Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
TÍTULO ORIGINAL
Denton Little’s Deathdate
PREPARAÇÃO
Marcela de Oliveira
REVISÃO
Rayana Faria
Breno Barreto
ADAPTAÇÃO DE CAPA
Diana Cordeiro
ARTE DE CAPA
Angela Carlino
IMAGEM DE CAPA E MIOLO
Walter B. McKenzie
REVISÃO DE EPUB
Marina Goés
GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca
E-ISBN
978-85-8057-961-1
Edição digital: 2016
1ª edição
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
» » »
»
Sumário
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Mídias sociais
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
Agradecimentos
Vem aí…
Sobre o autor
Leia também
Para mamãe e papai,
que me ensinaram que rir
de coisas sérias não é um problema,
e
para Katie,
que me faz rolar de tanto rir de tudo
o tempo todo
ACHO QUE ESTA não é a minha cama.
Não dá para ter muita certeza, já que estou com uma dor de cabeça
excruciante, mas há algo nessa cama que não me é muito familiar. É macia
demais.
Que decepção. Eu tinha uma ideia muito clara de como o dia do meu
funeral começaria, e envolvia acordar na minha própria cama. Eu bocejaria e
me espreguiçaria de um jeito exagerado, como se fosse um personagem de
revista em quadrinhos, e sentiria o cheirinho do bacon vindo do andar de
baixo. Tem bacon aqui!, gritaria minha madrasta.
Mas em vez disso estou tateando a cabeça para me certificar de que não há
nenhuma faca enfiada nela enquanto escuto a voz de uma mulher que não é
minha madrasta falar sobre algo que não é bacon.
— Nada, por enquanto — afirma a mulher, do corredor. — Sei que é
importante, pode deixar.
Ai. Há algo cutucando minhas costas. Possivelmente meu velho e fiel
companheiro dinossauro, Broncazul. Talvez esta seja minha cama, afinal!
Não. É um coala rosa.
Nunca tive um coala rosa.
— Bom, estou fazendo tudo o que posso — continua ela.
É claro. É a mãe do Paolo. Estou na casa dele.
Devagar, tento me sentar, e, enquanto o cômodo gira lentamente, olho ao
redor. Um pôster da Sociedade Nacional do Sarcasmo chama minha atenção.
COMO SE PRECISÁSSEMOS DO SEU APOIO, está escrito abaixo da logo.
Filho da mãe.
— Nossa! — exclama Paolo, olhando por cima do meu ombro. — Que
moleque insensível.
— É um babaca completo — concorda Taryn. — Exatamente o que eu
disse quando mandei mensagem naquela hora, que ele é um babaca e que
você continua bem vivo.
— Ah, uau, valeu por essa grande demonstração de lealdade. Fico muito
feliz que você tenha informado o Philly de que continuo vivo.
— Isso é velho. Acabei me esquecendo de mudar o nome de volta para
Phil nos contatos. Porque não ligo a mínima para ele!
— Então por que respondeu?
— Ahhhh! Só estou tentando fazer a coisa certa, ok? Meu namorado está
morrendo, e estou tentando fazer a coisa certa.
Lágrimas escorrem pelo rosto da Taryn, e me sinto mal, com raiva e
cansado quando a vejo se levantar do sofá e sair da sala.
— Taryn, espera… — peço, sem muito entusiasmo, ainda que queira
mesmo impedi-la de ir.
Millie está sentada do outro lado do cômodo e presenciou a cena inteira,
me olhando fixamente, como se eu fosse um filme muito interessante.
— O seu pescoço está roxo — observa ela.
Eu me recosto no sofá e fecho os olhos.
— Já morreu? — pergunta Paolo.
ACORDO COM OS gritos do Phil do lado de fora.
Não queria ter adormecido. Dormir durante sua Vigília significa que você
pode morrer no mundo dos dorminhocos, então, por favor, não faça isso! O
problema é que dias de morte são um pouco exaustivos.
Numa hora, você está irritado com sua namorada e seu pai; na seguinte,
suas pálpebras estão pesadas feito sacos de areia. Eu me enrolei em uma
manta — para que meus pais não vissem a pequena insinuação da mancha
ameaçadora fazendo sua primeira aparição pública — e caí relutantemente em
um ciclo estranho de consciência grogue e pequenos períodos de sono.
Em uma das vezes que acordei, fiquei inquieto pensando no aparecimento
surpresa de Brian Flores em meu funeral. Ele não podia ter tentado falar
comigo por telefone antes? Ou por e-mail? Então me liguei que talvez ele
tivesse me mandado um e-mail. Quando o dia da minha morte se aproximou,
me afastei da internet e deixei um aviso de ausência (E aí, e aí, pessoal!
Acabou esse negócio de e-mails para mim! Sim! Pode ter algo a ver com meu
dia de morte, que está se aproximando. Ou vai ver sou só mais uma daquelas
pessoas descoladas que renegam a tecnologia para fazer uma crítica à
sociedade. Não, é a primeira opção mesmo. Se quiserem falar comigo, liguem
para o meu celular! E/ou venham ao funeral na quinta-feira! Com amor,
Denton), porque, sério mesmo, temos que ter prioridades na vida! Sempre que
ouço um daqueles casos raros em que pessoas morreram enquanto checavam
suas caixas de entrada — apesar de saberem que iam morrer naquele dia —,
fico extremamente triste. São seus últimos minutos na Terra, e elas estão
encarando uma telinha cheia de palavras?
Mas, naquele momento, era exatamente isso que senti que deveria fazer.
E realmente havia uma mensagem de um endereço que não reconheci, cujo
assunto dizia Para denton — IMPORTANTE. Fiquei animado, como qualquer
um que recebesse uma mensagem personalizada em letras maiúsculas ficaria.
Mas era só spam me incentivando a usar Viagra para ereções mais gigantes!!!
Não, obrigado, dinossaurofeliz@dinossaurofeliz.com! Minhas ereções já são
perfeitamente gigantes.
Também havia um e-mail de Dave Chu, um amigo meu e do Paolo que se
formou no ano passado e agora está na Universidade de Nova York. Ele se
desculpou por não ter conseguido ir ao funeral. Tinha uma prova que não
podia perder.
Mas nada de Flores. Por outro lado, a caixa de entrada havia um monte de
notificações do meu mural do Facebook, que estava bombando, o que era bem
legal. Eu sei, eu sei, a maioria eram mensagens completamente superficiais
(Vamos sentir saudades!, ou Te adoro, Dent! ou DESCANSE EM PAZ
DENTON!!!) que significam muito pouco, mas elas me deram a impressão de
que as Pessoas Se Importam.
Já estava pronto para desligar o monitor, quando notei — perdido em meio
à mata densa e homogênea de despedidas em quatro palavras — que havia um
e-mail do governo. O assunto dizia Seu dia de morte, e era um texto padrão,
expressando pesar por minha iminente perda (de vida) e agradecendo pelo
tempo que fui um cidadão norte-americano.
Amenidades à parte, o texto passava para uma lista de coisas que Tio Sam
gostaria de garantir que eu resolvesse antes de me ausentar: entreguei
identidade, passaporte, certidões de nascimento e óbito etc. a algum parente,
ou os deixei em lugares de fácil acesso? Dei permissão para doarem meus
órgãos, se fosse essa minha escolha? E depois várias questões ligadas ao meu
testamento e dependentes e quaisquer financiamentos estudantis que
poderiam estar pendentes, questões que presumi que não se aplicavam a mim,
com base na minha incapacidade de entendê-las (meus pais sempre diziam
que era desnecessário fazer um testamento, visto que minha conta bancária
tinha um total de trezentos e doze dólares e oitenta e oito centavos e que meus
pertences — até mesmo minha grande coleção de filmes — não valiam lá
grande coisa. Tentei fazer um apenas para efeitos dramáticos, mas quando vi
estava esquentando muito a cabeça pensando em quem deveria herdar o quê, e
isso me deixou triste). O e-mail estava no nome de uma tal de Karen
Corrigan, secretária do Departamento Norte-Americano de Encerramento de
Vidas (DNAEV), e meu último pensamento antes de adormecer novamente
foi que a despedida escolhida por ela (Minhas melhores estimas e obrigada,
Karen Corrigan) era irritante.
Na próxima vez que minhas pálpebras se abriram — que pode ter sido
minutos, segundos ou horas mais tarde —, Taryn tinha se esgueirado por
baixo do meu braço direito e se acomodado em meu peito. Registrei sua
presença como faço com a da luz do sol, vagamente consciente de uma
sensação agradável e quente, sem pensar demais em qual seria sua fonte. As
pálpebras se fecharam.
E depois: gritos indecifráveis e agressivos vindos da frente da casa.
E agora: estou acordado, meus sonhos evaporaram, e estou confuso.
— O qu…? — pergunta Taryn, se mexendo.
— Ouviu isso?
— Ouvi o quê?
Ela está com aquele olhar de quem está apenas sessenta por cento
acordada.
— Não sei, parecia o Phil gritando.
— Você também ouviu?
— É, é disso que estou falando.
— Ah. É. Ah, não.
Minha madrasta aparece à porta, preocupada. Ela aumenta a intensidade da
luz, que, em algum momento nas últimas horas, tinha sido diminuída.
Veronica e Millie estão atrás dela, na cozinha, e parece que também foram
acordadas pelos sons ininteligíveis vindos lá de fora.
— O que é que foi isso, Denton? — pergunta Raquel.
— Não sei, mãe.
Meu pai, Paolo, Felix e vovô ainda devem estar dormindo.
— Todo mundo acordado aí? — grita Phil, com a voz arrastada. — Ou
melhor: todo mundo VIVO aí?
Em seu estado semialerta, Taryn se inclina para a frente no sofá, com as
mãos na cabeça, e diz:
— Aimeudeus.
— Se você não morreu ainda, sai e vem me encarar! — continua o garoto.
— Que nem homem!
— Desculpa — diz Taryn, tapando a boca.
Phil está realmente lá fora me desafiando para um duelo? Talvez eu ainda
esteja sonhando.
Algo duro, talvez uma pedra, bate em uma das janelas.
— VEM LOGO!
É, não estou sonhando.
— Você sabe quem é? — pergunta minha madrasta.
— Sei, sim. É o Phil, da equipe de cross-country.
— Ah. — Ela se lembra. — Foi dele que você falou no seu discurso, não
foi? O que você chamou de babão?
— Babacão, é.
— E ele foi seu namorado antes do Dent, não foi, Taryn?
— É, foi — admite ela, repousando as mãos no colo. — Meio que foi.
— Ok — diz Raquel, decidida e segura ao cruzar o cômodo em direção à
porta.
— Ei, ei. — Já estou de pé, bloqueando seu caminho. — Aí, não, né?
— Vou dizer para ele ir embora.
— Bom, que ótimo, mas…
— Mas o quê? — replica ela.
— Sei lá, é um pouco, tipo, vergonhoso que a minha mãe tenha que sair e
me defender.
— Denton. Você é a única pessoa nesta casa que com certeza vai morrer
nas próximas horas. É só questão de bom senso. — Eu ia sugerir que nenhum
de nós saísse, mas agora parece que fui desafiado. — Sai da frente, por favor,
meu amor — pede ela. — Vai ser rápido.
Mas minha torneirinha de adrenalina está aberta, e me sinto
consideravelmente feroz.
— Não, mãe, foi mal.
Ela olha para mim com um misto de raiva, indignação e choque por não ter
instantaneamente lhe obedecido.
Ficamos nos encarando, nenhum de nós disposto a ceder.
— ALÔ-ÔÔÔÔUU? — grita Phil. — Morreu ou só ficou surdo?
— Vou lá falar com ele — diz Taryn, se levantando. — É minha culpa
mesmo.
— Ah, é, como se eu fosse deixar você ir sozinha — retruco. — Nós dois
vamos.
— Dent…
— Não discute comigo, Tar.
Minha madrasta, em uma demonstração primorosa de agilidade, passa por
mim e bloqueia a porta. Ela a tranca bem depressa no mesmo instante em que
uma saraivada de pedras atinge a casa.
— Tem mais de onde vieram essas — garante Phil, seguido de resmungos
raivosos, que, sob circunstâncias distintas, teriam me feito rolar de rir.
— Não, não, não — exclama Raquel. — Ninguém vai lá fora, ok? Vamos
pegar o telefone e chamar a polícia.
Eba, era exatamente isso que eu estava querendo fazer desde o começo!
— Valeu. Boa ideia, mãe.
— Não precisa, sra. Little. Ele só está bêbado. — Odeio ouvir Taryn falar
desse jeito, como se o conhecesse muito bem. — Sério, eu posso ir lá, não
tem problema.
— Não. Desculpe, Taryn.
Minha madrasta sorri com simpatia enquanto faz que não lentamente.
— Estou vendo que o sobrenome LITTLE fez de você um bom FILHINHO
DE MAMÃE PEIDÃO.
Estou oficialmente ofendido por esse cara fazer parte — ainda que não
muito — da minha última noite no mundo.
— Foi mal, mãe. Vem, Taryn.
Vou até a porta dos fundos.
— Denton! Não! Não! — grita Raquel enquanto passamos pela cozinha,
pela área de serviço e, enfim, saímos.
— Aonde é que ele vai? — Ouço meu agora acordado pai dizer.
— Você é um covarde, moleque! — grita Phil, do jardim da frente, as
palavras ficando cada vez mais altas enquanto damos a volta na casa. —
Taryn! Você ainda está aí? Manda o seu menininho aqui fora! A menos que
ele tenha MORRIDO!
— Não morri, cara. — Saímos das sombras da casa no instante em que o
sol começa a nascer. Imagino que seja uma bela imagem. — Relaxa aí.
Phil fica visivelmente desconcertado quando me vê saindo de outro lugar
que não a porta da frente. Ele dá alguns passos vacilantes para recuperar o
equilíbrio. Nunca vi um ser humano assim tão bêbado. Provavelmente uma
aproximação bastante fiel de como eu mesmo estava duas noites atrás.
— Taryn, volta para dentro! — ordena ele. — Isso aqui é entre mim e…
Ele aponta sem muita precisão na minha direção.
— Phil, você não devia estar aqui — diz ela com sua voz mais doce.
— ENTRA LOGO! — repete ele, se inclinando para a frente e
desajeitadamente procurando algo na grama.
Enquanto eu e Taryn nos entreolhamos, confusos, ele se levanta, com um
rifle nas mãos.
Sinto um buraco se formar no meu estômago.
Masquediabo.
— É isso aí — exclama Phil, apontando o longo cano do rifle grande e
marrom para mim. — Está vendo por que é melhor entrar, querida?
— Aimeudeus, Phil — diz ela, ofegante e em pânico. — Não, para, não faz
isso.
— Anda.
Os olhos da Taryn estão afundados em pedidos de desculpa mudos
enquanto ela recua.
— Isso, entra, Tar — peço, surpreso por ainda ser capaz de encontrar
palavras.
— Cala a boca, cara! — grita Phil. — Ou eu atiro!
— Opa! — Minhas mãos involuntariamente se levantam. — Ok, ok,
relaxa, cara.
— Ah, olha o sr. Sangue Frio aí. “Relaxa, cara.” — O rosto do Phil está
atordoado e suado, com um ar ligeiramente insano. — “Oi, meu nome é
Denton, e sou tão tranquilão, cara.”
A porta da frente se abre, e Taryn desliza para dentro.
— Não quero ver ninguém mais saindo daí! — adverte ele.
Somos só nós dois agora. Não consigo acreditar que vai ser assim.
— Eu poderia matar você bem agora, sabia? — provoca ele,
descontrolado. — A sua morte pode ser causada por mim.
Tenho a sensação de que estamos brincando de faz de conta, reencenando
uma passagem que já vimos em vários filmes. Estamos parados na frente de
casa, em uma manhã de começo de verão, eu com as mãos levantadas, ele
com o rifle apontado para mim, tremendo constrangedoramente enquanto
tenta manter a arma equilibrada. É a primeira que vejo na vida. Uma brisa
súbita roça minhas cabeça e nuca. Ouço a respiração do Phil.
Tomo uma decisão de último segundo e resolvo me desculpar por tê-lo
chamado de babaca durante meu discurso.
— Olha, Phil, só quero…
— Vocês transam?
A pergunta me pega de surpresa, e, num primeiro momento, acho que não
ouvi bem.
— Vocês quem?
— Você e a Taryn transam? Fazem sexo? Têm relações sexuais?
Quer dizer então que isto aqui não tem absolutamente nada a ver com a
humilhação diante dos colegas de turma. Tem a ver com Taryn.
Bom. Que resposta vai me matar menos?
— Não, cara, não.
— Transaram, sim! Sei que transaram!
— Olha, Phil, vou morrer nas próximas dezoito horas de qualquer jeito,
então…
— A questão não é essa!
— Phil — chama minha madrasta da varanda.
— Eu disse que não era para ninguém sair!
— Chamei a polícia, eles vão chegar a qualquer momento — continua ela,
a voz falhando.
Estou olhando bem no fundo dos olhos do Phil e acho que ele está
chorando. Não dá para ter certeza; podem estar apenas vermelhos.
— Não acredito que ela transou com você. Comigo ela só foi fazer sexo
depois de três anos. E com vocês é tipo seis meses e pronto, aberta para
negócio!
— Você está sendo injusto. A gente tinha um prazo bem curto, tipo corda
no pescoço mesmo. Digamos assim.
— Dane-se — resmunga ele.
— Por favor, não machuca o Dent, Phil.
Taryn saiu, e Raquel está atrás dela, ainda à porta.
Philip volta a apontar a arma.
— Por que não? Não acredito que você transou com ele!
— A gente terminou! Eu faço o que quiser. Olha, o Denton vai morrer
mesmo. Qual é o sentido de você ser preso por isso?
A maneira como ela diz isso quase me faz acreditar que está do lado dele,
mas talvez essa seja a intenção. Enquanto Phil assimila o que ela diz, alguns
eventos se desenrolam ao mesmo tempo:
Vejo um carro de polícia entrando no quarteirão atrás do Phil, fora do
campo de visão dele.
Paolo aparece, também por trás do Phil, saindo sorrateiramente da lateral
da casa, segurando uma frigideira.
Ambas as notícias são potencialmente boas, mas a situação é um tanto
instável e delicada, e se não agirmos corretamente tudo pode implodir: aquela
cena do filme em que, no instante em que a tensão começa a se dissipar,
algum idiota que não estava prestando atenção tenta ajudar e piora tudo.
Não que Paolo seja um idiota propriamente dito, mas vê-lo com uma
frigideira na mão me faz lembrar nossa breve carreira como dupla de tênis na
equipe do colégio no primeiro ano. Terminou tragicamente durante uma
partida contra Haventown South, quando Paolo perdeu o controle da raquete,
fazendo-a voar por cima da rede direto para a testa de um de nossos
adversários (dezessete pontos).
Ele, cada vez mais perto, levanta a panela e dá de ombros para mim, como
se perguntando: é para acertá-lo com isso?
Ergo a mão discretamente: ainda não.
A sirene da polícia não está ligada, mas dá para ouvir o barulho de um
automóvel se aproximando. Phil está completamente absorto em sua conversa
com Taryn e não parece notar o que está acontecendo ao redor.
— A gente tem uma coisa especial! — diz ele. — A questão é essa.
O carro para na calçada.
— Eu sei, Phil, a gente tinha mesmo. Mas não estamos mais juntos.
Ele vira levemente a cabeça para Taryn, tirando os olhos de mim pela
primeira vez. Paolo está a cinco ou seis passos dali. Eu me preparo para fazer
sinal para ele ou para partir para cima do Phil.
— Eu sei — responde o garoto —, mas… Que porcaria é essa no seu
peito?
— O quê? — pergunta Taryn, a voz ficando esganiçada.
Eu não estava esperando aquilo e não consigo deixar de olhar para ela,
iluminada por um raio de sol enquanto observa o pedaço de pele descoberto
ao redor das clavículas. Está roxo.
— Aimeudeus, aimeudeus — exclama Taryn, correndo outra vez para
dentro de casa.
Encarar desafios durante um momento de crise nunca foi seu forte.
— Mas que droga era aquela? — indaga Phil, rindo um pouco ao se virar
de novo para mim.
Ele afrouxa a mão que mantinha o rifle apontado. Dou umas risadas
também. Talvez consiga sobreviver a isto.
Mas então ele vira o rosto de súbito, como se tivesse percebido um corpo
estranho em sua visão periférica. De repente, volta à pose de atirador, a mira
do rifle apontada para Paolo.
— Epa, epa! — grita Phil. — Que merda é essa que você está fazendo?
Paolo fica imóvel, a poucos centímetros de mim e do Phil, a frigideira
abaixada.
