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VOLUME 05: JUVENTUDE - ARCO DA REUNIÃO

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Capítulo 01: O País Sagrado de Millis
Capítulo 02: A História de Paul
Capítulo 03: Contenda de Família
Capítulo 04: Reunidos
Capítulo 05: Objetivos Confirmados
Capítulo 06: Uma Semana em Millishion
Interlúdio: Eris, a Matadora de Goblins
Capítulo 07: Para o Continente Central
Interlúdio: O Regresso de Roxy
Capítulo Extra I: Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi
Capítulo Extra II: A Morte de Ariel
Arte de Personagens
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI
- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 05
Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka
Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.
Retirado do site:
“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e publicação de
Light Novels, Web Novels e Mangás para o português brasileiro.
Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e
acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a situação
dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo conhecidos de longa
data, buscamos criar um ambiente amistoso e divertido onde, sem qualquer
cobrança ou compromisso estabelecido, divertimo-nos com a tradução e
edição daquilo que nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto,
atestamos a plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros, focamos em
obras que saem um pouco daquele clichê extremamente batido, e às vezes
não, cumprindo com nosso objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de
acumular livros que queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e
pretendemos oferecer uma ampla gama de materiais para todos os públicos,
desde que adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.
Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada, sempre
mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência, basta acessar
Formas de Apoio.”
Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim
Tsundoku.
Capítulo 01:
O País Sagrado de Millis
Meu nome é Rudeus Greyrat.
Na minha vida anterior eu era um homem adulto, mas atualmente, sou
um belo garoto de onze anos. Magia é meu campo de especialização. Posso
lançar feitiços personalizados sem a necessidade de um encantamento, esse é
um truque que me rendeu um pouco de reconhecimento.
Cerca de um ano e meio atrás, fui teletransportado para um lugar
amigável conhecido como Continente Demônio, graças a um desastre
mágico de grande escala. Infelizmente, o Continente Demônio, por acaso,
quando comparado com minha terra natal, a Região de Fittoa do Reino
Asura, fica do outro lado do planeta. Para voltar, seria necessário viajar meio
mundo.
Na mesma hora me tornei um aventureiro e comecei a longa e difícil
jornada de volta para casa.
Desde então passaram-se dezoito meses. Nesse tempo, atravessei o
Continente Demônio… e agora, também passei pela Grande Floresta.
✦✦✦✦✦✦✦
Millishion é a capital do País Sagrado de Millis. O acesso pela Estrada
da Espada Sagrada oferece aos viajantes uma vista espetacular de toda a
cidade.
A primeira coisa a chamar a atenção é o Grão Lago – um corpo de água
azul brilhante, alimentado pelo Rio Nicolaus, que desce das Montanhas
Wyrm Azul. Bem no centro do lago, o grande Palácio Branco parece flutuar
sobre suas águas.
Mais adiante, nas margens do Nicolaus, dá para ver dois outros marcos
distintos: a radiante catedral dourada da cidade e a reluzente sede de prata da
Guilda dos Aventureiros.
A cidade que circunda esses edifícios notáveis é organizada de maneira
tão precisa quanto os quadrados em uma folha de papel quadriculado. Em
suas bordas externas, poderia notar sete torres imponentes, com vastas
planícies verdes se estendendo além delas.
Era um lugar rico não apenas em sua majestade, como também em sua
perfeita harmonia com a natureza. Não havia nenhuma outra cidade tão
bonita no mundo.
Trecho de “Peregrinando pelo Mundo” do aventureiro Kant Sangrento.
Bem, esse era o tipo de cidade que se esperaria encontrar em um mundo
de fantasia. Eu nunca tinha visto uma grande metrópole com tanto azul e
verde antes, e as ruas ficavam dispostas em uma grade lindamente limpa que
lembrava Sapporo ou a velha Edo. A visão dessas coisas me comoveu de um
modo que nunca havia acontecido em Rikarisu. Isso era lindo.
— Ah, uau…
A garota sentada ao meu lado – atualmente boquiaberta com a vista –
chamava-se Eris. Eris Boreas Greyrat, para ser mais preciso. Ela era a neta
de Sauros, lorde de Fittoa. Por algum tempo, servi como seu tutor pessoal.
A natureza dela era extremamente feroz. Embora geralmente fizesse o
que eu dizia, era o tipo de garota que daria um soco na cara de um Presidente
se ele a irritasse demais. E a simples menção a veleiros era o bastante para
fazê-la tremer. Isso por possuir a tendência de sofrer enjoos terríveis.
— Hmmm.
O cara de pele clara com a cabeça raspada, também olhando para a
cidade com admiração, era nosso companheiro demônio: Ruijerd Superdia.
Ninguém poderia dizer no momento, mas sua cor natural de cabelo era um
tom vívido de esmeralda. Era uma característica que ele tinha em comum
com todos os outros membros da infame raça Superd. Para a maioria das
pessoas deste mundo, demônios de cabelo verde eram sinônimos de morte e
destruição. Mas, embora ele pudesse definitivamente ser perigoso e
impulsivo às vezes, era basicamente um velho gentil com excepcional
carinho por crianças, ao menos na opinião minha e de Eris.
Eu nunca pensei nos dois como pessoas particularmente românticas,
mas pelo visto podiam reconhecer uma coisa bonita quando as viam bem na
cara.
— É realmente incrível, não é?
O último membro de nosso pequeno grupo era um homem chamado
Geese, que tinha uma forte semelhança com um macaco. Era um aventureiro
de profissão e um inútil de coração; o tipo de cara que era jogado na prisão
por trapacear no jogo. Ele não era um membro do nosso grupo nem nada,
mas pediu para nos acompanhar até Millis, então estávamos viajando juntos
desde a Grande Floresta.
Poderia ter perguntado por que estava se gabando desse lugar como se o
tivesse construído, mas era compreensível agora que tinha admirado a vista.
Eu teria feito exatamente a mesma coisa no lugar dele.
— Sim, isso com certeza é alguma coisa. Mas aquele lago é enorme…
isso não causa todos os tipos de dores de cabeça durante a estação das
chuvas?
Bem, na verdade, eu só estava tentando descontrair. Não queria que o
homem ficasse presunçoso demais. Ainda assim, isso realmente se tornou
uma questão em minha mente. Aquele lago ficava bem no centro da cidade,
e na Grande Floresta, logo ao norte, sofriam com três meses seguidos de
chuva torrencial todo ano. Isso com certeza influenciava no clima local.
— Heh. Ouvi dizer que no passado isso realmente era um incômodo —
respondeu Geese. — Mas agora eles têm o clima totalmente sob controle,
graças a essas sete torres mágicas. Não tem como aquele castelo no meio do
lago afundar. Viu que não tem muros externos nem nada assim? Isso porque
as torres o protegem com uma barreira mágica.
— Fala sério. Então, teria que derrubar essas torres primeiro se quisesse
cercar a cidade, hein?
— Uh, nem mesmo brinque sobre isso. Os Cavaleiros Sagrados
jogariam você na prisão se te ouvissem.
— Entendi. Vou tomar cuidado.
Geese explicou que, enquanto as sete torres permanecessem de pé, a
capital ficaria protegida de desastres naturais e até epidemias de doenças. Eu
não conseguia imaginar como isso funcionava, mas com certeza parecia
conveniente.
— Vamos lá! Vamos logo!
Incitados por uma Eris excitada, nossa carruagem voltou a avançar.
A cidade de Millishion era dividida em quatro distritos:
Ao norte ficava o Distrito Residencial, onde a maioria dos quarteirões
era repleta de casas de famílias. Havia algumas diferenças entre as áreas
onde vivia o povo comum e aquelas onde residiam as famílias dos nobres e
cavaleiros, mas virtualmente todos os edifícios do distrito eram alguma
espécie de casa.
A leste ficava o Distrito Comercial, onde se localizava a maioria das
principais empresas da cidade. Poderia até encontrar algumas lojas de varejo
por ali, mas tendiam a ser operações de pequena escala; o distrito era
dominado principalmente por empresas maiores. Era nele que poderia
encontrar os ferreiros e casas de leilão de Millishion.
Ao sul ficava o Distrito dos Aventureiros, com a sede da Guilda bem no
seu centro. Estava cheio de pousadas, bares e lojas que atendiam a caçadores
de fortuna profissionais. Também tinha alguns salões de jogos e favelas onde
viviam aventureiros fracassados, então era necessário tomar cuidado. Por
alguma razão, o mercado de escravos da cidade ficava ali, e não no Distrito
Comercial.
A oeste ficava o Distrito Divino, lar de muitos membros de algum
escalão da Igreja Millis. Nele se encontraria a enorme catedral municipal,
bem como um cemitério gigantesco. Os Cavaleiros Sagrados de Millis
também ficavam sitiados no lugar.
Geese repassou tudo isso para nós com detalhes surpreendentes
enquanto nos aproximávamos dos portões.
Acabamos circulando pelos arredores de Millishion antes de entrar no
Distrito dos Aventureiros. De acordo com Geese, os forasteiros que entram
por um distrito diferente eram normalmente vistos com alguma suspeita e
submetidos a inspeções mais demoradas. Pelo visto, a cidade possuía
algumas peculiaridades irritantes.
No momento em que passamos pelos portões, nos encontramos
rodeados pelo caos.
Millishion parecia deslumbrante à distância, com certeza, mas por
dentro não parecia tão diferente de qualquer outra cidade. Havia estábulos e
pousadas baratas aos montes perto da entrada da cidade. Um pouco mais
adiante, mercadores com barracas ao ar livre anunciavam seus produtos em
voz alta para toda a multidão. Eu podia ver lojas de armas ainda mais longe
ao longo da avenida central. Provavelmente encontraria pousadas um pouco
mais agradáveis nas ruas laterais e mais calmas. Além disso, a brilhante sede
prateada da guilda era grande o suficiente para ser visível mesmo dos
portões.
Primeiro, deixamos nossa carruagem em um estábulo próximo. No final
das contas, estavam dispostos a entregar nossa bagagem na pousada de nossa
escolha sem nenhum custo extra. Isso nunca foi uma opção em qualquer
outra cidade que visitamos, mas em uma grande como esta, acho que era
necessário se diferenciar da multidão se quisesse sobreviver nos negócios.
Assim que saímos do estábulo, Geese se virou para nós e fez um
anúncio abrupto:
— Tudo bem então, pessoal! Eu já sei para onde vou a seguir, então
acho que isso é um adeus!
— Hã? Você já tá vai? — Foi um pouco surpreendente. Eu esperava
que ele fosse ao menos até a pousada conosco.
— Qual o problema, chefe? Vai sentir minha falta?
— Bem, sim. É claro. — Eu sabia que Geese estava apenas brincando,
mas respondi honestamente. Não nos conhecíamos há muito tempo, mas ele
com certeza não era um cara mau. Um companheiro de viagem com quem se
dava bem era algo valioso em viagens longas como essa. Por algum tempo,
minha vida ficou menos estressante graças a ele.
Sem mencionar que, sem o homem, nossas refeições voltariam a ser
muito menos saborosas. Isso sim ia ser uma merda.
— Aw, não fique assim, chefe. Provavelmente vamos nos encontrar
pela cidade algum dia desses, sabe? — Com um pequeno encolher de
ombros, Geese se abaixou e me deu um tapinha na cabeça. Mas quando se
virou para sair, Eris bloqueou seu caminho.
— Ouça, Geese! — Ela assumiu sua pose de sempre – braços cruzados,
queixo erguido. —Da próxima vez é bom que você me ensine a cozinhar,
entendeu?
— A resposta ainda é não, mocinha. Mas que persistente… — Coçando
a nuca, ele passou por Eris e olhou para Ruijerd. — Ei, cuide-se também,
chefe!
— Boa sorte para você também. Não faça muitas travessuras, entendeu?
— Sim, captei.
Com um ligeiro aceno, Geese finalmente se juntou à multidão. Mas que
adeus mais casual. Ninguém jamais pensaria que passamos dois meses
inteiros juntos, viajando pela estrada.
— Ah, claro. Uma última coisa, chefe! — Pouco antes de ele
desaparecer de vista, sua cara de macaco se voltou para mim por um
momento. — Não se esqueça de dar uma passada na Guilda dos
Aventureiros, viu?
— Hm…? Ah, claro! — Eventualmente passaríamos pela guilda, já que
precisaríamos levantar algum dinheiro. Mas por que ele estava tocando nesse
assunto?
Não tive a chance de fazer nenhuma pergunta extra. Assim que ouviu
minha resposta, Geese desapareceu na multidão.
✦✦✦✦✦✦✦
Mas nossa maior prioridade era encontrar uma pousada. Esta sempre
era nossa prioridade ao chegarmos a uma nova cidade.
A maioria das pousadas em Millishion parecia estar localizada a alguma
distância das avenidas principais, então acabamos vagando um pouco por
ruas laterais até que encontramos um pequeno aglomerado delas. Depois de
uma rápida olhada ao redor, me acomodei em um lugar chamado Pousada
Luz D’Alvorada. O local não ficava muito perto das principais ruas da
cidade, mas ficava bem longe das favelas. A área parecia bastante segura.
Ofereciam todas as comodidades que eu procurava e parecia ter um preço
para atrair aventureiros de rank C ou B. A principal desvantagem era que
não parecia receber muito sol, mas eu poderia viver com isso.
Assim que escolhemos nosso quarto, o próximo passo seria desfazer as
malas e nos organizar, depois disso partiríamos para visitar um dos locais
mais importantes da cidade – a Guilda local, para ser mais exato. Se sobrasse
algum tempo, faríamos alguns passeios turísticos e depois voltaríamos para
nossa pousada para uma reunião de equipe. Bem, de qualquer forma, era
essa a nossa rotina padrão.
— Não poderíamos ter ficado em um lugar mais barato? — perguntou
Eris, olhando ao redor da pousada com curiosidade.
Teria que admitir, ela tinha razão, especialmente porque eu estava
sempre dando um sermão nela e em Ruijerd sobre como devíamos ser
cuidadosos com nosso dinheiro. No momento, porém, tínhamos algum
conforto financeiro e poderíamos relaxar. Tínhamos sido bem pagos pelos
três meses que passamos de guarda para os Doldia, e o guerreiro chefe do
povo-fera, Gyes, também nos deu uma boa gorjeta. Nossos fundos somavam
pouco mais de sete moedas de ouro Millis. Precisaríamos eventualmente
levantar mais dinheiro, mas a curto prazo, poderíamos pagar por alguns
luxos modestos.
— Não custa nada dar uma melhorada de vez em quando, certo? — Às
vezes seria bom dormir em uma cama que fosse realmente macia.
Um rápido olhar para Eris revelou que ela não estava totalmente
convencida. De qualquer forma, fui em frente e abri a porta de nosso quarto.
Era um espaço pequeno e arrumado. Apreciei que já tivessem nos
fornecido uma mesa e cadeiras no canto oposto do cômodo. A porta tinha
uma fechadura funcional e as janelas possuíam venezianas. Não era muito
comparável aos hotéis de negócios do Japão, mas para os padrões deste
mundo, era definitivamente um dos mais agradáveis.
Agora que havíamos chegado ao nosso quarto, tínhamos algumas coisas
para resolver.
Primeiro, nosso equipamento precisava de sua manutenção regular.
Segundo, precisávamos fazer um balanço de nossos suprimentos
descartáveis e anotar tudo o que estivesse acabando. Em seguida, cuidar de
nossas camas, lavar os lençóis e passar, varrer e limpar. Tudo isso era nossa
simples rotina, então começamos a trabalhar sem trocar palavras.
Quando terminamos, o sol estava se pondo e começava a escurecer do
lado de fora. Isso fazia sentido, já que só tínhamos chegado a Millishion no
início da tarde. Ainda assim, não teríamos tempo para passar pela Guilda no
mesmo dia…, mas não era como se isso realmente importasse.
Depois de um jantar rápido no bar ao lado da pousada, nós três
voltamos direto para o nosso quarto. Assim que nos acomodamos no chão e
formamos um círculo, limpei a garganta e coloquei as coisas em andamento.
— Certo, eu convoco uma reunião de ordem do Fim da Linha. Pessoal,
este é o nosso primeiro encontro desde que chegamos à capital de Millis!
Vamos torná-lo inesquecível!
Eu tive que dizer “Aplausos, por favor”, e bater minhas mãos algumas
vezes antes de Eris e Ruijerd seguirem o exemplo enquanto hesitavam.
Sinceramente. Os dois nunca falhavam em me decepcionar.
— Então… Finalmente chegamos até aqui, pessoal. Isso sim é uma
conquista de verdade.
Havia alguma emoção real em minha voz quando disse essas palavras.
Tivemos um longo e complicado trabalho para chegar a este ponto.
Havíamos passado mais de um ano no Continente Demônio e uns bons
quatro meses na Grande Floresta. Agora, finalmente, havíamos alcançado a
região deste mundo onde a humanidade residia. A parte mais perigosa de
nossa viagem já havia ficado para trás. Desse ponto em diante, as estradas
estariam bem conservadas e o terreno quase todo bom e nivelado.
Comparado ao que passamos anteriormente, deveria ser uma verdadeira
moleza.
Claro, em termos de distância absoluta, ainda tínhamos uma longa
jornada pela frente. A distância entre Asura e Millis era cerca de um quarto
da circunferência do planeta. Por mais boas que fossem as estradas, não
conseguiríamos fazer isso em apenas uma semana. Na verdade,
provavelmente teríamos outro longo ano de viagens pela frente.
Diante disso, nosso maior problema a longo prazo provavelmente seria
de natureza financeira.
— No momento, acho que devemos ficar nesta cidade por um tempo
para economizar algum dinheiro.
— Por quê? — perguntou Eris, franzindo a testa.
