana chama seu nome
delicadamente. Ele olha para ela com ar de poucos
amigos como sempre, e ela pergunta:
16
Aquilo não podia estar acontecendo, ele não
podia ter-se “pestiado” em um encontro casual e tão
rápido como o da noite anterior. Essas coisas só
aconteciam com que não presta, segundo o que ele
aprendera, e não era o caso dele de forma alguma.
17
José sai para a farmácia, compra os remédios e
inicia rapidamente o tratamento, pois não era apenas
uma infecção a ser curada, e sim uma vergonha a ser
escondida também.
20
estavam ali e vê Mariana, que prontamente vai
cumprimentá-lo:
- Uhum..
21
começaram a mover-se em câmera lenta e a misturar-
se com algumas das figuras que ele via em seus sonhos,
eram pessoas que se transformavam em figuras
grotescas e disformes, ora humanas, ora nem tanto.
Estava começando a ficar insuportável.
22
- Meu coração está acelerado, meu peito arde
como se estivesse queimando, minhas pernas estão
bambas e eu sinto como se estivesse para cair, não
consigo respirar direito, a visão está turva e não
consigo coordenar meu corpo.
- Ótimo, eu te acompanho.
23
- Eu vou, ponto. Não precisa se preocupar, até
porque eu não vou conseguir sossegar se você sair
assim sozinho.
- Sobre?
- Sobre você.
28
Olha ele mais uma vez colocando a carroça na
frente dos bois, porque não era capaz de deixar a
garota falar, caramba!
- Aqui na porta?
- Desculpa, entra.
- Ok!
29
- Isso o quê?
30
Aquela última parte fez muito sentido na
cabeça de José, sim, era assim que as coisas
funcionavam. Sempre existia uma coisa que o fazia
esperar o pior de tudo, e, de tanto pensar nisso, ou ele
nada fazia, ou acabava acontecendo o que ele mais
temia.
31
- Ela me falou muito de como uma série de
coisas que não estão sob nosso controle podem nos
afetar, espíritos, energias... e o que sempre me chamou
mais a atenção foi como ela sempre soube entender
essa voz e descrever como ela funcionava dentro da
cabeça dele, ela sempre dizia:
- Livre-arbítrio?
- Eu não sei...
33
José chegou acanhadíssimo ao lugar
combinado. Embora Mariana o tivesse indicado, e sua
amiga Laura o tivesse tratado com muita cordialidade
pelo telefone, ele por natureza era extremamente
inseguro. Olhou atentamente para todos os lados, era
uma sala comercial comum, em um prédio
relativamente antigo, que abrigava um ambiente
simples. Algumas cadeiras espalhadas em semicírculo,
um altar ao fundo com imagem de santos católicos e de
algumas outras que ele não conhecia muito bem. Índios
e figuras que pareciam hindus completavam a estranha
formação daquele lugar de oração.
34
- Olá, José, Laura me falou sobre você. Sou Ana,
a dirigente daqui, fico muito feliz que esteja conosco.
Estamos com os atendimentos a público fechados
temporariamente, mas as aulas para os interessados
continuam acontecendo. Você vai participar dela por
enquanto, tenho certeza de que será muito proveitoso
segundo o que sei sobre você. Sente-se, que logo
iremos começar.
38
- O ectoplasma, que é a energia vital do ser,
produzida através do processo de digestão e respiração
da célula, dentro da mitocôndria, é o responsável por
fazer a ligação entre os dois, essa energia que vocês
conseguem perceber quando aproximam a mão da pele
na forma de calor tem uma característica muito
particular, ele além de, embora visível, desaparecer
pela influência dos raios ultravioleta, também assume a
frequência das emoções e pensamentos que
estivermos vivenciando, moldando-se àquilo que
estivermos experimentando no nosso dia a dia. Por
isso, sempre que nos reunimos para o trabalho
mediúnico, é importante que nos concentremos e nos
permitamos entrar em um estado de oração
contemplativa e receptiva, a fim de que essa energia
possa se moldar à necessidade que iremos ter, para a
manifestação dos espíritos.
39
- Acerto?
- É sua vez.
