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VOLUME 06: JUVENTUDE - ARCO DA REGRESSÃO AO LAR

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Capítulo 01: Seleção de Rota
Capítulo 02: Arroz
Capítulo 03: O Reino Shirone
Capítulo 04: Deus Não Está Aqui
Capítulo 05: O Terceiro Príncipe
Capítulo 06: Uma Resolução Rápida
Capítulo 07:O Nascimento da Minha Irmãzinha, a Empregada
Capítulo 08: Uma Adulta
Capítulo 09: O Segundo Ponto de Virada
Capítulo 10: O Grande Buraco Aberto em Meu Peito
Capítulo 11: Fim da Jornada
Capítulo 12: A Realidade da Calamidade
Capítulo 13: A Resolução da Jovem Senhorita
Interlúdio: Os Dois Que Ela Encontrou
Capítulo Extra: Distorcido, Porém Inalterador
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI

- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 06

Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka

Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.

Retirado do site:

“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e


publicação de Light Novels, Web Novels e Mangás para o português
brasileiro.

Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e


acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a
situação dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo
conhecidos de longa data, buscamos criar um ambiente amistoso e
divertido onde, sem qualquer cobrança ou compromisso
estabelecido, divertimo-nos com a tradução e edição daquilo que
nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto, atestamos a
plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros,
focamos em obras que saem um pouco daquele clichê
extremamente batido, e às vezes não, cumprindo com nosso
objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de acumular livros que
queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e pretendemos oferecer
uma ampla gama de materiais para todos os públicos, desde que
adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.
Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada,
sempre mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência,
basta acessar Formas de Apoio.”

Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim


Tsundoku.
Capítulo 01:
Seleção de Rota
Eu já estava com doze anos.

Só percebi isso quando olhei para o meu cartão de Aventureiro e,


de repente, vi o número doze na coluna de idade. Quando foi que
meu aniversário passou que nem percebi? Uma viagem dessas
acabou distorcendo meu senso de tempo.

Mesmo assim, passaram dois anos desde que fomos


teletransportados, hein? Só precisamos de dois anos para viajar
pelo Continente Demônio e pelo Continente Millis. Ou, se olhasse de
outra forma, já tinham passado dois anos inteiros.

De qualquer forma, o Reino Asura estava quase diante de nós.


Depois do que aconteceu no Continente Millis, parecia improvável
que passaríamos por muitas dificuldades desse ponto em diante.
Tínhamos dinheiro e meios para viajar. A única coisa com que me
preocupava era não saber o paradeiro do resto da minha família:
Zenith, Lilia, Aisha e também Sylphie. Apesar dos esforços de Paul,
elas ainda não haviam sido encontradas.

Eu acreditava que ainda estavam vivas, mas não importava o


quão ansioso estivesse para procurá-las, não seria fácil encontrar
nenhuma delas. Tudo o que poderia fazer era tomar o tempo
necessário para fazer um trabalho bem feito.

✦✦✦✦✦✦✦

Estávamos atualmente na extremidade leste do Reino do Rei


Dragão, na cidade portuária de Porto Leste. Assim como em Porto
Oeste, a cidade tinha um número considerável de pescadores e
contrabandistas.

Reservamos uma pousada e começamos nossa reunião de


estratégia. Como de costume, nós três nos reunimos em torno de
um mapa, mantendo nossos rostos próximos.

— Tudo bem, vamos conversar sobre o que faremos daqui em


diante.

Os outros dois olharam para o mapa com expressões sérias em


seus rostos. Tínhamos feito isso vezes o suficiente para que eu
esperasse que ficassem cansados disso, mas mesmo Eris – alguém
sem paciência para conversas complexas – estava ouvindo com um
olhar solene em seu rosto.

— Existem três rotas daqui para o Reino Asura — expliquei,


apontando para o mapa que acabara de comprar. Era um mapa
simples com contornos aproximadamente realistas de florestas e
localizações de aldeias. A fabricação e venda de mapas detalhados
era estritamente proibida neste país, tudo para impedir que outros
países possivelmente conhecessem todas suas características.
Bem, não importava, desde que soubéssemos a configuração
básica do terreno. — A primeira é uma rodovia usada principalmente
como rota comercial. — Usei meu dedo para traçar o caminho, que
desviava para o leste ao redor das Montanhas Rei Dragão. — Esta
é a rota mais segura. Com base em nossa velocidade de viagem,
chegaríamos em dez meses.

— Por que temos que usar essa rota? — perguntou Eris,


compreensivelmente confusa.
Apontei para o flanco oeste das montanhas.

— Porque se desviarmos para o oeste, vamos entrar em uma


grande floresta. Essa é a segunda rota possível.

Uma vasta e densa floresta se espalhava pelas terras a oeste


das Montanhas Rei Dragão, tornando impossível viajar de
carruagem. Se estivesse familiarizado com o caminho, poderia
economizar meses de jornada tomando esse caminho, mas isso
exigiria uma viagem à cavalo. Eris e eu não aguentaríamos isso.
Ruijerd provavelmente poderia montar um cavalo, mas não importa
o quão pequeno eu fosse, não havia como três de nós seguirmos
em um único animal. Se fôssemos seguir esse caminho, teríamos
que percorrê-lo a pé.

Eu não tinha como descobrir quantos dias isso tomaria, mas


sabia que basicamente todos escolhiam a rota segura do leste no
lugar das outras alternativas. Tomar os outros caminhos não
economizaria tanto tempo, então a rota do leste era, por si só, a
mais rápida. Devagar se chega mais longe, costumam dizer. Ou ao
menos foi assim que resumi a minha explicação.

— Certo, então podemos descartar o caminho do oeste —


concordou Eris.

— Quanto à terceira rota possível… — Isso envolveria pegar um


navio para o Continente Begaritt e depois fazer uma caminhada por
terra até o Reino Asura. Eu não fazia ideia de quanto tempo essa
rota tomaria. — Vou tirar isso da nossa lista de opções.

— Como assim?!
— Porque é perigoso — falei. A mana era ainda mais espessa no
Continente Begaritt do que no Continente Demônio. A força média
das bestas do lugar estava em pé de igualdade com as do
Continente Demônio, e havia inúmeros labirintos subterrâneos que
possuíam padrões climáticos bizarros.

O clima do lugar seria facilmente descrito com uma única


palavra: Desértico. O continente não passava de um enorme
deserto. Havia escorpiões gigantes do tamanho de uma grande
tartaruga e inúmeros vermes enormes que atacavam principalmente
os referidos escorpiões. Os dias eram extremamente quentes e as
noites frias como o Ártico. Não havia quase nenhum oásis, então
não havia onde parar para descansar. Conforme se aproximava do
Reino Asura, a areia dava lugar a um terreno coberto de neve com
temperaturas congelantes, e haveria cada vez menos monstros para
caçar em busca de comida.

— Portanto, vamos seguir a rota leste.

— Como sempre, você é um covarde — reclamou Eris.

— Só tenho o coração fraco.

— Acho que eu poderia fazer isso sem problemas. — Parecia


que Eris queria conhecer o Continente Begaritt. Seus olhos estavam
brilhando. No entanto, a distância entre o Continente Central e o
Continente Millis não era nada comparada com a distância entre
onde estávamos e o Continente Begaritt.

— Precisaríamos passar um longo tempo em um navio caso


escolhêssemos essa rota. Tem certeza de que ficaria bem com isso,
Eris?
— Não iremos para Begaritt…

E foi assim que decidimos tomar a rota leste.

✦✦✦✦✦✦✦

Antes de perceber o que estava acontecendo, fui parar em um


espaço totalmente em branco. E emoções começaram a brotar das
profundezas de meu corpo. Era uma sensação tão familiar que eu já
poderia descrevê-la com facilidade.

Nojento pra caralho.

— Já está recorrendo a essa linguagem chula? Continua tão


grosseiro como sempre, pelo que vejo.

Diante de mim estava um mosaico indistinto em forma de


pessoa: O Deus Homem.

Tch, agindo como se me conhecesse. Não posso acreditar que


resolveu aparecer de novo, bem quando eu finalmente comecei a
me esquecer de você.

— Sim, já faz um ano inteiro.

Sim, um ano inteiro. Faz muito tempo. Diz aí, você só aparece
uma vez por ano? Se for o caso, vou ficar bem mais à vontade.

— Não, esse não é o caso.

Já tinha imaginado. Depois da primeira vez que você apareceu,


resolveu dar as caras de novo após uma única semana.

— Deixando isso de lado, você continua tão frio quanto sempre


quando fala comigo. E é graças a mim que você tem esse seu olho
demoníaco, sabe.

Sim, bem, sou grato por isso… mas se tivesse me contado mais,
eu não teria acabado naquela cela, e não teria perdido as
informações importantes que resultaram na minha briga com Paul.
Ah, droga, aposto que você achou isso tudo realmente divertido:
Paul e eu batendo cabeça porque eu não sabia que minha família
estava desaparecida, eu ficando deprimido depois e Eris me
animando… e até minha reconciliação com o Paul.

— Bem, sim, aquilo foi divertido. Mas tem certeza disso?

Certeza do quê?

— Tem certeza de que é tudo minha culpa?

Tch… Droga. Esse lugar aqui me leva de volta para o passado.


Para quando costumava culpar os outros por tudo. Já refleti sobre
os meus erros. Refleti… Argh, droga, não lembro que tipo de
reflexão eu fiz. Por que não consigo… Droga, droga!

— Bem, isso é parte do seu charme. Mas só um pouco de


reflexão não será o suficiente para você seguir em frente.

Tanto faz. Só não estou conseguindo lembrar. Mas quando


acordar vou lembrar de tudo. Sou capaz de reconhecer os meus
erros. Então, vamos reiniciar nossa conversa. Decidi te escutar.

— Escutar? Hmm, isso sim é uma novidade. Vai mesmo ouvir o


que eu tenho a dizer?

Sim, isso aí. Mas quero que me diga uma coisa.


— Que coisa? Não me importo de responder se for algo que eu
saiba.

Quero saber onde a minha família está.

— Mas sua família não está em outro mundo?

Não tira com a minha cara. Zenith, Lilia e Aisha. Se possível,


Sylphie, Ghislaine, Philip e Sauros também.

— Hmm.

Então? Perguntei direitinho.

— Não sei se devia te contar…

Você é só um voyeur que gosta de espiar a vida dos outros! Só


vai me dizer o que te é conveniente? Conseguiu providenciar meu
encontro com o Grande Imperador do Mundo Demônio, mas não
consegue me falar onde minha família está?

— Tá, tá, foi mal. Acho que me exaltei um pouco.

Bom, ainda bem que você sabe o que fez.

— Mas tem certeza? Desta vez posso acabar mentindo para


você.

Quê! Mentir?! Então, você finalmente admitiu! Isso aí, você é um


mentiroso, não é?

— Estou perguntando se você será capaz de acreditar no que eu


direi.

Não, eu não posso confiar em você. Esta é uma emergência,


então farei o que você disser, mas se descobrir que mentiu para
mim, nunca mais escutarei os seus conselhos. Entendeu?

— Quero que prometa uma coisa.

Prometer o quê?

— Se meu conselho permitir que você se reúna com sua família,


quero que comece a confiar em mim.

Está pedindo para eu virar sua marionete? Que abane a cabeça


para cada uma de suas ordens?

— Não, não estou pedindo que você vá tão longe. Mas vai ser
bem cansativo se você for hostil desse jeito sempre que
conversarmos, sabe?

Vai ser exaustivo mesmo se eu não for. Entende ao menos isso?


Consegue imaginar como é ser assombrado por um passado que
quer esquecer? Sabe como é sentir que todas suas memórias e seu
crescimento foram jogados no lixo? E tudo só para ficar sendo
oprimido por uma autodepreciação até acordar?

— Entendi. Fui meio injusto com você. Tudo bem, então por que
não decidimos algumas regras? Que tal se eu começar a avisar com
antecedência quando é que vou aparecer para dar alguns
conselhos?

Sim, essa é uma ideia maravilhosa! Que tal só aparecer na


minha frente de novo daqui a uns cem anos?

— Mas aí você já vai ter morrido, não?

Estou dizendo para você nunca mais me mostrar sua cara.


— Ah… Bem, já tinha imaginado que você diria isso. Tem certeza
de que não quer nenhum conselho meu desta vez?

Não… Espera aí. Foi mal. Vou me comprometer. Se você puder


me dar um conselho que vai me reunir com alguém da minha
família, então deixarei de ser tão hostil quando conversarmos.

— E vai confiar em mim?

Não, não estou disposto a ir tão longe. Mas pelo menos vou
parar de ter essas discussões sem sentido sobre te ouvir ou não.

— Bem, já é um começo.

Então, você também deve se comprometer. Pare de aparecer do


nada igual sempre faz. Me avise com antecedência. Ou apareça nos
sonhos de outra pessoa e use-as para passar a mensagem para
mim.

— Isso seria difícil. Na verdade, há uma condição que deve ser


cumprida para que eu seja capaz de aparecer nos sonhos de
alguém.

Uma condição? Então isso significa que você não pode dar as
caras sempre que quiser?

— Exatamente. Além disso, só posso aparecer nos sonhos de


alguém que está na mesma sintonia que eu. Não tem muita gente
capaz de receber meus conselhos em momentos tão fortuitos. Você
é bem sortudo.

Eu poderia chorar de alegria. Enfim, há uma condição, hein? E


qual é?
— E quem é que sabe? Nem eu tenho certeza disso. Tudo que
sei é que de repente “aha!” sei que “é esse cara, e a hora é agora.”
E é aí que consigo me conectar.

Ah, é? Então, isso significa que você também não pode controlar
isso direito. Então esquece o papo sobre o aviso prévio. Vamos
ver… Eu gostaria que você fosse mais detalhista em seus
conselhos. Se tudo que você diz é “vá ali” ou “vá lá”, fico confuso
quanto ao que devo fazer. Faz eu sentir que você só está brincando
comigo.

— Tudo bem, mais detalhes. Entendi.

Certo. Então, vá em frente.

— Ahem. Bem, este é o meu conselho desta vez.

De repente, uma visão surgiu em meu olho demoníaco.

Um beco em algum país em algum lugar. Há uma garota sozinha


e alguém que agarra sua mão violentamente. A pessoa que a
agarrou é um soldado. E ali estão dois soldados. O outro está
rasgando um pedaço de papel que tomou dela em pedaços. A
garota o observa, gritando algo.

E a visão de repente terminou.

— Rudeus. Ouça-me com atenção. O nome dela é Aisha Greyrat.


E atualmente está detida no Reino Shirone. Quando os eventos de
sua visão acontecerem, você estará lá, a encontrará e a salvará.
Mas não pode deixar que descubram seu nome. Chame a si mesmo
de Mestre do Canil do Fim da Linha e pergunte os detalhes da
situação para ela. Em seguida, envie uma carta a um conhecido no
Palácio Real de Shirone. Se fizer isso, Lilia e Aisha serão
resgatadas daquele lugar.

Hein? Espera, o quê? Não – espera, por quê? Conhecido? Uma


carta?

— Isso foi detalhado demais? Mas se eu te contar muito, vai


acabar com a minha diversão, então isso tem que servir. Bem,
agora, me pergunto com qual você vai se dar melhor…

O quê? Lilia e Aisha estão no Reino Shirone? Por quê? Se estão


lá, já deviam ter sido encontradas. E o que você quer dizer com isso
de com qual eu vou me dar melhor? Significa que vou entrar em
confronto com alguém?

— Boa sorte, Rudeus.

Sorte… sorte… sorte…

Enquanto a palavra ecoava em minha mente, minha consciência


se desvaneceu.

✦✦✦✦✦✦✦

Acordei assustado.

— Ugh!

Minha cabeça estava latejando. A tontura estava insuportável e


eu me sentia nauseado. Saí da cama e meio que corri direto para o
banheiro, onde comecei a vomitar no vaso sanitário.

Estava com uma dor de cabeça terrível e meus pés não ficavam
firmes. Quando saí do banheiro, a viagem de volta para o meu
quarto pareceu muito mais longa do que quando saí correndo dele.
Pressionei minha mão contra a parede e lentamente caí no chão. Na
escuridão da pousada, pude ouvir alguém ofegando. Assustado,
olhei em volta para encontrar a fonte, apenas para perceber que era
o som da minha própria respiração.

— Algo de errado? Você está bem?

Um rosto branco flutuava na escuridão do corredor. Era Ruijerd.


Ele estava me olhando com uma expressão preocupada no rosto.

— Aham… estou bem.

— O que você comeu? Consegue usar alguma magia de


desintoxicação? — Ele puxou um pano do bolso e enxugou a área
ao redor da minha boca.

Ao sentir o cheiro do meu próprio vômito, a náusea voltou a


surgir. Mas consegui segurar o vômito, mesmo sentindo um enjoo
enorme.

— Estou bem. — De alguma forma, consegui forçar algumas


palavras para fora da boca.

— Tem certeza? — Ele ainda parecia preocupado.

Acenei com a cabeça. Já estava familiarizado com essa dor de


cabeça. Já havia sentido isso antes, quando estávamos em Porto
Vento.

— Sim, eu estava meio adormecido e não consegui controlar


meu Olho da Previsão. Foi isso que aconteceu.
Quando havia usado o Olho da Previsão para olhar vários
segundos do futuro, ganhei uma dor de cabeça parecida. E já tinha
uma boa noção quanto ao motivo para isso ter acontecido. O sonho,
aquele conselho e a visão que ele me fez ter – o Deus Homem me
mostrou o futuro. E provavelmente fez isso usando meu Olho da
Previsão.

— Então foi isso… — murmurei comigo mesmo. Ruijerd me


lançou um olhar perplexo.

Lembrei-me de como me encontrei com a Grande Imperador


Demônio na cidade portuária e obtive meu olho demoníaco.
Lembrei-me de como foi repentino e como, por algum motivo,
escolhi esse olho específico. Encontrei Gallus logo depois daquilo,
mas o olho não contribuiu em nada durante nossa jornada marítima.

Claro, acabei derrotando o contrabandista graças ao olho, mas


senti que poderia ter feito aquilo mesmo sem o usar. Para mim, não
havia nenhum significado maior por trás da aquisição do olho
demoníaco, mas talvez houvesse para o Deus Homem. Talvez a
razão pela qual arranjou para eu encontrar a Grande Imperador
Demônio foi para que pudesse usar o olho para me mostrar o futuro.
Com certeza parecia que estava fazendo preparativos bem
cuidadosos para alguma coisa.

Minha ansiedade apareceu e, pela primeira vez, temi o Deus


Homem. Tive a impressão de que aquele ser, aquela criatura com
forma indefinida e incrível poder, estava tentando me usar para
alguma coisa. Isso fez um arrepio correr meu corpo.
— Rudeus, você está pálido. Tem certeza de que está bem? —
Ruijerd voltou a perguntar, parecendo preocupado.

Quase deixei minha ansiedade transparecer. A verdade é que


desde que te conheci, o Deus Homem esteve me monitorando.
Segui seus conselhos e fiz tudo que ele me disse.

Mas naquele momento, percebi algo. Desde que te conheci. Era


isso. A primeira vez que entramos em contato foi pouco antes de eu
conhecer Ruijerd. Naquela época, o deus também me aconselhou a
ajudar o Superd.

Bem, isso era estranho. Por que não tinha me contatado antes?

Por que só entrou em contato logo após o incidente de


Deslocamento?

Por que me aconselhar a ajudar Ruijerd em vez de apenas


confiar nele?

Senti que essas coisas estavam de alguma forma conectadas.


Não tinha nenhuma prova, mas, apesar disso, pensei em algo.
Talvez o Deus Homem planeja usar Ruijerd para fazer algo.

Ele disse que só poderia aparecer em meus sonhos se uma


determinada condição fosse atendida. O Superd talvez estivesse
vinculado a essa condição, e por isso o deus não podia o manipular
pessoalmente. Então, acionou o Incidente de Deslocamento para
me transportar – alguém que se encaixava nesses critérios – para o
Continente Demônio – e me guiou até Ruijerd, fazendo com que ele
nos acompanhasse até o Continente Central.
Mas se fosse esse o caso, por que me ajudar a adquirir o olho
demoníaco ou me dar conselhos sobre como salvar Aisha? Eu não
sabia. Não sabia no que ele estava pensando. Eu não sabia se
deveria dizer algo a Ruijerd.

Queria confiar em alguém, mas não achava que seria correto


colocar ainda mais peso nos ombros do Superd. Talvez contar tudo
satisfizesse as condições desconhecidas do Deus Homem, e ele
então seria capaz de se comunicar diretamente com Ruijerd.
Honestamente, ele seria facilmente enganado por qualquer coisa
que o Deus Homem dissesse. Eu nem estava totalmente
convencido de que o ser estava me dizendo a verdade, mas minha
hostilidade ao menos dificultava para que não conseguisse me
enganar. Queria acreditar que, enquanto continuasse assim, nada
muito terrível aconteceria.

— Senhor Ruijerd, se você se encontrar em uma situação difícil e


alguém sussurrar palavras doces em seu ouvido, nunca acredite no
que dizem. Pessoas enganadoras te visam estrategicamente
quando você é o mais vulnerável.

No final, não falei nada sobre o Deus Homem.

— Não tenho ideia do que você está falando, mas entendo.

Meus sentimentos estavam confusos enquanto o via me olhar tão


seriamente e acenar a cabeça. Ruijerd confiava em mim, mas eu
estava escondendo coisas dele. Na maior parte, era porque decidi
que manter esses segredos ocultos seria o melhor curso de ação,
mas isso não aliviou minha culpa.
Minha dor de cabeça e náusea desapareceram sem que eu
percebesse. E então meus pensamentos começaram a pesar por
um motivo diferente. Voltei para o meu quarto, mas mesmo depois
de voltar para a cama não senti vontade de dormir. Meus olhos
estavam bem abertos e ideias se agitavam na minha cabeça.
Quando fechei os olhos, elas flutuaram na minha frente, uma após o
outra.

— O que é isso…

Ouvi alguém falando enquanto dormia. Eris estava debruçada na


cama ao lado, roncando. Suas pernas estavam bem abertas. Suas
pernas torneadas emergiam de um par de shorts, e sua blusa
estava subindo, expondo seu adorável umbigo. Mesmo se olhasse
só de canto de olho para ela, poderia ver as curvas de seu peito.
Eris não usava sutiã para dormir, então, se apertasse os olhos com
força suficiente, poderia ver as pequenas pontas de seus seios. E
também podia ver a baba escorrendo pelo seu queixo enquanto
sorria em seu sono.

— Mmph.

Sorri ironicamente com suas conversas durante o sono e me


levantei da cama. Puxei sua blusa de volta para baixo e reajustei o
cobertor sobre seu corpo.

— Rudeus… é um pervertido…

A expressão em seu rosto era bem suja. E aqui estava eu,


doente de preocupação, e ela ainda me chamava de pervertido.
Fiquei tentado a tocar seus seios, para que minhas ações pelo
menos justificassem essa acusação, mas uma onda de sonolência
tomou conta de mim. Bocejei e desabei de volta na minha cama.
Capítulo 02:
Arroz
O dia seguinte amanheceu.

Enquanto tomávamos o café da manhã em um pub, anunciei:

— Vamos parar no Reino Shirone.

Ruijerd e Eris pareceram confusos, mas, ainda assim


concordaram.

— Tá bom. Tudo bem.

— Entendido.

Nenhum dos dois perguntou qual era o motivo ou propósito.


Realmente gostei disso. Já havia decidido que evitaria falar sobre o
Deus Homem tanto quanto possível, mas ainda me preocupava em
como explicar minhas ações sem mencioná-lo.

Ruijerd provavelmente tinha criado suas próprias teorias depois


de me ver na noite anterior. Ele provavelmente já tinha percebido
que eu estava escondendo algo – embora fosse perfeitamente
possível que estivesse pensando que se tratava de algum tipo de
doença. Não estaria de todo incorreto, visto que, para mim, o Deus
Homem era como uma praga.

— Shirone… quer dizer aquele lugar onde sua mestra está,


certo?

Conforme Eris disse isso, a imagem de uma certa jovem me veio


à mente: Roxy Migurdia. Isso mesmo. Ela deveria estar em Shirone.
O Deus Homem tinha dito para enviar uma carta para uma
conhecida. Devia estar dizendo que eu deveria pedir pela ajuda de
Roxy.

— Isso mesmo. É alguém que realmente respeito. Minha…


professora. — Quase a chamei de “mestra”, mas consegui me
conter a tempo. Pensando bem, Roxy me proibiu de chamá-la de
minha mestra. Embora “mestra” fosse exatamente o termo que usei
quando disse a todos como ela era maravilhosa… Ah, que seja.

— Devíamos passar lá para encontrá-la. Pode acabar de alguma


forma nos ajudando. — Eris acenou a cabeça consigo mesmo,
satisfeita.

Alguém tão incrível como Roxy certamente nos seria de grande


ajuda. Eu tinha certeza disso. E ela também era, ao mesmo tempo,
uma maga alocada no palácio real, então provavelmente estaria
ocupada. Não queria a incomodar demais – já tinha feito muito por
mim.

Independentemente do Incidente de Deslocamento ou da busca


por minha família, ainda queria vê-la. E também queria agradecer
pelo Dicionário do Tipo Demônio. Se ela não tivesse me dado
aquele livro, eu poderia ainda estar no Continente Demônio.
Lamentei por ter o perdido no incidente – ele merecia ser
reproduzido e vendido por todo o mundo.

— Quero conhecer sua professora — disse Eris.

— Hm. Também quero conhecê-la.

Eris e Ruijerd pareciam intrigados, provavelmente porque eu às


vezes mencionava o nome de Roxy, sempre acompanhado por
elogios. Me sentia muito orgulhoso ao chamá-la de minha
professora, então a mencionava em todo lugar que ia. Isso era
certo.

— Então tá bom. Quando chegarmos ao Reino Shirone, vou


apresentá-los.

Ao fazer essa promessa, nós três partimos.

✦✦✦✦✦✦✦

Primeiro, seguimos ao longo da rodovia que nos levava direto por


Wyvern, a capital do Reino Rei Dragão. A partir daí, a rota
contornou as Montanhas Rei Dragão e se dividiu. Um caminho se
estendia direto para o norte e o outro conduzia para o oeste.
Selecionamos a rota ao norte, a que levava a Shirone.

Inesperadamente, acabamos passando sete dias inteiros na


capital, a cidade de Wyvern. Nosso plano era ficar apenas três dias,
mas surgiu um problema com nossa carruagem e os consertos
exigiram algum tempo. Eu mesmo poderia fazer os ajustes, caso
fosse uma carruagem feita de pedra ou aço, mas não havia
nenhuma magia que pudesse usar para consertar algo feito de
madeira.

Pagamos um pouco a mais para que os reparos fossem feitos


mais rápido. Ainda assim, foram precisos sete dias para ficar tudo
pronto, mas não havia motivo para pressa. Na visão que o Deus
Homem me mostrou, Aisha estava cercada por dois homens. Eu
estava preocupado, mas o deus disse que eu estaria lá quando
aquilo acontecesse. Nesse caso, os problemas em nossa
carruagem talvez fossem obra do destino. Se fosse assim, então
não importa o quão rápido corresse para Shirone, não a encontraria
antes da hora.

Precisava ficar o mais calmo possível. Com isso em mente, fiz


meu caminho em torno de Wyvern.

O Reino Rei Dragão era o terceiro maior país deste mundo, e o


maior na parte sul do Continente Central, possuindo quatro estados
vassalos. No passado, fora apenas mais um dos muitos países do
sul. Mas isso mudou após avançarem pelas Montanhas Rei Dragão,
ao noroeste, e matar seu governante, Kajakt, o Monarca dos Reis
Dragões. Isso forneceu aos conquistadores o acesso a um enorme
veio de minerais, aumentando instantaneamente os recursos e o
poder de seu país. Foi também a origem de quarenta e oito espadas
mágicas que agora estavam espalhadas pelo mundo, bem como um
dos lugares mencionados em uma linha da Epopéia do Deus do
Norte.

Apesar desse passado histórico, o país não parecia se importar


muito com tradições. Em vez disso, parecia a América – uma
mistura de diferentes elementos. Havia muitos ferreiros e salões de
treinamento de espada, e os estilos eram diversos, mas a maioria
das técnicas que vi pertenciam ao estilo Deus do Norte ou ao Estilo
Deus da Água. Tentei dar uma olhadinha em um dos salões de
treinamento, mas a maioria das pessoas que estavam sendo
ensinadas eram crianças. Mesmo os mestres daqueles lugares
eram, em sua maioria, apenas espadachins de nível avançado,
então Eris deu uma olhada neles e disse, com uma risada bufante:
“Não são nada de especial.” Até Ruijerd expressou desaprovação.
De qualquer forma, decidi reunir informações sobre pessoas
desaparecidas. Encontrei um dos subordinados de Paul na Guilda
dos Aventureiros, o qual me disse que não havia nenhuma
informação a ser encontrada neste país. Não seria fácil encontrar
alguém que ainda estava desaparecido depois de todo esse tempo.

Em seguida, fiz minha rotineira pesquisa de mercado. Produtos


especiais do Continente Millis e do Continente Central estavam
sendo vendidos. E dentre a variedade de alimentos que encontrei no
mercado, fiz uma descoberta: Arroz. Sua cor era um pouco
amarelada, mas definitivamente era arroz.

Claro, eu já sabia que havia arroz neste país. Cheguei a comer


arroz branco enquanto estava em Porto Leste. E estava realmente
ansioso para provar a culinária deste país, mas infelizmente as
únicas coisas que seus pubs serviam eram sopas simples, paella e
mingau de arroz. Era um pouco diferente do que eu queria. Queria
comer arroz branco e puro.

No momento em que vi o arroz à venda, um choque elétrico


correu através de mim. Se não podia comprar arroz branco cozido,
poderia fazer por mim mesmo. Na mesma hora o comprei.

Poucas horas depois, estava no jardim da pousada preparando


minha comida. Eu tinha 4,5 quilogramas de arroz, utensílios de
cozinha que havia preparado cuidadosamente com magia da terra,
um fogão ao ar livre, uma receita que o dono de um pub me passou,
ovos e sal. Segurei a receita em uma das mãos enquanto lavava o
arroz e acendia o fogo. O calor do fogo era a chave para cozinhar o
arroz corretamente.
— O que você está fazendo?

Estava com minha cara de trabalho quando Eris apareceu.

— Um experimento — respondi.

— Hmm? — Ela bufou, desinteressada, e começou a balançar os


braços. A julgar pela maneira como ficava me olhando furtivamente,
estava realmente mais curiosa do que aparentava.

Virei a ampulheta que peguei emprestada do dono do pub e


acendi o fogo. Ele tinha dito que o truque para cozinhar arroz era
mudar o calor lentamente, então eu estava seguindo seu conselho.
Depois de virar a ampulheta três vezes, diminuí o aquecimento.
Então, virei mais duas vezes. Finalmente, apaguei as chamas e virei
mais duas vezes.

— Está pronto — falei.

— Sério? — Eris parou de balançar os braços e ficou ao meu


lado. Seu cheiro flutuou em minha direção, mas minha fome era
atualmente mais forte do que meu desejo sexual.

Ela olhou para a panela, ansiosa. Eu também estava empolgado


quando levantei a tampa. A onda de calor levou o cheiro de arroz
recém cozido direto ao meu nariz.

— Está cheirando muito bem. Bom trabalho, Rudeus.

— Não, eu preciso provar primeiro — falei, beliscando um pouco


de arroz entre meus dedos e colocando na minha boca. — Hmm…
daria uma nota de quarenta e cinco de cem.
Não era nem de longe tão bom quanto os dois tipos de arroz
japonês que se destacavam na minha memória: Koshihikari e
Sasanishiki. Mesmo se o comparasse a todos os tipos modernos de
arroz japonês, não seria nem mesmo Tipo C. Estava seco, tinha
uma espécie de sabor amargo e ainda era levemente amarelado.
Em parte, era culpa de meus métodos de cozimento ruins, mas os
ingredientes, em si, também eram de baixa qualidade, talvez porque
o arroz do país não fosse tão bom quanto pensei. Não poderia
sequer chamar isso de arroz branco.

Na verdade, deveria dar apenas trinta pontos, o que seria uma


nota baixa. Mas provar o arroz evocou tanta nostalgia que não
consegui me conter. Com um pouco de tempero, poderia ganhar
mais quinze pontos. Ah, eu realmente sou muito gentil, pensei
comigo mesmo.

— Já comemos isso antes, né? Que tipo de experimento foi


esse?

— Isso foi só o começo.

Coloquei o arroz em uma tigela de barro que fiz. Em seguida,


peguei um ovo cru mexido, no qual lancei magia de desintoxicação,
só por precaução, e fiz um buraco no meio do arroz antes de
despejar a mistura. Salpiquei sal por toda parte, peguei os
pauzinhos, que também fiz com minha magia, e juntei as duas
mãos.

— Lá vamos nós.

— Hã? Mas, Rudeus, esse ovo está… cru…!


Abri minha boca e abocanhei o bocado de arroz, agora com uma
cor amarelo-brilhante. Hmm… o cheiro era questionável. O sal que
coloquei não parecia ter feito diferença.

Agora que estava experimentando, notei que o sabor do ovo


também estava diferente. Era muito diferente dos ovos frescos
vendidos no Japão para consumo geral. Provavelmente devia voltar
a lançar desintoxicação em mim mesmo depois, só por segurança.
Além disso, definitivamente precisava de molho de soja, sem isso, o
sabor de ovo cru ficava muito evidente.

Me perguntei se o molho de soja também existia neste mundo.


Se não, será que conseguiria encontrar algum tipo de substituto?

— O sabor é bom?

Já que Eris perguntou, usei minha magia da terra para fazer


outra tigela. Coloquei um pouco de arroz, um pouco de sal e ofereci
a ela. E também entreguei uma colher que fiz – isso era o ideal para
iniciantes, nada de pauzinhos.

— Ei… é só isso mesmo?

Gulp!

Balancei a cabeça calmamente. Embora não tivesse orgulho


disso, houve um momento em minha vida anterior em que eu
subsistia apenas de arroz para as refeições e bolinhos de arroz para
lanches.

— Hmm… — Eris mastigou lentamente, com emoções


misturadas em seu rosto. Seus gostos ainda eram os de uma
criança. Uma vez que quebrei um ovo em sua tigela, ela disse: —
Isto está melhor do que antes! — E depois sujou o rosto de arroz
enquanto comia tudo.

Ovo cru misturado com arroz era realmente a melhor refeição de


todas – e também a mais equilibrada delas. Assim sendo,
terminamos nossa refeição, engolindo o resto do arroz queimado
que estava no fundo da panela.

Ruijerd foi o único que não provou da refeição, mas não fez
queixas. Ele sim é um adulto, pensei. Mesmo assim, me senti um
pouco culpado. Da próxima vez, faria com que recebesse uma
porção.
✦✦✦✦✦✦✦

Partimos do Reino Rei Dragão e pegamos a rodovia ao norte.


Havia mais dois países entre nós e o Reino Shirone: o Reino
Sanakia e o Reino Kikka. Ambos eram estados vassalos do Reino
Rei Dragão.

O cultivo de arroz estava se desenvolvendo no Reino Sanakia.


Seu clima devia ser perfeito para isso, já que a rodovia estava
cercada por arrozais. Havia muitos rios na área, então a topografia
provavelmente era semelhante à do Japão e do Leste Asiático. O
arroz era o mesmo que tinha no Reino Rei Dragão, então
provavelmente era um produto exportado deste local. Decidi chamá-
lo de arroz Sanakia.

Nas pousadas em que paramos, nossas refeições consistiam


principalmente de frutos do mar e arroz. Aprendi a comer com
moderação desde que vim a este mundo, mas o apelo do arroz era
irresistível demais, então comi até meu estômago ficar prestes a
estourar.

Durante as refeições, Eris ficou olhando para mim, de olhos


arregalados. O eu, normalmente tão exigente com comida,
engolindo tudo que via pela frente, podia ter acabado despertando
seu interesse.

— Qual é o problema? — Finalmente perguntei.

— Achei que você fosse do tipo que não comia muito, Rudeus.

Nunca me contive na minha vida anterior, sempre pedia uma


segunda porção, só precisava ter comida na mesa. A única razão
pela qual fui moderado desde que renasci foi porque a comida deste
mundo não combinava com o meu paladar. Deixando de lado a
carne dura que era a base da maioria de nossas refeições no
Continente Demônio, até mesmo as refeições pesadas com pão do
Reino Asura pareciam um pouco deficientes para mim. A comida de
Zenith não era ruim, mas eu não pude controlar a saudade que
sentia do arroz.

Ahh, sim. Arroz é tão maravilhoso, pensei.

Comida não era a única coisa com que eu gastava meu tempo.
Também resolvi dar as caras pela Guilda dos Aventureiros.
Previsivelmente, dado que este era o Continente Central, falar o
nome “Fim da Linha” não provocava o menor choque. Só porque
alguém era famoso na América, por exemplo, não significava que
sua popularidade se estendesse ao Japão. Era parecido com aquilo:
Muitas crianças sabiam quem era o Super-Homem, mas quase
ninguém conhecia o Capitão América.

Eles eram aventureiros, então provavelmente já tinham ouvido o


nome Fim da Linha alguma vez. Mas ninguém fez muita confusão.
Mesmo conhecendo os Superds, a característica mais aparente de
um era a cor de seu cabelo. Assim como uma garota do time de
atletismo não era realmente uma garota de time de atletismo diante
da visão de um otaku japonês moderno, a menos que tivesse um
rabo de cavalo preto, Ruijerd não era realmente um Superd sem o
cabelo verde.

Dito isso, os aventureiros de rank A pareciam ser mais atentos do


que o resto.
— Ei, vocês aí. Nunca vi vocês antes. Vocês são de rank A, né?
Seu grupo é novo? — O homem que se aproximou de nós tinha
uma aura semelhante à de Nokopara. Considerando como aquilo
tinha acabado, eu não estava muito interessado em fazer amizade
com ele.

— Começamos há dois anos — respondi.

— Ooh, isso não é algo que se ouve muito por aqui. Fim da
Linha, hein? Esse é o nome de algum demônio do Continente
Demônio, não é?

— Sim. E nós viajamos todo o caminho desde o Continente


Demônio para chegar aqui.

— Heh heh, imaginei. E deixe-me adivinhar, aquele cara ali é o


demônio?

— Sim — respondi —, mas você poderia, por favor, evitar chamá-


lo assim?

— Por quê? É isso que vocês querem, não é? — Ele riu como se
estivéssemos brincando, mas mantive uma expressão séria no
rosto. Eris parecia um pouco perturbada, e Ruijerd parecia
desconfortável.

O homem começou a suar frio ao ver nossas reações.

— Espere, isso é sério?

— Se não acredita em mim, gostaria que ele lhe mostrasse a joia


na testa?
— Não. Não, tudo bem! Só achei que não fosse a coisa real.
Parece que então os Superds realmente existem…

O fato de termos alcançado o rank A no Continente Demônio deu


mais credibilidade às nossas afirmações de que Ruijerd era um
Superd. Apesar do tratamento ruim que os demônios enfrentavam
no Continente Central, as pessoas locais não pareciam tão
aterrorizadas com os Superds, talvez porque a ameaça deles fosse
algo incomum. Afinal, as pessoas que afirmavam que os ursos-
pardos eram inofensivos eram geralmente aquelas que nunca
haviam encontrado um nas montanhas.

O nome Fim da Linha havia perdido a maior parte de seu valor,


mas se as pessoas não tivessem medo de Ruijerd, seria mais fácil
restaurar sua reputação. Dito isso, eu ainda não tinha bolado um
bom plano. E a estatueta que fiz do Superd não valia nada enquanto
estávamos no domínio da crença Millis.

Como eu estava preocupado com esses pensamentos, Eris olhou


para o homem que havia falado conosco.

— Eris, por favor, não comece uma briga — falei.

— Sim, já sei disso.

— Certo, bom.

Nos últimos tempos, ela parou de brigar com os outros


aventureiros. Seu comportamento tinha melhorado desde o último
ano. E a garota já não tinha mais a aparência de uma novata. Um
simples olhar de relance já era o suficiente para anunciar que era
perigosa, então por que alguém se incomodaria em se aproximar?
De sua parte, Eris também passou a entender o tipo de humor
dos aventureiros. Mesmo se alguém dissesse algo ofensivo para
ela, ficava calma o suficiente para perceber que já tinha ouvido a
mesma coisa antes. A garota respondia às piadas com uma
resposta apropriada, a outra pessoa ria e então ela sorria de volta.
Com certeza havia se tornado uma aventureira.

Dito isso, sempre se jogava de cabeça caso alguém quisesse


brigar. Algumas pessoas, a maioria delas de rank C, e jovens,
deliberadamente se aproximavam depois de ver que ela era de rank
A, apesar de sua pouca idade. Apareciam e diziam algo como:
“Aposto que você não tem nenhuma habilidade. Você fez os caras
do seu grupo te carregarem para todos lugares que iam, não é?”

Isso sempre resultava em um nocaute com um único soco. De


alguma forma, idiotas assim pareciam estar em quase todas as
filiais da Guilda que visitamos.

Quanto a mim, eu responderia de improviso: “Isso mesmo! O


mestre do nosso grupo é tão incrível, estamos vivendo uma vida
boa!” Eu não tinha orgulho. Além disso, era verdade que confiamos
muito em Ruijerd para avançar a um rank tão alto. Eris não parecia
gostar da minha atitude, mas não podíamos ter chegado tão longe
sozinhos. Vamos pelo menos mostrar um pouco de modéstia,
pensei.

Campos de cultivo de uma flor que lembrava a mostarda eram


comuns no Reino Kikka. Da rodovia, vimos campos infinitos de
flores brancas com botões. Com certeza era uma indústria próspera,
mas também parecia que o reino era obrigado a cultivar isso, sob
ordens do Reino Rei Dragão. Os abundantes arrozais no Reino
Sanakia também foram plantados sob o comando do Reino. Ser um
estado vassalo era difícil.

O arroz também era um alimento básico na culinária do país. Ao


fazer alguns testes, percebi que quanto mais ao norte fosse, melhor
era a qualidade do arroz. O dia em que provaria o amor à primeira
mordida com o arroz deste mundo talvez não estivesse longe.
Infelizmente, a parte norte do Continente Central estava atualmente
dividida em um grupo de pequenos países envolvidos em conflitos
menores e contínuos. Em circunstâncias assim, não tinha como
cultivarem um arroz delicioso. Realmente uma pena.

Havia um prato chamado Nanahoshiyaki que era popular desde o


Reino Rei Dragão até o Reino Kikka. Era carne coberta com farinha
de arroz e farinha de trigo, frita em óleo bem quente. Em outras
palavras, karaage – frango frito japonês. Pelo visto, o prato foi
desenvolvido no Reino Asura e ganhou enorme popularidade lá
antes de chegar até o local. Era necessário muito óleo de cozinha
para ser preparado, mas como um país vizinho produzia grandes
quantidades do prato, havia muitas oportunidades para comê-lo
nesta região.

Infelizmente, este “frango frito” também não tinha um gosto tão


bom. A carne usada era principalmente de ovelha, porco ou cavalo.
Não havia temperatura definida para a fritura, então às vezes o
prato saía duro e outras vezes ficava pegajoso. Também não era
temperado de maneira adequada, embora pudesse usar sal, ervas
secas ou o molho exclusivo da área para alterar o sabor. A comida
que havíamos comido em Porto Leste de repente não parecia tão
ruim se levada em comparação. Na verdade, pelo contrário.
Sendo um pouco gourmand2, percebi que os cozinheiros deste
país estavam tentando o seu melhor. Ainda assim, o que
entregavam não era o que eu desejava. Era impossível ignorar a
falta do molho de soja. Se eu tivesse só um pouco de molho de soja,
alho e gengibre para preparar o tempero, poderia fazer algo salgado
e doce.

— Ultimamente, você fica com essa expressão preocupada


sempre que comemos, Rudeus.

— Ele é exigente quanto ao sabor — disse Ruijerd. —


Provavelmente está pensando na comida.

— Estou achando tudo muito bom — respondeu Eris.

Sentamos ao redor de uma mesa e os dois começaram a engolir


a comida. Não eram exigentes. Claro, eu não era nenhum crítico
gastronômico para sair por aí julgando as refeições, mas não podia
deixar de pensar em como seria melhor se tivesse ao menos um
pouco de molho de soja.

— Mas a textura da comida é incrível. É crocante e, quando você


morde, o suco simplesmente enche sua boca.

— Sim, é bom — concordou Ruijerd.

Ambos repetiram e limparam seus pratos em um instante. Como


eram sortudos. Podiam achar esse tipo de comida deliciosa porque
era a primeira vez que comiam. Eu, sabendo que existia coisa
melhor, não conseguia ficar contente.

Não podia combater meus desejos por arroz branco e frango frito
com molho de soja, ou por tofu e sopa de missô com algas
marinhas. Minha busca insaciável por boa comida continuou junto
com minha busca por pessoas desaparecidas, que, é claro, não
rendeu absolutamente nenhuma informação.

Foi assim que as coisas continuaram por quatro meses. Então,


finalmente, chegamos ao Reino Shirone.
Capítulo 03:
O Reino Shirone
O Reino Shirone era um país pequeno, mas antigo, com uma
história de duzentos anos. Isso era notável porque todos os países
humanos, exceto o Reino Asura e o País Sagrado de Millis, foram
dizimados na guerra há quatrocentos anos, então, dos novos
países, era o mais antigo.

A parte sul do Continente Central estava repleta de conflitos, até


que o Reino Rei Dragão assumiu o controle de toda a região há
cerca de trezentos anos. Mesmo na atualidade, a terra mais ao
norte continuava sendo uma vasta região banhada por discórdia. O
Reino Shirone ficava perto da Zona de Conflito. Dada sua
localização precária, como esse reino resistiu por cerca de duzentos
anos? A resposta estava na aliança que formou com o Reino Rei
Dragão logo após ser fundado – uma aliança apenas em nome.
Assim como os outros dois países que tivemos que atravessar para
chegar ao local, o Reino Shirone era basicamente um estado
vassalo do Reino Rei Dragão.

Dito isso, eu tinha muito pouco interesse na política nacional. A


única coisa com que me importava era o fato de Roxy estar neste
país. Me perguntei se minha jovem – espera, não. Ela não era
realmente jovem, era? De qualquer forma, me perguntei se minha
adorável e desajeitada mestra ainda continuava em seu cargo de
maga da corte. Ela disse que o príncipe estava causando
problemas, mas eu tinha certeza de que Roxy poderia lidar com
isso.
Já fazia tanto tempo. Só queria vê-la. Queria vê-la e dizer que eu
estava bem. Queria contar sobre quando visitei sua cidade natal.
Queria que ela me mostrasse uma magia de nível Rei, aquela que
tinha mencionado que aprendera a usar. Meu coração disparou de
ansiedade enquanto caminhávamos pela estrada em direção à
capital.

Ao longo da estrada havia campos de arroz desarticulados e


gado pastando. Havia também campos vazios e pastagens cheias
de plantas que pareciam trevos. Eu não era muito versado em
práticas agrícolas, mas as pessoas deste mundo pareciam estar
pensando em como cultivar suas safras.

Embora fosse um estado supostamente vassalo ao Reino Rei


Dragão, o Reino Shirone não passava a vibração de uma colônia,
ao contrário dos dois países pelos quais tínhamos passado antes.
Talvez fosse porque estava muito longe, ou porque estava sendo
usado como um amortecedor entre a zona de conflito e os outros
países. De qualquer forma, foi essa a paisagem que nos
acompanhou ao chegarmos à capital, Latakia.

Neste mundo, a maioria das grandes cidades era cercada por


muros protetores, incluindo Roa e Millishion. Mesmo as cidades
maiores do Reino Kikka e do Reino Sanakia tinham muros ao redor
delas. O mesmo acontecia com a capital do Reino Shirone, que
tinha um muro robusto e imponente revestindo todo seu perímetro.

Parando para pensar, parecia com os do Continente Demônio.


Na verdade, como aquele continente tinha uma concentração tão
alta de monstros poderosos, suas defesas eram mais completas.
Não havia uma única cidade que pudesse se igualar às enormes
muralhas naturais que cercavam a cidade de Rikarisu. Cada cidade
do continente utilizava as habilidades especiais das tribos que
viviam nas proximidades para erguer muros fortes para se proteger.
Até mesmo pequenos assentamentos impulsionavam extermínios
diários às feras próximas de seus vilarejos. Em comparação, os
muros do Continente Central pareciam existir apenas para exibição.

Passamos por eles e entramos na cidade, onde estacionamos


nossa carruagem em um estábulo. Existiam muitos labirintos nas
proximidades da cidade, então havia muitos aventureiros de
aparência durona ao redor, muitos dos quais se engajavam
principalmente em exploração de masmorras. Era assim que Paul e
Ghislaine viveram no passado, e até mesmo Roxy já tinha feito isso
por algum tempo. Eu tinha certeza que era Paul quem disse que
exploradores de masmorra eram incrivelmente habilidosos.

Havia muitos labirintos espalhados por Shirone, e qualquer um


poderia ganhar uma quantia absurda de dinheiro apenas explorando
seus pisos superiores. Provavelmente havia um punhado de
aventureiros de rank S entre os exploradores de masmorras que
almejavam saques mais lucrativos, e nós nos misturamos com
aquela multidão enquanto viajávamos pela estrada principal e
selecionávamos uma pousada aleatória para ficar. Como de
costume, havia algumas feitas especificamente para aventureiros de
rank D. Mesmo as estalagens mais simples desta cidade eram um
pouco caras, talvez porque houvesse tantos aventureiros de rank
elevado por perto.

Em comparação com as acomodações de rank D do Continente


Demônio, a qualidade das acomodações no Continente Central não
era nada ruim. Na verdade, eram boas o suficiente para que
aceitássemos quartos destinados a aventureiros de rank inferior,
mas tínhamos dinheiro suficiente para não nos preocupar com isso.
Muito pelo contrário. Na verdade, poderíamos ter escolhido
acomodações ainda melhores, se quiséssemos.

Eu gostaria de ficar em um quarto melhor, pensei comigo mesmo


em certo momento, mas embora tivéssemos dinheiro sobrando,
parecia ser desperdício. Talvez eu realmente fosse um muquirana.

— Muito bem! Agora que chegamos ao Reino Shirone, vamos


conduzir nossa reunião de estratégia — anunciei aos dois que
estavam na minha frente. Os aplausos apáticos dos dois me indicou
que já estavam bastante acostumados com isso. — Agora, com o
que devemos começar?

— Vamos encontrar sua professora, certo?

A pergunta de Eris me lembrou do que o Deus Homem disse. “O


nome dela é Aisha Greyrat. Atualmente, está detida no Reino
Shirone. Quando os eventos de sua visão acontecerem, você estará
lá, a encontrará e a salvará. Mas não pode deixar que descubram
seu nome. Chame a si mesmo de Mestre do Canil do Fim da Linha e
pergunte os detalhes da situação para ela. Em seguida, envie uma
carta a um conhecido no Palácio Real de Shirone. Se fizer isso, Lilia
e Aisha serão salvas daquele palácio.” Ou algo do tipo.

Se eu confiasse cegamente em seu conselho, só teria que ir até


o beco que vi na visão e já desencadearia o evento. Achei que seria
bom levar Eris e Ruijerd juntos. Afinal, o Deus Homem não disse
nada sobre ir sozinho desta vez.
Continuei pensando. Se acreditasse no Deus Homem, então Lilia
e Aisha estavam sendo detidas no Palácio Real de Shirone. Mas, na
minha visão, encontrei Aisha do lado de fora. Isso significava que
ela de alguma forma conseguiu escapar do palácio. Lembrei-me do
olhar dos dois homens que surgiram atrás dela na minha visão. Já
tinha visto inúmeros deles pela cidade; era o traje padrão dos
soldados.

