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Prefácio

Não existe um jeito fácil de nos tornarmos


quem nascemos para ser: uma série de empecilhos e
influências de outras pessoas e consciências insistem
em dizer-nos o que fazer.

Nesse caminho, alguns pequenos empurrões


podem fazer a diferença, além de sinais-chaves,
gatilhos e toda sorte de artimanhas é lançada pelo
mundo espiritual, programado por nós mesmos, para
que tenhamos a chance de recordar nossa missão
nesse mundo.

Assim foi com José: mesmo conturbado, ele foi


conduzido a ser quem nasceu para ser, um mediador
entre suas várias versões e entre ele e o mundo que o
cerca.

Assim como ele, todos somos médiuns em


potencial. Para que se tenha êxito no encontro com
essa realidade, é preciso desligar as opiniões e acender
a lâmpada do conhecimento, pois somos médiuns sim;
alguns só deixam que os outros digam que não.

Nem sempre é fantástico o processo. Na


grande maioria das vezes, é extremamente trivial e
cheio daquilo que vivemos o dia a dia. O que realmente
muda na posse do conhecimento é o que fazemos com
nossa própria vida: afinal, conhecimento gera liberdade
e liberdade é poder...

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José abriu os olhos e não pôde acreditar no que
estava vendo. O despertador tocara às 6:30 da manhã,
e ele mal havia dormido novamente. Ele já conhecia
bem aquela rotina, noites mal dormidas e um dia cheio
de trabalho desgastante, dia após dia, repetidamente
era o que o esperava, sem folgas e sem o descanso que
ele julgava merecido.

Levantou-se, pois essa era a prática diária.


Necessitava continuar, ir até o trabalho, produzir, pagar
suas contas. Diante disso, ele se impunha uma rotina
maçante e, majoritariamente, quase humilhante, já que
como poderia ele produzir alguma coisa, se nem
mesmo dormir direito ele estava conseguindo nos
últimos tempos.

Balançou a cabeça rapidamente na esperança


de que tais pensamentos deixassem sua cabeça. Desde
que saíra do interior na busca de uma vida melhor, ele
se propusera a lutar pelos seus ideais. Enfiou sua
cabeça embaixo do chuveiro e tomou um banho
rápido, sabonete no corpo todo, sem maiores
caprichos, lavou-se, pegou a toalha ainda úmida do uso
na noite anterior e vestiu-se.

Aquele uniforme surrado não lhe era agradável,


mas menos prazeroso ainda era a monótona rotina de
sentar-se à mesa sozinho e tomar o café fraco deixado
na térmica e preparado na noite anterior, que já havia
esfriado, bebê-lo acompanhado de um pão francês
dormido com manteiga e presunto.

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Pão dormido, borrachudo, café frio e solidão
foram os companheiros que o ajudaram a rememorar o
tormento da noite anterior, na qual, exausto de seu dia
de trabalho, caíra na cama e adormecera quase que
instantaneamente. Depois de um breve minuto,
desperta-se em uma zona horrenda, cheia de monstros
e seres bizarros, que lhe puxavam de um lado para o
outro, causando-lhe medo e episódios de estresse, que
se manifestavam em seu corpo como uma ansiedade
gigantesca que o faziam despertar com o coração
palpitando e o peito queimando, como se tivessem
tentado arrancar-lhe a alma durante o sono.

Despertar do adormecimento não o tirava do


pesadelo. Mesmo acordado, ele continuava a ver e
sentir cada uma daquelas criaturas, e se revirava na
cama incessantemente, buscando de alguma forma, ou
apagar aquelas imagens de sua mente, ou dormir
novamente.

Essa segunda hipótese acabava por transtorná-


lo ainda mais, pois sabia que, se dormisse novamente,
perderia o controle sobre si mesmo e ver-se-ia
novamente imerso no horror que eram seus próprios
pesadelos.

Foi arrancado de seus pensamentos pelo


barulho do ônibus que se aproximava. Engoliu sem
sentir o resto da refeição fraca que fazia e trancou a
porta ao sair. Pelo menos isso ainda estava ao seu
alcance, se não podia fechar-se para o mundo dos
sonhos, ao menos a porta da casa estaria devidamente
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fechada. Certificou-se várias vezes de tê-la chaveado,
embora não tenha feito o mesmo com o saco de pão
que ainda estava sobre a mesa.

Assim sai José para mais um dia de trabalho,


cansado, ansioso, desesperançoso de viver uma vida
normal.

A realidade era ainda mais dura lá fora, ônibus


lotado, sempre as mesmas caras, as mesmas pessoas,
os mesmos assuntos, a mesma mediocridade habitual
de pessoas que nada mais tinham, na sua opinião, a
oferecer, a não ser uma enfadonha ladainha de diz-
que-me-disse, assuntos que não lhe agregavam em
nada tampouco acrescentavam alguma coisa. Mas
como seu pai sempre dizia, o homem não fora feito
para reclamar, e sim para trabalhar. Sendo assim,
seguia, atravessando metade da cidade até seu local de
trabalho, onde se embretava atrás de uma mesa e
analisava, caso após caso, as reclamações dos clientes
de uma grande operadora de telemarketing, gerando
relatórios e mais relatórios que acabavam se afinando
com sua rotina diária, um sem fim de reclamações
sobre cada detalhe do que as pessoas não achavam
correto em suas vidas e que acabavam por se depositar
sobre os ombros daqueles trabalhadores que, também,
nada mais faziam do que cumprir ordens.

Já eram quase 11:30h quando uma voz o tirou


de sua pseudo-hipnose laboral. Era Mariana, colega
com que algumas vezes ele trocava cumprimentos mais

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amistosos, perguntando que horas ele iria almoçar. Ele
responde automaticamente:

- No horário de sempre.

A moça, quase constrangida pela indelicadeza


de José, olha profundamente em seus olhos e responde
com um sorriso.

- Credo, você precisa ajeitar essa cara e tratar


essas olheiras, você está horrível!

Horrível? O que sabia ela sobre os horrores que


estavam estampados em sua cara, uma menina que ele
mal conhecia ali na sua frente, a julgar seu rosto sem
nem mesmo entendê-lo, era só mais uma a criticar e a
ofender, sem se importar com as consequências do que
dizia, julgou ele. Mas José fora educado para ser um
bom menino, e nada sobre o que pensara falou, apenas
forçou um sorriso de retorno e baixou sua cabeça para
continuar seu trabalho, estratégia essa que não
funcionou muito bem, pois Mariana insistiu:

- Já que é no horário de sempre, eu vou esperar


você para almoçar, vamos ver se você só tem essa cara
amarrada, ou se é marrento fora daqui também.

Marrento, eu não sou marrento, pensou José,


eu só estou cansado, cansado do trabalho, cansado da
minha vida vazia, de minhas noites de insônia, da
ausência de sentido em tudo que faço e de tudo que eu
sou. Nada saiu como planejado, meu sonho de viver
uma vida melhor se destrói a cada dia, cada vez mais.
Vejo distante meu sonho de construir alguma coisa que
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seja minha, o trabalho não evolui, não consigo outra
oportunidade, nem promoção, não encontro ninguém
para completar o vazio que tenho dentro do peito, só
cruzo com pessoas que querem sexo, e depois disso
despejam uma infinidade de problemas de suas
próprias vidas em um momento em que a conversa
deveria ser amena, ou pior, apenas vestem suas roupas
e dizem um “valeu”, completamente sem
compromisso, deixando claro que era apenas um
prazer temporário que serviu para descarregam as
frustrações do seu dia, e não querem nada mais do que
isso.

“Olha eu carentão de novo” pensou; vou


almoçar, que assim não fico aqui devaneando.

Saiu de sua mesa, e lá estava Mariana, com


aquele irritante sorriso nos lábios, fingindo que a vida
era um mar de rosas. Olhou-a dos pés à cabeça,
menininha mais do que normal, certamente filha de
boa família, que deveria estar ali cumprindo seu
estágio da faculdade que pagava com o dinheiro dos
pais, sem maiores compromissos a não ser o de
trabalhar ali até terminar seu curso e depois poder
acender em uma carreira brilhante que a retiraria
daquele mundinho. Ele, no entanto, iria ter que
batalhar muito caso quisesse fazer o mesmo um dia.

- Vamos, José, desamarra essa cara, não temos


muito tempo, você sabe que o intervalo é curto e que
temos que nos apressar para conseguir um bom lugar
no restaurante aqui da esquina.
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- Que restaurante? Gritou José já de saco cheio
daquela garota. Você lá acha que eu tenho dinheiro
para ir a um restaurante? Eu almoço um lanche aqui
mesmo no seu... e ficou parado pensando que nunca
havia perguntado qual o nome do homem que, todos
os dias, vendia para ele o almoço devorado em silêncio.

Não pôde mais suportar, caiu em choro


compulsivo onde estava, não aguentava mais aquilo,
não tinha forças para continuar existindo daquela
forma. Era demais para ele apenas reagir a tudo e a
todos, sem nenhuma esperança, sem vida, sem amor,
sem dinheiro, sem nada...

Mariana olhou para aquela cena e se comoveu,


mas foi Antônio, o dono da carrocinha do lanche, que
tomou a iniciativa:

- Menino, cê não tá bem não, não sei o que a


moça falou pra você, mas não tá normal essa
choradeira desesperada desse jeito não. Você precisa
de ajuda?

AJUDA? Ele não precisava de ajuda, queria


salvação, um milagre que o tirasse, como num passe de
mágica, do inferno e o devolvesse ao mundo dos
sonhos que vivia quando era menino, quando seus
problemas se resumiam a escolher o desenho a que
queria assistir ou brigar com a mãe por mais cinco
minutos por qualquer coisa que estivesse fazendo
quando ela pedia-o que realizasse alguma tarefa.

- Não, moço, tá tudo bem, respondeu ele.


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- Não tá, não. Disse seu Antônio. Um homem
não chora desse jeito do nada, você deve estar com
alguma coisa ruim aí dentro, que tá te fazendo sofrer
desse jeito. Eu não posso ajudar, mas sei que errado
alguma coisa tá. Você sempre vem aqui, come qualquer
coisa, e sai sem dizer nada. Sempre com essa cara triste
e apavorada, parece que vê assombração em tudo que
olha.

Foi a vez de Mariana intervir:

- José, esse moço está certo, se você está com


algum problema fala pra mim, eu posso tentar ajudá-lo
se você deixar.

Não tinha mais o que fazer, ele já tinha perdido


a razão e o senso de ridículo. As lágrimas brotavam sem
controle e ele despejou tudo ali mesmo, na rua, de pé.
Em um breve resumo, vomitou toda a desgraça que era
seu dia a dia, seus relacionamentos frustrados nas
buscas através de aplicativos, seus sonhos e suas
ambições, tudo sempre por sua ótica pessimista,
julgadora e extremamente vitimista.

- Olha, José, eu realmente não posso ajudá-lo,


não sei nem por onde começar depois de tudo que
você me falou, mas acho que conheço uma pessoa que
pode.

Pegou o celular e buscou o número de um


contato no whatsapp, era sua amiga dos tempos de
infância. Passou o número para José e explicou que ela

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era Universalista, um tipo de espírita que acredita em
tudo segundo ela.

- E não vou pra macumba! Respondeu ele


prontamente:

Ela sorriu, acenou com a cabeça e se certificou


que ele tivesse agendado o número nos seus contatos,
deixando então José sozinho.

Já era passado do horário de retorno do


almoço, ele apressou-se em secar as lágrimas restantes
com a manga da camisa e entrou, envergonhado e
pensando no que falar caso alguém perguntasse sobre
sua cara inchada. Mais que depressa, enfiou-se
novamente em sua mesa, mas a vergonha do que tinha
acontecido não o deixou em paz, como um novo
pesadelo. A cena dele chorando foi-se associando às de
todas as vezes. De alguma forma, a tristeza ou a dor se
achegavam a ele e eram recebidas com a expressão:

HOMEM NÃO CHORA!

Ele ainda podia ouvir seu pai e seus tios


repetindo isso enquanto tiravam sarro dele, que ainda
menino, era obrigado a engolir as lágrimas para não
deixar transparecer aquilo que ele estava sentindo,
afinal, ele tinha muito a esconder de todos...

Assim passou-se a tarde, e mais um dia, e mais


algumas semanas na vida enfadonha de José.

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Vinte e sete anos, dez meses a alguns dias, esse
é o tempo gasto pra se chegar a lugar nenhum, pensou
José, enquanto lia e relia inúmeras vezes os e-mails
recebidos no trabalho das reclamações dos clientes que
nunca se satisfaziam com nada. Nenhuma informação
mais entrava na sua cabeça, tudo era um emaranhado
de reclamações dele mesmo, que se somavam às dos
clientes e do mundo a sua volta. Seu rendimento
profissional havia decaído consideravelmente e, se não
fizesse algo, com certeza em breve aquela vaga não
seria mais dele.

Embora soubesse disso, ele só sabia pensar no


tempo que se passara, no aniversário de 28 anos que
estava por vir e na imensa insatisfação que crescia em
seu peito.

- MANO, TU MANJA ROLA?

Aquela frase atravessou o silêncio perturbador


do ambiente de trabalho, que só era quebrado pelo
teclar dos computadores e, ao longe, pelo burburinho
dos atendentes, e estilhaçou a frágil estrutura
emocional de José, que se mantinha em pé pela força
dos próprios infortúnios, lançando cacos de dignidade
em todas as direções.

Não, não era possível pensou; Ele sabia o que


significava aquela expressão chula, manja rola é como
são chamados os caras que ficam olhando para os
outros nos banheiros e vestiários, e ele não era um
deles, uma que outra olhada até que vá lá, quem nunca

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olhou pra dar aquela comparada, mas daí a ser
igualado a esse tipo de gente não, ele não admitia isso.

Desde o trauma que sofrera quando pego com


alguns amigos, numa infeliz brincadeira, ou, segundo
seus pais, numa sem-vergonhice. Estes transformaram,
junto de mais alguns conhecidos, aquilo em um
verdadeiro evento. Ele prometera a si mesmo que
nunca mais sua sexualidade seria alvo de críticas de
ninguém, nunca ninguém saberiam o que ele fazia, com
quem ou como fazia, ele tinha sido humilhado o
suficiente já na vida para que aquilo se repetisse.

Mas então como alguém o estava acusando


daquilo ali, no seu trabalho?

Tudo isso desenrolou-se em um piscar de


olhos, tempo suficiente apenas para que José cerrasse
os punhos e partisse para cima de quem o ofendera.

- O que você falou? Repete se tu és homem.

- Calma, Zé, eu só tava tirando onda porque tu


tava de olho perdido, olhando pra mim.

José só então percebe o que estava


acontecendo. Imerso em seus devaneios, ele não viu
seu colega se aproximar de sua mesa, e também não
percebeu que seus olhos, que fitavam qualquer coisa
menos o mundo à sua volta, acabaram-se direcionando
despropositadamente para a cintura de seu colega,
que, para quebrar o clima gélido, fez uma infeliz
brincadeira homofóbica, mas extremamente comum
no ambiente em que se encontravam.
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Desesperado, José, para fugir daquela saia justa
na qual ele mesmo se colocara – a agressão
desproporcional a um colega ante um comentário
cotidiano –, saiu porta afora o mais rápido que pôde.

Mas ele não fugia apenas daquilo, fugia dele


mesmo, das escolhas que fez, das que não fez, da
realidade, da própria vida em si.

Como um louco, ele sai pela rua, correndo,


chorando, implorando ajuda, exausto, senta-se na
calçada de um lugar qualquer em que acabara se
percebendo, esconde o rosto entre as pernas e pede
para desaparecer.

