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Eu não sabia por que isso estava acontecendo. Mas tinha certeza de uma coisa:
não importava o que tentasse, acabaria perdendo a velocidade e sofreria um
impacto com o chão.
Por que senti a necessidade de fazer isso? Boa pergunta. Algo dentro de mim
estava gritando que eu tinha que fazer, isso se quisesse sobreviver.
Ainda assim, estávamos indo rápido demais. Era como olhar para o molinete de
uma vara de pescar, mas tudo estava se movendo muito, muito mais rápido. Reuni
energia mágica nos olhos, podendo focar com maior intensidade… e por apenas um
momento, de repente diminuímos a velocidade.
Pânico brotou em meu peito, mas agora eu conseguia ver o solo abaixo de mim
claramente. Precisava cair sobre um campo. Cair no mar ou bater direto contra o
solo não seria bom. As florestas seriam obviamente perigosas, mas se conseguisse
mirar em um campo…
— Hã…?
Olhei para mim mesmo e arregalei os olhos. Estava de volta à antiga e familiar
forma que tive por trinta e quatro anos.
Ao ver isso, as memórias da minha vida anterior voltaram à tona. Eu ainda era
o mesmo lixo amargurado, vil, inseguro e egoísta de sempre. Os dez anos que
passei como Rudeus de repente não pareciam nada mais que um sonho.
Uma esmagadora onda de decepção me dominou. Eu tinha voltado ao meu
velho e patético corpo, e achei esse fato muito fácil de se aceitar.
No que se diz respeito aos sonhos, durou um tempo terrivelmente longo. Mas,
no final das contas, foi tudo bom demais para ser verdade. Nasci em uma família
amorosa e consegui fazer amizade com algumas garotas muito bonitas. Nada mal
para apenas dez anos. Entretanto, queria aproveitar um pouco mais daquela vida.
Realmente esperava por algo diferente? Por favor. Uma vida tranquila e feliz
como aquela nunca foi prevista para um cara como eu.
Ainda assim, de alguma forma, senti que estava lidando com alguém calmo e
paciente.
Hm. Eu estava tão ocupado com autopiedade, e agora tinha um cara estranho
e todo censurado, tipo em um pornô, chamando para conversar.
Na verdade, aquela voz era bem ambígua. Talvez fosse um cara ou uma garota.
Que fosse uma garota! Isso faria a coisa pixelada parecer meio sexy, não?
Não consigo ver quase nada além de um mosaico. Uh, você é o Poderoso
Homem-Esperma ou coisa do tipo?
Ah, com certeza. Ele tem seus pixels todos borrados, assim como você.
— Certo. De qualquer forma, estou de olho em você já faz algum tempo. Você
tem vivido uma vida bastante interessante!
Bem, é uma situação crítica. Qualquer pessoa que aparece se oferecendo para
resolver todos os seus problemas enquanto você está se esforçando com certeza é
um vigarista.
Conheci uns caras iguais você na minha vida passada, parceiro. Pessoas que
se aproximaram e disseram: “Dê o seu melhor” ou “Vou cuidar de você”. Eram todos
mentirosos. Realmente não ligavam para nada. Presumiram que tudo correria
conforme quisessem assim que eu fosse atraído para fora do meu quarto. Ninguém
tentou entender a origem do problema. Tudo o que você está falando me lembra
daquelas pessoas. Nunca vou confiar em você.
— Minha nossa, isso é um problema. Hmm… Por que então não te dou só um
conselho, hein?
Conselho…?
Digo, este é exatamente o caso em questão! Por que me deixou sonhar, droga?
Realidade alternativa é o meu cu. Eu me agarrei a essa segunda chance de viver,
aí você vem e puxa o meu tapete? Precisava mesmo ser um maldito sádico?!
— Espera aí. Acho que você não entendeu o que está acontecendo. Quero te
ajudar com sua vida atual, não com a anterior.
Então, isso é só um sonho? Quando acordar não vou estar neste corpo horrível?
— Isso aí. Já que agora você está sonhando, vai voltar ao normal assim que
acordar. Melhor agora?
Telepatia, hein? Bem, tá bom. Mas o que você quer comigo, tipo, de verdade?
Planeja me mandar para o meu velho mundo? Já que não pertenço a este lugar ou
coisa do tipo?
— Não seja ridículo. Eu não poderia te mandar para nenhum lugar além do
Mundo Hexa-Facial, é óbvio.
Hmph. Talvez isso pareça óbvio para você, mas eu aqui estou no escuro.
Espera aí. Se você não pode me mandar de volta… então não é aquele que me
reencarnou neste mundo, é?
Não, valeu…
Não sei o que está acontecendo aqui, mas você com certeza é um personagem
suspeito. Isso significa que o melhor a se fazer é te ignorar.
Sim, e muito. Você não poderia parecer mais com um vigarista, mesmo se
tentasse. Isso me lembra daqueles golpistas dos quais cansei de me livrar em
MMOs. No instante em que eles começavam a falar, entravam em sua mente e já
começavam a mexer com sua cabeça.
— Eu não sou um vigarista! E nem vou pedir para você seguir meu conselho,
tá bom?
— Eu não sou do seu outro mundo, lembra? Sou um deus deste mundo, e estou
falando que de agora em diante vou te ajudar.
Certo. E estou dizendo que não confio em você. Que conversinha fiada. Se quer
que eu acredite em você, então me mostra um milagre ou coisa do tipo.
— Isso aqui não conta como um milagre? Quantas pessoas você conhece que
conseguem conversar através de um sonho?
— Bem, isso é verdade. Mas esse realmente é um bom motivo para me ignorar?
Nesse ritmo vai acabar morrendo.
O Continente Demônio? O quê? Calma lá. Quer dizer aquele enorme pedaço
de terra bem no limite do mundo? Por que eu estaria nele?
— Isso aí.
— Você realmente acreditaria na minha resposta? Não quer ouvir nem meus
conselhos.
— Tudo o que vou dizer é que estão todos orando por sua segurança. Todos
querem que você retorne vivo.
— Hmm. Você realmente acreditou nisso? Não há nenhuma parte de você que
pense… que podem ter ficado contentes por terem se livrado de você?
É…, eu estaria mentindo se dissesse que essa ideia não passou pela minha
cabeça. No final da minha outra vida, ninguém se importava se eu iria viver ou
morrer. Ainda tenho alguns problemas de autoestima graças a isso.
— Bem, as pessoas deste mundo se preocupam com você. É melhor que volte
inteiro.
— Não vou dar nenhuma garantia, mas acho que você tem uma boa chance de
voltar vivo caso resolva seguir meu conselho.
Espera. Antes disso, quero saber por que você está fazendo isso. Por que está
tão preocupado comigo?
Pessoas que se preocupam apenas com sua diversão tendem a ser canalhas,
você devia saber.
O tempo todo. Conheci alguns caras assim, e todos adoravam fazer os outros
dançarem feito fantoches só para se divertirem.
— Hm. Bem, de vez em quando também gosto de fazer isso. Não posso negar.
— Sigh… Olha aqui. Você ainda não esqueceu da minha pergunta, não é?
Que pergunta?
— Então vou repetir. Tem certeza de que consegue sobreviver? Preso em uma
terra perigosa e desconhecida?
— Então talvez seja melhor me escutar. Como falei, depende de você, se vai
seguir minhas sugestões ou não.
— Tá, tá. Agora ouça com atenção, jovem Rudeus. Logo depois que você
acordar, verá um homem. Confie nele e faça o que puder para ajudá-lo.
Capítulo 02 - Os Superds
— Gah! — Um choque de medo me percorreu assim que olhei para meu corpo.
Felizmente, não era aquele monte de banha inútil que eu costumava ser. Estava de
volta à forma jovem, porém forte, de Rudeus. Vendo isso, minhas memórias do
passado começaram a sumir aos poucos, e uma onda de puro alívio tomou conta
de mim.
Para o inferno com aquele tal de Deus-Homem. Por um minuto, senti como se
tivesse voltado aos velhos tempos. Parecia que ainda ficaria algum tempo neste
mundo. Obrigado deusa. Eu tinha um monte de coisas que ainda queria fazer. Como
projetar meu status de “Feiticeiro”, por exemplo.
Quando me sentei, minhas costas doeram; estive estirado no chão. Tudo aos
meus arredores mais próximos era terra seca e erosada. Pelo que pude ver, não
havia quase nenhuma vegetação. Não havia sequer insetos? Não ouvi nada, salvo
o som do fogo.
O local realmente estava quieto. Senti como se qualquer barulho que fizesse
iria ser engolido pelo total silêncio noturno. Não conseguia lembrar de nenhum lugar
parecido; afinal, o Reino Asura era coberto de pastagens e florestas. Aquela onda
de luz branca fez isso?
Meu primeiro instinto foi pular e começar a procurá-las. Mas assim que comecei
a me mover… notei uma garota adormecida no chão, logo atrás de mim, agarrando
minha camisa com uma mão.
Seu cabelo vermelho vivo era inconfundível. Era Eris. Eris Boreas Greyrat – a
garota para a qual estive dando aulas particulares em Fittoa. Por enquanto vou pular
a história em segundo plano, mas tenho ensinado leitura e aritmética por três longos
anos. No começo ela foi como um desastre natural: mimada, violenta e totalmente
fora de controle. Mas consegui passar por alguns eventos complicados, como
resgatá-la de possíveis sequestradores e ensinar a dançar antes de sua festa de
aniversário. Eventualmente, ganhei tanto sua confiança quanto respeito.
Claro, ela ainda me socava e chutava todos dias. Ela simplesmente era assim.
— Hm… — Por algum motivo, Eris tinha algum tipo de capa dobrada sobre ela.
Eu estava deitado apenas com minhas roupas, mas… ah, bom. O princípio de
“primeiro as damas” provavelmente fora aplicado.
Meu cajado, Aqua Heartia, também estava jogado no chão atrás dela. Eris tinha
me dado de presente em meu décimo aniversário, há apenas alguns dias. De
qualquer maneira, pelo visto a garota não tinha qualquer lesão externa. Foi um alívio.
Mas assim que comecei a respirar aliviado, minha mente captou alguns
detalhes preocupantes. Seu cabelo era verde esmeralda, sua pele branca como
porcelana e ele tinha algo tipo uma joia vermelha incrustada bem no meio da testa.
Também havia uma enorme cicatriz ao longo de seu rosto. Seus olhos eram
penetrantes, suas feições severas; mesmo à primeira vista, parecia um homem
perigoso.
Só para esclarecer, havia uma lança com três pontas caída ao seu lado.
Quando eu era bem novo, uma garota chamada Roxy me ensinou a usar magia,
me ensinou muitas coisas valiosas e transformadoras. Uma das coisas que me
ensinou dizia respeito a uma certa raça de demônios – os Superds. Eu me lembrava
perfeitamente de suas palavras, mesmo agora.
Talvez algum tipo de deus quisesse que eu o ajudasse. Certo, tudo bem. Mas
em quem eu deveria confiar? Em um personagem suspeito que encontrei em um
sonho, ou em minha amada mestra, Roxy?
Roxy, claro. Não precisava nem considerar a questão. O que significava que já
deveria estar fugindo.
Então, mais uma vez… talvez fosse por isso que um “conselho” foi, em primeiro
lugar, necessário. Se não fosse por aquele sonho, provavelmente já teria fugido.
Mas mesmo se de alguma forma conseguisse escapar, o que deveria fazer depois?
Pensando bem… Tive outro sonho antes, embora quase tenha o esquecido
após aquela memorável conversa com o Deus-Homem. Eu estava voando pelo
mundo em uma velocidade avassaladora. Passei por montanhas enormes, mares
sem fim, florestas densas e vales profundos. Talvez não tenha sido um sonho; talvez
realmente tivesse sido teletransportado. A conversa sobre ser o Continente
Demônio parecia cada vez mais plausível.
No final, não tive muitas escolhas. Mesmo se eu e Eris pudéssemos fugir desse
homem, acabaríamos perdidos e abandonados no meio do nada. Claro, sempre
havia a possibilidade de encontrarmos um vilarejo próximo assim que o sol
nascesse. Mas valia a pena apostar tudo nessa possibilidade?
Não, claro que não. Eu sabia perfeitamente bem como seria difícil encontrar um
caminho em algum lugar desconhecido.
Calma aí, cara. Respira fundo. Você não confia no Deus-Homem. Certo. Mas e
esse homem? Preste atenção nele. Olhe a expressão em seu rosto. Ele está
ansioso. Ansioso e um pouco resignado. Não deve ser um monstro desumano
incapaz de sentir emoções, entendeu?
Roxy me disse para manter distância dos Superds, mas nunca encontrou um.
Aprendi tudo a respeito de preconceito e discriminação enquanto estava em meu
velho mundo e sabia muito bem como foi a caça às bruxas. Os Superds eram
temidos, mas, talvez, só fossem mal interpretados. Roxy certamente não teve
intenção de mentir para mim, mas havia uma chance de que estivesse errada.
Minha intuição gritava que esse cara não iria nos machucar. Não parecia tão
desonesto e malicioso quanto o Deus-Homem. Em vez do aviso de Roxy ou do
conselho do Deus-Homem, decidi confiar em meus próprios instintos. Não odiei ou
temi o sujeito à primeira vista; sua aparência era um pouco… intimidante. Nesse
caso, uma conversa não faria mal. Tomaria minha decisão com base no que
aconteceria.
— Olá — falei.
— Não tenho certeza do que você quer dizer com isso, mas encontrei vocês
dois aqui depois de caírem do céu. Sei que crianças humanas são delicadas, então
fiz essa fogueira para ficarem aquecidas.
Nenhuma menção ao meu amigo sem rosto, hein? Esse cara não era um
enviado divino? Com base no que o Deus-Homem falou sobre suas motivações,
talvez me assistir fosse apenas parte da diversão. Ver como as outras pessoas
reagiriam a mim provavelmente seria tão interessante quanto. Nesse caso, esse
homem realmente poderia ser confiável.
— Meus pais não, mas minha mestra me advertiu para ficar longe deles a
qualquer custo.
Não achei que tivesse dito nada particularmente estranho, mas, talvez, o
Superd tenha dado como certo que qualquer um sairia correndo ao vê-lo. Aprendi
um pouco sobre a Guerra de Laplace, o conflito de quatrocentos anos entre a
humanidade e demônios que terminou há apenas um século. Eu sabia que os
Superds foram evitados desde o fim do evento. O mundo estava lentamente se
desfazendo de seus preconceitos contra outros tipos de demônios, mas os Superds
com certeza eram um caso especial. Todas as outras raças pareciam detestá-los
tanto quanto o povo japonês odiava os soldados americanos durante a Segunda
Guerra Mundial. Foram retratados como algo semelhante à personificação do puro
mal.
Sem meu conhecimento acerca de racismo que obtive em minha outra vida,
provavelmente estaria gritando de terror.
O homem não falou nada. Ele jogou mais um galho no fogo que crepitava o
tempo todo. Eris gemeu com o som e começou a se mover. Ela parecia estar no
limite da consciência.
Espera. Isso não é bom. Ela definitivamente vai fazer um espetáculo. Preciso
ao menos me apresentar antes que as coisas caiam em completo caos.
— Ruijerd Superdia.
— Bem, Ruijerd, acho que essa jovem vai acordar em breve. Às vezes ela faz
muito barulho, infelizmente. Deixe-me pedir desculpas antecipadas.
— Com certeza.
Percebi que Ruijerd não ficou muito surpreso com toda a história sobre
Perugius. Talvez não fosse tão incomum que o lendário herói aparecesse de vez em
quando.
— Deixa pra lá. Não é importante. — Não parecia que ele estava mentindo para
mim, e eu não conseguia imaginar o homem vendo uma necessidade para mentir.
— Tudo bem, eu não te pedirei para nos levar até lá. Se puder nos acompanhar
até a cidade mais próxima, acho que…
— Mas estamos falando sobre uma jornada para o outro lado do mundo.
Será que esse cara gostava de crianças? Ainda assim, não estávamos falando
sobre uma caminhada de volta para casa que acabaria em dez minutos. Eu não
poderia aceitar suas promessas logo de cara…
— Pense assim — disse o homem —: Você sabe a língua daqui? Tem algum
dinheiro? Conhece as estradas?
Ah. Huh. Nem tinha pensado nisso, mas… Estivemos falando na Língua
Humana o tempo todo, e este homem demônio estava respondendo fluentemente.
Que interessante.
— De qualquer forma, amanhã de manhã vou te levar até a aldeia onde costumo
ficar.
— Certo.
Eu não tinha confiado naquele autoproclamado deus, mas este homem era
diferente. Não faria mal dar uma chance a ele. Pelo menos até chegar àquela aldeia.
Sentando-se reta, olhou ao redor, sua expressão cada vez mais ansiosa.
Depois de um momento, seus olhos encontraram os meus e vi um brilho de alívio
em seu rosto.
— Não! Não, não, não! Por favor, por favor, não! Ghislaine! Ghislaine, socorro!
Ghislaine! Por que você não aparece?! Nãããão! Eu não quero morrer! Não quero
morrer! Sinto muito! Sinto muito, Rudeus! Sinto muito por ter te arrastado para isso!
Eu sou uma covarde! Agora nunca mais vou conseguir… m-manter minha
promessa! Aaah… ah… Waaaaaaah!
O que quer que alguém pudesse dizer sobre ela, Eris sempre seria considerada
uma garota de temperamento forte e confiante. Desde que ela quisesse, poderia
tomar o mundo. Sempre tentou atravessar todos os obstáculos em seu caminho;
como se fosse uma lei, primeiro socava e falava depois.
— Mas?
— Sim, isso é verdade. Mas, felizmente, ele fala a Língua Humana muito bem.
— Hmm, tem certeza que quer erguer a cabeça assim? Talvez ele não te coma
se você ficar encolhida no chão.
Aquilo em seus olhos eram lágrimas de verdade? Que bom que ela não estava
naquela sua pose de costume. Seus joelhos provavelmente estariam tremendo sem
parar.
— Não, não! É Eris Boreas Greyrat! Eu só gaguejei um pouco, foi só isso! Olha
aqui, que tal você se apresentar, hein?!
Um instante após parar de gritar com ele, o rosto de Eris ficou pálido. Parecia
que, por um momento, ela tinha esquecido com quem estava falando.
Quando Ruijerd respondeu com calma, uma expressão de alívio surgiu no rosto
de Eris, então logo apareceu um sorriso confiante e arrogante. Parecia que ela tinha
decidido, um pouco tarde demais, que não tinha nem um pouco de medo do homem.
— Viu? Ele não é tão ruim. Você pode fazer amizade com qualquer pessoa,
desde que possa se comunicar com ela.
Então foi Hilda quem falou sobre os Superds para ela? Fiquei um pouco curioso
sobre as histórias que Eris tinha ouvido. Deviam ser horríveis.
— Ela sempre disse que iriam aparecer para me comer, a menos que fosse
para a cama na hora certa.
Ah, então eles eram como o clássico bicho-papão deste mundo, hein? Mais ou
menos como o Homem-Fique-Longe no Japão.
— Bem, este Superd não parece a fim de nos comer. Podemos nos gabar por
fazer amizade com ele assim que voltarmos para casa, não acha?
— Claro.
Olhei para Ruijerd. Havia uma ligeira expressão de surpresa em seu rosto. Até
agora, tudo bem.
— M-mas…
Realmente achei que tinha tratado isso de forma bem infantil, mas Eris parecia
um pouco hesitante. Pensando bem, ela realmente não tinha “amigos”, tinha? Eu
provavelmente estava meio deslocado nessa categoria…
— Hã? Er, claro. Eu ficaria muito feliz, Eris. — O homem demorou um pouco,
mas eventualmente entendeu a deixa.
— Nossa. Tudo bem então. Acho que vou descansar mais um pouco, se não se
importarem.
Me enrolei no chão e Eris gentilmente colocou a capa que a cobria sobre mim.
Presumivelmente, pertencia a Ruijerd. Por algum motivo, eu realmente estava
completamente exausto.
Quando estava quase caindo no sono, captei alguns trechos da conversa que
vinha da direção do fogo.
Certo. Vou levar Eris para casa em segurança, ao menos isso. Não importa o
quê.
Capítulo 03 - O Segredo da
Mestra
Mais uma vez, estava sonhando. Desta vez, estava assistindo um grupo de
anjos descendo dos céus. Parecia algo bastante agradável, em comparação com
meus pesadelos mais recentes.
Então percebi que algumas partes deles estavam escondidas por mosaicos
pixelados. À medida que se aproximavam, riam de mim juntos, e sorrisos
assustadores apareciam em seus rostos.
Sua área tinha quase metade do tamanho do Continente Central, mas era um
lugar muito mais hostil. Para começar, havia muito pouca vegetação. O solo era
marcado por várias erosões e fissuras; as mudanças na elevação eram abruptas,
com enormes encostas rochosas projetando-se como degraus de uma escada
gigante. Os viajantes costumavam encontrar os caminhos bloqueados por pilhas de
pedras maiores do que um homem. O lugar era basicamente um labirinto.
Aquilo foi alegria em sua voz? Bem, melhor assim. Não há razão para ser um
estraga prazeres e falar sobre o quanto isso vai ser perigoso.
Pelo visto, Eris tinha feito amizade com Ruijerd enquanto eu dormia. Ela
tagarelava com ele enquanto caminhávamos, descrevendo sua vida em casa, suas
lições de magia e a prática com espada, tudo demonstrando enorme entusiasmo.
Ruijerd não contribuiu muito com a conversa, mas oferecia expressões educadas de
interesse sempre que parecia apropriado.
Era difícil de acreditar que Eris esteve completamente apavorada com o homem
na noite anterior. Nesse momento, não parecia nada intimidada. Na verdade, até fez
alguns comentários impróprios e que soaram rudes. Isso me deixou mais do que
ansioso, mas Ruijerd não parecia se ofender.
Quem foi que disse que os Superds tinham um temperamento terrível? Eles
estavam claramente se dando bem.
Claro, Eris não era mais tão propensa a, do nada, insultar as pessoas como
costumava fazer. Edna e eu tínhamos basicamente ceifado esse seu hábito, então
ela provavelmente não iria deixar nada de terrível escapar – ou era nisso que eu
queria acreditar. Ainda assim, era difícil saber o que enfureceria um estranho de
uma cultura desconhecida. Realmente esperava que ela tomasse cuidado com o
que diria.
Além disso, Eris tendia a ficar furiosa muito facilmente, então… imaginava que
Ruijerd poderia ser parecido.
Enquanto esse pensamento corria minha mente, ouvi a voz de Eris ficando mais
aguda e irritada.
— Não sei como os humanos tratam essas coisas, mas você deveria ser grata
por tê-lo.
— Ugh… — Ruijerd falou com firmeza, e Eris hesitou por um momento antes
de finalmente ceder. — C-claro que sou grata…
Claro, não era como se fôssemos irmãos. Além disso, ela era mais velha do que
eu.
O Continente Demônio fazia jus à sua reputação de ter um terreno íngreme e
rochoso. O solo também era duro, seco e arenoso — era mais areia do que terra.
Dificilmente alguém poderia culpar os demônios por iniciarem uma guerra para sair
deste lugar horrível. Quase não havia plantas. De vez em quando, eu via uma coisa
rochosa que parecia uma espécie de cacto, mas isso era tudo.
Isso acontecia mais ou menos a cada dez minutos, Ruijerd mandava que
parássemos e depois saía correndo. Desta vez, ele facilmente pulou sobre um
monte de pedras enormes, rapidamente desaparecendo de vista. As habilidades
físicas do homem eram inacreditáveis. Sempre pensei em Ghislaine como alguém
quase sobre-humano, mas se colocasse sua agilidade bruta em números, Ruijerd
poderia facilmente passar por cima disso.
Menos de cinco minutos após sua abrupta partida, ele voltou saltando em nossa
direção.
Ruijerd não deu nenhuma explicação, mas havia um leve cheiro de sangue na
ponta de seu tridente. Pelo visto, ele fatiou algum tipo de monstro que poderia
aparecer no nosso caminho. Pelo que lembrei do dicionário de Roxy, aquela coisa
parecida com uma joia em sua cabeça funcionava como um tipo de radar.
Provavelmente estava usando aquilo para identificar potenciais ameaças antes que
se aproximassem demais, e então as eliminava antes que elas soubessem o que
estava acontecendo.
— Certo, olha! Por que você continua fugindo toda hora? — perguntou Eris,
direta como sempre.
— Não é tão simples, infelizmente. — Ruijerd sorriu um pouco após falar isso.
Isso parecia até um eufemismo, para ser sincero. Ruijerd estava lutando contra
monstros a mais ou menos cada quinze minutos. De volta a Asura, seria possível
viajar por horas em uma carruagem sem ver nenhum. É verdade que os cavaleiros
e aventureiros do Reino regularmente se esforçavam para exterminar quaisquer
monstros dentro de seus limites, mas, mesmo assim, a taxa de encontros no
Continente Demônio era absurdamente elevada.
— Ruijerd, esse tempo todo você lutou sozinho. Como está indo?
Ruijerd tentou afagar a cabeça de Eris também, mas ela deu um tapa em sua
mão, emburrada.
— Aqui estamos.
Aos meus olhos, o lugar aonde chegamos parecia mais um vilarejo do que uma
cidade. Havia talvez dez ou quinze casas, no máximo, e a cerca em volta de todas
era bem imperfeita. Percebi um pequeno campo de cultivo por ali. Era difícil dizer o
que estavam plantando, mas, pelo jeito das coisas, a safra não seria das melhores.
Seria mesmo possível cultivar em terras assim, sem um rio por perto?
— Alto lá!
Do lado de fora do portão da frente, fomos parados por um garoto que parecia
estar no ginásio. Seu cabelo azul me lembrava o de Roxy.
— São vítimas de um desastre mágico que ocorreu em Asura. Por acaso foram
teletransportados para cá, isso é tudo.
Nesse momento, percebi que Ruijerd estava cerrando os punhos. Agindo por
instinto, estendi a mão para segurar seu braço.
— O quê…?
— Discutir com um lacaio não vai nos levar a lugar nenhum. Por que não
pedimos para ele buscar alguém com verdadeira autoridade?
O garoto fez uma careta quando ouviu a palavra lacaio, mas Ruijerd concordou
balançando a cabeça.
Uh… o que é isso? Você vai se mexer ou não? Por favor, não me diga que esse
garoto simplesmente dormiu no meio do turno… Hmm. Talvez ele esteja esperando
ser acordado por um bom beijo molhado?
— Ah. Agora que você mencionou, acho que minha mestra me falou um pouco
sobre isso. — Para ser mais específico, ela escreveu em seu Dicionário do Tipo
Demônio que os Migurds eram capazes de se comunicar telepaticamente com seus
amigos íntimos e familiares. Roxy também escreveu que ela não tinha essa
habilidade e havia deixado sua aldeia por causa disso.
Pobre garota.
Pensando bem… se essa era uma aldeia Migurd, mencionar o nome de Roxy
não ajudaria? Então, mais uma vez, eu não sabia se ela era especificamente deste
lugar. Havia também a chance de o tiro sair pela culatra.
— Então tá.
— O guarda ali nos achou suspeitos, então estamos esperando que o ancião
da aldeia venha nos analisar pessoalmente.
— Mas que diabos? O que há de suspeito sobre nós? — Franzindo a testa, Eris
olhou para suas roupas. Quando fomos para fora da cidade naquele dia, vestiu a
mesma roupa de treino que sempre usava; estava um pouco gasta, mas, em
comparação com o que Ruijerd usava, não parecia estranha. Não era como se Eris
estivesse usando um vestido cheio de babados. — Umm, preciso me preocupar?
— Com o quê?
Por mais corajosa que ela fosse, a possibilidade de uma discussão na entrada
da aldeia claramente a deixava mais do que ansiosa. Pelo menos minha tentativa
de tranquilizá-la pareceu funcionar.
Não havia qualquer menção sobre isso no dicionário da Mestra Roxy… mas a
garota que ela desenhou como ilustração parecia estar no ginásio. Na época
presumi que era um autorretrato, o que foi até um tanto charmoso, mas talvez
estivesse apenas retratando o Migurd adulto típico.
— Sim. Uma delas consegue falar a língua do Deus Demônio. Isso é bem
estranho.
— Por que uma criança humana estudaria, dentre todas as coisas, logo a nossa
língua?!
— Não vamos nos precipitar, Rowin. Tente se acalmar, certo? Vou falar com
eles.
— Bem, você com certeza é educado. Sou Rokkus, o ancião desta aldeia.
Olhei para Eris, tentando fazê-la seguir meu exemplo. Pelo visto, confusa com
o aparente contraste entre a digna postura do homem e sua juventude, ela cruzou e
descruzou os braços. Parecia que estava pensando se devia ou não assumir sua
característica pose de desafio.
— Apenas faça o que aprendeu. Vou dizer a ele o que você falar.
Após um momento de hesitação, ela fez uma reverência que poderia ser usada
como exemplo, assim como havia praticado em suas aulas de etiqueta. O rosto do
ancião da aldeia se abriu em um enorme sorriso.
— Hmm. Mas não foi muito parecido com o que você fez.
— Ah. S-sério? Então acho que ele te entendeu. Isso é bom. — Eris sorriu
obviamente aliviada.
Ooh! Que olhar apaixonado. Pare com isso… você está me fazendo querer
fazer um strip-tease…
Depois de um longo tempo, seus olhos pararam, fixos na parte superior do meu
peito.
— Onde conseguiu esse pingente que está usando, meu jovem?
— O nome dela é Roxy. — Uma resposta honesta parecia ser a melhor opção.
No final das contas, sempre fui orgulhoso de ter aprendido com ela.
— Como é que é?! — gritou Rowin. Antes que eu pudesse responder, ele
passou direto por Rokkus e me agarrou pelos ombros. — V-você acabou de
dizer Roxy?!
— Por favor! Diga-me tudo o que você sabe! Roxy… Roxy é minha filha!
Pardon, monsieur? Uhm, não, na verdade, acho que ouvi direito mesmo na
primeira vez. Só estou um pouco curioso a respeito da sua idade. O homem não
parecia ter idade suficiente para estar no ensino médio. Se ele dissesse que era o
irmãozinho de Roxy, eu teria acreditado. Mas, pelo visto… hmm. É. Que
interessante.
— Por favor, diga! Já fazem mais de vinte anos desde que ela deixou a vila, e
não tivemos nenhuma notícia desde então!
Então Roxy basicamente fugiu de casa. Claro, não é como se ela tivesse
mencionado isso para mim. Honestamente, mestra, você não podia ter avisado?
— Isso é muito importante. Ah, e enquanto isso, também gostaria de saber por
quanto tempo os Migurd vivem.
— Uh… certo. Roxy faria… quarenta e quatro este ano, acho. E vivemos cerca
de duzentos anos, pelo menos a maioria. A menos que alguma doença nos mate.
— Sim. Quando a conheci ela falava a nossa língua perfeitamente. E isso foi há
sete anos.
— S-sério? De qualquer forma… você está falando que ela está bem?
