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Cap.

01 – Lidando com as Irmãs Greyrat

Após uma longa e cansativa jornada, minhas irmãs Norn e Aisha finalmente
chegaram à minha casa na cidade de Sharia. No momento, estavam sentadas à
mesa de jantar, comendo algo que rapidamente preparei.

— Ficou bom? — perguntei com cautela.

— Sim! — respondeu Aisha. — Está ótimo!

Norn ficou em silêncio. Ela não estava comendo com tanto entusiasmo quanto
a irmã, mas também não fez cara feia ou reclamou. Eu não era páreo para
Sylphie na cozinha, mas ao menos conseguia fazer algo comestível.

Falando na Sylphie – ela saiu para trabalhar um pouco mais cedo. Ela queria
ficar, mas suas responsabilidades para com a Princesa Ariel estavam em
primeiro lugar. Escolhi tirar o dia de folga da escola para poder conversar sobre
algumas coisas com minhas irmãs.

Assim que terminaram de comer, fomos nós três para a sala de estar. Aisha e
Norn sentaram-se lado a lado no sofá e eu sentei na cadeira em frente a elas.
Depois de servir chá e deixar que relaxassem um pouco, finalmente decidi
abordar o assunto principal.

— Bem, acho que eu deveria ter dito isso antes, mas… é bom ver vocês duas.
Fico feliz que tenham chegado aqui em segurança.

— Obrigada, irmãozão — disse Aisha com um sorriso recatado. — É um prazer


estar aqui.

Minha irmãzinha estava usando um uniforme de criada, assim como de


costume. A roupa dela estava um pouco grande da última vez que nos
encontramos, mas dessa vez estava se encaixando perfeitamente. Na verdade,
a julgar pelos remendos aqui e ali, devia ser a mesma roupa de antes.

Ela parecia estar curiosa a respeito da minha casa. Notei seu rabo de cavalo
marrom balançando para lá e para cá enquanto lançava olhares por todos os
cantos da sala de estar.

—…

Norn, por outro lado, estava olhando silenciosamente para o chão, assim como
esperado de uma criança bem pequena. Ela usava um lindo vestido azul
adornado com alguns babados – uma vestimenta bem típica para crianças em
Millishion, mas que devia se destacar onde estávamos. Seu cabelo dourado
parecia um pouco mais longo que o de Aisha, mas era difícil dizer, já que o
prendia atrás da cabeça com uma enorme presilha elegante.

— Parece que você realmente deu duro na viagem para cá, Aisha. Fico
impressionado.

— Claro. Fiquei muito motivada para vê-lo novamente o mais rápido possível,
querido irmão. — Aisha ainda continuava com aquele sorriso calmo, mas havia
algo em seu modo de falar que me pareceu um pouco estranho.

— Uh… Olha, a partir de hoje, esta será a sua casa. Se quiser, pode relaxar. Até
ser um pouco mais casual, sabe?

— Muito obrigada — respondeu Aisha. — Agradeço por isso. Mas, mesmo sendo
uma família, esta ainda é a sua casa. Não seria certo que eu impusesse
qualquer coisa sem oferecer nada em troca. Imaginei que poderia ao menos
ajudar com as tarefas domésticas.

Sim, parecia que ela estava mesmo… distante. Ou apenas formal. Isso estava,
na verdade, me deixando desconfortável.

— Aliás, minha querida irmã…

— Sim, tão querido irmão?

— Poderia parar de falar assim? Por favor?

— Ah, eu não poderia. Você sempre fala comigo com tanta educação! Como
poderia deixar de fazer o mesmo?

Ah, então era culpa minha. Eu tendia a ser um pouco formal em minha fala –
isso, aparentemente, fez Aisha sentir que precisava fazer o mesmo.

— Certo, bom, então, de agora em diante, serei mais casual com você.

— Claro — disse Aisha com um sorriso. — Afinal, somos irmãos. Vou continuar
a me dirigir a você com educação, entretanto, já que você é o chefe desta
residência.

Ah, fala sério. Só faça o que eu digo, que tal?

Bem, tanto faz. Ela praticar a fala formal não era algo ruim; afinal, escolher o
tom certo para determinadas situações era uma habilidade social valiosa.
Ainda assim, parecia que Aisha interpretou minha educação como uma forma
de mantê-la à distância. Todas as pessoas que conheci nos últimos anos
sentiram a mesma coisa? Meio que adotei um discurso formal em todas as
minhas interações, já que assim parecia mais respeitoso… mas talvez devesse
tentar fazer alguma brincadeira mais casual na próxima vez que encontrasse
um velho conhecido.
“E aí Ruijerd, como vai cara? Você mudou mesmo, velho! Ganhou algum peso ou o
quê? Essa barba também é coisa nova! O quê? Você não é o Ruijerd? Droga,
mudou até o seu nome? Bem, é bom saber que você pelo menos continua sendo
o mesmo cuzão mal-humorado.”

Pensando bem, melhor não… Falar de forma educada com alguém que respeita
é algo natural, certo? Só de imaginar uma tentativa de brincar com Roxy ou
Ruijerd me deu vontade de socar a minha própria cara.

— Bem, de qualquer forma… é bom ter vocês duas aqui. Pode demorar um
pouco para nos acostumarmos a morar na mesma casa, mas vamos dar um
jeito em tudo.

— É claro! — disse Aisha energicamente.

Seu entusiasmo era contagiante. Isso me lembrava da forma como Pursena


ficava quando alguém jogava um pedaço de carne bem na frente dela. Senti
que Aisha faria qualquer coisa que eu pedisse.

Norn, por outro lado, ainda não havia dito nada, e a expressão em seu rosto
parecia um pouco sombria. Tive a sensação de que ela não tinha vindo ficar
comigo por vontade própria. A maneira como nos encontramos também não
deve ter ajudado. Da sua perspectiva, eu vaguei bêbado para casa com uma
mulher estranha aos braços.

No momento, parecia melhor ir com calma e tratá-la com cuidado.

— De qualquer forma, eu não fazia ideia de que você se casou com a Sylphie! —
disse Aisha. — Aliás, quando isso aconteceu? Você também deve ter ficado
surpresa, não é, Norn?

Norn balançou um pouco a cabeça diante da tentativa de incluí-la na conversa.

— Eu não… lembro muito bem da Senhorita Sylphie.

Isso foi um pouco decepcionante, mas fazia sentido. Aisha estudou etiqueta
básica com Sylphie em Buena Village, enquanto Norn não tinha passado muito
tempo com ela.

— Então, qual é a história, querido irmão? — perguntou Aisha, ansiosamente


inclinada. — O que aconteceu com aquela garota, Eris, com quem você estava?

Eu não estava ansioso para abordar esse assunto, mas… fazia sentido que
estivessem curiosas a respeito disso.

— Bem, sabe…

Sorrindo sem jeito, dediquei alguns minutos para informar minhas irmãs sobre
os desenvolvimentos recentes em minha vida. Comecei com meu retorno à
Região de Fittoa, onde me separei de Eris e me tornei um aventureiro.
Mencionei que contraí uma doença e fui para a Universidade de Magia na
esperança de encontrar uma cura. E então expliquei que acabei me
encontrando com Sylphie, e que ela conseguiu curar a minha doença.

É claro que não especifiquei que a doença era uma disfunção erétil, ou o meio
pelo qual Sylphie a curou. Não é o tipo de coisa que se comenta com duas
garotas de dez anos. Fiz questão de mencionar que Sylphie estava em uma
situação um pouco complicada que exigia que se vestisse como um homem
em público. A Princesa Ariel já havia me permitido explicar isso a qualquer
pessoa que eu considerasse precisar saber.

Para ser honesto, talvez fosse mais inteligente se não contasse isso para
minhas irmãzinhas. Afinal, elas ainda eram só crianças. Mas se fossem morar
conosco a partir de então, inevitavelmente descobririam a verdade, ou pelo
menos começariam a criar algumas suspeitas. Considerando os problemas
que isso poderia causar no futuro, optei por dar uma esboço básico da situação
em geral.

— E isso nos traz até o presente, creio eu…

Depois de mais ou menos cinco minutos, cobri todos os eventos de maior


importância.

Norn ainda estava olhando para o chão com uma expressão preocupada no
rosto, mas Aisha estava me estudando com interesse.

— Então sua doença grave já foi curada? — perguntou ela. — Para sempre?

— Sim, estou totalmente curado. Não precisa se preocupar. Mas continuo


fazendo sessões de reabilitação diárias.

— Hmm, certo — murmurou Aisha, pensativa, antes de bater palmas. — Ah,


quase esqueci!

— O que?

— Papai te mandou uma coisa. Ele me disse para entregar assim que o
encontrasse.

Saindo do sofá, ela correu para o segundo andar. Em pouco tempo, estava
descendo as escadas com uma caixa retangular em mãos.

— Aqui está!

A coisa estava, por algum motivo, trancada com três grandes fechaduras.
Tomar algumas precauções a mais nunca machucava, é claro, mas isso
parecia só transmitir para o mundo inteiro que havia algo valioso ali dentro.
Mas, talvez, as fechaduras estivessem lá para impedir que Aisha e Norn
mexessem no conteúdo e possivelmente o perdessem.

Usei um toque de magia para abrir todas as três fechaduras ao mesmo tempo.

— Ah! Uhm, eu estou com as chaves, se quiser…

— Hm? Ah, obrigado.

Aisha congelou de surpresa com o molho de chaves ainda em mãos. Peguei


dela e guardei no bolso – não que fosse necessário. Então, hora de abrir a caixa
misteriosa.

— Uh, uau…

Bem, era um bocado, claro. Havia uma significativa quantia de dinheiro ali
dentro, incluindo cerca de uma dúzia de dólares do rei e uma pequena
variedade de metais preciosos. Era difícil avaliar o valor exato de relance, mas
renderiam um bom dinheiro se eu vendesse todos.

Devia ser o apoio financeiro que Paul mencionou na carta. Se usasse isso com
sabedoria, seria o bastante para manter minha família bem por mais ou menos
uma década. Teria que ter certeza de que não gastaria sem cuidado.

Também havia duas folhas de papel presas na parte interna da tampa da caixa.
As peguei e dei uma olhada.

A primeira era a mesma carta que Paul me enviou e que chegou alguns dias
antes. Mas a segunda era uma mensagem de Lilia. Abordava alguns detalhes
sobre o atual estado de educação de Aisha e Norn e também elaborava o que
ela via como “falhas”.

Na opinião de Lilia, Aisha era uma criança talentosa que raramente falhava em
qualquer coisa que tentava, mas isso a deixava cheia de si. Fui aconselhado a
ser rígido com ela. Norn era uma garotinha comum, mas ser constantemente
comparada à irmã na escola a deixava para baixo e acuada, apresentando uma
aparência forte diante de todos. A carta pedia para tratá-la com gentileza e
bondade.

Parecia que Lilia estava sendo, por algum motivo, dura com sua filha. Ela ainda
parecia se ver como amante ou concubina de Paul, e não sua segunda esposa.
Será que havia algo a se fazer a respeito disso? Honestamente, meu instinto
era de tratar minhas irmãzinhas da forma mais igualitária possível.

Ainda assim… de acordo com a carta, Aisha era mesmo uma criança
incrivelmente talentosa. Há um ano, Lilia ficou basicamente sem coisas para
lhe ensinar. Ela tinha um bom domínio de leitura, escrita, matemática, história e
geografia. Além disso, era hábil em limpar, lavar, trabalho doméstico em geral e
cozinhar. Ela chegou até mesmo ao nível Iniciante do Estilo Deus da Água – e
também aprendeu os seis elementos básicos da magia.

Logo após ela ser matriculada em uma escola de Millishion, Roxy e os demais
chegaram, então Aisha não passou muito tempo dentro de uma sala de aula. E,
mesmo assim, tinha chegado tão longe. Não era de se admirar que Norn
tivesse um pouco de complexo de inferioridade.

Norn era basicamente uma criança comum. Ela não tinha nenhuma força ou
fraqueza notável, isso academicamente falando, o que a colocava, pelo menos,
bem à frente de onde Eris estava na sua idade. Na maioria das aulas, ela ficava
entre a multidão, ou um pouco abaixo dela. Mas sua vida foi muito perturbada
por essa viagem. Dadas as circunstâncias, poderia dizer que estava se saindo
realmente muito bem. A garota pelos menos não desistiu de melhorar.

Não havia mais mensagens na caixa. Eu estava esperando algumas palavras


de Roxy, sério, mas essas eram cartas íntimas de família, então ela
provavelmente se absteve por pura educação.

— Então tá bom — falei, guardando as cartas. — Depois que vocês duas se


acomodarem, acho que nosso próximo passo será colocá-las de volta na
escola.

— O que?! Não!

Por alguma razão, foi Aisha quem protestou na mesma hora. Fiquei um pouco
surpreso com isso. Sua última experiência no sistema educacional talvez não
tivesse sido muito agradável.

— Não tenho mais nada para aprender na escola, Rudeus! Trabalhei muito duro
para poder ser uma boa criada para você!

— Certo, mas…

— Eu quero ser sua criadaaaaa! Você prometeu, lembra?! Olha, ainda tenho até
aquela coisa que você me deu!

Desfazendo o rabo de cavalo, Aisha me mostrou o que ela usava para mantê-lo
preso. Era parte do protetor de testa que dei para ela naquele dia. Aisha alterou
a placa de metal protetora para transformá-la em um enfeite de cabelo.

Eu tinha que admitir que ficava feliz ao ver que ela continuou com aquela coisa
por esse tempo todo. Mas isso não tinha nada a ver com o assunto em
questão. Sério, eu não via problemas se ela não quisesse frequentar a escola.
Seu desejo de aprender coisas novas era mais importante do que ficar sentada
em uma sala de aula durante o dia todo. E se não tivesse esse desejo,
frequentar a escola seria pura perda de tempo. Eu mesmo não tirei nenhum
proveito do meu tempo no colégio.
Dito isso, a carta de Paul claramente me instruía a matricular ambas as minhas
irmãs na escola. O conceito de educação obrigatória não existia neste mundo,
mas, ainda assim…

— Bem, certo… Quero que você faça ao menos o exame de admissão para a
Universidade de Magia. Vou tomar uma decisão com base nos resultados.

— Hein? Aah, entendi. Certo! Sem problemas!

O sorriso de Aisha estava cheio de confiança. Ela parecia convencida de que


conseguiria as melhores notas em qualquer teste que eu preparasse. Claro,
se conseguisse fazer isso, provavelmente não existiria problema em parar de
frequentar a escola. E eu seria capaz de justificar a minha decisão para o nosso
pai.

— Norn, por que você também não faz o teste, já que estaremos seguindo com
isso?

Norn fixou os olhos em mim quando falei, mas ela não moveu a cabeça. Isso
estava começando a me afetar. Essa criança me daria um gelo pelo resto da
minha vida ou o quê?

— Mas acho que posso falhar — murmurou ela, finalmente, após uma longa
pausa.

Parecia ser a primeira vez que ela conversava comigo. Isso não era verdade, é
claro, mas ainda assim me senti um pouco aliviado. Ser ignorado meio que
doía, sabe?

— Não se preocupe com isso, Norn. Qualquer um pode entrar nesta escola,
desde que tenha dinheiro suficiente — falei.

— O quê…? Não quero que você me compre uma vaga!

Opa. Acho que fiz parecer que ia colocá-la lá dentro de forma ilegal.

— Ei, Norn! Você não deve falar assim com o Rudeus! — sibilou Aisha.

— Você ouviu o que ele disse, não ouviu? Ele disse que vai subornar alguém
para me fazer entrar!

— Bem, se você pudesse fazer um teste direito, ele não precisaria disso!

— Você está me chamando de burra?! — gritou Norn, agarrando a irmã pelos


cabelos.

Aisha também agarrou o pulso de Norn e deu um golpe no rosto dela. Em um


piscar de olhos, as duas estavam se batendo e arranhando furiosamente, mas
sem muita eficácia.
De certa forma, era quase ver como uma briga normal entre duas crianças. Era
melhor do que ter uma socando a mandíbula da outra e, logo depois, montando
uma na outra para dar uma surra brutal. Dito isso, embora uma briguinha não
fosse a pior coisa do mundo, esta era culpa minha. Eu precisava intervir.

— Parem com isso, as duas. — As palavras saíram mais cortantes do que


esperei. As duas estremeceram de surpresa e instantaneamente pararam de
mover as mãos.

—…

Norn voltou a olhar para o chão, sua expressão ainda mais sombria do que
antes. Pude ver as lágrimas se acumulando nos cantos de seus olhos.

Claro, tínhamos um pequeno problema com isso. Ela era ainda mais sensível a
respeito deste assunto do que eu imaginei.

— Deixe-me explicar, Norn. A universidade desta cidade permite a entrada de


todos, independentemente da idade, raça ou talento… desde que possam pagar
as mensalidades. Não quis dizer que pagaria para alguém deixá-la entrar.

Fungando um pouco, Norn enxugou as lágrimas em seus olhos, mas não


respondeu.

— Lembra da minha tutora Roxy, certo? Ela também estudou aqui. É uma boa
escola, com muitos professores legais que podem te ensinar todo tipo de
coisa. Você pode acabar encontrando algo em que seja… interessada.

Comecei a dizer que ela poderia encontrar algo em que fosse melhor do que a
sua irmã, mas pensei melhor no meio da frase. Definitivamente não era um
bom momento para compará-las.

Norn continuou olhando para o chão por algum tempo, mas acabou falando:

— Tá bom. Vou fazer esse teste idiota.

Assim que as palavras saíram da sua boca, ela empurrou seu assento
ruidosamente para trás e saiu da sala.

— Norn! — gritou Aisha em direção dela. — Ainda não terminamos de conversar!

— Ah, cala a boca!

Norn marchou com pisadas barulhentas escada acima. Alguns segundos


depois, uma porta foi fechada no segundo andar.

Isso seria… complicado, certo. A garota claramente estava em uma idade


complicada e tinha uma personalidade irritadiça. Eu não tinha certeza sobre
estar preparado para lidar com ela.
— Sinceramente, a Norn não muda nunca — disse Aisha, dando de ombros. —
Ter que ficar agradando crianças birrentas é um saco. Não concorda, Rudeus?

Porém, também tínhamos alguns problemas nessa frente. Esse tipo de atitude
não ajudaria em nada.

— Aisha…

— Sim?

— Não quero que você insulte a Norn assim. Principalmente a respeito do


desempenho dela na escola.

— Queeeeee? — disse ela, fazendo beicinho. — Mas ela mal tenta, Rudeus.

— Pode parecer isso para você, claro. Mas acho que ela está dando o melhor de
si, à própria maneira.

— Bem, se você diz… Vou tentar manter minhas opiniões para mim mesma.

Ouvir isso foi bom, mas ela não parecia tão disposta assim. No momento,
qualquer coisa que eu dissesse provavelmente não seria muito convincente. Eu
não as conhecia muito bem e não tinha a menor ideia de como lidar com
garotas de dez anos.

Esta seria uma estrada complicada.

No início daquela tarde, deixei minhas irmãs em casa e fiz uma viagem para a
Universidade de Magia. Fui direto para os escritórios, localizei o Vice-Diretor
Jenius e rapidamente expliquei a situação.

— As duas já frequentaram outras escolas, sim? Acho que então devem ser
capazes de acompanhar os cursos introdutórios. Seria melhor que fizessem o
exame o quanto antes.

Após uma breve discussão, decidimos que o teste das duas seria dentro de
uma semana. Elas não teriam muito tempo para estudar, mas isso não era um
problema.

— Devo dizer que estou bastante animado para conhecê-las — disse Jenius. —
Se são suas irmãs, devem ser muito talentosas.

— Uma delas é um tipo de prodígio, mas a outra é uma garota comum.


— Espero que você não esteja sendo modesto de novo. Ora, meio que espero
que sejam ambas capazes de lançar feitiços não verbais.

— Não, não, nada do tipo…

Enquanto nos engajávamos nesse vaivém educado, um pensamento não


relacionado a isso surgiu em minha mente.

— A propósito, Vice-Diretor Jenius, por acaso sabe se Badigadi está no


campus?

— Sir Badigadi…? Não creio que o vi hoje, não.

— Ah. Tudo bem então.

Para um cara tão grande e barulhento, Badi podia ser bem esquivo quando
assim quisesse. Mas quando ele decidia fazer uma aparição, era impossível
não notar.

— Se tiver algum negócio com ele, eu poderia passar uma mensagem…

— Nah, não é nada urgente. Só espero que possamos sentar e conversar a


respeito de um conhecido em comum. Acho que pode existir um mal-entendido
que eu poderia esclarecer.

— Entendido. Se acontecer de eu encontrá-lo, com certeza o informarei.

Educadamente agradeci ao vice-diretor pela ajuda e segui meu caminho.

Pretendia ir direto para casa, mas tinha algum tempo livre, então, em vez disso,
fiz uma visita a Nanahoshi. Bati à porta e entrei, mas me deparei com sua sala
de pesquisa vazia. Isso era incomum, dado o horário. Afinal, a garota era
praticamente uma reclusa.

Dei uma olhada em sua sala dedicada a experimentos, mas ela também não
estava por lá. Fui estritamente proibido de entrar em seu quarto, mas bati à
porta, só por precaução.

— Hmm? Guhhh…

Um gemido longo e miserável saiu lá de dentro. Ela parecia estar em perigo.

Hesitei, pensando se deveria ou não entrar. Mas, passado algum tempo,


Nanahoshi abriu a porta. Seu rosto estava assustadoramente pálido.

— Uh, ei. Você está bem?

— Minha… minha cabeça está me matando… Acho… que estou doente…


Gah. Ela fede a bebida.

Pensando bem, não era surpresa que estivesse de ressaca. Ela realmente
bebeu até não conseguir mais na noite anterior. Teve sorte por não entrar em
um coma alcoólico.

— Sente-se por um segundo, Nanahoshi. Vou te consertar.

Arrastei minha amiga trôpega para a sua sala de experimentos, sentei-a em


uma cadeira e segurei sua cabeça entre minhas mãos. Depois de começar com
um feitiço básico de desintoxicação, adicionei um pouco de magia de cura para
ajudar com a dor.

— Uff… Obrigada, Rudeus. Te devo uma.

Lentamente balançando a cabeça, Nanahoshi pressionou os dedos nas


têmporas. Passado um momento, ela se virou e colocou a máscara que havia
deixado sobre a mesa.

Eu agora parecia estar conversando com Silente Setestrelas.

— De qualquer forma, precisa de mim para algo? Se for sobre a sua


recompensa, ainda não está pronta. Agradeceria se tivesse um pouco de
paciência.

Suas palavras foram frias como sempre, mas desta vez também havia um
toque de constrangimento. Ela poderia ser uma daquelas “kuuderes” de que
tanto ouvi falar?

— Não preciso de nada — falei. — Minhas duas irmãzinhas apareceram de


repente na minha casa, então vim para o campus para providenciar o exame de
entrada delas. Só passei para te ver, já que estava por perto.

— Suas irmãs…? Espera, são suas irmãs do outro mundo? Elas também foram
trazidas para cá?

— Nah. São minhas irmãs deste mundo. Nasceram e foram criadas aqui.

— Entendo — murmurou Nanahoshi pensativamente, olhando para o meu rosto.


— Bem, se são suas irmãs deste mundo, imagino que sejam adoráveis.

— Espera, você está elogiando a minha aparência ou coisa assim?

— Pelos padrões do nosso velho mundo, você é um homem objetivamente


bonito. Não sei como você era lá, mas agora poderia se passar por um modelo
europeu. Não acha?

— Uh, talvez. — Eu não esperava por essa…


Teria que tomar cuidado quando estivesse perto dessa garota. Na minha vida
passada, poderia ter assumido que ela sentia uma quedinha por mim. Mas eu
não era mais um virgem, droga! E nem solteiro! Ela não iria criar uma confusão
na minha cabeça com tanta facilidade.

— Quantos anos elas têm? — perguntou Nanahoshi.

— Ambas têm dez anos, acho.

— Entendo. Eu, na verdade, tenho um irmão da mesma idade. Mas suponho que
ele já esteja mais velho, caso o tempo tenha continuado passando da mesma
forma lá em casa…

Era difícil de dizer por causa da máscara, mas ela parecia sentir saudades,
provavelmente lembrando da sua vida no Japão. Eu, pessoalmente, não tinha
muitas lembranças agradáveis associadas à palavra irmão.

— Bem, agora você me fez querer um pudim — murmurou Nanahoshi.

O quê? De onde saiu essa?

— Uh, você tem boas lembranças de pudim ou coisa do tipo?

— Aquele idiota costumava comer todos os que eu guardava na geladeira. E


aquelas coisas eram bem caras…

Coisas clássicas de irmãos menores. Não me parecia a mais doce das


lembranças, mas Nanahoshi estava claramente com saudades de casa. Ela
estava olhando para o teto, contendo as lágrimas. Desviei o olhar para evitar de
envergonhá-la.

— Bem, enfim. Volto outra hora, certo? — falei.

— Certo… Uhm, a propósito, desculpe por todos os problemas de antes. Minha


opinião a seu respeito melhorou bastante.

— Heh. Só não se apaixone por mim, criança. Ou você vai acabar se


queimando…

— Como é? Você está ouvindo o que está falando?

— Fala sério! Era para isso ser uma piada!

Assim que soltei essa deixa, Nanahoshi riu um pouco, mas pareceu meio
forçado. Essas crianças! Não conseguem nem apreciar os clássicos.

De qualquer forma, a garota claramente não estava em forma para conduzir


experimentos. Não que eu também estivesse com tempo para ajudar. Teríamos
que retomar nossa pesquisa depois, após as coisas se acalmarem um pouco.
Assim que o dia escolar acabou, me encontrei com Sylphie e voltamos juntos
para casa. Eu queria ouvir seus conselhos a respeito de Norn e Aisha. Sua
idade era mais próxima da delas, então esperava que pudesse ter algumas
ideias.

Antes que eu pudesse tocar no assunto, porém, Sylphie disse:

— Ah, é mesmo. Vamos passar pelo mercado, Rudy. Agora temos mais gente
em casa, então vamos precisar de mais comida.

Pareceu razoável o suficiente para mim. Fizemos um pequeno desvio.

Assim que colocamos os pés no mercado, o cheiro doce de feijão cozido


chegou de todas as direções ao meu nariz. O mercado do Distrito Comercial
estava sempre agitado nesse horário. As pessoas tendem a pensar em
mercados como coisa matinal, mas quem ficava nessa área vendia muita carne
fornecida por caçadores ou aventureiros. Os caçadores tinham horários
imprevisíveis, mas os aventureiros costumavam passar o dia matando
monstros nas florestas ou planícies. Naturalmente, a carne que traziam pela
tarde tendia ser vendida à noite.

Não havia muita variedade de comida disponível, e a maioria dos ingredientes


eram bem caros. Mas o Reino de Ranoa e as outras Nações Mágicas estavam,
na verdade, em uma situação melhor que a maioria dos países da região; se
pudesse pagar, ao menos havia carne disponível. Se fosse mais para o leste,
encontraria países onde havia pouca comida fresca, independente do preço.

Além do mercado propriamente dito, também seria possível encontrar alguns


serviços para aventureiros postados nesta área da cidade. A maioria deles
envolvia congelamento mágico de carne fresca – trabalhos populares entre
estudantes universitários mais jovens que aprenderam magia básica e
precisavam de alguns trocados.

Sylphie e eu vagamos um pouco, escolhendo os ingredientes para o jantar.


Aproveitei a oportunidade para informá-la a respeito de tudo o que aconteceu.

— Bem, acho que você está certo — disse ela. — Parece que as duas não se dão
muito bem.

— Sério, não faço ideia do que estão pensando. Acho que não sei mais ver o
mundo da perspectiva de uma criança.

— Sim, isso é difícil.


— E Aisha parece determinada a se tornar nossa criada, em vez de ir para a
escola. Você tem alguma opinião sobre isso?

— Hmm. Com todo o resto, não tenho conseguido dedicar muito tempo às
tarefas domésticas… então, pessoalmente, ficaria grata pela ajuda.

O sorriso de Sylphie parecia sincero. Era bom saber que ela não via isso como
uma intrusão em seu domínio ou coisa do tipo.

— A questão é, porém, os adultos somos nós — falei. — E ela é uma criança.

— Sim.

— Acha que temos a responsabilidade de mandá-la para a escola? Ela pode


acabar encontrando novos interesses por lá, certo?

— Hmm. Bem, você pode estar certo. Poderíamos encorajá-la a ter todos os
tipos de aulas estranhas e ver se gosta de alguma coisa… — Sylphie fez uma
pausa pensativa e levou a mão ao queixo, aparentemente dividida entre as
opções que apresentei.

Então segui seu olhar e notei que estava avaliando dois cortes de presunto com
preços diferentes.

— Poxa, Sylphie. Estou mesmo em conflito a respeito disso. Ao menos me


ajude a pensar.

— Eu estou pensando! Mas, sabe, Rudy, tenho certeza de que você está
subestimando um pouco a Aisha. Ela é uma garota muito inteligente.

— Eu sei. E daí?

— Bem, acho que ela vai se sair bem, quer vá para a escola ou não.

— Hmm…

— Dito isso, talvez não devêssemos pensar demais no assunto. Deixar que ela
faça o que quiser é a opção mais simples, certo?

Eu não esperava por uma demonstração tão grande de confiança em minha


irmã. Mas Syplhie a conheceu quando era bem menor, certo? Devia ter visto o
que Aisha era capaz de fazer em primeira mão.

— Para ser sincera, estou mais preocupada com a Norn — disse ela. — Ela está
obviamente ansiosa, e acho que sente falta do seu pai e de Ruijerd. Temos que
nos assegurar de que cuidaremos bem dela, certo?

— Sim… Você tem razão.


A voz de Sylphie estava calma, suas palavras razoáveis e comedidas. Isso me
fez perceber o quão nervoso eu estava, se nos comparando. Minha esposa era
realmente uma mulher confiável. Parecia que eu estava recebendo um
conselho de meu velho amigo, Mestre Fitz – o que, de certa forma, estava
acontecendo.

— Então, basicamente, damos a Aisha a liberdade de fazer o que quiser e por


enquanto colocamos Norn nos trilhos? — falei.

— Nos trilhos?

— Uh, isso é basicamente definir um caminho para ela seguir.

— Ah, certo. Sim. Acho que isso parece bom.

Era mesmo certo tratar as duas de formas tão diferentes? Bem,


Aisha estava muito mais adiante do que Norn. Ignorar esse fato e tratá-
las exatamente da mesma forma não faria muito sentido. Reconhecer suas
diferenças não era o mesmo que definir uma favorita.

— Uhm… Dito isso, Rudy, a decisão final é sua. Desculpa se pareci um pouco
mandona.

Balancei a cabeça.

— Nah, você foi de grande ajuda. Acho que agora sei como abordar isso.

— Mas não serei capaz de ajudar muito — respondeu Sylphie, coçando a parte
de trás da orelha e mantendo uma expressão preocupada. — Ainda tenho meus
deveres com a Princesa Ariel e…

Seu trabalho costumava mantê-la longe de casa. E sempre que isso me


causava algum pequeno inconveniente ela parecia se culpar. Às vezes, eu
sentia que seu trabalho lhe causava mais estresse do que deixava
transparecer. Afinal de contas, estávamos casados e existia a possibilidade de
eu pedir que ela se demitisse.

Num impulso, decidi seguir este pensamento.

— Diga uma coisa, Sylphiette, minha querida.

— O que é, meu querido Rudeus?

— Digamos que eu dissesse para você largar seu emprego com a Princesa Ariel
antes de nos casarmos. O que você teria feito?

Tentei formular a pergunta da forma mais suave possível, mas quando Sylphie
se virou para mim, sua expressão estava muito séria.
— Acho… que poderia ter te afastado.

Huh? Hmm. Isso realmente machucou um pouco. Talvez devesse ter


desenvolvido a questão com mais calma ou coisa assim. Bem. Então tá. Então…
ela escolheria Ariel, e não eu, hein? Certo…

— Ah! — Aparentemente percebendo a minha reação, Sylphie de repente ficou


bem nervosa. — Não entenda isso errado, Rudy! Eu te amo muito, e você sabe
disso! Digo, até mais do que isso, inclusive… Mal sei como explicar, para ser
honesta. É uma grande e calorosa mistura de sentimentos…

Ela realmente ficava muito fofa quando perdia o equilíbrio.

— Bem, acho que são, basicamente, tipos diferentes de amor. Digo, uh… para
começar, eu realmente quero fazer um bebê com você… — Enquanto falava
essas coisas, Sylphie reflexivamente levou a mão à barriga.

Ela também me fez corar. Será que Sylphie tinha esquecido que estávamos em
público?

— Mas eu também amo a Princesa Ariel, sabe? De uma forma diferente, é claro.
Ela é uma amiga muito querida, eu acho…

Eu nunca tinha ouvido ela expressar seus sentimentos por Ariel em palavras.
Agora que havia começado, porém, suas palavras continuaram saindo.

— A Princesa Ariel pode parecer perfeita quando vista de fora, mas ela tem
muitos defeitos e fraquezas. Sei que você ficaria bem mesmo sem mim por
perto, Rudy, mas se a princesa não tivesse eu e Luke de olho nela, não iria durar
uma semana. Eu não suportaria simplesmente abandoná-la. — Sylphie parou
por um momento, querendo recuperar o fôlego e voltar a coçar atrás das
orelhas, então continuou, sem jeito: — Uhm, mas, sabe… ter casado com você é,
bem… é uma espécie de sonho que se transformou em realidade. Também não
quero desistir disso. Contanto que você ainda me queira.

Sylphie parecia ter a impressão de que era injusto da parte dela que pedisse
tanto. Em vez de escolher entre eu e Ariel, ela sentiu que estava se
aproveitando de minha boa vontade e levando as coisas de forma cômoda.
Talvez fosse por isso que ficava sempre tão… acomodada quando estava
comigo.

Isso tudo era completamente ridículo, é claro.

Em vez de responder, inclinei-me e dei um beijo em sua bochecha, provocando


ovações e algumas zombarias das pessoas que estavam por perto. É óbvio,
chamamos alguma atenção.
Corando até a pontinha das orelhas, Sylphie rapidamente colocou seus óculos
escuros.

Mestre Fitz estava mais fofo do que nunca.

Passados alguns minutos, minha esposa conseguiu se acalmar o suficiente


para que pudéssemos retomar nossas compras. Tínhamos em algum
momento mudado de assunto, mas eu pelo menos tinha ouvido seu conselho
sobre os problemas mais importantes e imediatos. Ela, com alguma sorte,
também se daria bem com Norn e Aisha. Isso seria de grande ajuda. Eu não
estava muito confiante de que algum dia seria capaz de entender a mente de
uma garota pré-adolescente.

— De qualquer forma, posso acabar dependendo de sua ajuda para lidar com
aquelas duas de vez em quando, Sylphie. Não sou muito bom com garotas.

— Tudo bem. Estamos casados, lembra? Vou te ajudar sempre que você
precisar de mim.

O sorriso de Syphie estava completamente radiante. Ter uma esposa tão


charmosa e confiante em minha vida era tão bom. Claro, ela parecia pensar que
a Princesa Ariel ficaria perdida sem sua ajuda, enquanto eu poderia me virar,
mesmo sozinho. Isso era… interessante.

Da mesma forma, porém, Sylphie com certeza poderia se virar muito bem
sem mim por perto. Nesse aspecto, ao menos, as coisas não eram mais como
nos velhos tempos.

Uma semana depois, Aisha fez o exame de admissão conforme programado e…


obteve uma nota perfeita.
Cap. 02 – A Criada em Tempo Integral e a
Estudante Interna

Naquela tarde, caminhei da Universidade de Magia para casa ao lado de Norn e


Aisha.

Ambas fizeram o teste escrito padrão. Era um exame geral aplicado à maioria
dos alunos em potencial, independentemente da idade. Algumas partes
cobriam vários assuntos acadêmicos, enquanto outras cobriam as seis
disciplinas fundamentais da magia. Não parecia nada com o teste que eu tinha
feito, mas isso já era de se esperar.

Aisha, de qualquer forma, passou no exame.

O Reino de Ranoa tinha algumas diferenças culturais fundamentais com Millis.


Eu tinha certeza de que a grade curricular era ao menos um pouco diferente. E,
mesmo assim, Aisha conseguiu uma pontuação perfeita no primeiro teste que
fez neste país.

Eu tinha que admitir que fiquei impressionado. Jenius, da mesma forma, ficou
tão chocado ao ver uma garota de dez anos com um desempenho tão bom que
ofereceu uma vaga de aluna especial para ela, mas com certas condições. Mas,
claro, não foi isso que prometi à minha irmã.

— Então tá bom. Cumpri com a minha parte do trato! — anunciou Aisha,


triunfante, assim que chegamos em casa. — Agora sou oficialmente sua serva,
Rudeus!

— Então você quer mesmo se tornar a criada da família? Mesmo


fazendo parte da família?

— Não, não. Sou sua criada, não da família!

Seu objetivo era, portanto… ser a serva pessoal de seu irmão. Isso me pareceu
meio bizarro, mas eu não poderia mais voltar atrás com o trato.

— Bem, tá bom. Nesse caso, uh… certifique-se de fazer o que eu disser a partir
de agora, certo?

— Mas é claro! Estou à sua disposição, Mestre!

Ouvir uma garota me chamando assim, e não Zanoba, pela primeira vez, foi
bom. Se não fosse a minha irmã dizendo isso, eu provavelmente ficaria
excitado.

Vamos deixar de lado o fato de que eu era atualmente um homem casado.

— Dito isso, vamos manter a mente aberta em relação ao futuro — falei. — Se


quiser estudar alguma coisa, é só me avisar.

— Bem, tenho certeza de que ainda preciso aprender algumas coisas. Você
talvez possa fazer a gentileza de me ensinar pessoalmente, jovem mestre… —
Colocando um dedo nos lábios, Aisha piscou para mim.

Eu entendi o que ela disse, mas decidi que bancar o idiota seria mais fácil. Se a
criança algum dia aparecesse me pedindo para ensiná-la a fazer bebês, eu teria
que sentar com ela e passar um sermão completo a respeito de educação
sexual. Sem demonstrações práticas, é claro.

— A propósito, há alguma razão para você de repente começar a me chamar de


“mestre”?

— Bem, de agora em diante sou sua serva, senhor. É natural que eu me dirija a
você de forma apropriada.
Ah, ótimo. Agora ela havia recomeçado com aquele linguajar formal ridículo.

— Para ser sincero, fiquei muito mais feliz quando você me chamou de Rudeus.
Não podemos continuar assim?

— Sinto muitíssimo, mas preciso seguir uma linha profissional.

O vocabulário da garota era sólido. Não era de se admirar que tivesse se saído
tão bem naquele teste.

Por enquanto não adiantaria insistir no assunto. Sylphie poderia me olhar de


um jeito estranho por algum tempo, mas senti que Aisha tinha conquistado o
direito de fazer o que quisesse.

— Então tá bom. Certifique-se de consultar Sylphie antes de assumir qualquer


função, entendeu?

— É claro. Minha mãe me ensinou tudo a respeito dos deveres de uma criada,
eu garanto. Deixe tudo comigo.

Cruzando as mãos na frente dela, Aisha se curvou profundamente para mim.


Pelo visto, eu agora tinha uma irmãzinha criada. Precisava admitir, essas
palavras soavam estranhamente poderosas quando juntas…

Pareciam melhores do que governanta ou desistente, de qualquer forma. O que


provavelmente é como a chamariam no Japão.

Os resultados de Norn foram completamente normais.

Pelo que Jenius me disse, ela teve uma pontuação um pouco abaixo da média
para a sua idade. Para ser justo, a criança passou um ano inteiro viajando para
esta cidade, e então a fiz prestar um exame antes mesmo que tivesse tempo
para se orientar. Ela provavelmente se sairia muito melhor se eu tivesse
primeiro organizado algumas sessões de tutoria. Em outras palavras, se saiu
muito bem… exceto se comparada a Aisha.

Não vi necessidade em focar muito nisso. Só teríamos que ajudá-la a melhorar


aos poucos. Ela podia nunca ser a primeira da classe, mas qual o problema
com isso? Contanto que aprendesse as habilidades básicas necessárias para
viver em sociedade, acho que já seria bom o suficiente. Não era necessário se
destacar na multidão para viver uma vida plena e feliz.

— Você tem alguma ideia sobre o que gostaria de estudar, Norn? — perguntei.

Minha irmã não respondeu. Ela estava mais uma vez com a cabeça baixa,
fazendo beicinho enquanto evitava o meu olhar. Parecia ainda não estar
gostando mais de mim. Eu esperava quebrar o gelo entre nós, mas não fazia
ideia de por onde começar.
— Acho que não sei todas as opções de cabeça — falei. — Mas acho que você
normalmente pode começar com dois ou três anos de aulas gerais, para então
escolher um departamento específico. A universidade tem muitos cursos
introdutórios interessantes, então o que acha de passar por alguns e ver se
gosta de alguma matéria? Ah, e se não gostar de nada em particular, pode
aprender até magia de cura. Nossa mãe também costumava ser uma
curandeira, sabia? Não existem muitos curandeiros por aqui, então você pode
conseguir um emprego logo depois de se formar.

Norn não estava me dando qualquer resposta que fosse, então acabei
tagarelando por um bom tempo. Eventualmente, percebi que ela estava
olhando para mim com uma expressão que sugeria que queria falar. Fechei
minha boca e esperei.

— Acho que quero morar nos dormitórios de lá.

Sua voz estava tensa e ansiosa, mas ela conseguiu pronunciar essas palavras.
Levei um momento para pensar nisso.

— Os dormitórios, hein…?

Recusar categoricamente seria fácil, mas resisti ao impulso. Claro, ela precisou
de muita coragem para tocar no assunto.

Meu pensamento inicial foi de que ela era muito jovem. Garotas de dez anos
não viviam sozinhas. Entretanto, morar em dormitórios universitários não era a
mesma coisa que alugar um apartamento individual. Para começo de conversa,
quase sempre existe um colega de quarto.

Norn conhecia quase ninguém na cidade, e não tinha nenhum amigo no lugar.
Se morasse nos dormitórios, isso poderia mudar rapidamente. Nisso, sua idade
poderia ser um problema, mas a universidade estava aberta a alunos de todas
as idades. Eu sabia, inclusive, que havia algumas crianças ainda mais novas
que ela morando por lá. Os dormitórios eram um lugar seguro com algumas
regras bastante claras que todos deveriam seguir. Até mesmo uma criança da
idade de Norn poderia, supostamente, viver por lá de forma confortável.

Eu, pessoalmente, gostaria de conhecer melhor a minha irmã enquanto morava


com ela. Mas, pelo jeito das coisas, forçá-la a ficar por perto poderia fazer com
que se ressentisse ainda mais comigo.

Na minha vida anterior, passei muitos anos como um recluso. Me recusei a me


envolver com o resto do mundo, ficando o tempo todo trancado no meu quarto.
Por um tempo, minha família tentou todos os tipos de métodos para chegar até
mim. Me tentaram com presentes caros, compraram comidas deliciosas e
falaram sobre meu futuro com tons brilhantes e otimistas. E, sempre que isso
acontecia, eu me afastava mais ainda deles. Parecia que me viam como um
animal que precisava de adestramento, e não como um ser humano.
Eu não queria que Norn se sentisse da mesma forma. Não queria que ela se
sentisse presa. Não queria que nós dois ficássemos todos os dias no limite,
tentando ler o humor e pensamentos um do outro.

Cuidar dela, mesmo que de longe, talvez fosse melhor. Se ela encontrasse um
lugar onde pudesse se sentir um pouco mais confortável, talvez ficaria mais
fácil nos esclarecermos.

Também havia a questão de Aisha a ser levada em consideração. Ela tendia a


ser condescendente com a irmã. Avisei para que tomasse cuidado, mas ela
parecia não estar ciente de que fazia isso quase o tempo todo. Ajustar esse
ponto seria algo que exigiria tempo. Enquanto vivesse nesta casa, Norn estaria
constantemente exposta ao desprezo da irmã. E ela me veria, o irmão que
desprezava, todos os dias.

Além de tudo, Aisha e eu tínhamos alguns talentos naturais incomuns. Eu não


me considerava um mago de classe mundial nem nada assim, mas a maioria
das pessoas me considerava extremamente habilidoso.

É difícil ser “normal” em uma casa cheia de irmãos excepcionais. Eu mesmo já


tinha passado por isso.

No pior dos cenários, poderia imaginar Norn chegando tão longe a ponto de
fugir de casa. E eu sabia como isso poderia acabar mal, especialmente para
uma garota. Algum bastardo doente poderia levá-la e começar a exigir favores
ou coisas do tipo. Comparado a isso, ela estaria muito melhor no caso de se
mudar para um dormitório seguro.

Sylphie também passava muito tempo nos dormitórios. Ela voltava apenas a
cada três noites, mas, entre essas visitas, ficava com a Princesa Ariel. Se
acontecesse algo, estaria lá para ajudar Norn e, felizmente, minha irmã parecia
gostar dela. Talvez tivessem se aberto uma para a outra durante o banho
naquela primeira noite.

Quanto mais eu pensava nisso, mais me parecia uma ideia decente.

Dez anos era pouca idade para morar em um dormitório… mas a experiência
podia ser boa. Ela teria que aprender a socializar e cooperar com outras
crianças da sua idade.

— Certo, Norn. Se é isso que você quer, acho que posso dar um jeito. Vou fazer
a sua inscrição.

— Espera, o quê?! — gritou Aisha, com a boca aberta em descrença. — Por que
você está deixando ela fazer o que quer? Ela nem conseguiu uma boa
pontuação!
Isso tudo por causa daquela coisa de profissionalismo. Isso devia ter ficado em
sua mente pelos últimos cinco minutos.

— Aisha, eu…

— Eu trabalhei muito duro para isso, Rudeus! Não é justo!

Eu podia entender o ponto de vista de Aisha. Da perspectiva dela, devia parecer


que eu estava favorecendo Norn. No que dizia respeito a Aisha, ela conquistou
o direito de fazer o que queria ao obter uma pontuação perfeita no seu teste.
Tive de presumir que ela estudou muito, mesmo que em segredo, durante a
última semana para que isso acontecesse.

Norn, por outro lado, não fez muito, mas decidi deixar fazer o que queria,
mesmo assim. Isso devia parecer descaradamente injusto.

O que meus pais disseram na minha vida passada quando tentei criar um
rebuliço a respeito de coisas do tipo? Não conseguia me lembrar de forma
exata, mas pareciam ser variações entre “Você fará o que dissermos” ou “Nós é
que sabemos o que é melhor para você, meu jovem.”

Aquelas palavras alguma vez me deixaram satisfeito? Bem, não.

Uma abordagem mais severa funcionaria com Aisha? Nah. Provavelmente não.

Ela era uma criança muito inteligente, claro. Se eu explicasse meu raciocínio ela
poderia entender… será? E se eu tivesse sorte?

Tentar ao menos conversar sobre o assunto não faria mal.

— Aisha, não estou recompensando Norn por nada. Apenas pensei um pouco e
cheguei à conclusão de que morar nos dormitórios pode ser o melhor para ela.

— Mas…

— Norn ainda não conhece ninguém nesta cidade, e… não acho que ela goste
de ficar perto de mim, infelizmente. Não quero mantê-la presa em uma casa na
qual se sente infeliz.

— Mas o Papai… Papai disse que deveríamos morar juntos!

Hm. Esse era um bom ponto. Meio que me senti tentado a voltar atrás.

Não, não, isso não seria certo. Meu trabalho não era seguir as ordens
cegamente. O próprio Paul cometeu muitos erros, certo? Meu julgamento não
era perfeito, é claro, mas eu precisava confiar nele.
— Ainda vou tomar conta dela, é óbvio. Vocês são minha família e estou aqui
para ajudá-las, não importa o que aconteça. Mas parece que Norn não está feliz
aqui, e acho que morar nos dormitório pode ajudá-la a melhorar.

—…

Foi a vez de Aisha baixar a cabeça em um silêncio taciturno. Por alguma razão,
surgiram lágrimas em seus olhos.

— Você está sendo mais legal com ela só porque minha mãe é só uma amante?
— disse ela.

A pergunta me pegou de surpresa. No instante em que ouvi a


palavra amante, porém, soube que estávamos entrando em um território
perigoso.

— Lilia não é uma amante, Aisha. Quem te disse que ela era? Foi nosso Pai?
Espero que não tenha sido Norn.

— A Mamãe mesma disse! E… a avó da Norn também disse isso… — As


lágrimas estavam agora rolando por seu rosto.

A própria Lilia e a avó de Norn… Ou seja, a família de Zenith.

Lilia se rebaixar era uma coisa. Eu sabia que ela ainda se sentia culpada por
tudo que aconteceu. Foi por isso que conscientemente continuou
desempenhando o papel de criada da família, em vez de agir como igual à
minha mãe. Talvez fosse natural que ela esperasse que Aisha se comportasse
da mesma forma com Norn, a filha de Zenith. Presumi que Paul tratava as duas
garotas da mesma forma. Mas, ao menos na cabeça de Lilia, as duas não eram
iguais.

Quanto à família Latria… Pelo que ouvi, tratava-se de uma casa aristocrática
com uma história célebre. Só conheci minha tia, Therese, que não era má
pessoa, mas como um grupo, provavelmente tinham algumas ideias bem fixas
a respeito de adultério e posição social. Provavelmente adoravam Norn
enquanto ignoravam a existência de Aisha. Afinal, não tinham qualquer laço
sanguíneo.

Logicamente, eu achava difícil culpar Lilia por suas ações.

— Você gosta mais dela… porque sou só uma meia-irmã…? Hic… — Aisha estava
agora soluçando, esfregando os punhos contra o rosto todo sujo.

Mas sejam lá quais fossem as razões, ainda machucaram uma criança


inocente.
Eu estive operando com algumas suposições equivocadas. Não seria fácil
cuidar de qualquer uma das minhas irmãs.

— Aisha, nunca pensei em Lilia como a amante do meu Pai. E, no que me diz
respeito, você e Norn são minhas irmãs, simples assim.

— Mas eu… estudei tanto para aquele teste… Tentei tanto… e Norn só… só fez…

Entre fungadas, Aisha gaguejou suas reclamações.

Ela então secretamente se esforçou para o teste. Isso devia ter sido…
estressante. Afinal, só dei o aviso de que seria em uma semana. E ela ainda
passou com uma pontuação perfeita.

— Ouça, Aisha.

— O-O que?

— Pode ser difícil de explicar isso, mas eu entendo. Sei que você deu duro e
estou orgulhoso de você. É por isso que concordei em deixar você fazer o que
quisesse.

— Mas você disse… você disse que a Norn pode ir morar nos dormitórios, e ela…
— Neste momento, Aisha fungou de forma ruidosa e seu lábio inferior começou
a tremer. Era uma tática eficaz, mas não recuei. Eu, na verdade, não estava
sendo injusto.

— Isso é diferente, Aisha. Estou analisando os casos individualmente, sabe? Se


você me dissesse que gostaria de ir morar no dormitório, também receberia a
minha permissão para isso. Mas se Norn dissesse que queria ficar e cuidar das
tarefas domésticas no lugar de ir para a escola, eu não permitiria. Você ganhou
o direito de fazer isso, já que conseguiu uma pontuação perfeita no teste.

Aisha franziu a testa e ficou em silêncio.

E depois de uma pausa dolorosamente longa, ela por fim respondeu:

— Certo.

Meus argumentos com certeza não a satisfizeram, mas ela finalmente aceitou.

Norn ficou só assistindo em silêncio, não parecendo feliz ou infeliz.

Eu, no máximo, senti como se estivesse começando a ter uma noção da


situação toda. A família de Zenith tratou Aisha como a filha ilegítima da amante
de Paul, e Aisha canalizou isso como motivação para ser melhor do que Norn
em tudo. Meu pai provavelmente não as tratava de forma diferente, mas as
circunstâncias das duas continuavam diferentes. O relacionamento delas ficou
distorcido muito antes de chegarem até mim.
Mesmo assim, a família Latria estava agora bem longe de nós. Ninguém desta
cidade iria zombar de Aisha por causa de quem era a sua mãe. Contanto que eu
cumprisse com a minha parte direito, esse problema acabaria desaparecendo.

— A propósito, Norn, há uma condição para isso. Quero que você venha nos
visitar ao menos uma vez a cada dez dias.

Norn franziu a testa para isso.

— Por quê?

— Porque fico preocupado com você.

Além disso, eu tinha o dever de ficar de olho nela. Não seria muito bom dizer
para Paul que joguei sua querida filha em um dormitório e depois esqueci da
existência dela.

— Então tá… — Embora parecesse extremamente relutante, Norn concordou.

Após finalmente elaborarmos um plano inicial, era hora de reorganizar nossas


vidas e acomodar as coisas.

Arranjei para que Norn se matriculasse na Universidade de Magia e fiz uma


inscrição para garantir sua vaga nos dormitórios. Claro, também expliquei a
situação para Sylphie e pedi para ela ajudar Norn, caso surgisse algum
problema.

— O quê? Você vai mesmo afastar a Norn desse jeito? — Sylphie, a princípio, foi
contra o meu plano. Seu primeiro impulso foi o de manter Norn em nossa casa,
para que pudéssemos dar carinho para ela, até que começasse a confiar um
pouco mais em nós. Não era uma opção irracional, mas, com base em quão
desconfortável Norn pareceu naquela primeira semana, eu não conseguia me
convencer de que seria nossa melhor aposta.

— Acho que seria melhor se Aisha e Norn vivessem separadas por algum
tempo — falei. — Parece que a família da minha mãe perseguiu Aisha por ela
ser filha de uma “amante”, sabia? Não quero afastar a Norn, mas acho que as
duas estão precisando de algum espaço.

— Hmm… Bem, eu não sabia de nada disso. Então tudo bem. Acho que vou ter
que ficar de olho em Norn sempre que possível.
Sylphie não estaria sempre lá, mas isso era melhor do que nada.
Esperançosamente, daria tudo certo.

Aisha, por sua vez, logo assumiu seu novo papel como nossa criada.

Ela também era muito boa nisso. Assim que começou a assumir as tarefas
domésticas, nossas vidas ficaram visivelmente mais fáceis. Aisha já estava
cuidando da limpeza e das roupas, o que indicava que todas as minhas tarefas
foram tomadas. Eu não podia mais ficar esfregando meu rosto contra a roupa
íntima suja de Sylphie, mas teria que lidar com isso da melhor forma que
pudesse.

Sylphie, aliás, continuou encarregada das compras de alimentos e demais


coisas. Esse era um papel que ela queria manter. Mas Aisha sempre aparecia
para ajudá-la.

Além dessas tarefas básicas, minha nova criada também começou a lidar com
uma série de coisas nas quais eu nunca havia pensado. Ela saiu
cumprimentando nossos vizinhos, por exemplo, e providenciou uma limpeza
em nossa chaminé. A garota era muito afiada e com disposição para trabalhar.
Ela se destacava em tudo que colocava na cabeça, e nunca a vi cometendo um
grande erro. Fui obrigado a imaginar que foi necessário muito trabalho para
manter essa imagem de perfeição.

Por alguma razão, parecia que ela estava falando sério sobre fazer dessa coisa
de criada a sua ocupação em tempo integral. Quando ela estava trabalhando,
abandonava a atuação de irmãzinha pegajosa e se tornava uma profissional
quase robótica. O treinamento de Lilia foi obviamente completo.

Aisha, no geral, passava a maior parte de suas horas de trabalho cuidando da


casa. Quando chegávamos, ajudava Sylphie com o jantar ou me ajudaria a
preparar o banho. Quando estávamos tomando banho, preparava nossas
mudas de roupa e depois penteava o cabelo de Sylphie. E nas noites em que
Sylphie voltava para o turno da noite, levava o casaco até a porta e se despedia
com uma reverência educada.

Sylphie, que não estava acostumada com esse tipo de coisa, reagiu sem jeito à
atenção de Aisha. Era sempre divertido ver a interação entre as duas.

Quando recebíamos convidados, Aisha também fazia questão de mantê-los


animados e entretidos. Não que isso acontecesse com muita frequência. A
única pessoa que havia aparecido recentemente foi Nanahoshi, tentando me
agradecer por minha ajuda anterior. Ela parecia ter arrumado uma recompensa:
o círculo mágico para um feitiço de invocação específico que eu poderia achar
útil, e prometeu entregar e explicar como usar antes de passarmos para o
segundo estágio dos seus experimentos.
Aisha aproveitou a oportunidade para esbanjar sua hospitalidade para nossa
visita. Ela preparou um banho para Nanahoshi, assim como uma muda de
roupas e até a ajudou a se lavar.

Nanahoshi pareceu nitidamente incomodada com toda a atenção. Quando saiu,


resmungou algo sobre eu ser um “monstro” que forçava “a própria irmã a
trabalhar feito uma escrava”.

Acho que ela preferia tomar banhos pacíficos, silenciosos e solitários. Da


próxima vez, eu teria que me lembrar de pedir a Aisha para que lhe desse um
pouco de privacidade.

A garota não relaxava nem depois do jantar. Quando eu me acomodava na sala


de estar, ela se movimentava mantendo o fogo aceso ou preparando bebidas
quentes para mim. Para ser honesto, parecia meio estranho ter minha própria
irmã agindo como minha serva pessoal. Mas Aisha parecia feliz com isso,
então eu estava disposto a deixar as coisas continuarem assim por algum
tempo. Eu não queria forçá-la a fazer nada que não quisesse.

Depois de chegar a essa conclusão, entretanto, lembrei da minha teoria de que


sua capacidade de mana era parcialmente determinada pelo quanto usava
magia quando criança. Se Aisha não fosse à escola, eu poderia ao menos lhe
dar um pouco de treinamento em magia. Aos dez anos, sua capacidade de
mana provavelmente não passaria por grandes mudanças, mas isso também
não era certeza. E também seria melhor para ela caso soubesse ao menos
magia ofensiva de nível intermediário. Os feitiços iniciantes eram suficientes
para uma pessoa comum viver uma vida pacífica, mas os intermediários eram
mais úteis caso precisasse se defender.

— Aisha, venha aqui. Vamos praticar um pouco de magia.

— Ooh! Você vai me ensinar, Rudeus?! Sério?!

Aisha trotou até mim com um enorme sorriso no rosto. Apesar de toda a sua
disciplina, a criança tendia a deixar o papel de “criada exemplar” vacilar sempre
que se emocionava com alguma coisa. Ela ainda tinha um longo caminho a
percorrer para chegar ao nível de Lilia.

— Sim, acho que você aprender um pouco mais é uma boa ideia. Sei que você
pode não estar tão interessada, mas…

— Mas eu estou! Claro que estou! — disse ela, pulando no meu colo. — Por
favor, vá em frente!

Quando queria, essa garota podia ser terrivelmente fofa.

Nossa primeira sessão de tutoria foi produtiva. Aisha já tinha uma boa
compreensão dos fundamentos; não teve tempo para aprender feitiços
Intermediários, mas tive a sensação de que ela poderia aprendê-los
rapidamente se tivesse os livros adequados. Ela, entretanto, não era capaz de
lançar feitiços não verbais. Dez anos provavelmente já era tarde demais para
aprender essa habilidade em particular.

Revisei algumas coisas e passei uma tarefa simples a ela: usar o máximo de
magia que pudesse todos os dias, até que seu estoque de mana acabasse.
Naquela noite, Aisha subiu na minha cama e perguntou:

— Rudeus, esta noite posso dormir com você?

Depois de vê-la desmoronando em lágrimas no outro dia, não consegui me


obrigar a dizer não. E, de qualquer forma, não era como se isso fosse fazer mal.

— Claro. Vamos lá.

Sem qualquer palavra de reclamação, puxei as cobertas e abri espaço para ela.

Aisha era menor do que Sylphie, é claro, mas também mais calorosa. Em um
clima frio desses, ter outro travesseiro aquecido e aconchegante na cama não
faria mal.

Claro, isso era tudo puramente inocente. Além do fato de que ela era minha
irmã, também era uma criança. Ela parecia ter em algum momento aprendido
alguns duplos sentidos, mas provavelmente não os entendia. Não havia razão
para me sentir estranho com nada disso.

Se Aisha acabasse desenvolvendo algum sentimento por mim, eu


simplesmente teria que convencê-la a desistir disso. Não sei se beijar a irmã
era inerentemente imoral ou algo assim, mas eu gostava da minha família do
jeito que estava.

E era assim que as coisas costumavam acontecer nas noites em que Sylphie
estava fora.

O verdadeiro problema surgia nas noites em que minha esposa estava por
perto. Especificamente quando íamos juntos para a cama.

Agora que minhas irmãzinhas moravam conosco, decidi por fazer uma pausa
em nossas atividades íntimas. Mas quando eu tinha uma linda mulher deitada
ao meu lado, era impossível de resistir.

Normalmente, eu conseguiria me conter. Mas, normalmente, tinha a


oportunidade de me aliviar sozinho. Porém, Aisha tendia a me seguir para
todos os cantos. Eu não estava tendo privacidade e não estava disposto a
começar a me aliviar nos banheiros da escola ou coisa do tipo. A ideia era meio
deprimente, ainda mais para um homem casado e feliz.

Incapaz de encontrar uma boa solução, acabei deixando as coisas se


acumularem por um bom tempo. Eu era um homem jovem e enérgico. Depois
de uma semana inteira sem qualquer liberação, estava a ponto de explodir. E,
bem ao meu lado, havia uma mulher bonita. Uma mulher bonita que me amava,
nunca me disse não e prometeu ter um bebê meu.