Ele não queria morrer, nem ser salvo, nem mais


nada, ele só queria desaparecer, deixar de existir, de
ser o que era, de sentir o que sentia, de tudo em si, ele
não iria mais, em hipótese alguma sair daquele lugar,
ficaria ali até desaparecer...

Alguma coisa bateu em seus pés. Era um


carrinho de supermercado, cheio de tralhas e sujeira,
empurrado por um senhor de meia idade, andarilho,
mendigo, maltrapilho, sorrindo com seus poucos
dentes, que olha pra José e diz.

- Se você só fecha a porta e não guarda o pão,


as baratas comem a refeição de amanhã...

Silêncio, era só o que era cabido naquele


momento, levou um tempo para que José conseguisse
fazer qualquer referência ao que o homem falava, deve

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ser só mais um louco, pensou... inclusive devemos estar
muito parecidos, eu só tomei banho; e ele, não.

Mas esse pensamento não durou muito tempo.


Subitamente, uma lembrança ocorreu-lhe. Lembrou o
dia em que estava tomando café imerso em seus
pensamentos, e que, no sair de casa, embora tivesse
sido cuidadoso para fechar a porta, não lembrara de
fechar o saquinho de papel no qual estavam os pães.
Ao chegar à casa, naquele mesmo dia, tinha
encontrado uma barata no pão que seria seu café no
dia seguinte.

Lembrou também que, naquele mesmo dia,


tivera um rompante com Mariana, e que ela, embora
não tivesse reagido, apenas ofereceu a ajuda de uma
macumbeira para ele.

Mas então porque esse doido falou isso para


mim, pensou...

- Chega de loucuras, José, disse ele para si


mesmo, volta pro trabalho e mostra que tu és macho.

Levantou-se, criando uma desculpa plausível


dentro de sua própria cabeça para, assim que chegasse,
logo fosse se explicando e justificando sua
agressividade. Por pouco se conhecerem, qualquer
desculpa não seria contestada.

Mas não foi assim, mal entrou e já foi chamado


pelo RH da empresa, que, a par do acontecido e de
posse de seus resultados insuficientes, entrega-lhe uma

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advertência, para que melhore seu comportamento e
seus números, caso não deseje ser demitido.

O que mais pode dar errado, o que mais pode


piorar?

Eis uma pergunta que jamais devemos fazer, o


mundo sempre dá um jeito de apertar um pouco
mais...

José voltou para sua mesa e tudo à sua volta


parecia absolutamente normal. Ninguém o estava
olhando de canto nem murmurando coisas sobre ele
como imaginou que estivessem, cada um cuidava da
sua vida, nada mais que isso...

Surpreso e aliviado ao mesmo tempo, ele


voltou aos seus afazeres, agora pressionado pela
advertência. Apenas conseguia pensar que seria
demitido e, em vez de produzir, começou a procurar
vagas pela internet caso fosse demitido. Claramente,
mais uma vez, estava boicotando suas próprias
habilidades.

Mas certo que ele ainda não sabia disso...

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Faltava pouco tempo para encerrar o
expediente quando Mariana chama seu nome
delicadamente. Ele olha para ela com ar de poucos
amigos como sempre, e ela pergunta:

- Já procurou minha amiga?

Ele responde que não, que não vai atrás de


macumba nenhuma, que não tem nada errado
acontecendo e que é para ela deixá-lo em paz.

Ela educadamente se retira, e ele arruma suas


coisas para ir embora. Não convencido de que aquele
dia tinha sido normal, resolve mais uma vez apelar para
o aplicativo de relacionamentos em busca de algum
alento naquele fim de tarde. E, em meio a um fast-food
sexual, encontra uma travesti que lhe agrada aos olhos.
Trocadas as devidas mensagens e enviados os ‘nudes’
necessários, ele se dirige até o parque indicado pela
moça para o encontro.

Foi uma transa rápida, encoberto pelo véu da


escuridão, e pela figura feminina da parceira, ele pode
então se entregar sem culpa aos desejos do corpo que
cobiçava desde sempre, sem compromisso, sem
cobranças, rápido, objetivo, cirúrgico. Alguns minutos
depois, calças levantadas e nada a ser declarado, nem
descoberto, aliviado, ele se dirige até sua casa, onde
sua vidinha de sempre o aguardara.

Mais uma noite de pesadelos e um sem-fim de


tribulações, que culminam sempre no despertar em
meio a uma crise de ansiedade. Isso já era corriqueiro,
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afinal a prática leva à perfeição, e ele estava se
tornando especialista em continuar fingindo que estava
tudo bem, mesmo quando seu coração insistia em dizer
que não.

Desta vez, alguma coisa o estava incomodando,


além de o constante transtorno causado pelas noites
mal dormidas, pela pressão no peito e pela palpitação
noturna. Ele acordara com uma estranha sensação na
uretra, uma comichão estranha, levantou, foi ao
banheiro, bebeu água, deitou e dormiu novamente
depois de algum tempo, sem resolver nem seus
sentimentos, nem suas inquietações.

Ao despertar pela manhã se percebeu ainda


pior, a coceira tinha virado ardência, e quando foi para
o banho notou uma secreção estranha em seu órgão
genital, lavou-se, tomou seu desjejum e seguiu para
trabalho volta e meia dando aquela ajeitada para
disfarçar o incômodo.

Mas, ao chegar à empresa, percebeu que não


era apenas incômodo, e sim que algo estava errado,
recorreu às pesquisas de internet e lá estava a
descrição de seus sintomas, IST...

Surtou, como poderia ele ter “pego” alguma


coisa? Ele só sabia trabalhar e ir para casa, e, quando
resolvia se divertir uns minutos, ainda tinha arrumado
uma dessas? Não era possível, o mundo todo estava
contra ele, logo ele sempre tão correto? Por quê?

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Aquilo não podia estar acontecendo, ele não
podia ter-se “pestiado” em um encontro casual e tão
rápido como o da noite anterior. Essas coisas só
aconteciam com que não presta, segundo o que ele
aprendera, e não era o caso dele de forma alguma.

Aproveitou o intervalo do almoço para buscar


um atendimento médico, não obteve resultado, e
acabou tendo que fazê-lo através do convênio da
empresa, que só disponibilizava consulta para dali dois
dias. Foram dois dias infernais, a dor aumentava, a
secreção também, e ele quase não se podia mais
aguentar, ir ao banheiro era um martírio, e a sensação
de que todos o observam e sabiam o que estava
acontecendo era insuportável.

Ao chegar para a consulta, quando o médico


pede para ver a situação, ele se depara com o horror de
ter que se expor para um estranho, ser analisado e
julgado. Trêmulo, tira a roupa necessária e recebe o
diagnóstico. O médico, um senhor de seus
aproximadamente 50 anos, experiente na vida, percebe
a timidez de José e resolve conversar um pouco antes
de lhe passar a receita. Embora cauteloso, José conta
sua versão do ocorrido, bem como acaba deixando
escapar sobre sua ansiedade e sintomas noturnos. O
Doutor receita-lhe então, além dos antibióticos, um
ansiolítico para auxiliar no repouso, garantindo que,
quando retornasse para a reconsulta, ambos os
sintomas teriam desaparecido.

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José sai para a farmácia, compra os remédios e
inicia rapidamente o tratamento, pois não era apenas
uma infecção a ser curada, e sim uma vergonha a ser
escondida também.

Ele ouvira alguma vez em algum lugar que


remédios para dormir geram efeitos colaterais. Então,
resolve não iniciar com o ansiolítico naquele dia,
deixando para o fim de semana, quando, caso ficasse
“meio grogue”, teria tempo de se recuperar até a
segunda feira.

A possibilidade de tratamento tanto de sua IST


quanto de seus sintomas de transtorno noturno o
alenta por um tempo. Retorna ao trabalho e, com um
fio de esperança no futuro, lança-se ao trabalho com
afinco, tentando produzir o máximo possível para
voltar aos seus padrões habituais de produção. Em
pouco tempo, o incômodo genital é esquecido,
juntamente com os ansiolíticos que deveriam ser
tomados no fim de semana próximo, mas que, por
conveniência, ficaram encerrados em uma caixa, tal
quais seus problemas em um canto de suas memórias.

Já de posse de sua saúde plena e sem nenhum


resquício do incidente anterior, José decide curtir um
pouco naquele fim de semana. Feita a faxina do sábado
à tarde, que lhe era de responsabilidade já que
ninguém havia para ajudá-lo em casa, ele se embeca
para ir até um pagodinho próximo. Mesmo sozinho, na
esperança de beber alguma coisa e espairecer um
pouco da loucura dos últimos dias, era um local de
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encontro do pessoal do trabalho, então, de alguma
forma ele não estaria completamente no meio de
estranhos.

Quem sabe não é a chance de causar uma


melhor impressão e apagar a série de episódios
vergonhosos dos últimos dias, não é? E, com essa
intenção, saiu de casa com passadas leves, certo de
divertir-se um pouco naquela noite.

José sempre fora um homem de poucos


amigos. Desde sua infância, em sua cidade natal, ele se
acostumara a andar sozinho, nunca conseguiu manter-
se um núcleo de pessoas próximas e de confiança por
muito tempo. Brincava sozinho e boa parte de sua
diversão se resumia a passar o tempo em frente à
televisão, assistindo a desenhos e, vez que outra, até ia
para a rua jogar bola com os meninos da vizinhança.
Mas, acanhado que só, tinha medo de ser julgado um
“perna de pau”; portanto, era para ele mais proveitoso
evitar tal transtorno se mantendo isolado em vez de
enfrentar o medo e aprender a jogar futebol como os
outros garotos faziam.

Já na adolescência, revelou-se ainda mais


arredio, evitava reuniões após a escola e, quando
convidado para alguma festinha, sempre tinha uma
desculpa pronta. Tivera pequenos flertes, mas nunca
uma namorada. Aprendera sobre as coisas da vida
sozinho, e, desde sua primeira masturbação, sempre
fora encorajado por aquilo que ouvia os outros garotos
comentarem, e nunca por laços entre iguais. A
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lembrança da única vez que se viu num grupo de
meninos para uma brincadeira de garotos, de ter sido
pego em flagrante o atormentava, e a sensação de ser
descoberto fazendo algo errado o acompanhava desde
então, nunca mais conseguindo agir naturalmente com
relação a quase nada na vida.

Agora, homem feito, não tinha desenvolvido


habilidades sociais, ainda mantinha os hábitos
solitários, o que em nada facilitava sua vida, mas,
segundo seu ponto de vista, evitava maiores
transtornos e críticas, coisa com as quais ele lidava
muito mal.

Seguiu em direção à festa com uma estranha


sensação no peito, deveria ser apenas a ansiedade de
estar entre mais pessoas em um sábado à noite,
pensou. Mas, à medida que se aproximava do local, as
coisas foram piorando. De repente, viu-se tomado pela
mesma sensação que todas as noites o atormentava:
palpitação, ansiedade, respiração ofegante, pressão no
peito e na cabeça e vertigem. Não pode ser, deve ter
alguma coisa errado, visto que isso costumava sempre
acontecer quando ele estava deitado em casa. Ele
sempre relacionou tais sensações aos pesadelos
recorrentes e ao pânico de repetirem-se todas as
noites. Nunca imaginou que, de alguma forma, isso
pudesse também acontecer em outro momento.

Mesmo sentindo tudo aquilo, ele chega ao


local, encontra algumas pessoas da empresa que

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estavam ali e vê Mariana, que prontamente vai
cumprimentá-lo:

- Você por aqui, que surpresa!

- Pois é, hoje eu resolvi sair um pouco, não é


meu costume, mas decidi mudar isso.

- Muito bem, vai ser legal você conhecer o


pessoal fora do escritório.

- Uhum..

José não estava confortável com a situação.


Estava até mesmo difícil concentrar-se em estar em si
mesmo naquele momento. A taquicardia e a pressão
no peito faziam sua visão turvar e a língua não
obedecer corretamente, dificultando uma já precária
expressão em público.

Marina percebe que ele não se desenrola e


prossegue:

- Venha, vamos beber alguma coisa, assim você


relaxa e curte um pouco a noite.

Ele acompanhou-a até o bar e ambos pediram


um chope. Acomodaram-se em uma mesa e iniciaram
uma conversa de poucas palavras e ainda menor
significado, trivialidades, as quais rapidamente, a
convite de Mariana, aproximaram-se outros colegas.
José foi sentindo todo aquele ambiente como que um
de seus pesadelos, pessoas falando, rindo alto e a
música agredindo seus ouvidos. As figuras das pessoas

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começaram a mover-se em câmera lenta e a misturar-
se com algumas das figuras que ele via em seus sonhos,
eram pessoas que se transformavam em figuras
grotescas e disformes, ora humanas, ora nem tanto.
Estava começando a ficar insuportável.

- José, você está bem? Perguntou Mariana.

- Sim, estou sim, só preciso um pouco de ar:

Levantou-se e saiu em direção a um local mais


aberto, mas suas pernas o traíram e ele praticamente
não conseguiu se mover. Quase cambaleante,
percebeu que um braço o apoiava, era Mariana que
resolveu acompanhá-lo.

- Vamos, disse ela, eu vou com você.

- Mas é fraco para a bebida! Fanfarreou um de


seus colegas, aquilo o deixou totalmente
desconcertado. Era por isso que nunca saia, pois
sempre existia um valentão que nada sabia do que
estava acontecendo e que insistia em fazer gracejos
com sua vida.

- Não dá bola, disse Mariana, eu sei que não é


isso.

Saíram do local e procuraram um local mais


ventilado. José se sentou em um banco que estava
vago, e Mariana, ao seu lado, perguntou:

- Fala pra mim o que está acontecendo, o que


você está sentindo?

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- Meu coração está acelerado, meu peito arde
como se estivesse queimando, minhas pernas estão
bambas e eu sinto como se estivesse para cair, não
consigo respirar direito, a visão está turva e não
consigo coordenar meu corpo.

- Você tem histórico de pessoas com problemas


cardíacos na família?

Ele nunca havia pensado sobre isso, mas


respondeu que, do que sabia, não, ninguém tinha.

- Ok, então vou buscar uma água pra você,


vamos esperar isso passar.

Levantou-se e foi buscar a água, e José viu a


oportunidade de fugir dali para não precisar passar por
aquilo em público, mas o corpo não reagiu, apenas
conseguiu manter-se sentado enquanto tinha certeza
de que, a qualquer momento, iria desmaiar.

- Tome, vai melhorar.

Mariana alcançou a água e ele tomou alguns


goles, jogou um pouco na nuca e esperou que
refrescasse seus pensamentos, aguardou alguns
instantes e viu que não estava melhorando, disse para
ela:

- Preciso ir embora, não quero ficar aqui.

- Ótimo, eu te acompanho.

- Imagina, não precisa, eu me viro.

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- Eu vou, ponto. Não precisa se preocupar, até
porque eu não vou conseguir sossegar se você sair
assim sozinho.

Não tinha muito o que fazer, além de não estar


em condições de discutir, ele não iria conseguir
dissuadi-la. Do pouco que a conhecia, já havia
percebido que ninguém mandava nela.

Seguiram devagar rumo à casa de José, ela


simpaticamente ainda puxando conversa e ele
respondendo o mínimo possível, mantendo todo seu
esforço em não sucumbir à dor no peito e à pressão
que seu coração acelerado impunha sobre todo o seu
sistema, ela começou a perceber que aquilo não
passaria, então tomou coragem e perguntou:

- Por que você não me fala a verdade sobre o


que está acontecendo? Você está com algum
problema?

