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Após uma longa e cansativa jornada, minhas irmãs Norn e Aisha finalmente
chegaram à minha casa na cidade de Sharia. No momento, estavam sentadas à
mesa de jantar, comendo algo que rapidamente preparei.
Norn ficou em silêncio. Ela não estava comendo com tanto entusiasmo quanto
a irmã, mas também não fez cara feia ou reclamou. Eu não era páreo para
Sylphie na cozinha, mas ao menos conseguia fazer algo comestível.
Falando na Sylphie – ela saiu para trabalhar um pouco mais cedo. Ela queria
ficar, mas suas responsabilidades para com a Princesa Ariel estavam em
primeiro lugar. Escolhi tirar o dia de folga da escola para poder conversar sobre
algumas coisas com minhas irmãs.
Assim que terminaram de comer, fomos nós três para a sala de estar. Aisha e
Norn sentaram-se lado a lado no sofá e eu sentei na cadeira em frente a elas.
Depois de servir chá e deixar que relaxassem um pouco, finalmente decidi
abordar o assunto principal.
— Bem, acho que eu deveria ter dito isso antes, mas… é bom ver vocês duas.
Fico feliz que tenham chegado aqui em segurança.
Ela parecia estar curiosa a respeito da minha casa. Notei seu rabo de cavalo
marrom balançando para lá e para cá enquanto lançava olhares por todos os
cantos da sala de estar.
—…
Norn, por outro lado, estava olhando silenciosamente para o chão, assim como
esperado de uma criança bem pequena. Ela usava um lindo vestido azul
adornado com alguns babados – uma vestimenta bem típica para crianças em
Millishion, mas que devia se destacar onde estávamos. Seu cabelo dourado
parecia um pouco mais longo que o de Aisha, mas era difícil dizer, já que o
prendia atrás da cabeça com uma enorme presilha elegante.
— Parece que você realmente deu duro na viagem para cá, Aisha. Fico
impressionado.
— Claro. Fiquei muito motivada para vê-lo novamente o mais rápido possível,
querido irmão. — Aisha ainda continuava com aquele sorriso calmo, mas havia
algo em seu modo de falar que me pareceu um pouco estranho.
— Uh… Olha, a partir de hoje, esta será a sua casa. Se quiser, pode relaxar. Até
ser um pouco mais casual, sabe?
— Muito obrigada — respondeu Aisha. — Agradeço por isso. Mas, mesmo sendo
uma família, esta ainda é a sua casa. Não seria certo que eu impusesse
qualquer coisa sem oferecer nada em troca. Imaginei que poderia ao menos
ajudar com as tarefas domésticas.
Sim, parecia que ela estava mesmo… distante. Ou apenas formal. Isso estava,
na verdade, me deixando desconfortável.
— Ah, eu não poderia. Você sempre fala comigo com tanta educação! Como
poderia deixar de fazer o mesmo?
Ah, então era culpa minha. Eu tendia a ser um pouco formal em minha fala –
isso, aparentemente, fez Aisha sentir que precisava fazer o mesmo.
— Certo, bom, então, de agora em diante, serei mais casual com você.
— Claro — disse Aisha com um sorriso. — Afinal, somos irmãos. Vou continuar
a me dirigir a você com educação, entretanto, já que você é o chefe desta
residência.
Bem, tanto faz. Ela praticar a fala formal não era algo ruim; afinal, escolher o
tom certo para determinadas situações era uma habilidade social valiosa.
Ainda assim, parecia que Aisha interpretou minha educação como uma forma
de mantê-la à distância. Todas as pessoas que conheci nos últimos anos
sentiram a mesma coisa? Meio que adotei um discurso formal em todas as
minhas interações, já que assim parecia mais respeitoso… mas talvez devesse
tentar fazer alguma brincadeira mais casual na próxima vez que encontrasse
um velho conhecido.
“E aí Ruijerd, como vai cara? Você mudou mesmo, velho! Ganhou algum peso ou o
quê? Essa barba também é coisa nova! O quê? Você não é o Ruijerd? Droga,
mudou até o seu nome? Bem, é bom saber que você pelo menos continua sendo
o mesmo cuzão mal-humorado.”
Pensando bem, melhor não… Falar de forma educada com alguém que respeita
é algo natural, certo? Só de imaginar uma tentativa de brincar com Roxy ou
Ruijerd me deu vontade de socar a minha própria cara.
— Bem, de qualquer forma… é bom ter vocês duas aqui. Pode demorar um
pouco para nos acostumarmos a morar na mesma casa, mas vamos dar um
jeito em tudo.
Norn, por outro lado, ainda não havia dito nada, e a expressão em seu rosto
parecia um pouco sombria. Tive a sensação de que ela não tinha vindo ficar
comigo por vontade própria. A maneira como nos encontramos também não
deve ter ajudado. Da sua perspectiva, eu vaguei bêbado para casa com uma
mulher estranha aos braços.
— De qualquer forma, eu não fazia ideia de que você se casou com a Sylphie! —
disse Aisha. — Aliás, quando isso aconteceu? Você também deve ter ficado
surpresa, não é, Norn?
Isso foi um pouco decepcionante, mas fazia sentido. Aisha estudou etiqueta
básica com Sylphie em Buena Village, enquanto Norn não tinha passado muito
tempo com ela.
Eu não estava ansioso para abordar esse assunto, mas… fazia sentido que
estivessem curiosas a respeito disso.
— Bem, sabe…
Sorrindo sem jeito, dediquei alguns minutos para informar minhas irmãs sobre
os desenvolvimentos recentes em minha vida. Comecei com meu retorno à
Região de Fittoa, onde me separei de Eris e me tornei um aventureiro.
Mencionei que contraí uma doença e fui para a Universidade de Magia na
esperança de encontrar uma cura. E então expliquei que acabei me
encontrando com Sylphie, e que ela conseguiu curar a minha doença.
É claro que não especifiquei que a doença era uma disfunção erétil, ou o meio
pelo qual Sylphie a curou. Não é o tipo de coisa que se comenta com duas
garotas de dez anos. Fiz questão de mencionar que Sylphie estava em uma
situação um pouco complicada que exigia que se vestisse como um homem
em público. A Princesa Ariel já havia me permitido explicar isso a qualquer
pessoa que eu considerasse precisar saber.
Para ser honesto, talvez fosse mais inteligente se não contasse isso para
minhas irmãzinhas. Afinal, elas ainda eram só crianças. Mas se fossem morar
conosco a partir de então, inevitavelmente descobririam a verdade, ou pelo
menos começariam a criar algumas suspeitas. Considerando os problemas
que isso poderia causar no futuro, optei por dar uma esboço básico da situação
em geral.
Norn ainda estava olhando para o chão com uma expressão preocupada no
rosto, mas Aisha estava me estudando com interesse.
— Então sua doença grave já foi curada? — perguntou ela. — Para sempre?
— O que?
— Papai te mandou uma coisa. Ele me disse para entregar assim que o
encontrasse.
Saindo do sofá, ela correu para o segundo andar. Em pouco tempo, estava
descendo as escadas com uma caixa retangular em mãos.
— Aqui está!
A coisa estava, por algum motivo, trancada com três grandes fechaduras.
Tomar algumas precauções a mais nunca machucava, é claro, mas isso
parecia só transmitir para o mundo inteiro que havia algo valioso ali dentro.
Mas, talvez, as fechaduras estivessem lá para impedir que Aisha e Norn
mexessem no conteúdo e possivelmente o perdessem.
Usei um toque de magia para abrir todas as três fechaduras ao mesmo tempo.
— Uh, uau…
Bem, era um bocado, claro. Havia uma significativa quantia de dinheiro ali
dentro, incluindo cerca de uma dúzia de dólares do rei e uma pequena
variedade de metais preciosos. Era difícil avaliar o valor exato de relance, mas
renderiam um bom dinheiro se eu vendesse todos.
Devia ser o apoio financeiro que Paul mencionou na carta. Se usasse isso com
sabedoria, seria o bastante para manter minha família bem por mais ou menos
uma década. Teria que ter certeza de que não gastaria sem cuidado.
Também havia duas folhas de papel presas na parte interna da tampa da caixa.
As peguei e dei uma olhada.
A primeira era a mesma carta que Paul me enviou e que chegou alguns dias
antes. Mas a segunda era uma mensagem de Lilia. Abordava alguns detalhes
sobre o atual estado de educação de Aisha e Norn e também elaborava o que
ela via como “falhas”.
Na opinião de Lilia, Aisha era uma criança talentosa que raramente falhava em
qualquer coisa que tentava, mas isso a deixava cheia de si. Fui aconselhado a
ser rígido com ela. Norn era uma garotinha comum, mas ser constantemente
comparada à irmã na escola a deixava para baixo e acuada, apresentando uma
aparência forte diante de todos. A carta pedia para tratá-la com gentileza e
bondade.
Parecia que Lilia estava sendo, por algum motivo, dura com sua filha. Ela ainda
parecia se ver como amante ou concubina de Paul, e não sua segunda esposa.
Será que havia algo a se fazer a respeito disso? Honestamente, meu instinto
era de tratar minhas irmãzinhas da forma mais igualitária possível.
Ainda assim… de acordo com a carta, Aisha era mesmo uma criança
incrivelmente talentosa. Há um ano, Lilia ficou basicamente sem coisas para
lhe ensinar. Ela tinha um bom domínio de leitura, escrita, matemática, história e
geografia. Além disso, era hábil em limpar, lavar, trabalho doméstico em geral e
cozinhar. Ela chegou até mesmo ao nível Iniciante do Estilo Deus da Água – e
também aprendeu os seis elementos básicos da magia.
Logo após ela ser matriculada em uma escola de Millishion, Roxy e os demais
chegaram, então Aisha não passou muito tempo dentro de uma sala de aula. E,
mesmo assim, tinha chegado tão longe. Não era de se admirar que Norn
tivesse um pouco de complexo de inferioridade.
Norn era basicamente uma criança comum. Ela não tinha nenhuma força ou
fraqueza notável, isso academicamente falando, o que a colocava, pelo menos,
bem à frente de onde Eris estava na sua idade. Na maioria das aulas, ela ficava
entre a multidão, ou um pouco abaixo dela. Mas sua vida foi muito perturbada
por essa viagem. Dadas as circunstâncias, poderia dizer que estava se saindo
realmente muito bem. A garota pelos menos não desistiu de melhorar.
— O que?! Não!
Por alguma razão, foi Aisha quem protestou na mesma hora. Fiquei um pouco
surpreso com isso. Sua última experiência no sistema educacional talvez não
tivesse sido muito agradável.
— Não tenho mais nada para aprender na escola, Rudeus! Trabalhei muito duro
para poder ser uma boa criada para você!
— Certo, mas…
— Eu quero ser sua criadaaaaa! Você prometeu, lembra?! Olha, ainda tenho até
aquela coisa que você me deu!
Desfazendo o rabo de cavalo, Aisha me mostrou o que ela usava para mantê-lo
preso. Era parte do protetor de testa que dei para ela naquele dia. Aisha alterou
a placa de metal protetora para transformá-la em um enfeite de cabelo.
Eu tinha que admitir que ficava feliz ao ver que ela continuou com aquela coisa
por esse tempo todo. Mas isso não tinha nada a ver com o assunto em
questão. Sério, eu não via problemas se ela não quisesse frequentar a escola.
Seu desejo de aprender coisas novas era mais importante do que ficar sentada
em uma sala de aula durante o dia todo. E se não tivesse esse desejo,
frequentar a escola seria pura perda de tempo. Eu mesmo não tirei nenhum
proveito do meu tempo no colégio.
Dito isso, a carta de Paul claramente me instruía a matricular ambas as minhas
irmãs na escola. O conceito de educação obrigatória não existia neste mundo,
mas, ainda assim…
— Bem, certo… Quero que você faça ao menos o exame de admissão para a
Universidade de Magia. Vou tomar uma decisão com base nos resultados.
— Norn, por que você também não faz o teste, já que estaremos seguindo com
isso?
Norn fixou os olhos em mim quando falei, mas ela não moveu a cabeça. Isso
estava começando a me afetar. Essa criança me daria um gelo pelo resto da
minha vida ou o quê?
— Mas acho que posso falhar — murmurou ela, finalmente, após uma longa
pausa.
Parecia ser a primeira vez que ela conversava comigo. Isso não era verdade, é
claro, mas ainda assim me senti um pouco aliviado. Ser ignorado meio que
doía, sabe?
— Não se preocupe com isso, Norn. Qualquer um pode entrar nesta escola,
desde que tenha dinheiro suficiente — falei.
Opa. Acho que fiz parecer que ia colocá-la lá dentro de forma ilegal.
— Ei, Norn! Você não deve falar assim com o Rudeus! — sibilou Aisha.
— Você ouviu o que ele disse, não ouviu? Ele disse que vai subornar alguém
para me fazer entrar!
— Bem, se você pudesse fazer um teste direito, ele não precisaria disso!
—…
Norn voltou a olhar para o chão, sua expressão ainda mais sombria do que
antes. Pude ver as lágrimas se acumulando nos cantos de seus olhos.
Claro, tínhamos um pequeno problema com isso. Ela era ainda mais sensível a
respeito deste assunto do que eu imaginei.
— Lembra da minha tutora Roxy, certo? Ela também estudou aqui. É uma boa
escola, com muitos professores legais que podem te ensinar todo tipo de
coisa. Você pode acabar encontrando algo em que seja… interessada.
Comecei a dizer que ela poderia encontrar algo em que fosse melhor do que a
sua irmã, mas pensei melhor no meio da frase. Definitivamente não era um
bom momento para compará-las.
Norn continuou olhando para o chão por algum tempo, mas acabou falando:
Assim que as palavras saíram da sua boca, ela empurrou seu assento
ruidosamente para trás e saiu da sala.
Porém, também tínhamos alguns problemas nessa frente. Esse tipo de atitude
não ajudaria em nada.
— Aisha…
— Sim?
— Queeeeee? — disse ela, fazendo beicinho. — Mas ela mal tenta, Rudeus.
— Pode parecer isso para você, claro. Mas acho que ela está dando o melhor de
si, à própria maneira.
— Bem, se você diz… Vou tentar manter minhas opiniões para mim mesma.
Ouvir isso foi bom, mas ela não parecia tão disposta assim. No momento,
qualquer coisa que eu dissesse provavelmente não seria muito convincente. Eu
não as conhecia muito bem e não tinha a menor ideia de como lidar com
garotas de dez anos.
No início daquela tarde, deixei minhas irmãs em casa e fiz uma viagem para a
Universidade de Magia. Fui direto para os escritórios, localizei o Vice-Diretor
Jenius e rapidamente expliquei a situação.
— As duas já frequentaram outras escolas, sim? Acho que então devem ser
capazes de acompanhar os cursos introdutórios. Seria melhor que fizessem o
exame o quanto antes.
Após uma breve discussão, decidimos que o teste das duas seria dentro de
uma semana. Elas não teriam muito tempo para estudar, mas isso não era um
problema.
— Devo dizer que estou bastante animado para conhecê-las — disse Jenius. —
Se são suas irmãs, devem ser muito talentosas.
Para um cara tão grande e barulhento, Badi podia ser bem esquivo quando
assim quisesse. Mas quando ele decidia fazer uma aparição, era impossível
não notar.
Pretendia ir direto para casa, mas tinha algum tempo livre, então, em vez disso,
fiz uma visita a Nanahoshi. Bati à porta e entrei, mas me deparei com sua sala
de pesquisa vazia. Isso era incomum, dado o horário. Afinal, a garota era
praticamente uma reclusa.
Dei uma olhada em sua sala dedicada a experimentos, mas ela também não
estava por lá. Fui estritamente proibido de entrar em seu quarto, mas bati à
porta, só por precaução.
— Hmm? Guhhh…
Pensando bem, não era surpresa que estivesse de ressaca. Ela realmente
bebeu até não conseguir mais na noite anterior. Teve sorte por não entrar em
um coma alcoólico.
Suas palavras foram frias como sempre, mas desta vez também havia um
toque de constrangimento. Ela poderia ser uma daquelas “kuuderes” de que
tanto ouvi falar?
— Suas irmãs…? Espera, são suas irmãs do outro mundo? Elas também foram
trazidas para cá?
— Nah. São minhas irmãs deste mundo. Nasceram e foram criadas aqui.
— Entendo. Eu, na verdade, tenho um irmão da mesma idade. Mas suponho que
ele já esteja mais velho, caso o tempo tenha continuado passando da mesma
forma lá em casa…
Era difícil de dizer por causa da máscara, mas ela parecia sentir saudades,
provavelmente lembrando da sua vida no Japão. Eu, pessoalmente, não tinha
muitas lembranças agradáveis associadas à palavra irmão.
Assim que soltei essa deixa, Nanahoshi riu um pouco, mas pareceu meio
forçado. Essas crianças! Não conseguem nem apreciar os clássicos.
— Ah, é mesmo. Vamos passar pelo mercado, Rudy. Agora temos mais gente
em casa, então vamos precisar de mais comida.
— Bem, acho que você está certo — disse ela. — Parece que as duas não se dão
muito bem.
— Sério, não faço ideia do que estão pensando. Acho que não sei mais ver o
mundo da perspectiva de uma criança.
— Hmm. Com todo o resto, não tenho conseguido dedicar muito tempo às
tarefas domésticas… então, pessoalmente, ficaria grata pela ajuda.
O sorriso de Sylphie parecia sincero. Era bom saber que ela não via isso como
uma intrusão em seu domínio ou coisa do tipo.
— Sim.
— Hmm. Bem, você pode estar certo. Poderíamos encorajá-la a ter todos os
tipos de aulas estranhas e ver se gosta de alguma coisa… — Sylphie fez uma
pausa pensativa e levou a mão ao queixo, aparentemente dividida entre as
opções que apresentei.
Então segui seu olhar e notei que estava avaliando dois cortes de presunto com
preços diferentes.
— Eu estou pensando! Mas, sabe, Rudy, tenho certeza de que você está
subestimando um pouco a Aisha. Ela é uma garota muito inteligente.
— Eu sei. E daí?
— Bem, acho que ela vai se sair bem, quer vá para a escola ou não.
— Hmm…
— Dito isso, talvez não devêssemos pensar demais no assunto. Deixar que ela
faça o que quiser é a opção mais simples, certo?
— Para ser sincera, estou mais preocupada com a Norn — disse ela. — Ela está
obviamente ansiosa, e acho que sente falta do seu pai e de Ruijerd. Temos que
nos assegurar de que cuidaremos bem dela, certo?
— Nos trilhos?
— Uhm… Dito isso, Rudy, a decisão final é sua. Desculpa se pareci um pouco
mandona.
Balancei a cabeça.
— Nah, você foi de grande ajuda. Acho que agora sei como abordar isso.
— Mas não serei capaz de ajudar muito — respondeu Sylphie, coçando a parte
de trás da orelha e mantendo uma expressão preocupada. — Ainda tenho meus
deveres com a Princesa Ariel e…
— Digamos que eu dissesse para você largar seu emprego com a Princesa Ariel
antes de nos casarmos. O que você teria feito?
Tentei formular a pergunta da forma mais suave possível, mas quando Sylphie
se virou para mim, sua expressão estava muito séria.
— Acho… que poderia ter te afastado.
— Bem, acho que são, basicamente, tipos diferentes de amor. Digo, uh… para
começar, eu realmente quero fazer um bebê com você… — Enquanto falava
essas coisas, Sylphie reflexivamente levou a mão à barriga.
Ela também me fez corar. Será que Sylphie tinha esquecido que estávamos em
público?
— Mas eu também amo a Princesa Ariel, sabe? De uma forma diferente, é claro.
Ela é uma amiga muito querida, eu acho…
Eu nunca tinha ouvido ela expressar seus sentimentos por Ariel em palavras.
Agora que havia começado, porém, suas palavras continuaram saindo.
— A Princesa Ariel pode parecer perfeita quando vista de fora, mas ela tem
muitos defeitos e fraquezas. Sei que você ficaria bem mesmo sem mim por
perto, Rudy, mas se a princesa não tivesse eu e Luke de olho nela, não iria durar
uma semana. Eu não suportaria simplesmente abandoná-la. — Sylphie parou
por um momento, querendo recuperar o fôlego e voltar a coçar atrás das
orelhas, então continuou, sem jeito: — Uhm, mas, sabe… ter casado com você é,
bem… é uma espécie de sonho que se transformou em realidade. Também não
quero desistir disso. Contanto que você ainda me queira.
Sylphie parecia ter a impressão de que era injusto da parte dela que pedisse
tanto. Em vez de escolher entre eu e Ariel, ela sentiu que estava se
aproveitando de minha boa vontade e levando as coisas de forma cômoda.
Talvez fosse por isso que ficava sempre tão… acomodada quando estava
comigo.
— De qualquer forma, posso acabar dependendo de sua ajuda para lidar com
aquelas duas de vez em quando, Sylphie. Não sou muito bom com garotas.
— Tudo bem. Estamos casados, lembra? Vou te ajudar sempre que você
precisar de mim.
Da mesma forma, porém, Sylphie com certeza poderia se virar muito bem
sem mim por perto. Nesse aspecto, ao menos, as coisas não eram mais como
nos velhos tempos.
Ambas fizeram o teste escrito padrão. Era um exame geral aplicado à maioria
dos alunos em potencial, independentemente da idade. Algumas partes
cobriam vários assuntos acadêmicos, enquanto outras cobriam as seis
disciplinas fundamentais da magia. Não parecia nada com o teste que eu tinha
feito, mas isso já era de se esperar.
Eu tinha que admitir que fiquei impressionado. Jenius, da mesma forma, ficou
tão chocado ao ver uma garota de dez anos com um desempenho tão bom que
ofereceu uma vaga de aluna especial para ela, mas com certas condições. Mas,
claro, não foi isso que prometi à minha irmã.
Seu objetivo era, portanto… ser a serva pessoal de seu irmão. Isso me pareceu
meio bizarro, mas eu não poderia mais voltar atrás com o trato.
— Bem, tá bom. Nesse caso, uh… certifique-se de fazer o que eu disser a partir
de agora, certo?
Ouvir uma garota me chamando assim, e não Zanoba, pela primeira vez, foi
bom. Se não fosse a minha irmã dizendo isso, eu provavelmente ficaria
excitado.
— Bem, tenho certeza de que ainda preciso aprender algumas coisas. Você
talvez possa fazer a gentileza de me ensinar pessoalmente, jovem mestre… —
Colocando um dedo nos lábios, Aisha piscou para mim.
Eu entendi o que ela disse, mas decidi que bancar o idiota seria mais fácil. Se a
criança algum dia aparecesse me pedindo para ensiná-la a fazer bebês, eu teria
que sentar com ela e passar um sermão completo a respeito de educação
sexual. Sem demonstrações práticas, é claro.
— Bem, de agora em diante sou sua serva, senhor. É natural que eu me dirija a
você de forma apropriada.
Ah, ótimo. Agora ela havia recomeçado com aquele linguajar formal ridículo.
— Para ser sincero, fiquei muito mais feliz quando você me chamou de Rudeus.
Não podemos continuar assim?
O vocabulário da garota era sólido. Não era de se admirar que tivesse se saído
tão bem naquele teste.
— É claro. Minha mãe me ensinou tudo a respeito dos deveres de uma criada,
eu garanto. Deixe tudo comigo.
Pelo que Jenius me disse, ela teve uma pontuação um pouco abaixo da média
para a sua idade. Para ser justo, a criança passou um ano inteiro viajando para
esta cidade, e então a fiz prestar um exame antes mesmo que tivesse tempo
para se orientar. Ela provavelmente se sairia muito melhor se eu tivesse
primeiro organizado algumas sessões de tutoria. Em outras palavras, se saiu
muito bem… exceto se comparada a Aisha.
— Você tem alguma ideia sobre o que gostaria de estudar, Norn? — perguntei.
Minha irmã não respondeu. Ela estava mais uma vez com a cabeça baixa,
fazendo beicinho enquanto evitava o meu olhar. Parecia ainda não estar
gostando mais de mim. Eu esperava quebrar o gelo entre nós, mas não fazia
ideia de por onde começar.
— Acho que não sei todas as opções de cabeça — falei. — Mas acho que você
normalmente pode começar com dois ou três anos de aulas gerais, para então
escolher um departamento específico. A universidade tem muitos cursos
introdutórios interessantes, então o que acha de passar por alguns e ver se
gosta de alguma matéria? Ah, e se não gostar de nada em particular, pode
aprender até magia de cura. Nossa mãe também costumava ser uma
curandeira, sabia? Não existem muitos curandeiros por aqui, então você pode
conseguir um emprego logo depois de se formar.
Norn não estava me dando qualquer resposta que fosse, então acabei
tagarelando por um bom tempo. Eventualmente, percebi que ela estava
olhando para mim com uma expressão que sugeria que queria falar. Fechei
minha boca e esperei.
Sua voz estava tensa e ansiosa, mas ela conseguiu pronunciar essas palavras.
Levei um momento para pensar nisso.
— Os dormitórios, hein…?
Recusar categoricamente seria fácil, mas resisti ao impulso. Claro, ela precisou
de muita coragem para tocar no assunto.
Meu pensamento inicial foi de que ela era muito jovem. Garotas de dez anos
não viviam sozinhas. Entretanto, morar em dormitórios universitários não era a
mesma coisa que alugar um apartamento individual. Para começo de conversa,
quase sempre existe um colega de quarto.
Norn conhecia quase ninguém na cidade, e não tinha nenhum amigo no lugar.
Se morasse nos dormitórios, isso poderia mudar rapidamente. Nisso, sua idade
poderia ser um problema, mas a universidade estava aberta a alunos de todas
as idades. Eu sabia, inclusive, que havia algumas crianças ainda mais novas
que ela morando por lá. Os dormitórios eram um lugar seguro com algumas
regras bastante claras que todos deveriam seguir. Até mesmo uma criança da
idade de Norn poderia, supostamente, viver por lá de forma confortável.
Cuidar dela, mesmo que de longe, talvez fosse melhor. Se ela encontrasse um
lugar onde pudesse se sentir um pouco mais confortável, talvez ficaria mais
fácil nos esclarecermos.
No pior dos cenários, poderia imaginar Norn chegando tão longe a ponto de
fugir de casa. E eu sabia como isso poderia acabar mal, especialmente para
uma garota. Algum bastardo doente poderia levá-la e começar a exigir favores
ou coisas do tipo. Comparado a isso, ela estaria muito melhor no caso de se
mudar para um dormitório seguro.
Sylphie também passava muito tempo nos dormitórios. Ela voltava apenas a
cada três noites, mas, entre essas visitas, ficava com a Princesa Ariel. Se
acontecesse algo, estaria lá para ajudar Norn e, felizmente, minha irmã parecia
gostar dela. Talvez tivessem se aberto uma para a outra durante o banho
naquela primeira noite.
Dez anos era pouca idade para morar em um dormitório… mas a experiência
podia ser boa. Ela teria que aprender a socializar e cooperar com outras
crianças da sua idade.
— Certo, Norn. Se é isso que você quer, acho que posso dar um jeito. Vou fazer
a sua inscrição.
— Espera, o quê?! — gritou Aisha, com a boca aberta em descrença. — Por que
você está deixando ela fazer o que quer? Ela nem conseguiu uma boa
pontuação!
Isso tudo por causa daquela coisa de profissionalismo. Isso devia ter ficado em
sua mente pelos últimos cinco minutos.
— Aisha, eu…
Norn, por outro lado, não fez muito, mas decidi deixar fazer o que queria,
mesmo assim. Isso devia parecer descaradamente injusto.
O que meus pais disseram na minha vida passada quando tentei criar um
rebuliço a respeito de coisas do tipo? Não conseguia me lembrar de forma
exata, mas pareciam ser variações entre “Você fará o que dissermos” ou “Nós é
que sabemos o que é melhor para você, meu jovem.”
Uma abordagem mais severa funcionaria com Aisha? Nah. Provavelmente não.
Ela era uma criança muito inteligente, claro. Se eu explicasse meu raciocínio ela
poderia entender… será? E se eu tivesse sorte?
— Aisha, não estou recompensando Norn por nada. Apenas pensei um pouco e
cheguei à conclusão de que morar nos dormitórios pode ser o melhor para ela.
— Mas…
— Norn ainda não conhece ninguém nesta cidade, e… não acho que ela goste
de ficar perto de mim, infelizmente. Não quero mantê-la presa em uma casa na
qual se sente infeliz.
Hm. Esse era um bom ponto. Meio que me senti tentado a voltar atrás.
Não, não, isso não seria certo. Meu trabalho não era seguir as ordens
cegamente. O próprio Paul cometeu muitos erros, certo? Meu julgamento não
era perfeito, é claro, mas eu precisava confiar nele.
— Ainda vou tomar conta dela, é óbvio. Vocês são minha família e estou aqui
para ajudá-las, não importa o que aconteça. Mas parece que Norn não está feliz
aqui, e acho que morar nos dormitório pode ajudá-la a melhorar.
—…
Foi a vez de Aisha baixar a cabeça em um silêncio taciturno. Por alguma razão,
surgiram lágrimas em seus olhos.
— Você está sendo mais legal com ela só porque minha mãe é só uma amante?
— disse ela.
— Lilia não é uma amante, Aisha. Quem te disse que ela era? Foi nosso Pai?
Espero que não tenha sido Norn.
Lilia se rebaixar era uma coisa. Eu sabia que ela ainda se sentia culpada por
tudo que aconteceu. Foi por isso que conscientemente continuou
desempenhando o papel de criada da família, em vez de agir como igual à
minha mãe. Talvez fosse natural que ela esperasse que Aisha se comportasse
da mesma forma com Norn, a filha de Zenith. Presumi que Paul tratava as duas
garotas da mesma forma. Mas, ao menos na cabeça de Lilia, as duas não eram
iguais.
Quanto à família Latria… Pelo que ouvi, tratava-se de uma casa aristocrática
com uma história célebre. Só conheci minha tia, Therese, que não era má
pessoa, mas como um grupo, provavelmente tinham algumas ideias bem fixas
a respeito de adultério e posição social. Provavelmente adoravam Norn
enquanto ignoravam a existência de Aisha. Afinal, não tinham qualquer laço
sanguíneo.
— Você gosta mais dela… porque sou só uma meia-irmã…? Hic… — Aisha estava
agora soluçando, esfregando os punhos contra o rosto todo sujo.
— Aisha, nunca pensei em Lilia como a amante do meu Pai. E, no que me diz
respeito, você e Norn são minhas irmãs, simples assim.
— Mas eu… estudei tanto para aquele teste… Tentei tanto… e Norn só… só fez…
Ela então secretamente se esforçou para o teste. Isso devia ter sido…
estressante. Afinal, só dei o aviso de que seria em uma semana. E ela ainda
passou com uma pontuação perfeita.
— Ouça, Aisha.
— O-O que?
— Pode ser difícil de explicar isso, mas eu entendo. Sei que você deu duro e
estou orgulhoso de você. É por isso que concordei em deixar você fazer o que
quisesse.
— Mas você disse… você disse que a Norn pode ir morar nos dormitórios, e ela…
— Neste momento, Aisha fungou de forma ruidosa e seu lábio inferior começou
a tremer. Era uma tática eficaz, mas não recuei. Eu, na verdade, não estava
sendo injusto.
— Certo.
Meus argumentos com certeza não a satisfizeram, mas ela finalmente aceitou.
— A propósito, Norn, há uma condição para isso. Quero que você venha nos
visitar ao menos uma vez a cada dez dias.
— Por quê?
Além disso, eu tinha o dever de ficar de olho nela. Não seria muito bom dizer
para Paul que joguei sua querida filha em um dormitório e depois esqueci da
existência dela.
— O quê? Você vai mesmo afastar a Norn desse jeito? — Sylphie, a princípio, foi
contra o meu plano. Seu primeiro impulso foi o de manter Norn em nossa casa,
para que pudéssemos dar carinho para ela, até que começasse a confiar um
pouco mais em nós. Não era uma opção irracional, mas, com base em quão
desconfortável Norn pareceu naquela primeira semana, eu não conseguia me
convencer de que seria nossa melhor aposta.