A ideia de se conter parecia ridícula. Então não me contive.


— Uff…

Mas acabei exagerando um pouco. Eu tinha trancado a porta primeiro e usado


um pouco de magia de terra básica para abafar os sons, mas… Aisha
esperançosamente não estaria espiando pelo buraco da fechadura ou algo
assim.

— Uau, hoje você foi… realmente incrível, Rudy…

Quando terminamos, Sylphie estava exausta. Ela estava banhada de suor e seu
cabelo estava todo bagunçado, de uma forma bem atraente.

Passados alguns minutos de conversa no travesseiro, nos enxugamos com as


toalhas, colocamos nossas roupas de dormir de costume e voltamos juntos
para a cama.

Nossas roupas de dormir eram feitas de um tecido macio e confortável, mas


pareciam um pouco simples – estavam mais para conjuntos de moletom do
que para pijamas. Sylphie parecia pensar que o dela não era atrativo, mas eu,
pessoalmente, discordava. Quando olhava para ela sentada na cama, parecia
que eu havia persuadido uma garota do time de corrida para ir ao meu quarto
ou algo assim. A falta de sensualidade explícita só servia para deixar tudo
ainda mais excitante.

Esse efeito não seria obtido com uma lingerie vermelha chamativa, igual àquele
conjunto que Eris usou. Ou com uma garota mais curvilínea como Linia ou
Pursena. Roupas simples, por algum motivo, só combinavam com Sylphie.

—…

— Hm? O que foi, Rudy?

Em algum momento, enquanto pensava nisso tudo, comecei a passar minhas


mãos pelo corpo esguio da minha esposa, abraçando-a por trás.

Eu gostava muito do seu corpo. Sylphie não era a mais curvilínea, mas também
não era plana. Quase não possuía gordura, mas continuava macia ao toque. Só
tocá-la assim era o suficiente para fazer meu para-raios apontar para o céu.

— Uh… você quer mais?

— Não, não. Você, uh, tem que trabalhar amanhã e tal. Eu ficarei bem! Posso
só… acariciar seu peito pela manhã? Por favor? Isso vai bastar.

— Não seja bobo. Não precisa se segurar. — Sylphie deitou-se na cama, abriu as
pernas e sorriu timidamente para mim. — Vem cá, Rudy.

Meu autocontrole instantaneamente reduziu-se a pedacinhos e desapareceu ao


vento. A palavra restrição perdeu qualquer sentido para mim. Arrancando
minhas roupas de qualquer jeito, coloquei as mãos juntas e executei um belo
mergulho de cisne em direção a minha esposa.

Continuando, então…

Norn foi bastante dócil nos últimos dias enquanto nos preparávamos para sua
mudança para o dormitório da escola. Ela não conversou muito comigo, mas
também não era como se estivesse sendo hostil. Ela aparecia quando eu a
chamava e ouvia quando eu pedia para que fizesse algo. Mas não parecia que
estávamos ficando mais próximos.

Eu ainda esperava melhorar o nosso relacionamento, é claro. Na verdade, certo


dia a convidei para tomar um banho comigo, pensando que poderia ser uma
forma decente de quebrar o gelo. Infelizmente, ela só fez uma careta e disse:
“Não.”

Aisha na mesma hora apareceu e se ofereceu para ir tomar banho comigo. Ela
acabou lavando as minhas costas e me fazendo uma massagem agradável.

Aquela garota realmente fazia qualquer coisa que planejava, e era boa até
enxaguando as pessoas… não que eu quisesse que minha irmã seguisse uma
carreira em que isso fosse relevante.

Em poucos dias, consegui finalizar os preparativos para a matrícula de Norn na


universidade. Sua colega de quarto era uma estudante do quarto ano, igual
Nanahoshi. Eu queria alguém do quinto ou sexto ano, já que conhecia mais
pessoas dessas classes.

A garota também parecia ser um híbrido entre humano e papagaio. Ela tinha
uma enorme crista colorida na cabeça, a qual ficava se contorcendo sempre
que ficava animada ou chateada. Eu não tinha certeza se o povo dela era
demônio ou gente-fera, mas isso não importava. De qualquer forma, seu nome
era Marissa, e eu não tinha ouvido nada de ruim sobre ela.

Pensando bem, essa escola tinha um corpo discente bem diversificado, com
muita gente de raças mestiças. Eu teria que lembrar Norn de tomar cuidado
com suas maneiras e não dizer nada que pudesse soar ofensivo.

Aliás, tentei me apresentar a Marissa. Mas quando me aproximei dela com um


sorriso, a garota se encolheu de medo e correu pela sua vida. Não consegui
dizer uma palavra que fosse. Dada essa reação, provavelmente seria melhor se
Norn não mencionasse para os outros que era minha parente. Muitas pessoas
pareciam pensar que eu era o chefe de algum tipo de gangue, e a última coisa
que eu queria era que minha reputação atrapalhasse as crianças a fazerem
amizade com ela.

De qualquer forma, no momento não existiam motivos para se preocupar com


isso. Tentar cuidar de todos os problemas de Norn no lugar dela também seria
muita arrogância. Se eu precisasse, poderia sempre recorrer a Sylphie, Luke e
Ariel. Eles eram incrivelmente populares e sempre pareciam atrair uma
multidão aonde quer que fossem. Passar um tempo com eles poderia ajudar
Norn a aprender algumas habilidades sociais.

Mas, bem… havia uma chance de os fãs deles ficarem com inveja dela. Mas
talvez fosse esse o tipo de adversidade que ela precisava aprender a
enfrentar…

Hrrm. Afinal, por que essas coisas têm que ser tão complicadas?

No final das contas, Norn precisaria enfrentar isso sozinha. Era melhor que eu
ficasse de fora de tudo até que algo saísse errado. Por enquanto, meu trabalho
seria assistir em silêncio.

Mas continuei tremendamente nervoso com isso.

Logo chegou o dia da partida dela. Quando a vi naquela manhã, minha irmã já
estava vestindo seu novo uniforme e carregando sua bolsa.

Antes de ela ir embora, mencionei algumas coisas importantes para se lembrar.


Primeiro, precisava respeitar as regras do dormitório. Segundo, precisava levar
os estudos a sério. E terceiro, precisava ser respeitosa com qualquer demônio
que encontrasse.

Eu tinha muito mais o que dizer, mas no momento parecia melhor manter as
coisas simples.

— Ah, é mesmo. Só mais uma coisa… Se você tiver qualquer problema na


escola, certifique-se de contar para mim ou para Sylphie.

— Tá bom — respondeu Norn baixinho, estudando o batente da porta ao meu


lado. Ela nunca me olharia nos olhos? Eu estava começando a ficar meio
ansioso por causa disso.

— Lembre-se de escovar os dentes ao acordar e antes de ir para a cama.

— Sim.

— Também certifique-se de tomar seus banhos.

— Certo.

— E não se esqueça de fazer suas lições de casa.


— Claro…

Vejamos, o que mais… Ah, sim!

— Tente não pegar nenhum resfriado.

—…

Bem, nesse ponto ela começou a olhar para mim. Ao menos foi um começo.

Cap. 02.5 – Interlúdio – Relações Mestre/Servo

Vamos voltar um pouco no tempo. Antes de contarmos o resto desta história,


quero mencionar algo que aconteceu há cerca de uma semana antes do
colapso de Nanahoshi.

Naquele dia, assim que coloquei os pés no laboratório de Zanoba, ele chamou
por mim, trotando com uma caixa nos braços. Seu rosto brilhava de orgulho.

Colocando a caixa sobre a mesa, Zanoba tirou seu conteúdo – um objeto longo
e esguio coberto com um pano. Desembrulhando-o, revelou um braço artificial
em questão. Ele o cortou em pedaços, igual a uma cenoura.

— Mestre! Dê uma olhada nisso!


— O que é isso?

— É o braço daquele boneco que estamos estudando.

— Quando olhei perto dos lugares onde a tinta descascou, percebi o que
pareciam ser costuras na superfície. Tentei cortá-las, só para ver o que poderia
acontecer… e foi isso que descobri.

Pegando uma das fatias, Zanoba girou para que eu pudesse ver o corte
transversal. Vi um padrão como se fosse um código QR escrito
compactamente ali. Devia ser algum tipo de círculo mágico, mas era peculiar,
totalmente diferente dos desenhos que Nanahoshi faz.

Não era só naquele corte transversal. Padrões semelhantes estavam presentes


em cada seção do braço, tanto na superfície frontal quanto na posterior, e
todos eram ligeiramente diferentes uns dos outros. Embora fizessem parte da
mesma articulação, não eram iguais.

— Uau. Certo. Eu não esperava que os braços tivessem tantos círculos mágicos,
sério… É interessante o fato de serem tão diferentes uns dos outros…

Olhar para eles por um tempo realmente me deixou enojado. Parecia quase
como se estivéssemos estudando o sistema nervoso de um corpo humano
dissecado ou algo assim.

— Eu não fazia ideia de que havia costuras nisso. Devem ser bem sutis.

— Bem, estavam quase escondidas pela tinta — disse Zanoba com orgulho. —
Seria impossível notar sem primeiro descascar.

— Entendo…

Foi o primeiro grande avanço de Zanoba em sua pesquisa, e ele ficou muito
animado com isso. Eu não estava tão animado assim, já que desde o começo
assumi que deveria haver algum tipo de tecnologia mágica complexa animando
a coisa.

— Os movimentos eram bem suaves e coordenados, agora que penso nisso.


Acho que para tornar isso possível são necessários muitos círculos mágicos —
considerei.

— Oh? Pode dizer que função esses padrões desempenham, Mestre?

— Não. Nunca vi nada assim antes.

Isso tudo era necessário só para mover o braço? Será que é necessário uma
cadeia de círculos mágicos por todo o corpo para controlar e coordenar os
movimentos? Ou é algo mais? Era impossível definir isso sem mais pesquisas.
Até encontrarmos a coisa, ela vagava pela casa todas as noites, limpando e
atacando qualquer ameaça que encontrasse. Uma vez que a rotina de limpeza
terminava, voltava à sua base para recarregar. Pensando nisso, esses eram
alguns padrões comportamentais bem complexos. Era mais inteligente do que
um aspirador de pó robótico… e significativamente mais violento.

Não era algo que pudesse criar ao gravar meros círculos mágicos na cabeça ou
no torso, imaginei.

Meu objetivo não era criar um simples Roomba1 mágico. Eu quero fazer
bonecos capazes de se mover. Queria um para mim e também queria vender
outros, visando algum lucro. Definitivamente alcançariam um alto preço no
mercado.

Eu não estou procurando me tornar um milionário ou coisa do tipo. Só quero


alguma segurança financeira. Se acabasse ganhando uma fortuna,
provavelmente ficaria descuidado e desperdiçaria tudo.

E também havia aquela coisa de melhorar a reputação dos Superds, mas esse
era outro tipo de problema.

De qualquer forma, isso tudo, no momento, não passava de um devaneio. Mas,


talvez, em algum dia terei a empregada robô dos meus sonhos.

— Suponho que os círculos mágicos diretamente responsáveis pelos


movimentos devem estar na cabeça ou no torso, Zanoba. Tome cuidado se for
cortar nesses locais.

— Claro, mestre! — respondeu Zanoba com um aceno de cabeça alegre


enquanto recolhia os pedaços de braço do boneco colocando-o de volta na
caixa.

Pensando nos acontecimentos passados, esse tipo de descoberta foi a razão


pela qual Zanoba foi capaz de apresentar uma sugestão útil depois, quando
Nanahoshi passou por um colapso. E, graças àquela sugestão, Nanahoshi teve
sucesso na criação de seus próprios círculos mágicos de várias camadas. Ela
até mesmo alcançou seu objetivo de convocar coisas de outro mundo, objetivo
esse que quase abandonou.

Um dia, com certeza realizarei meu sonho de criar a empregada robô perfeita. E
esse momento está cada vez mais perto de acontecer.

Quando esse pensamento me ocorre, fico motivado.


Hoje, como qualquer outro dia, fui ao laboratório de Zanoba.

— Zanoba, estou entrando!

Bati uma vez na porta e entrei em seu laboratório. Deparei-me cara a cara com
uma mulher que estava na entrada, como se estivesse de guarda. Ela não era
uma supermodelo, mas tinha um rosto bom.

— Ah! Ei, Ginger! É bom te ver de novo.

A mulher, por um momento, me olhou com desconfiança. Mas quando a


cumprimentei, ela baixou a cabeça com uma expressão séria..

— Olá, Sir Rudeus. Há quanto tempo.

Seu nome era Ginger York, ela é uma ex-cavaleira de Shirone e leal guarda-
costas do Terceiro Príncipe Zanoba. Voltar a vê-la despertou certa nostalgia.

— Pensei em cumprimentá-lo — continuou Ginger —, mas as coisas têm estado


um pouco agitadas…

— Não precisa se preocupar. Eu fui o errado dessa história. Você acompanhou


minhas irmãs até aqui sem nenhuma compensação, e nem apareci para
agradecer.

— Sou eu quem deveria agradecer. A Senhorita Aisha acelerou muito a nossa


jornada. Essa é minha compensação.

Ginger, sorrindo, acenou para que eu entrasse no laboratório de Zanoba.

Zanoba e Julie estavam, como sempre, dando duro em seus próprios projetos.
Ele estava desenhando diagramas dos círculos mágicos que encontrou no
boneco, e ela esculpindo uma estatueta com um pequeno cinzel. Esse projeto
parecia perto de ser concluído, então fui dar uma olhada.

— Como está indo, Julie?

— Acho que… deve ficar pronto em breve, Grão-Mestre. O que acha?

— Isso não está ruim. Mas não acha que está atraente demais para ser o
Zanoba?

— Ei, isso não é verdade. O Mestre também é bonito.

Sua escultura ainda estava um pouco descuidada, mas a garota estava


começando a entender os fundamentos. Eu poderia fazer algumas críticas a
respeito dos detalhes, mas como a criança parecia ter um talento especial para
isso, provavelmente seria melhor deixar que descobrisse as coisas sozinha.
Olhei em direção a Zanoba, mas ele parecia precisar de mais algum tempo para
terminar. Foi nesse ponto que notei Ginger olhando para mim.

— O que houve, Ginger?

— Ah, não é nada. Eu só estava pensando… que você cresceu bastante, isso é
tudo.

— Bem, é claro. Já se passaram o quê… uns quatro anos desde a última vez que
nos vimos?

Recentemente, senti que muitas pessoas estavam comentando a respeito da


minha aparência. Pode ser que meu apelo sexual estivesse fluindo. Se eu não
tivesse me casado com Sylphie, será que teria um harém? A ideia tinha certo
apelo, mas, se colocada em prática, seria provavelmente estressante. E, de
qualquer forma, eu estava satisfeito com a condição da minha vida sexual.

— A propósito, Ginger, o que planeja fazer?

— Pretendo ficar aqui, ao lado do Príncipe Zanoba.

— Ah. Então está retomando suas funções como guarda-costas dele?

— Isso mesmo. Já completei minha outra missão, e minha família está segura
em casa.

A lealdade dessa mulher era realmente impressionante. Ela protegeu Lilia e


Aisha por anos, até finalmente deixá-las em segurança. Mas Zanoba mostrou
algum tipo de apreciação? Ou ao menos agradeceu? Provavelmente não. Esse
cara não era o mais atencioso dos empregadores.

— Ei, Zanoba. Não acha que deveria dar uma recompensa a Ginger por todo o
trabalho duro dela?

— Sir Rudeus! Eu não teria a pretensão de…

— Hm, suponho que você esteja certo — disse Zanoba, ainda focado em seus
círculos mágicos. — Há algo que você deseja, Ginger? Fale livremente.

O príncipe com certeza poderia parecer pomposo quando assim quisesse.

Ginger pareceu surpresa com esse acontecimento. Foi provavelmente a


primeira vez que Zanoba lhe deu qualquer tipo de reconhecimento por seus
esforços.

Depois de pensar por um bom tempo, ela se ajoelhou, abaixou a cabeça e


disse:
— Bem, então, meu lorde… permita-me educar Julie. Entendo que ela é aprendiz
de Sir Rudeus, mas seus modos não condizem com os da serva de um príncipe.

— Pois bem. Irei permitir.

— Obrigada, Príncipe Zanoba!

Isso realmente não era o que eu tinha em mente. Digo, a educação de Julie era
para o bem de Zanoba, não de Ginger. Então, será que há alguma regra oculta
de que escravos não devem receber educação demais?

A humanidade foi expulsa do Jardim do Éden porque comeu o fruto do


conhecimento. Permaneça ignorante e poderá ficar perfeitamente feliz em
passar o resto da vida dançando com uma folha de figueira sobre a virilha,
cantando “Yatta2” o dia todo. É por isso que os reis preferiam que seus súditos
fossem o mais ignorantes possível. Quanto menos educação eles têm, menos
provável que ergam-se contra aquele no poder. Claro, com isso também está
sabotando a capacidade deles de aprender novas habilidades e se tornarem
mais úteis, mas é algo que muitos governantes estão dispostos a fazer.

De qualquer forma… Acho que seria complicado Zanoba conceder uma


recompensa mais típica a Ginger, como terras ou fortunas, dada sua posição
atual. Ela provavelmente percebeu isso e fez um pedido modesto por pura
lealdade.

— Bem, então tá bom — falei. — De volta à rotina, eu acho. Quão longe você
chegou?

— Estava planejando começar a trabalhar nas pernas, Mestre.

— Sim, estive pensando nisso, mas não seria melhor estudarmos todos os
círculos nos braços primeiramente? Digo, depois de separar as partes, você não
pode montá-las novamente, certo? Ir com calma pode ser melhor.

— Hmm, isso é verdade…

— Talvez possamos trazer Cliff e Nanahoshi para dar uma olhada. Eles podem
notar algo que deixamos passar.

Zanoba e eu nos inclinamos sobre a mesa e discutimos nossos planos, antes


de finalmente decidir começar a dissecar o segundo braço do boneco,
buscando compará-lo com o primeiro. Porém, quando estávamos prestes a
começar, notei Ginger parada ao meu lado. Ela parecia ter algo a dizer.

— Precisa de alguma coisa, Ginger?


— Sir Rudeus… mesmo que Zanoba possa estar confortável, ele ainda é da
realeza real de Shirone. Sei que ele é seu pupilo na área artística, mas a
maneira como você fala com ele ainda me parece… pouco respeitosa.

— Hm?

Assim que ela mencionou, percebi que estava falando com ele de forma mais
casual que o normal. Eu geralmente adotava um discurso mais formal, mas
depois daquele comentário que Aisha fez no outro dia, inconscientemente
comecei a me soltar um pouco.

Eu podia entender porque uma criada leal ficaria aborrecida ao ouvir seu
mestre sendo tratado indelicadamente. Eu só precisaria ser mais educado
quando Ginger estivesse por perto.

— Suponho que você esteja certa. Sinto muito por isso. O Príncipe Zanoba tem
sido um bom amigo para mim, então acho que…

Antes que eu pudesse terminar a minha frase, Zanoba ficou de pé e a fúria


queimava em seus olhos.

— Gingeeeeer!

Saltando em direção a sua guarda-costas, ele a levantou pelo pescoço e a


bateu contra a parede. Julie se encolheu diante do barulho alto e deixou o
cinzel cair.

— Como ousa?! Mestre Rudeus estava finalmente se abrindo para mim, e agora
você estragou tudo! Como pôde? Conserte isso! Peça desculpas agora mesmo!

— Guh… Guhh!

Ginger parecia estar sentindo muita dor. Ele estava mesmo a sufocando? Isso
estava escalando em uma velocidade absurda!

— Zanoba! — gritei. — Já chega! Solte-a!

Ele instantaneamente soltou suas mãos e deixou Ginger cair. Seus dedos
deixaram claras marcas vermelhas na pele dela. Ela tentou estender a mão
para tocar o pescoço, mas parou no meio do caminho, fazendo uma careta de
dor. Parecia ter quebrado um osso do ombro quando foi batida contra a parede.

Corri e rapidamente curei seus ferimentos com magia de cura. E assim que
terminei, ela se ajoelhou diante de mim e abaixou a cabeça.

— Cof… cof… minhas mais sinceras desculpas, Sir Rudeus…

Ela estava realmente se desculpando comigo. Depois de Zanoba quase a matar.


Passei um momento sem palavras, devido à culpa. Ela não fez nada de errado.
Por que estava pedindo desculpas para mim?

Por fim, me virei para Zanoba.

— Qual é o seu problema?!

— Mas, Mestre! Ela interrompeu sem pensar, sem qualquer consideração sobre
nossa amizade…

— Então por que você simplesmente não disse isso para ela?!

Ginger lealmente o serviu por muitos anos. Ela protegeu minha família em uma
longa e perigosa jornada por um território desconhecido. Não devia ter sido
fácil, mas ela fez tudo isso por nada além de lealdade a seu mestre exilado.

E quando cometeu um único erro, a reação dele foi batê-la contra a parede e
começar a sufocá-la? Isso era simplesmente horrível.

Estava óbvio que nossa amizade era muito importante para Zanoba. Era bom
saber disso. Mas não significava que ele devesse maltratar sua guarda mais
leal por algo assim.

— Sir Rudeus, por favor… Está tudo bem — disse Ginger suavemente, seu rosto
calmo e composto. — Fico orgulhosa ao ver o Príncipe Zanoba defendendo um
amigo. Ele claramente cresceu como pessoa desde a última vez que o vi.

O quê? Sério? O estranho aqui sou eu?

Eu talvez não tivesse a função de dizer nada, mas Ginger obviamente merecia
um tratamento muito melhor do que esse.

—Zanoba…

— Sim, Mestre?

— Eu o considero um bom amigo.

Após essas palavras, o rosto de Zanoba começou a brilhar de felicidade. Parei


por um momento para deixar que ele as saboreasse.

— Mas também devo muito a Ginger por ter protegido a minha família. Ela ficou
com minha família pelo quê… quatro anos? Sou muito grato por isso, e eu
apreciaria se você a tratasse com mais gentileza.

— Claro, Mestre — disse Zanoba com uma expressão séria no rosto. — Peço
desculpas por minhas ações, Ginger.
— Não há necessidade para se desculpar, Príncipe Zanoba — contestou Ginger,
levantando-se. — Fiz um juramento de lealdade absoluta a você, e morreria de
boa vontade sob o seu comando. Minha observação foi impensada.
Sinceramente lamento pelo que falei.

Essa parecia ser sua palavra final a respeito disso, e eu não via motivos para
arrastar ainda mais o caso. Evidentemente, era assim que funcionava a relação
mestre-serva entre eles. Mas, e se Zanoba cometesse um erro grave? Ginger
conseguiria discordar dele?

Bem, tanto faz. Eu era basicamente um estranho. Não sabia como as coisas
funcionavam em Shirone e, se continuasse me intrometendo, provavelmente só
causaria ainda mais problemas.

Deixando esse incidente alarmante de lado, nossa pesquisa a respeito do


boneco autônomo estava começando a fazer algum progresso real.

— Sei que sugeri por enquanto focar nos braços, mas a decisão é sua. Siga com
o que achar que é melhor.

— Agradeço, mas concordo com sua sugestão, Mestre. Em vez de desmontá-lo


e remontá-lo, seria mais seguro recriar o mesmo braço antes de passar para as
demais partes.

Passamos o resto da sessão focados em desmontar e estudar os braços do


boneco. Sugeri chamar Cliff ou Nanahoshi para ajudar, mas estava deixando
essas decisões inteiramente à escolha de Zanoba. Existiam algumas coisas
que eu queria tentar, mas parecia que até o momento ele estava progredindo
bem, mesmo sozinho. Não senti necessidade de me intrometer.

— Acho que você pode deixar o resto comigo, Mestre. Parece que tenho algum
talento para este tipo de trabalho.

— Huh. Sério mesmo?

— Sim. Também fiquei surpreendido, mas achei o trabalho envolvente. Estou


me divertindo muito com essa pesquisa.

Ele passava o dia todo fazendo pesquisas que o atraíam, com uma dedicada
artista do ofício das estatuetas trabalhando constantemente ao seu lado. Isso
provavelmente era o seu dia a dia ideal. Ainda assim, o que acontecerá após ele
se formar? Continuaria vagando pela cidade, brincando com seus bonecos?

Bem, não cabe a mim decidir. Não era problema meu… mesmo que uma das
razões de Zanoba para fazer isso fosse, em parte, por minha causa.

— Bem, então tá. Continue assim, Zanoba! Nos vemos outra hora.
— Fico ansioso por isso, Mestre.

— Seja legal com a Ginger, certo?

— É claro!

Nesse ritmo, talvez em breve fizéssemos outra descoberta.


Cap. 03 – O Chefe e Seus Lacaios

Mais um mês passou, o que indicava que era hora da reunião regular da
principal gangue de delinquentes da Universidade de Magia de Ranoa. Com
isso, quero dizer a sala de aula da “classe especial”. Os envolvidos eram os de
sempre: Zanoba, Julie, Cliff, Linia, Pursena e eu. Nanahoshi e Badigadi estavam
ausentes, já que as regras não se aplicavam a eles.

Eu não estava com o melhor dos humores nesta manhã. Ultimamente tenho
pensando muito em minhas irmãs… em Norn, especificamente. Já fazia algum
tempo que ela estava morando nos dormitórios, mas dar o espaço que ela
queria não foi de grande ajuda para melhorar nosso relacionamento. Ela
costumava me ignorar sempre que nos cruzávamos pelos corredores e, quando
Norn não fazia isso, ela me lançava um olhar de nojo.

Certo, talvez essa última parte fosse só minha mania de perseguição. Mas, em
qualquer caso, nós dois não estávamos ficando mais próximos.

Mas não havia problema nisso. Eu ficava triste, mas poderia viver com isso.
Não era como se irmãos e irmãs tivessem que ser melhores amigos ou algo do
tipo. E mesmo que não nos déssemos bem, eu ainda ajudaria Norn, caso ela
precisasse de minha ajuda.

Caramba, eu ficaria em cima de seus professores igual um pai coruja, se


necessário. Minha posição próxima ao topo da hierarquia escolar seria de
muita ajuda nisso. Eu poderia, por exemplo, intervir caso qualquer pessoa
tentasse intimidá-la. E eu conhecia o vice-diretor pessoalmente, então poderia
pedir ajuda, caso necessário. É sempre bom saber que pode passar por cima
das outras pessoas. Fiz um lembrete para levar alguns presentes modestos
para Jenius de vez em quando.

O verdadeiro problema era: Norn estava morando naquele dormitório por cerca
de um mês, mas parecia ainda não ter feito qualquer amigo. Quando a via nos
corredores, estava geralmente sozinha. Ela não parecia triste nem nada assim,
mas isso estava começando a me incomodar.

É possível sobreviver por um tempo sem fazer amigos. Mas ela estava ao
menos tentando conversar com as demais pessoas da sua sala? Estava se
ajustando à vida nos dormitórios?

Fiquei genuinamente preocupado, mas também não queria me envolver


diretamente. E eu não conhecia muitos alunos do primeiro ano. O único que me
surgiu à mente foi, na verdade, um completo delinquente. Se eu tentasse
convencê-lo a fazer algo, sentia que Norn descobriria e logo ficaria ressentida
comigo por causa disso.

Além disso, eu nem lembrava do nome daquele cara. Mas lembrava que ele
parecia com um husky siberiano.

— E aí, Chefe, tudo bem? — disse Linia, abaixando-se para me olhar no rosto. —
Ultimamente você está parecendo tão triste.

— Sim, real — acrescentou Pursena.

Por mais barulhentas e irritantes que as duas pudessem ser, metade do povo-
fera dessa escola as idolatrava. Mesmo após fazerem as pazes com a Princesa
Ariel, era fácil vê-las vagando pelos corredores cercadas por um bando de
lacaios leais. De qualquer forma, duvido que tenham muitos conselhos a
oferecer sobre o assunto da solidão.

— Bem, não se preocupe, meow. Conseguimos um presente especial para


animá-lo!

— Aham. Isso levou um mês inteiro.

Com um sorriso malicioso, Linia deixou uma enorme bolsa rugosa cair na
minha mesa.

Olhei duvidosamente para aquilo. Era difícil dizer o que poderia estar dentro.

— Calma lá, Chefe! Não abra antes de voltar para casa.

— Desembrulhe sozinho, entendeu? Certifique-se de que ninguém veja.

Isso estava começando a soar seriamente suspeito. Com sorte, não seria um
saco de pó da alegria ou coisa do tipo. Eu sabia que existiam alguns tipos de
narcóticos circulando pelos Territórios Nortenhos e em partes do Continente
Demoníaco. Millis e Asura pareciam ter leis que restringiam seu uso, mas a
maioria das nações nesta região não eram tão rígidas a respeito disso.

Naturalmente, eu não tinha intenções de adquirir o vício em drogas. Se eu


acabasse viciado ou entrasse em abstinência, minha magia não seria o
suficiente para me curar. Era necessário um feitiço de desintoxicação de nível
Santo para lidar com esse tipo de coisa. Para ser mais específico, no momento
eu não estava tão desesperado assim para fugir da realidade.

Mesmo assim, o material poderia vir a ser útil, então não vi motivos para
recusar. Se acabasse precisando de dinheiro, poderia simplesmente vendê-lo.

— Bem, uh… obrigado, eu acho.

— De nada, Chefe!
— Qualquer coisa para você, cara.

Parando para pensar nisso… as duas viviam nos dormitórios, certo? Como já
estavam lá há seis anos, provavelmente sabiam de tudo e conheciam todos.
Talvez tivessem algumas informações úteis, ou até mesmo conselhos.

— Quanto ao que você disse… A questão é que estou meio preocupado com
minha irmãzinha.

— Sua irmãzinha? Sim, acho que já a encontramos uma vez. É a garotinha que
você adornou como uma criada, certo?

— Esses dias a vimos no mercado. Ela tinha seu cheiro por toda parte, Chefe.
Achei que vocês fossem parentes.

Então já tinham conhecido Aisha, hein? Ela ia regularmente para a cama


comigo, assim podendo explicar a coisa do cheiro.

— Não, ela não. Quero dizer minha outra irmã. Faz um mês que ela está
morando nos dormitórios.

— Hein?! Espera, tem mais uma?!

— E ela está morando nos dormitórios?

Linia e Pursena se viraram e olharam uma para a outra com olhos arregalados.
Pelo visto, ainda não tinham topado com Norn… ou talvez tenham, mas não
perceberam que era minha irmã. Ela não passava muito tempo em casa, então
devia ter um cheiro diferente do meu.

— Sim, isso mesmo — falei. — Mas não acho que ela goste muito de mim. Nós
mal nos falamos. Não sei como fazer que ela seja afetuosa comigo.

— Errrrr… sim, isso p-pode ser complicado…

— Poderíamos sair por aí gritando sobre o quão legal você é, se quiser…

Hmm. Eu não tinha considerado uma estratégia de guerra de informação.


Norn talvez estivesse disposta a me dar uma chance, caso pensasse que eu era
o cara mais popular da escola. Mas se eu desse o trabalho para Linia e
Pursena, elas provavelmente espalhariam um monte de bobagens sobre eu
espancar pessoas.

Prefiro o ângulo de “Rudeus salvou um filhotinho”, sério. Talvez uma versão


editada do dia em que encontrei Julie funcionasse.

— De qualquer forma, o verdadeiro problema é que ela ainda não parece ter
amigos — falei. — Ela está aqui há apenas um mês, então talvez seja cedo
demais para me preocupar… Mas ela é uma estudante transferida, sabe?
Aposto que está tendo dificuldades em se encaixar.

— B-Bem, ainda é cedo, certo?

— Sim. Talvez, uh… será que ela só não teve tempo para conhecer as pessoas?

Por alguma razão, Linia e Pursena pareciam ansiosas. Estavam tropeçando em


suas palavras, e isso geralmente significava que estavam escondendo algo de
mim.

— Por favor, não me digam que vocês duas estão mexendo com minha irmã.

— I-Isso é coisa da sua cabeça!

— Claro que não, Chefe! Você disse para não pegarmos no pé de ninguém mais
fraco do que nós!

Certo. Então, por que estão ficando pálidas?

Definitivamente havia algo acontecendo, embora eu ainda não soubesse o que


era. De qualquer forma, eu provavelmente poderia tirar proveito da culpa de
suas consciências culpadas para garantir que interviessem no caso de alguém
tentar intimidar Norn.

— Q-Qual é a idade da sua irmãzinha, Chefe?

— Ela é mais velha que a criada? Ou mais nova?

— Uh, elas têm a mesma idade. Ela tem dez anos.

— Sério?! Ufa!

— Bom saber! Sim, não fizemos nada com ela.

Em outras palavras, fizeram algo a alguém. Será que talvez tenham o hábito de
ensinar o devido lugar na hierarquia social aos alunos arrogantes ou coisa
assim?

— Então, Chefe, uh, sobre o presente…

— Não fique bravo conosco no caso de não gostar, certo? Demos muito duro
para conseguir isso.

Foi meio estranho voltarem mais uma vez para esse tópico. Por que de repente
pareceram tão nervosas com isso? Isso era um pouco perturbador, mas fiquei
definitivamente curioso para descobrir o que tinham me dado.

— Ei, a intenção é que conta, certo? Não vou ficar bravo, prometo.
Eu não ficaria exatamente feliz se fosse um monte de ratos mortos ou algo do
tipo, mas não usaria isso contra elas.

Neste ponto, notei Cliff olhando para mim de seu assento, a algumas mesas de
distância.

— Ei. Tem algum conselho para o problema com a minha irmã, Cliff?

— Hmph… Quem disse que você precisa de amigos, afinal?

Uau. Será que alguém estava precisando de um abraço ou o quê?

Ainda assim, Cliff não era mais o solitário que costumava ser. Ele agora tinha
Elinalise. E eu, apesar dos pesares. Talvez Norn nunca seja tão popular a ponto
de ser considerada a mais famosa da escola, mas eu tinha que torcer para que
ela conhecesse ao menos algumas pessoas.

Recentemente, Nanahoshi começou a aparecer no refeitório na hora do


almoço. Talvez tivesse finalmente descoberto a importância de comer comida
de verdade. No entanto, não era como se estivesse sendo particularmente
sociável sobre isso…

Percebendo meu olhar, ela se virou para me encarar.

— Precisa de alguma coisa?

— Nah, na verdade não.

Embora Nanahoshi tivesse tomado a iniciativa de apresentar a culinária


japonesa ao campus, ela quase nunca se aventurou a experimentar os
resultados disso. Ela não gostava muito da comida e geralmente parecia um
pouco infeliz quando a comia.

— Você não parece estar gostando disso — falei.

— Bem, não estou. Sei que fui eu quem criou a receita, mas isso é horrível.

— Acho que os ingredientes daqui não são tão bons quanto os que tínhamos no
Japão.

— Isso é certeza.

— Existe algum tipo de comida deste mundo que você goste?

— Aquelas batatas fritas que comi na sua casa, acho. Estavam boas.

Acho que ela se referia às que Sylphie fazia em casa. Fazia sentido. Aperitivos
simples como aqueles não tinham um gosto tão diferente dos que comíamos
no Japão.
— Quer que façamos mais para você?

— Não precisa…

Então tá. Da próxima vez que ela for usar nossa banheira, eu irei preparar
algumas batatas para ela.

Badigadi também não apareceu hoje. Ele costumava parar no refeitório sempre
que possível, mas eu não tinha o visto no último mês. Realmente queria me
sentar com ele e conversar sobre Ruijerd.

Ao menos os modos à mesa de Julie estavam começando a melhorar um


pouco em sua ausência. Ginger estava ensinando-a algumas regras básicas de
etiqueta, mas, se aquele cara enorme estivesse por perto, seria causa perdida.
Porém, sem ele, o lugar parecia um pouco vazio. Eu meio que sentia falta
daquela sua risada estrondosa. Quanto mais se ri, mais se vive, certo? Talvez
eu deva tentar também.

— Fwahahahaha!

— Uh, p-por que você está rindo? Fiz alguma coisa engraçada?

— Mestre?

— Grão-Mestre…?

Tudo que meu experimento rendeu foi um monte de olhares perplexos de todos
na mesa. Para ser sincero, foi meio constrangedor. Acho que não sou
apropriado para ocupar o lugar de Badigadi.

— O que é tão engraçado, se é que posso perguntar?

Luke apareceu do nada. Ele estava afiado como sempre, mas desta vez
nenhuma fã apaixonada o seguia. Sylphie também não estava com ele.

— Nada. Faz um tempo que não vejo nosso Rei Demônio, então estava tentando
invocá-lo com minha risada — falei.

— Entendo. De qualquer forma, Rudeus, poderia pedir que me acompanhe até a


sala do conselho estudantil? — A expressão de Luke estava preocupada. Algum
problema?

— Claro, sem problemas.

Engoli o resto da minha comida em poucos segundos, fiquei de pé e segui


Luke.
Não saberia dizer o motivo, mas tive a impressão de que ele estava com raiva
de algo. Luke não falou muito enquanto íamos para a sala do conselho
estudantil, e seus passos pareciam diferente do normal.

Ariel e Sylphie estavam esperando lá dentro, conforme imaginei. A expressão


da princesa continuava serena como sempre, mas ela parecia um pouco pálida.
Sylphie também parecia meio ansiosa.

O novo semestre estava apenas começando, mas, pelo visto, já tínhamos


algum tipo de incidente em mãos.

— Olá, pessoal. Há algo de errado?

— Sim, há — disse Ariel, soltando um breve suspiro. Ela hesitou por um


momento, então continuou: — Notamos várias garotas do primeiro ano que
moram nos dormitórios parecendo, recentemente, muito pálidas e angustiadas.

— Sério?

Com isso ela chamou minha atenção. Seja qual for o motivo, pode estar
afetando Norn.

— No decorrer de nossa investigação, percebemos que a maioria das garotas


afetadas é muito bonita… e também um pouco plana.

Merda. Norn atendia ambos critérios. Eu teria que cooperar de corpo e alma
com a investigação deles. Se conseguisse salvar o dia, talvez até ganhasse
alguma gratidão da minha irmã.

— Hoje, conseguimos obter detalhes de uma das vítimas. Aparentemente, Linia


e Pursena estavam andando por aí e… er…

Espera, Linia e Pursena? Elas disseram que não estavam mais atormentando
os fracos, mas… talvez tivessem sentido o cheiro de carne seca no bolso de
algumas novatas e as perseguiram ou coisa assim. Isso era deprimentemente
plausível.

— Exigiram que tirasse sua roupa íntima e a entregassem…

Espera, o quê?

Tive um péssimo pressentimento a respeito do rumo da conversa.

— Uma investigação mais aprofundada revelou que recentemente foram


ouvidas dizendo algo como “Aposto que o chefe vai adorar isso” no refeitório.

—…
— Pelo que entendemos, elas estavam escondendo as roupas íntimas que
roubaram em uma certa bolsa. — Dizendo isso, Ariel silenciosamente olhou
para o presente que eu aceitei algumas horas atrás. Luke e Sylphie fizeram o
mesmo, eles tinham recebido uma descrição de como era a bolsa, sem
dúvidas.

Tinha certeza em minha mente de que a coisa estava cheia de calcinhas


roubadas. Sujas, não lavadas, na verdade. Aquela ali era uma bolsa cheia de
sonhos.

Inacreditável. Quando foi que pedi um presente como este para Linia e
Pursena? E por que estava ficando excitado só de pensar nisso? Droga, eu era
mesmo um ser humano lamentável.

— Rudeus, sinto muito, mas…

Decidi evitar a pergunta. Tomar a iniciativa em uma situação como essa é o


mais inteligente a se fazer.

— Linia e Pursena me deram esta bolsa nesta manhã. Disseram para olhar
dentro só quando voltasse para casa, então não tenho certeza, mas devo
presumir que contém os objetos que estão procurando.

— Entendo. Só para ficar claro, você ordenou que elas fizessem isso?

— Não, não ordenei.

Eu estava tentando manter minhas respostas firmes e concisas. Uma palavra


errada poderia ser letal, mas eu ficaria bem, desde que mantivesse as coisas
simples. Afinal, isso era só um mal-entendido.

— Então, você não se envolveu em nenhuma parte disso?

— Claro que não. Acabei de me casar com a Sylphie, lembra? Não estou
sexualmente frustrado para fazer algo assim.

Ela realmente achava que eu era o tipo de que iria colocar um plano sem noção
desses em prática logo depois de mandar minha própria irmãzinha para
aqueles dormitórios? Não pude provar minha inocência, então não tinha certeza
de como me defender. Devia haver alguma maneira de esclarecer tudo…

— Pois bem. Acreditarei na sua palavra. — Com outro breve suspiro, Ariel
abruptamente interrompeu o seu interrogatório.

Bem, isso foi mais fácil do que o esperado.

— Obrigado, Princesa Ariel. Fico grato por isso.


— Está tudo bem. Pensar que você estava por trás disso parecia estranho.
Considerando o tanto que você parece estar aproveitando suas noites com
Sylphie, eu não imaginaria o motivo para assediar qualquer outra garota.

Espera, ela sabia como estávamos passando nosso tempo juntos? Ah, deus.
Sylphie tinha contado sobre todas as coisas ridículas que falei para ela na outra
noite?

— Uh, Sylphie? Você está dando relatórios sobre nosso tempo a sós à Princesa
Ariel?

— Claro que não! — protestou Sylphie, balançando a cabeça vigorosamente. —


E-Eu não contaria essas coisas a ninguém! Como você descobriu isso, Princesa
Ariel?!

Eu confiava nela. Sabia que as duas eram amigas íntimas, mas não conseguia
imaginar uma garota tão tímida quanto Sylphie falando sobre sua vida sexual
com os outros. Não que fosse algo demais se ela fizesse isso… contanto que
não reclamasse do meu desempenho ou coisa do tipo…

— Bem, não descobri — respondeu Ariel. — Só estava querendo ver sua reação.
Mas fico feliz em saber que estão gozando da companhia um do outro.

Certo, boa jogada.

Enfim… o que Pursena e Linia estavam pensando? Juntar uma bolsa de roupas
íntimas recém-usadas deve ser a ideia mais estúpida que já tiveram. Eu já tinha
feito ou dito algo para fazê-las pensar que queria… Espera aí. Elas, há algum
tempo, não mencionaram algo sobre me pagar um tributo com um monte de
calcinhas?

Ah, merda, elas fizeram mesmo.

Na época presumi que fosse só uma piada, mas talvez estivessem falando
sério. Bem, tanto faz. A culpa continuava não sendo minha, certo? Sim.
Definitivamente não.

— Acho que foi uma tentativa equivocada de me fazer um agrado, então


agradeceria se me deixasse repreender Linia e Pursena — falei. — Ah, e você
poderia providenciar a devolução das roupas íntimas às donas? Só para ficar
claro, não olhei dentro, tampouco toquei em qualquer coisa.

Entreguei a bolsa para Ariel, sem qualquer hesitação.

Linia e Pursena podiam não ter más intenções, mas eu teria que ser firme com
elas a respeito disso. As únicas calcinhas que eu gostava eram as recém-
tiradas. Não adiantava nada se eu não as visse sendo tiradas.
Espera, não. O problema não é esse.

— Pois bem, que seja.

Ariel deu uma espiada dentro da bolsa, então voltou a balançar a cabeça.
Parecia que havíamos conseguido alcançar uma resolução perfeita para o
problema.

— Mas, devo dizer — continuou Ariel, lançando um olhar em direção a Sylphie —,


aqui tem muita roupa íntima. Você não fica um pouco desapontado em perder
tal tesouro, Rudeus?

— De forma alguma. Não tenho fetiche por roupas íntimas ou coisas do tipo.

— Entendo… Bem, minhas desculpas por ter duvidado de você.

— Está tudo bem. Fico feliz que conseguimos esclarecer o mal-entendido.

Honestamente, tive sorte por acabar assim. Se tivesse levado aquelas


calcinhas comigo para casa… bem, eu não sabia como iria me livrar delas. Era
bem fácil me imaginar perdendo a cabeça por algum tempo, depois
mergulhando-as na bebida para fazer uma “cerveja de calcinha” experimental.
O que inevitavelmente levaria Sylphie e Aisha a encontrá-las, e isso então nunca
teria um fim.

— Bem, isso é um alívio — disse Sylphie suavemente. — Fiquei preocupada em


não estar te satisfazendo, Rudy.

Ariel e Luke olharam para ela com expressões divertidas em seus rostos. Levou
um segundo para perceber exatamente o que tinha dito, e então seu rosto ficou
todo vermelho de vergonha.

E, naquele exato momento, o sinal tocou. Nosso período de almoço acabou.

— Ah, nada bom. Vamos nos atrasar para a aula.

— Sinto muito por todo o aborrecimento que Linia e Pursena lhe causaram,
Princesa Ariel…

— Tudo bem, Rudeus. Essas coisas acontecem.

Luke manteve a porta aberta e me convidou a passar por ela. Ariel e Sylphie
também o fizeram, e logo após ele saiu e trancou a porta atrás de si.

— Bem, vamos indo.

Ariel ficou ao meu lado enquanto caminhávamos. Sylphie e Luke seguiram um


pouco atrás. Será que eu também deveria ficar para trás? Não sabia
exatamente o que a etiqueta mandava fazer em um caso desses.
— Ah…

Antes que eu pudesse me decidir, entretanto, fizemos uma curva e topamos


com Norn. Ela estava vagando pelo corredor, olhando ao redor com incerteza.
Assim que me viu, apertou os lábios com força.

— Qual é o problema, Norn? — perguntei. — A aula já vai começar.

Em vez de responder, ela virou a cara para mim. Por pura coincidência,
deparou-se com o olhar da Princesa Ariel.

— Olá. Me chamo Ariel, sou a presidente do conselho estudantil — disse ela.

Quando Ariel mostrou um sorriso agradável, o rosto de Norn ficou vermelho na


mesma hora. Acho que a princesa costumava causar esse efeito nas pessoas.

— Eu, uh… Me chamo Norn Greyrat.

— Prazer em conhecê-la, Norn. Há algo de errado? Sua próxima aula começará


em breve.

— Uhm, bem… Não tenho certeza de onde fica a terceira sala de prática…

— Ah, entendo.

Então ela ficou para trás enquanto sua turma mudava de sala, hein? Pobre
criança. Pode parecer insignificante, mas coisas assim realmente doem
quando acontecem com uma criança. Parecia que minha preocupação com ela
se transformando em uma solitária não era infundada.

— Luke, poderia mostrar o caminho a ela, por favor? — perguntou Ariel.

— É claro. Por aqui, Norn. Não fica longe.

Delicadamente levando a mão às costas de Norn, Luke a conduziu pelo


corredor.

O rosto da minha irmã ficou vermelho de vergonha. Era compreensível, já que


ele era um cara bonito, mas depois eu teria que falar algumas coisas sobre
Luke para ela. O cara era um playboy nato.

Pouco antes de fazerem uma curva, Norn parou e olhou para nós. Seu olhar
vagou, por um momento, entre mim, Ariel e Sylphie. Mas então ela voltou a se
virar e partiu. Sem me dizer uma única palavra que fosse.

Isso me deixou um pouco triste.

Assim que as aulas acabaram, Linia e Pursena me encontraram na parte de


trás do prédio principal. Eu tenho muito a dizer a respeito dos eventos de hoje.
As duas pareciam bem animadas. Acho que gostaram da ideia de um encontro
secreto no fundo da escola. Afinal, era exatamente o tipo de lugar em que
aconteceria uma cena dramática de algum romance.

— E aí, Chefe? Por que pediu para virmos aqui?

— Finalmente pronto para admitir que se apaixonou por nós? Bem, é melhor que
primeiro execute o plano de Fitz. Não quero que ela fique com raiva de nós.

Quase me senti mal por estragar o clima. Quase.

— Precisamos conversar sobre aquela bolsa que vocês me deram — falei. —


Entreguei para a Princesa Ariel na hora do almoço e pedi que ela devolvesse o
conteúdo às donas.

No início, seus rostos ficaram inexpressivos graças à confusão. Mas, logo


depois, começaram a falar pelos cotovelos e a sibilar uma para a outra.

— Eu falei! Ele na verdade não queria!

— A culpa é sua, Linia. Você disse que o chefe ama calcinhas.

— O quê? Você concordou!

— Eu primeiro queria fazer um teste. Dando a sua para ele.

— Por que só a minha?! Isso seria injusto!

— Sim. É por isso que também pegamos das crianças do dormitório.

— Não é isso que estou dizendo! Você podia ter dado a sua também!

— Não. Eu tenho peitos grandes, então ele não deve se interessar.

Era meio divertido assistir suas patéticas tentativas de jogar a culpa da


situação uma para a outra, mas também era meio frustrante. Por que
pensavam que eu só gostava de garotas com o peito plano, afinal?

— Certo, fechem a matraca! — Parecia que continuariam para sempre, então


bruscamente bati palmas para interromper. — Lembram do que eu disse antes,
garotas? Disse para não incomodar ninguém mais fraco do que
vocês. Lembram disso, certo?

Isso as fez tremer.

— N-Não atormentamos ninguém, Chefe. Sério! — choramingou Linia.

— I-Isso mesmo. Só pedimos de um jeito bem legal — acrescentou Pursena


com um gemido.
Ah, fala sério. Como se alguma pobre garotinha do primeiro ano fosse capaz de
dizer não a um par de valentonas aterrorizantes com o dobro de seu tamanho.

— Olha, vocês são do povo-fera, não são? Imagino que sabem como é
humilhante ter suas roupas tomadas.

— M-Mas nós demos roupas íntimas novas para elas e tudo mais! Foi só uma
troca!

— Ah, sério? Ao que parece, um monte de garotas acabou ficando bem abalada.

— É só que as novas não devem ter servido direito, isso é tudo! Não tomamos a
calcinha das garotas que disseram não, eu juro!

Hm? Isso soou bem diferente do que Ariel tinha descrito. Isso me deu algum
alívio. Eu me sentiria péssimo se elas arrancassem a roupa de alguém à força.
Eu poderia até me sentir tentado a obrigá-las a andar nuas em público por
algum tempo, só para que entendessem como isso era humilhante.

— Chefe, você disse que não ficaria bravo! Você prometeu!

— Foi só um mal-entendido, sabe? Dá uma folga, cara…

As duas estavam obviamente com mais medo de serem punidas do que


qualquer outra coisa. No final das contas, porém, se meteram em vários
problemas por minha causa. Elas perceberam que eu estava me sentindo para
baixo e tentaram me animar. Essa foi a motivação das duas.

Foi, nesse sentido, um gesto simpático, ainda que eu não tenha gostado do
presente delas. Eu simpatizava com as vítimas, mas elas tiveram, basicamente,
boas intenções. Não era como se estivessem intencionalmente tentando
humilhar alguém, como os valentões que me perseguiram na minha vida
anterior.

Sim. Elas eram como duas crianças inocentes que saíram por aí catando
cascas de cigarras, nada além disso. Seria mesmo justo dar um tapa nelas,
resultando em uma punição exagerada?

— Certo, tá bom. Mas se eu descobrir que traumatizaram alguém, vou fazer se


curvarem nuas na frente das vítimas e se desculparem.

— C-Certo, Chefe.

— Nós sentimos muito…

Tive a sensação de que Ariel se certificaria de que as vítimas fossem


escutadas. Com isso em mente, não consegui ficar com raiva delas, isso na
verdade até me surpreendeu um pouco. Será que fui parcial por serem minhas
amigas?
— Mas me digam uma coisa. Por que diabos decidiram me dar um monte de
calcinhas de presente?

As duas olharam para mim, confusas, como se eu tivesse feito a pergunta mais
estranha do mundo.

— Bem, você adora calcinhas, né?

— Sim. Você tem aquela em teu altar especial e tudo mais.

Ah, certo. Então, parando para pensar, a culpa era minha. Nunca deveria ter
permitido que essas duas idiotas colocassem os olhos em meu artefato divino,
nem mesmo por um segundo.

— Vocês entenderam errado — falei. — Não adoro a calcinha em si. Ela


simplesmente pertencia a alguém que eu adoro. Ela é, resumindo, uma relíquia
sagrada.

— Espera, sério?

— Nós pensamos que você era devoto a um culto à calcinha ou algo assim.

Eu tinha um certo gosto por calcinhas, mas nunca levei as coisas tão longe.

— Bem, agora que isso foi esclarecido… certifiquem-se de não repetir esse erro,
certo?

— Você que manda, Chefe!

— Nos comportaremos de agora em diante.

Havia algo mais que precisava ser dito? Hmm… ah, é mesmo.

— Se realmente sentem a necessidade de me dar uma calcinha, prefiro uma


que tirem bem na minha frente.

— Hein?

— Hein?!

Opa, talvez não precisasse dizer isso.

Agora as duas estavam sorrindo para mim como se estivessem entendido


tudo.

— Eu sabia! Você quer acasalar com a gente, Chefe!

— Bem, é claro que ele quer. No fundo, ele é igual aos outros caras. Somos
irresistíveis.
Uau, isso foi extremamente irritante. Também não fazia muito sentido. Elas não
deveriam ficar com nojo ou algo do tipo, em vez de me provocar assim? Será
que elas têm uma queda por mim?

Nah, não era o caso. Isso era algo diferente. Poderia dizer que gostavam de
mim, mas não era da mesma forma que Sylphie gostava. Eu, porém, não
conseguia identificar a diferença exata. Por enquanto, apenas pensaria nisso
como um tipo estranho de amizade.

Falei tudo o que precisava, o que dava a reunião por encerrada. Minha
reputação provavelmente seria abalada como resultado desse incidente, mas
eu poderia suportar isso. Não me importava muito com o que as pessoas
diziam pelas minhas costas, de qualquer maneira.

Quando nós três saímos de trás do prédio, topamos com um grupo de alunas
do primeiro ano. Todas estavam com suas mochilas escolares, então pareciam
estar voltando para os dormitórios. No momento em que nos viram, todas
abriram caminho para sair da nossa frente.

Enquanto se moviam, no entanto, localizei Norn bem atrás do grupo. Ela olhou
para mim e depois para Linia e Pursena. Sua expressão mudou de surpresa
para indignação e descrença e, então, quando passou por nós, me lançou um
olhar desagradável.

Linia e Pursena se viraram para vê-la partir, parecendo não muito satisfeitas.

— Qual é o problema daquela criança? Ela tem uma atitude e tanto.

— Não fode, porra. Devíamos ensiná-lá quem é que manda aqui.

— Só para que saibam, aquela é minha irmãzinha — falei suavemente.

Linia e Pursena encolheram-se, suas orelhas visivelmente se abaixaram.

— Uh, bem, é bom ver que ela tem um pouco de espírito!

— Sim. Ela também é uma gracinha.

Mas quanta transparência.

Com um sorriso, dei um tapinha nos ombros das duas.

— Tentem ficar de olho nela, certo?

— Você que manda, Chefe!

— Deixa com a gente.


Ainda assim, esse gelo de Norn estava realmente começando a me afetar. Eu
queria que chegássemos ao menos ao ponto de manter uma conversa básica…
mas enquanto ela estava se virando bem sozinha, não parecia certo da minha
parte forçar assunto.

Por um tempo, as coisas foram relativamente tranquilas. Eu não estava me


aproximando de Norn, mas ela passava em casa a cada dez dias, conforme
prometido.

Fiquei um pouco surpreso por ela não me desobedecer com mais frequência,
tendo em vista que obviamente não gostava de mim. Mas, na maior parte do
tempo, ela não virava a cara para mim… embora costumasse fazer alguma
careta.

Parando para pensar nisso, porém, não passei muito tempo com nenhuma das
minhas irmãs depois da infância delas. Talvez tenha sido estúpido da minha
parte esperar que pensassem em mim como parte da família logo de cara. A
atitude amigável de Aisha provavelmente era a mais incomum das duas. Só
porque é parente de alguém, não significa que a pessoa vai incondicionalmente
gostar da companhia da outra. Eu sabia muito bem disso. Na verdade, os
membros da família costumam ser as pessoas de quem mais nos ressentimos
– e com mais persistência.

Soquei o meu pai bem na frente de Norn. Eu e Paul tínhamos nos reconciliado
rapidamente e deixado aquele incidente para trás, mas a memória ainda devia
arder no coração da minha irmã. Se alguma vez ela tocasse no assunto, eu teria
que me desculpar sinceramente. Mesmo que me parecesse uma história
antiga, a dor e a raiva podiam continuar frescas na memória dela.

Mas não havia necessidade de apressar as coisas. Nós dois provavelmente


viveríamos próximos um do outro por anos, ou mesmo décadas. Se demorasse
um ou dois anos para que ela se aproximasse de mim, seria algo com que eu
poderia lidar.

Não era como se irmãos tivessem que ser melhores amigos uns dos outros. Só
precisávamos manter um relacionamento confortável para os dois, e isso
poderia exigir algum tempo.

Poucos dias depois de chegar a essa conclusão, recebi notícias alarmantes.

Norn se trancou em seu quarto.


Cap. 04 – Os Sentimentos do Irmão

Descobri a respeito da situação em certa manhã, enquanto ia para a escola


com Sylphie.
Linia e Pursena estavam esperando por mim do lado de fora dos portões.
Assim que nos viram chegando, correram e contaram que Norn havia se
trancado em seu quarto e que se recusava a sair.

— Vou dar uma olhada! — Sylphie saiu correndo em direção ao dormitório


feminino quase na mesma hora.

Eu, por outro lado, fiquei congelado no lugar. Provavelmente devia ter seguido
minha esposa, mas a notícia me deixou em estado de pânico. Ser um “recluso”
tinha algumas conotações muito pesadas para mim, acho.

— Você não vai junto, Chefe?

— Vai simplesmente ignorar isso?

Eu não sabia o que dizer.

O que devia fazer? O que se supunha que eu devia fazer? Minha mente estava
em branco. No meu caso, quando me tranquei no meu quarto já estava tudo
acabado. Fiquei recluso pelo resto da vida.

Por que nunca mais saí? Porque achava o mundo lá fora perigoso demais,
cheio de pessoas que queriam me fazer mal. Achei que voltaria a ser
intimidado caso retornasse à escola. Sim – tudo começou com o bullying. Eu
sabia que voltariam a me atormentar assim que eu tentasse abandonar o meu
isolamento.

Se quisesse que isso mudasse, precisava dar um jeito na causa para o


comportamento de Norn. Antes de tentar persuadi-la, precisava descobrir o
motivo pelo qual ela estava se escondendo no seu quarto.

Uma memória do passado correu pela minha mente. Eu estava no refeitório da


minha velha escola, pacientemente esperando na fila. Mas, quando minha vez
finalmente chegou, um bando de arruaceiros assustadores apareceu na minha
frente. Cheio de raiva justificada, eu estupidamente decidi me defender. Dei um
sermão em um tom alto o bastante para que todos escutassem, mesmo
enquanto zombavam de mim e mandavam eu ir me foder.

Eu podia ver os outros alunos começando a olhar em nossa direção. Sentindo-


me cada vez mais orgulhoso de mim mesmo, insisti obstinadamente no
assunto, exigindo um pedido de desculpas. Mas, em vez disso, me
espancaram. Quando aquilo acabou, pensei que ficaria aleijado pelo resto da
vida.

Esse único erro transformou a minha vida em um inferno.


Se houvesse alguma chance de Norn estar passando por algo parecido, eu
precisava ajudar. Derrotaria os valentões que estavam a assediando e faria
com que ela voltasse a se sentir segura.

Os amigos ou parentes deles podiam vir atrás de mim depois, mas eu também
daria um jeito neles, caso necessário. Não me importava se fossem
aristocratas ricos, ou até mesmo da realeza. Eu daria tudo de mim para lutar
contra eles. Me certificaria de que viveriam para se arrepender de irem contra
mim.

Existia a possibilidade de Norn ter desencadeado o conflito inicial. Mas o que


quer que estivessem fazendo com ela, evidentemente passou dos limites.

Norn era minha irmã. Não importava se ela odiava Aisha e eu, ou se não queria
morar conosco. Ela ainda era minha família. E o irmão mais velho deve proteger
suas irmãs, certo?

Poucos minutos depois, eu estava caminhando pelo corredor em direção às


salas de aula do primeiro ano com Linia e Pursena logo atrás de mim. Pensei
em fazer isso sozinho, mas não achei que minha presença seria
suficientemente intimidante. Mas, com essas duas ao meu lado, todos
deveriam perceber que eu estaria falando sério.

— Uh, Chefe…

— Não, Linia. Não viu como ele está bravo? Isso é meio assustador.

As duas pareciam um pouco em dúvida a respeito disso. E era compreensível.


Eu estava as arrastando para uma situação verdadeiramente embaraçosa. Mas,
agora, não deixaria meu senso de vergonha me parar. Neste momento, estava
completamente no modo pai coruja.

Em pouco tempo, chegamos à sala de aula principal de Norn. A aula já tinha


começado.

— Com licença — falei, abrindo a porta e entrando.

— Uh, S-Senhor Greyrat? Estamos no meio de uma…

— Gostaria de um momento de atenção de todos, se não se importar.


— Mas…

— Isso não vai demorar.

Tirando a professora do meio do caminho, tomei seu lugar no palanque.

Antes de começar, olhei para todos os presentes. Todo mundo estava me


encarando com surpresa. Mas, em algum lugar na multidão, devia haver um
valentão que estava mexendo com minha irmãzinha.

Socaram ela? Chutaram ela? Talvez até o momento só tivessem a insultado.


Talvez tivessem zombado de uma garota triste e solitária que estava isolada
em uma cidade desconhecida.

— Como creio que a maioria de vocês sabe, uma pessoa desta sala está
ausente.

Ninguém tinha nada a dizer sobre isso.