- Não estou com problema nenhum, só estou


me sentindo estranho, não deveria ter saído de casa
hoje.

- Tá bom, disse ela: Não dá pra ajudar quem


não quer ser ajudado, né.

- Olha, Mariana, eu me viro bem sozinho, nunca


peço nada pra não precisar ficar devendo nada pra
ninguém, então não se preocupe, ok? Se eu estou
sendo um incômodo, é só voltar para festa e curtir seus
amigos, agradeço ter-se preocupado comigo, mas não
precisa.
24
Ela, pela primeira vez, ao olhar para ele, pensou
se ele era só mais um macho escroto, que não faz ideia
de como tratar uma mulher e que não tem a menor
noção de civilidade, ou se ele realmente estava com
maiores problemas e tinha medo de falar.

- Vou fazer de conta que não ouvi isso e vamos


até sua casa, você não me deve nada, estou fazendo
isso porque é o certo a fazer. Se fosse você ou um
amigo íntimo, ou até mesmo um desconhecido, eu
agiria da mesma forma, fui educada dessa forma.
Então, vamos conversar menos, já que você não gosta
de falar, e andar mais, quanto antes você chegar à casa,
estará seguro.

Aquilo foi como um tapa nos brios de José, ele


não queria ofendê-la, mas acabava sempre colocando
os pés pelas mãos e falando besteira.

Mas, num lapso de consciência, em meio ao


turbilhão que estava sentindo, conseguiu desculpar-se.

- Desculpe, eu não quis te ofender, você falou


que foi educada dessa forma, já eu fui educado para
nunca dar trabalho pra ninguém, e nunca passar uma
vergonha dessas de ter que ser escoltado até em casa
por ninguém... por isso, não saio, por isso, vocês nunca
me veem interagindo, eu prefiro ficar na minha a ter
que passar por isso.

- Tudo bem, disse ela, vamos indo.

Caminharam mais um pouco em silêncio. Ele,


agora, além de transtornado por toda ansiedade e
25
opressão que estava sentindo, ainda tinha que lidar
com a vergonha de tê-la insultado, embora ela
parecesse realmente não dar tanta importância a isso.
Ele, como escravo dos próprios pensamentos, não
conseguia se desculpar.

Chegaram finalmente à casa de José, ele


agradeceu mais uma vez e esperou que ela chamasse
um táxi para retornar. Ela, educadamente, ainda pediu
o telefone dele antes de embarcar e se foi, deixando-o
mortificado em frente à casa, consumido pela dor e
pela culpa, tanto de ter sido mal-educado com ela
quanto de ter dado trabalho e ter que ser levado
escoltado para casa. Deita-se em sua cama e chora.

Chora a vergonha de ser ele mesmo, de ter


uma vida que não o permite nem mesmo se divertir em
um sábado à noite. Chora a dor de não ter alguém para
poder abraçar, quando se sente assim, e chora ainda
mais por perceber que não consegue permitir que
ninguém se aproxime dele de forma natural.

Chora pelo fato de saber que aquilo não


passaria, e que, a noite que era para ser de diversão,
tornara-se mais um tormento na sua malfadada
existência, chora, chora e acaba por adormecer nesse
ínterim.

Acorda várias vezes durante a noite, sempre


sobressaltado por novos e infindáveis pesadelos, que
se alternam, confundindo realidade com fantasia.
Monstros se confundem com pessoas conhecidas,
momentos vergonhosos de sua infância se entrelaçam
26
com situações do cotidiano, e, nesse sem-fim de
tribulações, o dia amanhece, e ele mais uma vez
exausto, levanta-se para um domingo inerte em frente
à TV, na qual uma sucessão de programas dominicais
sem graça preencheriam o vazio de sua vida monótona
e sem sentido.

No meio da tarde, seu telefone toca, ele atende


e é Mariana do outro lado da linha perguntando:

- Oi, como você está, melhorou?

- Sim, melhorei, estou ótimo. E você? Curtiu a


noite?

- Sim, estava bem divertida...

- Mariana, quero te pagar o dinheiro do táxi de


ontem. Você não precisava ter gastado se não fosse por
mim.

- Calma, José, não precisa se preocupar com


isso, eu não liguei para cobrar, só queria saber como
você está.

- Ok, mas eu faço questão de pagar.

- Tá, então eu estou indo ali à sua casa receber


o dinheiro, se arruma que eu já estou chegando. E
desligou.

Quê! Pensou ele, o que essa maluca vai vir


fazer aqui na minha casa. Vou ligar de volta, dizer que
tenho que sair, pensou em mais um milhão de
desculpas para não a receber. Tentou ligar, mas não foi
27
atendido. Deu um jeito na cara e escovou os dentes, já
que nem isso hoje tinha feito. Colocou uma roupa por
cima da samba-canção velha que usava em casa e
escondeu os restos de salgadinho espalhados pela casa.
Depois de algum tempo, ela chegou.

- Vim cobrar a corrida. Falou ela sorrindo para


ele.

- Sem problemas, só me diga quanto deu e se


tem mais alguma coisa que eu tenha que te ressarcir.

- É sério isso? Disse Mariana:

- Claro que sim, não quero que você tenha


nenhum prejuízo por minha causa.

- José, eu não vim aqui buscar dinheiro


nenhum, vim para falar com você.

- Sobre?

- Sobre você.

- Olha, Mariana, não sei o que você pensa


sobre mim, mas eu não estou em um momento legal,
não sou uma pessoa que queira agora conhecer alguém
e nem tenho cabeça para isso.

-Para, para, para antes que você fale mais


alguma bobagem, não é sobre isso que eu quero falar,
é sobre o que tenho visto acontecer com você.

28
Olha ele mais uma vez colocando a carroça na
frente dos bois, porque não era capaz de deixar a
garota falar, caramba!

- Desculpa, pode falar.

- Aqui na porta?

Que mancada! Não a tinha convidado para


entrar. Além de problemático, era um péssimo
anfitrião.

- Desculpa, entra.

- Não, vamos caminhar e tomar um café.

- Ok!

- Saíram e Mariana foi perguntando onde era


melhor para eles pudessem se sentar e conversar.
Embora José não conhecesse muito as redondezas
mesmo morando ali, lembrou-se de ter visto um lugar
ali próximo que deveria estar aberto no domingo à
tarde.

Pediram um café e Mariana começou.

- Imagino que você não tenha entrado em


contato com minha amiga aquele depois daquele dia
na empresa não é.

- Claro que não respondeu ele.

- Pois então vou te dizer o porquê te passei o


número dela naquele dia, eu já vi isso acontecer.

29
- Isso o quê?

- Esses ataques de pânico.

- Eu não tenho ataque de pânico, eu só não


durmo bem à noite e estou insatisfeito.

- Não, José, você, além de não dormir bem à


noite, não consegue lidar com situações naturais de
estresse. No dia do almoço lá com seu Antônio, você
me falou dos problemas da sua vida, relacionamentos e
tudo que não funciona pra você, eu tive um namorado
que era assim também, o mesmo olhar pessimista
sobre tudo, a mesma cobrança que você se impõem
para qualquer coisa que falem para você e o mesmo
jeito arredio e desconfiado com as pessoas, o mesmo
isolamento social, mas acima de tudo, os mesmos
rompantes de raiva que eu vi acontecer aquele dia no
intervalo do almoço da empresa, e que depois eu sei
que se repetiu... ele era assim, não dormia à noite e
sempre acordava pior do que tinha deitado.

- Ele dizia que era como se uma força dentro


dele colocasse sempre pensamentos ruins na cabeça
dele e aumentasse tudo que ele sentia, só que não era
nada externo, porque ele ouvia a própria voz falando
dele contra ele mesmo, colocando uma versão
aumentada sobre qualquer coisa que acontecesse de
imprevisto na vida, tornando tudo sempre pior que era.
A expectativa constante por coisas ruins acabou por
adoecê-lo.

30
Aquela última parte fez muito sentido na
cabeça de José, sim, era assim que as coisas
funcionavam. Sempre existia uma coisa que o fazia
esperar o pior de tudo, e, de tanto pensar nisso, ou ele
nada fazia, ou acabava acontecendo o que ele mais
temia.

- E o que aconteceu com ele?

- Tentou suicídio várias vezes, foi-se tornando


cada vez mais depressivo, até precisou ser medicado
para poder conviver com as pessoas.

A imagem da caixa de ansiolítico que ainda


estava fechada em casa veio à cabeça de José no
mesmo instante. Era a história dele sendo contada, ele
só não tinha começado a medicação, não falou nada
para ela, mas sentiu um medo tremendo de que esse
acabasse por ser o próximo passo.

- E o que aconteceu com ele? Com vocês?

- Acabamos nos afastando, ele se tornou difícil


de conversar, de conviver e não tive mais como manter
nosso namoro.

- E por que você está me contando isso?

- Para que você entre em contato com a Laura,


a amiga que o indiquei naquele dia. Ela não é
macumbeira como você disse, ela frequenta um lugar
que ajuda pessoas com esse tipo de problema.

- Mas ajuda como?

31
- Ela me falou muito de como uma série de
coisas que não estão sob nosso controle podem nos
afetar, espíritos, energias... e o que sempre me chamou
mais a atenção foi como ela sempre soube entender
essa voz e descrever como ela funcionava dentro da
cabeça dele, ela sempre dizia:

“As pessoas imaginam que vai vir alguma coisa


e falar com voz diferente no ouvido da gente e não é,
eles sussurram coisas em nossos pensamentos e nós os
ouvimos com a nossa própria voz, esse é o jeito mais
maléfico e mais simples de causar dano, pois as
pessoas não sabem que estão sob influência, acreditam
realmente que aquilo é delas, mas o que é delas está
associado a algo mais, que potencializa tudo que elas
pensam e sentem”.

- E por que eles não o ajudaram então?

- Ele nunca aceitou ajuda, o preconceito


sempre falou mais forte, assim como o julgamento dos
outros sobre o que iriam falar caso o vissem entrando
em um centro, preferiu a ajuda dos médicos e nunca
cogitou a hipótese de buscar outra coisa.

É, parece eu mesmo, pensou...

- E você frequenta esse lugar?

- Eu fui uma vez, quando estava tentando


ajudá-lo, e lá me disseram que, por mais que fôssemos
namorados, ele só poderia ser ajudado se aceitasse
ajuda. O máximo que poderia se fazer, caso ele
continuasse negando, era rezar por ele.
32
- Segundo eles, as pessoas têm livre-arbítrio até
para se manter em sofrimento se quiserem.

- Livre-arbítrio?

- Sim, direito de escolha, você nasce


escolhendo o que quer fazer. Tendenciosamente
sempre será levado a fazer o que tem que fazer, mas
pode escolher o tempo de fazê-lo e os caminhos que
quer tomar para isso.

- E como a gente sabe o que tem que fazer?

- Eu não sei...

Naquela noite, já em casa, José pensou muito


na conversa que tivera com Mariana. De alguma forma,
ele tinha conseguido se manter bem do lado dela, saíra
de casa e não tivera nenhuma das sensações ruins.
Tirando o café que era horrível, fraco e frio e a empada
murcha que lhe serviram, o tempo que passou com ela
fora agradável de uma forma que o surpreendeu.

Quem sabe, pensou ele, eu não dou uma


chance para mim mesmo e falo com essa tal de Laura,
vai que ela possa me ajudar mesmo, não custa tentar...

33
José chegou acanhadíssimo ao lugar
combinado. Embora Mariana o tivesse indicado, e sua
amiga Laura o tivesse tratado com muita cordialidade
pelo telefone, ele por natureza era extremamente
inseguro. Olhou atentamente para todos os lados, era
uma sala comercial comum, em um prédio
relativamente antigo, que abrigava um ambiente
simples. Algumas cadeiras espalhadas em semicírculo,
um altar ao fundo com imagem de santos católicos e de
algumas outras que ele não conhecia muito bem. Índios
e figuras que pareciam hindus completavam a estranha
formação daquele lugar de oração.

Muitas pessoas já estavam ali, Laura o havia


prevenido de que não estaria no local, visto que seus
horários de aula não eram compatíveis com as
atividades dali naquele momento. Explicou, porém,
brevemente, como se comportar quando chegasse, que
era apenas para se sentar e ouvir.

Ao comando de uma jovem senhora, todos se


posicionaram nas cadeiras e ele ficou ali, em pé,
aguardando.

Um rapazinho adiantou-se em falar com ele:

- Você é novo aqui, não é mesmo?

- Sim, respondeu José, Laura me indicou que


viesse aqui.

O jovem pediu que aguardasse e se dirigiu à


senhora, que prontamente veio até ele.

34
- Olá, José, Laura me falou sobre você. Sou Ana,
a dirigente daqui, fico muito feliz que esteja conosco.
Estamos com os atendimentos a público fechados
temporariamente, mas as aulas para os interessados
continuam acontecendo. Você vai participar dela por
enquanto, tenho certeza de que será muito proveitoso
segundo o que sei sobre você. Sente-se, que logo
iremos começar.

O que será que será que ela sabia a respeito


dele? Ficou curioso, mas, dados os acontecimentos, ele
preferiu não perguntar, não estava em posição de
questionar nada nem ninguém.

Sentou-se e aguardou. A jovem senhora dirigiu-


se para o altar e começou a rezar.

- Pai, senhor de suprema bondade, nós aqui


nos colocamos à disposição dos espíritos benfeitores
para que se edifique a obra do criador. Deus, que está
acima de todas as coisas, envie até nossa presença
espíritos consoladores para que sanem nossas dúvidas
e construam nossa sabedoria, de forma que possamos
fortalecer nossa fé e nosso espírito para o trabalho do
servir.

- Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o


teu nome em benefício da nossa fé, santificada seja
essa casa na companhia dos espíritos do alto, seja feita
a tua seara aqui na terra como no astral. O pão da
carne se converta em alimento para o espírito,
conceda-nos misericórdia pelas nossas inadequações, e
não nos deixes cair nas armadilhas do ego, livrando-nos
35
das armadilhas do mundo dos homens, que assim seja,
Amém.

Ele conhecia o Pai Nosso, mas aquela mulher


estava rezando tudo errado, pensou...

Mal ela havia terminado suas palavras, um


cheiro adocicado preencheu o ambiente, e alguns dos
presentes começaram a entoar um cântico que ele
pouco compreendia, mas que falava algo sobre um
cativeiro e uma chibata, ao som do qual Ana começou
lentamente a se embalar, e, depois de ter sacolejado
rapidamente o corpo, assumiu uma postura diferente
da que ele havia visto nela, ombros caídos, curvada e
de andar lento, dirigiu-se até a cadeira que estava mais
próxima do altar e sentou-se. O canto fora encerrado, e
ela começou a falar:

- Bem-vindos, filhos das estrelas, a essa casa de


oração, eu sou Maria Redonda, mãe preta que trabalha
no resgate de espíritos fujões que teimam em não
obedecer à ordem do pai maior quando nascem aqui
na terra. Venho hoje para ensinar para vocês um
pouquinho do que a gente aprende na Aruanda, sobre
como viver aqui e trazer de lá os ensinamentos para
uma vida mais feliz.

Uma vida feliz, pensou ele, quem me dera ter


uma vida feliz...

- Todas as pessoas que nascem hoje nesse


mundo são médiuns, continuou mãe Maria. Mas o que
significa isso? Ser médium é saber caminhar no mundo
36
dos homens com a sabedoria do mundo espiritual,
fazendo intercâmbio entre as dimensões onde vivem os
espíritos e onde vivem os encarnados. Existem vários
tipos de médiuns, mas hoje eu quero falar sobre os
médiuns de incorporação.