— Eu… Achei que podia ser… Uma boa ideia preparar um omelete.
— Aham, até parece. Que merda é essa, cara? Vai lá ficar do lado do seu
namoradinho. — Ele gesticula com a arma, violenta e cinematicamente,
indicando o ponto onde quer que Paolo fique. — Anda!
Olho para a viatura, pensando que a qualquer segundo um policial sairá de
lá para salvar o dia. Não sei por que está demorando tanto.
Paolo vem se arrastando para perto de mim, e agora formamos uma dupla
patética. Com uma arma apontada em nossa direção. Embora eu até me sinta
um pouco melhor tendo companhia.
— Então esse aí acha que pode traçar a minha namorada porque está
morrendo. E esse outro bundão aqui acha que pode me acertar com uma
frigideira. Eu devia era dar um tiro nos dois.
— É, a gente está sabendo, acho que você deixou isso bem claro — falo.
— E recebi a sua ameaça de morte ontem, então valeu por isso também.
— Que ameaça de morte?
— Ah, cara, não acredito — diz Paolo, baixinho. — Fui eu que mandei
aquilo.
— Foi você?! — exclamo. — Como assim? Por quê?
— Achei que fosse ficar óbvio que era uma piada! Escrevi com a fonte
mais idiota que tinha!
— Não, aquilo me deixou totalmente surtado. O dia de morte de uma
pessoa é um momento de muita vulnerabilidade, sabia?
— Ah, cara, não estava entendendo por que você não tinha comentado
nada ainda. Achei que o “topar cuidado” ia deixar muito clar…
— CALA A BOCA, MERDA! — grita Phil.
Calamos.
— Foi mal — falo, ainda me sentindo cheio de coragem. — É só que eu
podia estar gastando minhas últimas horas de vida de um jeito bem melhor do
que esse. Sério mesmo.
— Vai com calma, Dent — adverte Paolo. — Não são as últimas horas de
todo mundo.
Então me dou conta de que, com a morte do Paolo para acontecer daqui a
um mês, estarmos os dois na linha de execução não é garantia de nada, no fim
das contas. Estamos ferrados. Vou morrer na hora, enquanto Paolo vai segurar
as pontas até finalmente bater as botas um mês depois.
O que aquele policial está esperando?
— Ah, tem coisa melhor para fazer, né? Tipo traçar a minha namorada?
Você está certo, acabou o tempo. — Phil destrava a arma e mira uma última
vez. — Denton Little, você é um homem morto.
Ele atira.
TUDO AQUILO QUE dizem sobre sua vida passar em flashes diante de seus
olhos durante seus últimos momentos é um clichê tão grande que eu faria de
tudo para não ter que citá-lo.
Mas minha vida passou, sim, diante de meus olhos. No segundo que levou
entre entender que Phil ia mesmo puxar o gatilho e o ato em si, os flashes
piscavam por todos os lados. Não eram acontecimentos, apenas vislumbres
rápidos e vagos.
FLASH: Minha madrasta na cozinha.
FLASH: Meu pai lendo em sua cadeira predileta.
FLASH: Taryn segurando meu braço e rindo.
FLASH: Paolo na bicicleta.
FLASH: Veronica se ajoelhando diante de mim na floresta.
FLASH: Felix, com uniforme e equipamento de futebol americano,
irrompendo para fora da casa.
Hum. Aquele flash final me pareceu deslocado. Não consegui pensar em
uma única vez em que meu irmão e eu tenhamos jogado futebol juntos.
Talvez seja porque não foi um flash.
Felix saiu de casa como um raio, usando capacete, proteções para ombros e
um daqueles materiais de proteção de esgrima, e, enquanto eu o observava
derrubar Phil no exato instante em que o rifle disparava, levantando o cano
para o céu, me dei conta de que não era uma lembrança. Aquilo estava mesmo
acontecendo. Aqui e agora. Merda.
Meu corpo se retesa. Meus dedos dos pés se dobram.
A bala segue uma nova trajetória, para cima e para longe de mim e de
Paolo, e se perde inofensivamente no ar.
Ainda estou vivo.
Graças a Felix.
QUÁÁÁÁÁ! Um guincho agudo explode de algum lugar entre as árvores
atrás de nós.
Acho que não se perdeu inteiramente.
O quá da criatura é seguido pelos sons de uma zilhão de pássaros se
dispersando no céu. Felix está em cima do Phil, imobilizando-o no gramado e
tentando tirar o rifle das mãos dele. Taryn, minha madrasta, meu pai e todos
os demais estão correndo em nossa direção, gritando meu nome. Fico
surpreso ao ver como estou feliz por não estar morto. Achei que estivesse
preparado.
— Philip — chama uma voz familiar (familiar até demais para o meu
gosto), à minha esquerda.
Sinto o buraco no estômago se abrir novamente e, quando me viro, minha
hipótese se confirma: é mesmo meu amiguinho da noite passada. O avô do
Phil. Também conhecido como VovôCopDoMal. É claro. Ele se arrasta para
fora da viatura em nossa direção, provavelmente concluindo que aquele era o
momento adequado para intervir.
— Estava torcendo para você não atirar, filho. — Ele está segurando os
óculos de sol, limpando as lentes na camiseta azul de seu uniforme. — Estava
lhe dando o benefício da dúvida, porque é sangue do meu sangue, mas…
Phil, ainda imobilizado por Felix, começa a choramingar:
— Ah, não, não conta nada para o papai, vô, por favor — pede ele,
balbuciando e com os olhos marejados.
— É policial Corrigan, Phil-Phil. Estou trabalhando.
Prefiro ficar com o termo VovôCopDoMal, muito obrigado. Talvez apenas
CopDoMal, para abreviar.
— Achei que não estivesse carregada, juro! — choraminga o neto. — Só
queria dar um susto nele! Era só para dar um susto…
— É, eu entendo, mas só que estava carregada, filho, e acho que seu pai
não vai gostar nadinha de saber que pegou a arma dele para assustar as
pessoas.
— Eu sei, eu sei, me desculpa, por favor, não me leva para a cadeia.
— Tem que levar para a cadeia, sim, seu guarda! — grita minha madrasta,
não muito distante de onde estou no jardim.
— Certo, certo. Pode deixar que eu cuido disso, minha senhora. Não tem
por que se exaltar.
— Acho que tem, sim, seu guarda, considerando que chamei a polícia há
quase meia hora, e o senhor ficou sentado no carro enquanto o seu neto
apontava uma arma para o meu filho e o amigo dele. O senhor é louco? A
gente podia fazer o senhor ser demitido por negligência!
— Eu tinha tudo sob controle, minha senhora.
— Tinha mesmo? Pois para mim pareceu que a única coisa sob controle
era o seu nepotismo. Se meu filho mais velho não estivesse aqui para intervir,
o irmão dele estaria morto agora! Era isso que o senhor queria?
— Com todo o respeito, senhora, hoje não é o dia de morte do rapaz, de
qualquer forma?
Raquel fica temporariamente sem resposta. Também fico surpreso. O avô
do Phil ia mesmo me deixar morrer daquela maneira?
— Bom… O quê? — balbucia ela. — Como o senhor sabe disso?
CopDoMal parece ter sido pego de surpresa, mas logo se recompõe.
— Ah, porque encontrei seu filho mais cedo hoje. Ou melhor, ontem. Não
foi, Dinton?
Tem algo de errado nessa história.
— Não deveria fazer diferença se hoje é ou não o dia de morte dele; o seu
trabalho é proteger as pessoas. Agora prenda este garoto. Não me interessa de
quem ele é neto.
— Por favor, não! — geme Phil.
— Está bem, está bem, não precisa perder a sua dignidade desse jeito,
filho. — CopDoMal se dirige a Felix. — Meu jovem, obrigado pela ajuda.
Pode sair de cima do Philip, se não se importa.
Meu irmão se levanta, todo atrapalhado, ainda portando a estranha
combinação de equipamentos esportivos. Percebo que também não confia no
avô do Phil. Meu amor por Felix nunca foi tão grande.
CopDoMal se abaixa com dificuldade e pega o rifle.
— A prova — explica ele, embora sequer tenha se incomodado em colocar
uma luva antes. — Agora, levanta daí também, Phil. — O garoto faz uma
espécie de flexão de braço, escorrega no orvalho, recupera o equilíbrio e se
levanta. — Desculpe por qualquer inconveniente que o menino tenha causado
— diz o guarda ao grupo de pessoas reunido no gramado, abraçando o neto
como se estivesse em um piquenique de família —, mas podem ficar
tranquilos: a questão será tratada com a maior seriedade.
— Você está se referindo a uma tentativa de assassinato como um mero
inconveniente? — pergunta minha madrasta.
— Minha senhora, não se preocupe. Não vamos cuidar disso de forma
irresponsável, e o menino será levado para a prisão.
Phil diz um “ah, não” quase inaudível misturado aos choramingos
confusos.
VovôCopDoMal aperta o ombro do neto, o que parece menos uma
repreensão severa e mais um vamos lá, coopera comigo. Phil se cala.
— Philip, por que você não pede desculpa para o Dinton?
Ele olha para baixo por alguns segundos e funga.
— Foi mal mesmo, cara. Achei que a arma não estivesse carregada.
Ele não faz contato visual, mas parece sincero.
— Valeu — respondo, quase contra minha vontade.
Queria ter ficado em silêncio, dado uma de bad boy, mas o garoto parece
tão patético.
— Taryn, por favor, não me odeie — pede ele, e fico surpreso ao ver que
ela tinha reaparecido na varanda, agora usando um dos lenços de seda chiques
da Raquel, provavelmente para cobrir a mancha roxa.
Ela olha para o ex-namorado com um misto bem calibrado de raiva,
decepção e pena estampada no rosto.
— Certo, certo, agora vamos, Philip — diz CopDoMal enquanto o guia até
o CopMóvelDoMal. — Não se preocupe, não, amigo. Essas briguinhas nunca
duram muito tempo. Ela vai voltar atrás.
O policial joga a arma na mala e abre a porta do carona. Ele nem sequer
tem a decência de colocar meu agressor no banco de trás. Enquanto entra, Phil
olha para mim, e, por um momento, acho que vejo um lampejo de uma
expressão arrogante do tipo vou me safar dessa, mas ela é rapidamente
substituída por sua versão garotinho arrependido.
Ficamos todos quietos enquanto assistimos a CopDoMal entrar no carro,
virar a chave na ignição e sair, buzinando uma vez ao passar. Estou falando
sério.
— Que caras maneiros — diz Paolo, quebrando o silêncio.
Eu me viro para Felix. Ele não é muito de abraçar, mas mesmo assim o
abraço, esmagando todo aquele equipamento esportivo aleatório entre nós.
— Obrigado.
— Estou aqui para isso — diz ele no meu ouvido, e, para minha grande
surpresa, percebo que está chorando.
— Que bom que você estava mesmo — respondo, um pouco chocado por
ele se importar tanto assim comigo.
— Eu realmente não achei que ele fosse puxar o gatilho…
— Quero entrar aí também — pede Paolo, enfiando-se no nosso abraço.
— Foi mal ter arrastado você para o meio daquilo, cara — falo. — Foi
horrível.
— Está brincando? Acabei de riscar quatro itens da minha lista de coisas
para fazer antes de morrer.
O restante da cavalaria chega e se mete no meio, guiada, claro, pela
Mamãe Urso, que me abraça.
— Meu filhinho corajoso e idiota.
— Eu sei — falo, com a boca abafada pelo ombro dela.
Taryn se desculpa sem parar.
— Me desculpa Dent por ter corrido sou a pior pessoa do mundo estava
tão desesperada porque era culpa minha ele ter vindo aqui foi tudo culpa
minha e aí pensei que ele ia atirar em você mas juro que não corri lá para
dentro por causa da mancha quer dizer teve mais ou menos a ver com isso
mas era mais porque não ia conseguir ficar e ver o Phil atirar em você não
tinha como então corri para dentro foi horrível da minha parte e me desculpa
mesmo…
— Tudo bem, Tar. Tudo bem.
— Não vou à escola hoje — diz ela. — Meus pais disseram que não tem
problema
— Ah, entendi. — Tinha esquecido que a escola era uma realidade que
continuaria fazendo parte da vida das pessoas. — Valeu.
— Me dá um beijo — pede ela.
Não estou com vontade. Mas beijo mesmo assim.
Fico aliviado ao ouvir uma comoção atrás de mim, o que me dá uma boa
desculpa para parar.
— Rapidinho, só quero dar uma olhada no que está acontecendo —
explico, e ela parece indignada, como se não acreditasse totalmente que tinha
sido por aquele motivo que eu me afastara.
Um pequeno grupo está aglomerado perto da árvore, olhando para alguma
coisa e cochichando.
— Acho que consigo dar conta disso. Acho mesmo — diz Millie, sentada
de pernas cruzadas na grama.
— Dar conta do quê?
— Ah — exclama ela, sobressaltada por minha aparição súbita, com uma
expressão de quem não tem certeza se deveria ou não me resguardar da
informação. — Bom… O pássaro.
Caído na grama, está um azulão ensanguentado, os olhos escuros
esbugalhados e virados para o céu, encarando o vazio.
— Phil — digo, lembrando-me do guincho alto após o disparo. — Ah,
cara.
O bico da ave abre e fecha devagar, como se estivesse tentando nos dizer
algo muito importante, mas o som não sai. Seu corpo inteiro treme.
— Ah, tadinho do passarinho — exclama Taryn, parando do meu lado e se
enroscando no meu braço.
— Alguém tem uma caneta? Ou uma chave? — pergunta Millie, olhando
para nós. — Queria tentar tirar a bala.
Levo a mão ao bolso para pegar as chaves do carro, não muito certo de que
vão ajudar em alguma coisa.
— Hã… Acho que é meio tarde demais — observa Taryn.
Os movimentos da asa e do bico do azulão desaceleram até se tornarem
imperceptíveis, a vida evaporando diante dos nossos olhos.
E param completamente.
Os olhos dele permanecem abertos, e fico tentado a fechar suas pálpebras
para preservar sua dignidade de pássaro.
— Tadinho — repete Taryn.
Olhar para o corpo morto da pequena criatura que alguns instantes atrás
estava viva é estarrecedor. O pior truque de mágica do mundo.
Deve ter algo a ver com o tamanho. Já vi insetos morrerem e nunca achei
nada de mais. Mas quando acontece com um ser do tamanho de um pássaro
ou maior, é bem bizarro.
E em tamanho de gente? Cara, nem consigo imaginar.
Bom.
Não é totalmente verdade.
Tenho uma lembrança. Que eu e meu cérebro fizemos de tudo para enterrar
e esconder bem lá no fundo.
Mas ela ressurge. Vovó Mima em sua Vigília.
Ela está no sofá, conversando. De repente, leva a mão ao peito, sem fôlego.
E os olhos. Vulneráveis, suplicantes, desesperados. Encurralados.
Um sentimento caótico, de pânico, recai sobre mim enquanto meu cérebro
me lembra em letras garrafais, em negrito e itálico:
VOCÊ É DO TAMANHO DE GENTE. É ASSIM QUE VAI ACONTECER
COM VOCÊ. IGUALZINHO A MIMA.
— Ei, ei, tudo bem aí? — indaga Felix no meu ouvido quando me agacho,
hiperventilando.
Consigo ficar na mira de uma arma de fogo durante quinze minutos sem
qualquer problema, mas é só me mostrar um azulão morto que perco a cabeça.
— Tudo — tento dizer, mas acho que soa mais como um grunhido.
Não sei se estou bem. Pode ser que eu não esteja nada bem.
— Dent, Dent, olhe para mim — diz meu irmão.
Meu pai e Raquel estão ao lado dele, e parece que agora todos se
aglomeraram em volta de mim. Não queremos perder o grande
acontecimento! Pode ser AGORA!
— Epa, o que é isso no pescoço dele? — pergunta minha madrasta.
Fico tonto.
Nauseado.
Como se estivesse morrendo.
— Acho que… Pode ser… Agora… — mal consigo dizer.
— Não, acho que é só um ataque de pânico — responde Felix, com os
olhos castanhos estreitos e cheios de medo. — Vamos voltar para dentro de
casa.
Todos os folículos de grama se mesclam em uma massa verde, como uma
pintura a dedo feita por uma criança.
Pontinhos brancos ofuscantes surgem na periferia do meu campo de visão.
— Não sei, não sei, ele viu aquele pássaro morrendo e começou a respirar
pesado assim — ouço Taryn dizer a alguém.
Desisti de tentar controlar o oceano furioso em que se transformou meu
sistema respiratório. Em vez disso, tento me concentrar em tudo que amo e
por que sou grato na vida:
Amo a grama verde.
…
…
Amo
…
…
…
…
Pensar está difícil.
…
…
…
E tudo escurece.
O BIPE É estável, confiável, quase reconfortante.
Há uma máquina ao lado da cama.
Bip. Bip. Bip.
O quarto é totalmente branco.
Há um desenho de um pássaro na parede.
Olho para o meu braço, esperando encontrar o tubinho com soro, algum
tipo de ligação à máquina que apita. Não há nada.
— Olá? — chamo.
Alguém pigarreia no canto do cômodo.
Mick, meu terapeuta do fim, esteve ali — acho — aquele tempo todo.
Como sempre, está de gravata de bolinhas.
— O que está acontecendo?
Da cadeira em que está sentado, ele pisca e me dá um meio-sorriso.
Fico desconfortável.
Saio de debaixo das cobertas e vou até o corredor. Está estranhamente
deserto. Apo, o sapo — meu velho amigo e de Millie também — salta por ali.
Viro no corredor e me vejo em uma pizzaria.
— Vão pro motel, vocês dois — diz Paolo atrás de mim.
Giro. Ele está sentado a uma mesa com Veronica, Taryn e Phil. Há uma
fatia de pizza úmida no centro.
Phil está com um braço envolvendo Taryn, o rosto enterrado em seu
pescoço. Ela ri.
— Vê, você não faz esse tipo de coisa, não é? — indaga Paolo.
— O quê? — pergunta ela. — Se eu fico me agarrando em público com o
gostoso do meu namorado da faculdade? Às vezes. A gente faz isso em
qualquer lugar.
— Estou bem aqui, gente — digo para eles.
Todos viram para mim e me encaram, sem expressão.
— Quem é você? — indaga Paolo.
— EI! — grita uma mulher gorda atrás do balcão. — VOCÊ. — Ela aponta
para mim.
— Eu?
— Telefone.
Ela estende o fone. Vou até ela, pisando no azulejo frio.
— Alô?
— Você desperdiçou.
É uma voz baixa que não reconheço.
— O quê? — pergunto.
— Você desperdiçou a sua vida.
Ouço uma tecla sendo apertada.
— O que foi que disseram? — pergunta Veronica, surgindo por trás de
mim, com o rosto perto do meu.
— Era para você estar morto — diz Phil, ao lado da Veronica.
— Não morri ainda?
— Não.
— Sabe do que você precisa? — indaga Veronica, começando a gargalhar.
— De um corte nesse seu cabelo.
Ela pega uma tesoura prateada reluzente.
— Isso aí! — grita Phil. — Corta! Corta! — Todos os clientes do
restaurante começam a gritar junto com ele. — Corta! Corta!
Não quero um corte novo.
Veronica passa a mão em meu cabelo, fazendo os dedos roçarem de leve
meu couro cabeludo.
— É assim que se corta um cabelo — cantarola ela enquanto começa a
movimentar as lâminas, o corpo muito perto do meu.
— Até que é bom — falo.
Sorrio para ela.
Ela sorri para mim.
— Não por muito tempo — declara ela.
Verônica agarra um tufo de cabelo e puxa.
Grito.
ABRO OS OLHOS com um arquejo. A mãe do Paolo está olhando para mim.
— Tudo bem, shhh. Foi só um sonho.
Pisco e olho ao redor, tentando me localizar. Estou na minha cama.
Cynthia está sentada na cadeira da escrivaninha, com bolsa e câmera a seus
pés.
Minha madrasta irrompe pela porta.
— Aimeudeus, obrigada, obrigada, você está vivo! Ainda está vivo!
Meu pai, Felix, Taryn, Millie, Paolo e Veronica vêm logo atrás. Os braços
de Raquel me envolvem com força mais uma vez. Se ganhasse cinco centavos
por cada adeus/reunião chorosa que tivemos nas últimas vinte e quatro horas,
bom… Teria uns quinze ou vinte centavos. Mas parece que só fazemos isso
ultimamente.
— Fico horas aqui e nada, mas saio três minutos para ir ao banheiro, e é
claro que você acorda — reclama minha madrasta.
Ainda estou tentando sair do estado grogue e confuso.