41
e, se nada fizer sentido, pode voltar à normalidade das
coisas, certo de que pelo menos tentou.
42
Assim que chegou ao local de trabalho no outro
dia, José já foi logo dando um jeito de, depois de bater
o ponto, procurar Mariana. Assim que a viu, logo foi
falando:
43
- Seu Antônio, o senhor acredita em macumba?
- Então existe?
44
Sorriu com a idiotice do próprio pensamento e
seguiu trabalhando, ainda tinha que mostrar para RH
da empresa que merecia aquela vaga.
45
Lá estava ele, sentado de novo naquelas
cadeiras, esperando por mais um sermão da dona Ana.
Embora não acreditasse naquilo, ele resolveu fazer o
que tinham lhe proposto, pensara muito a respeito e
ainda não acreditava que a Mariana não tivesse
contado sobre seus pesadelos. Ela reafirmara todas as
vezes que ele perguntou, depois daquela primeira
conversa, que ele não tinha falado nada com ela sobre
isso, e ele não achava que ela tivesse o porquê de
mentir. Mas voltou ao lugar resoluto de uma coisa: se
me cobrarem alguma coisa e se tiver que pagar para
assistir às aulas, é enganação garantida.
As pessoas se cumprimentavam
educadamente, e ele apenas respondia com um aceno
de cabeça. Não estava li para fazer amigos, só iria para
ter certeza de que nada daquilo era real, mas, pelo
menos, ele não estava desistindo e seria ele então o
responsável por ter a verdade dos acontecimentos.
48
a servir, quem vai dar o passe tem que estar disposto a
se doar.
50
cabeça, mas ainda assim era dele, confuso, mas o
deixara bem, ainda que momentaneamente.
51
infância, que estava adormecida, mas tinha voltado
com força e verdade naquele momento.
52
A experiência daquela noite marcara muito
José. Embora sempre descrente sobre o que lhe
falavam, ele se levava muito a sério para fazer de conta
que nada havia acontecido. Teve que admitir para si
mesmo que naquela noite, se bem que ainda cheia de
pesadelos, ele dormira um pouco melhor, e isso
associado aos sentimentos no momento da oração de
Ana, os quais queriam dizer alguma coisa.
- Está pronto?
- Sim.
57
admitido sua incompetência, por que não fora
demitido?
58
Os dias seguintes foram relativamente mais
amenos. Com a chance do novo treinamento, José
ocupa muito do seu tempo reaprendendo os trâmites
do seu trabalho, tentando desenvolver um novo olhar
sobre aquilo que já sabia fazer. Aquela bagunça toda
que acontecera na noite que ele resolveu brincar de
médium ficou um pouco de lado, mas era dia de aula
no centro outra vez. Como era a terceira, ele foi, ainda
indeciso sobre o que aquilo estava significando para ele
ou não.
José respondeu:
59
se passa faz assim, quando tá andando normal é a Ana,
quando tá abaixadinha é a mãe Maria, entendeu.
60
- Vou explicar sobre algumas das características
da mediunidade para vocês, primeira delas,
clarividência ou médium vidente...
62
-- Hoje não estamos com tempo para isso,
respondeu Aimoré aos pensamentos de José, temos
trabalho a fazer.
- Chega do quê?
66
- Dessa vida, desse mundo, disso tudo, estou
cansado, exausto, eu não quero mais viver assim, nada
funciona, nada sai como eu espero, nada faz sentido,
me ajuda, me tira daquiiiii!
68
Isso não importava agora, ele tinha conhecido o
abraço verdadeiro de um pai naquela noite, e era isso
que ele queria lembrar.
69
Os dias que se seguiram ao trabalho no centro
universalista foram muito melhores para José.
Finalmente, ele estava entendendo como seu
supervisor queria que ele apresentasse os relatórios e
isso trouxe uma nova esperança para ele. Sem a
preocupação com seu trabalho, ele pôde se ater a uma
coisa que vinha martelando em sua cabeça.
- Claro, quando?
- Certo.
