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Capítulo 01 - O Vigarista que

Alegou ser um Deus


Eu estava sonhando.
Neste sonho, estava voando pelo ar, segurando Eris em meus braços. Minha
mente estava confusa, mas, de alguma forma, eu sabia que estava voando. O
mundo ao meu redor não passava de um borrão com formas e cores
constantemente mudando. Voei pelo ar como se fosse uma onda sonora ou uma
partícula de luz, meu corpo era aleatoriamente jogado em diferentes direções.

Eu não sabia por que isso estava acontecendo. Mas tinha certeza de uma coisa:
não importava o que tentasse, acabaria perdendo a velocidade e sofreria um
impacto com o chão.

Então me concentrei. Olhei para a paisagem abaixo, em constante mudança,


tentando encontrar um lugar relativamente seguro para pousar.

Por que senti a necessidade de fazer isso? Boa pergunta. Algo dentro de mim
estava gritando que eu tinha que fazer, isso se quisesse sobreviver.

Ainda assim, estávamos indo rápido demais. Era como olhar para o molinete de
uma vara de pescar, mas tudo estava se movendo muito, muito mais rápido. Reuni
energia mágica nos olhos, podendo focar com maior intensidade… e por apenas um
momento, de repente diminuímos a velocidade.

Ah, merda. Vou cair!

Pânico brotou em meu peito, mas agora eu conseguia ver o solo abaixo de mim
claramente. Precisava cair sobre um campo. Cair no mar ou bater direto contra o
solo não seria bom. As florestas seriam obviamente perigosas, mas se conseguisse
mirar em um campo…

Me forcei a pousar, torcendo pelo melhor. Nossa velocidade diminuiu


rapidamente enquanto mergulhávamos em direção a uma extensa área com terra
marrom-avermelhada.

Um instante depois, perdi a consciência.

Quando abri os olhos, me vi em um lugar vazio totalmente branco. De imediato


soube que não era algo real. Devia ser algum tipo de sonho lúcido. Entretanto, por
algum motivo, meu corpo parecia estranhamente pesado.

— Hã…?

Olhei para mim mesmo e arregalei os olhos. Estava de volta à antiga e familiar
forma que tive por trinta e quatro anos.

Ao ver isso, as memórias da minha vida anterior voltaram à tona. Eu ainda era
o mesmo lixo amargurado, vil, inseguro e egoísta de sempre. Os dez anos que
passei como Rudeus de repente não pareciam nada mais que um sonho.
Uma esmagadora onda de decepção me dominou. Eu tinha voltado ao meu
velho e patético corpo, e achei esse fato muito fácil de se aceitar.

Então realmente foi só um sonho, hein…?

No que se diz respeito aos sonhos, durou um tempo terrivelmente longo. Mas,
no final das contas, foi tudo bom demais para ser verdade. Nasci em uma família
amorosa e consegui fazer amizade com algumas garotas muito bonitas. Nada mal
para apenas dez anos. Entretanto, queria aproveitar um pouco mais daquela vida.

Ah, bem. Acho que agora acabou.

Eu podia sentir todas as minhas memórias do tempo como Rudeus


desaparecendo. Depois que alguém acorda, mesmo o melhor dos sonhos se esvai
em um momento.

Realmente esperava por algo diferente? Por favor. Uma vida tranquila e feliz
como aquela nunca foi prevista para um cara como eu.

Eventualmente, notei que um estranho apareceu bem na minha frente. O


indivíduo em questão tinha um rosto em branco, sem nada, marcado apenas por um
enorme e largo sorriso.

Talvez em branco não fosse a palavra certa. Eu simplesmente não conseguia


distinguir nenhuma característica. Quando olhava para qualquer parte específica de
seu rosto, ela logo sumia de minha memória; minha mente recusou-se a formar sua
imagem. Quase parecia que… uma pessoa estava sendo borrada por um mosaico
pixelado.

Ainda assim, de alguma forma, senti que estava lidando com alguém calmo e
paciente.

— Ei, você. Prazer em conhecer, Rudeus.

Hm. Eu estava tão ocupado com autopiedade, e agora tinha um cara estranho
e todo censurado, tipo em um pornô, chamando para conversar.

Na verdade, aquela voz era bem ambígua. Talvez fosse um cara ou uma garota.
Que fosse uma garota! Isso faria a coisa pixelada parecer meio sexy, não?

— Olá? Pode me ouvir?

Ah. Sim. Claro. Olá, prazer em conhecer.

— Excelente. É bom ver que você tem tanta educação.


Na verdade, não falei em voz alta, mas parecia que meu amigo ali ouviu meus
pensamentos. Seria melhor continuar se comunicando dessa maneira.

— Uau. Nada te perturba, perturba?

Isso definitivamente não é verdade.

— Ehehe. Não precisa de tanta modéstia!

Enfim. Você é… quem ou o quê, para ser exato?

— Não consegue perceber isso por si mesmo?

Não consigo ver quase nada além de um mosaico. Uh, você é o Poderoso
Homem-Esperma ou coisa do tipo?

— O Poderoso Homem-Esperma? Quem é esse? Ele parece comigo?

Ah, com certeza. Ele tem seus pixels todos borrados, assim como você.

— Hmm. Então também existe alguém como eu no seu mundo…

Bem, não. Na verdade não.

— O quê? Ah, certo, vamos seguir em frente. Eu sou um deus. O Deus-Homem,


para ser específico.

Uhum. O Deus-Homem. Certo.

— Devo dizer que você não parece lá muito impressionado.

Uhm… só estou me perguntando por que um deus perderia tempo conversando


comigo, acho. De qualquer forma, não está um pouco tarde para você aparecer? O
deus supostamente deveria ter aparecido no primeiro capítulo, não acha?

— No primeiro capítulo…? O que quer dizer com isso?

Não importa, não é nada. Por favor, siga em frente.

— Certo. De qualquer forma, estou de olho em você já faz algum tempo. Você
tem vivido uma vida bastante interessante!

Espiar é sempre divertido, não é?

— Ah, foi, demais. E é por isso que decidi cuidar de você.

Você está cuidando de mim? Caramba, valeu aí. Falando em superioridade…


o que eu sou, seu mascote ou coisa do tipo?
— Vamos lá, não precisa ser tão hostil! Só estou falando com você porque vi
que está realmente encrencado.

Bem, é uma situação crítica. Qualquer pessoa que aparece se oferecendo para
resolver todos os seus problemas enquanto você está se esforçando com certeza é
um vigarista.

— Não, não. Estou do seu lado, amigo.

Hah! E agora somos amigos? Não me faça rir.

Conheci uns caras iguais você na minha vida passada, parceiro. Pessoas que
se aproximaram e disseram: “Dê o seu melhor” ou “Vou cuidar de você”. Eram todos
mentirosos. Realmente não ligavam para nada. Presumiram que tudo correria
conforme quisessem assim que eu fosse atraído para fora do meu quarto. Ninguém
tentou entender a origem do problema. Tudo o que você está falando me lembra
daquelas pessoas. Nunca vou confiar em você.

— Minha nossa, isso é um problema. Hmm… Por que então não te dou só um
conselho, hein?

Conselho…?

— Isso aí. Sinta-se à vontade para ignorar completamente, caso queira.

Certo. Entendi. Então esse é o seu método. Também já conheço essa. As


pessoas adoravam me dar conselhos. Achavam que podiam me socar um monte de
autoajuda e me fazer focar em algo além de minha própria miséria. Fala sério, vá
direto ao ponto. Que bem um pensamento positivo vai me fazer agora? Já passei
do ponto em que meu estado emocional faria alguma diferença. Ficar otimista só vai
resultar em mais dor no futuro.

Digo, este é exatamente o caso em questão! Por que me deixou sonhar, droga?
Realidade alternativa é o meu cu. Eu me agarrei a essa segunda chance de viver,
aí você vem e puxa o meu tapete? Precisava mesmo ser um maldito sádico?!

— Espera aí. Acho que você não entendeu o que está acontecendo. Quero te
ajudar com sua vida atual, não com a anterior.

Hm…? Então por que estou assim?

— Essa é sua forma astral. É diferente do seu corpo atual.

Minha… forma astral?

— Isso. Claro, seu corpo está perfeitamente bem.

Então, isso é só um sonho? Quando acordar não vou estar neste corpo horrível?
— Isso aí. Já que agora você está sonhando, vai voltar ao normal assim que
acordar. Melhor agora?

Nossa. Certo. Então isso tudo é só um sonho esquisito…

— Bem, não é só um sonho. Estou falando diretamente em sua mente. É difícil


de acreditar que sua imagem mental seria tão diferente do seu corpo…

Telepatia, hein? Bem, tá bom. Mas o que você quer comigo, tipo, de verdade?
Planeja me mandar para o meu velho mundo? Já que não pertenço a este lugar ou
coisa do tipo?

— Não seja ridículo. Eu não poderia te mandar para nenhum lugar além do
Mundo Hexa-Facial, é óbvio.

Hmph. Talvez isso pareça óbvio para você, mas eu aqui estou no escuro.

— Um ponto bem razoável.

Espera aí. Se você não pode me mandar de volta… então não é aquele que me
reencarnou neste mundo, é?

— Exato. De qualquer forma, essa coisa de reencarnação não é o meu


departamento. Essa é a especialidade de um certo Deus Dragão malvado.

Hrm. Então temos até um dragão maligno, hein…?

— De qualquer forma, quer ouvir o meu conselho ou não?

Não, valeu…

— Hein?! Por que não?

Não sei o que está acontecendo aqui, mas você com certeza é um personagem
suspeito. Isso significa que o melhor a se fazer é te ignorar.

— Aw cara. Eu realmente pareço tão suspeito assim?

Sim, e muito. Você não poderia parecer mais com um vigarista, mesmo se
tentasse. Isso me lembra daqueles golpistas dos quais cansei de me livrar em
MMOs. No instante em que eles começavam a falar, entravam em sua mente e já
começavam a mexer com sua cabeça.

— Eu não sou um vigarista! E nem vou pedir para você seguir meu conselho,
tá bom?

Isso é só uma parte da sua estratégia.

— Vamos láááá! Confie em mim!


Você é chorão demais para uma divindade. Olhe. Não é como se eu te
adorasse, seja lá quem você for. O único deus que me interessa é aquele que
realmente possibilitou o milagre da minha reencarnação. Por que eu confiaria em
um outro cara que resolve aparecer na minha cabeça e começa a falar um monte
de merda estranha? Ah, e as pessoas que ficam falando “Confie em mim” são
sempre mentirosas. Palavras de sabedoria de um dos meus livros favoritos.

— Vamos lá, não seja tão teimoso. Me dê só uma chancezinha.

Agora está soando igual um ex-namorado correndo atrás da namorada depois


de ser abandonado. Olha aqui, parceiro. Quantas orações você acha que eu fiz na
minha outra vida? Você nunca apareceu ao meu resgate. Nem uma vez, até que eu
morri. Por que resolveu me oferecer conselhos logo agora?

— Eu não sou do seu outro mundo, lembra? Sou um deus deste mundo, e estou
falando que de agora em diante vou te ajudar.

Certo. E estou dizendo que não confio em você. Que conversinha fiada. Se quer
que eu acredite em você, então me mostra um milagre ou coisa do tipo.

— Isso aqui não conta como um milagre? Quantas pessoas você conhece que
conseguem conversar através de um sonho?

O que há de tão especial em um pouco de conversa? Qualquer um pode fazer


isso. Só precisa escrever uma carta ou coisa do tipo.

— Bem, isso é verdade. Mas esse realmente é um bom motivo para me ignorar?
Nesse ritmo vai acabar morrendo.

Vou…? Por quê?

— O Continente Demônio é um lugar bem rigoroso. Por um lado, não há muito


o que comer. Por outro, está cheio de monstros, especialmente se for comparar com
o Continente Central. Sei que você sabe a língua deles, mas as coisas não vão
funcionar como previsto. Realmente está confiante de que pode sobreviver?

O Continente Demônio? O quê? Calma lá. Quer dizer aquele enorme pedaço
de terra bem no limite do mundo? Por que eu estaria nele?

— Você foi pego em um grande desastre mágico. Acabou sendo


teletransportado.

Um desastre mágico…? Está falando daquela luz?

— Isso aí.

Então aquilo foi um tipo de feitiço de teletransporte. Hmm.


Espera…, eu não fui o único atingido por aquela coisa. Me pergunto se o povo
de Fittoa está bem. Buena Village fica longe de Roa, então deve estar tudo bem por
lá… mas ainda assim, fico preocupado com a minha família.

Sabe alguma coisa sobre isso, amigão…?

— Você realmente acreditaria na minha resposta? Não quer ouvir nem meus
conselhos.

Bom ponto. Você provavelmente ia contar uma mentira e ficar rindo.

— Tudo o que vou dizer é que estão todos orando por sua segurança. Todos
querem que você retorne vivo.

Bem… certo. Claro que querem.

— Hmm. Você realmente acreditou nisso? Não há nenhuma parte de você que
pense… que podem ter ficado contentes por terem se livrado de você?

É…, eu estaria mentindo se dissesse que essa ideia não passou pela minha
cabeça. No final da minha outra vida, ninguém se importava se eu iria viver ou
morrer. Ainda tenho alguns problemas de autoestima graças a isso.

— Bem, as pessoas deste mundo se preocupam com você. É melhor que volte
inteiro.

Tá. Você está certo.

— Não vou dar nenhuma garantia, mas acho que você tem uma boa chance de
voltar vivo caso resolva seguir meu conselho.

Espera. Antes disso, quero saber por que você está fazendo isso. Por que está
tão preocupado comigo?

— Céus, você é persistente… Só acho que as coisas serão mais divertidas se


você continuar vivo, entendeu? Isso não basta?

Pessoas que se preocupam apenas com sua diversão tendem a ser canalhas,
você devia saber.

— É assim que eram as coisas em sua vida passada?

O tempo todo. Conheci alguns caras assim, e todos adoravam fazer os outros
dançarem feito fantoches só para se divertirem.

— Hm. Bem, de vez em quando também gosto de fazer isso. Não posso negar.

E o que seria divertido em ficar me vendo?


— Talvez essa não tenha sido a melhor escolha de palavras. Você é muito…
interessante, só isso. Quase nunca tenho a chance de ver o que a pessoa de um
mundo totalmente diferente está fazendo! Gostaria de te ajudar a conhecer todos os
tipos de pessoas e ver o que acontece.

Ótimo. Então, sou um macaco de estimação e você quer me ensinar alguns


truques novos. É isso?

— Sigh… Olha aqui. Você ainda não esqueceu da minha pergunta, não é?

Que pergunta?

— Então vou repetir. Tem certeza de que consegue sobreviver? Preso em uma
terra perigosa e desconhecida?

Não… Na verdade não.

— Então talvez seja melhor me escutar. Como falei, depende de você, se vai
seguir minhas sugestões ou não.

Certo. Tá bom. Entendi. Vá em frente, me dê seus conselhos, se é isso que


quer. Qual era o objetivo dessa conversa toda pomposa, afinal? Você poderia
simplesmente ter falado o que eu preciso fazer, desde o começo, assim me pouparia
de uma dor de cabeça.

— Tá, tá. Agora ouça com atenção, jovem Rudeus. Logo depois que você
acordar, verá um homem. Confie nele e faça o que puder para ajudá-lo.

Enquanto essas breves e últimas palavras ecoavam no vazio, o deus borrado


desapareceu de uma vez.

Capítulo 02 - Os Superds

Quando acordei, já estava de noite.

Um céu negro cheio de estrelas se entendia acima de mim. Sombras lançadas


por uma chama dançavam no chão. Conseguia ouvir os estalidos da madeira
queimando. Parecia que estava dormindo ao lado de uma fogueira, embora não
lembrasse de ter feito uma, ou mesmo de montar um acampamento.

A última coisa que lembrava… era do céu mudando de cor abruptamente, e


uma onda de luz nos engolindo.

Ah, então teve aquele sonho. Não foi muito agradável…

— Gah! — Um choque de medo me percorreu assim que olhei para meu corpo.
Felizmente, não era aquele monte de banha inútil que eu costumava ser. Estava de
volta à forma jovem, porém forte, de Rudeus. Vendo isso, minhas memórias do
passado começaram a sumir aos poucos, e uma onda de puro alívio tomou conta
de mim.

Para o inferno com aquele tal de Deus-Homem. Por um minuto, senti como se
tivesse voltado aos velhos tempos. Parecia que ainda ficaria algum tempo neste
mundo. Obrigado deusa. Eu tinha um monte de coisas que ainda queria fazer. Como
projetar meu status de “Feiticeiro”, por exemplo.

Quando me sentei, minhas costas doeram; estive estirado no chão. Tudo aos
meus arredores mais próximos era terra seca e erosada. Pelo que pude ver, não
havia quase nenhuma vegetação. Não havia sequer insetos? Não ouvi nada, salvo
o som do fogo.

O local realmente estava quieto. Senti como se qualquer barulho que fizesse
iria ser engolido pelo total silêncio noturno. Não conseguia lembrar de nenhum lugar
parecido; afinal, o Reino Asura era coberto de pastagens e florestas. Aquela onda
de luz branca fez isso?

Não, não. De acordo com o Deus-Homem, fui teletransportado.


Presumivelmente, este era o Continente Demônio. Uma terra completamente nova
e desconhecida. De alguma forma, aquela luz me enviou… Espere.

E quanto a Ghislaine e Eris?!

Meu primeiro instinto foi pular e começar a procurá-las. Mas assim que comecei
a me mover… notei uma garota adormecida no chão, logo atrás de mim, agarrando
minha camisa com uma mão.

Seu cabelo vermelho vivo era inconfundível. Era Eris. Eris Boreas Greyrat – a
garota para a qual estive dando aulas particulares em Fittoa. Por enquanto vou pular
a história em segundo plano, mas tenho ensinado leitura e aritmética por três longos
anos. No começo ela foi como um desastre natural: mimada, violenta e totalmente
fora de controle. Mas consegui passar por alguns eventos complicados, como
resgatá-la de possíveis sequestradores e ensinar a dançar antes de sua festa de
aniversário. Eventualmente, ganhei tanto sua confiança quanto respeito.

Claro, ela ainda me socava e chutava todos dias. Ela simplesmente era assim.
— Hm… — Por algum motivo, Eris tinha algum tipo de capa dobrada sobre ela.
Eu estava deitado apenas com minhas roupas, mas… ah, bom. O princípio de
“primeiro as damas” provavelmente fora aplicado.

Meu cajado, Aqua Heartia, também estava jogado no chão atrás dela. Eris tinha
me dado de presente em meu décimo aniversário, há apenas alguns dias. De
qualquer maneira, pelo visto a garota não tinha qualquer lesão externa. Foi um alívio.

E onde está Ghislaine?

Ghislaine Dedoldia era nossa instrutora de esgrima e guarda-costas pessoal de


Eris. Ela era uma mulher fera terrivelmente hábil que me ensinou o básico de seu
estilo em troca de uma educação rudimentar. Seu cérebro supostamente era “feito
de músculos” e ela definitivamente estava ficando para trás nos estudos… mas em
uma emergência assim, seria muito mais útil do que eu. Era possível que tivesse
feito o fogo e coberto Eris com aquela capa.

Afastei-me de minha aluna adormecida e comecei a procurar por minha mestra.


Na mesma hora, vi alguém sentado perto do fogo, alguém que não havia percebido
antes.

Mas não era Ghislaine. Era um homem.

Ele estava me encarando, imóvel e em silêncio, como se me avaliando.


Congelei como um coelho sob o olhar de um predador.

Apesar do meu choque, tentei o meu melhor para analisar o homem


calmamente. Ele não parecia estar cauteloso com nossa presença. Na verdade, era
mais como… hmm. Como poderia explicar? Algo em sua linguagem corporal me
lembrou o modo como minha irmã costumava se aproximar lenta e timidamente de
um gato sempre que queria fazer carinho no animal.

Ele estava preocupado com a possibilidade de assustar essas crianças que


encontrou? Isso parecia indicar que não havia hostilidade.

Mas assim que comecei a respirar aliviado, minha mente captou alguns
detalhes preocupantes. Seu cabelo era verde esmeralda, sua pele branca como
porcelana e ele tinha algo tipo uma joia vermelha incrustada bem no meio da testa.
Também havia uma enorme cicatriz ao longo de seu rosto. Seus olhos eram
penetrantes, suas feições severas; mesmo à primeira vista, parecia um homem
perigoso.

Só para esclarecer, havia uma lança com três pontas caída ao seu lado.

Quando eu era bem novo, uma garota chamada Roxy me ensinou a usar magia,
me ensinou muitas coisas valiosas e transformadoras. Uma das coisas que me
ensinou dizia respeito a uma certa raça de demônios – os Superds. Eu me lembrava
perfeitamente de suas palavras, mesmo agora.

Não fale com um Superd. Nem mesmo chegue perto deles.


Eu queria ficar de pé, agarrar Eris e sair correndo sem controle.

Mas consegui conter essa vontade no último instante.

O conselho do Deus-Homem surgiu em minha cabeça: Confie nele e faça o que


puder para ajudá-lo.

Eu não tinha absolutamente nenhuma razão para confiar naquela autointitulada


divindade, claro. Tudo o que ele me disse disparou algum alarme, e agora me deixou
nesse lugar com essa pessoa incrivelmente suspeita. Como poderia confiar nele?
Esse cara estava gritando que era um Superd. Roxy havia explicado em detalhes
como eles eram terríveis e violentos.

Talvez algum tipo de deus quisesse que eu o ajudasse. Certo, tudo bem. Mas
em quem eu deveria confiar? Em um personagem suspeito que encontrei em um
sonho, ou em minha amada mestra, Roxy?

Roxy, claro. Não precisava nem considerar a questão. O que significava que já
deveria estar fugindo.

Então, mais uma vez… talvez fosse por isso que um “conselho” foi, em primeiro
lugar, necessário. Se não fosse por aquele sonho, provavelmente já teria fugido.
Mas mesmo se de alguma forma conseguisse escapar, o que deveria fazer depois?

Olhei para os arredores por uma segunda vez.

Estava escuro; e era tudo completamente desconhecido. E a terra erosada ao


meu redor estava coberta por enormes rochas. Se acreditasse na palavra do Deus-
Homem, então este era o Continente Demônio. Isso significaria que estava muito
longe de casa.

Pensando bem… Tive outro sonho antes, embora quase tenha o esquecido
após aquela memorável conversa com o Deus-Homem. Eu estava voando pelo
mundo em uma velocidade avassaladora. Passei por montanhas enormes, mares
sem fim, florestas densas e vales profundos. Talvez não tenha sido um sonho; talvez
realmente tivesse sido teletransportado. A conversa sobre ser o Continente
Demônio parecia cada vez mais plausível.

E, claro, eu não sabia onde estava no continente. Se fugisse de imediato,


estaria vagando sem rumo no meio de uma terra enorme e desconhecida.

No final, não tive muitas escolhas. Mesmo se eu e Eris pudéssemos fugir desse
homem, acabaríamos perdidos e abandonados no meio do nada. Claro, sempre
havia a possibilidade de encontrarmos um vilarejo próximo assim que o sol
nascesse. Mas valia a pena apostar tudo nessa possibilidade?

Não, claro que não. Eu sabia perfeitamente bem como seria difícil encontrar um
caminho em algum lugar desconhecido.

Calma aí, cara. Respira fundo. Você não confia no Deus-Homem. Certo. Mas e
esse homem? Preste atenção nele. Olhe a expressão em seu rosto. Ele está
ansioso. Ansioso e um pouco resignado. Não deve ser um monstro desumano
incapaz de sentir emoções, entendeu?

Roxy me disse para manter distância dos Superds, mas nunca encontrou um.
Aprendi tudo a respeito de preconceito e discriminação enquanto estava em meu
velho mundo e sabia muito bem como foi a caça às bruxas. Os Superds eram
temidos, mas, talvez, só fossem mal interpretados. Roxy certamente não teve
intenção de mentir para mim, mas havia uma chance de que estivesse errada.

Minha intuição gritava que esse cara não iria nos machucar. Não parecia tão
desonesto e malicioso quanto o Deus-Homem. Em vez do aviso de Roxy ou do
conselho do Deus-Homem, decidi confiar em meus próprios instintos. Não odiei ou
temi o sujeito à primeira vista; sua aparência era um pouco… intimidante. Nesse
caso, uma conversa não faria mal. Tomaria minha decisão com base no que
aconteceria.

— Olá — falei.

Após uma longa pausa, ele respondeu com um breve “Oi”.

Por enquanto, tudo bem. Hmm. E agora?

— Você é um servo de deus ou coisa do tipo?

O homem inclinou a cabeça parecendo perplexo.

— Não tenho certeza do que você quer dizer com isso, mas encontrei vocês
dois aqui depois de caírem do céu. Sei que crianças humanas são delicadas, então
fiz essa fogueira para ficarem aquecidas.

Nenhuma menção ao meu amigo sem rosto, hein? Esse cara não era um
enviado divino? Com base no que o Deus-Homem falou sobre suas motivações,
talvez me assistir fosse apenas parte da diversão. Ver como as outras pessoas
reagiriam a mim provavelmente seria tão interessante quanto. Nesse caso, esse
homem realmente poderia ser confiável.

— Foi muito gentil da sua parte. Obrigado por ajudar.

— Garoto, você é cego…?

Bem, essa foi uma pergunta peculiar.

— O quê? Não, tenho uma visão perfeita, na verdade.

— Seus pais não te falaram sobre os Superds?

— Meus pais não, mas minha mestra me advertiu para ficar longe deles a
qualquer custo.

O homem parou, depois falou mais lenta e cuidadosamente do que antes:


— Você está desconsiderando as palavras da sua mestra, sabe. — A pergunta
não formulada ficou clara: Sou um Superd. Realmente está tranquilo com isso? O
homem parecia surpreendentemente inseguro. — Você não está com medo de
mim?

Não estou com medo, não. Mas estou um pouco desconfiado.

Não havia necessidade de falar isso em voz alta, claro.

— Acho que seria falta de educação temer um homem que acabou de me


ajudar.

— Hm. Você fala coisas estranhas, criança. — Havia uma expressão de


genuína perplexidade em seu rosto.

Não achei que tivesse dito nada particularmente estranho, mas, talvez, o
Superd tenha dado como certo que qualquer um sairia correndo ao vê-lo. Aprendi
um pouco sobre a Guerra de Laplace, o conflito de quatrocentos anos entre a
humanidade e demônios que terminou há apenas um século. Eu sabia que os
Superds foram evitados desde o fim do evento. O mundo estava lentamente se
desfazendo de seus preconceitos contra outros tipos de demônios, mas os Superds
com certeza eram um caso especial. Todas as outras raças pareciam detestá-los
tanto quanto o povo japonês odiava os soldados americanos durante a Segunda
Guerra Mundial. Foram retratados como algo semelhante à personificação do puro
mal.

Sem meu conhecimento acerca de racismo que obtive em minha outra vida,
provavelmente estaria gritando de terror.

O homem não falou nada. Ele jogou mais um galho no fogo que crepitava o
tempo todo. Eris gemeu com o som e começou a se mover. Ela parecia estar no
limite da consciência.

Espera. Isso não é bom. Ela definitivamente vai fazer um espetáculo. Preciso
ao menos me apresentar antes que as coisas caiam em completo caos.

— Eu sou Rudeus Greyrat. Qual é o seu nome, senhor?

— Ruijerd Superdia.

Superdia era provavelmente o sobrenome em comum usado por todos os


Superds. Era assim que as coisas normalmente funcionavam entre os povos
demônios. Na maioria das vezes, apenas os humanos assumiam nomes de outras
famílias, embora houvesse uma e outra exceção excêntrica entre as outras raças.
Da mesma forma, o sobrenome de Roxy era Migurdia, de acordo com o Dicionário
do Tipo Demônio que ela me enviou durante meu tempo como tutor de Eris.

— Bem, Ruijerd, acho que essa jovem vai acordar em breve. Às vezes ela faz
muito barulho, infelizmente. Deixe-me pedir desculpas antecipadas.

— Não é necessário. Estou acostumado com isso.


Dada sua abordagem agressiva sobre a vida, havia um risco real de Eris dar
um soco em Ruijerd assim que colocasse os olhos nele. Precisávamos ter uma
conversa rápida assim que aparecesse uma chance. Esperançosamente, isso
evitaria que as coisas se tornassem muito hostis depois.

— Perdoe-me. Vou me aproximar um pouco mais. — Olhando para Eris para


confirmar que ela ainda não estava acordando, rodeei o fogo e me sentei ao lado de
Ruijerd. De perto, podia ver suas roupas graças à fraca luz bruxuleante. Seu colete
bordado e calças pareciam algum tipo de traje tribal – o tipo de coisa que nativos
usariam.

Mais do que qualquer outra coisa, Ruijerd parecia desconfortável. Mas,


honestamente, isso era muito menos desagradável do que o tipo de amizade
intrometida do Deus-Homem. Falei:

— Sem querer mudar o assunto, mas onde estamos?

— Região Biegoya, no Nordeste do Continente Demônio. Não estamos muito


longe do antigo Castelo Kishirisu.

— Ah. Entendi… — Uma vez eu tinha visto o Castelo Kishirisu em um mapa.


Ficava muito, muito longe de Asura. — Por que será que caímos aqui?

— Se vocês não sabem, então não sou eu quem vai saber.

— Sim, suponho que não.

Acho que coisas estranhas podem acontecer quando estamos em um mundo


com dragões e magia, mas…

Não parecia uma coincidência que tenhamos encontrado um personagem


importante como o tenente de Perugius pouco antes do acontecimento. Por falar
nisso, talvez o Deus-Homem também tivesse desempenhado algum papel naquilo.
Se tivéssemos sido pegos de surpresa, seria um milagre termos continuado vivos.

— Bem, de qualquer forma, fico grato pela sua ajuda.

— Não precisa agradecer. Apenas diga de onde veio.

— Somos do Reino Asura, do Continente Central. Da Cidadela de Roa, que fica


na Região de Fittoa, para ser mais específico.

— Asura…? Essa com certeza é uma terra distante.

— Com certeza.

— Não se preocupe. Consigo te imaginar de volta lá, são e salvo.

O Nordeste do Continente Demônio ficava no total oposto do mapa se


comparado a Asura. A distância seria algo comparável entre uma viagem de Paris
a Las Vegas. E, neste mundo, claro, não existia algo tão cômodo quanto um avião.
Mesmo as viagens marítimas só seriam possíveis ao cruzar rotas específicas, de
modo que qualquer viagem intercontinental exigia longos desvios feitos por terra.

— Você tem alguma ideia do que pode ter acontecido, garoto?

— Bem, uhm… o céu começou a brilhar de repente, então alguém chamado


Almanfi, o Radiante1, apareceu na nossa frente e disse que tinha aparecido para
acabar com a anormalidade. Ainda estávamos conversando com ele quando uma
onda de luz clara e brilhante nos engoliu. A próxima coisa que percebi foi essa
fogueira.

— Almanfi…? Então Perugius está envolvido? Então a situação deve ser


realmente grave. Você tem sorte por ter sido apenas teletransportado.

— Sim. Se aquilo fosse algum tipo de explosão, estaríamos todos mortos.

Percebi que Ruijerd não ficou muito surpreso com toda a história sobre
Perugius. Talvez não fosse tão incomum que o lendário herói aparecesse de vez em
quando.

— A propósito, Ruijerd… já ouviu falar de um Deus-Homem?

— Desome? Não me soa familiar. É o nome de alguém?

— Deixa pra lá. Não é importante. — Não parecia que ele estava mentindo para
mim, e eu não conseguia imaginar o homem vendo uma necessidade para mentir.

— De qualquer forma… Reino Asura, hein?

— Tudo bem, eu não te pedirei para nos levar até lá. Se puder nos acompanhar
até a cidade mais próxima, acho que…

— Não. Um guerreiro Superd nunca volta atrás em sua palavra. — As palavras


de Ruijerd foram firmes, sua voz transbordando um orgulho teimoso. Foi o suficiente
para me fazer querer confiar nele, esquecendo completamente do conselho do
Deus-Homem.

Agora, entretanto, precisava continuar cético.

— Mas estamos falando sobre uma jornada para o outro lado do mundo.

— Criança, não se preocupa com isso. — Assim, o homem estendeu a mão e


timidamente deu um tapinha na minha cabeça. Vi alívio sendo expressado em seu
rosto quando não tentei me afastar.

Será que esse cara gostava de crianças? Ainda assim, não estávamos falando
sobre uma caminhada de volta para casa que acabaria em dez minutos. Eu não
poderia aceitar suas promessas logo de cara…
— Pense assim — disse o homem —: Você sabe a língua daqui? Tem algum
dinheiro? Conhece as estradas?

Ah. Huh. Nem tinha pensado nisso, mas… Estivemos falando na Língua
Humana o tempo todo, e este homem demônio estava respondendo fluentemente.
Que interessante.

— Na verdade posso falar a Língua do Deus Demônio. E também sou um mago


competente, então posso conseguir algum dinheiro. Se nos levar até uma cidade,
vou descobrir o que preciso fazer. — Queria direcionar a conversa para uma recusa
educada, se possível. O próprio Ruijerd podia até ser confiável, mas eu não gostava
da ideia de as coisas acontecerem exatamente como desejado pelo Deus-Homem.

Se minhas palavras cuidadosas o machucaram, o homem não deixou


transparecer.

— Entendo. Pelo menos permita-me protegê-los. Abandonar crianças sozinhas


abalaria a honra dos Superd.

— Bem, não gostaria de desonrar um povo tão orgulhoso.

— Não se preocupe. Já fizemos isso pessoalmente.

Eu ri um pouco enquanto Ruijerd curvava os lábios ligeiramente para cima. Ao


contrário do sorriso vazio e perturbador do Deus-Homem, havia um genuíno calor
por trás do seu sorriso.

— De qualquer forma, amanhã de manhã vou te levar até a aldeia onde costumo
ficar.

— Certo.

Eu não tinha confiado naquele autoproclamado deus, mas este homem era
diferente. Não faria mal dar uma chance a ele. Pelo menos até chegar àquela aldeia.

Um pouco depois, Eris abriu os olhos.

Sentando-se reta, olhou ao redor, sua expressão cada vez mais ansiosa.
Depois de um momento, seus olhos encontraram os meus e vi um brilho de alívio
em seu rosto.

Um instante depois, ela notou o homem sentado ao meu lado.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!! — Gritando como uma banshee, Eris caiu para


trás e tentou se levantar para correr. Mas suas pernas cederam e ela voltou a gritar.
— Nããããããããão!
A garota estava em um estado de completo pânico. Mas não estava se
debatendo violentamente, ou até mesmo tentando rastejar para longe. Só ficou
deitada onde tinha caído, tremendo de tanto terror, gemendo e gritando a plenos
pulmões.

— Não! Não, não, não! Por favor, por favor, não! Ghislaine! Ghislaine, socorro!
Ghislaine! Por que você não aparece?! Nãããão! Eu não quero morrer! Não quero
morrer! Sinto muito! Sinto muito, Rudeus! Sinto muito por ter te arrastado para isso!
Eu sou uma covarde! Agora nunca mais vou conseguir… m-manter minha
promessa! Aaah… ah… Waaaaaaah!

Depois de continuar por um bom tempo, a garota finalmente se encolheu em


posição fetal e começou a balbuciar coisas incoerentes. Apenas olhar para ela fez
eu sentir um arrepio na espinha. Não acredito que ela está tão apavorada…

O que quer que alguém pudesse dizer sobre ela, Eris sempre seria considerada
uma garota de temperamento forte e confiante. Desde que ela quisesse, poderia
tomar o mundo. Sempre tentou atravessar todos os obstáculos em seu caminho;
como se fosse uma lei, primeiro socava e falava depois.

Será que… eu entendi errado? Encontrar um Superd era literalmente uma


sentença de morte?

Um pouco inquieto, olhei para Ruijerd.

— Essa é a reação normal — disse.

Isso não pode ser sério.

— Então o estranho aqui sou eu?

— Sim, você está agindo de uma forma bastante estranha. Mas…

— Mas?

— Não posso dizer que me importo.

O rosto do homem era um retrato da solidão. Senti uma pontada de genuína


simpatia.

Me levantei e caminhei até minha aluna encolhida. Eris se contraiu de medo


quando meus passos se aproximaram; me agachei ao seu lado e comecei a
suavemente acariciar suas costas. Revivi as memórias de uma outra vida, de uma
época em que minha avó me confortou exatamente da mesma maneira.

— Vamos, tudo bem. Não precisa ficar com medo.

— Hic… Claro que preciso! A-aquele homem é um Superd!


Eu ainda não entendia por que ela estava tão apavorada, sério. Digo, era
a Eris – a garota que atacava Ghislaine sem temor, uma verdadeira Rei da Espada.
Pensei que ela não tivesse medo de nada.

— O que há de tão assustador nele?

— E-ele é um Superd, seu estúpido! Eles… Eles comem crianças! Enquanto


elas ainda estão vivas! Hic.

— Hm. Não acho que isso seja verdade.

Virei para Ruijerd para confirmar e ele corajosamente concordou.

— Não, nós não comemos crianças.

É, realmente achei que não.

— Escutou isso, Eris?

— M-mas… Mas eles são demônios! Demônios!

— Sim, isso é verdade. Mas, felizmente, ele fala a Língua Humana muito bem.

— Olha, não é esse o ponto, entendeu?! — Levantando a cabeça do chão, Eris


olhou para mim com fogo ardendo em seus olhos.

Bem melhor. Essa sim é a Eris que conhecemos e amamos.

— Hmm, tem certeza que quer erguer a cabeça assim? Talvez ele não te coma
se você ficar encolhida no chão.

— Argh! P-para de tirar sarro de mim! — Claramente enfurecida com minha


provocação, Eris me lançou outro olhar, então virou a cabeça para fazer o mesmo
com Ruijerd… então voltou a tremer.

Aquilo em seus olhos eram lágrimas de verdade? Que bom que ela não estava
naquela sua pose de costume. Seus joelhos provavelmente estariam tremendo sem
parar.

— P-prazer… em conhecer, s-senhor. Eu sou… E-Eris B-Bo-Boreas… Greyrat!


— Apesar de tudo, a garota ainda conseguiu gaguejar e expressar um cumprimento
educado. Foi meio cômico, especialmente após ela o fuzilar com o olhar. Porém,
pensando bem, tomar a iniciativa de se apresentar nunca era má ideia quando
estava se conversando com um estranho. Alguém me ensinou isso há muito tempo.

— Eris Boboboreas Greyrat, é? Vocês, humanos, começaram a criar uns nomes


bem peculiares, pelo visto.

— Não, não! É Eris Boreas Greyrat! Eu só gaguejei um pouco, foi só isso! Olha
aqui, que tal você se apresentar, hein?!
Um instante após parar de gritar com ele, o rosto de Eris ficou pálido. Parecia
que, por um momento, ela tinha esquecido com quem estava falando.

— Claro. Perdão. Eu sou Ruijerd Superdia.

Quando Ruijerd respondeu com calma, uma expressão de alívio surgiu no rosto
de Eris, então logo apareceu um sorriso confiante e arrogante. Parecia que ela tinha
decidido, um pouco tarde demais, que não tinha nem um pouco de medo do homem.

— Viu? Ele não é tão ruim. Você pode fazer amizade com qualquer pessoa,
desde que possa se comunicar com ela.

— Sim! Isso mesmo, Rudeus. Honestamente, minha Mãe é uma mentirosa!

Então foi Hilda quem falou sobre os Superds para ela? Fiquei um pouco curioso
sobre as histórias que Eris tinha ouvido. Deviam ser horríveis.

A reação dela foi relativamente compreensível. Eu provavelmente teria surtado


se encontrasse um Teke ou um Namahage2 na vida real.

— O que a Senhorita Hilda te contou sobre os Superds?

— Ela sempre disse que iriam aparecer para me comer, a menos que fosse
para a cama na hora certa.

Ah, então eles eram como o clássico bicho-papão deste mundo, hein? Mais ou
menos como o Homem-Fique-Longe no Japão.

— Bem, este Superd não parece a fim de nos comer. Podemos nos gabar por
fazer amizade com ele assim que voltarmos para casa, não acha?

— Ah. V-você acha que o Vovô e a Ghislaine vão ficar impressionados…?

— Claro.

Olhei para Ruijerd. Havia uma ligeira expressão de surpresa em seu rosto. Até
agora, tudo bem.

— Sabe, acho que o Ruijerd está um pouco sozinho. Ele provavelmente


concordaria em ser seu amigo caso você pedisse.

— M-mas…

Realmente achei que tinha tratado isso de forma bem infantil, mas Eris parecia
um pouco hesitante. Pensando bem, ela realmente não tinha “amigos”, tinha? Eu
provavelmente estava meio deslocado nessa categoria…

Então não era de se admirar que estivesse tão envergonhada. A garota só


precisava de mais um empurrãozinho.
— Não é verdade, Ruijerd?

— Hã? Er, claro. Eu ficaria muito feliz, Eris. — O homem demorou um pouco,
mas eventualmente entendeu a deixa.

— B-bem, se você insiste! Suponho que serei sua amiga!


A visão de Ruijerd curvando a cabeça para ela foi o suficiente para derrubar a
última das defesas de Eris. Tudo era tão simples com ela. Isso me fez achar que fui
meio ridículo por pensar tanto nas coisas. Então, mais uma vez, acho que alguém
precisava compensar sua impulsividade.

— Nossa. Tudo bem então. Acho que vou descansar mais um pouco, se não se
importarem.

— Mas que diabos, Rudeus? Já vai dormir?

— Sim. Estou cansado, Eris. Muito cansado.

— Sério? Bem, que pena. Então boa noite.

Me enrolei no chão e Eris gentilmente colocou a capa que a cobria sobre mim.
Presumivelmente, pertencia a Ruijerd. Por algum motivo, eu realmente estava
completamente exausto.

Quando estava quase caindo no sono, captei alguns trechos da conversa que
vinha da direção do fogo.

— Garota, você não tem mais medo de mim?

— Estou bem. Rudeus está comigo.

Certo. Vou levar Eris para casa em segurança, ao menos isso. Não importa o
quê.

Pensando assim, deixei-me afundar no mundo da inconsciência.

Capítulo 03 - O Segredo da
Mestra

Mais uma vez, estava sonhando. Desta vez, estava assistindo um grupo de
anjos descendo dos céus. Parecia algo bastante agradável, em comparação com
meus pesadelos mais recentes.
Então percebi que algumas partes deles estavam escondidas por mosaicos
pixelados. À medida que se aproximavam, riam de mim juntos, e sorrisos
assustadores apareciam em seus rostos.

No instante em que percebi que não seria um bom sonho, acordei.

— Outro pesadelo… — Tive muitos deles recentemente.

Sentei-me devagar e estudei todo o campo de terra, árido e rochoso, à minha


frente. Era o Continente Demônio – uma parte do supercontinente que foi destruído
em uma guerra entre humanos e demônios, lar de várias raças de demônios que
uma vez se uniram graças ao Deus Demônio Laplace.

Sua área tinha quase metade do tamanho do Continente Central, mas era um
lugar muito mais hostil. Para começar, havia muito pouca vegetação. O solo era
marcado por várias erosões e fissuras; as mudanças na elevação eram abruptas,
com enormes encostas rochosas projetando-se como degraus de uma escada
gigante. Os viajantes costumavam encontrar os caminhos bloqueados por pilhas de
pedras maiores do que um homem. O lugar era basicamente um labirinto.

Além do mais, suas densas concentrações naturais de energia mágica


indicavam que o local seria infestado por inúmeros monstros poderosos. Pelo que
li, para chegar de uma ponta a outra levaria mais tempo do que uma jornada por
todo o Continente Central. Tínhamos um percurso muito complicado pela frente, e
eu não tinha certeza de como dar a notícia a Eris.

Mas quando percebi, encontrei-a olhando para a paisagem desolada com


entusiasmo brilhando em seus olhos.

— Uhm, Eris. Parece que estamos no Continente Demônio, então…

— O Continente Demônio! Isso vai ser uma aventura e tanto!

Aquilo foi alegria em sua voz? Bem, melhor assim. Não há razão para ser um
estraga prazeres e falar sobre o quanto isso vai ser perigoso.

— Vamos andando — disse Ruijerd. — Sigam-me.

Juntos, nós três começamos a cruzar as planícies áridas.

Pelo visto, Eris tinha feito amizade com Ruijerd enquanto eu dormia. Ela
tagarelava com ele enquanto caminhávamos, descrevendo sua vida em casa, suas
lições de magia e a prática com espada, tudo demonstrando enorme entusiasmo.
Ruijerd não contribuiu muito com a conversa, mas oferecia expressões educadas de
interesse sempre que parecia apropriado.
Era difícil de acreditar que Eris esteve completamente apavorada com o homem
na noite anterior. Nesse momento, não parecia nada intimidada. Na verdade, até fez
alguns comentários impróprios e que soaram rudes. Isso me deixou mais do que
ansioso, mas Ruijerd não parecia se ofender.

Quem foi que disse que os Superds tinham um temperamento terrível? Eles
estavam claramente se dando bem.

Claro, Eris não era mais tão propensa a, do nada, insultar as pessoas como
costumava fazer. Edna e eu tínhamos basicamente ceifado esse seu hábito, então
ela provavelmente não iria deixar nada de terrível escapar – ou era nisso que eu
queria acreditar. Ainda assim, era difícil saber o que enfureceria um estranho de
uma cultura desconhecida. Realmente esperava que ela tomasse cuidado com o
que diria.

Além disso, Eris tendia a ficar furiosa muito facilmente, então… imaginava que
Ruijerd poderia ser parecido.

Enquanto esse pensamento corria minha mente, ouvi a voz de Eris ficando mais
aguda e irritada.

— Então Rudeus não é seu irmão mais velho?

— É claro que não!

— Mas vocês dois têm o nome Greyrat. É um nome de família, não é?

— Isso não o torna meu irmão!

— Ele nasceu de uma mãe diferente? Ou foi o pai?

— Não, não. Não é nada disso.

— Não sei como os humanos tratam essas coisas, mas você deveria ser grata
por tê-lo.

— Olha, você acabou de entender tudo errado!

— Independentemente disso, seja grata por tê-lo.

— Ugh… — Ruijerd falou com firmeza, e Eris hesitou por um momento antes
de finalmente ceder. — C-claro que sou grata…

Claro, não era como se fôssemos irmãos. Além disso, ela era mais velha do que
eu.
O Continente Demônio fazia jus à sua reputação de ter um terreno íngreme e
rochoso. O solo também era duro, seco e arenoso — era mais areia do que terra.
Dificilmente alguém poderia culpar os demônios por iniciarem uma guerra para sair
deste lugar horrível. Quase não havia plantas. De vez em quando, eu via uma coisa
rochosa que parecia uma espécie de cacto, mas isso era tudo.

— Hm. Esperem um momento aqui. Não saiam deste lugar, entenderam?

Isso acontecia mais ou menos a cada dez minutos, Ruijerd mandava que
parássemos e depois saía correndo. Desta vez, ele facilmente pulou sobre um
monte de pedras enormes, rapidamente desaparecendo de vista. As habilidades
físicas do homem eram inacreditáveis. Sempre pensei em Ghislaine como alguém
quase sobre-humano, mas se colocasse sua agilidade bruta em números, Ruijerd
poderia facilmente passar por cima disso.

Menos de cinco minutos após sua abrupta partida, ele voltou saltando em nossa
direção.

— Desculpem-me por deixá-los esperando. Vamos continuar.

Ruijerd não deu nenhuma explicação, mas havia um leve cheiro de sangue na
ponta de seu tridente. Pelo visto, ele fatiou algum tipo de monstro que poderia
aparecer no nosso caminho. Pelo que lembrei do dicionário de Roxy, aquela coisa
parecida com uma joia em sua cabeça funcionava como um tipo de radar.
Provavelmente estava usando aquilo para identificar potenciais ameaças antes que
se aproximassem demais, e então as eliminava antes que elas soubessem o que
estava acontecendo.

— Certo, olha! Por que você continua fugindo toda hora? — perguntou Eris,
direta como sempre.

— Estou lidando com os monstros mais à frente — respondeu Ruijerd


concisamente. Separando o cabelo para os dois lados, mostrou para Eris o cristal
vermelho brilhante no meio da sua testa. Ela se encolheu, surpresa, por apenas um
momento; mas a “joia” era, na verdade, muito bonita, e logo a garota já estava
olhando para aquilo com evidente curiosidade.

— Ah, certo. Isso deve ser útil!

— Suponho que sim, mas às vezes gostaria de não ter ela.

— Bem, eu aceito se não quiser mais. Vamos, deixe-me arrancá-la!

— Não é tão simples, infelizmente. — Ruijerd sorriu um pouco após falar isso.

Eris realmente avançou. Ela estava bem brincalhona ultimamente.

Uh. Isso foi uma brincadeira, certo?

— Aliás, Ruijerd… Ouvi que os monstros do Continente Demônio são muito


fortes.
— Não são tão temíveis nesta área. Mas estamos a alguma distância da estrada
principal, então eles são bem numerosos.

Isso parecia até um eufemismo, para ser sincero. Ruijerd estava lutando contra
monstros a mais ou menos cada quinze minutos. De volta a Asura, seria possível
viajar por horas em uma carruagem sem ver nenhum. É verdade que os cavaleiros
e aventureiros do Reino regularmente se esforçavam para exterminar quaisquer
monstros dentro de seus limites, mas, mesmo assim, a taxa de encontros no
Continente Demônio era absurdamente elevada.

— Ruijerd, esse tempo todo você lutou sozinho. Como está indo?

— Sem problemas. Derrubei todos com um único golpe.

— Certo, tudo bem… mas me avise se começar a ficar cansado, tá bom? Eu


poderia ao menos cuidar de você. Sei muito bem como usar magia de cura.

— Não se preocupe, criança. — Ruijerd estendeu a mão e timidamente voltou


a afagar a minha cabeça. Ele realmente amava fazer isso, não é? — Você deve ficar
com sua irmãzinha e manter uma distância segura, entendeu?

— Ouça! Eu não sou irmãzinha dele, entendeu?! Eu sou mais velha!

— Hm. Sério? Me desculpe.

Ruijerd tentou afagar a cabeça de Eris também, mas ela deu um tapa em sua
mão, emburrada.

Mais sorte da próxima vez, garotão.

— Aqui estamos.

A caminhada durou, no total, cerca de três horas. Seguimos um caminho longo


e tortuoso com uma boa subida, então demorou um pouco. Mas, em linha reta,
estávamos a apenas meia milha do ponto de partida.

Fiquei surpreendentemente exausto. Estava me sentindo letárgico desde a


noite anterior. Era algum tipo de efeito colateral daquele feitiço de teletransporte?
Talvez eu só precisasse melhorar minha resistência… Não era como se tivesse
relaxado em comparação ao treinamento que tinha com Ghislaine.

— Ah! É uma cidade! — exclamou Eris, analisando o pequeno povoado à nossa


frente com enorme interesse. A garota não parecia nada ofegante. Fiquei com um
pouco de inveja de sua resistência.

Aos meus olhos, o lugar aonde chegamos parecia mais um vilarejo do que uma
cidade. Havia talvez dez ou quinze casas, no máximo, e a cerca em volta de todas
era bem imperfeita. Percebi um pequeno campo de cultivo por ali. Era difícil dizer o
que estavam plantando, mas, pelo jeito das coisas, a safra não seria das melhores.

Seria mesmo possível cultivar em terras assim, sem um rio por perto?

— Alto lá!

Do lado de fora do portão da frente, fomos parados por um garoto que parecia
estar no ginásio. Seu cabelo azul me lembrava o de Roxy.

— Ruijerd, quem são esses dois?!

Ele estava falando na língua do Deus Demônio, mas eu conseguia entender


bem o suficiente. Minhas habilidades de compreensão auditiva aparentemente eram
boas o bastante.

— Lembra da estrela cadente de ontem à noite? Eram eles.

— Não posso deixar esses estranhos suspeitos entrarem em nossa aldeia!

— O que há de tão suspeito neles? Explique. — O rosto de Ruijerd ficou


repentinamente sério, e também adotou um tom de voz ameaçador. Se ele tivesse
falado assim comigo na noite anterior, eu provavelmente teria fugido para as
montanhas sem pensar duas vezes.

— E-explicar o quê? É só olhar para eles!

— São vítimas de um desastre mágico que ocorreu em Asura. Por acaso foram
teletransportados para cá, isso é tudo.

— Mas… Olha, mesmo se isso for verdade…

— Qual é o seu problema? Realmente deixaria essas crianças ao léu?

Nesse momento, percebi que Ruijerd estava cerrando os punhos. Agindo por
instinto, estendi a mão para segurar seu braço.

— Ele só está cumprindo o dever, Ruijerd. Por favor, acalme-se.

— O quê…?

— Discutir com um lacaio não vai nos levar a lugar nenhum. Por que não
pedimos para ele buscar alguém com verdadeira autoridade?

O garoto fez uma careta quando ouviu a palavra lacaio, mas Ruijerd concordou
balançando a cabeça.

— Você está certo. Rowin, pode chamar o ancião?


— Sim. Na verdade, eu já estava pensando em fazer isso. — Rowin fechou os
olhos com força. Então ficou parado, em silêncio, pelos próximos dez segundos.

Uh… o que é isso? Você vai se mexer ou não? Por favor, não me diga que esse
garoto simplesmente dormiu no meio do turno… Hmm. Talvez ele esteja esperando
ser acordado por um bom beijo molhado?

— Uh, Ruijerd, ele está…

— Os Migurds podem conversar com os outros de sua raça, mesmo à distância.

— Ah. Agora que você mencionou, acho que minha mestra me falou um pouco
sobre isso. — Para ser mais específico, ela escreveu em seu Dicionário do Tipo
Demônio que os Migurds eram capazes de se comunicar telepaticamente com seus
amigos íntimos e familiares. Roxy também escreveu que ela não tinha essa
habilidade e havia deixado sua aldeia por causa disso.

Pobre garota.

Pensando bem… se essa era uma aldeia Migurd, mencionar o nome de Roxy
não ajudaria? Então, mais uma vez, eu não sabia se ela era especificamente deste
lugar. Havia também a chance de o tiro sair pela culatra.

— O ancião está vindo — disse Rowin, finalmente abrindo os olhos.

— Poderíamos encontrá-lo no meio do caminho, se…

— Você não dará um passo para dentro desta aldeia!

— Então tá.

Com as negociações em um impasse, ficamos ali por um tempo. Enquanto o


constrangedor silêncio se prolongava, Eris puxou minha manga e sussurrou:

— Ei, o que está acontecendo?

Ah, é mesmo. Ela não sabe a língua do Deus Demônio.

— O guarda ali nos achou suspeitos, então estamos esperando que o ancião
da aldeia venha nos analisar pessoalmente.

— Mas que diabos? O que há de suspeito sobre nós? — Franzindo a testa, Eris
olhou para suas roupas. Quando fomos para fora da cidade naquele dia, vestiu a
mesma roupa de treino que sempre usava; estava um pouco gasta, mas, em
comparação com o que Ruijerd usava, não parecia estranha. Não era como se Eris
estivesse usando um vestido cheio de babados. — Umm, preciso me preocupar?

— Com o quê?

— Não sei. Só… com tudo.


— Eris, vamos ficar bem.

— Bom… então tá.

Por mais corajosa que ela fosse, a possibilidade de uma discussão na entrada
da aldeia claramente a deixava mais do que ansiosa. Pelo menos minha tentativa
de tranquilizá-la pareceu funcionar.

— O ancião parece ter chegado — murmurou Ruijerd após algum tempo.

Olhei na direção da aldeia e vi um homem careca segurando uma bengala, mas


ele parecia estranhamente jovem. Estava caminhando em nossa direção com duas
garotas que pareciam adolescentes. Nenhum deles era particularmente alto.

Talvez os Migurds fossem todos pequenos, mesmo os adultos.

Não havia qualquer menção sobre isso no dicionário da Mestra Roxy… mas a
garota que ela desenhou como ilustração parecia estar no ginásio. Na época
presumi que era um autorretrato, o que foi até um tanto charmoso, mas talvez
estivesse apenas retratando o Migurd adulto típico.

Enquanto refletia sobre o assunto, o ancião da aldeia começou a interrogar


Rowin enquanto estava um pouco longe de nosso grupo.

— Então são essas as crianças?

— Sim. Uma delas consegue falar a língua do Deus Demônio. Isso é bem
estranho.

— Mas qualquer um consegue aprender a língua se estudar.

— Por que uma criança humana estudaria, dentre todas as coisas, logo a nossa
língua?!

Eu tinha que reconhecer. Rowin marcou um ponto nisso. Felizmente, o ancião


da aldeia só deu um tapinha gentil em seu ombro.

— Não vamos nos precipitar, Rowin. Tente se acalmar, certo? Vou falar com
eles.

Com isso dito, o homenzinho começou a lentamente caminhar em nossa


direção. Por falta de ideias melhores, fiz uma reverência – uma simples saudação
japonesa, no lugar daquela elegante usada pela realeza Asurana.

— Prazer em conhecer, senhor. Meu nome é Rudeus Greyrat.

— Bem, você com certeza é educado. Sou Rokkus, o ancião desta aldeia.

Olhei para Eris, tentando fazê-la seguir meu exemplo. Pelo visto, confusa com
o aparente contraste entre a digna postura do homem e sua juventude, ela cruzou e
descruzou os braços. Parecia que estava pensando se devia ou não assumir sua
característica pose de desafio.

— Eris, você precisa se apresentar.

— Mas… uh, eu não sei essa língua.

— Apenas faça o que aprendeu. Vou dizer a ele o que você falar.

— Ugh… P-prazer em conhecê-lo, senhor. Meu nome é Eris Boreas Greyrat.

Após um momento de hesitação, ela fez uma reverência que poderia ser usada
como exemplo, assim como havia praticado em suas aulas de etiqueta. O rosto do
ancião da aldeia se abriu em um enorme sorriso.

— A mocinha aí acabou de se apresentar também, filho?

— Sim. É assim que se faz na nossa terra.

— Hmm. Mas não foi muito parecido com o que você fez.

— Bem, os costumes diferem entre homens e mulheres…

Rokkus balançou a cabeça pensativamente diante disso, então curvou-se para


Eris da mesma forma que fiz em meu cumprimento.

— Meu nome é Rokkus. Sou o ancião desta aldeia.

Um pouco assustada, ela olhou para mim, incerta.

— Rudeus, o que ele falou?

— Ele é o ancião da aldeia, e seu nome é Rokkus.

— Ah. S-sério? Então acho que ele te entendeu. Isso é bom. — Eris sorriu
obviamente aliviada.

Isso provavelmente finalizava todas as formalidades iniciais. Era hora de


começar com os negócios.

— Você nos permitiria entrar em sua aldeia, Rokkus?

— Hrm… — Em vez de responder minha pergunta, o homenzinho começou a


me analisar da cabeça aos pés.

Ooh! Que olhar apaixonado. Pare com isso… você está me fazendo querer
fazer um strip-tease…

Depois de um longo tempo, seus olhos pararam, fixos na parte superior do meu
peito.
— Onde conseguiu esse pingente que está usando, meu jovem?

— Foi um presente da minha mestra.

— E quem era essa sua mestra, se é que posso perguntar?

— O nome dela é Roxy. — Uma resposta honesta parecia ser a melhor opção.
No final das contas, sempre fui orgulhoso de ter aprendido com ela.

— Como é que é?! — gritou Rowin. Antes que eu pudesse responder, ele
passou direto por Rokkus e me agarrou pelos ombros. — V-você acabou de
dizer Roxy?!

— Sim. É o nome da minha mestra…

Com o canto do olho, vi Ruijerd cerrando os punhos. Virando a cabeça para


encontrar seu olhar, fiz um ligeiro aceno. Não havia qualquer raiva no rosto de
Rowin, apenas excitação. Ele não iria me machucar.

— Onde… onde Roxy está?!

— Bem, eu não a vejo faz algum tempo, mas…

— Por favor! Diga-me tudo o que você sabe! Roxy… Roxy é minha filha!

Desculpa, como é que é?!

— Uhm, eu não tenho certeza se ouvi direito. Poderia repetir?

— Roxy é minha filha! Diga-me, ela ainda está viva?!

Pardon, monsieur? Uhm, não, na verdade, acho que ouvi direito mesmo na
primeira vez. Só estou um pouco curioso a respeito da sua idade. O homem não
parecia ter idade suficiente para estar no ensino médio. Se ele dissesse que era o
irmãozinho de Roxy, eu teria acreditado. Mas, pelo visto… hmm. É. Que
interessante.

— Por favor, diga! Já fazem mais de vinte anos desde que ela deixou a vila, e
não tivemos nenhuma notícia desde então!

Então Roxy basicamente fugiu de casa. Claro, não é como se ela tivesse
mencionado isso para mim. Honestamente, mestra, você não podia ter avisado?

— E então? Por que não está falando nada?!