Em outras palavras, Aisha seria perseguida e então capturada


pelos soldados do palácio. Foi então que eu entrei em cena. Se
fizesse a abordagem mais óbvia para salvá-la, arriscaria fazer do
palácio um inimigo, e deve ser por isso que o Deus Homem disse
para não usar meu nome. Seria melhor se também escondesse o
meu rosto.

Enquanto os cavaleiros estivessem ocupados rastreando minha


identidade falsa, poderia enviar uma carta para minha conhecida no
palácio (Roxy) e pedir ajuda. Se ainda fosse uma maga da corte,
suas palavras deveriam ter algum poder. Eu já devia muito a ela. E
não queria aparecer com uma mão na frente e outra atrás à sua
porta, como uma criança perdida – embora ficaria feliz se nossas
posições fossem invertidas.

Entretanto, era do Deus Homem que estávamos falando. Era


bem possível que ele estivesse tramando algo. Se eu contar muito,
vai estragar minha diversão, dissera. Em outras palavras, esperava
que algo interessante acontecesse e provavelmente não havia nada
que eu pudesse fazer para evitar.

No entanto, ele também disse: Espero que da próxima vez confie


em mim. Com sorte, mesmo se houvesse surpresas desagradáveis
reservadas para mim, não envolveriam coisas como ferimentos
graves ou a morte de alguém próximo.

Mas tudo isso era presumindo que eu confiaria naquele babaca.


Ele pode estar apenas tentando me enganar desta vez, sem se
importar com o que aconteceria depois. Mesmo assim, não havia
sentido em oferecer resistência desnecessária que poderia tornar
tudo catastroficamente pior. Eu não gostava de sentir que estava
dançando nas mãos dele de novo, mas parecia que não tinha
escolha a não ser ouvir.

Meus principais objetivos agora eram procurar Aisha, usar um


nome falso e enviar uma carta para Roxy. Dito isso, como
convenceria meus companheiros? A carta não seria um problema,
mas eu ainda precisava de um bom motivo para procurar nos becos
enquanto usava um nome falso. Desde que partimos de Millishion,
estavam garantindo de ao menos um deles estar sempre me
acompanhando, mesmo em nosso dias de folga. Pelo visto, ainda
estavam preocupados com o quão deprimido fiquei depois do meu
encontro com Paul.

Me senti mal por ter os preocupado, mas havia uma grande


probabilidade de acabarmos enfrentando alguns soldados em nossa
busca para encontrar Aisha. Nem Eris nem Ruijerd eram bons em
atuação. Não importava quem dos dois estivesse junto, parecia
provável que depois algo voltaria para nos assombrar. Nunca é bom
desafiar o karma.

Então… o que deveria fazer?

— Rudeus, com o que você está preocupado?


Hm… bem, é como dizem, melhor agir agora e se preocupar
depois, raciocinei comigo mesmo.

— Na verdade, gostaria que escondêssemos nossos nomes


enquanto estivermos aqui.

— Vamos começar a fingir de novo? Por quê?

— Umm… — Mesmo sendo difícil manter silêncio a respeito do


Deus Homem, não havia razão para esconder o resto de sua
história. — Na verdade, ouvi de uma fonte que membros da minha
família foram levados cativos em algum lugar deste país.

— Sério? — perguntou Eris.

— Ah — resmungou Ruijerd.

Nenhum dos dois perguntou de quem ou de onde obtive essas


informações, embora um ou outro tenha estado sempre me fazendo
companhia enquanto buscava por mais notícias. Mas eu gostaria
que não me pressionassem a respeito disso.

— Ah, já entendi! — exclamou Eris. — Então ficarão em alerta se


ouvirem o nome Greyrat!

— Isso aí.

— Então, quem é a família?

— Lilia e Aisha. Nossa ex-empregada e minha irmã mais nova.


— Na verdade, agora que pensei sobre isso, como deveria chamar
Lilia, afinal? Ela não era realmente minha madrasta.
— Sua irmãzinha? Aquela toda cheia de si que encontramos em
Millishion?

— Tenho mais uma.

— Ahã… — Eris parecia desanimada enquanto torcia os lábios.

Então Norn parecia cheia de si? Não achei isso, mas Eris
claramente teve uma impressão diferente. Me perguntei de que lado
eu ficaria se Eris a socasse…

A garota bufou, triunfante.

— Bem, se é isso que está acontecendo, sem queixas da minha


parte! Impressionante, Rudeus. Você realmente pensou em tudo. —
Foi o que ela disse, mas na verdade eu só estava sendo guiado pelo
Deus Homem. — Então, vamos esconder nossos nomes. Devemos
usar alguns falsos?

— Sim, e seria melhor usarmos alguns comuns — raciocinei.

— Como assim?

— Nomes falsos supostamente são melhores se não se


destacarem.

— Quais são os nomes mais famosos por aqui? — perguntou


Eris em voz alta.

— Enquanto estávamos viajando, ouvi muito os nomes Shyna e


Reidar — disse Ruijerd.

Shyna, Cavaleira do Deus do Norte, era uma cavaleira que


aparecia com frequência na Epopéia do Deus do Norte. Ela era uma
dos três cavaleiros do Deus do Norte e costumava ser uma das
companheiras do Deus. Não importava o quão brutal fosse a
batalha, sempre voltaria para casa, quase como se fosse imortal. A
história provavelmente era fictícia, mas ainda havia muitos que
batizaram suas crianças de Shyna na esperança de que o nome
pudesse impedir que morressem em algum acidente estranho.

Reidar era o nome de um Deus da Água. Era um gênio em


contra-ataques, podia congelar o oceano e andar sobre ele, e foi o
herói que derrotou o Rei Dragão do Mar. O nome daquele homem
lendário foi transmitido de geração em geração. Cada novo líder do
Estilo Deus da Água o herdaria: os homens seriam chamados de
Reidar enquanto as mulheres seriam chamadas de Reida. Era um
nome bastante comum.

Os dois estavam pensando muito nos nomes falsos que usariam.


Fiquei grato por isso. Agora também deveria pensar
cuidadosamente no que eu usaria.

— Rudeus, qual você vai usar?

— Bem, vejamos. Nesse caso, é melhor que saibam logo de cara


que é um nome falso.

— Como assim?

— Não devem conhecer nossos nomes ou rostos. E se usarmos


um nome chamativo pode acabar os confundindo — falei, citando
uma linha de um anime super antigo que já tinha visto há muito
tempo. Para ser honesto, realmente não importava, desde que os
nomes fossem falsos.
— Então devemos escolher um nome legal.

Um nome legal, hein?

— Então tá bom. Vou me chamar de Cavaleiro da Lua Sombria.

— Cavaleiro da Lua Sombria?! — As bochechas de Eris coraram


e seus olhos brilharam.

Era um personagem de Kamen Rider que amava haikus e usava


o que parecia ser um uniforme cafona. Se alguém assim aparecesse
na frente de Eris, ela provavelmente o espancaria.

— Eu também! Ah, espera, não podemos usar o mesmo nome,


um…

Ela realmente gostou tanto assim? Nesse caso, podíamos muito


bem adotar o tema de cavaleiros.

— Então tá bom. Eris, você pode ser a Espada da Lua Sombria e


Ruijerd pode ser a Lança da Lua Sombria. Então nós três estaremos
combinando.

— Muito bom, combinado! Vamos usar isso!

Achei que Ruijerd ficaria constrangido com esse nome, mas não
pareceu muito incomodado. Paul disse que Aqua Heartia era um
nome legal. Pelo visto, o conceito de “nerds” não existia neste
mundo.

— Mas você não parece um cavaleiro, Rudeus — murmurou Eris,


depois que eu pensei que tínhamos resolvido tudo.
Não pareço um cavaleiro, hein? Será que devia me chamar de
Mago Maligno ou General Ômega? Então, novamente, não fazia
ideia se ia mesmo usar o nome. Se não funcionasse, poderia
sempre recorrer ao apelido de Mestre do Canil.

— Tá bom. Então já escolhemos nossos nomes falsos.

— E o que faremos?

— Por enquanto, vou enviar uma carta para Roxy, lá no palácio


real. Vamos gastar nosso tempo coletando informações até que eu
obtenha uma resposta — declarei.

✦✦✦✦✦✦✦

Fui ao mercado no dia seguinte, comprei alguns artigos de


papelaria e um envelope e comecei a escrever minha carta para
Roxy. Comecei com saudações rotineiras, perguntei sobre seu bem-
estar e, em seguida, informei a ela que, embora tivesse sido
teletransportado, estava seguro. Mencionei que agora estava na
capital de Shirone e queria a encontrar. Na esperança de despertar
sua preocupação e ansiedade, mencionei casualmente como todos
de Buena Village estavam desaparecidos e como ninguém havia
sido encontrado, apesar da busca contínua. Em seguida, abordei o
assunto de nossa empregada, Lilia, e encerrei enfatizando uma
última vez (porque isso era importante) o quanto estava preocupado
com minha família. Também estruturei a carta de forma que a
primeira letra de cada linha, se lida verticalmente, dissesse: “ME
AJUDA”. Com tudo o que incluí em minha carta, tinha certeza de
que Roxy entenderia o que eu queria dizer.
A selei com cera, e usei o pingente que ganhei dela para deixar
uma marca. Por um momento considerei enviar a carta sob um
nome falso, mas ficaria em apuros se ela acabasse pensando: “Mas
que diabos é isso?” Então assinei: Seu Amado Pupilo Rudeus
Greyrat, Que Só Quer Cuidar de Você.

Honestamente, Roxy provavelmente reconheceria minha


caligrafia mesmo se eu usasse um nome falso, mas também era
típico dela ser descuidada quando se tratava de algo importante. Eu
não saberia se a carta chegaria ao destino, e também não saberia
quando estaria em suas mãos. Roxy de Schrödinger. Imaginei Roxy
sentada em uma caixa que dizia “por favor, me pegue”. Aww. Pelo
amor da Deusa (Roxy), ela devia virar a caixa e se esconder dentro
dela.

De qualquer forma. Tirando isso, não havia mal nenhum em


garantir que ela lesse o conteúdo, deixando meu nome verdadeiro
no envelope.

— Tudo bem, vou enviar esta carta.

— Tá bem.

— Tudo bem, tome cuidado!

Os dois acenaram para mim, Eris sempre mostrando um sorriso


radiante no rosto. Que decepção. Eu tinha certeza absoluta de que
um dos dois iria me seguir.

— Eh? O que vocês dois vão fazer?

— Pretendo perguntar sobre sua irmã pela cidade — disse Eris.


Isso era bom – falei que iríamos procurar informações. Afinal,
informação era poder, e nunca faria mal tentar reunir tanta quanto
pudéssemos. Na verdade, me senti um pouco envergonhado com o
quão relaxado havia me tornado, tentando passar para a próxima
etapa sem fazer isso primeiro.

— Então tá bom. Vou procurar algumas informações também,


assim que terminar de enviar esta carta. — Com isso, deixei os dois
para trás.

Fui em direção à Guilda dos Aventureiros para enviar a carta. Eu


pretendia começar a procurar informações depois, mas, em poucos
minutos, percebi que estava sendo seguido. No início, pensei que
era Ruijerd me monitorando, provavelmente pensando que eu
poderia ter problemas se ficasse por conta própria. Mas, depois das
últimas coisas que passamos, isso não fazia sentido algum. Seria
mais fácil ele me acompanhar em vez de me seguir. Além disso, sua
capacidade de seguir as pessoas era incomparável. Se realmente
quisesse me seguir, eu jamais o perceberia.

E também não achei que fosse Eris. Ela era péssima em seguir
as pessoas. Eu teria notado no segundo em que saísse da pousada,
e ela preferia ficar bem atrás de mim e em silêncio em vez de se
esconder nas sombras, de qualquer forma.

Então quem era? Havia alguém neste país que guardava rancor
de mim…? Não consegui pensar em nenhuma alternativa. Além
disso, tinha acabado de chegar ao local. Era provável que eu
causasse problemas no futuro, mas ainda não tinha incomodado
ninguém.
Isso estava conectado a algo que fiz no Continente Demônio?
Alguém realmente estaria me seguindo por vingança? Improvável.
Mas talvez fosse um sobrevivente do grupo de contrabando de
Porto Zant que me avistou por acaso. Talvez estivesse planejando
aproveitar a oportunidade para acabar comigo.

Não, a explicação mais provável era que não tivesse


absolutamente nenhuma conexão comigo.

Quando virei a esquina, peguei um vislumbre de uma pequena


figura se escondendo nas sombras. Era uma criança. Talvez uma
das crianças da vizinhança tenha decidido fingir que eu era um cara
mau e me seguir. Ou talvez fosse um órfão que planejava roubar
minha carteira. Se me escondesse em algum lugar, ele poderia
entrar em pânico e me procurar, e eu poderia pular e assustá-lo.

Não, espera. Este mundo tinha raças como hobbits, que só


pareciam pequenos. Não seria bom baixar a guarda.

Mas decidi deixar o perseguidor escapar. Com isso em mente,


virei à direita em dois cruzamentos e entrei em um beco
ligeiramente estreito.

— Hm…?

Tive a súbita sensação de que algo estava errado, uma sensação


de que havia algo preso no fundo da minha garganta.

Deixando isso de lado, usei magia para criar uma parede de


terra. Uma parede de três metros se ergueu, fechando o beco atrás
de mim. Ouvi passos apressados do outro lado enquanto meu
perseguidor corria em direção à parede, seguido pelo som de algo
batendo fracamente contra ela.

Eu tinha ido bem fundo nos becos sinuosos para me livrar


daquela criança. Agora, qual seria o caminho para voltar à estrada
principal? Me senti como uma criança perdida. Ao contrário da
divisão organizada de Millishion, até mesmo as principais vias
públicas desta cidade não seguiam um padrão. Mesmo alguém com
um bom senso de direção, como eu, estava começando a se perder.

Achei que, se fosse preciso, sempre poderia usar magia para


subir em um telhado. Espera. Espera aí – este beco era igual ao da
visão que o Deus Homem me deu.

— Ah!

Finalmente entendi o sentimento estranho de alguns momentos


atrás. Era um déjà vu.

Girando nos calcanhares, corri de volta para o beco sinuoso. Dei


a volta em um entroncamento, mas consegui refazer meus passos
até a parede de terra que criei.

— Não, pareee! — Ouvi alguém gritando. — Devolva!

Coloquei minha mão contra a estrutura sólida e canalizei minha


mana nela. Usando magia da terra, enfraqueci a composição da
parede enquanto simultaneamente utilizava magia do vento para
desencadear uma onda de choque. Com um estrondo enorme, a
coisa toda desmoronou e caiu.

Diante de mim estava a visão que o Deus Homem me mostrou.


Um soldado agarrou rudemente a mão de uma garotinha, enquanto
outro segurava um papel que havia tomado dela, rasgando-o em
pedaços.

— Isso é para o meu pai! Não rasgue isso! — gritou a garota.

Em meio ao eco de seus protestos, os soldados olharam em


minha direção, confusos.

— Q-quem diabos é você…?

A garota tinha um rosto que lembrava o de Lilia, com o cabelo


castanho de Paul preso em um rabo de cavalo. Ela estava vestindo
uma roupa folgada de empregada. Seu rosto, que normalmente
deveria revelar felicidade e alegria, estava contorcido com lágrimas
e ranho escorrendo de seu nariz.
Os soldados estavam olhando para ela com olhares obscenos
em seus rostos. Espera, não. Não, isso não estava certo. Pareciam
sentir pena dela. Estavam fazendo isso por dever, e não porque
queriam?

— Quem é você?! Diga o seu nome!

— Eu sou o… — Quase disse “irmão dessa garota”, mas me


contive. Não devia revelar meu nome real. — Uh… Eu sou o
Cavaleiro da Lua Sombria!

— Que parte de você é um cavaleiro? Tá na cara que você é um


mago.

— Ugh…

Droga! Da próxima vez, eu definitivamente iria de Mago Maligno!

— Escuta, garoto. É bom que você queira bancar o herói, mas


somos soldados do palácio. Essa garotinha se perdeu, então viemos
acompanhá-la até em casa.

Estava na cara que me consideravam nada além de uma criança


travessa. Eu tinha certeza de que estavam mentindo sobre suas
intenções, mas havia uma expressão preocupada no rosto do outro
soldado enquanto ele olhava para Aisha, que ainda estava
soluçando. O que quer que estivesse acontecendo no palácio para
resultar na detenção de Lilia e Aisha, não significava
necessariamente que os soldados rasos também fossem bandidos.
Será que devia tentar dialogar?

— Mas vocês rasgaram a carta que ela estava segurando.


— Ahh… isso é, bem, como posso explicar? Adultos têm seus
motivos.

Aham. Os adultos tinham muitos motivos.

— Ah!

Aisha encontrou uma abertura e bateu na mão do soldado. Ela se


escondeu atrás de mim e se agarrou à minha cintura, seu rosto
coberto de lágrimas e ranho.

— P-por favor, ajuda!

Olhando para sua expressão desamparada e comportamento


frenético, de repente não me importei em me tornar ou não inimigo
deste reino.

— Doseguhs dook muhledder e dore iddub!

Eu não tinha absolutamente nenhuma ideia do que ela estava


dizendo em meio aos soluços, mas poderia dizer que estava
desesperada. Certo. Hora de acabar com isso. Dentro de mim
existia um adulto. Não consegui manter a farsa de uma criança
brincando de herói.

Sem aviso, levantei minha mão e silenciosamente enviei um


canhão de pedra voando para os soldados.

— Mnh! — O homem no qual eu tinha mirado sacou sua espada


instantaneamente e interceptou o projétil.

Opa! Essa foi uma reação e tanto! Estilo de Deus da Água, hein?
Isso dificulta um pouco as coisas. Mas o Canhão de Pedra não era o
único feitiço que eu conhecia. Contanto que mantivesse alguma
distância, isso seria fácil.

Mesmo você sendo a primeira pessoa a conseguir evitar meu


canhão de pedra, pensei.

— Um mago que pode usar magia sem encantamentos?!

— Então – ele poderia ser aquele?!

— Chame reforços!

— Cert… Aaah!

Criei um fosso sob os pés do soldado que estava prestes a fugir.


Whoosh! Ao mesmo tempo, disparei canhões de pedra em rápida
sucessão para desviar a atenção do outro soldado. Ao fazer isso,
disse a Aisha:

— Vamos sair correndo. Você consegue?

— Ngh, wah… sim…! — Ela assentiu, mesmo em meio aos


soluços.

Muito bom, muito bom. Tudo que eu tinha que fazer era deixar o
oponente inconsciente e poderíamos escapar.

Piiiiii!

Assim que pensei nisso, um ruído agudo, como o grasnar de um


pássaro, ecoou por perto. Surgiu do fosso que eu fiz. Um apito!
Aquele soldado estava soprando um apito de alarme!

Momentos depois, vindos de todos os lados – próximos e


distantes – outros assobios se juntaram ao coro. Piii, piiiiiiiu!!
Cada um soava um pouco diferente, provavelmente para permitir
que as pessoas identificassem suas localizações exatas. Assim que
meu oponente viu que eu havia parado de lançar Canhões de Pedra
contra ele, gritou:

— Criamos um bloqueio em torno desta área! Mais soldados


estarão aqui em um momento. Desista de sua luta inútil e entregue
a garota! Não vamos te machucar!

A área estava prestes a ser invadida. No entanto, eu ainda tinha


uma carta na manga.

— Aisha! Segura firme!

— Hã?!

— Não solte, não importa o quê!

Apesar de sua confusão, Aisha colocou os braços em volta da


minha cintura e se segurou. Peguei seu colarinho com minha mão
esquerda e canalizei mana na minha mão direita. Então, conjurei
uma lança de terra com a ponta achatada aos meus pés e a usei
como uma catapulta para nos lançar ao céu.

— O-o quêêê?!

— Aaaaaaah!

Ah ha ha! Até logo, perdedores!

A propósito, quebrei minhas duas pernas quando pousamos.


Com certeza nunca mais voltaria a fazer algo parecido.
Capítulo 04:
Deus Não Está Aqui
Aisha chorou por um bom tempo depois que escapamos, e
também soltou enormes soluços que sacudiram todo o seu corpo.
Até mesmo fez xixi nas calças. Mas eu entendia como ela se sentia.
Se dois homens assustadores agarrassem meu braço e me
ameaçassem, provavelmente também começaria a tremer.

Mas não ficaria assustado ao ponto de fazer xixi nas calças.

Aqueles dois soldados provavelmente foram mais cavalheirescos


do que a maioria seria, mas deve ter sido uma experiência terrível
para uma criança de cinco ou seis anos. Parecia que, quanto mais
jovem, mais escandalosas seriam as diferenças de idade – para os
alunos do fundamental, os do ensino médio poderiam ser tão
assustadores quanto adultos. E os soldados eram adultos de
verdade.

Eu, pelo menos, queria acreditar que era essa a razão para ela
estar chorando, e não o estalo das minhas duas pernas quebrando
quando pousamos no chão. Rapidamente usei magia de curar para
ajustar tudo, mas aquilo com certeza doeu.

Atualmente, estava evitando mencionar seu pequeno acidente


enquanto lavava silenciosamente a sua roupa de baixo. Estávamos
de volta à pousada. Quando chegamos, Eris e Ruijerd já tinham
partido, tinham dito que sairiam em busca de informações, então
provavelmente só voltariam de noite.

E, momentos atrás, Aisha tinha tirado sua roupinha de


empregada, que era toda folgada. Depois que ela tirou sua calcinha
totalmente encharcada, eu a enxuguei com uma toalha umedecida e
dei a ela uma das camisas que sempre usava.

Então peguei um balde de madeira, um pouco de sabão e sua


calcinha. Meu antigo eu teria ficado incrivelmente excitado com essa
situação e o item em minha mão. Digo, é só pensar nisso: Na cama
havia uma garotinha chorando, usando apenas uma blusa grande
demais para ela. Qualquer pervertido que se encontrasse em tal
situação ficaria excitado, certo?

Ah, por que não dei uma calcinha limpa para ela usar? Isso era
óbvio – não tinha nenhuma. Fui instruído a nunca tocar nas
calcinhas de Eris, afinal de contas, e não importa o quão urgente
fosse a situação, não poderia ir contra uma das regras pétreas do
Fim da Linha. Simplesmente pensar nisso já era assustador.

De qualquer forma, de volta à história.

Meu coração estava calmo como a superfície parada de um lago.


Esqueça a excitação – não havia nem mesmo uma ondulação na
água. Estava tudo tão polido e imóvel quanto um espelho. A única
coisa que me incomodava eram os soluços intermináveis de Aisha.
Será que, quando parei de prestar atenção, virei algum tipo de
homem santo? Ou tinha ficado com tanto medo de despertar a ira
de Eris que meu monstrinho ficou incapaz de se revelar para as
batalhas? Ei, amigão, tudo bem aí embaixo?

Esses pensamentos incômodos me preocuparam enquanto eu


lavava e secava a calcinha de linho simples e o uniforme de
empregada de Aisha, que pareciam feitos de materiais de alta
qualidade. Os entreguei para ela, que em algum momento tinha
parado de chorar, e ela as vestiu feliz da vida.

Pensando bem, eu também nunca tive interesse pelos seios de


Zenith. Na minha encarnação anterior, nunca me importei muito com
coisas como gênero ou idade, mas, aparentemente, para o meu
corpo atual, a família estava além dos limites. A vida com certeza
era uma coisa misteriosa.

✦✦✦✦✦✦✦

— Meu nome é Aisha Greyrat! Muito obrigada! — Vestida com


seu uniforme de empregada, Aisha fez uma reverência para mim.
Seu rabo de cavalo balançou com o movimento.

Rabos de cavalo eram algo realmente incrível. Eris


ocasionalmente usava um, mas o dela estava mais para aqueles
das garotas de clubes esportivos. Aisha, por outro lado, parecia
mais uma boneca incrivelmente adorável. Seus olhos estavam
injetados de sangue, então, não seria melhor dizer que estava mais
para uma boneca amaldiçoada?

— Sir Cavaleiro, se você não tivesse me salvado, eles teriam me


arrastado de volta para lá!

Quando ela me chamou de “Sir Cavaleiro”, lembrei-me de que


me apresentei como o Cavaleiro da Lua Sombria. Uma gota de suor
escorreu pelas minhas costas. Talvez tivesse me empolgado um
pouco demais durante a conversa com Eris. Quando pensei em
como aquele nome poderia ser usado para zombar de mim dentro
de dez anos, meio que me arrependi de usá-lo.
— Sério, muito obrigada. — Ela voltou a curvar-se
profundamente. Quantos anos que ela tinha mesmo – uns seis? Era
muito bem-educada para alguém tão jovem. — Já que você me
salvou, tenho apenas um pedido egoísta a te fazer!

— Certo.

— Por favor, me dê papel e caneta para que eu possa escrever


uma carta! Além disso, diga-me onde fica a Guilda dos Aventureiros!
Irei apreciar a sua ajuda. — Assim que ela terminou de falar, Aisha
voltou a curvar a cabeça.

Pelo menos ela sabia dizer “por favor” quando pedia ajuda. Era
uma garotinha esperta. Ah, isso mesmo – Paul mencionou algo
sobre Lilia dar a Aisha uma educação extra-rigorosa, não foi?

— Você só precisa disso? Tem algum dinheiro?

— Não tenho dinheiro!

— Não te ensinaram que você precisa de dinheiro para enviar


cartas e comprar caneta e papel? — Era fundamental ensinar,
desde cedo, a importância do dinheiro para as crianças. Eu
duvidava que Lilia deixaria algo tão importante de lado, mesmo se
houvesse algumas coisas que as crianças não deveriam aprender
até ficarem mais velhas.

— Minha mãe me ensinou que, se uma menina como eu olhar


para alguém com um olhar suplicante e disser: “Quero enviar uma
carta para meu papai”, não terei que gastar dinheiro.

Aha – Lilia, sua canalha. Você estava ensinando sua filha a usar
sua feminilidade como uma arma? Quando percebi isso, os
maneirismos de Aisha começaram a parecer muito encenados. Não,
sério, o que Lilia estava ensinando a ela?

— Há muito tempo tento entrar em contato com meu pai, mas as


pessoas do castelo me dizem que não, e não me deixam mandar
nenhuma carta!

Eu já tinha ouvido falar que Lilia estava sendo detida. Agora


sabia que também não estavam permitindo que ela ou Aisha
enviassem cartas. As coisas talvez estivessem mais sérias do que
imaginei. Quando o Deus Homem me disse que eu precisava “salvá-
las”, suspeitei que essa era uma situação em que Paul estava sendo
traído.

— Há mais alguém que você possa pedir ajuda além do seu pai?

— Não há!

— Por exemplo, alguém que sua mãe conhece, como uma garota
um pouco mais velha que você e tem cabelo azul? Ou, talvez… um
irmão seu que deveria estar por aí em algum lugar? — perguntei,
completamente indiferente.

Aisha franziu as sobrancelhas. Ela tinha uma expressão de


consternação no rosto, mas por quê?

— Eu tenho um irmão, mas…

— Mas?

— Não posso pedir ajuda a ele.

Por que diabos não?! Ele acabou de te salvar, não foi?!


— V-você se importa se eu perguntar o seu motivo?

— Motivo! Claro! Minha mãe me contou todos os detalhes sobre


o meu irmão.

— Certo.

Aisha continuou:

— Mas eu não posso acreditar em nada daquilo! Como alguém


seria capaz de usar magia de nível Intermediário aos três anos e
virar um Mago da Água de nível Santo aos cinco? E, ainda por cima,
virar tutor da filha do lorde suserano da região? Não dá para
acreditar em nada disso! Ela definitivamente está mentindo!

Bem, eu não poderia culpá-la por pensar assim.

— Mas se você o conhecer, pode acabar descobrindo que ele


realmente é um bom irmão mais velho, não acha?

— Improvável!

— P-por que?

— Minha mãe guardou uma caixinha do tesouro lá em casa. Ela


sempre me disse para não tocar, então perguntei o motivo. Pelo
visto, tinha algo muito importante para o meu irmão dentro daquilo.

Uma caixinha… Pensando bem, senti como se já tivesse


escutado Paul mencionando algo semelhante.

Aisha continuou:

— Uma vez, quando minha mãe não estava por perto, dei uma
espiada. O que você acha que estava dentro daquilo?!
— E-eu não sei, o quê?

— Calcinhas. Calcinhas de uma menina. De acordo com meus


cálculos, calcinhas de uma menina bastante jovem. Por um
momento, pensei que talvez meu irmão mais velho fosse, na
verdade, uma irmã, mas seriam grandes demais para ele. Portanto,
havia apenas uma pessoa a quem poderiam pertencer, e essa é a
tutora do meu irmão. Ele só tinha uns quatro ou cinco anos e já
estava guardando a calcinha de uma garota, sempre pensando no
futuro.

Cálculos? Espera, espera um segundinho aí. Essa criança era


muito inteligente para sua idade. Mas que diabos? Ela só tinha uns
cinco ou seis anos, certo?

— Será que você não calculou mal? — sugeri.

— Não. Pedi informações para a minha mãe. Parece que meu


irmão espiava aquela garota enquanto ela tomava banho e também
vigiava os pais enquanto eles estavam se divertindo. Minha mãe
tentava encobrir isso, mas eu sabia que não há engano – meu irmão
é um pervertido!

Um pervertido! Um pervertido! Um pervertido! Não há engano,


meu irmão é um pervertido! E, só por diversão, mais uma vez: Um
pervertido!

Certo, pare! pensei. Minha capacidade mental já está zerada!

— A-ah, certo, então seu irmão é um pervertido. Isso é realmente


complicado, ha ha ha… — Fui eu quem provocou isso, mas, sério,
fiquei em choque. Nunca imaginei que algo assim fosse… Droga.
Agora entendi. Foi por isso que o Deus Homem me disse para não
usar meu nome verdadeiro.

— A propósito, Sir Cavaleiro, qual é o seu nome verdadeiro?

— Isso é segredo. Nas ruas, me chamam de Mestre do Canil do


Fim da Linha — respondi, mantendo um olhar frio e composto em
meu rosto. Provavelmente isso seria o melhor, ao menos por agora,
caso quisesse evitar revelar que era seu irmão mais velho.

— Aah! Senhor Mestre do Canil, não é? Que legal! Acho que


você pode usar até magias de invocação e coisas assim, não é?

— Não — respondi. — Tudo o que posso fazer é controlar dois


cães muito ferozes.

— Isso é incrível! — Aisha tinha um brilho nos olhos ao olhar


para mim, quase como se fosse um cachorrinho.

Um cachorrinho que estava sendo enganado, claro. Isso fez meu


coração doer um pouco, mas se revelasse que era seu irmão mais
velho, ela poderia não estar disposta a me ouvir. Tudo o que
precisava fazer era esconder minha verdadeira identidade até que
pudesse impetuosamente resgatar Lilia. Uma vez que fizesse isso,
melhoraria muito sua percepção sobre mim.

— Tudo bem, eu vou resgatar sua mãe!

— Hein? — Ela ficou olhando para mim de olhos arregalados


quando fiz essa declaração. — M-mas…

— Por favor, deixe comigo!


E foi assim que Aisha e eu nos conhecemos. Ela com certeza
tinha a pior impressão de mim, mas não era tão ruim quanto a de
Norn, considerando que bati em nosso pai bem na frente dela.
Agora, pensava que eu era um pervertido por ter guardado a
calcinha de Roxy, mas acabou entendendo que às vezes as
pessoas precisavam de algo para guardar.

Deixando isso de lado, por que ela chamaria alguém de


pervertido só por estar guardando uma calcinha? Aisha ainda não
tinha idade suficiente para ligar a roupa íntima ao desejo sexual. Ela
nem tinha idade suficiente para entender o que era excitação
sexual. Se alguém estivesse ensinando coisas estranhas para
minha irmã mais nova, não ficaria impune.

— A propósito, Senhor Mestre do Canil.

— Sim?

— Como é que você sabe meu nome?!

Vamos deixar de fora a parte em que lutei por uma desculpa até
que finalmente vi o nome dela bordado na borda de suas roupas.

Aisha me contou o que aconteceu nos últimos dois anos. Ela


deixou os detalhes de lado, então a explicação foi bem pobre, mas
entendi o que queria dizer.

Parecia que ela e Lilia haviam sido teletransportadas para o


Palácio Real do Reino Shirone. Seu aparecimento súbito foi
considerado suspeito e as duas foram presas. Lilia havia tentado se
explicar, mas os poderes instituídos decidiram mantê-las confinadas
no palácio. Aisha não entendia o porquê ou o que aconteceria a
seguir, mas sabia que, por algum motivo, nem mesmo a deixariam
enviar uma carta.

Pelo visto, não haviam feito nada de ruim para Lilia, ou pelo
menos nada que deixasse marcas visíveis. Quem sabia o que
poderia estar acontecendo à noite enquanto Aisha não estava ciente
das coisas? Lilia estava envelhecendo, então, esperançosamente, a
possibilidade de as pessoas se esforçarem para violá-la seria baixa.

Era estranho que ainda continuassem detidas mesmo dois anos


e meio após serem teletransportadas. Lillia realmente não
conseguiu esclarecer o mal-entendido, mesmo após tanto tempo?
Deviam existir mais fatores dos quais eu não estava ciente.

E, em meio a tudo isso, Aisha estava tentando enviar uma carta


para Paul, pedindo por socorro. Ela se perdeu e percebeu que, se
seguisse um aventureiro, acabaria chegando à guilda. Pelo visto, o
aventureiro que encontrou era eu.

Aisha não mencionou Roxy. Será que a maga não estava


tentando ajudar Lilia? Não… era possível que as coisas só
estivessem tão ruins assim porque Roxy estava tentando ajudar por
baixo dos panos. Seja lá qual fosse o caso, tudo o que eu poderia
fazer era esperar pela resposta de minha mestra. O Deus Homem
tinha dito para enviar uma carta a ela. Agora que já tinha feito isso, o
resto das peças do quebra-cabeça deveriam se encaixar.

— Aah, então você veio do Continente Demônio, hein? — Aisha


estava ansiosa para saber mais sobre mim.

— Aham. Também fui pego no Incidente de Deslocamento de


Fittoa.
— E o que você fazia antes disso?

— Era professor particular. Estava ensinando magia para a filha


de um nobre.

— Ah, sério? Aonde?

— Roa — falei.

— Esse é o mesmo lugar que meu irmão! Talvez vocês dois já


tenham até se encontrado!

— S-sim. A possibilidade é tão grande quanto achar uma agulha


no palheiro, mas existe.

Deixando isso de lado, parecia que Aisha tinha aprendido muitas


coisas com Lilia. Bom senso geral, etiqueta, sabedoria que a
ajudaria no dia a dia, como ser uma empregada doméstica e etc.
Parecia suspeito para mim que ela pudesse entender tudo isso na
sua idade, mas, pelo menos, sabia o suficiente para ser capaz de
me explicar as coisas. Sua capacidade de falar também estava
avançada para sua idade. Talvez estivesse apenas fingindo agir
como uma adulta, mas ainda era inteligente. Sério.

Desde que era jovem, tinha a capacidade de absorver tudo o que


lhe ensinavam como uma esponja. Me perguntei como ela ficaria
quando envelhecesse. Será que eu conseguiria manter minha
dignidade de irmão mais velho?

— Se você estava ensinando a filha de um nobre, talvez a família


dela estivesse em contato com o empregador do meu irmão. Já
ouviu algo sobre isso?
— N-não — gaguejei. — Receio que nunca escutei nada sobre
ele.

— Ah, tá bom. Eu esperava ouvir quais foram suas impressões


sobre meu irmão.

— Uhhhhh, a única coisa que já ouvi foi que a Jovem Senhorita


na mansão do Lorde Suserano era muito violenta e impossível de se
controlar. — Por mais que eu estivesse tentando fornecer poucas
informações, Aisha acabaria descobrindo que eu era seu irmão. E
eu não queria que ela acabasse descobrindo que falei
deliberadamente sobre mim enquanto me passava por outra
pessoa.

Assim sendo, minha irmã me perguntou várias coisas sobre o


Continente Demônio, as quais respondi em detalhes. Eu estava
preocupado em não saber o que falar com uma criança tão jovem,
mas Aisha era tão inteligente que nunca faltava assunto. Por mais
estranho que pareça, encontrei-me genuinamente gostando do que
foi meio que a minha primeira conversa real com minha irmãzinha.

Algumas horas depois, talvez exausta, Aisha adormeceu. Eris e


Ruijerd voltaram depois que o sol se pôs, parecendo cansados. Pelo
visto, foram até as favelas para coletar informações e muita coisa
aconteceu, incluindo uma briga.

Brigaram entre si de novo? Pareciam estar se desculpando, mas


isso não era nenhuma novidade, então não pediria por detalhes.
Todo mundo faz algumas bobeiras às vezes, até eu. Desde que
estivéssemos uns com os outros, ficaria tudo bem.
Contei como encontrei Aisha, como Lilia estava trancada no
castelo e como muitas coisas sobre a situação pareciam
terrivelmente suspeitas. Enquanto fazia isso, disse que também
estava escondendo meu nome. Ficaram impressionados com o
quão importante parecia ser a questão de manter minha identidade
real em segredo.

— Por que você está sendo tão evasivo quanto a isso? —


perguntou Eris.

— Pelo visto, alguém contou algumas mentiras sobre mim para


ela. Quero mostrar que tenho um lado bom, assim a Aisha vai
corrigir as percepções que tem sobre mim.

— Hmm. Bem, acho que você é legal do jeito que é.

— Eris… — Tentei mostrar um sorriso de agradecimento por


dizer coisas tão doces sobre mim, mas quando fiz isso, ela deu um
passo para trás.

— Ugh… por que você fica com esse sorriso assustador no rosto
quando eu te elogio?!

Pelo visto a minha marca registrada era assustadora. Isso foi um


pouco chocante. Alguém por favor me dê uma cara nova…

— De qualquer forma, se é isso que está acontecendo, então


vamos atacar o castelo! — exclamou Eris, totalmente disposta a
partir para o ataque.

— Já faz um tempo desde que invadi um castelo. — Até Ruijerd


estava erguendo sua lança como se estivesse ansioso para
começar.
Corri para esfriar seus motores.

— Não, não. Por enquanto vamos esperar uma resposta à minha


carta.

Eris parecia ter ficado desanimada com minhas palavras. Como


sempre, ela só queria sair feito louca. Certamente teria sido mais
simples dispensar a sutileza e lançar um ataque ao castelo, mas
isso poderia colocar Roxy em apuros, e eu queria ser capaz de olhar
nos olhos dela quando nos encontrássemos. Primeiro,
precisávamos saber exatamente o que estava acontecendo.
Definitivamente, não era só porque eu queria ver a Roxy, só para
informar.

Com isso, o dia chegou ao fim.

✦✦✦✦✦✦✦

No dia seguinte, uma cavaleira apareceu na estalagem quando o


relógio estava quase batendo no meio-dia. A armadura que usava
tinha um estilo semelhante à dos possíveis sequestradores de
Aisha, embora fosse de qualidade superior. Fiz os outros esperarem
no quarto enquanto desci para o saguão sozinho para lidar com ela.

— Você é o Lorde Rudeus?

— Sim.

— Faço parte da guarda imperial do Sétimo Príncipe. Meu nome


é Ginger York.

Fiquei me perguntando por que um membro da guarda imperial


estava ali. Então, novamente, Roxy estava ensinando um príncipe.
— É um prazer conhecê-la. Sou Rudeus Greyrat.

A cavaleira estava sozinha. Ela me observou sem um pingo de


emoção enquanto fazia uma apresentação cavalheiresca e se
curvava. Devolvi o cumprimento com uma reverência ao estilo
nobre. Eu não tinha certeza de qual era a saudação apropriada, mas
contanto que transmitisse minha sinceridade, isso seria o suficiente.

— Lady Roxy pede que você vá encontrá-la. Por favor, me


acompanhe ao palácio real.

Ela não mencionou nada sobre os eventos que ocorreram no dia


anterior. Eu não tinha escondido meu rosto durante a confusão, mas
parecia que não fui identificado.

Hesitei. O que deveria fazer com Aisha? Se a levasse comigo,


saberiam que fui eu quem atacou aqueles soldados usando o
Canhão de Pedra. Teria que simplesmente deixá-la para trás.
Poderia me desculpar com os soldados assim que tivesse Roxy me
apoiando.

Com isso decidido, disse a Aisha para não sair do quarto em


nenhuma circunstância e confiei sua proteção a Ruijerd e Eris.
Como iria encontrar Roxy, verifiquei a minha aparência duas vezes
antes de partir. Meu cabelo estava penteado e eu estava com
minhas vestes habituais. Ah, certo, pensei. Deveria levar uma caixa
de doces para ela. Me perguntei o que deveria comprar, já que não
a via há muito tempo.

Foi então que localizei a estatueta ultra-impopular de Ruijerd, no


fundo da minha bolsa de ferramentas. Lembrei-me de que em uma
de suas cartas, falou sobre ter visto uma estatueta de si mesma.
Podia ser interessante mostrar este modelo e dizer que também
tinha criado aquela outra estatueta.

— Você está sendo terrivelmente meticuloso com isso —


comentou Eris.

— Já faz um tempo desde a última vez que vi minha mestra.

— Você vai me apresentar formalmente a ela, certo…?

— Sim, é claro. Vou fazer isso assim que tivermos resolvido tudo.
— Terminei minha última preparação.

— Tem certeza de que vai sozinho mesmo? — perguntou Ruijerd


em um tom preocupado. Eu sempre me metia em problemas
quando ficava sozinho, então entendia a sua preocupação.

— Sem problemas. Se acontecer alguma coisa, voarei direto de


volta para cá. — Isso era apenas uma figura de linguagem, é claro.
Eu nunca iria tomar uma atitude tão drástica a ponto de voltar a
quebrar minhas duas pernas.

— Senhor Mestre do Canil… — disse Aisha.

— Não se preocupe. Deixe isso comigo. — Ela parecia ansiosa,


então afaguei sua cabeça. Aisha mordeu seus lábios, formando uma
linha, e acenou com a cabeça. Boa garota, pensei.

Liderado pela cavaleira Ginger, fui em direção ao palácio real.


Nós nos movemos rapidamente ao longo da beira de uma estrada
principal, movimentada e com carruagens indo e vindo. A estrada
tinha tantas curvas e desvios, e às vezes era tão estreita que as
carruagens não podiam passar livremente umas pelas outras.
Presumi que fosse uma contramedida para o caso de um ataque
inimigo. Já tinha ouvido falar de uma cidade da região de Mino, no
Japão, que tinha ruas parecidas.

Ginger parecia bastante taciturna, então não falei mais do que o


necessário. Se eu fizesse alguma pergunta, ela responderia. E era
sempre educada.

— Certo, agora o próximo! — Uma voz enérgica explodiu no ar.


Virei minha cabeça na direção daquilo. — Ela costumava ser uma
cavaleira do país de Washawa. Esta é uma escrava pronta para a
batalha! É um pouco agressiva, mas é habilidosa! Três moedas de
ouro!

Um mercado de escravos ocupava uma área voltada para a


estrada principal. Lá, em uma plataforma alta, estava uma fila de
escravos. Havia três humanos e um homem-fera com orelhas de
coelho. Dois deles eram homens e duas eram mulheres. Todos
estavam com seus corpos completamente expostos. Mesmo de
longe, podia ver suas peles brilhando. Provavelmente tinham sido
lubrificados para ficarem mais atraentes.

Eu tinha certeza de que o homem do povo-fera havia sido


capturado da Grande Floresta. E não tinha meios, muito menos
obrigação, de ajudar, mas ainda assim franzi a testa. Olhei para o
seio da mulher Washawa e senti meu amiguinho lá embaixo
reagindo.

Podia até mesmo ouvir o comerciante ao lado dos escravos


explicando várias coisas sobre eles, mas não conseguia entender os
detalhes. Provavelmente estava falando sobre os pontos positivos
para a venda de cada escravo, como suas habilidades e país de
origem. Depois de alguns momentos, as vozes da multidão ficaram
mais altas. Era um leilão.

Se Lilia e Aisha tivessem azar, poderiam ter terminado ao lado


daqueles escravos. Suas circunstâncias atuais não pareciam tão
ruins se fossem comparadas – mas não era como se eu já pudesse
dizer isso com alguma certeza.

Percebi que Ginger estava olhando para o mercado de escravos


com a testa enrugada. Seu dever era manter a ordem pública no
país. Talvez ver pessoas fazendo negócios tão inescrupulosos
abertamente a incomodasse.

— Achei que o mercado de escravos fosse mais escondido —


falei, tentando puxar conversa. Os mercados de escravos que já
tínhamos visto eram quase sempre meio escondidos. A escravidão,
por si só, não era vista como algo ruim neste mundo, mas foi a
primeira vez que vi escravos sendo vendidos abertamente e, ainda
por cima, em uma rua principal.

— De fato. Esses tipos de leilões normalmente são realizados


escondidos.

— Então, suponho que hoje está havendo algum tipo de evento


ou algo assim?

— Não. Parece que ontem, alguns aventureiros entraram em


uma briga na área onde normalmente ficam os mercados de
escravos. Como aquele local não pode mais ser usado, foram
temporariamente realocados a este.
Uma briga no mercado de escravos, hein? Eris e Ruijerd
disseram que acabaram se envolvendo em uma briga. Senti que as
duas coisas deviam estar conectadas, mas tocar no assunto só iria
causar problemas.

— Perdoe-me — disse Ginger quando de repente me agarrou por


baixo dos braços e me levantou. — Por favor, assista aos
procedimentos daqui.

— Ah, obrigado.

Ela estava me oferecendo um ponto de vista melhor para


acompanhar o que estava acontecendo. Com certeza era uma
mulher perceptiva. Com certeza não era uma beldade, mas com seu
poder de observação, eu tinha certeza de que encontraria um bom
marido algum dia.

— Lady Roxy também ficava pulando tentando dar uma olhada


sempre que havia uma multidão.

— Sério?

— Sim. Mas ela sempre parecia ficar em algum tipo de conflito


interno quando eu a levantava assim.

Tentei imaginar – Roxy pulando para cima e para baixo enquanto


reclamava: “Não consigo ver nada.” Então imaginei Ginger, com
suas boas intenções, incapaz de ficar parada só assistindo. Então,
finalmente, Roxy, mais uma vez, parecendo desanimada ao dizer:
“Por favor, me coloque no chão.”

— Você já a segurou assim antes? — perguntei.


— Sim, e ela ficava brava e mandava colocá-la no chão na
mesma hora.

Eu sabia.

— Onde você a segurava?

— Onde? Fazia igual estou fazendo com você agora. — Ela tinha
me levantado segurando meus braços.

— E como parecia?

— Exatamente como eu disse — repetiu Ginger. — Ela parecia


em conflito e mandava colocá-la no chão na mesma hora.

Eu queria saber era sobre a pele dela, mas, tudo bem.

— Por favor, me coloque no chão — falei. — Vamos logo. — Não


havia nada de particularmente interessante acontecendo. Tudo o
que pude ver foram os escravos prestes a serem vendidos em uma
gaiola de ferro.

Nos viramos na direção do palácio e apertamos o passo.

— O que minha professora está fazendo no palácio real? —


perguntei, pensando que tinha encontrado algum assunto que
tínhamos em comum.

— Normalmente ela fica ensinando o príncipe, mas quando não


está ocupada, se junta aos soldados para o treinamento.

Me lembrei de que Roxy havia mencionado algo parecido na


carta que me enviou quando eu estava em Roa.
— Ah, sim, ouvi como vocês conduzem o treinamento sob a
premissa de que seu oponente é um mago, não é?

De acordo com a carta de Roxy, os soldados estavam treinando


para desviar a magia que ela lançaria neles enquanto estavam em
combate corpo a corpo um contra o outro. A ideia era aprender a
desviar a magia que poderia aparecer repentinamente durante o
treinamento, e isso poderia ajudar a escapar da morte quando
realmente acabassem enfrentando as circunstâncias reais em um
campo de batalha.

— Isso mesmo. Já somos todos espadachins de nível


Intermediário do Estilo Deus da Água, mas graças a Lady Roxy,
agora podemos desviar de magias quando elas são lançadas de
repente em nossa direção.

Então foi por isso que o cavaleiro do dia anterior foi capaz de
desviar o meu Canhão de Pedra. Ver um soldado sem qualquer
nome se defendendo de um de meus ataques foi um choque, mas
agora fazia sentido, já que sabia que era tudo graças aos
ensinamentos de Roxy.

E, após isso, continuamos conversando a respeito da minha


mestra. Conversamos sobre como os soldados sentiram seus
corações mais quentes quando viram o rosto de Roxy ficando pálido
após ela queimar um tapete bem no meio de uma de suas aulas de
magia. Em seguida, conversamos sobre como seu rosto ficou pálido
novamente quando uma refeição estava cheia de pimentas, e ela as
engoliu inteiras, sem mastigar uma vez que fosse.

— Também já ouvi falar de você, Lorde Rudeus — disse Ginger.


— Hã? O que ela disse sobre mim?

— Ela nos disse que, desde tenra idade, você era um gênio que
podia lançar magia sem o uso de encantamentos.

— Minha professora disse isso? — perguntei.

— Lady Roxy costumava se gabar de você. Ela falava que,


honestamente, sentia que não era qualificada para ensinar alguém
de seu calibre.

— Heh heh — eu ri. — Mas quanto exagero.

Enquanto conversávamos, finalmente chegamos ao castelo. Era


bastante grande, mas não tão grande quanto o Castelo Kishirisu em
Rikarisu ou o Palácio Branco em Millishion. Era quase do mesmo
tamanho da casa de Eris e sua família. Em outras palavras, o país
era quase do tamanho de uma única região do Reino Asura. Muito
bem, Reino Asura, você com certeza não me decepcionou!

—…

Ginger fez uma pequena reverência ao guarda no portão. Em


resposta, ele ficou rigidamente a postos.

— Obrigado pelo seu serviço e dedicação!

— Por aqui. — Comecei a seguir em frente, mas Ginger me


guiou de lado. Demos a volta no castelo e passamos pelo que
parecia ser uma porta dos fundos. — Sinto muito por isso. Apenas
nobres são permitidos a passar pela entrada da frente.

— Entendo.
Entramos no que parecia uma sala de guardas. Havia duas
grandes escrivaninhas com vários soldados sentados ao redor
delas, divertindo-se com o que parecia ser um jogo de cartas. No
segundo que viram Ginger, imediatamente deixaram seus lugares e
ficaram em posição de sentido.

— Obrigado pelo seu serviço e dedicação!

Ginger, mais uma vez, curvou-se um pouco antes de seguir


adiante. Observei os homens com o canto do olho enquanto a
seguia.

— Senhorita Ginger, você é alguém importante?

— Entre os cavaleiros, estou em décimo segundo lugar.

Décimo segundo? Eu não sabia dizer se essa era uma


classificação alta ou baixa. Se incluísse todas as centenas de
cavaleiros deste país, provavelmente não era baixa.

— Por aqui. — Ginger nos conduziu cada vez mais para o fundo
do palácio. Seus passos ficaram cada vez mais cautelosos
enquanto ela avançava. A mulher não subiu nenhuma escada,
apenas me conduziu por um corredor e, no final, parou do lado de
fora de uma porta bem no centro do castelo.

Este deve ser o quarto de Roxy, pensei. Ele estava localizado em


uma área terrivelmente deserta do palácio, mas de alguma forma
parecia apropriado para ela.

Ginger olhou para o que eu tinha comigo e estendeu a mão.


— Com licença, por favor, entregue seu cajado e seus outros
pertences.

— Ah, claro. — Que gentileza da parte dela agir como uma


porteira.

Ginger pegou minhas coisas e bateu com o punho na porta.

— É a Ginger. Trouxe Lorde Rudeus comigo.

— Entre. — Foi a voz de um homem que respondeu.