— O que não devem saber, é que ela é minha irmã menor.

Isso causou uma reação. Ouvi murmúrios de todos os cantos da sala.

— Ainda não ouvi os detalhes diretamente dela, mas não existem muitos
motivos pelos quais uma criança da idade dela começaria a faltar aulas. Acho
que o responsável deve ser desta sala.

Examinei a sala toda enquanto falava, procurando por qualquer reação. Vários
alunos olharam para baixo assim que se depararam com meu contato visual. A
maioria deles eram crianças de aparência meio durona que já estavam
começando a violar um pouco o código de vestimenta. Será que era por
estarem com a consciência pesada?

Olhando melhor, percebi que um deles era aquele delinquente que conheci há
algum tempo. Não conseguia lembrar do nome dele de cabeça. Será que
era ele?

Calma. É cedo demais para tirar conclusões precipitadas.

— Não espero muito dos responsáveis — falei. — Talvez estivessem apenas


brincando ou tentando conhecê-la melhor, mas as coisas acabaram tomando
um rumo estranho. E ela talvez os tenha provocado de alguma forma.

Eu estava observando cada um dos rostos com ainda mais atenção.

Quem foi? Quem a intimidou? Será aquele pirralho riquinho ali? Ou aquele garoto
demônio taciturno? Não, pode muito bem ter sido uma garota comum. Crianças
comuns, às vezes, podem ser as mais desagradáveis de todas.
— Eu apreciaria muito se algum dos envolvidos se apresentasse e admitisse.
Não vou gritar. Só quero que reconheça o que fez e peça desculpas à minha
irmã.

E, depois disso, farei picadinho do culpado.

Algumas das crianças da sala eram tão novas quanto Norn, mas a maioria era
mais velha. Alguns estavam até mesmo chegando ao final da adolescência.
Provavelmente havia ao menos alguns que olharam para o outro lado. Havia
até mesmo a chance de que estivessem todos envolvidos nisso. Quanto mais
eu pensava no caso, mais irritado ficava.

Por um longo momento, ninguém disse nada. Todo mundo ficou só olhando
para mim, todos com os olhos arregalados de surpresa.

— U-Uhm…

Finalmente, uma garota do grupo levantou a mão, mesmo que hesitante. Foi
necessária muita força de vontade para me impedir de disparar um Canhão de
Pedra nela.

Era do povo-fera, talvez com treze anos, e parecia um cão-guaxinim. Seu rosto
era redondo, olhos pequenos e cabelo curto. Sinceramente, ninguém imaginaria
que esse tipo de criança fosse uma valentona. Era mais fácil imaginá-la
como alvo de intimidação.

— Esses dias eu estava conversando com Norn, e…

— Você acidentalmente disse algo ruim para ela?

Contanto que fossem só algumas palavras desagradáveis, eu poderia pegar


leve com ela.

— Não, não! É que, uhm… Já ouvi muitas histórias sobre você, Sr. Greyrat. Mas a
Norn ainda é uma garota comum, certo? Acabei apontando que vocês dois são
muito diferentes um do outro, e aí ela ficou muito brava comigo…

Isso não fazia sentido. Por que Norn ficaria brava com isso? Ela não queria ser
como eu. Ela nem gostava de mim.

— Ah…

A professora, parada em um canto da sala, parecia ter se lembrado de algo.


Voltei minha atenção para ela. À primeira vista, a mulher parecia uma maga de
meia-idade comum. Nem pensei que pudesse ser a culpada, mas adultos, claro,
também podem ser valentões.

— Pensou em alguma coisa, Senhorita?


— Bem, ontem eu estava devolvendo o dever de casa de Norn, e…

— Ela não conseguiu terminar todas as tarefas que você passou, então você fez
ela ficar nua na frente de todos os colegas por uma hora inteira?

— O quê? N-Não, não! Ela não se saiu muito bem no dever, então falei para ela
aprender com o seu exemplo e começar a se esforçar mais.

—…

— Por um momento pensei que ela fosse chorar, mas ela começou a balançar a
cabeça e disse que faria o possível.

Espera, o quê? Ela quase chorou?

— Ah, espera, isso me lembra…

De repente, várias pessoas começaram a falar de todos os cantos da sala. E


todos tinham histórias parecidas para contar.

Depois de sair da sala de aula, nós três fomos para o refeitório. A essa hora do
dia, estava totalmente deserto.

Sentei em qualquer lugar e desabei sobre a mesa. Isso realmente doeu.

Resumindo, era tudo culpa minha. Cada vez que Norn perdia a paciência, era
por causa de alguém mencionando o meu nome ou comparando-a a mim.

A maioria dos alunos de sua sala sabia que éramos irmãos. Isso, por si só, não
era muito estranho. Tínhamos os mesmos pais e éramos parecidos. Mas,
sempre que alguém mencionava isso, Norn reagia mal. Ela odiava ser
comparada a mim, mas ficava igualmente chateada quando alguém se referia a
mim como uma forma de elogiá-la.

Seus colegas não tinham qualquer culpa nisso. Nenhum deles estava
deliberadamente tentando perturbá-la. Alguns estavam inclusive tentando ser
legais, dizendo que ela não parecia nada com seu irmão valentão e assustador.

O verdadeiro problema era que quase todos da escola me conheciam. E, assim,


mesmo sem realmente querer, tendiam a me citar quando estavam perto dela.
E isso parecia ser sempre difícil para Norn. Em sua escola anterior, ela era
constantemente comparada a Aisha, e nunca de forma positiva. Ela era a irmã
menos talentosa, e ficavam esfregando isso na sua cara todos os dias.

Finalmente estava em uma nova escola, vivendo sozinha, sem Aisha pairando
sobre ela feito uma sombra. Mas, antes que tivesse a chance de recuperar o
fôlego, todos começaram a compará-la a mim. Não importava aonde fosse, ela
era forçada a enfrentar o fato de que era a menos talentosa de toda a sua
família.
Isso devia ser difícil. E, então, ainda por cima, houve aquele incidente com as
calcinhas.

Por sorte, ninguém ficou traumatizado com aquela bagunça toda. Ariel fez um
ótimo trabalho de acompanhamento às vítimas e, agora, a maioria delas podia
olhar para o passado e rir. Pelo visto, Linia não tinha forçado as garotas a se
despirem contra a vontade, apenas as importunou para trocarem suas roupas
íntimas. Parecia que alguém tinha visto isso acontecer, de longe, e passou uma
versão exagerada dos eventos para o conselho estudantil.

Ainda assim, eu só conseguia imaginar como foi que Norn se sentiu ao


descobrir sobre isso. Já era difícil se sentir inferior ao irmão, mas se sentir
inferior a um completo pervertido devia ser muitas vezes pior.

— Uff…

O que diabos estava acontecendo comigo, afinal? Tirei conclusões precipitadas


e invadi a sala de aula dela, igual um idiota. Eu não era um pai coruja – era um
idiota coruja.

— Sinto muito por arrastar vocês para isso — murmurei, olhando para minhas
fiéis subordinadas. — Acho que fui meio estúpido.

— Isso não é verdade. Tentar ajudar a família nunca é estupidez.

— Isso mesmo, Chefe.

— Se a criança ficar muito tempo naquele quarto, o cérebro dela vai acabar
derretendo.

— Verdade verdadeira, mew.

— Ela pode até mesmo ficar tão estúpida quanto a Linia.

— Sim, ela pode… mrrrrow!!

Não consegui nem sorrir enquanto Linia e Pursena continuava aquela rotina de
comédia de sempre. Eu sabia como esse tipo de situação podia ser
complicada. As pessoas não se trancam porque isso é divertido, sabe? Sempre
existe uma razão pela qual se forçam a ficar trancados, e arrastar essas
pessoas para fora do quarto à força não serve de muita ajuda. Na verdade, isso
costuma só piorar o problema.

Dito isso, esse não era o tipo de coisa que poderíamos simplesmente ignorar.
Se Norn ficasse lá por muito tempo, acabaria se arrependendo. Mesmo um ou
dois meses perdidos poderiam acabar com sérias consequências.
Eu sabia de tudo isso graças à amarga experiência própria. Mas isso não era
algo que poderia simplesmente explicar para uma criança que acabou nessa
situação.

Eventualmente, mesmo os piores casos começam a desejar poder voltar a


fazer as coisas de forma diferente. Mas leva muito tempo para que as coisas
cheguem a esse ponto. O verdadeiro arrependimento não chega em um ano –
ou dois, ou até mesmo dez – ele passa despercebido. E, nesse ponto, é tarde
demais para voltar em qualquer uma das escolhas tomadas.

Acredito que isso é parte do motivo pelo qual tantos pais pressionam seus
filhos. Todo mundo se arrepende. Às vezes, acaba descontando esses
arrependimentos nos outros.

— Digam-me uma coisa, vocês duas. Digamos que sejam menos talentosas que
seus irmãos e que as pessoas não parem de lembrá-las desse fato. Qual é a
melhor coisa que poderiam fazer quanto a isso?

Linia e Pursena se entreolharam e encolheram os ombros.

— Não sei, Chefe. Nós duas somos muito boas, sabe?

— Aham. Não deixamos a desejar em nada.

Espera aí, pensei que foram enviadas para a escola porque eram burras e
preguiçosas demais para liderar suas tribos. Não é? Tipo, queriam colocar vocês
em forma antes de passar qualquer poder para as duas, certo?

Bem, tanto faz. A total falta de autoconsciência delas evidentemente não


estava as prejudicando. Essa abordagem, porém, não funcionaria com Norn.
Ela era uma garota sensível, não uma narcisista com o cérebro do tamanho de
uma ervilha.

— Ah, conheço uma pessoa assim! — disse Linia com orgulho. — Tia Ghislaine!
Ela costumava ser uma velhaca que começava brigas o tempo todo. Mas aí
começou a treinar e acabou virando Rei da Espada!

— Hmm. Certo, esse não é um exemplo ruim…

Ghislaine era um caso excepcional, mas definitivamente havia uma chance de


que Norn tivesse algum talento inesperado que ainda não tínhamos
descoberto. Não havia razão para ela competir comigo ou com Aisha nas
coisas em que éramos bons. Se não quisesse ser comparada a nós, poderia
simplesmente fazer algo que nenhum de nós tentamos. Eu não sabia bem o
que esse algo poderia ser, mas o mundo é grande. Claro, ela poderia procurar
algum campo de interesse, fora do campo da magia ou esgrima.
Mas também existia o risco de não ser particularmente talentosa em qualquer
coisa que decidisse fazer da vida. Afinal, com Zanoba era assim. Mas, apesar
da sua falta de talento como artesão, o príncipe continuava aproveitando a
vida. Ele fazia suas próprias estatuetas, as colecionava e apreciava. Isso era o
suficiente para deixá-lo feliz, e isso era tudo o que realmente importava.

Provavelmente seria difícil convencer Norn disso. Nenhum desses argumentos


funcionaria comigo naquela época.

— Mas como vou falar sobre isso tudo com ela?

— Não pense muito nisso, Chefe. Vá lá e dê uns cascudos nela!

— Aham. Só diga para ela levar o traseiro dela para a sala de aula.

Elas com certeza faziam parecer simples… mas eu talvez estivesse perdendo
tempo demais enquanto pensava nesses detalhes. Norn, afinal, tinha apenas
dez anos. Talvez só estivesse de mau humor.

Digo, esse ainda era apenas o segundo dia dela trancada, certo? Ainda era cedo
demais para chamá-la de reclusa. Passar alguns dias sozinho quando está se
sentindo mal não é algo incomum.

Dito isso, ela obviamente estava sofrendo. Eu estava dizendo a mim mesmo
que Norn só devia precisar de espaço, mas isso era verdade? Talvez estivesse
apenas procurando um jeito de evitar o problema.

Como seu irmão mais velho, eu poderia ter ao menos tentado apoiá-la a se
ajustar de forma mais ativa. Manter a distância podia ser mais fácil, mas não
significa que fosse a melhor escolha. Se estivéssemos falando de uma criança
com idade para frequentar o ginásio, poderia ser diferente, ou até mesmo um
estudante do segundo grau, mas Norn tinha apenas dez anos. Dar mais
atenção do que ela queria provavelmente seria a escolha certa.

Antes que eu percebesse, estabeleci um plano de ação.

— Então tá. Vou falar com ela.

— É esse mesmo o espírito, Chefe!

— Sim. Vá animá-la.

Claro, eu era a causa dos problemas de Norn, então parecia bem possível que
ela não quisesse ouvir qualquer palavra que eu tivesse a dizer. Mas eu não ia
me estressar pensando nisso. Primeiro o mais importante: tinha que ir vê-la e
ouvir o que ela tinha a dizer.

— Ah. Mas não tenho certeza de como vou chegar lá…


O quarto de Norn ficava no dormitório feminino. Hoje em dia eu poderia passar
por lá em segurança, mas isso não significava que me deixariam entrar.

— Você pode entrar escondido, isso é óbvio.

— É hora de fazer uma operação secreta, Chefe. Deixe o planejamento conosco!

A “operação secreta”, felizmente, não se provou muito complicada. Eu tinha


muitos amigos lá; Sylphie e Ariel também estavam naquele dormitório. Quando
expliquei a situação para a princesa, ela concordou em me ajudar na mesma
hora. Claro, Goliade e as outras participantes do esquadrão de autodefesa não
seriam tão facilmente convencidas, então ainda precisava continuar sendo uma
visita secreta.

Linia, Pursena e Sylphie cuidariam do suporte operacional. Sylphie ficou


ansiosa para ajudar, mas parecia um pouco abatida com a situação.

— Sinto muito, Rudy. Prometi que ficaria de olho em Norn, mas ela não quer
falar comigo…

— A culpa não é sua, Sylphie. O único culpado sou eu.

Expliquei o que descobri sobre a situação, incluindo o fato de que a tristeza de


Norn tinha muito a ver comigo.

Sylphie escutou em silêncio, mas no fim franziu a testa e balançou a cabeça.

— Nada disso soa como culpa sua, Rudy.

— O quê? Mas eu… uh…

Hm. Pensando bem, eu talvez realmente não tivesse feito nada tão errado. Não
que eu tivesse lidado muito bem com a situação.

De qualquer forma, não importava. Eu ainda precisava dar um jeito em tudo.

Naquela noite, esperei até a hora do jantar e fui para o dormitório.

No momento, a maioria dos residentes estava no refeitório. Surgiram boatos de


que Ariel faria um discurso improvisado, e ela sempre acabava atraindo uma
enorme multidão.
Mas isso não significava que os dormitórios ficariam totalmente desertos.
Ninguém conseguiria colocar todos os alunos de uma só vez no refeitório,
mesmo se tentasse. Ainda assim, notei que todas do esquadrão de autodefesa
estavam sendo incentivadas a ir até lá.

Deslizei ao longo da lateral do prédio o mais furtivamente possível, procurando


por um quarto em específico. Depois de algum tempo, encontrei – uma janela
com uma única flor colocada contra o parapeito da janela.

Peguei uma pedra e joguei lá. Um momento depois, foi aberta. Após isso, foi
questão de me elevar do chão com o feitiço Lança de Terra e escalar para lá.

— Hm…

Me encontrei dentro de um quarto escuro com um forte cheiro de animal. Não


me importei muito com o cheiro. Talvez porque os animais em questão
também fossem jovens mulheres. Animais tendem a ser mais tolerantes com
odores emitidos por parceiros em potencial, não é?

— Obrigado pela ajuda.

— Que nada, Chefe.

Linia já estava esperando por mim há algum tempo. Seus olhos de gato
brilhavam um pouco na escuridão.

Meus olhos estavam começando a se ajustar, então dei uma olhada ao redor. A
organização era perfeitamente típica. Um beliche de duas camas, um par de
mesas e cadeiras e um armário compartilhado.

Isso é um pouco difícil de dizer, mas o quarto parecia um pouco bagunçado.

— Não fique olhando muito, Chefe. Isso é constrangedor, sabe?

— Certo. Foi mal.

Dei alguns passos cautelosos adiante e tateei ao redor, procurando pela


maçaneta. Mas, em vez disso, minha mão se fechou em torno de algo
estranhamente macio.

— Ooh. Esse é um dos sutiãs da Pursena.

—…

Eu não tinha certeza de qual era o tamanho dela, mas, pelo visto, devia ser bem
impressionante.

— Nyheh. Sinta-se à vontade para levar esse para casa com você, Chefe.
— Não acho que você deve decidir isso.

Joguei o sutiã de lado com um suspiro. Normalmente, poderia aproveitar a


oportunidade para pressionar aquilo contra a boca e respirar fundo algumas
vezes, mas no momento não tinha tempo a perder.

Linia passou por mim e bateu na porta. Alguns segundos depois, outra batida
respondeu do lado de fora.

— Parece que está dando tudo certo.

Abrimos a porta e rapidamente deslizei para o carrinho da lavanderia que


estava esperando bem ali na frente, escondendo-me sobre uma pilha de
lençóis.

Só pelo cheiro, poderia dizer que tinham saído da cama de Sylphie. Havia
cobertores e camisas por lá, para dar um pouco mais de volume, e todos
tinham o cheiro dela. Mas eu não conseguia juntar forças para ficar excitado.

Norn era, no momento, a única coisa em minha mente.

Minha irmãzinha estava sofrendo. Ela estava sozinha naquele quarto,


totalmente isolada, fugindo do mundo. E eu tinha que ajudá-la. Afinal, era seu
irmão.

— Certo. Vamos lá.

Enquanto o carrinho sacolejava pelos corredores, voltei meus pensamentos


para o problema em questão.

Se fosse só um acesso de raiva, seria uma coisa. Mas e se fosse algo mais
sério? Eu seria de alguma utilidade? Até o dia em que meus irmãos me jogaram
na rua, eu nunca consegui sair de casa. Se houvesse algum argumento que
pudesse ter me persuadido a sair, eu não sabia qual seria.

— Chegamos, Chefe.

O carrinho chegou ao seu destino antes que eu pudesse chegar a qualquer


conclusão.

Estávamos do lado de fora do quarto de Norn.

Empurrei a porta o mais silenciosamente possível e entrei.

O quarto estava totalmente escuro, então fui até o canto para acender uma das
velas.

À luz fraca, pude ver Norn sentada em sua cama, segurando os joelhos contra o
peito. Seus olhos estavam abertos e ela estava olhando diretamente para mim.
—…

Aproximei-me com calma e me sentei na cadeira mais próxima.

Afinal, o que deveria fazer em momentos como este? O que eu gostaria que
alguém dissesse? Eu não conseguia lembrar. Todas as palavras que ensaiei
evaporaram da minha mente.

Bem, eu ao menos lembrava das coisas que eu odiava escutar. Principalmente


dos clichês baratos. Mesmo no pior dos casos, eu ao menos não cairia naquele
padrão de “faça como eu quero ou vá para a rua”. Nem “você vai voltar para a
escola agora mesmo”. Nem “estou pagando sua mensalidade por um motivo,
mocinha”. E nem “deixe de ser um estorvo”.

Falas como essas só serviam para me irritar ainda mais.

Linia e Pursena talvez estivessem certas, de determinada forma – uns


cascudos poderiam ser o mais simples. Norn só tinha dez anos, então podia ser
o suficiente para obrigá-la a fazer o que eu queria. Mas, a longo prazo, isso não
seria uma solução. Outra crise surgiria em breve, e ela ficaria cada vez mais
desafiadora.

E, além de tudo, a culpa de ela estar se trancando era minha. Que direito tinha
eu de dar um sermão, ou até mesmo de bater nela? Dependendo como visse as
coisas, inclusive devia um pedido de desculpas a ela.

Não que pedir desculpas fosse mudar alguma coisa. Os rumores sobre mim
não acabariam e Norn continuaria sendo comparada a mim.

— Norn, eu…

— Uhm, Rudeus…

Nós dois falamos ao mesmo tempo.

Parei no meio da frase, para que Norn pudesse continuar. Mas ela também
ficou em silêncio. Foi uma sensação horrível. Meio que senti como se tivesse
perdido a minha única chance.

Mas eu precisava acreditar que não era esse o caso. E então me forcei a
começar a conversa.

— Sinto muito, Norn. Não foi fácil para você, não é?

Parei por um momento, mas ela não respondeu.

— Você finalmente foi para uma escola nova, mas agora todo mundo está te
importunando por minha causa. Não sei nem o que dizer, sério… — continuei.
Norn não respondeu.

— Acho que eu realmente… nem te entendo direito…

Ainda sem resposta. E, apesar de tudo o que eu pensei pelo caminho, acabei
ficando sem palavras. Eu não sabia nada sobre ela. Mantive distância da minha
irmã, dizendo a mim mesmo para não me intrometer. Sequer tentei conhecê-la.

— Sei que deve ser difícil para você, mas não sei o que fazer… — voltei a falar.

Norn ainda estava em silêncio. Eu não podia nem imaginar o que ela estava
pensando. Não sabia nem se ela estava me ouvindo.

Já era uma causa perdida? Deveria recuar e esperar a chegada de Paul? Talvez
devesse dar um tempo nisso e procurar ajuda de pessoas que eu conhecia.
Nanahoshi talvez pudesse oferecer algumas dicas sobre o que uma garota
jovem pode estar pensando. Elinalise talvez pudesse descobrir uma forma
diferente de persuadi-la. Não havia motivo para eu tentar resolver isso sozinho,
certo?

— Ah…

De repente, me vi lembrando de algo em que não pensava há muito tempo.

Quando me tranquei pela primeira vez, isolado do mundo, um dos meus irmãos
costumava visitar o meu quarto. Ele sempre me olhava bem nos olhos e me
disparava todos os tipos de argumentos que poderiam soar razoáveis.

“A vida sempre tem seus altos e baixos, sabe? Mas existem pessoas por aí que
estão piores do que você. As coisas podem estar difíceis agora, mas se você fugir
de todos os seus problemas, continuará fugindo para sempre. Isso, com o tempo,
fica muito pior. Você não precisa voltar para a escola agora, mas por que ao
menos não sai e come comigo?”

Em minha mente, respondi a essas palavras cuspindo em seu rosto. E, na


realidade, o ignorei.

Mesmo assim, ele passava algum tempo ali, mesmo após seus sermões.
Ficava me observando de perto, parecendo ter algo mais a dizer. Mas eu
continuava ignorando, confiante de que ele não era capaz de entender os meus
sentimentos.

Talvez fosse assim que ele se sentisse naquela época.

Costumávamos ficar sentados da mesma forma por horas, às vezes em


silêncio absoluto até que ele finalmente se levantasse e fosse embora. Depois
de um tempo, ele parou de me visitar. Tudo que eu podia fazer era imaginar no
que estava pensando. Embora não aparecesse mais, um monte de outras
pessoas começaram a me visitar. Talvez fosse ele quem estivesse arranjando
aquilo.

No final, também não dei atenção a qualquer uma daquelas pessoas.

Este podia ser um ponto de virada crucial. Se eu recuasse nesse momento,


tinha a terrível sensação de que Norn poderia ficar neste quarto para sempre.

Eu não podia simplesmente dar as costas e ir embora. Não desta vez.

Por um longo momento, estudei minha irmã em silêncio na escuridão.


Cap. 05 – Norn Greyrat

Não tenho certeza de quando comecei a sentir medo do meu irmão, mas no
começo não era assim.

A primeira vez que me encontrei com Rudeus foi no dia em que ele deu um
soco na cara do meu pai.

E eu amava o meu pai. Ele tinha algumas enormes falhas, mas eu sabia que se
importava muito comigo e sempre me colocava acima de tudo. Mais
importante ainda, naquela época eu tinha menos de cinco anos. A maioria das
crianças dessa idade ama os pais de forma incondicional.

E eu amava o meu pai. E Rudeus apareceu do nada e começou a bater nele.

Eu realmente não entendi como a conversa acabou daquele jeito. Nesse ponto,
anos depois do ocorrido, posso reconhecer que meu pai foi o culpado pela
briga. Rudeus tinha acabado de passar por uma jornada longa e difícil por um
país perigoso, e nosso pai zombou dele e ainda por cima o cobrou. Mas, na
época, tudo que vi foi meu irmão sentado em cima dele enquanto o socava sem
parar. E tudo que eu conseguia pensar era: Ele vai matá-lo. Essa era a única
coisa que me importava naquele momento.

Naturalmente, eu não aceitaria que um monstro como aquele fosse parte da


minha família.

Naquela época eu não sentia medo de Rudeus. Só o odiava.

Continuei odiando-o por um bom tempo depois daquilo. E todos sentindo a


necessidade de elogiá-lo não ajudava. Não era só o meu pai – depois, quando
encontrei minha irmã e a criada da família, elas também falavam sobre ele
cheias de entusiasmo. Mas quanto mais o elogiavam, com mais teimosia eu o
desprezava.

E eu odiava a minha irmã quase tanto quanto odiava Rudeus. Na escola que
frequentamos juntas, Aisha insistia em sempre competir comigo. Ela me
desafiava na sala de aula e no campo em que costumávamos fazer exercícios,
e sempre me derrotava completamente. Ela esfregava todas as minhas falhas
no meu nariz.

Com ela por perto, passei todos os dias me sentindo uma perdedora. Nunca
pensei que poderíamos ser amigas.

Minha avó estava ciente do estado das coisas, e não gostava nada disso. Ela
não sentia nada além de desprezo por Aisha, a quem chamava de “ilegítima”.
Mas também tinha grandes esperanças em mim… ou ao menos grandes
expectativas. Ela dizia que eu era uma “lady da família Latria”. Pelo visto, isso
indicava que eu precisava ser no mínimo “competente”.

Fui forçada a assistir aulas de etiqueta e ter lições para me preparar para
cerimônias específicas. Nada disso foi natural para mim; errei várias vezes e
era diariamente repreendida. Sempre que eu me envergonhava, minha avó
murmurava: “Suponho que o negócio de aventureiro deve poluir o sangue,
assim como o espírito.”

Eu sabia que ela estava insultando tanto minha mãe quanto meu pai com
aquelas palavras. Meu pai dava duro por mim, e isso era tudo que ela dizia
sobre ele. Não demorou muito para eu começar a odiá-la também.

E então, quando a professora do meu irmão apareceu e disse onde minha mãe
estava, decidi seguir meu pai em sua jornada, em vez de ficar com minha avó.

Papai ficou hesitante. Ele pensou que seria mais seguro se eu ficasse para trás.
Minha mãe era da aristocracia de Millis e meu pai de uma casa nobre Asurana.
Nesses termos, pelo menos, eu era de boa linhagem. Graças a isso, meu avô
estava disposto a me receber em sua casa de forma permanente.

Mas eu odiei essa ideia, então implorei para que meu pai me levasse com ele.
Chorei e supliquei. E, eventualmente, teria que ir junto.

E, ainda… no final, meu pai me enviou para morar com Rudeus.

Ele disse que as coisas ficariam perigosas demais. Disse que Rudeus estava
morando no norte, então eu deveria ficar lá e esperar por ele. Disse que iria para
lá assim que encontrasse a minha mãe.

Eu chorei. Recusei. Implorei para que me levasse junto. A última coisa que eu
queria era me separar dele, ainda mais depois de chegarmos tão longe, sempre
juntos. Se Ruijerd não tivesse aparecido naquela hora, eu poderia ter
eventualmente conseguido ir com meu pai. E então, provavelmente ficaria
doente ou acabaria ferida naquela dura jornada pelo Continente Begaritt. E
também acabaria causando todos os tipos de problemas para ele.

Graças a Ruijerd, não foi isso que aconteceu.


Eu me lembrava tão claramente dele. No dia em que conheci meu irmão,
Ruijerd estendeu a mão para mim quando acabei tropeçando na rua. Afagou a
minha cabeça e me deu uma maçã. Naquela época eu não sabia o seu nome.
Em algum momento, descobri que era o guarda-costas do meu irmão, mas
nunca tive a chance de perguntar o seu nome.

Ele foi tão gentil na segunda vez em que nos encontramos. Voltou a afagar a
minha cabeça e gentilmente me convenceu a fazer a coisa certa.

E, assim, acabei indo para o norte, em direção à nova casa do meu irmão.

Aisha estava transbordando alegria e entusiasmo desde o momento em que


pegamos a estrada. Ela abandonou aquela atitude de boa garota que mostrava
na frente do Papai e de Lilia e começou a agir como a líder da nossa expedição,
surgindo com todos os tipos de planos malucos.

Na minha opinião, ela estava sendo estúpida. Ver ela tentando assumir o
controle enquanto tínhamos dois adultos viajando conosco parecia ridículo.
Mas, por alguma razão, Ruijerd e Ginger a levaram a sério e até mesmo
concordaram com a maioria das suas ideias.

Isso não parecia nada justo. As opiniões dela pareciam sempre ter mais peso.
Qualquer coisa que eu dizia era basicamente ignorada.

O principal motivo pelo qual pude suportar tudo foi Ruijerd. Ele ao menos tinha
consideração pelos meus sentimentos. Sempre reservava tempo para me
confortar e ouvir as minhas reclamações.

Mas até mesmo ele passava muito tempo elogiando o meu irmão.

Chamava Rudeus de homem notável. Até mesmo me disse o quanto estava


ansioso para vê-lo. E sempre sorria um pouco quando falava dele, e olha que
quase nunca sorria. O Rudeus que eu conhecia e o Rudeus de que ele falava
pareciam ser pessoas completamente diferentes.

Talvez tenha sido aí que comecei a sentir medo do meu irmão.

Rudeus era um mago poderoso. Ele era digno de respeito. Todos diziam isso.
Mas o Rudeus que eu conhecia era o homem que jogou meu pai no chão e
depois o espancou. Ele era uma pessoa violenta. Se eu o chateasse, não havia
garantia de que não me bateria igual bateu no meu pai.

Fiquei com medo de revê-lo, e a ideia de morar com ele por meses me
assustava. Eu às vezes acordava no meio da noite, tremendo. Às vezes, não
conseguia sequer dormir. Bom, Ruijerd pelo menos sempre estava lá para me
confortar. Ele me colocava no colo e olharíamos para as estrelas juntos
enquanto me contava as histórias do seu passado. A maioria delas era triste,
mas, por algum motivo, sempre me ajudavam a dormir.
Quando voltei a me encontrar com Rudeus depois de anos, ele estava bêbado e
agarrado a uma mulher.

Pelo visto, era a amiga de infância que ele tinha em Buena Village, e tinham
acabado de se casar. Eu nem me lembrava dela. Tinha vagas lembranças de
uma criança mais velha andando com Aisha e Lilia, mas não lembrava dela ser
nada parecida com essa Sylphie. Ela devia ter mudado muito com o passar do
tempo.

Rudeus estava claramente aproveitando a sua vida ao máximo.

Fiquei com raiva ao ver aquilo. Meu pai não perdia tempo brincando com
mulheres por anos e anos. Ele disse que colocaria isso em espera até encontrar
a minha mãe. Não tocou sequer em Lilia, muito menos em qualquer uma das
outras que apareceram em sua vida.

A maior prioridade do meu irmão, por outro lado, era a sua própria felicidade.
Isso me deixou louca.

Mas não consegui dizer nada. Eu estava com medo dele. Estava com medo de
que, se o deixasse com raiva, ele começaria a me bater.

Ruijerd interviria em minha defesa? Difícil dizer. Ele parecia muito feliz em
voltar a ver Rudeus. Talvez não ficasse do meu lado. Talvez diria que eu estava
sendo rude ou egoísta.

Não pude dizer nada naquela primeira noite. E então, no dia seguinte, Ruijerd
partiu para sempre. Achei que ele ficaria conosco por mais algum tempo. Eu
não queria que ele fosse embora. Mas, mesmo assim, foi.

Fiquei com ainda mais medo do que antes. As únicas pessoas que ficaram na
casa foram Rudeus, sua esposa e Aisha. Minha irmã mais nova ficou muito
feliz por voltar a estar com Rudeus. Sylphie parecia uma pessoa legal o
suficiente, mas não estava do meu lado. Eu não tinha ninguém do meu lado.

Estava presa até meu pai chegar. Teria que viver com medo por meses e mais
meses.

Rudeus provavelmente seria bom com Aisha, mas rigoroso comigo. Ele
elogiaria minha irmã e diria para eu me esforçar mais.

Aisha sempre dizia que eu não conseguia fazer nada direito. Dizia que eu não
me esforçava. Mas havia coisas que eu simplesmente não conseguia fazer, não
importa o quanto tentasse. Mesmo quando queria melhorar, mesmo quando
dava tudo de mim, ainda não conseguia me comparar a ela. O que eu deveria
fazer?
Por enquanto, tudo que poderia fazer era ficar fora do caminho. Eu me escondi,
esperando que ninguém ficasse bravo comigo. Esperando que ninguém me
dissesse o quão inferior eu era.

A cidade lá fora estava coberta de neve. Fiquei com medo de ser jogada,
sozinha, no frio.

Rudeus decidiu que eu precisava começar a frequentar a escola.

Essa “universidade” parecia muito diferente da escola que frequentei em


Millishion. Eu poderia me matricular no primeiro ano, mas isso não significava
que todos os meus colegas teriam a minha idade. Havia todo tipo de gente
estudando lá, e a maioria das pessoas era mais velha do que eu.

Para ser sincera, eu não queria ir. Sabia que acabaria voltando a ser comparada
com Aisha. Minha irmã, porém, não tinha intenção de voltar a frequentar uma
escola. Essa, ao menos, era uma boa notícia para mim. Sem ela por perto,
talvez pudesse me sair um pouco melhor.

Meu irmão, entretanto, colocou uma condição para isso. Ela teria que fazer o
exame de admissão da universidade. Era um teste que todos tinham que fazer
para entrar – ou seja, eu também o faria.

Isso me desencorajou profundamente. Não havia como passar em um teste


sem nem mesmo estudar para ele. Mas, quando falei isso para Rudeus, ele
disse que poderia me comprar uma vaga na Universidade. Foi algo tão
imprudente e rude de se dizer que, apesar de tudo, fiquei com raiva. Então
Aisha ficou com raiva de mim por eu ter ficado brava, e acabamos brigando.

— Parem com isso, as duas.

O tom frio do meu irmão foi como uma pontada bem no meio do meu peito.

Por um momento, pensei que ele me socaria. Fiquei com tanto medo que até
chorei um pouco.

Teria que continuar vivendo assim, sempre recuando de medo?

No dia do exame, Rudeus me falou sobre os dormitórios. A Universidade de


Magia, aparentemente, permitia que seus alunos vivessem em enormes prédios
que ficavam no campus, tudo para ajudar a se tornarem mais independentes.
Parecia a solução para todos os meus problemas.

Eu não tinha dúvidas de que minha irmã seria aprovada no exame, ou seja, não
teria que ir para a escola. Então, se eu me mudasse para os dormitórios, não
precisaria mais ver ela ou Rudeus. Ninguém me compararia a ninguém. Poderia
ser eu mesma e viver a minha própria vida.
Quanto mais pensava nisso, mais perfeito parecia.

Poucos dias depois, recebemos o resultado do teste, e meu irmão perguntou o


que eu queria fazer. Hesitante, admiti que queria morar nos dormitórios.

Tive medo de que ele ficasse com raiva. Meu pai queria que eu ficasse com
Rudeus, e provavelmente disse, em sua carta, para ele tomar conta de mim.
Achei que meu irmão poderia ficar com raiva. Talvez até me bater por ser tão
egoísta.

Mas, para a minha surpresa, Rudeus concordou na mesma hora.

Foi Aisha quem ficou com raiva. Ela achou que era injusto que eu conseguisse
o que queria. Até então, ela sempre tinha recebido um tratamento melhor do
que eu. Acho que não gostou do fato de que Rudeus a testou, mas não a mim.

Ainda assim, por que meu irmão concordou com o meu pedido? Eu não sabia.
Eu não o entendia direito. Olhando para o passado, percebi que ele não ficou
chateado comigo nenhuma vez, desde que cheguei, exceto pela vez em que
briguei com Aisha.

Talvez simplesmente não tivesse interesse em mim…

Talvez pensasse que cuidar de mim não era nada mais do que um incômodo, e
viu isso como uma oportunidade de ouro para se livrar de mim. De acordo com
tudo que eu sabia, ele, de qualquer forma, já planejava me mandar para os
dormitórios.

Isso seria conveniente, no que me dizia respeito. Mas, por algum motivo,
pensar nisso me deixou um pouco triste.

Toda a coisa de morar em dormitórios era nova para mim. Isso era realmente
emocionante.

Pela primeira vez na vida, teria uma colega de quarto. Iria morar com uma
garota mais velha chamada Marissa. Ela era um demônio.

Minha avó sempre disse que demônios são criaturas do mal – monstros que
devem ser expulsos e destruídos. Se eu não tivesse conhecido Ruijerd,
provavelmente continuaria acreditando nisso. Mas eu tinha conhecido Ruijerd,
então me apresentei educadamente a Marissa que, em troca, também me
recebeu calorosamente. Eu precisava de muita ajuda, já que estava começando
no meio do ano letivo, e Marissa estaria lá para me ajudar. Ela me ensinou
como funcionavam as refeições, onde ficavam os banheiros e as regras do
dormitório.

Enquanto ela me mostrava o lugar, uma garota demônio assustadora do


“esquadrão de autodefesa” nos viu e se apresentou para mim.
— Aqui somos todos uma grande família — disse ela —, então temos que cuidar
umas das outras.

Fiquei um pouco intimidada por ela, mas Marissa me disse que tratava-se de
uma pessoa de bom coração que levava suas responsabilidades a sério.

No geral, fiquei ansiosa pela minha nova vida. Ter que voltar para a casa do
meu irmão uma vez a cada dez dias era irritante, mas ele não me fazia muitas
perguntas específicas, então não era grande coisa.

E então comecei minha nova vida como estudante interna.

Na mesma hora, percebi que as aulas eram muito difíceis. Acho que era em
parte porque os professores explicavam tudo de um jeito diferente, se
comparado a Millis. Poderia ser diferente se eu tivesse visto todas as aulas
desde o começo, mas entrei no bonde andando. Muitas das palestras eu
simplesmente não conseguia acompanhar.

Em Millis tínhamos aulas de religião, mas essa matéria nem existia aqui. Em
vez disso, tínhamos aulas práticas de magia. Eu também não era muito boa
nisso. Os professores não se importavam em explicar o básico.

Isso era um pouco desanimador. Mas se minhas notas fossem péssimas,


poderia acabar sendo arrastada de volta para a casa do meu irmão. Tentei
estudar no meu dormitório, mas não estava dando certo. E então, quando eu
estava ficando sem saídas, Marissa foi legal o suficiente para começar a me
dar aulas particulares. Com a paciente ajuda dela, finalmente consegui enfiar
alguns conceitos que deveria estar aprendendo em aulas na minha cabeça.

Aisha provavelmente entenderia tudo de primeira. Eu às vezes me odiava por


ser tão estúpida.

O campus era bem grande e eu costumava me perder.

As aulas práticas de magia e preparo físico eram particularmente ruins. Faziam


isso em um monte de salas diferentes e eu nunca conseguia lembrar como
chegar nelas. Em cada vez que me perdia, precisava pedir informações a algum
veterano ou esperar até que alguém da minha sala fosse me encontrar.

Certa vez, enquanto perdida, me encontrei até com Rudeus. Ele, por alguma
razão, estava caminhando com a aluna mais importante de toda a escola. Foi
incrivelmente embaraçoso.

Todos na universidade tinham medo do meu irmão.

Pelo que parecia, ele era o chefe de uma pequena gangue de seis integrantes
que faziam tudo o que queriam por aí. Duas dessas pessoas moravam no meu
dormitório. Eram garotas altas e de aparência assustadora que andavam por aí
como se fossem as donas do pedaço. Marissa tinha avisado que, se possível,
era melhor não ficar no caminho delas.

Existiam rumores de que Rudeus ordenou que aquelas duas pegassem uma
calcinha de cada garota bonita da escola.

A esposa do meu irmão sabia disso? Provavelmente não. Para começar, eu não
sabia o que ele pretendia fazer com todas aquelas calcinhas, mas isso me
deixou muito brava. Meu pai estava arriscando a vida para salvar a minha mãe,
e meu irmão estava só bancando o idiota. Minha opinião sobre ele estava
ficando cada vez pior.

Mas, apesar das suas ações bizarras, a reputação do meu irmão era
estranhamente positiva. As pessoas diziam que ele nunca incomodava alunos
comuns. Embora fizesse o que queria, não machucava ou assediava ninguém.
Na verdade, supostamente disse para todos os valentões pararem de implicar
com os mais fracos. Uma das crianças mais assustadoras da minha sala até
mesmo se gabava por uma vez ter conversado com Rudeus.

Ele era melhor que qualquer um da Universidade em magia e, pelo visto,


também era um bom professor. As pessoas diziam que ele estava dando aulas
particulares para uma garota ainda mais jovem do que eu.

Meus colegas de classe, meus professores e até mesmo Marissa diziam que
eu deveria tentar seguir os seus passos. Queriam que eu fosse como ele. Que
fosse como… o irmão que eu temia, odiava e não compreendia.

Eu não queria ser como ele.

Mas, mais do que tudo, saber que não poderia me comparar a ele era doloroso.
Ele era melhor do que eu em tudo, igual Aisha.

Não importa o quanto eu tentasse, nunca seria páreo para ele.

Eu odiava o Rudeus. Achava que ele era uma pessoa terrível.

Mas o fato era: eu não conseguia nem competir com ele.

Um dia, voltei para o meu dormitório e me joguei na cama.

Um grande misto de emoções começou a crescer dentro de mim há semanas.


Amargura, tristeza, autopiedade, raiva e sabe-se lá o que mais.

Eu não conseguia mais conter essas coisas. Não pude evitar de me quebrar.

Marissa chegou ao quarto um pouco depois. Ela me viu chorando no


travesseiro e gentilmente me perguntou qual era o problema, mas eu só disse
“Não é nada” e puxei o cobertor sobre a cabeça.
O que eu deveria fazer?

Estava errada a respeito de Rudeus? Ou era todo mundo?

Provavelmente era eu… Ele não devia ser uma pessoa tão ruim quanto eu
pensava que era.

Eu era muito nova quando vi Rudeus batendo no meu pai. Depois daquilo, meu
pai tentou me explicar que tinha acontecido muita coisa e eu nunca consegui
entender o significado disso. Mas, agora, depois desse tempo todo, finalmente
começou a fazer algum sentido para mim. Afinal, até eu estava no meu
momento de “acontecer muita coisa”.

Se eu me esforçasse, mudasse as coisas e conseguisse me animar, seria


realmente um saco se alguém dissesse: “Nossa, olha pra você. Deve ser bom
levar uma vida tão despreocupada.” Eu, na verdade, provavelmente gostaria de
socar essa pessoa. Mesmo se fosse meu próprio pai.

No fundo, Rudeus e eu devíamos ser pessoas parecidas. Afinal, ele não era um
monstro desumano.

Mas, dito isso… como eu deveria conversar a respeito dessas coisas com ele?
O que ele iria querer de mim? Aliás, como ele conseguiu fazer as pazes com o
Papai?

Pensei e pensei nisso. Nada me surgiu à mente, mas minha barriga


eventualmente começou a doer. Meu estômago doeu e comecei a sentir
náuseas. Então me enterrei ainda mais na minha cama e não fiz nada.

Não pude fazer nada. Eu não conseguia nem mesmo enfrentar o meu irmão.

Nessas horas, Papai sempre estava lá por mim. Quando algo ruim acontecia e
eu me enterrava na cama, ele aparecia e afagava as minhas costas por um
tempo. E, depois que nos separamos, Ruijerd assumiu o seu lugar. Ele me
colocava no colo, acariciava a minha cabeça e me contava histórias.

Aqui eu não tinha ninguém assim. Marissa era legal comigo, mas não estava do
meu lado. Tudo o que ela sugeriu era que eu deveria falar com meu irmão ou
tentar voltar para as aulas.

Eu já sabia disso. O problema era que meu corpo não queria se mover.

Quanto tempo passou desde que me enfiei na cama?


Continuei pensando nas mesmas coisas pelo que pareceram muitas horas,
depois adormeci de exaustão. Repeti esse ciclo algumas vezes, então deviam
ter passado alguns dias.

Eu estava sentada na beira da minha cama. E, por algum motivo, Rudeus estava
bem na minha frente. Ele estava sentado em uma cadeira e olhando para mim.

— Norn, eu…

— Uhm, Rudeus…

Parecia ser a primeira vez que falei o nome do meu irmão em voz alta.

Nós dois quebramos o silêncio exatamente ao mesmo tempo. Eu não parecia


estar alucinando. Como ele entrou no dormitório feminino?

Fiquei tão confusa que não sabia o que fazer. Meu irmão também estava
quieto. Ficamos algum tempo só nos encarando.

Devia ser a primeira vez que olhei tão atentamente para o rosto de Rudeus. Ele
parecia um pouco ansioso. Suas feições me lembravam um pouco do meu pai,
isso era meio reconfortante. Mas é claro que eles seriam parecidos.

— Sinto muito, Norn. Não foi fácil para você, não é? — disse Rudeus, com sua
voz hesitante. — Acho que eu realmente… nem te entendo direito… Sei que deve
ser difícil para você, mas não sei o que fazer.

Era só eu ou ele estava muito nervoso? Isso também me lembrava do meu pai.

—…

Meu irmão voltou a ficar em silêncio. Ele ficou só sentado lá, em silêncio, sem
se mover.

Estava me olhando ansiosamente, mas não se moveu da cadeira. Meu pai


provavelmente já teria me abraçado, e Ruijerd já teria afagado a minha cabeça.
Mas meu irmão nem mesmo se aproximou de mim.

— Ah.

De repente, entendi o porquê.

Ele não podia se aproximar de mim. Estava com muito medo de que eu pudesse
rejeitá-lo.

No instante em que esse pensamento passou pela minha cabeça, senti todas
as minhas emoções negativas começando a se dissipar. Eu não odiava mais o
Rudeus. Também não o achava assustador. Ele era muito parecido com o meu
pai.
Ele nunca iria me bater, não importa o quê. E provavelmente nunca mais bateria
no meu pai.

— Sniff…

Eu precisava perdoá-lo.

— Hic!

Agora as lágrimas estavam rolando pelas minhas bochechas. Minha garganta


ficou seca.

Depois de um momento, comecei a soluçar.

— Sinto muito, Rudeus! Sinto muito…

Lentamente, com cautela, meu irmão se levantou e sentou ao meu lado. Ele
gentilmente colocou a mão na minha cabeça e me abraçou contra o peito dele.
Sua mão era quente e seu peito firme.

E o cheiro dele também parecia com o do meu pai.

Passei o resto da noite chorando em seus braços.

Rudeus

No final, não fiz quase nada.

Norn não me contou o que estava acontecendo. Ela nunca me contou por que
estava para baixo ou o que estava acontecendo. Só chorou por bastante
tempo.

E então, quando finalmente terminou, olhou para cima e murmurou:

— Agora vou ficar bem.

Era isso.

Mas, por alguma razão, ela realmente parecia, pela primeira vez, bem. Ela até
conseguiu me olhar nos olhos.

Fiquei imensamente aliviado. Algo me disse que ela ficaria bem.

Então, deixei o resto para Sylphie e saí do quarto da minha irmã.

Depois daquele incidente, Norn ficou visivelmente mais alegre.

As mudanças não foram exatamente dramáticas. Ela só começou a me dizer


olá quando nos cruzávamos pelo corredor. Nós ainda não conversávamos
muito, e ela não começou a ficar em cima de mim igual a sua irmã.
Provavelmente ainda estava sendo comparada a mim nas aulas, mas acho que
isso parou de a incomodar.

Eu ainda não entendia o que ela estava sentindo. Não fiz nada de significativo.
Isso me fez sentir um pouco patético. Eu sabia como era ser desprezado e
como era se isolar no próprio quarto. Mesmo assim não consegui pensar em
nada útil para dizer.

No final das contas, acho que Norn resolveu tudo sozinha. Ela processou seus
sentimentos e deixou os obstáculos pelo caminho para trás.

Essa foi uma conquista realmente impressionante.

Paul e Aisha pareciam pensar que Norn era só uma criança tímida e
desajeitada, sem qualquer talento especial. Mas eu agora tinha uma opinião
bem diferente a respeito dela. Ela conseguiu sair de um buraco em que fiquei
preso por uma vida toda.

Se eu tivesse metade da força dela, minha primeira vida talvez não tivesse sido
tão miserável. Eu talvez não teria levado um soco na cara do meu irmão de
bom coração.

Mas era impossível ter certeza, é claro. Minha situação era diferente da de
Norn. Mesmo se eu tivesse me resolvido com meus sentimentos, talvez nunca
teria saído do meu quarto. Talvez precisasse renascer e encontrar Roxy para
que isso fosse possível.

De qualquer forma, eu não poderia mudar o passado. Os relacionamentos que


rompi nunca poderiam ser reparados. E eu nunca teria certeza do que estava
passando pela cabeça do meu irmão naquela época.

Ainda assim, meio que senti… como se algo que ficou preso na minha garganta
por muito tempo tivesse sumido. Se Nanahoshi algum dia conseguisse voltar
ao nosso velho mundo, eu teria que pedir para ela levar uma mensagem para o
meu irmão.

“Obrigado por tentar entrar em contato comigo naquela época. E sinto muito.”
Cap. 06 – A Vida com as Irmãs Greyrat

Outro mês passou e o clima finalmente começou a esquentar. Seria o meu


segundo verão em Ranoa.

Mesmo nesta época do ano, não fazia calor de verdade nesta região. Mas as
pessoas estavam começando a usar roupas um pouco mais leves. Os alunos
da escola trocaram para uniformes de mangas curtas, o que não me importava
nada, e Aisha também trocou o seu uniforme de criada. Sylphie até mesmo
começou a usar camisas sem manga em casa. Eu não lembrava dela ter
roupas parecidas, mas acho que comprou algumas depois que começou a
morar comigo.

Eu com certeza não reclamaria por ela estar mostrando um pouco de pele, mas
a visão daqueles ombros esguios e brancos tornava a tarefa de conter as
minhas mãos difícil. O verão era uma boa estação, sem dúvidas. E, ainda por
cima, não havia nenhum visitante desagradável de várias pernas correndo para
dentro de casa para mordiscar a comida.

A mudança das estações me lembrou que fazia algum tempo que não via
Badigadi. Ele talvez tivesse vagado para algum lugar e esquecido de contar a
alguém.

Algumas outras coisas mudaram ao longo do mês.

Primeiro, parecia que Norn tinha feito alguns amigos. A vi se movendo em um


grupo de três garotas e dois garotos, incluindo alguns alunos de salas
diferentes. Provavelmente foram os primeiros amigos de verdade dela. Eu
queria me apresentar a eles, então pedi para levá-los até em casa algum dia,
mas ela rejeitou a ideia categoricamente. Acho que pensou que a ideia de
apresentá-los à família era muito embaraçosa.

Vendo pelo lado bom, parecia que a forma como invadi a sua sala de aula não
lhe causou muitos problemas. Isso era um alívio.

Norn e eu também estávamos, no geral, nos dando melhor. Como um excelente


exemplo, ela recentemente me pediu para ajudá-la em algumas matérias.
Aceitei alegremente, é claro. Eu estava pronto para ensinar todas as minhas
técnicas secretas e tudo o que sabia para ela. Mas então percebi que se eu
gastasse muito tempo focado em ajudá-la, Aisha poderia ficar emburrada por
ter sido deixada de lado.

Depois de pensar um pouco, decidi encontrar Norn na biblioteca depois da aula


para sessões de tutoria regulares e limitar isso a uma hora por dia. Poderíamos
revisar as coisas que ela aprendia no dia e revisar o que suas aulas
abrangeriam no dia seguinte. Isso podia fazer, por si só, uma grande diferença.

Norn estava obviamente se esforçando para acompanhar isso, mas parecia ter
dificuldades em colocar a teoria dos livros em prática. Dito isso, ela não era tão
ruim quanto Eris ou Ghislaine tinham sido. Com consistente esforço, me sentia
confiante de que ela alcançaria um nível médio em um instante.

— A propósito, Ruijerd disse que era da região de Babynos, certo? — perguntou


ela. — Sei que você passou algum tempo no Continente Demônio, Rudeus. Você
sabe onde fica isso?

— Hmm. Não lembro de cabeça. Ele não disse que fica perto da região de
Biegoya? Mas nunca fui lá.

Nós dois estávamos nos dando bem, agora até mesmo tínhamos conversas
casuais durante nossas sessões de estudo. Mas, por alguma razão, Norn
queria falar principalmente sobre Ruijerd. Acho que ele era nosso principal
interesse comum. Não que eu realmente me importasse, sabe? Na verdade,
fiquei feliz por ter mais alguém com quem pudesse conversar sobre ele.

— Entendo… Desculpe por continuar te importunando, mas como é o Continente


Demônio no geral?

— Bem, todos os monstros que vivem lá são realmente grandes. A cultura


também é diferente… mas, na verdade, tem algumas semelhanças com essa
região. A maioria das pessoas de lá são só pessoas comuns que vivem vidas
comuns.

Percebi que Norn ainda falava de um jeito meio rígido comigo. Seu tom tendia a
ser excessivamente educado, especialmente para uma irmãzinha conversando
com o irmão. Aisha e eu tínhamos adotado tons mais informais, mas acho que
Norn ainda se sentia mais confortável dessa forma.

— Ah, é mesmo, Rudeus. Ruijerd alguma vez te contou a história da lança dele?

— Sim, nunca vou esquecer essa. Como me fez chorar.

— Com certeza… Espero que ele eventualmente consiga realizar o objetivo dele.

— Eu também…

Já estava na hora de eu levar aquele projeto em particular adiante, não?

O plano era fabricar estatuetas de um guerreiro Superd e vendê-las com um


livro. Eu não tinha desistido, de forma alguma, mas Julie ainda era inexperiente
e não tinha muita mana, então a produção em massa ainda não era opção.

Ainda assim, isso não significava que eu não poderia trabalhar ao menos em
um protótipo.

O livro era outro assunto. O principal problema era encontrar tempo para
escrever. Passei muitas horas dos últimos meses aprendendo magia Avançada
de Cura e Intermediária de Desintoxicação. Eu era bom na memorização que
essas matérias exigiam, mas elas ainda me mantinham bem ocupado.

Nesse ponto, eu não tinha certeza do que queria aprender a seguir.

Passar para magia Avançada de Desintoxicação parecia ser o lógico, mas não
havia mais nada que realmente chamasse a minha atenção. Não faria mal levar
minha magia de Fogo e Vento ao nível Santo, mas esse nível de feitiços tendia
a envolver manipulações dramáticas do clima, ao invés de feitiços mais
práticos que poderia usar regularmente. Aprender coisas novas era sempre
bom, mas eu queria me concentrar em algo mais útil. Quem sabe a habilidade
de montar a cavalo.

Enquanto examinava as possibilidades em minha cabeça, ocorreu-me que


poderia usar um pouco do meu recém-obtido tempo livre para trabalhar no meu
livro sobre os Superds. Provavelmente poderia escrever um pouco inclusive
durante minhas sessões com Norn.

Eu estava procurando escrever um resumo franco e direto da trágica história da


tribo. Prosa não era meu ponto forte, mas provavelmente conseguiria fazer
alguma coisa no caso de me concentrar bastante.

Ou foi o que pensei no início. Mas quando me vi encarando aquele primeiro


pedaço de papel em branco, não consegui decidir nem por onde começar.

Seria melhor só anotar os fatos, igual em um roteiro de documentário? Seria


mais legível em forma de diário? Sempre ouvi dizer que seria melhor começar
com um projeto menor como a primeira peça de escrita criativa, em vez de
tentar esboçar uma obra-prima épica logo de cara. Talvez devesse fazer um
livreto, algo com não mais do que umas dez páginas. De qualquer forma, eles
seriam mais fáceis de distribuir com as estatuetas.

Se eu seguisse esse caminho, provavelmente seria melhor fazer tudo de forma


simples e leve. Poderia transformar em uma história básica de bem contra o
mal, com Laplace revelado como o verdadeiro vilão.

Espera… mas Laplace não era considerado um herói lendário no Continente


Demônio? Se eu fizesse ele parecer totalmente malvado, poderia acabar
irritando muita gente.

Certa tarde, enquanto estava lutando com essas questões pela centésima vez,
Norn espiou o meu trabalho.

— O que você está escrevendo aí, Rudeus?

— Na verdade, estou tentando escrever um livro sobre o passado de Ruijerd. O


problema é: não tenho certeza de como tocar no assunto.

— Hmm…

Com o interesse evidentemente despertado, Norn puxou meu papel e deu uma
olhada mais de perto. No topo estava meu título provisório: “A História do
Grande Guerreiro Ruijerd e a Perseguição ao Seu Povo.”

Até o momento só tinha cerca de meia página de texto, basicamente um


esboço rápido de quem era Ruijerd e como ele era. Claro, fui muito tendencioso,
então ele acabou ficando parecido com um herói sagrado.

— Isso é tudo que você preparou até agora?

— Sim, ainda não fiz muito progresso.

O principal problema era que eu não sabia por onde começar a história real, ou
como contá-la. Eu ainda me lembrava dos contos de Ruijerd sobre as ações de
seu povo durante a Guerra de Laplace e conhecia a história básica da
perseguição que sofreram. Ainda assim, já fazia vários anos desde que ouvi as
histórias, então algumas partes estavam um pouco confusas. Parando para
pensar, eu realmente devia ter feito algumas anotações.

— V-Você se importaria em me deixar ajudar? — perguntou Norn timidamente.

Foi uma oferta muito inesperada. Mas, pelo visto, Ruijerd tinha o hábito de
colocar minha irmã em seu colo todas as noites, afagando a sua cabeça e
contando histórias do seu passado.
Nada justo. Nunca consegui sentar no colo de Ruijerd! Certo, espera. Vamos
tentar agir como adultos.

— Isso seria de grande ajuda, Norn. Apenas certifique-se de não negligenciar os


seus estudos, certo?

— Tá bom!

Daquele dia em diante, Norn e eu começamos a trabalhar juntos no projeto.


Quando ela tinha um pouco de tempo livre entre as aulas e sessões de estudo,
usava isso para escrever as histórias de Ruijerd. Sua escrita às vezes era um
pouco infantil e sempre apresentava alguns pontos complicados. Mas, por
alguma razão, ler isso me fazia lembrar tão vividamente de Ruijerd que muitas
vezes me peguei chorando. Isso era perfurante.

Quanto mais eu lia a sua escrita, mais começava a sentir que ela podia ter
algum talento na área. Claro, eu não era um observador exatamente imparcial –
mas as pessoas tendem a melhorar mais rápido quando estão fazendo aquilo
que gostam. Se ela continuasse nisso por tempo o bastante, talvez
desabrochasse e algum dia se tornasse uma autora brilhante.

No momento, porém, me concentrei em consertar seus pequenos erros e


frases desajeitadas. Eu estava trabalhando basicamente como um editor.

Tive a sensação de que o livro ficaria muito melhor assim do que comigo
tentando escrevê-lo.

Enquanto meu relacionamento com Norn começava a melhorar, também houve


um pequeno desenvolvimento com Aisha. E, pela primeira vez, não tinha nada a
ver com Norn. As duas ainda não eram lá muito amigáveis uma com a outra,
embora Aisha estivesse tomando cuidado para não insultar a irmã, já que a
repreendi por fazer isso. Ela sempre era pelo menos superficialmente educada
quando sua irmã visitava.

Isso na verdade me preocupava um pouco. Eu não queria que ela sentisse que
não conseguia expressar seus sentimentos verdadeiros. Eu estava feliz por
Norn começar a se interessar por mim, mas isso não significava que poderia
negligenciar o meu relacionamento com Aisha. E então decidi dar-lhe
permissão para falar o que tinha em mente.

— Sabe, Aisha… se há algo que você queira dizer, não precisa guardar isso
dentro de si.

— Poderia ser mais específico, Rudeus?

— Bem, não sei. Ultimamente tenho passado muito tempo com Norn, certo?
Você não está se sentindo um pouco carente de atenção ou algo assim? Ou
está trabalhando muito e precisa de férias? Não sente vontade de passar o dia
todo na cama?

Colocando um dedo no queixo, Aisha inclinou a cabeça para o lado, perplexa.


Que fofa.

— Então você está me dando permissão para ser egoísta?

— Isso mesmo. Você pode ser um pouco egoísta quando estiver comigo. Não
precisa se segurar.

— Hmm… bem! Uma coisa me vem à mente.

Aquele sorriso malicioso em seu rosto estava disparando alguns alarmes. O


que ela planejava exigir? Espero que não seja meu corpo, mesmo que de
brincadeira. Eu teria que arranjar uma desculpa para recusar, e ela então
provavelmente ficaria mal-humorada por uma semana.

— Eu gostaria de um salário, por favor!

Bem, não era isso que eu esperava.

— Um salário…?

Assim que pensei nisso, porém, notei que Aisha já estava trabalhando como
nossa diligente criada há algum tempo. Era, no mínimo, estranho não a
pagarmos. Mas, bem, éramos família, certo? Ela não era uma empregada.

Então, talvez, poderia pensar nisso como uma mesada. Ela ajudava em casa
todo dia, então queria ter algum dinheiro extra. Justo.

— Certo, podemos fazer isso.

Concordei com a ideia na mesma hora, mas esperamos até que Sylphie
voltasse para casa para discutir os detalhes. Quando lhe ofereci uma quantia
relativamente grande de dinheiro, porém, ela recusou e tentou me convencer a
diminuir.

Mas que madura. Essa criança tinha mesmo só dez anos?

No final, chegamos a um valor com o qual todos concordamos.