José observou que muitas pessoas tinham


caderno e caneta e faziam anotações, imaginou o que
as pessoas teriam de tão interessante para anotar
daquela mulher. Era só ouvir um sermão sobre
espíritos e ir embora, pois era isso que ele acreditava
que se resumiam esses lugares.

- Médium de incorporação, continuou ela, é a


pessoa que nasce para manifestar no seu corpo a
vontade e a sabedoria de outro espirito que não está
encarnado na terra. Ele tem dentro de si uma
formatação específica que permite que seu ectoplasma
seja utilizado para fazer a ligação entre o perispírito da
pessoa e do ser desencarnado. Mas, ao contrário do
que se imagina, o espírito nunca toma os sentidos do
médium por completo, são mantidas, dependendo do
grau de cada um, níveis de consciência diferentes que
possibilitam que o médium guarde um número
suficientes de informações para seu próprio
aprendizado. Isso se dá pela acoplagem em quarto e
quinto corpos, ou seja, pelo contato do corpo
emocional e mental do médium com o espírito que irá
se manifestar.

- Sim, nós temos mais de um corpo: existe o


corpo físico que compreende primeiro, segundo e
37
terceiro níveis em si. Existe o quarto corpo, sede das
nossas emoções, através do qual manifestamos todo
tipo de emoções e reações originadas pelo sentir, e o
quinto corpo, que é a sede da mente. Esse se divide em
mental inferior e superior. O mental inferior pensa no
problema, e o segundo busca a solução para o mesmo;
trabalhando juntos esses dois corpos, que vibram em
três faixas frequenciais diferentes, formam o conjunto
de comunicação necessária para que o espírito se
manifeste na terra, e é através dele que o médium
recebe as informações dos desencarnados, ou dos
espíritos trabalhadores, para trazê-las até vocês.

- O trabalho de desenvolvimento do médium


consiste em aprender muito sobre si mesmo, para que
no momento da interação entre corpo e espírito
comunicante ou manifesto possa então filtrar suas
próprias ideias e intenções, e permitir que apenas
aquilo que vem do espírito amigo possa ser
comunicado, ou seja, o médium tem que peneirar o
que é seu do que é do outro, para então ter maior
benefício da prática mediúnica, que nesse caso nada
mais é do que permitir que alguém use seu corpo para
vir aqui para terra fazer o que se propõem.

Meu Deus! Pensou José, do que essa doida tá


falando? Desde quando eu tenho tanto corpo assim?
Eu sou eu, e só eu mesmo, tem nada disso tudo em
mim não!

Mãe Maria continuou:

38
- O ectoplasma, que é a energia vital do ser,
produzida através do processo de digestão e respiração
da célula, dentro da mitocôndria, é o responsável por
fazer a ligação entre os dois, essa energia que vocês
conseguem perceber quando aproximam a mão da pele
na forma de calor tem uma característica muito
particular, ele além de, embora visível, desaparecer
pela influência dos raios ultravioleta, também assume a
frequência das emoções e pensamentos que
estivermos vivenciando, moldando-se àquilo que
estivermos experimentando no nosso dia a dia. Por
isso, sempre que nos reunimos para o trabalho
mediúnico, é importante que nos concentremos e nos
permitamos entrar em um estado de oração
contemplativa e receptiva, a fim de que essa energia
possa se moldar à necessidade que iremos ter, para a
manifestação dos espíritos.

- Quer dizer que não adianta só chegar aqui e


estar disposto a incorporar, mãe, tem que se
concentrar antes? Perguntou um dos presentes.

- Sim, respondeu Mãe Maria, é por isso que


vocês rezam, para através da oração se conectarem
com a vontade de servir e possibilitar que essa energia
se molde de forma a realizar a ligação.

- Todo mundo incorpora, Mãe?

- Não, filho, algumas pessoas incorporam e


outras fazem outros tipos de trabalho, dependendo do
acerto de cada um.

39
- Acerto?

- Sim, quando cada um vai nascer, junto com as


pessoas que irão acompanhá-lo na encarnação, tais
como parentes próximos e amigos afins, a pessoa
escolhe o tipo de médium que vai ser. Esse trabalho é
que faz com que a obra do espírito se dê por completo
aqui na terra, aumentando as chances de evolução do
espírito que se dispõem a encarnar e viver aqui para
aprender. Existem várias formas de fazer isso,
incorporar é apenas uma delas, e é a que normalmente
vem trabalhar a vaidade do médium e a mania de julgar
e criticar, se metendo na vida dos outros quando não
sabe nem cuidar da sua própria vida.

- Existem também vários tipos de incorporação,


as que deixam o médium quase totalmente consciente,
as que tomas boa parte dos seus sentidos, a que o
médium sabe tudo que acontece na hora e esquece
depois e, mais raramente, as que tomas quase que por
completo sua consciência. Essas são mais raras e
destinadas apenas àqueles mais rebeldes e que tem a
mania de interferir muito no mundo espiritual.

José já não estava acompanhando mais nada. O


que significava tudo aquilo, desde quando se escolhe
viver uma vida planejando da forma que ela estava
dizendo? A gente nasce, cresce, sofre, paga boleto e
morre no final e era isso.

A palestra continuou mais um pouco, mas José


já não era capaz de acompanhar o que estava sendo
dito. Ficara pensando como que alguém, que pode
40
escolher viver de qualquer forma, iria escolher uma
vida de tormentos e problemas como a que ele tinha.
Aquilo não era verdade.

Imerso em seus pensamentos revoltosos sobre


as palavras da mulher, José não prestou mais muita
atenção às perguntas que estavam sendo respondidas.
Ele só queria era sair dali e ir para casa, esquecer aquilo
e não pensar em energia nem em espíritos ou escolhas.
Ele vivia a vida conforme a vida tinha se apresentado
para ele e só.

De repente, o senhor que se sentava ao seu


lado olha para ele e diz:

- É sua vez.

Ele levantou os olhos e viu que a senhora o


olhava docemente. As pessoas estavam abraçando-a
para se despedir, ele nem havia percebido. Acanhado,
mais por educação do que pela própria vontade, se
levantou e foi até ela. Abaixou-se e ela disse:

- Filho, sei que você não entendeu muita coisa


do que ouviu, mas sei também que causou muita
inquietação e revolta aí dentro, sinal que mexeu em
alguma coisa importante que está guardado em você.
Se nada disso fosse importante, você nem teria feito
conta, então quero pedir que nos dê uma chance de te
ajudar a entender o que se passa com você toda noite
quando você não consegue dormir e sonha coisas tão
ruins. Venha pelo menos mais duas vezes nos estudos,

41
e, se nada fizer sentido, pode voltar à normalidade das
coisas, certo de que pelo menos tentou.

José agradeceu e pensou com seus botões,


nunca mais vou falar dos meus problemas para
ninguém, contei para Mariana sobre meus pesadelos e
ela já deu com a língua nos dentes até com essa
mulher, não dá pra confiar em ninguém...

No caminho de casa, apenas pensava: amanhã,


vou cobrar da Mariana o fato de ter contado das
minhas coisas para todo mundo.

42
Assim que chegou ao local de trabalho no outro
dia, José já foi logo dando um jeito de, depois de bater
o ponto, procurar Mariana. Assim que a viu, logo foi
falando:

- Por que você contou para sua amiga que eu


tenho pesadelos? Agora lá naquele lugar todo mundo
já sabe que eu não durmo direito à noite.

- Eu não falei nada sobre isso, José, só contei


sobre suas crises de choro e ansiedade que eu vi. Não
falei sobre o que não sei, apenas sobre o que
presenciei. Aliás você nunca me contou que tem
pesadelos, apenas que não dorme bem à noite.

José olhou de banda para ela e saiu sem falar


nada. Não se convenceu muito do que ela estava
falando, afinal, como então a tal de Ana sabia disso?

Mas era verdade, não lembrava de ter contado


a ela sobre os pesadelos.

43
- Seu Antônio, o senhor acredita em macumba?

O moço da carrocinha do lanche se


surpreendeu em ouvir aquilo, não pela pergunta, mas
porque José nunca conversava com ninguém na hora
do almoço.

- Olha, eu nunca vi nada disso, mas tenho uma


prima que, quando era nova, sempre tinham que levar
ao centro de um pai de santo que morava lá por perto
da casa dela, porque acordava gritando e se retorcendo
de madrugada. Diziam que era o espírito de um tio que
estava nela. Lutaram quase um ano para tirar o tal
espírito, mas, um dia, depois de umas coisas lá que
fizeram, ela nunca mais teve nada, hoje tá casada e
tem dois filhos, nunca mais acordou daquele jeito.

- Então existe?

- Olha, não sei, mas eu não desacredito,


sempre onde tem fofoca é porque alguma coisa tinha
que levou o povo a falar.

José engoliu em seco e voltou ao trabalho. Era


sempre a mesma ladaia, alguém conhecia alguém que
tinha tido um caso e que resolveram e não deu mais
nada, mas não tinha ninguém que provasse alguma
coisa, não era palpável, nem comprovado. Então,
poderia ser só invenção das pessoas.

Vai que a louca era histérica, pensou. Deve ter


melhorado porque casou e o marido colocou-a nos
eixos.

44
Sorriu com a idiotice do próprio pensamento e
seguiu trabalhando, ainda tinha que mostrar para RH
da empresa que merecia aquela vaga.

45
Lá estava ele, sentado de novo naquelas
cadeiras, esperando por mais um sermão da dona Ana.
Embora não acreditasse naquilo, ele resolveu fazer o
que tinham lhe proposto, pensara muito a respeito e
ainda não acreditava que a Mariana não tivesse
contado sobre seus pesadelos. Ela reafirmara todas as
vezes que ele perguntou, depois daquela primeira
conversa, que ele não tinha falado nada com ela sobre
isso, e ele não achava que ela tivesse o porquê de
mentir. Mas voltou ao lugar resoluto de uma coisa: se
me cobrarem alguma coisa e se tiver que pagar para
assistir às aulas, é enganação garantida.

As pessoas se cumprimentavam
educadamente, e ele apenas respondia com um aceno
de cabeça. Não estava li para fazer amigos, só iria para
ter certeza de que nada daquilo era real, mas, pelo
menos, ele não estava desistindo e seria ele então o
responsável por ter a verdade dos acontecimentos.

Ana iniciou as orações e novamente aquele


cheirinho gostoso no ar. Mais uma vez, cantaram, e ela
se curvou, sentou-se na cadeira, se apresentou como
Maria Redonda, começando então a falar:

- Hoje, meus filhos, está um pouco mais difícil


de trabalhar aqui com a médium, a cabeça dela está
cheia de problemas por causa do marido doente.
Então, quero aproveitar para ensinar, e também para
fazer um exercício para vocês irem se habituando com
o mundo das energias. Hoje vamos aprender sobre
médium passista ou de magnetismo.
46
- Passista é aquele médium que tem energia
disponível para, ao invés de incorporar, permitir que os
espíritos conduzam fluidos através do seu corpo. Em
vez de o ectoplasma se moldar para que outro espírito
se acople ao corpo, ele forma como que um tubo para
que a energia do mundo espiritual ou a própria energia
seja canalizada diretamente para uma pessoa ou para
algum lugar. Costuma-se chamar de passista aquele
que dá passe, ou seja, usa a energia para proporcionar
que os espíritos atuem através de suas mãos, e de
magnetizador aquele que usa da própria energia para
fazê-lo, não usando a energia apenas do mundo
espiritual, mas a sua própria na imposição.

- A imposição de mãos geralmente é feita para


uma outra pessoa, seja com as mãos próximas ou
encostando na pessoa. Antigamente, por causa do
puritanismo das pessoas que chegavam, a gente tinha
que manter uma certa distância de quem a gente
atendia. Hoje em dia, isso tá um pouco melhor, e já
podemos tocar as pessoas. Ambas as formas
funcionam, mas tocar sempre depende da pessoa que
vai receber em estar disposta a isso.

- Mãe, esse não é o médium curador?

- Antigamente era assim que se chamava


mesmo, mas imagina o tamanho que vai ficar o ego da
pessoa se a gente chamar assim. Curar vai muito além
de dar um passe, implica auxiliar a pessoa a encontrar a
origem de sua doença e se livrar dela, podendo então
alcançar um estado saudável de vida. Mas isso depende
47
apenas da ação da pessoa, pois só ela pode realmente
se libertar daquilo que a está adoecendo. E não é um
processo fácil, não, pode-se levar anos até
compreender os mecanismos que a doença utilizou
para se instalar, e então desfazê-los um a um, não
cabendo ao médium essa responsabilidade. Logo, ele
não cura ninguém.

- Mas então o que o passe faz?

- O passe reestabelece o equilíbrio energético


que foi desestruturado pelo comportamento
desregrado do dia a dia, ou ainda limpa a pessoa da
energia residual de espíritos, ou intenções e
pensamentos que estejam acompanhando-a.

- Então é igual a reiki?

- Cada qual no seu lugar, cada ferramenta faz o


seu trabalho, mas sim, ambos deixam a pessoa
equilibrada novamente, para livre de interferência,
poderem tentar um novo estilo de vida, ou ainda se
verem livre de perturbação para poderem pensar com
mais clareza.

- Ainda se pode doar o passe ou o magnetismo


a distância. Nesse caso, basta saber para onde se está
direcionando e se concentrar nisso. Os seres espirituais
que acompanham cada um nesse proposito irão, então,
modular a frequência dimensional para que a energia
possa alcançar quem precisa, lembrando que, assim
como aquele que vai incorporar tem que estar disposto

48
a servir, quem vai dar o passe tem que estar disposto a
se doar.

Estranhamente aquelas palavras fizeram mais


sentido na cabeça de José. Ele, que estava ali disposto a
ver se iam cobrar alguma coisa, estava aprendendo que
podia dar alguma coisa, mas não era dinheiro. Era
alguma coisa que não custava nada e que se
funcionasse poderia ajudar as pessoas a pensarem
melhor.

Se funcionar, vou fazer isso comigo mesmo


todo dia, preciso pensar melhor.

Mãe Maria prossegui:

- Então o que nós vamos fazer hoje é o


seguinte, cada um vai pensar em uma pessoa de que
precisa e nós vamos mandar energia para essa pessoa,
entenderam?

- Mas o seu marido não está doente?


Mandamos pra ele.

As palavras tinham saído da boca de José


automaticamente, e, antes que ele pudesse fazer
qualquer coisa, já tinha dito aquilo, procurou qualquer
buraco mágico para se enfiar e fugir daquele lugar. O
que é que ele tinha que abrir a boca?

- Olha, filho, eu não tenho marido no caso,


mas, se vocês quiserem mandar para o marido dessa
aqui que eu estou usando como aparelho de
comunicação, hoje vai ser muito bom para ele.
49
Todos concordaram e José, que antes queria
fugir por um buraco, agora queria evaporar dali a todo
custo, mas como sempre travava nessas situações de
constrangimento, travado ali ficou.

Providenciaram o nome do marido de Ana e


sua data de nascimento. Como disse mãe Maria, era
preciso o endereço vibratório completo, um conjunto
de informações que determinasse qual indivíduo era
em meio à coletividade.

Mãe Maria pediu que todos se levantassem e


dessem as mãos em círculo. Feito isso, rezou aos
espíritos consoladores para que se fizessem presentes
naquele lugar e auxiliassem os novos médiuns naquele
trabalho. Em seguida, em tom mais firme de voz do que
o habitual, deu um comando de acoplagem para que os
mentores individuais se afinassem aos seus médiuns
respectivos. Nesse momento, as coisas começaram a
ficar estranhas...