Antes que pudesse processar a dúvida que senti, Ginger abriu a


porta e me fez entrar. Eu, obedientemente, entrei.

— Oho… então este é o Rudeus, hein?

Sentado diante de mim, parecendo todo presunçoso, estava um


garoto. Ele parecia um barrilzinho roliço, todo reclinado e arrogante
em sua cadeira. Não era só em questão de altura; até seus braços e
pernas pareciam curtos. Era meio que o resultado do cruzamento
entre um hobbit e um anão. A única coisa visivelmente grande nele
era sua cabeça, que era do tamanho da de um adulto. Seu rosto
parecia o de um otaku, dando-me a sensação de que éramos dois
irmãos. Mas não era um rosto atraente.

De pé ao lado do garoto estavam duas criadas. Uma deles


parecia familiar e a outra não. Chamaremos a última das duas de
Criada A. Ela parecia ter quase trinta anos e tinha uma aparência
bastante normal. Quanto à Criada B, seu rosto era exatamente igual
ao de Lilia. Na verdade, não… era Lilia. Cinco anos se passaram,
então ela parecia um pouco mais velha do que eu me lembrava.
Isso não era surpresa, já que estava envelhecendo, ainda mais
depois de ter passado pelo estresse do Incidente de Deslocamento.

— Mrgh?!

Lilia estava em uma cadeira. Havia cordas amarradas em torno


dela e sua boca estava amordaçada. Não vi Roxy em lugar nenhum.

— Hã? Que diabos é isso…? — Confuso, olhei em volta. Pensei


que Roxy estaria presente; que iria explicar o que estava
acontecendo.

— Solte-o.

Ao som da voz do garoto, o chão abaixo de mim desapareceu.

✦✦✦✦✦✦✦

Quando percebi onde estava, me vi preso em um círculo mágico.


No momento em que o garoto deu o sinal, o chão sob meus pés
abriu e eu caí por um buraco no chão. Levei vários segundos para
perceber o que havia acontecido. Agora estava em uma salinha,
com cerca de seis tatames de largura. Havia um círculo mágico
desenhado no chão e luz fraca irradiava dele.

Na mesma hora tentei lançar uma Lança de Terra para me jogar


de volta para o cômodo acima.

— Hein…?

Mas a magia não funcionou. Voltei a tentar, canalizando uma


quantidade maior de mana em meus pés, tentando conjurar um pilar
de terra, mas não aconteceu nada. Isso foi estranho. Eu com
certeza conseguia sentir a mana deixando o meu corpo. Este
provavelmente era o trabalho do círculo mágico que me cercava.

— Uma barreira, hein…?

Estendi a mão até a borda do círculo e me vi tocando o que


parecia ser uma parede. Tentei socá-la, mas aquilo nem mesmo
tremeu. Eu não conseguiria sair.

Mesmo assim, não entrei em pânico. Minha mente talvez não


tivesse compreendido toda a situação em que eu me encontrava.

— Hahaha! É inútil! Inútil, eu digo! Essa é uma barreira de nível


Rei que eu criei para poder capturar a Roxy! Alguém como você
jamais conseguirá se livrar dela! — O garoto roliço de alguns
momentos atrás desceu os degraus do canto da sala enquanto
cambaleava. Ele ficou na minha frente, mostrando um sorriso de
orelha a orelha enquanto se inclinava para trás, triunfante.

— E você é? — perguntei.

— Meu nome é Pax. Pax Shirone!

Pax? Ah, certo, o Sétimo Príncipe. O que ele estava planejando


fazer prendendo Roxy em uma barreira na qual ela não seria capaz
de usar magia? Espere – em sua carta, Roxy o descreveu como
sendo parecido comigo. Eu era um cavalheiro. Portanto, era lógico
que ele faria algo muito cavalheiresco. Um cavalheiresco ato de
violência.

— Heh heh… Eu gosto dessa expressão no seu rosto, Rudeus


Greyrat. — Ele gargalhou quando viu minha frustração.
Mas fiz uma cara de desentendido e respirei fundo. Acalme-se,
disse a mim mesmo, apenas acalme-se.

— Então eu caí em uma armadilha? Entendo. Peço desculpas


formais por ter atacado aqueles soldados ontem. Mas, primeiro,
chame a Roxy aqui. Eu costumava ser o pupilo dela. E ela pode
confirmar a minha identidade. Então posso chamar meu advogado e
podemos dar andamento a um julgamento adequado…

— Roxy não está aqui.

Roxy não estava.

— O quê…? — Fiquei ainda mais chocado com suas palavras do


que pensei que ficaria. Roxy não estava aqui. Isso significava que
Deus não está aqui.

Deus não estava.

Não, isso não poderia ser possível. O grande matemático Euler


não afirmou que Deus existia? Ele não recebeu uma ordem de
Catarina a Grande e ofereceu a magnífica prova de que Deus era
real? Deus existia. Eu poderia fazer o mesmo e, por mim mesmo,
provar a existência de Deus.

— Não. Deus está aqui.

— O quê? Deus? — Pax estava com uma expressão de espanto


no rosto.

Isso mesmo, Deus. Não se engane – se Deus não estivesse


aqui, haveria uma guerra santa. Isso mesmo!
— Hm, então agora você está orando para Deus? Essa é a
decisão correta, embora já seja tarde demais para você.

— Isso é verdade. — Eu já tinha me acalmado, então era hora de


deixar as piadas de lado. — Então, a julgar pelo que você disse há
pouco, Roxy não está mais neste país?

— Correto! Você vai ser a isca que a atrairá de volta para cá.

— Se quer dizer que ela irá me engolir, então saiba que este é o
sonho da minha vida — respondi espontaneamente, sem sequer
pensar. Roxy não estava neste país, mas essa pessoa queria
colocar as mãos nela. Por quê? Foi por causa dele que ela fugiu?

Assim que pensei nisso, Pax lançou suas próximas palavras em


minha direção.

— Fiquei surpreso quando li sua carta. Nunca pensei que o


amante de Roxy tentaria vir para este país!

— O quê?! Roxy tem um amante?! Sério?! Mas ela nunca


escreveu nada assim em suas cartas!

— Hm? Quer dizer que você não é? — perguntou Pax.

— Não seja ridículo! Isso é impensável! Sou um aprendiz indigno;


não há como tal relacionamento se desenvolver entre nós! —
Balancei minha cabeça com força.

Na verdade, fiquei incrivelmente feliz por ele ter feito essa


suposição. Feliz o suficiente para me fazer querer balançar de tanta
alegria. Queria me mexer como uma certa rena rara. Queria me
mexer como uma certa pessoa vivendo dentro de um monstro de
metal. Mas consegui me conter.

— Hmm… bem, mesmo se você não for seu amante, ela ainda
virá por seu pupilo.

— Será que vai mesmo? — perguntei.

— Ela vai. Lilia pode até não ter sido uma isca boa o suficiente,
mas por você, o pupilo que ela não cansava de elogiar,
definitivamente virá! Então, quando o fizer, será o seu fim como
mulher. Ela vai viver o resto de sua vida como minha escrava
sexual! Vou fazê-la dar à luz a cinco dos meus herdeiros!

— Com licença, posso perguntar só uma coisa?

— O quê? Ah, sim. Com certeza vou estuprá-la, pela primeira


vez, bem na sua frente! Então farei isso uma segunda vez após
cortar sua cabeça e ver o rosto dela cheio de desespero!

Cara, esse moleque tinha alguns delírios insanos.

— Antes de vir para cá — disse eu —, não consegui encontrar


nenhuma informação sobre Lilia, então… como Roxy vai saber que
fui tomado como cativo?

Pax congelou.

— Hm… bem, ela é incrivelmente capaz, tenho certeza de que


vai ficar sabendo de algum jeito!

Aham. Portanto, tudo bem, porque Roxy era capaz. Ela talvez
pudesse encontrar informações que eu não consegui, mas as
chances pareciam baixas.
— Mas você não acha que seria melhor divulgar essa informação
para o mundo? — Não que eu quisesse ver Roxy sendo estuprada,
mas se ele fizesse isso, a notícia poderia chegar aos ouvidos de
Paul.

— Hmph, eu não vou cair nessa! Você está sob a proteção de um


dos nobres de alto escalão de Asura, não é? Se descobrissem que
estou mantendo você e Lilia em cativeiro, a família Boreas se
tornaria minha inimiga, não é?

— Como você…? — Hmm. Algo me parecia estranho. Bem, o


velho Sauros poderia tentar ajudar se soubesse que fui capturado.
Mas o que isso tinha a ver com Lilia?

— A Lilia também tentou enviar inúmeras cartas! Como se eu


fosse permitir que pedisse alguma ajuda!

Por que diabos ele não a deixava escrever pedindo ajuda, já que
a questão toda envolvia a Roxy?

Ahh, entendi, pensei. Ele é um idiota.

— Além disso — acrescentou —, posso simplesmente passar


essa informação diretamente para ela!

— Pode? — perguntei, em dúvida.

— Há dois anos que procuro por ela, mas ainda não a encontrei!
Mesmo assim, um dia eu vou! Ela se destaca por qualquer lugar por
onde passa!

Só porque ela se destacava, não significa que ele a encontraria.


Roxy escreveu em suas cartas que esse cara era parecido comigo.
Que tinha talento. Então a impressão que ela tinha de mim era tão
ruim assim?

— Heh heh. Parece que você desistiu. Eu não me importo se


você é um mago que pode lançar feitiços não verbais – você não
tem chances contra mim!

De jeito nenhum que eu perderia para esse cara! Olhei


firmemente para ele.

— Aah, eu gosto desse olhar em seus olhos. Isso me faz tremer.


Espero que você mantenha esse olhar até o fim. Ahh, estou ansioso
por isso. Roxy, não me faça esperar… — Ele parecia um garotinho
ansiando por atenção enquanto subia as escadas do sótão,
desaparecendo pelo buraco no teto.

Não tem como ela vir, pensei comigo mesmo.

— Ei, quem disse que você poderia remover a mordaça da Lilia?

— Sinto muito, mas ela parecia ter algo a dizer.

— Essa decisão não é sua!

— Por favor, Sua Alteza. Eu não me importo com o que você faça
comigo, mas por favor poupe Lorde Rudeus!

— Cale a boca, não me importo com o que uma bruxa velha feito
você fala!

— Aah!

Ouvi um grito além das escadas, acompanhado pelo som seco


de um tapa. Lilia tinha acabado de levar um tapa?
— De qualquer forma, você ainda não encontrou a Aisha?!

— Alteza, ainda estamos procurando por ela!

— Grr. Como é que o cara que a sequestrou se parece?! — Eu


podia ouvir a irritação na voz de Pax. Pelo visto, estavam falando
sobre o que tinha acontecido no dia anterior.

Isso não era bom. Eu não tinha escondido meu rosto, então tinha
certeza de que logo descobririam que eu era o responsável. E
também coloquei a localização da pousada na minha carta. Mas,
tudo bem, e daí se me descobrissem? Ruijerd e Eris estavam na
pousada. Enquanto o Superd estivesse lá, eu tinha certeza de que
ele cuidaria das coisas. E Eris também criou sua reputação com
suas próprias habilidades ofensivas.

— De acordo com o relatório, ele se autodenominou o Cavaleiro


da Lua Sombria. É um homem enorme e musculoso que ri alto
enquanto pula de telhado em telhado feito um pervertido.

— Se é alguém que se destaca tanto, por que você ainda não o


pegou?! Droga, vocês são tão inúteis!

— Sim, senhor! Sinto muito!

Ei, espera aí! Com licença, Senhora Soldada! Por favor, relate os
fatos corretamente! Qual parte do meu corpo é forte e musculoso?
Espera, não – o relatório impreciso podia ser algum tipo de
gentileza. Talvez estivessem tentando ajudar Aisha a escapar.
Afinal, aquelas pessoas que vi não pareciam ser más. Certo, bom
trabalho, Senhora Soldada!
— De acordo com o ordenado, rasgamos a carta que ela
escreveu.

— E ela pode reescrever aquela carta quantas vezes quiser!

— Um nobre de alto escalão não vai agir só por causa da carta


de uma criança. Não deveríamos simplesmente deixá-la para lá?

— Não, não, não! Procurem por ela! Você não se importa com o
que pode acontecer com a sua família?

— Vou despachar uma equipe de busca agora mesmo…!

Então o som de passos frenéticos começou. A julgar pela


conversa, isso significava que a família de Ginger foi feita de refém?

— Hmph. Jogue Lilia nos aposentos de sempre dela!

— Sim senhor!

— Lorde Rudeus! Eu juro que vou te salvar!

— Cala a boca! Como se eu fosse permitir que você fizesse isso!

— Aah!

— Hmph. Você também conhece a Roxy, não é? Vou mandar te


decapitar bem na frente daquele moleque atrevido!

Baque! Ouvi outro som seco de tapa, seguido por algo sendo
arrastado pelo chão.

— Rudeus! Eu nunca vou te abandonar!

Quando segui a voz e olhei para cima, vi o rosto assustador de


Pax sorrindo para mim. Em seguida, uma tampa foi deslizada sobre
o buraco acima. O silêncio tomou conta do cômodo enquanto eu
ficava apenas com a luz fraca do círculo mágico como companhia.

— Uff…

Me senti um tanto quanto perplexo. Devia ter ficado com raiva


por terem batido em Lilia, mas, estranhamente, não senti a raiva
aumentando dentro de mim. Talvez fosse porque todas as nossas
interações anteriores tinham sido meio cômicas. Ou porque o Deus
Homem já havia me dito que ela seria salva.

Então, novamente, talvez fosse porque tudo isso era produto dos
sentimentos de Pax por Roxy, por mais distorcidos que pudessem
ser. Eu poderia ter acabado da mesma forma caso tivesse sido
deixado de lado por ela.

Não, não era isso. Era porque ele se parecia comigo – o velho
eu, aquele anterior à minha reencarnação. Foi por isso que senti
confusão em vez de raiva.

— Pois bem…

Independentemente disso, entendi a essência do que estava


acontecendo. Simplificando, foi Pax quem capturou Lilia. Então ele a
deteve, usando qualquer pretexto que achasse apropriado, como
alegar que era a espiã de uma potência estrangeira. Enquanto ouvia
o que ela tinha a dizer, de alguma forma chegou à conclusão de que
era associada a Roxy, e foi então que elaborou seu plano. Ele usaria
Lilia como isca, contataria Roxy e a atrairia de volta para cá.

O cara manteve tudo isso em segredo por medo da família


Greyrat, mas realmente, mesmo que o Reino Asura descobrisse,
Lilia não era nada mais do que uma empregada doméstica. O
segredo – e o fato de que eles não foram capazes de localizar Roxy
– era o motivo para Lilia ter sido detida por tanto tempo.

Ela certamente estava tentando enviar um pedido de socorro


para Paul, mas o príncipe não permitia. Foi por isso que Aisha
escapou do castelo na tentativa de enviar sua carta, apenas para
falhar e ter sua correspondência rasgada.

Mas foi o que aconteceu a seguir que me deixou perplexo. Por


alguma razão, os guardas estavam falsificando relatórios para
ajudá-la a escapar. Será que só odiavam o príncipe, ou havia outro
motivo envolvido? Parecia que a família de Ginger havia sido feita
de refém, então será que os outros soldados se encontravam em
uma situação semelhante?

E eu me coloquei perfeitamente no meio de sua teia de aranha.


Mas escrevi para Roxy, assim como o Deus Homem me instruiu a
fazer. Isso provavelmente estava seguindo o roteiro que ele tinha
previsto, certo? Não havia necessidade de entrar em pânico. Agora,
estava fazendo exatamente o que tinha sido dito para fazer.

Não… espera.

Realmente fiz tudo conforme deveria fazer? Por exemplo, disse


aos soldados que era o Cavaleiro da Lua Sombria. De acordo com o
conselho do Deus Homem, contanto que dissesse para Aisha que
era o Mestre do Canil do Fim da Linha, tudo ficaria bem. Mas será
que também devia ter dado esse nome para os soldados?

Esse possivelmente não tinha sido meu único erro. Tinha


acontecido a mesma coisa com a carta. Achei que ficaria tudo bem,
desde que não dissesse que meu nome era Rudeus, mas se não
tivesse escrito meu nome naquela carta, será que as coisas teriam
acabado assim? Se o príncipe tivesse pensado que eu era apenas
um conhecido de Roxy, será que as coisas teriam acontecido de
forma mais pacífica?

Merda. Agora realmente estava sentindo que estraguei tudo.

Não, isso era bom. Ainda estava tudo bem, né? Isso ainda estava
dentro das expectativas, certo?

Fiquei preocupado. Mas, por enquanto, decidi ao menos tentar


garantir uma rota de fuga.
Capítulo 05:
O Terceiro Príncipe
Olá! Meu nome é Rudeus e eu costumava ser um recluso.

Atualmente, estou verificando um apartamento grátis no Reino


Shirone. Não precisei pagar por nada adiantado, e nem tem aluguel.
É um apartamento de um cômodo que não oferece refeições e não
possui muita iluminação natural. Não disponibilizam nenhuma cama,
e a ausência de um banheiro indica que é necessário recorrer ao
recurso emergencial que é mijar nas calças, então ficar aqui por
muito tempo com certeza desencadeará doenças graves. Mas ao
menos é grátis!

E a construção também é reconfortantemente segura. Olha só,


mas que barreira mais durável! Enquanto estiver dentro dela, toda
magia será anulada e jamais será capaz de sair! Mesmo se um
aventureiro de rank A como eu bater com tanta força quanto
consiga, a barreira não será liberada. Não importa se for um mestre
das fugas – não há como fugir deste lugar.

Certo, já é a segunda vez que uso a mesma piada, chega dela.

Não posso sair daqui. Alguém me salve. Ruijerd, anda logo e me


salva! Rui, socoroooo!

Me senti como a Princesa Peach esperando que o Mario


aparecesse.

Passei um dia inteiro tentando remover a barreira. Já que não


podia usar magia enquanto estava nela, não havia basicamente
nada que pudesse fazer. Minhas tentativas, na maioria das vezes,
consistiam em bater naquela parede invisível, tentar estragar o
círculo no chão ou pular na direção do teto, que estava a quatro
metros acima de mim. Fiz tudo o que pude, mas resultou em
basicamente nada.

Se ao menos estivesse com meu cajado, poderia ter sido capaz


de bater no teto com ele. Infelizmente, dei todas as minhas coisas
para Ginger antes de entrar na sala.

Quanto à magia, tentei vários feitiços, mas todos foram


dissipados antes que pudessem fazer qualquer coisa. Como um
protagonista shounen, decidi que se essa barreira podia absorver
mana, liberaria o máximo que pudesse e a destruiria dessa forma!
Mas isso pareceu não surtir nenhum efeito. Eu poderia até produzir
a mana, mas ela não tomava forma. Não poderia a usar para
provocar qualquer mudança que fosse ao meu redor. Parecia que
poderia, mas não consegui. Era como usar um isqueiro a céu aberto
enquanto estava ventando forte, ele sempre apagaria assim que
fosse acendido. O gás estaria lá, assim como a fagulha, mas o fogo
nunca daria as caras. Ou seria melhor dizer que o fogo aparecia,
mas era apagado na mesma hora.

Ele tinha dito que esta era uma barreira mágica de nível Rei,
certo? Isso era incrível.

Minha impaciência aumentou quando percebi que não poderia


escapar sozinho. Se o pior acontecesse e Roxy realmente
aparecesse para me ajudar, eventualmente caindo na armadilha de
Pax, não haveria nada que poderia fazer para a salvar. Tudo que
seria capaz de fazer era gritar para que me deixasse para trás. E se
Eris fosse capturada, eu também não seria capaz de fazer nada
para ajudar. Mais uma vez, só poderia gritar para que me deixasse
para trás. E se Pax, ao me capturar, mudasse de ideia e concluísse
que não precisava de outros reféns, assim resolvendo matar Lilia?

Eu queria acreditar que ficaria tudo bem, mas não tinha seguido
o conselho do Deus Homem da mais perfeita das formas. Talvez já
estivesse em um caminho sem volta. Entretanto, era do Deus
Homem que estávamos falando. Ele talvez tivesse previsto isso.
Mas, de acordo com o que dissera, apenas Aisha e Lilia seriam
salvas. Aquele cara não mencionou nenhuma outra pessoa.

Mas, não… ele me deu esse conselho para ganhar minha


confiança. Seria difícil acreditar que bolou tudo cuidadosamente
para me enganar. Mas, mesmo assim… Pensamentos negativos
continuaram surgindo e girando em minha cabeça.

Droga, pensei. Preciso me apressar e dar o fora daqui.

Queria saber quanto tempo já tinha passado. Estava me sentindo


exausto. Foi a primeira vez em muito tempo que usei tanta mana.

— Nossa… talvez seja melhor descansar um pouco.

Não tinha nenhum relógio e eu não podia ver nem o sol, então só
tinha uma breve noção do tempo. Meu estômago também estava
vazio e já fazia algum tempo que tinha começado a roncar. Será que
o príncipe tinha esquecido até das minhas refeições? Não, esse
talvez fosse o ponto. Talvez quisesse diminuir meu consumo de
comida e me enfraquecer até que eu ficasse tão delicado e
quebradiço quanto um galho seco. Isso o deixaria ainda mais
excitado, mostrando para Roxy o que eu tinha me tornado. Só uma
refeição por dia, hein? Isso seria terrivelmente desagradável, visto
que meu corpo ainda estava em fase de crescimento.
E eu não poderia escapar usando só força bruta. Talvez
precisasse pensar um pouco mais nisso. Como que as pessoas do
meu outro mundo fugiam da prisão? Fingiam que estavam doentes
ou mortas, não é? Talvez desativassem a barreira para deixar que
um médico ou um curandeiro entrasse. Não – também era possível
que simplesmente me deixassem morrer. Afinal, já tinham outro
refém. Se eu fosse uma estrela de Hollywood, poderia simplesmente
atacar quando o guarda passasse pela minha cela, deixá-lo
inconsciente e roubar suas chaves. Mas, infelizmente isso não seria
possível.

Que outras alternativas sobravam? Sério, eu só precisava dar o


fora. Talvez pudesse fingir que estava disposto a jurar lealdade para
Pax.

“A verdade é que Roxy já vinha me dando nos nervos faz tempo,


chefe. Heh heh heh! E, na verdade, eu sei onde os pais dela vivem!
O que acha de fazer aquelas coisas na frente deles, hein, chefe?”

Se eu dissesse essas coisas, ele podia acabar caindo na minha


lábia, certo? Afinal, parecia ser um grande idiota.

Nah, esquece. Isso não seria possível, nem mesmo para mim.
Era Roxy. Eu poderia virar a cara até para a última gota do meu
próprio orgulho, mas a única coisa que não poderia fazer era dizer
algo ruim sobre ela.

Thump… Thump…

Enquanto me preocupava com o que faria, de repente ouvi algo.


Passos. Estavam se aproximando. Provavelmente era Pax
querendo ver como eu estava.
Thump…

Os passos pararam logo acima de mim. Então passaram pela


sala e pude ouvi-los no topo da escada.

— Aha, assim como Ginger me disse.

O homem que desceu os degraus era alguém que eu nunca


antes tinha visto. Poderia dizer com um simples olhar que
provavelmente fazia parte da família real, principalmente por causa
de como suas roupas pareciam pomposas. Sua vestimenta era
preta com bordados dourados, e dava para notar de primeira que
era algo bem caro. Ele parecia ter cerca de vinte anos. Seu rosto
lembrava o de Pax, mas adotava um formato oval, com os óculos
descansando acima de suas salientes maçãs do rosto, e ele era
bem mais alto e magro. Em outras palavras, era um típico
personagem de anime, um nerd com óculos fundo de garrafa.

— Sou o Terceiro Príncipe do Reino Shirone, Zanoba Shirone —


disse ele com um olhar rígido.

Terceiro Príncipe? Então, isso significava que era o irmão mais


velho de Pax.

— É um prazer conhecê-lo — respondi. — Sou Rudeus Greyrat.

— Hm.

— E o que lhe traz aqui hoje?

— Hm.

Ele balançou a cabeça de um jeito exagerado e ergueu uma


bolsa que estava em suas mãos. Era uma que eu já tinha visto
antes. Não, espera – era a minha bolsa! Ele cuidadosamente a
colocou no chão e tirou algo de dentro. Era uma estatueta de um
homem empunhando uma lança – a estatueta de Ruijerd.

— Onde você conseguiu essa estatueta de demônio? —


perguntou enquanto a colocava além da barreira. — Conte-me. Ouvi
Ginger falando que foi você quem trouxe isso aqui. — Seu tom era
bem exigente.

Uma estatueta de demônio. Não tinha pensado muito para trazê-


la comigo, mas talvez carregar uma dessas por aí fosse como
carregar um ídolo falso. A estatueta de Roxy não tinha
características demoníacas distinguíveis, mas a de Ruijerd seria
imediatamente identificada por causa da joia em sua testa.

Como deveria responder a esta pergunta? Deveria, no mínimo,


ter certeza de que não iria declarar que o criador do item era eu.

— Encontrei ela enquanto estava viajando pelo Continente


Demônio.

— Aha! Eu sabia que devia ser um demônio que fez isso! Certo,
e exatamente onde a comprou? Qual era a aparência da pessoa
que estava vendendo? Sabe quem fez isso?!

Rapaz, ele realmente estava focado nisso. Seus olhos estavam


brilhando.

— Q-quem sabe? — falei. — Vi isso e gostei, então quis comprar.


Não sei nada de específico sobre…

— O quêê?! — Um brilho de luz perigoso foi refletido em seus


óculos. Havia algo seriamente intimidador nele. Eram os olhos de
alguém que já tinha matado outra pessoa.

— Ah, sim! O comerciante disse algo quando me vendeu isso.


Ele disse que qualquer um que possuísse uma estatueta dessas
escaparia em segurança do ataque de qualquer Superd. É só
mostrar a estatueta para eles e dizer: “Ruijerd ama crianças”,
“Ruijerd ama crianças”, e o Superd de repente vai começar a agir
como se vocês fossem amigos de longa data. Vão te abraçar e
dizer: “Ei, irmão!” E mais um monte de coisas do tipo.

— Oho, oho! Sim, é isso! O que mais?! O que mais ele te disse?!

— Uhh, você será abençoado com filhos e boa saúde. E-e


também, vai ficar realmente bom em esgrima, eu acho.

— Não, não, isso não! O que você está me dizendo é que quem
criou isso está profundamente envolvido com os Superds, não é?!

Eu não tinha certeza se essas duas coisas estavam


relacionadas. O único Superd que eu conhecia era Ruijerd. Mas
sobre estar profundamente envolvido, será? Muitos deste mundo
não queriam laços com a tribo Superd, então, em comparação, sim,
eu estava profundamente envolvido com eles.

— Hmm, parece que é bem possível que isso tenha sido feito
pela mesma pessoa. — Zanoba estava resmungando, todo
pensativo, enquanto girava a estatueta em sua mão. E, finalmente, a
jogou no chão e enfiou a mão na bolsa. A única outra coisa que
deveria estar lá dentro seria uma muda de roupas para
emergências. — Então, me diga, você já viu isso?

O que ele tinha pego dessa vez era uma estatueta de Roxy.
Zanoba a colocou no chão e se sentou no piso para ficar olhando
para ela.
— Descobri esta estatueta de demônio no mercado há cinco
anos. — Ele colocou a mão no queixo e olhou afetuosamente para o
item.

Quando tentei usar a de Ruijerd para converter as pessoas,


descobri que as estatuetas de demônio eram proibidas devido à
influência da organização religiosa Millis. Presumi que Zanoba
estava tentando condenar a pessoa que as criou, embora não
parecesse muito zangado.

— Foi meu irmão quem encontrou esta. Quando viu que parecia
com Roxy, nossa maga da corte naqueles tempos, comprou
diretamente do mercador.

— Sua maga da corte “naqueles tempos”? — Tentei esclarecer


esse ponto enquanto via a conjugação verbal no passado.

— Hm? Sim. Parece que você não sabe, mas Roxy Migurdia já
deixou este país. Ela fugiu depois de ser incapaz de tolerar os
avanços sexuais indesejados do meu irmão.

Não, na verdade, eu já tinha ouvido Pax mencionando isso. Mas


até que fazia sentido ela decidir partir após ser sexualmente
assediada.

— E exatamente como o seu irmão tentou se aproximar dela?

— “Tentou se aproximar”…? Ele roubava a calcinha dela e a


espiava no banho.

Sério? Que horrível. Pessoas assim merecem punições severas.


Mereciam algo como ter seu computador sendo destruído na base
da cacetada. Ele deveria ser forçado a viver sob o mesmo teto que
uma jovem com um soco mortal, que poderia ceifar sua vida em um
único golpe. Devia ser despido, jogado em uma cela e molhado com
água fria. Não, eu estaria disposto até mesmo a conjurar uma Lança
de Terra e acertar o traseiro dele. Uma bem grossa e com a forma
de um cone de trânsito.

Enfim, sério. Ele realmente achava que não teria problemas por
roubar a calcinha da Roxy e coisas do tipo? Não, isso era
inaceitável. Imperdoável. Não importava se fosse um príncipe –
ainda deveria saber diferenciar o certo do errado. Não era de se
admirar que ela tenha ido embora.

Espera. Seguindo essa lógica, será que… Roxy deixou de ser


minha tutora por causa das coisas que eu fiz?

— Mais importante, sobre a questão dessas estatuetas… —


disse Zanoba, dando um tapinha no ombro da estatueta de Roxy.

Isso mesmo – seria melhor deixarmos essa conversa deprimente


de lado. Balancei a cabeça, revelando um rosto solene.

— Tenho um fraco por estatuetas. Eu coleciono um monte delas


— começou a dizer, como se fosse uma espécie de monólogo. —
Mas o único artesão que não conheço, é o que fez essa. Sei que foi
esculpida em pedra, mas é mais dura e pesada do que a pedra
usada por anões. Ninguém no mundo possui a técnica para esculpir
uma escultura tão elaborada em uma rocha tão dura. Olhe só esse
cajado aqui, por exemplo… Mesmo para o anão mais hábil de todos,
esculpir algo assim com tanta precisão em uma pedra seria
extremamente difícil. — Ele apontou para o cajado que a estatueta
segurava enquanto falava.
Peças complexas como cajados eram fáceis de se quebrar.
Foram inúmeras tentativas seguidas por erro para conseguir superar
essa fragilidade. Como recompensa pelos meus esforços, consegui
criar algo muito resistente e durável. E usei o mesmo material para
fazer a lança da estatueta de Ruijerd. Essas coisas exigiam um uso
exaustivo de mana, concentração e tempo – mais especificamente,
era necessário um dia inteiro para avançar em um único centímetro
do trabalho. Eu já tinha me dedicado muito ao aperfeiçoamento da
minha técnica, então fiquei bem feliz ao ouvir elogios.

— Algo tão incrível estava sendo vendido por apenas cinco


moedas de ouro Asurano. Eu teria pago até mesmo cem moedas
por isso. Fico incomodado ao ver que aqueles que vivem nas ruas
são tão rudes e grosseiros que sequer conseguem apreciar o valor
da arte. Mas sei que o preço devia ser baixo por se tratar
especificamente de uma estatueta de um demônio. Se um dos
Cavaleiros do Templo da crença Millis descobrisse sobre isso,
poderia acabar sendo julgado por heresia, mesmo sendo um
príncipe de Shirone. Então seria executado como um adorador do
Deus Demônio. Pode haver até mesmo uma série de razões pelas
quais isso estava sendo vendido por um preço tão baixo. — Zanoba
passou a mão na testa e encolheu os ombros, parecia até mesmo
exasperado.

Executado? Bem, pelo que parecia, os Cavaleiros do Templo


eram verdadeiros fanáticos.

— Já saí por aí procurando o criador desta estatueta. Não me


importo de acabar me envolvendo com um adorador do Deus
Demônio, mas, ainda assim, quero falar com quem criou isso. E foi
então que Lilia de repente apareceu na minha porta. Exatamente um
dia após a partida de Roxy.

Hm. Então elas se desencontraram por puro azar.

— Lilia foi levada pelos soldados, e depois que as coisas


finalmente se acalmaram, Pax tomou posse dela. E essa era uma
das coisas que ela carregava — disse Zanoba enquanto enfiava a
mão de volta na bolsa e pegava uma caixinha, que eu não me
lembrava de já ter visto. Era do tamanho de um punho. — Ela
estava carregando isso como se fosse algo muito precioso, então
achei meio estranho. Olhe mais de perto. — Ele abriu para que eu
pudesse ver o que estava lá dentro.

Havia algo aparentemente macio bem dobradinho, e ele puxou


aquilo suavemente. Dentro havia um pingente esculpido em
madeira. Senti como se já tivesse visto aquele tipo de madeira em
algum lugar. Foi esculpido à mão, embora fosse possível dizer que
não se tratava de mãos muito experientes.

— Um pingente?

— Hm, o pingente é irrelevante. — Ele o segurou com os dedos e


o colocou na bolsa. Seus movimentos eram sempre graciosos.
Ainda assim, o que quis dizer com “irrelevante”?

Foi então que reconheci o pano que estava envolvendo o


pingente.

— Agora então, sobre essa calcinha… — Zanoba apertou o


tecido entre os dedos e o esticou. Era branco e tinha o formato de
um campo de beisebol na parte inferior. Na mesma hora eu soube
que pertencia a Deus (Roxy), não restava dúvida.

Aquela calcinha era o objeto da minha adoração.

— Lilia disse que queria te enviar isso como presente pelo seu
décimo aniversário.

Então, o pingente era apenas uma camuflagem. Zanoba já havia


deduzido que o verdadeiro tesouro era o pano enrolado em volta
dele. Lilia talvez tivesse pensado em enviar apenas a calcinha
antes, mas devia ter percebido que seria bizarro me mandar roupas
de baixo como presente, então adicionou o pingente.

Infelizmente, meu objeto de adoração (a calcinha de Roxy) foi


lavada. O azeite de oliva extra virgem de Roxy tinha sido removido,
então ela já havia perdido sua divindade. Deus não possuía mais
aquela calcinha. Em seu lugar residia apenas a sinceridade de Lilia.

— E-então, o que tem a calcinha? — perguntei, tentando


esconder o tremor em minha voz.

Zanoba cantarolou e acenou com a cabeça, inclinando-se para a


frente e ficando de quatro.

— Antes de falarmos sobre a calcinha, deixe-me falar um pouco


mais sobre esta estatueta. — E assim, recomeçou a falar. As
palavras surgiram como a maré, sem fim, e ele revelava uma
expressão de êxtase no rosto durante todo o tempo.

“Primeiro, olhe para a frente. Um único relance indicará que se


trata de uma maga normal empunhando um cajado. Veja como a
roupa parece enrugada. A maneira como cobre as pernas, como ela
empunha e segura o cajado com força. É um momento capturado de
uma forma tão vívida. Então, olhe para a bainha e as mangas do
robe, seus pulsos e os tornozelos! A ligeira exposição de pele. É
tudo muito leve, mas, de alguma forma, transmite uma sensação
erótica. E com só isso você já consegue perceber que essa garota é
magra, que sua silhueta esguia está escondida por esse robe. As
roupas dela são largas, e qualquer um pode dizer isso!

“Em seguida, vamos olhar para ela por trás. Normalmente, você
não pode ver o contorno do corpo em roupas largas. Mas, ao
colocar a perna na frente, a roupa fica esticada o suficiente para que
você possa ver um breve contorno por sua bunda. Uma bundinha.
Mas vendo isso na vida real provavelmente não pareceria nada
sexy. Mas o destaque deste robe largo é exatamente o que torna
isso tão sexy! É a forma como a bunda é revelada que faz qualquer
um querer mais. E, na verdade, você pode fazer exatamente isso.
Se soltar a parte que segura o robe bem aqui, poderá ver sua
inocente forma usando apenas roupas de baixo. Ah, e não para por
aí, essa garota não está usando nem sutiã. É uma boa decisão para
alguém como a Roxy, já que ela tem tão pouco peito.

“Agora, se você virar a estatueta de novo, verá que o braço


esquerdo dela está cobrindo os seios. Estranho, qualquer um
pensaria, porque sua mão esquerda estava segurando seu cajado
há apenas um momento. Mas se você olhar para o robe que acabou
de tirar, vai perceber que a mão esquerda estava presa a ele. Isso
mesmo. Esta estatueta tem três braços. Colocaram um para quando
o robe fosse colocado e outro para quando ela ficasse só com as
roupas de baixo. E, com este simples truque, é como se fossem
duas estatuetas em uma. Verdadeiramente genial. O normal seria
fazer uma estatueta com roupas removíveis e forçar uma pose
estática, mas esconder um membro extra dentro das roupas dá uma
sensação de liberdade e mudança de poses.

“E isso ainda não é tudo. Agora, vamos olhar para ela de lado.
Quando está usando o robe, a linha de suas costas forma uma
curva e sua perna fica esticada para a frente. Mas quando tira a
roupa, por algum motivo, ela se curva para a frente, parece até que
está tentando esconder seu peito, seu corpo. Agora que você já viu
tudo isso, olhe para o rosto dela. Quando estava vestida, parecia
digna. Agora parece que está desesperada para esconder toda a
sua timidez, não é?

“Quem fez isso sabia que a impressão do rosto da estatueta


dependeria da situação. E é por isso que sabia que poderia deixar a
mesma expressão para ambas as situações. Este é um item de
altíssima qualidade. Claro, existem aspectos nele que não poderiam
ser comparados às habilidades diferenciadas dos anões. Na melhor
das hipóteses poderíamos chamar o criador de amador. Entretanto,
esta estatueta por si só está muito além de algo que aqueles anões
rudes são capazes de fazer!”

Não deixei uma única palavra dele passar despercebida. A


maioria das pessoas ficaria pasma com seu discurso, mas eu era o
criador do objeto. Digeri tudo o que foi dito e fiquei bastante
satisfeito com sua crítica final. Isso era certo, é claro; nunca antes
tinha ouvido alguém falar sobre algo que fiz com tanto ânimo. Claro
que ele estava certo. Usei todas as habilidades que tinha naquela
época para criar esta estatueta. Mesmo ainda sendo o trabalho de
um amador, qualquer pessoa que prestasse um pouquinho de
atenção poderia perceber seu potencial. Fiquei feliz por Zanoba ter
visto até os mínimos detalhes em que trabalhei para aperfeiçoar. Só
faltava uma coisa. Era a razão pela qual eu fiz que ela escondesse
os seios com a mão.

— Hein? — Acabei falando em voz alta. — A pinta sob a axila


sumiu.

— Hm? — respondeu Zanoba, voltando a virar a estatueta de


Roxy. — Aah, a mancha escura debaixo do braço? Pensei que ela
diminuía a beleza do item, então raspei — disse sem fazer
cerimônia.

Congelei ao ouvir suas palavras. Arregalei meus olhos e meu


corpo parou.

— V-você raspou?

— Sim, e o fato de você saber disso significa que sabe algo


sobre esta estatueta, não é?

O ignorei.

— Vire um pouco a estatueta.

— Primeiro responda a minha pergunta.

— Disse para virar — falei friamente, surpreendendo até a mim


mesmo.

Zanoba soltou um gemido e se encolheu, mas fez o que eu disse


e girou o objeto.
— Pare aí. Agora olhe de novo. — Fiz que olhasse para um
ponto da estatueta onde as pessoas mal conseguiriam ver,
exatamente onde a pinta deveria estar. — Veja onde a mão está
posicionada.

— Do que você está falando?

— Não pergunte, apenas olhe.

Percebi que Zanoba ficou aborrecido com os tons ásperos que


adotei. Mesmo assim, obedeceu e olhou para o lugar que indiquei.
Ele fazia o tipo sério.

— Você pode dizer que ela está cobrindo tudo?

— Hm…?

E continuei:

— Pode dizer que a mão dela não está alcançando algo?

— Ah — disse Zanoba em voz baixa. Ele finalmente entendeu


porque ela estava escondendo o peito com a mão. Entendeu por
que, em um mundo em que o conceito de “18+” não existe, optei por
não revelar os modestos e adoráveis seios de Roxy.

— Agora entende por que ela está escondendo os seios, mas


não aquela pinta?

— De jeito nenhum… não pode ser…! — Zanoba estava


tremendo.

Isso mesmo. Era exatamente essa a razão pela qual eu tinha


focado em sua pinta. Já que não poderia ver seus mamilos, a
primeira coisa que se destacaria seria sua pinta, e eu enfatizei o
constrangimento por não conseguir esconder ambas as coisas. Em
outras palavras, o aspecto mais sexy daquela estatueta era a
própria pinta.

— E-eu não… não sabia de nada… e corrompi… essa criação…!


— Seus olhos ficaram brancos e seu corpo começou a convulsionar.
Espuma começou a escorrer de sua boca. Essa não era uma
resposta meio exagerada?

— Bem, é só uma pinta. É bem fácil criar ela de novo. Mas, de


qualquer forma, e quanto à calcinha?

— A-a calcinha é… igual à da estatueta…

Meu olhar voou entre o tecido em suas mãos e a estatueta. A


roupa de baixo do objeto era exatamente igual ao meu antigo objeto
de adoração. Fazia sentido. Usei a calcinha com a qual mais estava
familiarizado como referência em minha criação. Seria bom destacar
que Roxy tinha outros quatro modelos de calcinha na época, mas os
detalhes variavam um pouco entre um e outro. Ela sabia bastante
sobre moda.

— Então é por isso. Tudo bem, então o que você quer que eu
diga sobre a estatueta? — Não adiantava continuar escondendo. Se
ele estava tratando o objeto com tanto cuidado, então
provavelmente não iria me entregar aos Cavaleiros do Templo.

— Aaaah! — Zanoba de repente caiu no chão, fazendo um


baque. Isso me chocou. — Então você, meu lorde, foi você quem
criou esta estatueta!
E agora estava rastejando na minha frente? Eu não tinha ideia do
que estava acontecendo. A única coisa que eu sabia era como Roxy
era magnífica.

— Não esperaria menos de um aluno da Maga Rei da Água


Roxy! Você fez esta estatueta usando magia, não foi?!

Como ele ousava usar o nome dela sem um título adequado.


Para você é Senhorita Roxy!

— Meu lorde, eu admiro sua criação todos os dias. Cada vez que
a vejo, descubro algo novo, e meu respeito por você só aumenta.
Por favor, permita-me chamá-lo de “mestre”! — Ele rastejou pelo
chão como se fosse um inseto falante, tentando beijar meus
sapatos, só para ser repelido, gritando, pela barreira. Parecia até
com um daqueles fãs obcecados que ficavam competindo pelo
último lançamento no terceiro dia do festival da Comiket.

— Gaaaah! Por que essa barreira está aqui?! Quem se atreveu a


colocar isso aqui?! Mestre! Permita-me prestar homenagem às suas
mãos divinas! Porfaaaaaaaaaaaarh!

E foi assim que consegui um discípulo um pouco assustador.

Tinha conhecido pessoas parecidas na minha vida anterior. A


maioria delas eram pessoas que conheci online – pessoas que não
conseguia chamar de amigas. Agora tinha entendido – essa era a
cara que aquelas pessoas faziam enquanto estavam atrás de suas
telas. Devia ser isso que o Deus Homem tinha previsto que
aconteceria. Eu deveria ser levado para dentro do castelo e
encontraria esse cara, criaríamos uma relação e ele me emprestaria
seu poder para me ajudar a escapar. Muito bem! O final estava à
vista!

Coloquei minha melhor cara lisa e disse:

— Meu pupilo. Deve haver um cristal mágico que mantém esta


barreira escondido em algum lugar deste cômodo. Encontre e
destrua-o!

— Entendido, Mestre. Depois de fazer isso, por favor, imploro


que me transmita seu conhecimento sobre o artesanato de
estatuetas!

— Você será excomungado se não cumprir com as condições.


Nunca mais permitirei que volte a me chamar de “mestre” — falei.

— Sim, é claro! — respondeu Zanoba, cheio de energia. Ele


começou a vasculhar o interior do cômodo, depois a sala de cima,
deslizando pelo chão como se fosse uma barata.

Uma hora se passou e a única coisa que Zanoba encontrou foi


um buraco do tamanho de uma carta, bem no teto, com uma tampa
removível. Pelo visto, era por aquilo que Pax pretendia jogar comida
para mim. Isso parecia muito bom, mas como o príncipe pretendia
lidar com os excrementos caso eu ficasse doente por causa deles?
Talvez pretendesse usar algo para me fazer dormir e removeria a
barreira enquanto eu estava indisposto para fazer qualquer coisa.

Não, vamos ser honestos, ele provavelmente não tinha pensado


nisso. Pax era o tipo de cara que pensava que cuidar de um animal
de estimação consistia apenas em colocar comida em um pote, e
nada mais.
De qualquer forma, eu poderia encontrar uma maneira de
escapar se removêssemos a tampa que cobria o buraco. O cômodo
tinha um teto alto, mas eu provavelmente poderia sair se alguém
jogasse uma corda. Infelizmente, a laje de pedra que servia como
tampa era muito pesada e estava firmemente plantada no buraco,
era quase como se tivesse sido soldada lá. Removê-la seria difícil.
Pelo visto, também havia outro círculo mágico desenhado acima
dela. Pareciam formar um conjunto.

— Vossa alteza, não há ninguém sob seu comando que saiba um


pouco sobre barreiras? — perguntei.

— Não tenho ninguém sob meu comando!

— Sério, não tem? Mas até o Pax tinha sua própria guarda
imperial.

— Eu troquei meu último subordinado pela estatueta de Roxy!


Ahh, e que negócio maravilhoso que foi!

Então esse cara também era um idiota. Além disso, o que diabos
havia de errado com este país, já que permitia que trocassem os
guardas assim?

— Tudo bem… agora eu entendi.

— Aah, entendeu? Exatamente o que eu esperava de você,


Mestre!

— Sim. Parece que no final das contas você será excomungado.

— O quêêêêê?!
Meu discípulozinho assustador seria excomungado em tempo
recorde… Não, na verdade não. Eu não pretendia perder um
ajudante que caiu do céu. Alterei minha declaração.

— Irei mudar minhas exigências. Contanto que me ajude a sair


daqui, farei de você meu pupilo assim que estiver livre.

— Sim! Isso é completamente bom para mim! Só um segundo,


espere só um momento! Vou quebrar o teto com meu punho!

— Não seja irracional. — Me apressei para parar Zanoba


enquanto ele olhava para o teto, formando um punho com sua mão.
O olhar em seu rosto parecia convencido. Seu rosto dizia que
continuaria socando a tampa até que os ossos de sua mão ficassem
em pedaços.

Zanoba se moveu um pouco antes de repentinamente erguer os


olhos, como se tivesse percebido algo.

— Mestre, quem foi que criou essa barreira?

— Uhh, a julgar pela nossa conversa, tenho certeza que foi o


Sétimo Príncipe, Pax.

— Hm, agora que você mencionou, Ginger disse algo parecido…

— Quer dizer que você não ouviu os detalhes? — perguntei,


apenas para ter certeza.

— Um pouco. Estava muito ocupado pensando em estatuetas.

— Ah — falei —, então tá.


De qualquer forma, parecia que esse príncipe estava em contato
com Ginger. Ela devia ter feito seus próprios movimentos por baixo
dos panos – o que significava que tinha seus próprios problemas
com Pax. Zanoba disse que apareceu após a cavaleira comentar
com ele sobre mim. Isso significava que Ginger queria que nós dois
nos encontrássemos. Ela devia ter visto a estatueta de Ruijerd e
pensado que tínhamos interesses semelhantes. Mas qual era seu
objetivo ao tentar conquistar uma pessoa não confiável como o
Terceiro Príncipe?

Zanoba falou:

— Então, Mestre, isso significa que eu só tenho que fazer algo


quanto ao Pax, certo?

— Hm? Sim, isso resolveria tudo.

Zanoba pensou por um momento e então falou em uma voz tão


baixa que a empolgação que havia acabado de exibir parecia até
mentira:

— Muito bem. Por favor, mantenha a paciência.

— Uhh, antes de fazer qualquer coisa, por favor, peça a opinião


de alguém. Como a da Senhorita Ginger, por exemplo. Ou a minha.

— Ha ha ha! Mestre, você realmente é um brincalhão! Descanse


à vontade, pode deixar tudo comigo.

— Ei, espera aí! Aonde você vai? Me escuta! O que você vai
fazer?!

Zanoba apenas riu enquanto voltava a subir as escadas e partia.


— Isso é sério…? — Tive a nítida sensação de que estava tudo
arruinado. Forçar esse príncipe – que aparentemente não tinha
nenhum servo – a fazer um movimento, parecia o equivalente a
enfiar um pedaço de pau em um ninho de vespas. Uma tremenda
sensação ruim tomou conta de mim.

Eu devia ter simplesmente pedido um pouco de comida.

Porém, como logo descobriria, estava completamente enganado.


Tinha interpretado mal o homem conhecido como Zanoba Shirone.
Olhando para trás, para o que havia acontecido, viria a perceber que
o curso dos eventos provavelmente foi decidido no momento em
que ele descobriu que eu era o criador daquela estatueta.
Capítulo 06:
Uma Resolução Rápida
Antes de falar sobre como as coisas se resolveram, há um fator
que gostaria de discutir. Uma criança com uma anormalidade
nasceu neste mundo. A palavra anormalidade provavelmente faz
pensarem em uma condição física, mas a maioria das crianças do
tipo pareciam normal em qualquer aspecto. Na verdade, era o
oposto: A única coisa normal nele era sua aparência.

Quando nasceu, esta criança possuía uma habilidade única.


Veja, existiam crianças que podiam correr anormalmente rápido,
tinham força sobre-humana, aumentavam a audição, tinham um
corpo mais leve que uma pena ou eram incrivelmente pesadas,
podiam congelar qualquer coisa que tocassem, podiam respirar
fogo, tinham dedos com pontas venenosas, podiam se
teletransportar por distâncias curtas, podiam disparar feixes de laser
de seus olhos, podiam anular todo e qualquer veneno, podiam
passar um dia inteiro acordadas sem se sentir cansadas, ou podiam
fazer sexo com centenas de mulheres ao mesmo tempo sem ficar
mole… Essas crianças, que possuíam habilidades sobre-humanas
quando nasciam, eram chamadas de Crianças Abençoadas. Se
possuíam uma habilidade que não era particularmente útil, ou
mesmo desfavorável, então eram consideradas uma Crianças
Amaldiçoadas, mas por enquanto vamos deixar isso de lado.

Agora que levamos em consideração a existência de Crianças


Abençoadas, vamos falar sobre o Palácio Real de Shirone.
Atualmente, havia sete príncipes no palácio. O mais velho tinha
trinta e dois anos, e o mais novo tinha… bem, o mais novo
realmente não importava.

Neste país, quando um príncipe nascia, era colocado no


comando de vários guardas imperiais. Os guardas sob o comando
de um príncipe seriam seus olhos e ouvidos, por assim dizer, e o
ensinariam como influenciar as pessoas. Se ele jogasse suas cartas
direito, o número de seus guardas aumentaria, e se fizesse algo
ruim, diminuiria. Quando um rei morresse, o príncipe com mais
guardas sob seu comando herdaria o trono. Essa era a tradição do
país. Quanto mais guardas tivesse sob o comando, mais poder teria.

Nesse sistema, a pessoa com mais guardas sob seu comando


era o Primeiro Príncipe. Ele estava ciente de sua posição como o
mais velho e, embora fosse um pouco arrogante, ainda se
comportava de uma forma apropriada para um membro da família
real. Como resultado, tinha quase trinta guardas sob seu comando.

Então, quem era o que tinha menos sob seu comando? Era
aquele que foi desprezado pelos soldados, o Sétimo Príncipe, Pax
Shirone? Era verdade que ele tinha poucos guardas sob seu
comando. No momento, tinha apenas três. A certa altura, esse
número havia diminuído para apenas um, mas Pax conseguiu um
contato na área sem lei onde o mercado de escravos era realizado e
aumentou esse número em um. Vou falar sobre o terceiro depois.