— Mas posso perguntar por que você quer isso? Quer comprar alguma coisa? —
Tive de admitir que fiquei curioso para saber o que motivou esse pedido. Aisha
poderia comprar o que quisesse, é claro, mas não faria mal saber o que era.

— Bem, uma garota tem suas necessidades.


Nossa, isso realmente esclarece tudo. Eu meio que esperava ouvir quais são
essas necessidades…

— Você está curioso, querido irmão? Então tudo bem. Por que não vem comigo
da próxima vez que eu for fazer compras?

Ooh. Isso soava como um encontro. Um encontro com a minha irmãzinha! Que
conceito adorável.

Avisei Sylphie sobre nossos planos com antecedência. Ela, infelizmente, estaria
trabalhando naquele dia. Me senti um pouco culpado por andar pela cidade
com outra garota enquanto minha esposa estava de serviço, mas não era
traição, já que era minha irmãzinha.

Entretanto, o que Aisha estava planejando comprar? Com sorte não seria um
escravo musculoso ou algo do tipo. Eu não queria um machão suado na minha
sala o tempo todo, sinceramente. Ter um monstro gigante de seis braços
ocasionalmente aparecendo para jantar já era ruim o suficiente… Mesmo com
ele sumindo pelos últimos tempos.

No dia do nosso encontro, Aisha me levou ao mercado e foi direto para uma
loja de produtos gerais que vendia todo tipo de coisas diversas para o dia-a-dia.
As prateleiras estavam cheias de bugigangas, mas não havia outros clientes à
vista. Pelo visto, vendiam principalmente artigos de segunda mão.

Depois de olhar um pouco as coisas, Aisha comprou três pequenos vasos de


flores.

— O que você vai fazer com isso? — perguntei. — Jogar na cabeça de qualquer
Rei Demônio que estiver passando ao acaso?

— Uh, não. Eu ia plantar algumas flores neles — disse Aisha, timidamente


olhando para mim. — Contanto que você não se importe, é claro.

Só havia uma maneira possível de responder a isso.

— Claro que não me importo.

Ainda assim, eu realmente não tinha imaginado Aisha como o tipo de garota
que gostava de flores. Pensava nela principalmente como uma criança gênio e
enérgica. Em minha mente, seus hobbies eram limpar, contar dinheiro e
equilibrar orçamentos.

Cultivar plantas estava mais para um passatempo lento e contemplativo. Era


preciso deixar a natureza seguir seu curso, observando os resultados se
desdobrarem ao longo de semanas ou meses. E mesmo um gênio não teria
100 por cento de sucesso no cultivo das coisas.
Mas será que não era exatamente por isso que a atraiu? Ela estava
acostumada a ser capaz de manipular as coisas a seu gosto. Isso estaria
parcialmente fora de seu controle.

— Então você não deveria comprar um pouco de terra? — falei. — A terra por
aqui não é das mais férteis, então não será fácil de cultivar as flores.

— Eu ia pedir para você fazer um pouco para mim com a sua magia, Rudeus.
Você se importaria? — Ela me encarou com olhos suplicantes. Havia apenas
uma resposta possível.

— Claro que não me importo.

Afinal, eu era um homem. A ideia de cavar e semear algumas sementes tinha


certo apelo para mim. Depois eu teria que preparar um solo incrível para ela. Do
tipo que permite cultivar baobás a partir de sementes de tulipas.

— Que tipo de flores você estava pensando em plantar?

— Na verdade, colhi um monte de sementes diferentes no caminho para cá.


Vou usar elas.

— Isso pode não crescer direito, você deve saber.

— Hmm. Acho que provavelmente vai dar certo.

Nós dois vagamos pela loja por algum tempo, conversando a respeito dos
planos de Aisha. Antes de sairmos peguei um par de brincos para Sylphie – em
forma de lágrima, com pequenas pedras azuis no meio. Isso definitivamente
ficaria bem nela.

— Isso é um presente para Sylphie?

— Aham. Sou o tipo de homem que não considera a esposa garantida.

— Certo, Sylphie é uma mulher de sorte. Mas quando ela está ocupada, querido
irmão, você talvez possa também me dar um pouco de amor.

Ah, os olhos para cima de novo. Como sempre, havia uma única resposta
possível.

— Não mesmo. O velho me espancaria até eu perder os sentidos.

— Saco…

Pagamos nossas compras e deixamos a lojinha para trás.

Nossa próxima parada foi uma loja especializada na venda de móveis e


tecidos. Havia enormes rolos de tecido feito à mão pendurados por todo lado.
A Princesa Ariel tinha até mesmo me recomendado esta loja antes, quando eu
estava comprando tapetes para a casa. Eles vendiam produtos de boa
qualidade por uma ampla gama de preços e pareciam atrair uma boa clientela.
Mas eu não sabia como minha irmã tinha descoberto sobre isso.

Dentro da loja, Aisha rapidamente escolheu algumas cortinas. Eram rosa e com
babados que com certeza eram caros.

Quando levou aquilo ao balcão, entretanto, começou a implacavelmente


pechinchar com o balconista. Ela usou até meu nome e o da Princesa Ariel,
recorrendo a todas as cartas que tinha para usar. No final, conseguiu derrubar o
preço para algo apenas moderadamente caro.

— Você tem o suficiente para pagar por isso, Aisha? Se quiser, posso ajudar um
pouco.

— Está tudo bem! Tenho a quantia exata.

Entregando o restante de sua mesada, Aisha terminou sua compra. Ela usou
cada moeda do dinheiro que recebeu. A garota tinha jeito com o dinheiro. Para
ser sincero, foi um pouco assustador.

— Seria bom guardar um pouco de dinheiro para depois, sabe — avisei ao sair
da loja. — Despesas inesperadas podem surgir do nada.

Caramba, você pode ser teletransportada para o Continente Demônio sem


qualquer motivo.

Desde aquele incidente, adquiri o hábito de sempre esconder um pouco de


dinheiro dentro das roupas. Eu mantinha algumas moedas até na sola dos
sapatos.

— Certo! Da próxima vez vou economizar um pouco!

Mesmo assim, vasos de flores e cortinas rosas com babados, hein? Até o
momento eu realmente achava que Aisha fosse só uma garotinha neurótica,
mas ela também tinha um lado feminino.

— Sempre quis algumas coisas fofas assim, sabe — disse ela.

— O quê, Lilia não comprava isso para você?

— Mamãe sempre disse não. Ela acha que uma criada decorando com base em
seus gostos pessoais é errado. Espero que você não se importe, Rudeus…

A garota não era só inteligente; também era boa em brincar com as emoções
alheias. Ela não só colocou os braços em volta da cintura, estava até mesmo
olhando para mim com os olhos do Bambi. Eu sabia que isso era tudo atuação,
é claro, mas era tão fofo que eu nem me importava.
Havia apenas uma resposta possível, claro.

— Está tudo bem, Aisha.

Que bom que eu não era um velho assustador ou algo assim. Eu podia acabar a
sequestrando.

Nas semanas seguintes a esse breve encontro, o quarto de Aisha ficou cada
vez mais feminino. Ela parecia gostar de coisas pequenas e fofas, e sempre
encontrava vasinhos para plantar flores e alinhava bonecas do tamanho de
punhos em suas prateleiras. Em algum momento, ela até bordou desenhos
charmosos na bainha do seu avental. Eu estava começando a ficar um pouco
preocupado com a possibilidade de ela evoluir para uma gyaru, caso
continuasse assim.

Ainda assim, minhas duas irmãs estavam se saindo bem. Eu estava contente.

Embora não fosse minha irmã, Nanahoshi também estava finalmente


recuperando o seu ritmo. Em nosso último experimento, ela conseguiu invocar
uma garrafa de plástico. Essa garrafa estava no parapeito da janela do seu
laboratório, servindo como um vaso para uma única flor. Com esse sucesso em
nossos currículos, passamos para a segunda fase do seu plano.

— A partir de agora, tentaremos convocar matéria orgânica do nosso velho


mundo — declarou ela em certa tarde.

— Matéria orgânica?

— Isso mesmo. Eu estava pensando que poderíamos começar com comida.

Depois de minha contribuição para seu sucesso recente, Nanahoshi parecia um


pouco mais disposta a confiar em mim do que antes. Ela até mesmo teve
tempo para revisar as fases do seu plano comigo:

Invocar um objeto inorgânico.

Invocar algo composto de matéria orgânica.

Invocar algo vivo – uma planta ou um animal pequeno.

Invocar uma coisa viva que se enquadre em certos critérios específicos.

Devolver um ser vivo invocado ao local anterior.

A garrafa de plástico que invocamos anteriormente podia não ser tecnicamente


um objeto orgânico, dependendo de como definisse o termo, mas ela não
parecia considerar isso um grande problema.

— Hmm. Essa etapa com os critérios específicos é mesmo tão importante?


— Bem, eu diria que sim. Quando eu estiver me teletransportando de volta para
casa, não quero voltar para um país estrangeiro ou coisa assim.

Resumindo, ela queria se aproximar cada vez mais de invocar algo tão
complexo quanto um ser humano e, no final, se teletransportar precisamente
para o Japão. Cada etapa do experimento era elaborada para atingir esse
objetivo específico.

Em nosso atual estágio, ela já era capaz de estabelecer algumas condições


sobre o que invocava, mas elas eram bem amplas. Os resultados individuais
variavam muito. Se ela tentasse invocar um gato, por exemplo, poderia obter
um gato malhado, um gato rajado, um tigre ou uma pantera.

Sua pesquisa estava atualmente focada em encontrar formas de tornar seus


feitiços mais precisos. Ela queria ser capaz de invocar um gato doméstico, não
um felino – e também queria especificar até mesmo o tipo de gato doméstico
invocado.

— Mas definir as condições é bem difícil — murmurou ela, mais para si mesma
do que para mim. — Acho que alguma hora terei que ver o velho de novo.

O velho era presumivelmente a autoridade em magia de invocação que ela


mencionou em uma ou duas ocasiões.

— Esse cara sabe muito sobre essa, uh, invocação condicional?

— Bem…

Nanahoshi levou a mão ao queixo e pensou por um momento, então balançou a


cabeça para si mesma e começou a explicar.

— Deixe-me elaborar isso um pouco. Neste mundo, a magia de invocação é


geralmente dividida entre invocação de espírito maligno e invocação de espírito.

— Sério?

Invocação de espíritos malignos parecia se referir a invocar monstros


específicos. Invocaria uma criatura inteligente usando um conjunto complexo
de círculos mágicos, pagaria alguma forma de compensação a ele e o colocaria
ao seu serviço. Esse era o tipo de invocação em que as pessoas pensavam
quando usavam a palavra “invocação”.

Normalmente, isso era o mesmo que invocar monstros ordinários variados, do


tipo que poderia encontrar na selva. Também era possível, entretanto, invocar
feras lendárias que acreditavam residirem em outros mundos. A invocação de
espírito maligno também não se limitava a coisas vivas – também era possível
focar em objetos inanimados. Nanahoshi obtendo aquela garrafa de plástico
seria tecnicamente categorizado como um feitiço de invocação de espírito
maligno.

Se eu dominasse isso, poderia ser capaz de invocar a calcinha que a Mestra


Roxy estivesse usando!

A invocação de espírito, por outro lado, era um tipo de técnica muito diferente.
Na verdade, isso envolvia a criação de entidades artificiais de mana. Projetar
esses tipos de feitiços parecia, de certa forma, semelhante a programação.

— Só para você saber, é melhor não discutirmos isso abertamente — disse ela.

— Por quê?

— A maioria das pessoas pensa que os espíritos são seres vivos que residem
no Mundo Árido, e que estamos apenas trazendo-os para o nosso.

Em outras palavras, era considerado apenas mais uma variação da invocação


de espíritos malignos.

Os espíritos malignos eram mais difíceis de controlar, mas podiam pensar e


agir por conta própria e se adaptar a circunstâncias desconhecidas. Em
contraste, os espíritos eram muito fáceis de controlar, mas geralmente agiam
só em alguns padrões definidos. Dito isso, se tivesse a habilidade de
“programação” para elaborar um código muito complexo, poderia ser capaz de
criar um espírito que se passasse por humano. Ela tinha visto alguns deles na
casa do velho mencionado.

— E também vale a pena mencionar… aqui está aquele círculo mágico que te
prometi antes.

Nanahoshi me entregou um pergaminho. Havia um círculo mágico denso e


complicado inscrito no centro, cobrindo cerca de meia página.

— O que é?

— Um pergaminho de invocação para um espírito luz de lâmpada.

Um espírito luz de lâmpada era uma coisa simples que flutuava atrás do
invocador enquanto emitia uma luz brilhante. Era capaz de entender comandos
simples como “ilumine aquela área”, mas, com o passar do tempo, sua mana
diminui até desaparecer. Era um espírito bem básico, mas se usasse mana
suficiente, poderia existir por um período relativamente longo de tempo.

Não era o feitiço mais emocionante que já aprendi. Para ser sincero, eu
esperava algo um pouco mais chamativo como recompensa.
— A propósito, este círculo mágico é uma criação original daquele velho de
quem sempre falo — disse Nanahoshi. — Nem mesmo a Guilda dos Magos
sabe sobre isso.

— Hein? Sério?

Quando soube que era um produto de edição limitada, porém, de repente me


pareceu muito mais emocionante. Acho que, no fundo, eu continuava com o
coração de um japonês.

— Sim. Da próxima vez vou te dar algo ainda mais impressionante, certo?
Prometo.

Nanahoshi juntou as mãos em um gesto de súplica. Eu não tinha visto ninguém


fazer isso há muito tempo. Isso me deixou um pouco nostálgico.

— Acho que você deveria ser capaz de usar sua magia de terra para fazer um
modelo disso — disse ela. — Assim, você pode imprimir cópias infinitas. Tenho
certeza de que a Guilda dos Magos pagaria muito bem por eles.

— Não tem problemas se eu vender cópias? O cara que fez isso não vai ficar
irritado?

— Confie em mim, ele tem coisas mais importantes na cabeça. Duvido que se
importe.

Hmm. Bem, era bom saber que não precisaria sempre escrever pergaminhos
mágicos à mão.

— Se você decidir vender para a guilda, certifique-se de mencionar o meu nome


— acrescentou ela. — Isso deve garantir que não tentarão te passar a perna.

— Entendido. Obrigado.

Decidi manter essa ideia arquivada por um tempo. Ter uma potencial fonte de
renda guardada nunca faz mal.

De qualquer forma, o fato de esses espíritos serem puramente artificiais era


interessante. Pensei que isso poderia ser relevante para o projeto de Zanoba.
Combinando diferentes disciplinas da magia, talvez pudéssemos nos tornar
robôs capazes de dizer “hawawa” toda vez que ficássemos confusos.

— Ah. A propósito, Nanahoshi… se você pode invocar objetos aleatórios do


nosso velho mundo, não há uma chance de que possamos trazer algumas
coisas realmente úteis?

De primeira, parecia uma ideia decente, mas ela balançou a cabeça.


— Nesse estágio, só sou capaz de invocar objetos simples compostos de uma
única substância consistente. Embora eu suponha que isso nos dê uma gama
bem ampla de possibilidades.

Uma única substância consistente, hein? Isso explicava por que a garrafa de
plástico não tinha tampa ou rótulo. Mas se ela ficasse melhor em estabelecer
as suas condições, talvez pudéssemos invocar objetos complexos, peça por
peça, e depois juntar tudo.

— Além disso, puxar muitas coisas do nosso velho mundo para este não é uma
boa ideia. Acho que já mencionei isso, não?

Ah, ela ainda estava preocupada com aquela coisa de “bagunçar a linha do
tempo”?

— Sinceramente, sinto que você está sendo um pouco paranoica com isso… —
falei.

— Você é bem-vindo para testar essa teoria depois que eu estiver de volta em
casa e em segurança. Prefiro não correr riscos.

Uau. Fria!

Zanoba, enquanto isso, finalmente conseguiu terminar aquela estatueta de


wyrm vermelho. Não parecia exatamente com o que eu tinha visto, com chifres
na testa e tudo mais… mas parecia legal, e isso que era o mais importante.

Julie ficou muito feliz com esse presente tardio. Ela não era o tipo de criança
que sorria muito, mas passou um bom tempo segurando a estatueta, soltando
um e outro ooh e aah enquanto a examinava de diferentes ângulos.

— Muito obrigada, Mestre! Obrigada, Grão-Mestre!

Virando-se para encarar nós dois, ela executou uma reverência meio dura, mas
respeitável.

— De nada — disse Zanoba com um aceno de cabeça senhorial. — Continue


com o trabalho duro.

— Sim senhor! — respondeu ela alegremente.

Julie estava atualmente falando a Língua Humana com muito mais fluência.
Mas isso não foi por causa de nada que eu fiz. Ginger tinha o hábito de corrigi-
la sempre que ela errava, e as pessoas sempre aprendem mais rápido quando
tem alguém para apontar os erros.

— Você não é uma garota de sorte, Julie? Certifique-se de cuidar bem do


presente — disse Ginger.
— Sim! Muito obrigada também, Senhorita Ginger.

Ginger tinha se tornado uma presença constante no quarto de Zanoba. Ela


costumava se manter posicionada junto à parede, saindo para buscar bebidas
para Zanoba ou para cuidar das necessidades dos visitantes. No momento,
estava alugando um apartamento em um prédio próximo à Universidade. Uma
vez perguntei por que ela simplesmente não se mudava para um quarto vazio
designado a guarda-costas ao lado dos aposentos de Zanoba, mas ela disse
que seria “presunção” demais viver ao lado do príncipe.

O arranjo deles parecia mais um casamento estranho do que uma relação


mestre/serva. Ou o vínculo entre líder de culto e sua mais fiel discípula. A
mulher provavelmente cortaria o próprio estômago no momento em que
Zanoba assim ordenasse.

— Você precisa de algo, Rudeus?

— Só estava me perguntando por que você jurou lealdade a Zanoba.

Ginger balançou a cabeça diante da minha pergunta abrupta, parecendo


bastante satisfeita.

— A mãe do príncipe me pediu pessoalmente para cuidar dele. E, naquele


momento, jurei me dedicar ao seu serviço.

— Hmm. Bem, que legal. Prossiga.

— O que você quer dizer? A história é essa.

Espera, como assim? Isso foi o suficiente para você suportar tudo isso?!

Mas, bem, fazer um juramento de fidelidade provavelmente era coisa séria. Se


fosse quebrar essa promessa por causa de maus-tratos, provavelmente não
teria a feito. Certa vez, li em algum mangá que a sociedade feudal era
composta de alguns sádicos de nascença e um enorme número de
masoquistas. Ginger talvez se enquadrasse na segunda categoria.

Quando eu pensava assim, fazia um pouco mais de sentido… embora a


realidade provavelmente não fosse algo tão bruto.

Cliff também estava progredindo em suas pesquisas. Ele recentemente


completou seu primeiro protótipo de ferramenta mágica capaz de suprimir os
sintomas da maldição de Elinalise. Ele, certo dia, me contou isso pessoalmente,
parecendo ainda mais orgulhoso de si mesmo do que de costume.

— Essencialmente, isso força a mana externa a neutralizar o fluxo de mana


interna. Não é o suficiente para eliminar a maldição, mas serve para retardá-la.
Ele começou a explicar os detalhes em uma linguagem técnica complexa. A
maior parte da coisa se tratava de como ele “alinhava” a mana externa com a
“frequência” da mana da maldição de uma forma bem específica. Ele também
passou um bom tempo enfatizando a sua genialidade, então acho que vou
omitir essa parte.

Resumindo, ele encontrou uma forma de tornar a maldição de Elinalise menos


severa.

— Porém, ainda existem dois tipos de problemas — disse ele.

A essa altura da conversa, Cliff finalmente me deixou ver o dispositivo. Era uma
espécie de tanga voluptuosa – o tipo de coisa que seria usada por um lutador
de sumô. Para ser sincero, eu consideraria aquilo como uma fralda de adulto.

— Entendo. Bem, o problema mais óbvio seria que não está exatamente na
moda.

— De fato. Eu não poderia pedir para Lise andar por aí vestindo essa coisa, é
claro.

Os dois na verdade tinham brigado por causa disso – e eles quase nunca
brigavam. Elinalise tinha até mesmo dito que não se importava com a
aparência, mas Cliff teimou e se recusou a ceder. Acho que ele era orgulhoso
demais para suportar a ideia de fazer sua namorada andar por aí parecendo
ridícula.

Eles se reconciliaram durante uma noite de amor, aliás. O amor deles


continuava nauseante como sempre.

— Zanoba e Silente se ofereceram para ajudar e desenvolvemos um plano para


miniaturizar o dispositivo. Eu também gostaria de torná-lo significativamente
mais eficaz. Mas eu sou um gênio, então tenho certeza de que será só questão
de tempo.

Seu objetivo final era fazer um dispositivo que não fosse maior do que uma
calcinha comum. Era difícil dizer se isso era viável, mas se conseguisse, talvez
pudéssemos preparar inclusive um par de luvas para Zanoba. Isso poderia lhe
dar a chance de fazer estatuetas com as próprias mãos.

Então, por fim, tive a sensação de que ele poderia ser naturalmente desajeitado,
mesmo sem a superforça.

— Então, qual é o outro problema que você mencionou?

Cliff franziu a testa.

— Na verdade, é essa a razão pela qual te chamei aqui hoje, Rudeus.


— Oh?

— A questão é… o implemento atualmente consome mana demais para ser


considerado prático.

Pelo que eu me lembrava, os implementos mágicos exigiam que alguém os


enchesse de mana antes que pudessem funcionar. Os menos eficientes não
eram considerados especialmente úteis para aplicação no mundo real.
Idealmente, Cliff queria algo que Elinalise pudesse sempre usar, mesmo
enquanto consumia apenas a quantidade de mana que ela pudesse gastar.
Mas, agora, o dispositivo estava com tanta sede de energia que Cliff não
conseguia mantê-lo em funcionamento por uma hora inteira.

— Vamos tentar continuar aprimorando o modelo, mas eu realmente gostaria


da sua ajuda. Sem você, só seríamos capazes de carregá-lo algumas vezes por
dia.

— Ah, é mesmo. Então tá. Vou ajudar assim que puder.

Cliff se considerava um mago gênio, e sua capacidade de mana com certeza


era das grandes. Mas, mesmo assim, não era o suficiente. Era exatamente
nisso que eu poderia ser útil.

Daquele dia em diante, também comecei a ajudar nos experimentos de Cliff.

Aliás, o dispositivo não fazia nada a respeito da excitação de Elinalise.

Ultimamente, eu sentia que minha vida tinha se acomodado a um ritmo suave e


agradável.

Acordei de manhã, fiz meu treinamento, tomei café da manhã e fui para a
Universidade. Parei para ver Zanoba e depois Cliff, verificando o andamento de
suas pesquisas e, ocasionalmente, oferecendo alguns conselhos. Depois do
almoço, fui ajudar Nanahoshi com seus experimentos de invocação. E, assim
que as aulas terminaram, tirei uma hora para dar aulas particulares para Norn.

No caminho de volta para casa, fui fazer compras com Sylphie e Aisha nos
cumprimentou na porta da frente. Sylphie e eu tomamos banho e nós três
jantamos. Em seguida, praticamos magia na sala de estar e conversamos
sobre como foi o dia.

Depois que Aisha foi para a cama, trabalhei no projeto de fazer bebês com
Sylphie e, logo em seguida, caí em um sono profundo com minha esposa me
servindo como travesseiro de corpo. Todos os dias se pareciam com os
anteriores, mas eu ainda sentia que estava fazendo constante progresso em
direção aos meus objetivos.

Será que isso era o que chamam de felicidade?

Não era algo que provei muito na minha primeira tentativa de viver. E, supondo
que Paul voltasse são e salvo em mais ou menos um ano, as coisas deveriam
melhorar sem parar.
Cap. 07 – O Terceiro Ponto de Virada

A vida às vezes passa rápido.

Eu estava seguindo minha rotina de treinamento habitual em uma agradável


manhã de verão, me sentindo bem em como as coisas estavam no geral. Fazia
meses que não via Badigadi, mas não estava muito preocupado. O homem era
muito impulsivo, para não dizer mais, então não fazia muito sentido se
preocupar com ele.

Ao menos era isso que Elinalise sempre dizia, e isso tinha se provado verdade
até o momento.

Quando terminei e voltei para casa, encontrei Aisha e Sylphie no corredor com
expressões sérias em seus rostos. Elas se viraram para olhar para mim
enquanto eu passava pela porta.

— Ah…

— Rudy…

Havia algo na atmosfera que me deixou nervoso. Tínhamos um problema ou


algo assim?

— Err… — disse Sylphie, coçando a parte de trás da orelha com um sorriso


estranho. — Haha, uau. Isso está me deixando mais nervosa do que eu
esperava…

— Não precisa hesitar, Sylphie! — disse Aisha. — Vá em frente! Seja corajosa!

Minha esposa deu um passo à frente. Após um momento de hesitação, cruzou


as mãos na frente da barriga e disse:

— Bem, Rudy. Na verdade… já fazem dois meses. Desde a minha última, uh,
você sabe…

Sua última…? Ah. Ah, uau.

— E, bem, ultimamente não tenho me sentido bem e comecei a me perguntar…


Não pude evitar de olhar para a barriga de Sylphie. No momento não parecia
diferente. Isso estava mesmo acontecendo?

— Então fui com Aisha até o médico da vizinhança e… ele disse, uh, parabéns.

— Ah… Ahhh…

Minha voz tremia. Assim como minhas mãos. E minhas pernas, por falar nisso.

Parabéns? Ela estava grávida? Iríamos ter uma criança. Isso não era um sonho,
certo?

Dei um beliscão na bochecha só para ter certeza, e isso me fez estremecer.


Uma teoria e tanto.

Engoli em seco.

Certo. Claro. Por que ela não estaria? Eu era um homem que, quando realmente
decidido, podia fazer as coisas acontecerem. Isso sempre fez parte do plano.
Eu só não esperava que acontecesse tão rápido, já que todos diziam que elfas
tinham dificuldades para engravidar.

Fiquei um pouco assustado – isso foi tudo.

— Uhm, Rudy… algo a dizer?

Sylphie estava ansiosamente olhando para mim. Eu não tinha certeza do que
dizer. Foi tudo tão repentino.

— Posso, uh… tocar a sua barriga?

— Hein? Err, claro. Vá em frente.

Abaixei-me e acariciei a barriga de Sylphie. Ainda estava esbelta, sem qualquer


gordura adicional a ser sentida. Sua pele estava quente ao toque e
surpreendentemente macia. Em outras palavras, igual a como sempre era. Mas
quando me concentrei um pouco mais, senti como se pudesse notar
um ligeiro solavanco.

Devia ter sido só a minha imaginação, certo? A criança ainda não estaria tão
grande.

— Certo… Nossa criança está aqui…

Quando falei essas palavras em voz alta, senti uma repentina onda de emoções
surgindo dentro de mim. Que sensação era essa? Tive que reprimir a vontade
de começar a gritar incoerentemente.

Eu tinha uma criança a caminho. Seria pai.


Não parecia algo real. Mas ainda assim me deixou incrivelmente feliz.

Feliz era mesmo o termo certo? A palavra parecia tão inadequada. O que
eu estava sentindo? Poderia ao menos expressar isso em palavras?

— Irmão querido? Não há nada que você gostaria de dizer para sua esposa? —
As palavras de Aisha me trouxeram de volta à realidade.

— Muh?

Algo que eu preciso dizer? Tipo o quê? Parabéns? Não, não deve ser isso.

Talvez devesse agradecer a ela. Sim, parece melhor.

— Obrigado, Sylphie.

— Hein?

Sylphie sorriu, mas parecia um pouco confusa. Pensei errado? Então, qual era a
resposta? Procurei por alguma dica nas memórias. O que Paul disse a Zenith,
quando descobrimos que Norn estava a caminho? Algo como “Muito bem”,
certo? Ou talvez “Bom trabalho!”

Mas eu não gostava muito dessas opções. Ele achava que as mulheres só
engravidam quando tentam muito ou o quê? Talvez. Talvez fosse estúpido
desse tanto.

Grávida, hein…? Sim. Sylphie engravidou. Eu engravidei essa doce e linda garota.
Eu, de todas as pessoas.

Quanto mais pensava nisso, mais minhas emoções ameaçavam me dominar.


Na verdade, estava começando até a chorar.

— Sinto muito… Eu não, uh… acho que não sei o que dizer. Sinto muito, Sylphie…

— Oof! Uhm, Rudy?

Em vez de continuar da mesma forma, joguei meus braços em volta de Sylphie.


Queria erguê-la no ar e girá-la algumas vezes como gesto de felicidade, mas
não era o momento para isso. Ela estava com um bebê na barriga. Eu precisava
ser muito, muito gentil com ela.

— Hehehe. Você queria muito ter uma criança, não é?

Minha esposa também passou os braços ao meu redor e começou a afagar as


minhas costas.
A apertei com suavidade e então finalmente a soltei. Dando um passo para
trás, encarei seu olhar. Pude ver meu rosto refletido em seus olhos, e não era
uma visão bonita. Eu estava com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Sylphie fechou os olhos. A beijei e acariciei seus cabelos, apreciando a


suavidade de seus lábios. Isso era amor, não era?

— Ahem.

Aisha pigarreou, lembrando-me que não estávamos sozinhos na sala. Comecei


a palpitar os seios e a bunda de Sylphie sem nem perceber.

— Irmão querido, precisamos ser gentis com a dama da casa por algum tempo.
Por enquanto, você vai precisar se abster de… relações sexuais.

Ela tem razão. Rudeus mal! Mal!

Não importa o quão adorável fosse a minha esposa, precisava me controlar


desse ponto em diante. Mas, bem… ela estava grávida de menos de dois
meses, certo? E até então tínhamos feito isso a cada três dias. Continuar só
mais um pouco não devia fazer mal…

Não! Não. Fica de boa, cara.

— Sim. Claro.

Aisha sorriu e ergueu um pouco a barra da saia.

— Se você estiver desesperado, estou disponível sempre que precisar.

— Nem ferrando, criança.

Ela fez beicinho depois disso. Se oferecer era legal da parte dela e tal, mas
mesmo colocando todas as partes morais de lado, eu simplesmente não
estava atraído por ela. Isso, de qualquer forma, era o suficiente. A última coisa
que precisava era destruir o meu casamento por mexer com a criada.

— Bem, então, irmão querido, vou informar a Princesa Ariel sobre os


acontecimentos. Afinal, imagino que a Senhorita Sylphie precisará de folga por
algum tempo.

Nem pensei nisso, mas ela estava certa. Ninguém gostaria de uma mulher
grávida trabalhando como guarda-costas. Sylphie precisaria de uma licença.

— Eu vou — falei. — Eu deveria explicar a situação toda pessoalmente.

Aisha suspirou para mim.


— Rudeus, você precisa mesmo ficar com a Sylphie por enquanto. Vocês têm
muito o que conversar, lembra?

Temos? Ah, é mesmo. Acho que temos. Afinal, isso muda tudo.

— Com isso resolvido, estou indo.

— Sim. Certo. Obrigado, Aisha.

Minha irmãzinha saiu de casa animada, deixando Sylphie e eu para trás.

Poucos minutos depois, estávamos sentados um ao lado do outro no sofá.

Cautelosamente estendi a mão para pegar a mão de Sylphie. Ela apertou a


minha e encostou a cabeça no meu ombro. Ninguém disse nada por um tempo.

Sinceramente, eu não tinha certeza de por onde começar.

As únicas palavras que passavam pela minha cabeça eram variações de “Vou
assumir a responsabilidade pelas minhas ações.” Mas já éramos casados,
então isso não fazia muito sentido.

— Uhm, Sylphie…

— Sim, Rudy?

— Sei que isso pode ser difícil, mas… vamos fazer isso juntos.

— Bem, acho que farei a maior parte do trabalho.

Rindo baixinho, Sylphie deitou no sofá e colocou a cabeça no meu colo. Usei
minha mão livre para acariciar sua cabeça e esfregar a parte de trás de suas
orelhas.

— Ei, Rudy.

— Sim?

— Você quer um menino ou uma menina?

A pergunta me pegou de surpresa. Quase esqueci que existem duas variedades


de bebês.

— Digo, mesmo não podendo escolher — adicionou Sylphie, sorrindo


gentilmente.

Hmm. Qual seria melhor?


Um menino não seria bom, produzindo um herdeiro para a família? Mas não era
como se eu fosse o chefe de algum clã feudal ou algo assim. Teríamos a
mesma facilidade para passar tudo para uma garota… não que tivéssemos
alguma fortuna a ser herdada.

Na minha vida anterior, eu provavelmente diria: “Uma menina!” com um sorriso


assustador no rosto. Talvez até sugerisse que tirássemos fotos diárias dela
para registrar o seu crescimento até a idade adulta. Que homem tolo eu
costumava ser.

No momento, porém, não consegui encontrar qualquer razão para preferir um


ou outro. Contanto que fosse uma criança feliz e saudável, eu ficaria satisfeito.

— Sabe, Rudy, estou meio aliviada.

— Por quê?

— Parece que agora sou realmente sua esposa.

—…

Assim como no meu velho mundo, ter filhos era uma das principais razões
pelas quais as pessoas se casavam. Sylphie provavelmente estava um pouco
ansiosa com essa parte das coisas, já que era difícil para o seu povo
engravidar. Não que eu a deixaria por algo assim, é claro.

— De qualquer forma, acho que isso também vai ser meio difícil para você,
hein? — disse ela. — Já que não podemos, uh, fazer por um tempo.

— Ei, eu me viro.

Poderia suportar um período de seca nessas circunstâncias. Ao contrário de


alguns velhos que eu poderia mencionar.

— Sinta-se à vontade para me expulsar de casa para sempre caso eu durma


com outras mulheres, viu? Eu mereceria — falei.

— Ah, não acho que ficaria tão zangada… Talvez um pouco triste, mas
entenderia.

Sério? Pareceu uma reação terrivelmente branda. Mas eu não iria traí-la nem
nada assim. Eu sabia que iria me sentir um completo lixo caso ela saísse me
traindo.

— Para ser sincero, acho que eu ficaria chateado se você mexesse com outro
cara — confessei.

Sylphie só riu baixinho e sorriu. Era uma expressão que ela só mostrava quando
estava comigo. Ninguém mais conseguia ver isso. E isso me fazia muito feliz.
Passamos algum tempo juntos, em silêncio.

À noite, Aisha voltou para nossa casa com Norn a reboque.

— P-Parabéns, Sylphie — disse Norn, curvando-se educadamente.

— Obrigada, Norn — disse Sylphie, sorrindo enquanto afagava a cabeça dela.

Isso fez Norn também sorrir. Ela não parecia se importar com as pessoas
afagando a sua cabeça. Talvez até mesmo gostasse disso, caso fosse feito
pela pessoa certa. Em todo caso, era bom ver as duas se dando tão bem.

— Todo mundo queria passar aqui para dar os parabéns, mas os convenci a
adiar a visita por alguns dias — disse Aisha em um tom de voz calmo. Ela
aparentemente assumiu que eu gostaria de manter esta ocasião familiar mais
íntima.

Eu não lembrava de ter sugerido nada do tipo, mas isso parecia bem razoável.
Sylphie provavelmente ficaria um pouco envergonhada ou oprimida ao ter um
monte de gente a parabenizando de uma só vez. Seria melhor esperar alguns
dias.

— A Princesa Ariel decidiu que a Senhorita Sylphie deverá tirar uma folga de
seus deveres por pelo menos dois anos. Ela também disse que conseguirá uma
licença da escola. A Tia-Avó Elinalise se ofereceu para assumir as funções de
guarda-costas de Sylphie nesse tempo.

— A Vovó vai ficar bem? Digo, ela tem aquela maldição e tudo mais…

— Ela me garantiu que conseguiria, Madame. Eu não me preocuparia com ela.

Elinalise sabia como cuidar de si mesma, e agora também tinha aquele


implemento mágico. Além disso, ela sempre poderia levar Cliff para uma sala
de aula vazia ou depósito, caso precisasse se ocupar durante o horário escolar.

— O Príncipe Zanoba disse que nos fará uma visita em cinco dias, ao anoitecer.
Ele deseja jantar conosco, então irei cuidar de tudo. A Princesa Ariel passará
por aqui em dez dias, também à noite, mas indicou que não jantará conosco.
Cliff e a Tia-Avó Elinalise virão juntos. A Senhorita Linia e a Senhorita Pursena
indicaram que passarão por aqui em algum momento, mas não tenho detalhes
de quando isso acontecerá. Senhorita Nanahoshi ofereceu uma breve
mensagem de parabéns a vocês dois. Não consegui encontrar Lorde Badigadi,
mas deixei uma mensagem para ele.

Aisha recitou toda a nossa lista de amigos com rapidez e eficiência, sempre em
um tom de voz firme. Era como se tivéssemos uma secretária pessoal ou algo
assim. A garota definitivamente era boa no seu trabalho.
— Entendido. Obrigado por avisar a todos, Aisha.

— Claro, irmão querido.

Aisha olhou para Norn com um sorriso orgulhoso no rosto. Norn manteve o
olhar com uma carranca.

Aisha ainda parecia sentir um certo grau de alegria maliciosa ao se mostrar


diante da irmã. Havia algum conflito persistente entre elas, um que envolvia
suas posições na família. Eu sempre dizia a Aisha que ela também era da
família e que não importava que sua mãe fosse diferente… mas as duas
continuavam brigando sem parar, até pelas coisas mais bobas.

Dizem que brigar com alguém pode ser um sinal de proximidade.


Provavelmente não havia problema em deixar as coisas como estavam,
contanto que isso não se transformasse em uma guerra fria. Ao menos nunca
disseram algo realmente cruel uma para a outra enquanto brigavam.

— Mas tenho que dizer — murmurei —, Papai provavelmente vai ficar chocado
quando aparecer e descobrir que tenho uma criança chegando.

— Ah, sim! — disse Norn, seu rosto iluminando-se com a menção a Paul. Ela
realmente amava o seu pai. Eu poderia vê-la colocando “casar com o papai” em
sua lista de sonhos para o futuro. — Mal posso esperar para ver a cara dele!

— Ele é do tipo que estraga os netos, então aposto que vai ficar muito feliz —
falei. — Ele também ficou um doce quando vocês duas nasceram.

Aisha e Norn pareceram um pouco perplexas por um momento. Nenhuma


delas tinha qualquer memória daquela época, é claro.

— Bem, enfim! Estou realmente ansiosa por isso, Rudeus! — anunciou Norn.
Essas palavras excepcionalmente alegres colocaram um sorriso no rosto de
todos.

Sylphie e eu estávamos casados e felizes. Paul, Zenith e Lilia em breve


estariam conosco. E minhas irmãzinhas também estavam presentes. Essa era
a vida com a qual sonhei nos tempos de Buena Village, e isso estava ficando
mais perto.

A má notícia chegou dois meses depois.

Recebi uma carta datada de seis meses antes. Foi enviada pelo correio
expresso. O nome do remetente era Geese, e o conteúdo, assim como em
qualquer outra carta expressa, era muito breve.

“Problemas no resgate de Zenith. Solicitando ajuda.”


No instante em que vi essas palavras, o mundo ficou branco diante dos meus
olhos.

Quando acordei, me vi em um espaço todo branco. Eu tinha voltado a ser


aquela pessoa suja que costumava ser, e senti uma onda de raiva e
ressentimento tomando conta de mim.

Fiquei carrancudo enquanto encarava a figura diante de mim. Era o sorridente


Deus-Homem, cujo rosto não passava de um borrão.

— E aí.

O que diabos está acontecendo?

— Do que você está falando?

Essa carta. Do Geese. Ele disse que o resgate não está indo bem. Que negócio é
esse?

— Bem, imagino que significa que o resgate não está indo bem. O que você
quer de mim?

Mas não foi isso que você me disse! Você disse que eu me arrependeria se fosse
para o Continente Begaritt! Então o que foi aquilo? Você mentiu para mim?!

— Não, claro que não. Você se arrependerá se for ao Continente Begaritt. Era
verdade naquela época e ainda é verdade agora.

Ah, agora entendo. Saquei. Vou me arrepender se for para o Continente Begaritt,
mas também vou me arrepender se não for. É isso que você quis dizer o tempo
todo?

— Ah, não sei sobre isso. Ontem você não estava nada infeliz com a sua vida,
estava? Você fez muitos amigos aqui. Conheceu muitas pessoas interessantes
e cresceu muito. Sua condição foi curada, você fez amizade com suas
irmãzinhas, até mesmo se casou! E agora tem uma criança a caminho.

Sim, minha vida atual não está ruim… Mas essa não é a questão! Você me disse
para não ir para Begaritt! Você me enganou!

— Mas eu realmente não queria. Deixe-me dizer mais uma vez: se você for para
o Continente Begaritt, com certeza se arrependerá.
O quê? Mas minha família está com problemas! Diga-me ao menos o porquê!

— Infelizmente não posso fazer isso.

Droga! Eu devia saber. Você é sempre assim!

— Hoje você está sendo terrivelmente teimoso. Meus conselhos sempre se


provaram úteis, não é?

Talvez, mas isso não muda o fato de que desta vez você me enganou. Olha, pode
ao menos me dar alguns detalhes? Do que vou acabar me arrependendo? Não
posso tomar essa decisão a menos que conheça os riscos e as recompensas!

— A maioria das pessoas precisa tomar as decisões às cegas, sabe. Você é


terrivelmente exigente.

Não me importa se estou sendo irracional. Não quero me arrepender das minhas
escolhas.

— Bom, se você realmente pensar bem, algumas das consequências devem ser
óbvias. Você passou o último ano e meio estudando, certo? E suas irmãzinhas
passaram um ano viajando até onde você está. Se, em vez disso, você tivesse
ido para Begaritt, vocês teriam se desencontrado.

O quê? Mas Paul enviou minhas irmãs por ter recebido a minha carta. Se eu não
tivesse escrito para ele, elas teriam ficado em Millis ou esperado em Porto Leste.

— Não necessariamente. Mesmo se não tivesse recebido a sua carta, Paul teria
enviado suas filhas para o Reino Asura. A família de Lilia está lá, lembra?

Certo, tá… Acho que você tem razão.

— Sério, as coisas agora não estão tão diferentes. Digamos que amanhã você
parta em viagem. O que acontecerá com Sylphie e a sua criança? Está
planejando deixá-la, sozinha, enquanto caminha para o outro lado do mundo?

Então, basicamente, terei alguns arrependimentos, não importa o que eu faça.

— Naturalmente. Por mais infeliz que isso seja, é impossível evitar todos os
arrependimentos. Se você for para Begaritt, poderá inclusive perder uma
oportunidade de ouro. Ao meu ver, é melhor ficar onde está.

Tch.

Bem… se você tem certeza disso, acho que provavelmente vou acabar me
arrependendo. Certo…

— Sim. Bem, então, quer ouvir meu conselho?


Sim, claro. Acho que não vai machucar.

— Ahem. Rudeus, fique em Ranoa até a próxima temporada de acasalamento.


Linia e Pursena irão persegui-lo agressivamente. Escolha uma delas e comece
um relacionamento. No final, isso lhe trará ainda mais felicidade.

Mas o que diabos?! Agora você está me dizendo para trair a minha esposa?!
Estou feliz com a Sylphie! E aquelas duas são apenas boas amigas, que saco!

Suas últimas palavras ecoaram dramaticamente ao ar enquanto o Deus-


Homem desaparecia. Voltei a ficar inconsciente.

Acordei e me encontrei na cama. Sylphie estava olhando para mim com o rosto
preocupado.

— Ah, Rudy! Você está bem? Você estava gemendo enquanto dormia.

— Sim, estou bem…

O que aconteceu depois que recebi aquela carta? Eu não conseguia lembrar
muito bem dos detalhes. Lembrava de olhar para a folha, estupefato, mas nada
além disso, exceto pelo meu sonho.

As coisas, ultimamente, estavam correndo muito bem. Acho que o choque foi
forte demais para mim.

A carta de Geese foi alarmante. Claro, aconteceu algo de errado. Ainda assim,
eu tinha que levar as palavras do Deus-Homem em consideração. Se eu já
partisse, haveria uma chance de que minha família e eu nos cruzássemos na
estrada e eu desperdiçasse alguns anos da minha vida.

Isso se eu fosse muito otimista, mas… havia a chance de Geese ter enviado
aquela carta em um momento de pânico. Digo, não foi Paul quem escreveu
para mim. Foi Geese. Meu companheiro de cela com cara de macaco.

Por que ele me escreveria uma carta assim? Ele também estava tentando
resgatar Zenith? Mas a última carta de Paul não o mencionou. Parecia que
Geese havia encontrado Zenith sozinho.

A carta foi escrita há seis meses. Era possível que ele estivesse sozinho e se
sentindo desamparado naquele momento, mas desde então podia ter se
encontrado com Paul e os outros. Talvez tivesse até enviado uma carta
semelhante para Paul. Podiam ter juntado forças e resgatado minha mãe
algumas semanas depois.

Mas essas eram apenas possibilidades, é claro. Eu não tinha absolutamente


nenhuma maneira de saber qual era a situação real. Não desta grande
distância.

Também precisava pensar na criança de Sylphie. Não importa o quão rápido


viajasse, seria uma jornada de no mínimo um ano para chegar ao Continente
Begaritt. Eu conhecia a estrada para Porto Leste desde a minha última grande
jornada, então era possível que pudesse reduzir significativamente o tempo de
viagem. Mas, mesmo se eu conseguisse chegar lá em seis meses, não voltaria
para casa por pelo menos um ano.

Isso não funcionaria, certo? Eu não poderia simplesmente deixar minha esposa
grávida sozinha e sair em uma aventura.

— É sobre aquela carta, não é?

—…

Não consegui responder. Prometi a Sylphie que não iria mais desaparecer. Dei
a minha palavra a ela.

Mas, se explicasse tudo de antemão, não estaria tecnicamente


“desaparecendo”. Mas isso era apenas semântica. Mesmo que
conversássemos sobre isso com antecedência – ou se eu deixasse uma carta
bem explicada – ela ainda ficaria angustiada por ser deixada para trás.

— Uhm, Rudy… não precisa se preocupar muito comigo, tá? A Aisha está aqui
para cuidar de mim.

Havia apenas uma sombra de angústia no rosto de Sylphie. Ela estava ansiosa,
é claro. Era a primeira gravidez dela. Sua barriga já estava começando a
crescer. Mais cedo ou mais tarde, teria dificuldades até para subir e descer as
escadas. E havia uma chance de eu morrer durante a jornada. Poderia nunca
mais voltar para ela.

Ela lutou contra o medo de dizer essas palavras.

— Não vou a lugar nenhum… Vou ficar com você, Sylphie — falei.

Quando eu disse isso, ela sorriu, embora ainda parecesse um pouco em


conflito.

As palavras do Deus-Homem continuaram flutuando em minha mente. Não


importa a escolha que eu tomasse, ele insistiu, eu acabaria me arrependendo.

Os próximos três dias foram longos e difíceis.


Cada vez que as via, Sylphie, Aisha e Norn estavam com olhares ansiosos em
seus rostos. Eu já havia dito que não iria para o Continente Begaritt, mas
quanto mais pensava nisso, mais inseguro me sentia. Estava dividido entre
minhas opções, e não havia muita gente a quem poderia pedir conselhos.

A primeira, Elinalise, balançou a cabeça quando contei as minhas intenções.

— Acho isso sábio, Rudeus. Neste caso é melhor você ficar para trás.

A maneira como ela disse isso me surpreendeu. Isso sugeria que ela tinha
outros planos.

— Você vai, Elinalise?

— Sylphie é minha neta, Rudeus. É justo que eu aceite o trabalho, tanto pelo
bem dela quanto pelo seu.

Ela, pelo visto, recebeu uma carta idêntica. E, ao contrário de mim, estava
pronta e disposta a ir, mesmo que isso significasse deixar sua vida atual para
trás.

— Mas você não deveria ficar protegendo a Princesa Ariel?

— Há muito pouco perigo de verdade para a vida dela enquanto estiver


matriculada nesta escola. Para ser sincera, eu não estive fazendo muita coisa.

Isso provavelmente era verdade na maioria dos casos, mas nunca se sabe
quando as coisas poderiam tomar um rumo perigoso. Era por isso que as
pessoas tinham guarda-costas. Mas, é claro, essa era uma decisão de Ariel, e
Elinalise se ofereceu basicamente como um gesto de boa vontade. Eu duvidava
que a princesa fosse contra ela recuar.

— E o Cliff?

— Terei que deixá-lo. Ele pode me odiar para sempre, mas não tenho muitas
escolhas.

— Por que não tenta pelo menos explicar a situação? Tenho certeza de que ele
entenderia.

Elinalise balançou a cabeça com um sorriso melancólico. Não era muito


parecido com o de sempre.

— Cliff é um jovem de coração puro. Ele tem talento, energia e visão. Eu não
ficaria surpresa se ele algum dia se tornasse papa. É melhor que se lembre de
mim como nada além de um romance da juventude.

Bem, isso só serviu para eu me sentir péssimo pelo cara.


Esperava-se que os membros da igreja Millis permanecessem fiéis a uma única
pessoa. Se Elinalise simplesmente desaparecesse, isso poderia abalar os
alicerces da fé dele. Ele era uma pessoa obstinada, mas era difícil saber o que
poderia acontecer no caso de perder a sua religião.

— E, também…, da última vez, fui eu quem te disse para ficar aqui. Isso torna a
limpeza dessa bagunça em minha responsabilidade, não acha?

As palavras de Elinalise foram tão firmes e claras que fiquei sem palavras.

Aparentemente tomando isso como um acordo, ela assentiu.

— Deixe isso comigo e espere aqui, querido. Quero ver um bisneto feliz
esperando pelo meu retorno.

Estava claro que nada do que eu pudesse dizer faria com que ela mudasse de
ideia.

Depois, busquei o conselho de Zanoba. Sua expressão sequer mudou enquanto


eu contava a história.

— Entendo — disse ele calmamente. — Bem, tenho certeza de que você lidará
com este assunto com bastante facilidade e estará de volta em breve. Ficarei
aqui e continuarei a minha pesquisa, mas espero que você volte o quanto
antes.

— Meio que pensei que você pediria para eu não ir, Zanoba. Ou que exigiria que
eu o levasse junto.

Quando nos separamos lá no Reino Shirone, ele chorou e ficou se agarrando a


mim. Uma parte de mim esperava por algo semelhante. Mas, desta vez, sua
atitude foi bem diferente.

— Se você desejar que eu o acompanhe, eu relutaria em recusar. Mas não estou


acostumado a viagens longas e temo que possa ser um fardo. E, é claro… — Ele
lançou um olhar para Julie. — Não poderia levar a garota para uma viagem
dessas.

Julie ainda era uma criança. Deixá-la aos cuidados de Ginger era uma opção,
mas isso seria o mesmo que colocar seus estudos e pesquisas em espera. E se
ela fosse junto, existia o risco de ficar exausta por usar toda a sua mana.

— Você acha que eu devo ir, Zanoba?

— Essa é uma decisão sua, Mestre.

Ele agora parecia quase indiferente. Eu estava esperando algum conselho real…

— Entretanto, posso fazer uma observação? — disse ele.


— Hmm?

— O nascimento de uma criança não requer a presença do pai. Se está


preocupado com os seus pais, por que não vai ajudá-los? Vou garantir a
segurança de sua esposa e irmãs durante sua ausência.

Havia convicção real nas palavras de Zanoba. No entanto, fazia sentido que a
realeza tivesse uma perspectiva diferente sobre esse tipo de coisa. A maioria
dos reis provavelmente não ficava ansioso para assistir o parto de suas
concubinas.

— Eu, claro, preferiria ter você sempre ao meu lado — disse ele —, mas a
escolha é sua.

— Você apontou alguns pontos decentes, Zanoba. Obrigado pelo conselho.

Sylphie não estaria sozinha. Ela tinha Aisha, Zanoba e a comitiva da Princesa
Ariel.

Ela não estava sozinha. Nós não estávamos sozinhos.

Afinal de contas, o que eu deveria fazer? Ficar ou ir?

Elinalise queria que eu ficasse enquanto ela fosse sozinha para Begaritt.
Zanoba queria que eu fosse, deixando as coisas sob sua responsabilidade.
Qual caminho fazia mais sentido? Onde eu era mais necessário?

A lógica de Zanoba parecia correta. Enquanto Sylphie continuasse saudável,


ficaria tudo bem. Minha presença não faria diferença. Ainda assim, essa atitude
não me caía muito bem. Eu não era um rei, tampouco queria agir como um.
Obviamente, era melhor para Sylphie se eu continuasse por perto, fornecendo
suporte emocional.

Ela me encorajou a ir, me disse para não me preocupar… mas esta era a sua
primeira gravidez. No fundo, eu sabia que devia estar apavorada. Ela
provavelmente estava lutando contra o desejo de desabar e implorar para eu
não partir.

Fui eu quem disse a ela, várias vezes, como queria ter crianças. Na época podia
até não estar levando o assunto a sério, mas ela obviamente levou a sério. E
agora que estava grávida, eu estava pensando em deixá-la para trás enquanto
viajava por meio mundo. Isso parecia uma traição escancarada.

Por outro lado… eu precisava admitir que há muito tempo estava adiando a
minha responsabilidade de ajudar Paul. Coloquei minha felicidade em primeiro
lugar por anos. Caramba, priorizei meus problemas de “desempenho” acima de
procurar por minha mãe.
Isso talvez fosse um chamado para acordar. Talvez fosse hora de pagar pelas
consequências.

Eu não conseguia me decidir… Ambas as opções me custariam muito.

Já era o quarto dia desde a chegada da carta. Passei a maior parte do tempo
pensando no meu dilema. Não estava dormindo bem e não conseguia me
motivar a me importar com minha rotina de treinamento matinal de sempre. Eu
estava sentado no primeiro andar, com os olhos turvos, sem fazer nada em
particular.

As manhãs locais eram frias, mesmo no verão, e eu estava sentindo uma


preguiça imensa. Por um tempo, fiquei simplesmente observando o nascer do
sol.

— Ah…!

Depois de algum tempo, ouvi um gritinho de surpresa atrás de mim. Virando-


me, percebi que nossa porta da frente estava aberta e que Norn estava parada
na frente dela. Ela estava com uma enorme bolsa nas costas – a mesma que
eu usava em meus dias de aventureiro. Estava tão cheia que poderia estourar.

Ela com certeza estava se preparando para uma longa viagem. Mas como tinha
apenas dez anos, parecia mais que estava indo para um piquenique ou algo
assim.

Por um bom tempo, fiquei apenas olhando para ela em silêncio. Norn evitou o
meu olhar. Parecia uma criança que foi pega no flagra enquanto queria pregar
uma peça em alguém.

— Aonde você vai?

—…

Norn não respondeu, então voltei a falar:

— Aonde você está indo, Norn?

Mordendo o lábio, ela finalmente me olhou nos olhos.

— B-Bem… se você não vai ajudar, Rudeus, acho que eu é quem vou ter que ir.

Estudei o rosto dela por um momento. Para onde? Ela não poderia estar se
referindo ao Continente Begaritt, certo?

Norn ainda era tão pequena. Estávamos falando de uma criança de dez anos de
idade.

—…
De forma alguma que aquela bolsa teria as coisas das quais precisaria para
esta viagem. Ela provavelmente tinha algum dinheiro, mas sabia como gastá-lo
com sabedoria? Ao menos sabia qual rotina adotaria? Como pretendia lidar
com os perigos que encontraria pelo caminho? Ela poderia ser sequestrada por
traficantes de escravos assim que colocasse os pés para fora da cidade.

— Norn, não posso deixar você fazer isso — falei.

— Mas eu… Eu… Rudeus, por favor! Mamãe e Papai estão com problemas! — Ela
tinha começado a chorar, mas manteve os olhos fixos nos meus. — Por que…
por que você não vai ajudá-los?

Por quê? Bem, porque eu logo teria uma criança. Precisava pensar na minha
esposa.

— Você é muito mais forte do que eu, Rudeus! Você sabe como viajar! Por que
você não vai?!

Ela não estava errada. Eu não era tão experiente quanto Elinalise, mas passei
cinco anos me aventurando por aí. Eu tinha ao menos conhecimento. E, embora
houvesse muita gente mais poderosa do que eu por aí, eu poderia me virar em
uma luta.

Do jeito que eu estava, provavelmente poderia viajar pelo Continente Demônio,


mesmo sem a ajuda de Ruijerd.

—…

Isso era tudo verdade. Se quisesse, eu poderia fazer isso.

Já fazia dias que eu estava pesando os prós e contras, mas isso era porque
eu podia escolher. Norn não tinha essa escolha. Ela queria ir ajudar, mas não
conseguia. Eu, por outro lado, tinha capacidade de chegar ao Continente
Begaritt, ajudar nossos pais e voltar em segurança.

Era por esse motivo que Gesse me enviou aquela carta, e não a outra pessoa.

— Certo, Norn. Você está certa.

— R-Rudeus?

Havia mais gente além de mim que poderia cuidar de Sylphie. Mas eu era o
único que poderia salvar os meus pais.

Só podia ser eu. Eu poderia atravessar o Continente Begaritt até chegar à


cidade de Rapan. Poderia resolver os problemas que Paul e os outros estavam
enfrentando. Não havia mais ninguém a quem eu poderia confiar esse trabalho.

— Eu vou. Pode cuidar da casa para mim?


O rosto de Norn se iluminou. Mas, um instante depois, ela apertou os lábios
com força e balançou a cabeça com a expressão mais séria que conseguiu
fazer.

— Com certeza!

— Não brigue com a Aisha. E ajude Sylphie sempre que puder, certo?

— É claro!

— Muito bem. Boa garota.

Me senti péssimo por fazer isso com Sylphie e nosso bebê. Se ela me largasse
por causa disso, eu não a culparia. Mas não era assim que eu deveria pensar a
respeito do assunto. Precisava confiar em minha esposa.

— Então irei para o Continente Begaritt.

Eu tinha me decidido. Salvaria os meus pais.

Cap. 08 – Despedidas

O Continente Begaritt era uma enorme ilha, então, para chegar lá, seria
necessário cruzar o mar. E meu destino específico, a Cidade Labirinto de
Rapan, ficava perto da costa leste.

Havia duas rotas que eu poderia seguir. A primeira envolvia viajar para Porto
Leste, a principal cidade portuária do Reino Rei Dragão, e pegar um barco por
lá. Não seria a rota mais rápida, mas me permitiria chegar em Begaritt pelo
leste, reduzindo a quantidade de viagens que teria que fazer naquele
continente. Essa era a opção mais segura.
A outra possibilidade era pegar um barco no Reino Asura, o que me levaria para
a costa norte do continente. Isso envolveria viajar mais pelo território de
Begaritt, um caminho mais perigoso, sim, mas também me pouparia um bom
tempo.

Meu melhor palpite era de que a primeira rota exigiria dezoito meses, enquanto
a segunda apenas doze. Mesmo o plano mais eficiente de todos não me faria
chegar lá em menos de sete meses. Acabaria perdendo o nascimento da minha
criança, não importa o que fizesse.

Mas isso estava longe de ser a minha única preocupação, é claro.

Iria, pela primeira vez, desconsiderar o conselho do Deus-Homem. Conhecendo-


o, ele poderia estar totalmente ciente de que eu não faria o que aconselhou,
mas eu nunca tinha feito o exato oposto da sua recomendação. Isso era
comparável a… se eu não tivesse ido ao Reino Shirone enquanto traçava meu
caminho através do Continente Central. Lilia e Aisha ainda estariam presas lá, e
eu nunca teria encontrado minha irmãzinha. Porém, acredito que isso evitaria
meu encontro com Orsted.

Onde eu estaria neste momento, caso as coisas tivessem acontecido dessa


maneira? Provavelmente teríamos chegado ao campo de refugiados sem
grandes problemas. Mas, claro, as coisas com Eris ainda poderiam ter acabado
igualmente mal. E, dez anos depois, poderia descobrir onde Lilia e Aisha
estavam, tudo para o meu pesar.

Sim. Ele também disse que eu me arrependeria. Repetiu isso nas duas vezes
em que falamos sobre isso.

Com base nisso, os motivos provavelmente não tinham nada a ver com a
minha presença. Não importava quando eu fosse para Begaritt, acabaria me
deparando com alguns novos arrependimentos. Mas não tinha como dizer
quais seriam. Eu poderia imaginar todos os tipos de possibilidades. Poderia
acabar perdendo algo. Como, quem sabe, uma das minhas mãos… ou um dos
meus pais.

Não adiantava gastar todo o tempo pensando nisso. Se eu não fosse, ficaria
esperando ansiosamente por pelo menos mais alguns anos. No final, poderia
descobrir que alguém de quem gosto morreu. Paul ou Geese podiam aparecer,
machucados e inválidos, e me culpando por abandoná-los.

Poderia acontecer qualquer coisa, mas eu tinha que ir. Mesmo se soubesse do
que me arrependeria.

Antes de mais nada, porém, decidi conversar com Elinalise a respeito da minha
decisão. Se eu começasse conversando com Sylphie e ela desabasse em
lágrimas, eu poderia vacilar em minha decisão. Eu queria me fortalecer,
primeiro dando a notícia aos meus amigos.
Pedi a Elinalise que me encontrasse em uma sala de aula vazia do campus.

Quando contei o que eu estava planejando, ela fez uma cara infeliz.

— Olha, Rudeus. Eu não te disse para ficar aqui?

— Sim, disse. Mas eu…

— Sabe, existe a possibilidade de Geese ter tirado conclusões precipitadas.

— Como assim?