José sentiu como que se seu corpo tivesse sido


inundado por uma euforia fora do normal. Não era
nada de extraordinário; pelo contrário, lembrou, muito
das vezes, que, em casa ou na escola, ele recebia uma
boa nota ou um elogio dos pais, era uma sensação de
puro contentamento por algo que estava certo. Para
ele, que vivia a cobrar e condenar tudo e todos, sempre
esperando de tudo o pior, era algo realmente
diferenciado, tentou pensar a respeito, mas não
conseguiu. Apenas sentia aquilo, não era da sua

50
cabeça, mas ainda assim era dele, confuso, mas o
deixara bem, ainda que momentaneamente.

Mãe Maria, então, pede que todos soltem as


mãos e imaginem a pessoa cujo nome haviam ganhado
anteriormente em sua frente e despejem sobre ela
tudo que estavam sentido.

Como que por instinto, José espalmou as mãos


para frente e desejou, desejou de verdade, que tudo
aquilo fosse dado também a quem precisava, que
aquele homem doente pudesse receber um pouco do
que ele estava sentindo naquele momento e se
entregou a isso. Aquele momento fora tão forte e
profundo, que ele acabara deixando uma lágrima
escorrer pelo canto do olho.

As mãos de José queimaram, ardiam com um


calor descomunal. Ele, que estava de olhos fechados,
abriu-os para ver se não estavam colocando alguma
coisa quente perto delas, e não era nada. Era só calor
mesmo, um calor que ele não sabia de onde vinha, mas
que estava ali, inundando suas mãos e se associando ao
seu coração, que se sentia contente por fazer aquilo.

A imposição não durou muito, mas marcou


profundamente a dureza do coração de José. Ele, que
buscara o lugar para tentar sanar suas dificuldades, na
mais profunda das verdades, queria provar que aquilo
não existia. De repente, se via ali, emocionado por ter
tido a oportunidade de ajudar quem ele não conhecia
e, através disso, ter relembrado uma emoção de sua

51
infância, que estava adormecida, mas tinha voltado
com força e verdade naquele momento.

Encerrado o passe, Mãe Maria agradece a


todos por aquele momento e dá um até logo coletivo,
dizendo que iria encerrar mais cedo, para que Ana
pudesse ir para casa e cuidar do marido.

Antes disso, pediu que cada um fizesse esse


mesmo exercício consigo mesmo em algum momento
até o próximo encontro, sem regras, mas que
pudessem se disponibilizar o tempo devido para isso.

Poxa, logo hoje que eu queria perguntar tanta


coisa sobre o que aconteceu, pensou José. Mas, sem
realizar seu intuito curioso, foi para casa. Embora
diminuída, a sensação ainda estava com ele, e foi com
o restinho do bem-estar sentido que se deitou naquela
noite.

52
A experiência daquela noite marcara muito
José. Embora sempre descrente sobre o que lhe
falavam, ele se levava muito a sério para fazer de conta
que nada havia acontecido. Teve que admitir para si
mesmo que naquela noite, se bem que ainda cheia de
pesadelos, ele dormira um pouco melhor, e isso
associado aos sentimentos no momento da oração de
Ana, os quais queriam dizer alguma coisa.

As coisas no seu trabalho não iam bem, ele


pouco conseguia se concentrar para trabalhar. Estava
cansado daquele lugar e daquele trabalho, já havia
buscado várias vagas de emprego e nenhuma o
seduzira. Então, seguia na monótona rotina, fazendo o
máximo para não ser demitido e continuar garantindo
seu salário que pagava as contas e possibilitava que
continuasse vivendo onde estava.

No terceiro dia, depois do segundo encontro


com o grupo de estudos, ele teve um desentendimento
mais severo com seu supervisor a respeito de um
relatório que, segundo ele, estava correto, mas
incompleto para seus imediatos. Nervoso, pediu para
refazê-lo, então, em casa. Consentido o pedido, no fim
do expediente, saiu decidido a fazer o melhor relatório
de sua vida, sabia que seu emprego dependia disso.

Chegando à casa, computador ligado, se pôs a


revisar as planilhas e construir o relatório conforme o
haviam pedido, mas ele simplesmente não conseguia
entender aquilo que estava sendo pedido. Para ele, do
jeito que fazia estava certo, era como se existisse um
53
abismo entre o seu conhecimento e o objetivo da
empresa, abismo esse que agora ali na sua frente se
mostrava claro e ele não conseguia transpor.

Começou a se desesperar, nada fazia sentido


naqueles números e letras que já se embaralhavam em
sua mente. Ele, que chegara à casa decidido a dar seu
melhor, já não podia mais com aquilo, parou por um
tempo e comeu alguma coisa, foi tomar um banho para
então voltar ao trabalho.

A água que caía sobre sua cabeça abafava o


ruído de seus pensamentos. Deixou-se ficar ali,
embaixo do chuveiro, aproveitando o pouco de paz que
ele proporcionava quando se lembrou do que dissera
Ana.

“O passe ajuda a pensar com clareza!”

O que ele tinha a perder, afinal ali ninguém iria


ver o que ele estava fazendo mesmo, nu, embaixo do
chuveiro. Sentou-se de pernas cruzadas, achou
desconfortável que seus genitais tocassem o chão frio e
o ralo do box, mas era o que tinha para aquele
momento. Procurou não pensar nesses detalhes e se
concentrou naquilo que Ana havia feito, tentou repetir
as palavras, mas só conseguiu reproduzir a intenção,
mal sabia ele que era esse o segredo de tudo.

Primeiro rezou o pai nosso da forma como


aprendera na catequese, pediu que os espíritos que
consolam se fizessem presentes, depois disso falou em
voz firme:
54
- E os que estão dispostos a me ajudar a pensar
com clareza que me ajudem...

Levou as mãos até a cabeça e bem devagar


começou a lembrar aquela sensação que tivera no
centro. Não estava se repetindo como ele acreditara
que seria; pelo contrário, o calor da água parecia que
se misturava com o calor das mãos que se repetia, mas
a sensação de euforia não, pelo contrário, algum tipo
de angústia estava se formando, e, junto dela, ele
começara a se lembrar de uma vez que, enquanto
pequeno, fora até um mercadinho para comprar pão, e,
com o troco, comprou balas que comeu rapidamente
antes de chegar à casa. Quando questionado por sua
mãe a respeito do troco, ele mentiu, dizendo que não
havia recebido.

A mãe, indignada, pega-o pela mão e vai até o


mercado, cobrando do caixa o troco devido, recebendo
como resposta:

- O troco ele levou em balas.

Imediatamente, o tapa violento o acerta em


cheio a boca, ela grita em meio a todo mundo.

- Nunca mais minta pra mim. E sai, arrastando-


o pela mão, o leva para casa e o coloca de castigo sem
pão, sem jantar, sem nada.

José imediatamente tira as mãos da cabeça e


percebe que está extremamente ofegante, o que havia
acontecido, porque ele estava se sentindo daquele
jeito, porque o passe não funcionara. Afinal, ele devia
55
se sentir melhor e pensar com mais clareza, era o que
Ana havia dito que aconteceria.

Desligou o chuveiro e se secou, um cansaço


descomunal se abatera sobre ele e mal conseguiu se
deitar, teve uma noite turbulenta como de costume e,
ao levantar-se, já não havia tempo hábil para que ele
terminasse o relatório. Durante o café e no caminho,
apenas pensava que desculpas iria dar para explicar o
fato de não ter conseguido.

Mal entrou na empresa e já foi abordado pelo


supervisor.

- Está pronto?

José gaguejou, ainda não escolhera qual


desculpa das muitas que criou na sua cabeça iria usar.

- Eu não sei fazer!

As palavras surpreenderam tanto José quanto o


supervisor, nenhum dos dois esperava por aquilo, pois
um preferia ter inventado uma desculpa, e o outro
queria o trabalho feito, e a verdade nada tinha de
benéfico para ambos.

Mas para cada ação inesperada sempre há uma


reação ainda mais inusitada, e o supervisor falou.

- Ok! Ninguém é obrigado a saber tudo, vou


passar para outra pessoa e já volto falar com você.

José sentou-se já recolhendo suas coisas,


acreditou realmente que naquela hora seria demitido,
56
afinal confessara sua incompetência. Sentou-se e
esperou.

Sem o retorno do supervisor, foi até ele.


Melhor encerrar isso de uma vez, pensou.

- Vai me demitir, senhor?

Surpreso o supervisor olha para José e


pergunta a ele porque achava isso.

-Ora, eu não sei fazer o relatório como me


pediu.

- José, não se demitem pessoas por não


saberem uma determinada tarefa, mas, para quem
admite o erro e está disposto a apreender, sempre se
tem uma chance, você está disposto a aprender?

- Sim.

- Ótimo, vou adequar você em um novo


treinamento. Até lá a demanda do seu trabalho será
cobrada no tempo que você puder entregar e da forma
como sabe fazer. Se, no final do treinamento, não
puder aprender, aí sim teremos que buscar quem possa
fazê-lo, fica bom assim para você?

- Com certeza, obrigado!

José não cabia em si, sabia que estava errado e


que não era costume fazerem aquilo, funcionários que
dão problema são descartados sempre e coloca-se
alguém mais capacitado no lugar. Embora ele tenha

57
admitido sua incompetência, por que não fora
demitido?

Pensando nisso, voltou à sua mesa, continuou


seu trabalho sem entender nada. Primeiro, não tinha
conseguido fazer o relatório; depois, tinha dado tudo
errado na sua tentativa frustrada de “se dar” um passe;
e, agora, não conseguindo usar uma desculpa, admitiu
que não sabia fazer o relatório e, ainda assim, ganhara
uma segunda chance.

Será que o supervisor era gay e ia acabar


cobrando um “favor” mais cedo ou mais tarde?

Ao pensar nisso, sentiu o rosto esquentar como


quando apanhara da mãe. Igualzinho tinha lembrado,
na noite anterior embaixo do chuveiro, e ouviu-a
claramente dizendo:

“NÃO MINTA PRA MIM.”

Será possível que eu não fui demitido só


porque falei a verdade?

Acho que eu estou enlouquecendo, agora eu


escuto vozes e me dou passe enquanto tomo banho.
Não termino um relatório e tenho um chefe que está
dando em cima de mim.

Eu deveria ter tomado os remédios que o


médico receitou...

58
Os dias seguintes foram relativamente mais
amenos. Com a chance do novo treinamento, José
ocupa muito do seu tempo reaprendendo os trâmites
do seu trabalho, tentando desenvolver um novo olhar
sobre aquilo que já sabia fazer. Aquela bagunça toda
que acontecera na noite que ele resolveu brincar de
médium ficou um pouco de lado, mas era dia de aula
no centro outra vez. Como era a terceira, ele foi, ainda
indeciso sobre o que aquilo estava significando para ele
ou não.

Chegando lá, percebe-se um pouco mais à


vontade no ambiente, cumprimentou as pessoas e
sentou-se numa cadeira, sendo até cordial com um
senhor que estava ali pela primeira vez.

Antes de começar, um dos participantes se


dirige a ele, pergunta seu nome e diz:

- Eu percebi que na última vez você se dirigiu à


Mãe Maria como se ela fosse a dona Ana, dirigente do
grupo, e não é. Uma é a médium que preside o
trabalho e a que nos ensina é o espírito de Mãe Maria
Redonda, uma preta velha.

José respondeu:

- Eu não entendo muito disso, não sei direito o


que acontece, mas, se acha que devo me desculpar, eu
falo com ela, embora não saiba quem é quem.

-Você não precisa se desculpar, ela não se


importa, mas é para aprender, até você entender o que

59
se passa faz assim, quando tá andando normal é a Ana,
quando tá abaixadinha é a mãe Maria, entendeu.

Haaaa! Assim fica bem mais fácil, pensou ele.


Agradeceu pelo esclarecimento e acomodaram-se, o
estudo já iria começar

Ana agradeceu ao grupo pela energia


direcionada ao seu marido, ficara sabendo do ocorrido
e comentou com todos que, dentro do possível, ele
estava melhorando, o que já a deixava mais à vontade
para seguir seu trabalho no centro sem preocupações.

Iniciou suas orações habituais, bem como a


cantoria, mas, dessa vez, ao invés do cheiro adocicado,
uma atmosfera completamente diferente se instalara,
era algo mais forte, quase agressivo, porém de uma
forma acolhedora e reta, diferente, não ruim. José
percebeu essa diferença e ficou atento. Foi
surpreendido com Ana levando um solavanco estranho
e, imediatamente, assumindo uma postura ereta, ágil e
determinada, muito diferente das outras vezes,
batendo no peito e emitindo um assovio. A entidade
manifesta se apresenta:

- Eu sou Aimoré, um caboclo da casa de Oxóssi.


Hoje, sou eu que vou conduzir esse estudo e o trabalho
que iremos realizar depois. Sou rápido e prático no que
tenho que dizer e fazer, pois minha linhagem vem para
o mundo para resgatar e educar espíritos que estão em
desalinho com as ordens do Pai Maior.

60
- Vou explicar sobre algumas das características
da mediunidade para vocês, primeira delas,
clarividência ou médium vidente...

- Vidente é aquele que, em trabalho espiritual


ou fora dele, consegue enxergar o plano espiritual,
sendo sua visão determinada pela faixa de vibração em
que vive. Quanto mais positivo ele se apresenta, mais
do belo e harmônico vê. Quanto mais envolto em peias
de toda ordem, mais ele se projeta visualmente para o
submundo, sendo, portanto, seus pensamentos e suas
ações determinantes para o resultado de suas visões.

- Clariaudiente ou médium ouvinte é aquele


que ouve as vozes do mundo espiritual, tendo as
mesmas características no que compete a
manifestação dessa faculdade mediúnica em relação a
comportamentos e a pensamentos que o vidente.

- Médium psicofônico ou comunicador é aquele


ao qual se acoplam espíritos única e exclusivamente
para falar nesse mundo. É um tipo de incorporação,
mas que apenas toma conta da fala e não do corpo.
Dependendo do médium, possui a capacidade de filtrar
o que é seu do que é comunicado pelo espírito na
maioria das vezes, pois são raros os psicofônicos
inconscientes.

- Psicógrafo é todo aquele que tem a


capacidade de transmitir as mensagens do mundo
espiritual através da escrita, podendo ser tanto
mecânica quanto intuitiva. Na primeira vertente, o
espírito toma conta das mãos que se movimentam
61
livremente sem a vontade do médium; a segunda
caracteriza-se por um aglutinado de ideias ou
informações que são transmitidas ao médium, que, por
sua vez, escreve-as de próprio punho.

O vidente e o ouvinte são médiuns que


costumam ter grandes problemas quando não
desenvolvidos, pois tradicionalmente a medicina da
terra os classifica como esquizofrênicos, sendo que é
necessário encontrar a real raiz do problema: se é um
transtorno de ordem espiritual ou uma característica
física que causa a patologia. Ver e ouvir
descontroladamente o outro mundo pode causar
desajustamento social, impossibilitando o convívio com
os semelhantes em muitos dos casos.

Sempre é importante lembrar que casos


severos sempre são causados pelo rompimento de tela
búdica, a barreira de proteção entre os mundos, o que
se consegue através de um desacordo com a ordem
universal ou até mesmo traumas e atentados à vida.
Quando deparados com casos assim, sempre devemos
analisá-los como um todo e sem julgamentos,
trabalhando em conjunto com a área médica, que
indicará medicações específicas para tratar os casos,
principalmente em casos de surto, enquanto nós
reconstruímos dentro do possível a estrutura espiritual
da pessoa.