Pax não tinha muitos guardas, mas havia alguém que tinha ainda
menos do que ele. Esse era o Terceiro Príncipe, Zanoba Shirone.
Ele tinha exatamente zero pessoas sob seu comando. Ele não tinha
sequer um único guarda. Apenas alguns anos antes, tinha Ginger —
a décima segunda mais forte do reino – sob seu comando. Mas até
ela, a última de seus guardas, foi usada como moeda de troca, em
uma transação com Pax, envolvendo uma certa estatueta. Ginger
tentou apresentar sua renúncia, mas Pax tomou sua família como
refém, forçando-a a se tornar o terceiro membro de sua guarda.

Então, quanto ao Terceiro Príncipe, Zanoba Shirone. Ele era na


verdade uma Criança Abençoada, nascido com uma habilidade
sobre-humana que o tornava excepcionalmente forte. Embora seu
poder não fosse terrivelmente excepcional, o rei ainda se alegrou
quando ele nasceu, pois esta Criança Abençoada seria de grande
ajuda para seu país no futuro. Considerando a Zona de Conflito ao
norte do reino, o nascimento de qualquer pessoa cuja força pudesse
ser usada na batalha exigia que as pessoas levantassem as mãos
para o céu em comemoração. A mãe biológica de Zanoba era uma
concubina, mas seu nascimento foi uma alegria para ela, uma
garantia de que havia cumprido seu papel.

O dia em que as mãos levantadas de alegria caíram foi apenas


três anos após seu nascimento, quando o Quarto Príncipe nasceu.
Numericamente o Quarto, mas o primogênito da rainha coroada. A
criança foi tratada como uma joia preciosa, provocando alegria em
todos enquanto uma festa comemorativa era organizada.

No meio da festa, Zanoba, de três anos, arrastou-se até onde


seu irmão estava esparramado em seu berço. Ele estendeu a mão,
tocou seu irmão e disse: “Que fofo” e “Você é como um boneco”.
Todos sorriram ao ouvir isso. Zanoba gostava muito de bonecos,
então aqueceu seus corações quando comparou seu irmão mais
novo com sua coisa favorita.
Mas então ele arrancou a cabeça do irmão mais novo como se
fosse um boneco, e a festa explodiu em um pandemônio em meio
aos gritos.

O rei e sua rainha enlouqueceram, condenando a mãe de


Zanoba ao exílio. Mas ele permaneceu no país – em parte porque
ainda era jovem, mas também porque era uma Criança Abençoada.
Era esse o valor das Crianças Abençoadas neste mundo. Mas,
como resultado desse incidente, os guardas de Zanoba diminuíram
de oito para apenas três. Além disso, o rei ordenou que não fosse
permitido ter mais do que esse número.

O próximo incidente ocorreu quando ele tinha quinze anos.


Embora ainda fosse um fanático por bonecos, agora estava em uma
idade em que podia distinguir um humano de um brinquedo. Foi por
isso que foi casado com uma mulher, filha de uma família poderosa
que resistiu a inúmeros ataques do país de Vista, na Zona de
Conflito. Parecia que o rei pretendia colocar Zanoba na linha de
frente no caso de uma guerra com Vista.

A cerimônia de casamento correu perfeitamente – mas foi a única


coisa perfeita, porque no dia seguinte à primeira noite juntos, sua
noiva foi encontrada sem cabeça, ainda em sua cama. O
responsável fora Zanoba. A família da noiva, louca de raiva por sua
filha ter sido assassinada, ergueu-se em rebelião, mas foi reprimida.
O rei tomou duas pessoas da guarda de Zanoba e o confinou no
interior do castelo. Em seguida, tomaria o seu boneco favorito, mas
cada um dos soldados que tentaram cumprir essa tarefa teve a
cabeça arrancada.
Após esse incidente, Zanoba ficou conhecido como o Príncipe
Rasga-Cabeças. Nada do que fez poderia ser perdoado, mesmo
sendo uma Criança Abençoada. Ele era um louco que matou o
herdeiro legítimo do reino e sua própria esposa. O rei começou a
considerar até mesmo a sua execução.

Mas enquanto Zanoba tivesse um boneco, estaria tudo bem.


Desde que periodicamente recebesse um, não causava nenhum
dano. Então, com o tempo, o rei começou a vê-lo como uma arma
perigosa que por acaso tinha a forma de um humano. Depois disso,
Zanoba foi tratado com uma cautela excepcional. E isso nos leva de
volta ao presente.

Agora estou contando a história de forma bem presunçosa, mas


só descobri sobre tudo isso após as coisas terem acabado. Na
época, eu não sabia que Zanoba era o poder militar mais forte que o
Reino Shirone possuía.

✦✦✦✦✦✦✦

Várias horas se passaram depois que Zanoba me disse para


deixar tudo com ele e se afastou. E voltou com os lábios abertos em
um sorriso enorme. Em comparação, meus lábios provavelmente
estavam esticados em uma linha.

Zanoba apenas sorriu para mim enquanto segurava algo em sua


mão.

— Mestre, que tal isso? Agora você vai me tornar seu pupilo?

— Ai, ai, ai, ai!! Pare com isso! Por favor, irmão, pare!

— Cala a boca, Pax! — sibilou Zanoba em resposta.


— Aaaaagaaaaah!

A pessoa que ele estava arrastando era seu irmão, Pax Shirone.
Eu podia ver sangue escorrendo do lugar onde Zanoba agarrava
sua cabeça. Entretanto, não era o sangue de Pax. Era o corpo do
Terceiro Príncipe que estava totalmente pintado de vermelho.

Perdi a capacidade de falar. Eu não sabia o que estava


acontecendo. Achei que tivéssemos passado por uma conversa
alegre sobre ele se tornar meu pupilo ou algo assim, mas em algum
momento aquilo virou um festival sangrento. Um rosto sorridente e
coberto de sangue só tinha apelo quando era o de uma bela mulher.
A expressão parecia bizarra quando era usada por um cara mais
velho desajeitado e com aparência de nerd.

Várias pessoas entraram atrás de Zanoba, como se o estivessem


seguindo. A primeira era Ginger, com sua espada já
desembainhada. Mais três cavaleiros em trajes semelhantes se
aglomeraram atrás dela.

— Pare com isso, Zanoba! Tire as mãos dele!

— I-isso mesmo, Zanoba, por favor, controle-se…!

Escondidos atrás dos cavaleiros estavam dois príncipes vestidos


com roupas que pareciam caras. Embora eu os chamasse de
príncipes, um era um pouco velho demais para realmente manter o
título. Apesar de tudo, éramos nove (eu incluso) espremidos no
pequeno espaço apertado que era este quarto estreito.

— Irmãos, vocês sabiam que Pax levou as famílias dos soldados


como reféns para que pudesse forçá-los a cumprir suas ordens?
— N-não…

— E estou falando dos soldados, aqueles sob o comando de


nosso pai, e não a sua própria guarda pessoal. — Zanoba estava
sorrindo, sua boca bem esticada enquanto falava. — Parece que
ele também fez a família de Ginger como refém.

— Isso é verdade?

— Sim, senhor — respondeu Ginger, com sua espada ainda


erguida.

O sorriso continuava no rosto de Zanoba.

— Irmãos, vocês lembram da Roxy?

— S-sim. Ela era a tutora do Pax…

— Uma Maga de Água de Nível Rei que ensinou aos soldados de


nosso país os segredos para enfrentar um mago em batalha, uma
pessoa a quem temos uma grande dívida. Nosso pai não tentou a
convidar oficialmente para ficar no palácio real? E não foram as
ações tolas de Pax que sabotaram e destruíram nosso
relacionamento com ela?

— B-bem, sim… é verdade, Pax estava errado, mas ainda assim,


você…

— E ainda, apesar disso… veja por si mesmo. Seu pupilo, meu


mes… digo, Lorde Rudeus; está sendo insultado assim. Graças ao
Pax. O mesmo pupilo que a Mestra Roxy disse que tinha ainda mais
talento do que ela. Lorde Rudeus, um verdadeiro gênio. — O sorriso
de Zanoba não vacilou em momento algum.
— V-você sempre parecia tão entediado quando ia ao
parlamento, mas estava realmente ouvindo tudo? Como seu irmão,
isso me traz um grande alívio. Eu tinha certeza de que você não se
importava nem um pouco com o que acontecia com nosso país.

— Irmão, só estou interessado em bonecos. Tudo o que estou


fazendo agora é revelar a verdade sobre o comportamento ilegal de
Pax. E só há uma razão pela qual estou fazendo isso — declarou
Zanoba, erguendo Pax no ar.

— Oooow!

— Lorde Rudeus é um criador de estatuetas extraordinariamente


habilidoso e insuperável. Eu não posso perdoar alguém assim
sendo usado como um peão no esquema de vingança de Pax!

— Aaaaah! Minha cabeça vai rachar! Vai rachar! Vai


rachaaaaaar! — O gemido de dor de Pax reverberou pelo cômodo.

— Irmão, se você decidir ficar ao lado de Pax nisso, eu agirei.

Os três cavaleiros e os dois príncipes ficaram mortalmente


pálidos. Eu queria pular e dizer: “Você está “atuando” muito bem!”
mas o frio no ar me indicou que sua definição de “atuar” estava em
outro nível, em um bem diferente do que imaginei.

— Não estou pedindo nada difícil — disse Zanoba. — Só quero


salvar este criador de estatuetas, e o mau comportamento de Pax
está inibindo minha capacidade de fazer isso.

— Mas sem Pax, o mercado de escravos…


— Irmão, por favor, não me faça dizer isso de novo. A cabeça do
seu irmão mais novo está prestes a ser arrancada. — Zanoba não
estava mais sorrindo.

Eu não tinha ideia do que estava acontecendo. Estava apenas


confuso, me perguntando se a palavra “arrancada” era uma
metáfora. A única coisa que eu sabia era que a pessoa no comando
dessa situação era Zanoba. Vá em frente, meu pupilo, você
consegue! Mesmo sendo assustador pra caralho!

— Nããão, não! Pare com isso! Solte! Gingerrr! Salve-me! Você


não se importa com o que pode… com o que pode acontecer com a
sua família?!

— Minha família? Todos foram salvos pelo Mestre Ruijerd na


noite passada — respondeu ela.

— O quêê?! — Pax lutou contra o irmão enquanto Ginger


friamente virava as costas para ele.

Ruijerd salvou alguém? Bem, ele sempre estava por aí salvando


as pessoas. Eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas
parecia que as coisas estavam acontecendo nos bastidores.

— Agora vocês vêem como estão as coisas, irmãos. Tenho a


menor autoridade entre nós, príncipes, e é por isso que vim pedir
sua ajuda. Se recusarem, agirei com toda a minha força. Desta
distância, eu poderia agarrar uma, ou talvez ambas as suas
cabeças, e arrancá-las. Mas tenho certeza de que após isso seria
queimado vivo pelos magos da corte.
Com isso, um dos dois (que presumi serem o Primeiro e o
Segundo Príncipes) finalmente se afastou.

— C-certo, tudo bem! Faremos o que você pedir!

— Certifique-se de examinar isso direito, sim? Além disso, aquela


garota que criou toda aquela confusão há dois anos, Lilia, está
sendo mantida em cativeiro em algum lugar deste castelo. Eu
gostaria que vocês também a protegessem.

— Sim, mas é claro. Também vou contar isso para o Pai.

Naquela época, eu não sabia que Zanoba era uma Criança


Abençoada. Achei que ele tinha uma confiança ridícula para alguém
tão desengonçado. É perigoso superestimar sua própria força dessa
maneira, pensei, embora me parecesse seriamente estranho como
os dois príncipes pareciam tão decididos a defender Pax.

Mas, conforme descobri, eu estava enganado. Eles tinham medo


de Zanoba, o tipo de terror que se sente ao se deparar com uma
bomba que está prestes a explodir. Mesmo quando fui liberado da
barreira, ainda não entendia. Estupefato, observei Pax ser levado
embora, Lilia ser libertada e todo o problema chegar ao fim.

✦✦✦✦✦✦✦

Vários dias se passaram antes que eu finalmente descobrisse


tudo o que havia acontecido. Vamos começar contando como Lilia
acabou sendo detida, em primeiro lugar.

Na época, ela era suspeita de ser uma espiã de uma potência


estrangeira. Quando foi interrogada, invocou os nomes de Paul e
Roxy, o que conseguiu mantê-la fora da prisão, mas não dissipou
completamente suas suspeitas. Em vez disso, foi confinada ao
palácio. Quando as informações sobre o Incidente de Deslocamento
finalmente chegaram ao Reino Shirone e parecia que ela poderia
ser liberada, Pax interferiu e começou a manipular o fluxo de
informações, o que significava que Lilia e Aisha foram forçadas a
permanecer dentro do castelo.

Quando Roxy fugiu, Pax estabeleceu contatos no mercado de


escravos. Por meio deles, contratou seu próprio exército particular,
depois tomou como reféns algumas famílias de soldados de seu pai
para forçar sua obediência. Aqueles soldados vasculharam as
favelas em segredo e descobriram onde os reféns estavam sendo
mantidos, mas resgatá-los era difícil, já que estavam fortemente
vigiados. Frustrados, tiveram que esperar, e os dias foram
passando.

Foi nessa época que Aisha fugiu e o príncipe deu ordens para
persegui-la. Relutantemente, os soldados obedeceram e
conseguiram localizá-la. Foi então que eu apareci e dei um show
magnífico levando-a comigo. Assim que os soldados viram como eu
estava tentando ajudar Aisha, além de como poderia lançar feitiços
não verbais, perceberam que eu era o pupilo de Roxy. Foi então que
começaram a traçar o seu plano.

Primeiro, começaram uma luta no mercado de escravos para


jogá-lo no caos. Então, usaram o fato de que Aisha havia sido
sequestrada por um homem misterioso para colocar o exército
particular de Pax em movimento. Depois disso, planejaram explicar
suas circunstâncias para mim e pedir minha ajuda para resgatar os
reféns. Eu os ajudaria a atacar o local onde os reféns estavam
sendo mantidos, agora que sua segurança estava enfraquecida, e,
em troca, encontrariam uma maneira de salvar Lilia para mim.

Mas antes que isso pudesse acontecer, enviei minha carta ao


palácio, pensando erroneamente que Roxy ainda estava no país, e
então fui atraído e confinado por Pax. Se tivesse esperado mais um
dia antes de enviar minha carta, poderia ter ouvido a história dos
soldados e ser aquele que atrairia Pax para uma armadilha. Talvez o
Deus Homem quisesse que eu salvasse Aisha e depois escrevesse
minha carta, não o contrário.

Minha captura deveria ter sido um revés para os soldados, mas


quando foram à pousada para me encontrar, encontraram Ruijerd.
Ele ouviu o que tinham a dizer, ficou todo irritado e logo resgatou
todos os reféns. Assim que os reféns fossem devolvidos em
segurança às suas famílias, o Superd pretendia atacar o castelo. Os
soldados tentaram dizer que fariam isso sozinhos, mas ele não deu
ouvidos.

Ginger, entretanto, não foi informada de nada disso. Os soldados


a deixaram de fora porque temiam que seria perigoso envolver
alguém sob o comando de Pax. Coitada. No entanto, quando os
reféns foram libertados, sua família foi vista entre eles, então os
soldados também os levaram sob custódia protetora.

Ela, pensando que aquela era uma boa oportunidade para agir,
passou minha estatueta de Ruijerd para Zanoba – o homem com a
força mais bruta deste país. A mulher calculou que ele poderia me
ver como uma fonte valiosa de informação e se aliar a mim, mas
também foi motivada pelo fato de que tinha jurado lealdade a
Zanoba. Por que alguém como Ginger permaneceria leal a alguém
que a trocou por uma estatueta? Devia haver alguma história por
trás disso.

De qualquer forma, no dia seguinte, Zanoba matou dois dos


guardas imperiais de Pax antes de tomá-lo como refém. Com isso,
os soldados nunca conseguiram realizar a última etapa de seu
plano. Em vez disso, o incidente chegou a um fim surpreendente.

Depois que tudo foi à tona, o rei deu suas ordens. Primeiro, Pax
deveria ser banido do país. Foi uma pena que isso significava a
perda de seus contatos no mercado de escravos, mas abriu um
precedente terrível: Ele não apenas tomou as famílias de seus
soldados cativas, como também a família de um de seus guardas
imperiais. Além disso, em vez de persuadir suavemente um mago
como eu a se juntar à família real, me prendeu e tentou me usar
como isca para atrair Roxy, tudo para que pudesse atacá-la e matá-
la.

Com o interesse de manter as aparências, alegaram que Pax


estava sendo enviado para estudar no exterior. Na realidade, o
enviaram para o Reino Rei Dragão para ser mantido como refém –
aquele cuja morte não faria diferença.

Quanto a Zanoba, também foi banido do país. Novamente,


alegaram que ele iria estudar no exterior. Seu banimento foi
proposto pelo primeiro e segundo príncipes, que alegaram que a
situação era parcialmente sua culpa. Com toda a franqueza,
provavelmente estavam apenas com medo de ter uma ogiva nuclear
daquelas por perto, sem saber quando ela explodiria ou se seriam
apanhados pela explosão. O rei parecia relutante em deixar Zanoba
partir, mas parecia que os bonecos não podiam mais assegurar sua
calma, e ele estava cansado de todos os problemas que seu filho
havia causado até o momento.

Lilia foi libertada, embora alguns ainda afirmassem que ela era
uma espiã de outro país. Para ganhar o favor de Pax,
aparentemente estava coletando informações para ele nos
bastidores. Tudo isso só serviu para mostrar o quão incrível nossa
Lilia era, que poderia fazer algo assim mesmo em cativeiro.

A fim de silenciar essas afirmações, deveria ser escoltada até


Paul. Não até o Reino Asura, mas até Paul. Fazia sentido, já que
mesmo se a mandassem para o Reino Asura, ninguém lá poderia
verificar sua identidade. Atualmente, Paul tinha laços mais fortes
com o País Sagrado de Millis, e provavelmente era melhor ficar lá
do que levantar suspeitas desnecessárias ao voltar para casa.

Eu estava preocupado que pudessem matá-la no caminho para


impedi-la de falar, mas Ginger se ofereceu para ir junto em seu
esquadrão de guarda. Zanoba aparentemente ordenou que ela
protegesse a família de seu mestre. Alguns dos soldados que
Ruijerd salvou também se ofereceram para acompanhá-los, isso me
tranquilizou.

Quanto a mim, o próprio rei me convidou para ficar na região,


oferecendo-se para preparar um lugar para mim como mago da
corte. Dado seu tom de voz e a maneira como suspirou enquanto
falava, eu poderia dizer que ele sabia que estava pedindo o
impossível. E, claro, recusei. Quando o fiz, o rei suspirou novamente
e disse que eu poderia ir embora.
Isso foi tudo. Não houve desculpas. Afinal, os criminosos eram
da família real. Eles não eram do tipo que se desculpava. Nesse
aspecto, o povo-fera era muito mais honrado.

Depois que tudo acabou e tentei deixar o palácio real, Zanoba se


agarrou a mim em lágrimas.

— Meeeeeestre! Você realmente vai partir? Você realmente vai


deixar seu pupilo para trás?!

— Sinto muito, mas tenho que me apressar em minha jornada.

— Então você poderia pelo menos me fazer uma estatueta antes


de ir?!

— Leva muito tempo para fazer isso, então não posso.

— Nãooo! — O fato de eu não ter feito uma estatueta para


Zanoba o deixou tão triste que ele se agarrou a mim e gemeu de
angústia.

Nesse momento, já tinha ouvido falarem que ele era uma Criança
Abençoada. Sabia que se tratava do príncipe que massacrou as
pessoas arrancando suas cabeças e fiquei nervoso, me
perguntando se ele de repente decidiria arrancar até a minha
cabeça. Não entenda mal, eu estava grato. Mas isso não mudou o
fato de que ele era assustador.

— Se acontecer de nos encontrarmos novamente, vou te ensinar


como fazer uma das minhas estatuetas do zero — falei.

— O quê?! — exclamou ele. — Não, mas… quero dizer, você


tem certeza? Não é uma habilidade ultrassecreta do seu ramo?
— Que tipo de pupilo você seria se eu não te ensinasse nada?

— Waaaaaaah, Meeeeeestre! — Zanoba gemeu e me jogou para


o alto.

Acabei batendo contra o teto.

— A-ah nããão! — gritou ele. — Ginger! Magia de cura!!

— Sim senhor! — Ginger entoou um feitiço de cura e minhas


feridas se fecharam. Zanoba, que quase me matou, ficou pálido e
nervoso. Ele pareceu aliviado quando me levantei, mais uma vez
saudável. Considerei seriamente excomungá-lo ali mesmo, mas
logo reconsiderei isso. Não queria que ele arrancasse minha
cabeça.

— Tudo bem, Mestre. Fique seguro! Não sei para onde serei
enviado, mas tenho a sensação de que acabarei encontrando você
de novo!

— Cof… sim, digo o mesmo.

Zanoba continuou soluçando enquanto assentia, me observando


ir embora. Ginger nos observou enquanto lágrimas corriam por seu
rosto.

E foi assim que as coisas no Reino Shirone chegaram ao fim.


Lilia e Aisha foram salvas e enviadas a Paul. Pax foi banido do país.
Zanoba se tornou meu pupilo. Algumas partes não foram tão bem
quanto poderiam, já que não segui o conselho do Deus Homem
perfeitamente. Mesmo assim, tudo terminou da melhor maneira
possível.
Eu ainda parecia estar dançando na palma da mão do deus.
Parecia até que estava apenas assistindo enquanto algo terrível se
desenrolava.

Entretanto, tudo parecia estar no rumo certo. Lilia e Aisha


estavam ambas com boa saúde. Eu não sabia o que pensar sobre
Zanoba, mas pelo menos ele não nutria nenhum sentimento ruim
em relação a mim. E eu tinha certeza de que Pax ainda me odiava,
mas ele foi expulso do país sem quaisquer peões para manipular.

Deixando os detalhes irritantes de lado, tudo acabou de uma


forma benéfica para mim. Pensando bem, nenhum dos caminhos a
que o Deus Homem me dirigiu levou a resultados desvantajosos.
Será que devia confiar mais nele? Não – um vigarista só começa a
enganar as pessoas depois que elas se dão bem seguindo suas
opiniões. Eu precisava ter cautela até ter certeza de que ele era
confiável.

Dito isso, uma promessa era uma promessa. Da próxima vez eu


não seria muito hostil com ele.
Capítulo 07:
O Nascimento da Minha Irmãzinha, a Empregada
Estávamos em uma pousada em uma cidadezinha do Reino
Shirone. Era nela que a estrada se bifurcava, um caminho levava ao
País Sagrado de Millis e o outro ao Reino Asura. Era ali que eu iria
me separar de Lilia e dos outros.

Lilia e eu nos sentamos à mesa juntos, um de frente para o outro.

— Isso mesmo! O Ru… digo, o Mestre do Canil é realmente


incrível! Se ele ficar sério, pode criar uma chuva para inundar a
floresta inteira e depois a congelar!

— Você está falando de magia, certo? Isso é incrível!

— Claro! Tenho histórias ainda mais surpreendentes do que


essa. Quer ouvir?

— Sim, por favor, me conte tudo!

As vozes de Eris e Aisha soaram animadas. Eris estava se


gabando das realizações do Mestre do Canil. Eu sorri amargamente
e voltei minha atenção para Lilia. Nós dois mal conversamos no
passado, então como deveria abordá-la neste momento?

Enquanto eu pensava, Lilia aproveitou a oportunidade para puxar


conversa.

— Deixe-me agradecer mais uma vez, Lorde Rudeus. Não


consigo nem começar a expressar o quanto estou grata por você ter
salvo minha vida não apenas uma, mas duas vezes.
— Por favor, não se preocupe com isso — falei. — Dessa vez
não fiz nada.

— Não. Ouvi dizer que você conseguiu algumas informações


sobre nós e saiu de seu caminho para passar pelo Reino Shirone —
disse Lilia enquanto mantinha a cabeça baixa.

Tudo o que fiz foi seguir as instruções do Deus Homem. E então,


desnecessariamente, fiquei preso em uma armadilha e precisei de
ajuda para escapar dela. Se eu ainda tivesse coragem de exigir
gratidão depois de tudo isso, deveria ter sido capaz de usar a
mesma coragem para fazer mais coisas na minha vida passada.

— Por favor, no lugar de me agradecer, agradeça a Eris e


Ruijerd. São eles que agiram da forma adequada e conduziram tudo
para uma conclusão pacífica.

— Falei um pouco com eles — disse ela. — Mas me disseram


que foi tudo parte da sua estratégia…

— Essa não era minha estratégia.

Lilia ficou quieta e disse:

— Se é assim que você se sente. — Ela parecia descontente,


mas não era como se eu estivesse pedindo para que chamasse
urubu de meu louro.

Após isso, ficamos em silêncio por algum tempo.

— Aisha… — Lilia começou a perguntar, olhando para fora da


janela —, falou algum tipo de coisa ofensiva…?
— Claro que não. Ela é uma criança excepcional. Nenhuma
criança normal poderia pensar tanto em suas ações enquanto tem
só seis anos.

— Mas ela não é tão boa quanto você. Tentei ensiná-la tanto
quanto pude nos últimos anos, mas, mesmo agora, minha filha é
muito estúpida para entender como você é incrível, Lorde Rudeus.

— Chamá-la de estúpida é um pouco exagerado. — Além disso,


eu tinha uma vantagem na forma de memórias da minha vida
anterior. Já havia considerado a possibilidade de que Aisha pudesse
ser igual a mim, mas quando tentei perguntar a ela sobre a
existência de coisas como televisão e telefones celulares, ela só
olhou fixamente na minha direção. A garota era só um gênio
comum. Os genes de Paul, no fim das contas, eram realmente
incríveis.

— O que você achou da Aisha? — perguntou Lilia, como se a


isso tivesse acabado de passar por sua mente.

— Hã? Eu te disse, ela é excepcional.

— Não estou falando disso. Falo sobre a aparência dela.

— Achei ela fofa — respondi.

Lilia pressionou:

— Ela é minha filha. Você acha que os peitos dela vão crescer
com o tempo?

Uhh… o quê? Eu não tinha interesse nos peitos da minha


irmãzinha. Além disso, do que diabos estávamos falando?
— Lorde Rudeus, se pretende viajar para Asura, por favor, leve
Aisha junto com você. Eu tenho que voltar para o lado do Mestre,
mas Aisha pode ir junto com você, não pode?

— Pode me dizer por que está pedindo isso? — Tentei desviar


dessa conversa.

— Todos os dias eu disse para Aisha que um dia ela te serviria.

— Parece que sim.

— Ensinei tudo o que sei para ela. Aisha ainda é jovem, mas em
alguns anos terá um corpo que deixará qualquer garoto caindo de
amores.

Um corpo que todos garotos vão amar, hein?

— Espera aí. Ela é minha irmãzinha, entende?

— Eu sei que você é um mulherengo.

O que ela disse? Huh, então tá bom. Mesmo assim, fiquei


desconfortável quando Lilia me apresentou Aisha como se ela fosse
uma refeição gourmet preparada para o meu consumo.

— E ela só tem seis anos, não é? Está em uma idade que


precisa ficar com os pais.

— Se é assim que você se sente — respondeu.

Lilia parecia desapontada, mas eu não disse nada errado. Aisha


ainda era jovem. Era melhor ficar com os pais, certo? Como alguém
que nasceu japonês, eu achava que era melhor que uma criança
ainda pequena ficasse com os seus pais. Ao menos com um, de
preferência com os dois, mas de forma alguma com nenhum.

— Compreendo. É verdade que Aisha ainda é imatura. Não


posso mandar que ela vá com você enquanto ainda é tão
inexperiente.

— Uh, por favor, não ensine nada muito estranho para ela, certo?
Tipo… sobre eu ser um pervertido.

— Eu só disse como você é maravilhoso — respondeu ela.

— E por causa disso, ela parece estar se rebelando…

— De fato. Embora seja apenas momentâneo — disse Lilia, rindo


baixinho e erguendo o rosto. Sua expressão estava resplandecente.

Não podia levar Aisha comigo, mas já tinha recebido algumas


coisas preciosas de Lilia. Uma dessas coisas estava pendurada em
meu pescoço, em um cordão de couro. A outra estava seguramente
guardada em uma caixinha. Eu nunca mais iria me separar disso de
novo.

— Obrigado pelo pingente. — E pela calcinha.

— Não foi nenhum problema. Sei como isso é precioso para


você. — Havia um significado oculto em suas palavras, é claro, já
que ela na verdade se referia à calcinha. Minha dívida por tudo que
tinha feito por mim era enorme.

— Então, um… será que carregar isso realmente faz as pessoas


pensarem que sou um pervertido?
— Um pervertido? Isso é algo que Aisha te falou? — Lilia de
repente saltou da cadeira. Eu tive que fazer um grande show para
fazê-la sentar de novo, e então a mulher soltou um breve suspiro. —
Ela era relativamente livre para se mover pelo castelo, então alguém
deve ter colocado coisas estranhas em sua cabeça.

Coisas estranhas, sim. Muito estranhas mesmo.

— Se roupas íntimas fossem o suficiente para chamar alguém de


pervertido, o que aconteceria se ela fosse trabalhar no Palácio Real
Asura?

— O Palácio Real Asura? — perguntei. — Pensando bem, você


disse que costumava trabalhar no palácio, certo?

— Sim. Comparado com o que vi lá, você e o Mestre não


poderiam nem mesmo começar a ser descritos como pervertidos.

— Ah… sério…? — Pelo visto, o Palácio Real Asura era onde os


verdadeiros cavalheiros se reuniam. Fazia sentido, considerando
que havia uma certa família nobre que eu já sabia que amava
furries. Nah – não eram só os Greyrats que possuíam tais
tendências. A família real Shirone também era terrível.

— Um deles gostava que a vagina da mulher…

— Não, não preciso dos mínimos detalhes, obrigado. — Eu não


precisava ir mais longe do que isso.

— De qualquer forma, há muitos entre as famílias reais e nobres


cujas preferências tendem para a perversão. Comparado a isso, ter
interesse na roupa íntima de alguém que você admira é bastante
normal. — Lilia olhou para longe enquanto falava. Provavelmente
estava revivendo uma memória desagradável.

— Por favor, mande lembranças ao meu pai — falei.

— Entendido.

— Vou te dar algum dinheiro para cobrir os custos de viagem,


mas se parecer que não vai ser suficiente, pare em uma Guilda dos
Aventureiros e procure um dos subordinados de meu pai —
aconselhei.

— Entendido.

— Tenho certeza de que esses soldados que vão te escoltar são


confiáveis. Mas, por precaução, tome muito cuidado. Eles continuam
sendo pessoas estranhas.

— Não há nenhum problema com isso. Conheço todos eles.

— Ah, conhece? Então, um…

— Lorde Rudeus. — Quando eu estava ocupado pensando em


algo mais para dizer, Lilia se levantou, se aproximou de mim e me
abraçou contra o peito. Seus seios volumosos cobriram meu rosto e
minha respiração de repente ficou irregular.

— Um, Senhorita Lilia, eles estão na minha cara.

— Desde quando era pequeno você não mudou nada — disse


ela enquanto ria um pouquinho.

No dia seguinte, antes de partirmos, Eris, Ruijerd e eu fizemos a


verificação final em nossa carruagem para ter certeza de que nada
estava errado. Lilia e os outros partiriam antes de nós, após
trocarem de carruagem.

— Senhor Mestre do Canil, Senhor Mestre do Canil! — Aisha


saiu voando da carruagem, tropeçando no chão enquanto corria em
minha direção.

— O que houve?

— Só um momento. — Ela agarrou a barra da minha camisa e


me arrastou para longe. Lancei um olhar a Ruijerd, para que ele
compreendesse, e então fui em frente e a segui.

O lugar ao qual me levou era um matagalzinho na beira da


estrada. Aisha se agachou e gesticulou para que eu fizesse o
mesmo. Fiz o que ela pediu e me aproximei, como se estivéssemos
prestes a ter uma conversa em segredo.

— Senhor Mestre do Canil, na verdade, tenho um favor que


gostaria de lhe pedir, em particular.

— Um favor? Se for algo que eu possa fazer, com certeza farei.


— Se minha linda irmãzinha tivesse uma tarefa para mim, eu faria o
meu melhor para realizá-la. Norn já me odiava, e eu não queria que
Aisha me odiasse também. Por enquanto eu parecia estar caindo
em suas graças, mas era porque ela pensava que eu era o Mestre
do Canil.

— Por favor, me leve junto com você.

Arregalei os olhos quando a ouvi pedindo isso. Isso era obra de


Lilia…?
— Sua mãe mandou você dizer isso? — Talvez ela tivesse
pensado que, já que recusei seu pedido, poderia usar as lágrimas
da filha para me persuadir. Lilia era mais astuta do que eu pensava.

— Não, não há nenhuma maneira de minha mãe aceitar isso.

— Hm?

— Todos os dias, minha mãe me fala sobre como vou servir ao


meu meio-irmão no futuro.

— Ela mencionou isso — concordei.

— Mas! — Aisha bateu o punho contra o chão. — Eu não quero


isso!

Ela realmente não queria ficar perto de mim. Isso de certo era
porque eu ficava um pouco excitado com roupas íntimas. Foi mal,
me desculpei em meus pensamentos.

— Nós conversamos sobre isso outro dia, certo? Meu irmão é um


pervertido. Eu entendo o que você estava dizendo, Senhor Mestre
do Canil, mas simplesmente não consigo suportar a ideia de servir a
alguém assim.

— Isso é sério…?

— Então, por favor, eu imploro, me salve! Tão galantemente


quanto no outro dia, das mãos malignas de um pervertido!

— Não posso fazer isso. — Isso não era brincadeira. Se nós dois
viajássemos juntos, ela eventualmente descobriria meu nome
verdadeiro. E quando descobrisse que eu menti… espera. Éramos
da mesma família, então Aisha eventualmente descobriria isso, de
qualquer forma que fosse, certo?

— Por que não?! Ele é um pervertido!

— Isso é só a sua imaginação, não os fatos — falei.

Certo! Vamos esclarecer as coisas aqui e agora. Se eu confiasse


essa tarefa a Lilia, provavelmente seria conhecido como um
pervertido para sempre. Não importava o quanto ela dissesse que
aqueles no palácio real eram muito piores do que eu – isso não
mudaria a impressão de Aisha sobre mim.

— Você nunca o conheceu de verdade, não é?

— Mas não dá para se confundir, ele é um pervertido que ama


calcinhas!

— Talvez haja uma razão para isso — sugeri.

— E que razão ele poderia ter para valorizar calcinhas?!

Por quê? Eu não tinha uma resposta exatamente na ponta da


língua para isso… mas, por exemplo, nas religiões monoteístas, as
pessoas adoravam as roupas que uma pessoa sagrada usava,
certo? Isso era especialmente verdade quando se considerava que
essa era a calcinha que Roxy usou quando estava balançando seu
maravilhoso traseiro por aí. Era um item raro que apenas os
jogadores de nível mais alto possuíam! Se fosse um jogador que se
importasse com esse tipo de coisa, o que faria com isso? Guardaria
para o resto da vida, é claro! O lema da minha fé pessoal era:
“Luxúria e conhecimento são importantes!”
Enfim, deixando isso de lado…

— Roxy era a ex-tutora do seu irmão, correto?

— Sim — respondeu Aisha.

— Então ela teve um grande impacto sobre o seu irmão, certo?

— Suponho que sim…

Isso não era algo para se “supor”. Eu era o irmão mais velho
dela, então sabia o que estava dizendo. Roxy foi a pessoa que me
ajudou a fazer algo que não fui capaz de fazer em quase vinte anos.
A razão pela qual eu estava vivendo minha vida assim era por causa
dela.

— Então, talvez ele queira valorizá-la como um item que alguém


incrivelmente importante usava.

— Hmmm… — Ela não parecia nada satisfeita com essa


explicação. Nesse caso, por que não a presenteava com algo que
seu ídolo, o Mestre do Canil, usava?

Peguei algo no bolso.

— Faz algum tempo que eu uso esse protetor de testa.

— Por que você está falando disso?

— Porque estou te dando ele. — Entreguei o protetor de testa


para ela. Foi algo que comprei há muito tempo, quando estávamos
em Rikarisu. Embora eu já tivesse o lavado, ainda tinha traços do
meu suor, já que o usei por tanto tempo.
Aisha parecia um pouco chocada enquanto o pegava em suas
mãos.

— Ah! Agora eu meio que entendo.

— Agora faz mais sentido do que quando tentei explicar usando


só palavras?

— Aham, agora eu entendi! Então meu irmão não era um


pervertido!

E, assim, passei o protetor de testa que usei por tanto tempo


para ela. Dito isso, essa garota era muito confiante.

— Senhor Mestre do Canil, você realmente é uma boa pessoa!

— Eu não sou tão bom. — Revelei meu brilhante Sorriso Rudeus.

Aisha me observou com estrelinhas no olhar, antes de


repentinamente perceber algo e murmurar para si mesma:

— Ah, sim… Agora, meu irmão ainda está desaparecido. Se ele


estiver morto, você vai me permitir servi-lo no lugar dele?

— Não, não estou certo disso.

— Não vai deixar? — perguntou ela. — Tenho certeza de que


você vai entender depois de ter visto a minha mãe, mas acho que
vou ser incrível quando crescer. Com um corpo que todos os
garotos vão amar!

— “Um corpo que todos os garotos vão adorar”… Você sabe o


que isso significa?
— Isso significa que vou ter um corpo em que todos vão querer
fazer bebês quando eu crescer, não é?

— Uma criança não deveria falar sobre fazer bebês — repreendi.


Nesse ritmo, ela seria tomada por um pervertido antes mesmo de
desenvolver sua feminilidade. Honestamente, quem diabos estava
ensinando essas coisas a ela?

— Não há nada que eu possa dizer que vai mudar a sua mente?
Você me odeia tanto assim? — Seus olhos brilharam com lágrimas.

— Certo, tá bom. Se o seu irmão nunca for encontrado, então


tudo bem.

— Isso é sério?

Me senti mal por enganá-la. Quando Aisha ficasse mais velha,


minha jornada estaria terminada e provavelmente voltaríamos a
morar juntos, assim como uma família feliz.

— Então você não está com raiva de mim por chamá-lo de


pervertido?

— Não, claro que não… hein?

Espera, o que ela disse?

— Obrigada, irmãozão! — Com isso, Aisha se levantou e correu


para a carruagem. Fiquei sentado lá, estupefato, enquanto ela
saltava. Quando a carruagem começou a andar, Aisha se virou para
acenar para mim e Lilia fez uma reverência. — Até mais, irmãozão!
Vamos nos encontrar novamente! É uma promessa!

E lá foram elas.
Eris estava com um olhar completamente desinteressado no
rosto quando disse:

— Mas que diabos? Ela viu tudo através de você.

— C-como…?

Ruijerd deu um puxão nas rédeas do cavalo e a carruagem


começou a andar. Parando para pensar, houve muitas
oportunidades para ela perceber a verdade. A chamei pelo nome
quando nos encontramos pela primeira vez, e quando, após aquilo,
eu estava conversando com Eris e Ruijerd, tenho certeza de que
também deixaram meu nome escapar.

Então, por que ela fingiu não saber? Pense, pense, disse a mim
mesmo, e a resposta logo surgiu. Ela provavelmente estava
tentando determinar por si mesma se seu irmão era alguém em
quem se podia confiar. Se eu tivesse mantido a farsa de ser o
Mestre do Canil e tentado arrastá-la comigo, não tinha dúvidas de
que Aisha teria me dado as costas.

— Haha. — Assim que percebi isso, ri. Ela realmente era uma
menina brilhante e inteligente. Eu estava ansioso para vê-la quando
ficasse mais velha.
Capítulo 08:
Uma Adulta
Deixamos o Reino Shirone e viajamos muito, muito para o oeste.
Nosso destino era o Reino Asura. A estrada que levava a essa
região era cheia de planícies, e o tempo quente era o suficiente para
deixar todos sonolentos. Em ambos os lados da estrada havia
campos de grama até onde a vista alcançava, e diretamente à frente
estava o contorno tênue das Montanhas Wyrm Vermelho. Acima
delas, era possível ver sombras circulando lentamente. Estava
sendo bem tranquilo.

De vez em quando, bandidos que não conseguiam ler a situação


direito se aproximavam e exigiam que largássemos nossas coisas e
partíssemos. Eris gentilmente realizava os desejos de todos,
largando seu punho de ferro na cara deles e fazendo-os correr para
longe. Ruijerd quis abater todos que apareceram, mas quando
descobrimos que estavam fazendo isso graças à fome, ele decidiu
deixar que fugissem. Mas só desta vez.

Embora este fosse o Continente Central, a estrada em torno


dessas partes não era particularmente segura. Gostaria que
aprendessem com o povo do Continente Demônio. Por lá nunca
aparecia nenhum bandido, mas, em troca, os monstros apareciam
com uma frequência assustadora.

O fato de as pessoas poderem fazer o que quisessem pelas


redondezas, por si só, era uma prova de quão pacífica era esta
região. Se viajássemos um pouco mais para o norte, entraríamos
em uma tremenda confusão criada por países guerreando. Na
verdade, esse conflito era provavelmente a causa para o número
crescente de bandidos locais.

Então, deixe-me explicar um pouco as características geográficas


das redondezas. As Montanhas Wyrm Vermelho eram uma enorme
cadeia de montanhas que se estendia pelo Continente Central,
dividindo-se em três partes, com os Wyrms Vermelhos residindo
nelas. Era dito que eles eram os monstros mais fortes do Continente
Central. A força deles em um mano a mano era avassaladora, e
normalmente formavam hordas que chegavam à casa das centenas.

E sua habilidade de detecção era digna de elogios. Eles nunca


deixavam nada que invadisse seu território passar despercebido,
mesmo se fossem animais tão pequenos quanto cachorros. E não
importava o quão feroz o oponente fosse – os Wyrms se juntariam e
o devorariam, com ossos e tudo. Se alguém invadisse o território
deles, estaria morto. Isso era de conhecimento comum neste
mundo.

E também existiam várias espécies de dragões diferentes. Cada


uma delas era classificada como rank A ou até mesmo superior.
Entre eles, o Wyrm Vermelho era o mais feroz e perigoso. Só um
deles já seria de rank S, mas sempre vagavam em grupos e
dominavam territórios vastos. E como a cordilheira era o lugar que
essas criaturas chamavam de lar, passou a ser conhecida como
Montanhas Wyrm Vermelho: Uma cordilheira intransitável que se
tornou um símbolo de morte.

Os Wyrms Vermelhos eram bestas perigosas, mas ainda tinham


uma fraqueza. Possuíam excelentes habilidades de combate, mas
voavam muito mal e não conseguiam alçar voo de forma decente.
Para voar, precisavam pular de penhascos altos ou descer por
enormes declives. Embora o Continente Central tivesse montanhas
altas, a terra era ocupada principalmente por planícies enormes ou
florestas. Portanto, era raro aqueles que viviam nas planícies serem
atacados por um Wyrm Vermelho.

Certo, às vezes havia algum monstro idiota que era levado por
uma corrente de vento e acabava indo parar em alguma planície. O
rei supremo que cai dos céus perde seu poder… ou assim diziam,
mas esses caras não perdiam seu poder. Aqueles que iam parar
perto dos vilarejos humanos propagavam o caos e destruíam tudo o
que encontravam. Quando isso acontecia, os aldeões chamavam
soldados ou aventureiros para lidar com a perturbação. Mesmo se
os pedidos de extermínio fossem classificados como de rank S,
grupos com cerca de dez pessoas eram formados para atrair a
criatura para uma armadilha, tornando-os relativamente fáceis de
caçar. E, também, a carne e os ossos de dragão eram materiais de
alta qualidade, usados para fazer armaduras, e seu couro era
extremamente valorizado, assim como uma obra de arte. Claro, não
eram apenas essas partes que tinham valor. Todo o corpo de um
Wyrm poderia ser usado para uma ou outra coisa.

Embora o prêmio para a derrubada de uma criatura dessas fosse


dividida entre dez pessoas de uma mesma equipe, ainda era
dinheiro o suficiente para que vivessem muito bem durante um ano
inteiro. Para ser mais preciso, um dragão valia cerca de cem peças
de ouro. Mesmo se não pudessem aceitar a missão diretamente,
pelo visto havia muitos novatos de rank C que impulsivamente
aceitavam o desafio apenas pelo lucro que poderiam tirar do corpo
de um Wyrm. Claro, a maioria deles era grelhada viva e depois
devorada.

Havia dois pontos de passagem por essas montanhas, onde um


grande número de Wyrm Vermelhos morava. Eram desfiladeiros
localizados entre dois precipícios, conhecidos respectivamente
como Mandíbula Inferior do Wyrm Vermelho e Mandíbula Superior
do Wyrm Vermelho. Essas ravinas existiam desde a época da
Segunda Guerra Humano-Demônio e eram os únicos caminhos que,
na época, eram grandes o bastante para que soldados suficientes
passassem. Percebendo isso, Laplace aproveitou a oportunidade
para lançar os Wyrm Vermelhos sobre os exércitos que tentaram
avançar. Ruijerd confirmou essa história, então não havia dúvidas
sobre sua veracidade.

Nossa carruagem estava se movendo em direção à Mandíbula


Inferior do Wyrm Vermelho, que conectava as regiões sul e oeste do
Continente Central. Assim que passássemos por lá, estaríamos no
Reino Asura. No entanto, íamos fazer um contorno para dar a volta
nas montanhas, e havia entre nós uma jovem senhorita que
detestava os caminhos indiretos.

— Não precisamos desviar dessa coisa. Temos Ruijerd conosco;


poderíamos cortar direto por aquelas montanhas! — disse Eris,
sendo completamente irracional enquanto olhava para os Wyrm
Vermelhos voando calmamente em círculos, acima da cordilheira.

— Não seja ridícula — respondeu Ruijerd com uma risada


amarga.
Pensei que poderíamos cruzar as montanhas com ele em nosso
grupo, mas até o Superd achava essa ideia impossível. Nesse caso,
não tive opções. Afinal, não conseguiria derrotar Ruijerd.

— Mas Rudeus definitivamente poderia fazer isso! — Eris bufou.

— Não, sem chances. Do que você está falando?

— Ghislaine disse que já matou um Wyrm Vermelho retardatário


uma vez!

— Ela matou? — Eu nunca tinha ouvido essa história. Talvez não


fosse uma daquelas de sua época como aventureira. Se fosse, Paul
certamente teria se gabado disso.

— Pelo que eu ouvi, ela lutou contra um antes de se tornar uma


Santa da Espada!

— Eh? Sozinha?

— Uh, bem, pelo que ela disse, estava com mais uns cinco
espadachins de nível Avançado.

— E quantos deles morreram? — pressionei.

— Dois — respondeu Eris.

Sua idiota, pensei. Isso significa que 40% do grupo pereceu. O


que no mundo a fez pensar que eu poderia derrotar uma daquelas
criaturas?

— Além disso — falei —, há uma diferença de força entre os


retardatários e os que estão aqui nestas montanhas. Afinal, esses
aqui estão no ar, sabe?
O voo dava aos Wyrms uma grande vantagem contra os
humanos. Este não era um videogame em que uma característica
de voo poderia ser facilmente contra atacada com arcos e flechas.
Além disso, eles se moviam em grupos. Uma coisa era enfrentar os
Rei Dragões, cujos grupos consistiam em apenas alguns Wyrms, ou
os Wyrms Negros, que não formavam grupos. Com a forma como
os Wyrms Vermelhos se moviam em grupos de centenas, não havia
nenhuma maneira de alguém ter esperanças de abatê-los um a um.

— Estou certo, Senhor Ruijerd?

— Sim. Qualquer um que enfrentar uma horda de Wyrm


Vermelhos não terá esperanças. Se houvesse alguém que pudesse,
seria o campeão mais poderoso entre os Sete Grandes Poderes.
Até o Deus do Norte e o Deus da Espada provavelmente voltariam
no meio do caminho.

— Você realmente acha isso? — Uau. Achei que os Sete


Grandes Poderes poderiam facilmente acabar com dragões, mas
parecia que me enganei.

— Sim, a resistência deles provavelmente se esgotaria no meio


do caminho. E não é como se alguém pudesse descansar enquanto
estiver rodeado por dragões.

Isso fazia sentido. Seriam várias centenas deles atacando sem


parar, mesmo durante a noite. Deixando a força de combate de lado,
seus números esmagadores fariam a diferença.

— Dito isso, Laplace subjugou o Rei dos Wyrm Vermelhos, então


aqueles que estão no topo dentre os Sete Grandes Poderes
provavelmente poderiam passar sem problemas. Mas se
estivéssemos falando dos antigos Sete Grandes Poderes, então até
mesmo o Deus do último lugar poderia passar por esse território
sem ser perturbado, tenho certeza.

— Mas eu ainda gostaria de caçar um deles algum dia… — Mais


uma vez, Eris estava expressando suas ideias perigosas de sempre.
Eu tinha certeza de que seria recrutado para ajudá-la quando aquele
“algum dia” chegasse.

✦✦✦✦✦✦✦

Outro dia tranquilo. Dentro de apenas mais alguns já estaríamos


na Mandíbula Inferior do Wyrm Vermelho.

Eu estava pensando no Deus Homem enquanto preparava uma


refeição para o grupo. Pensando, mais especificamente, no que
havia acontecido no Reino Shirone. Para ser totalmente honesto, na
minha opinião, parecia que as coisas estavam indo um pouco bem
demais. Talvez o Deus Homem, além de sua premonição, também
tivesse o poder de mudar o futuro.

Não. Mesmo se eu não estivesse carregando aquela estatueta


comigo, tinha a sensação de que Ginger teria atraído Zanoba para
me conhecer, de uma forma ou de outra. E ele ainda estaria com
sua estatueta de Roxy, ainda teria dito as mesmas coisas, e eu
ainda teria apontado para a pinta que fora apagada.

E o que aconteceria se tivesse contado meu nome real para


Aisha? Sozinha em uma pousada com seu irmão pervertido… Se eu
fosse ela, teria temido por minha castidade. Aisha era uma garota
inteligente. Ela estava tentando enviar uma carta, então poderia
muito bem roubar meu dinheiro e fugir.
Eu tinha certeza de que, se isso acontecesse, eu sairia a sua
procura. Assim que descobrisse que ela estava desaparecida,
perderia toda a compostura e, sem pensar nas consequências,
sairia lançando magias para todos os lados, tentando chamar a
atenção de Ruijerd. Eu diria que tinha encontrado minha irmã, mas
que ela fugiu, e então o Superd me ajudaria a procurá-la. Ele era
bom com as crianças. Eu tinha certeza de que ela confiaria nele.

Quanto mais considerava isso, mais começava a pensar que o


conselho do Deus Homem foi só para garantir que as coisas
aconteceriam mais ou menos da mesma maneira, não importa o que
eu fizesse. Isso era provavelmente o que estava acontecendo.
Mesmo se não tivéssemos decidido aceitar a ajuda de Ruijerd, ele
de alguma forma teria acabado viajando conosco. Não importa qual
olho eu escolhesse do arsenal de Kishirika quando a conheci, ainda
teria sido capturado pela tribo Doldia na Grande Floresta.

O Deus Homem estava levando muita coisa em consideração ao


me dar conselhos. Talvez eu pudesse confiar nele. No entanto,
assim como antes, não conseguia entender seus motivos. Se
pudesse descobrir o que ele queria, poderíamos nos dar bem.