— Horas? Que horas são?
Raquel agita a manga para olhar o relógio.
— Duas e quarenta e sete.
Levo quatro segundos para entender o significado daqueles números.
— Espera, duas e quarenta e sete da tarde?
— É. Você dormiu esse tempo todo. Pelo menos umas oito horas — diz
ela. — Como está se sentindo?
— Ah, cara, acho que bem… Tive uns sonhos estranhos. Achei que
estivesse morto.
— Eu sei, meu amor, eu sei. — E me dá outro abraço apertado. — Ainda
não, ainda não.
— Está tudo certo com você, rapaz — declara meu pai, não sendo de
grande ajuda.
— Como é que você não falou nada sobre aquela mancha roxa para a
gente? — pergunta minha madrasta, inclinando-se para me encarar nos olhos.
— Pode ser uma coisa muito séria. Temos que saber dessas coisas, sempre.
— Não queria preocupar vocês.
— Está muito tarde para isso, querido.
— Bom, não dói nem nada. E não está crescendo rápido… — Olho para
minhas mãos. Estão roxas. Com pontinhos vermelhos. — Ah, não. —
Levanto as mangas depressa. Os dois braços estão roxos. — Quando isso
aconteceu?
— Enquanto você dormia — responde Taryn, as primeiras palavras que diz
desde que acordei.
— Estrelando: Sandra Bullock — falo.
Mesmo em um momento de tensão, não consigo evitar.
— E Bill Pullman — complementa ela.
É um joguinho que a obrigo a jogar comigo e do qual ela não gosta muito,
mas hoje está disposta a me agradar.
— Maneiro, achei que você não soubesse o nome dele. Oi, Tar.
Ela sorri.
— E também o Peter Gallagher — acrescenta Millicent. — Meu ator
favorito.
— Hum. Certo — falo. — É, ele também.
— O seu rosto também está roxo — diz Millie.
— Ah, sério mesmo? — Esfrego a bochecha, como se pudesse sentir a cor.
— Meu rosto?
Todos no quarto assentem.
Suspiro.
— Maravilha.
— Então — diz Raquel. — Vamos sair uns minutinhos para você se ajeitar,
e depois o seu pai e eu vamos levá-lo ao hospital.
Não.
— A gente queria levar você logo depois do desmaio, mas o Felix disse
que parecia um ataque de pânico e que o melhor a fazer seria deixar você
dormir.
— E continuo achando que o hospital é desnecessário — pondera Felix. —
Ninguém quer passar as últimas horas de vida enclausurado.
— Felix — argumenta Raquel —, ele está roxo, pelo amor de Deus! E a
Taryn também pegou essa coisa. Ora, por favor! Temos que ser responsáveis.
— A médica falou que devia ser só um vírus, coisa de um dia — diz Taryn
baixinho.
— É — concordo —, a Taryn foi à emergência do hospital ontem, mãe.
— Parece que, seja lá qual for esse vírus, não tem nada de perigoso se não
tiver pontinhos vermelhos — diz Felix. — Tipo, nesses casos, acho que pode
ser uma coisa latente. Benigna.
— De repente você virou médico? — ironiza Raquel.
— Não, não — responde ele, dando de ombros e balançando a cabeça. —
Mas sei usar a internet. Estava pesquisando como os vírus costumam
funcionar. É só uma teoria.
— Maravilha de teoria, mas acontece que o Denton tem os tais pontinhos
vermelhos. E aí? Vai deixar o seu irmão sem assistência?
— Mãe — falo. — Entendo totalmente você querer me levar ao hospital,
mas, sendo bem sincero, já desperdicei muitas horas do meu último dia
dormindo.
Desperdicei.
A palavra é um tapa na cara, um banho de água fria.
“Você desperdiçou”, disse a voz do meu sonho ao telefone.
De súbito, compreendo.
Não foi apenas dormindo que desperdicei aquelas horas.
Recebi um bilhete dourado aos cinco anos de idade, quando fiquei sabendo
de minha morte prematura, e desde então venho apenas tentando “ter uma
vida normal”.
Se isso não pode ser declarado desperdício, não sei mais o que pode.
— Denton, você está me escutando? DENTON! — grita minha madrasta.
— Nossa! Estou, estou, tudo bem. Foi mal, dei uma viajada aqui.
— Não se desculpe, por favor, não se desculpe.
Eu devia ter morrido hoje de manhã — assassinado por Phil em frente à
minha casa —, mas não morri.
Foi um presente que me deram.
Talvez só me reste uma hora, talvez seis, mas, seja lá quanto tempo tiver,
não posso jogá-lo fora tentando fazer o que é certo, me preocupando com o
que os outros poderão pensar.
— Ok, tudo bem, não tem problema, eu vou — digo a Raquel.
De jeito nenhum vou ao hospital.
Tenho que encontrar Brian Flores.
Não tenho certeza de como, mas vou encontrá-lo.
Estou mais desperto agora e, quando olho para a mãe do Paolo, penso na
maneira como estava me fitando quando acordei, só nós dois sozinhos no
quarto. Meio bizarro. Eu me reviro de leve na cama, e minha mão encontra
Broncazul, amarfanhado entre as cobertas. Sou lembrado de uma questão
ainda maior.
Mereço respostas.
— Cynthia — chamo, com um tom forçado demais para dar o ar casual
que eu queria —, posso perguntar uma coisa?
Queria que ela se mostrasse nervosa, mas a mulher continua tão doce e
serena como sempre, talvez até um pouco lisonjeada por ter sido escolhida
para participar deste breve interrogatório.
— Claro.
— Bom — começo, inserindo uma pausa dramática saudável —, por que
você tem um monte de fotos minhas de quando eu era bebê junto com meu
pai naquela sua gaveta trancada do escritório?
A expressão da mãe do Paolo não se altera enquanto ela assimila a
pergunta. Uma rápida olhada pelo cômodo, no entanto, me mostra que a de
todos os demais se alterou, o interesse coletivo foi devidamente despertado.
Eu me sinto um pouco mal por ter colocado a mãe do meu amigo contra a
parede daquela maneira, mas enfim. Estou cansado de me sentir mal.
Ela olha para baixo e suspira.
— É, bem que achei que você podia ter encontrado aquilo quando entrou
no escritório ontem.
— Pois é.
— Ai, sei que deve ter sido bem estranho para você. Isso é um pouco…
Vergonhoso.
— Cynthia… — diz minha madrasta. — O que significa isso?
A mulher inspira fundo.
— Bom, todos sabemos que o pai da Veronica e do Paolo me deixou há
muito tempo, bem antes de conhecer vocês. E ser mãe solteira é um pouco
solitário às vezes… Ah, isso parece tão idiota… Mas quando conheci o Lyle,
eu…
— Ah — exclama Raquel.
— Tive uma paixonite de nada por ele, só isso.
Cynthia abaixa a cabeça e cobre o rosto.
Ficamos em silêncio enquanto processamos o que ela acabou de dizer.
— Espera, pelo meu pai?
Ela assente.
Meu pai está confuso e corado.
— Ah, vocês devem estar me achando patética — diz a mãe do Paolo.
— Mais ou menos isso aí mesmo — concorda Paolo.
— Só durou alguns aninhos…
— Anos? — repete minha madrasta.
— Mas aí acabei deixando aquelas fotos na gaveta. Como uma lembrança.
Do… que um dia talvez pudesse ter com alguém. Você tem tanta sorte,
Raquel.
Sorte por estar com meu pai? Ela já tentou conversar com ele?
— Bom… — diz minha madrasta, extremamente desconfortável. —
Obrigada. Mas, Cynthia… Você só foi conhecer o Denton quando os meninos
entraram para o jardim de infância.
Uma sementinha aflora na minha mente.
— É, sim, claro — diz a mãe do Paolo. — Então, aquelas fotos de bebê…
— Ah, não — exclama Paolo.
— Denton, você lembra aquele trabalho de escola que você e o Paolo
fizeram juntos, aquele das fotos com a família?
A mãe do Paolo teve uma paixonite pelo meu pai.
— Aham — respondo, ainda atordoado com a revelação.
— Bom, quando vocês estavam lá em casa, eu… fiz cópias de algumas das
fotos em que o Lyle também aparecia. — Ela parece confusa. — Não me
orgulho nem um pouco disso, não sei o que eu estava pensando. Por favor, me
perdoe, Raquel. Você também, Lyle.
— Com licença — pede Veronica, passando pelas pessoas e saindo do
quarto.
Se minha mãe fosse uma doida obcecada, eu também ficaria constrangido.
— Veronica, espera — chama Cynthia.
Parece a mulher mais solitária do mundo.
Mas espera só um segundo aí: aquelas fotos não eram apenas do meu pai.
Eram de mim também. Na verdade, a primeira fotografia que vi era apenas de
mim.
Sem falar que a mãe do Paolo com frequência tira fotos minhas — com ou
sem meu pai — desde que nos conhecemos. Eu me lembro, inclusive, de um
jogo de futebol no terceiro ou quarto ano: estava esperando na defesa,
sonhando acordado, quando notei Cynthia e sua câmera atrás do campo.
Achei estranho, porque Paolo nem sequer estava jogando. Estava prestes a dar
um tchauzinho para ela quando a bola passou zunindo por mim, e o treinador
gritou “acorda, Little!”; voltei a fazer minha pose de quem estava fingindo
jogar na defesa; quando olhei de novo, Cynthia já tinha ido embora.
A mãe do Paolo teve uma paixonite pelo meu pai. Tira fotos minhas desde
que eu era criança. Não sei praticamente nada a respeito da minha mãe
biológica, cujo nome pode ou não ser Cheryl.
Aimeudeus. E se… E se a mãe do Paolo for a minha mãe?
Eu me levanto.
— Eu, hã, tenho que ir ao banheiro — explico.
— Desculpe de verdade — diz Cynthia.
— Você está chateando o menino — interrompe minha madrasta. — Deixa
isso pra lá.
— Não — retruco. — É que…
Não faço ideia de como terminar a frase.
Saio do cômodo e sigo pelo corredor.
OBSERVO MEU REFLEXO roxo no espelho do banheiro.
A mãe do Paolo talvez seja minha mãe também. Não. Não faz sentido. E,
no entanto, faz muito sentido.
— Já ouviu falar em bater antes de entrar?
Veronica está sentada no vaso sanitário.
Quase morro de susto.
— Aimeudeusvocêquasemematouagora. Foi mal, já estou saindo.
— Não estou fazendo cocô nem nada. Estou totalmente vestida, como
pode ver.
— Ah, que bom.
Ficamos em silêncio por um momento.
Quero compartilhar minha teoria com ela, mas rapidamente me dou conta
de uma coisa: se for verdade, se Cynthia for realmente minha mãe, isso
significa que transei com minha meia-irmã. Ah, merda. Afasto esse
pensamento e me concentro em Veronica. Ela está de calça jeans e com um
suéter de gola rolê verde-escuro.
— Gola rolê em maio? — indago, tentando ser fofo.
— Não, idiota, não estou usando isto porque estou com frio.
Ela puxa a gola para baixo e mostra o pescoço roxo.
— Ah — exclamo, me sentando na beirada da banheira.
— Dent, está tudo certo aí? — pergunta minha madrasta, do outro lado. —
Tudo bem com você?
— Tudo ótimo, mãe. Só preciso de alguns minutos. — Olho para Veronica,
que cobriu a boca com a mão, como se estivesse prestes a começar a rir.
— Vamos dar um pouco de espaço para ele — diz Raquel, afastando-se.
Enquanto isso, Veronica está às gargalhadas.
— Qual é a graça?
— Você disse que estava “tudo ótimo” — responde, entre risadinhas. — E
isso é bem hilário, levando em consideração que você pode morrer a
literalmente qualquer minuto. Hoje está sendo um dia tão bizarro.
Pode crer, irmã!
Seu riso desperta lembranças da Veronica assustadora do meu sonho, e fico
momentaneamente incomodado.
— É, meio que está mesmo.
— Meio? Estou sentada na privada conversando com você, Denton. E
estamos os dois roxos. — Ela dá tanta ênfase à última palavra que me faz
sorrir. — E não é só isso, não. Ninguém faz a menor ideia do porquê de a
gente estar assim; minha mãe falou para todo mundo que era a fim do seu pai;
você vai morrer a qualquer momento…
— Eu sei. — Também estou rindo. — É, tipo, que diabo está
acontecendo? E o Phil estava aqui de manhã com uma arma! Tentando me
matar. Isso aconteceu de verdade! — Nunca tinha visto Veronica rir tanto. —
E a gente transou! Eu e você! Que loucura!
Ela para de rir.
O silêncio paira entre nós, como se fosse um balão encalhado.
— Cedo demais? — pergunto.
Talvez ela também tenha chegado à conclusão de que somos parentes.
— Pois é.
Veronica não parece exatamente zangada. Está mais para irritada. Ela olha
para um ponto atrás de mim, passando o dedo indicador pelo lábio, pensativa.
Lembro a mim mesmo que posso morrer em questão de minutos.
— Dei a minha virgindade para você, sabia? E é um saco não conseguir
me lembrar de nenhuma droga de detalhe.
— Sério que você não lembra nadinha? Estava tão bêbado assim?
— Aparentemente.
— Ah, falando nisso, por acaso você vomitou na minha cama?
— Hã… Ah, sabe, na verdade eu me lembro de uma coisa de ontem: você
me dizendo que era “só porque estou com pena de você” antes de me beijar.
— Ah. É. Estava com pena mesmo. — Ela se mexe no vaso, tentando
achar uma posição. — Não está muito confortável aqui. — Então ela se
levanta e se alonga, erguendo os braços.
Ao fazer isso, o suéter dela sobe um pouco, e vejo um pedacinho de sua
barriga. Sei que existe a possibilidade de sermos irmãos, mas nem por isso
deixo de sentir uma atração louca por Veronica. Mesmo estando roxa. Ela
passa por mim, indo para o outro extremo do banheiro.
— Espera, não vai embora — peço.
— Não estou indo.
Ah. Que bom. A televisão está ligada no andar de baixo, e me esforço para
ouvir o que está passando. Algum tipo de talk show diurno.
— Estava com pena de você — solta Veronica, virando abruptamente —,
porque você me manipulou para sentir isso. Estava lá, todo triste porque tinha
levado um pé na bunda da Taryn, se fazendo de vítima. E ela não tinha
terminado coisa nenhuma!
— Bom… Eu estava confuso.
— E por que você ainda estava lá em casa? Era para a mamãe ter trazido
você de volta para cá!
— Não faço a menor ideia!
— Hum.
Ela semicerra os olhos, como se duvidasse de mim.
— O que está achando? Que eu, sei lá, disse para a sua mãe não me trazer
de volta só para que eu pudesse dormir com você?
— Só sei que eu e o Paolo nos despedimos, e vocês dois foram para o
carro. Aí, cinco minutos depois, estou sentada no sofá vendo TV, quando você
e a mamãe voltam. Ela disse que você tinha resolvido ficar porque estava
cansado. Aí você, tipo, sentou do meu lado e falou que “estava muito mal”.
— Ok, ok, espera um segundo aí. Você estava comigo e com o Paolo antes
de eu ir embora? Ou, sei lá, fingir ir embora?
— É, um pouco. Você estava passando trotes e tal. Foi bem engraçado, até.
— Cara, queria me lembrar disso… Então, naquela hora, a Taryn já tinha
ido embora, né?
— É, ela foi embora antes de eu chegar.
— Certo. Então eu estava triste porque tinha levado um fora naquela hora?
Eu falei isso?
Veronica morde o polegar e olha para o teto.
— Pode ser que não.
— Ahá! Viu? Se eu achasse que tinha levado um fora, teria falado sobre
isso. Mas então por que comecei a pensar isso depois? Será que quando eu
estava entrando no carro da sua mãe a Taryn me mandou uma mensagem que
interpretei como um fora? Ou me ligou?
Tiro o celular do bolso e checo as mensagens de duas noites atrás. Nada.
— Então o quê? — pergunta ela. — Minha mãe do nada decidiu convencer
você de que a Taryn tinha terminado tudo por alguma razão aleatória?
E, com um choque de eletricidade que me deixa estremecido, lembro mais
um detalhe daquela noite. A mãe do Paolo na varanda na frente da casa,
dizendo:
— Tem certeza de que quer ir para casa? Você é muito bem-vindo aqui e
pode ficar para dormir, sabe disso, né?
Agradeci, mas respondi que queria mesmo ir para casa.
— Claro, querido. Só pensei que depois de a Taryn ter terminado o namoro
daquele jeito, você talvez fosse querer ficar com outras pessoas da sua idade.
Digo que Taryn não terminou comigo.
— Ah, não… Achei mesmo que talvez você não tivesse entendido. Foi por
isso que ela saiu cedo. Disse que estava tudo acabado, Denton.
Não lembro o que aconteceu depois disso, mas lembro como me senti. De
coração partido. Confuso. Perdido.
— É, acho que foi isso mesmo — respondo a Veronica.
— Ah, é, porque faz muito sentido.
Certamente não está fora do âmbito de Coisas Estranhas Que A Mãe do
Paolo Vem Fazendo Nos Últimos Dias. Embora não tenha certeza de como
isso estaria relacionado ao fato de ser minha mãe. Talvez não seja. Neste
momento, tenho que presumir que não é. Porque sinto atração demais por
Veronica para pensar nela como minha irmã.
Ela olha seu reflexo e joga o cabelo para trás.
— A gente devia parar de se esconder aqui. Pelo menos você devia.
Ela vai até a porta.
Não desperdice a chance, Denton.
— Espera, espera, espera — digo, me levantando.
Veronica suspira e se vira.
— Só… — Tomo coragem. — Você é uma pessoa fenomenal.
— Engraçadinho.
— É sério.
Ela olha para os tênis.
— Se isso tiver alguma importância, Dent, também acho você um cara
bem legal.
Dinamite explode no meu peito.
— Verdade?
— É, acho que sim.
— Então, espera — falo, encorajado por aquela minúscula vitória. —
Posso perguntar como foi? Quando a gente… Quer dizer, eu fui incrível ou o
quê?
— Bom, você me deixou roxa. Isso não foi nada incrível.
— Mais uma vez, mil desculpas.
— Mas, fora isso, foi bom. Você só ficou… Pegando demais nos meus
peitos.
— O quê? Isso é algo bom, na minha opinião.
— Não, tipo, demais-demais.
— Aimeudeus, ok, deixa pra lá.
— Tipo, para a sua primeira vez, até que foi bom.
— Nossa. Obrigado? Eu acho.
Tento passar por ela naquele espaço estreito para sair — cansei de me
sentir um lixo —, mas ela me abraça.
— Eu devia mesmo sair daqui — digo, abraçando-a também, sentindo seu
corpo contra o meu, meu rosto no seu cabelo, inspirando aquele mesmo
aroma de pêssego, hortelã e sabonete que lembro ter sentido na cama. Na
verdade, não quero ir embora. Não me importaria nem um pouco de terminar
minha vida aqui mesmo.
— Vou sentir muito a sua falta — sussurra ela no meu ouvido.
Um arrepio percorre meu corpo.
Antes mesmo de meu cérebro ser capaz de formular o pensamento se não
for agora, quando será?, parto para o beijo.
Veronica me beija de volta.
Nossas línguas invadem a boca um do outro sem cerimônia, com beijos
profundos e famintos. Sei como isto é potencialmente errado, mas não ligo.
Está acontecendo.
Deslizo as mãos pelas costas dela, até chegar à bunda (definitivamente não
vou chegar nem perto do peito). Ela não me impede. Sou invencível. Talvez
tenha morrido. Talvez este banheiro seja o Paraíso.
Alguém bate à porta. Congelamos.
— Dent, você ainda está aí? — pergunta Paolo. — Todo mundo está
tentando respeitar seu tempo e seu espaço e tal, mas… É só para ter certeza de
que você está bem mesmo.
A boca de Veronica se afasta da minha, mas nossos corpos e rostos
continuam muito próximos. Não sei se devo responder.
— Porque já deu tempo de sobra para você bater uma, se é isso que estava
fazendo. Sei lá, pode ser que você demore mais do que eu.
— Ai, que nojo — murmura Veronica, mais para si mesma do que para
mim.
— Nesse tempo, eu já teria batido umas duas, na verdade. Duas e meia,
sendo bem sincero.
Melhor responder.
— Oi, Paolo, está tudo bem. Vou sair daqui a pouquinho.
— Espera, espera — diz ele. — Posso entrar?
Veronica se afasta de mim e revira os olhos, indo até o vaso novamente.
— Hã… Só me dá, tipo, uns dois minutos, que depois a gente conversa aí
fora.