— Entendo… então ela está bem. Ela está bem! Haha… Obrigado deusas…
Ei, estou feliz por você, pai. Me peguei pensando em Paul e me perguntando
se ele reagiria da mesma forma quando descobrisse que eu estava seguro. Teria
que enviar uma carta para Buena Village assim que pudesse.
Afastando-me do pai choroso de Roxy, me dirigi a Rokkus mais uma vez.
— Claro. Não recusaríamos ninguém que nos trouxe notícias tão bem-vindas.
Quem bom que tenho esse pingente. Nunca pensei que seria tão útil.
Capítulo 04 - Os
Fundamentos da Confiança
O pequeno campo de cultivo que avistei do lado de fora do portão era ladeado
por filas de plantas murchas e encolhidas. Para ser honesto, parecia que estavam
todas meio mortas. Era um tanto preocupante. O Dicionário do Tipo Demônio não
incluía muitas informações sobre agricultura, infelizmente. Tudo que eu conseguia
me lembrar era de uma breve menção a seus vegetais tenderem a ser “amargos e
desagradáveis”.
Quase não havia homens no local. Notei algumas crianças, na maioria garotos,
brincando, mas fora Rowin e o ancião, os adultos eram todos mulheres. Os outros
deveriam estar garantindo o jantar para o dia seguinte. Pelo que me lembrava, os
homens cuidavam da caça em aldeias assim, enquanto as mulheres tomavam conta
de casa.
— Monstros — respondeu.
Ah, bem. Acho que só vou ter que pressionar um pouquinho mais.
— São de Grandes Tartarugas. Seus cascos são duros e sua carne deliciosa.
Você pode até mesmo fazer cordas de arcos com os tendões delas.
— São.
Uma tartaruga saborosa, hein? Era um pouco difícil imaginar uma enorme o
suficiente para caber naqueles cascos. O que cobria a maior casa parecia ter pelo
menos sessenta pés de comprimento.
— Com licença.
— O-obrigada por nos receber.
— Uau…
O interior do local era muito mais espaçoso do que imaginei vendo do lado de
fora. O chão era coberto de peles e as paredes decoradas com obras de arte
coloridas; fogo ardia em uma lareira mais adiante no cômodo, iluminando todo o
interior muito bem. Não havia quartos separados ou paredes; à noite, provavelmente
só precisaria se enrolar em algumas peles e se aproximar do fogo. Notei um monte
de espadas e arcos cuidadosamente encostados nas paredes externas. Certamente
poderia dizer que era uma comunidade de caçadores.
Por algum motivo, as duas garotas que seguiram o ancião até o portão não nos
seguiram para dentro do recinto.
— Bem, então, vamos ouvir sua história — disse Rokkus, sentando-se ao lado
da lareira. Ruijerd sentou-se de frente para o ancião; então sentei-me de pernas
cruzadas, ao lado do Superd. Olhei para trás, procurando por Eris, e a encontrei
deslocada, parada ao lado da porta e sem saber o que fazer.
Eris não era o tipo de pessoa que costumava ficar nervosa com essas coisas.
Ela provavelmente ficou confusa com a diferença entre como as coisas funcionavam
por aqui e o que aprendeu em suas aulas de etiqueta. Ao vê-la sentar no chão, fiquei
um pouco preocupado que a garota pudesse acabar abandonando o conceito de
“boas maneiras” no momento que voltássemos para casa.
Decidi não mencionar toda a coisa com o Deus-Homem. Não tinha como saber
como o Migurd via aquela divindade específica, e a última coisa que precisava era
ser marcado como o mensageiro de um deus maligno.
— Bem, é isso…
— Hrm — murmurou Rokkus, acariciando seu queixo com a expressão
pensativa de um garoto do ginásio, parecia até estar pensando em algum exercício
de álgebra complicado. — Entendo…
Enquanto esperávamos que ele tomasse alguma decisão, percebi que Eris
estava começando a cochilar. Ela parecia cheia de energia há poucos minutos, mas
talvez a caminhada tivesse finalmente cobrado seu preço. Não foi algo tão
surpreendente – esse tipo de viagem era uma novidade para a garota, e parecia que
ela não voltou a dormir depois de acordar na noite anterior. Provavelmente ficou a
todo vapor.
— Eris, posso cuidar da conversa — falei. — Por que não tira uma soneca?
— Ei, meu colo está livre — falei, batendo em minhas coxas e sorrindo.
— Isso quer dizer que você pode descansar a cabeça nas minhas pernas.
Dito isso, ainda estávamos no modo “fique longe”. A pequena senhorita tinha
algumas ideias firmes sobre a coisa de castidade, e eu não estava disposto a
desrespeitar isso.
Hmm. Ele foi direto para a mesma pergunta que Ruijerd abordou na noite
anterior.
— Na verdade, estou planejando lidar com isso sozinho. — Não que eu fosse
exatamente esperto, mas não poderia esperar que uma garota rica e mimada como
Eris lidasse com a realidade em um momento assim.
Hmm. Definitivamente seria reconfortante ter esse cara ao nosso lado, mas
aquilo sobre o Deus-Homem ainda me preocupava. Não importa o quanto
eu quisesse confiar nele, provavelmente era melhor nos separarmos logo. Até onde
sabia, o homem era como uma bomba-relógio.
Rokkus suspirou.
— Uh…
Espera, o quê? Ele não pode… entrar em cidades?
— E não saber nada do que acontecerá com esses dois do lado de dentro?
Assim não vai manter ninguém em segurança — disse Rokkus, balançando a
cabeça, exasperado.
— Foi.
— De qualquer forma, Ruijerd – realmente acha que pode alcançar seu objetivo
adotando meios tão violentos?
Com esforço, consegui evitar de deixar um: “Bem, não vai rolar” escapar. O
preconceito sistemático não é o tipo de coisa que as pessoas podem simplesmente
superar, não importa o quanto tentem. Que inferno, uma única criança não poderia
nem mesmo impedir sua turma de intimidar alguém, e o ódio pelos Superds
aparentemente se espalhou pelo mundo todo. Digo, até a pequena e ousada Eris
gritou ao ver Ruijerd. A humanidade e as raças de demônios tinham certeza de que
eles eram malignos; como poderia convencer todos do contrário?
— Eu sei que os rumores podem ter fugido do controle, mas parece que há uma
boa razão para que todos tenham medo de…
O-o que diabos? Pare de gritar comigo, cara. Você está me enlouquecendo
aqui. Merda, não consigo parar de tremer. O que é isso de complô, afinal? Esse cara
acredita em teorias da conspiração ou o quê? E aquele Laplace viveu há tipo,
quinhentos anos atrás, certo?
Entretanto, isso não significava que também não sofriam perdas. Agora eram
um inimigo odiado tanto pelos humanos quanto demônios, foram forçados a suportar
batalhas quase ininterruptas, fosse dia ou noite. Lenta, mas continuamente, seus
números começaram a diminuir.
Depois de algum tempo, um boato chegou ao bando dos Superds, era algo
falando sobre uma de suas aldeias estar sob ataque – a aldeia natal de Ruijerd, mais
especificamente. Era uma armadilha destinada a atraí-los para sua ruína, mas,
neste ponto, nenhum deles estava lúcido o suficiente para suspeitar de qualquer
coisa.
Ruijerd assassinou seus pais, esposa, irmãs e, finalmente, seu próprio filho. Seu
filho ainda era jovem, mas estava treinando para se tornar um guerreiro. Foi algo
longe de ser uma batalha equilibrada, mas, em seus momentos finais, o menino
conseguiu quebrar a lança negra de seu pai.
Naquele instante, o agradável sonho de Ruijerd acabou e um pesadelo
começou. Havia algo duro e crocante em sua boca. Percebendo que era o dedo de
seu filho, ele cuspiu, horrorizado.
A primeira coisa em que pensou foi suicídio, mas afastou isso de sua mente.
Havia algo que simplesmente precisava fazer antes de morrer – precisava destruir
um inimigo, a qualquer custo.
Nesse ponto, a vila dos Superds estava totalmente cercada por um exército de
demônios enviado para exterminá-los. Apenas dez dos soldados de Ruijerd
continuavam vivos. Quando receberam as Lanças do Diabo pela primeira vez, era
um bando com quase duzentos guerreiros ousados e valentes. Agora era apenas
um punhado de sobreviventes, e estavam todos acabados. Alguns perderam um
braço, outros o olho ou até mesmo a joia na testa; mas, mesmo assim, feridos e em
números muito menores, olhavam beligerantemente para a força de mais de mil
homens que os rodeava.
Ruijerd não sabia o que havia acontecido com os outros dez, mas suspeitava
que estavam mortos. Sem o poder das Lanças do Diabo, os Superds não eram nada
mais do que soldados excepcionalmente eficazes.
Eles não tinham escolha a não ser usar quaisquer tridentes que pudessem
encontrar, em vez daqueles com os quais se acostumaram ao longo de anos de
batalha. Assim sendo, nenhum deveria ter sobrevivido. De alguma forma, Ruijerd
conseguiu romper o cerco inimigo e escapar. Mas foi gravemente ferido na batalha
e passou os próximos três dias à beira da morte.
A única coisa que carregou consigo foi o tridente de seu filho – com o qual o
garoto morto quebrou a Lança do Diabo e salvou seu pai.
Mas, claro, a derrota de Laplace não seria o bastante para reparar o dano feito.
Desprezados e perseguidos, os Superds sobreviventes foram expulsos de suas
aldeias e espalharam-se pelo mundo. Para ajudá-los a escapar de seus
perseguidores, Ruijerd foi forçado a matar mais dos demônios com os quais já havia
se aliado. Naqueles primeiros anos após a guerra, os ataques ao seu povo foram
verdadeiramente brutais e ele batalhou com a mesma violência.
Agora Ruijerd já não via outros Superds há quase trezentos anos. Ele não sabia
se sua espécie havia sido completamente exterminada ou se conseguiram
sobreviver e formar uma nova aldeia em algum lugar escondido.
— Laplace é o culpado por tudo, é claro. Mas também sou responsável pela
desgraça que causei ao meu povo. Mesmo sendo o último da minha espécie, quero
que o mundo saiba a verdade.
Os Superds tinham sido sinceramente leais a Laplace. Teriam dado suas vidas
caso fossem pedidas. Traí-los com tanta crueldade parecia desnecessário.
Uma vozinha dentro de mim sussurrou uma objeção: Você realmente está em
posição para ajudá-lo? Que tal se concentrar em salvar sua própria pele? Esta
viagem vai ser muito mais difícil do que você imagina.
— Não sei ao certo, mas, talvez, ter uma criança humana ao seu lado te ajude
a descobrir novas possibilidades.
Claro, eu não estava agindo assim por pura compaixão. Também tínhamos a
ganhar com esse acordo, ao menos em alguns aspectos. Ruijerd era um lutador
poderoso – alguém no mesmo nível dos três heróis lendários – e estaria nos
oferecendo sua proteção. Pelo menos com ele por perto, não seríamos mortos por
algum monstro aleatório enquanto seguíamos para nosso próximo destino.
Sua presença tornaria as coisas na estrada mais fáceis e mais difíceis quando
chegássemos a uma cidade. Contanto que encontrássemos uma maneira de
contornar a questão em cidades, ele seria um excelente aliado. Além de ser forte,
era impossível emboscá-lo ou pegá-lo furtivamente, mesmo à noite; isso tornaria
muito mais fácil o ato de evitar bandidos ou ladrõezinhos nas cidades
desconhecidas.
Além do mais… embora fosse apenas minha intuição, tive a sensação de que
o homem era basicamente incapaz de mentir. Parecia seguro confiar nele.
— Uh… obrigado — respondeu, parecendo mais do que surpreso. Será que ele
percebeu a suspeita em meu olhar sumindo?
Bem, tanto faz. Decidi confiar em você, certo? Mordi a isca, chumbada e anzol.
Na minha vida anterior, costumava rir de histórias alheias tristes o tempo todo…
mas, por algum motivo, esta realmente me tocou. Se o homem estava de alguma
forma me enganando, não faria diferença. Pela primeira vez senti vontade de confiar
estupidamente em alguém.
— Está tudo bem, Rokkus. Vou descobrir alguma coisa. — Ruijerd nos
protegeria na estrada e eu o protegeria nas cidades. Esta seria uma relação de
mútuo benefício. — Vamos partir amanhã, Ruijerd. Ficarei feliz em ter você conosco.
Havia apenas uma coisa sobre isso que me deixava um pouco ansioso…
Bem, parecia que eu estava fazendo exatamente o que o Deus Homem queria.
Os outros homens da aldeia ainda não tinham aparecido desde o dia anterior.
Rowin ficou ali a noite toda, igual a um NPC de algum RPG? Isso sempre me
pareceu algo bem simples… ficar parado no mesmo lugar o dia todo, sem se mover
um centímetro sequer. Ainda assim, ele realmente iria ser o único ali até o retorno
dos outros?
Ah, acho que aquele ali é o Ancião Rokkus. Com a aldeia sendo tão pequena,
ele também deve ajudar caso seja necessário.
— Ah. Eu esperava poder perguntar algumas coisas sobre minha filha, mas…
— Certo…
Ele correu para dentro de uma das casas da aldeia – provavelmente aquela em
que Roxy cresceu. Depois de vários minutos, apareceu com uma garota que se
parecia muito com minha mestra. No começo não entendi por que ele simplesmente
não a chamou para o lado de fora usando telepatia, mas então percebi que estavam
carregando um tipo de espada. Iriam nos dar um presente?
— Eu sou Rudeus Greyrat, senhora. Devo dizer que não esperava que a mãe
de Roxy fosse tão jovem. — Me curvei ligeiramente. De certa forma, devia muito a
esses dois: eles criaram Roxy e, sem ela, eu provavelmente teria partido para o
mundo da forma como nasci.
— Minha nossa, mas que bajulador. Eu tenho cento e dois anos, sabia?
— Uhm, bem… de acordo com meu livro isso ainda é bem jovem. — Pelo visto
os Migurds atingiam a maturidade física por volta dos dez anos de idade, e não
demonstravam sinais de envelhecimento antes dos cento e cinquenta anos. — Devo
muito à Mestra Roxy, senhora.
— Ela me ensinou todo tipo de coisa. Sou muito grato por tudo.
— De qualquer forma — disse Rowin —, estou feliz que você tenha aparecido
no meu turno.
— Sim. Também fico feliz por ter conhecido vocês dois. Roxy fez muito por mim,
sério… Hmm. Será que eu devo te chamar de Pai?
Ouch. O homem nem sequer esboçou um sorriso amarelo. Sua cara de pau me
lembrava um pouco a de Roxy. Senti até um pouco de nostalgia.
— Piadas a parte, quero que você fique com isso — disse Rowin, segurando a
espada. — Sei que Ruijerd está com você, mas conseguirá dormir melhor se tiver
sua própria arma.
— Aqui também tem um pouco de dinheiro. Não é muito, mas deve ser ao
menos o bastante para duas ou três noites em uma pousada decente.
Ooh, agora conseguimos até um pouco de dinheiro!
Claro, o Continente Demônio tinha sua economia própria, então os preços nem
sempre podiam ser comparados. Não era como se todos do lugar estivessem
morrendo de fome.
— Muito obrigado…
— Sim. Ela infelizmente sempre passou por dificuldades quando estava aqui.
Estávamos bastante preocupados.
Eu podia entender como seria difícil viver em um vilarejo como este sem aquele
poder telepático que todos pareciam ter. No geral, não se escutava nenhum som de
conversas no local. Todos provavelmente se comunicavam silenciosamente usando
apenas as mentes. Roxy não podia participar dessas conversas, nem mesmo ouvir
o que diziam uns aos outros. Não era de se admirar que tenha fugido de casa.
— Certo, tudo bem então. Espero que voltemos a nos encontrar algum dia.
— Hahaha. C-claro.
Era difícil saber quando ou se veria Roxy novamente, mas, ao menos, teria que
devolver o dinheiro em algum dia.
Pouco após partirmos, ficou claro o quão crucial era a ajuda de Ruijerd. O
homem já viajava sozinho pela área há muitos anos; conhecia todas as estradas e
sabia exatamente como montar um bom acampamento. Sem mencionar seu “radar”
biológico, que nos alertava antecipadamente sobre qualquer ameaça circundante.
— Por quê?
— Para que possamos ser úteis. — Dada a longa jornada adiante, Eris e eu
precisávamos de um intensivo curso de habilidades básicas de acampamento.
Hm. Nosso primeiro encontro foi em torno de uma fogueira, então obviamente
deveria ser possível, mas…
— Você usa outra coisa? — perguntei.
— Ah. — Sério, esse devia ter sido meu primeiro palpite. Aqui, quase tudo que
precisava para sobreviver parecia ser proveniente da caça de monstros.
— O que foi?
Certo. Então, pelo visto, ele planejava continuar fazendo as coisas do mesmo
jeito para sempre. Para ser justo, o homem estava vivo há mais de quinhentos
anos… não tínhamos idade nem para ser seus tataranetos. E ele provavelmente era
mais do que forte o suficiente para lidar com qualquer luta sozinho.
Ainda assim, sempre havia uma boa chance de que algo de errado pudesse
acontecer. Se Ruijerd morresse ou de alguma forma ficasse incapaz de lutar, Eris e
eu seríamos forçados a nos defendermos sozinhos. E, no momento, não tínhamos
experiência de combate no mundo real. O que aconteceria se o perdêssemos
enquanto nosso grupo estivesse viajando por uma floresta densa e perigosa… ou
no meio de uma batalha contra um poderoso grupo de monstros?
Não. Essa não era a melhor forma de pensar nisso. Este era um relacionamento
de mútuo benefício. éramos parceiros em pé de igualdade, trabalhando juntos para
alcançar nossos objetivos. Todos os três precisávamos descobrir como lutar como
um grupo.
— Uh… Ruijerd, olha aqui. — Eu tinha que ser claro e direto a respeito disso.
O homem ainda tinha a impressão de que seria nosso guardião; precisava entender
que não era esse o caso. — Estamos ajudando você e você está nos ajudando.
Nossos objetivos são diferentes, mas vamos lutar juntos… Então, nós três
somos guerreiros, certo?
Com a expressão mais severa que pude fazer, encarei Ruijerd diretamente e
esperei por uma resposta.
Demorou só uns dez a quinze segundos para ele tomar uma decisão.
Não posso dizer que o homem parecesse exatamente convencido, mas pelo
menos parecia que iria permitir que o acompanhássemos de agora em diante. Isso
era o mais importante.
Ente, no geral, era um termo usado para monstros parecidos com árvores. Eram
plantas comuns que absorveram muita energia mágica e se transformaram em
criaturas violentas.
— Isso mesmo.
— Não poderemos usar a coisa como lenha se você a queimar até que vire
cinzas.
— Exato.
Então, tudo bem. No que dizia respeito a Ruijerd, essa coisa seria claramente
algo inferior a uma ameaça, algo mais parecido com um pedaço de madeira vivo.
Isso significava que não representaria qualquer perigo real, desde que estivéssemos
com ele. Poderíamos lutar sem correr um risco real.
— Tudo certo então. Vamos tentar deixar a luta comigo e com Eris. Ruijerd,
você só precisa intervir para ajudar Eris caso ela esteja em perigo, certo?
— Certo.
Com isso decidido, nos coloquei em uma formação de batalha simples – Eris
na vanguarda, e eu na retaguarda. Parecia a melhor escolha, dadas suas
habilidades de luta com espada.
— Certo, Eris. Vou ajudar um pouco com um bom tiro à distância. Depois disso,
você aparece e acaba com tudo. Vou tentar pelo menos entoar os feitiços que usarei,
mas se as coisas ficarem agitadas, vou ficar sem tempo. Basta que mantenha isso
em mente, entendeu?
Ergui meu cajado e parei para pensar nessas coisas. Feitiços de fogo e de água
foram descartados, e só de olhar para a coisa, parecia que os de vento nãos seriam
muito eficazes. Isso me deixou apenas com os de terra. Terra me serviria. Eu tinha
ficado muito bom com isso depois de fazer tantas estatuetas.
Fechei os olhos e respirei fundo uma única vez, então canalizei minha energia
mágica para e através das mãos. Era algo que já havia feito dezenas de milhares
de vezes; neste ponto, poderia ter lançado o feitiço mesmo com as duas pernas
arrancadas.
— Tudo certo…
— Canhão de Pedra!
— F-foi mal. Eu também nunca tinha feito isso, sabe? Acho que acabei usando
muita força…
Eris não ficou lá muito satisfeita por eu ter arruinado sua primeira batalha real,
mas eu realmente não esperava matar a pobre criatura tão facilmente. Tudo o que
realmente planejei foi ajustar o feitiço Canhão de Pedra, tornando o projétil um pouco
semelhante a uma bala de ponta oca. As pessoas da Terra certamente tinham
algumas ideias desagradáveis…
— Mas você não recitou nenhum feitiço e nem usou um círculo mágico…
— Bem, não. Eu também podia fazer o projétil explodir quando atingisse o alvo.
— Hmm. Acho que seria melhor evitar qualquer feitiço quando seus aliados
estiverem perto do alvo, Rudeus.
Foi a primeira vez que realmente acertei alguma coisa com aquele feitiço, mas
foi definitivamente… mais destrutivo do que imaginei. Acertar alguém com aquilo
resultaria em morte instantânea. Idealmente, seria melhor mudar para feitiços de
suporte, mas não me veio nada à mente. Até o momento, realmente só tinha
pensado em lutar sozinho.
— Ruijerd, se eu quiser ajudar vocês dois com minha magia, que tipo de coisa
deveria estar fazendo?
— Não sei. Nunca lutei ao lado de um feiticeiro.
Bem, que seja. Tínhamos um experiente guerreiro Superd ao nosso lado. Não
precisaríamos imitar os modos que grupos normais adotavam para fazer as coisas.
Poderia pensar em nossa coordenação depois; por enquanto, o mais importante era
que Eris e eu tivéssemos alguma experiência real em combate.
— Hein? O quê? — Talvez essa fosse a parte em que fazíamos uma pequena
oração pela criatura que matamos?
Nosso grupo continuou se movendo até o pôr do sol, travando um total de quatro
batalhas. Enfrentamos outro Ente de Pedra, uma Grande Tartaruga, um Lobo Ácido
e um grupo de Coiotes Pax.
Os Lobos Ácidos eram grandes animais que podiam cuspir um tipo de ácido
cáustico. Encontramos apenas um, então Eris o derrubou, avançando bruscamente
para fazer sua cabeça voar em um único golpe. Comparado com Ruijerd, não foi
algo exatamente elegante, mas ainda assim resultou em vitória instantânea.
Dessa forma, cuidei do segundo Ente de Pedra com um único disparo, de novo.
Esperava causar um dano moderado para que Eris pudesse praticar, mas acabou
sendo surpreendentemente difícil fazer meu feitiço ser menos letal. Até pegar o jeito
para diminuir o poder, teria que evitar usá-lo em pessoas. Mesmo se precisasse
matar alguém, não havia necessidade de tornar isso em algo horrível.
O grupo com o qual lutamos era composto por cerca de vinte. Provavelmente
poderiam ter matado qualquer aventureiro comum, mas Eris os enfrentou com
alegria, brandindo sua nova espada para lá e para cá enquanto Ruijerd oferecia
conselhos infinitos. A menina colocou sua vida em risco na batalha, mas não parecia
exatamente tensa. Toda aquela prática com Ghislaine havia claramente a imbuído
um pouco de confiança, e parecia que o ato de matar não a incomodava muito.
Da minha parte, só fiquei para trás e observei enquanto Eris abatia um coiote
atrás do outro. Eu estava planejando intervir e ajudar caso fosse necessário, mas
Ruijerd estava desempenhando seu papel de ajudante de forma tão perfeita que
poderia ser até contraproducente. Ainda assim, não fazer nada era muito chato e
comecei a me sentir meio excluído depois de um tempo. Encontrar um modo de
lutarmos em grupo deveria ser, definitivamente, a minha prioridade.
— Rudeus! Aqui!
— As peles dos Coiotes Pax são valiosas. Tivemos sorte por encontrar um
grupo tão grande. Ajudem-me a esfolá-los.
— Espera aí.
Caminhando até Eris, vi que ela estava ofegante… e ferida em três lugares
diferentes. Menos de trinta minutos se passaram desde o início da batalha, mas com
Ruijerd se dedicando ao seu papel de reserva, cabia à garota matar a grande maioria
dos monstros. É claro que ficaria exausta.
Ao menos não iria doer se já cuidasse de seus ferimentos…
— Que esse poder divino seja de nutrição satisfatória, dando a quem perdeu
suas forças a força para se reerguer – Cura.
— Obrigada.
— Hmm. Nem suou, hein? Essa foi sua primeira batalha de verdade, sabe.
Certo, certo. Pratique como brinca e brinque como pratica. Eris sempre
absorveu cada uma das lições de Ghislaine. Talvez não fosse tão surpreendente se
ela pudesse aplicar tudo o que aprendeu em batalhas reais.
— Meu deus… — Com um sorriso amarelo, me virei para Ruijerd, que estava
nos observando o tempo todo.
— Por que você fez com que Eris cuidasse de todas as batalhas, Rudeus?
— Eu nem sempre estarei por perto para a proteger. Quero ter certeza de que
poderá se defender sozinha caso as coisas fiquem feias.
— Ah, entendo.
— Sério?! Certo! — Eris literalmente deu um pulo, seu rosto estava brilhando
de alegria.
Devia ser muito bom ouvir algo assim de um guerreiro lendário. Eu também não
me importei por ouvir isso; se Ruijerd reconhecesse os talentos de Eris como
guerreira, teríamos uma chance muito maior de encontrar um modo de trabalhar
como um grupo.
— Certo, Ruijerd. De agora em diante, vamos ter Eris lutando na linha de frente
enquanto eu fico na retaguarda.
— Você não tem uma posição definida, então pode se mover para cobrir nossos
pontos cegos. Ah, e se qualquer um de nós se enfiar em perigo, assuma o controle
e nos diga o que fazer.
— Entendido.
Para o jantar, comemos carne de Grande Tartaruga. Havia muito para se comer
de uma só vez, então começamos colocando a maior parte para secar para depois
– sob a direção de Ruijerd, claro.
Para ser franco, o material era um tanto nojento. Seu cheiro era insuportável e
era dolorosamente difícil de manusear. Pelo visto, o normal seria primeiro amolecer
cozinhando por várias horas, mas Ruijerd optou pelo caminho mais rápido e fácil:
assar em uma fogueira.
Pelo menos o fogo, por si só, não foi muito difícil de acender. Os Entes de Pedra
evidentemente secaram muito rápido depois de morrerem, então não precisamos
deixar a madeira ao sol ou algo do tipo. Não era de se admirar que Ruijerd visse
essas coisas apenas como pedaços de pau.
— Guh…
Mas é sério, que carne nojenta. Quem disse que isso era “delicioso”?
Espera, foi você mesmo, Ruijerd. Você está se esbaldando com isso! Digo… se
encobrisse o cheiro com gengibre, será que ficaria comestível? Será? Cara, eu
quero carne de verdade. E arroz…
Uma frase memorável de um certo mangá passou pela minha mente: “Carne
grelhada é deliciosa. E fica deliciosa graças à crocância.” Quanta mentira. Carne
que não é saborosa não fica deliciosa de jeito nenhum.
Em contraste, comi muito bem no Reino Asura. O pão podia até ser algo bem
básico lá, mas geralmente era acompanhado por carne, peixe, vegetais e algum tipo
de sobremesa, com toda a variedade esperada de um restaurante três estrelas. E
passei a maior parte do meu tempo lá no meio do nada; uma princesinha mimada
igual a Eris iria suportar isso?
Bem… talvez até fizesse sentido. Quando você só dá coisas saudáveis para
uma criança, na primeira vez que ela prova porcaria fica apaixonada, não é?
Fala sério. Eles queriam ficar com vermes? Porque é assim que se consegue
eles.
Ruijerd estava dando uma aula sobre cuidados básicos de armas para Eris
antes de nos deitarmos para dormir. Por falta de coisa melhor para fazer, também
escutei.
A lança dele não era feita de metal e a espada de Eris foi forjada a partir de
materiais especiais, por um método bem específico. Pelo visto, nenhum dos dois
precisava se preocupar com ferrugem comum. Mas isso não significa que poderiam
deixar a manutenção diária de lado. Deixar sangue seco em uma espada ou lança
iria gradualmente deixá-las cegas e começar a atrair monstros. Da perspectiva do
Superd, o cuidado da arma era de responsabilidade fundamental do guerreiro.
— É feito de mim.
— Hein…?
Tá, claro. Certo. Então sua lança é, hã, sua alma. E sua alma é seu estilo de
vida, né? Seu estilo de vida é tudo o que existe em seu coração… e seu coração é
exatamente o que você ama. Então, resumindo, você ama sua lança mais do que
tudo… é algo do tipo?
Os Superds nasciam com uma cauda de três pontas. Isso crescia com eles até
que atingissem uma certa idade, momento em que endureciam e caiam. Entretanto,
mesmo quando separados, ela ainda fazia parte de seus corpos; quanto mais a
usavam, mais afiada e mortal ficava. Com tempo e esforço suficiente, os tridentes
poderiam virar armas ímpares, virtualmente inquebráveis e capazes de perfurar
praticamente qualquer coisa.
— E é por isso que não devemos deixar nossas lanças de lado até o dia de
nossas mortes… — O rosto de Ruijerd estava repleto de puro pesar pelo erro que
ele cometeu há quatro séculos.
Nesse ponto, sua lança provavelmente já era mais dura e afiada do que a de
qualquer outro Superd da história. Eu estava definitivamente feliz por tê-lo ao nosso
lado.
Essas palavras eram a soma total de tudo que eu sabia sobre a cidade de
Rikarisu, à qual havíamos recém-chegado.
Havia apenas três entradas para a cidade, todas elas eram rachaduras na borda
da cratera. As muralhas do lugar eram surpreendentemente altas. A menos que
pudesse voar, seria difícil passar por cima delas.
Dois guardas armados estavam posicionados fora de cada uma das entradas.
Eles evidentemente levavam a segurança do local a sério.
— Disfarce?
— Não estou sendo contra. Só não sei o que você quer dizer com… disfarce.
— Hã?
Uau. Pelo visto, ele não estava muito familiarizado com a palavra. Então, mais
uma vez, acho que o homem poderia facilmente entrar na cidade de algumas outras
formas.
— Hmm, boa pergunta. Por que simplesmente não escondemos seu rosto? —
Eu me agachei, coloquei minhas mãos no chão e comecei a canalizar meu poder
mágico para ele.
— Alto lá!
Havia dois soldados guardando o portão do qual nos aproximamos. Um era um
homem de aparência séria com cabeça de cobra; o outro, um cara de aparência
arrogante e uma cabeça de porco.
— Quem são vocês?! Que negócios vocês têm aqui?! — gritou o Cara de Cobra,
uma das mãos já estava na espada em seu quadril.