— Acho que seria melhor se Aisha e Norn vivessem separadas por algum
tempo — falei. — Parece que a família da minha mãe perseguiu Aisha por ela
ser filha de uma “amante”, sabia? Não quero afastar a Norn, mas acho que as
duas estão precisando de algum espaço.
— Hmm… Bem, eu não sabia de nada disso. Então tudo bem. Acho que vou ter
que ficar de olho em Norn sempre que possível.
Sylphie não estaria sempre lá, mas isso era melhor do que nada.
Esperançosamente, daria tudo certo.
Aisha, por sua vez, logo assumiu seu novo papel como nossa criada.
Ela também era muito boa nisso. Assim que começou a assumir as tarefas
domésticas, nossas vidas ficaram visivelmente mais fáceis. Aisha já estava
cuidando da limpeza e das roupas, o que indicava que todas as minhas tarefas
foram tomadas. Eu não podia mais ficar esfregando meu rosto contra a roupa
íntima suja de Sylphie, mas teria que lidar com isso da melhor forma que
pudesse.
Além dessas tarefas básicas, minha nova criada também começou a lidar com
uma série de coisas nas quais eu nunca havia pensado. Ela saiu
cumprimentando nossos vizinhos, por exemplo, e providenciou uma limpeza
em nossa chaminé. A garota era muito afiada e com disposição para trabalhar.
Ela se destacava em tudo que colocava na cabeça, e nunca a vi cometendo um
grande erro. Fui obrigado a imaginar que foi necessário muito trabalho para
manter essa imagem de perfeição.
Por alguma razão, parecia que ela estava falando sério sobre fazer dessa coisa
de criada a sua ocupação em tempo integral. Quando ela estava trabalhando,
abandonava a atuação de irmãzinha pegajosa e se tornava uma profissional
quase robótica. O treinamento de Lilia foi obviamente completo.
Sylphie, que não estava acostumada com esse tipo de coisa, reagiu sem jeito à
atenção de Aisha. Era sempre divertido ver a interação entre as duas.
Aisha trotou até mim com um enorme sorriso no rosto. Apesar de toda a sua
disciplina, a criança tendia a deixar o papel de “criada exemplar” vacilar sempre
que se emocionava com alguma coisa. Ela ainda tinha um longo caminho a
percorrer para chegar ao nível de Lilia.
— Sim, acho que você aprender um pouco mais é uma boa ideia. Sei que você
pode não estar tão interessada, mas…
— Mas eu estou! Claro que estou! — disse ela, pulando no meu colo. — Por
favor, vá em frente!
Nossa primeira sessão de tutoria foi produtiva. Aisha já tinha uma boa
compreensão dos fundamentos; não teve tempo para aprender feitiços
Intermediários, mas tive a sensação de que ela poderia aprendê-los
rapidamente se tivesse os livros adequados. Ela, entretanto, não era capaz de
lançar feitiços não verbais. Dez anos provavelmente já era tarde demais para
aprender essa habilidade em particular.
Revisei algumas coisas e passei uma tarefa simples a ela: usar o máximo de
magia que pudesse todos os dias, até que seu estoque de mana acabasse.
Naquela noite, Aisha subiu na minha cama e perguntou:
Sem qualquer palavra de reclamação, puxei as cobertas e abri espaço para ela.
Aisha era menor do que Sylphie, é claro, mas também mais calorosa. Em um
clima frio desses, ter outro travesseiro aquecido e aconchegante na cama não
faria mal.
Claro, isso era tudo puramente inocente. Além do fato de que ela era minha
irmã, também era uma criança. Ela parecia ter em algum momento aprendido
alguns duplos sentidos, mas provavelmente não os entendia. Não havia razão
para me sentir estranho com nada disso.
E era assim que as coisas costumavam acontecer nas noites em que Sylphie
estava fora.
O verdadeiro problema surgia nas noites em que minha esposa estava por
perto. Especificamente quando íamos juntos para a cama.
Agora que minhas irmãzinhas moravam conosco, decidi por fazer uma pausa
em nossas atividades íntimas. Mas quando eu tinha uma linda mulher deitada
ao meu lado, era impossível de resistir.
Quando terminamos, Sylphie estava exausta. Ela estava banhada de suor e seu
cabelo estava todo bagunçado, de uma forma bem atraente.
Esse efeito não seria obtido com uma lingerie vermelha chamativa, igual àquele
conjunto que Eris usou. Ou com uma garota mais curvilínea como Linia ou
Pursena. Roupas simples, por algum motivo, só combinavam com Sylphie.
—…
Eu gostava muito do seu corpo. Sylphie não era a mais curvilínea, mas também
não era plana. Quase não possuía gordura, mas continuava macia ao toque. Só
tocá-la assim era o suficiente para fazer meu para-raios apontar para o céu.
— Não, não. Você, uh, tem que trabalhar amanhã e tal. Eu ficarei bem! Posso
só… acariciar seu peito pela manhã? Por favor? Isso vai bastar.
— Não seja bobo. Não precisa se segurar. — Sylphie deitou-se na cama, abriu as
pernas e sorriu timidamente para mim. — Vem cá, Rudy.
Continuando, então…
Norn foi bastante dócil nos últimos dias enquanto nos preparávamos para sua
mudança para o dormitório da escola. Ela não conversou muito comigo, mas
também não era como se estivesse sendo hostil. Ela aparecia quando eu a
chamava e ouvia quando eu pedia para que fizesse algo. Mas não parecia que
estávamos ficando mais próximos.
Aisha na mesma hora apareceu e se ofereceu para ir tomar banho comigo. Ela
acabou lavando as minhas costas e me fazendo uma massagem agradável.
Aquela garota realmente fazia qualquer coisa que planejava, e era boa até
enxaguando as pessoas… não que eu quisesse que minha irmã seguisse uma
carreira em que isso fosse relevante.
A garota também parecia ser um híbrido entre humano e papagaio. Ela tinha
uma enorme crista colorida na cabeça, a qual ficava se contorcendo sempre
que ficava animada ou chateada. Eu não tinha certeza se o povo dela era
demônio ou gente-fera, mas isso não importava. De qualquer forma, seu nome
era Marissa, e eu não tinha ouvido nada de ruim sobre ela.
Pensando bem, essa escola tinha um corpo discente bem diversificado, com
muita gente de raças mestiças. Eu teria que lembrar Norn de tomar cuidado
com suas maneiras e não dizer nada que pudesse soar ofensivo.
Mas, bem… havia uma chance de os fãs deles ficarem com inveja dela. Mas
talvez fosse esse o tipo de adversidade que ela precisava aprender a
enfrentar…
Hrrm. Afinal, por que essas coisas têm que ser tão complicadas?
No final das contas, Norn precisaria enfrentar isso sozinha. Era melhor que eu
ficasse de fora de tudo até que algo saísse errado. Por enquanto, meu trabalho
seria assistir em silêncio.
Logo chegou o dia da partida dela. Quando a vi naquela manhã, minha irmã já
estava vestindo seu novo uniforme e carregando sua bolsa.
Eu tinha muito mais o que dizer, mas no momento parecia melhor manter as
coisas simples.
— Sim.
— Certo.
—…
Bem, nesse ponto ela começou a olhar para mim. Ao menos foi um começo.
Naquele dia, assim que coloquei os pés no laboratório de Zanoba, ele chamou
por mim, trotando com uma caixa nos braços. Seu rosto brilhava de orgulho.
Colocando a caixa sobre a mesa, Zanoba tirou seu conteúdo – um objeto longo
e esguio coberto com um pano. Desembrulhando-o, revelou um braço artificial
em questão. Ele o cortou em pedaços, igual a uma cenoura.
— Quando olhei perto dos lugares onde a tinta descascou, percebi o que
pareciam ser costuras na superfície. Tentei cortá-las, só para ver o que poderia
acontecer… e foi isso que descobri.
Pegando uma das fatias, Zanoba girou para que eu pudesse ver o corte
transversal. Vi um padrão como se fosse um código QR escrito
compactamente ali. Devia ser algum tipo de círculo mágico, mas era peculiar,
totalmente diferente dos desenhos que Nanahoshi faz.
— Uau. Certo. Eu não esperava que os braços tivessem tantos círculos mágicos,
sério… É interessante o fato de serem tão diferentes uns dos outros…
Olhar para eles por um tempo realmente me deixou enojado. Parecia quase
como se estivéssemos estudando o sistema nervoso de um corpo humano
dissecado ou algo assim.
— Eu não fazia ideia de que havia costuras nisso. Devem ser bem sutis.
— Bem, estavam quase escondidas pela tinta — disse Zanoba com orgulho. —
Seria impossível notar sem primeiro descascar.
— Entendo…
Foi o primeiro grande avanço de Zanoba em sua pesquisa, e ele ficou muito
animado com isso. Eu não estava tão animado assim, já que desde o começo
assumi que deveria haver algum tipo de tecnologia mágica complexa animando
a coisa.
Isso tudo era necessário só para mover o braço? Será que é necessário uma
cadeia de círculos mágicos por todo o corpo para controlar e coordenar os
movimentos? Ou é algo mais? Era impossível definir isso sem mais pesquisas.
Até encontrarmos a coisa, ela vagava pela casa todas as noites, limpando e
atacando qualquer ameaça que encontrasse. Uma vez que a rotina de limpeza
terminava, voltava à sua base para recarregar. Pensando nisso, esses eram
alguns padrões comportamentais bem complexos. Era mais inteligente do que
um aspirador de pó robótico… e significativamente mais violento.
Não era algo que pudesse criar ao gravar meros círculos mágicos na cabeça ou
no torso, imaginei.
Meu objetivo não era criar um simples Roomba1 mágico. Eu quero fazer
bonecos capazes de se mover. Queria um para mim e também queria vender
outros, visando algum lucro. Definitivamente alcançariam um alto preço no
mercado.
E também havia aquela coisa de melhorar a reputação dos Superds, mas esse
era outro tipo de problema.
Um dia, com certeza realizarei meu sonho de criar a empregada robô perfeita. E
esse momento está cada vez mais perto de acontecer.
Bati uma vez na porta e entrei em seu laboratório. Deparei-me cara a cara com
uma mulher que estava na entrada, como se estivesse de guarda. Ela não era
uma supermodelo, mas tinha um rosto bom.
Seu nome era Ginger York, ela é uma ex-cavaleira de Shirone e leal guarda-
costas do Terceiro Príncipe Zanoba. Voltar a vê-la despertou certa nostalgia.
Zanoba e Julie estavam, como sempre, dando duro em seus próprios projetos.
Ele estava desenhando diagramas dos círculos mágicos que encontrou no
boneco, e ela esculpindo uma estatueta com um pequeno cinzel. Esse projeto
parecia perto de ser concluído, então fui dar uma olhada.
— Isso não está ruim. Mas não acha que está atraente demais para ser o
Zanoba?
— Ah, não é nada. Eu só estava pensando… que você cresceu bastante, isso é
tudo.
— Bem, é claro. Já se passaram o quê… uns quatro anos desde a última vez que
nos vimos?
— Isso mesmo. Já completei minha outra missão, e minha família está segura
em casa.
— Ei, Zanoba. Não acha que deveria dar uma recompensa a Ginger por todo o
trabalho duro dela?
— Hm, suponho que você esteja certo — disse Zanoba, ainda focado em seus
círculos mágicos. — Há algo que você deseja, Ginger? Fale livremente.
Isso realmente não era o que eu tinha em mente. Digo, a educação de Julie era
para o bem de Zanoba, não de Ginger. Então, será que há alguma regra oculta
de que escravos não devem receber educação demais?
— Bem, então tá bom — falei. — De volta à rotina, eu acho. Quão longe você
chegou?
— Sim, estive pensando nisso, mas não seria melhor estudarmos todos os
círculos nos braços primeiramente? Digo, depois de separar as partes, você não
pode montá-las novamente, certo? Ir com calma pode ser melhor.
— Talvez possamos trazer Cliff e Nanahoshi para dar uma olhada. Eles podem
notar algo que deixamos passar.
— Hm?
Assim que ela mencionou, percebi que estava falando com ele de forma mais
casual que o normal. Eu geralmente adotava um discurso mais formal, mas
depois daquele comentário que Aisha fez no outro dia, inconscientemente
comecei a me soltar um pouco.
Eu podia entender porque uma criada leal ficaria aborrecida ao ouvir seu
mestre sendo tratado indelicadamente. Eu só precisaria ser mais educado
quando Ginger estivesse por perto.
— Suponho que você esteja certa. Sinto muito por isso. O Príncipe Zanoba tem
sido um bom amigo para mim, então acho que…
— Gingeeeeer!
— Como ousa?! Mestre Rudeus estava finalmente se abrindo para mim, e agora
você estragou tudo! Como pôde? Conserte isso! Peça desculpas agora mesmo!
— Guh… Guhh!
Ginger parecia estar sentindo muita dor. Ele estava mesmo a sufocando? Isso
estava escalando em uma velocidade absurda!
Ele instantaneamente soltou suas mãos e deixou Ginger cair. Seus dedos
deixaram claras marcas vermelhas na pele dela. Ela tentou estender a mão
para tocar o pescoço, mas parou no meio do caminho, fazendo uma careta de
dor. Parecia ter quebrado um osso do ombro quando foi batida contra a parede.
Corri e rapidamente curei seus ferimentos com magia de cura. E assim que
terminei, ela se ajoelhou diante de mim e abaixou a cabeça.
— Mas, Mestre! Ela interrompeu sem pensar, sem qualquer consideração sobre
nossa amizade…
— Então por que você simplesmente não disse isso para ela?!
Ginger lealmente o serviu por muitos anos. Ela protegeu minha família em uma
longa e perigosa jornada por um território desconhecido. Não devia ter sido
fácil, mas ela fez tudo isso por nada além de lealdade a seu mestre exilado.
E quando cometeu um único erro, a reação dele foi batê-la contra a parede e
começar a sufocá-la? Isso era simplesmente horrível.
Estava óbvio que nossa amizade era muito importante para Zanoba. Era bom
saber disso. Mas não significava que ele devesse maltratar sua guarda mais
leal por algo assim.
— Sir Rudeus, por favor… Está tudo bem — disse Ginger suavemente, seu rosto
calmo e composto. — Fico orgulhosa ao ver o Príncipe Zanoba defendendo um
amigo. Ele claramente cresceu como pessoa desde a última vez que o vi.
Eu talvez não tivesse a função de dizer nada, mas Ginger obviamente merecia
um tratamento muito melhor do que esse.
—Zanoba…
— Sim, Mestre?
— Mas também devo muito a Ginger por ter protegido a minha família. Ela ficou
com minha família pelo quê… quatro anos? Sou muito grato por isso, e eu
apreciaria se você a tratasse com mais gentileza.
— Claro, Mestre — disse Zanoba com uma expressão séria no rosto. — Peço
desculpas por minhas ações, Ginger.
— Não há necessidade para se desculpar, Príncipe Zanoba — contestou Ginger,
levantando-se. — Fiz um juramento de lealdade absoluta a você, e morreria de
boa vontade sob o seu comando. Minha observação foi impensada.
Sinceramente lamento pelo que falei.
Essa parecia ser sua palavra final a respeito disso, e eu não via motivos para
arrastar ainda mais o caso. Evidentemente, era assim que funcionava a relação
mestre-serva entre eles. Mas, e se Zanoba cometesse um erro grave? Ginger
conseguiria discordar dele?
Bem, tanto faz. Eu era basicamente um estranho. Não sabia como as coisas
funcionavam em Shirone e, se continuasse me intrometendo, provavelmente só
causaria ainda mais problemas.
— Sei que sugeri por enquanto focar nos braços, mas a decisão é sua. Siga com
o que achar que é melhor.
— Acho que você pode deixar o resto comigo, Mestre. Parece que tenho algum
talento para este tipo de trabalho.
Ele passava o dia todo fazendo pesquisas que o atraíam, com uma dedicada
artista do ofício das estatuetas trabalhando constantemente ao seu lado. Isso
provavelmente era o seu dia a dia ideal. Ainda assim, o que acontecerá após ele
se formar? Continuaria vagando pela cidade, brincando com seus bonecos?
Bem, não cabe a mim decidir. Não era problema meu… mesmo que uma das
razões de Zanoba para fazer isso fosse, em parte, por minha causa.
— Bem, então tá. Continue assim, Zanoba! Nos vemos outra hora.
— Fico ansioso por isso, Mestre.
— É claro!
Mais um mês passou, o que indicava que era hora da reunião regular da
principal gangue de delinquentes da Universidade de Magia de Ranoa. Com
isso, quero dizer a sala de aula da “classe especial”. Os envolvidos eram os de
sempre: Zanoba, Julie, Cliff, Linia, Pursena e eu. Nanahoshi e Badigadi estavam
ausentes, já que as regras não se aplicavam a eles.
Eu não estava com o melhor dos humores nesta manhã. Ultimamente tenho
pensando muito em minhas irmãs… em Norn, especificamente. Já fazia algum
tempo que ela estava morando nos dormitórios, mas dar o espaço que ela
queria não foi de grande ajuda para melhorar nosso relacionamento. Ela
costumava me ignorar sempre que nos cruzávamos pelos corredores e, quando
Norn não fazia isso, ela me lançava um olhar de nojo.
Certo, talvez essa última parte fosse só minha mania de perseguição. Mas, em
qualquer caso, nós dois não estávamos ficando mais próximos.
Mas não havia problema nisso. Eu ficava triste, mas poderia viver com isso.
Não era como se irmãos e irmãs tivessem que ser melhores amigos ou algo do
tipo. E mesmo que não nos déssemos bem, eu ainda ajudaria Norn, caso ela
precisasse de minha ajuda.
O verdadeiro problema era: Norn estava morando naquele dormitório por cerca
de um mês, mas parecia ainda não ter feito qualquer amigo. Quando a via nos
corredores, estava geralmente sozinha. Ela não parecia triste nem nada assim,
mas isso estava começando a me incomodar.
É possível sobreviver por um tempo sem fazer amigos. Mas ela estava ao
menos tentando conversar com as demais pessoas da sua sala? Estava se
ajustando à vida nos dormitórios?
Além disso, eu nem lembrava do nome daquele cara. Mas lembrava que ele
parecia com um husky siberiano.
— E aí, Chefe, tudo bem? — disse Linia, abaixando-se para me olhar no rosto. —
Ultimamente você está parecendo tão triste.
Por mais barulhentas e irritantes que as duas pudessem ser, metade do povo-
fera dessa escola as idolatrava. Mesmo após fazerem as pazes com a Princesa
Ariel, era fácil vê-las vagando pelos corredores cercadas por um bando de
lacaios leais. De qualquer forma, duvido que tenham muitos conselhos a
oferecer sobre o assunto da solidão.
Com um sorriso malicioso, Linia deixou uma enorme bolsa rugosa cair na
minha mesa.
Olhei duvidosamente para aquilo. Era difícil dizer o que poderia estar dentro.
Isso estava começando a soar seriamente suspeito. Com sorte, não seria um
saco de pó da alegria ou coisa do tipo. Eu sabia que existiam alguns tipos de
narcóticos circulando pelos Territórios Nortenhos e em partes do Continente
Demoníaco. Millis e Asura pareciam ter leis que restringiam seu uso, mas a
maioria das nações nesta região não eram tão rígidas a respeito disso.
Mesmo assim, o material poderia vir a ser útil, então não vi motivos para
recusar. Se acabasse precisando de dinheiro, poderia simplesmente vendê-lo.
— De nada, Chefe!
— Qualquer coisa para você, cara.
Parando para pensar nisso… as duas viviam nos dormitórios, certo? Como já
estavam lá há seis anos, provavelmente sabiam de tudo e conheciam todos.
Talvez tivessem algumas informações úteis, ou até mesmo conselhos.
— Quanto ao que você disse… A questão é que estou meio preocupado com
minha irmãzinha.
— Sua irmãzinha? Sim, acho que já a encontramos uma vez. É a garotinha que
você adornou como uma criada, certo?
— Esses dias a vimos no mercado. Ela tinha seu cheiro por toda parte, Chefe.
Achei que vocês fossem parentes.
— Não, ela não. Quero dizer minha outra irmã. Faz um mês que ela está
morando nos dormitórios.
Linia e Pursena se viraram e olharam uma para a outra com olhos arregalados.
Pelo visto, ainda não tinham topado com Norn… ou talvez tenham, mas não
perceberam que era minha irmã. Ela não passava muito tempo em casa, então
devia ter um cheiro diferente do meu.
— Sim, isso mesmo — falei. — Mas não acho que ela goste muito de mim. Nós
mal nos falamos. Não sei como fazer que ela seja afetuosa comigo.
— De qualquer forma, o verdadeiro problema é que ela ainda não parece ter
amigos — falei. — Ela está aqui há apenas um mês, então talvez seja cedo
demais para me preocupar… Mas ela é uma estudante transferida, sabe?
Aposto que está tendo dificuldades em se encaixar.
— Sim. Talvez, uh… será que ela só não teve tempo para conhecer as pessoas?
— Por favor, não me digam que vocês duas estão mexendo com minha irmã.
— Claro que não, Chefe! Você disse para não pegarmos no pé de ninguém mais
fraco do que nós!
— Sério?! Ufa!
Em outras palavras, fizeram algo a alguém. Será que talvez tenham o hábito de
ensinar o devido lugar na hierarquia social aos alunos arrogantes ou coisa
assim?
— Não fique bravo conosco no caso de não gostar, certo? Demos muito duro
para conseguir isso.
Foi meio estranho voltarem mais uma vez para esse tópico. Por que de repente
pareceram tão nervosas com isso? Isso era um pouco perturbador, mas fiquei
definitivamente curioso para descobrir o que tinham me dado.
— Ei, a intenção é que conta, certo? Não vou ficar bravo, prometo.
Eu não ficaria exatamente feliz se fosse um monte de ratos mortos ou algo do
tipo, mas não usaria isso contra elas.
Neste ponto, notei Cliff olhando para mim de seu assento, a algumas mesas de
distância.
— Ei. Tem algum conselho para o problema com a minha irmã, Cliff?
Ainda assim, Cliff não era mais o solitário que costumava ser. Ele agora tinha
Elinalise. E eu, apesar dos pesares. Talvez Norn nunca seja tão popular a ponto
de ser considerada a mais famosa da escola, mas eu tinha que torcer para que
ela conhecesse ao menos algumas pessoas.
— Bem, não estou. Sei que fui eu quem criou a receita, mas isso é horrível.
— Acho que os ingredientes daqui não são tão bons quanto os que tínhamos no
Japão.
— Isso é certeza.
— Aquelas batatas fritas que comi na sua casa, acho. Estavam boas.
Acho que ela se referia às que Sylphie fazia em casa. Fazia sentido. Aperitivos
simples como aqueles não tinham um gosto tão diferente dos que comíamos
no Japão.
— Quer que façamos mais para você?
— Não precisa…
Então tá. Da próxima vez que ela for usar nossa banheira, eu irei preparar
algumas batatas para ela.
Badigadi também não apareceu hoje. Ele costumava parar no refeitório sempre
que possível, mas eu não tinha o visto no último mês. Realmente queria me
sentar com ele e conversar sobre Ruijerd.
— Fwahahahaha!
— Uh, p-por que você está rindo? Fiz alguma coisa engraçada?
— Mestre?
— Grão-Mestre…?
Tudo que meu experimento rendeu foi um monte de olhares perplexos de todos
na mesa. Para ser sincero, foi meio constrangedor. Acho que não sou
apropriado para ocupar o lugar de Badigadi.
Luke apareceu do nada. Ele estava afiado como sempre, mas desta vez
nenhuma fã apaixonada o seguia. Sylphie também não estava com ele.
— Nada. Faz um tempo que não vejo nosso Rei Demônio, então estava tentando
invocá-lo com minha risada — falei.
— Sério?
Com isso ela chamou minha atenção. Seja qual for o motivo, pode estar
afetando Norn.
Merda. Norn atendia ambos critérios. Eu teria que cooperar de corpo e alma
com a investigação deles. Se conseguisse salvar o dia, talvez até ganhasse
alguma gratidão da minha irmã.
Espera, Linia e Pursena? Elas disseram que não estavam mais atormentando
os fracos, mas… talvez tivessem sentido o cheiro de carne seca no bolso de
algumas novatas e as perseguiram ou coisa assim. Isso era deprimentemente
plausível.
Espera, o quê?
—…
— Pelo que entendemos, elas estavam escondendo as roupas íntimas que
roubaram em uma certa bolsa. — Dizendo isso, Ariel silenciosamente olhou
para o presente que eu aceitei algumas horas atrás. Luke e Sylphie fizeram o
mesmo, eles tinham recebido uma descrição de como era a bolsa, sem
dúvidas.
Inacreditável. Quando foi que pedi um presente como este para Linia e
Pursena? E por que estava ficando excitado só de pensar nisso? Droga, eu era
mesmo um ser humano lamentável.
— Linia e Pursena me deram esta bolsa nesta manhã. Disseram para olhar
dentro só quando voltasse para casa, então não tenho certeza, mas devo
presumir que contém os objetos que estão procurando.
— Entendo. Só para ficar claro, você ordenou que elas fizessem isso?
— Claro que não. Acabei de me casar com a Sylphie, lembra? Não estou
sexualmente frustrado para fazer algo assim.
Ela realmente achava que eu era o tipo de que iria colocar um plano sem noção
desses em prática logo depois de mandar minha própria irmãzinha para
aqueles dormitórios? Não pude provar minha inocência, então não tinha certeza
de como me defender. Devia haver alguma maneira de esclarecer tudo…
— Pois bem. Acreditarei na sua palavra. — Com outro breve suspiro, Ariel
abruptamente interrompeu o seu interrogatório.
Espera, ela sabia como estávamos passando nosso tempo juntos? Ah, deus.
Sylphie tinha contado sobre todas as coisas ridículas que falei para ela na outra
noite?
— Uh, Sylphie? Você está dando relatórios sobre nosso tempo a sós à Princesa
Ariel?
Eu confiava nela. Sabia que as duas eram amigas íntimas, mas não conseguia
imaginar uma garota tão tímida quanto Sylphie falando sobre sua vida sexual
com os outros. Não que fosse algo demais se ela fizesse isso… contanto que
não reclamasse do meu desempenho ou coisa do tipo…
— Bem, não descobri — respondeu Ariel. — Só estava querendo ver sua reação.
Mas fico feliz em saber que estão gozando da companhia um do outro.
Enfim… o que Pursena e Linia estavam pensando? Juntar uma bolsa de roupas
íntimas recém-usadas deve ser a ideia mais estúpida que já tiveram. Eu já tinha
feito ou dito algo para fazê-las pensar que queria… Espera aí. Elas, há algum
tempo, não mencionaram algo sobre me pagar um tributo com um monte de
calcinhas?
Na época presumi que fosse só uma piada, mas talvez estivessem falando
sério. Bem, tanto faz. A culpa continuava não sendo minha, certo? Sim.
Definitivamente não.
Linia e Pursena podiam não ter más intenções, mas eu teria que ser firme com
elas a respeito disso. As únicas calcinhas que eu gostava eram as recém-
tiradas. Não adiantava nada se eu não as visse sendo tiradas.
Espera, não. O problema não é esse.
Ariel deu uma espiada dentro da bolsa, então voltou a balançar a cabeça.
Parecia que havíamos conseguido alcançar uma resolução perfeita para o
problema.
— De forma alguma. Não tenho fetiche por roupas íntimas ou coisas do tipo.
Ariel e Luke olharam para ela com expressões divertidas em seus rostos. Levou
um segundo para perceber exatamente o que tinha dito, e então seu rosto ficou
todo vermelho de vergonha.
— Sinto muito por todo o aborrecimento que Linia e Pursena lhe causaram,
Princesa Ariel…
Luke manteve a porta aberta e me convidou a passar por ela. Ariel e Sylphie
também o fizeram, e logo após ele saiu e trancou a porta atrás de si.
Em vez de responder, ela virou a cara para mim. Por pura coincidência,
deparou-se com o olhar da Princesa Ariel.
— Uhm, bem… Não tenho certeza de onde fica a terceira sala de prática…
— Ah, entendo.
Então ela ficou para trás enquanto sua turma mudava de sala, hein? Pobre
criança. Pode parecer insignificante, mas coisas assim realmente doem
quando acontecem com uma criança. Parecia que minha preocupação com ela
se transformando em uma solitária não era infundada.
Pouco antes de fazerem uma curva, Norn parou e olhou para nós. Seu olhar
vagou, por um momento, entre mim, Ariel e Sylphie. Mas então ela voltou a se
virar e partiu. Sem me dizer uma única palavra que fosse.
— Finalmente pronto para admitir que se apaixonou por nós? Bem, é melhor que
primeiro execute o plano de Fitz. Não quero que ela fique com raiva de nós.
— Não é isso que estou dizendo! Você podia ter dado a sua também!
— Olha, vocês são do povo-fera, não são? Imagino que sabem como é
humilhante ter suas roupas tomadas.
— M-Mas nós demos roupas íntimas novas para elas e tudo mais! Foi só uma
troca!
— Ah, sério? Ao que parece, um monte de garotas acabou ficando bem abalada.
— É só que as novas não devem ter servido direito, isso é tudo! Não tomamos a
calcinha das garotas que disseram não, eu juro!
Hm? Isso soou bem diferente do que Ariel tinha descrito. Isso me deu algum
alívio. Eu me sentiria péssimo se elas arrancassem a roupa de alguém à força.
Eu poderia até me sentir tentado a obrigá-las a andar nuas em público por
algum tempo, só para que entendessem como isso era humilhante.
Foi, nesse sentido, um gesto simpático, ainda que eu não tenha gostado do
presente delas. Eu simpatizava com as vítimas, mas elas tiveram, basicamente,
boas intenções. Não era como se estivessem intencionalmente tentando
humilhar alguém, como os valentões que me perseguiram na minha vida
anterior.
Sim. Elas eram como duas crianças inocentes que saíram por aí catando
cascas de cigarras, nada além disso. Seria mesmo justo dar um tapa nelas,
resultando em uma punição exagerada?
— C-Certo, Chefe.
As duas olharam para mim, confusas, como se eu tivesse feito a pergunta mais
estranha do mundo.
Ah, certo. Então, parando para pensar, a culpa era minha. Nunca deveria ter
permitido que essas duas idiotas colocassem os olhos em meu artefato divino,
nem mesmo por um segundo.
— Espera, sério?
— Nós pensamos que você era devoto a um culto à calcinha ou algo assim.
Eu tinha um certo gosto por calcinhas, mas nunca levei as coisas tão longe.
— Bem, agora que isso foi esclarecido… certifiquem-se de não repetir esse erro,
certo?
Havia algo mais que precisava ser dito? Hmm… ah, é mesmo.
— Hein?
— Hein?!
— Bem, é claro que ele quer. No fundo, ele é igual aos outros caras. Somos
irresistíveis.
Uau, isso foi extremamente irritante. Também não fazia muito sentido. Elas não
deveriam ficar com nojo ou algo do tipo, em vez de me provocar assim? Será
que elas têm uma queda por mim?
Nah, não era o caso. Isso era algo diferente. Poderia dizer que gostavam de
mim, mas não era da mesma forma que Sylphie gostava. Eu, porém, não
conseguia identificar a diferença exata. Por enquanto, apenas pensaria nisso
como um tipo estranho de amizade.
Falei tudo o que precisava, o que dava a reunião por encerrada. Minha
reputação provavelmente seria abalada como resultado desse incidente, mas
eu poderia suportar isso. Não me importava muito com o que as pessoas
diziam pelas minhas costas, de qualquer maneira.
Quando nós três saímos de trás do prédio, topamos com um grupo de alunas
do primeiro ano. Todas estavam com suas mochilas escolares, então pareciam
estar voltando para os dormitórios. No momento em que nos viram, todas
abriram caminho para sair da nossa frente.
Enquanto se moviam, no entanto, localizei Norn bem atrás do grupo. Ela olhou
para mim e depois para Linia e Pursena. Sua expressão mudou de surpresa
para indignação e descrença e, então, quando passou por nós, me lançou um
olhar desagradável.
Linia e Pursena se viraram para vê-la partir, parecendo não muito satisfeitas.
Fiquei um pouco surpreso por ela não me desobedecer com mais frequência,
tendo em vista que obviamente não gostava de mim. Mas, na maior parte do
tempo, ela não virava a cara para mim… embora costumasse fazer alguma
careta.
