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VOLUME 04: JUVENTUDE - ARCO DA VIAGEM

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Capítulo 01: Porto Vento
Capítulo 02: Conexões Perdidas, a Prequela
Capítulo 03: Conexões Perdidas, a Continuação
História Paralela: Conexões Perdidas, História Extra
Capítulo 04: O Sábio a Bordo
Capítulo 05: O Demônio no Armazém
Capítulo 06: As Crianças do Povo-Fera
Capítulo 07: Apartamento Grátis
Capítulo 08: Emergência Incendiária
Capítulo 09: Vida Tranquila no Vilarejo Doldia
Capítulo 10: A Estrada da Espada Sagrada
Capítulo Extra: Guardião Fitz
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI
- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 04

Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka

Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.

Retirado do site:

“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e


publicação de Light Novels, Web Novels e Mangás para o português
brasileiro.

Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e


acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a
situação dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo
conhecidos de longa data, buscamos criar um ambiente amistoso e
divertido onde, sem qualquer cobrança ou compromisso
estabelecido, divertimo-nos com a tradução e edição daquilo que
nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto, atestamos a
plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros,
focamos em obras que saem um pouco daquele clichê
extremamente batido, e às vezes não, cumprindo com nosso
objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de acumular livros que
queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e pretendemos oferecer
uma ampla gama de materiais para todos os públicos, desde que
adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.

Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada,


sempre mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência,
basta acessar Formas de Apoio.”

Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim


Tsundoku.
Capítulo 01:
Porto Vento
Meu nome é Rudeus Greyrat e sou um menino bonito que
acabou de comemorar o décimo primeiro aniversário há alguns dias.
Como um mago habilidoso, ganhei notoriedade por minha
habilidade de usar magia sem entoar feitiços e minha maneira única
de misturar os diferentes elementos.

Um ano atrás, fui pego em um desastre mágico e


teletransportado para o Continente Demônio. Minha cidade natal
ficava exatamente no lado oposto do mapa, na região de Fittoa do
Reino Asura, o que significava que tinha que viajar meio mundo
para retornar.

Tornei-me um aventureiro para ganhar dinheiro ao começar a


longa viagem de volta para casa. No ano passado, consegui
atravessar com sucesso o meu caminho através do Continente
Demônio.

✦✦✦✦✦✦✦

Porto Vento2, a única cidade portuária do Continente Demônio,


tinha uma paisagem urbana com colinas onduladas. Da entrada, já
tinha uma vista panorâmica de toda a cidade. A maioria das casas
era feita de barro e pedra no estilo típico do continente, mas havia
algumas casas de madeira aqui e ali. Nos limites da cidade ficava o
porto. Era ali, em vez da entrada principal, que acontecia a maior
parte do rebuliço, exatamente onde os vendedores ambulantes se
estabeleciam.
Era uma cidade com um sabor único, diferente das outras que eu
tinha visto antes. Além do porto, em frente à cidade, o mar se
espalhava de forma vasta e larga. Quando foi a última vez que vi o
oceano? Foi provavelmente na época em que frequentei uma escola
secundária no litoral.

Este mundo era diferente do nosso, mas o mar não. Era da


mesma cor azul, tinha o mesmo som de ondas quebrando e
pássaros que pareciam gaivotas. Havia até veleiros. Foi a primeira
vez que coloquei meus olhos em um. De vez em quando os via em
filmes, mas ver a coisa real – feita de madeira e com suas velas de
pano desenroladas, deslizando pela água – fez meu coração bater
como se eu ainda fosse um menino.

Devia haver algum mecanismo neste mundo que permitia a um


barco navegar contra o vento. Na verdade, considerando o mundo
em que eu estava, talvez os impulsionassem para frente usando
magia de vento.

— Olhe!

No momento em que chegamos na cidade, a garota ruiva


cavalgando o lagarto comigo de repente deu um salto. O nome dela
era Eris Boreas Greyrat. Ela era neta de Sauros, o Lorde Suserano
da região de Fittoa do Reino Asura, e também minha aluna quando
trabalhei como tutor para a casa deles. Era feroz e mimada quando
nos conhecemos, mas se tornou mais flexível recentemente – o
suficiente para ouvir o que as pessoas tinham a dizer. A garota foi
teletransportada comigo, e eu precisava levá-la de volta à
segurança de sua casa.
— Olha, Rudeus! O oceano! — As palavras que passaram por
seus lábios estavam na fluente língua do Deus Demônio. Eu havia
enfatizado a importância de conseguir fazer isso o tempo todo;
Ruijerd e eu também falávamos na língua do Deus Demônio tanto
quanto possível. Como resultado, as habilidades de linguagem de
Eris aumentaram dramaticamente nos últimos tempos. Era como
suspeitei: a maneira mais rápida de melhorar em uma língua
estrangeira seria usá-la com a maior frequência possível. É verdade
que a garota não sabia ler nem escrever na língua em questão. Não
era um idioma tão difícil, mas também não era algo que pudesse ser
dominado em um apenas ano.

Por outro lado, eu não tinha a ensinado nenhuma magia desde


que fomos parar no Continente Demônio. Portanto, ela não só não
podia lançar feitiços não verbais, como provavelmente também
havia esquecido os próprios cânticos.

— Eris, espere! Aonde você vai? Nós nem descobrimos onde


vamos passar a noite!

Ela parou no meio do caminho quando a chamei. Foi a terceira


vez que tivemos essa discussão desde que fomos parar no
Continente Demônio. Na primeira vez, a garota se perdeu; na
segunda, brigou em algum lugar. Eu não queria um terceiro
incidente.

— Ah, sim! Vou me perder de novo se não decidirmos sobre uma


pousada logo! — Ela saltou de volta para nós, constantemente
olhando por cima do ombro na direção do mar.
Pensando bem, esta foi provavelmente a primeira vez que viu
algo assim. Havia alguns rios perto de Fittoa e, aparentemente,
Sauros a levava lá em seus dias de folga e a deixava brincar na
água. Infelizmente, nunca fui com eles, então não tinha ideia do
quanto ela sabia sobre corpos d’água.

— Podemos nadar?

Inclinei a cabeça diante de suas palavras.

— Você quer nadar no porto?

— Isso!

Eu podia ter desejado isso por motivos egoístas, mas era um


desejo destinado a ser insatisfeito. Nomeadamente porque faltava
um componente importante nesta equação.

— Você não tem um maiô, tem? — perguntei.

— O que diabos é um maiô? Eu não preciso de um!

Sua resposta foi tão chocante que não consegui esconder minha
confusão. O que diabos é um maiô, eu não preciso de um, ela disse.
Então pretendia nadar totalmente nua…? Não, de jeito nenhum, não
poderia ser isso. O mais provável é que pretendia nadar usando
suas roupas de baixo. A imaginei vestida com nada além de
calcinha, com água caindo sobre seu corpo. O tecido úmido grudaria
em seu corpo e, através do tecido transparente, eu seria capaz de
ver a cor de sua pele, bem como as pequenas protuberâncias em
seu peito.
Por que nunca me juntei a eles quando ela foi brincar na água
em Fittoa? Ah, é claro, porque estava ocupado. Mesmo nos meus
dias de folga, estava preocupado com alguma coisa. Ainda assim,
deveria ter ido junto ao menos uma vez.

Não, agora não era hora de pensar nisso. Eu precisava me


concentrar na cidade bem diante de mim. Viver o agora. Isso
mesmo, viver o agora! Woo-hoo, o oceano!

— Não, você não deveria nadar neste oceano. — Uma voz


cortou tudo como se fosse um balde de água fria.

Quando olhei para trás, Ruijerd estava sentado ali com a cabeça
raspada e uma cicatriz cruzando o rosto, como um yakuza. Seu
nome completo era Ruijerd Superdia. Ele era um demônio que
amava as crianças e assumiu a responsabilidade de nos escoltar
desde o início, quando estávamos tão perdidos que não sabíamos
nem onde estávamos. Agora que estava careca, era impossível
dizer que tinha o infame cabelo verde-esmeralda da raça Superd.
Neste mundo, demônios com cabelo verde-esmeralda eram
considerados um símbolo de medo. O homem cortou o seu por
nossa causa. Restaurar a honra ao nome de seu povo era apenas
uma maneira de pagar minha dívida para com ele.

— Há muitos monstros aí.

Uma joia vermelha incrustada na testa de Ruijerd o fornecia um


tipo de sexto sentido. Ele agia como um radar capaz de detectar a
presença de todas as criaturas vivas a um raio de várias centenas
de metros. Com uma habilidade tão conveniente, era fácil pensar
que poderíamos despachar rapidamente todas aquelas criaturas do
oceano, mas talvez aquilo não fosse tão poderoso quanto eu
pensava. Talvez essas profundezas tenebrosas fossem
impenetráveis.

Nah. Mesmo assim, ainda devíamos poder nadar um pouco,


certo? Nadar no porto poderia ser bem perigoso, mas eu poderia
pelo menos usar magia da terra em uma praia próxima para fazer
nossa própria piscina.

Não… ainda havia uma chance de ser perigoso. Havia bestas lá


fora com seus próprios poderes. Alguns deles poderiam ser capazes
de atravessar minha barreira. Poderia ser um encontro sexy se
fosse com um polvo, mas se fosse um tubarão, estaríamos em um
tipo de reconstrução das cenas de Tubarão.

Havia poucas escolhas. Seria, provavelmente, melhor desistir da


ideia de nadar no oceano. Não havia mais nada que se pudesse
fazer.

— Nada de banho no mar desta vez. Vamos encontrar nossa


pousada e então visitar a Guilda dos Aventureiros.

— Certo… — Eris parecia abatida.

Hmm. Eu ainda estava muito interessado em ver como seu corpo


estava ficando tonificado. Não tivemos muitas oportunidades de
verificar o crescimento um do outro no último ano. Era difícil avaliar
qualquer coisa através de suas roupas, mas se estivéssemos na
praia aberta, eu talvez pudesse ver um pouco mais. Sim, isso
mesmo, devíamos fazer isso.
— Mesmo que não possamos entrar na água, poderíamos pelo
menos brincar na praia, certo?

— Na praia?

— Há algo chamado areia por perto do oceano. Na beira da


água, a areia forma uma margem bem grande — expliquei.

— E que parte disso devia ser divertida? — perguntou Eris.

— Na praia, você pode se molhar e…

— Rudeus, você está com aquela expressão estranha no rosto


de novo.

— Ugh. — Pelo visto, minhas expressões mudavam muito


facilmente de acordo com minhas emoções.

Enquanto eu tentava tirar o olhar lascivo do meu rosto, Eris


voltou os olhos para o oceano e sorriu.

— Mas parece interessante! Depois vamos fazer isso! — Ela


alegremente deu um salto e voou pelo ar, retornando ao lagarto. Foi
um salto incrível. Apenas o som de sua decolagem me fez pular –
foi como o ruído de uma batida surda. A garota realmente tonificou
suas pernas e parte inferior do corpo. No momento isso realmente
complementava sua constituição, mas eu a imaginava ficando ainda
mais forte e musculosa no futuro, e isso me preocupou um pouco.

✦✦✦✦✦✦✦

Assim que decidimos nossa pousada e embarcamos em nosso


lagarto, fomos direto para a Guilda dos Aventureiros. Uma multidão
diversificada de aventureiros clamava ao redor da Guilda dos
Aventureiros de Porto Vento. Não era uma visão estranha, mas
parecia que havia um número considerável de humanos presentes
no local. Depois que cruzasse para o Continente Millis, seus
números de certo aumentariam exponencialmente.

Quando fui verificar o quadro de avisos, como sempre fazia, a


expressão no rosto de Ruijerd era incerta.

— Não íamos atravessar o mar de imediato?

— Só estou olhando. De qualquer forma, ouvi falar que a renda


no Continete Millis é melhor.

Seria possível ter uma renda melhor no Continente Millis já que a


moeda era diferente. A moeda do Continente Milis era dividida em
seis tipos: o dólar real, o dólar geral, moedas de ouro, moedas de
prata, moedas de cobre grande e moedas de cobre. Comparando
isso com a moeda do Continente Demônio, mais barata, que era a
moeda de pedra:

1 dólar real = 50.000 moedas de pedra;

1 dólar geral = 10.000 moedas de pedra;

1 moeda de ouro = 5.000 moedas de pedra;

1 moeda de prata = 1.000 moedas de pedra;

1 moeda de cobre grande = 100 moedas de pedra;

1 moeda de cobre pequena = 10 moedas de pedra.

Uma missão de rank B no Continente Demônio rendia cerca de


cinco a dez moedas de sucata. Isso seria convertido em 150 a 200
moedas de pedra. Se as missões de rank B do Continente Millis
valessem – suponhamos – cinco moedas de cobre grande, isso
daria 1.500 moedas de pedra. Isso era dez vezes mais. Seria mais
fácil juntar dinheiro no Continente Millis.

Dito isso, se tivéssemos tempo para matar antes que nosso navio
estivesse pronto, provavelmente aceitaríamos um dos empregos
locais. Geralmente, isso significaria missões de rank B. As missões
de rank A e S não eram apenas perigosas, como a maioria delas
levava mais de uma semana para ser concluída. Se quiséssemos
uma renda diária consistente, tarefas de rank B eram nossa melhor
opção. Também era por isso que eu não tinha planos de elevar
nosso grupo ao rank S, porque isso significaria que não poderíamos
mais aceitar missões de rank B.

Na verdade, como um grupo de rank A, já poderia aceitar


missões de rank S, então sempre questionei a necessidade de
existir um rank S no sistema de classificação de grupos. Quando
perguntei a um dos membros da guilda sobre isso, me disseram que
havia benefícios especiais para alguém que subisse para o rank S.
Não perguntei mais, mas imaginei que isso significava obter
descontos maiores para hospedagem, receber empregos de melhor
qualidade na guilda ou a garantia de que fariam vista grossa para
alguns dos comportamentos ilegais de um grupo. Ou algo do tipo.

Aqueles que se beneficiavam mais com essas vantagens eram


principalmente os aventureiros que mergulhavam em labirintos.
Nosso grupo não tinha planos assim. Era perigoso e demorava dias
para terminar tal empreendimento. Nossas missões eram
principalmente de rank B, e não tínhamos planos de subir para o
rank S nem tão cedo.

Eris, é claro, discordava nesse ponto.

Desacordos à parte, éramos aventureiros interessados


principalmente em ganhar dinheiro, então se ir para o Continente
Millis era a maneira mais rápida de fazer isso, embarcar em um
navio o quanto antes era do nosso interesse.

— A propósito, de onde saem os barcos? — perguntei.

— Do porto, é claro.

— Sim, mas de que lugar do porto?

— Pergunte a alguém — disse Ruijerd.

— Sim senhor.

Fui até o balcão. Atrás dele estava uma mulher humana. Na


verdade, a maioria dos funcionários tendia a ser mulheres e, por
algum motivo, tendiam a ser generosamente dotadas,
provavelmente para fins estéticos.

— Eu gostaria de ir para o Continente Millis — expliquei. — Você


sabe o que devo fazer para chegar lá?

— Por favor, encaminhe essas perguntas ao posto de controle.

— Posto de controle?

— Depois de subir em um barco, você estará além das fronteiras


de nosso país.
Em outras palavras, a guilda não tinha jurisdição sobre viagens
internacionais, portanto, seu pessoal não tinha a responsabilidade
de me orientar nesses assuntos. Hm. Nesse caso, era hora de ir em
direção ao posto de controle. Então, quando estava prestes a pedir
uma explicação mais detalhada…

— Ei, você!

Uma voz alta ecoou pelo lugar. Quando olhei para trás, Eris havia
socado algum homem humano. Parecia que nossa ogiva nuclear
estava se sentindo particularmente explosiva.

— Quem e onde você pensa que estava tocando?!

— F-foi um acidente! Afinal, quem iria querer tocar em um


traseiro igual ao seu?

— Eu não me importo se foi um acidente ou não! Não aceito suas


desculpas! — Eris tinha se tornado bastante proficiente na língua
Demônio. Quanto melhor ficava, mais frequentemente entrava em
brigas. No final das contas, parece que saber o que os outros
falavam não era algo lá muito bom.

— Gahahaha! O que é isso, uma briga?!

— Vá em frente, pegue-o!

— Vamos lá, não deixe uma criança chutar seu traseiro!

Brigas entre os membros da guilda eram uma ocorrência diária


tão comum que a guilda nem se importava em se envolver. Na
verdade, parte do pessoal até participava fazendo apostas.

— Vou esmagar você sob meus pés!


— M-me desculpe, eu admito a derrota. Por favor, deixe-me ir,
não agarre minha perna, paaaare!

Enquanto eu estava distraído, Eris jogou o homem no chão.


Ultimamente, ela se tornou uma especialista em enrascar as
pessoas contra a parede. Iria avançar sem aviso e dizimar seu
oponente com uma precisão incrível. No tempo que passei me
perguntando com o que poderia estar chateada, a garota já tinha
seu pé pressionado firmemente no ponto fraco de seu oponente.
Aqueles aventureiros de rank C não eram páreo para ela.

Sempre que suas brigas chegavam a um certo ponto, Ruijerd


intervinha.

— Pare — disse.

— Sai dessa, eu não vou parar!

— Você já ganhou — disse Ruijerd. — Já chega.

O mesmo espetáculo de sempre. Eu realmente não poderia


impedir. Principalmente porque minha maneira de impedi-la era
jogando meus braços em volta dela por trás, então minha vida
estaria em perigo.

Alguém gritou:

— Um careca e uma ruiva feroz…! Vocês poderiam ser o Fim da


Linha?

O silêncio caiu no salão, e então:

— Fim da Linha… Você quer dizer aquele demônio da raça


Superd…?
— Idiota! O nome do grupo. Todos os últimos rumores foram
sobre esses falsários!

— Também ouvi rumores sobre a coisa real.

Hein?

— Ouvi dizer que são brutais, mas ele não é um cara de coração
ruim.

— Então ele é brutal, mas é legal? Vamos lá, isso é contraditório.

— Não, eu quis dizer que nem todos são brutais. — A guilda


mergulhou em murmúrios abafados.

Foi a primeira vez que passamos por algo do tipo. Pelo visto,
nosso grupo havia se tornado bastante famoso. Acho que, no final
das contas, não precisaríamos divulgar o bom nome de Ruijerd
desta vez, hein?

— Bem, eles são um grupo de rank A com apenas três pessoas.

— É, isso é incrível. Sendo verdade ou não, devem ser eles.

— O Cão Louco Eris e o Cão de Guarda Ruijerd, certo?

Os dois tinham apelidos! Cão Louco e Cão de Guarda, hein?


Fiquei curioso sobre o motivo para ambos serem cães. Além disso,
que tipo de cão será que eu era? Tentei imaginar isso por um
minuto. Certamente não seria um cão de briga. Eu não tinha feito
nada grande o suficiente para ganhar tal título, e também não
parecia algo galante. No passar do tempo, fui sempre o líder do
grupo. Então, talvez um nome mais intelectual, como Cão Fiel.
— Então aquele anão ali deve ser o Mestre do Canil Ruijerd!

— Ouvi dizer que o Mestre do Canil é o mais desagradável de


todos.

— Sim, tudo o que ele fez foram coisas horríveis.

Como assim!!

Não só o apelido era diferente do que eu imaginava, como nem


se lembravam do meu nome! Não, espera, mas era verdade que eu
usava o nome de Ruijerd o tempo todo, certo? Ainda assim, sempre
que eu fazia algo bom, sempre proclamava: “Sou o Ruijerd do Fim
da Linha, e não se esqueça disso!” Enquanto isso, toda vez que
fazia algo ruim, gargalhava alto e dizia: “Meu nome é Rudeus,
bwahahaha!” Então, não deveriam ter confundido os dois, certo?

Hmm. Depois de um ano inteiro de trabalho árduo, foi um pouco


chocante descobrir que as pessoas se lembravam do nome de
todos, menos do meu. Ah, bem. Parecia que tinha uma imagem
negativa ligada a mim, mas pelo menos as pessoas não estavam
usando meu nome verdadeiro. Além disso, Mestre do Canil não era
um título tão ruim. O que será que Eris pensaria disso?

— Mas ele é muito pequeno.

— Aposto que também é pequeno lá, já que é criança e tudo


mais!

— Ei, ei! Dizem que se você o insultar, ele solta os cães em você!

— Gahahaha!
Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, estavam
todos rindo de mim por causa de algo completamente sem sentido.
Entretanto, isso só era pior para eles. Eu ainda estava crescendo (e
muito bem), então, sim, podia ser só um brotinho de bambu no
momento. Mas o dia em que aquilo cresceria e se tornaria uma
árvore robusta e magnífica não estava longe.

Ah, esqueça isso. Se continuássemos sendo ridicularizados


assim, Eris voltaria ao modo de raiva demoníaca… ou assim pensei.
Em vez disso, ela continuou enviando olhares na minha direção
enquanto corava. Aww, que adorável.

— Eris, qual é o problema?

— N-não é nada!

Heh heh heh. Se você está tão interessada, por que não dá uma
olhada enquanto eu tomo banho esta noite? Não se preocupe,
explicarei tudo para Ruijerd. Se quiser, podemos até ficar juntos.
Claro, uma mão, perna, corpo ou mesmo uma língua pode acabar
escorregando no processo…

De qualquer forma, chega de brincadeiras. Era hora de


seguirmos para o posto de controle. Eu sairia do lugar com toda a
dignidade esperada de um “Mestre do Canil”.

— Senhorita Eris, Senhor Ruijerdoria! Vamos embora!

— Por que você distorceu meu nome desse jeito…?

— Hmph!
Partimos com a atenção da maioria da guilda direcionada a nós
três.

✦✦✦✦✦✦✦

Chegamos ao posto de controle. A cidade estava localizada no


Continente Demônio, mas o barco que queríamos embarcar nos
levaria ao País Sagrado de Millis. Se estivesse carregando alguma
bagagem, teria que pagar impostos, e a entrada no próprio país
também custaria dinheiro. Isso era para prevenir o crime ou
simplesmente uma oportunidade para lucrar. Deixando minhas
curiosidades de lado, pagaríamos se dissessem que fosse
necessário.

— Quanto isso nos custará? Nosso grupo é composto por dois


humanos e um demônio.

— Dois humanos seriam cinco moedas de prata. Qual tribo de


demônios?

— Superd.

O oficial do posto de controle desviou o olhar para Ruijerd com


um sobressalto. Quando percebeu que ele era careca, soltou um
suspiro pesado, como se estivesse incomodado por apenas se
dirigir a nós.

— Serão duzentas moedas de minério verde para o Superd.

— D-duzentas?! — Agora foi a minha vez de ficar em choque. —


P-por que tão caro?!

— Tenho certeza que você já sabe a resposta.


Claro que sabia! Eu tinha viajado com Ruijerd por um ano inteiro,
como não saberia? Havia tanto desprezo pela tribo Superd que
todos os seus membros foram perseguidos sem motivos. Mesmo
assim, essa taxa era muito alta.

— Mas por que uma quantia tão incrivelmente alta?

— Não me questione. Pergunte à pessoa que decidiu sobre isso.

Eu pressionei.

— Bem, por que você acha que é tão caro?

— Uh, bem, para prevenir o terrorismo, tenho certeza, no caso de


alguém trazer algum como escravo e o soltar no Continente Millis.
— Bem, essa era a sua interpretação. Em outras palavras, eles
estavam tratando o Superd como se fosse uma bomba-relógio. —
Vocês são aqueles caras, Fim da Linha, certo? Do falso Superd.
Quando embarcarem, verificarão sua sub-raça. Não seja inflexível e
desperdice duzentas moedas de minério verde aqui, já que de
qualquer jeito vão descobrir tudo.

As palavras de cautela do oficial foram um tipo de bênção


disfarçada. Isso significava que não seríamos capazes de fingir que
Ruijerd era da tribo Migurd, já que seríamos descobertos de
qualquer maneira.

— Se você mentir sobre sua tribo, não precisa pagar multa, não
é?

— Só vai perder o dinheiro que desperdiçou com a mentira. —


Em outras palavras, desde que pagássemos o valor pedido,
estaríamos bem. O poder do dinheiro era impressionante.
✦✦✦✦✦✦✦

O sol já estava se pondo quando partimos do posto de controle.


Decidimos voltar para a pousada e comer. Nos forneceram a
culinária única de uma cidade portuária. O prato principal era do
tamanho de um punho, cozido no vapor de vinho de arroz com um
toque de manteiga de alho. Estava delicioso, era sem dúvida a
melhor coisa que comi desde que chegamos ao Continente
Demônio.

— Isso é tão bom! — falou Eris, feliz enquanto mastigava, suas


bochechas estufadas de tanta comida.

No ano passado, ela havia se esquecido completamente dos


modos à mesa costumeiros do Reino Asura. Começou a cortar tudo
usando a faca na mão direita, depois apunhalava os pedaços e os
colocava direto na boca. Pelo menos não estava comendo com as
mãos, mas não havia nada de gracioso ou refinado nisso. Edna, sua
tutora de etiqueta, certamente seria reduzida às lágrimas se
pudesse ver a atual Eris. Isso também era minha responsabilidade.

— Eris, suas maneiras à mesa estão horríveis!

Munch, munch.

— Quem diabos se importa com boas maneiras?

Em comparação, as maneiras de Ruijerd eram muito melhores,


embora também não fossem elegantes. Ele não usava a faca, mas
sim o garfo tanto para cortar a comida quanto para comer. Deslizava
o talher pelo peixe tão facilmente quanto se fosse manteiga. As
habilidades de um especialista, sem dúvida.
— Bem, eu sei que ainda estamos no meio de nossa refeição,
mas vamos começar nossa reunião de estratégia.

— Rudeus, falar durante uma refeição é falta de educação —


disse Eris, de repente usando a expressão de uma verdadeira lady
em seu rosto.

✦✦✦✦✦✦✦

Começamos nossa reunião assim que a refeição terminou, com


as barrigas cheias.

— A travessia do mar vai custar duzentos minérios verdes. O


valor é ridículo.

— Sinto muito. É tudo por minha causa. — O rosto de Ruijerd se


anuviou.

Mesmo eu nunca imaginei que custaria tanto. Francamente,


subestimei o valor da taxa. Achei que ganhar umas moedinhas ao
longo do caminho nos permitiria cruzar o oceano com facilidade. Na
realidade, eram cinco moedas de prata para humanos. Até mesmo
outras tribos de demônios pagariam uma ou duas moedas de
minério verde, no máximo. Apenas as taxas para a tribo Superd
eram anormalmente altas.

— Bem, não vamos dizer coisas assim, Papai.

— Eu não sou seu pai.

— Eu sei — falei. — Foi só uma brincadeira.

Tirando isso, duzentas moedas não eram uma quantia comum de


dinheiro. Mesmo se priorizássemos aceitar empregos de rank S e A,
levaríamos anos para economizar tanto. Parecia que o Continente
Millis realmente não queria nenhum Superd cruzando suas
fronteiras.

— Estamos em um beco sem saída. Não podemos simplesmente


deixar Ruijerd para trás.

Deixá-lo para trás seria a maneira mais rápida de fazer a


travessia. Nós dois já éramos aventureiros bastante experientes,
então poderíamos continuar nossa jornada mesmo sem ele. Mas,
mesmo assim, eu não tinha a menor intenção de fazer isso. Ruijerd
ficaria conosco até o fim de nossa jornada. Afinal, nossa amizade
era eterna e inquebrável.

— Claro que não vamos deixá-lo para trás.

— O que faremos?

— Nós temos… três opções — falei, levantando o número


correspondente de dedos. Sempre existem três opções para tudo.
Uma seria seguir em frente, uma seria voltar e a outra seria ficar
onde estávamos.

— Ah.

— Incrível, temos mesmo três opções? — perguntou Eris.

— Heh heh! — Soltei uma risada.

Espera aí, pensei. Eu ainda não pensei em todas elas.


Vejamos…

— A primeira opção é um ataque frontal: ficamos aqui, ganhamos


dinheiro e viajamos para o Continente Millis pagando a taxa.
— Mas se fizermos isso…

— Sim, vai demorar muito — concordei.

Se priorizássemos o ganho de dinheiro, poderíamos economizar


a quantia necessária em menos de um ano. No entanto, não havia
garantia de que algo não aconteceria em algum momento, tipo
perdermos nossas economias.

— A segunda opção: entramos em um labirinto e obtemos um


cristal ou item mágico. Seria uma tarefa trabalhosa, mas podemos
conseguir o dinheiro necessário em uma única missão. — Um cristal
mágico teria um preço alto. Quanto exatamente, não sei dizer, mas
se entregássemos ao oficial no posto de controle, ele poderia deixar
até um Superd passar.

— Um labirinto! Gostei do som disso! Vamos fazer isso!

— Não. — Ruijerd recusou o plano de imediato.

— Por que não?!

O Superd poderia facilmente detectar criaturas vivas com seu


sexto sentido, mas as armadilhas dentro de um labirinto
provavelmente seriam um assunto diferente.

— Mas eu quero — disse Eris, fazendo beicinho.

— É uma opção, mas eu prefiro evitar.

Podíamos ficar bem se procedessemos com cautela, mas como


eu era bastante descuidado com meus passos, com certeza
cometeríamos um erro fatal em algum ponto. Pareceu prudente
ouvir as palavras de Ruijerd sobre a ideia.
— A terceira opção: encontramos um contrabandista nesta
cidade que pode nos levar.

— Um contrabandista? O que diabos é isso?

— Onde há fronteiras de dois ou mais países, você geralmente


tem que pagar impostos para transportar as coisas. É por isso que
nos disseram para pagar uma taxa. Se for um comerciante,
provavelmente terá que pagar impostos sobre suas mercadorias,
certo?

— Eu não sei, precisa?

— Sim, precisa — respondi. Caso contrário, não haveria sentido


em cobrar uma taxa maior com base na raça de uma pessoa. — E
provavelmente vão cobrar taxas absurdas para alguns itens.
Portanto, deve haver alguém aqui que faça esse trabalho por um
preço mais barato, além de lidar com mercadorias ilegais. — Bem,
talvez não houvesse. Mas, se houvesse, certamente poderíamos
fazer com que nos levassem por um preço muito mais baixo do que
duzentas moedas de minério verde. Era claro que havia algo de
errado com a taxa no posto de controle. Aquele oficial nos disse que
não seríamos punidos mesmo se mentíssemos sobre a tribo de
Ruijerd.

De qualquer forma, eu tinha acabado de aprender da maneira


mais difícil que o caminho mais fácil é aquele cheio de armadilhas.
Portanto, embora tenha incluído isso como uma opção potencial,
queria evitar fazer qualquer coisa ilegal, se possível. No momento,
as três opções que sugeri eram:

A abordagem direta de ganhar dinheiro e pagar a taxa;


Entrar em um labirinto e matar tudo que aparecesse pela frente;

Fazer um acordo com um contrabandista.

Nenhuma delas era particularmente boa. Ah, claro, tinha mais


uma. Eu poderia vender meu cajado, Aqua Heartia. Ele tinha um
enorme cristal mágico e era uma obra-prima do Reino Asura. Isso
renderia pelo menos dinheiro suficiente para um membro da raça
Superd cruzar o oceano.

Prós e contras à parte, eu não queria vendê-lo, se possível. Era


um precioso presente de aniversário que ganhei de Eris, e também
estava fazendo bom uso dele. E os dois provavelmente não
aceitariam a ideia com muita facilidade.

✦✦✦✦✦✦✦

Naquela noite, uma mensagem divina veio a mim.

O Deus Homem me disse:

— Compre um pouco de comida em uma barraca de rua e


procure sozinho pelos becos.

Parece um verdadeiro pé no saco. Mas, como não tenho outras


opções, tentarei ser otimista e tentar.

— Então você vai fazer isso só porque não tem outra escolha?

Nah, é só que já sei o que vai acontecer desde que você disse as
palavras “comida” e “beco”.

— Sabe mesmo?
Sim, muito clichê, não acha? Deixe-me adivinhar, vou encontrar
uma criança faminta que se perdeu. E ela vai ter um cara estranho
tentando pegá-la. Algo tipo isso?

— Você está corretíssimo. Incrível!

Então a criança vai acabar sendo neta do líder da Guilda dos


Armadores ou algo parecido, certo?

— Heh heh heh. Vamos deixar a surpresa para amanhã.

Que surpresa? Não houve uma única surpresa agradável durante


todo esse tempo. Além disso, cara! Mas que inferno? Já se passou
um ano desde que você fez isso. Até pensei que nunca mais veria
sua cara!

— Ah, veja, da última vez meu conselho não funcionou tão bem
para você, não foi? Então foi um pouco difícil para eu aparecer de
novo.

Huh! Então, no final das contas, parece que o Deus Homem tem
um pouco de vergonha na cara. Mas não tenha a ideia errada,
entendeu? Da última vez fui eu quem errou. Dito isso, o que eu
devia ter feito?

— Bem, se você quiser usar o termo “correto”, então isso


depende de você. A escolha “normal” teria sido transformar aquele
grupo em guardas, assim solidificando sua amizade com Ruijerd.

O quê? Você está me dizendo que a solução era tão simples?

— Isso mesmo. Nunca imaginei que você os tornaria seus


aliados e ganharia a atenção daqueles malandrinhos coniventes da
Guilda dos Aventureiros. Foi bem divertido de se assistir.

Que seja, eu não me diverti nem um pouco.

— Mas, graças a isso, você conseguiu chegar tão longe em só


um ano.

Então está dizendo que os fins justificam os meios?

— A única coisa que importa são os resultados.

Tch, não gosto disso.

— Não gosta, eh? Bem, aí é com você. De qualquer forma, você


parece estar de mau humor, então vou embora.

Espera aí! Há uma coisa que quero confirmar.

— E o que é?

Se eu não preciso pensar muito sobre o conselho que você me


deu, isso significa que as coisas vão correr bem?

— Eu vou achar mais divertido se você pensar bastante nisso.

Aha, então é isso! Esse é o seu jogo. Agora entendi. Valeu pela
dica. Da próxima vez você não vai se divertir tanto.

— Heh heh. Aguardo ansiosamente por isso.

Tá, tá, tá. É claro que aguarda.

Minha consciência se desvaneceu quando essas palavras finais


ecoaram em minha cabeça.
Capítulo 02:
Conexões Perdidas, a Prequela
No dia seguinte, saí e carreguei meus braços com comida de
uma das barracas antes de vagar um pouco pelos becos. Toda a
comida era assada e espetada. Havia algumas vieiras semelhantes
às que tínhamos no Japão, um peixe semelhante à cavalinha e
algumas outras criaturas marinhas que não consegui identificar. O
dono da barraca não esclareceu quais eram seus produtos, e as
barracas de rua tinham uma variedade delas. Então decidi comprar
o que fosse mais fácil de carregar.

Pensei demais nas coisas da última vez que o Deus Homem me


deu conselhos. Assim como um cozinheiro amador adiciona
ingredientes demais a um prato, pensar demais me fez cair em uma
pilha de merda figurativa. Desta vez, seguiria seu conselho ao pé da
letra. Iria seguir suas instruções sem nem pensar, comprar a comida
que me disse para comprar e, então, da mesma forma, traçar meu
rumo através de qualquer evento que iria acontecer em algum beco.
Isso era interpretação de papéis. O que quer que ocorresse a partir
do momento seria completamente não planejado. Não pensaria
muito em nada; agiria da maneira mais simplória possível. Aquele
idiota gostava de se divertir. Estava contando comigo para mais uma
vez pensar demais nas coisas. Se eu não fizesse isso, ele não se
divertiria.

Esses pensamentos me preocuparam enquanto vagava sem


rumo por vários minutos antes de repentinamente perceber algo.

— Espera, isso é exatamente o que ele está esperando, não é?


Fui enganado! Ele me conduziu com sua impressionante
conversa mole e agora eu estava prestes a fazer exatamente o que
ele queria que eu fizesse. Quando percebi isso, fiquei irritado.
Estava dançando bem na palma da sua mão.

Lembre-se de sua intenção original, disse a mim mesmo.


Lembre-se de como você se sentiu na primeira vez que o encontrou.
O Deus Homem não era alguém em quem poderia confiar.

Tudo bem então, seria a última vez que eu faria o que ele disse.
Seguiria seu conselho e veria como as coisas acabariam desta vez,
mas não o obedeceria nunca mais. De jeito nenhum me tornaria sua
marionete e o deixaria me amarrar! Isso!

✦✦✦✦✦✦✦

Marchei pelos becos. Por minha vontade, é claro.

Afinal, por que eu precisava estar sozinho? Esse foi o principal


detalhe de seu conselho. Devia ser algo que Ruijerd e Eris não
aprovariam. Não, não pense demais, disse a mim mesmo. Se você
quer pensar em algo, então pense em como ficará feliz se acabar
sendo algo sexy.

Eu tinha dito a Ruijerd e Eris que ficaria sozinho durante o dia.


Era perigoso deixar Eris por conta própria, então confiei sua
proteção a Ruijerd. Talvez, no exato momento, os dois estivessem
indo à praia.

— Espera… isso não é um encontro? — Em minha mente, vi os


dois juntos na praia pouco antes de suas silhuetas desaparecerem
atrás da sombra de uma grande rocha.
Não, não, não! Sem chances! S-só fique calmo, certo? É sobre
Eris e Ruijerd que estamos falando, certo? Essa não é nenhuma
fantasia sexual. Não é nada mais do que servir como babá. Babá!

Ah! Mas Ruijerd era muito forte, afinal, e Eris parecia respeitá-lo
muito! E ultimamente, ela vinha me tratando como nada mais do que
um Mestre do Canil.

Não, não, por que diabos você está entrando em pânico? Me


repreendi. Respira fundo, está tudo bem. Senhor Ruijerd, você não
a roubaria de mim, certo? Não tenho nada com que me preocupar,
certo? Quando eu voltar, vocês dois não terão misteriosamente se
aproximado, certo? C-confio em vocês, entendeu?!

Na minha cabeça, simulei uma luta com Ruijerd. Não havia como
vencer em um combate de curta distância. Se eu quisesse lidar com
ele, precisava começar em algum lugar fora do seu alcance de
detecção. Então teria que usar a água para acabar com o homem.
Afinal, foi ele que atrapalhou nossa diversão à beira-mar. Eu o
atacaria com água como uma retribuição por isso. Se produzisse
uma grande quantidade de água, poderia jogá-lo no oceano. Fim!
Ele poderia ficar à deriva no mar até se afogar. Mwahaha!

Espere, não me entenda mal. Eu confiava em Ruijerd. É só que,


bem, todo mundo sabe. O amor é um campo de batalha, certo?

✦✦✦✦✦✦✦

Os becos estavam silenciosos. Até mesmo a palavra “beco”


evocava a imagem negativa de um grupo de personagens
inescrupulosos reunidos em um só lugar. Na realidade, garotos
delicados e inocentes como eu podiam ser sequestrados ao andar
por um lugar como este. Neste mundo, o sequestro era uma das
formas mais comuns de crime para se ganhar dinheiro. Claro, se
alguém fosse estúpido o suficiente para me sequestrar, eu
esmagaria seus braços e pernas para os torturar, então pegaria tudo
de valor em suas casas antes de finalmente entregá-los às
autoridades.

— Heh heh heh. Garotinha, se você vier comigo, vou te dar


comida suficiente para te encher.

Como se aproveitando a deixa, uma voz flutuou por um dos


becos. Eu rapidamente espiei em sua direção e vi um homem de
aparência suspeita puxando a mão de uma garota que estava caída
contra a lateral de uma construção.

Foi fácil deduzir o que estava acontecendo. Aquele que se


movesse primeiro venceria, então preparei meu cajado. Depois criei
um Canhão de Pedra modificado com a velocidade e a força de um
jab de um pugilista e mirei nas costas do homem. No último ano
fiquei muito bom em limitar o poder de meus feitiços.

— Owch!!

Quando ele olhou por cima do ombro, fiz outro disparo. Desta
vez, foi um ligeiramente reforçado.

— Gah!

O feitiço atingiu sua cara com um baque violento, onde se


quebrou e desmoronou no chão. O homem cambaleou e tropeçou
antes de desmaiar. Eu tinha certeza de que ele não estava morto.
Fiz um bom trabalho restringindo meu poder.
— Mocinha, você está bem? — Tentei parecer o mais legal e
controlado possível enquanto estendia a mão para a garota que
quase tinha sido sequestrada.

— S-sim… — Ela era jovem e vestia um traje de couro preto


revelador: botas de cano alto, shorts curtinhos e um top tubinho. A
pele pálida de sua clavícula, cintura fina, umbigo e coxas estava
toda exposta. Além de tudo isso, ela tinha chifres de cabra e um
cabelo roxo volumoso e ondulado.

Com apenas um olhar eu soube: era uma súcubo. E uma das


jovens. Não havia dúvida de que ela era mais jovem do que eu.
Talvez fosse a maneira de o Deus Homem me recompensar pelo
meu trabalho árduo. Talvez, afinal de contas, o sujeito tivesse algum
bom senso.

Não, espera, não era uma súcubo. Até onde eu sabia, não havia
nenhuma delas entre as raças de demônios. Se bem me lembrava,
as súcubos habitavam o Continente Begaritt. Paul estava com uma
expressão estranhamente tensa no rosto quando me disse: “Nossa
raça não tem chance contra elas.” Mesmo eu poderia ficar impotente
diante de uma súcubo se realmente encontrasse alguma. Súcubos
eram o inimigo natural da família Greyrat.

Tirando isso, não havia monstros nos limites da cidade. Em


outras palavras, ela não era uma súcubo. Era apenas uma criança
demônio em roupas minúsculas.
— V-você… você aí, o que…? — Ela estava tremendo como uma
corça. — E-este homem é… Ele é…! — Ela tinha uma expressão de
total descrença no rosto. Um olhar de: Ai, minha nossa, senhor, o
que você fez?!

— Ah, foi mal. Você o conhecia? — perguntei, inclinando minha


cabeça. A expressão no rosto daquele homem de meia-idade não
me deu a impressão de que conhecia essa criança. Se fosse
descrevê-lo, teria algo como a aparência de um homem que já
passou da flor da idade se sentindo excitado por uma garotinha.
Olhe só para ele, o rosto corado estava contorcido em um sorriso,
embora estivesse inconsciente. Eu não tinha dúvidas de que o
sujeito a levaria para casa e forneceria uma refeição generosa e
depois a colocaria na cama, mas em troca esperaria uma noite
longa e quente.

— Minha barriga dói de tanta fome… e este homem ia me dar


uma refeição. — Um estrondo ruidoso e gorgolejante pontuou sua
frase, alto o suficiente para que pudesse ser o prenúncio de um
terremoto. Quando o barulho parou, os joelhos da garota cederam e
ela desabou.

— V-você está bem? — Ajoelhei-me e a levantei em meus


braços. Ela não estava fugindo. Não me interpretem mal, porém, a
única razão pela qual eu estava lá era para seguir o conselho do
Deus Homem e a salvar. Eu não era da mesma espécie daquele
pervertido de um momento atrás.

— Guh… urgh… já se passaram trezentos anos desde que eu


revivi. Desmaiar em um lugar como este é inconcebível. Laplace
nunca pode descobrir sobre isso.
Parecia que tinha tropeçado no set de filmagem de algum mini-
drama. Este traje era realmente um cosplay ou algo assim?

— De qualquer forma, coma isso e recupere um pouco da sua


força. — Enfiei três dos espetos que comprei em sua boca.

Munch, munch. No momento em que a comida entrou em sua


boca, seus olhos se abriram e permaneceram assim enquanto ela
devorava a carne em segundos. Então a garota tomou os outros
espetos de mim. Eu tinha um total de doze, mas em um estalar de
dedos ela já havia comido dez deles.

— U-uau! Delicioso! É a primeira coisa que como em um ano e é


tão saborosa! — A garota parecia ter se recuperado. Ela saltou de
sua posição de bruços, fazendo uma única rotação antes de cair de
pé. Sua forma estava inesperadamente boa.

— Um ano? Não sei quais são as suas circunstâncias, mas isso


é um pouco extremo. — Não era como se ela fosse um isópode
gigante que poderia viver anos sem comer e não morrer de fome.

— Hm? Bem, não é como se eu tivesse contado o nascer e o pôr


do sol, mas com o quão vazio meu estômago estava, deve ser mais
ou menos isso.

Aham. Então ela provavelmente não comia há uns dois dias.

— Apesar de tudo, você me salvou! Você! Com certeza agora


consigo suportar mais um ano! — A jovem finalmente encontrou
meu olhar. Ela tinha olhos diferentes, um roxo e outro verde. Esse
devia ser outro aspecto de seu cosplay. Não, lentes de contato
coloridas não existiam neste mundo, então talvez essa fosse a cor
natural de seus olhos.

— Ah? — Seu olho direito girou e ficou azul. E-eca!

— Uau! Opa! O que há de errado com você, você é terrivelmente


nojento! O que é isso, o que é?! Ahahaha! Nunca vi algo assim
antes! — gritou ela com muito entusiasmo enquanto olhava para o
meu rosto.

Uh, sim, nem preciso dizer que foi um choque. Já fazia muito
tempo desde a última vez que alguém me olhou no rosto e me
chamou de nojento. Então, parando para pensar, achei a mesma
coisa quando olhei para ela. Pelo visto, ao menos estávamos quites.

— Poderia ser isso? Você era um dos gêmeos no ventre, mas o


outro morreu quando você nasceu, é isso?

Hein…? Do que ela estava falando?

— Não, não acho que nada parecido tenha acontecido.

— Você tem certeza?

— Sim.

— Mas sua reserva de mana… É maior que a de Laplace.

A minha o que era maior que a de quem? Eu não tinha ideia do


que ela estava falando. Desde seu jeito estranho de falar até seus
olhos esquisitos, essa criança era uma enorme decepção.

— Fora isso, diga seu nome!

— Rudeus Greyrat.
— Muito bom! Eu sou Kishirika Kishirisu! As pessoas me
chamam de Grande Imperador do Mundo Demônio! — Ela
orgulhosamente empurrou seus quadris para frente com as mãos
apoiadas em sua cintura.

Suas coxas apareceram na minha frente tão de repente que


passei minha língua sem nem pensar.

— Aaaaah! O que está fazendo?! Que nojento! — Ela virou os


dedos dos pés para dentro e esfregou vigorosamente as coxas no
local onde a lambi, antes de voltar a olhar para mim.

Ainda assim, agora eu entendi. O Grande Imperador do Mundo


Demônio Kishirika Kishirisu era um nome que eu já tinha ouvido
antes: o imortal Imperador Demônio que liderou os demônios na
Grande Guerra Demônio Humano, apenas para se deparar com
uma derrota esmagadora.

Ela era a coisa real? Afinal, fui ao local seguindo um conselho do


Deus Homem. Havia uma possibilidade de que ela realmente fosse
quem afirmava. Ainda assim, como a coisa real poderia estar em um
beco de uma cidade nos limites do Continente Demônio, à beira da
morte por inanição? Simplesmente não parecia provável, não
importa quanto pensasse no assunto.

Ah, provavelmente é isso, percebi. As crianças deste continente


adoravam fingir que eram alguns dos grandes heróis do passado. A
mais popular dessas figuras era o Deus Demônio Laplace. Isso era
nauseante para mim, já que sabia a verdade sobre ele, mas o
sujeito era popular. Mesmo tendo perdido a guerra, subjugou com
sucesso todas as tribos do continente e deu ao povo um lugar fixo
para chamar de lar, trazendo assim a paz. Ele era considerado um
dos maiores demônios da história. As crianças frequentemente
contavam suas histórias, especialmente sobre o episódio em que
lutou com um Rei Demônio imortal. Era o que eu tinha visto
inúmeras vezes no caminho para Porto Vento.

Supus que o Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika,


era outra das grandes pessoas da história, mas nunca tinha visto
nenhuma criança fingindo ser ela antes. Essa garota devia ser uma
fã apaixonada do Grande Imperador. E ela não tinha amigos com
quem brincar, era por isso que estava aqui, sozinha, em um beco
como este. Era a maneira mais lógica de interpretar a situação.

Hm. Ficar sozinho era algo solitário. Então fiquei sem escolhas.
Teria que participar da brincadeira.

— A-ah, sim! Que grosseria da minha parte, Vossa Majestade! —


respondi a sua apresentação com grande exagero e me ajoelhei
como se fosse um de seus criados.

— Oh? Aah, claro! Muito bom, muito bom! Esta é a reação que
eu estava esperando! Os jovens de hoje em dia não têm mais
educação, sabe! — Ela balançou a cabeça satisfeita.

É, eu sabia disso. Ela realmente queria alguém com quem


brincar.

— Que tolo fui por não perceber que você tinha revivido. Por
favor, perdoe-me por minhas maneiras precárias!

— Muito bem. Você salvou minha vida. Concederei qualquer um


de seus desejos, mas apenas um.
Sua vida? Tudo o que fiz foi dar um pouco de comida porque ela
estava com fome.

— Hum… que tal riqueza sem fim!

— Tolo! Você pode ver que estou sem um tostão!

Mas ela disse que eu poderia pedir qualquer coisa! Não, espera,
talvez isso fosse parte da encenação. Talvez tenha havido algum
episódio em que alguém pediu dinheiro ao Grande Imperador
apenas para ela responder que não tinha nada.

— Tudo bem então, por favor, me dê metade do mundo.

— O quê?! Metade do mundo, você diz?! Isso é demais! E, bem,


isso continua sem graça. Por que só metade?

— Ah, isso é porque não preciso dos homens. — Ah, merda, sem
querer deixei meus verdadeiros sentimentos transparecerem. Isso
não era algo que ela deveria ouvir.

— Entendo, então é isso. Você pode ser jovem, mas é um dos


lascivos. Ainda assim, sinto muito. Não consegui tomar o mundo
nem para mim.

É verdade que Kishirika havia perdido todas as batalhas em que


liderou os demônios.

— Tudo bem, então fico satisfeito com o seu corpo. Por favor,
pague-me com seu corpo.

— Ehh? Meu corpo? Por ser tão cheio de luxúria mesmo na sua
idade, fico preocupada com o seu futuro.
— Ha ha, é claro que só estou brincando…

Enquanto tentava dizer que estava brincando, ela pegou em seu


short colado.

— Ah, bem, acho que não há como evitar. Esta é a minha


primeira vez desde que revivi, então seja gentil comigo, certo? — As
bochechas de Kishirika brilharam enquanto ela lentamente
começava a abaixar os shorts.

Hein? É sério? Eu só estava falando aquilo como uma piada.


Não, espere! Agora era tarde demais para dizer que estava apenas
brincando. Teria que apenas a observar se despindo e, depois de
recusar, alegaria que era indigno de Sua Majestade.