— Você conhece aquele cara, Rudeus. Ele raramente pensa antes de agir. Só
segue o palpite ou a intuição.

Bem, ela não estava errada a respeito disso. Geese também gostava de
esconder os fatos para si mesmo, e não se importava em manipular os outros.

— A carta pode ser um desses casos — continuou Elinalise. — Pelo que


podemos deduzir, já deve existir outra carta a nosso caminho, dizendo:
“Desconsidere a última mensagem, Zenith está em segurança”, ou coisa do
tipo.

— Sim. Cheguei a pensar nisso.

Havia uma chance de irmos até lá e descobrirmos que Paul já tinha resgatado a
minha mãe. Poderíamos nos desencontrar no meio do caminho. Isso
era possível, mas…

— Pense um pouco nisso — falei. — Não é estranho que o Geese soubesse onde
me encontrar?

— O quê…?

— Mandei uma carta para Paul há um ano e meio, e nela contei onde estava
morando. Geese está no Continente Begaritt há pelo menos seis meses. Como
foi que ele descobriu em qual cidade estamos? Como foi que nos enviou essas
cartas?

Chegar a Begaritt exigiria cerca de um ano de qualquer viajante, e mesmo as


cartas não chegavam aos destinos tão rápido. Não era igual a enviar
mensagens de texto pelo celular. Era bom colocar um prazo de no mínimo seis
meses, mesmo para os serviços de entrega expressa. As datas não batiam.

— A única forma de Geese saber a minha localização é se tiver encontrado com


meu pai e os outros. Devem ter contado para ele onde estávamos.

— Então, por que foi Geese quem escreveu, e não Paul?


— Ou Geese decidiu enviar a carta por si mesmo ou o orgulho idiota do meu pai
o impediu.

— Ah. Entendo… — Elinalise levou a mão ao queixo, considerando o caso.

Na última carta de Paul, ele me garantiu que poderia cuidar do resgate de


Zenith sozinho. Isso tornaria o ato de pedir a minha ajuda ainda mais difícil,
mesmo em caso de necessidade.

Elinalise me estudou por algum tempo e soltou um “Hmm” pensativo. Ela,


eventualmente, balançou a cabeça.

— Então tá bom. Suponho que iremos juntos.

Eu não tinha certeza exatamente do que ela estava pensando, mas seu sorriso
parecia um pouco triste. Tive a sensação de que ela meio que já esperava que
as coisas fossem terminar assim.

Viajaríamos para o Continente de Begaritt juntos, um grupo de dois.

Uma hora depois, voltamos a nos encontrar.

— Certo. Vamos começar decidindo a nossa rota, não é?

Elinalise havia retornado ao seu quarto por um momento para pegar um


enorme mapa do mundo. Provavelmente o comprou alguns dias antes, durante
a preparação para a sua viagem. Nós dois o abrimos sobre uma mesa, então
nos inclinamos sobre ele para levar nossas opções em consideração.

O mapa era bastante rústico. Não tinha nomes de estradas específicas ou a


localização de muitas cidades. Apenas dava a forma dos continentes, as
principais cadeias de montanhas e algumas outras características geográficas
básicas.

Elinalise, evidentemente, passou algum tempo estudando as possíveis rotas.


Havia pequenas marcas indicando a localização aproximada de Rapan e locais
importantes pelos quais passaríamos ao longo do caminho até lá. Como eu
previa, existiam duas abordagens possíveis.

— Para começar, acho que pretendemos chegar a Rapan o mais rápido


possível. — Ela estava apontando para a rota mais curta, que nos levaria de
Asura à costa norte do continente.

— Mas a rota do norte é mais perigosa, certo? — perguntei.

Essa abordagem envolvia todos os tipos de riscos possíveis. Não conhecíamos


as estradas de Begaritt e teríamos que viajar quase toda a extensão de um
continente perigoso. Eu estava confiante na minha habilidade de matar
monstros, mas uma terra desconhecida ainda poderia abrigar muitos perigos.
— Lembro que você aprendeu a falar a Língua do Deus Lutador, Rudeus. Estou
certa?

— Huh? Bem, sim. Mas não sou exatamente fluente.

— Nesse caso, podemos simplesmente contratar um guia e guarda-costas


assim que chegarmos.

— Ah, entendo…

Graças aos muitos anos de experiência de Elinalise na estrada, rapidamente


concordamos a respeito da nossa rota básica. Feito isso, passamos a planejar
os detalhes da nossa jornada.

Primeiro, compraríamos cavalos em Ranoa e os carregaríamos com provisões


suficientes para nos levar até o Reino Asura. Não queríamos levar muitas
coisas, já que isso nos atrasaria. Substituiríamos nossos cavalos quando
necessário e os conduziríamos o mais rápido possível para chegar ao porto de
Asura.

Uma vez lá, compraríamos equipamentos e provisões. Seria difícil encontrar


comida em Begaritt, mesmo tendo dinheiro de sobra. Os preços em Asura
podiam ser mais altos, mas era melhor estocar enquanto tivéssemos a chance.

Assim que conseguíssemos tudo de que precisaríamos, pegaríamos o primeiro


barco para Begaritt. Lá, contrataríamos um guia que possivelmente também
serviria de guarda-costas, caso isso parecesse adequado. Elinalise cuidaria das
negociações enquanto eu atuaria como intérprete. Depois disso, deixaríamos
nosso guia nos levar até a cidade de Rapan. Uma vez lá, encontraríamos Paul e
os outros, resgataríamos Zenith e tomaríamos o mesmo caminho em retorno
para casa.

— Já viajei para Asura mais de uma vez, então não será difícil — disse Elinalise,
pensativa. — A parte mais complicada é escolher o que levaremos conosco
para Begaritt…

Não poderíamos carregar tudo o que quiséssemos. Uma carruagem poderia


resolver o problema, mas Begaritt parecia ser um lugar desértico, e as rodas
não funcionariam muito bem na areia. Provavelmente teríamos que comprar
um corcel parecido com o lagarto que usei no Continente Demônio. Talvez
tivessem camelos ou coisa do tipo.

— Acho que você pode deixar esses detalhes comigo. Tenho mais experiência
nesta área — falei.

— Os velhos tempos têm seus benefícios, hein?

— Não me provoque, por favor.


Passei cinco anos trabalhando como aventureiro, mas comparado a uma
veterana como ela, continuava sendo apenas um novato. Acabei deixando a
maioria das decisões difíceis por sua conta.

— Felizmente, estamos ambos em boa forma — disse Elinalise. — Devemos ser


capazes de nos virar sempre que necessário.

— Aham, imagino que sim… — Eu tinha certeza de que ela poderia passar o dia
todo marchando pelo deserto, mas não tinha tanta certeza de que seria capaz
de acompanhá-la. Continuei com o meu treinamento, mas existia a chance de
acabar atrasando-a um pouco.

Mas isso não me parecia um grande problema.

— Em qualquer caso, é conveniente que criem cavalos para viagens de longa


distância nesta região. Devemos ser capazes de encontrar algumas opções
adequadas.

Nossa meta inicial era chegar ao porto de Asura dentro de dois meses. Era
difícil dizer quanto tempo levaria a travessia até Begaritt, mas estimamos que
seria cerca de um mês. Nenhum de nós tinha visitado o continente em si, mas
parecia ser um trajeto bem complicado, então marcamos mais seis meses para
chegar ao nosso destino final.

Ao todo, levaríamos no mínimo oito meses nisso.

Isso seria mais rápido do que a minha estimativa. Senti que poderiam existir
formas de reduzir ainda mais esse tempo, usando minha magia com
criatividade, mas não queria correr riscos de nos atrasar com experimentos
amadores. O mais importante seria chegar inteiro ao destino.

Passamos algum tempo discutindo outros detalhes dos quais precisaríamos


estar cientes em nossa jornada. Elinalise esclareceu algumas coisas que eu
não entendia, sempre com notável precisão, e nos fez tomar algumas decisões
com antecedência, buscando evitar quaisquer desentendimentos na estrada.
Era bom saber que, assim que começássemos, não perderíamos tempo
discutindo o que fazer a seguir.

— O maior problema…

Depois de um tempo, porém, ela levou a mão ao queixo e fez uma careta. Senti
como se tivéssemos discutido a maioria dos tópicos de importância, mas,
evidentemente, acabei me esquecendo de algo.

— Vai ser a minha maldição…

— Ah. Certo.
A menos que ela regularmente se deitasse com homens, poderia literalmente
morrer. Em uma viagem casual, isso não representava qualquer problema –
poderia satisfazer as suas necessidades em qualquer cidade que visitasse. Em
viagens mais longas, frequentemente se juntava a um grupo e encontrava um
parceiro que poderia usar. Mas em uma expedição de ritmo acelerado como
essa, existiriam momentos em que nenhum desses métodos funcionaria.

Nós dois ficamos em silêncio por um momento.

A resposta era simples, é claro. Se necessário, eu poderia dormir com ela.


Meus problemas de desempenho já eram coisa do passado. Se uma mulher
qualquer se aproximasse de mim e me pedisse para fazer sexo com ela,
eu provavelmente ficaria de pé.

Mas eu não queria trair Sylphie.

— Não vou dormir com você durante a jornada — falei.

— Sim, não seria uma boa ideia.

— Acho que teremos que parar em alguns bordéis ao longo do caminho.

Nós dois manteríamos as coisas estritamente platônicas. Eu queria deixar isso


claro desde o início. Caso contrário, provavelmente acabaria fazendo isso por
puro prazer.

— E quanto àquele implemento mágico? — perguntei. — Ele enfraquece a


potência da maldição, não?

— Bem, se eu tentasse pegá-lo, Cliff perguntaria o motivo…

— Você realmente não vai contar nada para ele?

Elinalise, por algum motivo, parecia determinada a desaparecer sem falar nada
para Cliff. Isso me parecia desnecessariamente cruel.

— Olha, acho que você devia falar com ele — falei.

— Mas eu…

— Deixe-me te ajudar, posso? Vai ficar tudo bem.

Nós dois acabamos decidindo ver Cliff naquela mesma noite.

Quando chegamos ao laboratório, ele apareceu trotando para nos mostrar a


fralda mágica em questão com um enorme sorriso no rosto.

— Olhem só, vocês dois! Já diminuí o tamanho! E não está mais tão pesado.
Você deve ser capaz de usar isso por algum tempo sem…
— Cliff. Você ama a Elinalise?

Interrompendo-o no meio da frase, apresentei a questão da forma mais direta


possível. Ele olhou para mim com uma expressão confusa no rosto.

— O quê? Claro que sim. — Seu tom sugeria que eu tinha feito a pergunta mais
óbvia do mundo. Até aí, tudo bem.

— Você vai continuar a amando, não importa o quê?

— Naturalmente. Amo a Lise do fundo do meu coração. Você está ciente disso,
tenho certeza.

— Bem, que bom. É isso que eu queria ouvir.

Expliquei a situação para Cliff.

Expliquei que a minha família corria sério perigo. Expliquei que Elinalise era
uma velha camarada de meu pai e sentia que tinha a obrigação de ajudar. E
também expliquei que seria uma longa jornada, na qual ela provavelmente teria
que se deitar com outros homens. Fui até o final, cobrindo todos os detalhes
relevantes.

Ele ouviu em silêncio e não me interrompeu em momento algum. Quando


terminei, Cliff ficou quieto por um momento e murmurou:

— Suponho que eu seria um fardo se fosse junto.

Francamente, era verdade. Mas seria difícil dizer isso.

Como acabei hesitando, Elinalise interveio para responder.

— Sim, receio que sim. Você não seria capaz de suportar uma jornada como
esta, Cliff.

Se as circunstâncias fossem diferentes, ela poderia ter sido mais gentil. Mas,
desta vez, foi direto ao ponto.

— Entendo…

Franzindo a testa, triste, Cliff olhou para o chão. Senti uma dolorosa pontada de
simpatia no peito.

Ele estava se sentindo machucado? Elinalise não teria outra escolha a não ser
dormir com outros homens durante a jornada. Ele entendia a situação e sabia
que ela o amava… mas ainda devia ser algo doloroso.
— Sabe, Elinalise, será que não podemos levá-lo junto? — falei. — Ele pode usar
magia de Barreira e feitiços Divinos de nível Avançado. Mesmo que não tenha
muita resistência, pode acabar sendo útil…

— Tudo bem, Rudeus. Não fui útil da última vez que acompanhei a aventura de
outra pessoa. Desta vez não seria diferente.

Enquanto falava isso, Cliff se adiantou e me entregou a fralda mágica.

— Rudeus…

— Sim?

— Cuide da Lise por mim.

Para ser sincero, eu esperava mais gemidos e ranger de dentes. Mas parecia
que ele entendia seus próprios pontos fortes e fracos de forma bem clara.

— Lise…

Desta vez, ele se virou para Elinalise. Ficando nas pontas dos pés, passou os
braços ao redor dela.

— Cliff… — Ela o abraçou de volta.

— Quando você voltar para casa, vamos nos casar — disse Cliff. — Sei que
ainda não curei a sua maldição, mas quero comprar uma casa e começar a
morar com você. Te deixei ansiosa por esperar tanto tempo para dizer isso, não
é? Você não ficou com medo de que fosse tudo apenas conversa fiada?

— Ah, Cliff… mas eu sou uma pessoa horrível. Estava planejando partir sem
nem mesmo te contar…

— Eu gostaria de ter uma cerimônia ao estilo de Millis, se você não se importar.


Sei que você não é uma fiel, mas…

Cliff estava deliberadamente ignorando o que ela disse? Talvez fosse melhor
assim. Elinalise parecia muito feliz.

— Cliff, meu querido! Eu te amo tanto! Mais do que qualquer pessoa no mundo!

E, assim, ela o empurrou para o chão. Assim que via a camisa de Cliff sair
voando, me virei e corri para fora da sala. Parecia que eles precisariam de
algum tempo a sós.

Não fiquei tão surpreso com a forma como ela aceitou o pedido de casamento
após “um último serviço”, talvez por estar familiarizado com os clichês dos
filmes.
Passei o resto do dia contando a situação para todos que eu conhecia.

Iria ficar longe por no mínimo um ano e meio. Se realmente existissem


problemas em Rapan, poderia acabar levando mais de dois anos. Era tempo
suficiente para que todos se dispersassem. Ao menos precisava dar meu
adeus.

Meu primeiro destino foi o escritório do vice-diretor. Devia ser melhor cuidar
das formalidades o quanto antes. Encontrei Jenius atrás de sua mesa, como
sempre, enfrentando uma considerável pilha de documentos.

— Olá, Vice-Diretor Jenius.

— Ah, se não é o Sr. Greyrat. Que bom te ver. Ouvi dizer que você ajudou a
Senhorita Setestrelas a concluir um experimento bastante ambicioso, não?

— É, verdade. Mas foi tudo graças à ajuda de Zanoba e Cliff.

— Ah, entendo.

Eu não fazia ideia de como a notícia sobre o experimento de invocação se


espalhou. Jenius talvez fosse mais bem informado do que eu imaginava.

— De qualquer forma, o que posso fazer por você? — perguntou ele.

— Bem, preciso tirar uma licença de aproximadamente dois anos — falei. —


Gostaria de cuidar dos detalhes agora mesmo.

— Dois anos? É um longo período de tempo.

— Sim. Receio que terei de cuidar de uma situação bastante complexa.

— É mesmo? Hmm. — Não havia motivo para eu não explicar os detalhes, mas
Jenius não perguntou nada. — Pois bem. Por enquanto irei trancar a sua
matrícula. Quando retornar, por favor, venha me ver.

— Um afastamento de dois anos não vai me causar problemas?

— Não permitiríamos isso a um aluno comum, mas alunos especiais como


você têm um pouco mais de flexibilidade nessas questões.

Bem, que bom que eu era um aluno especial.

— Muito obrigado.

— Está tudo bem. Afinal, o sistema de alunos especiais é projetado para ser o
mais flexível possível.
— Nesse caso, também poderia trancar a matrícula de Elinalise Dragonroad…
como um favor para mim? Ela não é uma aluna especial, mas vai me
acompanhar como guarda-costas.

— Ah, entendo. Tudo bem, vou dar um jeito.

Certo, isso foi fácil. É sempre bom ter um amigo burocrata.

Mais uma vez agradecendo a Jenius, deixei o prédio da faculdade para trás.

Poucos minutos depois, avistei Linia e Pursena lá do lado de fora. As duas


acenaram para mim enquanto eu estava do outro lado do pátio e trotaram em
minha direção. Aproveitei e também expliquei a situação a elas.

— Sério mesmo? Cara, isso aqui vai ser um saco enquanto você estiver longe,
Chefe.

— Já vamos ter nos formado quando você voltar, então acho que isso pode ser
um adeus.

Eu ainda não tinha pensado nisso, mas era verdade. Elas eram alunas do sexto
ano. Dentro de dois anos, provavelmente estariam de volta à Grande Floresta.

Fiquei um pouco triste por não ser capaz de vê-las partir.

— Acho que é isso mesmo. Que pena…

Pensando bem, o Deus-Homem me encorajou a “começar um relacionamento”


com uma dessas duas. Se eu escolhesse ficar até a temporada de
acasalamento, que começaria em dois meses, as coisas poderiam seguir nessa
direção.

— O que foi, Chefe? Tem alguma coisa no meu rosto?

Linia era uma garota atraente. Aquelas orelhas de gato agitadas, cauda
balançando e coxas saudáveis eram suas características mais distintas, mas
seus seios também eram fartos. Qual era o tamanho dela, G? Todas as garotas
do povo-fera pareciam ser bem-dotadas, então isso devia ser normal. Aquela
atitude arrogante provavelmente também a tornaria interessante na cama.

— Sniff, sniff… whoa! Pensando em se divertir com a gente antes de ir embora,


Chefe?

Pursena também tinha seus encantos. Aquelas orelhas de cachorro macias e


moles, além de seu corpo sensual, eram seus trunfos mais notáveis. As garotas
do povo-fera do tipo cão pareciam ter seios particularmente grandes; ela devia
ser tamanho GG. Tateei aquelas coisas algumas vezes, então sabia como eram
macias. Quão bom seria enterrar o rosto neles? Hmm…
— Uh, foi mal — falei. — Alguém recentemente me aconselhou a dar em cima de
vocês duas assim que a temporada de acasalamento chegasse. Só estava
pensando nisso.

— Uau, sério? Não sabia que você estava interessado!

— Você nunca respondeu ao flertes, então pensamos que não éramos do seu
tipo.

As duas pareceram surpresas, mas também um tanto entretidas.

Claro, dormir com elas ocasionaria uma traição à minha esposa. Mas pelo que
o Deus-Homem disse, parecia que Sylphie não me daria um pé na bunda só por
causa disso. Ela realmente me perdoaria por me divertir com alguém durante a
sua gravidez? Será que aconteceria alguma briga feia antes de as coisas se
acalmarem? Difícil de dizer. De qualquer forma, isso supostamente levaria ao
final de “grande felicidade”.

Eu amava a minha esposa, mas continuava sendo homem. A ideia de ter um


harém possuía certo apelo. Me peguei imaginando um grupal com Linia,
Pursena e Sylphie. Será que, em alguma realidade alternativa, poderia ser esse
o meu futuro?

Nah, provavelmente não… Nunca foi uma possibilidade real.

— Linia, Pursena…

— Sim?

— O que foi, Chefe?

As duas me olharam com nervosismo. Acho que falei em um tom de voz


ligeiramente severo.

— Vamos continuar sendo amigos — falei.

As duas relaxaram na mesma hora e encolheram os ombros.

— Bem, se você insiste — disse Linia, dando uma cotovelada nas minhas
costelas. — Um cara igual você precisa de alguns.

— Então amigos — disse Pursena, me dando uma cotovelada do outro lado. —


Certifiquem-se de manter o contato.

Acabamos trocando apertos de mão antes de nos separarmos – foi, na


verdade, provavelmente a primeira vez que fizemos isso. Algumas pessoas
gostam de dizer que a amizade entre homens e mulheres é impossível, mas
isso não é verdade. Uma pessoa pode ser amiga de outra por quem se sente
atraída; é tudo questão de definir os limites.
— Vamos nos encontrar de novo algum dia, certo? — falei. — Mesmo que seja
daqui a dez ou vinte anos.

— Parece bom, Chefe. Daqui a dez anos nós duas seremos importantes, então
você poderá se curvar diante de nós e beijar os nossos pés!

— Nós vamos conquistar a Grande Floresta, cara.

Fui obrigado a sorrir. Era bom saber que elas tinham ambições.

— Bem, espero que não se vinguem de mim ou algo assim.

E, assim, seguimos nossos próprios caminhos. Se tivéssemos sorte, talvez


voltaríamos a nos ver em algum momento.

Um pouco depois, cheguei em frente ao laboratório de Nanahoshi.

Eu não tinha certeza de como dar a notícia a ela. Nanahoshi era uma garota de
coração solitário. Apesar de toda a hostilidade que demonstrava, tive a
sensação de que ela estava desesperada por companhia. E, mais importante
ainda, minha ausência iria atrapalhar a sua pesquisa. Seu plano de voltar para
casa sofreria um considerável atraso.

Eu estava propenso a acreditar que ela tentaria me convencer a não ir. Ela
poderia até mesmo tentar me chantagear. O que eu deveria fazer se ela
ameaçasse matar Sylphie no caso de eu partir? Não que eu esperasse que ela
fizesse isso…

Soltando um breve suspiro, bati na porta da frente e esperei. O “entre” soou um


momento depois.

Nanahoshi ergueu os olhos de sua mesa assim que entrei na sala.

— O que foi? Este não é o horário de sempre…

— Na verdade, receio ter más notícias.

— Más notícias?

A expressão de Nanahoshi apresentou suspeitas. Passei algum tempo


pensando em como começar, até que decidi que isso não importava. Seria
melhor ir direto ao ponto.

— Estou partindo em uma longa jornada. Meus pais estão em perigo e preciso
ajudá-los. Estão na Cidade Labirinto de Rapan, no Continente Begaritt. Levarei
cerca de dois anos para retornar.

— O quê…?
Após um momento de silêncio, Nanahoshi se levantou com um salto, jogando a
cadeira para trás e fazendo barulho. Ela pressionou as mãos sobre a mesa e
olhou para mim, parecendo, acima de tudo, atordoada.

— Rapan? Begaritt? Você disse… dois anos?

Ela lentamente repetiu as palavras, como se tentando compreendê-las.

— Sei que prometi te ajudar com os seus experimentos, e me sinto péssimo por
estar partindo. Mas realmente preciso ir.

Nanahoshi arregalou os olhos e respirou fundo… mas, em vez de gritar, ela se


recostou na cadeira e olhou para o teto.

— Dois anos… — repetiu a garota.

— Assim que eu voltar, prometo te ajudar, tanto quanto eu puder.

— Dois anos…

Nanahoshi cruzou os braços e murmurou as palavras para si mesma mais


algumas vezes.

Ela não tentou me impedir ou gritou de desespero. Só olhou para o teto,


aparentemente perdida em pensamentos. Passamos cinco minutos de
tremenda estranheza nesse clima.

— Bem… então acho que estou indo — falei.

Não havia muito mais que eu poderia dizer. Nanahoshi sabia que eu estava a
ajudando com toda a bondade do meu coração. Provavelmente queria mudar a
minha opinião quanto a fazer isso, mas preferiu morder a língua.

Me virei para sair…

— Espere um minuto — disse ela.

E então parei no meio do caminho.

Para ser sincero, eu não queria continuar esta conversa. Sabia que ela só
tentaria me impedir. Mas parecia que eu devia uma explicação completa, então
me virei de novo.

Nanahoshi estava por algum motivo remexendo na última gaveta da sua


escrivaninha. Depois de um tempo, ela pegou algo parecido com um livro ou
diário. Folheou até uma página específica, depois virou e me mostrou.

— Olha isso aqui.


Me inclinei para frente, curioso. Alguém colou uma seção de um mapa na
página. O mapa parecia bem familiar; retratava a área ao redor desta cidade,
embora fosse em uma escala meio grande.

Perto do topo do mapa, alguém rabiscou os caracteres N1. Na floresta do


sudoeste havia um X vermelho com os caracteres B3 acima deles.

— O que é isso, Nanahoshi?

—…

Ela estava obviamente hesitante em explicar. Mas, passados alguns


momentos, falou.

— É um mapa de ruínas antigas que contém círculos de teletransporte. Eles


podem ser encontrados por todo o mundo.

Círculos de teletransporte?

— Hein?

Mais uma vez, olhei para o mapa. Especificamente na marcação B3. Será que
isso significa…

— Aquele ali é um que te levará para o Continente Begaritt.

— Mas o qu…

Parando para pensar nisso… Nanahoshi uma vez mencionou algo do tipo,
quando estava me contando sobre as suas viagens com Orsted. Algo sobre
como ele usava círculos de teletransportes para viajar pelo mundo…
— Mas você disse… que não lembrava onde eles ficavam!

Eu lembrava claramente dessa parte. Ela me disse que não fazia ideia de onde
encontrá-los.

— Orsted me fez jurar que manteria isso em segredo. Afinal, é magia proibida.
Concordei na mesma hora, já que achei que não conseguiria me lembrar deles.

Depois de um tempo, porém, ela começou a fazer algumas anotações a


respeito da localização dos círculos, apenas para o caso de eu precisar usá-los.
Depois, começou a comprar mapas em segredo ou a esboçar os seus próprios.
Às vezes, casualmente perguntava a Orsted onde eles estavam ou anotava os
nomes das cidades próximas… e então registrava tudo, em vez de tentar
memorizar.

Atordoado, folheei o diário.

Era um registro tosco e incompleto. Em algumas ocasiões ela não conseguiu


encontrar um mapa ou não tinham visitado uma cidade, então acabou
anotando coisas como “Montanhas à esquerda. Aproximadamente três dias de
viagem para o leste até chegar ao rio, depois mais dois dias para chegar lá.”

A parte da letra de suas anotações indicava o continente, e o número parecia


ser a ordem em que foram acessados. N era a região nortenha do Continente
Central. S era a região sul, e O o oeste. CD era o Continente Demônio. M era o
Continente Millis. Pareciam não ter visitado o Continente Divino… mas havia um
e outro B para Begaritt.

Quando ela não sabia nem em qual continente estavam, usava letras como X
ou Y. Ficou óbvio que ela pensou muito nisso.

— Já ouvi falar desse lugar que você mencionou, Rapan — disse ela. — Lembro
onde fica. Há um lugar chamado Bazaar perto deste círculo, e Rapan fica a
cerca de um mês de viagem de lá, seguindo para o norte. Tenho certeza.

— Tão perto assim?

Voltei para a primeira página que Nanahoshi me mostrou. Isso cobria a área da
cidade de Sharia até a floresta do sudoeste. A escala não estava muito clara,
mas parecia ser uma jornada de uns dez dias. Talvez até menos. E aquele
círculo de teletransporte nos levaria ao ponto marcado como B3.

Voltei para a outra página. Do ponto B3, parecia ser uma jornada de uma
semana até a cidade mais próxima. Então, se Rapan ficava a apenas um mês
de distância…

Estávamos falando de cerca de quarenta e sete dias, e uma viagem de ida e


volta de noventa e quatro dias. Poderíamos ir e voltar em apenas três meses.
Mesmo que levássemos um mês para resgatar Zenith, estaríamos de volta em
casa dentro de quatro meses.

Eu poderia voltar a tempo. Poderia estar presente durante o nascimento do


meu filho.

Eu ainda perderia a temporada de acasalamento, mas isso realmente não


importava.

— Tem certeza disso? — perguntei. — Orsted não te disse para manter isso em
segredo?

— Não vou negar que tenho minhas dúvidas, mas te devo muito pela última vez.
Só não compartilhe essa informação com ninguém, certo? Magia de
teletransporte é uma arte proibida. Se a notícia se espalhar, as ruínas serão
destruídas pelos governos locais.

E isso tornaria a vida de Orsted menos conveniente. Ele provavelmente ficaria


bravo com nós dois. Só de pensar naquele cara eu tremia um pouco. Eu ficaria
de bico fechado, isso era certeza.

— Obrigado, Nanahoshi. Isso será de grande ajuda.

— Só quero que você volte o mais rápido possível, isso é tudo — disse ela
soltando um bufo de desdém. Essa garota realmente era uma completa
tsundere.

Fechando o diário com cuidado, abaixei a minha cabeça em sinal de gratidão e


me virei para sair.

— Ah, quase esqueci — disse ela. — Na primeira página, esbocei os sinais que
usaram para marcar as ruínas e descrevi como você dissipa a magia de
ocultação que as protege. Certifique-se de ler isso com atenção.

— Entendido. Te devo uma, Nanahoshi!

— Não, não deve. Só estou pagando as minhas dívidas.

Sorrindo diante do mau humor dela, apesar de tudo, deixei o laboratório para
trás.

Na mesma hora voltei até Elinalise.

Poderíamos fazer essa viagem muito mais rápido do que o esperado. Esta era
uma notícia fantástica. Ela ficaria muito feliz, é claro. Mas também
precisávamos alterar todos os nossos planos. Afinal, a viagem duraria apenas
um mês e meio. Poderíamos até mesmo levar Cliff conosco!
Batendo em minhas bochechas na tentativa de me impedir de sorrir feito um
idiota, abri a porta do laboratório de Cliff… e fui saudado pelo que parecia uma
pintura renascentista de Vênus.

— Sinto muito, Rudeus! Acho que não posso ir!

Elinalise estava toda relaxada, usando nada além de um cobertor. E tinha


aparentemente perdido toda a coragem.

Seus membros finos e elegantes, além de seios esculpidos com bom gosto,
definitivamente tinham um certo apelo clássico, mas não senti vontade de vê-
los em exibição em um museu. Nunca fui um grande apreciador de arte. Mas
pensei que ela renderia uma estatueta muito sensual.

Cliff estava jogado em um canto do cômodo, parecendo uma múmia egípcia.


Havia um enorme sorriso no rosto dele, mas com certeza estava desmaiado.
Ele parecia mais com uma obra-prima do que a sua namorada. Como seria
chamada uma estátua como esta? Morte Feliz?

— Não suporto ficar longe do Cliff por dois anos inteiros! — gritou Elinalise. —
Sei que isso é horrível da minha parte, mas simplesmente não vou fazer isso!

Hmm. Bem. As pessoas dizem que as mulheres são guiadas pelas emoções,
não?

— Digo, se você está indo, então não precisa que eu também vá — balbuciou a
mulher. — Seu pai e eu não nos damos bem mesmo. Ele provavelmente não
gostaria de ver a minha cara! De qualquer forma, eu não deveria ficar aqui e
proteger a minha neta gestante?

—…

Era difícil pensar que essa era a mesma mulher que ralhou comigo por eu ter
que esperar enquanto ela cuidava de tudo. Tentei o meu melhor para não julgá-
la muito. Ela só estava de volta à realidade depois de um passeio pelo paraíso,
isso era tudo.

— Bem, tá bom, Elinalise. Só acontece que acabei de encontrar uma forma que
poderia nos levar e trazer em uns três meses, mas…

— Hein?!

Elinalise congelou por um momento, olhando para mim com descrença.

— Do que você está falando, Rudeus?

Olhei para Cliff duas vezes, confirmando se ele ainda estava desacordado, para
sussurrar ao ouvido de Elinalise.
— Então, na verdade, Nanahoshi…

— Ah! Não, minhas orelhas não! Elas são sensíveis…

— Pode prestar atenção por um minuto, por favor?

— E-Eu só estava brincando, querido.

Mostrei o diário para Elinalise e ofereci uma explicação superficial, certificando-


me de enfatizar que jurei segredo a Nanahoshi. Ela folheou tudo algumas
vezes, incapaz de esconder sua descrença.

— Podemos mesmo chegar lá tão rápido…?

— Isso mesmo. Se fizermos isso, posso inclusive voltar a tempo para ver o
nascimento da minha criança.

— Isso pode dar certo…

Uma viagem de seis semanas não era algo tão grande. A julgar pela seriedade
com a qual examinava o diário, Elinalise parecia ter voltado ao modo de
planejamento.

— Ah, então tudo bem — disse ela depois de algum tempo. — Acho que então
eu vou.

Outra repentina mudança de opinião, hein?

Mas eu entendia os seus motivos. Dois anos era tempo demais.

— Considerando o quão rápida será a viagem, podemos até mesmo levar Cliff
junto — falei.

— Não, vamos deixá-lo para trás…

— Tem certeza?

— Duvido que ele conseguiria manter segredo no caso de descobrir sobre esses
círculos de teletransporte.

Sério? Cliff era um cara razoavelmente confiável, não era? Mas, bem… ele
provavelmente era o tipo de gente que deixava segredos vazarem, mesmo sem
querer. Sim, provavelmente seria melhor manter o mínimo de pessoas
informadas. Quanto mais gente levássemos junto, mais provável era que a
informação vazaria.

Além disso, teríamos problemas nos esperando em Rapan. Queríamos


aparecer com um pequeno grupo de elite de pessoas experientes.
Se eu fosse levar alguém junto, preferiria alguém como Ruijerd. Ele era um
lutador poderoso e o mais quieto possível. Badigadi também passou pela
minha cabeça. Ele estava vivo há milhares de anos, então era bem possível que
já soubesse sobre os círculos de teletransporte. E ele parecia estar
familiarizado com Orsted, então seria fácil explicar a situação.

Infelizmente, não tinha visto nenhum dos dois há algum tempo. Nenhum outro
possível candidato passou pela minha mente. Zanoba podia ser bom de briga,
mas definitivamente não era um viajante experiente.

Pensando bem, se tivéssemos problemas por lá, poderíamos voltar para buscar
mais ajuda… Seria melhor seguir com a opção mais segura, já que não
sabíamos nossa rota. Mas, depois de fazer a viagem, não seria difícil voltar e
buscar mais alguns aliados. Teríamos que contar sobre os círculos a todos,
mas isso era melhor do que ficar aquém do nosso objetivo.

A viagem não seria breve, é claro. Porém, mesmo que tivéssemos que esperar
por reforços durante três meses, continuava sendo uma opção viável.

— Muito bem. Então só nós dois.

— Certo. Vamos acabar com isso e voltar para casa o mais rápido possível.

Elinalise ao menos parecia ter voltado para o barco. Por enquanto.

Por fim, fui para casa para contar a Sylphie.

Depois de reunir ela, Aisha e Norn na sala de estar, dei a notícia bombástica.

— Acho que vou ajudar os meus pais.

Sylphie deixou um sonzinho de surpresa escapar, e uma expressão de


ansiedade transpareceu em seu rosto. Eu aparentemente a peguei
desprevenida.

Entretanto, passado um momento, ela balançou a cabeça como se quisesse


clarear os pensamentos e, depois, balançou a cabeça, séria. “Certo, entendi.
Vou cuidar das coisas por aqui.”

— Lamento desaparecer assim, de repente, mesmo tendo prometido que não


faria isso — falei.

— Você não está quebrando a sua promessa, Rudy. Isso não é repentino, e você
não está desaparecendo. — Sylphie sorriu para mim, mas parecia ser forçado.
Não importava o que ela dissesse, estava obviamente sofrendo com isso. Meu
coração doeu só de olhar para ela. — Uhm, quanto tempo você acha que vai
ficar fora? Cerca de dois anos, certo?
— Não. Nanahoshi me mostrou uma forma de chegar lá usando um círculo de
teletransporte. Acho que devo voltar antes do nascimento do bebê.

Eu já tinha decidido contar sobre o teletransporte para ela. Se eu não pudesse


confiar em Sylphie para guardar um segredo, então não poderia confiar em
ninguém.

— Hein?! Você vai se teletransportar para lá? Isso é seguro?

Ela estava obviamente assustada. A ansiedade estava mais uma vez visível em
seu rosto.

Sua preocupação fazia sentido, é claro. Nós dois perdemos muito com o
Incidente de Deslocamento.

— Ainda não posso afirmar — falei. — Mas Nanahoshi parece já ter usado esses
círculos no passado, então acho que vai dar tudo certo.

— T-Tá…

Sylphie ainda parecia preocupada, então a puxei para perto de mim e sussurrei
a próxima parte ao seu ouvido.

— Não se preocupe. Eu voltarei, não importa o que aconteça.

— Certo.

— Sinto muito por isso.

— Tudo bem…

Virando a minha cabeça, falei com uma das minhas irmãs, que estava por
perto.

— Aisha.

— Uh, sim…?

A expressão dela estava ainda mais incerta que a de Sylphie.

— Posso deixar as coisas aqui com você?

— Acho… que sim. Mamãe me ensinou tudo sobre como cuidar de mulheres
gestantes.

— Se for demais para você, peça ajuda a alguém. Não seja tímida e não tente
fazer tudo sozinha. Você é uma criança talentosa, mas ainda é inexperiente.
Recorra aos adultos sempre que precisar de conselhos.
— C-Certo.

Aisha balançou a cabeça, sua expressão séria. Fiquei um pouco nervoso com
isso, mas provavelmente não surgiriam problemas. Não havia uma solução
perfeita.

— Norn.

— Sim, Rudeus?

— Se Sylphie e Aisha ficarem sobrecarregadas, tente ajudá-las, por favor. Ao


menos converse com elas quando estiverem se sentindo estressadas. Você
sabe como enfrentar tudo sozinha pode ser difícil, certo?

— É claro!

— E tente também levar os estudos a sério enquanto eu estiver fora.

— Vou dar o meu melhor!

Norn parecia muito determinada a desempenhar seu papel corretamente.


Esperançosamente, isso não faria com que ela batesse de frente com Aisha ou
algo assim.

Bem, então tá. O que sobrou? Havia mais alguma coisa que eu precisava dizer
a elas?

— Ah, é mesmo… Talvez devêssemos decidir o nome da criança antes da minha


partida.

Eu planejava voltar a tempo, mas nunca se sabe o que poderia acontecer.


Resolver isso de antemão não machucaria.

Que tipo de nome seria o melhor? As pessoas costumavam gostar de nomes


“legais” e desconcertantes neste mundo, então… hmm. Se fosse uma garota,
talvez Ciel ou Sion… Se fosse um garoto, talvez Nero ou Wallachia…

Nah, isso não era um jogo.

Nossos nomes eram Rudeus e Sylphie, então podíamos meio que combinar
partes deles. Quem sabe Sirius, se fosse garoto, ou Lucie, se fosse garota. Mas
isso era meio clichê… Talvez devesse pedir um conselho a Paul.

Depois de pensar nisso por alguns segundos, finalmente percebi que estavam
todas olhando para mim com expressões estranhas nos rostos.

— R-Rudy… você quer dar um nome ao bebê?

— Por que você faria algo assim?


— Rudeus…

Elas pareciam genuinamente chocadas. Aisha estava até mesmo com lágrimas
brotando nos olhos. A ideia era tão estranha? Eu não lembrava de nenhuma
regra sobre não nomear as crianças antes do nascimento.

— Se você nomear a criança antes de partir em uma jornada, nunca mais


voltará para casa… — Sylphie parecia mais ansiosa do que nunca.
Aparentemente, tropecei em uma “bandeira da morte” única deste mundo. Uma
da qual eu não me lembrava.

Não, espera. Agora me lembrava. Era sobre aquela história de Perugius?

Um dos companheiros dele era um mago de Fogo de nível Imperador, chamado


Estrela Feroze, conhecido como o “Homem Afortunado”. Feroze decidiu
nomear seu filho ainda não nascido antes de partir para a linha de frente, para o
caso de não voltar em segurança, optando por passar ao garoto o seu próprio
nome. Na batalha que se seguiu, entretanto, ele foi derrotado pelo Rei Demônio
Ryner Kaizel, e morreu pensando na criança que nunca chegou a conhecer. Seu
filho, herdando o legado de seu famoso pai, tornou-se um mago magnífico.

Ao menos era isso que a história dizia. Também ouvi uma versão em que o
garoto acabou se revelando um zé-ninguém imprestável. De qualquer forma, a
história era tão conhecida que ninguém pensava em nomear uma criança não
nascida antes de partir em uma jornada, já que isso atrairia um terrível
desastre. Não era como se essa decisão realmente tivesse causado a morte de
Feroze, é claro, mas as pessoas eram supersticiosas a respeito dessas coisas.

— Uh, então tá bom. Acham que devemos esperar até eu voltar?

— E-Eu não sei… Talvez…

— Mas eu meio que quero opinar nisso, sabe? E no pior dos casos…

— Nem fale sobre isso, Rudy.

— Certo. Foi mal.

Ainda assim, estávamos falando da minha criança primogênita. Isso ainda não
parecia completamente real, mas eu queria participar pelo menos da escolha
do nome.

— Ahem.

Aisha pigarreou significativamente. Ela claramente tinha algum tipo de


proposta.

— Que tal isso, irmão querido? Se a criança nascer antes de você voltar, vamos
chamá-la temporariamente de Rudeus Júnior. Ao voltar para casa, você
escolherá um nome adequado. Podemos transformar o Rudeus em um nome
do meio, igual ao famoso Deus do Norte Kalman.

Rudeus Júnior, hein? Bem, não era muito incomum que uma criança deste
mundo herdasse o nome dos pais. E se acabássemos escolhendo Lucie, isso
se transformaria em algo como Lucie Rudeus Greyrat…

Isso não soava tão mal. Parecia meio embaraçoso, já que eu ainda associava
nomes assim com aristocratas ricaços, mas isso parecia ser comum neste
mundo.

Hm? Mas espera aí.

E se fosse uma garota e eu nunca mais voltasse? Ela seria obrigada a se


chamar Rudeus Júnior para sempre? E se acabasse sendo perseguida? E se
acabasse se transformando em um monstro furioso que tinha que bater em
todos até perderem os sentidos, tudo para defender esse nome idiota?!

Tentei me convencer de que isso era improvável. O mundo não precisava de


outro “Cão Louco”.

Bem, tanto faz… É só mais um motivo para voltar para casa em segurança.

— Acho que é uma boa ideia. Sylphie…?

— Sim?

— Uhm…

Senti que tinha mais a dizer para ela, mas não conseguia encontrar as palavras
certas. Tive a sensação de que qualquer coisa que dissesse poderia soar
estranhamente ameaçadora.

— Venha aqui.

Então, em vez disso, apenas caminhei até ela e coloquei minhas mãos em seus
ombros.

— Huh? Ah…

Depois de um momento de confusão, ela fechou os olhos, ergueu o queixo e


cruzou as mãos na frente do peito. Ela estava tremendo um pouco. Essa não
era exatamente a nossa primeira vez fazendo isso, mas eu não tinha certeza se
já tínhamos feito isso com tanta cerimônia.

Olhei para as minhas irmãs. Aisha estava ansiosamente inclinada para frente.
Norn cobriu o rosto com as mãos, mas ainda assim estava espiando pelas
frestas entre os dedos.
Dei uma piscadela para as duas. Norn tampou os olhos com as mãos na
mesma hora, enquanto Aisha deu uma piscadela em retorno. Que malandrinha.
Ela realmente queria ver uma cena de beijo?

Bem, ceder a ela apenas desta vez não faria mal. Era uma ocasião especial.

Dei um beijo em Sylphie – e ouvi minha irmãzinha guinchando de prazer.

Cap. 09 – Para Begaritt

Elinalise e eu revisamos nossos planos de viagem às pressas.

Primeiro de tudo, compraríamos um cavalo e cavalgaríamos juntos até a


floresta onde o teletransportador estava escondido. Então nos
transportaríamos para o Continente Begaritt.

Se a memória de Nanahoshi estivesse correta, isso nos levaria a uma jornada


de uma semana ao sul de uma cidade oásis chamada Bazaar. Infelizmente,
estaríamos viajando por um deserto quase estéril. Nanahoshi ficou tão exausta
que Orsted acabou precisando carregá-la nas costas. Teríamos que estar bem
preparados.

Eu tinha a minha magia, então não nos faltaria água fria. Só isso já tornaria as
coisas significativamente mais simples. Não tínhamos um mapa para a cidade
de Bazaar, mas Elinalise confiava em sua habilidade de viajar por territórios
desconhecidos. Ela alegava que elfos podiam viajar até mesmo pelas florestas
mais densas sem nunca ficarem perdidos.

Senti a necessidade de mencionar que um deserto não era nada parecido com
uma floresta, mas isso só me rendeu um sermão irado sobre seus muitos anos
de experiência como aventureira. Dado o quão confiante ela estava, tive de
presumir que ficaríamos bem.

Assim que chegássemos em Bazaar, poderíamos contratar um guia para o


nosso destino final. Rapan ficava a cerca de um mês ao norte, e essa seria uma
longa jornada. Elinalise poderia nos manter na direção correta, mas seria muito
mais fácil encontrar algum habitante local que conhecesse um caminho mais
prático.
Depois de chegar a Rapan, resgataríamos minha mãe o mais rápido possível e
voltaríamos para casa pelo mesmo caminho que usamos. Ou seja, precisaria
contar sobre os círculos de teletransporte a mais gente, mas não tínhamos
muitas escolhas. Eu não poderia dizer aos meus pais para pegarem o caminho
mais longo na volta.

Pelo que sabíamos, Paul estava viajando em um grupo de seis pessoas.


Provavelmente sete, presumindo que Geese se juntou a ele. Só teríamos que
fazer todos jurarem segredo.

A propósito, fiz questão de avisar Sylphie e minhas irmãs a não contar sobre os
teletransportadores a ninguém. Só para deixar claro, mencionei que um cara
muito assustador, um que poderia derrotar Ruijerd em um instante, poderia
ficar muito bravo se dessem com a língua nos dentes.

Com nosso plano básico definido, Elinalise e eu começamos a trabalhar nos


detalhes.

Eu já tinha organizado o meu equipamento. Levaria meu cajado de confiança,


Aqua Heartia, e um robe que Sylphie escolheu para mim. A única outra coisa
que passou pela minha mente foi o feitiço de invocação que Nanahoshi me deu
anteriormente. Eu não sabia quando poderia ser útil, mas decidi levar dez
cópias do pergaminho comigo. Poderia fazer uma nova chapa de impressão
em um único dia, mas não queria carregar tinta pelo deserto. Os pergaminhos
eram muito mais leves e menos frágeis. E se acabasse precisando de mais,
poderia simplesmente comprar um pouco de tinta em Rapan.

Por falar nisso, eu não tinha a moeda local. Sequer tinha certeza de que tipo de
dinheiro usavam por lá. Provavelmente seria mais fácil se levasse algo que
pudesse trocar por dinheiro com facilidade.

Fora isso, só precisava de rações comestíveis para a viagem. Era a minha


primeira viagem a Begaritt, então não fazia ideia de que tipo de ferramentas ou
equipamento poderia precisar. Teria que obter tudo no local, conforme
necessário.

Como nossa jornada iria durar apenas seis semanas, fiquei com algum espaço
livre nas minhas malas. Eu poderia tecnicamente levar algumas coisas que
nem precisava.

Mas isso não significava que seria inteligente me sobrecarregar com


bobagens. Viajar com pouca bagagem deveria ser melhor. Estaríamos
chegando a Bazaar dentro de uma semana, então não era como se fôssemos
vagar pelo deserto por muito tempo. Ainda assim, decidi levar um livro que
continha detalhes sobre magia de teletransporte, dados os potenciais riscos
que estaríamos enfrentando. Eu sabia que Orsted usou essas coisas no
passado, mas isso não significava que estaríamos em segurança.
Voltei para os escritórios da universidade, adulei Jenius por um tempo e
consegui permissão para pegar alguns títulos da biblioteca emprestados por
um longo prazo. Peguei o livro que tinha em mente, Uma Consideração
Exploratória sobre Teletransportação em Labirintos, e peguei um volume
chamado O Continente Begaritt e a Língua do Deus Lutador que também estava
por lá. Achei que poderia ser útil se eu passasse por dificuldades de
compreensão.

Lembrei que Ginger sabia uma ou outra coisa sobre cavalos, então pedi a ela
que me acompanhasse até um estábulo local. Aproveitei para avisar Zanoba a
respeito da situação.

— Entendo! Você então poderá voltar em cerca de meio ano?

— Sim. Mas não posso explicar como.

— É mesmo? Hmm… sabe, eu poderia ordenar que Ginger vá junto, caso queira.

— Não seja ridículo, Zanoba. — Por que eu sairia do meu caminho para tornar a
pobre mulher em minha inimiga?

— Hrm. Bem, como desejar.

— Não se preocupe comigo, certo? Apenas se preocupe em cuidar de Sylphie e


das minhas irmãs.

— Não há necessidade em se preocupar com isso. Talvez eu até possa


designar Ginger para protegê-las em sua ausência.

Eu bufei.

— É coisa da minha cabeça ou você está tentando afastá-la?

Zanoba olhou na direção de Ginger, então se inclinou para sussurrar ao meu


ouvido.

— A mulher é meio incômoda, Rudeus. Desde que eu era criança, ela me dava
sermões sobre cada erro que cometia. E, ultimamente, também tem sido rígida
demais com Julie. Isso está ficando irritante.

O cara parecia um estudante universitário reclamando da mãe. Pensando bem,


ele devia ter uns vinte e poucos anos. Eu conseguia entender como ele se
sentia. Mais ou menos.

Mas, acima de tudo, me sentia mal por Ginger. Ela ainda era jovem. A garota
estava gastando seu tempo cuidando de um bebê superdesenvolvido.

— O que você acha disso, Julie? — perguntei.


Nossa aluna mais nova havia se juntado a nós na expedição para comprar
cavalos. Teria que encorajá-la a continuar com o treinamento enquanto eu
estivesse fora. Poderíamos retomar o projeto da estatueta de Ruijerd após o
meu retorno.

— A Srta. Ginger só… aponta os… maus hábitos do Mestre Zanoba.

— Bem, lá vamos nós. Melhore a forma, Zanoba. Você precisa dar um bom
exemplo para ela.

— Hrm…

Sim, isso realmente me lembrava uma mãe invadindo o apartamento imundo


que seus dois filhos estavam enchendo com pilhas de lixo. Isso era, de certa
forma, reconfortante.

— Enfim. Continue praticando enquanto eu estiver fora, de acordo com o


prometido, certo, Julie?

— Sim, Grão-Mestre. Vou dar o meu melhor.

Julie não estava mais tropeçando tanto nas palavras. Também tínhamos que
agradecer a Ginger por isso.

Nesse ponto, a mulher em questão chegou onde estávamos, conduzindo um


cavalo pelas rédeas.

— Aqui está, Sir Rudeus. Acredito que este deve atender às suas necessidades.

— Ooh…

Os cavalos nessas partes costumavam ser criaturas volumosas, já que


precisavam passar a maior parte do ano abrindo caminho pela neve. Este, de
perto, parecia quase uma espécie de cavalo diferente daqueles de corrida com
os quais eu estava familiarizado. Não correria tão rápido, mas poderia
continuar andando por vários dias. Os cavalos deste mundo eram, no geral,
monstruosamente fortes.

Por nenhum motivo em particular, decidi que ele era digno do nome Matsukaze.

— Obrigado, Ginger. Você tem sido de grande ajuda.

— Está tudo bem. Não foi nenhum problema.

— Quer que eu peça a Zanoba para fazer algo por você? Quem sabe massagear
os seus ombros?

— Sir Rudeus… tenho muito respeito por você, mas gostaria que mostrasse um
pouco mais…
— Tá bom, tá bom. Foi mal. Foi uma piada.

A julgar pela forma como estava me encarando, Ginger não achou isso muito
engraçado.

Enfim. Consegui meu cavalo e deixaria as pessoas mais importantes da minha


vida saberem o que estava acontecendo. Eu estava me esquecendo de
alguém? Talvez. Mas senti como se tivesse falado com todos os meus amigos.
Badigadi ainda não estava por perto, mas não havia nada que eu pudesse fazer
a respeito.

Bem, tanto faz. Verifiquei cada um dos itens da minha lista de tarefas e fiz
todos que sabiam sobre os círculos de teletransporte jurarem segredo.
Estávamos prontos para ir.

No dia da nossa partida, minha esposa e minhas irmãs me acompanharam até


a porta da frente.

— Voltarei antes que você perceba, Sylphie.

— Rudy…

Ela jogou os braços ao meu redor enquanto lacrimejava. Me acostumei a


abraçá-la nos últimos seis meses. Seu corpo era pequeno e irradiava calor. Às
vezes era como abraçar um animalzinho afetuoso.

Mas, desta vez, seus ombros estavam tremendo e ela também fungava um
pouco. Isso não estava tornando a partida mais fácil, sinceramente.
Afinal, deveria ficar…? Talvez pudesse esperar o nascimento da minha criança
para só então ir ajudar o meu velho.

Digo, pense nisso. Normalmente, levaria um ano apenas para chegar lá. Eu não
poderia ficar em casa por mais sete meses e partir depois do nascimento da
minha criança? A viagem deve levar apenas seis semanas, então eu poderia fazer
isso dentro do prazo.

Eu não era forte o suficiente para impedir que essas coisas passassem pela
minha mente. Mas, no final das contas, Geese estava desesperado o suficiente
para enviar uma mensagem expressa do Continente Begaritt. Esses serviços
não eram baratos, mesmo para as cartas mais curtas; não era algo que alguém
faria, a menos que fosse necessário. O tempo provavelmente era essencial.

E se eu fosse logo, ainda poderia voltar em tempo para ver o nascimento da


minha criança. Só precisava pensar nisso como uma espécie de viagem de
negócios.

Enxugando as lágrimas de Sylphie, falei com minhas irmãs, que estavam atrás
dela, sem jeito, no vestíbulo.

— Aisha, Norn, vejo vocês depois. Cuidem das coisas por mim, certo?

Eu mesmo não tinha certeza do significado disso, mas as duas concordaram


enfaticamente.

— Não se preocupe, irmão querido. Vou manter as coisas por aqui sob controle.

— Claro, Rudeus! Tome cuidado!

Balancei a cabeça.

— Bom saber. Tentem não brigar uma com a outra, certo?

Elas responderam “Sim!” em perfeito uníssono. Não pude deixar de sorrir diante
das expressões severamente sérias em seus rostos.

— Sylphie!

Elinalise escolheu este momento para dramaticamente montar em nosso


cavalo. Ele estava com duas semanas inteiras de provisões no lombo, mas nem
parecia sentir o peso. Nosso Matsukaze era realmente uma fera.

— Seja corajosa, querida, você vai ficar bem! De qualquer forma, você não
precisa do marido por perto para dar à luz. Confie em mim, estou falando por
experiência própria.

— Acho que sim — disse Sylphie com um sorriso fraco. — Tome cuidado
também, Vovó.
— Ah, não se preocupe comigo. Consigo me virar.

Elinalise jogou o cabelo para cima em um gesto de suprema confiança. A


mulher podia ser legal quando queria. Parecia até um cavaleiro de um conto de
fadas ou algo assim.

Era uma pena que eu a tivesse visto fazendo birra no outro dia. Aquele tipo de
memória destruiu a experiência toda.

Bem, acho que todo mundo tem seus pontos fracos, não?

Eu mesmo com certeza tinha vários.

— Então tá bom. É melhor pegarmos a estrada.

Sem desperdiçar mais tempo, pulei atrás de Elinalise. Ela era uma mulher
magra, mas sentou-se na sela ereta feito uma vareta. Era meio reconfortante
saber que era ela quem ficaria nas rédeas.

E ter meus braços ao redor dela também não era desagradável. Senti uma
pontada de culpa, mas… ei, só estava a pegando emprestada de Cliff por um
tempinho, certo?

— Rudy?

Sylphie inclinou a cabeça curiosamente para mim. Não que eu estivesse


fazendo algo suspeito! Sério! Eu tinha que segurar firme para não cair – isso
era tudo.

— Certo, pessoal. Nos vemos logo.

Por fim, nossa jornada começou.

Levamos cinco dias para chegar à floresta a sudoeste de Sharia.

Durante a primeira etapa da jornada, fomos acompanhados por um aventureiro


que contratamos na guilda. Ele seria o responsável por levar nosso cavalo de
volta para a cidade. Os cavalos apenas atrasariam em uma floresta densa, e
não sabíamos o tamanho do teletransportador que usaríamos. Ter um animal
de carga para nossas viagens pelo deserto seria conveniente, mas seria mais
inteligente se conseguíssemos um por lá. Provavelmente encontraríamos algo
mais adequado ao clima local.

Resumindo, ter alguém escoltando nosso cavalo de volta para Sharia fazia
mais sentido. Ele não custou barato, então eu pretendia ficar com ele.

Nunca aprendi a cavalgar, então passei a maior parte da viagem agarrado a


Elinalise. Claro, me mantive ocupado… de forma completamente platônica.
Passei um dia inteiro carregando aquela fralda mágica que Cliff criou. Isso
envolvia passar meus braços ao redor da cintura de Elinalise, então notei nosso
guia contratado me lançando alguns olhares de inveja.

Depois de chegar à floresta, nos despedimos de Matsukaze. Ele


esperançosamente se daria bem com Aisha e os outros.

Agora tínhamos uma floresta para investigar. Esqueci qual era exatamente o
nome dela. Algo semelhante a Floresta Lumen, será? Uma palavra que significa
“estômago” em um ou outro idioma.

Essa escolha faz sentido quando se entra no local. A vegetação era


incrivelmente densa; havia tantas árvores altas e antigas que seus galhos
chegavam a bloquear o sol. Um lugar meio sombrio, na verdade. O solo estava
cheio de raízes, então muitas vezes parecia que estávamos andando em cima
de um piso de madeira todo furado e irregular. Era preciso tomar cuidado por
onde anda o tempo todo. As árvores maiores tinham raízes ainda maiores e,
em alguns lugares, até mesmo formavam um tipo de escada natural. Era quase
como uma masmorra ao ar livre.

Mesmo um patrulheiro experiente poderia facilmente se perder em um lugar


destes. E uma vez que desviasse do caminho, seria fácil se tornar a presa de
um monstro ou escorregar e cair de uma “plataforma” de madeira. Muitos
corpos humanos foram, sem dúvidas, digeridos por esta floresta ao longo dos
séculos.

Não parecia que recebia visitas frequentes de lenhadores. Será que os


monstros locais eram fortes? Ou numerosos? Ou talvez existissem outras
florestas próximas que estivessem melhor localizadas. Sinceramente, a
resposta devia ser uma combinação de todas as opções.

Só para ficar claro, os lenhadores deste mundo não eram motivo para
zombaria. Um grupo deles costumava ser mais organizado e capaz do que um
bando regular de aventureiros. As florestas ofereciam madeira de sobra, mas
também eram o lar de muitos monstros. O ato de cortar uma única árvore se
tornava uma tarefa perigosa. As pessoas precisavam formar times – e às
vezes até mesmo contratar guarda-costas. Uma expedição típica envolvia
alguns combates sérios que iam além de cortar madeira, então a guilda dos
lenhadores era o lar de muitos sujeitos formidáveis.

Além disso, o trabalho deles tinha uma função vital neste mundo. Se as árvores
não fossem regularmente cortadas, em algum momento teriam que lidar com
enxames de Entes perigosos.

— Lembra da formação que discutimos antes, Rudeus? — disse Elinalise. —


Vamos tomar nossas posições.

— Certo.
Ainda assim, isso não era nada para aventureiros veteranos como nós.
Estávamos alertas, é claro, mas calmos. Elinalise assumiu a liderança e eu a
segui de certa distância.

Como podia se esperar de uma elfa, ela sabia como andar neste terreno. E
graças à sua excelente audição, recebíamos avisos antecipados sempre que
algum inimigo tentava nos emboscar.

— Três monstros às duas horas!

— Certo.

Ao comando, disparei um Canhão de Pedra à frente e à direita. O projétil


acertou um javali verde, bem no momento em que ele rompeu a folhagem,
fazendo-o voar para trás enquanto esguichava sangue. Seus dois
companheiros na mesma hora deram meia-volta e fugiram.

Elinalise estava lidando com a parte de “busca” e eu com o dever de “destruir”.


Até então, estávamos eliminando todas as ameaças antes mesmo de se
aproximarem de nós. Não tínhamos nos envolvido em nenhum combate real
até o momento, o que era bom para mim. Elinalise parecia estar nos guiando
em torno de áreas perigosas onde os animais se reuniam em grande número.
Evidentemente, era uma habilidade que adquiriu ao longo dos anos, e não
algum tipo de instinto élfico natural.

— Acho que encontrei. É este o monumento que estávamos procurando, certo?

Passado algum tempo, ela avistou o que estávamos tentando encontrar. Era
uma chapa de pedra plana com um símbolo esculpido na superfície, em frente
a uma espessa parede de vegetação. Me resignei com a possibilidade de
vasculhar a floresta por dois ou três dias, mas conseguimos encontrar a coisa
antes do pôr do sol. A mulher talvez tivesse colocado pontos de habilidades em
Encontrar Segredos ou algo assim.

As escritas na pedra me eram familiares às do monumento dos Sete Grandes


Poderes. Tinha o brasão do Deus Dragão – um padrão afiado e angular
composto principalmente de triângulos. Me lembrava um pouco do símbolo
mágico que aparecia na testa de um personagem de anime quando ele ficava
mais forte, embora os detalhes específicos fossem totalmente diferentes.
Talvez fossem ambos representações do rosto de um dragão.

Ainda assim… eu já tinha visto esse brasão sozinho?

Ah, é mesmo. Parecia muito com o símbolo que estava naqueles documentos
que encontrei no porão da minha casa. Existiam algumas diferenças sutis, mas
eram definitivamente semelhantes. Será que o homem que criou aquele robô
assassino possuía alguma conexão com o Deus Dragão?
Bem, provavelmente existia um monte de símbolos parecidos por aí. No meu
velho mundo, muitos países tinham bandeiras semelhantes.