Era uma pergunta razoável. Tentei responder o mais claramente que
pude.
— Bem, nós atravessamos o Continente Demônio e a Grande Floresta
muito bem, mas as coisas tendem a ser muito mais caras em território
humano.
Pensei na pesquisa de mercado que fiz ao longo de nosso caminho.
Nunca tive a chance de sair fazendo orçamentos em Porto Zant, mas ainda
me lembrava de como a maioria das coisas funcionava em várias partes do
Continente Demônio e na pequena cidade em que paramos além das
Montanhas Wyrm Azul. A maioria das coisas era mais cara em Millis e no
Reino Asura. A tarifa noturna da pousada seria completamente fora da
realidade para os padrões do Continente Demônio.
Era óbvio que os humanos eram gananciosos. Nós nos importávamos
muito mais com dinheiro do que qualquer uma das outras raças.
— O valor da moeda Millis é muito alto. Apenas as moedas Asuranas
valem mais, pelo que eu sei. Isso significa que tudo aqui é caro, mas também
indica que as tarefas na Guilda local pagarão muito bem. Em vez de parar
por uma semana em cada cidade, como fizemos no Continente Demônio,
acho que será mais eficiente ficarmos aqui por cerca de um mês e
economizar muito dinheiro de uma só vez.
Assim que tivéssemos uma boa pilha de valiosas moedas Millis em
nossos bolsos, o resto da viagem seria muito mais tranquilo. Percorreríamos
um longo caminho para atravessar as regiões ao sul do Continente Central.
— E também, não sabemos quanto vão cobrar pela passagem de barco
de um Superd para o Continente Central, certo? — falei.
Eris fez uma careta ao ouvir a palavra “barco”. Nossa viagem marítima
anterior era uma de suas memórias mais miseráveis. Para mim era bem
diferente, é claro. Minhas lembranças de consolá-la enquanto estava enjoada
continuaram a ser uma fonte de grande prazer.
— Considerando todas as coisas, acho que devemos nos concentrar em
ganhar algum dinheiro em Millishion e, depois, ir direto para o Reino Asura.
Podemos não ser capazes de fazer muito para melhorar a reputação dos
Superds por um tempo… Isso está bem para você, Ruijerd?
— Claro — respondeu, assentindo levemente.
Eu realmente não esperava que ele se opusesse. Nesse ponto, só estava
ajudando porque queria.
Pessoalmente, teria ficado feliz em me estabelecer no lugar por um
tempo e dedicar algum esforço real para mudar a opinião do público sobre
seu povo. Seis meses ou um ano de trabalho diligente em uma grande cidade
como esta poderiam ter um enorme impacto.
Dito isso, já havíamos gasto um ano e meio apenas para chegar até onde
estávamos. Não queria arrastar esta jornada ainda mais do que o necessário.
Digo, neste momento já estávamos “desaparecidos” por dezoito meses, não?
Paul e Zenith provavelmente estavam muito preocupados.
Imagino o que estão fazendo agora… Ah, opa. Nunca cheguei a mandar
uma carta para eles, certo?
Queria fazer isso, mas os eventos sempre conspiravam para me distrair.
Isso já devia ter escapado da minha mente uma meia dúzia de vezes. Bem,
nada como o presente…
— Então tá bom. Amanhã vamos tirar uma folga, que tal?
Este não era um conceito novo para nós. Eu já havia anunciado vários
“dias de folga” no passado. No início, era por preocupação com Eris, mas,
em algum momento, comecei a usá-los principalmente para meu próprio
bem. A garota nunca mostrava qualquer sinal de fadiga, e Ruijerd era o
homem mais resistente que conheci. Eu era, com certeza, o mais fraco do
grupo.
Claro, estava muito mais forte do que em minha vida anterior. Não dava
para comparar meus dois eus, mas estava apenas no nível de um aventureiro
típico. A exaustão física geralmente não era um problema.
Mas e quanto à exaustão mental? Essa era uma história diferente. Por
um lado, ainda tinha alguns problemas para matar coisas vivas. Quanto mais
matávamos monstros, mais estresse se acumulava dentro de mim.
Entretanto, este “dia de folga”, em particular, não era por causa da
fadiga. Só queria ter certeza de não voltar a esquecer de escrever aquela
carta. Se passássemos o dia seguinte reunindo informações, verificando a
lista de empregos da Guilda e lidando com todas as outras coisas em nossa
lista de tarefas pendentes, isso iria voltar a ficar de escanteio. Desta vez,
usaria um dia e, finalmente, cuidaria disso.
— Você está se sentindo mal de novo, Rudeus?
— Não, isso é um pouco diferente. Preciso de um tempo para escrever
uma carta.
— Uma carta?
Balancei a cabeça para Eris.
— Devíamos deixar todos de casa saberem que estamos bem, certo?
— Hmm… bem, tá bom. Então acho que vou deixar isso com você.
— Sim. Cuidarei disso.
No dia seguinte finalmente faria isso. Tomaria meu tempo, pensaria em
meus dias em Buena Village e escreveria para Paul e Sylphie.
Na época em que ele me despachou para servir como tutor de Eris, meu
pai me avisou para não mandar nenhuma carta… mas, nessas circunstâncias,
com certeza não se importaria.
Entretanto, as chances de as cartas serem entregues não eram lá muito
boas. Na época em que Roxy e eu estávamos trocando correspondências
entre Asura e Shirone, parecia que uma em cada sete cartas que enviávamos
realmente chegava, então sempre tínhamos que enviar várias cópias da
mesma mensagem. Desta vez teria que fazer o mesmo.
— Aliás, o que vocês dois vão fazer? — perguntei.
Eris pronta e energeticamente respondeu:
— Vou matar alguns Goblins!
— Goblins?
Espera, espera. Goblins? Seriam Goblins iguais aos que eu conheço?
Tipo… caras verde-amarelados, talvez com metade do tamanho de um
humano, com clavas rústicas? Aqueles que sempre aparecem como destaque
em jogos pornográficos de fantasia?
— Sim. Vi alguém dizendo que há muitos deles aparecendo por aqui.
Esse é exatamente o tipo de coisa com que aventureiros deveriam lidar, não
é? — respondeu Eris alegremente.
Para ser totalmente honesto, ouvi um pouco sobre eles durante nossa
jornada. Neste mundo, os Goblins eram basicamente vistos como uma
espécie de verme. Se reproduziam rapidamente e causavam todo tipo de
problema para as pessoas. Eram inteligentes o suficiente para se
comunicarem verbalmente, então podiam ser tecnicamente classificados
como demônios, mas a grande maioria deles vivia como animais selvagens.
Então, quando seus números começavam a ficar fora de controle, eram
exterminados.
— Tudo bem então. Ruijerd, você pode ir junto com ela e…
— Ah, vamos lá! Eu posso lidar com alguns Goblins sozinha! — Eris
interrompeu indignada. A expressão em seu rosto sugeria que estava mais do
que um pouco ofendida.
O que eu deveria fazer?
Ela era uma lutadora muito competente. E Goblins eram monstros de
rank E – não eram inimigos lá muito desafiadores. Não viviam no
Continente Demônio, então eu nunca tinha visto um, mas pelo que ouvi, até
uma criança que aprendesse algumas habilidades básicas de esgrima poderia
lidar com eles, sem nem suar.
Talvez, obrigar que levasse nosso guarda-costas juntos seria um pouco
de superproteção. Afinal, a garota poderia lidar com monstros de rank B…,
mas ainda assim. Quando uma garota aventureira fosse derrotada por um
Goblin, o monstro instantaneamente a transformaria em uma escrava sexual,
certo? Eu não sabia muito sobre os Goblins deste mundo, mas esse era
definitivamente o problema deles no meu. E, digo, se eu fosse o Goblin
sortudo que conseguisse deixar Eris inconsciente, certamente me sentiria no
direito de fazer o que quisesse.
Se algo tão terrível acontecesse com Eris no momento em que eu tirasse
meus olhos dela, nunca seria capaz de voltar a encarar Ghislaine ou Philip…
— Está tudo bem, Rudeus — disse Ruijerd, tirando-me do meu
devaneio. — Deixe que ela cuide disso sozinha.
Isso era incomum. Normalmente, ele ficava fora desse tipo de
discussão. Durante o último ano e meio, Ruijerd deu aulas a Eris sobre como
lutar contra todos os tipos de monstros e inimigos diferentes. Seus métodos
educacionais eram um pouco obscuros para eu seguir, mas ela claramente
aprendeu muito com ele. Se o homem estava convencido de que a garota
poderia fazer isso, provavelmente ficaria tudo bem.
— Então tá bom. Eris, não se descuide só por serem fracos.
— É, eu sei!
— E também se assegure de estar bem preparada antes de ir.
— É claro!
— Se as coisas ficarem complicadas, apenas dê meia-volta e corra,
entendeu?
— Tá bom, tá bom! Certo!
— E se o pior acontecer, apenas agarre a coisinha nojenta pela mão e
grite: “Este Goblin é um molestador!” a plenos pul…
— Ah, já chega! Posso me virar com alguns Goblins sozinha, Rudeus!
Ops. Acabei deixando-a estressada.
Para ser honesto, ainda estava um pouco ansioso com isso, mas só teria
que colocar minha fé no julgamento de nosso guerreiro veterano.
— Nesse caso, não direi mais nada. Boa sorte, Eris.
— Obrigada! — disse, balançando a cabeça satisfeita. — Não se
preocupe, eu cuido disso!
— E você, Ruijerd? O que vai fazer amanhã?
— Acho que vou dizer olá a um conhecido meu.
Essa devia ser a primeira vez que o ouvi usar a palavra conhecido.
— É mesmo? Eu não sabia que você… tinha algum, na verdade.
— Bem, é claro que tenho.
Pelo que eu sabia de sua história de fundo, Ruijerd estava vagando por
aí sozinho por um bom tempo… mas depois de quinhentos anos, acho que
provavelmente encontrou algumas pessoas ao acaso. Parecia um pouco
estranho que uma daquelas pessoas estivesse morando logo em Millishion.
Então, novamente, esta era uma cidade enorme, então talvez fizesse um
sentido grotesco.
— Que tipo de pessoa que é?
— Um guerreiro.
Ah. Provavelmente alguém que ele, no passado, resgatou na selva do
Continente Demônio ou algo assim, hein? Bem, de uma forma ou de outra,
eu não estava disposto a bisbilhotar. Não era seu pai e não sentia necessidade
de interrogar sobre com quem andava nas horas vagas.
✦✦✦✦✦✦✦
Na manhã seguinte, Eris e Ruijerd saíram em seus respectivos
caminhos, e eu fui à cidade comprar papel, canetas e tinta. Achei que poderia
aproveitar a oportunidade para vagar pelas barracas ao ar livre por um
tempo, até ter um bom senso de quanto custava a maioria das coisas em
Millis.
No final das contas, a comida era na verdade um pouco mais barata do
que no Continente Demônio. Claro, a variedade também era muito, muito
melhor. Havia bastante carne e peixe fresco disponíveis, e até uma boa
variedade de vegetais.
Entretanto, a maior das surpresas com certeza foram os ovos. Havia
muitos deles, todos recém-botados e eram incrivelmente baratos. Eu tinha
visto ovos à venda algumas vezes no Continente Demônio, mas aqueles
eram botados por monstros ao invés de pássaros. A ideia era fazer com que
eclodissem, deixasse a criatura bebê o marcar e, então, treiná-la como quiser.
É claro, ninguém comia aquelas coisas. Eram muito caros para se
transformar em uma omelete.
Aliás, existiam galinhas neste mundo. Havia até algumas pessoas que as
criavam em Buena Village e, ao que parece, a avicultura também era uma
indústria importante em Millis.
De repente, fiquei morrendo de vontade de voltar a comer ovo com
arroz. Eu sei, eu sei… isso é algo bem básico. Mas, vamos lá! É uma
refeição nutricionalmente completa!
Infelizmente, embora eu tivesse muitos ovos disponíveis para mim no
momento, não parecia haver nenhum arroz ou molho de soja para usar como
acompanhamento. O pão era aparentemente a grande base da dieta em
Millis, assim como em Asura.
O arroz existia neste mundo, mesmo não estando à venda no mercado
local. Era o alimento básico nas regiões norte e leste do Continente Central,
e Roxy certa vez mencionou que também estava disponível no Reino
Shirone. Geralmente o usavam como base para algo como arroz frito ou
paella, com muita carne, vegetais e frutos do mar. Infelizmente, parecia que
não faziam criação de aves em Shirone, então os ovos eram, pelo visto, uma
mercadoria rara. Talvez o clima não fosse adequado para a criação de
galinhas.
Quanto ao molho de soja, nunca tinha visto nada assim neste mundo.
Certa vez, notei algo que parecia muito com soja enquanto folheava um
dicionário de plantas, mas parecia possível que até o momento ninguém
tivesse tentado fermentá-las e transformá-las em molho.
Não, não. Não posso ser pessimista! Existiam ovos e arroz, certo?
Nesse caso, também deveria haver molho de soja em algum lugar. Eu só
precisava procurar direitinho.
Algum dia, juntaria todos os ingredientes e tornaria meu sonho em
realidade. Mesmo se os ovos fossem um pouco anti-higiênicos, a magia de
desintoxicação poderia lidar com um pequeno envenenamento alimentar.
Assim que terminei minha pesquisa rápida no mercado local e comprei
um conjunto básico de artigos de papelaria, comecei a voltar para a pousada
enquanto tentava descobrir exatamente o que escrever na carta.
Esta seria a primeira vez que eu escreveria para Paul ou Sylphie.
Deveria começar com meus anos na casa dos Boreas…? Não, o importante
era deixar que soubessem que eu estava em segurança. Seria melhor começar
com nosso teletransporte para o Continente Demônio.
Pensando bem, eu tinha muito o que contar a eles. Comecei a viajar
com um lendário guerreiro Superd, conheci o Grande Imperador Demônio e
até passei três meses inteiros em um vilarejo do povo-fera.
Hmm. Será que acreditariam nisso?
Bem, de qualquer forma, eu só contaria a verdade. Mas parecia
improvável que alguém lá de casa comprasse minha história sobre receber
um olho mágico da própria Kishirika Kishirisu.
Falando em gente-fera… Seria bom saber se Ghislaine estava bem. Ela
provavelmente também tinha sido levada para algum canto aleatório do
globo. Supondo que não tivesse caído no meio de um vulcão ou algo assim,
acreditava que estaria bem. Afinal, a mulher era uma força da natureza
ambulante.
Afinal, quantas outras pessoas tinham sido teletransportadas? A parede
de luz surgiu da Cidadela de Roa, então parecia possível que todos na
propriedade dos Boreas tivessem sofrido o mesmo destino que Eris e eu.
Hmm. Ou seja: Philip, Sauros, Hilda, Alphonse (o mordomo)… e todas as
criadas, isso só para começar. Senti que o Velho Sauros poderia abrir seu
caminho pela vida muito bem, não importa onde fosse parar, mas ainda
assim…
— É, agora estou preocupado… — Murmurando comigo mesmo, virei
para uma rua estreita. Bem, Millishion também tinha algumas dessas. O
layout da cidade, de longe, parecia limpo e organizado, mas conforme os
prédios antigos eram derrubados e substituídos, vielas sujas como essa
tendiam a se abrir entre eles.
Claro, tudo ainda estava alinhado em uma quadra, então não precisava
se preocupar em se perder em algum labirinto sinuoso. Era por isso que
decidi tomar um caminho diferente no retorno à pousada. Não custaria nada
explorar um pouco as ruas da cidade. Se tivesse sorte, poderia tropeçar na
alameda de algum amorzinho encantador ou algo assim. Nossa ruiva tinha
uma personalidade algo violenta, mas parecia que também era capaz de
apreciar um pouco de beleza de vez em quando. E se ficássemos na cidade
por um mês inteiro, provavelmente teríamos tempo para um “encontro” ou
dois. Poderia ganhar alguns pontos bônus de afeto se encontrasse alguns
lugares legais para levá-la.
Quando estava me perdendo em pensamentos, notei um grupo de cinco
ou mais homens se movendo rapidamente em minha direção, bem do outro
lado do beco. Não pareciam aventureiros, à primeira vista, mas apenas
simples punks vagabundos. Suas roupas pareciam intimidadoras. Bem,
provavelmente não passavam de um bando de crianças bagunceiras. Ainda
assim, era meio rude ficar rondando em grupos nesses becos estreitos. Um
pedestre educado sempre deixava espaço para alguém que seguia na outra
direção. Uma criança como eu não precisava de tanto espaço, é verdade, mas
nesse ritmo íamos dar um encontrão. Deveriam estar se aproximando de
mim em fila única e desviando os olhos…
— Mova-se, moleque!
Imediatamente me pressionei contra a parede do beco.
Mas não entenda errado. Só queria evitar qualquer problema
desnecessário. Quer dizer, pareciam estar com muita pressa! E eu não estava.
Não era como se tivesse saído do caminho deles porque pareciam meio
assustadores ou algo assim. Sério, juro! Não tenho medo de nenhum
delinquente! Juro pela minha alma.
Bem, de qualquer forma, pense nisso. Não se pode julgar um livro pela
capa, certo? Pareciam um bando de punks vagabundos, mas pelo que eu
sabia, um deles era na verdade um famoso espadachim.
Se tivesse ficado muito confiante e contestado a grosseria deles, poderia
ter me visto sendo cortado em pedaços pelo Nobre da Fúria, ou algo assim.
Digo, este era um mundo onde uma garotinha prestes a morrer de fome na
rua poderia se tornar um Grande Imperador Demônio, certo? Não havia
nenhum motivo para sair brigando por aí.