— Não, cara, não dá para ser aqui fora.
Olho para Veronica como se dissesse: ah, Paolo e suas armações
mirabolantes de novo.
Ela dá de ombros, algo como: deixa o garoto entrar de uma vez, porque sei
que é isso que vai acontecer mesmo.
— Ok, entra — falo, abrindo a porta apenas o suficiente para deixá-lo
passar. — Mas…
— Mas que diabo ela está fazendo aqui? — pergunta ele enquanto fecho a
porta com cuidado. — Ah, cara, vocês dois estavam… Ah, cara, alerta-
vômito.
Ele vira de costas, tentando cobrir os olhos.
— Não, não era nada disso — retruco.
— Cara, vocês estão pegando pesado. Sexo no banheiro? Com todo mundo
lá fora?
— Shhhhh! — exclamamos Veronica e eu.
— Paolo, a gente estava só conversando. Só isso. Entrei para mijar, mas
ela já estava aqui dentro.
Ele olha de mim para a irmã, sem acreditar totalmente na história.
— Bom, vocês com certeza se vestiram rápido demais para dois
depravados no meio da pegação.
— Ai, para de falar — diz Veronica.
Paolo nos observa um pouco mais.
— Olha, vocês dois são praticamente meus irmãos, então…
— Eu sou mesmo sua irmã — corrige Veronica.
Talvez eu também seja irmão dele.
— É, ok, falei errado. Você é minha irmã, e o Denton é praticamente um
irmão também, então amo os dois como irmãos. Não. Eu sou o irmão, e
vocês… O que estou querendo dizer é que, transando ou não, amo vocês e
apoio essa união.
— Valeu — agradeço. — O que você queria falar?
Ele fica momentaneamente confuso com a pergunta, de tão absorto que
estava em sua fala de policial de televisão.
— Ah, é. — Ele se vira para a pia e joga um pouco de água no rosto. — É
uma coisa meio séria, e, para falar a verdade, estou surtando um pouco. —
Ele desliga a torneira e pega uma toalha marrom-avermelhada do gancho.
— Ok, foi mal. Só para você saber, é com essa toalha que eu enxugo as
bolas.
Paolo arranca a toalha do rosto e a joga no chão.
— Pô, cara! Pelo amor…
Veronica ri, o que me deixa feliz.
— Cara, pode falar.
— Não, não dá — retruca ele —, porque não é uma coisa que dê para falar.
Tenho que mostrar.
Ele abre a fivela do cinto e começa a descer o zíper da calça.
— Epa — exclamo.
— Paolo, para!
Veronica tampa os olhos.
— Você vai achar hilário — diz Paolo. — Você também, Vê. Vai ser um
festival de gargalhadas.
Ele abaixa a calça.
Na coxa direita, logo abaixo da cueca do Patolino, está a mancha.
— Tá de brincadeira! — falo.
— VOCÊ ME PASSOU a sua DST!
— Ok, espera um segundo aí, calma.
Estou tentando pensar, entender a situação, mas minha cabeça não para de
girar.
— Vocês transaram? — exclama Veronica. — Aimeudeus, aimeudeus.
Ela levanta a tampa do vaso e se ajoelha diante dele.
— Não! Claro que a gente não transou! — grito.
— Pelo menos não que a gente saiba… — acrescenta Paolo.
— O quê? Cara, será que você não pode me ajudar aqui?
— Bom, a gente não sabe o que está acontecendo! A gente ficou bem
louco aquele dia! — retruca Paolo. — Mas, Vê, você está com vontade de
vomitar só de pensar em dois caras transando? Isso é tão politicamente
incorreto. Os tempos mudaram, você tem que acompanhar, querida.
— Não estou nem aí se dois caras querem transar — replica ela, debruçada
na privada. — É a ideia de vocês dois transando. Do meu irmão e eu termos
ficado com o mesmo cara na mesma noite. — Ela arqueja.
Embora esteja 99,99% certo de que aquilo não aconteceu, também fico
subitamente nauseado.
— Chega pra lá — falo, me agachando ao lado dela.
Estou com ânsia de vômito e inspirando profundamente. E se for morrer
agora? E se começar a vomitar e não conseguir parar e colocar para fora todas
as minhas entranhas? Tão triste, diriam as pessoas. Ele se imaginou fazendo
sexo com o melhor amigo e foi acometido por um caso de Vômito Irrefreável.
Olho para a mancha do Paolo.
— Não tem nenhum pontinho vermelho na sua, né?
— Não — responde ele. — Mas queria que tivesse, eles são bem irados.
Observamos enquanto ele cutuca a coxa manchada.
— Acho que já dá para você vestir a calça, cara.
— Agora que abaixei, estou me sentindo tão livre.
— Coloca a droga da calça! — ordena Veronica.
— Meu Deus, que bicho mordeu você? — indaga Paolo, levantando a
calça.
— A Veronica também pegou — explico.
— O quê? A Peste Roxa?
— Que tal a gente não chamar de peste ainda?
— Uau — diz Paolo, me ignorando. — Bom, é claro que ela pegou,
porque vocês dois se pegaram. Muito. Aposto que o corpo dela todo está
roxo.
— A gente só transou aquela vez — garanto.
— Quando você pegou a gente no bosque, eu estava olhando essa alergia
aí, e não pagando um boquete, idiota — explica Veronica.
— Aham — retruca Paolo, pegando uma caixinha branca de fio dental
mentolado — Posso usar?
— Agora?
— Esqueci de trazer minhas coisas de banheiro.
Dou de ombros. Ficamos um minuto em silêncio, tornando o staccato da
limpeza de Paolo o único som presente no cômodo. Eu me levanto devagar.
Acho que o próximo passo é sair do banheiro e encontrar um jeito de entrar
em contato com Brian Flores. Não há a menor possibilidade de eu e Veronica
darmos uns amassos agora.
Lembro o que me espera do lado de fora, e uma chuva de culpa cai sobre
mim.
— Vocês acham que a Taryn pode ter ouvido a gente?
— Seja homem, cara!
Paolo parou de passar fio dental.
— Hein?
— Você sabe do que estou falando. — Paolo não costuma repreender os
outros, então essa reação me pega de surpresa. — Isto aqui é o fim da sua
vida. Banca essa merda logo. — Ele dá um passo dramático na minha direção.
— Você é o Denton Little, caramba, e não vou deixá-lo ir para a vala
preocupado com a possibilidade de alguém estar com raiva de você. Quem
liga, cara?!
— É, concordo plenamente — falo. — Eu…
— Saquei. Você se importa com a Taryn. Vocês criaram essa coisa entre os
dois, essas piadinhas: “Ah, Denton, eu muito amo você para sempre”, coisa e
tal.
— Não é assim que a gente fala.
— É tudo muito bonitinho e, num mundo perfeito, os dois iriam para a
faculdade, dariam um tempo para explorar outros curtos relacionamentos
empolgantes-mas-no-fim-das-contas-vazios, depois iam perceber que foram
feitos um para o outro, se casariam, teriam oitenta filhos e morariam em um
sapato enorme na periferia da cidade.
— Em um sapato?
— Mas, num mundo perfeito, você não estaria morrendo hoje. E nem eu,
daqui a menos de um mês. Este não é um mundo perfeito, não se engane, e
não temos a dádiva do tempo, como todo o resto da humanidade. E é
assustador e confuso, e por isso pode ser que a gente faça algumas cagadas.
Pode ser que a gente tente usar manteiga para se masturbar e que a coisa
acabe bem feia. Mas você tem que bancar essas merdas.
Paolo volta a passar o fio dental.
— Só estou dizendo tudo isso porque amo você, cara. Você sabe disso.
— Eu sei. Valeu, Paolo. — Tenho que bancar minhas merdas. — Tudo
bem aí, Veronica? — indago. — O Paolo e eu… Isso nunca aconteceu, ok?
Ele só deve ter esfregado o rosto na minha toalha das bolas ontem ou coisa do
tipo.
Ela continua concentrada no vaso, sem responder.
— Banca a merda toda — diz Paolo melodicamente, quase cantarolando,
alcançando o fundo da boca com o fio dental.
— Não vou bancar nada que não tenha acontecido.
— É isso aí! Acabei de desabrigar um pedaço de bife do meu sanduíche de
ontem que estava preso. Vai me segurar até a próxima refeição.
— Ok, vou embora agora.
Vou para o corredor enquanto Paolo pergunta à irmã:
— Quer que eu enfie o dedo na sua garganta? Pode ser que ajude.
Fecho a porta.
Eu me sinto inspirado.
Fico parado perto da escada e observo a luz do sol entrar pela grande
janela do saguão, tornando gloriosas as partículas de sujeira.
Formulo um plano para o tempo que me resta:
— E aí? — diz Felix atrás de mim, espiando pela porta do seu antigo
quarto, de óculos e com uma camiseta desbotada e grande demais de alguma
corrida beneficente da qual ele participou. — Como você está? Se divertindo
no banheiro, né? — Ela dá um sorrisinho malicioso.
— O quê? Não. Parecia que a gente estava se divertindo?
— Eu sei lá o que parecia. Estava tentando tirar um cochilo, aí do nada
comecei a ouvir vocês falando aos gritos sobre sexo.
— Denton! — chama minha madrasta do andar de baixo. — O seu pai e eu
já estamos prontos para levar você ao hospital. Quando quiser, viu?
É, não vou fazer isso, não.
— Tudo bem! — berro. — Só tenho que ir ao banheiro primeiro.
— Você já não ficou no banheiro por uns quinze minutos? — pergunta ela.
Ops. Bem lembrado. Não cheguei a fazer o que tinha que fazer lá dentro.
— É — grito —, mas tenho que ir de novo. O meu estômago está bem
estranho.
— Boa sacada — comenta Felix.
— Ok — responde ela —, a gente dá uma olhada nisso no hospital
também. Desça quando estiver pronto.
— Ah, Raquel — murmura Felix, entre dentes, novamente com um
sorrisinho e balançando a cabeça.
Ficamos em silêncio por um instante. Queria ter mais a dizer a ele.
Banque essa merda.
— Por que você nunca quer conversar comigo de verdade? — pergunto.
— O quê? — exclama Felix, e sua expressão diz que ele jamais esperaria
que eu dissesse isso. — Mas a gente conversa.
— É, tipo, a gente faz piada e tal, mas você não me conhece direito. Não
pergunta como estou.
— Claro que pergunto. Estou sempre ligado nisso.
— Ligado? Viu? Isso não é conversar.
Felix me encara, depois dá alguns passos pelo corredor e, com um gesto,
pede que eu o siga. Adentramos a escuridão.
— Ei, sei que não fui o melhor irmão do mundo — diz ele e nunca o vi tão
sério. — E desculpa por isso. Podia ter sido mais presente na sua vida.
— Não, quer dizer… Bom, é, na verdade, podia mesmo, mas tudo bem.
Você salvou a minha vida hoje de manhã. Isso foi legal.
Felix coloca a mão no meu ombro.
— Eu sempre estarei do seu lado. Você sabe disso, não sabe? — Ele olha
bem nos meus olhos, aquela mesma intensidade estranha de ontem.
— Acho que sim.
— Beleza. — Ele dá tapinhas no meu ombro, depois volta para o quarto.
— Vou trocar de roupa.
Não foi o momento de interação fraterna mais satisfatório de todos, mas já
é um avanço.
— Ah — diz ele, espiando do quarto outra vez. — Quase esqueci. — Ele
enfia a mão no bolso do short e me entrega um cartão. — Achei que você
podia querer isto. — Felix sorri e fecha a porta.
Olho para o cartão.
— O qu…?
Bato à porta dele.
— Ei — sussurro, mas ao mesmo tempo quase gritando. — Felix, como
você conseguiu isto? Você conhece o cara?
Percebo que ele está se movimentando pelo quarto, mas não responde.
— Felix, por favor.
Ele abre a porta. Agora está vestindo uma camisa social e short de corrida.
— Você devia ligar para ele — diz meu irmão, abotoando a camisa. —
Dane-se toda aquela droga de hospital. A vida é sua.
— Mas…
— Amo você, Dent.
E fecha a porta.
— O que é que está acontecendo aí em cima, querido? — pergunta minha
madrasta.
Não sei bem como vou conseguir adiar essa visita ao hospital por muito
mais tempo, mas tenho que tentar.
— Ah, eu, hã, vou me deitar um pouco, não estou muito legal. Mas não de
uma forma fatal, não. Só de uma forma, tipo, preciso-deitar-um-pouco.
— Mas é por isso que precisamos levar você ao hospital!
Fujo pelo corredor até meu quarto, que, graças a Deus, está vazio.
Fecho a porta e me sento na cama.
Olho para o cartão.
Felix conhece Brian.
Felix está do meu lado.
Felix está escondendo algo.
Não tenho a energia mental necessária para desfazer mais nós enigmáticos.
Pego o celular.
Digito o número de Brian.
Aperto o botão “ligar”.
BRIAN ATENDE AO segundo toque. Um jazz toca ao fundo.
— Oi — falo. — Hã… por favor, o Brian?
— Denton — responde ele. — Você conseguiu meu telefone. — Parece
genuinamente aliviado. — Tudo certo? Está se sentindo bem? Viu alguém
estranho seguindo você?
A torrente de perguntas desvia minha atenção. Lembro que nem sequer
conheço esse homem.
— É, hã, tudo bem, mais ou menos — respondo. — Mas… Bom, queria
muito fazer algumas perguntas sobre a minha mãe. Se não tiver problema.
— Sim, claro. Com certeza. Mas é melhor não ficarmos muito tempo nesta
linha. Podemos conversar pessoalmente?
— Ah — falo.
— Obviamente não ia dar muito certo se eu fosse até aí — responde Brian.
— Acho que seus pais não iam gostar.
— Não mesmo. Tem certeza de que não podemos falar rapidinho pelo
telefone?
Quem ele acha que pode estar escutando?
— Não, não. Quer dizer, olha, você que sabe, mas será que eu não podia…
Bom, passar aí para buscá-lo? A gente podia conversar em algum outro lugar.
Se não for um problema para você.
Não sei ao certo o que pensar. Achei que esta seria uma ligação breve,
porém reveladora. Em vez disso, esse homem paranoico, em quem não tenho
razão alguma para confiar, quer me tirar da minha Vigília para se encontrar
comigo.
— Ainda está aí? Denton?
Mas, se eu não for, o que me resta? Ir ao hospital com meus pais e
permanecer tão ignorante quanto antes sobre minha mãe?
— Hum — falo.
Choro.
Encosto na parede e choro. Minhas pernas estão mal. Dormentes, duras,
estranhas. Adoraria me sentar, mas os vasos sanitários do lugar —
condizentes com o falso em falso luxo — não têm tampa. Puxo a bainha da
calça azul para dar uma olhada melhor no que está acontecendo.
Minhas pernas estão vermelhas.
Na perna direita, a área que vai do tornozelo ao joelho já não é mais roxa.
É do mesmo tom de vermelho dos pontos que havia antes. A perna esquerda
também mudou de cor, mas a vermelhidão chega apenas à metade da
panturrilha.
Olho com mais atenção. O escarlate se espalha lentamente pelas duas
pernas, feito uma peça de crochê bem planejada. É tão sutil que só se poderia
notar se estivesse realmente investigando, mas os pontinhos vermelhos no
roxo estão se entrelaçando de uma maneira complexa, transformando violeta
em vermelho.
Vermelho parece ruim.
Está acabando com minhas pernas, tenho certeza.
Vermelho = morte.
Estou entrando em pânico bem depressa.
Respira, Denton.
Banque essa merda.
Olho para minha camisa e dou uma espiada nos braços. Fico aliviado ao
constatar que continuam roxos, que, de alguma forma, transformou-se no
novo normal.
Ouço o DJ idiota fazendo algum anúncio no salão e me pergunto que horas
são. Pego o celular. 22h21. O ícone da bateria está vermelho, feito minhas
pernas, o que significa que resta menos de dez por cento. Veremos qual de nós
dura mais.
Vou morrer nos próximos cem minutos. Não quero. Quero mais tempo
para rir no bosque com Paolo. Para beijar Veronica e ser correspondido. Para
ficar sentado no quarto sem fazer nada. Para ficar frustrado com a adorável
inaptidão para o diálogo que meu pai tem. Para me sentir sufocado pela minha
madrasta. Para conseguir terminar as coisas de um jeito melhor com Taryn.
Para entender o que Felix realmente sente por mim.
Todas as outras pessoas têm tanto tempo. Não quero ficar no baile de
formatura. Preciso encontrar meus pais e sair daqui, e passar por minha Morte
Vermelha em paz.
Guardo o celular no bolso, e minha mão encosta na carta ainda fechada de
minha mãe.
Eu havia me esquecido totalmente dela.
Tiro a carta de lá e a observo, encarando meu nome, escrito com a
caligrafia da minha mãe.
A CARTA FOI escrita em uma folha arrancada de um caderno de espiral.
Levo-a ao nariz. Tem cheiro de papel.
Passo os dedos de cima a baixo pela marca de dobradura.
E se mamãe não soubesse escrever direito? Ou se fosse meio chata? Dane-
se. Não tenho tempo para desperdiçar com preocupações sem importância.
Abro a carta.
Meu querido Denton,
Olá, bonjour, hola, shalom, aloha, hello! (incluiria mais aqui, mas só
conheço esses “olás”. Aprenda outras línguas, este é um dos meus
maiores arrependimentos da vida).
Dei um tempinho de toda a loucura para escrever para você, a
criaturinha dentro de minha barriga. É engraçado escrever uma carta
para alguém que é, tecnicamente, mais próximo de mim do que
qualquer outra pessoa presente na minha vida (à exceção do seu irmão).
Mas, em todos os outros sentidos, não o conheço nem um pouco. E é
provável que jamais chegue a conhecer. E você não me conhecerá. Já
estou me emocionando toda e mal comecei a escrever. Isso não é nada
bom.
Primeiro, deixe-me dizer que sinto muito. Trazê-lo a este mundo
sabendo que terei que deixá-lo sem mãe não é justo. Peço perdão. Por
favor, não culpe seu pai por isso; não é culpa dele.
E, falando no seu pai, saiba que ele é um grande homem. Pode ser
quieto e difícil de entender, mas nunca duvide da grandeza dele. Eu o
amo muito.
Também amo seu irmão mais velho, Felix. Ouça o que ele tem a
dizer, aprenda com ele, e, se ele for difícil com você, seja difícil com ele
também. Ele é um garotinho atrevido de nove anos. Só posso imaginar
como será quando mais velho.
Tenho certeza de que você está se perguntando como eu era.
Descartando a hipótese de seu pai ter sofrido algum derrame que tenha
alterado sua personalidade, aposto que ele não vem sendo de grande
ajuda nesse aspecto (caso ele tenha mesmo sofrido algum tipo de
derrame, peço desculpas pela natureza insensível da última frase). Com
sorte, ele ao menos lhe contou algumas poucas coisinhas, e agora que
você já tem idade suficiente (com onze anos? Dez? Talvez menos?),
vou revelar outras:
— sou superesperta.
— todos me respeitam.
— sou a mulher mais linda que já pisou na face da Terra.
Você já conhece a palavra “hipérbole”?
Também deve saber que:
— não sou perfeita.
— gosto de rir.
— quando começo um projeto, ele me consome por inteiro.
— odeio gente grosseira.
A mãe de seu pai está bem ali fora do quarto perguntando às pessoas
onde estou. Sua avó é uma pessoa boa, mas ocasionalmente assustadora
(o que você provavelmente não sabe, pois ela estará presente só até os
seus dois anos de idade), e talvez seja melhor eu já ir terminando isto
para impedir que ela estrangule alguém durante minha Vigília.
Opa! Você acabou de chutar. Que loucura. Ou está zangado porque
não vou escrever mais ou é extremamente avesso a estrangulamentos.
As duas são posições muito válidas.
Tenho tanto orgulho de você, Denton. Sei que parece loucura da
minha parte escrever isso, sendo que você nem sequer nasceu ainda,
mas sei que está destinado à grandeza.
O que quer que aconteça na sua vida, amo você. Sinta-se livre para
pensar em mim como um anjinho feliz sentado no seu ombro, se for de
alguma ajuda. Ou não pense. Anjinhos felizes não são muito legais aos
olhos dos meninos. Então me imagine como um caminhãozinho feliz no
seu ombro. Ou um dinossauro feliz. Um dinossauro feliz. Por favor,
lembre-se disso. Estou com você, Denton.
Todo o amor do mundo,
Mamãe
Não sei por que papai não me entregou esta carta antes. Aquela era a voz
da minha mãe verdadeira. Palavras escritas por ela para mim. Ela é engraçada.
Gostei.