Por outro lado, o Cabeça de Porco estava ocupado olhando em silêncio, cheio
de malícia, na direção de Eris. Maldito animal sujo… É melhor que não faça graça,
senão…!
— Esse é meu irmão mais velho. Ele colocou esse capacete que ganhou de um
aventureiro e depois não conseguiu mais tirar. Achamos que na cidade poderia
haver alguém capaz de ajudar…
— Sim, não acredito que aquele saco velho deixaria algo passar. — Pelo visto,
era um pouco difícil negociar com a dona da loja de suprimentos. Ainda bem que
isso não era problema meu. — Você provavelmente vai precisar passar pela Guilda
de Aventureiros, garoto. Não sei em que outro lugar um bando de forasteiros como
vocês poderia conseguir alguma coisa.
— A guilda fica descendo nesta mesma rua. É o prédio grande. Vocês não vão
se perder.
— Muito obrigado.
— Assim que tiverem feito o registro, vão conseguir um desconto nas pousadas.
E só escrever seus nomes no livro, não vai custar nada.
— Ah. Sim. Alguém disse que viu aquele monstro do Fim da Linha na área,
então estamos em alerta máximo.
— Sim, sério. Vamos torcer para que ele simplesmente vá embora logo, né?
Fim da Linha, hein? Julgando pelo nome… topar com ele é a mesma coisa que
estar acabado? Deve ser um monstro terrível.
Os edifícios de Rikarisu não eram tão altos quanto os de Roa, mas parecia que
havia tantos quanto. As duas cidades pareciam ter layouts bem parecidos. A maioria
das coisas perto da entrada eram estábulos e estalagens que claramente recebiam
mercadores viajantes.
Com base em tudo que ouvi, os aventureiros deste mundo eram essencialmente
trabalhadores temporários glorificados. Pessoas com habilidades registradas na
“agência”, ou seja, na guilda; ao concluir os pedidos oferecidos, poderia construir
até uma reputação. Pessoas comuns levariam uma variedade de pedidos
diretamente até a guilda, e ela os distribuiria para os aventureiros que estivessem à
altura da tarefa.
— Não tenho certeza de quanto poderemos ganhar lá, mas pode ser uma boa
ideia fazer o registro. Eles provavelmente vão nos dar ao menos algum tipo de coisa
para identificação. O que acha, Eris?
— Não. Até hoje nunca tinha colocado os pés em uma cidade grande o
suficiente para ter uma guilda.
Ah, certo. Eles provavelmente não se importavam em abrir uma filial em cada
vilarejo que encontrassem pela frente.
Não podíamos esperar que Ruijerd usasse o capacete enorme e pesado para
sempre. E se mantivéssemos seu rosto escondido, ele nunca teria a chance de
melhorar a reputação de seu povo. Sempre poderíamos tentar fazer algo grande
logo de cara e começar a espalhar boatos sobre um guerreiro Superd sendo o
responsável… Mas, como aventureiros novatos, provavelmente estaríamos apenas
levando recados de um lado para o outro. Resolver problemas menores para
pessoas comuns também poderia ser uma boa abordagem. Afinal, era a última coisa
que esperariam de um “assassino sanguinário”. Se fôssemos diligentes o bastante,
poderíamos conquistar, ao menos, a confiança das pessoas da cidade.
Dito isso… se quiséssemos dar a ele uma reputação de alguém que ajuda as
pessoas, o capacete se provaria um problema. Eu teria dificuldades para confiar em
uma pessoa que esconde o próprio rosto. Será que não podíamos mudar para algo
que cobrisse apenas seu cabelo e testa? Nah, isso provavelmente nãos seria bom
o bastante. A etiqueta social poderia ser um pouco diferente neste mundo, mas usar
o capacete o tempo todo me parecia ser algo muito rude.
Ainda assim, ficar pegando trabalhos minúsculos anonimamente não nos
levaria a lugar algum. Tínhamos que conscientizar toda a cidade da presença de
Ruijerd e convencê-los de que isso era algo bom.
Em primeiro lugar, ele precisava ficar reconhecível. Não importa quantas boas
ações fizesse, nunca alcançaríamos nenhum progresso se fosse tudo atribuído a
algum “aventureiro desconhecido”. Será que realmente seria melhor começar
matando um ou dois monstros grandes? Só para fazer as pessoas aprenderem seu
nome…
A força era muito valorizada neste mundo. Derrotar uma fera verdadeiramente
assustadora poderia, depois, dar ao nosso pequeno grupo algum aumento na
posição social. Claro, todo mundo já sabia que os Superds eram lutadores
incrivelmente poderosos, então também havia uma chance de que o tiro saísse pela
culatra…
—Ruijerd, você sabe o que é essa coisa de Fim da Linha? — Supondo que
fosse algum tipo de monstro poderoso, poderíamos encontrar uma maneira de atraí-
lo para a cidade e, logo depois, eliminá-lo assim que todos começassem a entrar
em pânico. Todo mundo ama uma história agradável de um claro “triunfo do bem
sobre o mal”, não é?
— Sou eu.
— Umm…, o quê?
Hã? Ele está começando com aquela coisa de filosofia para o meu lado de
novo?
Ah. Certo, então ele realmente quis falar isso, tipo, literalmente. Esse é um
apelido adorável…
Isso fazia sentido. Claro que qualquer um ficaria louco se pensasse que um
lendário assassino em massa estivesse vagando por perto de sua cidade. Fala
sério… “Fim da Linha” parecia um pouco de exagero. Quanto medo tinham de
Ruijerd? Aqueles guardas no portão realmente precisavam começar a se organizar
melhor. Eles provavelmente nem viam os Superds como pessoas. Estavam
esperando por um monstro vicioso e violento; nunca passou pela cabeça deles que
Ruijerd poderia ser inteligente o bastante para se disfarçar.
— Hmm. E agora…?
Havia uma potencial vantagem a ser usada: aquele apelido parecia ser bem
conhecido. Talvez pudéssemos usar ele, de alguma forma, a nosso favor.
— Ruijerd. Eles não têm uma recompensa pela sua cabeça ou coisa do tipo,
têm?
Tínhamos uma longa jornada pela frente. Havia todo tipo de coisa que eu estava
morrendo de vontade de comprar. Mas já sabia o que estávamos procurando nessa
viagem em particular. Só teríamos que pegar uma coisa de cada vez.
Depois de dar uma olhada rápida em tudo, para ter uma ideia dos preços de
mercado dos vários itens, comecei a procurar uma barraca com um preço mais
acessível e que tivesse o que precisávamos. Não estávamos com muita pressa nem
nada do tipo, mas eu não queria perder horas e mais horas nisso. Tudo que queria
era comprar um capuz e um pouco de tinta… Ah, e também alguma fruta cítrica.
— Ei, tio. Você não está pedindo muito caro por essa tinta? Que roubo.
— Sério?!
— Bem tenho certeza de que o seu material é melhor, né? Hmm, esse capuz
também é bacana. Olha, vou comprar a tinta e um desses negócios ali, aquele que
parece um limão, então por que não deixa ele de graça?
— Droga, olha só tudo isso! Só um minutinho… Duas, quatro, oito… Certo. Que
tal três moedas de sucata por tudo?
Demorou um pouco, mas consegui finalizar tudo com uma única transação.
Como realmente não sabia qual era o preço da maioria das coisas do local, não
tinha certeza de quanto dinheiro tinha acabado de gastar. Para ser honesto, tinha
uma leve impressão de que aquele cara me enganou.
Ah, tanto faz. De qualquer forma, isso nos deixou com uma moeda de ferro,
quatro de sucata e dez de pedra. Este dinheiro foi um presente dos pais da Mestra
Roxy. Eu teria que pensar bem antes de gastá-lo.
Com o fim das compras, nós três fomos para um beco silencioso. Eu estava um
pouco preocupado com a possibilidade de encontrar alguns marginais
estereotipados… mas, mais uma vez, Ruijerd cuidaria disso, não? Podia até ser uma
boa chance para levantar alguma grana…
— Ei, Ruijerd. Se alguém aparecer para nos assaltar, poderia espancar eles só
até ficarem roxos?
Infelizmente, ninguém apareceu para nos incomodar. Mas quando parei para
pensar nisso, caras desesperados para roubar os outros, em primeiro lugar, não
teriam muito dinheiro.
— Entendo… Então você quer mudar a cor dele? Com certeza é uma boa ideia.
— Ele parecia genuinamente impressionado. Acho que as pessoas normalmente
não tingiam o cabelo neste mundo. Ou isso, ou Ruijerd simplesmente não sabia
dessa possibilidade. Ele claramente não passava muito tempo em vilarejos ou
cidades. – Entretanto, não seria melhor ter escolhido uma cor menos parecida com
a minha?
Escolhi uma tinta azul – uma bem próxima da cor do cabelo dos Migurds.
— Nah. A aldeia Migurd fica a apenas três dias à pé daqui, então provavelmente
há muitas pessoas aqui que sabem da existência deles. Achei que devíamos
transformá-lo em um deles, Ruijerd.
— Ah, nós somos apenas badecos. Você nos ajudou e nos acolheu em algum
momento.
— Bem, sim, nós somos. Estou falando sobre a história que vamos usar. Não
se preocupe, você realmente não precisa lembrar de tudo… Só vou agir como seu
escudeiro quando estivermos perto de outras pessoas.
Levei algum tempo para explicar a Ruijerd como seria o nosso espetáculo.
Desse momento em diante, ele seria um jovem Migurd chamado “Royce”, que
recentemente começou a personificar o infame guerreiro Superd, Fim da Linha.
Royce sempre desejou inspirar medo e admiração nas pessoas. Há não muito
tempo, encontrou duas crianças perdidas no deserto – uma que era capaz de usar
magia e outra que se provou talentosa manejando uma espada. Ele salvou suas
vidas e os dois começaram a idolatra-lo desde então.
— Vocês me idolatram?
— Entendo.
— Este homem é um sem vergonha. Não tem o direito de usar o meu nome.
— Sim, é totalmente desprezível. Mas digamos que este falso Ruijerd comece
a fazer boas ações. O que as pessoas pensariam?
— Que ele é obviamente uma farsa, assim como um cara de bom coração.
Precisávamos que nosso ato fosse bem cômico e um pouco incoerente. A chave
era fazer com que todos pensassem que o impostor de Ruijerd fosse uma completa
fraude, e que por acaso também era uma pessoa estranhamente decente.
— Hmm…
— Isso tudo parece maravilhoso… mas vai mesmo funcionar desse jeito?
— Entendo. Eu não fazia ideia de que um plano tão simples poderia funcionar…
— Acredite em mim, não será simples. E sempre existe a chance de algo dar
muito errado. – Como regra geral, qualquer plano de longo prazo acaba dando
errado em algum momento. Quanto mais detalhado e complexo for, mais errado
pode dar. Ainda assim, contato que conseguíssemos criar toneladas de rumores
sobre Ruijerd circulando, havia uma boa chance de que sua reputação começaria a
ficar mais de acordo com sua natureza de bom coração.
— Não entendo…
Em outras palavras, ele não precisava falar nada que não fosse verdade. Eu
estaria cuidando de todas as mentiras pelos bastidores. Senti que Ruijerd
provavelmente iria se opor em me deixar enganar as pessoas em seu nome, então
decidi não mencionar essa última parte.
— Ah, certo. Sou eu que estarei fingindo ser eu mesmo… Mas, espera, também
tenho que agir como se fosse Royce…? Rudeus, isso está me deixando com dor de
cabeça. Eu preciso fazer exatamente o quê?
Ruijerd parecia mais do que só um pouco relutante. Quaisquer que fossem seus
outros talentos, o homem provavelmente não foi criado para ser um ator.
— Você pode entrar se precisar, mas finja estar tendo dificuldades. Dê uns
socos, comece a respirar pesado, coisas assim. No final, tente fazer parecer que
você mal conseguiu vencer.
Quando as palavras saíram da minha boca, percebi que talvez Ruijerd não
fosse sequer capaz de fazer um show desses, mas…
— Quer que eu vá com calma? Qual é o objetivo disso? – Pelo visto não seria
um problema.
— Queremos que as pessoas pensem que você é fraco demais para ser o
verdadeiro Ruijerd. E queremos que seus oponentes pensem: “Ei, e se ele for o
real? Isso não me tornaria incrível?”
— Acredite em mim, eu sei. Mas sua força é parte do que faz as pessoas terem
tanto medo de você. Se acharem que você é fraco, isso pode nos ajudar a resolver
os conflitos pacificamente, igual acabamos de fazer no portão.
Dito isso, também não queríamos que todos pensassem que seu povo era
moleza. Isso poderia acabar incentivando mais assédio aos vilarejos Superds
sobreviventes… assumindo que ainda houvesse algum perdido por aí. Este seria
um ato bem delicado para se equilibrar.
— De qualquer forma… vou te dar todo o apoio que puder, Ruijerd. Mas o
resultado, no final, vai depender de você, entendeu?
O resultado não foi um dos melhores, mas seu cabelo verde esmeralda natural
desapareceu quase todo. Fui em frente e espalhei a tinta azul.
Ainda assim, pelo menos não parecia mais tão verde. Talvez ele estivesse até
parecendo com um Migurd? De longe? Se ignorasse sua altura?
Bem, Ruijerd realmente não parecia um Superd, e isso era o que importava. Um
disfarce meio ambíguo provavelmente era o que mais queríamos. A reação ideal
seria algo como… “Esse cara meio que parece um Migurd, mas não tanto. E está
se autodenominando um Superd, mas também não parece… Então, que diabos?”
— Além disso, acho que você devia usar isso – falei, pegando meu pingente e
colocando em Ruijerd.
— Sim. Minha mestra me deu como presente de formatura, e eu uso ele desde
então. — Com isso pendurado em seu pescoço, todos iriam ao menos assumir que
estava de alguma forma conectado aos Migurd.
— Então deve ser precioso para você. Vou me certificar de devolvê-lo em
segurança.
— Claro.
— Entendido, Rudeus.
— O quê? Você mataria todas as outras pessoas daqui também? Tem crianças
nessa cidade, sabe.
— Hrm. Se realmente está preocupado com isso, é melhor que cuide bem desse
amuleto.
— Hrm… Se realmente está tão preocupado com isso, então para começar não
devia me emprestar…
Agora, então… o próximo passo seria colocar o capuz que comprei antes em
Eris. Aquele cabelo ruivo era muito chamativo, e queríamos que a atenção de todos
se voltasse para o nosso protagonista.
Neste ponto, desdobrei a coisa pela primeira vez e percebi que ela tinha
orelhinhas de gato… uma coisa mais ou menos parecida com os capuzes que os
magos brancos usavam em Final Fantasy III.
Isso foi feito para uma pessoa fera ou coisa do tipo? Que droga. Talvez eu
tivesse estragado tudo. Eris não era lá muito exigente com suas roupas, mas, pelo
que me lembrava da saudação tradicional da família Boreas, ela com certeza odiaria
fazer cosplay de gata.
— Sério?!
Por alguma razão, a garota pareceu realmente muito feliz. Talvez ela não
odiasse tanto aquela pose quanto pensei…? Eris colocou o capuz na mesma hora,
sorrindo feliz.
— Bem, tá bom então. Eu realmente não entendi o porquê, mas deu certo!
Excelente!
Agora então… parecia que estávamos prontos para ir até a Guilda dos
Aventureiros. Isso precisava ser meio cômico. Só precisava manter isso em mente.
A Guilda dos Aventureiros era um local de encontro para alguns dos clientes
mais complicados da cidade. Alguns eram fisicamente poderosos; outros, magos
experientes e veteranos. Alguns favoreciam o uso da espada. Outros usavam
machados, clavas, ou até mesmo suas próprias mãos em batalha. Alguns se
gabavam de suas proezas, enquanto outros silenciosamente zombavam e criavam
alarde. Havia guerreiros usando armadura pesada, mas também feiticeiros trajando
robes leves. Havia homens parecidos com porcos e mulheres serpente; homens
com asas de insetos e mulheres com pernas de cavalo. Todos os tipos de pessoas
de todos os tipos de raças formavam uma multidão ímpar e enorme.
Muitos daqueles dentro do local viraram os olhos para a entrada, curiosos. Não
era incomum que as pessoas abrissem essas portas dramaticamente, mas as
razões pelas quais faziam isso eram variadas. Algum grupo havia recém-retornado
em triunfo? Ou será que um grupo de monstros resolveu lançar um ataque e os
guardas do portão estavam pedindo por ajuda? Ou era só o vento pregando uma
peça em todo mundo? Claro, também havia aquele papo de que o Fim da Linha
estava vagando pelos arredores, mas com certeza…
Antes que alguém pudesse seguir esta linha de raciocínio para chegar a uma
conclusão, três pessoas passaram pela porta escancarada.
O último do grupo a entrar foi um homem alto e imponente com uma jóia
vermelha na testa e uma cicatriz cortando todo o seu rosto diagonalmente. Estas
eram as mesmas características distintas daquele monstro infame conhecido como
Fim da Linha; alguns aventureiros quase gritaram só com o susto, mas então
notaram, em um último momento, que o cabelo do sujeito era azul, e não verde.
Tinha que ser outra pessoa, entretanto, era extremamente semelhante ao assassino
Superd.
— Ei, vamos lá! O que há com esses olhares e bocas abertas, pessoal?! Não
sabem quem é este homem aqui?!
Uh, não. Por que diabos nós saberíamos? pensaram todos ao mesmo tempo.
Vamos lá, acha mesmo que vamos acreditar nisso? foi o que todos pareceram
pensar. Todos sabiam que o cabelo dos Superds era verde vivo, e não de uma
tonalidade azul suja.
— Consegue acreditar nesses caipiras, Chefe? Eles não reconhecem nem a
face do terror quando a veem! Que piada. Existem todos aqueles rumores por aí,
mas nós entramos aqui e ninguém nem te reconheceu!
Certo, então, pelo visto, o garoto está determinado a dizer que aquele cara ali
é um demônio cruel e sanguinário. Quanto mais pensavam nisso, mais engraçado
parecia esse seu discurso. A atmosfera perturbadora que tinha sido anteriormente
instaurada desapareceu quase na mesma hora.
Com isso, uma explosão de risos encheu o salão da guilda de canto a canto.
A julgar pelos risos incessantes que surgiam de todos os cantos, o nosso ato
tinha começado da forma esperada.
— Estão escutando isso, caras? P-pelo visto, o Fim da Linha está andando por
aí e resgatando crianças perdidas!
— Ahahaha! Droga, eu nunca soube que ele tinha um coração tão molenga!
— Sério? Talvez algum dia ele venha e salve o meu bacon também! Gahaha!
Normalmente, eu teria congelado diante de tanta zombaria, mas desta vez não
estava realmente me importando. Foi porque só estava atuando? Ou porque a
multidão era tão… estranha? Ou talvez… eu me tornei um humano mais confiante?
Eles estavam rindo de Ruijerd, não de mim. Não havia nenhuma razão para que
alguém me desse algumas palmadas nas costas, me animando a tirar dos ombros
o peso da crueldade apontada em minha direção.
Um olhar superficial por todo o cômodo me indicou que ninguém ali suspeitava
que Ruijerd fosse realmente o personagem genuíno. Isso significava que era hora
de eu começar com a cena A, um dos diálogos que tínhamos preparado antes.
— Já tivemos o suficiente desses idiotas! Vamos lá, Chefe, ensine uma lição a
eles!
Aliás, também tínhamos praticado uma cena B, só para o caso de ninguém rir
de nossa aparição.
— Hmph! Vocês, idiotas, têm sorte por nosso chefe ser um cara de coração
grande! — anunciei, depois, prontamente me virei para examinar o resto do local. À
nossa esquerda, havia um enorme quadro de avisos coberto com pedaços de papel.
À nossa direita, havia quatro balcões de madeira, com um punhado de funcionários
que estavam olhando espantados para nossa direção. Parece que seria nosso
primeiro destino.
Caminhei com confiança até o lado direito do salão, com meus companheiros
logo atrás… só para perceber que os balcões usados eram bem altos.
Acenei para Ruijerd, e ele imediatamente me levantou.
— Hehehe…
Eu ainda conseguia ouvir um riso abafado pelas minhas costas, mas isso não
era exatamente um problema.
A funcionária se agachou por trás do balcão e pegou três folhas de papel e três
varas de carvão, que me entregou. Todos os formulários pareciam idênticos. Havia
uma linha para o nome, uma para a profissão, e um texto descrevendo a guilda e
resumindo suas regras.
— Posso ler isso em voz alta para você, caso não saiba ler — disse a
funcionária, assim que eu estava começando a me perguntar como é que um
guerreiro analfabeto de algum vilarejo do interior iria lidar com tudo isso
Peguei um dos formulários e li em voz alta, na língua Humana, para que Eris
pudesse entender.
2 – Serviços da Guilda
3 – Seu Registro
Todas as informações relacionadas ao seu registro na guilda ficarão gravados
exclusivamente em seu Cartão de Aventureiro, pelo qual você é o responsável.
Caso seu cartão seja destruído ou acabe sendo perdido, um novo poderá ser
emitido. Entretanto, seu rank será redefinido para F, e uma taxa específica será
imposta de acordo com a região.
4 – Deixando a Guilda
É permitido fazer um novo registro em outro momento, mas seu rank será
redefinido para F.
5 – Condutas Proibidas
6 – Violação de Contrato
Qualquer aventureiro que não concluir o trabalho que pegar será obrigado a
pagar um quinto da recompensa oferecida, sendo essa uma penalidade por violação
de contrato.
A taxa deverá ser integralmente paga dentro de até meio ano. O não pagamento
dentro do prazo resultará na revogação de seu status como aventureiro.
7 – Rank
8 – Promoção / Despromoção
9 – Deveres e Responsabilidades
Quando cheguei na metade da lista, Eris estava parecendo cada vez mais
desanimada. Este tipo de escrita, mais séria, não era exatamente o forte dela. Eu
também não gostava muito, mas isto parecia ser importante. Ainda não tinha
percebido nenhum problema em particular, mas…
— E qual seria?
— Na língua Humana?
De qualquer forma, todas as conversas dentro da guilda até agora tinham sido
na língua do Deus Demônio. Essa provavelmente era a única razão pela qual Eris
fez beicinho em silêncio, em vez de ir na direção da multidão; se ela realmente
tivesse entendido o que estavam dizendo, poderia ter desembainhado sua espada
e saído correndo atrás de alguém.
— Não é como se estivéssemos planejando fazer isso, mas… o que aconteceria
se usássemos nomes falsos?
— Não temos nenhuma regra específica a respeito disso. Pode usar o nome
que desejar.
— Isso nos causa problemas, é claro. Mas a maioria das pessoas deste
continente não recebem um nome ao nascer, e uma política estrita impediria que se
registrassem.
— Assim?
SEXO: Masculino
RAÇA: Humano
IDADE: 10
PROFISSÃO: Mago
RANK: F
Ah, entendi. Então essa coisa é basicamente uma impressora mágica, hein?
Hmm. Não seria conveniente usar isso para livros? Se eles têm coisas assim em
locais públicos como este, me pergunto por que não tem em mais lugares…
Então, mais uma vez, talvez o próprio quadro e o cartão fossem itens especiais.
Parecia que a funcionária tinha introduzido o meu nome, rank e ocupação
manualmente, mas o dispositivo parecia ter descoberto qual era a minha raça, idade
e sexo, de alguma forma, com o simples toque da minha mão. Isso era meio chato,
para ser sincero. Tentei tanta coisa para esconder o fato de que era um humano.
Bem, tanto faz. Só teria que aceitar isso.
SEXO: Masculino
RAÇA: Demônio
IDADE: 566
PROFISSÃO: Guerreiro
RANK: F
SEXO: Feminino
RAÇA: Humana
IDADE: 12
PROFISSÃO: Espadachim
RANK: F
— Há alguma razão para o cartão dele estar em uma língua diferente da nossa,
senhorita?
Ah. Então os humanos, por padrão, só tinham cartões na língua Humana, para
todos os casos.
— Às vezes, ele pode usar um pouco de cada um dos idiomas mais importantes,
mas normalmente vai seguir a raça predominante dos ancestrais.
— Nesse caso, pode pressionar seu dedo contra o meio do cartão e falar o
nome da língua de sua preferência.
— Tente não fazer isso muitas vezes — advertiu a funcionária. — Ou você vai
usar a energia mágica do cartão muito rápido.
— Felizmente não.
— Se o cartão ficar muito velho, a bateria começa a acabar mais rápido ou algo
assim?
Certo, então por que você me proibiu de brincar com ele? Hmm. Será que as
pessoas fossem conhecidas por gritarem com os funcionários e fazer um
estardalhaço quando seus cartões ficavam sem carga? Serviço de atendimento ao
cliente parecia ser um saco, independentemente de em que mundo fosse.
Eu não tinha ideia de quem inventou essas coisas, mas era um sisteminha bem
interessante. Senti que provavelmente havia todo tipo de aplicação para as
ferramentas mágicas “recarregáveis”… Mas será que a guilda estava
monopolizando a tecnologia?
Sei que você está feliz, mas não perca isso, entendeu?
— Gostaria de também registrar um grupo? — perguntou a balconista.
— Um grupo? Ah! Sim. Por favor. — De alguma forma, essa parte havia
escapado completamente da minha mente, provavelmente porque não havia nada
sobre isso na papelada inicial. Desde o início tínhamos a intenção de criar um grupo.
Mas…
Os membros ainda poderiam pegar serviços sem estar junto com o grupo.
As partes do clã não pareciam especialmente relevantes agora. Íamos optar por
uma operação de pequena escala com um futuro previsível.
— Muito bem. Deixe-me ver seus cartões por um momento, por favor.
Pegamos os cartões que tínhamos acabado de guardar e os passamos para a
balconista. Ela foi para os fundos por um momento, então voltou.
Olhei para o meu cartão e vi que uma nova linha foi adicionada ao final:
Por alguma razão, foi um pouco embaraçoso ver as palavras “Fim da Linha”
escritas assim. Parecia intimidante quando se dizia isso em voz alta, mas era
definitivamente uma história diferente quando impresso.
— Pode deixar.
Com nosso registro concluído, nós três nos dirigimos para dar uma olhada no
quadro de avisos. Infelizmente, isso significava abrir caminho através de um
corredor de aventureiros sorridentes. Quase todo mundo olhou para nós como se
fôssemos um bando de macacos em um zoológico. Mas havia alguns na multidão
que pareciam mais hostis do que entretidos. Era com esses que eu precisava tomar
cuidado.
Disse a Ruijerd que não havia problema em brigar se precisasse, mas não
esperava muito dele como ator. Não havia garantia de que seríamos capazes de
tirar proveito dos problemas do jeito que eu queria. Dito e feito, não queria entrar em
nenhuma briga.
— Uh…
O cara estava nos convidando para tropeçar em sua perna ou o quê? Isso
trouxe de volta algumas memórias desagradáveis, mas as empurrei para fora da
minha mente e passei cuidadosamente pelo obstáculo.
— Gyahahaha!
— Eeheeheehee!
Por alguma razão, isso provocou uma explosão de risos por todos os arredores.
Eu vacilei um pouco diante do barulho, o que só os fez rir ainda mais. Fique calmo.
Não é nada demais. Eles iriam rir de você não importa o que fizesse. Eu passei
exatamente pela mesma coisa em minha vida anterior. Este era um tipo
de bullying clássico e simples.
Seguindo minha liderança, Eris tentou passar por cima da perna do homem-
sapo também; mas de repente ele puxou a perna para cima, pegando-a pela ponta
dos pés.
— Gah!
Com o rosto brilhando de vermelho, Eris olhou furiosamente para o sapo, suas
mãos fechadas em punhos e os dentes rangendo ruidosamente.
— Ooh. Foi mal, guria! Minhas pernas são tão longas e magras que às vezes
mal consigo mantê-las sob controle!
O homem ofereceu uma espécie de desculpa. Não que Eris entendesse uma
palavra do que foi dito. Merda. Isso vai se transformar em uma luta? Se ela der o
primeiro soco, as coisas logo podem ficar feias…
Mas, para minha surpresa, Eris apenas bufou com altivez, girou nos
calcanhares e caminhou para se juntar a mim. Seu rosto era terrível de se ver, mas
ela conseguiu se controlar. Boa garota, Eris! É assim que se demonstra maturidade!
Vou te dar um prêmio por espírito de luta! Você acabou de receber 100 pontos
bônus!
— O-o quê?!
Em vez de Ruijerd, foi nosso amigo nojento que caiu. O Superd enfiou o pé sob
a perna do sapo, levantando-a, e, em seguida, chutou para cima para deixá-lo
totalmente desequilibrado. Pendendo para trás da cadeira, o homem caiu de barriga
para baixo em uma pose clássica de sapo achatado.
— Ghuh, ghuhuhuh!
O rosto azul brilhante do Sapo na mesma hora mudou de cores para um tom de
vermelho vivo. Muito interessante. Ele era realmente de sangue frio1?
Hein? É sério? Você realmente quer levar isso como uma questão de vida ou
morte, é isso?
— Você tem muita coragem por mexer comigo desse jeito, amigo!
Ruijerd. Por favor. Esse é o tipo de coisa que você diz quando quer lutar. O cara
tem uma faca, certo? Isso é meio que … Hmm. Talvez isso ainda se qualifique como
um recado? Só talvez…?
PRAZO: N/D.
NOTAS: Tenho uma tonelada de coisas para mover, mas não tenho mão de
obra suficiente. Alguém me ajude. De preferência, alguém forte.
F
DURAÇÃO: Um dia.
NOTAS: Meu mascote desapareceu e não voltou para casa. Estou colocando
todo o dinheiro da minha mesada neste pedido. Alguém por favor ajude.
Eles não pareciam o tipo de serviço que se faria em grupo, na verdade. Parecia
que os empregos de baixa classificação tendiam a ser na maior parte “missões
individuais”. Quaisquer trabalhos que concluíssemos contariam para todos nós para
fins de promoção de rank… Nos ranks mais baixos, talvez as pessoas tendessem a
assumir um monte de serviços como um grupo e depois dividir o trabalho entre os
membros.
— Bem, acho que devemos começar com algo bom e simples… — Ainda assim,
por que o mascote perdido é um rank E? Ah, sim. Acho que a cidade é bem
grande… A coisa toda “até encontrar” também poderia ser um pouco complicada.
Havia também uma possibilidade de que o animal estivesse morto. Mas aquela parte
sobre a “mesada” significava que o cliente era uma menina doce e adorável, certo?
Seria muito triste se ninguém a ajudasse…
— Certo, certo. Ainda assim, eu meio que quero tentar caçar algo…
— Assim parece.
— Mas ouvi dizer que você deve começar lutando contra goblins e outras
coisas…
Um dos caras que estava rindo de nós mais cedo caminhou até os dois com um
enorme sorriso no rosto. Era um homem musculoso com cabeça de cavalo… o
mesmo cara que interveio para interromper a luta um minuto atrás, na verdade.
Eu me movi rápido e consegui me colocar entre ele e Eris antes que o homem
chegasse muito perto.