Bem, essa foi ao menos minha primeira impressão. Mas, quando
passaram por mim, percebi que dois caras no meio do grupo carregavam um
saco de estopa. E havia uma mãozinha saindo daquilo. Parecia que estavam
carregando uma criança – dentro de um saco, nada menos.
Sequestradores de novo?
Pelo visto este mundo estava cheio deles. Os criminosos pareciam
agarrar as crianças na primeira chance que encontravam. Também não era
uma questão regional; acontecia em todos os lugares, desde o Reino Asura
até o Continente Demônio, a Grande Floresta e o País Sagrado de Millis.
Pelo que Geese me disse, o sequestro costumava ser uma linha de
trabalho muito lucrativa. O mundo estava quase todo em paz, com exceção
de alguns conflitos menores aqui e ali. Apenas alguns escravos chegavam ao
mercado das regiões central e norte do Continente Central, e isso era tudo. E
muitas, muitas pessoas queriam escravos. Isso era uma verdade particular
para os países mais ricos, como Millis e Asura, onde as classes altas estavam
constantemente procurando comprar pessoas. Resumindo, a oferta não era
grande o suficiente para atender à demanda. Vítimas de sequestros tinham
altos preços no mercado e, enquanto isso fosse verdade, o problema nunca
iria desaparecer. Para acabar com a prática, pelo visto seria necessário
começar uma ou duas guerras massivas.
Em qualquer caso… e agora?
Dado o número de homens, provavelmente estávamos falando de um
crime premeditado. Não seria surpreendente se a criança naquele saco fosse
filho ou filha de alguém relativamente importante do local.
Para ser honesto, eu não queria nem me envolver nisso. Da última vez
que resgatei crianças de uma gangue de sequestradores, acabei sendo tomado
como um dos criminosos e jogado em uma cela de prisão. E isso foi há
apenas alguns meses, então a memória ainda estava dolorosamente fresca.
Eu iria simplesmente deixar a criança ser entregue ao seu destino?
Não, não. Claro que não. Sequestradores sempre existiriam, é claro. E
isso estava trazendo de volta algumas memórias desagradáveis. Mas nada
disso é motivo para apenas virar a cara.
A primeira regra do time Fim da Linha era: “Nunca abandone uma
criança em perigo”. E a segunda regra do time Fim da Linha era: “Nunca,
jamais abandone uma criança em perigo”.
O Fim da Linha era um grupo de mocinhos. Permanecíamos firmes
diante do mal; resgataríamos crianças sempre que tivéssemos a
oportunidade. E pouco a pouco, espalharíamos a boa palavra sobre Ruijerd e
os Superds.
Me virei e segui os cinco homens com o saco de estopa em silêncio.
✦✦✦✦✦✦✦
Minhas habilidades furtivas pelo visto acabaram melhorando em algum
momento. Acho que seguir Eris e companhia lá nos Doldia foi uma boa
prática. Os sequestradores chegaram e entraram em seu destino, um
armazém escondido, sem sequer olhar na minha direção. Era um bando bem
desleixado. Para começo de conversa, evidentemente precisavam de
melhorias no olfato.
O armazém em questão estava localizado em um canto tranquilo do
Distrito dos Aventureiros, mais afastado da multidão do que a pousada em
que estávamos hospedados. Não se podia ver o lugar da rua; a única maneira
de alcançá-lo era se espremendo por um beco estreito. Não havia como uma
carruagem puxada por cavalos chegar até ali. Nem seria possível carregar
nada volumoso para fora. Me perguntei por que diabos alguém colocaria um
depósito em um local tão inacessível. O armazém provavelmente foi
construído algum tempo antes dos edifícios que agora o cercavam. Às vezes,
os engenheiros podem realmente ferrar qualquer um, hein?
Mas não era como se isso importasse. Assim que me senti confiante de
que o grupo não estava apenas passando, me movi para a parte de trás do
prédio e usei magia da terra para ficar elevado ao chão, o que me permitiu
entrar no prédio por uma janela relativamente alta. Me abaixei até o chão,
me arrastei até uma pilha bagunçada de caixas de madeira, me escondi
dentro de uma, então cuidadosamente olhei para fora para ver como era
composto todo o terreno.
Os cinco sequestradores estavam parados do outro lado do armazém
mal iluminado, conversando sobre alguma coisa. Pelo que pude perceber,
tinham muitos amigos bebendo no bar ao lado, e alguém precisava ir
informá-los de que o “trabalho” estava feito.
Eu tinha duas opções básicas neste momento. Poderia tentar derrubar os
cinco antes que unissem toda a gangue, ou poderia ficar parado, dar uma
olhada cuidadosa no rosto de seus amigos e simplesmente fugir com a
criança quando tivesse a chance. A última abordagem parecia muito mais
atrativa, então decidi me acomodar em minha caixa e ficar confortável.
Mas o que havia nela, afinal? Graças à iluminação ruim, eu realmente
não tinha dado uma boa olhada em seu conteúdo. O que quer que fosse,
definitivamente era feito de tecido. Mas as coisas eram muito pequenas para
serem camisas ou calças. E, por alguma razão, ficar deitado em uma pilha
disso me fez sentir estranhamente… tranquilo.
Estendi a mão e peguei uma das coisas. A forma e a textura eram
familiares – um pedaço de tecido cuidadosamente costurado com alguma
profundidade definida e três orifícios distintos. Em uma seção específica, o
tecido era duas vezes mais grosso; achei que pudesse sentir um toque da
poderosa energia mística quando toquei naquela parte.
— Uau! Espera aí, são calcinhas!
— Quem está aí?!
A-ah, merda, me ouviram! Droga… Nunca esperei que montassem uma
armadilha tão diabólica!
— Mas que infernos? Há alguém nas caixas?
— Apareça!
— Ei, vá falar com o chefe! Precisamos de todos aqui!
Bem, isso definitivamente não era bom. Enquanto eu estava sentado, já
estavam chamando a cavalaria. Era evidente que já chegara a hora para uma
mudança de planos. Só teria que agarrar a criança e fugir de uma vez, certo?
Parecia a melhor opção. Espere, não… assim veriam meu rosto.
Ah, em que eu estava pensando? Eu tinha uma máscara perfeitamente
adequada à mão.
Woooo! Sou um pedaço ardente de êxtase, baby!
Brincadeirinha.
Por um momento, parei e considerei tirar meu robe para esconder
melhor minha identidade, mas então me lembrei que nem estava o usando.
Também não tinha meu cajado. Afinal, tinha saído apenas para fazer
compras.
Então tudo certo. Vamos nessa!
— Nossa!
— Cara, e-ele está usando uma calcinha na cabeça…
— Que aberração…
Os homens ficaram momentaneamente perplexos com minha aparição
repentina e dramática. Aproveitei a oportunidade para iniciar um monólogo.
— Ouçam-me, canalhas gananciosos! Como ousam tomar crianças
inocentes de suas famílias? Que vergonha! Vergonha! As pessoas chamam
isso de… sequestro!
O público não pareceu apreciar minha interpretação de Rom Stol.
Talvez não tivessem assistido ao velho anime de mechas.
— Q-quem diabos você deveria ser?
— Eu sou Ruijerd do Fim da Linha!
— O quê? Fim da Linha?
Ah, merda! Esqueci! Me apresentar assim virou um tipo de hábito,
então as palavras simplesmente escaparam da minha boca. Este era um caso
em que eu realmente não deveria ter dito nada.
Foi mal, Ruijerd! A partir de hoje, você é um estranho esquisito que
resgata crianças enquanto usa uma calcinha na cabeça! Mas não se preocupe.
Vou salvar a criança, custe o que custar!
— Malditos sejam, sequestradores nojentos! Graças a vocês, um
homem inocente acaba de ser muito caluniado! Sua vilania não ficará
impune!
— Olha, garoto, vá brincar de herói em outro lugar! Nós não…
— Eu não vim aqui para conversar, seu idiota! Ataque Nascer do
Soooool!
— Gurgh!
Acabei com a conversa disparando um feitiço Canhão de Pedra. Era
sempre bom usar alguns ataques preventivos. Na verdade, foi a mesma
abordagem que usei para resgatar o Grande Imperador Demônio daquele
velho pedófilo sujo em Porto Vento.
— Toma essa! E essa!
— Guh!
— Blagh!
Em um piscar de olhos, nocauteei os quatro homens que permaneceram
no armazém. Uma vez que todos estavam caídos, corri para verificar o
prisioneiro.
— Você está bem, jovem?! Hmm. Parece que está inconsciente…
Senti como se já tivesse visto a criança em algum lugar. Na verdade,
havia algo… realmente familiar nela. Mas não consegui identificar
exatamente o que era. Que estranho.
Bem, tanto faz. Não era hora de pensar nisso. Eu precisava sair do lugar
antes que o resto da gangue chegasse… Mas, assim que esse pensamento
passou pela minha cabeça, uma multidão inteira de homens apareceu na
porta do armazém.
— Uau! Mas que diabos? Ele derrubou todos os quatro!
— O garoto sabe lutar! Tragam o capitão aqui, já!
— Hoje ele bebeu muito, sabe?
— Ele ainda é um grande lutador, mesmo quando está bêbado!
Dois homens se viraram e fugiram, provavelmente para buscar seu
“capitão”. Isso ainda deixava mais de dez pessoas para eu lidar, e agora tinha
que assumir que mais reforços apareceriam.
Isso não era bom. Isso não era nada bom. Talvez realmente devesse ter
desviado o olhar… ou esperado até o dia seguinte, quando poderia ter
convencido Ruijerd a me ajudar. Lidar com tudo sozinho foi definitivamente
um erro. Nesse ponto, minha única opção era acabar com toda a gangue.
— Que tipo de aberração é esse cara? Ele está usando uma calcinha na
cabeça…
— Espere, ele veio aqui para roubar nossas roupas íntimas?!
— Ai, deus! Será que é algum tipo de pervertido?!
Quando olhei mais de perto, notei que na verdade também havia
algumas mulheres no grupo. Foi mal, Ruijerd! Sério… eu te devo uma.
Com um pedido de desculpas final para o homem que eu tinha
injustiçado profundamente, voltei meu foco para a tarefa em mãos. Por sorte,
esses bandidos não eram nada de especial. Continuaram avançando em
minha direção em linha reta, então era fácil atirar um Canhão de Pedra antes
que chegassem perto demais. Não eram rápidos o suficiente para desviar da
minha magia, e um único golpe era o suficiente para deixar a maioria deles
inconsciente. Nenhuma dessas pessoas estava armada. Também não havia
magos com os quais se preocupar. Até o momento estava tudo indo melhor
do que o esperado.
— Droga, não podemos nem chegar perto…
— O que diabos há com esse garoto?! Ele está usando algum tipo de
item mágico?!
— Por que o capitão está demorando tanto?!
Quando nocauteei talvez metade deles, os outros começaram a ficar
visivelmente agitados. Afinal, talvez eu pudesse até mesmo criar meu
caminho para fora do lugar sem grandes problemas.
— O capitão vai chegar logo, pessoal! Até lá só precisamos aguentar!
Bem, quanto trabalho para nada.
Duas mulheres apareceram na porta do armazém. Uma delas era uma
guerreira vestida com uma armadura de biquíni; a outra era uma com um
robe de maga. Não demorou muito para a onda de reforços chegar, mas não
fiquei surpreso. Pelo visto, toda sua gangue estava bebendo no lugar ao lado.
A mulher guerreira estava, por algum motivo, exibindo muita pele. No
Continente Demônio, não vi uma única lutadora vestindo tão poucas coisas.
Ela se destacava ainda mais em comparação à maga, que estava vestindo
uma roupa perfeitamente normal.
Droga! Quem é essa mulher?! Eu não consigo… desviar… meus
olhos…!
— Shierra, vou mantê-lo ocupado! Me dê cobertura!
— Certo!
A mulher de biquíni puxou a espada da cintura e correu em minha
direção. Enquanto isso, a maga na retaguarda pegou seu cajado e… ah,
merda. Os seios da mulher de biquíni balançavam loucamente cada vez que
ela dava um passo. Não deixe eles balançarem com tanto vigor, garota! Vão
escapar!
Foi honestamente bizarro. Bem, eu esperava que a armadura de biquíni
mantivesse seu peito firmemente no lugar para não causar problemas na
batalha. Todo o seu traje parecia não servir a nenhum propósito prático.
Ah, cara, olha só como essas coisas se movem! Direita… esquerda…
direita! Estavam se aproximando, balançando para cá e para lá… Por um
momento, pararam, então saltaram de volta em minha direção…
— Hiyaaaa!
De repente, percebi que a mulher de biquíni estava balançando sua
espada diretamente para o meu rosto.
— Gaah! — Caindo reflexivamente para trás, consegui evitar o golpe
por um fio de cabelo. Foi por pouco! Droga. Essa garota luta sujo!
Ela estava propositalmente usando aquilo como distração?!
Nesse ponto, percebi uma voz fraca murmurando algo do outro lado do
lugar.
— (…) converta onde quiseres e emita um único fluxo puro de…
Ah, merda. Isso era um encantamento mágico! Alguém estava prestes a
atirar uma Bola de Água em mim!
Pensando rápido, estendi minha mão na direção da maga. Desta vez
escolhi o feitiço Muro de Pedra. A melhor maneira de afastar um feitiço
mágico à base de água era pegar um pouco de areia e sujeira para absorver
tudo em seu caminho.
Enquanto corria para lançar o feitiço, rapidamente olhei e encontrei a
maga apontando seu cajado diretamente para mim, prestes a lançar seu
ataque.
No mesmo instante em que ela disparou sua Bola de Água, minha
Parede de Pedra se ergueu para enfrentá-la. O projétil de alta velocidade
explodiu contra meu feitiço com um estrondo ensurdecedor, em vez de um
respingo. Água espirrou em todas as direções por todo o armazém.
— O quê?! O que f-foi isso?!
Pelo que parecia, deixei a maga bem nervosa, então voltei minha
atenção para a mulher de biquíni.
— Ah…!
A força de seu ataque deixou seus seios balançando
descontroladamente no ar. Parecia que estavam prestes a se libertar. Quase
pude… vê-los…!
— Hyaaaaaa!
Puxado de volta à realidade no último momento por seu grito de batalha
penetrante, consegui rolar de volta à segurança. Desta vez, coloquei um
pouco mais de distância entre nós antes de pular.
A mulher de biquíni olhou para mim, sua espada ainda contra o chão,
no local onde havia acertado.
— Pare de correr como uma barata, seu pequeno pervertido! —
Enquanto falava, ela ergueu a arma novamente, segurando-a firme acima do
nível da cintura. Parecia ter desistido de me oprimir com a velocidade e
agressividade. Em vez disso, começou a diminuir a distância entre nós lenta,
mas firmemente.
Seguindo seu exemplo, recuei um pouco para… Ooh. Quando ela
segurou sua espada, seus braços empurraram seus melões juntos. Mas que
decote impressionante…
Argh! Vamos lá! Pare de cair na armadilha dela, estúpido!
Eu não conseguia manter meus olhos em sua maldita espada. Como
deveria lutar nessa condição?
Para ser honesto, nem a guerreira nem sua amiga maga eram lá muito
talentosas. Mas, nesse ritmo, eu nunca iria derrubá-las. Que deus me ajude se
ela sofresse com algum problema crítico com suas vestimentas. Eu
provavelmente seria cortado em pedaços na mesma hora.
Como descobriram minha única fraqueza?! Quem me vendeu, droga?!
Certo, se acalma.
Eu estava apenas me distraindo, simples assim. Isso não era uma
técnica deliberada. A questão era… o que eu faria sobre isso? Se quisesse
transformar tudo em uma luta justa, precisava fazer com que ela de alguma
forma cobrisse os peitos. E seu traseiro agradavelmente rechonchudo
também, por falar nisso. Como poderia manipulá-la para colocar roupas de
verdade?
Talvez pudesse dizer algo para tentar deixá-la toda envergonhada…
Hmm, não. Se tivesse escolhido essa roupa deliberadamente, essa
abordagem poderia sair pela culatra.
— Hmph!
Claro! Eu já sabia!
Estão todos familiarizados com a história do vento do norte e do sol?
Era uma vez, o vento norte e o sol competiram para ver qual deles
poderia obrigar uma certa viajante a se despir. O vento do norte tentou soprar
suas roupas com rajadas frias e penetrantes, mas a viajante simplesmente
vestiu camadas extras de roupas. O sol, entretanto, simplesmente aqueceu
tudo até que ela começou a tirar as roupas por vontade própria.
Em outras palavras, se deixasse as coisas boas e quentes aqui, ela tiraria
tudo…
Não, não, não! É exatamente isso que não queremos, lembra?! Certo.
Frio. Precisávamos de frio.
— Você não tem para onde correr — disse a mulher guerreira.
Olhei para trás e percebi que tinha me apoiado contra a parede do
armazém. Mas isso não era um problema. Eu já tinha elaborado minha
estratégia. Sem uma palavra, estendi minhas mãos em direção à minha
agressora com poucas roupas.
— Campo de Sincelo.
No momento em que canalizei minha energia mágica através da minha
mão direita, o ar extremamente frio saiu do nada para preencher o armazém.
A temperatura caiu trinta graus centígrados quase que na mesma hora. De
repente, ficou como se estivéssemos dentro de uma geladeira.
— Mas que…?!
Eu já podia ver os arrepios nos braços da mulher de biquíni, mas ainda
não tinha acabado. Desta vez, deixei minha energia mágica fluir para minha
mão esquerda.
— Explosão.
Uma grande rajada de vento fez a mulher voar para trás. Quando ela
parou de rodopiar, a enviei até a entrada do armazém. Eu estava pensando
em chamar esse pequeno feitiço combinado de “Explosão Polar”.
— Haa-choo!