Enquanto eu refletia sobre as minhas conversas com o Deus


Homem, Eris e Ruijerd estavam treinando juntos, assim como de
costume. Ultimamente, Eris tinha ficado tão forte que se tornou uma
verdadeira surpresa. Há apenas um ano, eu poderia facilmente
derrotá-la ao usar meu olho demoníaco. Mas, agora, isso era
impossível. Eu provavelmente ainda poderia sair ganhando, mas só
se usasse meu olho demoníaco e toda a minha mana, e, ainda
assim, seria por pouco. Se começássemos a batalha enquanto
mantivéssemos alguma distância, eu certamente venceria, mas uma
batalha de longa distância me privaria de todo o contato físico que
poderia ser criado, então não poderia chamar isso de vitória
verdadeira.

De volta à conversa sobre talento. Pensei que tinha trabalhado


duro, mas Eris foi bem mais além. A qualidade e a quantidade de
seu trabalho duro eram suficiente para transformar o meu em nada.
Meu corpo simplesmente não conseguia acompanhar. Minha
resistência, para os padrões japoneses, era só mediana, mas para
os padrões deste mundo, era medíocre.

Enquanto ficava preocupado com esses pensamentos, o treino


do dia chegou ao fim.

— Terminamos.

— Haa, haa… sim…

Nos últimos tempos, Ruijerd tinha parado de perguntar para Eris


se eles treinariam ou não. Isso não precisava mais ser mencionado.
Eris estava naturalmente absorvendo tudo.

— Eris — disse repentinamente Ruijerd, quando ela foi até onde


eu estava.

— O quê? — Ela pegou o pano molhado que eu tinha torcido e


estava oferecendo. Então o passou por dentro das roupas,
enxugando seu suor. A garota costumava simplesmente tirar o sutiã
e se limpar, mas eu ficava muito excitado com isso, então passou a
manter suas roupas, mesmo sendo provavelmente nojento manter
todo aquele suor grudado em seu corpo.
Foi mal, pedi desculpas comigo mesmo.

— A partir deste dia, você pode se chamar de guerreira — disse


Ruijerd enquanto se sentava.

Uma guerreira, hein? Não uma espadachim, mas sim uma


guerreira? Por que…? Ah. Finalmente entendi o que ele queria
dizer.

Eris deslizou a mão sob a axila para enxugar o suor, depois


parou.

— Isso quer dizer que…?

— Agora você é uma adulta — disse Ruijerd calmamente.

Eris estava meio trêmula quando jogou o pano de volta para mim.
Usei magia de água para enxaguá-lo, depois o torci com força e
balancei no ar para secar. Ela se sentou ao meu lado. Eu já tinha
visto essa expressão em seu rosto. Era a que fazia quando ficava
muito feliz, era quando um enorme sorriso ameaçava aparecer em
seu rosto, mas a garota tentava contê-lo, pensando que precisava
agir de forma reservada.

— M-mas, Ruijerd, eu ainda não te derrotei!

— Não faz mal. Você já tem força suficiente como guerreira. —


Talvez essa fosse sua maneira de dar sua aprovação a Eris. Assim
como Ghislaine fizera quando permitiu que a garota usasse o título
de espadachim Avançada, Ruijerd agora estava fazendo o mesmo,
dizendo que ela poderia se chamar de guerreira.

— Parabéns, Eris — falei.


Seus olhos viraram surpresos na minha direção.

— R-Rudeus, isso não é um sonho, é? Pode me beliscar?

— Você não vai me dar um soco se eu fizer isso?

— Não vou te socar.

Já que eu tinha sua palavra, estendi a mão e belisquei seu


mamilo com meus dedos. Bem suavemente, é claro. Ou será que
sensualmente seria uma palavra mais adequada?

O punho de Eris, por outro lado, não foi gentil.

— Onde diabos pensa que está beliscando?!

— Desculpa… mas não é um sonho. Se fosse, não doeria tanto


— falei, ficando pálido enquanto passava a mão no queixo. Em
contrapartida, o rosto de Eris ficou brilhante de tão vermelho
enquanto ela cobria os peitos com os braços.

— Isso mesmo, uma guerreira… — Ela olhou para a palma da


mão como se pudesse finalmente sentir o poder que estava ali.

— Mas não fique cheia de si. Isso significa que não vou mais te
tratar como uma criança. Entendido? — Ruijerd parecia até um pai
educando a sua criança.

— Tá! — Eris mantinha um olhar manso enquanto respondia,


embora suas bochechas estivessem tremendo, ameaçando revelar
um sorriso.

Nossa refeição pareceu ainda mais deliciosa do que o normal.


Naquela noite, quando Eris estava se acomodando para dormir,
algo começou a me incomodar. Chamei Ruijerd, que estava de vigia
enquanto mantinha os olhos fechados.

— Por que você disse aquilo para Eris?

Ele entreabriu os olhos e me encarou.

— Porque não importa quanto tempo passe, você continua


tratando-a como se ela fosse uma criança.

Certo, vamos pensar nisso... Eris era criança ou não? Ela era
vinte e dois anos mais nova do que eu quando morri na minha vida
anterior. E também fui seu tutor incrivelmente paciente desde que
ela era pequena, mesmo quando a garota me usou como seu saco
de pancadas pessoal. O que havia de errado em vê-la como uma
criança?

Claro, Eris tinha começado a ficar mais e mais madura, e isso


não era apenas em relação ao seu corpo em desenvolvimento. Aos
poucos, mas sem parar, começou a aprender o que era certo ou
errado. Ela raramente ficava furiosa sem pensar direito nas
consequências. Seus instintos selvagens não tinham desaparecido
por completo, mas a frequência de suas explosões caiu. Seria
possível dizer até mesmo que estava evoluindo de uma criança para
uma adulta. Ou era o que eu gostava de pensar, como se fosse
melhor do que ela, e não era como se alguém pudesse me chamar
de adulto exemplar ou brilhante, mesmo da forma mais lisonjeira de
todas.

— Hmm…
Ruijerd fechou os olhos, em silêncio.

— Ah, bom, tudo bem se você não entender.

Por alguma razão, tive um mau pressentimento quanto a isso.


Isso parecia muito com os tipos de palavras finais que os
personagens da TV soltavam antes de serem mortos.

— Senhor Ruijerd.

— O quê?

— Por favor, coloque esta moeda de ouro no bolso em seu peito


— falei, tirando uma moeda do meu próprio bolso para jogar em sua
direção.

O homem parecia confuso. Afinal, não tinha nenhum bolso em


seu colete. Ainda assim, conseguiu encaixá-la perfeitamente em um
ponto da costura próximo ao seu peito.

— Certo, e para que isso?

— Um amuleto de boa sorte.

Satisfeito, fui dormir.

✦✦✦✦✦✦✦

Poucos dias depois, finalmente chegamos à entrada do Reino


Asura: A Mandíbula Inferior do Wyrm Vermelho. Quatro meses se
passaram desde que deixamos o Reino Shirone.

Quando as coisas aconteceram, aconteceram rápido demais.


Para ser mais específico, coisas ruins aconteciam quando menos se
esperava. Na minha antiga vida, meus pais morreram de repente.
Meus irmãos indo atrás de mim também foi algo repentino. Paul me
mandou para ser um tutor sem qualquer aviso prévio. Ser
transportado para o Continente Demônio também foi repentino.

Havia algo mais que eu ainda não tinha percebido, e era o quão
duro este mundo realmente era. Quão facilmente as pessoas
morriam. Não importa quem fosse, a morte poderia chegar em um
instante. Não existiam exceções.

Levaria muito tempo, mas, eventualmente, chegaria a entender a


morte como um fenômeno que aparecia do nada para roubar as
pessoas que me eram importantes. Se, naquela época, eu já
soubesse disso, agora não precisaria me lamentar tanto. Se ao
menos tivesse falado mais sério quanto a ficar mais forte – forte o
bastante para não ser derrotado por ninguém.

Depois do que aconteceu, não pude deixar de ser consumido por


arrependimentos, desejando ter trilhado um caminho um pouco
diferente.

No entanto, havia uma coisa que eu poderia dizer:

Eris nunca deixou de me impressionar.


Capítulo 09:
O Segundo Ponto de Virada
A Mandíbula Inferior do Wyrm Vermelho era uma ravina com um
caminho que cortava diretamente pelas montanhas. A estrada não
era tão reta quanto a Estrada da Espada Sagrada, mas também não
se dividia ou bifurcava. Era um território entre as fronteiras de
países que ninguém reivindicou. Assim que passássemos por isso,
estaríamos no Reino Asura.

Estávamos animados, pressentindo o fim de nossa longa


jornada. Também estávamos um pouco preocupados porque não
sabíamos o quanto nossa casa havia mudado, mas também
começamos a ter uma sensação de dever cumprido. Seria possível
até que estivéssemos baixando a guarda.

Foi também por esse caminho que eles vieram, caminhando


firmemente na direção oposta. Não estavam em um cavalo, nem
sentados em uma carruagem; estavam apenas caminhando. Havia
um homem com cabelos prateados e olhos dourados que não usava
uma armadura de verdade, só um casaco branco
despretensiosamente feito de algum tipo de couro. Minha impressão
era simplesmente de que o homem tinha um olhar perigoso nos
olhos, e isso foi tudo. Suas íris eram pequenas o suficiente para que
se pudesse ver toda a parte branca ao seu redor.

Meus olhos estavam mais atraídos para a outra pessoa, uma


jovem com cabelo preto que o seguia. Olhando mais de perto, seu
cabelo era, na verdade, castanho com um tom bem escuro,
possuindo uma cor ligeiramente acinzentada. Normalmente não me
lembrava das pessoas pela cor do cabelo, mas não deveria ser
difícil lembrar de alguém com o cabelo totalmente preto. O problema
era que eu não conseguia lembrar de ninguém assim.

Havia outra razão pela qual essa garota chamou minha atenção.
Ela estava usando uma máscara de rosto inteiro. Era toda branca,
sem nenhum desenho, era uma máscara sem qualquer decoração.
Não havia nada de particularmente memorável nisso e, ainda assim,
se a visse uma vez, jamais esqueceria. Se fosse para compará-la
com qualquer coisa, seria com uma das máscaras faciais que vi no
mundo da minha outra vida. Já que se destacava tanto, duvido que
fosse algo da moda.
E como fui cativado pela aparência da garota – bem, não tão
cativado – não notei Ruijerd, sentado no banco do cocheiro, ficando
com o rosto pálido. Eris estava na mesma situação. A cada passo
que o homem dava, ficando mais perto, mais o rosto dela ficava
rígido e mais forte ficava o aperto de seu punho em sua espada,
deixando suas mãos até mesmo brancas.

Quando o homem nos notou, inclinou a cabeça, curioso.

— Hm…? Você… poderia ser um Superd?

A dúvida se estabeleceu quando vi seus olhos, com suas


pequenas íris, entreabertos. Ruijerd havia raspado todo o cabelo e a
joia em sua testa estava escondida. Como o homem descobriu?
Será que Ruijerd estava exalando algum tipo de cheiro que o
denunciava? Enquanto considerava a possibilidade, me virei para
olhar para ele.

— É um conhe… cido…? — Minha pergunta foi interrompida pela


expressão no rosto de Ruijerd. Sua pele branca estava ainda mais
pálida do que o normal, com gotas de suor frio escorrendo. Sua mão
tremia enquanto ele agarrava sua lança. Essa expressão… eu a
conhecia.

Medo.

— Rudeus, faça o que fizer, não se mova. Eris, você também. —


A voz de Ruijerd estava tremendo.

Eu ainda não tinha ideia do que estava acontecendo, mas


balancei a cabeça, sem palavras. O rosto de Eris ficou vermelho
brilhante e ela parecia ser capaz de saltar para frente a qualquer
momento. Seus braços e pernas tremiam. Será que tinham
conhecido o homem em algum momento, e eu não fiquei ciente
disso?

— Hm? Essa voz… Você é Ruijerd Superdia? Eu não te


reconheci, já que está sem cabelo. O que está fazendo aqui?

O homem casualmente se aproximou de nós. Ruijerd preparou a


lança em sua mão. Por capricho, decidi usar meu olho demoníaco.

O corpo do homem se fragmenta em várias imagens.

Havia tantos deles que eu não conseguia ver o contorno exato de


seu corpo. O que diabos estava acontecendo?

— Hm? Esse cabelo ruivo… Eris Boreas Greyrat, hein? E o


outro… quem é você? Não conheço o seu rosto… Ah, bem. Já
entendi o que está havendo, Ruijerd Superdia. Você ama crianças,
então esses dois devem ser os que foram teletransportados para o
Continente Demônio durante o incidente. Você os trouxe até aqui. —
Ele tinha um olhar de sabe-tudo no rosto enquanto balançava a
cabeça.

Eris ficou chocada e gritou de volta:

— C-como você sabe meu nome?!

Fiquei ainda mais confuso com suas palavras. Então era a


primeira vez que estavam se encontrando? Digo, era de Eris que
estávamos falando, então não seria grande surpresa se ela tivesse
esquecido. Mas esse homem não era exatamente esquecível, com
seu cabelo prateado e a forma como o branco de seus olhos
aparecia ao redor de sua íris. Depois, havia a questão da reação
anormal que ele provocou em Eris e Ruijerd. Se ela tivesse o visto
antes, não teria como esquecer.

— Quem diabos é você?! E por que sabe o meu nome?! —


Ruijerd empurrou sua lança em direção ao homem. Pelo visto, ele
também não conhecia esse cara. O que diabos estava havendo…?

Ruijerd era famoso. Ele não era muito conhecido no Continente


Central, mas se fosse para o Continente Demônio, havia muitos que
sabiam seu nome e conheciam seu rosto. Não era preciso
mencionar Eris, mas qualquer um que ouvisse falar sobre uma
espadachim ruiva poderia adivinhar quem ela era.

Não havia nada de demais nessa estranheza. Era só a atitude do


homem… ou melhor, a discrepância entre suas atitudes e reações.
Ele parecia amigável. Sua voz estava fraca, mas – e eu não sabia
de onde isso vinha – havia uma qualidade nela que o fazia soar
feliz, como se tivesse se reunido com velhos amigos.

O comportamento de Ruijerd era o completo oposto, agindo


como se fosse atacar a qualquer momento. A única coisa é que ele
ainda não tinha feito isso. Ele estava tratando este homem como um
inimigo, mas não havia lançado um ataque. Mesmo Eris, que
sempre era a primeira a atacar, não se moveu. E não foi só porque
Ruijerd disse para que não fizesse isso.

— Este é um lugar curioso para nos encontrarmos… mas você


parece bem. Que bom. — O homem olhou para Ruijerd, que ainda
estava com a lança apontada para ele. Então riu de uma forma
autodepreciativa e deu um passo para trás.

Vendo isso, a garota com a máscara murmurou:


— Tem certeza?

— Se já chegou a isso, é inevitável.

Foi uma conversa que não consegui entender, já que não tinha
nenhum contexto do que estavam falando. E assim que acabou…

— Ficarei fora de seu caminho. — O homem caminhou


lentamente para o lado. A mulher de cabelo preto o seguiu.

Ruijerd manteve seus olhos fixos no sujeito. E Eris, claro,


também.

— Você eventualmente saberá… quem eu sou — disse o


homem, suas palavras soaram comedidas e cheias de importância.

Intuitivamente, senti que ele sabia de alguma coisa. Senti uma


vibração emanando do homem, uma semelhante à do Deus
Homem. Precisava fazer que ele me dissesse o que era isso.

— Por favor, espere! — Antes que eu percebesse, pedi para o


homem esperar.

Ele olhou para trás com surpresa evidente em seu rosto. Ruijerd
e Eris também olharam para mim com o choque claro em seus
rostos.

— O que foi? O que você quer?

— Ah, saudações. Meu nome é Rudeus Greyrat.

— Nunca ouvi falar de você.

Bem, era nosso primeiro encontro, afinal.

— Espere, Greyrat, não é? Qual o nome dos seus pais?


— Antes disso, uh, qual é o seu nome? — perguntei.

— Hm… Tudo bem, eu vou te dizer. Sou Orsted.

Orsted? Não era um nome com o qual eu estava familiarizado. O


único personagem com um nome semelhante que eu conhecia era
aquele que morreu e ficava dando desculpas do outro lado. Olhei
para Ruijerd e percebi que ele também não parecia reconhecer o
nome.

— Vocês dois se conhecem?

— Não — respondeu Orsted. — Ainda não.

— Ainda não? Como assim?

— Você não precisa saber. Agora, quem são seus pais? — Ele
friamente ignorou o que eu queria saber.

O sujeito nem mesmo respondeu às minhas perguntas, mas


queria que eu respondesse às dele? Bem, tanto faz. Eu não ia ficar
chateado com algo tão irrisório.

— Paul Greyrat — falei, por fim.

— Hm…? Paul não deveria ter um filho. Ele deveria ter apenas
duas filhas.

Bem, isso foi rude. Eu estava bem ali, e parecia igualzinho ao


meu pai. O filho idiota que foi até o Continente Demônio para fazer
dinheiro.

— Hm… — Como se tivesse percebido algo, Orsted


inclinou a cabeça.
Ele lentamente se aproximou de mim.

— Não chegue mais perto! — Ruijerd o ameaçou.

— Sim, eu sei. — Ele parou, mantendo sua distância, mas olhou


direto para o meu rosto. Encarei seu olhar. — Você não desvia os
olhos, hein?

— Mas eu gostaria de desviar, já que você parece tão assustador


— falei.

— Hm, então isso significa que você não sente nenhum medo?
— Ele franziu as sobrancelhas. — Hmm. Que estranho. Não tenho
memórias de ter te conhecido.

Nem eu. Este foi nosso primeiro encontro. Não conhecia o nome
Orsted, nem reconheci seu rosto.

— Então, o que você quer? — perguntou o homem.

— Um, bem, eu só pensei que talvez você soubesse algo sobre o


Incidente de Deslocamento.

— Não sei. — Ele não balançou a cabeça, mas rejeitou a


possibilidade na mesma hora.

Hã. Algo em sua atitude em minha relação parecia meio


estranho. Era como se ele estivesse mantendo a cautela comigo.
Como se estivesse mantendo mais distância de mim do que de
Ruijerd e Eris. Bem, ninguém gostaria de ser rudemente
interrompido por alguém só para ser questionado sobre isso ou
aquilo. Mesmo se o sujeito soubesse de algo, eu provavelmente não
conseguiria fazer com que me contasse.
— Então tá bom, sinto muito por ter te parado…

Foi exatamente então, quando eu estava curvando minha cabeça


em um pedido de desculpas, que ele disse:

— Você. Você já se familiarizou com o “Deus Homem”?

Ele, finalmente, mencionou algo que eu pude entender.

Parte do problema era que eu baixei a guarda, pensando que


nossa conversa já tinha acabado. Outra parte foi que eu
propositadamente evitei dizer qualquer coisa sobre o Deus Homem
para quem quer que fosse, e agora de repente alguém havia tocado
no nome dele, e foi uma pessoa que me confundiu por completo.
Então, naturalmente, pensando que esse era um conhecimento que
nós dois compartilhávamos e que daria continuidade à conversa,
reagi sem pensar.

Respondi muito casualmente:

— Sim. Ele apareceu no meu sonho…

De repente, minha visão mudou.

A mão de Orsted vai atravessar meu peito como uma lança.

Foi tão rápido, parecia até que ele tinha se teletransportado. Eu


não pude evitar. Um segundo era muito pouco tempo.

— Rudeus!

A visão desapareceu de repente e Ruijerd se posicionou na


minha frente. Ele bloqueou o ataque de Orsted e eu fui jogado para
trás. Orsted olhou por cima do ombro de Ruijerd, direto para mim.
Seus olhos estavam frios.

— Então é isso. Você é um dos apóstolos do Deus Homem.

No mesmo instante em que me peguei pensando que Orsted


estava fazendo uma acusação falsa, Ruijerd gritou para mim:

— Rudeus! Corra!

— Você está no caminho, Ruijerd Superdia! — Ruijerd balançou


sua lança.

Eu não podia me mover. Não era como se não estivesse


tentando fugir, só não tive a chance para tentar. Ruijerd foi eliminado
em questão de segundos. Tudo o que pude fazer foi assistir Orsted
facilmente o abater, assim como um humano espantando uma
mosca.

Ruijerd era forte. Ao menos era o que se supunha. Mesmo Eris


não conseguiu derrotá-lo durante a nossa viagem. Ele tinha
quinhentos anos de experiência em batalha, o que deveria tê-lo
tornado praticamente invencível. O Superd devia ser mais forte do
que um espadachim de nível Rei. E, ainda, com meu olho
demoníaco, o vi perdendo. Pelo olho, observei tudo do começo ao
fim. Em termos de tempo, isso provavelmente levou apenas dez
segundos.

Não havia como Orsted ser mais rápido do que Ruijerd. Só


aconteceu que, a cada movimento que o Superd fazia, ficava em
uma ligeira desvantagem. No intervalo de um segundo, isso se
repetiu umas três ou quatro vezes. Cada vez que ele se movia,
cavava ainda mais fundo a sua cova. Pouco a pouco, foi ficando
encurralado. Cada vez que tentava atacar, seu equilíbrio diminuía
um pouco e cada ataque que tentava lançar era interrompido.

Diferença de habilidade – essa era a única forma de se descrever


o que estava havendo. As habilidades de Orsted eram
esmagadoramente superiores às de Ruijerd. Era o suficiente para
que eu pudesse vê-la claramente com meus olhos.

Orsted estava claramente atraindo Ruijerd para uma armadilha.


Ele estava se movendo o mínimo possível, mas na velocidade mais
rápida possível, deixando Ruijerd impotente. Se uma estratégia de
combate perfeita se tornasse realidade, provavelmente seria assim.
Orsted escolheu os intervalos perfeitos para avançar, colocando-se
na distância certa para que a lança de Ruijerd o alcançasse com
eficácia. Era como se Orsted estivesse zombando do Superd,
propositalmente colocando-se em posição atrativa para
consecutivos ataques poderosos, apenas para desequilibrá-lo, fazê-
lo cambalear, criar aberturas em sua defesa e forçar o homem a se
proteger dos contra-ataques pesados.

Não havia nada que Ruijerd pudesse fazer quanto a isso. Não
havia mais nenhum método sobrando. Ele levou um soco no plexo
solar, e pouco depois um golpe passou roçando a ponta de seu
queixo. O terceiro, que tirou sua consciência, foi um soco que
acertou sua têmpora. Ruijerd rolou duas vezes pelo chão antes de
parar de se mover. Orsted provavelmente poderia ter matado o
Superd no terceiro soco se quisesse, mas não o fez. Mesmo com
alguém tão notável como Ruijerd sendo seu oponente, o homem
conseguiu se conter.
— E então.

— Hyaaaah!

Quem estava gritando não era eu. Era Eris. Ela saltou na minha
frente e brandiu sua lâmina em direção a Orsted, rápida como um
arco de luz.

— Técnica Secreta: Fluxo. — Orsted não perdeu tempo com Eris.


Tudo o que fez foi gentilmente parar a espada dela com a palma da
mão. Ou ao menos foi o que parecia. E, ainda, isso foi o suficiente
para enviá-la girando pelo ar. Ela voou como se tivesse sido atingida
pela técnica suprema de um Santo.

Eris ficou fora de sua linha de visão. Assim que Ruijerd terminou,
ela lançou seu ataque de seu ponto cego. Foi uma ofensiva
incrivelmente hábil, pelo que eu poderia dizer – ela não perdeu
tempo pensando em se defender, só pulou para atacar com tudo
que tinha. Em troca, Orsted havia usado apenas uma técnica própria
para incapacitá-la.

Espera. Eu já tinha visto algo semelhante antes. Paul tinha me


mostrado algo parecido. Era uma técnica ao Estilo Deus da Água,
embora a execução de Orsted fosse ainda mais polida do que a de
Paul.

— Aaah…!

Eris caiu na borda de um penhasco. As pedras se desintegraram


com o impacto e ela caiu com um baque surdo. A garota era
incrivelmente durona, então não pensei que estivesse morta, mas
poderia ter quebrado algum osso.
— Eris Boreas Greyrat, você aperfeiçoou suas habilidades muito
bem. Acredito que você tem potencial, mas… ainda não está pronta.

— Ugh… uurgh… — Eris soltou um gemido e tentou se levantar.

Normalmente, em um momento assim, eu a curaria na mesma


hora. Porém, não tive oportunidade para tentar. Afinal, os olhos de
Orsted estavam fixos em mim.

Meus companheiros foram derrotados em poucos instantes. O


tempo todo, mantive meu olho demoníaco ativado, mas tudo que eu
podia ver, um segundo no futuro, era desespero. Vi que não importa
o que eu fizesse, ele me mataria. Observei como meu futuro eu,
dentro de apenas um segundo, teria seus pontos vitais destruídos.
Minha cabeça, minha garganta, meu coração, meus pulmões…
Observei como cada um deles era esmagado e, ao mesmo tempo,
tive uma visão do homem apenas parado ali, imóvel. Eu não
entendia o que estava acontecendo. Se essa visão fosse
verdadeira, em um segundo, passariam a existir cinco dele.

Eu não podia me mover. Sabia que não importa o que fizesse,


seria inútil. Aquele segundo inteiro passou sem que eu pudesse
fazer nada. Ele deslizou para frente, como se desafiasse as leis da
física, e em um instante ficou bem diante de mim. Foi muito
repentino, igual uma animação feita com poucos frames.

Um instante após ele aparecer diante de mim, já tinha terminado


seu ataque. Há muito tempo eu já havia visto movimentos parecidos
em algum videogame. Foi em um jogo pós-apocalíptico onde cada
personagem tinha um combo infinito ou um KO Fatal.
Seis de minhas costelas foram fraturadas ao mesmo tempo.
Houve um impacto, mas foi diferente do tipo que faria sair voando.
No mesmo instante, senti a pressão de outro ataque me atingindo
por trás. E o dano se acumulou dentro do meu corpo. Meus pulmões
foram esmagados.

— Uughhh! — Em uma fração de segundo, o sangue jorrou pela


minha garganta e eu comecei a vomitar algo vermelho.

— Quando se luta contra um mago, o melhor a fazer é destruir os


pulmões dele — disse ele, indiferente enquanto eu caía de joelhos.

Em algum lugar dentro de mim, experienciei um “aha!” em um


momento de aceitação enquanto observava minha poça de sangue
no chão abaixo. Esmagar os pulmões de um mago era o melhor
curso de ação, porque assim eles não poderiam recitar feitiços. Isso
significava que perdi minha habilidade de usar magia de cura. E,
claro, com meus pulmões destruídos, não conseguiria ficar vivo.

— Quando você morrer, certifique-se de entregar uma


mensagem ao Deus Homem para mim. Diga a ele que o Deus
Dragão Orsted será aquele que o matará. — O Deus Dragão.
Número dois na lista dos Sete Grandes Poderes.

Orsted me deu uma olhada enquanto eu rolava no chão, com as


mãos no peito, e se virou para sair. Percebi que ele baixou a guarda.
Eu já havia recebido um ferimento fatal, não fui simplesmente
derrotado – já estava nas portas da morte. Não sabia por que,
mesmo naquele estado, ainda estava pensando em tentar revidar.
Talvez fosse porque, no limite da minha visão, pude ver Eris
tentando se levantar. Mais provavelmente, era porque pensei que
este homem tinha certeza de que eu iria morrer, e por isso ele
também iria acabar com os outros dois.

Mesmo assim, lancei um Canhão de Pedra na direção dele. Por


que não usei uma magia mais poderosa? Afinal, possuía magias de
nível Avançado que poderia usar como quisesse. Mesmo assim,
nunca descobri a resposta. Naquele momento, eu provavelmente só
estava usando a magia com a qual estava mais familiarizado.

Lancei a pedra mais dura que pude, na velocidade mais rápida


com o giro mais rápido. Aquele Canhão de Pedra foi tão poderoso
que até eu fiquei surpreso. A rocha começou a pegar fogo enquanto
voava a curta distância entre nós dois.

Orsted vai olhar para trás e destruir meu Canhão de Pedra com o
punho.

E foi o que ele fez. Com o som de metal tilintando, aquilo se


desfez e caiu no chão, em pedaços.

Orsted olhou para o punho.

— Aquilo de agora foi um Canhão de Pedra, não foi? Teve um


poder incrível. Ser capaz de me ferir com uma magia dessas é um
feito impressionante. — A pele de seu punho ficou ligeiramente
arranhada. Eu mal o arranhei.

Não foi bom o bastante. Não poderia o ferir com meu Canhão de
Pedra.

— Tenho certeza de que esmaguei seus pulmões, então você


sabe usar magia não verbal? É um poder que ganhou do Deus
Homem? O que mais ele te deu? — Orsted olhou para mim. Ele
poderia ter simplesmente acabado comigo, mas, em vez disso,
estava me olhando como se eu fosse um gafanhoto que teve as
pernas arrancadas.

— Ugh…! — Conjurei magia do vento para forçar o ar a entrar


em meus pulmões. Com isso, engasguei violentamente. Eu sabia
que não adiantava, mas mesmo assim forcei o ar, enchendo meus
pulmões, antes de parar de respirar.

— Que uso divertido para a magia. Mas agora, de que serve


isso? Por que não usa a magia não verbal para curar seus
pulmões? — Orsted levou a mão ao queixo, olhando-me como se
gostasse de me ver sofrendo.

Mesmo quando minha consciência esmaeceu, formei uma Bola


de Fogo na minha mão direita. Com a magia de fogo, quanto mais
mana fosse usada, mais forte seria o calor e maior ela ficaria. Se a
velocidade e a dureza do meu Canhão de Pedra não foram
suficientes, então eu tentaria usar o calor e o poder explosivo.

— Já chega. Atrapalhar Magia!

Minhas débeis intenções de resistir foram facilmente varridas. No


momento em que Orsted apontou sua mão direita para mim, a mana
que estava começando a tomar forma na ponta da minha mão foi
dispersada. Não importa o quanto eu tentei canalizar mana para
minha mão, ela não tomava forma e se dissipava. Mesmo estando
semiconsciente, eu entendi. Houve alguma interferência com a
mana em minha mão, algo que interrompeu e tornou minha magia
ineficaz.
Ele selou minha mão direita, mas eu ainda tinha a esquerda.
Então a levantei e conjurei uma magia no espaço entre nós dois,
desencadeando uma onda de choque. Um boom explosivo ressoou
enquanto Orsted voava para trás. Eu também fui jogado para longe
pela explosão.

— Hmph… você anulou meu Atrapalhar Magia? Não, não foi


isso… Você está usando várias escolas de magia ao mesmo tempo.
Para ser capaz de fazer isso sem pronunciar nada, demonstra que é
bastante habilidoso. Assim, não é? — O homem estalou os dedos
da mão esquerda. Quando o fez, uma pequena janela quadrada
com cinquenta centímetros de lado se formou no ar. Era uma bela
janela, adornada com lindos ornamentos em forma de dragão. —
Hm. É mais difícil do que eu imaginei.

Ignorei a janela e me concentrei em lançar o ataque de fogo mais


feroz que poderia usar. O que imaginei em minha mente foi uma
chama enorme. Uma nuvem em forma de cogumelo. Uma explosão
nuclear. Canalizei minha magia da maneira mais simples e direta
possível, como se estivesse me preparando para dar um soco. Nem
mesmo pensei no fato de que Eris e Ruijerd poderiam ser
envolvidos pelo alcance disso. Já tinha perdido a capacidade de
pensar.

— Abra, Portal-Wyrm de Vanguarda! — Enquanto Orsted cuspia


essas palavras, a janela se abriu.

No mesmo instante, a mana se agrupando em minha mão


esquerda foi engolida. A moldura da janela rachou e se estilhaçou.
Ao mesmo tempo, uma explosão foi desencadeada bem perto de
Orsted. Foi muito menos poderosa do que eu esperava, e ele a
evitou facilmente.

— Que incrível capacidade de mana. Um Portal-Wyrm de


Vanguarda deste tamanho não pôde contê-la. É quase como se
você estivesse no mesmo nível de Laplace… Bem, você é o
apóstolo de Deus Homem, afinal. Por que ainda não curou os seus
pulmões? Está tentando me fazer baixar a guarda?

Isso foi logo antes de eu perder a consciência por completo. Eu


não tinha mais a capacidade de discernir o que estava acontecendo.

O homem ainda estava me observando. Nossos olhos se


encontraram.

— Só isso? — Em uma fração de segundo, ele se aproximou de


mim. Não havia nada que eu pudesse fazer. — Você não pode fazer
nada além de magia?

Minha magia foi selada e minhas pernas estavam congeladas,


então eu não conseguia me mover. Fiquei desamparado diante de
sua intenção assassina esmagadora. No limite da minha visão,
podia ver a janela se dissipando, mas não havia nada que eu
pudesse fazer.

— Guhugh! — Tentei usar o rugido que aprendi no Vilarejo


Doldia, aquele que não se parecia nem um pouco com o deles.
Orsted se preparou, mas, claro, tudo que consegui fazer foi cuspir
sangue e não criar nenhum efeito.

— Só mana…? O que você está tentando fazer?


Já não havia mais nada que eu pudesse fazer. Minha magia foi
selada e não havia nenhuma indicação de que eu poderia derrotar
Orsted com ataques físicos. A única coisa que me restava a fazer
era me prostrar. Mas o Deus Dragão não permitiu nem mesmo isso.

— Bem, não importa. Morra.

— Aagh…!

Sua mão atravessou meu corpo em uma super velocidade. Direto


pelo meu coração. Uma ferida completamente fatal. Uma na qual
minha magia de cura jamais seria eficaz.

— Que decepção, Deus Homem. Agora você está usando peões


que não podem nem revestir-se de uma Aura de Batalha? O que
você está planejando? — Sua mão estava toda banhada pelo meu
sangue quando ele a removeu. Tentei me levantar, mas meu corpo
não me obedeceu. Ele me traiu e desmoronou no chão. No limite da
minha visão, pude ver Eris levantando a cabeça, pude ver o olhar
atordoado em seu rosto enquanto olhava para mim. Nossos olhos
se encontraram.

— A-aah… R-Rudeu… Rudeus…!

Ah, que merda. Eu não quero morrer. Ainda não cumpri a minha
promessa com Eris. Só mais dois anos, eu só queria aguentar mais
dois anos. Se pudesse fazer isso, poderia morrer sem
arrependimentos.

Só preciso reunir minha mana. É só um ferimento. Vou curar isso,


disse a mim mesmo. Eu não conseguia entoar as palavras porque
havia um buraco em meus pulmões. Ainda assim, poderia fazer
isso. Só precisar focar a mana lentamente. Isso iria curar. Isso iria
curar. Eu ainda não podia morrer.

— Waaaaaaaaaaaaah! — Eris soltou um lamento.

— Ele era importante para você? Sinto muito, Eris Boreas


Greyrat. Um dia você vai entender. Vamos, Nanahoshi.

— S-sim…

Orsted se afastou lentamente enquanto a garota o seguia.

Eris não pôde suportar, fosse pelo dano que sofreu, fosse pelo
medo. Ou talvez pelo choque. Tudo que ela podia fazer era gritar. A
garota não tinha mais uma espada, então usou sua voz.

— Ruijerd! Ghislaine! Avô! Pai! Mãe! Theresa! Paul! Eu não me


importo com quem for, apenas salvem ele! Rudeus vai morrer!

Merda, minha consciência estava se esvaindo ainda mais. Sério?


Isso seria mesmo o fim?

Mas eu não… queria… morrer…

— Ei, Orsted, só há uma coisa que está pesando sobre mim.


Aquele garoto… Não seria melhor deixar ele vivo?

Pouco antes de eu perder toda a consciência, senti como se


tivesse ouvido alguém dizendo essas palavras.
Capítulo 10:
O Grande Buraco Aberto em Meu Peito
Antes de perceber o que estava acontecendo, eu estava em um
espaço completamente branco. Um lugar todo branco onde nada
existia.

Normalmente, era nesse ponto que começava a me sentir


enojado. Eu voltaria a ser aquela coisa horrível a que me acostumei
por trinta e quatro anos, e memórias de minha vida anterior
passariam por mim. Arrependimentos, conflitos, vulgaridade e
pensamentos de dever. As memórias que tinha formado nos últimos
doze anos se tornavam distantes e meu desânimo aumentava. Eu
seria consumido pela sensação de ter sido pego em um sonho
longo, e uma sensação de mal-estar encheria meu peito, como se
estivesse me fragmentando.

Desta vez, no entanto, foi muito diferente. Os usuais sentimentos


de autodesprezo não surgiram. Em vez disso, provei uma sensação
de perda, era como se houvesse um buraco no meu peito. Olhei
para baixo para descobrir que realmente havia uma grande abertura
ali. Ah, eu sabia. Realmente morri…

— Éé.

O Deus Homem estava parado ali; não tinha o notado antes. Ele
revelava aquele sorriso irritante de sempre no rosto, mas, por algum
motivo, desta vez isso não me incomodou. Pensei no porquê. Talvez
fosse por causa do buraco em meu peito. Ou talvez fosse por eu ter
decidido que não seria mais tão hostil com ele.

— Bem, o que posso dizer, é lamentável.


Sim, isso é realmente lamentável.

— Você está diferente do normal. Está tudo bem? Não está se


sentindo bem?

Como você pode ver, estou com um buraco no peito. Ei, você se
importa se eu te perguntar uma coisa?

— O que é?

Aquele cara, aquele chamado Orsted. Ele me atacou no segundo


em que ouviu seu nome. Por quê?

— Porque ele é um terrível Deus Dragão. Apesar de toda a


minha virtude, ele nutre uma enorme inimizade por mim.

Virtude, hein…? Bem, é fácil criar inimizade com você. Mas, se


fosse esse o caso, não deveria ter me alertado antes? Você podia
prever esse tipo de coisa, não podia? Sabia que eu ia me encontrar
com Orsted, não é? Se tivesse ao menos me dito para não te
mencionar caso ele perguntasse, eu teria…

— Não, foi mal. A verdade é que não consigo ver nada que tenha
ligação com o Deus Dragão. Nem o futuro, nem o presente. E não
fazia ideia de que vocês dois se encontrariam.

Ah, então é isso… Mas por quê?

— Ele tem uma maldição sobre ele que me torna incapaz de vê-
lo.

Maldição? Então essas coisas realmente existem?


— Sim. Elas não existiam no seu mundo? Alguém que nasce
possuindo um poder incomum graças a uma anormalidade
desencadeada por mana?

No mundo de onde venho sequer existe o conceito de magia.


Alguns diziam serem capazes de lidar com o sobrenatural, mas,
para ser sincero, nenhum deles tinha credibilidade.

— Aha, entendo. Bem, aqui nós temos essas coisas – Crianças


Amaldiçoadas é como chamamos – estranhas. Orsted é um
exemplo. Bem, ele também possui umas três ou quatro maldições.

Umas quatro, hein? Isso é incrível. Ah é, eu até ouvi algumas


coisas sobre isso. Crianças Abençoadas e Crianças Amaldiçoadas,
não é?

— Sim, isso mesmo. Na verdade são mais ou menos a mesma


coisa. Os humanos simplesmente gostam de dividir tudo em dois
tipos.

Então é isso. Mas e aí, que tipo de maldições ele tem?

— Bem, você viu como Ruijerd e Eris sentiram medo dele, certo?
Essa é uma de suas maldições. Cada coisa viva neste mundo o
odeia ou o teme.

Todo mundo o odeia? Bem, isso é… meio desagradável. Meu


espírito ia quebrar bem rápido se isso fosse comigo. Sei muito bem
como é ser odiado.

— Espera aí, você não precisa simpatizar com ele. Aquele cara
nasceu assim. Ele é um ser maligno que está tentando destruir o
mundo.
Vamos lá, não diga isso. Qualquer pessoa que é constantemente
cercada por gente que a odeia acabaria sentindo vontade de acabar
com o mundo. Eu pensava a mesma coisa na minha vida anterior.
Muitas vezes fiz algumas postagens sobre isso na internet, falando
que gostaria que todos simplesmente morressem.

— Hmm, acha mesmo? Eu o odeio e realmente não me importo


com como ele se sente.

Hm? Isso significa que você também foi afetado pela maldição?
O fato de você não conseguir vê-lo é por causa de uma das
maldições sobre ele? Então aquele cara tem uma maldição que o
faz ser odiado, uma que faz você não conseguir vê-lo… O que
mais?

— Vai saber. Não consigo vê-lo, então não sei.

Certo… Mas se ele é tão perigoso, então é mais uma razão para
eu desejar que você me dissesse que alguém assim existia.

— Nunca sonhei que vocês dois iriam se encontrar. Andando por


aí em um mundo tão vasto assim, as chances de vocês toparem
eram…

É como encontrar uma agulha em um palheiro, certo? Pensando


bem, eu não senti medo nem ódio. Por quê?

— Não é porque você veio de outro mundo?

Então aqueles de outro mundo não são afetados pela maldição?

— É o que parece. Também aconteceu a mesma coisa quando


você se encontrou com Ruijerd, lembra?
Hein…? Espera aí, do que você está falando? Ruijerd também é
uma dessas Crianças Amaldiçoadas?

— Não, isso é só a maldição da lança de Laplace. Laplace tinha


uma maldição de medo sobre ele, mas a transferiu para as lanças
que entregou para a tribo Superd. E usou o cabelo verde deles
como uma chave para o sucesso.

Maldição? Ele passou isso…? Ei, como assim? Você sabia disso
desde o início? Sabia disso e foi por isso que me disse para ajudá-
lo? Você me fez gastar meu tempo e esforço à toa?

— Não, não entenda errado. A maldição sobre toda a tribo


Superd desaparecerá gradualmente com o tempo. Ainda tem um
pouco em Ruijerd, mas, como ele cortou o cabelo, isso reduziu
bastante o efeito.

Agora que você mencionou, Sylphie foi intimidada por causa da


cor do cabelo, mas eu não tive a impressão de que ela era temida.
Mas, deixando isso de lado, por que do cabelo? É uma fonte de
mana ou coisa do tipo?

— Porque o cabelo de Laplace também era verde.

Ahhhh, entendi. Também existia algo do tipo no meu mundo.


Essa coisa de usar características em comum e jogos de palavras
para lançar ou remover maldições nas pessoas.

— De qualquer forma, graças ao seu envolvimento com ele, a


maldição está desaparecendo. Ainda existe um enorme senso de
discriminação, mas com o tempo e com os esforços de Ruijerd, ele
talvez seja capaz de fazer algo para mudar isso.
Então não foi completa perda de tempo? Fico feliz em ouvir isso.
Acho que você pensou bastante nas suas ações.

— Bom, será difícil para você apagar completamente todo o


preconceito contra os Superds.

Bem, no final das contas, esse é um assunto bem complicado.


Mas, é… De qualquer forma, isso é ótimo.

— Sim, ótimo mesmo. Parece que valeu a pena apresentar vocês


um ao outro.

Essa é a razão pela qual você nos apresentou? Se for esse o


caso, não devia ter me dito isso antes?

— Você não tinha intenção de ouvir o que eu tinha a dizer no


começo, não é? Então não tive chances.

Bem…, acho que isso é verdade. Eu ficava bem hostil


quando te via. Não posso negar isso. Deixando isso de lado, mesmo
o Ruijerd foi facilmente derrotado pelo Orsted. Nunca imaginei que
algo assim poderia acontecer.

— Dado seu oponente, é claro que Ruijerd perderia.

Sim, ele é um dos Sete Grandes Poderes, afinal. Como


poderíamos derrotá-lo?

— Não poderiam.

Não tem jeito? Então a diferença de capacidades é tão grande


assim?
— Ele é a pessoa mais forte deste mundo, mesmo estando
restrito a todas aquelas maldições.

O mais forte? Mas o Deus Dragão é só o segundo na lista dos


Sete Grandes Poderes! E quanto ao primeiro?

— O Deus da Técnica também é forte. Mas se Orsted realmente


desse tudo de si, ainda venceria. Ele pode usar todas as habilidades
e técnicas que existem atualmente neste mundo e, além disso,
também pode usar sua própria magia única que é específica do
Deus Dragão.

Todas as habilidades e técnicas, hein? Parece até um certo


salvador pós-apocalíptico que eu conheço.

— Eh? Existe alguém parecido no seu mundo?

Ele pode copiar todas as técnicas de todos os oponentes com os


quais já lutou. Mas mesmo sem essa habilidade continua forte. Forte
o suficiente para destruir o oponente usando só a ponta do dedo.

— Só com a ponta do dedo? Que incrível. Mas Orsted também.


Se ele ficasse sério, poderia destruir este mundo inteiro.

Chamar ele só de forte parece ser algo meio vago. De quanta


força estamos falando? Uma anormal? Desastrosa?

— De qualquer forma, ele não pode liberar seu verdadeiro poder


graças a uma maldição.

Então é esse o problema. Essas maldições com certeza são um


saco. Enfim, posso perguntar uma coisa?

— O que é?
Há apenas alguns segundos, você disse que não sabia sobre as
maldições dele, não é? Você disse que não sabia sobre elas, a não
ser sobre a de ser odiado e de você não conseguir o ver, então por
que sabe que ele não pode liberar seu verdadeiro poder por causa
de uma maldição?

— Uhh…

Tá bom. Já chega, vamos continuar. Não vou fazer nenhuma


confusão, não importa o que você estiver escondendo de mim.
Afinal, já entendi que você se importa com o Ruijerd. E também foi
graças a você que Lilia e Aisha foram salvas. Não vou reclamar de
uma ou outra mentirinha. Não importa quais fossem seus planos
para mim no futuro, eles acabaram tendo vida curta, de qualquer
forma.

Para ser honesto, ainda há muitas outras coisas que gostaria de


te perguntar. Por exemplo, por que me apresentou ao Grande
Imperador do Mundo Demônio e coisa e tal. Ou onde algumas das
outras pessoas desaparecidas estão localizadas. Ou qual era o seu
objetivo real. Mas já é meio tarde demais para te perguntar tudo
isso.

Bem, o que posso dizer? Ambos fracassamos, então sejamos


amigos. Vamos deixar as formalidades de lado e nos divertirmos
juntos. Podemos dançar nus, mostrar nossos talentos ocultos e,
claro, também não me importo se desenharmos rostos em nossas
barrigas para falar um com o outro.

— Acabou?

Sim, acabou. Digo, não acabou? Afinal, eu morri.


— Ah, entendo. Você perdeu toda a esperança e desistiu… o
completo oposto de quando nos vimos pela primeira vez, hein?

Naquela época, morri sem saber o que diabos estava


acontecendo. Desta vez, bem, não há nada que eu possa fazer a
respeito. Além disso, eu meio que sabia que, quando morresse,
acabaria aqui. Não faço ideia de para onde as pessoas deste mundo
vão quando morrem, mas pensei que você apareceria para
conversar comigo quando isso acontecesse.

Ah…, parece que minha consciência já está


desaparecendo. Acho que já chegou a hora de nos separarmos.
Estou feliz por conseguirmos manter uma conversa calma ao menos
no final.

— Então é por isso… Bem, tenho umas boas notícias.

Hm?

— Você não está morto.

Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, o buraco em


meu peito havia desaparecido.

✦✦✦✦✦✦✦

De repente, meus olhos se abriram. Eris estava bem ali – bem


diante dos meus olhos. Eu estava deitado no chão, olhando para
ela. A parte de trás da minha cabeça estava quente, e logo percebi
que era porque a garota estava mantendo minha cabeça em seu
colo. Quando ela olhou para mim, seu rosto estava cheio de
ansiedade, como se estivesse olhando para algo que não queria ver.
Mas quando abri meus olhos, o alívio brilhou visivelmente em seu
rosto. Seus olhos mostravam um brilho vermelho.

— R-Rudeus… você está acordado?!

— Sim… blegh! — Tentei falar, mas em vez disso só cuspi


sangue.

— Rudeus! — Eris colocou seus braços ao meu redor.

— Gghh… gack…! — Parei de tossir sangue, apenas para


começar a engasgar violentamente.

Eris acariciou minhas costas.

— Você está bem?

Vi a expressão confusa em seu rosto e inclinei a cabeça.

— Por que estou… vivo…?

A ferida em meu peito se fechou toda. Bem, a palavra “toda”


podia ser um pouco de exagero. Havia um buraco aberto no centro
do meu robe e, abaixo dele, uma cicatriz, como se alguém tivesse
me soldado. Puta merda, isso é esquisito, pensei. Aliás, minha mão
direita não estava ligada a nenhum tipo de parasita desconhecido.

— Há um momento, quando aquela garota disse algo, uh, Orsted


ou seja lá qual é o nome dele, usou magia para te curar… — Minha
pergunta tinha sido só retórica, mas Eris incoerentemente se
atrapalhou enquanto me dava uma resposta.

— Garota?

— Ele a chamou de Nanahoshi.


Nanahoshi. Aquela garota de antes. Sim, lembrei que era assim
que Orsted a chamava. Mas, espera, Nanahoshi…? Senti como se
já tivesse ouvido isso em algum lugar. Mais ou menos em algum
momento do último ano. Mas, onde foi? Não conseguia me lembrar.

— Então ele saiu de seu caminho para curar a pessoa que tinha
acabado de matar…?

No que aquele cara estava pensando? Eu tinha certeza de que


meu coração foi perfurado. Danos graves a um órgão interno não
podiam ser curados com magia de cura Intermediária. Isso
significava que ele devia ter usado magia de nível Avançado ou algo
ainda mais poderoso. Orsted devia possuir uma magia de cura tão
poderosa que seria capaz de salvar instantaneamente qualquer
pessoa que tivesse sofrido um ferimento fatal. Parecia que o Deus
Homem não estava mentindo quando disse que o Deus Dragão
poderia usar qualquer habilidade ou técnica do mundo.

— Fui totalmente derrotado.

Mesmo com o oponente estando em um nível completamente


diferente, essa ainda era a mais pura realidade. Ele estava no
segundo lugar entre os Sete Grandes Poderes. Mas, de acordo com
o Deus Homem, era o mais forte. E esse título evidentemente não
era só para se exibir.

— E quanto ao Ruijerd?

— Ele ainda não acordou.

Após uma inspeção mais aprofundada, descobri que Ruijerd


estava desacordado na beira da estrada. A carruagem também foi
puxada para fora do caminho e havia uma fogueira crepitando. Eris
tinha cuidado disso tudo sozinha?

— Esta é a primeira vez que vejo o Ruijerd caído de lado assim


— falei.

— Rudeus, você não deveria estar falando. Desse jeito vai


acabar sufocando com o seu próprio sangue.

— Já estou bem. Aquilo que cuspi era só o que estava preso na


minha garganta — falei, mesmo com minha cabeça continuando em
seu colo. Eu não queria me mover. Ficaria nesse lugar para sempre.

Me perguntei o que aconteceria se eu começasse a virar meu


rosto para uma determinada direção. Na verdade, essa era a única
coisa em que estava pensando. Isso provavelmente era parte do
instinto de sobrevivência inato da humanidade. Afinal, quando
confrontadas pela morte, as pessoas gostariam de deixar alguns
descendentes para trás. Ah, bem, tanto faz. Não vamos pensar
muito nessas coisas complexas. Vamos seguir em frente.

— Estar vivo é uma coisa maravilhosa — falei enquanto girava


meu corpo e passava meus braços em volta da cintura de Eris.
Respirei longa e profundamente e seu cheiro invadiu meu nariz.

— Rudeus… você está entusiasmado demais.

— Hmm, eu sinto que… tudo parece estar exuberante. — Mais


do que o normal, pelo menos. Sem dúvidas era por causa daquele
homem, Orsted. Ou porque tive aquele sonho com o Deus Homem.
Vou falar a mesma coisa de novo, mas não sobrava dúvidas de que
eu me sentia estranhamente energético desde que acordei.
— Então não tem problemas se eu te bater, certo? — A voz de
Eris tremeu um pouco enquanto soava em minha direção. Estava
zangada, pelo visto. Bem, eu não poderia culpá-la. Ela estava tão
preocupada comigo, e ainda assim aproveitei a oportunidade para a
assediar sexualmente. Se eu estivesse na posição dela, também
ficaria chateado.

— Claro, vá em frente.

Ela me deu um soco. Baque.