Parando para pensar nisso, porém, não passei muito tempo com nenhuma das
minhas irmãs depois da infância delas. Talvez tenha sido estúpido da minha
parte esperar que pensassem em mim como parte da família logo de cara. A
atitude amigável de Aisha provavelmente era a mais incomum das duas. Só
porque é parente de alguém, não significa que a pessoa vai incondicionalmente
gostar da companhia da outra. Eu sabia muito bem disso. Na verdade, os
membros da família costumam ser as pessoas de quem mais nos ressentimos
– e com mais persistência.
Soquei o meu pai bem na frente de Norn. Eu e Paul tínhamos nos reconciliado
rapidamente e deixado aquele incidente para trás, mas a memória ainda devia
arder no coração da minha irmã. Se alguma vez ela tocasse no assunto, eu teria
que me desculpar sinceramente. Mesmo que me parecesse uma história
antiga, a dor e a raiva podiam continuar frescas na memória dela.
Não era como se irmãos tivessem que ser melhores amigos uns dos outros. Só
precisávamos manter um relacionamento confortável para os dois, e isso
poderia exigir algum tempo.
Eu, por outro lado, fiquei congelado no lugar. Provavelmente devia ter seguido
minha esposa, mas a notícia me deixou em estado de pânico. Ser um “recluso”
tinha algumas conotações muito pesadas para mim, acho.
O que devia fazer? O que se supunha que eu devia fazer? Minha mente estava
em branco. No meu caso, quando me tranquei no meu quarto já estava tudo
acabado. Fiquei recluso pelo resto da vida.
Por que nunca mais saí? Porque achava o mundo lá fora perigoso demais,
cheio de pessoas que queriam me fazer mal. Achei que voltaria a ser
intimidado caso retornasse à escola. Sim – tudo começou com o bullying. Eu
sabia que voltariam a me atormentar assim que eu tentasse abandonar o meu
isolamento.
Os amigos ou parentes deles podiam vir atrás de mim depois, mas eu também
daria um jeito neles, caso necessário. Não me importava se fossem
aristocratas ricos, ou até mesmo da realeza. Eu daria tudo de mim para lutar
contra eles. Me certificaria de que viveriam para se arrepender de irem contra
mim.
Norn era minha irmã. Não importava se ela odiava Aisha e eu, ou se não queria
morar conosco. Ela ainda era minha família. E o irmão mais velho deve proteger
suas irmãs, certo?
— Uh, Chefe…
— Não, Linia. Não viu como ele está bravo? Isso é meio assustador.
— Como creio que a maioria de vocês sabe, uma pessoa desta sala está
ausente.
— Ainda não ouvi os detalhes diretamente dela, mas não existem muitos
motivos pelos quais uma criança da idade dela começaria a faltar aulas. Acho
que o responsável deve ser desta sala.
Examinei a sala toda enquanto falava, procurando por qualquer reação. Vários
alunos olharam para baixo assim que se depararam com meu contato visual. A
maioria deles eram crianças de aparência meio durona que já estavam
começando a violar um pouco o código de vestimenta. Será que era por
estarem com a consciência pesada?
Olhando melhor, percebi que um deles era aquele delinquente que conheci há
algum tempo. Não conseguia lembrar do nome dele de cabeça. Será que
era ele?
Quem foi? Quem a intimidou? Será aquele pirralho riquinho ali? Ou aquele garoto
demônio taciturno? Não, pode muito bem ter sido uma garota comum. Crianças
comuns, às vezes, podem ser as mais desagradáveis de todas.
— Eu apreciaria muito se algum dos envolvidos se apresentasse e admitisse.
Não vou gritar. Só quero que reconheça o que fez e peça desculpas à minha
irmã.
Algumas das crianças da sala eram tão novas quanto Norn, mas a maioria era
mais velha. Alguns estavam até mesmo chegando ao final da adolescência.
Provavelmente havia ao menos alguns que olharam para o outro lado. Havia
até mesmo a chance de que estivessem todos envolvidos nisso. Quanto mais
eu pensava no caso, mais irritado ficava.
Por um longo momento, ninguém disse nada. Todo mundo ficou só olhando
para mim, todos com os olhos arregalados de surpresa.
— U-Uhm…
Finalmente, uma garota do grupo levantou a mão, mesmo que hesitante. Foi
necessária muita força de vontade para me impedir de disparar um Canhão de
Pedra nela.
Era do povo-fera, talvez com treze anos, e parecia um cão-guaxinim. Seu rosto
era redondo, olhos pequenos e cabelo curto. Sinceramente, ninguém imaginaria
que esse tipo de criança fosse uma valentona. Era mais fácil imaginá-la
como alvo de intimidação.
— Não, não! É que, uhm… Já ouvi muitas histórias sobre você, Sr. Greyrat. Mas a
Norn ainda é uma garota comum, certo? Acabei apontando que vocês dois são
muito diferentes um do outro, e aí ela ficou muito brava comigo…
Isso não fazia sentido. Por que Norn ficaria brava com isso? Ela não queria ser
como eu. Ela nem gostava de mim.
— Ah…
— Ela não conseguiu terminar todas as tarefas que você passou, então você fez
ela ficar nua na frente de todos os colegas por uma hora inteira?
— O quê? N-Não, não! Ela não se saiu muito bem no dever, então falei para ela
aprender com o seu exemplo e começar a se esforçar mais.
—…
— Por um momento pensei que ela fosse chorar, mas ela começou a balançar a
cabeça e disse que faria o possível.
Depois de sair da sala de aula, nós três fomos para o refeitório. A essa hora do
dia, estava totalmente deserto.
Resumindo, era tudo culpa minha. Cada vez que Norn perdia a paciência, era
por causa de alguém mencionando o meu nome ou comparando-a a mim.
A maioria dos alunos de sua sala sabia que éramos irmãos. Isso, por si só, não
era muito estranho. Tínhamos os mesmos pais e éramos parecidos. Mas,
sempre que alguém mencionava isso, Norn reagia mal. Ela odiava ser
comparada a mim, mas ficava igualmente chateada quando alguém se referia a
mim como uma forma de elogiá-la.
Seus colegas não tinham qualquer culpa nisso. Nenhum deles estava
deliberadamente tentando perturbá-la. Alguns estavam inclusive tentando ser
legais, dizendo que ela não parecia nada com seu irmão valentão e assustador.
Finalmente estava em uma nova escola, vivendo sozinha, sem Aisha pairando
sobre ela feito uma sombra. Mas, antes que tivesse a chance de recuperar o
fôlego, todos começaram a compará-la a mim. Não importava aonde fosse, ela
era forçada a enfrentar o fato de que era a menos talentosa de toda a sua
família.
Isso devia ser difícil. E, então, ainda por cima, houve aquele incidente com as
calcinhas.
Por sorte, ninguém ficou traumatizado com aquela bagunça toda. Ariel fez um
ótimo trabalho de acompanhamento às vítimas e, agora, a maioria delas podia
olhar para o passado e rir. Pelo visto, Linia não tinha forçado as garotas a se
despirem contra a vontade, apenas as importunou para trocarem suas roupas
íntimas. Parecia que alguém tinha visto isso acontecer, de longe, e passou uma
versão exagerada dos eventos para o conselho estudantil.
— Uff…
— Sinto muito por arrastar vocês para isso — murmurei, olhando para minhas
fiéis subordinadas. — Acho que fui meio estúpido.
— Se a criança ficar muito tempo naquele quarto, o cérebro dela vai acabar
derretendo.
Não consegui nem sorrir enquanto Linia e Pursena continuava aquela rotina de
comédia de sempre. Eu sabia como esse tipo de situação podia ser
complicada. As pessoas não se trancam porque isso é divertido, sabe? Sempre
existe uma razão pela qual se forçam a ficar trancados, e arrastar essas
pessoas para fora do quarto à força não serve de muita ajuda. Na verdade, isso
costuma só piorar o problema.
Dito isso, esse não era o tipo de coisa que poderíamos simplesmente ignorar.
Se Norn ficasse lá por muito tempo, acabaria se arrependendo. Mesmo um ou
dois meses perdidos poderiam acabar com sérias consequências.
Eu sabia de tudo isso graças à amarga experiência própria. Mas isso não era
algo que poderia simplesmente explicar para uma criança que acabou nessa
situação.
Acredito que isso é parte do motivo pelo qual tantos pais pressionam seus
filhos. Todo mundo se arrepende. Às vezes, acaba descontando esses
arrependimentos nos outros.
— Digam-me uma coisa, vocês duas. Digamos que sejam menos talentosas que
seus irmãos e que as pessoas não parem de lembrá-las desse fato. Qual é a
melhor coisa que poderiam fazer quanto a isso?
Espera aí, pensei que foram enviadas para a escola porque eram burras e
preguiçosas demais para liderar suas tribos. Não é? Tipo, queriam colocar vocês
em forma antes de passar qualquer poder para as duas, certo?
— Ah, conheço uma pessoa assim! — disse Linia com orgulho. — Tia Ghislaine!
Ela costumava ser uma velhaca que começava brigas o tempo todo. Mas aí
começou a treinar e acabou virando Rei da Espada!
— Aham. Só diga para ela levar o traseiro dela para a sala de aula.
Elas com certeza faziam parecer simples… mas eu talvez estivesse perdendo
tempo demais enquanto pensava nesses detalhes. Norn, afinal, tinha apenas
dez anos. Talvez só estivesse de mau humor.
Digo, esse ainda era apenas o segundo dia dela trancada, certo? Ainda era cedo
demais para chamá-la de reclusa. Passar alguns dias sozinho quando está se
sentindo mal não é algo incomum.
Dito isso, ela obviamente estava sofrendo. Eu estava dizendo a mim mesmo
que Norn só devia precisar de espaço, mas isso era verdade? Talvez estivesse
apenas procurando um jeito de evitar o problema.
Como seu irmão mais velho, eu poderia ter ao menos tentado apoiá-la a se
ajustar de forma mais ativa. Manter a distância podia ser mais fácil, mas não
significa que fosse a melhor escolha. Se estivéssemos falando de uma criança
com idade para frequentar o ginásio, poderia ser diferente, ou até mesmo um
estudante do segundo grau, mas Norn tinha apenas dez anos. Dar mais
atenção do que ela queria provavelmente seria a escolha certa.
— Sim. Vá animá-la.
Claro, eu era a causa dos problemas de Norn, então parecia bem possível que
ela não quisesse ouvir qualquer palavra que eu tivesse a dizer. Mas eu não ia
me estressar pensando nisso. Primeiro o mais importante: tinha que ir vê-la e
ouvir o que ela tinha a dizer.
— Sinto muito, Rudy. Prometi que ficaria de olho em Norn, mas ela não quer
falar comigo…
Hm. Pensando bem, eu talvez realmente não tivesse feito nada tão errado. Não
que eu tivesse lidado muito bem com a situação.
Peguei uma pedra e joguei lá. Um momento depois, foi aberta. Após isso, foi
questão de me elevar do chão com o feitiço Lança de Terra e escalar para lá.
— Hm…
Linia já estava esperando por mim há algum tempo. Seus olhos de gato
brilhavam um pouco na escuridão.
Meus olhos estavam começando a se ajustar, então dei uma olhada ao redor. A
organização era perfeitamente típica. Um beliche de duas camas, um par de
mesas e cadeiras e um armário compartilhado.
—…
Eu não tinha certeza de qual era o tamanho dela, mas, pelo visto, devia ser bem
impressionante.
— Nyheh. Sinta-se à vontade para levar esse para casa com você, Chefe.
— Não acho que você deve decidir isso.
Linia passou por mim e bateu na porta. Alguns segundos depois, outra batida
respondeu do lado de fora.
Só pelo cheiro, poderia dizer que tinham saído da cama de Sylphie. Havia
cobertores e camisas por lá, para dar um pouco mais de volume, e todos
tinham o cheiro dela. Mas eu não conseguia juntar forças para ficar excitado.
Se fosse só um acesso de raiva, seria uma coisa. Mas e se fosse algo mais
sério? Eu seria de alguma utilidade? Até o dia em que meus irmãos me jogaram
na rua, eu nunca consegui sair de casa. Se houvesse algum argumento que
pudesse ter me persuadido a sair, eu não sabia qual seria.
— Chegamos, Chefe.
O quarto estava totalmente escuro, então fui até o canto para acender uma das
velas.
À luz fraca, pude ver Norn sentada em sua cama, segurando os joelhos contra o
peito. Seus olhos estavam abertos e ela estava olhando diretamente para mim.
—…
Afinal, o que deveria fazer em momentos como este? O que eu gostaria que
alguém dissesse? Eu não conseguia lembrar. Todas as palavras que ensaiei
evaporaram da minha mente.
E, além de tudo, a culpa de ela estar se trancando era minha. Que direito tinha
eu de dar um sermão, ou até mesmo de bater nela? Dependendo como visse as
coisas, inclusive devia um pedido de desculpas a ela.
Não que pedir desculpas fosse mudar alguma coisa. Os rumores sobre mim
não acabariam e Norn continuaria sendo comparada a mim.
— Norn, eu…
— Uhm, Rudeus…
Parei no meio da frase, para que Norn pudesse continuar. Mas ela também
ficou em silêncio. Foi uma sensação horrível. Meio que senti como se tivesse
perdido a minha única chance.
Mas eu precisava acreditar que não era esse o caso. E então me forcei a
começar a conversa.
— Você finalmente foi para uma escola nova, mas agora todo mundo está te
importunando por minha causa. Não sei nem o que dizer, sério… — continuei.
Norn não respondeu.
Ainda sem resposta. E, apesar de tudo o que eu pensei pelo caminho, acabei
ficando sem palavras. Eu não sabia nada sobre ela. Mantive distância da minha
irmã, dizendo a mim mesmo para não me intrometer. Sequer tentei conhecê-la.
— Sei que deve ser difícil para você, mas não sei o que fazer… — voltei a falar.
Norn ainda estava em silêncio. Eu não podia nem imaginar o que ela estava
pensando. Não sabia nem se ela estava me ouvindo.
Já era uma causa perdida? Deveria recuar e esperar a chegada de Paul? Talvez
devesse dar um tempo nisso e procurar ajuda de pessoas que eu conhecia.
Nanahoshi talvez pudesse oferecer algumas dicas sobre o que uma garota
jovem pode estar pensando. Elinalise talvez pudesse descobrir uma forma
diferente de persuadi-la. Não havia motivo para eu tentar resolver isso sozinho,
certo?
— Ah…
Quando me tranquei pela primeira vez, isolado do mundo, um dos meus irmãos
costumava visitar o meu quarto. Ele sempre me olhava bem nos olhos e me
disparava todos os tipos de argumentos que poderiam soar razoáveis.
“A vida sempre tem seus altos e baixos, sabe? Mas existem pessoas por aí que
estão piores do que você. As coisas podem estar difíceis agora, mas se você fugir
de todos os seus problemas, continuará fugindo para sempre. Isso, com o tempo,
fica muito pior. Você não precisa voltar para a escola agora, mas por que ao
menos não sai e come comigo?”
Mesmo assim, ele passava algum tempo ali, mesmo após seus sermões.
Ficava me observando de perto, parecendo ter algo mais a dizer. Mas eu
continuava ignorando, confiante de que ele não era capaz de entender os meus
sentimentos.
Não tenho certeza de quando comecei a sentir medo do meu irmão, mas no
começo não era assim.
A primeira vez que me encontrei com Rudeus foi no dia em que ele deu um
soco na cara do meu pai.
E eu amava o meu pai. Ele tinha algumas enormes falhas, mas eu sabia que se
importava muito comigo e sempre me colocava acima de tudo. Mais
importante ainda, naquela época eu tinha menos de cinco anos. A maioria das
crianças dessa idade ama os pais de forma incondicional.
Eu realmente não entendi como a conversa acabou daquele jeito. Nesse ponto,
anos depois do ocorrido, posso reconhecer que meu pai foi o culpado pela
briga. Rudeus tinha acabado de passar por uma jornada longa e difícil por um
país perigoso, e nosso pai zombou dele e ainda por cima o cobrou. Mas, na
época, tudo que vi foi meu irmão sentado em cima dele enquanto o socava sem
parar. E tudo que eu conseguia pensar era: Ele vai matá-lo. Essa era a única
coisa que me importava naquele momento.
E eu odiava a minha irmã quase tanto quanto odiava Rudeus. Na escola que
frequentamos juntas, Aisha insistia em sempre competir comigo. Ela me
desafiava na sala de aula e no campo em que costumávamos fazer exercícios,
e sempre me derrotava completamente. Ela esfregava todas as minhas falhas
no meu nariz.
Com ela por perto, passei todos os dias me sentindo uma perdedora. Nunca
pensei que poderíamos ser amigas.
Minha avó estava ciente do estado das coisas, e não gostava nada disso. Ela
não sentia nada além de desprezo por Aisha, a quem chamava de “ilegítima”.
Mas também tinha grandes esperanças em mim… ou ao menos grandes
expectativas. Ela dizia que eu era uma “lady da família Latria”. Pelo visto, isso
indicava que eu precisava ser no mínimo “competente”.
Fui forçada a assistir aulas de etiqueta e ter lições para me preparar para
cerimônias específicas. Nada disso foi natural para mim; errei várias vezes e
era diariamente repreendida. Sempre que eu me envergonhava, minha avó
murmurava: “Suponho que o negócio de aventureiro deve poluir o sangue,
assim como o espírito.”
Eu sabia que ela estava insultando tanto minha mãe quanto meu pai com
aquelas palavras. Meu pai dava duro por mim, e isso era tudo que ela dizia
sobre ele. Não demorou muito para eu começar a odiá-la também.
E então, quando a professora do meu irmão apareceu e disse onde minha mãe
estava, decidi seguir meu pai em sua jornada, em vez de ficar com minha avó.
Papai ficou hesitante. Ele pensou que seria mais seguro se eu ficasse para trás.
Minha mãe era da aristocracia de Millis e meu pai de uma casa nobre Asurana.
Nesses termos, pelo menos, eu era de boa linhagem. Graças a isso, meu avô
estava disposto a me receber em sua casa de forma permanente.
Mas eu odiei essa ideia, então implorei para que meu pai me levasse com ele.
Chorei e supliquei. E, eventualmente, teria que ir junto.
Ele disse que as coisas ficariam perigosas demais. Disse que Rudeus estava
morando no norte, então eu deveria ficar lá e esperar por ele. Disse que iria para
lá assim que encontrasse a minha mãe.
Eu chorei. Recusei. Implorei para que me levasse junto. A última coisa que eu
queria era me separar dele, ainda mais depois de chegarmos tão longe, sempre
juntos. Se Ruijerd não tivesse aparecido naquela hora, eu poderia ter
eventualmente conseguido ir com meu pai. E então, provavelmente ficaria
doente ou acabaria ferida naquela dura jornada pelo Continente Begaritt. E
também acabaria causando todos os tipos de problemas para ele.
Ele foi tão gentil na segunda vez em que nos encontramos. Voltou a afagar a
minha cabeça e gentilmente me convenceu a fazer a coisa certa.
E, assim, acabei indo para o norte, em direção à nova casa do meu irmão.
Na minha opinião, ela estava sendo estúpida. Ver ela tentando assumir o
controle enquanto tínhamos dois adultos viajando conosco parecia ridículo.
Mas, por alguma razão, Ruijerd e Ginger a levaram a sério e até mesmo
concordaram com a maioria das suas ideias.
Isso não parecia nada justo. As opiniões dela pareciam sempre ter mais peso.
Qualquer coisa que eu dizia era basicamente ignorada.
O principal motivo pelo qual pude suportar tudo foi Ruijerd. Ele ao menos tinha
consideração pelos meus sentimentos. Sempre reservava tempo para me
confortar e ouvir as minhas reclamações.
Mas até mesmo ele passava muito tempo elogiando o meu irmão.
Rudeus era um mago poderoso. Ele era digno de respeito. Todos diziam isso.
Mas o Rudeus que eu conhecia era o homem que jogou meu pai no chão e
depois o espancou. Ele era uma pessoa violenta. Se eu o chateasse, não havia
garantia de que não me bateria igual bateu no meu pai.
Fiquei com medo de revê-lo, e a ideia de morar com ele por meses me
assustava. Eu às vezes acordava no meio da noite, tremendo. Às vezes, não
conseguia sequer dormir. Bom, Ruijerd pelo menos sempre estava lá para me
confortar. Ele me colocava no colo e olharíamos para as estrelas juntos
enquanto me contava as histórias do seu passado. A maioria delas era triste,
mas, por algum motivo, sempre me ajudavam a dormir.
Quando voltei a me encontrar com Rudeus depois de anos, ele estava bêbado e
agarrado a uma mulher.
Pelo visto, era a amiga de infância que ele tinha em Buena Village, e tinham
acabado de se casar. Eu nem me lembrava dela. Tinha vagas lembranças de
uma criança mais velha andando com Aisha e Lilia, mas não lembrava dela ser
nada parecida com essa Sylphie. Ela devia ter mudado muito com o passar do
tempo.
Fiquei com raiva ao ver aquilo. Meu pai não perdia tempo brincando com
mulheres por anos e anos. Ele disse que colocaria isso em espera até encontrar
a minha mãe. Não tocou sequer em Lilia, muito menos em qualquer uma das
outras que apareceram em sua vida.
A maior prioridade do meu irmão, por outro lado, era a sua própria felicidade.
Isso me deixou louca.
Mas não consegui dizer nada. Eu estava com medo dele. Estava com medo de
que, se o deixasse com raiva, ele começaria a me bater.
Ruijerd interviria em minha defesa? Difícil dizer. Ele parecia muito feliz em
voltar a ver Rudeus. Talvez não ficasse do meu lado. Talvez diria que eu estava
sendo rude ou egoísta.
Não pude dizer nada naquela primeira noite. E então, no dia seguinte, Ruijerd
partiu para sempre. Achei que ele ficaria conosco por mais algum tempo. Eu
não queria que ele fosse embora. Mas, mesmo assim, foi.
Fiquei com ainda mais medo do que antes. As únicas pessoas que ficaram na
casa foram Rudeus, sua esposa e Aisha. Minha irmã mais nova ficou muito
feliz por voltar a estar com Rudeus. Sylphie parecia uma pessoa legal o
suficiente, mas não estava do meu lado. Eu não tinha ninguém do meu lado.
Estava presa até meu pai chegar. Teria que viver com medo por meses e mais
meses.
Rudeus provavelmente seria bom com Aisha, mas rigoroso comigo. Ele
elogiaria minha irmã e diria para eu me esforçar mais.
Aisha sempre dizia que eu não conseguia fazer nada direito. Dizia que eu não
me esforçava. Mas havia coisas que eu simplesmente não conseguia fazer, não
importa o quanto tentasse. Mesmo quando queria melhorar, mesmo quando
dava tudo de mim, ainda não conseguia me comparar a ela. O que eu deveria
fazer?
Por enquanto, tudo que poderia fazer era ficar fora do caminho. Eu me escondi,
esperando que ninguém ficasse bravo comigo. Esperando que ninguém me
dissesse o quão inferior eu era.
A cidade lá fora estava coberta de neve. Fiquei com medo de ser jogada,
sozinha, no frio.
Para ser sincera, eu não queria ir. Sabia que acabaria voltando a ser comparada
com Aisha. Minha irmã, porém, não tinha intenção de voltar a frequentar uma
escola. Essa, ao menos, era uma boa notícia para mim. Sem ela por perto,
talvez pudesse me sair um pouco melhor.
Meu irmão, entretanto, colocou uma condição para isso. Ela teria que fazer o
exame de admissão da universidade. Era um teste que todos tinham que fazer
para entrar – ou seja, eu também o faria.
O tom frio do meu irmão foi como uma pontada bem no meio do meu peito.
Por um momento, pensei que ele me socaria. Fiquei com tanto medo que até
chorei um pouco.
Eu não tinha dúvidas de que minha irmã seria aprovada no exame, ou seja, não
teria que ir para a escola. Então, se eu me mudasse para os dormitórios, não
precisaria mais ver ela ou Rudeus. Ninguém me compararia a ninguém. Poderia
ser eu mesma e viver a minha própria vida.
Quanto mais pensava nisso, mais perfeito parecia.
Tive medo de que ele ficasse com raiva. Meu pai queria que eu ficasse com
Rudeus, e provavelmente disse, em sua carta, para ele tomar conta de mim.
Achei que meu irmão poderia ficar com raiva. Talvez até me bater por ser tão
egoísta.
Foi Aisha quem ficou com raiva. Ela achou que era injusto que eu conseguisse
o que queria. Até então, ela sempre tinha recebido um tratamento melhor do
que eu. Acho que não gostou do fato de que Rudeus a testou, mas não a mim.
Ainda assim, por que meu irmão concordou com o meu pedido? Eu não sabia.
Eu não o entendia direito. Olhando para o passado, percebi que ele não ficou
chateado comigo nenhuma vez, desde que cheguei, exceto pela vez em que
briguei com Aisha.
Talvez pensasse que cuidar de mim não era nada mais do que um incômodo, e
viu isso como uma oportunidade de ouro para se livrar de mim. De acordo com
tudo que eu sabia, ele, de qualquer forma, já planejava me mandar para os
dormitórios.
Isso seria conveniente, no que me dizia respeito. Mas, por algum motivo,
pensar nisso me deixou um pouco triste.
Toda a coisa de morar em dormitórios era nova para mim. Isso era realmente
emocionante.
Pela primeira vez na vida, teria uma colega de quarto. Iria morar com uma
garota mais velha chamada Marissa. Ela era um demônio.
Minha avó sempre disse que demônios são criaturas do mal – monstros que
devem ser expulsos e destruídos. Se eu não tivesse conhecido Ruijerd,
provavelmente continuaria acreditando nisso. Mas eu tinha conhecido Ruijerd,
então me apresentei educadamente a Marissa que, em troca, também me
recebeu calorosamente. Eu precisava de muita ajuda, já que estava começando
no meio do ano letivo, e Marissa estaria lá para me ajudar. Ela me ensinou
como funcionavam as refeições, onde ficavam os banheiros e as regras do
dormitório.
Fiquei um pouco intimidada por ela, mas Marissa me disse que tratava-se de
uma pessoa de bom coração que levava suas responsabilidades a sério.
No geral, fiquei ansiosa pela minha nova vida. Ter que voltar para a casa do
meu irmão uma vez a cada dez dias era irritante, mas ele não me fazia muitas
perguntas específicas, então não era grande coisa.
Na mesma hora, percebi que as aulas eram muito difíceis. Acho que era em
parte porque os professores explicavam tudo de um jeito diferente, se
comparado a Millis. Poderia ser diferente se eu tivesse visto todas as aulas
desde o começo, mas entrei no bonde andando. Muitas das palestras eu
simplesmente não conseguia acompanhar.
Em Millis tínhamos aulas de religião, mas essa matéria nem existia aqui. Em
vez disso, tínhamos aulas práticas de magia. Eu também não era muito boa
nisso. Os professores não se importavam em explicar o básico.
Certa vez, enquanto perdida, me encontrei até com Rudeus. Ele, por alguma
razão, estava caminhando com a aluna mais importante de toda a escola. Foi
incrivelmente embaraçoso.
Pelo que parecia, ele era o chefe de uma pequena gangue de seis integrantes
que faziam tudo o que queriam por aí. Duas dessas pessoas moravam no meu
dormitório. Eram garotas altas e de aparência assustadora que andavam por aí
como se fossem as donas do pedaço. Marissa tinha avisado que, se possível,
era melhor não ficar no caminho delas.
Existiam rumores de que Rudeus ordenou que aquelas duas pegassem uma
calcinha de cada garota bonita da escola.
A esposa do meu irmão sabia disso? Provavelmente não. Para começar, eu não
sabia o que ele pretendia fazer com todas aquelas calcinhas, mas isso me
deixou muito brava. Meu pai estava arriscando a vida para salvar a minha mãe,
e meu irmão estava só bancando o idiota. Minha opinião sobre ele estava
ficando cada vez pior.
Mas, apesar das suas ações bizarras, a reputação do meu irmão era
estranhamente positiva. As pessoas diziam que ele nunca incomodava alunos
comuns. Embora fizesse o que queria, não machucava ou assediava ninguém.
Na verdade, supostamente disse para todos os valentões pararem de implicar
com os mais fracos. Uma das crianças mais assustadoras da minha sala até
mesmo se gabava por uma vez ter conversado com Rudeus.
Meus colegas de classe, meus professores e até mesmo Marissa diziam que
eu deveria tentar seguir os seus passos. Queriam que eu fosse como ele. Que
fosse como… o irmão que eu temia, odiava e não compreendia.
Mas, mais do que tudo, saber que não poderia me comparar a ele era doloroso.
Ele era melhor do que eu em tudo, igual Aisha.
Eu não conseguia mais conter essas coisas. Não pude evitar de me quebrar.
Provavelmente era eu… Ele não devia ser uma pessoa tão ruim quanto eu
pensava que era.
Eu era muito nova quando vi Rudeus batendo no meu pai. Depois daquilo, meu
pai tentou me explicar que tinha acontecido muita coisa e eu nunca consegui
entender o significado disso. Mas, agora, depois desse tempo todo, finalmente
começou a fazer algum sentido para mim. Afinal, até eu estava no meu
momento de “acontecer muita coisa”.
No fundo, Rudeus e eu devíamos ser pessoas parecidas. Afinal, ele não era um
monstro desumano.
Mas, dito isso… como eu deveria conversar a respeito dessas coisas com ele?
O que ele iria querer de mim? Aliás, como ele conseguiu fazer as pazes com o
Papai?
Não pude fazer nada. Eu não conseguia nem mesmo enfrentar o meu irmão.
Nessas horas, Papai sempre estava lá por mim. Quando algo ruim acontecia e
eu me enterrava na cama, ele aparecia e afagava as minhas costas por um
tempo. E, depois que nos separamos, Ruijerd assumiu o seu lugar. Ele me
colocava no colo, acariciava a minha cabeça e me contava histórias.
Aqui eu não tinha ninguém assim. Marissa era legal comigo, mas não estava do
meu lado. Tudo o que ela sugeriu era que eu deveria falar com meu irmão ou
tentar voltar para as aulas.
Eu já sabia disso. O problema era que meu corpo não queria se mover.
Eu estava sentada na beira da minha cama. E, por algum motivo, Rudeus estava
bem na minha frente. Ele estava sentado em uma cadeira e olhando para mim.
— Norn, eu…
— Uhm, Rudeus…
Parecia ser a primeira vez que falei o nome do meu irmão em voz alta.
Fiquei tão confusa que não sabia o que fazer. Meu irmão também estava
quieto. Ficamos algum tempo só nos encarando.
Devia ser a primeira vez que olhei tão atentamente para o rosto de Rudeus. Ele
parecia um pouco ansioso. Suas feições me lembravam um pouco do meu pai,
isso era meio reconfortante. Mas é claro que eles seriam parecidos.
— Sinto muito, Norn. Não foi fácil para você, não é? — disse Rudeus, com sua
voz hesitante. — Acho que eu realmente… nem te entendo direito… Sei que deve
ser difícil para você, mas não sei o que fazer.
Era só eu ou ele estava muito nervoso? Isso também me lembrava do meu pai.
—…
Meu irmão voltou a ficar em silêncio. Ele ficou só sentado lá, em silêncio, sem
se mover.
— Ah.
Ele não podia se aproximar de mim. Estava com muito medo de que eu pudesse
rejeitá-lo.
No instante em que esse pensamento passou pela minha cabeça, senti todas
as minhas emoções negativas começando a se dissipar. Eu não odiava mais o
Rudeus. Também não o achava assustador. Ele era muito parecido com o meu
pai.
Ele nunca iria me bater, não importa o quê. E provavelmente nunca mais bateria
no meu pai.
— Sniff…
Eu precisava perdoá-lo.
— Hic!
Lentamente, com cautela, meu irmão se levantou e sentou ao meu lado. Ele
gentilmente colocou a mão na minha cabeça e me abraçou contra o peito dele.
Sua mão era quente e seu peito firme.
Rudeus
Norn não me contou o que estava acontecendo. Ela nunca me contou por que
estava para baixo ou o que estava acontecendo. Só chorou por bastante
tempo.
Era isso.