O ar agora estava tão gélido que senti que poderia pegar um resfriado
também, mas consegui fazer exatamente o que tinha planejado. Tremendo e
espirrando, a mulher com armadura de biquíni gesticulou freneticamente
para suas amigas pedindo por um casaco. Agora eu estava livre de perigos.
Uma vez que aqueles seios estivessem escondidos da vista, não havia como
ela levar a melhor sobre mim. Tudo o que restava agora era deixar todo
mundo inconsciente e começar com a minha fuga…
— Estou aqui, pessoal! Desculpe por deixar todo mundo esperando!
Ou assim pensei…, até que meu mais novo desafiante apareceu.
O homem na porta parecia familiar. Algo em seu rosto realmente me
fez sentir um pouco de… nostalgia. Eu já tinha visto aquele cara em algum
lugar, não tinha? Mas onde? Ele não estava indo em minha direção.
— Tch. Esse bostinha se tornou um verdadeiro estorvo, hein? Hic…
Para trás, pessoal! Não há razão para se unir contra uma criança
melequenta… Vou derrubá-lo pessoalmente.
O homem estava obviamente confiante em suas habilidades, mas
também parecia que poderia estar bêbado. Mesmo à distância, eu podia vê-lo
balançando instavelmente, e seu rosto estava tingido de vermelho.
Sério. Quanto mais eu olhava para o cara, mais familiar ele parecia.
Com o cabelo castanho e o rosto levemente violento, meio que se parecia
com Paul… Pensando bem, também soava muito parecido com ele. É. Se
colocassem Paul em uma greve de fome e não o deixassem ter uma boa noite
de sono por alguns meses, provavelmente acabaria parecendo algo assim.
Isso me fez hesitar um pouco quanto a lançar qualquer ataque sério contra o
sujeito.
Mas, é claro, dentre todas as coisas, de jeito nenhum meu pai estaria na
verdade andando com um bando de sequestradores em Millis.
— Ei, você! Acha que pode simplesmente entrar aqui e bater no meu
pessoal, hein? Bem, vou fazer você viver para se arrepender!
O homem deu um passo à frente de seu grupo, cuspiu algumas palavras
ferozes em minha direção e puxou um par de espadas de suas bainhas.
Qualquer um capaz de empunhar duas armas com competência tinha que ser
um mestre espadachim. Só por sua postura, tive a nítida sensação de que
estava em um nível totalmente diferente da mulher de armadura de biquíni.
Canhão de Pedra seria o bastante para lidar com ele?
Hmm… Eu realmente não queria usar nada que pudesse matar o cara,
entretanto…
Talvez sentindo minha hesitação, o homem avançou abruptamente.
— Wah…!
Ele me pegou um pouco desprevenido, mas consegui lançar um feitiço
Canhão de Pedra atrasado. O homem reagiu na mesma hora, girando a
espada em sua mão direita diagonalmente para desviar o projétil.
— Estilo de Deus da Água, hein?!
— Isso não é tudo que tenho a oferecer, parceiro!
Ele já estava quase em cima de mim. Agindo por puro reflexo,
desencadeei uma onda de choque e me lancei voando para trás no ar.
— Hah!
— Uau!
Ativei meu Olho da Previsão para espiar o futuro e me ajudar a evitar
seus ataques posteriores. O homem era rápido com suas espadas, mas seu
jogo de pés parecia um pouco desleixado. Provavelmente estava relacionado
a todo o álcool em seu sistema. Afinal de contas, talvez eu pudesse derrota-
lo.
— Tch! Ele se move como o moleque, caramba… Vierra! Shierra!
Venham me dar uma mão!
Só assim, a mulher de armadura de biquíni e sua amiga maga voltaram
a avançar. E quanto àquilo de me derrubar sozinho, hein? Afinal, que tipo de
homem é você?
A mulher guerreira, agora toda coberta com um sobretudo, começou a
me circular. E a maga já estava começando a entoar outro encantamento.
Isso definitivamente não era bom. Os ataques do homem eram ferozes e
persistentes, e eu estava ocupado apenas me esquivando de todos eles.
Por sorte, ainda tinha um ou dois truques na manga.
— Wah!
— Ugh!
Usando a magia vocal do povo-fera, parei o homem em seu caminho
por apenas um instante, me dando tempo para enviá-lo voando com uma
onda de choque.
— Canhão de Pedra!
Mantendo um olho no homem enquanto ele caía para trás, disparei um
feitiço ofensivo na maga. Em seguida, quando a mulher da armadura de
biquíni estava balançando sua espada em minha direção, usei meu Olho da
Previsão para escapar do ataque e acertar um contragolpe sólido.
A maga estava concentrada em seu encantamento. Meu feitiço a atingiu
em cheio e a deixou inconsciente. A mulher guerreira cambaleou para trás,
mas ainda não estava fora da luta, isso era notável a julgar pela fúria em seu
olhar.
E, claro, agora, o homem estava voltando direto para mim de novo.
— Shierra…! Você vai pagar por isso, seu merdinha!
Assim que o homem deu um passo à frente, transformei o chão
embaixo dele em um pequeno espaço de pântano lamacento. Seu pé
mergulhou direto naquilo, e ele caiu desajeitadamente para frente no chão.
— Capitão!
Por um momento, os olhos da guerreira ficaram sobre ele em vez de
mim. Péssima ideia. Sem qualquer palavra, disparei outro Canhão de Pedra
direto nela.
— Ah!
Dois já eram, faltava uma.
— Vierra! Puta merda!
Empurrando uma de suas espadas de volta para a bainha, o homem
enfiou a outra na própria boca. Ativei meu Olho da Previsão.
O homem vai correr para mim de quatro.
Esse cara era um cachorro ou o quê?
Disparei vários feitiços Canhão de Pedra para mantê-lo afastado e
recuei para criar mais distância entre nós. Infelizmente, o armazém não era
um dos grandes. Não havia maneira fácil de impedir que ele diminuísse a
distância.
— Raaaaah!
Torcendo o corpo de um jeito bem estranho, o homem saltou do chão.
Ele de alguma forma conseguiu sacar a espada em seu quadril, mesmo
enquanto me atacava como um animal. Seus ataques foram rápidos e
furiosos, partindo de posturas tão estranhas que eu nunca saberia o que
esperar.
O homem vai agarrar a espada na boca com a mão esquerda e a
balançar para baixo.
Que movimento bizarro.
A cada passo o cara voltava a desafiar minhas expectativas. Sem o Olho
da Previsão, eu nunca teria conseguido evitar aquele último ataque. Ainda
assim, sua lâmina roçou a ponta do meu nariz. O corte formigou
dolorosamente.
Meu coração estava batendo forte no meu peito. Não estava tentando
matar o homem, mas o sujeito transbordava com a intenção de tirar minha
vida. Por alguma razão, isso realmente não parecia importar para ele no
momento. Isso devia ser óbvio desde o começo. Se eu não desse tudo o que
tinha, não conseguiria sair do armazém vivo.
Cerrei meus dentes e me abaixei, ficando quase agachado. Pensei no
meu treinamento com Ruijerd e Eris. O estilo feroz e bestial desse homem
estava provavelmente perto da forma como Ruijerd atacava quando estava
apenas atuando, mas seus movimentos não eram tão rápidos ou perfeitos
quanto os do Superd. O fator estranheza era sua principal vantagem. Eu
poderia fazer isso.
Na próxima vez que ele me atacasse, eu acertaria um contragolpe e…
Nesse ponto, percebi que o homem havia parado de se mover.
Um momento depois, percebi que a calcinha que eu estava usando na
cabeça agora estava no chão do armazém.
Merda, isso não era bom. Eles veriam meu rosto…
— É você… Rudy?
Rudy?
Existia apenas um homem que me chamava assim.
E aquela voz… não era mais a rouquidão de algum bêbado zangado. De
repente, parecia uma muito familiar.
— Pai…?
✦✦✦✦✦✦✦
Nos anos desde que o vi pela última vez, Paul Greyrat evidentemente
havia passado por uma espécie de transformação.
Seu rosto estava magro; havia olheiras sob seus olhos e barba por fazer
nas bochechas. Seu cabelo estava despenteado e seu hálito cheirava a bebida.
Em basicamente todos os aspectos, meu pai parecia um completo
maltrapilho. A diferença para o homem que eu lembrava era… dramática,
para não dizer mais.
Capítulo 02:
A História de Paul
Ponto de Vista do Paul
Quando abri os olhos, me vi no meio de uma planície relvada.
Era um trecho comum de terreno plano e limpo, mas, estranhamente,
parecia familiar. Tentei determinar onde estava e a resposta me veio à mente
em pouco tempo. Estava ao sul do Reino Asura, perto de uma cidade em que
passei algum tempo. Era o lugar onde fiquei quando estava aprendendo o
Estilo Deus da Água… e a cidade natal de Lilia.
Naturalmente, concluí que isso devia ser algum tipo de sonho. Afinal,
não tinha motivo para estar no local. Ainda assim, isso com certeza
despertou memórias. Quantos anos passei nesta área? Um? Talvez dois?
Tudo que eu sabia era que com certeza não tinha ficado muito tempo.
A maioria das minhas memórias daquele período da minha vida dizia
respeito ao salão de treinamento e aos alunos mais velhos com quem treinei.
Eram um bando de idiotas arrogantes com bocas grandes e nenhuma
habilidade real. Eu tinha um talento real, então estavam sempre ocupados
tentando me manter no “lugar apropriado”. E também sempre odiei que me
mandassem fazer algo – afinal, a única razão pela qual fugi de casa foi para
escapar do controle do meu velho.
Mas ele pelo menos era um homem genuinamente competente e
intimidador, com poder suficiente para justificar seu ego. Os alunos do
último ano, por outro lado, eram apenas um monte de lixo inútil com egos
inflados. Quando cheguei ao nível intermediário, ainda estavam presos nos
estágios finais de suas lições de iniciante. Com certeza foi meio patético.
Inferno, mesmo o mestre do salão de treinamento só tinha alcançado o
nível Avançado no Estilo Deus da Água. Ele era um daqueles velhos idiotas
que adoravam gritar sobre “coragem” e “determinação”, apesar do fato de
que nunca havia feito nada de demais em lugar nenhum. Eu queria mostrar a
cada um deles o quão bom seria no futuro.
Mas, nunca tive a chance. Acabei perdendo minha paciência com suas
besteiras, transei com Lilia por despeito e fugi durante a noite. Passei algum
tempo de olho nela… mas, naquele momento, tudo que queria era tomar algo
que todos estimavam.
Na manhã seguinte, estavam todos procurando furiosamente por
qualquer vestígio meu. Fugi para outro país com um sorriso de escárnio no
rosto.
Deus, eu realmente era um merdinha estúpido. Não me importava com
o quanto os outros alunos me odiavam, mas descontar minha frustração em
Lilia com certeza não foi uma das melhores coisas que fiz.
— Mm…
O vento estava aumentando. Um pouco de poeira soprou em meus
olhos e fiz uma careta. Um momento depois, houve um pequeno puxão na
minha manga.
— Papai? Onde estamos…?
— Hm?
Por algum motivo, estava segurando Norn em meus braços. Ela estava
olhando para mim com ansiedade nos olhos.
Nesse ponto, finalmente percebi que estava realmente parado no meio
do nada com as roupas que usava em casa. Podia sentir o chão sólido sob
meus pés… e o calor do corpo da minha filha contra o meu peito.
Isso não era um sonho.
— Mas que diabos…?
Eu não fazia ideia do que estava fazendo neste lugar. Se estivesse
sozinho, provavelmente teria acreditado que era um sonho. Mas Norn estava
bem ali, em meus braços.
Sim. Era a pequena Norn, claro. Minha adorável filha de três anos.
Eu não a abraçava assim com muita frequência. Estava querendo ser
algo mais apropriado, um tipo de pai digno, então mantinha minhas
expressões físicas de afeto ao mínimo. Então o que ela estava fazendo em
meus braços?
Ah, lembrei… Finalmente lembrei.
Apenas alguns momentos atrás, estava conversando com Zenith em
nossa casa.
— Sabe, quando as meninas crescem um pouco, não gostam de ser
abraçadas pelo pai. Você devia aproveitar para as mimar enquanto ainda
pode.
— Nah, desta vez quero demonstrar alguma dignidade paterna.
Comparada a Rudeus, Norn parece uma criança comum, certo? Se eu fizer
tudo direitinho, aposto que posso convencê-la de que sou o melhor homem
do mundo.
— Essa não foi a abordagem que seu pai adotou? Achei que você o
odiava.
— Você tem razão… Tudo bem, me dá ela aqui.
Foi apenas uma conversa boba e casual. Lilia também estava por perto,
ensinando uma coisa ou outra para Aisha. Depois de perceber que a garota
era “talentosa”, decidiu cultivar seus talentos por meio de aulas e sermões
constantes. Argumentei que a criança ficaria mais feliz se a deixássemos ter
uma infância mais despreocupada, mas Lilia resistiu com tanta ferocidade
que tive de recuar.
Entretanto, a criança realmente estava crescendo rápido. Ela começou a
andar muito cedo e absorveu tudo o que lhe ensinamos como se fosse uma
esponja. Lilia era uma boa professora, então isso provavelmente era
esperado, mas Aisha estava progredindo tanto que me preocupou que
pudesse haver algo de errado com Norn.
Quando falei com Lilia, ela disse: “Aisha não é nada especial em
comparação com o jovem mestre Rudeus. E a Senhorita Norn é uma criança
perfeitamente normal.”
Eu não me importava se Norn era “normal” ou não, sério. Mas quando
a imaginei crescendo na sombra de dois irmãos brilhantes, isso me fez sentir
um pouco mal por ela.
Lembrei de pensamentos como aqueles que passavam pela minha
mente… E então fui subitamente envolvido por uma luz branca cegante.
É, finalmente lembrei. Não havia nenhum tipo de lacuna na minha
memória. O fato de ainda estar com Norn em meus braços era prova disso.
Fazia algum tempo desde que ela aprendeu a andar, mas eu a estava
segurando contra o peito.
Estava acontecendo algo muito estranho. Isso ficou imediatamente
óbvio.
— Papai? — Norn voltou a falar comigo com uma voz inquieta. Ela
estava observando o meu rosto o tempo todo.
— Está tudo bem, Norn. — Afagando suavemente sua cabeça, olhei ao
redor da área. Zenith e Lilia não estavam em lugar nenhum. Será que
estariam por perto? Ou eu era o único que tinha sido levado ao lugar?
Nesse caso, por que Norn ainda estava comigo?
Uma possibilidade surgiu em minha mente.
Certa vez, ativei uma armadilha muito desagradável nas profundezas de
um labirinto – um círculo de teletransporte escondido. E isso parecia muito
semelhante. Na época, tive a sorte de ser teletransportado para perto. Mas
reflexivamente agarrei Elinalise pela manga quando a armadilha ativou, o
que a arrastou junto comigo. Daquela vez ela ficou bem chateada.
Se não tivesse sorte, uma armadilha de teletransporte seria o tipo de
coisa que poderia oferecer uma morte instantânea. Pisar naquilo não foi
minha culpa, já que nosso macaco batedor deveria ter avistado a coisa de
antemão… mas isso não era mais importante. Resumindo, a magia de
teletransporte era capaz de mover alguém instantaneamente – e qualquer
pessoa com quem estivesse em contato físico – para um local diferente. Isso
explicaria por que Norn ainda estava comigo, mas as outras não.
Mas por que fui teletransportado? Não houve nenhum aviso. Alguém
tinha feito isso de propósito?
Para ser honesto, eu tinha inimigos em todos lugares. Não seria
surpreendente se alguém me atacasse furtivamente, dadas todas as coisas
ruins que fiz no passado. Mas magia de teletransporte? Isso não fazia
sentido. Por um lado, não havia nenhum encantamento conhecido para isso.
Para teletransportar alguém, seria necessário usar um círculo mágico ou um
item mágico especial. Itens de teletransporte foram proibidos em todo o
mundo, e a criação de círculos de teletransporte foi proibida por tanto tempo
que a arte em si foi praticamente perdida. Por que alguém iria a extremos,
extremos perigosos, apenas para se vingar de um único homem como eu? E
por que simplesmente me jogariam no meio do nada…?
Será que o responsável era alguém do salão de treinamento? Talvez
ainda estivessem guardando rancor e me teletransportaram para longe para
que pudessem colocar as mãos em Lilia. Talvez me jogaram neste lugar para
passar alguma mensagem… e quando eu voltasse para minha casa,
encontraria Zenith e Lilia sendo violadas por uma gangue de bandidos
cruéis.
Droga. Isso soava como algo que aqueles bastardos iriam pensar.
— Uh, Papai…
— Não se preocupe, Norn. Está tudo bem. Vamos voltar para casa
rapidinho.
Tentando tranquilizar tanto a mim quanto Norn, parti em direção à
cidade vizinha. Felizmente, tinha uma moeda de ouro Asurano escondida na
bainha da minha espada, era um fundo para emergências. E graças aos
velhos hábitos de meus dias de aventuras, sempre mantive minha espada
comigo, mesmo quando dormia. Só a deixava de lado durante as noites mais
gostosas. Meu cartão de aventureiro também estava guardado dentro da
bainha. Era só uma pequena precaução para qualquer tipo de emergência.
Fui até a Guilda local e troquei minha moeda de ouro por moedas de
valores menores. A recepcionista me devolveu nove moedas de prata
Asurana e oito moedas de cobre grande. Pelo visto, em algum momento
aumentaram suas taxas, mas isso seria mais do que eu precisaria, de qualquer
forma. Revisei rapidamente as tarefas disponíveis, encontrei uma para uma
entrega de emergência e a aceitei na hora.