Espera um segundo aí.
Dinossauro feliz. Meu Deus. Aquelas duas mensagens eram de um tal
Dinossauro Feliz. Minha mãe criou um código para mim antes de morrer. E
nunca tive ideia disso, pois MEU PAI NÃO TINHA ME DADO A CARTA. É verdade
que eram propagandas de remédios para ereção, mas ainda assim. Talvez seja
um disfarce, e eu deva responder. O Dinossauro Feliz pode ser algum
conhecido da minha mãe.
E Broncazul. Meu amado bichinho de pelúcia, ao meu lado desde meu
primeiro dia no berço, um presente dela: um dinossauro azul feliz. Estava
criando uma língua em comum que as pessoas poderiam usar para se
comunicar comigo depois de ela ter morrido, mas meu pai estragou tudo.
Talvez eu tenha sido soterrado a vida toda por referências misteriosas de
dinossauros felizes que jamais entendi.
Quero reler a carta pelo menos mais cinco vezes, mas sei que o tempo está
passando e não quero morrer na formatura. Guardo o papel, destranco a
cabine e empurro a porta.
Não se move. Está emperrada. Empurro com mais força.
— Nananinanão — diz Phil, do outro lado. — Foi mal, Little.
Ah, não.
— Você só pode estar de brincadeira. O que é que… Você está prendendo a
porta?
— Ha-ha, você estava tão ocupado chorando que nem me ouviu chegar. —
Empurro a porta com toda a força que tenho. Consigo abrir uma fresta, mas
minhas pernas bambas cedem, e a porta se fecha. — Boa tentativa, seu
metidinho de merda. Sair por aí distribuindo elogios como se fosse algum
santo ou coisa do tipo…
— Está com inveja porque não tenho nenhum para você? — retruco,
olhando ao redor, tentando pensar em algum plano. — Me deixa sair, Phil!
— Ah, é, estou morrendo de inveja. Engraçado. No final, não vou nem
precisar de arma nenhuma, só de uma cabine fraquinha dessas.
Recuo o máximo que posso (que não é muito neste espaço) para dar
impulso, e me jogo na porta outra vez. Não funciona, e bato com o cotovelo
machucado.
— AI.
Philip ri.
— SOCORRO! — grito. — ALGUÉM!!
— Não sei se você notou, mas a música está bem alta lá fora.
Com certeza meus pais logo começarão a se perguntar onde estou. Paolo e
Millie também. E Veronica, se tiver terminado de vomitar. Minha vida não
pode acabar assim.
— Phil, escuta, vou morrer daqui a pouco. Aí você vai conseguir o que
quer. Só me deixa morrer fora daqui, ok?
— Olha, você não vai morrer aí dentro. Só estou prendendo você até o meu
avô chegar. O que vai acontecer a qualquer minuto.
— Me prendendo aqui até o seu avô chegar? Será que não está vendo que
parece um louco falando? E, aliás, por que você mandou o seu avô ir me
espionar quando eu estava com a Taryn na colina?
— Que porcaria é essa? Que colina?
— Ah. Deixa pra lá. — Acho que não teve nada a ver com ele, no fim das
contas. — Mas, tipo, por que o seu avô se importa comigo e onde estou?
— Ele mesmo vai explicar quando chegar. E aí vou poder parar de ficar
segurando esta porta idiota.
Ouço a porta do banheiro se abrir.
— Ei, me ajuda! — grito. — Socorro, esse cara está me prendendo aqui
dentro.
— Ei, quem é que está aí? Denton?
É Rick Jackson. Meu amigo de Facebook que curte futebol.
— Rick! Eu! Será que você pode tirar esse cara da porta?
— Por que você está fazendo isso? — pergunta Rick a Phil.
— Ei, cara, por favor — diz Phil. — O Denton precisa mesmo ficar aí
dentro. É, tipo, um assunto oficial.
— Assunto oficial? É o meu parceiro que está trancado aí, o Denton Little.
Sai da frente.
— Não, cara, foi mal, não dá. Me larga!
Ouço sons de briga e luta.
— Eu falei para SAIR! — Ouço uma pancada forte, e um corpo cai ao
chão. — Ih, merda.
Empurro a porta, e ela se abre.
Rick olha para o corpo do Phil, que está estirado sob o secador de mãos
elétrico. Seu chapéu fedora ainda está preso à cabeça. Ele parece estar em um
sono tranquilo.
— Ih, não era a minha intenção deixar o cara assim.
— Não, Rick, muito obrigado. Obrigado mesmo.
— Acha que é melhor chamar um professor ou coisa do tipo?
— Sei lá. Foi mal, é só colocar a culpa em mim! — Saio correndo, antes
de Phil recuperar os sentidos. — Diz que fui eu que o empurrei, sei lá,
qualquer coisa. Você tem todo o meu respeito, Rick!
Abro a porta do banheiro, pronto para encontrar minha família e sair, mas
topo com Paolo.
— Ah, obrigado, Maria-mãe-de-Deus-e-o-caramba, obrigado! — exclama
ele. Seu rosto está metade roxo, metade normal, a linha divisória no exato
ponto em que um bigode deveria crescer. — Você está bem!
— Oi — falo. — Melhor a gente ir embora.
— Epa, você está mancando muito, ou é impressão minha?
— É, não sei o que está acontecendo. As minhas pernas estão ficando
vermelhas.
— Putz… A DST está ficando mais forte? Consegue andar?
— Mais ou menos.
— Que bom. Porque, irmão, você acabou de ser coroado o rei da
formatura!
— O quê?
— É, cara, ele anunciou o seu nome há, tipo, um minuto, e todo mundo
surtou, ficaram malucos. Mas aí viram que ninguém sabia onde você estava e
começaram a surtar ainda mais.
— Está tudo bem com a Veronica?
— Moleque, você me ouviu? Você é o rei do baile! Isso é insano! E irado!
Tem que ir lá pegar a sua coroa! E também mostrar para a sua mãe que ainda
está vivo, porque ela está começando a ter um ataque.
— Começando?
— Haha, é, a sua mãe é doida. Anda logo, manquinho.
Nos afastamos do banheiro, Paolo à frente, e tudo parece irreal, como se
estivéssemos nos movendo em câmera lenta embaixo d’água. Minha madrasta
me abraça, papai é discreto, mas mostra preocupação — o procedimento
padrão. Felix me dá tapinhas nas costas e me parabeniza por ter recebido um
título arbitrário.
Pouco depois, as pessoas nos notam. De repente, o salão inteiro está
retumbando com gritos aclamando meu nome, comemorando e aplaudindo
enquanto meus colegas se dirigem para os cantos da pista, abrindo espaço
para mim. Eu gostaria de ir embora, mas vou mancando pelo caminho recém-
aberto até a mesa do DJ, cumprimentando as pessoas.
Acho que ser coroado rei do baile é ótimo, mas, neste momento, parece
mais uma inconveniência.
Meu andar é incrivelmente lento. Os gritos de comemoração diminuem de
forma gradual até se transformarem num som desconcertante de preocupação.
Termino a trajetória patética até o círculo de vencedores, ou seja lá o que for
isso. Parada lá, sorrindo com uma tiara, está Chantel Prescott.
— E aí, rei? — diz.
— Oi — respondo.
Não vou chamá-la de rainha.
Ao seu lado está Lindsay Feldstein, a presidente da turma e uma garota que
conheço desde o primeiro ano do ensino fundamental. Presumo que tenha
sido ela quem contou os votos.
— Aê, Denton! — exclama, levantando as pequenas mãos no ar.
— Valeu, Lindsay — agradeço.
— Todo mundo pronto? — indaga o DJ à menina, que assente. — E aqui
está ele, senhoras e perdedores — diz o homem ao microfone. — O seu rei do
baile! — Os gritos de aclamação roucos recomeçam enquanto Lindsay coloca
a coroa de plástico na minha cabeça. O DJ afasta o microfone e pergunta meu
nome.
— Sério mesmo?
— Hã, é, garoto, sério mesmo. — Ele parece confuso. — Quero anunciar
para os seus amigos.
— Você não se lembra de ter tocado no meu funeral ontem? Errou o meu
nome tipo umas dezoito vezes.
O DJ Gordo olha para mim, gotas de suor escorrendo pelo rosto, os paetês
em seu colete refletindo a luz neon do lugar.
— Ah, é, foi mal por isso, não reconheci você com a… — Gesticula para
minha pele roxa. — Ainda está aí, firme e forte, que maravilha, garoto.
Darren, não é?
— Está de brincadeira? Parece até que está fazendo um número de
comédia.
— Não é Darren?
— DENTON. Está bem? Meu nome é Denton Little.
— Não foi isso que eu disse? — indaga ele, lançando uma piscadinha
rápida.
— Não — respondo, embora saiba que ele já parou de ouvir.
— O seu rei do baile — repete ele ao microfone —,
DENTOOOOOOOOON LITTLE! — As pessoas urram. Entoam
“DISCURSO! DISCURSO!”, a princípio baixinho, mas cada vez mais alto e
retumbante.
— A gente tem que falar alguma coisa? — indaga Chantel a Lindsay.
Cedendo ao desejo da multidão, o homem coloca o microfone diante de
meu rosto, e a galera vai à loucura. Não mordo a isca. Sorrio e aceno,
tentando não cair enquanto minhas pernas tremem.
As pessoas se viram contra mim instantaneamente, e as vaias começam.
— Deem um tempo para ele! — ouço minha madrasta gritar.
Pego o microfone.
— Certo, certo. — Os berros cessam. — Eu, hã… Isso tudo foi muito
legal. Acho. Valeu. Mesmo se me escolheram por pena. — Hesito, caso
alguém queira gritar que não foi nada por pena. Ninguém grita. — Tenho
sorte por ter durado até agora, mas vou morrer a qualquer minuto. Bom, sorte
talvez não seja a palavra certa. Estou com medo. Tipo, estou parando de sentir
as minhas pernas e isso me deixa apavorado. Vocês é que são os sortudos
aqui, vivendo a vida no baile de formatura. Eu… Bom, é melhor eu ir embora.
Se cuidem.
Eu realmente aconselhei meus colegas a “se cuidarem”?
— Opa, opa, opa — exclama Paolo, bloqueando meu caminho. — Pode
ficar bem aí, sr. Little. — Ele gesticula para o DJ, que dá de ombros. —
Aquilo que a gente combinou!
— O que é que vocês combinaram?
— Ah, você bem que ia gostar de saber…
O som agudo de um órgão retumba vindo dos alto-falantes, seguido pela
letra familiar: “Bone Bone Bone Bone… BONE Bone BONE Bone BONE.”
Todos na pista de dança se entreolham, a maioria com cara de o que está
acontecendo?. No entanto, para mim e para Paolo, é uma música
extremamente familiar.
— Cara — falo.
— O quê? Se ninguém vai começar uma coreografia espontaneamente, a
gente tem que tomar as providências! Mais alto, DJ!
Há muito tempo, quando ainda estávamos no oitavo ano, o amor do Paolo
por hip-hop antigo o levou até uma música chamada “The Crossroads”, de um
grupo chamado Bone Thugs-n-Harmony. A canção fala sobre morte, sobre o
rapper Eazy-E, que morreu, e o refrão diz: “Vejo você na encruzilhada,
encruzilhada, encruzilhada, para não se sentir sozinho.” Como eu e Paolo
sabíamos que morreríamos por volta da mesma época, imaginamos que
literalmente poderíamos nos encontrar na tal encruzilhada proverbial, o que
nos fez rolar de rir, mas também era genuinamente reconfortante. Tornou-se
nossa música não oficial (é, temos uma música só nossa).
— Anda, cara — chama ele. — Em posição!
Também criamos uma coreografia (pois é). Era basicamente uma
brincadeira, mas, uma noite naquele mesmo ano, quando fui dormir na casa
dele, nos empenhamos para fazer uma coreografia boa de verdade, pois
achamos que seria ainda mais engraçado assim. Trabalhamos nela até as três
da madrugada (já pode parar de rir agora). Ao longo do ensino médio, Paolo
ocasionalmente colocava “The Crossroads” para tocar no celular, e, onde quer
que estivéssemos — no supermercado, na loja de gibis, no carro —,
começávamos a dançar. Mas nunca foi minha intenção fazer uma
apresentação para nossa turma inteira na noite da formatura. Nem que esse
fosse o grand finale da minha vida.
“Quando o dia do seu julgamento chegar, porque vai chegar”, canta o
grupo enquanto o grave do piano se eleva nota por nota.
— Vai chegar para você também, cara — diz Paolo. — Pronto?
Solto um suspiro e me posiciono, com os braços colados ao corpo. Tento
não ficar muito preocupado por minhas pernas mal estarem funcionando.
Para minha decepção, todos na pista de dança estão com os olhos grudados
em nós. É hora de encarar meu fim glorioso.
Começamos.
Primeiro, as pessoas só ficam nos encarando, chocadas, entretidas ou
confusas, tentando decidir se deveriam estar gostando ou rindo da nossa cara.
A dança é composta por uma série de saltos sincronizados, movimentos
truncados, passinhos do robô e outras manobras de braço complexas, e, apesar
das minhas pernas duras e doloridas, consigo executar todos os passos. A
dança está tão profundamente arraigada no meu cérebro que eu
provavelmente conseguiria fazê-la dormindo.
Deveria ser humilhante, mas não é. É tranquilizador.
Krayzie Bone canta a palavra rezamos cerca de dez vezes, e noto que
alguns alunos religiosos da turma, o presidente do Clube da Sociedade Cristã,
Paul Baylor, por exemplo, ouvem a letra e assentem, primeiro em
reconhecimento, depois acompanhando o ritmo da música. Em seguida,
alguém grita “Aêêêê!”, e, em um instante, todos ao redor da pista estão
empolgados, curtindo a música, se divertindo, movendo-se junto com a
batida, gritando nossos nomes.
Paolo olha para mim enquanto giramos ao redor um do outro.
— Não falei, cara? A gente viveu para este momento!
Não pode ser verdade.
Agora está mais difícil acompanhar a coreografia, pois já usei a maior
parte da minha reserva de energia. Com sorte, consigo chegar ao final e então
poderemos voltar para casa, onde literalmente descansarei em paz.
— Agora a gente tem que fazer todo mundo entrar na onda! — instrui
Paolo.
— Por quê? — indago, sem fôlego e mal conseguindo formar as palavras.
— Porque estamos no baile de formatura, cara! É isso que acontece! —
Paolo escolhe uma sequência de movimentos simples do começo da
coreografia (cortadas de braço, um salto e tapinhas no ar) e as repete
enfaticamente. — Me acompanha! — Faço o que ele pede. — Todo mundo!
— Todo mundo se jogando na pista! — diz o DJ ao microfone.
— A gente não precisa da sua ajuda, cara — retruca Paolo. — Vai ser
espontâneo!
— Você acha que o que eu faço é fácil? — questiona o homem, fora do
microfone.
Por incrível que pareça, várias pessoas entraram na dança, e, como se fosse
uma doença contagiosa, em questão de segundos estão todos participando
dessa coreografia ridícula que criamos no oitavo ano.
— Está acontecendo! — exclama Paolo. — Está acontecendo!
— POIS É — respondo.
É glorioso.
Naquele instante, porém, meu olhar vai parar na entrada, por onde, como
prometido por Phil, o policial Corrigan está chegando, com expressão séria e
determinada, esquadrinhando o salão de um canto a outro.
Uma sensação terrível inunda todas as partes que ainda consigo sentir do
meu corpo.
É o mais próximo que já cheguei de um Sentido Aranha, à la Peter Parker.
E sinto formigar loucamente.
— EI, CARA, DEIXA para me abraçar depois — exclama Paolo,
desvencilhando-se de mim. — As pessoas estão curtindo muito!
É verdade: nossos colegas executam os passos de dança que criamos com
um entusiasmo e uma precisão inacreditáveis.
Mas eu não estava querendo abraçar Paolo. Minhas pernas simplesmente
desistiram, e ele é minha única esperança de permanecer em pé.
— Não… Não estou mais conseguindo ficar em pé sozinho.
— Ah, cara — diz meu amigo, me segurando pelas costas.
— Deixa comigo — se oferece Millie, pegando meu braço esquerdo e o
equilibrando em seu ombro.
Seus atos heroicos coincidem com o retorno da parte da letra que fala
sobre oração, e as pessoas erroneamente interpretam o que fazemos como
algum tipo de círculo de reza e abraços. Em questão de dez segundos, estão
todos dançando ao som do refrão, como que em transe.
— Uau, irado — comenta Paolo
— Acho que o policial Corrigan está me procurando — falo.
CopDoMal se aproxima do sr. Canzola, o professor de italiano, e faz uma
pergunta. Não estamos próximos o bastante para que eu ouça exatamente o
que ele diz, mas juro que vejo seus lábios pronunciarem meu nome.
— Uau — diz Paolo. — Ele parece concentrado, como se estivesse
procurando alguém.
— Pois é! Eu!
— Ah. Então pode ser melhor você dar um perdido nessa coroa, cara —
sugere ele. — Desviar a atenção e tal.
Tiro a coroa de rei do baile e a jogo longe. Não é para levar para casa, né?
“Alguém, qualquer um, pode explicar por que morremos, morremos?”,
indaga o cantor de Bone Thugs-n-Harmony. “Não quero morrer.”
Nem eu, Bone.
— Acho que a gente precisa fazer alguma coisa, Paolo — diz Millie, o
corpo tremendo com o peso de meu braço esquerdo. — Sou superforte, mas
talvez não tão forte para ficar segurando Dent assim por tanto tempo.
— Deixa comigo — responde ele.
Enquanto o refrão da música entra no estágio final, Paolo sacode os braços
e as pernas freneticamente, empurrando um monte de gente e fazendo com
que umas dez pessoas caiam umas por cima das outras.
— Ei!
— Mas que droga, cara?
— Ai, toma cuidado!
— Foi mal! — diz Paolo.
Para nossa sorte, três daquelas pessoas são Mike Tarrance, Danny Delfino
e Andy Stetler. Sabe aquele tipo de garoto que aproveita qualquer
oportunidade que surja para entrar em uma briga homoerótica? Eles são
assim. O empurrão do Paolo os coloca instantaneamente em modo luta, e os
smokings garantem que será a briga mais classuda e fina que terão na vida.
Mike gargalha histericamente segurando os braços de Danny atrás da cabeça
do garoto, enquanto Andy dá vários socos em sua barriga.
— Me larguem, seus babacas! — grita Danny, contorcendo o corpo e
distribuindo chutes a esmo, se jogando com os outros dois em direção a outro
grupo de garotos, que ficam mais do que felizes em se juntar a eles. Em pouco
tempo, há pelo menos quinze adolescentes de smoking se empurrando, se
batendo, dando mata-leões uns nos outros e se empurrando pelo salão. Todos
os demais se deslocaram para a área da pista de dança, para evitar serem
inadvertidamente golpeados. Basta dizer que já não estou mais preocupado
com a possibilidade de ser o centro das atenções.
— Boa — falo.
— É — responde Paolo. — O meu plano era só fingir que estava tendo um
ataque epilético para distrair a galera, mas isso aí foi muito melhor.
CopDoMal está bem ao lado da confusão, sem realmente prestar atenção
nela, ainda sondando o lugar. O que será que ele quer comigo? Ainda está
fixado naquela coisa de estatuto do dia de morte? Tomando precauções por
conta da minha mancha viral? Ou é apenas um idiota com distintivo, pronto
para vingar o neto? Dá para ver que ele não vai fazer nada para dispersar a
luta, mas é muito esquisito que ele nem se importe com a baderna que está
acontecendo bem à sua frente. Seu olhar vai parar em mim, Paolo e Millie,
mas gentilmente nos puxo para o chão. Finalmente posso descansar as pernas.
— Acho que aqueles caras só podem estar apaixonados uns pelos outros
— comenta Millie, observando a briga, também agachada. — Tipo,
apaixonados de verdade.
— Certinho, galeeeeeraaaaaaa — grita o DJ. — Hã… acho que vocês
talvez queiram parar de brigar agora, porque está na hora da última música!
Isso aí, a festa está chegando ao fim, então quero ver todo mundo aqui no
meio vivendo a vida! Combinado?
Uma canção previsivelmente brega começa, mas a confusão não diminui.
Danny Delfino é empurrado na direção de Brittany Bottinini, e os dois caem
juntos. Danny está usando minha coroa.
— Isso é um insulto à nossa inteligência coletiva — exclama Shu-wen
Tsao, para ninguém em especial.
A pista está um caos. Com um grunhido frustrado, CopDoMal finalmente
entra na algazarra e faz tudo o que pode para separar os baderneiros.
— Já chega! — grita ele.