Mas, por alguma razão, ela realmente parecia, pela primeira vez, bem. Ela até
conseguiu me olhar nos olhos.
Eu ainda não entendia o que ela estava sentindo. Não fiz nada de significativo.
Isso me fez sentir um pouco patético. Eu sabia como era ser desprezado e
como era se isolar no próprio quarto. Mesmo assim não consegui pensar em
nada útil para dizer.
No final das contas, acho que Norn resolveu tudo sozinha. Ela processou seus
sentimentos e deixou os obstáculos pelo caminho para trás.
Paul e Aisha pareciam pensar que Norn era só uma criança tímida e
desajeitada, sem qualquer talento especial. Mas eu agora tinha uma opinião
bem diferente a respeito dela. Ela conseguiu sair de um buraco em que fiquei
preso por uma vida toda.
Se eu tivesse metade da força dela, minha primeira vida talvez não tivesse sido
tão miserável. Eu talvez não teria levado um soco na cara do meu irmão de
bom coração.
Mas era impossível ter certeza, é claro. Minha situação era diferente da de
Norn. Mesmo se eu tivesse me resolvido com meus sentimentos, talvez nunca
teria saído do meu quarto. Talvez precisasse renascer e encontrar Roxy para
que isso fosse possível.
Ainda assim, meio que senti… como se algo que ficou preso na minha garganta
por muito tempo tivesse sumido. Se Nanahoshi algum dia conseguisse voltar
ao nosso velho mundo, eu teria que pedir para ela levar uma mensagem para o
meu irmão.
“Obrigado por tentar entrar em contato comigo naquela época. E sinto muito.”
Cap. 06 – A Vida com as Irmãs Greyrat
Mesmo nesta época do ano, não fazia calor de verdade nesta região. Mas as
pessoas estavam começando a usar roupas um pouco mais leves. Os alunos
da escola trocaram para uniformes de mangas curtas, o que não me importava
nada, e Aisha também trocou o seu uniforme de criada. Sylphie até mesmo
começou a usar camisas sem manga em casa. Eu não lembrava dela ter
roupas parecidas, mas acho que comprou algumas depois que começou a
morar comigo.
Eu com certeza não reclamaria por ela estar mostrando um pouco de pele, mas
a visão daqueles ombros esguios e brancos tornava a tarefa de conter as
minhas mãos difícil. O verão era uma boa estação, sem dúvidas. E, ainda por
cima, não havia nenhum visitante desagradável de várias pernas correndo para
dentro de casa para mordiscar a comida.
A mudança das estações me lembrou que fazia algum tempo que não via
Badigadi. Ele talvez tivesse vagado para algum lugar e esquecido de contar a
alguém.
Vendo pelo lado bom, parecia que a forma como invadi a sua sala de aula não
lhe causou muitos problemas. Isso era um alívio.
Norn estava obviamente se esforçando para acompanhar isso, mas parecia ter
dificuldades em colocar a teoria dos livros em prática. Dito isso, ela não era tão
ruim quanto Eris ou Ghislaine tinham sido. Com consistente esforço, me sentia
confiante de que ela alcançaria um nível médio em um instante.
— Hmm. Não lembro de cabeça. Ele não disse que fica perto da região de
Biegoya? Mas nunca fui lá.
Nós dois estávamos nos dando bem, agora até mesmo tínhamos conversas
casuais durante nossas sessões de estudo. Mas, por alguma razão, Norn
queria falar principalmente sobre Ruijerd. Acho que ele era nosso principal
interesse comum. Não que eu realmente me importasse, sabe? Na verdade,
fiquei feliz por ter mais alguém com quem pudesse conversar sobre ele.
Percebi que Norn ainda falava de um jeito meio rígido comigo. Seu tom tendia a
ser excessivamente educado, especialmente para uma irmãzinha conversando
com o irmão. Aisha e eu tínhamos adotado tons mais informais, mas acho que
Norn ainda se sentia mais confortável dessa forma.
— Ah, é mesmo, Rudeus. Ruijerd alguma vez te contou a história da lança dele?
— Com certeza… Espero que ele eventualmente consiga realizar o objetivo dele.
— Eu também…
Ainda assim, isso não significava que eu não poderia trabalhar ao menos em
um protótipo.
O livro era outro assunto. O principal problema era encontrar tempo para
escrever. Passei muitas horas dos últimos meses aprendendo magia Avançada
de Cura e Intermediária de Desintoxicação. Eu era bom na memorização que
essas matérias exigiam, mas elas ainda me mantinham bem ocupado.
Passar para magia Avançada de Desintoxicação parecia ser o lógico, mas não
havia mais nada que realmente chamasse a minha atenção. Não faria mal levar
minha magia de Fogo e Vento ao nível Santo, mas esse nível de feitiços tendia
a envolver manipulações dramáticas do clima, ao invés de feitiços mais
práticos que poderia usar regularmente. Aprender coisas novas era sempre
bom, mas eu queria me concentrar em algo mais útil. Quem sabe a habilidade
de montar a cavalo.
Certa tarde, enquanto estava lutando com essas questões pela centésima vez,
Norn espiou o meu trabalho.
— Hmm…
Com o interesse evidentemente despertado, Norn puxou meu papel e deu uma
olhada mais de perto. No topo estava meu título provisório: “A História do
Grande Guerreiro Ruijerd e a Perseguição ao Seu Povo.”
O principal problema era que eu não sabia por onde começar a história real, ou
como contá-la. Eu ainda me lembrava dos contos de Ruijerd sobre as ações de
seu povo durante a Guerra de Laplace e conhecia a história básica da
perseguição que sofreram. Ainda assim, já fazia vários anos desde que ouvi as
histórias, então algumas partes estavam um pouco confusas. Parando para
pensar, eu realmente devia ter feito algumas anotações.
Foi uma oferta muito inesperada. Mas, pelo visto, Ruijerd tinha o hábito de
colocar minha irmã em seu colo todas as noites, afagando a sua cabeça e
contando histórias do seu passado.
Nada justo. Nunca consegui sentar no colo de Ruijerd! Certo, espera. Vamos
tentar agir como adultos.
— Tá bom!
Quanto mais eu lia a sua escrita, mais começava a sentir que ela podia ter
algum talento na área. Claro, eu não era um observador exatamente imparcial –
mas as pessoas tendem a melhorar mais rápido quando estão fazendo aquilo
que gostam. Se ela continuasse nisso por tempo o bastante, talvez
desabrochasse e algum dia se tornasse uma autora brilhante.
Tive a sensação de que o livro ficaria muito melhor assim do que comigo
tentando escrevê-lo.
Isso na verdade me preocupava um pouco. Eu não queria que ela sentisse que
não conseguia expressar seus sentimentos verdadeiros. Eu estava feliz por
Norn começar a se interessar por mim, mas isso não significava que poderia
negligenciar o meu relacionamento com Aisha. E então decidi dar-lhe
permissão para falar o que tinha em mente.
— Sabe, Aisha… se há algo que você queira dizer, não precisa guardar isso
dentro de si.
— Bem, não sei. Ultimamente tenho passado muito tempo com Norn, certo?
Você não está se sentindo um pouco carente de atenção ou algo assim? Ou
está trabalhando muito e precisa de férias? Não sente vontade de passar o dia
todo na cama?
— Isso mesmo. Você pode ser um pouco egoísta quando estiver comigo. Não
precisa se segurar.
— Um salário…?
Assim que pensei nisso, porém, notei que Aisha já estava trabalhando como
nossa diligente criada há algum tempo. Era, no mínimo, estranho não a
pagarmos. Mas, bem, éramos família, certo? Ela não era uma empregada.
Então, talvez, poderia pensar nisso como uma mesada. Ela ajudava em casa
todo dia, então queria ter algum dinheiro extra. Justo.
Concordei com a ideia na mesma hora, mas esperamos até que Sylphie
voltasse para casa para discutir os detalhes. Quando lhe ofereci uma quantia
relativamente grande de dinheiro, porém, ela recusou e tentou me convencer a
diminuir.
— Mas posso perguntar por que você quer isso? Quer comprar alguma coisa? —
Tive de admitir que fiquei curioso para saber o que motivou esse pedido. Aisha
poderia comprar o que quisesse, é claro, mas não faria mal saber o que era.
— Você está curioso, querido irmão? Então tudo bem. Por que não vem comigo
da próxima vez que eu for fazer compras?
Ooh. Isso soava como um encontro. Um encontro com a minha irmãzinha! Que
conceito adorável.
Avisei Sylphie sobre nossos planos com antecedência. Ela, infelizmente, estaria
trabalhando naquele dia. Me senti um pouco culpado por andar pela cidade
com outra garota enquanto minha esposa estava de serviço, mas não era
traição, já que era minha irmãzinha.
Entretanto, o que Aisha estava planejando comprar? Com sorte não seria um
escravo musculoso ou algo do tipo. Eu não queria um machão suado na minha
sala o tempo todo, sinceramente. Ter um monstro gigante de seis braços
ocasionalmente aparecendo para jantar já era ruim o suficiente… Mesmo com
ele sumindo pelos últimos tempos.
No dia do nosso encontro, Aisha me levou ao mercado e foi direto para uma
loja de produtos gerais que vendia todo tipo de coisas diversas para o dia-a-dia.
As prateleiras estavam cheias de bugigangas, mas não havia outros clientes à
vista. Pelo visto, vendiam principalmente artigos de segunda mão.
— O que você vai fazer com isso? — perguntei. — Jogar na cabeça de qualquer
Rei Demônio que estiver passando ao acaso?
Ainda assim, eu realmente não tinha imaginado Aisha como o tipo de garota
que gostava de flores. Pensava nela principalmente como uma criança gênio e
enérgica. Em minha mente, seus hobbies eram limpar, contar dinheiro e
equilibrar orçamentos.
— Então você não deveria comprar um pouco de terra? — falei. — A terra por
aqui não é das mais férteis, então não será fácil de cultivar as flores.
— Eu ia pedir para você fazer um pouco para mim com a sua magia, Rudeus.
Você se importaria? — Ela me encarou com olhos suplicantes. Havia apenas
uma resposta possível.
Nós dois vagamos pela loja por algum tempo, conversando a respeito dos
planos de Aisha. Antes de sairmos peguei um par de brincos para Sylphie – em
forma de lágrima, com pequenas pedras azuis no meio. Isso definitivamente
ficaria bem nela.
— Certo, Sylphie é uma mulher de sorte. Mas quando ela está ocupada, querido
irmão, você talvez possa também me dar um pouco de amor.
Ah, os olhos para cima de novo. Como sempre, havia uma única resposta
possível.
— Saco…
Dentro da loja, Aisha rapidamente escolheu algumas cortinas. Eram rosa e com
babados que com certeza eram caros.
— Você tem o suficiente para pagar por isso, Aisha? Se quiser, posso ajudar um
pouco.
Entregando o restante de sua mesada, Aisha terminou sua compra. Ela usou
cada moeda do dinheiro que recebeu. A garota tinha jeito com o dinheiro. Para
ser sincero, foi um pouco assustador.
— Seria bom guardar um pouco de dinheiro para depois, sabe — avisei ao sair
da loja. — Despesas inesperadas podem surgir do nada.
Mesmo assim, vasos de flores e cortinas rosas com babados, hein? Até o
momento eu realmente achava que Aisha fosse só uma garotinha neurótica,
mas ela também tinha um lado feminino.
— Mamãe sempre disse não. Ela acha que uma criada decorando com base em
seus gostos pessoais é errado. Espero que você não se importe, Rudeus…
A garota não era só inteligente; também era boa em brincar com as emoções
alheias. Ela não só colocou os braços em volta da cintura, estava até mesmo
olhando para mim com os olhos do Bambi. Eu sabia que isso era tudo atuação,
é claro, mas era tão fofo que eu nem me importava.
Havia apenas uma resposta possível, claro.
Que bom que eu não era um velho assustador ou algo assim. Eu podia acabar a
sequestrando.
Nas semanas seguintes a esse breve encontro, o quarto de Aisha ficou cada
vez mais feminino. Ela parecia gostar de coisas pequenas e fofas, e sempre
encontrava vasinhos para plantar flores e alinhava bonecas do tamanho de
punhos em suas prateleiras. Em algum momento, ela até bordou desenhos
charmosos na bainha do seu avental. Eu estava começando a ficar um pouco
preocupado com a possibilidade de ela evoluir para uma gyaru, caso
continuasse assim.
Ainda assim, minhas duas irmãs estavam se saindo bem. Eu estava contente.
— Matéria orgânica?
Resumindo, ela queria se aproximar cada vez mais de invocar algo tão
complexo quanto um ser humano e, no final, se teletransportar precisamente
para o Japão. Cada etapa do experimento era elaborada para atingir esse
objetivo específico.
— Mas definir as condições é bem difícil — murmurou ela, mais para si mesma
do que para mim. — Acho que alguma hora terei que ver o velho de novo.
— Bem…
— Sério?
A invocação de espírito, por outro lado, era um tipo de técnica muito diferente.
Na verdade, isso envolvia a criação de entidades artificiais de mana. Projetar
esses tipos de feitiços parecia, de certa forma, semelhante a programação.
— Só para você saber, é melhor não discutirmos isso abertamente — disse ela.
— Por quê?
— A maioria das pessoas pensa que os espíritos são seres vivos que residem
no Mundo Árido, e que estamos apenas trazendo-os para o nosso.
— E também vale a pena mencionar… aqui está aquele círculo mágico que te
prometi antes.
— O que é?
Um espírito luz de lâmpada era uma coisa simples que flutuava atrás do
invocador enquanto emitia uma luz brilhante. Era capaz de entender comandos
simples como “ilumine aquela área”, mas, com o passar do tempo, sua mana
diminui até desaparecer. Era um espírito bem básico, mas se usasse mana
suficiente, poderia existir por um período relativamente longo de tempo.
Não era o feitiço mais emocionante que já aprendi. Para ser sincero, eu
esperava algo um pouco mais chamativo como recompensa.
— A propósito, este círculo mágico é uma criação original daquele velho de
quem sempre falo — disse Nanahoshi. — Nem mesmo a Guilda dos Magos
sabe sobre isso.
— Hein? Sério?
— Sim. Da próxima vez vou te dar algo ainda mais impressionante, certo?
Prometo.
— Acho que você deveria ser capaz de usar sua magia de terra para fazer um
modelo disso — disse ela. — Assim, você pode imprimir cópias infinitas. Tenho
certeza de que a Guilda dos Magos pagaria muito bem por eles.
— Não tem problemas se eu vender cópias? O cara que fez isso não vai ficar
irritado?
— Confie em mim, ele tem coisas mais importantes na cabeça. Duvido que se
importe.
Hmm. Bem, era bom saber que não precisaria sempre escrever pergaminhos
mágicos à mão.
— Entendido. Obrigado.
Decidi manter essa ideia arquivada por um tempo. Ter uma potencial fonte de
renda guardada nunca faz mal.
Uma única substância consistente, hein? Isso explicava por que a garrafa de
plástico não tinha tampa ou rótulo. Mas se ela ficasse melhor em estabelecer
as suas condições, talvez pudéssemos invocar objetos complexos, peça por
peça, e depois juntar tudo.
— Além disso, puxar muitas coisas do nosso velho mundo para este não é uma
boa ideia. Acho que já mencionei isso, não?
Ah, ela ainda estava preocupada com aquela coisa de “bagunçar a linha do
tempo”?
— Sinceramente, sinto que você está sendo um pouco paranoica com isso… —
falei.
— Você é bem-vindo para testar essa teoria depois que eu estiver de volta em
casa e em segurança. Prefiro não correr riscos.
Uau. Fria!
Julie ficou muito feliz com esse presente tardio. Ela não era o tipo de criança
que sorria muito, mas passou um bom tempo segurando a estatueta, soltando
um e outro ooh e aah enquanto a examinava de diferentes ângulos.
Virando-se para encarar nós dois, ela executou uma reverência meio dura, mas
respeitável.
Julie estava atualmente falando a Língua Humana com muito mais fluência.
Mas isso não foi por causa de nada que eu fiz. Ginger tinha o hábito de corrigi-
la sempre que ela errava, e as pessoas sempre aprendem mais rápido quando
tem alguém para apontar os erros.
Espera, como assim? Isso foi o suficiente para você suportar tudo isso?!
A essa altura da conversa, Cliff finalmente me deixou ver o dispositivo. Era uma
espécie de tanga voluptuosa – o tipo de coisa que seria usada por um lutador
de sumô. Para ser sincero, eu consideraria aquilo como uma fralda de adulto.
— Entendo. Bem, o problema mais óbvio seria que não está exatamente na
moda.
— De fato. Eu não poderia pedir para Lise andar por aí vestindo essa coisa, é
claro.
Os dois na verdade tinham brigado por causa disso – e eles quase nunca
brigavam. Elinalise tinha até mesmo dito que não se importava com a
aparência, mas Cliff teimou e se recusou a ceder. Acho que ele era orgulhoso
demais para suportar a ideia de fazer sua namorada andar por aí parecendo
ridícula.
Seu objetivo final era fazer um dispositivo que não fosse maior do que uma
calcinha comum. Era difícil dizer se isso era viável, mas se conseguisse, talvez
pudéssemos preparar inclusive um par de luvas para Zanoba. Isso poderia lhe
dar a chance de fazer estatuetas com as próprias mãos.
Então, por fim, tive a sensação de que ele poderia ser naturalmente desajeitado,
mesmo sem a superforça.
Acordei de manhã, fiz meu treinamento, tomei café da manhã e fui para a
Universidade. Parei para ver Zanoba e depois Cliff, verificando o andamento de
suas pesquisas e, ocasionalmente, oferecendo alguns conselhos. Depois do
almoço, fui ajudar Nanahoshi com seus experimentos de invocação. E, assim
que as aulas terminaram, tirei uma hora para dar aulas particulares para Norn.
No caminho de volta para casa, fui fazer compras com Sylphie e Aisha nos
cumprimentou na porta da frente. Sylphie e eu tomamos banho e nós três
jantamos. Em seguida, praticamos magia na sala de estar e conversamos
sobre como foi o dia.
Depois que Aisha foi para a cama, trabalhei no projeto de fazer bebês com
Sylphie e, logo em seguida, caí em um sono profundo com minha esposa me
servindo como travesseiro de corpo. Todos os dias se pareciam com os
anteriores, mas eu ainda sentia que estava fazendo constante progresso em
direção aos meus objetivos.
Não era algo que provei muito na minha primeira tentativa de viver. E, supondo
que Paul voltasse são e salvo em mais ou menos um ano, as coisas deveriam
melhorar sem parar.
Cap. 07 – O Terceiro Ponto de Virada
Ao menos era isso que Elinalise sempre dizia, e isso tinha se provado verdade
até o momento.
Quando terminei e voltei para casa, encontrei Aisha e Sylphie no corredor com
expressões sérias em seus rostos. Elas se viraram para olhar para mim
enquanto eu passava pela porta.
— Ah…
— Rudy…
— Bem, Rudy. Na verdade… já fazem dois meses. Desde a minha última, uh,
você sabe…
— Então fui com Aisha até o médico da vizinhança e… ele disse, uh, parabéns.
— Ah… Ahhh…
Minha voz tremia. Assim como minhas mãos. E minhas pernas, por falar nisso.
Parabéns? Ela estava grávida? Iríamos ter uma criança. Isso não era um sonho,
certo?
Engoli em seco.
Certo. Claro. Por que ela não estaria? Eu era um homem que, quando realmente
decidido, podia fazer as coisas acontecerem. Isso sempre fez parte do plano.
Eu só não esperava que acontecesse tão rápido, já que todos diziam que elfas
tinham dificuldades para engravidar.
Sylphie estava ansiosamente olhando para mim. Eu não tinha certeza do que
dizer. Foi tudo tão repentino.
Devia ter sido só a minha imaginação, certo? A criança ainda não estaria tão
grande.
Quando falei essas palavras em voz alta, senti uma repentina onda de emoções
surgindo dentro de mim. Que sensação era essa? Tive que reprimir a vontade
de começar a gritar incoerentemente.
Feliz era mesmo o termo certo? A palavra parecia tão inadequada. O que
eu estava sentindo? Poderia ao menos expressar isso em palavras?
— Irmão querido? Não há nada que você gostaria de dizer para sua esposa? —
As palavras de Aisha me trouxeram de volta à realidade.
— Muh?
Algo que eu preciso dizer? Tipo o quê? Parabéns? Não, não deve ser isso.
— Obrigado, Sylphie.
— Hein?
Sylphie sorriu, mas parecia um pouco confusa. Pensei errado? Então, qual era a
resposta? Procurei por alguma dica nas memórias. O que Paul disse a Zenith,
quando descobrimos que Norn estava a caminho? Algo como “Muito bem”,
certo? Ou talvez “Bom trabalho!”
Mas eu não gostava muito dessas opções. Ele achava que as mulheres só
engravidam quando tentam muito ou o quê? Talvez. Talvez fosse estúpido
desse tanto.
Grávida, hein…? Sim. Sylphie engravidou. Eu engravidei essa doce e linda garota.
Eu, de todas as pessoas.
— Sinto muito… Eu não, uh… acho que não sei o que dizer. Sinto muito, Sylphie…
— Ahem.
— Irmão querido, precisamos ser gentis com a dama da casa por algum tempo.
Por enquanto, você vai precisar se abster de… relações sexuais.
— Sim. Claro.
Ela fez beicinho depois disso. Se oferecer era legal da parte dela e tal, mas
mesmo colocando todas as partes morais de lado, eu simplesmente não
estava atraído por ela. Isso, de qualquer forma, era o suficiente. A última coisa
que precisava era destruir o meu casamento por mexer com a criada.
Nem pensei nisso, mas ela estava certa. Ninguém gostaria de uma mulher
grávida trabalhando como guarda-costas. Sylphie precisaria de uma licença.
Temos? Ah, é mesmo. Acho que temos. Afinal, isso muda tudo.
As únicas palavras que passavam pela minha cabeça eram variações de “Vou
assumir a responsabilidade pelas minhas ações.” Mas já éramos casados,
então isso não fazia muito sentido.
— Uhm, Sylphie…
— Sim, Rudy?
— Sei que isso pode ser difícil, mas… vamos fazer isso juntos.
Rindo baixinho, Sylphie deitou no sofá e colocou a cabeça no meu colo. Usei
minha mão livre para acariciar sua cabeça e esfregar a parte de trás de suas
orelhas.
— Ei, Rudy.
— Sim?
— Por quê?
—…
Assim como no meu velho mundo, ter filhos era uma das principais razões
pelas quais as pessoas se casavam. Sylphie provavelmente estava um pouco
ansiosa com essa parte das coisas, já que era difícil para o seu povo
engravidar. Não que eu a deixaria por algo assim, é claro.
— De qualquer forma, acho que isso também vai ser meio difícil para você,
hein? — disse ela. — Já que não podemos, uh, fazer por um tempo.
— Ei, eu me viro.
— Ah, não acho que ficaria tão zangada… Talvez um pouco triste, mas
entenderia.
Sério? Pareceu uma reação terrivelmente branda. Mas eu não iria traí-la nem
nada assim. Eu sabia que iria me sentir um completo lixo caso ela saísse me
traindo.
— Para ser sincero, acho que eu ficaria chateado se você mexesse com outro
cara — confessei.
Sylphie só riu baixinho e sorriu. Era uma expressão que ela só mostrava quando
estava comigo. Ninguém mais conseguia ver isso. E isso me fazia muito feliz.
Passamos algum tempo juntos, em silêncio.
Isso fez Norn também sorrir. Ela não parecia se importar com as pessoas
afagando a sua cabeça. Talvez até mesmo gostasse disso, caso fosse feito
pela pessoa certa. Em todo caso, era bom ver as duas se dando tão bem.
— Todo mundo queria passar aqui para dar os parabéns, mas os convenci a
adiar a visita por alguns dias — disse Aisha em um tom de voz calmo. Ela
aparentemente assumiu que eu gostaria de manter esta ocasião familiar mais
íntima.
Eu não lembrava de ter sugerido nada do tipo, mas isso parecia bem razoável.
Sylphie provavelmente ficaria um pouco envergonhada ou oprimida ao ter um
monte de gente a parabenizando de uma só vez. Seria melhor esperar alguns
dias.
— A Princesa Ariel decidiu que a Senhorita Sylphie deverá tirar uma folga de
seus deveres por pelo menos dois anos. Ela também disse que conseguirá uma
licença da escola. A Tia-Avó Elinalise se ofereceu para assumir as funções de
guarda-costas de Sylphie nesse tempo.
— A Vovó vai ficar bem? Digo, ela tem aquela maldição e tudo mais…
— O Príncipe Zanoba disse que nos fará uma visita em cinco dias, ao anoitecer.
Ele deseja jantar conosco, então irei cuidar de tudo. A Princesa Ariel passará
por aqui em dez dias, também à noite, mas indicou que não jantará conosco.
Cliff e a Tia-Avó Elinalise virão juntos. A Senhorita Linia e a Senhorita Pursena
indicaram que passarão por aqui em algum momento, mas não tenho detalhes
de quando isso acontecerá. Senhorita Nanahoshi ofereceu uma breve
mensagem de parabéns a vocês dois. Não consegui encontrar Lorde Badigadi,
mas deixei uma mensagem para ele.
Aisha recitou toda a nossa lista de amigos com rapidez e eficiência, sempre em
um tom de voz firme. Era como se tivéssemos uma secretária pessoal ou algo
assim. A garota definitivamente era boa no seu trabalho.
— Entendido. Obrigado por avisar a todos, Aisha.
Aisha olhou para Norn com um sorriso orgulhoso no rosto. Norn manteve o
olhar com uma carranca.
— Mas tenho que dizer — murmurei —, Papai provavelmente vai ficar chocado
quando aparecer e descobrir que tenho uma criança chegando.
— Ah, sim! — disse Norn, seu rosto iluminando-se com a menção a Paul. Ela
realmente amava o seu pai. Eu poderia vê-la colocando “casar com o papai” em
sua lista de sonhos para o futuro. — Mal posso esperar para ver a cara dele!
— Ele é do tipo que estraga os netos, então aposto que vai ficar muito feliz —
falei. — Ele também ficou um doce quando vocês duas nasceram.
— Bem, enfim! Estou realmente ansiosa por isso, Rudeus! — anunciou Norn.
Essas palavras excepcionalmente alegres colocaram um sorriso no rosto de
todos.
Recebi uma carta datada de seis meses antes. Foi enviada pelo correio
expresso. O nome do remetente era Geese, e o conteúdo, assim como em
qualquer outra carta expressa, era muito breve.
— E aí.
Essa carta. Do Geese. Ele disse que o resgate não está indo bem. Que negócio é
esse?
— Bem, imagino que significa que o resgate não está indo bem. O que você
quer de mim?
Mas não foi isso que você me disse! Você disse que eu me arrependeria se fosse
para o Continente Begaritt! Então o que foi aquilo? Você mentiu para mim?!
— Não, claro que não. Você se arrependerá se for ao Continente Begaritt. Era
verdade naquela época e ainda é verdade agora.
Ah, agora entendo. Saquei. Vou me arrepender se for para o Continente Begaritt,
mas também vou me arrepender se não for. É isso que você quis dizer o tempo
todo?
— Ah, não sei sobre isso. Ontem você não estava nada infeliz com a sua vida,
estava? Você fez muitos amigos aqui. Conheceu muitas pessoas interessantes
e cresceu muito. Sua condição foi curada, você fez amizade com suas
irmãzinhas, até mesmo se casou! E agora tem uma criança a caminho.
Sim, minha vida atual não está ruim… Mas essa não é a questão! Você me disse
para não ir para Begaritt! Você me enganou!
— Mas eu realmente não queria. Deixe-me dizer mais uma vez: se você for para
o Continente Begaritt, com certeza se arrependerá.
O quê? Mas minha família está com problemas! Diga-me ao menos o porquê!
Talvez, mas isso não muda o fato de que desta vez você me enganou. Olha, pode
ao menos me dar alguns detalhes? Do que vou acabar me arrependendo? Não
posso tomar essa decisão a menos que conheça os riscos e as recompensas!
Não me importa se estou sendo irracional. Não quero me arrepender das minhas
escolhas.
— Bom, se você realmente pensar bem, algumas das consequências devem ser
óbvias. Você passou o último ano e meio estudando, certo? E suas irmãzinhas
passaram um ano viajando até onde você está. Se, em vez disso, você tivesse
ido para Begaritt, vocês teriam se desencontrado.
O quê? Mas Paul enviou minhas irmãs por ter recebido a minha carta. Se eu não
tivesse escrito para ele, elas teriam ficado em Millis ou esperado em Porto Leste.
— Não necessariamente. Mesmo se não tivesse recebido a sua carta, Paul teria
enviado suas filhas para o Reino Asura. A família de Lilia está lá, lembra?
— Sério, as coisas agora não estão tão diferentes. Digamos que amanhã você
parta em viagem. O que acontecerá com Sylphie e a sua criança? Está
planejando deixá-la, sozinha, enquanto caminha para o outro lado do mundo?
— Naturalmente. Por mais infeliz que isso seja, é impossível evitar todos os
arrependimentos. Se você for para Begaritt, poderá inclusive perder uma
oportunidade de ouro. Ao meu ver, é melhor ficar onde está.
Tch.
Bem… se você tem certeza disso, acho que provavelmente vou acabar me
arrependendo. Certo…
Mas o que diabos?! Agora você está me dizendo para trair a minha esposa?!
Estou feliz com a Sylphie! E aquelas duas são apenas boas amigas, que saco!
Acordei e me encontrei na cama. Sylphie estava olhando para mim com o rosto
preocupado.
— Ah, Rudy! Você está bem? Você estava gemendo enquanto dormia.
O que aconteceu depois que recebi aquela carta? Eu não conseguia lembrar
muito bem dos detalhes. Lembrava de olhar para a folha, estupefato, mas nada
além disso, exceto pelo meu sonho.
As coisas, ultimamente, estavam correndo muito bem. Acho que o choque foi
forte demais para mim.
A carta de Geese foi alarmante. Claro, aconteceu algo de errado. Ainda assim,
eu tinha que levar as palavras do Deus-Homem em consideração. Se eu já
partisse, haveria uma chance de que minha família e eu nos cruzássemos na
estrada e eu desperdiçasse alguns anos da minha vida.
Isso se eu fosse muito otimista, mas… havia a chance de Geese ter enviado
aquela carta em um momento de pânico. Digo, não foi Paul quem escreveu
para mim. Foi Geese. Meu companheiro de cela com cara de macaco.
Por que ele me escreveria uma carta assim? Ele também estava tentando
resgatar Zenith? Mas a última carta de Paul não o mencionou. Parecia que
Geese havia encontrado Zenith sozinho.
A carta foi escrita há seis meses. Era possível que ele estivesse sozinho e se
sentindo desamparado naquele momento, mas desde então podia ter se
encontrado com Paul e os outros. Talvez tivesse até enviado uma carta
semelhante para Paul. Podiam ter juntado forças e resgatado minha mãe
algumas semanas depois.
Isso não funcionaria, certo? Eu não poderia simplesmente deixar minha esposa
grávida sozinha e sair em uma aventura.
—…
Não consegui responder. Prometi a Sylphie que não iria mais desaparecer. Dei
a minha palavra a ela.
— Uhm, Rudy… não precisa se preocupar muito comigo, tá? A Aisha está aqui
para cuidar de mim.
Havia apenas uma sombra de angústia no rosto de Sylphie. Ela estava ansiosa,
é claro. Era a primeira gravidez dela. Sua barriga já estava começando a
crescer. Mais cedo ou mais tarde, teria dificuldades até para subir e descer as
escadas. E havia uma chance de eu morrer durante a jornada. Poderia nunca
mais voltar para ela.
— Não vou a lugar nenhum… Vou ficar com você, Sylphie — falei.
— Acho isso sábio, Rudeus. Neste caso é melhor você ficar para trás.
A maneira como ela disse isso me surpreendeu. Isso sugeria que ela tinha
outros planos.
— Sylphie é minha neta, Rudeus. É justo que eu aceite o trabalho, tanto pelo
bem dela quanto pelo seu.
Ela, pelo visto, recebeu uma carta idêntica. E, ao contrário de mim, estava
pronta e disposta a ir, mesmo que isso significasse deixar sua vida atual para
trás.