— Cuide dos seus próprios negócios! Aceitaremos um serviço de rank F ou E,
assim como deveríamos fazer!
— Sim, eu vi. Parece que poderia ser meio difícil, já que esta cidade é tão
grande.
— Huuuh? Ei, vamos, garoto! O seu chefe não é o grande e único Fim da Linha?
Tipo, um Superd?
Ah. Pensando bem, ele está certo. Ruijerd podia localizar coisas vivas com
extrema precisão. Mesmo se estivéssemos procurando por um gato perdido ou algo
assim, provavelmente daria um jeito… Claro, o Cara de Cavalo estava claramente
convencido de que Ruijerd era um impostor, o que significa que seu “conselho”
atencioso tinha apenas a intenção de nos provocar. Eu precisava reagir de acordo.
Ainda assim, eu teria que manter aquele serviço de encontrar o mascote perdido
em mente. Parecia uma boa chance de tirar vantagem das habilidades de Ruijerd.
— Vamos, Chefe!
Quando nós três deixamos a guilda para trás, ouvi outra grande explosão de
risadas lá dentro.
— Eles estão indo para casa sem nem mesmo pegar um único serviço?!
— Gyahahahaha!
Eu podia ver a perplexidade no rosto de Ruijerd. Era difícil culpá-lo por se
perguntar se estávamos realmente no caminho certo. Para mim, porém, a tarde foi
um sucesso. As pessoas naquele prédio estavam rindo das palavras “Fim de Linha”,
em vez de tremer ou fazer caretas. Não era isso que buscávamos a longo prazo,
mas foi definitivamente um passo na direção certa.
— Ah, qual é. Podemos muito bem ter uma boa noite de sono em uma cama de
verdade quando estivermos hospedados em uma cidade, certo?
— Você acha?
De qualquer forma, Ruijerd não parecia ter uma opinião diferente. Quando
estávamos acampando, ele costumava cuidar das tarefas noturnas sozinho, pois
podia sentir os inimigos se aproximando mesmo quando estava meio adormecido.
Eu acordava algumas vezes no meio da noite com o som de algo explodindo, apenas
para descobrir que o homem acabara de despedaçar algum monstro infeliz. Não era
exatamente o ideal para um descanso relaxante.
De qualquer forma, uma estalagem seria definitivamente melhor. Para começar,
eu estava morrendo de fome. Provavelmente poderíamos comprar alguma coisa na
cidade, mas ainda tínhamos uma tonelada da carne-seca que sobrou do outro dia.
Seria mais inteligente acabar com ela e manter nossas despesas baixas por
enquanto, mas eu estava com fome o suficiente para pelo menos querer um lugar
para sentar e descansar em paz.
A voz de Eris estava cheia de emoção. Curioso para saber o que ela tinha visto,
olhei para cima e descobri que as muralhas internas da cratera começaram a brilhar
um pouco; a luz parecia ficar mais brilhante a cada segundo.
Claro, eu passei minha vida anterior em um lugar que em momento algum ficava
completamente escuro, então não estava tão pasmo quanto Eris. Ainda assim, este
era definitivamente um espetáculo mágico. Por que as muralhas estavam brilhando
desse jeito?
— Raiden? Quem é esse? Hm. Houve um Deus da Espada com esse nome há
algumas gerações…?
— Desculpa. Eu conhecia alguém com esse nome, e ele sabia todo tipo de
coisas estranhas, então… Foi só um lapso linguístico.
— Entendo.
Uh, só para registrar, Raiden não era o nome do meu pai nem nada assim. Meu
velho se chamava Pat ou Pablo, ou algo assim. Era um pai muito decente, mas uma
falha como ser humano.
— Como funcionam?
— Hã? Mas parece que eles têm uma tonelada deles aqui… — Era necessário
um enorme número dessas coisas para iluminar uma cidade inteira como esta,
certo?
Claro. Afinal, também era a primeira vez que Ruijerd pisava em Rikarisu. As
pedras pareciam estar posicionadas bem no alto das muralhas da cratera, então
talvez fosse complicado chegar até elas, a menos que pudesse voar.
— Hmm. Talvez a Imperatriz realmente tenha feito isso para o bem de seu povo.
Ooh. Gosto do som dessas palavras. Se esta dama ainda estiver viva em algum
lugar, adoraria conhecê-la. Com certeza estamos falando sobre um tipo de súcubo
sexy.
— Ei, Rudeus! Por que não vamos dar uma olhada naquele lugar?! — disse
Eris, apontando para o castelo em ruínas, negro como o azeviche, parecendo ainda
mais ameaçador abaixo do céu noturno.
— Ah, vamos lá! Podemos ao menos dar uma olhada nas redondezas!
Bem, agora ela estava fazendo beicinho. Era charmoso o suficiente para que
eu ficasse tentado a satisfazê-la, mas com base no que Ruijerd disse antes, esta luz
não duraria para sempre. A última coisa que precisávamos era acabar mergulhando
na escuridão total assim que chegássemos ao castelo.
Eu não estava mentindo. Provavelmente tinha algo a ver com o fato de que não
estava acostumado a viajar, mas me sentia meio indisposto nos últimos dias.
Conseguia me mover muito bem em batalhas, então ainda não tinha sido um grande
problema. Mas, mesmo assim, parecia estar ficando cansado mais rápido do que o
normal. Talvez o estresse estivesse me afetando.
— Mesmo? Bem, então tudo certo… Acho que terei que ser paciente.
Essa sim foi uma frase que nunca esperei ouvir da Senhorita Eris Boreas
Greyrat. A garota realmente mudou muito nos últimos anos, hein?
A palavra “jovem” era relativa, claro. Eram provavelmente mais velhos do que
eu, talvez mais ou menos da idade de Eris. Todos eram garotos, e todos olharam
para nós sem ao menos tentar disfarçar.
— Sim. Refeições inclusas, por favor. — Paguei com moedas suficientes para
quitar antecipadamente a nossa estadia de três dias. A coisa sobre comida grátis
era definitivamente um bônus atrativo. Isso nos deixava com uma moeda de ferro,
três moedas de sucata e duas moedas de pedra sobrando… o equivalente a, no
total, 132 moedas de pedra.
Os outros dois… também não eram de todo ruins, acho. Um deles era um cara
musculoso com aparência robusta e quatro braços, e o outro tinha um bico no lugar
da boca e penas onde seu cabelo deveria estar. Todos eram relativamente bonitos,
embora de maneiras diferentes. Se o Chifrudo era um Bonitomon do tipo normal, o
Quatro-Braços era do tipo lutador, e o Bicudo era do tipo voador.
— N-nós somos bem novos nisso, na verdade. Não quer vir comer conosco?
Ah, nossa. Ele está realmente dando em cima dela. Esse pequeno punk era
bem precoce, hein? Pena que sua voz estava tremendo. De certa forma, foi até meio
adorável.
Bem, de qualquer forma, ela não consegue nem entender o que ele está
dizendo.
No momento em que senti que deveria intervir, Eris olhou abruptamente para o
outro lado do lugar e começou a se afastar do garoto. Claro, reconheci essa técnica.
Era algo que ela aprendeu nas aulas de etiqueta de Edna… um movimento básico
da Arte de Evitar Aristocratas Irritantes! Agora, então, como o garoto iria lidar com
isso? Nesse momento, um cavalheiro entenderia a mensagem e iria se retirar
graciosamente…
O Chifrudo pelo visto não era um cavalheiro. Claramente irritado, ele estendeu
a mão e agarrou a parte inferior do capuz de Eris. O garoto a puxou para trás, mas
a parte inferior do corpo dela era forte o suficiente para que pudesse manter o
equilíbrio. Como poderia se esperar de um aventureiro, o garoto também parecia
ser relativamente forte.
Infelizmente, havia uma peça de pano barato preso no meio dessa luta pelo
poder. Com o som feio de algo rasgando, o capuz de Eris cedeu.
— Hein…?
Ela olhou para o dano feito. Havia pequenos rasgos ao longo de toda a borda
inferior do capuz, onde as costuras se soltaram.
Ele caiu girando para trás, bateu com a nuca no chão e ficou instantaneamente
inconsciente.
Eu era um completo amador, mas até eu poderia dizer que aquele golpe teve
um grande poder por trás dele. Era quase possível ouvir o mais forte condenado do
corredor da morte, do mundo inteiro, resmungando: “Que soco”. Bem feito, quem
mandou ser tão agressivo, cara. Esperançosamente, o garoto teria aprendido a
lição e nunca mais faria algo tão temerário quanto falar com Eris. Às vezes, a
educação pode ser um processo doloroso.
— Quem você pensa que é?! Você tem coragem por me tocar!
Mas, para minha surpresa, Eris ainda não tinha terminado. Desta vez, ela
lançou o Chute Boreas… outra técnica altamente sofisticada que aprendeu com
Sauros e aperfeiçoou com Ghislaine. Seu pé bateu no plexo solar de sua segunda
vítima.
— Gah!
Entretanto, como ficou evidente, Eris era a única passando dos limites. Antes
que o Bicudo pudesse sequer sacar sua arma, ela bateu o punho violentamente
contra seu queixo. Eu nunca tinha visto os olhos de um pássaro rolando, mas
aparentemente há uma primeira vez para tudo.
Eris caminhou de volta para onde o Chifrudo jazia inconsciente e chutou sua
cabeça, como se fosse uma bola de futebol. O primeiro golpe despertou o garoto,
mas ele não pôde fazer nada, exceto se enrolar em posição fetal. Ela começou a
chutá-lo mais e mais.
Minha nossa! Senhorita Eris! Eu realmente significo tanto para você?! Foi só
uma coisinha barata pra cobrir o seu cabelo, sabe… Pela deusa, você vai fazer esse
velhote ficar corado!
Ela chutou as costas do garoto e se abaixou para agarrar uma de suas pernas.
Seu rosto estava contorcido de raiva.
— Você vai se arrepender disso até o dia de sua morte! Vou transformar essa
coisa em mingau!
Consegue advinhar a que coisa ela estava se referindo? Eu estava com muito
medo de perguntar.
O chifrudo não sabia o que Eris estava dizendo, é claro, mas parecia entender
o que pretendia fazer. Ele começou a gritar desculpas, implorando por socorro e
tentando desesperadamente se esquivar. Mas suas palavras não tinham significado
para ela e, de qualquer maneira, não fariam diferença. A garota sempre acabava o
que começava. Era muito meticulosa. Essa criança estava prestes a ter o mesmo
destino que eu teria há três anos, caso não tivesse conseguido fugir de sua ira.
Nesse ponto, finalmente consegui intervir. Tudo aconteceu tão rápido que fiquei
muito surpreso para reagir antes.
A agarrei por trás, mas ela ainda estava se debatendo em meus braços,
tentando pisar no garoto. Em que parte especificamente, consegue imaginar? A
resposta era horrível demais para ser mencionada.
— Podemos apenas consertar o capuz! Vou costurar para você, tá bom? Então
dê um tempo para o cara! Você está indo longe demais!
Ele, aliás, estava sentado em uma cadeira no balcão e observando tudo isso se
desdobrar com um sorrisinho no rosto.
— Ruijerd, vamos lá! Não fique só sentado aí da próxima vez que isso
acontecer!
— Sinto muito por isso. Ela não consegue falar a língua do Deus Demônio.
— Bem, ela não gosta de ser importunada e acho que aquele capuz é muito
importante para ela.
Olhei para Eris. Ela tinha tirado o capuz e estava olhando para o enorme rasgo
nele enquanto rangia os dentes furiosamente. Estava definitivamente em seu modo
de “nunca vou perdoar nem esquecer”. Eu não a via assim desde o dia em que nos
conhecemos. Meio que esperava ver pequenas nuvens de fumaça, igual em um
desenho animado, saindo de suas orelhas.
— Foi mal, mas se falasse com ela agora, acho que também levaria uma surra.
Honestamente, pensei que a garota tinha se tornado mais civilizada nos últimos
tempos, mas talvez fosse apenas uma atuação. Meio deprimente, já que estava me
dando até tapinhas nas costas sobre o quão longe ela tinha chegado.
— Bem, sim, ela é definitivamente fofa. E é por isso que você provavelmente
não deveria falar com ela, a menos que tenha um bom motivo, entendeu?
— C-certo… Tá bom…
Nesse momento, os outros dois, que também foram punido pelos crimes do
amigo, apareceram para se apresentar. O homem musculoso de quatro braços era
Bachiro, e o nome verdadeiro do Bicudo era Gablin.
Assim que terminamos de trocar nossos nomes, os dois assumiram suas
posições de cada lado de Kurt e o pequeno grupo fez uma pose dramática.
— Uma garota maga…? — Isso não fazia muito sentido. Eu era o único mago
do nosso grupo. Não é como se Eris estivesse vestindo uma túnica de mago
ou qualquer coisa… ah. Espera aí… — Você assumiu que Eris era uma maga por
causa do capuz que ela estava usando?
— Hã? Ah, nossa. Você tem razão. — Pelo visto, Kurt nem tinha percebido. Ele
parecia ser do tipo que só via as coisas que queria ver. — Mas você é um mago,
certo? Digo, pode usar feitiços de cura e tudo mais. Isso é incrível.
Espera, você acha que vamos nos juntar à sua gangue? Sério? Não aprendeu
nada com aquele pequeno episódio?
— Só para você saber… se eu for, aquele cara ali também virá. — Apontei para
Ruijerd, que estava ocupado dando um sermão em Eris sobre uma coisa ou outra;
ela parecia um pouco mal-humorada, mas estava concordando com suas palavras.
—Fim da Linha.
— Claaaro…
Sim, eu sei que parece uma piada, mas na verdade estou dizendo a verdade…
— Ah, é? Então são vocês que perdem. Vamos fazer um baita barulho nesta
cidade, sabe? Não venha nos implorando para deixarmos entrarem no grupo
quando ficarmos famosos.
— Você fala muito alto para alguém que acabou de ter sua bunda chutada por
uma criança…
— Você também vai dar essa desculpa quando algum monstro te emboscar no
deserto?
— Gah…
Bem, acho que ganhei essa. Que sensação boa. É difícil discutir com a imagem
mental de um Coiote Pax rasgando sua garganta, certo?
Depois do jantar, subimos para o nosso quarto, onde três camas de pele nos
aguardavam.
Eris estava olhando para a cidade, que ficava mais escura a cada minuto, pela
janela. Aquele castelo em ruínas era muito cativante, com certeza, mas qualquer um
pensaria que a garota era uma turista ou algo assim. Tínhamos todo tipo de coisa
com que nos preocupar agora, não é? Ela esperava que eu lidasse com tudo sozinho
ou o quê?
Certo, não. Eu precisava parar de ser tão negativo. Eris confiava em mim; é por
isso que não estava pensando tanto nas coisas. Não era como se fosse uma criança
mimada ou algo assim. Agora, se parasse de entrar em brigas inúteis…
Caí de costas na cama, olhei para o teto e pensei no que viria a seguir.
Ficaríamos quebrados em menos de duas semanas. Isso não era lá muito bom.
Precisávamos concluir três ou mais serviços por dia para ficarmos longe do
vermelho.
Mais importante, não poderíamos espalhar a palavra sobre Ruijerd a menos que
trabalhássemos como um grupo.
Uma vez melhor classificados, o dinheiro seria um problema muito menor. Para
Ruijerd e Eris, os serviços de caçar monstros seriam muito melhores. Assim que
pudéssemos pegá-los, ficaríamos mais tranquilos.
E eu não estar nas melhores das condições não ajudava. Provavelmente não
era nada sério, mas havia uma chance de Eris ou eu pegarmos alguma doença que
não poderia curar com feitiços básicos de Desintoxicação.
Além disso, era difícil saber quanto precisaríamos gastar com compras
imprevistas. Para começo de conversa, ainda precisaríamos comprar tintas de
cabelo para Ruijerd várias vezes.
Ah, claro. Poderíamos pegar um empréstimo ou algo assim? Deveria haver pelo
menos alguns agiotas em algum lugar desta cidade, certo?
Nossa, olhe para mim, angustiado com o orçamento familiar. Nunca pensei que
esse dia chegaria…
Certo. Não é hora de ficar aprendendo valiosas lições de vida. Vamos manter o
foco, por favor.
Qual era a forma mais eficiente de ganhar dinheiro? Devíamos tentar concluir o
máximo de tarefas possível a cada dia? Poderia ser mais fácil simplesmente ir até
as planícies e caçar monstros para obter suas matérias-primas, sério. Eu não
precisava ficar fixado nesse negócio de aventureiro.
Mas se fôssemos por esse caminho, não teríamos muitas chances de construir
a reputação do Fim da Linha na cidade. Ser reconhecidos como aventureiros seria
a melhor maneira de fazer isso. Alcançar um rank elevado tornaria as coisas mais
fáceis no futuro… e provavelmente conseguiríamos um valor melhor pelas matérias-
primas se as vendêssemos na Guilda.
O que foi desta vez? perguntei. Podemos acabar com isso o quanto antes, por
favor?
— Você continua tão hostil quanto sempre, entendo. Meu conselho sobre
confiar em Ruijerd surtiu efeito, não foi? Ele te levou até a cidade mais próxima são
e salvo.
Acho que sim. Mas, conhecendo Ruijerd, ele provavelmente teria nos seguido
e nos protegido à distância, mesmo se fugíssemos.
— Pela deusa. Com certeza parece que você confia nele. Então por que ainda
está tão desconfiado de mim?
— Ah, bem, suponho que realmente não importa. Tenho mais alguns conselhos
para você, Rudeus.
Certo, certo. Você poderia, por favor, apenas acabar com isso? Odeio o som da
sua voz e também odeio estar aqui. Odeio sentir que o tempo que passei como
Rudeus foi apenas um sonho. Odeio sentir que voltei a ser um perdedor patético e
inútil. Se você vai me fazer te ouvir, gostaria que apenas dissesse tudo logo de cara.
— Não seja bobo, Rudeus. Todas as suas escolhas são inteiramente suas.
— Ah, tá bom… Ouça com atenção, jovem Rudeus. Pegue aquela tarefa para
encontrar o mascote perdido, e logo se verá com muito menos com que se
preocupar…
Ruijerd estava dormindo. Por alguma razão, ele optou por se encostar na
parede oposta com os braços ao redor de sua lança, ao invés de ocupar sua cama.
Olhei para a minha direita… e percebi que Eris também estava acordada. Ela
estava sentada na cama, abraçando os joelhos, olhando para a escuridão.
— Sim — respondeu Eris após uma pausa momentânea. Ela não tirava os olhos
da janela. — Ei, Rudeus?
— Sim?
— Ah…
Fiquei com vergonha da minha própria falta de noção. Pensei que Eris estava
apenas agindo como sempre. E eu pensando que ela nem estava nervosa. Achei
que estava simplesmente gostando dessa situação… da nossa “aventura”.
Mas isso não era verdade. Ela também estava com medo. Só estava
escondendo de mim. A garota devia estar acumulando estresse por dias. Não
admira que tenha entrado de cabeça naquela briga estúpida. Caso eu não fosse um
completo idiota, aquilo deveria ter funcionado como um aviso.
Isso não era como a coisa com Sylphie. Havia uma razão, embora frágil, pela
qual precisava me conter. E, em qualquer caso, apenas um canalha tiraria vantagem
de uma garota que estava se sentindo tão ansiosa e vulnerável.
— Não se preocupe. Vou nos levar de volta para casa, não importa o que
aconteça.
Ah cara, esta mocinha é muito fofa quando fica toda mansa. Não é de se admirar
que Sauros a mimou tanto. De qualquer forma, o que será que aconteceu com
aquele velhote? Aquele flash de luz cobriu toda a região de Fittoa, então acho…
Nah, não vamos pensar nisso agora. Estou com as mãos atadas com meus
próprios problemas.
— Vamos nos concentrar em fazer o que podemos por enquanto, certo? Você
também devia dormir um pouco, Eris. Amanhã vai ser outro dia agitado.
Dei um tapinha na cabeça dela, levantei-me e voltei para minha cama. Assim
que a alcancei, meus olhos encontraram os de Ruijerd. Aparentemente ele acabou
escutando nossa conversa. Isso foi… um tanto constrangedor.
Depois de um momento, porém, ele apenas fechou os olhos, sem dizer sequer
uma palavra.
Nossa, que cara legal! Paul provavelmente teria começado a me provocar sem
qualquer piedade na mesma hora. Ruijerd era mesmo um amor. Seria simplesmente
errado deixar seus problemas em segundo plano.
Falando em Paul, entretanto… Será que ele está preocupado comigo ou coisa
assim? Eu realmente deveria enviar uma carta dizendo que estava vivo e bem. Mas
era difícil saber se isso realmente chegaria ao destino.
Os motivos do Deus Homem ainda não estavam claros para mim. Mas, desta
vez, estava disposto a seguir seu conselho sem pensar duas vezes.
Os que moravam lá estavam longe de ser ricos, mas não eram tão
desesperadamente pobres quanto os que moravam nas favelas da cidade. Pelos
padrões do Continente Demônio, eram típicas pessoas da classe trabalhadora.
Havia algo de perturbador nisso. Nenhum dos aventureiros da cidade era tão
educado assim. Eles formavam um grupo de natureza rude e bruta.
— Hã? U-uhm…
Mas Meicel também sabia como o Fim da Linha supostamente era, e esse
garoto baixinho não correspondia em nada à sua descrição.
— Atendemos seu pedido na Guilda esta manhã, senhorita. Estamos aqui para
encontrar seu mascote perdido. Gostaria de solicitar os detalhes, caso tenha tempo.
O nome Fim da Linha era, por si só, assustador, e as outras duas pessoas atrás
do garoto eram um pouco intimidadoras. Mas ele falou com tanta educação que
seria difícil sentir medo. E, pelo jeito, eram aventureiros que realmente aceitaram o
trabalho que ela postou.
— Ah, então o nome do seu mascote é Mii? Achei o nome muito bonito, se é
que posso dizer.
— Eu mesma coloquei.
— Ah, sério? Bem, você claramente tem um talento especial para nomear as
coisas, senhorita.
— Agora então… acha que poderia nos contar um pouco sobre Mii?
— Entendido, senhorita. Iremos rastrear Mii agora mesmo. Fique tranquila, você
está em boas mãos com o Fim da Linha!
O menino fechou a mão em um punho e ergueu o polegar para cima; por algum
motivo, os outros dois atrás dele fizeram o mesmo. Meicel não entendeu muito bem,
mas mesmo assim os imitou.
— Você tem minha palavra, encontraremos seu mascote, Meicel. Seja paciente
e espere um pouco mais.
Ele tinha uma grande cicatriz no rosto; havia uma joia em sua testa; e seu cabelo
era de um azul estranho e desbotado. Foi um pouco assustador olhar para o seu
rosto… mas sua mão era quente e gentil.
Nossa primeira reunião com um cliente foi, de modo geral, muito boa. Eu tinha
acabado de imitar um vendedor que frequentemente passava pela vizinhança,
batendo de porta em porta, na minha vida anterior, mas pareceu funcionar melhor
do que o esperado. Era bom que os outros aventureiros rissem de nós, mas
precisávamos que nossos clientes pensassem em nosso grupo, antes de qualquer
coisa, como um de boas pessoas. Ou seja, precisávamos tratá-los com gentileza e
educação.
— O mesmo para você, Ruijerd. Sua parte no final foi simplesmente perfeita.
Talvez a parte em que ela estava olhando para você com o rosto todo corado?
Vamos, cara! Eu teria ficado muito tentado a sequestrá-la se estivesse no seu lugar!
Entretanto, não seria uma boa ideia dizer isso para alguém que amava as
crianças tanto quanto Ruijerd. Ele provavelmente passaria a próxima meia hora me
repreendendo com severidade. Então, em vez disso, adotei um tom de voz
brincalhão e cutuquei sua coxa com meu cotovelo, em tom de brincadeira.
— Eheheh! Não seja tão modesto, Chefe! Se você forçasse um pouco mais,
ela iria se derreter igual… Ai!
— Pare de rir assim! Aquela coisa estúpida de “Chefe” não era para ser só uma
atuação?!
Foi precisa muita força de vontade para não cair na gargalhada. Você ouviu
isso, senhora? Eris acabou de me censurar por ser “grosseiro”! Sim, aquela Eris! A
mesma mocinha que sentia necessidade de abrir todas as portas que encontrava
pela frente aos chutes! Ela certamente ficou mais refinada ultimamente, não ficou?
Ainda assim… se ela quisesse dizer coisas assim para mim, não deveria
primeiro parar de se envolver em brigas de bar com grupos de estranhos?
Hmm. Difícil de dizer. Com base no que vi de Sauros, será que enlouquecer e
socar alguém na cara estava dentro dos limites de um comportamento aceitável..?
Não, não. Certamente não…
Depois de pensar por um momento, percebi que não tinha ideia concreta de
onde o “grosseiro” acabava e o “refinado” começava para os nobres Asuranos.
Assim sendo, mudei de assunto.
Com base no que tínhamos ouvido da Meicel, Mii parecia ser um gato. Era preto
e tinha sido o companheiro dela desde quando era muito jovem. Provavelmente
também era um dos grandes. A garotinha esticou os braços para demonstrar seu
tamanho; assumindo que não fosse exagero, Mii tinha que ser quase tão grande
quanto um Shiba Inu adulto, o que era notável ao se tratar de um gato doméstico.
— Claro. Afinal, dei minha palavra à garota. — Com esta declaração promissora
e decisiva, Ruijerd avançou, assumindo a liderança.
Ele se movia com confiança, mas eu ainda estava um pouco nervoso. Já sabia
que ele tinha um poderoso radar para seres vivos embutido em sua testa, mas não
poderia ser fácil rastrear um animal em específico dentro de uma cidade cheia deles.
Olhando para o chão, no local para o qual Ruijerd apontava, mal consegui
distinguir o contorno de uma pequena pegada. Que impressionante. Nunca teria
notado isso, mesmo em um milhão de anos.
Verdade, isso parecia mais com a pegada de um gato comum ou até mesmo
de um pequeno… embora eu suspeitasse que a garota estava exagerando um
pouco no tamanho de Mii.
— Hm. Então…
— Parece que um gato diferente está abrindo caminho para o território de nosso
alvo.
— O quê? Sério?
Espere. Uh… ele realmente pode sentir os cheiros de marcação dos territórios
ou algo assim?
— Por aqui.
Ruijerd aparentemente havia chegado a algum tipo de conclusão que não sentia
necessidade de compartilhar conosco. Ele caminhou por uma rua lateral e eu
calmamente o acompanhei. Parecia que estávamos progredindo, embora eu não
tivesse certeza de como. Talvez fosse essa a sensação de ser o pobre velho e
desinformado Doutor Watson.
Sem hesitar, ele nos conduziu por uma série de ruas laterais que pareciam ficar
mais estreitas à medida que avançávamos. Parecia mais com o tipo de beco no qual
alguém esperaria que um gato estivesse. Eu ainda não tinha ideia de que tipo de
trilha Ruijerd estava seguindo, mas… parecia que até o momento estava indo tudo
bem.
Paramos em um beco sem saída. Quaisquer “sinais” que Ruijerd encontrou lá,
eram sutis demais para mim; não pude ver nenhuma mancha de sangue ou
arranhões no meio da sujeira.
Depois de nos movermos por algum tempo pelas ruas labirínticas mantendo
uma boa velocidade, demos uma guinada repentina em uma parte muito diferente
da cidade. Tudo parecia degradado e abandonado. Os edifícios eram crus, sem
pintura e estavam em ruínas graças ao abandono. Alguns dos homens por quem
passamos nos lançaram olhares ameaçadores; havia pessoas deitadas ao longo da
rua, e muitas das crianças estavam vestidas em trapos imundos.
Parecia até que estávamos em uma favela. Mas a mudança não foi gradual. Era
mais como se tivéssemos tropeçado e caído no lugar. Dentro de instantes, fiquei em
um estado de alerta máximo.
— Por quê…?.
— Só por segurança. Além disso, fique de olho nas pessoas que cruzarmos
pela rua que podem tentar te seguir.
— Uh… certo!
Pareceu que alertar Eris para levantar sua guarda também foi uma boa ideia.
Provavelmente não estávamos em perigo real, já que Ruijerd continuava por perto,
mas não queria que escorregássemos graças à complacência. Nós dois realmente
devíamos nos proteger.
— Tch…
Às vezes, um dos caras de aparência mais rude por quem passávamos olhava
ameaçadoramente para Ruijerd, mas quando ele olhava de volta, tendiam a estalar
a língua e desviar o olhar. Nesse tipo de bairro, pessoas capazes de dar um bom
soco provavelmente inspiravam mais respeito do que aventureiros.
— Veremos.
Essa resposta não foi lá muito reconfortante. Não estávamos apenas vagando
sem rumo, certo?
Não, não. Ruijerd só está agindo como sempre, calado. Tenho certeza de que
nos colocou no caminho certo. É melhor continuar me convencendo disso.
Acabamos andando pelas favelas por algum tempo, mas eventualmente Ruijerd
parou na frente de um determinado prédio.
— Bem aqui.
Um lance bruto de escada, à nossa frente, conduzia até uma porta estranha.
Parecia a entrada de algum bar underground frequentado por roqueiros punks que
gostavam de cortes de cabelo esquisitos. Mas não havia nenhuma música alta
saindo de lá, nem caras carecas com óculos escuros parados na porta para ficar de
olho na clientela.
Por outro lado, havia um cheiro forte de animal vindo lá de dentro – o tipo de
cheiro que qualquer um poderia sentir ao passar por um pet shop de grande porte.
Em um sentido menos literal, dava para quase sentir o cheiro de crime no ar.
Dando uma olhada rápida ao redor da área, para ter certeza de que ninguém
estava olhando, entrei, esperei Ruijerd e Eris me seguirem, e então fechei e tranquei
a porta pelo lado de dentro. Parecia que éramos ladrões ou algo do tipo.
À primeira vista, tudo o que pude ver foi um corredor longo e escuro se
estendendo à nossa frente.
— Sem problemas.
Ruijerd provavelmente saberia se alguém entrasse atrás de nós, mas não faria
mal tomar um pouco de cuidado em excesso.
Nós três entramos mais adentro no prédio, com Ruijerd mais uma vez na
liderança. Uma única porta no final do corredor principal se abria para uma pequena
sala, com outra porta na extremidade oposta. Ao passarmos pela segunda porta,
um coro ensurdecedor de gritos de animais encheu o ar no mesmo instante.
Tínhamos chegado à sala mais aos fundos do prédio. Estava repleta de gaiolas.
Havia incontáveis animais trancados ali – gatos, cães e uma grande variedade
de criaturas que eu nunca tinha visto antes, todos amontoados em um espaço do
tamanho de uma sala de aula do ensino médio.
Ele estava apontando para algo que parecia muito com uma pantera negra.
A coisa era enorme. Absolutamente enorme. Devia ser duas vezes maior do
que aquilo que Meicel indicou com os braços.
