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VOLUME 10: ADOLECENCIA - ARCO DOS RECÉM-CASADOS

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Capítulo 01: Apoio
Capítulo 02: Coisas Para Preparar Antes do Casamento (Parte
01)
Capítulo 03: Coisas Para Preparar Antes do Casamento (Parte
02)
Capítulo 04: Dramático
Capítulo 05: Preparações para a Recepção do Casamento
Capítulo 06: Sediando a Recepção do Casamento
Capítulo 07: Fim da Recepção do Casamento
Capítulo 08: Vida Com uma Casa
Capítulo 09: A Carta
Capítulo 10: Colapso
Capítulo 11: Três Cabeças são Melhores do que Uma
Capítulo 12: Nostalgia e Frustração
História Paralela: O Afiar das Presas
Capítulo Extra: O Babá Mestre
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI
- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 10
Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka
Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.
Retirado do site:
“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e
publicação de Light Novels, Web Novels e Mangás para o português
brasileiro.
Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e
acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a
situação dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo
conhecidos de longa data, buscamos criar um ambiente amistoso e
divertido onde, sem qualquer cobrança ou compromisso
estabelecido, divertimo-nos com a tradução e edição daquilo que
nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto, atestamos a
plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros,
focamos em obras que saem um pouco daquele clichê
extremamente batido, e às vezes não, cumprindo com nosso
objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de acumular livros que
queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e pretendemos oferecer
uma ampla gama de materiais para todos os públicos, desde que
adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.
Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada,
sempre mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência,
basta acessar Formas de Apoio.”
Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim
Tsundoku.
Capítulo 01: Apoio
Vou jurar minha fidelidade a Sylphie, pensei enquanto olhava para
a mancha vermelha deixada nos lençóis. Ela tinha me dado algo
precioso, e agora era a minha vez. Faria tudo o que ela desejasse
de mim. Prometi isso enquanto usava uma faca para cortar a
mancha deixada no tecido.
O problema era que Sylphie raramente expressava os seus
sentimentos. Eu poderia dizer que ela queria ficar comigo, mas era
provável que não dissesse isso de forma explícita. Talvez tivesse
algo a ver com ser guarda-costas da Princesa Ariel. Devia falar
sobre isso com a Princesa?
Preocupado com esses pensamentos, peguei o pedaço de pano
que havia retirado dos lençóis, coloquei em uma caixinha que criei
com magia da terra e coloquei dentro do meu altar. Então juntei
minhas mãos em oração.
Por fim, voltei a me sentir humano.
✦✦✦✦✦✦✦
O dia em que voltei a me tornar completo também foi o dia da
nossa sessão mensal de aulas. Dando passos altos, me separei de
Sylphie, que estava andando com as pernas ligeiramente tortas, e
dei uma espiada na sala de aula. Dentro estavam Zanoba, Julie,
Linia, Pursena e, por fim, Cliff. Nanahoshi, assim como de costume,
não estava em lugar nenhum.
— Bom dia, Mestre.
— Bom dia, Grão-Mestre.
Zanoba e Julie me cumprimentaram assim que me viram. E então
percebi o quão fofinha era a Julie. Ela já faria sete anos – ainda era
só uma criança, mas já era fofa, com seu cabelo laranja e de pontas
cacheadas. Afaguei a sua cabeça. Ela me olhou surpresa, mas
baixou o olhar na mesma hora e estremeceu.
Parecia ainda ter medo de mim. Não era como se eu fosse
devorá-la ou coisa do tipo…
— Bom dia, Zanoba. Julie.
Assim que os cumprimentei, Zanoba inclinou a cabeça com um
audível “Hm?” Ele então perguntou:
— Mestre, aconteceu algo bom?
— O quê?
Então ele percebeu. Zanoba sempre demonstrou a sua
preocupação por mim, então queria compartilhar as boas novas o
quanto antes. Entretanto, embora fosse bom anunciar que minha
impotência estava curada, eu estaria ferrado caso alguém me
perguntasse como foi que isso aconteceu. Afinal, não poderia
revelar a verdadeira identidade de Sylphie.
Me sentei enquanto refletia a respeito do assunto.
— Yo, Chefe. Bom dia, mew.
— Dia. Nom, nom…
Linia e Pursena sentaram-se como de costume, Linia colocando
sua perna jovem e tonificada sobre a mesa, e Pursena com seu
uniforme tão apertado contra as suas curvas que ameaçava
estourar enquanto ela mastigava um pedaço de carne seca. Pensei
em quando toquei a generosidade de seus peitos, tirei suas roupas
de baixo encharcadas e espiei a terra prometida que ficava por
baixo delas. As duas, de repente, pareciam mais bonitas.
— Mew?!
— Porra!
Elas cobriram seus narizes assim que me aproximei. Hein? Isso
foi meio que um choque. Era provavelmente por causa daquele
cheiro que estavam sempre falando – o cheiro da excitação. Eu
estava, depois de longos anos, finalmente de volta aos negócios,
então o cheiro devia ser mais intenso do que o normal.
— O que deveríamos fazer? — perguntou Pursena. — Parece que
o Chefe não consegue mais se controlar.
— Ele não disse que não servia para mais nada, mew?
— Deve ser o meu charme irresistível. Sou uma garota que
desperta os pecados.
— E-então você é a presa dele, Pursena, mew! Pode deixar a
nossa aldeia comigo, mew.
— Não, não. Ele talvez esteja atrás de você, Linia.
— M-mas se você se tornar a mulher do Chefe, pode assumir o
controle do mundo inteiro, sabe, mew? Você pode conseguir um
buffet de carne diário, mew.
— A-acho que então não tenho escolha… Terei que fazer isso
para te proteger. — Pursena se preparou após essa bizarra troca de
palavras e se aproximou de mim. Ela piscou de forma adorável e
apertou os seios, deixando-os mais proeminentes. — Hee hee… Eu
quero que você me ame… ai!
Dei um golpe de mão na sua cabeça. O que diabos foi aquele
“hee hee”? Ela estava tentando me fazer de idiota?
— Apenas sente-se. Não vou tocar em nenhuma de vocês duas.
Pursena ergueu as mãos de forma protetora sobre a cabeça e,
com o rabo metido entre as pernas, sentou-se ao meu lado. Era raro
que ela ficasse perto de mim. Linia, por outro lado, rastejou até um
assento que ficasse fora do meu alcance. Ela estava sendo
surpreendentemente cautelosa. Esse era o completo oposto do seu
comportamento usual.
— Rudeus, qual é o problema? Você parece diferente do normal.
— Cliff inclinou a cabeça.
Parecia ser verdade o que diziam sobre como o sexo mudava os
homens. Embora não tivesse sido a minha primeira vez.
— Diferente de que maneira? — perguntei.
— Parece quase como… se você estivesse transbordando
confiança? É assim que está parecendo, não?
Olhei para Zanoba, que acenou em concordância com a cabeça.
Confiança, hein? Pensando bem, o Deus Homem disse algo sobre
recuperar a minha confiança como homem. Então era disso que ele
estava falando? Mas realmente não acho que estou me sentindo
mais confiante do que o normal.
— Bem, todos vocês, obrigado por tudo o que fizeram por mim.
Não posso entrar em detalhes, mas a minha doença finalmente foi
curada.
Minha declaração atraiu alguns “oohs” da multidão. Zanoba
balançou a cabeça com um olhar de satisfação, e Cliff me deu um
tapinha no ombro. Linia e Pursena trocaram olhares, enquanto Julie
apenas inclinou a cabeça, confusa.
— Bem, de qualquer forma, parabéns.
— De fato. Parabéns, Mestre.
— Parabéns.
— Parabéns, mew.
Estavam formando um círculo ao meu redor e, por algum motivo,
aplaudindo. É verdade que se tratava de uma ocasião especial, mas
ainda assim foi meio contrangedor. Era quase como o último
episódio de um certo anime. A ordem em que me parabenizavam
talvez fosse a ordem em que iriam morrer.
— Mas se o Chefe está curado, isso significa problemas, mew.
Agora, a castidade de todas as alunas está em perigo, mew.
— Não se aproxime muito dele, a menos que queira ficar grávida.
— Linia e Pursena estavam fazendo afirmações obscenas.
— Que falta de educação. Eu sou um cavalheiro. — E eu não
colocaria as mãos em ninguém além de Sylphie, valeu.
✦✦✦✦✦✦✦
Assim que a aula acabou, fui até a sala dos professores para me
inscrever em algumas aulas suplementares. Queria compensar o
tempo que tirei para a viagem que fizemos no outro dia. Quando
entrei, o ar parecia frio.
O Vice-Diretor Jenius me parou.
— Senhor Rudeus, aconteceu alguma coisa?
Acho que realmente parecia haver algo de diferente em mim. E,
para ser sincero, foi um pouco constrangedor.
— Um problema que me preocupava há três anos foi finalmente
resolvido. Agora me sinto aliviado, isso é tudo.
— Ah, sério? Fico feliz em saber. — Ele acenou com a cabeça e
me revelou um sorriso tenso. — Nesse caso, está pensando em
deixar a universidade?
— Hein? — Levantei a minha cabeça.
Pensando nisso, ele tinha razão. Me matriculei com o objetivo
principal de curar a minha impotência. Agora que isso estava feito, ir
a Begaritt e me reunir com a minha família parecia uma boa ideia.
Mas…
Aconteceu muita coisa no ano anterior. Eu tinha me reunido com
Zanoba e adotado a Julie. Me tornei amigo de Linia e Pursena, e
criei um vínculo até com Cliff. Então havia Nanahoshi, a garota do
meu mundo anterior que foi transportada para este. Eu tinha a
sensação de que o nosso encontro não era só coincidência. O
verdadeiro objetivo do Deus Homem podia até ter sido me enviar ao
lugar só para que pudesse me encontrar com ela, com Sylphie
sendo só a cereja no topo do bolo.
Claro, Sylphie era o que mais me importava. Enquanto ela
estivesse presente, eu também estaria. Um guarda-costas da
Princesa estava fadado a enfrentar o perigo e, embora eu não
tivesse muito a oferecer, queria protegê-la com tudo o que eu tinha.
A Princesa Ariel estava atualmente no quinto ano. Ela devia ficar
até a formatura, mas eu me perguntava o que havia planejado fazer
após isso. Se pretendesse retornar ao Reino Asura, seria certo eu
fazer companhia? Agora que a minha condição estava curada, senti
que deveria entrar em contato com Paul antes de sair correndo por
aí. Desde que me matriculei na Universidade estive periodicamente
enviando cartas para ele. Eu não tinha como saber se alguma tinha
chegado ao destino, mas se ao menos uma delas tivesse, e ele
respondesse, eu perderia a sua resposta, caso abandonasse a
universidade.
Então, no momento, continuaria esperando. Ficaria nesta cidade
no mínimo até receber uma resposta de Paul.
— Não — falei a Jenius. — Não tenho certeza se vou ficar até me
formar, mas por enquanto vou continuar estudando.
— Ah, sério? Fico feliz em saber — disse ele com um sorriso
tenso. Eu não poderia dizer se o sorriso era de felicidade ou não.
✦✦✦✦✦✦✦
Embora a minha impotência estivesse curada, Nanahoshi nem
deu bola para isso. Nós não conversávamos muito, então ela talvez
só não prestasse muita atenção em mim.
Mesmo quando conversávamos, eu costumava sentir uma
distância geracional entre nós. Certa vez, mencionei o assunto de
uma certa garota do ensino médio que punia pessoas em nome da
lua. Eu estava convencido de que Nanahoshi reconheceria a
referência, mas ela só inclinou a cabeça, como se dissesse: Do que
diabos você está falando? As crianças, pelo visto, não conheciam
mais a Sailor Moon. E Nanahoshi era aparentemente uma ávida
leitora de mangás e light novels. Perguntei se ela conhecia a série
em que os personagens ficavam juntando sete esferas do dragão, e
ela disse que já tinha ouvido falar disso.
Ela tinha, no nosso mundo anterior, dezessete anos, e eu trinta e
quatro. Isso fazia eu ter o dobro da idade dela. Ela também chegou
a este mundo dez anos depois de mim, então as nossas idades
acumuladas estavam, agora, ainda mais distantes.
Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito disso. Realmente
havia uma distância geracional. Quanto a não conhecer a Sailor
Moon, isso poderia ser algo já determinado, considerando as datas
de exibição do programa televisivo. Ainda assim, isso me
surpreendeu. Talvez fosse a falta de assuntos em comum que levou
a pergunta seguinte a escapar da minha boca.
— Senhorita Nanahoshi, o que você gostaria em uma pessoa se
fosse se encontrar com ela?
A mão dela escorregou feio. Ela amassou o papel que estava
rabiscando e o sacudiu.
— O que é isso tão de repente? Falando sobre amor?
— Algo assim.
— Caso eu não tenha deixado isso claro, quero voltar para casa o
quanto antes. Poderia levar isso a sério? Você fica sempre
tagarelando. Se calasse a boca e movesse as suas mãos no lugar
dela, faríamos mais avanço.
Apesar do que disse, Nanahoshi não odiava tanto essas
besteiras. Ela, na verdade, estava perfeitamente aberta a uma
conversinha aqui e outra ali enquanto trabalhávamos, desde que ela
fosse mantida em um nível razoável. O fato de ter respondido assim
só poderia significar uma coisa.
— Isso significa que você é uma daquelas pessoas? Uma sem
experiências românticas?
— Tch! — Ela fez um clique com a língua. — Até eu já me
apaixonei. Embora tenhamos brigado e terminado.
Pensando bem, ela não estava no meio de uma briga de amantes
quando foi invocada? Eu não tinha certeza se a garota amava
apenas um de seus pretendentes, ou se estava estrelando o seu
próprio harém reverso, mas, independentemente de pretender se
desculpar ou continuar com a briga, ela ainda tinha que ir para casa.
Na verdade, assim que pensei nisso, notei que havia uma grande
possibilidade de que aqueles outros dois também tivessem sido
transportados para este mundo. Mas eu não tinha ouvido rumores
sobre pessoas assim, fora Nanahoshi, então era igualmente
possível que nada houvesse acontecido. Então, mais uma vez, a
probabilidade de sobrevivência após parar sozinho neste mundo,
sem qualquer mana, seria… Não, eu não deveria dizer isso.
Nanahoshi talvez já tivesse feito esses cálculos, com base na sorte
que teve em chegar tão longe assim… e também devia saber o que
aconteceria a alguém que não tivesse tanta sorte.
Seus lábios endureceram e formaram uma carranca enquanto ela
murmurava:
— Se a pessoa de quem você gosta ficar ao seu lado, já é o
suficiente.
Ela parecia estar passando por um momento difícil. Eu não
deveria ter perguntado.
✦✦✦✦✦✦✦
Já era hora do almoço, mas não fui ao refeitório. Eu tinha
negócios em um outro lugar – na sala do conselho estudantil, para
ser específico. Se fosse ter um relacionamento real com Sylphie,
precisava deixar Luke e a Princesa saberem sobre isso. Eles se
esforçaram para juntar nós dois, então, de certa forma, já
aprovavam o nosso relacionamento. Ainda assim, eu queria deixar
as minhas intenções bem claras.
Fui até o último andar do prédio principal, onde havia uma porta
um tanto extravagante e entalhada com as palavras Sala do
Conselho Estudantil. Eu bati.
— Quem é? — Era a voz de Luke.
— Rudeus Greyrat. Há um certo assunto que eu gostaria de
discutir.
Após um breve momento de silêncio, pude ouvir o clamor
desorientado de passos. Bem, no final das contas, eu não tinha
marcado um horário. O problema talvez fosse esse.
— E-entre!
Ao comando de um Luke meio confuso, abri a porta e entrei.
A Princesa Ariel estava sentada em uma cadeira que parecia
cara, seu lindo cabelo loiro estava trançado para trás. Embora ela
fosse obviamente linda, seu corpo era normal para a sua idade. Ela
tinha a mesma quantidade de músculos que qualquer outra garota,
com seios que não eram grandes nem pequenos. Sylphie, com seus
óculos escuros, estava em posição de sentido ao lado da Princesa.
Sempre que estava trabalhando ela parecia muito digna. E também
elegante, quase como uma oficial militar. Aquela chorona tímida não
estava em lugar nenhum, nem a doce e ligeiramente infantil garota
com a qual eu era acostumado. Ela parecia quase fria, ou talvez
legal.
Isso fazia sentido. Se essa era a imagem que queriam que “Fitz”
projetasse, então seria melhor que Sylphie ficasse em silêncio.
— É um prazer conhecê-la. Meu nome é Rudeus Greyrat. — Fiz
uma reverência de nobres, ajoelhei-me diante dela e abaixei a
cabeça. Eu não tinha aprendido a etiqueta adequada para saudar a
realeza, mas essa provavelmente servia.
— Este não é o palácio real. Aqui, somos ambos apenas
estudantes. Por favor, levante a cabeça.
Levantei a minha cabeça ao seu pedido. Entretanto, eu não queria
correr o risco de envergonhar Sylphie, então permaneci ajoelhado.
Permanecer humilde perante a chefe da minha parceira parecia ser
sensato.
— Então, o que traz alguém com tanto renome por toda a escola
como você, Mestre Rudeus, à minha presença no dia de hoje?
Eu podia sentir o meu cérebro formigando enquanto ouvia a sua
voz. Ela era agradável. Era isso que as pessoas chamavam de
carisma, não era? Ou ela talvez fosse outra Criança Abençoada. Eu
poderia facilmente acreditar que existia uma Criança Abençoada
cuja voz era como mágica, capaz de hipnotizar o ouvinte.
— Tenho certeza de que a Sylphie… Digo, a Sylphiette, já
mencionou. Vim aqui na esperança de discutir mais sobre o assunto
com você.
A expressão da Princesa Ariel estava séria. Embora ela tivesse se
isolado na universidade, parecia ainda não ter desistido do trono.
Devia ser ao menos por isso que estava tomando tantas medidas
para estabelecer conexões com pessoas poderosas enquanto
passava o seu tempo no local.
— Sylphie curou a minha doença — continuei. — Ouvi dizer que
você a ajudou, Vossa Alteza. Portanto, se precisar da minha ajuda,
por favor, não hesite em pedir.
Ariel lentamente digeriu essas palavras. Então olhou para Luke,
que acenou com a cabeça, antes de dizer:
— Você não estava evitando as lutas pelo poder dos nobres
Asuranos?
— É verdade que não tenho vontade alguma de ser pego no meio
de disputas políticas. Mas, se alguém de quem gosto está envolvido
nisso, as coisas mudam. — Depois de dizer isso, olhei para Sylphie.
Suas bochechas coraram. — Não posso ficar parado enquanto ela
pode estar em perigo.
— Aha. — Ariel parecia surpresa. Luke também. Eu falei algo
estranho?
Luke falou:
— Você não nutre nenhuma predisposição pelos Notos, a família
da qual o seu pai fugiu? Ou pelos Boreas, que mandavam em você?
— Acho lamentável que Lorde Sauros tenha sido executado, mas,
fora isso, nada.
Algo nesta conversa não parecia certo. Ah, espera! Eles
presumiram que eu odiava a família Boreas? Mas não era esse o
caso. Eles me trataram muito bem e eu tinha uma enorme dívida de
gratidão. Bem, Eris havia me abandonado, mas esse era outro
problema.
— Mas… Mestre Luke parece não gostar de mim — acrescentei.
Luke franziu as sobrancelhas.
— Isso é porque você é um idiota cabeça-dura que não percebe
como as garotas se sentem.
— Não vou discutir isso. — Afinal, passou um ano inteiro e nem
percebi que Sylphie era uma garota. Eu não tinha nada a dizer em
defesa da minha cabeça-dura.
— E você é um pedaço de lixo que brinca com os sentimentos das
garotas, Luke — ouvi Sylphie murmurar em um sussurro abafado.
Isso foi uma surpresa, e também inesperadamente duro da parte
dela. Ou era só que ela agia de forma tímida perto de mim? Luke e
Sylphie foram camaradas pelos últimos seis anos, o que significava
que ele tinha passado mais tempo com ela do que eu. Podia ser por
isso que ela se sentia confortável o suficiente para não pesar as
suas palavras perto dele.
Para ser sincero, isso me deixou com um pouco de ciúme. Me
perguntei se em algum momento ela teria esse nível de conforto
comigo.
— O quê, mesmo que você não tenha nenhum apelo sexual, você
vai ficar do lado das garotas? — demandou Luke.
— Eu também tenho apelo sexual. Afinal, o Rudy até me
agradeceu. Certo, Rudy? — declarou ela, olhando para mim em
busca de ajuda.
Eu não me importava de pular essa parte cômica para o final e
dizer “E isso é tudo, pessoal!”, mas achei que seria um pouco
estranho fazer isso na frente da Princesa Ariel. Olhei para ela, de
repente percebendo que havia migalhas de pão em volta de seus
lábios. Ela devia estar comendo quando cheguei.
— Por favor, vocês dois, fiquem quietos — disse a Princesa.
Sylphie e Luke ficaram em silêncio. Tive a sensação de que esse
tipo de conversa era comum entre os dois.
— Rudeus Greyrat. Me confortaria muito saber que podemos
contar com a sua ajuda.
— Fico feliz em ouvir isso — falei.
— Então. — Princesa Ariel olhou para Sylphie. Então sua
expressão turvou-se, como se ela achasse difícil fazer a próxima
pergunta. — O que você planeja fazer?
— “Fazer”? O que quer dizer com isso?
— Peço desculpas pela franqueza, mas ouvi sobre o seu objetivo
para vir a esta escola. Fiquei surpresa ao saber que você estava
aqui em busca de um tratamento médico, mas agora você já
alcançou o seu objetivo, não é?
— Alcancei…
Em outras palavras, minha impotência foi curada. Não tenho
quaisquer dúvidas a esse respeito. Alcancei o meu objetivo. O que
significava que a minha próxima tarefa deveria ser me reunir com
Paul. Era a isso que ela se referia, correto?
— Ainda preciso procurar meus parentes desaparecidos —
acrescentei. — Portanto, se suas intenções são de partir para o
Reino Asura de imediato e reivindicar poder político por lá, não
posso ajudar.
— Sim, estou ciente disso. Não me importo se você adiar a ajuda
até depois que os seus problemas familiares forem resolvidos.
Eu estava grato por isso, embora significava que no futuro eu
deveria a ela. Com um pouco de sorte, quando ela se formasse, eu
ao menos teria acertado as coisas com Paul, então restaria apenas
encontrar Zenith, que Elinalise me garantiu que não estava em
perigo.
— Então, o que planeja fazer?
— Perdão? — Inclinei um pouco a cabeça, sem saber do que ela
estava falando. Eu tinha acabado de dizer a ela o que ia fazer, não
tinha? Será que de alguma forma voltamos no tempo? Isso era
algum tipo de comédia? — Como assim?
— Não me diga que agora que a sua impotência foi curada, vai
apenas se despedir da Sylphie e partir ao encontro do seu pai?
— Claro que eu não faria algo assim! Eu vou ficar com ela! —
Sem querer acabei levantando a minha voz diante a essa sugestão
impensável. Não havia maldita forma alguma de eu me separar da
Sylphie. De forma alguma; não eu!
Mas eu entendia porque Ariel estava perguntando isso. Viajar
neste mundo exigia tanto tempo que poderia levar meses ou até
anos para eu me reencontrar com Paul, e embora eu pudesse voltar
antes que a Princesa começasse a levar a sua disputa pelo trono a
sério, seria difícil levar Sylphie comigo. Afinal, ela já tinha seu
próprio emprego de tempo integral como guarda-costas da Princesa
Ariel.
— Pois bem, o que você pretende fazer?
—…
— Você não deixaria a Sylphie se tornar uma mercadoria usada
sem assumir qualquer responsabilidade, deixaria?
— Claro que vou assumir a responsabilidade. — Minha resposta
foi instantânea. Em parte porque ela provocou isso, em parte porque
a minha mente já estava decidida. — Eu vou me casar com ela.
Sylphie levou as mãos à boca diante da minha declaração franca.
Luke vacilou, quebrando a sua postura formal enquanto o choque se
manifestava em seu rosto. Até Ariel parecia completamente pasma.
Eu falei algo de estranho de novo? Talvez pensassem que eu estava
indo rápido demais.
— Você vai se casar com a Sylphie?
— Sim.
Isso era rápido, é claro. Só recentemente percebi que o Mestre
Fitz era, na verdade, a Sylphie. Parte de mim sentia que deveríamos
namorar por vários meses, para primeiro nos conhecermos melhor.
Além disso, se nos casássemos, eu não poderia partir de uma hora
para outra, mesmo que recebesse uma carta urgente de Paul. Ainda
assim, mesmo levando tudo isso em consideração, eu quis dizer o
que disse.
Pensei em Eris. Sylphie poderia também me deixar, caso eu
começasse a enrolar de novo, no lugar de ser claro e honesto a
respeito dos meus sentimentos. Não achei que poderia suportar
outro golpe como aquele. Desta vez não deixaria nada ao acaso.
— Casamento. Uma decisão magnífica. — A Princesa Ariel
balançou a cabeça, satisfeita, e olhou para Sylphie. — Sylphiette
Greyrat.
— Quê?! Hã!? Greyrat… O quê?! — Sylphie ficou confusa.
— Ele disse o que quer fazer, mas e quanto a você?
— S-sim! Eu, Fitz… digo, Sylphie; continuarei a servi-la como
sempre fiz, Princesa, e também quero trabalhar duro como a esposa
do Rudy… digo, Rudeus!
— Agora que Rudeus disse que a tomará como esposa, não se
torna desnecessário me proteger?
— Princesa Ariel, por favor, não diga isso.
— Muito obrigada… — Após um significativo momento de silêncio,
Ariel empurrou Sylphie com suavidade.
Sylphiette aproximou-se de mim, coçando a orelha,
envergonhada. Que fofa. Isso me fez querer lamber a sua orelha.
Por enquanto eu me conteria; afinal, estávamos diante da Princesa
Ariel.
— Um, uh, um, R-Rudy, um, fico ansiosa pelo nosso futuro juntos.
— Sim, eu também. — Nos curvamos sem jeito.
Sylphie, por alguns minutos, se mexeu antes de olhar para trás.
Ela e a Princesa se encararam. Então, de repente, a Princesa falou:
— Sylphie, já que você será a esposa de Rudeus, não precisa
mais se vestir como homem. Volte a se vestir como uma mulher.
Eu interrompi.
— Mas sem o Mestre Fitz como disfarce, ela…
— Em troca, Rudeus, farei uso do seu nome. Não há qualquer
pessoa por aqui que não tenha ouvido falar de você, e muitos
podem inclusive tirar suas próprias conclusões quando souberem
que te entreguei o meu braço direito.
Ela provavelmente queria dizer que, uma vez que Sylphie e eu
ficaríamos juntos, as pessoas poderiam pensar que eu estava ligado
à Princesa. Então, em vez de fazer uso dos meus poderes mágicos,
ela faria uso da minha reputação. O resultado final era quase o
mesmo, mas a forma como ela o enquadrou foi interessante.
— Eu também não veria mal em te servir de forma oficial. — Eu
teria que, em algum momento, me reunir com Paul, mas isso era
outro assunto. Eu não via problemas em ela fazendo uma
declaração definitiva a respeito da minha lealdade – se não como
um simpatizante da sua causa, mas sim como alguém comunicando
com ela por meio de Sylphie.
— Desnecessário. Seu poder é grande demais para conter em
minhas mãos.
Não tenho certeza se sou tão forte assim, pensei em dúvida.
Ainda assim, ter que segui-la como um garoto de recados seria um
saco. Decidi acreditar em sua palavra.
— E, claro, se algo te acontecer, você está livre para mencionar o
meu nome, caso necessário. Apesar das minhas circunstâncias
atuais, o nome da Segunda Princesa do Reino Asura pode ser útil.
— Agradeço por isso. — Ter mais conhecidos em cargos
importantes nunca fazia mal. Não que eu estivesse recebendo isso
tudo em troca de nada. Eu tinha poucas dúvidas de que ela hesitaria
em pedir a minha ajuda quando estivesse pronta para agir, mas
decidi ainda não me preocupar com essa parte.
Sylphie tirou os óculos escuros, baixou a cabeça e disse:
— Princesa Ariel, Luke… agradeço por tudo que fizeram por mim.
Segui o seu exemplo e também me curvei.
E, assim, entrei para o círculo íntimo de Ariel – e virei o noivo de
Sylphie.
Capítulo 02: Coisas Para Preparar Antes do Casamento
(Parte 01)
Casamento. Um domínio inexplorado em minha vida anterior. A
simples perspectiva disso me deixou ansioso. Por mais importante
que isso fosse para mim, eu poderia mesmo me casar sem antes
resolver as coisas com a minha família? Mas eles provavelmente
me perdoariam caso o motivo do meu atraso fosse o casamento.
Além disso, eu estava ansioso por tudo em que o casamento
implicaria. Só de pensar em afundar minhas presas naquela doce
garota me fazia salivar… embora eu fosse deixar Sylphie ditar o
ritmo, é claro.
Restava um único problema. Ao pensar nisso, notei que não sabia
como funcionava o casamento neste mundo. Eu, até o momento,
nunca tinha visto uma cerimônia de casamento. Paul não fez uma
quando se casou com Lilia, fez apenas uma festa comemorativa
para a qual toda a aldeia foi convidada. Os nobres provavelmente
davam festas semelhantes ao fazer um anúncio de noivado, mas eu
nunca tinha visto uma cerimônia de casamento de verdade.
O que “casamento” significa? O que um homem casado deveria
fazer? Passei dezesseis anos neste mundo e ainda não sabia algo
tão básico. Poderia aprender. Se não soubesse as respostas,
poderia simplesmente perguntar.
Comecei questionando Zanoba – vinte e seis anos e já divorciado
– a respeito disso durante o jantar no refeitório.
— Casamento, hein? Quando me casei, enviei presentes, gado,
tropas e comida para a casa de minha parceira — disse Zanoba. No
Reino Shirone, o costume era de que o homem enviasse presentes
comemorativos para a família da noiva.
— Mas você é um príncipe. Não deveria ser você a receber os
presentes?
— Hm? Tanto faz se for ou não da realeza. É óbvio que o homem
é que deveria enviar presentes.
Foi então que Cliff se intrometeu.
— Em Millis é o contrário. A mulher recebe um dote para fornecer
ao marido.
Nos últimos tempos, ele jantava conosco com bastante
frequência. Cliff não tinha muitos amigos, então provavelmente
estava sozinho.
— Hmm — falei. — Se é assim, a família da garota não perde
muito?
— Em troca, o homem é obrigado a fornecer assistência, caso a
família de sua esposa precise.
— É assim que funciona. — Tanto Millis quanto Shirone pareciam
enfatizar uma forte conexão entre as famílias.
— Mas os costumes do casamento variam de acordo com a raça
— continuou Cliff.
— E quanto aos elfos? — perguntei.
— Ainda não me casei com a Lise, então não sei. Prometi esperar
até remover a sua maldição. Mas ela não é como a maioria dos
elfos, então duvido que seja muito exigente quanto a manter a
tradição. — Ele parecia ter uma longa espera pela frente.
Essa discussão toda, e nenhuma menção a uma cerimônia. Eu
estava começando a achar que o conceito não existia neste mundo.
— Então, se eu fosse me casar com alguém, do que eu
precisaria?
— Vejamos… Em primeiro lugar, uma casa, certo? — sugeriu Cliff.
— De fato. — Zanoba acenou com a cabeça em concordância.
— O quê? Uma casa, logo de cara? — perguntei, um pouco
incrédulo.
— Duh. Por que vai se casar se nem uma casa tem?
Olhei para Zanoba, que concordou com as palavras de Cliff, me
disse que ele sentia o mesmo. Pensando bem, Paul havia se
mudado para Buena Village quando se casou. Até então, era um
aventureiro morando em uma pousada e precisou contar com a
ajuda de Philip para conseguir uma casa e trabalho estável.
— Além disso, as garotas não podem entrar no dormitório
masculino. Os casais normalmente se casam e deixam os
dormitórios, ou aguardam até a formatura para se casar.
Assim que ele mencionou isso, notei que não tinha escutado falar
de nenhum casal morando nos dormitórios. Também não havia
dormitório especial para casais.
— Mas se a sua parceira for uma garota de alto nível com casa
própria, a história é diferente, caso contrário, o fornecimento de
moradia depende do homem — acrescentou Cliff. Parecia meio
injusto, mas podia ser apenas o que era considerado como norma
neste mundo. Nesse caso, era lógico que eu fosse o provedor.
Minha parceira, na verdade, poderia ficar desapontada se eu não
fosse.
— Entendido. Então, primeiro, uma casa.
Cliff mostrou uma expressão desconfiada no rosto quando eu
disse isso.
— Espera um pouco. Rudeus, você vai se casar?
— Bem, sim.
— Com quem? — Estava tudo bem se eu dissesse o nome de
Sylphie? Sua identidade, naturalmente, seria em algum momento
descoberta, mas decidi continuar mantendo isso em segredo por
enquanto.
— Com a pessoa que curou a minha doença.
— Ah, entendi… E o nome?
— Um, por enquanto preciso manter isso em segredo.
— Certo. Bem, se acontecer de essa pessoa for seguidora de
Millis, me avise. Conheço o bispo da cidade, então poderíamos
fazer uma cerimônia, desde que você esteja de acordo com o fato
de ser algo informal.
Portanto, a crença Millis tinha algo como uma cerimônia de
casamento! Mas eu não era seguidor de Millis e tinha certeza de
que Sylphie também não.
— Mestre, se você não tiver fundos, devo ajudar? — ofereceu
Zanoba.
— Não, não. Eu me sentiria muito mal em confiar isso a você. —
Embora tivesse feito uma cara de coragem ao dizer isso, não fazia
ideia de como era o mercado imobiliário local. Esperava que minhas
economias fossem suficientes. — De qualquer forma, amanhã vou
dar uma olhada nas casas da cidade. Se parecer que não posso
fazer isso sozinho, devo acabar pedindo ajuda.
— É claro. Posso comprar até mesmo a maior casa desta cidade,
então não precisa se preocupar — disse Zanoba com um sorriso.
Realeza, mesmo em países pequenos, estava em um nível
completamente diferente de nós, comuns.
✦✦✦✦✦✦✦
No dia seguinte, fui à imobiliária. No geral, era o lorde feudal da
região que oferecia empréstimos imobiliários aos residentes, mas
não havia nenhum lorde claramente estabelecido em Sharia. Em
vez disso, as Três Nações Mágicas e a Guilda dos Magos
administravam o território em conjunto, por meio do estabelecimento
de uma agência imobiliária que resolveria quaisquer problemas
ocasionais. Quanto a quais seriam esses “problemas”, eu não fazia
ideia.
Me referi a isso como agência imobiliária por uma questão de
conveniência, mas seu nome oficial era Escritório de Administração
de Terras. Tratavam da compra e venda de casas disponíveis, bem
como da concessão de licenças para as pessoas construírem nos
terrenos vazios. Quando disse à recepcionista que estava em busca
de uma casa, recebi uma lista. As informações sobre as residências
disponíveis estavam catalogadas nas páginas: endereços,
tamanhos de lotes, tamanhos de casas, números de cômodos e
valor. Havia uma enorme variedade – desde apartamentos
conjugados até verdadeiras mansões.
— Hmm…
Para ser sincero, eu não fazia ideia a respeito do tamanho da
casa que deveria comprar. Algo com um jardim e espaço para um
cachorro grande podia ser o melhor… ou será que uma casa
geminada seria melhor? Eu não me importava de morar em um
lugar pequeno, mas Sylphie era a guarda-costas da Princesa, assim
como uma de suas amigas. Isso significava que a Princesa poderia
aparecer para visitas ocasionais, e não poderíamos morar em um
apartamento miserável, já que a realeza poderia nos fazer visitas.
Dito isso, minhas economias não cobriam o custo de uma residência
chique do tipo projetado para a nobreza. Será que devo aceitar a
ajuda de Zanoba? Não, me sentiria estranho ao usá-lo como se
fosse a minha carteira. Afinal, poderia comprar uma casa decente
com o que eu tinha.
Talvez devesse ter trazido Sylphie comigo. Grandes aquisições
como essa não deveriam ser discutidas com a parceira? Mas, neste
mundo, parecia ser o homem que comprava a casa e acolhia a
mulher nela. Sylphie poderia me achar patético caso eu não
pudesse fazer isso sozinho. Precisava mostrar que era ao menos
confiável.
— Então, uma casa grande e barata com muitos quartos. —
Procurei por uma que correspondesse com a necessidade pela lista.
— Hm?
Uma bem no final das indicações chamou a minha atenção. Havia
uma página velha e desbotada que anunciava o que parecia ser
algum tipo de mansão. Estava localizada em um canto do Distrito
Residencial, então não ficava muito longe da universidade. Pelo
preço que estavam pedindo, eu poderia comprá-la e ainda sobraria
algum dinheiro. A única desvantagem era a sua idade.
— E quanto a esta? Por que está tão barata?
O funcionário a quem perguntei me revelou um sorriso
preocupado.
— Para ser honesto, esta mansão está amaldiçoada.
— Você disse amaldiçoada?
— Dizem que é possível ouvir um rangido no meio da noite, mas,
se procurar a fonte, não encontrará nada. O proprietário anterior
achou que o barulho era por causa do vento… e no dia seguinte, foi
brutalmente assassinado.
Sério? Então, mais uma vez, contos sobre mansões amaldiçoadas
e assombradas por espíritos malignos existiam em todos os cantos.
— Vocês não fizeram um exorcismo?
— Fizemos um pedido à Guilda dos Aventureiros, mas… as
primeiras pessoas que aceitaram também foram brutalmente
assassinadas. Desde então, ninguém mais pegou a missão.
Ele continuou mencionando que o pedido que enviaram era
classificado como E. Queriam subir isso de posição, mas não tinham
recebido os fundos necessários. Adicione a existência de alguma
discórdia entre eles e a Guilda dos Aventureiros, e parecia que
havia muitos fatores complicados em jogo.
— E quanto à Guilda dos Magos?
— Disseram que os imóveis não estão sob sua jurisdição, então
devemos nos virar por conta própria.
— E se eu conseguisse dar um jeito no lugar? Vocês me dariam
de graça?
O funcionário me lançou um olhar como se perguntasse: Que
merda você anda fumando?
— Foi mal — falei. — Então, que tal um contrato provisório? Nos
próximos dias vou verificar o lugar, sozinho. Se eu decidir que gosto,
oficializamos a venda. O que acha?
— Por favor, então escreva o seu nome aqui.
Falhei miseravelmente em minha tentativa de pechinchar, mas
mesmo assim continuei, assinalando o meu nome no local indicado.
Havia um lugar onde poderia indicar um fiador, e fui em frente e
anotei os nomes da Princesa Ariel e de Badigadi. Depois entreguei.
Após dar uma olhada, o funcionário ficou pálido e foi para os
fundos. Quase na mesma hora, alguém que parecia ser o gerente
apareceu, esfregando as mãos. Eu devia ser muito famoso para
receber esse tipo de tratamento só por assinar o meu nome. Espera,
será que não tinha sido o efeito por usar os nomes da Princesa Ariel
e de Badigadi? Ou será que era uma combinação entre todos os
fatores?
Depois de alguma discussão, consegui reduzir o preço pedido
pela metade. Pelo visto, me tornei um cliente VIP exigente, apesar
de não ter a intenção de que isso acontecesse.
✦✦✦✦✦✦✦
Poucos dias depois, fui à mansão em questão. Tinha sido
construída há mais de um século, mas o edifício em si parecia bem
sólido. A mana era infundida em todos os tipos de coisas neste
mundo, então será que havia algo na estrutura que a protegesse da
deterioração?
A estrutura do local era construída em barro e pedra, com piso de
madeira. Musgo e hera cresciam ao longo das paredes, mas, fora
isso, era linda. Imaginei algo que estaria em pior estado.
— Podemos entrar, Senhor Zanoba? Senhor Cliff?”
Eu podia até ser um aventureiro de rank A, mas não era
presunçoso o bastante para valsar sozinho para dentro de um lugar
desconhecido e possivelmente assombrado. Pedi que Zanoba me
acompanhasse e agisse como meu confiante escudeiro. Se um
boneco ruivo empunhando uma faca aparecesse do nada para nos
atacar, ele colocaria um rápido fim a isso. Cliff tinha uma expressão
em seu olhar que parecia indicar que queria ir junto, então o
convidei para que também se juntasse a nós. Ele era um gênio em
magia divina de nível Avançado, então se realmente fôssemos
enfrentar monstros do tipo espírito maligno, com certeza seria útil.
— Uma casa respeitável. Parece um pouco pequena, mas acho
que o tamanho é apropriado — comentou Zanoba.
Cliff discordou.
— Não acha que isso é grande demais para só duas pessoas?
Você sabe que pode comprar algo pequeno e economizar, e depois
se mudar, caso fique muito apertado, não?
Se eu fosse somar as opiniões e subtrair a diferença, então
significava que o lugar tinha o tamanho perfeito.
— Graças às circunstâncias especiais, este lugar não estava tão
caro. Agora, vamos entrar.
— Se você está de acordo com este lugar, Mestre, então não
tenho nada a dizer a respeito — disse Zanoba enquanto bravamente
liderava o caminho. Ele estava segurando uma clava, uma arma que
eu mesmo preparei. Achei que não deveríamos entrar desarmados,
mas como o próprio Zanoba admitiu, sua força sobre-humana
indicava que quebraria qualquer arma que fosse colocada em suas
mãos. Então, usei minha magia e lhe fiz uma clava. Se ela
quebrasse, pelo menos tinha sido de graça.
Cliff ficou no meio do grupo. Ele tinha um cajado, que parecia
caro, firmemente seguro em suas mãos enquanto virava a cabeça
de um lado para o outro, examinando a área. Devia estar tentando
ficar vigilante, mas, para mim, parecia mais é que estava apavorado.
Por fim, assumi a retaguarda, fornecendo habilidades ofensivas
na parte de trás. Neste grupo, o mais importante era a proteção de
Cliff, pois ele era o nosso curandeiro e também alguém que poderia
fornecer algum poder de fogo. Como o membro mais experiente do
nosso time, era mais seguro que eu vigiasse a parte de trás.
Trilhamos o caminho de pedras fendidas e chegamos à entrada.
As portas de madeira estavam rachadas e a dobradiça de um dos
lados tinha quebrado. Isso precisaria de conserto.
— Não acho que corremos o risco de cair em alguma armadilha,
mas, mesmo assim, tenha muito cuidado — pedi, ativando o meu
Olho da Previsão.
— Sim, Mestre.
Zanoba colocou a mão na maçaneta e a arrancou da porta. Sem
qualquer hesitação.
— Certo, também não comece a quebrar as coisas — repreendi.
— Minhas desculpas. A porta estava emperrada e não abria.
Tenho certeza de que você precisaria consertá-la, de qualquer
forma.
— Bem, da próxima vez avise-me, certo?
— Sim, Mestre — respondeu Zanoba. Ele ao menos tinha boas
maneiras a seu favor.
Finalmente entramos na casa. O primeiro cômodo era o saguão.
Diante de nós, uma escada conduzia ao próximo andar, com portas
à direita e à esquerda. Corredores conduziam mais para dentro da
casa, um de cada lado da escada. Não havia muita poeira, então a
imobiliária devia periodicamente fazer a limpeza do local. Por fora
podia até parecer uma casa mal-assombrada, mas agora que
estávamos dentro, pude ver que possuía uma excelente iluminação
natural. Era um bom lugar.
— Mestre, como vamos fazer isso?
— Começaremos com o lado direito do primeiro andar.
Examinaremos cada um dos cômodos. Não acho que existam
armadilhas, mas é possível que o chão ou o teto estejam podres,
então tome cuidado com a cabeça e com os pés.
— Entendido. — Zanoba acenou com a cabeça.
Cliff olhou para mim por cima do ombro.
— V-você com certeza está pensando em tudo.
— Bem, sou um aventureiro de rank A — falei.
— S-sim, isso mesmo, não é? — Ele parecia nervoso com alguma
coisa. Pensando bem, o garoto havia partido em uma agradável
aventura com Elinalise no outro dia, não? Me pergunto como foi.
— Ah, é mesmo, então, como foi aquela aventura que você fez no
outro dia?
— Criticaram tudo o que eu fiz…
— Bem, no final das contas, eles eram de rank S.
Os membros do Líder Escalonado provavelmente não foram tão
duros assim com ele. Afinal, sabiam que estavam lidando com um
novato. Como a pessoa que foi alvo da crítica interpretou, já era
outra questão. Cliff era um autoproclamado gênio. Provavelmente,
até então, nunca teve suas falhas apontadas pelos outros.
— O que eu deveria fazer?
— Se encontrarmos um inimigo, use magia divina de nível básico
para atacar.
— E-entendido. Mas e se não for um espírito? — perguntou ele.
— Nesse caso, só fique atrás. Eu ou Zanoba cuidaremos de tudo.
— No momento em que falei isso, Cliff pareceu um pouco indignado,
então eu soube que era melhor dizer algo mais. — Sua magia é tão
poderosa que pode acabar danificando a casa.
Ele, felizmente, pareceu satisfeito com a explicação. Era melhor
ter um iniciante como ele se concentrando em fazer apenas uma
coisa de cada vez.
— Zanoba, existe uma possibilidade, mesmo que pequena, de
que tenha um monstro que pode usar magia escondido por aqui.
Mantenha a guarda alta.
— Deixe comigo. — Para a minha surpresa, Zanoba não mostrou
medo algum. Ele tinha um espírito de guerreiro, o que era
encorajador.
A porta à direita levava a uma espaçosa sala com uma área de
mais de vinte tatames de largura. Havia muita luz solar e uma
enorme lareira. Podia ser uma sala de jantar ou de estar.
A lareira foi o que mais chamou a minha atenção.
— Mestre Cliff, esta lareira é um instrumento mágico?
— N-não tenho certeza. Vou dar uma olhada. — Cliff tentou dar
uma olhada por dentro.
— Espera. Pode haver algo aí. — Eu o parei, examinando a
lareira pessoalmente. Havia algo de errado, mas eu não conseguia
descobrir o que era. — Hm.
Os invernos frios da região tornavam uma lareira essencial. Se
esta fosse mágica, poderia aquecer a casa inteira. Se não fosse, eu
consideraria uma troca. Embora tivesse dificuldade de resistir à ideia
de eu e Sylphie mantendo nossos corpos nuns juntos um do outro
para produzir calor…
— Vou soprar um pouco de ar por isso. Se houver algum monstro
aí dentro, ele pode voar para cima de nós, então fiquem atentos. —
Tendo colocado os dois em guarda, conjurei magia na chaminé da
lareira, limpando-a com uma forte rajada de vento.
Não aconteceu nada. Apurei os meus ouvidos, mas não pude
detectar nenhum movimento. Caiu um pouco de fuligem, mas isso
foi tudo. Eu também poderia colocar fogo na chaminé, mas se ela
estivesse de alguma forma danificada, a casa toda poderia pegar
fogo. No momento, coloquei minha cabeça para dentro da abertura
e dei uma olhada para cima. Pude ver o céu, embora distante.
Só por segurança, usei fogo para iluminar os cantos de dentro.
Não senti que havia algo escondido ali. Estava provavelmente
seguro.
— Então deixo isso para você, Mestre Cliff.
— Entendido. — Ele procurou dentro da lareira e quase na
mesma hora encontrou um círculo mágico. Nenhuma surpresa, dado
que recentemente esteve ocupado pesquisando implementos
mágicos e maldições.
— Isso parece utilizável? — perguntei.
— Não posso afirmar até que você acenda o fogo, mas parece
intacto — avaliou Cliff.
Ótimo.
— Muito bem, obrigado.
Balancei a cabeça e fomos para o próximo cômodo, o mais
interno à direita da entrada. O piso era de pedra e havia algo
parecido a um forno, então devia ser a cozinha. Havia um pedaço
de pano rasgado no chão, ao lado do dito forno. Quando o peguei,
descobri que era um avental esfarrapado. Sylphie talvez fosse
cozinhar para mim ali, nua, exceto por um avental a cobrindo. Isso
me deu algo para ficar animado.