Ops. Foi mal, amigo.

— Uhm, ela está…


No meio da minha frase, percebi que o homem ainda segurava meus ombros
com força. Parecia que estava tentando arrancar a informação de mim, não é? Isso
não seria bom. Eu não queria que ninguém pensasse que cedi à pressão… pelo
menos não tão facilmente. Digo, se ele tivesse destruído meu computador, me
espancado e depois me xingado, a história seria outra. Eu precisava me defender
um pouco, ou isso poderia deixar Eris ansiosa.

— Na verdade, quero que primeiro você responda uma pergunta. Atualmente,


quantos anos Roxy tem?

— O quê? Por que a idade dela importa? Você devia simplesmente…

— Isso é muito importante. Ah, e enquanto isso, também gostaria de saber por
quanto tempo os Migurd vivem.

Claro. Isso definitivamente era algo que precisava ser esclarecido.

— Uh… certo. Roxy faria… quarenta e quatro este ano, acho. E vivemos cerca
de duzentos anos, pelo menos a maioria. A menos que alguma doença nos mate.

Huh! Temos a mesma idade! Na verdade isso até me deixa feliz.

— Não diga. Hmm. Aliás, poderia me soltar?

Rowin finalmente soltou meus ombros.

Certo. Agora podemos conversar.

— Há seis meses, Roxy estava no Reino Shirone. Eu não fui lá pessoalmente,


mas trocamos cartas por um tempo.

— Cartas? Ela pode escrever na língua Humana?

— Sim. Quando a conheci ela falava a nossa língua perfeitamente. E isso foi há
sete anos.

— S-sério? De qualquer forma… você está falando que ela está bem?

— Bem, sempre existe a possibilidade de ela ter adoecido recentemente. Mas,


até onde sei, está perfeitamente bem de saúde.

Rowin caiu de joelhos. Havia um indisfarçável alívio em seu rosto enquanto as


lágrimas brotavam em seus olhos.

— Entendo… então ela está bem. Ela está bem! Haha… Obrigado deusas…

Ei, estou feliz por você, pai. Me peguei pensando em Paul e me perguntando
se ele reagiria da mesma forma quando descobrisse que eu estava seguro. Teria
que enviar uma carta para Buena Village assim que pudesse.
Afastando-me do pai choroso de Roxy, me dirigi a Rokkus mais uma vez.

— Agora que esclarecemos isso… estaria disposto a permitir nossa entrada?

— Claro. Não recusaríamos ninguém que nos trouxe notícias tão bem-vindas.

Quem bom que tenho esse pingente. Nunca pensei que seria tão útil.

Eu provavelmente poderia ter economizado algum tempo mostrando-o logo de


cara. Mas, novamente, dependendo de como fosse a conversa, poderiam ter a
impressão de que matei Roxy e a assaltei. Os demônios aparentemente tinham uma
longa vida útil e provavelmente não era incomum que parecessem muito mais jovens
ou velhos do que realmente eram. Em outras palavras, minha aparência não iria
necessariamente me livrar de todas as suspeitas. Teria que dar o meu melhor para
agir apropriadamente como uma criança.

Por enquanto, ao menos conseguimos entrar no vilarejo Migurd.

Capítulo 04 - Os
Fundamentos da Confiança

e eu tivesse que descrever o vilarejo de Roxy em uma palavra, ela


seria desamparado.

Havia menos de vinte famílias. Seria um pouco difícil descrever as construções;


parecia que simplesmente cavaram na terra e cobriram o buraco com algo que
parecia o casco de uma tartaruga. À primeira vista era óbvio que as técnicas
arquitetônicas adotadas não eram tão avançadas quanto àquelas do Reino Asura.
Então, mais uma vez, se levasse uma equipe de construtores Asuranos ao local,
eles provavelmente não conseguiriam fazer nada melhor – não parecia haver
nenhuma madeira para ser usada.

O pequeno campo de cultivo que avistei do lado de fora do portão era ladeado
por filas de plantas murchas e encolhidas. Para ser honesto, parecia que estavam
todas meio mortas. Era um tanto preocupante. O Dicionário do Tipo Demônio não
incluía muitas informações sobre agricultura, infelizmente. Tudo que eu conseguia
me lembrar era de uma breve menção a seus vegetais tenderem a ser “amargos e
desagradáveis”.

Além das plantações, havia também algumas flores assustadoramente


dentadas crescendo nos cantos do campo de cultivo. Elas tinham uma grande
semelhança com as plantas mortais que eram conhecidas por se esconderem
dentro de canos verdes em uma certa franquia de videogame; mas parecia plausível
que fossem, na verdade, algum tipo de animal, dada a forma como rangiam suas
presas feias e disformes. Presumivelmente, foram colocadas lá para proteger as
plantações de animais famintos.

Perto da cerca do vilarejo, um grupo de jovens garotas se movia ativamente ao


redor de uma fogueira. Parecia um bando de crianças do ginásio saindo para
acampar, mas aparentavam estar focadas em cozinhar uma única e enorme
refeição. Pelo visto, faziam suas refeições em uma enorme panela e depois
distribuíam porções para todos os aldeões.

Quase não havia homens no local. Notei algumas crianças, na maioria garotos,
brincando, mas fora Rowin e o ancião, os adultos eram todos mulheres. Os outros
deveriam estar garantindo o jantar para o dia seguinte. Pelo que me lembrava, os
homens cuidavam da caça em aldeias assim, enquanto as mulheres tomavam conta
de casa.

— Que tipo de presa há para se caçar por aqui, Ruijerd? — perguntei.

— Monstros — respondeu.

A resposta provavelmente era sincera, mas parecia um pouco carente de


detalhes – era como um pescador falando que come “peixe” para viver.

Ah, bem. Acho que só vou ter que pressionar um pouquinho mais.

— Uhm… Esses cascos no topo das casas também saíram de monstros?

— São de Grandes Tartarugas. Seus cascos são duros e sua carne deliciosa.
Você pode até mesmo fazer cordas de arcos com os tendões delas.

— Então são os principais alvos de caça?

— São.

Uma tartaruga saborosa, hein? Era um pouco difícil imaginar uma enorme o
suficiente para caber naqueles cascos. O que cobria a maior casa parecia ter pelo
menos sessenta pés de comprimento.

Enquanto esse pensamento passava pela minha cabeça, Ruijerd e Rokkus


entraram naquele prédio. Uma coisa parecia não mudar nunca, não importa onde
eu fosse: o cara no comando sempre tinha a casa mais bonita.

— Com licença.
— O-obrigada por nos receber.

Murmurando algumas palavras ligeiramente educadas, Eris e eu também


entramos.

— Uau…

O interior do local era muito mais espaçoso do que imaginei vendo do lado de
fora. O chão era coberto de peles e as paredes decoradas com obras de arte
coloridas; fogo ardia em uma lareira mais adiante no cômodo, iluminando todo o
interior muito bem. Não havia quartos separados ou paredes; à noite, provavelmente
só precisaria se enrolar em algumas peles e se aproximar do fogo. Notei um monte
de espadas e arcos cuidadosamente encostados nas paredes externas. Certamente
poderia dizer que era uma comunidade de caçadores.

Por algum motivo, as duas garotas que seguiram o ancião até o portão não nos
seguiram para dentro do recinto.

— Bem, então, vamos ouvir sua história — disse Rokkus, sentando-se ao lado
da lareira. Ruijerd sentou-se de frente para o ancião; então sentei-me de pernas
cruzadas, ao lado do Superd. Olhei para trás, procurando por Eris, e a encontrei
deslocada, parada ao lado da porta e sem saber o que fazer.

— Só vamos sentar no chão? Mesmo dentro da casa?

— Sentamos no chão o tempo todo durante os treinos de esgrima, não?

— H-hmm. É, acho que você está certo.

Eris não era o tipo de pessoa que costumava ficar nervosa com essas coisas.
Ela provavelmente ficou confusa com a diferença entre como as coisas funcionavam
por aqui e o que aprendeu em suas aulas de etiqueta. Ao vê-la sentar no chão, fiquei
um pouco preocupado que a garota pudesse acabar abandonando o conceito de
“boas maneiras” no momento que voltássemos para casa.

Balançando um pouco a cabeça, me virei para encarar o Ancião Rokkus.

Comecei falando meu nome, idade, profissão e local de residência, depois


expliquei que Eris era minha aluna e filha de uma família nobre. Também deixei claro
que fomos repentinamente enviados a este continente por eventos que estavam
além de nosso controle.

Decidi não mencionar toda a coisa com o Deus-Homem. Não tinha como saber
como o Migurd via aquela divindade específica, e a última coisa que precisava era
ser marcado como o mensageiro de um deus maligno.

— Bem, é isso…
— Hrm — murmurou Rokkus, acariciando seu queixo com a expressão
pensativa de um garoto do ginásio, parecia até estar pensando em algum exercício
de álgebra complicado. — Entendo…

Enquanto esperávamos que ele tomasse alguma decisão, percebi que Eris
estava começando a cochilar. Ela parecia cheia de energia há poucos minutos, mas
talvez a caminhada tivesse finalmente cobrado seu preço. Não foi algo tão
surpreendente – esse tipo de viagem era uma novidade para a garota, e parecia que
ela não voltou a dormir depois de acordar na noite anterior. Provavelmente ficou a
todo vapor.

— Eris, posso cuidar da conversa — falei. — Por que não tira uma soneca?

— Como poderia fazer isso…?

— É só se enrolar em uma das peles, acho.

— Mas não tem nenhum travesseiro.

— Ei, meu colo está livre — falei, batendo em minhas coxas e sorrindo.

— O-o que quer dizer com isso?

— Isso quer dizer que você pode descansar a cabeça nas minhas pernas.

— Sério…? Bem… obrigada.

Normalmente, ela teria feito um verdadeiro estardalhaço diante da sugestão,


mas parecia que estava cansada demais para se importar. Sem hesitar, colocou a
cabeça no meu colo. Por um momento, seu rosto ficou tenso e ela cerrou os punhos,
mas assim que fechou os olhos, adormeceu em poucos segundos.

A garota devia estar realmente exausta. Aproveitei a oportunidade para


acariciar os seus longos cabelos ruivos, e ela se contorceu um pouco enquanto
dormia.
Após um momento, percebi que Rokkus estava me observando do outro lado.
Havia um sorriso caloroso e brincalhão em seu rosto. Não pude deixar de me sentir
um pouco constrangido.

— Uhm, o que houve…?

— Vocês dois com certeza parecem se dar bem.

— Ah, sim, é claro.

Dito isso, ainda estávamos no modo “fique longe”. A pequena senhorita tinha
algumas ideias firmes sobre a coisa de castidade, e eu não estava disposto a
desrespeitar isso.

— De qualquer forma… como está planejando voltar para casa?

Hmm. Ele foi direto para a mesma pergunta que Ruijerd abordou na noite
anterior.

— Viajaremos a pé, conseguindo dinheiro conforme avançamos.

— Acha que duas crianças conseguirão ganhar o suficiente para se sustentar?

— Na verdade, estou planejando lidar com isso sozinho. — Não que eu fosse
exatamente esperto, mas não poderia esperar que uma garota rica e mimada como
Eris lidasse com a realidade em um momento assim.

— Eles não estarão sozinhos. — Ruijerd interrompeu. — Irei com eles.

Hmm. Definitivamente seria reconfortante ter esse cara ao nosso lado, mas
aquilo sobre o Deus-Homem ainda me preocupava. Não importa o quanto
eu quisesse confiar nele, provavelmente era melhor nos separarmos logo. Até onde
sabia, o homem era como uma bomba-relógio.

Assim sendo… exatamente como deveria recusar esta oferta?

Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, o Ancião Rokkus expressou


sua própria desaprovação.

— E de que serviria isso, Ruijerd?

— O que quer dizer? — Ruijerd respondeu carrancudo. — Vou manter os dois


em segurança e levá-los de volta para casa.

Rokkus suspirou.

— Mas você não pode entrar em nenhuma cidade, pode?

— Uh…
Espera, o quê? Ele não pode… entrar em cidades?

— Pense no que poderia acontecer se você se aproximasse de uma cidade com


essas crianças. Ainda lembra do que aconteceu cem anos atrás, não lembra?
Quando os soldados te perseguiram e formaram um esquadrão para te caçar?

Cem anos atrás…?

— Bem, sim… — gaguejou Ruijerd. — Mas… eu poderia simplesmente esperar


do lado de fora…

— E não saber nada do que acontecerá com esses dois do lado de dentro?
Assim não vai manter ninguém em segurança — disse Rokkus, balançando a
cabeça, exasperado.

Pelo visto, os Superd eram tão temidos e odiados no Continente Demônio


quanto em Asura. Realmente formaram um esquadrão inteiro para caçar um único
homem? Isso parecia… um tanto exagerado. Fazia pensar até que ele era um
monstro furioso.

— Se alguma coisa acontecer com eles do lado de dentro…

— Sim? O que você faria?

— Entraria para resgatá-los, mesmo se tivesse que matar todos os moradores.


— Os olhos do homem estavam mortalmente sérios. Ele não estava exagerando; eu
poderia dizer que realmente quis falar cada uma de suas palavras.

— Você perde o juízo quando tem alguma criança envolvida — murmurou o


ancião. — Parando para pensar nisso… conseguiu ganhar nossa confiança depois
de resgatar um jovem de um monstro cruel, não foi?

— Foi.

— Já fazem cinco anos? Ah, como o tempo voa…

Suspirando, Rokkus balançou a cabeça, cansado. Eu sabia que o homem


estava do meu lado, mas, de qualquer maneira, fiquei um pouco irritado. Ele
simplesmente exalava a mesma aura daqueles garotos irritantes e precoces do
ginásio, expressando sua exasperação com as estupidezes dos adultos.

— De qualquer forma, Ruijerd – realmente acha que pode alcançar seu objetivo
adotando meios tão violentos?

— Hm… – Ele grunhiu, franzindo a testa.

Seu objetivo? Isso parecia importante, então decidi me intrometer.

— Seu objetivo? Qual é, Ruijerd?


— É muito simples — disse Rokkus. — Ele quer convencer a todos que os
Superd não são os monstros perversos que pensam ser.

Com esforço, consegui evitar de deixar um: “Bem, não vai rolar” escapar. O
preconceito sistemático não é o tipo de coisa que as pessoas podem simplesmente
superar, não importa o quanto tentem. Que inferno, uma única criança não poderia
nem mesmo impedir sua turma de intimidar alguém, e o ódio pelos Superds
aparentemente se espalhou pelo mundo todo. Digo, até a pequena e ousada Eris
gritou ao ver Ruijerd. A humanidade e as raças de demônios tinham certeza de que
eles eram malignos; como poderia convencer todos do contrário?

— Uhh, bem… é verdade que os Superds atacaram amigos e inimigos durante


a guerra? — Me aventurei timidamente.

— Espera! Aquilo não…

— Eu sei que os rumores podem ter fugido do controle, mas parece que há uma
boa razão para que todos tenham medo de…

— Não! Aquilo não é verdade! — Ruijerd gritou, de repente me agarrando pela


frente da minha camisa; seus olhos ardiam de raiva.

Senti que comecei a tremer. Ah, merda…

— Fomos vítimas do complô de Laplace! Os Superds não são uma raça de


bestas monstruosas!

O-o que diabos? Pare de gritar comigo, cara. Você está me enlouquecendo
aqui. Merda, não consigo parar de tremer. O que é isso de complô, afinal? Esse cara
acredita em teorias da conspiração ou o quê? E aquele Laplace viveu há tipo,
quinhentos anos atrás, certo?

— U-uh, o que exatamente o Laplace fez?

— Retribuiu nossa lealdade com traição!

O aperto de Ruijerd em minha camisa começou a afrouxar. Estendi a mão e bati


em seus braços algumas vezes, silenciosamente pedindo para me soltar; ele logo
obedeceu. Mesmo assim, pude ver que suas mãos tremiam de fúria.

— Aquele homem… aquele homem maldito!

— Se importa de contar a história toda, Ruijerd?

— É uma longa história.

— Bem, tenho muito tempo.

A história que Ruijerd me contou descreveu o lado oculto da história deste


mundo.
O Deus Demônio Laplace era conhecido como um herói que uniu as raças de
demônios, conquistando os direitos que a humanidade havia há muito negado. Os
Superds se aliaram sob a bandeira de Laplace logo no início de sua campanha. Eles
possuíam uma excelente agilidade e capacidade de perceber a presença dos
inimigos. Além disso, sua força de batalha era incomparável. Eles serviram como
uma das forças pessoais de Laplace, especializando-se em emboscadas e ataques
na calada da noite. Graças ao “terceiro olho” em suas testas, sempre estavam
cientes de tudo que acontecia nos arredores. Era impossível pegá-los de surpresa
ou evitar seus ataques mortais.

Em outras palavras, eram um grupo de elite. Na época, a palavra “Superd” era


falada com respeito e admiração por todo o Continente Demônio.

Mas então veio a Guerra de Laplace.

Nos estágios intermediários do conflito, quando os demônios começaram a


invadir o Continente Central, o Deus Demônio convocou seus guerreiros portando
um certo tipo de arma – uma que mais tarde viria a ser conhecida como Lança do
Diabo. Ele ofereceu essas lanças como presentes aos seus soldados. Eram muito
parecidas com os tridentes que os Superds empunhavam em combate, mas eram
pretas como azeviche; mesmo à primeira vista, ficava claro que havia algo de sinistro
nelas.

Naturalmente, alguns dos guerreiros se opuseram ao seu uso, insistindo que a


lança de um Superd era seu coração e alma – que nunca poderiam deixar suas
armas de lado por algo amaldiçoado. Mas era um presente de Laplace, seu mestre.
No final, Ruijerd – o líder do grupo – ordenou que seus soldados usassem as novas
lanças, por pura lealdade ao Deus Demônio.

— Hm? Você disse Ruijerd?

— Sim. Naquela época eu era o líder dos guerreiros Superd.

— E quantos anos você tem…?

— Perdi a conta depois dos quinhentos.

— Uh, certo… — O dicionário de Roxy mencionou algo sobre os Superds


terem tanta longevidade? Bem, tanto faz.

De qualquer forma, o grupo jogou suas velhas lanças no chão, em qualquer


lugar, e começou a usar as Lanças do Diabo em batalha. Essas novas armas eram
extremamente poderosas; elas amplificaram as capacidades físicas de seus
portadores em várias vezes, anularam os efeitos das magias dos humanos e
aumentaram ainda mais os já aguçados sentidos dos Superds.
Eles agora eram quase invencíveis. Mas, em troca, foram sendo gradualmente
transformados. Quanto mais sangue suas novas lanças provavam, mais corruptas
suas almas ficavam.

Os guerreiros nem perceberam o que estava acontecendo com eles. Perderam


a sanidade aos poucos, nenhum seguiu um ritmo diferente dos outros, e, assim,
ninguém percebeu como eles, ou aqueles ao seu redor, estavam mudando.

Com o tempo, isso resultou em tragédia.

Os Superds perderam a capacidade de distinguir amigos de inimigos e


começaram a atacar todos indiscriminadamente – fossem jovens ou velhos. Não
mostraram misericórdia para mulheres ou mesmo para crianças. Não mostraram
misericórdia para ninguém.

Ruijerd ainda lembrava claramente daqueles dias. Em pouco tempo, os


demônios começaram a chamar os Superds de traidores da causa, e espalhou-se
entre os humanos a notícia de que eles eram “demônios sedentos por sangue”.

Naquela época, Ruijerd e seus companheiros sorriam alegremente diante


desses insultos, considerando-os o maior dos elogios. Os Superds estavam
cercados de inimigos, mas suas lanças amaldiçoadas os tornavam uma força
temida. Cada guerreiro de seu bando lutava com a força de mil homens; nenhum
exército poderia esperar superá-los. Rapidamente se tornaram a unidade de
combate mais temida de todo o mundo.

Entretanto, isso não significava que também não sofriam perdas. Agora eram
um inimigo odiado tanto pelos humanos quanto demônios, foram forçados a suportar
batalhas quase ininterruptas, fosse dia ou noite. Lenta, mas continuamente, seus
números começaram a diminuir.

Ainda assim, nenhum deles questionou o caminho que estavam seguindo. Em


sua loucura, o pensamento de morrer em batalha resultava apenas em felicidade.

Depois de algum tempo, um boato chegou ao bando dos Superds, era algo
falando sobre uma de suas aldeias estar sob ataque – a aldeia natal de Ruijerd, mais
especificamente. Era uma armadilha destinada a atraí-los para sua ruína, mas,
neste ponto, nenhum deles estava lúcido o suficiente para suspeitar de qualquer
coisa.

Os guerreiros voltaram para casa pela primeira vez em algum tempo… e


começaram a atacá-la.

Foi simples. Encontraram pessoas, então precisavam matá-las.

Ruijerd assassinou seus pais, esposa, irmãs e, finalmente, seu próprio filho. Seu
filho ainda era jovem, mas estava treinando para se tornar um guerreiro. Foi algo
longe de ser uma batalha equilibrada, mas, em seus momentos finais, o menino
conseguiu quebrar a lança negra de seu pai.
Naquele instante, o agradável sonho de Ruijerd acabou e um pesadelo
começou. Havia algo duro e crocante em sua boca. Percebendo que era o dedo de
seu filho, ele cuspiu, horrorizado.

A primeira coisa em que pensou foi suicídio, mas afastou isso de sua mente.
Havia algo que simplesmente precisava fazer antes de morrer – precisava destruir
um inimigo, a qualquer custo.

Nesse ponto, a vila dos Superds estava totalmente cercada por um exército de
demônios enviado para exterminá-los. Apenas dez dos soldados de Ruijerd
continuavam vivos. Quando receberam as Lanças do Diabo pela primeira vez, era
um bando com quase duzentos guerreiros ousados e valentes. Agora era apenas
um punhado de sobreviventes, e estavam todos acabados. Alguns perderam um
braço, outros o olho ou até mesmo a joia na testa; mas, mesmo assim, feridos e em
números muito menores, olhavam beligerantemente para a força de mais de mil
homens que os rodeava.

Iriam todos morrer. E morreriam em vão.

Ruijerd arrebatou as Lanças do Diabo das mãos de seus companheiros e as


quebrou. Um por um, os outros voltaram a si, seus olhares agressivos deram lugar
a chocadas expressões de descrença. Muitos começaram a chorar desesperados,
lamentando o assassinato de suas famílias. Ainda assim, nenhum pediu para
retornar ao estado de transe; eram feitos de um material mais resistente do que isso.

Juntos, juraram vingança contra Laplace. Ninguém culpou Ruijerd pelo


acontecido. Não eram mais assassinos estúpidos, nem guerreiros orgulhosos; eram
criaturas caídas e arruinadas, com apenas vingança como motivo para viver.

Ruijerd não sabia o que havia acontecido com os outros dez, mas suspeitava
que estavam mortos. Sem o poder das Lanças do Diabo, os Superds não eram nada
mais do que soldados excepcionalmente eficazes.

Eles não tinham escolha a não ser usar quaisquer tridentes que pudessem
encontrar, em vez daqueles com os quais se acostumaram ao longo de anos de
batalha. Assim sendo, nenhum deveria ter sobrevivido. De alguma forma, Ruijerd
conseguiu romper o cerco inimigo e escapar. Mas foi gravemente ferido na batalha
e passou os próximos três dias à beira da morte.

A única coisa que carregou consigo foi o tridente de seu filho – com o qual o
garoto morto quebrou a Lança do Diabo e salvou seu pai.

No final, depois de vários anos escondido, Ruijerd conseguiu sua vingança.


Enquanto três heróis lutavam contra o Deus Demônio Laplace, ele apareceu para
ajudá-los, conseguindo acertar um golpe em seu inimigo odiado.

Mas, claro, a derrota de Laplace não seria o bastante para reparar o dano feito.
Desprezados e perseguidos, os Superds sobreviventes foram expulsos de suas
aldeias e espalharam-se pelo mundo. Para ajudá-los a escapar de seus
perseguidores, Ruijerd foi forçado a matar mais dos demônios com os quais já havia
se aliado. Naqueles primeiros anos após a guerra, os ataques ao seu povo foram
verdadeiramente brutais e ele batalhou com a mesma violência.

Agora Ruijerd já não via outros Superds há quase trezentos anos. Ele não sabia
se sua espécie havia sido completamente exterminada ou se conseguiram
sobreviver e formar uma nova aldeia em algum lugar escondido.

— Laplace é o culpado por tudo, é claro. Mas também sou responsável pela
desgraça que causei ao meu povo. Mesmo sendo o último da minha espécie, quero
que o mundo saiba a verdade.

Com sua história contada, ele voltou a ficar em silêncio.

Suas palavras foram simples e diretas. Nunca pensou em nossas emoções.


Entretanto, Ruijerd havia transmitido seu arrependimento, raiva e amargura
perfeitamente. Ou tudo era verdade ou o homem era um ator incrivelmente
talentoso.

— Que história horrível — murmurei, tentando organizar meus pensamentos.

Se acreditássemos nas palavras de Ruijerd, os Superds não eram de tribos


inerentemente sanguinárias. Não estava claro por que Laplace deu as Lanças do
Diabo a eles, mas talvez o Deus Demônio estivesse planejando os usar como bode
expiatório para quaisquer crimes cometidos por exércitos assim que a batalha
chegasse ao fim.

Que coisa mais vil de se fazer.

Os Superds tinham sido sinceramente leais a Laplace. Teriam dado suas vidas
caso fossem pedidas. Traí-los com tanta crueldade parecia desnecessário.

— Certo. Vou te ajudar como eu puder.

Uma vozinha dentro de mim sussurrou uma objeção: Você realmente está em
posição para ajudá-lo? Que tal se concentrar em salvar sua própria pele? Esta
viagem vai ser muito mais difícil do que você imagina.

Não foi o suficiente para impedir que minha boca se movesse.

— Não sei ao certo, mas, talvez, ter uma criança humana ao seu lado te ajude
a descobrir novas possibilidades.

Claro, eu não estava agindo assim por pura compaixão. Também tínhamos a
ganhar com esse acordo, ao menos em alguns aspectos. Ruijerd era um lutador
poderoso – alguém no mesmo nível dos três heróis lendários – e estaria nos
oferecendo sua proteção. Pelo menos com ele por perto, não seríamos mortos por
algum monstro aleatório enquanto seguíamos para nosso próximo destino.
Sua presença tornaria as coisas na estrada mais fáceis e mais difíceis quando
chegássemos a uma cidade. Contanto que encontrássemos uma maneira de
contornar a questão em cidades, ele seria um excelente aliado. Além de ser forte,
era impossível emboscá-lo ou pegá-lo furtivamente, mesmo à noite; isso tornaria
muito mais fácil o ato de evitar bandidos ou ladrõezinhos nas cidades
desconhecidas.

Além do mais… embora fosse apenas minha intuição, tive a sensação de que
o homem era basicamente incapaz de mentir. Parecia seguro confiar nele.

— Farei o que puder por você, Ruijerd — falei. — É uma promessa.

— Uh… obrigado — respondeu, parecendo mais do que surpreso. Será que ele
percebeu a suspeita em meu olhar sumindo?

Bem, tanto faz. Decidi confiar em você, certo? Mordi a isca, chumbada e anzol.

Na minha vida anterior, costumava rir de histórias alheias tristes o tempo todo…
mas, por algum motivo, esta realmente me tocou. Se o homem estava de alguma
forma me enganando, não faria diferença. Pela primeira vez senti vontade de confiar
estupidamente em alguém.

— Mas, meu garoto, os Superds realmente…

— Está tudo bem, Rokkus. Vou descobrir alguma coisa. — Ruijerd nos
protegeria na estrada e eu o protegeria nas cidades. Esta seria uma relação de
mútuo benefício. — Vamos partir amanhã, Ruijerd. Ficarei feliz em ter você conosco.

Havia apenas uma coisa sobre isso que me deixava um pouco ansioso…

Bem, parecia que eu estava fazendo exatamente o que o Deus Homem queria.

Capítulo 05 - Três Dias para a


Cidade Mais Próxima
Na manhã seguinte, quando nós três estávamos deixando o vilarejo, avistei
Rowin parado perto do portão.

— Bom dia. Está de guarda de novo?


— Sim. Ficarei até que o grupo de caça retorne.

Os outros homens da aldeia ainda não tinham aparecido desde o dia anterior.
Rowin ficou ali a noite toda, igual a um NPC de algum RPG? Isso sempre me
pareceu algo bem simples… ficar parado no mesmo lugar o dia todo, sem se mover
um centímetro sequer. Ainda assim, ele realmente iria ser o único ali até o retorno
dos outros?

Ah, acho que aquele ali é o Ancião Rokkus. Com a aldeia sendo tão pequena,
ele também deve ajudar caso seja necessário.

— Já estão partindo? — perguntou Rowin.

— Sim. Conseguimos conversar sobre tudo ontem à noite.

— Ah. Eu esperava poder perguntar algumas coisas sobre minha filha, mas…

— Normalmente eu adoraria ficar e conversar, mas infelizmente precisamos


pegar a estrada logo.

— Certo…

O homem estava claramente decepcionado. O sentimento era mútuo. Eu


adoraria ouvir algumas histórias embaraçosas de Roxy.

— Se eu a vir de novo, vou me certificar de dizer para que entre em contato


com você.

— Por favor — disse Rowin, inclinando a cabeça, grato. Eu precisava tomar


uma nota mental sobre isso. — Ah, lembrei de uma coisa! Espere só um minuto.

Ele correu para dentro de uma das casas da aldeia – provavelmente aquela em
que Roxy cresceu. Depois de vários minutos, apareceu com uma garota que se
parecia muito com minha mestra. No começo não entendi por que ele simplesmente
não a chamou para o lado de fora usando telepatia, mas então percebi que estavam
carregando um tipo de espada. Iriam nos dar um presente?

— Esta é a minha esposa.

— Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Rokari.

Ah. Então essa era a mãe da família?

— Eu sou Rudeus Greyrat, senhora. Devo dizer que não esperava que a mãe
de Roxy fosse tão jovem. — Me curvei ligeiramente. De certa forma, devia muito a
esses dois: eles criaram Roxy e, sem ela, eu provavelmente teria partido para o
mundo da forma como nasci.

— Minha nossa, mas que bajulador. Eu tenho cento e dois anos, sabia?
— Uhm, bem… de acordo com meu livro isso ainda é bem jovem. — Pelo visto
os Migurds atingiam a maturidade física por volta dos dez anos de idade, e não
demonstravam sinais de envelhecimento antes dos cento e cinquenta anos. — Devo
muito à Mestra Roxy, senhora.

— Mestra…? Pela deusa, é difícil imaginar aquela garota ensinando qualquer


coisa a alguém. Ela deve ter mudado muito…

— Ela me ensinou todo tipo de coisa. Sou muito grato por tudo.

Com isso, Rokari corou um pouco e murmurou:

— Pela deusa… — Parecia que tinha entendido algo errado.

— De qualquer forma — disse Rowin —, estou feliz que você tenha aparecido
no meu turno.

— Sim. Também fico feliz por ter conhecido vocês dois. Roxy fez muito por mim,
sério… Hmm. Será que eu devo te chamar de Pai?

— Hahaha… Não. Não.

Ouch. O homem nem sequer esboçou um sorriso amarelo. Sua cara de pau me
lembrava um pouco a de Roxy. Senti até um pouco de nostalgia.

— Piadas a parte, quero que você fique com isso — disse Rowin, segurando a
espada. — Sei que Ruijerd está com você, mas conseguirá dormir melhor se tiver
sua própria arma.

— Para falar a verdade, não estou exatamente desarmado — falei, aceitando a


espada e puxando-a da bainha.

A lâmina era larga, de um só gume e apenas cerca de sessenta centímetros de


comprimento. Também era ligeiramente curva, como um facão ou cutelo. Algumas
marcas de uso sugeriam que já era utilizada há alguns anos, mas a lâmina de corte
não estava nada lascada. Com certeza parecia que cuidaram bem dessa coisa;
estava limpa, até mesmo bonita. Mas também havia algo estranhamente ameaçador
nisso. Talvez fosse a maneira como o aço cinza fosco brilhava ligeiramente verde
quando exposto à luz.

— Conseguimos isso de um ferreiro que veio para a aldeia há algum tempo. É


um negócio robusto. Mesmo após anos de uso, a lâmina continua perfeita. É sua,
caso queira.

— Muito obrigado — falei. — Teremos o maior prazer em aceitá-la. — Não era


hora para ser modesto. Agora, precisávamos de toda a ajuda que pudéssemos
conseguir. Eu poderia lutar de boa mesmo sem nada, mas Eris certamente poderia
usar a arma.

— Aqui também tem um pouco de dinheiro. Não é muito, mas deve ser ao
menos o bastante para duas ou três noites em uma pousada decente.
Ooh, agora conseguimos até um pouco de dinheiro!

Abri a bolsa, entusiasmado, e descobri que continha algumas moedas de pedra


bruta e outras feitas com um metal cinza fosco. Pelo que eu lembrava, a moeda do
Continente Demônio consistia em moedas de minério verde, moedas de ferro,
moedas de sucata e moedas de pedra. Seu valor era inferior ao de moedas
equivalentes em outras partes do mundo; até mesmo as moedas de minério verde,
que eram as mais valiosas, valiam apenas um cobre grande Asurano, ou talvez até
menos. As moedas de ferro também eram bem próximas aos cobres.

Se disséssemos que uma moeda de pedra era equivalente a um iene japonês,


as moedas provavelmente seriam classificadas mais ou menos assim:

Moeda de ouro Asurano: 100.000 ienes.

Moeda de prata Asurana: 10.000 ienes.

Cobre grande Asurano: 1.000 ienes.

Cobre Asurano: 100 ienes.

Moeda de minério verde: 1.000 ienes.

Moeda de ferro: 100 ienes.

Moeda de sucata: 10 ienes.

Moeda de pedra: 1 iene.

À primeira vista, esses números deveriam deixar claro o quão poderoso e


próspero era o Reino Asura, especialmente em comparação com a pobreza do
Continente Demônio.

Claro, o Continente Demônio tinha sua economia própria, então os preços nem
sempre podiam ser comparados. Não era como se todos do lugar estivessem
morrendo de fome.

— Muito obrigado…

— Eu só queria poder ter conversado um pouco mais sobre Roxy — murmurou


Rokari, repetindo as palavras anteriores de Rowin.

Eles certamente pareciam preocupados com a filha. Mesmo a garota já tendo


quarenta e quatro anos, se fosse comparado com a idade humana, era
basicamente… o mesmo que ter só uns vinte. Era bem compreensível.

— Acho que podemos ficar por mais um dia, caso queiram…

Rowin balançou a cabeça.


— Não se preocupe. Agora sabemos que ela está bem, e é isso que importa.
Certo, querida?

— Sim. Ela infelizmente sempre passou por dificuldades quando estava aqui.
Estávamos bastante preocupados.

Eu podia entender como seria difícil viver em um vilarejo como este sem aquele
poder telepático que todos pareciam ter. No geral, não se escutava nenhum som de
conversas no local. Todos provavelmente se comunicavam silenciosamente usando
apenas as mentes. Roxy não podia participar dessas conversas, nem mesmo ouvir
o que diziam uns aos outros. Não era de se admirar que tenha fugido de casa.

— Certo, tudo bem então. Espero que voltemos a nos encontrar algum dia.

— Claro. Mas se isso acontecer, tente não me chamar de Pai, entendeu?

— Hahaha. C-claro.

Cara, já entendi o recado…

Era difícil saber quando ou se veria Roxy novamente, mas, ao menos, teria que
devolver o dinheiro em algum dia.

Evidentemente, a cidade mais próxima ficava a uma jornada de três dias de


caminhada.

Pouco após partirmos, ficou claro o quão crucial era a ajuda de Ruijerd. O
homem já viajava sozinho pela área há muitos anos; conhecia todas as estradas e
sabia exatamente como montar um bom acampamento. Sem mencionar seu “radar”
biológico, que nos alertava antecipadamente sobre qualquer ameaça circundante.

Era ridiculamente conveniente tê-lo por perto.

— Ruijerd, se importaria de nos ensinar as coisas que está fazendo?

— Por quê?

— Para que possamos ser úteis. — Dada a longa jornada adiante, Eris e eu
precisávamos de um intensivo curso de habilidades básicas de acampamento.

Felizmente, Ruijerd provou-se um professor bastante disposto.

— Vamos começar fazendo uma fogueira. Infelizmente, o Continente Demônio


não tem madeira adequada para tal propósito.

Hm. Nosso primeiro encontro foi em torno de uma fogueira, então obviamente
deveria ser possível, mas…
— Você usa outra coisa? — perguntei.

— Sim. Podemos queimar algumas partes de um certo monstro.

— Ah. — Sério, esse devia ter sido meu primeiro palpite. Aqui, quase tudo que
precisava para sobreviver parecia ser proveniente da caça de monstros.

— Felizmente, há um bem perto daqui. Espere um momento, garoto.

— Ruijerd, espera! — O homem já estava se virando, mas consegui agarrar seu


ombro antes que ele começasse a correr.

— O que foi?

— Você vai lutar sozinho?

— Claro. Caçar é o trabalho de guerreiros. Crianças devem ficar em áreas


seguras.

Certo. Então, pelo visto, ele planejava continuar fazendo as coisas do mesmo
jeito para sempre. Para ser justo, o homem estava vivo há mais de quinhentos
anos… não tínhamos idade nem para ser seus tataranetos. E ele provavelmente era
mais do que forte o suficiente para lidar com qualquer luta sozinho.

Ainda assim, sempre havia uma boa chance de que algo de errado pudesse
acontecer. Se Ruijerd morresse ou de alguma forma ficasse incapaz de lutar, Eris e
eu seríamos forçados a nos defendermos sozinhos. E, no momento, não tínhamos
experiência de combate no mundo real. O que aconteceria se o perdêssemos
enquanto nosso grupo estivesse viajando por uma floresta densa e perigosa… ou
no meio de uma batalha contra um poderoso grupo de monstros?

Eu não gostava das chances que teríamos de sobreviver em situações


parecidas. Precisávamos obter alguma experiência o quanto antes, enquanto ainda
tínhamos chances.

Seria bom se eu pudesse convencer Ruijerd a nos ensinar a lutar, mas…

Não. Essa não era a melhor forma de pensar nisso. Este era um relacionamento
de mútuo benefício. éramos parceiros em pé de igualdade, trabalhando juntos para
alcançar nossos objetivos. Todos os três precisávamos descobrir como lutar como
um grupo.

— Certo, mas nós não somos só crianças.

— Sim, vocês são.

— Uh… Ruijerd, olha aqui. — Eu tinha que ser claro e direto a respeito disso.
O homem ainda tinha a impressão de que seria nosso guardião; precisava entender
que não era esse o caso. — Estamos ajudando você e você está nos ajudando.
Nossos objetivos são diferentes, mas vamos lutar juntos… Então, nós três
somos guerreiros, certo?

Com a expressão mais severa que pude fazer, encarei Ruijerd diretamente e
esperei por uma resposta.

Demorou só uns dez a quinze segundos para ele tomar uma decisão.

— Certo… Então vocês são guerreiros.

Não posso dizer que o homem parecesse exatamente convencido, mas pelo
menos parecia que iria permitir que o acompanhássemos de agora em diante. Isso
era o mais importante.

— Eris, ouviu isso? Você também vai lutar, né?

Eris piscou, surpresa, mas conseguiu soltar alguns gaguejos:

— C-claro! — E balançou a cabeça vigorosamente. Boa garota.

— Tudo certo então, Ruijerd — falei, voltando ao meu comportamento usual. —


Você pode nos levar ao monstro, por favor? — Não adiantava mais agir com
agressividade. Precisava ser enérgico ao negociar, e isso era tudo.

O primeiro inimigo que enfrentamos como um grupo foi um monstro conhecido


como “Ente de Pedra”.

Ente, no geral, era um termo usado para monstros parecidos com árvores. Eram
plantas comuns que absorveram muita energia mágica e se transformaram em
criaturas violentas.

Havia uma considerável variedade de monstros específicos que se


enquadravam nesta ampla categoria. Primeiro, havia o Ente Menor, encontrado por
todo o mundo. Eles eram como mudas mutantes que tendiam a imitar árvores
comuns até que o alvo entrasse em seu alcance. Eram fracos e lentos o bastante
para que um adulto comum, sem treinamento real, pudesse fatiá-los sem muita
dificuldade.

Entretanto, se acontecesse de um Ente Menor absorver muitos nutrientes de


uma Fonte Feérica, localizada em vários lugares da Grande Floresta, eventualmente
amadureceria e se tornaria um Ente Ancião. O poder mágico altamente concentrado
das Fontes concedia a esses monstros a capacidade de usar vários feitiços de água.

Havia também os Entes Antigos, que já eram enormes mesmo antes de


sofrerem mutação, e os Entes Zumbi, árvores que se transformavam depois de
murcharem… entre muitos outros. É claro que havia diferenças distintas entre cada
uma das variedades, mas seus padrões básicos de comportamento eram bem
semelhantes. Fingiam ser árvores normais e atacariam qualquer um que se
aproximasse demais. Após algum tempo, produziam sementes que se
desenvolveriam e aumentariam sua espécie.

Entretanto, o Ente de Pedra era um caso especial. Na verdade, ele se disfarçava


como uma rocha.

Qualquer um poderia acabar se perguntando como uma árvore poderia se


disfarçar assim. Na verdade a resposta era simples: Entes de Pedra se
transformavam em monstros enquanto ainda eram sementes. Podiam continuar em
sua forma de semente mesmo após crescerem, e eram capazes de abruptamente
se transformarem em árvores monstruosas sempre que alguém se aproximasse
demais.

Em sua forma normal, eram completamente imperceptíveis. Não tinham nem


um formato distinto, tipo uma semente de girassol – à primeira vista, pareciam
apenas pedrinhas, com um formato ligeiramente parecido com uma batata.

— Há algo que precisamos ter em mente enquanto estivermos lutando contra


isso?

— Hm. Você é um mago, sim?

— Isso mesmo.

— Então não use nenhum feitiço de fogo.

— Ah. Não funcionam?

— Não poderemos usar a coisa como lenha se você a queimar até que vire
cinzas.

— Ah, certo. Claro.

— E nada de magia de água.

— Porque não queremos que a madeira fique úmida?

— Exato.

Então, tudo bem. No que dizia respeito a Ruijerd, essa coisa seria claramente
algo inferior a uma ameaça, algo mais parecido com um pedaço de madeira vivo.
Isso significava que não representaria qualquer perigo real, desde que estivéssemos
com ele. Poderíamos lutar sem correr um risco real.

— Tudo certo então. Vamos tentar deixar a luta comigo e com Eris. Ruijerd,
você só precisa intervir para ajudar Eris caso ela esteja em perigo, certo?

— Pretende me manter na reserva?


— Só quero ver o quão bem Eris e eu podemos nos controlar em batalhas reais.
Depois dessa, vamos observar você em ação e ver o que podemos aprender.

— Certo.

Com isso decidido, nos coloquei em uma formação de batalha simples – Eris
na vanguarda, e eu na retaguarda. Parecia a melhor escolha, dadas suas
habilidades de luta com espada.

Eu estava um pouco hesitante em colocar minha adorável pupila na linha de


frente, claro, mas ela não seria muito útil se ficasse retida no meio de uma formação.
Esse tipo de posicionamento era para apoiar o ataque da vanguarda, e Eris era
terrível em trabalho em equipe. Além disso, Ruijerd provavelmente não precisaria
se esforçar, mesmo sendo da reserva. Seria melhor deixar Eris lutar livremente, com
ele logo atrás para apoiá-la.

— Certo, Eris. Vou ajudar um pouco com um bom tiro à distância. Depois disso,
você aparece e acaba com tudo. Vou tentar pelo menos entoar os feitiços que usarei,
mas se as coisas ficarem agitadas, vou ficar sem tempo. Basta que mantenha isso
em mente, entendeu?

Eris concordou energicamente, dando alguns golpes experimentais com sua


nova espada.

— Sem problemas! — A garota estava claramente ansiosa para prosseguir.

Ergui meu cajado e parei para pensar nessas coisas. Feitiços de fogo e de água
foram descartados, e só de olhar para a coisa, parecia que os de vento nãos seriam
muito eficazes. Isso me deixou apenas com os de terra. Terra me serviria. Eu tinha
ficado muito bom com isso depois de fazer tantas estatuetas.

Ainda assim, seria a primeira vez lutando contra um monstro de verdade.

Era melhor dar tudo de mim.

Fechei os olhos e respirei fundo uma única vez, então canalizei minha energia
mágica para e através das mãos. Era algo que já havia feito dezenas de milhares
de vezes; neste ponto, poderia ter lançado o feitiço mesmo com as duas pernas
arrancadas.

— Tudo certo…

Projétil: Rocha em forma de bala.

Resistência: A maior possível.

Forma: Arrebitada, com várias ranhuras.

Modificações: Rotação de alta velocidade.


Tamanho: Ligeiramente maior que um punho.

Velocidade: A maior possível.

— Canhão de Pedra!

Quando as palavras saíram da minha boca, uma pedra disparou da ponta do


meu cajado fazendo um enorme estrondo. Ela voou adiante em uma linha horizontal
e quase perfeita, e se chocou contra o Ente de Pedra camuflado que estava à nossa
espera.

Com um som ensurdecedor, o monstro explodiu em pedaços. Eu o matei,


ficou mortinho da silva.
Eris já estava começando a correr, mas depois que meu ataque acertou, ela
parou no meio do caminho e olhou para a minha direção, emburrada.
— O que aconteceu com aquilo de só ajudar um pouco, Rudeus?! Devo cortar
os destroços?!

— F-foi mal. Eu também nunca tinha feito isso, sabe? Acho que acabei usando
muita força…

— Ugh! Preste atenção!

Eris não ficou lá muito satisfeita por eu ter arruinado sua primeira batalha real,
mas eu realmente não esperava matar a pobre criatura tão facilmente. Tudo o que
realmente planejei foi ajustar o feitiço Canhão de Pedra, tornando o projétil um pouco
semelhante a uma bala de ponta oca. As pessoas da Terra certamente tinham
algumas ideias desagradáveis…

Nesse momento, percebi que Ruijerd também estava me encarando. Ou o meu


cajado, para ser mais específico.

— Essa arma é algum tipo de instrumento mágico?

— Não, é só um cajado. Mas é um de alta qualidade.

— Mas você não recitou nenhum feitiço e nem usou um círculo mágico…

— Certo. Não é possível mudar a forma do projétil se você usar um


encantamento, então eu sempre pulo essa parte.

—Entendi… — Nesse momento, Ruijerd caiu em silêncio, pensativo. O homem


podia até ter mais de quinhentos anos de idade, mas parecia que feitiços silenciosos
não eram algo que vira muitas vezes. — De qualquer forma… foi a sua magia mais
poderosa?

— Bem, não. Eu também podia fazer o projétil explodir quando atingisse o alvo.

— Hmm. Acho que seria melhor evitar qualquer feitiço quando seus aliados
estiverem perto do alvo, Rudeus.

— Uh, sim. Boa ideia.

Foi a primeira vez que realmente acertei alguma coisa com aquele feitiço, mas
foi definitivamente… mais destrutivo do que imaginei. Acertar alguém com aquilo
resultaria em morte instantânea. Idealmente, seria melhor mudar para feitiços de
suporte, mas não me veio nada à mente. Até o momento, realmente só tinha
pensado em lutar sozinho.

De qualquer forma, como os outros magos faziam quando estavam em


combate?

— Ruijerd, se eu quiser ajudar vocês dois com minha magia, que tipo de coisa
deveria estar fazendo?
— Não sei. Nunca lutei ao lado de um feiticeiro.

Bem, que seja. Tínhamos um experiente guerreiro Superd ao nosso lado. Não
precisaríamos imitar os modos que grupos normais adotavam para fazer as coisas.
Poderia pensar em nossa coordenação depois; por enquanto, o mais importante era
que Eris e eu tivéssemos alguma experiência real em combate.

— Certo… eu odeio pedir isso, mas poderia encontrar outro inimigo?

— Tudo bem. Mas há algo que precisamos fazer primeiro.

— Hein? O quê? — Talvez essa fosse a parte em que fazíamos uma pequena
oração pela criatura que matamos?

— Temos que recolher a madeira. Você a espalhou por todos os cantos.

Usando magia de vento, comecei a recolher os pedaços destruídos do Ente.

Nosso grupo continuou se movendo até o pôr do sol, travando um total de quatro
batalhas. Enfrentamos outro Ente de Pedra, uma Grande Tartaruga, um Lobo Ácido
e um grupo de Coiotes Pax.

Ruijerd acabou com a Grande Tartaruga em um único ataque. Ele simplesmente


correu até a coisa e espetou seu tridente no crânio dela. Seus movimentos eram
lindamente fluidos e eficientes. O homem já estava no ramo de caça a monstros por
quinhentos anos, e isso realmente transpareceu. Me senti meio estúpido por ter
ficado presunçoso demais após explodir o Ente de Pedra.

Os Lobos Ácidos eram grandes animais que podiam cuspir um tipo de ácido
cáustico. Encontramos apenas um, então Eris o derrubou, avançando bruscamente
para fazer sua cabeça voar em um único golpe. Comparado com Ruijerd, não foi
algo exatamente elegante, mas ainda assim resultou em vitória instantânea.

Infelizmente, o sangue do animal espirrou nela, então não houve qualquer


comemoração. Fiquei preocupado que o sangue pudesse ser perigoso, mas pelo
visto não era o caso. Eris se saiu bem o suficiente, visto que foi sua primeira batalha
real. Ao menos foi o que Ruijerd disse.

Dessa forma, cuidei do segundo Ente de Pedra com um único disparo, de novo.
Esperava causar um dano moderado para que Eris pudesse praticar, mas acabou
sendo surpreendentemente difícil fazer meu feitiço ser menos letal. Até pegar o jeito
para diminuir o poder, teria que evitar usá-lo em pessoas. Mesmo se precisasse
matar alguém, não havia necessidade de tornar isso em algo horrível.

Os Coiotes Pax constituíram nosso último encontro do dia, e também o mais


desafiador. Eram monstros que costumavam aparecer em dezenas. Eles não eram
exatamente uma “matilha” – um único coiote já formava seu próprio grupo, e então
se reproduzia por divisão, quase como se fosse uma ameba. Felizmente, não era
como se aparecessem mais a cada segundo enquanto batalhávamos. Eles só
podiam se reproduzir uma vez a cada poucos meses. Mesmo assim, qualquer grupo
aumentaria de tamanho constantemente conforme o tempo passasse, com todos os
novos coiotes sob o total controle do líder. Se o líder sucumbisse em batalha, um
coiote diferente assumiria sua posição na mesma hora. A força principal estava em
sua vantagem numérica, mas sua coordenação e disciplinas harmoniosos os
tornavam realmente perigosos.

O grupo com o qual lutamos era composto por cerca de vinte. Provavelmente
poderiam ter matado qualquer aventureiro comum, mas Eris os enfrentou com
alegria, brandindo sua nova espada para lá e para cá enquanto Ruijerd oferecia
conselhos infinitos. A menina colocou sua vida em risco na batalha, mas não parecia
exatamente tensa. Toda aquela prática com Ghislaine havia claramente a imbuído
um pouco de confiança, e parecia que o ato de matar não a incomodava muito.

Da minha parte, só fiquei para trás e observei enquanto Eris abatia um coiote
atrás do outro. Eu estava planejando intervir e ajudar caso fosse necessário, mas
Ruijerd estava desempenhando seu papel de ajudante de forma tão perfeita que
poderia ser até contraproducente. Ainda assim, não fazer nada era muito chato e
comecei a me sentir meio excluído depois de um tempo. Encontrar um modo de
lutarmos em grupo deveria ser, definitivamente, a minha prioridade.

De qualquer forma… Eris realmente se provou uma lutadora notável. Ela


alcançou o nível Avançado do Estilo Deus da Espada1 pouco antes de meu
aniversário, certo? Neste ponto, eu provavelmente não teria nenhuma chance em
uma luta, a menos que usasse magia. Caramba, até o Paul era só um espadachim
de nível Avançado… mas ele também tinha alcançado esse feito tanto no Estilo
Deus do Norte quanto Deus da Água, e possuía muito mais experiência em
combates reais. Ainda assim, Ghislaine disse que Eris tinha muito mais talento bruto
do que Paul jamais teve. Ela provavelmente o deixaria comendo poeira em pouco
tempo.

Engula isso, velhote.

— Rudeus! Aqui!

Em algum momento, acabaram com o último dos monstros; Ruijerd estava


pegando suas facas enquanto eu me aproximei.

— As peles dos Coiotes Pax são valiosas. Tivemos sorte por encontrar um
grupo tão grande. Ajudem-me a esfolá-los.

Mas eu tinha outra coisa que queria fazer primeiro.

— Espera aí.

Caminhando até Eris, vi que ela estava ofegante… e ferida em três lugares
diferentes. Menos de trinta minutos se passaram desde o início da batalha, mas com
Ruijerd se dedicando ao seu papel de reserva, cabia à garota matar a grande maioria
dos monstros. É claro que ficaria exausta.
Ao menos não iria doer se já cuidasse de seus ferimentos…

— Que esse poder divino seja de nutrição satisfatória, dando a quem perdeu
suas forças a força para se reerguer – Cura.

— Obrigada.

— Eris, está bem?

— Hah! É claro! Eu mal quebrei um… ugh.

Aquele sorriso presunçoso parecia um pouco horrível com o sangue de monstro


por todo o seu rosto, então limpei um pouco com a minha manga. A experiência não
a abalou em nada. Isso foi… muito impressionante. Pessoalmente, eu estava
prestes a vomitar só com o cheiro.

— Hmm. Nem suou, hein? Essa foi sua primeira batalha de verdade, sabe.

— E daí? Eu sei lutar. Ghislaine me ensinou tudo.

Certo, certo. Pratique como brinca e brinque como pratica. Eris sempre
absorveu cada uma das lições de Ghislaine. Talvez não fosse tão surpreendente se
ela pudesse aplicar tudo o que aprendeu em batalhas reais.

Digo, se alguém se concentrasse a lutar conforme aprendeu, que diferença faria


se os inimigos começassem a sangrar?

— Meu deus… — Com um sorriso amarelo, me virei para Ruijerd, que estava
nos observando o tempo todo.

— Por que você fez com que Eris cuidasse de todas as batalhas, Rudeus?

— Eu nem sempre estarei por perto para a proteger. Quero ter certeza de que
poderá se defender sozinha caso as coisas fiquem feias.

— Ah, entendo.

— Assim sendo… o que achou dela até agora?

Ruijerd balançou a cabeça, pensativo, antes de falar.

— Em caso de se empenhar, um dia será uma mestra espadachim.

— Sério?! Certo! — Eris literalmente deu um pulo, seu rosto estava brilhando
de alegria.

Devia ser muito bom ouvir algo assim de um guerreiro lendário. Eu também não
me importei por ouvir isso; se Ruijerd reconhecesse os talentos de Eris como
guerreira, teríamos uma chance muito maior de encontrar um modo de trabalhar
como um grupo.
— Certo, Ruijerd. De agora em diante, vamos ter Eris lutando na linha de frente
enquanto eu fico na retaguarda.

— E o que eu deveria fazer?

— Você não tem uma posição definida, então pode se mover para cobrir nossos
pontos cegos. Ah, e se qualquer um de nós se enfiar em perigo, assuma o controle
e nos diga o que fazer.

— Entendido.

No momento, já tínhamos planejado uma formação de combate básica.


Esperançosamente, isso permitiria que eu e Eris conseguíssemos um pouco mais
de experiência em combate nos próximos dias.

Depois, veio a prática em acampar.

Para o jantar, comemos carne de Grande Tartaruga. Havia muito para se comer
de uma só vez, então começamos colocando a maior parte para secar para depois
– sob a direção de Ruijerd, claro.

Para ser franco, o material era um tanto nojento. Seu cheiro era insuportável e
era dolorosamente difícil de manusear. Pelo visto, o normal seria primeiro amolecer
cozinhando por várias horas, mas Ruijerd optou pelo caminho mais rápido e fácil:
assar em uma fogueira.

Pelo menos o fogo, por si só, não foi muito difícil de acender. Os Entes de Pedra
evidentemente secaram muito rápido depois de morrerem, então não precisamos
deixar a madeira ao sol ou algo do tipo. Não era de se admirar que Ruijerd visse
essas coisas apenas como pedaços de pau.

— Guh…

Mas é sério, que carne nojenta. Quem disse que isso era “delicioso”?

Espera, foi você mesmo, Ruijerd. Você está se esbaldando com isso! Digo… se
encobrisse o cheiro com gengibre, será que ficaria comestível? Será? Cara, eu
quero carne de verdade. E arroz…

Uma frase memorável de um certo mangá passou pela minha mente: “Carne
grelhada é deliciosa. E fica deliciosa graças à crocância.” Quanta mentira. Carne
que não é saborosa não fica deliciosa de jeito nenhum.

Em contraste, comi muito bem no Reino Asura. O pão podia até ser algo bem
básico lá, mas geralmente era acompanhado por carne, peixe, vegetais e algum tipo
de sobremesa, com toda a variedade esperada de um restaurante três estrelas. E
passei a maior parte do meu tempo lá no meio do nada; uma princesinha mimada
igual a Eris iria suportar isso?

Quando olhei, entretanto, me deparei com ela mastigando, satisfeita, o seu


próprio pedaço de carne.

— Ei, isso não é nada ruim.

Espera aí, sério?!

Bem… talvez até fizesse sentido. Quando você só dá coisas saudáveis para
uma criança, na primeira vez que ela prova porcaria fica apaixonada, não é?

— O quê? — Eris percebeu que eu estava olhando para ela.

— Uh, não é nada. Você gostou disso?

— Sim! Eu sempre… mngh… quis provar algo assim!

Eu sabia que ela amava ouvir as histórias da vida de aventureira de Ghislaine.


Será que isso se resumiu a fantasias sobre comer carne dura e nojenta perto de
uma fogueira? Era uma fantasia meio estranha, mas, tudo bem.

— Dá para comer até crua, sabe… — comentou Ruijerd.

Os olhos de Eris brilharam de curiosidade e um pequeno calafrio correu pela


minha espinha. Felizmente, consegui falar antes que ela abrisse a boca:

— Não. A resposta é não. Nem pense nisso.

Fala sério. Eles queriam ficar com vermes? Porque é assim que se consegue
eles.

Ruijerd estava dando uma aula sobre cuidados básicos de armas para Eris
antes de nos deitarmos para dormir. Por falta de coisa melhor para fazer, também
escutei.

A lança dele não era feita de metal e a espada de Eris foi forjada a partir de
materiais especiais, por um método bem específico. Pelo visto, nenhum dos dois
precisava se preocupar com ferrugem comum. Mas isso não significa que poderiam
deixar a manutenção diária de lado. Deixar sangue seco em uma espada ou lança
iria gradualmente deixá-las cegas e começar a atrair monstros. Da perspectiva do
Superd, o cuidado da arma era de responsabilidade fundamental do guerreiro.

— Pensando bem, do que a sua lança é feita? — perguntei, repentinamente


curioso. A julgar pelo que ele carregava, os tridentes Superd eram totalmente
brancos, sem quaisquer ornamentos e curtos demais para serem lanças. Pelo visto,
eram feitos de uma única substância; não consegui ver nenhuma junção entre o
cabo e a cabeça.

— É feito de mim.

— Hein…?

— A lança de um Superd é feita da sua alma.

Droga. Eu não esperava uma resposta tão… filosófica.

Tá, claro. Certo. Então sua lança é, hã, sua alma. E sua alma é seu estilo de
vida, né? Seu estilo de vida é tudo o que existe em seu coração… e seu coração é
exatamente o que você ama. Então, resumindo, você ama sua lança mais do que
tudo… é algo do tipo?

Felizmente, Ruijerd elaborou um pouco mais a sua resposta antes que eu


pudesse acabar confuso.

— Cada um de nós nasce com sua própria lança, entende?

Os Superds nasciam com uma cauda de três pontas. Isso crescia com eles até
que atingissem uma certa idade, momento em que endureciam e caiam. Entretanto,
mesmo quando separados, ela ainda fazia parte de seus corpos; quanto mais a
usavam, mais afiada e mortal ficava. Com tempo e esforço suficiente, os tridentes
poderiam virar armas ímpares, virtualmente inquebráveis e capazes de perfurar
praticamente qualquer coisa.

— E é por isso que não devemos deixar nossas lanças de lado até o dia de
nossas mortes… — O rosto de Ruijerd estava repleto de puro pesar pelo erro que
ele cometeu há quatro séculos.

Nesse ponto, sua lança provavelmente já era mais dura e afiada do que a de
qualquer outro Superd da história. Eu estava definitivamente feliz por tê-lo ao nosso
lado.