70
José pegou o endereço da casa de Mariana e,
quando esperou encerrar o expediente, foi para casa,
se arrumou e foi até a casa de Mariana. Era
relativamente longe, e ele aproveitou o caminho para
ensaiar as suas desculpas, não era da natureza dele
essa formalidade, mas, de alguma forma, sabia que era
o certo a se fazer.
71
mas, bem devagarinho, quero deixar essa minha versão
para trás e começar a organizar as coisas aqui dentro.
72
- Isso que importa, José, que você se sinta bem.
- Isso o quê?
- Me ajudou.
- Culpa, eu acho.
73
- E eu te agradeço muito por ter feito isso. Sem
sua insistência, eu certamente teria acabado tomando
remédios também. Eles estão comprados lá em casa,
eu nunca contei isso, mas só não tomei porque fiquei
postergando devido aos efeitos colaterais que ouvi
dizer que eles geram no início do tratamento. Fiquei
com medo de não conseguir trabalhar e acabei não
tomando.
- Amigos?
75
Mariana riu alto e falou:
76
- Hoje, eu quero falar com vocês sobre casos
em que a pessoa mesmo se atormenta e que não são
causados por espíritos obsessores, mas podem ser
usados por eles para aumentar o seu controle sobre a
gente.
77
- Não é tão simples assim, o que normalmente
se percebe é que esses pensamentos são oriundos de
algum tipo de aprendizado que a pessoa não está
observando, e que é necessário internalizar para poder
então encerrar esse ciclo. Não adianta apenas pensar
uma coisa boa no lugar de uma ruim, é preciso
transformar o ruim em bom dentro de nós, aceitando a
lição que se apresenta por detrás de cada onda de
pensamento grudento que se mantém por longos
períodos de tempo. A isso se dá o nome de reforma
íntima.
- E os psíquicos se manifestam no
comportamento da pessoa, levando-a a se comportar
de forma completamente diferente da maneira do
ambiente onde vive. Exemplo são as pessoas que têm
total negação a algum tipo de minoria ou raça, mesmo
sem terem influência em casa para isso. Essas pessoas
costumam naturalmente buscar se agrupar a outros
que pensam da mesma forma, para viverem, nos dias
atuais, as convicções que tiveram em outras
encarnações. Muitos dos ódios sobre etnias diferentes
do nosso mundo são originadas dessa característica.
Essa marca causada pela dor e pelo sofrimento
79
prolongado pode estar também em corpo búdico,
deixando infiltrar, para essa vida, muitas das sensações
já vividas anteriormente.
82
- Nunca disseram que seria fácil, mas é
gratificante quando se pode auxiliar alguém a viver o
máximo de sua experiência de forma livre, porque esse
é o direito concedido a cada um pelo criador. Todos
podemos ser o que nascemos para ser sem hesitar, e
não é direito de ninguém julgar a criação, muito menos
mudar a forma do outro de ser. Esse caminho não traz
dor, revela apenas o amor do Pai por todos nós, e,
quando no caminho se identifica a dor, apenas ali nós
atuamos...
Ela continuou:
86
José estava cada vez mais inteirando-se dos
assuntos do centro que estava frequentando. Cada
novo encontro era uma oportunidade de
autoconhecimento que ele buscava não desperdiçar,
atento a todas as explicações, fossem dos espíritos que
se manifestavam ou dos irmãos que compartilhavam.
Cada vez mais, ele compreendia coisas importantes
sobre si e sobre o que acontecera a ele até chegar ali.
90
aumentando ainda mais o quadro de ansiedade que eu
já experimentava.
91
energias das criaturas, por isso vou explicar como isso
funciona.
97
José engasgou, a essa altura sabia o que isso
significava, fora ela naquele dia que ele, desnorteado
no meio fio, chorando, ouviu através do sem teto esse
alerta, abraçou a amiga reconhecendo nela sua
grandeza e disse:
98
José, com vinte e oito anos de idade, momento
em que Saturno retorna à posição em que estava no
momento do nosso nascimento, tivera a oportunidade
de ver-se conduzido pelos sentimentos e situações da
vida a começar a compreender seu papel no mundo,
como mediador entre os mundos que existiam dentro e
fora dele.
99