— Ah, não, eu não devo fazer isso. — Antes que eu pudesse


fazer qualquer coisa, Kishirika se conteve. — Já tenho noivo. Sinto
muito, mas não posso fazer isso. — A pele que ela expôs sumiu
quando ela puxou a roupa para cima. Parecia que estava brincando
com meu pobre e puro coração.

De qualquer forma, era um não ao dinheiro, ao mundo e ao


corpo.

— Tudo bem, então o que você pode fazer? — perguntei.

— Tolo! Eu sou Kishirika, o Grande Imperador do Mundo


Demônio! É óbvio o que posso te dar! Olhos demoníacos!

Então era isso. Bem, eu não era muito versado na mitologia


heróica deste mundo. Pensando bem, Ghislaine também não tinha
um olho demoníaco?
— Por “olhos demoníacos”, quer dizer olhos que podem ver a
linha vital de alguém? Uma linha que, se cortada, vai com certeza
absoluta matar a pessoa?

— Que horrível! O que no mundo é esse poder?! Não tenho nada


tão assustador assim!

Então não era o caso. O único outro tipo de olho demoníaco que
eu conhecia era o que transformava a pessoa para quem se olhava
em pedra. Percebi que olhos que disparam raios ou lasers não
poderiam ser considerados olhos demoníacos.

— Para você cobiçar um poder tão perigoso… Diga-me, guarda


tanto rancor contra alguém? — perguntou ela.

— Não, não exatamente.

— Nada de bom vem com a vingança. Já fui morta duas vezes,


mas agora não invejo aqueles que me mataram. O rancor é uma
corrente que o pressiona. Foi isso que deu início à Grande Guerra
Demônio Humano.

Eu estava levando um sermão de uma garotinha! Bem, não era


como se eu tivesse planos de atacar algum vampiro em algum lugar
e depois os erradicar.

— Para ser honesto, realmente não sei muito sobre olhos


demoníacos — falei. — Que tipos existem?

— Hm, como só revivi recentemente, não possuo nada lá muito


significativo, mas existem Olhos de Poder Mágico, Olhos de
Identificação, Olhos de Visão de Raio-X, Olhos de Visão à Distância,
Olhos de Previsão e Olhos de Absorção… São coisas assim.
Esses eram apenas os nomes.

— Você pode me explicar o que cada um deles faz?

— Hm? Quer dizer que não sabe? Sinceramente, os jovens de


hoje em dia não dedicam tempo suficiente aos estudos… — Apesar
dessas reclamações, ela começou a explicar: — Primeiro, os Olhos
de Poder Mágico. Com eles, poderá ver a mana. São os mais
comuns. Uma em cada dez mil pessoas possui um deles.

— Ah, então é o mais popular, hein.

— Olhos de Identificação. Você pode usá-los para identificar


objetos e seus detalhes. No entanto, só podem fornecer
informações que eu conheço. Qualquer coisa que não conheço será
reportada como desconhecida.

— Entendi. Então é igual a um dicionário.

Ela continuou:

— Olhos de Visão de Raio-X. Eles podem ver através de objetos


e paredes. Você não pode ver através de criaturas vivas ou lugares
com alta concentração de mana, mas poderia se fartar vendo todas
as garotas que quisesse nuas. Perfeito para um pervertido como
você, não acha?

— Contanto que eu não acabe vendo apenas os ossos — falei


mantendo um humor impassível.

— Olhos da Visão à Distância. Podem ver as coisas a uma


grande distância. Mas acaba sendo difícil manter a concentração.
Embora você possa ver as coisas de longe, na verdade não pode
fazer nada para influenciar o que está acontecendo, então eu não te
recomendaria isso.

— Não adianta olhar se não puder tocar — concordei.

— Olhos de Previsão. Podem ver coisas que acontecerão alguns


momentos antes. Também é difícil manter o foco, mas esse eu
recomendo.

— As empresas que gostam de estar um passo à frente


adorariam algo assim.

— Olhos de Absorção. Esses olhos podem consumir mana. Isso


inclui a mana que você usa, então eu realmente não os recomendo.

— Algo como jogar água e passar o pano, eh?

Kishirika era muito experiente. Devia ter aprendido todas essas


coisas em algum lugar. Talvez seus pais fossem bem instruídos. Ou
talvez houvesse um livro sobre todos os tipos de olhos demoníacos
por aí.

— Tudo bem, então vou querer dois, para que meus dois olhos
possam ser olhos demoníacos.

— Você quer dois desde o início? — perguntou ela. — Você é


mais ganancioso do que parece.

— Vamos, vou te dar outro espeto de carne.

Estendi meus dois últimos espetos e ela os pegou com um


enorme sorriso.
— Ebaa! Nom, nom… Sabe, eu não me importo em te dar dois
olhos demoníacos, mas não recomendo.

— Por que não? — perguntei.

— Você não vai querer os usar o tempo todo. A maioria das


pessoas geralmente cobre o olho do demônio com um tapa-olho. Se
tiver dois deles, não será capaz de ver nada.

— Ahh, agora que você mencionou, eu conheço alguém que usa


um tapa-olho. — Ghislaine, minha mestra da espada, usava um.
Mais tarde descobri que não era porque havia perdido um olho, mas
porque tinha um olho demoníaco.

— Além disso, uma pessoa que vive várias centenas de anos


pode ser capaz de controlar dois olhos demoníacos ao mesmo
tempo, mas uma criança como você ficaria louca tentando.

Ficaria louca? Portanto, usá-los devia ter um impactono cérebro.


Assustador.

— Certo, então não vou querer os dois.

— É melhor assim. Bem, qual vai querer? Recomendo o Olho de


Previsão.

Olhos demoníacos, hein? Se eu realmente obtivesse um, qual


preferiria? Pensei muito em cada um deles, mas todos tinham sua
utilidade. O Olho do Poder Mágico parecia ser um desperdício.
Poderia ser útil, mas, novamente, muita gente parecia tê-los. Se eu
fosse comprar um, iria querer um que parecesse mais único.
Realmente não precisava de um Olho de Identificação. Não
saber o que eram as coisas não parecia um grande inconveniente.
Além disso, de qualquer forma, qualquer coisa que o Grande
Imperador Demônio não soubesse seria listado como desconhecido.
Eu poderia imaginar algo assim sendo inútil apenas quando
realmente precisasse.

E também não precisava de um Olho de Visão de Raio-X.


Demoraria um pouco até que pudesse controlá-lo adequadamente,
e imaginei que seria obrigado a ver Ruijerd nu o tempo todo.

O Olho da Visão à Distância podia ser útil, mas no momento não


precisava de algo do tipo. Eu já podia adivinhar o que Ruijerd e Eris
estavam fazendo sem um Olho de Visão à Distância, mas se tivesse
um, provavelmente veria ela ameaçando alguém enquanto ele
tentava a impedir.

Quanto ao Olho da Previsão, certamente consegui ver o motivo


para ela o recomendar. Era verdade que eu não poderia atualmente
derrotar Eris ou Ruijerd no combate corpo a corpo. Afinal, as
criaturas (e pessoas) deste mundo eram rápidas. Ser capaz de ver o
futuro mesmo com poucos segundos de diferença seria uma grande
vantagem para mim.

O Olho da Absorção estava completamente fora de questão. Isso


acabaria com as vantagens que eu tinha como mago. Ainda assim,
era bom saber que esse olho demoníaco existia. Caso contrário,
teria entrado em pânico se encontrasse alguém que pudesse tornar
minha magia completamente ineficaz.
Bem, não importa qual eu escolhesse. De qualquer maneira,
estávamos apenas brincando.

— Tudo bem, dê-me aquele que você recomendou, o Olho da


Previsão.

— Tem certeza? A maioria das pessoas ignora minhas


recomendações e escolhe algo diferente para si mesmas, dizendo
“o que é tão bom em ser capaz de ver alguns momentos do futuro?”

— Se você pode ver pelo menos um segundo do futuro, pode


controlar o mundo. — Mesmo assim, os espadachins deste mundo
eram rápidos. Eu poderia não ser capaz de vencê-los, mesmo com
o poder da previsão. Afinal, havia a Espada Longa da Luz.

— Então não vai querer o Olho da Visão de Raio-X, hein? Não


quer ver o corpo nu de todas as garotas que desejar?

Essa garotinha com certeza não entendeu, não é? Claro, eu


podia ver o corpo nu de qualquer garota ou mulher bonita que
passasse na rua e isso provavelmente me excitaria. Mas era só
isso. Logo ficaria farto. De qualquer forma, o processo de imaginá-
las se despindo era o que eu mais gostava.

— Entendo, entendo. Tudo bem, traga seu rosto aqui.

— Certo.

— E lá vai! — Squelch. Ela enfiou o dedo no meu olho direito.

Uma forte onda de dor passou por mim.

— Gyaaah!
Instintivamente tentei recuar, mas Kishirika me segurou. Eu não
podia me mover. Ela era mais forte do que eu esperava.

Isso machuca, isso machuca, isso machuca, gritava o meu


cérebro.

— Gaaaah! O que diabos você está fazendo, sua pirralha?!

— Ah, cala a boca. Você é um homem, não é? Aguente ao


menos um pouco de dor! — Ela apertou os dedos em volta da órbita
do meu olho como se estivesse mexendo nele, depois os puxou
para fora com um pop! Fiquei completamente cego daquele olho.

— A íris do Olho da Previsão é um pouco diferente da sua cor


normal, mas de longe as pessoas não serão capazes de dizer a
diferença.

— Sua idiota! Há uma diferença enorme entre o que é e o que


não é bom fazer quando se está brincando!

— Eu sou o Grande Imperador do Mundo Demônio. Não iria


“brincar” sobre lhe dar um olho demoníaco.

Droga, meu olho… Meu olho está… Aaaaaaah… espera, o quê?


Fiz uma pausa em meio à confusão. Eu conseguia ver. Mas tudo
parecia em dobro…? O que diabos estava acontecendo? Isso era
nauseante.
— Dependendo de como você fornecer mana a ele, deve ser
capaz de tornar tudo o mais fino possível. Bem, faça o seu melhor
para aprender como usá-lo.

— Hã? O quê? Do que você está falando?

— Estou dizendo que tudo depende de você. — Kishirika parecia


satisfeita consigo mesma, não importa o quão confuso suas
palavras me deixassem. Eu vi uma pós-imagem dela assentindo, e
dentro dessa pós-imagem havia uma sombra espessa. O que era
isso?

— Muito bom… então no final das contas você consegue ver


isso. Pois bem, vou embora. Preciso procurar Badigadi. Muito
obrigada pela comida.

Assim que ela terminou de falar, saltou no ar e pousou no telhado


com um baque.

— Até mais, Rudeus! Bwahahaha! Bwahahahah… gah!

Houve um efeito doppler quando ela partiu, o som de sua risada


alta foi gradualmente desaparecendo. Ouvi aquilo espantado.

— Espera… Ela era a real?

E foi assim que obtive o Olho da Previsão.


Capítulo 03:
Conexões Perdidas, a Continuação
De qualquer forma, comecei a voltar para a pousada e
amaldiçoei minha própria ingenuidade. As pessoas que circulavam
pela cidade estavam todas duplicadas. Qual era o futuro e qual era
o passado? Mesmo que eu pudesse dizer, os movimentos das
pessoas eram imprevisíveis. Continuei julgando tudo errado com
meus olhos e esbarrando nas pessoas.

— Tsk! Olha por onde anda!

Pela aparência do homem, imaginei que fosse um bandidinho


qualquer. Ele tinha uma barba volumosa no queixo e uma cicatriz no
rosto. Não tive a impressão de que era um aventureiro, mas sim
uma das muitas pragas que infestavam a cidade.

— Sim, desculpa. Meus olhos não estão muito bons.

— Seus olhos não estão bons, eh? Então ande fora do caminho!
Sabe, parece que todo mundo que não vê ou escuta direito gosta de
sair pedindo desculpas enquanto anda por aí!

Ele só estava tentando arranjar confusão. Suas ameaças eram


intimidantes, mas eu poderia dizer que o sujeito não estava com
raiva, apenas um pouco irritado.

— De agora em diante vou tomar mais cuidado — falei.

— Isso mesmo, cuidado!

Eu não queria que as coisas piorassem ainda mais, então


apenas segurei minha língua e olhei para o outro lado.
O bandido se precipitou e cuspiu no chão antes de se afastar.
Mas ele parou por um instante.

— Tch… ah, é mesmo — falou. — Só tenho uma pergunta. Viu


um bêbado idiota andando por aqui? Desde ontem que ele não
volta.

Eu vi assim que ele olhou para mim: um vaso de flores


quebrando bem na sua cabeça. O que aconteceu a seguir foi
instantâneo. Canalizei mana com minha mão direita e lancei magia
do vento para o tirar do caminho.

— Gah! — Ele deu uma cambalhota no chão e, em seguida, pôs-


se de pé em uma postura defensiva. O homem sacou sua espada e
a apontou para mim. — Bastardo, o que diabos acha que…

Foi então que o vaso de flores bateu no chão, se espatifando.


Nós dois seguimos sua trajetória com o olhar. Uma mulher de meia-
idade olhou para nós com uma expressão perplexa no rosto.

— E-eu sinto muito! Vocês estão bem?

— Ah, sim, estamos bem!

Ela voltou para a casa depois que eu respondi. O olhar do


bandido voou entre mim, o local onde o vaso havia caído e sua
posição atual. Ele engoliu em seco.

— Umm… sobre aquele cara bêbado, acho que desmaiou em um


dos becos. Provavelmente brigou com alguém. De qualquer forma,
vou embora. — Falei o mais rápido possível antes de virar as costas
para a cena. Não queria me envolver ainda mais com aquele
bandido.
O olho parecia ter sua utilidade, embora fosse um incômodo se
causasse problemas como esse o tempo todo. Decidi trabalhar para
dominá-lo rapidamente.

✦✦✦✦✦✦✦

Voltei para a pousada. Quando disse a Eris e Ruijerd que tinha


encontrado o Grande Imperador do Mundo Demônio, os dois
ficaram pasmos.

— O Grande Imperador do Mundo Demônio? Não pensei que ela


iria reviver. — Ruijerd tinha uma rara expressão de surpresa no
rosto.

— E nunca sonhei que receberia algo como um olho demoníaco


tão de repente.

— Conceder olhos demoníacos é um poder que apenas o


Grande Imperador possui — explicou.

O Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika Kishirisu,


também era conhecido como o Imperador Demônio da
Ressurreição. E seu outro nome era o Imperador Demônio dos
Olhos Demoníacos. Aparentemente, ela não era tão hábil em
combate, mas com doze olhos demoníacos em sua posse, havia
muitas coisas que podia ver que a maioria não podia. Seu poder
mais temível era sua habilidade de transformar os olhos de outra
pessoa em olhos demoníacos. Foi através desse poder que
concedeu olhos demoníacos a todos os seus seguidores, dando-lhe
o poder para governar todas as tribos de demônios. Houve até
mesmo aqueles que se tornaram seus seguidores apenas para
obter mais poder.
— O que ela estava fazendo nesta cidade? — perguntei.

— E quem é que sabe? Eu não tenho ideia do que se passava


nas mentes dos Reis Demônios ou Imperadores Demônios — disse
Ruijerd encolhendo os ombros.

Verdade, pensei. Afinal, você nem sabia as verdadeiras


intenções do Deus Demônio a quem serviu por tantos anos. Mas
não é como se eu fosse dizer algo assim, sabendo que isso só o
deprimiria.

Eris, por outro lado, estava maravilhada com o título de “Grande


Imperador do Mundo Demônio”.

— Isso é incrível. Eu também quero encontrar ela!

— Você quer?

Eris e Kishirika. Que tipo de conversa as duas teriam caso se


encontrassem? Até eu fiquei um pouco curioso. Por mais improvável
que parecesse, poderiam até encontrar algum assunto em comum.

— Me pergunto se ela ainda está na cidade.

— Não tenho certeza — respondi.

Quem sabe? Talvez se eu voltasse pelos becos no dia seguinte,


a encontrasse mais uma vez desmaiada de fome. Parecia uma
daquelas piadas ruins, mas possíveis, levando em conta como ela
era. Mas ainda assim, bastante improvável. Parecia que estava
procurando por alguém, então provavelmente já tinha partido. Era
como se fosse uma garota mágica sendo guiada pela Lei dos Ciclos,
ou algo assim.
— Tenho certeza de que ela provavelmente já deixou a cidade.

— Sério? Isso é muito ruim — disse Eris. De qualquer forma, ela


provavlemente verificaria os becos à sua procura, mesmo depois do
que eu disse.

— De qualquer forma, dito isso, vou ficar na pousada. Vocês dois


estão livres para sair por conta própria.

Cada um dos dois deu um aceno de cabeça.

✦✦✦✦✦✦✦

Demorou uma semana para aprender como usar o olho


demoníaco. Simplificando, não foi lá tão difícil. Seria possível
controlar o olho por meio da mana. Era muito parecido com o modo
como eu usava magia não verbal, o que já havia feito muitas vezes
antes. Por meio da mana, poderia controlar tudo que visse. Fiquei
confuso até que percebi que havia dois tipos de foco. Então as
coisas logo começaram a se encaixar.

Um dos tipos de foco controlava a opacidade, era parecido com o


modo como se muda a opacidade das janelas de um jogo erótico.
No início, estava no máximo, então tudo parecia totalmente
duplicado. Coloquei a opacidade no mínimo possível. Ao canalizar
mana para a parte interna do meu olho, poderia enfraquecer minha
capacidade de previsão o suficiente para ver apenas o presente.
Vislumbres do futuro seriam benéficos, então, ajustei a opacidade
para o ponto exato em que não fosse se tonrar uma distração, mas
que ainda continuasse visível. Então tentei manter as coisas assim.
Se eu perdesse o foco por um segundo, a opacidade mudaria. Levei
três dias até conseguir manter tudo consistente.
O próximo passo seria a duração – ou melhor, a latência. Poderia
mudar o quanto do futuro poderia ver, canalizando mana para a
parte dianteira do meu olho. Eu só conseguia ver cerca de um
segundo do futuro, mas com o uso de mana conseguia ver até dois
ou mais segundos. As possibilidades se desenvolviam em segundas
ou terceiras, igual a um galho e árvore sendo partido e
apresentando diferentes futuros.

Eu podia ver até três ou quatro segundos com mais mana, mas
se tentasse ver cerca de cinco segundos do porvir, a imagem se
dividia e embaçava tanto que me dava dor de cabeça. Isso
representava o tanto de formas que o futuro poderia ter. Além disso,
quanto mais tentava ver o futuro, aparentemente mais isso
sobrecarregava o cérebro. Kishirika até disse que ter dois olhos
demoníacos poderia resultar em loucura. Talvez fosse graças à
influência de todos seus olhos demoníacos que ela parecia uma
cabeça de vento.

Mas, independentemente disso, eu sabia que poderia ver um


segundo do futuro e continuar em segurança. Levei três dias para
dominar isso, depois um dia extra para aprender como controlar
ambos os fatores ao mesmo tempo. No total, levei sete dias para
aprender o básico do uso do meu Olho da Previsão.

✦✦✦✦✦✦✦

Enquanto estava ocupado canalizando mana em meu olho e


comandando: Cumpra minhas ordens, Olho da Previsão! Eris e
Ruijerd iam a algum lugar juntos todos os dias. Quando voltavam,
Eris estava sempre banhada de suor enquanto Ruijerd parecia tão
composto quanto sempre, apenas suando um pouco mais do que o
normal. Deviam estar fazendo algo para suar tanto. E, ainda por
cima, todos os dias!

— Só por saber mesmo, mas gostaria de perguntar. O que vocês


dois estão fazendo?

Eris estava torcendo um pano encharcado de suor quando


perguntei. Ela respondeu:

— Heh heh, isso é segredo! — A garota parecia estar realmente


se divertindo.

Então estava fazendo algo em segredo que não podia me


contar? Ah, entendi. Algumas tardes de prazer, eh? Acho que a
única coisa que eu poderia fazer era me afogar no cheiro daquele
trapo encharcado de suor que ela segurava.

Não tenha a ideia errada – eu não estava particularmente


preocupado com isso. Eles só deviam estar saindo para treinar.
Embora sua atitude pudesse sugerir o contrário, Eris, na verdade,
era do tipo que trabalhava duro em segredo. Quando estávamos na
região de Fittoa, fazia a mesma coisa, frequentemente treinando
com Ghislaine nos dias de folga. Naquela época, sempre que eu
perguntava o que estava fazendo, a garota exibia o mesmo sorriso
cheio de confiança no rosto e dizia: “É segredo!” Então, eu tinha
certeza que desta vez também devia estar treinando.

Naquela noite, tive um sonho com um recluso de trinta e quatro


anos me cutucando na bochecha enquanto sussurrava em meu
ouvido: “De agora em diante seu apelido será perdedor patético.”
Achei que devia ser obra do Deus Homem. Aquele bastardo era
mesmo bom para absolutamente nada.
✦✦✦✦✦✦✦

Uma semana depois, informei Eris e Ruijerd sobre minha


capacidade de controlar o Olho da Previsão. Quando o fiz, Ruijerd
sugeriu: “Então por que você e Eris não lutam?” Era para testar o
quão útil essa coisa seria em batalha? Ou para me mostrar os
resultados de seu treinamento especial? Fazer as duas coisas ao
mesmo tempo seria um ótimo negócio, então topei.

Nós fomos para a praia. Ruijerd ficou à margem para observar


enquanto tomávamos posições opostas um ao outro, empunhando
as espadas.

— Você realmente acha que pode me vencer agora só porque


tem esse olho demoníaco?! — Eris estava se sentindo
particularmente confiante. Devia ter aprendido alguma técnica nova
ou algo do tipo na semana que passou.

Eu queria manter aquele sorriso atrevido em seu rosto.

— Não, tudo bem se eu perder. Só quero saber o quanto posso


ver com este olho durante uma batalha, só isso. — Era por esse
motivo que não usaria magia. Eu também queria ver os frutos do
meu próprio trabalho. Ajustei meu olho para poder ver um segundo
do futuro e a luta começou.

— Hmph, isso soa como algo que você diria, mas…

Eu podia ver o que ela faria mesmo enquanto a garota ainda


estava falando. Eris vai de repente balançar o punho esquerdo na
minha direção. Se eu não tivesse esse olho, não teria sido capaz de
reagir a tempo. Seus ataques preventivos eram algo quase que
natural.

— Hah!

— Oho! — Consegui me esquivar de seu ataque. Rebati batendo


palmas do lado do seu rosto.

Então surgiu a próxima visão. Eris não vai sequer recuar – na


verdade vai dar início a um ataque violento, usando a espada
empunhada em sua mão direita. Esse era o seu ponto forte. Ela
poderia ignorar qualquer número de ataques e lançar-se direto à
ofensiva. A parte inferior de seu corpo era tão forte que a maioria
dos ataques não a faria cambalear. Na verdade, quanto mais dano a
garota tomasse, mais aumentava sua raiva e mais agressivos seus
ataques se tornavam.

— Tah!

— Certo! — Golpeei seu antebraço com força. Eris largou a


espada. Anteriormente, eu teria considerado um momento desses
como o fim da batalha. Deixar sua espada cair indicava a derrota, ou
pelo menos era o que acontecia quando eu estava treinando com
Ghislaine. No entanto, pude ver com meus olhos que isso ainda não
havia acabado.

Eris já está retornando com seus ataques sucessivos.

Em outras palavras, foi apenas uma de suas fintas. Ela largou a


espada para me fazer baixar a guarda.

Vai me dar um soco bem no queixo com o punho esquerdo.


Em outras palavras, soltou a espada de propósito para me atrair
a uma falsa sensação de segurança, para que pudesse se lançar
em seu estilo usual de combate corpo a corpo: o Soco Boreas
especial de Eris.

— O qu…!

— Suas pernas estão abertas. — Enganchei meu pé ao dela,


atrapalhando o seu equilíbrio. Seu punho golpeou o ar vazio e ela
caiu no chão.

Ainda assim, parecia que a batalha não havia acabado.

Eris vai se segurar com as mãos, usar o rebote e o torque para


dar um giro e se agarrar à minha perna direita.

— Uhum. — Recuei e ao mesmo tempo abaixei meus joelhos,


prendendo-a para que não pudesse se mover.

Graças à maneira como ela contorceu seu corpo em uma


tentativa desesperada de me morder, o corpo de Eris ficou todo
torcido. Um braço estava esmagado embaixo dela, enquanto uma
de suas pernas estava dobrada em direção ao seu traseiro. Me
perguntei o que ela faria a seguir, mas tudo que podia prever era
mais luta.

— Basta — gritou nosso juíz.

Eris caiu como se sua energia tivesse sido drenada.

Eu ganhei? Eu realmente ganhei? Foi a primeira vez que derrotei


Eris em combate corpo a corpo e sem magia.
— Perdi, hein… — Ela tinha um olhar surpreendentemente
tranquilo em seu rosto quando olhou para mim.

Saí de cima dela. A garota se levantou devagar e limpou a sujeira


de sua roupa.

Ela vai me dar um soco.

A expressão de Eris azedou quando parei seu punho com minha


mão.

— Estou indo para casa! — declarou em voz alta. Seus ombros


tremeram quando ela se retirou em direção à pousada.

Realmente a irritei? Não, não era isso. Provavelmente só a fiz


perder um pouco de confiança. Até então ela sempre me derrotou
com bastante facilidade. Agora eu tinha ficado repentinamente mais
forte. Se estivesse no lugar dela, provavelmente também ficaria com
inveja.

— Eris ainda é uma criança — disse Ruijerd enquanto a


observava partir.

— Isso é normal para a idade dela — respondi antes de olhar


para ele.

O homem me olhou nos olhos e acenou com a cabeça.

— Bom trabalho.

— Qualquer um que tivesse um olho demoníaco poderia fazer


isso.
Eu tinha melhorado um pouco a minha forma, mas havia dezenas
de outras pessoas neste mundo com habilidades físicas
semelhantes. Qualquer um que tivesse um olho demoníaco deveria
ser capaz de fazer o mesmo.

— Um olho demoníaco não é algo que uma pessoa pode


dominar logo após conseguir.

— Ah, sério?

— Havia um Superd no meu bando de batalha que tinha um olho


demoníaco. Ele usava um tapa-olho o tempo todo e nunca
conseguiu controlá-lo, nem mesmo no dia em que morreu. Você que
é estranho por ser capaz de controlar isso depois de apenas uma
semana.

Ah, certo. Tá, certo. Sim, entendi o que ele quis dizer.

Bem, trabalhei muito para controlar meu fluxo de mana e dominei


o uso dele em apenas uma semana. Então eu era o único capaz de
controlar isso tão rapidamente, hein? Entendo, entendo. Mwahaha!

— Talvez eu já consiga te derrotar, Senhor Ruijerd.

— Se usar magia — concordou.

— E em combate próximo?

— Quer tentar?

Decidi aceitar essa oferta. Para ser franco, eu estava me


precipitando.

— Sim, por favor.


Ruijerd colocou sua lança de lado e assumiu uma postura de
mãos vazias. Em outras palavras, não precisava de sua arma
característica para lutar contra um nanico como eu.

— Você pode usar magia se quiser —falou.

— Não, se vamos fazer isso, faremos com nossas próprias mãos.

Antes mesmo de terminar, uma visão apareceu diante de mim. A


palma de Ruijerd virá direto na minha direção.

Eu conseguia ver. Podia ver o que ele iria fazer e reagir a isso.

— Oho! — Estendi minha mão para detê-lo.

Ele vai agarrar minha mão.

No momento em que tive a visão, instintivamente puxei minha


mão de volta. No momento seguinte, a visão ficou turva.

Ele vai acertar meu rosto com seu punho.

Apareceram duas visões; em outras palavras, existiam dois


futuros em potencial. Um em que ele agarrava meu braço e outro
em que batia com o punho na minha cara. O que estava
acontecendo? A dúvida se agitou dentro de mim. Minha visão não
deveria ficar embaçada no intervalo de um segundo.

— Ow! — Inclinei meu corpo para trás, evitando seu ataque por
pouco.

O punho de Ruijerd vai acertar a minha cara.

Eu conseguia ver. E podia ver tudo nos mínimos detalhes. Mas


meu corpo já estava contorcido após evitar seu último ataque.
Mesmo se pudesse ver o que ele faria a seguir, não seria capaz de
me mover a tempo de desviar.

— Bwah!

Seu punho acertou o meu rosto em cheio. Minha cabeça bateu


na areia da praia enquanto eu caia no chão. Fiquei ali deitado de
bruços.

Levantei a mão para verificar se havia algum ferimento. Eu


estava bem, certo? Esperava que ele não destruísse todo o meu
lindo rosto. Agora não estava com o rosto todo distorcido igual ao de
um pug, certo?

— Se rende?

No momento em que ele perguntou, senti que estava acabado.

— Sim, admito a derrota. — Achei que poderia vencer quando


tive a primeira visão, mas parecia que as coisas não eram tão
simples.

— Mas agora você entende, certo?

Peguei a mão que ele estendeu para mim e me levantei.

— Não, eu não entendo. O futuro que eu vi ficou borrado. Como


é que você fez aquilo?

— Não tenho ideia do que você viu, mas decidi que se tentasse
se defender com a mão eu a agarraria, e se não o fizesse, daria um
soco. Isso foi tudo que passou pela minha cabeça.
Em outras palavras, enquanto ele pudesse adivinhar o que eu
faria a seguir, poderia reagir a isso. Havia uma brecha tão grande
entre nossos níveis de habilidade que minha capacidade de ver um
segundo no futuro, parando para pensar, não significava nada.
Pode-se dizer que era algo parecido com shogi. Mesmo que um
novato pudesse ver um movimento à frente, ainda não havia como
vencer um mestre.

Os habitantes deste mundo eram, em um grau incomum,


altamente habilidosos. Provavelmente havia muitos outros por aí
que poderiam lutar como Ruijerd.

— Mais importante, eu lutei com alguém com o mesmo olho


demoníaco antes. Desde então, tenho lutado seguindo a suposição
de que todos têm a mesma habilidade. Você e eu temos diferentes
níveis de experiência.

— Isso é verdade.

Então ele usou sua experiência para combater o Olho da


Previsão. Talvez os estilos de espada deste mundo também
tivessem maneiras de se opor ao poder de um olho demoníaco –
por exemplo, a Espada Longa da Luz, do Estilo Deus da Espada.
Tive a sensação de que, mesmo se pudesse ver, não seria capaz de
me esquivar.

— Parece que me precipitei um pouco.

Parecia que as fraquezas do olho demoníaco já estavam


estabelecidas há muito tempo, sendo algo como encontrar uma
maneira de bloquear a visão do portador, usar um escudo, atacar
por trás ou mesmo lutar no escuro.
Deixando tudo isso de lado, esse olho ainda tinha seu encanto.
Afinal, venci Eris. Só de pensar em como poderia usá-lo no futuro,
meu coração disparava. Eu tinha previsto tudo o que Eris faria. Foi
totalmente diferente de como as coisas costumavam ser. Em outras
palavras, com prática, poderia até ser capaz de prever os
movimentos de Ruijerd.

Foi então que o eremita apareceu com um puf dentro da minha


cabeça, com sua careca brilhante e óculos escuros. Agora você não
precisa ser espancado o tempo todo para ver o quão longe chegou!
disse ele.

Então tudo certo. Obrigado, eremita amante de seios. Hmm.


Pensar em todas as maneiras como eu poderia usar esse olho
realmente fez meu coração disparar!

✦✦✦✦✦✦✦

Quando voltei para a pousada, com um olhar sonhador no rosto,


encontrei Eris empoleirada na cama abraçando os joelhos. Ah,
claro, eu tinha esquecido dela. Ela estava deprimida. Enquanto isso,
meu eremita interior pulou em seu casco de tartaruga e
desapareceu indo para outro lugar.

— Um, Eris?

— O que você quer?

Depois de nossa batalha, Ruijerd me contou o que os dois


fizeram na última semana. Pelo visto, no final das contas, foi um
treinamento especial. Claro, não era nada pervertido. Para se
fortalecer, Eris se dedicou diariamente à prática da espada. Como
resultado, conseguiu vencê-lo uma vez.

Ela venceu Ruijerd uma vez. Isso era extraordinário. Eu


provavelmente nunca faria isso em toda a minha vida. Pelo visto,
Eris ficou muito arrogante por causa disso. É por isso que o Superd
me usou para esvaziar seu ego.

Sério, mas que diabos? Foi seu próprio erro e ainda assim
aquele aspirante a guerreiro amante de crianças me fez limpar sua
bagunça. Ainda assim, foi efetivo. Seu ego tinha inchado muito
depois de reivindicar vitória contra um oponente que nunca havia
vencido antes (Ruijerd), apenas para ser perfurado ao perder para
um oponente que nunca a havia derrotado antes (eu).

Dito isso, não acho que essa fosse a maneira certa de lidar com
isso. Eu sabia como era finalmente começar a pensar: Ei, será que
peguei o jeito disso? apenas para provar o contrário. Isso deixaria
qualquer um se sentindo completamente miserável, como se tudo o
que tivesse feito até o momento fosse inútil.

Claro, talvez tenha ajudado a esfriar sua cabeça. Talvez assim


ela evitasse cometer grandes erros. Mas Eris provavelmente estava
em um período de crescimento acelerado. Não achei que ferir o ego
dela seria a resposta certa. Em vez disso, era melhor deixá-la ir
mais além para que pudesse se desenvolver ainda mais rápido.
Então, poderia apontar suas deficiências e corrigi-las depois.

— Você realmente ficou muito forte, Eris.

— Está tudo bem, não precisa me confortar. De qualquer forma,


eu sabia que não iria conseguir te derrotar. — Ainda irritada, ela
esticou o lábio e fez beicinho.

Hmm, o que eu poderia dizer? Eu não tinha boas frases para


momentos como este.

Ruijerd não tinha voltado para o quarto comigo. Para começo de


conversa, foi por culpa dele que o ego dela ficou fora de controle,
então desejei que ele fizesse algo sobre isso, embora fosse verdade
que eu era o único que realmente tinha estourado sua bolha.

Então, mais uma vez, se pudesse confortá-la adequadamente,


seu medidor de afeição sem dúvida aumentaria. Eris se apaixonaria
por mim, e nós dois nos abraçaríamos e esfregaríamos as
bochechas enquanto dançávamos apaixonados. Ruijerd devia ter
pensado que era isso que aconteceria, e é por isso que nos deixou
em paz.

— Não perca toda a sua confiança com isso. Ouvi dizer que você
conseguiu derrotar Ruijerd uma vez. Isso é incrível, certo? —
Sentei-me ao lado dela enquanto falava. Quando fiz isso, Eris
encostou seu corpo contra o meu. O doce aroma de suor encheu
minhas narinas. Era um cheiro bom, mas eu precisava me controlar.
Em situações assim precisava ser um cavalheiro.
— Isso é trapaça, Rudeus. Você ganhou um olho demoníaco
enquanto eu tive que trabalhar duro…

Congelei. Minha cabeça ficou dormente. Meu lobo interior recuou


com a cauda enfiada firmemente entre as pernas. Não havia nada
que eu pudesse dizer em resposta.

Ela estava certa. Por que eu estava ficando tão feliz? Era
trapaça. O que eu fiz foi desonesto. O poder do olho demoníaco não
era algo que trabalhei duro para conquistar. Simplesmente caiu no
meu colo. Tudo o que fiz foi comprar comida em alguma barraca e
vagar pelos becos. Verdade, levei uma semana para dominar seus
poderes. Mas era só isso. Não precisei me esforçar. O que diabos
estava fazendo ao usar esse poder e agir feliz por ter vencido Eris
quando ela passou uma semana inteira trabalhando duro, ficando
encharcada de suor?

— Sinto muito.

— Não se desculpe.

Depois disso Eris ficou em completo silêncio. Entretanto, não se


afastou de mim. Meu coração normalmente estaria batendo forte
com o cheiro dela ou o calor de seu corpo, mas desta vez não o fez.
Em vez disso, apenas me senti envergonhado, como se seu calor e
o cheiro de seu suor estivessem me criticando. O ar estava pesado.

Talvez fosse melhor para mim não usar o olho demoníaco, a


menos que fosse absolutamente necessário. Sua conveniência
podia atrapalhar meu crescimento. Eu entendi isso depois de lutar
com Ruijerd.
No momento, a coisa mais importante não era pensar em como
usar esse olho demoníaco. Em vez disso, precisava aprimorar
minha habilidade de combate. É verdade, eu me tornava um lutador
melhor quando usava o olho. Mas minhas habilidades acabariam
estagnando se dependesse disso. Depender de alguma coisa só
serviria como algo para me assombrar mais tarde. Isso era perigoso.
Quase me permiti pular direto nos esquemas daquele diabo
traiçoeiro, o Deus Homem.

Decidi que só usaria meu olho demoníaco como um recurso final.

✦✦✦✦✦✦✦

Naquela noite, passei um tempo pensando comigo mesmo.

No final das contas, ainda não havíamos encontrado uma


maneira de cruzar o oceano. Eu fiz alguma confusão? Segui o
conselho do Deus Homem ao pé da letra, mas tudo que ganhei foi o
olho demoníaco.

Isso deveria ajudar em algo? Tipo em apostas? Mas prazeres


como apostas não existiam no Continente Demônio. Se o fizessem,
provavelmente estavam na forma de apostas em brigas entre duas
pessoas. Isso não me renderia muito dinheiro. Poderíamos usar
Ruijerd como um gladiador e cobrar uma taxa de participação de um
ferro bruto com um prêmio de cinco moedas de minério verde, mas
ele eventualmente ficaria sem oponentes.

Hmm. Não importa o quanto eu pensasse nisso, não conseguia


encontrar nenhuma solução. Ainda estávamos na mesma situação
de antes de receber o conselho do Deus Homem. De certa forma,
perdemos uma semana. Desperdiçamos uma semana inteira .
— Certo… acho que devo vender isso. — Dizer as palavras em
voz alta ajudou a fortalecer minha determinação.

Felizmente Ruijerd não estava por perto nesta noite, e Eris já


estava debruçada em sua cama e com a barriga para fora. Seria
problemático se ela pegasse um resfriado, então puxei um cobertor
sobre seu corpo.

Não havia ninguém para me impedir. A casa de penhores que


ficava em um daqueles becos ainda estaria aberta, certo? Afinal, as
lojas que trabalhavam com coisas suspeitas sempre ficavam abertas
à noite. Com meu cajado em uma das mãos, saí da pousada.

Só dei três passos para fora.

— Onde você está indo tão tarde da noite?

Ruijerd apareceu no meu caminho. Ele não estava no quarto,


então pensei que estivesse em outro lugar. Mas claramente estive
errado. Droga, o que ele estava tentando fazer, espiar as pessoas?
Tinha que, de alguma forma, o enganar.

— Um, estava indo atrás de um pouco de diversão sexy e


perigosa passeando pelos bordéis.

— E você precisa de seu cajado para fazer sexo com uma


mulher?

— Uh… é um acessório para brincadeiras sexuais.

Silêncio. Eu sabia que isso não ia funcionar.

— Você pretende vendê-lo?


— Sim… — Seu palpite foi tão preciso que tive que confessar.

— Vou perguntar de novo. Você vai vender esse cajado?

— Sim. Este cajado é feito de materiais de qualidade realmente


boa, então deve custar uma boa quantia.

— Eu não estou falando sobre isso. Ele não é importante para


você? Assim como este pingente. — Ele ergueu o pingente de Roxy,
pendurado em seu pescoço.

— Sim, é igualmente importante.

— Se problemas semelhantes acontecerem no futuro, também


venderá este pingente?

Parei.

— Se for necessário.

Ele respirou fundo. Achei que fosse gritar, embora não fosse do
tipo que levantava a voz, a menos que tivesse algo a ver com
crianças. Ele não gritou. Em vez disso, soltou um suspiro enquanto
falava.

— Eu nunca desistiria da minha lança, nem mesmo se estivesse


encurralado.

— Isso é porque é uma lembrança do seu filho, certo?

— Não, porque é a personificação do espírito de um guerreiro.

O espírito de um guerreiro, hein? Essas eram palavras elegantes,


mas não nos ajudariam a atravessar o oceano.

Havia tristeza nos olhos de Ruijerd.


— Antes você mencionou que tínhamos três opções.

— Mencionei — concordei.

— Não me lembro de nenhuma que mencionasse vender o seu


cajado.

— Não mencionavam.

Parecia que ele iria me repreender por mentir. Não, nunca tive a
intenção de mentir. Vender meu cajado fazia parte da opção de
ataque frontal.

— Ainda não ganhei sua confiança?

— Confiança? Eu confio em você — falei.

— Então por que não discutiu isso comigo?

Desviei meus olhos com a pergunta. Eu sabia que ele não


aprovaria meu plano. É por isso que não falei com ninguém sobre
isso. Talvez pudessem dizer que isso era a prova de que eu
realmente não confiava nele.

— Acredito que, no ano passado, consegui compreender o


estado atual do mundo. Mesmo se completássemos as missões da
guilda ou mergulhássemos em labirintos, nunca seríamos capazes
de economizar duzentas moedas de minério de ferro. É muito
dinheiro. —Nesta noite Ruijerd estava sendo extraordinariamente
direto em seu discurso. Ele comeu algo estragado? — Você já
sabia. É por isso que pensou em usar um contrabandista. Eu não
teria pensado nisso. Mas essa é a única maneira de eu chegar ao
Continente Millis. Nisso você está certo. Então, por que está
tentando vender seu cajado?

A única coisa que descobri foi uma opção melhor, não a melhor
das opções. A melhor opção, aquela em que tudo funcionaria
perfeitamente, era muito difícil e provavelmente terminaria em
fracasso. Então, eu não sabia a solução correta, assim como não
sabia antes. Por isso também não estava convencido de que usar
um contrabandista fosse realmente a opção certa.

— Mesmo se for a opção certa, não adianta criar um desacordo


dentro do nosso grupo — falei.

— Então, acha que se confiarmos em um contrabandista, isso


criará um desacordo?

— Sim. Porque de acordo com seus valores, um contrabandista


nada mais é do que um criminoso.

Contrabandistas… Escravos estavam incluídos na lista de


mercadorias com as quais trabalhavam. Além disso, um dos crimes
mais populares neste mundo era o sequestro. Crianças eram fáceis
de sequestrar. Simplificando, os contrabandistas eram cúmplices no
sequestro e venda de crianças.

— Rudeus.

— Sim?

— É minha culpa que as coisas tenham chegado a esse ponto.


Se fossem apenas vocês dois, você não teria que se preocupar em
ganhar duzentas moedas de minério verde.
Por outro lado, se ele não estivesse conosco, poderíamos ter nos
deparado com um desastre no meio do caminho. Ruijerd nos ajudou
inúmeras vezes.

— Mesmo se você resolver o problema vendendo seu cajado,


meu orgulho não pode aceitar isso.

Seu orgulho não mudava o que precisava ser feito.

— Se eu vender o cajado, vou conseguir o dinheiro. Então


podemos seguir todas as regras, pagar e cruzar o mar. Ninguém
precisa se arrepender. Ninguém precisa comprometer nada. Essa é
a maneira mais inteligente de fazer isso, certo?

— Mas a vergonha que vou sentir porque você vendeu isso ainda
vai permanecer. Eris também ficará incomodada. Não é esse o
desacordo que você estava falando querer evitar?

Fiquei em silêncio enquanto Ruijerd olhava diretamente para


mim.

— Procure um contrabandista. Vou fechar os olhos aos crimes


deles. — Ele tinha uma expressão séria no rosto. Provavelmente
decidiu não interferir, mesmo se encontrasse uma criança
sequestrada, apenas para que eu não tivesse que vender meu
cajado. Isso era tudo por minha causa. Ele estava sufocando seus
próprios princípios e crenças por minha causa. Se sua determinação
fosse tão forte, eu não poderia discutir.

— Se, durante a viagem, você vir algo desprezível de verdade e


não conseguir se conter, por favor, me diga. Devemos ao menos ser
capazes de ajudar alguma criança.
Se Ruijerd estivesse tão sério sobre isso, então desistiria do
plano, por mais inteligente que achasse que fosse. Contaríamos
com um contrabandista para cruzar o mar. Mas desta vez eu não iria
dar atenção ao desnecessário. Se o Superd não pudesse se conter,
nós os trairíamos sem hesitação e ajudaríamos quem precisasse.
Usaríamos os criminosos conforme necessário e depois os
jogaríamos de lado.

— Tudo bem, então vamos começar a procurar um


contrabandista — falei.

— Sim. Vamos fazer isso.

— Receio que você verá muitas coisas desagradáveis ao longo


do caminho, mas vamos superar isso juntos.

— Digo o mesmo.

Nós dois trocamos um aperto de mão firme.

Soltamos nossas mãos e estávamos prestes a voltar a dormir


quando o rosto de Ruijerd ficou rígido. De repente, ele preparou a
lança em suas mãos.

— Quem é? Que negócios tem aqui!

Tremi de surpresa com o quão repentinas e intimidantes suas


ações foram, então segui seu olhar. Lá, na escuridão de um beco,
estava a figura de um homem solitário com um sorriso amarelo no
rosto barbudo. Ele estava com os braços levantados para
demonstrar que não tinha más intenções. Havia uma espada
pendurada em sua cintura. Parecia até ter saído direto de uma cena
de combate de algum filme.
— Ooh, que assustador. E eu aqui pensei que tudo o que tinha
ouvido sobre a raça Superd era um monte de merda, mas aqui está
você, a coisa real. — Ele exibia um sorrisinho ao se aproximar. Eu já
tinha visto esse cara em algum lugar antes. — Em primeiro lugar,
poderia guardar essa arma de aparência perigosa? Não vim
procurando por briga. Estava te procurando para agradecer.

— Tão tarde da noite?

— Ainda é um pouco cedo para ir para a terra dos sonhos, não


acha?

Ah, agora lembrei. Era o homem com o qual me encontrei antes,


o cara com quem esbarrei logo depois de ganhar meu Olho da
Previsão. Nunca sonhei que ele apareceria para me agradecer no
meio da noite. Com certeza era um bandido.

— Demorei um pouco para te encontrar. Ninguém sabia nada


sobre um mago com a vista ruim. Mas quando ouvi os rumores
sobre o Fim da Linha, soube que era você. Seu robe cinza e
capacidade de lançar feitiços não verbais, bem como sua altura –
baixo como um hobbit – e aquela maneira condescendente e
educada de falar.

Mas eu não era um hobbit.

— Mestre do Canil Ruijerd. Você me ajudou há sete dias. E


graças a você também encontrei aquele idiota. Quando o encontrei,
ele estava com o queixo esmagado e desmaiado em um beco.
Pobre tolo. No estado em que está, não conseguirá beber nada
além de álcool por um tempo. Mas não é como se o sujeito bebesse
alguma outra coisa.
Sério?

— Nah, é brincadeira. Há ao menos um curandeiro dentre meus


amigos.

Bom. O homem com quem topei podia até ser um lolicon


pervertido, mas pelo menos não estava com a boca aberta.

— Então é por isso que você veio me agradecer?

— Isso, e por usar sua magia para me empurrar para fora do


caminho. Você me ajudou a não ter a cuca esmagada.

— Então isso é tudo. Bem, fico feliz por ouvir isso.

O homem falou com extrema gravidade:

— No meu ramo de trabalho, não há nada pior do que uma dívida


de gratidão. Não importa o quão pequena seja, se você não pagar
de volta, ela acabará por alcançá-lo e você pode ficar preso em uma
situação em que terá de trair seus camaradas. É por isso que é
melhor pagar de volta, e pagar logo. — Ele balançou a cabeça
dramaticamente e apontou para mim. — Eu estava ouvindo, Mestre
do Canil, e você está com sorte. Acontece que você topou com
alguém que é membro de uma organização de contrabando.

Ruijerd e eu nos viramos para olhar um para o outro. Esse cara


era membro de uma organização de contrabando? Mas que
desenvolvimento conveniente. Eu teria suspeitado que ele estava
mentindo, mas havia também o conselho do Deus Homem. Talvez o
objetivo principal fosse que eu encontrasse esse homem.
Enquanto eu lutava para tomar uma decisão, o homem pareceu
interpretar mal o nosso silêncio e estendeu a palma da mão em
nossa direção.

— Dito isso, não tenha a ideia errada. Estou retribuindo um favor,


mas contrabandear um Superd está em um nível completamente
diferente. Não acho que minha vida valha apenas duzentos minérios
verdes.

Sem saber o que ele quis dizer, virei meus olhos para o homem e
o encorajei a continuar.

O sujeito sorriu.

— Imagino que o Fim da Linha seja muito forte, então quero um


favor. Quer ouvir?

Ele iria retribuir um favor, mas também queria outro? Isso parecia
um pouco estranho. Então, novamente, o homem me viu usando
magia não verbal. Sua conversa sobre pagar uma dívida
provavelmente era apenas uma distração; ele estava na verdade
procurando alguém competente para fazer algum trabalho. Foi por
isso que apareceu após ouvir nossa conversa.

Ruijerd lançou um olhar na minha direção. Afinal, negociar era


meu trabalho.

— Depende dos detalhes do seu pedido.

— Nada muito difícil. — No entanto, as condições que ele listou


foram um pouco inesperadas. — Veja, temos que armazenar os
produtos contrabandeados antes de entregá-los e depois mantê-los
seguros até que o contratante apareça para os buscar. Em um mês
a partir de agora, vamos armazenar alguns bens antes de
despachá-los. Quero que você liberte algumas pessoas. Se
possível, gostaria que tomasse providências para que voltem para
suas casas.

— Não é essa a definição exata de trair seus amigos?

— Nah, é para o bem deles. Há um misturado entre essas


mercadorias… bem, escravos, como você os chama… que nos
causará problemas no futuro. Vendê-los nos renderia uma enorme
fortuna, mas isso também voltaria para nos assombrar daqui a um
ano. — Ele encolheu os ombros e continuou: — Tentei dizer não,
mas não é como se fossemos um grupo único e organizado. Eu
estava procurando alguém capaz e calado que pudesse destruir
seus planos. O que acha?

Mais uma vez, Ruijerd e eu trocamos olhares. Não estaríamos


sequestrando, mas sim salvando pessoas. Se fosse esse o caso, eu
não via problema nisso, mas…

— Por que você não pode fazer isso? Com sua espada e suas
habilidades, deveria ser capaz, certo?

— Isso mesmo. Posso não parecer, mas sou o mais forte entre
meus amigos. Ainda assim, Senhor Superd, não é como se eu
quisesse trair meus camaradas. Tenho que considerar o que
aconteceria depois, sabe. Mesmo se eu os salvasse, não teria mais
para onde ir, então não faria sentido. Só porque você é o mais forte,
não significa que está no topo da hierarquia.