Nossa, pensou José, que sujeito apressado,


Mãe Maria era bem mais amoros...

62
-- Hoje não estamos com tempo para isso,
respondeu Aimoré aos pensamentos de José, temos
trabalho a fazer.

Isso deixou José estarrecido, o cara lia


pensamentos, aquietou-se em sua cadeira e procurou
escrever o máximo possível do que estava sendo dito.

Dessa vez, ele trouxera seu caderno também.


Aliás, desde o incidente no banheiro, ele procurou
anotar o máximo possível sobre tudo que dizia respeito
a “esses assuntos”, usando algumas técnicas que
estava reaprendendo no trabalho para juntar
informações que achasse pertinentes.

- Existe ainda o médium doador ou gerador, é o


que mais dá dor de cabeça dentro de um trabalho, pois
ele está sempre reclamando de tudo, em nada ele
acredita. Cada vez que começa uma sessão, é
acometido por um torpor e uma sonolência que o
fazem bocejar e lacrimejar constantemente. Na
verdade, ele está doando energia excedente, pois
nasceu com um corpo preparado para gerar
ectoplasma em grande quantidade e doá-lo para os
demais do grupo, o que acaba o colocando em uma
posição egoicamente secundária, mas que é de grande
importância para o grupo, visto que a energia gerada
por ele é capaz de tanto revitalizar os médiuns durante
o trabalho, bastando para isso apenas que abrace-os ou
imponha-lhes as mãos, quanto doar energia para que
sejam encaminhados espíritos ou desenrolados
processos mais profundos de limpeza e cura.
63
- E o último que iremos falar hoje é o médium
de pronto-socorro, aquele que recebe o impacto inicial
de espíritos desregrados e que realiza o choque
anímico, dando vida ao processo desenrolado durante
principalmente os trabalhos de desobsessão ou
manifestação assistida de estados de consciência.

Como de costume, José até anotava tudo, mas


sua cabeça nunca parava, enquanto Aimoré falava, ele
já dizia a si mesmo:

“Era só uma aula, agora já estão falando em


sessão, desobsessão e cura... A tal Vó Maria não falou
que gente não cura ninguém?

Nem teve tempo de terminar seu julgamento e


viu Aimoré na sua frente, sisudo, direto ele falou.

- Pegue sua cadeira e sente aqui no meio,


vamos trabalhar.

Ele até pensou em dizer que não, mas a postura


inflexível do Aimoré o fez obedecer, puxou a cadeira e
se colocou no meio dos demais. Nisso, o caboclo
começou a explicar:

- Hoje, de forma mais prática, vamos


desenvolver as habilidades que vocês têm estudado.
Alguns já têm experiência e deverão ajudar os outros
enquanto se desenrola o trabalho. Vamos atender esse
rapaz.

Todos se posicionaram em pé ao redor de José


em círculo, e, ao comando do caboclo, iniciou-se um
64
trabalho de limpeza. José pouco sentia, mas ficou
atento a tudo que acontecia.

No início, se fez um momento de silêncio.


Aimoré disse para que falassem o que estavam
sentindo, que isso era dar vazão psicofônica ao corpo
emocional. Alguns entenderam e começaram a
descrever sensações tais como pressão no peito,
ansiedade, angústia, taquicardia, pressão na cabeça,
náuseas etc.

A um comando do caboclo, os sintomas foram


se atenuando, e uma das mulheres presentes
descreveu que percebera uma luz verde entrando no
círculo e limpando aquilo.

José estava atônito, haviam descrevido uma


noite dele!

Em um segundo comando dado pelo caboclo,


começaram então a se manifestar como que se fossem
pessoas descrevendo as mais variadas cenas do
cotidiano. Alguns relatavam mesas de um escritório,
outras sonhos malucos, e teve um que falou algo sobre
sexo que José não pode entender, mas que soou
desconfortavelmente familiar. Passados os primeiros
instantes disso, então, em voz sonora, ordenou Aimoré:

- Os irmãos presentes podem também se


manifestar.

Foi uma cena de filme de terror com certeza,


alguns dos presentes gritavam, outros se agitavam tais
quais animais enjaulados, e um deles explodiu:
65
- Chega, parem com isso, me tirem daqui. Eu
não suporto mais isso!

A esse especificamente o caboclo se dirigiu, e


com uma voz estranhamente paterna falou:

- Fique tranquilo, você não precisa mais ficar


aqui contra a sua vontade. Olhe à sua volta, existem
amigos dispostos a te ajudar, basta que para isso você
permita que a ajuda chegue até você, pois, sem seu
consentimento, nada será feito.

- Eu quero, mas não consigo...

- Tenha fé, nós iremos te ajudar.

E começou a cantar uma linda música, que


falava em seres das matas que estavam ali, levando
alento e trazendo liberdade. Isso o acalmou;
lentamente, a menina que manifestava o espírito
adormeceu no ombro do caboclo, recobrando
rapidamente seus sentidos, nauseada, mas bem.

Nesse ponto, José só queria era sair dali; ele se


sentia amarrado, preso, sufocado, aqueles gritos e
aquela cena toda remeteram-lhe aos pesadelos que
tinha todas as noites, e ele desesperado olha para
Aimoré e diz:

- Para, pare com isso, eu não suporto mais isso,


chega, chegaaaaaaa!

Aimoré se dirige a ele e fala:

- Chega do quê?
66
- Dessa vida, desse mundo, disso tudo, estou
cansado, exausto, eu não quero mais viver assim, nada
funciona, nada sai como eu espero, nada faz sentido,
me ajuda, me tira daquiiiii!

Enquanto falava isso, surgiam em seus


pensamentos uma série de momentos de sua vida
diante dos quais ele fora obrigado a ser sempre aquilo
que esperavam dele, suprindo as expectativas de tudo
e de todos, e nunca vivendo sua própria vida.
Percebeu-se, inclusive, mesmo depois de ter saído de
sua cidade natal e vindo para onde agora residia, preso
aos padrões ensinados por seus pais que o aceitavam
conforme tinham-no ensinado a ser.

José chorou, chorou pela dor de uma vida sem


sentido, pela dor de escolhas que nunca fez, de
decisões que nunca assumiu, de dores que nunca
mostrou. Chorou pelos lugares que não conheceu,
pelos amores que não conheceu e pela mediocridade
existencial que havia se instalado em sua breve vida até
então.

- Apenas você pode mudar isso, disse o


caboclo. Mas, para isso deve, perdoar seu passado e
aceitar que merece fazer diferente no futuro.

José não tinha forças para nada mais que não


fosse exatamente aquilo, ele só queria ter direito de
viver a própria vida do jeito que queria, livre, sem
cobranças, sem regras e sem restrições impostas por
pessoas que nem estavam mais ali com ele, mas que
claramente ainda rondavam seus pensamentos.
67
E o caboclo acolheu seu choro, sua dor, sua
angústia e seu desalento. Confortou-o em seus braços
como um pai faz a um filho. José aceitou esse carinho,
e, pela primeira vez na vida, pôde sentir de verdade o
poder que o amor de um pai pode fazer na vida de um
homem. Entregou-se a esse amor e deixou-se ninar por
um tempo, mais calmo. Ele agradeceu ao caboclo, que
deu um comando de limpeza e encerramento dos
trabalhos e voltou-se para José dizendo:

- Existia sim um espírito em tribulação que


estava ligado a você, os dois se afinaram pelo
condicionamento de viverem conforme a cartilha
ditada pelos outros. Hoje, você se liberta e ele também,
pois, se você tem o entendimento e a aceitação de que
pode ser amado do jeito que é, também transmite ao
irmão que estava com você a esperança de renascer
tomando as próprias decisões.

José não entendia exatamente o que era tudo


aquilo, mas sentia profundamente aliviado, liberto de
algo que ele não sabia explicar, mas que não fazia
importância, o abraço e a amorosidade do caboclo
eram, naquele momento, tudo que ele queria lembrar,
nada nem ninguém fora, até então, firme e amoroso
com ele daquela forma, seu pai, sempre preocupado
em apenas trabalhar e levar dinheiro para casa nunca
demonstrara afeto, e nas vezes poucas que teve a
chance, sempre se manteve distante, afinal, para ele,
aquilo não era coisa para homem fazer.

68
Isso não importava agora, ele tinha conhecido o
abraço verdadeiro de um pai naquela noite, e era isso
que ele queria lembrar.

Levantou-se e abraçou todos que estavam a


sua volta. Todos, assim como ele, foram tocados por
aquele momento, e a gratidão mútua era evidente.

O caboclo despediu-se, Ana retornou à


consciência e olhou ao seu redor, viu olhos inchados e
caras amassadas:

- Mas o que aconteceu aqui!!! Perguntou ela


num misto de surpresa e apreensão. Todos se
apressaram-se lhe contar o que havia se desenrolado
naquela noite, e ela, agradecida, virou-se para o altar e
disse:

- Obrigada, grande guardião dessa casa, pela


experiência dada a todos nós, que sejamos sempre
dignos de recebê-lo em nossa casa, quando sua
vontade for fazer-se presente entre nós.

- Amém, responderam todos naturalmente.

69
Os dias que se seguiram ao trabalho no centro
universalista foram muito melhores para José.
Finalmente, ele estava entendendo como seu
supervisor queria que ele apresentasse os relatórios e
isso trouxe uma nova esperança para ele. Sem a
preocupação com seu trabalho, ele pôde se ater a uma
coisa que vinha martelando em sua cabeça.

Ele devia desculpas e um agradecimento


especial a Mariana, pois ela tinha-o ajudado quando
nem mesmo ele o teria feito.

Decidiu convidá-la para jantar, esperou uma


folguinha e foi até ela.

- Oi, tudo bem?

- Mas olha quem veio me ver. Tudo bem e


você?

- Estou bem também, quero saber se você topa


jantar comigo uma noite dessas.

- Claro, quando?

- Pode ser amanhã?

- Amanhã não posso, posso hoje, que tal?

- Pode ser, como fazemos?

- Você pode passar lá em casa e a gente vai


juntos para algum lugar.

- Certo.

70
José pegou o endereço da casa de Mariana e,
quando esperou encerrar o expediente, foi para casa,
se arrumou e foi até a casa de Mariana. Era
relativamente longe, e ele aproveitou o caminho para
ensaiar as suas desculpas, não era da natureza dele
essa formalidade, mas, de alguma forma, sabia que era
o certo a se fazer.

Chegando à casa dela, ambos se dirigiram a um


PUB próximo, indicação da própria Mariana. Sentaram-
se e fizeram seus pedidos. Assim que o garçom se
retirou, ele começou:

- Olha, Mariana, eu te convidei para jantar


porque te devo desculpas. Eu fui tão mal-educado e
grosseiro com você e, ainda assim, você continuou ali
tentando me ajudar. Você mal me conhece e, apesar
disso, se dispôs tanto a me levar para casa quanto a me
indicar ajuda. Eu nunca tinha aceitado isso de ninguém,
não estou acostumado a permitir que as pessoas
interajam dessa forma comigo.

- Nossa, o que acontece com você?

- Frequentar o lugar que sua amiga Laura me


indicou e fazer os estudos sobre as questões
espirituais, acho que é assim que se diz, causaram
mudanças tanto na minha vida quanto em mim. Estou
disposto a deixar isso continuar acontecendo; por isso,
quero ser honesto com você, me desculpe mesmo pela
forma que te tratei nas vezes que tentou me ajudar. Eu
estava confuso e perturbado, ainda estou um pouco,

71
mas, bem devagarinho, quero deixar essa minha versão
para trás e começar a organizar as coisas aqui dentro.

- Quando você me falou do seu namorado, eu


me identifiquei muito, e percebi que eu estava indo
para o mesmo caminho que ele. Além dos rompantes
de raiva, eu não tinha mais controle sobre os meus
sentimentos, eu só pensava em coisas ruins, falava
coisas desconexas e agia como se fosse sozinho no
mundo, sem ninguém, preso dentro de uma ilusão que
eu era a única coisa que me restava. Via a minha vida
minguando e não conseguia sair daquilo, quase perdi o
emprego e isso me desesperou. Se não fosse a sua
insistência, eu não sei o que estaria acontecendo.

- Uma das coisas mais graves que eu percebi é


que minha capacidade intelectual estava
comprometida. De tanto pensar bobagens, eu estava
meio que emburrecendo, perdendo a capacidade
cognitiva e não conseguindo mais conversar e trabalhar
devidamente. A falta de sono reparador estava
acabando comigo.

- Que coisa boa ouvir isso, fico muito feliz que


você tenha recebido a ajuda de que precisava.

- Sim, não veio como eu imaginava, até porque


não entrei lá disposto a ser ajudado e sim a analisar o
que lá acontecia... mas fui surpreendido com alguns
acontecimentos que acabaram por me convencer que
realmente existe algo além de nós. Não sei explicar isso
direito, mas me fez muito bem.

72
- Isso que importa, José, que você se sinta bem.

- Mas eu preciso saber de verdade, Mariana,


por que você fez isso?

- Isso o quê?

- Me ajudou.

- Culpa, eu acho.

- Como assim culpa, culpa do quê?

- De não ter feito o mesmo pelo meu


namorado.

José se viu perplexo frente à inusitada


confissão de Mariana, afinal ele estava pronto para
qualquer outro tipo de resposta, menos essa. Ela
prosseguiu:

- Eu sempre me cobrei o fato de não ter


insistido mais ou o ajudado mais, não para ficarmos
juntos, mas para que ele pudesse ter melhorado e não
se sentisse tão desamparado. Acho que eu sou assim,
meio salvadora da pátria, tentando consertar os erros
do passado e fazer a coisa certa. Quando vi você,
primeiro com aquela cara de cansado e apavorado o
tempo todo, e depois passando pelos mesmos
episódios que eu já tinha presenciado com ele, resolvi
intervir. Você sempre me pareceu um cara legal e não
precisaria chegar à mesma situação que ele, se tivesse
a chance de, pelo menos, tentar alguma coisa
diferente.

73
- E eu te agradeço muito por ter feito isso. Sem
sua insistência, eu certamente teria acabado tomando
remédios também. Eles estão comprados lá em casa,
eu nunca contei isso, mas só não tomei porque fiquei
postergando devido aos efeitos colaterais que ouvi
dizer que eles geram no início do tratamento. Fiquei
com medo de não conseguir trabalhar e acabei não
tomando.

- E ainda pensa em tomá-los?

- Acho que isso não se descarta, mas o médico


quem tem que dizer isso, né. Se eu me mantiver bem e
ele achar de que não preciso, não vou tomar.

- E sobre estar bem me conta, o que aconteceu


lá, como foi, o que eles disseram.

José falou, falou e falou, do seu jeito sem jeito


de explicar. Contou a ela sobre o dia do passe, sobre o
que tinha aprendido depois sobre os efeitos de falar a
verdade ao invés de arrumar uma desculpa.

Contou também sobre o dia do Aimoré. Não


sabia direito quais palavras deveria usar, mas
conseguiu fazer-se entender. Ela a tudo ouvia com
atenção e, na parte que ele contou sobre o suposto
espírito que havia se manifestado dizendo que estava
preso, ela perguntou:

- Então, era dele a voz que estava na sua


cabeça, igual à do meu namorado?

- Eu não sei dizer ainda, mas acho que sim.


74
- Vocês aprendem tudo isso lá?