Ainda assim, sua visão de mundo… às vezes me preocupava. O homem estava


tão rígido quanto sua arma. Se não conseguisse ser um pouco maleável de vez em
quando, nunca aprenderia a aceitar as outras pessoas como são. E isso significava
que também nunca o aceitariam. Existe um negócio chamado ser muito inflexível,
sabe?

De qualquer forma… depois de três dias lutando contra monstros e acampando


sob as estrelas, nosso pequeno grupo conseguiu chegar à cidade mais próxima.
Capítulo 06 - Infiltração e
Personificação

A cidade de Rikarisu é uma das três maiores colônias do Continente Demônio.


Na época da Grande Guerra Demônio-Humano, serviu como base para as forças da
Imperatriz Demônio Kishirika Kishirisu. Mesmo agora, às vezes é chamada de
Antigo Castelo de Kishirisu.

A primeira surpresa que aguarda os visitantes de primeira viagem é sua


localização incomum. Rikarisu fica no meio de uma enorme cratera, cuja borda
forma uma única e contínua muralha ao redor de toda a cidade. Em tempos de
guerra, essas defesas naturais ajudaram a cidade a se proteger de vários cercos
inimigos – e hoje, ainda servem para proteger a cidade contra hordas de monstros.

Bem no centro da cidade ficam as ruínas do Castelo Kishirisu, semidestruído


durante os eventos da Guerra de Laplace. Muralhas externas impressionantemente
espessas cercam o castelo preto-e-dourado, é uma visão que oferece aos visitantes
uma lembrança da constante glória, agora desbotada, da Imperatriz e do violento e
doloroso passado dos demônios.

Rikarisu é uma cidade histórica. Um lugar com uma vasta história.

E quando o sol se põe, os visitantes podem apreciar sua verdadeira beleza.

Trecho de Peregrinando pelo Mundo, do aventureiro Kant Sangrento.

Essas palavras eram a soma total de tudo que eu sabia sobre a cidade de
Rikarisu, à qual havíamos recém-chegado.

Havia apenas três entradas para a cidade, todas elas eram rachaduras na borda
da cratera. As muralhas do lugar eram surpreendentemente altas. A menos que
pudesse voar, seria difícil passar por cima delas.

Dois guardas armados estavam posicionados fora de cada uma das entradas.
Eles evidentemente levavam a segurança do local a sério.

Lancei um olhar pensativo na direção de Ruijerd.

— O que foi, Rudeus?

— Ruijerd… nós podemos entrar nesta cidade, né?


— Eu nunca coloquei os pés nela. Sempre me expulsam.

A humanidade temia e odiava os Superds em um nível quase primitivo. Isso


ficou óbvio apenas com a primeira reação de Eris. Eu esperava que as coisas
pudessem ser um pouco diferentes com os demônios, mas… com base no que ouvi
na aldeia Migurd, isso provavelmente era apenas um pensamento positivo demais.

— Só por curiosidade, mas quando você é perseguido, acontece exatamente o


quê?

— Os guardas começam a gritar assim que eu me aproximo. Um pouco depois,


um enorme número de aventureiros armados aparece correndo.

Certo, então provavelmente não teríamos nenhuma chance para nos


explicarmos. Os guardas só gritariam “Pare” e, logo depois, pediriam reforços…
nesse ponto seríamos esmagados por uma gigantesca onda de homens enormes.

— Nesse caso, acho que é melhor bolarmos algum tipo de disfarce.

Ruijerd me lançou um olhar penetrante.

— Disfarce?

Hm. Isso seria um problema?

— Olha, escute. No momento, nossa prioridade é só entrar, certo?

— Não estou sendo contra. Só não sei o que você quer dizer com… disfarce.

— Hã?

Uau. Pelo visto, ele não estava muito familiarizado com a palavra. Então, mais
uma vez, acho que o homem poderia facilmente entrar na cidade de algumas outras
formas.

— Um disfarce é só… uma maneira de mudar sua aparência e ocultar sua


identidade real.

— Entendo… E como faríamos isso?

— Hmm, boa pergunta. Por que simplesmente não escondemos seu rosto? —
Eu me agachei, coloquei minhas mãos no chão e comecei a canalizar meu poder
mágico para ele.

— Alto lá!
Havia dois soldados guardando o portão do qual nos aproximamos. Um era um
homem de aparência séria com cabeça de cobra; o outro, um cara de aparência
arrogante e uma cabeça de porco.

— Quem são vocês?! Que negócios vocês têm aqui?! — gritou o Cara de Cobra,
uma das mãos já estava na espada em seu quadril.

Por outro lado, o Cabeça de Porco estava ocupado olhando em silêncio, cheio
de malícia, na direção de Eris. Maldito animal sujo… É melhor que não faça graça,
senão…!

Como havíamos combinado de antemão, dei um passo à frente para falar.

— Olá. Somos um grupo de viajantes.

— São aventureiros ou o quê?

— S… uh, não. Só viajantes comuns. — Quase respondi “sim”, mas não


tínhamos nada para afirmar isso. Então, mais uma vez, Eris e eu éramos jovens
demais, então provavelmente poderíamos ter nos passado por aspirantes a
aventureiros…

— Quem é esse homem com vocês? Parece bem suspeito.

Ruijerd estava usando um capacete bruto de pedra que eu tinha criado há


alguns minutos. Escondeu perfeitamente o seu rosto. Também envolvemos a ponta
de sua lança em um pano; à primeira vista, poderia confundir aquilo com um tipo de
cajado. Ele definitivamente parecia suspeito, mas pelo menos não poderiam dizer
que era um Superd.

— Esse é meu irmão mais velho. Ele colocou esse capacete que ganhou de um
aventureiro e depois não conseguiu mais tirar. Achamos que na cidade poderia
haver alguém capaz de ajudar…

— Hahaha! Que otário! Ah, tá bom. Vão lá e procurem a senhora da loja de


suprimentos, ela vai conseguir dar um jeito. — Rindo alto, o Cara de Cobra deu um
passo para trás e abanou as mãos.

Bem, isso foi melhor do que o esperado.

De volta ao Japão, tenho quase certeza de que os policiais teriam levado um


estranho com um capacete esquisito direto para a delegacia e começariam um
inquérito, mas nos safamos com bastante facilidade. Talvez fosse porque Ruijerd
estava com um par de crianças… ou talvez simplesmente não fosse incomum ver
pessoas com capacete vagando pela cidade.

— A propósito, para onde deveríamos ir caso precisemos de algum dinheiro?

— Hã? Está procurando um emprego ou algo assim?


— Bem, nós temos que ficar aqui até darmos um jeito no capacete do meu
irmão. E se cobrarem muito caro, vamos precisar de algum dinheiro.

O Cara de Cobra balançou a cabeça, murmurando:

— Sim, não acredito que aquele saco velho deixaria algo passar. — Pelo visto,
era um pouco difícil negociar com a dona da loja de suprimentos. Ainda bem que
isso não era problema meu. — Você provavelmente vai precisar passar pela Guilda
de Aventureiros, garoto. Não sei em que outro lugar um bando de forasteiros como
vocês poderia conseguir alguma coisa.

— Tudo bem. Isso…

— A guilda fica descendo nesta mesma rua. É o prédio grande. Vocês não vão
se perder.

— Muito obrigado.

— Assim que tiverem feito o registro, vão conseguir um desconto nas pousadas.
E só escrever seus nomes no livro, não vai custar nada.

Com um aceno de cabeça educado para o guarda, comecei a me mover em


direção ao portão… só para parar no último momento.

— A propósito… há alguma razão para a cidade estar sendo protegida tão


fortemente?

— Ah. Sim. Alguém disse que viu aquele monstro do Fim da Linha na área,
então estamos em alerta máximo.

— Espera, sério?! Falar sobre aquele…

— Sim, sério. Vamos torcer para que ele simplesmente vá embora logo, né?

Fim da Linha, hein? Julgando pelo nome… topar com ele é a mesma coisa que
estar acabado? Deve ser um monstro terrível.

Os edifícios de Rikarisu não eram tão altos quanto os de Roa, mas parecia que
havia tantos quanto. As duas cidades pareciam ter layouts bem parecidos. A maioria
das coisas perto da entrada eram estábulos e estalagens que claramente recebiam
mercadores viajantes.

— Hmm. A Guilda dos Aventureiros, hein…?

Com base em tudo que ouvi, os aventureiros deste mundo eram essencialmente
trabalhadores temporários glorificados. Pessoas com habilidades registradas na
“agência”, ou seja, na guilda; ao concluir os pedidos oferecidos, poderia construir
até uma reputação. Pessoas comuns levariam uma variedade de pedidos
diretamente até a guilda, e ela os distribuiria para os aventureiros que estivessem à
altura da tarefa.

— Não tenho certeza de quanto poderemos ganhar lá, mas pode ser uma boa
ideia fazer o registro. Eles provavelmente vão nos dar ao menos algum tipo de coisa
para identificação. O que acha, Eris?

— Aah! Sim, claro! Vamos virar aventureiros! — Os olhos da garota estavam


realmente brilhando de tanto entusiasmo. Sério, isso não foi nenhuma surpresa…
ela sempre amou ouvir os contos de Ghislaine sobre seus dias de glória.

— Você já é um aventureiro, Ruijerd?

— Não. Até hoje nunca tinha colocado os pés em uma cidade grande o
suficiente para ter uma guilda.

Ah, certo. Eles provavelmente não se importavam em abrir uma filial em cada
vilarejo que encontrassem pela frente.

— Certo. Acho que, de qualquer forma, vai ser o mais conveniente…

Uma espécie de plano estava começando a tomar forma dentro da minha


mente.

Não podíamos esperar que Ruijerd usasse o capacete enorme e pesado para
sempre. E se mantivéssemos seu rosto escondido, ele nunca teria a chance de
melhorar a reputação de seu povo. Sempre poderíamos tentar fazer algo grande
logo de cara e começar a espalhar boatos sobre um guerreiro Superd sendo o
responsável… Mas, como aventureiros novatos, provavelmente estaríamos apenas
levando recados de um lado para o outro. Resolver problemas menores para
pessoas comuns também poderia ser uma boa abordagem. Afinal, era a última coisa
que esperariam de um “assassino sanguinário”. Se fôssemos diligentes o bastante,
poderíamos conquistar, ao menos, a confiança das pessoas da cidade.

Ruijerd era basicamente um cara de bom coração. Coisas como encontrar


crianças perdidas em algum beco poderiam funcionar bem para mudar a impressão
que o povo tinha sobre seu povo, então isso poderia ser melhor do que sair matando
feras enormes. Digo, salvar uma criança fez maravilhas por ele na aldeia Migurd,
não fez? Com base nisso, provavelmente devíamos nos concentrar em ajudar as
pessoas ao invés de ir caçar monstros sanguinários. Poderíamos apenas deixar sua
bondade transparecer.

Dito isso… se quiséssemos dar a ele uma reputação de alguém que ajuda as
pessoas, o capacete se provaria um problema. Eu teria dificuldades para confiar em
uma pessoa que esconde o próprio rosto. Será que não podíamos mudar para algo
que cobrisse apenas seu cabelo e testa? Nah, isso provavelmente nãos seria bom
o bastante. A etiqueta social poderia ser um pouco diferente neste mundo, mas usar
o capacete o tempo todo me parecia ser algo muito rude.
Ainda assim, ficar pegando trabalhos minúsculos anonimamente não nos
levaria a lugar algum. Tínhamos que conscientizar toda a cidade da presença de
Ruijerd e convencê-los de que isso era algo bom.

— Mas como diabos vamos fazer isso…?

Em primeiro lugar, ele precisava ficar reconhecível. Não importa quantas boas
ações fizesse, nunca alcançaríamos nenhum progresso se fosse tudo atribuído a
algum “aventureiro desconhecido”. Será que realmente seria melhor começar
matando um ou dois monstros grandes? Só para fazer as pessoas aprenderem seu
nome…

A força era muito valorizada neste mundo. Derrotar uma fera verdadeiramente
assustadora poderia, depois, dar ao nosso pequeno grupo algum aumento na
posição social. Claro, todo mundo já sabia que os Superds eram lutadores
incrivelmente poderosos, então também havia uma chance de que o tiro saísse pela
culatra…

Não, espera. E se a cidade estivesse em perigo iminente ou coisa assim? Algo


tipo um monstro gigante e furioso correndo pelas ruas, com todos tremendo e se
encolhendo de medo, até que o Herói Demônio Sexy Ruijerd saltaria ao resgate! E
com uma música dramática de fundo!

Ooh. Isso seria perfeito.

O maior obstáculo era o fato de que precisávamos de um monstro furioso para


que isso acontecesse, mas há poucos minutos eu tinha ouvido um nome promissor.

—Ruijerd, você sabe o que é essa coisa de Fim da Linha? — Supondo que
fosse algum tipo de monstro poderoso, poderíamos encontrar uma maneira de atraí-
lo para a cidade e, logo depois, eliminá-lo assim que todos começassem a entrar
em pânico. Todo mundo ama uma história agradável de um claro “triunfo do bem
sobre o mal”, não é?

Infelizmente, a resposta de Ruijerd atrapalhou toda a minha linha de raciocínio.

— Sou eu.

— Umm…, o quê?

Hã? Ele está começando com aquela coisa de filosofia para o meu lado de
novo?

— Algumas pessoas me chamam assim, Rudeus.

Ah. Certo, então ele realmente quis falar isso, tipo, literalmente. Esse é um
apelido adorável…

Isso fazia sentido. Claro que qualquer um ficaria louco se pensasse que um
lendário assassino em massa estivesse vagando por perto de sua cidade. Fala
sério… “Fim da Linha” parecia um pouco de exagero. Quanto medo tinham de
Ruijerd? Aqueles guardas no portão realmente precisavam começar a se organizar
melhor. Eles provavelmente nem viam os Superds como pessoas. Estavam
esperando por um monstro vicioso e violento; nunca passou pela cabeça deles que
Ruijerd poderia ser inteligente o bastante para se disfarçar.

— Hmm. E agora…?

Havia uma potencial vantagem a ser usada: aquele apelido parecia ser bem
conhecido. Talvez pudéssemos usar ele, de alguma forma, a nosso favor.

— Ruijerd. Eles não têm uma recompensa pela sua cabeça ou coisa do tipo,
têm?

— Não. Isso não será um problema.

É sério? Você jura? Vou acreditar na sua palavra, entendeu?

Então tudo bem. Vamos mudar um pouco desse plano.

Antes de ir para a Guilda dos Aventureiros, passamos algum tempo vagando


pelas bancas à beira da estrada, agrupadas ao redor da entrada da cidade. Lojas
como essas tendiam a ser bem semelhantes em todos os lugares, mas os itens
específicos oferecidos poderiam variar um pouco. Por exemplo… enquanto os
estábulos de Roa ficavam cheios de cavalos para venda ou aluguel, no Continente
Demônio pareciam preferir um tipo de criatura parecido com um lagarto gigante.
Aparentemente eram mais adequados para terrenos íngremes e escarpados, que
eram os principais desta parte do mundo. Além disso, não tinham um sistema
organizado para o transporte de passageiros. Seria necessário pagar por uma
carona de algum dos vários comerciantes independentes que estavam no local.

Tínhamos uma longa jornada pela frente. Havia todo tipo de coisa que eu estava
morrendo de vontade de comprar. Mas já sabia o que estávamos procurando nessa
viagem em particular. Só teríamos que pegar uma coisa de cada vez.

Depois de dar uma olhada rápida em tudo, para ter uma ideia dos preços de
mercado dos vários itens, comecei a procurar uma barraca com um preço mais
acessível e que tivesse o que precisávamos. Não estávamos com muita pressa nem
nada do tipo, mas eu não queria perder horas e mais horas nisso. Tudo que queria
era comprar um capuz e um pouco de tinta… Ah, e também alguma fruta cítrica.

— Ei, tio. Você não está pedindo muito caro por essa tinta? Que roubo.

— Vá com calma aí, garoto. Esse é o preço certo.

— Sério? Tem certeza?

— Claro que tenho, caramba!


— Para aquele lado tinham um negócio bem parecido pela metade do preço,
sabe…

— Sério?!

— Bem tenho certeza de que o seu material é melhor, né? Hmm, esse capuz
também é bacana. Olha, vou comprar a tinta e um desses negócios ali, aquele que
parece um limão, então por que não deixa ele de graça?

— Hah! Que garoto chorão! Tudo bem, você ganhou. Tome!

— Ah, e enquanto estamos aqui… tem algum interesse de comprar algumas


coisas que temos? Estas são genuínas peles de Coiotes Pax, e também temos
algumas presas de Lobo Ácido.

— Droga, olha só tudo isso! Só um minutinho… Duas, quatro, oito… Certo. Que
tal três moedas de sucata por tudo?

— Ah, vamos lá, isso vale pelo menos seis.

— Certo, certo. Pago quatro.

— Então tá bom. Foi um prazer negociar com você.

Demorou um pouco, mas consegui finalizar tudo com uma única transação.
Como realmente não sabia qual era o preço da maioria das coisas do local, não
tinha certeza de quanto dinheiro tinha acabado de gastar. Para ser honesto, tinha
uma leve impressão de que aquele cara me enganou.

Ah, tanto faz. De qualquer forma, isso nos deixou com uma moeda de ferro,
quatro de sucata e dez de pedra. Este dinheiro foi um presente dos pais da Mestra
Roxy. Eu teria que pensar bem antes de gastá-lo.

Com o fim das compras, nós três fomos para um beco silencioso. Eu estava um
pouco preocupado com a possibilidade de encontrar alguns marginais
estereotipados… mas, mais uma vez, Ruijerd cuidaria disso, não? Podia até ser uma
boa chance para levantar alguma grana…

— Ei, Ruijerd. Se alguém aparecer para nos assaltar, poderia espancar eles só
até ficarem roxos?

— Até que fiquem quase mortos?

— Ah, não. Só precisa bater um pouco, obrigado.

Infelizmente, ninguém apareceu para nos incomodar. Mas quando parei para
pensar nisso, caras desesperados para roubar os outros, em primeiro lugar, não
teriam muito dinheiro.

— Certo, Ruijerd. Vamos começar tingindo o seu cabelo.


— Tingindo o meu cabelo…?

— Exato. É para isso que serve isso aqui.

— Entendo… Então você quer mudar a cor dele? Com certeza é uma boa ideia.
— Ele parecia genuinamente impressionado. Acho que as pessoas normalmente
não tingiam o cabelo neste mundo. Ou isso, ou Ruijerd simplesmente não sabia
dessa possibilidade. Ele claramente não passava muito tempo em vilarejos ou
cidades. – Entretanto, não seria melhor ter escolhido uma cor menos parecida com
a minha?

Escolhi uma tinta azul – uma bem próxima da cor do cabelo dos Migurds.

— Nah. A aldeia Migurd fica a apenas três dias à pé daqui, então provavelmente
há muitas pessoas aqui que sabem da existência deles. Achei que devíamos
transformá-lo em um deles, Ruijerd.

— E quanto a vocês dois…?

— Ah, nós somos apenas badecos. Você nos ajudou e nos acolheu em algum
momento.

— Badecos…? Pensei que fossem guerreiros, em pé de igualdade comigo.

— Bem, sim, nós somos. Estou falando sobre a história que vamos usar. Não
se preocupe, você realmente não precisa lembrar de tudo… Só vou agir como seu
escudeiro quando estivermos perto de outras pessoas.

Nosso próximo passo seria dar uma espécie de show.

Levei algum tempo para explicar a Ruijerd como seria o nosso espetáculo.
Desse momento em diante, ele seria um jovem Migurd chamado “Royce”, que
recentemente começou a personificar o infame guerreiro Superd, Fim da Linha.

Royce sempre desejou inspirar medo e admiração nas pessoas. Há não muito
tempo, encontrou duas crianças perdidas no deserto – uma que era capaz de usar
magia e outra que se provou talentosa manejando uma espada. Ele salvou suas
vidas e os dois começaram a idolatra-lo desde então.

— Vocês me idolatram?

— Uhm, acho que não chega a tanto.

— Entendo.

De qualquer forma, essas duas crianças eram na verdade lutadores muito


poderosos para suas idades. Assim que percebeu isso, Royce teve uma ideia
inteligente: por que não assumir a identidade do lendário guerreiro Ruijerd? Parecia
a forma mais fácil possível de instaurar medo nos corações de todos que
encontrasse. Claro, Royce sempre foi extraordinariamente alto para um Migurd. E
seus dois jovens companheiros eram muito competentes. Se ele apenas
reivindicasse todas as conquistas como suas, ficaria famoso em pouco tempo.

— Este homem é um sem vergonha. Não tem o direito de usar o meu nome.

— Sim, é totalmente desprezível. Mas digamos que este falso Ruijerd comece
a fazer boas ações. O que as pessoas pensariam?

— Não sei… O quê?

— Que ele é obviamente uma farsa, assim como um cara de bom coração.

Precisávamos que nosso ato fosse bem cômico e um pouco incoerente. A chave
era fazer com que todos pensassem que o impostor de Ruijerd fosse uma completa
fraude, e que por acaso também era uma pessoa estranhamente decente.

— Hmm…

— Bem, resumindo, se começarem a circular notícias de que esse falso Ruijerd


é um cara legal, estaremos no caminho certo. O boato ficará cada vez maior
conforme o tempo passar e, eventualmente, as pessoas começarão a falar que o
“Ruijerd” é um cara legal.

— Isso tudo parece maravilhoso… mas vai mesmo funcionar desse jeito?

— Ah, com certeza — respondi em um tom de grande confiança. Bem, de


qualquer forma, tentar não machuca. Todo mundo já pensava em Ruijerd como um
monstro cruel; sua reputação não iria piorar.

— Entendo. Eu não fazia ideia de que um plano tão simples poderia funcionar…

— Acredite em mim, não será simples. E sempre existe a chance de algo dar
muito errado. – Como regra geral, qualquer plano de longo prazo acaba dando
errado em algum momento. Quanto mais detalhado e complexo for, mais errado
pode dar. Ainda assim, contato que conseguíssemos criar toneladas de rumores
sobre Ruijerd circulando, havia uma boa chance de que sua reputação começaria a
ficar mais de acordo com sua natureza de bom coração.

— Verdade. O que propõe que façamos se descobrirem as mentiras?

— O que quer dizer? Você não precisa mentir, Ruijerd.

— Não entendo…

Ele estaria desempenhando o papel de “um Migurd que se autodenomina um


Superd”. Na maior parte do tempo, estaria fazendo boas ações e conquistando o
carinho público, assim como desejado. Não precisaria mentir nem sobre seu nome.

Aquilo de “Royce” era basicamente uma explicação alternativa que eu usaria se


alguém começasse a suspeitar que Ruijerd realmente fosse quem dizia ser. O
próprio homem continuaria usando seu nome verdadeiro. Ele admitiria abertamente
que era um Superd chamado Ruijerd. Mas, ao mesmo tempo, todo mundo decidiria
por conta própria que na verdade se tratava de um Migurd chamado Royce tendo
delírios de grandeza.

Em outras palavras, ele não precisava falar nada que não fosse verdade. Eu
estaria cuidando de todas as mentiras pelos bastidores. Senti que Ruijerd
provavelmente iria se opor em me deixar enganar as pessoas em seu nome, então
decidi não mencionar essa última parte.

— Todo mundo vai presumir que você realmente é um Migurd, entende?

— Ah, certo. Sou eu que estarei fingindo ser eu mesmo… Mas, espera, também
tenho que agir como se fosse Royce…? Rudeus, isso está me deixando com dor de
cabeça. Eu preciso fazer exatamente o quê?

— Não se preocupe com essas coisas. Só seja você mesmo.

Ruijerd parecia mais do que só um pouco relutante. Quaisquer que fossem seus
outros talentos, o homem provavelmente não foi criado para ser um ator.

— Assim sendo, certifique-se de não atacar e matar ninguém que te provocar,


tá?

— Hmm… Quer dizer que não devo entrar em nenhuma briga?

— Você pode entrar se precisar, mas finja estar tendo dificuldades. Dê uns
socos, comece a respirar pesado, coisas assim. No final, tente fazer parecer que
você mal conseguiu vencer.

Quando as palavras saíram da minha boca, percebi que talvez Ruijerd não
fosse sequer capaz de fazer um show desses, mas…

— Quer que eu vá com calma? Qual é o objetivo disso? – Pelo visto não seria
um problema.

— Queremos que as pessoas pensem que você é fraco demais para ser o
verdadeiro Ruijerd. E queremos que seus oponentes pensem: “Ei, e se ele for o
real? Isso não me tornaria incrível?”

— Acho que não entendi…

— É uma forma de convencer as pessoas de que você é uma fraude, ao mesmo


tempo em que faz todos se sentirem bem consigo mesmos.

— Mas o que fará com que se sintam bem?

— Isso vai incentivá-los a espalhar boatos de que os Superds são na verdade


moleza.
Ruijerd fez uma careta.

— Os Superd não são moleza.

— Acredite em mim, eu sei. Mas sua força é parte do que faz as pessoas terem
tanto medo de você. Se acharem que você é fraco, isso pode nos ajudar a resolver
os conflitos pacificamente, igual acabamos de fazer no portão.

Dito isso, também não queríamos que todos pensassem que seu povo era
moleza. Isso poderia acabar incentivando mais assédio aos vilarejos Superds
sobreviventes… assumindo que ainda houvesse algum perdido por aí. Este seria
um ato bem delicado para se equilibrar.

— Hm. Bem, se você diz, Rudeus…

Então tudo bem. Acho que isso serve por agora.

Não senti necessidade de dar muitas instruções específicas no momento. Isso


só aumentaria nossas chances de estragar alguma coisa.

— De qualquer forma… vou te dar todo o apoio que puder, Ruijerd. Mas o
resultado, no final, vai depender de você, entendeu?

— Claro. Muito obrigado, Rudeus.

Com as explicações iniciais finalizadas comecei a descolorir o cabelo dele


usando o suco das frutas parecidas com limão que compramos há alguns minutos.

O resultado não foi um dos melhores, mas seu cabelo verde esmeralda natural
desapareceu quase todo. Fui em frente e espalhei a tinta azul.

Hmm. Não é o melhor dos trabalho que já vi.

Ainda assim, pelo menos não parecia mais tão verde. Talvez ele estivesse até
parecendo com um Migurd? De longe? Se ignorasse sua altura?

Bem, Ruijerd realmente não parecia um Superd, e isso era o que importava. Um
disfarce meio ambíguo provavelmente era o que mais queríamos. A reação ideal
seria algo como… “Esse cara meio que parece um Migurd, mas não tanto. E está
se autodenominando um Superd, mas também não parece… Então, que diabos?”

— Além disso, acho que você devia usar isso – falei, pegando meu pingente e
colocando em Ruijerd.

— Este é… um amuleto Migurd, não é?

— Sim. Minha mestra me deu como presente de formatura, e eu uso ele desde
então. — Com isso pendurado em seu pescoço, todos iriam ao menos assumir que
estava de alguma forma conectado aos Migurd.
— Então deve ser precioso para você. Vou me certificar de devolvê-lo em
segurança.

— Sim. Faça isso.

— Claro.

— Só avisando, posso precisar te matar se perder isso.

— Entendido, Rudeus.

— Especificamente, eu bloquearia todas as saídas da cidade usando magia de


terra e, depois, encheria toda a cratera, até a borda, com magma.

— O quê? Você mataria todas as outras pessoas daqui também? Tem crianças
nessa cidade, sabe.

— Hrm. Se realmente está preocupado com isso, é melhor que cuide bem desse
amuleto.

— Hrm… Se realmente está tão preocupado com isso, então para começar não
devia me emprestar…

— Ruijerd, vamos lá. É óbvio que só estou brincando!

Agora, então… o próximo passo seria colocar o capuz que comprei antes em
Eris. Aquele cabelo ruivo era muito chamativo, e queríamos que a atenção de todos
se voltasse para o nosso protagonista.

— Então, Eris, estava pensando…

Neste ponto, desdobrei a coisa pela primeira vez e percebi que ela tinha
orelhinhas de gato… uma coisa mais ou menos parecida com os capuzes que os
magos brancos usavam em Final Fantasy III.

Isso foi feito para uma pessoa fera ou coisa do tipo? Que droga. Talvez eu
tivesse estragado tudo. Eris não era lá muito exigente com suas roupas, mas, pelo
que me lembrava da saudação tradicional da família Boreas, ela com certeza odiaria
fazer cosplay de gata.

— Uh… bem, sobre este capuz…

— Hã? Ah! Uhm, o que tem isso?

— Estava pensando… que você talvez pudesse usá-lo…

— Sério?!
Por alguma razão, a garota pareceu realmente muito feliz. Talvez ela não
odiasse tanto aquela pose quanto pensei…? Eris colocou o capuz na mesma hora,
sorrindo feliz.

— Vou cuidar bem disso!

— Bem, tá bom então. Eu realmente não entendi o porquê, mas deu certo!
Excelente!

Agora então… parecia que estávamos prontos para ir até a Guilda dos
Aventureiros. Isso precisava ser meio cômico. Só precisava manter isso em mente.

Deus, espero que dê tudo certo…

Capítulo 07 - A Guilda dos


Aventureiros

A Guilda dos Aventureiros era um local de encontro para alguns dos clientes
mais complicados da cidade. Alguns eram fisicamente poderosos; outros, magos
experientes e veteranos. Alguns favoreciam o uso da espada. Outros usavam
machados, clavas, ou até mesmo suas próprias mãos em batalha. Alguns se
gabavam de suas proezas, enquanto outros silenciosamente zombavam e criavam
alarde. Havia guerreiros usando armadura pesada, mas também feiticeiros trajando
robes leves. Havia homens parecidos com porcos e mulheres serpente; homens
com asas de insetos e mulheres com pernas de cavalo. Todos os tipos de pessoas
de todos os tipos de raças formavam uma multidão ímpar e enorme.

Era assim que as coisas costumavam funcionar nas guildas do Continente


Demônio. A filial localizada em Rikarisu com certeza não era uma exceção.

De repente, alguém abriu suas enormes portas fazendo um estrondo.

Muitos daqueles dentro do local viraram os olhos para a entrada, curiosos. Não
era incomum que as pessoas abrissem essas portas dramaticamente, mas as
razões pelas quais faziam isso eram variadas. Algum grupo havia recém-retornado
em triunfo? Ou será que um grupo de monstros resolveu lançar um ataque e os
guardas do portão estavam pedindo por ajuda? Ou era só o vento pregando uma
peça em todo mundo? Claro, também havia aquele papo de que o Fim da Linha
estava vagando pelos arredores, mas com certeza…

Antes que alguém pudesse seguir esta linha de raciocínio para chegar a uma
conclusão, três pessoas passaram pela porta escancarada.

O primeiro da fila era um menino com um sorriso estranhamente confiante no


rosto. Ele usava roupas sujas, mas caras, e carregava um cajado embrulhado com
um pano. Apesar de sua óbvia juventude, a multidão de adultos surrados por
batalhas que estava ali dentro da guilda não parecia capaz de o intimidar. Quem
diabos é esse garoto? muitos se perguntaram. Ele parecia completamente fora do
lugar. Será que pertencia a uma das raças de demônios que aparentavam mais
jovens do que realmente eram?

Seguindo os passos do garoto estranho, como se tentando se esconder em sua


sombra, estava outra jovem. Esta parecia ser uma menina. Seu rosto estava
escondido por um capuz, mas seus olhos resplandeciam atentamente de dentro
daquilo. Havia algo em sua postura que sugeria que ela sabia como usar a espada
presa a seu quadril. Alguns veteranos dentro da guilda imediatamente a imaginaram
como uma lutadora habilidosa.

O último do grupo a entrar foi um homem alto e imponente com uma jóia
vermelha na testa e uma cicatriz cortando todo o seu rosto diagonalmente. Estas
eram as mesmas características distintas daquele monstro infame conhecido como
Fim da Linha; alguns aventureiros quase gritaram só com o susto, mas então
notaram, em um último momento, que o cabelo do sujeito era azul, e não verde.
Tinha que ser outra pessoa, entretanto, era extremamente semelhante ao assassino
Superd.

Juntos, os três formavam um grupo estranho. Estranho… e perturbador. Não


havia um único aventureiro comum dentre eles. Ninguém poderia começar a
adivinhar o que estariam procurando no local.

O trio de repente parou e o garoto gritou para a multidão em alerta:

— Ei, vamos lá! O que há com esses olhares e bocas abertas, pessoal?! Não
sabem quem é este homem aqui?!

Uh, não. Por que diabos nós saberíamos? pensaram todos ao mesmo tempo.

— Este é o infame monstro Superd, Ruijerd Fim da Linha em pessoa! Não


fiquem aí parados, seus idiotas! Comecem a gritar e fugir pelas suas vidas!

Vamos lá, acha mesmo que vamos acreditar nisso? foi o que todos pareceram
pensar. Todos sabiam que o cabelo dos Superds era verde vivo, e não de uma
tonalidade azul suja.
— Consegue acreditar nesses caipiras, Chefe? Eles não reconhecem nem a
face do terror quando a veem! Que piada. Existem todos aqueles rumores por aí,
mas nós entramos aqui e ninguém nem te reconheceu!

Certo, então, pelo visto, o garoto está determinado a dizer que aquele cara ali
é um demônio cruel e sanguinário. Quanto mais pensavam nisso, mais engraçado
parecia esse seu discurso. A atmosfera perturbadora que tinha sido anteriormente
instaurada desapareceu quase na mesma hora.

O “Chefe” do garoto tinha o olho vermelho na testa, claro. E a cicatriz na cara.


Essas duas coisas pareciam até bastante convincentes. Mas ele tinha
compreendido um dos detalhes mais fundamentais errado.

— Ronc… — Neste momento, algum aventureiro anônimo soltou o primeiro riso


abafado da tarde.

— Ei, qual é o seu problema?! — gritou o menino com ferocidade, na direção


do som. — Eu falei alguma coisa engraçada, seu punk?!

Foi totalmente ridículo. Risos sufocados começaram a escapar de toda a


multidão. Depois de um longo momento, alguém finalmente ofereceu uma resposta.

— Ronc… Hehe. S-só um detalhe, garoto… os Superd têm cabelo verde…

Com isso, uma explosão de risos encheu o salão da guilda de canto a canto.

A julgar pelos risos incessantes que surgiam de todos os cantos, o nosso ato
tinha começado da forma esperada.

Em um olhar superficial, a Guilda dos Aventureiros parecia ser ainda mais


desordenada do que esperei. A multidão era incrivelmente diversificada, embora
isso provavelmente fosse o normal para qualquer ponto de encontro que ficava
dentro do Continente Demônio. Notei um homem com cabeça de cavalo, um cara
com braços-de-foice iguais ao de um louva-deus, uma mulher com asas de
borboleta, e uma garota que era uma cobra da cintura para baixo. Eles eram, na
maioria, de aparência humana, mas sempre havia ao menos uma característica
surpreendentemente incomum a ser vista. Mesmo as pessoas sem partes
animalescas no corpo não eram exatamente seres humanos normais. Vi pessoas
com espinhos pontiagudos crescendo dos ombros, e outras com uma tonalidade de
pele totalmente azul; havia até alguns com quatro braços ou duas cabeças. Baseado
no que eu estava vendo, os Migurds e os Superds provavelmente eram alguns dos
demônios mais humanoides, em termos de aparência geral.

— I-idiotas estúpidos! Não se atrevam a rir do nosso chefe! Ele derrotou um


monte de monstros que estava atacando as terras devastadas… sozinho!
Em vez de vacilar diante do escrutínio da multidão, fui mais para dentro do
salão, tentando agir convincentemente furioso.

— Estão escutando isso, caras? P-pelo visto, o Fim da Linha está andando por
aí e resgatando crianças perdidas!

— Ahahaha! Droga, eu nunca soube que ele tinha um coração tão molenga!

— Sério? Talvez algum dia ele venha e salve o meu bacon também! Gahaha!

Normalmente, eu teria congelado diante de tanta zombaria, mas desta vez não
estava realmente me importando. Foi porque só estava atuando? Ou porque a
multidão era tão… estranha? Ou talvez… eu me tornei um humano mais confiante?

Nah, melhor não me empolgar muito.

Eles estavam rindo de Ruijerd, não de mim. Não havia nenhuma razão para que
alguém me desse algumas palmadas nas costas, me animando a tirar dos ombros
o peso da crueldade apontada em minha direção.

Um olhar superficial por todo o cômodo me indicou que ninguém ali suspeitava
que Ruijerd fosse realmente o personagem genuíno. Isso significava que era hora
de eu começar com a cena A, um dos diálogos que tínhamos preparado antes.

— Já tivemos o suficiente desses idiotas! Vamos lá, Chefe, ensine uma lição a
eles!

— Hmph… Deixe esses tolos rirem o quanto quiserem.

Aliás, também tínhamos praticado uma cena B, só para o caso de ninguém rir
de nossa aparição.

— “Deixe esses tolos rirem”… Ah, cara, que fodão!

— M-meu deus, ele já está agindo como se fosse alguma coisa!

—Gahaha! Pobre homem! Eu q-quase quero pedir desculpas…

Você provavelmente estaria se desculpando agora mesmo se soubesse a


verdade. Com lágrimas escorrendo por toda a cara.

— Hmph! Vocês, idiotas, têm sorte por nosso chefe ser um cara de coração
grande! — anunciei, depois, prontamente me virei para examinar o resto do local. À
nossa esquerda, havia um enorme quadro de avisos coberto com pedaços de papel.
À nossa direita, havia quatro balcões de madeira, com um punhado de funcionários
que estavam olhando espantados para nossa direção. Parece que seria nosso
primeiro destino.

Caminhei com confiança até o lado direito do salão, com meus companheiros
logo atrás… só para perceber que os balcões usados eram bem altos.
Acenei para Ruijerd, e ele imediatamente me levantou.

— Ei, você aí! Queremos nos registrar como aventureiros!

Eu deliberadamente falei alto o suficiente para que toda a multidão pudesse


ouvir. Na mesma hora houve outra explosão de risos.

— O Fim da Linha é um novato, hein?

— Ai, nossa… Agh, não aguento mais rir!

— Ah, cara! Vou ter que instruir o Fim da Linha?!

— Isso sim é história para se contar em casa!

Certo, acho que por enquanto já é o suficiente.

— Podem fechar o bico?! Não consigo ouvir a balconista!

Depois que gritei com todos, a multidão começou a se acalmar, embora os


sorrisos em seus rostos não mostrassem sinais de que tinham deixado isso de lado.

— Claro, garoto. S-sem problema…

— P-precisa prestar atenção nas regras e tudo mais, certo…? Ronc…

— Hehehe…

Eu ainda conseguia ouvir um riso abafado pelas minhas costas, mas isso não
era exatamente um problema.

Até agora, tudo bem.

E assim, após cerca de quarenta e quatro anos de luta obstinada, finalmente


realizei meu querido sonho de longa data: o de pôr os pés dentro de uma… agência
de empregos.

Eu já tinha minhas “credenciais” como um mago de Água de nível Santo na


manga, um novo companheiro confiável que não trabalhou por mais de séculos, e
uma senhorita um pouco mimada que precisaria sustentar. No final das contas, um
homem precisa trabalhar se quiser comer…

Mas, de qualquer forma. Vamos começar.

— Sinto muito pela comoção, senhorita. Se importa de nos ajudar?


A funcionária do outro lado do balcão tinha o cabelo laranja e um impressionante
par de presas saindo da boca. Sua blusa também tinha um enorme decote, e ela
tinha três seios, então o decote ficava duas vezes mais chamativo. Que inovação
interessante.

— Hein? Ah, claro. Vocês querem… se registrar como aventureiros, é isso?

A funcionária parecia um pouco surpresa com meu tom de repente ficando


muito mais educado. Ainda assim, provavelmente, não seria sábio tentar manter o
mesmo ato altivo para sempre; seria muito fácil cometer um deslize e acabar me
entregando em algum momento. Ela provavelmente presumiria que eu só estava
tentando mostrar para a multidão que não seria uma pedra no sapato.

— Isso mesmo. Na verdade, somos totalmente novos nisso.

— Nesse caso, poderia começar preenchendo estes formulários?

A funcionária se agachou por trás do balcão e pegou três folhas de papel e três
varas de carvão, que me entregou. Todos os formulários pareciam idênticos. Havia
uma linha para o nome, uma para a profissão, e um texto descrevendo a guilda e
resumindo suas regras.

— Posso ler isso em voz alta para você, caso não saiba ler — disse a
funcionária, assim que eu estava começando a me perguntar como é que um
guerreiro analfabeto de algum vilarejo do interior iria lidar com tudo isso

— Obrigado, mas não precisa.

Peguei um dos formulários e li em voz alta, na língua Humana, para que Eris
pudesse entender.

1 – Uso da Guilda de Aventureiros

Ao registrar-se na Guilda de Aventureiros (“a guilda”) você terá direito a usar


seus serviços.

2 – Serviços da Guilda

Aventureiros registrados podem visitar qualquer uma de nossas filiais –


encontradas em todo o mundo – para pegar serviços, receber pagamentos por
trabalhos concluídos, vender matérias-primas e trocar moedas.

3 – Seu Registro
Todas as informações relacionadas ao seu registro na guilda ficarão gravados
exclusivamente em seu Cartão de Aventureiro, pelo qual você é o responsável.

Caso seu cartão seja destruído ou acabe sendo perdido, um novo poderá ser
emitido. Entretanto, seu rank será redefinido para F, e uma taxa específica será
imposta de acordo com a região.

4 – Deixando a Guilda

Os aventureiros registrados podem sair da guilda indo a qualquer filial.

É permitido fazer um novo registro em outro momento, mas seu rank será
redefinido para F.

5 – Condutas Proibidas

Os aventureiros são estritamente proibidos de:

Violar leis locais;

Tomar qualquer ação gravemente prejudicial à reputação da guilda;

Impedir outro aventureiro de realizar suas tarefas;

Comprar ou vender serviços da guilda;

Qualquer violação desta política resultará em uma multa e na revogação de seu


status de aventureiro.

6 – Violação de Contrato

Qualquer aventureiro que não concluir o trabalho que pegar será obrigado a
pagar um quinto da recompensa oferecida, sendo essa uma penalidade por violação
de contrato.

A taxa deverá ser integralmente paga dentro de até meio ano. O não pagamento
dentro do prazo resultará na revogação de seu status como aventureiro.

7 – Rank

Os aventureiros são classificados em sete níveis, começando com base em sua


experiência e habilidades, iniciando no Rank F e avançando até o Rank S. Como
regra geral, só podem realizar serviços classificados dentro de seu rank atual.

8 – Promoção / Despromoção

Ao concluir um definido número de serviços (baseados em seu rank atual), os


aventureiros podem garantir uma promoção para uma classificação superior.
Se um aventureiro não se sentir pronto para partir para um rank mais alto,
poderá recusar a promoção.

Além disso, não concluir um determinado número de serviços


consecutivamente poderá acarretar em uma despromoção para um rank inferior.

9 – Deveres e Responsabilidades

Caso as autoridades locais solicitem ajuda em casos de ataque de monstros ou


coisa parecida, todos os aventureiros são obrigados a oferecer sua assistência.

Além disso, espera-se que os aventureiros obedeçam a qualquer ordem emitida


pela filial local da guilda em casos de emergência.

Quando cheguei na metade da lista, Eris estava parecendo cada vez mais
desanimada. Este tipo de escrita, mais séria, não era exatamente o forte dela. Eu
também não gostava muito, mas isto parecia ser importante. Ainda não tinha
percebido nenhum problema em particular, mas…

— Uh, senhorita? Tenho uma pergunta…

— E qual seria?

— Tudo bem se preenchermos este formulário em outro idioma?

— Outro idioma? Tipo…?

— Na língua Humana?

— Ah. Nesse caso, sem problemas.

Baseado na primeira cláusula, poderia ser um problema se quiséssemos usar


alguma língua mais incomum. Japonês estava fora do alcance, claro. Decidi ir com
a língua do Deus Demônio; parecia uma boa ideia passar a impressão de que
poderia ser um tipo de demônio de aparência jovem, em vez de uma criança
humana.

— Vá em frente, Eris. Você também deve preencher o seu. — Eu poderia ter


feito isso por ela, provavelmente, mas geralmente o mais adequado seria assinar
você mesmo os seus documentos pessoais.

De qualquer forma, todas as conversas dentro da guilda até agora tinham sido
na língua do Deus Demônio. Essa provavelmente era a única razão pela qual Eris
fez beicinho em silêncio, em vez de ir na direção da multidão; se ela realmente
tivesse entendido o que estavam dizendo, poderia ter desembainhado sua espada
e saído correndo atrás de alguém.
— Não é como se estivéssemos planejando fazer isso, mas… o que aconteceria
se usássemos nomes falsos?

— Não temos nenhuma regra específica a respeito disso. Pode usar o nome
que desejar.

— Vocês não acabam registrando criminosos sob pseudônimos ou coisa do


tipo?

— Bem, a definição de “criminoso” dos outros lugares não é a mesma do


Continente Demônio. Desde que não causem problemas para a guilda, não será um
problema. Entretanto, se você perder seu status de aventureiro, vai ser impossível
voltar a se registrar… ao menos neste continente.

— Isso parece muito… leniente.

— Isso nos causa problemas, é claro. Mas a maioria das pessoas deste
continente não recebem um nome ao nascer, e uma política estrita impediria que se
registrassem.

Interessante. Parecia que a guilda neste continente tinha um certo grau de


independência maior, já que podia definir suas próprias políticas. Eu inventei aquela
coisa toda sobre “Royce” para o caso de não deixarem um Superd se registrar, mas
parecia que isso não seria um problema.

— Se eu me registrar aqui e for para outro continente, precisarei me registrar


novamente na guilda?

— Não será necessário.

Imaginei, mas é bom saber.

— Se já tiver terminado de preencher o formulário, por favor, coloque sua mão


nisso.

Agora, a funcionária pegou um quadro transparente com a forma e tamanho da


caixa de um jogo erótico, com um círculo mágico gravado bem no meio. Eu podia
ver um pequeno cartão de metal colocado abaixo da superfície do objeto.

Hmm. E o que é tudo isso?

— Assim?

Enquanto pressionava minha mão contra o centro do quadro, a funcionária


apertou o botão na borda do objeto.

— Nome, Rudeus Greyrat. Profissão, Mago. Rank F.


Depois de ler o conteúdo de meu formulário em uma voz firme e nítida, ela
pressionou o botão uma segunda vez, e o círculo mágico brilhou meio vermelho por
um instante.

— Aqui está. Este é seu Cartão de Aventureiro.

O cartão de metal e aparência normal agora estava marcado com letras


ligeiramente brilhantes:

NOME: Rudeus Greyrat

SEXO: Masculino

RAÇA: Humano

IDADE: 10

PROFISSÃO: Mago

RANK: F

Por algum motivo, estava tudo escrito na língua humana.

Ah, entendi. Então essa coisa é basicamente uma impressora mágica, hein?
Hmm. Não seria conveniente usar isso para livros? Se eles têm coisas assim em
locais públicos como este, me pergunto por que não tem em mais lugares…

Então, mais uma vez, talvez o próprio quadro e o cartão fossem itens especiais.
Parecia que a funcionária tinha introduzido o meu nome, rank e ocupação
manualmente, mas o dispositivo parecia ter descoberto qual era a minha raça, idade
e sexo, de alguma forma, com o simples toque da minha mão. Isso era meio chato,
para ser sincero. Tentei tanta coisa para esconder o fato de que era um humano.
Bem, tanto faz. Só teria que aceitar isso.

NOME: Ruijerd Superdia

SEXO: Masculino

RAÇA: Demônio

IDADE: 566

PROFISSÃO: Guerreiro

RANK: F

Por um segundo, fiquei seriamente preocupado com a possibilidade de essa


coisa acabar revelando que Ruijerd realmente era um Superd, mas seu cartão saiu
com uma impressão bem vaga de “Demônio”. Definitivamente foi um alívio. O
dispositivo tinha exposto sua idade real, mas a funcionária parecia ter aceito isso.
Talvez longevidades absurdas não fossem algo tão raro entre os tipos de demônios.

O nome “Ruijerd Superdia” também não provocou muita reação. Ela


provavelmente assumiu que era um pseudônimo. Falando em ignorância… eu tinha
acabado de perceber que não planejamos usar isso. Talvez não fosse do
conhecimento geral que o nome verdadeiro do Fim da Linha fosse “Ruijerd”. Ouvi
as palavras Fim da Linha ao acaso, mas seu nome verdadeiro, não.

Aliás, o cartão dele tinha saído na língua do Deus Demônio…

NOME: Eris Boreas Greyrat

SEXO: Feminino

RAÇA: Humana

IDADE: 12

PROFISSÃO: Espadachim

RANK: F

Mas o de Eris também estava na língua Humana.

— Há alguma razão para o cartão dele estar em uma língua diferente da nossa,
senhorita?

— Sim. Isso muda dependendo da sua raça.

Ah. Então os humanos, por padrão, só tinham cartões na língua Humana, para
todos os casos.

— O que acontece se você for de raça mista?

— Às vezes, ele pode usar um pouco de cada um dos idiomas mais importantes,
mas normalmente vai seguir a raça predominante dos ancestrais.

— Hmm. Mas e se for um Humano que só consegue falar a língua do Deus


Demônio ou coisa do tipo?

— Nesse caso, pode pressionar seu dedo contra o meio do cartão e falar o
nome da língua de sua preferência.

Só para fazer um teste, pressionei o dedo no meio do cartão e disse:

— Língua do Deus Fera.

As palavras no meu cartão mudaram na mesma hora.


Isso até que é divertido.

— Língua do Deus Demônio. Língua do Deus Lutador…

— Tente não fazer isso muitas vezes — advertiu a funcionária. — Ou você vai
usar a energia mágica do cartão muito rápido.

— O que acontece se ela acabar?

— Vai precisar recarregar em alguma filial da guilda.

Certo. Então o cartão, por si só, era definitivamente um instrumento mágico.


Existia uma possibilidade de haver algum cristalzinho embutido dentro dele ou coisa
assim.

— A informação gravada nele pode sumir?

— Felizmente não.

— Se o cartão ficar muito velho, a bateria começa a acabar mais rápido ou algo
assim?

— A bateria…? Se você está se referindo à energia mágica, então não. O


suprimento normalmente dura por mais ou menos um ano, mas nós o
reabastecemos sempre que você passa para relatar alguma tarefa concluída, então
normalmente não fica sem.

— Quanto custa esse serviço?

— Bem, não há uma taxa estabelecida…

Certo, então por que você me proibiu de brincar com ele? Hmm. Será que as
pessoas fossem conhecidas por gritarem com os funcionários e fazer um
estardalhaço quando seus cartões ficavam sem carga? Serviço de atendimento ao
cliente parecia ser um saco, independentemente de em que mundo fosse.

— Certo, entendi. Vou tomar mais cuidado.

Eu não tinha ideia de quem inventou essas coisas, mas era um sisteminha bem
interessante. Senti que provavelmente havia todo tipo de aplicação para as
ferramentas mágicas “recarregáveis”… Mas será que a guilda estava
monopolizando a tecnologia?

Ah, bem. Não adianta pensar nisso agora.

— Hehe… — Eris, entretanto, já estava, há algum tempo, olhando para seu


cartãozinho com um enorme sorriso no rosto.

Sei que você está feliz, mas não perca isso, entendeu?
— Gostaria de também registrar um grupo? — perguntou a balconista.

— Um grupo? Ah! Sim. Por favor. — De alguma forma, essa parte havia
escapado completamente da minha mente, provavelmente porque não havia nada
sobre isso na papelada inicial. Desde o início tínhamos a intenção de criar um grupo.
Mas…

— Em primeiro lugar, se importa de nos informar como funciona o sistema de


grupos?

Com um aceno educado, a balconista começou a explicar os detalhes


essenciais:

Um grupo pode ter no máximo sete membros.

Somente aventureiros com o rank semelhante ao do líder do grupo podem se


juntar à equipe.

A classificação do grupo é a média do rank de todos os seus membros.

Para fins de promoção de rank, todos os membros do grupo recebem crédito


por qualquer trabalho concluído como uma equipe.

Os membros ainda poderiam pegar serviços sem estar junto com o grupo.

Para entrar em uma equipe, precisa da aprovação do líder do grupo e da guilda.

Para sair de um grupo, só precisa da aprovação da guilda.

O líder do grupo tem o direito de expulsar qualquer membro de sua equipe.

Se o líder do grupo morrer, a equipe será automaticamente dissolvida.

Dois ou mais grupos podem se unir para formar um clã.

Clãs de alto desempenho são elegíveis para receber uma variedade de


recompensas especiais da guilda.

As partes do clã não pareciam especialmente relevantes agora. Íamos optar por
uma operação de pequena escala com um futuro previsível.

— Agora então, o que gostaria de usar como o nome do seu grupo?

— Queremos Fim da Linha.

A balconista torceu um pouco o rosto, mas logo conseguiu se recompor e


esboçar um sorriso. Ela era claramente uma profissional.

— Muito bem. Deixe-me ver seus cartões por um momento, por favor.
Pegamos os cartões que tínhamos acabado de guardar e os passamos para a
balconista. Ela foi para os fundos por um momento, então voltou.

— Aqui está. Certifique-se de que está tudo em ordem.

Olhei para o meu cartão e vi que uma nova linha foi adicionada ao final:

GRUPO: Fim da Linha (F)

O “F” era provavelmente o rank do nosso grupo.

Por alguma razão, foi um pouco embaraçoso ver as palavras “Fim da Linha”
escritas assim. Parecia intimidante quando se dizia isso em voz alta, mas era
definitivamente uma história diferente quando impresso.

— Neste ponto, terminamos todo o processo de registro. Parabéns.

— Obrigado pela atenção, senhorita.

— Se quiser aceitar qualquer serviço, basta pegar o papel em questão no


quadro e trazê-lo para nossos balcões de recepção.

— Pode deixar.

— Além disso, cuidamos das compras atrás do edifício, então certifique-se de


passar lá quando tiver algo para vender.

— Lá fora. Certo. Obrigado.

Nossa. Pelo menos finalmente acabei com a parte da papelada…

Com nosso registro concluído, nós três nos dirigimos para dar uma olhada no
quadro de avisos. Infelizmente, isso significava abrir caminho através de um
corredor de aventureiros sorridentes. Quase todo mundo olhou para nós como se
fôssemos um bando de macacos em um zoológico. Mas havia alguns na multidão
que pareciam mais hostis do que entretidos. Era com esses que eu precisava tomar
cuidado.

Disse a Ruijerd que não havia problema em brigar se precisasse, mas não
esperava muito dele como ator. Não havia garantia de que seríamos capazes de
tirar proveito dos problemas do jeito que eu queria. Dito e feito, não queria entrar em
nenhuma briga.

— Uh…

De repente, uma perna foi esticada no corredor em que estávamos passando.


A perna em questão pertencia a um sapo… ou homem-sapo. Tinha um corpo azul
com manchas pretas e o rosto mais presunçoso que eu já vi. Suas bochechas
salientes inflavam e murchavam rapidamente; era óbvio que ele estava reprimindo
a vontade de rir.

O cara estava nos convidando para tropeçar em sua perna ou o quê? Isso
trouxe de volta algumas memórias desagradáveis, mas as empurrei para fora da
minha mente e passei cuidadosamente pelo obstáculo.

— Gyahahaha!

— Eeheeheehee!

— Ghuh, ghuh, ghuh!

Por alguma razão, isso provocou uma explosão de risos por todos os arredores.
Eu vacilei um pouco diante do barulho, o que só os fez rir ainda mais. Fique calmo.
Não é nada demais. Eles iriam rir de você não importa o que fizesse. Eu passei
exatamente pela mesma coisa em minha vida anterior. Este era um tipo
de bullying clássico e simples.

Seguindo minha liderança, Eris tentou passar por cima da perna do homem-
sapo também; mas de repente ele puxou a perna para cima, pegando-a pela ponta
dos pés.

— Gah!

Eris começou a tropeçar para frente, mas conseguiu se segurar no último


momento, batendo o pé da frente com força contra o chão. Claro, isso gerou mais
risadas estridentes de todos nos arredores.

Com o rosto brilhando de vermelho, Eris olhou furiosamente para o sapo, suas
mãos fechadas em punhos e os dentes rangendo ruidosamente.

— Ooh. Foi mal, guria! Minhas pernas são tão longas e magras que às vezes
mal consigo mantê-las sob controle!

O homem ofereceu uma espécie de desculpa. Não que Eris entendesse uma
palavra do que foi dito. Merda. Isso vai se transformar em uma luta? Se ela der o
primeiro soco, as coisas logo podem ficar feias…

Mas, para minha surpresa, Eris apenas bufou com altivez, girou nos
calcanhares e caminhou para se juntar a mim. Seu rosto era terrível de se ver, mas
ela conseguiu se controlar. Boa garota, Eris! É assim que se demonstra maturidade!
Vou te dar um prêmio por espírito de luta! Você acabou de receber 100 pontos
bônus!

Infelizmente, agora era a vez de Ruijerd enfrentar a ameaça da perna de sapo.


Esticar a perna assim realmente deixou claro o quão longo e magro ele era. O
homem realmente deveria estar se aventurando com gravetos como aqueles no
lugar das pernas? Talvez elas o permitiam pular muito alto ou algo assim…?
Uh, foco, por favor. O que Ruijerd vai fazer agora?

Erguendo o pé bem alto, Ruijerd começou a passar sobre o obstáculo em seu


caminho. Assim como com Eris, o homem-sapo ergueu a perna para que ele
tropeçasse…

— O-o quê?!

Em vez de Ruijerd, foi nosso amigo nojento que caiu. O Superd enfiou o pé sob
a perna do sapo, levantando-a, e, em seguida, chutou para cima para deixá-lo
totalmente desequilibrado. Pendendo para trás da cadeira, o homem caiu de barriga
para baixo em uma pose clássica de sapo achatado.

Mais uma vez, todos ao nosso redor caíram na gargalhada.

— Ghuh, ghuhuhuh!

— Q-que jeito de ser derrubado por um novato, cara!

— I-isso é o que você ganha por mexer com um Superd! Hilário!

O rosto azul brilhante do Sapo na mesma hora mudou de cores para um tom de
vermelho vivo. Muito interessante. Ele era realmente de sangue frio1?

— Bastardo! — Pondo-se de pé de um jeito esperado de um sapo, nosso novo


amigo puxou uma faca do quadril e apontou ameaçadoramente para Ruijerd.

Hein? É sério? Você realmente quer levar isso como uma questão de vida ou
morte, é isso?

— Você tem muita coragem por mexer comigo desse jeito, amigo!

— Se sabe o que é bom para você, devia recuar agora mesmo…

Ruijerd. Por favor. Esse é o tipo de coisa que você diz quando quer lutar. O cara
tem uma faca, certo? Isso é meio que … Hmm. Talvez isso ainda se qualifique como
um recado? Só talvez…?

— Ei. Vamos, Perutko. Dá um tempo. — Um homem com cabeça de cavalo


repentinamente apareceu de algum lugar para interceder. — Encher o saco dos
novatos saiu da moda anos atrás, velho.

— Mas esse cara…

— Você acabou de perder o equilíbrio e caiu, certo?

— Vamos, Nokopara, o desgraçado está se achando…

— “Você perdeu o equilíbrio e caiu”. Certo?


Quando o Cara de Cavalo repetiu, o Sapo fez uma pausa, estalou a língua
amargamente e saiu pisando duro para fora da guilda. A multidão de curiosos
imediatamente perdeu o interesse e começou a se dispersar em grupos de dois e
três.
Cara. Por um momento pensei na possibilidade de entrarmos em uma briga,
mas isso foi mais estressante do que o esperado.

Com a crise tendo passado, eu me virei e fui para o quadro de avisos da


guilda… totalmente alheio ao olhar ameaçador de um certo homem com cabeça de
cavalo.

O quadro estava totalmente coberto por dezenas de pedaços de papel. Havia


uma montanha de serviços que aparentemente precisavam ser feitos.

Como um grupo totalmente novo, no entanto, só podíamos aceitar empregos


de rank F ou E, e não havia nenhuma missão aparentemente épica nessas
categorias. A maioria era apenas para trabalhos esporádicos pela cidade – coisas
como organizar um depósito, ajudar na cozinha de alguém, contabilidade básica,
procurar um mascote perdido e exterminar insetos.

Nenhum deles parecia especialmente desafiador, mas as recompensas


também eram baixas.

Os pedidos eram assim, por exemplo:

TAREFA: Organização do Armazém.

RECOMPENSA: 5 moedas de pedra.

DETALHES: Trabalho manual, levantamento de peso.

LOCALIZAÇÃO: Rikarisu, Bloco 12, o armazém com a porta vermelha.

DURAÇÃO: meio dia a um dia.

PRAZO: N/D.

CLIENTE: Dogamu do Orte.

NOTAS: Tenho uma tonelada de coisas para mover, mas não tenho mão de
obra suficiente. Alguém me ajude. De preferência, alguém forte.
F

TAREFA: Ajuda na cozinha

RECOMPENSA: 6 moedas de pedra.