O sr. Canzola e o treinador Mueller se juntam a ele no coração da anarquia,
que rapidamente cessa. Não temos muito tempo.
— Vamos — falo, me impulsionando para levantar.
— Partiu — diz Paolo.
— É melhor eu chamar os seus pais? — sugere Millie.
— Estamos aqui — diz minha madrasta, atrás de nós, ao lado de Cynthia,
meu pai e Felix. — A gente queria ter certeza de que vocês não seriam
massacrados por aqueles meninos. Por que estão sentados no chão? O que
houve? Foram empurrados?
— Não, hã, é que as minhas pernas estão com um probleminha. Nada a ver
com a briga.
Raquel solta um arquejo.
— Sabia que a gente não devia ter vindo. Sabia.
— Raquel, tudo bem — diz meu pai, tentando tranquilizá-la. — Denton,
consegue ficar de pé?
— Acho que sim.
— Segura a minha mão — instrui ele. — No três, você levanta. Um…
Dois… Três! — Ele me puxa com força, mas não consigo me equilibrar. Sou
um peso morto.
— Não dá — digo. — Não dá.
Meu pai gentilmente me recoloca no chão.
— Você está paralítico? — indaga Paolo.
— Não, não estou paralítico. Só não consigo, tipo, mover as pernas.
— É isso que significa estar paralítico.
AimeuDeus, estou paralítico.
— Certo, que seja, será que alguém consegue arranjar uma cadeira de
rodas ou coisa do tipo?
Minha madrasta parece desolada com minha potencial paralisia, mas
recupera a compostura e entra em modo de ação.
— Ok, vamos sair deste lugar. Quem quer procurar uma cadeira de rodas
para o Denton?
— Será que tem isso aqui? — pergunta Paolo.
— Não sei! Vai, anda! — ordena Raquel. O garoto corre, puxando Millie
junto. — Querido, vai ficar tudo bem. Estamos aqui com você; isso é o mais
importante.
O comportamento da minha madrasta mudou sutilmente para um modo de
emergência. Está agindo, provavelmente com razão, como se este fosse o
começo do fim.
— Lyle e Felix, vão pegar o carro e parem na frente da entrada.
— Sim — concorda meu pai, já se movimentando.
— É melhor eu ficar aqui com o Dent — diz Felix.
— Está tudo bem, o seu pai precisa de ajuda. Vai com ele.
— Mas…
— Vai! — berra Raquel.
Ele obedece.
— Raquel — diz Cynthia —, se você quiser buscar o carro com o Lyle,
posso ficar com o Dent até o Paolo voltar com a cadeira de rodas.
— Mãe… — falo, evitando fazer contato visual com Cynthia.
Não a quero perto de mim.
— Você acha que vou deixar meu filho sozinho agora? — explode Raquel.
Ela se agacha e me abraça.
— Não, não! — exclama Cynthia. — Claro que não, Raquel. Claro que
não.
Olho para onde CopDoMal estava, mas o homem desapareceu. A confusão
se dissipou, e o salão está cheio de adolescentes curtindo a última música da
festa. Levanto a camisa e vejo que, confirmando meus piores temores, o
vermelho se espalhou pelo corpo, chegando até o ventre.
Paralisia rubra gradual. E não são apenas as pernas que não consigo sentir.
Também não sinto meu equipamento.
— Como vamos por aqui? — pergunta o CopDoMal, atrás de mim.
Ah, não.
— Tudo bem — responde minha madrasta, sem olhar para ele.
Acho que ela realmente se estapearia com aquele policial antes de deixá-lo
me levar com ele. Pela primeira vez na noite, fico feliz por meus pais terem
vindo comigo.
— Bem, que alegria saber disso. E você continua vivo — diz ele para mim,
olhando as horas no relógio de pulso dramaticamente. — São quase onze da
noite e ainda está aí. Nada mal.
— Aham — concordo.
— Ia preferir chegar até o finalzinho do meu dia de morte do que só até o
começo — observa ele, esfregando o queixo exatamente como um babaca
faria. — É o que sempre digo.
A esta altura, já não me importa mais como vou morrer, contanto que, de
maneira alguma, não tenha qualquer envolvimento com esse ser humano
horrível.
— Não sei se o senhor notou — diz minha madrasta —, mas este não é o
melhor momento para jogar conversa fora.
— Na verdade, vim até aqui para saber se vocês estavam precisando de
uma ajudinha. Achei que talvez quisessem uma carona até o hospital.
As pessoas começaram a olhar para nós e a cochichar.
— Não. Estamos bem aqui. Vamos levar o Denton para casa.
— Longe de mim discutir. Creio que estive lá hoje de manhã.
CopDoMal deixa escapar uma risada, como se estivesse se lembrando de
um acontecimento engraçado que todos presenciamos em uma festa a que
fomos juntos.
— É — responde Raquel, olhando para ele pela primeira vez. — Creio que
esteve.
— Bem. Tenham uma boa noite. Foi bom conhecer você, Dinton.
A forma como diz meu nome me dá um frio na espinha.
Observamos enquanto ele desfila para fora do salão, pegando o walkie-
talkie no cinto ao sair.
— Não acredito que um homem desses consegue virar policial — diz
Raquel.
— É — concorda Cynhtia. — Uma vergonha. Me deem licença um
minuto, vou ao banheiro rapidinho antes de irmos.
— Cuidado para não encontrar o Guarda Senil no saguão — adverte minha
madrasta. — Deviam tirar esses dinossauros do serviço assim que chegam aos
cinquenta anos. Enfiar todos eles em um escritório.
Dinossauro. Dinossauro Feliz.
Pego o celular no bolso e abro a caixa de mensagens do Facebook. Ao
segurar o telefone, me dou conta de que meu braço está ficando duro. Merda.
Meu corpo está desistindo de mim. Passo as mensagens e encontro a que
procurava: Dinossauro Feliz diz: Venha para Florescer!!! 4 ereções gigantes
você pode comprar 120 pílulas por apenas $129,95!! !!
Clico no nome. O perfil está quase inteiramente em branco. Não tem foto.
Apenas nome e local: Nova York. Clico na opção MENSAGEM. Preciso
fazer isso de uma vez para o caso de meus braços pararem de funcionar
completamente.
Oi, digito. Quem é você? Conhecia…
— Isto aqui deve servir — diz Paolo, correndo até nós, sem fôlego,
empurrando um carrinho de carga com uma cadeira dourada em cima.
— Não sei, não — retruca Millie, aparecendo ao lado dele.
— Foi só isso que conseguiram encontrar? — pergunta minha madrasta.
— Tipo, funciona — defende-se Paolo, movendo o carrinho para a frente e
para trás para fins de demonstração.
— É, para o transporte de caixas, malas, não do meu filho.
— Tudo bem, mãe. A gente se vira com isso. Deixa só eu terminar de
escrever uma coisa aqui… — volto a digitar.
— Terminar de escrever? Está mandando mensagem para alguém agora?
Todos os seus amigos estão bem aqui!
— É importante — respondo, escrevendo a última frase: Conhecia a minha
mãe?
Rapidamente reviso o que escrevi e clico em ENVIAR. A pequenina roda da
internet gira, se esforçando para mandar minha mensagem ao misterioso
Dinossauro Feliz.
— Vamos colocar você aqui na cadeirinha, Dent — diz Paolo.
— Aham, ok, eu… — Olho a tela do celular.
Ficou escura.
Aperto repetidamente o único botão não digital nele.
Nada. Acabou a bateria. Não faço ideia se a mensagem foi enviada.
— Pronto? — indaga meu amigo, estendendo a mão para mim.
— Vou ficar atrás dele — diz Millie.
— Maneeeeiro.
A última música terminou e, por toda parte, as pessoas começaram a sair
da pista de dança.
— Muitooooo obrigadoooo, galeeeraaaaa — berra o DJ. — Meu nome é
DJ Gary P da Fenomenal Produções, e espero que todo mundo tenha dançado
até cair hoje à noite. Para todos que estão indo para o Projeto BAILE, os
ônibus já estão esperando lá na frente.
Seguro as mãos do Paolo, que consegue me levantar, e em seguida, com a
ajuda de Millie, sou levado de ré até a cadeira de rodas improvisada.
— Alguém tem que segurar o carrinho — pede Paolo, enquanto, junto com
Millie, tenta, todo atrapalhado, me colocar no assento, fazendo com que a
gambiarra lentamente role para trás.
— Eu seguro. — Raquel se oferece, se posicionando atrás dele como se
estivesse manuseando um tanque.
Paolo e Millie trabalham juntos para me colocar na cadeira, mas só
conseguem quando Danny Delfino chega correndo para ajudar. Ele tira a
coroa de rei do baile.
— Aqui, cara, é sua.
É um gesto fofo, mas a ideia de estar sentado neste trono de rodas com
uma coroa plástica na cabeça é patética demais para meu coração moribundo
suportar.
— Não, toda sua, cara — digo.
— Ah. Certeza?
— Toda certeza do mundo. E, Danny…
— Oi?
— Você arrasa no sax. Continua tocando.
— Ah, maneiro, cara, maneiro. Valeu.
Ele vai embora, com um gingado no andar.
— Aquele garoto ficou tão feliz depois de ouvir o que você disse —
comenta Millie. — Os olhos dele chegaram até a, tipo, brilhar.
— Fiquei impressionado de ele ter vindo ajudar — diz Paolo. — Atitude
sem presidentes.
— Ha-ha, sem presidentes — repete Millie.
— É bom a gente tocar o barco, pessoal — diz minha madrasta. — O sr.
Little está esperando por nós. Tudo bem aí em cima, Denton?
Vejamos: parcialmente paralisado, prestes a morrer a qualquer instante,
sentado em uma cadeira de rodas estranha feita às pressas. Estou fantástico!
— Com certeza.
Seguimos para a saída em meio à multidão de alunos, minha madrasta
empurrando o carrinho enquanto Paolo abre caminho, e eu me seguro com
força à cadeira. Ela balança um pouco, e meus braços estão fracos.
— Vai ficar tudo bem — diz Millie ao meu lado, colocando a mão no meu
joelho.
— Valeu.
Ultrapassamos o limite que separa o salão de festas do saguão falso-
elegante, e sacolejo de leve na cadeira. Quase caio, mas consigo me segurar.
— É melhor ir um pouco mais devagar, Paolo — pede minha madrasta.
Ele está confuso, como se estivesse prestes a dizer: “mas é você quem está
empurrando o carrinho, minha senhora!”, mas Millie olha de cara feia para
ele.
— Ei! — Ouço um grito de algum lugar atrás de nós. É Phil. — Sorte a sua
que o seu namoradinho chegou, Little! Volta aqui!
Não há sequer a mínima fração de chance de brigar com ele agora. Mal
consigo me mover.
Todas as cabeças no saguão param e se viram para ele.
— Não, vocês não estão entendendo — defende-se Philip. — Ele me
deixou desmaiado no chão.
— Que bom! — exclama Ratina Jacobs. — Você é um babaca!
— O Denton é oito milhões de vezes melhor do que você jamais vai
conseguir ser — acrescenta Melissa Schoenberg.
— Só porque corre rápido não quer dizer que é um cara legal! — diz outra
pessoa.
Phil se perde na multidão.
— Rei Denton! — grita Willis Ellis, ao lado de Jeannie, a namorada
hippie. — Transporte maneiro, cara.
— Tipo isso — respondo.
— A gente se vê por aí, moleque.
— Tchau — diz Jeannie.
— Tchau, gente.
Penso em acenar, mas tenho medo de cair no chão se tirar as mãos da
cadeira.
Conseguimos chegar do lado de fora, onde está um pouco frio, com uma
brisa noturna cortante soprando. Apesar de tudo o que está acontecendo, tento
sentir o vento no peito, passando pelo tecido azul do terno.
— Está vendo o carro do seu pai? — pergunta minha madrasta.
O estacionamento se transformou em um verdadeiro zoológico, com dois
ônibus que levarão os alunos para o Projeto BAILE, uma zona sem restrição
de bebidas alcóolicas; seis ou sete limusines para levar os garotos “legais
demais” para ir ao Projeto a praias como Wildwood ou Ocean City; e depois
um mar de carros, dirigidos em sua maioria por alunos. E — em algum lugar
no meio de tudo — meu pai na nossa minivan.
— Ainda não — respondo.
— Bom, onde é que ele pode estar? Saiu há quinze minutos.
— Com certeza está por aí — diz Paolo. — Vou dar uma olhada. Você
vem, Millie?
— Ah, claro — responde ela, olhando para mim por um instante antes de
seguir atrás do menino para a selva automobilística.
— Vamos voltar para casa daqui a pouquinho, meu bem — diz minha
madrasta, nas pontas dos pés, tentando enxergar por cima da longa fila de
carros.
— Posso ajudar? — oferece CopDoMal, surgindo do nada.
Meus coração e estômago dão um salto, mas o restante de mim, não. Os
movimentos estão ficando cada vez mais escassos.
— Você está de brincadeira com a minha cara? — pergunta Raquel. — De
jeito nenhum. Não há nada que o senhor possa fazer, e não entendo por que
insiste em pensar que há.
— Bem, se é o seu marido que está procurando, acho que estou vendo o
carro dele bem ali. O seu outro filho também está lá. — CopDoMal aponta
para além do desfile de limusines. — Uma minivan, acertei?
— Onde? — pergunta Raquel, procurando na direção do braço esticado do
homem.
Começo a resvalar para trás, para o salão, e estou prestes a gritar por ajuda
quando alguém cobre minha boca.
— Desculpe, Denton — diz a mãe do Paolo no meu ouvido. — Vai ter que
confiar em mim.
Não. Isto não está acontecendo. Tento tirar a mão do meu rosto, mas meus
braços pararam de funcionar. Olho para baixo, e minhas mãos estão
vermelhas. Minha madrasta está absorta demais em uma discussão de trânsito
com CopDoMal para notar que estou sendo levado para longe. Eu devia
gritar. Mas a voz não sai.
Cynthia cuidadosamente navega de costas no meio da multidão, e acho que
alguém vai notar, impedir que isto aconteça, mas estão todos presos demais na
sua empolgação pós-festa. Passamos pela lateral do edifício e depois viramos,
e agora ela está atrás do carrinho, me empurrando.
Devia ter escutado Veronica e ido embora quando tive a chance.
Inclino a cabeça para ver se minha madrasta notou meu desaparecimento,
mas ela ainda está aflita tentando conseguir permissão para meu pai chegar
mais perto e facilitar minha entrada no carro.
Finalmente tento gritar, mas não sai nem um pio. Os músculos da minha
boca estão insensíveis e rijos.
Raquel evapora à distância. Só consigo enxergar parte do seu rosto.
Depois, nada.
Pode ser a última vez que a verei.
A mãe do Paolo me guia por um beco estreito ao lado do prédio, cada vez
mais distante da cacofonia de vozes lá na frente.
— Chegamos — anuncia ela, quando viramos.
Sua caminhonete está estacionada ao lado de duas grandes caçambas de
lixo, com o motor ligado. Ela tira a mão da minha boca.
— Por favor, não grite, querido, está bem? Sério, confia em mim.
Eu não poderia gritar mesmo se quisesse.
Ela me encara, de frente para o carrinho, analisando a situação.
— Qual é a forma mais fácil e segura de colocá-lo no carro? — Ela me
abraça e tenta me levantar da cadeira.
Meus braços inúteis caem flácidos.
— Ai, desculpa, meu amor — diz ela, me colocando de volta na cadeira.
— Melhor chamar a cavalaria. — Ela vai até o carro e bate à janela do carona.
— Vou precisar de ajuda.
A porta se abre, e Veronica sai do veículo, ainda bêbada.
— Eu falei para você ir embora — diz ela. — Por que não foi?
— Não sei — tento dizer, mas acaba saindo algo como “Niaumss”.
— Denton! DENTON! — Os gritos vêm da frente do edifício, parecendo
distantes, mas ainda assim capazes de se destacar em meio aos outros
barulhos. Minha madrasta. Ela está vindo me resgatar.
— Aimeudeus — exclama a mãe do Paolo, cobrindo os olhos. — Isso é de
partir o coração. — Ela se agacha e me olha nos olhos. — Denton, prometo
que isso é para o seu próprio bem. É uma pena que tenha que ser assim, mas
vou explicar tudo no caminho. Vem, Veronica. Me ajuda aqui.
Millie e Paolo começam a berrar meu nome também.
— Mãe, eu… — diz Veronica.
— Veronica — diz Cynthia. — Por favor, meu amor, você também tem que
confiar em mim. Preciso da sua ajuda. O Denton precisa da sua ajuda.
Veronica olha para mim, desolada. Eu a encaro. Ela ajuda a mãe a me tirar
da cadeira, passando os braços pelas minhas axilas e ao redor do peito,
enquanto Cynthia pega minhas pernas. Sinto a respiração ofegante da
Veronica na minha orelha enquanto tenta segurar firme.
Sei que minha madrasta me encontrará. Paolo também. E Felix. A qualquer
segundo.
Depois de uma extensa sequência de manobras atrapalhadas, sou mais ou
menos enfiado no banco de trás do carro. Vou caindo de lado devagar, mas a
mãe do Paolo me segura, gentilmente me acomodando.
Cynthia entra no automóvel, com a filha ao lado. Ela passa a marcha e
acelera, virando para o outro lado de Haventown Gardens.
Quando passamos pelo estacionamento, avisto a minivan dos meus pais.
Solto grunhidos inúteis enquanto seguimos em frente. Paolo está ao lado do
carro, os olhos vigilantes procurando, e acho que percebe o carro da mãe se
distanciando. Ao menos espero que sim.
Cynthia olha para a frente, decidida. Veronica se vira para mim. Ao
sairmos do estacionamento, finalmente me dou conta. Ninguém me
encontrou. Fui sequestrado pela mãe do Paolo.
— A PARTE DIFÍCIL já acabou — afirma Cynthia, olhando para o espelho
retrovisor. — Obrigada pela cooperação. Sei como isso tudo deve estar sendo
confuso e assustador.
Como se eu tivesse escolha.
— Tudo bem? — indaga ela.
Agora só consigo mover a cabeça e o pescoço, então posso ao menos fazer
que sim ou que não, se quiser. Mas não quero.
— Acredite em mim quando digo que odeio que tudo tenha acontecido
deste jeito. Queria que você se despedisse da sua família. Do Paolo. Mas eles
jamais entenderiam.
A cidade passa como um borrão pela janela.
— Mãe, nem eu entendo — diz Veronica, tirando o capuz.
— Denton, eu trabalho para a AIM, Agência de Investigação de Morte. Já
ouviu falar?
Não. Apenas um grunhido.
— Acho que a Veronica já deve ter contado que estive vigiando você pela
maior parte da sua vida. Desde os cinco anos. Era a candidata perfeita para o
seu caso. Além de o Paolo ser da sua idade, os dias de morte de vocês eram
muito próximos. Foi, tipo, destino. Meu filho tinha tudo para ser seu melhor
amigo. Que desculpa melhor haveria para me permitir passar todo esse tempo
com você?
Não sei o que dizer diante dessas revelações.
— Não que o Paolo saiba de alguma coisa. Mas, Denton, não tenho nem
palavras para explicar como passei a me importar com você. A amar você
como se fosse um filho. — Eu encaro sua nuca durante seu discurso. — Não
quero que pense que todas as nossas interações foram uma mentira. Nenhuma
delas foi.
— Você adora essas merdas! — exclama Veronica.
— Por favor, não começa, Vê.
— Por que não? Você está ouvindo o que está dizendo? Acabou de
sequestrar o garoto, e a mim! E ainda está dizendo que foi por amor?
— Não tinha outro jeito.
— Ah, então quando estava na cozinha enfiando aqueles seus comprimidos
goela abaixo no Denton, foi por amor? O que é aquilo, aliás?
Não quero saber.
Ela olha para Veronica, depois para a estrada novamente.
— Eram mesmo comprimidos de homeopatia! Para lidar com a ansiedade.
Sabia como o dia seria difícil para ele, só estava tentando ajudar.
— Mesmo? — indaga Veronica.
— Mesmo.
— E quando você mentiu para ele para convencê-lo de que a namorada
tinha terminado o namoro?
— Olha, não me orgulho disso, mas não havia outra maneira de fazer o
Dent passar a noite lá em casa — explica. — Eu precisava de uma amostra do
sangue e do cabelo dele o mais próximo da meia-noite possível e no dia
anterior ao de sua morte, quando o vírus ainda não tivesse sido ativado. Me
sinto muito mal por isso, mas não tive escolha.
Eu e Veronica. Os dois parte da armação.