Pela expressão no rosto de Ruijerd, era difícil dizer se entendia


ou não o que o homem queria dizer. Ele parecia entender de forma
lógica, mas não emocional.

— Rudeus, eu não me importo. Você decide.

Ruijerd acabara de dizer que fecharia os olhos a qualquer


transgressão. Não importa o quão decadente o homem à nossa
frente fosse, ele obedeceria se eu decidisse aceitar.

Considerei isso. Era tudo muito suspeito. Ainda assim, era um


dos resultados do conselho do Deus Homem. Embora fosse
verdade que eu não podia confiar no próprio deus, provavelmente
era melhor não pensar demais nas coisas e seguir o fluxo, assim
como fiz da última vez.

Com base no que ouvimos, não estaríamos cometendo nenhum


crime. Havia uma boa chance de a pessoa que estávamos ajudando
ser um monstro horrível, mas salvar alguém ainda era salvar
alguém, independentemente de seu caráter.

Além disso, poderíamos até usar um contrabandista para nos


conduzir através do oceano. Este não seria um mau negócio se
pudéssemos cruzar sem quaisquer encargos ou taxas. Com tudo
isso, foi fácil tomar uma decisão.

— Tudo bem, vamos fazer isso.

Ruijerd assentiu e o homem riu.

— Tudo bem então, vou confiar em você para fazer um bom


trabalho. Meu nome é Gallus Cleaner.

— Rudeus Greyrat.
E foi então que trocamos nossos nomes e decidimos assumir a
missão de uma organização de contrabando.
História Paralela:
Conexões Perdidas, História Extra
Roxy Migurdia , a mulher que era mestra de Rudeus,
desembarcou de sua viagem marítima na cidade de Porto Vento no
Continente Demônio.

Ela parou assim que desembarcou. A paisagem urbana de Porto


Vento era muito parecida com a da cidade ao norte de Millis, Porto
Zant. Mesmo aqueles que colocavam seus olhos nela pela primeira
vez seriam acertados por uma sensação de déjà vu.

No entanto, o déjà vu não era a razão pela qual Roxy fez uma
pausa. Era por haver uma clara diferença entre o ar do local e
aquele do Continente Millis.

Já faz tanto tempo, pensou. A nostalgia surgiu lá do fundo de seu


peito. Quando foi a última vez que ela esteve no lugar? Já deviam
fazer cerca de quinze anos. Quando pensou nisso, percebeu quanto
tempo havia passado desde que começou a invejar os humanos e
fugiu de seu vilarejo.
Naquela época, quando foi parar no Continente Millis e comeu os
doces feitos por humanos, ficou chocada em como aquela comida
deliciosa poderia existir no mundo. Decidiu então que nunca iria
comer comida do Continente Demônio novamente, e que também
nunca iria voltar.

Parando para pensar, foi algo meio simplório, pensou.

Na verdade, ela não tinha retornado desde que trocou o


Continente Millis pelo Continente Central, e nunca sequer
considerou retornar. Havia muita coisa no Continente Central. Tudo
o que viu lá era refrescante e excitante, e, antes que percebesse, já
havia vivido no Continente Central por tanto tempo quanto viveu no
Continente Demônio.

Em todo esse tempo, o Continente Demônio nunca apareceu em


sua mente. E, mesmo quando estava desbravando labirintos e
enfrentando a morte, não parou para pensar nos pais que havia
deixado para trás, no Continente Demônio.

Apesar disso, agora ela havia retornado.

Nunca se sabe aonde a vida vai te levar, pensou.

— Roxy! Estamos indo!

Enquanto ela estava parada, uma mulher a chamou. As orelhas


dela espreitavam de uma juba luxuriante de cabelo dourado, da
mesma cor de pão recém assado. Era uma elfa, alta e esguia, com
uma cintura fina e um traseiro redondo e bonito. O coração de Roxy
se enchia de inveja cada vez que via a mulher à distância. Não
havia nada que pudesse ser feito; era como os elfos eram, mas ela
ainda desejava poder ter um corpo assim. E embora seus bustos
fossem semelhantes, a elfa era bem equilibrada e bonita, enquanto
Roxy parecia simples e infantil.

— Sim, já vou. — Um suspiro escapou de seus lábios.

O nome daquela mulher magnífica era Elinalise Dragonroad. Ela


era uma guerreira elfa, perfeita para a vanguarda na linha de frente.
Estava equipada com um escudo e uma estoque, que usava
principalmente para atacar com estocadas. Suas habilidades eram
tão magníficas quanto sua aparência.

Uma estoque não era uma arma comum entre os aventureiros.


No Reino Asura, era usada pelos nobres durante os duelos, e na
região norte era usada por guerreiros quando estavam totalmente
equipados com armaduras. A que estava na posse de Elinalise era
um item mágico encontrado nas profundezas de um labirinto. Era
mais resistente do que a maioria das espadas e um único
movimento poderia criar um vácuo de vento capaz de derrubar
árvores a metros de distância. Seu broquel também era um item
mágico com a habilidade de mitigar qualquer ataque que recebesse.

— A-aah… terra firme, é terra firme… — Um anão idoso saiu


cambaleando do navio por trás de Roxy. Sua armadura pesada
retinia e sua barba enorme balançava enquanto ele se agarrava a
uma vara, com o rosto pálido feito um fantasma.

Seu nome era Talhand. Formalmente, era conhecido como


Talhand do Arrojado Grande Pico da Montanha. Ele tinha quase a
altura de Roxy, com mais de duas vezes sua circunferência. Este
homem, com sua barba volumosa e armadura pesada por todo o
corpo, era um mago.

Por que um mago estava usando tanta armadura? No começo


até Roxy questionou. Mas os pés de Talhand eram lentos e sua
agilidade inexistente. Se uma besta o atacasse, ele não teria como
escapar. No entanto, com essa armadura volumosa o protegendo,
poderia usar magia mesmo na linha de frente.

— Você está bem, Senhor Talhand? Devo lançar alguma cura em


você?

— Não, não precisa. — Ele balançou a cabeça para frente e para


trás e deslizou seu corpo lento para frente. O anão era normalmente
um pouco mais ágil do que isso, mas ficou enjoado e isso o
enfraqueceu.

Elinalise colocou a mão no quadril e pigarreou.

— Isso é sério? Que patético. Isso é só um barco.

O rosto de Talhand ficou vermelho de raiva. —

— Você… o que acabou de dizer…?!

Os dois eram rápidos em começar a brigar um com o outro,


então cabia a Roxy intervir.

— Vamos brigar sobre isso mais tarde, por favor. Senhorita


Elinalise, você não tem que comentar a respeito de tudo. Algumas
pessoas são predispostas a enjoar.

Roxy os conheceu na cidade de Porto Leste, no Reino do Rei


Dragão. Os dois estavam brigando na Guilda dos Aventureiros e, a
princípio, ela os ignorou. No entanto, interveio quando ouviu em
meio às brigas que estavam procurando por pessoas desaparecidas
da Região de Fittoa e planejavam viajar para o Continente Demônio.
Nenhum deles era bom com a geografia do Continente Demônio e,
como resultado, tinha opiniões conflitantes. Talhand argumentou que
deveriam ir para o Continente Begaritt, uma vez que conheciam a
geografia do terreno, ou a parte norte do Continente Central.
Elinalise, por outro lado, disse que ainda podiam procurar pessoas,
mesmo se não soubessem o caminho, e que sempre podiam
contratar alguém assim que chegassem. E havia Roxy, lidando
sozinha com sua ansiedade, uma nativa do Continente Demônio.
Era quase como se estivesse destinada a encontrá-los.

Enquanto a conversa continuava, descobriu que eram ex-


membros do grupo de Paul e Zenith. Eram chamados de Presas do
Lobo Negro. Roxy tinha ouvido falar deles. Foi um dos grupos mais
famosos de todo o Continente Central: um grupo misto, cheio de
membros com uma ou duas peculiaridades e que já foi assunto da
cidade. Subiram para o rank S em poucos anos e se separaram logo
depois, mas ela se lembrava bem deles.

Ainda assim, nunca percebeu que Paul e Zenith eram membros


dos Presas do Lobo Negro. Foi impossível esconder sua surpresa. E
os dois ficaram igualmente surpresos com ela. Afinal, era Roxy
Migurdia, bem conhecida pelo povo como uma maga da Água do
nível Rei, uma jovem garota de cabelo azul, nativa do Continente
Demônio. Alguém que entrou na Universidade de Magia e dentro de
alguns anos obteve o título de maga de Água de nível Santo, e
então atravessou um labirinto nos arredores do Reino Shirone, um
que tinha 25 níveis de profundidade. Depois disso, se tornou uma
das magas da corte do Reino Shirone.

Um trovador cantou histórias de suas primeiras aventuras,


transformando-as em versos que divulgaram ainda mais o seu
nome. Era uma história sobre como uma jovem maga deixou sua
cidade natal, encontrou três aventureiros novatos e viajou ao redor
do Continente Demônio antes de partir para o Continente Millis. Seu
nome não aparecia na rima. No entanto, os aventureiros que
conheciam a música reconheciam Roxy graças à sua descrição.

Chamar os três (Roxy, Elinalise e Talhand) de um grupo de


espíritos semelhantes seria um exagero, mas era verdade que seus
objetivos coincidiam. Roxy estava indo para o Continente Demônio
para procurar Rudeus, enquanto os outros dois estavam honrando o
pedido de Paul para procurar seus familiares. E então formaram um
grupo e seguiram para o seu destino.

Embarcaram em um navio tendo o Continente Millis como


primeiro destino. Lá, na cidade de Porto Oeste, usaram uma enorme
quantidade de dinheiro para comprar cavalos Sleipnir e uma
carruagem. A despesa foi grande, mas era o de menos diante do
tamanho de suas bolsas.

Evitaram a capital sagrada de Millishion, já que os outros dois


não se davam muito bem com Paul. Ambos também tinham má
reputação entre seus respectivos parentes, então se mantiveram
longe do assentamento da Montanha Wyrm Azul, onde os anões
residiam, assim como do assentamento dos elfos na Grande
Floresta. Em vez disso, foram direto para Porto Zant.
De acordo com a dupla, a estação das chuvas logo chegaria à
Grande Floresta, então deveriam se mover rápido enquanto podiam.
Mas com a maneira como forçavam os cavalos a se moverem
constantemente, mesmo à noite, parecia que apenas não queriam
estar no Continente Millis por um segundo a mais do que o
necessário. Roxy presumiu que o verdadeiro motivo era que
simplesmente não queriam voltar para casa.

Quaisquer que fossem suas razões, chegaram ao Continente


Demônio em tempo recorde, então ela não tinha queixas.

— Primeiro vamos passar na Guilda dos Aventureiros — propôs


Roxy, e os três foram nessa direção. A guilda sempre era a primeira
parada para os aventureiros.

— Espero que seja um lugar legal!

Roxy fez uma careta diante das palavras de Elinalise. A elfa


podia até parecer casta, mas amava os homens. Com aquela
silhueta era difícil imaginar, mas provavelmente tinha vários filhos.
De acordo com a elfa, tudo isso era parte da maldição que foi
lançada sobre ela, mas a mulher não parecia nada ofendida com
isso. Na verdade, parecia até gostar. Roxy não conseguia acreditar.

— Senhorita Elinalise, não estamos procurando por homens.

— Eu sei disso.

Não, você não sabe, Roxy fez uma careta. Elinalise podia não ter
nenhum problema com sua assim chamada maldição, mas Roxy
desejou que ela pensasse no grupo com a qual estava viajando.
Estava tudo bem para a elfa fazer o que quisesse em seu próprio
tempo, mas esta era uma emergência. Além disso, se engravidasse,
isso só atrasaria ainda mais a viagem.

Gostaria que você fosse com um pouco mais de calma, pensou


Roxy.

— Talvez você devesse arranjar um ou dois homens e…

— Não posso fazer isso.

Mas se eu fosse tão linda quanto você, quem sabe, pensou


amargamente. Infelizmente, nenhum dos homens por quem Roxy
havia se interessado a via como mulher. Ela era popular entre as
crianças, mas não tinha sorte quando se tratava de homens.

✦✦✦✦✦✦✦

A Guilda dos Aventureiros do Continente Demônio tinha uma


atmosfera única em comparação com sua contraparte no Continente
Central. Muitas raças diferentes eram emparelhadas no mesmo
grupo.

Quando Roxy entrou, encontrou um grupo que obviamente era


de novatos. Três meninos, todos vestidos com roupas de guerreiro.
Eles se aproximaram dela timidamente.

— U-um, você… entraria em um grupo com a gente?!

Roxy sorriu ironicamente diante de seu pedido.

— Não, como você pode ver, já estou em um grupo.

Antes de se retirarem, os três sorriram amargamente diante de


sua recusa. Não foi a primeira vez que ela foi convidada para um
grupo parecido; foi convidada por diversos grupos de três garotos.

O trovador havia dito que escreveria canções sobre ela, mas


Roxy nunca esperou se tornar tão famosa.

— Roxy, que tal pensar um pouco? Afinal, você está sendo


convidado por ótimos garotos! — Elinalise deu um tapinha na
cabeça dela.

Isso acontecia com frequência. Roxy não ia se incomodar em


responder a isso. Ela não era uma criança.

— Nossos ranks são bem diferentes. Não há maneira pela qual


poderíamos formar um grupo. — Ela estava atualmente no rank A.
Os meninos seduzidos pela canção do trovador eram, em média,
apenas de rank D. Nunca aconteceu de ser abordada por ninguém
que estivesse acima do rank B.

Na primeira vez que recebeu um daqueles convites para um


grupo, se gabou de como era a personagem principal daquelas
canções, apenas para descobrir que não era nem nomeada nelas, e
então ficou envergonhada. Era uma memória que preferia esquecer.

Ela nunca imaginou que o trovador deixaria de reconhecer sua


raça. Em vez disso, ele presumiu erroneamente que ela tinha
apenas doze anos e havia chegado ao rank A em apenas dois anos.
Não apenas isso, mas a versão atual da música era tão dramatizada
que dizia que ela viajou pelo Continente Demônio e chegou ao rank
A em apenas um ano.

Não se iluda, pensou Roxy. Na realidade, ela levou cerca de


cinco anos para chegar ao rank A. Com o Continente Demônio
como sua base de operações, subiu ao rank B em três anos. A partir
de então, passou dois anos pulando de grupo em grupo. Entretanto,
essa ainda foi uma ascenção rápida. Se ela recomeçasse do rank F,
poderia conseguir chegar ao rank A em apenas um ano, mas um
grupo de crianças sem experiência nunca conseguiria fazer isso.

— Você poderia os moldar em homens que se ajustariam aos


meus gostos. Que pena.

As palavras de Elinalise desencadearam um flashback para os


três aventureiros novatos que a abordaram naquela primeira vez.
Eles se chamavam de Gangue Rikarisu, eram três garotos que a
ajudaram depois que ela deixou a aldeia Migurd, quando era nada
mais do que uma caipira que não conseguia distinguir a esquerda
da direita.

Um deles era muito sarcástico, sempre inventava mentiras para


tudo, mas era muito bom em cuidar das pessoas. Outro adorava
xingar as pessoas e tinha uma boca suja, mas também era muito
determinado. O terceiro era incrivelmente inteligente e mantinha o
grupo unido. Ele morreu durante a jornada.

Seu grupo se dissolveu quando chegaram a Porto Vento, mas ela


se perguntou: Os outros dois ainda estavam vivos e bem? Depois
de se aventurar pelo Continente Central, entendeu o quão severas
eram as condições do Continente Demônio. Havia uma grande
chance de que já estivessem mortos.

Nokopara e Blaze… Espero que ainda estejam bem. Ela se


pegou rindo quando pensou nisso. Já fazia vinte anos. Os dois não
tinham expectativa de vida particularmente longa, então talvez já
tivessem se aposentado das aventuras há muito tempo. A única que
permaneceu igual foi Roxy.

Vamos deixar a saudade para outro momento, decidiu,


interrompendo as reminiscências. Ela estava em busca de Rudeus
ou sua família.

— Tudo bem, vamos começar a coletar informações — propôs


aos outros dois, e começou a verificar o interior da guilda.

✦✦✦✦✦✦✦

A partir das informações que coletaram, descobriram que o Fim


da Linha estava na cidade — um novo e promissor grupo de
aventureiros que rapidamente fez seu nome.

Fim da Linha. Não havia nenhuma pessoa no Continente


Demônio que não conhecesse esse nome. Mesmo entre os
Superds, eram considerados especialmente perigosos, bestas que
visavam principalmente as crianças. Quando Roxy era apenas uma
criança, sua mãe sempre a ameaçava com esse nome. “Se você
não se comportar, o Fim da Linha virá para te levar embora”, ela
sempre dizia.

Eles voltaram para a pousada. O rosto de Roxy azedou quando


juntaram todas as informações que tinham sobre este “Fim da
Linha”.

— É um pouco difícil de acreditar.

— Em qual parte?
— É difícil acreditar que alguém em sã consciência fingiria ser o
Fim da Linha.

O que havia de tão assustador nisso? O fato de que o grupo real


existia. Aqueles no Continente Central não sabiam disso, mas o
nome definitivamente se referia a alguém lá fora. Claro, Roxy nunca
os tinha visto, mas todos os rumores que ouviu eram aterrorizantes.
Eram as criaturas mais terríveis do Continente Demônio.

A Guilda dos Aventureiros nunca listou seus nomes exatos, por


medo de retaliação, mas se houvesse um pedido de extermínio para
aqueles demônios, seria definitivamente classificado como rank S.
Era o tipo de trabalho que daria o rank S instantaneamente aos
aventureiros que o realizasse.

— Eu também não faço ideia — disse Elinalise.

De acordo com as informações que ela reuniu, o homem que


afirmava ser o Fim da Linha tinha pele clara, era careca e carregava
uma lança consigo. E também era muito bonito.

— Já que disseram que ele é um cara bonito, por que não o


convido para minha cama para conseguir mais respostas?

Talhand se curvou e cuspiu com desdém.

— Essa informação é inútil.

De acordo com o que Talhand havia descoberto, o Fim da Linha


era um grupo de três pessoas. Eles se referiam a si próprios,
respectivamente, como Cão Louco Eris, Cão de Guarda Ruijerd e
Mestre do Canil Ruijerd. Os dois últimos eram irmãos. O Cão Louco
tinha cabelo ruivo, o Cão de Guarda era um varapau e o Mestre do
Canil era um baixinho. O Cão Louco usava uma espada, o Cão de
Guarda uma lança, e o Mestre do Canil um cajado que
aparentemente era um item mágico. A reputação deles não era lá
muito boa.

— O Cão Louco perde a paciência bem rápido, e o Mestre do


Canil só faz coisas horríveis. Mas, pelo visto, o Cão de Guarda não
é um cara mau. Ama crianças, tem um forte senso de justiça e se
recusa a fechar os olhos ao mal.

Essa é uma avaliação muito estranha para as pessoas fazerem,


pensou Roxy. Talvez o próprio grupo tenha criado os rumores. Se
um grupo de malfeitores fizesse algo de bom, isso se espalharia
como um incêndio. Mas, pelo visto, não eram apenas violentos, mas
também astutos e espertos.

— Um bando perigoso. Vamos nos certificar de evitá-los.

— Aye — concordou o anão. — Não precisamos chamar a


atenção do tipo de gente errado quando deveríamos estar
procurando por pessoas.

— Tudo bem, então vamos passar para a agenda principal —


disse Roxy, redirecionando a conversa. O propósito de irem para a
Guilda dos Aventureiros não tinha sido reunir informações sobre o
Fim da Linha. — Houve algum boato sobre pessoas da Região de
Fittoa?

— Nenhum — disse Talhand.

— Não, não ouvi nada — falou Elinalise.

Devemos estar atrasados demais, pensou Roxy.


O Continente Demônio não era o tipo de lugar tranquilo no qual
alguém poderia sobreviver ao ser teletransportado sem o
equipamento adequado. Era uma terra onde simplesmente
sobreviver durante um ano poderia ser difícil, mesmo para os
habitantes locais. Além disso, já havia se passado um ano desde o
deslocamento da Região de Fittoa.

Aqueles que foram teletransportados podiam já ter morrido.

— As pessoas que estamos realmente procurando são a família


de Paul.

— Então são Zenith, Lilia, Aisha e Rudeus.

Roxy ensinou Talhand e Elinalise como eles poderiam identificar


cada um deles. Aisha era a única sobre a qual não sabia nada,
porque só soube sobre ela através das cartas de Rudeus.

— Bem, Zenith deve estar bem — disse Elinalise.

— Sem dúvida.

Os dois conheciam Zenith, então não expressaram nenhuma


preocupação. Roxy, por outro lado, não sabia o quão capaz a
mulher era, mas confiava nesses ex-membros do Presas do Lobo
Negro que a apoiaram. Se Elinalise e Talhand achavam que Zenith
ficaria bem, então ela ficaria bem.

— Rudeus também se destaca muito, então devemos ser


capazes de encontrá-lo facilmente. — Roxy se lembrou do talento
avassalador que seu pupilo de cinco anos demonstrara. Ele
certamente seria o assunto da cidade, não importa aonde fosse.
Zenith e Rudeus seriam os mais fáceis de encontrar se saíssem
em busca de informações. Eles também tinham a força para
sobreviver no Continente Demônio, desde que pousassem em
algum lugar perto da civilização. Por isso, desde o começo,
priorizaram encontrar informações sobre Lilia e Aisha.

— Vamos definir um prazo. Dois dias para reunir o máximo de


informações possível sobre Lilia e Aisha, depois, no terceiro dia,
faremos os preparativos para ir aos outros assentamentos na área.
Isso soa como um bom plano?

— Não será meio cedo?

Roxy balançou a cabeça diante das palavras de Elinalise.

— Há uma grande probabilidade de que já estejam mortos, e o


Continente Demônio é grande. Faremos uma única passagem pelas
principais cidades e colocaremos solicitações de busca por pessoas
desaparecidas em cada guilda que encontrarmos ao longo do
caminho.

O Reino Asura cobriria os custos incorridos durante a busca por


residentes da Região de Fittoa. Contanto que seu grupo
submetesse solicitações em cada guilda, a recompensa pela
conclusão bem-sucedida seria fornecida pelo Reino Asura, então
poderiam ficar tranquilos quanto a isso. Não era um processo
automatizado, já que a guilda exigia que alguém assinasse um
formulário de solicitação antes de poder publicá-lo. Por outro lado,
se a guilda não postasse os pedidos, então o Reino Asura não teria
razão para pagar qualquer coisa.
Roxy se sentiu genuinamente irritada com a forma atroz como o
Reino Asura estava lidando com um desastre tão grande. Possuíam
um enorme poder, então ela achou que deveriam tomar ações mais
proativas. Na verdade, as únicas pessoas que realmente
participaram dos esforços de busca foram Paul e as pessoas ligadas
a ele. Em outras palavras, apenas aqueles afetados pelo desastre.

Parece que toda aquela conversa sobre o círculo interno do


Reino Asura ser corrupto era mais do que um boato, pensou. Era o
país com a história mais longa do mundo, então ainda estava se
mantendo, mesmo com a deterioração de seu poder e tradições.

— Tudo bem, amanhã vamos nos ocupar com a coleta de


informações.

— Certo, faremos isso!

— Entendido.

Roxy não era do tipo que enrolava com as coisas. Não importa
onde estivesse, nunca perdia tempo. Ela sempre terminava as
coisas rapidamente e então partia. Essa parte de sua personalidade
transpareceu quando inicializou Rudeus, ensinando-lhe sua técnica
especial e imediatamente partindo para outro lugar. Tomar decisões
rápidas era seu forte, mas também parte do motivo pelo qual
Rudeus a via como uma cabeça de vento. Outros haviam apontado
para essa sua característica, mas Roxy ainda considerava isso um
ponto forte.

Foi por isso que definiu um cronograma para enviar um pedido à


guilda no primeiro dia, pesquisar no segundo e partir no terceiro.
Uma programação rápida e concisa, sem furos. Se ficassem por
uma semana, os resultados poderiam ser um pouco diferentes.

No segundo dia, a curiosidade de Roxy tomou conta dela e ela foi


ver o que o Fim da Linha estava fazendo. O grupo deles se
destacava, então foi fácil encontrá-los.

Dois deles estavam diligentemente treinando na praia. Como


dizia sua informação, um era um varapau careca, enquanto o outro
era uma jovem ruiva. Ela empunhava a espada com as duas mãos o
tempo todo, balançando-a em uma velocidade assustadora
enquanto o careca aparava os ataques sem qualquer dificuldade.

Sua informação dizia que o Fim da Linha era um grupo de três


pessoas, com uma pessoa alta e duas baixas. Parece que o
pequeno Mestre do Canil não está com eles, pensou.

O Cão de Guarda e o Cão Louco continuaram seu confronto


testando ataque contra defesa em alta velocidade. Talvez confronto
não fosse a palavra certa, visto que o Cão de Guarda simplesmente
desviava os ataques do Cão Louco, mas as técnicas que ele usava
estavam além do nível de Roxy.

Ela os observou de longe, espiando por trás da sombra de uma


rocha. Era quase como se isso fosse um jogo de beisebol
profissional e ela fosse a irmã mais velha de um arremessador que
usava bolas de magia como sua arma na batalha.

Os dois eram fortes, até mesmo para Roxy, que havia viajado
pelo mundo como uma aventureira. Essa não era uma força que
poderia ser alcançada apenas pela técnica.
No final das contas, poderia acabar sendo bom entrar em contato
com eles.

Assim que ela pensou isso, o Cão de Guarda olhou por cima do
ombro.

Ah…!

Parecia que seus olhos se encontraram. Seu olhar era tão


intenso que deu a Roxy um indescritível sentimento de terror. O
suficiente para lhe dar a ilusão de que era uma presa sendo caçada.

Ela fugiu na mesma hora.

✦✦✦✦✦✦✦

Ruijerd a sentiu desde o início. Ele não tinha certeza do que ela
queria, ou se estava apenas assistindo. Quando casualmente olhou
em sua direção, viu o rosto de uma garota espreitando por trás de
uma pedra.

Não, não uma garota, percebeu. Uma mulher Migurd adulta. Ele
não poderia dizer só de relance, mas não havia como enganar o
terceiro olho de Ruijerd. O homem não reconheceu a presença dela,
mas também existia mais de um assentamento Migurd.

Ele percebeu que ela provavelmente estava apenas olhando por


curiosidade, mas quando olhou para trás, a mulher se virou e saiu
correndo para algum lugar. Hm. Eu a assustei? se perguntou.

Ruijerd baixou a guarda por um momento, e Eris atacou. Foi um


ataque contendo todo o seu poder.

— Guh!
Depois de trocar três golpes, Eris atingiu as costas da mão de
Ruijerd e o fez largar a espada.

— Yay! Eu fiz isso?! Eu fiz isso, certo?! Siiiim! — Eris pulou e


balançou as duas mãos esbanjando alegria.

Ultimamente, suas habilidades estavam começando a tomar


forma. No futuro, certamente seria uma boa espadachim, mas agora
ainda era jovem. Se pensasse muito de si mesma nesse momento,
no futuro isso poderia acabar resultando em um desastre. O homem
não planejava deixá-la vencer uma luta por um bom tempo, mas
aquela garota Migurd chamou sua atenção e ele baixou a guarda
por um momento.

Ruijerd soltou um suspiro, baixo o suficiente para que Eris não


ouvisse.

✦✦✦✦✦✦✦

Roxy olhou por cima do ombro inúmeras vezes enquanto corria


de volta para a pousada. O tempo todo, temia estar sendo seguida e
que um ataque pudesse estar chegando. Se fosse lutar contra
alguém daquele calibre, precisava preparar um cristal mágico. Ela
podia precisar até mesmo de um círculo mágico desenhado em um
pergaminho.

Não parecia que iriam atacar só porque ela estava os


observando, mas se eram loucos o suficiente para se chamarem de
Fim da Linha, Roxy queria estar preparada.

— Aah! Sim! Bem aí! Mais forte, mais forte!


Ela ficou exasperada ao ouvir os gemidos de Elinalise por trás da
porta. A elfa nem se preocupou em reunir informações;
simplesmente encontrou um homem para trazer para a pousada
com o qual pudesse se divertir.

— Sério…?

Talhand já havia mencionado o hábito de Elinalise, o de levar


homens para o quarto. Independentemente das circunstâncias, a
elfa sempre se apaixonaria por algum homem que conhecesse e
passaria a noite com ele. Isso incluía seu tempo em Porto Zant. De
acordo com Talhand, ela fez isso até quando estavam nas
profundezas de um labirinto. A mulher não tinha princípios.

Ao mesmo tempo, Roxy se sentiu um tanto aliviada. Ela teria se


sentido desamparada se tivesse sido deixada sozinha. Enquanto
Elinalise estivesse no quarto vizinho, poderia se preparar para a
batalha e esperar. Assim que a elfa terminasse, Roxy a agarraria
pela orelha e sairia para retomar a coleta de informações. Dessa
forma, também poderia ficar de olho na mulher, efetivamente
matando dois coelhos com uma cajadada.

Mas duvido que viriam até a pousada, pensou, ao entrar em seu


quarto para conduzir os preparativos para a batalha.

As paredes não eram particularmente finas, mas ainda podia


ouvir os gemidos de Elinalise ressoando. Ouvi-los a deixou com um
humor estranho.

Não, pare aí, pensou, e agarrou a mão direita com a esquerda


bem no momento em que estava pensando em fazer alguma coisa.
Ela não tinha tempo para isso agora.
Eles já estão fazendo isso há bastante tempo, pensou quando
três horas se passaram. Roxy continuou esperando em silêncio.
Parecia que o encontro de Elinalise jamais acabaria. Certo, também
não havia indicação de que o Fim da Linha iria lançar qualquer
ataque contra eles.

Roxy se sentiu uma idiota. Ela não só não conseguia fazer o que
precisava, como também não conseguia expressar sua frustração
por Elinalise ser tão egoísta. Foi especialmente enfurecedor, pois,
ao contrário da elfa, Roxy estava demonstrando autocontrole e
dizendo a si mesma que agora não era hora de se ocupar.

Quando sua raiva atingiu o auge, ela finalmente arrombou a porta


de Elinalise.

— Por quanto tempo você vai continuar fazendo isso!


Deveríamos estar reunindo…

— Ah, nossa! Roxy? Quando você voltou?

— Ah… eh?

Havia cinco homens dentro do quarto.

— Quer participar?

O cheiro de homem estava forte. Todos tinham sorrisos vulgares


e Elinalise estava montada em cima de um deles, parecendo estar
no auge do êxtase. O fato de haver várias pessoas, e de todas
estarem de acordo com isso, estava além da compreensão de Roxy.

— Uh, o qu…
A cena diante dela era tão repreensível que a maga não
conseguiu nem processar.

— Aaaaaaaaaaaaah!

Roxy soltou um grito inútil ao sair correndo do quarto. Ela voou


para o primeiro caminho que encontrou, completamente sem fôlego
e segurando seu cajado.

— Ó, espíritos das magníficas águas, suplico ao Príncipe do


Trovão! Com sua majestosa lâmina de gelo, mate meu inimigo!
Explosão de Sincelo!

A pousada ficou parcialmente destruída.

✦✦✦✦✦✦✦

No outro dia, partiram da cidade. Mal conseguiram reunir


informações depois de tudo o que aconteceu e se esqueceram de
enviar um pedido à guilda. Também destruíram uma pousada, o que
lhes custou uma quantia considerável.

— Isso é tudo culpa da Senhorita Elinalise.

— Você não pode me culpar. Eu estava em um beco coletando


informações quando me procuraram com seu apelo apaixonado.

— Mesmo assim, eram cinco… cinco pessoas, sabe?! — Roxy


lembrou.

— Algum dia você vai entender. Uma aventureira forte e bonita


como eu sendo subjugada e tratada como um brinquedo sexual por
cinco daqueles bandidos? Ah, só pensar nisso já é o suficiente para
me deixar grávida.
— Eu não quero entender.

Quando Roxy estava na Universidade de Magia, ainda era uma


criança e não entendia o apelo de ter um amante ou ser casada. A
primeira vez que pensou em querer algo assim foi quando viu como
Paul e Zenith eram íntimos um com o outro. Foi quando finalmente
decidiu que queria o mesmo para si mesma.

Ainda assim, como? Ela se perguntou na época. Então se


lembrou do que uma conhecida da universidade lhe disse. Essa
conhecida conheceu seu marido nas profundezas de um labirinto. A
luta compartilhada e a maneira como a superaram levou ao
casamento.

É isso, pensou Roxy. Se eu mergulhar em um labirinto, também


devo ser capaz de encontrar um parceiro.

Essa fantasia tomou proporções cada vez maiores em sua


cabeça. Ela iria de alguma forma esbarrar em alguém que era alto,
viril e elegantemente vestido – um jovem homem com um apelo
juvenil – nas profundezas de um labirinto, e ele a salvaria. Então os
dois combinariam suas forças para escapar e, ao fazê-lo, seu amor
germinaria e floresceria. O jovem descobriria que um de seus
amigos havia morrido e Roxy o confortaria. Essa seria sua primeira
noite juntos.

Mas quando realmente foi para um labirinto, essas fantasias


foram rapidamente destruídas. Um labirinto era um lugar hostil, e os
aventureiros que entravam nele eram muito brutos. A única pessoa
de aparência jovem entre eles era a própria Roxy.
No quinto andar, não havia mais nenhum aventureiro solitário. No
décimo, ela decidiu que as coisas estavam difíceis o suficiente para
que precisasse de um grupo, mas as pessoas zombavam dela por
sua aparência infantil e riram dela inúmeras vezes. Depois disso sua
teimosia aumentou e ela continuou fazendo tudo sozinha. Ah, a
estupidez da juventude. Roxy chegou perto da morte várias vezes,
mas teve a sorte de escapar de suas garras. Ela nunca mais queria
passar por aquilo.

— Bem, de qualquer forma, você devia encontrar seu primeiro


homem logo. Que tal isso? Da próxima vez, nós duas podemos…

— Definitivamente não.

O sonho foi destruído. Ainda assim, ela mantinha alguma


esperança. Talvez fosse impossível encontrar algo bom dentro de
algum labirinto, mas ela ainda poderia acabar se apaixonando do
método normal e tendo um casamento normal. Nesse meio tempo,
não tinha absolutamente nenhuma intenção de entregar seu corpo a
um homem cujo nome não sabia só porque Elinalise conseguiu
atraí-lo.

— Além disso, não tenho tempo para tudo isso. — Bem, Roxy
decidiu que era melhor ficar sozinha enquanto vagava pelo
Continente Demônio.

Foi assim que deu o primeiro passo errado e começou sua


aventura pelo Continente Demônio.
Capítulo 04:
O Sábio a Bordo
Naquela noite, o sujeito associado à organização de
contrabando, Gallus, saiu depois de nos dizer que entraria em
contato. Fomos obrigados a esperar quinze dias até que ele
mandasse um homem para dar mais detalhes sobre o trabalho.

Os bens contrabandeados seriam temporariamente alojados em


um prédio no qual nos infiltraríamos. Iríamos libertar aqueles que
haviam sido levados e escoltá-los de volta para suas casas. Quanto
a como faríamos isso, Gallus deixaria tudo conosco.

A informação era vaga e o plano parecia desleixado. Ainda


assim, éramos apenas espadas contratadas. Tudo o que
precisávamos fazer era cumprir nossa missão. Havia algum perigo
envolvido, então decidimos que apenas Ruijerd e eu cumpriríamos a
missão. Eris ficaria para trás, na pousada.

✦✦✦✦✦✦✦

Já era a meia-noite do dia da operação. A lua sequer era vista. O


lugar em questão era um píer localizado na orla do porto. Estava
assustadoramente quieto, o único som era o eco das ondas do
oceano. Uma figura suspeita estava perto de um barco pequeno,
com um capuz abaixado sobre sua cabeça para esconder seus
olhos.

Se estivesse procurando alguém para fazer um contrabando


através da fronteira, seria o cara ideal. Assim como tínhamos
combinado em nossa reunião anterior, entreguei Ruijerd para ele.
De acordo com as instruções, as mãos do Superd estavam
algemadas atrás dele.

Um contrabandista tratava qualquer um com quem lidava como


um escravo. O transporte de escravos custava cinco moedas de
minério verde, mas estaríamos isentos. O fato de Gallus ter nos
pago adiantado não mudou a maneira como estávamos sendo
tratados. Não estávamos sendo tratados como mercenários
contratados por ele, mas sim como criminosos que traficavam
escravos.

— Certo, vou deixar tudo em suas mãos.

O contrabandista não disse uma palavra. Ele apenas acenou


com a cabeça, guiou Ruijerd para o barco e colocou um saco na
cabeça do Superd. O barco tinha um único barqueiro, mas havia
muitos outros a bordo com sacos na cabeça. A julgar por suas
alturas, não havia nenhuma criança.

Assim que Ruijerd estava seguramente a bordo, o contrabandista


deu um sinal ao barqueiro. Este último, que estava sentado à frente
de seu pequeno veleiro, entoou um feitiço. O barco começou a
navegar sem fazer barulho, deslizando pela água na escuridão da
noite. Eu não consegui ouvir as palavras claramente, mas parecia
ser um feitiço da água que criou uma corrente para os impelir
adiante. Era algo que eu também poderia fazer.

O barco moveu-se em direção a um navio mercante ancorado em


mar aberto, para onde os escravos foram transferidos para serem
despachados no início da manhã. Mesmo de seu lugar no barco
menor, Ruijerd continuou olhando para a minha direção o tempo
todo. Ele sabia exatamente onde eu estava, apesar do saco em sua
cabeça.

Enquanto via isso, escutei “Goodbye My Lover3” tocando ao


fundo de minha mente. Não, espera, não! Ele não era meu amante!
E, de qualquer maneira, não era um adeus, isso seria apenas
temporário.

No dia seguinte, vendi o lagarto no qual cavalgamos no ano


anterior. Ele havia nos carregado desde a cidade de Rikarisu até
onde estávamos, e era confiável o suficiente para que eu desejasse
levá-lo para a Região de Fittoa conosco, mas custaria muito caro
para o levar junto. Além disso, no Continente Millis, poderíamos usar
cavalos. Os cavalos deste mundo eram rápidos e sua resistência
estava em um nível totalmente diferente. Não precisávamos mais
montar o lagarto.

Eris colocou os braços em volta do pescoço do animal e deu


alguns tapinhas. Não trocaram palavras, mas foi uma despedida
triste. A montaria cresceu apegada a ela. Durante nossas viagens,
frequentemente lambia a cabeça dela e deixava seu cabelo
encharcado de baba.

Não poderíamos continuar chamando-o de “lagarto” para sempre.


Devíamos, no mínimo, nomeá-lo. Certo, de agora em diante seu
nome será Guella Ha, decidi. Guella Ha, um homem do mar que
ansiava por mais companheiros humanos.

— Este é realmente obediente. Você deve ter o treinado muito


bem durante suas viagens, hein? — O comerciante que lidava com
lagartos ficou impressionado.
— Suponho que sim.

Foi Ruijerd quem o treinou. Não que ele fizesse algo especial,
mas certamente havia uma dinâmica de mestre e servo entre o
homem e Guella Ha. O lagarto devia ter percebido quem era a
pessoa mais poderosa do nosso grupo. Por outro lado, o animal não
gostava nem um pouco de mim e me mordeu várias vezes.

Hm… sim, pensar nisso só me irritou.

— Ha ha, exatamente o que eu esperaria do Mestre do Canil do


Fim da Linha. Isso fará ele valer um pouco mais. A maioria das
pessoas trata esses caras muito mal, e isso torna meu trabalho de
retreiná-los muito mais difícil. — O comerciante era da tribo
Rugonia, uma raça de homens com cabeças de lagarto. No
Continente Demônio, os homens-lagarto treinavam os lagartos.

— É natural que se trate os companheiros gentilmente enquanto


viajam juntos.

De novo, a música “Goodbye My Lover” tocou na minha cabeça.


Em minha mão, eu segurava o dinheiro que recebemos pela venda
de nosso companheiro. Quando pensava dessa forma, parecia até
ser dinheiro sujo. Que estranho.

Bem, é melhor deixar essa coisa de nome para lá. Isso só está
me fazendo sentir apego, decidi. Então adeus, lagarto sem nome.
Nunca vou esquecer como foi cavalgar em você.

— Wah… — Ouvi Eris fungando.

Depois de vender nossa montaria, viajamos a pé para embarcar


em nosso navio.
— Rudeus! É um navio! É tãããão grande! Opa! Tá balançando! O
que é isso?! — A partir do momento em que subiu a bordo, Eris
começou a gritar de empolgação. Talvez já tivesse até se esquecido
do lagarto. Sua capacidade de se recuperar rapidamente era um de
seus pontos fortes.

O navio tinha velas e era feito de madeira. Era um modelo


totalmente novo, concluído há apenas um ano. Essa não era apenas
sua primeira viagem, mas também um desafio aos limites impostos
ao viajar até Porto Zant.

— Mas este é um pouco diferente do que vimos antes, não é?

— Você já viu um navio antes, Eris? — Ela não disse que esta
era a primeira vez que via o oceano?

— Do que está falando? Você tinha um desses no seu quarto,


lembra?

Ah, claro, lembro de ter feito alguns desses. Era uma boa
memória. Naquela época, eu queria trabalhar na minha magia da
terra, então comecei a criar coisas. Assim que percebi que poderia
vendê-los, comecei a fazer figures da Roxy em escala 1:10.
Entretanto, há algum tempo não fiz nenhuma outra. No momento,
não sabíamos quando precisaria usar minha mana, então não tinha
feito nenhum treinamento que consumisse tal precioso recurso. O
único treinamento que fiz foi o físico, ao lado de Ruijerd e Eris. Nos
últimos tempos realmente comecei a relaxar. Depois que as coisas
se acalmassem, provavelmente precisaria voltar a aprimorar minhas
habilidades.
— Eu os fiz usando minha imaginação, então não é surpresa que
não sejam uma réplica perfeita — disse. Sem mencionar que este
era para ser um novo tipo de navio. Quanto a que parte era nova, eu
não tinha ideia.

— É incrível, não é? Que algo tão grande possa cruzar o oceano.


— Eris ficou incrivelmente impressionada.

✦✦✦✦✦✦✦

Três dias após deixarmos o porto.

Enquanto estávamos a bordo, comecei a pensar. Um navio… um


navio era um tesouro. Agora que estávamos a bordo, deveria haver
algum tipo de evento. Eu já tinha jogado muitos simuladores de
namoro e poderia dizer isso sem sombra de dúvida.

Os golfinhos, por exemplo, poderiam começar a nadar ao lado do


navio. A heroína veria isso e diria: “Olha! Incrível!” E em resposta eu
diria: “Minhas técnicas na cama são ainda mais incríveis.” Então ela
falaria: “Que maravilha! Faça-me sua!” E eu responderia: “Vamos,
meu bem, não podemos fazer algo assim aqui.”

Sim, não, não era bem isso… Ah! Sim! Quando se pensa em um
navio, se pensa em ser atacado no mar! Um polvo, uma lula, uma
serpente, piratas ou um navio fantasma, algo assim. Um desses nos
atacaria e nos afundaria. Seríamos deixados à deriva e depois
acabaríamos encalhados. Chegaríamos a uma ilha deserta, onde a
heroína e eu, apenas nós dois, começaríamos nossas vidas juntos.
No início, ela me odiaria, mas depois de superar vários obstáculos,
gradualmente se tornaria menos tsun e mais dere.
Além disso, havia apenas uma coisa para um homem e uma
mulher presos em uma ilha deserta fazerem juntos. A troca de
olhares, o calor febril… Dois jovens de sangue quente, começando
a suar em meio ao eco das ondas do mar. Depois, desfrutaríamos
do nascer do sol juntos. Um paraíso só para nós dois.

Sobre a questão de um ataque de polvo, o destino da heroína já


estava selado. Ela seria atacada por vários tentáculos, mais do que
se pensaria que um polvo de oito tentáculos poderia possuir, e
depois a suspenderia no ar. Seu corpo se contorceria como se
estivesse em agonia. A criatura a envolveria com seus tentáculos e
mergulharia sob suas roupas. Seria o maior espetáculo de todos,
que faria uma poça de suor nas palmas de suas mãos. Uma visão
da qual não se conseguiria desviar os olhos, nem mesmo por um
segundo.

A realidade, entretanto, era cruel.

Eris estava sentada na cabine com o rosto pálido e um balde na


sua frente. Sua empolgação com a primeira viagem de barco
rapidamente se transformou, no meio do caminho, em náusea. Eu
me perguntei por que ela ficava bem cavalgando em cima de um
lagarto, mas de alguma forma não tinha estômago para um navio.

Como alguém que nunca sentiu enjôo, eu não conseguia


compreender. Embora houvesse uma coisa que pudesse dizer: Por
mais brando que fosse o balanço do navio, não parecia aliviar o
sofrimento de quem ficava enjoado.

No quarto dia, um polvo apareceu. Pelo menos, foi isso que eu


presumi que fosse. Era de uma cor azul marinho, surpreendente e
extremamente grande. Por azar, não conseguiu capturar nenhuma
garota. Em vez disso, foi abruptamente despachado por um grupo
de guarda-costas de rank S.

Não deveria haver nenhuma missão de escolta disponível. Se


houvesse, eu a teria pego na mesma hora. Perguntei a um
comerciante próximo, que me informou que esse pessoal era
especializado em escolta de navios. O nome do grupo era Aqua
Road. Aparentemente tinham um contrato exclusivo com a Guilda
dos Armadores, e seu trabalho principal era atuar como escoltas
marítimas. Como resultado, se especializaram em despachar
qualquer uma das criaturas que pudessem aparecer em nossa rota.

No final das contas, não haveria nenhuma cena emocionante de


tentáculos. Que pena.

Dito isso, havia algo a extrair disso. Eu me afastei e os observei


lutar, apenas para o caso de algo acontecer, então vi a maneira
como lutavam em grupo.

Para ser honesto, chorei de tanto rir quando vi seus pontos fortes
individuais pela primeira vez. O espadachim lutando em sua
vanguarda era forte, mas não tão forte quanto Ghislaine4. Aquele
que atuava principalmente em desviar os ataques do inimigo e
chamava a atenção também era um guerreiro forte, mas nada
parecido com Ruijerd. Na retaguarda estava quem parava o polvo,
um mago que certamente era mais fraco do que eu.

Fiquei desapontado. Era realmente assim que um grupo de rank


S deveria ser? Achei que a maioria das pessoas neste mundo era
muito forte, mas essas não eram tão impressionantes quanto
imaginei.

No entanto, rapidamente cheguei a uma conclusão diferente.


Eles eram um grupo de rank S. Eu não deveria ter olhado para seus
pontos fortes individualmente, mas sim como trabalhavam como
uma equipe. Mesmo não sendo tão fortes, ainda conseguiram
derrotar aquele polvo enorme. Mesmo não sendo tão fortes, ainda
assim chegaram ao rank S. Era isso que importava. Cada pessoa
cumpria seu papel dentro do grupo e era assim que demonstravam
tal poder como equipe. Trabalho em grupo era isso. Era o que
faltava ao Fim da Linha.

Cada membro do Fim da Linha era poderoso. Mas e o nosso


trabalho em equipe? O trabalho em equipe de Ruijerd era excelente,
possivelmente porque ele próprio havia feito parte de um esquadrão.
Ele era hábil em batalhas em grupo. Mesmo se Eris ou eu
cometêssemos um erro, o homem poderia nos cobrir. E também era
ótimo em agir como um aggro, mantendo os olhos da besta colados
nele o tempo todo.

Ruijerd também era forte demais. Na verdade, poderia matar


nossos oponentes sozinho, mas estávamos forçando-o a trabalhar
com uma equipe durante as batalhas. Eu não chamaria isso
exatamente de ruim, mas não havia dúvida de que as coisas
acabavam distorcidas. Achei que sabia o que significava lutar em
equipe, mas isso era apenas na teoria. Saber a teoria não
significava que seria capaz de colocá-la em prática. Eu tinha o
hábito de me concentrar nos inimigos que vinham em minha direção
e, quando estavam em maior número que nós, confiava muito no
Superd.

Eris era horrível. Ela ouvia as instruções muito bem, mas quando
se tratava de uma batalha real, não conseguia combinar seu ritmo
com o nosso. Ficava muito fixada no inimigo à frente e se jogava em
batalhas intensas. Quanto mais a luta durava, menos ela escutava.
Mesmo se a chamássemos, nunca cobriria nenhum de nós, nem
mesmo uma vez.

Mas, bem, para começo de conversa, nem Ruijerd nem eu


realmente precisávamos disso. Ainda assim, se isso continuasse e
Ruijerd nos deixasse por qualquer motivo, eu não estava confiante
de que poderia a cobrir sempre. Mesmo tendo um olho demoníaco,
ainda tinha apenas duas mãos. Apenas uma mão para me proteger
e outra para proteger Eris. O alcance de uma mão era realmente
limitado.

— Rudeuuus…

Enquanto eu estava ocupado com meus pensamentos, o rosto


pálido e doente de Eris apareceu no convés. Ela deslizou,
cambaleando até a borda do navio e vomitou pela amurada. Nesse
ponto, parecia que não havia mais nada em seu estômago, exceto
bile.

— O que você está fazendo aqui… quando estou sofrendo


assim…

— Desculpa. É só que o mar é tão lindo.


— Você é muito malvado… Waah… — Lágrimas encheram seus
olhos quando ela jogou os braços em volta de mim.

Seu enjôo era severo.

Dia cinco. Eris estava na cabine e, como sempre, passando mal,


e eu estava constantemente cuidando dela.

— U-urgh… minha cabeça dói… Me cura…

— Tá bom, tá bom.

Eu descobri por um dos marinheiros que um pouco de magia de


cura poderia aliviar seu sofrimento. O enjôo era causado por um
desequilíbrio no sistema nervoso autônomo. Lançar um feitiço de
cura em sua cabeça resultaria em algum alívio temporário.

Pelo menos, é assim que deveria ter funcionado. Eu não


conseguia lançá-lo continuamente, e a magia de cura não eliminava
toda a náusea.

— Ei… eu vou… morrer?

— Vou rir de você se você morrer de enjôo.

— Não…

Não havia mais ninguém na cabine. O navio em si era


gigantesco, mas não havia muitas pessoas viajando do Continente
Demônio para o Continente Millis. Eu não tinha certeza se isso era
porque as taxas de passagem eram muito mais caras para os
demônios do que para os humanos, ou porque os demônios
simplesmente achavam mais fácil viver no Continente Demônio.
Eris e eu estávamos sozinhos.

No lugar silencioso e mal iluminado, lá estava ela, sem poder


para lutar. E lá estava eu ao seu lado, tendo passado os últimos
cinco dias observando-a enfraquecer.