E então me puxou na direção de seu peito e colocou os braços


firmemente em volta da minha cabeça. Seu peito macio ficou contra
minha bochecha. Eu podia ouvir os batimentos de seu coração junto
com os fracos sons de seus soluços. Ela estava chorando baixinho.

— Graças a Deus… — murmurou a garota.

Eu languidamente estendi a mão e afaguei suas costas.


Capítulo 11:
Fim da Jornada
Dentro de mais três dias, finalmente chegamos ao Reino Asura.
Estava bem na nossa frente… ou melhor, já estávamos lá. Apesar
disso, os acontecimentos daquele dia ainda nos desanimavam,
deixando uma expressão abatida em nossos rostos.

Fomos totalmente derrotados. Fomos dizimados em um instante,


e até tive minha vida tomada. Por algum capricho desconhecido,
Orsted me ressuscitou, mas, se não fosse por isso, eu não estaria
onde estava. Isso ainda não tinha sido superado.

Era verdade que pensei que não queria morrer enquanto ele
desferia o golpe final. Qualquer um esperaria que eu estivesse
traumatizado e, ainda assim, quando abri os olhos, me senti
revigorado. Bem, isso talvez seja um pouco de exagero. Foi mais
como ah, foi só um sonho? Era a mesma sensação de quando
acordava de um pesadelo. Talvez porque eu tenha visto o Deus
Homem enquanto estava morrendo e a coisa toda pareceu bem
surreal.

Colocando as coisas dessa forma, parecia que o Deus Homem


tinha adivinhado o que estava acontecendo e forçou sua entrada em
minha consciência. Para ser honesto, em um nível instintivo, eu não
queria nada mais do que mandá-lo embora, mas o Deus Homem se
importava com Ruijerd e seus assuntos, então talvez não fosse
realmente tão ruim.

Deixando isso de lado, desde que quase morri, Eris ficou bem
mais próxima de mim enquanto estávamos dentro da carruagem.
Antes, ela ficava parada na minha frente e dizia: “Estou fazendo um
treinamento de equilíbrio. Por que você não tenta?” Mas, depois,
começou a ficar sentada. Bem ao meu lado, para ser mais
específico. Próxima o suficiente para que nossas coxas se
tocassem. No dia anterior nossa pele estava até se tocando perto da
bainha de nossas calças. Tocar algo que está ao alcance é um
instinto humano, então estendi minha mão direita, só um pouquinho,
e a acariciei. Em troca, Eris só olhou para mim, com seu rosto
vermelho brilhante.

E não levei um soco. Ela, aquela garota que estava sempre


socando as pessoas, de repente parou. Mesmo quando eu fiz algo
que era digno de um soco, ela não fez isso. Seu rosto só ficava
vermelho enquanto me fitava. E simplesmente ficava fazendo isso,
me encarando o tempo todo. E não era só isso, ela continuava
sentada ao meu lado. No passado, Eris saia de perto sempre que eu
fazia coisas parecidas, mas, dessa vez, ficou por perto.

Para ser completamente honesto, eu estava chegando ao ponto


em que queria enfiar minha mão em suas calças, então desejei que
ela colocasse alguma distância entre nós. Eu sabia que existiam
algumas coisas que poderiam ser esquecidas com algumas risadas,
e outras não. Por isso estava me segurando. Mas soubesse ou não
do meu conflito interno, Eris continuou perto de mim.

Se eu deixasse minhas mãos desocupadas, elas iriam vagar na


direção dela, então comecei a fazer magia com a mão esquerda, o
tempo todo, enquanto usava a mão direita para perturbar a magia
criada. Era isso que Orsted havia feito. Creio que ele tinha chamado
isso de “Atrapalhar Magia”. Pouco antes da mana tomar forma
enquanto se acumulava em minha mão, eu usava uma mana
diferente para interromper e dispersar aquilo.

Era simples e não gastava muita mana, mas era uma técnica
incrível. Em retrospecto, esse método de anulação era semelhante à
barreira de nível Rei em que eu tinha ficado preso no Reino Shirone.
Isso era simples de se explicar, mas bem difícil de se fazer. Talvez
porque estava usando minha mão não dominante para conjurar, na
maioria das vezes a magia ainda tomava forma, embora fosse de
maneira imperfeita. Era extremamente difícil anulá-la
completamente, igual Orsted tinha feito. Mas isso ainda poderia ser
usado como uma restrição, mesmo sendo imperfeito. Ele realmente
me ensinou algo muito útil.

— Ei, Rudeus, o que você andou fazendo esse tempo todo?

— Estou tentando imitar a magia que Orsted usou — respondi.

Eris olhou fixamente para minhas mãos. À minha esquerda, criei


um pequeno Canhão de Pedra deformado que caiu no chão com um
pequeno baque.

Outra falha. Me senti como se estivesse jogando pedra-papel-


tesoura com as duas mãos. Não importa o quanto eu tentava,
continuava deixando minha mão esquerda vencer. Hm. Se fizesse
isso com descuido, decerto não iria funcionar. Em outras palavras,
havia algumas regras envolvidas na interrupção da magia. Isso
significava que, se pudesse desencadear magia de acordo com
essas regras, poderia realmente anular o Atrapalhar Magia? As
possibilidades estavam aumentando.

— Que tipo de magia que é?


— Do tipo que anula magia — respondi.

— Você pode fazer isso?

— Estou praticando.

— Por que está tentando fazer algo assim? — perguntou Eris.

— Recentemente passei por vários momentos em que tive minha


magia selada e não pude fazer nada. Acho que você poderia dizer
que estou pesquisando. Assim, se algum dia encontrarmos Orsted
de novo e acabarmos em uma luta, quero poder ao menos fugir.
Entendeu?

Eris ficou quieta. Por um curto período de tempo, o único som por
perto foi o de Canhões de Pedra batendo no chão.

— Ei, Rudeus, como você ficou tão forte?

Eu era realmente forte?

— Acho que você é mais forte do que eu — falei.

— Isso não é verdade.

—…

—…

A conversa morreu. Eris parecia que queria perguntar algo, mas


não disse nada. Me perguntei o que estava se passando em sua
mente, mas não fazia a menor ideia. Não, isso não era totalmente
verdade.

— Você está preocupada com o fato de ter sido derrotada com


tanta facilidade no outro dia?
— Sim… — disse Eris.

Isso não era culpa dela. De acordo com o Deus Homem, Orsted
era o Deus Dragão, o ser mais forte do mundo. Ele até mesmo
derrotou Ruijerd com facilidade. Não foi uma luta justa. Ele existia
em um plano que não poderia ser alcançado com puro esforço. Na
minha vida anterior, coloquei muito esforço em algumas áreas e
consegui chegar a algumas alturas, mas nunca me classifiquei entre
os melhores em nada. Mesmo nos jogos que me absorviam, onde
achava que não teria como perder, sempre apareciam pessoas
melhores do que eu.

Orsted tinha maldições que o restringiam e, apesar disso, sua


habilidade de luta superava a de Ruijerd. Ele derrotou Eris com uma
mão e me deixou completamente impotente. Além disso, lutou de
forma tão precisa que não fez mais esforço do que o necessário
para zerar meus PV, e isso indicava que ele ainda tinha energia de
sobra. Eu não fazia ideia de quão forte o Deus Dragão realmente
seria quando fizesse o seu melhor.

— Ele é um oponente injusto. A culpa não foi sua.

— Mas…

Eu podia entender por que Eris estava preocupada. Ela foi


destruída com um único ataque. Orsted segurou o ataque de
espada da garota com as mãos e a enviou voando para longe.

— Você ainda é muito jovem. Contanto que trabalhe duro, ficará


mais forte — assegurei a ela.

— Acha mesmo…?
— Sim, até Ghislaine e Ruijerd disseram a mesma coisa, não foi?

Eris de repente levantou a cabeça e olhou diretamente para mim.

— Você sabe que quase morreu, certo? Porque está… Como


pode dizer isso com tanta facilidade?

Bem, porque parecia surreal para mim. E eu também não estava


pensando em tentar lutar com ele no futuro. Na próxima vez em que
visse aquele cara, iria disparar feito um foguete. Ou talvez me
esconderia nas sombras feito um rato. Se não conseguisse
encontrar nenhum jeito de fugir, talvez implorasse para que
poupasse minha vida. Rezei para que isso não fosse algo que Eris
tivesse que ver.

— Porque eu não quero morrer da próxima vez — respondi, no


final das contas.

— Verdade, você não quer morrer, quer…?

— Por favor, não se preocupe. Vou trabalhar duro para que, se


alguma vez acabarmos em outra situação perigosa como essa, eu
seja capaz de pegá-la e fugir.

Eris tinha uma expressão complicada no rosto enquanto


encostava a cabeça no meu ombro. Eu poderia ter ganho mais
pontos de afeição com ela se tivesse aproveitado a oportunidade
para estender a mão e acariciar sua cabeça, mas estava ocupado
lançando Atrapalhar Magia com minha mão direita.

— Bem, não importa o que aconteça, temos que ficar um pouco


mais fortes.
Só mais um pouquinho. Não havia nenhuma maneira de nos
tornarmos os mais fortes deste mundo. O pico deste lugar era muito
alto. Mas eu queria pelo menos ficar forte o suficiente para que
pudéssemos escapar se fôssemos atacados por algum estranho.

Enquanto pensava nisso, pressionei meu rosto no cabelo de Eris


e inalei seu perfume.

Assim que a noite caiu e ela estava dormindo, falei com Ruijerd.
Tínhamos conversado ainda menos do que o normal desde aquele
incidente. O Superd nunca foi muito tagarela, mas desde então se
tornou taciturnamente quieto. Talvez se culpava pelo que aconteceu,
já que, apesar de sua promessa de nos levar para casa em
segurança, não foi capaz de nos proteger. Mas eu ao menos ainda
estava vivo, independentemente de quanta sorte tive para que isso
acontecesse.

— Aquele homem, Orsted… aparentemente é o Deus Dragão —


falei. — Número dois dos Sete Grandes Poderes. — Comecei a
conversa com esse comentário, partindo da ideia de que, como
nosso oponente era muito forte, era natural que perdêssemos.

— Então era isso que ele era. Não admira que fosse tão…

— Forte, né? Depois que você foi nocauteado, não havia nada
que eu pudesse fazer para me opor a ele.

— Foi a primeira vez, desde Laplace, que senti que não poderia
derrotar alguém após um único olhar.

Ruijerd não sabia sobre as maldições que restringiam o poder de


Orsted. Ele não sabia que havia sido derrotado em combate físico
por um oponente que estava se segurando. Se soubesse a verdade,
poderia ficar em choque.

— Mesmo eu não acho que posso resistir à elite dos Sete


Grandes Poderes. Aquelas pessoas são monstros além da
compreensão. Foi muita falta de sorte encontrar alguém assim pelo
caminho. Mas termos escapado com vida pode ser considerado boa
sorte. — As palavras fizeram parecer que ele estava dando
desculpas, mas também parecia que havia um toque de
autocensura no tom de Ruijerd.

Talvez o homem reconhecesse que não havia nada que pudesse


fazer, mas viu isso como um assunto à parte de ser incapaz de
cumprir seu dever.

— Rudeus — continuou ele —, se algum dia encontrarmos


alguém assim novamente, você não deve começar uma batalha.
Nem mesmo olhe nos olhos deles. Isso se não quiser que as coisas
voltem a acontecer como aconteceram desta vez, claro.

— S-sim. Bem, da próxima vez provavelmente irei desviar os


olhos e seguir em frente.

Ele também estava com raiva de mim. Bem, se eu não tivesse


chamado Orsted, provavelmente teríamos prosseguido sem
problemas. Eu admitiria esse erro. Mas, a princípio, o Deus Dragão
não parecia ser tão perigoso. Não… depois que Ruijerd e Eris
reagiram daquela maneira ao vê-lo, eu devia ter sido mais
cauteloso.

— Então, o que está te incomodando? — perguntei.


Ruijerd lançou um olhar penetrante em mim.

— Quem é o “Deus Homem”?

Eh. Então era por causa disso.

— No início, parecia que ele pretendia nos deixar passar. Apesar


da aura sanguinária que irradiava dele, não havia realmente nada
de assassino em seus olhos. Mas no momento em que ouviu o
nome “Deus Homem”, voltou toda aquela animosidade para você.

Fechei os olhos. Devia contar ou não? Era uma decisão que já


tinha pensado em tomar em outros momentos. Mas, por mais
desagradável que parecesse, o Deus Homem não era uma pessoa
ruim, e depois do que nos aconteceu, eu não gostaria de manter as
coisas escondidas.

— Na verdade, o Deus Homem é…

Apesar do tempo que passou enquanto eu pensava em contar


sobre isso para Ruijerd, uma vez que me decidi, as palavras
deslizaram por maus lábios. Contei como, desde a época do
Incidente de Deslocamento, um ser misterioso que se
autodenominava Deus Homem aparecia de vez em quando em
meus sonhos. Falei que ele me aconselhou a ajudar Ruijerd; e que
também me deu conselhos em outras ocasiões. Que meu
comportamento suspeito era porque estava seguindo esses
conselhos. Então contei sobre o Deus Homem e o Deus Dragão
parecerem ser inimigos. Contei sobre minhas conversas vagas com
o Deus Homem e provavelmente deixei muitos detalhes de lado,
mas narrei tudo da forma mais clara que pude.
— O Deus Homem e o Deus Dragão… dos Sete Deuses dos
velhos tempos… Tudo isso tão de repente, é até difícil de acreditar
— disse Ruijerd.

— Acredito que sim.

— Mas há partes que fazem sentido. — Depois de dizer isso,


Ruijerd ficou em silêncio. O ar estava dominado pelo som crepitante
do fogo enquanto queimava. As sombras criadas dançavam ao
redor, tornando o rosto do Superd no de um velho guerreiro. Graças
à sua genética, Ruijerd parecia bastante jovem, mas havia algo em
sua expressão que indicava uma história banhada por batalhas.

De repente me lembrei que, em meu último sonho, eu e o Deus


Homem conversamos um pouco sobre a maldição dos Superds.

— A propósito, Senhor Ruijerd. Sobre a má reputação da tribo


Superd… isso é aparentemente uma maldição.

— O quê…?

— Para ser mais preciso, foi uma maldição colocada em Laplace,


que ele transferiu para suas lanças, que então passou para toda a
tribo Superd. Ou ao menos foi o que o Deus Homem disse.

— Entendo… então é uma maldição… — Compartilhei essa


informação com ele pensando que seria uma boa notícia, mas
Ruijerd só fez uma careta e começou a pensar. — Nunca tinha
ouvido sobre isso de transferir uma maldição, mas se é de Laplace
que estamos falando, então é possível. Ele era capaz de fazer
qualquer coisa.
Eu não sabia muita coisa sobre maldições, e Ruijerd
provavelmente sabia muito mais sobre elas. Ele pareceu estar
levando isso em conta, mas, no final, só soltou uma risada fraca.

— Se for uma maldição, não há como consertar.

— Não há? — perguntei.

— Não. São chamadas de maldições porque não há como se


livrar delas. Nunca ouvi falar de uma maldição que afeta uma tribo
inteira, mas… se isso é o que um deus disse, então provavelmente
é verdade.

Ele soltou uma risada de auto-escárnio, como se dissesse que


tudo o que tinha feito até o momento tinha sido em vão. Podia ser só
por causa da iluminação, mas parecia que havia lágrimas se
juntando nos cantos de seus olhos.

— Mas… — Comecei a falar.

— O que é?

— O Deus Homem disse que, ao contrário das maldições


comuns, esta está desaparecendo com o passar do tempo.

— O que?

— Ele disse que isso também continua em você, Senhor Ruijerd,


mas que você reduziu muito o efeito após cortar o cabelo.

— Está falando sério?!

Ele gritou tão de repente que Eris rolou durante o sono,


murmurando, “Mm…”. Esta era uma conversa que eu
provavelmente também deveria ter com ela, mas… Bem, poderia
fazer isso após a garota acordar.

— Sim. Ele disse que, agora, o que resta são apenas vestígios
da maldição e os preconceitos iniciais que ela criou. A reputação da
tribo Superd pode se recuperar lenta, mas seguramente,
dependendo de quão duro você trabalhar de agora em diante.

— Entendo… isso faz sentido…

— Mas isso foi exatamente que o Deus Homem disse —


acrescentei. — Mesmo que você confie no que ele diz, pode ser
melhor manter a cautela. Devemos continuar tomando tanto cuidado
quanto tomamos até agora.

— Eu sei. Ainda assim, ouvir isso foi o suficiente para mim. —


Ruijerd voltou a ficar em silêncio. Não era só a iluminação que o
fazia parecer desse jeito. Havia um monte de lágrimas escorrendo
por seu rosto.

— Bem, então é hora de eu ir para a cama.

— Sim.

Fingi não ter visto suas lágrimas. Nosso Ruijerd era um guerreiro
confiável e um homem forte que não chorava.

✦✦✦✦✦✦✦

E um mês se passou após isso. Não fomos para a capital, só


seguimos a rota que levava ao norte. Passamos por muitas
pequenas aldeias agrícolas e vimos campos de trigo espalhados
diante de nós, além de moinhos de água enquanto continuávamos
no nosso caminho.

Não procuramos nenhuma informação. Só rumamos para o norte


com toda a velocidade que conseguimos. Achamos que íamos
colocar tudo em dia quando chegássemos ao campo de refugiados,
mas, ainda mais importante, já estávamos quase lá. Só queríamos
chegar ao nosso destino o quanto antes.

Por fim, chegamos à Região de Fittoa, que agora estava vazia.


Mesmo nos lugares em que existiam vestígios de civilização, não
havia ninguém. Não havia campos de trigo, nem campos de flores
Vatirus, nem moinhos de água, nem currais para gado. Grama era
tudo o que se espalhava diante de nós – um campo que se estendia
por todas partes. A cena criou uma sensação de vazio, que
embalamos bem dentro de nós ao chegarmos à atual (e única)
cidade da Região de Fittoa: o campo de refugiados. Nosso destino
final.

Foi pouco antes de chegarmos à entrada que Ruijerd parou a


carruagem.

— Hm? Qual é o problema?

Ele desceu do banco do cocheiro. Olhei em volta, pensando que


talvez houvesse algum monstro por perto, mas não vi nenhum
inimigo. O Superd foi até a parte de trás da carruagem e disse:

— É aqui que eu me retiro.

— O quê? — Levantei minha voz devido ao choque de sua


declaração repentina. Eris também arregalou os olhos.
— E-espera aí!

Quando pulamos para encarar Ruijerd, quase caímos da


carruagem. Isso foi muito rápido. Tínhamos acabado de chegar ao
campo de refugiados. Não, estávamos a apenas um passo de
distância.

— Você não pode pelo menos descansar por um dia… não, ao


menos caminhar até a cidade conosco?

— Sim, digo… — Eris começou.

— Desnecessário. — Ruijerd olhou em nossa direção e disse


apenas isso: — Vocês dois já são guerreiros. Não precisam mais da
minha proteção.

Quando ele disse isso, Eris ficou quieta. Para ser honesto, eu
realmente tinha esquecido que a única razão pela qual Ruijerd tinha
ficado conosco por tanto tempo era para nos ver de volta à nossa
casa, e que uma vez que chegássemos lá, acabaríamos nos
despedindo. Achei que ficaríamos sempre juntos.

— Senhor Ruijerd… — Comecei a falar, mas então hesitei. Se eu


tentasse impedir sua partida, será que ele ficaria conosco? Mas,
parando para pensar, eu criei problemas enormes para o Superd.

Era verdade que ele tinha seus próprios problemas, mas eu dei
muito mais trabalho e mostrei minhas fraquezas patéticas. Apesar
disso, ali estava ele me reconhecendo como um guerreiro. Eu não
poderia pedir nada além disso.

— Se você não estivesse conosco — falei —, tenho certeza de


que não teríamos chegado tão longe em apenas três anos.
— Não, tenho certeza de que você poderia ter feito isso.

— Isso não é verdade. Sou muito descuidado com algumas


coisas, então teríamos entrado em conflito ao longo do caminho, eu
acho.

— Contanto que você seja capaz de reconhecer isso, já está


bom.

Houve inúmeras ocasiões em que me descobri sem forças, como


quando fui levado em cativeiro em Shirone. Se Ruijerd não
estivesse conosco, eu provavelmente teria entrado em pânico.

— Rudeus, eu já te falei isso… — O rosto do Superd estava


ainda mais calmo do que o normal. — Como mago, você já atingiu
uma espécie de perfeição. Apesar de todo o talento que você
possui, ainda não deixa isso subir à sua cabeça. Você deve estar
ciente do quanto significa ser capaz de fazer tanta coisa na sua
idade.

Me senti em conflito no que diz respeito ao significado dessas


palavras. Mesmo com ele me chamando de jovem, minha idade real
passava dos quarenta anos. A razão de eu não ter deixado as
coisas subirem à minha cabeça era porque ainda retinha muitas
memórias. Embora quarenta ainda pudesse ser considerado jovem
diante da experiência de Ruijerd.

— Eu… — Fiz uma pausa quando comecei a falar. Poderia ter


recitado uma lista de minhas fraquezas ali, mas isso parecia muito
patético. Eu queria ficar diante desse homem com minha cabeça
erguida. — Não, eu entendo. Senhor Ruijerd, obrigado por tudo o
que você fez por nós até agora — falei. Comecei a me curvar,
apenas para ele me agarrar e me impedir.

— Rudeus, não se curve diante de mim.

— Por que não…? — perguntei.

— Você pode pensar que fiz muito por você, mas acho que você
fez muito mais por mim. Graças a você, vejo a esperança de que
minha tribo possa reconquistar sua honra.

— Eu não fiz nada. Não fui capaz de fazer praticamente nada.

Tentei transformar o nome “Fim da Linha” em algo positivo no


Continente Demônio, mas nunca fomos nada mais do que um grupo
de aventureiros enquanto estávamos lá. No Continente Millis, esse
nome simplesmente não tinha o mesmo peso. Eu pretendia bolar
uma nova estratégia, mas ela continuou sendo adiada, e então
chegamos ao Continente Central e não pude fazer mais nada para
ajudá-lo. Eu gostava de pensar que tudo o que tínhamos feito teve
algum impacto, mas não podia apagar a história considerável de
opressão no mundo e não podia fazer nada sobre os preconceitos
que as pessoas tinham em relação à tribo Superd.

— Não, você fez muito. Você me ensinou que meu método


simples de salvar crianças não era o único existente.

— Mas nenhum dos meus métodos foi muito eficaz — rebati.

— Ainda assim, eu mudei. E me lembro de tudo. As palavras


daquela velha na cidade de Rikarisu que, graças aos seus
esquemas, disse que não achava a tribo Superd assustadora. Os
olhares nos rostos daqueles aventureiros quando ouviram o nome
“Fim da Linha”… como não estavam com medo, mas sim rindo
alegremente. A proximidade que senti com os guerreiros da tribo
Doldia e como me aceitaram mesmo depois que eu disse que sou
um Superd. E os soldados de Shirone, e como choraram ao me
agradecer quando se reuniram com suas famílias.

Tirando os dois primeiros casos, todo o resto aconteceu pelos


esforços do próprio Ruijerd. Eu não fiz nada.

— Essas foram coisas que você fez sozinho — falei.

— Não. Eu não poderia fazer nada sozinho. Nos quatrocentos


anos desde a guerra, trabalhei sozinho, incapaz de dar um único
passo à frente. Quem me ajudou nesse passo foi você, Rudeus.

— Mas isso só aconteceu por causa do conselho do Deus


Homem.

— Eu não me importo com um deus que nunca vi. A pessoa que


realmente me ajudou foi você. Não importa o que você pense, sinto
uma dívida de gratidão. É por isso que não quero que abaixe sua
cabeça para mim. Nós dois somos iguais. Se quiser me agradecer,
olhe nos meus olhos — disse Ruijerd enquanto estendia o braço em
minha direção.

Eu o olhei nos olhos enquanto estendia a mão e agarrava a sua


com a minha.

— Vou dizer de novo. Obrigado, Rudeus, por tudo que você fez
por mim.

— Eu digo o mesmo. Obrigado por tudo que você fez por nós.
Quando apertei sua mão, senti a força vindo dele. Os cantos dos
meus olhos começaram a arder. Ruijerd aceitou alguém como eu –
alguém patético, que falhou em todo o caminho.

Depois de alguns momentos, ele puxou a mão e colocou-a no


topo da cabeça de Eris.

— Eris — disse.

— O que…?

— Posso tratá-la como uma criança pela última vez?

— Tudo bem, tanto faz — respondeu secamente a garota.

Havia um sorriso suave no rosto de Ruijerd enquanto ele


acariciava sua cabeça.

— Eris, você tem talento. O suficiente para se tornar muito, muito


mais forte do que eu.

— Mentiroso. Afinal, perdi para… — A boca dela se curvou em


um beicinho.

Ruijerd riu e disse as mesmas palavras que sempre usava


quando praticavam.

— Você sobreviveu a um ataque em batalha de um homem que


leva o nome de um deus. Você… — Entende o que isso significa,
certo?

Ela olhou para ele severamente. Então, por fim, seus olhos se
arregalaram com a realização.

— Entendo…
— Boa garota. — Ruijerd afagou a cabeça dela antes de afastar
a mão.

Eris manteve a carranca em seu rosto e cerrou os punhos.


Parecia que estava dando o seu melhor para conter as lágrimas.
Afastei meu olhar dela e perguntei a Ruijerd:

— O que você vai fazer agora?

— Não sei. Por enquanto, pretendo procurar quaisquer vestígios


da tribo Superd que aparecer pelo Continente Central. Se eu estiver
sozinho, restaurar a honra da minha tribo não passará de um sonho
dentro de um sonho.

— Então tá bom. Boa sorte. Se eu tiver algum tempo livre, vou


ver se posso fazer algo para ajudar.

— Heh… E se eu tiver algum tempo livre, tratarei de procurar por


sua mãe — disse Ruijerd enquanto se virava. Ele não precisava se
preparar para sua jornada. Poderia muito bem seguir seu caminho
mesmo que partisse apenas com as roupas do corpo.

No entanto, o homem parou de repente e retornou.

— Isso me lembra, preciso devolver isso. — Ruijerd pegou o


pingente que estava pendurado em seu pescoço. Era o pingente da
tribo Migurd que ganhei de Roxy. Era o único item que unia Roxy e
eu… ou pelo menos costumava ser.

— Por favor, mantenha isso com você — falei.

— Tem certeza? Não é importante para você?

— É exatamente por isso que eu quero que você fique com ele.
Quando falei isso, Ruijerd balançou a cabeça. Parecia que
estava disposto a aceitar.

— Tudo bem então, Rudeus, Eris… vamos nos encontrar de


novo — disse ele enquanto se afastava.

Quando o Superd disse que nos acompanharia em nossa


jornada, passamos muito tempo discutindo a respeito disso, mas,
agora, quando ele estava partindo, tudo parecia ter acontecido em
um instante. Havia tanta coisa que eu queria dizer. Aconteceram
tantas coisas desde o momento que nos conhecemos no Continente
Demônio até chegarmos ao Reino Asura. Eram tantos sentimentos
que palavras não seriam suficientes para descrever. Eu não gostaria
de dizer adeus ao nosso companheiro.

— Vamos nos encontrar de novo.

Todos esses sentimentos foram embrulhados nessas poucas


palavras enquanto sua silhueta se afastava. Isso mesmo – só
precisamos nos encontrar de novo, disse a mim mesmo.
Certamente o faríamos. Enquanto ainda estivéssemos vivos,
definitivamente nos encontraríamos de novo.

Eris e eu vimos Ruijerd partir, em silêncio e com gratidão por tudo


que ele fez por nós, até que o homem desapareceu completamente.

Foi assim que nossa jornada chegou ao fim.


Capítulo 12:
A Realidade da Calamidade
O campo de refugiados do tamanho de uma aldeia estava
silencioso. Se este fosse o Continente Demônio, seria grande o
suficiente para ser considerado uma cidade, mas não tinha vida no
local. O silêncio permeava o ar e os ocupantes do acampamento
eram poucos quando levado em consideração o seu tamanho. Eu
podia sentir as pessoas dentro das casas de toras construídas às
pressas, então o lugar era definitivamente habitado, mas não havia
espírito remanescente em seus residentes.

Me dirigi para o meio do campo de refugiados, onde ficava um


prédio que parecia uma Guilda dos Aventureiros. Essa era a sede
do campo de refugiados, de acordo com a nota que estava escrita
na entrada. Quando entrei, descobri que era igualmente
melancólica.

Tive um mau pressentimento quanto a tudo isso.

— Rudeus, isso é… — Eris apontou para uma folha de papel. No


topo da página estava o nome “Lorde Suserano de Fittoa, James
Boreas Greyrat” e, ao lado, “Buscando Informações de Situação:
Falecido ou Desaparecido.” Embaixo estavam os nomes dos
desaparecidos após o incidente, listados em ordem alfabética, por
aldeia e cidade.

— Vamos ver isso mais tarde — falei.

— Sim.

A lista de mortos era incrivelmente longa. Além disso, o Lorde


Suserano citado no cabeçalho do documento não era Sauros.
Ambas as coisas me deixaram ansioso enquanto nos dirigíamos
para o interior do edifício.

Quando demos o nome de Eris no balcão, a mulher de meia-


idade que atendia rapidamente deslizou para trás. Então ela voltou,
feliz, com um homem e uma mulher em seu encalço. Seus rostos
eram familiares. Um deles era barbudo e tinha cabelos brancos,
vestindo uma roupa que parecia um pouco mais bonita do que a de
um cidadão comum. Era Alphonse, o mordomo da casa. A outra
tinha pele cor de chocolate e usava uma roupa de espadachim.

— Ghislaine! — Eris tinha um olhar de pura alegria no rosto


enquanto corria para a mulher. Se ela tivesse cauda, estaria
abanando.

Também fiquei feliz. Durante o tempo todo eu não tinha


encontrado nenhuma notícia sobre Ghislaine, mas ela parecia estar
bem. Talvez o motivo pelo qual Paul não tinha ouvido nada sobre ela
fosse apenas por uma falha no fluxo de informações.

A mulher olhou para o rosto de Eris e exibiu um enorme sorriso.

— Eris, não, Lady Eris, estou feliz que você tenha retornado em
segurança…

— Está tudo bem, você pode me chamar só de Eris…

Ghislaine pareceu feliz por um momento, mas logo sua


expressão se anuviou. Até Alphonse estava olhando para ela com
simpatia. Não pode ser…, pensei enquanto uma sensação de mal-
estar brotava dentro de mim.
— Eris… vamos conversar. — A voz de Ghislaine estava rígida.
Sua cauda estava ereta. Sua expressão não era a de alguém que
estava simplesmente feliz com o retorno da garota. Ela estava
nervosa.

— Certo, tá bom. — Eris viu a expressão no rosto de Ghislaine e


pareceu entender. E ela a seguiu para o interior do prédio.

Quando tentei segui-las, Alphonse me parou e disse:

— Mestre Rudeus, por favor, espere do lado de fora.

— Hã? Ah, certo. — Fazia sentido, imaginei. Fui contratado


apenas para ajudar, então talvez não pudesse ouvir as conversas
importantes.

— Não, Rudeus também virá — disse Eris em um tom estridente


de que não toleraria oposições.

— Se é isso que você deseja, Lady Eris.

Os lábios da garota estavam ainda mais apertados do que o


normal, suas mãos colocadas com tanta força em seus lados que
estavam ficando até brancas.

Nós silenciosamente passamos por um pequeno corredor e


entramos no que parecia ser uma oficina. Havia um sofá no meio do
lugar e um vaso na extremidade da sala que continha uma flor
Vatirus. A outra extremidade do cômodo estava mobiliada com
simplicidade e continha apenas uma mesa de trabalho que parecia
barata.
Eris não esperou por um convite antes de se sentar no sofá. Ela
agarrou minha mão e me arrastou para sentar ao lado dela.
Ghislaine, como sempre, assumiu sua posição na extremidade da
sala.

Alphonse ficou na frente de Eris e curvou-se para ela na forma


tradicional de um mordomo.

— Bem-vinda de volta, Lady Eris. Recebi a notícia de que você


viria para cá e esperei pacientemente por seu…

— Deixe as cortesias de lado e vá ao ponto. Quem morreu? —


Eris interrompeu. Ela fez a pergunta sem rodeios, sem nada para
suavizar ou amortecer a dureza das palavras. A garota se sentou
com as costas retas, com força em seu olhar, mas eu sabia que
havia ansiedade corroendo seu coração. Principalmente por causa
da força com a qual apertava minha mão.

— Quanto a isso… — A resposta de Alphonse foi evasiva.

A julgar por seus modos, Sauros provavelmente estava morto.


Eris era a netinha do vovô. Ela imitava cada um de seus
maneirismos. Se ele estivesse morto, isso a machucaria muito.

Mas Alphonse se esforçou para falar.

— Lorde Sauros, Lorde Philip e Lady Hilda… Todos os três


faleceram.

No segundo em que ouvimos essas palavras, os dedos da garota


esmagaram minha mão. A dor subiu pelo meu braço, mas foram as
palavras de Alphonse, e não a dor, que me deixaram atordoado. Só
podia ser um engano, certo? Não tinha passado tanto tempo. Ainda
não haviam se passado nem três anos inteiros. Ou talvez seria mais
correto dizer que tinham se passado quase três anos inteiros.

— Não há… nenhum engano quanto a isso, certo? — A voz de


Eris vacilou quando ela fez a pergunta.

Alphonse assentiu.

— Lorde Philip e Lady Hilda foram teletransportados juntos e


faleceram na Zona de Conflito. Ghislaine confirmou isso.

A mulher sacudiu a cabeça.

— Certo… Para onde Ghislaine foi teletransportada?

— Para o mesmo lugar que Lorde Philip. A Zona de Conflito —


disse a mulher sucintamente.

Enquanto estava avançando pela Zona de Conflito a pé, ela


topou com os corpos de Philip e Hilda. Isso foi tudo o que disse. Não
explicou em que condição seus restos estavam ou como
exatamente os encontrou, mas a julgar pela expressão em seu
rosto, era ruim. O problema era a condição dos corpos ou a maneira
como morreram? Ou ela tinha visto algo que a fez querer esquecer
daquilo? A mulher tinha ouvido algo que não suportava?

Eris soltou um zumbido, mas sua mão continuava agarrando a


minha, trêmula.

— E quanto ao meu avô?

— Ele foi forçado a assumir a responsabilidade pelo Incidente de


Deslocamento de Fittoa e foi executado…
— Isso é um absurdo! — Deixei escapar sem pensar. — Que
significado haveria em executar Lorde Sauros?

Ele foi forçado a assumir a responsabilidade por um desastre


natural e depois executado? Não, isso era ridículo. Não havia nada
que ele pudesse ter feito quanto a essas coisas. Ou esperavam que
o homem impedisse aquilo antes que acontecesse? Aconteceu de
repente e sem qualquer aviso prévio. Qual responsabilidade devia
ser assumida?

— Rudeus, sente-se.

—…

Eris puxou minha mão e me forçou a voltar para o meu lugar.


Pelo visto, em algum momento, acabei me levantando. Havia
sentimentos se acumulando dentro da minha cabeça que eu não
conseguia expressar em palavras. Talvez tenha sido a dor extrema
que os tornou incoerentes. Minha mão doía.

Não. Na verdade, eu entendi. Mesmo sem qualquer aviso prévio,


mesmo que não pudesse ter sido evitado, pessoas morreram. Os
campos e as plantações desapareceram. As perdas foram
imensuráveis. As pessoas estavam mergulhadas no
descontentamento e precisavam de um bode expiatório. Mesmo na
minha vida anterior no Japão, o primeiro-ministro assumiria a
responsabilidade renunciando de imediato se algo vergonhoso
acontecesse.

Ao morrer, Sauros levou consigo o descontentamento do povo.


Alguém capaz poderia ocupar seu lugar. Pelo menos então, as
pessoas poderiam encontrar algum alívio.
Mas não foi só isso. Eu tinha certeza de que isso envolvia
alguma luta pelo poder entre os nobres. Não fazia ideia do quanto o
velho Sauros possuía em termos de autoridade, mas devia ser o
suficiente para sua queda ser justificada com uma execução.

Eu poderia racionalizar isso. Poderia. Mas então, isso apenas


nos levava à nossa situação atual. Para um campo de refugiados
coberto pelo silêncio. Para uma sede praticamente deserta. Não
havia sinais de que o país levava a sério o restabelecimento da
Região de Fittoa. Se Sauros ainda estivesse vivo, talvez tivesse
tomado medidas mais ativas. Aquele velho era útil justamente nesse
tipo de situação.

Mas não – isso era só uma fachada. Os sentimentos de Eris


eram o que me importava. Não consegui ficar calmo quando pensei
em como ela deveria estar se sentindo ao saber que não tinha mais
família. Não fazia ideia de quando as mortes de Philip e Hilda foram
relatadas. Podiam ter sido antes ou após a morte de Sauros. Mas
Sauros pelo menos tinha estado vivo – “tinha” era a palavra-chave.
Não havia necessidade de matá-lo.

Quantos achavam que morreram no desastre – no Incidente de


Deslocamento? Centenas de milhares, um número incontável, e
ainda assim mataram propositalmente um homem que havia voltado
vivo? Eris tinha feito todo aquele percurso para voltar para casa só
para descobrir isso?

Ah, merda. Eu não conseguia pensar direito. Minha mão doía.

— Mestre Rudeus, eu entendo como você se sente, mas… este


é o estado atual do Reino Asura.
Alphonse, o mestre que você serviu foi morto! Ghislaine, o
homem que salvou sua vida foi morto!, pensei. Essas eram as
coisas que eu queria dizer a eles.

Mas… não saiu nada.

Principalmente porque Eris não disse nada. Gritar e chorar não


faria sentido. Mesmo que eles tivessem cuidado de mim e nós
fôssemos parentes, Sauros ainda me era um estranho. Se sua
família não ia dizer nada, que sentido haveria em logo eu reclamar?

— Então, o que eu deveria fazer…? — Em uma demonstração


incomum de quietude, Eris não atacou nem gritou.

— Lorde Pilemon Notos Greyrat disse que iria recebê-la como


sua concubina, Lady Eris.

Até eu podia sentir a intenção assassina de repente emanando


de Ghislaine.

— Alphonse, seu bastardo! Você realmente espera que ela aceite


essa oferta?! — uivou Ghislaine, tão violentamente que pensei que
poderia estourar meus tímpanos. — Tenho certeza que você se
lembra do que ele disse!

Alphonse manteve a calma mesmo diante da fúria de Ghislaine.

— Mesmo assim, se formos pensar no futuro da Região de


Fittoa, um pouco de desconforto é…

— Como se ela pudesse ser feliz se casando com um homem


daqueles!
— Ele é imundo, mas tem um nome de família distinto. Existem
muitos casamentos indesejados que resultam em felicidade — disse
Alphonse.

— Não me importa quantos sejam! Você está mesmo pensando


em Eris?!

— Estou pensando na família Boreas e na Região de Fittoa.

— Então planeja sacrificar Eris por isso?! — grunhiu Ghislaine


em retorno.

— Se for necessário.

Eu assisti aquilo mudo de espanto enquanto os dois de repente


começavam uma discussão. Eris se levantou antes que eu
percebesse o que estava acontecendo. Ela soltou minha mão e
cruzou os braços sobre o peito, com as pernas bem abertas e o
queixo inclinado para a frente.

— Chega!

Sua voz estava alta o suficiente para que Ghislaine precisasse


tapar os ouvidos. Esta era a extensão total do berro de Eris – um
que eu não tinha ouvido nos últimos tempos. No entanto, essa era
toda a energia que ela parecia ter.

— Apenas… me deixem sozinha. Preciso pensar. — Os dois


pareceram chocados quando ouviram como sua voz soou
desanimada.

Alphonse foi o primeiro a sair. Ghislaine parecia relutante


enquanto olhava para Eris, mas saiu.
E então restou só eu.

— Eris… um…

— Rudeus, você não me ouviu? Quero ficar sozinha. — Seu tom


não deixou espaço para discussões.

Fiquei um pouco chocado. Esta foi provavelmente a primeira vez


em alguns anos que Eris me tratou assim.

— Certo, eu… entendi. — Meus ombros caíram enquanto


observava Eris virar as costas para mim. No segundo em que saí do
lugar e fechei as portas, jurei que pude ouvir um soluço.

✦✦✦✦✦✦✦

Alphonse nos preparou quartos. Eram quatro, pequenos e


localizados em uma casa perto da sede, provavelmente destinada
aos refugiados. Levei minha bagagem para um deles e arrumei a de
Eris no quarto vizinho ao meu. Troquei minhas roupas de viagem
por outras para andar pela cidade. Joguei meu robe deformado e
remendado na cama e saí do quarto.

Voltei para a sede. Queria tentar falar mais um pouco com


Alphonse e Ghislaine, mas não os encontrei. Eu não tinha força de
vontade para procurá-los, então olhei para o quadro de avisos. A
mensagem de Paul estava fixada ali, aquela que eu tinha visto
inúmeras vezes nos últimos meses. Procure no Continente Central
ou na região norte, dizia. Aquilo foi escrito quando eu tinha uns dez
anos de idade? Logo eu faria treze. O tempo passou muito rápido.

Meus olhos percorreram a lista de mortos e desaparecidos. E


pousaram em uma seção intitulada como “Buena Village”. Os nomes
de pessoas que eu conhecia estavam listados em uma linha na lista
de pessoas desaparecidas. Mais da metade tinha uma linha
passada sobre eles. Uma olhada na coluna dos mortos revelou que
os mesmos nomes haviam sido escritos ali. Pelo visto, como suas
mortes foram confirmadas, seus nomes foram riscados e
adicionados à lista de mortos. Havia um pouco mais de nomes na
coluna de desaparecidos do que na de mortos, mas a lista de
mortos também era enorme.

Vi o nome de Laws escrito na coluna de pessoas desaparecidas


com uma linha sobre ele, e minhas sobrancelhas franziram. Ouvi
Paul comentando que Laws tinha morrido. Entretanto, não escutei
os detalhes de como isso tinha acontecido.

Então, logo abaixo disso, eu vi. Lá, na coluna de pessoas


desaparecidas, estava o nome de Sylphie. E uma linha foi traçada
sobre ele.

Ba-thump. Meu coração bateu forte.

Não pode ser, pensei enquanto olhava para a coluna de mortos.


Não vi o nome dela perto do de Laws. Comecei pelo topo e procurei
até o fim, mas o nome dela não estava lá.

— Um, isso, há uma linha traçada sobre este nome, mas não
está na lista dos mortos…? — perguntei a um dos funcionários,
expressando minha dúvida.

— Sim, essa é uma das pessoas confirmadas como


sobreviventes.
Quando ouvi essas palavras, algo dentro do meu peito caiu com
um baque. Era como se meu coração tivesse caído direto no meu
estômago e nas minhas entranhas. Me senti aliviado desse tanto ao
descobrir que Sylphie estava viva.

— Então você também sabe como entrar em contato? —


perguntei.

— Se essa pessoa não veio pessoalmente à nossa sede, receio


que não.

— Poderia verificar para mim? O nome é Sylphiette.

— Por favor, espere um momento.

A equipe levou cerca de vinte minutos para fazer a busca.

— Sinto muito, mas as informações de contato dela não foram


registradas conosco.

— Ah, certo…

Então existiam duas possibilidades. Ou ela ainda não tinha se


acomodado e não tinha informações de contato para listar, ou outra
pessoa a tinha localizado e atualizado a lista, então suas
informações de contato não foram registradas. Havia a possibilidade
de que tivesse acontecido algum engano, mas não achei que fosse
isso. Havia uma possibilidade extremamente alta de que Sylphie
tivesse sobrevivido. No momento, deveria estar feliz com isso.

Claro, eu também estava preocupado. Por causa da cor de seu


cabelo, por exemplo. Era um tom ligeiramente diferente do de um
Superd, mas ainda era a mesma cor. De acordo com o Deus
Homem, a maldição aplicava-se apenas à tribo Superd. Mesmo
assim, havia muitas pessoas cruéis mundo afora. Ela poderia estar
por aí em algum lugar, chorando por causa de um comentário feito
sobre seu cabelo…

Não. Paul disse que Sylphie poderia usar magia de cura sem a
necessidade de encantamentos. Isso significava que tinha força
suficiente para sobreviver por conta própria. Talvez estivesse igual
eu, trabalhando como aventureira. Talvez estivesse procurando por
sua família, sem saber que haviam falecido. Na verdade, se ela
tivesse sobrevivido ao incidente, essa era a possibilidade mais
provável. Só rezei para que não tivesse se tornado uma escrava ou
algo do tipo.

No momento, decidi riscar os nomes de Lilia e Aisha da lista de


desaparecidos. Já havia uma linha no meu nome. Tinham escutado
falar sobre Eris estar retornando, então provavelmente também
souberam sobre mim.

Da família de Paul, o único nome que restava era Zenith Greyrat,


o que significa que ela ainda não tinha sido encontrada, afinal.
Talvez eu perguntasse sobre sua localização na próxima vez que o
Deus Homem aparecesse em meus sonhos.

Quando terminei de olhar o quadro de avisos, Eris ainda não


tinha saído da sala. Ela normalmente se recuperava bem rápido.
Esta foi a primeira vez que a vi tão abalada com algo. Mas tínhamos
viajado tanto para chegar onde estávamos, e agora que a garota
havia chegado em casa, não tinha mais aquela família ou casa
aconchegante para recebê-la. Talvez isso fosse o suficiente para
oprimir até mesmo alguém tão forte quanto Eris.
Talvez eu devesse voltar e confortá-la, pensei. Não, vamos
esperar mais um pouco.

Decidi voltar para o prédio onde havia deixado nossa bagagem.


Achei que encontraria algo com que me preocupar, embora não
tivesse nenhuma ideia do quê. Talvez pudesse apenas descansar
um pouco.

✦✦✦✦✦✦✦

Alphonse me chamou quando me movi para sair. Ele me levou a


uma sala localizada na sede do campo de refugiados e se sentou à
minha frente. À minha direita estava Ghislaine. A única razão pela
qual os dois estavam sentados era provavelmente porque Eris não
estava conosco. Ao contrário de mim, pareciam seguir a hierarquia
mestre/servo.

— Agora então, Mestre Rudeus, forneça um relatório conciso.

— Um relatório?

— Sim, quanto ao que você tem feito nos últimos três anos.

— Ah, sim, tudo bem.

Contei como fomos teletransportados para o Continente Demônio


e nos encontramos com Ruijerd. Sobre como nos registramos como
aventureiros e usamos isso para gerar renda diária conforme
mudávamos de um lugar para outro. Contei sobre o incidente na
Grande Floresta. E então contei sobre quando nos encontramos
com Paul e sua Equipe de Busca e Resgate de Fittoa, e como essa
foi a primeira vez que soubemos da situação das coisas. Contei
sobre como rumamos para o norte enquanto buscávamos
informações sobre os eventos que ocorreram no Reino Shirone.
Tentei ser o mais conciso possível, mantendo a conversa centrada
em Eris.

Alphonse ouviu em silêncio, mas quando contei sobre como nos


separamos de Ruijerd, ele falou:

— O homem que acompanhou vocês voltou para casa?

— Sim, ele realmente cuidou de nós.

— De verdade? Assim que as coisas se acalmarem, gostaria de


propor a Eris que o recompensemos oficialmente por sua ajuda.

— Ele não é o tipo de pessoa que aceitaria algo assim.

— Tem certeza? — Alphonse acenou com a cabeça e


silenciosamente olhou para mim. Seus olhos eram os de um homem
exausto. — Bem, Mestre Rudeus… daqueles que serviram ao Lorde
Sauros, restamos apenas nós três.

— E as outras criadas? — perguntei.

— A julgar pelo fato de que não voltaram, estão mortas ou


voltaram para sua terra natal.

— Ah, claro. — Então, até as garotas com orelhas de gato se


foram? Mas algumas também podiam ter retornado para suas casas
na Grande Floresta.

— E o lorde cuidou delas tão bem. Que terrível.

— Fazendo uma análise mais superficial, podemos dizer que não


passava de uma relação financeira. — Quando eu disse isso, o
rosto de Alphonse mudou um pouco. Minhas palavras podiam ter
sido um pouco duras, mas eu tinha certeza de que eram
verdadeiras.

— Por causa de sua juventude, hesitei em incluí-lo ou não nesta


conversa. Mas se você pode dizer algo assim, tenho certeza de que
é mais do que capaz de participar. Você protegeu Lady Eris e a
trouxe até aqui em segurança. Como forma de reconhecer suas
conquistas, damos as boas-vindas a você como vassalo da família
Boreas Greyrat.

Um vassalo? Então era uma reunião para isso?

— Diante disso, irei conduzir tudo como uma reunião entre


vassalos. Você não tem problemas com isso, presumo?

Uma reunião? Eu tinha certeza de que provavelmente conduziam


essas reuniões antes mesmo de eu ser enviado para dar aulas a
Eris. E também tinha certeza de que Ghislaine não tinha sido
incluída naquela época. Agora éramos apenas três, mas muitos
vassalos com certeza tinham se reunido para reuniões do tipo no
passado.

— Obrigado. Qual é o assunto em questão? — Eu não tinha


intenção de me envolver em besteiras inúteis, então fui direto ao
assunto. Além disso, Philip e Sauros não estavam mais presentes.
Era óbvio de quem estaríamos falando.

— É sobre Lady Eris.

Viu? Exatamente como eu disse.

— Para ser mais específico, gostaria de falar sobre o futuro dela.


— O futuro dela? — repeti.

Eris havia retornado à sua terra natal, mas não havia nada no
lugar. Ela não tinha família nem casa. Não poderia retornar à vida
que tinha antes.

— Embora seja verdade que Lorde Sauros e Lorde Philip


morreram, a própria família Boreas não foi completamente
destruída, correto? Podem pelo menos preparar um lugar para ela
morar, certo? — perguntei.

— Lorde James ficaria preocupado com os rumores. Acho que


ele provavelmente se recusaria a aceitar Lady Eris em sua casa.

James… Em outras palavras, tio de Eris, certo? O atual Lorde


Suserano. Se ele se importava tanto com o que as pessoas
pensavam, então provavelmente não iria querer alguém como Eris
por perto. As maneiras dela eram um pouco duvidosas e a garota
não se encaixava exatamente na imagem de uma dama nobre.
James também estava supostamente protegendo os irmãos de Eris,
e também vários de seus primos. Não era difícil imaginar ela
entrando em conflito com um ou mais deles.

— Mesmo se ele estivesse disposto a aceitá-la, é duvidoso que


os outros nobres a aceitariam como um deles. Também não consigo
a imaginar assumindo as funções de uma serva. Portanto, qualquer
ideia do tipo será rejeitada.

Balancei a cabeça diante de suas palavras. Ele tinha razão.


Mesmo que Eris tivesse amadurecido um pouco, sua disposição
selvagem continuava a mesma de sempre.
— A seguir, gostaria de falar sobre o convite de Pilemon Notos
Greyrat. Ele disse que quando Eris voltasse para casa, se ela não
tivesse outro lugar para ir, estaria disposto a recebê-la como uma de
suas concubinas.

Pilemon – meu tio e irmão mais novo de Paul. Era o atual chefe
da família Notos. Eu tive a sensação de que o velho Sauros não
gostava nada dele.

Quando olhei para Ghislaine, vi que ela estava de sobrancelhas


franzidas e olhos fechados.

— Não é uma opção ruim — disse Alphonse. — Mas existem


alguns rumores preocupantes sobre ele.

— Rumores preocupantes? — perguntei.

— Sim, sobre ele estar tentando obter favores do Alto Ministro


Darius, que vem ganhando poder político rapidamente.

Por que isso seria preocupante? Não era normal que pessoas
poderosas ganhassem favores daqueles que possuíam mais
influência?