Havia alguns deles com coleiras ao redor do pescoço ou pulseiras nas pernas,
e alguns tinham até nomes gravados em seus pingentes. Em outras palavras, um
monte desses animais eram obviamente animais domésticos. Eu também notei uma
enorme e descuidada pilha de cordas e coisas que pareciam focinheiras em um
canto do cômodo. As cordas, em particular, pareciam sugerir que algum tipo
de captura massiva estava ocorrendo.
Será que alguém estava roubando animais de estimação exóticos pela rua e
vendendo-os para outras pessoas? Parecia um esquema perfeitamente plausível.
Eu não tinha ideia sobre existir alguma lei específica sobre esse tipo de coisa
neste mundo, mas tinha que ser algum tipo de crime… Quer dizer, era, no mínimo,
uma forma de roubo.
Os animais faziam tanto barulho que eu, pessoalmente, não ouvi nada.
Deixando Ruijerd de lado, estava genuinamente impressionado por Eris ter notado.
Mas, assim sendo, o que faríamos a respeito disso? Não demoraria muito para
que passassem pela entrada. Correr seria uma opção? Não, realmente não – a única
saída era por aquele corredor.
Depois de prendê-los com algemas que fiz usando magia da Terra, joguei um
pouco de água em seus rostos para acordá-los. Um dos homens imediatamente
começou a ganir e a uivar, então prontamente o amordacei com um pano que estava
jogado por perto.
— Hm…
Com tudo isso feito, me peguei pensando em uma certa questão: Como
exatamente isso foi acontecer?
Isso só podia ser culpa do Deus Homem, certo? Ele obviamente previu que isso
aconteceria.
Mas que dor de cabeça. Eu realmente deveria ter escolhido outro serviço.
Homem A:
Pele laranja. Olhos compostos iguais aos de uma mosca, sem parte branca. Era
meio nojento de se olhar. Foi o único que começou a gritar igual a uma cigarra
quando os acordei. Ele parecia um sujeito rude… o tipo de cara que se daria bem
em uma briga de bar.
Tinha certeza de ter visto uma foto de sua raça no dicionário de Roxy, mas não
conseguia lembrar de como se chamava. Sua saliva era aparentemente venenosa;
lembro que me questionei se poderiam ao menos se beijar.
Homem B:
Mulher A:
Outra do tipo insectóide. Sua cabeça parecia com a de uma abelha, mas eu
ainda poderia dizer que ela estava muito assustada no momento. Acho que seu
rosto também se enquadrava na categoria de “nojento”, mas sua silhueta era
formosa, o que basicamente anulava os pontos negativos.
Certo. Não faremos nenhum progresso se eu ficar aqui só olhando para eles. É
hora para uma conversinha… Não, não, vamos ser honestos. Será um
interrogatório.
Mas por quem começar? Quem cuspiria a informação com mais boa vontade, a
mulher ou um dos homens? A mulher com certeza estava com medo. Se eu a
ameaçasse um pouco, havia uma chance de que me contasse tudo na mesma hora.
Que tal o Homem A? Ele era o mais corpulento do grupo e tinha uma cicatriz no
rosto… Parecia ser o melhor lutador dentre eles. E também estava, no momento,
agitado. Provavelmente não era a ferramenta mais afiada à disposição, a julgar pela
maneira como gritava: “Quem diabos são vocês?” e “Tire essas malditas algemas
de mim!” antes de ser amordaçado.
Ou o Homem B? Era difícil ler muito de sua expressão, mas ele parecia estar
observando nós três com bastante cuidado. Isso indicava que não era estúpido. E
se não era estúpido, provavelmente tinha algumas boas mentiras planejadas com
antecedência, caso algo assim acontecesse.
Seria mais fácil manipular alguém que já perdeu a calma. Com a dose certa de
estímulo e provocação, ele provavelmente cometeria algum deslize e me contaria
tudo que eu queria saber. E, bom, se não funcionasse, poderíamos sempre tentar
com os outros dois.
— Se você nos contar o que queremos saber, não precisaremos ser duros
co… bluh?!
Ai! Droga!
Sério, quão estúpido era aquele cara? Por que chutaria alguém que já o
capturou? Ele não devia ter sequer considerado o que poderia acontecer se nos
deixasse com raiva.
Era a voz de Eris. Saltei, cego pelo pânico. O Homem A escapou de suas
algemas enquanto eu estava pensando sobre as coisas e, de alguma forma, tomou
Eris como refém, antes mesmo que Ruijerd pudesse reagir?
— O qu…
Não, Eris estava bem. Entretanto, o mesmo não poderia ser dito sobre o Homem
A. Ruijerd enfiou a lança na garganta do cara. A garota estava apenas olhando, com
os olhos arregalados graças ao choque.
Ruijerd torceu seu tridente para o lado enquanto o puxava para trás; o sangue
formou um arco no ar e espirrou contra a parede. A força girou o Homem A por um
momento antes de ele cair de cara no chão. Sangue escorria de sua garganta. Uma
mancha escura rastejou lentamente por suas costas, e uma poça vermelha se
espalhou embaixo dele. O fedor metálico que se estabeleceu era nauseante.
Estava morto. Morreu sem dizer uma única palavra. Ruijerd o assassinou a
sangue frio.
Não foi a primeira vez que vi uma pessoa morrer. Afinal, Ghislaine matou para
salvar a mim e a Eris. Mas dessa vez foi de alguma forma diferente. Por alguma
razão, eu estava tremendo. Por alguma razão, eu estava com muito medo.
Talvez fosse apenas porque nunca tinha visto, pessoalmente, isso acontecendo
de tão perto? Mas, nesse caso, por que não reagi assim quando Ghislaine matou
aqueles homens durante o incidente do sequestro?
— Porque ele chutou uma criança — disse Ruijerd, sua voz calma e indiferente.
Ah, certo. Agora entendi. Não estou com medo porque acabei de ver alguém
morrer. Estou com medo… porque Ruijerd matou aquele homem… sem pensar
duas vezes… só porque ele me chutou.
Roxy me alertou, não alertou? “Há muitas diferenças entre o que é comumente
aceito na cultura humana e na cultura dos demônios, então você pode não saber
quais palavras desencadearão uma explosão…” Então, o que eu faria se Ruijerd
algum dia voltasse sua ira contra mim?
O homem era forte; tão forte quanto Ghislaine, ou até mesmo mais. Seria
possível derrotá-lo com minha magia? Eu provavelmente poderia pelo menos lutar.
Trabalhei em várias estratégias para lutar em pé de igualdade, treinando com
especialistas em combate próximo.
— Por que não? O homem era mau. — Ruijerd arregalou os olhos diante de
minha objeção. Ele parecia genuína e totalmente perplexo.
— Olha, há… uma razão muito boa… você não deve sair por aí matando as
pessoas.
Certo, fiquei muito abalado. Vamos reconhecer isso. Estou meio que pirando,
mas ainda vou pensar nisso.
Em primeiro lugar, por que eu estava tremendo? Porque estava com medo.
Porque vi Ruijerd, que sempre me pareceu um cara tão bom, matar um homem sem
nem piscar.
Pensei que os Superds fossem um povo pacífico que foi simplesmente mal
compreendido. Mas esse claramente não era o caso. Eu não sabia sobre sua tribo
como um todo, mas, ao menos Ruijerd era um assassino. Ele vinha matando seus
inimigos desde a era da Guerra de Laplace; este assassinato foi apenas mais um
acaso de uma longa, longa lista. Não poderia dizer com certeza que o homem nunca
viraria sua lança para Eris ou para mim. Eu não era o tipo de pessoa honesta e de
coração puro que poderia ganhar o respeito de Ruijerd. Algum dia, de alguma forma,
provavelmente acabaria despertando seu lado ruim.
Faria parte ficar com raiva de mim. Visto que tínhamos maneiras diferentes de
pensar, às vezes nossas opiniões divergiam – isso era simplesmente inevitável.
Provavelmente entraríamos em brigas vez ou outra.
Dito isso, não planejava lutar contra ele até a morte. Não importa a situação,
nossos desacordos não poderiam resultar em violência. Eu tinha que fazer Ruijerd
entender isso… aqui e agora, antes que fosse tarde demais.
O que deveria fazer? Como poderia fazê-lo entender? Deveria apenas implorar
para não matar ao menos nós dois?
No outro dia, convenci Ruijerd de que eu era um guerreiro, lutando com ele
como um igual. Não estava sob sua proteção; era seu camarada. Não poderia
começar a suplicar neste momento. Um curso de ação baseado em um “pare com
isso” também não iria funcionar. Precisava pensar em algo que realmente o
convencesse, ou isso seria completamente inútil.
Pense, cara. Para começo de conversa, por que Ruijerd está com você? Quer
que todos saibam que os Superds não são realmente demônios sedentos por
sangue. E se ele sair por aí matando as pessoas, só vai piorar a reputação da sua
raça.
Isso… parecia certo. Foi a mesma razão pela qual falei para evitar brigas com
outros aventureiros. O público já tinha uma péssima impressão de seu povo; não
importa quantas boas ações fizesse para mudar isso, todo o seu progresso iria por
água abaixo se vissem Ruijerd cometendo um assassinato. Todos voltariam a
acreditar nas suposições acerca de sua raça.
Certo, era por isso que ele não podia matar pessoas. Não queríamos que todos
tivessem a impressão de que os Superds eram uma tribo de bestas irracionais,
certo?
— Não importa quem. Se você estiver matando alguém, isso será um problema.
— Eu estava agora falando deliberadamente e escolhendo minhas palavras com
cuidado.
— Quando um Superd mata alguém, não é visto da mesma forma que as outras
pessoas. É o equivalente a ser morto por um monstro.
Com isso, Ruijerd franziu o cenho por um instante. Acho que parecia que eu
estava falando mal de seu povo.
— Todo mundo pensa em você como parte de uma tribo de demônios cruéis.
Pensam que vocês são maníacos que matam igual respiram, até mesmo diante da
menor das provocações.
Certo, isso parecia duro… mas, mais uma vez, era realmente o consenso geral.
Nosso objetivo era mudar isso.
— É fácil sair por aí dizendo às pessoas que os Superds não são monstros de
verdade. Mas se você provar que os rumores são falsos por meio de suas ações,
pode começar a mudar a mentalidade das massas.
— Por outro lado, vai estragar tudo se começar a matar pessoas. Todo mundo
vai presumir que, o tempo todo, estavam certos sobre sua raça.
— Já…
— Sim?
Isso era realmente verdade? Apenas abster-se de matar seria o suficiente para
convencer as pessoas deste mundo de que sua tribo era razoável?
Não era hora para se pensar nisso. De qualquer forma, eu não estava errado.
Ruijerd obviamente matou muitas pessoas. A população em geral pensava que os
Superds eram, por natureza, assassinos. Mas se ele parasse de matar, teríamos a
chance de mudar suas mentes.
— Se você se importa com sua tribo… não mate mais ninguém, Ruijerd. Nem
uma única pessoa.
Tive que lutar com uma enorme vontade de esconder a cara com as mãos. O
que ele era, um garoto da escola primária? Esse cara realmente já estava vivo por
mais de 500 anos?
— Você pode pensar que ninguém está olhando, mas, de qualquer maneira, as
pessoas veem as coisas.
Ah, merda. Certo. Ele tem esse olho estúpido no meio da testa.
— Hm…
— A partir de agora, por favor, não mate mais ninguém. Não queremos sentir
medo de você.
— Certo…
— Obrigado, Ruijerd.
— Hoo… haa… hoo… haa… — Estava sendo difícil me acalmar. Meu coração
não queria desacelerar. Lancei um olhar para Eris, me perguntando como ela estava
lidando com tudo isso; para minha surpresa, não parecia nem um pouco assustada.
O olhar em seu rosto basicamente dizia: “Você me assustou um pouco, mas acho
que um pedaço de lixo como aquele merecia morrer.”
Certo, talvez ela não estivesse realmente pensando em algo tão cruel.
Mas estava em sua pose típica: braços cruzados, pés bem separados, queixo
erguido. Se a garota estava abalada, fazia o possível para não deixar transparecer.
Era realmente lamentável que Ruijerd tivesse matado seu amigo. Um cara
durão de pavio curto como aquele teria sido o osso mais fácil de quebrar, fácil, fácil.
Neste ponto, será que devíamos apenas tirar a mordaça dos dois ao mesmo
tempo? Poderíamos levar um deles para uma sala diferente, interrogá-los
separadamente e depois comparar suas respostas.
— Eek!
Certo, isso mal se qualificaria como mentira. O cara tinha um rosto de aparência
inteligente, mas talvez não fosse tão esperto assim.
— Uau, fala sério! Ainda devem ter muitos animais espalhados por aí, hein? —
Parei por um momento, então o encarei com meu olhar mais feroz. — Olha, amigo.
Você acha que sou estúpido só porque sou criança?
Sim, isso realmente não funcionou. Com este corpo, qualquer tentativa de
intimidação parecia meio ridícula. Afinal, eu tinha apenas dez anos. Ah, bom. Acho
que vou ter que assustá-lo um pouco.
— Explosão.
Com um agudo estalar de dedos, disparei uma pequena explosão de fogo bem
na frente do rosto do homem.
— Faça um favor a nós dois e pense um pouco mais nas suas respostas. Você
não quer morrer, certo?
Nesse ponto, finalmente me ocorreu que toda a nossa conversa lá atrás havia
sido na língua do Deus Demônio. Eu havia tagarelado sobre Ruijerd e os Superds
em uma língua que essas pessoas obviamente falavam.
Ah, bom. Se eles sabem, fazer o quê? Será melhor tentar usar isso a nosso
favor.
— Isso aqui não é piada. Meu amigo está pintando o cabelo de azul, mas
realmente é o Fim da Linha em pessoa. E também não sou tão jovem quanto pareço.
— S-sério…?
— Somos o mesmo tipo de pessoa que vocês, certo? Apenas seja honesto
conosco. Talvez possamos até ajudar.
O pedido que nos trouxe ao local foi feito por uma jovem inocente, mas
provavelmente deixaria uma senhora rica desesperada para encontrar Christine, seu
amorzinho. Embora as tarefas da guilda parecessem pagar dentro de uma
determinada faixa dependendo de sua dificuldade, talvez clientes assim às vezes
oferecessem bônus especiais. Com um pouco de sorte, poderia viver bem apenas
“encontrando” animais de estimação o tempo todo.
— Hmm. Por que não os vende para um pet shop e levanta algum lucro
adicional?
— S-sim, muito.
Ah. Agora, o homem-lagarto está olhando para mim como se eu fosse uma
espécie de assassino em série. Vamos lá! As pessoas comem Grandes Tartarugas
por aqui, não é? Qual seria a diferença para uma tartaruga de estimação?
Me virei para olhar para Ruijerd, esperando por uma confirmação de que eu não
estava louco.
— Rudeus…
Ruijerd, por favor. Você não tem que fazer buracos nas minhas costas assim.
Só estou brincando, tá? Eu na verdade não faria isso.
— Bem, nós só viemos aqui para encontrar um gato em específico. Não é como
se fôssemos um bando de vigilantes errantes ou algo assim. Podemos apenas ir
embora e fingir que não vimos nada.
— S-Sério?
— O único problema é que vocês dois sabem que nosso Ruijerd aqui é
realmente um Superd. Hmm. O que faremos a respeito disso?
— E-eu não vou contar para ninguém! Inferno, não é como se alguém
fosse acreditar em mim se dissesse que o Fim da Linha está vagando pela cidade!
— Não acho que seja verdade. Rumores ruins sempre se espalham como
vento. — De qualquer forma, seria melhor assumir a existência da possibilidade.
Especialmente quando era um boato que não queria ver sendo espalhado. — Do
meu ponto de vista, a coisa mais fácil seria matar todos vocês e enterrar seus corpos
em algum lugar, sabe?
— V-vamos lá, cara, não fale assim… Farei o que você quiser, certo? Só não
me mate…
Essas eram as palavras que eu esperava ouvir. Era hora de acabar com a fase
de intimidação.
Não. Tudo o que fizeram foi roubar um monte de animais de estimação, e esse
não era o mais grave dos crimes. Os policiais poderiam soltá-los com uma multa alta
ou algo assim, e eles voltariam às ruas, possivelmente guardando rancor. Não
importa o quão submissos estivessem sendo agora, uma vez que meu pé estivesse
fora de sua garganta, todas as apostas seriam perdidas.
Para ser sincero, queria mantê-los em algum lugar onde pudesse ficar de olho
neles… e periodicamente ameaçá-los de novo. Pelo menos até saber que não nos
causariam problemas. Mas isso também viria com alguns riscos. Se continuássemos
nos apoiando neles, seu ressentimento poderia acabar virando ódio. Afinal, já
tínhamos matado um de seus amigos. Por enquanto, isso estava alimentando seu
medo de nós, mas algum dia poderia levá-los a buscar uma vingança.
Então que tal os controlar? Isso os manteria por perto e poderiam nos ajudar a
ganhar dinheiro e subir nos ranks. Faríamos com que reunissem informações pela
cidade e executassem tarefas aleatórias de acordo com nossas ordens. Inferno,
poderíamos até mesmo assumir o controle de sua iniciativa de rapto de animais.
Claro, Ruijerd provavelmente não gostaria nada desse plano. Ele já havia
classificado essas pessoas como vilãs, más o suficiente para que merecessem
morrer. De qualquer forma, duvido que o homem quisesse trabalhar com eles.
2.
2. Entregá-los à guarda da cidade
3.
3. Deixá-los em paz
4.
4. Controlá-los
A primeira opção era fácil de descartar. Parecia que estaríamos seguindo pelo
rumo errado. Eu não era um idiota de coração mole nem nada, mas matar pessoas
a torto e a direito seria apenas tolice. Tive a sensação de que no final das contas
isso voltaria para nos perturbar.
Os números dois e três eram opções de baixo risco e baixo retorno. Mesmo que
nossos novos amigos tentassem se vingar de nós de alguma forma, Ruijerd poderia
rastreá-los facilmente… mas, no final, de qualquer forma, provavelmente
acabaríamos matando-os. Isso seria um péssimo resultado e um esforço em vão.
A última opção parecia ser a melhor de todas. Isso poderia arruinar a impressão
que Ruijerd tinha de mim, mas… deixando todo o resto de lado, também tínhamos,
no momento, necessidade urgente de conseguir dinheiro.
Sim, é isso mesmo. No momento, o dinheiro precisa ser nossa prioridade, não?
E alguma ajuda extra dever tornar tudo muito mais fácil.
Ajudar com seu esquema de rapto de animais era uma opção, mas também
podíamos adicioná-los ao nosso grupo e depois nos dividir para lidar com vários
empregos de rank F de uma só vez. Isso nos faria subir na classificação mais rápido,
e isso por si só já seria um benefício enorme. Uma vez que pudéssemos assumir as
tarefas de rank C, nossas vidas ficariam muito mais fáceis.
— Uh, D…
Eles não eram apenas aventureiros, como também estavam alguns degraus
acima de nós.
Depois de chegar ao rank C, não teria mais permissão para assumir as tarefas
do rank E. Talvez algumas pessoas ficassem no D de propósito, para que pudessem
continuar trabalhando em tarefas mais simples e seguras… ou para que pudessem
continuar executando um golpe, como neste caso em específico. Se estivéssemos
no lugar deles, saltaríamos para o C na mesma hora e começaríamos a pegar
missões de rank B, para matar monstros, mas talvez alguns aventureiros
preferissem evitar tantos combates.
Hm. Talvez pudéssemos pedir que esses dois pegassem tarefas de rank C e
depois os ajudássemos com a execução? Mesmo se dividíssemos o dinheiro
igualmente, isso deveria resolver nossa crise de monetária.
Não, não… nós nunca subiríamos nos ranks se fizéssemos isso.
Era uma chance em três, mas Ruijerd aparentemente matou o cara certo.
Talvez o Deus Homem estivesse olhando por nós ou algo assim.
— Você quer unir forças com eles?! — Disparou Ruijerd, atrás de mim. — Isso
não pode ser sério!
— O quê?!
Sim. A menos que eu estivesse negligenciando algo, não havia nada além de
vantagens.
— Mais cedo você disse que faria qualquer coisa que eu quisesse, certo?
— Não preciso do seu dinheiro. Mas quero que você eleve seu rank na guilda.
— Uh, o quê?
— Uh, c-certo…
— S-sim…
— Bem, aqui está uma solução simples e agradável: Vamos começar a trocar
serviços.
— Como assim?
— E-espera aí, o quê? A guilda não vai deixar você entregar nosso trabalho por
nós…
— Não seja idiota. O grupo que assumir a tarefa também será o único a se
apresentar assim que tudo estiver concluído.
— Ah…
— Queremos dinheiro e um rank superior. Vocês querem ter uma vida boa e
estável. Parece que podemos ajudar uns aos outros, certo? Vamos até dar a você
uma parte das recompensas de rank B, como uma comissão, se quiser.
— Q-qual?
— Você precisa espalhar a palavra sobre o Fim da Linha por toda a cidade.
— Sim, mas queremos que pensem que ele é um cara legal. Conte a todos
sobre nossas boas ações, mesmo se tiver que inventar coisas. Você pode até se
chamar de “Fim da Linha” enquanto estiver lidando com serviços aleatórios
de rank F.
Certamente havia, mas… se déssemos uma longa explicação para esse cara,
falando sobre o passado trágico de Ruijerd, ele a engoliria?
Acabei partindo com uma resposta carente e meia-boca, mas o cara aceitou de
imediato.
O homem-lagarto olhou com medo para Ruijerd e acenou com a cabeça várias
vezes.
— Tudo bem então — falei. — Estou ansioso para trabalhar com você, amigo…
pelo menos até conseguirmos um rank decente.
— C-claro. Certo.
Quando saímos do prédio com o gato da nossa cliente, Ruijerd olhou para mim
e quebrou o silêncio.
— Não se faça de idiota! Essas pessoas são vilãs! Você realmente espera que
eu junte forças com elas?!
— B-bem, concordo, não são ótimas pessoas. Mas são apenas pequenos
vigaristas… não estavam fazendo nada tão ruim.
Eu sabia que isso ia acontecer, não sabia? Por algum motivo, minhas pernas
ainda tremiam. Minha voz estava vacilando e havia pequenas lágrimas se formando
no canto dos meus olhos.
— M-mas olha, isso nos permite matar dois coelhos com uma cajadada…
Ruijerd realmente não estava aceitando isso, certo? Isso não era bom. Eu
estava com muito medo para pensar direito. O bater dos meus dentes ecoou alto na
minha cabeça.
— Vilões vão traí-lo no final! — gritou Ruijerd enquanto apertava seus olhos.
— No que estava pensando? Por que devemos conspirar com essas pessoas?!
O homem tinha razão. Não era como se tivéssemos que unir forças com
aqueles dois. Sempre poderíamos fazer as coisas em um ritmo mais tranquilo –
assumindo tarefas da guilda quando pudéssemos, caçando fora da cidade quando
precisássemos de dinheiro e lentamente subindo nos ranks. Essa era uma
alternativa perfeitamente viável. E não envolveria confiar em algumas pessoas
sombrias. Haveria um pouco de perda de tempo, mas não seria o fim do mundo.
Talvez tenha sido uma má ideia. Devíamos desistir, voltar e matar aqueles
dois? Resolver tudo com um bom banho de sangue?
— Ruijerd!
Nesse ponto, meu debate interno foi interrompido por um grito feroz.
Sua voz estava alta o suficiente para fazer meus ouvidos zumbirem. Alguns
transeuntes olharam em nossa direção, se perguntando qual era o motivo para tanto
barulho.
— Oh, boo-hoo! E daí se não gosta? Ele está fazendo isso por você, estúpido!
E por mim!
— Você me entendeu mal. O tipo de pessoa que chutaria uma criança não pode
ser…
Senhorita Eris… Estou muito grato por você estar me defendendo aqui, mas
talvez não devêssemos cutucar a ferida dele com muita força…
— Rudeus é muito inteligente, entendeu?! Ele vai fazer tudo dar certo! Então
apenas… cale a boca e obedeça! E não comece a choramingar toda vez que se
sentir um pouco infeliz!
— Mas…
A barra que eu precisava limpar tinha ficado muito maior. Depois de tudo isso,
não podia admitir sequer que eu também ficasse inseguro.
Juntar-se àqueles dois podia ter sido um movimento precipitado. Mas agora que
chegou a esse ponto, teria que me manter firme, não importa o quão ansioso
pudesse estar.
No começo achei que era uma ideia brilhante. Só teria que confiar em mim
mesmo.
Não era como se houvesse muitas pessoas em quem eu tivesse menos fé…
Quando devolvemos seu gato, Meicel ficou radiante. Ela veio correndo no
momento em que pôs os olhos em nós, abraçou Mii e começou a chorar de alegria.
— Tá! Quando você levar isso para a Guilda dos Aventureiros, eles te darão
dinheiro. Só o cartão não serve! Mas se você colocar o dedo na parte em branco e
dizer “tarefa concluída”, ficará tudo certo!
— Sim! Eu sabia que Ruijerd iria encontrar Mii, então fiz isso com antecedência!
Pela deusa. Que fofa! A confiança de uma criança é uma coisa tão linda!
— Sim! Eu não sabia que existiam demônios bons, mas agora sei!
— Então tudo certo, senhorita. Não se esqueça do Fim da Linha e do seu amigo
Ruijerd, viu?
— Ah, se não é o homem com cabeça de cavalo desta manhã… Você tirou uma
folga do trabalho hoje? — Não era muito divertido lidar com esse cara, sério. Ele me
lembrava muito alguém que me intimidou no passado. Eles faziam um
enorme show enquanto atentavam seu alvo, basicamente convidando todos para
participar.
— Uh… o quê? Garoto, parece que de repente você ficou muito educado. É até
meio assustador…
Opa! Esqueci de adotar minha outra personalidade. Acho que vou só seguir em
frente…
— Você é um aventureiro veterano e foi bom o suficiente para nos dar alguns
conselhos. Por que não demonstraria respeito ao falar com você?
— O-oh… Claro. Acho que você tem razão. — O Cara de Cavalo ficou um pouco
tímido após isso. Mas que perdedor.
— Graças a você ter nos apontado a direção certa, nosso primeiro trabalho
correu sem problemas.
— Como é que é?
— Bem, mas isso não foi nada! É muito difícil rastrear um único animal de
estimação em uma cidade tão grande, sabe?
— Mas, ei, não é grande coisa quando você tem Ruijerd, o Fim da Linha, do
seu lado.
— Droga. Para um enganador, até que esse cara não é tão ruim!
Quando voltei para perto dos outros, encontrei o Cara de Cavalo e Ruijerd
conversando.
— Superds…
— Hah. Claro, claro. Sei como é, cara. Isso que você está usando diz tudo. —
O Cara de Cavalo estava olhando para o pingente de Roxy, agora pendurado à
mostra em volta do pescoço de Ruijerd. — Eu sou Nokopara. Rank C.
— Ruijerd, Rank F.
— Sim, eu sei o seu rank, cara! Ah, bom. Se quiser saber alguma coisa, pode
ficar à vontade para perguntar. Eu não sou mesquinho quando se trata de ajudar os
novatos! Gahahah!
Apesar dos pesares, parecia ser um bate-papo bem-humorado. Foi bom ver o
ser desprezado do nosso grupo falando com um estranho, mas eu também estava
muito preocupado com a possibilidade de ele acabar falando muito… ou de repente
pirando e começando a atacar. Torcia para que crianças não acabassem se
tornando um assunto.
— Ei! Vamos lá! Não me ignore! — Uma guerreira parecia estar ficando
particularmente irritada com o silêncio.
— Nossa cara, quanta hostilidade. Tudo bem então. Continue assim, garoto! —
Com um aceno de mão, Nokopara vagou para uma parte diferente do lugar. Afinal
de contas, o que diabos ele fazia para viver?
Ficou confuso
Capítulo 11 - Um Começo
Tranquilo
Por um momento, não fiz ideia de quem o cara deveria ser, mas então notei a
mulher de olhos insectóides ao lado dele e percebi que eram os mesmos sujeitos
do dia anterior. Seus nomes eram… uh, Jalil? E Vizquel, não?
Em minha defesa, era difícil distinguir um rosto do outro por aqui. Havia uma
tonelada de gente-lagarto nesta cidade, e não ajudava o fato de esses dois estarem
usando armaduras de couro em vez das roupas civis que usaram no dia anterior.
Eles pareciam pessoas totalmente diferentes quando se vestiam como aventureiros
comuns em vez de cidadãos comuns.
— N-não, não…
— É bom ver você também, Vizquel. Estou ansioso para trabalhar com vocês.
— Uh… certo. — Ela estava olhando amedrontada para Ruijerd. Para ser justo,
ele também estava lançando olhares afiados para os dois. Ah, bem.
— Vocês aí!
— Oi…
— Sim, muito tempo sem nos vermos, Jalil. Ouvi falar que vocês foram para
o rank C! Tem certeza de que é uma boa ideia? Você não será mais capaz de
trabalhar nesses empregos de busca por mascotes, sabe?
Parando por um momento, Nokopara olhou de Jalil para mim e vice-versa, então
acenou com a cabeça enquanto relinchava.
— Ei, o Roman não está com vocês hoje. Sabe onde ele está?
Roman era provavelmente o nome do homem que Ruijerd matou. Nokopara não
pareceu especialmente abalado com a notícia. Talvez a morte de uma pessoa não
fosse grande coisa nesse ramo de trabalho. Fui o único que levou aquilo tão a sério?
Jalil e Vizquel também pareciam relativamente indiferentes em relação a tudo isso.
— Ah, sim, já entendi tudo. Nem precisa responder. Claro que você gostaria de
parecer um figurão na frente de seus novos aprendizes!
Era quase impressionante como ele havia decidido as coisas por si mesmo.
Com alguns tapas amigáveis nas costas de Jalil, Nokopara finalmente se virou e
voltou para as mesas. Pude até mesmo escutar o ligeiro suspiro de alívio que o
homem-lagarto deixou escapar.
— Tudo bem então. Pessoal, por que não damos uma olhada no quadro de
tarefas?
— Hã? U-uh, claro. Eles chamam de colheita quando você está colhendo
plantas. As coletas são principalmente para coisas de monstros, acho…
A resposta de nosso novo mentor foi um pouco vaga, mas pareceu mais ou
menos precisa. A maioria dos trabalhos de colheita parecia envolver a procura por
ervas medicinais e tal… enquanto a coleta era mais um recurso para outros tipos de
“buscas”.
— O quê?
— Sinto muito, mas acho que precisamos nos concentrar em ganhar dinheiro e
melhorar nosso rank por um tempo.
Eu disse a Jalil e Vizquel para espalharem a palavra sobre o Fim da Linha. Mas
não esperava muito deles. Por um tempo considerei microgerenciá-los para ter
certeza de que estariam ajudando as pessoas com um sorriso, mas, para ser
realista, parecia mais inteligente ficar meio distante. Enquanto mantivéssemos
distância dos dois, poderíamos nos livrar da dupla caso fosse necessário. Mesmo
se suas atividades criminosas fossem expostas, e mesmo se tentassem empurrar a
culpa para o Fim da Linha, os outros apenas ririam – afinal, eles tinham um rank bem
superior ao nosso, e todos já sabiam que Ruijerd era um “falsário”.