— Algum problema?

— Nah, não é nada.

Elinalise percebeu que eu passei um bom tempo estudando o símbolo, mas


decidi não prosseguir mais com a mesma linha de pensamento. Tínhamos
outras prioridades no momento.

— Então vou começar a remover a barreira — falei.

— Certo. — Elinalise se virou para cuidar da retaguarda enquanto eu trabalhava.

Coloquei a mão na superfície da pedra e abri o diário de Nanahoshi, na página


onde ela havia escrito suas anotações. Havia um encantamento específico que
eu deveria usar.

— O wyrm viveu apenas pelos seus ideais. Ninguém poderia escapar do alcance
de seus poderosos braços. Ele foi o segundo a morrer… um General Dragão,
suas escamas verdes e douradas, sua vida sendo o mais efêmero dos sonhos.
Em nome do Imperador Dragão Sagrado Shirad, quebro seu selo.

No instante em que a palavra final saiu da minha boca, senti a mana fluindo do
meu braço para a pedra, e o mundo começou a se distorcer diante dos meus
olhos. O próprio ar pareceu circular de um jeito estranho por um momento;
quando passou, a espessa parede de árvores e plantas à minha frente sumiu,
deixando um edifício de pedra no lugar de tudo.

— Whoa!

— Nunca vi um encantamento como este — disse Elinalise, olhando espantada


para a estrutura.

Também não era como nada que eu já tinha visto. Mas a maneira como a pedra
sugou a minha mana era familiar. Provavelmente era um implemento mágico
estacionário e superdimensionado. Se o quebrássemos ao meio, devíamos
encontrar um monte de círculos mágicos complexos gravados lá dentro.

Ainda assim, o encantamento me pareceu ser original do Deus Dragão, com


todas as, uh… referências a dragões. Aquele cara, Imperador Dragão Sagrado
Shirad, era um dos cinco Generais Dragões das velhas histórias, não?

O encantamento parecia incompleto, visto que faltava o nome do feitiço em si.


Mas se tivesse a coisa toda, talvez pudesse imitar o poder da pedra e dissipar
as barreiras mágicas livremente. Isso parecia perturbadoramente plausível.

— Bem, vamos indo.


— Uh, certo.

Eu meio que queria arrancar a pedra e levá-la para casa comigo, mas parecia o
tipo de coisa que poderia me fazer ser assassinado por Orsted. Já tive o
suficiente disso por uma vida.

O prédio diante de nós era uma estrutura atarracada de um único andar. Vinhas
de hera corriam ao longo de suas paredes, e havia lugares onde as pedras se
desintegraram ao longo dos anos.

— Hmm… o lugar parece uma típica ruína antiga, não?

— Vi alguns labirintos com entradas parecidas com isso — disse Elinalise. — Ah,
é mesmo. Você não tem nenhuma experiência com labirintos, tem, Rudeus?

— Não. Explorei algumas ruínas antigas e tal, acho, mas nunca um labirinto de
verdade.

— Nesse caso, certifique-se de ficar atrás de mim. Só pise onde eu pisar.

— Certo, posso fazer isso. Mas, uh, não acho que este lugar seja um labirinto,
ou é?

— Melhor prevenir do que remediar.

Justo. Pelo que sabíamos, podiam existir armadilhas.

Ainda assim, Elinalise não era uma ladra nem nada do tipo. Seria capaz de
encontrar armadilhas? Só por garantia, ativei meu Olho da Previsão. Não era
exatamente um sistema de alerta antecipado, mas poderia me ajudar a lidar um
pouco melhor com emboscadas repentinas.

— Então tá, Rudeus. Vamos lá. Esteja pronto para me cobrir no caso de as
coisas ficarem feias.

— Certo.

Cautelosamente, Elinalise e eu entramos juntos na ruína de pedra.

—…

O interior também era feito de pedra. Aqui e ali, podia ver vinhas ou raízes de
árvores cutucando as paredes. Uma situação clássica de “ruínas florestais”,
basicamente.

Mas a estrutura não era tão grande. Na verdade, parecia que possuía apenas
quatro cômodos. Nos movemos sem pressa, certificando-nos de investigar
todos os cantos.
Os dois cômodos mais próximos da entrada eram espaços completamente
vazios com cerca de sete metros quadrados. O terceiro tinha um armarinho em
um canto; quando abrimos a porta, encontramos roupas de inverno masculinas
ali guardadas. Ficou claro que não estavam ali por décadas. Alguém havia
trocado de roupas neste lugar há relativamente pouco tempo. E, por alguém,
digo Orsted.

O círculo de teletransporte supostamente nos levaria para o meio do deserto, e


essa região sofria com nevascas durante boa parte do ano. Eu imaginava que
seria difícil comprar roupas adequadas para esse clima em Begaritt, e
provavelmente era por isso que as deixou ali para a sua próxima visita.

Se eu soubesse que poderíamos deixar coisas assim para trás, poderia ter
preparado um pouco mais de bagagem. Mas não faz sentido chorar pelo leite
derramado.

— Qual o problema? Existe algum motivo para você ficar olhando para essas
roupas?

— Nah. Só estou me perguntando se há algo que poderíamos deixar para a


nossa viagem de volta.

— Hmm… não sei. Se deixássemos suprimentos aqui, estaríamos basicamente


os desperdiçando.

Claro, se deixássemos a comida que preparamos ali por meses, ela


definitivamente não continuaria comestível. Com ou sem barreira, deviam
existir insetos no local.

— Então vamos embora — disse Elinalise, virando-se para a saída.

— Certo.

No quarto e último cômodo, encontramos um conjunto de escadas que


desciam para a escuridão.

— Minha nossa. Isso sim parece suspeito.

Elinalise examinou a área ao redor das escadas e verificou todos os cantos do


cômodo, igual um jogador de FPS limpando a área. Acredito que as escadas
eram lugares populares para colocar armadilhas.

— Então tá… acho que está tudo bem.

No final, porém, ela não achou nada. Não fiquei tão surpreso. Se alguém
quisesse colocar armadilhas no lugar, provavelmente também as colocaria na
entrada.

— Vou descer primeiro. Cuide da retaguarda, Rudeus.


— Certo.

Elinalise desceu as escadas bem devagar e com muito cuidado. Fiz questão de
seguir seus passos. Estranhamente, as ruínas não ficaram mais escuras à
medida que descíamos.

O motivo disso ficou claro assim que chegamos ao fim da escada.

— Bem, aí está…

Havia um enorme círculo mágico no chão à nossa frente – tão grande quanto
um dos cômodos do andar de cima. Em tamanho, pelo menos, era comparável
ao que fiquei preso no palácio real de Shirone. E estava constantemente
emitindo uma luz branco-azulada.

— Então seria este o círculo de teletransporte?

— Sim, devo assumir que sim.

Só para ter certeza, tirei o diário de Nanahoshi da minha bolsa e revi as suas
anotações. A coisa à nossa frente parecia muito semelhante ao esboço de um
círculo de teletransporte bidirecional. Havia pequenas diferenças, mas todos os
recursos principais estavam ali. Tudo o que tínhamos a fazer era pisar na coisa
e, teoricamente, deveríamos reaparecer no Continente Begaritt.

Elinalise, no entanto, não parecia estar com pressa para fazer isso. Estava
olhando para o círculo mágico com uma expressão hesitante no rosto.

— Algum problema, Elinalise?

— Tenho algumas memórias bem dolorosas envolvendo teletransportes, isso é


tudo.

Memórias dolorosas? Estava falando sobre algum incidente durante seus dias
como aventureira?

— É, bem… você não é a única.

— Ah. Suponho que não.

Elinalise balançou a cabeça e voltou a olhar para o círculo mágico. Desta vez,
havia uma expressão realmente determinada em seu rosto.

— Se essa coisa nos jogar no meio do oceano — acrescentei prestativamente —


, vamos nos certificar de fazer Nanahoshi se arrepender.

— Tudo bem — disse Elinalise. — Vou segurá-la enquanto você enfia.

— Podemos ir com algo menos sexual?


— Sexual? Não especifiquei o que você estaria enfiando, nem onde, querido.
Você pode simplesmente enfiar o dedo no nariz dela ou algo assim. Você que
leva tudo por trás.

— Enfiar o dedo no nariz de uma garota, na verdade, ainda me parece algo meio
sexual.

— É mesmo? Hmm. Depois vou perguntar se o Cliff quer tentar.

— Não me culpe se ele aceitar.

Sorrindo, Elinalise me pegou pela mão. Apesar de seus dedos finos, seu aperto
era forte. Esta era a mão de uma aventureira. Também estava um pouco quente
e suada, e fez meu coração começar a bater um pouco mais rápido.

Claro, eu tinha Sylphie, e Elinalise tinha o Cliff. Se acontecesse algo entre nós,
estaríamos ambos cometendo adultério. E, de qualquer forma, não era como se
tivéssemos sentimentos um pelo outro.

— Espero que não esteja entendendo as coisas mal, Rudeus. É importante


mantermos contato físico enquanto nos teletransportamos, isso se quisermos
ter certeza de que continuaremos juntos.

— Ah, é mesmo. Sim. Sinto muito por isso. — Opa. Isso foi meio embaraçoso.

Eu não era mais um virgem, então não tinha desculpas para continuar
cometendo esse tipo de erro.

— Lá vou eu de novo, seduzindo o marido da minha neta sem nem tentar —


suspirou Elinalise. — Suponho que sou tão gostosa que isso chega a ser um
crime.

— Sim. É melhor expiar os seus delitos apresentando um pedido de divórcio.

— Ei! Vamos lá, agora você só está sendo rude.

Assim era melhor. Se transformássemos o constrangimento em piada, isso


acalmaria a tensão sexual. Elinalise realmente sabia como lidar com esse tipo
de situação.

— Certo, e aí, podemos ir?

— Vamos fazer isso.

Pisamos no círculo de teletransporte ao mesmo tempo.


Cap. 10 – Predador Natural

Teleportar era parecido com acordar de um cochilo. Eu talvez tivesse inclusive


perdido a consciência por um momento.

Olhando para o lado, vi que Elinalise estava igualmente assustada.

— Acho que chegamos — falei depois de um momento.

— Bem, talvez…

Ainda estávamos em uma ruína de pedra, exatamente como antes. E, à primeira


vista, a câmara não parecia particularmente diferente.

Depois de alguns segundos, entretanto, comecei a notar pequenas pilhas de


areia nos cantos e a falta de musgo nas paredes. A pedra também tinha uma
cor ligeiramente mais marrom. Tínhamos sido teletransportados para algum
lugar e, até aí, tudo certo.

Cautelosamente deixei o círculo mágico.

Meu corpo parecia estar funcionando como sempre. Eu também continuava


com os meus pertences. E eu não tinha trocado de corpo com Elinalise nem
nada assim.

Assim que saímos do teletransportador, ele voltou a emitir aquela luz branco-
azulada. Pelo visto, estava pronto para nos levar de volta para o outro lado.

Isso era conveniente e tal, mas não vi nenhum cristal mágico alimentando a
coisa. Como exatamente conseguia a mana de que precisava? Será que havia
uma fonte de energia enterrada sob o chão? E se de alguma forma estivesse
absorvendo a mana do ar ao redor? Se houvesse uma forma de fazer isso, eu
realmente queria aprender.

— Ah, espera. Devemos verificar para ter certeza de que poderemos voltar para
o outro lado, não?

— Isso parece prudente, sim.


Era supostamente um teletransportador bidirecional, mas não tínhamos como
saber se funcionava direito ou se tinha algum tipo de limitação. Se
pudéssemos fazer a viagem só de ida, precisaríamos voltar para casa por outra
rota. Isso colocaria fim ao meu plano de voltar antes que Sylphie desse à luz.

— Acho que vou…

— Não, eu vou. Se eu não voltar em alguns minutos, pode continuar sem mim —
disse Elinalise, me empurrando suavemente. — Não gosto da ideia de contar ao
Paul que você sumiu depois de pisar em um teletransportador.

— Bem, então tá bom. Vou deixar isso com você.

De qualquer forma, isso não importava tanto. Para começo de conversa, eu


ainda nem tinha certeza de que estávamos no continente certo.

— Certo, espera aí.

Elinalise saltou de volta no círculo mágico e sumiu do nada. Pensei que tive um
breve vislumbre dela sendo sugada para o chão.

Pensando bem, foi a primeira vez que vi alguém sendo teletransportado. Essas
coisas se moviam pelo solo ?

—…

No momento, não havia muito a fazer, a não ser esperar. Confiei na memória de
Nanahoshi e, pelo que ela disse, não precisaria de nenhum encantamento
mágico ou técnica especial para usar essas coisas. Existia a chance de que
Orsted usasse algum tipo de instrumento mágico, mas tínhamos chegado até
ali com bastante facilidade. Eu queria pensar que a viagem de volta seria
igualmente tranquila.

Passaram cinco minutos. Depois dez. E então quinze.

— Ela está demorando… Hmm?

Quando comecei a ficar preocupado, Elinalise finalmente reapareceu. Foi como


assistir o teletransporte acontecendo ao contrário: ela brotou do chão em uma
fração de segundo.

Por um momento pareceu meio tonta, mas balançou a cabeça assim que se
deparou com o meu olhar.

— Tudo certo, Rudeus. Isso funciona direito.

— Sério? Eu estava começando a ficar preocupado. Você demorou mais tempo


do que eu esperava.
— O quê? Não passei mais do que alguns segundos do lado de lá.

Então o processo de teletransporte não era literalmente instantâneo. Mas fazer


uma viagem enorme em questão de minutos não era um mau negócio. Parecia
que existia um atraso de cerca de sete minutos por viagem.

Pensando bem, ouvi algo sobre o Incidente de Deslocamento de Fittoa, algo


que devia ser relevante. Era suposto que houvesse um atraso estranho entre os
desaparecimentos e quando as pessoas reapareceram em outros lugares. Foi
Sylphie quem me contou isso?

Teletransportação podia ser um meio de viagem rápido, mas não era


instantâneo. Talvez fosse algo parecido com um Salto Boson.

— Bem, sem problemas. Você voltou, e é isso que importa.

— Suponho que sim.

Se essas coisas fossem perigosas, Orsted não as usaria. E ao menos


confirmamos a possibilidade de voltar para casa.

— Então podemos continuar?

Ficando um pouco mais tranquilo, caminhei até a escada de pedra que


conduzia para cima.

No instante em que chegamos ao primeiro andar, notei um aumento acentuado


na temperatura.

O ar estava brutalmente quente. Não parecia muito úmido, o que fazia sentido,
já que devíamos estar no meio de um deserto.

O primeiro andar parecia virtualmente idêntico ao das ruínas que deixamos


para trás, lá na floresta. A principal diferença era o chão coberto por areia e a
falta de vegetação nas paredes. Notei algumas pegadas aqui e ali. Deviam ser
de Orsted. Se acabássemos nos esbarrando, eu teria que fugir antes que ele
tivesse a chance de me matar.

Também havia quatro cômodos ali, exatamente igual ao outro lugar. Em um


deles, porém, encontramos algumas capas brancas, grossas, e cantis de água.
Provavelmente mais coisas de Orsted.

— O que devemos fazer a respeito das nossas pegadas? Acha que devo apagá-
las?

— Você está preocupado com aquele Orsted? Acho bem improvável que
acabemos o encontrando…
Verdade, mas eu ainda estava meio assustado. Será que devia deixar uma
mensagem? Devia dizer a ele que Nanahoshi me contou sobre este lugar, e que
eu só estava usando por causa de uma emergência familiar? Prometer guardar
segredo e implorar para que não ficasse zangado comigo?

Mas, bem, não tinha como dizer quando ele apareceria de novo. Ele poderia
nunca descobrir que passamos por ali e, neste caso, deixar uma carta seria um
convite para confusão. Alguns momentos depois, decidi não me incomodar.

Demoramos um pouco para vasculhar as ruínas, só por precaução, mas não


encontramos nada digno de nota. Orsted também não estava à espreita no
local, é claro.

Depois de explorar cada cantinho da ruína, pela primeira vez colocamos os pés
fora dela.

Estava quente lá fora. Muito quente. A palavra quente chegava até a ser
inadequada, para ser sincero. O vento inclusive machucou o meu rosto.

Tudo que eu via à frente era um mar de dunas de areia ondulantes. Parecia
uma das fotos que eu tinha visto do Saara, um deserto da minha vida anterior.

O sol já estava começando a se pôr. Mas, quando no deserto, não seria melhor
viajar à noite? Espera, não. Será que não seria mais perigoso, já que a
temperatura poderia ficar negativa? Não que as coisas neste mundo fossem
todas necessariamente idênticas…

Eu parecia lembrar que os monstros do deserto ficavam mais ativos à noite. Se


perambulássemos no escuro e acabássemos emboscados, as coisas poderiam
ficar perigosas.

— O que acha que devemos fazer, Elinalise? — perguntei.

— Se partirmos agora, não vamos chegar muito longe até o pôr do sol. Está
meio cedo, mas acho que precisamos aproveitar para descansar com um teto
sobre nossas cabeças.

Acabamos decidindo passar a noite nas ruínas.

A noite se provou tão fria quanto eu temia.

Eu estava acostumado com o frio do norte, mas a maneira repentina como a


temperatura caiu foi algo difícil de suportar.

Ainda estávamos bem, já que tínhamos paredes grossas para a nossa


proteção. Mas teríamos que pensar em como nos manter aquecidos enquanto
estivéssemos acampando ao ar livre. Será que eu poderia fazer um abrigo
temporário com magia? Fortaleza de Terra era um bom feitiço para isso… mas
teria que continuar alimentando-o com mana, ou acabaria desmoronando. Se
eu pensasse um pouco, talvez pudesse criar uma estrutura simples, no estilo
iglu, que se manteria em pé. Então poderíamos acender uma fogueira lá dentro
para que nos aquecesse. Sim, parecia um bom plano.

Para esta noite, porém, decidimos nos embrulhar em nossos sacos de dormir e
ficar no chão mesmo. Levei algum tempo para recarregar o implemento mágico
de Elinalise, e só então me deitei. Isso envolvia colocar minhas duas mãos na
fralda dela e canalizar um pouco de mana. Para ser sincero, eu me sentia um
idiota.

— Rudeus — murmurou Elinalise —, se você ficar com pouca mana, pode adiar a
recarga dessa coisa por algum tempo.

— Mas se eu parar de alimentar isso com mana, você não conseguirá se conter,
não é?

— Sua magia será cada vez mais crucial conforme entrarmos em combate.
Temos que priorizar a sua capacidade de luta.

Os monstros do Continente Begaritt não eram, em média, tão ferozes quanto os


do Continente Demônio. Mas alguns deles supostamente tinham uma força
comparável. Ficar de guarda baixa poderia ser fatal.

— Não se preocupe. Sinceramente, isso não prejudica o meu suprimento de


mana.

— Sério? Nossa, seu reservatório de mana parece ser um poço sem fundo…

— Mais ou menos parecido com o seu apetite sexual.

— Ah, eu não diria que sinto tanto tesão, querido.

Se eu demorasse para encher essa coisa de mana e Elinalise entrasse no modo


de sedução, acabaríamos em apuros. Eu provavelmente não seria capaz de
resistir no caso de ela decidir me atacar. Poderia dar muitas desculpas
convenientes: Só desta vez. Será nosso segredinho. Tentei impedi-la, mas ela me
forçou.

E se eu cedesse à pressão, poderia acabar arruinando as nossas vidas. Digo, e


se ela engravidasse? Cliff me odiaria pelo resto da vida, e duvido que Sylphie
algum dia me perdoaria. Sem mencionar o que minhas irmãzinhas pensariam.

Eu não conseguia imaginar nada de bom como o fruto por me deitar com
Elinalise. Se realmente não pudéssemos nos impedir, eu talvez pudesse
convencê-la ao menos a parar no sexo oral…

Ugh, não. Eu nem deveria pensar nessas coisas.


No momento eu estava obviamente um pouco sobrecarregado. Na última
semana, passei tempo demais passando os braços na cintura de Elinalise. Não
tínhamos feito nada sexual, mas não se pode culpar um jovem por ficar um
pouco excitado. Nesta noite, precisaria cuidar das minhas necessidades
sozinho, aproveitando o turno de guarda ou algo assim.

— Bem, então, vamos dormir? Imagino que em breve nos moveremos pelo
deserto, então devemos poupar as nossas forças.

— É, você tem razão.

Por mais que eu quisesse conservar minhas energias, precisava soltar alguma
coisa nesta noite. Às vezes não é fácil ser homem.

Naquela noite, mais tarde, enquanto estava deitado dentro das ruínas, senti um
cheiro doce flutuando pelo ar.

Senti meu coração começando a bater mais forte na mesma hora.

Abrindo os olhos, vi Elinalise fazendo uma careta enquanto dormia, com sua
espada entre seus braços.

Me vi observando seu pescoço pálido e mãos finas. Seu rosto parecia uma
versão amadurecida do rosto de Sylphie. Ela também era alta e magra.
Especialmente da cintura para baixo, sua silhueta era uma das mais perfeitas
que eu já tinha visto.

E, também, ela não era supostamente muito, muito boa de cama…?

— Hah… haah…

De repente, a haste da minha bandeira foi colocada de pé e começou a tremer


enquanto meus pensamentos ficavam nublados pelo desejo.

— Mm…

Elinalise se contorcia enquanto dormia. Seu cobertor escorregou e consegui ter


uma boa visão de suas coxas, usando shorts de couro bem apertados.

A mulher tinha uma bela bunda. Queria dar uma apertada naquilo. Mesmo sem
querer, acabei inconscientemente estendendo a mão. Eu queria tocá-la. Muito,
muito mesmo.

Meus dedos alcançaram suas coxas. Pareciam incrivelmente macias.

Elinalize arfou e abriu um pouco as pernas. Ela estava tentando me seduzir ou


o quê?
A possibilidade de me conter parecia cada vez mais distante. Afinal, qual era a
importância disso? Poderíamos tornar isso em um acontecimento único. Ela
não me recusaria. Guardaria segredo. Isso não seria problema.

— Cliff…

Mas Elinalise então murmurou aquele nome enquanto dormia, e com isso
recobrei os sentidos.

Virando, rastejei para fora do cômodo, depois, fui para o lado de fora do
edifício.

Eu pensava que estava tudo bem, mas evidentemente passei tempo demais
negligenciando as necessidades do meu corpo. Quase fui tomado por uma
onda momentânea de luxúria. Já estava na hora de me aliviar, se é que
entende.

Sentado no topo de uma duna que não ficava longe, comecei a abaixar as
calças… e então ouvi um barulho. Eu não estava sozinho.

— Hm…?

Elinalise tinha me seguido para o lado de fora? Olhando ao meu redor, vi uma
mulher muito sensual parada não muito longe.

Estava muito frio por ali, mas ela estava vestida como uma dançarina. Suas
roupas eram finas o suficiente para que parecessem transparentes à luz do dia.
Seu cabelo era curto e encaracolado, provavelmente preto. Era difícil distinguir
o seu tom de pele na escuridão, mas seu corpo brilhava, pálido contra o céu
escuro.

Mais importante ainda, ela tinha um corpo bacana. As curvas certas, sabe? Ela
fazia Elinalise parecer uma prancha de madeira.

A mulher levou um dedo à boca e sedutoramente o chupou. Acabei olhando,


paralisado, para os seus lábios.

Lentamente, com muita paciência, ela se aproximou de mim. E então se


agachou, abrindo um pouco as pernas. O cheiro doce que senti antes inundou o
ar, ficando muito mais forte do que antes. Isso me acertou como um tsunami.

Engoli em seco. Havia algo quente escorrendo pelo meu queixo. Quando toquei
meu rosto, descobri que estava tendo uma hemorragia nasal.

— Heh heh…

A mulher convidativamente me estendeu a mão. A peguei e deixei que me


puxasse para…
— Rudeus!

Naquele instante, ouvi um grito de dentro das ruínas.

A mulher saltou para trás. Uma fração de segundo depois, Elinalise moveu a
espada, cortando o espaço no ar onde ela estava. Antes que eu pudesse reagir,
Elinalise se posicionou entre mim e minha sedutora.

— Controle-se, seu idiota! — gritou ela.

— Hein?

Eu nem sabia como reagir. Mas Elinalise já estava levantando o seu escudo e
atacando a mulher.

— Keeeaaah!

Ela soltou um grito agudo, e suas unhas cresceram até um comprimento


anormal. Seu corpo estava mudando de forma. Asas completamente formadas
surgiram em suas costas e ela começou a batê-las com ferocidade, tentando
deixar o chão.

Elinalise já estava em cima dela. Bruscamente balançando seu escudo contra o


rosto da mulher, ela a jogou no chão. E uma vez que tinha a mulher se
debatendo, presa ao seu pé, cravou sua espada para baixo.

— Gyeeaaah…

A mulher soltou um assustador grito final, mas Elinalise continuou empurrando


a lâmina ainda mais fundo.

Um momento depois, saltou para trás. A mulher se contraiu e teve alguns


espasmos, mas logo parou de se mover. Ela estava morta.

— Hã…?

Fiquei em estado de choque. Minha mente não queria dar sentido a esses
eventos. E meu garotão ainda não tinha voltado ao normal.

Mas que porra? O que foi que aconteceu?

Enquanto eu ficava ali, estupefato, Elinalise se virou em minha direção e deu


um tapa no meu rosto.

— Acorda logo! Essa coisa era uma Súcubo!

— Hein? Uma Súcubo? Espera… sério?


Aquela coisa morta no chão me parecia uma mulher normal… mesmo tendo
asas de morcego gigantes e garras estranhamente longas.

Oh. Assim que olhei mais de perto, percebi que sua pele era azul-brilhante. E
seu rosto também não parecia muito humano.

Mas o corpo dela era mesmo suculento. Ao menos antes de morrer. Talvez
ainda continuasse bom.

— Sim. É a primeira que eu vejo, mas tenho certeza — disse Elinalise. — Acho
que essa coisa de elas soltarem um odor estranho não era uma lenda urbana.

— Que odor estranho?

Na verdade, me parecia uma fragrância agradável. E meio excitante. Mas, de


qualquer forma…

Me vi mais uma vez secando Elinalise. Ela não tinha muito peito, mas seu rosto
era lindo e suas pernas bem torneadas. E aquela bunda, puta merda…

— Hmm. Elinalise, você tem um corpo bem bacana, sabe…

— O quê? Uh, Rudeus? Controle-se, por favor.

Não fiz nada demais, certo? A mulher dormia com qualquer um. Se eu a
elogiasse o suficiente, ela me deixaria dar uma metidinha.

— Sabe, sempre sonhei em transar com uma garota igual você…

— Se você continuar com isso, vou contar para a Sylphie.

— Ei, o que os olhos não veem o coração não sente.

Ficando de pé, comecei a caminhar lentamente em direção a Elinalise. Ela


ergueu o escudo e se afastou de mim.

— Droga, é mesmo — murmurou ela. — Súcubos podem enfeitiçar homens, não


é?

— Vamos lá, gostosa… Vamos nos divertir um pouco…

Elinalise franziu a testa e suspirou …

— Hmph!

E então deu uma escudada na minha cara. Caí com tudo na areia, luzes
brilhantes piscando diante dos meus olhos.
Isso, entretanto, não importava. Eu tinha coisas mais importantes em que
pensar. Tipo transar com Elinalise.

— Haah… haah… Vamos lá, gatinha. Você não vai se arrepender, tenho certeza…

— Ah, meu deus. Rudeus, use magia de Desintoxicação em você mesmo. E


continue usando até contar até dez.

— Magia de Desintoxicação? Se eu fizer isso, a gente vai dar uma trepadinha?

— Falamos sobre isso depois… Só faça, entendido?

Ofegando sem parar, comecei a lançar meus feitiços de Desintoxicação –


começando pelo mais básico e avançando para os Intermediários. Depois de
lançar alguns deles, entretanto, meu corpo de repente ficou muito mais leve.

— Hein…?

Era como se a névoa dentro da minha cabeça tivesse sumido. A parte inferior
do meu corpo ainda estava meio animada, mas minha necessidade
desesperada por sexo estava sumindo.

Olhei para Elinalise. Ela era uma mulher atraente, sem dúvidas. Mas isso era
tudo que eu pensava.

— Ouvi dizer que o cheiro de uma Súcubo tem a capacidade de fazer os


homens perderem o juízo. Parece que isso também é verdade. — Elinalise
lentamente embainhou a espada, depois, cruzou os braços e soltou um suspiro.

— Meu deus…

—…

O que eu estava tentando fazer?

Procurei as últimas palavras que tinha dito em minhas memórias.

Merda…

— E aí, vamos dormir? E, da próxima vez, tome mais cuidado. — Elinalise já


estava se virando para retornar às ruínas.

Me remexendo, envergonhado, a chamei.

— Uhm, Senhorita Elinalise… Sinto muito por tudo.

Ela olhou para mim com desconfiança, mas então mostrou um sorriso
travesso.
— O que é isso? Sempre sonhei em transar com uma garota igual você?

Pude sentir meu rosto ficando quente. Não foi culpa minha! A Súcubo me
obrigou!

— Vamos lá, gostosa. Você não vai se arrepender!

— Ugggh…

Puta merda, isso era humilhante.

Sorrindo, ela se aproximou de mim e me deu um cascudo.

— Está tudo bem, eu entendo. Esse tipo de efeito é comum, sabe? A culpa não é
sua. Não vou contar sobre isso para Sylphie ou Paul.

— Você é uma santa, Elinalise!

— Mas tente não confiar cegamente em mim, entendeu? Posso me controlar


por um tempo, mas a minha maldição fica mais forte com o tempo. Em algum
momento, posso não conseguir me conter.

— Sim. Certo. Bem, se acontecer, aconteceu.

— Não, idiota! Se chegar a esse ponto, você deveria me parar!

— Tá bom, tá bom.

Balançando a cabeça, Elinalise sorriu gentilmente.

— Então acho que vou dormir. Fique algum tempo de guarda, por favor. Ah, e
certifique-se de queimar esse corpo.

— Certo.

Com isso, ela voltou para dentro das ruínas. Eu ainda não conseguia me sentir
culpado pela forma como a tratei, mas não havia mais muita coisa que
pudesse ser feita.

Precisaria queimar o corpo da Súcubo e depois enterrar seus ossos. De perto,


não era tão atraente – suas características eram iguais às de um morcego, na
verdade. Acho que se não prestasse atenção poderia acabar confundindo com
uma humana, mas eu não conseguia entender por que fiquei tão excitado.

Poderia, inclusive, jurar que no começo ela era uma linda garota. Talvez só
tivesse revelado sua forma real quando sua natureza verdadeira foi exposta,
iguais aos vampiros de filmes de terror.
Ainda assim, aquele corpo não era coisa da minha imaginação. O corpo dela
era formoso, sem dúvidas. Talvez fosse esse o problema. Do pescoço para
baixo, era como uma versão mais encorpada de Elinalise, só que com asas.

Certo, vamos tentar desviar a atenção do assunto. Foi uma decisão muito difícil.
Se Elinalise não tivesse aparecido na hora certa, o que me aconteceria? A coisa
talvez me pegaria pela mão, atrairia para algum lugar e sugaria a minha fonte
de vida.

Ugh, droga… E minhas bolas continuam cheias…

Mais um motivo para ficar decepcionado. Nesse ritmo, poderia acabar


começando a, em algum momento, dar em cima de Elinalise.
Talvez devesse me aliviar antes de voltar.

Enquanto olhava para a Súcubo, é claro…

Ainda era nossa primeira noite no Continente Begaritt, e a viagem já se revelava


um verdadeiro desafio.
Cap. 11 – O Ecossistema Desértico

Nossa jornada pelo deserto começou na manhã seguinte.

O ataque daquela Súcubo serviu para me alertar a respeito dos perigos que nos
aguardariam. Passei os últimos anos em uma boa e segura cidade
universitária, e isso podia ter entorpecido meus instintos. Eles não eram tão
afiados, mesmo antes, mas eu definitivamente fiquei um pouco mais relaxado
a respeito das coisas.

Agora estávamos no Continente Begaritt. Este lugar não era tão seguro quanto
o Continente Central. Precisava colocar minha cabeça para funcionar, ou então
faria que nós dois morrêssemos.

— Vamos tentar nos manter cobertos — sugeri enquanto avançávamos. —


Certifique-se de também ficar hidratada. Se seu cantil secar, pode me falar.

— Claro.

Nós dois estávamos usando casacos com capuzes. Expor qualquer pedaço de
pele poderia ser perigoso. Se Cliff estivesse junto, eu tinha a sensação de que
ele estaria reclamando por usar roupas demais, já que fazia calor.

Embora estivéssemos no meio de um deserto, eu poderia reabastecer nosso


suprimento de água usando magia, e repetir o processo sempre que fosse
necessário. Ainda assim, nem eu nem Elinalise tínhamos qualquer experiência
com esse tipo de terreno, e não tínhamos como dizer o que seria encontrado à
frente. Existia o risco de eu acabar sofrendo uma insolação e ficar incapaz de
usar feitiços, por exemplo. Precisávamos tomar cuidado.

— Então devo definir o nosso curso para o norte? — perguntou Elinalise.

— Sim, por favor.

O mapa de Nanahoshi indicava que a cidade mais próxima ficava naquela


direção, mas continuava sendo difícil chegar lá.
Elinalise não precisava de uma bússola para a nossa orientação – uma
habilidade élfica relativamente conhecida. Eles nunca perdiam o senso de
direção, mesmo em florestas tão densas que o sol ficava escondido. Com essa
habilidade, assim como as que adquiriu ao longo dos anos, eu estava confiante
de que ela nos manteria no caminho correto, independentemente de quaisquer
obstáculos que encontrássemos.

Pensando bem, conheci algumas pessoas que podiam encontrar o caminho em


terrenos parecidos, e tudo com o uso de um simples mapa básico. Acho que
era uma habilidade que se desenvolvia com bastante prática.

— Aqui fora está realmente quente… — resmungou ela.

— Posso tentar criar uma tempestade ao nosso redor, caso queira.

— Não precisa, querido. Provavelmente atrairia hordas de monstros.

Os animais do deserto estavam sempre à procura de fontes de água. Pensar


nisso me fez lembrar das hordas de lagartos que surgiam na estação das
chuvas na Grande Floresta. Ainda assim, ouvi dizer que os monstros deste
continente não suportavam o frio. Se algum dia acabássemos cercados, eu
poderia tentar formar algum gelo ao nosso redor… contanto que pudesse fazer
isso sem acabar machucando Elinalise por acidente.

Por hora, entretanto, apenas segui os passos dela.

Era a minha primeira vez caminhando no deserto. Parecia que, a cada passo,
meus pés afundavam no chão. Por sorte, me acostumei a andar pela neve dos
Territórios Nortenhos. Isso não era exatamente igual, mas minha habilidade de
manter os passos leves continuava útil. Senti que poderia suportar o dia todo
sem ficar muito desgastado.

Entretanto, esse otimismo inicial se provou um pouco equivocado. Poucas


horas depois, comecei a ficar cada vez mais exausto. O sol batendo em nossas
costas era o maior problema… Isso e os ventos escaldantes que não paravam
de soprar na minha cara. Percebi que minha temperatura estava alta e que
comecei a ficar um pouco tonto.

Eu me reidratava sempre que podia, mas aquela sensação de cansaço


continuava aumentando sem parar. Talvez devesse convocar uma ou duas
nuvens acima de nós.

Elinalise, em comparação, continuava em uma forma surpreendentemente boa.

— Você não tem tanta resistência quanto imaginei, Rudeus.

— A areia não é um grande problema, já que estou acostumado a andar na


neve… mas o calor está matando.
— Sinceramente, suponho que Cliff ou Zanoba já teriam colapsado. Não trazê-
los juntos foi o melhor.

Eu nunca me cansava de me surpreender com o quanto os guerreiros deste


mundo eram monstruosamente resistentes. Será que essa resistência não
natural também tinha algo a ver com aquela aura de batalha? Isso me deixou
com muita inveja.

De qualquer forma, esse calor era má notícia. Parecia que meu suor evaporava
antes mesmo de escorrer pelo rosto.

Lá nos Territórios Nortenhos, o principal problema era o frio. Lá, poderia gerar
um bolsão de calor ao meu redor com o uso de magia – uma aplicação prática
do feitiço Queima Local. Talvez houvesse uma variação que tornaria este lugar
mais tolerável.

— Ah, isso é bem legal — disse Elinalise. — Precisa de alguma coisa, Rudeus?

— Sim, estou tentando baixar um pouco a temperatura ao nosso redor.

Depois de algumas tentativas e erros, consegui esfriar o clima, mas só uns


cinco graus. Continuava brutalmente quente. O sol estava muito forte; eu
estava usando um capuz grosso, mas ainda parecia que minha cabeça estava
incendiada. Talvez devíamos ter pego guarda-sóis ou algo assim.

Nesse tempo, complementei meu feitiço de resfriamento ao magicamente


congelar a água de um dos meus cantis e o colocando dentro da minha roupa.
Se o gelo derretesse, poderia simplesmente congelá-lo de novo.

Esses ajustes tornavam as coisas um pouco mais toleráveis. Eu não estava me


sentindo confortável, mas ao menos conseguia suportar o calor.

Naquele primeiro dia, encontramos vários monstros.

A primeira criatura que encontramos foi um escorpião gigante, ele tinha uns
dois metros de comprimento. Sua cauda era bifurcada e podia usar os dois
lados como chicotes independentes. Elinalise me disse que se chamavam
Escorpiões da Morte Dupla. Sua picada liberava um veneno muito perigoso, um
que só poderia ser curado por magia de Desintoxicação de nível Intermediário.
Aliás, fiquei feliz por ter me dedicado a aprender esse nível da magia.

A criatura tinha uma carapaça relativamente resistente, mas não era das mais
ágeis. Elinalise o prendeu no lugar e eu atirei um Canhão de Pedra em cerca de
dois segundos. A coisa era supostamente um monstro de rank B, mas não nos
representava ameaça. Trabalhamos bem em conjunto.
Se Elinalise estivesse sozinha, entretanto, poderia acabar passando por
algumas dificuldades. Eu não tinha certeza sobre os ataques dela serem
capazes de causar muito dano a um inimigo tão resistente.

— Uff. Essas coisas são bem grandes, não são? — disse Elinalise.

— Não sei. Me parecem bem normais.

— Bem, são quase do mesmo tamanho dos monstros do Continente Demônio,


não?

— Aham, acho que você tem razão.

Os monstros do Continente Begaritt não deviam ser comparáveis aos do


Continente Demônio. Termos encontrado um tão grande, logo de
cara, foi estranho. Eu não esperava algo com mais ou menos esse tamanho.

— Será que os escorpiões são especialmente grandes? — arriscou Elinalise.

— Claro, talvez. Podíamos ter topado com monstros mais perigosos logo de
cara, não acha?

— Acho que não são tão frequentes.

— Hmm. Então pode ser que os monstros desta área sejam mais fortes que o
normal.

— Isso parece um pouco mais provável.

Ainda assim, continuamos nos movendo no mesmo ritmo.

O próximo monstro que encontramos foi um Ente – este era um inimigo


comum. Era um Ente Cacto, verde e cheio de espinhos, e não uma árvore
ambulante. Era um monstro de rank C, capaz de atirar espinhos nos inimigos e
usar magia de terra básica. Mas, ainda assim, isso não nos representou grande
desafio.

— Topar com um Ente é quase reconfortante, não é? — disse Elinalise, limpando


sua lâmina após terminarmos.

— Acho que sim. Eles estão por toda parte, não? Parecem slimes.

— Hm? Slimes? Mas eles só vivem nas profundezas das cavernas.

— Foi mal, pode me ignorar. De qualquer forma, é uma pena que estes sejam
cactos, não árvores. Não podemos usar seus corpos como lenha.

— Sim, acho que são molhados demais. Isso poderia ser útil, mas já temos
nossa magia.
Elinalise era capaz de usar feitiços básicos de magia de água. Presumi que ela
matava todas as aulas, mas acho que conseguiu aprender o que precisava.

A próxima ameaça surgiu sem qualquer aviso.

— Estamos sob ataque! — gritou Elinalise, saltando de volta para o meu lado.

Uma fração de segundo depois, algo gigantesco surgiu do chão, bem no lugar
onde ela estava antes. Era um verme. Um verme extremamente grande – com
talvez um metro de espessura e pelo menos cinco metros de comprimento. Ele
soltou um som estranho, parecido com um latido, e então voltou a mergulhar
na areia e desapareceu.

— Minha nossa, isso me assustou… — disse ela.

— O que era aquela coisa, Elinalise?

— Acho que era um Verme de Areia. Um dos grandes.

Vermes de Areia eram monstros que esperavam pacientemente sob a areia,


então irrompiam no ar, buscando atacar a presa que passava por perto. Eu
nunca tinha visto um, mas diziam que algumas criaturas semelhantes viviam
na Grande Floresta. Mas seus tamanhos eram bem diferentes. Os que viviam
na floresta tinham apenas uns vinte ou trinta centímetros de espessura e, na
pior das hipóteses, mordiam no máximo uma perna.

— Ouvi dizer que o Continente Demônio tem uns deles bem grandes — disse
Elinalise. — Você nunca viu um?

— A maioria dos monstros que encontrei lá eram cobras e lobos. Ah, isso e uma
coisa estranha que parecia uma armadura ambulante.

— Armadura ambulante? O que eram, Destruidores de Almas?

— Nah, chamam eles de Executores. Eles andam com enormes espadas.

— Ah, esses são do tipo forte. Ninguém gosta de se deparar com um deles
quando está só.

Parecia que os Vermes de Areia locais também eram excepcionalmente


grandes. Tive um vislumbre de um corpo de cinco metros, mas o resto
continuava no subsolo; podia muito bem ter uns dez metros. Isso os tornava
grandes o suficiente para engolir um homem inteiro. Se acabasse vagando por
cima de um sem perceber, seria o mesmo que pisar em uma armadilha mortal
que dispararia na mesma hora.

Ainda assim, não representavam muito perigo, desde que pudesse desviar do
primeiro ataque.
Agitei o solo onde o Verme de Areia estava enterrado, cortando-o com lâminas
de areia endurecida. Ele morreu sem nem gritar. Uma pequena poça de fluidos
se formava ao redor da parte do corpo que ficou para o lado de fora da areia.

— Se eles têm lagartas tão grandes, imagino como devem ser as borboletas —
comentei.

— Talvez seja assim que apareçam as Súcubos. Eles são como borboletas
noturnas, não?

— Ha ha. Isso significa que você é um tipo de inseto, Elinalise?

— Heh, bem… todos passamos por experiências estranhas, você sabe.

Hmm. Então ela não estava negando que era uma Súcubo. Fiquei curioso a
respeito de seus anos como uma lagarta. Ela andava pela biblioteca da escola
com um enorme par de óculos? Trabalhava na fazenda usando um macacão
sujo?

De qualquer forma, senti que Cliff ficaria bem animado se conseguisse uma
foto disso. O coração de um homem sempre bate mais forte quando ele vê um
lado inesperado da garota que ama.

Os últimos monstros que encontramos naquele dia foram um grupo de


formigas. As vimos depois de cruzar uma duna particularmente grande. No
instante seguinte, Elinalise me jogou no chão. Acabamos escorregando no
meio da descida da duna que havíamos acabado de subir.

— Ei! O que você está fazendo?

— Isso é um exército de Formigas Falange!

Isso não significou muito para mim. Mas segui o exemplo de Elinalise,
lentamente rastejando pela duna. Isso envolvia ficar encarando a sua bunda
por um bom tempo. Um verdadeiro colírio para os olhos. Será que Sylphie
ficaria assim com o passar do tempo? A bunda dela já era linda, mas eu não me
importaria se ficasse maior.

— Fique quieto, Rudeus. Não queremos provocá-las.

Nos pressionando contra a encosta da colina, espiamos por cima da crista para
ver as Formigas Falange lá embaixo – criaturas vermelho-brilhantes,
marchando em formação ordenada. Cada formiga tinha cerca de trinta
centímetros a um metro de tamanho. Algumas eram maiores que isso, mas
outras eram visivelmente menores. Também tinham formas diferentes; vi
algumas com asas, e outras até mesmo tinham a parte inferior do corpo com
uma aparência estranhamente humana.
Apesar das variações entre elas, marchavam obstinadamente para o mesmo
destino. Era basicamente um rio de formigas militares enormes – e o rio se
estendia até onde os olhos podiam ver. Não consegui nem imaginar quantas
seriam.

— Dados os números e o tamanho, essa definitivamente é uma ameaça


de rank S — disse Elinalise.

— Uau, sério? Se importa em explicar? Estou um pouco curioso.

— Formigas Falange estão entre os monstros mais perigosos que existem. São
conhecidas pelo apetite insaciável e pela capacidade de consumir qualquer
coisa que apareça pelo caminho. E essas são particularmente enormes. Devem
ser uma espécie única deste continente.

Parecia que as Formigas Falange eram versões mutantes de uma espécie mais
típica de formigas-correição. Ao contrário das outras formigas, não
estabeleciam colônias fixas, passavam suas vidas em constante movimento,
comendo tudo que aparecia pelo caminho. Existiam vários predadores naturais,
mas o grande número as tornava capazes de dominar qualquer inimigo
terrestre – até mesmo dragões perdidos. Em certos intervalos, paravam a
jornada e estabeleciam um ninho temporário, onde se reproduziam, assim
reabastecendo seus números com a próxima geração. Bem parecido com o
comportamento de formigas-correição normais.

Entretanto, visto que eram monstros, e não animais normais, eram mais
espertas e agressivas do que as espécies das quais se desenvolveram. Se
começássemos a casualmente caminhar ao longo da duna, elas nos cercariam
em um piscar de olhos – mesmo se não fôssemos agressivos.

— As formigas não são individualmente poderosas. Devem ser todas de rank E.


As maiores talvez sejam de C ou D.

— Bem, as de rank C não são motivo para desprezo…

E, pela aparência das coisas, havia milhares delas. De qualquer forma, o perigo
representado pelos monstros não era individualmente avaliado; era necessário
analisar a tendência de se moverem em grupos. Mesmo os monstros de rank C
ou D poderiam ameaçar os de rank A, só seria preciso juntar uma dúzia deles.
Em um grupo de milhares, definitivamente seriam de rank S.

Na minha vida anterior joguei alguns videogames onde lutava contra formigas
com três vezes o tamanho de um ser humano, mas não havia nenhuma
necessidade em serem tão grandes. Ainda mais considerando o quão rápidos e
poderosos os monstros eram.

— Ah! Aquela deve ser a rainha.


Elinalise apontou para uma formiga particularmente grande que estava entre a
multidão. Tinha pelo menos dois metros de comprimento e a parte superior do
corpo era humana. Me lembrava um pouco do chefão de um RPG antigo que
cheguei a jogar.

No meu antigo mundo, as formigas-correição rainhas tinham uns quinze


milímetros. Essas coisas eram o quê, cinquenta vezes maiores? Isso era
assustador, claro. Havia muitos monstros que viajavam em grandes grupos, e
tendiam a ser muito bons em colaboração durante batalhas. Se eu lançasse um
feitiço de ataque, provavelmente assumiriam formações perfeitas, assim como
as do exército romano, e me atacariam de todos os lados. Pelo que sabíamos,
podiam possuir ataques de longo alcance e até mesmo mágicos.

Se eu usasse algum feitiço enorme para atingir todas de uma só vez, será que
teríamos chances? Não… Se eu tentasse lançar uma bomba nuclear daquele
tamanho, provavelmente também ficaríamos dentro do alcance.

— Uh, Rudeus? Por que você parece que está se preparando para lutar?

— Hein? Não estou.

— Bem, você está claramente pensando em como poderia matá-las.

Isso estava tão evidente na minha cara? O que eu era, algum tipo de bárbaro
faminto por batalhas?

— Foi mal. Eu estava pensando em como fugir no caso de sermos notados.

— Então tá… mas vamos só sentar e esperar até que o exército todo passe,
entendido?

— Certo — falei enquanto balançava a cabeça. — Entendido.

Não era como se eu fosse ganhar EXP por criar um caminho através de meio
milhão de formigas assassinas. As partes de seus corpos podiam ter algum
valor como matéria-prima, mas eu não poderia me imaginar arrastando aquelas
carapaças pesadas debaixo deste calor brutal. E nosso objetivo era chegar a
Rapan o mais rápido possível, e não fazer renome como dois matadores de
formigas.

Estávamos basicamente em uma missão de reconhecimento. Eu precisava


manter isso em mente.

Ficamos em espera por cerca de uma hora, mas, no fim, o enorme exército de
formigas seguiu marchando e nos deixou para trás.

No deserto, o sol ficava vermelho ao se pôr. A areia começou a emitir um brilho


carmesim e poças de sombra se formaram sob as dunas, mudando o cenário
marrom arenoso generalizado para um padrão impressionante de vermelho e
preto-vívido. Parecia que tínhamos entrado em um mundo diferente.

Ainda assim, um deserto era um deserto. O Saara do meu velho mundo


provavelmente também ficava assim durante a noite.

— A temperatura está caindo rápido — observei. — Sinceramente, acho que


podemos fazer mais progresso durante a noite.

— Suponho que tenha razão. Então vamos continuar andando mais um pouco.

— Claro, estou… Hmm?

Enquanto conversávamos, ouvi algo cortando o ar. Olhando para cima, vi um


grupo de morcegos com cerca de cinquenta centímetros de comprimento.
Estavam batendo as asas ruidosamente e circulando a área. Eu não tinha
notado isso durante o dia; deviam sair à noite para se alimentar de insetos e
lagartos.

— Estes são Morcegos Gigantes, Rudeus.

— Ah, são monstros?

— Um caso limítrofe, mas se movem em grupos. Devemos tomar cuidado.

Como monstro, o Morcego Gigante provavelmente era uma ameaça de rank F,


ou talvez E, se houvesse um número grande o suficiente deles. Eles não tinham
poder mágico ou ofensivo surpreendente e não eram agressivos com os
humanos. O principal problema parecia ser que o bater de asas deles poderia
se tornar meio irritante.

— Huh? E-Espera, o que há com essas coisas?!

Por alguma razão, porém, esses estavam se aglomerando ao redor de Elinalise.


Não pareciam estar atacando, mas tinham praticamente a cercado. Será que
eram todos machos?

— Ei! Rudeus! Não fique só olhando. Me ajude!

— Aham, pode deixar.

Mesmo ágil como era, Elinalise não poderia se mover direito enquanto se movia
com uma parede de morcegos ao seu redor. Teria que derrubar todos eles com
um pequeno tornado ou algo assim.

— Hm?

Mas, enquanto me preparava para lançar um feitiço, notei uma silhueta


particularmente grande no meio do enxame. Era uma figura humanoide com
asas de morcego e estava voando em nossa direção de forma estranhamente
furtiva… e havia um cheiro meio doce no ar.

Era uma Súcubo.

— Ah, merda! Canhão de Pedra!

Bati minha grande e dura pedra direto na pequena sedutora. Fazendo uma
careta de agonia, ela segurou a barriga e pulou para trás, então se virou para
fugir. Inconscientemente diminuí a intensidade do feitiço para um nível não
letal. Eu tinha dificuldades para matar algo que parecia tão humano.

Estava na hora de encarar os fatos: não fui criado para ser um exterminador de
Súcubos. Eu não conseguia me obrigar a matar as coisas, e sempre que sentia
aquele cheiro bom… os feromônios ou o que quer que fossem… eu meio que
perdia a noção da realidade. Se alguma vez acabasse em um combate
individual com uma, eu poderia ser facilmente derrotado.

Claro, enquanto pudesse fazer uso do benefício da distância, eu poderia


derrubá-las com um único Canhão de Pedra. Se pudesse ver a chegada, não
seria uma ameaça.

Em termos de habilidade de combate, uma Súcubo provavelmente era o


equivalente a um monstro de rank E, mas costumava ser classificada
como rank C. Sua capacidade de hipnotizar a tornava poderosa.

Que bom que eu não era mais um virgem. Se eu não tivesse aquelas doces
lembranças das minhas noites com Sylphie, eu não teria chances de ir contra
essas coisas.

Mesmo na minha vida anterior, eu tinha uma queda pelas Súcubos. Naquele
mundo, elas costumavam usar uma tonelada de maquiagem, mas, sem
problemas, ninguém precisava saber o que havia por baixo daquela máscara de
mentira. A pessoa só precisava se permitir a acreditar na ilusão.

Para resumir a história, não foi por minha culpa que fiquei com tesão e agarrei
Elinalise pela bunda depois de nos livrarmos dos Morcegos Gigantes. Fui uma
vítima das circunstâncias.

— Ei! Rudeus? Se recomponha! Use aquele feitiço de Desintoxicação agora


mesmo! Gah, pare de se esfregar em mim!

— Vamos lá! Por favor? Só a cabecinha? Não vou fazer mais do que isso! Por
que não me deixa usar a porta dos fundos? Isso não conta como traição,
certo?!

— Larga de ser idiota!


— Guhoh!

Como resposta à minha persistência, levei um golpe de escudo. Se Elinalise


fosse uma personagem de alguma visual novel, deveriam chamá-la de “heroína
infantilmente violenta” nos fóruns da internet. Não que ela não tivesse razão, é
claro.

De qualquer forma, a dor restaurou um pouco da minha sanidade, então usei


meu feitiço de Desintoxicação.

— Haa… haa… sinto muito pelo incômodo, Elinalise…

— Está tudo bem. A culpa foi do monstro, não sua.

Cara, ela realmente me acertou com tudo… tratou essa coisa como se fosse um
porrete…

— Sinceramente, espero que tenha sido a última daquelas criaturas horríveis…


Ugh, agora você me deixou toda animada.

Batendo nas bochechas coradas, Elinalise vigorosamente balançou a cabeça.


Meus rituais de acasalamento pareciam ter conseguido algum efeito. No final
das contas, foi culpa da Súcubo, mas isso não importava. Ela teve justificativas
para me bater.

Minha mandíbula ficaria doendo por algum tempo, mas essas coisas
acontecem.

— Aqueles morcegos pareciam estar sob o controle da Súcubo, não?

— É, imagino que sim.

O Continente Central tinha monstros que também comandavam os monstros


mais fracos. Na verdade, o primeiro monstro que vi neste mundo era um deles.
Como que chamavam aquilo mesmo? Eu só tinha visto uma vez, então acabei
esquecendo. Era um tipo de criatura parecida a um javali que andava sobre
duas pernas.

Aparentemente, as Súcubos podiam controlar os enxames de Morcegos


Gigantes da mesma forma. Quando viam homens e mulheres viajando juntos,
ordenavam que os morcegos atacassem as mulheres e aproveitavam a
oportunidade para seduzir os machos. Levavam os homens para os seus covis,
onde os deixariam literalmente secos e depois os comeriam.

Eu poderia derrubar as coisas de longe com um só golpe, mas um guerreiro ou


espadachim acostumado a combate corpo a corpo deveria se ver em apuros.
Como poderiam lidar com aquele cheiro de perto? Quanto mais tempo a luta
durasse, mais difícil seria manter a concentração. Mesmo o mais puro dos
cavaleiros acabaria de joelhos.

Os gays deviam ser as únicas pessoas com chances de lutar.

— O que foi desta vez…?

Não muito depois da nossa batalha com a Súcubo, um lagarto de duas pernas
que parecia um velociraptor apareceu sobre uma duna que estava próxima.
Logo atrás dele estavam outros, e estavam seguindo em nossa direção.

Não eram especialmente grandes, mas havia uma dúzia deles. Alguns foram
direto no rumo dos Morcegos Gigantes caídos e começaram a se alimentar
deles.

— Nunca vi essas coisas antes — disse Elinalise, cautelosamente erguendo o


escudo. Também preparei meu cajado e observei as criaturas com cuidado.

— Estou surpreso. Achei que você conhecia todas as criaturas que existem,
Elinalise.

— Não sou uma pesquisadora de monstros profissional, sabe…

Ela, pela primeira vez, não conseguiu identificar o nome do inimigo que
estávamos enfrentando. Isso provavelmente significava que era uma espécie
encontrada apenas no Continente Begaritt.

Quando nos avistaram, assobiaram alto e alguns pularam para atacar. Parecia
que estavam mais preocupados em proteger a refeição do que com qualquer
outra coisa. Não que realmente precisassem fazer isso, visto que matamos os
morcegos.

Eles eram rápidos e tinham garras afiadas, mas não eram particularmente
perigosos. Eliminamos sete deles em poucos segundos, reduzindo o número
para cerca de dez. Os sobreviventes, percebendo o perigo que corriam,
afastaram-se com cautela.

Parecia ser fácil cuidar de todos os sobreviventes com um único feitiço grande,
mas…

— Rudeus! Cuidado! Tem alguma coisa chegando!

Um grupo de monstros maiores estava se aproximando furtivamente pela


nossa retaguarda. Eram galinhas gigantes, com uns cinco metros de altura –
podiam ser identificados como dinossauros com penas. Suas cristas tinham
um tom de vermelho brilhante e ofuscante.

Pelo visto, essas coisas eram predadores naturais dos “velociraptors”. O grupo
atacou os lagartos na mesma hora, matando a maioria deles e fazendo com
que os sobreviventes fugissem em desespero. As galinhas consumiram suas
vítimas lá mesmo.

— Deve ser um tipo de Garuda…

Sozinho, um Garuda seria considerado um monstro de rank C, mas aqueles que


se moviam em grupos costumavam ser classificados como ameaças
de rank B. Este grupo, no caso, com certeza era um dos grandes.
Provavelmente estávamos em um território de rank A. Como a batalha estava
acontecendo meio longe, as galinhas enormes se contentaram em soltar
alguns gritos ameaçadores e não se incomodaram em nos atacar.

Os poucos lagartos sobreviventes ainda estavam tentando fugir em desespero,


mas nesse ritmo não iriam durar mais muito tempo. E assim que os Garuda
terminassem de comer, provavelmente sairiam atrás de nós. Podíamos ser
capazes de lidar com eles, mas…

— Vamos sair logo daqui, Rudeus. Tem algo ainda maior chegando.

Os sentidos aguçados de Elinalise já haviam detectado um predador


verdadeiramente enorme se aproximando por trás das galinhas monstruosas.

— Entendido.

Enquanto recuávamos, Elinalise conseguiu agarrar o corpo de um dos lagartos


menores para levar conosco. Devia ser melhor do que comer morcegos.

Depois de criar alguma distância entre nós e o local daquela batalha,


encontramos um lugar tranquilo para erguer um abrigo temporário.
Passaríamos o resto da noite ali.

Em vez de depender de nossas provisões, decidimos cozinhar e comer o


lagarto morto naquela mesma noite. Ainda tínhamos comida suficiente, mas
qualquer aventureiro que se preze buscava suplementar os suprimentos
sempre que podia.

Este dia nos ensinou que o deserto ficava bem diferente durante a noite. Assim
que o sol se pôs, os monstros continuaram aparecendo. Se tivéssemos parado
para lutar contra os Garudas, provavelmente teríamos nos encontrado com
uma nova ameaça não muito depois.

Elinalise especulou que os feromônios da Súcubo atraíram as outras criaturas


para aquele local. O cheiro era doce para os homens e insuportavelmente
desagradável para as mulheres. Era difícil dizer se isso também se aplicava aos
monstros, mas eles talvez tivessem aprendido que sempre encontrariam uma
presa no caso de seguir aquele odor.
E, claro, Súcubos visavam machos humanos… ou seja, grupos de pessoas
naturalmente acabariam atraindo enxames de monstros enquanto estivessem
neste deserto. A primeira Súcubo que encontramos não estava com Morcegos
Gigantes ou outras criaturas, mas havia uma barreira mágica protegendo
aquela área. Aquela Súcubo talvez tivesse dado um jeito para entrar sozinha.

Ah, merda. E se fosse amiga de Orsted ou algo assim?

N-Nah, sem chances… se fosse o caso, não teria apenas me atacado. Teria
perguntado se eu o conhecia ou algo assim, certo?

Mas calma lá. E se fosse tudo apenas um grande mal-entendido cultural? E se a


Súcubo só quisesse dizer oi? No Japão, as pessoas gostam de conversar com
as outras durante o banho. Os estrangeiros nunca conseguiam entender isso.
Talvez fosse um caso parecido.

Se fosse mesmo isso, seria realmente lamentável. Eu poderia ter


acidentalmente matado uma velha amiga de Orsted. Já era tarde demais para
voltarmos e fazer uma cova adequada ou coisa assim? Se mostrássemos
algum respeito a ela, ele podia ficar menos indignado…

Não, não. Se ele tivesse colocado algum guardião lá, Nanahoshi teria dito. E,
graças à maldição dele, a maioria das pessoas odiava Orsted por puro instinto.
Isso provavelmente também se aplicava a monstros humanoides.

Levando todas as opções em conta, devia ter sido só coincidência.

— Fwaaah… Sou obrigada a dizer isso: o Continente Begaritt não é tão parecido
com o que eu imaginava. — O bocejo de Elinalise ecoou dentro de nosso
pequeno abrigo. Eu invejava a sua capacidade de relaxar. Ela talvez estivesse
menos despreocupada se fizesse alguma ideia de como Orsted era.

Ainda assim, eu estava pensando muito nas coisas. Não podíamos começar a
nos preocupar sobre cada monstro que encontrávamos ser amigo de alguém. A
coisa tentou me comer. Nós lutamos para nos proteger. Era simples assim.

Afastando aquele pensamento improdutivo, me virei para responder.

— Aham, imagino que sim. Há muito mais monstros do que eu esperava.