Não, esqueça isso, disse a mim mesmo. Estávamos no local para
eliminar o espírito maligno – ou o quer que fosse que estivesse
assombrando o lugar. Não era hora para armar uma barraca nas
minhas calças.
Procurei no forno e em todos os outros lugares por algo vivo que
pudesse estar escondido.
— Certo, nada de errado por aqui. Próximo.
Encontramos uma porta que levava ao porão, atrás da escada,
mas decidimos deixar isso para depois. Nos movemos no sentido
anti-horário, de cômodo em cômodo por todo o primeiro andar, ainda
assim não encontramos qualquer anormalidade. Havia um ou outro
lugar com acúmulo de poeira, mas a casa estava em condições tão
boas que ninguém imaginaria que tinha sido construída há mais de
um século. O proprietário anterior talvez tivesse feito alguns reparos
ou algo assim.
— Então só restou este, hein?
Tínhamos terminado de investigar todo o primeiro andar. Pela
disposição, eu sabia que os dois lados da mansão se espelhavam
de forma idêntica, exceto pelo fato de que o cômodo correspondente
à cozinha na ala esquerda não tinha um forno. Talvez fosse usado
para algum propósito diferente de cozinhar, como lavar roupas. De
qualquer forma, por enquanto chamaríamos de cozinha.
Duas cozinhas, dois quartos amplos, quatro quartos pequenos,
dois banheiros. Era quase como se duas casas tivessem sido feitas
em um só prédio. A única escada ficava no saguão.
— Qual parece o local mais adequado para espíritos malignos? O
porão ou o segundo andar?
— O porão, eu acho — disse Zanoba.
— Eu apostaria no porão — disse Cliff.
Já que estávamos todos de acordo, decidi ir primeiro ao porão. A
porta, localizada atrás da escada que conduz ao segundo andar,
dava para outro lance de escada que descia. Acendi as lanternas
que tínhamos e as passei para Cliff e Zanoba.
— Vou ficar no meio e analisar tudo com meu olho demoníaco.
Não deixem suas lanternas caírem, mesmo se acharem que estão
em perigo. Não posso fornecer reforços no escuro.
— Ha ha ha, eu sou uma Criança Abençoada! Não há nada a
temer — declarou Zanoba enquanto descíamos as escadas. Que
enorme garantia de bandeira da morte.
Seja mais cauteloso, o repreendi por mim mesmo. Nunca se sabe
quando uma flecha pode ou não aparecer voando quando você abrir
uma porta. Embora, conhecendo Zanoba, elas provavelmente
ricocheteariam em seu corpo com um clink audível.
Chegamos a uma porta que dava para o porão.
— Hm. Nada aqui.
Havia várias prateleiras de madeira vazias, parecia uma área de
armazenamento não utilizada. Iluminei um pouco com a minha luz,
mas não notei nada se escondendo. Havia uma espécie de mancha
na parede, mas não possuía forma humana. As bordas da
decoração estavam um pouco apodrecidas, mas isso era tudo.
Depois seria preciso substituir.
Sem monstros. Foi um pouco anticlimático.
— Certo, então para o segundo andar.
Saímos do porão e voltamos para a entrada. De lá, subimos o
lance de escadas para o segundo andar. A madeira sob nossos pés
sequer rangeu.
O segundo andar também era completamente simétrico. Em cada
extremidade das duas alas havia um cômodo conectado a um
quarto interno. Além disso, havia também vários quartos extras,
cada um medindo cerca de seis tatames. Isso somava um total de
seis cômodos: quatro deles eram menores e dois de tamanho
médio, medindo cerca de doze tatames. Os dois últimos eram
conectados aos quartos internos. Por fim, havia também uma
sacada.
— Hmm…
Vamos colocar uma cama grande neste quarto, decidi. Uma com
espaço mais do que suficiente para três pessoas se deitarem. Duas
camas normais juntas também poderia ser uma boa ideia. Não,
espera – se a cama fosse pequena, teríamos que nos aconchegar
para dormir, e isso não seria algo ruim. Então, quando eu
acordasse, seria recepcionado pelo seu calor, e seus pequenos
seios estariam sempre ao alcance. Nada mal mesmo.
De qualquer forma, a cama era importante. Afinal, a usaríamos
todos os dias – e não, eu não quis dizer só para sexo. As pessoas
precisam dormir, sabe.
— Mestre Cliff.
— O-o que? Descobriu alguma coisa?
— Acha que uma cama grande seria melhor para um casal recém-
casado?
— Hein? — Cliff ficou em silêncio por alguns segundos enquanto
pensava no assunto. Então ele respirou fundo. Por fim, suspirou. —
Ah, bom. Sim, esse é um aspecto importante em um
relacionamento. Mas você não estará fazendo justiça ao seu
parceiro se essa for a única coisa em que se concentrar.
— Ah. Sim, suponho que você esteja certo.
Suas palavras, por alguma razão, foram convincentes –
provavelmente porque falava por experiência própria. Eu poderia
facilmente imaginar Elinalise se jogando nele, seus olhos cheios de
luxúria, no momento em que ficassem sozinhos.
Então levaria o que tinha dito a sério. Acho que vou ficar com uma
cama maior mesmo.
— Nossa, nada aqui, hein? — falei, respirando fundo depois de
examinarmos o último cômodo.
— Suponho que então devemos passar a noite aqui. Exatamente
como planejado — disse Zanoba.
— Sim. Conto com vocês.
Eu queria vasculhar toda a casa com antecedência só para ter
certeza, mas na verdade não esperava que nada acontecesse.
Segundo as histórias, o espírito só se manifestava à noite,
acompanhado por um rangido. Assustador. Provavelmente era um
monstro que estava ocupando a residência, embora não fazia ideia
de que tipo era. Não achei que pudesse ser lá muito poderoso,
considerando que estávamos em uma cidade. Mas, relembrando,
aventureiros de rank baixo foram enviados para resolver os
problemas e foram brutalmente assassinados. Não podíamos baixar
a guarda.
A verdade talvez fosse realmente simples: bandidos, por exemplo,
podiam estar usando a casa como esconderijo. O rangido podia ser
causado pelo arrombamento da fechadura da porta da frente. Não –
a porta da frente estava quebrada. Então, talvez a porta dos fundos?
Mas não havia sinal de ninguém morando no local.
Sim, fiquei perplexo. Talvez devesse ter chamado Elinalise e os
outros também. Ela já tinha visto muitas coisas em sua longa vida;
poderia ser capaz de nos ajudar. Porém, agora que meu garotinho
tinha retornado à vida, eu não tinha certeza de que ficar perto dela
não me excitaria. Eu podia até imaginar – estaria em vigia no meio
da noite, e uma sombra rastejaria em minha direção, sussurrando
tentações ao meu ouvido. Mas Cliff está dormindo bem aqui do lado,
eu diria. E ela responderia: E daí?
— Fiquem alertas — declarei enquanto ficávamos na área do
quarto do segundo andar. — O espírito pode não aparecer de
imediato, então vamos passar a noite.
— Hm. Estou preocupado com Julie.
— Estou preocupado com Elinalise.
Julie era uma criança inteligente. Ela conhecia a sua condição de
escrava e não iria precipitadamente provocar alguém – não
enquanto morava em uma seção do dormitório ocupada apenas por
nobres. Zanoba não tinha motivos para se preocupar. Elinalise, por
outro lado, era popular e caprichosa. Poderia muito bem usar a
ausência de Cliff para ter um caso.
Meus pensamentos vagaram para Sylphie, que provavelmente
estava servindo como guarda-costas da Princesa de novo, igual
sempre fazia. Não havia nada com o que se preocupar. Espera, eu
disse para ela que sairia, mas não mencionei que passaria a noite
fora. E se ela fosse até o meu quarto para falar comigo antes de
dormir e eu não estivesse lá? Poderia ficar naquele corredor frio,
esperando por mim, resmungando para si mesma: “O Rudy está
atrasado.”
— O sol está prestes a se pôr — interveio Zanoba.
Eu podia ver o sol da tarde refletindo na janela do quarto. Se
saísse nesse momento, já estaria de noite quando chegasse no
campus. Sylphie provavelmente já estaria de volta ao dormitório
feminino. Mesmo que eu não dissesse nada a ela, deveria ao menos
deixar um bilhete na minha porta, dizendo que não estaria lá à noite.
Não é?
Certo, vamos lá. Vamos lá agora mesmo.
Não, espera. E se esses dois se matassem enquanto eu estivesse
fora? Isso não iria ser bom. Afinal, o líder do grupo era eu.
Acalme-se, apenas acalme-se, disse a mim mesmo. Isso não era
nada de mais. Contanto que depois eu explicasse tudo, Sylphie
compreenderia. Mas… espera. Eu já tinha ouvido algo sobre isso há
muito tempo. Todas as coisas que acontecem em um
relacionamento enquanto você fala que “Será só dessa vez” tendem
a se acumular, levando a um término com o parceiro. Merda. Tive
um mau pressentimento quanto a isso tudo.
A solução era óbvia: propositalmente içar a minha própria
bandeira da morte.
— Zanoba.
— Sim? Pois não?
— Vou me casar assim que terminarmos esta missão.
— De fato. Vamos terminar logo para que possamos ter uma
grande celebração aqui — disse ele, sua cabeça ligeiramente
inclinada enquanto a balançava.
Espera. Agora que eu realmente disse isso, minha sensação de
desconforto ficou ainda pior. Se eu dissesse algo como “Uma
celebração, sim! É exatamente do que a gente precisa!” em
resposta, tive a sensação de que não sobreviveria o suficiente para
me casar. Talvez fosse bom colocar algo duro no bolso do peito por
algum tempo. O problema era que eu não tinha nenhum bolso no
peito. Se uma bala de uma .357 Magnum de repente voasse em
minha direção, eu não teria como pará-la.
Cliff mais uma vez se meteu no meio da conversa.
— Certifique-se de convidar Lise e eu.
— É claro. Por que vocês não seriam convidados?
— Apenas me certificando. Uma coisa é se eu ficar de fora, mas
ficaria triste se isso acontecesse com ela.
Cliff realmente não conseguia ler o clima… e devia ser por isso
que sempre ficava de fora desse tipo de reunião. Eu com certeza o
convidaria, e Elinalise também, é claro. Enfim, já estava cansado
dessa enrolação. Queria me apressar, terminar isso e ir para casa,
para Sylphie e seus seios – Não, foco. Depois eu poderia tocá-la
tanto quanto quisesse.
Enquanto eu me ocupava com esses pensamentos, o dia virou
noite.
Meio a isso, lá no dormitório feminino, Sylphie já havia percebido
que Rudeus tinha ido comprar uma casa. Ela estava atualmente em
sua cama, os braços aconchegados ao redor do travesseiro, rolando
enquanto fantasiava com as possibilidades.
Capítulo 03: Coisas Para Preparar Antes do Casamento
(Parte 02)
Estabelecemos turnos para vigia: uma pessoa ficava acordada
para alertar as outras duas no caso de algo estranho acontecer. Fui
bem específico ao instruir meus companheiros de que, se ouvissem
algum rangido, não deveriam investigar, e sim acordar os outros na
mesma hora.
Estávamos dormindo onde o residente anterior havia sido
assassinado: o quarto na extremidade do segundo andar. A
localização podia ter algo a ver com o aparecimento ou não do
espírito maligno. Para falar a verdade, não achei que eram bandidos
ou coisas parecidas, embora, se fossem isso, seriam dos bons. Eu
poderia prendê-los, entregá-los e adicionar a recompensa em
dinheiro obtida aos fundos para o nosso casamento. Se fosse só um
monstro comum, melhor ainda. Tudo o que precisávamos fazer era
localizar e destruir. Melzinho na chupeta.
✦✦✦✦✦✦✦
— Rudeus! Acorde; o barulho!
Aconteceu quando Cliff estava de vigia.
Acordei e pulei de imediato, verificando o horário. Para garantir
um sono leve, cada pessoa dormia apenas duas horas de cada vez,
usando uma ampulheta para manter o controle. No momento,
estava na segunda virada, então eram cerca de duas ou três da
manhã. O momento perfeito para o aparecimento de um espírito
maligno.
— Zanoba, acorde. — Após dar um comando rápido a Cliff, fui até
a porta e apurei a audição.
Kree… kree…
Klak… klak…
Kee… kee…
Ah, merda. Eu realmente ouvi – e bem claramente. Parecia uma
cadeira rangendo. Na verdade, quando ouvi por mim mesmo foi
meio assustador. Contraí os lábios enquanto ativava o meu Olho da
Previsão
— Aahh. — Zanoba esfregou os olhos enquanto soltava um
enorme bocejo.
Assim que confirmei que ele estava acordado, coloquei minha
mão na maçaneta. Então, lentamente, certificando-me de que não
fazia barulho, abri a porta. Olhei para o fim do corredor. Nada. Só
para ter certeza, também olhei para o lado oposto. Nada. Então para
cima e para baixo. Nada.
Apurei os ouvidos, mas não consegui ouvir nada. O som havia
parado.
Zanoba se levantou e ficou atrás de mim.
— O que está achando?
— Não vejo nada na área.
Poderíamos vasculhar a mansão ou esperar que algo estranho
aconteça. O proprietário anterior havia ignorado o barulho,
pensando que tinha ouvido mal, e depois morreu, então
provavelmente não deveríamos imitá-lo.
— Vamos procurar a fonte — decidi.
— De acordo. Iremos usar a mesma formação de antes,
presumo? — perguntou Zanoba.
— Sim. Tome cuidado.
— Enquanto você estiver protegendo as minhas costas, Mestre,
não tenho nada a temer.
Ele pegou a sua clava. Cliff o seguiu, parecendo nervoso.
— Mestre Cliff, você se lembra do que deveria fazer?
— M-magia divina.
— Isso mesmo. Estou contando com você. — Zanoba seria nosso
escudo, Cliff usaria magia divina, e se isso não funcionasse, eu
usaria meu Canhão de Pedra. Estávamos prontos. — Zanoba,
vamos.
Nossa investigação noturna começou.
Eu já estava familiarizado com a disposição da casa graças à
nossa busca diurna, e a investigação transcorreu sem problemas.
Primeiro, vasculhamos todo o segundo andar. Nenhuma
anormalidade a ser encontrada. Depois disso, descemos para o
primeiro andar, sempre cautelosos. Percorremos os cômodos, um
por um, verificando cada lugar onde algo pudesse estar escondido,
como a lareira e o forno. De novo, nada. Os cômodos estavam
todos vazios.
— Mestre, tudo o que resta é o porão.
— Aham.
Descemos os degraus em direção ao porão. Estava escuro.
Quando procuramos de dia, não havia nada no local, mas, desta
vez, senti algo sinistro.
Eu estava ficando nervoso. Meu coração bateu forte. Respirei
fundo, mantendo minha guarda alta no caso de algo nos atacar por
trás enquanto descíamos as escadas. Parecia que estávamos
descendo para o inferno. Chegamos, por fim, ao porão.
— E então? — perguntei.
— Nada aqui — respondeu Zanoba.
Usei a minha lanterna para iluminar a área. Não havia nada, nem
mesmo nos cantos do cômodo. Além disso, o dono anterior com
certeza também tinha verificado o porão. Afinal, era o lugar mais
suspeito da mansão.
— Vamos voltar para o quarto e nos preparar.
Cautelosamente nos retiramos do porão e voltamos ao segundo
andar. Seguimos pelo corredor até o cômodo em que estávamos
posicionados.
— Zanoba, existe a chance de que ele possa estar escondido no
lugar em que dormimos, então tome cuidado ao abrir a porta.
— Entendido. — Ele apertou a sua clava e gentilmente colocou a
outra mão na maçaneta antes de abrir a porta.
—…
Não aconteceu nada.
— Parece que está tudo limpo.
Não havia nada. Sem ataque.
— Uff.
Por enquanto pudemos descansar. Talvez fosse hora de
considerar que a criatura só atacava enquanto as pessoas dormiam.
Ou enquanto estavam no banheiro. Pensando bem, não havíamos
verificado o jardim. Deveria dar uma olhada nisso no dia seguinte.
Foi então que de repente olhei para trás.
E lá estava.
Bem no final do corredor, perto do chão, mas parecia estar
rastejando. Só a sua metade superior aparecia no topo da escada.
Estava com a cabeça inclinada enquanto olhava em nossa direção.
No começo, pensei que poderia inclusive ser humano. Tinha olhos,
nariz, boca, mas sem cabelo ou orelhas.
E eu também, de alguma forma, não tive a sensação de que
estava vivo.
—…
Sua silhueta pálida e assustadora pairou na escuridão enquanto
nos observava. Por alguns segundos, apenas nos encaramos.
— Ah — comecei, tentando dizer algo.
Foi então que se moveu. Elevou o seu corpo e saltou para o
segundo andar. Era do tamanho de um humano… mas não era
humano. A coisa tinha quatro braços e quatro pernas. Da escuridão
de onde viera, brandindo o que parecia ser uma estaca, galopando
silenciosamente em quatro pernas enquanto corria a uma
velocidade inacreditável, direto para…
— Whoaaah!
Minhas pernas cederam e caí de bunda enquanto me apressava a
lançar um Canhão de Pedra. O medo de que eu pudesse destruir
minha própria casa aumentou dentro de mim. Hesitei, enfraqueci a
força do meu ataque. A bola de terra se espatifou contra o ombro de
nosso inimigo, mas tudo o que fez foi forçar a coisa inumana
cambalear. Aquilo veio em minha direção com a sua estaca, e usei
meu olho demoníaco para tentar evitar, mas…
— Mestre! — Zanoba voou para a minha frente. A criatura
desferiu um golpe forte com a sua arma. Mirou direto no coração.
— Zanoba!
Não perfurou. A pele abençoada de Zanoba era dura demais para
o ataque da criatura. S-sim! Esse é o meu aluno; sequer um
arranhão, pensei.
Ele agarrou o rosto da coisa com ambas as mãos. Todos os oitos
membros daquilo se agitaram no ar enquanto sofria uma chuva de
socos.
Cliff deu uma espiada para fora do cômodo em que estava para
entoar um encantamento.
— Invoco-lhe, Deus que abençoa a terra que nos nutre! Distribua
punição divina para aqueles tolos o suficiente para desafiar os
caminhos naturais! Exorcize! — A luz branca de seu cajado acertou
a figura de quatro pernas… mas não a impediu de se mover. Então
não era um espírito?
Nesse caso, estava na hora de usar a minha magia.
— Zanoba, saia do caminho. Vou usar um Canhão de Pedra!
— Por favor, espere, Mestre! — Zanoba não se moveu. Mesmo
que a criatura estivesse destruindo as suas roupas, ele não deu
qualquer passo atrás. Por quê?
— Basta, mova-se! Vou cuidar disso!
— Por favor, espere! Mestre, eu te imploro! — Zanoba jogou os
braços em volta da coisa, quase como se estivesse tentando
protegê-la de mim. A coisa continuou resistindo, reduzindo as suas
roupas a trapos. Suas costas, agora expostas, pareciam tão frágeis
que ninguém acreditaria que ele possuía um poder sobrehumano.
Desse modo passaram alguns segundos. Então, minutos. O
inimigo continuou a sua luta violenta, mas seus movimentos foram
se tornando gradualmente mais monótonos, até parar.
— Uff. — Assim que Zanoba teve certeza de que os movimentos
estavam cessados, tirou suas roupas rasgadas e as usou para
amarrar as mãos e pés da coisa inumana. — Mestre, vamos voltar
para o quarto.
— Tudo bem…
Cliff ficou parado no meio do cômodo, tremendo de terror.
— N-não tenha a ideia errada! Não é como se eu estivesse
fugindo. Só imaginei que acabaria ficando no meio do caminho, já
que o corredor é apertado.
— Ah, entendo. Bem pensado.
— N-não é?
Sua desculpa não foi nem remotamente convincente, mas,
pensando bem, até eu fiquei com medo. Eu não ia dizer nada.
— Mestre…
— Você me salvou lá atrás, Zanoba. Mas aquilo foi perigoso,
sabe. Ao contrário de um certo Rei Demônio, você não é imortal.
— Isso é incrível, Mestre. Aqui, por favor, veja. — Zanoba estava
extremamente animado. Ele me ignorou por completo enquanto
abaixava nosso atacante contido, que estava fazendo ruídos
inesperadamente baixos. Zanoba agarrou uma lanterna para prover
iluminação.
— I-isso é… um boneco?
Diante de nós estava um manequim de madeira pintado de
branco, todo amassado. A coisa tinha quatro braços e quatro
pernas. Apesar da sua forma estranha, era algo definitivamente feito
por alguém. Me perguntei por que não tinha ouvido os seus passos,
e então soube. Um pano preto feito breu estava enrolado em cada
um de seus pés. O que pensei ser uma estaca era apenas um braço
quebrado – dois de seus quatro braços estavam quebrados. Tinha
um projeto de nariz e boca lamentáveis no rosto, com bolas de vidro
no lugar dos olhos. Aqueles olhos frios e insensíveis eram o que eu
estava encarando antes.
Para ser sincero, era assustador demais para suportar… e
poderia voltar a se mover a qualquer minuto. Cliff tinha a mesma
opinião. Ele estava com o cajado pronto, com o olhar
cautelosamente fixo no boneco.
— Mestre, esta é uma descoberta incrível! — Zanoba, por outro
lado, não conseguia esconder a sua empolgação.
— Zanoba, não importa o quanto você ama bonecos… —
comecei a dizer.
— Este se moveu! Um boneco com movimentos!
Quando ele disse isso, percebi que estava correto. O boneco nos
atacou.
— Um boneco com movimentos.
Um boneco com movimentos! Um boneco que se movia sozinho.
Então… um autômato. Como um robô. Tipo… um servo robô. Oooh!
Enquanto essas palavras corriam pela minha mente, o medo que
senti sumiu como se nunca tivesse existido.
— Você está certo — falei. — Isso é incrível.
— Você finalmente entendeu?
— Sim. Estou feliz por não termos o destruído. Zanoba, seu
julgamento foi perfeito.
— Heh heh. À primeira vista eu soube o que era.
— Eu não esperaria menos. Seu olhar para bonecos já ficou mais
apurado do que o meu — falei, oferecendo alguns elogios e sorrindo
para o meu pupilo.
Deixando isso de lado… Um boneco com movimentos. Pensando
bem, existiam outros objetos inanimados capazes de se mover
neste mundo, como armaduras. Este foi esculpido em madeira, mas
será que eu também poderia fazer os de pedra se moverem? E se
eu pudesse encontrar uma forma de fazer as estatuetas se
moverem sozinhas… e se pudesse desenvolver uma substância
parecida com silicone para a pele, para ficar como a de humanos…
As possibilidades eram infinitas.
— Zanoba, o que devo fazer? Meu coração está batendo tão forte!
— O meu também. Posso sentir as lágrimas a ponto de escorrer!
Por enquanto, levaríamos o boneco de volta para casa. Então
poderíamos pesquisar o mecanismo que permitia os seus
movimentos.
— Ei, vocês dois, já chega! — Cliff de repente perdeu a paciência
conosco. Olhei para me deparar com ele nos encarando, seu cajado
firmemente seguro em suas mãos. — Não é hora para falar sobre
esse tipo de coisa!
— Não é hora para falar sobre que “coisa”? — Zanoba agarrou o
rosto de Cliff com uma das mãos e o ergueu no ar. Ah, já fazia
algum tempo que eu não o via fazendo esse truque.
— Aggghhhhh! — Cliff agarrou o braço de Zanoba, mas este nem
se moveu.
— O boneco se moveu! Você não entende o quanto isso é
incrível?!
— Ai, ai, ai! Existem monstros assim por aí, igual armaduras que
se movem por conta própria!
Monstros. Ouvir isso me fez lembrar do nosso objetivo inicial. O
motivo para a nossa presença não era capturar um boneco que se
movia; era assegurar a casa. Não que eu não pudesse matar dois
coelhos com uma cajadada só.
— Zanoba, por favor, solte-o.
— Grr… mas, Mestre…
— Mestre Cliff tem razão.
Assim que Zanoba o deixou ir, Cliff logo entoou magia de cura
para se recuperar. Mas que bebezão.
— Este boneco provavelmente é o “espírito maligno” que
estávamos procurando.
— Hrm.
— E não há garantia de que seja o único. Vamos encontrar e
capturar quaisquer outros que estejam nas instalações. Enquanto
fazemos isso, talvez possamos encontrar algumas informações de
como foram feitos.
— Entendido! — Zanoba acenou com a cabeça, finalmente
convencido.
— Esta noite não vamos dormir. Precisamos fazer uma busca
exaustiva pela casa e descobrir onde este boneco estava
escondido.
Foi assim que começou a nossa terceira varredura pela mansão.
Estávamos procurando um lugar grande o suficiente para
esconder um boneco de tamanho humano, mas não encontramos
nada do tipo em nossa segunda rodada de buscas. Achei que
poderia ficar no jardim, já que não havíamos verificado o local, mas
essa pista não serviu de nada. As pegadas do boneco estavam
claramente impressas na neve, mas não levavam a lugar algum.
Comecei a suspeitar que havia um cômodo escondido na
residência. Havia sido claramente projetada para ser toda simétrica,
então talvez precisássemos procurar por algo que não fosse
simétrico. Com isso em mente, procurei pelo primeiro e segundo
andares da casa, buscando anomalias na disposição dos cômodos,
mas não encontrei nada. A falta de luz tornava tudo ainda mais
difícil.
— Talvez seja melhor conferir de novo amanhã, quando tivermos
luz do dia — sugeriu Cliff.
Concordamos. Antes de encerrarmos a noite, entretanto,
decidimos levar o boneco para a universidade. Amarramos seus
braços e pernas com bastante força e o colocamos no quarto de
Zanoba. Com uma iluminação melhor, podíamos dizer que era
bastante antigo. Parecia já ter sido branco, mas eu podia ver que a
tinta havia começado a descascar, e também possuía várias
manchas de mofo.
— Mestre, este é um… boneco novo? — perguntou Julie. Pensei
que ela podia estar com medo, mas, em vez disso, parecia apenas
curiosa. — Devo… limpar?
Quando Zanoba pegava bonecos aleatórios pelo mercado, ela se
encarregava da limpeza de todos. Ele achava que a melhor forma
de aumentar o apreço dela por estatuetas era praticar limpando e
polindo as mesmas, e parecia que seu método estava funcionando
bem.
— Como vamos fazer para voltar a se mover? — perguntou
Zanoba.
— Vamos estudar isso depois de lidarmos com a mansão. — Eu
entendia a sua impaciência, mas ele precisava se acalmar. No
momento, selamos a coisa em uma caixa que fiz com magia de
terra. Não queria que atacasse Julie enquanto estivéssemos fora.
Voltamos para a mansão, parando para comprar um monte de
lanternas ao longo do caminho. Decidi voltar a vasculhar a lareira,
entrando nela para desta vez fazer uma conferência completa.
— Hm, não é isso, hein?
Limpei a fuligem e as teias de aranha ao terminar a minha busca.
Então percebi… não havia fuligem no chão. Era quase como se
tivesse sido limpo, com pano passado e tudo o mais. Assim que
pensei nisso, o pano enrolado em volta dos pés do boneco era
preto. Aquilo estava limpando o lugar todas as noites?
Então, depois, conferimos o segundo andar, primeiro andar e o
porão, sendo que o porão era definitivamente o lugar mais suspeito.
Nos aventuramos e voltamos a descer com nossas lanternas em
mãos. Deixei a porta aberta, só para garantir que não ficaríamos
sem oxigênio, e alinhei as lanternas para que o espaço ficasse bem
iluminado. Se eu fosse um contador de histórias infantis, poderia até
dizer “Vejam, aqui está claro como o dia!”.
Havia uma forma escurecida na parede: uma porta escondida que
não tínhamos notado no escuro. Quando a casa foi construída, isso
provavelmente ficava escondido, mas com o passar do tempo, o
desgaste do constante abrir e fechar escureceu a área ao redor das
dobradiças. Também havia marcas no chão, por onde a porta abria.
— Bem, vamos entrar! — Cliff alegremente estendeu a mão para
abrir a porta. Me preparei para um possível ataque e concentrei
meus olhos na porta, mas Cliff então parou.
— Qual é o problema? — perguntei.
— Não sei como abrir.
Conferi por mim mesmo. Ele tinha razão. Não havia maçaneta
nem entalhe para ajudar a abrir a porta. E também não parecia ser
suposto que fosse algo que devia ser aberto.
— Mestre, devo quebrar? — propôs Zanoba.
Balancei a cabeça. Mesmo que eu fosse renovar a maior parte da
casa, não queria danificar nada, caso pudesse evitar. Olhei para as
marcas de arranhões pelo chão. Eu não tinha dúvidas de que a
porta poderia ser aberta, e que ela se abriria para nós.
— Hm?
Percebi algo de estranho nas marcas. Começavam três tábuas à
esquerda, não alinhadas com o desgaste na parede.
Na minha vida anterior, havíamos feito uma viagem escolar a uma
antiga aldeia ninja que possuía uma porta secreta. Com essa
memória em mente, tentei pressionar a borda esquerda da porta.
Soou um rangido, mas a porta não abriu. Era pesada.
— Zanoba, empurre esta parte bem aqui.
— Hrm.
Assim que ele o fez, a porta abriu com um rangido. Então o som
que ouvimos à noite foi esse, hein? Havia uma maçaneta pelo lado
de dentro, então abri-la por lá parecia ser mais fácil.
— Duvido que tenha alguma armadilha, mas, por favor,
mantenham a guarda — falei quando entramos, iluminando a sala
com a minha lanterna. Era uma sala apertada com uma única mesa,
um pedestal de madeira e nada mais. Havia vários livros e um
frasco de tinta sobre a mesa. O tinteiro havia rachado e seu
conteúdo havia secado.
Quanto ao pedestal, como deveria descrever? Tinha o formato de
um caixão, sua base oca com entalhes que se ajustava, ao tamanho
e forma do boneco. Olhando mais de perto, notei um cristal
transparente incrustado na madeira, bem onde a cabeça do boneco
ficaria. Provavelmente se carregava enquanto ficava deitado – de
forma mágica, e não elétrica.
— Cliff pode me dizer algo sobre este pedestal?
Ele balançou a cabeça.
— Não, é a primeira vez que vejo algo assim.
Estendi a mão, nervoso, para tocar. Não achei que fosse tomar
um choque nem nada, mas precisava ter certeza de que estava tudo
inerte. Quando não houve reação, voltei a minha atenção para um
dos livros sobre a mesa. Poderia dizer que ele tinha sido deixado ali
por um bom tempo, mas, por sorte, não havia sinais de que os
insetos houvessem o infestado. Será que o boneco os exterminava?
Na capa estava um título e um brasão, mas eu não reconhecia o
idioma. O interior do livro continuava igual, escrito em uma língua
desconhecida, o que significava que devia ser a língua do Deus do
Céu, a língua do Deus do Mar ou uma língua tão obscura que eu
nunca tinha ouvido falar. Entretanto, tanto o brasão quanto as
palavras pareciam familiares. Onde foi que eu vi? Será que foi na
biblioteca da universidade?
Enquanto folheava as páginas, me deparei com uma série de
esboços. Esboços do corpo humano, esboços de círculos mágicos.
Conforme eu folheava, me deparei com um dos bonecos de quatro
pernas e quatro braços.
— Zanoba?
— Sim? — Ele, que estava parado na entrada, se aproximou.
— Acho que este é o boneco que encontramos. O que você acha?
— Não consigo ler o texto, mas você deve estar certo —
concordou ele.
— Onde? Deixe-me ver — disse Cliff, mais uma vez se
intrometendo.
Nós três olhamos para o livro e folheamos as páginas. A
encadernação era bem antiga e parecia poder ceder a qualquer
momento. Havia setas desenhadas ao lado dos esboços e palavras
escritas abaixo delas, deviam ser anotações ou comentários.
Encontramos esboços dos braços do boneco, círculos mágicos e
mais flechas e anotações. As margens estavam repletas de rabiscos
detalhados.
— Julgando só pelos esboços, isso parece com os círculos
mágicos usados para encantar implementos mágicos — murmurou
Cliff.
— Sério?
— Sim, posso dizer porque tenho pesquisado sobre isso
recentemente. O boneco deve ser um instrumento mágico.
— Então é isso.
O anterior dono – não, o primeiro dono desta casa –
provavelmente estava pesquisando algo proibido. Meu palpite era
de que tinha ordenado que o boneco protegesse a casa, o que
parecia ter sido bem-sucedido, já que estava claramente se
movendo pela mansão e atacando os intrusos. Então o dono original
sumiu. Se ele deixou o seu trabalho incompleto e foi para outro
lugar, ou se foi pego, eu não fazia ideia. Considerando que deixou
os frutos de seu trabalho para trás, havia boas chances de que
tivesse morrido em algum acidente imprevisto.
Quanto ao boneco, provavelmente tinha ficado adormecido no
pedestal até que aconteceu algo e o fez acordar. Então começou a
limpar e patrulhar a casa, matando todos os intrusos que
encontrava. Provavelmente estava programado para voltar ao
pedestal e recarregar sempre que possível.
Essa parecia, ao menos, ser a conclusão mais lógica. Entretanto,
se patrulhava o jardim, alguém já deveria ter visto… Espera, não,
tínhamos quebrado a porta da frente quando chegamos, e era a
única porta quebrada do prédio. A programação original do boneco
podia ter mandado patrulhar o jardim, mas ele foi forçado a
abandonar essa rota por não conseguir abrir as portas, ficando
preso dentro da casa. E então quebramos a porta assim que
chegamos, permitindo que fizesse as rondas pelo jardim –
provavelmente bem na hora que passamos e subimos as escadas,
fazendo que nos seguisse.
✦✦✦✦✦✦✦
Só por segurança, voltei a procurar em cada canto da casa e
fiquei de olho nela por mais alguns dias. Não apareceram mais sons
durante a noite. Assim que tive certeza de que estava seguro, fui à
imobiliária para assinar o contrato oficial. Quanto ao espírito
maligno, falei que era um monstro diabólico que estava empoleirado
em um quarto escondido no porão da casa.
No dia seguinte, mandaria algumas pessoas para começarem a
cuidar da limpeza e fazer os reparos. Enquanto isso, decidi comprar
apenas a mobília essencial. Talvez fosse a minha parte japonesa
falando, mas senti que deveria deixar o resto para que decidisse
com Sylphie. Além disso, não poderíamos nos mudar antes do
próximo mês, que seria quando as reformas estariam concluídas.
Eu podia até imaginar a emoção no rosto de Sylphie. “Olha, essa
é a nossa nova casa!” Eu diria.
“Whoa! Rudy, ela é incrível!”
“E também tem muitos quartos. Então teremos espaço suficiente,
independentemente de quantos filhos tivermos!“
“Incrível; você pensou até no nosso futuro juntos! Me possua!“
“Claro, meu amor. Já preparei até a nossa cama.“
“Rudy, me possua!“
Sim, era provável que isso não acontecesse, mas pensar nisso
me fez sorrir.
Espera. Ela não ficaria desapontada, não é? Tipo, “Ugh, Rudy,
isso foi tudo que você conseguiu?“
Não, Sylphie não era tão egoísta. Eu tinha certeza absoluta de
que não era.
De qualquer forma, foi um esforço frutífero. Em apenas alguns
dias, coloquei minhas mãos em um lugar novo e agradável, e herdei
um dos tesouros que haviam sido deixados lá. Eu tinha quase
certeza de que o boneco era um instrumento mágico. Era possível
que o protocolo adequado para essas circunstâncias fosse enviar a
minha descoberta para a Guilda dos Magos, mas eu ainda não era
um membro oficial.
Depois que o processo ficou mais ou menos concluído, decidi
mover os materiais de pesquisa que foram deixados no quartinho do
porão. Zanoba carregou o pedestal enquanto eu cuidei dos livros e
tal. Estaríamos usando-os para investigar aquele boneco.
— Mestre?
Estávamos no caminho de volta para a universidade quando
Zanoba me chamou com uma expressão séria no rosto. Ele estava
com o enorme pedestal de madeira equilibrado em seu ombro. Era
incrivelmente pesado, mas Zanoba não teve problemas para
levantá-lo. Só por garantia, o embrulhamos com um pano para que
parecesse um caixão, só para o caso de alguém ver.
— Pois não?
— Posso te convencer a deixar a pesquisa do boneco toda para
mim?
Encarei o seu olhar. Por trás de seus óculos redondos havia uma
expressão de determinação que eu nunca tinha visto antes.
— Minha reserva de mana é deploravelmente pequena e minhas
mãos são muito desajeitadas. Estou até mesmo te atrapalhando na
estatueta do wyrm vermelho que deveríamos fazer para Julie. Mal
fiz qualquer progresso com isso.
Seria fácil garantir que isso não era verdade, mas eu sabia que
essa era uma de suas preocupações. Não pude sequer falar.
Zanoba continuou:
— Entretanto, sinto que posso fazer pesquisas. Honestamente,
olhar para o livro me dá uma ideia do que o autor queria fazer.
Hm. Ele poderia intuir os pensamentos do criador do boneco, já
que compartilhavam de uma paixão em comum, hein?
— Dito isso, identificar e traduzir o idioma pode exigir algum
tempo. Talvez seja mais rápido se você liderar as pesquisas — disse
ele.
Eu não tinha tanta certeza disso. Afinal, não poderia gastar todo o
meu tempo pesquisando bonecos. Deixar isso para Zanoba poderia
ser mais benéfico. Mas…
— Hipoteticamente falando, o que você faria se aquele boneco
enlouquecesse de novo?
— Mesmo se houver um tumulto, eu poderia recuperá-lo sem
ferimentos. Você viu que eu consigo, não viu?
Verdade. A ideia de ele se mover à noite era um pouco
assustadora, mas provavelmente não aconteceria nada enquanto
não pudesse recarregar em seu pedestal. Deixá-lo no quarto de
Zanoba seria perigoso, portanto, pedir uma das câmaras de
pesquisa da faculdade emprestada poderia ser uma boa ideia. Uma
com a porta bem resistente.
Não, espera. Era possível que fosse magia proibida. Talvez fosse
melhor não fazermos isso no campus, embora Nanahoshi estivesse
fazendo algo semelhante com sua pesquisa sobre círculos mágicos.
Eu talvez pudesse pedir para ela falar bem sobre mim, só por
garantia. Afinal, ela era membro de rank A da guilda.
— Por favor, Mestre! Quando seu plano estiver completo, não
quero que a minha única contribuição seja o dinheiro!
Parecia que Zanoba havia pensado muito nisso. Eu estava um
pouco preocupado com sua fixação extrema por estatuetas, mas se
era assim que se sentia, eu talvez devesse deixar isso com ele.
— Eu te imploro! Confie esta pesquisa a mim!
Ele parecia ter mal interpretado o meu silêncio com relutância.
Então colocou o pedestal de lado e se ajoelhou para mim, ambas as
suas mãos abertas enquanto se prostrava na neve.
— Tá bom, já entendi. Só levanta! Vou deixar isso com você.
— Verdade?! — Ele se colocou de pé na mesma hora, havia uma
expressão de absoluta alegria em seu rosto. Com certeza mudou da
água para o vinho.
— Há uma possibilidade de que você esteja entrando no território
de magia proibida — avisei.
— Magia proibida?
— Sim. Por enquanto vamos pedir uma câmara de pesquisa da
universidade emprestada, então faça seus trabalhos nela.
— Obrigado…! — Ele rapidamente voltou a levantar o pedestal,
errando a ponta do meu nariz por pouco. Passou perto! O que ele
planejava fazer se acertasse a minha cabeça sem querer com essa
coisa?
— Vocês dois podem parar de chamar a atenção para si mesmos
no meio da rua? — resmungou Cliff.
E Zanoba, então, começou sua pesquisa sobre bonecos
autômatos e eu coloquei as minhas mãos em uma casa nova. A
seguir: renovações!
Capítulo 04: Dramático
Reino de Ranoa, a Cidade Mágica de Sharia.
Em uma área desta cidade – densamente povoada por estudantes
– havia uma velha mansão com vários problemas. Um único degrau
pela calçada levava a um jardim mal cuidado e, logo adiante, a uma
porta quebrada. As paredes e tetos foram danificados pela água e o
telhado mostrava vazamentos sempre que chovia. Havia uma lareira
que podia não estar mais funcionando, e as paredes externas
estavam cobertas por musgo e videiras murchas. Em suma, estava
menos para uma casa e mais para uma ruína abandonada.
Quer mais? A casa era assombrada.
Mas, surpreendentemente, havia um homem chamado Rudeus
Greyrat pensando em se mudar para lá. O ex-aventureiro de rank A
e atual aluno da Universidade de Magia, Rudeus, comprou a casa
para ele e sua futura esposa ocuparem. Gosto peculiar, com
certeza. Muitas pessoas não escolheriam um lugar desses para
começar a vida de recém-casado.
Um homem atendeu ao pedido deste cliente: Balda do Largo
Vazio, um artesão e renovador, e um arquiteto especialista afiliado à
Guilda dos Magos do Ducado de Basherant. Ele tinha trinta anos de
experiência em uma área que abrangia tudo, desde o projeto de
criação de um edifício até a sua construção. Tendo adquirido as
suas habilidades no País Sagrado de Millis, ele possuía uma notável
série de realizações em seu currículo, como a construção de um
prédio escolar independente para a Universidade de Magia.
Balda era um homem meio teimoso, mas também um homem
cujas habilidades eram inegáveis. Ele sempre estava com seu
martelo ao seu lado, e se encontrava algo de que não gostava,
mesmo que fosse a casa de um estranho, a derrubava e
reconstruía. Esse era um temperamento digno de um artesão. Ele
batia em qualquer coisa com o seu martelo, fossem edifícios ou até
mesmo as suas próprias pupilas. Foi assim que adquiriu outro
apelido: Balda, o Martelo.
— Aha. Aqui estamos. Você deve ser o Atoleiro! Ouvi dizer que
vai se casar!
Quem deu as boas-vindas ao artesão foi o próprio cliente, um
homem conhecido nas ruas como “Rudeus Atoleiro”, embora mais
carinhosamente chamado de “Atoleiro”, inclusive pelo artesão.
— Sim. Estou em suas mãos, Senhor Balda.
Balda conhecia Rudeus. Talhand era seu velho amigo, e tinha
ouvido falar de Rudeus através da companheira dele, Elinalise.
— Fico feliz por ter comprado uma casa para a minha nova
esposa, mas, como pode ver, ela precisa de alguns reparos.
— Bem, por que não me deixa dar uma olhada?
— Fique à vontade.
Assim que começaram a entrar na casa, o artesão franziu as
sobrancelhas.
— Ei, o que é isso aqui? Esta porta está em mau estado. Parece
até que foi arrancada das dobradiças.
— Ela não encaixa direito e não dava nem para abrir, então não
tivemos escolhas a não ser quebrar — explicou Rudeus.
— Tsk, honestamente — resmungou o anão. — Vocês, crianças,
gostam mesmo é de quebrar tudo. Não mostram respeito nenhum
pelas coisas.
— Concordo plenamente.
O cliente ignorou as palavras raivosas do artesão com a maior
facilidade do mundo. Ele falou como se não tivesse nada a ver com
a destruição da porta. O artesão não se importava muito com esse
tipo de atitude, mas resolveu conter os seus comentários. Ele tinha
ouvido que Rudeus Atoleiro era, quando provocado, um indivíduo
aterrorizante.
— Então, o que você quer fazer com a porta?
— Como assim? — perguntou ele.
— A qualidade dos materiais, design e coisas do tipo. Se não tiver
preferência, seguirei a minha própria vontade — explicou Balda.
— Não tenho nenhuma preferência no que diz respeito aos
materiais, mas gostaria que fosse uma porta resistente. Além disso,
adicione uma aldraba.
— Fechado. Afinal, é a porta da frente.
Depois disso, os dois foram para dentro, onde o artesão mais uma
vez demonstrou uma expressão de emoções mistas.
— Isso aqui está uma baderna mesmo.
— E-está?
— O piso é estranhamente bem feito, mas as paredes e o teto, se
comparados, são um trabalho de qualidade duvidosa. É quase como
se o porão fosse a parte mais importante da casa e o resto todo só
um bônus.
— Você pode dizer isso tudo só de relance?
— Claro que posso.
Os olhos de Balda podiam facilmente dizer o que era ou não era
bem feito. O chão, as escadas, o segundo andar, a sala de jantar, a
cozinha e a lareira eram todos trabalhos sólidos. Ele poderia dizer
que um construtor talentoso havia colocado tanto suas habilidades
mágicas quanto arquitetônicas à prova para criar isso há cem anos.
Mas uma outra pessoa havia feito reformas nas paredes e no teto.
Foi aí que começou o problema.
— Bem, dá para consertar isso bem rápido.
As palavras do artesão foram reconfortantes. Aliviado, o cliente o
conduziu a uma ampla sala de jantar.
— Uma sala grande, hein? E a luz do sol até que não está ruim —
disse Balda.
— E quanto à lareira?
— Vejamos. — Os olhos do anão brilharam ao se deparar com a
lareira que poderia ser ou não utilizável. — Esta é uma bela lareira.
Um pouco velha, mas deve ser melhor nem mexer nela.
— Tem certeza?
— Aqui, olha essa marca cinzelada aqui. — Balda apontou para o
emblema que Rudeus tinha certeza que já havia visto em algum
outro lugar. — Esta é a marca de um artesão gênio. Seu nome se
perdeu no tempo, mas, no Reino Asura, os implementos mágicos
com esta marca são bem caros. Mas a maioria deles são aparelhos
menores. Quem pensaria que a mesma pessoa teria criado uma
lareira toda em um lugar como este?
O cliente voltou a pensar na marca do diário que encontrara nesta
casa há poucos dias, finalmente percebendo quão semelhante era
ela com esta. O dono original da casa parecia ter construído tudo
sozinho.
— Então, o que quer fazer com este cômodo grande? —
perguntou Balda.
— Essa é uma boa pergunta. O que você normalmente faz com
um destes?
— Bem, é uma grande área. Coloque uma mesa grande e poderá
usá-la para festas. Mantenha a outra ala da casa livre. Se algo
acontecer e você não puder usar este cômodo, então poderá usar
aquele.
— Então ficaria a maior parte do tempo sem usar?
— Normalmente não, não. Então, veja bem, para a maioria de
nós, que vivemos vidas normais, uma sala grande é mais que o
suficiente.
— Suponho que você esteja certo. Então vamos usar o cômodo
da outra ala como um saguão.
— Aye.
O artesão e seu cliente continuaram a conversa enquanto se
moviam para o próximo cômodo.
— Você também tem duas cozinhas. Embora uma delas não
tenha forno.
— Então devo presumir que ela nunca foi usada? — perguntou
Rudeus.
— Tem um cano de drenagem, então provavelmente era usada
para lavar e banhar.
— Ah, então é um banheiro!
O artesão olhou para a cozinha e depois para a área de lavagem.
Ele verificou se havia deterioração e entupimentos no encanamento
e, depois, concordou.
— Este lugar está bom, não precisa de nenhum reparo. Está bem
limpo, e deve ter sido bem usado. Embora no começo possa não ter
sido tão utilizado.
— Há algo que eu gostaria de pedir — disse o cliente, seguindo a
sua deixa.
Os olhos do artesão brilharam.
— Você parece achar que algumas dessas coisas seriam
interessantes. Mas não tenho os materiais para isso, então pode
custar caro.
— Vou criar essas coisas com a minha magia.
— Tudo planejado, eh? Muito bem. Vamos ver o que podemos
fazer.
E assim o cliente confiou a sua ideia ao artesão.
✦✦✦✦✦✦✦
No dia seguinte, dez subordinados de Balda se reuniram e as
reformas começaram.
PARTE 1: PORTA
De manhã bem cedo, uma enorme porta de madeira cara e
ajustada para caber no portal foi preparada. Do lado de fora da
robusta placa de madeira havia uma aldraba em forma de leão, com
um círculo mágico desenhado na borda da porta, sendo uma
medida de segurança.
— Não é muito, mas se alguém tentar arrombar a porta, um
barulho bem alto irá ecoar por toda a casa — disse o anão. —
Também pode servir como um alarme.
O cliente audaciosamente riu da ideia do artesão.