- Não exatamente, lá é tudo muito rápido e eu


não consigo acompanhar muito bem, mas estou
procurando alguns materiais que me ajudem a
entender. Há muita coisa escrita sobre isso, e estou
estudando um pouco por fora, pelo que entendi eu tô
muito atrasado nessa função de espíritos.

Mariana ficou surpresa com a inesperada


evolução de José. Ele não parecia outra pessoa, apenas
estava se mostrando uma pessoa normal, que,
repentinamente, tinha a oportunidade de ser ele
mesmo sem interferência nenhuma e com o sono em
dia. Isso a deixou feliz de verdade:

- Acho que eu sei por que você acabou


querendo me ajudar, disse ele.

Ela fez uma expressão extremamente


interessada:

- Culpa, eu tenho isso de sobra...

Ambos riram da confissão mútua e


interromperam o assunto, pois a comida pedida por
ambos acabara de chegar. Comeram falando de outros
assuntos num clima gostoso entre dois adultos que
apenas ocupam seu tempo ao invés de perdê-lo.
Racharam a conta no final e foram até a casa de
Mariana. Na hora de se despedirem, José estendeu a
mão e falou:

- Amigos?
75
Mariana riu alto e falou:

- Já me pediram muitas coisas até hoje, nunca


para ser meu amigo.

Apertou a mão dele e respondeu:

- Amigos, com certeza.

Mesmo sendo longe, José foi a pé para casa


naquela noite. Não sabia explicar nada do que estava
acontecendo, mas era gostoso ser ele pela primeira vez
na vida. Durante muitos anos, ele se acostumara a uma
versão menos benéfica de si mesmo, portanto queria
aproveitar cada minuto desse novo estado de liberdade
que estava vivendo.

76
- Hoje, eu quero falar com vocês sobre casos
em que a pessoa mesmo se atormenta e que não são
causados por espíritos obsessores, mas podem ser
usados por eles para aumentar o seu controle sobre a
gente.

Mãe Maria estava de volta. Ela iria conduzir


mais uma vez o evento. José colocou-se em prontidão,
atento a cada palavra, gostava dela e aprendera a
confiar em seus ensinamentos.

- O primeiro caso que eu quero explicar para


vocês é o das correntes mentais parasitas. Elas não são
causadas por espíritos, mas pela própria pessoa, que
alimenta seus padrões de pensamentos negativos de
tal forma que acabam por aprisionar o ser dentro de
uma jaula de negatividade, causando medo, terror e
perturbação. Não se encontra, nesse caso, a influência
de nenhum ser externo, mas sim da própria pessoa que
pensa algo ruim sobre ela e fica martelando isso o dia
todo, alimentando os próprios pensamentos até se
tornar escrava deles. Nós também somos espíritos,
então tudo que um obsessor pode fazer conosco, nós
também podemos.

José inclinou-se para não perder nenhum


detalhe, ele entendia muito bem disso, queria
compreender como se dava esse processo.

- Mas, Mãe, se a gente pode pensar algo ruim,


então podemos também pensar algo bom pra sair
disso, perguntou um dos presentes.

77
- Não é tão simples assim, o que normalmente
se percebe é que esses pensamentos são oriundos de
algum tipo de aprendizado que a pessoa não está
observando, e que é necessário internalizar para poder
então encerrar esse ciclo. Não adianta apenas pensar
uma coisa boa no lugar de uma ruim, é preciso
transformar o ruim em bom dentro de nós, aceitando a
lição que se apresenta por detrás de cada onda de
pensamento grudento que se mantém por longos
períodos de tempo. A isso se dá o nome de reforma
íntima.

- E como identificar esse aprendizado, Mãe?

- Vamos usar um exemplo: se eu estou sempre


me olhando no espelho, me achando gorda, e, cada vez
que penso nisso, eu como pra me compensar pela
tristeza de ser gorda e imediatamente me condeno por
ter comido, não adianta ficar tentando emagrecer e
pensar no peso. É preciso aceitar a imagem e o corpo
que eu tenho sem nenhum “mas” ou “porém”. Isso
muda não o pensamento negativo sobre mim, mas a
forma como me relaciono comigo mesmo, entendendo
que existem olhos para todos os tipos de pessoas e que
cada um é como é, cada um pode ser feliz a sua
maneira.

- Porque não é sobre peso, é sobre amor-


próprio!

- Isso mesmo, respondeu Mãe Maria, que


continuou. Assim quebramos o ciclo dos pensamentos
não com outros pensamentos e sim com aceitação e
78
amorosidade para com nossa própria existência,
resolvendo o problema ao invés de combater as causas
do mesmo.

- Existem também os estigmas cármicos físicos


e psíquicos, são marcas na alma da gente que acabam
vindo para o nosso corpo físico ou emocional. O
primeiro vai se caracterizar pelo nascimento de uma
pessoa com características especiais. Normalmente, é
originado por alguma cicatriz em corpo búdico, ou seja,
naquele que guarda informações de nossas
encarnações anteriores e que se manifestam nessa vida
para aprendizado, podendo desde ser um sinal ou
marca de nascença até alguma síndrome ou
característica física mais marcante. Não existe
intervenção de magia ou obsessão nesses casos,
apenas a lembrança de algo que já aconteceu e, de
alguma forma, está novamente conosco para
lembrarmos de quem somos.

- E os psíquicos se manifestam no
comportamento da pessoa, levando-a a se comportar
de forma completamente diferente da maneira do
ambiente onde vive. Exemplo são as pessoas que têm
total negação a algum tipo de minoria ou raça, mesmo
sem terem influência em casa para isso. Essas pessoas
costumam naturalmente buscar se agrupar a outros
que pensam da mesma forma, para viverem, nos dias
atuais, as convicções que tiveram em outras
encarnações. Muitos dos ódios sobre etnias diferentes
do nosso mundo são originadas dessa característica.
Essa marca causada pela dor e pelo sofrimento
79
prolongado pode estar também em corpo búdico,
deixando infiltrar, para essa vida, muitas das sensações
já vividas anteriormente.

- E elas tem tratamento, Mãe?

- Cada pessoa tem seu histórico, mas costuma


ser muito produtivo que se use regressão a vidas
passadas para encontrar o ponto de ressonância com o
passado dessas pessoas e poder trabalhar seu estado
presente sem influência auto-obsessiva. Esses casos
são sempre para indicar a um terapeuta que seja
qualificado.

José estava gostando demais de ouvir a velha


naquele dia. Ele percebera que ela sempre fazia
questão de deixar claro que cada pessoa tem seu
momento, suas situações e que não podemos ajudar
todo mundo com uma fórmula pronta. Inclusive
acabara de indicar um caso que era preciso um
terapeuta e não um médium, achou aquilo muito
lógico.

- Ninguém tem uma fórmula mágica para


resolver todos os problemas do mundo, nem Jesus
tinha, cada um faz sua parte e juntos nós melhoramos
o todo.

Ele tinha certeza de que aquela resposta dela


havia sido para ele, mania de Mãe Maria de ler
pensamentos.

- Existem as pessoas que ressonam, com o


próprio passado, uma situação do presente, a qual
80
imediatamente os remete à mesma situação vivida de
forma semelhante em uma vida anterior, e que, pela
fragilidade do véu do esquecimento delas, acabam por
sofrer o baque energético das duas situações ao
mesmo tempo, aumentando a sensação a respeito. Ela
pode ser apenas sentida ou, em alguns casos, misturar-
se às cenas, que se confundem dentro da cabeça da
pessoa. Ambos os casos são originados em traumas que
enfraquecem a barreira que mantém as vidas passadas
onde deveriam estar. Fortalecer essas barreiras é
indispensável para poder ajudar essas pessoas.

- Mais um caso e esse bem delicado nos dias


atuais é o desajuste encarnatório. A pessoa nasce de
um jeito e não aceita o que é, tem um corpo e não se
adequa a ele, tentando, desde muito cedo, mudá-lo de
alguma forma, sendo de gênero, colocando objetos ou
modificando-o de alguma forma que descaracterize o
original e o transforme em outra coisa. Seres que
obtiveram grande poder no passado tendem a buscar
repetir instintivamente o mesmo projeto da
encarnação anterior para obter sucesso. É importante
frisar que não se trata nem de homossexualidade nem
de transexualidade. É uma questão de desajuste
mesmo. Homossexualidade e transexualidade são
características encarnatórias perfeitamente naturais,
que trazem consigo um universo de aprendizado para o
espírito, como dizem os mais de cima. Se existe no
mundo é para ser vivido, aceito e compreendido. Os
casos de desajuste não trazem aprendizado, e sim
sofrimento, pois colocam a pessoa em contrapartida de
81
sua natureza e isolam a pessoa que,
inconscientemente, tenta reviver uma experiência que
não é mais para essa época.

- É muito importante respeitar e auxiliar cada


um a viver a sua vida exatamente como nasceu para
ser; contudo, quando isso começa não mais a trazer
felicidade e sim uma série de problemas paralelos com
relação não aos outros, mas a ela mesma, devemos
estar prontos para acolher e auxiliar a aceitar que
agora as coisas não são como já foram.

- Mãe, e como saber a diferença?

- Ouvindo, meu filho, ouvindo o que a pessoa


tem a dizer a respeito de si mesma, sem julgamentos
ou análises sob o nosso ponto de vista, permitindo que
ela se abra e entendendo se aquilo é natural dela ou se
é apenas uma reprodução de outra história, buscando
autenticidade nos sentimentos sem nunca colocar
nosso conceito pré-estabelecido sobre os ideais dos
outros.

Ouve um breve momento de silêncio entre


todos. Mãe Maria tocara num ponto muito delicado.
Até que ponto cada um que estava ali realmente estava
pronto para ouvir sem julgar, sem condenar? Agir
apenas acolhendo cada um em sua história e apoiando
sem hesitar para que se desenrolasse de melhor forma
seus aprendizados fosse cada um o que tivesse
escolhido para ser?

82
- Nunca disseram que seria fácil, mas é
gratificante quando se pode auxiliar alguém a viver o
máximo de sua experiência de forma livre, porque esse
é o direito concedido a cada um pelo criador. Todos
podemos ser o que nascemos para ser sem hesitar, e
não é direito de ninguém julgar a criação, muito menos
mudar a forma do outro de ser. Esse caminho não traz
dor, revela apenas o amor do Pai por todos nós, e,
quando no caminho se identifica a dor, apenas ali nós
atuamos...

- Deus é o verdadeiro senhor da diversidade,


ele colocou no mundo toda sorte de criaturas
maravilhosas para servirem ao único propósito de, pela
sua experiência, aperfeiçoarem-se a si mesmos e
caminharem até a perfeição que nos originou. Logo, se
somos filhos à imagem e à semelhança da perfeição,
tudo que manifestamos naturalmente e não de forma
imposta também é perfeito aos olhos dele. Certos
dessa verdade, é-nos devido amar e verdadeiramente
respeitar uns aos outros como ele mesmo nos ensina.

Estavam todos maravilhados, Mãe Maria sabia


de forma exemplar reunir conhecimentos e verdades
em frases capazes de causar impactos profundos na
dura realidade humana. Ela estava corretíssima, somos
sim filhos dele, Ele nos aceita. Então por que não nos
aceitaríamos?

Ela continuou:

- No caminho da dor, existe, nesse mundo, uma


série de coisas que vão anestesiar ou compensar os
83
nossos sentidos. Estamos acostumados a fugir para o
prazer dos sentidos em vez de enfrentar e
compreender as adversidades do caminho
internalizando a lição. Nesse momento que entram as
viciações dos sentidos, outro caso que não tem a ver
com espíritos obsessores, mas conosco, com nossas
fragilidades, e nossas desventuras. A primeira coisa que
estamos acostumados a fazer é fugir, alguns para a
droga, outros para a comida, outros para a bebida,
alguns para o sexo, e assim por diante. Sempre que se
tem esse tipo de comportamento, fugindo para não
enfrentar a realidade, ainda mais nos mantemos presos
ao ciclo das encarnações, atrasando nossa evolução e
nos mantendo aqui por tempo indefinido, afinal o
tempo da Terra tem a ver com aprendizado, não com
ciclos contados.

- Porque você fala em nós, Mãe, a senhora já


não está liberta disso?

- Não, meu filho, eu estou no mesmo barco que


todos vocês, apenas estou cumprindo minha tarefa de
forma diferente de quem está nascido, ensinando o
que aprendi até chegar a hora de voltar e aprender
mais.

José não foi direto para casa naquela noite. Ele


caminhou muito, buscando internalizar de alguma
forma aquelas ideias tão grandiosas que se
implantavam na cabeça dele.

Nunca tinha pensado em nada daquilo, no que


significava aceitar tudo e todos, nas consequências
84
disso a médio e longo prazo, na liberdade que redunda
da opção de apenas ser livre...

Ao deitar-se naquela noite, fez uma coisa muito


diferente, ele rezou.

- Eu não sei exatamente se Deus está me


ouvindo ou não, mas queria dizer que agradeço muito
pelo dia de hoje, pela oportunidade de ter ouvido Mãe
Maria e ter começado a aprender sobre respeito e
liberdade. Agradeço por existirem seres que estão
dispostos a nos ensinar aquilo que já aprenderam, bem
como a continuar aprendendo depois disso. Quero me
colocar à disposição como aprendiz nessa vida, eu que
já julguei tudo e todos, principalmente a mim mesmo,
não quero mais viver assim, quero ser melhor, ver
melhor e ouvir melhor quem está minha volta, para
quando eu perceber a dor, eu então poder ensinar o
que aprendi e ajudar como fui ajudado.

Eram simples e justas as palavras dele, não


eram floreadas, mas cheias de uma das forças mais
poderosas que já existiram na humanidade, a
convicção.

Convicção de quem aceitou mudanças


causadas por pequenas intervenções em sua vida e,
também, permitiu-se olhar por dentro para se ver
melhor e conseguiu. Convicção de quem sofreu e
mudou o rumo da vida porque aceitou se transformar
em algo melhor sem medo do depois, pois o antes já o
85
era insuportável. Convicção de que espíritos existem e
também Deus, ouvido ou não. O importante era que
ele dissesse aquilo para ele mesmo.

Adormeceu depois disso, o mundo dos sonhos


já não era um tormento para ele. E disso também ele
estava convicto.

86
José estava cada vez mais inteirando-se dos
assuntos do centro que estava frequentando. Cada
novo encontro era uma oportunidade de
autoconhecimento que ele buscava não desperdiçar,
atento a todas as explicações, fossem dos espíritos que
se manifestavam ou dos irmãos que compartilhavam.
Cada vez mais, ele compreendia coisas importantes
sobre si e sobre o que acontecera a ele até chegar ali.

Umas das coisas importantes que descobriu foi


que os obsessores precisam de um estado ressonante
no obsediado. Uma vez que encontram esse padrão,
eles se ligam naturalmente a ele, identificando-o como
um igual, não sendo necessário que ninguém os mande
fazê-lo. Obsessores nada mais são, de forma simples,
do que pessoas que morreram com um determinado
padrão de sentimento e pensamento recorrente, e que,
na hora do desencarne, fá-los continuar vibrando na
mesma coisa. Aqueles que vibram no medo passam a
reconhecer apenas o medo, imersos no que eles
aprenderam a ser uma couraça de energia que se
apossa de todos os sentimentos do desencarnado, e
começam a coordenar suas ações, alimentando-se do
medo que está a sua volta e potencializando-o no
hospedeiro quando o encontram.