Meu cartão ficou sem magia há anos, então a senhora atrás do balcão
teve que primeiro o recarregar para mim. Quando as palavras reapareceram,
ela exclamou surpresa e me perguntou por que um aventureiro de rank S
estava aceitando um trabalho como aquele. Como era uma solicitação de
emergência, as restrições normais não se aplicavam, mas em circunstâncias
normais teria sido uma tarefa de rank E.
Eu não tinha nenhum motivo real para esconder minha situação, mas
não queria perder tempo explicando. Dei uma vaga explicação confusa,
depois perguntei se poderia pegar um cavalo emprestado. Essa era uma das
vantagens especiais que a Guilda oferecia aos aventureiros de rank S.
Quando aceitava uma entrega urgente, emprestariam algum transporte de
graça. Claro, precisaria devolver o cavalo assim que o serviço fosse
concluído… mas, desta vez, estava planejando cavalgar em uma direção
totalmente diferente. Me senti mal pelo cliente, porém precisava lidar com
uma emergência pessoal.
O cavalo que me entregaram acabou por ser um espécime bastante
impressionante. Tive sorte. Esse trabalho de entrega devia ser, de fato, muito
urgente. Havia uma possibilidade real de perder meu status de aventureiro
por causa dessa façanha, mas poderia viver com isso. Bem, não planejava
voltar a ganhar a vida com essas coisas.
Coloquei Norn no cavalo e pulei atrás dela.
Na mesma hora galopamos para longe da cidade.
No meio da viagem, Norn começou a passar mal. A menina não tinha
experiência em andar a cavalo, e eu fiz com que viajássemos dia e noite.
Provavelmente era demais para ela aguentar.
Com o tempo que levou para cuidar de sua saúde, não consegui voltar
para a Região de Fittoa durante uns bons dois meses. Demorou tanto que
quase me arrependi por não ter pego uma carruagem para fazer o percurso.
Eu já tinha falhado no serviço de entrega, é claro, mas a taxa de quebra de
contrato não seria tão ruim.
No momento, porém, eu estava caindo em desespero. Ainda não
tínhamos chegado a Buena Village, mas finalmente descobri o quanto a
situação era grave.
Tudo na Região de Fittoa havia desaparecido.
Fiquei perplexo. Totalmente perplexo. Mas que diabos era isso? Onde
Buena Village tinha ido parar? Onde estavam Zenith e Lilia? A Cidadela de
Roa também havia desaparecido. Isso significava que até Rudeus sumiu?
Isso não pode ser verdade.
Em algum momento, caí de joelhos graças ao choque e angústia. As
palavras “foram eliminados por uma armadilha de teletransporte” ecoaram
dentro da minha mente.
Foi uma frase que ouvi mais de uma vez em meus dias de aventureiro,
quando ainda estava explorando labirintos. As armadilhas de teletransporte
eram a única coisa com a qual deveria estar sempre atento. Elas acabavam
dividindo grupos e deixando todos perdidos, sem saber a localização uns dos
outros. Acionar uma era uma ideia muito, muito ruim. Ouvi inúmeras
histórias de times veteranos que foram totalmente eliminados por causa
dessas coisas. Uma vez, vi um homem atordoado contando como todo o seu
grupo havia pisado em um círculo de teletransporte. Ele conseguiu se juntar
a outro aventureiro e lutar para sair do labirinto, apenas para descobrir que
todos os seus amigos morreram.
Mas por que isso aconteceu? Logo conosco?
— Papai… ainda não chegamos em casa?
A voz de Norn me trouxe de volta à realidade. Sua mãozinha estava
segurando minha manga.
Sem dizer uma palavra, a abracei com força.
— O que foi, Papai?
Isso mesmo. Eu sou o pai dela.
A garota ainda não entendia o que havia acontecido. Mas não estava
preocupada, porque eu estava com ela. Eu era o pai dela. Agora eu era o pai,
droga! Não poderia mostrar nenhuma fraqueza. Tive que permanecer calmo
e confiante. Ia ficar tudo bem.
O teletransporte era uma armadilha perigosa e eu não fazia ideia do por
que disso ter acontecido. Mas estava vivo, não estava? Zenith era uma ex-
aventureira de pleno direito. E embora Lilia não fosse tão ágil quanto
costumava ser antes do envenenamento, ainda sabia como usar uma espada.
Aisha, porém…
Pense, droga. Lilia estava com ela naquele momento?
Não conseguia lembrar… Mas não poderia perder as esperanças.
Por enquanto, só teria que acreditar que Lilia estava segurando a mão
da filha quando aquela luz nos atingiu.
✦✦✦✦✦✦✦
Devolvi o cavalo para a Guilda na cidade mais próxima e comecei a
reunir informações.
Parecia que a calamidade mágica realmente havia afetado toda a Região
de Fittoa. Philip e Sauros estavam desaparecidos, então o irmão mais velho
de Philip estava trabalhando como lorde interino. No entanto, ele estava sob
intensa pressão política para assumir a responsabilidade pelo desastre. Pelo
que parecia, estava prestes a ser destituído de sua posição. Toda a energia do
homem estava atualmente dedicada à sua proteção, então não havia tomado
quaisquer medidas reais para lidar com a calamidade em si. Em vez de
cuidar de seu povo, o bastardo egoísta estava tentando salvar sua própria
pele. E ainda perguntavam por que eu não suportava nobres Asuranos.
No decorrer de minhas investigações, conheci um velho chamado
Alphonse. Ele se apresentou como um mordomo que estava a serviço de
Philip antes do desastre. Sua lealdade à família Boreas Greyrat era
aparentemente inabalável, apesar das circunstâncias atuais. Estava montando
um campo de refugiados, usando o dinheiro do próprio bolso, e queria que
eu o ajudasse com as ações.
Quando perguntei por que ele me queria, o velho explicou que Philip às
vezes mencionava meu nome. Pelo visto, me considerava “um homem que
mostra seu verdadeiro valor em uma crise, mas também tende a criá-las por
meio de sua própria falta de visão”. Bem, eu não pedi para ser criticado, mas
tanto faz.
Alphonse admitiu que estava um tanto hesitante em me abordar com
base nesta questionável “declaração”. Assim que levou em consideração o
fato de que eu era o pai de Rudeus, entretanto, decidiu que seria sábio
procurar minha ajuda.
Eu tinha ouvido um pouco sobre como as coisas estavam indo em Roa
por meio de cartas, mas ainda era bom ver que meu filho era tão bem
considerado por alguém com quem provavelmente nem interagia com tanta
frequência. Em todo caso, aceitei a oferta de Alphonse com prazer e comecei
a trabalhar na mesma hora.
Depois de um mês, fizemos muito progresso.
Alphonse era um homem com muitas conexões. Em apenas algumas
semanas, lidou com todos os preparativos e reuniu trabalhadores suficientes
para colocar o campo de refugiados em funcionamento. Foi um feito
realmente impressionante.
De minha parte, recrutei a maioria dos refugiados mais jovens que se
reuniram na área para uma organização chamada Esquadrão de Busca e
Resgate de Fittoa. Viajamos por todo o país, ajudando pessoas que foram
desalojadas pela calamidade. Claro, meu objetivo principal não era salvar
um bando de estranhos. Antes de mais nada, estava procurando minha
família.
Neste ponto, a luta pelo poder na capital real aparentemente se
resolveu, já que Alphonse começou a receber fundos de recuperação de
desastres do governo. Deixei um bilhete no campo de refugiados para
Rudeus e parti com meu esquadrão para o País Sagrado de Millis, onde
ficava a sede da Guilda dos Aventureiros. Asura e Millis eram dois dos
maiores países do mundo. Achei que as informações que procurava
deveriam estar em um ou outro. Parecia ser a abordagem lógica.
Honestamente, pensei que encontraria todo mundo em breve.
Mas que otimismo mais cego.
✦✦✦✦✦✦✦
Meus primeiros seis meses em Millis foram bem produtivos.
No final das contas, um grande número de Fittoanos foi
teletransportado para este continente, e nós saímos resgatando cada um
deles. Alguns já tinham sido vendidos como escravos, e libertar à força a
“propriedade” de outra pessoa era contra a lei em Millis. Mas a ideia de
alguém vendendo Zenith ou Lilia como escrava me deixou tão furioso que
nunca hesitei em infringir essa lei. Me apeguei teimosamente a uma política
de resgatar todos que encontramos.
Depois de decidir esse curso de ação, pedi ajuda à família de Zenith.
Acontece que minha esposa era de uma casa nobre com algum poder real em
Millis. Eram conhecidos por produzir muitos cavaleiros famosos, entre
outras coisas. Com a ajuda deles, comecei a preparar o terreno para libertar
todos os escravos que localizamos.
No final das contas, nossos esforços foram frutíferos. Nos movemos
rapidamente e encontramos muitos Fittoanos perdidos e sem um tostão em
pouco tempo. Depois de retirá-los de qualquer situação difícil em que
tivessem ficado, fornecemos fundos para viagens aos capazes de voltar para
casa, recrutamos todos os voluntários dispostos em nosso esquadrão e
encontramos lugares para as crianças e idosos refugiados ficarem.
Libertar os escravos exigia mais esforço, é claro. Pagávamos pela
liberdade de tantos quanto podíamos. Quando isso não era uma opção,
pedíamos para que a família de Zenith pressionasse. E quando isso não
funcionava, procurávamos chances de tomá-los de seus donos.
Naturalmente, tomar escravos à força não agradava a nobreza Millis
como um todo. Alguns até enviaram suas forças pessoais atrás de nós.
Sofremos com numerosas fatalidades.
Ainda assim, eu não iria parar. Minha moral estava alta. Estava
salvando pessoas desesperadas que precisavam de ajuda. E, por esse motivo,
meu time ficou comigo apesar do perigo.
Usei tudo o que tinha – o nome Greyrat, minha conexão com a família
de Zenith e minha reputação como um ex-aventureiro – para encontrar
maneiras de contornar os obstáculos em nosso caminho. Mas não importa o
quanto trabalhamos, não importa o quão exaustivamente eu tenha
pesquisado, não conseguia encontrar nenhuma informação sobre Zenith ou
Lilia.
Inferno, eu não tinha ouvido nada sequer sobre Rudeus. Aquele menino
se destacava como uma pedra no sapato em todos os lugares que ia, mas
agora parecia que tinha sumido da face do planeta.
✦✦✦✦✦✦✦
Antes que eu percebesse, um ano inteiro havia se passado.
A essa altura, ouvíamos falar cada vez menos dos Fittoanos
teletransportados. Provavelmente tínhamos encontrado quase todos que
iríamos encontrar no Continente Millis e nas regiões ao sul do Continente
Central. Ainda havia algumas aldeias menores que não havíamos revistado e
vários escravos que não havíamos conseguido libertar, mas era só isso. Meu
esquadrão estava trabalhando sistematicamente para libertar os escravos
restantes. Assim que colocamos nossas mãos sobre eles, o resto foi bastante
simples.
Eu sabia que era uma abordagem violenta. Sabia que cada escravo que
libertamos despertava mais ódio da nobreza local. E mesmo assim continuei.
Às vezes, isso fazia com que meu pessoal fosse atacado na rua. Às vezes,
ficavam gravemente feridos ou eram até mesmo assassinados. E alguns
membros do esquadrão me culparam por isso.
Talvez estivessem certos. Talvez eu pudesse ter evitado que as coisas
ficassem tão feias.
Mas não importa o que dissessem, não mudaria minha abordagem neste
ponto. Estava muito comprometido com o caminho que escolhi.
Começamos a receber mais notícias sobre Fittoanos mortos do que
vivos. Tinha havido mais más notícias do que boas desde o início, mas a
proporção só piorava.
Para ser franco, as pessoas que encontramos vivas eram uma minoria.
Etos, Chloe, Laws, Bonnie, Lane, Marion, Monty… já estavam todos
mortos. Cada vez que ficava sabendo de outro conhecido morto, meu sangue
gelava.
Às vezes, os membros do esquadrão caíam em lágrimas com as últimas
notícias terríveis. Mais de uma vez, chegamos um pouco tarde demais para
salvar alguém, e um amigo ou membro da família descontava sua raiva em
mim, exigindo saber por que levei tanto tempo para nos levar até aquela
cidade ou vila.
Havia o risco de ficarmos presos em algum lugar se não planejássemos
nossos movimentos com cuidado, portanto, nunca achei que minha estratégia
estivesse errada. Sob minha liderança, conseguimos salvar vários milhares
de refugiados.
Claro, se tivesse conseguido falar com os membros do meu antigo
grupo, o Presas do Lobo Negro, poderiam ter nos ajudado procurado
também no Continente Demônio e no Continente Begaritt. Mas só consegui
entrar em contato com um deles, e o cara desapareceu logo após algumas
breves conversas. Eu não tinha ideia do que ele estava fazendo.
Não iria dizer que era um sem coração nem nada do tipo. Para começo
de conversa, nunca nos demos lá muito bem, e houve uma briga e tanto
quando eu debandei. Depois da maneira como me despedi, não seria
surpreendente se virassem as costas para mim.
Afinal de contas, por que tive que abandonar as coisas deixando um
gosto tão azedo em tudo? Fui um moleque tão estúpido.
Mas não fazia mais sentido pensar naquilo.
✦✦✦✦✦✦✦
Um ano e meio se passou desde “O Incidente de Deslocamento”.
Atualmente, o álcool era a única coisa que me fazia continuar.
Começava a beber pela manhã e não parava mesmo à noite. Eu, literalmente,
não ficava sóbrio nunca.
Sabia que deveria me conter. Mas sempre que o efeito da bebida
passava, os mesmos pensamentos voltavam a surgir na minha cabeça.
Começava a pensar que minha família estava morta.
Pensaria nas maneiras como poderiam ter morrido. Ficava me
questionando sobre o que havia acontecido com seus corpos. Não conseguia
pensar em mais nada.
Alguém poderia me culpar? Até aquele meu filho absurdamente
talentoso havia desaparecido sem deixar vestígios. Eu não queria acreditar.
Realmente não queria. Mas era bem provável que ele estivesse morto. Todos
provavelmente morreram em algum momento dos últimos dezoito meses –
com lágrimas escorrendo pelo rosto, esperando que eu os resgatasse.
Cada vez que imaginava isso, pensava que poderia enlouquecer. Afinal
de contas, o que diabos eu estava fazendo? Por que perdi todo esse tempo
ajudando um bando de estranhos? Deveria ter ido direto para as partes mais
perigosas do mundo, desde o começo. Poderia ter, de alguma forma,
conseguido, mesmo se estivesse sozinho.
Fiz a escolha errada e acabei perdendo minha família. As pessoas de
quem mais gostava foram roubadas de mim, e eu nunca poderia recuperá-las.
É claro que não queria acreditar nisso.
Então bebia. Quando estava bêbado, pelo menos, sentia algo parecido
com felicidade.
Na verdade eu já não estava mais nem trabalhando direito.
Em mais seis meses, estaríamos iniciando uma operação para repatriar
muitos dos Fittoanos que encontramos no Continente Millis. Eram idosos,
mulheres, crianças e pessoas tão doentes que mal podiam se mover. Mesmo
se lhes déssemos dinheiro, não havia garantia de que poderiam suportar uma
longa jornada. Mas todos queriam voltar para sua terra natal, então meu
esquadrão os escoltaria de volta ao Reino Asura.
O planejamento estava avançando de forma constante. Mas, apesar de
meu papel como capitão do time, faltei às reuniões e passei meus dias
bebendo.
Permaneceria em Millis após a operação, junto com alguns outros
membros importantes do Esquadrão de Busca e Resgate. Depois de tudo
feito, entretanto, nossas atividades seriam drasticamente reduzidas. Em
outras palavras, iriam interromper a busca por vítimas depois de apenas dois
anos. Parecia muito cedo… mas, ao mesmo tempo, eu tinha que admitir que
entendia a lógica por trás disso. Continuar procurando pelo interior, a esta
altura, não passaria de desperdício de dinheiro.
No final, não consegui encontrar um único membro da minha família.
Fracassei.
Agora que estava bêbado o tempo todo, os outros membros do
esquadrão começaram a manter distância de mim. Mas não poderia culpar
nenhum deles. Ninguém quer perder tempo lidando com algum idiota
bêbado.
Porém, havia algumas exceções, e Norn era uma delas.
— Papai! Sabia? Adivinha o que aconteceu quando eu estava lá fora!
Não importa o quão bêbado eu estivesse, Norn sempre conversaria
alegremente comigo. Esta doce garotinha era tudo o que restava da minha
família.
Certo. Havia uma boa razão para eu não ter ido para o Continente
Demônio ou Begaritt, não é? Eu tinha que cuidar de Norn. O que deveria
fazer, abandonar minha filha de quatro anos? Não havia nenhuma maneira
de deixá-la para trás e vagar para algum lugar onde pudesse morrer
facilmente.
— Hm? O que foi, Norn? Aconteceu alguma coisa?
— Sim! Quase caí na rua lá fora, mas um careca grandalhão me ajudou!
E ele me deu isso aqui! Olha só!
Com um grande sorriso, Norn me mostrou a maçã vermelha brilhante
em suas mãos. Com certeza parecia fresca e suculenta.
— Ah, é? Bem, sorte sua. Você disse “obrigada” como uma boa
menina?
— Sim! Quando eu disse obrigada, o careca me deu um tapinha na
cabeça!
— Sério? Acho que você encontrou uma pessoa muito legal. Mas não
deve chamá-lo de “careca”, viu? Alguns caras são meio sensíveis com
relação ao cabelo.
Conversar com minha filha era sempre muito divertido. Norn era a luz
da minha vida. Se alguém tentasse machucá-la, acabaria com todos, mesmo
se isso acabasse começando uma briga com o Papa da Igreja Millis.
— Capitão! Temos um problema!