PARTE 2: ÁREA DE LAVAGEM
Sob os cuidados qualificados do artesão, esta área estava
passando por uma grande mudança. Primeiro, foi colocada uma
partição para dividir a área em duas. O piso de pedra foi substituído
por ladrilhos, que foram inclinados em direção a um ralo em um
canto do cômodo. Em outro canto, foi instalada uma caixa de pedra
grande o suficiente para que três pessoas deitassem nela. A parte
baixa foi ligeiramente ajustada para que a caixa pudesse ser ali
colocada. Em seguida, foi instalada uma janela bem perto do teto.
Para exatamente o que serviria esse cômodo?
PARTE 3: PORÃO
O cliente e o artesão fizeram uma pausa no porão escuro.
— Esta é uma boa área para um porão. Da forma como foi
construído, será difícil ver ratos por aqui.
— Sim. Bem, a respeito desta porta escondida. Atrás dela,
gostaria que você criasse um cômodo bem assim…
— Por que você quer algo tão estranho… ah, deixa pra lá. Não
vou falar é nada. Sou um bom seguidor de Millis, mas parece que
você não é.
Máquinas e materiais foram levados para o porão, tudo para
atender aos desejos do cliente, e as manchas nos cantos da porta
escondida foram completamente removidas.
✦✦✦✦✦✦✦
Duas semanas depois, quando as reformas foram finalmente
concluídas, o cliente apareceu com a sua esposa.
— Ah, me pergunto o que é que você quer me mostrar. Estou tão
curiosa!
— Você parece estar lendo essas coisas em um pedaço de papel,
Sylphie. Você por acaso saiu reunindo informações e já descobriu
tudo?
— Eh? O que você quer dizer? Não faço ideia do que você está
falando.
Rudeus flertou com a sua esposa enquanto ela continuava
fingindo estar surpresa e emocionada, e os dois caminhavam pela
neve.
— Parece que, enquanto eu não olhava, a garotinha honesta que
eu conhecia aprendeu a mentir. Agora que penso nisso, eu talvez
devesse estar feliz. Mas se você continuar mentindo com essa
ousadia toda, fico preocupado que volte a mentir para mim no
futuro.
— Isso também é culpa sua, Rudy. Se você usar o nome da
Princesa Ariel, é óbvio que eu vou descobrir.
— Sinto muito.
— Eu fico ansiosa quando você não me conta nada, sabe. Digo,
você é tão bonito… — Sylphie se interrompeu.
— Acha que eu iria te trair? Isso é perturbador.
— Não, digo… hm, você sabe. Não sou muito… digo, meus
peitos. Eles são meio pequenos.
No momento em que o homem viu o olhar ansioso no rosto da sua
esposa, um sorriso se espalhou pelo seu.
— Como assim, você está preocupada com o tamanho do seu
peito? Não se preocupe, este velhote aqui acredita na igualdade.
Não faço discriminações. Ha ha ha!
— Velhote? Ah, ei, não comece a me tocar assim do nada! As
pessoas estão vendo!
— Sim, madame. Sinto muito.
Quando chegaram à casa, o homem estava quieto, igual um
cachorro com o rabo enfiado entre as pernas. Sua esposa ajeitou os
óculos escuros que usava e resmungou, frustrada.
— Considere a hora e o lugar. Deixe essas coisas para a noite, no
quarto! Entendeu?
— Sim, Senhorita Sylphiette. Nunca mais farei isso novamente.
— Ah, m-mas se você realmente não conseguir se segurar…
então, hmm…
— Oho? Você vai ter que falar, garota, os ouvidos deste velhote
aqui não são mais como costumavam ser.
Os dois deram uma olhada em sua nova casa.
ANTES
O musgo tampava as pedras e a hera serpenteava por todo o
exterior da casa. As janelas estavam quebradas e a porta da frente
arrombada, fora do portal. A propriedade de Rudeus exalava uma
atmosfera misteriosa, como se fosse a morada de uma bruxa.
AGORA
As pedras cobertas de musgo foram todas limpas e polidas, e
uma nova camada de tinta completamente branca foi aplicada nas
paredes externas. O telhado, antes tão fosco que não dava para
saber qual era a sua tonalidade original, adotava agora uma
coloração verde brilhante. Portas duplas acastanhadas e robustas
foram instaladas na entrada. As portas tinham aldrabas em forma de
leão, feitas com um ouro cintilante, e pareciam quase cães de
guarda.
Vendo isso, a esposa cobriu a boca.
— O que você acha?
— Hm, uh, o que eu acho?
— Escolhi uma cor parecida com a sua cor de cabelo original para
o telhado. Você podia não gostar do seu cabelo, mas eu realmente
gostava.
— Hein? Ah, entendo. Aah… — Ela manteve a mão à boca, seus
olhos cheios de admiração enquanto olhava para a casa.
— Venha, vamos entrar e ver o resto.
Os dois entraram. Havia um tapete na entrada da frente, onde
poderiam limpar os pés – uma representação dos sentimentos do
cliente à cultura deste mundo de usar sapatos dentro de casa.
— À direita está a sala de jantar. À esquerda está a sala de estar.
Qual você prefere ver primeiro?
— Hm, que tal a de “jantar” primeiro?
— Então você prefere a sala de jantar! Muito bom. Tenho certeza
de que, assim que ver, gostará ainda mais deste lugar. Por aqui. —
O nervosismo do cliente estava transparecendo em sua fala, como
se ele fosse um tipo de vendedor de carros.
Os dois caminharam do vestíbulo até um cômodo à esquerda. O
lugar anteriormente grande e vazio havia passado por uma grande
transformação. Primeiro, foi adicionada uma enorme mesa. Estava
vazia no momento, mas parecia capaz de acomodar dez pessoas.
As paredes foram revestidas com papel de parede branco e, no
canto, havia um vasinho com um arranjo de flores. A grande lareira
havia sido reparada com tijolos vermelhos novos, capazes de
realçar o resto do ambiente.
— Whoa, isso é incrível.
— Podemos comer aqui ou na sala de estar — disse o homem.
— O que vamos fazer com uma mesa tão grande?
— Tenho certeza de que a usaremos quando tivermos
convidados.
— Ah, agora faz sentido. Você está certo. Receberemos
convidados. — A garota tirou os óculos escuros e coçou a parte de
trás das orelhas.
Ele estendeu a mão e afagou a cabeça dela, sempre com um
olhar afetuoso em seu rosto. O cliente, sem dúvidas, estava
pensando não apenas nos convidados em potencial, mas também
em ocupar as cadeiras da mesa com os seus filhos.
— Então tá! Para a sala de estar.
Eles foram para a sala de estar. Exposto diante deles estava um
enorme espaço acolhedor, voltado para a família. Sofás foram
colocados ao redor da lareira. Havia uma mesa próxima com uma
jarra e alguns copos descansando em cima dela. O artesão
demonstrou magnífica engenhosidade ao concretizar o desejo por
uma casa naturalmente relaxante do cliente.
— Isso é incrível. Posso sentar?
— É claro que pode! Ah, mas por favor, não precisa mencionar
que as almofadas são duras, já sei disso. Mas me disseram que
elas vão ficar mais fofas com o uso.
— Eu ainda nem sentei. Na verdade, Rudy, faz um tempo que
você está falando de um jeito estranho.
— Só estou um pouco nervoso.
Sua esposa cautelosamente se sentou no sofá.
— Não tem nada de duro.
O cliente se acomodou ao lado de sua esposa. Ele então passou
um braço ao redor do seu ombro e os dois se encararam, seus
olhares se conectando. Sua esposa suavemente fechou os olhos
e…
Ele a levantou de novo.
— Por que não vamos ver o próximo cômodo? É a cozinha. A
Propriedade Rudeus possui uma fantástica área para a preparação
de refeições; venha conferir!
— Uh, tá!
Além do forno de pedra existente, a cozinha também contava com
uma variedade dos mais novos equipamentos de cozinha. Havia um
balcão grande o suficiente para carnear um javali inteiro, além de
um fogão com uma panela gigantesca. Havia também tonéis, potes
e recipientes de barro para fins de armazenamento.
— Isso é tão normal.
— Com certeza é.
Quando a expressão do seu marido se tornou solene, a esposa,
por sua vez, deu seu próprio aceno solene. Depois disso, foram
para a próxima área – a área de lavagem. Caminharam pelo
corredor e entraram pela porta de entrada. Quando o fizeram, a
esposa inclinou a cabeça.
— Eh? Isso é bem pequeno.
Havia um enorme balde e uma tábua de lavar ali, e nada além
disso. Era espaço mais do que suficiente para lavar roupa, mas o
que chamou a sua atenção foi a porta mais ao fundo.
— Dê uma olhada. — O cliente conduziu a sua esposa pela porta.
A visão que a esperava era a de uma enorme banheira.
ANTES
Não era nada além de um cômodo simples sem um forno de
pedra, grande demais para ser usado só para lavar roupas. Uma
segunda área de cozinha deserta.
AGORA
O chão foi substituído por ladrilhos e, na extremidade do cômodo,
havia uma enorme banheira cheia de água morna. O ângulo fora
preparado de tal forma que a água escorria suavemente pelo ralo
que fora instalado. O cômodo que antes tinha um piso de pedra era
agora um banheiro elegante.
— Hm, será que isso é… uma banheira? — perguntou a sua
esposa.
— Eu devia ter imaginado que você adivinharia. Então você sabe
o que é uma banheira?
— Ah, sim. Tive um pouco de experiência com elas enquanto
morava no palácio real. Mas é a primeira vez que vejo uma tão
grande. É isso que chamam de fonte termal?
— É um pouco diferente de uma fonte termal.
Ela não conseguiu esconder a sua surpresa. O cliente a observou
com uma expressão de curiosidade. Era quase possível ouvir sua
sinistra voz interior dizendo: “Estou ansioso para tomarmos banho
juntos, heh heh heh”, só pela expressão em seu rosto.
— Coloquei água só para te mostrar, mas normalmente vou deixar
vazia.
— Certo. Depois você pode me ensinar como usá-la. Ahh!
Ele de repente jogou os braços ao seu redor. Parecia que fora
dominado pela emoção das suas palavras.
— Nossa, o que é isso? — demandou ela.
— Fiquei preocupado com como faria você tomar banho comigo.
Então, quando te ouvi dizendo isso, simplesmente não pude evitar
— disse o cliente.
— Você estava mesmo preocupado com isso? Uma banheira não
é algo que você usa sozinho, é? A Princesa está sempre com os
seus acompanhantes. Eu já até ajudei ela a se lavar.
— Em algumas tribos há um costume onde a esposa e o marido
lavam os corpos um do outro. Já ouviu falar disso?
— Não ouvi. Isso me parece meio constrangedor, mas vou me
esforçar.
Assim que a conversa acabou, subiram as escadas e chegaram
ao segundo andar. O teto foi lindamente restaurado com painéis
brilhantes de madeira, eliminando todas as preocupações que
poderiam existir com goteiras que surgiriam com a chuva. O cliente
levou a sua esposa direto para a porta mais distante.
— No momento, este é o único cômodo do segundo andar que eu
remodelei.
— Ah, ficou incrível. — Sua esposa arregalou os olhos, surpresa,
assim que entrou. A coisa mais notável no quarto era, é claro, a
enorme cama, grande o suficiente para três pessoas dormirem
confortavelmente. Havia apenas um travesseiro ali: o favorito do
cliente. — Por que uma cama tão grande?
— Isso é óbvio, é claro. É para que possamos nos divertir de
verdade quando estivermos sozinhos.
— Ah, então é isso. Acho que faz sentido. Hee hee hee.
Ambos mostraram sorrisos de orelha a orelha.
✦✦✦✦✦✦✦
E então apresentei a nossa nova casa a Syphie, assim como seria
feito em um documentário.
Ela sentou na cama e se aninhou a mim. Estava de bom humor,
com um enorme sorriso no rosto. Fiquei feliz por ela ter gostado do
lugar. Eu queria empurrá-la para baixo e ir direto para o negócio de
marido e mulher, mas havia um outro assunto sobre o qual eu queria
conversar.
— Sylphie, já fazem aproximadamente três semanas desde que
anunciei o nosso noivado. Sei que não faz muito tempo, mas
precisamos tirar um tempo para discutir o assunto.
— S-sim.
A razão pela qual eu estava falando de forma tão rígida era por se
tratar de uma conversa séria.
Sylphie também percebeu isso, já que se endireitou.
— Embora eu tenha dito que nos casaríamos, para ser sincero,
não sei o que devo fazer. Fui em frente e comprei esta casa, mas,
honestamente, não posso deixar de sentir que estou apressando as
coisas.
— N-não acho isso. Estou muito feliz com tudo o que você fez. Na
verdade, sou eu que me pergunto se não há problema em morar em
um lugar tão luxuoso.
— Sério? Fico feliz em saber que você não acha isso
problemático, mas gostaria de discutir o que acontecerá no futuro.
O futuro. Quando falei isso, seu rosto ficou vermelho e ela, por
algum motivo, começou a ficar inquieta.
— Hm, estou bem com quantos você quiser. Mas o sangue élfico
que corre nas minhas veias é forte, então pode ser um pouco difícil
de me engravidar.
— S-sim.
Isso foi incrivelmente sexy de se ouvir. Afinal, esse não era o
Japão moderno. Eu ficaria desapontado se soubesse que ela
pretendia adiar a gravidez por razões financeiras, embora
tivéssemos acabado de nos casar. Isso mesmo. Eu era leal aos
meus instintos. E, com isso, falo a respeito do instinto animal de se
reproduzir. Em outras palavras, fazer bebês.
Mesmo assim, eu pretendia ser compreensivo com a sua carreira.
— Mas o que você vai fazer a respeito do seu trabalho para a
Princesa Ariel?
Eu não sabia o que a Princesa pensava a respeito disso tudo,
mas não via como Sylphie poderia continuar com o seu trabalho de
guarda-costas no caso de engravidar. Suponho que eu ou outra
pessoa poderíamos assumir o seu lugar em uma batalha, mas esse
não era o único serviço de um guarda-costas.
— Como assim? — perguntou ela.
— Não seria difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo?
— Já discuti a respeito disso com a Princesa. — Huh. Fazia
sentido. — Planejamos ficar neste país por no mínimo mais dois
anos e, mesmo assim, não é como se fôssemos marchar para o
Reino Asura assim que nos formarmos. Vamos esperar pelo menos
mais uns cinco anos. Então, hm…
Parecia que Sylphie não tinha a menor intenção de abandonar o
seu trabalho de guarda-costas. O fato de a desistência nunca ter
sido mencionada dizia muito sobre a força de seu vínculo com Luke
e Ariel. Me perguntei o que a velha Sylphie, aquela que era
totalmente dependente de mim, diria. Ela talvez se ofereceria para
abandonar tudo e me seguir. Isso também me deixaria feliz, mas…
— Desculpa. Agora que penso nisso, é meio injusto com você,
não é? Você me deu uma casa tão magnífica, mas não poderei
passar muito tempo nela, tudo por causa do meu compromisso com
Ariel. Acho que não mereço nem ser a sua esposa, mereço? — Ela
abaixou a cabeça, o rosto cheio de tristeza.
Neste mundo não havia nenhuma lei estabelecida de que o
homem trabalharia enquanto a mulher ficaria em casa, talvez porque
não houvesse tanta diferença no poder social entre homens e
mulheres. Ainda assim, isso costumava ser o normal.
— Será que não sou boa o suficiente? — perguntou Sylphie, seus
olhos marejados de lágrimas.
Me senti meio que culpado. Passei dois anos em abstinência.
Uma vez que a minha libido foi restaurada, a emoção incandescente
que foi reprimida por aqueles dois – não, três anos – veio à tona, e o
único pensamento em minha cabeça era: Sylphie = alguém com
quem vou conseguir transar.
Não acho que isso fosse algo necessariamente ruim. Afinal de
contas, foi Sylphie quem começou com isso, até mesmo me dando
um afrodisíaco e me deixando fazer o que quisesse com ela, mesmo
sendo a sua primeira vez. Mesmo comigo sendo um viciado em
sexo que irritava até mesmo o povo-fera. Se ela me achava
assustador, não deu qualquer sinal disso. Quando acordei na manhã
seguinte, ela olhou para mim e sorriu.
Se não fosse agora, quando seria? Se não fosse Sylphie, quem
seria? Se eu voltasse a hesitar e ela acabasse se casando com
outra pessoa, tinha certeza de que me arrependeria pelo resto da
vida. Se ela fosse tirada de mim – espera, era isso mesmo. Sylphie
já me pertencia.
— Você é minha, Sylphie.
— Eh?! Uh, sim. Sou sua, Rudy.
— Então, por favor; case comigo.
Pensando bem, podia ser a primeira vez que eu pedia isso
diretamente.
— Sim… — Suas bochechas esquentaram enquanto ela
respondia. Soltei um breve suspiro de alívio.
— Por favor, não se preocupe com o seu trabalho de guarda-
costas. Eu vou cuidar da casa. Você só precisa fazer o que precisar
fazer.
— Sim.
— Bem, eu gostaria que, se possível, você de vez em quando
dormisse comigo.
— Hein?
Ooops. Meus desejos sexuais estavam escapando.
— Por dormir, você quer dizer aquilo? — perguntou ela.
— Não, não, só se você quiser, é claro. Se não estiver preparada
para isso, posso só apalpar os seus seios e já está bom.
— Hm, vou tentar o meu melhor, tá? Não quero que você se
contenha por minha causa, sabe?
— Sim, mas também não precisa se forçar. Quando estiver
cansada, precisa se recuperar. Se me deixar te tocar um pouco
antes de irmos para a cama ou depois de acordarmos, eu mesmo
cuidarei de tudo.
Meus desejos estavam simplesmente vazando pela minha boca.
Então, parando para pensar, de qualquer forma, não havia nenhum
motivo para fingir calma para a Sylphie. Isso era o que eu era.
— Você gosta tanto assim dos meus seios?
— Eu amo eles — falei.
— Mas Luke disse que não há nada de atraente neles.
— Não confie em nada que um jovem de conversa mole como
aquele diz.
Quanto mais jovem era o cara, mais obcecado era por seios
maiores ou menores. Mas essa não era a parte importante. Era o
coração. Não é, eremita amante de seios?
— Mas o meu peito não é só um pouco diferente do seu?
— Isso não é verdade. O meu peitoral é todo esculpido, os seus
são pequenos e lindos seios. Eles são totalmente diferentes. Se não
acredita em mim, por que não tenta tocar no meu?
— Certo, tá bom.
Estufei o meu peito e Sylphie gentilmente estendeu a mão para
sentir.
— É verdade, são completamente diferentes. Os seus são meio
duros.
— Hmph! — resmunguei.
— Whoa!
Flexionei o peito, levando Sylphie a entrar em pânico e afastar a
mão.
— Esses peitorais são seus, então você está livre para tocar
sempre que quiser.
— O-os meus também são seus, mas pense bem na hora e lugar
em que vai tocá-los.
— Que tal agora?
— M-mas estamos tendo uma conversa i-importante, não
estamos?
Ah, sim. Tínhamos desviado um pouco do assunto.
— Certo… de volta ao que eu queria falar. Vamos nos comunicar
abertamente um com o outro sempre que precisarmos ou quando
estivermos insatisfeitos com algo, certo? Isso manterá a nossa vida
de casados pacífica — resumi às pressas.
Sylphie acenou com a cabeça.
— Sim, concordo.
— E, aproveitando, há algo que você também queira me dizer?
Sylphie pensou por um momento, então baixou os olhos. Com
uma expressão triste no rosto, sorriu e disse:
— Só não desapareça do nada, tá?
— Sim. — Isso mesmo. Quando alguém sumia de repente era de
partir o coração. — Entendo. Não vou desaparecer do nada.
Eu tinha dolorosamente descoberto o quanto doía quando alguém
que você ama de repente te abandonava.
Com isso, nossa conversa importante meio que acabou.
Provavelmente ainda havia uma e outra coisa que precisávamos
conversar e resolver, mas, no momento, isso já era o suficiente.
— Bem, então, posso?
— V-vá em frente. — Havia uma expressão de nervosismo em
seu rosto enquanto ela empurrava o peito em minha direção.
Estendi a mão para tocá-los, mas me contive. Da última vez,
avancei igual um animal. Desta vez, queria priorizar a gentileza com
ela acima dos meus próprios desejos. Então a tomei suavemente
em meus braços e, com calma, a empurrei para a cama.
— V-você não vai apalpar?
— Isso é para a manhã e para a noite.
— C-certo.
Olhamos um para o outro, nossos rostos próximos um do outro.
Eu podia ver o meu rosto refletido em seus olhos úmidos. Ela os
fechou suavemente. Afaguei a sua cabeça e lhe dei um beijo
estranho.
✦✦✦✦✦✦✦
Naquela noite, arrastei o meu corpo letárgico até o porão. Não
havia nada na área de armazenamento subterrâneo, já que
tínhamos acabado de nos mudar. Estava vazia, exceto por algumas
prateleiras que tinham sido instaladas. Fui ainda mais fundo e
coloquei minha mão na porta escondida que havia sido restaurada
pelo artesão anão.
ANTES
Era uma porta barulhenta que rangia e fazia barulho sempre que
abria ou fechava. Apesar de chamar de porta oculta, as bordas
costumavam estar tão sujas que dava para perceber mesmo de
relance.
AGORA
O dispositivo que abria e fechava a porta tinha sido substituído,
com uma ampla aplicação de óleo para garantir que não faria
qualquer som. Os painéis nas paredes do porão também tinham
sido completamente restaurados. Ninguém faria ideia de que havia
uma porta escondida no local.
Eu silenciosamente abri a porta. Escondido lá dentro estava um
pequeno santuário de madeira não envernizado. Era lá, dentro de
um altar construído com uma pedra negra e lustrosa, que minha
relíquia sagrada estava. A velha sala de pesquisa empoeirada foi
completamente limpa e transformada em um espaço de adoração.
Lá, no silêncio da noite, enquanto tudo o mais dormia, ofereci uma
prece ao meu deus nesta nova terra sagrada.
Capítulo 05: Preparações para a Recepção do
Casamento
Passou uma semana desde que as reformas foram concluídas.
Ariel deu sete dias de folga, como um gesto de consideração, para
Sylphie, e eu aproveitei esse tempo todo para ser mimado por ela e,
em troca, também a mimei. Passamos noites românticas, tão doces
quanto mel, juntinhos.
Ou ao menos era o meu desejo… Mas não foi o caso.
Agora que eu era o rei de meu próprio reino, havia coisas que
precisava fazer. Neste mundo, parecia que, quando recém-casado,
convidar os amigos mais íntimos para uma refeição após comprar
uma casa era como uma norma. Não era só a inauguração da casa,
mas algo que era feito especificamente quando fosse se casar e
comprar uma casa nova. Em outras palavras, uma recepção de
casamento.
Eu e Sylphie nos sentamos em um dos sofás da sala de estar com
as nossas cabeças chegando a doer. Abaixo de nós estava o motivo
para o nosso estado: a lista de pessoas para quem enviaríamos
convites. Havia também um mapeamento para determinar os
assentos.
— Realmente temos um grupo de amigos bem diversificado…
Eu estaria convidando Elinalise, Zanoba, Julie, Cliff, Linia,
Pursena e Badigadi. E ainda tinha que decidir se também convidaria
Jenius e Soldat ou não. Sylphie estaria convidando Ariel, Luke e
outros dois. Seriam, ao todo, umas onze pessoas. Eu gostaria de
também contar com a presença de Paul e minha família, mas não
poderia convidar pessoas que estavam sabe-se lá onde. Até enviei
uma carta informando sobre o meu casamento, mas quem sabia
quanto tempo levaria para a receberem?
— Temos a realeza, gente-fera, um demônio, uma escrava, uma
aventureira, e algumas dessas pessoas não conseguem nem ficar
de boca fechada. Prevejo problemas.
Linia e Pursena ainda tinham rancor de Ariel, e eu já podia
imaginar as faíscas voando assim que se encontrassem. Se fosse
uma cerimônia de casamento do meu mundo anterior, poderíamos
apenas colocá-las em extremidades opostas do ambiente para
evitar que se encontrassem, mas mesmo os maiores cômodos desta
casa não eram bem salões de baile.
— Acha mesmo? A Princesa Ariel não causaria qualquer rebuliço
em uma situação como esta — disse Sylphie.
— Ainda assim, eu não gostaria que ela ficasse de mau humor por
causa de algo que pode acabar acontecendo na nossa festa. Talvez
seja melhor dividirmos tudo em duas partes, evitando confusão.
— Hmm. Mas a Princesa Ariel realmente quer conhecer os outros,
ainda mais considerando que alguns de seus amigos ocuparão
cargos importantes no futuro.
Imaginei Ariel ficando toda animada enquanto passava a sua
maquiagem, dizendo: “É a minha chance! As recepções de
casamento costumam ter muitos homens sensuais que são difíceis
de encontrar!”
Não, eu sabia que não era isso que ela queria. A Princesa queria
construir conexões com os outros alunos especiais. Afinal, ela
estava calculando tudo.
— Tudo bem, então vamos convidá-la com o aviso de que não
somos responsáveis pelos atos de ninguém. Então o único
problema que sobra é a ordem dos assentos.
Não achei que poderiam simplesmente sentar onde quisessem.
Mas, ainda assim, seria difícil colocá-los em ordem de importância.
Que ordem poderíamos assumir para não ofender ninguém?
Badigadi era um Rei Demônio em atividade, então era o com a
maior autoridade de todos, mas logo depois estavam Ariel, Zanoba,
Linia e Pursena. Um verdadeiro monte de gente da realeza ou
equivalente a isso. Além do mais, Cliff parecia ser o tipo de pessoa
que reclamaria se fosse colocado na outra ponta da mesa. Não,
espera – apesar da sua personalidade, ele aprendeu etiqueta da
corte. E, por mais surpreendente que possa parecer, podia não criar
problemas com isso. Além do mais, contanto que colocássemos
Elinalise com ele, ela nos cobriria.
Julie era quem tinha o menor status de todos, sendo uma escrava,
então seria quem se sentaria mais afastada. Mas eu não queria
deixar ela longe de Zanoba. Ela ainda era uma criança e não era
completamente fluente no idioma. Além disso, também era minha
aluna. Devia haver algo que eu pudesse fazer.
— Que tipo de status os acompanhantes da Princesa têm?
— Hm, são nobres de posição intermediária.
Com base no que Sylphie falou, presumi que fossem mulheres.
Decidir onde acomodá-las estava se provando difícil. E o mesmo
podia ser dito a respeito de Luke. Provavelmente não seria bom
colocá-lo muito longe da Princesa. Não achei que fosse provável, já
que os convidados seriam apenas os meus amigos, mas seria ruim
se Ariel acabasse de alguma forma sendo assassinada.
— Hm? Não esquecemos de ninguém? — perguntou Sylphie
enquanto olhava para a lista.
Também olhei. Esquecemos alguém? Quem poderia ser? Não
achei que tivéssemos. Ou será que ela estava falando da Senhorita
Goliade?
— Ah, é mesmo! Senhorita Nanahoshi! Precisamos convidá-la
também!
Verifiquei os nomes só para ter certeza, e Setestrelas Silente não
estava entre os listados. Eu tinha mesmo esquecido dela. Porém…
— Imagino se ela vai mesmo vir — falei.
— Tenho certeza que sim.
— Acho que podemos pelo menos convidá-la. — Eu não
pretendia excluí-la, mas ela parecia ter se fechado completamente
para este mundo. — Depois de termos feito toda a preparação, o
que vamos fazer se ninguém aparecer?
O episódio de Natal de um certo anime me veio à mente. Um
personagem tinha feito de tudo, inclusive um bolo, só para a
ocasião, mas acabou acontecendo de ninguém aparecer. Foi um
episódio comovente.
— Posso te prometer que a Princesa Ariel e Zanoba, no mínimo,
estarão presentes. A Princesa Ariel gostaria de conhecê-lo melhor, e
Zanoba sabe que se ele não viesse, estaria destruindo a sua
confiança. — Sylphie, em um único instante, conseguiu curar toda a
minha ansiedade. Claro que Ariel apareceria com seus três
seguidores, e meus dois alunos, Julie e Zanoba, também estariam
presentes. Esses eram seis comparecimentos garantidos. Mesmo
se não convidássemos Zanoba, ele provavelmente se prostraria em
frente ao nosso portão, implorando para que deixássemos que
participasse. — Parece que você se preocupa bastante com esse
tipo de coisa, hein?
N-não é como se isso me deixasse particularmente incomodado.
Não sou o tipo de pessoa que começa a suar por esse tipo de
coisinha. Sou um cara descontraído!
— Tenho certeza de que Linia e Pursena também virão. A gente-
fera não é do tipo que recusa um convite de alguém de status
superior — comentou Sylphie.
— Sério?
— Sim, e se elas não vierem, só teremos que colocá-las no
devido lugar de novo.
Sylphie me disse que, de acordo com o costume do povo-fera, era
assim que as coisas funcionavam. Parando para pensar nisso, Gyes
podia ter se prostrado na minha frente porque pensou que, se não
fizesse aquilo, Ruijerd poderia ficar irado. E ele também nem
reclamou quando levou um chute de Eris.
— Acho que Cliff com certeza também comparecerá, já que
inclusive pediu para ser convidado — falei.
— Pessoalmente, eu gostaria que Elinalise viesse — murmurou
Sylphie.
Elinalise? Pensei no porquê. Eu nunca tinha visto as duas
conversando antes.
— Tem uma coisinha que eu gostaria de perguntar a ela —
explicou Sylphie. — Mas não é nada de demais.
Me perguntei o que poderia ser. Será que ela queria perguntar se
nós dois dormimos juntos? Bem, não existia nada entre nós dois,
então eu não me incomodava com ela querendo detalhes.
De qualquer forma, já estávamos planejando tudo. Com mais de
dez convidados presentes, precisaríamos servir bastante comida,
então decidimos ir às compras. Juntos, caminhamos lado a lado em
direção ao Distrito Comercial.
— Antes de comprarmos os mantimentos, gostaria de comprar
algumas roupas novas para você, Rudy — sugeriu Sylphie.
Olhei para o que eu estava vestindo. Estava usando o meu robe
cinza de sempre. Não havia necessidade para se aquecer com
casacos pesados durante o dia.
— Hm, eu gosto de como você fica com o seu robe, mas existem
pessoas que prestam atenção a esse tipo de coisa, e se te vissem
usando alguma roupa esfarrapada… hm, bem, sabe? Ou você é
muito apegado a esse robe?
Eu na verdade não pensava muito no meu guarda-roupa. Quando
eu era aventureiro, conheci pessoas que pareciam muito mais
desleixadas. Mas a verdade é que se eu parecesse todo
desgrenhado iria acabar abalando a reputação de Sylphie. Não
poderia envergonhá-la dessa forma.
— Acho que sim. Foi o primeiro robe que comprei no Continente
Demônio, por isso sou bastante apegado, mas isso parece bem
cafona.
A única outra coisa que eu tinha era um colete de pele. Não
combinava muito com um mago, então fazia algum tempo que eu
não o usava. Além disso, era um pouco surrado demais para usar
enquanto estava com Sylphie. Eu ficava parecendo um bandido.
— Então vamos a uma loja de roupas. Escolha o que você quiser
— falei.
— Obrigada. Pode deixar isso comigo.
Fomos para uma loja bem chique, não era um lugar em que eu
colocaria os pés por vontade própria. Sylphie colocou os óculos
escuros e retomou a sua personalidade de Fitz.
— Ah, Lorde Fitz, que bom te ver. Agradecemos muito pelo seu
constante apoio. — O proprietário fez uma enorme reverência para
Sylphie. Ela parecia ser uma cliente regular; em outras palavras, a
Princesa Ariel frequentava o lugar enquanto se disfarçava de Fitz.
Um lugar que atendia à realeza Asurana. Poderíamos pagar por
isso? Mas que grande indutor de ansiedade.
— Poderia me mostrar alguns robes para magos?
— Mas é claro. Por aqui, por favor.
Aparentemente, mesmo lojas chiques como essa também tinham
vestimentas para magos. Acho que fazia sentido; os magos estavam
por toda parte, ainda mais em Sharia. Esta era uma cidade onde até
as crianças nobres praticavam magia.
Fomos conduzidos a uma seção com dezenas de roupas
finíssimas, todas feitas com materiais que pareciam caros. Parecia
que os robes de magos tinham sempre o mesmo formato e estilo,
independente de onde fosse comprar, embora alguns tivessem
bordados delicados.
— Com licença, posso perguntar quais são os elementos de sua
preferência? — perguntou o proprietário.
— Ah, sim. Acho que seriam água e terra.
— Nesse caso, que tal este aqui? É feito da pele de um lagarto
tropical da Grande Floresta e é bastante resistente à água. Criado
por Foglen. É também a mesma pessoa que produz as vestimentas
para os magos da corte real de Ranoa.
Hmm. Se a memória não me falhava, o lagarto tropical não tinha
uma resistência particularmente alta à água. Lutamos contra eles
em algumas de nossas viagens, mas sempre congelavam quando
eu usava magia de água neles.
— Se preferir terra, este também pode servir. Feito com o couro
de uma grande minhoca do Continente Begaritt, pode resistir até
mesmo a uma tempestade de areia. Foi estilizado por alguém
promissor, Flone, que está recebendo reconhecimento por seu uso
criativo das cores. Além disso, será difícil para os monstros te
localizarem. — Enquanto falava, ele mostrou um robe com estampa
de camuflagem do deserto. Me perguntei se o nome do estilista era
algo essencial para essas lojas chiques.
Eu não tinha nada contra a camuflagem, mas algo não me parecia
certo. Se fosse usar esse tipo de coisa, preferia camuflagem para
climas invernais.
— Syl… Digo, Mestre Fitz, qual você prefere?
— Vejamos… que tal este aqui? É bem parecido com o que você
está usando agora — disse ela, pegando um robe com um tom
cinza ainda mais escuro do que aquele que eu estava usando, um
quase preto. Como é que chamavam essa cor mesmo? Cinza
carvão? Também era mais detalhado do que o meu atual. Havia
bolsos e botões pretos para fechar as mangas, além de uma corda
que poderia ser usada como cinto.
— Este é feito da pele de uma ratazana sortuda do Continente
Demônio. Estilizado por Kazra, também conhecido por seus designs
discretos, que tendem a ser populares entre os clientes um pouco
mais velhos.
— Um rato sortudo?
— Não, não, uma ratazana sortuda, senhor. Uma espécie superior
à ratazana imunda, equivalente a um monstro de classe D. Seus
couros são esplêndidos, com excelente resistência a venenos e
ácidos.
A propósito, eu tinha visto uma dessas criaturas enquanto viajava
pelo Continente Demônio. A ratazana imunda tinha vinte polegadas
de altura e a sortuda era ainda maior. Na primeira vez que as vi,
fiquei horrorizado. Uma horda daqueles bichos enormes infestou um
armazém, com uma única ratazana sortuda no meio deles. Acho
que fiquei atrás do grupo todo, estupefato, enquanto Ruijerd e Eris
acabavam com tudo.
Tirando isso, gostei bastante do robe. Minha esposa tinha bom
gosto. O que me preocupava era o valor – e quando dei uma
olhada, sim, era caro. Com esse valor poderia comprar até uma
casa no Continente Demônio.
— Bem, dizem que nomes representam a natureza — falei. — Se
há “sortuda” no nome, talvez me traga boa sorte. Acho que vai ser
esse mesmo.
— Os nomes representam a natureza? Perdoe as minhas
maneiras, mas posso perguntar o seu nome?
— Ah, sim. Meu nome é Rudeus Greyrat.
— Minha nossa, você é um membro da família Greyrat? Perdoe a
minha grosseria. Mestre Luke é um precioso benfeitor de nosso
estabelecimento, então, desta vez, darei um desconto na compra.
Isso era o que eu pensava? Uma maneira de ganhar o
favorecimento de Luke? Não, não era isso. Ele talvez estivesse
apenas tentando nos encorajar a voltar sempre que precisássemos
fazer compras. Seja lá o que fosse, fiquei feliz com o desconto.
— Luke vem sempre aqui? — perguntou Sylphie.
— Você já não é ciente disso, Lorde Fitz?
— Ah, sim. Hm, digo, além de quando vem comigo.
— Sim, ele sempre vem aqui com mulheres diferentes.
Enquanto Sylphie continuava conversando com o proprietário, fui
puxado por uma das funcionárias da loja, para que tomasse as
minhas medidas. O robe que vimos era apenas para exibição; iriam
ajustar um para o meu tamanho. A funcionária usou uma fita métrica
para tirar minhas medidas básicas, e me perguntei se vendiam
essas coisas em uma loja de itens mágicos. Eu queria fazer
algumas brincadeiras com Sylphie, algumas que envolvessem tirar
as suas medidas.
— Temos os materiais em mãos, então ficará tudo pronto dentro
de três dias. Se nos disser o seu endereço, podemos mandar
entregar.
Nos sentindo felizes e um pouco envergonhados, passamos o
endereço da nossa nova casa.
Depois disso, fomos às compras. Primeiro, compramos
especiarias. Depois, os não perecíveis. Graças às rotas de
distribuição desenvolvidas por Nanahoshi, também pudemos
facilmente obter óleo de cozinha. Também pegamos alguns peixes
congelados e vegetais que durariam um tempo, então
encomendamos um pouco de carne que compraríamos em uma
data posterior.
— Você sabe cozinhar, Sylphie?
— Sim. Aprendi com a minha mãe e com a Senhorita Lilia. Ah,
mas não sei se você vai gostar da minha comida.
— Vou dizer que ficou delicioso, mesmo se queimar até virar
carvão.
— Queimar até virar carvão? Vamos lá, por quem você acha que
me esforcei tanto para aprender a cozinhar?
Bom senso de moda e boa na culinária. Pensando bem, ela disse
que também sabia lavar roupa e limpar. Ao contrário do que sua
aparência indicava, minha esposa era uma mulher muito capaz.
— Senhorita Sylphiette, você é uma esposa tão ideal que não
consigo deixar de ficar nervoso por não ser digno de você — falei.
— Você sabe que também é o meu marido ideal.
— B-bem, se tiver alguma parte minha que não esteja tão ideal,
pode falar. Vou me esforçar para corresponder às suas expectativas.
— Nesse caso, seja mais assertivo. Você às vezes é meio
submisso.
Mais assertivo? E o que aconteceria comigo se eu fizesse isso e
minhas ações de alguma forma acabassem com o bom humor de
algum deus que poderia estar passando? Havia pessoas neste
mundo que batiam nos outros até a morte, só pelo crime de olhar
para elas de uma forma meio engraçada.
Então, mais uma vez, eu gostaria de me casar com um homem
sem nenhuma confiança e que não fazia nada além de ficar sentado
na sala de estar, no máximo lendo o jornal? Não.
Então tudo bem. Acho que vou ser mais confiante a partir de
agora. A partir de hoje, serei um otário presunçoso!
— Hmph. Sylphie. Certifique-se de mostrar o quanto você me
ama. Não relaxe nisso.
— Hm, não foi bem isso que eu quis dizer, mas tá bom. Vou dar o
meu melhor — disse Sylphie enquanto fechava a mão em um
punho.
Aww, minha Sylphie é tããããão fofa! Só quero ficar de esfrega-
esfrega com ela!
Mas consegui me conter. Sylphie não era uma grande fã de
demonstrações públicas de afeto em ruas movimentadas. Se eu
tentasse tocá-la onde estávamos, ela com certeza me repreenderia.
Mas ela não se importaria se eu passasse o meu braço ao redor do
seu ombro, certo? Não, será que não deveria primeiro segurar a sua
mão? Claro, apesar do meu debate interno, as minhas mãos
estavam ocupadas com as sacolas de compras. Grrr.
— Também precisamos comprar alguns pratos grandes. Ah, acho
que você pode simplesmente fazê-los.
— Contanto que você não veja problema em serem placas feitas
de pedra — falei.
— Os que você faz não parecem feitos de pedra, então está tudo
bem.
Então era uma questão de aparência, hein? Bem, se ela
realmente quisesse algo agradável aos olhos, então eu faria e poliria
de forma tão espetacular que poderia ver até mesmo o próprio
reflexo. Aquele tipo de cerâmica assada pela qual o Japão era
conhecido não parecia ser tão popular neste mundo. Pareciam
preferir algo mais chique do que a estética wabi-sabi1 japonesa. Ou
será que deveria me esforçar para criar algo tipo porcelana?
Entretanto, seja lá o que fizesse, continuaria sendo cinza ou
marrom.
— Precisa de mais alguma coisa? — perguntei.
— Hm, um pouco de chá para servir aos convidados.
Chá preto e xícaras de chá, hein? Certo, sem problemas. Talvez
devêssemos aproveitar e também comprar um tapete. E preparar
um quarto de hóspedes poderia ser uma boa ideia, só para garantir.
— Devemos comprar coisas como uma cama e um armário para
hóspedes?
— Ah, boa ideia.
Nossa casa era tão grande que a mobília estava lenta, mas
seguramente, limpando os meus bolsos. Fiquei feliz por nunca ter
desperdiçado dinheiro com a compra de implementos mágicos e
coisas do gênero. Eu ainda tinha algum dinheiro guardado, graças
ao desconto que consegui na compra da casa, mas estava
sobrando menos a cada compra. Será que devia caçar alguns
monstros para conseguir mais dinheiro? Não, não podia fazer isso.
Quão estúpido seria se eu fosse e morresse enquanto fazia uma
missão de eliminação por um motivo trivial desses?
De repente consegui entender por que Paul havia buscado aquela
posição de cavaleiro para receber um salário estável.
— Hm, Rudy, não se preocupe. Tenho algum dinheiro do meu
trabalho com a Princesa Ariel guardado.
— Ugh, sinto muito.
Supus que se a necessidade surgisse, eu poderia me juntar ao
grupo de Soldat ou de alguma outra pessoa. Espera aí, não. Os
aventureiros passavam dias a fio longe de casa, e ainda por cima
recebiam relativamente pouco. Talvez devesse começar a pensar
em também procurar um emprego estável.
Casamento era mesmo algo complicado.
✦✦✦✦✦✦✦
Naquela noite, convidei Sylphie para se juntar a mim na banheira,
supostamente para ensiná-la a usá-la. Mas a minha verdadeira
motivação era a de passar algum tempo de qualidade juntos. Se
fosse um livro, poderia narrar as coisas da seguinte maneira: Um
pervertido estava prestes a cravar suas presas em uma adorável
jovem.
Esta noite eu vou fazer isso. Vou fazer mesmo! Apenas observe,
Pai!
Espera, “Pai” seria o Paul, certo? Então é melhor que não
observe.
— Pois bem — expliquei. — A etiqueta para a hora do banho em
nossa casa é um pouco diferente daquela da família real Asurana.
Primeiro, fomos para a área de lavagem, que também servia
como vestiário. Lá, falei, ela deveria tirar a roupa e colocá-la em
uma das cestas. Desta vez, eu mesmo tirei tudo, depois dobrei e
joguei em um dos cestos.
Sylphie tinha uma corporatura pequena e sem gordura corporal
extra, mas não era toda ossuda. Mesmo sendo magra, era
musculosa. Embora os seus seios fossem pequenos, ainda eram
macios e bem torneados. Só de olhar para ela a minha respiração já
ficou irregular.
— Hm, uh, você precisa mesmo tirar a minha roupa? — perguntou
Sylphie.
— Não.
— E por que a sua respiração está tão pesada?
— Porque estou excitado.
— Hm, e precisa ficar excitado para entrar na banheira?
— Não.
Respondi cada uma das perguntas de forma apropriada, tudo
enquanto me despia rapidamente para que pudéssemos ir para a
área de banho. Não havia chuveiro nem espelho, mas havia um
balde e uma cadeira. Só por diversão mesmo, escrevi “Kerorin” no
balde, assim como o anúncio de aspirina que sempre se vê nos
baldes dos banheiros públicos japoneses.
— Antes de entrar, precisa passar um pouco de água nos ombros.
Então sente-se e use este pano e o sabão para lavar o seu corpo.
— Ei Rudy, por que tem um buraco no meio desta cadeira?
— Para deixar mais fácil de lavar o corpo, é claro. — Umedeci o
pano com água morna, passei no sabão e comecei a lavar o corpo
de Sylphie. Me concentrei principalmente na parte de trás das suas
orelhas, na cavidade da sua clavícula, suas costas e outras áreas
que sujavam com facilidade. Nas áreas mais macias usei a minha
mão, naquelas que não pretendia esfregar com o pano. Era para
isso que o buraco estava lá.
— Hm, já faz um tempo que você parou de usar o pano, e está se
concentrando só nesses lugares. Além disso, a sua coisa está
pressionada em mim.
— Opa, foi mal.
Meus desejos aparentemente estavam aflorando. Mas isso não
poderia continuar assim. Isso não fazia parte da etiqueta do banho
na nossa casa.
— Hm, se você realmente não consegue se conter, hm, bem,
podemos ir em frente e fazer?
— Faremos isso depois do banho.
O banho em primeiro lugar. Tínhamos que lavar os nossos corpos.
— Depois que você terminar de esfregar todas as partes do corpo,
vai para a cabeça. Agora feche os olhos.
— C-certo. — Sylphie fechou os olhos com força. Que fofa. Isso
me fez querer beijá-la e puxá-la em minha direção para algumas
saliências, mas empurrei esse pensamento para o fundo da minha
mente. Baixar a minha guarda, mesmo que fosse por um só
instante, poderia ser fatal. Ufa, essa coisa toda de lavar tudo era
infernal.
— Depois de molhar o cabelo com a água, use o sabonete para
ensaboá-lo. Não só a cabeça, mas todos os lugares do seu corpo
que tenham cabelo. Mas não precisa lavar o cabelo com tanta
frequência. — Enquanto falava, continuei lavando o seu cabelo. Ele
era curto e fácil de limpar. — Assim que terminar, certifique-se de
enxaguar tudo com água morna. — Usei magia para conjurar água e
enxaguar o seu cabelo.
Ela soltou uma risadinha.
— Isso me lembra de quando nos conhecemos.
Ah, sim… Naquela época também usei água morna para
enxaguá-la. Aquilo foi em Buena Village, na época que comecei a
andar pela cidade. Encontrei Sylphie chorando enquanto as crianças
da vizinhança a intimidavam. Ela estava levando o almoço para o
seu pai, até que a abordaram e começaram a jogar lama nela. Então
a salvei, depois usei água morna para lavá-la e uma brisa quente
para secá-la. Naquela época a Sylphie parecia um garoto, em partes
porque o seu cabelo era curto.
Ah, isso realmente despertou algumas memórias. Eu nunca
poderia ter sonhado que aquele garotinho se tornaria a minha
adorável esposa. A vida com certeza leva as pessoas a alguns
lugares inesperados.
— Depois que terminar de se lavar, é a vez da banheira. Tome
cuidado; é fácil de escorregar.
Sylphie seguiu as minhas instruções e deslizou, afundando na
água. Mantive a água ligeiramente quente, só para que pudéssemos
desfrutar de um longo banho juntos.
— Ah, posso sentir o calor se infiltrando por meus braços e
pernas. Isso é tão bom.
Parecia ser isso mesmo. Muito bom.
Assim que fiquei convencido de que Sylphie estava gostando do
banho, comecei a me lavar. Sério, eu meio que gostaria de poder
ensaboar o corpo dela e usá-lo para ensaboar o meu, mas desta
vez iria me segurar. Não havia necessidade para fazer tudo de uma
só vez. Iria tratá-la com cuidado, ser gentil.
—…
De repente, percebi que Sylphie estava me espiando. Achei que
ela talvez estivesse me observando só para ter uma boa perspectiva
de como lavar o corpo antes de entrar na banheira, mas não parecia
ser o caso. Devia ter ficado intrigada com a visão daquela parte do
corpo que eu tinha e ela não. Pura curiosidade, presumo.
— Uff.
Assim que terminei de me lavar, afundei na banheira, certificando-
me de colocar uma toalha de mão sobre a minha cabeça. Quando
mergulhei na água quente, pude sentir meu fluxo de sangue
melhorando e correndo para meus braços e pernas gelados. Ahh,
banheiras são tão boas. O auge da cultura humana. Na minha vida
anterior costumava odiar isso, já que considerava o ato de me lavar
como sendo um incômodo. Agora, gostava da sensação. Viver em
um país coberto por neve me ensinou como os banhos eram
preciosos.