Em termos de taxas de encontro, este lugar parecia ser ainda pior do que o
Continente Demônio. Com alguma sorte, não teríamos estragado tudo e ido
parar no Continente Divino ou coisa do tipo.

— Bem, por enquanto estamos nos saindo bem, e é isso que importa.

— Claro. Mas isso não significa que possamos ser descuidados.


— Não preciso que você me diga isso, querido. Ainda assim, se pudermos
continuar fazendo o que fizemos hoje, devemos ser capazes de lidar com o
ataque de qualquer coisa.

— Apenas certifique-se de que estará pronta para lidar com as coisas no caso
de outra Súcubo me pegar, certo?

— Que tal você tomar um pouco mais de cuidado?

Nosso primeiro dia no deserto finalmente acabou. Para ser sincero, tinha
parecido durar mais de uma semana.

Tínhamos um longo caminho a percorrer.

Cap. 12 – Atravessando as Dunas

Nosso segundo dia na estrada não foi menos agitado. Na verdade,


encontramos ainda mais monstros. Graças ao quão árido era este deserto, ele
parecia estar cheio de criaturas.

Os Vermes de Areia eram particularmente desagradáveis. Eles não


apresentavam ameaça real, desde que ficasse sempre alerta e os visse com
antecedência, mas às vezes surgiam outras coisas que exigiam atenção. Como
monstros, por exemplo. Em um ponto, tropeçamos em um Verme de Areia
enquanto lidávamos com um Escorpião da Morte Dupla. A coisa me engoliu
inteiro e começou a me arrastar para o subsolo. Surpreso com o
acontecimento, consegui disparar um feitiço Intermediário, Corta Vento, para
rasgá-lo por dentro.

Depois de usar magia de terra para abrir um túnel até fora do solo, descobri que
Elinalise havia sido atingida pelos ferrões venenosos do escorpião. Ela estava
de joelhos e seu rosto todo roxo. Elinalise ficou tão alarmada ao ver o Verme de
Areia me engolindo que acabou perdendo o foco. Rapidamente matei o
escorpião e usei magia de Desintoxicação para salvar a vida dela.

Sério, desta vez os problemas não foram culpa nossa. Só tivemos azar.

— Bom trabalho nos tirando dessa bagunça, Rudeus. Posso ver porque você
conquistou tanta reputação como aventureiro.

Elinalise não me culpou pela situação, mesmo ela tendo quase morrido, e o
mais descuidado tinha sido eu. A mulher era definitivamente madura.
— Não pareça tão infeliz, certo? — disse ela. — Não importa o quão alerta você
esteja, às vezes você não consegue fazer tudo o que precisa. Conseguimos
sobreviver, e é isso que importa.

O risco de fracasso estava sempre presente – assim como o de morte.


Elinalise sabia muito bem disso.

Por sorte, foi nosso único encontro realmente perigoso ao longo daquele dia.
Em certo ponto, avistamos um monstro colossal lá longe. Ele caminhava sem
pressa, mas cada um de seus passos erguia uma nuvem de areia que ficava
visível mesmo de muito longe. A coisa devia ter centenas de metros de altura. E
era difícil de descrever. Acho que poderia dizer que era como uma baleia azul
com pernas de elefante.

— Aquilo é um Behemoth, Rudeus.

— Huh. Já viu algum deles antes, Lise?

— Oh? Alguém de repente ficou um pouco mais casual.

— Não sei do que está falando. Apenas sou respeitoso com os mais velhos.

— Zanoba também é mais velho que você, sabia?

— Bem, claro, mas ele é basicamente uma criança grande…

Pelo visto, o Behemoth era um dos monstros mais famosos do continente. O


comprimento deles variava entre cem e mil metros.

Ninguém sabia o que aquelas coisas comiam, mas só eram avistados no


deserto. Eram monstros supostamente pacíficos, e tendiam a deixar as
pessoas em paz, a menos que fossem atacados.

Alguns aventureiros alegavam ter matado um e encontrado um enorme número


de pedras mágicas na barriga da coisa. Ouvindo esses rumores, algumas
pessoas tentaram caçá-lo, visando lucro, mas derrubar um Behemoth era muito
mais difícil do que parecia. A pele externa era extremamente resistente e,
graças ao tamanho todo, um aventureiro comum mal conseguiria arranhá-lo.
Não tinham ataques especiais ou armas naturais, mas o simples ato de sacudir
aquele corpo enorme já era o suficiente para matar a maioria dos inimigos.

E se atacasse de longe? Bem, as criaturas pareciam ser capazes de se enterrar


na areia sempre que as coisas começavam a ficar feias.
Quase ninguém conseguiu matar um. Além disso, apesar do tamanho enorme,
ninguém havia encontrado um cadáver deles. Isso dava origem a rumores de
que havia um “cemitério de Behemoths” escondido em algum lugar. Um
conceito empolgante – me lembrava dos mitos sobre cemitérios de elefantes
do meu antigo mundo. Mas, falando de maneira mais realista, seus cadáveres
eram provavelmente devorados por outros monstros.

— Sabe, se você tentar, pode acabar conseguindo derrubar um, Rudeus.

— Não estou planejando atacar qualquer herbívoro inofensivo que aparecer


sem ter um bom motivo.

Ainda assim, se eu alguma vez me encontrasse realmente sem dinheiro, tentar


atacar um desses de uma distância segura poderia ser interessante.

Em nosso terceiro dia no deserto, encontramos nossa primeira tempestade de


areia.

Encontramos talvez não seja a palavra mais adequada. Estávamos


caminhando, até que vimos algo lá longe que parecia uma parede – e quando
chegamos mais perto, descobrimos que era uma parede de areia. Elinalise e eu
consideramos a possibilidade de esperar até que passasse, mas, pelo que
parecia, era uma tempestade estática que nunca acabava. Não parecia
provável que pudesse ser parada ou que fosse desaparecer. E estávamos com
pressa, é claro.

Acabei usando minha magia para lidar com a tempestade enquanto


atravessávamos a areia. Meus professores diziam que era melhor não me
intrometer muito com o clima, mas este parecia ser um caso justificado.

Quando me virei para olhar para trás, depois de caminhar por cerca de uma
hora e meia, descobri que a tempestade de areia continuava exatamente como
antes. Parecia plausível que fosse um tipo de barreira mágica – uma defesa de
aparência natural no meio do caminho que levava ao teletransportador de
Orsted. Nanahoshi não tinha mencionado isso, mas acho que a escutei dizendo
que ela não estava muito bem durante a viagem pelo deserto.

Em nosso quarto dia, o número de monstros que encontramos diminuiu


drasticamente. Aquela tempestade de areia talvez os mantivesse selados na
área que acabamos por deixar para trás.

Também havia criaturas nesta parte do deserto, é claro, mas eram totalmente
diferentes daquelas na região das ruínas. Os escorpiões só tinham uma cauda
e não avistamos nenhum exército de formigas. Os Vermes de Areia agora
tinham a grossura no máximo do mesmo tamanho que a cintura de Elinalise.
Além disso, não parecia haver nenhum Morcego Gigante batendo asas à noite.
Vimos alguns lagartos aqui e ali, ao crepúsculo, mas eram menores, assim
como seus grupos. Não havia qualquer sinal de Garudas.

Mais importante ainda, não apareceram mais emboscadas noturnas das


Súcubos. Acho que isso era o melhor, mas uma parte de mim meio que ficou
desapontada, sabe?
Nah, esquece.

O quinto dia foi igual. Caminhamos pela mesma areia de sempre, olhando para
a mesma paisagem de sempre, vendo os mesmos traços característicos de
sempre.

Quando se está caminhando por um lugar sem qualquer ponto de referência


visível, é supostamente fácil acabar andando em círculos enquanto se pensa
que está indo para frente. Isso tem algo a ver com a diferença no tamanho da
passada que dá, guiada pela perna dominante.

Eu estava confiante de que Elinalise estava nos mantendo no caminho certo.


Mas também estava começando a sentir que já tinha visto alguma dessas
dunas de areia. A dúvida tomou a minha mente. Será que podemos estar
perdidos?

Minha crescente desconfiança não era um problema grande, contanto que eu


mantivesse isso só para mim. Se eu expressasse qualquer um desses
pensamentos, Elinalise ficaria muito irritada e, se isso afetasse nosso trabalho
em equipe, poderíamos acabar morrendo.

A única coisa que eu poderia fazer era ser compreensivo. Se ela estragasse
tudo, eu precisaria dizer “Tudo bem!” enquanto sorria. Esta era uma zona de
não-negatividade.

— Hm… Rudeus, acho que estou vendo alguma coisa.

No final, minha determinação não precisou ser testada. Eu também podia ver
um vago borrão brilhante no horizonte, na direção que Elinalise estava
apontando.

Definitivamente havia algo por lá. Meus olhos não eram aguçados o bastante
para eu dizer o que era, mas a cor sugeria que não era apenas parte do deserto.
Mas ainda existia a possibilidade de ser apenas uma miragem.

Traçamos nosso caminho em direção ao borrão, permanecendo em alerta


máximo.

Pensando bem, não encontramos nenhum monstro ao longo do dia. A área


talvez simplesmente não abrigasse nenhum… Não que eu fosse ficar de guarda
baixa, é claro.

Enquanto ficava pensando nisso, a forma à nossa frente ficou maior e mais
clara. Era uma formação rochosa gigante, uma que me fez pensar no Uluru 1, e
tinha uns cinquenta metros de altura.
A parede à nossa frente parecia bem íngreme, talvez até vertical. Subir até o
topo deveria ser um bom desafio. E se estendia de um lado ao outro do
horizonte, seu fim fora de vista.

— Devemos procurar uma forma de contornar isso? — perguntou Elinalise.

— Não, vamos escalar. Vou usar a minha magia.

Com um simples feitiço de terra, criei um pilar de pedra; pegando Elinalise nos
braços, subi enquanto o pilar servia como um elevador improvisado. Não tinha
como saber o que poderia tentar nos emboscar lá no topo, então subi bem
devagar.

De repente, notei uma sensação estranha. Havia algo… esfregando a minha


bunda?

— Uhm, Elinalise?

— Pois não?

— Há algum motivo para você estar me apalpando?

— Ah, é só força do hábito. Não precisa se preocupar.

Durante os vários minutos que levamos para chegar ao topo da plataforma


rochosa, Elinalise continuou me apalpando.

—…

Sua maldição podia estar começando a fazer efeito. Eu estava mantendo o


suprimento de mana para a invenção de Cliff, mas tudo o que isso podia fazer
era nos dar mais tempo, e já haviam passado cerca de dez dias desde a última
vez que os dois estiveram juntos. Elinalise provavelmente poderia suportar
mais um pouco, mas a coisa era só um protótipo; não podíamos confiar
cegamente nisso. Quanto mais cedo chegássemos a uma cidade, melhor.

Na pior das hipóteses, eu mesmo teria que dormir com ela. Mas não importa o
quanto eu tentasse me enganar, isso seria traição à minha esposa. E, mesmo
podendo culpar a maldição, continuaria sendo traição. Tínhamos decidido de
antemão que não dormiríamos juntos nesta viagem, e eu precisava cumprir
essa promessa.

Se Bazaar tivesse um bordel onde pudéssemos contratar um garoto de


programa, seria o ideal. Dessa forma, seria uma simples transação comercial.
Ela poderia cuidar das suas necessidades sem que nenhum de nós sentisse
alguma culpa.

— Elinalise, já chegamos no topo.


— Sim, parece que chegamos.

Ela ainda estava agarrada a mim e parecia estar olhando para os meus ombros
com alguma paixão nos olhos.

— Pode me soltar…

— Ah, é mesmo. Sinto muito.

Ela deu um passo para fora do pilar e se afastou de mim, mas seus olhos logo
caíram para a parte inferior do meu corpo. Eu estava definitivamente
começando a pressentir o perigo.

Segurá-la daquele jeito durante a subida podia ter sido um erro. Se eu tivesse
pensado por mais alguns minutos, poderia ter descoberto outra maneira de nos
levar ao destino. Mas, ainda assim, senti como se ela estivesse tentando evitar
contato físico comigo nos últimos dias. E agora eu tinha jogado água no
deserto. Precisávamos chegar a Bazaar o quanto antes.

— Então vamos indo — disse ela depois de um momento.

— Claro.

Apenas alguns segundos após começarmos a andar, entretanto, uma sombra


correu pelo chão, seguindo em nossa direção.

— Rudeus! Abaixe-se!

Quando Elinalise gritou um aviso, me joguei para baixo e para frente, sequer
olhei para cima. Um instante depois, alguma coisa passou voando sobre mim e
um formigamento correu pela minha espinha.

Me apressei a ficar de pé e olhei para cima. Fomos atacados por um monstro


com corpo de leão e cabeça de águia. Batendo suas enormes asas e fazendo
barulho, ele caiu no chão a alguma distância de nós.

— É um Grifo! — gritou Elinalise, puxando sua espada.

Rapidamente foquei meus pensamentos na batalha em questão. Preparar meu


cajado e virar o rosto para a criatura me deixaria em uma posição
estranhamente exposta, e Elinalise estava atrás de mim, nossa formação usual
estava revertida. Mas, mesmo em uma situação assim, ela provavelmente
poderia fazer uma manobra e ir para a linha de frente sem ficar na minha linha
de fogo, e então eu poderia ficar atrás em segurança.

Ou foi o que pensei.

— São dois deles, Rudeus! Você cuida desse!


Um som alto de batidas soando de trás confirmou que fomos pegos em um
ataque em pinça. Eu precisaria cuidar do Grifo A sozinho. Se eu saísse do
caminho do monstro, ele passaria direto por mim e atacaria Elinalise por trás.

Ainda assim, talvez fosse o caminho mais seguro. Se ela pudesse segurar os
dois por algum tempo, eu seria capaz de abater um de cada vez. Bem, isso
seria parecido com o nosso padrão de sempre…

Mas não tínhamos elaborado nenhum plano desse tipo. Ela me disse para
cuidar de um. Então, se eu não o matasse, ela poderia ser pega de surpresa.

Então tá.

O Grifo estava parado com o corpo inclinado para a frente, o bico meio aberto,
olhando para mim com ferocidade. Não estava longe e parecia ser uma criatura
ágil. Ele podia ser capaz de esquivar do meu Canhão de Pedra, ou até mesmo
ignorar o impacto do ataque. Eu precisava ter certeza absoluta de que mataria
a coisa.

Ele tinha asas. Eu não tinha certeza de quão longe a criatura poderia voar com
elas, mas um Atoleiro provavelmente não seria muito eficaz. Isso me deixava
com minha magia de vento.

As pernas traseiras do Grifo de repente ficaram tensas. Eu não tinha tempo


para pensar. Lançando-se para frente com um poderoso chute, o monstro
correu em minha direção com as pernas estendidas, igual faria um tigre
atacando.

Me abaixei e lancei um feitiço de nível Avançado, Ouriço de Terra, no chão. Um


círculo com espinhos de três metros surgiu ao meu redor.

— Kyeeaah!

O Grifo começou a bater as asas. Mas meu Olho da Previsão foi gentil o
suficiente para me mostrar qual era o plano dele.

Ajustará o curso no ar, desviará para o lado e tentará se distanciar.

Chicoteando minha mão esquerda para frente, disparei um feitiço de vento,


criando uma onda de choque aérea que tomou a mobilidade do Grifo. Ele girou
impotentemente por um instante; mas antes que eu pudesse prosseguir, girou
o corpo com a agilidade de um gato, tentando se preparar para uma
aterrissagem suave.

Disparei um Canhão de Pedra no local em que ele estava caindo. O projétil


cortou o ar e atingiu o alvo, passando direto pelo corpo da criatura enquanto
fazia um estalo úmido. O Grifo cambaleou um pouco e desabou no chão.
A coisa parecia já ter morrido, mas ainda assim a finalizei com um feitiço de
fogo, para ter certeza absoluta, e então me virei para ver como Elinalise estava
se saindo.

Ela, por sorte, estava bem. A vi defendendo alguns golpes do Grifo com seu
escudo enquanto golpeava com seu florete. As patas dianteiras do monstro
estavam banhadas de sangue; ela obviamente tinha as definido como alvo,
tentando reduzir suas capacidades de ataque.

— Atenção, Elinalise! Canhão de Pedra!

— …!

Após um grito de advertência, disparei mais um projétil mortal. Elinalise


agilmente saiu do meio do caminho.

O Grifo não a acompanhou. Ele me notou e estava tentando se esquivar no ar,


mas Elinalise o acertou com seu florete, desferindo um golpe superficial na
perna dianteira da coisa e a derrubando de novo.

A pedra afiada acertou o pescoço do Grifo e rasgou seu corpo, cortando sua
coluna toda até sair. O monstro caiu no chão e começou a convulsionar.
Elinalise avançou e apunhalou a cabeça da criatura para acabar com o
sofrimento dela, então queimei seu corpo com magia de fogo.

Nós dois levamos alguns minutos para vasculhar a área, buscando quaisquer
reforços adicionais que podiam estar escondidos, e só então soltamos um
suspiro de alívio.

— Sinto muito por isso, Rudeus. Fiquei um pouco distraída.

— Nah, eu também não estava prestando atenção.

Depois de pedirmos desculpas por nossos deslizes, voltamos nossa atenção


para a estrada à frente. O topo da plataforma rochosa tinha uma camada de
areia aqui e ali, mas era, na maior parte, de pedra sólida. Ao menos não
teríamos que nos preocupar com coisas abaixo do solo.

— Vamos nos certificar de começar a prestar atenção no céu.

— Sim, vamos.

Com essa breve análise finalizada, mais uma vez partimos.

No sexto dia, descobrimos que a plataforma rochosa era um local cheio de


ninhos de Grifos. Várias criaturas pareciam ter fragmentado a área em
territórios, a julgar pelo constante ritmo de ataques que enfrentamos.
Grifos eram monstros de rank B. Eles não usavam magia, mas eram
fisicamente poderosos e tinham capacidades de voo limitadas. Essa
mobilidade adicional os tornava bem mais difícil para que um mago, igual eu,
mirasse. Na maioria das vezes, os encontrávamos sozinhos, mas às vezes
podíamos nos deparar com pequenos grupos de dois a cinco. As criaturas
eram inteligentes e podiam organizar ataques coordenados e emboscadas,
portanto, em grupo, eram consideradas ameaças de rank A.

Entretanto, sem o elemento surpresa, não eram páreo para nós.

A noite caiu, mas nenhuma Súcubo apareceu para nos assediar. Provavelmente
evitavam a área dos Grifos. Pelo jeito das coisas, eles eram bem territoriais.
Depois de derrotar todos que encontramos, não havia muito risco de algum
outro grupo aparecer na mesma hora.

Em outras palavras, estávamos em segurança. Pela primeira vez em algum


tempo, preparamos uma fogueira e assamos um pouco de carne de Grifo para
o jantar.

O último grupo que derrotamos era de um macho, uma fêmea e o filhote, então
selecionamos o menor para comer. Animais jovens tendem a ser mais
saborosos e macios. Me senti um pouco mal com isso, já que logo seria pai,
mas tínhamos que fazer tudo que estava ao alcance para poder sobreviver.
Afinal de contas, as pessoas são criaturas egoístas.

Felizmente, aprendi alguns truques para cozinhar carne de monstro – como


sempre carregar alguns temperos comigo. Os lagartos não eram
particularmente saborosos, mas o Grifo era basicamente parte pássaro e parte
mamífero, então eu estava com as expectativas em alta.

Para o tempero, usei um pouco de nozes Kokuri moídas e sementes de Awazu


e folhas de Abi. Depois de misturar e moer tudo, provei a mistura enquanto
lambia o dedo. Mmmm. Agradável e picante.

Esfreguei o tempero em toda a superfície do corte que tiramos do animal


abatido, tomando cuidado para esfregar direitinho. Depois de adicionar uma
pitada de sal, passei para a parte de cozinhar. Uma vez que a superfície estava
corada, afastei a carne do fogo, o diminuí e esperei mais um pouco. Assim que
a gordura começou a chiar, estava pronto para comer.

Tentando não queimar a língua, dei uma cautelosa mordida experimental.

A carne estava macia e suculenta. Tinha um sabor meio estranho, mas as


especiarias o mascaravam. Dada a forma como fiz as coisas, não estava
totalmente cozido. Mas isso não era problema – e depois de comer a parte
mais superficial, poderia simplesmente colocar um pouco mais de tempero.
— Ah, isso realmente lembra os velhos tempos — disse Elinalise. — Geese
também costumava sempre carregar algumas especiarias.

— Sim, isso parece bem comum entre o tipo dele, não?

Depois que Eris me largou, passei vários anos vivendo a vida de aventureiro.
Naturalmente, passei boa parte desse tempo com grupos. Sempre parecia
haver um cara no grupo que fazia seus próprios temperos e os carregava por
aí. Por alguma razão, costumava ser o tipo de cara que empunhava uma adaga,
arrombava fechaduras e desarmava armadilhas. Eu frequentemente os notava
guardando nozes e folhas aleatórias para depois.

Mas coisas colhidas pelo caminho não eram úteis apenas para cozinhar. Às
vezes, acontecia de topar com um monstro que recuava após sentir os sabores
e cheiros fortes de certas plantas. Algumas plantas também eram bons
repelentes para insetos. Vi até mesmo um cara jogando um tipo de pó nos
olhos dos inimigos para cegá-los.

— Gostei bastante da forma como você temperou isso, Rudeus.

— Bem, é bom ouvir isso.

Elinalise estava abertamente lambendo a gordura dos dedos. Ela costumava


não fazer isso enquanto comia em uma taverna qualquer. Não, a menos que
estivesse tentando seduzir alguém.

— Hoje seus modos à mesa não estão tão bons, Elinalise.

— Céus. Agora você parece a Zenith.

— A Mamãe costumava te importunar com isso?

— Ah, sim. — Ela ficou corada e sibilou: — Você é uma moça, Elinalise! Tente agir
como tal!

A imitação que Elinalise fez de Zenith não batia muito com a mulher que eu me
lembrava. Mas acho que elas se conheceram bem antes de eu nascer.

Me vi pensando sobre onde Zenith estaria, mas afastei o pensamento da


cabeça. Não tinha sentido em ficar ansioso.

— Você também era promíscua naquela época?

— Promíscua? Que rude. Mas suponho que sim. Só que, naquela época,
dormíamos todos só com as roupas de baixo ou nus. No começo, Ghislaine não
sabia nem para que serve um sutiã! Você devia ter visto o tanto que o Paul
secava ela…
Era difícil imaginar Ghislaine sendo tão sem vergonha… mas ela talvez só não
soubesse o que estava fazendo. Isso se encaixava perfeitamente na sua
personalidade. Quanto a Paul, bem… o comportamento do cara podia até ser
imperdoável, mas acho que eu faria a mesma coisa. Mulheres do povo-fera
tendiam a ter uns peitos bem impressionantes.

— Sabe, pensando bem… Acho que Zenith tinha mais ou menos a sua idade
quando a conheci — disse Elinalise.

— Sério? Você a conhece desde que ela era adolescente?

— Sim. Ela era uma garotinha inocente e sem noção. Paul a pegou na rua e a
arrastou para o nosso grupo, aquele canalha.

Enquanto lembrava dessas coisas, havia uma expressão de afeto e nostalgia


no olhar de Elinalise. Pensando bem, Geese e Ghislaine pareciam igualmente
felizes quando falavam sobre o passado. Provavelmente passaram por bons
momentos juntos.

— Tenho a impressão de que o Papai gostaria de se desculpar com você por


algo que aconteceu naquela época. Tudo bem se eu perguntar o que
aconteceu?

— É melhor você não saber, querido… — disse Elinalise, agora fazendo careta. —
Não acho que você queira ouvir muito sobre os romances de seu pai, não é?

— É, você tem razão. — Para falar a verdade, eu meio que queria, mas não
queria pressioná-la. Às vezes, é necessário que um homem suporte a sua
curiosidade.

A resposta dela ao menos me denunciou que tinha algo a ver com a vida
amorosa dele. Parecia que ele chegou a ter relacionamento físico com
Ghislaine, então não me surpreenderia se também tivesse dormido com
Elinalise. E aí Zenith engravidou e o grupo todo acabou… Eu poderia facilmente
imaginar como isso poderia resultar em algum drama horrível.

— Assim que chegarmos a Rapan, tenho certeza de que ele se curvará pedindo
desculpas — falei.

— Não vou perdoá-lo, não importa o que ele diga…

Elinalise continuava fazendo cara feia. O que quer que tivesse acontecido, devia
ter sido bem feio.

Paul era mesmo um canalha imprestável, mas era exatamente por isso que eu
precisava ajudá-lo. Caras como nós tínhamos que cuidar um do outro.
Se acontecesse o pior, eu talvez precisasse implorar pessoalmente para
Elinalise perdoá-lo.

O sétimo dia começou igual ao sexto, e fizemos certo progresso para o norte
enquanto lutávamos contra os Grifos. Esta plataforma rochosa era maior do
que eu esperava – talvez fosse até mesmo uma montanha. Embora o topo
fosse totalmente plano, não podíamos ver nada em nenhuma das direções,
tudo graças às pedras gigantes espalhadas de forma aleatória.

De vez em quando, porém, encontrávamos áreas mais abertas. Era nelas que
os Grifos começavam a atacar. Nós os derrotávamos e seguíamos em frente.
Isso virou uma rotina.

— Ah.

Mas, então, de repente, a plataforma rochosa acabou.

— Bem, até que enfim…

O solo abaixo de nós não era mais um deserto árido. Havia um punhado de
árvores e plantas por lá. Parecia um tipo de savana, mas sem muito mato.

De longe, podíamos ver um grande lago – com tetos brancos agrupados ao seu
redor.

Tínhamos encontrado a cidade de Bazaar.

Cap. 13 – Bazaar

Em nosso oitavo dia no Continente Begaritt, descemos da plataforma rochosa e


nos dirigimos para Bazaar.

Do nosso ponto de vista, a cidade parecia com uma rosquinha. O grande lago
redondo no meio dela era cercado por um anel de “glacê” branco – tendas e
prédios – com uma pequena área verde nos arredores. Pensando bem, fazia
algum tempo que eu não comia nada doce.

— Finalmente chegamos — suspirou Elinalise. — Foi uma bela caminhada, devo


dizer.

— Sim, verdade. Parece que cobrimos bastante terreno na última semana.

— Suponho que os monstros fizeram que parecesse mais longe do que é.

O solo nesta área não era apenas arenoso. Havia solo de verdade, embora a cor
marrom-avermelhada sugerisse que não era particularmente rico, e as planícies
estivessem pontilhadas com pedras de tamanho considerável e algumas
plantas desgrenhadas. Isso, na verdade, me fazia lembrar do Continente
Demônio. Pelo menos era mais fácil de seguir em frente. E a temperatura local
era muito menos extrema. Havia uma grande diferença de clima se comparado
com o deserto do outro lado da plataforma rochosa.

Quando chegamos aos arredores de Bazaar, já estava de noite e os morcegos


começavam a voar pelo céu. Eles não tentaram nos atacar, e não havia
nenhuma súcubo os acompanhando. Eram simples morcegos comuns. Ainda
assim, podiam haver outros monstros à espreita, talvez por estarmos perto da
cidade. Ficamos em alerta ao nos aproximar.

Quando estávamos chegando perto, ouvimos um grito agudo de algum lugar


próximo. Reconhecendo o chamado de um Grifo, nós dois ficamos
instantaneamente tensos.

— Está vindo em nossa direção?

— Não, acho que não. Eles estão lutando lá, vê?

Elinalise estava olhando para algo à frente, mas eu não conseguia entender
para o que estava olhando.

— O que é?

— Não sei dizer.

Avançamos com cautela em direção à cidade. Logo, avistei um pequeno grupo


de pessoas lutando com um bando de Grifos. Havia quatro humanos e cinco
monstros. Bem, havia seis humanos, mas dois deles estavam jogados imóveis
no chão. Dos quatro sobreviventes, um estava agachado e segurando a cabeça,
e não lutando.

Em outras palavras, eram três contra cinco. Os humanos em menor número


estavam se defendendo dos Grifos com enormes espadas. Era um grupo bem
coordenado, mas estava óbvio que tinham começado a ficar cansados.
— Elinalise, devemos ajudá-los?

Ela deu de ombros de forma evasiva.

— Vou deixar isso com você.

— Vamos lá.

Abandoná-los provavelmente deixaria um gosto ruim na minha boca. Não vi


qualquer razão para não correr ao resgate.

— Muito bem. Me dê cobertura!

— Certo!

Elinalise já estava correndo para frente. Quando ela se aproximou, disparei uma
onda de choque contra um Grifo que estava atualmente no ar.

Meu feitiço acertou em cheio – o monstro estava focado nos inimigos à frente.
A explosão não foi suficiente para matá-lo de imediato, mas fez que caísse no
chão, espalhando penas em todas as direções. Elinalise saltou sobre a fera
caída e cravou sua espada no pescoço dela.

Disparei mais feitiços de vento, um atrás do outro. Meu segundo alvo caiu com
um único disparo, mas o terceiro conseguiu escapar do meu feitiço. Neste
momento as criaturas já estavam cientes dos meus ataques, mas também
tinham guerreiros armados diante deles, e Elinalise estava bloqueando o
caminho até mim. Eu estava livre para lançar quantos feitiços quisesse, sem
qualquer medo de retaliação. Era como atirar em peixes em um barril.

— Kyeeeaaah!

Depois de matar quatro dos monstros, o último deles tentou fugir. No fim,
disparei um Canhão de Pedra pelas costas dele. Deixar uma besta ferida
escapar em desespero não era boa ideia.

Com a batalha acabada, Elinalise e eu embainhamos nossas armas e nos


aproximamos do grupo de guerreiros.

— A-Acabou?!

O homem que estava agachado e tremendo finalmente ergueu o rosto. Depois


de olhar pela área, todo nervoso, ele sorriu com óbvio alívio. Os guerreiros que
lutaram contra os Grifos se viraram e se aproximaram dele.

Ficando de pé, o homem logo começou a gritar com todos.

— O que vocês estão esperando? Você! Vá lá e comece a procurar!


O guerreiro ao qual ele se dirigiu balançou a cabeça e saiu correndo de
imediato.

— Minha nossa, que desastre — murmurou o homem. — Afinal, o que diabos um


bando de Grifos estava fazendo aqui?

Balançando a cabeça, ele se virou e se aproximou de nós com os outros dois


guerreiros ao seu lado.

— A ajuda de vocês foi muito bem-vinda, viajantes. Permita-me expressar a


minha gratidão.

O homem usava um turbante e um robe vermelho por baixo de uma túnica


amarela. Havia um pequeno ponto vermelho bem no meio da sua testa. Seu
bigode era longo e fino, mas isso não o fazia parecer especialmente
imponente. Ele me parecia ser do tipo tímido – a imagem escarrada de um
comerciante estereotipado do deserto. Mas, que seja.

— Bem, parecia que vocês estavam com problemas — falei. — Não poderíamos
simplesmente abandonar vocês.

— A maioria das pessoas com certeza abandonariam.

O homem estava falando na Língua do Deus Lutador, então respondi na mesma


moeda. Ele, por sorte, parecia estar entendendo muito bem. Esse era um bom
sinal.

— Que as bênçãos do vento agraciem vocês e os seus.

Com essas palavras finais, o homem prontamente se virou e caminhou de volta


na direção de seus companheiros caídos. Parece que não é do tipo expressivo.

—…

Os outros dois membros de seu grupo eram lutadores usando uma armadura
vermelha e uma roupa grossa parecida com uma saia na cintura. Estavam mais
bem equipados do que os guerreiros comuns do Continente Central. As armas
em seus quadris eram espadas grandes e curvas, cujas lâminas grossas
tinham mais de um metro de comprimento. Eu, na verdade, já tinha visto muitas
cimitarras parecidas no Continente Demônio. Deviam ser bem eficazes contra
monstros maiores.

Ainda assim, armas e armaduras tão pesadas não eram adequadas para lutar
contra monstros tão ágeis quanto Grifos. Talvez fosse por essa razão que
estavam sofrendo na batalha.

— Não vejo magos por estas bandas com muita frequência.


O primeiro a falar foi um homem com um tapa-olho no olho esquerdo e uma
tatuagem cobrindo o rosto. Ele tinha quase um metro e oitenta de altura,
provavelmente uns quarenta anos e era com certeza um veterano experiente.

— Ei, Chefe. Aquela garota é uma Súcubo? — O outro guerreiro era, na verdade,
uma guerreira de pele morena clara que estava olhando para Elinalise. Eu não
conseguia ver muito de seu corpo por baixo da armadura, mas ela parecia bem
musculosa. Imaginei que ela teria uns vinte e poucos anos.

— O que ela está dizendo, Rudeus? — perguntou Elinalise na Língua Humana,


parecendo um pouco confusa. Ela não sabia falar a língua local.

— Ela está perguntando se você é uma Súcubo — falei, também na Língua


Humana.

— Bem, suponho que sou. De certa forma.

— Nossa. E ainda admite isso.

— Dito isso, não tenho o hábito de espalhar odores ruins por onde passo.

— E eu continuo dizendo, acho o cheiro delas muito bom.

O homem enorme se virou para sua companheira e deu um golpe na cabeça


dela.

— Não seja idiota! Que tipo de Súcubo viaja com um homem? Você ousa
insultá-los depois de salvarem nossas vidas!

A mulher choramingou lamentavelmente em resposta.

— Aii! Mas, Chefe! Você disse que uma garota que aparece junto de
morcegos vai ser sempre uma Súcubo!

Precisei me esforçar um pouco para entender o que ela estava dizendo. Será
que era por seu sotaque ser muito forte? Eu conseguia entender as palavras,
mas não era fácil.

— É exatamente por isso que te chamam de Cabeça Oca, criança.

O homem, por outro lado, falava com mais clareza. Eu não sabia se ele era
mais fluente na Língua do Deus Lutador ou o quê, mas era muito mais fácil de
entender.

Suspirando, ele se virou para Elinalise para se desculpar.

— Sinto muito, senhorita. Não queríamos ofender. A Carmelita aqui é meio


burra, é só isso.
Elinalise olhou na minha direção, sem jeito. Ela não fazia ideia do que o homem
estava dizendo.

— O que foi agora? — perguntou ela. — Ele está tentando dar em cima de mim
ou algo assim?

— Não. Ele está se desculpando porque a mulher te chamou de Súcubo.

— Ah, é isso? Bem, diga que não fiquei nem um pouco ofendida.

Elinalise mostrou seu sorriso mais brilhante para o homenzarrão, fazendo-o


corar um bocado.

— Ela diz que não se importa — acrescentei prestativamente.

— S-Sério? Ela não fala a nossa língua?

— Não. Mas posso servir de intérprete dela.

O homem estava agora abertamente olhando para Elinalise. Não era difícil
imaginar o que ele poderia estar pensando, algo como: “Essa é uma boa
mulher “. Ou talvez: “É uma pena que ela tenha tão pouco peito”. Elinalise não
parecia se importar com a cobiça. Ela parecia, inclusive, meio orgulhosa por ser
cobiçada. Acho que já estava acostumada a isso.

Desviando o olhar de Elinalise, o homem voltou a olhar para mim.

— Meu nome é Balibadom… Mais uma vez, agradeço pela ajuda, estranho.

— Sou Rudeus Greyrat e esta é Elinalise.

— Entendo. Bem, se precisar de alguma coisa…

— Ei! Qual é o problema de vocês dois? — gritou o homem bigodudo com quem
tínhamos conversado antes, interrompendo o guerreiro no meio da frase. —
Precisamos encontrar aquela carga agora!

— Opa, foi mal. Tenho que ir. Tenho certeza de que nosso empregador também
irá recompensá-lo depois.

Balibadom e Carmelita correram para o chefe. Os três tiveram uma breve


reunião, depois se dividiram em dois grupos e correram em direções diferentes.
Partiram em um instante.

— O que, estão indo embora? Eu esperava um pouco mais de gratidão — disse


Elinalise.

Eu podia entender como ela se sentia, mas não tínhamos entrado nisso por
causa de alguma recompensa.
— Parece que também deixaram os feridos para trás… — Olhei para os
lutadores caídos, pronto para lançar um ou dois feitiços de cura. — Ah. Estão
mortos.

Pensando bem, os sobreviventes nem mesmo tentaram ajudá-los após a


batalha. Provavelmente sabiam que já estavam mortos.

— Esta ainda era tão nova, coitadinha…

Um dos mortos era uma adolescente, talvez com dezoito anos. Havia um
buraco aberto em sua testa, bem onde o bico afiado de um Grifo a acertou. Ela
devia ter morrido na mesma hora.

— Será que deixar os mortos onde eles caem é uma tradição deste Continente?

— Nenhum aventureiro decente faria uma coisa dessas.

— Bem, aquelas pessoas não me pareciam aventureiras…

Já que o grupo deles sumiu, queimei os corpos com a minha magia e também
a usei para enterrá-los. A maneira como os deixaram para trás parecia meio
maldosa.

Aquele Balibadom tinha prometido que seríamos recompensados, mas não


sabíamos nem o nome daquele cara de bigode. E como iriam nos encontrar se
não sabiam quem éramos ? Esperavam que nós os localizássemos e
exigíssemos um pagamento ou algo assim?

Bem, tanto faz… Não era como se eu tivesse alguma esperança de receber uma
grande recompensa ou algo assim. Eu teria que me satisfazer por fazer uma
boa ação.

— Bem, vamos indo.

— Então vamos lá.

Nós dois caminhamos em direção a Bazaar.

Quando chegamos à cidade propriamente dita, o sol já havia se posto. O lugar


era surpreendentemente bem iluminado; havia grandes fogueiras por todos os
cantos, do tipo que seria vista em um festival. O chão ao redor das fogueiras
estava coberto por algum tipo de carpete. As pessoas sentavam-se em grupos
ao redor delas, comendo e festejando alegremente com as outras. Isso meio
que me lembrava de um grande piquenique para ver as flores de cerejeira.

E todos pareciam ter turbantes em suas cabeças. As cores e estampas em


suas roupas eram bem diferentes umas das outras, mas a maioria delas me
lembravam das roupas tribais que vi no Continente Demônio. Elinalise e eu
estávamos totalmente deslocados no local. Não que isso importasse.
— Estou ficando com um pouco de fome, e você?

— É, suponho que sim.

Ver todos festejando ao nosso redor fez nossos estômagos começarem a


roncar. Mesmo assim, precisávamos primeiro encontrar um lugar para ficar.

Enquanto eu procurava por uma pousada, porém, um homem se aproximou e


nos chamou.

— Ei, vocês dois! Procurando comida? Posso encher as barrigas de vocês por
apenas três Cinsha!

Pelo visto, seu grupo estava vendendo as porções excedentes de uma enorme
refeição que tinham preparado. Decidimos aceitar a oferta. Afinal, não dava
para pensar com o estômago vazio.

Assim que nos acomodamos no carpete, o homem que nos chamou estendeu a
mão em expectativa.

— Vou ter que pedir o pagamento adiantado, gente. Já preparamos a comida,


estão vendo?

Peguei três moedas de bronze e as entreguei.

Ele as examinou com desconfiança.

— O que diabos são essas coisas?

— Moedas de bronze do Reino Asura.

— Do reino o quê? Não tenho uso para essas coisas, parceiro.

Como eu temia, parecia que o dinheiro do Continente Central não seria aceito.
Realmente fazia sentido. Eu planejava trocar o dinheiro em algum lugar, mas
ainda não tínhamos conseguido a chance.

— E que tal assim?

Enquanto eu tentava pensar em meu próximo movimento, Elinalise deixou outra


coisa cair na mão do homem. Era um pequeno anel dourado. Ele o ergueu e
examinou de perto, então balançou a cabeça, satisfeito, e saiu para encontrar
outro cliente.

— Em situações assim, é melhor apenas negociar — explicou Elinalise.

Esses eram os instintos de veterano mais uma vez em ação. Ela descobriu o
movimento certo a fazer quase que instantaneamente.
— Fico feliz por ter você por perto, Elinalise. Você realmente sabe das coisas.

— Não precisa de tanta lisonja, querido.

Sentamos no carpete para esperar pela comida. Isso despertava algumas


memórias muito antigas da minha vida anterior no Japão. Ultimamente, eu não
tinha feito muito além de ficar sentado no chão.

— Aqui está, pessoal!

Não tínhamos feito um pedido nem nada assim, mas nossa comida chegou da
mesma forma. O prato principal era uma sopa grossa de feijão branco com
alguns pedaços de algo misterioso, mas tínhamos carne cozida no vapor
servindo de acompanhamento. Havia também uma estranha fruta tropical com
um gosto ligeiramente azedo, que cobriram com algum tipo de molho doce.

A sopa doce, a carne picante e a fruta azeda formavam uma combinação


interessante. A refeição parecia um pouco carente de carboidratos, mas,
quando comecei a comer, comecei a gostar bastante. A sopa estava
particularmente boa. Os misteriosos pedaços brancos flutuando no caldo se
revelaram ser arroz, e não carne. Então era um tipo de mingau de arroz?

Dentre todos os lugares, eu não esperava encontrar arroz logo ali. Não devia ter
nenhum arrozal com este clima, então deviam ser cultivados em solo seco. Eu
já tinha ouvido dizer que isso era possível, embora fosse um pouco mais difícil
de fazer. Foi com certeza uma surpresa agradável, e acabei tomando toda a
sopa bem rápido.

Com o passar dos anos, minha paixão por arroz só ficou mais forte. Colocar um
pouco disso na barriga me fazia sentir invencível, como se estivesse pronto
para enfrentar o mundo. Eu teria que consultar a possibilidade de cultivar arroz
nos Territórios Nortenhos. Se ensinasse o básico do plantio para Aisha, ela
talvez pudesse fazer um pequeno campo no nosso quintal…

Mas, bem, provavelmente não seria correto transformar minha irmãzinha em


uma trabalhadora braçal, tudo em nome do meu próprio prazer.

— Oh? É a primeira vez que não te vejo reclamando da comida, Rudeus. Isso é
incomum.

— Bem, estava melhor do que eu imaginei, sinceramente.

Acabei pedindo até para repetir. Nunca reclamei da comida de Sylphie nem
nada assim, só para deixar claro… mas o arroz tinha, definitivamente, um lugar
especial no meu coração. Se eu tivesse alguns ovos e molho de soja para servir
de acompanhamento, estaria tudo perfeito.
Eu poderia sempre invadir um ninho de Garudas em busca de ovos, não?
Afinal, eram basicamente galinhas gigantes. Só restava o molho de soja. Este
continente talvez voltasse a me surpreender, comigo encontrando alguns à
venda no mercado.

— Então vamos ver se conseguimos encontrar uma pousada.

Mas, claro, não estávamos de férias. Se tivéssemos um pouco de tempo após


salvar Paul, eu talvez pudesse prosseguir com esse pequeno projeto paralelo.
Mas ainda não era hora.

— Certo — disse Elinalise. — Acho melhor encontrarmos um guia amanhã.

A maioria dos comerciantes ao nosso redor já estava fechando a loja e


voltando para casa. As fogueiras estavam sendo apagadas, uma a uma, e as
pessoas pareciam estar se preparando para dormir. Me parecia meio cedo,
mas não parecia que conseguiríamos contratar ninguém nesta noite.

Localizando o homem que nos vendeu a refeição, chamei por ele.

— Com licença! Há alguma pousada por aqui?

— Pousadas? Do que você está falando? Pode dormir onde quiser.

Interessante. Pelo visto, os visitantes de Bazaar que não levavam suas próprias
barracas dormiam a céu aberto. Mas poderíamos sempre fazer um abrigo com
a minha magia.

— Onde devemos ficar? — perguntou Elinalise.

— Parece que as pessoas estão se aglomerando mais perto da água.

— Então tá, vamos nos afastar um pouco da multidão.

Andamos por algum tempo, então encontramos um bom lugar aberto no meio
do caminho entre duas tendas grandes. Havia guardas do lado de fora deles,
então provavelmente não precisaríamos nos preocupar com ladrões.

Desta vez, fiz nosso abrigo um pouco grande. A criação demorou mais do que o
normal, mas teríamos mais espaço para passar a noite. Assim que o sol
nascesse, provavelmente ficaria quente bem rápido, então não usaríamos o
abrigo por mais tempo do que isso.

— Phew. Bem, pelo menos chegamos aqui, certo?

— Até aqui, tudo bem.

Largando nossas bolsas no chão, nos permitimos soltar um suspiro de alívio.


— Ainda assim, estamos apenas na metade do caminho. Vamos nos certificar
de que estamos alertas.

— O mais importante primeiro — concordou Elinalise. — Amanhã compraremos


as provisões necessárias e encontraremos um guia.

Passamos alguns minutos examinando nossas prioridades. Primeiro de tudo,


precisávamos trocar nosso dinheiro, comprar provisões, confirmar a rota para
Rapan e contratar um guia. Também demoramos um pouco para fazer a
manutenção do nosso equipamento. Elinalise limpou sua espada e escudo, e
eu conferi se nosso equipamento de proteção tinha qualquer dano. Isso era só
uma parte da nossa atual rotina diária.

Passados alguns minutos, terminamos e estendemos as peles que usávamos


como cama. Mas, quando eu estava a ponto de me deitar, Elinalise se levantou.

— Então tá, vou sair um pouco.

O quê? Ela precisa ir em uma loja de conveniência ou algo assim?

— Uh… para fazer o quê?

Elinalise sorriu para a pergunta.

— Para pegar um homem.

Em outras palavras, ela iria zerar o medidor da sua maldição.

— Você ainda tem um pouco de tempo, não?

A maldição de Elinalise ganhava força a cada duas ou quatro semanas. O


implemento mágico de Cliff mais do que dobrava esse prazo, então ele poderia
suportar ao menos um mês entre seus encontros. Fazia apenas duas semanas
desde nossa partida, e ela provavelmente estava começando a sofrer algum
efeito, mas ainda não era algo urgente.

— Isso é verdade. Mas, de qualquer forma, vou contratar alguém, preciso


aproveitar enquanto estivermos aqui.

— Certo…

Essa viagem duraria no mínimo três meses. Dada a nossa incerteza a respeito
do que nos aguardava, quatro meses seria uma estimativa mais provável.
Mesmo na melhor das hipóteses, Elinalise precisaria dormir com alguém por
pelo menos uma vez ao longo desse período. Não tinha como contornar isso.

— Então tá bom. A gente se vê depois.

— Sim, volto uma hora dessas. Não precisa me esperar. Durma bem.
— Bem, tá bom… mas você não fala a língua local, fala?

— Isso não é problema. Esse tipo de coisa funciona do mesmo jeito em todos
os lugares.

Com isso, Elinalise deixou o abrigo e caminhou para a cidade.

Na manhã seguinte, acordei bruscamente com gritos de “Ataque de formigas!”


enquanto um exército de formigas falange marchava para a cidade.

E então acordei com tudo…

Pela primeira vez em um bom tempo, tive uma noite inteira de sono, e meus
sonhos foram, a maioria, agradáveis. Lembrei de um que envolvia Aisha e Norn
exigindo que eu as carregasse nos meus ombros. Quando levantei Norn e a
coloquei neles, Aisha ficou de mau humor, e quando troquei elas de lugar, Norn
começou a chorar. Mas, eventualmente, Sylphie apareceu e agarrou seu prêmio
– meus ombros – para si mesma.

A repreendi gentilmente, explicando que todas deveriam se revezar, mas ela


respondeu: “Que pena! Este lugar agora é meu! Ninguém mais pode usar!”
Minhas pobres irmãs começaram a chorar sem parar, é claro. Quando apareceu
pela primeira vez em meu sonho, Sylphie era uma mulher adulta, mas ela se
transformou em sua versão de sete anos quando a coloquei em meus ombros.

Foi um ótimo sonho. Quando acordei e lembrei disso, me peguei sorrindo.


Parecia que o dia seria bom.

Dando uma olhada no lugar, vi Elinalise dormindo profundamente, uma


expressão satisfeita em seu rosto. Parecia que ela tinha se divertido na última
noite. Era bom saber disso, embora eu me sentisse um pouco mal por Cliff.

Nas primeiras horas da manhã, Bazaar se transformava por completo. O


silêncio da noite dava lugar a uma explosão animada criada pelo comércio. Os
mercadores espalhavam suas mercadorias do lado de fora de suas tendas e
gritavam para todos que passavam.

— Tenho melões grandes e suculentos bem aqui! Última chance, pessoal!


Amanhã não terá mais nenhum!

— Garras de Grifo aqui! Trinta Cinsha para quem levar agora!

— Alguém tem tecido Nania? Tenho frutas Tokotsu para negociar!

Os vendedores gritavam seus preços, enquanto seus potenciais clientes


gritavam de volta para as ofertas, sempre com a mesma intensidade. Alguns
pagavam em dinheiro, mas muitos também recorriam ao escambo. A multidão
do mercado parecia se estender até onde a vista alcançava. Aqui e ali, vi brigas
ou discussões acontecendo, mas pareciam coisas comuns entre mercadores, e
não algo realmente perigoso.

— Tenho garrafas de vidro de Vega! Não vou levar isso mais para o leste!
Alguém precisa de algumas?!

Os produtos de vidro, em particular, pareciam ser o foco do comércio. Tive de


presumir que era uma grande indústria regional. Um comerciante tinha
prateleiras e mais prateleiras cheias de recipientes retangulares com símbolos
intrincados esculpidos na superfície; pareciam com garrafas chiques de uísque.
Alguns eram de cores vivas, mas eram todos notavelmente lisos e claros.

O Continente Central também tinha vidro, mas tendia a ser fino e só


semitransparente. Eu tinha ouvido falar que as partes mais ricas de Asura
tinham artesãos que faziam vidro de boa qualidade, mas essa região
provavelmente produzia coisas de verdadeira qualidade.

Claro, mesmo este vidro não poderia ser comparado ao que eu tinha me
acostumado no Japão, mas algumas de suas peças eram feitas à mão, com
muito cuidado. Fiquei tentado a comprar uma lembrancinha.

— Rudeus, não viemos aqui para comprar presentes.

— É, eu sei.

Enquanto o mercado fervilhava ao nosso redor, Elinalise e eu começamos a


trabalhar em nossa lista de tarefas da noite anterior. Primeiro de tudo,
precisávamos de dinheiro. A moeda local parecia ser a Cinsha – algo
desconhecido para mim, o que era meio excitante, de certa forma. No
Continente Central, todos costumavam usar nomes simples como “moedas de
ouro”.

Mas a moeda, em si, não era particularmente diferente das demais. Era só uma
peça pequena e redonda de ouro, possuindo um desenho mal estampado na
superfície. Na verdade, eu já tinha visto alguns desses antes, quando estava
passando por Porto Leste com Eris.

Vendemos algumas das coisas que tínhamos conosco e conseguimos uma


boa quantia dessa moeda local. Parecia que o escambo era muito comum na
região, mas seria sempre bom ter algum dinheiro no bolso.

As coisas que tínhamos do Continente Central alcançavam preços muito bons.


Para a minha surpresa, alguns cortes baratos de carne seca podiam ser
vendidos por três vezes o que pagamos por eles. Poderíamos ser capazes de
vendê-los ainda melhor se tivéssemos tentado. Senti que existia uma boa
forma de ganhar dinheiro vendendo carne ali e comprando vidro para vender
em Ranoa… mas tentar ganhar dinheiro com aquele teletransportador só
resultaria em encrenca.
Por enquanto, garantimos cerca de 5.000 Cinsha para pagar nossas
necessidades mais imediatas. Eu não tinha certeza de qual quantia nos seria
necessária, mas nosso jantar na noite anterior tinha custado apenas 3 Cinsha.
Provavelmente passaríamos algum tempo sem ter problemas.

Com nosso problema de dinheiro solucionado, começamos a reunir


informações sobre Rapan. Pelo visto, era uma cidade importante, então não foi
difícil. Conforme assegurado por Nanahoshi, seria uma jornada de cerca de um
mês para o norte.

Perguntei sobre a estrada para lá, só para ter uma noção do que
enfrentaríamos.

— Então, a rota usual é passar pela região de Nkots e tomar o caminho mais
longo dando a volta pelo deserto, mas tem muitos bandidos nesse percurso,
então não é seguro. Os comerciantes mais espertos estão atualmente
atravessando o deserto Ucho. Pode seguir para o leste até chegar no marcador,
então ir para o norte, para o oásis. De lá, deve seguir uma estrada sinuosa para
o oeste por um tempo. Depois de ver as Montanhas Kara, mantenha-as à
esquerda e siga para o norte até chegar ao próximo oásis. A partir daí, o
deserto ao leste fica um pouco menos violento. É fácil seguir o caminho após
isso, então segue para o noroeste e volta à estrada normal.

Conseguir uma resposta tão detalhada era bom, mas essas coisas não me
significavam nada. Existiam muitas referências a lugares específicos que eu
não conhecia, a maioria dos quais pareciam montanhas genéricas ou marcas
no deserto. Entendi a mensagem básica de que existiam duas possíveis rotas,
mas se tentássemos seguir alguma delas, provavelmente nos perderíamos.

— Existem mapas desta área à venda ou algo assim? — perguntei.

Os mapas nem sempre eram confiáveis, mas ajudavam. Normalmente,


serviriam para ter ao menos uma noção geral de onde estava. Isso era bem
reconfortante.

— Mapas? Quem diabos se importaria em fazer uma coisa dessas?

Não parecia que teríamos muita sorte nesta frente. Este continente ainda não
havia se deparado com seu Ino Tadataka. Obviamente, precisávamos encontrar
um guia confiável.

— Então tá bom. Sabe onde podemos encontrar alguém capaz de nos guiar até
Rapan?

Presumi que isso não seria problema, mas…


— Tenho certeza de que algumas pessoas conhecem o caminho, mas você não
vai encontrar nenhum guia procurando clientes por aqui. Esta cidade é como
uma estação intermediária na estrada.

— Espera, sério?

— Sim. Digo, as pessoas normalmente querem viajar para centros comerciais


maiores, certo?

— Ah, entendo…

Pensando bem nisso, até que fazia sentido. Por que não presumi que isso
poderia se provar um problema?

Elinalise presumiu que encontraríamos um guia com bastante facilidade, mas


sua experiência não se aplicava a este continente. Quando ela visitava uma
terra desconhecida pela primeira vez, sempre partia para cidades fronteiriças
que viviam cheias de viajantes comuns. Mas, desta vez, usamos um
teletransportador para ir direto para o meio do continente. Essa diferença era
complicada.

As coisas já não estavam correndo conforme planejado.

Ainda assim, não adiantava de nada entrar em pânico. A vida é uma caixinha de
surpresas. Levamos apenas duas semanas para chegar onde estávamos, e
essa viagem normalmente levaria um ano inteiro. O progresso foi
impressionante, não importa como encarasse isso.

— O que você normalmente faria em uma situação assim, Elinalise?

— Seguir em frente pela rota mais curta possível. Mas, para ser sincera, já faz
um tempo que cansei de viajar pelo deserto.

— Pois é, eu também.

— Então, o que acha?

— Hmm… Será que podemos acompanhar um comerciante que esteja indo para
Rapan?

— Parece um bom plano. Vamos ver se conseguimos encontrar um.

Aisha tinha conseguido chegar rapidamente a Ranoa ao pegar carona em


caravanas mercantes. Não existia uma razão para não adotarmos a mesma
tática. E também não precisávamos nos apressar. A única coisa importante era
chegar em segurança ao nosso destino.

— Senhor, você por acaso conhece algum comerciante que estará indo para
Rapan?
Não haveria caravanas procurando ativamente por guardas, pela mesma razão
pela qual não havia guias a serem encontrados. Mas Elinalise era uma
aventureira de rank S e eu um mago de Água de nível Santo. Se oferecêssemos
dinheiro e nossos serviços, poderíamos encontrar alguém disposto a nos levar
junto.

Infelizmente, o homem disse que não existiam muitas pessoas por ali que iam
para Rapan. A maioria dos mercadores viajantes estava a caminho de um lugar
chamado Kinkara, ao leste.

Entretanto, existia algum tráfego para o norte. Rapan era famosa por seus
labirintos, que produziam um constante fluxo de itens mágicos valiosos; se
estocasse esses produtos, poderia vendê-los a preços elevados em outras
cidades. Alguns comerciantes ganhavam a vida com isso. A maioria deles
levava pedras mágicas e cristais do sudoeste para Rapan, onde vendiam suas
posses e usavam o lucro para comprar itens mágicos.

— Mas não sei se tem alguém assim por aí agora — concluiu o homem. — Mas
em alguns meses, com certeza teremos um monte.

Isso não foi muito reconfortante. Eu estava começando a achar que seria
melhor pegar uma carona para aquela cidade ao leste. Estaríamos saindo do
nosso caminho, mas ao menos chegaríamos a um centro comercial onde
poderíamos encontrar um guia.

Mesmo assim, tentei perguntar pela cidade durante algum tempo. Quase todo
mundo estava indo para Kinkara e, depois de uma ou duas horas, quase me
conformei com isso.

Mas então, quando eu estava a ponto de desistir, tropeçamos em algo.

— Ah, Rapan? Então você vai querer se encontrar com Galban. Acho que ele
armou uma barraca no lado oeste do rio. Vá procurar por ele.

Elinalise e eu saímos à procura deste Galban na mesma hora. Ele parecia fazer
fortuna viajando entre Rapan e uma cidade chamada Tenorio, levando pedras
mágicas para Rapan e, lá, comprando itens mágicos. As pessoas diziam que
ele viajava em uma caravana de seis camelos, o que significava que estava
fazendo um bom dinheiro.

Não precisamos perguntar muito para encontrar a barraca que estávamos


procurando. Não era tão grande, mas tinha seis camelos amarrados na frente
dela.

Ao nos aproximarmos, uma mulher de pele morena emergiu lá de dentro da


tenda. Ela usava um peitoral e uma faixa parecida a uma saia ao redor da
cintura. Não dava para ver os músculos sob seu equipamento, mas parecia ser
bem forte.
Levei alguns segundos para perceber que era Carmelita, a mesma guerreira que
encontramos anteriormente.

— Ei! Vocês são aquelas pessoas! De ontem!

Pelo visto, ela também lembrava de nós, embora parecesse surpresa em nos
ver. Parecia que o homenzinho bigodudo que tínhamos salvado era o tal
Galban. Ainda bem que decidimos ajudar.

Quando entramos em sua barraca, ele nos deu boas-vindas com um sorriso
caloroso.

— Sinto muito por ontem, amigos! Ficamos surpresos ao ver que vocês já
tinham partido quando voltamos!

Pelo visto, tinham saído correndo para encontrar seus camelos, que fugiram no
meio de todo o caos – junto com a carga valiosa que carregavam. Depois
voltaram ao local da batalha, só para descobrir que tínhamos enterrado os
corpos de seus camaradas e sumido. Galban afirmou ter passado muito tempo
tentando nos encontrar naquela noite.

Então podia ter explicado seu plano antes de sumir…

Ainda assim, isso talvez fosse bom senso neste lugar. A carga vinha em
primeiro lugar e todo o resto poderia esperar.

— Deve ser pelo destino que você nos encontrou. Se importaria em se juntar à
minha caravana como guarda-costas?

Ele, pelo que parecia, estava em busca de contratar novos guardas. Isso fazia
sentido, já que tinha perdido alguns.

— Que tal 500 Cinsha para Rapan? O que acha?

A julgar pela forma como ele elogiava nossa elegante vitória sobre os Grifos,
estava pensando nisso desde o começo. Eu parecia me lembrar dele se
escondendo durante a batalha, mas, que seja. Era exatamente disso que eu
precisava.

— Tudo bem, claro. Então iremos com você até Rapan.

— Ah, esplêndido! Isso é realmente maravilhoso. Eu estaria até mesmo


disposto a assinar um contrato de exclusividade de longo prazo com vocês
dois, caso estejam interessados. Nunca vi um mago do seu calibre! Afirmo que
posso fazer isso valer a pena. Que tal 10.000 Cinsha por ano? Não, espera,
Balibadom iria fazer uma confusão. Que tal 8.000? Eu poderia…

As ofertas estavam começando a ficar um pouco ambiciosas demais, então


acabei precisando interromper.
— Sinto muito, mas precisamos resolver algo em Rapan. Mas vamos manter a
oferta em mente.

Galban aceitou isso com bastante facilidade. Tínhamos encontrado nossa


passagem para Rapan. Estava tudo de volta aos trilhos.

Cap. 14 – Os Guerreiros do Deserto

E, assim, partimos para Rapan como membros da caravana de Galban.

O chefe de sua equipe de guarda era o guerreiro Balibadom, também conhecido


como Olho de Falcão. Seus companheiros eram Carmelita, a Torce-Osso, e
Grandespada Tont. Somando eu e Elinalise, tínhamos cinco lutadores e um
comerciante no nosso grupo.

Também havia seis camelos, se fosse contar eles. Pensei em também inventar
um nome para cada um, mas decidi não fazer isso, já que poderíamos acabar
precisando comê-los no caso de ficar sem comida no deserto. Eu não queria
que minha primeira vez provando carne de camelo acabasse acompanhada por
um tempero de culpa.

Antes de sair, tínhamos feito uma reunião para definir nossa formação básica
de batalha. Como regra geral, manteríamos Galban no centro. Balibadom ficaria
à frente, acompanhado por Carmelita à esquerda e Tont à direita. Elinalise e eu
estaríamos posicionados na retaguarda.

Nós cinco formaríamos um círculo protetor em torno de nosso empregador e


seus camelos. Não importa de qual direção fôssemos atacados, um de nós
deveria ser capaz de interceptar a ameaça antes que ela pudesse prejudicar
nosso cliente. Era, basicamente, uma formação clássica em Cruz Imperial.