No começo não houve problema com isso. Exceto a cura. Isso


era um problema. Para curá-la, eu precisava tocar sua cabeça.
Como precisava lançar meu feitiço regularmente, ela estava usando
meu colo como travesseiro enquanto eu mantinha minhas mãos em
volta de sua cabeça, curando-a repetidamente.

Foi quando comecei a me sentir estranho. Não, estranho era uma


palavra enganosa para se usar. Para ser franco, eu estava
começando a ficar com tesão.

Certo, preste atenção. Lá estávamos nós em uma cabine, e Eris,


que normalmente era tão obstinada, de repente ficou com os olhos
turvos, me chamando com uma voz fraca e respirando
irregularmente, me implorando:

— Por favor, estou implorando, por favor, apenas faça isso (me
cure).

Meus controles de volume interno abafaram a parte sobre a cura.


Simplemsente parecia que ela estava implorando por aquilo. Claro,
isso não era verdade. Eris estava apenas fraca. Eu nunca tinha
sentido enjôo, mas sabia que devia ser terrível.

Não havia nada inerentemente sexual em tocar outra pessoa.


Ainda assim, ela era maior de idade e eu podia sentir o calor de seu
corpo. Só isso era estimulante, mesmo que o toque não fosse de
natureza sexual. A excitação que isso produziu foi pouca, mas fazer
isso continuamente por um tempo resultaria em problemas para
mim.

Tocar seu corpo, não importa onde, ainda era tocar. Tocar
indicava que estávamos próximos. Estar próximos significava que
seu corpo estava totalmente à vista. A testa, banhada pelo suor frio,
a nuca, o peito, tudo.

Eris estava tão fraca e apática. Normalmente, ela me socaria se


eu a tocasse sem motivo. Mas agora, era como um peixe na tábua
de cortar. Isso significava que era basicamente minha, certo?

Esses sentimentos horríveis começaram a se enraizar em mim.


Eu tinha certeza de que a garota não iria resistir, mesmo se eu
arrancasse minhas roupas e me lançasse sobre ela. Não, ela não
poderia resisitir. O simples pensamento fez minha virilha se sentir
como Excalibur antes de Arthur segurá-la. E na minha cabeça Arthur
gritou. Ele estava gritando comigo, me dizendo que Eris não seria
capaz de resistir. Ele me disse que eu nunca teria outra chance
dessas. Era minha chance de perder a virgindade que tinha mantido
por tanto tempo.

Meu Merlin interior, entretanto, me incentivou a resistir. Já tinha


tomado uma decisão quando prometi esperar até os quinze anos.
Disse que esperaria até que esta viagem terminasse. Apoiei o que
Merlin estava dizendo, mas minha capacidade de resistir estava
chegando ao limite.
E se eu testasse as coisas tocando apenas seus seios? Eu tinha
certeza de que seriam macios. E macios não era a única coisa que
seriam. Isso mesmo – os seios seriam mais do que macios. Havia
uma firmeza no meio de toda aquela maciez. Um Graal. O Santo
Graal que meu Arthur interior buscava. O que aconteceria se minha
mão, meu Dom Galvão, encontrasse aquele Graal? A Batalha de
Camlann.

Ahh, claro, não era apenas o Santo Graal. O corpo de Eris estava
mudando dia a dia, especialmente seu seio. Ela estava no meio da
puberdade. Eu não tinha certeza se era genético, mas estava se
desenvolvendo rapidamente de uma forma que lembrava sua mãe.
Se continuasse nesse ritmo, se tornaria uma beleza voluptuosa.

Alguns homens poderiam dizer: “Eh, acho que os menores são


perfeitos.” Todos tinham suas preferências, mas eu poderia dizer
que estaria junto no momento de descrever os seios de uma mulher
como “perfeitos”. Eu poderia pegar seus seios em minhas mãos
neste exato momento, enquanto ainda eram pequenos.

Sua respiração estava irregular.

— R-Rudeus…? — Ela olhou para mim ansiosamente. — Você


está bem?

Sua voz me acertou em cheio. Uma voz que normalmente era tão
alta e forte.

Desta vez foi na altura perfeita, o suficiente para fazer meu peito
formigar.

— Uh… sim, estou bem, eu juro. Não se preocupe.


— Se você está sofrendo, não precisa se forçar, sabe?

Eu não teria que me forçar? Então, em outras palavras, não teria


que negar isso a mim mesmo? Isso significava que poderia fazer o
que quisesse?

Brincadeira… Eu entendi o que ela quis dizer. Estava preocupada


se minha mana aguentaria, já que estava a curando continuamente.
Eu já sabia disso; sabia que Eris confiava em mim. Confiou que eu
nunca usaria esta oportunidade para colocar a mão nela. Eu não
trairia essa confiança. Rudeus Greyrat não trairia essa confiança.
Essa era a maneira adequada de responder à confiança de uma
pessoa.

Certo, disse a mim mesmo, vamos agir como uma máquina. Uma
máquina. Eu era uma máquina de cura. Me tornaria um robô sem
sangue ou lágrimas. Não veria nada, porque se visse o rosto dela,
faria algo impulsivo. Com esse pensamento em mente, decidi fechar
meus olhos. Também não ouviria nada. Se ouvisse sua voz, faria
algo imprudente. Então, bloqueei minha audição também.

Eu era um pária silencioso e anti-social. E como não tinha


desejos terrenos, não podia fazer nada impulsivo. Com isso em
mente, fechei meu coração. No entanto, ainda podia sentir o calor
de sua cabeça e o cheiro de seu corpo. Diante dessas duas coisas,
minha vontade foi instantaneamente destruída. Parecia que minha
cabeça ia ferver.

Ah, não posso fazer isso. Estou perdendo o juízo, pensei.

— Eris, preciso ir ao banheiro.


— Ah, então é isso que você estava segurando. Certo… Te vejo
daqui a pouco.

A garota aceitou isso facilmente. Dei a ela um olhar de soslaio


antes de sair da cabine. Me movi rapidamente. Eu precisava de um
lugar deserto, e logo o encontrei. Lá, tive um momento de felicidade
suprema.

— Uff…

Só assim, me senti como um menino que havia se transformado


em um sábio. Quando fechei os olhos a sensação ficou mais forte,
como se tivesse atingido a santidade, como uma garota mágica se
transformando e obtendo poderes ainda maiores.

— Certo, voltei.

— Sim, bem-vindo de volta…

Voltei para a cabine com uma expressão iluminada no rosto,


como um Bodisatva, e finalmente me tornei uma máquina de cura.

✦✦✦✦✦✦✦

Eris voltou ao seu estado normal e animado no momento em que


descemos do barco.

— Nunca mais quero embarcar em outro navio!

— Sim, mas teremos que fazer isso uma última vez para ir do
Continente Millis ao Continente Central.

Ela pareceu desanimada com isso, então ficou ansiosa ao se


lembrar do que havia acontecido no navio.
— E-ei. Quando essas coisas acontecerem, você vai me curar o
tempo todo de novo?

— Claro, mas da próxima vez posso fazer algo pervertido com


você — falei com naturalidade.

— Ugh… por que diz algo tão cruel?!

Não foi crueldade. Eu era o único sofrendo. Agora entendia como


um cachorro se sentia, tendo uma refeição deliciosa à sua frente,
apenas para ser impedido de dar uma mordida. Ali estava, com o
estômago completamente vazio e com a comida o chamando,
implorando para que a devorasse, e não conseguia. Poderia engolir
a quantidade de água que quisesse para tentar temporariamente
satisfazer a dor na barriga, mas seria um esforço inútil. A refeição
não iria desaparecer e seu estômago voltaria a ficar vazio.

— Eris, você é realmente fofa. Estou desesperadamente


tentando resistir à tentação de fazer qualquer coisa com você.

— B-bem, acho que é assim que tem que ser. Da próxima vez
pode me tocar, mas só um pouco, tá? — Seu rosto estava vermelho
e brilhante como um tomate. Era realmente adorável. No entanto,
havia uma lacuna muito grande entre a enormidade do meu desejo
e o “pouco” que ela oferecia.

— Infelizmente, “só um pouco” não vai resolver. Por favor, vamos


esperar até que você esteja pronta para eu mergulhar e fazer o que
quiser com você.

Eris ficou sem palavras. Eu não queria que ela alimentasse


minhas expectativas. Queria que me deixasse manter a promessa
que fiz. Se eu a quebrasse e colocasse minhas mãos na garota, nós
dois ficaríamos chateados com isso.

— De qualquer forma, vamos indo.

— C-certo. Claro. — Eris se recuperou rapidamente e logo ficou


de bom humor quando começamos a caminhar em direção à cidade.

A paisagem urbana diante de nós não era muito diferente


daquela de Porto Vento. Mas isso era Porto Zant, uma cidade no
extremo norte do Continente Millis. Continente Millis. Finalmente
estávamos em tal lugar, mas ainda tínhamos um longo caminho a
percorrer.

— Rudeus, o que há de errado?

— Nada, não é nada.

Seria melhor esquecer quanto tempo nossa jornada ainda


duraria. O importante agora era partir para a próxima cidade.

Antes de fazermos isso, no entanto, precisávamos conseguir


algum dinheiro e comprar um cavalo. E, antes de qualquer coisa,
tínhamos que terminar nosso trabalho atual. Agora que havíamos
chegado até esse ponto, era hora de ver essa missão ser concluída.
Dito isso, nosso trabalho só começava ao anoitecer. Ainda tínhamos
algum tempo sobrando. Então, o que fazer?

Já havíamos trocado nosso dinheiro no Continente Demônio,


então não havia necessidade de visitar a Guilda dos Aventureiros.
Decidi que iríamos para uma pousada. Assim poderíamos nos
recuperar de nossa cansativa jornada no navio. Nosso trabalho viria
depois. Ruijerd teria que sofrer com suas condições de vida
desconfortáveis um pouco mais, mas… bem, ele só teria que
suportar.

E foi assim que chegamos ao Continente Millis.


Capítulo 05:
O Demônio no Armazém
O layout da cidade de Porto Zant era semelhante ao de Porto
Vento.

Havia várias colinas onduladas ao seu redor e um porto que era


mais animado do que a própria cidade. A Guilda dos Aventureiros
ficava, da mesma forma, mais perto do porto do que do centro da
cidade.

Dito isso, existiam alguns contrastes. Evidentemente, havia muito


mais prédios de madeira neste lugar do que em Porto Vento. Eles
também eram pintados com cores fortes, talvez para proteger o
material da maresia. Árvores ladeavam a estrada e era possível ver
uma floresta além da orla da cidade.

Havia verde por toda parte. Era um contraste enorme com o


Continente Demônio, que era todo branco, cinza e marrom. Um
oceano era tudo o que separava os dois continentes e, no entanto,
eram como mundos diferentes.

Eu já deveria esperar por isso, afinal, este era o Continente Millis,


mas as pessoas que vagavam pelas ruas não eram a mesma
mistura estranha de diferentes tribos de demônios que eu tinha visto
antes. Em vez disso, havia gente-fera, elfos, anões e hobbits –
raças de pessoas que se assemelhavam muito aos humanos.

Antes de irmos encontrar uma pousada, tive que verificar o


estado de nossas finanças. Na moeda do Continente Demônio,
tínhamos duas moedas de minério verde, dezoito moedas de ferro,
cinco moedas de sucata e três moedas de pedra. Era isso. Quando
as trocamos, recebemos três moedas de ouro Millis, sete moedas
de cobre grande Millis e duas moedas de cobre Millis. Menos do que
presumi que conseguiríamos, mas suspeitei que fosse por causa
das taxas de transação. Se tivéssemos usado uma casa de câmbio
que não tivesse sido licenciada pela guilda, certamente teriam
cobrado mais. Isso ainda estava dentro de uma faixa aceitável.

— Devíamos ficar em uma pousada perto da guilda, não?

— Sim, precisamos pegar algumas missões — concordou Eris.

Isso dependia de como as coisas aconteceriam durante a noite.


Supondo que tudo corresse bem, estaríamos trabalhando em
serviços para a guilda e, ao mesmo tempo, espalhando o bom nome
do Fim da Linha. Até o momento, parecia que o nome não era
amplamente conhecido pelo Continente Millis. O dia em que esse
nome perderia todas as suas terríveis associações poderia em
breve estar sobre nós.

Com isso em mente, começamos a procurar uma pousada perto


da guilda. Misteriosamente, todas as com preços decentes estavam
lotadas. Foi a primeira vez que passei por isso. Claro, em outras
ocasiões já tínhamos sido recusados por as pousadas estarem
cheias, mas nunca imaginei que quase todos estariam assim.

Havia algum tipo de festival ou coisa semelhante acontecendo?


Quando perguntei, um dos proprietários da pousada respondeu: “A
estação das chuvas está quase chegando. Quase todas as boas
pousadas vão estar lotadas.”
A estação das chuvas era um fenômeno climático peculiar da
Grande Floresta, uma chuva contínua que durava três meses
inteiros. O dilúvio tornava a Grande Floresta, assim como a rodovia,
intransitáveis. Como resultado, muitos hóspedes fizeram reservas
para longas estadias nas pousadas.

A maioria das pessoas normalmente evitaria ficar presa em um


lugar como este durante a estação das chuvas, mas pelo visto
certos monstros só apareceriam durante essa época, graças às
chuvas que os levaram em direção à cidade. Os materiais pegos
desses monstros eram vendidos por muitas moedas, então muitos
aventureiros iriam para a cidade e permaneceriam durante esta
temporada.

Quando ouvi isso, decidi mudar meus planos. Se passássemos


os próximos três meses arrecadando dinheiro diligentemente,
poderíamos arcar com todas as nossas despesas pelo resto da
viagem. E ao mesmo tempo também poderíamos divulgar o nome
de Ruijerd. Decidir um plano de ação tornaria o resto de nossa
viagem no Continente Millis suave e relaxante.

Ainda assim, seria melhor não contar com os ovos dentro das
galinhas, certo? Não tínhamos muito dinheiro e também não
conseguimos encontrar uma pousada para nos hospedar. Os únicos
lugares com quartos disponíveis estavam fora do nosso orçamento
ou eram extremamente ruins.

Seria impossível pagar com o dinheiro que não tínhamos, então


só nos restava uma opção: ficar em um lugar desagradável e
permanecer no que era, francamente, uma favela. Uma noite
custava três moedas de cobre grande e não havia outros serviços
inclusos, incluindo refeições. Mas, apenas para dormir, parecia
barato e decente. De volta ao Continente Demônio, tínhamos ficado
em lugares muito piores. Mas valeria à pena ir para outro lugar
assim que conseguíssemos economizar algumas moedas.

— Hmm, acho que não é tão ruim! — Eris era filha de uma
família nobre, mas não tinha escrúpulos quanto ao estado
dilapidado do edifício ou sua falta de serviços.

Na verdade, eu era o único reclamando.

— Pessoalmente, gostaria de acomodações mais agradáveis.

— Você está agindo como um bebezão.

Por mais que eu quisesse responder: “Ah, é? Olha só quem fala”,


não consegui. Tomando cuidado e relembrando, percebi que essa
jovem “nobre” garota costumava dormir profundamente sobre um
fardo de feno em um estábulo infestado de baratas que cheirava a
esterco de cavalo. Nós não éramos iguais. Eu ainda ansiava pelo
calor de uma boa cama, mesmo depois de ter reencarnado.

Decidi não “agir como um bebezão”. Tudo o que pude fazer foi
usar magia para criar um vento quente que aniquilaria todos os
ácaros da poeira e, em seguida, daria uma limpada rápida no
quarto. Eu não tinha mania de limpeza. Honestamente, até gostava
que as coisas ficassem um pouco bagunçadas, mas, às vezes, em
pousadas como essa, as pessoas que pernoitavam esqueciam
algumas de suas coisas. Poderia haver alguma moeda deixada
debaixo da cama ou um pequeno anel que caiu de uma bolsa.
Podíamos embolsar qualquer dinheiro que encontrássemos, mas, às
vezes, se houvesse um anel ou algo semelhante deixado para trás,
poderia haver um pedido de busca na guilda. Isso poderia nos
render uma recompensa em dinheiro, independentemente do rank
do pedido. Normalmente, seria algo pequeno, mas poderia
acontecer de render uma grande quantia. Foi por isso que
cuidadosamente limpei o quarto.

Nesse meio tempo, Eris pegou alguns trocados emprestados


para cuidar da limpeza das roupas. Em seguida, rapidamente
realizou os cuidados de rotina do seu equipamento. Quando
terminamos, o sol estava começando a se pôr.

— Eris, está na hora de pegarmos Ruijerd. — Imediatamente


decorei onde nossa pousada estava localizada. As favelas eram
próximas umas das outras, então a segurança pública não seria
garantida.

Uma vez, ficamos em uma pousada perto das favelas. Um ladrão


entrou em nosso quarto enquanto estávamos trabalhando. Ruijerd
havia seguido os rastros do bandido e os puniu severamente, mas
as mercadorias que roubaram de nós já haviam sido repassadas
para outra pessoa e nunca as recuperamos. Na época, aquelas
coisas não eram lá muito importantes.

Entretanto, eu não tinha planos de deixar nada precioso no


quarto de hotel enquanto estivéssemos fora. Mesmo assim, parecia
prudente implementar algumas medidas de prevenção ao crime.
Também me deu um bom pretexto para não levar Eris comigo.

— Eris, você fica aqui e cuida da nossa bagagem.

— Você vai me deixar aqui? Não posso ir junto?


— Não é assim, é só que esta não é uma área realmente segura.

— Ótimo; não é como se alguma dessas coisas fosse


particularmente importante.

Fiquei chocado. Eris não percebeu a importância da prevenção


ao crime. Estaríamos em apuros se nossas coisas diariamente
usadas fossem roubadas, pois não tínhamos dinheiro para substituí-
las. Eu precisava usar essa oportunidade para ensiná-la a
importância de se proteger contra possíveis ladrões.

— Você não entende? Alguém pode roubar a roupa de baixo que


você acabou de lavar.

— A única pessoa que roubaria algo assim é você! — Após esse


corte eu gemi por dentro.

Mas, sabe, Eris, eu nunca tentei roubar sua calcinha depois que
você a lavou… Nem uma vez.

✦✦✦✦✦✦✦

Durante a noite, andei sozinho pela cidade. Levou algum tempo


para persuadir Eris. Entretanto, a prevenção ao crime era realmente
importante.

Fomos instruídos a realizar nosso trabalho à noite, mas nosso


empregador nunca especificou a hora. Qualquer hora depois do pôr
do sol serviria, contanto que resgatássemos os cativos. Éramos
livres para operar em nosso próprio tempo. No entanto, com a
estação das chuvas quase chegando, os contrabandistas estariam
ansiosos para mover seu navio o mais rápido possível, então não
podíamos perder tempo.
No momento, Ruijerd estava sendo tratado como escravo.
Fariam o esforço mínimo para mantê-lo vivo, mas ele poderia ter
recebido um tratamento ruim na última semana. Certamente não o
alimentaram com nada decente. O homem provavelmente estava
com fome. E quando as pessoas ficavam com fome, ficavam com
raiva. Foi por isso que tive que me apressar.

Com a lança de Ruijerd em uma das mãos, fiz meu caminho até
o cais e, em seguida, até a orla. Lá estavam quatro grandes
armazéns de madeira. Deslizei para dentro daquele rotulado como
“Armazém Três”.

Dentro havia um único homem, limpando tudo em silêncio. Ele


tinha um dos penteados mais comuns da virada do século: um
moicano. Fui até ele e perguntei:

— Yo, Steve. Como está Jane, sabe, aquela que mora perto da
praia? — Essa era a nossa senha.

O Moicano me lançou um olhar interrogativo.

— Ei garoto, o que você está fazendo aqui?

Ah, merda, fiz errado? Não, não era isso – talvez ele
simplesmente não acreditasse em mim, já que eu era criança.

— Eu estou em uma missão para meu mestre. Estou aqui para


pegar uma carga.

O homem pareceu entender quando eu disse isso. Ele acenou


com a cabeça calmamente e disse:

— Siga-me. — Então se dirigiu mais para dentro no armazém.


Eu o segui em silêncio. No fundo do armazém havia uma caixa
de madeira grande o suficiente para caber talvez cinco pessoas
dentro. O Moicano pegou uma tocha e moveu a caixa. Um conjunto
de escadas apareceu abaixo dele, e o homem apontou com o
queixo em direção a elas, como se me dizendo para descer.

Quando fiz isso, percebi que estávamos em uma caverna úmida.


O Moicano apareceu atrás de mim com sua tocha acesa e continuou
em frente. Eu o segui, tomando cuidado onde pisava para não
escorregar.

Continuamos caminhando por quase uma hora. Finalmente,


saímos da caverna e nos encontramos no meio da floresta. Pelo
visto, agora estávamos fora da cidade. Continuamos a andar até
encontrar um grande edifício escondido entre fileiras de árvores.
Não parecia nada com um armazém, mas sim com a villa de um
homem rico.

Então essa era a área de espera deles.

— Tenho certeza de que você já sabe disso, mas é melhor


manter este lugar em segredo. Se não…

— Sim, eu sei. — Acenei com força. Se eu contasse a alguém,


iriam me caçar e me matar, certo? Gallus já havia me dito isso lá em
Porto Vento. Seria melhor se tivessem me forçado a assinar algo
com sangue do que a fazer promessas com palavras vazias. Então,
por que não? Porque havia raças que não tinham pontas de dedos.
Além disso, era provável que ninguém quisesse assinar algo assim.
Isso deixaria apenas evidências de seus erros.
O Moicano bateu na porta da frente. Bang, bang. Bang, bang.
Devia haver algum ritmo combinado para abrirem a porta.

Depois de um tempo, um homem de cabelos brancos e uniforme


de mordomo apareceu lá de dentro. Ele verificou nossos rostos
antes de dizer secamente:

— Entrem.

Então entramos. À nossa frente, um lance de escadas conduzia


ao segundo andar. Em cada lado havia outro conjunto de escadas
que levava ao porão. Havia portas à nossa direita e à esquerda.
Falando francamente, parecia o saguão de uma mansão. Em um
canto, alguns homens de aparência sombria estavam com os
cotovelos dobrados sobre uma mesa redonda.

Comecei a ficar nervoso.

Foi então que o mordomo de cabelos brancos olhou para mim,


com suspeita em seus olhos e perguntou:

— E quem o indicou?

— Ditz. — Esse era o nome que Gallus nos disse para usar.

— Ele, hein? Ainda assim, eu não esperava que ele usasse uma
criança para isso. Com certeza é um homem cauteloso.

— Isso é graças à natureza das mercadorias que manuseamos.

— Hm, de fato. Então faça isso logo. É assustador e está além


do nosso poder. — O mordomo tirou um molho de chaves do bolso
da camisa e passou uma para o Moicano. — Quarto 202.
O Moicano assentiu em silêncio e começamos a andar.

Eu podia ouvir o barulho do chão sob seus pés, bem como o som
de alguém gemendo em algum lugar do prédio. O cheiro de algum
animal também ocasionalmente surgia. Foi quando percebi que
havia uma sala adjacente à área principal, cercada por barras de
ferro. Espiei lá para dentro. Mesmo sob a luz fraca, pude ver um
círculo mágico no chão. Contida dentro de seus limites estava uma
grande besta que estava acorrentada e estatelada. Estava muito
escuro para ter certeza, mas eu nunca tinha visto aquele tipo de
criatura no Continente Demônio. Devia ser algo nativo do Continente
Millis.

Onde estavam os escravos que foram levados cativos?


Disseram-nos para libertá-los, mas não nos contaram onde estavam
localizados. Talvez Ruijerd soubesse.

O Moicano desceu as escadas localizadas nas profundezas da


mansão. O mordomo mencionara o quarto 202, então presumi que
fosse no andar de cima, mas parecia que ficava no porão.

— Então fica no subsolo, hein?

— O segundo andar é só para enganar as pessoas.

Isso significava que os itens do segundo andar não eram motivo


para preocupação, caso alguém os encontrasse. Bens que eram
altamente tributados ou que, de outra forma, seriam condenados a
duras penas se contrabandeados, seriam mantidos no andar de
baixo.
— Isso aí. — O Moicano parou em frente a uma porta com uma
placa que dizia “202”. Quando olhei para dentro, vi Ruijerd com as
mãos algemadas atrás das costas, cheio de ramos de cabelo
esmeralda começando a brotar em sua cabeça. Não foi nenhuma
surpresa que agora tivesse algum cabelo nascendo em sua cabeça,
já que foi deixado assim por uma semana.

— Agradeço a sua ajuda.

O Moicano acenou com a cabeça e assumiu seu posto do lado


de fora da porta da frente. Um vigia, presumi.

— Não tire suas algemas aqui. Não há nada que possamos fazer
para impedir um Superd se ele ficar fora de controle. — O homem
parecia um pouco pálido ao dizer isso.

Pelo visto, mesmo o pouco cabelo de cor esmeralda na cabeça


de Ruijerd já era eficaz. O Moicano ficaria ainda mais apavorado se
eu removesse as amarras do Superd e começasse a comandá-lo.
Nah, não havia necessidade de fazer alguma coisa do tipo –
pretendendo ser um gênio do mal fracote capaz de controlar um
monstro.

Agora, onde coloquei a chave para suas algemas? Procurei no


bolso da camisa, mas não estava em lugar nenhum. Talvez tivesse
deixado na estalagem. Me preocupar seria muito incômodo, então
decidi apenas usar minha magia. Quando me aproximei de Ruijerd,
percebi uma expressão sombria em seu rosto.

Sim, eu sabia disso. As pessoas ficam irritadas quando estão


com fome, pensei. Espere um pouco mais e vamos pegar um pouco
de comida para…
— Rudeus, traga seu ouvido aqui perto — sussurrou Ruijerd.

— O que foi?

Quando coloquei meu rosto mais perto, o Moicano pareceu entrar


em pânico e disse:

— E-ei! Pare com isso! Ele vai morder!

Nah, não esquenta. É de Ruijerd que estamos falando, ele vai no


máximo fingir que me mordeu, pensei enquanto me inclinava para
mais perto.

— Eles sequestraram crianças. Sete delas.

Hein? Mais do que eu esperava.

— Crianças do povo-fera. Tomadas contra a sua vontade. Mesmo


daqui consegui escutar elas chorando.

— Hm, talvez sejam elas que devemos resgatar?

— Não sei. Mas parece que não há mais ninguém por aqui.

Crianças. Escravas, presumi. Entre elas estava a pessoa que


Gallus disse que causaria problemas no futuro. Ou talvez fosse
outra pessoa, alguém importante.

— Nós vamos salvá-las, é claro. Certo?

— Bem, esse é o trabalho que aceitamos — respondi.

De qualquer forma, poderíamos verificar cada quarto para ter


certeza. Restava apenas um problema.

— Há guarda-costas por todo este prédio.


— Eu sei — respondeu o homem.

— Então, o que vamos fazer quanto a eles?

Mesmo que fosse de Ruijerd que estávamos falando, ainda seria


difícil passar despercebido e libertar todos aqueles escravos.

— Matar todos.

Assustador!

— Matar todos eles, hein…?

— Eles sequestraram crianças. — O Superd tinha uma


expressão de descrença no rosto. Como se tivesse sido traído.

Mas não era como se eu tivesse me oposto. Gallus nunca


especificou quais métodos poderíamos ou não usar. A julgar pela
maneira como ele falava, provavelmente presumiu que eu deixaria
Ruijerd massacrar todos. Mas originalmente planejei libertá-lo e
partir, para depois me infiltrar furtivamente e libertar os cativos.
Parecia que meus planos foram muito ingênuos. Matar todos
poderia não refletir de maneira honrosa o nome da tribo de Ruijerd,
pelo menos na minha opinião, mas dessa vez não tínhamos
escolha.

— Cuide para não deixar nenhum vivo.

Não disse isso para parecer cruel ou implacável. Uma


organização de contrabando pagaria a um cliente que os traíra
enviando assassinos que criaram desde o nascimento. A única
coisa que esperava os traidores seria uma morte impiedosa.
Eu não tinha certeza do que Gallus faria depois disso. Ele
poderia enviar assassinos atrás de nós para manter nossas bocas
fechadas. Enquanto Ruijerd estivesse conosco, não precisávamos
ter medo de assassinos, mas não conseguiríamos dormir em paz.
Também não havia garantia de que o Superd ficaria conosco o
tempo todo.

— Sim, deixe isso comigo.

Eita, eita, é a resposta que eu esperava, Ruijerd! Foram palavras


reconfortantes.

— Não vou deixar ninguém vivo. Nem uma única pessoa.

Assustador. Uma veia azulada apareceu em sua testa.


Ultimamente, achei que ele tinha amolecido um pouco, mas o
homem acabou revelando sua sede de sangue. O que esses
contrabandistas fizeram para irritá-lo tanto?

— Posso perguntar o que fizeram com aquelas crianças?

— Você saberá quando as vir. — Isso realmente não esclarecia


nada. — Não se preocupe. Você não tem que sujar as mãos —
disse Ruijerd, entendendo mal o meu comportamento.

Meu corpo congelou e eu disse:

— Não. — Suas palavras foram como um espinho que acertou


meu coração. — Eu… também vou.

É verdade que, no último ano, evitei tirar a vida de alguém. Matei


bestas sem questionar, mesmo aquelas que eram humanóides. Eu,
entretanto, não cometi assassinato. Em parte, porque não
precisava, mas também havia muitos motivos para não o fazer.
Também nunca havia sentido o impulso de matar alguém antes.

Este mundo era implacável. Era um mundo onde as pessoas


travavam batalhas de vida ou morte todos os dias. Eu,
eventualmente, teria que matar alguém. Essa era uma situação que
algum dia teria de enfrentar. Achei que tinha me preparado
mentalmente para isso, mas o que fiz não foi uma preparação
mental. Tudo o que fiz foi reduzir a força do meu Canhão de Pedra a
um nível em que não seria capaz de matar ninguém.

No final, hesitei em tirar a vida de alguém. Eu poderia alegar o


contrário, se quisesse, mas a verdade é que não queria quebrar o
tabu do assassinato. Não tinha me preparado, não conseguia me
preparar. Ruijerd percebeu isso. É especificamente por isso que
disse o que disse. Ele estava tomando conta de mim.

— Não faça essa cara. Suas mãos são para proteger Eris.

Ah, bem. Eu acho que ele estava certo. Não havia sentido em me
forçar a matar. Decidi deixar todo o trabalho para Ruijerd. Se ele
podia fazer isso sozinho, então seria melhor confiar nele. Se isso me
tornava um covarde, tudo bem. Era melhor me concentrar no que
era capaz de fazer do que no que não era.

— Então vamos lá. Vou libertar as crianças. Você sabe onde elas
estão?

— Na porta ao lado.

— Então vamos lá. Tente reunir os cadáveres. Depois vamos


queimar todos eles.
— Entendido.

Sem falar mais nada, tirei suas algemas. A porta rangeu quando
Ruijerd se levantou lentamente.

— Ei, você! Como diabos conseguiu se livrar das algemas?! — O


Moicano entrou em pânico.

— Não se preocupe. Ele vai ouvir o que eu digo.

— S-sério? — O homem pareceu um pouco aliviado ao me ouvir


dizer isso.

Passei a lança de Ruijerd para ele.

— Mas, de qualquer forma, vai ficar furioso.

— Hã…?

O Moicano foi a primeira vítima. Ruijerd o matou sem fazer


qualquer barulho. Então ele silenciossamente correu em direção às
escadas. Fui na direção oposta à sala onde as crianças estavam
presas.

— Gaaaaah!

— Um S-Superd! Ele está sem algemas!

— Merda! Ele está segurando uma lança!

— É um demônio! Aaaah, é um demônio, aaah!

Os gritos do andar de baixo começaram assim que cheguei à


porta.
Capítulo 06:
As Crianças do Povo-Fera
O quarto estava escuro. Dentro das sombras estavam meninos e
meninas com olhares nervosos em seus rostos, seus corpos se
contorciam. Havia quatro garotas e três garotos, um total de sete
crianças. Todos tinham mais ou menos a minha idade. Estavam nus,
e tinham orelhas de feras ou de elfos. Suas mãos foram amarradas
atrás deles, e todos se encolheram quando eu apareci.

Mas que visão – foi como uma versão jovem de Kannon, a Deusa
da Misericórdia, uma Bodisatva budista. Este era o Éden. Não,
talvez fosse o paraíso. Finalmente cheguei ao céu? Não, eu ainda
nem tinha encontrado o bebê verde!

Não era hora para ficar excitado. Com apenas uma exceção,
seus olhos estavam todos inchados de tanto chorar, e vários tinham
hematomas preto-azulados em seus rostos. Minha cabeça esfriou
na mesma hora. Estavam chorando e gritando, então provavelmente
apanharam por fazerem barulho.

A mesma coisa aconteceu quando Eris e eu fomos sequestrados.


Neste mundo, os sequestradores não demonstravam nenhuma
preocupação com as crianças que tomavam como cativas. Ruijerd
deve ter as ouvido sendo impiedosamente torturadas, já que estava
no quarto vizinho. Foi por isso que não conseguiu se conter.

Olhando de relance, não pareciam ter sido sexualmente


abusadas. Talvez porque ainda eram jovens, ou talvez porque isso
diminuiria seu valor de venda. Seja qual fosse o motivo, era a única
misericórdia em meio a tanta desgraça.
Normalmente, eu olhava para garotas nuas e meus olhos logo
eram atraídos para seus seios, mas agora, meu pervertido interior
estava enfraquecido. Afinal, antes de desembarcar do navio eu tinha
recém decidido virar um eremita. Infelizmente, minha nova profissão
não havia aumentado minha inteligência em nada.

Três das meninas ainda choravam, as lágrimas escorriam pelos


seus rostos. Dois dos meninos me olharam com olhares
aterrorizados em seus rostos.

O terceiro estava debruçado no chão, mal respirando. Eu o curei


antes de remover as algemas de seus pulsos. Sua boca estava
amordaçada com tanta força que não consegui soltar. Sem outra
escolha, tive que queimá-la. Pode ter o queimado um pouco, mas
achei que ele poderia lidar com isso. Fiz o mesmo com os outros
dois meninos, curando-os e tirando suas amarras.

— U-um… quem é…?

As palavras foram ditas na língua do Deus Fera, então fiquei um


pouco surpreso, mas pelo menos conseguiria manter uma conversa.

— Eu vim para te salvar. Vocês três, vigiem a porta. Se virem


alguém chegando me avisem na mesma hora.

Os três trocaram olhares nervosos.

— Vocês são homens, certo? Podem fazer ao menos isso, não


podem?

Suas expressões endureceram e assentiram, correndo em


direção à porta. Não havia outro significado para minhas instruções.
Não era como se eu apenas quisesse tirá-los do caminho para que
pudesse cobiçar as meninas sem ninguém para atrapalhar.

Ruijerd estava causando uma confusão no andar de cima, então


provavelmente ninguém apareceria. Ainda assim, não podíamos
correr nenhum risco. Antes de entrar no quarto, ajustei meu olho de
demônio para me mostrar um segundo no futuro, mas não seria
capaz de ver nada se não prestasse atenção.

Comecei a remover as amarras das garotas. Algumas eram mais


fartas do que as outras, mas não as classifiquei. Admirei todas da
mesma forma e tirei tudo que as prendia. Também não toquei em
nada além do necessário. Queria que pensassem no Rudeus diante
delas como nada menos que um cavalheiro.

Também curei seus hematomas. Era a minha hora de desfrutar –


err, digo, tratar suas feridas. Afinal, seria necessário tocar nas
pessoas para curá-las. Portanto, não havia outro significado por trás
disso. Sim, uma das meninas tinha hematomas no peito, mas juro
que não tive segundas intenções.

Outra tinha uma costela quebrada. Isso não podia ser algo
bom… E uma delas teve o fêmur quebrado. Aqueles homens foram
realmente cruéis.

As meninas se esconderam com as mãos ao se levantar. Elas


mesmas removeram suas mordaças. Era minha imaginação ou a
garota de temperamento forte e com orelhas de gato estava olhando
para mim?

— Obrigada por… hic… nos salvar. — A garota com orelhas de


cachorro me agradeceu enquanto timidamente escondia o corpo.
Ela falou na língua do Deus Fera, é claro.

— Só para ter certeza, todas vocês conseguem me entender,


certo?

Quando todas concordaram, soltei um suspiro de alívio. Pelo


visto, dava para entender tudo o que eu falava na língua do Deus
Fera.

Parecia que Ruijerd ainda não havia terminado, e eu não poderia


levar essas crianças a um matadouro. Isso poderia causar ainda
mais traumas, então talvez devesse apenas admirar o cenário um
pouco mais… ou não. Provavelmente deveria perguntar o que
aconteceu.

— Se não se importar com a pergunta, por que foram trazidas


aqui?

— Mew?

Dirigi minha pergunta para a menina com orelhas de gato, aquela


que parecia a mais teimosa. Ela era a única entre os sete que não
tinha um rastro de lágrimas escorrendo pelo rosto. Em vez disso,
seu corpo parecia o mais surrado, quebrado e machucado. Não
sofreu tanto quanto Eris naquela ocasião, mas seus ferimentos
ainda eram os piores. O segundo pior era o primeiro menino que
ajudei, mas, ao contrário dele, ela ainda tinha um brilho vivo nos
olhos.

Essa garota poderia ser ainda mais obstinada do que Eris. Não,
ela provavelmente era mais velha do que Eris era naquela época.
Se tivessem a mesma ideia, sem chances de que Eris perderia.
Certo, por que diabos eu estava ficando tão competitivo?

— Estávamos brincando na floresta quando um homem estranho


de repente nos agarrou, mew!

Foi um choque para o meu sistema. Mew! A frase dela terminou


em “mew”! Um verdadeiro mew! Completamente diferente da
imitação de Eris. Essa garota era uma verdadeira e genuína gata.
Não era apenas porque estava falando na língua do Deus Fera.
Definitivamente disse “mew” no final da frase. Sensacional.

Não. Eu não podia me distrair.

— Então isso significa que todos vocês foram levados contra sua
vontade? — Tentei conter minhas emoções e permanecer calmo
enquanto perguntava.

As meninas fizeram que sim com a cabeça. Bom. Se tivessem


sido vendidas por pais passando por necessidades, ou se tivessem
sido vendidas porque não tinham mais meios de viver, nossos
esforços para libertá-las teriam sido em vão. Bom. Estávamos
salvando pessoas. Fiquei muito feliz com isso.

— Acabou. — Ruijerd retornou. A cor verde musgosa tinha


sumido de seu couro cabeludo e um protetor de testa foi colocado
em volta de sua cabeça. Suas roupas estavam imaculadas. Não
havia uma única gota de sangue nelas. Eu não esperava nada
menos.

— Bom trabalho. Havia mais alguém sendo mantido em


cativeiro? — perguntei.

— Ninguém.
— Então vamos encontrar algumas roupas para eles. Vão pegar
um resfriado se os deixarmos assim.

— Entendido — respondeu Ruijerd.

— Certo, gente — falei. — Por favor, esperem mais um pouco.

Nós nos separamos e começamos a procurar roupas adequadas.


Não encontramos nada para crianças. Suas roupas deviam ter sido
tiradas e descartadas quando seus captores as sequestraram. Mas
para quê? Eu não entendi. O motivo para terem deixado as crianças
nuas era um mistério para mim. Não ter roupas era um problema
sério. Não poderíamos nem levá-las a uma loja de roupas se
estivessem nuas.

— Hm? — Por acaso, olhei pela janela, apenas para ver uma
montanha de cadáveres. Cada um deles tinha um único ferimento
de faca, no coração ou na garganta. Há algum tempo, uma cena
dessas me deixaria apavorado, mas desta vez foi até reconfortante.
Ainda assim, não esperava que houvesse tantos deles. O forte
cheiro de sangue pairava no ar. Isso atrairia monstros.

Vamos queimá-los logo, pensei, e saí do prédio.

Fiquei diante da montanha fedorenta de cadáveres e criei uma


bola de fogo. Uma com um raio de cinco metros parecia ser boa o
bastante para a finalidade. Na magia de fogo, aumentar o poder de
um feitiço também serviria, por algum motivo, para aumentar seu
tamanho. Eu não queria sentir o fedor de carne queimada, então
decidi incinerá-los com uma única explosão.

— Opa!
O fogo resultante foi claramente muito poderoso, já que se
espalhou por todo o prédio na mesma hora. Rapidamente lancei
uma magia de água para extinguir as chamas.

Essa foi por pouco. Quase me transformei em um piromaníaco.

Que merda, talvez devesse ter tirado suas roupas primeiro,


pensei. Elas provavelmente cheirariam a sangue e fariam meu
estômago revirar, mas ainda poderiam ser usados depois que eu as
lavasse.

— Rudeus. Terminei.

Enquanto eu estava preocupado com esses pensamentos,


Ruijerd saiu do prédio. As crianças estavam todas com ele, todas
vestidas. Por vestidas, quis dizer que estavam todas usando robes.

— Onde você encontrou essas roupas?

— Arranquei as cortinas.

Oho. Você é inteligente, pensei. Uma verdadeira fonte de


sabedoria.

✦✦✦✦✦✦✦

O próximo objetivo de nossa missão era levar as crianças de


volta às suas casas. Isso significava levá-las para a cidade e guiá-
las até seus pais.

Acendi as tochas na entrada da frente do prédio e fiz cada uma


das crianças pegar uma. Decidi seguir um caminho diferente no
retorno. Seria problemático se outro contrabandista nos
encontrasse, e aquela rota subterrânea provavelmente foi criada
para proteger as pessoas das feras da floresta. Nós não
precisávamos disso.

— Mew! — De repente a garota com orelhas de gato gritou. O


barulho ecoou pela escuridão ao nosso redor.

— Qual é o problema? — perguntei, desejando que ela não


fizesse tanto barulho.

— Mew! Havia um cachorro naquele prédio de onde acabamos


de sair?! — Ela se agarrou à perna de Ruijerd. Havia uma clara
expressão de desespero em seu rosto.

— Havia um.

— Por que não o resgatou?!

Isso mesmo, havia um cachorro. Espera, era um cachorro? Era


assustadoramente enorme.

— Vocês ficaram em primeiro lugar.

Seus olhos reprovadores se fixaram em Ruijerd.

Ah, vamos, pensei. Nós salvamos vocês. Não há razão para nos
olhar assim.

— Só para você saber, foi ele quem te salvou.

— B-bem, eu sou grata por isso, mew. Mas…

— Se você está grata, então deveria dizer “obrigada”.

Quando eu disse isso, todos curvaram suas cabeças para o


Superd. Bom, pensei. Todos deviam ficar ainda mais gratos.
Essa podia ter sido uma missão que recebemos de um
contrabandista da organização que os sequestrou, mas também era
verdade que Ruijerd estava genuinamente preocupado com as
crianças. Embora isso também fosse verdade, exigimos sua
gratidão mesmo sem nunca terem pedido para serem salvas.

— Eu vou voltar e soltar o cachorro. Ruijerd, você leva as


crianças para a cidade.

— Entendido. Para onde devemos ir quando chegarmos lá?

— Espere do lado de fora da cidade. — Dei algumas instruções.


E então refiz meus passos.

Para onde deveríamos levá-las depois disso? Era uma pergunta


difícil. No início, pensei em levá-las para a Guilda dos Aventureiros.
Então, poderíamos fazer um pedido dizendo: “Temos crianças sob
nossa custódia; por favor, procurem por seus pais” e confiar as
crianças à guilda. Isso poderia representar o fim de tudo.

No entanto, Gallus disse que a organização de contrabando não


era um grupo único. Se nos movêssemos muito abertamente,
seríamos descobertos. Considerando nossas conversas, o
contrabandista não seria capaz de nos ajudar se isso acontecesse.
Seria melhor terminarmos tudo sem deixar qualquer rastro de nosso
envolvimento. Isso seria tanto para o nosso bem quanto para o dele.

Nesse caso… e se deixássemos as crianças com a guarnição da


cidade e fugíssemos do lugar o mais rápido possível? Não, se elas
falassem, nossas identidades seriam descobertas. Então a
organização de contrabando descobriria tudo. Além disso, a estação
das chuvas estava quase chegando. Se saíssemos da cidade, não
teríamos mais para onde ir. Podíamos até mesmo ser confundidos
com sequestradores.

Hmm. Isso era preocupante. Talvez eu não tivesse pensado o


bastante nas coisas. Eu tinha certeza de que poderíamos libertá-los,
mas pensei muito pouco no que viria depois disso. Será que
devíamos culpar outra pessoa pelo ataque? Sim, talvez fosse uma
boa ideia. Se escrevesse que “O Grande Imperador do Mundo
Demônio Kishirika esteva aqui” na parede, poderiam realmente
acreditar. Afinal, Kishirika disse para contar com ela se acabasse
precisando de alguma coisa.

— Que seja. — Retornei ao prédio, ainda indeciso sobre o que


fazer a seguir.

✦✦✦✦✦✦✦

Encontrei o lugar onde tinha visto aquele círculo mágico. Quando


entrei, a besta me cumprimentou com um olhar suspeito. Ela não
abanou o rabo nem latiu. Estava letárgica.

— Definitivamente é um cachorro.

Havia um cachorrinho acorrentado dentro daquele círculo


mágico. À primeira vista qualquer um poderia dizer que era um
cachorrinho, mas era enorme. Tinha cerca de dois metros de altura.
Por que todos os cães e gatos deste mundo eram tão grandes?

Quando o vi pela primeira vez pensei que seu pelo era branco,
mas ao ver mais de perto, percebi que na verdade era prateado.
Parecia brilhar, mas provavelmente era só por causa da iluminação.
Um grande Shiba Inu bebê prateado, com um olhar refinado e
inteligente em seu rosto.

— Eu vou te ajudar – aaaaai!

No momento em que tentei entrar no círculo mágico, ele me


repeliu. Não foi algo como um choque. A sensação seria difícil de
explicar, mas era como se os receptores de dor em meu cérebro
estivessem sendo ativados. Parecia que o círculo mágico era na
verdade uma barreira. Uma barreira do tipo de cura mágica – um
tipo de construção desconhecido para mim.

— Hmm. — Estudei as bordas do círculo mágico. Ele emitia uma


luz branco-azulada, iluminando um pouco do lugar. A luz
proveniente dele indicava que havia circulação de mana. Se eu
pudesse cortar a fonte de seu combustível, o círculo desapareceria.
Roxy me ensinou isso. Era o método quintessencial de remoção de
armadilhas mágicas.

A fonte de combustível… Em outras palavras, um cristal mágico.

No entanto, pelo que pude ver, não havia tal cristal para ser
encontrado. Não… isso só indicava que eu ainda não tinha o
encontrado. Onde o esconderam? Provavelmente no subsolo. Será
que devia usar magia de terra para remover o círculo? O que
aconteceria no caso de tentar forçar a dissipação de um círculo
mágico como este?

Hm, espere, pensei. Espera, espera, espera. Vamos pensar nisso


de forma mais simples.
Em primeiro lugar, como planejavam tirar esse cachorro do
círculo mágico? Não havia nenhum mago no meio dos cadáveres
que eu tinha visto. Então devia haver alguma maneira para um
iniciante poder remover essa armadilha.

Primeiro, considerei onde poderia estar o cristal mágico. Pensei


que só poderia estar no subterrâneo. No entanto, se estivesse lá,
aqueles caras não seriam capazes de retirá-lo. Tinha que estar em
algum lugar do qual pudessem extraí-lo. Mas também tinha que
estar em algum lugar onde ainda pudesse aplicar mana na
armadilha.

— Hm, então está acima?

Decidi verificar no andar de cima. Fui para o cômodo logo acima,


onde encontrei um círculo mágico menor e o que parecia ser uma
lanterna de madeira. Nela estava o que eu presumi ser um cristal
mágico.

Muito bom. Tive a sorte de encontrá-lo ao seguir meu primeiro


palpite.

Levantei a lanterna com muito cuidado e o círculo mágico abaixo


dela se dissipou suavemente. Quando voltei ao andar inferior, vi que
aquele que estava ao redor do cachorro havia sumido por completo.
No final das contas, parecia que os círculos superior e inferior
estavam ligados. Ótimo, ótimo.

— Grrr…!

O cachorro me olhou de um jeito ameaçador e começou a rosnar


quando me aproximei. Bem, os animais nunca gostaram de mim,
pelo menos desde que eu lembrava. Isso não mudou.

Estudei a condição física do cachorro. Seu rosnado ainda era


poderoso, mas seu corpo já não estava forte como costumava.
Parecia exausto. O animal sem dúvidas estava com fome.

Ainda assim, as correntes eram suspeitas. Provavelmente havia


algum significado no padrão gravado nelas. Talvez eu devesse as
remover. Não, isso poderia ser perigoso. Se aquelas correntes
estivessem restringindo seu poder, então no momento em que eu as
soltasse, ele poderia me atacar. Uma mordidinha poderia ser
curada, mas…

— O que devo fazer para que você não me morda?

Quando perguntei isso, o cachorro respondeu:

— Woof? — Ele apontou a cabeça para mim como se


entendesse as palavras.

Hm.

— Se não me morder, vou tirar essa coleira de você e devolvê-lo


ao seu mestre. O que acha disso? — Falei com ele na língua do
Deus Fera e, quando o fiz, o cachorro parou de rosnar e se deitou
silenciosamente no chão. Parecia estar entendendo. Bem, estar em
um mundo diferente era algo conveniente. Era possível falar até
com cães.

Tentei usar magia para cortar a corrente. Quebrou facilmente.


Assim que isso foi feito, o poder instantaneamente retornou ao
corpo do cão. Ele se levantou na mesma hora e tentou sair
correndo, mas eu o parei.
— Espere, espere, você ainda está com uma coleira.

Ele olhou para mim e obedientemente voltou a se deitar.

Tentei o meu melhor para remover a coleira, mas não tinha


nenhuma fechadura nela. Se não houvesse fechadura, não havia
como destrancar. Que coisa estranha. Como pretendiam removê-la?
Ou nunca tiveram a intenção de fazer isso? Foi bem difícil, mas
consegui encontrar uma junta na coleira. Pelo visto, era uma
daquelas que só seria possível remover se conhecesse o truque.

— Vou tirar ela, então não se mova. — Conjurei magia da terra


com todo o cuidado e apontei para a pequena junta da coleira,
usando a magia para forçar uma abertura. Houve um tinido e,
finalmente, saiu.

— Isso aí.

O cachorro balançou o pescoço.

— Woof!

— Ei!

Ele colocou uma de suas patas dianteiras em um dos meus


ombros e seu peso acabou me derrubando. Eu caí no chão, todo
mole, e o cachorro começou a babar sobre o meu rosto.

— Woof!

Aah! Você não pode, cachorrinho! Eu tenho mulher e marido…!