Isso provavelmente era verdade na maioria dos casos, mas nunca se sabe
quando as coisas poderiam tomar um rumo perigoso. Era por isso que as
pessoas tinham guarda-costas. Mas, é claro, essa era uma decisão de Ariel, e
Elinalise se ofereceu basicamente como um gesto de boa vontade. Eu duvidava
que a princesa fosse contra ela recuar.
— E o Cliff?
— Terei que deixá-lo. Ele pode me odiar para sempre, mas não tenho muitas
escolhas.
— Por que não tenta pelo menos explicar a situação? Tenho certeza de que ele
entenderia.
— Cliff é um jovem de coração puro. Ele tem talento, energia e visão. Eu não
ficaria surpresa se ele algum dia se tornasse papa. É melhor que se lembre de
mim como nada além de um romance da juventude.
— E, também…, da última vez, fui eu quem te disse para ficar aqui. Isso torna a
limpeza dessa bagunça em minha responsabilidade, não acha?
As palavras de Elinalise foram tão firmes e claras que fiquei sem palavras.
— Deixe isso comigo e espere aqui, querido. Quero ver um bisneto feliz
esperando pelo meu retorno.
Estava claro que nada do que eu pudesse dizer faria com que ela mudasse de
ideia.
— Entendo — disse ele calmamente. — Bem, tenho certeza de que você lidará
com este assunto com bastante facilidade e estará de volta em breve. Ficarei
aqui e continuarei a minha pesquisa, mas espero que você volte o quanto
antes.
— Meio que pensei que você pediria para eu não ir, Zanoba. Ou que exigiria que
eu o levasse junto.
Julie ainda era uma criança. Deixá-la aos cuidados de Ginger era uma opção,
mas isso seria o mesmo que colocar seus estudos e pesquisas em espera. E se
ela fosse junto, existia o risco de ficar exausta por usar toda a sua mana.
Ele agora parecia quase indiferente. Eu estava esperando algum conselho real…
Havia convicção real nas palavras de Zanoba. No entanto, fazia sentido que a
realeza tivesse uma perspectiva diferente sobre esse tipo de coisa. A maioria
dos reis provavelmente não ficava ansioso para assistir o parto de suas
concubinas.
— Eu, claro, preferiria ter você sempre ao meu lado — disse ele —, mas a
escolha é sua.
Sylphie não estaria sozinha. Ela tinha Aisha, Zanoba e a comitiva da Princesa
Ariel.
Elinalise queria que eu ficasse enquanto ela fosse sozinha para Begaritt.
Zanoba queria que eu fosse, deixando as coisas sob sua responsabilidade.
Qual caminho fazia mais sentido? Onde eu era mais necessário?
Ela me encorajou a ir, me disse para não me preocupar… mas esta era a sua
primeira gravidez. No fundo, eu sabia que devia estar apavorada. Ela
provavelmente estava lutando contra o desejo de desabar e implorar para eu
não partir.
Fui eu quem disse a ela, várias vezes, como queria ter crianças. Na época podia
até não estar levando o assunto a sério, mas ela obviamente levou a sério. E
agora que estava grávida, eu estava pensando em deixá-la para trás enquanto
viajava por meio mundo. Isso parecia uma traição escancarada.
Por outro lado… eu precisava admitir que há muito tempo estava adiando a
minha responsabilidade de ajudar Paul. Coloquei minha felicidade em primeiro
lugar por anos. Caramba, priorizei meus problemas de “desempenho” acima de
procurar por minha mãe.
Isso talvez fosse um chamado para acordar. Talvez fosse hora de pagar pelas
consequências.
Já era o quarto dia desde a chegada da carta. Passei a maior parte do tempo
pensando no meu dilema. Não estava dormindo bem e não conseguia me
motivar a me importar com minha rotina de treinamento matinal de sempre. Eu
estava sentado no primeiro andar, com os olhos turvos, sem fazer nada em
particular.
— Ah…!
Ela com certeza estava se preparando para uma longa viagem. Mas como tinha
apenas dez anos, parecia mais que estava indo para um piquenique ou algo
assim.
Por um bom tempo, fiquei apenas olhando para ela em silêncio. Norn evitou o
meu olhar. Parecia uma criança que foi pega no flagra enquanto queria pregar
uma peça em alguém.
—…
— B-Bem… se você não vai ajudar, Rudeus, acho que eu é quem vou ter que ir.
Estudei o rosto dela por um momento. Para onde? Ela não poderia estar se
referindo ao Continente Begaritt, certo?
Norn ainda era tão pequena. Estávamos falando de uma criança de dez anos de
idade.
—…
De forma alguma que aquela bolsa teria as coisas das quais precisaria para
esta viagem. Ela provavelmente tinha algum dinheiro, mas sabia como gastá-lo
com sabedoria? Ao menos sabia qual rotina adotaria? Como pretendia lidar
com os perigos que encontraria pelo caminho? Ela poderia ser sequestrada por
traficantes de escravos assim que colocasse os pés para fora da cidade.
— Mas eu… Eu… Rudeus, por favor! Mamãe e Papai estão com problemas! — Ela
tinha começado a chorar, mas manteve os olhos fixos nos meus. — Por que…
por que você não vai ajudá-los?
Por quê? Bem, porque eu logo teria uma criança. Precisava pensar na minha
esposa.
— Você é muito mais forte do que eu, Rudeus! Você sabe como viajar! Por que
você não vai?!
Ela não estava errada. Eu não era tão experiente quanto Elinalise, mas passei
cinco anos me aventurando por aí. Eu tinha ao menos conhecimento. E, embora
houvesse muita gente mais poderosa do que eu por aí, eu poderia me virar em
uma luta.
—…
Já fazia dias que eu estava pesando os prós e contras, mas isso era porque
eu podia escolher. Norn não tinha essa escolha. Ela queria ir ajudar, mas não
conseguia. Eu, por outro lado, tinha capacidade de chegar ao Continente
Begaritt, ajudar nossos pais e voltar em segurança.
Era por esse motivo que Gesse me enviou aquela carta, e não a outra pessoa.
— R-Rudeus?
Havia mais gente além de mim que poderia cuidar de Sylphie. Mas eu era o
único que poderia salvar os meus pais.
— Com certeza!
— Não brigue com a Aisha. E ajude Sylphie sempre que puder, certo?
— É claro!
Me senti péssimo por fazer isso com Sylphie e nosso bebê. Se ela me largasse
por causa disso, eu não a culparia. Mas não era assim que eu deveria pensar a
respeito do assunto. Precisava confiar em minha esposa.
Cap. 08 – Despedidas
O Continente Begaritt era uma enorme ilha, então, para chegar lá, seria
necessário cruzar o mar. E meu destino específico, a Cidade Labirinto de
Rapan, ficava perto da costa leste.
Havia duas rotas que eu poderia seguir. A primeira envolvia viajar para Porto
Leste, a principal cidade portuária do Reino Rei Dragão, e pegar um barco por
lá. Não seria a rota mais rápida, mas me permitiria chegar em Begaritt pelo
leste, reduzindo a quantidade de viagens que teria que fazer naquele
continente. Essa era a opção mais segura.
A outra possibilidade era pegar um barco no Reino Asura, o que me levaria para
a costa norte do continente. Isso envolveria viajar mais pelo território de
Begaritt, um caminho mais perigoso, sim, mas também me pouparia um bom
tempo.
Meu melhor palpite era de que a primeira rota exigiria dezoito meses, enquanto
a segunda apenas doze. Mesmo o plano mais eficiente de todos não me faria
chegar lá em menos de sete meses. Acabaria perdendo o nascimento da minha
criança, não importa o que fizesse.
Sim. Ele também disse que eu me arrependeria. Repetiu isso nas duas vezes
em que falamos sobre isso.
Com base nisso, os motivos provavelmente não tinham nada a ver com a
minha presença. Não importava quando eu fosse para Begaritt, acabaria me
deparando com alguns novos arrependimentos. Mas não tinha como dizer
quais seriam. Eu poderia imaginar todos os tipos de possibilidades. Poderia
acabar perdendo algo. Como, quem sabe, uma das minhas mãos… ou um dos
meus pais.
Não adiantava gastar todo o tempo pensando nisso. Se eu não fosse, ficaria
esperando ansiosamente por pelo menos mais alguns anos. No final, poderia
descobrir que alguém de quem gosto morreu. Paul ou Geese podiam aparecer,
machucados e inválidos, e me culpando por abandoná-los.
Poderia acontecer qualquer coisa, mas eu tinha que ir. Mesmo se soubesse do
que me arrependeria.
Antes de mais nada, porém, decidi conversar com Elinalise a respeito da minha
decisão. Se eu começasse conversando com Sylphie e ela desabasse em
lágrimas, eu poderia vacilar em minha decisão. Eu queria me fortalecer,
primeiro dando a notícia aos meus amigos.
Pedi a Elinalise que me encontrasse em uma sala de aula vazia do campus.
Quando contei o que eu estava planejando, ela fez uma cara infeliz.
— Como assim?
— Você conhece aquele cara, Rudeus. Ele raramente pensa antes de agir. Só
segue o palpite ou a intuição.
Bem, ela não estava errada a respeito disso. Geese também gostava de
esconder os fatos para si mesmo, e não se importava em manipular os outros.
Havia uma chance de irmos até lá e descobrirmos que Paul já tinha resgatado a
minha mãe. Poderíamos nos desencontrar no meio do caminho. Isso
era possível, mas…
— Pense um pouco nisso — falei. — Não é estranho que o Geese soubesse onde
me encontrar?
— O quê…?
— Mandei uma carta para Paul há um ano e meio, e nela contei onde estava
morando. Geese está no Continente Begaritt há pelo menos seis meses. Como
foi que ele descobriu em qual cidade estamos? Como foi que nos enviou essas
cartas?
Eu não tinha certeza exatamente do que ela estava pensando, mas seu sorriso
parecia um pouco triste. Tive a sensação de que ela meio que já esperava que
as coisas fossem terminar assim.
— Ah, entendo…
— Já viajei para Asura mais de uma vez, então não será difícil — disse Elinalise,
pensativa. — A parte mais complicada é escolher o que levaremos conosco
para Begaritt…
— Acho que você pode deixar esses detalhes comigo. Tenho mais experiência
nesta área — falei.
— Aham, imagino que sim… — Eu tinha certeza de que ela poderia passar o dia
todo marchando pelo deserto, mas não tinha tanta certeza de que seria capaz
de acompanhá-la. Continuei com o meu treinamento, mas existia a chance de
acabar atrasando-a um pouco.
Nossa meta inicial era chegar ao porto de Asura dentro de dois meses. Era
difícil dizer quanto tempo levaria a travessia até Begaritt, mas estimamos que
seria cerca de um mês. Nenhum de nós tinha visitado o continente em si, mas
parecia ser um trajeto bem complicado, então marcamos mais seis meses para
chegar ao nosso destino final.
Isso seria mais rápido do que a minha estimativa. Senti que poderiam existir
formas de reduzir ainda mais esse tempo, usando minha magia com
criatividade, mas não queria correr riscos de nos atrasar com experimentos
amadores. O mais importante seria chegar inteiro ao destino.
— O maior problema…
Depois de um tempo, porém, ela levou a mão ao queixo e fez uma careta. Senti
como se tivéssemos discutido a maioria dos tópicos de importância, mas,
evidentemente, acabei me esquecendo de algo.
— Ah. Certo.
A menos que ela regularmente se deitasse com homens, poderia literalmente
morrer. Em uma viagem casual, isso não representava qualquer problema –
poderia satisfazer as suas necessidades em qualquer cidade que visitasse. Em
viagens mais longas, frequentemente se juntava a um grupo e encontrava um
parceiro que poderia usar. Mas em uma expedição de ritmo acelerado como
essa, existiriam momentos em que nenhum desses métodos funcionaria.
Elinalise, por algum motivo, parecia determinada a desaparecer sem falar nada
para Cliff. Isso me parecia desnecessariamente cruel.
— Mas eu…
— Olhem só, vocês dois! Já diminuí o tamanho! E não está mais tão pesado.
Você deve ser capaz de usar isso por algum tempo sem…
— Cliff. Você ama a Elinalise?
— O quê? Claro que sim. — Seu tom sugeria que eu tinha feito a pergunta mais
óbvia do mundo. Até aí, tudo bem.
— Naturalmente. Amo a Lise do fundo do meu coração. Você está ciente disso,
tenho certeza.
Expliquei que a minha família corria sério perigo. Expliquei que Elinalise era
uma velha camarada de meu pai e sentia que tinha a obrigação de ajudar. E
também expliquei que seria uma longa jornada, na qual ela provavelmente teria
que se deitar com outros homens. Fui até o final, cobrindo todos os detalhes
relevantes.
— Sim, receio que sim. Você não seria capaz de suportar uma jornada como
esta, Cliff.
Se as circunstâncias fossem diferentes, ela poderia ter sido mais gentil. Mas,
desta vez, foi direto ao ponto.
— Entendo…
Franzindo a testa, triste, Cliff olhou para o chão. Senti uma dolorosa pontada de
simpatia no peito.
Ele estava se sentindo machucado? Elinalise não teria outra escolha a não ser
dormir com outros homens durante a jornada. Ele entendia a situação e sabia
que ela o amava… mas ainda devia ser algo doloroso.
— Sabe, Elinalise, será que não podemos levá-lo junto? — falei. — Ele pode usar
magia de Barreira e feitiços Divinos de nível Avançado. Mesmo que não tenha
muita resistência, pode acabar sendo útil…
— Tudo bem, Rudeus. Não fui útil da última vez que acompanhei a aventura de
outra pessoa. Desta vez não seria diferente.
— Rudeus…
— Sim?
Para ser sincero, eu esperava mais gemidos e ranger de dentes. Mas parecia
que ele entendia seus próprios pontos fortes e fracos de forma bem clara.
— Lise…
Desta vez, ele se virou para Elinalise. Ficando nas pontas dos pés, passou os
braços ao redor dela.
— Quando você voltar para casa, vamos nos casar — disse Cliff. — Sei que
ainda não curei a sua maldição, mas quero comprar uma casa e começar a
morar com você. Te deixei ansiosa por esperar tanto tempo para dizer isso, não
é? Você não ficou com medo de que fosse tudo apenas conversa fiada?
— Ah, Cliff… mas eu sou uma pessoa horrível. Estava planejando partir sem
nem mesmo te contar…
Cliff estava deliberadamente ignorando o que ela disse? Talvez fosse melhor
assim. Elinalise parecia muito feliz.
— Cliff, meu querido! Eu te amo tanto! Mais do que qualquer pessoa no mundo!
E, assim, ela o empurrou para o chão. Assim que via a camisa de Cliff sair
voando, me virei e corri para fora da sala. Parecia que eles precisariam de
algum tempo a sós.
Não fiquei tão surpreso com a forma como ela aceitou o pedido de casamento
após “um último serviço”, talvez por estar familiarizado com os clichês dos
filmes.
Passei o resto do dia contando a situação para todos que eu conhecia.
Meu primeiro destino foi o escritório do vice-diretor. Devia ser melhor cuidar
das formalidades o quanto antes. Encontrei Jenius atrás de sua mesa, como
sempre, enfrentando uma considerável pilha de documentos.
— Ah, se não é o Sr. Greyrat. Que bom te ver. Ouvi dizer que você ajudou a
Senhorita Setestrelas a concluir um experimento bastante ambicioso, não?
— Ah, entendo.
— É mesmo? Hmm. — Não havia motivo para eu não explicar os detalhes, mas
Jenius não perguntou nada. — Pois bem. Por enquanto irei trancar a sua
matrícula. Quando retornar, por favor, venha me ver.
— Muito obrigado.
— Está tudo bem. Afinal, o sistema de alunos especiais é projetado para ser o
mais flexível possível.
— Nesse caso, também poderia trancar a matrícula de Elinalise Dragonroad…
como um favor para mim? Ela não é uma aluna especial, mas vai me
acompanhar como guarda-costas.
Mais uma vez agradecendo a Jenius, deixei o prédio da faculdade para trás.
— Sério mesmo? Cara, isso aqui vai ser um saco enquanto você estiver longe,
Chefe.
— Já vamos ter nos formado quando você voltar, então acho que isso pode ser
um adeus.
Eu ainda não tinha pensado nisso, mas era verdade. Elas eram alunas do sexto
ano. Dentro de dois anos, provavelmente estariam de volta à Grande Floresta.
Linia era uma garota atraente. Aquelas orelhas de gato agitadas, cauda
balançando e coxas saudáveis eram suas características mais distintas, mas
seus seios também eram fartos. Qual era o tamanho dela, G? Todas as garotas
do povo-fera pareciam ser bem-dotadas, então isso devia ser normal. Aquela
atitude arrogante provavelmente também a tornaria interessante na cama.
— Você nunca respondeu ao flertes, então pensamos que não éramos do seu
tipo.
Claro, dormir com elas ocasionaria uma traição à minha esposa. Mas pelo que
o Deus-Homem disse, parecia que Sylphie não me daria um pé na bunda só por
causa disso. Ela realmente me perdoaria por me divertir com alguém durante a
sua gravidez? Será que aconteceria alguma briga feia antes de as coisas se
acalmarem? Difícil de dizer. De qualquer forma, isso supostamente levaria ao
final de “grande felicidade”.
— Linia, Pursena…
— Sim?
— Bem, se você insiste — disse Linia, dando uma cotovelada nas minhas
costelas. — Um cara igual você precisa de alguns.
— Parece bom, Chefe. Daqui a dez anos nós duas seremos importantes, então
você poderá se curvar diante de nós e beijar os nossos pés!
Fui obrigado a sorrir. Era bom saber que elas tinham ambições.
Eu não tinha certeza de como dar a notícia a ela. Nanahoshi era uma garota de
coração solitário. Apesar de toda a hostilidade que demonstrava, tive a
sensação de que ela estava desesperada por companhia. E, mais importante
ainda, minha ausência iria atrapalhar a sua pesquisa. Seu plano de voltar para
casa sofreria um considerável atraso.
Eu estava propenso a acreditar que ela tentaria me convencer a não ir. Ela
poderia até mesmo tentar me chantagear. O que eu deveria fazer se ela
ameaçasse matar Sylphie no caso de eu partir? Não que eu esperasse que ela
fizesse isso…
— Más notícias?
— Estou partindo em uma longa jornada. Meus pais estão em perigo e preciso
ajudá-los. Estão na Cidade Labirinto de Rapan, no Continente Begaritt. Levarei
cerca de dois anos para retornar.
— O quê…?
Após um momento de silêncio, Nanahoshi se levantou com um salto, jogando a
cadeira para trás e fazendo barulho. Ela pressionou as mãos sobre a mesa e
olhou para mim, parecendo, acima de tudo, atordoada.
— Sei que prometi te ajudar com os seus experimentos, e me sinto péssimo por
estar partindo. Mas realmente preciso ir.
— Dois anos…
Não havia muito mais que eu poderia dizer. Nanahoshi sabia que eu estava a
ajudando com toda a bondade do meu coração. Provavelmente queria mudar a
minha opinião quanto a fazer isso, mas preferiu morder a língua.
Para ser sincero, eu não queria continuar esta conversa. Sabia que ela só
tentaria me impedir. Mas parecia que eu devia uma explicação completa, então
me virei de novo.
—…
Círculos de teletransporte?
— Hein?
Mais uma vez, olhei para o mapa. Especificamente na marcação B3. Será que
isso significa…
— Mas o qu…
Parando para pensar nisso… Nanahoshi uma vez mencionou algo do tipo,
quando estava me contando sobre as suas viagens com Orsted. Algo sobre
como ele usava círculos de teletransportes para viajar pelo mundo…
— Mas você disse… que não lembrava onde eles ficavam!
Eu lembrava claramente dessa parte. Ela me disse que não fazia ideia de onde
encontrá-los.
— Orsted me fez jurar que manteria isso em segredo. Afinal, é magia proibida.
Concordei na mesma hora, já que achei que não conseguiria me lembrar deles.
Quando ela não sabia nem em qual continente estavam, usava letras como X
ou Y. Ficou óbvio que ela pensou muito nisso.
— Já ouvi falar desse lugar que você mencionou, Rapan — disse ela. — Lembro
onde fica. Há um lugar chamado Bazaar perto deste círculo, e Rapan fica a
cerca de um mês de viagem de lá, seguindo para o norte. Tenho certeza.
Voltei para a primeira página que Nanahoshi me mostrou. Isso cobria a área da
cidade de Sharia até a floresta do sudoeste. A escala não estava muito clara,
mas parecia ser uma jornada de uns dez dias. Talvez até menos. E aquele
círculo de teletransporte nos levaria ao ponto marcado como B3.
Voltei para a outra página. Do ponto B3, parecia ser uma jornada de uma
semana até a cidade mais próxima. Então, se Rapan ficava a apenas um mês
de distância…
— Tem certeza disso? — perguntei. — Orsted não te disse para manter isso em
segredo?
— Não vou negar que tenho minhas dúvidas, mas te devo muito pela última vez.
Só não compartilhe essa informação com ninguém, certo? Magia de
teletransporte é uma arte proibida. Se a notícia se espalhar, as ruínas serão
destruídas pelos governos locais.
— Só quero que você volte o mais rápido possível, isso é tudo — disse ela
soltando um bufo de desdém. Essa garota realmente era uma completa
tsundere.
— Ah, quase esqueci — disse ela. — Na primeira página, esbocei os sinais que
usaram para marcar as ruínas e descrevi como você dissipa a magia de
ocultação que as protege. Certifique-se de ler isso com atenção.
Sorrindo diante do mau humor dela, apesar de tudo, deixei o laboratório para
trás.
Poderíamos fazer essa viagem muito mais rápido do que o esperado. Esta era
uma notícia fantástica. Ela ficaria muito feliz, é claro. Mas também
precisávamos alterar todos os nossos planos. Afinal, a viagem duraria apenas
um mês e meio. Poderíamos até mesmo levar Cliff conosco!
Batendo em minhas bochechas na tentativa de me impedir de sorrir feito um
idiota, abri a porta do laboratório de Cliff… e fui saudado pelo que parecia uma
pintura renascentista de Vênus.
Seus membros finos e elegantes, além de seios esculpidos com bom gosto,
definitivamente tinham um certo apelo clássico, mas não senti vontade de vê-
los em exibição em um museu. Nunca fui um grande apreciador de arte. Mas
pensei que ela renderia uma estatueta muito sensual.
— Não suporto ficar longe do Cliff por dois anos inteiros! — gritou Elinalise. —
Sei que isso é horrível da minha parte, mas simplesmente não vou fazer isso!
Hmm. Bem. As pessoas dizem que as mulheres são guiadas pelas emoções,
não?
— Digo, se você está indo, então não precisa que eu também vá — balbuciou a
mulher. — Seu pai e eu não nos damos bem mesmo. Ele provavelmente não
gostaria de ver a minha cara! De qualquer forma, eu não deveria ficar aqui e
proteger a minha neta gestante?
—…
Era difícil pensar que essa era a mesma mulher que ralhou comigo por eu ter
que esperar enquanto ela cuidava de tudo. Tentei o meu melhor para não julgá-
la muito. Ela só estava de volta à realidade depois de um passeio pelo paraíso,
isso era tudo.
— Bem, tá bom, Elinalise. Só acontece que acabei de encontrar uma forma que
poderia nos levar e trazer em uns três meses, mas…
— Hein?!
Olhei para Cliff duas vezes, confirmando se ele ainda estava desacordado, para
sussurrar ao ouvido de Elinalise.
— Então, na verdade, Nanahoshi…
— Isso mesmo. Se fizermos isso, posso inclusive voltar a tempo para ver o
nascimento da minha criança.
Uma viagem de seis semanas não era algo tão grande. A julgar pela seriedade
com a qual examinava o diário, Elinalise parecia ter voltado ao modo de
planejamento.
— Ah, então tudo bem — disse ela depois de algum tempo. — Acho que então
eu vou.
— Considerando o quão rápida será a viagem, podemos até mesmo levar Cliff
junto — falei.
— Tem certeza?
— Duvido que ele conseguiria manter segredo no caso de descobrir sobre esses
círculos de teletransporte.
Sério? Cliff era um cara razoavelmente confiável, não era? Mas, bem… ele
provavelmente era o tipo de gente que deixava segredos vazarem, mesmo sem
querer. Sim, provavelmente seria melhor manter o mínimo de pessoas
informadas. Quanto mais gente levássemos junto, mais provável era que a
informação vazaria.
Infelizmente, não tinha visto nenhum dos dois há algum tempo. Nenhum outro
possível candidato passou pela minha mente. Zanoba podia ser bom de briga,
mas definitivamente não era um viajante experiente.
Pensando bem, se tivéssemos problemas por lá, poderíamos voltar para buscar
mais ajuda… Seria melhor seguir com a opção mais segura, já que não
sabíamos nossa rota. Mas, depois de fazer a viagem, não seria difícil voltar e
buscar mais alguns aliados. Teríamos que contar sobre os círculos a todos,
mas isso era melhor do que ficar aquém do nosso objetivo.
A viagem não seria breve, é claro. Porém, mesmo que tivéssemos que esperar
por reforços durante três meses, continuava sendo uma opção viável.
— Certo. Vamos acabar com isso e voltar para casa o mais rápido possível.
Depois de reunir ela, Aisha e Norn na sala de estar, dei a notícia bombástica.
— Você não está quebrando a sua promessa, Rudy. Isso não é repentino, e você
não está desaparecendo. — Sylphie sorriu para mim, mas parecia ser forçado.
Não importava o que ela dissesse, estava obviamente sofrendo com isso. Meu
coração doeu só de olhar para ela. — Uhm, quanto tempo você acha que vai
ficar fora? Cerca de dois anos, certo?
— Não. Nanahoshi me mostrou uma forma de chegar lá usando um círculo de
teletransporte. Acho que devo voltar antes do nascimento do bebê.
Ela estava obviamente assustada. A ansiedade estava mais uma vez visível em
seu rosto.
Sua preocupação fazia sentido, é claro. Nós dois perdemos muito com o
Incidente de Deslocamento.
— Ainda não posso afirmar — falei. — Mas Nanahoshi parece já ter usado esses
círculos no passado, então acho que vai dar tudo certo.
— T-Tá…
Sylphie ainda parecia preocupada, então a puxei para perto de mim e sussurrei
a próxima parte ao seu ouvido.
— Certo.
— Tudo bem…
Virando a minha cabeça, falei com uma das minhas irmãs, que estava por
perto.
— Aisha.
— Uh, sim…?
— Acho… que sim. Mamãe me ensinou tudo sobre como cuidar de mulheres
gestantes.
— Se for demais para você, peça ajuda a alguém. Não seja tímida e não tente
fazer tudo sozinha. Você é uma criança talentosa, mas ainda é inexperiente.
Recorra aos adultos sempre que precisar de conselhos.
— C-Certo.
Aisha balançou a cabeça, sua expressão séria. Fiquei um pouco nervoso com
isso, mas provavelmente não surgiriam problemas. Não havia uma solução
perfeita.
— Norn.
— Sim, Rudeus?
— É claro!
Bem, então tá. O que sobrou? Havia mais alguma coisa que eu precisava dizer
a elas?
Nossos nomes eram Rudeus e Sylphie, então podíamos meio que combinar
partes deles. Quem sabe Sirius, se fosse garoto, ou Lucie, se fosse garota. Mas
isso era meio clichê… Talvez devesse pedir um conselho a Paul.
Depois de pensar nisso por alguns segundos, finalmente percebi que estavam
todas olhando para mim com expressões estranhas nos rostos.
Elas pareciam genuinamente chocadas. Aisha estava até mesmo com lágrimas
brotando nos olhos. A ideia era tão estranha? Eu não lembrava de nenhuma
regra sobre não nomear as crianças antes do nascimento.
Ao menos era isso que a história dizia. Também ouvi uma versão em que o
garoto acabou se revelando um zé-ninguém imprestável. De qualquer forma, a
história era tão conhecida que ninguém pensava em nomear uma criança não
nascida antes de partir em uma jornada, já que isso atrairia um terrível
desastre. Não era como se essa decisão realmente tivesse causado a morte de
Feroze, é claro, mas as pessoas eram supersticiosas a respeito dessas coisas.
— Mas eu meio que quero opinar nisso, sabe? E no pior dos casos…
Ainda assim, estávamos falando da minha criança primogênita. Isso ainda não
parecia completamente real, mas eu queria participar pelo menos da escolha
do nome.
— Ahem.
— Que tal isso, irmão querido? Se a criança nascer antes de você voltar, vamos
chamá-la temporariamente de Rudeus Júnior. Ao voltar para casa, você
escolherá um nome adequado. Podemos transformar o Rudeus em um nome
do meio, igual ao famoso Deus do Norte Kalman.
Rudeus Júnior, hein? Bem, não era muito incomum que uma criança deste
mundo herdasse o nome dos pais. E se acabássemos escolhendo Lucie, isso
se transformaria em algo como Lucie Rudeus Greyrat…
Isso não soava tão mal. Parecia meio embaraçoso, já que eu ainda associava
nomes assim com aristocratas ricaços, mas isso parecia ser comum neste
mundo.
Bem, tanto faz… É só mais um motivo para voltar para casa em segurança.
— Sim?
— Uhm…
Senti que tinha mais a dizer para ela, mas não conseguia encontrar as palavras
certas. Tive a sensação de que qualquer coisa que dissesse poderia soar
estranhamente ameaçadora.
— Venha aqui.
Então, em vez disso, apenas caminhei até ela e coloquei minhas mãos em seus
ombros.
— Huh? Ah…
Olhei para as minhas irmãs. Aisha estava ansiosamente inclinada para frente.
Norn cobriu o rosto com as mãos, mas ainda assim estava espiando pelas
frestas entre os dedos.
Dei uma piscadela para as duas. Norn tampou os olhos com as mãos na
mesma hora, enquanto Aisha deu uma piscadela em retorno. Que malandrinha.
Ela realmente queria ver uma cena de beijo?
Bem, ceder a ela apenas desta vez não faria mal. Era uma ocasião especial.
Eu tinha a minha magia, então não nos faltaria água fria. Só isso já tornaria as
coisas significativamente mais simples. Não tínhamos um mapa para a cidade
de Bazaar, mas Elinalise confiava em sua habilidade de viajar por territórios
desconhecidos. Ela alegava que elfos podiam viajar até mesmo pelas florestas
mais densas sem nunca ficarem perdidos.
Senti a necessidade de mencionar que um deserto não era nada parecido com
uma floresta, mas isso só me rendeu um sermão irado sobre seus muitos anos
de experiência como aventureira. Dado o quão confiante ela estava, tive de
presumir que ficaríamos bem.
A propósito, fiz questão de avisar Sylphie e minhas irmãs a não contar sobre os
teletransportadores a ninguém. Só para deixar claro, mencionei que um cara
muito assustador, um que poderia derrotar Ruijerd em um instante, poderia
ficar muito bravo se dessem com a língua nos dentes.
Por falar nisso, eu não tinha a moeda local. Sequer tinha certeza de que tipo de
dinheiro usavam por lá. Provavelmente seria mais fácil se levasse algo que
pudesse trocar por dinheiro com facilidade.
Como nossa jornada iria durar apenas seis semanas, fiquei com algum espaço
livre nas minhas malas. Eu poderia tecnicamente levar algumas coisas que
nem precisava.
Lembrei que Ginger sabia uma ou outra coisa sobre cavalos, então pedi a ela
que me acompanhasse até um estábulo local. Aproveitei para avisar Zanoba a
respeito da situação.
— É mesmo? Hmm… sabe, eu poderia ordenar que Ginger vá junto, caso queira.
— Não seja ridículo, Zanoba. — Por que eu sairia do meu caminho para tornar a
pobre mulher em minha inimiga?
Eu bufei.
— A mulher é meio incômoda, Rudeus. Desde que eu era criança, ela me dava
sermões sobre cada erro que cometia. E, ultimamente, também tem sido rígida
demais com Julie. Isso está ficando irritante.
Mas, acima de tudo, me sentia mal por Ginger. Ela ainda era jovem. A garota
estava gastando seu tempo cuidando de um bebê superdesenvolvido.
— Bem, lá vamos nós. Melhore a forma, Zanoba. Você precisa dar um bom
exemplo para ela.