Quando estava começando a me sentir um pouco melhor, um dos meus
homens irrompeu em meu quarto. Não poderia dizer que fiquei satisfeito ao
ter uma conversa com minha filha interrompida assim. Poderia ter jogado o
cara para fora com um rugido de raiva, mas Norn ainda estava comigo. Um
pouco de orgulho e mesquinhez manteve minha voz calma.
— O que está acontecendo?
— Os caras que trabalharam hoje acabaram de ser atacados!
— O quê, sério?
Agora, quem iria fazer uma coisa dessas?
Que pergunta idiota. Com certeza eram aqueles aristocratas idiotas de
novo. Havíamos explicado centenas de vezes que residentes inocentes do
Reino Asura foram escravizados como resultado de uma calamidade mágica,
mas os canalhas teimavam e se recusavam a entregá-los. Pelo que me
lembrava, planejávamos resgatar um escravo de algum deles.
— Certo! Pessoal, coloquem seus equipamentos! Vamos! — Corri para
fora do meu quarto e chamei os lutadores do esquadrão. Nenhum deles era
um guerreiro lá muito experiente, mas também não era como se
estivéssemos indo contra um bando de exploradores de labirinto veteranos.
Com meu pessoal seguindo de perto, fui para o lugar onde a luta havia
começado.
A caminhada não foi longa. Tinham atacado o prédio ao lado – um dos
armazéns do Esquadrão de Busca e Resgate, um lugar em que
costumávamos guardar roupas e suprimentos para nosso pessoal. Se nossos
inimigos tivessem encontrado isso, teríamos um problema em nossas mãos.
Talvez tivéssemos que mudar nossa base de operações.
— Há apenas um deles, mas ele é durão. Tenha cuidado, Paul.
— Ele é um espadachim ou o quê?
— Não, é um mago. Parece uma criança, mas está com o rosto
escondido.
Um garoto mago? Eu sabia que meu pessoal era amador, mas eram
adultos em boa forma, e ele derrubou um monte deles. Este “garoto”
provavelmente era um hobbit, se quisessem saber minha opinião. Estavam
sempre se aproveitando de sua aparência infantil para enganar as pessoas.
Então um mago hobbit veterano… hmm. Será que poderia derrotá-lo
nessas condições? Estava confiante de que poderia lidar com um bandido ou
até três deles, não importa o quão bêbado estivesse, mas…
Nah, sem problemas. Eu tenho muitos truques na manga.
Balançando a cabeça, entrei no armazém.
Capítulo 03:
Contenda de Família
Paul estava hospedado em um lugar chamado Pousada Porta
D’Alvorada, mas me levou para o bar ao lado. Havia cerca de dez mesas
redondas de madeira e, no momento, eu estava sentado bem em frente ao
meu pai.
Ainda era dia, mas não éramos os únicos no bar. Na verdade, todos os
lugares estavam ocupados. Os caras que derrubei no armazém estavam
sentados, tendo seus ferimentos tratados pelos curandeiros do grupo. Nem
seria preciso dizer que os olhares que me deram não foram muito amigáveis.
Pelo visto eram todos membros da gangue de Paul. E, dentre todos,
quem mais chamava a atenção era, com certeza, a guerreira sentada
diagonalmente atrás dele.
Ela tinha cabelos castanhos curtos com as pontas feitas, uma boca
carnuda e um rosto bastante encantador. Mas era sua silhueta e sua roupa que
faziam com que realmente se destacasse. Seu peito era enorme, sua cintura
era fina e sua bunda arredondada. Por alguma razão, ainda estava usando
aquela armadura de biquíni. Pelo visto ainda não tinha nem vinte anos.
Era aquela garota que anteriormente me deu tanto trabalho. Paul a
chamava de “Vierra”. Ela definitivamente tinha o tipo de corpo pelo qual eu
podia imaginar meu velho babando. Eu mesmo achei difícil desviar o olhar
quando olhei na direção dela… e aquela roupa absurdamente minúscula
certamente não ajudava em nada.
A própria “armadura de biquíni” não era algo tão raro neste mundo.
Afinal, a maioria dos ferimentos poderia ser curada instantaneamente com
magia, então algumas espadachins optavam por equipamentos de proteção
mais leves, aceitando o fato de que às vezes mostrariam demais. Conheci
algumas pessoas assim no Continente Demônio, e tinha que assumir que ela
estava na mesma situação. Mas eu nunca tinha visto ninguém com tão
poucas roupas antes. Normalmente, uma armadura como aquela seria usada
sobre roupas leves, e não sobre a pele nua. E qualquer um usaria alguma
proteção para cobrir ao menos algumas partes das próprias juntas. Agora
podíamos até estar apenas em um bar, então faria sentido não se incomodar
em usar nada mais para a proteção. Da mesma forma, normalmente se usaria
um casaco sobre esse tipo de armadura quando não estivesse lutando. Ao
menos era isso que as mulheres faziam no Continente Demônio. Mas
algumas das espadachins mais experientes não pareciam se importar tanto…
Espera. Ela não tinha colocado um sobretudo no armazém depois que
lancei o feitiço? Por que diabos iria tirá-lo de novo?
Bem, tanto faz. Eu poderia muito bem aproveitar o colírio para os olhos
enquanto tivesse a oportunidade. Mm, sim, de fato. Esplêndido,
esplêndido… Ops.
Acidentalmente encontrei o olhar da garota enquanto a cobiçava. Ela
me deu uma piscadela rápida, então devolvi uma das minhas.
— Ei, Rudy… Rudy?
Nesse ponto, percebi que Paul estava falando comigo e, com pesar,
desviei meus olhos da guerreira.
— Olá, Pai. Quanto tempo.
— É. Uh… é bom ver que você ainda está vivo, garoto.
A voz de Paul transbordava exaustão. O homem realmente tinha
mudado bastante. E, com certeza, não foi para melhor. Nunca o tinha visto
tão abatido ou desgrenhado antes.
— Bem… obrigado…
Para ser honesto, estava tendo muita dificuldade para entender essa
situação. O que diabos Paul estava fazendo nesse lugar? Estávamos no País
Sagrado de Millis. Ficava tão longe do Reino Asura quanto a Mongólia da
África. Ele estava me procurando?
Não, não podia ser. Ele nem sabia que eu tinha sido teletransportado
para o Continente Demônio. Devia haver algum outro motivo. O que
aconteceu com seu trabalho de proteger Buena Village?
— Então… o que está fazendo aqui, Pai?
A pergunta parecia um ponto de partida razoável para mim, mas Paul
reagiu com óbvia surpresa.
— O quê? Você viu minha mensagem, não viu?
— Sua mensagem…? — Mas do que ele estava falando? Não me
lembrava de ter recebido nenhuma mensagem.
Por algum motivo, Paul franziu a testa, carrancudo, diante da minha
confusão. Consegui de alguma forma perturbá-lo?
— Se importa em me contar o que andou fazendo até agora, Rudy?
— Uh, estive basicamente tentando sobreviver. É uma longa história…
Eu realmente esperava que Paul explicasse a situação primeiro, mas
como ele perguntou, decidi contar a história de minha jornada para
Millishion. Comecei com meu teletransporte para o Continente Demônio
com Eris, descrevendo como fomos resgatados por um demônio, nos
tornamos aventureiros e passei um ano inteiro viajando até Porto Vento.
Parando para olhar para o passado, a jornada foi bem divertida.
Sofremos com um começo difícil, é verdade, mas por volta do sexto mês já
estávamos acostumados com a vida de aventureiro. Aos poucos, comecei a
gostar de contar minha própria história. Minhas descrições de eventos
tornaram-se mais eloquentes e comecei a descrever vários episódios de
maneiras cada vez mais dramáticas. Nada era ficção, mas dei um jeito de
moldar tudo, transformando as coisas em uma grande e espetacular história.
Para começar, dividi nossa aventura pelo Continente Demônio em três
partes claras:
Capítulo Um: Encontrei meu querido amigo Ruijerd, e fizemos um
nome para nós mesmos na cidade de Rikarisu.
Capítulo Dois: Prometendo ajudar Ruijerd em sua busca e corrigir
vários erros, o grande mago Rudeus iniciou sua grande jornada.
Capítulo Três: Fui pego em uma armadilha covarde do povo-fera e me
tornei um prisioneiro indefeso em sua aldeia.
Podia haver um exagerinho aqui ou ali, mas mantive a narrativa fiel à
realidade. Depois de um tempo, comecei a me divertir tanto que passei a
balançar as mãos e adicionar efeitos sonoros dramáticos às cenas de ação.
Além disso, optei por deixar de fora todo o caso com o Deus Homem.
— E então, quando finalmente chegamos a Porto Vento, a primeira
coisa que encontramos foi… — Assim que estava encerrando o capítulo dois
de minhas “Crônicas de Uma Jornada Errante Através do Continente
Demônio”, abruptamente fiquei em silêncio. Por algum motivo, o humor de
Paul piorou. Havia algo muito parecido com uma carranca em seu rosto, e
ele tamborilava os dedos na mesa, irritado.
Será que foi algo que eu disse? Realmente não entendi por que ele
estava chateado, então decidi tentar descobrir ao continuar.
— Uh, então de qualquer forma… Depois disso, nós fomos para a
Grande Floresta…
— Chega — disse Paul, seu tom nitidamente irritado. — Já entendi,
certo? Você passou o último ano e meio brincando por aí.
A maneira como ele disse isso meio que me irritou.
— Como é que é? Na verdade passei por muitos problemas.
— Ah, é? Quando?
— Hein?
Ele me pegou desprevenido com isso. Minha voz soou um pouco
estranha.
— Do jeito que você acabou de descrever, a coisa toda pareceu uma
maldita caminhada no parque.
Bem, claro. Isso porque contei as coisas assim de propósito. Mas,
parando para pensar, talvez tenha me empolgado demais.
— Olha, Rudy… deixe-me perguntar uma coisa.
— O que foi?
— Por que não se incomodou em tentar descobrir se mais alguém foi
teletransportado para o Continente Demônio?
Fiquei em silêncio. Foi a única coisa que pude fazer. Afinal, não
consegui pensar em nenhuma boa resposta para sua pergunta. Havia apenas
uma resposta possível. Um motivo simples.
Nem pensei nisso.
No início, estava totalmente ocupado com os problemas do nosso
grupo. Mas mesmo depois de começarmos a tomar controle das coisas,
nunca pensei que alguém além de nós pudesse ter sido enviado para o
Continente Demônio.
— Acho… que esqueci disso. Um… eu estava meio que ocupado e…
— Ah, estava? Você encontrou tempo para ajudar algum demônio
aleatório que nunca viu antes, mas não conseguiu pensar nas outras pessoas
que provavelmente também foram enviadas para lá?
Voltei a ficar em silêncio.
Talvez tivesse priorizado as coisas erradas. Certo. Mas não conseguia
ver motivo para me questionar sobre isso depois de tudo feito.
Eu simplesmente não pensei nessas coisas na hora certa. O que se
supunha que deveria ter feito?
— Hah! Então, e aí? Você não procurou ninguém. Não se preocupou
em escrever sequer uma única carta. Só ficou por aí, curtindo a vida de
aventureiro com uma garotinha bonita e um guarda-costas invencível! E
então, quando chegou a Millishion… hah! A primeira coisa que fez foi
tropeçar em um sequestro, colocar uma calcinha na cabeça e fingir que é
algum tipo de herói?
Com um bufo zombeteiro, Paul estendeu a mão para pegar uma garrafa
de álcool na mesa ao lado. Ele bebeu metade em um único gole e cuspiu no
chão fazendo barulho.
Sua atitude estava realmente começando a me irritar. Eu não ia dizer
para que não bebesse, mas estávamos no meio de uma discussão importante.
— Olha, eu fiz o melhor que pude, entendeu? Fiquei preso em um lugar
totalmente desconhecido, sem dinheiro, e senti que tinha que me concentrar
em manter Eris segura. Você realmente pode me culpar por ter esquecido
algumas coisas?
— Não estou culpando você nem nada, garoto. — O tom de voz de Paul
soou zombeteiro como sempre.
Neste momento não pude deixar de levantar minha voz.
— Então por que continua me atacando assim?! — Minha paciência
tinha limites. Não entendi o motivo para o homem estar agindo assim.
— Por quê? — Mais uma vez, Paul cuspiu no chão revelando desgosto.
— Isso é o que eu quero saber. Por quê?
— Como é que é? — A cada segundo que passava a conversa ficava
mais confusa. O que ele estava tentando dizer?
— Essa criança, Eris, é a filha de Philip, não é?
— Hã? Uh, sim, claro que é.
— Eu mesmo nunca vi ela, mas tenho certeza de que é uma garotinha
bonita. Foi por isso que não enviou nenhuma carta? Poderia acabar ficando
mais difícil dar uns pegas nela se aparecesse um monte de guarda-costas,
imagino.
— Ah, vamos lá! Já te disse, só esqueci! — Nenhum pensamento do
tipo tinha passado pela minha cabeça.
É verdade que Eris era a criança de uma família poderosa. Os Greyrats
possuíam muita influência. Se eu tivesse falado com o lorde local de Porto
Zant, poderiam ter nos dado um ou dois guarda-costas. Claro, acabei em
uma cela de prisão em uma vila do povo-fera antes de ter a chance de tentar
algo assim. Mas já não tinha explicado isso?
Ah, espera. Não. Na verdade, não tive a chance de chegar nessa parte…
Ainda assim, realmente senti que fiz o melhor trabalho que pude diante
das circunstâncias. Eu não estava dizendo que havia tomado as melhores
decisões possíveis em todos os momentos, mas não achei que Paul tivesse o
direito de me criticar depois de tudo feito.
Após um momento de silêncio, a mulher da armadura de biquini
colocou a mão no ombro dele, chegando por trás.
— Capitão, por que simplesmente não esquece isso? Sabe, ele ainda é
uma criança. Não precisa ser tão ríspido assim.
Não pude deixar de bufar. Sério, típico do Paul. Apesar de toda sua
conversa fiada, não conseguia nem se controlar perto das mulheres. E desde
quando um cara desses podia falar desse jeito comigo?
Apenas para registrar: Não coloquei um único dedo em Eris. Claro, em
alguns momentos me senti tentado. Às vezes, meus desejos pecaminosos
quase levavam a melhor sobre mim. Mas, no final das contas, nunca a
toquei.
— Sabe, Pai, não sei se você tem algum direito de me dar algum
sermão por causa de mulheres.
— O quê…?
Paul semicerrou os olhos ameaçadoramente neste momento. Mas na
hora, não percebi.
— Afinal de contas, quem é essa garota atrás de você?
— Vierra? O que tem ela?
— Diga-me, minha Mãe e Lilia sabem que você está tão íntimo com
uma mulher tão bonita?
— Não, elas não sabem. Como diabos saberiam? — Paul contorceu o
rosto amargamente, mas eu nem estava olhando para ele. Estava muito
ocupado aproveitando o fato de que finalmente consegui levar alguma
vantagem.
— Então pode traí-las tanto quanto seu coração quiser? A propósito, ela
está usando uma roupa e tanto. Acho que logo vou ganhar mais um irmão ou
irmã.
De repente, me encontrei deitado no chão com meu rosto latejando
dolorosamente. Paul estava olhando para mim com ódio nos olhos.
— Já estou farto dessa merda, Rudy.
Ele me deu um soco. Por quê? Mas que diabos?
— Olhe. Se você chegou até aqui, já passou por Porto Zant, não
passou?
— Passei. E daí?
— Então você já sabe, não sabe?!
Do que ele estava falando?! Isso realmente não fazia qualquer sentido.
Tudo que poderia dizer era que Paul estava escondendo algo de mim… e que
estava chateado por eu não saber o que era esse “algo”. Mas que piada. Eu
não era nenhum sabe-tudo, inferno. O mundo transbordava com coisas que
não sabia.
— Não faço ideia do que você está falando! — Me levantei com um
salto e dei um golpe em Paul.
Mesmo enquanto ele se esquivava do soco, ativei meu Olho da
Previsão.
Ele vai pegar minha perna e me fazer tropeçar.
Pisei com força no pé de Paul e girei para dar outro soco em seu queixo.
Ele vai se esquivar do meu soco e me acertar um contragolpe.
O homem se movia bem até demais para um bêbado. Canalizei magia
em minha mão direita. Se eu não fosse páreo para ele em uma briga de curta
distância, poderia simplesmente partir para o uso de feitiços.
O redemoinho que invoquei atingiu meu pai de frente. Com um grito
mudo de surpresa, girou para trás no ar, voando para além do balcão do bar.
O barulho de garrafas quebrando passou por todo o cômodo quando ele caiu
no chão.
— Puta merda! Agora já chega! — Paul se pôs de pé na mesma hora,
mas cambaleou instavelmente ao tentar se mover.
Você andou bebendo demais, idiota. No passado ele fora muito mais
forte. O velho Paul teria dado um jeito de evitar meu redemoinho, mesmo
naquela posição estranha.
— Rudy, seu moleq…
— Capitão!
Enquanto Paul vacilava, outra mulher correu para o seu lado. Desta vez,
era a maga de robe. Então ele estava cercado por garotas, não estava? Foi
incrível como teve coragem de me dar um sermão.
— Me deixa em paz! — Empurrando a maga para o lado, Paul
caminhou pelo cômodo de volta até mim.
— Com quantas mulheres você dormiu enquanto estive longe, hein,
Paul?
— Cale a maldita boca!
Ele vai me lançar um golpe poderoso com a mão direita.
Mas que soco mais previsível. Esse era o mesmo Paul que eu conhecia?
Mesmo sem o Olho da Previsão, eu provavelmente poderia ter desviado.
— Hah! — Agarrei seu braço estendido e o puxei para frente para algo
como um lançamento de ombro com um braço só. Claro, eu não entendia
nada de judô. Usei uma rajada de magia do vento para impulsioná-lo , então
apenas o joguei no chão com o máximo de força que consegui.