Tentei empurrar a grande bola de pelo prateado de cima de mim,


mas ela era muito pesada e, além disso, macia e fofa. Sedosa e
macia. Isso parecia tudo muito bom e gostoso, mas era pesado. Seu
peso sobre o meu peito foi o suficiente para fazer meus ossos
rangerem. Movê-lo parecia ser algo difícil. Desisti de não ser
lambido, pois não havia nada que eu pudesse fazer. Em vez disso,
concentrei-me em apreciar a sensação de seu pelo até que o animal
cansasse de lamber meu rosto.

E cara, como era fofo. Ou, como dizem as crianças, “fofinho”.

Para ser tão macio assim… Ei, espera… Você usa algum tipo de
amaciante, não usa? pensei, apenas para outra voz na minha
cabeça responder na mesma moeda. Aww, mas eu não estou
usando nada…

✦✦✦✦✦✦✦

— Bastardo! O que você fez com a Fera Sagrada?!

— Hein?

Assim que a bola de pelo finalmente pareceu satisfeita, uma voz


ressoou. Ainda jogado no chão, olhei para cima, me perguntando se
um daqueles contrabandistas havia conseguido sobreviver.

Fui saudado por uma pele cor de chocolate, orelhas de animal e


cauda de tigre. Ghislaine…? Não, não era. Eram parecidos, mas
não era ela. A parte peluda e a musculosa eram as mesmas, mas
havia algo um pouco diferente. A maior característica de Ghislaine
estava ausente. O peito – o desta pessoa era plano. Esta pessoa
tinha peitorais enquanto Ghislaine tinha seios fartos. Um homem.

O homem levou a mão à boca, como se fosse gritar.


Ah, merda! Ele está prestes a fazer algo. Eu preciso fugir. Mas
não posso me mover!

— Cachorrinho, sai. Preciso fugir desse cara! — O cachorro se


mexeu.

Eu me levantei e ativei meu olho demoníaco. Pude ver o que


estava prestes a acontecer.

O homem ainda está com a mão pressionada contra a boca.

Achei que não fosse fazer nada, mas de repente ele rugiu.

— Graaaaah! — O grito tinha um volume insuportável. Foi um


grito muito mais estridente do que qualquer um que já ouvi Eris
soltando. O som parecia ter até massa. Meus tímpanos rangeram e
meu cérebro tremeu.

Quando percebi o que estava acontecendo, desmaiei. Não


aguentei. Isso era ruim. Eu tinha que me curar, mas não conseguia
mover minhas mãos. O que diabos foi aquilo, algum tipo de mágica?

Merda. Merda, merda, merda. Eu não poderia usar magia? Tentei


canalizar minha mana, mas… não adiantou.

O homem me agarrou pelo colarinho e me ergueu no ar. Ele


estava franzindo as sobrancelhas e me elevou ao nível de seu rosto.

— Hm. Ainda é só uma criança. Não consigo te matar.

Ah, eu parecia estar seguro. Graças à deusa. Fiquei feliz por


parecer uma criança.

— Gyes, o que foi?


Outro homem apareceu. Ele também parecia com Ghislaine, mas
tinha os cabelos brancos. Um homem mais velho.

— Pai. Subjuguei um dos contrabandistas.

— Um contrabandista? Não é uma criança?

— Mas ele estava tentando atacar a Fera Sagrada.

— Hm.

— Ele estava com uma expressão obscena no rosto enquanto a


acariciava. Talvez não tenha a idade que parece.

N-não, você está errado. Tenho doze anos. Não sou um homem
de quarenta e cinco anos por dentro, pode confiar, protestei
balançando a cabeça.

— Woof! — Quando a fera latiu, Gyes e o outro homem se


ajoelharam diante dela.

— Peço desculpas. Devíamos ter nos movido antes, mas, em vez


disso, nos atrasamos para vir ao resgate.

— Woof!

— E pensar que esse garoto colocaria as mãos sobre vossa


santidade… Gah…!

— Woof!

— O quê? Ele não te incomodou? Que benevolente…!

Eles pareciam estar conversando, embora o cachorro só


estivesse dizendo “woof woof” o tempo todo.
— Gyes, eu encontrei o cheiro de Tona em um quarto do porão.
Ela esteve aqui. Isso é certo — disse o velho.

Quem era Tona? Pelo contexto da conversa, imaginei que fosse


uma das crianças do povo-fera.

— Vamos levar esse menino de volta para a aldeia e interrogá-lo.


Ele pode tê-los levado para algum lugar. E assim que o fizermos
abrir a boca, partiremos novamente e voltaremos a procurar…

— Não temos tempo. O último navio parte amanhã. — Gyes


cerrou os dentes.

— Não temos escolha a não ser desistir. Considere que tivemos


sorte, já que conseguimos resgatar a Fera Sagrada.

— E o que vamos fazer com isso?

— Leve-o para casa conosco. Ele pode ser uma criança, mas se
estava trabalhando com aqueles contrabandistas, então será
punida.

Gyes assentiu e amarrou minhas mãos atrás de mim usando


uma corda. Então me colocou em seu ombro. O cachorro
cambaleou por trás do homem, olhando para mim com
preocupação.

Tudo bem. Não se preocupe. Esses caras não parecem ser


contrabandistas, disse a mim mesmo. Só vieram até aqui para
resgatar aquelas crianças. Então, se eu falar com eles, vão
entender. Só tenho que esperar até que me libertem.
— Hm… — Quando saímos, o velho torceu o nariz. — Ainda há
cheiro.

— Cheiro? O fedor de sangue é tão forte que não sei dizer.

— Está fraco, mas é o cheiro de Tona e dos outros. E há mais


um. O cheiro daquele demônio.

No momento em que mencionou “aquele demônio”, a expressão


de Gyes endureceu.

— Você está dizendo que aquele demônio levou Tona e os


outros?

— Difícil dizer. Talvez ele tenha os salvado — sugeriu o velho.

— Sem chances. Não pode ser isso.

Parecia que tinham sentido o cheiro de Ruijerd.

— Gyes. Eu vou seguir o rastro. Você pega o menino e a Fera


Sagrada e volta para a aldeia.

— Não, eu vou com você — protestou Gyes.

— Você é muito temperamental. E no final das contas o garoto


pode não ser um daqueles contrabandistas, sabe? — Como
esperado, as palavras do velho transbordavam sabedoria.

Isso aí, pensei. Eu não sou um contrabandista, por favor, deixe-


me explicar.

— Mesmo assim, não há dúvidas de que ele tocou a Fera


Sagrada com suas mãos imundas. O garoto cheira como um
humano excitado. Por mais inacreditável que pareça, ele mostrou
sinais de excitação sexual em relação à Fera Sagrada.

O quê?!

Mas que completa mentira! pensei. Não tenho nenhum interesse


sexual por cães! Mas por jovenzinhas… Não! Essa também não é
uma boa defesa!

— Nesse caso, jogue-o em uma cela. Mas não coloque suas


mãos nele até eu voltar para casa.

— Sim senhor!

O homem mais velho acenou com a cabeça antes de correr em


direção da floresta.

Enquanto Gyes o observava partir, me disse:

— Hmph, ele acabou de salvar a sua pele.

Sim, ele realmente o fez.

— Então, Fera Sagrada, vamos correr um pouco. Tenho certeza


de que você deve estar exausta, mas…

— Woof!

— Foi o que pensei!

E assim, deitado sobre o ombro de Gyes, fui carregado para o


fundo da floresta.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de vista de Ruijerd


Ruijerd estava perto da cidade, mas Rudeus ainda não tinha
voltado. Será que se perdeu? Não, ele teria usado magia para
enviar um sinal para o céu. Então isso significava que se deparou
com problemas? O Superd havia se livrado de todos os humanos
naquele prédio, mas talvez o garoto tivesse encontrado algum
remanescente que surgiu de um local diferente. Ele provavelmente
deveria voltar e verificar, só para ter certeza.

Não. Rudeus não era uma criança. Mesmo se um inimigo


aparecesse, ele seria capaz de lidar com os problemas. As defesas
do menino podiam ser fracas, talvez porque era jovem, mas não era
tão ingênuo a ponto de baixar a guarda em território inimigo.

Além disso, Eris não estava lá, então ele não teria motivos para
se preocupar. Se Rudeus usasse toda a extensão de seus poderes,
não poderia ser derrotado. O único problema era que estava em
conflito sobre tirar a vida de uma pessoa. Se limitasse muito os seus
poderes, poderia acabar levando a pior. Não… ele com certeza não
era tolo.

Rudeus não precisava de sua preocupação. Ainda assim, Ruijerd


ficou preocupado. Se continuasse no mesmo lugar com as crianças,
tinha um mau pressentimento sobre o que poderia acabar
acontecendo.

Ele havia enfrentado circunstâncias semelhantes em muitas


outras ocasiões. Resgatava crianças de mercadores de escravos e
tentava devolvê-las à cidade, apenas para ser confundido com um
sequestrador. Sua cabeça estava raspada e a joia em sua testa
escondida, mas ele ainda tinha dificuldades para escolher as
palavras certas. Se a guarnição o detivesse para interrogatório, não
tinha confiança em sua capacidade de explicar o que havia
acontecido.

Os humanos da cidade certamente cuidariam das coisas se o


homem deixasse as crianças ali, certo? Não, Rudeus
definitivamente apresentaria algumas objeções se ele fizesse isso.

— Mew, Senhor, sinto muito por antes, mew.

Enquanto ele se preocupava, uma das garotas se aproximou e


deu um tapinha em sua perna. As outras crianças pareciam
igualmente apologéticas. Nesse momento parecia até que eram elas
quem o resgataram.

— Está tudo bem.

Mas já fazia muito tempo desde que ele usara a língua do Deus
Fera. A última vez em que a usou… Hmm, quando foi mesmo?
Desde a Guerra de Laplace ele não lembrava de ter a usado muito.

— A Fera Sagrada é um símbolo de nossa tribo, mew, então não


podíamos simplesmente deixá-la para trás, mew.

— Então é isso. Eu não sabia disso, mas ainda assim, peço


desculpas. — Ela sorriu para Ruijerd quando ele disse isso. O
homem realmente gostou do modo como as crianças não
demonstraram medo diante dele. — Hmm…

De repente, seu terceiro olho sentiu alguém se aproximando em


alta velocidade. Sua velocidade era incrível e sua aura era forte.
Estava vindo da mesma direção do prédio onde estiveram. Era um
aliado dos contrabandistas? Mas parecia ser muito competente para
isso. Não pode ser, pensou. Realmente derrotaram Rudeus…?
— Afastem-se. — Ele colocou as crianças em proteção atrás de
suas costas enquanto preparava a lança.

O vencedor seria aquele que atacasse primeiro. Ele cuidaria de


tudo com um único golpe.

Ou assim pensou, mas o oponente de Ruijerd parou bem perto


de seu alcance. Era um homem-fera, segurando uma machadinha
grossa na mão. O homem estava claramente cauteloso ao assumir
sua postura. Ele era velho, mas tinha um ar calmo, sereno e digno.
O ar de um guerreiro. Ainda assim, Ruijerd o mataria se o sujeito
estivesse em alguma aliança com aqueles bastardos de antes.
Alguém que deixasse algo assim acontecer com crianças de sua
própria raça não era um verdadeiro guerreiro.

— Ah, Vovô, mew! — A garota gata falou com o guerreiro velho e


correu para ele.

— Tona! Você está bem!

O guerreiro recebeu a garota em seus braços, com uma


expressão de alívio cruzando seu rosto. Ruijerd abaixou sua lança.
O homem, aparentemente, estava buscando salvar as crianças. O
Superd errou ao duvidar dele como guerreiro; era claramente um
homem honrado.

A garota com orelhas de cachorro também parecia conhecê-lo e


correu até ele.

— Tersena, você também está segura. Fico feliz.

— Aquele homem ali nos salvou.


O velho guardou sua espada. Então se aproximou de Ruijerd e
fez uma reverência. Parecia que ainda estava desconfiado do
homem, mas isso era de se esperar.

— Obrigado por salvar minha neta.

— De nada.

— Qual é o seu nome?

— Ruijerd. — Superdia, pensou em acrescentar, mas hesitou. Se


o homem soubesse que era um Superd, isso o deixaria em guarda.

— Ruijerd, não é? Sou Gustav Dedoldia. Sem dúvidas pagarei


por essa dívida. Mas, primeiro, preciso devolver essas crianças aos
seus pais.

— Sim, você deve.

— Mas é perigoso andar com crianças por aí à noite. Primeiro


gostaria que você explicasse exatamente o que aconteceu. — Ao
dizer isso, o homem começou a caminhar em direção à cidade.

— Espere — gritou Ruijerd atrás dele.

— O que foi?

— Você visitou aquele prédio?

— Sim. Um lugar depressivo e fedendo a sangue.

Ruijerd continuou com suas perguntas:

— Não tinha ninguém lá?


— Havia uma pessoa. Um homem com forma de criança. Ele
parecia manter um sorriso depravado enquanto acariciava a Fera
Sagrada.

Na mesma hora ele notou quem era. Rudeus. Então o garoto


ainda mostra aquele tipo de sorriso, pensou.

— É meu companheiro — disse Ruijerd.

— Ah não!

“Você o matou?”

Não importava se isso tivesse sido causado por algum mal-


entendido. Se Rudeus estivesse morto, Ruijerd buscaria vingança.
Mas primeiro entregaria as crianças aos seus pais. Eris também.
Isso mesmo… Eris estava sozinha no momento. Isso o preocupou.

— Nós o levamos para nosso vilarejo para interrogá-lo sobre a


localização de seus co-conspiradores. Mas vou libertá-lo o quanto
antes.

Rudeus, o idiota, baixou a guarda. Aquele garoto… Suas defesas


sempre foram fracas, mesmo com sua resiliência mental sendo alta.
Então, novamente, Ruijerd não podia falar nada, visto que sua
resiliência mental era de terceira classe se fossem comparar.

— Rudeus é um guerreiro. Se você não planeja o matar, então


não há razão para se apressar. Primeiro vamos cuidar das crianças.

O povo-fera não costumava fazer o mesmo que os humanos,


coisas como tortura não eram opções. Iriam, no máximo, tirar suas
roupas e jogá-lo em uma cela. E, bem, Rudeus não se importava em
ser visto nu pelos outros. Outro dia, até disse algo estranho para
Ruijerd: “Se Eris tentar me espiar enquanto estou tomando banho,
não precisa impedir.”

Além disso, Eris era um motivo para preocupação. Rudeus


sempre confiou a proteção dela ao Superd. Ele sempre se
preocupou mais com a garota do que consigo mesmo. O Superd
faria melhor protegendo-a do que perseguindo Rudeus.

— Tenho minhas razões para não expor minha verdadeira


identidade — disse Ruijerd. — Mas gostaria que você levasse as
crianças ao encontro de seus pais.

— Hm… tudo bem. — Gustav acenou com a cabeça e Ruijerd


partiu para a cidade.
Capítulo 07:
Apartamento Grátis
Olá. Meu nome é Rudeus e eu costumava ser um recluso.

Atualmente, estou verificando um apartamento novo e gratuito


que é o principal papo da cidade. Sem depósito de segurança, sem
pagamento pela chave, sem aluguel. Um monoambiente com direito
a duas refeições e tempo livre para um cochilo. A cama é feita de
palha infestada de insetos, o que é uma desvantagem, mas o preço
é excelente. Afinal, o aluguel é grátis!

O banheiro é um grande jarro que fica no canto do quarto. Depois


de fazer os seus negócios e o jarro ficar cheio de excrementos, é só
jogar tudo em um buraco no lado oposto do cômodo. Não há água
corrente, por isso é um pouco anti-higiênico, mas dá para se virar
usando magia. Se for um mago como eu, que sabe fazer água
quente, seus problemas serão completamente resolvidos!

Servem apenas duas refeições. Para o povo moderno, isso pode


ser muito pouco. Ainda assim, a comida é incrível, uma exuberante
especialidade regional com frutas e legumes. E carne. O tempero é
leve, ressaltando o sabor natural dos ingredientes, o suficiente para
fazer qualquer pessoa acostumada com a vida no Continente
Demônio estalar a língua com o sabor maravilhoso.

Agora, a principal característica do apartamento: sua segurança.


Por favor, dá uma olhadinha nessas barras de ferro resistentes.
Pode bater nelas o quanto quiser, puxá-las o quanto quiser, mas não
cederão em um centímetro. Sua única fraqueza é que podem ser
abertas com magia.
Mas de certo não existe nenhum ladrão que olharia para elas e
pensaria: Ei! Acho que dá para passar! Entretanto, irão sempre dar
uma olhadinha, já que este apartamento gratuito é uma cela de
prisão.

✦✦✦✦✦✦✦

Com a cabeça pendurada nas costas de Gyes, continuei minha


cavalgada pela floresta. Incapaz de me mover, não tive escolha a
não ser me permitir ser carregado. Enquanto viajávamos pelas
sombras da floresta em uma velocidade vertiginosa, vi algo pelo
canto do meu olho. Lá, entre o borrão de árvores que passavam
voando, havia um monte de cabelo prateado nos seguindo.

Ainda era um filhote, mas o cão tinha bastante resistência. Já


estávamos em movimento há provavelmente duas ou três horas. O
guerreiro fera conhecido como Gyes já estava correndo há muito
tempo. Ele só parou quando finalmente chegamos onde quer que
fosse.

— Fera Sagrada, por favor, volte para a casa.

— Woof! — A bola de pelo prateado latiu uma vez antes de


cambalear em direção à escuridão.

Examinei os arredores usando apenas meus olhos. As árvores


estavam agrupadas e não senti nenhuma outra pessoa nas
proximidades. No entanto, vi luzes aqui e ali acima de nós no meio
das árvores. Gyes continuou caminhando um pouco, aproximando-
se de uma das árvores.
Comigo ainda pendurado em seu ombro, ele enganchou as mãos
em uma escada que eu não podia ver e subiu rapidamente. Parecia
que estava me levando para as copas das árvores.

De lá, entramos em um prédio. Não havia ninguém presente. Era


uma cabana deserta e feita de madeira. Foi aí que Gyes tirou todas
as minhas roupas.

O que diabos estava fazendo comigo? Eu não conseguia nem


mover meu corpo!

Ele me suspendeu pela nuca e me jogou dentro de… alguma


coisa. Um momento depois, ouvi o rangido de ferro e um tinido
quando algo caiu. Então Gyes se foi, sem qualquer explicação. Ele
nem mesmo me interrogou.

Depois de um tempo, consegui voltar a mover meu corpo.


Produzi uma pequena chama na ponta do meu dedo e a usei para
verificar o que estava ao meu redor. Vi aquelas barras firmes e
percebi que se tratava de uma cela. Fui jogado em uma cela.

Tudo bem. A julgar pela conversa que tiveram, eu sabia que isso
iria acontecer. Me confundiram com um contrabandista. É por isso
que não entrei em pânico. Esse mal-entendido logo seria resolvido.
Ainda assim, qual era a necessidade de me despir? Pensando bem,
aquelas crianças também tinham sido despojadas de todas as suas
roupas.

Talvez isso fosse algum costume local. Talvez o povo-fera se


sentisse humilhado ao ficar totalmente exposto. Embora sentir
vergonha ao ser exposto não fosse uma qualidade exclusiva de sua
raça. Despir um prisioneiro para destruí-lo mentalmente era uma
prática usada desde tempos imemoriais. Podia até ser um mundo de
fantasia, mas mesmo em meu novo livro favorito, uma cavaleira era
privada de suas roupas quando feita prisioneira. Parecia que todos
os mundos tinham isso em comum.

— Então… — Envolto pela escuridão, comecei a pensar.

Por enquanto, guardaria minhas palavras para o dia seguinte.


Mesmo se não acreditassem em mim, eu ainda ficaria bem. O
homem mais velho aparentemente saiu atrás de Ruijerd, então já
devia ter encontrado as crianças. O Superd era uma pessoa fácil de
interpretar mal, mas as crianças certamente não abandonariam o
guerreiro que surgira em seu auxílio. Elas voltariam em segurança e
eu não seria mais confundido com um contrabandista.

Mas seria melhor não citar que, apesar de não ser um


contrabandista, tinha uma relação de negócios com eles. Ruijerd
também nunca quis trabalhar com os bandidos, então não diria nada
que nos colocaria em apuros. Por enquanto, a principal
preocupação era a minha própria segurança. O guerreiro mais velho
disse para não colocar a mão em mim até o seu retorno. Isso
significava que eu estava seguro. Provavelmente não jogariam
nenhum monstro cheio de tentáculos em mim… certo?

De qualquer forma, senti que finalmente entendi o significado por


trás das palavras de Gallus. Se isso fosse o que iria acontecer com
eles, certamente estariam em grandes problemas.

✦✦✦✦✦✦✦

Enquanto eu pensava nessas coisas, um dia inteiro se passou. O


tempo estava voando. Na manhã do dia seguinte ao que fui jogado
na cela, uma guarda apareceu. Era uma mulher. Ela tinha a
constituição de uma guerreira, mas era mais magra do que
Ghislaine. Porém seu peito também era enorme.

Eu disse:

— Fui falsamente acusado, não fiz nada. — Prossegui


explicando que não estava associado à organização de
contrabando, que apenas descobri que aquelas crianças estavam
detidas naquele prédio e que, movido por uma justa indignação,
comecei a libertá-las.

A mulher não ouviu sequer uma palavra do que eu disse. Em vez


disso, levou um balde de água para minha cela e jogou-o sobre
minha cabeça enquanto eu protestava. Aquilo estava congelante,
então fiquei parecendo um ratinho assustado. Ela então olhou para
mim como se eu fosse nada mais do que lixo.

— Pervertido…!

Senti um tremor me atravessando. Lá estava eu, nu, com esta


bela mulher mais velha com orelhas de animal me devastando com
os olhos. Ela não apenas me molhou, como também abusou
verbalmente de mim. Era assim que se fazia para destruir o
psicológico de alguém.

Parecia que não tinham intenção de seguir o comando do


guerreiro mais velho. Então o que aconteceria comigo…? Ahh,
Deusa (Roxy), dê-me sua proteção! E não, Deus Homem, não me
refiro a você!

— Achoo!
Brincadeiras à parte, eu realmente queria algumas roupas. Por
enquanto, usaria o feitiço de fogo, Queima Local, para me manter
aquecido e não pegar um resfriado.

Dia dois.

Ruijerd ainda não tinha aparecido para me resgatar. Depois de


ficar nu por dois dias inteiros, minha ansiedade estava começando a
transparecer. Me perguntei se havia acontecido algo de ruim com o
Superd. Ele acabou lutando contra aquele guerreiro mais velho? Ou
as coisas com Gallus azedaram? Ou talvez algo tivesse acontecido
com Eris e ele estava cuidando disso?

Fiquei ansioso. Incrivelmente ansioso. Era por isso que estava


bolando um plano de fuga. No início da tarde, quando terminei de
comer, comecei a usar minha magia não verbal. Misturei fogo e
vento, criando uma corrente de ar quente que fustigou o cômodo e
tornou toda a área agradável e quentinha. A guarda bem dotada
ficou sonolenta e começou a adormecer. Que fácil.

Destranquei a porta da cela e verifiquei se não havia ninguém por


perto enquanto saía do prédio.

— Ooh…

A visão que se espalhou diante de mim foi como algo saído de


um sonho. Era um assentamento construído acima das árvores. Os
edifícios foram colocados entre as copas das árvores, tendo
tablados em torno de cada árvore para dar espaço para caminhar.
Também havia pontes que conectavam as árvores para que se
pudesse entrar e sair sem ter que subir e descer as escadas.
Não havia realmente nada no solo abaixo. Eu podia ver o que
parecia ser um simples barraco e os vestígios de um campo, mas
não pareciam estar em uso. Pelo visto, não havia ninguém morando
lá.

Não havia tantas pessoas assim. Eu podia ver alguns homens-


fera aqui e ali, movimentando-se nos tablados. Se uma pessoa
atravessasse uma ponte, ficaria totalmente exposta a qualquer um
que estivesse abaixo, e qualquer um que se movesse abaixo estaria
totalmente exposto àqueles de cima.

Agora eu estava, em todos os sentidos da palavra, totalmente


exposto. Seria difícil escapar sem ser visto. Mas se fosse pego,
ainda poderia fugir. Se não pensasse nas consequências, poderia
simplesmente colocar fogo em uma árvore próxima e escapar para a
floresta no meio do caos que se seguiria.

Ah, a floresta. Eu não sabia como sair dela. Gyes havia corrido
em alta velocidade por muito tempo, então devíamos estar bem
longe da cidade. Mesmo se eu corresse com todas as minhas
forças, indo sempre para frente, provavelmente precisaria de cerca
de seis horas. E eu tinha certeza de que me perderia no meio do
caminho.

Poderia usar magia da terra para construir uma torre, dando-me


um ponto de vista elevado para olhar para o horizonte. Essa era
uma opção. Claro, se fizesse algo que chamasse a atenção, Gyes
ficaria na minha cola de imediato.

Ainda não sabia o que estava por trás da magia que ele usou. Se
não conseguisse encontrar uma maneira de contra-atacar em uma
luta, poderia perder. Além disso, da próxima vez o homem poderia
cortar minhas pernas para que eu não pudesse correr. Talvez fosse
melhor esperar um pouco mais para que minhas circunstâncias
mudassem.

Só tinham passado alguns dias. Aquele guerreiro mais velho


ainda não havia retornado. Ruijerd poderia ainda estar procurando
pelos pais das crianças. Não havia necessidade de ficar impaciente,
decidi, e voltei para minha cela.

Dia três.

A comida que a guarda me levou estava deliciosa. Foi como


esperado – a terra do local era tão rica e natural. Havia uma
diferença notável se comparado ao Continente Demônio. As
refeições consistiam em uma sopa de grama selvagem ou pedaços
de carne grelhada que eram difíceis de rasgar, mas era tudo
delicioso. Talvez fosse assim por eu ter me acostumado com a
comida do Continente Demônio. Se esta era a comida que
ofereciam a alguém em uma cela, então o resto do assentamento
deveria desfrutar, sem dúvidas, de um banquete.

Quando elogiei a comida, a guarda balançou a cauda e me deu


algo para repetir. Com base em sua reação, provavelmente era ela
quem preparava tudo. Mas continuava sem falar nada para mim,
assim como de costume.

Dia quatro.

Fiquei entediado. Não havia mais nada para fazer. Talvez


pudesse criar algo com minha magia, mas se o fizesse, poderiam
me amordaçar ou amarrar meus pulsos. Então realmente não
haveria nada que eu pudesse fazer. Não havia razão para correr o
risco de perder a pouca liberdade que possuía.

Dia cinco.

Recebi um colega de cela. Ele foi carregado por dois homens do


povo-fera de cada lado. O jogaram para o lugar sem rodeios, isso
fez com que o homem caísse dando uma cambalhota para trás.

— Porra! Vocês deviam me tratar melhor do que isso! — O povo-


fera ignorou seus gritos e saiu.

O homem esfregou seu traseiro cuidadosamente, sibilando de


dor enquanto virava o corpo sem pressa. Eu o cumprimentei em
uma pose de Buda reclinado, deitado de lado com a cabeça apoiada
na mão.

— Bem-vindo ao destino final da vida. — Claro, eu estava


completamente nu.

O homem ficou me olhando, boquiaberto. Ele parecia um


aventureiro. Suas roupas eram todas pretas, com protetores de
couro presos nas juntas. Também estava desarmado, é claro. Ele
tinha costeletas compridas e uma cara de macaco como a do Lupin
Terceiro. Mas chamar a cara dele de cara de macaco não era uma
metáfora. Ele era um demônio.

— Qual é o problema, novato? Viu algo inesperado? —


perguntei.

— N-não, não é exatamente assim que eu descreveria. — Ele


olhou para mim confuso.
Vamos, vou ficar com vergonha se você ficar olhando assim,
pensei.
— Você está nu, mas age terrivelmente cheio de si.

— Ei, novato, é melhor tomar cuidado com o que fala. Estou aqui
há mais tempo do que você. Isso significa que sou o mestre desta
cela, seu ancião. Mostre algum respeito — ordenei.

— S-sim.

— Você devia responder: “Sim senhor”!

— Sim senhor.

Por que, pergunta, eu estava agindo tão cheio de mim mesmo na


frente de alguém que acabei de ver pela primeira vez? Porque
estava entediado, é claro.

— Infelizmente não há nenhum tapete para você se sentar, então


sente-se aqui em algum lugar.

— S-sim senhor.

— Então, novato. Por que você foi jogado aqui? — Tentei soar o
mais hostil possível quando perguntei.

Esperava que minha impertinência, apesar de ser mais jovem,


pudesse enfurecê-lo, mas ele apenas respondeu com um olhar
estupefato:

— Me pegaram tentando enganá-los.

— Oho, andou trapaceando, foi? Pedra, Papel ou Tesoura com


restrições? Atravessando a Corda Bamba?

— Que diabos é isso? Não, dados.


— Dados, hein? — Ele provavelmente usou dados viciados que
só cairiam no número quatro, cinco ou seis. — É bem chato ser
pego em algo assim.

— E quanto a você? — perguntou.

— Dá para falar só por olhar, não dá? Atentado ao pudor.

— Que diabos é isso?

— Enquanto estava nu, coloquei meus braços em volta de um


cachorrinho prateado e me jogaram aqui — expliquei.

— Ah! Eu ouvi os rumores. Algum demônio tarado atacou a Fera


Sagrada de Doldia!

Alguém do lado de fora com certeza estava usando palavras bem


atrevidas. Mas, para começo de conversa, era uma falsa acusação.
Porém eu não iria ganhar nada falando sobre isso.

— Novato, se você é um homem, então entende, certo? A luxúria


que se sente por uma criatura adorável.

— Não mesmo. — Seus olhos mudaram e ele começou a olhar


para mim com certa suspeita. Bem, seu olhar na verdade não
mudou. Seus olhos eram os mesmos desde o começo.

— Então, novato, qual é o seu nome?

— Geese — respondeu.

— Você é um militar? Comeu mais refeições enquanto soldado


do que existem estrelas no céu?

— Militar? Não, sou só um aventureiro, acho. Já faz um tempo.


Geese. Vejamos, eu pensei já ter ouvido esse nome antes. Mas
onde? Não conseguia lembrar. Parecia que havia muitas pessoas
com esse nome, então ele provavelmente não era o Geese que eu
conhecia.

— Eu sou Rudeus. Sou mais jovem que você, mas aqui sou seu
chefe.

— Tá, tá. — Geese encolheu os ombros, caiu sobre onde estava


e apoiou a cabeça. — Hm? Rudeus… Já ouvi esse nome antes.

— Tenho certeza de que muitas pessoas têm esse nome.

— Eh, provavelmente, verdade.

Agora estávamos ambos fazendo a pose de Buda deitado


enquanto nos encarávamos, embora um de nós estivesse nu. Isso
não era meio estranho? Por que eu, a grande pessoa ocupando
esta cela, era o único nu enquanto o novato estava vestido?
Estranho. Muito estranho mesmo.

— Ei, novato.

— O que foi, chefe? — perguntou.

— Esse seu colete parece quente. Entregue.

— O qu…? — Geese parecia aborrecido quando disse: — Tudo


bem, tome — e então tirou o colete antes de jogá-lo para mim.
Talvez gostasse de cuidar das pessoas, indo contra a minha
primeira impressão.

— Ah, muito obrigado — falei, parecendo muito educado.


— Então você pode mostrar gratidão. — Observou ele.

— É claro. Agora já faz dias que eu estou meio largadão. Pela


primeira vez em muito tempo sinto como se tivesse voltado a ser
alguém.

— Chefe, você não precisa falar de um jeito tão polido.

Assim, conquistei a imagem de um pirralho melequento direto do


período Edo.

Nossa guarda nos observou com uma expressão sombria no


rosto, mas não disse nada.

— Agora posso sentir seu calor irradiando deste colete.

— Ei, você também gosta de homens, sério? — perguntou


Geese.

— Claro que não — respondi. — Gosto das mulheres de até


quarenta anos e, a menos que pareça com uma mulher, não tenho
interesse em homens.

— Então você não vê problema se parecerem com mulheres…


— Geese olhou para mim sem acreditar. Mas se ele conhecesse
uma mulher que fosse do seu tipo, uma que tivesse uma Excalibur
de Arthur, então também se tornaria um Merlin. No sentido sexual, é
claro.

— A propósito, novato, há uma coisa que eu quero te perguntar.

— O que foi?

— Que lugar é esse? — perguntei.


— Uma cela na aldeia de Doldia na Grande Floresta.

— E quem sou eu?

— Rudeus. O pervertido que colocou as mãos em um filhote —


respondeu ele.

Aha! Mas eu não estava mais nu! Além disso, era uma acusação
falsa. Eu não era um pervertido.

— E o que um demônio como você está fazendo na aldeia de


Doldia, gastando a vida à toa enquanto aposta?

Geese explicou:

— Ahh, bem, uma das minhas conhecidas de muito tempo atrás


era uma Doldia, então eu vim pensando em encontrá-la.

— E encontrou?

— Não — disse ele.

— Então, mesmo ela não estando aqui, você resolveu fazer


algumas apostas? E ainda por cima trapacear? — Eu pressionei.

— Não achei que seria pego.

Esse cara não tinha esperanças. Mas talvez ele não fosse inútil.

— Novato. O que você consegue fazer além de trapacear?

— Eu posso fazer qualquer coisa — disse ele.

— Oho, então pode segurar um dragão com uma mão e derrubar


outra pessoa usando ele?

— Não, isso é impossível — respondeu. — Sou péssimo lutando.


— Então aguenta cem mulheres de uma só vez? — perguntei.

— Uma já é suficiente, duas, no máximo.

Para minha última pergunta, abaixei minha voz o suficiente para


que a guarda não pudesse nos ouvir e disse:

— Você poderia ir para a cidade se saísse daqui?

Ele se ergueu, olhou rapidamente para a guarda e coçou a


cabeça. Colocou o seu rosto bem perto do meu e falou com um
sussurro abafado:

— Você está tentando fugir?

— Meu companheiro não está vindo, então sim.

— Ahh, sim, é isso… Bem, isso é uma merda.

Ei, você, pare com isso, pensei. Se colocar dessa forma, faz
parecer que meus amigos me abandonaram.

Ruijerd nunca me abandonaria assim. Eu tinha certeza de que


ele estava procurando pelos pais daquelas crianças por todos os
lugares. Era isso ou algo tinha acontecido e o homem estava em
apuros. Talvez estivesse esperando minha ajuda.

— Então se vire por conta própria. Não tem nada a ver comigo —
disse Geese.

Expliquei:

— Não sei o caminho para a cidade mais próxima daqui.

— E como é que chegou aqui?


— Salvei algumas crianças que foram sequestradas por
contrabandistas — respondi.

— Salvou?

— E enquanto estávamos lá, tirei a coleira que tinha sido


colocada naquele filhote, e quando a tirei aquele cara apareceu de
repente e gritou comigo. Então não consegui mais me mover e me
trouxeram aqui.

Perplexo, Geese voltou a coçar a cabeça. Talvez eu não tivesse


explicado bem o suficiente.

— Ahh, então foi isso que aconteceu. Você sofreu uma acusação
falsa?

— Exatamente.

— Entendi. Sim, então é claro que você gostaria de fugir.

— É por isso que gostaria que você me ajudasse — falei.

— Não quero — respondeu. — Se quer tanto, então fuja sozinho.

Ele pôde dizer tudo o que quisesse, mas ainda assim não quis
me ajudar a encontrar um caminho. Se eu me perdesse na floresta
enquanto tentava ir ajudar Ruijerd, isso não seria motivo para rir.

— Mas se for realmente uma acusação falsa, você deve ficar


bem. Vão entender.

— Espero que você esteja certo — falei.

Do meu ponto de vista, Gyes não era do tipo que dava ouvidos
às pessoas. Mas ainda assim era verdade que ajudei aquelas
crianças a escaparem. Se voltassem, a acusação contra mim seria
retirada.

— Então, acho melhor esperar um pouco mais.

— Sim, você deveria — ele concordou. — Fugir não vai resolver


nada. — Geese virou para o outro lado.

Decidi esperar, assim como sugerido. Eu, felizmente, ainda tinha


algumas opções restando. Se fosse necessário, poderia envolver
toda essa área em um mar de chamas e escapar. Me senti mal pela
tribo Doldia, mas foram eles que me prenderam sob falsas
acusações, então estávamos quites.

Mesmo assim, Ruijerd com certeza estava demorando muito.


Presumi que estava demorando muito para encontrar os pais das
crianças, mas ainda assim, isso era demais.

Dia seis.

O apartamento era realmente bom para se morar. Nos forneciam


comida. Estava equipado com um bom ar condicionado (embora
fosse uma gambiarra), e apesar de que no início eu achasse chato
porque não havia nada para fazer, agora tinha um parceiro de
conversa.

A cama estava infestada de insetos, mas graças ao ar quente


que criei com minha magia, todos foram erradicados. O banheiro
estava em seu estado normal e lamentável, mas era meio excitante
pensar naquela mulher bonita e mais velha com orelhas de animal
limpando tudo depois.
Mesmo assim, fiquei ansioso com o fato de não estar recebendo
notícias. Já fazia quase uma semana desde que fui capturado.
Ruijerd não estava atrasado demais? Não era normal presumir que
algo devia ter acontecido? Será que apareceu algum tipo de
problema com o qual o Superd não poderia lidar sozinho?

Eu não fazia ideia de que tipo de coisa seria. Talvez já fosse


tarde demais. Mesmo assim, precisava partir. No dia seguinte. Não,
em dois dias. Esperaria por dois dias.

Uma vez que esse tempo passasse, iria reduzir o vilarejo a um


campo em chamas. Ou não, porque me sentiria mal ao fazer isso.
Em vez disso, tomaria a guarda como minha prisioneira e fugiria.

Dia sete.

Seria meu último dia na cela. No fundo da minha mente, estava


cuidadosamente elaborando um plano, enquanto, externamente,
apenas comia e dormia despreocupado. Eu não conseguia continuar
com isso – a mentalidade de recluso da minha vida anterior
retornaria. No dia seguinte, precisaria me animar.

— Yo, novato… — Chamei Geese usando meu estilo usual de


bandido enquanto me acomodava no chão.

— O quê?

— Esta é a única cela do vilarejo?

— Por que quer saber? — respondeu

— Bem, é que normalmente não colocam duas pessoas na


mesma cela sem motivo, certo? — Apresentei meu pensamento.
— Normalmente não usam esta cela. Os criminosos quase
sempre são despachados para Porto Zant.

Então eram enviados para Porto Zant, hein? Então a Tribo Doldia
só jogava criminosos especiais nesta cela? Fui confundido com um
contrabandista e também falsamente acusado de tentativa de
bestialidade à sua Fera Sagrada. Isso devia ser muito impactante, o
suficiente para me dar algum tipo de título especial. Isso me tornava
um criminoso ainda mais extraordinário.

Mas espere.

— Então por que você foi colocado aqui? Foi preso por trapaça,
certo?

— Não me questione. Provavelmente porque aconteceu na


aldeia e não foi grande coisa, certo?

— Então é essa a razão?

— Essa é a razão — respondeu.

Algo me parecia meio estranho. Cocei minhas costelas e depois


a barriga. Enquanto fazia isso, cocei as costas. Por algum motivo,
estava com coceira. Assim que percebi isso, olhei para baixo e vi
algo saltitando. Era uma única pulga.

— Gaaah! Tem insetos neste colete!

— Hm? Ah, sim, faz um tempo que não lavo — disse Geese.

— Então lave! — Eu o arranquei e joguei longe. Aquilo girou


enquanto voava, soltando um monte de insetos no chão.
Imediatamente exterminei todos eles com o calor da minha magia.
Pestes malditas…!

— Ei, eu tenho observado você fazer isso há um tempo. Claro, é


incrível. Mas como faz isso?

— São feitiços não verbais, uso magias sem encantamento —


respondi.

— Huh… Sem encantamentos. Isso é realmente incrível.

Sim, e agora que estava pensando em como aqueles insetos


estavam fervilhando dentro daquele colete, meu corpo inteiro de
repente começou a coçar muito mais. Teria que curar todas as
mordidas, uma por uma. Talvez fosse porque eu não usava nada
sob o colete, mas minhas costas pareciam ter uma quantidade
absurda de mordidas. Isso mesmo, minhas costas. Bem onde a mão
não conseguia alcançar. Gaah!

— Yo, novato.

— O quê?

— Venha aqui e coçe minhas costas — ordenei —, está coçando


virado no diabo.

— Tá, tá.

Sentei-me com as pernas cruzadas e Geese ficou atrás de mim.


Ele começou a coçar.

— Sim, aí, bem aí. Ah, sim, você é muito bom nisso.
— Eu falei, não falei? — disse. — Não posso fazer nada. Se
quiser, depois também posso massagear seus ombros. — Quando
Geese disse isso, moveu suas mãos para meus ombros. Droga. Ele
realmente era bom nisso.

Instintivamente endireitei minhas costas.

— Ooh, você é realmente bom. Isso é tão bom. Ahh, um pouco


mais pra baixo. Mm, sim, bem aí… hm?

Só então percebi que algo estava muito errado. Mas, o quê? Algo
estava diferente do normal.

— Ei, novato…

— O que foi agora? Quer que eu vá mais para baixo? Quer que
eu coce a sua bunda também?

— Não, você não sente que algo está estranho?

— Sim, chefe, você é ruim da cabeça — respondeu ele.

— Algo além disso! — Falei. Que falta de educação.

— Bem, sim… aquela guarda ainda não apareceu.

Sim, isso mesmo. Normalmente seria hora da nossa refeição do


meio-dia. Um momento em que comeríamos nossa comida deliciosa
e saborosa antes de colocar as mãos juntas em agradecimento.
Mas não tínhamos relógio, então era possível que eu estivesse
apenas errando a hora. Mas minha barriga vazia parecia pensar que
era hora do almoço.
— Além disso, parece que está muito barulhento lá do lado de
fora.

— Sério? — Escutei com atenção e, com certeza, ouvi os sons


de alguma briga. Mas também parecia que podia ser apenas minha
imaginação.

— E também está esquentando.

— Agora que você mencionou, é verdade, hoje está muito


quente. — Percebi.

— Além disso, não está meio enfumaçado por aqui?

— Agora que você mencionou isso…

Ele tinha razão. Havia um fino véu de fumaça infiltrado no local. A


fumaça estava saindo da claraboia e da entrada da frente.

— Novato, empreste-me seu ombro.

— Acho que não tenho escolha. Aí vai.

Geese me colocou em seus ombros e, da vista ligeiramente mais


elevada da clarabóia, olhei para fora.

A floresta estava queimando.


Capítulo 08:
Emergência Incendiária
— É um incêndio! — gritei e pulei dos ombros de Geese.

— Mmm? Espere só um… Ei! — Geese saltou para a claraboia e


deu uma espiada. — Você não estava brincando! O-o que devemos
fazer, chefe?!

O que estava acontecendo? Ali estava eu planejando fugir no dia


seguinte, e agora, se não agisse, acabaríamos assados feito dois
bolos.

— Vamos dar o fora daqui, é claro! E usaremos o caos para fugir!


— declarei.

— Mas como vamos sair?! Sabe, a porta está trancada!

— Não se preocupe — falei. — Isso não é um problema! —


Deslizei na direção da porta e peguei a chave que escondi para
destrancá-la.

— Uau! Quando você conseguiu roubar uma chave?

— Só é algo que preparei para o caso de uma coisa assim


acontecer, arrumei isso quando comecei a planejar minha fuga!

Geese disse:

— Entendo, então você é o tipo de criminoso que espera até que


todos fiquem distraídos por uma crise antes de atacar.

Que falta de educação. Não era como se eu tivesse roubado


nada. Simplesmente fiz uma cópia da original, foi só isso. De
qualquer forma, enfiei a chave na fechadura e a girei até ouvir um
clique quando a porta se abriu. Era a hora do desafio de fuga da
prisão!

— Certo, vamos lá!

— Isso aí! — Geese concordou.

A porta foi aberta e uma onda de ar quente nos deu um tapa na


cara. As chamas dançaram violentamente enquanto as labaredas,
brilhantes e ferozes, devoravam a floresta com uma fome voraz. As
casas nas copas das árvores foram engolidas, ameaçando até
desmoronar.

— Isso é muito ruim — murmurou Geese.

Bem ruim mesmo. Balancei a cabeça concordando.

As pessoas provavelmente eram proibidas de acender fogueiras


nesta floresta, mas sem dúvida algum espertinho decidiu sentar na
cama e fumar, assim causando tudo isso. Eu não sabia quem era
que fez algo assim, mas graças a isso poderíamos escapar, então
não iria reclamar.

— Certo, novato, para que lado fica Porto Zant?

— O quê? E como diabos eu saberia? — gritou para mim


enquanto olhava ao redor.

— Então quer dizer que você não sabe? — gritei de volta. —


Você disse que sabia o caminho, não disse?

— Não quando estamos totalmente cercados por fogo!


Hmm… bem, agora que ele mencionou, até que fazia sentido.
Afinal, a frase “cortina de fumaça” não teria significado se alguém
pudesse apenas ver através da fumaça preta e das chamas
vermelhas.

Então, o que fazer? Apagar as chamas? Não, precisávamos da


confusão causada por elas para escapar. Se as apagássemos,
seríamos imediatamente encontrados. Além disso, podíamos ser
confundidos com incendiários. E se simplesmente fugíssemos do
alcance do fogo para que pudéssemos procurar um caminho de
volta para a cidade? Espera… poderíamos ao menos escapar sem
apagar o fogo?

— O que faremos?! Estamos ficando sem rotas de fuga!

Para começo de conversa, qual era o tamanho do incêndio?


Mesmo se corrêssemos e corrêssemos, havia a possibilidade de
não conseguirmos escapar da área incendiada.

— Ei, chefe! Olha! — Geese estava apontando para algo.

Estava apontando para uma criança. Uma criancinha com


orelhas de gato. Ela estava esfregando os olhos e tossindo
enquanto cambaleava em nossa direção, tinha inalado um pouco da
fumaça. Perto dali, a folhagem de uma árvore explodiu em chamas
que estalaram enquanto a coisa toda ameaçava desabar. A criança
olhou para a árvore, mas tudo estava acontecendo tão de repente
que ela só conseguiu olhar, estupefata.

— Cuidado! — gritei, instantaneamente liberando magia do vento


para tirar a árvore fora do caminho.
A fumaça havia turvado sua visão, mas a criança nos viu e se
aproximou.

— S-socorro…

A peguei em meus braços e usei magia de água para limpar seus


olhos. Ela também tinha algumas queimaduras leves em seu corpo,
então resolvi usar alguma magia de cura. Eu não tinha certeza do
que deveria estar fazendo, mas imaginei que seria bom ajudar ao
menos um pouco. O que estavam fazendo? Não conseguiam dar
um jeito de fugir?

— Não me diga… os moradores ainda não foram todos


evacuados?

— Isso é bem possível — disse Geese. — Os incêndios são


muito raros quando a estação das chuvas se aproxima… uau!

Outra árvore desabou. Uma pequena casa que estava acima de


nós também estava colapsando, espalhando pedaços de chamas
que serviam como pólvora. Parecia que nenhum esforço estava
sendo feito para apagar o fogo. Se eu continuasse perdendo tempo,
também acabaria em perigo. Ainda assim, não poderia
simplesmente deixar essa criança para trás e fugir.

— Certo… — Tomei minha decisão. — Novato, você sabe onde


fica o centro do vilarejo?

— Sim, sei onde fica… mas o que você vai fazer?

— Vou fazer um favor a eles para que se sintam em dívida


comigo!
Depois que falei isso, Geese sorriu, pegou a criança nos braços e
começou a correr.

— Então tá, por aqui. Siga-me!

Me movi para o seguir… mas depois lembrei das minhas roupas.


Ainda deviam estar trancadas naquela prisão. Logo usei minha
magia da água para envolver o prédio em gelo antes de começar a
seguir Geese.

As chamas ainda não tinham alcançado o coração do vilarejo.


Ainda assim, eu não esperava ver o que vi. O povo-fera estava
tentando fugir. Estavam em pânico, gritando e uivando enquanto
corriam de um lado para outro. Essa parte já esperava, mas por
alguma razão também havia humanos usando equipamento de
batalha perseguindo o povo-fera. Mais longe, conseguia ver o que
parecia serem guerreiros lutando contra humanos. Ainda mais
longe, vi homens de aparência robusta carregando uma crianças
debaixo dos braços, provavelmente tentando carregá-las para algum
lugar.

O que era isso? O que diabos estava acontecendo?

Geese falou:

— Hmm, pensei que algo estranho estava acontecendo…

— Novato, sabe o que está havendo? — perguntei.

— Só o que parece. Esses caras estão atacando o povo-fera.

Verdade. Isso era exatamente o que parecia.


— Acho que também são os responsáveis pelos incêndios —
falou Geese.

Então, atacaram provocando incêndios. Igual bandidos.


Realmente havia algumas pessoas cruéis por aí. Por outro lado, o
povo-fera me aprisionou por uma semana enquanto eu era inocente
de qualquer crime. As pessoas diziam que as maldições eram como
galinhas: Sempre voltavam para o poleiro.

— Ainda assim, isso é… um pouco demais.

Meninas estavam sendo arrastadas por homens. Uma criança


gritava, chamando pela mãe, que tentou persegui-la apenas para
ser fatiada. Os guerreiros do povo-fera tentaram evitar os
sequestros, mas seus movimentos eram inúteis. A fumaça havia
prejudicado sua visão e olfato. Os humanos os oprimiram com seu
grande número e os homens-fera se viram cercados, forçados a
uma luta amarga.

Terrível, verdadeiramente terrível.

— Então… chefe.

— O que foi?

— Qual lado você vai ajudar?

Voltei a encarar a cena. Outro guerreiro do povo-fera caiu.


Homens humanos forçaram a entrada no prédio que o guerreiro
estava protegendo e emergiram arrastando uma criança pelos
cabelos.
Estava óbvio qual era o lado da justiça. Mas qual seria o pior
para mim?

Eu não tinha ideia de quem eram esses humanos. Visto que


estavam sequestrando crianças, provavelmente estavam
trabalhando com traficantes de escravos ou contrabandistas, com os
quais eu tinha uma dívida. Os sujeitos atravessaram Ruijerd pelo
mar para mim. Entretanto, compensamos as coisas aniquilando
todos daquela base, então estávamos quites.

Em comparação, o povo-fera me aprisionou sob uma acusação


falsa. Não quiseram nem ouvir o que eu tinha a dizer. Tiraram minha
roupa e depois me molharam com água fria, e após tudo isso me
jogaram em uma cela. Considerando o nível emocional, minha
impressão sobre eles era ruim.