— Hrm…
Julie não estava mais tropeçando tanto nas palavras. Também tínhamos que
agradecer a Ginger por isso.
— Aqui está, Sir Rudeus. Acredito que este deve atender às suas necessidades.
— Ooh…
Por nenhum motivo em particular, decidi que ele era digno do nome Matsukaze.
— Quer que eu peça a Zanoba para fazer algo por você? Quem sabe massagear
os seus ombros?
— Sir Rudeus… tenho muito respeito por você, mas gostaria que mostrasse um
pouco mais…
— Tá bom, tá bom. Foi mal. Foi uma piada.
A julgar pela forma como estava me encarando, Ginger não achou isso muito
engraçado.
Bem, tanto faz. Verifiquei cada um dos itens da minha lista de tarefas e fiz
todos que sabiam sobre os círculos de teletransporte jurarem segredo.
Estávamos prontos para ir.
— Rudy…
Mas, desta vez, seus ombros estavam tremendo e ela também fungava um
pouco. Isso não estava tornando a partida mais fácil, sinceramente.
Afinal, deveria ficar…? Talvez pudesse esperar o nascimento da minha criança
para só então ir ajudar o meu velho.
Digo, pense nisso. Normalmente, levaria um ano apenas para chegar lá. Eu não
poderia ficar em casa por mais sete meses e partir depois do nascimento da
minha criança? A viagem deve levar apenas seis semanas, então eu poderia fazer
isso dentro do prazo.
Eu não era forte o suficiente para impedir que essas coisas passassem pela
minha mente. Mas, no final das contas, Geese estava desesperado o suficiente
para enviar uma mensagem expressa do Continente Begaritt. Esses serviços
não eram baratos, mesmo para as cartas mais curtas; não era algo que alguém
faria, a menos que fosse necessário. O tempo provavelmente era essencial.
Enxugando as lágrimas de Sylphie, falei com minhas irmãs, que estavam atrás
dela, sem jeito, no vestíbulo.
— Aisha, Norn, vejo vocês depois. Cuidem das coisas por mim, certo?
— Não se preocupe, irmão querido. Vou manter as coisas por aqui sob controle.
Balancei a cabeça.
Elas responderam “Sim!” em perfeito uníssono. Não pude deixar de sorrir diante
das expressões severamente sérias em seus rostos.
— Sylphie!
— Seja corajosa, querida, você vai ficar bem! De qualquer forma, você não
precisa do marido por perto para dar à luz. Confie em mim, estou falando por
experiência própria.
— Acho que sim — disse Sylphie com um sorriso fraco. — Tome cuidado
também, Vovó.
— Ah, não se preocupe comigo. Consigo me virar.
Era uma pena que eu a tivesse visto fazendo birra no outro dia. Aquele tipo de
memória destruiu a experiência toda.
Bem, acho que todo mundo tem seus pontos fracos, não?
Sem desperdiçar mais tempo, pulei atrás de Elinalise. Ela era uma mulher
magra, mas sentou-se na sela ereta feito uma vareta. Era meio reconfortante
saber que era ela quem ficaria nas rédeas.
E ter meus braços ao redor dela também não era desagradável. Senti uma
pontada de culpa, mas… ei, só estava a pegando emprestada de Cliff por um
tempinho, certo?
— Rudy?
Resumindo, ter alguém escoltando nosso cavalo de volta para Sharia fazia
mais sentido. Ele não custou barato, então eu pretendia ficar com ele.
Agora tínhamos uma floresta para investigar. Esqueci qual era exatamente o
nome dela. Algo semelhante a Floresta Lumen, será? Uma palavra que significa
“estômago” em um ou outro idioma.
Só para ficar claro, os lenhadores deste mundo não eram motivo para
zombaria. Um grupo deles costumava ser mais organizado e capaz do que um
bando regular de aventureiros. As florestas ofereciam madeira de sobra, mas
também eram o lar de muitos monstros. O ato de cortar uma única árvore se
tornava uma tarefa perigosa. As pessoas precisavam formar times – e às
vezes até mesmo contratar guarda-costas. Uma expedição típica envolvia
alguns combates sérios que iam além de cortar madeira, então a guilda dos
lenhadores era o lar de muitos sujeitos formidáveis.
Além disso, o trabalho deles tinha uma função vital neste mundo. Se as árvores
não fossem regularmente cortadas, em algum momento teriam que lidar com
enxames de Entes perigosos.
— Certo.
Ainda assim, isso não era nada para aventureiros veteranos como nós.
Estávamos alertas, é claro, mas calmos. Elinalise assumiu a liderança e eu a
segui de certa distância.
Como podia se esperar de uma elfa, ela sabia como andar neste terreno. E
graças à sua excelente audição, recebíamos avisos antecipados sempre que
algum inimigo tentava nos emboscar.
— Certo.
Passado algum tempo, ela avistou o que estávamos tentando encontrar. Era
uma chapa de pedra plana com um símbolo esculpido na superfície, em frente
a uma espessa parede de vegetação. Me resignei com a possibilidade de
vasculhar a floresta por dois ou três dias, mas conseguimos encontrar a coisa
antes do pôr do sol. A mulher talvez tivesse colocado pontos de habilidades em
Encontrar Segredos ou algo assim.
Ah, é mesmo. Parecia muito com o símbolo que estava naqueles documentos
que encontrei no porão da minha casa. Existiam algumas diferenças sutis, mas
eram definitivamente semelhantes. Será que o homem que criou aquele robô
assassino possuía alguma conexão com o Deus Dragão?
Bem, provavelmente existia um monte de símbolos parecidos por aí. No meu
velho mundo, muitos países tinham bandeiras semelhantes.
— Algum problema?
— O wyrm viveu apenas pelos seus ideais. Ninguém poderia escapar do alcance
de seus poderosos braços. Ele foi o segundo a morrer… um General Dragão,
suas escamas verdes e douradas, sua vida sendo o mais efêmero dos sonhos.
Em nome do Imperador Dragão Sagrado Shirad, quebro seu selo.
No instante em que a palavra final saiu da minha boca, senti a mana fluindo do
meu braço para a pedra, e o mundo começou a se distorcer diante dos meus
olhos. O próprio ar pareceu circular de um jeito estranho por um momento;
quando passou, a espessa parede de árvores e plantas à minha frente sumiu,
deixando um edifício de pedra no lugar de tudo.
— Whoa!
Também não era como nada que eu já tinha visto. Mas a maneira como a pedra
sugou a minha mana era familiar. Provavelmente era um implemento mágico
estacionário e superdimensionado. Se o quebrássemos ao meio, devíamos
encontrar um monte de círculos mágicos complexos gravados lá dentro.
Eu meio que queria arrancar a pedra e levá-la para casa comigo, mas parecia o
tipo de coisa que poderia me fazer ser assassinado por Orsted. Já tive o
suficiente disso por uma vida.
O prédio diante de nós era uma estrutura atarracada de um único andar. Vinhas
de hera corriam ao longo de suas paredes, e havia lugares onde as pedras se
desintegraram ao longo dos anos.
— Vi alguns labirintos com entradas parecidas com isso — disse Elinalise. — Ah,
é mesmo. Você não tem nenhuma experiência com labirintos, tem, Rudeus?
— Não. Explorei algumas ruínas antigas e tal, acho, mas nunca um labirinto de
verdade.
— Certo, posso fazer isso. Mas, uh, não acho que este lugar seja um labirinto,
ou é?
Ainda assim, Elinalise não era uma ladra nem nada do tipo. Seria capaz de
encontrar armadilhas? Só por garantia, ativei meu Olho da Previsão. Não era
exatamente um sistema de alerta antecipado, mas poderia me ajudar a lidar um
pouco melhor com emboscadas repentinas.
— Então tá, Rudeus. Vamos lá. Esteja pronto para me cobrir no caso de as
coisas ficarem feias.
— Certo.
—…
O interior também era feito de pedra. Aqui e ali, podia ver vinhas ou raízes de
árvores cutucando as paredes. Uma situação clássica de “ruínas florestais”,
basicamente.
Mas a estrutura não era tão grande. Na verdade, parecia que possuía apenas
quatro cômodos. Nos movemos sem pressa, certificando-nos de investigar
todos os cantos.
Os dois cômodos mais próximos da entrada eram espaços completamente
vazios com cerca de sete metros quadrados. O terceiro tinha um armarinho em
um canto; quando abrimos a porta, encontramos roupas de inverno masculinas
ali guardadas. Ficou claro que não estavam ali por décadas. Alguém havia
trocado de roupas neste lugar há relativamente pouco tempo. E, por alguém,
digo Orsted.
Se eu soubesse que poderíamos deixar coisas assim para trás, poderia ter
preparado um pouco mais de bagagem. Mas não faz sentido chorar pelo leite
derramado.
— Qual o problema? Existe algum motivo para você ficar olhando para essas
roupas?
— Certo.
No final, porém, ela não achou nada. Não fiquei tão surpreso. Se alguém
quisesse colocar armadilhas no lugar, provavelmente também as colocaria na
entrada.
Elinalise desceu as escadas bem devagar e com muito cuidado. Fiz questão de
seguir seus passos. Estranhamente, as ruínas não ficaram mais escuras à
medida que descíamos.
— Bem, aí está…
Havia um enorme círculo mágico no chão à nossa frente – tão grande quanto
um dos cômodos do andar de cima. Em tamanho, pelo menos, era comparável
ao que fiquei preso no palácio real de Shirone. E estava constantemente
emitindo uma luz branco-azulada.
Só para ter certeza, tirei o diário de Nanahoshi da minha bolsa e revi as suas
anotações. A coisa à nossa frente parecia muito semelhante ao esboço de um
círculo de teletransporte bidirecional. Havia pequenas diferenças, mas todos os
recursos principais estavam ali. Tudo o que tínhamos a fazer era pisar na coisa
e, teoricamente, deveríamos reaparecer no Continente Begaritt.
Elinalise, no entanto, não parecia estar com pressa para fazer isso. Estava
olhando para o círculo mágico com uma expressão hesitante no rosto.
Memórias dolorosas? Estava falando sobre algum incidente durante seus dias
como aventureira?
Elinalise balançou a cabeça e voltou a olhar para o círculo mágico. Desta vez,
havia uma expressão realmente determinada em seu rosto.
— Enfiar o dedo no nariz de uma garota, na verdade, ainda me parece algo meio
sexual.
Sorrindo, Elinalise me pegou pela mão. Apesar de seus dedos finos, seu aperto
era forte. Esta era a mão de uma aventureira. Também estava um pouco quente
e suada, e fez meu coração começar a bater um pouco mais rápido.
Claro, eu tinha Sylphie, e Elinalise tinha o Cliff. Se acontecesse algo entre nós,
estaríamos ambos cometendo adultério. E, de qualquer forma, não era como se
tivéssemos sentimentos um pelo outro.
— Ah, é mesmo. Sim. Sinto muito por isso. — Opa. Isso foi meio embaraçoso.
Eu não era mais um virgem, então não tinha desculpas para continuar
cometendo esse tipo de erro.
— Bem, talvez…
Assim que saímos do teletransportador, ele voltou a emitir aquela luz branco-
azulada. Pelo visto, estava pronto para nos levar de volta para o outro lado.
Isso era conveniente e tal, mas não vi nenhum cristal mágico alimentando a
coisa. Como exatamente conseguia a mana de que precisava? Será que havia
uma fonte de energia enterrada sob o chão? E se de alguma forma estivesse
absorvendo a mana do ar ao redor? Se houvesse uma forma de fazer isso, eu
realmente queria aprender.
— Ah, espera. Devemos verificar para ter certeza de que poderemos voltar para
o outro lado, não?
— Não, eu vou. Se eu não voltar em alguns minutos, pode continuar sem mim —
disse Elinalise, me empurrando suavemente. — Não gosto da ideia de contar ao
Paul que você sumiu depois de pisar em um teletransportador.
Elinalise saltou de volta no círculo mágico e sumiu do nada. Pensei que tive um
breve vislumbre dela sendo sugada para o chão.
Pensando bem, foi a primeira vez que vi alguém sendo teletransportado. Essas
coisas se moviam pelo solo ?
—…
No momento, não havia muito a fazer, a não ser esperar. Confiei na memória de
Nanahoshi e, pelo que ela disse, não precisaria de nenhum encantamento
mágico ou técnica especial para usar essas coisas. Existia a chance de que
Orsted usasse algum tipo de instrumento mágico, mas tínhamos chegado até
ali com bastante facilidade. Eu queria pensar que a viagem de volta seria
igualmente tranquila.
Por um momento pareceu meio tonta, mas balançou a cabeça assim que se
deparou com o meu olhar.
O ar estava brutalmente quente. Não parecia muito úmido, o que fazia sentido,
já que devíamos estar no meio de um deserto.
— O que devemos fazer a respeito das nossas pegadas? Acha que devo apagá-
las?
— Você está preocupado com aquele Orsted? Acho bem improvável que
acabemos o encontrando…
Verdade, mas eu ainda estava meio assustado. Será que devia deixar uma
mensagem? Devia dizer a ele que Nanahoshi me contou sobre este lugar, e que
eu só estava usando por causa de uma emergência familiar? Prometer guardar
segredo e implorar para que não ficasse zangado comigo?
Mas, bem, não tinha como dizer quando ele apareceria de novo. Ele poderia
nunca descobrir que passamos por ali e, neste caso, deixar uma carta seria um
convite para confusão. Alguns momentos depois, decidi não me incomodar.
Depois de explorar cada cantinho da ruína, pela primeira vez colocamos os pés
fora dela.
Estava quente lá fora. Muito quente. A palavra quente chegava até a ser
inadequada, para ser sincero. O vento inclusive machucou o meu rosto.
Tudo que eu via à frente era um mar de dunas de areia ondulantes. Parecia
uma das fotos que eu tinha visto do Saara, um deserto da minha vida anterior.
O sol já estava começando a se pôr. Mas, quando no deserto, não seria melhor
viajar à noite? Espera, não. Será que não seria mais perigoso, já que a
temperatura poderia ficar negativa? Não que as coisas neste mundo fossem
todas necessariamente idênticas…
— Se partirmos agora, não vamos chegar muito longe até o pôr do sol. Está
meio cedo, mas acho que precisamos aproveitar para descansar com um teto
sobre nossas cabeças.
Para esta noite, porém, decidimos nos embrulhar em nossos sacos de dormir e
ficar no chão mesmo. Levei algum tempo para recarregar o implemento mágico
de Elinalise, e só então me deitei. Isso envolvia colocar minhas duas mãos na
fralda dela e canalizar um pouco de mana. Para ser sincero, eu me sentia um
idiota.
— Rudeus — murmurou Elinalise —, se você ficar com pouca mana, pode adiar a
recarga dessa coisa por algum tempo.
— Mas se eu parar de alimentar isso com mana, você não conseguirá se conter,
não é?
— Sua magia será cada vez mais crucial conforme entrarmos em combate.
Temos que priorizar a sua capacidade de luta.
— Sério? Nossa, seu reservatório de mana parece ser um poço sem fundo…
Eu não conseguia imaginar nada de bom como o fruto por me deitar com
Elinalise. Se realmente não pudéssemos nos impedir, eu talvez pudesse
convencê-la ao menos a parar no sexo oral…
— Bem, então, vamos dormir? Imagino que em breve nos moveremos pelo
deserto, então devemos poupar as nossas forças.
Por mais que eu quisesse conservar minhas energias, precisava soltar alguma
coisa nesta noite. Às vezes não é fácil ser homem.
Naquela noite, mais tarde, enquanto estava deitado dentro das ruínas, senti um
cheiro doce flutuando pelo ar.
Abrindo os olhos, vi Elinalise fazendo uma careta enquanto dormia, com sua
espada entre seus braços.
Me vi observando seu pescoço pálido e mãos finas. Seu rosto parecia uma
versão amadurecida do rosto de Sylphie. Ela também era alta e magra.
Especialmente da cintura para baixo, sua silhueta era uma das mais perfeitas
que eu já tinha visto.
— Hah… haah…
— Mm…
A mulher tinha uma bela bunda. Queria dar uma apertada naquilo. Mesmo sem
querer, acabei inconscientemente estendendo a mão. Eu queria tocá-la. Muito,
muito mesmo.
— Cliff…
Mas Elinalise então murmurou aquele nome enquanto dormia, e com isso
recobrei os sentidos.
Virando, rastejei para fora do cômodo, depois, fui para o lado de fora do
edifício.
Eu pensava que estava tudo bem, mas evidentemente passei tempo demais
negligenciando as necessidades do meu corpo. Quase fui tomado por uma
onda momentânea de luxúria. Já estava na hora de me aliviar, se é que
entende.
Sentado no topo de uma duna que não ficava longe, comecei a abaixar as
calças… e então ouvi um barulho. Eu não estava sozinho.
— Hm…?
Elinalise tinha me seguido para o lado de fora? Olhando ao meu redor, vi uma
mulher muito sensual parada não muito longe.
Estava muito frio por ali, mas ela estava vestida como uma dançarina. Suas
roupas eram finas o suficiente para que parecessem transparentes à luz do dia.
Seu cabelo era curto e encaracolado, provavelmente preto. Era difícil distinguir
o seu tom de pele na escuridão, mas seu corpo brilhava, pálido contra o céu
escuro.
Mais importante ainda, ela tinha um corpo bacana. As curvas certas, sabe? Ela
fazia Elinalise parecer uma prancha de madeira.
Engoli em seco. Havia algo quente escorrendo pelo meu queixo. Quando toquei
meu rosto, descobri que estava tendo uma hemorragia nasal.
— Heh heh…
A mulher saltou para trás. Uma fração de segundo depois, Elinalise moveu a
espada, cortando o espaço no ar onde ela estava. Antes que eu pudesse reagir,
Elinalise se posicionou entre mim e minha sedutora.
— Hein?
Eu nem sabia como reagir. Mas Elinalise já estava levantando o seu escudo e
atacando a mulher.
— Keeeaaah!
— Gyeeaaah…
— Hã…?
Fiquei em estado de choque. Minha mente não queria dar sentido a esses
eventos. E meu garotão ainda não tinha voltado ao normal.
Oh. Assim que olhei mais de perto, percebi que sua pele era azul-brilhante. E
seu rosto também não parecia muito humano.
Mas o corpo dela era mesmo suculento. Ao menos antes de morrer. Talvez
ainda continuasse bom.
— Sim. É a primeira que eu vejo, mas tenho certeza — disse Elinalise. — Acho
que essa coisa de elas soltarem um odor estranho não era uma lenda urbana.
Me vi mais uma vez secando Elinalise. Ela não tinha muito peito, mas seu rosto
era lindo e suas pernas bem torneadas. E aquela bunda, puta merda…
Não fiz nada demais, certo? A mulher dormia com qualquer um. Se eu a
elogiasse o suficiente, ela me deixaria dar uma metidinha.
— Hmph!
E então deu uma escudada na minha cara. Caí com tudo na areia, luzes
brilhantes piscando diante dos meus olhos.
Isso, entretanto, não importava. Eu tinha coisas mais importantes em que
pensar. Tipo transar com Elinalise.
— Haah… haah… Vamos lá, gatinha. Você não vai se arrepender, tenho certeza…
— Hein…?
Era como se a névoa dentro da minha cabeça tivesse sumido. A parte inferior
do meu corpo ainda estava meio animada, mas minha necessidade
desesperada por sexo estava sumindo.
Olhei para Elinalise. Ela era uma mulher atraente, sem dúvidas. Mas isso era
tudo que eu pensava.
— Meu deus…
—…
Merda…
Ela olhou para mim com desconfiança, mas então mostrou um sorriso
travesso.
— O que é isso? Sempre sonhei em transar com uma garota igual você?
Pude sentir meu rosto ficando quente. Não foi culpa minha! A Súcubo me
obrigou!
— Ugggh…
— Está tudo bem, eu entendo. Esse tipo de efeito é comum, sabe? A culpa não é
sua. Não vou contar sobre isso para Sylphie ou Paul.
— Tá bom, tá bom.
— Então acho que vou dormir. Fique algum tempo de guarda, por favor. Ah, e
certifique-se de queimar esse corpo.
— Certo.
Com isso, ela voltou para dentro das ruínas. Eu ainda não conseguia me sentir
culpado pela forma como a tratei, mas não havia mais muita coisa que
pudesse ser feita.
Poderia, inclusive, jurar que no começo ela era uma linda garota. Talvez só
tivesse revelado sua forma real quando sua natureza verdadeira foi exposta,
iguais aos vampiros de filmes de terror.
Ainda assim, aquele corpo não era coisa da minha imaginação. O corpo dela
era formoso, sem dúvidas. Talvez fosse esse o problema. Do pescoço para
baixo, era como uma versão mais encorpada de Elinalise, só que com asas.
Certo, vamos tentar desviar a atenção do assunto. Foi uma decisão muito difícil.
Se Elinalise não tivesse aparecido na hora certa, o que me aconteceria? A coisa
talvez me pegaria pela mão, atrairia para algum lugar e sugaria a minha fonte
de vida.
O ataque daquela Súcubo serviu para me alertar a respeito dos perigos que nos
aguardariam. Passei os últimos anos em uma boa e segura cidade
universitária, e isso podia ter entorpecido meus instintos. Eles não eram tão
afiados, mesmo antes, mas eu definitivamente fiquei um pouco mais relaxado
a respeito das coisas.
Agora estávamos no Continente Begaritt. Este lugar não era tão seguro quanto
o Continente Central. Precisava colocar minha cabeça para funcionar, ou então
faria que nós dois morrêssemos.
— Claro.
Nós dois estávamos usando casacos com capuzes. Expor qualquer pedaço de
pele poderia ser perigoso. Se Cliff estivesse junto, eu tinha a sensação de que
ele estaria reclamando por usar roupas demais, já que fazia calor.
Era a minha primeira vez caminhando no deserto. Parecia que, a cada passo,
meus pés afundavam no chão. Por sorte, me acostumei a andar pela neve dos
Territórios Nortenhos. Isso não era exatamente igual, mas minha habilidade de
manter os passos leves continuava útil. Senti que poderia suportar o dia todo
sem ficar muito desgastado.
De qualquer forma, esse calor era má notícia. Parecia que meu suor evaporava
antes mesmo de escorrer pelo rosto.
Lá nos Territórios Nortenhos, o principal problema era o frio. Lá, poderia gerar
um bolsão de calor ao meu redor com o uso de magia – uma aplicação prática
do feitiço Queima Local. Talvez houvesse uma variação que tornaria este lugar
mais tolerável.
— Ah, isso é bem legal — disse Elinalise. — Precisa de alguma coisa, Rudeus?
A primeira criatura que encontramos foi um escorpião gigante, ele tinha uns
dois metros de comprimento. Sua cauda era bifurcada e podia usar os dois
lados como chicotes independentes. Elinalise me disse que se chamavam
Escorpiões da Morte Dupla. Sua picada liberava um veneno muito perigoso, um
que só poderia ser curado por magia de Desintoxicação de nível Intermediário.
Aliás, fiquei feliz por ter me dedicado a aprender esse nível da magia.
A criatura tinha uma carapaça relativamente resistente, mas não era das mais
ágeis. Elinalise o prendeu no lugar e eu atirei um Canhão de Pedra em cerca de
dois segundos. A coisa era supostamente um monstro de rank B, mas não nos
representava ameaça. Trabalhamos bem em conjunto.
Se Elinalise estivesse sozinha, entretanto, poderia acabar passando por
algumas dificuldades. Eu não tinha certeza sobre os ataques dela serem
capazes de causar muito dano a um inimigo tão resistente.
— Uff. Essas coisas são bem grandes, não são? — disse Elinalise.
— Claro, talvez. Podíamos ter topado com monstros mais perigosos logo de
cara, não acha?
— Hmm. Então pode ser que os monstros desta área sejam mais fortes que o
normal.
— Acho que sim. Eles estão por toda parte, não? Parecem slimes.
— Foi mal, pode me ignorar. De qualquer forma, é uma pena que estes sejam
cactos, não árvores. Não podemos usar seus corpos como lenha.
— Sim, acho que são molhados demais. Isso poderia ser útil, mas já temos
nossa magia.
Elinalise era capaz de usar feitiços básicos de magia de água. Presumi que ela
matava todas as aulas, mas acho que conseguiu aprender o que precisava.
— Estamos sob ataque! — gritou Elinalise, saltando de volta para o meu lado.
Uma fração de segundo depois, algo gigantesco surgiu do chão, bem no lugar
onde ela estava antes. Era um verme. Um verme extremamente grande – com
talvez um metro de espessura e pelo menos cinco metros de comprimento. Ele
soltou um som estranho, parecido com um latido, e então voltou a mergulhar
na areia e desapareceu.
— Ouvi dizer que o Continente Demônio tem uns deles bem grandes — disse
Elinalise. — Você nunca viu um?
— A maioria dos monstros que encontrei lá eram cobras e lobos. Ah, isso e uma
coisa estranha que parecia uma armadura ambulante.
— Ah, esses são do tipo forte. Ninguém gosta de se deparar com um deles
quando está só.
Ainda assim, não representavam muito perigo, desde que pudesse desviar do
primeiro ataque.
Agitei o solo onde o Verme de Areia estava enterrado, cortando-o com lâminas
de areia endurecida. Ele morreu sem nem gritar. Uma pequena poça de fluidos
se formava ao redor da parte do corpo que ficou para o lado de fora da areia.
— Se eles têm lagartas tão grandes, imagino como devem ser as borboletas —
comentei.
— Talvez seja assim que apareçam as Súcubos. Eles são como borboletas
noturnas, não?
Hmm. Então ela não estava negando que era uma Súcubo. Fiquei curioso a
respeito de seus anos como uma lagarta. Ela andava pela biblioteca da escola
com um enorme par de óculos? Trabalhava na fazenda usando um macacão
sujo?
De qualquer forma, senti que Cliff ficaria bem animado se conseguisse uma
foto disso. O coração de um homem sempre bate mais forte quando ele vê um
lado inesperado da garota que ama.
Isso não significou muito para mim. Mas segui o exemplo de Elinalise,
lentamente rastejando pela duna. Isso envolvia ficar encarando a sua bunda
por um bom tempo. Um verdadeiro colírio para os olhos. Será que Sylphie
ficaria assim com o passar do tempo? A bunda dela já era linda, mas eu não me
importaria se ficasse maior.
Nos pressionando contra a encosta da colina, espiamos por cima da crista para
ver as Formigas Falange lá embaixo – criaturas vermelho-brilhantes,
marchando em formação ordenada. Cada formiga tinha cerca de trinta
centímetros a um metro de tamanho. Algumas eram maiores que isso, mas
outras eram visivelmente menores. Também tinham formas diferentes; vi
algumas com asas, e outras até mesmo tinham a parte inferior do corpo com
uma aparência estranhamente humana.
Apesar das variações entre elas, marchavam obstinadamente para o mesmo
destino. Era basicamente um rio de formigas militares enormes – e o rio se
estendia até onde os olhos podiam ver. Não consegui nem imaginar quantas
seriam.
— Formigas Falange estão entre os monstros mais perigosos que existem. São
conhecidas pelo apetite insaciável e pela capacidade de consumir qualquer
coisa que apareça pelo caminho. E essas são particularmente enormes. Devem
ser uma espécie única deste continente.
Parecia que as Formigas Falange eram versões mutantes de uma espécie mais
típica de formigas-correição. Ao contrário das outras formigas, não
estabeleciam colônias fixas, passavam suas vidas em constante movimento,
comendo tudo que aparecia pelo caminho. Existiam vários predadores naturais,
mas o grande número as tornava capazes de dominar qualquer inimigo
terrestre – até mesmo dragões perdidos. Em certos intervalos, paravam a
jornada e estabeleciam um ninho temporário, onde se reproduziam, assim
reabastecendo seus números com a próxima geração. Bem parecido com o
comportamento de formigas-correição normais.
Entretanto, visto que eram monstros, e não animais normais, eram mais
espertas e agressivas do que as espécies das quais se desenvolveram. Se
começássemos a casualmente caminhar ao longo da duna, elas nos cercariam
em um piscar de olhos – mesmo se não fôssemos agressivos.
E, pela aparência das coisas, havia milhares delas. De qualquer forma, o perigo
representado pelos monstros não era individualmente avaliado; era necessário
analisar a tendência de se moverem em grupos. Mesmo os monstros de rank C
ou D poderiam ameaçar os de rank A, só seria preciso juntar uma dúzia deles.
Em um grupo de milhares, definitivamente seriam de rank S.
Na minha vida anterior joguei alguns videogames onde lutava contra formigas
com três vezes o tamanho de um ser humano, mas não havia nenhuma
necessidade em serem tão grandes. Ainda mais considerando o quão rápidos e
poderosos os monstros eram.
Se eu usasse algum feitiço enorme para atingir todas de uma só vez, será que
teríamos chances? Não… Se eu tentasse lançar uma bomba nuclear daquele
tamanho, provavelmente também ficaríamos dentro do alcance.
— Uh, Rudeus? Por que você parece que está se preparando para lutar?
Isso estava tão evidente na minha cara? O que eu era, algum tipo de bárbaro
faminto por batalhas?
— Então tá… mas vamos só sentar e esperar até que o exército todo passe,
entendido?
Não era como se eu fosse ganhar EXP por criar um caminho através de meio
milhão de formigas assassinas. As partes de seus corpos podiam ter algum
valor como matéria-prima, mas eu não poderia me imaginar arrastando aquelas
carapaças pesadas debaixo deste calor brutal. E nosso objetivo era chegar a
Rapan o mais rápido possível, e não fazer renome como dois matadores de
formigas.
Ficamos em espera por cerca de uma hora, mas, no fim, o enorme exército de
formigas seguiu marchando e nos deixou para trás.
— Suponho que tenha razão. Então vamos continuar andando mais um pouco.
Mesmo ágil como era, Elinalise não poderia se mover direito enquanto se movia
com uma parede de morcegos ao seu redor. Teria que derrubar todos eles com
um pequeno tornado ou algo assim.
— Hm?
Bati minha grande e dura pedra direto na pequena sedutora. Fazendo uma
careta de agonia, ela segurou a barriga e pulou para trás, então se virou para
fugir. Inconscientemente diminuí a intensidade do feitiço para um nível não
letal. Eu tinha dificuldades para matar algo que parecia tão humano.
Estava na hora de encarar os fatos: não fui criado para ser um exterminador de
Súcubos. Eu não conseguia me obrigar a matar as coisas, e sempre que sentia
aquele cheiro bom… os feromônios ou o que quer que fossem… eu meio que
perdia a noção da realidade. Se alguma vez acabasse em um combate
individual com uma, eu poderia ser facilmente derrotado.
Que bom que eu não era mais um virgem. Se eu não tivesse aquelas doces
lembranças das minhas noites com Sylphie, eu não teria chances de ir contra
essas coisas.
Mesmo na minha vida anterior, eu tinha uma queda pelas Súcubos. Naquele
mundo, elas costumavam usar uma tonelada de maquiagem, mas, sem
problemas, ninguém precisava saber o que havia por baixo daquela máscara de
mentira. A pessoa só precisava se permitir a acreditar na ilusão.
Para resumir a história, não foi por minha culpa que fiquei com tesão e agarrei
Elinalise pela bunda depois de nos livrarmos dos Morcegos Gigantes. Fui uma
vítima das circunstâncias.
— Vamos lá! Por favor? Só a cabecinha? Não vou fazer mais do que isso! Por
que não me deixa usar a porta dos fundos? Isso não conta como traição,
certo?!
Cara, ela realmente me acertou com tudo… tratou essa coisa como se fosse um
porrete…
Minha mandíbula ficaria doendo por algum tempo, mas essas coisas
acontecem.
Não muito depois da nossa batalha com a Súcubo, um lagarto de duas pernas
que parecia um velociraptor apareceu sobre uma duna que estava próxima.
Logo atrás dele estavam outros, e estavam seguindo em nossa direção.
Não eram especialmente grandes, mas havia uma dúzia deles. Alguns foram
direto no rumo dos Morcegos Gigantes caídos e começaram a se alimentar
deles.
— Estou surpreso. Achei que você conhecia todas as criaturas que existem,
Elinalise.