Como uma relação simbiótica, o medo do


obsediado se soma ao medo do obsessor,
transformando-se em um ciclo de sentir e ser levado a
sentir ainda mais. Essa energia deixa o obsessor
confortável, pois ele existe naquilo que conhece, e o
obsediado também em uma situação relativamente
87
cômoda, pois ele também já conhece aquilo, não
precisando aprender coisas novas, pois com o medo ele
já sabem lidar.

Aprendeu também que, para definitivamente


se ver livre desse ciclo, não basta retirar o obsessor,
embora isso alivie temporariamente o excedente dos
sintomas. Apenas o enfrentamento do próprio medo
possibilita que o mesmo não volte a ser vítima de
obsessão, pois, enquanto vibrar no medo, o medo
encontrá-lo-á. Isso para qualquer sentimento que
atrase a evolução, paralise ou atravanque a vida.

Isso explicava claramente o porquê de, no dia


em que fora colocado no centro da roda, uma pessoa
havia manifestado um espírito que se dizia cansado de
ficar preso, e ele imediatamente depois também tinha
expressado a mesma coisa, era esse o padrão que os
atraía, aprisionamento, não de algo ou de alguma
coisa, mas o condicionamento à não liberdade de ser.
Ambos estavam presos a algo que não lhes era claro,
mas que faziam com que se alimentassem
mutuamente, afinal ambos estavam mais que
acostumados com o próprio cárcere. Ele, então,
mantinha-se cada vez mais recluso, pois a reclusão o
protegia do que estava por vir.

Só que, tal qual animal encerrado em uma


jaula, ele internamente ainda clamava por liberdade,
motivo pelo qual as crises de ansiedade o acometeram,
pois, ansioso pela vida aqui fora, seu coração o impelia
para desvencilhar-se daquela situação.
88
Nos dias que se seguiram ao atendimento, livre
da ligação com o espírito obsessor ele se viu mais
seguro pra dar passos para fora do aprisionamento, e o
que realmente mudou sua vida não foi a retirada no
espírito apenas, mas as mudanças que ele aceitou fazer
enfrentando o medo de aprender e viver coisas novas.

Ele estava dando os primeiros passos na sua


reforma íntima.

Em uma palestra de um dos integrantes do


grupo com maior experiência, descobriu como a
energia adoece o corpo, inteirando-se do mecanismo
que explica sobre um sentimento que tem um órgão
ressonante no corpo acaba por tornar-se tão intenso a
ponto de ser identificado como “corpo estranho”,
passando então a ser combatido pelo próprio
organismo gerando doenças autoimunes, e que,
dependendo do padrão estabelecido, o próprio sistema
imunológico se debilita, abrindo brecha para que
organismos invasores tenham maior campo de ação
dentro do corpo humano.

Ficou surpreso ao saber que o padrão que mais


prejudica o sistema imunológico é a culpa, e, de posse
dessa informação, fez uma autoanálise muito profunda
nos dias seguintes.

Embora ele nunca fora de ficar doente, o


episódio da sua IST ainda o incomodava, pensou,
pensou e ponderou consigo mesmo.
89
“Quando eu era mais jovem, lembro
claramente de ser muito tímido, e de nunca entrar em
conversas ou brincadeiras com os outros meninos ou
meninas, que eram para os outros absolutamente
naturais. A única vez que isso aconteceu, nós fomos
descobertos, nem estava acontecendo nada demais,
estamos apenas nos apalpando a nós mesmos, mas a
forma como os adultos reagiram, chamando a todos de
viadinhos e dizendo que aquilo era uma vergonha e
que não devíamos nunca mais fazer isso me marcou
muito, lembro bem que a excitação inicial foi
substituída por uma apreensão sem igual, que senti por
um momento o mundo prestes a desabar na minha
cabeça, e que, aonde eu fosse, todos iriam saber que
eu estava me apalpando na frente de outros meninos.

Desde então, nunca mais tive uma vida sexual


saudável. Eu mesmo me atormentei com aquele
pensamento incutido na cabeça de um menino por um
adulto sem preparação nenhuma. Toda vez que eu ia
sair com uma garota, eu acabava sentindo as mesmas
sensações de terror, o que me fez me isolar
sexualmente do mundo.

Mas aquele misto de excitação e proibido


também ainda estavam em mim, então o que me atraía
era nada mais do que o proibido, o escondido, pois ali
eu me identifiquei. Então busquei inconscientemente
situações que reproduzissem aquele momento que já
me era conhecido e que, apesar de prazeroso no
instante, se transformava em culpa logo depois,

90
aumentando ainda mais o quadro de ansiedade que eu
já experimentava.

Isso me aprisionou dentro de mim mesmo,


causando um ato contínuo de agir e depois me castigar
pelo que tinha feito, afinal eu aprendi que era errado,
mas o errado segundo os outros era o que eu conhecia
e me dava prazer.

E éramos apenas crianças, custava alguém ter


sido mais amigável e explicar alguma coisa.”

De fato, não custava, mas agora não era


momento para condenar o passado, ele queria mais
explicações sobre tudo, e na primeira oportunidade
perguntou em um dos estudos:

- Traumas relacionados à sexualidade na


infância são mais fortes que os outros?

Todos o olharam com surpresa, já que, mesmo


sendo uma casa universalista, não era de praxe que se
falasse sobre isso abertamente. Naquele dia, era a
própria Ana quem conduzia os estudos. Quando foi
responder, uma poderosa força se apossou dela, e
depois de uma estridente gargalhada falou:

- Melhor deixar esse assunto para os que


entendem dele, eu sou Mulambo, e vocês me
conhecem nesse mundo como uma pomba-gira. Estão
acostumados a ouvir que nós vivemos nas esquinas a
fazer trabalhos, mas isso não é correto, nosso
verdadeiro trabalho é manipular exatamente essas

91
energias das criaturas, por isso vou explicar como isso
funciona.

Poucos conheciam aquela entidade na casa, e


mesmo que desconfiados ouviram, ela continuou.

- O ectoplasma é produzido em todas as células


do corpo de vocês, mas o centro de energia que
coordena essa produção é o segundo chacra, um
vórtice de energia que está localizado abaixo do
umbigo, ele é responsável pelo equilíbrio das águas do
corpo, pelo IN e IANG, e pela manifestação livre do
prazer e da sexualidade. Como coordena a produção de
energia vital, ele é sempre o primeiro foco de
vampirismo pelos seres que precisam de energia para
sobreviver no astral inferior. Esse centro de energia
quase infinita é manipulado para que se condicione a
sexualidade das pessoas a um padrão rebaixado de
sentimentos, fazendo ligações traumáticas para que,
todas as vezes que o prazer seja manifesto, junto com
ele se manifeste um sentimento negativo, o que
possibilita então a atuação desses seres para absorver
energia.

- Toda relação sexual é possível de originar uma


vida, então vocês imaginem a quantidade de vida
disponível para ser vampirizada em uma população
condicionada a viver sua sexualidade de forma não livre
e repleta de culpa e dor.

- Aliando a isso o fato de que reprodução é um


dos instintos primordiais das pessoas, se encontra a
fórmula perfeita de atuação de espíritos inteligentes no
92
astral inferior, pois eles entendem que os instintos
básicos da sexualidade sempre serão saciados, e que,
se feitos de forma condicionada a algum sentimento
negativo, seja ele qual for, sempre terão seu gerador
de energia ectoplasmática disponível.

Então eles só precisam aguardar que o


preconceito faça sua parte para, no momento do
desabrochar dessa energia, poderem vampirizá-la e
canalizar sua energia para fins maléficos.

- Que fins seriam esses? perguntou José.

- Não nascer. Cada vez que eles tentam burlar a


roda das encarnações, seu perispírito perde energia, e
eles utilizam da energia de vocês para refazerem-se.

- Que horror, comentou uma das integrantes,


então estamos à mercê deles.

- Não exatamente, respondeu Mulambo, nós


sempre limpamos os rastros deixados tanto por vocês,
quanto por eles, bem como fazemos o possível para
que cada um dos que estão nesse mundo se expressem
da forma mais livre possível.

Não era possível ficar indiferente perante


aquelas afirmações. Era um assunto importante, afinal,
todos sabiam o quanto o tabu da sexualidade era forte
e presente entre todas as pessoas. Agradeceram muito
a Mulambo pelas explicações e a José pela pergunta:
não fosse ele, nunca teriam tocado no assunto.

Antes de retirar-se, ela ainda deu um conselho:


93
- Descubram quem vocês são, do que gostam e
do que não gostam, para isso experimentem com
responsabilidade, se for escondido, estranho ou causar
desconforto adequem de uma forma que lhes seja
prazeroso sem culpa ou medo, mas vivam! Apenas a
vida plena liberta aqueles que são prisioneiros de quem
não quer viver entre vocês.

E, com mais uma gargalhada, foi-se embora


como veio.

Para José, estava claro como água cristalina o


que havia acontecido. Ele, condicionado pelo proibido,
fora levado a uma relação momentânea e
irresponsável, não existia nada de errado, mas o local e
a precaução devida não estavam de acordo, isso,
associado à culpa que sentia, tinha permitido que ele
se colocasse em uma relação de risco. Nunca fora a
pessoa nem a opção, e sim a situação e o sentimento
envolvido.

É para isso que se aprende, pensou, para não


julgar os outros e nos tornarmos responsáveis pelas
nossas próprias escolhas, e não mais vítimas delas e
das situações.

Lembrou ainda das inúmeras vezes que se vira


olhando disfarçadamente para outros homens, quase
sempre em processo comparativo, nunca com desejo
genuíno, e disse para si mesmo.

- É, José, esse menino precisa parar de se


apalpar por aí e crescer...
94
E nisso já se passaram mais de nove meses
desde que José iniciou seus estudos no centro
universalista, agora mais ciente de seu papel como
Médium no mundo. Ele se acostumara a ouvir o que os
outros estavam falando, seja com ele ou a seu redor, e
a identificar a dor caso alguma das coisas fosse
direcionada a ele como pedido de ajuda. Caso
contrário, apenas ouvir, ser empático e não julgar,
procurando através da história dos outros, encontrar
uma forma de reescrever ele mesmo a sua história.

Ainda não estava pronto para participar dos


trabalhos públicos que já estavam reabertos naquela
casa, mas frequentava tanto estes quanto os estudos.
Sempre que possível, ampliava seu gabarito com
leituras dos mais diversos autores, que
constantemente o enriqueciam com alguma coisa.

Mas havia uma coisa que as aulas não o


ensinaram e a convivência com as atividades do centro
proporcionaram. José finalmente encontrou o lugar
devido do seu trabalho em sua vida.

Antes ele vivia para trabalhar, tornando a


jornada diária penosa e estafante, sempre vista como
uma obrigação a ser cumprida. Aprendera isso de seus
pais, trabalhe para ser um homem de bem, diziam eles.

Mas o centro mudou-lhe naturalmente nesse


aspecto, não mais era o trabalho que preenchia sua
vida. Este agora era o facilitador para que ele pudesse
viver a sua própria vida, não era uma imposição, era
uma oportunidade de conseguir, através dele, fazer
95
algo que lhe era prazeroso e dignificante. José tinha
descoberto naturalmente a diferença entre profissão e
propósito.

A primeira era a tarefa que ele exercia de


forma remunerada para conseguir sobreviver, e que
quanto melhor o fizesse, mais bem pago seria. E a
segunda era uma coisa que dinheiro nenhum no
mundo jamais seria capaz de pagar, que não tinha local
nem mesmo horário para ser exercida.

Seu propósito de vida o mantinha desperto


para a vida, dava prazer e contentamento, tornando-o
esperançoso no futuro, inclusive com relação ao seu
trabalho. Seu ofício, uma vez sem ter que carregar o
peso exclusivo de suas realizações pessoais, também se
tornou muito mais leve e prazeroso de ser exercido.
Quando ele encerrava o expediente, estava livre para
fazer o que descobrira que mais gostava de fazer,
aprender sobre ele mesmo e sobre o mundo à sua
volta.

Esse se tornara seu novo propósito de vida, não


trabalhar para enriquecer, mas trabalhar e enriquecer a
si mesmo, fosse o saldo da conta como tivesse que ser.

E não é que o saldo com isso acabara por


aumentar também!

Falando em mudança de paradigmas, José e


Mariana estão comemorando um mês de namoro com
Marcela, eles formam juntos um belo trisal, que pode
tanto ser visto junto nos pagodinhos de sábado à noite
96
quanto nas reuniões do centro, local que os três
frequentam agora juntos.

José tinha decidido que, se ele realmente


estava disposto a fazer diferente, também merecia
aceitar a diferença em sua vida. Naturalmente, as
coisas se desenrolaram de uma forma que os três,
quando se deram por si, já estavam envolvidos. Dali
para assumirem essa postura foi apenas mais um passo
a ser dado. Não importava o que os outros fossem
pensar, o que valia era o que estavam vivendo, e isso
bastava para ambos.

Chegava de meias palavras, encontros furtivos,


fantasias e fetiches, nada que não fosse real o
agradava, apenas a vida como ela se apresentava e
com quem o aceitasse muito bem, coisa que as
meninas não tiveram problema nenhum em
experienciar. Mariana, embora cheia de suas próprias
cobranças, não as tinha mais em relação ao amor, e
Marcela, essa não devia nada a ninguém, nem admitia
que dissessem a ela como devia ser e agir, era mais
forte que os dois juntos e acabou por dar-lhes força
para assumirem cada vez mais também quem cada um
era.

Em um dos dias que estavam numa sessão


aberta para o público, depois do Trabalho tradicional,
Mulambo veio para limpar a casa, feito isso chamou
José e perguntou.

- E aí, já aprendeu a fechar o saco do pão?

97
José engasgou, a essa altura sabia o que isso
significava, fora ela naquele dia que ele, desnorteado
no meio fio, chorando, ouviu através do sem teto esse
alerta, abraçou a amiga reconhecendo nela sua
grandeza e disse:

- Não sei se entendo com clareza, mas, pelo


que percebi, se eu não resguardar meus sentimentos,
alguém vai entrar e roubar o que é meu.

- Muito bem. Respondeu ela. Assim mesmo que


se diz e que se faz, o que é seu é seu, não interessa a
ninguém, e, se você não cuida, vem alguma barata suja
e aproveita em seu lugar.

- Nós estamos em qualquer lugar, falamos pela


boca de quem precisar, mas cabe a vocês abrirem seus
ouvidos para ouvir. Quanto mais se estuda, mais se tem
subsídios para compreender o que está sendo dito.
Então, não pare nunca de aprender, você nunca sabe
onde vai me encontrar novamente.

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José, com vinte e oito anos de idade, momento
em que Saturno retorna à posição em que estava no
momento do nosso nascimento, tivera a oportunidade
de ver-se conduzido pelos sentimentos e situações da
vida a começar a compreender seu papel no mundo,
como mediador entre os mundos que existiam dentro e
fora dele.

Um mediador que não busca aliar-se a lado


algum, mas encontrar equilíbrio e liberdade em tudo
que faz. Tudo que ele precisou fazer foi ligar os pontos,
aceitar ajuda e tentar, aceitar aprender e não rejeitar o
que acontecia com ele mesmo, porque, mesmo
confuso e sem clareza de pensamentos, sabia que não
poderia continuar como estava. Portanto, mudou.

Carregando consigo o entendimento que seus


sonhos eram a manifestação de seu subconsciente
cheio de medos e culpa, associado e potencializado
pela influência externa de outro irmão em erraticidade,
ele aprendeu que não era feito apenas do que pensava.
E que podia muito mais do que imaginava. Bastava para
isso, às vezes, esquecer um pouco a cabeça, e ouvir
mais o seu próprio coração...

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