Mesmo assim. Mesmo assim, a cena diante de mim… era


nauseante.

— O povo-fera, é claro — falei, finalmente.

— Haha! Falou e disse! — gritou Geese antes de pegar uma


espada do cadáver mais próximo e tomar uma posição. — Tudo
bem, deixe a linha de frente comigo! Posso não ser muito bom com
uma espada, mas posso ao menos servir como uma parede para
você!

— Sim, estou contando com você para me proteger — falei e


levantei as duas mãos para o céu.

Primeiro, teria que apagar as chamas. Usei Rajada, uma magia


de água de nível avançado. Canalizei mana em minha mão direita,
conjurando nuvens cinzentas no céu. Me certifiquei de que o
alcance e o poder do feitiço seriam grandes. Eu não tinha ideia de
quão longe o fogo havia se espalhado, mas provavelmente poderia
apagar a maior parte dele se expandisse meu feitiço tanto quanto
possível. Também aumentei a taxa de precipitação para que caísse
como uma grande chuva torrencial.

Manipulei as nuvens da mesma forma que aprendi a fazer ao


lançar Cumulonimbus. Comprimi minha mana até que formasse uma
nuvem, então a inchei mais e mais, sem deixar uma única gota de
chuva cair. Ninguém percebeu que eu estava ali, mesmo com meus
braços erguidos em direção ao céu. E graças à fumaça preta,
também não perceberam as nuvens surgindo acima.

— Certo! — Uma vez que as nuvens estavam grandes o


suficiente, liberei o controle que exercia sobre elas com minha
mana.

— Uau… — Geese olhou para cima por reflexo, bem quando a


chuva começou a cair sobre nós como se fosse a água de uma
cachoeira.

Foi um dilúvio que chegou até todos. A área ficou inundada em


segundos. As chamas soltaram alguns assobios enquanto se
dissipavam. As pessoas olharam para o céu, algumas até mesmo
desconfiadas da chuva repentina. Logo me notaram de pé com as
duas mãos levantadas. O humano mais próximo sacou sua espada
e começou a correr em minha direção.

— E-ei, o que você vai fazer, chefe, eles estão vindo!


— Lamaçal! — Enquanto eu pronunciava o nome do feitiço, um
poço lamacento se abriu abaixo deles. Incapazes de passar por
aquilo, os homens perderam o equilíbrio e caíram. — Canhão de
Pedra! — Lancei o próximo feitiço sem me demorar, martelando-os
com minha magia de terra e nocauteando-os. Moleza. Aqueles
caras não eram nada de especial.

— Ooh… isso foi incrível, chefe!

Ignorei o elogio de Geese e segui em frente. Os humanos


estavam aqui e ali, por toda parte. Comecei a golpeá-los com meu
Canhão de Pedra ali de onde estava mesmo. Eu continuaria esse
ataque gradual e, em seguida, pegaria de volta as crianças que
foram sequestradas. Se Ruijerd e Eris estivessem presentes para
perseguir os bandidos, o trabalho teria sido muito mais simples, mas
teria que ser cauteloso, já que estava sozinho.

Bem, não exatamente. Geese estava comigo. Mas suas


habilidades pareciam meio inúteis, então não esperava que ele
fosse de muita ajuda.

— Ei, tem um mago aqui! Ele apagou o fogo!

— Porra! Mas que inferno?!

— Matem ele! Usem os números e não deixem ele lançar nada!

Enquanto eu me distraia, guerreiros humanos avançaram contra


mim, um após o outro.

— Canhão de Pedra! — Virei minha mão na direção deles e os


golpeei com meu feitiço. Um, dois, três… Ah, merda, agora não
estavam apenas seguindo ordens, como também demonstrando
seus números esmagadores.

— D-droga! Então cai pro pau! Não vou deixar vocês colocarem a
mão no meu chefe! — gritou Geese bravamente, embora estivesse
recuando um passo de cada vez. Inútil.

E quanto a mim? Também devo recuar? pensei.

Naquele exato momento, uma sombra marrom voou na minha


frente.

— Não sei quem você é, mas obrigado pela ajuda!

Ele falou na língua do Deus Fera. Era um homem-fera com uma


cauda de cachorro espessa que já estava com a espada
desembainhada e cortou um dos homens que corria em nossa
direção. Seu único golpe o decepou e enviou sua cabeça voando.

— Não seremos derrotados por sua laia, ainda mais agora que a
chuva limpou meu rosto e meu nariz está funcionando direito!

Ooh, que fala mais heróica! Mas foi exatamente como ele disse:
Todos os homens-fera da área estavam retornando.

— Pequeno mago! Por favor, ajude-nos a reunir nossos


guerreiros e recuperar nossas crianças!

— Certo!

O homem-fera na minha frente parecia um pouco surpreso por eu


ter respondido na língua do Deus Fera, mas ele balançou a cabeça
vigorosamente e uivou já longe. Vários outros do povo-fera pularam
das árvores ou do matagal para se juntar a nós. Outros que haviam
derrotado seus inimigos correram até nós, de quatro.

— Gunther, Gilbad, venham comigo. Vamos trabalhar com esse


mago para resgatar as crianças. O resto de vocês, proteja esta área.

— Woo! — Todos assentiram e se dispersaram. Eu também me


movi, perdendo de vista aquele primeiro guerreiro que apareceu na
minha frente. Geese estava logo atrás de mim.

Os guerreiros, em grande parte, correram em frente sem parar,


ocasionalmente levantando o nariz para farejar o ar. Se
encontrássemos um humano ao longo do caminho, rapidamente o
eliminariam.

Foi quando ouvimos um grito estridente que parecia o de um


cachorro.

Ao fazer uma inspeção, encontramos uma pessoa-fera sendo


acuada por três humanos. Eles pareciam desfrutar de sua vantagem
numérica injusta, assim como gatos atormentando um rato. Isso
também significava que sua guarda estava baixa.

Na mesma hora deixei um inconsciente ao usar o Canhão de


Pedra. O guerreiro que corria ao meu lado saltou para frente e
atacou um dos outros. O último humano, em pânico pelo fato de
seus companheiros terem morrido tão repentinamente, morreu pelas
próprias mãos da criatura que estiveram torturando.

— Laklana! Você está bem?!

— S-sim, Guerreiro Gimbal! Você me salvou! — A pessoa-fera


que foi encurralada era uma mulher. Uma guerreira. Ela estava
coberta de feridas graças à sua batalha.

Eu estava prestes a lançar um feitiço de cura sobre seu corpo


quando de repente percebi que a reconheci.

Ela ficou igualmente assustada quando olhou para mim.

— Gimbal! Este garoto é…

— Não é nosso inimigo. Foi ele quem conjurou a chuva. Sua


roupa é meio estranha, mas está nos ajudando.

— O quê? — Ela arfou.

Sua confusão não era só porque apenas um colete de pele


cobria meu corpo nu (ou melhor, seminu). Eu a conhecia. Acabei de
descobrir seu nome, mas conhecia aqueles seios fartos e mãos
habilidosas para cozinhar. Era ela quem guardava nossa cela.

Ela alternou seu olhar entre mim e Gimbal, seu rosto ficando
pálido. Provavelmente se lembrou de como me tratou mal e
percebeu o erro que cometeu.

Não se preocupe. Na verdade não tenho nada contra você,


pensei. As pessoas às vezes entendiam as coisas errado e
cometem erros. Eu sou Rudeus, o iluminado e compassivo!

Tirando isso, a mulher precisava me deixar lançar um pouco de


cura nela.

Parecia em conflito enquanto eu a curava, imaginando o que


deveria fazer, se deveria ou não pedir desculpas.

Antes que eu pudesse terminar de curá-la, Gimbal gritou:


— Laklana, você deve retornar e proteger a Fera Sagrada!

— T-tudo bem…! — Ela não agradeceu. Mas parecia que queria


dizer algo, mesmo enquanto seguia as ordens de Gimbal e saia
correndo.

Nossa perseguição continuou. Saímos do vilarejo e entramos na


floresta. Nesse ponto, um dos guerreiros me deixou montar em suas
costas, já que eu era muito lento. A partir dessa posição, me tornei
uma máquina de lançamento de Canhão de Pedra.

Equipamento de Ombro: Rudeus.

Um equipamento que, ao encontrar um inimigo, desviará


qualquer ataque através do uso do Olho da Previsão e também
derrubará inimigos automaticamente.

Certo, eu só usei força suficiente para deixar aqueles homens


inconscientes, mas o povo-fera poderia desferir o golpe final no meu
lugar.

— Aquele é o último!

O último humano parou no momento em que o alcançamos,


largando sua carga para que pudesse desembainhar sua espada. A
carga era um garoto com uma bolsa na cabeça e as mãos
amarradas atrás das costas. A julgar pela forma como ele caiu no
chão, provavelmente já estava inconsciente. O homem se ajoelhou
ao seu lado e colocou uma espada no pescoço da criança. Um
refém, hein?

— Grrrr…! — Gimbal e os outros rosnaram e cercaram o


guerreiro, mantendo distância.
O homem parecia imperturbável enquanto examinava a cena, até
que seus olhos finalmente pousaram em mim.

— Mestre do Canil, o que diabos está fazendo aqui?

Reconheci seu rosto barbudo. Gallus. O homem que


contrabandeou Ruijerd através do mar para mim, aquele que nos
confiou um trabalho. Aquele que trabalhava para aquela
organização de contrabando.

— Bem, muita coisa aconteceu… e você, Senhor Gallus, por que


está aqui?

— Por quê? Hmph, esse foi o meu plano desde o começo.

Gimbal e os outros olharam para nós, perguntando-se se éramos


conhecidos ou camaradas.

Ugh… eu realmente não queria falar sobre isso, mas também


não poderia ficar em silêncio.

— O que quer dizer com isso?

Gallus se curvou e cuspiu.

— Não há necessidade de te dizer.

Bem, isso era verdade. Mas era um pouco estranho.

— Foi você quem nos pediu para salvar as crianças do povo-fera.


Você disse que, de outra forma, isso te causaria problemas. Mas
está aqui as sequestrando… então quais são as suas verdadeiras
intenções?
Gallus sorriu e olhou para os lados. Mesmo cercado por mim,
três guerreiros do povo-fera e Geese, ainda parecia relaxado.

— Sim, os pirralhos eram algo, mas se sequestrassem a Fera


Sagrada de Doldia também, isso realmente nos colocaria em
apuros.

Pelo visto, o problema era aquele filhote. Eu gostaria que ele


tivesse dito isso desde o começo. Poderia pelo menos ter me dito
para soltar o cachorro.

— Achei que tínhamos um bom plano. Nós cronometramos a


hora certa e vazamos informações para o bando de guerreiros
Doldia para que vocês se encontrassem. Então, enquanto o Superd
massacrava todos eles, íamos vir furtivamente, atacar seu
assentamento e roubar o resto de suas crianças.

Fiquei sem palavras.

— Quando percebessem o ataque ao vilarejo já seria tarde


demais. Quando a estação das chuvas chegasse, não conseguiriam
fazer nada e só poderiam chorar até dormir à noite, visto que não
poderiam vir atrás de nós.

Durante a estação das chuvas, a maioria das pessoas não


conseguia sair de onde estava. Os contrabandistas deviam ter
pensado que poderiam isolar seus perseguidores no momento certo.

— Você com certeza faz as coisas de uma maneira muito indireta


— falei.

— Já te falei, não somos uma organização muito unida. Não


posso deixar meus camaradas chegarem na minha frente.
Que vulgar. Ele libertaria os escravos de seus camaradas e
depois venderia os seus próprios. Conseguiria um lucro enorme,
enquanto os outros não receberiam nem um centavo. Sua posição
subiria enquanto a de seus camaradas fracassados cairia. Depois
de semear suas sementes com bastante cuidado, Gallus colheria as
recompensas.

— Sabe, Mestre do Canil? Esses pirralhos Doldia são vendidos a


um preço excepcionalmente alto. Alguma família nobre pervertida no
Reino Asura os adora, e aqueles caras vão pagar muito dinheiro por
eles.

Ah, sim. Acho que sei de qual família ele estava falando.

— Não saiu exatamente como planejado, mas seu Superd


manteve o bando de guerreiros Doldia preso em Porto Zant. Então
por que você está aqui?

— Estraguei tudo e fui capturado.

— Ah sim, então por que não se junta a mim?

Com essas palavras, Gimbal voltou seu olhar para mim. Parecia
entender um pouco da língua humana, e me observava com cautela.
Eu realmente não queria que ele fizesse isso.

— Senhor Gallus … Desculpe, mas quando resgato crianças,


não sou o Mestre do Canil Ruijerd. Sou Ruijerd, da tribo Superd. E
Ruijerd nunca perdoa aqueles que querem vender crianças como
escravas.

— Hah, então o Fim da Linha gosta de fingir que está do lado da


justiça, hein?
— Isso é o que eu gostaria que as pessoas acreditassem.

As negociações falharam.

Gallus manteve sua espada apontada para o pescoço da criança


enquanto se levantava. Ele lançou um olhar para Gimbal e seus
homens, que estavam tentando cercá-lo, e riu.

— Entendo… Bem, Mestre do Canil, você cometeu um erro.

Eu literalmente acabei de dizer que não sou o Mestre do Canil,


sou Ruijerd, gracejei comigo mesmo.

Dois dos homens de Gimbal se esgueiraram atrás de Gallus,


furtivos como gatos, aproximando-se dele.

— Cinco de vocês não são suficientes para me derrotar.

Os três pularam sobre ele quase instantaneamente. Atrás e à


direita apareceu o Guerreiro A, cortando; e à esquerda, o guerreiro
B surgiu, tentando resgatar a criança. Gimbal usou o momento para
atacar Gallus pela frente.

Comparado com as feras ágeis, o contrabandistas se moveu


quase vagarosamente. Primeiro ele lançou a criança contra Gimbal.
O homem-fera pegou o garoto nos braços enquanto o Guerreiro B,
que agora havia perdido seu alvo, se atrapalhou por uma fração de
segundo. Foi naquele momento, usando o impulso que ganhou ao
descartar a criança, que Gallus girou e picou o Guerreiro A. Sua
lâmina era uma espada longa comum, que usou para desviar o
ataque que se aproximava antes de enterrá-la no peito do Guerreiro
A.
Ele puxou sua espada enquanto recuava para o Guerreiro B no
momento em que este último se atrapalhou em seu ataque. Nesse
ponto, Guerreiro B e Gimbal estavam em linha logo na frente de
Gallus, e os braços de Gimbal estavam ocupados com a criança que
havia recuperado, então não conseguia se mover. Vindo do nada, o
bandido sacou uma espada curta com a mão esquerda e a enfiou
fundo no peito do Guerreiro B. Então usou o corpo do guerreiro
como escudo e avançou direto para Gimbal.

Gimbal colocou a criança sob a dobra do braço e tentou


interceptar o bandido, mas já era tarde demais. Gallus lançou seu
ataque entre a abertura das pernas de seu escudo vivo, perfurando
o homem do povo-fera. Quando Gimbal largou a criança e começou
a cair, Gallus logo passou sua lâmina pelo pescoço de seu
oponente.

Rápido, preciso e terminado em segundos. Sequer tive a chance


de ajudar. Enquanto eu olhava estupefato, os guerreiros do povo-
fera derramaram sangue de suas bocas antes de desabar onde
estavam.

Sério mesmo? pensei em descrença.

— E-ei, chefe, isso é ruim. Esse aí é o Estilo Deus do Norte. E


também ao estilo Atofe. Não usa truques inteligentes, é só um estilo
de luta bruto que é moldado pela experiência de enfrentar vários
oponentes em batalha.

Gallus reagiu ao pânico presente na voz de Geese com uma


risada.
— Você sabe das coisas, homem macaco. Isso mesmo, eu sou o
Cleaner, o Santo do Norte Gallus. — Quando Gallus disse isso, já
tinha o refém de volta em suas mãos.

Isso era ruim. Eu não achava que ele era tão forte quanto
Ruijerd, mas, naquele rank, provavelmente seria mais do que eu
poderia lidar. O que poderia fazer ao lutar usando o Olho da
Previsão?

— Muito interessante, não é? O estilo Deus do Norte ainda tem


uma tática para lutar usando um refém.

Lembrei-me de como meu pai deste mundo, Paul, costumava


desgostar do Estilo Deus do Norte. Agora isso fazia sentido. Eu
podia entender por que alguém odiaria um estilo que possuía táticas
de batalha como essa. Era uma desgraça. Completamente
dissimulada. Eu queria que ele lutasse de forma justa.

— Bem, venha, Mestre do Canil. Ou você é um covarde que


perdeu a coragem só com isso, então agora vai me deixar ir?

Nenhuma quantidade de críticas mentais mudaria nossas


circunstâncias. Será que deveria deixá-lo partir? Eu não era como
Ruijerd. Eu não tinha um senso de justiça tão forte para colocar
minha vida em risco só para salvar crianças que nem conhecia. A
única coisa pela qual valeria a pena arriscar minha vida seria Eris.

— O quê, então realmente não vai me encarar? Então tá bom. É


um favor para nós dois.

Em contraste, Gallus parecia desconfiado de mim. Talvez tivesse


testemunhado meu uso de magia para apagar os incêndios
florestais. Eu também tinha mostrado a ele que podia usar magia
não verbal. O homem poderia me atacar assim que visse qualquer
indicação de que eu tentaria algo.

Não importava o quão alta fosse a estimativa de Gallus sobre


minhas habilidades, não havia nada que eu pudesse fazer no
momento. Mesmo se usasse meu Olho da Previsão, derrotar um
mestre espadachim como ele sem ferir o refém seria provavelmente
impossível. Se atacá-lo resultasse na perda de minha própria e
preciosa vida, então eu não tinha escolha a não ser deixar que fosse
embora.

— Tudo bem — Gallus começou a falar. — Nos vemos por aí,


Mestre do Canil. Se voltarmos a nos encontrar em algum lugar…

— RAAAAH!

Naquele momento, assim que ele baixou a guarda e puxou o


refém para os braços, um borrão branco o atacou pelo lado. Mordeu
sua mão que empunhava a espada.

— Gaaaah! O que é isso?!

Um cão. Aquele enorme Shiba Inu branco saltou de repente do


meio dos arbustos e cravou suas presas no bandido.

Me movi por reflexo, usando magia para criar uma onda de


choque entre Gallus e o refém.

— Guh?!

Isso resultou em um recuo que separou os dois. A Fera Sagrada


também se distanciou no momento do impacto.
Gallus recuperou sua espada e se virou para mim.

— Droga, Mestre do Canil! Eu sabia que você não me deixaria


em paz! — Seus olhos ardiam de ódio, como se fosse eu quem
tivesse lançado o primeiro ataque. — É como os rumores diziam!
Você realmente joga seus cães sobre as pessoas. Que truque mais
baixo!

Que tipo de boato era esse?! Não, deixando isso de lado, o mais
importante era que eu acabei recebendo alguma ajuda para lidar
com o contrabandista.

— Grrrr…! — A Fera Sagrada estava pronta para a batalha.


Antes mesmo de eu notar, aquilo ficou ao meu lado, assumindo uma
postura de apoio com o corpo agachado.

— Heh heh, exatamente o que eu esperaria de você, chefe.


Depois que eu morrer, cuide de minhas cinzas. — O novato, Geese,
posicionou-se um pouco à minha frente, timidamente empunhando
sua espada.

Gallus não baixou a guarda por um instante ao se posicionar de


frente para mim. Parecia que eu não poderia mais recuar, mesmo se
quisesse. Ah, bem. Decidi que faria o povo-fera se sentir em dívida
comigo, então por que não encarar isso até o amargo fim?

— Foi mal, Gallus. Mas Ruijerd do Fim da Linha não pode ser um
cara mau.

As palavras soaram heróicas o suficiente, mas minha situação


não era ideal. Estávamos atualmente em três contra um, mas no
chão também estavam os guerreiros do povo-fera, que certamente
pareciam mais fortes do que nosso grupo atual, e todos foram
massacrados em um instante. No momento o bandido não tinha seu
refém, mas tudo o que tínhamos era um grupo não confiável de três:
o novato, o filhote e eu. Queria muito que Ruijerd estivesse entre
nós, mas… Não, esta seria uma boa oportunidade para praticar.

— Chefe… me consiga um pouco de tempo.

Enquanto eu tentava preparar minha mente, o novato sussurrou


para mim. Ele tinha algum tipo de plano?

— Como ele é um espadachim do Estilo Deus do Norte, acho


que tenho algo que o pegará.

— Certo… — Pisei bem diante do homem. Então isso indicava


que eu teria que enfrentar um espadachim de nível Santo de frente?
Merda, meu coração estava batendo furiosamente. Acalme-se,
apenas acalme-se, disse a mim mesmo.

— Woof! — Como se para injetar coragem em mim, a bola de


pêlo ao meu lado latiu.

— Graaah! — E como se em resposta, Gallus deu o pontapé


inicial do chão.

Ele correu em nossa direção, e a Fera Sagrada disparou ao seu


encontro.

O cara vai dar a volta e lançar um ataque cortante por baixo da


Fera Sagrada. Eu conseguia ver. Se usasse meu Canhão de
Pedra… Não, a Fera Sagrada ficaria no meio da trajetória do meu
disparo. Eu precisava usar um feitiço diferente. Qual? O novato me
disse para chamar sua atenção, então…
— Explosão!

— Gaaah!

Assim que a Fera Sagrada saltou sobre Gallus, conjurei uma


pequena explosão bem na frente de seus olhos.

— Não foi o suficiente! — O contrabandista jogou todo o peso de


seu corpo no chão e rolou. Ele conseguiu escapar por baixo da Fera
Sagrada e, depois de um giro, começou a se levantar…

Assim que começar a se levantar, vai me cortar de baixo para


cima.

— Ha!

Recuei para evitar o ataque. Foi por pouco. Se eu não tivesse o


Olho da Previsão, teria morrido no mesmo instante..

— Tsk, então você conseguiu evitar isso! — gritou enquanto


avançava novamente, chicoteando sua lâmina pelo ar.

Ele vai cortar a lateral do meu abdômen, então irá usar o impulso
para dar um golpe de retorno.

Se eu pudesse ver, poderia me esquivar. Ele era mais rápido do


que Eris, mas não tinha aquele seu ritmo único que era tão difícil de
ler. Não havia aberturas para lançar um contra-ataque, mas vi a
Fera Sagrada voltando para a periferia da minha visão, para que
pudesse aparecer e morder o bandido por trás.

Ele vai trocar a mão que empunha a espada repentinamente,


depois torcer o corpo e dar um salto.
Por um momento não consegui entender. Não entendi a
motivação por trás de seus movimentos.

— Gah…!

Por reflexo, dei um passo para o lado em vez de recuar. No


momento em que percebi o que estava acontecendo, sua espada
curta foi direto para cima para mim e atingiu o meu pé. Mesmo com
a dor intensa que percorreu meu corpo, pude ver o que aconteceria
a seguir.

Ele vai brandir sua espada, pronto para um balanço.

Meu cérebro lentamente descobriu o que tinha acontecido. Foi o


pé dele – o sujeito atirou aquela espada curta em mim com o pé.
Provavelmente havia algo embutido em sua bota! Ser capaz de ver
o futuro não me ajudaria em nada com um oponente como esse. Eu
devia ter sido mais esperto!

— Acabou, Mestre do Canil!

— Graaah! — A Fera Sagrada saltou e cravou os dentes no


ombro de Gallus.

— Gwah! Seu…!

— Cain! — O filhote guinchou ao ser jogado para longe, batendo


com força em uma árvore.

No intervalo daquele momento, canalizei mana em minha mão e


lancei um Canhão de Pedra.

— Tsk!
Meu feitiço voou em direção a ele em alta velocidade, mas Gallus
apenas o partiu em dois no meio do ar. Faíscas saíram da lâmina
quando ela quebrou mesmo na mão dele. Bom, agora poderia usar
a oportunidade para arrancar a espada curta do meu…

Ele vai pegar a espada nos seus pés e vai acabar com isso.

Ah, não. Foi então que percebi que em algum momento o sujeito
conseguiu me colocar de volta no lugar onde os corpos daqueles
homens-fera estavam. A lâmina aos seus pés pertencia a eles. O
cara me guiou ao local.

— Eu disse que seria o fim. Desista de lutar, Mestre do Canil!

Canalizei mana entre minhas mãos, apostando minhas últimas


esperanças nisso. O tempo pareceu desacelerar. Gallus assumiu
uma postura com a espada abaixada em direção aos quadris,
prestes a desencadear seu ataque. Mesmo se eu usasse uma onda
de choque para colocar distância entre nós, já era tarde demais. Em
vez de usar aqueles Canhões de Pedra, teria sido melhor arrancar a
faca do pé ou usar uma onda de choque. Recorri ao movimento
errado.

— Ao Estilo original Deus do Norte, Bomba Lamuriante! — Só


então, ouvi a voz do novato soando atrás de mim. Algo de repente
voou sobre minha cabeça… uma bolsa preta? E quando isso
aconteceu, minha visão, focada em Gallus, ficou turva.

Ele se moverá para cortar a bolsa cheia de pó pela metade, mas


depois hesitará e cobrirá o rosto com os dois braços.
A bolsa bateu no rosto de Gallus. Uma substância semelhante a
cinzas explodiu a partir daquilo. Algo para cegá-lo, imaginei. Mas,
infelizmente, falhou… Espera, não, apareceu uma abertura!

Naquele momento, terminei meu feitiço e desencadeei uma


explosão de fogos no espaço entre nós. Meu corpo foi jogado para
trás a uma velocidade ridícula. Por apenas uma fração de segundo,
perdi a consciência.

Suportei a dor que devastou meu corpo e meus pés e me forcei a


retornar. O ferimento no meu pé estava… bem. O impacto, pelo
visto, fez a faca ser solta. Todos os meus dedos continuaram
intactos. Eu poderia usar magia de cura para me recuperar disso.
Para ser honesto, doeu o bastante para que não pudesse andar,
mas não era hora para reclamar. No momento precisava ficar de pé
e lutar. A batalha ainda não havia acabado.

— Hã…?

Gallus já estava no chão, de barriga para cima. Seu corpo nem


mesmo estremecia.

— Uhuuul…! Conseguimos! — Quando olhei para o lado, vi


Geese com o punho no ar. — No momento em que esses caras do
Estilo Deus do Norte ouvem o nome “Bomba Lamuriante”, sempre
usam as duas mãos para cobrir o rosto!

Eu não tinha ideia do que isso significava, mas pelo visto aqueles
treinados neste estilo em específico tinham algum hábito estranho.
Apesar de tudo, abordei Gallus com enorme cautela.

— Ei, chefe, tome cuidado!


Conforme aconselhado pelo novato, mantive minha guarda alta
enquanto inspecionava nosso oponente inconsciente. Peguei sua
espada, que estava caída por perto, e a joguei fora. Quando fiz isso,
a Fera Sagrada saltou no ar e a pegou em sua boca antes de
retornar para mim, balançando o rabo vigorosamente.

Sim, sim, você é um bom garoto, pensei. Mas vamos jogar


frisbee outra hora, tá bom?

— Novato, pegue isso. — Dei alguns tapinhas na cabeça do


filhote antes de jogar a espada para Geese. Então peguei um
pedaço de pau e comecei a cutucar Gallus com ele.

O homem não se moveu. Mesmo ao cutucar seus olhos, sequer


resmungou. Amarrei suas mãos e pernas e coloquei uma mordaça
em sua boca, mas seus olhos permaneceram fechados. Parecia que
estava completamente inconsciente.

— Nós ganhamos. — Quando as palavras saíram da minha


boca, a Fera Sagrada gemeu e Geese, que havia retirado a bolsa da
cabeça do refém, riu. Realmente vencemos? Eu ainda estava me
deleitando com o brilho da vitória quando a criança refém acordou e
começou a soluçar. Pouco depois disso, os guerreiros do povo-fera
finalmente chegaram.

✦✦✦✦✦✦✦

Esse era um caso de sequestro. Foi uma operação em grande


escala planejada pela organização de contrabando. Planejavam
roubar a Fera Sagrada, a divindade guardiã dos Doldia. Suas
motivações exatas não eram claras, mas pelo visto muitas pessoas
desejavam a Fera Sagrada por causa de quão especial ela era.
Dito isso, mesmo o simples ato de sequestrar a Fera seria um
desafio. Supondo que conseguissem, o povo-fera, com seu olfato
apurado, ficaria no encalço dos contrabandistas e imediatamente
recapturaria a Fera. É por isso que a organização executou seu
plano perto da estação das chuvas.

A estação das chuvas duraria três meses. Cada povoado se


ocupava com os preparativos e os guerreiros de cada vilarejo
ficavam de mãos amarradas. Dito isso, seria impossível conseguir
um navio bem no meio da estação das chuvas. Então, um pouco
antes das chuvas começarem, roubariam a Fera e a carregariam
para o Continente Demônio. Dessa forma, poderiam escapar
facilmente e os guerreiros não conseguiriam os perseguir.

O povo-fera estava, é claro, vigilante. Durante os preparativos


para a estação das chuvas, as crianças ficavam proibidas de sair de
casa e até os adultos passavam a ser mais cautelosos. Não seria
necessário mencionar que a Fera Sagrada também era mais vigiada
nesta época. A organização também levou isso em consideração.

Primeiro, empregaram todos os sequestradores da área e, então,


esperaram pacientemente. Quando chegou a hora certa, invadiram
cada aldeia e sequestraram mulheres e crianças. Foi então que os
guerreiros entraram em pânico. A organização havia
intencionalmente contratado várias pessoas para diminuir os
sequestros durante o ano, para que as tribos do povo-fera
baixassem a guarda. Então, de uma só vez, os contrabandistas
sequestraram mulheres e crianças de vários assentamentos.

Também enviaram grupos de forças armadas que haviam


preparado para atacar os vilarejos, mas deixaram a aldeia da tribo
Doldia intacta. Como isso indicaria que os guerreiros de Doldia
estavam desocupados, todos os outros exigiram ajuda. Os Doldia
teriam que dividir suas forças para enviar ajuda aos vários
assentamentos.

Como resultado, os defensores da aldeia Doldia ficaram com


uma equipe escassa. Foi então que a organização de contrabando
usou suas forças de elite para atacar. Conseguiram sequestrar não
apenas a neta do chefe tribal, como também a Fera Sagrada. Foi
uma tática de blitzkrieg em que forças menores distraíram os outros
assentamentos enquanto a principal corria em direção ao seu
verdadeiro objetivo.

O ataque das forças armadas, o sequestro de crianças e o rapto


da Fera Sagrada… Com tudo isso, não importaria o quão
excepcionais os guerreiros do povo-fera seriam, já que não haveria
o suficiente deles. O chefe tribal, Gustav, decidiu abandonar as
crianças. Reuniu seus guerreiros e reforçou as defesas locais, então
começou a busca pela Fera Sagrada. Ela era um símbolo
importante para seu vilarejo.

Pareceu-lhes pura sorte terem descoberto a área de espera dos


contrabandistas. Receberam uma pista sólida e marcharam para o
prédio em questão. Por enquanto, vamos apenas ignorar que a
fonte da informação foi uma força isolada liderada por Gallus.

Foi aí que começou a história que eu não conhecia: uma sobre o


que Ruijerd fez na semana seguinte, quando me deixou naquela
cela.
Pelo visto, o Superd ficou abertamente zangado com os
contrabandistas quando ouviu sobre o que levou a tudo isso. Ele
propôs atacar o navio antes que partisse do porto. Gustav, porém,
desaprovou. “Não sabemos em que navio estão as crianças, e
sabem como suprimir nosso olfato.”

Foi exatamente aí que Ruijerd entrou. Ele disse com orgulho que
poderia usar o cristal em sua testa para procurá-los. Quanto a Eris,
ela não participou, pois havia assumido a responsabilidade de
cuidar das crianças.

Com um grande sorriso no rosto, devo acrescentar. Com certeza


era influência de seu sangue Greyrat.

De qualquer forma, o ataque de Ruijerd foi bem sucedido.


Tragicamente para os contrabandistas, ele descobriu seu navio e os
capturou apenas após espancá-los até ficarem meio mortos. As
crianças saíram arrastando-se das profundezas do navio. Eram ao
menos cinquenta delas. Todos foram salvos e foi um belo final feliz,
yay! Só que não…

Os funcionários do Porto Zant afirmaram que foi um ataque à


última viagem deles antes do início da estação chuvosa. Havia
mercadorias importantes armazenadas naquele navio, e atacá-lo era
um crime grave.

Gustav, é claro, protestou contra isso. O sequestro e escravidão


de pessoas-fera era um crime no que diz respeito ao País Sagrado
de Millis e aos líderes tribais da Grande Floresta. Ser punido por
impedir isso em suas próprias costas parecia bizarro, disse. Isso só
enfureceu ainda mais os funcionários do Porto Zant. Insistiram que
deveriam ter sido informados com antecedência. Mas os
contrabandistas acabaram sendo dominados no devido tempo. Eles
não tiveram tempo para explicar nada. Além disso, existiam
cinquenta vítimas. Não cinco, nem dez, mas cinquenta crianças!
Sequestraram uma ou duas de cada assentamento. Os funcionários
do Porto Zant não sabiam nada disso. Na verdade, alguns deles
aceitaram subornos para fingir que não sabiam de nada.

Isso era uma violação do tratado. Se deixado como estava,


criaria uma grande fissura no relacionamento entre o povo-fera e o
País Sagrado de Millis. Na pior das hipóteses, acabaria resultando
em uma guerra. Foi então que toda a conversa ficou complicada.
Por ordem de Gustav, os guerreiros foram chamados ao Porto Zant
e ficaram na entrada da cidade em um impasse com sua guarnição.

No final, Porto Zant recuou. Pagaram uma enorme soma ao


povo-fera, buscando entregar alguma compensação. Demorou
cerca de uma semana para que as negociações fossem concluídas
e as crianças fossem devolvidas aos pais. Foi por isso que fiquei
uma semana naquela cela, eu seria a última coisa para se cuidar.

Bem, não era como se houvesse outra escolha. Na verdade,


achei incrível que conseguiram fazer tanto em apenas uma semana.

Foi aí que Gallus tirou vantagem da situação. As defesas da


aldeia dos Doldia foram enfraquecidas quando Gyes chamou seu
bando de guerreiros para o Porto Zant. Acompanhado por suas
tropas, o bandido invadiu o assentamento. O sujeito fez tudo
exatamente pelo motivo que mencionou antes. Ele e os camaradas
em quem confiava sequestrariam as crianças e, então, conseguiriam
um enorme lucro.
O bandido mirou o período logo antes do início da estação das
chuvas. Ele se preparou para isso, tendo até mesmo ameaçado o
líder dos armadores para que construísse um navio em segredo. O
homem devia ter passado muito tempo planejando tudo. As coisas
não aconteceram exatamente como esperava, mas foram o
suficiente para que agisse. Mas, para seu azar, suas ambições
foram pelo ralo. No final, seu plano falhou e acabou sendo entregue
aos funcionários do Porto Zant. Assim o assunto foi resolvido e
tivemos nosso final feliz.
Capítulo 09:
Vida Tranquila no Vilarejo Doldia
Fomos recebidos no vilarejo Doldia como heróis por salvar as
crianças e proteger a vila contra o ataque de Gallus. Queriam que
passássemos a estação das chuvas residindo com eles.

Gyes também se desculpou oficialmente comigo por ignorar


ordens, me despir e me jogar em uma cela. E também pela água
gelada que foi jogada em mim. Descobriu-se que a maneira
diferenciada do povo-fera se ajoelhar era deitando com o rosto para
cima e deixando a barriga exposta. No começo pensei que ele
estava zombando de mim, mas todos os presentes estavam falando
sério sobre isso. A única coisa em minha mente era a inveja que
senti enquanto olhava para seu tanquinho peludo e musculoso,
então não me demorei a aceitar o pedido de desculpas.

Eris, no entanto, não o fez. Ela ficou chateada quando soube


pelo que eu tinha passado, e deu um Soco Boreas na barriga
exposta de Gyes, antes de jogar água em sua cabeça. Uma vez que
o homem ficou parecendo um rato afogado, ela olhou para ele e
disse:

— Agora estamos quites.

Ela nunca falhava em me impressionar.

✦✦✦✦✦✦✦

No momento, estávamos na casa de Gustav. Era a maior do


vilarejo, situada bem acima do solo entre as árvores. Com três
andares de altura e construída com madeira, parecia que poderia
desabar instantaneamente diante de um terremoto, mas era forte o
suficiente para que um adulto correndo ali dentro não causasse um
único tremor.

Éramos oito: Eris, Ruijerd e eu, além do líder tribal Doldia,


Gustav, e seu filho Gyes, o líder dos guerreiros. Uma das garotas
que resgatei dos contrabandistas, a filha do meio de Gyes, Minitona,
também estava presente. Sua filha mais velha, Linianna,
aparentemente estava estudando em um país diferente. E havia
outra garota que tínhamos resgatado que era da tribo Adoldia: a
filha do meio do líder tribal Adoldia, Tersena. Ela era uma menina
com orelhas de abano e bastante desenvolvida para sua idade.
Estava planejando voltar para casa, mas isso se tornou impossível
quando a estação das chuvas começou, e passaria os próximos três
meses no lugar.

As meninas conversavam animadas, com latidos e miados, sobre


como quase foram sequestradas.

— Estou tão feliz por não ter sido levada. Ouvi dizer que há uma
família nobre louca e doente em Asura que só tem interesse sexual
pelo povo-fera. Vai saber o que aconteceria comigo.

Gallus também falou sobre como uma certa família nobre paga
especialmente bem por gente-fera com sangue Doldia. Parecia que
aqueles que eram fáceis de treinar eram vendidos pelos preços
mais altos.

— Não há lugar para esse tipo de escória entre os nobres


Asuranos! — E lá estava Eris, falando como se essa conversa não
tivesse nada a ver com ela ou sua família, mesmo sendo muito
provável que a tal família nobre tivesse algo como “rat” no nome. E
também começava com a letra G.

Nunca perguntei de onde vinham as empregadas da casa de


Eris, mas talvez algumas delas tivessem sido sequestradas. O avô
de Eris, Sauros, era um bom homem, mas sua visão de mundo tinha
alguns aspectos estranhos. Bem, eu manteria minha boca fechada.
Algumas coisas seriam melhores se não fossem ditas.

Eris pareceu lembrar de algo, já que de repente mostrou a todo o


anel que estava em seu dedo.

— A propósito, conhecem Ghislaine? Ganhei este anel aqui dela.


— Eris não conhecia a língua do Deus Fera, então falou na língua
humana. Dos presentes, os únicos que podiam entender a língua,
além de Ruijerd e eu, eram Gustav e Gyes.

— Ghislaine…? — Gyes fechou a cara. — Ela… ainda está viva?

— Hein?

Sua voz estava cheia de desgosto. Ele cuspiu as palavras como


se deixassem um gosto amargo em sua língua.

— Ela é uma mancha no nome da nossa tribo.

E isso foi apenas o começo do ataque de Gyes a Ghislaine. Ele


falou na língua humana, para que Eris pudesse entender. Sua voz
estava cheia de uma emoção imprópria para um irmão mais velho
falando de sua irmã mais nova, enquanto falava sem parar sobre a
falha que a mulher era como pessoa.
Foi difícil para mim ouvir tudo, visto que ela já até salvou minha
vida. Parecia que a mulher tinha feito algumas coisas realmente
desprezíveis no vilarejo, mas ainda assim, tudo isso aconteceu
quando era uma criança. A Ghislaine que eu conhecia era
desajeitada, mas esforçada. Ela mudou, se reajustou como pessoa.
Não merecia que falassem assim dela. Era uma instrutora de
espada altamente respeitável, bem como uma excelente aprendiz
de magia.

Então, pensei, como devo esclarecer isso…? Esquece isso.

— Esse anel também, isso foi algo que nossa mãe deu a ela para
que parasse de ficar furiosa sem motivos. Mas não é como se
tivesse funcionado. Não passava de uma garota surtada e inútil.

— Você… — comecei a dizer.

— Ah, cala a boca! O que você sabe sobre Ghislaine?! — Eris


me cortou, berrando em voz alta o suficiente para dividir a casa em
duas. Os outros ficaram pasmos com sua explosão. Afinal, apenas
Gyes e Gustav podiam entender a língua.

Senti medo de que ela pudesse acabar ficando violenta. Mas, em


vez disso, a garota parecia frustrada, com lágrimas nos olhos. Ela
cerrou os punhos trêmulos, mas não os balançou.

— Ghislaine é incrível! Incrivelmente incrível! Quando você pede


ajuda, ela aparece na mesma hora! Ela é super rápida! E super
forte! — As palavras de Eris provavelmente não estavam saindo só
de sua boca. Mesmo se os outros não entendessem o que estava
dizendo, a tristeza em sua voz transmitia muito bem todo o
significado. E também estava expressando minhas emoções. —
Ghislaine é… hic… guh… não é alguém que você pode
simplesmente… hic… — Eris tentou o seu melhor para não socar
ninguém, mesmo em meio às lágrimas.
Isso mesmo, ela não poderia socar Gyes. Durante seu tempo
neste vilarejo, Ghislaine sempre foi violenta. Se Eris fechasse o
punho, o homem poderia simplesmente dizer: “Viu? As duas são
farinha do mesmo saco.”

Quando olhei para ele, Gyes parecia confuso.

— Não, não posso… Isso é inacreditável. Ghislaine… é


respeitada? Isso não pode…

Vendo isso, contive minha raiva.

— Vamos parar essa conversa aqui — sugeri, colocando meus


braços ao redor dos ombros de Eris.

Ela olhou para mim sem acreditar.

— Por quê… Rudeus, você… odeia Ghislaine?

— Não, eu também gosto dela. A pessoa que conhecemos e a


que eles conhecem podem ter o mesmo nome, mas não são a
mesma. — Olhei para Gyes. Até ele reconsideraria sua postura se
conhecesse a Ghislaine atual. O tempo muda as pessoas. Eu sabia
muito bem disso.

— Certo… — Eris não parecia satisfeita, mas pelo menos parecia


aliviada com o que eu disse.

— Espere, ela é… agora Ghislaine realmente é uma pessoa


incrível?

— Para não dizer muito, eu a respeito.


Minhas palavras levaram Gyes a uma profunda contemplação.
Considerando o que o ouvimos dizer, devia ter acontecido muita
coisa entre ele e ela. Com a simples menção ao nome de Ghislaine,
o homem começava a ferver de raiva. Ser parente de sangue
tornava tudo pior.

— Então que tal pedir desculpas?

— Sinto muito…

Depois disso a atmosfera ficou meio desconfortável. Talvez


porque fosse a segunda vez que forçamos Gyes a se desculpar
conosco no mesmo dia.

Quanto a Ghislaine, eu tinha me esquecido completamente dela


durante o último ano, mas a mulher provavelmente também tinha
sido deslocada durante o incidente. Fiquei curioso sobre onde e o
que ela estaria fazendo. Conhecendo-a, imaginei que
provavelmente estava procurando por mim e por Eris. Foi frustrante
não termos conseguido obter nenhuma informação durante nossa
estadia em Porto Zant.

✦✦✦✦✦✦✦

Uma semana se passou. A chuva continuou caindo o tempo todo.


Ficamos com uma casa vazia do vilarejo e passamos nosso tempo
lá. Recebíamos comida, independentemente de termos contribuído
ou não com alguma coisa, já que éramos considerados heróis da
Grande Floresta, mesmo com o vilarejo na pior graças ao dano
daquele incêndio.
A terra ficou inundada e o caos chegou ao máximo quando uma
criança caiu na água. As pessoas ficaram bastante chocadas, mas
gratas quando usei minha magia para salvá-la. Achei que talvez
devesse usar minha magia para afastar as nuvens de chuva, mas
logo desisti. A própria Roxy disse: manipular o tempo não seria uma
boa ideia. Se eu forçasse a chuva a parar, algo terrível poderia
acontecer com a floresta.

Para ser honesto, só queria que isso andasse logo e parasse


para que pudéssemos seguir em frente. Mas, novamente, só iria
parar depois de três meses. Eu teria que suportar.

Estava chovendo quando decidi dar um passeio pela aldeia.


Como se tratava apenas de um vilarejo, não havia nenhum armeiro,
armadureiro ou estalagem de qualquer tipo. Na maior parte, eram
moradias particulares e depósitos, ou guaritas para seus guerreiros.
E estava tudo sobre as árvores.

Parecia até uma maquete, só que em 3D! Verdadeiramente


fascinante. Apenas andar era o bastante para que meu coração
disparasse de tanta excitação. Mas havia um lugar onde era
proibido ir. Pelo visto, logo adiante havia um lugar especial. Eu não
tinha intenções de me intrometer.

Durante minha caminhada, encontrei um caminho que se cruzava


em dois níveis. Fiquei no de baixo esperando que alguma garota
pudesse passar por cima de mim, mas foi Geese quem apareceu.

— Yo, novato! Então você também ficou livre, eh?

Ele parecia feliz e acenou para mim. O homem também recebeu


anistia por suas contribuições quando a aldeia estava em apuros.
— Aham. “Nunca mais faça isso”, disseram eles. Idiotas, todos.
Claro que vou fazer de novo.

— Ei, gente! Vocês ouviram? Esse cara não aprendeu a lição!

— Ei! Vamos lá, pare com isso. Não posso fugir agora, não antes
que a estação das chuvas termine.

Em outras palavras, ele estava planejando repetir seu erro. Sério,


que caso perdido.

— Além disso, permita-me devolver o seu colete.

— Eu disse para você parar com essas merdas polidas. Só fique


com ele — disse.

— Tem certeza?

— Esta estação ainda está fria.

Bem, Geese ao menos não parecia ser um cara totalmente mau.


O jeito como era gentil, mas evasivo, me lembrava Paul. Paul…
Gostaria de saber se ele estava bem.

✦✦✦✦✦✦✦

Duas semanas se passaram e a chuva não parava.

Eu aprendi que os Doldia tinham sua própria magia secreta.


Permitia que encontrassem inimigos usando um uivo de longo
alcance e, com suas vozes especiais, podiam fazer os oponentes
perderem o senso de equilíbrio. A maneira como Gyes me paralisou
com sua voz era um desses tipos de magias. Pelo que ouvi, parecia
ser uma do tipo que manipulava o som.
Quando disse a Gustav que “Adoraria que me ensinasse”, ele
concordou do fundo do coração. Infelizmente, não importa quantas
vezes demonstrasse aquilo para mim, eu não conseguia imitá-lo
direito. Parecia que isso dependia das cordas vocais únicas dos
Doldia.

Claro que depende, pensei amargamente comigo mesmo. De


acordo com as probabilidades, eu não poderia usar a maior parte da
magia única que as tribos individuais possuíam. Parecia injusto que
o povo-fera e outras raças pudessem usar magia humana tão
facilmente. Eu sabia que o elemento-chave era canalizar mana para
minha voz, mas não importa como fizesse isso, o resultado era
sempre decepcionante. O melhor que pude fazer foi obrigar meu
oponente a recuar por um momento. Parecia que, no final das
contas, eu não era nenhum Wagan.

Nesse ponto, Gustav ficou bastante chocado com a forma como


eu usava magia não verbal.

— Hoje em dia as escolas de magia ensinam até isso?

— É porque minha mestra me ensinou muito bem — expliquei,


elogiando Roxy sem nenhum motivo aparente.

— Eh? E de onde é a sua mestra?

— Da tribo Migurd, da Região Biegoya do Continente Demônio.


Sua magia… Acho que aprendeu na Academia de Magia, não foi?

Quando eu disse a Gustav que também planejava ir para a


Academia de Magia, ele pareceu impressionado e disse:
— Uau, você já está nesse nível e ainda está motivado a
melhorar? — Aquilo fez eu me sentir bem.

✦✦✦✦✦✦✦

Três semanas se passaram.

Monstros também apareceram pelo vilarejo. Um deles era um


gerridae, que apareceu surfando rapidamente pela água abaixo
apenas para saltar de repente e atacar. Outro era como uma cobra
d’água que subia pelas árvores. A vila era guardada por seu bando
de guerreiros feras, mas seus narizes impressionantes e vozes
semelhantes a sonares eram inúteis na chuva, mas muitas vezes os
monstros escapavam de seu olhar vigilante e infestavam a vila.

Enquanto Eris e eu caminhávamos, uma das crianças do povo-


fera quase foi agarrada por um réptil do tipo camaleão bem diante
de nós. Eu prontamente o derrubei com meu Canhão de Pedra, e a
criança abanou o rabo adoravelmente e me agradeceu.

Eu era estranhamente popular entre as crianças da aldeia, sem


dúvida porque fui o herói que as salvou em seus momentos de
necessidade. De vez em quando, vinham até mim e me lambiam na
bochecha ou me mostravam a coleção de bolotas que tinham
colhido antes da chegada da estação das chuvas. Eu era tipo uma
celebridade.

Eris, em uma verdadeira demonstração da infâmia de sua família,


não pôde conter sua empolgação ao ver uma aglomeração tão
grande de tantas crianças adoráveis com orelhas e caudas. Ela
irritava as crianças respirando de forma irregular enquanto
acariciava suas cabeças e tocava suas caudas.
Não podíamos ficar parados enquanto essas criaturas adoráveis
eram atacadas por monstros. Foi por isso que propus que Ruijerd
ajudasse nas defesas da aldeia, mas ele se opôs à ideia.

— Os guerreiros daqui se orgulham de seu papel na aldeia —


disse ele. Proteger esta aldeia era seu dever. Contanto que não
pedissem a ajuda de um estranho, interferências não eram da nossa
conta. De qualquer forma, essa era a crença do Superd. Eu não
entendia direito.

— Mas a segurança das crianças não é mais importante do que


isso?

Ruijerd fez uma pausa e pensou por alguns segundos antes de


se voltar para Gyes para dar sua opinião.

O homem acolheu bem a ideia.

— Ah, Mestre Ruijerd, você vai nos emprestar sua assistência?


Isso seria de grande ajuda! — O incidente de sequestro diminuiu
drasticamente o número de seus guerreiros. Então Gyes se
ofereceu para compensar Ruijerd por sua ajuda em nome do bando
guerreiro.

Foi assim que todos os monstros da aldeia foram exterminados.


Ruijerd os encontrava e eu usava minha magia para derrotá-los.
Iríamos recuperar seus corpos, despojá-los de qualquer coisa útil e
vendê-los para Gyes. Era um ciclo proveitoso.

Ruijerd estava certo sobre uma coisa: No começo os guerreiros


do vilarejo nos desaprovaram. Mas assim que aniquilamos
impiedosamente qualquer monstro que entrasse na vila e
perceberam que a estação das chuvas iria passar sem nenhuma
vítima, finalmente começaram a sorrir.