— A propósito, não coloque o pano com que se lava na banheira
— falei.
— Por que não?
— Para não sujar a água.
Porém, como éramos uma família, isso não importava tanto.
Também existiam banheiros públicos neste mundo, então não havia
necessidade para seguir essa regra. Enquanto eu pensava nessas
coisas, Sylphie se aninhou contra mim. Ela segurou a minha mão e
apoiou a sua cabeça úmida no meu ombro.
— Quanto tempo devemos ficar aqui?
— Até que você possa sentir o calor correndo todo o caminho até
a medula dos seus ossos. — Passei um braço em volta do seu
ombro e a puxei mais para perto. Quando fiz isso, ela se virou e
posicionou o corpo de um jeito que parecia que estava sentada em
cima de mim. Nós dois nos pressionamos um contra o outro. As
cerejinhas de Sylphie estavam se esfregando contra o meu peito.
Merda. Senti que não seria capaz de continuar me contendo.
Homens deveriam mostrar resistência e mulheres amor. E, por
amor, não quero dizer sucos de amor.
— Hee hee, isso é meio divertido — disse ela com uma risadinha.
Olhei para ela. Podia ver as suas costas esguias e a sua
bundinha, bem como as suas pernas finas batendo na superfície da
água. Havia um movimento em volta do meu peito e ombros:
Sylphie estava se agarrando a mim, enterrando-se no meu pescoço.
Dessa posição, acariciou o meu corpo com as suas mãos.
Heh heh, siga em frente e me acaricie o quanto quiser. É para isso
que servem esses músculos.
Há muito tempo eu olhava para Sylphie e pensava que ela um dia
seria um lindo homem. Em vez disso, acabou se tornando uma
mulher linda, adorável, que superou todas as minhas expectativas.
Eu talvez estivesse apenas sendo influenciado pelos meus
sentimentos por ela, mas que seja. Esta linda mulher estava agora
nua e agarrada a mim. Nesse ritmo, íamos acabar soltando algo que
depois desceria pelo ralo.
Acariciei as suas costas, depois fui para as suas axilas e suas
laterais. Mmm, ela era tão esguia.
— Rudy, isso faz cócegas — disse Sylphie, contorcendo o corpo.
O símbolo do meu desejo ficou algum tempo pressionando contra
o seu corpo, mas ela não expressou nenhuma reclamação. Sylphie
ficava zangada se eu a tocasse enquanto voltávamos para casa,
mas baixava a guarda nesse cenário. Ela estava à minha mercê. O
que quer que eu fizesse, ela permitiria.
E então olhou nos meus olhos. E eu olhei nos dela. Nossos
olhares se encontraram por um caminho natural. E, de repente,
Sylhpie soltou uma risadinha, sua expressão toda sorridente.
— Rudy, te amo — disse ela enquanto dava um beijo na minha
bochecha.
Merda.
— Agh!
A agarrei nos braços, como se fosse uma princesa, e a tirei da
banheira, jogando água para todo lado. Ainda estava ensinando a
etiqueta do uso da banheira a ela, mas poderia continuar com isso
depois que terminássemos. Ainda encharcados, marchei até o
nosso quarto, lá no segundo andar.
Capítulo 06: Sediando a Recepção do Casamento
Alguns dias depois…
Planejamos realizar a recepção do casamento à tarde, já que era
feriado. Jenius recusou o convite, assim como Soldat, por estar
ocupado com algumas reuniões. Achei que Badigadi também estaria
ocupado demais para comparecer, mas, por incrível que pareça,
estava livre e disse que apareceria. Os outros onze convites que
enviamos foram todos aceitos. Sim, até mesmo o de Nanahoshi.
No dia da recepção, Sylphie ficou animada desde a hora em que
acordou.
— Isso é trabalho da esposa, então deixe comigo! — disse ela
enquanto se movimentava pela casa. Havíamos preparado um
cômodo vazio do segundo andar para a ocasião, ou seja,
mobiliamos com uma cama modesta, armário e mesa, além de uma
jarra de água para o caso de alguém passar mal e precisar se deitar.
Linia e Pursena foram as primeiras a chegar, enquanto estávamos
bem no meio do progresso de nossos preparativos. Chegaram duas
horas antes do esperado
Não me diga que erraram a hora, pensei.
— Na nossa raça o costume é de que os convidados cheguem
cedo e tragam a sua própria caça, mew.
— Isso mesmo. Chegamos aqui primeiro. Isso é uma
demonstração da nossa lealdade.
Havia um javali gigante sobre o trenó que arrastavam atrás delas.
Parecia que, de acordo com a tradição do povo-fera, ao comparecer
em um casamento, o esperado era que saíssem para caçar e
oferecessem a caça ao anfitrião. O quão cedo saíssem para caçar,
matar e entregar a caça, entretanto, era uma forma de mensurar o
respeito pelo anfitrião.
— Incrível. Mas o que vocês planejavam fazer se não
conseguissem caçar nada?
— Nesse caso, podíamos comprar algo no mercado, mew.
— Sim, poderíamos gastar algum dinheiro com isso.
Concluí que fazia sentido.
As duas estavam usando seus uniformes escolares. Isso era algo
que eu tinha pedido. Havia uma grande disparidade de riqueza entre
os convidados, então, caso os ricos exagerassem demais com
vestimentas luxuosas, isso faria com que os demais se sentissem
deslocados. Felizmente, todos os participantes tinham uniformes –
exceto Julie, e, assim sendo, compramos um para ela.
As convidei para relaxar na sala de estar, ao menos até que as
festividades estivessem a ponto de serem iniciadas. Receber os
convidados era tarefa do marido. As duas estiveram fora desde a
manhã e estavam congelando de frio. Elas se acomodaram no sofá
mais próximo à lareira e se aninharam uma contra a outra.
— Deixando isso de lado, nunca imaginei que você e Fitz se
casariam, Chefe, mew.
— Então Fitz era uma garota. Sempre fiquei pensando nisso por
causa do cheiro.
— É, mew. Mas agora tudo faz sentido, mew.
As duas ficaram acariciando o rabo uma da outra enquanto
falavam. Havíamos compartilhado a verdadeira identidade de Fitz
com os convidados, pedindo que, por enquanto, guardassem esse
segredo, embora fosse inevitável que a verdade acabasse se
tornando pública em algum momento.
— Faz sentido? — perguntei enquanto servia chá quente para
elas.
— Você tem preferência por peitos planos — disse Pursena.
— Mesmo com o fedor da excitação emanando de você, a razão
pela qual não nos atacou foi por não sermos o seu tipo, mew.
As duas falavam como se eu fosse um tipo de pervertido que
atacaria qualquer mulher que visse pela frente. Sério, que rude da
parte delas. Talvez devesse apalpá-las como forma de retaliação –
mas, não. Já tinha me saciado o bastante com Sylphie no dia
anterior. Todo o meu desejo era agora direcionado a ela. Eu era
agora um sábio.
Os próximos a chegar foram, surpreendentemente, Julie e
Zanoba. Chegaram cerca de uma hora antes da festa.
— Perdão. Vi uma estatueta interessante no caminho para cá e
ela me distraiu. Teria acabado em apuros se Julie não estivesse
comigo — disse ele.
Julie também estava de uniforme. Era feito para anões e cabia
perfeitamente nela, que parecia tão fofa quanto um botão de flor.
— Grão-mestre, obrigada por ter nos convidado hoje — disse ela
enquanto levantava a ponta da saia ligeiramente em uma educada
saudação. Aww, que fofa.
Zanoba voltou a se curvar quando olhei em sua direção. Então,
em um tom profundamente respeitoso, disse:
— Mestre Rudeus Greyrat. Estou profundamente grato pelo seu
convite.
Uau. Ele estava sendo normal. Muito bom. Então, eu talvez
devesse seguir o seu exemplo e responder com o mesmo nível de
sinceridade.
— Zanoba, Vossa Alteza, você tem minha gratidão por…
— Ah, Mestre. Não há necessidade de me mostrar tal cortesia.
Sei que é apenas por aparência, de qualquer forma. Prefiro que
você seja rude comigo, assim como de costume.
— Ah, tá bom. Bem, então pode ir para aquele cômodo ali.
— Ha ha, muito bem. Então venha, Julie, vamos para lá.
Mas que diabos? E ali estava eu, tentando ser sério. Mas que
desperdício, pensei enquanto preparava mais chá. Eu ainda era o
anfitrião e ele um convidado, mesmo se eu o tratasse com
grosseria. Enquanto me preocupava, ouvi as vozes arrogantes de
Linia e Pursena vindo da sala de estar. As duas estavam se
gabando de como chegaram antes. Pude sentir a frustração nas
respostas de Zanoba, mas fiquei feliz por estarem se divertindo.
O terceiro a chegar foi o grupo de Ariel, trinta minutos antes do
início da festa. Eram Ariel, Luke e outras duas estudantes que eu
nunca tinha visto. Então eram elas as atendentes da Princesa? O
que significava que também eram companheiras de batalha de
Sylphie. Eu não podia me dar ao luxo de ignorá-las.
— Estou muito grata pelo seu convite hoje. Infelizmente, não
estou familiarizada com a etiqueta das pessoas comuns, então peço
que me perdoe por qualquer possível descortesia — disse Ariel
enquanto se curvava. Eu presumi que apenas Luke e as atendentes
se curvariam, mas ela talvez estivesse tentando ser educada.
— Há convidados de muitas raças diferentes reunidos, então, por
favor, não se preocupe com a etiqueta — falei. — Na verdade, fico
mais preocupado é a respeito de se você será a única
demonstrando alguma descortesia.
— Meus agradecimentos. Garotas? — Ela fez um sinal de olhos e
as duas atendentes avançaram.
— Somos as atendentes da Princesa Ariel. Me chamo Ellemoi
Bluewolf.
— Me chamo Cleane Elrond.
Deixando os primeiros nomes de lado, seus sobrenomes eram
fáceis de lembrar. Uma loba azul e um elfo lendário. Meu nome era
“gray rat”, a mesma coisa que rato cinza, então podia ser que
houvesse muitos da nobreza Asurana cujos nomes eram uma
combinação de cor e animal. Talvez houvesse até mesmo alguém
com um nome como… Hm, qual era aquela outra palavra para burro
mesmo? Ah, sim, asno. Talvez houvesse algum Asnobranco.
— Por favor, aceite isso. — As duas me ofereceram uma caixa
embrulhada em um tecido caro. — Um presente para celebrar o seu
casamento.
— Obrigado, isso é muito atencioso da parte de vocês —
respondi.
— Trouxemos coisas que achamos que poderiam ser úteis para
um casal. Por favor, confira.
A seu pedido, dei uma olhada dentro, só para ficar sem palavras.
Lá dentro estava uma garrafa familiar com um líquido rosa e uma
vara de madeira. Para explicar de um jeito mais simples, era um
afrodisíaco e um vibrador. Mas que diabos?
— Tenho certeza de que, como membro da família Greyrat, você é
perfeitamente capaz de satisfazer as mulheres. Mas caso seja
necessário, use isso.
— C-claro.
Ariel estava completamente composta. Será que isso era
considerado um presente normal? Luke e as outras duas também
pareciam imperturbáveis. Só podia ser a diferença cultural.
Guiei os quatro para a sala de estar. A atmosfera ao redor de Linia
e Pursena ficou tensa na mesma hora que entramos.
—…
Elas não iam começar uma briga, certo? Sim, elas eram do povo-
fera, mas não iriam atrapalhar uma celebração para a qual foram
convidadas, iriam? Dei um olhar bem significativo na direção delas.
Pareciam ter compreendido o que eu estava pensando.
— É um prazer revê-las, Senhorita Linia, Senhorita Pursena. Sinto
muito pelo problema que tivemos.
— É um prazer te rever também, mew.
— Nós também causamos alguns problemas, então tá de boa —
acrescentou Pursena.
Ariel as cumprimentou com gentileza, sentando-se por perto. Os
outros três continuaram de pé. Lancei um olhar em direção de
Zanoba, sinalizando que ele deveria intervir caso algo acabasse
acontecendo. Ele deu um aceno brusco de cabeça e, como se
tivesse entendido tudo errado, levantou e fez uma reverência para
Ariel.
— É um prazer conhecê-la, Princesa Ariel. Sou o Terceiro Príncipe
do Reino Shirone, além do querido aprendiz do Mestre Rudeus
Greyrat, Zanoba Shirone.
— É um prazer revê-lo, Príncipe Zanoba. Fico feliz em ver que
você está bem. Te fiz uma visita logo após a sua entrada na
universidade. Será que você esqueceu?
— Ah. Peço desculpas pela minha grosseria. Parece que, embora
eu tenha sido abençoado com superforça, minha inteligência é um
pouco baixa.
— Verdade? Ouvi dizer que você consegue boas notas com
magia de terra — respondeu a Princesa.
— Isso é tudo graças aos ensinamentos do meu mestre.
Escutei enquanto preparava o chá, chocado com as habilidades
sociais refinadas de Zanoba.
Cliff e Elinalise apareceram dez minutos antes do início da
celebração. Nanahoshi estava com eles. Mas que combinação
incomum. Eu esperava que ela chegasse sozinha.
— Ela estava parada do lado de fora do seu portão, e também
parecia nervosa. É uma conhecida sua, não é? — perguntou
Elinalise.
— Sim, mas é claro. Esta é a Senhorita Silente Setestrelas.
Quando eu disse o nome dela, Cliff olhou em sua direção em
estado de choque. Parecia que eles nunca tinham se visto.
— A-ah! Então é você que chamam de Silente, hein? Hmph. Me
chamo Cliff. Tenho certeza de que você já ao menos ouviu falar
sobre mim, certo?
— Sim, já. Dizem que você é incrível. E sim, sou a Silente. — Sua
fala soou toda afetada e nada natural, provavelmente porque estava
só fingindo saber quem era o Cliff. Ele parecia ter gostado do que
escutou, então eu não diria nada.
— Prazer em conhecer. Me chamo Elinalise Dragonroad. Essa é
uma máscara incrível.
— Prazer. Seu penteado também é incrível — respondeu
Nanahoshi em um tom completamente neutro. Ver como ela
interagia com eles me deixou um pouco nervoso. Ainda assim,
Nanahoshi não faria nada, já que queria evitar problemas.
Sério, não pensei que ela apareceria. Enviei o convite só por
educação, mas acabou aceitando. Mas, ainda assim, não pensei
que ela realmente compareceria. Nanahoshi acabou por responder
com uma voz desprovida de qualquer emoção:
— Casamento? Acho que você realmente fala sério sobre ficar
vivendo neste mundo.
— Isso é raro — falei a ela em voz baixa. — Te ver fora daquela
sala.
— Foi você quem me convidou, não foi?
— É verdade. Bem, por hoje, relaxe. Preparamos batatas fritas
para você.
— Batatas fritas? Você preparou mesmo? — perguntou ela,
surpresa.
— Conseguimos óleo de cozinha com bastante facilidade, e isso é
graças a você.
— Isso é incrível.
— Na verdade não. Tudo o que fizemos foi cortar algumas batatas
em fatias finas, fritar em óleo e depois jogar sal por cima. Mas como
os ingredientes são deste mundo, o sabor é um pouco diferente do
que experimentamos no nosso anterior.
— Bem, então, se nos der licença. — Elinalise entrou na sala de
estar, arrastando Cliff e Nanahoshi sem qualquer pingo de
hesitação. Como uma aventureira sem título de nobreza, ela tinha
um status um pouco superior ao de Julie, mas claramente não se
importava. É verdade que as noções de status não eram facilmente
nivelados entre uma raça e outra.
Os dois estavam como sempre: Cliff ameaçando arruinar o clima
com sua presunção e Elinalise suavizando o seu comportamento. O
garoto tinha boas intenções, mas às vezes parecia meio amargo.
Nanahoshi costumava ficar quieta, mas sempre respondia quando
falavam com ela. Pensei que se tratava de uma reclusa com
problemas para se comunicar, mas não parecia ser o caso.
Passado algum tempo, Sylphie apareceu para me informar que os
preparativos estavam completos. Agora só precisávamos esperar
por Badigadi. Se ele se atrasasse demais a comida acabaria
esfriando, mas assim que comecei a ficar preocupado, Elinalise
disse:
— Não há maneira alguma de Badigadi chegar cedo. Seres que
vivem milhares de anos não têm noção de como o tempo passa
para o resto de nós. Você provavelmente deve esperar pela visita
dele no próximo mês.
E, assim, decidimos seguir em frente e começar a festa na hora
combinada. Foi mal, Badi.
✦✦✦✦✦✦✦
A festa foi ao estilo buffet de coquetel. Decidimos eliminar a
designação de assentos, mas, felizmente, a sala era espaçosa o
suficiente para que as pessoas pudessem se mover, mesmo com
uma mesa enorme no meio do caminho. Deixamos algumas
cadeiras nas extremidades da sala para o caso de alguém cansar
de ficar de pé. O cardápio era composto de alimentos que poderiam
ser comidos mesmo de pé, e começamos as coisas ao oferecer um
copo de álcool para cada um dos presentes. Nanahoshi recusou o
licor, então servimos um suco de frutas a ela.
Fiquei responsável pelo discurso do nosso brinde. Eu e Sylphie
ficamos lado a lado, sendo o centro das atenções. Onze pares de
olhos nos encaravam com expectativa. Não havia nada de
desagradável nos olhares, mas ainda fiquei nervoso, embora já
tivesse preparado um discurso.
Sylphie pressionou a minha mão. Ela me mostrou um sorriso
enorme e sussurrou:
— Você consegue.
Ah, ela me deixa com vontade de levá-la para o quarto agora
mesmo, pensei.
— Nossa, o rosto do Rudeus está tão vermelho. Heh heh.
Elinalise riu e, pela primeira vez, Cliff realmente entendeu o clima.
— Lise, fique quieta.
Certo, então vamos lá.
— Ahem. Obrigado por abrirem espaço em suas agendas cheias
para estar aqui conosco no dia de hoje. Permitam-me dizer isso
mais uma vez. Sylphie e eu vamos…
— Bwahaha! E agora eu chego com um ba-bang!
Achei que meu coração fosse sair pela boca com a surpresa.
Olhei para trás e lá estava ele. Aquele corpo negro e silhueta
enorme. Os seis braços, todos enfiados em um uniforme escolar
quase estourando de tão pequeno. O Rei Demônio Imortal Badigadi
chegou com um bang… pela porta dos fundos da cozinha.
Sua chegada deixou todos sem palavras, inclusive Cliff. Eu
também fiquei sem nem saber o que dizer.
— Badigadi, você está atrasado — disse Elinalise habilmente.
Mas ele não estava nada preocupado com isso.
— Hmph. É verdade que estou atrasado, mas na minha tribo,
quando um Rei Demônio vai a uma festa, ele deve esperar o
momento perfeito para surpreender e atrapalhar a ocasião com a
sua entrada. Esse é o nosso jeito.
— Isso é brincadeira, certo?
— De forma alguma. Mas Kishirika criou esse costume em
particular por puro capricho, então concordo que isso é ridículo!
E mesmo assim ainda fez isso? Que pessoa irracional. Foi por
isso que vocês foram tantas vezes erradicados pelos humanos…
— Até mudei o meu caminho para entrar pela porta dos fundos.
Fique grato! Bwahaha!
Seu desgraçado, comecei a pensar, mas me contive. Não,
acalme-se. É assim mesmo que ele é. Mas você já sabia disso, não
é?
— Ha ha ha, tudo bem então. Obrigado.
— Não precisa agradecer. Pois bem, continue e case-se diante de
mim. Poucos conseguem se casar na presença de um Rei Demônio.
Afinal, não forneço esse tipo de serviço! — disse Badigadi, antes de
se jogar no chão.
Temos cadeiras, protestei internamente. Mas muitos do povo
demônio preferiam sentar no chão, então achei que estava tudo
bem.
— Pois bem, voltando à nossa ordem de negócios… — Limpei a
garganta. — Obrigado por abrirem espaço em suas agendas cheias
para estar aqui conosco no dia de hoje. Permitam-me dizer isso
mais uma vez. Eu e Sylphie vamos nos casar. Sei que ainda somos
jovens e carentes em muitos aspectos, mas espero que tenhamos
uma vida frutífera. Uh, todos os doze de vocês aqui reunidos têm
estado especialmente próximos de nós pelos últimos dois anos.
Passamos menos tempo com alguns do que com outros, mas, de
alguma forma, pudemos todos nos dar bem e considero vocês como
amigos. Se algum dia acabarem em apuros, espero poder apoiá-los
como um amigo. Se algum dia houver discórdia entre vocês, espero
que lembrem de nós e tentem ser maduros e não deixem as coisas
tomarem proporções desnecessárias. Hm…
Ah, merda, o discurso estava muito severo. Todos estavam com
olhares questionadores em seus rostos.
Nesse momento, Badigadi deu um tapinha suave no meu ombro.
— Não precisa dessa formalidade toda. Vocês dois se amam e
querem que todos aqui reconheçam isso, não é?
Ah! Sim, isso mesmo. Era exatamente isso. Certo! “
— Bem, como devo dizer? Eu e Sylphie seguiremos em frente
com o nosso relacionamento. Espero que estejam presentes se
precisarmos de vocês. Obrigado a todos.
— Certo, agora vamos brindar ao futuro do jovem casal!
— Saúde!
Badigadi ergueu uma taça de vinho que havia pego em algum
momento o qual não percebi. Todos o copiaram e ergueram as suas
próprias taças, e então tomaram um pouco de álcool ao início da
festa.
✦✦✦✦✦✦✦
Pursena partiu direto para a carne de javali que ainda continuava
fumegando. Me perguntei se comer a presa que pegaram antes de
qualquer outra coisa era um costume do povo-fera… não, isso com
certeza era algo só dela. Linia estava perto da lareira, mastigando
um pouco de nanahoshiyaki, uma imitação de frango frito.
Nanahoshi pegou um prato de batatas fritas e se afastou para um
canto da sala, onde estava mastigando. Julie de repente se sentou
ao lado dela. Nanahoshi pareceu estupefata, mas Julie a ignorou e
colocou algumas batatas na própria boca. No outro dia, foi ela que
serviu como a nossa degustadora para saber se o sabor estava
bom. Deve ser que desde então esteve querendo mais.
Nanahoshi e Julie. Elas formavam uma cena interessante, uma ao
lado da outra. Talvez pensando o mesmo, Badigadi se aproximou
delas. Nanahoshi entrou em pânico e pegou um de seus anéis.
Aquela idiota. Ela alegava que não queria problemas, mas protegia
a sua comida feito uma leoa.
Percebi que Zanoba olhava para mim. Eu não tinha certeza do
que ele queria, mas parecia estar esperando que Ariel fizesse um
movimento – e ela o fez logo depois, guiando sua comitiva até onde
eu e Sylphie estávamos.
— Sylphie, parabéns.
— Obrigada, Princesa Ariel. — Sylphie revelou seu enorme
sorriso de sempre e abaixou a cabeça.
— Então, Rudeus e esta casa atende às suas expectativas?
— São ainda mais incríveis do que eu esperava. A casa tem até
uma banheira!
— Oh? Muito poucas casas de Asura têm banheiras. Fico com
inveja. Sylphie, você sabe que pode tirar um ano de folga como
minha guarda-costas, caso queira.
— V-vou deixar isso para quando tivermos filhos.
Ariel soltou uma risadinha. Sylphie continuou conversando com
Luke e as atendentes da princesa, cujos nomes eu havia recém-
descoberto. Parecia que tinham um vínculo bem forte com ela.
Pareciam próximas, e a garota lobo azul estava toda chorosa. Era
quase como assistir as garotas do clube de atletismo dando o seu
adeus.
— Bem, acho que você ainda não gosta de mim, mas vamos
tentar nos dar bem — disse Luke, de repente estendendo a mão
para mim.
Apesar do que ele disse, eu não possuía qualquer animosidade
em sua direção. Bem, se ele fosse amigável, eu também poderia
ser.
— Isso me parece bom, Luke… senhor.
— Tome conta da Sylphie. — Ele soltou a minha mão logo após
aquele breve comentário. Para ser honesto, parecia que era o Luke
que não gostava de mim. Exatamente por qual motivo? Não era
ciúme, mas eu não conseguia definir o que era.
Zanoba chegou assim que Ariel se retirou. Parecia estar
prestando verdadeira atenção às hierarquias sociais, o que fazia
sentido, visto que era da realeza.
— Mais uma vez, Mestre, dou meus parabéns.
— Obrigado, Zanoba.
Ele se virou para Sylphie e fez uma reverência.
— Milady. Sinceramente, pensei que você fosse homem. Por
favor, perdoe-me por cometer um erro tão vergonhoso.
Sylphie se apressou a balançar as mãos.
— Ah, não, por favor, levante a cabeça. Você é da realeza. Não
pode se curvar para alguém como eu.
— “Alguém como você”? Respeito profundamente o meu mestre,
e você é a esposa dele. Sua santidade fica atrás apenas da de
Deus.
— Mas até o Rudy me confundiu com um homem, então está tudo
bem, tá?
Ela olhou para mim em busca de apoio. Por mais embaraçoso que
isso fosse, era verdade, então balancei a cabeça, concordando.
Assim que Zanoba se retirou, Linia e Pursena chegaram.
— Os humanos consideram que se cumprimentar no meio das
refeições é coisa de gente educada, mew?
— Isso é um horror.
Foi tudo o que disseram. Para falar a verdade, sequer nos
parabenizaram. Eu definitivamente deveria estudar a etiqueta do
casamento do povo-fera com antecedência quando as duas fossem
se casar. Embora não fizesse ideia se seriam capazes de encontrar
parceiros.
— Mas o casamento de vocês até que faz sentido. É bom quando
pessoas fortes se unem, mew.
— Isso mesmo. Crianças fortes dão tranquilidade à tribo.
Em minha opinião, o “horror” era ser franco assim bem no meio de
uma refeição.
A próxima a se aproximar foi Nanahoshi, que finalmente
conseguiu se livrar de Badigadi… que esteve fazendo sabe-se lá o
quê, já que o cabelo dela estava uma completa bagunça. Olhei na
direção dele só para vê-lo se divertindo ao deixar que Julie
montasse em seus ombros.
— Parabéns.
— Obrigado.
Ela começou a recuar logo após esse breve comentário, mas
Sylphie a deteve.
— Hm, Senhorita Nanahoshi, posso te perguntar uma coisa?
— E o que seria?
— Você uma vez disse que vocês dois vieram do mesmo lugar. O
que queria dizer com aquilo? Hm, me corrija se eu estiver errada,
mas você veio de um mundo diferente, não foi? — A voz de Sylphie
foi se tornando um sussurro conforme a sua pergunta avançava.
Nanahoshi olhou para mim, parecia até estar perguntando o que
eu queria fazer. Não me importava com a forma como ela
responderia. Não estava tentando esconder nada de Sylphie…
embora ela pudesse acabar me olhando de forma estranha se
descobrisse tudo. Isso seria difícil de explicar.
— Eu entendi mal, já que ele conseguia falar a minha língua —
disse Nanahoshi. Bem, isso finalizava a questão.
Os últimos a se aproximarem de nós foram Cliff e Elinalise. Cliff
nos fez ficar um ao lado do outro e, em seguida, cortou o ar fazendo
algo parecido com uma cruz com as mãos, oferecendo uma oração
simples.
— Vocês dois não são seguidores de Millis, mas esta é a única
bênção que conheço.
Bem, fiquei feliz com a intenção. Afinal, era extremamente comum
que as pessoas celebrassem o Natal, mesmo não participando das
missas. Eu acreditava em um deus, mas ela não se importaria se eu
aceitasse as bênçãos de outra religião.
— Rudeus, fico feliz pela sua recuperação — disse Elinalise, um
olhar ligeiramente emburrado em seu rosto. Isso mesmo. Eu ainda
não tinha dito a ela que minha impotência havia sido curada. —
Você sabe que poderia ter me contado isso um pouco antes.
— E se eu tivesse te contado, você teria feito um movimento para
cima de mim. “Deixe-me ver se isso é verdade mesmo”, etc. etc.
— Jamais. Acho que já te falei, não falei? Não tenho intenção de
me tornar filha do Paul.
As coisas eram como eram. Eu talvez devesse ter contado. De
todos, era ela que eu conhecia há mais tempo. Mas, bom, só por
uns seis meses a mais.
— Mas, bem, se Cliff não estivesse comigo, eu poderia ter
considerado a ideia de fazer isso com você ao menos uma vez.
— Eu poderia ter me sentido da mesma forma, se não fosse por
Sylphie.
— Bem, isso é uma pena, não é? Já que o destino não quis
assim, então vamos continuar sendo apenas amigos.
— Sim, vamos deixar as coisas assim.
Elinalise voltou a sua atenção para Sylphie, uma expressão gentil
surgindo em seu rosto.
— Senhorita Sylphiette, parabéns. Eu oro… por sua… felicidade…
do fundo do… — As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de
Elinalise. Ela continuou olhando para Sylphie, mesmo enquanto um
soluço escapava da sua garganta.
Fiquei boquiaberto. Eu não fazia ideia do motivo pelo qual ela de
repente começou a chorar.
Elinalise estendeu a mão para tocar a bochecha de Sylphie, sua
mão trêmula. Então suas pernas começaram a tremer e ceder sob o
seu peso. Seu rosto estava todo molhado, mas ela continuou
olhando para Sylphie.
— Sinto muito. Não posso acreditar que estou fazendo isso…
Sylphie também devia estar chocada. Ao menos foi o que eu
pensei – mas, em vez disso, ela estava parecendo só um pouco
confusa, não surpresa.
— Hm — disse Sylphie. — Já faz algum tempo que eu queria te
perguntar isso, mas, Senhorita Elinalise… você por acaso é minha
avó?
Não fui o único ficando surpreso. Cliff – e Elinalise – também
pareceram completamente perplexos.
— Meu pai me contou que a minha avó era uma das
companheiras do pai de Rudy — explicou Sylphie.
Ele disse mesmo isso? Espera… isso até que fazia sentido. Laws
disse que ele e Paul se tornaram amigos enquanto ajudavam na
proteção de uma aldeia. Talvez tivesse descoberto a conexão de
Paul com Elinalise por meio de suas conversas, embora eu
duvidasse que meu pai soubesse disso.
Mas que mundo pequeno. Assim que pensei nisso, notei que o
pingente esculpido em madeira que Sylphie me fez também tinha a
mesma forma que o pingente na espada de Elinalise. As suas
características faciais, na verdade, também eram parecidas.
— Senhorita Elinalise, isso é mesmo verdade? — perguntei.
— V-você está enganada. Não tem como a sua avó ser uma vadia
como eu.
— Meu pai me disse que foi por sua causa que ele foi expulso da
Grande Floresta e que as pessoas se opunham a ele se casar com
a minha mãe — disse Sylphie.
— O quê…?!
— Ele disse que você ficou arrasada com a culpa e poderia
acabar não falando a verdade sobre quem era, mesmo se nos
conhecêssemos.
Eu nunca imaginaria que Elinalise e Laws tinham uma história
dessas… embora pudesse entender por que as pessoas se
opunham ao casamento dele com a mãe de Sylphie. Também
hesitei quando Cliff me pediu para apresentá-lo a ela. Eu conseguia
ver como ser filho de Elinalise podia ter manchado a reputação de
Laws.
— Eu… eu…! — Elinalise começou a soluçar. Ela tentou dizer
alguma coisa, mas não conseguiu formar nenhuma palavra. Sylphie
parecia um pouco nervosa, até mesmo preocupada por ter dito a
coisa errada.
— Mestre Cliff? — falei.
Ele também parecia completamente perturbado.
— O-o que foi?
— Por favor, leve a Senhorita Elinalise para um dos quartos no
segundo andar, para que ela possa descansar.
— C-certo. Certo, e-entendi.
— Sylphie, que tal vocês continuarem a conversa depois que ela
se acalmar?
— T-tá — disse ela.
Cliff puxou Elinalise pela mão enquanto ela olhava para mim,
apavorada.
— R-Rudeus, s-sei que posso ser um desastre, mas, hm, Laws
era um garoto completamente normal. E, claro, a filha dele, Sylphie,
também é. Então, por favor…
Por favor o quê? Não tenha preconceito com eles? Ela realmente
não tinha fé em mim. Para ser sincero, eu até passei algum tempo a
evitando. Isso talvez tivesse causado um mal-entendido.
Levei a minha boca à sua orelha.
— Por favor, não se preocupe. Não vou terminar com a Sylphie
por sua causa.
— Mas…
— Mais importante, não acha que deveria se preocupar mais com
o fato de que agora você é parente do Paul, que você tanto odeia?
Elinalise mostrou um sorriso fraco.
— Heh, Rudeus. Às vezes você realmente diz umas coisas
divertidas.
Eu relaxei um pouco. Ela provavelmente só precisava se acalmar
um pouco.
— Pode ficar calma e conversar com a Sylphie, só vocês duas,
depois.
— Sim. Aprecio toda a sua atenção.
Depois disso, Cliff guiou Elinalise e se retiraram para o segundo
piso. Boa sorte, Cliff. Faça um bom trabalho confortando-a, pensei.
Badigadi não apareceu para dar os parabéns. Ele se sentou em
um canto da sala, berrando seu habitual “Bwahaha!” e mantendo o
clima turbulento. Fiquei grato pela sua presença.
Capítulo 07: Fim da Recepção do Casamento
A recepção foi um sucesso. Não selamos nossa promessa com
um beijo ou trocamos anéis, mas passamos o tempo todo comendo,
bebendo, conversando e nos divertindo. Apreciei a facilidade e a
informalidade disso tudo.
Quando chegou a hora de ir para casa, as pessoas se dividiram
em grupos de dois ou três. As primeiras a se despedir foram Linia e
Pursena. Será que o povo-fera considerava que não se demorar
muito era boa educação?
— Bem, mew… Divirta-se, Chefe.
— Agora sim você é o chefe da escola. Fico ansiosa pelo próximo
semestre.
Depois de dizer isso, as duas começaram a caminhar pela neve,
rumo à casa delas.
A segunda a sair foi Nanahoshi, com quem Luke aleatoriamente
puxou uma conversa. Era quase como se ele estivesse tentando dar
em cima dela, embora não estivesse sendo lá tão transparente a
respeito disso. Ele se esforçou para falar sobre roupas e comida,
tópicos que pareciam ser do interesse de Nanahoshi. O rapaz era
bom em parecer interessado em tópicos de interesse da outra
pessoa, mesmo estando um pouco deslocado. Ainda assim, isso foi
educacional. Mas não era como se eu pretendesse fazer uso de tal
conhecimento.
Nanahoshi, por outro lado, não fez nenhuma tentativa para
disfarçar o quanto estava se sentindo incomodada. Ela olhou para
ele, irritada, e também suspirou, aborrecida. No final, correu para o
banheiro só para se livrar de Luke. Quando reapareceu, foi direto
para onde eu estava, parecendo até mesmo agitada.
— Já está na hora de eu ir embora. Aquele lá está me irritando.
— Então tá bom. Tenho certeza de que você está exausta.
Obrigado por ter vindo hoje — falei.
— Amanhã estarei contando com a sua ajuda novamente. E mais
uma coisa.
— O que seria?
— Em algum momento no futuro, posso usar a sua banheira?
Ela aparentemente deu uma boa olhada no nosso banheiro. Por
ser uma japonesa, provavelmente estava sentindo falta das
banheiras. Afinal, o seu nome era Shizuka.
— Certo. Mas Nobita pode acabar te espiando…
— Esqueça o que eu disse.
— Não, sério, eu só estava brincando. Pode vir quando quiser.
Nanahoshi acenou com a cabeça e começou a se retirar. O sol
ainda não tinha se posto, mas me perguntei se ela estaria segura ao
retornar sozinha, embora tivesse chegado sem companhia e tivesse
itens mágicos que tomariam conta da sua proteção.
— Escolte a Mestra Silente de volta para a sua residência, por
favor.
— Sim, Princesa.
Enquanto eu hesitava a respeito do que fazer, a Princesa ordenou
que uma de suas acompanhantes servisse como sua escolta. Eu já
devia esperar isso de alguém com tanto carisma. Nanahoshi,
entretanto, foi obstinada ao recusar a oferta e foi para casa sozinha.
Os próximos foram Zanoba e Julie, depois Badigadi. Badigadi,
Zanoba e Ariel compartilharam bebidas enquanto conversavam
alegremente entre si. Como eu sabia da afinidade de Badi com o
álcool, preparei uma boa quantidade, só como medida de segurança
mesmo. Mas parecia que não foi o bastante. Antes que eu
percebesse, dois dos três tonéis de vinho que escondi no porão
ficaram vazios. Pensei em pedir mais, mas, antes que eu pudesse
fazer isso, Zanoba já estava caindo.
— Bwahaha! Você com certeza é bem fraco para uma “Criança
Abençoada” — gargalhou Badigadi.
— Ha ha ha… urgh, que vergonha. Parece que me empolguei.
— Mestre, você está bem? — A Pequena Julie estava tentando
servir de apoio para Zanoba enquanto ele tropeçava.
— Hee hee hee. Será que você não deve descansar em um dos
quartos? — sugeriu Ariel. Ela não tinha bebido muito; manter a
integridade provavelmente fazia parte do seu treinamento como uma
dama nobre. Tudo o que ela fazia era elegante, desde a forma como
inclinava o copo até a maneira como ria. Ela provavelmente estava
um pouco tonta, mas o leve rubor que o álcool havia lhe dado
apenas a deixou mais charmosa.
— Não. Como aluno, e um orgulhoso membro da família Nobre
Shirone, já me traz vergonha por estar tão completamente
embriagado na casa do meu próprio mestre. Vou me despedir
enquanto ainda posso andar.
Zanoba veio se despedir de mim. Eu, pessoalmente, não via
problemas nele ficando em nosso quarto de hóspedes… Mas, bom,
tanto faz o que ele quisesse fazer.
— Suponho que eu também devia ir. Princesa de Asura, passe
bem! — disse Badigadi.
— Sim, vossa alteza. Espero que também passe bem.
— Bwahaha! Eu não fico doente nem sou ferido!
E assim, tanto Zanoba quanto Badigadi se despediram. Huh. Eu
tinha certeza de que eles seriam os últimos a partir.
Quando Ariel e seu grupo se prepararam para partir, a recepção
chegou ao fim. Enquanto se preparavam para isso, decidi verificar
Elinalise. Subi até o segundo andar e dei uma espiada no quarto de
hóspedes.
Fui recebido por uma exibição emocionante – não, não, não do
tipo sexual. Era apenas Elinalise usando o colo de Cliff como
travesseiro. Ele parecia ter conseguido confortá-la, e então partiram
para as demonstrações de afeto. Fiquei com um pouco de inveja.
Depois precisaria fazer o mesmo com Sylphie.
— Hm, Senhor Cliff, gostaria de falar com a vo… Digo, com a
Senhorita Elinalise. Se importa? — perguntou Sylphie timidamente
enquanto se escondia atrás de mim.
Cliff me encarou como se em busca de ajuda. Elinalise se
levantou e acenou para mim. Eu acenei de volta. Com isso, Cliff se
levantou e saiu do quarto.
— Obrigada, Rudy. — Sylphie sorriu suavemente antes de entrar.
Eu e Cliff descemos as escadas juntos. Ele parecia ansioso.
— Aquelas duas vão ficar bem?
— Se não ficarem, só precisamos estar de braços abertos para
elas — respondi enquanto caminhávamos para o térreo.
Quando chegamos, Ariel e seu grupo tinham acabado de terminar
os preparativos para a partida. As duas atendentes estavam
ajudando a Princesa a vestir o casaco. Quando ela me viu, acenou
com o queixo.
— Lorde Rudeus. Obrigada por hoje. — O resto do grupo também
fez uma enorme reverência.
Me curvei em resposta, ao estilo japonês, embora tivesse certeza
de que não deveria fazer isso em uma situação destas.
— Como está a Sylphie? — perguntou Ariel.
— Ela está conversando com Elinalise.
— Entendo. Com certeza foi uma surpresa e tanto descobrir
alguém da família de Sylphie aqui. Achei que ela tinha perdido todos
os familiares.
— De fato. O mundo é mesmo pequeno. — Sem mencionar que
Elinalise e Sylphie eram tão diferentes quanto o dia e a noite.
Principalmente em termos de castidade.
— De qualquer forma, esta é a oportunidade perfeita. Lorde
Rudeus, posso ter um minuto do seu tempo?
Suas palavras me pareciam meio misteriosas, mas concordei da
mesma forma.
— Pois bem. Por aqui. — Enquanto falava, Ariel rapidamente
cruzou a sala e foi até o corredor. De lá, ela procedeu à entrada da
frente, abriu a porta e saiu. Como se fosse tão natural quanto
respirar, os outros três a seguiram. Eu segui o exemplo.
Lá fora, o sol começava a se pôr. Ariel parou no caminho por onde
as pessoas caminhavam e a neve mal tinha a oportunidade de se
acumular. E então virou-se para mim.
— Lorde Rudeus. Sei que te perguntar isso pode parecer
inapropriado da minha parte… — Um momento de hesitação. —
Você concordaria em um duelo com Luke? Sem magia, apenas
espada contra espada.
Um pedido muito repentino. Incapaz de responder, franzi os
lábios. Luke parecia completamente composto, a mão apoiada no
punho de sua espada. Isso com certeza não era algo que Ariel havia
decidido no calor do momento.
— Poderia explicar o seu raciocínio para isso?
Ela apenas sorriu suavemente.
— Apenas por diversão.
— “Por diversão”? — falei, e Luke desembainhou o que era uma
espada bem real. Considerando que era uma de dois gumes, ele
não iria me acertar com um lado cego. — Podemos ao menos usar
espadas de madeira? Não tenho uma espada de verdade.
— Não me importo se você conjurar uma para o seu uso —
respondeu ela.
— Mas você não disse para ser sem magia?
— Não vejo problemas se você usá-la para criar uma arma.
Então tá bom. Usei minha magia de terra para criar uma lâmina de
pedra. A tornei espessa e durável, o que significava que também era
pesada. Costumava praticar meus golpes todos os dias, então
poderia manejá-la com facilidade, mas, se acertasse alguém em um
lugar errado e acontecesse o pior, essa pessoa poderia morrer. Não
era algo que deveria bater em alguém só “por diversão”.
— Não se preocupe — disse Ariel. — Foi Luke quem pediu por
isso.
— Pediu, foi?
— Não me importo se você usar todo o seu poder para nocauteá-
lo.
Sem minha magia, eu não passava de um espadachim comum.
Não havia garantias de que poderia vencê-lo ou nocauteá-lo.
— Só para referência, Luke está no nível intermediário no Estilo
Deus da Espada e iniciante no Estilo Deus da Água. A espada dele
também é um item mágico, feita para cortar escudos de aço com
tanta facilidade quanto cortaria manteiga. As botas que ele usa são
como as de Sylphie, capazes de aumentar a velocidade do usuário.
Sua capa pode bloquear calor, suas luvas aumentam a força e, por
baixo do uniforme, usa roupas à prova de projéteis.
— Isso é incrível. — Então ele estava trajado da cabeça aos pés
com um equipamento digno de um herói! Mesmo vendendo a minha
casa recém-reformada, eu não teria dinheiro suficiente para
conseguir isso tudo. — Em outras palavras, pode ser eu quem
acabe nocauteado.
— Duvido. Mas, caso sinta que sua vida corre perigo, sinta-se à
vontade para usar magia.
— Vou rezar para que ele não me corte ao meio antes que eu
tenha a chance.
Aliás, por que ele propôs isso? Nenhum de nós se beneficiaria
com a morte do outro.
— Antes de começarmos, gostaria que você me dissesse por que
estamos fazendo isso. Fiz algo que te chateou? — perguntei.
— Não. É só por diversão. Mas, claro, se quiser, pode recusar.
— Quer eu aceite ou não, isso me preocupa. Se acertar no lugar
errado, mesmo esta espada de pedra é mortal o suficiente para
acabar com uma vida.
— Luke está preparado para essa possibilidade.
Bem, eu não estava. Eu era recém-casado e não queria matar ou
ser morto.
— Por favor — disse Ariel. Sua voz parecia sombria.
O que isso iria provar? Talvez fosse algum tipo de tradição do
Reino Asura. Eu poderia facilmente imaginar o velho Sauros
dizendo algo como: “Se quiser tomar Eris como a sua esposa,
primeiro deve me derrotar!”
Mas Sauros estava morto.
— Rudeus. Por favor, aceite. Se você for homem, deve entender
— disse Luke.
Lá estava a frase – “se você for homem”. Uma observação injusta.
Era como se ele estivesse dizendo que eu não era homem porque
não entendia.
Ah, enfim. Não era como se fôssemos lutar a sério e mirar na
garganta um do outro.
— Muito bem. Por favor, seja gentil comigo. — Mas eu ainda
usaria meu Olho Demoníaco da Previsão. Não queria que ninguém
morresse por acidente.
— Obrigada por aceitar o nosso pedido.
Eu ainda não entendia por que eles queriam fazer isso, mas após
as palavras de Ariel, Luke ficou pronto. Assim que Cliff viu tudo,
chamou por mim, confuso.
— E-ei, Rudeus, você tem certeza disso?
— Ah, Mestre Cliff. Se as coisas começarem a ficar ruins, por
favor, lance um feitiço de cura na mesma hora.
— S-sim. Já estava planejando fazer isso.
Com a espada de pedra em mãos, lentamente assumi uma
postura. Estávamos separados por cerca de três passos. Isso
significava que após dar um passo poderíamos atacar um ao outro.
Isso era mais perto do que a distância que eu normalmente
estabelecia em minhas simulações.
— Pois bem, está pronto?
— Sim.
Após ouvir a minha confirmação, Ariel disse bruscamente:
— Comecem!
— Haaaaah! — berrou Luke, dando um pontapé no chão. Quando
a neve se espalhou, ele lançou o seu corpo em direção ao meu.
Ele era lento. Não – em comparação com uma pessoa comum,
provavelmente não era tão lento. Devia ser tão rápido quanto Linia,
mas, ainda assim, lento o suficiente para que eu pudesse prever os
seus movimentos. Ele não estava no mesmo nível que Eris ou
Ruijerd, muito menos no de Orsted. Devia estar abaixo até mesmo
de Soldat. Isso era tudo que podia fazer, mesmo com tantos itens
mágicos?
Luke se aproximou, balançando sua espada em um corte
diagonal.
— Hah!
Sua forma estava tecnicamente correta e também estava
colocando seu peso no balanço. Ele também não estava contando
muito com os seus itens mágicos, mas ainda se movia muito mais
devagar do que as minhas simulações mentais.
— Hah!
Mirei no seu antebraço. Estilo Deus da Espada – Ataque Inicial,
Fatia Braço! Era uma habilidade que aprendi há muito tempo, um
movimento enraizado em mim através de centenas de milhares de
balanços de prática.
— Guh!
O peso da minha lâmina quebrou o braço dele em um único golpe.
Ele largou a espada e ela desapareceu na neve.
— Ainda não! — Luke na mesma hora tentou pegá-la com a mão
esquerda.
— Não, acabou. — Eu impedi que ele agarrasse a espada,
batendo o pé em seu peito e fazendo com que voasse. Ele saiu
rolando pela neve. Quando tentou se levantar de novo, apontei a
minha espada em sua direção.
— Já chega! — A exclamação de Ariel encerrou o duelo.
— Grr… — Luke usou a mão quebrada para dar um soco no
chão, depois gemeu de dor e pôs uma tala em seu braço.
— Ellemoi, cure-o.
Ao comando da Princesa, uma de suas assistentes correu até ele.
Ela segurou o seu braço quebrado bem perto de seus enormes
seios, que ameaçaram envolvê-lo todo, e então lançou uma magia
de cura.
— Incrível — disse Cliff, admirado. Ele não sabia nada de
esgrima, então não fazia ideia da piada que a partida tinha sido.
Existiam muitos espadachins e guerreiros mais habilidosos do que
eu, como Eris ou Soldat. Eu tinha certeza de que não poderia
derrotar qualquer um deles sem usar magia e meu Olho Demoníaco.
Luke não passava de um espadachim comum. Se eu não tivesse
usado o meu Olho, poderíamos ter trocado alguns golpes, mas foi
exatamente como Ariel havia dito. Ele não era páreo para mim.