— Gah…!
Paul não conseguiu nem amortecer a queda direito. Enquanto ele estava
jogado no chão, eu me abaixei e montei no homem, prendendo seus braços
sob meus joelhos do jeito que Eris sempre fazia.
— Olha aqui… eu dei… o meu melhor, entendeu?!
E bati nele.
E bati de novo.
E mais outra vez.
Rangendo os dentes, Paul olhou para mim com os olhos cheios de uma
fúria amarga.
Porra, o que havia de errado com ele?! O que foi que fiz para merecer
aquele olhar?!
— O que você esperava de mim?! Eu fui parar em um lugar totalmente
desconhecido! Não tinha ninguém para pedir ajuda! E ainda consegui chegar
até aqui! Isso não é bom o bastante?!
— Você poderia ter feito melhor e sabe disso!
— Isso não é verdade!
E voltei a dar socos nele. E de novo.
Pelo visto, nenhum de nós tinha mais coisas a dizer. Paul apenas olhou
para mim enquanto sangue escorria dos cantos de sua boca.
Parecia realmente irritado. Como se estivesse lidando com alguém
totalmente irracional. Por quê? Eu nunca tinha visto uma expressão assim
em seu rosto. Não era assim que ele era. Que se fod..
— Pare com issooooo! — De repente, algo me acertou pelo lado.
Balancei um pouco com o impacto e, no instante seguinte, Paul me
empurrou para longe dele e se sentou.
Assumindo que voltaria a ser atacado, logo me preparei. Mas Paul não
se moveu em minha direção… porque agora havia uma garotinha parada
bem entre nós.
— Pare! Pare agora!
A criança tinha o nariz de Paul e o cabelo dourado de Zenith. A
reconheci na mesma hora. Era Norn. Norn Greyrat – minha irmãzinha. Ela
tinha ficado muito maior desde a última vez que a vi. Agora devia ter cinco
anos, não é? Talvez até seis. Por que estava parada na minha frente e com os
braços abertos?
— Pare de bater no Papai!
Pisquei, confuso.
— Hein? — Bater no Papai? O quê? Não. Vamos lá …
Norn estava olhando para mim, parecendo que ia explodir em lágrimas
a qualquer momento. Quando olhei ao redor do lugar… por algum motivo,
todos estavam olhando para mim como se eu fosse o cara mau.
— Isso é sério…?
Senti meu sangue gelando. Memórias de décadas anteriores passaram
pela minha mente. Memórias de todas as vezes em que sofri bullying em
minha vida anterior. Naqueles tempos, sempre que tentava me defender,
todos da sala de aula costumavam me olhar assim.
Certo, certo, claro. Então eu é que estava errado, de novo, hein?
Tanto faz. Desisto.
Já chega disso. Era hora de ir embora. Eu não tinha encontrado nada
que valesse a pena ser visto, e também não tinha feito nada. Seria melhor
voltar para a pousada e esperar por Eris e Ruijerd. Podíamos deixar esta
cidade de imediato… talvez em um ou dois dias. Sério, não seria o fim do
mundo. A capital não seria o único lugar onde poderíamos fazer algum
dinheiro. Digo, Porto Oeste devia ter uma filial própria da Guilda, certo?
— Escute, Rudy. Você não foi o único teletransportado pela
Calamidade. Todo mundo de Buena Village também foi.
Paul estava dizendo alguma outra coisa, mas simplesmente ignorei.
Hm? O quê?
O que era isso agora?
— Deixei uma mensagem para você com as Guildas de Porto Zant e
Porto Oeste. Você não se tornou um aventureiro? Por que diabos não leu?
Hein? Eu não tinha visto nada do tipo em Porto Zant…
Não, espera. Certo. Nunca tivemos a chance de visitar a Guilda dos
Aventureiros de lá, não foi? Após chegarmos, a primeira coisa que fiz foi
partir em busca de Ruijerd, e aquela saída terminou comigo trancado em
uma cela de prisão no Vilarejo Doldia.
— Enquanto você estava curtindo suas férias, um monte de gente
morreu.
Eu tinha visto “O Incidente de Deslocamento” com meus próprios
olhos. Tinha visto a escala daquela calamidade mágica. Por que não pensei
nisso? Até o Deus Homem disse que o desastre tinha sido “enorme”. Não
existia motivo para supor que não tivesse chegado a Buena Village.
Então… todos de casa desapareceram…
— Isso significa que… Sylphie também está desaparecida?
— Está mais preocupado com uma garota do que com sua própria mãe,
Rudy? — disse Paul, irritado e carrancudo.
Minha garganta fechou.
— O quê?! V-você não encontrou nem a minha Mãe?!
— Isso mesmo. Não consegui a encontrar em lugar nenhum! E nem
Lilia!
As palavras me acertaram como um soco no estômago. Minhas pernas
tremeram e cederam; tropecei para trás, mal conseguindo me segurar em
uma cadeira antes de cair.
— Mas estivemos procurando. Estivemos procurando por todos os
desaparecidos. Esse é o objetivo do Esquadrão de Busca e Resgate.
O Esquadrão de Busca e Resgate? Toda essa gente fazia parte de uma
equipe de busca organizada?
— M-mas… por que uma equipe de busca e resgate sairia por aí
sequestrando as pessoas?
— Isso é por que alguns dos deslocados foram vendidos como escravos.
Segundo meu pai, era algo comum: Alguém era teletransportado para
um lugar totalmente desconhecido. Não faria ideia sequer de onde estava. E
então alguém se aproveitaria disso para enganar e escravizar os sem
entendimento.
Paul e os outros membros do esquadrão compararam incontáveis
registros com suas listas de pessoas desaparecidas, foram ver todos os
Fittoanos escravizados que localizaram e então tentaram convencer seus
proprietários a libertá-los. Mas, pelo visto, muitas dessas pessoas se
recusaram a desistir de sua “propriedade”. Sob as leis escravocratas de
Millis, não importava como alguém acabasse sendo escravizado – uma vez
que fosse um, não era nada mais do que uma propriedade privada de seu
dono. Portanto, Paul recorreu à libertação compulsiva de escravos.
Roubar um escravo era crime, claro, mas havia algumas brechas na lei.
O esquadrão se aproveitou de todas elas para libertar muitas pessoas.
Claro, estavam dispostos a respeitar os desejos de qualquer pessoa que
optasse por permanecer na situação atual. Mas praticamente todos os
escravos que encontraram imploraram, em prantos, para serem levados de
volta para sua terra natal. O garoto que tinham acabado de salvar era um
desses casos. Não era de se admirar que parecesse tão familiar. Era Somal,
uma das crianças que costumava implicar com Sylphie. No último ano, foi
forçado a trabalhar como uma espécie de garoto de programa.
Paul e seus companheiros ouviram os gritos amargos de incontáveis
Fittoanos escravizados, alguns que inclusive ainda não haviam conseguido
resgatar. Fizeram muitos inimigos entre a nobreza local e os membros do
esquadrão começaram a se afastar como resultado de seus métodos cada vez
mais enérgicos. Paul estava sendo pressionado de todos os cantos. Cada dia
se demonstrava uma nova e estressante provação. Mesmo assim, perseverou.
A única coisa que importava era encontrar e resgatar as vítimas da
Calamidade, e tudo o que fez, fez por elas.
— Achei que você tivesse descoberto a situação há muito tempo, Rudy.
Presumi que já estava fazendo sua parte.
Tudo o que pude fazer neste momento foi inclinar minha cabeça. Ele
não estava sendo justo. Como eu poderia saber de tudo?
Mas, novamente… quando realmente pensei no assunto…
Era perfeitamente possível que pudesse ter encontrado Fittoanos
deslocados em algumas das cidades pelas quais passamos no Continente
Demônio. Se tivesse falado com eles, provavelmente teria conseguido uma
noção de quão grande foi o desastre. Não tinha me esforçado o suficiente
para entender a situação. Priorizei ajudar Ruijerd em vez de descobrir mais
sobre a Calamidade.
Estraguei tudo. Simples assim.
— E agora descobri que você estava brincando de aventureiro…
Brincando, hein…?
É. Realmente não poderia argumentar contra isso.
O tempo todo em que estive roubando as calcinhas de Eris, olhando de
soslaio para as moças da Guilda dos Aventureiros, fantasiando com o Grande
Imperador Demônio e cobiçando uma garota com orelhas de gato, Paul
esteve procurando desesperadamente por nossa família desaparecida.
Não era de admirar que tenha ficado tão irritado comigo.
Ainda assim, eu não conseguia me desculpar. No final das contas, tentei
o meu melhor. Pensei nas coisas e tomei as decisões que pareciam mais
razoáveis para mim.
E agora o que deveria fazer?
Paul não disse mais nada. Norn também ficou em silêncio. Mas eu
podia ver a hostilidade em seus olhos, e isso me machucou profundamente.
Parecia que tinham arrancado um grande pedaço do meu coração.
Olhei ao redor do lugar e vi que os camaradas de Paul também estavam
olhando para mim com olhos de reprovação.
Mais memórias dolorosas vieram à tona. Lembrei-me do dia após um
bando de delinquentes me despir e me amarrar do lado de fora para que
todos vissem. Lembrei-me de como todos olharam para mim quando entrei
na sala de aula naquela manhã.
Minha mente ficou paralisada.
✦✦✦✦✦✦✦
Em algum momento, voltei para o nosso quarto na pousada.
Desabei na cama. Não tinha certeza do que tinha acontecido comigo, ou
por quê. Não tinha certeza de nada. Meu cérebro não devia estar
funcionando direito no momento.
— Hã…?
Algo dentro das minhas roupas fez um barulho audível. Procurando por
elas, encontrei o papel para escrever que comprei naquela tarde. Esmaguei
aquilo e joguei fora.
— Hah… — Com um longo suspiro, voltei para a cama e abracei meus
joelhos contra o peito.
Não queria mais fazer absolutamente nada.
Nunca tinha sido tratado tão friamente por um pai antes, nem mesmo
em minha vida anterior. Mesmo com tudo que foi dito e feito, Mamãe e
Papai sempre foram muito gentis comigo.
Mas agora, Paul tinha me rejeitado por completo. Ele olhou para mim
da mesma forma que meu irmão da minha vida anterior no dia em que me
expulsou de casa.
Onde errei?
Ao considerar tudo, achei que tinha feito um trabalho decente. Mesmo
agora, nenhuma das minhas principais decisões se destacou como uma falha
crítica. A única coisa que me veio à mente foi como, desde o começo, pedi
para Ruijerd me ajudar. Naquele momento segui o conselho do Deus
Homem, embora desconfiasse profundamente dele.
O fato de ter contado sobre minhas viagens da forma mais alegre
possível também não ajudou. Isso foi em parte porque tinha me empolgado,
mas também não queria deixar Paul preocupado… e também estava
pensando no meu orgulho. Queria convencê-lo de que poderia me cuidar
muito bem.
Entretanto, Paul não estava com o humor adequado para ouvir uma
incrível história de aventuras. E os membros do seu time também não. Eu
com certeza escolhi as palavras erradas. Por um lado, nunca quis sugerir que
Sylphie fosse mais importante do que minha mãe. Mas Paul e Norn estavam
lá… não era natural presumir que Zenith também estaria bem?
Não. Isso não passa de uma desculpa. Naquele momento, Zenith nem
tinha passado pela minha cabeça.
E quanto a toda aquela coisa sobre ser um mulherengo? Foi Paul quem
começou com isso, e eu nunca toquei em Eris. Um canalha sem-vergonha
como ele não tinha o direito de me dar um sermão…
Ah. Espera. Agora isso fazia sentido. Talvez ele também não tivesse
tocado naquelas garotas. Sim… isso explicaria por que se irritou tanto
comigo.
Certo. Agora eu tinha ligado todos os pontos.
Eu só teria que voltar no outro dia e conversar com Paul de novo. Só
ficamos um pouco exaltados, isso foi tudo. Eu já tinha lidado com esse tipo
de coisa antes. Assim que conversássemos, ele entenderia.
Sim. Da próxima vez daria tudo certo. Eu também estava preocupado
com nossa família, é claro. Se tivesse descoberto que estavam desaparecidos
antes, também teria procurado.
Foi realmente uma pena eu ter passado mais de um ano no Continente
Demônio sem reunir qualquer informação. Mas, no final das contas,
continuei vivo. Ainda tinha a chance de consertar as coisas. Tudo o que
tínhamos que fazer era planejar uma busca calma e completa. Encontrar
algumas pessoas presas em um mundo tão grande levaria um tempo, claro; e
Paul entendeu isso, com certeza. Assim que o acalmasse, poderíamos decidir
nosso próximo movimento. Poderíamos nos concentrar nos lugares que
ninguém havia procurado. Eu também ajudaria, é óbvio. Depois de deixar
Eris em Asura, poderia simplesmente continuar viajando para o norte ou ir
para algum outro lugar.
Sim. Então tudo bem. Em primeiro lugar, vou… ver Paul de novo. E
voltarei… àquele bar e…
— Urp…!
De repente, dominado pela náusea, pulei da cama e corri para o
banheiro. Em pouco tempo, vomitei tudo que tinha no estômago.
A um nível racional, tinha resolvido tudo, mas ainda não me sentia
melhor. Já fazia muito tempo que não enfrentava esse tipo de hostilidade de
um membro da família, e doeu demais para poder suportar.
✦✦✦✦✦✦✦
A tarde já estava começando quando Ruijerd retornou. Parecendo um
pouco mais feliz do que o normal, o homem pegou um pequeno envelope e
começou a mostrá-lo para mim. Mas quando olhei para ele de onde estava na
cama, o Superd parou e franziu a testa.
— Aconteceu alguma coisa, Rudeus?
— Encontrei meu pai. Ele está aqui na cidade.
A expressão de Ruijerd ficou ainda mais tensa.
— Ele te disse algo desagradável?
— Sim.
— Já faz algum tempo que vocês não se viam, correto?
— Bem, sim.
— Mas vocês brigaram?
— Sim.
— Conte-me os detalhes.
Descrevi todo o incidente do início ao fim da forma mais honesta que
pude. Assim que terminei, Ruijerd disse “entendo” e depois ficou em
silêncio.
Foi o fim da nossa conversa. Depois de algum tempo, ele saiu do quarto
em silêncio.
Eris voltou à noite.
Claro, a julgar pelo tanto que estava animada, algo devia ter acontecido.
Havia folhas grudadas em suas roupas e manchas de poeira em seu rosto…
mas ela parecia feliz. Parecia que o trabalho de matar Goblins havia corrido
bem. Ao menos algo deu certo.
— Olá, Eris.
— Ei, Rudeus! Estou de volta! Você nem imagina o qu… Hein?
Quando eu sorri para ela, Eris arregalou os olhos diante do choque. Um
instante depois, atravessou o quarto correndo até mim.
— Quem foi?! — gritou freneticamente, me sacudindo pelos ombros.
— Quem fez isso com você?!
— Estou bem. Não é nada demais.
— Ah, vamos lá! Você não pode estar falando sério!
Ficamos nessa por um tempo, mas Eris se demonstrou realmente
persistente. Acabei cedendo e contando o que aconteceu com Paul. Com
uma voz monótona e sem emoção, contei toda a história pela segunda vez –
o que eu disse, como ele reagiu e como tudo terminou.
Eris respondeu com uma explosão de fúria.
— Não acredito nisso! Como ele poderia dizer essas coisas?! Você
trabalhou duro para nos trazer até aqui! E ele chama isso de brincar?! Que
fracasso de pai! Vou matar aquele idiota estúpido!
Com essa declaração um tanto alarmante, ela saiu furiosa do quarto
enquanto empunhava a espada. Não tive energia o bastante para a impedir.
Poucos minutos depois, Ruijerd carregou Eris de volta para o quarto
pela nuca, como um gatinho rebelde.
— Me solta, Ruijerd!
— Você não deve interferir em uma briga de família — disse o Superd,
depositando sua prisioneira no chão.
Eris na mesma hora se virou e olhou para ele.
— Existem algumas coisas que você nunca deve dizer ao seu filho!
Mesmo se estiverem brigando!
— Isso é verdade. Mas posso entender como o pai de Rudeus se sentiu.
— Ah, é? Bem, e como Rudeus se sente, então?! Você o conhece! Ele é
a pessoa mais despreocupada e confiante do planeta. Você pode dar um soco
ou um chute, e ele simplesmente dá de ombros! Mas olhe para ele agora…
Está arrasado!
— Então talvez você deva o consolar. Tenho certeza que uma jovem
como você conseguiria fazer isso.
— O qu…?!
Quando Eris moveu a boca, sem palavras, Ruijerd se virou e saiu do
quarto em silêncio.
Deixada para trás comigo, ela começou a ficar inquieta, então começou
a vagar ao redor do quarto sem fazer nada em particular, mas parecia
nervosa. E frequentemente lançava olhares em minha direção. Às vezes
parava, assumia sua pose usual de braços na cintura e abria a boca para dizer
algo, apenas para fechá-la e retomar sua caminhada. A garota estava
seriamente impaciente. Era como assistir a um urso no zoológico ou coisa do
tipo.
No final, se sentou ao meu lado, na minha cama, em silêncio. Não disse
uma palavra. E deixou um pouco de distância entre nós.
Qual será o tipo de expressão que tinha no rosto? Eu não estava
olhando com muita atenção. Não tinha energias para isso.
E passou mais um pouco de tempo em silêncio.
Eventualmente, percebi que não estava mais sentada ao meu lado.
Assim que comecei a me perguntar para onde tinha ido, me abraçou por trás.
— Está tudo bem. Estou aqui por você… — Enquanto falava essas
palavras, Eris abraçou minha cabeça com força. Eu estava envolto em
suavidade, calor e o leve cheiro de suor de seu corpo.