— Achei que a tribo deles tivesse mais orgulho do que isso. É


uma vergonha confiar a proteção de sua aldeia a outra raça. — O
Superd era o único incomodado. Parecia que o povo-fera de várias
centenas de anos atrás era bem diferente de suas contrapartes
modernas.

✦✦✦✦✦✦✦

Um mês se passou.

A força da chuva parecia estar diminuindo, mas provavelmente


era apenas minha imaginação. Eris, Minitona e Tersena estavam se
tornando grandes amigas. Elas pareciam gostar de passear juntas,
mesmo com a chuva. Fiquei curioso sobre o que estavam fazendo.

Eris estava ensinando a língua humana a elas. Sim, isso mesmo.


Estava ensinando uma língua para outras pessoas! Não era a hora
nem lugar para eu invadir e tentar ajudá-la; se fizesse isso iria
apenas destruir sua imagem. Bem, no final das contas, eu era um
homem que sabia ler o clima.

Foi a primeira vez que Eris conseguiu fazer amigas de sua idade.
Fiquei orgulhoso ao vê-la se dando tão bem com as meninas. O
cabelo ruivo, as orelhas de gato e as orelhas de cachorro… Ver
todas brincando felizes era mais do que suficiente para mim.

Embora Eris devesse ter cuidado ao envolver os braços em volta


delas sem pensar. Poderiam interpretar mal as suas intenções,
assim como fizeram comigo. Na verdade, o Senhor Gyes ficava
sempre observando. Como ele se sentiria como pai, vendo Eris com
as narinas dilatadas, jogando os braços ao redor de sua filha?

— Ah, Lady Eris, aprecio você se dar tão bem com minha filha.

Mas o quê…? Esta foi uma reação totalmente diferente da que


ele me deu! O homem deveria ter sido capaz de cheirar a emoção
que irradiava de Eris agora, então por que não o fez? Essa era
apenas a diferença entre homens e mulheres, imaginei. Sim, tinha
que ser isso. Claro que seria.

— A propósito, sinto muito pelo assunto envolvendo Ghislaine.


Não nos vemos há muito tempo, então talvez eu tenha entendido
mal. Parece que minha irmã mais nova cresceu um pouco durante
seu tempo mundo afora. — Ele abaixou a cabeça. Parecia que havia
aceitado isso no último mês. Que bom.

— Claro que sim. Ela é o Rei da Espada Ghislaine! E sabe o que


mais? Agora Ghislaine consegue usar até magia — disse Eris se
gabando.

— Hahaha, Ghislaine usando magia? Lady Eris, suas piadas são


muito inteligentes.

— Sério! — Ela insistiu. — Rudeus ensinou ela a ler, fazer


cálculos e usar magia.

— Lorde Rudeus…?

Depois disso, Eris começou a se gabar de Ghislaine e de mim


incessantemente. Ela falou sobre minhas aulas na Região de Fittoa.
Começou falando sobre como ela e Ghislaine haviam aprendido mal
e como ela me respeitava por ficar com as duas e ensiná-las tudo.
Eu me senti envergonhado ao ouvir tudo.

Gyes disse como ficou impressionado repetidas vezes e, quando


finalmente se separaram, ele se aproximou da caixa de madeira em
que eu havia me escondido para espiar.

— Então me diga, o que um professor respeitável está fazendo


em um lugar como este?

— Observar as pessoas é um hobby meu — gaguejei.

— Ah, sim, parece um hobby muito nobre para se ter. A


propósito, como você ensinou Ghislaine a ler?

— Sério, não foi nada de demais. Eu só fiz tudo do jeito normal.

— Do jeito normal…? Não consigo imaginar — disse Gyes.

— Quando ela era aventureira, passou por muitas dificuldades


porque não sabia das coisas. Faz sentido que você não seja capaz
de imaginar.

— Então essa é a história… Quando ela era pequena, minha


irmã nunca ficava feliz, a menos que pudesse bater em alguém
quando acontecesse algo que não gostasse.

A julgar pelo que ele estava dizendo, Ghislaine parecia ter sido
exatamente como Eris quando era mais nova. Especialmente nas
partes em que arrumava briga com as pessoas e que, por ser forte,
poucos podiam impedi-la. Gyes deve ter se queimado várias vezes
com seu fogo. Ele não seria um irmão mais velho muito bom se
fosse muito mais fraco do que sua irmã mais nova.
Falando em irmãos mais velhos, eu também era um. Gostaria de
saber como Norn e Aisha estavam. Sempre quis escrever uma carta
para elas, mas acabava esquecendo. Assim que a chuva parasse,
seguiríamos para a capital do País Sagrado de Millis, onde enviaria
uma carta para Buena Village. Se eu tivesse enviado uma lá do
Continente Demônio, provavelmente não teria chegado, mas com
certeza não teria problemas se enviasse de Millis.

— A propósito, Mestre Rudeus.

— Sim?

— Quanto tempo você pretende ficar dentro dessa caixa de


madeira?

Até que elas fossem se trocar bem na minha frente, é claro.


Afinal, estava quase de noite. No momento iriam brincar na água,
mas teriam que colocar suas roupas de dormir depois.

— Sniff, sniff… Posso sentir o cheiro da sua excitação sexual.

— O quêê?! Sem chances; mas que absurdo. Será que não tem
nenhuma garota do povo-fera se dando prazer e chegando ao
êxtase justo agora?

Enquanto eu tentava bancar o idiota, Gyes levantou uma


sobrancelha.

— Mestre Rudeus. Estou grato pelo que você fez antes. E


também me desculpo, mesmo agora, por ter te entendido mal. — Do
nada seu tom mudou. — Mas se colocar a mão na minha filha, será
uma história completamente diferente. Se não sair dessa caixa
agora, vou jogá-la na água da enchente.
Ele estava sério. Eu não hesitei. Saltei daquela caixa em um
instante, na mesma velocidade de um daqueles Pula Pirata.

— Eu sou um protetor deste vilarejo. Não queria ter que te dizer


isso, mas… controle-se um pouco.

— Sim senhor.

Sim, bem, me empolguei um pouco demais. Isso eu admitiria.

✦✦✦✦✦✦✦

Um mês e meio se passou.

Ruijerd e Gustav se davam tão bem quanto irmãos. O Superd


fazia visitas frequentes à casa dos Dedoldia, e os dois bebiam
juntos e trocavam histórias de seus passados. As histórias eram
banhadas a sangue, mas na verdade eram bem interessantes de se
ouvir. Era quase como ouvir um ex-membro de uma gangue de
motoqueiros exagerando sobre o quão fodão foi em sua juventude.
Mas as coisas que Ruijerd e Gustav falavam pareciam ter realmente
acontecido.

Graças a essas conversas, aprendi um pouco mais sobre o povo-


fera. “Povo-fera” era um termo genérico para as tribos que viviam na
Grande Floresta. Muitas se originaram aqui, mas cruzaram para o
Continente Demônio e passaram a ser chamados de demônios.
Uma característica externa dessas tribos era que uma parte de seu
corpo mantinha uma aparência animalesca. Cada tribo também
tinha um dos cinco sentidos aprimorados. Para ficar mais claro,
Nokopara e Blaze também eram parte do povo-fera.
Os Doldia eram particularmente especiais entre as tribos. Apenas
uma delas mantinha a paz da floresta ao mesmo tempo que protegia
a Fera Sagrada. Eram os Doldia.

Então havia os Dedoldia, parecidos com gatos, e os Adoldia com


uma aparência de cachorro. Essas eram as duas famílias principais
que foram divididas em uma dúzia de ramos familiares. Em outras
palavras, a realeza da Grande Floresta. Embora não estivessem
fazendo muito para merecer o título, eram eles que liderariam todos
quando surgisse a necessidade.

Também havia elfos e hobbits vivendo na Grande Floresta. Eles


estavam concentrados na parte norte da floresta, então não tinham
muito contato com o povo-fera. Porém, todas as tribos se reuniam
uma vez ao ano e participavam de um festival perto da Grande
Árvore Sagrada. De acordo com Gustav, embora suas tribos
tivessem diferenças, todas viviam como amigas na Grande Floresta.

Quanto aos anões, eles viviam não na Grande Floresta, mas


mais ao sul, no sopé das Montanhas Wyrm Azul. Os dragões azuis
voavam pelo mundo e só retornavam à cordilheira para fazer seus
ninhos quando colocavam ovos ou criavam seus filhotes, como aves
migratórias. Ao contrário das aves migratórias, no entanto,
retornavam apenas uma vez a cada dez anos.

Desde tempos imemoriais, homens e pessoas-fera passaram


pela guerra e pela amizade uns com os outros. Uma guerra, que na
verdade estava mais para uma pequena competição, ocorreu há
apenas cinquenta anos. Gustav nos regalou as histórias de seu
envolvimento e como o bando de guerreiros mais fortes do povo-
fera destruiu um grupo de soldados humanos que vagava pela
floresta. Foi muito dramatizado, mas ouvir a maneira como as coisas
aconteciam do ponto de vista do povo-fera era muito novo e
divertido.

Para se opor a isso, Ruijerd sacou seu trunfo, a história sobre o


Clã Superd durante a Guerra de Laplace. Os dois trocaram gracejos
como se estivessem competindo, mas como ambos eram velhos,
isso meio que se transformou em um sermão sobre os bons e
velhos tempos.

— Os guerreiros de hoje em dia são uma verdadeira desgraça.

— Eu entendo muito bem o que você quer dizer, Mestre Ruijerd.


Muitos deles são fracos e decepcionantes.

— Exatamente — disse Ruijerd. — Quando eu era jovem, os


homens eram fortes e durões.

Eram literalmente espíritos gêmeos. Este podia até ser um


mundo diferente do meu primeiro, mas a camaradagem dos velhos
era a mesma.

— Você está extremamente correto. Gyes pode até liderar os


guerreiros, mas seu julgamento é pobre. Ele é bom em liderar as
pessoas, mas se pudesse avaliar melhor as situações, então Mestre
Rudeus não teria passado por tudo aquilo — disse Gustav.

Ruijerd discordou.

— Não, Rudeus é um guerreiro. Ele deveria ter entendido que, se


baixasse a guarda em território inimigo, corria o risco de ser
capturado e mantido em cativeiro. Mesmo assim, ele baixou a
guarda. Se tivesse levado as coisas a sério, teria sido capaz de
derrotar alguém como Gyes. Foi tudo fruto de seu fracasso.

Ai. Por mais verdade que isso fosse, doeu. Ruijerd tinha fé em
mim, e foi por isso que me permitiu voltar sozinho. No entanto, fui
pego bem facilmente. De certa forma, traí sua confiança.

— Mas Mestre Ruijerd, isso não é um pouco cruel? Aconteceu


algo horrível com seu camarada.

— Como um guerreiro, você deve assumir a responsabilidade por


suas próprias batalhas. Além disso, Rudeus poderia ter escapado
sozinho a qualquer momento. Aprecio que ele confie em mim como
seu companheiro, mas não se trata de uma criança. Um guerreiro
não força seus camaradas a uma posição difícil se permitindo ser
pego!

Cara, Ruijerd, você com certeza está exagerando, pensei. Talvez


você possa escapar por conta própria se for pego, mas tente não
esperar muito de mim. Meus poderes não são ilimitados, sabe?

✦✦✦✦✦✦✦

Dois meses se passaram.

Sempre que eu estava em meu quarto, a Fera Sagrada entrava


lentamente. Ela vivia nas profundezas da aldeia ao lado das flores e
das borboletas, mas uma vez por dia durante o tempo de caminhada
vagava livremente por onde quisesse. Sua rota favorita (e atual) era
onde quer que eu estivesse.

— Olhe só, se não é a Fera Sagrada. Que negócio você tem aqui
com um viciado em sexo como eu?
— Ruff!

— Ruff para a vida, hein?

— Ruff!

Não foi uma boa resposta.

Não tinha certeza sobre a Fera Sagrada ser macho ou fêmea,


mas, de qualquer forma, ela se acomodou ao meu lado. No
momento, eu estava segurando o molde de uma estatueta em
minhas mãos. Parecia que demoraria algum tempo até a chuva
parar, então decidi tentar fazer uma.

O modelo era Ruijerd. Talvez esteja se perguntando por que eu o


escolhi, mas pense bem: Os Superd eram como bichos papões sem
rosto.

As pessoas tremiam de medo ao ver um cabelo verde, mas não


havia cor na figura que fiz. Era apenas algo feito de pedra Quem
sabe, se deixasse uma impressão forte o suficiente, as pessoas o
aceitariam melhor.

Primeiro a sua silhueta. O cabelo sera o último detalhe.

— Woof. — A Fera Sagrada pressionou seu corpo contra minha


coxa e descansou sua cabeça em meu joelho. Fiquei intrigado, já
que nunca fui tratado assim por nenhum animal. — Arf? — O animal
olhou para minhas mãos como se perguntasse o que eu estava
fazendo. Apesar de sua juventude, o filhote parecia bastante calmo.

Finalmente decidi acariciar seu pescoço.

— Não tenho mais nada para fazer, então estou criando algo.
— Woof. — A fera lambeu minha mão e abanou o rabo.
Claramente não me odiava. Ainda estava chovendo lá fora, então
provavelmente também não tinha mais nada para fazer.
Provavelmente ansiava por alguma emoção.

— Quer brincar?

— Woof!

Então, nós dois nos agarramos e rolamos. Comecei a desfrutar


de seu pêlo macio e fofo, e a Fera Sagrada fez uma quantidade
moderada de exercícios. Foi uma verdadeira situação de ganho
mútuo.

Toc, toc. Alguém estava batendo na porta enquanto estávamos


brincando.

— Hm? Entre.

— Perdão. — Uma mulher com roupa de guerreira entrou. Era


Laklana. Ela era uma das responsáveis pela Fera Sagrada e viria
buscá-la quando seu tempo de caminhada estivesse perto do fim.

— É um prazer te rever.

— Digo o mesmo, Mestre Rudeus. Além disso, daquela vez… —


Cada vez que ela me via, Laklana se desculpava pela vez em que
jogou água fria em mim. O primeiro pedido de desculpas foi mais do
que suficiente. — Deixando aquilo de lado, você poderia, por favor,
parar de ser tão apegado à Fera Sagrada?

— Do que está falando? Estou apenas me divertindo enquanto


brinco com ela.
O quê, mais uma acusação falsa? Ela realmente não sentia muito
por nada, não é? Se não tomasse cuidado com suas palavras, da
próxima vez ficaria nua em uma cela e eu seria o único jogando
algum líquido.

— Mas eu posso sentir o cheiro de sua excitação.

— Não é pela razão que você está pensando…

A verdadeira razão era porque toda vez que ela vinha e abaixava
a cabeça, meu pervertido interior começava a sussurrar: “Ei, moça,
se você pudesse resolver isso com um simples pedido de
desculpas, não precisaríamos chamar a polícia, certo? Se realmente
quer resolver isso, sabe o que precisa fazer, certo? Vamos dar
umazinha.”

— A Fera Sagrada é extremamente preciosa para os Doldia.


Estou ciente de que você a salvou de danos maiores, mas
desenvolver sentimentos por ela é…

— O ponto é que não estou desenvolvendo nenhum sentimento.

A Fera Sagrada era um tipo de fera mágica que nascia uma vez
a cada poucas centenas de anos. Não tinha nome próprio. Desde
eras longínquas, só aparecia quando o mundo enfrentava uma crise,
e quando se tornava adulta partia ao lado de um herói, usando seu
grande poder para salvar o mundo.

Bem, ao menos era essa a lenda. Era por isso que a Fera
Sagrada recebia uma criação tão cuidadosa, bem no fundo do
Vilarejo Doldia, em uma área restrita onde havia uma grande árvore
que chamavam de Árvore Sagrada. Então é claro que vivia sendo
protegida. Eles tomavam o cuidado de não expor o filhote ao mundo
exterior, do qual o animal pouco sabia. Ainda era um cão, então
liberavam um tempo para caminhar todos os dias.

Pelo visto, levaria mais cem anos até que a Fera Sagrada
atingisse a idade adulta. Se as histórias fossem verdadeiras, o
mundo enfrentaria uma calamidade. Nesse meio tempo, Laklana
supervisionaria a proteção da Fera Sagrada. Quanto à Árvore
Sagrada, estava localizada além do caminho bloqueado que eu
havia visitado antes.

— Será que… Lorde Rudeus é o herói?

— Woof! — O filhote latiu.

A expressão de Laklana se transformou em choque.

— O quê?! O que você está dizendo?

Hm? Do que ela estava falando?

— Arf!

— Eu entendo, mas…

— Woof!

— Entendo…

Por que diabos você está falando com este cão como se
estivesse tendo uma conversa normal? pensei. Eu podia ouvi-lo
latindo. Essa com certeza não era a língua do Deus Fera. Como ela
estava entendendo isso? Estava usando algum tipo de tradução
bilingual?
— A Fera Sagrada disse que você não é o único.

— Imaginei isso. — Embora eu desejasse que ela elaborasse


melhor o que falava.

— Mas pelo visto a Fera Sagrada é muito grata a você.

— Eh? Fiquei naquela cela o tempo todo, então imaginei que


tinha se esquecido de mim.

— Woof!

— Lamentável, ela disse, mas ela nos pediu para alimentá-lo


com alguma comida deliciosa. Mestre Rudeus, você gostou das
refeições que fornecemos, sim?

De fato. A comida era no mínimo muito boa. E também pude


repetir sempre que quis. Realmente achei aquilo estranho, já que se
tratava de uma prisão. Então foi a Fera Sagrada que pediu aquele
tratamento para mim? Usar a comida como forma de gratidão soava
exatamente como algo que um cão faria.

— Mas já que fizeram aquilo, eu teria gostado que tivesse me


soltado de minha cela.

— Woof! — (Ou, aparentemente, “O que é uma cela?”)

— Um lugar onde você prende pessoas más — expliquei.

— Arf! — (“Mas também estou preso.”)

Continuamos um pouco após isso, tendo uma conversa com


Laklana como nossa intérprete. Parecia que a Fera Sagrada não
sabia todos os detalhes sobre o que aconteceu. Isso incluía não ter
consciência do cheiro de excitação que Gyes alegava estar saindo
de mim, ou por que o homem resolveu me levar sob custódia.
Também não parecia saber muito sobre que seu sequestro
implicava, além de que aquilo foi uma experiência aterrorizante. Em
outras palavras, ainda era apenas uma criança. Não era certo exigir
reparações de uma criança, então desisti.

— Consegui passar o tempo de um jeito meio confortável, então


estou grato. — Diante de minha gratidão, abanou o rabo e lambeu
meu rosto.

Heh heh, você com certeza é fofo, pensei enquanto acariciava


seu pescoço, apenas para ser empurrado para o chão. Aah, você
não pode! Não onde as pessoas possam nos ver…!

— Mestre Rudeus, esta é a maneira da Fera Sagrada mostrar


respeito. Você poderia, por favor, tentar conter seu afeto?

— Você está entendendo mal, o cheiro que está sentindo é


minha excitação por sua causa.

— Hã?!

— Foi rude da minha parte; desconsidere isso. — Merda, merda.


Deixei meus verdadeiros sentimentos escaparem.

— Ahem… Fera Sagrada, é hora de voltarmos para a Árvore


Sagrada.

— Woof!

A fera obedientemente se virou para sair, como foi dito, e partiu


sem uma única reclamação.
Isso se tornou algo diário. Mas vamos manter em segredo entre
nós que, alguns dias depois, Laklana ficou incrivelmente chateada
comigo quando tentei ensinar a Fera Sagrada a se sacudir.

Só assim, sem nada terrivelmente agitado acontecendo, três


meses se passaram e a chuva parou.
Capítulo 10:
A Estrada da Espada Sagrada
Um dia antes de deixarmos o Vilarejo Doldia, Eris e Minitona
brigaram. Nem seria necessário mencionar, tenho certeza, mas Eris
ganhou facilmente. Claro que sim. Afinal, conseguiu suportar até
mesmo o treinamento de Ruijerd. Com a outra pessoa sendo mais
jovem e destreinada, dificilmente ofereceria algum desafio. Isso
estava mais para algo como o forte intimidando o fraco.

Achei que deveria ao menos alertá-la sobre isso. Eu sabia que


Eris era esse tipo de pessoa, mas ela logo faria quatorze anos.
Embora tecnicamente ainda fosse uma criança, quatorze anos era
idade suficiente para não poder simplesmente sair socando os
outros sem motivos. Mas como eu iria fazer isso?

Nunca tinha interferido em nenhuma de suas lutas. Normalmente,


deixava Ruijerd lidar com ela e suas brigas na Guilda dos
Aventureiros. Então, o que eu poderia dizer neste momento?
Deveria dizer que aventureiros e garotas dos vilarejos eram coisas
diferentes?

— N-não, a culpa é de Tona — disse Tersena em protesto.

Segundo ela, como a estação das chuvas havia acabado, Eris


disse que ia deixar a aldeia e Minitona tentou impedi-la. Eris ficou
feliz com Minitona querendo que ela ficasse, mas explicou que teria
que continuar sua jornada, apontando para o tanto que o pedido da
garota era egoísta. Normalmente isso aconteceria ao contrário.
Mas, após isso, continuaram conversando por algum tempo. No
início, as duas estavam calmas, mas a discussão logo azedou.
Minitona começou a lançar insultos. Inclusive direcionados a
Ghislaine e eu. Eris parecia irritada, mas suportou tudo e respondeu
com calma.

No final, Minitona deu o primeiro soco. Foi ela quem tentou


arranjar uma briga com Eris. Isso exigia bastante coragem. Dei até
alguns créditos a isso. Definitivamente era algo que nem eu poderia
fazer. Eris não recuou. Como esperado, bateu em Minitona sem
qualquer piedade, até ela virar polpa.

— Eris.

— O quê?!

Parei para reconsiderar a situação. Em primeiro lugar, Minitona


deveria saber que perderia a luta, mas ainda assim se irritou e
começou a lançar insultos. Mesmo depois de ser pulverizada, ainda
não recuou. O melhor dos adultos era facilmente destruído ao
enfrentar Eris. Minitona devia ser muito obstinada.

— Você se conteve, não foi? — perguntei.

— Claro que sim — disse ela, virando-se. No passado, a garota


nunca teria mostrado misericórdia a alguém que a mostrasse os
dentes, nem mesmo se fosse uma criança. Eu sabia muito bem
disso.

— Normalmente você seria mais cruel com essas coisas, não é?

— Sim, bem, ela é minha amiga.


Quando olhei para Eris, a garota parecia envergonhada, seus
lábios até mesmo formaram um beicinho.

Hm. Parecia que estava ao menos um pouco arrependida por ter


socado Minitona. Isso era algo que eu nunca tinha visto antes. Em
três meses, talvez tivesse ficado um pouco mais adulta. Ela estava
amadurecendo sem que eu percebesse. Nesse caso, havia apenas
uma coisa a dizer.

— É melhor vocês se reconciliarem antes de partirmos amanhã.

— Não quero…

Continua uma criança, hein?

✦✦✦✦✦✦✦

Estávamos ocupados nos preparando para nossa partida no


próximo dia, então não me encontrei com a Fera Sagrada. Em vez
disso, recebi duas visitantes no meio da noite.

— Ah! — Um gritinho acompanhou um estrondo alto.

Os dois sons foram suficientes para me acordar. Eu me levantei,


ciente do quanto havia baixado minha guarda ultimamente, e
alcancei o cajado ao meu lado. A aura do intruso era patética
demais para ser um assaltante. E, de qualquer forma, se fosse um,
Ruijerd teria o notado muito antes. Isso tornou o silêncio do intruso
ainda mais bizarro.

— Tersena, tente ficar um pouco mais quieta, mew!

Abaixei meu cajado. Então foi por isso que Ruijerd não disse
nada.
— Desculpe, Tona, mas está escuro.

— Se você apertar os olhos direito, pode conseguir ver, mew…


Ah!

E outro som agudo de algo batendo soou.

— Tona, você está bem?

— Owie, mew…

As duas talvez estivessem tentando sussurrar, mas suas vozes


eram altas o suficiente para que eu pudesse as ouvir claramente.
Qual era o objetivo delas? Dinheiro? Fama? Ou estavam mirando o
meu corpo?

Brincadeirinha. Eu sabia que queriam Eris.

— Ah, aqui, mew?

— Sniff, sniff… Não, isso não parece ser ela.

— Não precisa se preocupar, mew. Provavelmente estão


dormindo, mew.

As meninas pararam na frente da minha porta e ouvi um clique


quando entraram. Cautelosamente, espiaram e olharam ao redor,
apenas para travar os olhos em mim quando me sentei na cama.

— Mew…!

— Algo errado, Tona? Ah…!

Eram Minitona e Tersena. Cada uma delas usava um vestido de


couro liso com uma abertura na parte traseira, onde suas caudas
balançavam para fora. Essas roupas de dormir peculiares do povo-
fera eram realmente adoráveis.

Falei o mais baixo que pude:

— O que vocês estão fazendo aqui tão tarde da noite? O quarto


de Eris fica ao lado.

— D-desculpe, mew… — Tona se desculpou e começou a fechar


a porta antes de parar de repente. — Ah é, eu ainda não te
agradeci, mew.

Hã, T-Tona?

Minitona falou como se tivesse acabado de lembrar de algo e


deslizou para dentro do quarto. Tersena a seguiu timidamente.

— Obrigada por nos salvar, mew. Disseram que eu poderia ter


morrido se você não tivesse lançado sua cura em mim, mew.

Provavelmente era verdade. Suas feridas eram muito graves.


Pelo menos graves o suficiente para que eu ficasse muito
traumatizado se estivesse no lugar dela. Achei sua atitude
destemida impressionante.

— Sem problemas — falei.

— Graças a você, também não tenho nenhuma cicatriz, mew. —


Ela enrolou a bainha do vestido, revelando as pernas nuas. Estava
escuro o suficiente para que eu não pudesse ver o que havia entre
elas. Lady Kishirika, por que você não tinha olhos de demônio que
pudessem ver no escuro?

— Tona, isso é impróprio…!


— Não é como se ele não tivesse visto antes, então está tudo
bem, mew.

— Mas o Tio Gyes disse que os homens humanos têm uma


longa temporada de acasalamento, então, se não os abordar com
cautela, pode ser atacada.

Uma longa temporada de acasalamento? Isso era algo rude a se


dizer. Mas não é como se fosse mentira.

— Além disso, se ele ficar excitado olhando para o meu corpo,


então é uma boa maneira de eu agradecer… mew?! Que frio!

— Isso é porque você continua erguendo sua roupa!

Naquele ponto, eu nem estava focando nas pernas de Minitona.


Um suor frio desceu pelas minhas costas enquanto eu enrolava
meus dedos em torno do cajado que deveria estar deitado ao meu
lado. Uma intenção cruel e assassina exalava do quarto vizinho.

— A-ahem. Vou aceitar sua gratidão. Eris está no quarto ao lado


do meu, então sigam em frente.

Isso mesmo, não importava se ela era uma criança. Não deveria
ter mostrado seu corpo com tanta falta de cuidado assim. Afinal,
causaria sérios problemas se fosse agredida por algum velho
doente tentando brincar de médico.

— Certo. Mas, sério, obrigada, mew.

— Obrigada — disse Tersena. As duas se curvaram e saíram do


quarto.
Depois de alguns momentos, atravessei o cômodo na ponta dos
pés e encostei o ouvido na parede. Eu podia ouvir a voz mal-
humorada de Eris no quarto vizinho quando ela disse:

— O que vocês querem?

A imaginei em sua pose usual, com os braços cruzados sobre o


peito. As vozes de Minitona e Tersena estavam um pouco difíceis de
ouvir. Ou talvez a voz de Eris é que fosse muito alta. Escutei
ansiosamente, mas sua voz foi ficando mais calma. Parecia que as
coisas ficariam bem. Aliviado, voltei para a minha cama.

As três meninas passaram a noite inteira conversando. Quanto


ao que conversaram, eu não fazia ideia. Minitona e Tersena
estavam longe de ser mestras na língua humana. Eris tinha
aprendido um pouco da língua do Deus Fera, mas não o suficiente
para manter uma conversa. Me preocupei sobre realmente terem
resolvido as coisas ou não, mas quando chegou a hora de se
separar no dia seguinte, Eris segurou a mão de Minitona e tinha
lágrimas nos olhos quando se abraçaram. Parecia que, no final,
foram capazes de se reconciliar. Fiquei contente.

✦✦✦✦✦✦✦

A Estrada da Espada Sagrada era uma estrada que passava


direto pela Grande Floresta. Feita há muito tempo pelo País
Sagrado de Millis, estava repleta de mana. Mesmo com a área ao
redor inundada, a estrada permanecia seca e intocada. Pelo visto,
nenhum monstro seria capaz de colocar os pés nela. Nós três
estaríamos usando a carruagem puxada por cavalos que recebemos
da tribo Doldia para viajar por aquela estrada, rumo ao sul.
O povo-fera preparou tudo o que poderíamos precisar em nossa
viagem. A carruagem, o cavalo, o dinheiro para viagens e
suprimentos. Poderíamos ir direto para a capital de Millis sem nem
retornar a Porto Zant.

Era hora de partir! Ou pelo menos deveria ser, quando por algum
motivo um homem com cara de macaco se aproximou de nós.

— Ah, cara, este é o momento perfeito. Estava pensando em


voltar para Millis. Deixa eu ir com vocês — disse Geese, puxando-se
descaradamente para dentro.

— Ah, é você, Geese.

— Você também vai?

Os outros dois não pareciam tão irritados com sua presença


quanto eu. Quando perguntei se o conheciam, a resposta deles
mostrou que estavam gradualmente começando a gostar do sujeito
sem que eu percebesse. Isso incluía se aproximar de Eris, Minitona
e Tersena e contar piadinhas engraçadas. Ele também se juntou a
Gustav e Ruijerd durante suas conversas, onde ajustou sua maneira
para se adequar ao tom da conversa. O homem realmente tinha
uma fala mole e era hábil na manipulação. Conseguiu se enturmar
com os dois facilmente, sem que eu percebesse nada. E ambos o
receberam de braços abertos. O quê, estavam me traindo com
Geese?!

— Então tá bom, vamos indo! — declarou Ruijerd quando a


carruagem começou a andar.
Acenamos um adeus ao povo-fera que se reuniu para ver nossa
partida. Foi um pouco comovente ver Eris com lágrimas nos olhos
enquanto observava Minitona e os outros.

Ainda assim, algo pesava em meu coração e era tudo culpa de


Geese. Se ele queria ir junto, deveria ter me contado desde o
começo. Não havia necessidade para agir de forma suspeita e se
esgueirar pelas minhas costas. Eu não teria o recusado se me
pedisse categoricamente. Depois que comemos a mesma comida e
pegamos as pulgas um do outro, parecia que estávamos nos
distanciando.

— Ei, ei, chefe. Não me olhe assim. Somos amigos, certo?

Geese devia ter notado a expressão de descontentamento que


eu sem dúvidas mostrava quando estávamos sentados na
carruagem, descendo a estrada a uma velocidade impressionante.
Ele sorriu para mim e se inclinou perto do meu ouvido.

— Pode não parecer, mas tenho confiança em minhas


habilidades como cozinheiro, basta você observar!

Ele tinha um rosto encantador e também não era um cara mau.


Mesmo assim, desde o incidente com Gallus, tive a sensação de
que havia algo mais sombrio por trás de tudo isso.

— Rudeus.

— Sim, Senhor Ruijerd?

— Quem se importa se ele vier junto? — disse.


— Mestre Ruijerd! — exclamou Geese. — Eu sabia que você
entenderia! Ahh, isso só confirma o que eu pensava sobre você.
Você realmente é um homem entre os homens!

— Tem certeza disso, Senhor Ruijerd? — perguntei. — Este


homem é um daqueles criminosos que você tanto odeia.

— Ele não me parece tão ruim.

Eu não tinha ideia de qual era o método que Ruijerd adotava


para medir esses casos. A companhia de Geese era até boa, mas
os padrões indefinidos de Ruijerd eram um problema. Não, talvez
tudo isso fosse resultado da conversa mole do sujeito. O macaco
bastardo com certeza tinha feito um bom trabalho.

— Heh heh. Eu gosto de apostar, mas acho que nunca fiz nada
verdadeiramente desprezível para os outros. Mestre Ruijerd, você
tem um bom olho para as pessoas.

Francamente, eu tinha uma dívida com esse homem. Ele me deu


seu colete quando eu estava com frio e também me ajudou durante
a luta com Gallus. Eu não tinha certeza do que ele estava
planejando, mas não tinha motivo para o afastar. Estava um pouco
irritado com seus métodos indiretos, isso é tudo.

— Não me importo se você vier conosco, novato. Mas tem


certeza de que não tem medo de um Superd? — Falei alto o
suficiente para que Ruijerd pudesse ouvir. Eu ainda não tinha
certeza se ele sabia que Ruijerd era um Superd, mas se participou
de suas bebedeiras, podia muito bem ter ouvido sobre isso. Só não
queria que descobrisse mais tarde e reclamasse sobre como era
assustador estar com um Superd.
— É claro. Você achou que eu não teria? Afinal, sou um
demônio. Tenho ouvido sobre como os Superds são assustadores
desde quando era criança.

— Ah, sério? Sabe, Ruijerd pode não parecer, mas é um Superd.

Quando Geese ouviu isso, ele apertou os olhos.

— Isso é diferente. Ele salvou minha vida.

Curioso para saber o que isso significava, virei meu olhar para
Ruijerd, mas ele apenas balançou a cabeça como se não tivesse
ideia do que Geese estava falando. Era, no mínimo, algo que
aconteceu bem antes dos últimos três meses.

— Acho que você não se lembra, hein? Bem, claro, foi há uns
trinta anos.

Geese então iniciou sua explicação. Foi uma história épica que
incluiu um encontro inicial, uma despedida, um clímax e uma cena
de amor. Quando um herói incrivelmente bonito e durão disse que ia
partir em uma jornada, centenas de mulheres imploraram para que
ele não fosse. O sujeito saiu de sua cidade natal, apesar de seus
apegos persistentes a ela e encontrou uma misteriosa beldade
quando chegou ao seu destino.

Para resumir o que de outra forma seria uma longa história,


quando Geese ainda era um aventureiro novato, Ruijerd interveio
para salvá-lo quando foi atacado e quase morto por um monstro.

— Bem, foi há uns trinta anos. Eu particularmente não sinto que


exista qualquer dívida — disse Geese. A tribo Superd era
assustadora, mas Ruijerd era diferente, disse o novato com cara de
macaco, rindo.

O Superd relaxou ao ouvir isso. Senti que, logo após ouvir essa
história, entendi o significado da palavra karma. Bom para você,
Ruijerd, pensei.

— Bem, espero que me deixe ficar com você por um tempo,


Senpai ☆

E foi assim que o Fim da Linha ganhou um novo membro com


uma cara de macaco… Espera aí, ele não era um novo membro. Só
ficaria conosco até chegarmos à próxima cidade, lembrei. Geese
alegou que era azarado – sempre que entrava em um grupo de
quatro, algo terrível acontecia. Eu não tinha palavras para
mencionar o azar que ficar na mesma cela que ele foi. Em qualquer
caso, estava tudo bem se não fosse se juntar ao nosso grupo.

Foi assim que partimos em nossa jornada com um viajante extra


nos acompanhando.

✦✦✦✦✦✦✦

A carruagem nos carregou por um caminho contínuo que cortava


a Grande Floresta. Era realmente uma estrada reta, que se estendia
sem parar pelo horizonte, continuando até a capital do País
Sagrado. Não havia um único monstro, e a água foi drenada para
fora do caminho.

Eu estava desconfiado sobre como esse caminho foi feito, mas


Geese me explicou. Esta rodovia foi criada por Santo Millis, o
fundador da fé Millis, a maior denominação religiosa do mundo. Com
um único golpe de sua espada, Santo Millis cortou as montanhas e
as florestas ao meio, dividindo até um rei demônio no Continente
Demônio em dois. A estrada foi batizada de Estrada da Espada
Sagrada tendo essa história em mente.

Por mais que eu quisesse descartar a história com ceticismo, a


mana de Santo Millis ainda permanecia. O fato de não termos
encontrado nenhum monstro até o momento era prova disso. A
carruagem também não ficou presa na lama. Estávamos viajando
tranquilamente. Isso não era nada menos do que um milagre.

Agora eu podia entender o motivo pelo qual sua religião tinha


tanto poder. Ao mesmo tempo, temia o possível impacto negativo
que muita mana poderia causar ao corpo. Mana era uma coisa útil,
mas em abundância poderia ser aterrorizante. Ela também poderia
fazer coisas terríveis, como transformar animais em monstros e
transportar crianças do Continente Central para o Continente
Demônio. Embora, neste caso, não ser atacado por monstros
tornava nossa jornada mais fácil.

Havia intervalos fixos ao longo da rodovia onde seria possível


acampar. Foram neles que passamos nossas noites. Ruijerd iria
caçar algo na floresta para o jantar, então não sofríamos com falta
de comida. Às vezes, pessoas-fera de algum assentamento próximo
apareciam para vender seus produtos, mas não tínhamos
necessidade de suprimentos adicionais.

Havia também uma grande abundância de plantas, como era de


se esperar de uma floresta. As flores que poderiam ser usadas
como especiarias cresciam em grande quantidade à beira da
estrada. Usei o que aprendi na Enciclopédia de Plantas que li
quando era criança e juntei alguns ingredientes para temperar nossa
comida. Eu não era um cozinheiro muito habilidoso, mas havia
melhorado um pouco no ano passado, embora só tivesse ido de
terrível para menos terrível.

A Grande Floresta fornecia ingredientes de qualidade muito mais


alta do que o Continente Demônio. Não apenas em termos de feras,
mas também de animais normais. Os coelhos e javalis tinham um
sabor delicioso quando assados, mesmo sem temperos, mas não
era o suficiente para mim. Já que tínhamos os ingredientes
disponíveis, queria comer pratos mais saborosos. Fiquei ganancioso
como sempre em minha busca por boa comida.

Foi aí que Geese entrou. Exatamente como havia declarado, ele


era um mestre em cozinhar ao ar livre. A maneira como pegava as
nozes e a grama selvagem que eu colhia e as transformava em
temperos era como feitiçaria, injetando os sabores mais deliciosos
em nossa comida.

— Eu te falei. Posso fazer qualquer coisa!

Essa também não era uma declaração vazia. A carne estava


realmente deliciosa.

— Surpreendente; me segure! — Joguei meus braços em volta


dele sem nem pensar muito. Geese ficou enojado com isso. Até eu
fiquei enojado com isso. Nossos sentimentos eram mútuos.

✦✦✦✦✦✦✦

— Estou entediada — murmurou Eris enquanto preparávamos


nossa refeição diária, como de costume.
Coletor de Ingredientes: Ruijerd

Produtor de Fogo e Água: Eu

Cozinheiro: Geese

Nossa atribuição de trabalho era tão precisa que não havia nada
para Eris fazer, exceto coletar lenha, mas ela terminava tudo rápido
demais. Assim sendo, acabava entediada.

No início, treinava com sua espada e ficava em silêncio. Depois


de ser forçada por mim e Ghislaine a praticar exercícios repetitivos,
poderia continuar brandindo sua espada por horas. Entretanto, não
era como se ela achasse isso divertido.

No momento, Ruijerd estava caçando, Geese estava preparando


sopa e eu me acomodei para continuar trabalhando em minha
estatueta. A figure de Ruijerd em escala 1:10 estava demorando um
pouco para ser concluída, mas eu tinha certeza de que poderia
vendê-la. Adicionaria opções a ela para inclusive aumentar seu
valor. Usando isso, mostraria às pessoas que os Superds não
deveriam ser atacados e, em vez disso, poderiam se tornar amigos.

Deixando isso de lado, Eris estava achando seu tédio


incontrolável.

— Ei, Geese!

— Algo de errado, Senhorita? A comida ainda não está pronta. —


Ele provou um pouco da sopa antes de olhar para ela.

Eris estava em sua pose usual, com os braços cruzados e as


pernas abertas.
— Ensine-me a cozinhar!

— Passo. — Sua resposta foi instantânea. Geese voltou a


cozinhar como se a conversa nunca tivesse acontecido.

Eris ficou pasma por um momento, mas se recuperou


rapidamente e gritou:

— Por que não?!


— Porque eu não quero.

— Então por que não?!

Geese soltou um enorme suspiro.

— Certo, Senhorita. Tudo o que uma espadachim precisa saber


fazer é lutar. Cozinhar é perda de tempo. Tudo o que você precisa
fazer é comer.

Este era um homem cujas habilidades culinárias iam além de sua


mentalidade de “apenas comer”. Ele poderia abrir seu próprio
restaurante. O sujeito não era tão bom a ponto de fazer o queixo de
um certo rei gourmet cair e ter um feixe de luz saindo de sua boca,
mas era pelo menos bom o suficiente para que seu restaurante
fosse moderadamente popular por toda a vizinhança.

— Mas, se eu pudesse cozinhar… hum… bem, você sabe, certo?


— Ela hesitou em explicar, jogando olhares em minha direção.

O que é isso, Eris? O que você quer dizer? Heh heh, vá em


frente e diga, a incitei comigo mesmo.

— Não, nem imagino. — Geese estava sendo frio com ela. Eu


não tinha certeza do porquê, mas ele estava sendo
excepcionalmente inflexível. O cara não era assim em relação a
Ruijerd ou a mim, mas sempre soava distante quando interagia com
Eris. — Você é habilidosa com a espada, não é? Então não precisa
aprender a cozinhar.

— Mas…
— Poder lutar é uma coisa maravilhosa, sabe? Se você quer
viver neste mundo, não há nada mais essencial do que isso. Não
desperdice seu talento.

O rosto de Eris ficou sombrio, mas ela não tentou socar Geese.
Havia algo estranhamente persuasivo no que ele disse.

— Esse é o meu motivo oficial. — O homem-macaco assentiu


consigo mesmo e parou de mexer na panela. Ele então começou a
encher as tigelas de pedra que eu fiz. — Veja, decidi que nunca
mais ensinaria alguém a cozinhar.

Geese já havia participado de um grupo de ataque a masmorras.


Era um grupo de seis, um bando não qualificado que, ao contrário
dele, tinha apenas um papel a cumprir. Na época, Geese tinha o
hábito de reclamar: “Ei, sério, vocês não sabem fazer mais nada?” O
grupo deles não era convencional, mas era eficaz ao fazer as
coisas.

Porém, um dia, uma mulher do grupo se aproximou de Geese e


disse que queria aprender a cozinhar. Ela queria ir atrás de um dos
homens do grupo. É claro que o ditado “O caminho para o coração
de um homem é pela boca” também existia neste mundo. Geese
respondeu com “Claro, acho, por que não?” e começou a ensiná-la.

Não ficou claro se a culinária teve alguma coisa a ver com o que
aconteceu depois, mas a mulher ficou com o homem e os dois se
casaram algum tempo depois. Então deixaram o grupo e foram para
algum lugar. Tudo bem, disse Geese. Houve uma briga quando os
dois foram embora, mas a partida não foi um problema.
O que aconteceu depois é que foi horrível. Quando as duas
pessoas mais importantes foram embora, o grupo começou a
debandar. Tornou-se um turbilhão de disputas e apatia, tanto que
não podiam mais realizar missões e logo se dispersaram por
completo.

Geese, entretanto, era um homem que podia fazer qualquer


coisa. Ele não tinha talento para a espada ou magia, mas podia
fazer todas as outras coisas. É por isso que pensou que logo
encontraria um novo grupo. Mas seu esforço acabou resultando em
um fracasso esmagador. Na época, ele era um aventureiro bastante
conhecido, mas nenhum grupo o pegou.

Geese podia fazer qualquer coisa. Qualquer coisa que qualquer


outro aventureiro poderia fazer. Em outras palavras, esse era o
problema. Outras pessoas também podiam fazer aquilo que ele
fazia. Se um grupo fosse bem classificado, dividiriam essas tarefas
servis entre seus próprios membros.

Foi então que ele percebeu que o grupo em que estava antes era
o único lugar ao qual pertencia. Percebeu que só era quem era
porque todos eram muito inabilidosos. Depois disso, Geese se
aposentou prematuramente de sua carreira de aventureiro. Agora
vivia das apostas.

— E é por isso que me recuso a ensinar as mulheres a cozinhar.

Mais uma má sorte para adicionar ao seu nome. Embora, se me


perguntassem, as “más sortes” de Geese não passavam de um
monte de lixo. Eu não via qualquer problema em ensiná-la a
cozinhar. A sopa estava deliciosa. Era só provar e parecia que um
jazz começava a tocar em sua boca. Ficou tão boa que eu quis que
ele também me ensinasse a fazer, então corri para ajudar.

— Entendo que algo terrível te aconteceu, novato, mas você


ajudou aquela mulher a conquistar a felicidade dela, não foi? —
perguntei, com a nuance adicional de “Então, por que não vai em
frente e ensina Eris?”

Geese balançou a cabeça.

— Não sei. Nunca mais a vi. — Ele soltou uma risada auto-
depreciativa. — Mas o homem não ficou feliz.

Então talvez fosse essa a razão da má sorte. Não pude dizer


nada depois disso, não depois de ver o olhar deprimido no rosto
dele. A sopa, que deveria estar deliciosa, de repente não estava
mais tão gostosa.

Me perguntei quanto tempo demoraria até que Ruijerd voltasse.

✦✦✦✦✦✦✦

Um dia encontrei um curioso monumento de pedra na beira da


estrada, justo onde paramos para descansar. Ele chegava aos meus
joelhos e tinha um desenho estranho em uma parte. Um único
caractere estava inscrito ali, com sete padrões ao seu redor. Eu
tinha certeza de que o caractere era a palavra “sete” na língua do
Deus Lutador. Quanto aos outros padrões, parecia que já os tinha
visto antes.

Decidi perguntar a Geese.

— Ei, novato, o que é este monumento aqui?


Ele analisou e balançou a cabeça assim que reconheceu.

— Esses são os Sete Grandes Poderes.

— Os Sete Grandes Poderes? — repeti.

— Refere-se às pessoas mais fortes deste mundo… sete


guerreiros.

A história conta que, quando a segunda Grande Guerra


Demônio-Humano terminou, uma pessoa conhecida como o Deus
da Técnica surgiu com esse nome. Na época, o Deus da Técnica
era considerado uma das pessoas mais fortes do mundo.
Selecionaram sete pessoas (incluindo eles mesmos) e as
declararam as mais fortes do mundo. Este monumento era uma
forma de imortalizar quem eram essas pessoas.

— Acredito que Mestre Ruijerd sabe mais sobre isso. Mestre


Ruijerd! —Geese gritou e o Superd, que estava treinando nas
proximidades com Eris, se aproximou. A garota caiu de costas no
chão com as pernas e os braços bem abertos, tentando controlar a
respiração.

— “Os Sete Grandes Poderes”, hein? Isso traz várias memórias


de volta. — Seus olhos se estreitaram enquanto examinava o
monumento.

— Então você sabe sobre isso? — perguntei.

— Treinei muito quando era jovem, então um dia um dos “Sete


Grandes Poderes” me quis como estudante. — Ruijerd olhou para
longe enquanto falava. Muito, muito longe… Espere, afinal de
contas, para quão longe no passado ele estava olhando?
— O que é esse padrão?

— São os padrões de cada um. Eles apontam seus sete nomes.


— Ruijerd apontou para cada um e me disse seus nomes.

Os sete eram (em ordem de hierarquia):

Número Um – Deus da Técnica;

Número Dois – Deus Dragão;

Número Três – Deus Lutador;

Número Quatro – Deus Demônio;

Número Cinco – Deus da Morte;

Número Seis – Deus da Espada;

Número Sete – Deus do Norte.

— Hmm. Mas eu nunca tinha ouvido falar sobre os Sete Grandes


Poderes. — falei.

— O título era bem conhecido até a Guerra de Laplace.

— Por que caiu em desuso?

Ruijerd explicou:

— A Guerra de Laplace trouxe grandes mudanças. Metade dos


listados sumiu.

Aparentemente, com exceção do Deus da Técnica, os Sete


Grandes Poderes haviam todos participado da Guerra de Laplace.
Entre eles, três morreram, um desapareceu e outro foi selado. O
único que conseguiu sair ileso foi o Deus Dragão. Depois de várias
centenas de anos, com a troca da base dos mais fortes, isso acabou
caindo em desuso. Atualmente, o paradeiro dos quatro primeiros era
desconhecido.

DEUS DA TÉCNICA: Desaparecido

DEUS DRAGÃO: Desaparecido

DEUS LUTADOR: Desaparecido

DEUS DEMÔNIO: Selado

Não era um bom sistema de classificação, já que os mais fortes


estavam ausentes. Foi por isso que o título “Sete Grandes Poderes”
caiu em desuso e sumiu da memória das pessoas… ou ao menos
era o que parecia.

A propósito, o motivo pelo qual o Deus Demônio não foi removido


dessa classificação foi porque não estava morto; apenas selado.

— Será que quantas pessoas daquele tempo continuam vivas?

— Quem sabe — disse Ruijerd. — Mesmo quatrocentos anos


atrás, as pessoas duvidavam que o Deus da Técnica realmente
existisse.

— Para começo de conversa, por que o deus da Técnica criou


essa lista? — perguntei.

— Difícil de dizer. Foi dito que criou isso para que pudessem
encontrar pessoas capazes de derrotá-los, mas eu não sei.

Era quase como o Ranking Fukamichi.


— Bem, é um monumento bem antigo, então talvez as
classificações tenham mudado — murmurei.

Geese balançou a cabeça.

— Ouvi dizer que o monumento muda por si mesmo usando


magia.

— Hã? Isso é sério? Que tipo de magia?

— Como se eu soubesse.

Então, aparentemente, o monumento atualizava a exibição de


classificação por conta própria. Gostaria de saber como isso
acontecia. Ainda havia tantos tipos de magia neste mundo com os
quais eu não estava familiarizado. Eu me perguntei se aprenderia
mais sobre esses tipos de magia quando fosse para a universidade.

Deixando isso de lado, os Sete Grandes Poderes, hein? E pensei


que o mundo já tinha suficiente gente ridiculamente forte. Parecia
que eu realmente não poderia chegar aos melhores deles. Mas,
claro, não era como se pretendesse ser um dos mais fortes do
mundo. Na verdade, decidi que seria melhor não me preocupar com
isso.

Levamos um mês para sair da Grande Floresta. Mas era aquilo…


foi só um mês e saímos. Era uma estrada completamente reta sem
um único monstro. É por isso que conseguimos dedicar nosso
tempo inteiramente à viagem.