Ela, pela primeira vez, não conseguiu identificar o nome do inimigo que
estávamos enfrentando. Isso provavelmente significava que era uma espécie
encontrada apenas no Continente Begaritt.
Quando nos avistaram, assobiaram alto e alguns pularam para atacar. Parecia
que estavam mais preocupados em proteger a refeição do que com qualquer
outra coisa. Não que realmente precisassem fazer isso, visto que matamos os
morcegos.
Eles eram rápidos e tinham garras afiadas, mas não eram particularmente
perigosos. Eliminamos sete deles em poucos segundos, reduzindo o número
para cerca de dez. Os sobreviventes, percebendo o perigo que corriam,
afastaram-se com cautela.
Parecia ser fácil cuidar de todos os sobreviventes com um único feitiço grande,
mas…
Pelo visto, essas coisas eram predadores naturais dos “velociraptors”. O grupo
atacou os lagartos na mesma hora, matando a maioria deles e fazendo com
que os sobreviventes fugissem em desespero. As galinhas consumiram suas
vítimas lá mesmo.
— Vamos sair logo daqui, Rudeus. Tem algo ainda maior chegando.
— Entendido.
Este dia nos ensinou que o deserto ficava bem diferente durante a noite. Assim
que o sol se pôs, os monstros continuaram aparecendo. Se tivéssemos parado
para lutar contra os Garudas, provavelmente teríamos nos encontrado com
uma nova ameaça não muito depois.
N-Nah, sem chances… se fosse o caso, não teria apenas me atacado. Teria
perguntado se eu o conhecia ou algo assim, certo?
Não, não. Se ele tivesse colocado algum guardião lá, Nanahoshi teria dito. E,
graças à maldição dele, a maioria das pessoas odiava Orsted por puro instinto.
Isso provavelmente também se aplicava a monstros humanoides.
— Fwaaah… Sou obrigada a dizer isso: o Continente Begaritt não é tão parecido
com o que eu imaginava. — O bocejo de Elinalise ecoou dentro de nosso
pequeno abrigo. Eu invejava a sua capacidade de relaxar. Ela talvez estivesse
menos despreocupada se fizesse alguma ideia de como Orsted era.
Ainda assim, eu estava pensando muito nas coisas. Não podíamos começar a
nos preocupar sobre cada monstro que encontrávamos ser amigo de alguém. A
coisa tentou me comer. Nós lutamos para nos proteger. Era simples assim.
Em termos de taxas de encontro, este lugar parecia ser ainda pior do que o
Continente Demônio. Com alguma sorte, não teríamos estragado tudo e ido
parar no Continente Divino ou coisa do tipo.
— Bem, por enquanto estamos nos saindo bem, e é isso que importa.
— Apenas certifique-se de que estará pronta para lidar com as coisas no caso
de outra Súcubo me pegar, certo?
Nosso primeiro dia no deserto finalmente acabou. Para ser sincero, tinha
parecido durar mais de uma semana.
Depois de usar magia de terra para abrir um túnel até fora do solo, descobri que
Elinalise havia sido atingida pelos ferrões venenosos do escorpião. Ela estava
de joelhos e seu rosto todo roxo. Elinalise ficou tão alarmada ao ver o Verme de
Areia me engolindo que acabou perdendo o foco. Rapidamente matei o
escorpião e usei magia de Desintoxicação para salvar a vida dela.
Sério, desta vez os problemas não foram culpa nossa. Só tivemos azar.
— Bom trabalho nos tirando dessa bagunça, Rudeus. Posso ver porque você
conquistou tanta reputação como aventureiro.
Elinalise não me culpou pela situação, mesmo ela tendo quase morrido, e o
mais descuidado tinha sido eu. A mulher era definitivamente madura.
— Não pareça tão infeliz, certo? — disse ela. — Não importa o quão alerta você
esteja, às vezes você não consegue fazer tudo o que precisa. Conseguimos
sobreviver, e é isso que importa.
Por sorte, foi nosso único encontro realmente perigoso ao longo daquele dia.
Em certo ponto, avistamos um monstro colossal lá longe. Ele caminhava sem
pressa, mas cada um de seus passos erguia uma nuvem de areia que ficava
visível mesmo de muito longe. A coisa devia ter centenas de metros de altura. E
era difícil de descrever. Acho que poderia dizer que era como uma baleia azul
com pernas de elefante.
— Não sei do que está falando. Apenas sou respeitoso com os mais velhos.
Quando me virei para olhar para trás, depois de caminhar por cerca de uma
hora e meia, descobri que a tempestade de areia continuava exatamente como
antes. Parecia plausível que fosse um tipo de barreira mágica – uma defesa de
aparência natural no meio do caminho que levava ao teletransportador de
Orsted. Nanahoshi não tinha mencionado isso, mas acho que a escutei dizendo
que ela não estava muito bem durante a viagem pelo deserto.
Também havia criaturas nesta parte do deserto, é claro, mas eram totalmente
diferentes daquelas na região das ruínas. Os escorpiões só tinham uma cauda
e não avistamos nenhum exército de formigas. Os Vermes de Areia agora
tinham a grossura no máximo do mesmo tamanho que a cintura de Elinalise.
Além disso, não parecia haver nenhum Morcego Gigante batendo asas à noite.
Vimos alguns lagartos aqui e ali, ao crepúsculo, mas eram menores, assim
como seus grupos. Não havia qualquer sinal de Garudas.
O quinto dia foi igual. Caminhamos pela mesma areia de sempre, olhando para
a mesma paisagem de sempre, vendo os mesmos traços característicos de
sempre.
A única coisa que eu poderia fazer era ser compreensivo. Se ela estragasse
tudo, eu precisaria dizer “Tudo bem!” enquanto sorria. Esta era uma zona de
não-negatividade.
No final, minha determinação não precisou ser testada. Eu também podia ver
um vago borrão brilhante no horizonte, na direção que Elinalise estava
apontando.
Definitivamente havia algo por lá. Meus olhos não eram aguçados o bastante
para eu dizer o que era, mas a cor sugeria que não era apenas parte do deserto.
Mas ainda existia a possibilidade de ser apenas uma miragem.
Enquanto ficava pensando nisso, a forma à nossa frente ficou maior e mais
clara. Era uma formação rochosa gigante, uma que me fez pensar no Uluru 1, e
tinha uns cinquenta metros de altura.
A parede à nossa frente parecia bem íngreme, talvez até vertical. Subir até o
topo deveria ser um bom desafio. E se estendia de um lado ao outro do
horizonte, seu fim fora de vista.
Com um simples feitiço de terra, criei um pilar de pedra; pegando Elinalise nos
braços, subi enquanto o pilar servia como um elevador improvisado. Não tinha
como saber o que poderia tentar nos emboscar lá no topo, então subi bem
devagar.
— Uhm, Elinalise?
— Pois não?
—…
Na pior das hipóteses, eu mesmo teria que dormir com ela. Mas não importa o
quanto eu tentasse me enganar, isso seria traição à minha esposa. E, mesmo
podendo culpar a maldição, continuaria sendo traição. Tínhamos decidido de
antemão que não dormiríamos juntos nesta viagem, e eu precisava cumprir
essa promessa.
Ela ainda estava agarrada a mim e parecia estar olhando para os meus ombros
com alguma paixão nos olhos.
— Pode me soltar…
Ela deu um passo para fora do pilar e se afastou de mim, mas seus olhos logo
caíram para a parte inferior do meu corpo. Eu estava definitivamente
começando a pressentir o perigo.
Segurá-la daquele jeito durante a subida podia ter sido um erro. Se eu tivesse
pensado por mais alguns minutos, poderia ter descoberto outra maneira de nos
levar ao destino. Mas, ainda assim, senti como se ela estivesse tentando evitar
contato físico comigo nos últimos dias. E agora eu tinha jogado água no
deserto. Precisávamos chegar a Bazaar o quanto antes.
— Claro.
— Rudeus! Abaixe-se!
Quando Elinalise gritou um aviso, me joguei para baixo e para frente, sequer
olhei para cima. Um instante depois, alguma coisa passou voando sobre mim e
um formigamento correu pela minha espinha.
Ainda assim, talvez fosse o caminho mais seguro. Se ela pudesse segurar os
dois por algum tempo, eu seria capaz de abater um de cada vez. Bem, isso
seria parecido com o nosso padrão de sempre…
Mas não tínhamos elaborado nenhum plano desse tipo. Ela me disse para
cuidar de um. Então, se eu não o matasse, ela poderia ser pega de surpresa.
Então tá.
O Grifo estava parado com o corpo inclinado para a frente, o bico meio aberto,
olhando para mim com ferocidade. Não estava longe e parecia ser uma criatura
ágil. Ele podia ser capaz de esquivar do meu Canhão de Pedra, ou até mesmo
ignorar o impacto do ataque. Eu precisava ter certeza absoluta de que mataria
a coisa.
Ele tinha asas. Eu não tinha certeza de quão longe a criatura poderia voar com
elas, mas um Atoleiro provavelmente não seria muito eficaz. Isso me deixava
com minha magia de vento.
— Kyeeaah!
O Grifo começou a bater as asas. Mas meu Olho da Previsão foi gentil o
suficiente para me mostrar qual era o plano dele.
Ela, por sorte, estava bem. A vi defendendo alguns golpes do Grifo com seu
escudo enquanto golpeava com seu florete. As patas dianteiras do monstro
estavam banhadas de sangue; ela obviamente tinha as definido como alvo,
tentando reduzir suas capacidades de ataque.
— …!
A pedra afiada acertou o pescoço do Grifo e rasgou seu corpo, cortando sua
coluna toda até sair. O monstro caiu no chão e começou a convulsionar.
Elinalise avançou e apunhalou a cabeça da criatura para acabar com o
sofrimento dela, então queimei seu corpo com magia de fogo.
Nós dois levamos alguns minutos para vasculhar a área, buscando quaisquer
reforços adicionais que podiam estar escondidos, e só então soltamos um
suspiro de alívio.
— Sim, vamos.
A noite caiu, mas nenhuma Súcubo apareceu para nos assediar. Provavelmente
evitavam a área dos Grifos. Pelo jeito das coisas, eles eram bem territoriais.
Depois de derrotar todos que encontramos, não havia muito risco de algum
outro grupo aparecer na mesma hora.
O último grupo que derrotamos era de um macho, uma fêmea e o filhote, então
selecionamos o menor para comer. Animais jovens tendem a ser mais
saborosos e macios. Me senti um pouco mal com isso, já que logo seria pai,
mas tínhamos que fazer tudo que estava ao alcance para poder sobreviver.
Afinal de contas, as pessoas são criaturas egoístas.
Depois que Eris me largou, passei vários anos vivendo a vida de aventureiro.
Naturalmente, passei boa parte desse tempo com grupos. Sempre parecia
haver um cara no grupo que fazia seus próprios temperos e os carregava por
aí. Por alguma razão, costumava ser o tipo de cara que empunhava uma adaga,
arrombava fechaduras e desarmava armadilhas. Eu frequentemente os notava
guardando nozes e folhas aleatórias para depois.
Mas coisas colhidas pelo caminho não eram úteis apenas para cozinhar. Às
vezes, acontecia de topar com um monstro que recuava após sentir os sabores
e cheiros fortes de certas plantas. Algumas plantas também eram bons
repelentes para insetos. Vi até mesmo um cara jogando um tipo de pó nos
olhos dos inimigos para cegá-los.
— Ah, sim. — Ela ficou corada e sibilou: — Você é uma moça, Elinalise! Tente agir
como tal!
A imitação que Elinalise fez de Zenith não batia muito com a mulher que eu me
lembrava. Mas acho que elas se conheceram bem antes de eu nascer.
— Promíscua? Que rude. Mas suponho que sim. Só que, naquela época,
dormíamos todos só com as roupas de baixo ou nus. No começo, Ghislaine não
sabia nem para que serve um sutiã! Você devia ter visto o tanto que o Paul
secava ela…
Era difícil imaginar Ghislaine sendo tão sem vergonha… mas ela talvez só não
soubesse o que estava fazendo. Isso se encaixava perfeitamente na sua
personalidade. Quanto a Paul, bem… o comportamento do cara podia até ser
imperdoável, mas acho que eu faria a mesma coisa. Mulheres do povo-fera
tendiam a ter uns peitos bem impressionantes.
— Sabe, pensando bem… Acho que Zenith tinha mais ou menos a sua idade
quando a conheci — disse Elinalise.
— Sim. Ela era uma garotinha inocente e sem noção. Paul a pegou na rua e a
arrastou para o nosso grupo, aquele canalha.
— É melhor você não saber, querido… — disse Elinalise, agora fazendo careta. —
Não acho que você queira ouvir muito sobre os romances de seu pai, não é?
— É, você tem razão. — Para falar a verdade, eu meio que queria, mas não
queria pressioná-la. Às vezes, é necessário que um homem suporte a sua
curiosidade.
A resposta dela ao menos me denunciou que tinha algo a ver com a vida
amorosa dele. Parecia que ele chegou a ter relacionamento físico com
Ghislaine, então não me surpreenderia se também tivesse dormido com
Elinalise. E aí Zenith engravidou e o grupo todo acabou… Eu poderia facilmente
imaginar como isso poderia resultar em algum drama horrível.
— Assim que chegarmos a Rapan, tenho certeza de que ele se curvará pedindo
desculpas — falei.
Elinalise continuava fazendo cara feia. O que quer que tivesse acontecido, devia
ter sido bem feio.
Paul era mesmo um canalha imprestável, mas era exatamente por isso que eu
precisava ajudá-lo. Caras como nós tínhamos que cuidar um do outro.
Se acontecesse o pior, eu talvez precisasse implorar pessoalmente para
Elinalise perdoá-lo.
O sétimo dia começou igual ao sexto, e fizemos certo progresso para o norte
enquanto lutávamos contra os Grifos. Esta plataforma rochosa era maior do
que eu esperava – talvez fosse até mesmo uma montanha. Embora o topo
fosse totalmente plano, não podíamos ver nada em nenhuma das direções,
tudo graças às pedras gigantes espalhadas de forma aleatória.
De vez em quando, porém, encontrávamos áreas mais abertas. Era nelas que
os Grifos começavam a atacar. Nós os derrotávamos e seguíamos em frente.
Isso virou uma rotina.
— Ah.
O solo abaixo de nós não era mais um deserto árido. Havia um punhado de
árvores e plantas por lá. Parecia um tipo de savana, mas sem muito mato.
De longe, podíamos ver um grande lago – com tetos brancos agrupados ao seu
redor.
Cap. 13 – Bazaar
Do nosso ponto de vista, a cidade parecia com uma rosquinha. O grande lago
redondo no meio dela era cercado por um anel de “glacê” branco – tendas e
prédios – com uma pequena área verde nos arredores. Pensando bem, fazia
algum tempo que eu não comia nada doce.
O solo nesta área não era apenas arenoso. Havia solo de verdade, embora a cor
marrom-avermelhada sugerisse que não era particularmente rico, e as planícies
estivessem pontilhadas com pedras de tamanho considerável e algumas
plantas desgrenhadas. Isso, na verdade, me fazia lembrar do Continente
Demônio. Pelo menos era mais fácil de seguir em frente. E a temperatura local
era muito menos extrema. Havia uma grande diferença de clima se comparado
com o deserto do outro lado da plataforma rochosa.
Elinalise estava olhando para algo à frente, mas eu não conseguia entender
para o que estava olhando.
— O que é?
— Vamos lá.
— Certo!
Elinalise já estava correndo para frente. Quando ela se aproximou, disparei uma
onda de choque contra um Grifo que estava atualmente no ar.
Meu feitiço acertou em cheio – o monstro estava focado nos inimigos à frente.
A explosão não foi suficiente para matá-lo de imediato, mas fez que caísse no
chão, espalhando penas em todas as direções. Elinalise saltou sobre a fera
caída e cravou sua espada no pescoço dela.
Disparei mais feitiços de vento, um atrás do outro. Meu segundo alvo caiu com
um único disparo, mas o terceiro conseguiu escapar do meu feitiço. Neste
momento as criaturas já estavam cientes dos meus ataques, mas também
tinham guerreiros armados diante deles, e Elinalise estava bloqueando o
caminho até mim. Eu estava livre para lançar quantos feitiços quisesse, sem
qualquer medo de retaliação. Era como atirar em peixes em um barril.
— Kyeeeaaah!
Depois de matar quatro dos monstros, o último deles tentou fugir. No fim,
disparei um Canhão de Pedra pelas costas dele. Deixar uma besta ferida
escapar em desespero não era boa ideia.
— A-Acabou?!
— Bem, parecia que vocês estavam com problemas — falei. — Não poderíamos
simplesmente abandonar vocês.
—…
Os outros dois membros de seu grupo eram lutadores usando uma armadura
vermelha e uma roupa grossa parecida com uma saia na cintura. Estavam mais
bem equipados do que os guerreiros comuns do Continente Central. As armas
em seus quadris eram espadas grandes e curvas, cujas lâminas grossas
tinham mais de um metro de comprimento. Eu, na verdade, já tinha visto muitas
cimitarras parecidas no Continente Demônio. Deviam ser bem eficazes contra
monstros maiores.
Ainda assim, armas e armaduras tão pesadas não eram adequadas para lutar
contra monstros tão ágeis quanto Grifos. Talvez fosse por essa razão que
estavam sofrendo na batalha.
— Ei, Chefe. Aquela garota é uma Súcubo? — O outro guerreiro era, na verdade,
uma guerreira de pele morena clara que estava olhando para Elinalise. Eu não
conseguia ver muito de seu corpo por baixo da armadura, mas ela parecia bem
musculosa. Imaginei que ela teria uns vinte e poucos anos.
— Dito isso, não tenho o hábito de espalhar odores ruins por onde passo.
— Não seja idiota! Que tipo de Súcubo viaja com um homem? Você ousa
insultá-los depois de salvarem nossas vidas!
— Aii! Mas, Chefe! Você disse que uma garota que aparece junto de
morcegos vai ser sempre uma Súcubo!
Precisei me esforçar um pouco para entender o que ela estava dizendo. Será
que era por seu sotaque ser muito forte? Eu conseguia entender as palavras,
mas não era fácil.
O homem, por outro lado, falava com mais clareza. Eu não sabia se ele era
mais fluente na Língua do Deus Lutador ou o quê, mas era muito mais fácil de
entender.
— O que foi agora? — perguntou ela. — Ele está tentando dar em cima de mim
ou algo assim?
— Ah, é isso? Bem, diga que não fiquei nem um pouco ofendida.
O homem estava agora abertamente olhando para Elinalise. Não era difícil
imaginar o que ele poderia estar pensando, algo como: “Essa é uma boa
mulher “. Ou talvez: “É uma pena que ela tenha tão pouco peito”. Elinalise não
parecia se importar com a cobiça. Ela parecia, inclusive, meio orgulhosa por ser
cobiçada. Acho que já estava acostumada a isso.
— Meu nome é Balibadom… Mais uma vez, agradeço pela ajuda, estranho.
— Ei! Qual é o problema de vocês dois? — gritou o homem bigodudo com quem
tínhamos conversado antes, interrompendo o guerreiro no meio da frase. —
Precisamos encontrar aquela carga agora!
— Opa, foi mal. Tenho que ir. Tenho certeza de que nosso empregador também
irá recompensá-lo depois.
Eu podia entender como ela se sentia, mas não tínhamos entrado nisso por
causa de alguma recompensa.
— Parece que também deixaram os feridos para trás… — Olhei para os
lutadores caídos, pronto para lançar um ou dois feitiços de cura. — Ah. Estão
mortos.
Um dos mortos era uma adolescente, talvez com dezoito anos. Havia um
buraco aberto em sua testa, bem onde o bico afiado de um Grifo a acertou. Ela
devia ter morrido na mesma hora.
— Será que deixar os mortos onde eles caem é uma tradição deste Continente?
Já que o grupo deles sumiu, queimei os corpos com a minha magia e também
a usei para enterrá-los. A maneira como os deixaram para trás parecia meio
maldosa.
Bem, tanto faz… Não era como se eu tivesse alguma esperança de receber uma
grande recompensa ou algo assim. Eu teria que me satisfazer por fazer uma
boa ação.
— Ei, vocês dois! Procurando comida? Posso encher as barrigas de vocês por
apenas três Cinsha!
Pelo visto, seu grupo estava vendendo as porções excedentes de uma enorme
refeição que tinham preparado. Decidimos aceitar a oferta. Afinal, não dava
para pensar com o estômago vazio.
Assim que nos acomodamos no carpete, o homem que nos chamou estendeu a
mão em expectativa.
Como eu temia, parecia que o dinheiro do Continente Central não seria aceito.
Realmente fazia sentido. Eu planejava trocar o dinheiro em algum lugar, mas
ainda não tínhamos conseguido a chance.
Esses eram os instintos de veterano mais uma vez em ação. Ela descobriu o
movimento certo a fazer quase que instantaneamente.
— Fico feliz por ter você por perto, Elinalise. Você realmente sabe das coisas.
Não tínhamos feito um pedido nem nada assim, mas nossa comida chegou da
mesma forma. O prato principal era uma sopa grossa de feijão branco com
alguns pedaços de algo misterioso, mas tínhamos carne cozida no vapor
servindo de acompanhamento. Havia também uma estranha fruta tropical com
um gosto ligeiramente azedo, que cobriram com algum tipo de molho doce.
Dentre todos os lugares, eu não esperava encontrar arroz logo ali. Não devia ter
nenhum arrozal com este clima, então deviam ser cultivados em solo seco. Eu
já tinha ouvido dizer que isso era possível, embora fosse um pouco mais difícil
de fazer. Foi com certeza uma surpresa agradável, e acabei tomando toda a
sopa bem rápido.
Com o passar dos anos, minha paixão por arroz só ficou mais forte. Colocar um
pouco disso na barriga me fazia sentir invencível, como se estivesse pronto
para enfrentar o mundo. Eu teria que consultar a possibilidade de cultivar arroz
nos Territórios Nortenhos. Se ensinasse o básico do plantio para Aisha, ela
talvez pudesse fazer um pequeno campo no nosso quintal…
— Oh? É a primeira vez que não te vejo reclamando da comida, Rudeus. Isso é
incomum.
Acabei pedindo até para repetir. Nunca reclamei da comida de Sylphie nem
nada assim, só para deixar claro… mas o arroz tinha, definitivamente, um lugar
especial no meu coração. Se eu tivesse alguns ovos e molho de soja para servir
de acompanhamento, estaria tudo perfeito.
Eu poderia sempre invadir um ninho de Garudas em busca de ovos, não?
Afinal, eram basicamente galinhas gigantes. Só restava o molho de soja. Este
continente talvez voltasse a me surpreender, comigo encontrando alguns à
venda no mercado.
Interessante. Pelo visto, os visitantes de Bazaar que não levavam suas próprias
barracas dormiam a céu aberto. Mas poderíamos sempre fazer um abrigo com
a minha magia.
Andamos por algum tempo, então encontramos um bom lugar aberto no meio
do caminho entre duas tendas grandes. Havia guardas do lado de fora deles,
então provavelmente não precisaríamos nos preocupar com ladrões.
Desta vez, fiz nosso abrigo um pouco grande. A criação demorou mais do que o
normal, mas teríamos mais espaço para passar a noite. Assim que o sol
nascesse, provavelmente ficaria quente bem rápido, então não usaríamos o
abrigo por mais tempo do que isso.
— Certo…
Essa viagem duraria no mínimo três meses. Dada a nossa incerteza a respeito
do que nos aguardava, quatro meses seria uma estimativa mais provável.
Mesmo na melhor das hipóteses, Elinalise precisaria dormir com alguém por
pelo menos uma vez ao longo desse período. Não tinha como contornar isso.
— Sim, volto uma hora dessas. Não precisa me esperar. Durma bem.
— Bem, tá bom… mas você não fala a língua local, fala?
— Isso não é problema. Esse tipo de coisa funciona do mesmo jeito em todos
os lugares.
Pela primeira vez em um bom tempo, tive uma noite inteira de sono, e meus
sonhos foram, a maioria, agradáveis. Lembrei de um que envolvia Aisha e Norn
exigindo que eu as carregasse nos meus ombros. Quando levantei Norn e a
coloquei neles, Aisha ficou de mau humor, e quando troquei elas de lugar, Norn
começou a chorar. Mas, eventualmente, Sylphie apareceu e agarrou seu prêmio
– meus ombros – para si mesma.
— Tenho garrafas de vidro de Vega! Não vou levar isso mais para o leste!
Alguém precisa de algumas?!
Claro, mesmo este vidro não poderia ser comparado ao que eu tinha me
acostumado no Japão, mas algumas de suas peças eram feitas à mão, com
muito cuidado. Fiquei tentado a comprar uma lembrancinha.
— É, eu sei.
Mas a moeda, em si, não era particularmente diferente das demais. Era só uma
peça pequena e redonda de ouro, possuindo um desenho mal estampado na
superfície. Na verdade, eu já tinha visto alguns desses antes, quando estava
passando por Porto Leste com Eris.
Perguntei sobre a estrada para lá, só para ter uma noção do que
enfrentaríamos.
— Então, a rota usual é passar pela região de Nkots e tomar o caminho mais
longo dando a volta pelo deserto, mas tem muitos bandidos nesse percurso,
então não é seguro. Os comerciantes mais espertos estão atualmente
atravessando o deserto Ucho. Pode seguir para o leste até chegar no marcador,
então ir para o norte, para o oásis. De lá, deve seguir uma estrada sinuosa para
o oeste por um tempo. Depois de ver as Montanhas Kara, mantenha-as à
esquerda e siga para o norte até chegar ao próximo oásis. A partir daí, o
deserto ao leste fica um pouco menos violento. É fácil seguir o caminho após
isso, então segue para o noroeste e volta à estrada normal.
Conseguir uma resposta tão detalhada era bom, mas essas coisas não me
significavam nada. Existiam muitas referências a lugares específicos que eu
não conhecia, a maioria dos quais pareciam montanhas genéricas ou marcas
no deserto. Entendi a mensagem básica de que existiam duas possíveis rotas,
mas se tentássemos seguir alguma delas, provavelmente nos perderíamos.
Não parecia que teríamos muita sorte nesta frente. Este continente ainda não
havia se deparado com seu Ino Tadataka. Obviamente, precisávamos encontrar
um guia confiável.
— Então tá bom. Sabe onde podemos encontrar alguém capaz de nos guiar até
Rapan?
— Espera, sério?
— Ah, entendo…
Pensando bem nisso, até que fazia sentido. Por que não presumi que isso
poderia se provar um problema?
Ainda assim, não adiantava de nada entrar em pânico. A vida é uma caixinha de
surpresas. Levamos apenas duas semanas para chegar onde estávamos, e
essa viagem normalmente levaria um ano inteiro. O progresso foi
impressionante, não importa como encarasse isso.
— Seguir em frente pela rota mais curta possível. Mas, para ser sincera, já faz
um tempo que cansei de viajar pelo deserto.
— Pois é, eu também.
— Hmm… Será que podemos acompanhar um comerciante que esteja indo para
Rapan?
— Senhor, você por acaso conhece algum comerciante que estará indo para
Rapan?
Não haveria caravanas procurando ativamente por guardas, pela mesma razão
pela qual não havia guias a serem encontrados. Mas Elinalise era uma
aventureira de rank S e eu um mago de Água de nível Santo. Se oferecêssemos
dinheiro e nossos serviços, poderíamos encontrar alguém disposto a nos levar
junto.
Infelizmente, o homem disse que não existiam muitas pessoas por ali que iam
para Rapan. A maioria dos mercadores viajantes estava a caminho de um lugar
chamado Kinkara, ao leste.
Entretanto, existia algum tráfego para o norte. Rapan era famosa por seus
labirintos, que produziam um constante fluxo de itens mágicos valiosos; se
estocasse esses produtos, poderia vendê-los a preços elevados em outras
cidades. Alguns comerciantes ganhavam a vida com isso. A maioria deles
levava pedras mágicas e cristais do sudoeste para Rapan, onde vendiam suas
posses e usavam o lucro para comprar itens mágicos.
— Mas não sei se tem alguém assim por aí agora — concluiu o homem. — Mas
em alguns meses, com certeza teremos um monte.
Isso não foi muito reconfortante. Eu estava começando a achar que seria
melhor pegar uma carona para aquela cidade ao leste. Estaríamos saindo do
nosso caminho, mas ao menos chegaríamos a um centro comercial onde
poderíamos encontrar um guia.
Mesmo assim, tentei perguntar pela cidade durante algum tempo. Quase todo
mundo estava indo para Kinkara e, depois de uma ou duas horas, quase me
conformei com isso.
— Ah, Rapan? Então você vai querer se encontrar com Galban. Acho que ele
armou uma barraca no lado oeste do rio. Vá procurar por ele.
Elinalise e eu saímos à procura deste Galban na mesma hora. Ele parecia fazer
fortuna viajando entre Rapan e uma cidade chamada Tenorio, levando pedras
mágicas para Rapan e, lá, comprando itens mágicos. As pessoas diziam que
ele viajava em uma caravana de seis camelos, o que significava que estava
fazendo um bom dinheiro.
Pelo visto, ela também lembrava de nós, embora parecesse surpresa em nos
ver. Parecia que o homenzinho bigodudo que tínhamos salvado era o tal
Galban. Ainda bem que decidimos ajudar.
Quando entramos em sua barraca, ele nos deu boas-vindas com um sorriso
caloroso.
— Sinto muito por ontem, amigos! Ficamos surpresos ao ver que vocês já
tinham partido quando voltamos!
Pelo visto, tinham saído correndo para encontrar seus camelos, que fugiram no
meio de todo o caos – junto com a carga valiosa que carregavam. Depois
voltaram ao local da batalha, só para descobrir que tínhamos enterrado os
corpos de seus camaradas e sumido. Galban afirmou ter passado muito tempo
tentando nos encontrar naquela noite.
Ainda assim, isso talvez fosse bom senso neste lugar. A carga vinha em
primeiro lugar e todo o resto poderia esperar.
— Deve ser pelo destino que você nos encontrou. Se importaria em se juntar à
minha caravana como guarda-costas?
Ele, pelo que parecia, estava em busca de contratar novos guardas. Isso fazia
sentido, já que tinha perdido alguns.
A julgar pela forma como ele elogiava nossa elegante vitória sobre os Grifos,
estava pensando nisso desde o começo. Eu parecia me lembrar dele se
escondendo durante a batalha, mas, que seja. Era exatamente disso que eu
precisava.
Também havia seis camelos, se fosse contar eles. Pensei em também inventar
um nome para cada um, mas decidi não fazer isso, já que poderíamos acabar
precisando comê-los no caso de ficar sem comida no deserto. Eu não queria
que minha primeira vez provando carne de camelo acabasse acompanhada por
um tempero de culpa.
Antes de sair, tínhamos feito uma reunião para definir nossa formação básica
de batalha. Como regra geral, manteríamos Galban no centro. Balibadom ficaria
à frente, acompanhado por Carmelita à esquerda e Tont à direita. Elinalise e eu
estaríamos posicionados na retaguarda.
Um pedágio, hein? Eu não tinha ouvido sobre isso, mas se pudéssemos pagar
por uma passagem no lugar de lutar, seria bem melhor. Os bandidos só
estavam tentando ganhar a vida. Contanto que entregássemos o que queriam,
não deveriam pedir mais.
Para ser sincero, a ideia de entregar dinheiro para um monte de gente que
estava ameaçando viajantes em vez de trabalhar em empregos honestos não
me atraía muito. Mas não era eu quem teria que pagar, então poderia viver com
isso.
Ainda assim, havia uma boa chance de encontrarmos alguns bandidos mais
gananciosos, interessados em mais do que bens e dinheiro. Poderiam, por
exemplo, exigir que entregássemos Elinalise, dado o quão atraente ela era. Isso
podia ser problemático. Não era como se fôssemos velhos amigos de Galban e
companhia. Salvamos suas vidas, mas isso não significava que arriscariam os
próprios pescoços por nós, em caso de necessidade. A hipótese de nos
apunhalarem pelas costas não era inexistente.
— Acha mesmo?
— Uh, o quê? Você quer ser levada para a base deles, acorrentada e
brutalmente…
— Nossa, que extremo. Contanto que você vá de boa vontade, alguns bandidos
ficam até gentis.