Nas proximidades de Rikarisu, parecia que Coiotes Pax, Lobos Ácidos, Grandes
Tartarugas e Tartarugas de Pedra Gigante eram as melhores apostas quando se
tratando de caçar monstros. Coiotes Pax eram caçados principalmente por causa
de suas peles; Lobos Ácidos por suas presas e caudas; Grandes Tartarugas eram
como pilhas de carne andantes; e seria possível encontrar pedras mágicas dentro
das Tartarugas de Pedra Gigante. Decidimos ignorar as Grandes Tartarugas desta
vez, principalmente porque sua carne era absurdamente pesada.
Claro, isso só tornava as coisas um pouco mais eficientes, já que tínhamos que
rastreá-los e esfolá-los… então, se encontrássemos algum Lobo Ácido pelo
caminho, eu planejava também cuidar dele. Não tínhamos assumido nenhum
trabalho para coletar seus materiais, mas com as missões de coleta, seria possível
cuidar da parte de coleta antes mesmo de aceitar um serviço. Assim que tivesse
matéria-prima suficiente, poderia assumir a tarefa e levar tudo direto ao balcão de
compras da guilda.
Em qualquer caso… os Coiotes Pax eram o nosso foco principal, pelo menos
por enquanto. Normalmente eles seriam encontrados em grupo de, no máximo, dez.
Dado o tempo que levaria para rastreá-los e esfolá-los depois, inicialmente assumi
que não seríamos capazes de matar muitos em um único dia.
Ah. Agora isso faz sentido. Íamos usar o cheiro de seu sangue para atrair outros
monstros para o mesmo local. Comecei a espalhar o ar em várias direções,
anunciando para toda a área circundante que tínhamos uma pilha de carne fresca.
— Tartarugas Gigantes de Pedra não podem ser atraídas dessa maneira, mas
devemos atrair pelo menos todos os Coiotes Pax das proximidades.
Presumi que Ruijerd assumiria a função de esfola, mas nesse ponto já tínhamos
peles demais – a pilha estava ficando difícil de manejar. Começamos a cuidar das
coisas para começar a carregar tudo de volta para a cidade, e esse trabalho exigiria
várias viagens.
Quando se deixa uma pilha de cadáveres jogada por aí, eles servem como fonte
de alimento para outros monstros, encorajando-os a se multiplicar. Simplesmente
atear fogo neles não seria o suficiente para convencer os monstros a não os comer;
e se apenas os enterrássemos, aparentemente retornariam como “Coiotes Zumbis”.
Consequentemente, seria necessário queimar as coisas e depois enterrá-las.
1.
1. Matar Coiotes Pax. Pegar as peles.
1.
1. Enterrar os corpos, criando toneladas de Coiotes Zumbis.
1.
1. Aguardar até que um trabalho de caça a Coiotes Zumbis fosse
postado na guilda.
1.
1. Lucro!
Gostaria que eles anotassem essas pequenas regras locais em algum lugar,
sério…
— Mas não fizemos isso com os monstros que matamos em nossa viagem até
aqui, não é?
— Nós realmente lucramos muito hoje, hein? Amanhã vamos fazer ainda
melhor!
— O-obrigado, cara.
Dez por cento foi o que combinamos, mas… não parecia tanto dinheiro. Quando
perguntei a Jalil se eles realmente estavam bem com isso, ele explicou que não era
apenas um aventureiro – também administrava um negócio na cidade.
Ah, nossa. Então, primeiro você os vende e depois os rouba? Nossa cara, isso
é meio sem noção.
— É, eu sei.
Ainda bem que Eris e Ruijerd estavam comigo, ou eu poderia ter acabado
rastejando a seus pés e pedido por dicas.
Deixando tudo isso de lado, esse pet shop parecia ser uma operação lucrativa
– com uma vantagem para a cidade como um todo, já que estava tirando animais
potencialmente perigosos das ruas.
— Então, uh. Por que você começou a sequestrar animais, se já tinha uma linha
de trabalho legítima?
Claro. Uma vez que enfiaram a ideia na cabeça, deve ter se tornado algo muito
tentador. E uma vez que cederam à tentação, tudo foi de mal a pior.
— Bem, de qualquer forma, acho que isso não é da minha conta. Contanto que
você continue concluindo os trabalhos.
Eris não demorou muito para se decidir. Ela só queria algo resistente, mas leve
e fácil de usar, critérios que a levaram a um par de calças nada estiloso.
Pareceu uma escolha sensata, especialmente dadas as nossas circunstâncias
atuais, mas eu senti que não faria mal ter também ao menos uma opção “feminina”.
Quando apontei para um vestido de uma peça, rosa e com babados, que tinha visto
em um canto da loja, ela fez uma careta de nojo.
— Ah, é? Então que tal comprar algo mais másculo para você, hein, Rudeus?
Ela empurrou um colete de pele para mim. Parecia algo que um bandido da
montanha poderia usar.
Hmm. Então, se eu colocasse essa coisa, Eris usaria um vestido com babados?
Por um momento não pareceu um mau negócio, mas então imaginei nós dois
parados um ao lado do outro em nossas novas roupas e imediatamente desisti da
ideia.
Eris ainda não tinha sofrido nenhum ferimento sério em combate, e eu poderia
usar magia de Cura para tratar qualquer ferimento menor, então eu tinha a
impressão de que ela realmente não precisava de uma armadura. Mas, quando
Ruijerd me disse: “Seus feitiços não podem curar feridas fatais ou restaurar um
membro perdido, e Eris ainda não está acostumada à batalha. Complacência e
descuido podem custar a vida de jovens guerreiros.” Não pareceu que seria uma
boa ideia deixar ela sem qualquer equipamento defensivo.
— Proteger seu coração é muito importante, então acho que devemos comprar
o melhor que pudermos…
— Esse me parece bom — disse Eris, puxando um modelo de pele de fera que
se encaixava perfeitamente nela. — O que você acha, Rudeus?
Bem, se ela estava pedindo, eu ia dar uma olhada. Hmm… Nada mal.
— Você provavelmente deveria escolher um que seja de um tamanho maior.
— Por quê?
— Que tal algo como isso? — perguntei, apresentando a ela um elmo que me
lembrava um dos malvados irmãos Hokuto.
Claro, o capuz que havíamos comprado antes servia apenas para esconder seu
atraente cabelo ruivo. De uma perspectiva defensiva, era inútil.
— Acho que isso é tudo. O que você acha, Rudeus? Pareço uma aventureira?!
Com a espada semelhante a um cutelo que Rowin nos deu presa em seu
quadril, Eris girou para mostrar seu novo conjunto de armadura leve. Para ser
totalmente honesto, meio que parecia com um cosplay… especialmente porque o
peitoral não era do tamanho certo.
Tive a impressão de que Eris tinha uma certa predileção pelas histórias em que
um jovem guerreiro heróico partia em uma aventura ao lado de seu amigo de
infância, que era capaz de usar magia. Havia noites em que a garota mal conseguia
dormir, mas ela certamente era corajosa durante o dia.
Dentro, havia uma grande variedade de mantos coloridos, todos com designs
ligeiramente diferentes. Pareciam ter em cinco tons: vermelho, amarelo, azul, verde
e cinza. Nenhum era lá muito vívido.
— Certo, então vermelho seria fogo, e amarelo deve ser terra… Uh, o cinza
protege do quê?
— É um tecido comum.
Ah. Não era à toa que custa basicamente metade do preço. O custo de cada
uma das outras cores também variava um pouco. Isso provavelmente estava
relacionado ao valor dos materiais usados para tecê-los.
— Hmm. Bem, isso já é alguma coisa. E eu aqui pensando que você era só uma
criança… Certo. Este pode até ser um pouco mais caro, mas…
Depois de procurar pelos robes por um momento, o velho puxou um que era de
um tom de cinza notavelmente mais escuro.
— C-Camundongo… Mackey?
— Não oferece nenhuma proteção especial contra magia, mas é duro como o
inferno.
Agora eu sabia como aquele judoca deve ter se sentido quando tentou colocar
um Traje Normal pela primeira vez. Ah, bom. Eu ainda era um menino em
crescimento, então talvez isso servisse. A coisa ao menos parecia ser feita com
material de qualidade… A julgar pela sensação, provavelmente forneceria alguma
proteção contra armas perfurantes.
— Bem, vejamos…
Depois de pechinchar com o velho para chegar ao melhor preço possível,
acabei comprando o robe por seis moedas de sucata.
Aliás, pedi para Ruijerd espionar Vizquel enquanto Eris e eu saíamos em nossa
viagem de compras. Não esperava muito dela e de Jalil, mas dependendo de como
se comportassem, havia a possibilidade de que nossa reputação pudesse ser
seriamente prejudicada. Parecia ser prudente dar ao menos uma olhada.
Nesse dia, Vizquel tinha feito um trabalho de extermínio de insetos. Seu objetivo
era erradicar uma infestação de criaturas repugnantes que ocupavam a cozinha de
alguém. Ela era da raça Zumeba, cuja saliva era venenosa, mas também muito
atrativa para todos os tipos de insetos. Qualquer inseto que a ingerisse morreria ou
ficaria totalmente imóvel, dando à Zumeba um saboroso lanche.
Após anunciar nossa marca com muito zelo, Vizquel entregou à velha senhora
alguns pedaços extras de isca feita de sua saliva e, em seguida, educadamente
despediu-se dela. Com seu trabalho concluído, prontamente se encontrou conosco
na guilda para cuidar da troca de recompensas.
— Sim…
— Hmm. Acho que não são tão podres quanto pensamos, Ruijerd.
— Talvez não.
Para ser justo, eu também desconfiava um pouco deles, mas acho que não
estávamos pedindo tanto assim. Eles estavam basicamente fazendo trabalhos
comuns e mencionando o “Fim da Linha” quando terminavam. Se fizéssemos
pensarem que cooperar conosco significava dinheiro fácil para eles, era melhor
assim. Isso também os tornaria menos propensos a nos trair.
— Mm…
Ser um “criminoso” não significa que alguém fosse irredimível; isso se aplicava
tanto a eles quanto a mim e Ruijerd. Eles terem parado de sequestrar animais de
estimação também parecia ser um bom sinal, embora não tivéssemos exigido isso
abertamente.
Dito isso, estávamos há apenas três dias nessa parceria. A memória de seu
encontro com a morte ainda estava fresca em suas mentes.
— Claro, eles podem estar apenas fingindo. Então devemos continuar a checá-
los assim sempre que alguma coisa mudar.
— Claro que não. Nesta cidade toda, só confio em você e Eris, Ruijerd.
— Entendi…
Ele começou a estender a mão para a minha cabeça, mas de repente parou.
Mas eu poderia viver com isso. Meu objetivo era voltar para o Reino Asura com
Eris. Faria o meu melhor para alavancar a reputação da raça Superd enquanto
estivesse nisso, mas ganhar o respeito de Ruijerd não estava na minha lista de
objetivos principais.
Voltamos para nossa pousada por ruas iluminadas apenas por pedras
iluminadoras.
Capítulo 12 - Crianças e
Guerreiros
Três semanas depois, nosso grupo chegou ao rank D. Parecia que estávamos
subindo muito rápido, então, por fim, verifiquei os critérios específicos de promoção.
Esse padrão geral permanecia igual para os ranks mais altos, mas os números
começavam a ficar consideravelmente maiores.
Podia ser o momento certo para encerrar nosso acordo com Jalil e Vizquel. Eles
não pareciam mais estar sequestrando animais de estimação, mas eu não tinha
certeza de quais problemas toda essa coisa de troca de emprego poderia causar a
longo prazo. Já havíamos economizado uma quantidade razoável de dinheiro, então
tínhamos a opção de dizer adeus aos nossos “parceiros de negócios” e deixar
Rikarisu para trás para sempre.
Depois de pensar um pouco, no entanto, decidi continuar fazendo uso dos dois
até chegarmos ao rank C. Não parecia haver nenhum problema no momento, e seria
difícil virar as costas para um sistema de baixo estresse e alto rendimento. Não faria
mal nenhum ter mais dinheiro na carteira antes de partirmos.
Mesmo assim, duas moedas de ferro eram uma recompensa muito tentadora.
Especialmente porque ainda poderíamos obter cinco moedas de sucata se
decidíssemos não lutar contra a coisa.
— Parece o tipo de trabalho em que você pode acabar morto. Eu pensaria duas
vezes se fosse você.
— Duas moedas de ferro, mas… Hmm. Talvez eu pudesse usar isso como outra
experiência de aprendizado…
— Para uma tarefa como esta, a penalidade por quebra de contrato seria
baseada nas cinco moedas de sucata, certo?
Como Ruijerd tendia a ser assediado por Nokopara quando ele entrava na
Guilda, e Eris às vezes tinha problemas com aventureiros aleatórios se aproximando
dela também, os dois ficavam esperando do lado de fora. Vizquel também nunca
aparecia na guilda.
— Bem, mesmo que este monstro misterioso não esteja lá, há muitas coisas
que valem a pena vender e são provenientes da Floresta Petrificada. Conhecendo
vocês três, aposto que poderiam ganhar o suficiente para cobrir a taxa de quebra
de contrato. Acho que vale a pena tentar.
— Então tudo bem. Boa sorte com seu trabalho também, Jalil.
Parando para pensar, minha linha de raciocínio foi muito preguiçosa naquela
hora. Algumas semanas de experiência em batalha me deixaram muito confiante.
As coisas correram tão bem que subestimei os riscos; minha impaciência me
empurrou para situações de alto ganho.
Podendo pensar no passado, tive melhores opções aparecendo para mim. Mas,
na época, não acho que poderia ter as escolhido.
O rosto do cara era familiar. Ele era o homem-porco que riu de nós no nosso
primeiro dia. Aliás, eu não estou tentando insultá-lo. Ele literalmente tinha uma
cabeça de porco.
— Estamos aqui para um serviço da guilda! — disse Kurt, líder dos Valentões
Tokurabu, com o rosto um tanto carrancudo.
— O mesmo aqui — disse o líder do Fim da Linha (eu) com um ligeiro aceno de
cabeça.
— Significa que o mesmo pedido foi feito por mais de uma pessoa. E a guilda
colocou os dois pedidos lá sem perceber.
Nesse caso, tínhamos três clientes diferentes que postaram três tarefas
separadas. A guilda devia ter pensado que eram empregos distintos, mas talvez não
fosse realmente o caso. Parecia algo que poderia acontecer de vez em quando.
Por curiosidade, perguntei aos outros quais eram suas tarefas específicas.
— Na verdade, é uma tarefa de rank C. Colocaram ela lá logo depois que você
saiu da guilda.
Hmm. Bem, acho que sim. Não é como se a guilda tivesse todas as suas tarefas
ordenadamente arquivadas em um computador ou algo assim.
— O quê?! — gritou Kurt. — Então, o que acontecerá com nossa tarefa se você
chegar lá primeiro?
— Hã? Ah, seus ovos, coisa assim? Bem, vamos esmagar eles se os virmos.
Não podemos ter Cobras Presas-Brancas nascendo em todo canto, podemos? —
disse Blaze com um sorriso.
Kurt estava se voltando para mim em busca de apoio. Ele tinha um bom ponto.
Se o grupo de Blaze matasse nosso monstro “desconhecido”, não teríamos a chance
de rastreá-lo ou lutar contra ele…
Senti que relatar que as Cobras Presas-Brancas estavam no local poderia ser
o suficiente para satisfazer nosso cliente. E para proteger nossas apostas, sempre
poderíamos caçar alguns monstros aleatórios antes de partirmos.
— Bem, ainda não temos certeza sobre ser uma reserva tripla. Também pode
haver algo além das Cobras Presas-Brancas por aqui.
— Então? Vocês querem dar uma olhada por aí, é isso? Querem que sejamos
suas babás?
— E quem diabos pediu a sua ajuda?! — disse Kurt, com o rosto vermelho de
raiva.
— Ah, por favor. Vocês obviamente querem nossa proteção, não é? Esta
floresta é muito difícil para um bando de moleques de rank D.
Ah. Agora eu entendo porque ele está tão mal-humorado. Blaze não gostou da
ideia de um par de grupos de rank baixo seguindo o seu como se fossem um rastro
de merda deixado por um peixe dourado. Perfeitamente compreensível. Afinal, isso
serviria apenas para tornar suas vidas mais difíceis.
Claro, eu também não queria viajar com eles. Não era uma boa ideia deixar que
alguém visse Ruijerd lutando com sua lança. Poderiam perceber que ele
realmente era um Superd quando vissem o nível de sua força.
— O que está acontecendo? — perguntou Eris enquanto sua voz revelava sua
impaciência.
— Parece que todos estamos aqui mais ou menos pelo mesmo trabalho.
— Não, claro que não. Todos nós iremos em frente e veremos quem encontra
os monstros primeiro.
Bem, ela com certeza parecia ao menos entusiasmada. Senti como se Eris
estivesse ficando doente com nossas várias missões de caça recentes. Afinal, os
serviços não eram exatamente aventuras… estavam mais para trabalho manual.
Essa provavelmente parecia ser uma boa mudança de ritmo.
— Hmm, vamos ver — falei. — Como sempre, Ruijerd pode vasculhar a área
procurando inimigos. Vamos apenas nos mover e investigar até encontrarmos este
monstro misterioso.
Parecia uma proposta bastante simples para mim, mas Ruijerd balançou a
cabeça gravemente.
— Espere, Rudeus.
— Qual o problema?
— Devemos ajudá-los.
— Não me importo.
— Tudo bem, mas isso vai nos causar todos os tipos de problemas se as
pessoas perceberem quem você é.
— Não é isso que estou dizendo. Vamos apenas segui-los à distância e ajudá-
los se tiverem problemas.
Ainda assim, seria realmente uma boa ideia saltar direto ao resgate? Se
tivéssemos que proteger aquelas crianças de um ataque de monstro, as chances de
descobrirem a verdadeira identidade de Ruijerd aumentariam muito. Eu
não queria acreditar que se apegariam a seus preconceitos sobre um homem que
acabara de salvar suas vidas, mas o Fim da Linha ocupava um lugar especial nas
mentes das pessoas deste continente. Era difícil saber como as coisas poderiam se
desenrolar.
Com certeza, Kurt e seus amigos logo se encontrariam cara a cara com um
Executor cuja abordagem evidentemente não notaram.
— Não, ainda não — falei, enquanto Ruijerd estava tenso, pronto para saltar
adiante.
Aquele Executor era mais rápido do que indicado por sua aparência, mas não
rápido o suficiente para acompanhar aquelas crianças quando elas estivessem
correndo para salvar suas vidas. Aos poucos, foram se distanciando de seu
perseguidor.
Mas então, exatamente quando parecia que iriam escapar… a sorte acabou.
Mais uma vez, segurei Ruijerd. Tínhamos que esperar até que
ficassem realmente sem saída. Quanto pior as coisas ficassem antes de
aparecermos, mais profunda seria sua gratidão.
Vou deixar aquelas coisas derrotá-los para que possa os curar com minha
magia depois. Heheheh. Perfeito…
O menino parecido com um pássaro voou pelo ar… separado em dois pedaços
diferentes.
Meu ataque atingiu o alvo com força suficiente para obliterar um Ente de Pedra,
mas, de alguma forma, a coisa permaneceu de pé.
Por um momento, pensei que sua armadura era incrivelmente forte. Então
percebi que só seu braço direito sumiu. Fiquei tão nervoso que errei meu feitiço.
— Huff, huff… O-obrigado, cara… huff, huff… sério. V-vocês são… muito fortes,
hein…?
Kurt estava olhando para mim com algo parecido com admiração em seus
olhos. Meu peito doía de culpa, por isso desviei o olhar do rosto dele.
Sim. Eu sei. Eu sei! Eu também não queria que acabasse assim, viu?
Eu estava explodindo de tanta vergonha e miséria. Não era isso que queria.
Pelo contrário. Lamentei minhas ações. Aprendi minha lição. Então, por que ele tinha
que ficar esfregando isso no meu nariz?
— Gah… — Realmente não havia nada que eu pudesse dizer. O garoto podia
muito bem estar morto por minha culpa.
E desta vez Eris também não apareceu em minha defesa. Ela estava olhando
para o cadáver de Gablin… provavelmente tentando processar seus próprios
sentimentos sobre tudo isso.
Não havia mais desculpas a oferecer. Falhei completamente. A vida das
pessoas estava em jogo, e eu nos segurei por muito tempo por puro interesse
pessoal.
— E-ei, vamos lá. Não comecem a brigar agora. — No final, foi Kurt quem
apareceu para interceder.
— Sim, mas eu posso dizer o que aconteceu. Vocês nos viram lutando e
discutiram sobre se deviam nos ajudar, certo?!
Não. Não foi nem mesmo uma discussão. Os abandonei por minha própria
conta.
— Sei que vocês são todos fortes, mas ainda havia o risco de algo dar errado.
E, de qualquer forma, vocês não tinham qualquer motivo para nos ajudar!
A raiva nos olhos de Ruijerd brilhou ainda mais feroz do que antes.
— Sim, eu sei! Não sou cego! E nós três queríamos ficar juntos até o fim! Mas
quer saber? Sabíamos que era possível que um de nós morresse! Qualquer
aventureiro está preparado para enfrentar esse risco – seja jovem ou velho!
Meu peito latejava dolorosamente diante dessas palavras. Eu não estava nem
remotamente preparado para encarar a morte de frente. Eu tinha visto toda essa
coisa de aventureiro como nada além de um meio fácil de ganhar dinheiro.
— Estou grato por você ter intervindo para nos salvar, mas era nosso trabalho
nos mantermos seguros. Se alguém tem culpa, sou eu! Fui eu quem assumiu essa
tarefa e nos colocou em perigo!
O argumento de Kurt tinha a retidão teimosa de uma criança que realmente não
entendia como o mundo funcionava. Mas também foi sincero e honesto. Esse tipo
de paixão era algo que ultimamente começou a me faltar. Em minha obsessão por
ganhar dinheiro e subir nos ranks da Guilda, comecei a ver nossas tarefas como
nada mais do que “missões” de algum videogame.
— Sinto muito… Kurt, não é? Errei em te tratar como uma criança. Parece que,
afinal de contas, você é um guerreiro.
— Não se desculpe, por favor. Nada disso muda o fato de que cometi um erro
terrível.
— Não, não foi um erro. Você estava apenas tentando respeitar o orgulho deles
como guerreiros. Eu estava muito ansioso para intervir.
Ruijerd parecia ter ordenado e decidido as coisas por si mesmo. Mas não achei
suas conclusões muito convincentes. Desse dia em diante, eu pensaria seriamente
em meus erros. Precisava identificar exatamente onde tinha errado e ter certeza de
que isso nunca mais aconteceria.
Kurt e seu amigo nos disseram que planejavam carregar seu camarada morto
de volta à cidade. Nós os escoltamos de volta até a entrada da floresta. Eu esperava
que Ruijerd insistisse que os seguíssemos até Rikarisu, mas ele balançou a cabeça
diante da sugestão. O homem reconheceu Kurt e seus amigos como guerreiros. Isso
mudou as coisas.
— Eles podem não conseguir voltar em segurança com o grupo reduzido. Mas
decidiram enfrentar esse risco.
Kurt havia dito isso, sim. Mas havia algo profundamente melancólico em sua
postura enquanto ele se afastava de nós. Era tão óbvio que Eris impulsivamente
correu até o garoto e disse:
— Boa sorte!
Ela não falava a língua dele, é claro, mas Kurt percebeu claramente o
significado de suas palavras pela expressão em seu rosto.
— Obrigado — respondeu. — Uhm… é assim que vocês fazem?
— Hã?!
O menino pegou a mão de Eris, se inclinou para frente e a beijou perto da junta
do polegar. Com um último sorriso brilhante, se virou e voltou a se afastar.
De repente, ela se virou para olhar para mim e começou a esfregar a ponta da
mão vigorosamente na borda da armadura.
Aquilo em seu rosto era pânico? Digo, o garoto a beijou, mas ela estava de
luvas. Não parecia nada para se preocupar.
Eu realmente queria que minha mente não tivesse voltado direto para a coisa
do “dinheiro”.
— Ah, cala a boca! — gritou Eris, batendo os pés no chão com lágrimas nos
olhos.
— Rudeus! Aqui!
Nesse ponto, ela colocou a mão na frente do meu rosto. Eu a lambi por reflexo.
— D-desculpe por isso, Rudeus. Mas você não pode me lamber, entendeu?! —
Foi tudo muito adorável, então eu a perdoei na mesma hora.
Este não tinha sido, no geral, um bom dia, mas eu não estava mais me
sentindo tão miserável.
Ele era um homem com um código moral absoluto e amava “crianças”. Esses
foram os fatos fundamentais com os quais trabalhei até este momento; mas aquela
conversa anterior sugeriu que “guerreiro” também era uma espécie de palavra-
chave para ele.
— Guerreiros são aqueles que protegem as crianças e lutam pelo bem de seus
companheiros.
Isso explicou muito, na verdade. Suas explosões de raiva agora faziam mais
sentido. Ruijerd não estava atacando aleatoriamente; ele apenas esperava que os
“guerreiros” se comportassem com dignidade.
No entanto, era um pouco difícil dizer exatamente onde estava traçada a linha
entre “crianças” e “guerreiros”. Tive a sensação de que ele ainda considerava Eris
uma criança, mas não tinha certeza de onde me colocou nos últimos dias.
— Isso mesmo.
Hmm. Bem, eles são aventureiros de rank B. Acho que Ruijerd os classificou
como guerreiros desde o início…
— Hein…? — Uhm, esses senhores parecem estar mortos… Então foi isso que
ele quis dizer com “não é necessário”, hein?
— Estão mortos.
Seu corpo era tão grosso que Eris e eu não poderíamos ter passado os braços
em torno dele e tocar dedo com dedo. Devia ter dez metros de comprimento. E sua
área de “pescoço” era mais plana e larga do que o resto de seu corpo. Eu podia ver
duas protuberâncias distintas no meio do tronco do monstro. Um deles era
provavelmente um grande pedaço de porco.
No momento, ela estava ocupada com sua atual refeição e não parecia ter nos
notado. Estava apenas começando a degustar de seu terceiro aventureiro do dia.
Pelo visto, isso cabia a mim. Eu levei um momento para pensar no assunto.
— O qu…
— Hissss!
Nesse meio tempo, Eris deu a volta na parte de trás da cobra. Ela deu um
grande golpe em sua cauda, usando sua espada. O golpe atingiu o alvo, mas não
cortou todo o caminho através do monstro. Suas escamas, ou talvez seus músculos,
eram claramente duras.
— O quê, de novo?!
O padrão era simples, mas não era fácil de lidar. Se o monstro tivesse focado
seus ataques em Eris, ele talvez pudesse ter quebrado nossas linhas. Mas Ruijerd
era tão mestre em ser um “aggro1” que a Cobra Capuz-Vermelho foi forçada a
ignorar eu e Eris.
O Superd e eu não acertávamos nenhum golpe, mas com o tempo, a cobra ficou
cansada. Seus movimentos começaram a ficar lentos.
E, no final, um dos meus feitiços Canhão de Pedra finalmente acertou em cheio.
Eu não sabia quais partes específicas dessa coisa eram valiosas, então apenas
arrancamos suas presas, e depois tiramos sua pele e enrolamos como se fosse um
tapete. Encontramos os ovos que o grupo de Kurt estava procurando nas
proximidades, mas eram tão grandes que parecia impossível carregá-los. Pensei
em nossas opções por um tempo antes de decidir quebrar todos. Afinal, permitir a
geração deliberada de monstros no local era contra a lei.
Tenho que dizer, porém, que aquela cobra vermelha foi algo realmente…
Evitou meus feitiços. Inúmeras vezes, na verdade. Até aquele golpe direto no
final, nunca consegui realmente acertar a coisa.
Parando para pensar sobre isso, o Executor de antes fez algo bem semelhante.
Eu tinha mirado meu primeiro feitiço em seu peito, mas ele só perdeu parte de um
braço. Talvez precisasse assumir que monstros de rank B ou superior eram capazes
de evitar a magia.
Claro, a cobra era até mesmo de rank A. Na verdade, o monstro também evitou
os golpes de lança de Ruijerd… mas provavelmente porque ele estava se
segurando. Se o Superd realmente quisesse, eu tinha certeza de que ele poderia
matá-la instantaneamente.
Tendo matado a Cobra Capuz-Vermelho, nosso grupo voltou para a Guilda dos
Aventureiros. Como sempre, nos encontramos com Jalil do lado de fora do prédio
para trocar nossos cartões de tarefas. Também entregamos as presas e a pele da
cobra e elaboramos nossas histórias para garantir que permanecessem
consistentes.
Havia uma grande quantidade de coisas para carregar dessa vez, então, todos
nós entramos na guilda, até mesmo Vizquel. No momento em que colocamos os pés
lá dentro, Nokopara se aproximou de nós. Sério, parecia que o cara nunca saía do
lugar… ou nos deixava em paz.
— E aí! Parece que vocês caçaram uma presa realmente interessante. Aquilo
que estou vendo são escamas de uma Cobra Capuz-Vermelho? Hein?
Olhei para Jalil, levando-o a contar a história que havíamos elaborado com
antecedência.
— S-sim, isso mesmo. Tivemos sorte e topamos com a coisa quando ela já
estava bem fraca.
Nokopara olhou para Jalil com algo que parecia um sorriso condescendente em
seu rosto de cavalo.
— Sim.
— Droga. Acho que é isso que acontece quando alguém se depara com uma
Capuz-Vermelho… — disse Nokopara bufando desinteressado. — Mesmo assim…
mesmo que estivesse enfraquecida, é difícil imaginar você e Vizquel derrubando um
monstro daqueles…
— Bem, para ser sincero, ela não estava só enfraquecida. Estava quase morta.
Digo, alguns poderiam até falar que a coisa já estava morta. Ainda respirava, sim,
mas era basicamente um caso sem volta, sabe? — Jalil, começando a falar um
pouco rápido demais, escolheu este momento para se afastar com pressa.
No entanto, Nokopara ainda não parecia satisfeito e voltou sua atenção para
nós.
— Hmmmm…
Algo nessa conversa parecia um pouco estranho. Tentei fugir e sair apressado
como Jalil havia feito, mas assim que comecei a me mover, Nokopara pendurou o
braço em volta dos meus ombros, de uma forma estranhamente íntima, e se inclinou
para sussurrar ao meu ouvido:
Por apenas um instante, parei de me mover. Mas acho que consegui manter
um rosto inexpressivo. Era uma atuação já planejada. Ele só nos viu saindo de
Rikarisu. Eu poderia falar o que quisesse.
Certo. Então ele também viu Jalil e Vizquel pela cidade. Em outras palavras, o
quebra-cabeça estava montado.