— Mestre Luke, você está bem?
— Estou bem.
Assim que ouvi a sua resposta calma, joguei minha espada de
pedra de lado. Ela afundou na neve.
Luke se levantou e olhou na minha direção. Seu sorriso superficial
de sempre havia sumido. Ele parecia sério.
— Cuide bem da Sylphie.
— É claro. — Ele estava me testando para ver se eu era forte o
suficiente para a proteger? — Seria bom se você explicasse o seu
raciocínio.
— Isso não é tão importante — observou Ariel. — Luke só tinha
suas próprias incertezas a respeito do assunto. Orgulho masculino,
suponho.
— Orgulho masculino? O quê, ele também está apaixonado pela
Sylphie?
Não tive a intenção de zombar dele, mas Ariel franziu a testa
diante da minha pergunta. Merda. Podia ter sido uma pergunta rude.
— Todos nós amamos a Sylphie, mas não no sentido romântico
da palavra — disse ela. — Como camaradas que passaram por
situações de vida ou morte juntos, compartilhamos de um vínculo
poderoso.
— Minhas desculpas. Foi uma pergunta rude.
— Contanto que você entenda. — A expressão dela retornou à
sua compostura usual. Ela olhou em direção à casa, onde Sylphie e
Elinalise provavelmente continuavam conversando. — Eu
eventualmente retornarei para o Reino Asura. A partir deste
momento existirão apenas dois caminhos: Ou eu tomo o trono, ou
morro. Há uma probabilidade significativamente alta de que seja a
segunda opção e o palácio acabe se tornando o meu túmulo.
— Você tem que voltar?
— Se não fizesse isso, trairia as memórias daqueles que
morreram para me colocar onde estou. Voltar para Asura é o meu
dever.
Não existem privilégios sem responsabilidades. Apesar das suas
palavras severas, não havia qualquer emoção no rosto de Ariel. O
rosto dela era o de alguém que não duvidava em nada a respeito do
que devia fazer. Não que eu estivesse em posição para julgar, mas,
no que me dizia respeito, era essa convicção que a tornava uma
boa candidata ao trono.
— Sylphie, no entanto, não tem esse dever — continuou ela.
Verdade. Sylphie não era nobre e nem da realeza; apenas uma
estranha que foi jogada no palácio real durante o Incidente de
Deslocamento.
— Sylphie salvou a minha vida. Ela esteve o tempo todo
disponível para mim como uma amiga; mesmo após descobrir que
os pais dela faleceram. Eu dependi muito dela. Mas agora já basta.
Já era hora de eu parar de depender dela e deixá-la seguir o seu
próprio caminho.
Mesmo assim, Sylphie tinha intenção de continuar seguindo a
Princesa. Elas tinham passado por tantas coisas juntas, eu podia
entender por que Sylphie queria ver as coisas até o fim. Se Ruijerd
decidisse desafiar Laplace em uma batalha, por exemplo, eu
provavelmente me juntaria a ele, mesmo com as minhas pernas
tremendo o tempo todo.
Espera, essa provavelmente não era uma boa comparação. Mas a
vontade de lutar ao lado do amigo era a mesma. Se Sylphie
escolhesse seguir Ariel, eu ficaria orgulhoso dela. Mas se eu
achasse que era uma luta na qual não tinha chances de vitória,
gostaria de impedi-la.
— Sylphie pretende ficar comigo até o fim — disse Ariel. — Mas
ela agora se casou, e se vocês dois tentarem o seu melhor, tenho
certeza de que eventualmente terão filhos. Quando isso acontecer,
espero que a vontade dela de me seguir acabe se esvaindo sozinha.
Eu não estava tão certo sobre isso. Quando essa hora chegasse,
eu seria capaz de pará-la? Acho que não. De qualquer forma, eu
provavelmente estaria ao lado dela para ajudar.
— Tendo dito isso — continuou Ariel. — Se você maltratar a
Sylphie, então eu a tomarei de volta. Tenho certeza de que não
podemos derrotá-lo com uma simples demonstração de poder, mas
existem muitos outros métodos. Então, por favor, não me faça sentir
que seria melhor mantê-la sempre comigo.
— Vou levar essas palavras a sério.
— Pois bem, Lorde Rudeus. Por favor, tome conta de Sylphie.
Ariel girou nos calcanhares. Suas duas atendentes se curvaram
para mim. Luke me deu um olhar de reconhecimento enquanto
pegava a sua espada. Os quatro então se retiraram, arrastando os
pés pela neve até desaparecer, sem nem mesmo esperar que
Sylphie descesse.
Enquanto via a partida deles, pensei comigo mesmo: Quando o
dia chegar, não importa o que Ariel diga, estaremos lá para ajudá-la.
Quando voltamos para casa, Sylphie e Elinalise estavam
descendo as escadas. Os olhos de Sylphie estavam inchados, mas
parecia que um bom peso havia sido tirado de seus ombros.
— Ah, Rudy. Onde está a Princesa Ariel?
— Ela acabou de sair.
— Ah. Sinto muito por ter demorado. Ela disse alguma coisa?
— Só “Cuide bem da Sylphie”.
Eu ainda estava pensando a respeito da melhor maneira de
mencionar o duelo, mas Cliff me interrompeu.
— Luke de repente desafiou o Rudeus para um duelo! Mas deixe
que o Rudeus conte isso. Ele acabou com aquele lá com um único
golpe. Ahh, eu queria poder mostrar a forma como aquele idiota
insuportável se encolheu enquanto segurava o braço quebrado.
Você nunca decepciona, não é, Cliff? E, de novo, não soube ler o
clima, pensei secamente. Não que isso importasse, mas tive a
sensação de que ele não gostava muito de Luke. Bem, tanto faz.
Quando Sylphie ouviu isso, ela franziu as sobrancelhas.
— Rudy, você lutou com o Luke?
— Não, eu não chamaria aquilo de luta. Fui convidado a duelar
com ele, a Princesa Ariel estava observando.
— Entendo. Luke provavelmente queria ver por ele mesmo.
— Ver o quê? — perguntei.
— Sua força. Até agora, tem sido ele quem protegeu à Princesa e
eu.
Entendi o que ela estava tentando dizer, mas fiquei surpreso ao
saber que o zelo dele era tanto. Acho que nunca se conhece o
suficiente do coração de uma pessoa, hein? Mais importante, minha
esposa tinha acabado de ser informada que eu tinha duelado e não
estava nem preocupada? O meu oponente até mesmo usou uma
espada de verdade.
— Mas obrigada, Rudy.
— Por quê?
— Por pegar leve com o Luke. Ele é fraco. Você poderia matá-lo
se fosse com tudo.
Parecia que a hipótese de eu ser derrotado não havia nem
passado pela cabeça dela. Mas, pobre Luke.
— Bem, chega de falar sobre mim — falei. — Terminaram de
conversar?
— Sim — concordou Sylphie alegremente.
✦✦✦✦✦✦✦
No final das contas, Elinalise era avó de Sylphie. Em outras
palavras, a mãe de Laws. Elinalise teve filhos meio-elfos pelo
mundo todo e, devido à maldição e à sua personalidade, problemas
a seguiram por todos os cantos. Suas habilidades para solucionar
conflitos eram algo que dominou apenas nas últimas décadas; antes
disso, costumava deixar escândalos e tormentas por todos os
lugares que passava, e algumas dessas coisas ainda a
assombravam.
Sua reputação era particularmente ruim entre os elfos, que
costumavam condenar seus filhos ao ostracismo pelo crime de
serem seus parentes. Muitos de seus filhos e netos a
menosprezavam, tentando manter distância, então parou de revelar
o seu nome verdadeiro a todos os filhos que tinha. Ela os educava
até a idade adulta, depois cortava os laços com eles. Era assim que
esteve vivendo, pelo menos até o momento.
Elinalise soube, com um único olhar, que Sylphie devia ser sua
neta ou bisneta. Ela não tinha a intenção de revelar a verdade, mas
quando viu Sylphie parecendo tão feliz no casamento, acabou
tomada pela emoção. Era uma história emocionante. Eu mesmo
fiquei com os olhos marejados enquanto escutava isso tudo. Mas
Elinalise recusou todas as tentativas de ser confortada, alegando
que isso era o resultado das suas próprias ações.
Assim que a conversa acabou, Cliff me chamou para um canto da
sala.
— Rudeus? — disse ele.
— Sim, Mestre Cliff?
— Pare com essa merda de “Mestre”, e não precisa ficar falando
bonito. Por favor, de agora em diante me chame de Cliff. Pare de
ficar enrolando, por favor; apenas faça isso.
Portanto, não havia necessidade para o respeito, e ele estava me
dando ordens como se fosse uma figura de autoridade? Ah, enfim.
Desta vez eu deixaria passar.
— É sobre a Lise — continuou ele.
— Certo.
— Honestamente, ela não é a pessoa que eu pensei que era.
— Uhum. E?
Eu entenderia se ele estivesse desiludido. Afinal, a pessoa que
amou por esse tempo todo não tinha apenas filhos, mas até mesmo
netos. A julgar pelas suas palavras, existia a possibilidade de que
tivesse até mesmo bisnetos. Até eu ficaria consideravelmente
chocado. No entanto, se ele dissesse algo como “Ajude-me a
terminar com ela” depois da conversa que ouvimos, até eu ficaria
chateado. Não era como se Elinalise tivesse o enganado. Cliff a
entendeu mal e se apaixonou por vontade própria. Pessoas em
situações parecidas costumavam se sentir desiludidas depois de
ouvir a verdade, mas, ainda assim, isso me dava nojo.
Porém, eu não iria impedi-lo. Elinalise ficaria melhor sem um
pedaço de merda desses, e poderia até mesmo morar conosco.
Então, se Sylphie permitisse, poderíamos ter nossa própria pseudo-
família – espera, não, eu não poderia ficar com ninguém além de
Sylphie. Bem, espera, poderia até dizer que estávamos fazendo isso
pelo bem dela.
— A vida dela é ainda mais trágica do que eu pensava. Vou me
livrar daquela maldição, não importa a que custo. Já que sou um
gênio, tenho certeza de que eventualmente vou descobrir como
fazer isso, mas, só para ter certeza, você se importaria em me
ajudar?
E agora, qual de nós que era o pedaço de merda? Eu. Desculpa,
Cliff.
— Então você não está desiludido depois de ouvir o que ela
disse?
— Desiludido? Claro que não. Por que está dizendo isso? —
respondeu ele sem qualquer hesitação.
— M-mas a mulher que você ama dormiu com um monte de
gente, e não tem só filhos como até mesmo netos, sabe?
— E daí? Sou um seguidor de Millis. Não importa quais sejam as
circunstâncias ou o quão longe ela esteja do meu ideal perfeito, ela
me ama e tenho o dever de fazê-la feliz — disse ele.
Eu tremi. Ah, merda. Talvez tivesse realmente o subestimado. Eu
provavelmente deveria começar a chamá-lo de Lorde Cliff. Bem,
talvez não precisasse ir tão longe assim. Eu continuaria chamando-o
apenas de Mestre Cliff, como sempre fiz.
— Certo, entendi. Ficarei feliz em ajudar em tudo o que puder.
— Sim, será bom saber que tenho o seu apoio. — Assim que
estendi a mão para um aperto, ele a agarrou firmemente com a dele.
— Além disso, pare de ser tão formal. Somos amigos, não somos?
— Eu recuso.
Fui preenchido por um profundo respeito por Cliff. Por menor que
fosse a minha ajuda, ficaria feliz em auxiliá-lo.
✦✦✦✦✦✦✦
Cliff e Elinalise foram os últimos a ir embora. Então ficamos
apenas Sylphie e eu. Começamos a limpar a bagunça que nossos
convidados deixaram para trás. Bem, eu digo “bagunça”, mas
nossos convidados eram, na maioria, bem-educados, então tudo o
que tivemos que fazer foi limpar os lugares onde derramaram um
pouco de álcool. Havia sobrado um pouco de comida, mas sobrar
era melhor do que faltar. Poderíamos guardar as sobras para comer
depois.
Quando terminamos a limpeza, o sol se pôs e o céu escureceu.
Iluminei o lugar e voltei para a sala de estar. Quando tomei o meu
lugar no sofá de três lugares, Sylphie sentou-se ao meu lado. Fiquei
repentinamente exausto com os eventos do dia.
— Aconteceu bastante coisa, mas fico feliz que tenha corrido tudo
bem — disse Sylphie sorrindo, apoiando a cabeça no meu ombro.
— Sim. — Quando passei meu braço em volta de seus ombros,
ela apoiou todo o seu peso sobre mim. Enterrei o meu rosto em seu
cabelo e respirei fundo, sentindo o seu cheiro. Mmm, que perfume
doce.
— Rudy, isso faz cócegas.
Mas ela não me rejeitou. Continuei cheirando.
— Estou pensando em deixar o meu cabelo crescer — declarou
ela.
Sugeri várias vezes para que fizesse isso, só para sempre me
deparar com um “não”. Sempre pensei que tranças ou um rabo de
cavalo combinariam com ela, mas nunca pensei que conseguiria ver
isso.
— Tem certeza de que quer fazer isso?
— Por que você está sendo tão formal?
— Porque essa é uma conversa séria.
— Hm, não é tão séria assim. É só que, sabe, meu cabelo não é
mais verde, certo? A Princesa Ariel me disse para ser mais
feminina, mas ainda pretendo usar calças na escola, então pensei
que devia ao menos deixar o meu cabelo crescer.
Então era isso. Ela não se sentia mais constrangida com o seu
cabelo. Curioso, perguntei:
— Você não vai usar o uniforme feminino?
— Sem chances. Não ficaria bem em mim.
Vamos lá, ficaria perfeito, pensei. Se ela tem que ver para crer,
então eu comprarei um assim que tiver a chance.
Deixando isso de lado…
— Bem, eu gostaria de ver como você fica com o cabelo
comprido. Ficaria uma graça, sem dúvidas. Mesmo já sendo linda.
— Hee hee, obrigada. Então tá. Vou deixar crescer.
Isso significava que eu em breve teria que dizer adeus à Sylphie
de cabelo curto. Precisava queimar essa imagem dela em minha
mente, pelo menos enquanto ainda podia. Embora achasse que
seria capaz de voltar a vê-la assim, caso cortasse o cabelo de novo.
— Rudy, vou dar duro para que o seu amor por mim continue
forte.
Por que ela tinha que dizer isso? Senti meus olhos ficando
marejados. Como eu podia ser tão amado? Também teria que dar
duro, então seus sentimentos por mim nunca mudariam. Parecia
que o que ela tinha em mente não era um idiota presunçoso, então
parei de ser estúpido e comecei a pensar em agir como alguém
inteligente. Não tinha certeza de que seria capaz de fazer isso, mas
tinha que ao menos tentar.
— Sylphie, obrigado por tudo o que você fez hoje.
— Obrigada também, Rudy.
Como estávamos ambos exaustos, decidi que íamos só tomar um
banho e relaxar.
Foi assim que Sylphie e eu nos casamos.
Capítulo 08: Vida Com uma Casa
Passaram dois meses desde que me casei com Sylphie. A
universidade entrou em um novo semestre, me tornei um aluno do
segundo ano e minha vida diária passou por uma mudança
dramática.
Primeiro, saí do dormitório e comecei a morar em casa. Todas as
manhãs acordava em uma enorme cama que possuía em minha
residência. Se Sylphie estivesse ao meu lado, trocaríamos um beijo
de bom dia. As manhãs dela começavam bem cedo, então
costumava acordar na mesma hora que eu me levantava para o
meu treinamento.
Assim que eu acordava, começava com a minha rotina fazendo
um circuito pela cidade e, logo depois, praticava golpes com a
espada de pedra que conjurei para o meu duelo com Luke. Como de
costume, fui incapaz de envolver meu corpo em uma aura de
batalha, mas isso não significava que praticar fosse inútil.
Badigadi, por algum motivo, frequentemente aparecia no meu
horário de prática, berrando sua risada desagradável que era tão
alta que irritava a vizinhança toda. Entretanto, eu o cumprimentava
com educação, e ele às vezes agia como o meu parceiro de treino.
Em termos de habilidade, ele não se equiparava a Ruijerd ou
Ghislaine. Talvez fosse mais fraco até do que Eris… não, na
verdade não. Não era como se ele não estivesse à altura, eu só
tinha a sensação de que não estava dando tudo de si. Já que o seu
corpo era imortal, será que não considerava a defesa como algo
desnecessário? Por outro lado, Badigadi às vezes me oferecia
conselhos surpreendentemente úteis, então talvez fosse mesmo
muito forte.
Após o treinamento, tomávamos o rumo para a minha casa, onde
Sylphie nos receberia com o café da manhã. Badigadi desaparecia
logo após comer a sua porção. O homem era um verdadeiro
mistério para mim, e eu acabei me perguntando no que é que ele
estava pensando. Alguns dias, parecia que não estava nem
pensando.
Nos dias em que Badigadi não aparecia, eu e Sylphie
amorosamente alimentávamos um ao outro. Terminando o café da
manhã, íamos para a universidade, que ficava a cerca de trinta
minutos de caminhada. Zanoba comentou que isso era um pouco
inconveniente, mas eu não achava isso. Se fosse correndo, poderia
finalizar o percurso bem rápido.
Chegávamos bem antes do início das aulas. Nós nos
separávamos um pouco antes de chegar aos dormitórios, e eu
desperdiçaria algum tempo aqui e ali antes de me encontrar com
Cliff e Zanoba. Cliff estava, sempre, com o nariz enfiado em suas
pesquisas a respeito de maldições. Ele pediu um laboratório de
pesquisa e passava o tempo todo por lá, sempre desmontando itens
mágicos, vasculhando nos livros e procurando por padrões. O
garoto eventualmente começou a trabalhar em um instrumento
mágico original, um projeto próprio.
— Sei que você mencionou a possibilidade de transferir uma
maldição, mas não consigo pensar em nenhuma forma de fazer isso
— disse-me ele. — Mas se a minha teoria estiver correta, devo ser
capaz de projetar um instrumento mágico capaz de negar
maldições.
Sua teoria era de que itens mágicos e maldições funcionavam da
mesma forma. Uma maldição colocada em um objeto produzia um
item mágico, enquanto uma em uma pessoa produzia uma Criança
Amaldiçoada. Em outras palavras, se pudesse fazer algo a respeito
dos efeitos em um item mágico, poderia fazer algo a respeito da
maldição. (O fato de que ele estava preso a uma linguagem tão
ambígua quanto “algo” era uma prova de que sua pesquisa ainda
estava nos estágios iniciais.)
— Não tenho nada que requeira sua ajuda por agora. Esta
pesquisa é minha, então, por favor, deixe-me tomar conta disso.
Essa é uma questão de orgulho para mim.
Ele parecia uma criança que pensava que eu poderia aparecer só
para tomar os seus brinquedos. Se Nanahoshi se oferecesse para
ajudá-lo seria uma coisa, mas eu realmente não pensava que
houvesse muito o que eu pudesse fazer.
As tardes traziam consigo uma grande probabilidade de que
Elinalise e Cliff estivessem dando uns amassos, então eu evitava
visitá-los nesse período.
Zanoba costumava passar o dia inteiro em sua própria sala de
pesquisa. Ele, geralmente, tentava decifrar a escrita que havíamos
encontrado na mansão ou afetuosamente esfregava a bochecha
contra a do boneco automatizado. Porém, não fez qualquer
progresso até o momento, mas isso já era de se esperar. Sua
paixão era inegável. Eu tinha certeza de que ele acabaria
resolvendo o caso.
— Mestre, por favor, observe a Julie. Eu mesmo cuido disso.
Ele, aparentemente, estava com medo de eu meter o nariz no
meio da sua pesquisa. Zanoba falou como se eu fosse resolver o
quebra-cabeça com um único olhar e acabar com a sua busca. As
pessoas estavam mesmo superestimando as minhas habilidades.
Eu não sabia de nada que não estava na minha área de
especialização.
Aliás, Zanoba estava continuamente fazendo progresso na
estatueta do wyrm vermelho durante os seus intervalos na pesquisa.
Julie estava sentada por perto, fazendo ela mesma uma estatueta.
Ele deu a sua própria mesa de trabalho para ela praticar, e a garota
estava diligentemente praticando.
— Grão-Mestre, obrigada por suas instruções.
Agora que eu não podia ensiná-la durante a noite, estava
ensinando magia de terra pela manhã. Já fazia quase um ano desde
que havíamos a encontrado, e seu crescimento seguia
surpreendente, mas ainda era muito cedo para colocar nossos
planos de produção em massa em prática. Por enquanto, tudo que
eu podia fazer era mantê-la concentrada na prática por meio da
repetição constante.
De acordo com Sylphie, se uma criança continuasse praticando a
mesma escola de magia enquanto era jovem, isso aumentaria sua
proficiência. Portanto, seu foco devia ser apenas a magia de terra.
Se a teoria estivesse correta, Julie logo seria uma especialista em
magia de terra. Uma vez que ela progredisse um pouco mais,
poderíamos passar para a próxima fase. Não havia necessidade
para se apressar.
Eu ainda ia almoçar no refeitório. Por vários motivos, decidi não
levar comida de casa. Os assentos no canto do primeiro andar eram
para nosso uso exclusivo – “nosso”, sendo Zanoba, Julie, às vezes
Badigadi ou Cliff e Elinalise, bem como Linia e Pursena. Atualmente,
Luke ou Sylphie apareciam quase que diariamente. Não comiam
conosco, mas sempre trocavam algumas palavras antes de partir.
Segundo eles, era para dar a impressão de que Ariel e eu éramos
amigos.
Não conversava muito com Luke, mas estava ficando mais
amoroso com o “Mestre Fitz”, que estava começando a parecer
mais feminino conforme o seu cabelo crescia. Algumas pessoas
ainda pensavam que ela era homem e nos olhavam com estranheza
quando viam nossas demonstrações de afeto. Sylphie ainda não
gostava de demonstrações públicas de afeto enquanto adotava sua
persona de Fitz. Da vez que toquei a sua bunda, ficou bem
chateada. Ela não ficou com raiva ou me encarou; só pareceu triste.
Depois me disse que queria que eu evitasse parecer um idiota na
frente dos outros.
Isso era justo, suponho. Sylphie não era do tipo que se
preocupava com a atenção do público, mas provavelmente não
queria que as pessoas pensassem que o seu marido era algum tipo
de babuíno louco por sexo que não conseguia se conter. Eu me
comportaria, tudo pelo bem dela.
Depois do almoço, eu sempre ia para a aula. Como de costume,
estava assistindo aulas de cura de nível Avançado e de
desintoxicação de nível Intermediário. Eu me sentava ao lado de
Pursena e nos concentrávamos inteiramente em memorizar as
informações, lançar feitiços de cura um no outro e comer carne. Nos
dias em que não tinha aula, ensinava magia ofensiva a Linia.
— Você não tem nos tocado ultimamente, mew.
— Você ainda fede a excitação, mas não consigo superar o quão
estranho é que não tente nos tocar.
As duas não conseguiam esconder a surpresa diante do meu bom
comportamento, mas eu tinha jurado fidelidade a Sylphie e não
tocaria em outras garotas. Pursena me provocava com risadinhas
sedutoras, mas eu apenas a ignorava. Linia às vezes me mostrava a
sua calcinha, mas eu tentava desviar os olhos. Infelizmente, não
conseguiria vencer os meus instintos profundamente enraizados,
então sabia que ela estava usando azul no momento.
Quando a tarde chegasse ao fim, eu faria uma visita a Nanahoshi.
Ela continuava mal-humorada como sempre. Agora que minha libido
havia retornado, eu podia apreciar a constituição e características
japonesas que a faziam se destacar entre as pessoas deste mundo.
Minhas preferências deviam ter mudado desde a minha vida
anterior, já que não achava a sua aura sombria atraente. Isso,
entretanto, me banhava com uma sensação de nostalgia.
— Só para você saber, se colocar a mão em mim, vou contar para
o Orsted.
— Por favor, não faça isso.
— Hmph.
Ela dizia coisas assim sempre que eu encarava demais. Sabia o
quanto eu temia Orsted. De qualquer forma, eu não tinha intenção
de tocá-la, então isso era basicamente uma reafirmação de que
devíamos manter a distância.
Nanahoshi sempre exalava uma aura de irritação e impaciência.
Entretanto, havíamos queimado seu estoque de círculos mágicos
não testados nos últimos seis meses. Parecia que estava na hora de
avançar para a próxima fase.
Assim que terminasse com Nanahoshi, voltaria a me encontrar
com Sylphie. Seus deveres de guarda-costas continuaram seguindo
o mesmo horário de antes, mas, como éramos recém-casados, a
Princesa a deixava ir embora assim que a aula acabava. Ela ainda
tinha que proteger a Princesa à noite, então, depois do jantar, cuidar
da limpeza e tomar banho, voltava para a escola. Isso parecia exigir
o dobro de esforço. Eu estava fazendo ela passar por muita coisa.
Sylphie, no entanto, não parecia se sentir assim. “Gosto de ter
uma casa para onde voltar.” Ou assim dizia ela.
Sylphie ficava de plantão noturno por dois dias e folgava em outro.
Isso significava que só tinha um dia para descanso. O que era
bastante, considerando que não teve nenhum dia de folga até o
momento. O fato de que agora tinha um dia de folga era graças a
Elinalise, que se ofereceu para proteger a Princesa pessoalmente.
Eu nunca tinha as visto conversando, mas, pelo visto, se davam
muito bem. As duas pareciam água e óleo, com a promiscuidade de
Elinalise e a natureza circunspecta de Ariel, mas, de acordo com
Sylphie, Ariel na verdade não era tão pura assim. Ela estava apenas
se contendo.
Nos dias em que Sylphie não tinha que ficar de plantão, nós
parávamos no mercado a caminho de casa para comprar os
mantimentos para os próximos três dias. A maior parte dos
alimentos à venda eram produtos com longa vida útil, como feijões,
batatas e carne-seca. Mas eu queria arroz. Se expandíssemos as
rotas de distribuição que Nanahoshi havia desenvolvido, talvez
pudéssemos importar o arroz do sul. De qualquer forma, esse era
um problema para depois.
Quando chegávamos em casa, era a hora do jantar. Ao contrário
da sua aparência masculinizada, Sylphie era uma boa cozinheira.
Ela não sabia muitas receitas, mas a sua culinária me lembrava da
minha infância. Tinha o mesmo gosto da comida com a qual cresci
em Buena Village, o que fazia sentido, já que foi Lilia quem a
ensinou a cozinhar.
Ela parecia tão fofa usando o avental, movendo-se pela cozinha.
Isso me fazia querer tomá-la por trás em meus braços. Uma vez
tentei ajudar na cozinha, mas ela educadamente recusou. Parecia
haver algo em fazer comida que não queria compartilhar com mais
ninguém, embora não fosse como se sua profissão fosse a de chef
ou coisa assim. Pensei em sugerir que usasse só o avental, mas
tive a sensação de que essa sugestão não seria bem aceita.
Ocasionalmente, recebíamos convidados na hora do jantar, e por
“convidados” eu me referia aos treze que havíamos anteriormente
convidado. Cliff e Elinalise apareciam com relativa frequência.
Zanoba, talvez mostrando alguma moderação, raramente aparecia.
Nanhoshi aparecia mais ou menos uma vez por mês para usar a
nossa banheira. Ela provavelmente queria visitar com mais
frequência, mas se abstinha de fazê-lo. Antes que qualquer pessoa
tenha a ideia errada, deixe-me dizer logo – eu não a espiei enquanto
estava no banho. E, de qualquer forma, ela parecia estar de guarda
para a hipótese. Só aparecia quando Sylphie estava em casa.
Assim que o jantar acabava e os nossos convidados iam embora,
éramos deixados sozinhos por algum doce e açucarado tempo.
Como “Mestre Fitz”, Sylphie se comportava com dignidade durante o
dia todo e esperava que eu exibisse contenção e respeito
semelhantes, embora só de vê-la de longe já me fizesse querer
correr em sua direção igual a um cachorrinho abanando o rabo. Em
contraste, à noite ela era submissa e amorosa. Fazia tudo o que eu
pedia. Mesmo quando me deixei levar e falei algo sujo, ela atendeu
os meus pedidos com prazer.
— Comparado com as pessoas do Palácio Asura, você é
completamente normal — dizia ela. Sylphie nunca me perguntou
nada. Na verdade, estava tentando atacar o meu lado racional
quando disse algo como “Quero fazer tudo o que você quiser, Rudy.”
Eu, várias vezes, cedi à tentação e fiz exatamente isso, mas não
poderia continuar tratando-a como um objeto. Claro, eu amo sexo.
Isso era tudo com que sempre sonhei. Ainda assim, ela era minha
esposa. Respeito – isso mesmo, queria respeitá-la.
Ou foi o que pensei, mas quando ela me olhou com aqueles olhos
brilhantes e disse algo como “Você não precisa se conter”, parecia
estupidez tentar fazer isso. Eu era um homem fraco. Havia palavras
que queria tentar dizer ao menos uma vez na vida, ou que queria
escutar. Havia coisas que eu queria tentar fazer ao menos uma vez
na vida, ou que queria que fossem feitas comigo. Nos últimos dois
meses, consegui eliminar metade dessas coisas da minha lista. Mas
não pressionei Sylphie nem nada do tipo. Se houvesse qualquer
coisa da qual ela não gostasse, não a faríamos.
Mesmo assim, queria fazer algo por ela. Com esse pensamento
em mente, perguntei:
— Ei, Sylphie, há algo que você queira que eu faça?
— Hein? Tá, bom, lembra do que você me prometeu?
Assim que ouvi isso me prostrei.
— Sinto muito, não me lembro.
Perturbada, Sylphie me forçou a olhar para cima, dizendo:
— Não é sua culpa, foi há um ano. Lembra da coisa que você
usou? Atrapalhar Magia. Eu quero que você me ensine.
— Isso não é problema nenhum. Vou te ensinar todos os detalhes.
— Bem, eu sei magia de cura de nível Avançado. Rudy, você está
tendo aulas sobre isso, certo? Eu também posso te ensinar.
Então, passamos nosso tempo depois do jantar ensinando magia
um ao outro. Eu ensinaria Sylphie como usar Atrapalhar Magia e ela
me ensinaria como usar a magia de cura sem encantamentos. Não
havia nenhum propósito real para essa última coisa, mas ela não
estava satisfeita apenas comigo ensinando. Me perguntei o motivo
para isso. Ela era do tipo que não ficava feliz se não pudesse
oferecer algo ao parceiro? Ou o tipo que se sente desconfortável
recebendo qualquer coisa dos outros?
Era verdade que eu não podia lançar magia de cura não verbal,
de qualquer forma, então aceitei suas instruções com gratidão.
Enquanto isso, poderia ficar de olho em qualquer outra coisa que
quisesse aprender com ela.
— Hm, não acho que seja tão diferente de lançar outros tipos de
magia não verbal — disse Sylphie em um momento.
Eu também costumava pensar assim, mas o fato era que não
poderia usar magia de cura não verbal. Nem mesmo depois de ouvir
Sylphie explicando como funcionava e tentando colocar suas
instruções em prática.
— Rudy, é possível que você não entenda como é receber o
feitiço?
A magia de cura envolvia tocar o corpo de outra pessoa e
derramar sua própria mana nela, usando sua mana para alterar o
fluxo de mana dela e curar as feridas. Eu não era capaz de conjurar
a sensação de ter a mana de outra pessoa interferindo na minha.
Simplificando, era como pressionar o dedo indicador direito contra a
palma da mão esquerda, mas apenas o dedo sentia alguma coisa.
Para mim, a magia ofensiva era tão simples quanto respirar. Isso
era estranho. Será que não era só a magia de cura que não poderia
usar sem entoar um encantamento, mas todas as de suporte?
Talvez – como com as auras de batalha – fosse apenas algo que as
pessoas reencarnadas de outro mundo não poderiam dominar. Ou
eu podia simplesmente não ter talento para magia de cura.
— Fico meio aliviada, sabe? Na verdade, existem coisas que nem
você pode fazer — disse Sylphie com o seu sorriso característico.
Ser ofuscado por alguém em qualquer coisa era um pouco
irritante, mas deve ter sido desanimador para Sylphie pensar que
não havia nada em que pudesse me derrotar. Então não deixei isso
me incomodar.
Ao contrário das minhas fúteis tentativas com a magia de cura,
Sylphie dominou o básico do Atrapalhar Magia bem rápido. Ela
ainda precisava de prática, mas eu tinha certeza de que
eventualmente seria capaz de usar isso em batalha. Sylphie era
mesmo uma aluna excepcional. Eu ensinei magia a várias pessoas
– Eris, Ghislaine, Zanoba, Julie, Linia – mas senti que Sylphie foi a
mais rápida entre elas a aprender. Ela podia ser um tipo de gênio.
— Mas isso é meio injusto, não é? Se você fizer isso, os outros
magos não podem fazer nada.
— Bem, um dos Sete Grandes Poderes usa uma técnica bem
parecida.
— Sério? Então foi daí que saiu isso. Então você conhece um dos
Sete Grandes Poderes?
— Não, não conheço. Nanahoshi sim. — Sylphie provavelmente
ficaria preocupada caso eu contasse que quase morri. Devia ser
mais seguro manter qualquer menção a Orsted apenas para mim
mesmo. Não havia garantia de que ele não apareceria atrás de mim
depois de sair ensinando Atrapalhar Magia aos outros. — Você
provavelmente não deveria compartilhar essa informação com
ninguém. Isso também vale para o Atrapalhar Magia. Se um dos
Sete Grandes Poderes aparecer atrás de nós, eu não seria páreo
para ele.
— Entendido. Isso é segredo — disse Sylphie, balançando a
cabeça com seriedade.
Nos dias em que Sylphie estava em seu plantão noturno, eu fazia
um bom esforço para cuidar da limpeza e lavar a roupa suja. No
geral, lavar as roupas de Sylphie era meu trabalho, incluindo suas
roupas íntimas. Claro, como seu marido, me abstive de qualquer ato
de perversão. Não as roubei nem levei para o meu quarto para usar
em momentos de prazer. Eu, no máximo, cheirava. Sylphie
satisfazia minha libido jovial e ativa uma vez a cada três dias.
Eu também meio que limpava a casa, embora fizesse um trabalho
de preguiçoso, de acordo com Sylphie. Quando eu era um
aventureiro, limpava todos os quartos de pousada em que me
hospedava, mas fora isso, era do tipo desleixado. Sylphie limpava
em seus dias de folga, mas a mansão era grande demais para
apenas nós dois mantermos tudo limpo. Eu achava que a limpeza
era necessária, mas a casa era enorme. Talvez precisássemos
contratar uma criada.
Pensar em uma delas me lembrava de Lilia, e me perguntava se
Paul e os outros já tinham se encontrado com Zenith. Fazia três
anos desde que Elinalise e seus camaradas localizaram a minha
mãe. Estimei que Roxy e Talhand levariam um ou dois anos para
cruzar o Continente Demônio e chegar a Millishion. Se a memória
não me falhasse, eles teriam partido para a Cidade Labirinto de
Rapan, no Continente de Begaritt, e não pensei que essa seria uma
jornada de um ano inteiro. Eu havia enviado minha primeira carta há
um ano e meio. Se houvesse chegado conforme planejado, então
em breve receberia uma resposta.
Eu deveria ser mais paciente. Elinalise garantira que não havia
nada com que me preocupar, mas eu ainda me sentia ansioso. Roxy
estava no caso, e eu confiava nela. Deveria manter a calma e
esperar.
Assim que pensei nisso, com Buena Village desaparecida, Paul e
os outros não teriam onde morar. Talvez decidissem se estabelecer
em Millishion, mas se fossem para Ranoa, poderíamos viver juntos,
todos na mesma casa. Assim que pensei nisso, percebi que me
casar e comprar uma casa foi para o bem da minha família. Claro,
isso era algo em que só pensei depois de tudo feito, então não era
nada mais do que uma desculpa conveniente.
Em todo caso, e pensar que um ex-recluso como eu poderia
acabar cuidando dos pais! Isso foi meio que comovente… embora
pudesse ser difícil desistir da privacidade do meu ninho de amor
particular com Sylphie.
Capítulo 09: A Carta
Quando acordei de manhã, me deparei com Sylphie dormindo no
meu braço. Observei seu cabelo branco, a parte branquinha atrás
de seu pescoço e seus longos cílios. Uma garota tão incrivelmente
fofa estava deitada na cama com nada além da calcinha, usando
meu braço como travesseiro. Seu rosto enquanto dormia parecia
completamente relaxado e vulnerável.
Quando dobrei o cobertor, suas pétalas de cerejeira apareceram.
Logo acima deles havia pequenos hematomas em sua pele. Em
outras palavras, chupões. Alguns que coloquei nela na última noite.
Na minha vida anterior, não tinha entendido qual era o apelo dos
chupões, mas agora adorava acordar e ver quantos tinha deixado
em seu corpo. Era algo parecido com o que aqueles terríveis
namorados que obrigavam suas namoradas a colocarem piercings
ou fazer tatuagens deviam sentir, mas não tão vil assim: um
sentimento de orgulho. Sylphie era minha. Eu não deixaria ninguém
mais tê-la.
Com esse pensamento, meu homenzinho respondeu à chamada
matinal. Ele com certeza estava transbordando energia,
considerando o quão duro tinha trabalhado na última noite. Na
minha vida anterior, a única atenção que ele recebia era a da minha
mão, e também ficou recluso pelos últimos dois anos. Agora que
tinha um lugar para visitar, estava realmente explodindo de energia.
Ah, merda, não posso começar a me animar tão cedo assim.
Sylphie tem trabalho hoje. Eu simplesmente teria que direcionar
essa energia toda para os exercícios. Então, retirei meu braço de
baixo da cabeça dela e o substituí por um travesseiro.
— Mm. Rudy, você não devia tomar isso… — Sylphie se mexeu,
enrolando-se quase igual uma bola. O jeito como falava dormindo
era tão fofo. Do que será que ela estava me proibindo de tomar em
seus sonhos?
De alguma forma, me encontrei acariciando o seu peito. Se não
tomasse cuidado acabaria a acordando, então fiz isso bem
gentilmente. Era como tocar tofu suave. Muito bom. Eu só podia ser
o homem mais feliz do mundo, podendo provar algo tão maravilhoso
assim todas as manhãs. Era essa a sensação de ser muito,
verdadeiramente feliz na vida real?
— Mm… Rudy… — Sylphie entreabriu os olhos e me encarou.
Então agarrou a minha mão e, ainda meio adormecida, sorriu e
disse: — Tome cuidado.
— Tomarei.
Então saí do quarto. Levaria mais três dias para que pudéssemos
voltar a dormir juntos. Eu iria esperar ansiosamente por isso.
✦✦✦✦✦✦✦
Nos últimos tempos, a vida seguia bem pacífica. O único evento
digno de ser mencionado foi que Linia e Pursena me apresentaram
a um garoto. Ele parecia ser um delinquente do primeiro ano que, no
espaço de apenas dois meses, lutou e derrotou todos os outros
punks do seu ano. Então ficou muito cheio de si e queria tentar
desafiar o grupo do Chefe, mas seu primeiro alvo – Zanoba –
acabou com a raça dele. Depois disso tudo, ele de alguma forma se
tornou membro do meu grupo. Foi algo completamente inesperado.
De acordo com os rumores que eu tinha escutado, a universidade
parecia ser governada por algo parecido aos Quatro Reis Celestiais,
chamado de Círculo Demoníaco dos Seis. Os rumores diziam que o
Círculo respondia a mim. Se alguém conseguisse vencer o meu
Círculo dos Seis, ganharia o direito de me desafiar. Parecia até o
cenário de um mangá shounen. Eles não iam chamar de Socoval
(Festival dos Socos) ou algo assim, iriam?
A propósito, essas seis pessoas eram Zanoba, Cliff, Linia,
Pursena, Fitz e Badigadi. Se alguém realmente derrotasse todos
eles, isso significava que eu estaria enfrentando alguém que poderia
derrotar um Rei Demônio. Não, valeu. De qualquer forma, o primeiro
desafiante deste ano sofreu uma derrota esmagadora pelas mãos
da primeira pessoa que almejou. Quando o encontrei pela primeira
vez, ele já estava baixando a cabeça e agindo todo manso, igual um
cachorro com o rabo entre as pernas.
Aparentemente foi uma luta decente, já que o garoto criou alguma
distância entre ele e Zanoba, para que pudesse atacar de longe com
a sua magia. Mas Zanoba resistiu a todos os ataques, até que a
mana de seu oponente acabou, então fechou a distância entre eles
e selou a sua vitória com um único soco. Combate à distância não
parecia ser a especialidade de Zanoba. Eu teria que lhe ensinar a
arte secreta chinesa de dar uma tacada no oponente com uma
pedra.
Em qualquer caso, eu de alguma forma virei o chefe da escola,
sem nem saber. Isso ao menos fazia os delinquentes me escutarem.
Isso foi especialmente útil quando me deparei com alguns deles
batendo em um aluno atrás do prédio principal da escola. Fiz uma
intervenção verbal, embora estivesse preparado para lutar, caso
necessário… e simplesmente ficaram brancos feito papel e pararam.
Ser capaz de parar os valentões com apenas algumas palavras
era algo bom. Nada mal, ter um poder assim. Enquanto eu vivesse,
não permitiria que atormentassem os mais fracos. Nem mesmo se a
pessoa intimidada fosse de alguma forma culpada.
Então, um dia, finalmente chegou: uma carta de Paul.
✦✦✦✦✦✦✦
Caro Rudeus,
Recebi a sua carta. Então você se matriculou na Universidade de
Magia? Parabéns. Fico feliz que esteja trilhando o seu próprio
caminho. Tenho certeza de que você já escutou isso de Elinalise,
mas descobrimos a localização de Zenith, graças a Roxy, Talhand e
Elinalise, e estamos a caminho para resgatá-la. Dê a Elinalise os
meus cumprimentos. Claro, se você fizer isso, ela provavelmente vai
apenas retribuir com uma cara de nojo.
Agora ao assunto real. Estamos atualmente em Porto Leste.
Estamos prestes a partir para o Continente de Begaritt. Nunca fui lá
antes, mas é considerado um dos lugares mais perigosos do
mundo, atrás apenas do Continente Demônio.
Hesitei em levar as crianças comigo. Norn e Aisha ainda têm
apenas nove anos. Foi aí que surgiu a ideia de mandar as duas para
onde você está. Claro, não é como se elas pudessem ir sozinhas.
Ginger se ofereceu para acompanhá-las, mas eu não tinha certeza a
respeito de isso ser o suficiente.
Porém, acabei encontrando alguém. Alguém que você conhece.
Essa pessoa se ofereceu a acompanhar as crianças até você, e eu
concordei. Tenho certeza de que ficará surpreso ao ver todos. Aliás,
é uma pessoa muito confiável.
Honestamente, tomar essa decisão foi doloroso. Fiquei pensando:
e se acontecer algo com elas ao longo do caminho? E se acontecer
algo horrível e eu não estiver lá? Por mais que as queira comigo,
também quero que elas estejam em segurança. E você também.
Uma vez aí, é só encontrar um lugar para morar, por menor que
seja, e mandá-las para a escola. Mandei dinheiro suficiente para
cobrir as despesas de moradia e matrícula junto. É uma soma
razoavelmente grande. Não gaste isso com mulheres, entendido?
Brincadeira. Te conhecendo, sei que você fará um bom trabalho.
Mas, sim, entendo que isso é algo que eu mesmo deveria estar
fazendo. Me desculpe por ser um pai tão terrível. Me sinto mal ao te
pedir isso, mas, por favor, faça.
Pensando bem, você já tem quinze anos. Embora eu ache que já
deverá ter dezesseis ou dezessete quando esta carta o alcançar. De
qualquer forma, você é um adulto. Me sinto mal por não podermos
comemorar o seu aniversário juntos. Também não poderei
comemorar o décimo aniversário de Aisha ou Norn. Ah, enfim.
Podemos fazer uma enorme festa quando voltarmos todos – como
uma família.
Deixe que eu encontro a sua mãe. O Esquadrão de Busca e
Resgate de Fittoa agora foi efetivamente dispersado, mas ainda
tenho muito poder de fogo ao meu lado. Entre Lilia, Talhand, Roxy,
Vierra, Sherra e eu, podemos chegar ao Continente Begaritt e voltar.
Se correr tudo bem, poderemos nos juntar a você em Ranoa dentro
de mais um ou dois anos.
Pensei em mandar Lilia com as crianças, mas, aparentemente, ela
está mais preocupada comigo do que com elas. Que confusão. Me
sinto tão patético.
De qualquer forma, Lilia confia em Aisha. Ela, basicamente,
ensinou tudo o que podia à garota. Aisha é um gênio. Fico um
pouco assustado com o poder dos meus próprios genes,
considerando o que você e ela se tornaram.
Norn, porém, é uma criança normal. Ela não é como você e Aisha.
Pode acabar ficando muito frustrado com ela, mas tente ser
paciente. Receio que acabei a estragando, e tudo por puro egoísmo.
Ela te odeia e não se dá bem com a Aisha, então pode se sentir
isolada por aí. Como seu irmão mais velho, por favor, seja gentil.
Também dei uma cópia desta carta a elas, só por garantia. Tenho
certeza de que ficarão bem, considerando a pessoa que está
cuidando delas, mas, caso não apareçam dentro de seis meses
após a chegada desta carta, gostaria que saísse à procura.
Então, resumindo, é isso. Me sinto mal por deixar tudo para você.
Mas, obrigado.
—Paul Greyrat
✦✦✦✦✦✦✦
Foi uma carta cheia de culpa. Sinceramente, Paul.
Fiquei um pouco nervoso com a vinda de Norn e Aisha, mas achei
que isso era melhor do que serem arrastadas para o Continente
Begaritt. Ele não poderia tê-las deixado com a família de Zenith?
Não, isso talvez acabasse resultando em ainda mais problemas.
Norn à parte, Aisha não era parente de sangue de Zenith.
Irem para onde eu estava era provavelmente melhor. Comparado
ao Continente Demônio, o Continente Central era relativamente
seguro. Os sequestros deste mundo eram tão violentos que podiam
ser motivo para preocupação, mas as pessoas que faziam isso
costumavam visar apenas aqueles que eram vulneráveis. Se Norn e
Aisha tivessem dois guarda-costas competentes por perto,
provavelmente não seriam um alvo atraente.
Falando de seus guarda-costas, Ginger era uma cavaleira e ex-
membro da guarda imperial de Zanoba. Eu não conseguia me
lembrar do nível de capacidade dela, mas os cavaleiros de Shirone
eram treinados no Estilo Deus da Água, então isso deveria ser útil
em uma missão de escolta.
Depois, havia a outra pessoa, uma que Paul disse ser confiável.
Quem poderia ser? Geese, será? Não havia chance alguma de ser
Eris. Qual outra pessoa que nós dois conhecíamos que poderia ser
confiável? Ah! Poderia ser a pessoa em quem eu pensei?
Mencionou que faria uma busca pelo Continente Central, mas a boa
sorte podia ter permitido que essa pessoa cruzasse com Paul. Se eu
estivesse correto, poderiam lidar com tudo sem problema algum. Na
verdade, a ajuda de Ginger seria desnecessária.
Com base em sua carta, eu poderia dizer o quanto Paul confiava
em mim. Eu tinha que ter certeza de que corresponderia com as
suas expectativas. Afinal, era o seu filho mais velho. E também
fiquei aliviado por ter feito a escolha certa ao me casar com Sylphie
e preparar esta casa. Principalmente com essa segunda coisa –
tínhamos quartos de sobra. Poderíamos receber as minhas irmãs
em nossa casa assim que elas chegassem.
O maior problema que pude ver foi no quão jovens eram minhas
duas irmãs. Nossas sessões de amor não colaborariam com a
educação delas. Mas, bem, acho que poderíamos colocá-las em
quartos afastados do nosso. Fiquei, na verdade, ansioso pela
chegada delas. Me perguntei quanto tempo levaria. Dentro de dois
meses, será?
Espera, havia algo que eu precisava fazer primeiro.
— É exatamente a respeito desse tipo de coisa que preciso
discutir com Sylphie.