DETALHES: Lavar louça, transportar comida, etc.

LOCALIZAÇÃO: Rikarisu, Bloco 4, Restaurante Cai-Pé.

DURAÇÃO: Um dia.

PRAZO: Antes da próxima lua cheia.

CLIENTE: Shinitora do Kanande.

NOTAS: Temos recebido uma tonelada de reservas ultimamente. Preciso de


ajuda extra na cozinha. Se também quiser fazer um pequeno teste de sabor, ficarei
grato.

TAREFA: Mascote perdido.

RECOMPENSA: Uma moeda de sucata.

DETALHES: Encontre e capture um mascote perdido.

LOCALIZAÇÃO: Rikarisu, Bloco 2, Casa Kirib, sala três.

DURAÇÃO: Até que o animal seja localizado.

PRAZO: Nenhum em particular.

CLIENTE: Meicel do Houga.

NOTAS: Meu mascote desapareceu e não voltou para casa. Estou colocando
todo o dinheiro da minha mesada neste pedido. Alguém por favor ajude.

Eles não pareciam o tipo de serviço que se faria em grupo, na verdade. Parecia
que os empregos de baixa classificação tendiam a ser na maior parte “missões
individuais”. Quaisquer trabalhos que concluíssemos contariam para todos nós para
fins de promoção de rank… Nos ranks mais baixos, talvez as pessoas tendessem a
assumir um monte de serviços como um grupo e depois dividir o trabalho entre os
membros.

— Bem, acho que devemos começar com algo bom e simples… — Ainda assim,
por que o mascote perdido é um rank E? Ah, sim. Acho que a cidade é bem
grande… A coisa toda “até encontrar” também poderia ser um pouco complicada.
Havia também uma possibilidade de que o animal estivesse morto. Mas aquela parte
sobre a “mesada” significava que o cliente era uma menina doce e adorável, certo?
Seria muito triste se ninguém a ajudasse…

— Não há nada sobre lutar contra dragões ou algo assim?

— Há, mas é de rank S. Aqui.

— Aah, sério?! Espera … não consigo ler isso.

— Diz que um dragão perdido estabeleceu residência no norte da cidade.

— Acha que podemos derrotá-lo?

— Seria melhor não tentar. Dragões são inimigos temíveis.

— Certo, certo. Ainda assim, eu meio que quero tentar caçar algo…

— As missões de caça a monstros começam no Rank C, infelizmente.

— Não há nenhuma classificada abaixo disso?

— Assim parece.

— Mas ouvi dizer que você deve começar lutando contra goblins e outras
coisas…

— Você não encontrará monstros tão fracos neste continente.

Enquanto eu examinava os serviços de baixo nível, Eris estava tendo uma


conversa um tanto alarmante com Ruijerd, que cuidava de todas as leituras para ela.
Esse cara realmente tinha uma alma paciente, não?

— Uau, meus amigos do F-Fim da Linha! Esses são um pouco, uh …


hehe… complicados demais para vocês, não são?

Um dos caras que estava rindo de nós mais cedo caminhou até os dois com um
enorme sorriso no rosto. Era um homem musculoso com cabeça de cavalo… o
mesmo cara que interveio para interromper a luta um minuto atrás, na verdade.

Eu me movi rápido e consegui me colocar entre ele e Eris antes que o homem
chegasse muito perto.
— Cuide dos seus próprios negócios! Aceitaremos um serviço de rank F ou E,
assim como deveríamos fazer!

— Ei, calma aí, parceiro! Eu só queria te dar um pequeno conselho, tá?

— Fala sério. Tipo qual?

— Aqui, você vê esse serviço? Do mascote perdido? — Passando por mim, o


Cara de Cavalo pegou o papel que eu estava olhando há apenas alguns momentos.

— Sim, eu vi. Parece que poderia ser meio difícil, já que esta cidade é tão
grande.

— Huuuh? Ei, vamos, garoto! O seu chefe não é o grande e único Fim da Linha?
Tipo, um Superd?

— E daí se ele for?!

— Aquele olho na testa dele é só decoração ou o quê? Não importa o tamanho


da cidade! Ele vai rastrear aquela coisa em um único dia, sem problemas!

Ah. Pensando bem, ele está certo. Ruijerd podia localizar coisas vivas com
extrema precisão. Mesmo se estivéssemos procurando por um gato perdido ou algo
assim, provavelmente daria um jeito… Claro, o Cara de Cavalo estava claramente
convencido de que Ruijerd era um impostor, o que significa que seu “conselho”
atencioso tinha apenas a intenção de nos provocar. Eu precisava reagir de acordo.

— Cala a boca! Deixe-nos em paz!

Ainda assim, eu teria que manter aquele serviço de encontrar o mascote perdido
em mente. Parecia uma boa chance de tirar vantagem das habilidades de Ruijerd.

— Vamos, Chefe!

— Hm? Não vamos pegar nenhum serviço?

— Esqueça isso! Voltaremos quando não houver um bando de idiotas


esperando para nos sabotar. — O objetivo desta visita era fazer a nossa grande
aparição e nos registrar; eu só olhei para o quadro para ter uma noção dos tipos de
serviços disponíveis. Começaríamos de verdade na manhã do dia seguinte. —
Vamos. Já terminamos por aqui.

Quando nós três deixamos a guilda para trás, ouvi outra grande explosão de
risadas lá dentro.

— Eles estão indo para casa sem nem mesmo pegar um único serviço?!

— O Fim da Linha não tem pressa, mano! Que cara foda!

— Gyahahahaha!
Eu podia ver a perplexidade no rosto de Ruijerd. Era difícil culpá-lo por se
perguntar se estávamos realmente no caminho certo. Para mim, porém, a tarde foi
um sucesso. As pessoas naquele prédio estavam rindo das palavras “Fim de Linha”,
em vez de tremer ou fazer caretas. Não era isso que buscávamos a longo prazo,
mas foi definitivamente um passo na direção certa.

Eu estava, no mínimo, convencido disso.

De uma forma ou de outra, nós três éramos aventureiros de pleno direito.

Capítulo 08 - A Pousada dos


Aventureiros

No momento em que deixamos a guilda, já estava escurecendo. O céu ainda


estava claro, mas as ruas de Rikarisu pareciam estranhamente sombrias. Depois de
um segundo, percebi que era um efeito colateral de sua localização; as altas
muralhas da cratera lançavam a cidade nas sombras bem antes do sol se pôr.
Provavelmente ficaria escuro como breu em pouco tempo.

— Acho que devemos encontrar uma pousada o quanto antes.

Eris olhou para mim com uma expressão perplexa.

— Não podemos simplesmente acampar fora da cidade ou algo assim?

— Ah, qual é. Podemos muito bem ter uma boa noite de sono em uma cama de
verdade quando estivermos hospedados em uma cidade, certo?

— Você acha?

De qualquer forma, Ruijerd não parecia ter uma opinião diferente. Quando
estávamos acampando, ele costumava cuidar das tarefas noturnas sozinho, pois
podia sentir os inimigos se aproximando mesmo quando estava meio adormecido.
Eu acordava algumas vezes no meio da noite com o som de algo explodindo, apenas
para descobrir que o homem acabara de despedaçar algum monstro infeliz. Não era
exatamente o ideal para um descanso relaxante.
De qualquer forma, uma estalagem seria definitivamente melhor. Para começar,
eu estava morrendo de fome. Provavelmente poderíamos comprar alguma coisa na
cidade, mas ainda tínhamos uma tonelada da carne-seca que sobrou do outro dia.
Seria mais inteligente acabar com ela e manter nossas despesas baixas por
enquanto, mas eu estava com fome o suficiente para pelo menos querer um lugar
para sentar e descansar em paz.

— Ei, Rudeus! Olha aquilo!

A voz de Eris estava cheia de emoção. Curioso para saber o que ela tinha visto,
olhei para cima e descobri que as muralhas internas da cratera começaram a brilhar
um pouco; a luz parecia ficar mais brilhante a cada segundo.

— Isso é incrível! Nunca tinha visto nada parecido!

Quando o sol se pôs por completo, as muralhas da cratera iluminavam de


maneira brilhante todas as construções de pedra e argila da cidade. Parecia que
havíamos tropeçado em um parque de diversões iluminado.

— Uau. Isso é realmente incrível, não é?

Claro, eu passei minha vida anterior em um lugar que em momento algum ficava
completamente escuro, então não estava tão pasmo quanto Eris. Ainda assim, este
era definitivamente um espetáculo mágico. Por que as muralhas estavam brilhando
desse jeito?

— Ah. Esses são os iluminadores.

— Hm? Você sabe algo sobre isso, Raiden?

— Raiden? Quem é esse? Hm. Houve um Deus da Espada com esse nome há
algumas gerações…?

Naturalmente, Ruijerd não entendeu a referência. Provavelmente não havia


uma única pessoa em todo o mundo que teria entendido isso. Meio deprimente.

— Desculpa. Eu conhecia alguém com esse nome, e ele sabia todo tipo de
coisas estranhas, então… Foi só um lapso linguístico.

— Entendo.

Ruijerd se abaixou e me deu um tapinha gentil na cabeça, como um homem


confortando uma criança que lembrou de um pai falecido.

Uh, só para registrar, Raiden não era o nome do meu pai nem nada assim. Meu
velho se chamava Pat ou Pablo, ou algo assim. Era um pai muito decente, mas uma
falha como ser humano.

— Enfim, o que são esses tais de iluminadores?


— Eles são uma variedade de pedras mágicas.

— Como funcionam?

— Absorvem a luz durante o dia e depois a liberam assim que escurece.


Entretanto, brilham por menos da metade do tempo do dia.

Então, eram basicamente luzes movidas a energia solar? Eu não vi nada


parecido com isso em Asura. Era surpreendente que não estivessem sendo usadas
em mais coisas, considerando o quão convenientes pareciam.

— Então, por que as pessoas não usam isso em todo lugar?

— É principalmente porque as pedras por si só são bastante raras.

— Hã? Mas parece que eles têm uma tonelada deles aqui… — Era necessário
um enorme número dessas coisas para iluminar uma cidade inteira como esta,
certo?

— A Grande Imperatriz Demônio aparentemente as trouxe para cá quando


estava no auge de seu poder. Vê aquilo ali? — Ruijerd apontou para a fortaleza
destruída no centro da cidade, brilhando fracamente à luz das pedras. — Era tudo
para que seu castelo brilhasse com ainda mais beleza à noite.

— Uau. Isso parece um pouco… exagerado. — Uma imagem da Imperatriz


Demônio surgiu espontaneamente em minha mente. Era Eris com uma roupa de
dominatrix, gritando: “Mais luz! Eu preciso de mais luz, só assim o mundo conhecerá
minha beleza!” — Ninguém tenta roubá-las ou algo assim?

— Ouvi dizer que isso é proibido, mas não sei os detalhes.

Claro. Afinal, também era a primeira vez que Ruijerd pisava em Rikarisu. As
pedras pareciam estar posicionadas bem no alto das muralhas da cratera, então
talvez fosse complicado chegar até elas, a menos que pudesse voar.

— Na época, o projeto foi totalmente condenado como sendo um desperdício


egoísta de recursos, mas suponho que, no final, acabou sendo útil.

— Hmm. Talvez a Imperatriz realmente tenha feito isso para o bem de seu povo.

— Duvido muito. A mulher era famosa por sua degeneração e intolerância.

Ooh. Gosto do som dessas palavras. Se esta dama ainda estiver viva em algum
lugar, adoraria conhecê-la. Com certeza estamos falando sobre um tipo de súcubo
sexy.

— Ei, às vezes a verdade é mais estranha do que a ficção, né?

— Isso é algum tipo de provérbio humano?


— Aham. Mas pense nisso. Os Superds também não têm uma grande
reputação, mas na verdade são pessoas de bom coração, não são?

Ruijerd afagou minha cabeça afetuosamente. Eu não tinha certeza de como me


sentia sendo acariciado assim na minha idade, mas… vamos pensar nisso, que tal?
Sim, eu estava basicamente na casa dos quarenta, mentalmente falando. Mas esse
cara tinha lá seus 560 anos. Apenas remova um dígito se for muito difícil para
compreender isso. Agora éramos o equivalente a uma criança de quatro anos sendo
acariciada por alguém de 56 anos. Isso é bom e comovente, certo?

— Ei, Rudeus! Por que não vamos dar uma olhada naquele lugar?! — disse
Eris, apontando para o castelo em ruínas, negro como o azeviche, parecendo ainda
mais ameaçador abaixo do céu noturno.

— Esta noite não, Eris — falei. — Vamos encontrar uma pousada.

— Ah, vamos lá! Podemos ao menos dar uma olhada nas redondezas!

Bem, agora ela estava fazendo beicinho. Era charmoso o suficiente para que
eu ficasse tentado a satisfazê-la, mas com base no que Ruijerd disse antes, esta luz
não duraria para sempre. A última coisa que precisávamos era acabar mergulhando
na escuridão total assim que chegássemos ao castelo.

— Eris, tenho me sentido meio cansado ultimamente. Prefiro ir para uma


pousada.

— Hã? Você está bem?

Eu não estava mentindo. Provavelmente tinha algo a ver com o fato de que não
estava acostumado a viajar, mas me sentia meio indisposto nos últimos dias.
Conseguia me mover muito bem em batalhas, então ainda não tinha sido um grande
problema. Mas, mesmo assim, parecia estar ficando cansado mais rápido do que o
normal. Talvez o estresse estivesse me afetando.

— Estou bem. Não é nada muito sério.

— Mesmo? Bem, então tudo certo… Acho que terei que ser paciente.

Essa sim foi uma frase que nunca esperei ouvir da Senhorita Eris Boreas
Greyrat. A garota realmente mudou muito nos últimos anos, hein?

Nós nos acomodamos em um lugar chamado Pousado Garra do Lobo. Tinha


um total de doze quartos e a taxa era de cinco moedas de pedra por noite. O próprio
edifício já tinha passado por dias melhores, mas hospedavam praticamente todos
os aventureiros novatos, e o preço era definitivamente justo. Por mais uma moeda
de pedra, forneceriam refeições matinais e noturnas, e se fosse um grupo de
aventureiros com mais de duas pessoas hospedadas em um único quarto,
dispensariam a cobrança de taxas adicionais. Como parte dessa estratégia atrativa
para novatos, a taxa permaneceria a mesma, não importa quantas camas fossem
usadas.

O saguão de entrada também operava como uma pequena taberna, com um


punhado de mesas e alguns bancos no balcão. Quando entramos, uma das mesas
estava ocupada por um grupo de três jovens aventureiros, o que não me
surpreendeu.

A palavra “jovem” era relativa, claro. Eram provavelmente mais velhos do que
eu, talvez mais ou menos da idade de Eris. Todos eram garotos, e todos olharam
para nós sem ao menos tentar disfarçar.

— O que vamos fazer? — perguntou Ruijerd, me olhando de relance. Ele estava


provavelmente perguntando se íamos dar outro show.

— Nada — respondi, após pensar por um momento. — É aqui que vamos


dormir, certo? É melhor relaxarmos. — Não havia como dizer quantas noites
realmente passaríamos nesta pousada, mas esses garotos ainda eram crianças, de
acordo com os padrões de Ruijerd. Se ficássemos sob o mesmo teto por muito
tempo, naturalmente descobririam que ele era um cara de bom coração.

— Somos um grupo de três. Ficaremos aqui por ao menos três dias.

— Beleza. Vão querer as refeições?

O estalajadeiro não parecia ser do tipo mais amigável.

— Sim. Refeições inclusas, por favor. — Paguei com moedas suficientes para
quitar antecipadamente a nossa estadia de três dias. A coisa sobre comida grátis
era definitivamente um bônus atrativo. Isso nos deixava com uma moeda de ferro,
três moedas de sucata e duas moedas de pedra sobrando… o equivalente a, no
total, 132 moedas de pedra.

— E-ei, você também é uma aventureira novata?

Enquanto eu ouvia o estalajadeiro explicar as regras e tal, um dos novatos se


aproximou e falou com Eris. Era um garoto de cabelos brancos e um chifre saindo
da testa; provavelmente poderia classificá-lo como um “menino bacana”, caso
estivesse me sentindo bem generoso.

Os outros dois… também não eram de todo ruins, acho. Um deles era um cara
musculoso com aparência robusta e quatro braços, e o outro tinha um bico no lugar
da boca e penas onde seu cabelo deveria estar. Todos eram relativamente bonitos,
embora de maneiras diferentes. Se o Chifrudo era um Bonitomon do tipo normal, o
Quatro-Braços era do tipo lutador, e o Bicudo era do tipo voador.

— N-nós somos bem novos nisso, na verdade. Não quer vir comer conosco?
Ah, nossa. Ele está realmente dando em cima dela. Esse pequeno punk era
bem precoce, hein? Pena que sua voz estava tremendo. De certa forma, foi até meio
adorável.

— Provavelmente podemos lhe dar alguns conselhos sobre como escolher


serviços e outras coisas, sabe?

— Hmph… — E como resposta à oferta do garoto, Eris virou a cara. É assim


que se faz, garota! Dê um gelo nesse atirado!

Bem, de qualquer forma, ela não consegue nem entender o que ele está
dizendo.

— E aí, vamos? Seu irmãozinho também pode vir.

No momento em que senti que deveria intervir, Eris olhou abruptamente para o
outro lado do lugar e começou a se afastar do garoto. Claro, reconheci essa técnica.
Era algo que ela aprendeu nas aulas de etiqueta de Edna… um movimento básico
da Arte de Evitar Aristocratas Irritantes! Agora, então, como o garoto iria lidar com
isso? Nesse momento, um cavalheiro entenderia a mensagem e iria se retirar
graciosamente…

— Ei, não me ignore.

O Chifrudo pelo visto não era um cavalheiro. Claramente irritado, ele estendeu
a mão e agarrou a parte inferior do capuz de Eris. O garoto a puxou para trás, mas
a parte inferior do corpo dela era forte o suficiente para que pudesse manter o
equilíbrio. Como poderia se esperar de um aventureiro, o garoto também parecia
ser relativamente forte.

Infelizmente, havia uma peça de pano barato preso no meio dessa luta pelo
poder. Com o som feio de algo rasgando, o capuz de Eris cedeu.

— Hein…?

Ela olhou para o dano feito. Havia pequenos rasgos ao longo de toda a borda
inferior do capuz, onde as costuras se soltaram.

Acho que a ouvi estalando.

— O que diabos você pensa que está fazendo?!

Um grito estridente, alto o suficiente para sacudir até as vigas da pousada,


serviu como o gongo de início. Girando nos calcanhares, Eris disparou um Soco
Boreas. Era um golpe decisivo que aprendera com Sauros e aperfeiçoara no curso
de seu treinamento com Ghislaine; o pobre garoto nunca viu algo parecido. O punho
dela acertou-o bem no rosto e a cabeça dele foi jogada para trás, tanto que quase
parecia que havia quebrado o pescoço.

Ele caiu girando para trás, bateu com a nuca no chão e ficou instantaneamente
inconsciente.
Eu era um completo amador, mas até eu poderia dizer que aquele golpe teve
um grande poder por trás dele. Era quase possível ouvir o mais forte condenado do
corredor da morte, do mundo inteiro, resmungando: “Que soco”. Bem feito, quem
mandou ser tão agressivo, cara. Esperançosamente, o garoto teria aprendido a
lição e nunca mais faria algo tão temerário quanto falar com Eris. Às vezes, a
educação pode ser um processo doloroso.

De qualquer forma, seus dois amigos presumivelmente iriam atacar neste


momento. Eu precisaria intervir…

— Quem você pensa que é?! Você tem coragem por me tocar!

Mas, para minha surpresa, Eris ainda não tinha terminado. Desta vez, ela
lançou o Chute Boreas… outra técnica altamente sofisticada que aprendeu com
Sauros e aperfeiçoou com Ghislaine. Seu pé bateu no plexo solar de sua segunda
vítima.

— Gah!

Quatro-Braços gemeu agonizando e caiu de joelhos. Eris prontamente bateu o


joelho em seu queixo, fazendo-o voar para trás.

— Hã? O qu… hein?!

Não parecia que o Bicudo tinha terminado de processar o que estava


acontecendo, mas quando ela correu em sua direção, ele reflexivamente procurou
por sua espada, em seu quadril. Isso parecia um pouco exagerado, então
rapidamente tentei intervir com magia.

Entretanto, como ficou evidente, Eris era a única passando dos limites. Antes
que o Bicudo pudesse sequer sacar sua arma, ela bateu o punho violentamente
contra seu queixo. Eu nunca tinha visto os olhos de um pássaro rolando, mas
aparentemente há uma primeira vez para tudo.

Em poucos segundos, ela imobilizou completamente todos os três oponentes.

Eris caminhou de volta para onde o Chifrudo jazia inconsciente e chutou sua
cabeça, como se fosse uma bola de futebol. O primeiro golpe despertou o garoto,
mas ele não pôde fazer nada, exceto se enrolar em posição fetal. Ela começou a
chutá-lo mais e mais.

— Essa… foi… a… primeira… peça… de… roupa… que… Rudeus…


comprou… para… mim!

Minha nossa! Senhorita Eris! Eu realmente significo tanto para você?! Foi só
uma coisinha barata pra cobrir o seu cabelo, sabe… Pela deusa, você vai fazer esse
velhote ficar corado!

Ela chutou as costas do garoto e se abaixou para agarrar uma de suas pernas.
Seu rosto estava contorcido de raiva.
— Você vai se arrepender disso até o dia de sua morte! Vou transformar essa
coisa em mingau!

Consegue advinhar a que coisa ela estava se referindo? Eu estava com muito
medo de perguntar.

O chifrudo não sabia o que Eris estava dizendo, é claro, mas parecia entender
o que pretendia fazer. Ele começou a gritar desculpas, implorando por socorro e
tentando desesperadamente se esquivar. Mas suas palavras não tinham significado
para ela e, de qualquer maneira, não fariam diferença. A garota sempre acabava o
que começava. Era muito meticulosa. Essa criança estava prestes a ter o mesmo
destino que eu teria há três anos, caso não tivesse conseguido fugir de sua ira.

— Pare com isso, Eris!

Nesse ponto, finalmente consegui intervir. Tudo aconteceu tão rápido que fiquei
muito surpreso para reagir antes.

— Calma, garota! Calma! Fique calma!

— Qual é o seu problema, Rudeus?! Por que está me impedindo?!

A agarrei por trás, mas ela ainda estava se debatendo em meus braços,
tentando pisar no garoto. Em que parte especificamente, consegue imaginar? A
resposta era horrível demais para ser mencionada.

— Podemos apenas consertar o capuz! Vou costurar para você, tá bom? Então
dê um tempo para o cara! Você está indo longe demais!

— Ah, tanto faz! Hmph!

Por sorte, meus apelos desesperados acabaram a alcançando. Ela parou de


lutar e voltou para Ruijerd com o rosto ainda contorcido de fúria.

Ele, aliás, estava sentado em uma cadeira no balcão e observando tudo isso se
desdobrar com um sorrisinho no rosto.

— Ruijerd, vamos lá! Não fique só sentado aí da próxima vez que isso
acontecer!

— Hm? Foi só uma briga de crianças, não foi?

— Sim, mas os adultos devem impedir isso!

Especialmente quando o desequilíbrio é tão grande…

— Você está bem?


— Sim, e-estou bem…

Sentindo-me um pouco solidário, apesar de tudo, lancei Cura no garoto


espancado e o ajudei a se levantar.

— Sinto muito por isso. Ela não consegue falar a língua do Deus Demônio.

— A-aquilo me assustou… P-por que ela ficou tão brava?

— Bem, ela não gosta de ser importunada e acho que aquele capuz é muito
importante para ela.

— C-certo… Uh, se importaria de dizer que sinto muito?

Olhei para Eris. Ela tinha tirado o capuz e estava olhando para o enorme rasgo
nele enquanto rangia os dentes furiosamente. Estava definitivamente em seu modo
de “nunca vou perdoar nem esquecer”. Eu não a via assim desde o dia em que nos
conhecemos. Meio que esperava ver pequenas nuvens de fumaça, igual em um
desenho animado, saindo de suas orelhas.

— Foi mal, mas se falasse com ela agora, acho que também levaria uma surra.

— Uh, uau. Ela é fofa, mas meio assustadora, hein…

Honestamente, pensei que a garota tinha se tornado mais civilizada nos últimos
tempos, mas talvez fosse apenas uma atuação. Meio deprimente, já que estava me
dando até tapinhas nas costas sobre o quão longe ela tinha chegado.

— Bem, sim, ela é definitivamente fofa. E é por isso que você provavelmente
não deveria falar com ela, a menos que tenha um bom motivo, entendeu?

— C-certo… Tá bom…

— Além disso, se sentir vontade de se vingar disso, aconselho a desistir. Ajudei


hoje, já que tudo foi só um acidente, mas da próxima vez você pode realmente
morrer. — Não fui lá muito sutil, mas queria ter certeza de que ele sabia onde estava
se metendo.

O garoto arregalou os olhos e esfregou o nariz, depois verificou se havia algum


galo em sua nuca. Depois de alguns momentos, pareceu se acalmar.

— Meu nome é Kurt. Qual é o seu?

— Eu sou Rudeus Greyrat. Ah, e ela se chama Eris.

Nesse momento, os outros dois, que também foram punido pelos crimes do
amigo, apareceram para se apresentar. O homem musculoso de quatro braços era
Bachiro, e o nome verdadeiro do Bicudo era Gablin.
Assim que terminamos de trocar nossos nomes, os dois assumiram suas
posições de cada lado de Kurt e o pequeno grupo fez uma pose dramática.

— Juntos, nós somos… os Valentões do Vilarejo Tokurabu!”

Essas crianças estavam tentando fazer uma Exclamação de Atenas ou o


quê? Que vergonhoso. E estão se chamando de “valentões”? Sério? O que vocês
são, uma gangue de motoqueiros de cinquenta anos atrás ou algo assim? Na
verdade, esse lugar, Tokurabu, ao menos aparece em algum mapa?

— Estamos no caminho certo para chegar no rank D em breve! Estávamos


pensando que já era hora de encontrarmos uma garota maga para completar o
grupo, sabe? É por isso que tentei conversar.

— Uma garota maga…? — Isso não fazia muito sentido. Eu era o único mago
do nosso grupo. Não é como se Eris estivesse vestindo uma túnica de mago
ou qualquer coisa… ah. Espera aí… — Você assumiu que Eris era uma maga por
causa do capuz que ela estava usando?

— Bem, sim. Só feiticeiros usam coisas assim, certo?

— Ela está carregando uma espada, sabe…

— Hã? Ah, nossa. Você tem razão. — Pelo visto, Kurt nem tinha percebido. Ele
parecia ser do tipo que só via as coisas que queria ver. — Mas você é um mago,
certo? Digo, pode usar feitiços de cura e tudo mais. Isso é incrível.

— Sim, o que faço é basicamente lançar feitiços.

— Ei, então por que vocês dois não se juntam a nós?

Espera, você acha que vamos nos juntar à sua gangue? Sério? Não aprendeu
nada com aquele pequeno episódio?

— Só para você saber… se eu for, aquele cara ali também virá. — Apontei para
Ruijerd, que estava ocupado dando um sermão em Eris sobre uma coisa ou outra;
ela parecia um pouco mal-humorada, mas estava concordando com suas palavras.

— Hã? Aquele cara também está no seu grupo?

— Ah, com certeza. O nome dele é Ruijerd.

— Ruijerd…? E qual é o nome do seu grupo?

—Fim da Linha.

Os meninos me encararam com indisfarçável perplexidade. Eles estavam


obviamente se perguntando o que diabos estávamos pensando.

— Uh, é mesmo uma boa ideia usar um nome como esse?


— Bem, nós conseguimos a aprovação do próprio homem.

— Claaaro…

Sim, eu sei que parece uma piada, mas na verdade estou dizendo a verdade…

— É só um nome, certo? O que quero dizer é: Eris e eu já estamos


comprometidos, então não podemos nos juntar a vocês. — Era difícil imaginar que
ganharíamos alguma coisa em uma parceria com essas crianças. Não estávamos
aqui para brincar de faz-de-conta.

— Ah, é? Então são vocês que perdem. Vamos fazer um baita barulho nesta
cidade, sabe? Não venha nos implorando para deixarmos entrarem no grupo
quando ficarmos famosos.

Sério? Bem… não há nada de errado em um bando de jovens de cara limpa


indo para a cidade grande com a cabeça cheia de sonhos, certo? Aqueles velhotes
veteranos da Guilda dos Aventureiros provavelmente receberiam crianças como
essas com sorrisos calorosos e indulgentes.

— Você fala muito alto para alguém que acabou de ter sua bunda chutada por
uma criança…

— Ei! Cara, ela, uh, me pegou desprevenido.

— Você também vai dar essa desculpa quando algum monstro te emboscar no
deserto?

— Gah…

Bem, acho que ganhei essa. Que sensação boa. É difícil discutir com a imagem
mental de um Coiote Pax rasgando sua garganta, certo?

Deixei os “Valentões do Vilarejo Tokurabu” cuidando de seus egos feridos.

Depois do jantar, subimos para o nosso quarto, onde três camas de pele nos
aguardavam.

— Ufa… — Suspirando baixinho, sentei-me na minha. O dia foi realmente


cansativo. Desde o começo eu não estava na melhor das condições, e nós
encontramos tantas pessoas, ouvimos tantas risadas e suportamos tantas
zombarias. Mesmo quando se está consciente de que está apenas atuando, essas
coisas cobram seu preço.

Eris estava olhando para a cidade, que ficava mais escura a cada minuto, pela
janela. Aquele castelo em ruínas era muito cativante, com certeza, mas qualquer um
pensaria que a garota era uma turista ou algo assim. Tínhamos todo tipo de coisa
com que nos preocupar agora, não é? Ela esperava que eu lidasse com tudo sozinho
ou o quê?

Certo, não. Eu precisava parar de ser tão negativo. Eris confiava em mim; é por
isso que não estava pensando tanto nas coisas. Não era como se fosse uma criança
mimada ou algo assim. Agora, se parasse de entrar em brigas inúteis…

Caí de costas na cama, olhei para o teto e pensei no que viria a seguir.

Em primeiro lugar, precisávamos de dinheiro. A hospedagem para três pessoas


custaria quinze moedas de pedra por noite. Precisávamos ganhar, no mínimo, ao
menos isso por dia. Mas, com base no que eu tinha visto antes, os serviços
de rank F pagavam cerca de cinco moedas de pedra, e mesmo os serviços
de rank E valiam apenas uma moeda de sucata ou algo assim. Como um aventureiro
solitário, provavelmente poderia lidar com um simples serviço de rank F por dia para
cobrir o custo da hospedagem e, depois, começar a economizar algum dinheiro
assim que me classificasse para um serviço mais lucrativo. As tarefas dos ranks F
e E eram principalmente ajudas ocasionais pela cidade, mas no rank D começaria a
receber mais solicitações de coleta de materiais e tal. Basicamente, o sistema era
configurado para que se pudesse economizar algum dinheiro fazendo um serviço
fácil e, depois, comprar alguns equipamentos para lidar com trabalhos mais
perigosos.

Era bem pensado, mas… éramos três.

Incluindo o custo do almoço e produtos para o dia a dia, provavelmente


precisaremos de cerca de vinte moedas de pedra por dia. Se cuidarmos de um
serviço por dia, provavelmente teremos um prejuízo líquido de dez a quinze moedas
de pedra. E temos apenas 132 delas…

Ficaríamos quebrados em menos de duas semanas. Isso não era lá muito bom.
Precisávamos concluir três ou mais serviços por dia para ficarmos longe do
vermelho.

Se pudéssemos nos separar, provavelmente seria possível ganhar mais de


vinte moedas de pedra fazendo trabalhos simples. Mas se deixássemos Ruijerd
sozinho, haveria o risco de sua identidade real ser exposta. E Eris não conseguia
nem falar o idioma local, então teria suas dificuldades. E também tinha o pavio
curto… Poderia acabar entrando em brigas com os clientes.

Mais importante, não poderíamos espalhar a palavra sobre Ruijerd a menos que
trabalhássemos como um grupo.

Uma vez melhor classificados, o dinheiro seria um problema muito menor. Para
Ruijerd e Eris, os serviços de caçar monstros seriam muito melhores. Assim que
pudéssemos pegá-los, ficaríamos mais tranquilos.

Dito isso, todos os trabalhos desse tipo eram de rank C ou superior.


Basicamente, se conseguíssemos chegar ao rank D nas próximas duas semanas,
ficaria tudo bem. Mas isso não seria possível se pegássemos apenas uma tarefa por
dia. Eu tinha esquecido de perguntar quantos trabalhos concluídos eram
necessários para que pudesse subir de rank, mas… no mínimo, a guilda não
deixaria ninguém ser promovido só por ser um lutador poderoso. Esperavam que
todos trilhassem seu caminho passo a passo.

E eu não estar nas melhores das condições não ajudava. Provavelmente não
era nada sério, mas havia uma chance de Eris ou eu pegarmos alguma doença que
não poderia curar com feitiços básicos de Desintoxicação.

Além disso, era difícil saber quanto precisaríamos gastar com compras
imprevistas. Para começo de conversa, ainda precisaríamos comprar tintas de
cabelo para Ruijerd várias vezes.

E então havia nossas roupas. Não poderíamos continuar usando as mesmas


para sempre. Nossas vestimentas eram feitas de materiais duráveis e de alta
qualidade, e não demoraram muito para ficarem limpas quando usei magia para
limpá-las. Mas fazer isso era ruim para o tecido, e acabariam se rasgando e
ressecando. Quanto mais cedo conseguíssemos alguns conjuntos extras, melhor.
Também seria bom comprar algum sabão. Já fazia algum tempo que Eris e eu só
estávamos nos limpando com um pano embebido em água quente.

Provavelmente também sentiríamos falta dos vários tipos de suprimentos


básicos. O dinheiro seria um problema.

Ah, claro. Poderíamos pegar um empréstimo ou algo assim? Deveria haver pelo
menos alguns agiotas em algum lugar desta cidade, certo?

Não. Provavelmente seria melhor se não nos endividássemos, caso possível.


Não até que tivéssemos ao menos uma maneira de pagar. Acho que vender o Aqua
Heartia sempre seria uma boa opção, mas… esse seria meu último recurso. Não
queria me desfazer do primeiro presente de aniversário que Eris me deu.

Nossa, olhe para mim, angustiado com o orçamento familiar. Nunca pensei que
esse dia chegaria…

Como me lembro… em minha encarnação anterior, era conhecido por rechaçar


as tentativas de meus pais de discutir questões financeiras, batendo com os punhos
no chão, feito uma criança crescida demais. Mas que memória nauseante. Teria que
me esforçar para esquecer daquilo.

Também me peguei lembrando da expressão no rosto de Paul quando pedi a


ele que pagasse para que Sylphie e eu pudéssemos estudar juntos. Pensar naquilo
também foi um tanto embaraçoso. No passado realmente não dei o devido valor ao
dinheiro.

Certo. Não é hora de ficar aprendendo valiosas lições de vida. Vamos manter o
foco, por favor.

Qual era a forma mais eficiente de ganhar dinheiro? Devíamos tentar concluir o
máximo de tarefas possível a cada dia? Poderia ser mais fácil simplesmente ir até
as planícies e caçar monstros para obter suas matérias-primas, sério. Eu não
precisava ficar fixado nesse negócio de aventureiro.
Mas se fôssemos por esse caminho, não teríamos muitas chances de construir
a reputação do Fim da Linha na cidade. Ser reconhecidos como aventureiros seria
a melhor maneira de fazer isso. Alcançar um rank elevado tornaria as coisas mais
fáceis no futuro… e provavelmente conseguiríamos um valor melhor pelas matérias-
primas se as vendêssemos na Guilda.

Conseguíriamos nos estabelecer antes de o dinheiro acabar? Talvez fosse mais


inteligente colocar a ajuda a Ruijerd em espera até que nossa situação ficasse
relativamente estável, não?

Droga. Só estou andando em círculos…

Não consegui encontrar nenhuma boa resposta. Ganhar dinheiro e melhorar a


reputação de Ruijerd ao mesmo tempo não seria fácil.

Espero conseguir descobrir algo…

Mas nada me veio à mente antes de adormecer.

Eu sonhei. Em meu sonho, me vi em um espaço vazio e todo branco. Podia


sentir que havia revertido para uma versão mais maçante e patética de mim mesmo.

De novo não. Suspira…

Um idiota de aparência vagamente obscena apareceu diante dos meus olhos.

O que foi desta vez? perguntei. Podemos acabar com isso o quanto antes, por
favor?

— Você continua tão hostil quanto sempre, entendo. Meu conselho sobre
confiar em Ruijerd surtiu efeito, não foi? Ele te levou até a cidade mais próxima são
e salvo.

Acho que sim. Mas, conhecendo Ruijerd, ele provavelmente teria nos seguido
e nos protegido à distância, mesmo se fugíssemos.

— Pela deusa. Com certeza parece que você confia nele. Então por que ainda
está tão desconfiado de mim?

Realmente não sabe a resposta para essa pergunta? Esqueceu da parte em


que se chamou de deus?

— Ah, bem, suponho que realmente não importa. Tenho mais alguns conselhos
para você, Rudeus.

Certo, certo. Você poderia, por favor, apenas acabar com isso? Odeio o som da
sua voz e também odeio estar aqui. Odeio sentir que o tempo que passei como
Rudeus foi apenas um sonho. Odeio sentir que voltei a ser um perdedor patético e
inútil. Se você vai me fazer te ouvir, gostaria que apenas dissesse tudo logo de cara.

— Alguém está terrivelmente submisso hoje.

Vou acabar na palma da sua mão aconteça o que acontecer, certo?

— Não seja bobo, Rudeus. Todas as suas escolhas são inteiramente suas.

Você pode parar de tagarelar e ir direto ao ponto?

— Ah, tá bom… Ouça com atenção, jovem Rudeus. Pegue aquela tarefa para
encontrar o mascote perdido, e logo se verá com muito menos com que se
preocupar…

Com as palavras finais do Deus Homem ecoando em meus ouvidos, me senti


caindo de volta na inconsciência.

Quando acordei, ainda estava de madrugada. Mas que sonho ruim.

Falando sério, já estava cansado dessas mensagens divinas. O timing era


suspeito demais. O cara pixelada escolhia o momento perfeito para tirar vantagem
da minha incerteza. Coisas clássicas de um deus do mal. Evidentemente tínhamos
um MOCCOS1 ali.

Suspirando suavemente, olhei para a minha esquerda.

Ruijerd estava dormindo. Por alguma razão, ele optou por se encostar na
parede oposta com os braços ao redor de sua lança, ao invés de ocupar sua cama.

Olhei para a minha direita… e percebi que Eris também estava acordada. Ela
estava sentada na cama, abraçando os joelhos, olhando para a escuridão.

Levantei-me em silêncio, me aproximei, sentei-me ao seu lado e olhei pela


janela para a mesma direção. A lua estava aparecendo. Este mundo também tinha
apenas uma.

— Não consegue dormir, hein?

— Sim — respondeu Eris após uma pausa momentânea. Ela não tirava os olhos
da janela. — Ei, Rudeus?

— Sim?

— Acha que vamos conseguir voltar para casa…?


De repente, sua voz ficou dolorosamente ansiosa.

— Ah…

Fiquei com vergonha da minha própria falta de noção. Pensei que Eris estava
apenas agindo como sempre. E eu pensando que ela nem estava nervosa. Achei
que estava simplesmente gostando dessa situação… da nossa “aventura”.

Mas isso não era verdade. Ela também estava com medo. Só estava
escondendo de mim. A garota devia estar acumulando estresse por dias. Não
admira que tenha entrado de cabeça naquela briga estúpida. Caso eu não fosse um
completo idiota, aquilo deveria ter funcionado como um aviso.

— Sim. Com certeza. — Gentilmente envolvi um braço em volta dos ombros de


Eris, e ela prontamente colocou a cabeça no meu ombro.
A garota não tomava um banho adequado há dias, então o leve cheiro que
emanava de seu cabelo era uma novidade para mim. Mas não foi algo desagradável.
Nem tanto. O que foi meio que um problema, já que meu amiguinho atentado
começou a ameaçar acordar de novo.

Controle-se, Rudeus… Até chegarmos em casa, você será um protagonista


distraído.

Isso não era como a coisa com Sylphie. Havia uma razão, embora frágil, pela
qual precisava me conter. E, em qualquer caso, apenas um canalha tiraria vantagem
de uma garota que estava se sentindo tão ansiosa e vulnerável.

— Rudeus… você vai mesmo dar um jeito, certo…?

— Não se preocupe. Vou nos levar de volta para casa, não importa o que
aconteça.

Ah cara, esta mocinha é muito fofa quando fica toda mansa. Não é de se admirar
que Sauros a mimou tanto. De qualquer forma, o que será que aconteceu com
aquele velhote? Aquele flash de luz cobriu toda a região de Fittoa, então acho…

Nah, não vamos pensar nisso agora. Estou com as mãos atadas com meus
próprios problemas.

— Vamos nos concentrar em fazer o que podemos por enquanto, certo? Você
também devia dormir um pouco, Eris. Amanhã vai ser outro dia agitado.

Dei um tapinha na cabeça dela, levantei-me e voltei para minha cama. Assim
que a alcancei, meus olhos encontraram os de Ruijerd. Aparentemente ele acabou
escutando nossa conversa. Isso foi… um tanto constrangedor.

Depois de um momento, porém, ele apenas fechou os olhos, sem dizer sequer
uma palavra.

Nossa, que cara legal! Paul provavelmente teria começado a me provocar sem
qualquer piedade na mesma hora. Ruijerd era mesmo um amor. Seria simplesmente
errado deixar seus problemas em segundo plano.

Falando em Paul, entretanto… Será que ele está preocupado comigo ou coisa
assim? Eu realmente deveria enviar uma carta dizendo que estava vivo e bem. Mas
era difícil saber se isso realmente chegaria ao destino.

Enfim. Acho que amanhã vamos procurar o mascote de alguém…

Os motivos do Deus Homem ainda não estavam claros para mim. Mas, desta
vez, estava disposto a seguir seu conselho sem pensar duas vezes.

Nossa primeira noite como aventureiros chegou a um fim tranquilo – com a


atmosfera do nosso pequeno quarto pesado de tanta ansiedade.
Capítulo 09 - O Primeiro
Trabalho: O Valor de Uma Vida

A casa Kirib, localizada no Bloco Dois de Rikarisu, era um prédio grande, de um


único andar, com quatro entradas separadas.

Os que moravam lá estavam longe de ser ricos, mas não eram tão
desesperadamente pobres quanto os que moravam nas favelas da cidade. Pelos
padrões do Continente Demônio, eram típicas pessoas da classe trabalhadora.

Três figuras sombrias – duas pequenas e uma grande – estavam atualmente se


aproximando do lugar.

Caminhando corajosamente ao longo da rua, fizeram o seu caminho para uma


das múltiplas entradas do edifício, indiferentes aos olhares daqueles ao seu redor.

— Olá, senhorita! Viemos da Guilda dos Aventureiros! — O jovenzinho do grupo


bateu à porta, chamando em voz alta o morador lá de dentro.

Havia algo de perturbador nisso. Nenhum dos aventureiros da cidade era tão
educado assim. Eles formavam um grupo de natureza rude e bruta.

Mesmo assim, a gentileza da voz do menino aparentemente enganou o


residente local. A porta se abriu com um rangido e uma garota com talvez sete anos
saiu lá de dentro. Sua longa cauda semelhante à de um lagarto e sua distinta língua
bifurcada a marcaram como um membro da raça Houga.

Os olhos da menina se arregalaram ao ver seus três visitantes incomuns, mas


o menino sorriu alegremente para ela.

— Olá! Prazer em conhecer. Esta é a residência da Senhorita Meicel, correto?

— Hã? U-uhm…

— Ah, perdão. Senhorita, meu nome é Rudeus. Rudeus do Fim da Linha.


— F-Fim da Linha…?

Essa garota, Meicel, obviamente conhecia esse nome. Todos conheciam a


história dos monstruosos guerreiros Superds que lutaram ferozmente durante a
Guerra de Laplace, há 400 anos, massacrando aliados e inimigos. E todos sabiam
que o “Fim da Linha” era o mais forte e mais maligno de seu bando. Foi dito que
ninguém que o encontrou viveu para contar história. Mesmo aqueles que apenas o
viram de longe, falavam que mal conseguiram escapar com vida. Seu nome
despertava o terror nos corações de todos os residentes do Continente Demônio;
mesmo aventureiros musculosos que se gabavam de poder matar qualquer monstro
com apenas uma das mãos, estremeceriam só de ouvir seu nome ser mencionado.

Mas Meicel também sabia como o Fim da Linha supostamente era, e esse
garoto baixinho não correspondia em nada à sua descrição.

— Atendemos seu pedido na Guilda esta manhã, senhorita. Estamos aqui para
encontrar seu mascote perdido. Gostaria de solicitar os detalhes, caso tenha tempo.

O nome Fim da Linha era, por si só, assustador, e as outras duas pessoas atrás
do garoto eram um pouco intimidadoras. Mas ele falou com tanta educação que
seria difícil sentir medo. E, pelo jeito, eram aventureiros que realmente aceitaram o
trabalho que ela postou.

— Por favor… Encontre a Mii.

— Ah, então o nome do seu mascote é Mii? Achei o nome muito bonito, se é
que posso dizer.

— Eu mesma coloquei.

— Ah, sério? Bem, você claramente tem um talento especial para nomear as
coisas, senhorita.

Esse elogio rendeu um sorriso tímido ao garoto.

— Agora então… acha que poderia nos contar um pouco sobre Mii?

Meicel descreveu a aparência de seu mascote, explicou que havia


desaparecido há três dias, acrescentou que não tinha voltado para casa, esclareceu
que geralmente voltava quando ela o chamava e mencionou que provavelmente
estava com fome, pois não tinha recebido comida. Foi um monólogo infantil e
desconexo. Um adulto típico poderia ter revirado os olhos diante do balbuciar da
garota e dado as costas no meio da conversa; mas o jovem aventureiro a ouviu com
um sorriso, acenando com a cabeça encorajadoramente após cada frase dita com
sinceridade.

— Entendido, senhorita. Iremos rastrear Mii agora mesmo. Fique tranquila, você
está em boas mãos com o Fim da Linha!
O menino fechou a mão em um punho e ergueu o polegar para cima; por algum
motivo, os outros dois atrás dele fizeram o mesmo. Meicel não entendeu muito bem,
mas mesmo assim os imitou.

Balançando a cabeça com prazer, o garoto se virou e começou a se afastar. A


garota encapuzada que estava atrás dele o seguiu; mas o homem mais alto do grupo
agachou-se na frente de Meicel para dar um tapinha gentil em sua cabeça.

— Você tem minha palavra, encontraremos seu mascote, Meicel. Seja paciente
e espere um pouco mais.

Ele tinha uma grande cicatriz no rosto; havia uma joia em sua testa; e seu cabelo
era de um azul estranho e desbotado. Foi um pouco assustador olhar para o seu
rosto… mas sua mão era quente e gentil.

Meicel acenou com a cabeça.

— C-certo. Estarei esperando.

— Não se preocupe. Voltaremos antes que você perceba.

Enquanto o homem mais alto se levantava para ir embora, Meicel o chamou.

— Uhm… Qual é o seu nome, Senhor?

— Ruijerd — respondeu o homem, e então se virou e foi embora com os outros.

Corando um pouquinho, Meicel murmurou esse nome para si mesma.

Ponto de vista do Rudeus

Nossa primeira reunião com um cliente foi, de modo geral, muito boa. Eu tinha
acabado de imitar um vendedor que frequentemente passava pela vizinhança,
batendo de porta em porta, na minha vida anterior, mas pareceu funcionar melhor
do que o esperado. Era bom que os outros aventureiros rissem de nós, mas
precisávamos que nossos clientes pensassem em nosso grupo, antes de qualquer
coisa, como um de boas pessoas. Ou seja, precisávamos tratá-los com gentileza e
educação.

— Vejo que você é capaz de desempenhar mais de um papel — disse Ruijerd


enquanto saíamos vitoriosos. — Impressionante, Rudeus.

— O mesmo para você, Ruijerd. Sua parte no final foi simplesmente perfeita.

— Minha parte no final? Do que está falando?


— A parte em que você deu um tapinha na cabeça dela enquanto conversavam,
é óbvio. — Aquilo foi totalmente improvisado. Até comecei a suar por um segundo
lá, mas os resultados foram muito impressionantes.

— Ah, entendo. O que há de tão bom naquilo?

Talvez a parte em que ela estava olhando para você com o rosto todo corado?
Vamos, cara! Eu teria ficado muito tentado a sequestrá-la se estivesse no seu lugar!

Entretanto, não seria uma boa ideia dizer isso para alguém que amava as
crianças tanto quanto Ruijerd. Ele provavelmente passaria a próxima meia hora me
repreendendo com severidade. Então, em vez disso, adotei um tom de voz
brincalhão e cutuquei sua coxa com meu cotovelo, em tom de brincadeira.

— Heheh. Vamos, Chefe. Se você chamasse aquela garota com o mindinho,


ela iria atrás! Eheheh…

Ruijerd sorriu em dúvida e negou, sua voz demonstrou um pouco de incerteza.

— Eheheh! Não seja tão modesto, Chefe! Se você forçasse um pouco mais,
ela iria se derreter igual… Ai!

Fui rudemente interrompido por um tapa na cabeça. Virei-me para encontrar


Eris fazendo beicinho para mim.

— Pare de rir assim! Aquela coisa estúpida de “Chefe” não era para ser só uma
atuação?!

Aparentemente, ela não gostava muito da minha impressão maliciosa igual à


de um canalha. Desde o sequestro, Eris passou a desprezar pessoas “vulgares”. De
volta a Roa, fazia uma careta sempre que passávamos por alguém vestido igual a
um bandido na rua. Eu só estava brincando com Ruijerd, mas acho que ela não
achou muito engraçado.

— Foi mal por isso.

— Sinceramente! Você é parte da família Greyrat, não é? Não seja tão


grosseiro!

Foi precisa muita força de vontade para não cair na gargalhada. Você ouviu
isso, senhora? Eris acabou de me censurar por ser “grosseiro”! Sim, aquela Eris! A
mesma mocinha que sentia necessidade de abrir todas as portas que encontrava
pela frente aos chutes! Ela certamente ficou mais refinada ultimamente, não ficou?

Ainda assim… se ela quisesse dizer coisas assim para mim, não deveria
primeiro parar de se envolver em brigas de bar com grupos de estranhos?

Hmm. Difícil de dizer. Com base no que vi de Sauros, será que enlouquecer e
socar alguém na cara estava dentro dos limites de um comportamento aceitável..?
Não, não. Certamente não…
Depois de pensar por um momento, percebi que não tinha ideia concreta de
onde o “grosseiro” acabava e o “refinado” começava para os nobres Asuranos.
Assim sendo, mudei de assunto.

— De qualquer forma, Ruijerd… acha que podemos encontrar o mascote dela?

Com base no que tínhamos ouvido da Meicel, Mii parecia ser um gato. Era preto
e tinha sido o companheiro dela desde quando era muito jovem. Provavelmente
também era um dos grandes. A garotinha esticou os braços para demonstrar seu
tamanho; assumindo que não fosse exagero, Mii tinha que ser quase tão grande
quanto um Shiba Inu adulto, o que era notável ao se tratar de um gato doméstico.

— Claro. Afinal, dei minha palavra à garota. — Com esta declaração promissora
e decisiva, Ruijerd avançou, assumindo a liderança.

Ele se movia com confiança, mas eu ainda estava um pouco nervoso. Já sabia
que ele tinha um poderoso radar para seres vivos embutido em sua testa, mas não
poderia ser fácil rastrear um animal em específico dentro de uma cidade cheia deles.

— Você tem um plano ou algo assim?

— Os animais se movem de maneiras muito previsíveis, Rudeus. Olhe só.

Olhando para o chão, no local para o qual Ruijerd apontava, mal consegui
distinguir o contorno de uma pequena pegada. Que impressionante. Nunca teria
notado isso, mesmo em um milhão de anos.

— Então, se seguirmos essas pegadas, você acha que vamos encontrar?

— Não. Provavelmente são de um animal diferente. As patas do gato dela não


seriam tão pequenas.

Verdade, isso parecia mais com a pegada de um gato comum ou até mesmo
de um pequeno… embora eu suspeitasse que a garota estava exagerando um
pouco no tamanho de Mii.

— Hm. Então…

— Parece que um gato diferente está abrindo caminho para o território de nosso
alvo.

— O quê? Sério?

— Com certeza é o que parece. O cheiro do gato dela está desaparecendo,


então outro apareceu.

Espere. Uh… ele realmente pode sentir os cheiros de marcação dos territórios
ou algo assim?

— Por aqui.
Ruijerd aparentemente havia chegado a algum tipo de conclusão que não sentia
necessidade de compartilhar conosco. Ele caminhou por uma rua lateral e eu
calmamente o acompanhei. Parecia que estávamos progredindo, embora eu não
tivesse certeza de como. Talvez fosse essa a sensação de ser o pobre velho e
desinformado Doutor Watson.

Não se preocupe, pessoal! Temos o melhor detetive do continente no caso! Ele


vai rastrear os criminosos com suas técnicas de investigação inigualáveis, derrubar
todos com Baritsu ao estilo Demônio e arrancar uma confissão com algumas
perguntas diretas! Abram caminho para o Grande Detetive Ruijerd!

— Achei. Provavelmente é este — disse Ruijerd, apontando para uma parte da


rua. Eu não poderia dizer o que ele “encontrou” ou por que sentiu a necessidade de
acrescentar um “provavelmente”. Não conseguia ver sequer a marca de uma pata.

— Me siga. — Ruijerd partiu de novo na mesma hora, avançando com firmeza.

Sem hesitar, ele nos conduziu por uma série de ruas laterais que pareciam ficar
mais estreitas à medida que avançávamos. Parecia mais com o tipo de beco no qual
alguém esperaria que um gato estivesse. Eu ainda não tinha ideia de que tipo de
trilha Ruijerd estava seguindo, mas… parecia que até o momento estava indo tudo
bem.

— Olhe só. Há sinais de uma briga bem aqui.

Paramos em um beco sem saída. Quaisquer “sinais” que Ruijerd encontrou lá,
eram sutis demais para mim; não pude ver nenhuma mancha de sangue ou
arranhões no meio da sujeira.

— Por aqui. — Virando as costas, Ruijerd voltou a assumir a liderança. Parecia


que Eris e eu estávamos apenas o acompanhando em um passeio. Mas que serviço
mais tranquilo, nada estressante.

Passamos por algumas ruas laterais, cruzamos uma avenida e entramos em


outra rua lateral. Dali, entramos em um beco e passamos por outra rua lateral. E
assim por diante.

Depois de nos movermos por algum tempo pelas ruas labirínticas mantendo
uma boa velocidade, demos uma guinada repentina em uma parte muito diferente
da cidade. Tudo parecia degradado e abandonado. Os edifícios eram crus, sem
pintura e estavam em ruínas graças ao abandono. Alguns dos homens por quem
passamos nos lançaram olhares ameaçadores; havia pessoas deitadas ao longo da
rua, e muitas das crianças estavam vestidas em trapos imundos.

Parecia até que estávamos em uma favela. Mas a mudança não foi gradual. Era
mais como se tivéssemos tropeçado e caído no lugar. Dentro de instantes, fiquei em
um estado de alerta máximo.

— Eris, fique pronta para desembainhar sua espada a qualquer momento.

— Por quê…?.
— Só por segurança. Além disso, fique de olho nas pessoas que cruzarmos
pela rua que podem tentar te seguir.

— Uh… certo!

Pareceu que alertar Eris para levantar sua guarda também foi uma boa ideia.
Provavelmente não estávamos em perigo real, já que Ruijerd continuava por perto,
mas não queria que escorregássemos graças à complacência. Nós dois realmente
devíamos nos proteger.

Com esse pensamento em mente, coloquei a mão no bolso interno da camisa


e agarrei com força a minha bolsa de dinheiro. Eu não tinha muito a perder, mas
ainda seria um desastre se alguém o roubasse.

— Tch…

Às vezes, um dos caras de aparência mais rude por quem passávamos olhava
ameaçadoramente para Ruijerd, mas quando ele olhava de volta, tendiam a estalar
a língua e desviar o olhar. Nesse tipo de bairro, pessoas capazes de dar um bom
soco provavelmente inspiravam mais respeito do que aventureiros.

— Ruijerd, o gato realmente veio para cá?

— Veremos.

Essa resposta não foi lá muito reconfortante. Não estávamos apenas vagando
sem rumo, certo?

Não, não. Ruijerd só está agindo como sempre, calado. Tenho certeza de que
nos colocou no caminho certo. É melhor continuar me convencendo disso.

Acabamos andando pelas favelas por algum tempo, mas eventualmente Ruijerd
parou na frente de um determinado prédio.

— Bem aqui.

Um lance bruto de escada, à nossa frente, conduzia até uma porta estranha.
Parecia a entrada de algum bar underground frequentado por roqueiros punks que
gostavam de cortes de cabelo esquisitos. Mas não havia nenhuma música alta
saindo de lá, nem caras carecas com óculos escuros parados na porta para ficar de
olho na clientela.

Por outro lado, havia um cheiro forte de animal vindo lá de dentro – o tipo de
cheiro que qualquer um poderia sentir ao passar por um pet shop de grande porte.

Em um sentido menos literal, dava para quase sentir o cheiro de crime no ar.

— Quantas pessoas estão lá dentro, Ruijerd?

— Nenhuma. Mas há um grande número de animais.


— Então tudo bem. Vamos? — Se não havia ninguém lá dentro, então não havia
razão para hesitar.

A porta no final da escada estava trancada, naturalmente, mas eu a abri sem


muitas dificuldades ao usar um pouco de magia da Terra.

Dando uma olhada rápida ao redor da área, para ter certeza de que ninguém
estava olhando, entrei, esperei Ruijerd e Eris me seguirem, e então fechei e tranquei
a porta pelo lado de dentro. Parecia que éramos ladrões ou algo do tipo.

À primeira vista, tudo o que pude ver foi um corredor longo e escuro se
estendendo à nossa frente.

— Eris, pode ficar de olho na nossa retaguarda?

— Sem problemas.

Ruijerd provavelmente saberia se alguém entrasse atrás de nós, mas não faria
mal tomar um pouco de cuidado em excesso.

Nós três entramos mais adentro no prédio, com Ruijerd mais uma vez na
liderança. Uma única porta no final do corredor principal se abria para uma pequena
sala, com outra porta na extremidade oposta. Ao passarmos pela segunda porta,
um coro ensurdecedor de gritos de animais encheu o ar no mesmo instante.

Tínhamos chegado à sala mais aos fundos do prédio. Estava repleta de gaiolas.

Havia incontáveis animais trancados ali – gatos, cães e uma grande variedade
de criaturas que eu nunca tinha visto antes, todos amontoados em um espaço do
tamanho de uma sala de aula do ensino médio.

— O que é isso? — perguntou Eris com a voz trêmula.

Meus primeiros pensamentos foram mais ou menos iguais… mas também me


ocorreu que, dado o número de animais no local, havia uma boa chance de que
aquele que estávamos procurando estivesse nesse meio.

— Ruijerd, o gato está aqui?

— Sim — respondeu na mesma hora. — É aquele.

Ele estava apontando para algo que parecia muito com uma pantera negra.

A coisa era enorme. Absolutamente enorme. Devia ser duas vezes maior do
que aquilo que Meicel indicou com os braços.

— U-uh, tem certeza de que é aquele?

— Com certeza é. Olhe a coleira.


A besta tinha, de fato, uma coleira. E o nome “Mii” estava, de fato, impresso
nela.

— Uau. Acho que… é mesmo o nosso gato, hein?

Tínhamos, tecnicamente, cumprido com nossa tarefa. Assim que tirássemos a


pantera da gaiola e a arrastássemos de volta até a garotinha, teríamos terminado.

Sendo assim, uh… o que faríamos com todos os outros?

Havia alguns deles com coleiras ao redor do pescoço ou pulseiras nas pernas,
e alguns tinham até nomes gravados em seus pingentes. Em outras palavras, um
monte desses animais eram obviamente animais domésticos. Eu também notei uma
enorme e descuidada pilha de cordas e coisas que pareciam focinheiras em um
canto do cômodo. As cordas, em particular, pareciam sugerir que algum tipo
de captura massiva estava ocorrendo.

Será que alguém estava roubando animais de estimação exóticos pela rua e
vendendo-os para outras pessoas? Parecia um esquema perfeitamente plausível.

Eu não tinha ideia sobre existir alguma lei específica sobre esse tipo de coisa
neste mundo, mas tinha que ser algum tipo de crime… Quer dizer, era, no mínimo,
uma forma de roubo.

— Mm… — De repente, Ruijerd virou a cabeça em direção à entrada.