— Lorde Darius tem ganho poder nas últimas décadas e apoia a


ascensão do Primeiro Príncipe ao trono. Ele também é o principal
responsável por tirar a Segunda Princesa do país.

Não faço ideia do que você está falando quando de repente


menciona o Primeiro-isto e o Segundo-aquilo, pensei.

— Lorde Pilemon esteve uma vez entre um grupo daqueles que


apoiavam a Segunda Princesa, mas…
— Mas quando ela foi expulsa do país, o grupo dele perdeu todo
o seu poder? — perguntei.

— Exatamente.

Em outras palavras, o chefão do seu lado perdeu e agora ele


estava tramando para tentar correr para o time vencedor.

— Não vejo problema nisso — falei.

— Lorde Rudeus, você se lembra daquele incidente de sequestro


há algum tempo?

— Incidente de sequestro?

— Aquele em que sequestradores reais levaram Lady Eris.

O plano de sequestro que eu propus.

— O responsável pelo crime foi Lorde Darius — disse Alphonse.

— Hm…

— Lorde Darius só esteve na Região de Fittoa uma vez, e nesse


tempo, precisou de apenas um olhar para despertar um profundo
interesse por Lady Eris.

— Você quer dizer no sentido sexual? — perguntei.

— Claro.

Então, a verdade foi revelada depois de todos esses anos. Não –


ele provavelmente foi identificado como o culpado mesmo naquela
época, mas não podiam se dar ao luxo de fazer confusão por causa
do quão poderoso o homem era.
Me perguntei por que Sauros se recusou a deixá-lo ficar com
Eris. Era porque odiava Darius? O velho era do tipo que deixava
seus sentimentos pessoais ditarem suas ações. Bem, qualquer que
fosse a base para sua decisão, não importava mais.

— Se Lorde Pilemon tomasse Lady Eris como sua concubina, ele


provavelmente encontraria alguma desculpa para oferecê-la a Lorde
Darius.

Hmm, então o nobre pervertido desse tempo todo era Darius.


Pelo visto, havia um monte de gente assim no Reino Asura. Certo,
se tinha gostado de Eris, era por ter bom gosto, embora esse gosto
fosse a única coisa não terrível sobre ele.

— Bem, essa ideia será rejeitada, certo?

— Não exatamente. Embora eu não possa deixar de virar a cara


diante da ideia, Lorde Darius é o homem com a maior influência na
capital. Lady Eris não vai gostar dele, mas isso garantiria seu status
e o conforto de suas condições de vida.

— Ainda assim…

— E se ela fizesse um pedido um pouco egoísta, ele certamente


a escutaria. Como, por exemplo, solicitar o desenvolvimento de um
vilarejo na Região de Fittoa para seu povo.

Por fim, entendi. Se ela mesma se tornasse uma mulher


poderosa, seria capaz de tomar proveito do dinheiro e da influência.
Mesmo assim, não gostei da ideia de Eris acabar ficando com
aquele pervertido.

— Quais são as nossas outras opções?


— Quanto aos outros nobres… Com Lorde Sauros e Lorde Philip
mortos, Lady Eris não tem mais nenhum valor como filha de uma
família nobre.

Valor, hein? Talvez fosse assim que me viam. Aos meus olhos,
Eris, por si só, já tinha muito valor.

— Lorde Rudeus, qual você acha que é o melhor caminho para


tomarmos? — perguntou Alphonse.

— Antes de dar minha opinião, posso perguntar o que Ghislaine


pensa? — Eu ainda não tinha organizado meus pensamentos.

— Acho que Lady Eris deveria ficar com Rudeus.

— Comigo?

— Você é filho de Paul. Zenith também era de uma poderosa


família nobre de Millishion. Com sua linhagem e experiência, deve
ser capaz de conquistar um lugar para si mesmo entre a nobreza
Asurana.

Eu não tinha tanta certeza disso. Olhei para Alphonse para


avaliar sua reação.

— Isso não está fora de questão. Lorde Paul fez muita coisa
após este incidente. Se você usar isso a seu favor, deverá ser capaz
de consolidar algum poder e influência. No entanto, fazer com que o
Lorde Suserano deixe você supervisionar a Região de Fittoa seria
muito mais difícil. Não posso imaginar que Pilemon permitiria que
um filho de Lorde Paul tivesse qualquer poder. Também não consigo
imaginar que Lorde James e Lorde Darius veriam com bons olhos o
casamento de Eris com um membro da família de outra pessoa
influente.

Não, acho que não. Ainda assim, eu meio que entendi aonde
Alphonse queria chegar. Ele estava pensando em como finalmente
garantir o renascimento da região.

— Nesse caso, Rudeus deveria simplesmente pegar Lady Eris e


fugir — disse Ghislaine.

— E então o que aconteceria com a Região de Fittoa? —


vociferou Alphone.

— Você lida com isso — respondeu Ghislaine friamente. Ela e


Alphonse não pareciam se dar muito bem.

— Se Lady Eris tomasse o controle da terra que Lorde Sauros


tanto amava, não seria essa a realização de nosso maior desejo?

— Esse é o seu maior desejo. Não me compare com você. Só


quero que Lady Eris seja feliz.

— E você acha que ela ficará feliz se fugir com Lorde Rudeus?

— Mais feliz do que se fosse forçada a se casar com Pilemon —


argumentou Ghislaine.

— E quanto às pessoas da região?

— Não me importo com elas. Desde o começo, Lady Eris nunca


deveria ter que lidar com essas questões.

Parecia que nosso grupo de vassalos estava dividido. Alphonse


queria que Eris seguisse os passos de Sauros e Phillip e assumisse
o gerenciamento da terra. Se isso exigisse que ela vivesse com um
pervertido, a garota só precisaria suportar. Ghislaine, por outro lado,
só queria que Eris fosse feliz. No que dizia respeito a ela, Eris
deveria abandonar seu poder político e nome de família para fugir
comigo.

Pessoalmente, inclinei-me para a maneira de pensar de


Ghislaine. Não era lógico; era apenas emocional. Mesmo assim, não
queria que uma garota de quem gostasse fosse levada por algum
porco. Se essas fossem nossas opções, seria melhor fugirmos. Eu
não me importava com o poder político.

Entendi o que Alphonse estava dizendo e por que ele achava que
isso era importante. Mas simplesmente não concordava.

— Parece que estamos em um impasse — murmurei. E quando


o fiz, os dois que anteriormente estavam discutindo olharam em
minha direção.

— Como assim? — perguntou Alphonse.

— Seja lá o que for, quem deve decidir isso é Eris. Não adianta
sequer discutirmos essas coisas. Então, vamos tentar encontrar um
tópico de conversa mais construtivo. Algo mais?

Alphonse me olhou pasmo. Ghislaine também voltou a ficar


quieta.

— Se não, então vou descansar.

E, bem assim, a reunião do dia acabou.


Capítulo 13:
A Resolução da Jovem Senhorita
Quando a reunião terminou, o sol já havia se posto. Voltei para o
meu quarto. Ele estava mobiliado só com o essencial, e minha
bagagem estava ali. Embora fosse necessário organizar as coisas,
não senti motivação para tal. Em vez disso, sentei na minha cama.
Meu corpo afundou no colchão duro. Eu parecia estar mais exausto
do que tinha imaginado.

— Uff…

Não era como se tivesse feito algo particularmente exaustivo


durante o dia. Ainda assim, o cansaço agarrou-se ao meu corpo.
Será que era isso que as pessoas chamavam de exaustão mental?
Não, não era isso. Eu tinha acabado de passar por um grande
choque.

Sauros, Phillip e Hilda – nunca tive uma conversa particularmente


íntima com nenhum deles. Mesmo assim, quando fechei os olhos,
lembrei de ter saído para um longo passeio com Sauros,
inspecionando as plantações da região enquanto ele perguntava
como Eris estava. Lembrei de Philip com aquele sorriso horrível no
rosto ao propor que assumíssemos a casa Boreas juntos. Lembrei
de como Hilda me implorou para me casar com sua filha e me tornar
parte de sua família.

Mas todos se foram. Nem mesmo sua casa ficou para trás.
Aquela vasta mansão, através da qual vozes estrondosas sempre
ecoavam, havia sumido. O salão de recepção onde Eris e eu
dançamos, a torre onde o velho tinhas seus encontros amorosos, a
biblioteca repleta de documentação relacionada à região… tudo
tinha sumido.

E não foi apenas a mansão. Buena Village também se foi; mas


não é como se eu tivesse ido conferir pessoalmente. Aquela árvore
em nosso jardim que Zenith tanto valorizava, aquela que foi
carbonizada por um raio quando Roxy estava me ensinando a usar
magia de água de nível Santo, e a grande árvore sob a qual eu e
Sylphie brincávamos… todas tinham sumido junto.

Espere… por que as árvores foram a única coisa que me veio à


mente quando tentei me lembrar de Buena Village? Bem, tanto faz.
Elas sumiram. Eu entendi isso logicamente após Paul mencionar as
coisas, mas ver tudo pessoalmente resultou em um choque ainda
maior que o esperado.

— Uff…

Assim que deixei escapar outro suspiro, uma batida forte foi à
minha porta.

— Entre. — Mandei que entrasse.

Era Eris.

— Boa noite, Rudeus.

— Eris, agora você está melhor?

— Estou bem — disse ela, parando diante de mim, assumindo


sua pose usual. Não parecia estar deprimida. Impressionante como
sempre. Sua família foi completamente exterminada e ela ainda
continuava muito mais forte do que eu. Na verdade, a garota
geralmente nem batia à porta, só a arrombava com o pé. Talvez
estivesse um pouco deprimida. — Bem, achei que era assim que as
coisas acabariam.

— Ah, sério…?

Eris falou como se isso não a incomodasse em nada. Como ela


já tinha dito, parecia que já havia se preparado. Mais
especificamente, para a possibilidade de sua família estar morta.
Não consegui reunir coragem para fazer o mesmo. Mesmo nesse
momento, sem notícias de Zenith, eu ainda queria acreditar que ela
estava viva. Era muito mais provável que estivesse morta, e
intelectualmente eu entendia isso, mas não conseguia me forçar a
aceitar.

— Eris, o que você vai fazer depois disso?

— Como assim?

— Um, você ouviu o Senhor Alphonse comentando sobre as


coisas, certo?

— Ouvi. Mas quem se importa com tudo isso?

— Quem se importa…? — repeti.

Eris estava olhando diretamente para mim. De repente, percebi –


embora um pouco tarde – que sua roupa estava diferente. Ela
estava vestida com uma peça única preta que não usava desde que
a comprou em Millishion. Combinava tão bem com seu cabelo ruivo
que parecia quase um vestido. Eu podia ver seus seios empurrando
o tecido fino.
Hein? Espera, ela não está usando sutiã? Após uma inspeção
mais detalhada, percebi que seu cabelo estava um pouco úmido. Eu
também podia sentir o cheiro de sabonete, algo que só percebia
logo após ela tomar banho. E isso não era tudo.

Normalmente, Eris não exalava nenhum cheiro em particular,


mas eu estava sentindo uma fragrância doce e leve. Perfume?

— Rudeus, agora eu estou sozinha.

Sozinha – isso era verdade. Ela não tinha família. Tinha irmãos
de sangue, mas eles não eram sua família.

— E, além disso, recentemente fiz quinze anos.

No momento em que a ouvi dizer quinze, entrei em pânico.


Quando? Quando foi que seu aniversário passou? O meu chegaria
em um ou dois meses, então o dela não devia ter passado a mais
de um mês. Eu não lembrei.

— Um, desculpe por não ter lembrado.

Que dia que foi o seu aniversário? Não conseguia me lembrar


dela nem mesmo dando uma dica sobre isso. Eu tinha pensado que
Eris faria muito barulho ao completar quinze anos. Mas realmente
não fez nada? Não houve um dia sequer em que indicasse que era
seu aniversário?

— Você pode não ter percebido, mas foi no dia em que Ruijerd
me disse que eu era uma adulta.

— Ahh. — Então era isso. Finalmente as coisas fizeram sentido.

Que merda. Sério, não percebi, pensei.


— Uhhh, você quer que eu te dê algo? Qualquer coisa?

— Sim, há uma coisa que eu quero — disse ela.

— O que seria?

— Uma família.

Fiquei sem palavras quando Eris disse isso. Era uma coisa que
eu não poderia dar para ela. Não poderia trazer as pessoas de volta
à vida.

— Rudeus, torne-se minha família.

— Hein? — Quando de repente olhei para ela, pude dizer que,


apesar da escuridão do quarto, seu rosto estava brilhando de tão
vermelho. Isso foi… bem, você sabe… uma proposta? — Quer dizer
tipo irmão e irmã?

— Não me importa como você queira chamar. — Ela estava


vermelha até as orelhas, mas ainda não desviou o olhar. — E-então,
basicamente, o que estou dizendo é, um… vamos dormir juntos.

Eu não fazia ideia do que ela estava falando, é sério!

Acalme-se e vamos pensar no significado de suas palavras,


disse a mim mesmo. Eu poderia supor, com base em sua proposta
de que devíamos dormir juntos, que ela também estava chocada
com tudo o que acontecera. Eris provavelmente queria estar comigo
para curar as feridas infligidas em seu coração.

Uma família. Ou, neste caso, uma família de mentira, suponho?

Mas…
— Estou me sentindo um pouco solitário hoje, então posso
acabar fazendo algo pervertido com você.

Para ser honesto, eu não tinha confiança em mim mesmo. Quer


dizer, não estava confiante de que poderia ir para a cama com ela,
sentir o calor de seu corpo e ainda ser capaz de me conter. Até Eris
devia saber disso. Entretanto…

— H-hoje você pode fazer isso.

— Eu já falei, se eu fizer isso não vai ser só “um pouquinho” —


avisei.

— Eu lembro. E estou dizendo que você pode fazer o que quiser


comigo.

Depois de ouvir sua resposta, olhei fixamente para o rosto de


Eris. O que diabos você está dizendo? Me peguei pensando. Digo,
qual é. Depois de ouvir isso, meu homenzinho se preparou para
ficar de pé e glorificar.

— P-por que você está dizendo tudo isso de repente? —


perguntei.

— Prometi que faríamos isso quando eu fizesse quinze anos,


certo?

— Não era quando eu fizesse quinze?

— Não me importo mais com isso — disse ela.

— Eu me importo.
Isso era estranho. Algo estava estranho. Vamos, pense, o que
era que estava estranho? Ah, já sei! Em outras palavras, Eris estava
se sentindo desolada. Então, talvez estivesse sendo um pouco
autodestrutiva. Eu tinha visto inúmeras cenas como essa em jogos
eróticos. As pessoas buscavam consolo para enfrentar a perda de
alguém. E, por conforto, quero dizer colocar dois corpos fisicamente
juntos. Certo, tá, saquei.

Ainda assim, o que isso diria sobre mim se eu colocasse minhas


mãos sobre ela nesse tipo de situação? Era quase como se
estivesse me aproveitando dela enquanto a garota estava fraca.
Mas, claro, eu queria fazer isso, sabe? A pior parte foi minha alegria:
Vamos jogar nossas virgindades fora!

Mas isso não era algo que deveria fazer em circunstâncias mais
normais? Nós dois estávamos sentindo dor e, se nos deixássemos
levar pelo momento, nos arrependeríamos mais tarde, eu tinha
certeza.

Ahh, mas poderia não ter outra chance com uma permissão tão
clara assim. Se ela repentinamente decidisse partir e ficar com
Pilemon, nossa promessa iria por água abaixo.

Não, esqueça isso. Eu realmente não queria que a primeira vez


de Eris fosse roubada por outra pessoa. Eu é que faria isso. Eu.
Mas tive a sensação de que não deveríamos.

Antes eu zombava de todos os protagonistas indecisos daquelas


histórias com harém. Os chamava de covardes por não
conseguirem reunir coragem nos momentos mais necessários. E
agora que era a minha vez de passar pela mesma situação, e
também hesitando.

O que deveria fazer? O que quer que decidisse, parecia que me


arrependeria depois. Eu só pararia de me arrepender após dois
anos, quando, em meu décimo quinto aniversário, Eris apareceria
com uma fita de presente enrolada ao seu corpo. “Aqui está seu
presente de aniversário. Já que eu poderia acidentalmente te dar
um soco, também amarrei as minhas mãos. Sinta-se à vontade para
fazer o que quiser comigo”, diria ela enquanto se sentava em minha
cama.

Ahh, não. Espera. Quase morri recentemente. No que pensei


serem meus momentos finais de vida, fiquei muito arrependido.
Ainda havia coisas que eu queria fazer, e não havia nenhuma
garantia de que algo semelhante não aconteceria nos dois anos que
faltavam para meu aniversário de quinze anos. Não era como se eu
pudesse escapar por um triz da morte para sempre. Será que devia
me livrar da minha virgindade logo, antes que qualquer problema
semelhante surgisse no futuro?

Não, calma, espera aí…

— Nossa!

Eris deve ter ficado frustrada com minha indecisão. Ela limpou a
garganta e se sentou suavemente no meu colo. Se posicionou de
lado para que pudesse envolver meu pescoço com seus braços,
apresentando-me a vista de seus seios bronzeados e seu belo
rosto. Ela abriu a boca como se fosse falar, então de repente
percebeu que algo estava pressionando contra sua coxa. Seu rosto
ficou ainda mais vermelho.

— O que diabos é isso…?

— Isso é por você ser tão fofa.

Eris só murmurou em resposta, e então apertou as coxas contra


a cabeça do meu homenzinho. Foi uma sensação suave e
agradável. Meu homenzinho ficou muito feliz, e seu pai (eu) estava
ficando sem fôlego.

— Então isso significa que agora você está preparado? —


perguntou ela.

— Sim.

— Então você não desgosta de mim, certo?

— Não.

— Você está preocupado com meu pai e meu avô?

— Sim.

— Rudeus, esse tempo todo você ficou me olhando de um jeito


travesso.

— Sim.

— Mas você ainda vai me recusar?

— Sim… — Finalmente balancei a cabeça.

Meu olhar estava preso à base de seu pescoço, em seu peito.


Ela já tinha conquistado meu corpo com suas coxas macias, a
sensação de seu peito pressionado contra mim e seu cheiro, que
enchia meus pulmões enquanto eu inalava. Eu era como um
cachorro abanando o rabo. Mas convoquei os últimos fios de razão
que permaneceram dentro de mim e disse:

— Uma promessa é uma promessa, não é? Dissemos que


esperaríamos até eu completar quinze anos.

No momento, falando francamente, essa promessa era minha


última esperança. Mesmo eu não tinha certeza de por que estava
me segurando.

Em resposta às minhas palavras, Eris apenas bufou. Sua


respiração chegou até minha bochecha.

— Ei, Rudeus. Minha mãe me ensinou isso, mas como é


constrangedor e estou proibida de fazer mais vezes, só vou dizer
uma vez — disse, respirando fundo. Ela aproximou o rosto do meu
ouvido.

Então vieram algumas palavras, em um tom tão suave e doce,


era como se um selo proibido tivesse sido desfeito.

— Rudeus, eu quero ser sua gatinha. Mew ✰

Essas palavras passaram direto pelo meu ouvido e se enfiaram


em meu cérebro simplório, apagando os últimos fios da razão que
me impediam de ceder. Eris era uma fera e, em resposta a essas
palavras, eu também me tornei uma fera. Uma criatura com os
instinto à flor da pele que a empurrou para a cama.
✦✦✦✦✦✦✦

Naquela noite, Eris e eu subimos os degraus para a vida adulta


juntos. Durante aquele tempo, esqueci tudo sobre os outros
assuntos complicados que pesavam sobre nós. Tudo em que eu
conseguia pensar era no tanto que queria estar com ela. Não falei
muito, mas acho que a amava. Queria protegê-la para sempre. Não
me importava quais fossem as circunstâncias.

O próprio Paul disse isso, não foi? Quem se importava com os


deveres de um nobre? Eu não precisava pensar em coisas assim.
Faria qualquer coisa para ajudá-la. Enquanto estivéssemos nisso,
três filhos já bastariam, mas eu tinha certeza de que conseguiríamos
mais do que isso.

Fiquei exultante. Nem mesmo passou pela minha cabeça


imaginar o que Eris poderia estar pensando.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de Vista de Eris

Meu nome é Eris Boreas Greyrat.

Naquele dia, tornei-me adulta. Rudeus me deu o presente que eu


queria por meu aniversário de quinze anos. Foi um pouco diferente
do que prometemos, mas nos grudamos do mesmo jeito.

Eu amava Rudeus. Quando foi que comecei a perceber meus


sentimentos? Isso mesmo – foi em seu décimo aniversário. Eu
estava dormindo quando minha mãe me acordou de repente, me
vestiu com uma camisola vermelha brilhante e, com uma expressão
séria no rosto, disse: “Vá para a cama de Rudeus e entregue seu
corpo a ele.”

Eu não tinha nada contra fazer sexo, mas fiquei confusa. Minha
mãe e Edna me explicaram e fizeram com que entendesse que isso
algum dia aconteceria. Ainda assim, não estava preparada. Pensei
que isso seria algo mais para o futuro.

Independentemente de Rudeus saber da minha apreensão, ele


tocou meu corpo como queria. Ele e meu pai ficaram acordados até
tarde conversando, então talvez já tivesse ouvido falar sobre isso.
Enquanto eu considerava tudo, outro pensamento surgiu em minha
cabeça.

Talvez ele não me ame de verdade.

Talvez só estivesse fazendo isso porque meu pai mandou.


Mesmo naquela época, Rudeus era uma pessoa incrível. Ele sabia
de tudo e podia fazer qualquer coisa, mas isso não diminuía seu
desejo de continuar aprendendo. Ele continuava avançando sem
parar.

E eu tinha certeza de que ele me servia. No entanto, quando sua


respiração ficou mais irregular, fiquei preocupada em ser apenas
uma recompensa dada por meu pai. Quando percebi que não
estava de acordo com isso, empurrei-o para longe e corri. Comecei
a voltar para o meu quarto, mas fiquei com medo. Talvez tivesse
acabado de tomar uma decisão na qual jamais poderia voltar atrás.
Talvez tivesse perdido minha última chance. Me encontrei com as
outras crianças de famílias nobres inúmeras vezes, mas nenhuma
delas tinha tanta coragem quanto Rudeus.
E ele estava interessado no meu corpo desde que nos
conhecemos. Já tinha tentado espiar pela minha saia, puxar minha
calcinha e até sentir os meus peitos. E, em cada tentativa, eu o
socava até que se afastasse. Quando eu ainda frequentava a
escola, socava meninos que zombavam de mim e eles nunca mais
falavam nada arrogante para mim. Mas isso não funcionou com
Rudeus. Sinceramente, senti, com cada fibra do meu ser, que
quando minha mãe disse que Rudeus era único, ela estava certa.

Quem se importa se sou apenas uma recompensa? pensei. Pelo


menos podemos ficar juntos. Então, voltei para o quarto dele.

Mas quando Rudeus me viu, ele se ajoelhou no chão e se curvou


igual um sapo. Pediu desculpas e disse que estava errado. Em
resposta, apenas olhei para ele e disse para esperar mais cinco
anos. Na época, achei que isso bastava. Rudeus era adulto o
suficiente para esperar por mim.

Foi quando comecei a me apaixonar por ele.

No entanto, as coisas logo mudaram. Fomos transportados para


deus sabe onde e, quando acordamos, havia um Superd parado
diante de nós. Achei que estava sendo punida. Sempre que eu era
muito egoísta, minha mãe me avisava que o Superd viria e me
devoraria.

Então gritei e covardemente me encolhi no chão. E a pessoa que


apareceu ao meu socorro não foi meu avô nem Ghislaine – foi
Rudeus. Ele resolveu tudo com o Superd. Mesmo com ele próprio
sendo dominado pela ansiedade, mesmo eu sendo a mais velha, foi
ele quem me acalmou e abrandou. Devia ser necessária muita
coragem para fazer aquilo. Então voltei a me apaixonar.

Depois daquilo, mesmo com o rosto pálido, ele lidou com o povo
demônio. Rudeus não comia muito. E escondeu o fato de que não
estava se sentindo bem fisicamente. Eu tinha certeza de que ele
estava guardando seu sofrimento para si mesmo porque não queria
me preocupar, então decidi também me conter. Reprimi a vontade
de gritar e socar as pessoas, e no lugar disso deixei que Rudeus
cuidasse de tudo. Tentei agir da mesma forma que sempre fiz, mas
houve momentos em que simplesmente não conseguia me conter –
quando a ansiedade fervia dentro de mim e se recusava a se
acalmar.

Mas Rudeus não ficou com raiva. Ele simplesmente continuou ao


meu lado. Não fazia comentários cortantes – só acariciava minha
cabeça, passava o braço ao redor de meus ombros e me
confortava. Durante aqueles tempos, ele nunca cruzou os limites.
Vivia obviamente excitado quando me via, mas, durante esses
momentos, nunca tocou em nada além do que podia.

Eu queria ficar mais forte. Pelo menos forte o suficiente para não
ser um fardo para ele. A única coisa que poderia fazer melhor do
que Rudeus era empunhar minha espada, e mesmo nesse aspecto,
não poderia me comparar ao nosso companheiro, Ruijerd. E embora
eu pudesse ter uma chance em uma luta de espadas, não
conseguia derrotar Rudeus quando ele usava magia.

Apesar de tudo isso, Rudeus me deixou ganhar experiência


lutando com eles. Eu tinha certeza que o grupo teria tido mais
facilidade em matar monstros e viajar por terra se fossem apenas os
dois. E só de pensar nisso eu sentia vontade de chorar. Temia que
Rudeus pudesse perceber que eu os estava atrapalhando e me
odiasse. Temia que ele me deixasse para trás, então trabalhei
desesperadamente para ficar mais forte.

E solicitei que Ruijerd me treinasse. Ele me derrotou várias


vezes. Cada vez que Ruijerd me perguntava: “Você entendeu?”, em
cada uma das vezes eu me lembrava das palavras de Ghislaine e
balançava a cabeça. Racionalidade – isso mesmo, racionalidade.
Havia uma racionalidade na maneira como um especialista se
movia. Ao treinar com alguém mais forte do que eu, a primeira coisa
a se fazer era observar.

Ruijerd era forte. Provavelmente mais forte até do que Ghislaine.


E então, eu observei. Observei seus movimentos atentamente e os
imitei sempre que pude. Ruijerd me ajudou em minha busca para
ficar mais forte. No meio da noite, depois que Rudeus finalmente
adormecia, exausto, Ruijerd se juntava a mim para treinar sem fazer
qualquer barulho. Claro, ele ainda me derrubava em todas nossas
lutas. Talvez fosse difícil para ele me derrubar daquele jeito, tendo
em vista o quanto amava as crianças, mas eu me senti confiante ao
chamá-lo de “Mestre.”

Um ano se passou desde que começamos nossa jornada. Pensei


que tinha ficado mais forte. E dessa vez era diferente de antes,
quando Ghislaine basicamente me dizia: “Racionalidade,
racionalidade!” Por meio do meu treinamento com Ruijerd,
finalmente entendi o verdadeiro significado da palavra. Antes, não
tinha visto nenhum problema com movimentos desleixados em
batalhas, mas agora entendia que cada movimento tinha um
significado.

Então, um dia, consegui derrotar Ruijerd. Parando para pensar,


daquela vez ele parecia estar prestando atenção em alguma outra
coisa. Ainda assim, não me importei em fazer proveito de uma
distração que resultou em uma abertura. Finalmente consegui
derrotá-lo. Não seria mais só um obstáculo. Poderia andar lado a
lado com Rudeus.

Mas, claro, acabei me deixando levar.

Rudeus facilmente me colocou no meu lugar. Ele de repente


conseguiu um olho demoníaco e não teve problemas em usá-lo para
me derrotar. Perdi para ele em uma luta física sem uso de magia.
Foi um choque. Era trapaça, pensei – jogo sujo. De uma só vez, ele
me ultrapassou em uma estrada que trilhei por anos.

Eu, como sempre, continuava sendo um obstáculo.

Chorei em segredo. Na manhã seguinte, fui à praia e chorei


enquanto brandia minha espada. Ruijerd me disse para não me
preocupar com isso. Rudeus era simplesmente compatível demais
com o olho demoníaco que conseguiu. Ele me disse que, se eu
treinasse, ficaria mais forte. Que eu tinha talento e não devia
desistir.

Mas, qual talento? Tudo que Ghislaine e Ruijerd fizeram foi


mentir para mim. Naquela época, Rudeus me parecia tão grandioso.
Ele brilhava tanto que eu não conseguia nem olhar direito em sua
direção. Poderia colocá-lo em um pedestal. Eu queria alcançá-lo,
mas em algum momento desisti, pensando que seria inútil.
Mas isso mudou após chegarmos ao Continente Millis. Foi
quando conhecemos Gyes e aprendi que existiam técnicas de
combate além da luta com espadas e magia. Eu queria tentar
aprender, mas ele se recusou a ensinar. Na época, me perguntei o
motivo. Não pude aceitar.

Em seguida, passamos pelos eventos em Millishion. Eu queria


provar que podia fazer coisas sozinha, então fui matar a mais
simples das criaturas – goblins. Foi então que tive o primeiro
vislumbre do meu próprio talento. Lutei contra aqueles estranhos
assassinos e os derrotei. Em algum momento, comecei a crescer.

Mas quando voltei para a pousada, Rudeus estava deprimido.


Quando o pressionei para conseguir detalhes, descobri que Paul
estava na cidade e que ele e Rudeus tinham entrado em conflito.
Embora Rudeus não estivesse chorando, quando vi a extensão de
sua depressão, finalmente lembrei que ele era dois anos mais novo
do que eu. No entanto, apesar de sua idade, se tornou o tutor
domiciliar de alguém tão egoísta quanto eu. Teve que comemorar
seu décimo aniversário longe da família e foi forçado a viajar pelo
Continente Demônio enquanto carregava um fardo como eu. Então
seu pai o afastou.

Eu definitivamente não poderia perdoar isso. Como alguém cujo


nome estava listado entre a nobreza de Asura, prometi a mim
mesma que iria fatiar Paul Greyrat. Eu já tinha ouvido meu próprio
pai falando da força de Paul. Ele era um gênio espadachim que
alcançou o nível Avançado no Estilo Deus da Espada, Estilo Deus
da Água e Estilo Deus do Norte. E também era o pai de Rudeus.
Mesmo assim, eu não tinha dúvidas de que poderia vencer.
Ghislaine me ensinou a esgrima, mas Ruijerd me ensinou o
combate. Se eu combinasse as duas coisas, não teria como perder
para um bruto daqueles.

No entanto, Ruijerd me parou. Quando perguntei o motivo, ele


me disse que era uma briga entre pai e filho. Eu sabia que Ruijerd
se arrependia do que aconteceu com seu próprio filho, então decidi
escutar.

No final, Rudeus e Paul se reconciliaram. Foi exatamente como


Ruijerd havia dito. Mas vou repetir: Não pude aceitar. Não conseguia
entender por que Rudeus perdoou seu pai. Eu jamais perdoaria
alguém que fizesse aquilo. Rudeus não falava muito sobre isso e
Ruijerd também não me dizia nada. Ambos eram adultos.

De lá, cruzamos para o Continente Central. Foi quando Rudeus


começou a comer muito mais, talvez porque recuperou seu espírito.
E, como sempre, ele era incrível. Em um único dia, conseguiu fazer
amizade com o Terceiro Príncipe e salvar sua família.

Quanto a mim, a única coisa que pude fazer foi entrar em uma
confusão com Ruijerd. Como resultado, ajudamos a salvar Rudeus,
mas o fizemos sem qualquer planejamento. Depois, Rudeus disse
coisas como “Eu não fiz nada” e “Vocês realmente me ajudaram”,
mas a julgar pelo que aconteceu, ele poderia ter lidado com tudo
sozinho.

Rudeus era tão incrível. Tão grandioso. E naquele dia que nos
encontramos com o Deus Dragão, tornou-se alguém ainda maior.
Durante o confronto com Orsted, Ruijerd e eu ficamos apavorados
com o que vimos como a personificação do medo diante de nós. Só
Rudeus continuou agindo normalmente.

Ele até conseguiu acertar um ataque em Orsted – um oponente


contra o qual Ruijerd se provou indefeso. Meus olhos não puderam
seguir a magia que ele desencadeou naquela época. Quando
Rudeus realmente ficava sério em batalha, era incrível. Ele até
mesmo conseguiu lutar contra o homem considerado o mais forte do
mundo, o Deus Dragão.

Mas assim que pensei isso, me deparei com ele mortalmente


ferido, com um pé na cova. Até então, pensava que a morte era algo
irrelevante para nós. Rudeus era forte. Não havia como ele morrer, e
enquanto eu o tivesse me protegendo, também não morreria.
Também tínhamos Ruijerd conosco, então estávamos seguros. Foi o
que pensei.

Estava errada.

Se aquela garota que acompanhava o Deus Dragão não tivesse


feito um pedido por puro capricho, ou se o Deus Dragão não fosse
capaz de usar magia de cura, Rudeus teria partido. Fiquei com tanto
medo. Aquele evento renovou meu medo de ser um fardo.

Agora, Rudeus estava se tornando um ser divino. Mesmo ficando


à beira da morte, ele ficou completamente indiferente a isso. Apenas
três dias depois de quase morrer, estava antecipando um futuro
encontro com o Deus Dragão e praticando uma nova magia para se
preparar para isso. Fui incapaz de compreender. Não conseguia, e
estava com medo, então só fiquei ao seu lado. Senti que se não
ficasse ali, ele iria desaparecer e me deixar para trás.
Então nos separamos de Ruijerd. Ruijerd disse que derrotar o
Deus Dragão era impossível, mas, no momento final, me ensinou
algo. Ele me lembrou da técnica que o Deus Dragão havia usado.
Aquilo estava gravado em minha mente, aquela maneira como ele
desviou de meu ataque.

Havia um método por trás daquilo. O Deus Dragão não era um


monstro desconhecido. Ele era um mestre, mas estava usando
técnicas conhecidas pelo homem.

E, por fim, chegamos em casa e descobri que não havia mais


nada. Meu pai, meu avô e minha mãe estavam mortos. Fiquei com o
coração partido. Depois de tudo que sofri para retornar, minha casa
e minha família se foram. Ghislaine e Alphonse estavam lá, mas
pareciam distantes e formais, como se fossem pessoas diferentes.

Tudo que me restava era Rudeus, e eu queria que nos


tornássemos uma família. Fiquei impaciente. Seu contrato como
meu tutor tinha uma duração de cinco anos, e já tínhamos passado
desse período há muito tempo. Seu dever chegou ao fim ao me
escoltar até em casa. E nem todos de sua família tinham sido
encontrados. Eu tinha certeza de que ele partiria imediatamente e
me deixaria para trás. Eu sabia disso.

Usei meu corpo para mantê-lo por perto. No início ele hesitou,
então fiquei preocupada com a possibilidade de não ser aceita.
Rudeus nunca tinha me espiado enquanto eu estava tomando
banho. Mesmo no navio viajando para o Continente Millis, quando
teve inúmeras oportunidades para me tocar, não fez isso. Fiquei
preocupada com a possibilidade de ele não estar interessado no
meu corpo. Passei todo o meu tempo treinando e perdi a
feminilidade que as outras garotas tinham.

Mas esse não era o caso. Rudeus ficou excitado ao me ver, e vê-
lo assim também me excitou.

Então, conectamos nossos corpos. Eu nunca tinha feito isso


antes, então no começo foi estranho, mas gradualmente comecei a
me sentir bem. Em comparação, Rudeus parecia estar gostando
desde o início. E ainda, no meio do caminho ele ficou fraco e mole,
como se fosse quebrar. Foi então que percebi, mais uma vez, que
Rudeus era menor do que eu. Ele era bem robusto lá embaixo, mas
era mais baixo e mais franzino do que eu.

Ele era tão jovem, mas sempre me protegia. Passou a viagem de


navio inteira cuidando de meu enjôo e se demonstrou extremamente
cansado quando desembarcamos. Comparado a isso, o que eu era?
Fiquei mais poderosa. Tinha me tornado bastante boa na esgrima.
Mas fiquei tão envolvida em minha imagem da magnificência de
Rudeus que ignorei o quão pequeno ele realmente era. No final,
usei minha ansiedade por perder minha família como desculpa para
me impor a ele e o tratei mal na busca por meu próprio desejo.

Direi novamente. Eu amava Rudeus. Mas não estava qualificada


para estar com ele. Não passaria de um fardo. Tínhamos nos
tornado uma família, mas não poderíamos ser mais do que isso.
Não podíamos ser marido e mulher. Mesmo se estivéssemos juntos,
eu continuaria simplesmente o atrapalhando.

Por enquanto, seria melhor passarmos algum tempo separados.


Este pensamento passou por minha cabeça. Enquanto eu estivesse
com ele, tiraria vantagem de sua bondade. As doces sensações da
noite que passamos juntos ainda permaneciam em meu corpo, tanto
que eu esperava por mais. Isso era característico da família Greyrat,
embora, inesperadamente, Rudeus pudesse não compartilhar tanto
dessas inclinações. Ele estava tentando o seu melhor para me
acompanhar, mas nesse ritmo, a ferocidade do meu desejo poderia
confundi-lo. Eu não podia fazer isso com ele.

Eu não tinha nenhuma intenção de fazer o que Alphonse sugeriu


e me casar com outro homem. Era tarde demais para me dizerem
para viver como filha de uma família nobre. Receber ordens de fazer
sacrifícios pelos cidadãos da região quando eu nem mesmo
conhecia esses cidadãos, não fazia sentido algum. Meu avô, meu
pai e minha mãe haviam morrido. A Região de Fittoa havia
desaparecido. Qual era o propósito?

Eu descartaria o nome Boreas. Mas continuaria sendo a neta de


Sauros e filha de meus pais, então continuaria vivendo com uma
vontade de ferro.

Vou ficar mais forte, me decidi.

Iria me separar de Rudeus e continuaria treinando. Não iria parar


até que pudesse ficar lado a lado com ele. Não precisava ser capaz
de derrotá-lo. Mas, no mínimo, queria me tornar uma mulher que
estivesse à sua altura. Uma que não teria pessoas sussurrando
pelas costas quando se aproximasse dele.

Eu não tinha a astúcia de Rudeus, então, em vez disso, sairia em


busca do poder. Ghislaine, Ruijerd e Gyes disseram que eu tinha
talento com a espada, e eu confiava em suas palavras. Seguiria a
recomendação de Ghislaine e iria para o Santuário a Espada. Lá,
me tornaria uma espadachim poderosa e precisa.

Uma espadachim (eu) e um mago (Rudeus). Tradicionalmente


seria o inverso, mas nós dois estávamos de acordo com isso. Nós
cresceríamos, ficaríamos mais fortes e voltaríamos a nos encontrar.
Então daríamos o próximo passo em nossa família e nos
tornaríamos marido e mulher. Eu teria seus filhos e viveríamos
felizes para sempre.

Então, como deveria dar meu adeus? Rudeus era uma pessoa
eloquente. Não importa o que eu tentasse dizer, ele poderia me
impedir. Poderia tentar partir comigo por ficar preocupado comigo
saindo sozinha por aí.

Será que devia deixar um recado…? Mas, me conhecendo,


provavelmente deixaria algum tipo de rastro para trás quando o
fizesse. Ele poderia usar isso para me rastrear, e acabaria virando
tudo uma bagunça. Rudeus precisava seguir em frente. Eu não
queria segurá-lo.

Em momentos como este, seria melhor agir como os


espadachins de todas as histórias e ir embora em silêncio. Mas
Rudeus estava sempre falando incessantemente sobre relatórios,
comunicação e discussão. Eu não queria que ele me odiasse.

Tudo certo. Deixaria algo breve. Então Rudeus com certeza


entenderia.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de Vista de Rudeus


Bom dia para todo mundo! Sim, bom dia a todos os virgens
mundo afora, é um ótimo dia! Dizem que só é aceitável que seja
virgem enquanto está no ensino fundamental, então como andam as
coisas por aí? Ahh, comigo? Eu não sou tudo isso. Ha ha, ainda
estou para fazer treze anos. Se convertermos isso em anos
escolares, isso significa que já estou no ginásio. Ha ha!

Além disso, olá a todos os não virgens! A partir de hoje, sou um


de vocês! Em outras palavras, agora sou um “normie”! Nunca pensei
que iria me juntar a vocês, mas espero ser bem-vindo, já que sou
apenas um iniciante. Como se costuma dizer, os ricos se preocupam
com o lucro e lutar só traz perdas, então sejamos amigos!

Eu tinha ouvido falar que um masturbador era muito melhor do


que o corpo de uma mulher real, mas isso era uma grande mentira.
Além disso, faltava várias coisas em um masturbador, como lábios
de verdade e uma língua. Visão, audição, tato, paladar, olfato –
havia algo no sexo que satisfazia todos os cinco sentidos.

No meu velho mundo existia um ditado: “Não aja como se fosse o


namorado dela só porque transaram uma vez.” Eu entendia o que
as pessoas queriam dizer com isso, mas – e realmente não tenho
certeza de como dizer isso – quando passei meus braços em volta
de sua cintura e a puxei para perto, ela deslizou os dela pelas
minhas costas e retribuiu o abraço. Eu podia ouvir sua respiração
irregular em meu ouvido, e quando olhei para seu rosto, nossos
olhos se encontraram. Se eu beijasse perto de sua boca, ela
colocaria a língua para fora, e isso era como dizer que estava tudo
bem.
Em momentos assim as pessoas realmente sentem que
pertencem uma a outra. Não é só fisicamente, mas mentalmente
satisfatório, sabe? Querer um ao outro e entregar-se também?
Aqueles com muito mais experiência provavelmente estão
pensando: “Não se empolgue só porque você fez isso uma vez.”
Mas eu não pude evitar. Queria agir como se fosse seu namorado.
Eris provavelmente também queria agir como se fosse minha
namorada.

Opa, foi mal por isso. Essas coisas provavelmente são


estimulantes demais para virgens. Que rude da minha parte. Com
base em meu próprio senso de tempo, fiquei com sede por quarenta
e sete anos, então estava um pouco animado quando finalmente
consegui o que queria. Ou será que seria melhor dizer que eu perdi
o que queria perder?

Há muito tempo, pensei em tentar manter a calma mesmo


enquanto perdia a virgindade. Opa! Parece que não consegui.
Minha nossa, já é tarde demais? Foi mal, tenho um encontro com
minha namorada, vamos conversar na cama nesta manhã. Tenho
certeza de que ainda estaremos sentindo todo o calor da noite.
Talvez até pudéssemos nos divertir de tarde também!

Vamos, Eris, já é de manhã! Acorde. Se você não acordar, vou te


pregar uma peça, pensei de brincadeira.

Mas ela não estava lá. O espaço na cama estava vazio. Bem, ela
tendia a acordar cedo. Que pena. Tanto para a tradicional conversa
de travesseiro matinal quanto para o subsequente intervalo para o
café.
— Ai!

Eu me levantei. Senti uma agradável exaustão na área dos


quadris. Era uma garantia de que o que aconteceu na noite anterior
não foi apenas um sonho. Uma sensação verdadeiramente
deliciosa.

Encontrei minha calça, mas minha cueca tinha sumido. Ah, bem.
Resolvi colocar minhas calças sem elas e, como a calcinha de Eris
estava ao lado da cama, a guardei no bolso. Então vesti uma
jaqueta e soltei um grande bocejo.

— Hmm, isso é bom. — Nunca antes tinha visto uma manhã tão
linda.

Só então, percebi que algo estava jogado no chão. Havia algo


vermelho jogado por toda parte.

— Hã…?

Era cabelo. Havia um monte de cabelo vermelho jogado no chão.

— O que… diabos é isso…? — Peguei uma mecha de cabelo e


tentei cheirá-la. Era o mesmo cheiro que tanto senti na noite
passada – o cheiro de Eris. — O qu…?

Confuso, olhei para a minha frente e vi um único pedaço de


papel. O agarrei e li as palavras rabiscadas nele.

Nós dois não estamos muito bem balanceados. Estou partindo.

Digeri essas palavras com cuidado.

Um segundo. Dois. Três.


Voei porta afora.

Procurei no quarto de Eris. Sua bagagem havia sumido. Saí e


entrei na sede, onde encontrei Alphonse.

— Ei, Senhor Alphonse, onde Eris está?!

— Ela partiu em uma viagem com Ghislaine.

— P-para onde?!

Alphonse me olhou com fria indiferença nos olhos. Então, disse


lentamente:

— Disseram-me para manter isso em segredo de você.

— Ah… então é isso…?

Hã?

Por quê?

Eu não entendi.

Hã??

Por que ela terminou comigo?

Não, ela me abandonou?

Ela me deixou para trás?

Hã?

Família…?

O que??
✦✦✦✦✦✦✦

Passei uma semana inteira sentado sem poder fazer nada,


totalmente estupefato. Ocasionalmente, Alphonse aparecia e me
importunava para conseguir um emprego ou coisa do tipo. Não
achei que tivesse sobrado nada na Região de Fittoa, mas vilarejos
pequenos e em desenvolvimento estavam gradualmente sendo
construídos a uma curta distância do campo de refugiados. As
pessoas estavam até começando a cultivar trigo.

Seguindo as instruções de Alphonse, usei magia da terra para


construir uma parede defensiva ao redor do acampamento. O rio
ameaçou inundar com a erosão do aterro, então criei um dique. O
progresso foi gradual, mas a restauração prosseguia. Pelo visto,
esforços sinceros na reconstrução começariam depois que um
grande número de pessoas de Millishion terminassem de migrar.

Eris escolheu a morte para si mesma.

A pessoa conhecida como Eris Boreas Greyrat não existia mais.


Em seu lugar, havia simplesmente Eris. Alphonse disse que sua
decisão causaria várias complicações, então qualquer anúncio
oficial de seu destino seria adiado por alguns anos. Ele
provavelmente estava agindo por ordem de Darius. Mas não era
como se eu me importasse.

Mesmo com Eris sumindo de repente, a expressão facial do


mordomo não mostrou nenhuma indicação de que estava
incomodado. Meio que brincando, eu disse a ele: “É uma pena que
Eris tenha partido”, mas Alphonse apenas se esquivou, dizendo:
“Apesar de tudo, tenho que trabalhar na recuperação da Região de
Fittoa.”

Eu precisava fazer mais perguntas para lidar melhor com a


situação. No entanto, com a partida de Eris, me senti mais ou
menos apático com todas as coisas. Se os nobres queriam lutar por
autoridade ou qualquer outra coisa, podiam fazer isso.

Pensei profundamente nos motivos para Eris ter ido embora.


Refleti sobre minhas palavras e ações naquela noite. No entanto,
não importa o quanto tentava voltar atrás, a única coisa que ficou
em minha mente foi a nossa relação sexual. Foi como se aquele
momento abafasse todos os outros detalhes daquela noite.

Será que meu desempenho tinha sido ruim? Só segui meus


desejos quando assumi a liderança, então será que ela tinha se
sentido desiludida com a forma como as coisas aconteceram? Não,
isso seria estranho. Fui eu que aceitei, mas foi ela quem me
convidou.

Não, não era isso. Seu carinho por mim tinha acabado. Ao
recordar os últimos três anos, percebi que nossa viagem estava
repleta de fracassos. No final chegamos ao nosso destino, mas isso
foi em maior parte graças a Ruijerd. Eris devia ter odiado a ideia de
ser seguida pelo responsável por todas aquelas falhas durante mais
dois anos. Foi por isso que cumpriu sua promessa antes da hora e
disse adeus.

Eu não fazia ideia de por que ela agia como se houvesse um


significado mais profundo por trás de suas ações, mas, no
momento, essa foi a conclusão a que cheguei. No final, eu não tinha
realmente crescido. Não era de se admirar que seus sentimentos
por mim tivessem desaparecido.

Foi então que de repente me lembrei que ainda tinha uma outra
missão.

— Ah, é mesmo. Preciso procurar por Zenith…

E foi assim que parti para a parte norte do Continente Central.


Interlúdio:
Os Dois Que Ela Encontrou
Roxy Migurdia chegou à cidade de Krasma, localizada na ponta
noroeste do Continente Demônio. Era uma cidade próspera, embora
não tão robusta quanto Rikarisu. Embora parecesse normal à
primeira vista, toda esta área era governada por um Rei Demônio.
Um com laços íntimos com os marinheiros, permitindo que a cidade
negociasse com eles. Com o povo do mar vieram os frutos do mar, e
com os demônios vieram especiarias fortes e perfumadas exclusivas
do Continente Demônio, e era na cidade de Krasma que as pessoas
podiam saborear a comida deliciosa que resultava da combinação.
A cidade ostentava uma gastronomia tão saborosa que
regularmente competia com Porto Vento pelo título de lugar no
Continente Demônio com a comida mais deliciosa.

— Esta comida cai muito bem com um pouco de álcool!

Desde que chegaram a esta cidade, Talhand estava de bom


humor. Krasma não tinha apenas o álcool amargo do Continente
Demônio, mas também o álcool doce do povo do mar. Ele, sendo
um anão, amava o álcool e, desde que a bebida resultasse em
diversão, não parecia se importar com o gosto ruim. Quando ia ao
bar, ele invariavelmente se dava bem com os rufiões de lá e bebia
álcool suficiente para encher uma banheira inteira. Havia pubs por
todas partes de Krasma, então juntando isso à boa comida, o anão
estava no paraíso.

Quanto a Roxy, a maga ainda tinha gostos infantis, apesar de


sua idade, então a culinária desta cidade não combinava com ela. A
comida e temperos do Continente Demônio, em geral, não eram de
seu grado. Ela gostava de coisas doces.

A graça salvadora era a especialidade do povo do mar, que era o


álcool doce. Isso foi um choque e tanto para ela, que só associava o
álcool com coisas amargas. O licor tinha uma fragrância delicada,
semelhante ao mar, e se alguém tomasse um gole, sentiria um
sabor indescritivelmente doce se espalhando pela boca. Aquilo
deixava um gostinho salgado no final, que só resultava em vontade
de comer alguns petiscos enquanto bebia.

— Mas que visão mais rara! Então você também está bebendo,
hein, Roxy?!

— Sim, estou.

— Você está de bom humor hoje, hein? — Talhand observou


Roxy beber e fazer seu próximo pedido com alegria. — Taverneiro,
traga-nos um barril! Vou te ensinar a beber como um anão!

Em tempos como esses, Roxy pensava que tinham sorte de as


coisas serem tão baratas no Continente Demônio. Poderiam beber e
comer o quanto quisessem e todo o custo ainda seria coberto por
uma moeda de cobre Asurano.

— Velhote, você está realmente tomando todas!

— Beba! Beba! Beba! Beba!

— Exatamente como se espera de um anão!

— Éé, vamos fazer uma disputa! Taberneiro, traga-me um barril


também!
A propósito, Elinalise já tinha desaparecido na noitada com um
homem com quem se deu bem. Este era normalmente o ponto em
que Roxy começava a se sentir um pouco alienada, mas antes que
percebesse, ela e a garota sentada ao seu lado estavam ambas
ovacionando a bebedeira de Talhand.

— Bwahaha! Mas que belo anão que você é! Não importa o


quanto os tempos mudem, os anões continuam os mesmos! Você
concorda comigo, né? — perguntou a garota.

— Sim, com certeza — respondeu Roxy.

— Ah, vamos nessa! Vá em frente, gulp! Gulp! Gulp!

— Gulp, gulp!

Talhand enfrentou seu parceiro de bebida descaradamente – um


demônio gigantesco – enquanto mantinha os braços ao redor do
barril e o virava. Seu corpo com certeza era grande, mas ninguém
poderia deixar de se perguntar para onde estava indo todo aquele
licor. Depois de esvaziar seu enorme barril, ele soltou um arroto
gutural. Com a mesma rapidez, a próxima bebida foi servida.

— Você está demorando com esse álcool!

— Ah, cala a boca! Estou sem estoque!