Mas eu não seguiria esse caminho. Se o fizesse, Ruijerd poderia cortar os laços
comigo para sempre. Afinal, era uma conduta inadequada para um guerreiro.
— Hein?
Claro, isso não significava que as pessoas ficariam bem com isso. Não se pode
fazer o que bem entender apenas por não ser algo tecnicamente ilegal. Mas também
não tinha certeza se havíamos ultrapassado a linha do comportamento inaceitável.
Seria melhor insistir que não tínhamos feito nada de errado.
— As tarefas começariam a ser vendidas pelo lance mais alto. Todo o maldito
objetivo da guilda desapareceria!
Hm. Eu poderia insistir que não estávamos pagando um ao outro por nossas
tarefas… mas isso provavelmente não funcionaria, certo? Bom… Acho que seria
possível tecnicamente classificar isso como uma forma de “comprar ou vender
tarefas da guilda”. Esse cara é mais inteligente do que parece.
— Tem certeza que quer usar esse tom comigo, garoto? Veja só, agora você
está em uma pequena enrascada… Você também, Jalil, escute!
Nesse ponto, Nokopara me agarrou pela frente do meu robe e me levantou do
chão.
Olhando para trás, balancei a cabeça para Eris e Ruijerd, cujos olhos estavam
brilhando de raiva. Agora, precisava que ficassem calmos; essa conversa ainda não
havia acabado.
Ah, nossa. Na verdade, isso é quase revigorante. Eu senti que foi a primeira vez
que encontrei um desses tipos desde que reencarnei neste mundo. Todo mundo
que encontrei nos últimos tempos estava mais para personagens sem graça, sabe?
Era bom encontrar um desses safados sabichões de vez em quando. Pelo menos
não teria que pensar demais na situação.
Em todo caso, agora sabia por que Nokopara perambulava pela guilda o dia
todo. Ele obviamente mantinha um olho atento para aventureiros que não faziam
nada de bom – para que pudesse arrancar dinheiro deles. Parecia um ramo de
atuação fácil e agradável.
— Atualmente vocês estão ganhando uma graninha, né? Heheh. Então não
deve ter problema.
— Tipo qual?
— Sim, com certeza. Eles te estapeariam com uma bela taxa e rasgariam seu
cartão se descobrissem. Não gostaria disso, certo?
Fique calmo. Não vale a pena entrar em pânico. Eu sabia que algo assim
poderia acontecer. Estamos bem. Ainda estamos bem.
— U-uhm, certo, não temos tanto dinheiro disponível agora, então… Jalil e eu
podemos entregar nossos serviços?
Pelo visto, esse cara não era tão inteligente assim. Nós dois nos separamos e
nos dirigimos para o balcão.
— Jalil, calma. Você precisa agir como se não houvesse nada de errado.
Tendo dado a Jalil aquelas instruções vagas, fiz sinal a Vizquel para vir e se
juntar a nós. Passamos nossos cartões de tarefas preenchidos e recebemos nossas
recompensas. Mas antes de sairmos do balcão, também os fiz dissolver o Caçador
M e que entrassem no Fim da Linha.
Isso poderia ser significativo ou não. Eu não tinha certeza de quão detalhados
eram os registros da Guilda.
Olhei para o outro lado da sala e vi Ruijerd encarando Nokopara com intenção
assassina em seus olhos. Embora possamos ter quebrado as regras da guilda,
parecia que a tentativa arrogante do Cara de Cavalo de nos chantagear era uma
violação muito mais grave do código do guerreiro.
Eris não parecia entender o que estava acontecendo. Se ela falasse a língua
do Deus Demônio, provavelmente teria sido a primeira a atacar aquele cavalo
detestável… e provavelmente teria usado sua espada, não seus punhos.
Parei por apenas um instante para acalmar meus nervos e fazer uma pequena
oração silenciosa.
— Ah, e não tenha nenhuma ideia engraçada sobre me atacar em algum beco
— disse Nokopara, seus olhos se movendo de Ruijerd para Jalil.
Senti que a raiva no rosto do Superd era bastante óbvia, mas o Cara de Cavalo
não parecia muito intimidado. Talvez estivesse acostumado a ser encarado por
homens que o queriam morto.
— Se eu morrer, meus amigos irão direto para a guilda e vão te denunciar. Ah,
e ao contrário de vocês, falsos ranks C, sou a coisa real. Eu poderia subir para
o rank B na hora que quisesse.
Seria bom assumir que a última parte não passava de um blefe. Mesmo
Nokopara certamente não acreditava que poderia enfrentar nós cinco sozinho. Ele
estava nos encurralando, sim, mas isso não significava que desejava morrer.
Ainda assim, isso parecia um tanto descuidado da sua parte. Eu teria levado
pelo menos um guarda-costas se estivesse no lugar dele.
A princípio, a velha senhora olhou para nós com desconfiança, mas assim que
percebeu Vizquel, seu rosto se iluminou.
— Olha só! Se não é Vizquel! O que é tudo isso, querida? Você me trouxe uma
grande multidão hoje. Ah, esses são os outros membros do Ruijerd Fim da Linha?
— Desculpe, senhora, mas eles não são do Fim da Linha. Você foi enganada.
— Bem, eles…
— A Vizquel eliminou aqueles insetos muito bem. Não dá para vencer um
Zumeba nesse tipo de coisa, não é? Desde aquela vez não vi nenhum.
Pelo que parecia, Vizquel havia lidado com algum tipo de infestação de insetos
no local. Parando para pensar nisso… essa velha senhora combinava com o que
sabíamos de um dos clientes para quem Ruijerd a observou trabalhando.
— E-escute, senhora…
— Inferno, eu sou uma mulher velha. De qualquer forma, não tenho muito tempo
sobrando. Se no final tivesse a chance de encontrar um Superd de verdade,
aproveitaria isso.
Neste ponto, o Caçador M já não existia mais. Um exame dos registros da guilda
provavelmente teria revelado o porquê. E com um pouco mais de trabalho,
evidências de nossa quebra de regras também poderiam aparecer. Mas, pelo menos
por enquanto, isso não pareceu passar pela mente de Nokopara.
— Sinto muito, Nokopara, mas não acho que podemos pagar se você não puder
apresentar nenhuma prova.
— Puta merda…
Era… aparentemente a Pousada Garra do Lobo. Parecia que Jalil havia feito
algum trabalho estranho no lugar em que estávamos. Seria mais difícil mentir se
tivéssemos que lidar com alguém que realmente nos conhecesse, mas senti como
se nós mal tivéssemos falado com o estalajadeiro. De alguma forma daria tudo certo.
Isso não era bom. Havia cerca de quinze sinos de alarme diferentes tocando na
minha cabeça: Emergência. Emergência. Alerta vermelho. Ataque aéreo chegando!
Contingência imprevista! Tarde demais, eu entendi o quão imprudente e estúpido
realmente fui.
— Ah, Rudeus. Você voltou. Cara, que bom te ver… Uh, o que há com toda
essa gente?
Ah, merda.
Não sei se Nokopara percebeu meu pânico ou se planejou fazer essa pergunta
desde o início. Mas, de qualquer forma, nos pegou.
O atual rank do Fim da Linha era D. A tarefa que o Caçador M aceitara era
de rank B. Em outras palavras, não poderíamos ter aceitado aquele trabalho. Nossa
história estava prestes a desmoronar.
— O quê…?
Kurt olhou para mim e para o Cara de Cavalo. Eu balancei minha cabeça
freneticamente, tentando dizer a ele para manter a boca fechada.
Vamos! Você é um garoto orgulhoso! Ninguém te ajudou! Você passou por essa
bagunça sozinho, certo?
Se o garoto pelo menos insistisse que não tinha ideia do que Nokopara estava
falando, ainda tínhamos uma chance. Eu só tinha que rezar para que seu orgulho e
teimosia dessem as caras.
— Claro que foi! Nunca vi ninguém tão forte quanto esses caras antes!
Ele passou a explicar o quão forte nós realmente éramos, descrevendo como
derrotamos o Executor e as Anacondas Amêndoa usando um estilo vigoroso que
envolvia toneladas de efeitos sonoros.
Nokopara ouviu toda a história com um grande sorriso no rosto, de vez enquanto
soltando um: “Uau, isso é incrível” ou “Sério mesmo?” Quando Kurt finalmente
perdeu o fôlego, ele se virou para nós.
— Bem, isso é muito estranho. Vocês não trabalharam na cidade? Por que
estavam na floresta salvando crianças de monstros?
Estava tudo acabado. Não adiantava mais fingir. É óbvio, Nokopara descobriu
como usar isso para colocar nossas costas contra a parede.
1.
1. Matar Nokopara.
Em outras palavras, era como jogar alguns dados e esperar pelo resultado.
Péssima ideia.
2.
2. Culpar Jalil por tudo.
Éramos novatos e Jalil era um veterano. Se eu começar a gritar que ele nos
enganou e se aproveitou de nós, poderíamos acabar escapando.
No entanto, tentar isso me custaria a amizade com Ruijerd. Afinal, trair nossos
“camaradas” seria simplesmente errado. Outra péssima ideia.
3.
3. Entregar o dinheiro agora, encontrar uma saída depois.
Isso também seria como jogar os dados. Eu poderia encontrar uma maneira de
resolver as coisas rapidamente, mas agora que Nokopara sabia que éramos
perigosos, provavelmente montaria um esquema de várias camadas para nos
manter presos nesta cidade e em segurança nas garras de sua gangue. Outra
péssima ideia.
Bem, agora eu tinha três planos terríveis como opções. Esse foi claramente um
tempo bem gasto!
A única saída mais simples era o plano dois, mas provavelmente era, de longe,
a pior escolha. Quaisquer que fossem seus benefícios imediatos, estaríamos nos
paralisando a longo prazo.
Trair Jalil e Vizquel significaria perder a confiança de Ruijerd para sempre. Ele
provavelmente nunca voltaria a escutar minha palavra.
Porém, o plano três também não era lá muito bom. Ao entregar dinheiro a essas
pessoas, estaríamos admitindo nossa própria culpa. Só quero que todos saibam que
essa era a última coisa que eu queria fazer.
Não, não. Comparado a seguir esse caminho, poderíamos muito bem escolher
um plano novo. Teríamos apenas que matar Nokopara. E todos os seus amigos.
Essa não era… minha única opção? Eu realmente faria isso? Teria que fazer?
Mesmo assim… digamos que eu fizesse isso, por mais doloroso que fosse. O
que aconteceria com Jalil e Vizquel? Eles não apenas participaram de nosso
esquema, como a investigação da guilda poderia também revelar evidências de seu
negócio de sequestro de animais. Nosso grupo tinha economizado algum dinheiro e
não tinha nenhum apego especial a esta cidade, mas os dois eram diferentes. Esta
era a casa deles, e poderiam acabar sendo expulsos dela. Não tinham as
habilidades para sobreviver no deserto. Os abandonar não seria apenas outro tipo
de traição? Poderíamos acolhê-los depois de serem banidos?
Não. Sem chances. Já seria difícil lidar com nossos próprios problemas; não
poderíamos cuidar dos deles também.
Tenho que lembrar do meu objetivo. Preciso levar Eris de volta para casa em
segurança, não importa o quê. Para que isso aconteça, estou disposto a trair Jalil e
Ruijerd. Não me importa se Eris acabar me odiando. Não me importaria em nunca
mais poder olhar Paul ou Roxy nos olhos!
Irei inundar toda a maldita cidade com um feitiço de nível Santo. Eris e eu
podemos fugir no meio da confusão. Se quiserem, podem até tirar meu status como
aventureiro. Irei alcançar meu objetivo, não importa o quão baixo tenha que ser.
Apenas vejam!
— O qu… ah…
De repente ele ficou branco feito papel, e seus joelhos começaram a tremer. O
homem não estava olhando para mim; estava olhando para algo atrás de mim.
Me virei. Ruijerd estava lá, parecendo muito… molhado. Uma jarra de água que
vi atrás da pousada estava no chão ao seu lado.
— R-Ruijerd…?
Seu cabelo verde esmeralda brilhava ao sol. Estava encharcado. Ele jogou a
água na cabeça e lavou a tinta azul. Também tirou a bandana para expor a “joia”
vermelha em sua testa.
— Eu sou Ruijerd Superdia, também conhecido como Fim da Linha. Parece que
minha identidade foi exposta. Acho que agora vou ter que matar cada um de vocês.
— Aaaaaaah!
À medida que o caos se espalhava, Jalil foi o primeiro a nos trair. Gritando: “Eles
me ameaçaram! Eu não sabia de nada! Não estou do lado deles!” Depois se virou e
saiu correndo, levando Vizquel consigo.
As pernas de Kurt cederam. Talvez ele estivesse se lembrando de como tinha
sido severo com Ruijerd no outro dia… Seu rosto estava mortalmente pálido e
parecia que estava mijando nas calças.
Por que de repente ficaram todos tão apavorados? Ainda era Ruijerd. A única
coisa que mudou foi a cor de seu cabelo. Eu não conseguia entender isso.
Até então estavam todos agindo normalmente, não? Vamos, Kurt. Você estava
falando sobre Ruijerd como se ele fosse algum tipo de super-herói. Disse que queria
ser como ele algum dia, lembra? Seu olhar na direção dele era até respeitoso! Então,
por quê? Por que está com tanto medo agora que seu cabelo ficou verde? Olhe para
Eris, cara. Ela não tem ideia do que está acontecendo, mas está calma, certo? Está
parada ali de braços cruzados, os pés bem separados e o queixo erguido.
Observando tudo isso em silêncio e com os olhos bem abertos.
Muitas das pessoas ao nosso redor estavam fugindo, cegas de pânico. Outras
estavam caídas na rua. Alguns sacaram suas armas, embora suas pernas
estivessem tremendo. Havia muitos tipos diferentes de pessoas na área,
mas todas estavam agora tremendo.
Eu sabia que as pessoas locais temiam o Fim da Linha. Mas não sabia que o
temiam tanto. Não sabia o nível do terror impregnado.
Hah.
Isso meio que me deu vontade de rir. Afinal, que sentido fizeram todos os meus
planos e esquemas? Deram uma olhada na cor real de seu cabelo e foi isso que
obtivemos. Realmente pensei que meu pequeno plano de atuação mudaria alguma
coisa? Que ridículo. Talvez achasse que todos iriam entendê-lo, assim como Eris e
os Migurd. Mas isso nunca seria possível.
Não era uma questão de contrariar alguns rumores horríveis. Para essas
pessoas, os Superds eram a personificação do terror. E eu queria mudar isso? Que
piada. Desde o começo era algo impossível.
— Você aí. Seu nome era Nokopara, não era? — Agarrando o homem-cavalo
pelo pescoço, ele o puxou do chão. O corpo dele parecia pesado, mas Ruijerd o
ergueu sem esforço.
— E-eu sinto muito! Não tinha ideia de que você era a coisa verdadeira! P-por
favor, não me mate! Por favor! — O rosto de Ruijerd estava cheio de raiva. Nokopara
tremia feito vara verde.
— Ei, mas que diabos está havendo?! — Eris sibilou, parecendo um pouco
nervosa.
Agora que os eventos haviam chegado até isso, a única maneira real de intervir
seria realizar minha ideia original e limpar tudo.
— P-por favor, tenha misericórdia! Eu tenho três… não, sete crianças famintas
em casa! — Nokopara implorou por sua vida de uma forma um tanto incoerente. Era
bastante óbvio que essas crianças não existiam. Até eu poderia ter pensado em algo
mais convincente.
Ainda assim, Ruijerd o deixou fora de perigo na mesma hora. Suponho que a
referência a crianças provavelmente foi um fator fundamental para isso.
— No entanto, é melhor você torcer para que nosso status de aventureiros não
tenha sido revogado quando chegarmos à próxima cidade.
Ruijerd empurrou seu tridente para frente e fez um único corte raso na bochecha
de Nokopara. Uma mancha úmida espalhou-se pela frente das calças do homem-
cavalo e algo se projetou na parte traseira.
— Não presuma que você está seguro mesmo dentro das muralhas desta
cidade… — Nokopara acenou com a cabeça vigorosa e repetidamente.
Em pouco tempo, Ruijerd foi expulso de Rikarisu. Levando toda a culpa por tudo
em seus ombros, ele fugiu para o deserto.
Foi um dia feio e frustrante. O Superd saiu correndo sozinho, deixando-nos para
trás. Logo, os guardas correram para perguntar a todos o que havia acontecido e eu
insisti que Ruijerd não tinha feito nada de errado. Mas aos olhos deles, é claro, eu
era apenas uma criança. Decidiram que ele devia ter me intimidado para dizer isso.
Eu estava com tanta raiva que poderia ter socado alguém. Afinal, exatamente o
que Ruijerd havia feito de errado? Foi tudo minha culpa. Nada disso teria acontecido
se eu não tivesse sido tão complacente.
— Ei, Rudeus…
Certo, não adiantaria descontar no Kurt. Naquela hora ele estava tentando nos
ajudar.
— Desculpa, Kurt. Isso não foi justo.
Ele realmente era um bom garoto. Mas Eris ainda estava olhando para ele com
as mãos cerradas ao lado do corpo.
— Eu tenho um favor a pedir. Quero que você nos pague por salvar sua vida.
— Tudo bem — disse Kurt, sua expressão ficando mais séria. — Do que vocês
precisam?
— Ruijerd realmente não é uma pessoa ruim. As pessoas têm medo dele por
causa de coisas que aconteceram há muito tempo, mas ele é um cara bom. Quero
que espalhe isso pela cidade, mesmo depois de partirmos.
— Uh… certo. Entendi. Acho que posso fazer isso… afinal, devo minha vida a
ele… — O garoto não parecia totalmente convencido.
Ah, bem. Ele parecia ser do tipo sério. Talvez realmente manteria sua
promessa.
Aqueles dois nos traíram bem no final, mas dificilmente poderíamos culpá-los
por isso. Era a única opção que tinham para se salvar. Deixando de lado como as
coisas terminaram, definitivamente nos ajudaram muito.
Quando parei para dizer olá, nos avisaram para ter cuidado lá fora, já que o Fim
da Linha havia fugido da cidade há não muito tempo.
A partir desse ponto, passaram a enfatizar que o Fim da Linha era um demônio
sedento por sangue e especularam sobre quais maldades estava cometendo dentro
da cidade – não que tivessem visto algo.
— Aquele homem ficou na cidade por quase dois meses e não causou nenhum
problema.
Agora, precisávamos nos encontrar com Ruijerd. Ele ainda estava em algum
lugar próximo? Eu tinha que assumir isso. Se seu orgulho como guerreiro ainda
estivesse intacto, não havia como nos abandonar… ou ao menos a Eris.
Assim que a cidade ficou completamente fora de vista, disparei fogos de artifício
mágicos para o céu. Eles estouraram no ar com um estrondo feroz, produzindo
um flash de luz e uma onda de calor.
Ela gritou o nome de Ruijerd a plenos pulmões. E, aliás, foi muito alto.
Desta vez, algo aconteceu depois de um tempo. Mas era um grupo de Coiotes
Pax. Descarreguei minha frustração neles.
— Olha, é o Ruijerd!
Não muito depois do fim da batalha, nosso Superd rebelde finalmente apareceu.
Havia uma expressão culpada em seu rosto; isso só fez eu me sentir ainda pior.
— Por que você não apareceu quando te chamamos? Estava planejando fugir
para algum lugar sem nos dizer nada?
No entanto, por algum motivo, as primeiras palavras que saíram da minha boca
foram acusatórias. Não era isso que eu queria dizer.
— Sinto muito. — Ruijerd começou com um pedido de desculpas. Estranho.
— Mas…
— Eu não sabia o que você estava pensando, é claro. E admito que, até hoje,
suspeitei que seus objetivos fossem imorais. Por esse motivo, houve momentos em
que mal conseguia respeitar suas decisões…
Ele fez uma pausa para olhar para Eris, então acenou para si mesmo.
— Você luta para proteger algo, Rudeus. E isso faz de você um guerreiro.
Quando Ruijerd disse essas palavras, realmente tive que me esforçar para não
chorar. Eu não merecia esse tipo de elogio. Eu era uma pessoa superficial e de visão
curta. Só pensava em ganhar dinheiro e encontrar maneiras de seguir adiante.
Estava pronto para abandonar até mesmo o próprio Ruijerd. Quase coloquei de lado
o único aliado em quem podíamos contar até o amargo fim.
Eu queria ser honesto com ele. Queria dizer algo – com minhas próprias
palavras, claras e simples, sem me esconder atrás de uma polidez superficial.
Mesmo se não soubesse exatamente o que era esse “algo”.
— Não diga nada. — Mas ele me cortou antes que eu pudesse continuar. —
Deste ponto em diante, coloque seus objetivos à frente dos meus.
— Hã…?
— Não se preocupe. Protegerei vocês dois, mesmo que você não melhore
minha reputação. Confie em mim… por favor.
Fazia sentido. Espalhar a palavra sobre Ruijerd não era uma tarefa fácil, e tentar
perseguir dois objetivos ao mesmo tempo tornava difícil realmente se concentrar em
qualquer um deles. Podíamos estar exagerando demais. Bem, ao menos nos
últimos tempos estive sob muito estresse. Havia esquecido algumas coisas que
realmente deveriam ter me ocorrido, e falhei em pensar em uma série de detalhes
importantes. Uma situação como essa poderia facilmente levar a desastres como o
que acabamos de passar.
Mas não pude aceitar isso. Não depois de ver o que acabei de ver. Não depois
de assistir todo mundo basicamente o perseguindo para fora da cidade com foices.
Não consegui dizer: “Então tudo bem. Espere do lado de fora da próxima vez que
chegarmos a uma cidade.”
— Eu não posso fazer isso, Ruijerd. Vou consertar sua reputação, não importa
o que aconteça.
Na verdade, sua oferta só fez minha determinação ficar mais forte. Eu devia
ao menos isso por tudo que ele fez. Simplesmente teria que fazer um trabalho
melhor de agora em diante. Não iria ultrapassar meus limites novamente, mas ainda
faria tudo o que pudesse.
— Você não aprendeu sua lição, Rudeus? Sou realmente tão indigno de
confiança?
— Eu acredito em você. É por isso que quero te ajudar a alcançar seu objetivo.
Ruijerd era um caso mais complicado, claro, e a escala de seu problema era
incomparável à minha. Mas isso não era motivo para desistir dele. Roxy tinha me
ajudado sem querer, mas eu não era Roxy. Teria que continuar tentando, continuar
errando e rastejando lentamente adiante mesmo na lama.
Da perspectiva de Ruijerd poderia até mesmo ser um enorme aborrecimento.
Podia haver mais desastres como este último, quando ele teria que limpar minha
bagunça para mim. Mas tudo bem.
— Hah… Então tudo certo. Suponho que devemos fazer o que pudermos.
Quando acordei na manhã seguinte, ele estava tão careca quanto uma bola de
bilhar.
— O que aconteceu ontem deixou claro que meu cabelo assusta as pessoas,
então me livrei dele.
Isso… deve ter exigido uma verdadeira determinação. No Japão, ficar careca
era uma maneira de expressar determinação obstinada ou mostrar remorso por
algum erro enorme. As coisas eram diferentes neste mundo, é claro. Mas, mesmo
assim… vendo Ruijerd desse jeito, eu meio que senti que deveria seguir seu
exemplo.
Eu realmente quero cortar meu cabelo e ficar careca? Digo, eu já estraguei tudo,
certo? Mas… hmm… Cara, sei lá…
Mas este mundo não era bem assim. Por um lado, aquele todo-poderoso Rei
Demônio estava longe de ser encontrado.
O que não quer dizer que “Reis Demônios” não existissem. Na verdade, havia
cerca de trinta deles no momento, e todos tinham pelo menos um pouco de território
para dominar. Mas não eram governantes de verdade. Apenas se chamavam de reis
e agiam como se fossem donos do pedaço.
Eu não tinha entendido perfeitamente a relação exata entre o Rei Demônio local
e aqueles caras. Ele realmente deu ordens a eles ou estavam apenas se chamando
de seus soldados? Provavelmente seriam seu exército se ele fosse para a guerra,
então acho que havia algum tipo de contrato em vigor.
Quanto mais eu pensava nisso, mais incrível Ruijerd parecia. O homem disse
que poderia derrubar monstros de rank A sozinho, eu acreditei nele. Mesmo
sozinho, ele era mais forte do que um grupo de seis ou sete aventureiros de rank B.
Três dias se passaram desde que deixamos a cidade de Rikarisu. Não tenho
certeza se isso teve alguma coisa a ver com o fato de que estava me sentindo um
pouco mais relaxado depois de conquistar a confiança de Ruijerd, mas meu apetite
estava ficando cada vez mais feroz.
O problema era que não tínhamos nada de bom para usar. Estávamos vivendo
principalmente de carne de Grande Tartaruga, e essa não era exatamente a carne
de minha preferência. Decidi tentar melhorar um pouco a nossa situação culinária.
A coisa ficava nojenta quanto assada, então podíamos tentar um método diferente.
Usando magia, preparei uma grande panela de barro, um fogão básico, mas
poderoso, e um delicioso caldo artesanal da família Greyrat. Era tudo que
precisávamos para fazer um ensopado básico. Água era um recurso precioso por
aqui, mas eu poderia produzi-la em quantidades ilimitadas.
Inicialmente, queria usar uma panela de pressão para deixar a carne realmente
bonita e macia… mas a primeira que tentei fazer quase explodiu, então decidi não
seguir essa ideia. Cozinhar a carne dessa maneira exigiria muito mais tempo, mas
não tínhamos que nos preocupar com a conta de gás ou água. Caso fosse
necessário, eu estaria disposto a cuidar, com todo carinho do mundo, enquanto a
panela fervesse tudo por horas. Era particularmente conveniente que eu pudesse
fazer todos os utensílios de cozinha de que precisávamos usando a magia da Terra,
tornando-os descartáveis.
Um dia, também quis tentar defumar a carne… mas a fumaça dos Entes de
Pedra provavelmente não a deixariam com um sabor muito agradável.
Sim, ainda era desagradável. Não dava para remover aquele cheiro pungente,
e o sabor era o que era.
Para ser sincero, era estranho. Eu poderia jurar que esse produto tinha um
gosto muito melhor naquele vilarejo Migurd. Será que faltava alguma coisa?
Deviam ser aquelas plantas que eles cultivavam dentro do vilarejo. Achei que
fossem hortaliças meio mortas, mas não era o caso. Aquela planta era
provavelmente algum tipo de erva ou tempero… algo que usavam para esconder o
fedor da carne e melhorar seu sabor. Fui totalmente enganado pela descrição de
Roxy sobre como eram “amargas e desagradáveis”. Eram usadas como tempero;
não se deveria comê-las puras.
Minha nossa. Até minha mestra podia ser meio estúpida de vez em quando.
Fiz uma nota mental para tentar comprar algumas especiarias desse tipo, caso
houvesse alguma disponível na próxima cidade que visitássemos. Queria comprar
alguns outros ingredientes também, apenas para variar, mas talvez fosse
desperdício de dinheiro. A comida tendia a ser cara neste continente. Os vegetais
eram particularmente caros, já que a região era inóspita para a vida vegetal. Poderia
comprar cinco quilos de carne pelo custo de algo que se assemelha a uma raiz
de ginseng desgrenhada.
E a carne de Grande Tartaruga era barata. Era meio que a comida padrão do
lugar. Essas coisas eram maiores do que um caminhão de cinco toneladas, então
matar um resultaria em carne suficiente para manter uma família saciada por um
bom tempo.
Claro, não seria possível alimentar uma cidade inteira dessa maneira. Às vezes,
as pessoas comiam Coiotes Pax, ou até mesmo as larvas de insetos que viviam
dentro dos Entes. Por mais corajosa que fosse, Eris não estava muito interessada
em experimentar essa última coisa.
Não é como se comigo fosse diferente. A cultura culinária deste continente não
era exatamente do meu agrado. Dependendo de como cozinhasse, a carne de
Grande Tartaruga poderia ao menos ser comestível. Pelos padrões do Continente
Demônio, ela provavelmente se classificava como algo “saboroso”. Eu mal
conseguia entender de onde Ruijerd estava vindo quando chamou aquilo de
delicioso.
— Sim. Espero que nos deparemos com uma série de problemas em nossas
viagens. Conversando sobre as coisas e tomando algumas decisões importantes
com antecedência, podemos evitar entrar em discussões quando o tempo se provar
essencial.
— Espera… — Havia uma expressão de dúvida no rosto de Eris. Será que não
estava interessada em lidar com os detalhes? Ruijerd e eu provavelmente
poderíamos tomar todas as decisões sozinhos, mas deixá-la de fora parecia uma
má ideia. Ela não era algo como bagagem, era um membro do grupo. Eu precisava
de sua participação.
Todos os meses…? Ah, está falando sobre aquelas conferências que tive com
seus outros instrutores, quando estava dando aulas para ela em Fittoa. Sério,
esqueci tudo sobre aquilo.
Fechando a boca, Eris se deixou cair na minha frente com um baque. Ela estava
claramente tentando parecer muito séria, mas havia um sorriso incontrolável em seu
rosto. Parecia um pouco estranho. Não era como se estivéssemos fazendo algo de
divertido, mas a garota pelo menos não estava reclamando.
— A partir de hoje, quero conversar sobre as coisas entre nós três e tomar as
decisões em grupo.
— Muito bem. — Com um aceno rápido, Ruijerd também se sentou. Nós três
formamos um círculo ao lado de nossa fogueira.
— Então vamos lá. Venho por este meio convocar a primeira “Reunião de
Equipe do Fim da Linha”. Aplausos, por favor!
— Essa é a nossa primeira reunião, o que faz com que seja um momento que
vale a pena comemorar, certo? É por isso que estamos aplaudindo.
— Quieto, por favor! — gritei, dando minha melhor impressão de uma senhora
nervosa usando óculos triangulares. — Ruijerd, se você quiser falar, levante a mão
depois que eu terminar de falar.
— Entendido.
— Então vamos lá. — Agora que eu tinha feito Ruijerd ficar em silêncio,
continuei: — Já identifiquei uma série de fatores que contribuíram para o meu
fracasso.
— Uh… ReCoCo, é?
Uma excelente palavra da moda, se é que posso dizer. Parece quase francês!
— Isso mesmo, ReCoCo. Em primeiro lugar, quero que nós três nos
consultemos constantemente!
— Quando algo estiver incomodando você, ou houver algo que queira fazer,
fale para o grupo, em vez de guardar para si mesmo.
Para ser honesto, eu não tinha muita experiência prática com esse tipo de
discussão… mas não tínhamos que tornar isso muito complicado. O importante seria
se esforçar.
Eris estava balançando a cabeça, mas o olhar em seu rosto sugeria que estava
pensando muito. Era difícil dizer se estava realmente me acompanhando.
— Por último, mas não menos importante, relatem! Os detalhes podem ser
frequentemente importantes, mas vocês podem mantê-los simples se desejarem.
Apenas certifiquem-se de me informar quando algo der errado… ou quando algo der
certo.