Eris reagiu quase na mesma hora.

— Alguém entrou atrás de nós.

Os animais faziam tanto barulho que eu, pessoalmente, não ouvi nada.
Deixando Ruijerd de lado, estava genuinamente impressionado por Eris ter notado.

Mas, assim sendo, o que faríamos a respeito disso? Não demoraria muito para
que passassem pela entrada. Correr seria uma opção? Não, realmente não – a única
saída era por aquele corredor.

— Certo. Acho que teremos que capturá-los.

Eu realmente não considerei a opção de apenas conversar para apaziguar as


coisas. Afinal, havíamos invadido aquele lugar como um bando de ladrões. Parecia
ser a cena de um crime, mas ainda havia a possibilidade de ter algum propósito
legítimo, o que nos tornaria os criminosos no local.

Agora, precisaríamos levar essas pessoas sob custódia. Se fossem mocinhos,


poderíamos persuadi-los a não falar sobre isso e, se fossem bandidos, poderíamos
socá-los até que prometessem não contar nada a ninguém.
Poucos minutos depois, eu estava de pé sobre três pessoas – dois homens e
uma mulher – que estavam inconscientes no chão, jogados em um canto do
cômodo.

Depois de prendê-los com algemas que fiz usando magia da Terra, joguei um
pouco de água em seus rostos para acordá-los. Um dos homens imediatamente
começou a ganir e a uivar, então prontamente o amordacei com um pano que estava
jogado por perto.

Os outros dois ficaram quietos, mas acabei também os amordaçando. Era


melhor ser justo e imparcial com esse tipo de coisa.

— Hm…

Com tudo isso feito, me peguei pensando em uma certa questão: Como
exatamente isso foi acontecer?

Quer dizer, tínhamos pego um simples trabalho de rank E para encontrar um


gato perdido. Não era nada tão dramático. Ruijerd disse que poderia lidar com isso,
então eu o fiz assumir o comando e acabei seguindo-o até uma espécie de favela.
Na referida favela, invadimos um prédio repleto com toneladas de animais. Nesse
ponto, nos encontramos levando várias pessoas em cativeiro… o que não tinha
absolutamente nada a ver com o que queríamos fazer.

Isso só podia ser culpa do Deus Homem, certo? Ele obviamente previu que isso
aconteceria.

Mas que dor de cabeça. Eu realmente deveria ter escolhido outro serviço.

De qualquer forma, vamos dar uma olhada cuidadosa em nossos cativos…

Homem A:

Pele laranja. Olhos compostos iguais aos de uma mosca, sem parte branca. Era
meio nojento de se olhar. Foi o único que começou a gritar igual a uma cigarra
quando os acordei. Ele parecia um sujeito rude… o tipo de cara que se daria bem
em uma briga de bar.

Tinha certeza de ter visto uma foto de sua raça no dicionário de Roxy, mas não
conseguia lembrar de como se chamava. Sua saliva era aparentemente venenosa;
lembro que me questionei se poderiam ao menos se beijar.

Homem B:

Este tinha uma cabeça de lagarto, com forma e coloração ligeiramente


diferentes do Cara de Cobra que encontramos no portão da cidade. Dadas suas
características reptilianas, era difícil ler sua expressão. Mas eu podia ver inteligência
em seus olhos, e isso me deixou desconfiado.

Mulher A:

Outra do tipo insectóide. Sua cabeça parecia com a de uma abelha, mas eu
ainda poderia dizer que ela estava muito assustada no momento. Acho que seu
rosto também se enquadrava na categoria de “nojento”, mas sua silhueta era
formosa, o que basicamente anulava os pontos negativos.

Certo. Não faremos nenhum progresso se eu ficar aqui só olhando para eles. É
hora para uma conversinha… Não, não, vamos ser honestos. Será um
interrogatório.

Mas por quem começar? Quem cuspiria a informação com mais boa vontade, a
mulher ou um dos homens? A mulher com certeza estava com medo. Se eu a
ameaçasse um pouco, havia uma chance de que me contasse tudo na mesma hora.

Então, só para recordar, as mulheres eram conhecidas por mentir. Algumas


delas eram perfeitamente capazes de dizer bobagens ridículas e incoerentes para
se livrarem de problemas. Certo, provavelmente nem todas as mulheres eram assim,
claro, mas minha irmã mais velha com certeza era. Costumava me deixar com tanta
raiva que eu sentia dificuldades para descobrir o que era realmente verdade.

Então talvez eu deva começar com um dos homens.

Que tal o Homem A? Ele era o mais corpulento do grupo e tinha uma cicatriz no
rosto… Parecia ser o melhor lutador dentre eles. E também estava, no momento,
agitado. Provavelmente não era a ferramenta mais afiada à disposição, a julgar pela
maneira como gritava: “Quem diabos são vocês?” e “Tire essas malditas algemas
de mim!” antes de ser amordaçado.

Ou o Homem B? Era difícil ler muito de sua expressão, mas ele parecia estar
observando nós três com bastante cuidado. Isso indicava que não era estúpido. E
se não era estúpido, provavelmente tinha algumas boas mentiras planejadas com
antecedência, caso algo assim acontecesse.

Então, decidi ir com o Homem A.

Seria mais fácil manipular alguém que já perdeu a calma. Com a dose certa de
estímulo e provocação, ele provavelmente cometeria algum deslize e me contaria
tudo que eu queria saber. E, bom, se não funcionasse, poderíamos sempre tentar
com os outros dois.

— Tenho algumas perguntas e quero que você responda.


Quando removi a mordaça do Homem A, ele olhou ferozmente para mim… mas
não disse uma palavra.

— Se você nos contar o que queremos saber, não precisaremos ser duros
co… bluh?!

No meio da minha frase, o cara simplesmente me chutou. Me agachei para falar


com ele, então o golpe me fez perder o equilíbrio. Lançado para trás, rolei pelo chão,
parando apenas quando a parte de trás da minha cabeça bateu na parede. Estrelas
brilharam em meu campo de visão.

Ai! Droga!

Sério, quão estúpido era aquele cara? Por que chutaria alguém que já o
capturou? Ele não devia ter sequer considerado o que poderia acontecer se nos
deixasse com raiva.

— Hã? E-ei, o que… Pare com isso!

Era a voz de Eris. Saltei, cego pelo pânico. O Homem A escapou de suas
algemas enquanto eu estava pensando sobre as coisas e, de alguma forma, tomou
Eris como refém, antes mesmo que Ruijerd pudesse reagir?

— O qu…

Não, Eris estava bem. Entretanto, o mesmo não poderia ser dito sobre o Homem
A. Ruijerd enfiou a lança na garganta do cara. A garota estava apenas olhando, com
os olhos arregalados graças ao choque.

Ruijerd torceu seu tridente para o lado enquanto o puxava para trás; o sangue
formou um arco no ar e espirrou contra a parede. A força girou o Homem A por um
momento antes de ele cair de cara no chão. Sangue escorria de sua garganta. Uma
mancha escura rastejou lentamente por suas costas, e uma poça vermelha se
espalhou embaixo dele. O fedor metálico que se estabeleceu era nauseante.

Com uma contração muscular final e reflexiva, ele parou de se mover.

Estava morto. Morreu sem dizer uma única palavra. Ruijerd o assassinou a
sangue frio.

— O q… Por quê… Por que o matou?! — perguntei, consciente do fato de que


minha voz estava vacilando.

Não foi a primeira vez que vi uma pessoa morrer. Afinal, Ghislaine matou para
salvar a mim e a Eris. Mas dessa vez foi de alguma forma diferente. Por alguma
razão, eu estava tremendo. Por alguma razão, eu estava com muito medo.

Por quê? O que me assustou tanto?


O fato de um homem ter morrido? Ridículo. Pessoas morriam o tempo todo
neste mundo, pelos motivos mais triviais existentes. Eu estava bem ciente disso.

Talvez fosse apenas porque nunca tinha visto, pessoalmente, isso acontecendo
de tão perto? Mas, nesse caso, por que não reagi assim quando Ghislaine matou
aqueles homens durante o incidente do sequestro?

— Porque ele chutou uma criança — disse Ruijerd, sua voz calma e indiferente.

Falou como um homem respondendo à pergunta mais óbvia do mundo.

Ah, certo. Agora entendi. Não estou com medo porque acabei de ver alguém
morrer. Estou com medo… porque Ruijerd matou aquele homem… sem pensar
duas vezes… só porque ele me chutou.

Fiquei com medo de Ruijerd.

Roxy me alertou, não alertou? “Há muitas diferenças entre o que é comumente
aceito na cultura humana e na cultura dos demônios, então você pode não saber
quais palavras desencadearão uma explosão…” Então, o que eu faria se Ruijerd
algum dia voltasse sua ira contra mim?

O homem era forte; tão forte quanto Ghislaine, ou até mesmo mais. Seria
possível derrotá-lo com minha magia? Eu provavelmente poderia pelo menos lutar.
Trabalhei em várias estratégias para lutar em pé de igualdade, treinando com
especialistas em combate próximo.

Por alguma razão, muitas pessoas em minha vida se encaixavam nessa


categoria… incluindo Paul, Ghislaine e Eris. E Ruijerd era provavelmente o mais
forte deles. Era difícil para mim dizer, com alguma segurança, que poderia derrotá-
lo. Mas se fosse, desde o começo, uma luta de vida ou morte, havia muitas coisas
que eu poderia tentar.

Mas e se ele fosse atrás de Eris? Será que conseguiria protegê-la?

Não. Sem chances.

— V-você não pode matar alguém só por isso!

— Por que não? O homem era mau. — Ruijerd arregalou os olhos diante de
minha objeção. Ele parecia genuína e totalmente perplexo.

— Bem… — Como eu poderia explicar isso? Exatamente o quê eu esperava de


Ruijerd em um momento assim?

Em primeiro lugar, por que matar aquele homem era um problema?

Meu senso de moralidade simplesmente não seguia um padrão. Quando eu era


um perdedor recluso, bufava com desdém para frases enfadonhas como “matar
é errado.” Inferno, não senti quase nada quando meus próprios pais morreram. Eu
sabia que as coisas iam ficar difíceis para mim, mas, ao mesmo tempo, minha
atitude geral era igual à de um Garoto Cristal: “Para o inferno com essa merda, seu
idiota! Estou ocupado batendo punheta!”

Seria desnecessário dizer que se eu tentasse alimentar Ruijerd com algum


argumento ético pré-fabricado, ele soaria fraco e pouco convincente.

— Olha, há… uma razão muito boa… você não deve sair por aí matando as
pessoas.

Certo, fiquei muito abalado. Vamos reconhecer isso. Estou meio que pirando,
mas ainda vou pensar nisso.

Em primeiro lugar, por que eu estava tremendo? Porque estava com medo.
Porque vi Ruijerd, que sempre me pareceu um cara tão bom, matar um homem sem
nem piscar.

Pensei que os Superds fossem um povo pacífico que foi simplesmente mal
compreendido. Mas esse claramente não era o caso. Eu não sabia sobre sua tribo
como um todo, mas, ao menos Ruijerd era um assassino. Ele vinha matando seus
inimigos desde a era da Guerra de Laplace; este assassinato foi apenas mais um
acaso de uma longa, longa lista. Não poderia dizer com certeza que o homem nunca
viraria sua lança para Eris ou para mim. Eu não era o tipo de pessoa honesta e de
coração puro que poderia ganhar o respeito de Ruijerd. Algum dia, de alguma forma,
provavelmente acabaria despertando seu lado ruim.

Faria parte ficar com raiva de mim. Visto que tínhamos maneiras diferentes de
pensar, às vezes nossas opiniões divergiam – isso era simplesmente inevitável.
Provavelmente entraríamos em brigas vez ou outra.

Dito isso, não planejava lutar contra ele até a morte. Não importa a situação,
nossos desacordos não poderiam resultar em violência. Eu tinha que fazer Ruijerd
entender isso… aqui e agora, antes que fosse tarde demais.

— Por favor… ouça com atenção, Ruijerd.

O problema era que eu ainda não conseguia encontrar as palavras certas.

O que deveria fazer? Como poderia fazê-lo entender? Deveria apenas implorar
para não matar ao menos nós dois?

Agora você está sendo apenas estúpido.

No outro dia, convenci Ruijerd de que eu era um guerreiro, lutando com ele
como um igual. Não estava sob sua proteção; era seu camarada. Não poderia
começar a suplicar neste momento. Um curso de ação baseado em um “pare com
isso” também não iria funcionar. Precisava pensar em algo que realmente o
convencesse, ou isso seria completamente inútil.

Pense, cara. Para começo de conversa, por que Ruijerd está com você? Quer
que todos saibam que os Superds não são realmente demônios sedentos por
sangue. E se ele sair por aí matando as pessoas, só vai piorar a reputação da sua
raça.

Isso… parecia certo. Foi a mesma razão pela qual falei para evitar brigas com
outros aventureiros. O público já tinha uma péssima impressão de seu povo; não
importa quantas boas ações fizesse para mudar isso, todo o seu progresso iria por
água abaixo se vissem Ruijerd cometendo um assassinato. Todos voltariam a
acreditar nas suposições acerca de sua raça.

Certo, era por isso que ele não podia matar pessoas. Não queríamos que todos
tivessem a impressão de que os Superds eram uma tribo de bestas irracionais,
certo?

— Se você continuar matando as pessoas, a reputação do Superds ficará ainda


pior.

— Mesmo se as pessoas que eu matar forem más…?

— Não importa quem. Se você estiver matando alguém, isso será um problema.
— Eu estava agora falando deliberadamente e escolhendo minhas palavras com
cuidado.

— Eu não entendo, Rudeus.

— Quando um Superd mata alguém, não é visto da mesma forma que as outras
pessoas. É o equivalente a ser morto por um monstro.

Com isso, Ruijerd franziu o cenho por um instante. Acho que parecia que eu
estava falando mal de seu povo.

— Eu ainda não entendo. Por que esse seria o caso?

— Todo mundo pensa em você como parte de uma tribo de demônios cruéis.
Pensam que vocês são maníacos que matam igual respiram, até mesmo diante da
menor das provocações.

Certo, isso parecia duro… mas, mais uma vez, era realmente o consenso geral.
Nosso objetivo era mudar isso.

— É fácil sair por aí dizendo às pessoas que os Superds não são monstros de
verdade. Mas se você provar que os rumores são falsos por meio de suas ações,
pode começar a mudar a mentalidade das massas.

O homem não respondeu.

— Por outro lado, vai estragar tudo se começar a matar pessoas. Todo mundo
vai presumir que, o tempo todo, estavam certos sobre sua raça.

— Mas isso não é verdade.


— Isso realmente não está te dando nenhuma idéia, Ruijerd? Já ajudou
algumas pessoas e começou a ficar amigo delas, apenas para vê-las se virarem
contra você?

— Já…

Neste ponto, eu podia sentir meu argumento finalmente sendo compreendido.

— Bem, o negócio é o seguinte. Se você não matar ninguém de agora em


diante…

— Sim?

— Todos vão perceber que os Superds são pessoas normais e racionais.

Isso era realmente verdade? Apenas abster-se de matar seria o suficiente para
convencer as pessoas deste mundo de que sua tribo era razoável?

Não era hora para se pensar nisso. De qualquer forma, eu não estava errado.
Ruijerd obviamente matou muitas pessoas. A população em geral pensava que os
Superds eram, por natureza, assassinos. Mas se ele parasse de matar, teríamos a
chance de mudar suas mentes.

Era bastante lógico, não era?

— Se você se importa com sua tribo… não mate mais ninguém, Ruijerd. Nem
uma única pessoa.

Normalmente, seria necessário fazer julgamentos sobre essas coisas. Matar


pode ser normalmente errado, mas, em certas circunstâncias, poderia ser justificado
ou até mesmo necessário. Mas eu não conhecia os padrões pelos quais os
residentes deste mundo faziam esses vínculos, e os critérios pessoais de Ruijerd
eram provavelmente… extremos. O homem não dava margem para erro e era difícil
saber onde traçava seu limite. Nesse caso, era mais simples e seguro proibi-lo de
matar de uma vez por todas.

— E se ninguém estiver olhando? Também não estaria tudo bem?

Tive que lutar com uma enorme vontade de esconder a cara com as mãos. O
que ele era, um garoto da escola primária? Esse cara realmente já estava vivo por
mais de 500 anos?

— Você pode pensar que ninguém está olhando, mas, de qualquer maneira, as
pessoas veem as coisas.

— Não há mais ninguém neste prédio, eu lhe garanto.

Ah, merda. Certo. Ele tem esse olho estúpido no meio da testa.

— Ainda havia alguém observando, Ruijerd.


— De onde?

Bem aqui, cara.

— Eris e eu vimos a coisa toda, não vimos?

— Hm…

— A partir de agora, por favor, não mate mais ninguém. Não queremos sentir
medo de você.

— Certo…

No final, eu basicamente recorri à abordagem do “pedido com lágrimas nos


olhos”. Minhas palavras não soaram lá muito convincentes, nem mesmo para mim.
Ainda assim, Ruijerd assentiu, e isso era tudo que importava.

— Obrigado, Ruijerd.

Baixei a cabeça para ele em agradecimento e percebi que minhas mãos


tremiam.

Calma. Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Respiiiire fundo.

— Hoo… haa… hoo… haa… — Estava sendo difícil me acalmar. Meu coração
não queria desacelerar. Lancei um olhar para Eris, me perguntando como ela estava
lidando com tudo isso; para minha surpresa, não parecia nem um pouco assustada.
O olhar em seu rosto basicamente dizia: “Você me assustou um pouco, mas acho
que um pedaço de lixo como aquele merecia morrer.”

Certo, talvez ela não estivesse realmente pensando em algo tão cruel.
Mas estava em sua pose típica: braços cruzados, pés bem separados, queixo
erguido. Se a garota estava abalada, fazia o possível para não deixar transparecer.

E aqui estava eu, pirando diante de todos. Mas que patético.

Minhas mãos finalmente pararam de tremer.

— Muito bem. Vamos voltar ao interrogatório?

Tentando ignorar o cheiro de sangue ainda pairando no ar, me forcei a sorrir.


Capítulo 10 - O Primeiro
Trabalho Concluído

Agora, então… hora de um pequeno interrogatório.

Quem deveria questionar primeiro, o homem ou a mulher?

No momento, a mulher estava claramente apavorada e de olhos esbugalhados.


Ela estava resmungando: “Mmm!” enquanto tentava desesperadamente se afastar
de nós. Se eu tirasse sua mordaça, tinha a sensação de que começaria a balbuciar
um monte de bobagens sem sentido. Parecia mais inteligente esperar até que se
acalmasse um pouco.

Quanto ao homem-lagarto… Eu realmente não poderia dizer se sua expressão


havia mudado muito, graças ao seu rosto reptiliano. Parecia que ficou um pouco
pálido, mas também parecia que estava observando atentamente os arredores. Seu
olhar voou do rosto de Eris para o de Ruijerd, depois para o meu. Tive a sensação
de que sua mente estava completamente focada na questão de como poderia
escapar disso com vida.

Era realmente lamentável que Ruijerd tivesse matado seu amigo. Um cara
durão de pavio curto como aquele teria sido o osso mais fácil de quebrar, fácil, fácil.

Neste ponto, será que devíamos apenas tirar a mordaça dos dois ao mesmo
tempo? Poderíamos levar um deles para uma sala diferente, interrogá-los
separadamente e depois comparar suas respostas.

Sim, vale à pena tentar.

— Eris, fique aqui e vigie a mulher, certo?

— Entendi — respondeu com um aceno energético.

Puxei o homem-lagarto para que ficasse de pé e prontamente o levei para fora


da sala. Uma vez que estávamos longe o suficiente no corredor, para que nossas
vozes não chegassem à amiga dele, parei e removi sua mordaça, tomando cuidado
para não dar qualquer chance de me morder.

— Tenho algumas perguntas e gostaria que você respondesse.

— Claro, claro! V-vou te dizer o que quiser saber! Só não me mate!


— É justo. Desde que você fale, vou te deixar ir.

— Eek!

Eu sorri brilhantemente na tentativa de tranquilizá-lo, mas por algum motivo o


homem-lagarto recuou com medo. Talvez não fosse tão calculista quanto pensei a
princípio.

— Por que há tantos animais enjaulados neste prédio?

— Nós… os p-pegamos na rua.

— Hmm! Isso é realmente impressionante! E exatamente onde os encontrou?

— Uh, bem, digo… — Os olhos do homem dispararam entre o rosto de Ruijerd


e o meu. Ele estava realmente planejando continuar mentindo mesmo neste ponto?
— P-passeando… pela cidade…

Certo, isso mal se qualificaria como mentira. O cara tinha um rosto de aparência
inteligente, mas talvez não fosse tão esperto assim.

— Uau, fala sério! Ainda devem ter muitos animais espalhados por aí, hein? —
Parei por um momento, então o encarei com meu olhar mais feroz. — Olha, amigo.
Você acha que sou estúpido só porque sou criança?

— Não, não! N-nem um pouco!

Sim, isso realmente não funcionou. Com este corpo, qualquer tentativa de
intimidação parecia meio ridícula. Afinal, eu tinha apenas dez anos. Ah, bom. Acho
que vou ter que assustá-lo um pouco.

— Explosão.

Com um agudo estalar de dedos, disparei uma pequena explosão de fogo bem
na frente do rosto do homem.

— Gaaah! Owch! — Queimou a pontinha do seu nariz. — C-cara, mas o que


diabos você está fazendo?!

Naturalmente, optei por ignorar essa pergunta.

— Faça um favor a nós dois e pense um pouco mais nas suas respostas. Você
não quer morrer, certo?

O homem-lagarto estremeceu, provavelmente se lembrando do momento em


que Ruijerd assassinou seu parceiro.

Nesse ponto, finalmente me ocorreu que toda a nossa conversa lá atrás havia
sido na língua do Deus Demônio. Eu havia tagarelado sobre Ruijerd e os Superds
em uma língua que essas pessoas obviamente falavam.
Ah, bom. Se eles sabem, fazer o quê? Será melhor tentar usar isso a nosso
favor.

— Isso aqui não é piada. Meu amigo está pintando o cabelo de azul, mas
realmente é o Fim da Linha em pessoa. E também não sou tão jovem quanto pareço.

— S-sério…?

— Somos o mesmo tipo de pessoa que vocês, certo? Apenas seja honesto
conosco. Talvez possamos até ajudar.

Talvez não, mas vamos ver o que acontece.

— M-mas… Eeek! — O homem-lagarto olhou para Ruijerd, apenas para desviar


o olhar na mesma hora. Ele provavelmente recebeu um olhar desagradável.

— Vamos, apenas fale logo. O que vocês estavam fazendo aqui?

— Nós… Estávamos pegando os animais de estimação das pessoas…

— Não diga. Porquê?

— Esperávamos até que seus donos fizessem um pedido… então levávamos


os animais de estimação de volta e agíamos como se tivéssemos acabado de
encontrá-los…

— Hmm. Entendi. — Provavelmente era verdade. Eu não tinha nenhuma prova


disso; mas simplesmente fazia sentido e parecia consistente de acordo com tudo o
que tínhamos visto.

O pedido que nos trouxe ao local foi feito por uma jovem inocente, mas
provavelmente deixaria uma senhora rica desesperada para encontrar Christine, seu
amorzinho. Embora as tarefas da guilda parecessem pagar dentro de uma
determinada faixa dependendo de sua dificuldade, talvez clientes assim às vezes
oferecessem bônus especiais. Com um pouco de sorte, poderia viver bem apenas
“encontrando” animais de estimação o tempo todo.

— O que você faz se o proprietário nunca fizer uma solicitação?

— Depois de um tempo, simplesmente os soltamos…

— Hmm. Por que não os vende para um pet shop e levanta algum lucro
adicional?

— Hah! Seria uma ótima maneira para sermos pegos, garoto.

No instante em que o homem-lagarto bufou zombeteiramente para mim, Ruijerd


bateu no chão com a coronha de sua lança. Nosso cativo recuou com o som.
Que lindo! Sério, lindo! Só quando o cara parecia estar ficando convencido, foi
lembrado de quem estava aqui! Você é um interrogador nato!

— Parece que você já se divertiu um bom tanto, hein?

— S-sim, muito.

— Eu, porém, ainda teria transformado os animais remanescentes em dinheiro.


Você sempre pode esquartejá-los e vender a carne para um açougueiro, certo? Não
haveria qualquer risco real de ser pego se fizesse isso. — Digo, as pessoas
pareciam gostar de comer carne de monstro por aqui. Provavelmente não veriam
problemas ao comprar a carne misteriosa de alguns animais diversos.

Ah. Agora, o homem-lagarto está olhando para mim como se eu fosse uma
espécie de assassino em série. Vamos lá! As pessoas comem Grandes Tartarugas
por aqui, não é? Qual seria a diferença para uma tartaruga de estimação?

Me virei para olhar para Ruijerd, esperando por uma confirmação de que eu não
estava louco.

— Rudeus — disse ele solenemente —, você pretende se livrar dessas pessoas


da mesma maneira?

Que pergunta alarmante.

Pelo menos a reação de nosso prisioneiro começou a fazer sentido. Ele


provavelmente estava se perguntando algo semelhante.

— Hmm, parece uma boa ideia… — O rosto do homem-lagarto se contraiu


enquanto eu sorria ameaçadoramente para ele. Ah, agora essa expressão pude
reconhecer. Isso realmente me acordou. Na minha outra vida, as pessoas
costumavam me olhar assim o tempo todo.

— Rudeus…

Ruijerd, por favor. Você não tem que fazer buracos nas minhas costas assim.
Só estou brincando, tá? Eu na verdade não faria isso.

— Bem, nós só viemos aqui para encontrar um gato em específico. Não é como
se fôssemos um bando de vigilantes errantes ou algo assim. Podemos apenas ir
embora e fingir que não vimos nada.

— S-Sério?

— O único problema é que vocês dois sabem que nosso Ruijerd aqui é
realmente um Superd. Hmm. O que faremos a respeito disso?

— E-eu não vou contar para ninguém! Inferno, não é como se alguém
fosse acreditar em mim se dissesse que o Fim da Linha está vagando pela cidade!
— Não acho que seja verdade. Rumores ruins sempre se espalham como
vento. — De qualquer forma, seria melhor assumir a existência da possibilidade.
Especialmente quando era um boato que não queria ver sendo espalhado. — Do
meu ponto de vista, a coisa mais fácil seria matar todos vocês e enterrar seus corpos
em algum lugar, sabe?

— V-vamos lá, cara, não fale assim… Farei o que você quiser, certo? Só não
me mate…

Essas eram as palavras que eu esperava ouvir. Era hora de acabar com a fase
de intimidação.

Hmm. O que devo fazer? Essas pessoas eram sequestradoras de mascotes, o


que os tornava criminosas, também conhecidos como “caras maus”. Mas eram
claramente vigaristas sem nenhuma conexão com o submundo local. Deixá-los
soltos por aí não representaria nenhum perigo verdadeiro.

Dito isso, viram Ruijerd matar um homem, então poderiam eventualmente


atrapalhar nosso plano de torná-lo um herói local. Eu realmente preferiria não ter
esse risco pairando sobre nossas cabeças.

Assassiná-los a sangue frio estava fora de questão. Digo, eu tinha acabado de


dar uma palestra sobre a mesma coisa para Ruijerd. Talvez pudesse entregá-los
para a guarda da cidade ou algo assim?

Não. Tudo o que fizeram foi roubar um monte de animais de estimação, e esse
não era o mais grave dos crimes. Os policiais poderiam soltá-los com uma multa alta
ou algo assim, e eles voltariam às ruas, possivelmente guardando rancor. Não
importa o quão submissos estivessem sendo agora, uma vez que meu pé estivesse
fora de sua garganta, todas as apostas seriam perdidas.

Para ser sincero, queria mantê-los em algum lugar onde pudesse ficar de olho
neles… e periodicamente ameaçá-los de novo. Pelo menos até saber que não nos
causariam problemas. Mas isso também viria com alguns riscos. Se continuássemos
nos apoiando neles, seu ressentimento poderia acabar virando ódio. Afinal, já
tínhamos matado um de seus amigos. Por enquanto, isso estava alimentando seu
medo de nós, mas algum dia poderia levá-los a buscar uma vingança.

Não podíamos matá-los… e não podíamos entregá-los aos policiais.

Então que tal os controlar? Isso os manteria por perto e poderiam nos ajudar a
ganhar dinheiro e subir nos ranks. Faríamos com que reunissem informações pela
cidade e executassem tarefas aleatórias de acordo com nossas ordens. Inferno,
poderíamos até mesmo assumir o controle de sua iniciativa de rapto de animais.

Claro, Ruijerd provavelmente não gostaria nada desse plano. Ele já havia
classificado essas pessoas como vilãs, más o suficiente para que merecessem
morrer. De qualquer forma, duvido que o homem quisesse trabalhar com eles.

Hmm. Vamos comparar o risco e o retorno de todas as nossas opções:


1.
1. Assassiná-los

RISCO: Ruijerd ficará extremamente confuso.

Podemos adquirir o mau hábito de matar para sairmos de problemas.

RETORNO: Previne quaisquer futuros problemas em potencial.

Podemos pegar o dinheiro que estiverem carregando.

2.
2. Entregá-los à guarda da cidade

RISCO: Podem guardar rancor.

RETORNO: Um pouco de boas relações públicas, quem sabe?

3.
3. Deixá-los em paz

RISCO: Podem guardar rancor.

RETORNO: Nada em particular.

4.
4. Controlá-los

RISCO: Não vai cair bem para o meu companheiro.

As pessoas podem pensar que estamos envolvidos em algum negócio


duvidoso.

RETORNO: Maneira fácil de ficar de olho neles.

Fornece alguma ajuda extra.

A primeira opção era fácil de descartar. Parecia que estaríamos seguindo pelo
rumo errado. Eu não era um idiota de coração mole nem nada, mas matar pessoas
a torto e a direito seria apenas tolice. Tive a sensação de que no final das contas
isso voltaria para nos perturbar.
Os números dois e três eram opções de baixo risco e baixo retorno. Mesmo que
nossos novos amigos tentassem se vingar de nós de alguma forma, Ruijerd poderia
rastreá-los facilmente… mas, no final, de qualquer forma, provavelmente
acabaríamos matando-os. Isso seria um péssimo resultado e um esforço em vão.

A última opção parecia ser a melhor de todas. Isso poderia arruinar a impressão
que Ruijerd tinha de mim, mas… deixando todo o resto de lado, também tínhamos,
no momento, necessidade urgente de conseguir dinheiro.

Sim, é isso mesmo. No momento, o dinheiro precisa ser nossa prioridade, não?
E alguma ajuda extra dever tornar tudo muito mais fácil.

Ajudar com seu esquema de rapto de animais era uma opção, mas também
podíamos adicioná-los ao nosso grupo e depois nos dividir para lidar com vários
empregos de rank F de uma só vez. Isso nos faria subir na classificação mais rápido,
e isso por si só já seria um benefício enorme. Uma vez que pudéssemos assumir as
tarefas de rank C, nossas vidas ficariam muito mais fáceis.

Hm…? Espera aí.

— Pensando bem, se vocês estavam aceitando trabalhos de busca por animais


de estimação perdidos, isso não os tornaria aventureiros?

— S-sim, isso mesmo.

Ah, ei! Nós também! Mas que coincidência.

— Qual é a classificação do seu grupo?

— Uh, D…

Eles não eram apenas aventureiros, como também estavam alguns degraus
acima de nós.

— Então vocês estão pegando tarefas de rank E, mesmo sendo de rank D?

— Sim. Na verdade, já poderíamos estar pegando as de rank C, mas o negócio


de sequestro de animais rende um dinheiro fixo, sabe?

Depois de chegar ao rank C, não teria mais permissão para assumir as tarefas
do rank E. Talvez algumas pessoas ficassem no D de propósito, para que pudessem
continuar trabalhando em tarefas mais simples e seguras… ou para que pudessem
continuar executando um golpe, como neste caso em específico. Se estivéssemos
no lugar deles, saltaríamos para o C na mesma hora e começaríamos a pegar
missões de rank B, para matar monstros, mas talvez alguns aventureiros
preferissem evitar tantos combates.

Hm. Talvez pudéssemos pedir que esses dois pegassem tarefas de rank C e
depois os ajudássemos com a execução? Mesmo se dividíssemos o dinheiro
igualmente, isso deveria resolver nossa crise de monetária.
Não, não… nós nunca subiríamos nos ranks se fizéssemos isso.

— Ah… — De repente, uma lâmpada acendeu na minha cabeça. Acabei


encontrando a solução perfeita. — Ei, vocês dois conseguem continuar fazendo este
trabalho mesmo sem o cara que morreu?

— N-nah, vamos apenas parar com isso e nos tornar legítimos…

— Seja honesto, por favor.

— Sim, conseguimos! Aquele cara nos viu pegando um animal e nos


chantageou para ficar com uma parte!

Uau, sério? Acho que tivemos sorte…

Era uma chance em três, mas Ruijerd aparentemente matou o cara certo.
Talvez o Deus Homem estivesse olhando por nós ou algo assim.

— Tudo bem então. Por que não viramos sócios?

— Você quer unir forças com eles?! — Disparou Ruijerd, atrás de mim. — Isso
não pode ser sério!

— Ruijerd, você pode ficar quieto por um minuto, por favor?

— O quê?!

— Não se preocupe. Eu sei o que estou fazendo.

Me virei por um momento. Conforme esperado, Ruijerd não parecia nada


satisfeito. A ideia aparentava ser boa, mas talvez precisasse ser reconsiderada. Era
tão… perfeita. Poderíamos ganhar dinheiro, aumentar nosso rank e trabalhar na
reputação de Ruijerd, tudo ao mesmo tempo.

Sim. A menos que eu estivesse negligenciando algo, não havia nada além de
vantagens.

Voltei-me para o homem-lagarto e olhei em seus olhos.

— Mais cedo você disse que faria qualquer coisa que eu quisesse, certo?

— C-claro. Posso te d-dar dinheiro, se quiser. Só não nos mate…

— Não preciso do seu dinheiro. Mas quero que você eleve seu rank na guilda.

— Uh, o quê?

Certo, preciso explicar calma e lentamente.


— Olhe. Todos em nosso grupo são especialistas em combate, como você
provavelmente já percebeu. Podemos procurar mascotes perdidos se precisarmos,
mas seria muito mais eficiente para nós sairmos em tarefas de caça a monstros.

— Sim, eu aposto… E-então, er… por que vocês estão em um trabalho de


busca por animais agora mesmo?

— É uma longa história, mas acabamos de nos tornar aventureiros.

— Uh, c-certo…

Parecia que estávamos começando a fugir do assunto.

— Enfim! O que quero dizer é que queremos trabalhar em combate, mas


nosso rank é muito baixo. Vocês, por outro lado, não são realmente capazes de
matar monstros. Me entende?

— S-sim…

— Bem, aqui está uma solução simples e agradável: Vamos começar a trocar
serviços.

O homem-lagarto inclinou a cabeça para o lado, perplexo.

— Como assim?

— Vocês dois vão assumir missões de caça a monstros, de rank C ou B, na


guilda. Vamos pegar mais empregos de busca por animais perdidos, para que
possamos subir de rank. Cuidaremos de seus trabalhos por vocês e vocês cuidarão
de nossos trabalhos por nós.

— E-espera aí, o quê? A guilda não vai deixar você entregar nosso trabalho por
nós…

— Não seja idiota. O grupo que assumir a tarefa também será o único a se
apresentar assim que tudo estiver concluído.

— Ah…

Eu podia ver a compreensão surgindo nos olhos do homem-lagarto.

O conceito era realmente simples:

FIM DA LINHA: Aceita serviços de rank E; executa trabalhos de rank B

Reporta-se a empregos de rank E e recebe as recompensas

SEU GRUPO: Aceita serviços de rank B; executa trabalhos de rank E

Reporta-se a empregos de rank B e recebe as recompensas


Depois, é claro, nos encontraríamos e trocaríamos as recompensas recebidas.

Poderia haver alguns problemas com os termos de regulamento da guilda, mas


ouvi que aventureiros de rank mais alto às vezes ajudavam novatos em suas
tarefas. Estaríamos meio que apenas fazendo o contrário disso. Provavelmente não
seria contra o regulamento.

— Queremos dinheiro e um rank superior. Vocês querem ter uma vida boa e
estável. Parece que podemos ajudar uns aos outros, certo? Vamos até dar a você
uma parte das recompensas de rank B, como uma comissão, se quiser.

— Uma c-comissão, hein…? — O homem-lagarto engoliu em seco.

Empregos de rank B pagavam bem. Essa era a cenoura que balançaríamos na


frente deles; não podíamos confiar inteiramente na vara, ou eventualmente nos
trairiam. Nosso acordo tinha que ser um bom negócio para ambas as partes.

— Entretanto, há uma condição.

— Q-qual?

— Você precisa espalhar a palavra sobre o Fim da Linha por toda a cidade.

— O quê…? Uh, acho que todo mundo já conhece o nome…

Claro que conheciam.

— Sim, mas queremos que pensem que ele é um cara legal. Conte a todos
sobre nossas boas ações, mesmo se tiver que inventar coisas. Você pode até se
chamar de “Fim da Linha” enquanto estiver lidando com serviços aleatórios
de rank F.

— Existe… algum motivo para tudo isso?

Certamente havia, mas… se déssemos uma longa explicação para esse cara,
falando sobre o passado trágico de Ruijerd, ele a engoliria?

Não, provavelmente não. O homem tinha acabado de testemunhar o Superd


matando um membro de seu grupo a sangue frio. Não parecia que os dois tinham
sido muito amigáveis, mas sua impressão do Superd provavelmente já estava, neste
momento, gravada em pedra.

— Há algumas coisas que é melhor você não saber, amigo.

— C-certo… Tá, tanto faz.

Acabei partindo com uma resposta carente e meia-boca, mas o cara aceitou de
imediato.

— Basicamente, só quer que a gente fale sobre vocês, certo?


— Exatamente. E certifique-se de não usar nosso nome de uma forma que não
gostaríamos, é claro. Lembre-se de que temos um cara que pode rastreá-lo até aos
confins da terra.

O homem-lagarto olhou com medo para Ruijerd e acenou com a cabeça várias
vezes.

— Tudo bem então — falei. — Estou ansioso para trabalhar com você, amigo…
pelo menos até conseguirmos um rank decente.

— C-claro. Certo.

— Vamos nos encontrar amanhã de manhã na guilda. Não se atrase. — Com


um sorriso, bati nas costas do homem-lagarto.

Só para garantir, também interrogamos a mulher, para ver se sua história se


alinhava com a de seu amigo.

Segundo ela, os dois eram especialistas em animais perdidos antes de virarem


criminosos. Esse tinha sido seu ganha-pão por algum tempo. Um dia, se preveniram
ao capturar um animal que claramente se tratava de um mascote perdido, o que os
fez pensar em como seu trabalho seria mais fácil se pudessem pegar seus
alvos antes que os pedidos fossem feitos. As coisas pioraram com o tempo e,
eventualmente, se viram no negócio de sequestro de animais de estimação.

A princípio, era uma operação em pequena escala, mas então o Homem A os


pegou em flagrante no meio de um sequestro. Ele forçou sua entrada no grupo,
operando como um “guarda-costas”, e começou a agir como se fosse o líder e logo
ampliou seu ramo de atividades. Além de tomar uma grande parte dos lucros para
si mesmo, também coagiu a mulher a dormir com ele como parte de sua “taxa”.
Como resultado, não ficaram muito chateados conosco por matá-lo. Principalmente
a mulher.

Realmente tivemos sorte.

A propósito, o nome do homem-lagarto era Jalil, e a dama-inseto era Vizquel.

Depois de uma rápida reunião em grupo, finalmente tirei suas algemas.

Quando saímos do prédio com o gato da nossa cliente, Ruijerd olhou para mim
e quebrou o silêncio.

— Rudeus! O que significa isso?!

— O que significa… exatamente o quê?


Com isso, ele me agarrou pelo colarinho, levantando-me alguns centímetros do
chão.

— Não se faça de idiota! Essas pessoas são vilãs! Você realmente espera que
eu junte forças com elas?!

Certo. O homem estava genuinamente furioso. Seu rosto ficou… assustador de


se olhar. Eu não pude deixar de lembrar do fato de que ele casualmente matou um
homem há pouco tempo.

— B-bem, concordo, não são ótimas pessoas. Mas são apenas pequenos
vigaristas… não estavam fazendo nada tão ruim.

— Um vilão é um vilão! A escala de sua maldade é irrelevante!

Eu sabia que isso ia acontecer, não sabia? Por algum motivo, minhas pernas
ainda tremiam. Minha voz estava vacilando e havia pequenas lágrimas se formando
no canto dos meus olhos.

— M-mas olha, isso nos permite matar dois coelhos com uma cajadada…

— E de que isso importa?!

Ruijerd realmente não estava aceitando isso, certo? Isso não era bom. Eu
estava com muito medo para pensar direito. O bater dos meus dentes ecoou alto na
minha cabeça.

— Vilões vão traí-lo no final! — gritou Ruijerd enquanto apertava seus olhos.

Era verdade. Eu levei essa possibilidade em consideração. Mas, da perspectiva


deles, o plano parecia oferecer tantos benefícios. Provavelmente não seria um
problema a curto prazo.

— No que estava pensando? Por que devemos conspirar com essas pessoas?!

Agora, essa pergunta… me parou.

O homem tinha razão. Não era como se tivéssemos que unir forças com
aqueles dois. Sempre poderíamos fazer as coisas em um ritmo mais tranquilo –
assumindo tarefas da guilda quando pudéssemos, caçando fora da cidade quando
precisássemos de dinheiro e lentamente subindo nos ranks. Essa era uma
alternativa perfeitamente viável. E não envolveria confiar em algumas pessoas
sombrias. Haveria um pouco de perda de tempo, mas não seria o fim do mundo.

Talvez tenha sido uma má ideia. Devíamos desistir, voltar e matar aqueles
dois? Resolver tudo com um bom banho de sangue?

Eu estava certo nisso? Já não tinha mais tanta certeza.

— Ruijerd!
Nesse ponto, meu debate interno foi interrompido por um grito feroz.

O corpo de Ruijerd balançou uma vez, depois duas.

— Tire suas mãos de Rudeus!

Eris estava chutando-o nas costas… várias vezes.

— Afinal, do que você está reclamando?!

Sua voz estava alta o suficiente para fazer meus ouvidos zumbirem. Alguns
transeuntes olharam em nossa direção, se perguntando qual era o motivo para tanto
barulho.

— Não gosto da ideia de unir forças com dois vilões.

— Oh, boo-hoo! E daí se não gosta? Ele está fazendo isso por você, estúpido!
E por mim!

Ruijerd arregalou os olhos e me soltou no chão. Eris imediatamente parou de


chutá-lo, mas ainda não tinha parado com os gritos.

— Em primeiro lugar, qual é o problema por terem sequestrado alguns


animais?!

— Você me entendeu mal. O tipo de pessoa que chutaria uma criança não pode
ser…

— Ah, vamos lá! Eu chuto as pessoas o tempo todo!

— Ainda assim, não se pode confiar em malfeitores…

— Você mesmo fez algumas coisas más no passado, não foi?!

Bem, agora ela o deixou sem palavras.

Senhorita Eris… Estou muito grato por você estar me defendendo aqui, mas
talvez não devêssemos cutucar a ferida dele com muita força…

— Rudeus é muito inteligente, entendeu?! Ele vai fazer tudo dar certo! Então
apenas… cale a boca e obedeça! E não comece a choramingar toda vez que se
sentir um pouco infeliz!

— Mas…

— Se você vai reclamar de tudo, vá embora agora mesmo! Rudeus e eu


podemos nos virar sozinhos!

Ruijerd vacilou, surpreso com a emoção crua no rosto de Eris.


— Muito bem… Sinto muito, Rudeus. — Ele se desculpou comigo depois de um
momento. O homem foi dominado pela veemência de Eris. Mas isso não significa
que estava realmente convencido, é claro.

— E-está tudo bem, Ruijerd…

A barra que eu precisava limpar tinha ficado muito maior. Depois de tudo isso,
não podia admitir sequer que eu também ficasse inseguro.

Juntar-se àqueles dois podia ter sido um movimento precipitado. Mas agora que
chegou a esse ponto, teria que me manter firme, não importa o quão ansioso
pudesse estar.

No começo achei que era uma ideia brilhante. Só teria que confiar em mim
mesmo.

Não era como se houvesse muitas pessoas em quem eu tivesse menos fé…

Quando devolvemos seu gato, Meicel ficou radiante. Ela veio correndo no
momento em que pôs os olhos em nós, abraçou Mii e começou a chorar de alegria.

A garota obviamente adorava seu animal de estimação. O gato era


surpreendentemente tolerante diante do afeto dela… já que era uma pantera.

— Obrigada! Obrigada! Uhm, aqui está! — Depois de um tempo, nossa cliente


entregou um cartãozinho metálico para Ruijerd. Havia algo que parecia um número
de serviço nele, junto com a palavra “Completo”.

— O que é isso? — perguntei.

— Você não sabe? — perguntou a garota, incrédula. — Vocês não são


aventureiros?

Bem, acho que vou deixar você me contar, se insiste! Harumph!

— S-se importaria em explicar, senhorita?

— Tá! Quando você levar isso para a Guilda dos Aventureiros, eles te darão
dinheiro. Só o cartão não serve! Mas se você colocar o dedo na parte em branco e
dizer “tarefa concluída”, ficará tudo certo!

Uma tradução literal seria: “Se colocar o dedo no cartão e falar as


palavras tarefa concluída, o cartão indicará que o trabalho foi concluído”. Hmm. Isso
era uma prevenção contra a possibilidade de alguém roubar o cartão? Mas e se eu
mesmo fizesse a parte da “tarefa concluída”? Funcionaria? Em caso afirmativo,
poderia simplesmente trocar os cartões e transformá-los em dinheiro fácil…
Naaah. Mesmo se funcionasse, a Guilda em algum momento me descobriria. E
provavelmente tinham algumas medidas estabelecidas para evitar esse tipo de
coisa.

— Uhm… parece que este já diz “Completo”. — Normalmente, se esperaria até


que o trabalho estivesse realmente feito para concluir tudo, certo?

— Sim! Eu sabia que Ruijerd iria encontrar Mii, então fiz isso com antecedência!

Pela deusa. Que fofa! A confiança de uma criança é uma coisa tão linda!

Agachando-se, Ruijerd deu um tapinha gentil na cabeça dela.

— Entendo… Você teve fé em mim, não é? Obrigado, Meicel.

— Sim! Eu não sabia que existiam demônios bons, mas agora sei!

Por um momento, o rosto de Ruijerd pareceu congelar. Eu sei como você se


sente, cara, mas é exatamente essa a sua reputação atual.

— Então tudo certo, senhorita. Não se esqueça do Fim da Linha e do seu amigo
Ruijerd, viu?

— Sim! Venham me ajudar se ela desaparecer de novo!

As palavras finais e alegres da garota fizeram meu peito doer um pouco.

Quando nós três voltamos para a Guilda dos Aventureiros, já estava


anoitecendo. Se cada trabalho demorasse tanto, acabaríamos falidos em pouco
tempo.

— Ei, mas que diabos? Eles voltaram!

— Uau! Você já encontrou aquele bichinho perdido, garoto?!

No momento em que entramos no prédio, o mesmo Cara de Cavalo voltou a


nos incitar. Ele era fácil de se reconhecer, já que sua cabeça de cavalo contrastava
estranhamente com seu corpo de minotauro. O sujeito ficava dentro da guilda o dia
todo ou o quê?

— Ah, se não é o homem com cabeça de cavalo desta manhã… Você tirou uma
folga do trabalho hoje? — Não era muito divertido lidar com esse cara, sério. Ele me
lembrava muito alguém que me intimidou no passado. Eles faziam um
enorme show enquanto atentavam seu alvo, basicamente convidando todos para
participar.
— Uh… o quê? Garoto, parece que de repente você ficou muito educado. É até
meio assustador…

Opa! Esqueci de adotar minha outra personalidade. Acho que vou só seguir em
frente…

— Você é um aventureiro veterano e foi bom o suficiente para nos dar alguns
conselhos. Por que não demonstraria respeito ao falar com você?

— O-oh… Claro. Acho que você tem razão. — O Cara de Cavalo ficou um pouco
tímido após isso. Mas que perdedor.

— Graças a você ter nos apontado a direção certa, nosso primeiro trabalho
correu sem problemas.

— Como é que é?

Abanei nosso cartão de tarefas na frente dele. O homem parecia genuinamente


impressionado.

— Bem, mas isso não foi nada! É muito difícil rastrear um único animal de
estimação em uma cidade tão grande, sabe?

Na verdade, tenho certeza de que normalmente seria. Ainda mais quando o


animal de estimação em questão foi realmente sequestrado.

— Mas, ei, não é grande coisa quando você tem Ruijerd, o Fim da Linha, do
seu lado.

— Droga. Para um enganador, até que esse cara não é tão ruim!

— Toma essa, Cara de Cavalo! Ele é a coisa real!

Com um pequeno deslize de personalidade, me afastei em direção aos balcões


de recepção. Lá, entreguei o cartão de tarefa e nossos três cartões de aventureiro
à balconista; depois de um tempo, ela devolveu nossos cartões, junto com uma
única moeda grosseira do tamanho de uma moeda de 100 ienes.

Quando voltei para perto dos outros, encontrei o Cara de Cavalo e Ruijerd
conversando.

— Ei, afinal de contas, como encontraram aquela coisa? Apenas para


referência.

— Da mesma forma que rastreio a presa em uma caça.

— Aah. Uma caça, hein? Qual é o nome do seu povo mesmo?

— Superds…
— Hah. Claro, claro. Sei como é, cara. Isso que você está usando diz tudo. —
O Cara de Cavalo estava olhando para o pingente de Roxy, agora pendurado à
mostra em volta do pescoço de Ruijerd. — Eu sou Nokopara. Rank C.

— Ruijerd, Rank F.

— Sim, eu sei o seu rank, cara! Ah, bom. Se quiser saber alguma coisa, pode
ficar à vontade para perguntar. Eu não sou mesquinho quando se trata de ajudar os
novatos! Gahahah!

Apesar dos pesares, parecia ser um bate-papo bem-humorado. Foi bom ver o
ser desprezado do nosso grupo falando com um estranho, mas eu também estava
muito preocupado com a possibilidade de ele acabar falando muito… ou de repente
pirando e começando a atacar. Torcia para que crianças não acabassem se
tornando um assunto.

Eris, sentada ao lado de Ruijerd, também era um motivo para preocupação. Eu


tinha notado pessoas aparecendo para falar com ela de vez em quando, mas como
não falava a língua local, nunca respondia.

— Uau, essa é uma bela espada. Onde você conseguiu isso?

E ela ficava em silêncio.

— Ei! Vamos lá! Não me ignore! — Uma guerreira parecia estar ficando
particularmente irritada com o silêncio.

— Senhorita, posso ajudar?

Eu me coloquei entre elas para intervir e a mulher apenas resmungou: “Ah,


esqueça”, e saiu andando.

Nesse ponto, Nokopara voltou sua atenção para mim.

— Ei, você aí, garoto. Conseguiu pegar sua recompensa direitinho?

— Aham. Uma moeda de sucata! É o primeiro dinheiro que conseguimos desde


que formamos o grupo!

— Haha! Cara, eles realmente só dão migalhas para os iniciantes.

— Vamos. Isso não é maneira de falar sobre as economias de uma pobre


criança.

— Continuam sendo só migalhas, garoto.

— Apenas no sentido monetário. — Aquela doce menina tinha economizado


sua mesada pelo bem de seu amado gatinho. Quando mantinha esse fato em mente,
mesmo uma única moeda grosseira como essa não parecia tão insignificante, certo?
— Você obviamente não entende o valor real desta recompensa. Por que não vai
embora, hein? Xô, xô.

— Nossa cara, quanta hostilidade. Tudo bem então. Continue assim, garoto! —
Com um aceno de mão, Nokopara vagou para uma parte diferente do lugar. Afinal
de contas, o que diabos ele fazia para viver?

Em todo caso, tínhamos conseguido concluir com sucesso nosso primeiro


trabalho como aventureiros.

Ficou confuso

Capítulo 11 - Um Começo
Tranquilo

Quando fizemos nosso caminho para a porta da frente da Guilda dos


Aventureiros na manhã seguinte, um homem-lagarto imediatamente se aproximou
de mim.

— Ah, oi. Já cuidei da atualização de nosso rank.

Por um momento, não fiz ideia de quem o cara deveria ser, mas então notei a
mulher de olhos insectóides ao lado dele e percebi que eram os mesmos sujeitos
do dia anterior. Seus nomes eram… uh, Jalil? E Vizquel, não?

Em minha defesa, era difícil distinguir um rosto do outro por aqui. Havia uma
tonelada de gente-lagarto nesta cidade, e não ajudava o fato de esses dois estarem
usando armaduras de couro em vez das roupas civis que usaram no dia anterior.
Eles pareciam pessoas totalmente diferentes quando se vestiam como aventureiros
comuns em vez de cidadãos comuns.

— Bom dia, Jalil. Muito obrigado por cuidar disso.

— Q-que tom educado é esse? Você está me dando medo…


— Só estou falando com respeito. Isso é um problema?

— N-não, não…

Quando olhei para ele, Jalil rapidamente desviou os olhos.

— É bom ver você também, Vizquel. Estou ansioso para trabalhar com vocês.

— Uh… certo. — Ela estava olhando amedrontada para Ruijerd. Para ser justo,
ele também estava lançando olhares afiados para os dois. Ah, bem.

— Bem, e então, podemos entrar?

— S-sim. Claro — disse Jalil com um aceno nervoso.

No momento em que pisamos dentro da guilda, um certo homem cavalo nos


avistou e caminhou até nós.

— Vocês aí!

— Oi…

Esse cara de novo…? Sério, como ele conseguia dinheiro?

— Ahah, o que é isso? Você está com o Caçador M hoje, hein?

— E-ei, Nokopara. Quanto tempo.

Aparentemente, o Cara de Cavalo e nosso novo amigo homem-lagarto eram


conhecidos.

— Sim, muito tempo sem nos vermos, Jalil. Ouvi falar que vocês foram para
o rank C! Tem certeza de que é uma boa ideia? Você não será mais capaz de
trabalhar nesses empregos de busca por mascotes, sabe?

Parando por um momento, Nokopara olhou de Jalil para mim e vice-versa, então
acenou com a cabeça enquanto relinchava.

— Agooooora eu entendi. Não é de admirar que você tenha cuidado daquela


coisa de animal perdido ontem, garoto! Convenceu o Caçador M a te ajudar, né?

“Caçador M” era provavelmente o nome do grupo de Jalil. Soava até bem.

— Sim, exatamente! — falei. — Os encontramos enquanto procurávamos


aquele gato e eles se ofereceram para nos instruir!

— Ahah. Então o pequeno e tímido Jalil encontrou alguns aprendizes? E um


deles é até um Superd falso! Guhuhuh…
O Cara de Cavalo ficou muito feliz em aceitar minha mentira de baixa qualidade.
Ele mal interpretou a situação de uma forma bem conveniente para todos nós.
Depois de rir consigo mesmo por um tempo, se inclinou para olhar para o lado de
Jalil.

— Ei, o Roman não está com vocês hoje. Sabe onde ele está?

— S-sim… Roman, uh… morreu.

— Ah, entendi. É uma pena.

Roman era provavelmente o nome do homem que Ruijerd matou. Nokopara não
pareceu especialmente abalado com a notícia. Talvez a morte de uma pessoa não
fosse grande coisa nesse ramo de trabalho. Fui o único que levou aquilo tão a sério?
Jalil e Vizquel também pareciam relativamente indiferentes em relação a tudo isso.

— Ainda assim, se vocês perderam o Roman, por que decidiram melhorar


seu rank logo agora? Aquele cara era o melhor lutador do seu grupo, não era?

—B-bem, eu… — Jalil me lançou um olhar nervoso. Vendo isso, Nokopara


soltou outro relincho de compreensão.

— Ah, sim, já entendi tudo. Nem precisa responder. Claro que você gostaria de
parecer um figurão na frente de seus novos aprendizes!

Era quase impressionante como ele havia decidido as coisas por si mesmo.
Com alguns tapas amigáveis nas costas de Jalil, Nokopara finalmente se virou e
voltou para as mesas. Pude até mesmo escutar o ligeiro suspiro de alívio que o
homem-lagarto deixou escapar.

Sério, qual era o problema daquele cara? Ele


continuava constantemente pegando no nosso pé. Será que tinha uma queda por
mim ou algo do tipo? Nah… se fosse algo assim, parecia passar mais tempo olhando
para Ruijerd. Será que gostava de homens rudes com cicatrizes na cara?

De alguma forma, duvidei disso.

— Tudo bem então. Pessoal, por que não damos uma olhada no quadro de
tarefas?

À medida que avançamos na guilda, algumas pessoas nos lançaram olhares


peculiares. Por enquanto, seria melhor fingirmos não notar. Como nós três éramos
agora aparentemente “aprendizes”, fiz questão de fazer algumas perguntas a Jalil e
Vizquel enquanto examinávamos os empregos na faixa de rank D a B.

— Gente, existe alguma diferença entre as tarefas de “colheita” e “coleta”?

— Hã? U-uh, claro. Eles chamam de colheita quando você está colhendo
plantas. As coletas são principalmente para coisas de monstros, acho…
A resposta de nosso novo mentor foi um pouco vaga, mas pareceu mais ou
menos precisa. A maioria dos trabalhos de colheita parecia envolver a procura por
ervas medicinais e tal… enquanto a coleta era mais um recurso para outros tipos de
“buscas”.

— Ah, claro. Ruijerd?

— O quê?

— Sinto muito, mas acho que precisamos nos concentrar em ganhar dinheiro e
melhorar nosso rank por um tempo.

— Por que está me pedindo desculpas…?

— Porque estamos colocando aquele outro assunto em segundo plano.

Eu disse a Jalil e Vizquel para espalharem a palavra sobre o Fim da Linha. Mas
não esperava muito deles. Por um tempo considerei microgerenciá-los para ter
certeza de que estariam ajudando as pessoas com um sorriso, mas, para ser
realista, parecia mais inteligente ficar meio distante. Enquanto mantivéssemos
distância dos dois, poderíamos nos livrar da dupla caso fosse necessário. Mesmo
se suas atividades criminosas fossem expostas, e mesmo se tentassem empurrar a
culpa para o Fim da Linha, os outros apenas ririam – afinal, eles tinham um rank bem
superior ao nosso, e todos já sabiam que Ruijerd era um “falsário”.

— Está tudo bem, Rudeus. Eu entendo.

Como Ruijerd não estava levantando nenhuma objeção, comecei a escolher


alguns serviços enquanto consultava Jalil.

Depois de trocar algumas palavras de saudação com os guardas do portão, nós


três saímos da cidade.

Nas proximidades de Rikarisu, parecia que Coiotes Pax, Lobos Ácidos, Grandes
Tartarugas e Tartarugas de Pedra Gigante eram as melhores apostas quando se
tratando de caçar monstros. Coiotes Pax eram caçados principalmente por causa
de suas peles; Lobos Ácidos por suas presas e caudas; Grandes Tartarugas eram
como pilhas de carne andantes; e seria possível encontrar pedras mágicas dentro
das Tartarugas de Pedra Gigante. Decidimos ignorar as Grandes Tartarugas desta
vez, principalmente porque sua carne era absurdamente pesada.

As Tartarugas de Pedra Gigante eram nosso alvo principal. As pedras mágicas


encontradas nelas eram pequenas, mas valiosas, o que permitia algumas caças
muito lucrativas. O único problema era que esses eram monstros muito raros nesta
localidade, e não se conseguia encontrar nenhuma muito perto de lugares onde as
pessoas viviam.
Então acabamos aceitando um pedido por peles de Coiote Pax, que estava
fixado ao quadro da guilda. Levando tudo em consideração, pareciam a nossa
melhor aposta, já que apareciam em grupos de tamanhos decentes que permitiam
conseguir um bom lucro em uma única batalha.

Claro, isso só tornava as coisas um pouco mais eficientes, já que tínhamos que
rastreá-los e esfolá-los… então, se encontrássemos algum Lobo Ácido pelo
caminho, eu planejava também cuidar dele. Não tínhamos assumido nenhum
trabalho para coletar seus materiais, mas com as missões de coleta, seria possível
cuidar da parte de coleta antes mesmo de aceitar um serviço. Assim que tivesse
matéria-prima suficiente, poderia assumir a tarefa e levar tudo direto ao balcão de
compras da guilda.

Em qualquer caso… os Coiotes Pax eram o nosso foco principal, pelo menos
por enquanto. Normalmente eles seriam encontrados em grupo de, no máximo, dez.
Dado o tempo que levaria para rastreá-los e esfolá-los depois, inicialmente assumi
que não seríamos capazes de matar muitos em um único dia.