— Mas também não achei que vocês dois fossem…
Ok, ufa. Pelo menos, nossa transa não foi parte do plano. Porque se a mãe
do meu melhor amigo fosse a responsável pela minha primeira vez, teria sido
vexame demais até para mim.
— Não. Acredito. Nessa. Merda! — grita Veronica para o vidro fechado.
— Shhh. Por favor, Vê.
— E aquela mentira que você contou, sobre ser apaixonada pelo pai do
Dent? As suas mentiras estão espalhadas por toda parte. É nojento.
— Fui mesmo apaixonada pelo Lyle! Sempre quis que vocês tivessem uma
figura paterna por perto.
— Você é completamente maluca — diz Veronica.
— Alguma coisa de tudo que falei faz sentido?
A mãe do Paolo olha para o espelho, esperando que eu dê algum sinal de
confirmação. Não dou. Quase nada disso faz sentido.
— Vamos colocar desta forma. São — ela olha para o relógio digital no
painel do carro — onze e doze da noite do dia da sua morte, e você continua
vivo.
Também estou roxo, mudo e paralítico.
— O que estou dizendo é que pode ser que você sobreviva, Denton. Pode
ser que sobreviva ao seu dia de morte.
O som se dissipa. O ar fica preso no meu peito. Minha cabeça balança para
a frente e para trás, ainda presa ao pescoço. Talvez sobreviva. Como é que é?
— Mãe, por que você está dizendo isso? — pergunta Veronica. — Está
parecendo uma louca!
— É verdade. Denton. Essa coisa roxa-vermelha que você chamou de
mancha? É um vírus. Sua mãe o injetou em você antes do parto.
Minha mãe.
— Até onde sabemos, pouquíssimas pessoas foram infectadas com ele.
Você é uma delas. E é o primeiro a chegar ao respectivo dia de morte. — Olho
para o relógio: 23h14. Restam quarenta e seis minutos. — Ou seja, o que
acontecer com você é de interesse considerável de certas pessoas.
— Mas… — começa Veronica. — Eu também peguei… E o Paolo. Quer
dizer, o que isso significa?
Cynthia se vira para a filha.
— Não sabemos. Talvez nada.
Olho pela janela e tento adivinhar aonde estamos indo.
— Washington — diz a mãe do Paolo, como se estivesse lendo minha
mente. — Estamos indo para Washington, se é nisso que está pensando. A
AIM vai cuidar de você.
Acho difícil acreditar que uma organização que tenha a palavra morte no
nome dê prioridade aos bons cuidados.
— Quer dizer, isso se você realmente sair ileso do dia de hoje. Se não, dou
meia-volta, e o governo e eu bolamos uma história convincente para justificar
sua presença neste carro comigo na hora de sua morte.
Ela olha pelo espelho.
— Ai, merda.
O motor faz um som furioso enquanto aceleramos.
— Isto é exatamente o que eu queria evitar — diz ela. — Os seus pais nos
alcançaram. Não sei bem como, mas alcançaram.
Eles me encontraram!
— Parece que é o seu irmão dirigindo — afirma Cynthia. — Não quero
que ninguém se machuque. Isso saiu do controle!
Ultrapassamos um sinal vermelho.
— Mãe — diz Veronica, segurando firme no braço do banco. — Não dá
para a gente encostar e conversar com eles?
— Não é assim que funciona — retruca Cynthia.
Ela dá um cavalo de pau, cantando pneu e me jogando para o lado. Minha
visão fica limitada ao tecido cinza do banco do carona à frente.
Ouço a minivan fazendo uma manobra barulhenta similar logo atrás.
Fazemos outra curva, que me coloca novamente sentado. Ninguém pensou em
colocar o cinto de segurança em mim. A mãe do Paolo olha pelo retrovisor, e
sei que minha família continua em nosso encalço. O som de uma sirene
policial corta a atmosfera.
Veronica olha para trás.
— Hã, mãe, tem um guarda vindo.
— É. — Cynthia solta um suspiro. — Ele está com a gente. Infelizmente.
— Ela fala comigo pelo retrovisor. — Mil desculpas por aquele idiota ter
ficado na sua cola a semana inteira, Dent. Normalmente teria outro agente me
ajudando, mas aquele cara é o irmão do chefe do meu chefe, então não tive
escolha.
Ela está ligada ao CopDoMal.
— O poder subiu um pouco à cabeça do velho. É uma pena.
— Ele vai prender os pais do Dent? — indaga Veronica.
— Não, só atrasá-los.
Um solavanco nos empurra para a frente, nossas cabeças simultaneamente
sendo jogadas para a frente e para trás. Felix deve ter enfiado o para-choque
da minivan na traseira do carro de Cynthia.
— Mas que droga! — exclama ela. — Estou fazendo isso para ajudar o seu
irmão! — grita ela para o retrovisor.
— Mãe, você está me assustando de verdade — diz Veronica. — Dá para ir
um pouco mais devagar, por favor? Ou parar, sei lá.
— Vê — diz Cynthia, olhando para a filha. — Por favor, aguenta aí. Não
forcei você a ir para casa e entornar toda aquela bebida; foi uma escolha sua.
E agora você precisa…
Percebo o carro à nossa frente antes de Cynthia, e apenas uma fração de
segundo antes de Veronica. No entanto, é como se pudesse ver não apenas o
carro, mas tudo que está prestes a acontecer. Eu me sinto estranhamente em
paz.
— EpaMãeMãeMÃÃÃEE! — grita Veronica.
Tecnicamente, não sinto nada. Mas estou consciente de tudo.
Os olhos de Cynthia se voltam para a frente, a tempo de ver o veículo
parado logo adiante, pacientemente esperando o sinal. Que fique claro: se eu
pudesse mexer os braços, este seria o momento em que tentaria colocar o
cinto de segurança.
A mãe do Paolo enfia o pé no freio. Não é o suficiente. Tarde demais. Os
pneus cantam.
Em seguida: o estrondo arrepiante de algo sendo amassado. A explosão
dos air bags.
Ao ser jogado pelo para-brisa, vislumbro o carro esportivo amarelo em que
batemos e sei imediatamente quem é o motorista.
ABRO LIGEIRAMENTE OS olhos.
Estou na horizontal. E não no bom sentido.
Ao meu redor, as pessoas sussuram, preocupadas. Não sinto nada.
Ouço uma sirene de ambulância.
Fecho os olhos.
— DEIXA COMIGO, CAMARADA.
— Como é, seu guarda?
— Cuidarei de tudo daqui para a frente. Eu mesmo vou levá-lo para o
hospital.
— Me desculpe, senhor, mas isso é contra as regras. Alguém com
treinamento médico precisa estar com ele o tempo inteiro. É o protocolo.
— Mas eu ia levá-lo junto com esse outro pessoal nas macas. E todos estão
acompanhados de pessoas com treinamento médico. Um deles pode cuidar do
menino também.
— Não sou eu quem faz as regras, senhor. E a menos que tenha alguma
razão embasada na lei para acompanhá-lo, sequer permitirão que o senhor
passe da sala de espera.
— Na verdade, tenho, sim, uma ótima razão, rapaz. Este adolescente é um
criminoso.
— Ah, é?
— É isso aí.
— Bem, além de ter sobrevivido por algum milagre depois de ter sido
arremessado pelo para-brisa de um carro a noventa quilômetros por hora, ele
parece estar paralisado do pescoço para baixo, então creio que não haja muito
com que se preocupar.
— Já estava assim antes do acidente.
— O quê?
— É isso mesmo que eu disse. O garoto é um criminoso e já estava
paralisado antes.
— Ah… Agora entendo como sobreviveu à batida…
— Então vou cuidar de tudo agora, e você pode… cuidar de algum outro
assunto hospitalar.
— Eu… Não, desculpe, vou precisar ver a papelada para comprovação.
Ouço o ruído inconfundível de portas automáticas se abrindo.
— Vai ter que me perdoar por não estar sempre carregando um calhamaço
de papéis quando estou de serviço. Mantendo a cidade segura.
Entramos.
— Tudo bem. Mas, desculpe, o senhor não vai entrar na emergência com o
menino.
— Escuta aqui, mas escuta direitinho. — A maca para. — Você não
entende uma vírgula do que realmente está acontecendo, então por que não
deixa os profissionais cuidarem de tudo?
— Não, senhor, entendo perfeitamente. Hoje é o dia de morte deste
menino, estou inteiramente a par disso, então o senhor acha que devíamos
simplesmente desistir. Alguns hospitais talvez funcionem assim, mas nós,
não. Lutamos até o último minuto para fazer com que o fim dos nossos
pacientes seja o mais confortável e tranquilo possível. Agora, se o senhor me
dá licença…
Continuamos.
— Volta já aqui! Para essa maca, rapaz!
— Não.
— Será que você não entende mesmo? Sabe que horas são? São onze e
cinquenta e três da noite. Vocês têm sete minutos! Caramba, o que vão fazer
em sete minutos? Deixa eu levar logo o garoto!
— Não.
Ruídos caóticos de hospital nos cercam. Não ouço novas objeções de
CopDoMal.
Eu poderia abrir os olhos, mas tenho medo. Meus instintos me dizem que é
melhor para mim que continuem pensando que estou inconsciente.
Uma recapitulação rápida do que descobri desde que voltei a mim:
Houve um acidente terrível. Fui jogado pelo para-brisa. Outras pessoas
também saíram feridas. Estou (ainda) paralisado. Estar paralisado de alguma
forma salvou minha vida. O CopDoMal quer me sequestrar, continuando o
trabalho do ponto em que a mãe do Paolo o deixou. Ah, e tenho sete minutos
de vida. Provavelmente seis agora.
Imagino como meu corpo deve estar ferrado.
— Está tudo bem com ele? — Paolo! Ele está ofegante. — Ei, senhor, esse
aí é o meu melhor amigo. Ele ainda está vivo?
— Está, está respirando. Inconsciente, mas respirando.
— Nossa! Sério mesmo? Que irado!
Ai, Paolo.
— Não temos muito tempo.
— Não, mas ainda assim é irado! Que horas são? Que loucura! E ele até
que parece bem, não é, não, doutor?
— Não sou médico ainda.
— Ah, foi mal, os médicos não usam esses pijamas, né?
— Não, eles usam, sim.
— Ah. Bom, enfim, mas ele parece bem mesmo. Tipo, está todo
ensanguentado, mas não tooodo superensanguentado.
— É, o seu amigo tem muita sorte. Mas, desculpe, vocês não podem ficar
aqui.
— Mas a gente também se envolveu no acidente. O terceiro carro que
bateu nos outros dois. — Ai, não. Minha família. — E, tipo, esse cara é o meu
melhor amigo, então…
— Olha, se você quer que a gente o ajude, temos que começar a trabalhar
já. Por favor, é desse jeito que vai conseguir ajudar de verdade o seu amigo.
— Ok, ok. Foi mal. — Paolo parece um pouco emotivo. — Denton. — Sua
voz parece próxima, e o hálito cheira a picles. — Você só tem mais alguns
minutos, e esse carinha está me obrigando a ir embora. Não sei se consegue
me ouvir, mas… Você é o meu melhor amigo, e vou sentir muito a sua falta.
Mesmo que a gente se encontre daqui a um mês, certo? Ah, cara, isto é tão
intenso, não sou um bebê chorão normalmente. Estou com tanto ódio da
minha mãe por ter sequestrado você e tal. Ei, aliás, Moço do Hospital, você
viu a minha mãe por aí? Estava na mesma ambulância que o Dent. Que este
menino. Este adolescente.
— Acho que a sua mãe já entrou na emergência — responde o jovem
médico.
— Ela está bem?
— Não estava usando o cinto de segurança e deu de cara no air bag. Ela
vai ficar bem, mas ainda não recuperou os sentidos.
— Ah. Hã… Posso ver como ela está ou coisa assim?
— Não, você nem devia estar aqui comigo. Vou ter que pedir aos dois
que…
— Mais uma coisinha só — insiste Paolo. — Você viu a minha irmã?
Veronica? Uma garota de cara fechada? Meio parecida comigo?
— Não.
— Não? Ih, cara. Isso significa que ela estava de cinto, então…?
— Não sei. Você tem que sair.
— Ok… Te amo, Dent! — Ouço o som dos passos do Paolo pelo corredor.
— Millie, vem! O que você está olhando?
Millie também saiu ilesa da batida. Que bom.
— Sempre gostei de você, Denton — confessa ela, baixinho. — Tipo
gostar-gostar de verdade.
— Ei, Millênio, anda logo! A gente tem que dar no pé para ajudar o Dent.
— Eu sei, mas…
— Confia em mim — diz ele. — Tenho um plano.
— Isso me preocupa. — A luz por trás das minhas pálpebras fica mais
fraca quando Millie se aproxima. — Tchau, Denton. Obrigada por tudo. —
Ela me dá um beijinho na bochecha, e depois seus passos se juntam aos do
Paolo, ecoando pelo corredor para longe da minha maca.
A conversa que tivemos no carro invade minha cabeça outra vez. Minha
mãe. Um vírus que foi injetado em mim enquanto eu estava no útero.
Sobreviver ao dia da minha morte.
Abro os olhos, mas não muito, só para enxergar um pouco, mas ainda
parecendo inconsciente. Azulejos brancos e luzes fluorescentes no teto
passam depressa. Tento olhar para meu protetor, mas é difícil do ângulo em
que estou posicionado, especialmente por estarmos em uma velocidade
surpreendente. Ele parece ter uns vinte e cinco anos e ser negro, indiano ou
hispânico, não sei dizer.
— Quase lá, amigo — diz ele. — Não se preocupe.
Volto a fechar os olhos.
— Sean, Sean, espera, espera.
Uma voz nova. Desaceleramos, mas não chegamos a parar.
— Dr. Hemler, este menino precisa de cuidados imediatos.
— Não, Sean. Para. Para!
Paramos.
Abro os olhos o mínimo possível e vejo que o dr. Hemler é um homem
quase calvo, com uma verruga na lateral do queixo. Tem um ar distinto, mas
muitas rugas.
— O tempo dele acabou — diz o médico. — Só tem mais dois minutos de
vida, e não parece estar sentido dor, então é tudo o que podemos fazer.
— Não entendo. O menino ainda está respirando; temos que levá-lo para a
emergência.
— Sean, presta atenção. — A voz do médico mais velho fica muito baixa.
— A ordem veio lá de cima. Muito lá de cima. É do interesse do hospital, e de
todos nós que trabalhamos aqui, que façamos o que nos instruíram a fazer e
entreguemos o menino à polícia.
— Como é?
— Você ouviu o doutor, rapaz.
Ele voltou.
— Vamos entregar um paciente para esse policial? E os pais dele?
— Olha, olha — diz o médico. — Os pais do menino estão sendo
atendidos por conta dos ferimentos que tiveram no acidente. O corpo do filho
será entregue a eles assim que a polícia tiver terminado.
— O corpo do menino? Ele ainda está respirando!
— Sim, claro, mas, considerando-se que o dia de morte dele acaba em um
minuto, isso já não será mais assunto nosso.
— Não entendo. Pode ser que este menino sobreviva ao dia de morte, o
que significa que algum tipo de milagre médico terá acontecido, e você está
dizendo que não é assunto nosso?
— É exatamente isso que estou falando. Não estará mais dentro da nossa
jurisdição. E se quer mesmo ter algum futuro na carreira médica, sr. Davis, se
eu fosse você, deixaria o menino ir com o policial.
Tento ouvir tudo o que está sendo dito enquanto ignoro a insistente
contagem regressiva na minha cabeça. Menos de um minuto de vida restante.
Talvez.
Espontaneamente, imagens percorrem minha mente: correr pela floresta
sob a luz do sol. Ver o óleo de uma fatia de pizza de pepperoni escorrendo e
manchando minhas roupas. Encontrar Taryn sorrindo para mim no corredor.
Folhear uma revistinha em quadrinhos. Ver meu pai e minha madrasta
esperando por mim quando saio do ônibus, voltando para casa depois de uma
temporada inteira na colônia de férias. Estar sentado em uma roda na creche,
ao lado de Sophie Heller. Tentar desesperadamente alcançar o balcão da
cozinha, mas ser pequeno demais para isso. Seguir Felix até o jardim todo
empolgado por ele ter aceitado brincar comigo.
Meu coração bate mais rápido. O fim é assim.
— Ok — concorda Sean.
— Bem, dá só uma olhada nisso — diz CopDoMal. — Meia-noite. O dia
acabou. Acho que assumo daqui em diante, senhores.
Ele me leva para longe.
ACONTECE QUE NÃO foi o fim. Pois continuo vivinho da silva. Minha
mãe me salvou. O vírus da minha mãe me salvou. E o que exatamente isso
significa?
Talvez não seja de fato meia-noite ainda.
— Caramba, nem consigo acreditar! — exclama, eufórico, o CopDoMal,
como se estivesse lendo meus pensamentos. — Mas vejo que está respirando,
e o meu relógio aqui me diz que é meia-noite e um. Isto é um acontecimento e
tanto.
A maca segue adiante. Não faço ideia de para onde ele está me levando.
— Sabe, a gente ouve essas histórias, mas nunca acredita de verdade.
Meu corpo começa a formigar. É a primeira vez em horas que sinto algo.
— Lendas urbanas, histórias da carochinha.
Começa no meu rosto, lentamente segue pelo tronco, pelos braços, pelas
pernas, até os dedos dos pés.
— Mas cá está você, vivendo um dia que não deveria viver.
Talvez esta seja a verdadeira sensação de estar morrendo.
— Agora depende de mim tirá-lo daqui. Com certeza as pessoas vão
querer estudá-lo. Entender como foi que conseguiu.
Como consegui?
Abro um pouco os olhos e vejo o policial pegar o walkie-talkie.
— Estou com ele. Ainda vivo. Temos que dar no pé logo. Claro que serei
discreto, quem você pen…
— Parado aí.
Conheço essa voz.
— Sinto muito, doutor, mas o menino precisa ser levado para a emergência
imediatamente, só tem…
— Não vem com essa baboseira para cima de mim, seu guarda. — É Brian
Flores. — Sei muito bem quem é o garoto, muito melhor do que o senhor, e
sei que não posso deixá-lo sair daqui com o senhor.
Merda.
A maca para.
— Então você sabe, hein? Acha que só porque trabalha nesse
hospitalzinho, pode se meter no caminho de um oficial da lei?
— Não trabalho aqui. E acho, sim.
— Bem, está errado. Agora cai fora.
— Não.
— Quer que eu chame reforços? Quem sabe inventar um motivo para
prender o senhor?
Brian hesita antes de responder, possivelmente avaliando se o CopDoMal
está blefando ou não.
— Antes de fazer isso, talvez queira dar uma olhada nisso aqui.
Escuto enquanto dr. Flores desdobra um pedaço de papel e o entrega ao
policial.
Não chega a passar nem um segundo, e sou surpreendido pela voz de Brian
no meu ouvido:
— Quando puder… Corra.
Ele não deve ter percebido que estou paralisado.
— O que é isto? — pergunta o CopDoMal em resposta ao que quer que
esteja lendo.
Sinto a mão de Brian na minha cintura e estremeço. Ele deixou algo no
bolso da minha calça.
Espera. Eu senti isso.
— Parece uma receita médica. O que isso tem a ver comigo?
— Nada — responde Brian enquanto pega o papel de volta. —
Absolutamente nada.
Seus passos e sua voz se distanciam de nós.
Mexo os dedos das mãos. E dos pés. Endireito o tronco. Consigo me
movimentar!
— Não tenho tempo para essa palhaçada — resmunga o CopDoMal. —
Vamos fazer um desvio rápido.
A maca desacelera. Abro os olhos e vejo que o homem inspeciona todas as
portas por onde passamos, procurando alguma coisa. Muito sutilmente,
flexiono os tornozelos direito e esquerdo. Eles começam a formigar.
— Isto vai servir — diz ele enquanto vira à esquerda, pela porta do que me
parece uma minúscula despensa de materiais médicos. Ele para a maca bem
no meio do cômodo.
Fico observando o CopDoMal pegar uma seringa sabe Deus onde,
possivelmente do esconderijo embaixo de suas bolas. Eca. Ele a segura diante
da luz e dá duas batidinhas no plástico.
— Desculpe ter que fazer isto, mas você claramente não está em posição
de se importar.
Fecho os dedos da mão esquerda. Meu coração bate um milhão de vezes
por segundo.
— É só um leve sedativo, para garantir que você vai permanecer apagado
durante todo o processo.
O homem pega meu braço direito e se prepara para me furar.
— Nunca fiz isto antes. He-he… Lá vai.
Coloco o plano em ação, rapidamente dando um tapa no pulso do
CopDoMal e derrubando a seringa.