Fui à procura dela. Ela estaria, neste momento, na cozinha,
preparando o café da manhã. Quando me arrisquei a chegar lá, a
encontrei cortando os vegetais. Soava uma batida rítmica sempre
que a lâmina descia sobre a tábua de cortar. Ela era tão baixinha,
com seus ombros minúsculos e estrutura esguia. Vê-la deste ângulo
me animou.
— Sylphie! — Joguei meus braços ao seu redor, por trás. Então
enfiei minhas mãos nas mangas de seu avental e apalpei seus seios
macios.
— Ai!
— Ah, não!
Quando prestei atenção, notei que Sylphie cortou o dedo. O
carmesim do ferimento vazou e respingou no topo da tábua de
cortar. Ela se cortou no momento em que a abracei.
— Eeeeeek! — gritei.
— Essa é uma reação exagerada, Rudy. Mas fazer isso enquanto
estou segurando uma faca é perigoso. — Sylphie, em um raro
acontecimento, respondeu ao meu grito com reprovação. Ela
rapidamente curou a ferida em seu dedo. A maneira como lançou o
feitiço não verbal foi tão natural, quase como se isso fosse a sua
segunda natureza.
— Sinto muito. Não vou mais te abraçar enquanto você estiver
cozinhando.
— Sim, apenas espere um pouco. A comida ficará pronta em um
instante.
Me afastei da cozinha e esperei na sala de jantar, sentindo-me
inquieto e culpado. Sentei na minha cadeira e fiquei esperando.
Então, quando Sylphie saiu da cozinha, levantei a minha cabeça.
— Peço profundas desculpas pelo que aconteceu há um
momento.
— Não estou tão zangada. Pode só pedir as mesmas desculpas
de sempre.
— Certo, desculpa — corrigi.
— Bem melhor. Da próxima, tome mais cuidado.
Sylphie sentou-se ao meu lado e começamos a comer.
Ultimamente, estava me sentindo tão amado – amado demais
mesmo – que fiquei com medo de que acontecesse algo e seu amor
por mim acabasse.
— Então, o que foi? É raro te ver tão animado.
— Ah, sim, chegou uma carta do meu pai.
— O que? Do Senhor Paul?!
Entreguei a carta à minha esposa surpresa. Seu rosto ficou tenso
quando ela começou a ler, mas sua expressão logo se tornou em
algo parecido com desapontamento.
— Ah. Nossa carta sobre o casamento ainda não chegou. — Ela
parecia querer saber a reação da minha família ao nosso
casamento. Conforme seguia lendo, sua expressão foi ficando mais
séria. No final, murmurou: — Entendo. — Então, finalmente, disse:
— Isso é ótimo, Rudy. Fico feliz que estejam todos bem.
— Sim. — Parando para pensar, abordei o assunto sem nem
pensar duas vezes, embora Sylphie tivesse perdido os pais. Talvez
tivesse me faltado um pouco de tato.
Sylphie olhou para o meu rosto e revelou um sorriso triste.
— Vamos, Rudy, não faça essa cara. É verdade que perdi o meu
pai e a minha mãe, mas agora tenho você e a Elinalise. Não estou
sozinha. — Ela pegou a minha mão enquanto falava isso e riu.
Sylphie estava ficando cada vez mais bonita. Seu cabelo
extremamente curto cresceu e ela parecia cada vez mais feminina.
Suas adoráveis orelhas sobressaíam entre os fios macios de cabelo
branco. Essa garota era minha esposa. Não era um sonho, era?
— Sylphie…
Eu queria criar uma nova família com essa linda garota. Esse
desejo naturalmente começou a borbulhar até chegar à superfície,
embora fosse Sylphie quem sofreria no momento do parto. Ela tinha
uma bundinha adoravelmente pequena, mas a estreiteza de seus
quadris poderia acabar criando problemas no momento do parto.
Este mundo possuía magia de cura, então a morte no momento do
parto era algo raro, mas isso não significava que ela não passaria
por um enorme desconforto.
Mais importante ainda, estávamos mesmo prontos para criar uma
criança? Para ser sincero, eu e Sylphie ainda não tínhamos muita
experiência de vida. Tínhamos uma renda estável e éramos
considerados maiores de idade, mas poderíamos mesmo ser pais
de outro ser humano?
Está tudo bem, falei a mim mesmo. Todas as outras coisas vivas
do mundo conseguiam fazer isso. Então eu também deveria ser
capaz. Mesmo se não fosse, eu tinha Sylphie comigo. Só
precisávamos dar o nosso melhor. Paul devia aparecer dentro de
mais dois anos. Lilia tinha experiência na criação de crianças, e
Zenith e Sylphie se davam muito bem. Quanto a Paul, ele
provavelmente ficaria animado em ver os seus netos.
Espera, merda. Ainda não era hora para pensar nessas coisas.
— Como você leu naquela carta, minhas irmãs virão em nossa
direção. Estou pensando em deixá-las morar aqui conosco, mas não
tinha certeza se você concordaria com isso — falei.
— Claro que concordo. A casa vai ficar muito mais animada —
respondeu ela com um enorme sorriso.
Sem problemas, então.
Assim que terminamos de jantar, fomos para a sala de estar.
Estava na hora de estudar magia. Eu ainda não conseguia lançar
feitiços de cura não verbais, mas poderia me virar memorizando as
palavras e estudando a teoria. Magia não verbal não era a única
técnica existente. Eu achava que era talentoso, mas estava longe de
ser o mais talentoso do mundo. Era melhor ter certeza de que meus
alicerces eram sólidos e que era capaz de manter meu atual nível
de habilidade.
— Nngh…!
Sylphie estava atualmente tentando usar Atrapalhar Magia para
neutralizar a bola de água que eu criei. Ela estava com a ponta do
dedo apontada para a minha mão e seu rosto estava brilhando de
tão vermelho enquanto grunhia. Eu estava usando minha mana para
manter a bola de água e para ter certeza de que ela não poderia
neutralizá-la.
Se a ondulante bola de líquido estourasse, ela seria a vencedora.
Ganharia o direito de fazer o que quisesse comigo na cama. Não
que ela precisasse mesmo disso – tudo o que precisava fazer era
dizer algo e eu concordaria. Enquanto isso, se eu conseguisse
manter a forma da bola até o final, seria o vencedor. Então poderia
regá-la com meus afetos na cama até me cansar. Embora eu ache
que poderia fazer isso mesmo se não ganhasse.
Sylphie estava atualmente no nível Avançado de todas as escolas
de magia ofensiva, exceto na de fogo. Ela também sabia cura
avançada, assim como magia de desintoxicação. Em outras
palavras, os seus níveis de habilidade eram os seguintes:
MAGIA DE FOGO: Intermediário
MAGIA DE ÁGUA: Avançado
MAGIA DE TERRA: Avançado
MAGIA DE VENTO: Avançado
MAGIA DE CURA: Avançado
MAGIA DE DESINTOXICAÇÃO: Avançado
Estatísticas extremamente altas.
Eu só descobri isso recentemente, mas esses seis tipos de magia
eram chamados de Seis Fundamentais, sendo os seis tipos mais
usados. A universidade buscava que seus alunos alcançassem a
proficiência de nível iniciante em todos os seis tipos durante o
segundo e terceiro anos. Depois disso, poderiam escolher uma área
de especialização e passar os anos restantes elevando seu domínio
ao nível Avançado.
Se alguém não tivesse talento para magia, entretanto, iria parar
no nível Intermediário, mesmo que se dedicasse ao estudo de
apenas um tipo. Ou sua reserva de mana seria pequena demais, ou
acabaria se deparando com enormes problemas na magia
combinada. Quase não existiam alunos que poderiam avançar ao
nível Avançado em vários campos, muito menos chegar ao nível
Santo. Alunos excepcionais, como Sylphie e Cliff, supostamente
apareciam apenas uma vez a cada dez anos ou mais.
Mesmo assim, nos últimos anos, havia um deles aparecendo por
ano. Poderiam provavelmente chamá-los de gênios, mas eu ainda
os considerava comuns, em comparação com os monstros que as
pessoas chamavam de deuses.
E quanto a mim, então? Com base no que ouvi de Badigadi e
Kirishika, minha capacidade de mana estava no nível Deus, mas eu
tinha a sensação de que nunca alcançaria o nível Deus. Eu era
basicamente como um carro comum com o tanque de combustível
de um avião. Poderia cobrir qualquer distância e não ficaria sem
gasolina, mas a minha velocidade era apenas normal. Se alguém
adicionasse um motor a jato para combinar com o tanque de
combustível, o carro acabaria desmontando. Como um conceito de
projeto, eu era um lixo. Embora fosse bom em nunca ficar sem
combustível, não importa o quanto o usasse.
— A propósito, Sylphie.
— O-o que? Estou me concentrando.
— Você acha que nossos filhos também terão talento para a
magia?
— O qu…?! — A concentração de Sylphie foi destruída. Seu ainda
rudimentar Atrapalhar Magia fracassou e a bola de água
anteriormente ondulante voltou a ser uma esfera perfeita. A congelei
e coloquei ela no copo à minha frente.
Sylphie timidamente esfregou as coxas, seu rosto brilhando de tão
vermelho.
— N-não saberemos até que eles nasçam.
— E o nascimento deles depende de, uh, meu trabalho duro como
o seu marido, certo? — Tentei rir e brincar, mas Sylphie começou a
acariciar a minha coxa. Suas mãos delicadas fizeram cócegas.
Rebati isso esfregando os seus ombros. Tocá-la a esta hora do dia
era tão bom. Em segundos, nosso clima tornou-se sexual. Sylphie
enterrou o rosto no meu pescoço enquanto me abraçava. Que fofa.
Seu marido está prestes a começar a trabalhar duro, pensei.
Em todos os casos, falar de crianças que ainda nem tinham sido
concebidas era meio precipitado, deixaríamos isso para quando
nascessem. Não conte os ovos dentro da galinha, algo assim, sei lá.
Primeiro, precisávamos de um ovo.
— Ah, mas o sangue élfico corre em mim, então pode ser difícil
para eu… Hm, sei que você quer ter filhos, mas isso pode levar
alguns meses ou até anos. Minha avó, digo, a Senhorita Elinalise
me disse a mesma coisa. Então, hm, há uma boa probabilidade de
eu não engravidar tão cedo. — Sylphie se afastou e baixou a
cabeça, parecendo um pouco ansiosa.
Passaram vários meses desde que nos casamos e tínhamos uma
vida sexual saudável. Dizer isso poderia ser um pouco grosseiro,
mas, no momento em que eu puxava o gatilho da minha pistola,
gritava frases que pareciam ter saído de algum eroge. Coisas como
“engravide!” e tal. Não havia nenhum significado profundo por trás
das palavras; só queria tentar dizer isso na vida real, e não em um
videogame. Mas Sylphie podia estar levando as palavras a sério.
— Mas, hm, bem, se eu não puder ter filhos, você pode ter uma
amante, caso queira.
— Não tenho planos de fazer isso.
— Mas Rudy, você quer filhos, não quer?
Tentei ver da perspectiva de Sylphie. E se descobríssemos que eu
era infértil? E se ela quisesse ter filhos de qualquer maneira, então
encontraria outro homem para engravidá-la? Se isso acontecesse,
eu poderia me matar. Então não poderia fazer ela passar por isso.
— Não seja boba. Não é que eu queira filhos. Só quero uma
representação física do amor que sentimos um pelo outro.
— Rudy…
— Eu te amo, Sylphie. Minha princesa. — Embora fosse eu quem
estava dizendo isso, as palavras ainda soavam bregas o suficiente
para fazer a minha pele toda arrepiar. Quanto a Sylphie… bem, as
pessoas deste mundo eram incrivelmente suscetíveis a essas
palavras. Recentemente, quando falei algo como “Vamos nos
embebedar da beleza de seus olhos”, ela ficou toda vermelha. Foi
algo extremamente efetivo. Mas não poderíamos seguir em frente
caso ela se envergonhasse com tanta facilidade.
— Eu também te amo. — Seus olhos ficaram úmidos enquanto se
agarrava ao meu braço. Envergonhada, ela franziu os lábios, suas
bochechas adotando um tom brilhante.
Comunicação A+.
Já que as coisas acabaram ficando tão emocionantes, estava na
hora de ir para o segundo andar. A peguei como se fosse uma
princesa. Sylphie colocou os braços ao redor do meu pescoço e
entregou o seu corpo a mim. Isso fez o meu coração disparar. Fiquei
feliz por ela ainda estar no clima.
Capítulo 10: Colapso
O incidente aconteceu um mês após a chegada da carta. Naquele
dia, estava ajudando Nanahoshi com um experimento, mas os seus
parâmetros estavam um pouco diferentes do normal.
— Se este funcionar direito, posso passar para a próxima etapa —
disse Nanahoshi, apresentando-me um círculo mágico
significativamente maior do que qualquer um dos anteriores.
Entretanto, ainda tinha apenas metade da largura de um tatame.
Possuía um padrão intrincado, densamente escrito em um raro
pedaço de pergaminho grande.
— Só para ter certeza, posso perguntar o que este círculo deve
fazer?
— Vai invocar um objeto estranho de outro mundo.
— E não tem como causar outra calamidade de teletransporte,
certo?
O deslocamento ocorreu porque Nanahoshi foi invocada. O que
significava que não havia garantia de que um incidente semelhante
não ocorreria só porque estava invocando algo pequeno. Foi ao
menos o que pensei, mas ela apenas balançou a cabeça.
— Isso é seguro. Pelo menos teoricamente.
— Só por precaução, posso perguntar qual é essa teoria?
— Com base em nossos experimentos anteriores, confirmei que
quanto maior e mais complexo o objeto que tenta invocar, mais
mana é necessária. Em outras palavras, a magia neste mundo
obedece às leis de Conservação de Energia. Desta vez estaremos
invocando algo simples e pequeno. Se assumirmos que foi a
energia da minha invocação que eliminou a região, então,
teoricamente, este círculo irá, no máximo, teletransportar as
pessoas dentro de um metro do raio. Para ser sincera, não acho que
seja possível, mas, por precaução, escrevi uma medida de
segurança no próprio círculo, para que eu possa controlar a
quantidade de mana usada.
Entendo, entendo… Eu não fazia ideia do que ela estava falando.
— Conservação de energia… uh, o que era isso mesmo? — E
como isso era diferente da lei de Conservação das Massas?
— Não sou bem informada o suficiente para explicar muito bem
aos não iniciados, mas, basicamente, significa que a mana é a
responsável pela maioria das coisas estranhas que acontecem
neste mundo. Aquele feitiço que você usa o tempo todo; Canhão de
Pedra, não é? Pode parecer que você de repente conjurou uma
pedra em pleno ar, mas na verdade está só transformando a sua
mana em uma pedra.
A lei da Conservação de Energia, hein? Então era isso. Era por
isso que quanto mais mana usava no feitiço, mais quente era a
chama da magia de fogo e maior a massa da magia de terra.
— E também… — Após isso, Nanahoshi começou a explicar o
princípio por trás de seu círculo para mim, mas depois de certo
ponto me pareceu tudo grego. Algo sobre aplicar a lei de tal e tal, o
tamanho e o efeito do círculo seriam isso e aquilo, e então se
aplicasse aquela outra lei, que não lembro o nome, então blá blá
blá.
Honestamente, se houvesse uma falha em sua teoria, eu não iria
perceber. A única coisa que sabia era que ela parecia confiante, e
isso significava que existia uma boa chance de sucesso. Bem,
mesmo que acontecesse o pior e eu fosse teletransportado para
algum lugar, tinha certeza de que conseguiria dar um jeito de
encontrar o caminho de volta para casa.
— Se isso falhar e eu for teletransportado, entre em contato com a
minha família.
— Já falei, não há possibilidade de que isso aconteça.
Me aproximei do círculo.
— Bem, então vamos começar.
— Por favor.
Eu não estava certo se aquela palavra fora dirigida a mim ou não.
Talvez estivesse mais para um apelo a Deus.
Comecei a despejar a minha mana no círculo, colocando ambas
as mãos na borda do papel. Uma corrente ondulou pelo círculo e
começou a soltar um brilho. Pude sentir a minha mana sendo
sugada pelos meus braços.
Mas isso era estranho. Algo parecia fora de lugar. Parecia que o
caminho percorrido pela luz estava obstruído. Era como se uma
parte não estivesse se iluminando.
Pssht!
Soou um zap e a mana de repente parou de fluir. A luz emitida
pelo círculo tremeluziu.
Estava acabado. Não houve mais qualquer reação do círculo.
Olhei mais de perto e encontrei um rasgo no papel. Será que tinha
entrado em curto-circuito e acionou a trava de segurança? Apesar
de tudo, foi um fracasso.
— E aí?
— Falhou — disse Nanahoshi calmamente. Ela caiu para trás, em
sua cadeira, com um baque, plantou o cotovelo na mesa e soltou
um enorme suspiro. — Haah.
Então olhou para o papel ainda no chão. A tinta havia sumido,
deixando apenas o esboço marcado do círculo e o rasgo causado
pelo experimento. Nanahoshi continuou distraidamente olhando,
sem mover qualquer músculo. Depois de um tempo, disse, sem
olhar para mim:
— Obrigada pela ajuda. Você já pode ir para casa por hoje.
Os resultados de quase dois anos de esforço foram destruídos em
apenas alguns segundos.
— Bem, essas coisas acontecem, sabe — falei.
Nanahoshi não respondeu.
Era culpa minha? Não, tudo o que eu fazia era fornecer a mana.
Não tocava em nenhuma outra coisa. Qualquer um poderia fazer o
que eu fazia, contanto que tivesse mana suficiente. Portanto,
mesmo que o experimento falhasse por minha causa, seria culpa de
Nanahoshi por não me informar o suficiente.
Ela não disse nada.
De qualquer forma, o dia provavelmente se resumiria a isso.
— Bem, então, com a sua licença. — Me levantei para sair. Antes
de deixar a sala de experimentos, me virei para dar uma olhada. Ela
ainda estava na mesma posição de antes, imóvel.
Passei pela sala de pesquisa bagunçada, que neste momento
parecia mais com um armazém desorganizado, e saí para o
corredor. Dei apenas alguns passos antes de parar. Nanahoshi
esteve incrivelmente tensa pelos últimos meses. A julgar pela
maneira como afundou na cadeira, estava bem agitada. Será que
não estava pensando em seu próximo experimento ou fracasso,
mas sim na desistência?
Nah. Apesar do que a aparência dela pudesse fazer os outros
acreditar, ela era durona. Com certeza tinha a capacidade para
aceitar uma falha e se reanimar sem demora.
Conforme eu pensava…
— AAAAAAAAH!
Gritos irromperam da sala de pesquisa. Em seguida, o som de
algo quebrando. Girei nos calcanhares e corri de volta para a sala.
— Aaaah!
Nanahoshi estava movendo a cabeça para cima e para baixo em
frenesi. Ela arrancou as páginas de um livro que havia escrito e
jogou tudo pelo chão. Derrubou algumas prateleiras e derramou o
conteúdo de um frasco. Arrancou a máscara e a atirou no chão.
Então começou a arranhar o rosto e a tropeçar, batendo contra a
parede. Então a socou, voltou a tropeçar no conteúdo derramado do
frasco e finalmente desabou no chão, onde agarrou punhados de
areia que havia derramado do frasco e jogou tudo no chão. Então se
levantou e começou a puxar os cabelos.
Em pânico, corri até ela e prendi seus braços atrás de suas
costas.
— Espera, calma!
— Não posso ir para casa, não posso ir para casa, não posso ir
para casa. — Seus olhos pareciam vagos enquanto murmurava
essas palavras. Todos os músculos de seu corpo estavam tensos,
como se tivesse se preparado para voltar a se entregar à loucura. —
Não posso ir para casa, não posso ir para casa, não posso…
aaaaaaah!
Ela entrou em frenesi e começou a se contorcer, lutando com
todas as forças que tinha para se livrar do meu aperto. Mas sua
força era a de uma simples garota do colegial, e de uma reclusa,
ainda por cima. Extremamente fraca. Não havia como ela se libertar
sozinha. Seu corpo, em pouco tempo, ficou mole. Quando a soltei,
ela simplesmente desabou no chão.
— Ei, você está bem? — Tive a nítida sensação de que ela não
estava. A garota estava branca feito um lençol, seus olhos opacos e
com olheiras. Seus lábios haviam perdido toda a cor e estavam
secos e rachados. Esse era o rosto de alguém muito mal
mentalmente. Ela poderia acabar se machucando.
Não poderia deixá-la assim, sozinha. O que deveria fazer? A
pessoa que mais poderia me ajudar em uma situação dessas era…
Sylphie! Isso mesmo, Sylphie. Ela poderia ser capaz de fazer algo a
respeito. E, felizmente, não tinha que trabalhar nesta noite. Certo.
Então esta noite levarei Nanahoshi para a nossa casa.
Espera… antes disso, provavelmente deveria encontrar um lugar
onde ela poderia se acalmar.
— Você está bem? — perguntei.
—…
— Você exagerou um pouco. Vamos descansar por hoje, certo?
Ela não respondeu.
Coloquei meu braço ao redor dos seus ombros e praticamente a
coloquei de pé. Então a arrastei para fora da sala de pesquisa.
Talvez devêssemos trancar. Fiz uma pausa para considerar isso.
Nah, podemos nos preocupar com isso depois. Só um dia não fará
mal. Provavelmente.
Nos guiei em direção às salas de aula do quinto ano, onde Sylphie
deveria estar. Devia pedir para alguém buscá-la para mim? Ou devia
ir até a classe e chamá-la pessoalmente? As pessoas olhavam
enquanto passávamos, Nanahoshi ainda se apoiando a mim. Isso
era incômodo. Estávamos tão à vista, e Nanahoshi não estava com
a sua máscara. Deveria ser melhor manter a discrição. Mas como?
— Mestre!
Alguém me chamou. Me virei e me deparei com Zanoba logo atrás
de mim.
— Mestre, o que aconteceu?!
— Zanoba, Nanahoshi está com problemas. Ajude-me.
— Ela está doente?!
— Algo assim — falei.
— Nesse caso, devemos ir primeiro ao consultório médico.
Oh. Certo, sim. Então ao consultório médico.
— Eu vou carregá-la — ofereceu-se Zanoba.
— Seja gentil.
— É claro. Venha, Mestra Silente.
Ele a ergueu como se fosse uma princesa. Uma forma sólida e
estável para transportar uma pessoa. Nanahoshi não ofereceu
qualquer resistência. Ela tinha uma expressão cansada no rosto,
igual uma casca vazia.
— Abram caminho! — gritou Zanoba, mergulhando na multidão de
pessoas. Abriram o caminho diante dele, como se fosse o próprio
oceano se dividindo. Eu o segui.
Na enfermaria, deixamos Nanahoshi descansar em uma das
camas. Seu rosto estava vago. Que expressão terrível. Parecia
quase como se a sombra da morte estivesse sobre ela. Informamos
ao curandeiro de que não era nada sério. Afinal, os problemas
psicológicos não poderiam ser resolvidos com magia de cura.
Assim que meu olhar começou a vagar em direção dos meus pés,
Julie agarrou a bainha da minha camisa.
— Grão-Mestre, seu rosto… parece horrível.
Eu instintivamente toquei o meu rosto. Que tipo de expressão
estou fazendo?
Ah, não. Parecia que eu também estava muito abalado. Precisava
me acalmar um pouco.
— Isso é porque não sou bonito. — Afaguei a cabeça dela. Eu
não podia acreditar que deixei uma garotinha ficar preocupada
comigo.
— Aqui, Mestre. — Um copo foi de repente empurrado em minha
direção. Era Zanoba que o segurava.
— Obrigado. — O peguei com gratidão e tomei todo o seu
conteúdo. Ele parecia ter pego água em uma das jarras do
consultório. Minha língua estava seca feito papel. Minha boca
parecia ter secado em algum momento.
— Uff. — Sentei-me e soltei um suspiro.
Zanoba ficou ao meu lado e perguntou bem baixinho:
— Mestre, o que aconteceu? Nunca te vi tão perturbado assim.
— Bem… — Expliquei o que havia acontecido na sala de
experimentos. Falei sobre a falha no experimento de Nanahoshi e
da sua loucura. Falei que ela poderia se matar caso eu a deixasse
sozinha, e que por isso ajudei.
Depois de ouvir isso tudo, Zanoba olhou para Nanahoshi com
uma expressão complicada no rosto.
— Então ela não está conduzindo essa pesquisa porque quer.
— Não.
Não era como se ela tivesse feito isso contra a própria vontade,
mas também não era como se fosse apaixonada por isso. Era só
algo que precisava fazer para poder voltar para casa. Passaram-se
seis anos desde o Incidente de Deslocamento, e o que ela pensava
ser um importante passo adiante se provou uma falha. A garota
olhou para os seis anos que passaram e viu que não havia feito
qualquer progresso.
Suspirei e afundei na cadeira. Depois disso, Zanoba não disse
mais nada. Nós dois simplesmente ficamos lá com Nanahoshi, que
continuava apenas olhando para o teto.
✦✦✦✦✦✦✦
Passado algum tempo, ela fechou os olhos e adormeceu. Sylphie
chegou mais ou menos na mesma hora. Ariel não estava com ela.
— As pessoas estavam dizendo que você e Zanoba carregaram
uma aluna para o consultório médico — disse ela.
Que tipo de boatos estavam espalhando? A escola inteira
pensava que eu nocauteei uma aluna e a carreguei para o
consultório médico, onde provavelmente estava fazendo algo
horrível com ela?
Cara, que frio, pensei. Por que ninguém confia em mim? Porque
eu sou “o Chefe”? Bem, não era como se eu tivesse feito muito para
ganhar a confiança dos estudantes, para começo de conversa.
Tanto faz.
Contei o que havia acontecido para Sylphie.
— Não consigo acreditar que algo assim aconteceu. — Ela
revelou uma expressão solene enquanto olhava para Nanahoshi.
— Pode ser perigoso deixá-la sozinha, então estava pensando em
deixá-la descansar em nossa casa por hoje.
— Mas não seria melhor deixá-la descansar aqui no consultório
médico?
— Acho que estar com alguém que conhece quando acordar será
melhor para ela.
De qualquer forma, eu não poderia deixá-la sozinha. Nanahoshi
era jovem, e estava claro que o acontecimento a abalou muito.
Quando as pessoas eram levadas ao limite, podiam fazer coisas
extremas. Coisas como machucar a si mesmas.
— Não faço ideia de quanto tempo vai levar para ela se acalmar
— falei. — Gostaria de deixar que ficasse conosco, para que eu
possa manter um olho nela, ao menos por enquanto.
— Hm, tudo bem se eu deixar isso com você?
— Se for apenas o cuidado com as refeições dela, posso fazer
isso.
Nós a isolaríamos até que ela se acalmasse. Poderia ser bom
deixá-la fugir um pouco da realidade. Uma espécie de retirada
tática.
— Isso não é traição nem nada do tipo.
— Eu sei. Ou há alguma coisa pela qual você se sinta culpado?
— Não. — Eu não tinha motivos para me sentir culpado. Ainda
assim, estava levando uma mulher diferente para a minha casa.
Uma em uma posição fraca e indefesa. Mesmo assim, Sylphie não
parecia suspeitar. Então era isso que era a confiança, hein?
— Vou deixar isso com você, Rudy. Hoje você vai direto para
casa?
— Sim. Não poderei ir com você, então pode cuidar das compras
sozinha?
— Deixa comigo.
Balancei a cabeça para a resposta tranquilizadora de Sylphie. Eu
não esperaria nada menos dela.
Saímos da escola e corremos de volta para a nossa casa. Zanoba
se ofereceu para transportar Nanahoshi. Desta vez, ele a carregou
nas costas, o que lhe parecia ser mais adequado, mesmo sendo um
príncipe.
— Desculpe pelo incômodo, Zanoba.
— Não, esta é a única coisa que posso fazer para ajudar. — Ele
carregou a apática Nanahoshi nas costas com facilidade. Julie
cambaleava atrás de nós. Tudo que eu precisava fazer era dar uma
furadeira e uma roupa de mergulho para Zanoba, e qualquer um o
chamaria de Mister Bubbles.
Só para fazer um teste, tentei levantar Julie.
— Eek! Grão-Mestre, o que você está fazendo?
— Nada.
Zanoba só deu uma olhada. Mantive Julie em meus braços
enquanto caminhava. O corpo dela era surpreendentemente
carnudo. Há apenas um ano estava só pele e ossos, mas parecia
que desde então esteve comendo direito. Faltava um pouco de
músculos, mas ela não precisava ser uma maromba aos sete anos
de idade.
— Zanoba está te tratando bem, Julie? — perguntei.
— Sim, o Mestre alimenta eu com muita comida.
— Bom saber. A maneira correta de dizer é “Sim, o Mestre me
alimenta com muita comida.”
— O Mestre me alimenta com muita comida.
— Sim, isso mesmo.
Pensando bem, me perguntei se Nanahoshi estava comendo
direito. Quando a carreguei, parecia bem leve. Em tempos difíceis, a
comida pode servir para melhorar o ânimo; até mesmo as coisas
pequenas como comer o que mais gosta ou dividir uma refeição
com alguém pode acabar resultando em um pouco de alegria. Eu
duvidava que Nanahoshi fizesse isso com alguma frequência.
— Uff — suspirei. Que tipo de vida que ela estava levando?
Trancada sozinha, quase sem comer, sem falar com quase
ninguém. Apenas desenhando aqueles círculos mágicos sem parar.
— Não é sua culpa, Mestre. Tente não deixar que isso o afete tão
profundamente.
— É, eu sei.
Pelo visto, Zanoba interpretou o meu suspiro como algo diferente.
Ele estava com uma expressão séria estampada no rosto enquanto
olhava para mim. Parecia estar mais preocupado comigo do que
com Nanahoshi. Bem, ele quase nunca falava com ela, então eu
não poderia culpá-lo por isso.
Depois disso, passamos algum tempo em silêncio. No silêncio,
pude ouvir os batimentos cardíacos de Julie. Sendo uma criança,
sua temperatura corporal era mais alta do que a minha. Ela estava
quente, e ouvir seus batimentos cardíacos também era
estranhamente reconfortante. Da próxima vez que saísse, eu
deveria comprar alguma coisa para ela.
Quando chegamos em casa, pedi a Zanoba que depositasse
Nanahoshi em um dos dois quartos que preparei para minhas
irmãzinhas. Ela simplesmente desabou na cama. Seus olhos
estavam abertos; devia ter em algum momento acordado, mas
estavam completamente vazios. Era como se estivesse olhando
para uma distância a qual eu não podia ver. Estava quase como um
cadáver.
Será que conseguiria voltar ao normal? De acordo com as minhas
observações, ela estava em um estado precário, mas não além da
salvação. Eu mesmo já havia passado por crises de depressão
semelhantes, mas acabaram passando.
No momento, afaguei a sua cabeça e removi qualquer coisa que
achei que poderia ser usada como uma arma perigosa. Ela tinha um
pequeno canivete Suíço Militar consigo. Não achei que a garota
poderia tentar se matar com algo assim, mas mesmo assim peguei,
só por segurança.
Não havia nada de perigoso no quarto, exceto pela janela, já que
estávamos no segundo andar. Talvez devesse usar magia para
assegurar o lugar. Se ela quebrasse o vidro acabaria não servindo
de nada, mas queria acreditar que Nanahoshi não tinha força de
vontade para fazer tanto.
Como ela não estava se movendo, voltei para o primeiro andar.
— Ela vai ficar bem? — perguntou Zanoba, preocupado. Ele não
parecia o tipo de pessoa que tinha qualquer experiência com
depressão. Zanoba passava pelos seus momentos de fraqueza, é
claro, mas costumava ser bem otimista.
— Quem sabe? De qualquer forma, você me ajudou muito hoje,
Zanoba.
— Não, é você quem sempre está tomando conta de mim. Era o
mínimo que eu podia fazer. — Esse era o Zanoba. Poderia sempre
contar com ele. — E quanto a você, Mestre? Você vai ficar bem?
— Eu? Por quê?
— Parece que o colapso da Mestra Silente teve um forte impacto
sobre você.
Forte impacto? Sério?
Ele, na verdade, estava provavelmente certo. Nanahoshi perdeu o
controle, enlouqueceu e então se transformou em uma concha
vazia, mas só quando a parei. Ver isso do começo ao fim me
lembrou do meu passado. Embora com ela fosse algo um pouco
diferente, nós dois passamos por agonias mentais bem
semelhantes. Pude sentir a sua dor como se fosse minha. Se as
minhas circunstâncias fossem um pouco diferentes, poderia ser
aquele que estava caído no seu lugar.
— Só um pouco. Isso me lembra da dor do passado.
— Você se importaria de compartilhar mais? — perguntou ele.
— Quando eu era pequeno, também tive uma experiência
semelhante. Fiquei apático e apaguei.
— Não consigo entender esse sentimento.
Embora a maneira como ele falou aquilo parecesse distante, eu
também não queria que alegasse que entendia só da boca para
fora.
— Tenho certeza que não.
— Independentemente disso, se houver algo mais em que possa
usar a minha força, por favor, me avise. Força é a única coisa que
tenho de sobra.
— Sim, terei certeza de fazer isso. — Apreciei a gentileza de
Zanoba. Ele era um cara muito bom, contanto que bonecos não
estivessem envolvidos.
Logo após isso, ele voltou para casa. Sem mais nada para fazer,
passei meu tempo lendo no quarto de Nanahoshi enquanto ela
dormia. Se estivesse no lugar dela, eu gostaria de ficar sozinho,
mas ela já estivera sozinha até chegar a isso. Sempre sozinha.
Fiquei com ela até Sylphie chegar em casa.
Capítulo 11: Três Cabeças são Melhores do que Uma
Passou uma semana desde que tomamos Nanahoshi sob a nossa
proteção, e o pior parecia ter ficado para trás. Ela estava comendo,
mesmo que pouco. Se fosse solicitado, tomaria banho – e voltaria
sem tentar se afogar.
A ambição que eu havia anteriormente sentido nela se fora. Era
como se as cordas que a seguravam tivessem sido cortadas. De
repente, ficou tão frágil quanto porcelana e indefesa, como aquelas
mulheres em vídeos adultos que eram enganadas pela yakuza e
obrigadas a vender os seus corpos.
Não poderia deixá-la assim, sozinha. Também precisava tomar
cuidado para não deixar que acabasse esbarrando em alguém como
Luke. A única coisa que eu sentia emanando dela no momento era
um sentimento de resignação. O fracasso com a experiência foi um
verdadeiro choque.
Eu nunca tinha provado um revés dessa magnitude. O mais
próximo foi quando passei vários anos sem viver para ficar em um
jogo online, apenas para que meus dados fossem apagados. No
momento em que vi que meu login deu inválido e recebi o e-mail
notificando que minha conta foi banida, meu coração começou a
bater violentamente. Passei o dia inteiro sem conseguir processar
nada. Levei minhas objeções à direção e protestei veementemente,
mas no final fui dormir chorando. No mês seguinte, não senti
motivação para fazer nada. Então, jurei que nunca mais voltaria a
investir em outro jogo online.
O experimento de Nanahoshi não era o mesmo que um jogo. Seu
objetivo era retornar ao seu mundo. Se ela desistisse disso, eu
temia que não poderia continuar vivendo. Tentei o meu melhor para
encorajá-la, mas ela estava o tempo todo em torpor. Eu não sabia
nem se estava ouvindo o que eu falava.
Mas assim que comecei a duvidar disso…
— Pensei que tinha feito tudo — murmurou ela de repente.
Em vez de responder, apenas ouvi.
— Um círculo mágico é basicamente o que chamamos de placa
de circuito no nosso mundo. Você cria uma única função
combinando vários padrões de circuito. No entanto, uma parte não
conectava, não importa o que eu fizesse. Não importa como eu
alterasse a fiação, uma parte não se conectava com o resto. Tentei
forçar isso, mas então apareceu um defeito em outro lugar.
Para conectar este circuito não conectável, ela teve que quase
dobrar o seu tamanho. Então, para compensar a distorção, corrigiu
com outro circuito. Porém, ainda assim, aquele defeito em seu
circulo mágico não sumiu. Por mais que tentasse, ela não conseguia
descobrir o que havia de errado – havia apenas uma seção que não
conectava.
— Isso é fisicamente impossível. Ou seja, não tenho como voltar
para casa.
Embora parecesse perfeito, o círculo mágico era algo que ela
montou após anos de trabalho meticuloso. À primeira vista, parecia
um problema que poderia ser resolvido em última instância, embora
tremendamente complicado. Mas o defeito misterioso sugeria o
contrário.
— Não há esperança — disse Nanahoshi enquanto se jogava de
bruços na cama.
Fui para a sala de pesquisa dela para recuperar o diagrama de
seu círculo. Seu discurso despertou algo em minha memória, mas
eu não queria animá-la sem ter certeza. Em primeiro lugar, gostaria
de confirmar se havia algo que poderia ser feito.
No dia seguinte, chamei Cliff e Zanoba à sala de pesquisa. As
pessoas diziam que três cabeças eram melhores do que uma, então
eu usaria o poder dos cérebros de três gênios. Desde que invoquei
Cliff, Elinalise naturalmente apareceu junto. Ela parecia sempre
aparecer na sala de pesquisas dele, mas e quanto às aulas dela?
Nesse ritmo, tinha sorte por não ter sido expulsa.
— É difícil de acreditar que alguém como a Silente está naquele
tipo de estado. Ela parecia ser muito mais resistente do que as
pessoas normais — refletiu Elinalise.
— Pessoas verdadeiramente fortes não se fecham para o mundo
e tentam carregar todos os fardos sozinhas.
— Bem, suponho que isso seja verdade. — Elinalise encolheu os
ombros. Apesar de sua prolífica vida social, ela não interagia muito
com Nanahoshi. E, embora não parecesse, era hábil em lidar com
mulheres mais jovens. Pedir sua ajuda para fazer Nanahoshi se
animar poderia ser uma boa ideia.
— Pois bem, vocês dois. Primeiro, deem uma olhada nisso.
Quando mostrei o diagrama a eles, Cliff logo fez uma careta.
— Esse é um círculo confuso.
Confuso? Essa era uma maneira interessante de abordar o
assunto.
— Existem círculos confusos e organizados? — perguntei.
— Claro que sim. Você deve manter seus círculos organizados e
pequenos ao criar implementos mágicos. Eu desenharia isso de
uma forma muito mais organizada. Se você, por exemplo, conectar
esta parte aqui a esta, pode tornar tudo muito mais limpo.
— Uhum — falei. Criticar o trabalho alheio era fácil. Se fizéssemos
como ele propôs, provavelmente só iríamos criar outros defeitos no
círculo.
— Ah, mas a ideia é incrível. Eu nunca pensaria em fazer um loop
assim nesta parte aqui. Ah, entendo. A razão para esta parte ser tão
complexa é por causa disso… — Cliff olhou para o círculo e
começou a resmungar para si mesmo. — Isto aqui, aquilo ali… Acho
que eu poderia entender melhor se tivesse prestado mais atenção à
minha teoria…
— Então, Mestre, que tipo de círculo mágico é esse? — perguntou
Zanoba.
— É isso que a Silente estava estudando; círculos de invocação.
Mas ela acabou sem saber o que fazer, então quero a opinião de
vocês para ajudá-la.
Zanoba inclinou a cabeça.
— Mas magia de invocação está fora do nosso domínio de
especialização, não está?
— Bem, se não pudermos resolver o problema, que assim seja.
Achei que poderíamos, em grupo, fazer algo que Nanahoshi não
tinha conseguido. Na verdade, era precisamente por sermos todos
especialistas em áreas tão diferentes que talvez pudéssemos
encontrar uma abordagem alternativa.
— De qualquer forma, por favor, olhem para esta seção. Parece
que foi aqui que o círculo quebrou. Veem? — Apontei para o rasgo
que apareceu no papel durante o experimento.
— Hein? Ah. É aí que está desconectando? Eu nem percebi.
Então este círculo está incompleto, hein? Hmm, então a parte que
deve se conectar a essa ali é… esta?
Cliff ficou surpreso. Apesar de ser um autoproclamado gênio, ele
parecia não ter percebido isso de imediato. Bem, é assim que as
coisas são, pensei.
— Você tem alguma ideia de como conectar este circuito?
Cliff cruzou os braços e começou a pensar. Ele começou a
murmurar “aqui” e “ali” para si mesmo. Então tirou um bloco de
notas do bolso da camisa e começou a rabiscar algumas coisas.
— Este é um problema desafiador. Se você redesenhar tudo,
talvez, não, mas aí… Isso é impossível.
— E se usasse uma estrutura multinível? — interrompeu Zanoba.
Cliff parecia ter lá as suas dúvidas.
— Uma estrutura multinível? Do que você está falando?
— No boneco que estou pesquisando, existem várias camadas de
círculos mágicos combinados para produzir um único efeito. Mesmo
assim, estou apenas começando a minha pesquisa, então nem
mesmo consegui desenhar um círculo adequado ainda, mas…
— Espere, boneco? Está falando daquele de antes? Deixe-me
ver.
— Mestre, está tudo bem para você? — perguntou Zanoba.
— Sim, é claro.
Zanoba nos trouxe um pedaço do braço do boneco. Cliff estudou
com muito interesse, até que declarou:
— A pessoa que criou isso era um gênio!
Ver alguém presunçoso como Cliff dizendo isso era algo notável.
— Nunca vi um círculo mágico assim — continuou ele. — Grr, não
faço nem ideia de qual é a mecânica por trás disso. São esses dois
círculos mágicos, um em cima do outro? Não, não é só isso, há
mais ainda. Essa coisa não poderia se mover direito sem todos eles
juntos. Mas continuou capaz de se mover, mesmo com isso
quebrado. Por quê? Droga, o que diabos é esse círculo?! — Cliff
cerrou os dentes, frustrado. Era quase como Vegeta testemunhando
o nível de poder de Goku; é mais de 8.000!
— Ainda não sei todos os detalhes, mas, de acordo com o livro,
esse círculo parece controlar o movimento do cotovelo. — Zanoba
respondeu à pergunta de Cliff com tanta naturalidade que este
último parecia prestes a desatar a chorar.
Elinalise correu e colocou a cabeça dele entre seus seios,
acariciando o seu cabelo.
— Pronto, pronto, você também é um gênio, Cliff. Você também
saberia disso se estivesse pesquisando a mesma coisa.
— E-Eu sei disso! — Seu rosto ficou vermelho enquanto ele
recuperava a compostura.
Perfeito, Elinalise. Eu sabia que podia contar com você. Mas pode
deixar as carícias para depois? Estamos meio ocupados.
— Mestre Cliff. Se usássemos a mesma técnica que foi usada no
boneco, acha que isso resolveria o problema do círculo de Silente?
— Não sei. Mas vale a pena tentar, não?
Ao menos tínhamos encontrado uma pista. Nanahoshi sempre
desenhou os seus círculos em uma superfície plana. Talvez nunca
tivesse pensado em criar camadas ou dobrá-los. Então, mais uma
vez, talvez houvesse uma razão para ela ainda não ter tentado isso.
Rezei para que fosse a primeira opção, e que isso fosse o suficiente
para voltar a motivá-la.
✦✦✦✦✦✦✦
No dia seguinte, levei ela comigo para a sua sala de pesquisas.
Passei o dia anterior todo arrumando aquela sala toda bagunçada, e
era nessas instalações, limpas, mas ainda de alguma forma
desorganizadas, que Zanoba e Cliff nos esperavam. Os dois
estavam examinando os dados que Nanhoshi coletou ao longo de
sua pesquisa.
Ao vê-los, ela apenas bufou de modo zombeteiro.
— O que é isso? Você me trouxe aqui para que pudesse me
violar?
Sério? Quão longe ela já tinha chegado no caminho da
autodestruição? Tudo porque falhou uma vez? Bem, acho que um
único fracasso era o suficiente para perturbar a vida toda de uma
pessoa.
— Como ousa?! Sou um seguidor de Millis! — Cliff ficou
indignado. Os princípios da crença Millis em relação à castidade
eram semelhantes aos do Cristianismo. Monogamia, sem adultério,
etc e tal. Muito austero.
— Se você diz. — Nanahoshi apenas continuou andando
instavelmente e se sentou. Ela recostou-se na cadeira.
— Mestre Cliff, Zanoba, vamos apenas conversar sobre o que
descobrimos ontem.
Nanahoshi ouviu com desinteresse enquanto eu mostrava uma
versão de seu círculo que Cliff corrigiu com uma caneta vermelha.
Em seguida, partimos para a proposta de Zanoba de estruturas
multinível com base em sua pesquisa. E, finalmente, a ideia que eu
tive: círculos tridimensionais. Ela ouviu tudo sem um pingo de
emoção no rosto, sentando-se perfeitamente imóvel, parecia estar
até mesmo congelada.
Então nossos olhares se encontraram. Não era como se ela
estivesse desinteressada. Só estava sem expressão devido à
concentração.
— Ah. — Ela de repente falou. — Isso pode funcionar —
murmurou. Então deu um salto de seu assento. — Então é isso, é
isso. Não havia razão para eu ficar tão envolvida com as estruturas
em uma superfície plana. Isso faz sentido, é claro. Colocar isso no
papel proporcionará profundidade. Se eu colocar os papéis em
camadas, posso fazer um círculo mágico do tamanho que eu quiser.
Por que não consegui pensar em algo tão simples assim?!
Ela andou ansiosamente pela sala, por uma três ou quatro vezes.
Então pegou papel e caneta em sua mesa e começou a desenhar. A
garota estava escrevendo algo que parecia com uma fórmula, mas
sempre apagava e começava de novo.
— Urgh, não! Não é isso!
— Ei, não é isso que você quer dizer? — Lá foi Cliff, felizmente
inconsciente, metendo o nariz na gaiola de um urso enjaulado. Ele
pegou uma caneta vermelha e fez uma anotação no memorando
dela. Esse é o nosso Cliff, pensei sarcasticamente. O clima na sala
mudou para melhor e ele, claro, não conseguiu perceber.
— Ah, então é isso. Você é muito inteligente — elogiou ela.
— Claro que sou. Sou um gênio.
— E quanto a isso? O que devo fazer? Já faz um tempo que estou
em dúvida a respeito dessa parte.
— Uh, espere um momento.
Cliff e Nanahoshi… estavam trabalhando muito bem juntos.
Ficaram ombro a ombro, anotando várias coisas em uma folha de
papel. Olhei para o trabalho dos dois, mas ao meu ver não parecia
nada mais do que os rabiscos de uma criança.
— Zanoba, você entende o que eles estão fazendo?
— Estão muito além da minha compreensão.
Nós dois fomos deixados de fora e sob o sereno. Ainda assim,
Cliff era incrível. Não fazia muito tempo desde que ele, sozinho,
começou a pesquisar círculos mágicos. Bem, tanto faz. Nanahoshi
parecia estar de bom humor. Mesmo se ela não conseguisse o
sucesso desta vez, pelo menos tinha mais uma vez algum ponto de
apoio e motivos para manter a esperança.
— Desculpa, Zanoba, mas vou ter que pedir para você ficar e
cuidar desses dois.
— Onde você está indo, Mestre?
— Vou buscar Elinalise. Ela não gostaria que seu homem ficasse
tão confortável com outra mulher enquanto ela não está por perto.
Quando saí da sala de pesquisa, conseguia ouvir a emoção na
voz de Nanahoshi. Foi a primeira vez que vi essa emoção nela.
✦✦✦✦✦✦✦
Uma semana depois, seu círculo mágico estava completo. Ela
consultou Zanoba e Cliff para corrigir os problemas da versão
anterior e, com a contribuição deles, recriou o mecanismo
subjacente. Em uma magnífica demonstração de intensa
concentração, ela terminou o círculo em questão de dias. Nanahoshi
colou cinco camadas de papel, criando um círculo mágico que
parecia feito de papelão.
— Pois bem, vamos começar.
Enquanto Cliff e Zanoba olhavam, comecei a despejar minha
mana no círculo.
O círculo começou a emitir uma luz vibrante que iluminou a sala,
fazendo parecer que era o sol do meio-dia. Conforme a minha mana
fluía, algo gradualmente começou a tomar uma forma bem no meio.
Assim que a luz se dissipou, pudemos ver o objeto do outro mundo
que havíamos invocado com sucesso.