Afinal de contas, eu ainda era tecnicamente o líder desse grupo. Precisava agir
como tal.
— Eu tenho!
— Sim, Eris?
— Então, nós três vamos consultar sobre as coisas, mas é você quem toma a
decisão final, certo?
— Então por que simplesmente não toma todas as decisões por si só?
— Mas nunca terei ideias que você não possa imaginar, Rudeus!
Foi legal da parte dela dizer isso, mas para ser perfeitamente honesto, eu
também estava em busca de alguma garantia. Queria a chance de passar meus
planos por eles e ouvir algo como: “Isso deve funcionar bem” ou “Você vai conseguir,
sem problemas”.
— Mesmo se isso for verdade, você pode dizer algo que me faça pensar de
uma maneira diferente e me indicar uma ideia melhor.
— Acha mesmo…?
Eris não parecia entender muito bem o sentido disso. Mas, por enquanto, isso
já era esperado. O importante era fazer com que nós três usássemos nossas
cabeças.
Claro, era mais fácil falar que chegaria ao Continente Central do que o fazer.
Não podíamos cruzar direto do Continente Demônio para lá; não havia nenhuma
rota de ligação marítima. Os povos-peixe governavam os mares neste mundo, e
todos os outros só podiam viajar por eles em um número limitado de linhas
predeterminadas.
— Ruijerd, como podemos alcançar o Continente Millis?
Tecnicamente falando, não era nossa única opção. Havia também uma espécie
de “rota alternativa”. Poderíamos viajar para o noroeste do Continente Demônio e,
em seguida, cruzar para o Continente Divino. Isso permitia que chegássemos ao
Continente Central sem passar por Millis. Isso, teoricamente, poderia diminuir o
tempo de viagem necessário em vários meses.
No entanto, essa rota não era tão simples quanto parecia. O Continente Divino
era totalmente cercado por paredes rochosas e íngremes. A menos que tivéssemos
asas, seria essencialmente impossível fazer isso. Ou seja, precisaríamos
basicamente rastejar pelos penhascos. Não havia estradas lá embaixo, e tampouco
bases estáveis. Também havia muitos, muitos monstros. Supostamente, apenas um
em cada vinte que se arriscavam naquela jornada sobrevivia para contar história.
O que significava… que nossa única opção real era ir para o sul.
— Quanto tempo vai levar para percorrer todo o caminho até lá?
Huh. Eu não estava falando sério, mas acho que realmente existem teleportais
por aí.
— Isso mesmo.
Pelo visto, não havia qualquer opção de transporte de alta velocidade para se
considerar. Viajar por seis meses seguidos parecia… muito assustador.
— Então vamos lá. Em geral, acho que devemos seguir para o sul, viajando
entre as cidades com guildas.
Depois de chegar a cada nova cidade, ficávamos por uma ou duas semanas. A
menos que perdêssemos nosso status de aventureiros, poderíamos assumir as
tarefas da guilda e espalhar a palavra sobre o Fim da Linha. Assim que juntássemos
dinheiro suficiente para comprar suprimentos para nossa jornada até a próxima
cidade, voltaríamos direto para a estrada.
— Ao menos esse era o projeto que estabeleci em minha mente… Vocês dois
têm alguma pergunta ou opinião sobre isso?
— Você não precisa se preocupar a falar sobre mim para ninguém. É por isso
que cortei o meu cabelo. No momento, não sou nem mesmo um Superd.
— Bem, não vamos sair do nosso caminho. Faremos apenas o que pudermos
enquanto completamos nossas tarefas.
Depois de ver o que Jalil e Vizquel haviam conquistado, percebi que não
precisávamos fazer nada muito sofisticado. Apenas faríamos o nosso trabalho
educada e meticulosamente e apresentaríamos “Ruijerd Fim da Linha” ao cliente
caso tudo corresse bem. E se algo desse errado, “Rudeus” seria o único a se
levantar e assumir a culpa. Bom e simples. De agora em diante, eu seria o único
associado aos erros e delitos do Fim da Linha.
O quê? “Você não decidiu que deveria conversar sobre tudo como um grupo?”
— Sim!
— Vamos dar uma olhada para ver quanto as lojas estão cobrando pelas coisas,
igual você costumava fazer?
— Ah, você fala sobre minha pesquisa de mercado…? — Hrm. Pensando bem,
em Rikarisu relaxei nisso. Eu realmente fiquei correndo por aí sem pensar. Se
tivesse me dado ao trabalho de estudar o mercado local com antecedência, poderia
ter conseguido nosso lagarto para todos-terrenos por um preço um pouco melhor.
— Sim, vamos fazer aquilo. Afinal, saber os preços locais é o primeiro passo para
gastar dinheiro com sabedoria. Mais alguma coisa?
Bem, isso provavelmente foi bom o suficiente para nossa primeira reunião. Sem
dúvida, teríamos problemas mais complicados à medida que avançávamos. O
importante era conversar com eles devagar, em vez de brigar um com o outro.
— Então vamos lá. Estou ansioso para trabalhar com vocês! — Com isso,
inclinei minha cabeça e encerrei as coisas.
Para ser justo, ele raspou todo o cabelo, até mesmo as sobrancelhas – e no
Continente Demônio, as pessoas geralmente não faziam nada muito dramático com
seus cortes de cabelo. Tive a sensação de que a maioria deles tinha orgulho de suas
aparências naturalmente distintas.
Para ser honesto, a essa altura, Ruijerd parecia nada mais do que um bandido
da máfia ou um skinhead, mas… será que havia toneladas de caras com o rosto
assustador no local? O fato de estarmos vestidos como aventureiros desta vez
provavelmente também fez diferença. Pareciam genuinamente satisfeitos ao nos
receber. Quando entramos na cidade, Ruijerd mencionou que nunca havia recebido
uma recepção tão calorosa antes, mostrando um pequeno sorriso no rosto.
Embora nossas aparições não parecessem mais ser um problema, quando nos
anunciamos como o “Fim da Linha” na guilda, alguns gritaram perguntas do tipo:
“Tem certeza de que isso é uma boa ideia?”
Quando respondi que não havia problema, já que o próprio homem estava
conosco, a maioria caiu na gargalhada. Foi bom ver que o truque ainda funcionava.
Fiquei quase grato por quão infame o nome “Fim da Linha” era. Era um excelente
quebra-gelo.
Fui imediatamente proibido de voltar a tocar nas calcinhas de Eris. Isso era meio
que um problema, já que significava que apenas Ruijerd seria capaz de lavar nossas
roupas. Eu não pretendia entregar a calcinha da minha querida Eris para algum
velho pervertido que não podia evitar dar um tapinha na cabeça de cada criança que
via. Portanto, a ensinamos como lavar a roupa e isso se tornou uma de suas
responsabilidades.
Um dia, Eris decidiu que queria começar a aprender a Língua do Deus Demônio.
— Jura?!
Bem, ela ainda não estava nem perto de estar pronta para ter uma conversa de
verdade, mas…
Sim, claro, posso ter exagerado um pouco… Acho que também é necessário
saber como elogiar, hein?
— Esse é o plano. Logo estaremos indo para Millis. — A palavra “logo” parecia
até um pouco otimista. Ainda tínhamos um longo caminho pela frente.
— Bem, você pode acabar vindo aqui de novo algum dia, certo?
Embora neste caso ela tivesse sido levada a isso por necessidade, parecia claro
que a menina ainda não gostava muito de estudar.
Infelizmente, não entendi. Nada mesmo. Não importa quantas vezes tentei. No
entanto, Eris era um caso diferente. De vez em quando, ela dizia: “Sim, agora
entendi!” com uma expressão animada no rosto.
Teoricamente entendi o que ela estava aprendendo com essas aulas. Ruijerd,
provavelmente, estava “apontando” nossos erros e fraquezas. O combate é algo
fluído e dinâmico. É difícil descrever o passo ou finta perfeita em palavras, então,
em vez disso, ele demonstrava com exemplos. Dito isso, nunca consegui nada com
essas coisas, exceto alguns hematomas. Se eu fosse capaz de melhorar apenas
levando pancadas, teria feito mais progressos há anos.
Será que ela poderia me vencer mesmo enquanto eu usasse magia? Parecia
plausível. Eu precisava pensar muito sobre como poderia melhorar. A ideia de me
sentar sem fazer nada enquanto Eris ficava cada vez mais poderosa era
simplesmente humilhante.
Em busca de uma maneira de ficar mais forte, acabei desafiando Ruijerd para
uma luta enquanto Eris estava fora cumprindo uma missão. Eu fui até ele com tudo
o que tinha, usando as táticas que desenvolvi para vencer lutadores de curta
distância como Paul, mas…
— Não foi de todo mal. Você já é um mago poderoso e versado. — Por alguma
razão, porém, ele me elogiou depois de tudo. Eu parecia me lembrar de ter ouvido
algo semelhante de Ghislaine há muito tempo. — No entanto, sua abordagem
estratégica foi ruim. Não há necessidade de tentar me vencer no combate corpo-a-
corpo.
Ruijerd explicou que eu deveria ter iniciado a luta de uma distância muito maior.
Era natural lutar quando se posicionava exatamente onde o inimigo queria.
— É difícil para mim dizer. Feitiços não são bem meu campo de especialidade…
Dizem que o povo-dragão é proficiente no uso de magia em combate próximo, mas
minha única experiência em primeira mão foi observar Perugius em batalha. Não
consigo falar muito sobre aquilo.
Como resultado, Perugius poderia ganhar uma vantagem cada vez maior
conforme a luta se arrastasse. Pelo visto, não tinha sido tão eficaz contra Laplace,
que tinha um suprimento verdadeiramente enorme de poder mágico bruto… mas
um guerreiro comum seria sugado e perderia a consciência em menos de cinco
minutos.
— É…?
Eu esperava que Ruijerd me apoiasse nisso, mas ele não pareceu concordar.
Talvez pensasse em Perugius como um tipo de camarada, já que o ajudou a se
vingar de seu inimigo mais odiado.
— Em qualquer caso, não se apresse. Você ainda é muito jovem. Ficará mais
forte na hora certa.
Repetimos esses mesmos passos básicos uma e outra vez, nunca nos
demorando muito em um só lugar.
No entanto, não parecia ser o caso. O homem explicou que era um espadachim
humano que tinha vindo ao Continente Demônio para se treinar.
Vaguear sem objetivo, exceto “ficar mais forte”, parecia inútil para mim, mas
tanto faz.
— Acho que você tem todo o direito de recusar. O que quer fazer?
1.
1. Será uma partida amigável, e não um duelo até a morte. Não é
permitido matar.
1.
1. Nosso guerreiro só vai dizer seu nome depois que a luta acabar.
1.
1. Ambos os lados concordam em não guardar rancor, seja qual for o
resultado.
Ruijerd venceu de forma justa, tendo defendido de forma limpa os ataques mais
furiosos de seu oponente. Ele não pegou leve com o cara nem nada; apenas adotou
uma abordagem calma e de baixo risco, se livrando de tudo o que o espadachim
tentava, até encurralar o homem.
A essa altura, o homem sabia que estava cara a cara com o mais “temível” e
“cruel” dos terríveis Superds, e experimentou a força dele em primeira mão. Eu teria
esperado que ele se encolhesse de terror. Mas os dois eram guerreiros, e isso
aparentemente foi o suficiente para formar um vínculo de respeito mútuo entre
ambos. Para aqueles que viviam em busca de força, Ruijerd era alguém a ser
admirado ao invés de temido.
— E pensar que tive a chance de lutar com uma figura lendária como você…
Vou ter que me gabar disso para todos lá de casa!
E tudo isso só foi possível porque Ruijerd havia cortado seu cabelo.
Durante todo o tempo, continuamos nos movendo para o sul, nunca perdendo
o nosso objetivo de vista. O oitavo e o nono mês de nossa jornada chegaram e
passaram.
Claro, nem tudo foi tranquilo. Problemas surgiram inúmeras vezes. Eris agora
podia entender o que as pessoas ao nosso redor estavam dizendo; como resultado,
às vezes pirava e começava a brigar quando pessoas zombavam de nós ou nos
insultavam. A identidade de Ruijerd foi exposta inúmeras vezes, o que resultou em
nossa expulsão de várias cidades. E também tentei espiar Eris no banho várias
vezes, apenas para que Ruijerd me arrastasse pela orelha.
Mas quando pensei nisso de verdade? Eris entrou em brigas, sim, mas nunca
desembainhou sua espada diante de ninguém. E quando Ruijerd foi expulso da
cidade, nunca foi algo tão violento e caótico quanto sua fuga de Rikarisu. Certa vez,
um soldado que encontramos disse: “Desculpe. Algumas pessoas ficam assustadas
quando sabem que há um Superd por perto”, em um tom de voz apologético.
Então comecei a me preocupar um pouco menos. Eris era uma pessoa violenta;
Ruijerd era um Superd; e eu era um pervertido. Nascemos todos assim, e não havia
muita esperança de que mudássemos agora. Nós três estávamos fazendo o melhor
que podíamos. Isso já era bom o bastante para mim. Uma bagunça de vez em
quando não era o fim do mundo.
Capítulo Extra - A
Princesa de Asura e o
Anjo
Ars, a capital do Reino Asura, era a maior e mais populosa cidade do mundo.
Bem no seu meio, havia um castelo com paredes brancas – naturalmente, um que
diziam ser o maior e mais bonito do mundo. Era conhecido como Palácio Prata e era
a residência da família real.
Dentro de suas paredes, havia uma luta cruel, feia e perpétua pelo poder que
desmentia sua aparência imaculada. Os nobres do reino nunca se cansavam de
conspirar, enganar e trair uns aos outros. Travavam batalhas dia e noite.
O mundo deste palácio era pequeno e infernal – um lugar onde se dizia que
absolutamente ninguém era confiável.
Além das residências da família real, o Palácio Prata continha vários jardins
esplêndidos.
Lá estava o Jardim das Rosas, cheio de plantas com flores vermelhas; o Jardim
das Peônias, repleto de plantas com flores negras; o Jardim de Hortênsias, repleto
de plantas com flores azuis; e, finalmente, um lugar onde floresciam apenas flores
brancas – o Jardim de Lírios.
O nome dela era Ariel Anemoi Asura, a segunda princesa do Reino Asura. De
sua mãe, a rainha consorte, uma beleza famosa, herdou traços adoráveis e cabelos
dourados brilhantes; de seu pai, o rei, herdou uma voz incomparavelmente bela. E
embora ainda não tivesse muita idade, seu carisma era irresistível. A maioria dos
moradores da capital já falava dela como a princesa mais linda que já existiu.
Uma vez a cada três dias, essa jovem visitava os Jardim de Lírios. Ela se
sentava a uma mesa de branco puro, acompanhada apenas por seu cavaleiro
guardião e seu mago, e calmamente tomava seu chá.
Nesses momentos, vê-la era encantador o suficiente para fazer qualquer mulher
suspirar de saudade, e tão cativante que nenhum homem conseguiria evitar de
olhar. Sua beleza, como a de uma fada de algum conto popular, era tal que parecia
rude até mesmo se aproximar dela. Assim, ninguém aparecia para falar com a
princesa quando ela visitava o Jardim de Lírios. Nem uma única alma se atrevia a
tentar beber chá com ela.
Seu cavaleiro guardião era um garoto de enorme beleza própria. Ele tinha lindos
cabelos castanhos brilhantes e fortes traços faciais; seu nariz era bem torneado, sua
mandíbula bem definida.
Seu nome era Luke Notos Greyrat. Segundo filho da família Greyrat, uma das
quatro grandes casas provinciais do reino, era um jovem e talentoso cavaleiro que
já havia alcançado o nível Intermediário no estilo Deus da Espada. Não havia uma
única garota dentro do castelo que não soubesse sobre ele. Embora ainda no início
da adolescência, já possuía uma língua de prata e nunca perdeu o interesse de
nenhuma senhora com quem conversou. Com sua aparência arrojada e mente
inteligente, dizia-se que conquistava todas as jovens nobres que cruzavam seu
caminho. Para não falar mais, nenhum outro homem no castelo era tão admirado
pelas garotas de sua idade.
O mago guardião da princesa era um pouco mais velho, talvez com dezesseis
ou dezessete – estava mais para um jovem do que um garoto.
Embora não fosse tão incrivelmente belo quanto Luke, ainda era bonito para
todos os padrões comuns; seu rosto um tanto esguio possuía uma atratividade
amável. Sua presença adicionava uma pitada de charme lúdico que complementava
muito bem a beleza dos outros dois, tornando ainda mais difícil para qualquer um
pensar em se aproximar deles.
Seu nome era Derrick Redbat, terceiro filho da conhecida casa Redbat, e era
um mago de nível Avançado que se formou no ilustre Instituto Mágico de Asura.
— Com todo o respeito, Lady Ariel, sinto que aqueles que se voltam para dentro
também têm um certo apelo.
— Bem, admito que não sou especialmente meticuloso quando se trata de tais
detalhes. No final das contas, o tamanho é tudo o que realmente importa para mim.
— Seu corpo era muito sensível e sua inocência encantadora. Foi uma noite
bastante agradável.
— Ah? Você já está preparado para jogá-la de lado, depois de dormir com ela
apenas uma vez?
— Receio que os seios de Sarisha não eram grandes o suficiente para o meu
gosto.
— Nada é mais excitante do que provocar garotas tão lindas, caso queira saber
minha opinião. Imagino que Sarisha soltaria maravilhosos gritinhos…
Nisto, não eram incomuns para aqueles de seu tipo. A maioria da nobreza se
entregava a um comportamento igualmente escandaloso ou ainda pior. Asura era
um reino com uma história de 400 anos que nunca conheceu a guerra ou a fome.
Para muitos de sua classe alta, um exibido gosto pelo que é decadente parecia até
mesmo um símbolo de status. Ariel e Luke ainda eram jovens, mas já estavam
imersos nas diversões de seu tipo.
Contudo…
— Luke. Lady Ariel. Acho que seria melhor vocês se comportarem… um pouco
mais discretamente.
— Ah, Derrick… você realmente deveria aprender o que significa ser um nobre
Asurano.
— Milady está certa, Derrick. Você é sempre assim. Se não descobrir como ler
o clima, nunca será popular entre as mulheres.
— Não foi isso que eu quis dizer, Lady Ariel. Você pode muito bem governar
este reino algum dia, por isso não parece sensato se expor a fofocas e intrigas. Você
corre o risco de fazer inimigos.
— Olha, Derrick. Você está sempre dizendo coisas assim, mas lembra que eu
sou a segunda princesa, correto?
— Tenho dois irmãos mais velhos e uma irmã mais velha. Parece que
encontraram um marido para minha irmã, mas meus irmãos estão lutando
implacavelmente pelo trono. Com eles por perto, não há a menor chance de me
tornar rainha.
— Isso não é verdade. Você é a filha da rainha consorte. Isso a torna a única
herdeira legítima do trono, e…
— Se você escolher lutar, Lady Ariel, eu daria minha vida para protegê-la, feliz,
de qualquer um que possam enviar.
— Você poderia, por favor, parar de dizer coisas tão alarmantes? De qualquer
forma, isso não foi muito convincente. Sei o que você realmente pensa sobre Luke
e eu… Provavelmente gostaria de me envolver em uma luta pelo poder apenas para
que possa me abandonar quando tudo começar, não é?
— Olhe aqui, Derrick. Não me importo se nunca tomar o trono. Ainda posso
tomar chá em um lindo jardim e viver minha vida da maneira que quiser, e isso é o
suficiente para mim. De qualquer forma, eu não teria chances contra os meus
irmãos. A ideia de me jogar por vontade própria nessa bagunça é
simplesmente absurda.
O pessimismo de Ariel era totalmente justificável. Não importa quão alto fosse
seu lugar na ordem de sucessão, ela era mais jovem do que seus rivais e tinha muito
menos aliados. Suas chances de vitória eram quase nulas. Então, de certo, era mais
sábio não lutar pelo trono e simplesmente viver uma vida de prazer indulgente. Ela
ainda era uma princesa do maior país do mundo, então essa opção era uma
possibilidade disponível.
Não era que Derrick tivesse abandonado suas responsabilidades como mago
guardião da princesa. Ele estava indo ao banheiro.
Ele e Luke tinham a tarefa de proteger Ariel o tempo todo, mas eram apenas
humanos, então seus corpos tinham certas necessidades. Quando um deles sentia
o chamado da natureza, geralmente informavam ao outro e faziam seus negócios o
mais rápido possível. Neste mundo, como em qualquer outro, as pessoas nunca
ficavam tão vulneráveis quanto quando faziam suas necessidades.
Não que pensasse que seus irmãos, o primeiro príncipe e o segundo príncipe,
fossem candidatos indignos. Se algum deles assumisse o trono, sem dúvida
amadureceriam e se tornariam um rei respeitável e comum se comparado aos que
vieram antes.
Mas do jeito que Derrick via, isso não era bom o suficiente. Com qualquer um
dos príncipes no trono, Asura continuaria em seu caminho atual – podre até o
âmago, mas mesmo assim se expandindo. As disputas feias e sem sentido da
nobreza continuariam sem controle, desperdiçando dinheiro e energia que poderiam
ser designados para o progresso. E com o tempo, o reino poderia ficar vulnerável à
influência estrangeira.
Esta terra nunca conheceu a fome. Não importa quão corrupta fosse a nobreza,
não importa quão severos fossem seus impostos, o povo nunca passava fome.
Assim, seu descontentamento raramente se transformava em fúria; poucos surgiram
para desafiar o status quo. Não houve grandes rebeliões ou guerras civis.
Ele ainda se lembrava claramente da primeira vez que a viu. Foi apenas alguns
anos antes, em uma celebração da maioridade realizada pelo reino. Na época,
Derrick tinha acabado de se formar no Instituto de Magia. Apesar de não ter sido o
melhor aluno de sua classe, se classificou muito bem e já havia garantido um posto
com os Magos Reais Asuranos, com quem se juntaria dentro de alguns meses.
Ele sabia que era um mago capaz, mas também normal. Não tinha grandes
expectativas para si mesmo. Mas naquele dia, encontrou uma certa jovem
encantadora. Embora Ariel ainda não fosse maior de idade, foi convidada para a
festa, uma convidada de honra. Apesar de sua juventude, fez seu discurso de
congratulações em um estilo claro e confiante; aos olhos de Derrick, sua sagacidade
e inteligência ofuscaram o melhor aluno que falara em sua formatura do Instituto.
Algum tempo depois, após se juntar aos Magos Reais, seu pai disse a ele que
a posição de mago guardião para a segunda princesa estava livre, e se ofereceu
para recomendá-lo para o posto – embora advertindo que seria uma chance
pequena. Ele aceitou entusiasmado.
Ariel era uma pessoa competente e dinâmica. No momento ela passava os dias
tomando chá e as noites pulando nas empregadas, sim… mas, por natureza, era
diligente, sociável e estava disposta a trabalhar duro para melhorar a si mesma. Se
assumisse o trono e se dedicasse ao fortalecimento de seu país, Derrick tinha
certeza de que Asura passaria por grandes avanços em uma única geração. Poderia
ser possível até mesmo conquistar todo o Continente Central.
Por um lado, ela era extremamente carismática. Tanto o Instituto de Magia
quanto os Magos Reais estavam cheios do que se poderia chamar de pessoas
insatisfeitas. Muitos sussurravam palavras de crítica aos ministros que atualmente
dominavam o governo, ou à nobreza e à família real.
No entanto, em todos os anos que passou nesses lugares, Derrick nunca tinha
ouvido ninguém falar mal de Ariel.
Ele tinha toda a confiança de que ela poderia se tornar uma governante como
Gaunis Freean Asura, que liderou a humanidade nos últimos estágios da Guerra de
Laplace e consequentemente assumiu o trono – um governante amado por todo o
seu povo. Já havia até mesmo algumas pessoas que morreriam por Ariel, cheias de
alegria. O próprio Derrick era um deles; tinha sido doloroso e enfurecedor ouvi-la
recusar aquela lealdade com tanta casualidade.
— Para ter certeza, sua vida corre pouco risco se continuar agindo dessa
maneira… mas ela está se rebaixando ao nível de um nobre corrupto…
Mas assim que estava afundando ainda mais na melancolia, ouviu o som fraco
de uma voz humana.
— Hm?
— Princesa Ariel…
— Matar…
— Isso mesmo. Afinal, sua popularidade com o povo é notável. Ele está
bastante chateado por ela ser mais conhecida do que ele, embora ela quase nunca
se mostre em público.
— Parando para pensar, isso é um pouco estranho… Qualquer que seja o papel
que ela esteja desempenhando no momento, pode estar trabalhando em alianças
pelos bastidores.
— Sim. Quando você não consegue vencer uma luta frontal, tem que se
esconder nas sombras, eu suponho.
Derrick ficou tentado a sair do banheiro e matar os homens do lado de fora, mas
rapidamente descartou o pensamento. Esses dois eram provavelmente nobres da
facção do primeiro príncipe. Eram homens que gastavam suas fortunas livremente
– e recorriam aos atos mais vis que se possa imaginar – para moldar os eventos a
seu gosto; quando encurralados, ofereciam todas as desculpas covardes que
podiam para salvar suas próprias peles. Havia muitos de sua laia dentro do palácio.
O jovem poderia matá-los na mesma hora com sua magia, mas isso seria um
ato sem sentido. Todo mundo presumiria que Ariel ordenou que seu mago guardião
matasse dois nobres leais ao primeiro príncipe. Isso seria interpretado como um ato
de hostilidade aberta contra o próprio Grabel e levaria a um fluxo constante de
ataques de seus seguidores.
Um dos nobres disse que já foram feitos “arranjos”. Nesse caso, provavelmente
aconteceria algo em breve – talvez até nos próximos dias. Seu objetivo era
provavelmente a própria Ariel, mas como seus guardas mais leais, ele e Luke
também eram alvos em potencial.
Precisava contar a Ariel sobre isso imediatamente… e exortá-la, mais uma vez,
a enfrentar essa batalha de frente.
Não era como se Derrick nunca tivesse tirado uma vida antes. Em uma batalha
simulada, acidentalmente matou seu oponente com um feitiço que acabou por
acertar sua cabeça. E durante o processo de seleção para o papel de mago
guardião, foi obrigado a lutar e matar um sujeito previamente condenado à morte –
como um teste de sua disposição para fazer o que fosse necessário.
— Posso protegê-la…?
Ele expressou sua ansiedade… então balançou a cabeça para tirar isso de sua
mente.
Isso era algo que ele não tinha como saber, mas…
No momento em que Derrick voltou para o Jardim de Lírios, seu queixo caiu
diante do choque.
Seus olhos estavam fixos em uma área na parte de trás do jardim – uma seção
conhecida como Floresta de Hibiscos.
— Como…?
Por que havia um Javali Exterminador ali? Este era o palácio real, lar da família
governante da maior nação do mundo. De forma alguma era um local seguro, mas
certamente era o último lugar que alguém esperaria encontrar um monstro
selvagem. Como aquilo poderia aparecer no local?
A mente dele se voltou para a conversa que acabara de ouvir. Foi aquele nobre
quem planejou isso? Não, não podia ser. Nenhum simples nobre poderia ter
contrabandeado uma besta tão selvagem e enorme para o coração do palácio.
Mesmo os ministros mais poderosos do reino não seriam capazes de tal coisa.
Embora não tivesse como saber disso, o Javali Exterminador tinha de fato sido
teletransportado para este local apenas alguns momentos atrás, como resultado do
Incidente do Deslocamento de Fittoa.
Ela ainda estava em sua mesa, conversando alegremente com Luke sobre
algum assunto vulgar. Os dois não tinham notado o Javali Exterminador – embora
aquilo estivesse olhando diretamente para eles, seus olhos brilhando como um
caçador avaliando sua presa.
Derrick começou a correr. E enquanto corria, começou a entoar um
encantamento mágico.
Quando Ariel caiu no chão, o Javali Exterminador abriu caminho através de uma
série de árvores delicadas do jardim, então voltou em direção ao seu alvo.
O que um mago poderia fazer nesta situação? O que poderia fazer ao estar tão
perto de um monstro tão grande? Não havia a menor chance de concluir um
encantamento a tempo.
— Ghaagh!
Ele teve a sorte de não perder a consciência na mesma hora. Mas talvez isso
não fosse lá uma grande bênção.
A mente de Derrick estava estranhamente clara. Ele sabia que estava perdido.
Podia sentir o cheiro de sua própria morte no ar. Os ferimentos que sofreu eram,
sem dúvidas, fatais. Já vi alguém morrendo graças a ferimentos bem parecidos, não
vi…?
Ele não sentiu medo. Talvez tudo tivesse acontecido tão de repente que seu
cérebro ainda não tivesse entendido.
Derrick tentou olhar para os lados movendo apenas os olhos. E quanto a Lady
Ariel? Está segura?
Ele logo a encontrou. Ela estava correndo em sua direção – seu rosto cheio de
choque e confusão, mas não de terror.
Quando a princesa gritou alarmada, ele reuniu a pouca força que lhe restava
para falar:
— Derrick, não tente falar! Alguém ajude! Não tem ninguém aqui?!
— Khh… Isso é… inútil, Lady Ariel… Já não posso mais ser salvo…
— Não… não! Não seja ridículo! Derrick, você precisa aguentar firme!
O jovem olhou para a princesa, agora claramente à beira das lágrimas, com
alguma surpresa. Ele estava convencido de que Ariel e Luke odiavam tê-lo por perto,
mas talvez isso não fosse de todo verdade. Apesar de tudo, sentiu um pequeno
impulso malicioso crescendo dentro de seu peito.
— Derrick…
— Lady Ariel, este é… meu último pedido. Por favor, eu imploro… assuma o
trono… e faça de Asura… um país melhor! Gggh!
Uma costela quebrada perfurou o pulmão de Derrick e ele tossiu uma grande
quantidade de sangue.
Luke, jogado de lado algum tempo antes, estava olhando do chão para a
princesa com uma expressão de puro desespero.
Ela olhou ferozmente para a criatura por um momento, então começou a gritar.
— Eu não sei de onde você veio ou por quê, mas está diante da futura Rainha
de Asura! Não vou morrer hoje. Vá embora!
Por favor, Deus… por favor nos ajude. Você pode tirar minha vida, mas ajude a
Princesa Ariel. Este mundo ainda precisa dela…
Ele orou em vão, é claro. Ele sabia disso melhor do que ninguém. Santo Millis
foi um homem verdadeiramente grande e o salvador da humanidade… mas não se
podia esperar que concedesse um milagre conveniente toda vez que alguém
precisasse de um. As coisas eram simplesmente desse jeito. Mesmo assim, Derrick
não pôde deixar de implorar.
— Aaaaaaaaaaaaah!
— Aah! Aaaaaah!
E com o coração cheio de paz, o mago guardião soltou seu último suspiro…
O Incidente do Deslocamento de Fittoa custou a vida de um jovem mago – e
forneceu a Ariel Anemoi Asura um propósito novo e diferente.
Que caminho ela seguiu após esses eventos? Como mudaram Luke Greyrat?