— O qu…?! — exclama o velho.
Puxo a perna e, com o impulso, dou um chute no peito dele, que bate em
uma prateleira, não com a força que eu esperava, mas fazendo com que perca
o equilíbrio e caia sentado no chão.
Eu me levanto e sinto as pernas bambas.
Tenho que abrir a porta e correr, mas a despensa é apertada demais, e a
posição de CopDoMal bloqueia a porta diretamente.
Merda.
Devagar, o velho se levanta.
— Você não vai a lugar algum, rapaz. Especialmente depois dessa
gracinha.
Deslizo até o canto mais distante do pequeno armário, as costas encostadas
na parede.
CopDoMal se debruça, pega a seringa.
— Por favor — peço, a voz seca e rouca. — Eu vou com você. Não precisa
fazer isso.
— Preciso, sim.
Ele avança na minha direção, surpreendentemente ágil, e está prestes a
enfiar a agulha em mim, quando a porta se abre com violência, e alguém bate
na cabeça do homem com algo duro.
É Felix! Com uma comadre.
— Sai daqui, Dent! Vai!
Por um momento, CopDoMal fica desnorteado, e aproveito para fugir.
Felix me salvou. Outra vez. Um bilhão de pontos fraternais para ele.
Caminho pelo corredor o mais depressa possível, com a sensação de estar
percorrendo o que parece a maior cama de alfinetes e agulhas em que alguém
já andou na vida.
Mantenho a cabeça baixa, tentando parecer tranquilo e elaborar algum tipo
de plano de ação, mas duas pessoas de uniforme azul se aproximam de
repente. Tento apressar o passo e evitá-los.
— Caramba! Você está dando uma de fantasma! Mas o que é que ainda
está fazendo vivo?
São Paolo e Millie, por alguma razão usando roupas hospitalares. Eles me
abraçam.
— Shh, não faço a menor ideia — respondo.
— Estou tão feliz! — exclama Paolo.
— Por que vocês estão vestidos assim?
— Paolo tinha um plano — explica Millie.
— É, um plano para salvar você, mas acho que a gente não vai mais
precisar dele.
— Não, pode ser que precisem. O Felix me safou lá atrás e está cuidando
do CopDoMal, mas duvido que consiga segurar o velho por muito mais
tempo. — Olho para trás para confirmar que ninguém está me seguindo.
— Ei, você não está mais roxo! — observa Paolo.
— Epa, é, nem você!
— A minha roxidão foi, tipo, indo embora depois da meia-noite. Foi
maneiro, né, Millie?
— Hã… — hesita ela. — Se por maneiro você quiser dizer nojento…
— Acho que não vai demorar muito até o CopDoMal voltar a ficar na
minha cola — falo. — Vocês sabem em que quarto os meus pais estão?
— Vem comigo, parceiro.
Paolo nos guia por um longo corredor, depois por um lanço de escadas até
o andar de cima, e então por outro corredor. Tento parecer normal e fora de
suspeita, apenas mais uma pessoa viva passando pelo hospital. Não sei bem se
está funcionado. Qualquer ruído me assusta.
— Falando em pais — digo —, a sua mãe…
— Ah, nem me fale. Estou surtando com isso. A Veronica estava falando a
verdade!
— É, foi mal, cara. A sua mãe passou a minha vida toda me espionando.
Paolo balança a cabeça, perplexo.
— Estou com muita raiva, mas parte de mim também acha isso incrível.
— Ela sabia que eu tinha uma chance de sobreviver ao meu dia de morte.
— O quê? Então por que ela bateu com o carro?
— Ela perdeu o controle. Acho que era desse jeito que eu deveria ter
morrido: em um acidente de carro com o Willis Ellis.
— Como é que é?
— Pensa só, em três momentos diferentes ele e o carro amarelo quase me
mataram. Mas, por alguma razão, não funcionou. O vírus roxo me salvou.
Especialmente nessa última vez.
— Estou perdido, cara.
— Saquei — diz Millie.
— Eu estava paralisado, então, quando fui jogado para fora do carro, não
dava, tipo, para tensionar o corpo nem nada. Por isso não me machuquei. Era
como se um boneco estivesse voando naquela hora.
— Uau. Que teoria louca.
— Não é teoria, foi o que aconteceu mesmo.
— Vai ver o vírus roxo me salvou também.
— Como assim?
— Sei lá, só porque eu também estava roxo.
— O Willis Ellis se machucou, aliás? Ou a Jeannie?
— Nada, ficaram lá até a polícia e a ambulância chegarem, deram todas as
informações e depois se mandaram para a pós-formatura. Ele ficou chateado
pelo carro da mãe. Mas tem conserto.
— Ah. É. Que pena.
— Chegamos. — Paolo para diante de uma porta aberta. — Minha mãe
também está aí dentro. Só para você ficar sabendo. Nossos pais são
coleguinhas de quarto. Legal, né?
— Ah.
— Não se preocupe, ela não acordou ainda. Acho.
No cômodo, há quatro camas encostadas na parede mais distante. Minha
madrasta está em uma delas, dormindo, mas ainda com uma expressão
exasperada. O rosto está normal, mas há um curativo grande na lateral da
cabeça.
É culpa minha.
Papai está ao lado dela, também inconsciente, também com o rosto ileso. A
perna está engessada e suspensa.
Minha culpa também.
A mãe do Paolo está na terceira cama. Também está inconsciente, com o
rosto todo machucado e cheio de curativos.
Por ela não me sinto tão mal. Estou mais para confuso/aterrorizado.
A quarta cama está vazia.
Eu me pergunto onde estará Veronica.
Enquanto olho ao redor, flagro papai me encarando, com os olhos
arregalados. Ele abre a boca, prestes a dizer algo, mas desiste. Trocamos
olhares, e os únicos sons no quarto são os apitos das máquinas.
Ele me encara, não com sua distração de sempre, mas como se realmente
entendesse. Como se sempre tivesse entendido. E sabe que não posso ficar
aqui. Ele olha para minha madrasta, depois para mim de novo e assente
discretamente. Quero lhe dizer que o amo, mas apenas assinto também.
Em seguida, a mãe do Paolo abre os olhos. E olha para mim. Meu corpo
inteiro congela.
Ela me encara por alguns segundos, e estou certo de que vai falar algo, mas
depois fecha os olhos e relaxa o corpo.
É hora de ir.
Volto a olhar para papai e tento sorrir. Aponto para minha madrasta e sopro
um beijo para ela, esperando que o ato seja corretamente interpretado como
diga à mamãe que a amo.
Ele assente outra vez. Saio do quarto.
— Como foi? — indaga Paolo.
Minha garganta está com um nó. São tantos sentimentos que não consigo
falar.
— A sua mãe me assusta — falo, enfim.
— Foi mal. Isso é muito louco. Você é, tipo, um homem procurado. Vou
com você. É tudo tão Thelma e Louise.
Começo a caminhar pelo corredor, e Paolo e Millie me seguem.
— Vou também — diz Millie.
— Isso aí, gata — comemora Paolo. — Você pode ser o nosso Brad Pitt.
— Me empresta o celular um segundo, Paolo? — peço.
— Claro.
Saio da conta dele do Facebook.
— Ah, cara, não sai da minha conta!
— Por quê?
— Foi mal, não é hora para piadas.
Entro no meu perfil e imediatamente clico na caixa de mensagens,
procurando uma resposta do Dinossauro Feliz.
Está lá.
Abro:
Correto!! ! Venha para Florescer!!!!! 4 ereções gigantes você pode
comprar 120 pílulas por apenas $129,95!! !!
Há um novo link e um número de telefone abaixo da mensagem, instruindo
a clicar/ligar para pegar o endereço.
Diz Correto!, o que significa que o remetente conhecia minha mãe? Ou
estou deduzindo coisas a partir de um anúncio de medicamentos para ajudar
com problemas de ereção?
— O que foi? — pergunta Paolo. — Já está combinando pegações com as
gatas na vida após a morte?
— Tipo isso.
— Dent! — grita Felix, aparecendo na porta da escada bem ao nosso lado.
— Você tem que sair daqui! Dei aquele sedativo para o velho, então acho que
está desmaiado, mas ele já tinha chamado reforços. Muitos.
— Ok, ok.
— Vá até o final do corredor, desça a escada até o porão. Tem uma
portinha lá embaixo. Saia por ela. E vá para algum lugar longe daqui.
— O quê?
Não consigo processar o que ele está dizendo. Ele enfia um maço de
dinheiro na minha mão.
— Leva isto aqui.
— Você está muito estranho, Felix, não quero o seu…
— É, bom, acabei de atacar um policial. O dia está estranho.
— Maneiro! — exclama Paolo.
— Posso buscar a minha bicicleta na sua casa, Denton — sugere Millie. —
Está um pouco ferrada, mas dá para usar.
— Perfeito — diz Felix.
— Vou junto com você. A gente pega um táxi. Até daqui a pouco, Dent.
Paolo e Millie correm.
— Você acha que eu devia pegar a bicicleta da Millie? — pergunto ao meu
irmão.
— Claro que não — responde ele. — Só falei aquilo para despachar os
dois. As coisas já estão perigosas demais do jeito que estão; eles não precisam
se meter nessa história também. Recebeu algum contato com um endereço?
— Contato? Do que você está falando? — pergunto.
— Um endereço! Era para mandarem um endereço!
— O quê? Não, eu… Ah, espera aí! — Levo a mão ao bolso e tiro um
pedaço de papel. Nele, está escrito: Desculpe não ter explicado melhor no
carro. Arriscado demais. Mas você sobreviveu. Vá ao endereço 53rd St., 301
W, 2D, NY. Vai ficar tudo bem. Brian
— Ah, que bom, você anotou — diz Felix.
— Não, isto é do Brian Flores, foi ele quem colocou no meu bolso.
Falar seu nome em voz alta faz uma frase piscar em meu cérebro: Venha
para Florescer!!! Flores.
Mas o quê…
Procurar Flores! Pegar o endereço.
Era para ter clicado e pegado o endereço na mensagem do Dinossauro
Feliz. Mas não consegui deduzir. Por isso Flores veio até mim.
O homem sempre soube que eu sobreviveria.
— Quando ele falou com você?
— Um pouco mais cedo, quando eu estava na maca.
— Ah, cara, mas, bom, ele conseguiu entregar, pelo menos. Você precisa ir
até esse endereço.
— Mas fica em Nova York.
— Denton. — Felix volta a colocar as mãos nos meus ombros, e noto que
tem um grande corte na testa, provavelmente do acidente de carro. Ele olha
para trás para se certificar de que não há ninguém vindo, depois me encara. —
Eu te amo, mas você não entende o que está acontecendo aq…
— Então me ajuda a entender! O que é que está acontecendo?
— Me escuta. Você sobreviveu ao seu dia de morte. Por causa do, bom…
— Por causa do vírus, né? A mãe do Paolo me contou que a nossa mãe
injetou esse tal vírus em mim antes de eu nascer.
— Ah. — Felix não esperava que eu soubesse disso. — É, ela fez isso,
sim. Mas o governo descobriu. E não querem as pessoas por aí vivendo além
do seu dia de morte. Nem um minuto a mais. Que é a razão pela qual, no fim
das contas, a mãe do Paolo passou a sua vida inteira espionando você.
— Mas por que isso é tão ruim para o governo?
— Longa história. Basta dizer que tem gente importante ganhando muito
dinheiro com o sistema de dias de morte, mas isso só acontece se as pessoas
realmente morrerem. Se você viver, significa que talvez não funcione. O
sistema inteiro cai por terra, e essas pessoas importantes perdem dinheiro.
Entendeu?
— Na verdade, não.
— Não importa. O importante é que, para todos os efeitos, você está
morto. O governo o registrará como falecido, e o mundo acreditará que
Denton Little não existe mais. Provavelmente vai sair alguma matéria sobre o
acidente de carro e a sua morte no jornal. Então pega esse dinheiro e some. E
leva a sacola que deixei na escada com você. Tem uma muda de roupa lá
dentro.
Por um instante, me pergunto se teria sido melhor morrer mesmo.
— Como você sabe de tudo isso? Está trabalhando com o Brian?
— Tipo isso. Olha, sinto muito não ter contado nada até agora. A gente
sinceramente não sabia se ia funcionar, mas…
— Estão vindo — avisa uma voz atrás de mim.
Veronica surgiu na porta das escadas ao fim do corredor. Está sem capuz e
parece assustada. Fico tão feliz em ver que está bem.
Felix vira e olha pela janelinha da porta atrás dele.
— A polícia, Denton! Vai, vai, vai!
Não penso em nada. Sua voz é como um tiro de largada, e eu disparo.
Chego ao fim do corredor, onde Veronica está segurando a porta aberta para
mim.
— Veronica — falo. — Eu…
— Eu sei. Também sinto tudo isso, ok? Estou muito, muito feliz por você
não estar morto. Mas você precisa dar o fora daqui.
Olho para trás e vejo três policiais entrando. Eles partem para cima do
Felix. Sinto as mãos da Veronica nas minhas costas, me empurrando pela
porta.
— Vai, idiota!
— Ok!
Vou. Desço as escadas. Pego a sacola plástica. Entro no porão. Saio.
Adentro a escuridão da noite. E corro. A dormência se foi, e corro. Visualizo
o treinador Mueller apitando e me incentivando, e corro. Estou sem fôlego,
mas corro.
Corro.
DESCUBRO QUE NÃO há muitos trens saindo depois da meia-noite. Na
verdade, enquanto espero na plataforma quase deserta, me sentindo mais
inquieto a cada minuto que passa, começo a achar que trem algum vai passar
até o sol raiar. Provavelmente não precisava ter corrido tão dramaticamente
até aqui.
Um jovem de uniforme militar está parado ao lado da máquina, por isso
ainda não comprei a passagem. E se for colega de certo policial terrível?
Eu me dou conta de que ainda estou de terno. Pego um moletom com
capuz da sacola de roupas que Felix deixou para mim e o visto. Quando estou
fechando o zíper, ouço a campainha que sinaliza a chegada de um trem à
estação. Aleluia. O garoto se aproxima da plataforma e se afasta da máquina
— aleluia ao quadrado —, e corro até ela.
No meu estado de ansiedade, aperto os botões errados e sou obrigado a
recomeçar várias vezes.
Finalmente, acerto: uma passagem para a Penn Station, em Nova York.
Só de ida.
A máquina pergunta qual é a forma de pagamento. Escolho dinheiro e
insiro uma nota de vinte dólares amassada. Ela é rejeitada no instante em que
vejo o trem se aproximando.
— Merda! Anda, anda! — Estico a nota na lateral da máquina e tento outra
vez. Rejeitada.
Uma mulher de cabelo cheio e óculos que acaba de entrar na fila atrás de
mim solta um suspiro.
— Foi mal — falo.
Quero muito usar o cartão de crédito, aquele que meus pais pagam, mas sei
que não devo fazer isso. Tenho que ser discreto, sem deixar rastro. Pois o
mundo acha que estou morto.
Insiro o dinheiro mais uma vez, e o aparelho finalmente decide aceitar
minha cédula de baixa qualidade. Enquanto o trem para atrás de mim, espero
o bilhete ser cuspido. Espero que seja rápido, antes que eu tenha tempo para
refletir melhor e mudar de ideia.
— Destino: Nova York, Penn Station — grita o condutor ao entrar na
plataforma. — Nova York!
O bilhete sai. Arranco-o da máquina.
Eu me viro, pronto para embarcar, quando a mulher atrás de mim arqueja.
— Foi mal pela espera — falo, tentando passar.
— Ué, você… — Ela mostra o celular, com a página do jornal aberta. Na
tela, está minha foto do terceiro ano do ensino médio, sob a manchete
ADOLESCENTE MORRE EM ACIDENTE DE CARRO. A matéria
continua: um garoto de dezessete anos morreu na noite desta sexta-feira em
um acidente envolvendo três carros na County Route 103, em Marstin.
Denton Little morreu na última hora de seu dia de morte quando o carro em
que estava…
Paro de ler. Preciso pegar o trem.
O jornal diz que estou morto. A mulher me encara.
— Ah, hã, é, pois é — digo, abaixando a cabeça. — Parece comigo, né?
As pessoas sempre confundiam a gente. É bem triste. A morte dele, no caso,
não a semelhança entre a gente.
Não sei se a moça está comprando a história. Ela não para de me encarar.
— Última chamada, Nova York! — grita o condutor.
— Bom, até mais.
Passo por ela e pelo condutor e entro no vagão.
Meu disfarce deve ter ido pelos ares. Provavelmente não vai demorar
muito para que a polícia, a mãe do Paolo e todos os demais envolvidos nesta
situação saibam que estou a caminho de Nova York e comecem a me
perseguir. Eu me pergunto se algum dia voltarei a ver meus pais.
Passo pelos corredores enquanto o trem começa a se movimentar, com um
solavanco. Afundo em uma poltrona, deslizando para o lado da janela. Os
assentos estão praticamente todos vazios, a não ser por um cinco fileiras à
frente, no qual um jovem da idade do Felix está sentado, de óculos escuros e
fones de ouvido, e outros dois, duas fileiras atrás de mim do outro lado, onde
estão uma mãe e a filha de uns três anos. A menininha pinta um livro de
colorir. É estranho que a deixem ficar acordada até esta hora, mas tudo bem.
Sem querer faço contato visual com a mãe e logo desvio o olhar.
De repente me vem à cabeça a possibilidade de que qualquer dessas
pessoas poderia estar me seguindo e vigiando, e fico arrepiado. Parece
loucura, mas, se pararmos para pensar, a ideia de que Cynthia passou minha
vida inteira me espionando também parecia insana.
Preciso tomar cuidado.
Mudando de assunto, devo estar em choque, pois minha sensibilidade não
está na potência máxima. Certamente não tenho a sensação de que estou
deixando minha cidade e todos que amo para trás, talvez para sempre.
Certamente não tenho a impressão de que foi um milagre ter sobrevivido à
morte certa. Tampouco me sinto culpado pelo fato de que foi por minha causa
que meus pais acabaram no hospital, onde os abandonei.
À medida que o trem segue, fico observando o ambiente, sem prestar
atenção a nada em especial. Ouço sirenes policiais cada vez mais altas se
aproximando da estação. Talvez tenham vindo no meu encalço. Talvez não
tenham absolutamente nada a ver comigo.
Em seguida, um borrão veloz chega ao estacionamento, e vejo que são
Millie e Paolo na bicicleta capenga da garota. Paolo se levanta da garupa atrás
de Millie, que está pedalando. Os dois param e encaram o trem que
rapidamente ganha velocidade ao sair.
Involuntariamente, levo a mão ao vidro, querendo alcançá-los.
Chegaram tarde demais.
Um segundo depois, já nem consigo mais vê-los.
Felix tinha razão. Ninguém mais precisa se prejudicar por minha causa. E,
no caso do Paolo, seu dia de morte chegará em menos de um mês, e não quero
que passe os últimos dias em alguma aventura aterrorizante que pode vir a
matá-lo.
Além disso, não sei quanto tempo mais me resta. Um dia a mais? Um mês?
Um ano? Talvez tenham registrado meu dia de morte um dia antes. A quem
estou querendo enganar? Sei que não é verdade. Foi minha falecida mãe que
de alguma maneira me manteve vivo.
Pego o pedaço de papel amassado do bolso e leio o endereço novamente.
E, de uma só vez, emocional e racionalmente, me dou conta: não posso ir para
casa.
Penso em minha vida até este ponto, em quanto dela foi determinado pela
minha morte prematura. Oportunidades que foram especialmente garantidas a
mim, os sonhos que precisaram ser adaptados à minha então realidade. Claro
que jamais quis que essa condição determinasse cada aspecto da minha vida,
mas como não determinaria?
Sou Denton Little, o garoto marcado para morrer durante o último ano do
ensino médio. Sempre fui esse cara. Meu dia de morte, no entanto, chegou e
passou.
E agora?
Sou Denton Little e de alguma forma continuo vivo. E amedrontado. E
sozinho. Muito sozinho.
Meus olhos ficam um pouco marejados. Limpo as lágrimas com o capuz.
Sei que estar vivo deveria ser uma dádiva, mas me parece mais um grande,
vazio e assustador nada. Não planejei isso. Eu me encolho perto da janela e
tento tirar um cochilo. Farei planos mais tarde.
— Que lindo, Dylan — diz a mãe atrás de mim. — Quem sabe da próxima
vez você não tenta colorir dentro das linhas também?
— Acho que não — retruca a menina. — Gosto mais assim.
Adormeço.
© Brandon Uranowitz
Mosquitolândia
David Arnold
Temporada de acidentes
Moïra Fowley-Doyle