Depois de caçar e esfolar nosso primeiro grupo, porém, Ruijerd começou a


reunir seus corpos em uma pilha. A princípio, não entendi o que ele estava fazendo.

— Você pode espalhar o cheiro usando magia do vento, Rudeus?

Ah. Agora isso faz sentido. Íamos usar o cheiro de seu sangue para atrair outros
monstros para o mesmo local. Comecei a espalhar o ar em várias direções,
anunciando para toda a área circundante que tínhamos uma pilha de carne fresca.

— Tartarugas Gigantes de Pedra não podem ser atraídas dessa maneira, mas
devemos atrair pelo menos todos os Coiotes Pax das proximidades.

Aconteceu exatamente como Ruijerd disse que aconteceria. No final daquele


dia, tínhamos matado mais de cem Coiotes Pax – o suficiente para que eu me
perguntasse se não tínhamos os erradicado da área.

Foi um empreendimento muito agitado. Ruijerd e Eris massacraram onda após


onda de monstros por horas e horas. E eu me agachei atrás deles, trabalhando
febrilmente para tirar a pele das malditas coisas.

Foi um trabalho exaustivo e repetitivo. Mais ou menos após a trigésima pele,


meus braços ficaram pesados, meus ombros começaram a doer e o cheiro de
sangue tornou-se totalmente nauseante. Me entretendo com fantasias de monstros
que instantaneamente se transformavam em ouro quando seus PV chegavam a
zero, consegui lutar por algum tempo, mas tive que desistir depois de
aproximadamente setenta peles.

E então troquei de lugar com Eris.

Ficar matando os Coiotes Pax ao usar magia se provou muito menos


agonizante do que os esfolar. Por algum tempo, cuidei de um de cada vez,
lentamente ajustando o poder dos meus feitiços para evitar que estourassem ou
danificassem muito as suas peles. Esse com certeza era um trabalho que fazia mais
o meu tipo. Para começar, isso envolvia o uso de algum raciocínio lógico.

Mas quando eu estava começando a me divertir, Eris jogou a toalha – tendo


conseguido cuidar de, talvez, trinta peles. Evidentemente, ela era ainda menos
adequada para o trabalho manual do que eu.

Presumi que Ruijerd assumiria a função de esfola, mas nesse ponto já tínhamos
peles demais – a pilha estava ficando difícil de manejar. Começamos a cuidar das
coisas para começar a carregar tudo de volta para a cidade, e esse trabalho exigiria
várias viagens.

— Espere. — Interrompeu Ruijerd. — Antes disso, devemos queimar os


cadáveres.

— Você quer queimá-los? Não é melhor assá-los ou algo assim?

— A carne de um Coiote Pax é realmente nojenta. Vamos apenas colocar fogo


neles e enterrá-los.

Quando se deixa uma pilha de cadáveres jogada por aí, eles servem como fonte
de alimento para outros monstros, encorajando-os a se multiplicar. Simplesmente
atear fogo neles não seria o suficiente para convencer os monstros a não os comer;
e se apenas os enterrássemos, aparentemente retornariam como “Coiotes Zumbis”.
Consequentemente, seria necessário queimar as coisas e depois enterrá-las.

Um lindo e prático plano surgiu na minha cabeça na mesma hora:

1.
1. Matar Coiotes Pax. Pegar as peles.

1.
1. Enterrar os corpos, criando toneladas de Coiotes Zumbis.

1.
1. Aguardar até que um trabalho de caça a Coiotes Zumbis fosse
postado na guilda.

1.
1. Lucro!

Infelizmente, Ruijerd rejeitou a sugestão. Parecia que permitir a multiplicação


proposital de monstros era um grande tabu nessas regiões.

Gostaria que eles anotassem essas pequenas regras locais em algum lugar,
sério…

— Mas não fizemos isso com os monstros que matamos em nossa viagem até
aqui, não é?

— Não é necessário quando você mata apenas alguns.


Parecia uma regra terrivelmente vaga. Ainda assim, uma pilha tão maciça de
corpos em decomposição parecia que também poderia ser problemática de uma
perspectiva de saúde pública. Como não consegui encontrar nenhum fundamento
real para apresentar uma objeção, comecei a queimar os corpos até ficarem
torrados.

Quando terminamos de preparar nosso carregamento de peles que levaríamos


de volta para a cidade, o sol já estava se pondo. Nossa primeira caçada finalmente
acabou. E foi uma muito produtiva. Eu estava preparado para voltar direto para a
pousada e tirar uma soneca.

Eu realmente estaria lá fora, esfolando dezenas dessas coisas, de novo, no dia


seguinte? Meio que senti que merecíamos um dia de folga…

— Nós realmente lucramos muito hoje, hein? Amanhã vamos fazer ainda
melhor!

Mas diante do entusiasmo de Eris, não consegui discordar.

Apenas três dias depois, o “Fim da Linha” chegou formalmente ao rank E.

— Bom trabalho. — Com algumas palavras de agradecimento, entreguei a Jalil


um décimo do dinheiro que ganhamos na caçada daquele dia.

— O-obrigado, cara.

Dez por cento foi o que combinamos, mas… não parecia tanto dinheiro. Quando
perguntei a Jalil se eles realmente estavam bem com isso, ele explicou que não era
apenas um aventureiro – também administrava um negócio na cidade.

— Que tipo de negócio?

— Uh, uma loja de animais.

Ah, nossa. Então, primeiro você os vende e depois os rouba? Nossa cara, isso
é meio sem noção.

— Não faça nada muito errado, entendeu?

— É, eu sei.

O negócio da loja de animais aparentemente era, de qualquer forma, legítimo.


Eles pegavam animais errantes pela cidade, os davam algum tipo de treinamento e
depois os venderiam como animais de estimação. Jalil era um membro da raça
Rugoniana, um povo conhecido por sua experiência em domar feras. Com a ajuda
de técnicas passadas de geração em geração, ele poderia supostamente
“domesticar” qualquer coisa, desde um vira-lata perdido até uma orgulhosa mulher
guerreira do povo-fera.

Pela graça da deusa, mas que tribo perversa.

Ainda bem que Eris e Ruijerd estavam comigo, ou eu poderia ter acabado
rastejando a seus pés e pedido por dicas.

Deixando tudo isso de lado, esse pet shop parecia ser uma operação lucrativa
– com uma vantagem para a cidade como um todo, já que estava tirando animais
potencialmente perigosos das ruas.

— Então, uh. Por que você começou a sequestrar animais, se já tinha uma linha
de trabalho legítima?

— No início, estávamos apenas pegando os que se perderam, mas… acho que


perdemos as estribeiras.

Claro. Uma vez que enfiaram a ideia na cabeça, deve ter se tornado algo muito
tentador. E uma vez que cederam à tentação, tudo foi de mal a pior.

— De qualquer forma, não é difícil administrar uma loja e ao mesmo tempo


trabalhar como aventureiro?

— Nah, na verdade não. Temos estoque suficiente de animais para continuar


por um bom tempo.

Aparentemente, eles só mantinham a loja aberta até o início da tarde, e então


passavam a trabalhar nas tarefas da guilda pelo resto do dia.

— Bem, de qualquer forma, acho que isso não é da minha conta. Contanto que
você continue concluindo os trabalhos.

— Não se preocupe, chefe – somos aventureiros de pleno direito. E também


estamos nos certificando de espalhar a palavra sobre o Fim de Linha.

Hmm. Se é o que você diz…

A essa altura já tinhamos conseguido um pouco de dinheiro, então parecia que


estava na hora de comprar roupas novas e armaduras de combate.

Em primeiro lugar, pegamos algumas roupas de um vendedor ambulante.

Eris não demorou muito para se decidir. Ela só queria algo resistente, mas leve
e fácil de usar, critérios que a levaram a um par de calças nada estiloso.
Pareceu uma escolha sensata, especialmente dadas as nossas circunstâncias
atuais, mas eu senti que não faria mal ter também ao menos uma opção “feminina”.
Quando apontei para um vestido de uma peça, rosa e com babados, que tinha visto
em um canto da loja, ela fez uma careta de nojo.

— Você realmente quer que eu use algo assim…?

— Não custa nada ter pelo menos um vestido feminino, certo?

— Ah, é? Então que tal comprar algo mais másculo para você, hein, Rudeus?

Ela empurrou um colete de pele para mim. Parecia algo que um bandido da
montanha poderia usar.

Hmm. Então, se eu colocasse essa coisa, Eris usaria um vestido com babados?

Por um momento não pareceu um mau negócio, mas então imaginei nós dois
parados um ao lado do outro em nossas novas roupas e imediatamente desisti da
ideia.

Assim que terminamos de comprar as roupas, fomos para uma loja de


armaduras local.

Eris ainda não tinha sofrido nenhum ferimento sério em combate, e eu poderia
usar magia de Cura para tratar qualquer ferimento menor, então eu tinha a
impressão de que ela realmente não precisava de uma armadura. Mas, quando
Ruijerd me disse: “Seus feitiços não podem curar feridas fatais ou restaurar um
membro perdido, e Eris ainda não está acostumada à batalha. Complacência e
descuido podem custar a vida de jovens guerreiros.” Não pareceu que seria uma
boa ideia deixar ela sem qualquer equipamento defensivo.

A loja de armaduras era um estabelecimento grande e impressionante, embora


ainda um pouco mais rudimentar do que as lojas que eu tinha visto em Asura. As
mercadorias expostas lá dentro eram universalmente mais caras do que as coisas
que poderia comprar dos vendedores ambulantes da cidade. As barracas e
carrinhos eram a melhor aposta para itens mais baratos e, às vezes, se descobriria
uma joia escondida entre as pilhas de lixo, mas lojas como essa ofereciam qualidade
confiável e uma variedade maior. Eles também tinham uma grande variedade de
tamanhos… o que era muito bom, visto que éramos duas crianças.

— Proteger seu coração é muito importante, então acho que devemos comprar
o melhor que pudermos…

No momento, estávamos escolhendo um peitoral para Eris. Havia uma grande


variedade deles, principalmente para guerreiras, projetados para caber em pessoas
com diferentes tamanhos de busto.

— Esse me parece bom — disse Eris, puxando um modelo de pele de fera que
se encaixava perfeitamente nela. — O que você acha, Rudeus?

Bem, se ela estava pedindo, eu ia dar uma olhada. Hmm… Nada mal.
— Você provavelmente deveria escolher um que seja de um tamanho maior.

— Por quê?

Vamos lá, pense nisso.

— Ainda somos crianças em fase de crescimento. Qualquer coisa que se


encaixe perfeitamente em você agora ficará muito pequena bem rápido. — Peguei
um peitoral semelhante em um tamanho um pouco maior e entreguei a Eris.

— Esse fica todo frouxo…

— Nah, você está ótima. Não se preocupe com isso.

Murmurando reclamações, Eris começou a escolher outras partes de armadura


para todos os cantos de seu corpo. Todas as lutas que estivemos travando
ultimamente a deram uma noção de onde ela era mais vulnerável a lesões. Não foi
difícil encontrar equipamentos para proteger suas articulações e órgãos vitais.

Entretanto, sua cabeça representava um dilema. Um elmo excessivamente


pesado só iria atrapalhar. Mesmo assim, não queríamos deixar uma parte tão
importante de seu corpo totalmente desprotegida.

— Que tal algo como isso? — perguntei, apresentando a ela um elmo que me
lembrava um dos malvados irmãos Hokuto.

— Sem chance — respondeu, fazendo careta.

Essas crianças de hoje em dia. Não conseguem nem apreciar os clássicos.

Continuamos tentando todos os tipos de elmos diferentes, mas Eris rejeitou


cada um deles por causa do peso, da feiura, do cheiro ou por dificultar sua visão.
No final das contas, decidiu usar uma espécie de bandana; tinha placas de ferro
costuradas para oferecer alguma proteção.

Claro, o capuz que havíamos comprado antes servia apenas para esconder seu
atraente cabelo ruivo. De uma perspectiva defensiva, era inútil.

— Acho que isso é tudo. O que você acha, Rudeus? Pareço uma aventureira?!

Com a espada semelhante a um cutelo que Rowin nos deu presa em seu
quadril, Eris girou para mostrar seu novo conjunto de armadura leve. Para ser
totalmente honesto, meio que parecia com um cosplay… especialmente porque o
peitoral não era do tamanho certo.

— Esplêndido, senhorita. Simplesmente esplêndido. Você é a própria imagem


de uma guerreira experiente.

— Você acha? Hehehe…


Eris colocou as mãos nos quadris e olhou para si mesma com um sorriso
satisfeito. Enquanto ela saboreava o momento, pechinchei o custo de seu
equipamento para ficar por apenas uma moeda de ferro. De qualquer forma, não foi
nenhuma comprinha, estávamos obtendo um conjunto de armadura completo.

— Certo, Rudeus! Você é o próximo!

— Eu realmente acho que não preciso de nada, sabe?

— Claro que precisa! Você é um mago, então devia ter um robe!

Tive a impressão de que Eris tinha uma certa predileção pelas histórias em que
um jovem guerreiro heróico partia em uma aventura ao lado de seu amigo de
infância, que era capaz de usar magia. Havia noites em que a garota mal conseguia
dormir, mas ela certamente era corajosa durante o dia.

Ah, bom. Acho que não faz mal.

— Ei, senhor. Você tem algum robe que caberia em mim?

O velho proprietário da loja de armaduras se aproximou silenciosamente e abriu


um de seus guarda-roupas.

— Aqui. Foram todos feitos para hobbits.

Dentro, havia uma grande variedade de mantos coloridos, todos com designs
ligeiramente diferentes. Pareciam ter em cinco tons: vermelho, amarelo, azul, verde
e cinza. Nenhum era lá muito vívido.

— A cor faz alguma diferença?

— Os coloridos foram tecidos com pêlo de monstros. Cada um oferece um


pouco de proteção adicional contra cada tipo de elemento em específico.

— Certo, então vermelho seria fogo, e amarelo deve ser terra… Uh, o cinza
protege do quê?

— É um tecido comum.

Ah. Não era à toa que custa basicamente metade do preço. O custo de cada
uma das outras cores também variava um pouco. Isso provavelmente estava
relacionado ao valor dos materiais usados para tecê-los.

— Então, acho que você precisa de um azul, Rudeus! — disse Eris.

— Hmm, imagino… — Em combate de curta distância, eu era propenso a usar


rajadas explosivas para me enviar voando pelo ar. Será que vermelho ou verde não
seria melhor? Hmm… pare ou siga?

— Que tipo de feitiço você usa, garoto?


— Posso usar todos os tipos de magias de ataque.

— Hmm. Bem, isso já é alguma coisa. E eu aqui pensando que você era só uma
criança… Certo. Este pode até ser um pouco mais caro, mas…

Depois de procurar pelos robes por um momento, o velho puxou um que era de
um tom de cinza notavelmente mais escuro.

— Este aqui é feito de couro legítimo de Rato Mackey.

— C-Camundongo… Mackey?

— Eu disse rato, garoto. Não camundongo.

A imagem de um sujeito amigável em shorts vermelho brilhante flutuou


brevemente em minha mente; balancei minha cabeça com vigor até que ela
desapareceu. O manto parecia mais um pano do que a pele de um animal, mas
provavelmente era apenas a natureza do material.

— Então, que vantagens isso oferece?

— Não oferece nenhuma proteção especial contra magia, mas é duro como o
inferno.

Eu coloquei, só para ver como cairia.

— Ficou um pouco folgado em mim. Não tem nenhum menor?

— Esse é o menor que eu tenho.

— Deve ter algum para crianças, não tem?

— Por que teria?

Agora eu sabia como aquele judoca deve ter se sentido quando tentou colocar
um Traje Normal pela primeira vez. Ah, bom. Eu ainda era um menino em
crescimento, então talvez isso servisse. A coisa ao menos parecia ser feita com
material de qualidade… A julgar pela sensação, provavelmente forneceria alguma
proteção contra armas perfurantes.

E também gostei do fato de ser feito da pele de um roedor de pele cinza.


Combina bem com meu sobrenome1.

— Hmm, certo. Talvez eu fique com este.

— Você gostou disso, hein? São oito moedas de sucata.

— Bem, vejamos…
Depois de pechinchar com o velho para chegar ao melhor preço possível,
acabei comprando o robe por seis moedas de sucata.

Enquanto estávamos nisso, também peguei outras duas bandanas iguais à de


Eris, mas em cores diferentes. Eram para mim e para Ruijerd. Ele poderia a usar
caso sentíssemos necessidade de esconder aquele olho em sua testa.

Mas por que eu precisava de uma?

Bem… não é divertido ser o diferentão, sabe?

Aliás, pedi para Ruijerd espionar Vizquel enquanto Eris e eu saíamos em nossa
viagem de compras. Não esperava muito dela e de Jalil, mas dependendo de como
se comportassem, havia a possibilidade de que nossa reputação pudesse ser
seriamente prejudicada. Parecia ser prudente dar ao menos uma olhada.

Quando expliquei isso a Ruijerd, entretanto, o homem respondeu que eu nunca


deveria ter juntado forças com eles, para começar, já que estava tão preocupado
com o caráter dos dois. Era um ponto definitivamente justo. Mas, por outro lado,
nosso acordo com eles rendeu alguns benefícios financeiros importantes. No
momento, um pouco de paranóia parecia ser um preço bem pequeno a se pagar.

Para encurtar a história – nossos amigos raptores de mascotes estavam


desempenhando seus deveres de maneira admirável. Eles abordaram até mesmo
serviços de rank F com uma atitude positiva e diligência surpreendente.

Nesse dia, Vizquel tinha feito um trabalho de extermínio de insetos. Seu objetivo
era erradicar uma infestação de criaturas repugnantes que ocupavam a cozinha de
alguém. Ela era da raça Zumeba, cuja saliva era venenosa, mas também muito
atrativa para todos os tipos de insetos. Qualquer inseto que a ingerisse morreria ou
ficaria totalmente imóvel, dando à Zumeba um saboroso lanche.

Ou seja, a mulher nasceu para fazer esse tipo de trabalho.

A cliente era uma mulher idosa – aparentemente teimosa e irritadiça, que


parecia nunca parar de franzir a testa. A impressão de Ruijerd era de que ela não
hesitaria em afugentar qualquer um que a desagradasse o mínimo que fosse.

Mas, claro, não chegou a isso. Vizquel começou a trabalhar rapidamente e


aniquilou os insetos com eficiência; após isso, Ruijerd confirmou que não restou nem
mesmo um único inseto vivo na casa da velha. A insectóide até tapou algumas
rachaduras com algum tipo de substância filamentosa, como medida preventiva
contra invasões externas.

— Obrigada, Vizquel. Aquelas coisas estavam me deixando louca.


— Sem problemas. Se você precisar de alguma coisa, lembre-se do nome
Ruijerd Fim da Linha, certo?

— Ruijerd Fim da Linha? Esse é o nome do seu novo grupo?

— É, mais ou menos isso.

Após anunciar nossa marca com muito zelo, Vizquel entregou à velha senhora
alguns pedaços extras de isca feita de sua saliva e, em seguida, educadamente
despediu-se dela. Com seu trabalho concluído, prontamente se encontrou conosco
na guilda para cuidar da troca de recompensas.

— Parece que ela está fazendo um bom trabalho, hein?

— Sim…

Eu com certeza não esperava aquele nível de perfeição. Vizquel não só já


conhecia a cliente, como também fora muito além do necessário no seu
atendimento. Provavelmente deixou uma impressão muito melhor do que minha
atitude improvisada de vendedor de porta em porta deixaria.

— Hmm. Acho que não são tão podres quanto pensamos, Ruijerd.

— Talvez não.

Para ser justo, eu também desconfiava um pouco deles, mas acho que não
estávamos pedindo tanto assim. Eles estavam basicamente fazendo trabalhos
comuns e mencionando o “Fim da Linha” quando terminavam. Se fizéssemos
pensarem que cooperar conosco significava dinheiro fácil para eles, era melhor
assim. Isso também os tornaria menos propensos a nos trair.

— No entanto, o fato é que cometeram muitas más ações.

— É, tem razão. Mas agora eles estão lá fora, trabalhando honestamente…


assim como você, Ruijerd.

— Mm…

Ser um “criminoso” não significa que alguém fosse irredimível; isso se aplicava
tanto a eles quanto a mim e Ruijerd. Eles terem parado de sequestrar animais de
estimação também parecia ser um bom sinal, embora não tivéssemos exigido isso
abertamente.

Dito isso, estávamos há apenas três dias nessa parceria. A memória de seu
encontro com a morte ainda estava fresca em suas mentes.

— Claro, eles podem estar apenas fingindo. Então devemos continuar a checá-
los assim sempre que alguma coisa mudar.

Ruijerd franziu a testa diante disso.


— Você juntou forças com essas pessoas. Mas não… confia nelas?

— Claro que não. Nesta cidade toda, só confio em você e Eris, Ruijerd.

— Entendi…

Ele começou a estender a mão para a minha cabeça, mas de repente parou.

Eu confiava em Ruijerd, mas parecia que estava começando a perder


a sua confiança.

Mas eu poderia viver com isso. Meu objetivo era voltar para o Reino Asura com
Eris. Faria o meu melhor para alavancar a reputação da raça Superd enquanto
estivesse nisso, mas ganhar o respeito de Ruijerd não estava na minha lista de
objetivos principais.

— Bem, então por que não voltamos?

Voltamos para nossa pousada por ruas iluminadas apenas por pedras
iluminadoras.

Considerando todas as coisas, nossa carreira de aventureiros teve um começo


tranquilo.

Capítulo 12 - Crianças e
Guerreiros

Três semanas depois, nosso grupo chegou ao rank D. Parecia que estávamos
subindo muito rápido, então, por fim, verifiquei os critérios específicos de promoção.

Para um aventureiro de rank F subir para o E, precisava concluir com sucesso


dez empregos de rank F… ou cinco de rank E consecutivos.
Para um aventureiro de rank E subir para o D, eram necessários cinquenta
empregos de rank F, 25 de rank E ou dez serviços de rank D consecutivos.

Esse padrão geral permanecia igual para os ranks mais altos, mas os números
começavam a ficar consideravelmente maiores.

A despromoção também era possível para aqueles que cometiam os mesmos


erros várias vezes. Falhar em cinco serviços seguidos, sendo eles de
um rank inferior ao seu ou dez tarefas consecutivas em seu rank atual acabaria
sendo prejudicial. Ninguém seria rebaixado por falhar em tarefas de rank superior
ao que possuía, mas depois de cinco falhas consecutivas seria removido o privilégio
de aceitá-las.

Jalil e Vizquel tinham trabalhado diligentemente para cuidar dos serviços


de rank F e E para nós todos os dias, então tínhamos conseguido chegar tão longe
sem qualquer esforço. Agora que estávamos no rank D, finalmente tínhamos acesso
a tarefas de rank C, mais lucrativas. Eram serviços fáceis para o nosso grupo, então
provavelmente subiríamos para o rank C em breve.

Podia ser o momento certo para encerrar nosso acordo com Jalil e Vizquel. Eles
não pareciam mais estar sequestrando animais de estimação, mas eu não tinha
certeza de quais problemas toda essa coisa de troca de emprego poderia causar a
longo prazo. Já havíamos economizado uma quantidade razoável de dinheiro, então
tínhamos a opção de dizer adeus aos nossos “parceiros de negócios” e deixar
Rikarisu para trás para sempre.

Depois de pensar um pouco, no entanto, decidi continuar fazendo uso dos dois
até chegarmos ao rank C. Não parecia haver nenhum problema no momento, e seria
difícil virar as costas para um sistema de baixo estresse e alto rendimento. Não faria
mal nenhum ter mais dinheiro na carteira antes de partirmos.

No momento, nossas economias somavam uma moeda de minério verde, seis


moedas de ferro, quatorze moedas de sucata e trinta e cinco moedas de pedra… ou
um total de 1.875 moedas de pedra. Então… basicamente 1.875 ienes. Todos os
nossos ativos somavam menos do que o valor de duas moedas de cobre grande
Asuranas.

Certo, já chega. Não faz sentido ficar fazendo essas comparações em um


continente diferente.

Assim que chegássemos ao rank C, diríamos adeus a Jalil e Vizquel e, em


seguida, deixaríamos a cidade na mesma hora. Para mim parecia ser um plano bem
sólido.

Pouco depois de chegar a essa conclusão, localizei um trabalho “interessante”


no quadro da Guilda.
B

TAREFA: Localizar e Derrotar Monstro(s) Desconhecido(s).

RECOMPENSA: 5 moedas de sucata (2 moedas de ferro se derrotado).

DETALHES: Encontre e destrua um monstro específico.

LOCALIZAÇÃO: Bosque Sul (Floresta Petrificada).

DURAÇÃO: Até o final do mês.

PRAZO: O quanto antes.

CLIENTE: Belberro, o Mercador.

NOTAS: Uma criatura grande e rastejante foi vista deslizando pelas


profundezas da floresta. Identifique-a e destrua-a se for perigosa.

Jalil e eu meditamos a respeito da missão no pedaço de papel com as mãos no


queixo. Um monstro misterioso, hein? Mas que descrição de trabalho mais
vaga. Havia uma chance de que a coisa nem estivesse lá. E mesmo se estivesse,
de que forma, exatamente, poderíamos provar que era um monstro ou outro?

Mesmo assim, duas moedas de ferro eram uma recompensa muito tentadora.
Especialmente porque ainda poderíamos obter cinco moedas de sucata se
decidíssemos não lutar contra a coisa.

— Você está interessado?

— Bem, o pagamento é realmente bom. Mas parece meio suspeito.

Jalil acenou com a cabeça em concordância.

— Parece o tipo de trabalho em que você pode acabar morto. Eu pensaria duas
vezes se fosse você.

Já havíamos experimentado algo parecido. Duas semanas antes, tínhamos


aceitado uma aparentemente incomum tarefa de coleta de Lobos Ácidos. Como de
costume, nós caçamos o número especificado de monstros e trouxemos de volta
suas presas e caudas, apenas para ser informados de que o cliente queria Lobos
Ácidos completos – seus corpos inteiros. A descrição não esclarecia nada, mas
mesmo assim acabamos tendo que pagar uma taxa de quebra de contrato. Só de
pensar naquilo, me senti intensamente frustrado.
Provavelmente era mais inteligente não aceitar esse emprego se eu quisesse
evitar uma repetição daquele desastre… mas não conseguia desviar os olhos
daquela suculenta linha de “recompensa”.

— Duas moedas de ferro, mas… Hmm. Talvez eu pudesse usar isso como outra
experiência de aprendizado…

— Heh. Só não me culpe se você se queimar de novo.

— Para uma tarefa como esta, a penalidade por quebra de contrato seria
baseada nas cinco moedas de sucata, certo?

— Aham, isso mesmo. O dinheiro extra para o caso de matar a coisa é só um


bônus.

Como Ruijerd tendia a ser assediado por Nokopara quando ele entrava na
Guilda, e Eris às vezes tinha problemas com aventureiros aleatórios se aproximando
dela também, os dois ficavam esperando do lado de fora. Vizquel também nunca
aparecia na guilda.

Em outras palavras, não havia ninguém presente para me impedir.

— Bem, mesmo que este monstro misterioso não esteja lá, há muitas coisas
que valem a pena vender e são provenientes da Floresta Petrificada. Conhecendo
vocês três, aposto que poderiam ganhar o suficiente para cobrir a taxa de quebra
de contrato. Acho que vale a pena tentar.

— Então tudo bem. Boa sorte com seu trabalho também, Jalil.

Parando para pensar, minha linha de raciocínio foi muito preguiçosa naquela
hora. Algumas semanas de experiência em batalha me deixaram muito confiante.
As coisas correram tão bem que subestimei os riscos; minha impaciência me
empurrou para situações de alto ganho.

Podendo pensar no passado, tive melhores opções aparecendo para mim. Mas,
na época, não acho que poderia ter as escolhido.

A Floresta Petrificada ficava a um dia inteiro de viagem de Rikarisu. Era um


lugar onde árvores parecidas com ossos, cheias de galhos irregulares, cresciam em
números enormes, e seu nome derivava de sua aparência pedregosa.

A floresta ficava ao longo da estrada principal daquela região. Atravessá-la


oferecia aos viajantes uma rota mais curta para a próxima cidade, mas como era o
lar dos perigosos monstros de rank B, Executores e Anacondas Amêndoa, apenas
os mercadores com muita pressa faziam isso – e sempre contratavam vários guarda-
costas qualificados de antemão.
As florestas neste mundo eram, sem exceção, lugares perigosos.

Mas as do Continente Demônio eram particularmente piores.

Três grupos se encontraram fora desta floresta em particular: o grupo de rank B


“Super Blazers”; o grupo de rank D “Valentões do Vilarejo Tokurabu”; e, finalmente,
o grupo de rank D, “Fim da Linha”.

Os líderes desses grupos se juntaram para uma reunião. Quando grupos de


aventureiros se encontravam em lugares como este, era esperado que parassem
para uma discussão rápida. Teria sido bom não fazer isso, mas correr na frente dos
outros grupos na própria floresta poderia ser um verdadeiro incômodo. Então decidi
participar da ocasião.

— Certo. Então, o que diabos vocês, crianças, estão fazendo aqui?

O primeiro a falar foi Blaze, o líder dos Super Blazers.

A irritação em sua voz estava bem perceptível.

O rosto do cara era familiar. Ele era o homem-porco que riu de nós no nosso
primeiro dia. Aliás, eu não estou tentando insultá-lo. Ele literalmente tinha uma
cabeça de porco.

O homem pertencia, presumivelmente, à mesma raça que o guarda do portão


que ficou encarando Eris. Não conseguia lembrar de como eram chamados…
Normalmente, eu só pensava neles como “orcs”, para ser honesto.

De qualquer forma, o grupo do homem-porco era um de seis aventureiros e com


uma ampla variedade de raças. Para conseguir um rank C ou superior no Continente
Demônio, era basicamente necessário ser capaz de derrotar os monstros mais
comuns de sua região; tive de presumir que todos eram veteranos que provaram
suas habilidades em batalha.

— Estamos aqui para um serviço da guilda! — disse Kurt, líder dos Valentões
Tokurabu, com o rosto um tanto carrancudo.

— O mesmo aqui — disse o líder do Fim da Linha (eu) com um ligeiro aceno de
cabeça.

Blaze reagiu às palavras de seus colegas de rank D estalando a língua e


coçando o pescoço, irritado.

— Ugh. Eles nos reservaram, hein? É, dessa vez eu tive um mau


pressentimento sobre o…

— Uhm… como assim, reservaram? — perguntou Kurt, hesitante.

— Cale a boca, garoto! — O porco aparentemente tinha o pavio curto.


— Vamos, vamos — falei, esgueirando-me até ele com um sorriso obsequioso.
— Vamos todos respirar fundo algumas vezes, tudo bem? Sentimos muito por
sermos novatos tão estúpidos, mas agradeceríamos muito por qualquer explicação
que você pudesse fornecer…

Blaze cuspiu no chão, depois respondeu de má vontade:

— Significa que o mesmo pedido foi feito por mais de uma pessoa. E a guilda
colocou os dois pedidos lá sem perceber.

Ah, certo. Uma reserva dupla.

Nesse caso, tínhamos três clientes diferentes que postaram três tarefas
separadas. A guilda devia ter pensado que eram empregos distintos, mas talvez não
fosse realmente o caso. Parecia algo que poderia acontecer de vez em quando.

Por curiosidade, perguntei aos outros quais eram suas tarefas específicas.

Blaze estava no lugar para “Matar as Cobras Presas-Brancas que apareceram


na Floresta Petrificada”.

Kurt foi incumbido de “Coletar os ovos misteriosos vistos na Floresta


Petrificada”.

E eu, é claro, estava tentando “Localizar um monstro desconhecido”.

— Hã? Você está em um serviço de busca e localização? Tem isso no rank D?

Naturalmente, eu já tinha preparado uma resposta para a pergunta de Kurt de


antemão.

— Na verdade, é uma tarefa de rank C. Colocaram ela lá logo depois que você
saiu da guilda.

— Sério? Cara eu preferia ter pego essa ao invés d…

Enquanto o garoto murmurava para si mesmo, parei um momento para pensar


sobre a situação em que estávamos. Parecia que havia pelo menos
alguma potencial sobreposição entre todas as nossas três tarefas. Em primeiro
lugar, as Cobras Presas-Brancas não eram nativas desta floresta; mas a julgar pelo
trabalho de Blaze, pelo menos uma tinha sido recentemente vista no local. Esse
poderia muito bem ser nosso “monstro desconhecido” e também podia ser o
responsável pelos “ovos misteriosos” que Kurt estava procurando.

Mas, é claro, também havia a possibilidade de que nossos mistérios não


estivessem relacionados às cobras. Presumir que era uma reserva tripla seria um
pouco precipitado.

— Ainda assim, como isso foi acontecer?


— E eu sei lá, garoto? Às vezes essas coisas acontecem.

Hmm. Bem, acho que sim. Não é como se a guilda tivesse todas as suas tarefas
ordenadamente arquivadas em um computador ou algo assim.

— Então tudo bem. O que vamos fazer a respeito disso?

— Nada. Ganha quem encontrar os monstros primeiro.

— O quê?! — gritou Kurt. — Então, o que acontecerá com nossa tarefa se você
chegar lá primeiro?

— Hã? Ah, seus ovos, coisa assim? Bem, vamos esmagar eles se os virmos.
Não podemos ter Cobras Presas-Brancas nascendo em todo canto, podemos? —
disse Blaze com um sorriso.

— Vamos, Rudeus, diga alguma coisa! Se eles matarem todos os monstros,


nós dois falharemos em nossas tarefas!

Kurt estava se voltando para mim em busca de apoio. Ele tinha um bom ponto.
Se o grupo de Blaze matasse nosso monstro “desconhecido”, não teríamos a chance
de rastreá-lo ou lutar contra ele…

Espera aí. Precisamos basicamente localizar e identificar o monstro, certo?

Senti que relatar que as Cobras Presas-Brancas estavam no local poderia ser
o suficiente para satisfazer nosso cliente. E para proteger nossas apostas, sempre
poderíamos caçar alguns monstros aleatórios antes de partirmos.

Um saque grande o suficiente devia cobrir a taxa de quebra de contrato de 20%.

— Bem, ainda não temos certeza sobre ser uma reserva tripla. Também pode
haver algo além das Cobras Presas-Brancas por aqui.

Blaze fez uma careta.

— Então? Vocês querem dar uma olhada por aí, é isso? Querem que sejamos
suas babás?

— E quem diabos pediu a sua ajuda?! — disse Kurt, com o rosto vermelho de
raiva.

— Ah, por favor. Vocês obviamente querem nossa proteção, não é? Esta
floresta é muito difícil para um bando de moleques de rank D.

Ah. Agora eu entendo porque ele está tão mal-humorado. Blaze não gostou da
ideia de um par de grupos de rank baixo seguindo o seu como se fossem um rastro
de merda deixado por um peixe dourado. Perfeitamente compreensível. Afinal, isso
serviria apenas para tornar suas vidas mais difíceis.
Claro, eu também não queria viajar com eles. Não era uma boa ideia deixar que
alguém visse Ruijerd lutando com sua lança. Poderiam perceber que ele
realmente era um Superd quando vissem o nível de sua força.

Felizmente, Kurt já tinha me dado uma abertura para explorar.

— Certo, já ouvi o bastante disso. O Fim da Linha também não precisa de


babás, muito obrigado. Vamos trabalhar sozinhos.

Eu prontamente me virei e deixei a conferência de líderes, sem esperar por uma


resposta à minha declaração.

Meu grupo estava esperando por mim a uma pequena distância.

— O que está acontecendo? — perguntou Eris enquanto sua voz revelava sua
impaciência.

— Parece que todos estamos aqui mais ou menos pelo mesmo trabalho.

— Ah. Mas e agora? Alguém precisa desistir?

— Não, claro que não. Todos nós iremos em frente e veremos quem encontra
os monstros primeiro.

— Ah, é? Parece um desafio decente!

Bem, ela com certeza parecia ao menos entusiasmada. Senti como se Eris
estivesse ficando doente com nossas várias missões de caça recentes. Afinal, os
serviços não eram exatamente aventuras… estavam mais para trabalho manual.
Essa provavelmente parecia ser uma boa mudança de ritmo.

Enquanto nós três estávamos conversando, Blaze e Kurt encerraram a ligeira


reunião de líderes. Kurt disse algumas palavras aos seus dois companheiros, e
todos partiram juntos para a floresta; os Super Blazers também avançaram,
movendo-se em uma direção diferente.

— Então, qual é o plano? — perguntou Eris.

— Hmm, vamos ver — falei. — Como sempre, Ruijerd pode vasculhar a área
procurando inimigos. Vamos apenas nos mover e investigar até encontrarmos este
monstro misterioso.

Parecia uma proposta bastante simples para mim, mas Ruijerd balançou a
cabeça gravemente.

— Espere, Rudeus.
— Qual o problema?

— Estou preocupado com aquelas três crianças.

Que crianças…? Ah, ele está falando dos Valentões de Tokurabu.

— Eles não são fortes o suficiente para sobreviver nesta floresta.

— Então o que você está dizendo é…

— Devemos ajudá-los.

Eu realmente não deveria ter ficado surpreso.

— Bem, Ruijerd… se ficarmos muito perto deles, há uma chance de que


percebam que você realmente é um Superd.

— Não me importo.

Ah, é? Bem, eu me importo!

— Tudo bem, mas isso vai nos causar todos os tipos de problemas se as
pessoas perceberem quem você é.

— E então? Você está me dizendo para recuar e deixá-los morrer?

— Não é isso que estou dizendo. Vamos apenas segui-los à distância e ajudá-
los se tiverem problemas.

Eu não poderia esperar convencê-lo a desistir disso. Teríamos apenas que


ajustar nossos objetivos. Provavelmente não conseguiríamos as duas moedas de
ferro, mas poderíamos pelo menos merecer enorme gratidão.

Ainda assim, seria realmente uma boa ideia saltar direto ao resgate? Se
tivéssemos que proteger aquelas crianças de um ataque de monstro, as chances de
descobrirem a verdadeira identidade de Ruijerd aumentariam muito. Eu
não queria acreditar que se apegariam a seus preconceitos sobre um homem que
acabara de salvar suas vidas, mas o Fim da Linha ocupava um lugar especial nas
mentes das pessoas deste continente. Era difícil saber como as coisas poderiam se
desenrolar.

Se o pior acontecesse, talvez pudéssemos intimidá-los para que se juntassem


a nós, como fizemos com Jalil e Vizquel…

Por enquanto, nosso grupo iria atrás de Kurt e seus amigos.

Enquanto observava os Valentões do Vilarejo Tokurabu caminhando


corajosamente nas profundezas da Floresta Petrificada, Ruijerd franziu a testa.

— Qual o problema? — falei.


— É a primeira vez que eles colocam os pés dentro de uma floresta?

— Uh, não posso dizer que sei… Por que pergunta?

— Eles estão sendo muito descuidados.

Com certeza, Kurt e seus amigos logo se encontrariam cara a cara com um
Executor cuja abordagem evidentemente não notaram.

O Executor era um tipo de monstro humanóide – os restos zumbificados de


alguém que foi um aventureiro enquanto vivo. Por alguma razão, estava equipado
com espadas enormes e armaduras de placas grossas. O peso de seu equipamento
indicava que não podia se mover muito rapidamente, mas era extremamente robusto
e manejava suas armas com surpreendente sutileza. Normalmente só é possível
encontrar um Executor de cada vez, e eles não seriam incomumente grandes – mas
ainda assim continuavam sendo monstros de rank B. Isso era prova suficiente de
seu poder absoluto.

Só para piorar a situação, seu equipamento se dissolvia no ar quando eles


morriam, então não seria possível obter muito lucro derrotando um deles.

“Eles precisam de nossa ajuda!”

— Não, ainda não — falei, enquanto Ruijerd estava tenso, pronto para saltar
adiante.

— Por que não?!

— Eles ainda não foram encurralados.

Aquele Executor era mais rápido do que indicado por sua aparência, mas não
rápido o suficiente para acompanhar aquelas crianças quando elas estivessem
correndo para salvar suas vidas. Aos poucos, foram se distanciando de seu
perseguidor.

Mas então, exatamente quando parecia que iriam escapar… a sorte acabou.

Um grupo de Anacondas Amêndoa esperava por eles na direção para a qual


fugiam.

Aqueles monstros-cobra viajavam em grupos de três a cinco; tiraram seu nome


do molde característico de amêndoa em seus corpos, que normalmente tinha cerca
de três metros de comprimento. Suas presas eram cheias de veneno mortal e se
moviam com grande agilidade. Devido à sua resistência e tendência a atacar em
grande número, também eram classificados como monstros de rank B.

Kurt e companhia ficaram presos entre os dois mais conhecidos e temidos


moradores da Floresta Petrificada. Eu podia ver suas expressões oscilando entre
sorrisos de descrença e terror absoluto. Provavelmente presumiram que se
encontrassem qualquer um desses monstros notoriamente perigosos, poderiam
simplesmente fugir. E, para ser justo, quase funcionou com o Executor.
No final, entretanto, não haviam considerado tudo o que poderia dar errado.
Este lugar era muito perigoso para eles; realmente deveriam ter reconhecido isso e
evitado visitar o local. Não que eu não simpatizasse com sua ânsia de se esforçar.

— Precisamos ir! Agora!

— Não, espere só mais um pouco…

Mais uma vez, segurei Ruijerd. Tínhamos que esperar até que
ficassem realmente sem saída. Quanto pior as coisas ficassem antes de
aparecermos, mais profunda seria sua gratidão.

Vou deixar aquelas coisas derrotá-los para que possa os curar com minha
magia depois. Heheheh. Perfeito…

— Ah! — gritou Eris.

O menino parecido com um pássaro voou pelo ar… separado em dois pedaços
diferentes.

Só precisou de um golpe. Ele falhou em evitar o ataque do Executor, e a espada


do monstro o cortou ao meio.

Meu sorriso perverso congelou no meu rosto. Interpretei a situação


extremamente mal. Aquelas crianças estavam correndo um perigo terrível desde o
começo. Eu é que fui descuidado, não Ruijerd.

— Eu te disse! — gritou Ruijerd, sua voz cheia de frustração.

Quando ele e Eris pularam para fora de nosso esconderijo, eu rapidamente


disparei um Canhão de Pedra no Executor.

Meu ataque atingiu o alvo com força suficiente para obliterar um Ente de Pedra,
mas, de alguma forma, a coisa permaneceu de pé.

Por um momento, pensei que sua armadura era incrivelmente forte. Então
percebi que só seu braço direito sumiu. Fiquei tão nervoso que errei meu feitiço.

Pegando sua enorme espada com a mão esquerda, a coisa imediatamente


começou a correr em minha direção. À distância, parecia bastante lento, mas agora
que estava correndo em minha direção, percebi que era anormalmente rápido,
mesmo levando em conta a sua aparência desajeitada.

Fiquei calmo e criei um pedaço de lama grudenta no meio do caminho do


Executor. Uma de suas pernas mergulhou na minha armadilha, fazendo-o cair para
a frente. Eu prontamente convoquei uma pedra enorme bem acima do monstro e a
joguei no chão.

Nesse ponto, Ruijerd e Eris já haviam eliminado todas as Anacondas Amêndoa.


Após a batalha, um Kurt trêmulo e pálido se aproximou de mim para expressar
sua gratidão.

— Huff, huff… O-obrigado, cara… huff, huff… sério. V-vocês são… muito fortes,
hein…?

O Executor estava esmagado sob uma pedra gigante; as Anacondas Amêndoa


haviam sido decapitadas uma a uma. Nem suei, sério. Nós venceríamos essa luta
em qualquer ocasião.

E, ainda assim, falhamos em proteger as crianças.

— Está bem… Lamento por não termos chegado antes.

Kurt estava olhando para mim com algo parecido com admiração em seus
olhos. Meu peito doía de culpa, por isso desviei o olhar do rosto dele.

Meus olhos encontraram o corpo de um menino pássaro que foi cortado ao


meio. Qual era o nome dele mesmo? Gablin? Ele não teria morrido se eu
simplesmente tivesse feito o que precisava ser feito.

Ruijerd se aproximou e me agarrou pela frente do meu robe, seu rosto


contorcido de raiva.

— A culpa foi sua — disse, gesticulando para o cadáver com o queixo.

As palavras golpearam impiedosamente o meu coração. “Sim. Você está


certo…” “Poderíamos ter salvado todos os três!”

Sim. Eu sei. Eu sei! Eu também não queria que acabasse assim, viu?

Eu estava explodindo de tanta vergonha e miséria. Não era isso que queria.
Pelo contrário. Lamentei minhas ações. Aprendi minha lição. Então, por que ele tinha
que ficar esfregando isso no meu nariz?

— Olha, estou tentando o meu melhor, tá bom? Eu só queria obter o melhor


resultado possível nessa situação! Por que você tem que ser tão duro comigo?!

— Porque o menino morreu!

A réplica de Ruijerd foi simples, mas dolorosamente certeira.

— Gah… — Realmente não havia nada que eu pudesse dizer. O garoto podia
muito bem estar morto por minha culpa.

E desta vez Eris também não apareceu em minha defesa. Ela estava olhando
para o cadáver de Gablin… provavelmente tentando processar seus próprios
sentimentos sobre tudo isso.
Não havia mais desculpas a oferecer. Falhei completamente. A vida das
pessoas estava em jogo, e eu nos segurei por muito tempo por puro interesse
pessoal.

— E-ei, vamos lá. Não comecem a brigar agora. — No final, foi Kurt quem
apareceu para interceder.

— Isso não diz respeito a você — retrucou Ruijerd. — É entre eu e ele.

Surpreendentemente, o menino não recuou mesmo diante dessa dispensa.

— Sim, mas eu posso dizer o que aconteceu. Vocês nos viram lutando e
discutiram sobre se deviam nos ajudar, certo?!

Não. Não foi nem mesmo uma discussão. Os abandonei por minha própria
conta.

— Sei que vocês são todos fortes, mas ainda havia o risco de algo dar errado.
E, de qualquer forma, vocês não tinham qualquer motivo para nos ajudar!

A raiva nos olhos de Ruijerd brilhou ainda mais feroz do que antes.

— Não precisamos de um motivo! Os adultos têm o dever de proteger as


crianças!

— Não somos crianças! — Kurt disparou de volta. — Somos aventureiros!


Rudeus fez o que qualquer líder deveria fazer!

— Hm… — Ruijerd ficou em silêncio por um momento, mas eu mesmo não


posso dizer que concordava com a avaliação de Kurt. — Mesmo assim… um de
seus amigos morreu, garoto.

— Sim, eu sei! Não sou cego! E nós três queríamos ficar juntos até o fim! Mas
quer saber? Sabíamos que era possível que um de nós morresse! Qualquer
aventureiro está preparado para enfrentar esse risco – seja jovem ou velho!

Meu peito latejava dolorosamente diante dessas palavras. Eu não estava nem
remotamente preparado para encarar a morte de frente. Eu tinha visto toda essa
coisa de aventureiro como nada além de um meio fácil de ganhar dinheiro.

— Estou grato por você ter intervindo para nos salvar, mas era nosso trabalho
nos mantermos seguros. Se alguém tem culpa, sou eu! Fui eu quem assumiu essa
tarefa e nos colocou em perigo!

O argumento de Kurt tinha a retidão teimosa de uma criança que realmente não
entendia como o mundo funcionava. Mas também foi sincero e honesto. Esse tipo
de paixão era algo que ultimamente começou a me faltar. Em minha obsessão por
ganhar dinheiro e subir nos ranks da Guilda, comecei a ver nossas tarefas como
nada mais do que “missões” de algum videogame.
— Sinto muito… Kurt, não é? Errei em te tratar como uma criança. Parece que,
afinal de contas, você é um guerreiro.

Aparentemente, algo no discurso do menino tocou Ruijerd; ele me colocou no


chão com um breve pedido de desculpas.

Não era como se dessa vez eu merecesse isso.

— Não se desculpe, por favor. Nada disso muda o fato de que cometi um erro
terrível.

— Não, não foi um erro. Você estava apenas tentando respeitar o orgulho deles
como guerreiros. Eu estava muito ansioso para intervir.

— Uh… — Na verdade, nada disso passou pela minha cabeça. Desculpe. —


Também fui muito precipitado ao nos envolver com aqueles criminosos. No futuro
tomarei mais cuidado…

Ruijerd parecia ter ordenado e decidido as coisas por si mesmo. Mas não achei
suas conclusões muito convincentes. Desse dia em diante, eu pensaria seriamente
em meus erros. Precisava identificar exatamente onde tinha errado e ter certeza de
que isso nunca mais aconteceria.

Ainda assim, definitivamente havia uma parte de mim que estava


pensando: Legal! Que bom que ele entendeu tudo errado! Pelo menos consegui
escapar.

Eu queria dar uns tapas na minha cara.

Kurt e seu amigo nos disseram que planejavam carregar seu camarada morto
de volta à cidade. Nós os escoltamos de volta até a entrada da floresta. Eu esperava
que Ruijerd insistisse que os seguíssemos até Rikarisu, mas ele balançou a cabeça
diante da sugestão. O homem reconheceu Kurt e seus amigos como guerreiros. Isso
mudou as coisas.

— Eles podem não conseguir voltar em segurança com o grupo reduzido. Mas
decidiram enfrentar esse risco.

Kurt havia dito isso, sim. Mas havia algo profundamente melancólico em sua
postura enquanto ele se afastava de nós. Era tão óbvio que Eris impulsivamente
correu até o garoto e disse:

— Boa sorte!

Ela não falava a língua dele, é claro, mas Kurt percebeu claramente o
significado de suas palavras pela expressão em seu rosto.
— Obrigado — respondeu. — Uhm… é assim que vocês fazem?

— Hã?!

O menino pegou a mão de Eris, se inclinou para frente e a beijou perto da junta
do polegar. Com um último sorriso brilhante, se virou e voltou a se afastar.

Eris ficou completamente congelada. Eu também não tinha certeza do que


fazer.

De repente, ela se virou para olhar para mim e começou a esfregar a ponta da
mão vigorosamente na borda da armadura.

— Não, não! Vocês entenderam tudo errado!

Aquilo em seu rosto era pânico? Digo, o garoto a beijou, mas ela estava de
luvas. Não parecia nada para se preocupar.

— Eu… Eu não vou mais nem usar isso!

Eris arrancou sua luva e a jogou na floresta. Que desperdício de couro


perfeitamente bom. Ruijerd e eu a repreendemos ao mesmo tempo:

— Não jogue o seu equipamento fora!

— Essas coisas custam caro!

Eu realmente queria que minha mente não tivesse voltado direto para a coisa
do “dinheiro”.

— Ah, cala a boca! — gritou Eris, batendo os pés no chão com lágrimas nos
olhos.

Foi a primeira vez em muito tempo que a vi assim. Eu estava esquecendo de


alguma coisa? Um beijo na mão significava algo específico por aqui ou o quê?

— Rudeus! Aqui!

Nesse ponto, ela colocou a mão na frente do meu rosto. Eu a lambi por reflexo.

O rosto de Eris ficou vermelho de uma só vez. Aproximadamente meio segundo


depois, ela me deu um soco.

E foi um soco de verdade. Eu mal mantive a consciência e, por um momento,


pensei que ela tinha quebrado meu pescoço. Algum dia essa garota poderia ser uma
campeã mundial. Caí para trás, todo desajeitado.
Hmm. O que será que eu devia fazer…?
Enquanto olhava para ela do chão, Eris olhou para o local onde eu a lambi,
então também tocou no lugar, com sua língua, por um breve instante.

Ruborizando instantaneamente, ela esfregou a mão com força nas roupas.

— D-desculpe por isso, Rudeus. Mas você não pode me lamber, entendeu?! —
Foi tudo muito adorável, então eu a perdoei na mesma hora.

Este não tinha sido, no geral, um bom dia, mas eu não estava mais me
sentindo tão miserável.

À medida que avançávamos cada vez mais na floresta, me peguei pensando


em Ruijerd.

Ele era um homem com um código moral absoluto e amava “crianças”. Esses
foram os fatos fundamentais com os quais trabalhei até este momento; mas aquela
conversa anterior sugeriu que “guerreiro” também era uma espécie de palavra-
chave para ele.

— Ruijerd, qual é a sua definição de guerreiro? — perguntei.

Sua resposta foi instantânea.

— Guerreiros são aqueles que protegem as crianças e lutam pelo bem de seus
companheiros.

Isso explicou muito, na verdade. Suas explosões de raiva agora faziam mais
sentido. Ruijerd não estava atacando aleatoriamente; ele apenas esperava que os
“guerreiros” se comportassem com dignidade.

Seu conjunto de regras mais básico parecia ser algo assim:

Um guerreiro nunca deve fazer mal a uma criança.

Um guerreiro é obrigado a proteger as crianças.

Um guerreiro nunca deve abandonar um camarada.

Um guerreiro é obrigado a proteger seus camaradas.

Com base nisso, ele identificou aquele sequestrador de animais como um


“vilão”, e não um “guerreiro”, no momento em que me chutou. E quando os outros
dois imploraram por suas vidas em vez de tentar vingar seu camarada caído,
desdenhosamente também os colocou na categoria de “vilões”.
A coisa com Kurt foi um tanto semelhante. No início, ele viu aqueles três como
crianças. Então, quando me sentei e permiti que um deles morresse, isso me tornou
um vilão aos seus olhos. Mas então aquela troca de palavras afiada com Kurt mudou
sua perspectiva. O homem reclassificou os três como “guerreiros” em vez de
crianças. Isso tornou minhas ações fáceis de perdoar; na verdade, o Superd parecia
mais chateado consigo mesmo por não ter conseguido categorizá-los corretamente
desde o início.

No entanto, era um pouco difícil dizer exatamente onde estava traçada a linha
entre “crianças” e “guerreiros”. Tive a sensação de que ele ainda considerava Eris
uma criança, mas não tinha certeza de onde me colocou nos últimos dias.

Será que deveria perguntar? Ou isso seria um erro?

— Há uma batalha acontecendo à frente — anunciou Ruijerd, interrompendo


meu debate interno.

— Ah. É aquele outro grupo? Os Super Blazers?

— Isso mesmo.

Aparentemente, aquele homem-porco encontrou alguns problemas. Eu não


tinha certeza de que tipo de visão o terceiro olho de Ruijerd lhe oferecia, mas ele
aparentemente poderia usá-lo mesmo por baixo de uma bandana – e bem o
suficiente para distinguir um aventureiro do outro.

Mas que conveniente. Eu também quero um.

— Você acha que devemos ajudá-los? — perguntei.

— Isso não é necessário — respondeu.

Hmm. Bem, eles são aventureiros de rank B. Acho que Ruijerd os classificou
como guerreiros desde o início…

Entramos um pouco mais fundo na floresta e encontramos uma única cobra


enorme enrolada em uma clareira. Quatro cadáveres estavam espalhados ao seu
redor.

— Hein…? — Uhm, esses senhores parecem estar mortos… Então foi isso que
ele quis dizer com “não é necessário”, hein?

Não vi o corpo de Blaze entre eles. O homem conseguiu escapar.

— Era um grupo de seis, certo? Para onde foram os outros dois?

— Estão mortos.

Todos? Droga. Descansem em paz.


— Certo, então o que é isso? — A cobra que matou Blaze e sua companhia
era… muito, muito grande.

— Uma Cobra Capuz-Vermelho.

Seu corpo era tão grosso que Eris e eu não poderíamos ter passado os braços
em torno dele e tocar dedo com dedo. Devia ter dez metros de comprimento. E sua
área de “pescoço” era mais plana e larga do que o resto de seu corpo. Eu podia ver
duas protuberâncias distintas no meio do tronco do monstro. Um deles era
provavelmente um grande pedaço de porco.

Não estávamos procurando por cobras brancas?

— Eu não esperava encontrar uma nesta floresta — disse Ruijerd. — Muito


menos um espécime tão grande.

— Então elas geralmente não vivem aqui?

— Não. Mas às vezes aparecem.

As Capuz-Vermelho eram aparentemente uma variante mais poderosa da


Cobra Presas-Brancas. Não eram apenas maiores em tamanho, mas também muito
mais ágeis. Suas escamas eram duras e resistentes à magia do fogo; suas presas
eram enormes e cheias de veneno mortal. Não estava claro o que uma Presas-
Brancas tinha que comer para se transformar em uma dessas, mas,
ocasionalmente, seria possível encontrar uma onde elas viviam.

Cobras Presas-Brancas eram monstros de rank B, mas a Cobra Capuz-


Vermelho era de rank A – e por um bom motivo. Elas poderiam eliminar um típico
grupo de rank B em poucos segundos.

No momento, ela estava ocupada com sua atual refeição e não parecia ter nos
notado. Estava apenas começando a degustar de seu terceiro aventureiro do dia.

— Podemos pegar essa coisa, certo? — disse Eris, desembainhando sua


espada com confiança.

— Vamos atacá-la? — Ruijerd me perguntou.

— Eu posso mesmo liderar isso…?

— Quem mais o faria?

— Deixo em suas mãos.

Pelo visto, isso cabia a mim. Eu levei um momento para pensar no assunto.

Nossa tarefa era descobrir, identificar e possivelmente derrotar o “monstro


desconhecido” que espreitava nesta floresta.
Em primeiro lugar, parecia óbvio que o monstro em questão era a Cobra Capuz-
Vermelho ou as Presas-Brancas que também foram vistas no local. Nenhuma delas
era nativa da região. Provavelmente receberíamos crédito por concluir o trabalho se
apenas voltássemos e contássemos o que vimos.

No entanto, se matássemos todas as cobras, nossa recompensa aumentaria


para duas moedas de ferro. Seria bom derrotar a coisa, se possível. Mas nos
mantermos vivos também era importante. Eu tinha acabado de ver alguém morrer
bem diante dos meus olhos. O fracasso significaria a morte; eu não queria nos
colocar em perigo desnecessário.

Enquanto eu hesitava com minha decisão, Ruijerd quebrou o silêncio.

— Eu poderia derrotá-la sozinho, se você preferir.

— Você poderia mesmo matar aquela coisa sozinho, Ruijerd?

— Sim. Sou mais do que suficiente para este trabalho.

Uau. Mas que tranquilizante. Tenho certeza de que a referência ao King of


Fighters não foi intencional.

— Você pode cuidar daquilo ao mesmo tempo que protege Eris?

— Sem problemas. Vamos lutar do mesmo jeito de sempre.

Ruijerd não parecia remotamente intimidado, mesmo diante de um inimigo


de rank A. Com base apenas nisso, senti que provavelmente ficaríamos bem.

— Vamos fazer isso.

Eu atacaria com magia à distância enquanto Eris e Ruijerd lutavam contra o


monstro de perto, como sempre. Então comecei as coisas como sempre fiz – com
um Canhão de Pedra.

Desta vez estávamos enfrentando um inimigo de rank A, então ajustei um


pouco o feitiço para aumentar seu poder. O projétil que criei era uma rocha oca em
forma de cunha, cheia de magia de fogo concentrada que faria com que explodisse
com o impacto. Disparei em uma velocidade supersônica, esperando ver o impacto
na lateral da cobra com um estrondo ensurdecedor.

— O qu…

Mas, para minha surpresa, a Cobra Capuz-Vermelho se contorceu e desviou do


meu disparo.
Não foi apenas uma coincidência. Aquela coisa se esquivou do feitiço. Ela
avistou o projétil no ar e reagiu com rapidez suficiente para evitá-lo. A pedra explodiu
inofensivamente em algum lugar distante.

— Isso só pode ser brincadeira…

Nosso ataque preventivo foi um fracasso, mas nosso esquadrão especial de


ataque não iria parar. Ruijerd avançou na liderança, com Eris o seguindo logo atrás.
Esta não era nossa formação usual; até então, Eris tinha sido sempre a que estava
na dianteira.

— Hissss!

— Hmph…! — Ruijerd começou com uma estocada padrão, acertando a cabeça


da cobra com seu tridente. A Cobra Capuz-Vermelho balançou para evitar o ataque,
então tentou mordê-lo no rebote. Suas presas eram grandes o suficiente para abrir
um buraco através de um homem, mas Ruijerd as desviou com um golpe casual de
sua lança.

Nesse meio tempo, Eris deu a volta na parte de trás da cobra. Ela deu um
grande golpe em sua cauda, usando sua espada. O golpe atingiu o alvo, mas não
cortou todo o caminho através do monstro. Suas escamas, ou talvez seus músculos,
eram claramente duras.

— Hisssss! — Assim que a atenção da Capuz-Vermelho se voltou para Eris, ela


e Ruijerd pularam para uma distância mais segura. Sem perder o ritmo, disparei
outro feitiço no monstro. Já tínhamos planejado esse método de ataque. Era bem
típico do nosso estilo de combate como um grupo.

— O quê, de novo?!