Elinalise não parecia nem um pouco preocupada. Ainda assim, aqueles dias
estavam no passado, e ela provavelmente estaria menos ansiosa para fazer
algo assim, já que agora tinha Cliff em sua vida.
Nosso grupo passou algum tempo marchando por campos áridos, rumo ao
leste.
Tivemos que lutar contra muitos monstros pelo caminho. Havia Búfalos
Begaritt, que atacavam em grupos, e Grandes Tarântulas, enormes aranhas que
corriam furtivamente. Também encontramos Águias Mestras do Vento,
monstros voadores que lançavam feitiços de vento a partir de uma posição
superior. Alguns de nossos amigos do deserto também apareceram:
principalmente Entes Cacto e aqueles lagartos assassinos, que pareciam ser
chamados de Gyroraptors. E também muitos, muitos outros.
Seu Olho Demoníaco era do mesmo tipo que o de Ghislaine – permitia que
visse o fluxo de mana do mundo ao seu redor. Isso era muito útil como meio de
detectar inimigos.
— Você está usando esses feitiços com bastante liberdade, garoto. Não vai
ficar sem mana?
Eu estava ficando tão preguiçoso com isso que Balibadom acabou falando
comigo, parecendo um pouco preocupado.
— Devo estar bem. Acho que posso continuar assim o dia todo.
Muitos magos faziam questão de não gastar mais da metade de seu estoque
de mana em um único dia. Isso também era o padrão nos Territórios
Nortenhos. Como a maioria dos magos não era fisicamente forte, seu
suprimento de mana era tudo que tinham para se defender. Mas eu, pelo que
sabia, nunca tinha esvaziado o meu reservatório.
Manter alguma mana sempre disponível para emergências era puro bom
senso. Para guerreiros do deserto que não sabiam muito sobre magia,
entretanto, provavelmente parecia que a maioria dos magos só era preguiçosa.
Balibadom parecia ter suficiente experiência em luta em grupo para entender a
verdadeira razão pela qual os magos se continham. Ainda assim, ele não
parecia ter muito conhecimento sobre magia no geral, visto que não comentou
a respeito de meus feitiços não verbais.
— Fico feliz por ter seu poder de fogo do nosso lado — disse ele —, mas tente
economizar um pouco de mana para situações inesperadas. Somos cinco
neste grupo, sabe? Segure os ataques de longo alcance até que eu os peça.
— Entendido.
Eu não estava tentando esconder o fato de que meu estoque de mana era
enorme, mas também não via razão para ir em frente e contar isso a ele. Para
começo de conversa, eu não tinha certeza de quais eram os meus limites. Não
queria ficar muito convencido e acabar criando um desastre.
À noite, nós cinco nos revezamos para manter a guarda enquanto Galban
descansava sozinho em sua tenda. Deveríamos todos dormir do lado de fora.
Não que eu estivesse esperando um tratamento igual ou coisa do tipo.
— Não precisa se sentir mal, Rudeus. Temos nossa própria forma de fazer as
coisas e seremos mais úteis se estivermos bem descansados.
Dois de nós ficaríamos de guarda ao mesmo tempo durante a noite. Achei que
um seria o bastante, mas, pelo visto, tendo um grupo desse tamanho, assim
seria mais seguro. Estaríamos mudando os turnos todas as noites.
Parecia que muitos dos guerreiros desta região preferiam armas enormes
assim. Balibadom também carregava uma lâmina enorme. Parecia haver
muitos monstros grandes com cascas grossas e resistentes na região; fazia
sentido usar armas que não fossem quebrar com facilidade. Não importa o
quão habilidoso fosse um espadachim, não iria querer tentar perfurar uma
placa de ferro com um florete fino e pequeno.
Pelo que eu tinha visto, o estilo de combate deste povo também parecia ser
único.
— Mas a espada da sua mulher é bem fina. Vocês não vão conseguir matar
nada com aquilo.
— Mas você dorme com ela, não? Quando uma Súcubo aparece?
— Oh?
Uma vez atingido pelos feromônios de uma Súcubo, os homens eram reduzidos
a escravos sexuais. Mas uma única Súcubo poderia levar uma vítima de cada
vez ao seu covil. Tendiam a escolher alguns alvos escolhidos, deixando os
demais para trás. Os homens assim deixados para trás lutavam entre si até a
morte. Uma vez que tivessem as mentes infestadas pelos feromônios, todos os
outros homens que vissem seriam, automaticamente, transformados em
inimigos. Para ser sincero, parecia bastante com o efeito de Charme.
Para curar alguém dessa condição, teria que dissipar isso com um feitiço de
Desintoxicação de nível Intermediário ou deixar que a pessoa dormisse com
uma mulher. E quatrocentos anos atrás, basicamente ninguém no continente
podia usar magia de Desintoxicação.
Como resultado, muitos jovens virgens acabaram perdendo a vida. Não havia
muito que pudesse ser feito – eles não tinham com quem dormir.
Provavelmente morreram desejando fazer sexo com alguém, até mesmo a
Súcubo que os condenou servia. Eu podia sentir empatia…
Carmelita não fugia à regra. Sempre que seu bando se encontrava com
Súcubos, ela as matava e dormia com os homens para quebrar o
encantamento. Claro, isso às vezes resultava em gravidez, mas, quando isso
acontecia, as guerreiras aceitavam e voltavam para casa com orgulho. O bebê
acabava sendo confiado ao povo de sua aldeia, e a guerreira voltava às suas
obrigações. Carmelita já dera à luz uma dessas crianças.
Esses bebês eram criados por toda a aldeia, e não pelos pais. Eram todos
cuidados e igualmente tratados, independente de sua raça ou linhagem.
Quando crianças, aprendiam a lutar e, quando chegavam à adolescência física,
passavam por uma cerimônia de maioridade e deixavam a aldeia para trás.
Quando um guerreiro ficava velho demais para lutar, ganhava o direito de voltar
para casa e se dedicar à criação das gerações futuras.
Entretanto, surgiram aqueles que optaram por nunca mais voltar, preferindo
passar a vida toda lutando. Balibadom era um deles.
Para ser sincero, achei isso um choque cultural e tanto. Li sobre tribos
organizadas de forma semelhante no meu antigo mundo, mas… era algo
definitivamente difícil de entender. Eu não conseguia convencer nem a mim
mesmo de que isso era excitante.
Olhei para Carmelita por um bom tempo, tentando entender as coisas do ponto
de vista dela.
— Sou grata a você — disse ela em seu jeito hesitante —, mas odeio magos. Se
uma Súcubo aparecer, vá até outra mulher.
Ser abatido assim, sem nem dizer nada, por algum motivo me machucou.
Mesmo eu podendo me virar sozinho com o problema de uma Súcubo.
Grandespada Tont era um homem quieto, na casa dos trinta, com um bigode
grosso, pele castanho-clara e músculos proeminentes. Ele não era tão alto
quanto Balibadom, mas seus rostos eram bem parecidos. Sem os pelos faciais,
eu poderia facilmente confundir os dois. Conversamos um pouco na nossa
primeira vigília noturna, mas ele não fazia o tipo tagarela. Contrastava muito
com Carmelita, que parecia gostar de conversar.
Eu não tinha nada em particular para discutir, mas o tempo parecia passar mais
devagar enquanto ficávamos olhando para a escuridão em silêncio. Algum
tempo depois, tentei conversar com ele.
— A propósito, gostei do seu nome — falei. — Grandespada Tont. Isso soa bem.
Pelo visto, seus títulos não eram apenas apelidos, mas nomes cerimoniais
fornecidos pelo ancião da aldeia em que ficavam até partir.
Para aqueles com grande força, como Carmelita, costumava ser algo como
Torce-Osso ou Torce-Braço. Aqueles com olhos afiados, como Balibadom,
costumavam ser chamados de Olho de Águia ou Falcão. Em outras palavras,
poderia dizer qual era o maior talento da pessoa só pelo nome. Mas uma vez
que existiam tantas formas de chamar alguém de “forte”, às vezes seria
possível se deparar com outro guerreiro compartilhando do mesmo nome.
Tont era conhecido como Grandespada, mas sua espada não era incomumente
grande para os padrões do seu povo. Era só uma forma de dizer que ele tinha
muita força física. Talvez também houvesse algum “Corte Rápido” por aí.
— Bem, Atoleiro é um feitiço meio chato, sério… mas vou tentar usá-lo alguma
hora, caso tenha a oportunidade.
Com um pequeno aceno de cabeça, Tont ficou em silêncio. Ele, pelo visto, havia
esgotado seu estoque de palavras disponíveis.
Conforme nosso grupo avançava mais para o leste, a terra ao nosso redor
ficava cada vez mais verde.
O tal de Kinkara ficava nesta direção, e uma enorme selva ficava logo além
disso. Achei meio estranho que pudesse existir uma selva tão perto de um
deserto árido, mas não teríamos a chance de vê-la desta vez. Quando
alcançamos uma grande rocha vertical que alguém havia deixado como ponto
de referência, Galban mudou nosso curso e começamos a seguir para o norte.
Após passar três dias viajando naquela direção, chegamos na estrada regional
principal. Não era pavimentada, e também não recebia reparos frequentes;
parecia mais o produto natural do movimento de inúmeros viajantes seguindo
na mesma direção. Em comparação com o terreno arenoso em que estávamos
viajando, entretanto, parecia bem firme e confiável sob os pés. Isso me servia
bem.
— Sir, agora que estamos na estrada, podemos encontrar bandidos. Acho que
vamos nos sair bem, mas se as coisas ficarem feias…
— De boa.
— Entendido.
Balibadom talvez tivesse sido avistado pelo inimigo durante sua expedição de
reconhecimento, e eles o seguiram até nossa localização. O homem talvez
tivesse visto apenas uma pequena parte das forças dos bandidos, e nosso
desvio simplesmente nos levou ao exército principal deles.
Tont, de repente, estava com uma flecha no meio do peito. Ele caiu no chão.
Ao fazer isso, outra flecha atingiu o camelo ao lado do qual Tont estava parado.
— Sir, temos que deixar os camelos! Eles podem nos deixar ir se entregarmos
tudo!
— Sem chances!
— Protejam minha carga, droga! Foi para isso que contratei vocês!
Devia haver cinquenta deles. Não, cem. E esses eram só os que podíamos ver.
—…
— Névoa Profunda!
Mas uma fração de segundos depois de esse pensamento passar pela minha
cabeça, uma flecha cravou no chão a alguns metros de mim.
— Gah!
Assustado, quase caí para trás, mas Elinalise me segurou antes que eu batesse
no chão.
— Isso aí, Rudeus! Eles têm um arqueiro brilhante, mas ele não vai acertar de
novo!
O quê? Ela estava falando da mesma pessoa que matou Tont e o camelo?
Como ela sabia disso?
— Vamos, corra!
Porra! Eu devia ter pedido um amuleto da sorte ou algo assim para a Sylphie!
Talvez pudesse ter pegado minha lembrança de nossa primeira noite juntos que
está no santuário…
Convoquei uma espessa parede de dois metros de altura atrás de nós, sem
nem diminuir meu ritmo. Um cavalo a galope não conseguiria passar por ela.
Neste nevoeiro, muitos deles provavelmente se chocariam contra ela. Mesmo
se percebessem que estava lá, teriam que diminuir a velocidade e dar a volta.
— Haah… haah…
Não havia mais flechas caindo ao nosso redor, mas eu continuava correndo
como se minha vida dependesse disso. A cada poucos segundos, eu fazia uma
pausa para invocar mais uma parede atrás de nós.
Enquanto fugia, pensei em Tont, que levou uma flechada no peito logo no início
da emboscada. Deixamos ele morrer?
Não. Ele já era, de qualquer forma, um caso perdido. A flecha que acertou seu
coração estava envenenada. Mesmo com a magia de Cura Avançada, o
ferimento provavelmente era mortal. E, mais especificamente, não podíamos
ter parado para ajudá-lo.
Não tenho certeza de por quanto tempo corremos, mas pareciam ser pelo
menos umas duas horas. Provavelmente mais. Por fim, Balibadom olhou para
trás e gritou: “Acho que os despistamos”, e todos paramos, cambaleantes.
— Haah… haah…
Mas os três guerreiros do grupo mal perderam o fôlego. Essa coisa de aura de
batalha era mesmo injusta.
Galban desabou no chão, seu rosto pálido feito um lençol. Mesmo para um
viajante experiente que passou anos na estrada, correr por duas horas seguidas
era exagero. Eu pelo menos não era o único.
Pobre Tont. Se eu tivesse sido capaz de arrancar aquela flecha na mesma hora
e usado algum tempo para lançar feitiços de Cura e Desintoxicação, havia uma
chance de que ele pudesse ter sobrevivido. A flecha talvez nem tivesse
acertado direto no coração. Eu provavelmente tentaria salvá-lo, caso Elinalise
não me segurasse pelo colarinho. Mas se eu tivesse parado para me
concentrar nele, não teria fugido a tempo. A próxima flecha teria me acertado
em cheio.
—…
Olhando pelo grupo, notei que Carmelita estava me encarando. Será que eu
tinha feito algo para aborrecê-la? Não consegui pensar em nada.
Durante a emboscada, ela estava posicionada atrás de mim, na retaguarda do
grupo. Talvez tivesse se ferido em algum lugar e precisasse de cura. Mas não
parecia que alguma flecha do inimigo tivesse a atingido.
Ela, de repente, marchou até mim e me agarrou pela frente do meu robe.
— Por quê?! Por que você não os matou?! Você poderia! Eu vi a sua magia!
— O qu…
O que ela estava dizendo? Ela esperava que eu matasse todo aquele grupo de
bandidos?
— Você também viu, não viu? Ele fez os cavalos afundarem no chão! Ele os fez
correr em direção de paredes! Ele deixou tudo nebuloso!
— Você não está pensando direito, merda! Use seu cérebro ao menos uma vez!
— Cala a boca! Se ele tivesse usado a magia dele, poderíamos ter vingado o
Tont!
— Eles eram muitos, criança! Aquele era o bando de Harimaf, tenho certeza.
Havia mais deles atrás daquelas colinas!
— Mas… ah!
Elinalise se colocou entre Carmelita e eu. Ela pressionou seu escudo contra a
mulher guerreira e tocou o florete em sua cintura.
— O quê…?
Ela tinha razão a respeito dos números deles. Vi pelo menos cinquenta
bandidos, mas devia ter mais de uma centena deles. E, conforme apontado por
Balibadom, poderia ter mais esperando para nos perseguir.
Eu poderia cuidar de uma força daquele tamanho sozinho? Difícil de dizer. Mas
eu poderia usar magia de nível Santo e provavelmente tinha mana suficiente
para usá-la várias vezes.
Elinalise estava ciente de tudo isso. Era por isso que estava me apoiando tão
firmemente.
—…
— Há alguma razão para você ainda estar olhando para mim? Você quer lutar…
é isso? Que criança obstinada. Se insiste, vou ser indulgente com você.
— Parem com isso, as duas. Olha, é uma pena o que aconteceu com Tont, mas
o Atoleiro fez a escolha certa. O único que queria lutar era você, Cabeção. Às
vezes você é realmente idiota, sabia?
— Cala a boca…
Soltando um enorme bufo, Carmelita recuou. Ela começou a caminhar até onde
os camelos estavam descansando, agachou-se ao lado deles e enterrou o rosto
nos joelhos.
Balibadom a observou por um momento, depois suspirou.
— Hein?!
— Então, bem… acho que você pode imaginar como ela se sente. Só está
colocando para fora.
Enquanto eu ficava ali, sem palavras, Elinalise embainhou seu florete e se virou
para me encarar.
— Não há nenhuma razão para você se sentir mal com isso, Rudeus.
— Não há…?
— Existem alguns aventureiros por aí que fazem questão de nunca matar outro
ser humano. Não são muitos, claro, mas eles existem. E você em breve vai ser
pai. Posso entender porque hesita em tirar tantas vidas.
Para ser sincero, eu não hesitei em momento algum. A ideia de matar aqueles
homens simplesmente não passou pela minha mente, apesar de estarmos
enfrentando um perigo mortal.
— Obrigado, Elinalise.
Ainda assim, agradeci a ela por tentar me animar. Pensando no assunto, ela
ficou ao meu lado durante toda a fuga; quando perdi o equilíbrio, ela estava lá
para me apoiar. Elinalise parecia também ter se posicionado para me proteger
de qualquer flecha perdida.
De qualquer forma, a solução era bem simples. Só teríamos que voltar juntos.
— Uhm, Elinalise…
— O que foi?
— Obrigado. Sério.
Seu povo estava acostumado a isso. A morte era uma companheira constante
para eles; um único erro ou um pouco de azar bastava para acabar com suas
vidas. Parando para pensar, essa também era uma atitude comum no
Continente Demônio. Era uma forma de pensar que eu não conseguia entender.
— Não deve ser necessário, Galban. Esses dois são mais úteis do que
guerreiros comuns. Acho que o mais inteligente é ir para Rapan com nosso
grupo atual e, depois, contratar mais gente por lá. De qualquer forma, não
devemos encontrar mais bandidos.
— Entendo. Tudo bem então, vamos fazer isso. Ainda assim, é uma pena que
tenhamos perdido aquele camelo…
— O que foi, Rudeus? Tem algo no meu rosto? — Percebendo meu olhar, Galban
se virou para me encarar.
— Não, não é nada. Eu estava pensando que você e Balibadom parecem se dar
bem.
Carmelita não procurou mais briga comigo, mas também não era mais
amigável do que o necessário. Não conversamos mais durante nossos turnos
noturnos.
Tentei não deixar isso me afetar. De qualquer forma, assim que chegássemos a
Rapan, estaríamos seguindo caminhos diferentes. Ainda assim, eu sentia certa
empatia pelo que ela estava passando. Não conseguia imaginar como seria
perder o pai de seu filho tão repentinamente.
Bem, eu sabia o quanto iria sofrer se visse Sylphie morrendo diante de meus
olhos. Quando soube que ela estava grávida, fiquei maravilhado de tanta
alegria. Se eu a perdesse do nada, o desespero seria ainda mais intenso.
Ele me disse isso quando me encontrei com Elinalise pela primeira vez, aos
quinze anos. Passei algum tempo em Ranoa, mas o atalho de Nanahoshi
indicava que eu não chegaria a Rapan muito mais tarde do que se tivesse
partido quando me encontrei com Elinalise. Tive de assumir que o perigo que
me aguardava em Rapan não havia mudado muito desde aquele tempo.
Mas assim que pensei melhor nisso, notei que os arrependimentos poderiam
ser agora diferentes. As coisas poderiam correr bem para mim, mas acabar mal
em casa. Algo poderia acontecer com Sylphie ou com o bebê.
Foi a primeira vez que fui diretamente contra o conselho do Deus-Homem. Até
então, eu tinha me saído bem seguindo a liderança dele. Isso significava que
essa escolha acabaria em um desastre, não importa o que eu tentasse?
Nah. Eu não acreditava nisso. Sabia que havia perigo à frente, então devia ser
possível evitá-lo. Ainda assim, havia um risco real de que alguém de quem eu
gostasse pudesse acabar como Tont. Se eu quisesse evitar isso, precisava
ficar em alerta. E se houvesse alguém por aí que quisesse prejudicar a minha
família, então…
Eu poderia dizer o que quisesse para mim mesmo, mas não tinha motivos para
acreditar que seria capaz de matar. Eu só teria que fazer tudo o que pudesse
para manter a minha família segura.
Ainda assim, o coração de Norn estava perturbado. Não houve qualquer notícia
de Rudeus, é claro. Não que ela esperasse alguma. O que ele estava fazendo no
momento? Foi a insistência dela que o levou para lá, para enfrentar perigos
para os quais ele não estava preparado?
Norn era só uma criança, e ela poderia não ser tão inteligente quanto a irmã,
mas até ela sabia que o sorriso corajoso de Sylphie era só uma máscara para
esconder seus verdadeiros sentimentos. Lá no fundo, Sylphie continuava
sofrendo.
Não importa o quão talentoso pudesse ser o mago Rudeus, ainda havia a
possibilidade de ele morrer em sua viagem ao Continente Begaritt. E foi Norn
quem o obrigou a isso.
Se ela não tivesse o incomodado… se não tivesse sido tão egoísta… Rudeus e
Sylphie ainda estariam juntos.
Olhando pela janela de seu dormitório, Norn soltou um enorme suspiro. Era
algo que ela já fazia regularmente.
Uma vez a cada dez dias, ela era obrigada a fazer uma aparição na casa da
família Greyrat. Já era o décimo dia.
Sua mente estava girando. Esse era um dos péssimos hábitos de Norn. Depois
que ela começava a se preocupar com algo, sofria muito para parar.
— Hm?
Lá no País Sagrado de Millis, edifícios assim eram algo bem comum. Cada
seção da cidade tinha um. Mas desde que deixou aquela terra para trás, ela viu
bem poucos deles.
— Aquilo é uma igreja Millis…? Eu não sabia que havia uma nesta cidade.
Não era construída exatamente como as igrejas de Millis, então lhe parecia um
pouco estranha. Mas sua cor branca e modelo comum ainda tornavam sua
função óbvia.
Norn era fiel da crença Millis. Lá no País Sagrado, quando estava sob os
cuidados da família de sua mãe, sempre a levavam à igreja. Ela aprendeu o
básico bem rápido – não era algo que escolheu fazer conscientemente sozinha,
mas não sentia como se sua família tivesse a forçado a isso. Aprender os
ensinamentos da igreja era algo importante em Millis. Todos esperavam que os
outros os conhecessem e seguissem.
Ainda assim, ela não era uma fiel fervorosa. Depois de deixar Millis para trás,
ela não sentiu a necessidade de vagar procurando por igrejas para oferecer
suas preces.
—…
O interior da igreja era, em contraste com a rua, bastante tranquilo. Claro, lhe
parecia que havia entrado em um espaço sagrado. O silêncio no ar, o estilo
imponente do edifício em si, o breve calor – lhe era tudo familiar.
O teto era um pouco mais baixo do que o das igrejas de que Norn se lembrava,
mas as filas de bancos ordenados continuavam iguais. Assim como o
santuário sagrado no fundo.
— Grande Santidade Millis, ouça minha prece… Por favor, traga meu irmão para
casa em segurança. E meu pai. E minha mãe. E a Lilia também…
Norn sentiu uma breve pontada de preocupação, pensando que podia estar
pedindo demais ao nomear cada um deles. A Santidade Millis nunca intercedia
em nome dos gananciosos. Manter os desejos modestos era importante.
Na verdade… no momento, essa era a única coisa que ela realmente queria.
Se até mesmo isso fosse pedir demais, ela não tinha certeza do que deveria
fazer.
—…
Norn sabia, é claro, que essas suas visitas serviam apenas para consolo. Rezar
a fazia sentir que estava fazendo algo, mas, na verdade, não estava. Não havia
nada que ela pudesse fazer.
As coisas foram sempre assim, e continuariam sendo assim. Ela era impotente
e sabia disso.
Ela se sentia patética. Patética e frustrada. Ela odiava ser inútil assim.
Assustada, Norn olhou para cima e vasculhou a igreja. Ela pensou que estava
sozinha. Havia um sacerdote que dirigia o lugar, mas ele costumava não estar
presente neste horário. Era por isso que ela costumava ficar com o lugar todo
só para si.
Mas desta vez, havia outra pessoa presente – um jovem que estava saindo de
um confessionário.
Ele parecia ter a mesma idade de seu irmão, Rudeus. Seu cabelo era bem
comprido na frente, o suficiente para que ela mal conseguisse ver seus olhos.
Algo na maneira como ele a encarou a fez pensar que se tratava de uma
pessoa obstinada.
— Q-Quem é você?
— O quê, você não me reconhece? Sou Cliff Grimoire. Sou um noviço desta
igreja. Só comecei este ano.
Para um simples noviço, este jovem parecia um pouco cheio de si. Mas aquele
tom arrogante ajudou a estimular a memória de Norn. Ela já havia o visto uma
vez. Ele era amigo de seu irmão, e também um aluno notório da Universidade
de Magia.
Assim que ela pensou nisso, lembrou de também vê-lo na igreja. Quando
faziam uma missa ali, ele costumava estar ajudando o sacerdote.
— Ah… certo, claro. Olá. — Enxugando as lágrimas, Norn baixou um pouco a
cabeça.
— Hein?
— Se você estiver infeliz sem um bom motivo, cuidarei disso para você. Tem a
minha palavra.
Norn estava sinceramente confusa com a repentina oferta. Este homem era
amigo de seu irmão, sim, mas era basicamente a primeira vez que os dois se
falavam.
— Uh, mas…
— Acho que você deve saber, mas a mulher com quem Rudeus está viajando é
minha esposa. Estou preocupado com ela, é claro, mas tenho fé nas
habilidades de Rudeus. Tenho confiança de que ele a manterá segura. Portanto,
da minha parte, tenho a obrigação de proteger a família dele, aqui em Sharia. Se
ele está arriscando a vida por Lise, farei o mesmo por você e sua irmã.
Agora fazia um pouco mais de sentido. Norn sabia que a mulher, Elinalise, já
havia feito parte do grupo de seu pai, mas não que ela era casada. Mas isso já
era esperado, considerando o quão bonita ela era.
— Do confessionário, notei que você entrava para orar todos os dias. Mas esta
é a primeira vez que você cai no choro, não é?
Norn não tinha como saber disso, mas Cliff tendia a usar essas horas calmas
da tarde para estudar um pouco dentro do confessionário, esperando por
qualquer raro visitante. Normalmente, ele ficava sozinho por lá, a menos que
tivesse alguma tarefa para cuidar, mas se revelou quando viu Norn chorando.
—…
— Vá em frente, pode confiar em mim. Vou cuidar de tudo — disse Cliff com
confiança, batendo a mão no peito. — É um problema estranho? Se quiser,
podemos usar a cabine de confissão.
Nesse caso… ele talvez pudesse entender como ela estava se sentindo.
— Bem, na verdade…
No início, ela explicou, seu irmão resolveu não ir para Begaritt. Mas ela então o
forçou a reconsiderar, e ele finalmente mudou de ideia.
Havia uma chance de que Rudeus, como resultado, morresse. Sylphie ficaria
com o coração partido, é claro. Ela amava Rudeus, muito, e eles estavam
prestes a ter um filho e começar a sua própria família. Se Sylphie o perdesse
nesse momento, seria um golpe esmagador. Norn sabia o quanto isso
machucaria.
E se isso acontecesse, seria tudo culpa dela. Se ela não tivesse insistido no
assunto, seu irmão não teria partido nesta jornada perigosa.
Quando soube que seu pai estava em problemas, Norn ficou desesperada para
ajudar. Ela queria que Rudeus fosse salvá-lo. Mas, na época, nem mesmo
pensou que ele poderia não voltar para casa.
Tudo o que poderia fazer agora era ir para a escola, assistir às aulas e oferecer
algumas preces à tarde. Mas suas preces eram apenas uma forma de se
consolar. Ela era impotente. Não havia nada que pudesse fazer.
Quanto mais pensava no assunto, mais triste ficava. Era por isso, concluiu
Norn, que ela começou a chorar.
Norn esperava que Cliff entendesse, então suas palavras pareceram um tipo de
traição.
Mas, apesar de seu olhar zangado, tudo que ele fez foi bufar de novo.
— Deixe-me terminar, por favor. Sou neto do Papa Millis. Eu estava envolvido
em uma luta pelo poder por lá, então meu avô me mandou para cá para
estudar. Em outras palavras, não posso simplesmente voltar para casa. Não
importa o quanto eu queira ajudar a minha família, não posso fazer nada por
ela. Em outras palavras, sou bem parecido com você.
—…
Ela não tinha uma resposta para essa pergunta. Era por isso que ela estava
chorando. Foi por isso que pediu conselhos a ele.
O tom de Cliff estava irritando Norn, mas ela queria ouvir o que ele tinha a dizer.
— Pois bem. Primeiro, pense no motivo pelo qual estou nesta cidade. Fui
enviado para cá por causa da luta pelo poder em minha casa. Por quê? Porque
sou fraco demais para me defender. Sou jovem, inexperiente e não tenho
autoridade real. Não teriam problemas para me sequestrar e me usar como
refém. Meu avô é um homem astuto e implacável, mas sou valioso para os
planos futuros dele. Se seus inimigos me sequestrassem, ele seria forçado a
ouvir suas demandas.
Norn poderia entender isso. Não era tão diferente do motivo pelo qual ela foi
levada para este lugar. Se fosse tão poderosa quanto Rudeus, poderia estar
viajando com ele, ou até mesmo percorrendo o Continente Begaritt por conta
própria.
— Não estou falando de força física. No meu caso, estou me concentrando nos
estudos, reunindo o máximo de informação que posso e aprendendo novas
magias. Ah, e fazer amigos também é importante… especialmente se tiverem
habilidades incomuns ou puderem ascender a posições de poder. Quando se
tem aliados fortes do seu lado, os inimigos têm mais dificuldades para
machucá-lo.
Esse último ponto foi algo que Cliff só descobriu recentemente, após se
apaixonar por Elinalise e fazer amizade com Rudeus. Mas não havia muita
gente por aí que pudesse tolerar sua atitude, então ele ainda não tinha
expandido muito o seu círculo social. Além de Rudeus e
Zanoba, talvez Nanahoshi, mas isso era tudo.
— Se eu for repentinamente chamado de volta para casa, para Millis, quero ter
novas habilidades, novas magias e conexões. Irei usar tudo para ajudar meu
avô e rapidamente garantir uma posição elevada na hierarquia da igreja para
mim.
Mas isso tudo ainda era só uma fantasia, claro. Mas Cliff acreditava piamente
nisso. Enquanto confiasse em suas habilidades e trabalhasse no
desenvolvimento delas, ele tinha certeza de que seria esse o seu futuro.
— Mas isso nunca vai acontecer — murmurou Norn, olhando para o chão.
Ninguém iria chamá-la para o Continente Begaritt, nem tão cedo. Mesmo se
fizessem isso, ela não seria útil. Se seu irmão e seu pai não conseguissem lidar
sozinhos com a situação, ela com certeza não seria de utilidade alguma.
— Ah, vai sim. Não amanhã, e nem depois. Mas um dia chegará o momento em
que nossas forças serão colocadas à prova. Talvez dentro de um ano. Ou de
cinco, ou até dez.
—…
— Escuta, Norn. Agora que fomos deixados para trás, não há muito que
possamos fazer. Se tentássemos ir ajudar, só atrapalharíamos.
— Eu sei disso…
— Bom. Esta é a razão pela qual precisamos fazer um uso eficaz desse tempo.
Precisamos nos concentrar nas poucas coisas que podemos fazer e ficar mais
fortes. Aliás, esse é um ensinamento da Igreja Millis.
Cliff enfiou a mão no robe e tirou uma pequena cópia das escrituras sagradas.
Ele começou a recitar uma passagem que tinha gravado na memória, sem nem
mesmo abrir o livro.
— Não. Millis confiava em seu amigo, e seu amigo confiava nele. Foi por isso
que mesmo Peter lutou até a morte para retardar o avanço dos demônios, em
vez de recuar com a derrota. E graças a esse sacrifício, seu sonho por vitória e
paz foi realizado.
— Então faça o que puder para alcançar esse objetivo. Estude bastante e
aprenda a sua magia. Será de grande alívio para seu irmão Rudeus e seu pai,
onde quer que estejam.
— O que devo fazer depois disso? Digo, depois de aprender o que posso?
Se Cliff estivesse falando com Rudeus, o mago iria revirar os olhos para isso.
Mas Norn não era como o seu irmão.
Ela foi comovida por essas palavras. Pela primeira vez, sentiu que as coisas
que aprendeu na igreja eram realmente significativas.
Seus professores em Millis sempre lhe disseram para finalizar todos os dias
com uma prece. Na época parecia algo um tanto arbitrário – por que
não começar o dia com uma oração?
Ela por fim entendeu. Afinal, havia uma razão para isso.
— Acho que entendo. Por enquanto, vou me concentrar em fazer o que puder.
— Fico feliz em ouvir isso. Se tiver algum problema ou precisar de ajuda com os
estudos, fique à vontade para me procurar. Normalmente estou aqui neste
horário, mas você também pode me encontrar em meu laboratório no campus.
— Certo.