Bem, essa era ao menos uma das razões. A outra era porque
nossos cavalos eram extremamente eficientes. Os cavalos deste
mundo tinham uma resistência insana. Eles podiam correr por dez
horas diretas, sem qualquer descanso, e então voltar a fazer isso no
dia seguinte. Talvez usassem algum tipo de magia, mas, de
qualquer forma, saímos da floresta sem problemas.

Quanto aos acidentes, o único que tivemos durante a viagem foi


com minhas hemorróidas. É claro que não contei a ninguém e as
curei em segredo usando magia de cura.

Eris passou o tempo todo em pé no topo da carruagem, alegando


que fazia parte de seu treinamento. Eu disse para parar porque era
perigoso, mas ela apenas bufou e resmungou que não era, que era
para treino de equilíbrio. Tentei fazer o mesmo, mas no dia seguinte
minhas pernas e quadris tremeram de tanta agonia. Isso fez um
novo respeito pela garota surgir.

Logo após as Montanhas Wyrm Azul, havia uma estação de


descanso situada em uma pequena cidade na entrada de um vale.
Era comandada por anões. Não havia Guilda dos Aventureiros. Era
famosa por ser uma cidade de ferreiros, com armeiros e
armadureiros alinhados lado a lado.

Geese me disse que as espadas vendidas no local eram baratas


e de boa qualidade. Eris parecia melancólica, mas não tínhamos
dinheiro sobrando para gastar com nada. Além disso, sem dúvida
precisaríamos de um bom dinheiro para levar um Superd de Millis
para o Continente Central. Convenci a garota a não comprar nada,
alegando que não poderíamos pagar por gastos desnecessários.
Bem, de qualquer forma, a espada que ela estava usando não era
ruim.
Ainda assim, eu era um homem. Não importava quantos anos eu
tivesse por dentro, ver espadas e armaduras robustas alinhadas
assim ainda fazia meu coração disparar, embora minha idade (e
aparência) parecesse importar para um vendedor que riu de mim,
dizendo: “Eu não acho que isso serviria para você, criança.” Ele
ficou surpreso quando, depois, descobriu que na verdade eu era de
nível intermediário no Estilo Deus da Espada. Bem, de qualquer
forma, não tínhamos dinheiro, então eu só estava bisbilhotando.

De acordo com Geese, era neste ponto que a estrada divergia.


Se seguisse pelo caminho da montanha para o leste, encontraria
uma grande cidade de anões. A nordeste estavam os elfos e a
noroeste a vasta terra que os hobbits habitavam. Talvez a falta de
uma Guilda dos Aventureiros nesta cidade fosse por uma questão
de localização.

Além disso, pelo visto, se entrasse nas montanhas, haveria uma


fonte termal. Uma fonte termal! Isso sim chamou a minha atenção.

— O que diabos é uma “fonte termal”? — Eris exigiu saber.

— É quando tem água quente brotando da montanha —


expliquei. — É muito bom para tomar um banho.

— Ah, é? Isso parece interessante. Mas, Rudeus, essa não é a


sua primeira vez vindo aqui? Como sabe disso?

— E-eu li em um livro.

Isso estava escrito no guia Peregrinando pelo Mundo? De


alguma forma, senti que não. Ainda assim, era uma fonte termal.
Isso parecia bom. Mas este mundo certamente não teria yukatas.
Ainda assim, imaginando Eris com seu cabelo molhado e sua pele
cor de pêssego, inconsciente do que estaria acontecendo enquanto
submergia na água quente…

Não, provavelmente não teriam algo como um banho misto. Ou


teriam? Mas, no caso de ter, o quanto isso não seria incrível? Agora
realmente queria dar uma olhada.

Enquanto estava ocupado debatendo o assunto em minha


cabeça, Geese fez sua já esperada oposição.

— A estação das chuvas acabou de terminar, então as


montanhas estarão uma bagunça. — Levaríamos muito tempo para
chegar lá, já que não estávamos acostumados a atravessar as
montanhas.

E então, desisti de ir para a fonte termal. Que chatice.

✦✦✦✦✦✦✦

A Estrada da Espada Sagrada se estendia pelas Montanhas


Wyrm Azul. Seu caminho dividia a cordilheira em duas, criando um
espaço largo o suficiente para duas carruagens puxadas por cavalos
passarem uma ao lado da outra. Era uma ravina, mas graças à
proteção divina de Santo Millis, raramente acontecia algum
deslizamento de pedras. Se esse caminho não existisse, teríamos
que seguir um mais tortuoso, viajando para o norte.

Embora dragões azuis fossem raros de se ver pelas montanhas,


ainda havia muitos monstros. Tentar passar por elas representaria
um perigo considerável. Em vez disso, Millis criou um atalho direto
por onde os monstros não apareceriam. Eu podia ver porque esse
santo era tão adorado.

Atravessamos o vale em três dias, completando nossa longa e


árdua jornada para fora da Grande Floresta. Saímos de lá direto
para o País Sagrado de Millis. Finalmente havíamos retornado ao
domínio dos homens, fato que fez meu coração pular enquanto
continuava minha jornada.
Capítulo Extra:
Guardião Fitz
Quando percebeu o que estava acontecendo, ele estava no meio
do ar.

— Hein?!

O vento imediatamente engoliu seu grito de descrença.

Ele estava bem lá no alto. Podia sentir que estava caindo


rapidamente. A força do vento tornava o ato de respirar mais difícil.
Ele estava perfurando as nuvens enquanto o vento o perfurava.

— Eek!

Mas podia ouvir o grito saindo do fundo de sua garganta. Era o


seu grito, mas parecia tão distante que parecia que era outra pessoa
que estava gritando. O grito o lembrou de que isso era a realidade.
Não sabia porque, mas estava no ar e caindo.

— Ah… ah!

Precisava fazer alguma coisa. Tinha que fazer algo ou iria morrer.
Sim, morrer. Não havia dúvida de que morreria. Se alguém caísse
de algum lugar tão alto, então morreria. Ele já sabia disso. Também
sabia que estava se aproximando do solo rapidamente.

— Waaaaaah!

Então sucumbiu ao medo e liberou toda a sua mana. E vento. Ele


começou a liberar vento. Parecia que isso estava atingindo-o por
baixo. Quem foi que lhe ensinou que um pássaro surfa pelo vento
para voar no céu? Não conseguia se lembrar.
A velocidade de sua queda diminuiu por um momento, depois
voltou rapidamente ao ritmo anterior. A magia do vento não iria
cortá-lo. Pássaros podem até usar o vento para voar no céu, mas
não importa quanto vento se coloque sob os humanos, eles não
poderiam voar. Alguém o ensinou isso. Quem? Também não
conseguia se lembrar disso.

O que deveria fazer em uma situação como essa? Seu professor


havia lhe contado algo. Seu professor lhe ensinou muitas coisas. O
que foi que ele disse mesmo?

Pense, pense, murmurou para si mesmo.

Seu professor disse algo sobre… como voar? Isso mesmo, sobre
como era impossível. Não era possível voar – humanos não podem
voar. Seria necessário usar algo para fazer isso. Seu professor já
havia tentado voar antes. Tentou, falhou e colocou algo macio no
chão, algo macio onde pudesse cair.

Era isso! Algo para suavizar a queda. Algo macio. Algo macio
para o segurar. Mas quão macio deveria ser? Como deveria fazer
isso?

Não sei, não sei, não sei! gritou em sua cabeça. O que eu faço, o
que eu faço, o que eu faço?!

Ele conjurou água e tentou envolvê-la em torno de si. Não


funcionou. Ela logo se espalhou. Conjurou o vento e tentou se
fortalecer novamente. Isso falhou. Não iria funcionar. Conjurou a
terra… mas não tinha certeza de como usá-la! Conjurou fogo e…
vento… e água? Terra? Não sabia. Simplesmente não sabia de mais
nada!
— Aaah!

Caiu de cabeça.

✦✦✦✦✦✦✦

— Waaaah! — Um menino de cabelo prateado gritou enquanto


puxava seu corpo para cima e para fora da cama.

Ele tinha cerca de dez anos de idade e suas feições juvenis


estavam contorcidas de medo.

— Hah, hah, hah… — Respirou fundo e começou a dar tapinhas


em seu corpo. Suas mãos agarraram punhados de cabelo prateado,
com força suficiente para arrancá-los. Ele estava verificando se seu
corpo ainda estava inteiro. — Ah…? Hein? — Quando olhou em
volta, percebeu que não estava mais no céu. Estava em uma cama
macia. — Hah… — O menino cobriu o rosto com as mãos e soltou
um suspiro de alívio.

— Ei, Fitz, tudo bem? — Uma voz o chamou de cima. Outro


garoto estava pendurado de cabeça para baixo, olhando para Fitz
da cama acima. Esse outro jovem estava no auge da idade adulta.
Era bonito o suficiente para cativar qualquer pessoa que olhasse
para ele, ou assim afirmava. Seu nome era Luke. — Você estava
fazendo muito barulho enquanto dormia. Teve aquele sonho de
novo?

— Ah, sim… — O menino, conhecido como Fitz, balançou a


cabeça vagamente em resposta. De repente, percebeu que a área
de sua virilha parecia estranha. Curioso, olhou para baixo para
descobrir que estava molhado.
Quando investigou mais, descobriu que encharcou não apenas a
parte inferior de sua roupa de dormir, mas também seus lençóis.
Conseguia ver até o vapor subindo.

— Ah…! — Aturdido, Fitz tentou puxar as cobertas para esconder


a bagunça de Luke, mas já era tarde demais. Com o cenho franzido,
o jovem viu o que ele fez. — Wah… waah… —Seu estado estava
lamentável, com lágrimas nos olhos, enquanto olhava para Luke. —
E-eu sinto… muito…

— Não me peça desculpas. — Luke desceu da cama e soltou um


suspiro enquanto coçava a cabeça. — Ninguém vai te culpar.

— M-mas, eu já sou velho o suficiente… e ainda estou… ainda,


bem, me molhando assim…

— Você não é o único que teve uma experiência terrível naquele


dia. — Luke encolheu os ombros ao dizer isso, mas tinha uma
expressão séria no rosto. Seu tom era totalmente sincero. — Além
disso, há muitos caras aqui que sujam os lençóis à noite. As
empregadas estão acostumadas. Agora se apresse, troque de roupa
e entregue as camisas ao encarregado da lavagem. Lady Ariel está
esperando por nós. — Assim que Luke terminou de falar, saiu do
quarto.

Fitz enxugou as lágrimas e rastejou para fora da cama, pegando


os óculos escuros da mesa próxima e os colocando no rosto.

✦✦✦✦✦✦✦

Ele foi vítima do incidente que dizimou a Região de Fittoa. Foi


transportado para o ar, cem metros acima do solo. Como qualquer
outra pessoa, Fitz não era exceção à lei da gravidade, então caiu.

A única coisa incomum nele era que era um mago. E não apenas
um mago qualquer. Ele podia ter apenas dez anos, mas teve um
professor excepcional e estava pelo menos no nível intermediário
em todas as escolas de magia, avançado em várias e podia lançar
feitiços não verbais.

Ele lutou enquanto estava no ar. Antes de chegar ao solo,


conseguiu diminuir a velocidade de sua queda e milagrosamente só
quebrou as duas pernas ao pousar no chão (colidir, na verdade).
Sua mana foi completamente drenada e acabou inconsciente.

Fitz acordou e descobriu que havia perdido tudo. Sua cidade


natal, sua casa, sua família. Ele ainda era tão jovem e em um
instante se tornou um ninguém. Não tinha para onde ir e ninguém
em quem confiar, exceto a mulher cujo olhar ele capturou, Ariel
Anemoi Asura. Ela viu a maneira como Fitz usava magia livremente
sem quaisquer encantamentos, então o empregou. Depois disso,
começou sua vida no palácio real como guardião da segunda
princesa.

— Mmmmhh… Ah, Luke e Fitz, bom dia.

Seu trabalho como guardião começava despertando Ariel. Ele a


acordava em um horário específico todas as manhãs. Normalmente,
esse seria o trabalho de uma dama de companhia, mas a princesa
havia enfrentado tantas tentativas de assassinato desde que era
criança que a responsabilidade agora cabia a um de seus
guardiões, Luke ou Fitz. Ele só foi incumbido do dever quando ela
soube que se tratava de um residente de fora do palácio e não
estava envolvido com nenhum dos nobres que considerava
inimigos.

— Bom dia, Lady Ariel.

Acordar mais tarde do que a princesa seria o suficiente para


justificar uma punição severa. Ou pelo menos deveria, mas Fitz
tinha acordado depois de Ariel várias vezes e nunca foi disciplinado.

— É uma bela manhã, não é? Luke, quais são os planos para


hoje? — Ariel esticou o corpo e saiu da cama, sentando-se à sua
mesinha de maquiagem. Fitz ficou atrás dela para lavar seu rosto e
pentear seu cabelo.

— Depois do café da manhã, você tem uma reunião com os


Lordes Datian e Klein para conversar sobre… — Enquanto Luke
traçava seu itinerário com calma, Fitz desamarrou o cabelo dela de
maneira rápida e cuidadosa. — À tarde, terá uma reunião com Lorde
Pilemon, e então o jantar será…

— “Lorde Pilemon”? Como se você não o conhecesse. Luke,


esse é o seu pai, não é?

— Disseram-me para manter os negócios e os assuntos privados


separados.

Assim que Fitz terminou de arrumar seu cabelo, Ariel se levantou


de sua cadeira e ergueu os braços até a altura dos ombros. Fitz
imediatamente começou a despi-la. Normalmente, trocar as roupas
da princesa seria um trabalho para uma de suas damas de
companhia, mas esse era outro costume que ela praticava desde
que era criança.
Fitz ficou confuso ao tirar as belas sedas que envolviam a
vibrante pele branca de Ariel, trocando-as por roupas que uma
dama de companhia preparara com antecedência. A roupa era
complexa, com uma estrutura bizarra que ele nem sabia como
vestir. Mesmo assim, conseguiu colocá-la rapidamente em seu
corpo.

Ele não sabia nem como vestir alguém e mesmo assim foi
designado a esse trabalho. Mas acabou ficando bastante hábil
nisso. Mesmo um caipira como Fitz poderia aprender isso depois de
ser forçado a fazer a mesma coisa várias vezes.

— Fitz… você esqueceu um dos botões.

— Hã? Ah, sim, sinto muito. — Mas às vezes ele se distraía, e a


princesa apontava seu erro. Fitz correu para tentar ajustar tudo, mas
não sabia ao certo qual botão havia esquecido. Com roupas como
essa, se confundisse uma única etapa do processo, seria impossível
descobrir por onde começar a arrumar.

— Qual é o problema? — perguntou a princesa. — Se você não


se apressar e me vestir, posso pegar um resfriado.

— S-sim, você está certa, por favor, espere um momento!

— Ou você quer ver meu corpo? — Ariel brincou.

— N-não!

Seu rosto ficou vermelho de pânico quando ele negou essa


acusação. Ariel soltou uma risadinha. Ela gostava de como o garoto
era inocente, tanto que frequentemente o provocava desse jeito.
— Acho que você está linda. — Luke era sempre aquele que
pulava ao socorro durante essas interações. Ele sorriu e apontou
para a casa do botão que Fitz estava procurando

— Ah, Luke, isso significa que está se apaixonando por sua


mestra? — murmurou Ariel. — Nesse caso, isso é equivalente a
blasfêmia. Você não será capaz de escapar da punição por isso.

— Que aterrorizante. De que tipo de punição estamos falando?

— O tipo em que confisco todos os seus lanches de hoje — disse


ela.

— Ah cara… Bem, isso é bastante grave. Mas se é isso que


minha mestra deseja, então que seja.

Enquanto os dois continuavam sua interação, Fitz finalmente


terminou de arrumar as roupas. Ariel deu uma volta para confirmar
que não havia imperfeições em sua vestimenta, então balançou a
cabeça com satisfação.

— Bom trabalho. Agora então, vamos comer nossa refeição.

— Sim, senhora!

Luke seguiu Ariel quando ela saiu. Fitz moveu-se para o seguir,
mas parou abruptamente para ver seu reflexo no espelho da
mesinha de maquiagem. Ele mostrava um jovem com uma
aparência sombria e óculos escuros sobre os olhos. O jovem
permaneceu lá e torceu uma mecha do cabelo branco cortado curto
em torno de um de seus dedos. Durou apenas um momento. Então
se virou e foi atrás de Ariel.
✦✦✦✦✦✦✦

Os nobres foram bastante críticos sobre o jovem guardião Fitz


depois de sua aparição abrupta no palácio real.

— Mas há tantos entre a Guilda dos Magos que nasceram em


famílias mais nobres…

Sua família e origem eram completos mistérios. As únicas coisas


que as pessoas sabiam eram sua raça e a cor de seu cabelo. Por
suas maneiras e modo de falar, estava claro que não era nobre.
Apesar disso, Ariel o havia nomeado como seu novo guardião. Ela
deu a ele equipamento de guardião de qualidade e o manteve ao
seu lado o tempo todo. Esse tratamento especial só inflamou a
desaprovação dos nobres.

— Não dá para fazer nada ao menos com esses óculos de sol?

— Concordo. É quase como se o menino nem mesmo


entendesse o conceito de respeito.

Ele sempre usava óculos de sol. Na corte imperial, esconder o


rosto sem propósito era considerado falta de educação.

Entretanto, as palavras dos nobres transpareciam


desconhecimento. Ariel havia recebido permissão do próprio rei para
o uso dos óculos de sol. Na verdade, eram um item mágico que
poderia indicar quando a princesa estava em apuros, não
importando onde o usuário estivesse. O item foi considerado
necessário após seu “incidente” anterior, então o rei o permitiu.

— Graças a esses óculos de sol, as empregadas do palácio


imperial continuam gritando com suas vozes estridentes.
— Sim, ouvi dizer que “ficam tão felizes” só de ver Fitz e Luke
caminhando juntos.

— Na verdade, nada parece deixá-las mais felizes do que ver um


mulherengo como Luke intervindo com tanta coragem para cuidar
do menino.

— Estão corrompendo a moral da corte imperial.

— Não é como se a corte tivesse alguma.

Hahaha, os nobres riram.

Fitz estava sempre seguindo Ariel, e qualquer um poderia dizer


que o menino era bonito sob aqueles óculos escuros. Portanto, vê-lo
com ela e Luke juntos encorajou muitos a sonharem com fantasias
selvagens.

— Sei que são meninos, mas há algo estranho.

— Eh? O que é estranho?

— Luke professa, sem hesitar, que ama as mulheres e odeia os


homens, mas está sendo excepcionalmente gentil com aquele
menino.

— Ahh, entendo o que diz. É verdade.

— Sim, mas não há nada de “estranho” nisso. Tenho certeza de


que só indica que Luke finalmente notou a beleza dos homens
também, não?

— Sem dúvida, ha ha!


A homossexualidade não era considerada algo incomum para os
nobres Asuranos. Havia pessoas com preferências sexuais muito
mais estranhas, então garotos que se apaixonavam por outros
garotos bonitos não representavam nenhuma surpresa.

— Mas onde no mundo a princesa encontrou aquele menino?

— E quem sabe? Mas o fato de a Princesa Ariel oferecer tanto


apoio me faz pensar. Talvez seja o filho ilegítimo de algum nobre de
alto escalão.

— Ah, então faz alguma ideia sobre de onde ele é?

— De fato. Vários anos atrás, fui visitar meu primo na Região de


Fittoa. Aquele primo compareceu à cerimônia de aniversário da neta
de dez anos de Lorde Sauros.

— Ah, a neta do Lorde Sauros… Quer dizer a princesa macaca


ruiva dos Boreas?

— Sim, aquela com a reputação de que vai à escola só para


bater em outras crianças de sua idade. Aquela que negligenciou
tanto os estudos que não conseguia nem cumprimentar as pessoas
direito. Aquela princesa macaca.

— E o que uma coisa tem a ver com a outra?

— Sim, bem, de acordo com a história do meu primo, aquela


princesa macaca mudou bastante. Ela cumprimentou as pessoas
com educação, comportou-se de uma maneira elegante e dançou
magnificamente.
— Tenho certeza de que não passam de rumores embelezados.
Isso não é só por a princesa macaca não ter se comportado como
um macaco pela primeira vez?

— Não, não é o caso. De acordo com meu primo, quando ele


cumprimentou o lorde suserano, Sauros gabou-se disso.

— Disso o quê?

— Que aquele que ensinou a sua neta era um menino dois anos
mais novo que ela.

— Ah… então a idade bate.

— O lorde o elogiou tanto que meu primo começou a suspeitar e


até perguntou: “Esse menino é seu parente?”

— Minha nossa.

— Claro que o lorde não disse muito, mas ouvi que ele também
não negou que fosse verdade.

— Então essa é a história… Será que aquele jovem


impressionante poderia ser o garoto que Ariel reivindicou como seu
guardião?

— Talvez.

— Então essa é a razão pela qual o menino tem tanta etiqueta,


apesar de ser um plebeu.

Foi então que outro nobre de repente pensou em voz alta:

— Mas ele é realmente tão forte?


De acordo com Ariel, Fitz era ágil o suficiente para envergonhar
os cavaleiros em treinamento da corte. Ele também era versado em
leitura, escrita e aritmética, e tinha um conhecimento mais íntimo de
magia do que até mesmo os professores da Universidade de Magia.
Sem mencionar que podia usar magia de nível avançado sem
quaisquer encantamentos, com apenas dez anos de idade!

— Deve ser só baboseira.

— No entanto, depois do que a Princesa Ariel passou, é difícil


acreditar que manteria alguém que não fosse forte ao seu lado.

— Hmm, por que não conferimos por nós mesmos? Tiremos a


máscara daquele garoto e vejamos quem ele realmente é…

— Eu não aconselharia isso. Se ele realmente for tão poderoso,


você só estará causando problemas para si mesmo.

— Verdade. No entanto, como ele é um guardião, pelo menos


gostaria que aprendesse algumas das tradições da corte.

— Concordo. Estou farto dele sendo um caipira vulgar do meio


do nada.

Era assim que os nobres criticavam Fitz, fofocando


maliciosamente sobre ele enquanto assistiam, sem qualquer
intenção de deixar suas hostilidades claras. Por sorte, era justo isso
que Ariel esperava que fizessem.

✦✦✦✦✦✦✦

— Então, devemos fazer o filho de Lorde Tink entrar na Guilda


dos Cavaleiros?
— Sim, ele é habilidoso em aritmética. Faça-o entrar na guilda e
aprender pessoalmente com o contador deles.

Era o início da tarde. Ariel estava se encontrando com o pai de


Luke, Pilemon Notos Greyrat. Pilemon liderava a lista de apoiadores
dela. Embora não fosse bom em julgamentos, ele era um jovem
agindo como o Lorde Soberano da Região de Milbotts. Cada vez
que algo acontecia, fazia uma visita para discutir o futuro.

Ariel atualmente não tinha muitos apoiadores. Ainda não era


adulta e, embora fosse popular com o público em geral, não gozava
do mesmo nível de aclamação entre os nobres. Era por isso que
ainda estavam estabelecendo as bases.

Os nobres poderosos e de alto escalão que apoiavam o primeiro


ou segundo príncipe não os trairiam simplesmente para apoiar Ariel.
As posições dentro de suas facções já eram sólidas.

Foi por isso que Pilemon sugeriu capturar aqueles que


permaneciam indecisos. Isso significava conquistar nobres do
interior que não se envolviam nas disputas políticas do continente,
bem como nobres de escalão médio e inferior que não tinham muito
poder. Então usaria seu poder para nomeá-los como oficiais do
governo, colocando aqueles que eram excepcionais em posições
inferiores (embora importantes).

A estratégia deles era para o futuro, para algo dentro de dez ou


vinte anos. Dentro de uma década, aqueles que apoiassem Ariel
graças ao trabalho de Pilemon estariam em várias posições-chave
(mesmo que não estivessem no topo) e forneceriam um grande
apoio para ela.
— A Guilda dos Cavaleiros, a Guilda dos Magos, a Guarda
Imperial e a Guarda da Cidade… Com isso, lançamos as bases para
todas as posições-chave.

— É muito cedo para dizer se as sementes que plantamos darão


frutos. É possível que alguém veja nosso plano e o arranque pela
raiz.

Primeiro, trabalharam para suprimir a força dos militares e torná-


la sua. Nesta era de paz, soldados e cavaleiros não eram tão
valorizados quanto antes. Seu trabalho consistia em eliminar
monstros e ladrões, no máximo. Pode-se dizer que não tinham
poder político, razão pela qual as outras facções não tentaram obter
seu apoio. Ainda assim, se algo acontecesse, os militares seriam os
únicos a agir.

O Reino Asura não via uma guerra civil há muito tempo.


Enquanto não houvesse nenhuma prova sólida deixada para trás,
até mesmo assassinato na corte seria permitido.
Consequentemente, os nobres esqueceram o poder dos militares.
Ariel e Pilemon, por outro lado, trabalharam primeiro e
principalmente para obter o apoio militar.

— Ter que tomar esses tipos de medidas indiretas é irritante.

— De fato. — Pilemon era o chefe da família Notos Greyrat, mas


era mais jovem que os outros Greyrat e não tinha muita
popularidade ou dinheiro.

Ariel estava na mesma. Fazia parte da família real, então podia


usar o dinheiro livremente, mas ficava claro à primeira vista que
havia uma enorme lacuna entre ela e os outros candidatos. Sua
única vantagem era sua popularidade com o povo, e isso seria fácil
de perder. Os outros príncipes não fizeram muito para mudar o
coração das pessoas. A popularidade era muito instável para ser
usada como base.

Mas exatamente contra quem ela estava lutando, e com que


propósito?

— Mas, Alteza, um caminho sólido e estável é o mais rápido.

— Sim, mas é claro. Eu sei disso. Para obter a coroa, é


necessário seguir por uma estrada sinuosa.

Foi por isso que Ariel decidiu se tornar a rainha. Ela havia
começado a trilhar o caminho que a levaria ao trono.

Enquanto os que estavam na corte tinham sua atenção voltada


para Fitz, Ariel trabalhava nos bastidores para fortalecer seus laços
com os nobres influentes que a apoiavam, silenciosamente travando
uma guerra política própria.

Ela vestiu o manto de princesa apavorada, tentando de tudo para


se proteger. Era como uma capa de invisibilidade que escondia seus
dentes de leão enquanto avançava. Exatamente como seu falecido
ex-guardião Derek Redbat desejava.

Duas pessoas ficavam de guarda enquanto Pilemon e Ariel


trabalhavam em assuntos pessoais. Luke e Fitz assistiam em
silêncio, sem se envolver na conversa.

Se um comerciante ou aventureiro com um olho aguçado visse o


equipamento que os dois usavam, ficariam boquiabertos de
surpresa. Ambos estavam completamente equipados com itens
mágicos. Fitz e Luke usavam Botas da Rapidez que lhes permitiam
correr com o dobro da velocidade normal, uma Capa de Captura de
Chamas que os mantinha em uma temperatura corporal constante
sem deixar o calor passar por ela e Luvas de Superação que
reduziam qualquer impacto na palma da mão do usuário pela
metade. Além disso, na cintura de Luke estava uma Espada Corta-
Aço que poderia facilmente rasgar um escudo de aço.

De armas a armaduras, o equipamento era perfeito. Ariel havia


obtido tudo logo após seu incidente anterior. Apenas a varinha que
Fitz segurava era diferente. Era uma pequena, do mesmo tipo que
seria dado a um aprendiz que estava começando a aprender magia.
Não era um item mágico nem um instrumento mágico.

— Bem, então, Lorde Pilemon, obrigada pelo seu tempo.

— Sim. E Princesa Ariel, esta pode ser a abertura perfeita para


alguém descobrir o que estamos planejando, então não deixe
nenhuma lacuna transparecer.

— De fato.

Enquanto Luke e Fitz os protegiam, Ariel e Pilemon concluíram


seu encontro. Ambos pareciam satisfeitos enquanto atravessavam a
sala e se dirigiam para a porta. Em resposta, Luke acompanhou o
ritmo de Ariel e ficou exatamente atrás dela. Fitz foi um pouco mais
lento, mas seguiu o exemplo de Luke.

— Luke, certifique-se de proteger sua senhoria.

— Ha ha.
Pilemon falou apenas isso ao seu filho antes de partir. Enquanto
observava o pai ir embora, Luke se curvou conforme o costume
exigia.

— Ufa… isso demorou um pouco. E aí, vamos comer?

— Sim, Princesa. — Luke tocou a campainha para chamar os


criados. Soou três vezes. Quando uma dama de companhia
apareceu, ele a instruiu a preparar a comida e depois voltou para
seu lugar atrás de Ariel.

Fitz assistiu a toda a interação com grande interesse.

— Existe algum tipo de sistema com esse sino? Tipo, você bate
um certo número de vezes para pedir comida?

— Claro que não. É apenas um sino normal — disse Luke


exasperado.

Fitz empurrou os lábios em um beicinho e acenou com a cabeça.

— Ah, tudo bem. Acho que faz sentido.

Ultimamente, ele fazia perguntas desse tipo a Luke o tempo todo,


inclusive sobre modos na hora das refeições e etiqueta de
saudação. O próprio Fitz tinha pouco mais do que um vago
conhecimento dessas coisas, razão pela qual outros nobres riam de
cada um de seus passos. Cada vez, ficava vermelho de vergonha e
então perguntava a Luke a etiqueta apropriada para que pudesse
acertar perfeitamente na próxima vez.

— Hee hee. — Ariel riu diante da conversa. — Fitz, você


finalmente começou a se acostumar com a etiqueta da corte, não é?
— De forma alguma. Eu tenho um longo caminho a percorrer.

— Ver o quão duro você está trabalhando aqueceria o coração


de qualquer pessoa.

— Não tenho certeza disso. Bem, os outros nobres parecem me


odiar. — Fitz apertou os lábios em outro beicinho e se virou para
olhar para Luke. O último apenas desviou o olhar como se o assunto
não tivesse nada a ver com ele.

— A fofoca da ralé não é nada para se preocupar. Eu gosto de


você — disse a princesa.

— Obrigado… — Fitz não parecia particularmente feliz com isso,


mas curvou a cabeça para Ariel. — Outra coisa, Princesa, você já
encontrou minha família ou meu mestre?

Ariel balançou a cabeça fracamente.

— Não…

Fitz concordou em se tornar o guardião dela, mas só com


algumas condições. A primeira delas era que perdoaria seu crime de
entrar no palácio sem autorização. Ele apareceu de repente no dia
do Incidente de Deslocamento. Mesmo que não tenha sido por sua
própria vontade, entrou no lugar sem permissão, o que era uma
ofensa punível, ao menos de acordo com as leis do Reino Asura. A
critério de Ariel, foi poupado da punição, embora isso certamente
teria acontecido de qualquer maneira, visto que salvou a vida dela
no processo.

A outra condição era que procurasse os amigos e familiares de


quem ele se separou. Dado que o incidente ocorreu na Região de
Fittoa, o lorde suserano daquela região (Boreas) deveria fiscalizar
isso. Mas a família Boreas havia perdido todas as suas terras e as
pessoas sob seu comando junto com elas.

Os nobres que consideravam a família Boreas sua inimiga viram


uma oportunidade perfeita e lançaram seu ataque impiedoso. Tudo
o que a família pôde fazer foi tentar preservar sua posição. Não
tinham o luxo para procurar os residentes desaparecidos. Eles
haviam organizado algo parecido com uma equipe de busca, mais
ou menos, mas era uma coisa só para dizer que existia. Então Ariel
usou o dinheiro de seu próprio bolso para montar uma equipe e
ordenou que fizessem uma busca.

A propósito, Dario, o ministro de alto escalão que apoiava o


primeiro príncipe, mais tarde colocaria a família Boreas sob sua
proteção e investiria em um grupo de busca. Um grupo de busca
que aumentaria de tamanho, mas… Bem, isso é uma história para
outra hora.

Com essas duas condições, Fitz se tornou o guardião e protetor


de Ariel.

— Eu não sei o paradeiro de sua família. Como você sabe, estão


espalhados por todo o mundo.

— Sim… entendo. — O rosto de Fitz ruiu, o suficiente para que


qualquer um que visse sentisse pena dele.

Ariel percebeu e demonstrou uma rara expressão de angústia no


rosto.

— Fitz… peço desculpas. No momento, não tenho muito poder.


— Não, eu não seria capaz de fazer nada sozinho, então estou
grato pelo que você fez.

A expressão de Ariel ficou pensativa ao ver como Fitz reagiu com


bravura. Então, de repente, ela bateu palmas.

— Isso mesmo! Fitz, venha ao meu quarto esta noite.

— Hã?! — Sua proposta repentina fez Fitz soltar um grito


estridente.

— Ouvi dizer que você tem tido pesadelos ultimamente, fazendo


muito barulho durante o sono. Se dormir ao lado de alguém, isso
pode aliviar um pouco o problema, não?

— M-mas eu sou apenas seu guarda-costas, um caipira do


interior, e você é uma princesa… Luke, por favor, diga algo!

Quando a conversa mudou de repente para Luke, ele deu um


sorriso afetado e apropriado e disse:

— Por que não aceitar a oferta dela? Pense nisso como uma
recompensa.

— Uma recompensa…?

— Bem, tenho certeza de que vai despertar alguns rumores


estranhos, mas você deve ficar bem. Você suportou a fofoca deles
até agora, certo?

Fitz não tinha aliados na corte. Assim que percebeu isso, soltou
um suspiro.

✦✦✦✦✦✦✦
Enquanto Ariel e Pilemon conspiravam um com o outro, em
algum outro lugar do palácio imperial, outra conspiração estava
tomando forma.

— Como estão os movimentos recentes de Ariel?

Dois homens conversavam em uma sala. Um deles era um jovem


de cabelos loiros macios, com cerca de vinte e poucos anos. Em
uma das mãos, segurava uma taça de vinho feita de vidro Begaritt,
que continha vinho fresco da Região Milbotts.

O outro homem era um sujeito corpulento que parecia ter


cinquenta e poucos anos. Uma garota seminua estava sentada em
seu colo, e sua mão estava estendida em direção ao seu traseiro.

— Um pouco suspeitos, eu diria. — Sua voz estava fria e seus


olhos ardiam de luxúria enquanto observava a garota. Ela corou e
olhou para baixo enquanto ele esfregava sua bunda.

O homem mais jovem não pareceu se importar. Apenas apreciou


o gosto de seu vinho, movimentando o líquido dentro de sua taça.

— Isso não diz nada.

— Recebi relatos de que ela inseriu seus próprios homens na


Guilda dos Cavaleiros e na Guarda Imperial.

— A Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial? Droga, aquela


Ariel. Ela pretende dar um golpe de estado?

O homem mais velho enfiou a mão na calcinha da garota e


balançou a cabeça.
— Impossível. Ela não é tão impaciente. Tenho certeza de que
pretende apenas aumentar seus aliados.

— Mas a Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial não têm


nenhuma influência política.

— Sim, de fato. Mas existem muitas pessoas comuns entre a


Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial. São as mais simples
com quem ela pode trabalhar. Tenho certeza que isso é apenas o
começo de seus planos.

— Hm…

O homem mais velho continuou:

— Além disso, Ariel não tem seu próprio exército particular.

O jovem começou a pensar. A Guilda dos Cavaleiros e a Guarda


Imperial não tinham poder político. O Reino Asura, sem dúvidas,
tinha a maior força militar do mundo, mas metade de seus soldados
eram pessoas comuns. Os que estavam no topo eram nobres e
seguidores dele, então substituí-los não seria fácil.

Mesmo assim, a guilda e a guarda seriam os primeiros a se


mover se algo acontecesse na capital imperial. Se os capitães e
oficiais comandantes fossem substituídos por pessoas que
apoiassem Ariel, os soldados e cavaleiros sob seu comando
também se aliariam a ela, já que seria a mais popular. Nesse caso,
ele não poderia descartar a possibilidade de um golpe de estado.

— Acabei deixando isso passar em branco. Parece que minha


irmã mais nova é muito inteligente. — Havia admiração em sua voz
enquanto falava.
O gordo apenas bufou de tanto rir enquanto brincava com o
corpo da garota.

— Mas que absurdo. É apenas um ato desesperado, tenho


certeza. — Um sorriso cruzou seus lábios enquanto os gemidos
abafados da garota começaram a aumentar. — No entanto, por mais
desesperada que seja, é uma boa jogada. Achei que aquele rapaz
neófito do Notos não passava de um rato dissimulado, mas parece
que ele tem alguma visão, afinal.

— O que deveríamos fazer? — perguntou o jovem.

O gordo tirou a mão do corpo da garota. Ele mergulhou a ponta


do dedo em uma taça de vinho e o enfiou, com um líquido roxo
pingando, na boca dela. A garota não tentou impedir, apenas
lambeu.

— Não há nada a ser feito — disse. — Passei o último ano os


observando em silêncio. Se vão ser inimigos de Vossa Majestade,
Príncipe Grabel, então, naturalmente, devemos nos livrar deles.

— Por qual meio?

O gordo levou o dedo, que a jovem estava lambendo, aos lábios


e o envolveu com a língua.

— Em vez de arrancar as mudas, vamos nos livrar de quem está


lançando as sementes.

— Tudo bem, Darius. Vou deixar isso para você.

— Como ordenar, meu príncipe.


O Primeiro Príncipe Grabel e o alto Ministro Darius pareciam dois
funcionários corruptos do período Edo enquanto conspiravam para a
reclusão em algum lugar privado. A única pessoa que ouviu sua
conversa foi a escrava descansando em cima do colo de Darius. E
aquela garota aconteceu de ser…

✦✦✦✦✦✦✦

Era tarde da noite, hora de todos estarem descansando em suas


camas, quando Fitz chegou ao quarto de Ariel. O vapor estava
visivelmente subindo de seu rosto.

— Um, Princesa Ariel, estou aqui como você pediu.

Antes de ele chegar, as damas de companhia de Ariel o levaram


ao banho, banharam seu corpo com óleos perfumados e o
envolveram em uma roupa de dormir de alta qualidade tecida em
tecido macio.

— Fico feliz que você veio. Já podem sair — disse ela às duas
damas de companhia. Cada uma delas fez uma reverência antes de
passar pela porta. Fitz e Ariel ficaram subitamente sozinhos em seu
quarto mal iluminado. — Algo de errado? Venha aqui e sente-se ao
meu lado.

— C-certo. — Fitz obedeceu, sentando-se com bastante


nervosismo ao lado da princesa.

Ariel aproximou seu corpo do dele.

Fitz moveu seu corpo para mais longe. Então, ligeiramente em


pânico, ergueu a mão para detê-la.
— Uh, um… só vamos dormir juntos, certo?

— Sim, com certeza.

— Um… uh… você diz isso, mas seu olhar está assustador.

Ariel gradualmente se aproximou mais e Fitz logo colocou mais


distância entre eles.

— Não precisa se assustar com isso. É verdade, estou


empolgada com o brilho da sua pele, mas está tudo bem. Eu não
vou fazer nada. Agora, deite-se na cama.

— Não, isso é assustador. Você está me assustando, Princesa!

— Não há nada a temer — murmurou Ariel em resposta.

— Não, estou dizendo… Eu sou, você sabe. Você sabe disso,


né? Que na verdade eu sou…

— Eu sei — disse. — Claro que eu sei.

Por fim, ela encurralou Fitz na beirada da cama. Ariel colocou a


mão em seu ombro e o forçou contra o colchão.

— É por isso que gostaria que você também soubesse mais


sobre mim.

Fitz fechou os olhos com força, como se fosse um virgem. Foi


demais para ele, então cedeu, entregando seu corpo às mãos dela.
Afinal, ele não tinha parentes a quem recorrer, então não podia ir
contra a vontade da princesa.

— Brincadeirinha. Vou parar por aqui — disse a Ariel. Ela se


afastou dele e se jogou ao seu lado, deitada de costas.
Surpreso com isso, Fitz virou a cabeça e seus olhos se
encontraram.

— Um…

— Eu te disse, não disse? Que só vamos dormir juntos. Você


entendeu algo errado? Pensou que eu iria me forçar sobre você?

Fitz ficou com uma tonalidade vermelho brilhante até as orelhas.


Ariel riu quando viu isso.

— É verdade, ver a cara que você está fazendo agora me dá


vontade de fazer isso, mas hoje eu realmente vou apenas dormir ao
seu lado. — Ela olhou para cima e exalou.

Fitz permaneceu confuso, sem saber o que fazer. Seu corpo ficou
rígido.

Por um momento, o silêncio caiu entre os dois. Quem finalmente


o quebrou foi Ariel.

— Eu também — disse ela. — Eu também andei sonhando.

— Sonhando?

— Sim, sobre aquele dia. Sobre Derek sendo assassinado por


aquele monstro, e aquilo se virando para me devorar em seguida.
Aquele pesadelo. — Fitz voltou a olhar para o rosto de Ariel. Seu
sorriso gentil usual se foi, deixando uma expressão vazia e
transparente. — Eu tenho esse sonho o tempo todo. Luto em meu
sono e finalmente acordo quando tudo acaba. Já faz dias.

— Com você também? — perguntou Fitz.


— Sim. — Ariel assentiu e apertou a mão dele com a sua. Seus
dedos eram delicados e finos, tanto que pareciam poder quebrar a
qualquer momento. No entanto, a força de seu aperto assegurou-lhe
que ela estava cheia de vida. — Fitz, não consigo entender sua dor,
mas você não foi o único que sentiu dor naquele dia. Se está
passando por um momento difícil, pode confiar em alguém.

— Obrigado…

— É por isso que não hesitei em me apoiar em você. Talvez se


eu dormir ao lado da pessoa que me salvou naquele dia, não terei
mais aquele pesadelo.

Essas palavras soaram estranhamente relaxantes para Fitz. Era


como se ela soubesse que ele não conseguia relaxar desde o
Incidente de Deslocamento. A princesa percebeu como o garoto
lutou para ganhar sua aprovação, blefando para que não pensasse
que era inútil, trabalhando duro para que não o dispensasse de
imediato.

— Agora eu entendo…

Nada daquilo foi necessário. Ariel certamente o teria mantido ao


seu lado, mesmo se não pudesse usar magia, porque ele era
alguém que podia entender sua dor.

— Princesa Ariel?

— O que foi?

— Vou fazer o melhor que puder como seu guardião — disse.


— É bom que faça. Mas, por enquanto, espero que faça isso em
meus sonhos. — Ela riu.

Como se encorajado por sua risada, Fitz sentiu um sorriso


aparecendo também nos seus lábios. Foi o primeiro desde o
incidente, há um ano.

— Tudo bem, então vamos dormir.

— Sim, Princesa. Boa noite.

Ariel manteve os dedos em volta da mão de Fitz enquanto


fechava os olhos.

Fitz também fechou os olhos, antecipando o conforto do sono.


Mas então, quando estava prestes a deixar sua consciência ir,
percebeu algo.

— Hã…?

Havia uma presença no quarto. Apenas alguns momentos atrás,


as únicas que sentiu eram a sua e de Ariel, mas havia alguém de pé
ao lado da cama. Uma jovem garota. Ela estava pairando ao lado da
cama deles, usando roupas que mal escondiam suas regiões
inferiores, e em sua mão carregava uma enorme faca.

A garota se moveu no momento em que os olhos de Fitz


encontraram os dela. Ela se jogou em Ariel na tentativa de atacar.

Fitz percebeu que era uma assassina, mas antes que pudesse
gritar qualquer coisa, seu corpo já estava se movendo. No mesmo
instante em que saltou para proteger o corpo da princesa, estendeu
as duas mãos em direção à garota e lançou sua magia.
— Explosão de Ar!

— Gah! — A magia, que havia sido lançada sem nenhum


encantamento, atingiu a garota em cheio, jogando-a para longe de
onde Ariel estava deitada.

— O que está acontecendo?! — gritou a princesa.

— Princesa! É uma assassina! Por favor, fique atrás de mim!


Luke, é um ataque inimigo! — A voz de Fitz ecoou. O quarto dos
guardiões ficava bem ao lado do quarto da princesa, então Luke
deveria aparecer logo.

— Uff…

A assassina se levantou. Seus olhos se voltaram para Fitz e


Ariel, passando rapidamente pelos dois antes de finalmente se fixar
em Fitz. Parecia que planejava acabar com o guarda-costas antes
de lidar com seu alvo.

Encontrando-se sob o domínio do olhar do intruso, Fitz se


abaixou e assumiu uma postura de batalha. Ele ainda estava vestido
com suas roupas de cama, sem uma única peça de seu
extravagante equipamento, mas isso não impactou em seu espírito
de luta.

— Hssh…! — A assassina correu para frente, indo direto para


ele.

Fitz virou as palmas das mãos para fora e liberou sua magia.

— Hah! — A mana fluindo de suas mãos não tinha nenhuma


forma. O som de uma explosão foi acompanhado pelo da cama
dossel sendo destruída, deixando um buraco na parede.

Este era um feitiço de nível avançado, Estrondo Sônico. Não


havia muitos que poderiam enfrentar uma explosão como aquela e
sobreviver. No entanto, a assassina ainda estava viva. Ela fez
parecer que estava correndo em direção a ele antes de pular para o
lado. Uma finta. Intencional ou por coincidência, a assassina
conseguiu escapar do ataque de Fitz. Então chicoteou sua faca no
ar. E voou direto para Ariel.

Fitz instantaneamente esticou a mão no ar como se tentando


pegá-la. Claro, pegar uma faca voando pelo ar não era uma tarefa
fácil. Felizmente, aquilo pegou apenas nas pontas de seus dedos,
cortando sua pele e interrompendo sua trajetória.

Tendo falhado em sua técnica de execução, a assassina mudou


para a defesa, quase como um gato tentando manter a distância.

— Ah…!

Em segundos, ela foi enviada voando pelo ar pela segunda vez


graças à magia de Fitz. O impacto direto cortou todos os quatro
membros da assassina, e ela ficou cambaleando no ar, caindo pelo
buraco na parede para a escuridão da noite.

— Hah… hah…

A mudança repentina da defesa para o ataque deixou Fitz sem


fôlego enquanto olhava para fora do buraco. Era uma noite sem lua,
então estava excepcionalmente escuro lá fora. Ele não tinha certeza
do que viu abaixo, mas a assassina havia caído com os membros
decepados. Não havia como ainda estar viva.
— Uff…

A sensação de que havia matado alguém ainda não havia


aparecido.

— Ah… Princesa Ariel, você está bem? — Ele correu de volta


para o quarto para confirmar que ela estava segura. No meio do
caminho, suas pernas se ficaram moles. — H-hein? — As pontas
dos dedos de seus pés ficaram dormentes e ele desabou no local,
com seu corpo cedendo ao peso.

Veneno…! Já era tarde demais quando ele percebeu, e todo o


seu corpo começou a tremer enquanto sua consciência ficava
nublada. Magia de Desintoxicação…! Se Fitz fosse um mago
comum, ou se não fosse capaz de executar um feitiço não verbal,
provavelmente teria morrido na mesma hora.

Mesmo com sua consciência sendo consumida pela escuridão,


conseguiu lançar a magia de desintoxicação. Então olhou para os
lados. Ariel estava segura e, embora tivesse chegado tarde, Luke
também estava lá.

— Luke, a assassina! Fitz a derrotou, mas foi envenenado!


Chame um médico agora! E a Guarda Imperial. Acho que o corpo da
assassina caiu.

— Entendido! — Luke acenou com a cabeça e desceu as


escadas correndo enquanto chamava os guardas.

Fitz observou, ainda sentindo-se tonto, e só perdeu a consciência


quando Luke sumiu de vista.

✦✦✦✦✦✦✦
Assim, a tentativa de assassinato de Ariel foi frustrada.

Fitz havia sido infectado pelo veneno, mas o corte em seu dedo
era tão pequeno que apenas um pouco dele entrou em seu sistema.
Graças à sua resposta rápida ao usar magia de desintoxicação,
escapou com vida por muito pouco e não houve efeitos prolongados
do veneno.

Quando ele voltou ao palácio, as impressões dos nobres sobre


Fitz haviam mudado. Foi por causa da assassina que derrotou
naquele dia. Seus restos mortais haviam caído no pátio, onde os
guardas acabaram encontrando. Ela foi identificada como uma
assassina famosa que trabalhou no Reino Asura pelos últimos dez
anos, conhecida como Corvo do Olho Noturno.

Vários nobres já tinham sido vítimas de sua lâmina. O fato de que


Fitz a derrotou demonstrou que sua força era genuína. Como usava
magia não verbal e normalmente não falava muito, foi apelidado de
“Fitz Silencioso” e reconhecido por todos os nobres como digno de
sua posição como guardião de Ariel.

Com isso, o assunto foi resolvido e a paz prosperou em torno da


princesa… ou assim parecia. Nenhuma história jamais teve suas
cortinas fechadas com tanta facilidade. Daquele dia em diante, mais
assassinos apareceram para reivindicar a vida de Ariel, foi um
ataque após o outro.

Cada um deles foi despachado pelas mãos competentes de Fitz,


mas nunca pararam e nenhum culpado foi identificado. A Guilda dos
Cavaleiros conduziu suas investigações, mas alguém estava
pressionando-os, deixando os casos sem solução.
Ariel estava mentalmente encurralada e exausta pelo fato de que,
embora pudesse ter relativa certeza de quem estava enviando os
assassinos, não poderia expôr sua identidade. Como resultado,
Pilemon concluiu que era muito arriscado para ela ficar e propôs um
plano para deixar o país sob o pretexto de estudar no exterior. Mas
essa é uma história para outro dia.

✦✦✦✦✦✦✦

O Guardião Fitz havia perdido aqueles mais próximos a ele no


Incidente de Deslocamento, interrompendo toda a sua vida. Embora
não tenha sido por sua própria vontade, se viu sendo arrastado para
as profundezas da sangrenta batalha política do Reino Asura.

No entanto, havia uma coisa boa. Após o dia da tentativa de


assassinato de Ariel, ele parou de ter pesadelos – aqueles em que
foi lançado voando pelo ar, lutando inutilmente até se espatifar no
chão. Isso, pelo menos, poderia ser considerado como sua única
misericórdia.

Ainda resta algum tempo em nossa história até que os destinos


desse jovem e de Rudeus Greyrat se entrelacem.
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.
[←2]
O nome da cidade foi alterado. Após algum tempo prestei um pouco de atenção
e notei que “Porto do Vento” é uma tradução errônea, logo, a partir do volume 4
estaremos adotando o termo correto.
[←3]
Escute clicando aqui ou James Blunt - Goodbye My Lover
[http://youtu.be/wVyggTKDcOE].
[←4]
Aqui talvez seja um erro do tradutor gringo, não tenho certeza absoluta. Acredito
que Rudeus esteja, na verdade, se referindo a Eris, buscando fazer uma comparação
com seu próprio grupo.

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