Infelizmente, a Cobra Capuz-Vermelho se esquivou do meu feitiço uma


segunda vez. Afiei a ponta do meu projétil de pedra para aumentar sua velocidade,
mas sem sucesso; a bala passou voando pelo flanco do monstro e entrou na floresta,
derrubando algumas árvores pelo caminho. Mais uma vez, o monstro
reagiu após avistar o projétil no ar.

Mas não foi o fim do mundo. Eu realmente não precisava acertar.

Nossa vanguarda continuou com suas ondas de ataques. Ruijerd visou


persistentemente seu cérebro e órgãos vitais; Eris disparou para cortar sua cauda,
mantendo a coisa distraída. E de vez em quando, eu lançava um feitiço
potencialmente mortal.

O padrão era simples, mas não era fácil de lidar. Se o monstro tivesse focado
seus ataques em Eris, ele talvez pudesse ter quebrado nossas linhas. Mas Ruijerd
era tão mestre em ser um “aggro1” que a Cobra Capuz-Vermelho foi forçada a
ignorar eu e Eris.

O Superd e eu não acertávamos nenhum golpe, mas com o tempo, a cobra ficou
cansada. Seus movimentos começaram a ficar lentos.
E, no final, um dos meus feitiços Canhão de Pedra finalmente acertou em cheio.

Quando terminamos de processar o corpo da Cobra Capuz-Vermelho, o sol já


havia se posto. Teríamos um banquete de carne de cobra para o jantar esta noite,
naturalmente.

Eu não sabia quais partes específicas dessa coisa eram valiosas, então apenas
arrancamos suas presas, e depois tiramos sua pele e enrolamos como se fosse um
tapete. Encontramos os ovos que o grupo de Kurt estava procurando nas
proximidades, mas eram tão grandes que parecia impossível carregá-los. Pensei
em nossas opções por um tempo antes de decidir quebrar todos. Afinal, permitir a
geração deliberada de monstros no local era contra a lei.

Quanto a Blaze e companhia… nós os isentamos de tudo que parecia valioso,


então queimamos e enterramos seus corpos. Se apenas tivéssemos os deixado ali,
eventualmente teriam se transformado em Executores, certo? Eu não entendi direito
todo aquele fenômeno de “reviver como zumbi”, para ser honesto.

Tenho que dizer, porém, que aquela cobra vermelha foi algo realmente…

Eu me peguei pensando na batalha que acabamos de travar – especificamente,


sobre a maneira como aquela cobra evitou minha magia.

Evitou meus feitiços. Inúmeras vezes, na verdade. Até aquele golpe direto no
final, nunca consegui realmente acertar a coisa.

Parando para pensar sobre isso, o Executor de antes fez algo bem semelhante.
Eu tinha mirado meu primeiro feitiço em seu peito, mas ele só perdeu parte de um
braço. Talvez precisasse assumir que monstros de rank B ou superior eram capazes
de evitar a magia.

Claro, a cobra era até mesmo de rank A. Na verdade, o monstro também evitou
os golpes de lança de Ruijerd… mas provavelmente porque ele estava se
segurando. Se o Superd realmente quisesse, eu tinha certeza de que ele poderia
matá-la instantaneamente.

O interessante foi que nunca se esquivou da espada de Eris. Talvez tenha


parecido que não era necessário, dado o quão menos perigosa ela era.

Em qualquer caso… este mundo realmente estava repleto de ameaças terríveis.


Até mesmo alguns humanos poderiam supostamente repelir ataques mágicos, e
agora encontrei monstros que poderiam se esquivar de uma bala em pleno ar. Nesse
ritmo, eu tinha que assumir que monstros de rank S poderiam ser capazes de evitar
um ataque do Canhão de Pedra sem sofrer qualquer arranhão.

Que pensamento mais assustador… Preciso fazer uma anotação mental


avisando para manter distância desses lugares perigosos.
De uma forma ou de outra, havíamos conseguido completar nossa tarefa.

No final das contas, seria a última antes de deixarmos a cidade de Rikarisu.

Capítulo 13 - Falha, Caos e


Resolução

Tendo matado a Cobra Capuz-Vermelho, nosso grupo voltou para a Guilda dos
Aventureiros. Como sempre, nos encontramos com Jalil do lado de fora do prédio
para trocar nossos cartões de tarefas. Também entregamos as presas e a pele da
cobra e elaboramos nossas histórias para garantir que permanecessem
consistentes.

Havia uma grande quantidade de coisas para carregar dessa vez, então, todos
nós entramos na guilda, até mesmo Vizquel. No momento em que colocamos os pés
lá dentro, Nokopara se aproximou de nós. Sério, parecia que o cara nunca saía do
lugar… ou nos deixava em paz.

— E aí! Parece que vocês caçaram uma presa realmente interessante. Aquilo
que estou vendo são escamas de uma Cobra Capuz-Vermelho? Hein?

Olhei para Jalil, levando-o a contar a história que havíamos elaborado com
antecedência.

— S-sim, isso mesmo. Tivemos sorte e topamos com a coisa quando ela já
estava bem fraca.

— Hmmm. Vocês dois derrubaram uma Capuz-Vermelho, hein…?

Nokopara olhou para Jalil com algo que parecia um sorriso condescendente em
seu rosto de cavalo.

O que está acontecendo? Ele parece meio diferente hoje…

— N-nós encontramos os corpos dos caras dos Super Blazers antes de


toparmos com aquilo. Devem ter a cansado antes de morrerem…
— O quê? Espera aí, você está dizendo que o Blaze morreu?

— Sim.

— Droga. Acho que é isso que acontece quando alguém se depara com uma
Capuz-Vermelho… — disse Nokopara bufando desinteressado. — Mesmo assim…
mesmo que estivesse enfraquecida, é difícil imaginar você e Vizquel derrubando um
monstro daqueles…

— Bem, para ser sincero, ela não estava só enfraquecida. Estava quase morta.
Digo, alguns poderiam até falar que a coisa já estava morta. Ainda respirava, sim,
mas era basicamente um caso sem volta, sabe? — Jalil, começando a falar um
pouco rápido demais, escolheu este momento para se afastar com pressa.

No entanto, Nokopara ainda não parecia satisfeito e voltou sua atenção para
nós.

— Então! Hoje vocês encontraram mais algum animal perdido ou o quê?

— É. Mestre Jalil nos ensinou algumas técnicas excelentes. Hoje conseguimos


mais um pouco de dinheiro para colocar no bolso.

— Hmmmm…

Algo nessa conversa parecia um pouco estranho. Tentei fugir e sair apressado
como Jalil havia feito, mas assim que comecei a me mover, Nokopara pendurou o
braço em volta dos meus ombros, de uma forma estranhamente íntima, e se inclinou
para sussurrar ao meu ouvido:

— Então me diga, como exatamente você estava caçando animais do lado


de fora da cidade?

Por apenas um instante, parei de me mover. Mas acho que consegui manter
um rosto inexpressivo. Era uma atuação já planejada. Ele só nos viu saindo de
Rikarisu. Eu poderia falar o que quisesse.

— Aconteceu de o animal ter fugido da cidade.

— Ah, sééééério? Então, e aí… — Desta vez, Nokopara agarrou Jalil


firmemente pelos ombros. — Aquela Cobra Capuz-Vermelho também
estava dentro da cidade?

Certo. Então ele também viu Jalil e Vizquel pela cidade. Em outras palavras, o
quebra-cabeça estava montado.

— Hmm. Muuuuito estranho. Hoje em dia estão acontecendo muitas coisas


estranhas.

Eu já tinha pensado um pouco neste cenário. Tínhamos algumas opções para


lidar com isso. Poderíamos, por exemplo, jogar toda a culpa em Jalil. Se insistisse
que ele estava nos forçando a fazer um trabalho perigoso e de rank alto contra
nossa vontade, poderia me esquivar para sair da crise iminente.

Mas eu não seguiria esse caminho. Se o fizesse, Ruijerd poderia cortar os laços
comigo para sempre. Afinal, era uma conduta inadequada para um guerreiro.

— Vamos lá gente. Por que simplesmente não confessam, hein?

— O quê, para ser exato? — perguntei. — Fizemos algo errado?

— Hein?

— Nós ajudamos com o trabalho do Caçador M, e o Caçador M ajudou com o


nosso. Isso é algum problema? — Em vez de me limitar a mentiras e histórias falsas,
optei por seguir com uma abordagem do tipo: “E daí?”. Li os regulamentos da guilda
uma segunda vez há algum tempo, e definitivamente não havia nenhuma regra clara
contra o que estávamos fazendo.

Claro, isso não significava que as pessoas ficariam bem com isso. Não se pode
fazer o que bem entender apenas por não ser algo tecnicamente ilegal. Mas também
não tinha certeza se havíamos ultrapassado a linha do comportamento inaceitável.
Seria melhor insistir que não tínhamos feito nada de errado.

— Você está falando sério, garoto? Já pensou no que aconteceria se um monte


de outros idiotas começarem a fazer essa merda também?

— Na verdade não. O que aconteceria?

— As tarefas começariam a ser vendidas pelo lance mais alto. Todo o maldito
objetivo da guilda desapareceria!

Hm. Eu poderia insistir que não estávamos pagando um ao outro por nossas
tarefas… mas isso provavelmente não funcionaria, certo? Bom… Acho que seria
possível tecnicamente classificar isso como uma forma de “comprar ou vender
tarefas da guilda”. Esse cara é mais inteligente do que parece.

Bem, se nossos métodos se tornassem mais comuns, provavelmente


começaria a se ver algumas pessoas vendendo suas tarefas em busca de dinheiro
fácil. Por exemplo, alguém poderia simplesmente aceitar todos os serviços
de rank D disponíveis de uma vez e depois vendê-los aos poucos para os outros
caras de rank D. O vendedor obteria um fluxo constante de dinheiro e, por fim,
subiria no rank – tudo sem levantar um dedo.

É claro que, com essa abordagem, acabaria falhando em todos os trabalhos


que não conseguisse vender.

— Por que você se importa, Nokopara? Não estamos causando nenhum


problema, estamos?

— Tem certeza que quer usar esse tom comigo, garoto? Veja só, agora você
está em uma pequena enrascada… Você também, Jalil, escute!
Nesse ponto, Nokopara me agarrou pela frente do meu robe e me levantou do
chão.

Olhando para trás, balancei a cabeça para Eris e Ruijerd, cujos olhos estavam
brilhando de raiva. Agora, precisava que ficassem calmos; essa conversa ainda não
havia acabado.

— Hehehe… — Era difícil interpretar a expressão de Nokopara, com toda


aquela coisa da cabeça de cavalo e tal. Mas tive a impressão definitiva de que ele
estava olhando maliciosamente para mim. — Se você se preocupa com
seu status de aventureiro, é melhor começar a me trazer duas moedas de ferro por
mês.

Ah, nossa. Na verdade, isso é quase revigorante. Eu senti que foi a primeira vez
que encontrei um desses tipos desde que reencarnei neste mundo. Todo mundo
que encontrei nos últimos tempos estava mais para personagens sem graça, sabe?
Era bom encontrar um desses safados sabichões de vez em quando. Pelo menos
não teria que pensar demais na situação.

Em todo caso, agora sabia por que Nokopara perambulava pela guilda o dia
todo. Ele obviamente mantinha um olho atento para aventureiros que não faziam
nada de bom – para que pudesse arrancar dinheiro deles. Parecia um ramo de
atuação fácil e agradável.

Será que não poderia simplesmente o denunciar por chantagem ou coisa do


tipo? Não… isso também serviria para expor minhas próprias ações…

— Atualmente vocês estão ganhando uma graninha, né? Heheh. Então não
deve ter problema.

— V-você se importa se eu… fizer algumas perguntas? — falei, fazendo o meu


melhor para soar irremediavelmente nervoso.

— Tipo qual?

— Uhm… Acho que o que fizemos… provavelmente seria classificado como


venda de serviços, certo?

— Sim, com certeza. Eles te estapeariam com uma bela taxa e rasgariam seu
cartão se descobrissem. Não gostaria disso, certo?

— Não! Não. Nós… não queremos isso.

Fique calmo. Não vale a pena entrar em pânico. Eu sabia que algo assim
poderia acontecer. Estamos bem. Ainda estamos bem.

— U-uhm, certo, não temos tanto dinheiro disponível agora, então… Jalil e eu
podemos entregar nossos serviços?

— Claro, tanto faz. Só não saia correndo, viu?


— N-nem sonharia com isso, chefe!

Pelo visto, esse cara não era tão inteligente assim. Nós dois nos separamos e
nos dirigimos para o balcão.

— E-ei… o que vamos fazer? Cara, o que vamos fazer?!

— Jalil, calma. Você precisa agir como se não houvesse nada de errado.

Tendo dado a Jalil aquelas instruções vagas, fiz sinal a Vizquel para vir e se
juntar a nós. Passamos nossos cartões de tarefas preenchidos e recebemos nossas
recompensas. Mas antes de sairmos do balcão, também os fiz dissolver o Caçador
M e que entrassem no Fim da Linha.

Isso poderia ser significativo ou não. Eu não tinha certeza de quão detalhados
eram os registros da Guilda.

Olhei para o outro lado da sala e vi Ruijerd encarando Nokopara com intenção
assassina em seus olhos. Embora possamos ter quebrado as regras da guilda,
parecia que a tentativa arrogante do Cara de Cavalo de nos chantagear era uma
violação muito mais grave do código do guerreiro.

Com um pequeno gesto, fiz sinal a Ruijerd para se conter.

Eris não parecia entender o que estava acontecendo. Se ela falasse a língua
do Deus Demônio, provavelmente teria sido a primeira a atacar aquele cavalo
detestável… e provavelmente teria usado sua espada, não seus punhos.

Quando Jalil e eu voltamos ao grupo, Nokopara colocou os braços em volta dos


nossos ombros como se fôssemos velhos amigos ou algo assim.

— Então tudo bem! Façam o pagamento deste mês, garotos.

Com um sorriso forçado no rosto, Jalil começou a entregar as duas moedas de


ferro que acabara de receber, mas agarrei sua mão para impedi-lo.

— Só uma coisa antes de fazermos isso.

— O quê? Faça isso logo, criança. Eu tenho o pavio realmente curto.

Parei por apenas um instante para acalmar meus nervos e fazer uma pequena
oração silenciosa.

— Você tem algum tipo de prova de que quebramos as regras, certo? — O


“Tch!” irritado de Nokopara ecoou pelo saguão todo.
Ele começou puxando uma lista de tarefas que o Fim da Linha havia concluído,
igual à dos livros de registro da Guilda. O funcionário não perguntou por que queria
essa informação; esta provavelmente não era a primeira vez que ele pedia por isso.
Aparentemente, usaríamos essas informações para fazer algumas visitas a nossos
clientes anteriores.

— Ah, e não tenha nenhuma ideia engraçada sobre me atacar em algum beco
— disse Nokopara, seus olhos se movendo de Ruijerd para Jalil.

Senti que a raiva no rosto do Superd era bastante óbvia, mas o Cara de Cavalo
não parecia muito intimidado. Talvez estivesse acostumado a ser encarado por
homens que o queriam morto.

— Se eu morrer, meus amigos irão direto para a guilda e vão te denunciar. Ah,
e ao contrário de vocês, falsos ranks C, sou a coisa real. Eu poderia subir para
o rank B na hora que quisesse.

Seria bom assumir que a última parte não passava de um blefe. Mesmo
Nokopara certamente não acreditava que poderia enfrentar nós cinco sozinho. Ele
estava nos encurralando, sim, mas isso não significava que desejava morrer.

Ainda assim, isso parecia um tanto descuidado da sua parte. Eu teria levado
pelo menos um guarda-costas se estivesse no lugar dele.

— Ceeeeeeerto, aqui estamos. — O primeiro lugar a que chegamos foi uma


casa comum, mas desconhecida.

Quando Nokopara bateu na porta da frente, uma senhora de aparência


rabugenta apareceu. Ela tinha um bico de águia no rosto e vestia uma túnica preta
lisa.

Um cheiro doce e açucarado exalava de dentro da própria casa. Sem dúvida, a


havíamos interrompido enquanto preparava um pouco de Nerunerunerune1…

A princípio, a velha senhora olhou para nós com desconfiança, mas assim que
percebeu Vizquel, seu rosto se iluminou.

— Olha só! Se não é Vizquel! O que é tudo isso, querida? Você me trouxe uma
grande multidão hoje. Ah, esses são os outros membros do Ruijerd Fim da Linha?

Nokopara examinou nossos rostos assustados, depois olhou de volta para a


velha, que claramente só reconhecia Vizquel. Ele soltou um grunhido divertido, um
sorriso desagradável se espalhando por seu rosto.

— Desculpe, senhora, mas eles não são do Fim da Linha. Você foi enganada.

— O quê? — Olhando para Nokopara, a velha senhora bufou com desdém. —


E exatamente como eu fui enganada? Hein?

— Bem, eles…
— A Vizquel eliminou aqueles insetos muito bem. Não dá para vencer um
Zumeba nesse tipo de coisa, não é? Desde aquela vez não vi nenhum.

Pelo que parecia, Vizquel havia lidado com algum tipo de infestação de insetos
no local. Parando para pensar nisso… essa velha senhora combinava com o que
sabíamos de um dos clientes para quem Ruijerd a observou trabalhando.

— Contanto que você faça o trabalho rápida e adequadamente, eu não poderia


me importar menos se você é o verdadeiro Fim da Linha!

Nokopara não foi o único que se assustou com esse comentário.

Ruijerd também arregalou os olhos.

— E-escute, senhora…

— Inferno, eu sou uma mulher velha. De qualquer forma, não tenho muito tempo
sobrando. Se no final tivesse a chance de encontrar um Superd de verdade,
aproveitaria isso.

Os olhos de Nokopara dispararam ao redor, incertos, por um momento, mas


então ele se virou com força para Vizquel, fazendo uma carranca.

— Vizquel! Vamos ver seu cartão de aventureira!

Vizquel estremeceu de surpresa, mas então um sorrisinho apareceu em seu


rosto. Ela pegou seu cartão e mostrou a todos. Agora, na última linha estava: “Grupo:
Fim da Linha.”

— Mas que… maldição! Você está brincando comigo?!

Neste ponto, o Caçador M já não existia mais. Um exame dos registros da guilda
provavelmente teria revelado o porquê. E com um pouco mais de trabalho,
evidências de nossa quebra de regras também poderiam aparecer. Mas, pelo menos
por enquanto, isso não pareceu passar pela mente de Nokopara.

— Para o inferno com isso! Vamos para o próximo!

Com um sorrisinho no rosto, eu o segui enquanto ele caminhava para o próximo


endereço em sua lista.

Quando visitamos várias dezenas de ex-clientes, o rosto de Nokopara de


alguma forma tinha passado de vermelho para azul.

— Merda! O que está havendo aqui?!


Todos com quem falamos tiveram a impressão de que Jalil e Vizquel tinham
feito, o tempo todo, parte do Fim da Linha. Seus cartões de aventureiro até
sustentavam essa história.

Houve até um momento de bem-estar próximo ao final, quando chegamos à


garota que foi nossa primeira cliente; ela gritou de alegria e abraçou a perna de
Ruijerd.

— Sinto muito, Nokopara, mas não acho que podemos pagar se você não puder
apresentar nenhuma prova.

— Puta merda…

Esqueça o pagamento, talvez eu o denunciasse à guilda. Poderia acusá-lo de


“nos impedir” de terminar nossos trabalhos ou algo assim.

— Heheheh… — Enquanto eu ria maldosamente para mim mesmo, o destino


final da lista de Nokopara apareceu.

Era… aparentemente a Pousada Garra do Lobo. Parecia que Jalil havia feito
algum trabalho estranho no lugar em que estávamos. Seria mais difícil mentir se
tivéssemos que lidar com alguém que realmente nos conhecesse, mas senti como
se nós mal tivéssemos falado com o estalajadeiro. De alguma forma daria tudo certo.

— Aqui. Eles são os últimos.

Duas pessoas saíram da porta da frente da Pousada Garra do Lobo. Eu


congelei ao vê-los.

Isso não era bom. Havia cerca de quinze sinos de alarme diferentes tocando na
minha cabeça: Emergência. Emergência. Alerta vermelho. Ataque aéreo chegando!
Contingência imprevista! Tarde demais, eu entendi o quão imprudente e estúpido
realmente fui.

— Ah, Rudeus. Você voltou. Cara, que bom te ver… Uh, o que há com toda
essa gente?

Estávamos cara a cara com os membros sobreviventes dos Valentões do


Vilarejo Tokurabu. Havia uma profunda exaustão no rosto de Kurt, mas ele ainda
nos cumprimentou em um tom de voz amigável.

— Ei, garoto. Você se lembra de quem o salvou na Floresta Petrificada? Foi


o Fim da Linha, não foi?

Ah, merda.

Não sei se Nokopara percebeu meu pânico ou se planejou fazer essa pergunta
desde o início. Mas, de qualquer forma, nos pegou.
O atual rank do Fim da Linha era D. A tarefa que o Caçador M aceitara era
de rank B. Em outras palavras, não poderíamos ter aceitado aquele trabalho. Nossa
história estava prestes a desmoronar.

— O quê…?

Kurt olhou para mim e para o Cara de Cavalo. Eu balancei minha cabeça
freneticamente, tentando dizer a ele para manter a boca fechada.

Vamos! Você é um garoto orgulhoso! Ninguém te ajudou! Você passou por essa
bagunça sozinho, certo?

Se o garoto pelo menos insistisse que não tinha ideia do que Nokopara estava
falando, ainda tínhamos uma chance. Eu só tinha que rezar para que seu orgulho e
teimosia dessem as caras.

Encontrando meu olhar desesperado, Kurt acenou com a cabeça


decisivamente.

— Claro que foi! Nunca vi ninguém tão forte quanto esses caras antes!

Nossa. Que garoto honesto!

Ele passou a explicar o quão forte nós realmente éramos, descrevendo como
derrotamos o Executor e as Anacondas Amêndoa usando um estilo vigoroso que
envolvia toneladas de efeitos sonoros.

— Sério, Rudeus é incrível! Aqueles Executores são terrivelmente


assustadores, sem dúvida, mas nunca deviam ter virado inimigos do Fim da Linha!
Foi uma luta de um-contra-um, sabe? Executor contra Rudeus! O que acha que
aconteceu? Boom! Splat! Acabou com um disparo, cara! Um disparo! Ah, e Ruijerd
também é inacreditável! Ele estava tipo, fwoosh! E então, kablam, lá se foram as
anacondas! Ele estava fazendo todas aquelas coisas ridículas sem nem piscar!
Sério, eu fiquei arrepiado!

Nokopara ouviu toda a história com um grande sorriso no rosto, de vez enquanto
soltando um: “Uau, isso é incrível” ou “Sério mesmo?” Quando Kurt finalmente
perdeu o fôlego, ele se virou para nós.

— Bem, isso é muito estranho. Vocês não trabalharam na cidade? Por que
estavam na floresta salvando crianças de monstros?

— Uh, bem… acabamos combinando de ir com o Jalil…

— Desculpe, mas naquela hora Jalil e Vizquel estavam na cidade.

Estava tudo acabado. Não adiantava mais fingir. É óbvio, Nokopara descobriu
como usar isso para colocar nossas costas contra a parede.

Calma! Você ainda tem uma chance aqui!


Foco, cara. Por enquanto, precisamos escolher dentre algumas opções.
Digamos que são três. Uh, tudo bem. Vamos lá…

1.
1. Matar Nokopara.

Se ele realmente tivesse um bando de aliados, como afirmava, esse plano


acabaria muito mal. Mas também havia uma chance de que tudo corresse bem.

Em outras palavras, era como jogar alguns dados e esperar pelo resultado.
Péssima ideia.

2.
2. Culpar Jalil por tudo.

Éramos novatos e Jalil era um veterano. Se eu começar a gritar que ele nos
enganou e se aproveitou de nós, poderíamos acabar escapando.

No entanto, tentar isso me custaria a amizade com Ruijerd. Afinal, trair nossos
“camaradas” seria simplesmente errado. Outra péssima ideia.

3.
3. Entregar o dinheiro agora, encontrar uma saída depois.

Isso também seria como jogar os dados. Eu poderia encontrar uma maneira de
resolver as coisas rapidamente, mas agora que Nokopara sabia que éramos
perigosos, provavelmente montaria um esquema de várias camadas para nos
manter presos nesta cidade e em segurança nas garras de sua gangue. Outra
péssima ideia.

Bem, agora eu tinha três planos terríveis como opções. Esse foi claramente um
tempo bem gasto!

O que eu devia fazer?

A única saída mais simples era o plano dois, mas provavelmente era, de longe,
a pior escolha. Quaisquer que fossem seus benefícios imediatos, estaríamos nos
paralisando a longo prazo.

Trair Jalil e Vizquel significaria perder a confiança de Ruijerd para sempre. Ele
provavelmente nunca voltaria a escutar minha palavra.

O plano dois estava fora de questão. Definitivamente fora de questão.


O plano um também não era bom. Era simplesmente… sem sentido. Eu me
desviaria completamente do caminho que vinha seguindo até hoje. Não importava o
quão casualmente as pessoas viam a morte no Continente Demônio; esse não era
o problema. Se matasse Nokopara agora apenas para me livrar dos problemas,
começaria a resolver todos os meus problemas da mesma maneira. Eu não estava
pronto para cometer um assassinato em minha vida.

Porém, o plano três também não era lá muito bom. Ao entregar dinheiro a essas
pessoas, estaríamos admitindo nossa própria culpa. Só quero que todos saibam que
essa era a última coisa que eu queria fazer.

Havia também uma possibilidade real de acabarmos quebrando outras regras,


ou mesmo leis, já que estavam tirando dinheiro de nós. Isso daria a Nokopara mais
vantagem sobre nós; suas demandas provavelmente aumentariam. Ele poderia até
mesmo tentar colocar suas mãos sujas em Eris… Se fosse ele, eu sabia que seria
capaz. Se necessário, seríamos forçados a matá-lo no final das contas.

Mas, mesmo assim… só restava o plano três, não?

Não, não. Comparado a seguir esse caminho, poderíamos muito bem escolher
um plano novo. Teríamos apenas que matar Nokopara. E todos os seus amigos.

Essa não era… minha única opção? Eu realmente faria isso? Teria que fazer?

Sinceramente, não sabia se conseguiria matar alguém. E como iríamos lidar


com o resto de sua gangue, onde quer que estivessem? Talvez Ruijerd pudesse, de
alguma forma, os rastrear. Mas como? Se nem mesmo soubesse quem estava
procurando, aquele terceiro olho provavelmente não serviria para muita coisa.

Sempre havia a opção de simplesmente desistir da coisa de “aventureiro”.


Poderíamos encontrar outras formas para sobreviver, mesmo sem a guilda. Agora
eu já tinha uma certa noção de como ganhar dinheiro neste continente.

Mesmo assim… digamos que eu fizesse isso, por mais doloroso que fosse. O
que aconteceria com Jalil e Vizquel? Eles não apenas participaram de nosso
esquema, como a investigação da guilda poderia também revelar evidências de seu
negócio de sequestro de animais. Nosso grupo tinha economizado algum dinheiro e
não tinha nenhum apego especial a esta cidade, mas os dois eram diferentes. Esta
era a casa deles, e poderiam acabar sendo expulsos dela. Não tinham as
habilidades para sobreviver no deserto. Os abandonar não seria apenas outro tipo
de traição? Poderíamos acolhê-los depois de serem banidos?

Não. Sem chances. Já seria difícil lidar com nossos próprios problemas; não
poderíamos cuidar dos deles também.

Certo, para o inferno com isso… Eu preciso me preparar. Irei me tornar um


assassino caso seja necessário.

Tenho que lembrar do meu objetivo. Preciso levar Eris de volta para casa em
segurança, não importa o quê. Para que isso aconteça, estou disposto a trair Jalil e
Ruijerd. Não me importa se Eris acabar me odiando. Não me importaria em nunca
mais poder olhar Paul ou Roxy nos olhos!

Irei inundar toda a maldita cidade com um feitiço de nível Santo. Eris e eu
podemos fugir no meio da confusão. Se quiserem, podem até tirar meu status como
aventureiro. Irei alcançar meu objetivo, não importa o quão baixo tenha que ser.

Apenas vejam!

Com a minha mente finalmente decidida, comecei a reunir energia mágica em


minhas mãos… então notei a expressão no rosto de Nokopara.

— O qu… ah…

De repente ele ficou branco feito papel, e seus joelhos começaram a tremer. O
homem não estava olhando para mim; estava olhando para algo atrás de mim.

Me virei. Ruijerd estava lá, parecendo muito… molhado. Uma jarra de água que
vi atrás da pousada estava no chão ao seu lado.

— R-Ruijerd…?

Seu cabelo verde esmeralda brilhava ao sol. Estava encharcado. Ele jogou a
água na cabeça e lavou a tinta azul. Também tirou a bandana para expor a “joia”
vermelha em sua testa.

— E-ele é um… S-S-Superd…

Nokopara pendeu para trás, caindo de bunda no chão.

— Eu sou Ruijerd Superdia, também conhecido como Fim da Linha. Parece que
minha identidade foi exposta. Acho que agora vou ter que matar cada um de vocês.

Ruijerd proferiu sua fala em um tom rígido e monótono. O homem realmente


não nasceu para ser ator. Ainda assim, a raiva em seus olhos era real.

— Aaaaaaah!

Alguém soltou um grito ensurdecedor.

E, de repente, todos na rua estavam gritando – garotas, rapazes e velhos


também. Largaram tudo o que estavam carregando e correram para salvar suas
vidas.

À medida que o caos se espalhava, Jalil foi o primeiro a nos trair. Gritando: “Eles
me ameaçaram! Eu não sabia de nada! Não estou do lado deles!” Depois se virou e
saiu correndo, levando Vizquel consigo.
As pernas de Kurt cederam. Talvez ele estivesse se lembrando de como tinha
sido severo com Ruijerd no outro dia… Seu rosto estava mortalmente pálido e
parecia que estava mijando nas calças.

Por que de repente ficaram todos tão apavorados? Ainda era Ruijerd. A única
coisa que mudou foi a cor de seu cabelo. Eu não conseguia entender isso.

Até então estavam todos agindo normalmente, não? Vamos, Kurt. Você estava
falando sobre Ruijerd como se ele fosse algum tipo de super-herói. Disse que queria
ser como ele algum dia, lembra? Seu olhar na direção dele era até respeitoso! Então,
por quê? Por que está com tanto medo agora que seu cabelo ficou verde? Olhe para
Eris, cara. Ela não tem ideia do que está acontecendo, mas está calma, certo? Está
parada ali de braços cruzados, os pés bem separados e o queixo erguido.
Observando tudo isso em silêncio e com os olhos bem abertos.

Então, por que todo mundo de repente começou a pirar?

Muitas das pessoas ao nosso redor estavam fugindo, cegas de pânico. Outras
estavam caídas na rua. Alguns sacaram suas armas, embora suas pernas
estivessem tremendo. Havia muitos tipos diferentes de pessoas na área,
mas todas estavam agora tremendo.

Tudo isso por causa de um cara de cabelo verde?

Eu sabia que as pessoas locais temiam o Fim da Linha. Mas não sabia que o
temiam tanto. Não sabia o nível do terror impregnado.

Hah.

Isso meio que me deu vontade de rir. Afinal, que sentido fizeram todos os meus
planos e esquemas? Deram uma olhada na cor real de seu cabelo e foi isso que
obtivemos. Realmente pensei que meu pequeno plano de atuação mudaria alguma
coisa? Que ridículo. Talvez achasse que todos iriam entendê-lo, assim como Eris e
os Migurd. Mas isso nunca seria possível.

Não era uma questão de contrariar alguns rumores horríveis. Para essas
pessoas, os Superds eram a personificação do terror. E eu queria mudar isso? Que
piada. Desde o começo era algo impossível.

Enquanto o inferno desabava ao seu redor, Ruijerd caminhou lentamente até


Nokopara.

— Você aí. Seu nome era Nokopara, não era? — Agarrando o homem-cavalo
pelo pescoço, ele o puxou do chão. O corpo dele parecia pesado, mas Ruijerd o
ergueu sem esforço.

— Ruijerd! Não o mate! — Mesmo tendo chegado a esse ponto, eu me peguei


gritando um aviso. Se ele matasse Nokopara nessas circunstâncias, com todos
assistindo, o nome “Fim da Linha” ficaria contaminado para sempre.

Mas, sendo honesto, já não estava? Ainda fazia sentido se conter?


Não, realmente não. Esqueça isso. Vá atrás dele, Berserker!

— E-eu sinto muito! Não tinha ideia de que você era a coisa verdadeira! P-por
favor, não me mate! Por favor! — O rosto de Ruijerd estava cheio de raiva. Nokopara
tremia feito vara verde.

— Ei, mas que diabos está havendo?! — Eris sibilou, parecendo um pouco
nervosa.

— Estamos no meio de um dos piores cenários possíveis — respondi


lentamente.

— Então, por que você não está fazendo nada?!

— Porque não há nada que eu possa fazer. Desculpe.

— Bem, então acho que estamos realmente sem sorte!

A garota desistiu bem rápido. Em sua defesa, eu já tinha feito o mesmo há um


tempo. Não havia como consertar essa bagunça. E foi tudo minha culpa. Presumi
que sempre poderíamos “dar um jeito”, mesmo se alguém percebesse. Eu me
permitia acreditar que poderíamos criar um caminho improvisado através de
qualquer problema inesperado. E esse desastre foi o resultado.

Agora que os eventos haviam chegado até isso, a única maneira real de intervir
seria realizar minha ideia original e limpar tudo.

Tipo, com uma onda mágica. Boa ideia, não? Hahaha.

— P-por favor, tenha misericórdia! Eu tenho três… não, sete crianças famintas
em casa! — Nokopara implorou por sua vida de uma forma um tanto incoerente. Era
bastante óbvio que essas crianças não existiam. Até eu poderia ter pensado em algo
mais convincente.

— Estou saindo desta cidade… E você vai esquecer que me conheceu.

Ainda assim, Ruijerd o deixou fora de perigo na mesma hora. Suponho que a
referência a crianças provavelmente foi um fator fundamental para isso.

— C-certo, certo! M-muito obrigado!

O alívio tomou conta do rosto de Nokopara… ao menos por um instante.

— No entanto, é melhor você torcer para que nosso status de aventureiros não
tenha sido revogado quando chegarmos à próxima cidade.

Ruijerd empurrou seu tridente para frente e fez um único corte raso na bochecha
de Nokopara. Uma mancha úmida espalhou-se pela frente das calças do homem-
cavalo e algo se projetou na parte traseira.
— Não presuma que você está seguro mesmo dentro das muralhas desta
cidade… — Nokopara acenou com a cabeça vigorosa e repetidamente.

Quando Ruijerd o largou, ele bateu no chão com um som desagradável.

Em pouco tempo, Ruijerd foi expulso de Rikarisu. Levando toda a culpa por tudo
em seus ombros, ele fugiu para o deserto.

Foi um dia feio e frustrante. O Superd saiu correndo sozinho, deixando-nos para
trás. Logo, os guardas correram para perguntar a todos o que havia acontecido e eu
insisti que Ruijerd não tinha feito nada de errado. Mas aos olhos deles, é claro, eu
era apenas uma criança. Decidiram que ele devia ter me intimidado para dizer isso.

Em pouco tempo, todos chegaram à conclusão de que o homem estava


planejando alguma conspiração maligna, nos usando como seus peões; os detalhes
de seu esquema não estavam claros, mas pelo menos nunca teve a chance de
executá-lo. Todos ao nosso redor olharam para mim e Eris com pena em seus olhos.
Estavam convencidos de que éramos crianças ingênuas que foram manipuladas por
um demônio cruel.

Eu estava com tanta raiva que poderia ter socado alguém. Afinal, exatamente o
que Ruijerd havia feito de errado? Foi tudo minha culpa. Nada disso teria acontecido
se eu não tivesse sido tão complacente.

Eris e eu voltamos para a Pousada Garra do Lobo, juntamos nossos poucos


pertences e partimos para sempre. Precisávamos nos apressar, ou Ruijerd poderia
vagar para algum lugar. Não era como se pudéssemos ficar nesta cidade por nós
mesmos. Nokopara ainda estava vivo, assim como seus supostos aliados. E o fato
era que havíamos quebrado as regras da guilda. Assim que as coisas se
acalmassem um pouco, estaríamos mais uma vez enrascados – e sem um Ruijerd
em quem confiar.

— Ei, Rudeus…

Quando estávamos saindo da pousada, Kurt se aproximou de nós com uma


expressão incerta no rosto. Sério, eu não sabia o que dizer a ele.

— Por que diabos vocês estão viajando com aquele monstro?

— Não o chame de monstro. Você se lembra de quem te salvou naquela


floresta, certo? E mesmo assim mijou nas calças quando o viu?

— Bem, uh… isso é verdade, eu acho. Foi mal…

Certo, não adiantaria descontar no Kurt. Naquela hora ele estava tentando nos
ajudar.
— Desculpa, Kurt. Isso não foi justo.

— Nah, tá tranquilo. Não é como se você estivesse errado.

Ele realmente era um bom garoto. Mas Eris ainda estava olhando para ele com
as mãos cerradas ao lado do corpo.

— Eu tenho um favor a pedir. Quero que você nos pague por salvar sua vida.

— Tudo bem — disse Kurt, sua expressão ficando mais séria. — Do que vocês
precisam?

— Ruijerd realmente não é uma pessoa ruim. As pessoas têm medo dele por
causa de coisas que aconteceram há muito tempo, mas ele é um cara bom. Quero
que espalhe isso pela cidade, mesmo depois de partirmos.

— Uh… certo. Entendi. Acho que posso fazer isso… afinal, devo minha vida a
ele… — O garoto não parecia totalmente convencido.

Ah, bem. Ele parecia ser do tipo sério. Talvez realmente manteria sua
promessa.

Parei na Guilda dos Aventureiros e removi Jalil e Vizquel do Fim da Linha.


Também pedi ao atendente que transmitisse uma breve mensagem para eles:
“Desculpe ter chegado a este ponto, mas obrigado por toda a ajuda. Vocês também
têm a gratidão dele.”

Aqueles dois nos traíram bem no final, mas dificilmente poderíamos culpá-los
por isso. Era a única opção que tinham para se salvar. Deixando de lado como as
coisas terminaram, definitivamente nos ajudaram muito.

No caminho para o portão de saída da cidade, parei para comprar um réptil


semelhante a um lagarto, treinado para carregar pessoas e bagagens. Era uma
criatura grande com seis pernas e olhos charmosamente protuberantes. Neste
continente, eram basicamente usados no lugar de carruagens puxadas por cavalos.
Esta espécie em particular poderia facilmente acomodar dois cavaleiros adultos ao
mesmo tempo. Custou-nos dez moedas de ferro – cerca de metade de todo o nosso
dinheiro disponível. Mas decidi há algum tempo que iria comprar um desses quando
voltássemos a pegar a estrada. Supostamente, ter um desses tornava tudo muito,
muito mais fácil ao navegar pelo Continente Demônio.

Depois de uma breve instrução do comerciante sobre como controlar a coisa,


puxei-a com nossas malas e saímos de Rikarisu. Havia um grande número de
soldados reunidos ao redor do portão. Talvez estivessem se preparando para tentar
perseguir Ruijerd ou algo assim. Seus rostos estavam pálidos, mas suas expressões
eram animadas.

Quando parei para dizer olá, nos avisaram para ter cuidado lá fora, já que o Fim
da Linha havia fugido da cidade há não muito tempo.
A partir desse ponto, passaram a enfatizar que o Fim da Linha era um demônio
sedento por sangue e especularam sobre quais maldades estava cometendo dentro
da cidade – não que tivessem visto algo.

Depois de um tempo, eu simplesmente não conseguia mais manter a língua


dentro da boca.

— Aquele homem ficou na cidade por quase dois meses e não causou nenhum
problema.

Os guardas me encararam como se uma segunda cabeça tivesse brotado em


mim. Olhei para eles, estalei minha língua irritado e finalmente saí da cidade. Estava
de péssimo humor.

Agora, precisávamos nos encontrar com Ruijerd. Ele ainda estava em algum
lugar próximo? Eu tinha que assumir isso. Se seu orgulho como guerreiro ainda
estivesse intacto, não havia como nos abandonar… ou ao menos a Eris.

— Acho que isso deve ser longe o suficiente.

Assim que a cidade ficou completamente fora de vista, disparei fogos de artifício
mágicos para o céu. Eles estouraram no ar com um estrondo feroz, produzindo
um flash de luz e uma onda de calor.

Esperamos um pouco, mas Ruijerd não apareceu.

— Eris, pode tentar chamar por ele também?

Ela gritou o nome de Ruijerd a plenos pulmões. E, aliás, foi muito alto.

Desta vez, algo aconteceu depois de um tempo. Mas era um grupo de Coiotes
Pax. Descarreguei minha frustração neles.

Logo, a área rochosa em que estávamos se transformou em um platô


perfeitamente plano, e os monstros foram reduzidos a picadinho de carne.

Mesmo neste estado ainda poderiam retornar como zumbis?

Hmph. Não é problema meu. A cidade pode lidar com isso.

— Olha, é o Ruijerd!

Não muito depois do fim da batalha, nosso Superd rebelde finalmente apareceu.
Havia uma expressão culpada em seu rosto; isso só fez eu me sentir ainda pior.

— Por que você não apareceu quando te chamamos? Estava planejando fugir
para algum lugar sem nos dizer nada?

No entanto, por algum motivo, as primeiras palavras que saíram da minha boca
foram acusatórias. Não era isso que eu queria dizer.
— Sinto muito. — Ruijerd começou com um pedido de desculpas. Estranho.

Toda a confusão foi obviamente por minha culpa. Fiquei presunçoso e


descuidado. Resolvi me juntar a Jalil e Vizquel porque queria um caminho mais
rápido e fácil. Quando Nokopara nos ameaçou, presumi que conseguiríamos
escapar daquilo. Mas então fomos colocados contra a parede e Ruijerd teve que
limpar minha bagunça para mim. Se ele não tivesse se tornado o bode expiatório,
poderíamos ter ficado presos naquela cidade para sempre. Pelo modo como as
coisas correram, eu não poderia sequer dizer que foi má sorte. Nokopara era um
profissional em chantagem. Teria nos encurralado de alguma forma, mesmo se Kurt
não tivesse nos delatado.

— Por que? Sou eu que te devo desculpas. — Me senti como um pedaço de


merda.

— Não. Você fez tudo que podia, Rudeus.

— Mas…

— Mesmo os melhores planos de batalha dão errado. Eu sei o quão


profundamente você pensou em cada detalhe, em cada passo que demos, dia após
dia.

De repente, Ruijerd sorriu e colocou a mão suavemente na minha cabeça.

— Eu não sabia o que você estava pensando, é claro. E admito que, até hoje,
suspeitei que seus objetivos fossem imorais. Por esse motivo, houve momentos em
que mal conseguia respeitar suas decisões…

Ele fez uma pausa para olhar para Eris, então acenou para si mesmo.

— Mas agora entendo que você estava simplesmente desesperado para


proteger algo, custe o que custar. Vi isso em seus olhos agora pouco, quando você
estava pronto para matar aquele homem.

Agora pouco…? Ah, quando eu estava prestes a inundar a cidade…

— Você luta para proteger algo, Rudeus. E isso faz de você um guerreiro.

Quando Ruijerd disse essas palavras, realmente tive que me esforçar para não
chorar. Eu não merecia esse tipo de elogio. Eu era uma pessoa superficial e de visão
curta. Só pensava em ganhar dinheiro e encontrar maneiras de seguir adiante.
Estava pronto para abandonar até mesmo o próprio Ruijerd. Quase coloquei de lado
o único aliado em quem podíamos contar até o amargo fim.

— Ruijerd, eu… Eu estou…

Eu queria ser honesto com ele. Queria dizer algo – com minhas próprias
palavras, claras e simples, sem me esconder atrás de uma polidez superficial.
Mesmo se não soubesse exatamente o que era esse “algo”.
— Não diga nada. — Mas ele me cortou antes que eu pudesse continuar. —
Deste ponto em diante, coloque seus objetivos à frente dos meus.

— Hã…?

— Não se preocupe. Protegerei vocês dois, mesmo que você não melhore
minha reputação. Confie em mim… por favor.

Confiei nele. Claro que confiei.

Isso significava que não precisávamos mais o ajudar.

Fazia sentido. Espalhar a palavra sobre Ruijerd não era uma tarefa fácil, e tentar
perseguir dois objetivos ao mesmo tempo tornava difícil realmente se concentrar em
qualquer um deles. Podíamos estar exagerando demais. Bem, ao menos nos
últimos tempos estive sob muito estresse. Havia esquecido algumas coisas que
realmente deveriam ter me ocorrido, e falhei em pensar em uma série de detalhes
importantes. Uma situação como essa poderia facilmente levar a desastres como o
que acabamos de passar.

E então, não precisávamos mais ajudar Ruijerd.

Mas não pude aceitar isso. Não depois de ver o que acabei de ver. Não depois
de assistir todo mundo basicamente o perseguindo para fora da cidade com foices.
Não consegui dizer: “Então tudo bem. Espere do lado de fora da próxima vez que
chegarmos a uma cidade.”

— Eu não posso fazer isso, Ruijerd. Vou consertar sua reputação, não importa
o que aconteça.

Na verdade, sua oferta só fez minha determinação ficar mais forte. Eu devia
ao menos isso por tudo que ele fez. Simplesmente teria que fazer um trabalho
melhor de agora em diante. Não iria ultrapassar meus limites novamente, mas ainda
faria tudo o que pudesse.

— Você não aprendeu sua lição, Rudeus? Sou realmente tão indigno de
confiança?

— Eu acredito em você. É por isso que quero te ajudar a alcançar seu objetivo.

De volta ao passado, até eu fui intimidado. As pessoas colocaram uma etiqueta


em mim, uma que nunca consegui remover. E sofri por isso. Passei décadas
sozinho. Se Roxy não tivesse me arrastado para fora de casa, nunca teria escapado
daquele isolamento; poderia nunca ter conhecido Sylphie ou Eris.

Ruijerd era um caso mais complicado, claro, e a escala de seu problema era
incomparável à minha. Mas isso não era motivo para desistir dele. Roxy tinha me
ajudado sem querer, mas eu não era Roxy. Teria que continuar tentando, continuar
errando e rastejando lentamente adiante mesmo na lama.
Da perspectiva de Ruijerd poderia até mesmo ser um enorme aborrecimento.
Podia haver mais desastres como este último, quando ele teria que limpar minha
bagunça para mim. Mas tudo bem.

Era preferível falhar a sequer tentar.

— Você com certeza é teimoso…

— Olha quem fala, Ruijerd.

— Hah… Então tudo certo. Suponho que devemos fazer o que pudermos.

Com um sorriso irônico, Ruijerd assentiu levemente.

Por alguma razão… naquele momento, senti como se finalmente tivesse


ganhado sua confiança para sempre.

Quando acordei na manhã seguinte, ele estava tão careca quanto uma bola de
bilhar.

A visão me deixou pasmo. E, para ser honesto, até um pouco assustado.


Somando aquela cicatriz em seu rosto, ficou parecido a um yakuza.

— O que aconteceu ontem deixou claro que meu cabelo assusta as pessoas,
então me livrei dele.

Isso… deve ter exigido uma verdadeira determinação. No Japão, ficar careca
era uma maneira de expressar determinação obstinada ou mostrar remorso por
algum erro enorme. As coisas eram diferentes neste mundo, é claro. Mas, mesmo
assim… vendo Ruijerd desse jeito, eu meio que senti que deveria seguir seu
exemplo.

Afinal, a melhor maneira de se expiar é por meio da ação.

Eu realmente quero cortar meu cabelo e ficar careca? Digo, eu já estraguei tudo,
certo? Mas… hmm… Cara, sei lá…

— U-uh, Eris? Você acha que eu também devia fazer isso?

— Não ouse. Gosto do seu cabelo do jeito que está, Rudeus.

É, isso aí. Então, acabei usando Eris para me livrar do anzol.

Siga em frente, ria de mim. Eu mereço isso.


Capítulo 14 - O Começo de
Nossa Jornada

Para mim, como membro da geração Dragon Quest, as palavras “Continente


Demônio” naturalmente traz à mente o conceito de um “Reino Demônio”. Sabe…
uma terra sombria governada por um Rei Demônio todo-poderoso, com pequenas
aldeias povoadas por monstros, santuários antigos há muito esquecidos e criaturas
temíveis andando por todo o lugar.

Mas este mundo não era bem assim. Por um lado, aquele todo-poderoso Rei
Demônio estava longe de ser encontrado.

O que não quer dizer que “Reis Demônios” não existissem. Na verdade, havia
cerca de trinta deles no momento, e todos tinham pelo menos um pouco de território
para dominar. Mas não eram governantes de verdade. Apenas se chamavam de reis
e agiam como se fossem donos do pedaço.

Cada Rei Demônio tinha algo como um esquadrão de guarda ou um bando de


cavaleiros, normalmente com nomes impressionantes. Os soldados de Rikarisu,
tecnicamente, eram um desses. Eles complementam as atividades de aventureiros
exterminando monstros perigosos na área, capturando criminosos na cidade e, de
outra forma, tomando medidas independentes para proteger suas casas. Na
verdade, estava mais para uma vigilância da cidade ou uma milícia local do que para
um exército.

Eu não tinha entendido perfeitamente a relação exata entre o Rei Demônio local
e aqueles caras. Ele realmente deu ordens a eles ou estavam apenas se chamando
de seus soldados? Provavelmente seriam seu exército se ele fosse para a guerra,
então acho que havia algum tipo de contrato em vigor.

No momento, ninguém estava lutando em nenhuma guerra e as coisas estavam


relativamente pacíficas. Mas isso só se aplicava quando alguém estava na
vizinhança de um Rei Demônio específico. A maioria do Continente Demônio vivia
sem seguir qualquer lei.

As coisas podiam estar calmas em torno do Cruzeiro do Sul e do Mausoléu


Sagrado do Imperador, mas tudo no meio disso vivia de um modo desenfreado como
se fossem todos parte de uma gangue de motoqueiros punks.

Em qualquer caso, o Rei Demônio que controlava a área ao redor de Rikarisu


se chamava Badigadi. Diziam que era um cara musculoso e machista com seis
braços e pele negra. No momento, entretanto, partiu em uma jornada sem rumo, e
ninguém tinha ideia de onde ele estava. Parecia ser um tipo de espírito livre.

De qualquer forma, o Continente Demônio estava cheio de criaturas poderosas.


Havia uma razão para a Guilda dos Aventureiros colocar todos os empregos de caça
a monstros no rank C ou superior; basicamente todo monstro que poderia encontrar
pelas redondezas exigia ao menos esse nível de força. Os Entes de Pedra, talvez,
fossem os únicos de rank D.

Dito isso, os demônios eram geralmente mais fortes do que os humanos.


Também eram muito bons em combate em grupo, já que as habilidades únicas de
várias sub-raças os ajudavam a desempenhar funções específicas. Alcançar
o rank B ainda era um verdadeiro desafio para a maioria das pessoas, mas os
aventureiros que chegavam lá eram mais fortes do que os de rank B que encontraria
em outros lugares. Aqueles que não conseguiam ir tão longe geralmente acabavam
como Nokopara ou Jalil.

Quanto mais eu pensava nisso, mais incrível Ruijerd parecia. O homem disse
que poderia derrubar monstros de rank A sozinho, eu acreditei nele. Mesmo
sozinho, ele era mais forte do que um grupo de seis ou sete aventureiros de rank B.

Qualquer um ficaria muito feliz ao conquistar a confiança de alguém assim, não?

Três dias se passaram desde que deixamos a cidade de Rikarisu. Não tenho
certeza se isso teve alguma coisa a ver com o fato de que estava me sentindo um
pouco mais relaxado depois de conquistar a confiança de Ruijerd, mas meu apetite
estava ficando cada vez mais feroz.

O problema era que não tínhamos nada de bom para usar. Estávamos vivendo
principalmente de carne de Grande Tartaruga, e essa não era exatamente a carne
de minha preferência. Decidi tentar melhorar um pouco a nossa situação culinária.
A coisa ficava nojenta quanto assada, então podíamos tentar um método diferente.

Usando magia, preparei uma grande panela de barro, um fogão básico, mas
poderoso, e um delicioso caldo artesanal da família Greyrat. Era tudo que
precisávamos para fazer um ensopado básico. Água era um recurso precioso por
aqui, mas eu poderia produzi-la em quantidades ilimitadas.

Inicialmente, queria usar uma panela de pressão para deixar a carne realmente
bonita e macia… mas a primeira que tentei fazer quase explodiu, então decidi não
seguir essa ideia. Cozinhar a carne dessa maneira exigiria muito mais tempo, mas
não tínhamos que nos preocupar com a conta de gás ou água. Caso fosse
necessário, eu estaria disposto a cuidar, com todo carinho do mundo, enquanto a
panela fervesse tudo por horas. Era particularmente conveniente que eu pudesse
fazer todos os utensílios de cozinha de que precisávamos usando a magia da Terra,
tornando-os descartáveis.
Um dia, também quis tentar defumar a carne… mas a fumaça dos Entes de
Pedra provavelmente não a deixariam com um sabor muito agradável.

Cozinhar a carne da Grande Tartaruga a tornou um pouco mais comestível. Em


vez de mastigar uma carne dura nojenta, agora tínhamos carne macia e nojenta.

Sim, ainda era desagradável. Não dava para remover aquele cheiro pungente,
e o sabor era o que era.

Para ser sincero, era estranho. Eu poderia jurar que esse produto tinha um
gosto muito melhor naquele vilarejo Migurd. Será que faltava alguma coisa?

Depois de pensar por um momento, finalmente me dei conta.

Deviam ser aquelas plantas que eles cultivavam dentro do vilarejo. Achei que
fossem hortaliças meio mortas, mas não era o caso. Aquela planta era
provavelmente algum tipo de erva ou tempero… algo que usavam para esconder o
fedor da carne e melhorar seu sabor. Fui totalmente enganado pela descrição de
Roxy sobre como eram “amargas e desagradáveis”. Eram usadas como tempero;
não se deveria comê-las puras.

Minha nossa. Até minha mestra podia ser meio estúpida de vez em quando.

Fiz uma nota mental para tentar comprar algumas especiarias desse tipo, caso
houvesse alguma disponível na próxima cidade que visitássemos. Queria comprar
alguns outros ingredientes também, apenas para variar, mas talvez fosse
desperdício de dinheiro. A comida tendia a ser cara neste continente. Os vegetais
eram particularmente caros, já que a região era inóspita para a vida vegetal. Poderia
comprar cinco quilos de carne pelo custo de algo que se assemelha a uma raiz
de ginseng desgrenhada.

E a carne de Grande Tartaruga era barata. Era meio que a comida padrão do
lugar. Essas coisas eram maiores do que um caminhão de cinco toneladas, então
matar um resultaria em carne suficiente para manter uma família saciada por um
bom tempo.

Claro, não seria possível alimentar uma cidade inteira dessa maneira. Às vezes,
as pessoas comiam Coiotes Pax, ou até mesmo as larvas de insetos que viviam
dentro dos Entes. Por mais corajosa que fosse, Eris não estava muito interessada
em experimentar essa última coisa.

Não é como se comigo fosse diferente. A cultura culinária deste continente não
era exatamente do meu agrado. Dependendo de como cozinhasse, a carne de
Grande Tartaruga poderia ao menos ser comestível. Pelos padrões do Continente
Demônio, ela provavelmente se classificava como algo “saboroso”. Eu mal
conseguia entender de onde Ruijerd estava vindo quando chamou aquilo de
delicioso.

Ainda assim, realmente precisava colocar minhas mãos em um pouco de


tempero.
Eris e Ruijerd pareciam contentes em comer sua carne grosseira. Em outras
palavras, os temperos seriam unicamente de meu interesse.

Bem, isso não era bom. Afinal, éramos um time.

Provavelmente precisávamos adquirir o hábito de falar sobre nossas decisões


em grupo.

— Todos, juntem-se! — gritei.

Já era quase a hora em que sempre dormíamos. Eris estava procurando um


bom local para colocar o monte de pano enrolado que usava como travesseiro, e
Ruijerd estava começando a examinar a área em busca de inimigos, mantendo os
olhos fechados. Mas, esta noite, precisávamos resolver algo antes.

— Eu gostaria de convocar uma reunião em grupo.

— Uma reunião em grupo? — disse Eris, inclinando a cabeça


interrogativamente.

— Sim. Espero que nos deparemos com uma série de problemas em nossas
viagens. Conversando sobre as coisas e tomando algumas decisões importantes
com antecedência, podemos evitar entrar em discussões quando o tempo se provar
essencial.

— Espera… — Havia uma expressão de dúvida no rosto de Eris. Será que não
estava interessada em lidar com os detalhes? Ruijerd e eu provavelmente
poderíamos tomar todas as decisões sozinhos, mas deixá-la de fora parecia uma
má ideia. Ela não era algo como bagagem, era um membro do grupo. Eu precisava
de sua participação.

— Isso não é o que você costumava fazer todos os meses lá em casa?

Todos os meses…? Ah, está falando sobre aquelas conferências que tive com
seus outros instrutores, quando estava dando aulas para ela em Fittoa. Sério,
esqueci tudo sobre aquilo.

— Isso mesmo. Esta é a versão do grupo de aventureiros.

Fechando a boca, Eris se deixou cair na minha frente com um baque. Ela estava
claramente tentando parecer muito séria, mas havia um sorriso incontrolável em seu
rosto. Parecia um pouco estranho. Não era como se estivéssemos fazendo algo de
divertido, mas a garota pelo menos não estava reclamando.

— Também devo participar disso? — perguntou Ruijerd.

Não faria muito sentido se você não participasse, cara…


— Claro. Você não teve esse tipo de discussão em grupo com seu bando de
guerreiros?

— Não. Eu tomava todas as decisões sozinho.

Era assim que as coisas geralmente funcionavam neste mundo, suponho: o


líder dá as cartas e todos os outros apenas seguem as ordens. Mas aconteceu de
eu crescer em uma democracia.

— A partir de hoje, quero conversar sobre as coisas entre nós três e tomar as
decisões em grupo.

— Muito bem. — Com um aceno rápido, Ruijerd também se sentou. Nós três
formamos um círculo ao lado de nossa fogueira.

— Então vamos lá. Venho por este meio convocar a primeira “Reunião de
Equipe do Fim da Linha”. Aplausos, por favor!

Clap clap clap. Clap clap clap.

— Rudeus, por que estamos aplaudindo?

— É assim que essas coisas funcionam.

— Mas você não fez isso nas reuniões com Ghislaine.

Como ela sabia disso? Bem, tanto faz.

— Essa é a nossa primeira reunião, o que faz com que seja um momento que
vale a pena comemorar, certo? É por isso que estamos aplaudindo.

Além disso, somos aventureiros, não tutores. É melhor manter as coisas


animadas, certo?

— Ahem. Então, agora! Como todos sabemos, recentemente estraguei tudo.

— Não, aquilo não foi sua…

— Quieto, por favor! — gritei, dando minha melhor impressão de uma senhora
nervosa usando óculos triangulares. — Ruijerd, se você quiser falar, levante a mão
depois que eu terminar de falar.

— Entendido.

— Então vamos lá. — Agora que eu tinha feito Ruijerd ficar em silêncio,
continuei: — Já identifiquei uma série de fatores que contribuíram para o meu
fracasso.

Fui negligente ao reunir informações, fiquei muito focado em ganhar dinheiro


rapidamente, ansioso demais para matar dois coelhos com uma cajadada só… etc.,
etc. Eu ia fazer um esforço pessoal para ter cuidado com tudo isso, mas também
tinha uma solução mais sistemática em mente.

— Como medida de precaução, quero que todos nós nos certifiquemos


de relatar quando algo acontecer, comunicar nossos pensamentos e consultar uns
aos outros sobre nossas opções. Relatar, comunicar, consultar. É um breve
ReCoCo. Lembrem-se disso, por favor! É importante!

— Uh… ReCoCo, é?

Uma excelente palavra da moda, se é que posso dizer. Parece quase francês!

— Isso mesmo, ReCoCo. Em primeiro lugar, quero que nós três nos
consultemos constantemente!

— Hrm. Especificamente para quê?

— Quando algo estiver incomodando você, ou houver algo que queira fazer,
fale para o grupo, em vez de guardar para si mesmo.

Para ser honesto, eu não tinha muita experiência prática com esse tipo de
discussão… mas não tínhamos que tornar isso muito complicado. O importante seria
se esforçar.

— Planejo também pedir a opinião de vocês dois. Quando alguém “consultar”


vocês, ouçam com atenção e reflitam sobre o assunto. Perguntem a si mesmos se
é uma boa ideia ou não, e por quê. Às vezes, vocês podem chegar a um plano ainda
melhor ou algo assim.

Em retrospecto, tomei a maioria das minhas decisões sem pedir qualquer


opinião de Ruijerd. Sempre disse que confiava nele, mas talvez no fundo isso não
fosse verdade.