Achei que Carmelita ou Tont poderiam ser as melhores escolhas para a


retaguarda, mas queriam me manter lá, já que eu era um mago – e fazia
sentido manter Elinalise perto de mim, já que estávamos acostumados a
trabalhar juntos.

— Então tá bom. Vamos andando.

Estávamos começando com uma viagem para o leste de Bazaar, até


chegarmos à principal estrada regional. Os nomes dos lugares não
significavam nada para mim, mas parecia ser a rota frequentada por bandidos.
Só por garantia, informei Balibadom sobre o que ouvi.

— Não conhecemos uma rota segura pelo deserto — disse ele. — Se os


bandidos atacarem, é para isso que estaremos juntos. Às vezes, só cobram um
pedágio e permitem a passagem.

Um pedágio, hein? Eu não tinha ouvido sobre isso, mas se pudéssemos pagar
por uma passagem no lugar de lutar, seria bem melhor. Os bandidos só
estavam tentando ganhar a vida. Contanto que entregássemos o que queriam,
não deveriam pedir mais.

Para ser sincero, a ideia de entregar dinheiro para um monte de gente que
estava ameaçando viajantes em vez de trabalhar em empregos honestos não
me atraía muito. Mas não era eu quem teria que pagar, então poderia viver com
isso.

Ainda assim, havia uma boa chance de encontrarmos alguns bandidos mais
gananciosos, interessados em mais do que bens e dinheiro. Poderiam, por
exemplo, exigir que entregássemos Elinalise, dado o quão atraente ela era. Isso
podia ser problemático. Não era como se fôssemos velhos amigos de Galban e
companhia. Salvamos suas vidas, mas isso não significava que arriscariam os
próprios pescoços por nós, em caso de necessidade. A hipótese de nos
apunhalarem pelas costas não era inexistente.

— Você parece nervoso, Rudeus, mas eu não me preocuparia tanto — disse


Elinalise calmamente. — Com um mago com as suas habilidades do nosso
lado, alguns bandidos não devem se provar um problema.

— Acha mesmo?

— Acho. E se acontecer o pior, posso usar um pouco de charme neles.

— Uh, o quê? Você quer ser levada para a base deles, acorrentada e
brutalmente…
— Nossa, que extremo. Contanto que você vá de boa vontade, alguns bandidos
ficam até gentis.

— Está falando isso por experiência própria?

— Todos cometemos erros na juventude.

Elinalise não parecia nem um pouco preocupada. Ainda assim, aqueles dias
estavam no passado, e ela provavelmente estaria menos ansiosa para fazer
algo assim, já que agora tinha Cliff em sua vida.

Bem, tanto faz. Provavelmente poderíamos nos defender de um ataque com


razoável facilidade, contanto que não estivéssemos em grande desvantagem
numérica.

Nosso grupo passou algum tempo marchando por campos áridos, rumo ao
leste.

Tivemos que lutar contra muitos monstros pelo caminho. Havia Búfalos
Begaritt, que atacavam em grupos, e Grandes Tarântulas, enormes aranhas que
corriam furtivamente. Também encontramos Águias Mestras do Vento,
monstros voadores que lançavam feitiços de vento a partir de uma posição
superior. Alguns de nossos amigos do deserto também apareceram:
principalmente Entes Cacto e aqueles lagartos assassinos, que pareciam ser
chamados de Gyroraptors. E também muitos, muitos outros.

Entretanto, Balibadom se provou capaz de detectar nossos inimigos com uma


boa antecedência, então nunca fomos forçados a um combate sério. Acontece
que ele também tinha um Olho Demoníaco, razão essa pela qual ganhou o
nome de Olho de Gavião.

O homem era alto e musculoso, provavelmente já na casa dos quarenta anos, a


julgar pelas rugas nos cantos de seus olhos. Poderia dizer mesmo de relance
que ele fazia o tipo sobrevivente astuto. Seu cabelo estava cortado curto nas
laterais e atrás; me lembrava um pouco do capitão do time daquele antigo
anime de basquete. Fiquei esperando que ele gritasse: “Só olha!” ou coisa
assim.

Seu Olho Demoníaco era do mesmo tipo que o de Ghislaine – permitia que
visse o fluxo de mana do mundo ao seu redor. Isso era muito útil como meio de
detectar inimigos.

— Temos monstros à frente. Preparem-se para o combate, todos.

Até então, ele previu perfeitamente cada um dos monstros que se


aproximavam e as mudanças no clima. Era quase como viajar com Ruijerd. Ele
não era tão preciso nos detalhes, mas avistava os inimigos muito rapidamente.
Seus muitos anos de experiência provavelmente eram um fator importante
nisso.

— Isso me lembra os velhos tempos — disse Elinalise com um sorriso. —


Ghislaine costumava localizar monstros assim, usando o olho e o nariz.

Quando tinha alguém no grupo que podia detectar os inimigos com


antecedência, o combate tendia a ser muito menos arriscado. No momento em
que os monstros chegavam ao alcance, eu estava pronto para acertá-los com
algum feitiço. Comecei usando o Canhão de Pedra, mas mirar com precisão
começou a ficar entediante, então eu estava atualmente acertando-os com
magia de vento e depois jogando-os no chão. Isso exigia um pouco menos de
esforço.

— Você está usando esses feitiços com bastante liberdade, garoto. Não vai
ficar sem mana?

Eu estava ficando tão preguiçoso com isso que Balibadom acabou falando
comigo, parecendo um pouco preocupado.

— Devo estar bem. Acho que posso continuar assim o dia todo.

— Entendo. Então você é um Grande Feiticeiro?

— E o que isso significa?

— É um título dado a magos que alcançam um profundo domínio de seu ofício.

— Bem, uh, eu não diria que já sou um mestre em algo.

— De qualquer forma, é raro encontrar um mago disposto a usar seus poderes


com tanta liberdade.

Muitos magos faziam questão de não gastar mais da metade de seu estoque
de mana em um único dia. Isso também era o padrão nos Territórios
Nortenhos. Como a maioria dos magos não era fisicamente forte, seu
suprimento de mana era tudo que tinham para se defender. Mas eu, pelo que
sabia, nunca tinha esvaziado o meu reservatório.

Manter alguma mana sempre disponível para emergências era puro bom
senso. Para guerreiros do deserto que não sabiam muito sobre magia,
entretanto, provavelmente parecia que a maioria dos magos só era preguiçosa.
Balibadom parecia ter suficiente experiência em luta em grupo para entender a
verdadeira razão pela qual os magos se continham. Ainda assim, ele não
parecia ter muito conhecimento sobre magia no geral, visto que não comentou
a respeito de meus feitiços não verbais.
— Fico feliz por ter seu poder de fogo do nosso lado — disse ele —, mas tente
economizar um pouco de mana para situações inesperadas. Somos cinco
neste grupo, sabe? Segure os ataques de longo alcance até que eu os peça.

— Entendido.

Eu não estava tentando esconder o fato de que meu estoque de mana era
enorme, mas também não via razão para ir em frente e contar isso a ele. Para
começo de conversa, eu não tinha certeza de quais eram os meus limites. Não
queria ficar muito convencido e acabar criando um desastre.

À noite, nós cinco nos revezamos para manter a guarda enquanto Galban
descansava sozinho em sua tenda. Deveríamos todos dormir do lado de fora.
Não que eu estivesse esperando um tratamento igual ou coisa do tipo.

Criei um abrigo e incentivei todos a dormirem dentro dele, mas Balibadom e os


demais recusaram, dizendo que teriam mais dificuldades em notar qualquer
monstro que pudesse se aproximar. Isso, na verdade, parecia um motivo
legítimo para dormir do lado de fora.

Usar o abrigo sozinho me pareceu um pouco estranho, mas Elinalise interveio.

— Não precisa se sentir mal, Rudeus. Temos nossa própria forma de fazer as
coisas e seremos mais úteis se estivermos bem descansados.

Isso me fazia sentido, então acabamos dormindo em nosso pequeno abrigo.


Era definitivamente mais aconchegante do que a outra alternativa.

Dois de nós ficaríamos de guarda ao mesmo tempo durante a noite. Achei que
um seria o bastante, mas, pelo visto, tendo um grupo desse tamanho, assim
seria mais seguro. Estaríamos mudando os turnos todas as noites.

Em nossa primeira noite, fui colocado com Carmelita.

— Ei. Acho que vamos trabalhar juntos esta noite, hein?

— Sim. Não caia no sono.

— Bem, eu não planejava fazer isso.

Embora tecnicamente tivéssemos um trabalho a fazer, ficar olhando em


silêncio para nada em particular poderia ser muito chato. Nós dois
eventualmente começamos a conversar um pouco.

— Obrigada pela ajuda. No outro dia.

— Ah, de nada. Não foi grande coisa.

— Você é forte. Aquela lá também. A mulher.


Carmelita, a “Torce-Osso”, era uma guerreira que ainda faria 21 anos. A arma de
sua escolha era uma espada de lâmina larga e grossa, com mais de um metro
de comprimento, que ela girava ferozmente quando em combate.

Parecia que muitos dos guerreiros desta região preferiam armas enormes
assim. Balibadom também carregava uma lâmina enorme. Parecia haver
muitos monstros grandes com cascas grossas e resistentes na região; fazia
sentido usar armas que não fossem quebrar com facilidade. Não importa o
quão habilidoso fosse um espadachim, não iria querer tentar perfurar uma
placa de ferro com um florete fino e pequeno.

Pelo que eu tinha visto, o estilo de combate deste povo também parecia ser
único.

— Mas a espada da sua mulher é bem fina. Vocês não vão conseguir matar
nada com aquilo.

— Você, na verdade, pode acabar se surpreendendo. Aquilo é um item mágico, e


ela sabe usar. Eu a vi cortando Grifos. Ah, e só para informar, ela não é minha
mulher. Somos apenas amigos indo juntos para Rapan.

— Mas você dorme com ela, não? Quando uma Súcubo aparece?

— Uh, não. Sei um pouco de magia de Desintoxicação, então só uso isso…

— Quando uma Súcubo aparece, os homens ficam excitados. As mulheres


dormem com eles. No deserto, é assim que as coisas funcionam.

— Oh?

Carmelita passou a explicar a conexão entre as Súcubos e o modo como os


bandos de guerreiros trabalhavam no deserto, parecendo bastante orgulhosa
de si mesma.

Atualmente, as Súcubos podiam ser encontradas em todo o continente. A


espécie era originalmente nativa da região sudoeste, e o número delas era bem
baixo, mas, na guerra, há quatrocentos anos, Laplace as encorajou a se
reproduzir sem parar. Fazia parte de seu plano para destruir a resistência
obstinada dos guerreiros de Begaritt.

Súcubos eram mortais para os homens. Seus feromônios poderiam incapacitar


até lutadores veteranos e de temperamento forte. Eu poderia pessoalmente
atestar essa parte. Se duas delas aparecessem para mim ao mesmo tempo, ou
se um bando delas aparecesse bem na minha frente, eu não tinha certeza de
que sobreviveria.

Uma vez atingido pelos feromônios de uma Súcubo, os homens eram reduzidos
a escravos sexuais. Mas uma única Súcubo poderia levar uma vítima de cada
vez ao seu covil. Tendiam a escolher alguns alvos escolhidos, deixando os
demais para trás. Os homens assim deixados para trás lutavam entre si até a
morte. Uma vez que tivessem as mentes infestadas pelos feromônios, todos os
outros homens que vissem seriam, automaticamente, transformados em
inimigos. Para ser sincero, parecia bastante com o efeito de Charme.

Para curar alguém dessa condição, teria que dissipar isso com um feitiço de
Desintoxicação de nível Intermediário ou deixar que a pessoa dormisse com
uma mulher. E quatrocentos anos atrás, basicamente ninguém no continente
podia usar magia de Desintoxicação.

Como resultado, muitos jovens virgens acabaram perdendo a vida. Não havia
muito que pudesse ser feito – eles não tinham com quem dormir.
Provavelmente morreram desejando fazer sexo com alguém, até mesmo a
Súcubo que os condenou servia. Eu podia sentir empatia…

Avançando um pouco… Com o tempo, os guerreiros do Continente Begaritt se


adaptaram às circunstâncias. Todos os bandos começaram a viajar com várias
mulheres. No começo, costumavam ser escravas ou prisioneiras demoníacas,
mas os guerreiros logo perceberam que as não combatentes só os atrasavam.
As mulheres tinham pouca resistência e costumavam precisar ser protegidas
durante as batalhas.

Os guerreiros refletiram sobre o assunto. Quebraram a cabeça por anos e


finalmente encontraram uma solução: poderiam treinar mulheres para que
também fossem lutadoras. Exatamente o tipo de solução que se esperaria de
um bando de gente igual Conan, o Bárbaro.

E foi assim que surgiram as mulheres guerreiras do Continente Begaritt.

No momento, cada grupo de lutadores ou guardas neste continente possuía ao


menos algumas mulheres. Quando o grupo encontrava uma Súcubo, elas eram
responsáveis por matá-la e dormir com os homens para romper o feitiço.
Alguns grupos tinham inclusive mais mulheres do que homens, já que enfrentar
Súcubos assim era mais seguro. Ao todo, as mulheres deste continente
faziam mais do que sua cota em uma luta.

Carmelita não fugia à regra. Sempre que seu bando se encontrava com
Súcubos, ela as matava e dormia com os homens para quebrar o
encantamento. Claro, isso às vezes resultava em gravidez, mas, quando isso
acontecia, as guerreiras aceitavam e voltavam para casa com orgulho. O bebê
acabava sendo confiado ao povo de sua aldeia, e a guerreira voltava às suas
obrigações. Carmelita já dera à luz uma dessas crianças.

Esses bebês eram criados por toda a aldeia, e não pelos pais. Eram todos
cuidados e igualmente tratados, independente de sua raça ou linhagem.
Quando crianças, aprendiam a lutar e, quando chegavam à adolescência física,
passavam por uma cerimônia de maioridade e deixavam a aldeia para trás.
Quando um guerreiro ficava velho demais para lutar, ganhava o direito de voltar
para casa e se dedicar à criação das gerações futuras.

Entretanto, surgiram aqueles que optaram por nunca mais voltar, preferindo
passar a vida toda lutando. Balibadom era um deles.

Naturalmente, não havia um conceito real de casamento nessas aldeias. Era


difícil imaginar alguém nesse tipo de sociedade se apegando de forma
romântica a uma pessoa específica.

Para ser sincero, achei isso um choque cultural e tanto. Li sobre tribos
organizadas de forma semelhante no meu antigo mundo, mas… era algo
definitivamente difícil de entender. Eu não conseguia convencer nem a mim
mesmo de que isso era excitante.

Olhei para Carmelita por um bom tempo, tentando entender as coisas do ponto
de vista dela.

— Sou grata a você — disse ela em seu jeito hesitante —, mas odeio magos. Se
uma Súcubo aparecer, vá até outra mulher.

Ser abatido assim, sem nem dizer nada, por algum motivo me machucou.
Mesmo eu podendo me virar sozinho com o problema de uma Súcubo.

Grandespada Tont era um homem quieto, na casa dos trinta, com um bigode
grosso, pele castanho-clara e músculos proeminentes. Ele não era tão alto
quanto Balibadom, mas seus rostos eram bem parecidos. Sem os pelos faciais,
eu poderia facilmente confundir os dois. Conversamos um pouco na nossa
primeira vigília noturna, mas ele não fazia o tipo tagarela. Contrastava muito
com Carmelita, que parecia gostar de conversar.

Eu não tinha nada em particular para discutir, mas o tempo parecia passar mais
devagar enquanto ficávamos olhando para a escuridão em silêncio. Algum
tempo depois, tentei conversar com ele.

— A propósito, gostei do seu nome — falei. — Grandespada Tont. Isso soa bem.

— Sim. A matriarca escolheu para mim.

— Ah, sério? Você não adotou um apelido em algum momento?

— A matriarca escolhe nossos nomes. É assim que funciona para todos os


guerreiros do deserto.

Pelo visto, seus títulos não eram apenas apelidos, mas nomes cerimoniais
fornecidos pelo ancião da aldeia em que ficavam até partir.

Para aqueles com grande força, como Carmelita, costumava ser algo como
Torce-Osso ou Torce-Braço. Aqueles com olhos afiados, como Balibadom,
costumavam ser chamados de Olho de Águia ou Falcão. Em outras palavras,
poderia dizer qual era o maior talento da pessoa só pelo nome. Mas uma vez
que existiam tantas formas de chamar alguém de “forte”, às vezes seria
possível se deparar com outro guerreiro compartilhando do mesmo nome.

Tont era conhecido como Grandespada, mas sua espada não era incomumente
grande para os padrões do seu povo. Era só uma forma de dizer que ele tinha
muita força física. Talvez também houvesse algum “Corte Rápido” por aí.

— Bem, as pessoas costumam me chamar de Rudeus Atoleiro, eu acho — falei.


— Usei esse feitiço em todas as batalhas por um tempo.

— Não te vi usando nenhum atoleiro.

— Sim, não seria muito eficaz contra os monstros daqui.

O feitiço era muito útil contra monstros rastejantes, rasteiros ou caminhantes,


mas bem menos contra qualquer coisa que pudesse se levantar do chão –
como uma Súcubo ou um Grifo. E parar um inseto lento e forte no meio de seu
caminho não faria muita diferença.

Atualmente, eu não estava me preocupando em parar os monstros antes de


mirar neles.

— Sua magia é sempre chamativa. Se for a sua especialidade, gostaria de ver


ao menos uma vez.

— Bem, Atoleiro é um feitiço meio chato, sério… mas vou tentar usá-lo alguma
hora, caso tenha a oportunidade.

Com um pequeno aceno de cabeça, Tont ficou em silêncio. Ele, pelo visto, havia
esgotado seu estoque de palavras disponíveis.

Conforme nosso grupo avançava mais para o leste, a terra ao nosso redor
ficava cada vez mais verde.

O tal de Kinkara ficava nesta direção, e uma enorme selva ficava logo além
disso. Achei meio estranho que pudesse existir uma selva tão perto de um
deserto árido, mas não teríamos a chance de vê-la desta vez. Quando
alcançamos uma grande rocha vertical que alguém havia deixado como ponto
de referência, Galban mudou nosso curso e começamos a seguir para o norte.

Após passar três dias viajando naquela direção, chegamos na estrada regional
principal. Não era pavimentada, e também não recebia reparos frequentes;
parecia mais o produto natural do movimento de inúmeros viajantes seguindo
na mesma direção. Em comparação com o terreno arenoso em que estávamos
viajando, entretanto, parecia bem firme e confiável sob os pés. Isso me servia
bem.
— Sir, agora que estamos na estrada, podemos encontrar bandidos. Acho que
vamos nos sair bem, mas se as coisas ficarem feias…

— Estou pagando bem, não estou? Se preocupe apenas em manter as


mercadorias seguras!

— Sim… Tudo bem.

Balibadom claramente queria que Galban considerasse abandonar a carga em


caso de emergência, mas o homem não aceitou a ideia. Sua mercadoria talvez
fosse mais importante para ele do que sua própria vida. Não fazia muito
sentido para mim, mas quem era eu para julgar?

— Vamos ficar bem, Chefe?

— Não perca seu tempo se preocupando com isso, Cabeção.

Balibadom e Tont, por alguma razão, costumavam se referir a Carmelita dessa


maneira. Acho que era um apelido amigável… ou talvez insultante. De qualquer
forma, tive a sensação de que ela me socaria se eu falasse isso.

— Atoleiro, Dragonroad, quero que vocês dois, de agora em diante, fiquem


grudados em Galban. Tont, você fica com os camelos. Não deixe nenhum fugir.
Cabeção, você fica com a retaguarda. Vou patrulhar à nossa frente e dar o sinal
no caso de algo acontecer. É melhor não deixar isso passar despercebido.

— Você que manda, Chefe.

— De boa.

— Entendido.

Assumindo nossas novas posições, partimos com cautela. Os bandidos locais


costumavam armar emboscadas e esperar que as pessoas caíssem nelas, pelo
visto; se os visse com antecedência e fizesse um desvio, seria possível evitar
qualquer problema.

Graças à exploração especialista de Balibadom, fomos capazes de detectar a


primeira emboscada no nosso caminho com bastante antecedência. Grupos de
pessoas não eram fáceis de detectar com o Olho Demoníaco dele, mas, ainda
assim, conseguiu detectá-los à moda antiga. Fizemos um grande desvio para
fora da estrada e contornamos o perigo. Não é comum encontrar alguém que
pisa de bom grado em um cocô de cachorro que vê pela frente, certo? O natural
seria contornar isso.

Mas, no final das contas, isso foi um erro.

Balibadom talvez tivesse sido avistado pelo inimigo durante sua expedição de
reconhecimento, e eles o seguiram até nossa localização. O homem talvez
tivesse visto apenas uma pequena parte das forças dos bandidos, e nosso
desvio simplesmente nos levou ao exército principal deles.

De qualquer forma, fomos atacados.

Aconteceu logo depois de colocarmos uma distância segura entre nós e a


emboscada. Todo mundo estava começando a respirar com um pouco mais de
facilidade.

E então algo surgiu assobiando pelo ar.

Tont, de repente, estava com uma flecha no meio do peito. Ele caiu no chão.

Não conseguindo entender o que estava acontecendo, comecei a correr,


pensando em lançar um feitiço de Cura. Mas Elinalise me agarrou pelo
colarinho e me puxou de volta.

Ao fazer isso, outra flecha atingiu o camelo ao lado do qual Tont estava parado.

— Corram! — gritou Balibadom. — Estamos sob ataque! Estão vindo do oeste!

Finalmente percebi que estávamos em sério perigo e que precisávamos fugir


por nossas vidas. Elinalise me soltou. Galban e os camelos já estavam fugindo
em desespero; os segui, correndo o mais rápido que pude.

Havia um grupo de homens a cavalo em uma colina à nossa esquerda, e


estavam investindo contra nós. Eles estavam montados e nós à pé. Estavam
todos usando turbantes amarelo-arenosos idênticos.

— Sir, temos que deixar os camelos! Eles podem nos deixar ir se entregarmos
tudo!

— Sem chances!

— Você é um suicida ou só um idiota?!

— Protejam minha carga, droga! Foi para isso que contratei vocês!

— É impossível! Eles são muitos!

Enquanto Balibadom e Galban gritavam um com o outro, nosso camelo ferido


perdeu o jeito e tropeçou. Assim que percebi que ele estava espumando pela
boca, o camelo cambaleou para o lado e caiu.
Um arrepio correu pela minha espinha. As flechas estavam envenenadas.

— Tch! Também estão vindo pela retaguarda!

Outro grupo de cavaleiros avançava pela nossa retaguarda, e os arqueiros na


colina já preparavam a próxima saraivada. A maioria dos tiros foi fraco, mas
alguns fizeram suas flechas voar bastante; de vez em quando, alguma passava
de raspão por nós.

Devia haver cinquenta deles. Não, cem. E esses eram só os que podíamos ver.

A palavra bandidos me enganou demais. Estávamos lutando contra um


exército.

—…

Com o coração martelando no meu peito, tentei analisar a situação. Estávamos


sob ataque pelo flanco e pela retaguarda; provavelmente não teríamos inimigos
pela frente. Era para lá que tínhamos que fugir.

— Rudeus! — gritou Elinalise.

— Certo. Vou usar Atoleiro e Névoa Profunda.

Os feitiços surgiram na minha mente no mesmo instante. Nada mais


funcionaria neste lugar.

— Certo, tá bom! Use agora!

Virando-me, convoquei o maior atoleiro que eu poderia controlar. Não me


incomodei muito com a profundidade dele. Só precisava fazer os cavalos
tropeçarem.

— Balibadom! Vamos nos esconder no nevoeiro! Continue correndo adiante!

— O que?! Uh… Certo!

— Névoa Profunda!

Ao convocar uma enorme quantidade de umidade de uma ampla área ao nosso


redor, efetivamente cobri a área com uma espessa proteção branca de névoa.
Parecia quase que estávamos dentro de uma nuvem ou coisa do tipo. Não
importa o quão talentosos fossem os arqueiros, eles não acertariam mais
disparos em nós.

Mas uma fração de segundos depois de esse pensamento passar pela minha
cabeça, uma flecha cravou no chão a alguns metros de mim.

— Gah!
Assustado, quase caí para trás, mas Elinalise me segurou antes que eu batesse
no chão.

— Isso aí, Rudeus! Eles têm um arqueiro brilhante, mas ele não vai acertar de
novo!

O quê? Ela estava falando da mesma pessoa que matou Tont e o camelo?
Como ela sabia disso?

Mas isso não importava. Agora tínhamos a névoa do nosso lado.

— Vamos, corra!

Balançando a cabeça, trêmulo, comecei a me mover. Ele não seria capaz de


nos acertar de novo. Ele não iria me acertar. Isso era impossível. Eu era
invencível!

Porra! Eu devia ter pedido um amuleto da sorte ou algo assim para a Sylphie!
Talvez pudesse ter pegado minha lembrança de nossa primeira noite juntos que
está no santuário…

— Merda, eles estão se reorganizando! Desembainhe sua espada, Carmelita!

O grito de Balibadom me trouxe de volta à realidade. Quando ouvi direito, pude


perceber o som de cascos se aproximando pelas nossas costas. Alguns dos
cavaleiros deviam ter desviado do meu atoleiro. E, apesar da névoa que eu
havia criado, tudo que eles tinham que fazer era atacar na direção em que
estavam se movendo.

Estávamos enfrentando lutadores montados. A cavalaria tinha algumas


fraquezas, mas a velocidade dela, por si só, já era uma arma mortal.

Eu tinha visto pelo menos cinquenta cavaleiros correndo em nossa direção;


quantos passaram pelo meu feitiço? Vinte? Trinta? Eu não queria uma luta de
curto alcance com um grupo tão grande.

— Vou atrasá-los! Continuem correndo, pessoal! Parede de Terra!

Convoquei uma espessa parede de dois metros de altura atrás de nós, sem
nem diminuir meu ritmo. Um cavalo a galope não conseguiria passar por ela.
Neste nevoeiro, muitos deles provavelmente se chocariam contra ela. Mesmo
se percebessem que estava lá, teriam que diminuir a velocidade e dar a volta.

— Haah… haah…

Não havia mais flechas caindo ao nosso redor, mas eu continuava correndo
como se minha vida dependesse disso. A cada poucos segundos, eu fazia uma
pausa para invocar mais uma parede atrás de nós.
Enquanto fugia, pensei em Tont, que levou uma flechada no peito logo no início
da emboscada. Deixamos ele morrer?

Não. Ele já era, de qualquer forma, um caso perdido. A flecha que acertou seu
coração estava envenenada. Mesmo com a magia de Cura Avançada, o
ferimento provavelmente era mortal. E, mais especificamente, não podíamos
ter parado para ajudá-lo.

Rangendo os dentes, me concentrei em correr o mais rápido que podia.

Não tenho certeza de por quanto tempo corremos, mas pareciam ser pelo
menos umas duas horas. Provavelmente mais. Por fim, Balibadom olhou para
trás e gritou: “Acho que os despistamos”, e todos paramos, cambaleantes.

— Haah… haah…

Eu estava exausto, é claro, e banhado de suor. Mas todas aquelas minhas


corridas matinais não foram em vão. Se fosse necessário, eu poderia continuar.

Mas os três guerreiros do grupo mal perderam o fôlego. Essa coisa de aura de
batalha era mesmo injusta.

— Gaaah… haaah… Gweeeh…

Galban desabou no chão, seu rosto pálido feito um lençol. Mesmo para um
viajante experiente que passou anos na estrada, correr por duas horas seguidas
era exagero. Eu pelo menos não era o único.

Perdemos apenas um camelo no ataque. E um guarda-costas, é claro.

Pobre Tont. Se eu tivesse sido capaz de arrancar aquela flecha na mesma hora
e usado algum tempo para lançar feitiços de Cura e Desintoxicação, havia uma
chance de que ele pudesse ter sobrevivido. A flecha talvez nem tivesse
acertado direto no coração. Eu provavelmente tentaria salvá-lo, caso Elinalise
não me segurasse pelo colarinho. Mas se eu tivesse parado para me
concentrar nele, não teria fugido a tempo. A próxima flecha teria me acertado
em cheio.

Elinalise acertou em me impedir. Sua experiência em batalha provavelmente


salvou a minha vida. Mesmo se eu tivesse hesitado por apenas alguns
segundos, isso poderia se provar fatal.

—…

Olhando pelo grupo, notei que Carmelita estava me encarando. Será que eu
tinha feito algo para aborrecê-la? Não consegui pensar em nada.
Durante a emboscada, ela estava posicionada atrás de mim, na retaguarda do
grupo. Talvez tivesse se ferido em algum lugar e precisasse de cura. Mas não
parecia que alguma flecha do inimigo tivesse a atingido.

Ela, de repente, marchou até mim e me agarrou pela frente do meu robe.

— Por quê?! Por que você não os matou?! Você poderia! Eu vi a sua magia!

— O qu…

O que ela estava dizendo? Ela esperava que eu matasse todo aquele grupo de
bandidos?

Isso parecia loucura. Porém, depois de um momento, percebi que


nunca pensei em tentar essa abordagem.

— Pare com isso, Cabeção!

— Você também viu, não viu? Ele fez os cavalos afundarem no chão! Ele os fez
correr em direção de paredes! Ele deixou tudo nebuloso!

— Você não está pensando direito, merda! Use seu cérebro ao menos uma vez!

— Cala a boca! Se ele tivesse usado a magia dele, poderíamos ter vingado o
Tont!

— Eles eram muitos, criança! Aquele era o bando de Harimaf, tenho certeza.
Havia mais deles atrás daquelas colinas!

— Mas… ah!

Elinalise se colocou entre Carmelita e eu. Ela pressionou seu escudo contra a
mulher guerreira e tocou o florete em sua cintura.

— Você se opõe à forma como lidamos com isso? — disse ela.

— O quê…?

— Dada a situação, Rudeus agiu de forma adequada. Estávamos em enorme


desvantagem numérica e enfrentando uma força de poder desconhecido. Pior
ainda, eles estavam atirando flechas envenenadas em nossa direção. Ele
deteve a cavalaria com o atoleiro, cegou os arqueiros com a névoa e nos
comprou tempo para escapar com suas armadilhas. Ele é a única razão pela
qual estamos vivos. Perdemos um homem e um camelo, mas escapamos.
Você preferia ter ficado e lutado? Morreríamos como tolos, e eles levariam
tudo.

As palavras não tinham nenhum significado para Carmelita, já que Elinalise


estava falando na Língua Humana. Ainda assim, seu tom de voz cortante
deixou seu significado bem claro. Era raro ver ela sendo tão agressiva com
alguém, especialmente com uma aliada.

Ela tinha razão a respeito dos números deles. Vi pelo menos cinquenta
bandidos, mas devia ter mais de uma centena deles. E, conforme apontado por
Balibadom, poderia ter mais esperando para nos perseguir.

Eu poderia cuidar de uma força daquele tamanho sozinho? Difícil de dizer. Mas
eu poderia usar magia de nível Santo e provavelmente tinha mana suficiente
para usá-la várias vezes.

Depois de parar a cavalaria com um atoleiro, eu poderia ter lançado um feitiço


de longo alcance e dizimado os arqueiros. Poderia ter derrubado os cavaleiros
de suas montarias com uma rajada de vento e depois fritado todos com magia
de fogo. Isso era tudo teoricamente possível.

Entretanto, eu não tinha confiança de que conseguiria. Pelo que eu sabia,


aqueles bandidos tinham experiência em batalhas contra magos. Se um único
arqueiro sobrevivesse, uma flecha envenenada poderia ter voado em minha
direção. Alguns dos cavaleiros poderiam ter passado pelo meu atoleiro e nos
fatiado. E se as coisas acabassem se transformando em uma batalha corpo a
corpo, eu não poderia lançar feitiços sem colocar meus aliados em risco.

Elinalise estava ciente de tudo isso. Era por isso que estava me apoiando tão
firmemente.

— E só para lembrar — continuou ela —, somos guarda-costas, não


mercenários. Não nos oferecemos para lutar sozinhos contra um exército
inteiro.

—…

— Há alguma razão para você ainda estar olhando para mim? Você quer lutar…
é isso? Que criança obstinada. Se insiste, vou ser indulgente com você.

Finalmente perdendo a paciência, Elinalise sacou seu florete. Carmelita se


apressou a agarrar sua própria arma. Mas antes que as coisas pudessem ir
ainda mais longe Balibadom se colocou entre elas.

— Parem com isso, as duas. Olha, é uma pena o que aconteceu com Tont, mas
o Atoleiro fez a escolha certa. O único que queria lutar era você, Cabeção. Às
vezes você é realmente idiota, sabia?

— Cala a boca…

Soltando um enorme bufo, Carmelita recuou. Ela começou a caminhar até onde
os camelos estavam descansando, agachou-se ao lado deles e enterrou o rosto
nos joelhos.
Balibadom a observou por um momento, depois suspirou.

— Vocês dois, sinto muito por isso.

— Uhm, tudo bem…

— É só que… Carmelita teve um filho com Tont, sabe?

— Hein?!

— Então, bem… acho que você pode imaginar como ela se sente. Só está
colocando para fora.

Aqueles dois tiveram um filho?

Presumi que as mulheres guerreiras deste continente não se apegavam


emocionalmente a nenhum homem específico, mas estava claro que não era o
caso. Talvez dependesse de quem fizesse o bebê.

Enquanto eu ficava ali, sem palavras, Elinalise embainhou seu florete e se virou
para me encarar.

— Não há nenhuma razão para você se sentir mal com isso, Rudeus.

— Não há…?

— Existem alguns aventureiros por aí que fazem questão de nunca matar outro
ser humano. Não são muitos, claro, mas eles existem. E você em breve vai ser
pai. Posso entender porque hesita em tirar tantas vidas.

Suas tentativas de me confortar estavam um pouco fora de linha. Mas, claro,


ela não sabia o que Balibadom tinha me dito.

Para ser sincero, eu não hesitei em momento algum. A ideia de matar aqueles
homens simplesmente não passou pela minha mente, apesar de estarmos
enfrentando um perigo mortal.

Claro, alguns cavaleiros provavelmente perderam suas vidas cavalgando direto


contra aquelas paredes que coloquei no meio da névoa. Eu também não sentia
nenhuma culpa por isso. Mas a ideia de usar magia para matar alguém
pessoalmente me deixava enjoado.

Sinceramente, isso era meio patético…

— Obrigado, Elinalise.

Ainda assim, agradeci a ela por tentar me animar. Pensando no assunto, ela
ficou ao meu lado durante toda a fuga; quando perdi o equilíbrio, ela estava lá
para me apoiar. Elinalise parecia também ter se posicionado para me proteger
de qualquer flecha perdida.

Eu tinha a sensação de que ela se considerava, acima de tudo, minha guarda-


costas.

— Não precisa me agradecer, querido — disse ela, dando um tapinha no meu


ombro. — Sempre vou cuidar do meu neto.

Seu neto, hein? Hmm.

Quando voltássemos para casa, a barriga de Sylphie estaria bem grande.


Aquele bebê seria o bisneto de Elinalise. Tenho certeza de que ela queria que
sua chegada fosse uma ocasião feliz. Ou talvez apenas não quisesse que
Sylphie chorasse enquanto perguntava por que ela falhou em me manter
seguro.

De qualquer forma, a solução era bem simples. Só teríamos que voltar juntos.

— Uhm, Elinalise…

— O que foi?

— Obrigado. Sério.

Desta vez, coloquei mais sentimento nas palavras.

Em resposta, Elinalise só me deu um tapinha nos ombros.


Apesar do clima estranho, nosso grupo seguiu em frente.

Balibadom estava surpreendentemente calmo e controlado, considerando que


tínhamos acabado de perder mais um de seus homens. Seu primeiro foco foi
em reformular nossa formação. Longe de dar um tempo para lamentar a morte
de seu camarada, ele sequer voltou a mencionar o nome de Tont. Ele
continuava sendo o mesmo guarda-costas profissional e focado de sempre.
Isso parecia meio frio, mas provavelmente era assim que as coisas aconteciam
no seu ramo de trabalho.

Seu povo estava acostumado a isso. A morte era uma companheira constante
para eles; um único erro ou um pouco de azar bastava para acabar com suas
vidas. Parando para pensar, essa também era uma atitude comum no
Continente Demônio. Era uma forma de pensar que eu não conseguia entender.

Alguns dias sem intercorrências depois, chegamos ao oásis que marcava o


ponto intermediário da nossa jornada. Bem parecido com Bazaar, era
basicamente um mercado em torno de um pequeno lago central. Eu não tinha
notado isso antes, mas todos os grupos armados que vimos tinha no mínimo
uma mulher entre eles. Presumivelmente, também eram todos guerreiros do
deserto.

Galban e os outros armaram nossas barracas em um canto aberto da pequena


cidade. Enquanto estávamos no oásis, pelo menos, os guarda-costas também
pareciam dormir lá dentro.

— Balibadom, acha que precisamos contratar alguém para substituir o homem


que você perdeu? — perguntou Galban.

— Não deve ser necessário, Galban. Esses dois são mais úteis do que
guerreiros comuns. Acho que o mais inteligente é ir para Rapan com nosso
grupo atual e, depois, contratar mais gente por lá. De qualquer forma, não
devemos encontrar mais bandidos.

— Entendo. Tudo bem então, vamos fazer isso. Ainda assim, é uma pena que
tenhamos perdido aquele camelo…

— Essas coisas acontecem. Tivemos sorte de escapar facilmente,


considerando os números deles.
Balibadom e Galban pareciam estar em bons termos. Para ser sincero, parecia
quase como se fossem parceiros de negócios.

— O que foi, Rudeus? Tem algo no meu rosto? — Percebendo meu olhar, Galban
se virou para me encarar.

— Não, não é nada. Eu estava pensando que você e Balibadom parecem se dar
bem.

— Ah, sim. Trabalhamos juntos desde quando eu era um comerciante iniciante,


sabe. Confio mais nele do que em qualquer pessoa.

Interessante. Se tinham passado tanto tempo juntos, Balibadom talvez fosse


mais próximo de Galban do que de Tont, seu companheiro guerreiro. Depois de
anos e anos servindo como guarda-costas chefe, era possível que ele tivesse
começado a ver seus homens e mulheres como descartáveis. Ou pelo menos
substituíveis, dada a regularidade com que iam e vinham.

Paramos no oásis por tempo suficiente para descansar e reabastecer nossos


suprimentos de produtos perecíveis, depois seguimos para o norte.

Carmelita não procurou mais briga comigo, mas também não era mais
amigável do que o necessário. Não conversamos mais durante nossos turnos
noturnos.

Tentei não deixar isso me afetar. De qualquer forma, assim que chegássemos a
Rapan, estaríamos seguindo caminhos diferentes. Ainda assim, eu sentia certa
empatia pelo que ela estava passando. Não conseguia imaginar como seria
perder o pai de seu filho tão repentinamente.

Bem, eu sabia o quanto iria sofrer se visse Sylphie morrendo diante de meus
olhos. Quando soube que ela estava grávida, fiquei maravilhado de tanta
alegria. Se eu a perdesse do nada, o desespero seria ainda mais intenso.

— E acho que eu me arrependeria, não…?

Supondo que o Deus-Homem estivesse sendo franco comigo, esta viagem ao


Continente Begaritt me custaria algo.

Ele me disse isso quando me encontrei com Elinalise pela primeira vez, aos
quinze anos. Passei algum tempo em Ranoa, mas o atalho de Nanahoshi
indicava que eu não chegaria a Rapan muito mais tarde do que se tivesse
partido quando me encontrei com Elinalise. Tive de assumir que o perigo que
me aguardava em Rapan não havia mudado muito desde aquele tempo.

Se isso fosse verdade, provavelmente significava que nenhum mal aconteceria


às pessoas que deixei para trás, lá em Ranoa. Afinal, se eu tivesse partido para
Begaritt no mesmo instante, não teria me encontrado com Sylphie nem
conhecido meus outros amigos. Eu não teria motivos para me “arrepender” dos
desastres que poderiam acontecer.

Mas assim que pensei melhor nisso, notei que os arrependimentos poderiam
ser agora diferentes. As coisas poderiam correr bem para mim, mas acabar mal
em casa. Algo poderia acontecer com Sylphie ou com o bebê.

— Precisa de alguma coisa, Rudeus?

— Nah, não é nada…

Eu tinha que parar de especular sobre isso. Se ficar pensando em todas as


maneiras como as coisas podem dar errado, é possível enlouquecer. E um cara
como eu sempre cometeria erros, não importa o quanto tentasse evitar.

Não havia como dizer o que o futuro reservava.

Foi a primeira vez que fui diretamente contra o conselho do Deus-Homem. Até
então, eu tinha me saído bem seguindo a liderança dele. Isso significava que
essa escolha acabaria em um desastre, não importa o que eu tentasse?

Nah. Eu não acreditava nisso. Sabia que havia perigo à frente, então devia ser
possível evitá-lo. Ainda assim, havia um risco real de que alguém de quem eu
gostasse pudesse acabar como Tont. Se eu quisesse evitar isso, precisava
ficar em alerta. E se houvesse alguém por aí que quisesse prejudicar a minha
família, então…

Pare. Isso é inútil.

Eu poderia dizer o que quisesse para mim mesmo, mas não tinha motivos para
acreditar que seria capaz de matar. Eu só teria que fazer tudo o que pudesse
para manter a minha família segura.

Isso, ao menos, eu poderia prometer a mim mesmo.

Duas semanas depois, finalmente chegamos à Cidade Labirinto de Rapan.

Tínhamos chegado ao nosso destino. Estava na hora de começar.

Cap. 15 – Capítulo Extra – Norn e a Igreja Millis

Norn Greyrat estava se sentindo desconfortável, para não dizer muito.


Passou um mês desde que seu irmão Rudeus partiu em viagem para o
Continente Begaritt, e a vida na cidade de Sharia continuava tão pacífica quanto
sempre. Era muito difícil acreditar que a maior parte da sua família estava em
perigo, e ainda por cima em alguma terra estranha e distante.

Ainda assim, o coração de Norn estava perturbado. Não houve qualquer notícia
de Rudeus, é claro. Não que ela esperasse alguma. O que ele estava fazendo no
momento? Foi a insistência dela que o levou para lá, para enfrentar perigos
para os quais ele não estava preparado?

Se Rudeus morresse, Sylphie ficaria arrasada. Ela ficaria aos prantos,


segurando uma criança sem pai em seus braços.

Norn era só uma criança, e ela poderia não ser tão inteligente quanto a irmã,
mas até ela sabia que o sorriso corajoso de Sylphie era só uma máscara para
esconder seus verdadeiros sentimentos. Lá no fundo, Sylphie continuava
sofrendo.

Não importa o quão talentoso pudesse ser o mago Rudeus, ainda havia a
possibilidade de ele morrer em sua viagem ao Continente Begaritt. E foi Norn
quem o obrigou a isso.

Se ela não tivesse o incomodado… se não tivesse sido tão egoísta… Rudeus e
Sylphie ainda estariam juntos.

Era um pensamento doloroso. A ansiedade e o arrependimento eram


suficientes para esmagá-la.

Olhando pela janela de seu dormitório, Norn soltou um enorme suspiro. Era
algo que ela já fazia regularmente.

Do lado de fora, avistou alguns alunos caminhando na direção dos portões da


escola.

— Ah, é mesmo… Hoje eu deveria ir para casa…

Uma vez a cada dez dias, ela era obrigada a fazer uma aparição na casa da
família Greyrat. Já era o décimo dia.

Levantando-se com relutância, Norn começou a se preparar para sair.

Enquanto caminhava em direção à casa dos Greyrat, seus pensamentos


continuavam divagando a respeito da situação em questão.

O ressentimento ou desconfiança que ela sentia em relação a Rudeus quase


desapareceu. Ela também não o odiava mais como antes. Mas isso era parte
do que tornava tudo tão assustador. E se ele não voltasse para casa? E se
chegasse uma carta com a informação de sua morte? Ela não sabia se seria
capaz de suportar isso. Também não saberia se desculpar com Sylphie. E tinha
a Aisha… embora isso fosse de menor importância.

Sua mente estava girando. Esse era um dos péssimos hábitos de Norn. Depois
que ela começava a se preocupar com algo, sofria muito para parar.

— Hm?

Notando algo de canto de olho, Norn parou.

Ela avistou um edifício distinto no final de uma rua lateral.

Lá no País Sagrado de Millis, edifícios assim eram algo bem comum. Cada
seção da cidade tinha um. Mas desde que deixou aquela terra para trás, ela viu
bem poucos deles.

— Aquilo é uma igreja Millis…? Eu não sabia que havia uma nesta cidade.

Não era construída exatamente como as igrejas de Millis, então lhe parecia um
pouco estranha. Mas sua cor branca e modelo comum ainda tornavam sua
função óbvia.

— Pensando bem, não tenho oferecido muitas preces…

Norn era fiel da crença Millis. Lá no País Sagrado, quando estava sob os
cuidados da família de sua mãe, sempre a levavam à igreja. Ela aprendeu o
básico bem rápido – não era algo que escolheu fazer conscientemente sozinha,
mas não sentia como se sua família tivesse a forçado a isso. Aprender os
ensinamentos da igreja era algo importante em Millis. Todos esperavam que os
outros os conhecessem e seguissem.

Ainda assim, ela não era uma fiel fervorosa. Depois de deixar Millis para trás,
ela não sentiu a necessidade de vagar procurando por igrejas para oferecer
suas preces.

—…

Mas, neste dia, Norn se viu indo naquela direção.

O interior da igreja era, em contraste com a rua, bastante tranquilo. Claro, lhe
parecia que havia entrado em um espaço sagrado. O silêncio no ar, o estilo
imponente do edifício em si, o breve calor – lhe era tudo familiar.

O teto era um pouco mais baixo do que o das igrejas de que Norn se lembrava,
mas as filas de bancos ordenados continuavam iguais. Assim como o
santuário sagrado no fundo.

Sentindo um pouco de nostalgia, Norn caminhou até o símbolo sagrado de


Millis, ajoelhou-se e juntou as mãos.
Ela não orava há anos, mas seu corpo ainda se lembrava dessa prática.

— Grande Santidade Millis, ouça minha prece… Por favor, traga meu irmão para
casa em segurança. E meu pai. E minha mãe. E a Lilia também…

Norn sentiu uma breve pontada de preocupação, pensando que podia estar
pedindo demais ao nomear cada um deles. A Santidade Millis nunca intercedia
em nome dos gananciosos. Manter os desejos modestos era importante.

E, assim sendo, ela decidiu apenas reformular a sua prece.

— Por favor, ajude todos a voltarem em segurança.

Se Millis resolvesse atender a esse pedido, a família de Norn finalmente voltaria


a estar completa. Poderiam finalmente viver juntos, pela primeira vez em
muitos anos. Era isso que Norn queria, mais do que tudo.

Na verdade… no momento, essa era a única coisa que ela realmente queria.

Se até mesmo isso fosse pedir demais, ela não tinha certeza do que deveria
fazer.

—…

Quando terminou suas preces, Norn estava se sentindo um pouco melhor.

A atmosfera da igreja talvez fosse agradável. Ou ela talvez conseguisse


organizar melhor os seus pensamentos ao colocá-los em palavras.

De qualquer forma, ela se viu pensando: Eu devia voltar mais vezes.

Norn assistia às aulas, fazia os exercícios e depois do período escolar ia para a


igreja. Isso logo se tornou a sua nova rotina.

Quando orava, sempre se sentia um pouco melhor. Parecia que estava, de


alguma forma, fazendo a sua parte.

Mas, então, um dia, algo dentro dela ruiu.

— Por favor, deixe que todos voltem em segurança…


Quando murmurou as mesmas palavras de sempre, uma lágrima escorreu de
seus olhos. Desceu lentamente por sua bochecha, depois pelo seu queixo. Ela
foi seguida por uma segunda, depois uma terceira; a barragem havia rompido.

Norn sabia, é claro, que essas suas visitas serviam apenas para consolo. Rezar
a fazia sentir que estava fazendo algo, mas, na verdade, não estava. Não havia
nada que ela pudesse fazer.

As coisas foram sempre assim, e continuariam sendo assim. Ela era impotente
e sabia disso.

Fungando, Norn cobriu o rosto, embora não houvesse ninguém de quem se


esconder.

Ela se sentia patética. Patética e frustrada. Ela odiava ser inútil assim.

— Por que está chorando?

A voz parecia soar do nada.

Assustada, Norn olhou para cima e vasculhou a igreja. Ela pensou que estava
sozinha. Havia um sacerdote que dirigia o lugar, mas ele costumava não estar
presente neste horário. Era por isso que ela costumava ficar com o lugar todo
só para si.

Mas desta vez, havia outra pessoa presente – um jovem que estava saindo de
um confessionário.

Ele parecia ter a mesma idade de seu irmão, Rudeus. Seu cabelo era bem
comprido na frente, o suficiente para que ela mal conseguisse ver seus olhos.
Algo na maneira como ele a encarou a fez pensar que se tratava de uma
pessoa obstinada.

— Q-Quem é você?

O jovem franziu a testa, irritado com a pergunta.

— O quê, você não me reconhece? Sou Cliff Grimoire. Sou um noviço desta
igreja. Só comecei este ano.

Para um simples noviço, este jovem parecia um pouco cheio de si. Mas aquele
tom arrogante ajudou a estimular a memória de Norn. Ela já havia o visto uma
vez. Ele era amigo de seu irmão, e também um aluno notório da Universidade
de Magia.

Assim que ela pensou nisso, lembrou de também vê-lo na igreja. Quando
faziam uma missa ali, ele costumava estar ajudando o sacerdote.
— Ah… certo, claro. Olá. — Enxugando as lágrimas, Norn baixou um pouco a
cabeça.

Cliff bufou e se aproximou dela.

— Tem algo te incomodando? Vá em frente, abra-se comigo.

— Hein?

— Se você estiver infeliz sem um bom motivo, cuidarei disso para você. Tem a
minha palavra.

Norn estava sinceramente confusa com a repentina oferta. Este homem era
amigo de seu irmão, sim, mas era basicamente a primeira vez que os dois se
falavam.

— Uh, mas…

— Acho que você deve saber, mas a mulher com quem Rudeus está viajando é
minha esposa. Estou preocupado com ela, é claro, mas tenho fé nas
habilidades de Rudeus. Tenho confiança de que ele a manterá segura. Portanto,
da minha parte, tenho a obrigação de proteger a família dele, aqui em Sharia. Se
ele está arriscando a vida por Lise, farei o mesmo por você e sua irmã.

Agora fazia um pouco mais de sentido. Norn sabia que a mulher, Elinalise, já
havia feito parte do grupo de seu pai, mas não que ela era casada. Mas isso já
era esperado, considerando o quão bonita ela era.

— Do confessionário, notei que você entrava para orar todos os dias. Mas esta
é a primeira vez que você cai no choro, não é?

Norn não tinha como saber disso, mas Cliff tendia a usar essas horas calmas
da tarde para estudar um pouco dentro do confessionário, esperando por
qualquer raro visitante. Normalmente, ele ficava sozinho por lá, a menos que
tivesse alguma tarefa para cuidar, mas se revelou quando viu Norn chorando.

—…

— Vá em frente, pode confiar em mim. Vou cuidar de tudo — disse Cliff com
confiança, batendo a mão no peito. — É um problema estranho? Se quiser,
podemos usar a cabine de confissão.

Norn ficou um pouco desconfiada com a oferta. De acordo com suas


experiências, o mais sábio seria não confiar em ninguém que estivesse
encontrando pela primeira vez.

Mas enquanto hesitava, ela se viu lembrando de seu irmão – lembrando-se do


dia em que ela a visitou no dormitório. Ela lembrava da expressão no rosto
dele. Ele estava tão ansioso quanto ela.
Cliff talvez, apesar de toda a sua conversa fiada, estivesse sentindo o mesmo
que ela. Sua esposa, Elinalise, havia partido para o Continente Begaritt. Ele
provavelmente queria ir junto, mas não foi capaz. Assim como Norn.

Nesse caso… ele talvez pudesse entender como ela estava se sentindo.

— Bem, na verdade…

E então, Norn se abriu para Cliff.

No início, ela explicou, seu irmão resolveu não ir para Begaritt. Mas ela então o
forçou a reconsiderar, e ele finalmente mudou de ideia.

Havia uma chance de que Rudeus, como resultado, morresse. Sylphie ficaria
com o coração partido, é claro. Ela amava Rudeus, muito, e eles estavam
prestes a ter um filho e começar a sua própria família. Se Sylphie o perdesse
nesse momento, seria um golpe esmagador. Norn sabia o quanto isso
machucaria.

E se isso acontecesse, seria tudo culpa dela. Se ela não tivesse insistido no
assunto, seu irmão não teria partido nesta jornada perigosa.

Quando soube que seu pai estava em problemas, Norn ficou desesperada para
ajudar. Ela queria que Rudeus fosse salvá-lo. Mas, na época, nem mesmo
pensou que ele poderia não voltar para casa.

Tudo o que poderia fazer agora era ir para a escola, assistir às aulas e oferecer
algumas preces à tarde. Mas suas preces eram apenas uma forma de se
consolar. Ela era impotente. Não havia nada que pudesse fazer.

Quanto mais pensava no assunto, mais triste ficava. Era por isso, concluiu
Norn, que ela começou a chorar.

— Hein, isso é tudo? — respondeu Cliff com um breve bufo desdenhoso.

— O que quer dizer com “Isso é tudo?”

Norn esperava que Cliff entendesse, então suas palavras pareceram um tipo de
traição.

Mas, apesar de seu olhar zangado, tudo que ele fez foi bufar de novo.

— Ouça. Não estou tentando me gabar, mas sou de Millis…

— Também vim de lá.

— Deixe-me terminar, por favor. Sou neto do Papa Millis. Eu estava envolvido
em uma luta pelo poder por lá, então meu avô me mandou para cá para
estudar. Em outras palavras, não posso simplesmente voltar para casa. Não
importa o quanto eu queira ajudar a minha família, não posso fazer nada por
ela. Em outras palavras, sou bem parecido com você.

—…

— O que acha que devo fazer a respeito disso?

— Por que está me perguntando? Eu não sei…

Ela não tinha uma resposta para essa pergunta. Era por isso que ela estava
chorando. Foi por isso que pediu conselhos a ele.

— Entendo. Felizmente, sou um gênio, então sei a resposta. Gostaria de ouvir?


Hmm?

— Sim… Por favor.

O tom de Cliff estava irritando Norn, mas ela queria ouvir o que ele tinha a dizer.

— Pois bem. Primeiro, pense no motivo pelo qual estou nesta cidade. Fui
enviado para cá por causa da luta pelo poder em minha casa. Por quê? Porque
sou fraco demais para me defender. Sou jovem, inexperiente e não tenho
autoridade real. Não teriam problemas para me sequestrar e me usar como
refém. Meu avô é um homem astuto e implacável, mas sou valioso para os
planos futuros dele. Se seus inimigos me sequestrassem, ele seria forçado a
ouvir suas demandas.

Norn poderia entender isso. Não era tão diferente do motivo pelo qual ela foi
levada para este lugar. Se fosse tão poderosa quanto Rudeus, poderia estar
viajando com ele, ou até mesmo percorrendo o Continente Begaritt por conta
própria.

— Basicamente, se não quero me tornar um refém, preciso de força suficiente


para me defender de qualquer violência.

— Força? O que quer dizer com isso?

— Não estou falando de força física. No meu caso, estou me concentrando nos
estudos, reunindo o máximo de informação que posso e aprendendo novas
magias. Ah, e fazer amigos também é importante… especialmente se tiverem
habilidades incomuns ou puderem ascender a posições de poder. Quando se
tem aliados fortes do seu lado, os inimigos têm mais dificuldades para
machucá-lo.

Esse último ponto foi algo que Cliff só descobriu recentemente, após se
apaixonar por Elinalise e fazer amizade com Rudeus. Mas não havia muita
gente por aí que pudesse tolerar sua atitude, então ele ainda não tinha
expandido muito o seu círculo social. Além de Rudeus e
Zanoba, talvez Nanahoshi, mas isso era tudo.

— Então você está basicamente se treinando? — perguntou Norn. — Pelo quê?

— Se eu for repentinamente chamado de volta para casa, para Millis, quero ter
novas habilidades, novas magias e conexões. Irei usar tudo para ajudar meu
avô e rapidamente garantir uma posição elevada na hierarquia da igreja para
mim.

Mas isso tudo ainda era só uma fantasia, claro. Mas Cliff acreditava piamente
nisso. Enquanto confiasse em suas habilidades e trabalhasse no
desenvolvimento delas, ele tinha certeza de que seria esse o seu futuro.

— Mas isso nunca vai acontecer — murmurou Norn, olhando para o chão.

Ninguém iria chamá-la para o Continente Begaritt, nem tão cedo. Mesmo se
fizessem isso, ela não seria útil. Se seu irmão e seu pai não conseguissem lidar
sozinhos com a situação, ela com certeza não seria de utilidade alguma.

— Ah, vai sim. Não amanhã, e nem depois. Mas um dia chegará o momento em
que nossas forças serão colocadas à prova. Talvez dentro de um ano. Ou de
cinco, ou até dez.

—…

— Escuta, Norn. Agora que fomos deixados para trás, não há muito que
possamos fazer. Se tentássemos ir ajudar, só atrapalharíamos.

— Eu sei disso…

— Bom. Esta é a razão pela qual precisamos fazer um uso eficaz desse tempo.
Precisamos nos concentrar nas poucas coisas que podemos fazer e ficar mais
fortes. Aliás, esse é um ensinamento da Igreja Millis.

Cliff enfiou a mão no robe e tirou uma pequena cópia das escrituras sagradas.
Ele começou a recitar uma passagem que tinha gravado na memória, sem nem
mesmo abrir o livro.

— Átomos, Capítulo 12, Versículo 31. Em tempos de sofrimento, o justo


suporta. Em dias de dificuldade, ele cultiva sua força. Quando o fraco de
coração pergunta o por quê, o justo diz que certamente chegará o dia em que
ele atacará com todas as suas forças. E quando o ímpio rei dos demônios
avança sobre todos com seu grande exército, o justo desce sua espada
sagrada sobre ele. Essa lâmina divide as montanhas, as florestas e os mares, e
divide o perverso rei demônio em dois.
Norn também se lembrava desse versículo. Era um que ela recitou várias vezes
em sua antiga igreja – a história da Santidade Millis descendo sua espada
sobre o exército de demônios. O poder daquela arma era tão grande que
alcançou de Millishion às Montanhas Wyrm Azul, e então à Grande Floresta, e
até mesmo o oceano. Atingiu o Rei Demônio no lugar onde agora ficava Porto
Vento, matando-o no mesmo instante. O local de onde Millis lançou este ataque
era agora conhecido como Estrada da Espada Sagrada.

— A parte desta passagem que mais marca as pessoas é, claro, o estupendo


poder da Santidade Millis. Mas sua verdadeira importância está no começo.
Até o próprio Millis não era onipotente. Ele precisava esperar o devido tempo e
reunir suas forças antes que pudesse descer a espada sagrada sobre seus
inimigos. Se você olhar para os livros de história, lerá que o exército Millis
travou uma grande batalha contra os demônios na costa norte durante este
período. O comandante do exército humano era Peter Dolior, considerado o
amigo mais próximo da Santidade Millis, e ele morreu na batalha. Sofrendo
como estava pela perda, Millis manteve seu foco no futuro.

— Quer dizer que ele abandonou o amigo? Ele o deixou morrer?

— Não. Millis confiava em seu amigo, e seu amigo confiava nele. Foi por isso
que mesmo Peter lutou até a morte para retardar o avanço dos demônios, em
vez de recuar com a derrota. E graças a esse sacrifício, seu sonho por vitória e
paz foi realizado.

Com o fim do sermão enfático, Cliff olhou nos olhos de Norn.

— Agora, diga, qual é o seu sonho?

— Só quero a minha família reunida. Quero ser feliz de novo.

— Então faça o que puder para alcançar esse objetivo. Estude bastante e
aprenda a sua magia. Será de grande alívio para seu irmão Rudeus e seu pai,
onde quer que estejam.

— O que devo fazer depois disso? Digo, depois de aprender o que posso?

Cliff balançou a cabeça, já esperando por esta pergunta. Voltando-se para o


santuário onde o símbolo sagrado da igreja estava disposto, ele ficou em
silêncio por um momento e então respondeu:

— No final, você ora. A Santidade Millis está sempre cuidando de nós.

Se Cliff estivesse falando com Rudeus, o mago iria revirar os olhos para isso.
Mas Norn não era como o seu irmão.

Ela foi comovida por essas palavras. Pela primeira vez, sentiu que as coisas
que aprendeu na igreja eram realmente significativas.
Seus professores em Millis sempre lhe disseram para finalizar todos os dias
com uma prece. Na época parecia algo um tanto arbitrário – por que
não começar o dia com uma oração?

Ela por fim entendeu. Afinal, havia uma razão para isso.

— Acho que entendo. Por enquanto, vou me concentrar em fazer o que puder.

— Fico feliz em ouvir isso. Se tiver algum problema ou precisar de ajuda com os
estudos, fique à vontade para me procurar. Normalmente estou aqui neste
horário, mas você também pode me encontrar em meu laboratório no campus.

— Certo.

Naquela noite, Norn deixou a igreja com um novo estado de espírito.

Ela agora tinha um objetivo. Seguiria os ensinamentos de sua crença e ficaria


mais forte na ausência do irmão. Não era muito, mas era um começo.

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