Era uma garrafa de plástico. Uma sem tampa nem rótulo. Uma
simples garrafa de plástico.
— Ooh, que impressionante.
— O que diabos é isso? Vidro? Não, isso é mais macio do que
vidro.
Zanoba e Cliff não conseguiram esconder sua empolgação ao ver
uma garrafa de plástico de 500ml pela primeira vez. Elinalise e Julie
também olharam para aquilo com intenso interesse. Nanahoshi
olhou para o que ela invocou, cerrou os punhos e soltou um quase
inaudível: “Sim, consegui.”
Uma garrafa de plástico. Era insignificante e ao mesmo tempo
significante. Naquele breve momento, nosso mundo anterior ficou
inegavelmente conectado a este. Trouxemos um objeto inanimado,
e ainda por cima incompleto, mas, ainda assim… trouxemos algo
para este mundo, algo que não existia anteriormente.
— Você conseguiu — falei para Nanahoshi.
Ela assentiu com firmeza, parecendo realmente satisfeita consigo
mesma.
— Sim, consegui. Agora posso finalmente passar para a próxima
etapa! Conforme eu for mais a fundo com os círculos mágicos em
camadas, devo ser capaz de invocar quase qualquer coisa. Se eu
puder organizar o círculo melhor, então apenas mudando duas ou
três das camadas, provavelmente posso…
Nanahoshi de repente voltou à realidade. Ela desviou os olhos,
parecendo um pouco estranha.
— Desculpa. P-Por causar tantos problemas.
— É dar e receber, certo? Da próxima vez que eu estiver em
apuros, me dê uma mão, combinado?
— E-eu já planejava fazer isso.
De repente, percebi Elinalise me encarando.
— Vocês dois com certeza são próximos, hein?
— Você é sempre rápida em assumir que seja um caso de amor,
Senhorita Elinalise — respondi.
— Bem, você é um homem e ela uma mulher, mas isso não é
muito apropriado. — Seus olhos pareciam os de uma sogra
reprovadora.
Eu não tinha intenção de trair. Além disso, Sylphie sabia o que
estávamos fazendo.
Nanahoshi voluntariamente criou alguma distância entre nós.
— Isso mesmo, você é recém-casado. Não seria bom se sua
esposa entendesse mal.
Elinalise riu alegremente, envolvendo os braços em volta dos
ombros de Nanahoshi.
— Heh heh, você não precisa se preocupar com isso. Ah, já sei!
Vamos passar no bar! Será por sua conta, é claro!
Nanahoshi sorriu ironicamente para a proposta de Elinalise.
— Acho que não tenho escolha. Mas isso nos deixa quites.
— Parece maravilhoso, não concorda, Cliff?
Cliff, que estava amassando a garrafa de plástico com as mãos,
olhou para nós.
— Hein? Sim, claro! Isso nos deixa quites. Mas você é muito
excepcional, então não me importaria se me ajudasse com minha
própria pesquisa na próxima vez!
Elinalise soltou uma risadinha.
E então o nosso grupo foi para o bar naquela noite. Por algum
motivo, Linia e Pursena se juntaram a nós enquanto caminhávamos
pelo prédio da escola, dizendo coisas como “Não queremos ficar de
fora” e “Leve-nos também, mew”. Como diabos conseguiram nos
farejar?
Enquanto nossa pequena congregação se enfileirava do lado de
fora, Ariel parou para perguntar o que estávamos fazendo. Quando
expliquei a situação, ela disse: “Então eu deveria mandar alguém
para acompanhá-lo”, e enviou Sylphie junto. “Acompanhar” era,
claramente, uma desculpa dela para ser atenciosa. No momento em
que conseguimos passar pelo portão da escola, percebi que
Badigadi se juntou a nós e estava seguindo bem na parte de trás do
nosso grupo. Não, sério, quando ele se juntou ao grupo?
No caminho, paramos na Guilda dos Magos, onde Nanahoshi foi
retirar algum dinheiro. Ela aparentemente estava usando o lugar
como um banco e tinha uma quantia impressionante por lá.
O bar que escolhemos era um dos favoritos de Badigadi. Apesar
de ainda ser o início da tarde, havia também a presença de outros
clientes. Nanahoshi, entretanto, não ligou para isso. Ela foi até o
balcão e bateu sua bolsa cheia de ouro nele.
— Reserve-nos o lugar todo — disse.
— Hein? Isso é sério?
Vendo o barman parecendo perturbado, Badigadi interrompeu.
— Espera aí. — Ele pegou um saco de ouro do seu próprio bolso
e também o bateu no balcão. Agora era o dobro da quantia. — Hoje
é um dia de celebração! Que todos os que vierem possam desfrutar
de álcool gratuito! — declarou ele. O homem com certeza possuía
uma presença digna. Exatamente como seria de se esperar de um
rei.
Ele é meu ídolo! Quero ser ele!, pensei comigo mesmo, imitando
as falas de um certo par que idolatrava um vampiro loiro imortal e
infame de uma série popular de mangás.
Agindo como se fosse a coisa mais natural do mundo, Badigadi se
plantou na maior mesa do bar. Lá, ele exigiu:
— Traga toda a comida que você tiver em seu cardápio!
Algum dia eu também queria tentar dizer isso. Já que não era eu
quem estaria pagando, ele podia pedir o que quisesse, mas será
que nós doze realmente conseguiríamos comer tanta coisa? Ah,
bom. Eu tinha certeza de que daria tudo certo.
Quando a primeira comida chegou, o Rei Demônio se levantou e
disse:
— Pois bem, o que estamos celebrando?
— O sucesso da pesquisa da Silente — Elinalise cortou
prestativamente.
— Muito bem. Muito bem, Silente, levante-se. Você deve fazer um
discurso inicial.
Persuadida a se levantar, Nanahoshi se levantou. Ela parecia
relutante.
— Obrigada por hoje.
— Certo, agora saúde!
— Saúde!
E assim a celebração começou, não muito diferente da celebração
do casamento que havíamos realizado há não muito tempo.
✦✦✦✦✦✦✦
Foi uma festa divertida. Quando coisas boas aconteciam, as
pessoas se divertiam e bebiam. Na minha vida anterior, nunca
participei de uma reunião como esta, nem mesmo uma vez. Mesmo
neste mundo, eu só fiz isso algumas vezes. Quando era aventureiro,
ocasionalmente bebia com os grupos com os quais trabalhava, mas
sempre mantinha um senso de cinismo a respeito disso. Eu achava
que só os tolos ficavam bêbados, barulhentos e selvagens. Eu faria
protestos internos a respeito da falta de consideração que
demonstravam pelas pessoas ao redor. Mas agora até eu estava no
meio da confusão, finalmente entendendo como aquelas pessoas se
sentiam. Às vezes, pensei, você só precisava se soltar e se divertir.
Minha crença nisso parecia especialmente justificada quando
olhei para Nanahoshi, que estava acariciando as orelhas de Linia
enquanto cantava canções tema de animes em japonês. Se as
pessoas não se soltassem de vez em quando e esquecessem dos
problemas, não seriam capazes de continuar. Afinal, a vida era
cheia de dor. Se não tentassem encontrar o bem onde quer que
pudessem, as pessoas desmoronariam. Elinalise e Badigadi
provavelmente sabiam disso melhor do que qualquer um de nós,
dado o tempo que viveram.
Sylphie e eu beberíamos o quanto quiséssemos. Nunca bebíamos
em casa, simplesmente não era algo a que qualquer um de nós
estava acostumado. E – embora não tivesse nada a ver com o
porquê de não bebermos em casa – eu finalmente entendi o quão
ruim uma Sylphie bêbada era.
Não, não era que ela ficasse má. Ela não era nada má. Era
apenas o tipo de bêbado pegajoso.
— Ei, Rudy, acaricie a minha cabeça.
— Tá bom, tá bom. Boa garota.
— Você também pode mordiscar as minhas orelhas se quiser,
sabe?
— Não irei me recusar a isso.
— Ha ha, isso faz cócegas.
Quando bêbada, ela se transformava em uma criatura
incrivelmente adorável. Isso era fenomenal. Eu teria que conversar
com ela a respeito de beber com mais frequência. Ah, mas o
comportamento dela me fez ficar preocupado com a hipótese de
beber sozinha. Talvez devesse dizer para não beber fora de casa,
mas então me perguntei se isso não seria muito controlador da
minha parte.
Não, isso não importa, decidi. Ela era minha. O que havia de
errado em fazer o que eu queria com algo que me pertencia?
— Rudy, me abraça?
— Sim, sim, vou abraçar seus quadris com força.
— Hee hee. Estou tão feliz.
O jeito que ela riu soou de alguma forma travesso. Ahh, só de
pensar em ir para casa e fazer amor com ela me fez sentir que eu
entendia porque o mundo estava tão cheio de canções de amor.
— Rudy, hm, sabe, ultimamente, bem, tenho sentido ciúmes.
— O quê, sério? De quem? Não vou mais me aproximar dessa
pessoa. Vou cortar todos os laços.
— Na verdade, é do Senhor Ruijerd. Você me contou sobre ele há
algum tempo, lembra? Quando você fala sobre ele, você parece
tão… sabe?
— Sim, mas eu realmente o admiro. Por favor, tente não deixar
isso te afetar.
— Não gosto disso. Quero que você preste atenção apenas em
mim!
Não foi isso que ela disse quando contei sobre Ruijerd. Devia ser
essa a forma como realmente se sentia. Sempre achei assustador
como Sylphie parecia aceitar tudo com tanta equanimidade, mas
talvez só parecesse ser assim porque ela trabalhava duro para que
isso acontecesse.
Assim que puxei Sylphie para o meu colo e nós dois começamos
a brincar, Nanahoshi se aproximou. Ela estava bêbada e tentando
arranjar uma briga.
— Tão doce que eu poderia vomitar. Parem já com isso. Sabe há
quantos anos estou sem o meu namorado?
Ela já tinha parado de cantar? Eu ficaria feliz em cantar um dueto
com ela. Contanto que escolhesse uma música bastante popular, eu
provavelmente estaria familiarizado com o som. Então, parando
para pensar, aquela lacuna geracional poderia aparecer de novo.
— Se quer dar uns amassos, pelo menos vá para algum lugar
mais escondido.
— Vamos lá, não seja assim. Eles têm álcool aqui. Vamos nos
divertir juntos.
— Além do mais, há algum tempo estou querendo dizer isso para
você. Mesmo de dentro do meu quarto… smack smack, pow pow. O
que diabos é o casamento, afinal? Hein? O que? Digo, tá bom, tanto
faz. Mas que caralho? Lá estava eu, totalmente deprimida, e vocês
dois transando. Eu podia até ouvir os seus gritos a noite toda, pelo
amor… eek!
Badigadi de repente ergueu Nanahoshi em seus braços.
— Bwahaha! Venha! Hoje você vai cantar suas canções bizarras
para mim!
— Elas não são “bizarras”; são populares no meu mundo!
— Mas que interessante! Não sei de que mundo você vem, mas
cante-as para mim! Vá em frente, cante o máximo que puder!
— Espera, primeiro preciso falar umas coisas para o Rudeus!
— Bwahaha! Se não tiver nada de bom a dizer ao homem que te
ajudou, é melhor que cante! Agora, cante!
— Eu ainda estava só começando a falar o que queria! — rebateu
Nanahoshi em protesto.
Ela provavelmente queria expressar a sua gratidão. Mesmo
assim, só fiz o que qualquer pessoa faria por um amigo em apuros.
Ela não precisava me agradecer. Além disso, ela devia ter um alto
status social, já que estava sendo praticamente sequestrada por um
Rei Demônio. Era quase como se fosse a princesa de algum reino.
Isto é, se a dita princesa tivesse sido carregada para um bar em vez
de para uma cela. E sempre havia um palco em um bar.
Depois de um tempo, Nanahoshi começou a cantar. Um pouco
depois, um acompanhamento se juntou a ela. A princípio, pensei
que podia haver um trovador presente, mas acabou por ser Badigadi
tocando um instrumento. Eu não sabia que ele podia tocar. Além
disso, ele pediu para ela cantar para ele e ainda assim estava se
apresentando ao lado dela? Eu definitivamente não o entendia.
Deixando isso tudo de lado, era uma música familiar. Eu não
conseguia lembrar de onde era… ah, é mesmo. “Gandhara”, o tema
de encerramento da série Monkey. Isso definitivamente não era algo
que eu esperava que a sua geração soubesse. Mas, relembrando,
isso era bem famoso.
Dito isso, ela era péssima. Horrível. Terrível. Talvez fosse porque
não estava sincronizada ao acompanhamento. Nah, os dois eram
horríveis e era por isso que não conseguiam nem mesmo
sincronizar um com o outro.
Ainda assim, pareciam estar se divertindo. Além disso, Nanahoshi
estava sendo a estrela do nosso grupo. Tudo bem se ela fosse
terrível. Mesmo que a sua música fosse horrorosa, ainda transmitia
os seus sentimentos.
Ela queria mesmo voltar para casa, tanto assim? Isso era algo
que eu não conseguia entender. Meu país do amor estava neste
lugar.
Bem, a festa foi divertida. A gente devia fazer isso mais vezes.
✦✦✦✦✦✦✦
A comemoração chegou ao fim quando a sua estrela mais
brilhante, Nanahoshi, ficou completamente caída. Linia e Pursena a
carregaram para o dormitório, onde aparentemente teriam uma festa
do pijama. O resto se dividiu em grupos. Quem gostava de beber iria
para outro bar e seguiria com a segunda rodada.
Sylphie e eu optamos por voltar para casa. Em seu estado de
embriaguez, ela riu e se agarrou ao meu braço. Suas pernas
estavam um pouco instáveis, então mantive um braço em volta de
sua cintura para apoiá-la, de repente ganhando uma visão de como
os playboys se sentiam quando saíam em encontros em grupo e
sabiam que iriam fazer um gol.
Claro, eu não tinha pensamentos impuros – embora isso pudesse
mudar quando chegássemos em casa.
— Rudy, não está meio barulhento? — disse ela de repente.
— Hm? — Assim que ela mencionou…
Apurei os meus ouvidos. Pude ouvir o som de alguém batendo em
alguma coisa e vozes discutindo. Soou quase como uma briga entre
gatos de rua. Ao nos aproximarmos da nossa casa, vimos um grupo
parado à porta, ruidosamente batendo nela. De longe, tudo o que eu
podia ver eram as suas silhuetas. Alguns pirralhos da vizinhança,
talvez, ou algum tipo de ladrão.
Minha mente ainda estava confusa pelo álcool, mas ativei o meu
olho demoníaco, só por segurança. Sylphie deu um tapa nas
bochechas e, embora ainda instável, ficou em pé sem ajuda.
— Rudy, vou nos desintoxicar.
— Certo.
Sylphie lançou um feitiço de desintoxicação em mim, e pude sentir
o álcool dentro de mim sumindo. Não fiquei completamente sóbrio,
mas minha cabeça pareceu ficar mais clara. Tomando cuidado para
ter certeza de que os supostos ladrões não nos localizariam, me
arrastei em silêncio em direção deles. Foi então que ouvi as suas
vozes.
— O motivo para chegarmos tão tarde foi porque você fez a gente
se perder, Norn!
— O mesmo vale para você, Aisha. Foi você quem disse que era
definitivamente por aquele caminho.
— Além disso, nem sabemos se este é mesmo o lugar ou não! O
que você fará agora? Todas as pousadas já estão fechadas! Agora
vamos ter que acampar do lado de fora, no frio!
— Eu também não gosto disso, mas foi você quem disse que
ficaríamos na casa dele, então não precisávamos de um quarto para
hoje. Eu não queria ficar na casa dele, mas você me forçou a vir
junto…
— Isso porque dissemos para a Ginger que ficaria tudo bem!
Locar um quarto depois daquilo seria estupidez!
— Você fica sempre assim, sempre agindo como se fosse melhor.
Vozes estridentes. Vozes infantis, mas que soavam um pouco
familiares. E no meio disso tudo, ouvi nomes que conhecia. Então
finalmente…
— Vocês duas, acalmem-se. Este é definitivamente o lugar. Há
uma presença familiar por aqui. — A voz composta de um homem.
No instante em que escutei, um redemoinho de emoções
indescritíveis surgiu dentro de mim.
Soltei um suspiro de alívio e parei na frente deles.
— Ah!
— Irmãozão!
Minhas duas irmãzinhas, que tinham crescido bastante, vestiam
roupas árticas de cores diferentes e combinando, como os
personagens do Ice Climber. Norn Greyrat e Aisha Greyrat. Aquela
com uma expressão complexa no rosto provavelmente era Norn e
aquela com um olhar de determinação feroz devia ser Aisha.
— Irmãozão, senti saudades! — Aisha veio voando para mim,
envolvendo os braços e as pernas em volta do meu torso, igual uma
macaquinha. Ela esfregou sua bochecha contra a minha. Sua pele
estava fria, embora eu pudesse estar quente, graças ao álcool. —
Ooh, você está tão quente! E você fede a álcool!
— E você está me deixando com frio. Por favor, solte. —
Enquanto eu tirava Aisha de cima de mim, olhei para Norn, que
estava com os lábios firmemente franzidos. Ela baixou o queixo em
saudação.
— Você tomou álcool? — perguntou ela.
— Sim, tivemos uma pequena celebração.
Ela parecia perturbada, e eu não acho que era só porque era
tímida. Paul mencionou que a garota não era a maior das minhas
fãs…
Então, atrás de Norn estava…
— Já faz um tempo, Rudeus — disse o careca com uma cicatriz
no rosto. Um guerreiro orgulhoso empunhando uma lança. Não
parecia diferente de quando tinha o visto da última vez, três anos
atrás.
— Já faz um tempo, Senhor Ruijerd.
Fui atingido por uma onda de nostalgia, lembrando dos dias em
que viajamos juntos, só nós três. Como nos conhecemos, como nos
separamos. O que deveria dizer? Enquanto procurava as palavras,
Ruijerd de repente olhou para trás.
— Na Guilda dos Aventureiros disseram que você se casou,
mas… não vejo onde está a Eris.
A pessoa para quem ele estava olhando era Sylphie. A expressão
dela se tornou de surpresa, mas ela rapidamente se curvou.
— Hm, Rudy, por enquanto, por que não os convidamos para
entrar?
— Ah, sim, isso mesmo. Entrem. — Destranquei a porta e
gesticulei para que entrassem.
Fazia apenas um mês desde a chegada da carta. Chegaram
muito, muito mais cedo do que eu esperava.
Capítulo 12: Nostalgia e Frustração
Eu estava atualmente empoleirado em um dos sofás da sala de
estar, sentado à minha frente estava Ruijerd. Sylphie guiou Aisha e
Norn para o banho. Eu e ela tínhamos ficado sóbrios, mas o cheiro
de álcool provavelmente continuava pairando em nosso hálito,
porém, a magia de desintoxicação tinha ao menos nos livrado da
embriaguez.
Quando olhei para o rosto de Ruijerd, iluminado pelo fogo
crepitante, lembrei-me da primeira vez que nos vimos. Algumas
memórias começaram a fluir: o tempo em que viajamos com Eris, só
nos três, e também outras coisas mais.
— Realmente já faz um tempo — falei.
— Sim. — Ruijerd também semicerrou os olhos e elevou os
cantos da boca. Exatamente como eu me lembrava.
— Primeiro de tudo, acho que devo te agradecer por escoltar
minhas irmãzinhas até aqui.
— Não precisa agradecer. Proteger crianças é algo natural.
Certo – esse era o nosso Ruijerd. Eu lembrava que o chamei de
lolicon, brincando, enquanto viajávamos juntos. Mesmo assim, fiquei
surpreso ao ver que a pessoa que Paul mencionou em sua carta era
mesmo Ruijerd. Considerei a possibilidade de que pudesse ser
Ghislaine, mas, considerando que a tarefa era acompanhar duas
crianças, Ruijerd era o melhor homem para o serviço. Isso é tão
verdade que eu o contrataria para ser guarda-costas de Aisha e
Norn pelo resto da vida, caso fosse possível.
De qualquer forma, já fazia muito tempo que não conversávamos.
Sobre o que conversávamos naqueles tempos? Ruijerd era quieto,
não se tratava do tipo de pessoa que gostava de conversa fiada.
— A propósito, o que aconteceu com a Eris? — perguntou ele,
sem quaisquer rodeios. Era uma pergunta que eu realmente não
queria responder, mas ele merecia saber.
— Muita coisa. Deixe-me explicar desde o começo.
Contei-lhe o que aconteceu depois que nos separamos em frente
ao campo de refugiados. Sobre como Eris e eu dormimos juntos.
Como, logo depois, ela desapareceu e eu caí nas profundezas do
desespero. Como não consegui me recuperar. Como passei os dois
anos seguintes procurando pela minha mãe. Como me encontrei
com Elinalise e ouvi sobre tudo o que estava acontecendo. Como
segui a recomendação do Deus-Homem e me matriculei nesta
escola. Como, por sua vez, isso me levou ao reencontro com
Sylphie e como ela me ajudou a me recuperar. Depois, sobre nosso
casamento.
— Entendo. — Ruijerd ouviu o tempo todo em silêncio, sem dizer
nada. Por fim, falou: — Isso costuma acontecer.
— Costuma acontecer? — Repeti.
Ele apenas acenou com a cabeça.
— É uma perspectiva na qual guerreiros costumam se atrapalhar.
Tenho certeza de que Eris não te odeia.
— Mas ela disse que nós dois não estávamos em “equilíbrio”.
— Não sei se ela quis dizer essas palavras de forma literal ou se
você apenas não conseguiu entender o que ela quis dizer.
— Entendi mal?
— Sim. Eris nunca foi muito boa com as palavras. — Ruijerd
saberia… não, ele também não. — Pelo menos enquanto viajamos
juntos, ela gostava de você. Se tiver a oportunidade de se
encontrarem novamente, mantenha a cabeça fria e converse a
respeito disso.
Eu entendi tudo errado? Quando ela disse que não estávamos em
equilíbrio, queria dizer apenas que não estava no meu nível? Ela
tinha partido para ficar mais forte, para que pudesse alcançar esse
equilíbrio e depois voltar? Nesse caso, o significado talvez fosse
algo como: Espere por mim.
Mesmo assim, já era tarde demais para perceber isso. Não
importa o que ela quis dizer, ainda passei três anos sofrendo. Três
anos em que não ouvi nenhum rumor sobre ela. A pessoa que
finalmente conseguiu me salvar foi Sylphie, não Eris. O que eu
deveria supostamente fazer, deixar Sylphie de lado e fazer as pazes
com Eris? Sem chances.
Além disso, para ser honesto, eu ainda estava com um pouco de
medo da ideia de reencontrar Eris. Não era como se eu não
acreditasse no que Ruijerd estava dizendo, mas havia a
possibilidade de que ela realmente tivesse se cansado de mim. Se
eu a abordasse com a intenção de nos reconciliarmos, só para ela
me dar um soco e me olhar de forma recusadora, seria um
verdadeiro golpe nos meus sentimentos.
Vamos parar de pensar nisso, disse a mim mesmo. Seja lá qual
fosse a verdade, eu não poderia mudar o passado. Ficar pensando
nisso não serviria de nada.
Mudei o assunto.
— O que você esteve fazendo por esse tempo todo, Senhor
Ruijerd?
— Ah, sim. — Ele parecia ainda ter algo a dizer, mas só balançou
a cabeça. — Depois de me separar de vocês dois, fui para a área
florestal na região sul.
Ruijerd aparentemente havia descoberto que a Tribo Superd
escondida no Continente Central estaria em uma floresta. Ele fez
seu caminho para a densa floresta ao sul das Montanhas Rei
Dragão, onde conduziu uma exaustiva busca por dois anos. No final
das contas, não encontrou nenhum vestígio dos Superds, embora
tenha encontrado vários itens pertencentes a pessoas que teriam
morrido durante o Incidente de Deslocamento. Entregou todos na
cidade mais próxima.
Sua busca na floresta não rendeu em nada, então rumou para o
sul, ao longo da costa, e chegou a Porto Leste. Ele planejou pegar
informações que saíam de Millis por lá, então seguir para o norte e
procurar pela Zona de Conflito. Entretanto, por sorte, deparou-se
com Paul. Depois disso, aconteceu tudo exatamente como descrito
na carta. Quando Paul hesitou sobre dever ou não mandar suas
duas garotinhas embora, Ruijerd se ofereceu para servir de
acompanhante.
— Ah, também conheci a sua mestra.
— Mestra Roxy?
— Sim. — Ruijerd estava com um sorriso tenso. — Ela era um
pouco diferente da sua descrição.
— Sério? De que forma?
— No segundo em que eu disse meu nome e ela viu a joia na
minha testa, ela ficou completamente apavorada.
Pensando bem, foi Roxy quem me disse que a Tribo Superd era
composta por terríveis assassinos. Como uma Migurd, que vivia
com medo dos Superds, sua reação foi provavelmente inevitável.
Entretanto, eu gostaria de ter visto – Roxy tremendo de terror ao se
deparar com Ruijerd.
— Você veio para cá com a Senhorita Ginger?
— Sim. Chegamos à noite e fomos para a universidade, mas não
te encontramos.
Eles pensaram que eu morava nos dormitórios. Claro, naquela
hora eu já tinha saído do bar, e acho que ninguém a quem
perguntaram sabia aonde eu tinha ido, então acabaram por pedir o
meu endereço. Para ter certeza de que de alguma forma me
encontrariam, foram procurar em minha casa enquanto Ginger se
separava para buscar pela cidade. Entretanto, se perderam no meio
do caminho, seja porque Aisha ou Norn errou a rua, ou porque a
pessoa que explicou a localização da casa fez isso de maneira
incorreta. Enquanto vagavam pela cidade, Ruijerd encontrou as
minhas pegadas e as seguiu até a nossa casa.
— Então foi isso que aconteceu — falei. — Devo expressar a
minha gratidão. Obrigado.
— Não precisa me agradecer.
Não pude deixar de sorrir diante de suas palavras. Uma das
minhas maiores fontes de orgulho era ter sido reconhecido como
amigo por este homem.
— De qualquer forma, vocês chegaram bem rápido — falei. A
carta havia chegado há um mês. Achei que ainda levariam, no
mínimo, dois ou três meses para chegar.
— Sua irmã estava ansiosa.
— Qual delas?
— Aisha. Foi graças a ela que pudemos viajar tão rapidamente.
De acordo com Ruijerd, Aisha propôs que acompanhassem uma
caravana mercante, para que também pudessem viajar à noite.
Essas caravanas não costumavam aceitar gente estranha, então
ofereceu os serviços de Ruijerd e Ginger, como guardas, a eles, em
troca de deixar que ela e Norn seguissem juntas. Foi um bom
negócio, embora as negociações não tenham sido fáceis.
Cada vez que uma caravana chegava ao seu destino final,
moviam-se para a cidade mais próxima em busca de outra. Foi por
meio dessas rápidas mudanças entre caravanas que puderam viajar
com tanta eficiência. Eles coletavam informações a respeito dos
horários de caravanas, às vezes voltando para alguma cidade que já
tivessem passado, só para seguir com outra caravana que fosse
mais adequada. Quando os três perguntaram a Aisha por que
precisavam voltar para trás, ela disse: “Porque por esse caminho é
mais rápido.” Incrível.
— Isso não foi difícil? Se você estava se movendo durante o dia e
servindo como guarda-costas à noite, isso significa que tinha que
ficar o tempo todo acordado.
— Não foi. Estou acostumada a viajar continuamente sem
qualquer descanso, isso já faz um tempo. Mas…
— Mas?
— Foi a primeira vez em muito tempo que senti que estava
recebendo ordens. — Ele revelou um sorriso ao dizer isso. Talvez
estivesse se lembrando da época da Guerra de Laplace.
Aisha, aquela sujeitinha.
— Bem, eu não tenho certeza do que dizer, mas parece que
minha irmãzinha te deu muito…
— Isso foi engraçado. — Como de costume, Ruijerd era mole
quando se tratava de crianças. Mas mesmo que ele não se
importasse, não poderíamos criar Aisha para ser o tipo de pessoa
que manda nas pessoas. Depois eu teria que dar um bom sermão
nela.
— Mas ela só dormia feito uma pedra enquanto você trabalhava
sem parar, não é? — argumentei.
— Ela não ficava dormindo. Estava constantemente calculando a
nossa rota, fazendo planos para que viajássemos da forma mais
eficiente possível.
Hm. Certo, então ela não estava deixando todo o trabalho para
Ruijerd. Se fosse esse o caso, eu não poderia culpá-la.
— Mas ela ainda é uma criança — acrescentou ele.
O satisfatório plano de avanço de Aisha aparentemente não
levava o vigor delas em conta. No meio da jornada, ela e Norn
desmaiaram de exaustão. De acordo com a programação de Aisha,
ela planejava chegar antes do inverno, que é quando o clima
começaria a atrapalhar a viagem. Foi assim que fizeram para chegar
mais rápido do que sugerido pela carta.
— A Senhorita Ginger também deve ter passado por maus
bocados. Como está ela?
— Ela estava realmente feliz com o nosso ritmo. Disse que não
queria nada além de ver Sua Majestade o mais rápido possível.
Parecia realmente existir muita gente com músculos no lugar do
cérebro. Ginger com certeza era leal. Ela provavelmente já estava
se encontrando com Zanoba. Como será que reagiria ao ver Julie?
Gostaria de estar lá para ver a cena.
— Ela parece desejar retornar a servir ao Príncipe — confirmou
Ruijerd.
— Entendo. A propósito, quanto tempo você planeja ficar aqui? —
perguntei de forma indiferente. Presumi que a resposta giraria em
torno de uma semana. Eu não iria demorar tanto para apresentá-lo a
todos os meus amigos. E tinha certeza de que Zanoba ficaria
encantado. Linia e Pursena provavelmente também teriam algo a
dizer. Quem sabia o que Cliff pensaria? Ruijerd e Badigadi
poderiam, inclusive, já se conhecer.
Esses pensamentos foram freados quando ouvi a resposta de
Ruijerd:
— Partirei amanhã.
— Isso é bem… rápido.
— Ouvi dizer que alguém viu um demônio nas profundezas da
floresta ao leste. Pretendo verificar isso.
Ruijerd já havia localizado a sua próxima parada. Achei que ele
poderia ficar um pouco mais, mas segurá-lo seria algo insensível da
minha parte.
— Além disso — disse ele —, não tenho intenção de te atrapalhar.
— Claro que não. Você jamais me atrapalharia. — Eu nunca o
trataria como um incômodo.
— Também é um pouco… difícil ficar aqui.
Havia solidão em sua voz. Saber que Eris e eu não estávamos
juntos podia ter sido um choque. Eu não sabia exatamente como
Ruijerd se sentia, mas se estivesse na posição dele, também
poderia achar um pouco difícil me ver me aproximando tão
carinhosamente de Sylphie.
— Acho que não posso te culpar por isso.
Parecia que uma fenda havia se formado em nossa amizade. Eris
podia ter sido a base que nos mantinha juntos.
— Rudeus.
Assim que ele chamou pelo meu nome, levantei a minha cabeça.
Aparentemente, em algum momento desviei o olhar. Ruijerd mostrou
um breve sorriso.
— Não faça essa cara. Eu voltarei de novo.
Fiz tudo o que pude para também forçar um sorriso na cara. Eu
não me arrependia por ter me casado com Sylphie. Entretanto,
realmente senti como se tivesse cometido algum tipo de erro.
— Se acontecer de eu me encontrar com Eris, verei o que ela tem
a dizer.
— Por favor — respondi, olhando diretamente em seus olhos.
Encontrei uma luz suave queimando dentro deles.
Logo depois, Sylphie saiu do banho. Norn aparentemente
adormeceu no meio do banho, enquanto Aisha estava brincando
bastante na água, mas caiu no sono na mesma hora que saiu. Esse
era o efeito relaxante de um banho. A água quente fazia maravilhas
a um corpo exausto.
— Obrigado por fazer tudo isso.
— Aisha parecia se lembrar de mim. Ela adivinhou na mesma
hora quem eu era. Muito diferente de outra pessoa que nós
conhecemos.
— Seu cabelo está mais comprido, você não está usando óculos
escuros e não está com roupas de garoto, então não conta.
— Mas Norn não parecia se lembrar de mim.
— É raro que uma criança de três ou quatro anos se lembre das
outras crianças da vizinhança.
— Acho que sim.
Sylphie vestiu as garotas com pijamas e as enfiou na mesma
cama. A conversa com elas teria que esperar até o dia seguinte.
— Hm, muito prazer em conhecer. Me chamo Sylphiette Greyrat.
— Sim. Me chamo Ruijerd Superdia.
Sylphie e Ruijerd apertaram as mãos desajeitadamente. No
passado, ambos sofreram por causa de seus cabelos verdes,
embora nenhum dos dois os tivesse mais. Ruijerd raspou tudo,
enquanto o de Sylphie ficou branco durante o Incidente de
Deslocamento.
— Hmm, Senhor Ruijerd, o que você prefere em termos de
quarto?
— Qualquer coisa serve.
— Rudy, devemos deixar o quarto maior para ele? Ele é um
convidado importante, não é?
Eu não achava que Ruijerd se importaria com o tamanho do
quarto. Além disso, ele, de qualquer forma, não usaria a cama.
— Durma onde quiser. Pense em nossa casa como sendo sua.
— Sim, vou fazer isso. Bem, vou dormir. — Ruijerd terminou de
falar e se levantou.
— Tudo bem, boa noite.
Sylphie e eu ficamos ali, rígidos, enquanto ouvíamos ele se
movendo pela casa. Ele parecia ter optado pelo quarto onde as
crianças estavam dormindo. Aquele lolicon desgraçado! Nah,
brincadeira. Quando viajávamos juntos, ele nunca tirava os olhos de
nós, mesmo quando dormíamos. Era exatamente esse tipo de
homem que ele era. Além disso, nos deixou ouvir seus passos de
propósito. Se estivesse tramando algo suspeito, os teria silenciado e
se movido furtivamente.
— Eu fiz algo para ofendê-lo? — perguntou Sylphie, ansiosa.
Ruijerd foi um pouco rude. Parecia que ele tinha alguns
sentimentos conflitantes a respeito de meu casamento com Sylphie,
afinal.
— Não, você não fez nada de errado. Ele demora um pouco para
se aproximar das pessoas que acaba de conhecer, isso é tudo.
— Se você tem certeza de que é só isso… — Sylphie parecia
estar ligeiramente magoada.
— Vamos para a cama, tá bom?
— Certo.
Eu não tinha jantado naquela noite, mas não estava com fome.
Ah, deveria ter fornecido ao menos um lanche para o Ruijerd, pensei
enquanto apagava a lareira e verificava a tranca da porta da frente.
Já tínhamos o sistema de segurança mais útil dentro da casa, mas
eu ainda queria estar seguro.
Depois de apagar as luzes, eu e Sylphie subimos juntos para o
segundo andar. Em seguida, deitamos na cama.
Então, Sylphie disse:
— Hoje, hm, vamos pular, tá?
— Hein? Ah, sim, tá.
Naquela noite evitamos o sexo – foi a primeira vez que pulamos,
fora no período menstrual.
✦✦✦✦✦✦✦
Na manhã seguinte, acordei como sempre. Sylphie ainda estava
dormindo. Ela normalmente estaria formando uma bola com o corpo,
usando o meu braço como travesseiro, mas dessa vez estava
usando o seu próprio travesseiro e tinha uma expressão tensa no
rosto. Normalmente, minha afeição surgia de forma espontânea,
junto com uma pitada de desejo sexual, e eu estendia a mão para
apalpar o seu peito. Então, enquanto tinha aquela fonte de perfeição
envolta na palma da minha mão, uma onda de êxtase tomava conta
de mim.
Mas dessa vez não senti essa sensação. Em vez disso, me senti
indisposto. Não estava sendo um bom dia para o meu dragão
ascendente. Eu deveria estar feliz com a presença de Ruijerd, mas
parecia que Eris estava pesando na minha mente. Estava me
sentindo triste e inquieto.
Embora não me sentisse muito motivado, decidi ainda assim
começar o meu treino diário. Eu tinha certeza de que cinco minutos
– não, dez minutos – de exercício me animariam. Com esse
pensamento em mente, saí.
Uma cena arrepiante me esperava.
Já havia alguém de pé na nossa entrada principal. Na verdade,
duas figuras imponentes: um guerreiro careca, um homem que
raspou o cabelo para esconder o tom verde. Ele não usava
nenhuma das roupas árticas comuns na região, estava vestido à
paisana, carregando uma lança. Era Ruijerd.
E havia um outro homem. Ele tinha um corpo grande e
musculoso, com a pele negra como piche e cabelos roxos. Badigadi
estava com os seis braços cruzados sobre o peito, emitindo uma
aura imensamente imponente enquanto ficava na frente de Ruijerd.
O frio no ar era intenso. Volátil. Se alguém acendesse um fósforo,
poderia causar uma explosão.
Badigadi não estava sorrindo, o que era raro. Na verdade, ele não
tinha expressão nenhuma. Ruijerd estava de costas para mim, então
não pude ver o seu rosto.
Isso significava que eles se conheciam, afinal? Ambos estavam
vivos desde a época da guerra de Laplace: um era o capitão da
guarda imperial de Laplace, o outro da facção moderada do lado
oposto. Ruijerd atualmente desprezava Laplace com todo o seu
coração, mas naquela época, suas circunstâncias provavelmente
eram bem diferentes.
— Hm. — Badigadi me deu uma olhada. Então olhou mais uma
vez para Ruijerd. — Então é isso. — Ele acenou com a cabeça,
aparentemente tendo satisfeito a sua curiosidade. Então, sem dizer
mais nada, girou nos calcanhares. A neve rangeu sob seus pés
enquanto ele desaparecia na distância.
Ruijerd silenciosamente olhou por cima do ombro em minha
direção. Ele parecia um pouco ansioso. Era raro vê-lo suando frio.
— Aconteceu alguma coisa entre você e o Rei Badi?
— Há muito tempo.
Eu poderia inferir o resto de sua curta resposta. Já tinha ouvido
falar que a loucura da Tribo Superd os levara a atacar qualquer um
que cruzasse o seu caminho, fossem amigos ou inimigos, e isso
devia incluir alguns membros do povo de Badigadi.
Independentemente de quão descompromissado ele fosse para
governar, ainda era um rei.
Me perguntei como teria sido o relacionamento deles após a
guerra. Não conseguia imaginar alguém tão otimista quanto
Badigadi buscando vingança contra os Superds. Bem, ele
provavelmente defendia os cidadãos impotentes que os Superds
feriram. Mesmo com Laplace tendo sido a causa para as tendências
destrutivas dos Superds, Ruijerd ainda assim matou pessoas e
Badigadi se vingou por isso. Eu tinha certeza de que era isso.
Não, espera. Era possível que Badigadi não soubesse como ou
por que o que aconteceu com a Tribo Superd era culpa de Laplace.
Deveríamos falar sobre isso na próxima vez que nos
encontrássemos.
Pensando bem, como ele reagiria se eu dissesse que planejava
produzir e vender estatuetas de Ruijerd no futuro?
— Senhor Ruijerd, só para deixar claro, aquele homem tem sido
bom para mim desde que veio para esta cidade. Posso imaginar o
que pode ter acontecido no passado, mas…
— Não se preocupe. Não tenho intenção de lutar contra ele. —
Ruijerd sorriu rigidamente ao dizer isso. No entanto, há alguns
momentos estava exibindo uma clara intenção assassina. Se eu não
tivesse saído na hora certa… — Mesmo assim, nunca pensei que o
veria aqui, dentre todos os lugares.
— Ele parece ter vindo para cá para me encontrar — falei.
— Ahh, bem, isso se encaixa na personalidade dele. — Ruijerd
forçou outro sorriso antes de retornar para a casa.
O encontro me deixou confuso. Eu imaginava que o alegre e
tranquilo Badigadi poderia se dar bem com qualquer um.
Quando voltei para casa, Sylphie estava acordada e preparando o
café da manhã. Aisha, que havia por algum motivo vestido uma
roupa de criada, também estava ajudando. Norn parecia ainda estar
dormindo. Com a intenção de acordá-la, subi as escadas. Bati na
porta e imediatamente comecei a estender a mão para a maçaneta,
mas uma sensação de mau presságio me impediu de abri-la. Em
vez disso, chamei por ela.
— Já está na hora do café da manhã, então, por favor, desça.
Não houve resposta, mas quando me esforcei para ouvir, ouvi o
farfalhar de roupas. Ela parecia estar se trocando. Evitei de
desencadear uma cena surpresa de nudez! Afinal, eu não era mais
um protagonista tapado.
— Certo… — Assim que ouvi sua voz por trás da porta, me senti
aliviado e voltei ao primeiro andar.
Nós cinco tomamos o café da manhã juntos. Aisha parecia ter
boas maneiras à mesa, ainda mais levando sua idade em conta, e
comia maravilhosamente bem. Ruijerd, como de costume, usou
apenas o garfo. Norn, ainda parecendo meio adormecida, não
comeu muito bem. Bem, eu poderia ao menos dizer que ela estava
usando um garfo. Isso estava um passo à frente de Eris, que
apunhalava a carne com a faca e enfiava na boca.
— Bem, então está na hora de eu ir embora.
Assim que terminamos a nossa refeição, Ruijerd se preparou para
partir. Ele tinha pouca bagagem, então não estava carregando muita
coisa. Nós cinco fomos para a saída da cidade para vê-lo partir.
Ruijerd afirmou que isso não era necessário, mas isso não se
tratava de um problema de necessidade. Despedir-se de um amigo
era algo natural.
Não conversamos muito enquanto caminhávamos. Norn
eventualmente agarrou a bainha da camisa de Ruijerd, de forma
silenciosa o suficiente para que isso quase passasse despercebido.
Ruijerd, entretanto, percebeu e diminuiu o seu ritmo. Também
diminuí para acompanhar-nos.
Norn não parecia querer se separar dele, e eu entendia bem esse
sentimento. Será que eu devia implorar para ele ficar? Uma noite
não era o suficiente para colocar toda a conversa em dia, e havia
pessoas a quem eu queria apresentá-lo e uma montanha de outras
coisas que gostaria que ele visse.
Mas pensar em Eris me impediu, como esperado. Eu não queria
deixar Ruijerd desconfortável. Isso não era culpa de Sylphie, era só
que eu sentia que não poderia realmente falar com ele antes de
ajeitar as coisas com Eris. Entretanto, no momento, não sabia nem
onde ela estava.
Enquanto eu pensava nessas coisas, chegamos à entrada da
cidade.
— Bem, então fique seguro — Ruijerd me disse.
— Você também — falei.
Nossas despedidas foram curtas. Havia tanta coisa que eu queria
dizer. Simplesmente não conseguia encontrar as palavras certas no
momento. Bem, não era como se isso fosse um adeus definitivo. Eu
só tinha que voltar a falar com ele após as coisas se acalmarem.
Quanto a Ginger, ela aparentemente já havia se despedido dele no
dia anterior.
— Obrigada por cuidar da gente! — Aisha curvou-se alegremente.
Ela devia ter entendido que seus planos de viagem rápida jamais
funcionariam sem a ajuda de Ruijerd. Eu tinha certeza de que ele
também havia as protegido de perigos desconhecidos.
— Aisha, não exija muito de Rudeus.
— Sim, eu sei!
Ruijerd sorriu rigidamente e afagou a cabeça dela.
— H-Hm, uh, Senhor Ruijerd… — Norn ainda não tinha largado a
camisa dele. Ela possuía um olhar ansioso no rosto, o qual
denunciava que não queria que ele partisse.
— Não se preocupe, nos encontraremos novamente. — Ruijerd
ofereceu-lhe um sorriso enquanto pousava a mão em sua cabeça.
Ver os dois assim despertou algumas memórias antigas. Na época
em que eu fazia a mesma expressão ansiosa, Ruijerd também
acariciava a minha cabeça.
Norn baixou os olhos e depois ergueu o rosto. Ela tentou dizer
algo, então franziu os lábios. Seu rosto se contorceu em várias
expressões diferentes até que ela finalmente se decidiu.
— E-Eu quero ir com você! — declarou.
Ruijerd parecia perturbado enquanto acariciava a sua cabeça,
sem dizer nada. No entanto, com o passar dos segundos, os olhos
de Norn rapidamente se encheram de lágrimas.
— Confie em Rudeus de agora em diante, não em mim — disse
ele.
— Mas não posso! Ele e meu Pai…
— Isso ficou no passado. Ele já refletiu a respeito das suas ações.
Seu pai também. Te contei sobre as dificuldades pelas quais ele
passou enquanto viajávamos. Até você aceitou isso.
— Mas ontem ele estava bêbado! E ele também está com uma
garota diferente daquela da última vez! Não posso confiar nele!
O ar ao nosso redor pareceu esfriar quando ela disse isso,
embora talvez fosse apenas a minha imaginação. Afinal, eu já havia
contado a Sylphie sobre Eris. Não era traição, e não era como se eu
estivesse tentando ser um playboy – embora provavelmente não
fosse o que parecesse para Norn.
Ruijerd olhou para mim e depois para Sylphie antes de forçar um
sorriso.
— É assim que as coisas são entre os homens e as mulheres.
Acontece. Isso não significa que seu irmão seja desleal. — Ele tirou
a mão da cabeça dela. — Você aí. Pode me dizer o seu nome
novamente?
— Ah, sim. Me chamo Sylphiette.
— Sylphiette. Deixo essas duas e Rudeus aos seus cuidados.
— C-Claro!
Ruijerd finalmente trocou algumas palavras com Sylphie. Seus
sentimentos em relação a ela eram certamente complicados, mas
rezei para que ele não tivesse má vontade.
— Bem, então vamos nos encontrar de novo.
O observei partindo até que não pudesse mais vê-lo. Houve um
tempo em que observei sua figura se afastar, cheia de gratidão por
ele. Eu tinha certeza de que Aisha e Norn agora sentiam o mesmo.
História Paralela: O Afiar das Presas
Em um cabo sem nome, a apenas uma hora de jornada a pé ao
norte do Santuário da Espada, uma garota solitária balançava sua
espada – um golpe simples sem nenhuma técnica que pertencesse
ao Estilo Deus Espada ou qualquer outra coisa. O nome da garota
era Eris Greyrat.
Eris Greyrat brandia sua espada sem pensar. Lá naquele espaço,
sozinha, sem nenhuma outra alma por perto. Apenas balançando
sem pensar, sua mente vazia. Um balanço carregado por
pensamentos ociosos era sem sentido. Um balanço que apenas
imitava os movimentos dos outros também era sem sentido. Mas se
a sua espada fosse pura, vazia de pensamentos, então cada um
dos golpes afiaria as suas habilidades.
Ela continuaria aprimorando suas habilidades, cortando fatia por
fatia até que o caminho à sua frente estivesse claro o suficiente para
que pudesse ver o outro lado. Cada um dos golpes a tornava mais
forte. Quantas outras repetições seriam necessárias? Quanto tempo
teria que continuar fazendo isso para chegar ao nível de Orsted?
Eris não sabia. Ninguém sabia. Talvez nunca fosse capaz de
alcançar aquele nível, não importa o quão duro trabalhasse.
Esses pensamentos eram as exatas coisas sem sentido que
deveria evitar.
— Tsk. — Eris estalou a língua. Ela balançou a cabeça e sentou-
se para pensar.
Isso era muito irritante. Queria derrotar Orsted, mas quanto mais
pensava nisso, mais parecia estar distante disso. Sua mestra,
Ghislaine, em algum momento disse: “Pense.” Eris, no entanto, era
ruim em pensar. Não importa o quanto vasculhava em seu cérebro,
não poderia produzir uma resposta satisfatória.
Comparado a isso, seu segundo professor, Ruijerd, tinha sido
muito melhor. “Entende?” perguntaria ele. O homem a derrubaria,
então só perguntaria se entendeu ou não. Incansavelmente,
continuaria até que ela por fim entendesse. Sem a necessidade de
usar a cabeça, como se fossem iguais.
Eris respeitava Ghislaine. E também respeitava Ruijerd. Por mais
frustrante que pudesse ser, os ensinamentos do Deus da Espada
combinavam as partes boas de ambas as pessoas que ela
respeitava. Ele assim ordenou:
— Apenas balance a espada sem pensar em nada. Não pense,
apenas balance, e quando ficar cansada, pense. Quando estiver
cansada de pensar, levante-se e volte a balançar.