— Nesse caso, compre no pub ao lado!

— Aah, essa é uma boa ideia! Certo, vá lá e compre!

— Deixa comigo! Passem as moedas, rapazes, passem todas!


Esta noite vamos beber!
— Éééééééé!

Distribuíram uma bolsa para doações.

— Haha! Senhorita, você está sendo extremamente generosa


com bêbados lamentáveis como nós!

— Sim, é a minha diversão de hoje! — Roxy jogou uma moeda


de minério verde na bolsa enquanto fazia ela girar.

Vendo isso, o homem segurando as doações revelou um enorme


sorriso e riu enquanto abaixava a cabeça para a maga.

— Impressionante, senhorita! Você deve ser rica!

— Claro que sou! — Roxy estava de bom humor, sentindo-se


leve e solta enquanto acenava para ele de forma exagerada. Ela já
estava, na verdade, bêbada.

— Hahaha! Hoje também estou rica, então aqui, pegue! E vamos


fazer mais barulho! Hoje somos todos amigos! — A garota sentada
ao lado dela tirou uma moeda de ferro bruto do bolso e também a
jogou na bolsa de doações.

O homem que segurava a bolsa poderia ter latido para ela por ter
doado apenas uma ninharia, mas ele também estava bêbado.

— Heh heh! Valeu, princesa! Vô usar isso pra ter certeza de que
cês bebam até caí!

— Sim, vamos beber até vomitar tudo! — A garotinha acenou


com a cabeça presunçosamente enquanto o homem continuava
fazendo suas rondas, juntando o dinheiro das pessoas.
— Sim, é isso, isso é ótimo! Me faz lembrar dos velhos tempos!

Roxy não fazia ideia de quando foi que a garota sentou-se ao seu
lado. Quando percebeu, ela já estava lá, mastigando a comida que
Elinalise havia deixado para trás. Mas não se importou. Estava
bêbada.

— Bem, aqui, pegue outra.

— Aah, obrigado. Fico feliz por ver esta atmosfera tão boa, me
deixa feliz por ter vindo. Aqui, você, beba um pouco! — disse a
garota.

— Já estou bebendo — respondeu Roxy.

— Beba um pouco mais!

— Mais? Suponho que não tenho escolha. — Roxy obedeceu e


virou o copo. — Pwah!

— Tudo bem, mais um para a jovem senhorita aqui!

— Ah, obrigada.

Ela bateu o copo na mesa e algum cavalheiro jovial apareceu e o


encheu para ela. A maga realmente poderia beber este licor doce
para sempre.

— Você é incrível, uma verdadeira beberrona! Bem incrível para


alguém tão jovem!

— Não quero ouvir isso de você — gracejou Roxy, examinando a


garota. Ela usava botas que iam até os joelhos, shorts de couro
apertados e uma blusa de couro. A pele pálida de sua clavícula,
cintura, umbigo e coxas estava toda à mostra. Ela tinha cabelos
roxos volumosos dispostos em ondas e chifres de cabra. Era óbvio,
não importa como se olhasse para ela, que era mais jovem do que
Roxy.

— Heh heh, não precisa de adulação. Sei bem a minha idade!

Roxy deveria ter suspeitado que algo estava acontecendo, mas


ela não tinha os recursos para isso no momento. Já que estava
bêbada.

— Eu também sei a minha idade — disse ela. — Bem, beba.

— Ahh, obrigada. O álcool daqui com certeza ficou mais


saboroso nos últimos cem anos. Nos velhos tempos, o Continente
Demônio não tinha álcool doce como este.

— Este é o álcool do povo do mar — disse Roxy para ela. — O


Rei Demônio daqui fechou um acordo com eles.

— Nossa! Bagura Hagura, seu bastardo, você escondeu isso de


mim! Eu não vou te perdoar por isso!

— Deixa pra lá — murmurou Roxy — hoje estamos todos em


igualdade aqui, certo? Igualdade!

— Ahh, isso mesmo, aqui somos todos iguais!

O Rei Demônio Bagura Hagura era o governante desta região.


Ele era um demônio corpulento com cara de porco, considerado a
entidade com mais conhecimento no Continente Demônio quando
se tratava de comida e álcool. Politicamente, era um moderado, mas
ainda participou da linha de frente durante a Guerra de Laplace.
Quando ele estava em terras humanas, roubou comida e bebida de
casa após casa, ganhando o título de Rei Saqueador.

— Aah, ele caiu!

— Gwaaahah, quem é o próximo? Vou enfrentar qualquer um! Se


quiserem, posso enfrentar até dois de uma vez!!

Em algum momento, Talhand tirou a camiseta e se empoleirou


em cima de uma mesa. Ele estava com o cotovelo equilibrado em
cima de um barril e exalava um ar de superioridade.

— Alguém? Ninguém?

A garota ao lado de Roxy falou:

— Certo, bora lá!

— Qual foi, garota, acha que consegue ganhar de mim? Talvez


você devesse tentar daqui uns vinte anos.

— Ha ha ha! Anão tolo! Já vivi trezentos anos! Apenas vinte anos


não mudariam nada!

— Ah, sério? Então foi mal. Siga em frente e venha até mim!

— Ah, mas… primeiro, gostaria que você dissesse seu nome!


Vou me lembrar de quem foi tolo o suficiente para me desafiar!

— Talhand do Arrojado Grande Pico da Montanha!

— Então tudo bem! Quem vai derrotar você serei eu, o Imperador
Demônio dos Olhos Demoníacos, Kishirika Kishirisu!

E então, a batalha de Kishirika e Talhand começou. O álcool


extra que compraram logo acabou e tiveram que juntar mais fundos
por uma segunda e uma terceira vez. Roxy assumiu a
responsabilidade de doar cinco moedas de minério verde inteiras,
fazendo com que o ajudante do pub corresse para conseguir mais
bebida. Apareceram homens musculosos carregando grandes
quantidades de bebida, que foi dividida entre todos do bar enquanto
Talhand e Kishirika competiam. Roxy seria a mediadora. Ela não
tinha ideia de como ou o que deveria mediar, mas sentou-se entre
eles e tomou um gole de sua bebida enquanto aceitava o papel de
contar o quanto tomavam.

— Este é o número quarenta — anunciou ela.

Deixando Talhand de lado, cujos hábitos de bebedeira


combinavam com seu sangue de anão, onde Kishirika, a garotinha
que se autoproclamou um Imperador Demônio, estava enfiando
tanto álcool? Ninguém parecia se importar, já que estavam todos
bêbados. E então chegou o momento decisivo.

— Mrgh… blegh… — Poucos segundos depois de Talhand soltar


aqueles ruídos estranhos, o álcool disparou de dentro dele como
uma fonte de água e com a pressão de um foguete. Então ele
desabou, segurando o estômago, que agora parecia um dos barris
dos quais esteve bebendo. O anão caiu do topo da mesa no chão
com um baque ruidoso, com álcool escorrendo de sua boca.

— Eu ganhei!

— Whooooa! Incrível! Você derrotou um anão em uma bebedeira!

— Claro, afinal, meu nome é Kishirika. O Grande Imperador do


Mundo Demônio, Kishirika Kishirisu! Agora, digam meu nome!
— Kishirika! Kishirika! Kishirika!

— Quem é a maior do mundo?!

— Kishirika! Kishirika! Kishirika!

Um coro de cânticos eclodiu quando Kishirika foi anunciada a


vitoriosa, melhorando ainda mais o seu humor.

— Ahahahahaha! Hahahaha!

— É isso, é isso!

— Tira! Tira!

Roxy não conseguiu se lembrar de muita coisa depois disso. Ela


sabia que precisava vingar seu camarada caído, mas de repente
ficou tonta e a inconsciência a dominou. A última coisa que viu foi
Kishirika subindo no balcão e dançando nua.

Na manhã seguinte, Roxy abriu os olhos.

— Urgh…

Sua cabeça latejava e seu rosto formou uma careta quando


sentiu o fedor de álcool em seu próprio hálito. Ela imediatamente
usou um feitiço feito sob medida para ressacas e para remover as
toxinas de seu corpo, então usou um feitiço de cura em sua cabeça.
Quando olhou em volta, percebeu que estava em um pub. Parecia
que tinha acontecido uma briga; a mesa estava quebrada e barris
vazios e garrafas estilhaçadas estavam espalhados por todos
cantos.
— Urgh, eu realmente bebi demais. — Sua memória estava
confusa, mas ela se lembrava de ter bebido muito.

A maga olhou para o lado para ver um Talhand, seminu, deitado


lá com apenas o branco dos olhos à mostra. Por um momento, Roxy
pensou que ele poderia estar morto, mas um anão nunca
conseguiria beber até morrer. Além disso, Talhand costumava dizer
que seu sonho era se afogar até a morte no álcool, então, mesmo
se tivesse morrido, teria sido a morte com que sonhou.

Roxy mais uma vez varreu o local com o olhar. Havia montes de
corpos por toda parte, todos espalhados e gemendo. Entre eles
estava o homem que havia solicitado dinheiro para mais bebidas.
Todos tinham claramente se embriagado até esquecer de tudo, e
agora estavam sofrendo com a ressaca.

É isso que vocês ganham por beber tanto, sendo que não
conseguem nem usar magia de cura, pensou Roxy.

Entre o mar de formas inconscientes, apenas duas pessoas


estavam de pé – um taberneiro zangado e uma Kishirika
desanimada.

— Compensação, estou pedindo compensação. Não posso


vender nada com toda a destruição que todos vocês causaram.

— Sim, uh, mas…

— O quê, você não pode pagar? Não foi você quem disse que
cuidaria de todo mundo?

— Eu disse isso, mas pensei que o que eu já paguei seria


suficiente…
— Então você não tem dinheiro, tem?

— Não, uh, desculpe, nem um tostão furado.

— Então não tenho escolha a não ser te vender no mercado de


escravos.

— O quê? Você ousaria me vender…?! Espera, espera, vou


entrar em contato com Hagura, apenas espere!

— Não vou esperar. Você só está dizendo isso para fugir.

Roxy deixou escapar um suspiro e enfiou a mão no bolso. Ela fez


uma careta quando pegou sua bolsa de moedas e viu o estado dela.
Tinha doado uma grande parte de seus fundos na noite anterior,
completamente bêbada.

Não, quem realmente bebeu tudo isso foi Talhand, pensou ela.
Roxy voltou-se para o anão inconsciente e pegou sua bolsa de
moedas. Ela olhou para dentro, encontrou uma quantidade decente
lá e colocou-se de pé. Havia um cheiro azedo vindo de seu ombro,
fazendo que ela franzisse o rosto enquanto se aproximava do
taberneiro.

— Aqui está o seu dinheiro.

— Hm?

Roxy pegou seis moedas de minério esmeralda e as colocou nas


mãos do taverneiro.

— Isso não é o suficiente.


— Nós compramos toda a sua bebida antes de começarmos a
pedir mais. Você já lucrou o suficiente, não acha?

— Ah… bem, acho que sim — disse ele enquanto girava nos
calcanhares e voltava para a área da cozinha.

Roxy deixou escapar outro suspiro enquanto jogava a bolsa de


moedas na barriga de Talhand.

— Ooh… ooooh… sinto muito, sinto muito! — Kishirika estava


tremendo diante do olhar de Roxy.

A maga olhou para ela, lembrando-se do que tinha ouvido de seu


antigo chefe de aldeia sobre o Grande Imperador do Mundo
Demônio. Ela era um pouco diferente do que havia imaginado, mas
suas peculiaridades se alinhavam. Se fosse de uma tribo de
demônios com uma longa vida, fazia sentido que sua aparência
física não combinasse com sua idade. E ela também parecia estar
em boas relações com o Rei Demônio da área.

— Desculpe-me, apenas para confirmar; não estou enganada em


presumir que você é o Grande Imperador do Mundo Demônio, a
própria Kishirika Kishirisu, não é?

— Hm? Ah, isso mesmo! Nos últimos tempos parece que


ninguém acredita em mim! E seu nome é?

— Perdão pela apresentação tardia — disse Roxy. — Sou Roxy,


da tribo Migurd da Região de Biegoya.

Kishirika soltou um “Oooh” quando ouviu o nome de Roxy.

— Roxy? Ahh, eu te conheço! Você é a mestra do Rudeus!


— Você conhece o Rudy…?

— Acontece que me encontrei com ele em Porto Vento. Aquele


garoto era bem interessante!

— N-não diga… — Roxy se perguntou, desconfiada, o que


Rudeus havia dito sobre ela, mas estava com muito medo de
questionar.

— Hm, Rudeus me ajudou em um problema, e você se mostrou


uma ótima professora. Você também me ajudou, então vamos ver…
por que não te dou uma recompensa?

O coração de Roxy saltou ao ouvir a palavra recompensa. O


Grande Imperador do Mundo Demônio era famoso por conceder
olhos demoníacos às pessoas. Foi precisamente por causa desse
poder que ela foi chamada de Imperador em vez de Rei, e foi essa
habilidade que a deu força militar para iniciar a Grande Guerra
Demônio-Humano.

O que deu a Roxy uma ideia.

— Um, Sua Grandeza, você é capaz de procurar pessoas


desaparecidas com seus olhos demoníacos?

— Sim, eu sou. Não há qualquer pessoa neste mundo que eu


não consiga encontrar — gabou-se Kishirika.

— Tudo bem… então eu gostaria que você procurasse por


Rudeus e sua família. Estão todos atualmente desaparecidos —
disse Roxy sem qualquer hesitação. Renunciar um olho demoníaco
de Kishirika era lamentável, mas ela ouviu que o Olho que Tudo Vê
do Imperador Demônio poderia encontrar qualquer coisa e qualquer
pessoa, em qualquer lugar do mundo.

— Oho, que admirável de sua parte, usar o seu único desejo pelo
bem de outro! Se eu estivesse na minha posição de costume,
poderia te conceder a posição de Rei Demônio!

— Não, eu não preciso disso.

— Ah, entendo, humilde demais para isso. Bem, então… — O


olho de Kishirika girou, mudando de cor. Ela esticou o pescoço para
um lado e para o outro, cantarolando para si mesma enquanto
balançava a cabeça. — Rudeus está na parte norte do Continente
Central. Ele está vestindo roupas leves e correndo. Talvez esteja
treinando.

Roxy balançou a cabeça. Parecia que, assim como a mensagem


deixada havia solicitado, ele iria fazer uma busca na parte norte do
Continente Central. O garoto poderia ter ido direto de Millishion para
Begaritt, mas provavelmente queria ver o estado de sua casa antes
de partir.

— Seu pai está em Millishion, junto com uma empregada. Hmm,


a empregada aparentemente se chama Lilia… e estão morando no
mesmo prédio, com suas duas filhas.

— Oh — Roxy deixou escapar um suspiro. Ela tinha ouvido falar


que Lilia e Aisha ainda estavam desaparecidas, mas aparentemente
foram encontradas e estavam seguras. Talvez Rudeus as tivesse
encontrado no Continente Demônio e as escoltado para casa.
— A mãe dele está… espera aí. — Kishirika cantarolou e contraiu
o rosto, apertando os olhos. — Ela está no Continente Begaritt, na
Cidade Labirinto de Rapan… pelo que parece.

O rosto de Roxy se iluminou. Ficava longe, mas pelo menos ela


confirmou que estavam todos vivos. Como esperado da família
Greyrat – a sorte deles era incrível.

— No entanto… algo está um pouco estranho. — O rosto de


Kishirika se contraiu e seus olhos se abriram lentamente.

— Há algum tipo de problema?

— Não… hmm, não consigo ver.

— Você não consegue ver? Mesmo com o seu olho, Sua


Grandeza?

— Ainda não estou com minhas forças totais — explicou


Kishirika. — Bem, você vai entender se ver por si mesma.
— Isso é preocupante. Se algo estiver errado, eu preciso saber
os detalhes. — Roxy a pressionou por uma explicação. Em suas
últimas aventuras, ela viu tragédias que se abateram sobre os
refugiados. Era desconcertante que até mesmo o Grande Imperador
do Mundo Demônio estivesse tendo problemas para se concentrar
em Zenith com seus olhos demoníacos.

— Bem… reclame se quiser, mas não consigo ver o que não


consigo ver. Ahh, é mesmo. Isso pode ser uma surpresa, mas ela
pode estar no meio de um labirinto. É uma cidade labirinto, e eu
nunca estive lá, então não posso dizer com certeza.

— Você não pode ver dentro do labirinto? — perguntou Roxy.

— Não. O labirinto de Begaritt está transbordando com uma alta


concentração de mana.

Roxy começou a pensar. No passado, Zenith chegou a entrar em


masmorras com Paul, Elinalise e Talhand. Ao viajar com eles pôde
ter uma noção de sua força. No entanto, por que ainda não havia
entrado em contato? Passaram-se três anos desde o Incidente de
Deslocamento.

— De qualquer forma, ela está viva, certo?

— De fato, não há dúvida quanto a isso — assegurou Kishirika.

Roxy decidiu acreditar nessas palavras. Seja qual fosse o motivo,


teriam que mergulhar naquele labirinto.

Ela abaixou a cabeça.

— Entendo. Muito obrigada.


— Não se preocupe. É uma demonstração de gratidão pela ajuda
que você forneceu. — Kishirika deu um aceno exagerado com a
cabeça e, ainda um pouco instável em seus pés, se despediu do
pub.

✦✦✦✦✦✦✦

Naquela tarde, Talhand acordou e voltou a beber como se nada


tivesse acontecido, e Elinalise voltou com chupões no pescoço.
Roxy convocou os dois para uma reunião.

— Foi boa sorte ter encontrado o Grande Imperador do Mundo


Demônio. — Quando ela ouviu sobre Kishirika, Elinalise apenas riu
baixinho. Roxy não achou que fosse um evento tão significativo,
talvez porque se conheceram enquanto estavam bêbadas em um
pub. Ou talvez fosse a falta de dignidade de Kishirika.

— Deixando isso de lado, significa que nossa jornada acabou,


certo? — falou Talhand, parecendo um pouco relutante em ver o fim
de sua missão.

Levariam um ano para chegar ao Continente Millis a partir de


onde estavam, mas era verdade que seu objetivo havia sido
cumprido. Confirmaram que toda a família de Paul estava viva, e até
sabiam onde os dois últimos estavam localizados. Estava tudo
acabado.

— O que você vai fazer, Roxy?

— Vou voltar para Millishion e falar com Paul sobre o que


descobri — disse ela.
— Então vamos nos separar de você em algum lugar pelo
caminho — respondeu Elinalise.

Parecia que ela e Talhand não queriam se encontrar com Paul. A


razão aparentemente era a grande briga que tiveram quando ele
partiu, mas não contariam a ela exatamente o que tinha acontecido.
Roxy também não estava particularmente interessada, então não foi
tão persistente em perguntar.

— Hmm, mas Rudeus está bem longe e sozinho — comentou


Talhand, pressionando a mão no queixo.

Isso levou Roxy a repentinamente perceber algo. Ela partiria em


direção a Millishion, e então, provavelmente, viajaria com Paul em
direção ao Continente Begaritt. Se fizesse isso, Rudeus seria
deixado sozinho, sem saber das circunstâncias, procurando sozinho
na parte norte do Continente Central.

— Precisamos encontrar uma maneira de avisá-lo — disse


Elinalise, preocupada.

Mas como? A parte norte do Continente Central parecia próxima


em um mapa, mas na realidade ficava muito mais longe. Roxy
começou a pensar. Rudeus era excepcional, mas ainda era jovem.
Seria cruel deixá-lo lutar em vão durante um período tão vulnerável
de sua vida. Quer ele se reencontrasse com sua família ou partisse
sozinho, ela pelo menos queria dizer que não precisava mais
procurar.

— E é aí que eu entro… du-du-du-dun!

— E eu! Dun-du-dun!
De repente, dois intrusos apareceram do nada.

— Ouvi a conversa toda!

— Pura espionagem!

O primeiro a irromper pela porta foi um homem de boa


constituição. Um único olhar para ele foi o suficiente para indicar
que se tratava de um demônio, já que tinha pele parecida com
obsidiana e seis braços. Os de cima estavam dobrados sobre o
peito, os do meio estavam fazendo revólveres de dedo apontados
para Roxy, e os de baixo estavam descansando em sua cintura. Seu
cabelo, que descia até a cintura, era roxo. Empoleirado em seu
ombro, reclinada e descansando, estava o Grande Imperador do
Mundo Demônio.

— Vamos lá! Eu sou Kishirika Kishirisu! As pessoas me chamam


de… o Grande! Imperador! Do! Mundo! Demônio!

— E eu sou o noivo dela, o Rei Demônio Badigadi!

Os outros três olharam, estupefatos. A primeira a reagir foi


Elinalise.

— Um, acho que nos vimos pela última vez nesta manhã, senhor.

— Ahahaha, tive uma noite incrível com você, senhorita! — Badi


fechou o punho e inseriu o polegar entre o indicador e o dedo médio
enquanto respondia.

Roxy sentiu que estava começando a suar frio quando


perguntou:

— V-vocês dois se conhecem?


— Um, basicamente, acho que sim…?

Pelo visto, Elinalise havia saído do bar em que Roxy estava e ido
com um homem para outro durante a noite anterior. Lá, o homem
tinha deixado Elinalise bêbada, e ela toda feliz retribuiu o favor. A
próxima coisa que soube foi que ela estava acordando nos braços
negros do homem diante deles. Depois disso, os dois fizeram de
novo e de novo durante a noite toda.

— Hã? Mas agora mesmo, você disse noivo… o quê? Ah,


suponho que devemos nos apresentar primeiro? — Aturdida, os
olhos de Roxy se moveram para frente e para trás, mas ela
finalmente decidiu abaixar a cabeça.

— Hm, Roxy, levante a cabeça. Já que o Badi é tão popular, esta


é uma ocorrência quase diária.

— Hm, parece que é fisicamente impossível para mim colocar em


Kishirika, então não tenho outra escolha.

As palavras foram ditas de maneira tão despreocupada que o


cérebro de Roxy lutou para digerir o significado. Por cortesia de
Elinalise, ela ganhou um conhecimento superficial sobre esses
assuntos, mas as relações adúlteras entre sua companheira e um
homem que se chamava de Rei Demônio, o noivo da Grande
Imperador do Mundo Demônio, iam além de sua compreensão.

— Contudo! Deixando tudo isso de lado!

— De fato; foi apenas uma aventura passageira, de qualquer


forma!
Roxy conhecia o Rei Demônio Badigadi, ou o Rei Demônio
Imortal Badigadi, como era conhecido. Ele era o Rei Demônio que
governava a região de Biegoya, irmão mais novo do Rei Demônio
Imortal Atofe. Atofe alinhou-se com os moderados durante a guerra
e lutou contra o Deus Demônio Laplace no Castelo de Kishirika,
onde foi derrotado. Seu paradeiro atual era desconhecido, mas ele
era uma figura venerada.

— Roxy, tenho uma dívida com Rudeus. Se ele se perdeu, então


vou lhe emprestar a minha força!

— Embora ela vá pedir emprestada minha força para fazer isso!

Antes que Roxy, tão confusa como estava, pudesse responder,


Talhand se recuperou. Ele acariciou sua espessa barba, dirigindo
um olhar interrogativo para Kishirika.

— Tem certeza disso?

— Ooh, você é o anão de ontem! Sim, tenho certeza, certo,


Badi? — Kishirika bateu na cabeça dele e o Rei Demônio assentiu.

— Sim, estou curioso sobre esse pirralho chamado Rudeus, a


quem Kishirika continua elogiando a cada chance que tem! Quero
ver com meus próprios olhos o quão grande ele realmente é!

— O que é isso? Você está com ciúmes, querido? — murmurou


Kishirika.

— Claro que estou, querida — respondeu Badi, por sua vez.

— Tsk, você ainda é uma criança. Eu amo você e só você.


— Heh, não vou deixar isso me tornar complacente. Vou
esmagar qualquer rival que apareça.

E você esmagar Rudeus seria ruim, pensou Roxy consigo


mesma, mas ela tinha a sensação de que não a ouviriam.

— Heh heh heh.

— Hahaha.

— Ahahahaha! Hahahah! Haha… urk!

— Hahahaha! Ahahaha! Ha… você está bem?

A conversa avançou rapidamente, antes que Roxy pudesse


começar a entender.

✦✦✦✦✦✦✦

Era de conhecimento comum neste mundo que os mares eram


governados pelo povo do mar, que por sua vez controlava a
habilidade daqueles que viviam na terra de cruzá-los. Essa
configuração foi resultado da discórdia que eclodiu no processo da
Guerra de Laplace chegando ao fim, mas por enquanto vamos
deixar isso de lado.

O Rei Demônio Bagura Hagura e o Rei do Povo do Mar eram


amigos bem próximos, e o Rei do Povo do Mar permitia a passagem
de seus amigos em segredo. Enquanto isso, o Rei Demônio
Badigadi e o Rei Demônio Bagura Hagura também eram velhos
conhecidos. Fazendo uso dessa conexão, seu grupo poderia
contornar a rota que os levaria através do Continente Divino e seguir
direto para o Continente Central.
No entanto, se Roxy fosse com eles, o relatório para Millishion
seria adiado. Alguém teria que ir até Millishion para atualizar Paul, e
Roxy não poderia fazer isso sozinha. O Continente Demônio era
muito perigoso, mesmo para uma maga excepcional como ela. Seu
julgamento era aguçado e seus encantamentos e feitiços rápidos,
mas ela ainda tinha que dormir à noite.

— Definitivamente me recuso. Não quero ver o rosto de Paul —


disse Elinalise.

— Sim, eu também — Talhand entrou na conversa.

— Tudo bem. Então eu vou. — Já que os dois estavam sendo


egoístas, Roxy iria primeiro para Millishion. Pessoalmente, teria
preferido ir até Rudeus, mas não tinha outra escolha.

Só precisava de mais uma pessoa para ir com ela. Os dois


trocaram olhares e, logo, Talhand desistiu.

— Acho que serei eu. Para falar a verdade, não estou ansioso
para voltar a andar em um desses navios.

— Minhas condolências — disse Elinalise.

Os ombros de Talhand cederam. Roxy não viu porque os dois


não podiam simplesmente ir para Millishion e informar Paul por
carta, mas aparentemente tinham seus motivos, então ela não
pensou muito sobre isso.

E, assim, o grupo de Roxy se dividiu em dois. Roxy e Talhand


traçariam seu caminho de volta a Millishion. Elinalise viajaria com o
Grande Imperador do Mundo Demônio Kishirika Kishirisu e o Rei
Demônio Badigadi para a parte norte do Continente Central. Iria
demorar bastante até que o navio deles partisse, então Roxy decidiu
partir primeiro.

— Senhorita Elinalise, obrigada por tudo.

— Digo o mesmo, Roxy. — As duas trocaram um aperto de mão


firme. — Se você encontrar um bom homem, é melhor não deixá-lo
escapar. Você tem que usar os lábios superiores e inferiores para
segurá-lo com força.

— Você vai começar com isso de novo?

— Não, não, apenas me escute. Se há alguém de quem você


realmente gosta, dê tudo para essa pessoa. O amor é algo que
pode crescer com o tempo.

Talhand soltou um suspiro diante das palavras de Elinalise.

— Você disse a mesma coisa para Zenith, não foi?

— Sim. Foi assim que ela conseguiu o Paul. Meu ensino é


perfeito.

Então é isso, pensou Roxy enquanto ouvia. Ao seu ver, Paul e


Zenith pareciam ser o casal ideal. Se foi o conselho de Elinalise que
os uniu, então era um conselho que valia a pena ouvir.

— Muito bem, Senhorita Elinalise. Se eu encontrar essa pessoa,


vou “dar tudo para ela”.

— É claro. Com certeza direi a Rudeus como você se sentia


infeliz à noite, se mexendo nos lençóis enquanto cuidava de tudo
sozinha.
— Espera… por que você sabe sobre isso? E, por favor, não diga
isso. Eu não estava pensando no Rudy enquanto fazia aquilo.

— É claro, é claro.

Naquele momento Roxy percebeu algo. Se Elinalise começasse


sua busca, ela provavelmente encontraria Rudeus dentro de cerca
de um ano. Ele já deveria ter uns treze ou quatorze anos. Nessa
idade, não seria incomum pensar que Elinalise pudesse estar
interessada nele. Isso meio que a incomodou.

— Você ficou quieta de repente. Qual é o problema?

— Não, é só que… Se Rudy tiver se tornado um bom homem,


você irá atrás dele?

Roxy tentou soar o mais casual possível ao perguntar e, quando


o fez, Elinalise soltou um suspiro de desgosto.

— Ha! Eu não tenho o menor desejo de me tornar a nora do


Paul. — Ela parecia genuinamente enojada.

Sentindo-se mais tranquila, Roxy apenas disse:

— Ah, tá bom. — E em seguida: — Bem, é melhor


continuarmos.

— Até mais, Roxy. Tenha uma boa viagem.

— Sim, você também, Senhorita Elinalise.

Elinalise deu uma olhada em Talhand. Ela pairou sobre o anão


baixo e atarracado, olhando-o como se ele fosse algum tipo de
inseto.
— Talhand, por favor, vá embora e morra em uma vala por algum
lugar.

Talhand parecia igualmente aborrecido ao vê-la e cuspiu no chão.

— Devolvo essas palavras para você

Assistindo isso, Roxy se lembrou mais uma vez de que os dois


eram, de alguma forma, próximos.

Mais tarde, Elinalise embarcou em seu próprio navio. Era um


navio que nos tempos antigos pertencia ao povo do mar. Ele era
puxado por criaturas marinhas, fazendo com que os navios feitos
por humanos parecessem miseráveis se comparados, mas os
navios humanos eram, na verdade, mais rápidos e seguros.

Elinalise subiu a rampa ao lado de Badigadi. Atrás deles soou a


risada ecoante de Kishirika.

— Hahahaha! Pois bem, vamos nos ver de novo, Badi! Quando


você quiser me ver novamente, volte para o Continente Demônio!

— De fato, e mantenha sua boa saúde, minha prometida!


Eventualmente vamos nos reencontrar! Ahahaha!

— Quem sabe quantos anos vai demorar até a próxima vez!


Bwaahaha!

O Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika Kishirisu, não


embarcou no navio. Quando Elinalise viu isso, inclinou a cabeça.

— Hm? Ela não vai vir conosco?

— Mm. Kishirika não pode deixar o Continente Demônio.


— Ah, uma maldição?

— Algo desse tipo.

Se assim fosse, Elinalise teria preferido que Kishirika


acompanhasse Roxy e Talhand. Sua segurança seria assegurada
com o Grande Imperador do Mundo Demônio por perto. Então,
novamente – ela pensou em como seria para Roxy ter alguém como
Kishirika seguindo-a por aí e mudou de ideia.

Enquanto isso, a jornada de Roxy Migurdia continuou.


Capítulo Extra:
Distorcido, Porém Inalterado
Havia vastas extensões irrigadas de arrozais no Reino Sanakia.
Uma carruagem seguia lentamente por um caminho que separava
os campos, protegida por vários cavaleiros. Eles a acompanhavam
com expressões despreocupadas, e a carruagem não parecia cara,
então seria seguro assumir que ninguém importante estaria dentro
dela.

E, de fato, havia apenas três mulheres dentro dela. Uma era a


uma cavaleira do Reino Shirone, conhecida como Ginger York. Ela
se sentou ao lado da entrada, ouvindo a conversa das outras duas.

— O Irmão Mestre do Canil é realmente encantador. — Quem


falava com emoção era a jovem garota vestindo uma roupa de
empregada grande demais para seu corpo, Aisha. — Se algum dia
eu casar, definitivamente tem que ser com alguém daquele jeito.
Certo, Mãe?

— S-sim, com certeza. — Sentada ao lado oposto estava uma


mulher idêntica a Aisha, porém mais velha e usando óculos. Seu
nome era Lilia. Qualquer um que olhasse além dos óculos veria um
olhar indiferente, dando uma impressão fria e distante. Porém, seu
olhar estava incerto e indeciso.

— Foi muito incrível quando ele me salvou, sabia? Ele apontou o


dedo para o chão desse jeito, e vuuuushh, um buraco se abriu, e
então nós voamos pelo ar. Será que aquilo também é uma magia?
Foi incrível, o Irmão Mestre do Canil conseguia lançar tudo sem
encantamento algum. Igualzinho à magia dos contos de fadas.
— Sim, de fato, é incrível… Ser capaz de lançar feitiços sem
encantamentos.

Já fazia algum tempo que Aisha estava elogiando o Mestre do


Canil. Lilia ficou um pouco perplexa. No começo, pensou que sua
filha tinha percebido que aquele garoto era na verdade seu irmão
mais velho, Rudeus, mas estava começando a parecer que ela
estava usando o “Irmão” de uma maneira carinhosa para falar de
alguém mais velho.

— Além do que, aquela foi minha primeira vez. Eu estava tão


assustada que até me molhei, e mesmo assim, não fiquei
envergonhada, já que ele era o único comigo. Não liguei quando ele
teve que me ajudar a me trocar… Talvez isso seja… amor? — Aisha
juntou suas mãos como se estivesse orando, seus olhos brilhavam.

Vendo sua filha desse jeito, Lilia hesitou. Ela deveria dizer que o
Mestre do Canil na verdade era Rudeus? Apenas há alguns dias,
Aisha havia dito que o odiava. Era necessário admitir, a abordagem
de Lilia não era a melhor. Ela sempre dizia o quão incrível e
maravilhoso Rudeus era, querendo que sua filha algum dia o
servisse, mas Aisha era excepcionalmente inteligente, e, através
das afirmações exageradas de sua mãe, viu que seu irmão era
perfeito além da compreensão. A garota caçou as falhas que Lilia
tentava encobrir, e então voltou sua atenção para elas.

Pessoas tendem a atribuir grande importância para coisas que


descobrem, mais do que a coisas que escutam de outras pessoas.
Em alguns anos, Aisha perceberia que aquilo que sua mãe tinha dito
era tão crível quanto o que ela descobriu sozinha, mas ainda era
muito jovem para isso. A garota pensava que sua mãe era uma
mentirosa e que Rudeus era na verdade um inútil.

Lilia reconheceu que isso era parcialmente sua culpa. Ela poderia
ter encontrado jeitos melhores de falar sobre Rudeus para Aisha,
por exemplo, não falando continuamente sobre ele como um objeto
de veneração. Mas admitir seus erros a esta altura não mudaria
nada, a garota já tinha sua opinião sobre Rudeus formada. Em
algum ponto em sua estadia no Reino Shirone, Lilia desistiu de
mudar sua mente. Contudo, por alguma ironia do destino, Aisha
agora se derretia em elogios ao seu irmão, o Mestre do Canil.

Lilia parou para pensar. Se ela revelasse para sua filha que seu
amado Mestre do Canil era na verdade Rudeus, o ódio por seu
irmão não desapareceria? Não iria obedientemente servi-lo, assim
como Lilia desejava?

Então, novamente, Aisha sempre odiou mentiras e falsidades. E


Rudeus tinha escondido sua verdadeira identidade dela o tempo
inteiro. Lilia não tinha ideia do porque ele fez isso, mas ela era uma
garota esperta que viu através dos esforços dos adultos de censurar
as coisas. Revelar que o Mestre do Canil era na verdade Rudeus, a
essa altura do campeonato, poderia servir apenas para que a garota
o odiasse ainda mais. Aisha poderia concluir: “Viu, ele é um
mentiroso” ou “Eu sabia, meu irmão é um pervertido” ou até mesmo
“Ele queria tanto lavar minha calcinha que chegou ao ponto de
mentir”. Lilia preferia evitar isso.

— Eiiii, Mãããããe. Se meu irmão estiver na verdade morto, eu


gostaria de servir o Mestre do Canil!
—…

Normalmente, nessa situação, Lilia iria acertar a cabeça de Aisha


e repreendê-la por dizer essas coisas sinistras. Mas, dessa vez, não
poderia fazer nada além de revelar um amargo sorriso enquanto um
suor frio escorria pelo seu rosto.

Ela deveria dizer para Aisha que o Mestre do Canil era Rudeus
ou não? Se jogasse as cartas certas, Aisha começaria a amar seu
irmão. Mas se ela falhasse, a garotinha iria odiá-lo ainda mais. A
última opção era inaceitável, mas Lilia não tinha confiança de que
poderia persuadir sua filha brilhante. O que deveria fazer?

Incapaz de chegar a uma resposta, forçou um sorriso enquanto


ouvia Aisha falando.

— Eu faria meu melhor se fosse servir o Mestre do Canil. Mas


então, um dia, quando eu estivesse com minha guarda baixa e me
trocando, completamente indefesa, ele viria e me pressionaria
contra a parede, completamente excitado, e me tornaria a sua
amante. Aquilo iria marcar o começo de nossa rotina diária de
obscenidade e amor. Para mim, ao menos no começo, não passaria
de um relacionamento físico, mas então um dia ele viria pedir minha
mão, dizendo: “Eu também quero seu coração”, e… Hee hee!

—…

Sem o conhecimento de Lilia, que agonizava com sua indecisão,


Aisha estava rindo para si mesma. Ela já tinha percebido tudo, sabia
que o Mestre do Canil era na verdade seu irmão, e mesmo que ela
não fosse perfeita, era tão excepcional quanto sua mãe disse.
Estava apenas usando essa oportunidade para perturbar Lilia.
Para ser bem sincero, Aisha não tinha o melhor dos
relacionamentos com sua mãe. Lilia sempre esteve controlando-a,
dizendo para fazer isso ou aquilo desde que era pequena,
recusando-se a dar qualquer explicação quando questionada. E,
pelo visto, o treinamento rigoroso que sua mãe a submetia era tudo
para que um dia pudesse servir seu irmão mais velho. Não era de
se admirar que a garota ficou de saco cheio com isso… Até ver seu
irmão em pessoa. Ela testemunhou sua capacidade de reagir de
forma inteligente ao ambiente usando magia não verbal para
conduzir a fuga, assim como sua coragem de invadir o Palácio Real
de Shirone para salvar sua mãe, e sua bondade após ela se urinar e
ele ajudá-la sem nenhum nojo. Tudo isso foi o suficiente para deixá-
la tonta, foi então que a garota percebeu: “Então é isso que as
pessoas querem dizer quando falam ‘Encantador’!”

Seu irmão era excepcional, então se quisesse continuar com ele,


também teria que ser excepcional. Quando entendeu isso, Aisha na
verdade ficou grata por sua mãe ter feito o que fez. Sem todo aquele
treinamento, poderia abrir mão da oferta de servir um irmão tão
extraordinário.

— Ai ai, me pergunto se meu irmão está realmente morto…


Então eu poderia ir diretamente para os braços do Mestre do Canil.

— S-se o Lorde Rudeus estiver bem, você ainda vai servi-lo,


entendido?

— Claro, sei disso. — Foi a primeira vez que Aisha viu sua mãe
tão agitada. — Mas só por um ano, tá bom? Depois disso quero
gastar o resto do meu tempo com o Mestre do Canil!
— Não, isso é inaceitá… hmm…

Aisha continuou se divertindo por um tempo enquanto provocava


Lilia.

✦✦✦✦✦✦✦

A mulher conhecida como Lilia nasceu em uma vila remota no


Reino Asura. Mais tarde, foi a única garota treinando técnicas de
espada no salão de treinamento de uma cidade de porte médio na
Região de Donati. Ela não tinha sobrenome, não davam
sobrenomes para plebeus no Reino Asura. Lilia nasceu apenas
como Lilia, este nome foi dado por seu pai, que era o dono do salão,
e ela empunhou uma espada ainda em tenra idade e logo começou
a aprender.

Assim como seus pais, era terrível com palavras. Se comportava


fria e silenciosamente e não tinha muito charme. Contudo, praticava
muito, então todos ao seu redor a adoravam. Apesar de ser claro
que não tinha talento para a espada, encantava os outros
estudantes que observavam quão avidamente praticava. Os
estudantes a amavam como se fosse sua irmã mais nova, e
consequentemente acabou ganhando vários irmãos mais velhos.
Sua vida era pacífica, assim como esperado para um pequeno salão
de treinamento.

Os olhares dos estudantes começaram a mudar quando ela


completou cerca de 13 anos. Como seu corpo estava chegando à
puberdade, pararam de tomar banho com ela e começaram a evitar
conversas cara a cara. Não estavam especificamente a evitando ou
tentando excluí-la, mas Lilia podia vagamente sentir olhares quentes
em sua direção.

Ela era uma garota muito realista. Não tinha irmãos, e a condição
física de sua mãe piorou após dar à luz. Com nenhum filho para
herdar o salão de treinamento, sua mãe ficava se culpando
enquanto seu pai quebrava a cabeça pensando no que fazer. Por
isso Lilia presumiu que acabaria casando com um dos estudantes
para herdar o salão em seu lugar. A garota via todos os estudantes
como irmãos, por isso nenhum deles se destacava como candidato
a marido, mas sabia que eles se controlavam quando ela estava por
perto.

A discussão sobre quem o mestre, seu pai, escolheria para ser


seu parceiro de casamento e próximo mestre do salão de
treinamento se tornou um tópico bem conhecido. Nos bastidores, os
interessados em se tornar o mestre ou simplesmente em casar com
Lilia começaram a competir entre si. O tempo foi passando e nada
foi decidido, mas ela tinha certeza de que o futuro que já imaginava
acabaria se tornando realidade.

Foi nessa época que Paul caiu de paraquedas em sua vida.


Mesmo que ele não tivesse dinheiro ou lugar pra morar, o pai de
Lilia o recebeu na mesma hora. Com sua personalidade brilhante e
energética, se tornou popular com todos em um piscar de olhos. Ele
também foi abençoado com talento para esgrima e logo aprendeu
todas as técnicas do salão, parte dessa velocidade foi
provavelmente porque já havia treinado com o estilo Deus da
Espada. Lilia levou dez anos para chegar nesse ponto, mas ele a
alcançou, e então a ultrapassou. Em pouco tempo, o rapaz se
tornou tão hábil que nem seu pai conseguiria competir com ele.

Paul era talentoso com a espada e popular entre os estudantes.


Por causa disso, logo se decidiu que seria o parceiro de Lilia.
Embora ela tenha ficado perplexa com a rapidez, a velocidade em
que as coisas aconteciam fez seu coração disparar. Paul era
diferente de todas as pessoas que ela já conhecera. Ele tinha um
espírito tão livre, não possuía nenhum pensamento rígido no que diz
respeito à esgrima, nem crenças firmes sobre linhagem e herança.
Seu estilo de vida despreocupado parecia deslumbrante aos seus
olhos.

Mas ele era um pouco diferente dos demais do salão de


treinamento, e não era apenas sua visão relaxada sobre a esgrima,
deveres domésticos e linhagem, mas também sua aproximação com
as mulheres. Embora os estudantes tivessem dado as boas-vindas
a Paul no início, a discórdia começou a surgir entre eles. Não
olharam muito bem para alguém que chegou do nada e roubou o
assento de futuro mestre debaixo do nariz de todos. Mas estavam
dispostos a aceitar a contragosto, já que era o Paul. No entanto, se
ele fosse tratar como inútil algo pelo qual lutaram, algo que
consideravam valioso, isso mudava as coisas.

Decidiram tentar se livrar dele. Durante o treinamento, focavam


seus golpes nele, o pegavam por trás com chutes e propositalmente
derramavam água em seu equipamento de treinamento. Lilia ficou
ao lado dele e repreendeu todos os envolvidos. Os estudantes
também não olharam muito bem para isso, e o comportamento
deles só piorou.
Se Paul fosse um garoto normal, tudo teria terminado ali. Ele
teria suportado e aberto caminho em meio aos outros, ou teria
fugido do salão de treinamento após ser expulso pelos estudantes.
No entanto, ele era um mala. Com seu humor azedo, recorreu à
atuação.

Uma noite, entrou sorrateiramente nos aposentos de Lilia e a


seduziu para entregar sua inocência para ele. Lilia não resistiu, foi
tão rápido que ela ficou lá, no chão, atordoada. Quando sua mãe
entrou no quarto para acordá-la na manhã seguinte, Paul já havia
saído da cidade.

Lilia desenvolveu uma desconfiança por homens, foi uma


consequência gerada pelo abandono de Paul. E manteve essa
desconfiança mesmo após completar quinze anos e se tornar uma
adulta. Seu pai mantinha a honra de cuidar da sobrevivência do
salão de treinamento, que existia na família há gerações. Ele não
tinha um filho, e o nascimento de Lilia arruinou o corpo de sua mãe.
O homem teria que casá-la com um de seus alunos para ver seu
legado continuando, mas não conseguiu forçá-la a isso.

Em vez disso, fez uso de suas conexões pessoais para


recomendá-la para a Família Real de Asura como empregada e
dama de companhia, cujas obrigações se estendiam a pegar em
armas para proteger a família real quando necessário. Lilia
gradualmente superou sua desconfiança por homens durante o
tempo que serviu como guarda, mas depois sofreu um ferimento
enquanto protegia a princesa. Dispensada do serviço, se dirigiu para
a Região de Fittoa em vez de voltar para casa, onde, por alguma
ironia do destino, encontrou um emprego como empregada para a
nova família de Paul. Ela e ele reviveram o caso, ela engravidou
dele e então se tornou sua segunda esposa.

Com toda a honestidade, Lilia, na época, não sabia se estava


feliz ou não. Ela era basicamente uma amante, e Paul
provavelmente amava mais Zenith do que ela. E Zenith era uma
amiga querida, mas Lilia tinha sentimentos complexos por causa da
culpa e remorso. Os Greyrats a aceitaram como parte de sua
família, mas sua ansiedade e insegurança a perseguiam.

Rudeus, que a apoiou naquele momento de turbulência mental,


foi o único que convenceu Zenith a deixar Lilia ficar. Criar a filha
para um dia servi-lo era a única coisa que tinha certeza de que
queria, embora se questionasse sobre o quanto amava Aisha. Seu
próprio pai se importava mais com a felicidade dela do que com a
continuação do salão de treinamento, e foi por isso que ele a ajudou
a encontrar um novo caminho na vida. Não estaria Lilia atropelando
os sentimentos de Aisha, sua própria filha, se a usasse para pagar
sua dívida com Rudeus e comprar um pouco de paz de espírito?
Essas preocupações só pioraram quando percebeu que sua filha
não era uma criança comum, mas sim uma excepcionalmente
inteligente.

As coisas mudaram com o misterioso Incidente de


Deslocamento, no qual Aisha e Lilia foram teletransportadas para o
Reino Shirone juntas. Em um momento, perderam a consciência, no
próximo, estavam em um lugar de aparência cara, e logo foram
completamente cercadas por guardas.

Diante de tantos homens hostis, assassinos dentro de


armaduras, a mente de Lilia ficou em branco. Incapaz de
compreender o que estava acontecendo, o único pensamento em
sua mente foi: Tenho que proteger minha filha. Ela pegou o castiçal
mais próximo, puxou sua filha para trás de seu corpo e lutou. No
entanto, devido à sua abstinência de batalhas reais, seu corpo não
se moveu como desejado e seu ferimento dificultou ainda mais a
sua mobilidade. Incapaz de oferecer muita resistência, foram
capturadas e Aisha foi arrastada pelos soldados, logo atrás de sua
mãe.

— Por favor, poupe a garota! Por favor, poupe minha filha! Eu


não me importo com o que acontecer comigo! Apenas não façam
nada com minha filha! — Lilia gritou e chorou lamentavelmente, mas
essas palavras saíram espontânea e inconscientemente. Aqueles
eram seus verdadeiros sentimentos.

Seus verdadeiros sentimentos.

Após isso, Lilia foi confinada no castelo, impedida de fazer


qualquer contato com o mundo exterior e forçada a trabalhar como
empregada. No entanto, seu coração estava mais leve do que
antes. As palavras que dissera foram apelos para salvar Aisha. Ela
não duvidava mais de seu amor por sua filha, e estava satisfeita por
seu desejo de tê-la servindo Rudeus não ser puramente egoísta.

Aisha tinha um espírito livre e independente, talvez tivesse


puxado isso de Paul. Ela odiava ser contida e achava que sua mãe
estava a sufocando. A garota não conseguia compreender porque
deveria servir a Rudeus, e sendo tão inteligente, detestava trabalhar
duro para atingir um objetivo sem significado.
Mesmo assim, Lilia não desistiu. Passou à filha teimosa todo o
conhecimento que acumulou durante sua vida. Um dia, Aisha
entenderia. Enquanto Rudeus continuasse a ser a mesma pessoa
daquele dia, aquele que protegeu Lilia, sua filha entenderia, ou ao
menos foi o que imaginou…

✦✦✦✦✦✦✦

— Ah, Irmão Mestre do Canil, ele é tudo em que consigo pensar


agora, aqueles braços fortes que me levantaram, seu rosto galante,
sua atitude confusa…

Aisha entendeu, ela viu Rudeus e entendeu o significado por trás


do que Lilia estava fazendo, mas isso também era errado. Não era
assim que a mulher imaginou que sua filha viria a entender a
grandeza de Rudeus.

— Aisha. — Lilia gradualmente se levantou no meio da


carruagem oscilante.

Aisha, que revelava um sorriso malicioso, tremeu de surpresa


com o movimento de sua mãe. Lilia tinha o hábito de golpear a sua
cabeça quando ela falava ou fazia algo de errado. Certo, a garota
era inteligente. Poderia avaliar, até certo ponto, o que a faria levar
ou não um safanão. E ela foi maliciosa o suficiente para atrair um
tapa de Lilia, então colocou a língua pra fora e disse: “Descuulpa.”

Mas dessa vez não sabia por que sua mãe estava furiosa. Ela
estava elogiando Rudeus, elogiando o irmão mais velho que sua
mãe lhe disse para servir. Será que tinha deixado algo passar? Ou o
Mestre do Canil não era seu irmão? Essas preocupações passaram
pela sua cabeça quando a mão de Lilia se aproximou dela.
— Hã…?

Aisha congelou ao sentir algo macio passar por sua cabeça. Lilia
estava a afagando. Momentos como esse, em que sua mãe
acariciava seu cabelo, eram raros.

— Mãe?

Por algum motivo Lilia ficou sem graça quando sua filha a
chamou. Sua mão, que estava acariciando a cabeça de Aisha, se
dirigiu às costas da garota, agarrando seu corpinho.

— Aisha, o Mestre do Canil ou o Mestre Rudeus, seja quem for


que você escolha, está bom pra mim.

Rudeus se recusou a levar Aisha com ele, mas ela tinha certeza
de que, dentro de alguns anos, eles se reencontrariam.

— E quando o dia chegar, dê tudo de si para servi-lo. — Ao dizer


essas palavras, Lilia prometeu para si mesma que criaria Aisha para
ser uma mulher maravilhosa, e isso não seria por causa de Rudeus.
Ou para si própria. Ela estava ciente de que seus próprios
sentimentos egoístas estavam misturados com esses, mas
realmente, do fundo do seu coração, queria que sua filha se
tornasse uma mulher notável.

— Ahaha… Acho que você me pegou… hein? — Aisha ficou


inquieta com a sensação suave em sua cabeça, e seus lábios se
curvaram para cima. — E-eu sabia, é claro! Que o Mestre do Canil é
o meu irmão… Então eu meio que queria te provocar, só um
pouquinho…
Enquanto ela gaguejava sua desculpa incoerente. De repente
percebeu que podia nunca ter sido abraçada daquela forma por sua
mãe. Assim que pensou nisso, uma onda de felicidade a preencheu.
Foi a primeira vez que a jovem experimentou a sensação de chorar
de alegria. Confusa com as lágrimas que se recusavam a parar,
colocou seus braços ao redor de sua mãe e encharcou o seu ombro.

Ginger, que estava observando as duas, desviou os olhos. Seu


olhar se voltou para os arrozais cobertos com água enquanto
ondulavam ao vento, estendendo-se até onde os olhos poderiam
ver.
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.
[←2]
Gourmand é aquele que gosta de comer muito e comer bem, basicamente um
glutão.

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