— Em segundo lugar, comuniquem-se! Quando perceberem ou notarem algo,


façam um esforço para falarem e contarem uns aos outros sobre isso.

Eris estava balançando a cabeça, mas o olhar em seu rosto sugeria que estava
pensando muito. Era difícil dizer se estava realmente me acompanhando.

— Por último, mas não menos importante, relatem! Os detalhes podem ser
frequentemente importantes, mas vocês podem mantê-los simples se desejarem.
Apenas certifiquem-se de me informar quando algo der errado… ou quando algo der
certo.

Afinal de contas, eu ainda era tecnicamente o líder desse grupo. Precisava agir
como tal.

— Pessoal, alguma pergunta?

— Nenhuma. Por favor, continue.


Ruijerd balançou a cabeça, mas Eris levantou a mão.

— Eu tenho!

— Sim, Eris?

— Então, nós três vamos consultar sobre as coisas, mas é você quem toma a
decisão final, certo?

— Bem, no final das contas, acho que sim.

— Então por que simplesmente não toma todas as decisões por si só?

— Há um limite para o quanto posso pensar sozinho.

— Mas nunca terei ideias que você não possa imaginar, Rudeus!

Foi legal da parte dela dizer isso, mas para ser perfeitamente honesto, eu
também estava em busca de alguma garantia. Queria a chance de passar meus
planos por eles e ouvir algo como: “Isso deve funcionar bem” ou “Você vai conseguir,
sem problemas”.

— Mesmo se isso for verdade, você pode dizer algo que me faça pensar de
uma maneira diferente e me indicar uma ideia melhor.

— Acha mesmo…?

Eris não parecia entender muito bem o sentido disso. Mas, por enquanto, isso
já era esperado. O importante era fazer com que nós três usássemos nossas
cabeças.

— Bem, então… continuando. No momento, gostaria de discutir nosso curso de


ação futuro.

Nossa jornada através do Continente Demônio começou abruptamente, sem


tempo para planejarmos com antecedência ou nos prepararmos. Tínhamos que
descobrir as coisas, na hora, da melhor maneira que pudéssemos.

— Em primeiro lugar, vamos discutir nosso destino. Nosso objetivo final é


chegar ao Reino Asura, no lado oeste do Continente Central. Nenhuma objeção até
aí, certo?

Os dois assentiram com a cabeça.

Claro, era mais fácil falar que chegaria ao Continente Central do que o fazer.
Não podíamos cruzar direto do Continente Demônio para lá; não havia nenhuma
rota de ligação marítima. Os povos-peixe governavam os mares neste mundo, e
todos os outros só podiam viajar por eles em um número limitado de linhas
predeterminadas.
— Ruijerd, como podemos alcançar o Continente Millis?

— Os barcos partem de Porto do Vento, a cidade mais ao sul do Continente


Demoníaco.

Ou seja… precisávamos descer até o fim do Continente Demônio, cruzar para


Millis, cortar para a costa oeste e pegar um barco de lá para o litoral leste do
Continente Central.

Tecnicamente falando, não era nossa única opção. Havia também uma espécie
de “rota alternativa”. Poderíamos viajar para o noroeste do Continente Demônio e,
em seguida, cruzar para o Continente Divino. Isso permitia que chegássemos ao
Continente Central sem passar por Millis. Isso, teoricamente, poderia diminuir o
tempo de viagem necessário em vários meses.

No entanto, essa rota não era tão simples quanto parecia. O Continente Divino
era totalmente cercado por paredes rochosas e íngremes. A menos que tivéssemos
asas, seria essencialmente impossível fazer isso. Ou seja, precisaríamos
basicamente rastejar pelos penhascos. Não havia estradas lá embaixo, e tampouco
bases estáveis. Também havia muitos, muitos monstros. Supostamente, apenas um
em cada vinte que se arriscavam naquela jornada sobrevivia para contar história.

Além de tudo isso, mesmo se conseguisse sobreviver no Continente Divino, a


próxima rota marítima levaria ao norte do Continente Central – de longe a região
mais inóspita do lugar. Apenas criminosos desesperados com caçadores de
recompensas em seu encalço escolheriam essa opção.

O potencial ganho de tempo não passava de teoria. Se tentássemos isso,


provavelmente gastaríamos muito mais tempo. Não havia muitos motivos para nos
colocarmos em perigo mortal em troca de uma pequena diferença na duração de
nossa viagem.

O que significava… que nossa única opção real era ir para o sul.

— Você sabe quanto vai custar a passagem?

— Não faço ideia.

— Quanto tempo vai levar para percorrer todo o caminho até lá?

— Um bom tempo, imagino. Se ficarmos sempre na estrada… quem sabe uns


seis meses?

Seis meses, mesmo em marcha constante? Esta será uma verdadeira


jornada…

— Existe alguma maneira de chegarmos mais rápido? Tipo um círculo de


teletransporte ou coisa assim?
— O uso de círculos de teletransporte foi proibido após a Segunda Grande
Guerra Humano-Demônio. Alguns podem permanecer intactos, mas usá-los
provavelmente seria difícil.

Huh. Eu não estava falando sério, mas acho que realmente existem teleportais
por aí.

— Então, estamos basicamente presos ao chão?

— Isso mesmo.

Pelo visto, não havia qualquer opção de transporte de alta velocidade para se
considerar. Viajar por seis meses seguidos parecia… muito assustador.

Talvez eu só estivesse pensando nisso da maneira errada. Na verdade, não


íamos ficar na estrada por meses a fio; íamos nos mover pouco a pouco, pulando
de uma cidade para a outra. Lenta, mas constantemente. Uma jornada de mil milhas
sempre começa com o primeiro passo.

— Certo. Bem, vamos pensar a curto prazo. Se começarmos a viajar em direção


ao Porto do Vento agora, quanto tempo levaremos para chegar à próxima cidade?

— Devemos chegar a uma cidade de tamanho considerável em cerca de duas


semanas.

Duas semanas, hein? Acho que era o esperado.

— Você sabe se tem uma Guilda dos Aventureiros lá?

— Imagino que sim.

De acordo com Ruijerd, nos velhos tempos, todas as sub-raças de Demônios


criaram seus próprios pequenos vilarejos, e as cidades se desenvolveram como
locais centrais para que comercializassem, se misturassem e trocassem
informações entre si. Como resultado, “cidades” de tamanho modesto de fato não
existiam neste continente, e se poderia esperar que qualquer cidade tivesse uma
guilda que empregasse guerreiros dos povos locais.

Originalmente, antes da existência da guilda, as cidades eram protegidas por


guerreiros escolhidos para representar as várias raças que viviam na área. Às vezes,
um povo mais bélico despachava lutadores adicionais em nome de uma raça que
raramente lutava; os Superds e os Migurds aparentemente tiveram um
relacionamento assim em algum momento. Os casamentos entre povos diferentes
também foram sempre comuns, como forma de fortalecer esses laços entre as
aldeias. Não admira que houvesse uma variedade tão grande de Demônios… O
continente inteiro provavelmente estava cheio de pessoas de raça mista.

Ops. Meio que escapei do assunto.

— Então vamos lá. Em geral, acho que devemos seguir para o sul, viajando
entre as cidades com guildas.
Depois de chegar a cada nova cidade, ficávamos por uma ou duas semanas. A
menos que perdêssemos nosso status de aventureiros, poderíamos assumir as
tarefas da guilda e espalhar a palavra sobre o Fim da Linha. Assim que juntássemos
dinheiro suficiente para comprar suprimentos para nossa jornada até a próxima
cidade, voltaríamos direto para a estrada.

— Ao menos esse era o projeto que estabeleci em minha mente… Vocês dois
têm alguma pergunta ou opinião sobre isso?

Ruijerd ergueu a mão.

— Você não precisa se preocupar a falar sobre mim para ninguém. É por isso
que cortei o meu cabelo. No momento, não sou nem mesmo um Superd.

— Bem, não vamos sair do nosso caminho. Faremos apenas o que pudermos
enquanto completamos nossas tarefas.

Depois de ver o que Jalil e Vizquel haviam conquistado, percebi que não
precisávamos fazer nada muito sofisticado. Apenas faríamos o nosso trabalho
educada e meticulosamente e apresentaríamos “Ruijerd Fim da Linha” ao cliente
caso tudo corresse bem. E se algo desse errado, “Rudeus” seria o único a se
levantar e assumir a culpa. Bom e simples. De agora em diante, eu seria o único
associado aos erros e delitos do Fim da Linha.

Planejei manter essa última parte em segredo de Ruijerd.

O quê? “Você não decidiu que deveria conversar sobre tudo como um grupo?”

Não seja tão minucioso, amigo.

— Alguma pergunta específica sobre o que faremos enquanto estivermos nas


cidades?

— Sim!

— Vá em frente, Eris. — Senti um pouco de nostalgia ao vê-la levantando a


mão assim. Quase parecia que estávamos de volta à sala de aula.

— Vamos dar uma olhada para ver quanto as lojas estão cobrando pelas coisas,
igual você costumava fazer?
— Ah, você fala sobre minha pesquisa de mercado…? — Hrm. Pensando bem,
em Rikarisu relaxei nisso. Eu realmente fiquei correndo por aí sem pensar. Se
tivesse me dado ao trabalho de estudar o mercado local com antecedência, poderia
ter conseguido nosso lagarto para todos-terrenos por um preço um pouco melhor.
— Sim, vamos fazer aquilo. Afinal, saber os preços locais é o primeiro passo para
gastar dinheiro com sabedoria. Mais alguma coisa?

Ruijerd e Eris se entreolharam em silêncio. Parecia que a resposta era “não”.

Bem, isso provavelmente foi bom o suficiente para nossa primeira reunião. Sem
dúvida, teríamos problemas mais complicados à medida que avançávamos. O
importante era conversar com eles devagar, em vez de brigar um com o outro.

— Então vamos lá. Estou ansioso para trabalhar com vocês! — Com isso,
inclinei minha cabeça e encerrei as coisas.

A partir daquele momento, nossa jornada finalmente começou para valer.

Chegamos à próxima cidade sem ninguém perceber que Ruijerd era um


Superd.

Para ser justo, ele raspou todo o cabelo, até mesmo as sobrancelhas – e no
Continente Demônio, as pessoas geralmente não faziam nada muito dramático com
seus cortes de cabelo. Tive a sensação de que a maioria deles tinha orgulho de suas
aparências naturalmente distintas.

Os guardas no portão nos cumprimentaram calorosamente.

Para ser honesto, a essa altura, Ruijerd parecia nada mais do que um bandido
da máfia ou um skinhead, mas… será que havia toneladas de caras com o rosto
assustador no local? O fato de estarmos vestidos como aventureiros desta vez
provavelmente também fez diferença. Pareciam genuinamente satisfeitos ao nos
receber. Quando entramos na cidade, Ruijerd mencionou que nunca havia recebido
uma recepção tão calorosa antes, mostrando um pequeno sorriso no rosto.

Embora nossas aparições não parecessem mais ser um problema, quando nos
anunciamos como o “Fim da Linha” na guilda, alguns gritaram perguntas do tipo:
“Tem certeza de que isso é uma boa ideia?”

Quando respondi que não havia problema, já que o próprio homem estava
conosco, a maioria caiu na gargalhada. Foi bom ver que o truque ainda funcionava.
Fiquei quase grato por quão infame o nome “Fim da Linha” era. Era um excelente
quebra-gelo.

Depois de nos acomodarmos em uma pousada local, logo realizamos outra


reunião de equipe. Eris deu o pontapé inicial desta vez, anunciando: “Rudeus estava
cheirando minha calcinha enquanto lavava a roupa, e eu quero que ele pare”, com
uma expressão perfeitamente séria no rosto.

Fui imediatamente proibido de voltar a tocar nas calcinhas de Eris. Isso era meio
que um problema, já que significava que apenas Ruijerd seria capaz de lavar nossas
roupas. Eu não pretendia entregar a calcinha da minha querida Eris para algum
velho pervertido que não podia evitar dar um tapinha na cabeça de cada criança que
via. Portanto, a ensinamos como lavar a roupa e isso se tornou uma de suas
responsabilidades.

Em pouco tempo, no entanto, eu a vi furtivamente cheirando minha cueca.


Claro, não apresentei nenhuma objeção. Um homem precisa ser mente aberta em
relação a coisas assim, sabe?

Coletar informações não se mostrou muito difícil. Eu poderia descobrir quase


tudo que precisava saber na Guilda dos Aventureiros. Tudo que precisava fazer era
agir como uma criança e inocentemente sair perguntando tudo aos outros
aventureiros. Foi tão fácil que quase me fez desejar poder ser uma criança para
sempre.

Eventualmente, me empolguei um pouco e perguntei a uma aventureira com


um corpo bonito quais eram suas medidas, e então Eris me derrubou e me imobilizou
como uma praticante de jiu-jitsu.

Infelizmente, o conceito de “disfarçar” era desconhecido neste mundo.

Seguimos de cidade em cidade, seguindo o mesmo padrão geral, e seguimos


em direção ao sul. Um mês se passou, depois dois…

Um dia, Eris decidiu que queria começar a aprender a Língua do Deus Demônio.

Sem o dicionário de Roxy, eu não poderia realmente montar aulas detalhadas


ou coisa do tipo. Ainda assim, ela tinha Ruijerd e eu para ensinar, e parecia aprender
o básico bem rápido. De volta ao Reino Asura, ela basicamente se recusou a
aprender a ler e escrever em sua própria língua, mas acho que as circunstâncias
podem mudar uma pessoa. Deve ter sido muito estressante ser a única que não
tinha ideia do que as pessoas estavam dizendo na maior parte do tempo.

— Meu n-nome é… Eris Boreas Greyrat.

— Isso mesmo. É isso aí, senhorita.

— Jura?!

Bem, ela ainda não estava nem perto de estar pronta para ter uma conversa de
verdade, mas…

Vamos relembrar as palavras de Yamamoto Isoroku: “Mostre-lhes, diga-lhes,


peça-lhes que o façam e depois elogie-os; caso contrário, as pessoas não farão
nada. Fale com eles, ouça-os, reconheça-os e atribua-lhes responsabilidades; caso
contrário, nunca crescerão. Observe-os trabalhar com gratidão e mostre sua fé; caso
contrário, nunca florescerão de verdade.”

Eram toneladas de instruções, mas, por enquanto, me concentrei na parte de


“elogiá-los”.

— Verdadeiramente esplêndido, senhorita! Excelente trabalho! Você está me


fazendo até formigar!

— Você está tirando sarro de mim…?

— Não, não! Nem pensar!

Sim, claro, posso ter exagerado um pouco… Acho que também é necessário
saber como elogiar, hein?

— Hmm. Bem, em breve vamos deixar o Continente Demônio, né?

— Esse é o plano. Logo estaremos indo para Millis. — A palavra “logo” parecia
até um pouco otimista. Ainda tínhamos um longo caminho pela frente.

— Então talvez não exista motivo para eu aprender a Língua do Deus


Demônio…

— Bem, você pode acabar vindo aqui de novo algum dia, certo?

Embora neste caso ela tivesse sido levada a isso por necessidade, parecia claro
que a menina ainda não gostava muito de estudar.

Enquanto ensinava a Língua do Deus Demônio para Eris, Ruijerd também a


ensinava a lutar. No início, participei dos treinos, mas, sinceramente, não consegui
acompanhar. O método de instrução dele era muito simples: uma constante troca
de golpes. Em pouco tempo, qualquer um acabaria de bruços no chão ou com a
ponta da lança contra o seu pescoço. Nesse ponto, ele simplesmente diria: “Você
entendeu?”

Infelizmente, não entendi. Nada mesmo. Não importa quantas vezes tentei. No
entanto, Eris era um caso diferente. De vez em quando, ela dizia: “Sim, agora
entendi!” com uma expressão animada no rosto.

Teoricamente entendi o que ela estava aprendendo com essas aulas. Ruijerd,
provavelmente, estava “apontando” nossos erros e fraquezas. O combate é algo
fluído e dinâmico. É difícil descrever o passo ou finta perfeita em palavras, então,
em vez disso, ele demonstrava com exemplos. Dito isso, nunca consegui nada com
essas coisas, exceto alguns hematomas. Se eu fosse capaz de melhorar apenas
levando pancadas, teria feito mais progressos há anos.

Eris, por outro lado, era provavelmente um prodígio. Quando se tratava de


batalhas, estava em um nível totalmente diferente. Achei o estilo de combate de
Ruijerd incompreensível. Mas, de alguma forma, fazia sentido para ela. A garota não
estava apenas fingindo entender; estava realmente aprendendo com ele. Eu podia
vê-la ficando cada vez mais forte, dia após dia. Acho que ainda não estava nem
perto do nível de Ghislaine, mas, neste ponto, suspeitei que já poderia ser até
mesmo um pouco melhor do que Paul.

Será que ela poderia me vencer mesmo enquanto eu usasse magia? Parecia
plausível. Eu precisava pensar muito sobre como poderia melhorar. A ideia de me
sentar sem fazer nada enquanto Eris ficava cada vez mais poderosa era
simplesmente humilhante.

Em busca de uma maneira de ficar mais forte, acabei desafiando Ruijerd para
uma luta enquanto Eris estava fora cumprindo uma missão. Eu fui até ele com tudo
o que tinha, usando as táticas que desenvolvi para vencer lutadores de curta
distância como Paul, mas…

Resumindo, fui derrotado. Humilhado. Nenhum dos meus truques, armadilhas


ou estratégias foram remotamente eficazes contra ele.

— Não foi de todo mal. Você já é um mago poderoso e versado. — Por alguma
razão, porém, ele me elogiou depois de tudo. Eu parecia me lembrar de ter ouvido
algo semelhante de Ghislaine há muito tempo. — No entanto, sua abordagem
estratégica foi ruim. Não há necessidade de tentar me vencer no combate corpo-a-
corpo.

Ruijerd explicou que eu deveria ter iniciado a luta de uma distância muito maior.
Era natural lutar quando se posicionava exatamente onde o inimigo queria.

Isso definitivamente fazia sentido, mas… nem sempre teria a chance de


começar uma batalha a meia milha de distância, certo?

— Então, o que devo fazer quando alguém chegar na minha frente?

— É difícil para mim dizer. Feitiços não são bem meu campo de especialidade…
Dizem que o povo-dragão é proficiente no uso de magia em combate próximo, mas
minha única experiência em primeira mão foi observar Perugius em batalha. Não
consigo falar muito sobre aquilo.

— Perugius? Não é aquele cara da fortaleza flutuante? Como ele lutou?

— Sim. Ele convocou seus Portais-Wyrm de Vanguarda e Retaguarda e atacou


usando garras mágicas.

Oh, feitiços de convocação… Eu não sei nenhum deles…

— Que tipo de invocação são esses Portais-Wyrm?

— Não sei os detalhes específicos, mas acredito que o portal da vanguarda


constantemente drena o poder mágico de seus inimigos, e o portal da retaguarda o
alimenta com esse poder.

Como resultado, Perugius poderia ganhar uma vantagem cada vez maior
conforme a luta se arrastasse. Pelo visto, não tinha sido tão eficaz contra Laplace,
que tinha um suprimento verdadeiramente enorme de poder mágico bruto… mas
um guerreiro comum seria sugado e perderia a consciência em menos de cinco
minutos.

— Uau. Essa é uma forma dissimulada de vencer uma luta.

— É…?

Eu esperava que Ruijerd me apoiasse nisso, mas ele não pareceu concordar.
Talvez pensasse em Perugius como um tipo de camarada, já que o ajudou a se
vingar de seu inimigo mais odiado.

— Em qualquer caso, não se apresse. Você ainda é muito jovem. Ficará mais
forte na hora certa.

No final, Ruijerd afagou minha cabeça e me ofereceu algum consolo. Ele


parecia já me ver como um “guerreiro”, mas não parou com os tapinhas na cabeça.
Para ser sincero, acho que o homem simplesmente gostava de fazer isso.

Enfim. Embora apreciasse o sentimento, não estava muito claro


sobre como deveria ficar mais forte.

Enquanto eu lutava com essas preocupações, nosso grupo avançava lenta,


mas firmemente para o sul. Quando chegamos a uma cidade, assumimos tarefas de
guilda lá, construímos um nome para nós mesmos, economizamos algum dinheiro
e partimos para nosso próximo destino.

Repetimos esses mesmos passos básicos uma e outra vez, nunca nos
demorando muito em um só lugar.

Antes que eu percebesse, cinco meses se passaram… e então seis.

Um dia, encontramos alguém na estrada que imediatamente desafiou Ruijerd


para uma luta.

— Meu nome é Rodriguez! Sou o terceiro aluno de Auber da Lâmina-Pavão,


aluno do grande Deus do Norte Kalman!

A princípio, presumi que ele fosse algum tipo de caçador de recompensas, e


que alguém havia colocado um preço pela cabeça de Ruijerd sem que
soubéssemos.

— Seu comportamento sugere que você é um homem de algum renome! Desejo


desafiá-lo para um duelo!

No entanto, não parecia ser o caso. O homem explicou que era um espadachim
humano que tinha vindo ao Continente Demônio para se treinar.

— O que devemos fazer, Ruijerd?


— Hm. Já se passou muito tempo desde que tive que passar por algo assim…

De acordo com Ruijerd, o Continente Demônio realmente recebia muitos


visitantes do tipo. Os monstros neste continente eram fortes, assim como os
aventureiros que os caçavam. Isso o tornava um lugar ideal para os guerreiros
aprimorarem suas habilidades.

Vaguear sem objetivo, exceto “ficar mais forte”, parecia inútil para mim, mas
tanto faz.

— Eu não me importaria de aceitar, mas o que você acha?

— Acho que você tem todo o direito de recusar. O que quer fazer?

— Eu sou um guerreiro. Quando alguém me pede um duelo, prefiro aceitá-lo.

Cara, você podia ter dito isso desde o começo…

Decidi ao menos definir algumas regras básicas:

1.
1. Será uma partida amigável, e não um duelo até a morte. Não é
permitido matar.

1.
1. Nosso guerreiro só vai dizer seu nome depois que a luta acabar.

1.
1. Ambos os lados concordam em não guardar rancor, seja qual for o
resultado.

O espadachim consentiu alegremente, então o duelo começou na mesma hora.

Ruijerd venceu de forma justa, tendo defendido de forma limpa os ataques mais
furiosos de seu oponente. Ele não pegou leve com o cara nem nada; apenas adotou
uma abordagem calma e de baixo risco, se livrando de tudo o que o espadachim
tentava, até encurralar o homem.

— Você me superou por completo, senhor. Nunca esperei encontrar um lutador


tão incomparável por aqui… Este mundo é realmente cheio de maravilhas! Qual é o
seu nome, se é que posso perguntar?

— Ruijerd Superdia. As pessoas também me chamam de Fim da Linha.

— O quê? Você é mesmo o Fim da Linha?! O temível guerreiro Superd?! Já


ouvi falar muito sobre você enquanto vagava pelo continente!

O espadachim parecia totalmente surpreso com isso. Parecia que, neste


momento, a maior parte dos humanos sabia surpreendentemente pouco sobre os
Superds. Muitos não sabiam que lutavam com lanças de três pontas ou tinham uma
“joia” vermelha na testa; seu cabelo verde-esmeralda era a única característica que
parecia ser um conhecimento comum. Em outras palavras… mesmo quatro séculos
após a guerra, ainda tinham um preconceito profundo contra todo um grupo de
pessoas com base em nada além da cor do cabelo. Como alguém poderia pensar
que essa era uma razão boa o suficiente para oprimir os outros?

— No entanto… percebi que você não tem cabelo, senhor.

— Sim. Recentemente vi a necessidade de o cortar.

— E-entendo. Bem, não quero me intrometer…

A essa altura, o homem sabia que estava cara a cara com o mais “temível” e
“cruel” dos terríveis Superds, e experimentou a força dele em primeira mão. Eu teria
esperado que ele se encolhesse de terror. Mas os dois eram guerreiros, e isso
aparentemente foi o suficiente para formar um vínculo de respeito mútuo entre
ambos. Para aqueles que viviam em busca de força, Ruijerd era alguém a ser
admirado ao invés de temido.

— E pensar que tive a chance de lutar com uma figura lendária como você…
Vou ter que me gabar disso para todos lá de casa!

Aquele homem, ao contrário da maioria dos outros que encontramos, ficou


claramente feliz por ter conhecido Ruijerd. Era quase como se tivesse topado com
um astro de Hollywood na calçada – e descoberto que, apesar de sua reputação de
ser rude, ele era na verdade um cara caloroso e amigável.

— Você aí! Meu nome é…

Após aquele primeiro duelo, Ruijerd começou a receber um fluxo constante de


desafiadores. Quanto mais para o sul íamos, mais deles apareciam.

Vários desses guerreiros em treinamento eram bem versados na história e


apontaram que Ruijerd tinha o mesmo nome do líder do infame bando Superd dos
dias da Guerra de Laplace. Quando ele explicava que era o mesmo homem, todos
reagiam com espanto. E então passariam um dia e uma noite inteiros conversando
sobre suas experiências de guerra.

O velho Ruijerd costumava tagarelar até cansar quando começava a falar do


passado. Mas suas descrições simples e diretas do que realmente aconteceu eram
aparentemente cativantes para outros guerreiros como ele. Em particular, adoravam
a parte em que mencionava ter rompido um cerco de 1.000 soldados, começou a se
esconder e, eventualmente, se vingou de Laplace. Foram derramadas mais do que
algumas lágrimas masculinas.

Se transformássemos toda a história em um livro e de alguma forma a


publicássemos, talvez pudéssemos realmente reabilitar um pouco da imagem dos
Superds. “Guerra Injusta – O Combate Mortal no Continente Demônio!” soava muito
bem, certo? Ou talvez “Verdades Não Contadas da História: A Verdadeira História
dos Superds!”
Ei, eu provavelmente poderia os imprimir sozinho usando magia da Terra, não?
E eu já conhecia todas as quatro principais línguas dos continentes. Claro, havia a
possibilidade de quebrar alguma lei local no processo e ser jogado na cadeia de
algum lugar, mas ao menos parecia uma ideia que valia a pena guardar para
referência futura.

— Então adeus! Novamente, muito obrigado! Aprendi muito.

Os guerreiros em treinamento sempre se despediam com alegria. Não acho que


nenhum deles tenha ficado zangado ou chateado.

E tudo isso só foi possível porque Ruijerd havia cortado seu cabelo.

Será que devíamos fazer todos os Superds rapar a cabeça?

Durante todo o tempo, continuamos nos movendo para o sul, nunca perdendo
o nosso objetivo de vista. O oitavo e o nono mês de nossa jornada chegaram e
passaram.

Claro, nem tudo foi tranquilo. Problemas surgiram inúmeras vezes. Eris agora
podia entender o que as pessoas ao nosso redor estavam dizendo; como resultado,
às vezes pirava e começava a brigar quando pessoas zombavam de nós ou nos
insultavam. A identidade de Ruijerd foi exposta inúmeras vezes, o que resultou em
nossa expulsão de várias cidades. E também tentei espiar Eris no banho várias
vezes, apenas para que Ruijerd me arrastasse pela orelha.

Os mesmos problemas continuaram surgindo em uma frequência bastante


estável. No início, isso me deixou ansioso. Tentei pensar em maneiras de consertar
tudo ou, em primeiro lugar, evitar que coisas assim acontecessem.

Mas quando pensei nisso de verdade? Eris entrou em brigas, sim, mas nunca
desembainhou sua espada diante de ninguém. E quando Ruijerd foi expulso da
cidade, nunca foi algo tão violento e caótico quanto sua fuga de Rikarisu. Certa vez,
um soldado que encontramos disse: “Desculpe. Algumas pessoas ficam assustadas
quando sabem que há um Superd por perto”, em um tom de voz apologético.

Além disso, nunca tive sucesso em espiar Eris no banho.

Em outras palavras, todos os problemas foram consideravelmente pequenos.


Nunca resultaram em uma enorme crise.

Então comecei a me preocupar um pouco menos. Eris era uma pessoa violenta;
Ruijerd era um Superd; e eu era um pervertido. Nascemos todos assim, e não havia
muita esperança de que mudássemos agora. Nós três estávamos fazendo o melhor
que podíamos. Isso já era bom o bastante para mim. Uma bagunça de vez em
quando não era o fim do mundo.

Não havia razão para se estressar com isso, certo?

Em algum momento, realmente comecei a pensar assim. Eu não estava


tratando nossos erros levianamente, ou subestimando o que nos custaram. Acabei
aprendendo a relaxar um pouco e manter as coisas em perspectiva. Isso pode
parecer simples, e acho que é. Mas levou meses e meses na estrada com Ruijerd e
Eris antes de finalmente pegar o jeito.

Cerca de um ano se passou desde que partimos de Rikarisu em nossa jornada.


Antes que percebêssemos, nós três nos tornamos aventureiros de rank A…

E, finalmente, alcançamos a cidade de Porto do Vento, bem no extremo sul do


Continente Demônio.

Capítulo Extra - A
Princesa de Asura e o
Anjo

Ars, a capital do Reino Asura, era a maior e mais populosa cidade do mundo.
Bem no seu meio, havia um castelo com paredes brancas – naturalmente, um que
diziam ser o maior e mais bonito do mundo. Era conhecido como Palácio Prata e era
a residência da família real.

Dentro de suas paredes, havia uma luta cruel, feia e perpétua pelo poder que
desmentia sua aparência imaculada. Os nobres do reino nunca se cansavam de
conspirar, enganar e trair uns aos outros. Travavam batalhas dia e noite.

O mundo deste palácio era pequeno e infernal – um lugar onde se dizia que
absolutamente ninguém era confiável.

Acontece que o “Incidente de Deslocamento” que ocorreu na região de Fittoa


teve um grande impacto no curso das guerras travadas dentro deste castelo.

Esta é a história de como esses eventos foram colocados em movimento…

Além das residências da família real, o Palácio Prata continha vários jardins
esplêndidos.
Lá estava o Jardim das Rosas, cheio de plantas com flores vermelhas; o Jardim
das Peônias, repleto de plantas com flores negras; o Jardim de Hortênsias, repleto
de plantas com flores azuis; e, finalmente, um lugar onde floresciam apenas flores
brancas – o Jardim de Lírios.

Este último era o particularmente favorito de uma certa pessoa.

O nome dela era Ariel Anemoi Asura, a segunda princesa do Reino Asura. De
sua mãe, a rainha consorte, uma beleza famosa, herdou traços adoráveis e cabelos
dourados brilhantes; de seu pai, o rei, herdou uma voz incomparavelmente bela. E
embora ainda não tivesse muita idade, seu carisma era irresistível. A maioria dos
moradores da capital já falava dela como a princesa mais linda que já existiu.

Uma vez a cada três dias, essa jovem visitava os Jardim de Lírios. Ela se
sentava a uma mesa de branco puro, acompanhada apenas por seu cavaleiro
guardião e seu mago, e calmamente tomava seu chá.

Nesses momentos, vê-la era encantador o suficiente para fazer qualquer mulher
suspirar de saudade, e tão cativante que nenhum homem conseguiria evitar de
olhar. Sua beleza, como a de uma fada de algum conto popular, era tal que parecia
rude até mesmo se aproximar dela. Assim, ninguém aparecia para falar com a
princesa quando ela visitava o Jardim de Lírios. Nem uma única alma se atrevia a
tentar beber chá com ela.

Sentada sozinha à mesa, aproveitava sua pausa momentânea sozinha,


trocando apenas algumas breves palavras com seus dois guardiões.

Seu cavaleiro guardião era um garoto de enorme beleza própria. Ele tinha lindos
cabelos castanhos brilhantes e fortes traços faciais; seu nariz era bem torneado, sua
mandíbula bem definida.

Seu nome era Luke Notos Greyrat. Segundo filho da família Greyrat, uma das
quatro grandes casas provinciais do reino, era um jovem e talentoso cavaleiro que
já havia alcançado o nível Intermediário no estilo Deus da Espada. Não havia uma
única garota dentro do castelo que não soubesse sobre ele. Embora ainda no início
da adolescência, já possuía uma língua de prata e nunca perdeu o interesse de
nenhuma senhora com quem conversou. Com sua aparência arrojada e mente
inteligente, dizia-se que conquistava todas as jovens nobres que cruzavam seu
caminho. Para não falar mais, nenhum outro homem no castelo era tão admirado
pelas garotas de sua idade.

O mago guardião da princesa era um pouco mais velho, talvez com dezesseis
ou dezessete – estava mais para um jovem do que um garoto.

Embora não fosse tão incrivelmente belo quanto Luke, ainda era bonito para
todos os padrões comuns; seu rosto um tanto esguio possuía uma atratividade
amável. Sua presença adicionava uma pitada de charme lúdico que complementava
muito bem a beleza dos outros dois, tornando ainda mais difícil para qualquer um
pensar em se aproximar deles.
Seu nome era Derrick Redbat, terceiro filho da conhecida casa Redbat, e era
um mago de nível Avançado que se formou no ilustre Instituto Mágico de Asura.

Sobre o que esses três conversavam quando ficavam sozinhos? Era um


assunto de grande interesse para todos os jovens que viviam no Palácio Prata, mas
ninguém sabia a resposta. Nesse dia, como em muitos outros, estavam
conversando baixinho no Jardim de Lírios.

— Bem, então de que cor eram? — As palavras de Ariel ecoaram fracamente


pelo jardim silencioso. Sua voz era real e extraordinariamente bela; o som levava à
mente o tilintar de sinos.

— Um adorável tom de rosa… Ah, mas com um toque de laranja também —


respondeu o jovem cavaleiro Luke, do outro lado da mesa, onde estava disposto.
Sua própria voz era um tanto aguda, como se poderia esperar de um garoto de sua
idade, mas tinha clareza e confiança.

Derrick, o mago guardião da princesa, ouvia em silêncio. A expressão sombria


em seu rosto sugeria que estava ruminando as palavras dos dois.

— Pessoalmente, prefiro botões de flor de cerejeira em um campo de porcelana


branca…

— Com todo o respeito, Lady Ariel, sinto que aqueles que se voltam para dentro
também têm um certo apelo.

— Pela deusa! Você gosta dos invertidos?

O tom de Ariel estava um tanto chocado, mas Luke respondeu calmamente:

— Bem, admito que não sou especialmente meticuloso quando se trata de tais
detalhes. No final das contas, o tamanho é tudo o que realmente importa para mim.

Ariel suspirou e balançou a cabeça.

— Sinceramente. Seu gosto é péssimo, Luke.

Em resposta, o garoto simplesmente encolheu os ombros.

Do que exatamente os dois estavam falando, pode-se perguntar?

— Em qualquer caso, o que achou desta nova empregada? Sarisha, não é?

— Seu corpo era muito sensível e sua inocência encantadora. Foi uma noite
bastante agradável.

A resposta foi bem simples: Luke estava descrevendo os mamilos da garota


com quem se deitou no outro dia.
— É mesmo? Hmm. Agora você me fez querer de alguma forma a
contrabandear para o meu quarto.

— Ficaria perfeitamente feliz em ajudar, milady.

— Ah? Você já está preparado para jogá-la de lado, depois de dormir com ela
apenas uma vez?

— Receio que os seios de Sarisha não eram grandes o suficiente para o meu
gosto.

Ariel e Luke, em contraste com sua aparência, eram na verdade um par de


jovens namoradores lascivos. Já fazia algum tempo que atacavam
indiscriminadamente as empregadas do palácio e as filhas de nobres de classe
média.

— Nada é mais excitante do que provocar garotas tão lindas, caso queira saber
minha opinião. Imagino que Sarisha soltaria maravilhosos gritinhos…

Apenas um número limitado de pessoas no palácio sabia disso, mas a princesa


Ariel era bissexual e sádica. Muitos entre a nobreza Asurana possuíam inclinações
sexuais extraordinárias, e ela certamente não era exceção. Luke não era um caso
tão extremo, mas seu amor por mulheres de seios grandes não conhecia limites.

Escondidos na sombra de sua aparência externa e reputação, os dois viveram


vidas despreocupadas de prazer – indiferentes à trama e intriga que definia a corte
real de Asura.

Nisto, não eram incomuns para aqueles de seu tipo. A maioria da nobreza se
entregava a um comportamento igualmente escandaloso ou ainda pior. Asura era
um reino com uma história de 400 anos que nunca conheceu a guerra ou a fome.
Para muitos de sua classe alta, um exibido gosto pelo que é decadente parecia até
mesmo um símbolo de status. Ariel e Luke ainda eram jovens, mas já estavam
imersos nas diversões de seu tipo.

Contudo…

— Luke. Lady Ariel. Acho que seria melhor vocês se comportarem… um pouco
mais discretamente.

Derrick era um homem com uma mentalidade mais convencional. Em grande


parte, isso acontecia porque os Redbats eram apenas nobres provinciais de classe
média. Viviam em um mundo totalmente diferente daquele decadente da capital.

Alguém poderia se perguntar por que um homem tão jovem recebeu o


prestigioso papel de mago guardião da segunda princesa, mas a resposta era
bastante simples: seus resultados no Instituto foram excelentes. Magos de nível
Avançado e berço nobre eram uma mercadoria rara.

— Ah, Derrick… você realmente deveria aprender o que significa ser um nobre
Asurano.
— Milady está certa, Derrick. Você é sempre assim. Se não descobrir como ler
o clima, nunca será popular entre as mulheres.

Quando Ariel e Luke encolheram os ombros, Derrick soltou um suspiro pesado.

— Não foi isso que eu quis dizer, Lady Ariel. Você pode muito bem governar
este reino algum dia, por isso não parece sensato se expor a fofocas e intrigas. Você
corre o risco de fazer inimigos.

E então, foi a vez da Princesa Ariel soltar um longo suspiro.

— Olha, Derrick. Você está sempre dizendo coisas assim, mas lembra que eu
sou a segunda princesa, correto?

— É claro. O que significa que está no topo da linha de sucessão e é uma


candidata em potencial para suceder ao trono.

— Tenho dois irmãos mais velhos e uma irmã mais velha. Parece que
encontraram um marido para minha irmã, mas meus irmãos estão lutando
implacavelmente pelo trono. Com eles por perto, não há a menor chance de me
tornar rainha.

— Isso não é verdade. Você é a filha da rainha consorte. Isso a torna a única
herdeira legítima do trono, e…

— Pare com isso, Derrick. — Interrompeu Ariel, bruscamente. — E se essas


palavras alcançassem os ouvidos dos meus irmãos? Você quer que mandem
assassinos atrás de mim? Já é ruim o suficiente ter todos esses nobres jurando
fidelidade a mim por interesse próprio…

— Se você escolher lutar, Lady Ariel, eu daria minha vida para protegê-la, feliz,
de qualquer um que possam enviar.

— Você poderia, por favor, parar de dizer coisas tão alarmantes? De qualquer
forma, isso não foi muito convincente. Sei o que você realmente pensa sobre Luke
e eu… Provavelmente gostaria de me envolver em uma luta pelo poder apenas para
que possa me abandonar quando tudo começar, não é?

— O qu… — Derrick arregalou os olhos diante do choque. Depois de um


momento, seu corpo começou a tremer, seu rosto ficou mais feroz e ele cerrou os
punhos.

— Olhe aqui, Derrick. Não me importo se nunca tomar o trono. Ainda posso
tomar chá em um lindo jardim e viver minha vida da maneira que quiser, e isso é o
suficiente para mim. De qualquer forma, eu não teria chances contra os meus
irmãos. A ideia de me jogar por vontade própria nessa bagunça é
simplesmente absurda.

O pessimismo de Ariel era totalmente justificável. Não importa quão alto fosse
seu lugar na ordem de sucessão, ela era mais jovem do que seus rivais e tinha muito
menos aliados. Suas chances de vitória eram quase nulas. Então, de certo, era mais
sábio não lutar pelo trono e simplesmente viver uma vida de prazer indulgente. Ela
ainda era uma princesa do maior país do mundo, então essa opção era uma
possibilidade disponível.

— Então esqueça… — O coração de Derrick estava nublado de frustração, mas


ele não conseguia encontrar outras palavras para dizer.

Quando o jovem se virou e saiu do jardim, Ariel e Luke encolheram os ombros


e retomaram o debate sobre os mamilos das mulheres do palácio.

Não era que Derrick tivesse abandonado suas responsabilidades como mago
guardião da princesa. Ele estava indo ao banheiro.

Ele e Luke tinham a tarefa de proteger Ariel o tempo todo, mas eram apenas
humanos, então seus corpos tinham certas necessidades. Quando um deles sentia
o chamado da natureza, geralmente informavam ao outro e faziam seus negócios o
mais rápido possível. Neste mundo, como em qualquer outro, as pessoas nunca
ficavam tão vulneráveis quanto quando faziam suas necessidades.

O ar docemente perfumado do Jardim de Lírios nunca tinha combinado com


Derrick. No início, ele informara a Luke toda vez que sentia a necessidade de ir para
a instalação mais próxima, mas com o tempo, isso se tornou tão rotineiro que Ariel
e Luke começaram a esperar por isso. Eventualmente, a princesa ordenou que não
se preocupasse mais em anunciar suas intenções. Por mais extremos que fossem
seus gostos em alguns aspectos, ela não gostava de ser lembrada de questões
escatológicas no meio da hora do chá.

Enquanto se fechava dentro do banheiro, Derrick soltou um longo suspiro. Ele


estava repassando mentalmente a conversa que acabara de ter com a Princesa
Ariel. Ela insistiu que não tinha nenhum interesse em se tornar rainha, mas o jovem
queria muito que a princesa tomasse o trono.

Não que pensasse que seus irmãos, o primeiro príncipe e o segundo príncipe,
fossem candidatos indignos. Se algum deles assumisse o trono, sem dúvida
amadureceriam e se tornariam um rei respeitável e comum se comparado aos que
vieram antes.

Mas do jeito que Derrick via, isso não era bom o suficiente. Com qualquer um
dos príncipes no trono, Asura continuaria em seu caminho atual – podre até o
âmago, mas mesmo assim se expandindo. As disputas feias e sem sentido da
nobreza continuariam sem controle, desperdiçando dinheiro e energia que poderiam
ser designados para o progresso. E com o tempo, o reino poderia ficar vulnerável à
influência estrangeira.

Esta terra nunca conheceu a fome. Não importa quão corrupta fosse a nobreza,
não importa quão severos fossem seus impostos, o povo nunca passava fome.
Assim, seu descontentamento raramente se transformava em fúria; poucos surgiram
para desafiar o status quo. Não houve grandes rebeliões ou guerras civis.

Como resultado disso, o reino estagnou.

Claro, ainda estava fazendo um progresso constante nas áreas de magia e


tecnologia. Mas o Reino do Rei Dragão, ao sul, o havia superado no
desenvolvimento tecnológico, e as Nações Mágicas ao norte estavam fazendo
grandes avanços na pesquisa arcana.

Embora Asura ainda tivesse vantagens esmagadoras em outros aspectos,


nesse ritmo era difícil dizer como as coisas estariam depois de outro século… ou
mesmo em meio século. O Reino do Rei Dragão, em particular, estava observando
Asura como um falcão em busca de qualquer sinal de fraqueza, ansioso para
reivindicar alguma parte de suas abundantes terras.

Asura atualmente acreditava que as montanhas ao longo de suas fronteiras


indicavam que estava seguro de invasões estrangeiras, mas como se sairia contra
um exército do Reino do Rei Dragão ainda mais avançado tecnologicamente dentro
de cinquenta anos? E se as Nações Mágicas aproveitassem a chance para invadir
pelo norte…?

— Lady Ariel poderia mudar tudo, e ainda…

Derrick acreditava genuinamente que a segunda princesa era capaz de


empurrar Asura para um caminho diferente.

Ele ainda se lembrava claramente da primeira vez que a viu. Foi apenas alguns
anos antes, em uma celebração da maioridade realizada pelo reino. Na época,
Derrick tinha acabado de se formar no Instituto de Magia. Apesar de não ter sido o
melhor aluno de sua classe, se classificou muito bem e já havia garantido um posto
com os Magos Reais Asuranos, com quem se juntaria dentro de alguns meses.

Ele sabia que era um mago capaz, mas também normal. Não tinha grandes
expectativas para si mesmo. Mas naquele dia, encontrou uma certa jovem
encantadora. Embora Ariel ainda não fosse maior de idade, foi convidada para a
festa, uma convidada de honra. Apesar de sua juventude, fez seu discurso de
congratulações em um estilo claro e confiante; aos olhos de Derrick, sua sagacidade
e inteligência ofuscaram o melhor aluno que falara em sua formatura do Instituto.

Algum tempo depois, após se juntar aos Magos Reais, seu pai disse a ele que
a posição de mago guardião para a segunda princesa estava livre, e se ofereceu
para recomendá-lo para o posto – embora advertindo que seria uma chance
pequena. Ele aceitou entusiasmado.

Ariel era uma pessoa competente e dinâmica. No momento ela passava os dias
tomando chá e as noites pulando nas empregadas, sim… mas, por natureza, era
diligente, sociável e estava disposta a trabalhar duro para melhorar a si mesma. Se
assumisse o trono e se dedicasse ao fortalecimento de seu país, Derrick tinha
certeza de que Asura passaria por grandes avanços em uma única geração. Poderia
ser possível até mesmo conquistar todo o Continente Central.
Por um lado, ela era extremamente carismática. Tanto o Instituto de Magia
quanto os Magos Reais estavam cheios do que se poderia chamar de pessoas
insatisfeitas. Muitos sussurravam palavras de crítica aos ministros que atualmente
dominavam o governo, ou à nobreza e à família real.

No entanto, em todos os anos que passou nesses lugares, Derrick nunca tinha
ouvido ninguém falar mal de Ariel.

Ele tinha toda a confiança de que ela poderia se tornar uma governante como
Gaunis Freean Asura, que liderou a humanidade nos últimos estágios da Guerra de
Laplace e consequentemente assumiu o trono – um governante amado por todo o
seu povo. Já havia até mesmo algumas pessoas que morreriam por Ariel, cheias de
alegria. O próprio Derrick era um deles; tinha sido doloroso e enfurecedor ouvi-la
recusar aquela lealdade com tanta casualidade.

— Para ter certeza, sua vida corre pouco risco se continuar agindo dessa
maneira… mas ela está se rebaixando ao nível de um nobre corrupto…

Será que a princesa apenas não queria suportar as expectativas de seus


compatriotas? Ele tinha sido escolhido como mago guardião especificamente
porque ela pensava que o jovem não a empurraria para um caminho mais difícil? A
princesa nunca disse isso, mas talvez o detestasse…

Derrick soltou outro suspiro.

Mas assim que estava afundando ainda mais na melancolia, ouviu o som fraco
de uma voz humana.

— Hm?

Evidentemente, alguém estava conversando atrás do banheiro.

— Princesa Ariel…

— Matar…

Tendo escutado algumas palavras alarmantes, Derrick prendeu a respiração e


pressionou o ouvido contra a parede.

— Então Sir Gabrel vê Lady Ariel como uma ameaça?

— Isso mesmo. Afinal, sua popularidade com o povo é notável. Ele está
bastante chateado por ela ser mais conhecida do que ele, embora ela quase nunca
se mostre em público.

— Parando para pensar, isso é um pouco estranho… Qualquer que seja o papel
que ela esteja desempenhando no momento, pode estar trabalhando em alianças
pelos bastidores.
— Sim. Quando você não consegue vencer uma luta frontal, tem que se
esconder nas sombras, eu suponho.

Derrick franziu a testa diante disso. A popularidade de Ariel com os cidadãos


era em parte devido ao seu carisma natural, mas ela também se mostrava a eles
com muito mais frequência do que o Primeiro Príncipe Grabel. Seu irmão
obedientemente comparecia a cerimônias internas do palácio, mas raramente se
aventurava a eventos realizados fora de suas paredes; em contraste, a princesa
passava muito tempo em várias funções externas. Por exemplo, recentemente
compareceu à cerimônia de inauguração de uma nova ponte sobre o rio Alteir,
tornando-se uma das primeiras pessoas a cruzá-la. Não muito antes, tinha sido a
convidada de honra no maior torneio de combate mágico do Instituto, entregando
ao vencedor seus prêmios com um buquê de flores, e permitindo-lhe a honra de
beijar sua mão. Foi precisamente porque investiu tempo em tais eventos, totalmente
alheios às lutas pelo poder dentro da corte real, que se tornou popular entre as
pessoas comuns.

— Se esse for realmente o caso…

— De fato. A garota vai se tornar um obstáculo.

— Suponho que seja melhor tomar precauções contra problemas futuros…

— Sinto o mesmo. E então, devido à profunda preocupação com os interesses


do Príncipe Grabel e do Reino Asura como um todo, já fiz alguns… arranjos.

— Hahaha. Suponho que já devia esperar isso de você.

Derrick ficou tentado a sair do banheiro e matar os homens do lado de fora, mas
rapidamente descartou o pensamento. Esses dois eram provavelmente nobres da
facção do primeiro príncipe. Eram homens que gastavam suas fortunas livremente
– e recorriam aos atos mais vis que se possa imaginar – para moldar os eventos a
seu gosto; quando encurralados, ofereciam todas as desculpas covardes que
podiam para salvar suas próprias peles. Havia muitos de sua laia dentro do palácio.

O jovem poderia matá-los na mesma hora com sua magia, mas isso seria um
ato sem sentido. Todo mundo presumiria que Ariel ordenou que seu mago guardião
matasse dois nobres leais ao primeiro príncipe. Isso seria interpretado como um ato
de hostilidade aberta contra o próprio Grabel e levaria a um fluxo constante de
ataques de seus seguidores.

Por um momento, Derrick se perguntou se tal resultado poderia forçar Ariel a


afinal lutar pelo trono… mas se a princesa não tivesse motivação real para lutar,
seriam colocados na defensiva, encurralados e, finalmente, massacrados como
animais.

Abandonando a ideia de matar os homens, saiu do banheiro sem dizer uma


palavra. De uma forma ou de outra, teria que agir contra a nova ameaça.

Um dos nobres disse que já foram feitos “arranjos”. Nesse caso, provavelmente
aconteceria algo em breve – talvez até nos próximos dias. Seu objetivo era
provavelmente a própria Ariel, mas como seus guardas mais leais, ele e Luke
também eram alvos em potencial.

Seria um assassino? Ou usariam algum tipo de veneno?

Precisava contar a Ariel sobre isso imediatamente… e exortá-la, mais uma vez,
a enfrentar essa batalha de frente.

Com esses pensamentos passando por sua mente, Derrick caminhou


rapidamente de volta para o Jardim de Lírios, segurando seu cajado sob o robe para
que pudesse se proteger contra qualquer emboscada repentina.

— Quanto tempo passou desde a última vez que lutei…?

De volta ao Instituto de Magia, ele participou de regulares batalhas simuladas –


às vezes contra outros jovens magos, às vezes contra alunos de uma academia de
cavaleiros. Às vezes, eram partidas de grupos em grande escala, eliminando
equipes de três a cinco membros. Várias vezes por ano, os alunos também eram
escoltados até uma floresta local por seus instrutores e aventureiros contratados, a
fim de ganhar experiência em combate a monstros.

Não era como se Derrick nunca tivesse tirado uma vida antes. Em uma batalha
simulada, acidentalmente matou seu oponente com um feitiço que acabou por
acertar sua cabeça. E durante o processo de seleção para o papel de mago
guardião, foi obrigado a lutar e matar um sujeito previamente condenado à morte –
como um teste de sua disposição para fazer o que fosse necessário.

No entanto, se alguém estava enviando um assassino para enfrentar tanto ele


quanto Luke, sem dúvida escolheriam um experiente e eficiente. Seria uma luta de
vida ou morte. O pensamento enviou um pequeno estremecimento ao braço de
Derrick.

— Posso protegê-la…?

Ele expressou sua ansiedade… então balançou a cabeça para tirar isso de sua
mente.

Isso era algo que ele não tinha como saber, mas…

O Incidente de Deslocamento de Fittoa estava ocorrendo no mesmo instante.

— Lady Arie… O quê…?!

No momento em que Derrick voltou para o Jardim de Lírios, seu queixo caiu
diante do choque.
Seus olhos estavam fixos em uma área na parte de trás do jardim – uma seção
conhecida como Floresta de Hibiscos.

Uma besta enorme que se apoiava em duas pernas acabara de aparecer


trotando por entre as árvores.

Era um Javali Exterminador.

Por si só, eram monstros de rank D, mas eram frequentemente acompanhados


por bandos leais de Cães de Assalto que podiam elevar seu nível de ameaça
para rank C ou até mesmo B. Normalmente, só eram encontrados nas profundezas
das florestas, mas seus números eram grandes, e às vezes um emergia para atacar
uma cidade próxima – comumente tomando gado ou crianças humanas para
consumo.

Muitos anos atrás, um Javali Exterminador acompanhado por vinte Cães de


Assalto matou todas as almas que viviam em um pequeno vilarejo Asurano. Como
resultado, se tornaram alguns dos monstros mais infames que viviam dentro das
fronteiras do Reino. Em assentamentos próximos às florestas, as crianças
costumavam ouvir que um javali as carregaria e comeria, a menos que fossem para
a cama na hora certa, e as outras pessoas poderiam ser ameaçadas com histórias
dos Superds.

Derrick, como a maioria de seus compatriotas, estava familiarizado com o nome


e a aparência desses monstros, e também com sua reputação como uma fera
temível.

— Como…?

Por que havia um Javali Exterminador ali? Este era o palácio real, lar da família
governante da maior nação do mundo. De forma alguma era um local seguro, mas
certamente era o último lugar que alguém esperaria encontrar um monstro
selvagem. Como aquilo poderia aparecer no local?

A mente dele se voltou para a conversa que acabara de ouvir. Foi aquele nobre
quem planejou isso? Não, não podia ser. Nenhum simples nobre poderia ter
contrabandeado uma besta tão selvagem e enorme para o coração do palácio.
Mesmo os ministros mais poderosos do reino não seriam capazes de tal coisa.

Embora não tivesse como saber disso, o Javali Exterminador tinha de fato sido
teletransportado para este local apenas alguns momentos atrás, como resultado do
Incidente do Deslocamento de Fittoa.

Enquanto a mente de Derrick lutava para processar a situação, seu olhar


encontrou o de princesa Ariel, e ele soltou um suspiro involuntário.

Ela ainda estava em sua mesa, conversando alegremente com Luke sobre
algum assunto vulgar. Os dois não tinham notado o Javali Exterminador – embora
aquilo estivesse olhando diretamente para eles, seus olhos brilhando como um
caçador avaliando sua presa.
Derrick começou a correr. E enquanto corria, começou a entoar um
encantamento mágico.

No entanto, o Javali Exterminador também estava em movimento. Talvez tenha


notado Derrick ou sentido uma ameaça; de qualquer maneira, avançou pela
vegetação do jardim, indo direto para a Princesa Ariel.

Não vou chegar a tempo!

Derrick abandonou seu encantamento no meio e gritou: “Corra, Lady Ariel!” a


plenos pulmões.

Com uma exclamação de surpresa, a princesa se levantou – bem a tempo de


notar o enorme borrão marrom correndo para o seu lado. Ela saltou para fora de seu
caminho.

Quando Ariel caiu no chão, o Javali Exterminador abriu caminho através de uma
série de árvores delicadas do jardim, então voltou em direção ao seu alvo.

Nesse ponto, Derrick havia se colocado entre a princesa e o monstro. O enorme


javali apareceu diante do mago, com baba escorrendo de sua boca. Seus olhos
brilhantes e bestiais estavam fixos nele.

O que um mago poderia fazer nesta situação? O que poderia fazer ao estar tão
perto de um monstro tão grande? Não havia a menor chance de concluir um
encantamento a tempo.

Então Derrick nem se incomodou. Simplesmente abriu os braços e gritou com


tudo o que tinha:

— Luke! Deixo o resto com você!

Uma fração de segundo depois, o golpe do Javali Exterminador o fez voar.

O golpe quebrou todas as suas costelas e esmagou vários órgãos vitais.


Sangue jorrou de sua boca enquanto ele voava pelo ar. Quando finalmente bateu
em uma parede a cerca de cinco metros de distância, sentiu sua espinha também
se estilhaçando.

— Ghaagh!

Ele teve a sorte de não perder a consciência na mesma hora. Mas talvez isso
não fosse lá uma grande bênção.

Ah… Estou morrendo.

A mente de Derrick estava estranhamente clara. Ele sabia que estava perdido.
Podia sentir o cheiro de sua própria morte no ar. Os ferimentos que sofreu eram,
sem dúvidas, fatais. Já vi alguém morrendo graças a ferimentos bem parecidos, não
vi…?
Ele não sentiu medo. Talvez tudo tivesse acontecido tão de repente que seu
cérebro ainda não tivesse entendido.

Olhando para o jardim, Derrick observou Luke desembainhando sua espada e


partindo para atacar o Javali Exterminador. Luke, não seja tolo… Você não pode
vencer essa coisa sozinho… Ah, certo. A porta fica para esse lado… Então você
não pode simplesmente fugir, pode…?

Derrick tentou olhar para os lados movendo apenas os olhos. E quanto a Lady
Ariel? Está segura?

Ele logo a encontrou. Ela estava correndo em sua direção – seu rosto cheio de
choque e confusão, mas não de terror.

— Derrick! Ah, isso não pode estar acontecendo… Precisamos de um


curandeiro aqui agora mesmo!

Quando a princesa gritou alarmada, ele reuniu a pouca força que lhe restava
para falar:

— Ungh… Deixe-me… Você tem que… fugir… — E tossiu.

— Derrick, não tente falar! Alguém ajude! Não tem ninguém aqui?!

— Khh… Isso é… inútil, Lady Ariel… Já não posso mais ser salvo…

— Não… não! Não seja ridículo! Derrick, você precisa aguentar firme!

O jovem olhou para a princesa, agora claramente à beira das lágrimas, com
alguma surpresa. Ele estava convencido de que Ariel e Luke odiavam tê-lo por perto,
mas talvez isso não fosse de todo verdade. Apesar de tudo, sentiu um pequeno
impulso malicioso crescendo dentro de seu peito.

— Bem, Princesa? Eu não… te abandonei… abandonei?

Ariel recuou, aparentemente assustada com suas palavras. E depois de um


momento, começou a olhar para seu guardião profundamente leal de uma maneira
que nunca tinha olhado antes.

— Derrick…

— Lady Ariel, este é… meu último pedido. Por favor, eu imploro… assuma o
trono… e faça de Asura… um país melhor! Gggh!

Uma costela quebrada perfurou o pulmão de Derrick e ele tossiu uma grande
quantidade de sangue.

Ariel observou em silêncio por um momento, então acenou com a cabeça e se


virou.
Um enorme javali estava diante dela.

Luke, jogado de lado algum tempo antes, estava olhando do chão para a
princesa com uma expressão de puro desespero.

Ela olhou ferozmente para a criatura por um momento, então começou a gritar.

— Eu não sei de onde você veio ou por quê, mas está diante da futura Rainha
de Asura! Não vou morrer hoje. Vá embora!

Naturalmente, as palavras não significavam nada para um Javali Exterminador.


A besta apenas fungou, suas narinas tremendo diante de uma provável refeição
saborosa.

Aquilo deu um passo à frente, depois outro.

Assistindo impotente do chão, Derrick fez uma oração silenciosa. Como


seguidor da Igreja Millis, voltou-se para o céu em busca de ajuda.

Por favor, Deus… por favor nos ajude. Você pode tirar minha vida, mas ajude a
Princesa Ariel. Este mundo ainda precisa dela…

Ele orou em vão, é claro. Ele sabia disso melhor do que ninguém. Santo Millis
foi um homem verdadeiramente grande e o salvador da humanidade… mas não se
podia esperar que concedesse um milagre conveniente toda vez que alguém
precisasse de um. As coisas eram simplesmente desse jeito. Mesmo assim, Derrick
não pôde deixar de implorar.

Por fim, a besta se aproximou da Princesa Ariel.

Sua pata maciça se ergueu no ar.

Mas então – a oração foi atendida.

— Aaaaaaaaaaaaah!

Com um grito ensurdecedor, um anjo caiu do céu.

Era um anjo jovem de cabelos brancos – vestindo roupas de péssima qualidade.

— Aah! Aaaaaah!

Com um grito de guerra encantador e meio enlouquecido, estendeu as duas


mãos em direção ao enorme javali… e, de alguma forma, explodiu a metade superior
de seu corpo.

Obrigado, Deus… Muito obrigado. Testemunhando isso, Derrick derramou sua


última lágrima. Por favor… cuide de Lady Ariel.

E com o coração cheio de paz, o mago guardião soltou seu último suspiro…
O Incidente do Deslocamento de Fittoa custou a vida de um jovem mago – e
forneceu a Ariel Anemoi Asura um propósito novo e diferente.

Que caminho ela seguiu após esses eventos? Como mudaram Luke Greyrat?

E o que foi feito do anjo que caiu do céu?

São histórias para outra hora…

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