Ela então fez exatamente isso. Balançou, sentou, balançou e
sentou. Quando ficou com fome, comeu. Então repetiu o processo
de balançar a lâmina e voltou a se sentar.
No início, fez isso na sala de treinamento. Quando fazia assim,
entretanto, era inevitável que alguém entrasse em seu caminho. As
culpadas eram sempre as outras garotas do salão de treinamento.
Diziam algo como: “Ei, vamos praticar luta esta manhã, venha
conosco” ou “Ei, a comida está pronta, venha comer” ou “Ei, pode
treinar um pouco comigo?” ou “Ei, você está fedendo, vá tomar
banho”. Coisas desse tipo.
Tornou-se tão irritante que Eris acabou por deixar o salão de
treinamento. Ela saiu e continuou andando até que encontrou um
pedaço de terra desocupado e começou a praticar por lá. Ela comia
o que pegou da cozinha do salão, ou qualquer monstro que
ocasionalmente tentasse atacá-la. Quando estava frio lá fora,
buscava toras no salão de treinamento e usava magia para acendê-
las para aquecê-la. Quando se cansava, voltava para o salão e
dormia o quanto quisesse.
Foi esta a sua vida diária pelos últimos seis meses.
Mas houve uma coisa que Eris entendeu. Dominar a espada era
difícil. Quando era mais jovem, pensava que a esgrima era muito
mais simples e mais adequada para ela do que os estudos. Bem,
essa parte ainda era verdade: a esgrima servia muito melhor para
ela do que o aprendizado com livros jamais serviu. Mas
definitivamente não era nada simples. Na verdade, poderia até dizer
que o aprendizado com livros era mais simples, contanto que
tivesse outra pessoa ensinando.
Tudo o que fazia era erguer e baixar a espada, de novo e de
novo. Entretanto, por alguma razão, não conseguia ficar boa nisso.
Deveria ser capaz de melhorar com mais rapidez. Devia ser capaz
de atacar com mais rapidez. Mas não conseguia alcançar a
velocidade desejada. Ela devia ser mais rápida agora do que há seis
meses, mas Ghislaine era ainda mais rápida. Ruijerd era mais
rápido. O Deus da Espada era mais rápido. E Orsted, é claro, era
mais rápido.
Ela tentou se lembrar de como eles lutavam – o Deus da Espada,
Ruijerd e Orsted. Como cada um deles se movia? Ela tentou imitar
seus movimentos, da ponta dos dedos aos ombros, com todas as
células de seu corpo. Então tentou ir além disso, transcendê-los.
Mas não sabia como fazê-lo. Não havia método que pudesse
usar.
Eris era ruim pensando.
Uma vez que ficou cansada do interminável ciclo de pensamentos
correndo por sua cabeça, se levantou e começou a praticar seus
balanços de novo. Ela continuou balançando sem pensar. Para
cima, para baixo. Mais rápido. Para cima, para baixo. Mais rápido.
Fez dez repetições, depois cem, mil. Quando fez isso, os
pensamentos ociosos voltaram a aparecer. Isso costumava
acontecer quando se cansava.
— Tch. — Ela estalou a língua uma vez e se sentou. Suas mãos
doíam. Havia um monte de bolhas nelas. Ela tirou um pano do bolso
e envolveu-o desinteressadamente nas mãos.
Doía, mas não era doloroso. Ela sempre conseguia se lembrar do
que aconteceu três anos atrás na Mandíbula Inferior do Wyrm
Vermelho. Comparado àquilo, sentia como se pudesse resistir a
qualquer coisa. A dor não lhe significava nada; nem a dor em sua
mão, nem sua frustração. Nem mesmo o fato de que estava
sozinha, sem ele ao seu lado.
— Rudeus. — Ela murmurou o nome dele.
Eris não pensava além disso. Ela era ruim pensando. E também
não era muito boa em continuar sendo positiva. Quanto mais
pensava, mais percebia que poderia quebrar.
— Uff.
Três anos. Pensou que tinha ficado mais forte, mas ainda não era
o bastante.
Eris se levantou e voltou a brandir a sua espada.
Controlando a sua sonolência, Eris voltou para o salão de
treinamento. Em sua entrada estava um homem que não
reconheceu – um homem impressionante, ainda por cima. Seus
robes eram tingidos em tons arco-íris e, por baixo deles, usava
apenas botas que iam até os joelhos, com quatro espadas na
cintura. Em sua bochecha havia uma tatuagem de pavão e seu
cabelo estava preso em um estilo que se abria no topo, igual uma
parábola. Quando ele avistou Eris, curvou um pouco a cabeça e
tentou cumprimentá-la.
— Eu sou o…
— Saia. — Eris falou uma única palavra para o homem parado
entre ela e o salão de treinamento. Não se importou em dizer
qualquer outra coisa. Ela se afiou até os limites com todos aqueles
balanços. O brilho nos olhos dela enquanto encarava qualquer coisa
era como o de uma fera agressiva. A intenção assassina dentro dela
cresceu como uma chama que a tudo consumia. Ela era como um
animal selvagem que não deixava ninguém se aproximar.
— O quê…?! — O homem não demorou a desembainhar a sua
espada.
— Você está no meu caminho. — Eris deu um passo à frente
enquanto falava. Para ela, o homem logo à frente não era nada
além de um obstáculo. Um de pé entre ela e seu ninho.
— Q-Que diabos é essa criatura…? — O homem, a princípio, nem
mesmo entendeu que palavras tinham saído da boca dela. Por um
momento, tudo o que viu foi uma fera faminta procurando por
comida. Eris então puxou a sua lâmina, e ele finalmente percebeu
que ela era uma humana, e ainda por cima uma espadachim.
— Pode se referir a mim como Auber, a Lâmina Pavão — disse
ele. — Vejo que você é uma estudante do Estilo Deus da Espada.
Posso pedir que me guie para um encontro com o Deus da
Espada…?
— Eu disse pra sair. — Irritada, Eris deu mais um passo à frente.
Ela estava dizendo para ele sair do seu caminho. Essas palavras,
entretanto, não foram registradas pelo homem chamado Auber. A
única coisa que percebeu foi a intenção assassina de Eris. Isso e a
percepção de que falar era inútil. Com isso, Auber – com uma
espada na mão direita – alcançou a espada mais curta em sua
cintura com a mão esquerda. Ele, entretanto, empunhou sua arma
em uma empunhadura reversa, brandindo o lado cego da lâmina em
direção a ela.
Na área de ataque, Eris decidiu que removeria o obstáculo em
seu caminho à força. Shkt! A lâmina dela zuniu pelo ar. Ela estava
usando a Espada da Luz, uma habilidade aprimorada com toda a
sua prática. Um oponente normal não tinha esperanças de se opor à
técnica mais letal do Estilo Deus da Espada.
— Hmph!
Mas isso só se fosse um oponente normal. Auber agarrou ambas
as espadas em suas mãos e as usou para repelir o ataque. Eris
previu essa reação e estava agora balançando sua lâmina de volta
na direção oposta.
— Ah…!
A espada de Eris foi detida pela que estava na mão esquerda de
Auber. Ela estava usando as duas mãos em sua empunhadura,
enquanto ele usava apenas uma, mas facilmente desviou o ataque.
A lâmina de Eris desviou para o lado, cortando apenas a ponta do
cabelo dele. O corpo dela seguiu o impulso da sua lâmina, fazendo-
a tropeçar em seu pé de apoio. Naquele exato instante, a mão
direita de Auber voou em direção à parte exposta do pescoço dela.
— Tch! — Eris descartou sua espada e caiu no chão, agachada. A
arma de Auber atravessou o espaço vazio onde ela tinha acabado
de estar. Eris se moveu como um gato, virando-se de novo. Ela
estava tentando recuperar a sua espada.
Auber chutou a arma dela, que desapareceu na neve. Isso,
normalmente, representaria o fim da partida. Mas Eris não parou. No
momento em que percebeu que sua espada estava perdida, voou
para cima de Auber com os punhos. Ele bateu o centro de sua
lâmina contra a bochecha dela com força suficiente para quebrar o
seu maxilar. Isso deixou um único corte em seu rosto.
Mesmo após isso, entretanto, Eris não parou.
— Graaah!
Ela socou a mandíbula dele.
Auber tentou impedi-la usando a arma em sua mão esquerda.
— Mrgh! — A mão dela se enredou na dele. Os dedos da garota
se enroscaram no cabo. Auber sentiu um arrepio percorrer sua
espinha ao perceber que ela estava tentando roubar sua espada. A
besta não pararia até que o matasse.
Ele deu um chute forte na mulher enroscada em torno dele,
fazendo-a voar pelo ar. Então reajustou o aperto em sua arma, de
modo que a lâmina agora estivesse voltada para ela.
Para a sorte de Eris, quando ele a lançou pelo ar, ela caiu
exatamente onde sua espada havia pousado. Quando pegou a
arma, sua respiração estava irregular. Ela tinha que matá-lo.
Foi então, quando Auber empunhou sua lâmina com seriedade e
começou a emitir sua própria intenção assassina, que uma voz
repentinamente interrompeu.
— Já chega.
A sede de sangue acabou. Eris já estava congelado no lugar,
tendo sentido a mudança no comportamento de seu oponente. O
Deus da Espada apareceu sem perceberem e estava agora parado
na entrada do salão de treinamento. Auber guardou sua espada e
Eris caiu de costas. Ela olhou para o céu, ainda respirando com
dificuldade. Seu rosto estava contorcido de tanta frustração.
Auber levou a mão direita ao peito e abaixou a cabeça.
— Já faz muito tempo, Mestre Deus da Espada.
— Então você veio, Imperador do Norte.
— Eu li a sua carta. E então aquela garota atacou.
— Ahh, incrível, não é?
— É a primeira vez que vejo uma espadachim tão implacável. Ela
é quase como uma besta. Ahh, então esta é a criança a que se
referem como Cão Louco.
Eris ouviu a conversa enquanto se levantava. A maneira como
avançou, vacilante, a fez parecer sobrenatural. Ao vê-la, Auber
preparou sua espada de novo. Mas Eris só olhou com fúria na
direção dele e entrou no salão de treinamento, desaparecendo no
prédio sem direcionar um segundo olhar ao homem que ficou lá,
parado, estupefato.
Ela limpou o ferimento em sua bochecha enquanto caminhava
pelo corredor, seguindo em direção ao seu quarto, sem se
preocupar em limpar a neve grudada em seu corpo. Então, quando
chegou ao seu destino, jogou a espada na base do travesseiro e
caiu na cama dura. Depois disso, adormeceu. Ela estava frustrada
com a sua derrota, mas essa era uma questão trivial.
✦✦✦✦✦✦✦
Naquela noite, Ghislaine visitou o Salão Efêmero. Sentados lá
dentro estavam o Deus da Espada Gall Farion e seu convidado, o
Imperador do Norte Auber. As sobrancelhas de Ghislaine estavam
ligeiramente franzidas, mas ela não mostrou nenhum sinal externo
de prestar atenção a Auber enquanto caminhava até o Deus da
Espada e perguntou sem rodeios:
— Mestre, por que você não está ensinando nada a Eris?
O Deus da Espada ouviu e riu.
— Eu já fiz isso, não fiz?
— Está falando sobre ela balançar a espada?
— Não. Como se temperar — respondeu ele, como se isso fosse
óbvio. A aspereza de sempre na sua voz estava ausente. Uma
resposta silenciosa.
Ghislaine não ligava muito para esse lado dele. Foi por isso que
ela fez uso de toda a inteligência que possuía e escolheu as suas
palavras com cuidado.
— Você sempre disse: “Faça tudo logicamente.”
— Disse.
— Então o que você está fazendo com a Eris? Ela fica lá fora
balançando a espada o tempo todo, igual uma idiota que não sabe
de nada. Onde está a lógica nisso?
— Hm? — Ele parecia irritado. — Desde quando você se tornou
um pé no saco?
— Desde antes de eu voltar aqui!
— Então não vai mais ouvir o que seu mestre diz?
— Mas… ugh!
Ghislaine de repente recebeu um golpe de espada. Para uma
pessoa comum, teria parecido como se a arma simplesmente
aparecesse magicamente na mão do Deus da Espada. Ghislaine, no
entanto, podia vê-lo desembainhar a arma. Ela só não era capaz de
reagir a tempo. Diante do homem mais rápido do mundo, ninguém
poderia, nem mesmo um Rei da Espada.
— Ghislaine. Sabe, meio que me arrependo da maneira como te
ensinei.
—…
— Você costumava ser como um tigre faminto, mas agora é como
um gatinho que perdeu as presas. Se tivesse ficado do jeito que
estava, já seria um Imperador da Espada.
Ghislaine engoliu em seco após essas palavras. Ela sentia que
recentemente tinha ficado mais fraca, embora não achasse que isso
fosse de todo ruim. Era verdade que seu crescimento com a espada
havia estagnado. Ainda assim, ela ganhou coisas importantes em
troca: inteligência e sabedoria. Coisas que ela não teria conseguido
dominando a espada.
— Não vou deixar a Eris perder as presas também. — Gall
guardou a espada como se dissesse: Agora você entende, não é?
Ghislaine ficou amuada ao responder:
— Não entendo. Por que você não a treina?
O Deus da Espada soltou um suspiro, lembrando que Ghislaine
era o tipo de criança que precisava de explicações completas para
entender.
— Ouça. Se alguém quer ser melhor do que eu, precisa ser capaz
de descobrir as coisas por si mesmo. Afinal, foi assim que cheguei
onde estou. Claro, vão precisar da quantidade necessária de talento
e trabalho duro para merecer o título de “Deus da Espada”, mas
vamos deixar isso de lado. O objetivo de Eris é o Deus Dragão
Orsted. A existência dele desafia a lógica. Ele é um monstro além
da imaginação. Ela não pode vencê-lo apenas com os meus
ensinamentos.
O homem tinha uma expressão nostálgica no rosto ao terminar de
falar. Na verdade, ele lutou contra o Deus Dragão, antes de ser
chamado de Deus da Espada, quando era apenas um forte, mas
arrogante Santo da Espada. Ele perdeu miseravelmente – a ponto
de ainda não ter certeza de por que sua vida foi poupada, ou mais
importante, por que todos os seus membros continuaram intactos.
Depois de ter seu ego destruído, fez da superação de Orsted o
seu objetivo, e desde então treinou para isso. Foi assim que se
tornou o Deus da Espada. Era exatamente por isso que não queria
que mais ninguém se metesse neste assunto.
— Ei, Ghislaine, fazer exercícios não é a mesma coisa que treinar,
sabe? Especialmente se você estiver buscando algo. Não adianta
agir como um cachorro obediente e fazer tudo o que os outros
mandam. Entendeu?
— Mestre, você sempre diz coisas tão complicadas. Não entendo.
— Hah. — Ele bufou de tanto rir diante da resposta dela. Isso
mesmo, essa idiota não vai entender se eu não explicar tudo com
clareza. — Em outras palavras, significa que apenas aprender
comigo não fará bem nenhum a ela. É por isso que preparei um
monte de coisas para ela, começando com ele.
O Deus da Espada gesticulou para Auber, que por sua vez baixou
o queixo em saudação.
— Sou o Imperador do Norte, Auber Corbett. Nas ruas, referem-se
a mim como Lâmina Pavão.
Ghislaine fez uma careta. Havia um fedor indescritível emanando
do homem. Não era odor corporal, mas sim algo muito mais ácido.
Algo mais parecido com colônia. Um cheiro desagradável para
gente-fera como ela.
— E o que alguém do Estilo Deus do Norte está fazendo aqui?
— Respondendo ao pedido do Deus da Espada para que instrua
um de seus alunos.
A expressão dele ficou ainda mais suspeita quando ela
questionou o Deus da Espada.
— Por que alguém do Estilo Deus do Norte? Não vejo como os
truques dissimulados deles serviriam a Eris.
— Porque o Deus Dragão os usará contra ela.
A dúvida no rosto de Ghislaine só aumentou. Ela nunca tinha
ouvido nada sobre o Deus Dragão ser um espadachim do estilo
Deus do Norte.
— Quem é esse Deus Dragão? — perguntou ela.
— Que se dane isso. O que eu sei é que ele possui todos os
movimentos do Estilo Deus da Espada, Estilo Deus do Norte, de
todas as escolas que existem, em seu arsenal. Isso, naturalmente,
significa que pode usá-los e será capaz de contra-atacar qualquer
coisa que seja usada contra ele. Você também precisa aprender
isso, porque se não o fizer, não conseguirá lutar em pé de
igualdade.
A expressão de Ghislaine perdeu o tom cortante. Aprender as
técnicas que seu oponente usaria contra você – isso era lógico.
— Entendo. Então, eventualmente, você também convocará
alguém do Estilo Deus da Água?
— Sim, já enviei uma carta.
— Isso é correto? — Seu rabo balançava alegremente.
O Deus da Espada sorriu com ironia ao ver isso. Ghislaine ficaria
satisfeita, desde que a resposta fosse algo que pudesse entender
com facilidade. Essa sua parte nunca mudou.
— Bem, então, Mestre Imperador do Norte, espero que tenha uma
estadia relaxante por aqui. — Assim que as dúvidas de Ghislaine
foram dissipadas, ela se levantou e prestou seus respeitos ao
Imperador do Norte. Ela se ajoelhou, de acordo com a etiqueta
única do Estilo Deus da Espada.
— De fato, Mestra Rei da Espada. Espero que possamos ter um
relacionamento amigável durante minha estadia por aqui. — Auber
também levou a mão ao peito e retribuiu o gesto.
Com isso, o treinamento de Eris passou para a próxima fase. Um
ano depois, ela seria reconhecida como uma Santa do Norte.
Capítulo Extra: O Babá Mestre
Aproximadamente um ano antes de Rudeus receber a carta de seu
pai.
O grupo de Paul chegou a Porto Leste, com Roxy e Talhand os
acompanhando. Eles já tinham descoberto que Zenith estava na
Cidade Labirinto de Rapan, no Continente Begaritt. Teriam que
pegar um navio de Porto Leste para chegar lá, mas havia uma coisa
pesando na mente de Paul: suas filhas, Norn e Aisha. Havia um
enorme número de bestas por todo o Continente Begaritt, e dizia-se
que era uma terra tão perigosa quanto o Continente Demônio.
Paul era um ex-aventureiro. Embora tenha passado um período
transitório sendo só um bêbado, continuou treinando mesmo depois
de se aposentar. Jogue aventureiros experientes como Talhand e
Roxy no meio, e não teriam qualquer problema para desbravar o
Continente Begaritt – isso contando apenas os adultos. Levar duas
crianças consigo seria uma conversa totalmente diferente.
Assim, Paul decidiu enviar suas duas garotinhas para ficar com
Rudeus. Isso possuía os seus próprios perigos, mas ele determinou
que seria melhor do que arrastá-las para um continente infestado
por bestas.
✦✦✦✦✦✦✦
Quatro mulheres ocupavam uma mesa no refeitório de uma
pousada: Lilia, Norn, Aisha e Roxy. Uma delas era adulta, enquanto
duas eram crianças. A outra parecia criança, mas na verdade era
adulta.
— Eu não quero. — Uma entre elas, Norn, estava de mau humor.
Ela cravou o garfo na comida que estava em seu prato, mas se
recusou a levá-lo à boca. — Eu vou com o Papai.
A razão para esse mau humor era óbvia. Durante o café da
manhã, seu pai havia anunciado: “Aisha e Norn vão morar com
Rudeus.” Norn desde então não conseguiu disfarçar o seu
descontentamento, mesmo enquanto almoçavam, e ficou o tempo
todo fazendo beicinho.
— Vou dizer isso mais uma vez, se você for com o pai, só vai
atrapalhar.
— Não, não vou.
Era Aisha quem batia de frente com ela. Ao contrário de Norn,
Aisha havia erguido o punho em comemoração quando soube que
iriam ficar com Rudeus, e era também por isso que não suportava
os resmungos descontentes de Norn atrapalhando as coisas. Como
resultado, esteve incansavelmente criticando Norn enquanto tentava
parecer razoável e convincente.
Aisha não tinha problemas com exigências egoístas, mas se sua
irmã queria que essas exigências egoístas fossem atendidas,
deveria agir com mais inteligência. Ela tinha que fazer isso de uma
forma que fizesse as pessoas ao seu redor pensarem que haviam
realmente vencido. Em vez disso, ficou irritada vendo Norn reclamar
o tempo todo, repetindo a mesma ladainha sem parar. “Eu não
quero.” Isso era uma vergonha.
— Você simplesmente não quer ficar com o nosso irmãozão, não
é? Você está tratando ele como uma pessoa horrível só por ter
brigado com o nosso pai há muito tempo. Até o pai já disse que ele
estava errado.
— Ele não estava! — Norn de repente explodiu. Em sua mente,
não existiam dúvidas de que a culpa para a briga entre Paul e
Rudeus tinha sido toda de Rudeus. Norn não aceitaria outra coisa.
— Você é sempre assim. Assim que as coisas param de correr
como você quer, você começa a fazer birra. Espera que todo mundo
desista de tudo e, se alguém fala algo que você não gosta, você
começa a gritar. Que idiota.
Norn cerrou os dentes. Ela não podia fazer nada além de olhar
para a sua irmã mais nova enquanto as lágrimas brotavam de seus
olhos.
Entretanto, não era apenas Norn que estava encarando Aisha. A
mulher adulta ao lado dela também estava.
— Aisha, como se atreve a falar assim? Peça desculpas agora
mesmo!
A mulher em questão era Lilia, atualmente encarregada de cuidar
das duas garotas enquanto Paul procurava um navio e um guia
experiente. Essas discussões entre as irmãs aconteciam todos os
dias. Paul tinha meio que desistido de mediar isso, parecendo
exasperado e reconhecendo: “Bem, elas são irmãs, é normal que
briguem.” Mas ele ainda se intrometeu e repreendeu Aisha quando
ela começou a falar muitos palavrões.
Roxy estava sentada ao lado delas, parecendo um pouco
desconfortável com a discussão. Ela, no passado, trabalhou como
tutora residente para a família Greyrat. Ela também conhecia Lilia
muito bem, mas isso não tornava sua posição atual mais
confortável.
— Sim, madame. Sinto muito, Senhorita Norn, por me deixar
levar.
Aisha parecia totalmente despreocupada enquanto recitava as
suas desculpas. Suas palavras foram educadas, assim como o seu
tom, mas foi um pedido de desculpas vazio. Até Lilia entendeu que
Aisha não havia refletido a respeito de suas ações. Se ela tivesse
feito isso, não iria atacar Norn em todas as oportunidades que
apareciam.
Lilia queria dizer à filha para demonstrar mais respeito pela filha
da esposa legítima de Paul, mas não sabia como expressar isso em
palavras. Mas essa não era a única razão pela qual se absteve de
pressionar Aisha ainda mais. Sua filha, desta vez, estava certa.
— Senhorita Norn, o Continente Begaritt é uma terra incrivelmente
perigosa — disse Lilia. — Claro, o mestre vai agir com cautela e
fazer o máximo que puder para garantir a sua segurança. No
entanto, erros acontecem. Se, como resultado, você se
machucasse, tenho certeza de que isso faria ele sentir uma dor
incomensurável.
Até Norn entendeu que isso significava que ela ficaria no caminho.
Mas isso simplesmente não lhe importava. Para ela, o lugar mais
seguro para se estar no mundo era ao lado do seu pai. Ninguém
mais a protegeria. Não poderia sair do lado dele.
— Eu não quero.
— Senhorita Norn. Não diga isso. Por favor, tente entender.
— Estou dizendo isso porque eu não quero! Quero ir com ele,
quero ir para onde a minha mãe está! — Ela bateu as mãos na
mesa e se levantou. Seu prato caiu e se espatifou, espalhando sua
comida toda pelo chão de madeira. — Você também vai com ele,
Senhorita Lilia! Isso não é justo!
— Senhorita Norn! Já basta. Seja razoável! — A voz de Lilia ficou
mais alta. Ela conhecia seu lugar no relacionamento mestre-serva e
se importava profundamente com Norn, mas também sabia quando
discipliná-la.
Norn se encolheu, mas logo fixou o olhar na mulher, cerrou os
punhos e gritou:
— Pra mim já chega! — Ela chutou a cadeira e saiu correndo da
sala de jantar.
— Ah, Senhorita Norn! Por favor, espere! — Lilia perseguiu a
garota enquanto ela desaparecia do lado de fora. Roxy também
correu atrás das duas, mas já era tarde demais. Quando saíram da
pousada, a pequena Norn já havia desaparecido no meio da
multidão.
— Hmph. — Deixada para trás, Aisha bufou de desagrado.
✦✦✦✦✦✦✦
Norn correu por uma massa ondulante de pessoas, os olhos
cheios de lágrimas ameaçando vazar a qualquer momento. Ela
estava frustrada, irritada e se sentia patética. Não foi a primeira vez
que as coisas não seguiram do jeito que ela queria. Muito pelo
contrário: as coisas raramente saíam do seu jeito.
Mesmo assim, apesar de tudo, ainda queria ficar com Paul. Essa
era a única coisa que queria. A garota resistiu a cada uma das
coisas ultrajantes que tinham acontecido com eles durante esse
tempo todo, tudo por essa única razão. Claro, ela às vezes fazia
exigências egoístas, mas costumava se abster de fazer isso. Desde
o Incidente de Deslocamento, por todo esse tempo, pensava que
estar com Paul era seu direito absoluto. Agora estavam tentando lhe
tomar até mesmo isso.
— Hic… — Norn não conseguiu evitar de chorar. Enquanto ela
enxugava as lágrimas, dobrou a esquina e bateu com alguém. —
Ah!
— O quê?! — A pessoa com quem se encontrou grunhiu quando
caiu algo da sua mão.
Norn ergueu os olhos e encontrou um homem corpulento e
barbudo com uma expressão de espanto no rosto. Ao lado dele
estava um sujeito esguio cujos olhos estavam arregalados de
espanto. O molho manchava o peito do barbudo. Aos pés de Norn
estava o espeto que ele devia ter deixado cair.
Quando o homem viu a cena diante dele, seu rosto ficou
vermelho, enquanto o de Norn ficou pálido.
— Ei, sua pirralha! Olha por onde anda!
— Eek!
Ele a agarrou pelo colarinho da camisa e a ergueu no ar. Seu
rosto desalinhado se aproximou, sua respiração soprando sobre ela.
Cheirava a álcool. Ele estava bêbado.
— Uh, um, uh… — Norn estremeceu de medo. Ela conhecia muito
bem o comportamento dos bêbados. Via Paul bêbado com bastante
frequência enquanto ele tentava fugir dos seus problemas. Embora
a raiva dele nunca tivesse sido dirigida a ela, ainda era o suficiente
para fazer a jovem Norn entender. Pessoas bêbadas são
assustadoras; beber é ruim. Ela aceitou o fato de que Paul não
poderia funcionar sem a bebida, mas seu pai era a única exceção.
— O que você vai fazer para compensar isso, hein?! Pague!!
— Sim! Esse era o lanche favorito do Chefe!!
— Seu idiota! Estou falando das minhas roupas! E dessa mancha!
Não vou conseguir tirar isso!
— Uhhhh… hic… hic… — Tudo o que Norn podia fazer era tremer
e soluçar diante da intimidação. Lutando para conter o terror
avassalador que ameaçava fazê-la molhar as calças, lançou um
olhar suplicante para os lados na esperança de que alguém a
ajudasse. Cruelmente, ninguém parou para olhar em sua direção.
Não havia ninguém ansioso para se envolver com um bêbado
briguento e estavam todos se distanciando rapidamente da cena.
— Pois bem, diga onde está a sua mãe ou o seu pai!
—…
— Você tem que falar para que eu possa obter uma resposta! Não
vai nem pedir desculpas?! Você foi criada por animais?!
— E-Eu sinto muito!
Espera. Havia alguém. Uma pessoa que encontrou seu olhar
desesperado, ouviu seu pedido de desculpas e parou de se mover.
Sua expressão se contorceu de raiva quando ele se aproximou aos
pisões do homem barbudo.
— Quem diabos é você?
—…
O transeunte agarrou o braço do homem, que mantinha Norn
suspensa no ar. Ele tinha muita força em seu aperto. O braço do
homem barbado era quase tão grosso quanto o torso de uma
pessoa normal, mas o transeunte o torceu para trás como se não
existisse resistência alguma.
— Ai, ai, ai, ai! — Incapaz de suportar a pressão, o homem
barbudo largou Norn. Ela caiu de bunda, olhando para o homem que
a salvou.
— Explique. O que essa garota fez com você? — O transeunte
estava usando um protetor de testa. Uma cicatriz corria
diagonalmente em seu rosto, que agora estava retorcido de raiva.
Se seu cabelo e gema estivessem visíveis, ele seria
imediatamente reconhecido como Ruijerd Superdia. Norn, é claro,
não fazia ideia de quem ele era. No entanto, no momento em que
viu seu rosto, imediatamente se levantou e se abaixou atrás dele.
— A-Aquela pirralha me acertou do nada e a minha camisa
agora…
— Ela pediu desculpas.
— Um pedido de desculpas não vai tirar essa mancha… ai!
Ruijerd reforçou seu aperto no braço do homem, que foi
audivelmente retorcido sob a pressão.
— Seu desgraçado! Solte o chefe! — O homem magro tentou
agarrar o rosto de Ruijerd, mas este o evitou facilmente e os dedos
do homem quase roçaram na sua bandana.
— Desista da mancha ou desista de viver. Qual você escolhe?
— Ai, ai, ai! Sinto muito, a culpa foi minha! Fui eu o errado!
Ruijerd o soltou. O homem menor correu rapidamente para o lado
do barbudo, perguntando:
— Você está bem?!
— Você, peça desculpas novamente — disse Ruijerd, olhando
para Norn.
Norn pareceu chocada por um momento, então rapidamente
acenou com a cabeça e curvou-se para seu acusador.
— S-Sinto muito.
— Tch. Está bem; foi minha culpa por me incomodar com você.
Vamos, vamos dar o fora daqui logo.
— E-Entendido, Chefe!
Os dois homens desapareceram na multidão. Norn escorregou
lentamente para o chão. Quando a nuvem de medo finalmente se
dissipou, toda a força de seu corpo sumiu e uma onda de alívio a
invadiu.
— Você está bem?
— Ah, sim. — Norn olhou para Ruijerd. Seu olhar era uma mistura
de surpresa e familiaridade. Ela lembrou dele. Na época em que
morava em Millishion, antes de Aisha ou Lilia se juntarem a eles, ela
quase tropeçou e ele estendeu a mão para ajudá-la. Ele acariciou
sua cabeça bem suavemente e até lhe deu uma maçã. Não havia
como esquecer dele; o homem careca com um protetor de testa e
uma enorme cicatriz no rosto.
O alívio quebrou as comportas e, embora fosse vergonhoso para
alguém de sua idade, ela começou a chorar.
Ruijerd entrou em pânico ao vê-la chorando. Outros transeuntes
estavam olhando, e por causa da aparência assustadora dele,
ninguém se aproximava. Depois de hesitar, Ruijerd se agachou,
colocou a mão na cabeça de Norn e a acariciou suavemente. O
calor de sua mão e a maneira como a tratou com a delicadeza
devida a uma porcelana trouxeram tanto conforto a Norn que seus
soluços começaram a diminuir.
✦✦✦✦✦✦✦
— Eles foram tão cruéis. Todos eles. Me dizendo não, que eu
ficaria no caminho.
Por um tempo depois disso, Norn ficou quieta, embora
continuasse fungando. Ruijerd achou melhor devolvê-la ao pai o
mais rápido possível, mas quando mencionou isso, ela balançou a
cabeça com firmeza. O homem pensou que poderia haver algum
problema entre ela e Paul, então decidiu ouvir o lado dela da
história.
— Entendo. — Depois de ouvir todos os detalhes, ele apertou
ainda mais a sua lança.
A história de Norn era unilateral e carecia de explicações
adequadas. Como resultado, muitas coisas ficaram carecendo de
esclarecimentos. Os pontos principais, entretanto, estavam claros o
suficiente para que Ruijerd pudesse inferir todo o resto. E ele podia
entender o desejo de Norn de estar com o seu pai.
— Isso deve ser difícil.
Ruijerd sabia o que era ser pai. Em certo momento, ele teve um
filho e uma esposa. Naquela época, servindo na guarda imperial de
Laplace, viajou através do Continente Demônio. Ele deixou os dois
para trás e foi lutar, movido por uma mistura de ambição e lealdade.
Não os deixou para trás porque atrapalhariam a realizar os seus
desejos, mas porque eram tão preciosos que queria que ficassem
em algum lugar seguro.
Porém…
Quando ele deixou sua aldeia pela primeira vez, seu filho ainda
tinha uma cauda presa ao corpo. Isso foi no começo da guerra.
Ruijerd lutou na guarda pessoal de Laplace por muitos anos.
Enquanto ele ganhava batalhas e começavam a unificar o
Continente Demônio, seu filho cresceu. Sua cauda se tornou uma
lança, seu corpo tornou-se musculoso e ele se tornou um jovem
magnífico. Ele havia crescido o suficiente para que, quando Ruijerd
retornou à sua aldeia pela última vez, seu filho pudesse se
aproximar arrogantemente e insistir: “Eu agora sou um adulto. Leve-
me com você para a sua próxima batalha!”
Naquela época, seu filho não se importava em dar ouvidos a nada
que seu pai lhe dissesse. Então Ruijerd, em vez disso, usou sua
força para forçar seu filho a recuar. “Se isso é tudo do que você é
capaz, então ainda não é um guerreiro aos meus olhos”, disse a seu
filho antes de partir.
Essa era uma mentalidade comum entre os guerreiros. Eles
tentavam manter seus entes queridos longe da batalha, buscando
protegê-los. Mas, no final das contas, Ruijerd era aquele que fora
indigno como guerreiro. Seu filho tinha sido o verdadeiro guerreiro.
Afinal, foi seu filho quem derrotou Ruijerd quando a lança
demoníaca que empunhava o deixou em estado de contínua fúria.
Foi seu filho quem salvou os outros guerreiros.
Ruijerd ainda não sabia como seu filho tinha sido capaz de
derrotá-lo naquela época. Ele vagou por todo o Continente Demônio
pensando na resposta para isso, mas nunca encontrou uma que
fosse satisfatória. Desta vez, porém, teve uma ideia. Seu filho com
certeza trabalhou duro para se tornar mais forte de maneiras que
seu pai nunca descobriu. Ele seguiu as instruções de seu pai e se
treinou com propósito e determinação para proteger sua mãe e sua
aldeia. Ruijerd sentiu muito orgulho.
Se Norn se sentisse da mesma maneira, ela não iria ouvir, não
importa o quanto Paul dissesse que estava preocupado ou o quanto
ela fosse preciosa para ele.
Se fosse apenas um pouco mais velha. Um pouco mais forte. Se
ao menos tivesse aquele mesmo senso de propósito e determinação
e tivesse passado seus dias treinando. Se fosse tão capaz quanto
Rudeus, então Ruijerd teria tentado persuadir Paul a levá-la. No
momento, porém, Norn era apenas jovem e frágil.
— Norn.
— Sim?
Ruijerd olhou nos olhos da garota sentada ao seu lado.
— Você precisa ficar mais forte.
— Hã…?
— Se você quer estar com alguém, você tem que ficar maior, mais
forte, mais impressionante. Para chegar lá, terá que suportar suas
circunstâncias atuais. — Suas palavras foram desajeitadas. Ele não
estava se saindo muito bem em transmitir o que queria.
Mas Norn entendeu. Por mais estranho que isso fosse, encontrou
significado em suas palavras. Elas ressoaram de forma diferente
das que Lilia, Aisha e os outros adultos haviam dito antes, talvez
porque Ruijerd estivesse em uma posição de positividade em vez de
negatividade.
— Ugh. — Norn franziu os lábios e olhou para baixo.
Em resposta, Ruijerd apenas sorriu e estendeu a mão. Ele voltou
a suavemente acariciar a cabeça dela.
— Não se preocupe. No lugar do seu pai, eu vou te proteger até
chegar lá.
A maneira como ele a tocou foi tão gentil que foi mais do que
suficiente para tranquilizá-la. Depois de um longo silêncio, ela falou
em uma voz fraca:
— Tá.
Satisfeito, Ruijerd começou a afastar a mão.
— Ah!
Ele parou quando Norn exclamou.
— Pois não?
— Por favor, acaricie minha cabeça um pouco mais.
Ruijerd a atendeu. Norn se enrolou para segurar seu corpo
perfeitamente imóvel enquanto ele acariciava seu cabelo, como se
estivesse acariciando um filhotinho.
— É uma sensação reconfortante — explicou ela.
— Entendo.
Após isso, Ruijerd continuou acariciando a cabeça dela por algum
tempo. Qualquer um que olhasse para os dois consideraria a visão
agradável. Até o rosto inchado e coberto de lágrimas de Norn
finalmente se iluminou e formou um sorriso.
— Ah! Ali está ela! Senhorita Lilia, a encontrei! — Veio uma voz do
lado da praça. Avistaram uma jovem de cabelo azul tentando
segurar o chapéu na cabeça enquanto corria na direção deles.
— Parece que estão aqui por você — murmurou Ruijerd. Ele
baixou a mão ao lado do corpo e se levantou.
Norn se sentiu um pouco triste quando o calor dele desapareceu.
Ela o imitou e também se levantou.
— Hm… — Ele já tinha virado as costas para ela, mas ela o
chamou em voz alta. — Por favor, me diga o seu nome!
Ele então olhou por cima do ombro. O nó em sua bandana havia
afrouxado durante a troca com os dois homens e estava
completamente desfeito. Ao cair, revelou uma joia parecida com um
rubi em sua testa.
— Ruijerd. Ruijerd Superdia.
Foi uma cena saída direto de um romance de fantasia. Um
homem com uma bela joia na testa, iluminado pela luz do sol por
trás, um sorriso no rosto enquanto olhava diretamente para ela.
Naquele momento, Norn se sentiu como uma princesa de um conto
de fadas cujo cavaleiro tinha aparecido para resgatá-la.
✦✦✦✦✦✦✦
No mesmo momento, Ruijerd causou outro impacto
completamente diferente em outra garota que o ouviu dizer seu
nome. Roxy Migurdia.
Para descrever a gravidade desse impacto, será necessário um
pouco de explicação.
Havia três coisas que Roxy odiava quando criança, a primeira
delas eram pimentões verdes. Foi o primeiro vegetal que comeu
quando chegou ao Continente Millis. Naquela época pensava que o
mundo humano era o paraíso, cheio apenas de adoráveis doces! E
aquele pimentão verde tinha sido um mensageiro do inferno,
enviado para arrastá-la para o abismo. Ela ainda conseguia se
lembrar do cheiro único e do gosto amargo que se espalhou por sua
boca quando o comeu. E cuspiu tudo na mesma hora, só para
continuar sentindo náuseas. O pimentão verde é um veneno para a
Tribo Migurd, pensou ela seriamente. Ela, porém, venceu esse
medo durante seu tempo como professora particular de Rudeus,
envergonhada com a ideia de ser exigente com sua comida na
frente dele.
A segunda coisa que odiava eram crianças. Crianças humanas
entre cinco e quinze anos de idade, especificamente. Principalmente
homens. Eles não a ouviam. Agiam precipitadamente com base em
seus caprichos e não davam ouvidos à lógica. Mas, ao conhecer
Rudeus, começou a pensar que pudesse na verdade gostar de
crianças. Eventualmente, percebeu que o problema não era que as
odiava. Em vez disso, odiava pessoas que não ouviam. De certa
forma, também superou o seu ódio por crianças.
A terceira coisa que odiava era a Tribo Superd. Ela tinha ouvido
inúmeras histórias sobre eles, desde quando ainda era um bebê.
Tratava-se de uma tribo diabólica, uma que se envolveu em uma
guerra muito antes de ela nascer e que traiu os próprios aliados.
Diziam que há muito tempo tiveram ligações com a Tribo Migurd,
mas foram perseguidos, taxados de traidores, e levados à ruína. Os
Superds guardavam um enorme rancor contra aqueles que se
voltaram contra eles, e assim que avistavam um demônio de outra
tribo, os atacavam e matavam sem questionar.
De todos os Superds, o Fim da Linha era o mais conhecido dentre
as crianças. De acordo com a lenda, quando ele encontrava uma
criança que se comportava mal, ia e a sequestrava enquanto todos
dormiam e a carregava para o seu covil. Então comia suas pernas
para que não pudesse correr, comia seus braços para que não
pudesse resistir e, então, lentamente começava a comer seu
estômago, deixando sua cabeça para o final, tudo para mantê-la
fresca. Era por isso que as crianças precisavam se comportar
direito. Foi com essas histórias que ela foi criada.
Quando deixou a sua aldeia e se tornou uma aventureira novata,
pensou seriamente que estava em perigo por ter se comportado
mal. Essa ansiedade foi gradualmente desaparecendo à medida que
crescia e se tornava uma adulta, mas seu medo da Tribo Superd
continuou. Era por isso que estava em alerta máximo quando
descobriu que alguém estava se chamando de Fim da Linha em
Porto Vento.
Então, vários anos depois, topou com alguém da Tibro Superd,
justo quando estava correndo pela cidade à procura de Norn, e
ainda por cima quando tinha acabado de encontrar a garota. A
pessoa diante dela era o mesmo homem careca que vira em Porto
Vento. Ele tinha uma lança de três pontas branca feito giz na mão.
No segundo seguinte, a bandana dele caiu, expondo a joia vermelha
que estava por baixo.
— Ruijerd. Ruijerd Superdia.
E ele se chamava Superdia. Por alguma razão não tinha cabelo,
mas não restavam dúvidas em sua mente de que ele era um Superd
– o Fim da Linha. E estava a ponto de cravar os dentes em Norn.
— Ah… uh…
O medo tomou conta de Roxy, começando na base de seus pés e
subindo sem parar. Calafrios correram pelo seu corpo, e ela sentiu
que poderia perder o controle sobre a sua consciência ali mesmo.
Entretanto, a sua tarefa era a de proteger Norn. Lilia estava
correndo atrás dela. Aisha também estava na estalagem. Não… não
eram apenas elas. Todos nesta praça corriam perigo. O coração de
Roxy gritou com ela, forçando-a a se preparar e manter o cajado
pronto.
— S-Solte essa garota! Se você recusar, serei sua oponente!
O silêncio caiu. Ruijerd ficou rígido e Lilia congelou. Norn
literalmente se agarrou a ele, olhando com hostilidade em direção
de Roxy. A maga percebeu que havia algo de errado, mas sua
extrema ansiedade a impediu de descobrir o que era. Ainda assim,
teve a nítida sensação de que estava cometendo um erro. Ela já
tinha cometido muitos até esse momento, então conhecia muito bem
a sensação.
— Lorde Ruijerd, já faz um tempo — disse Lilia, curvando-se ao
sair de trás de Roxy.
Abalada com a forma casual com que Lilia o cumprimentou, Roxy
perguntou:
— Uh? Hm, você o conhece?
— Você não ficou sabendo? Foi Lorde Ruijerd quem escoltou
Lorde Rudeus de volta ao Reino Asura…
— Ah. — Ela já tinha ouvido isso. Na verdade, ouviu inclusive que
o Fim da Linha que vira em Porto Vento era o mesmo que estava
escoltando Rudeus. Mas nunca acreditou com sinceridade que ele
fosse um Superd real.
— Não tenho intenção de machucá-la — disse Ruijerd, olhando
cautelosamente para Roxy enquanto ela brandia o seu cajado.
A maga percebeu que havia entendido a situação completamente
mal. Ela, quando desviou o olhar para os pés, ficou com o rosto
vermelho.
Ela realmente odiava a Tribo Superd.
✦✦✦✦✦✦✦
Ruijerd iria acompanhar as garotas até Rudeus. Quando o grupo
de Paul ouviu a notícia, suas reações foram mistas. Lilia e Ginger,
que conheciam sua verdadeira força e caráter, deram ao plano seu
selo de aprovação, dizendo que poderiam ter certeza de que as
garotas chegariam ao destino em segurança, desde que fosse
Ruijerd quem as acompanhasse.
Vierra e Sherra trocaram olhares e acenaram com a cabeça como
se dissessem: Por que não? Elas sabiam que foi Ruijerd quem
protegeu Rudeus enquanto ele atravessava o Continente Demônio.
Ele também era forte o suficiente para ser confiável, então não viam
problemas nisso.
Talhand era contra o plano. Assim como Roxy, ele cresceu com
histórias assustadoras sobre a Tribo Superd e ouviu anedotas sobre
suas atrocidades enquanto viajava pelo Continente Demônio. Não
existia fumaça sem fogo. Talhand não tinha dúvidas de que Ruijerd
havia feito algo terrível no passado. Mesmo que o homem estivesse
agora trilhando o caminho da redenção, isso não significava que
poderiam confiar algum ente querido a um estranho.
Roxy era parcialmente contra. Ela sabia que não deveria julgar as
pessoas com base em aparências ou noções preconcebidas. Era só
que… era da Tribo Superd que estavam falando. Mesmo depois de
entender que Ruijerd não representava nenhum perigo, ainda
permaneceu cautelosa.
Não, “cautelosa” não era a palavra certa. Ela estava com medo. A
Tribo Superd era a personificação do medo que sentia quando
criança, ao ouvir todas aquelas histórias. Mesmo que sua aldeia não
contasse mais essas histórias sobre a Tribo Superd, essa era a
melhor maneira de disciplinar as crianças quando ela era jovem. Era
por isso que não conseguia mascarar todo o seu terror. Embora
intelectualmente entendesse que isso era seguro, o medo que havia
sido instilado nela, quando criança, ainda a paralisava e a deixava
desconfiada.
Roxy então disse:
— Se acha mesmo que pode confiar nele, então vá em frente.
Portanto, havia quatro opiniões: fortemente a favor, parcialmente a
favor, totalmente contra e parcialmente contra. Paul levou todas elas
em consideração. Ele não conhecia Ruijerd muito bem. A única vez
que teve qualquer contato com o homem foi quando ele apareceu
ao lado de Rudeus, e mesmo assim, mal se falaram.
Na época, teve a impressão de que Ruijerd era confiável.
Entretanto, passaram-se vários anos desde então, anos suficientes
para mudar uma pessoa. Paul sabia disso por experiência própria.
Caramba, não precisava de vários anos – um único dia era o
suficiente. Daí a pergunta: Paul poderia realmente confiar em
Ruijerd? Poderia confiar-lhe as garotas?
Enquanto pesava a decisão em sua cabeça, ele olhou para baixo.
Lá, agarrada à perna de Ruijerd, estava Norn. Por um momento, foi
como se estivesse vendo dobrado – uma imagem de si mesmo com
Norn agarrada à sua perna sobreposta à sua visão. Norn era tão
tímida com as pessoas que não gostava de nenhum adulto além
dele. Apesar disso, lá estava ela, apegada a Ruijerd como se ele
fosse seu pai.
Então, mais uma vez, foi Ruijerd quem a salvou. Quando aquele
bêbado foi até ela e ela estava chorando, desesperada por ajuda,
Ruijerd interveio como se fosse o seu dever. Foi, sem dúvidas, a
mesma coisa que aconteceu quando ele entrou em cena para salvar
Rudeus. O homem se moveu sem levar as consequências em
consideração. Ele provavelmente não tinha mudado nada.
— Posso confiá-las a você? — As palavras saíram da boca de
Paul antes mesmo que ele percebesse o que estava falando.
Ruijerd imediatamente retornou o seu olhar.
— Mesmo que isso me custe a vida, vou entregá-las a Rudeus. —
Sua resposta foi sincera e encorajadora. Refletido nos olhos de
Ruijerd estava um senso de dever e determinação. Ele tinha o rosto
de um guerreiro, um que viu muitas luas, algo que Paul não possuía.
Se isso fosse engano, Paul então não saberia o que era real.
— Vou deixar isso com você. — Paul estendeu a mão. Ruijerd a
pegou e trocaram um firme aperto.
Foi assim que Ruijerd virou o guarda-costas de Norn e Aisha.
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.

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