Depois do ano e meio que passamos juntos na estrada, aquele cheiro se
tornou muito familiar. E agora, era estranhamente reconfortante. A rejeição
da minha família me encheu de ansiedade e medo, mas agora esses
sentimentos pareciam derreter.
Talvez, neste momento, Eris também fosse “família”. Se ela tivesse
existido na minha vida anterior, eu poderia ter escapado da minha miséria
muito, muito antes. A julgar pelo quanto aquele abraço fez por mim, com
certeza parecia possível.
— Obrigado, Eris.
— Sinto muito, Rudeus. Não sou muito boa nesse tipo de coisa…
Estendi a mão para apertar uma das mãos de Eris enquanto ela me
abraçava. Era a mão de uma espadachim – forte e calejada. Uma prova de
seu trabalho duro. Não era exatamente o que se esperaria de uma jovem
senhora de uma casa nobre.
— Não se desculpe. Isso significou muito para mim.
— Certo…
Algo dentro de mim estava se recompondo. Senti que estava ficando
um pouco mais calmo.
Com um suspiro silencioso de alívio, me deixei cair de volta contra
Eris. Precisava me apoiar um pouco nela… pelo menos por enquanto.
Capítulo 04:
Reunidos
Ponto de Vista do Paul
Eu ainda não tinha saído do bar.
O sol estava prestes a se pôr, então o lugar estava começando a receber
mais clientes que não eram membros do meu time. Por outro lado, muitos
dos meus já haviam partido. Mas não era como se isso realmente me
importasse. Estava plantado em uma mesa sozinho, bebendo como um peixe.
Pelo visto, era óbvio que eu não estava de bom humor. Todos por perto
estavam mantendo distância.
— E aí! Estava te procurando, amigão.
Todos, exceto o recém-chegado, pelo visto.
Olhei para cima e me vi cara a cara com um macaco sorridente. Foi a
primeira vez que vi sua cara feia em um ano.
— Geese…? Onde diabos você esteve, hein?
— Aah, que hostil! Você parece ainda mais mal-humorado do que o
normal, meu amigo.
— E o que você esperava?
Estalando minha língua irritado, estendi a mão e toquei minha
bochecha. O lugar em que Rudeus havia me batido ainda estava latejando.
Talvez devesse ter engolido meu orgulho e deixado um de nossos
curandeiros me tratar.
Aquele maldito moleque, praguejei. “O Continente Demônio pode ser
cruel, mas minha magia foi mais do que páreo para ele”, hein? Bem, bom
pra você. Se isso não foi nada mesmo, por que não deu um tempo para
procurar pela sua mãe?
Ah, mas pelo menos pude ouvir suas ideias sobre as melhores maneiras
de cozinhar carne de Grande Tartaruga. “Se eu não tivesse tido a ideia de
criar uma panela usando a magia da Terra, teríamos ficado comendo pedaços
carbonizados e fedorentos daquela coisa por um ano inteiro!” Não havia
mais nada que pudesse ter feito com o tempo que passou caçando
ingredientes para um guisado de monstro?
Ugh. Que se dane.
E então, para completar, teve a coragem de me acusar de traição! Eu
nem pensei em tocar em uma mulher no último ano e meio, seu idiota
presunçoso! Você não fez nada para ajudar e acha que tem o direito de pegar
no meu pé?
Ah, você não sabia, hein? Que ótima desculpa. Se realmente se
incomodasse em olhar o mundo ao seu redor, Zenith ou Lilia poderiam já
estar conosco!
Sério. Mas que piada…
— Hee hee hee. Pelo visto, acho que vocês ainda não se encontraram.
— Sorrindo para si mesmo por algum motivo obscuro, Geese pediu uma ou
outra coisa. Provavelmente algum goró. O homem bebia mais ainda do que
Talhand, e Talhand era um anão. — Ei, Paul. Certifique-se de dar uma
passada na Guilda dos Aventureiros amanhã, viu?
— Por quê?
— Porque acho que vai encontrar alguém interessante.
Alguém interessante? Geese aparentemente achou que essa reunião iria
melhorar meu humor. Dado o momento de sua chegada, e quem eu
“encontrei”… não foi difícil adivinhar sobre quem estava falando.
— Você está falando do Rudy?
Fazendo beicinho, o macaco velho coçou a cabeça.
— Hã? Como você sabe?
— Já esbarrei com ele hoje.
— Mas você não parece lá muito feliz. Brigaram ou coisa do tipo?
Uma briga…? Bem, acho que sim. Mas aquilo mal poderia ser
considerado uma.
Droga. Só de pensar naquilo, meu rosto voltou a doer…
— Paul, o que houve? Me conta. — Geese se levantou e puxou sua
cadeira para perto de mim. Com aquele rosto amigável, o homem sempre
teve talento para ouvir os problemas das pessoas. Esta não foi a primeira vez
que enfiou o nariz nas minhas coisas e me encorajou a reclamar.
— Tudo bem, olha só isso…
Fui em frente e contei a Geese o que aconteceu antes.
Fiquei feliz em ver Rudeus, é claro. Mas parecia que não estávamos
encarando a situação da mesma forma, então perguntei a ele o que andou
fazendo nos últimos tempos. Nesse ponto, ele começou a falar alegremente
sobre sua jornada pelo Continente Demônio.
Cada palavra que saía de sua boca era ostentação desnecessária, então
observei que poderia ter usado seu tempo de forma mais produtiva. Então
ficou chateado comigo. Ele fez uma piada sobre eu estar dormindo com
todas por aí. E foi então que perdi toda a minha paciência. E depois nós
brigamos, e o moleque chutou meu traseiro. Fim.
— Ahh… tá. Entendi…
Geese ouviu pacientemente a história toda, balançando a cabeça e
fazendo alguns breves comentários aqui e ali. Senti que o homem estava
simpatizando comigo. Mas então, depois que terminei as coisas, ele me
olhou nos olhos e disse:
— Bem, parece que suas expectativas podem ter sido um pouco
injustas, chefe.
— Hein? — respondi, soando como um completo idiota.
Injusto? Onde é que fui injusto? E com quem?
— Acha que eu esperei demais? Do Rudy?
— Digo, cara, pensa comigo — Geese continuou enquanto eu piscava
confuso. — Claro, o garoto é incrível. Nunca vi ninguém que pudesse lançar
feitiços não verbais como ele. E quando o vi trocando golpes após golpes
com o Santo do Norte Gallus, senti arrepios até na espinha. Rudeus é o tipo
de prodígio que só se vê uma vez por século.
Certo. Rudeus era um prodígio. Um gênio. Sempre poderia fazer
qualquer coisa que definisse como objetivo, mesmo quando criança. Por um
tempo, tive a impressão de que também tinha alguns defeitos relativamente
sérios, mas… bem, ao final de sua estadia em Roa, Philip estava disposto a
casar sua própria filha com ele. Philip! O mesmo cara que falava mal de
mim pelas costas!
— Sim, isso mesmo. Ele é inacreditável. Quando tinha apenas cinco
anos…
— Mas, no final das contas, ainda é só uma criança. — Surpreso com a
firme interrupção de Geese, fiquei em silêncio. — Rudeus ainda é um garoto
de onze anos — repetiu lentamente, apenas para deixar claro. — Nem
mesmo você fugiu de casa antes dos doze, certo?
— Sim…
— Qualquer um mais jovem do que isso ainda é só um pirralho
melequento. Não é isso que você sempre dizia?
— Sim, certo, claro. E daí se eu falava isso? — Vamos lá. Rudy já está
mais forte até do que eu.
Claro, eu estava um pouco bêbado naquela hora. Entretanto, mesmo
levando isso em conta, estava claro que o garoto havia melhorado
drásticamente. Eu podia até estar bêbado, mas também estava dando tudo de
mim; me abaixei para usar a “Postura de Quatro Pernas” do Estilo Deus do
Norte e até mesmo fiz uso da “Espada Silenciosa” do Estilo Deus da Espada.
Mas minha espada só cortou a calcinha que o moleque estava usando na
cara. Rudy também não estava levando a luta a sério. O fato de nenhum dos
meus companheiros ter sofrido nada pior do que alguns ferimentos leves era
prova suficiente disso.
Era difícil dizer como cresceu como lutador desde a última vez que o
vi. Mas, mesmo aos sete anos, já era mais inteligente do que eu. Agora era
mais inteligente e mais forte do que eu. Então, onde estava a irracionalidade
ao esperar que pudesse fazer mais do que deveria? Sua idade não refletia em
suas capacidades.
— Paul, o que você estava fazendo quando tinha onze anos?
— Hm…?
Pelo que me lembro, passei a maior parte daquele ano em casa,
treinando com a espada e sendo mastigado pelo meu velho. Ele encontrava
motivos para reclamar de cada coisinha que eu fazia, e aproveitava todas as
chances que tinha para me dar alguns tapas.
— Acha que naquela época poderia ter sobrevivido sozinho no
Continente Demônio?
— Heh. Gesse, você está esquecendo de um pequeno detalhe. Rudy
encontrou um demônio guarda-costas, lembra? Esse cara fala a língua
Humana, do Deus Demônio e Deus Fera, e é forte o suficiente para derrotar
um monstro de rank A sozinho. Qualquer um poderia se virar com uma
companhia dessas.
— Não — declarou Geese com confiança. — Você não teria feito isso.
Sem chance. Mesmo se você fosse lá agora, ainda não sobreviveria por conta
própria.
Não posso dizer que ouvir isso melhorou meu humor. Geese continuar
sorrindo para mim do outro lado da mesa também não ajudava. O sorriso do
homem era seriamente irritante.
— Hah! Certo! E isso só não ressalta meu ponto? Rudy conseguiu algo
que eu não consigo. Meu filho é um prodígio! Ele já pode andar com os
próprios pés! Não tenho mais nada para ensinar. Foi errado esperar que o
garoto colocasse esses talentos em uso, hein?! Eu sou mesmo o errado aqui?!
— Sim, você é. Mas isso não é nenhuma novidade, né? — Ainda
sorrindo, Geese parou por um momento para beber a cerveja que acabara de
receber. — Ahhhh! Agora sim. Você não consegue beber esse tipo de coisa
na Grande Floresta, sabia?
— Geese!
— Tá bom, tá bom. Não precisa gritar. — Geese bateu com sua caneca
de madeira na mesa e me olhou nos olhos, sua expressão de repente ficou
muito mais séria. — Escuta, Paul. Você nunca pisou no Continente
Demônio, não é?
— E daí?
Isso era verdade. Nunca tive o prazer de visitar o lugar. Sim, mas eu
tinha ouvido rumores, é claro. Todo mundo fazia parecer que o lugar era
perigoso, onde qualquer um encontraria monstros toda vez que saísse para
dar um passeio e precisava comê-los para sobreviver. Mas “muitos
monstros” era algo com que até eu poderia lidar, fala sério.
— Bem, é onde eu nasci e fui criado, lembra? E, na minha opinião, todo
o continente é uma merda.
— Sabe, parando pra pensar agora, você nunca falou muito sobre o
lugar. O que há de tão terrível lá?
— Em primeiro lugar, não existem estradas adequadas. Há alguma
trilha entre as cidades, é claro, mas você não encontrará nada parecido com
aquelas estradas seguras, suaves e sem monstros que existem em Millis e no
Continente Central. Se estiver viajando para qualquer lugar, é melhor estar
preparado para ser atacado por monstros de rank C a qualquer momento. Ou
algo até pior.
Certo, eu sabia que o lugar tinha muitos monstros, mas rank C ou pior?
No Continente Central, as pessoas teriam que ir fundo em uma floresta para
encontrar algo tão perigoso. Muitos monstros desse rank viviam em grandes
bandos ou tinham alguma habilidade especial letal.
— Geese, acho que você está exagerando um pouquinho demais.
— Não. Cara, presta atenção, não estou te falando nada de complicado.
É assim que o Continente Demônio é. O lugar está infestado por monstros
desagradáveis.
Geese parecia perfeitamente sério, mas era assim que ele sempre
parecia quando estava mentindo. Dessa vez eu não iria cair nesse tipo de
merda.
— Agora, digamos que alguém tenha jogado uma criança no meio de
um lugar como aquele. É um garoto realmente talentoso e, veja bem, não
tem nenhuma experiência de combate no mundo real.
— Certo…
Sem experiência real, hein? Parecia que estávamos mais uma vez
falando sobre Rudy. Pensando bem, eu nunca tinha ouvido falar dele
entrando em nenhuma batalha de verdade antes. Mas pelo visto o garoto
conseguiu lutar contra alguns supostos sequestradores em Roa, e Ghislaine
achava que poderia ser derrotada se existisse alguma distância entre os dois.
Eu não conhecia um único espadachim melhor do que aquela mulher. Se ela
não podia se aproximar dele com segurança, então provavelmente não havia
nem mil pessoas no planeta capazes de o derrotar em seu alcance ideal.
No geral, sua falta de experiência real não me parecia grande coisa.
Alex R. Kalman, o segundo Deus do Norte, não matou um Imperador da
Espada na primeira batalha em que lutou?
— Nesse momento, um adulto aparece e se oferece para ajudar a
criança. Esse cara é um demônio, e também é muito forte. Na verdade, ele é
um Superd. Você já ouviu falar deles, não ouviu?
— Claro. — Para ser franco, eu não tinha certeza se acreditava nessa
parte da história. Pelo que ouvi, havia apenas um punhado de Superds
sobrando, mesmo no Continente Demônio.
— Então, o garoto tem alguém que lhe oferece ajuda quando ele está
em uma situação desesperadora. E o cara está disposto a ajudá-lo a
atravessar um lugar totalmente desconhecido. E os Superds são assustadores,
é claro! A criança não tem ideia de como o sujeito pode reagir a uma recusa.
Ela simplesmente teria que aceitar a oferta, certo?
— Aham, provavelmente.
— Mas com o passar dos dias, o pequeno e inteligente Rudeus começa
a se perguntar: “Afinal de contas, por que esse cara está me ajudando?”
Claro. Isso soava como algo esperado de Rudeus. A pergunta poderia
nunca me ocorrer, mas o garoto sempre foi perspicaz com esse tipo de coisa.
Eu sabia o quão estranhamente perceptivo ele era desde aquele dia em que
entrou em cena para salvar Lilia da ira de Zenith.
— O problema é que ele não consegue descobrir. Não sabe o que o cara
quer de verdade.
Bem, e então? Ninguém nunca consegue saber o que um estranho está
realmente pensando. Essa é a razão pela qual caras como Geese conseguem
ganhar a vida.
— O Superd resolve ajudar por algum tempo, mas poderia facilmente
abandoná-los ou traí-los caso sentisse vontade… ou assim pensa Rudeus. E é
por isso que ele decide tentar agradar o cara.
— Esse plano não faz sentido, Geese. Um Superd ao menos tem um
lado bom?
— Olha, não vem dar uma de espertalhão. Mas você entendeu o que
quero dizer, certo? Rudeus decide apelar para as emoções desse cara. Ele
quer fazer com que o homem acredite que todos são amigos.
Hmm. Isso explicaria por que Rudy passou tanto tempo ajudando o
suposto demônio. E, para ser sincero, até que fazia sentido. Ele não estava
apenas ganhando pontos extras com seu protetor, mas também tendo a
chance de desenvolver suas próprias habilidades como aventureiro, para o
caso de precisar contar com elas mais tarde. Tive que admitir, isso parecia
racional. Provavelmente era o caminho mais seguro que poderia ter
escolhido.
Hmph… o menino tinha uma boa cabeça sobre os ombros, não tinha?
— Tch. Você pode pensar até que uma criança tão inteligente
conseguiria encontrar algum tempo para descobrir mais alguma coisa.
Geese ergueu uma das mãos e abriu os dedos.
— Ele está em uma terra desconhecida — disse, dobrando um para
baixo. — Está em sua primeira aventura. Não importa o quão inteligente
seja, é tudo novidade. Precisa aprender o básico rápido, antes que alguém se
aproveite dele. Está tentando manter um demônio que pode traí-lo a qualquer
momento feliz. Ah, e tem uma amiguinha atrás dele, uma que precisa
proteger.
Quando terminou de falar, Geese tinha abaixado todos os dedos. Com
um breve encolher de ombros, passou para seu argumento final.
— Se o garoto também conseguisse vasculhar o continente em busca de
outras pessoas que foram teletransportadas, bem, isso o tornaria sobre-
humano. Sério, eu estaria pronto para dar a ele um lugar nos Sete Grandes
Poderes.
Os Sete Grandes Poderes, hein? Isso despertou algumas memórias.
Antigamente, eu costumava sonhar em conquistar esse tipo de fama. Ainda
assim, senti que Rudy realmente tinha o talento bruto para algum dia entrar
naquela lista. E eu não acreditava que isso era apenas o meu orgulho paternal
falando.
— O garoto poderia acabar trabalhando até a morte enquanto tentasse.
Sei que Rudeus é um prodígio, mas todo ser humano tem seus limites, cara.
Ainda mais quando são crianças.
— Certo, olha — interrompi. — Se foi tão difícil, então por que ele fez
a coisa toda parecer uma grande e divertida aventura? Parecia até um
daqueles pirralhos ricos e mimados que se metem no primeiro andar de um
labirinto só para ter algo de que podem se gabar. — Se a viagem tivesse sido
tão difícil para Rudy, ele não teria a descrito com tanta alegria. No lugar
disso, teria me falado do quanto sofreu e sobre as dificuldades que enfrentou.
Mas o moleque não mencionou sequer um obstáculo em seu caminho.
— Por quê? Porque não queria te preocupar, é óbvio.
— Hein? — Eu grunhi, de alguma forma parecendo ainda mais
estúpido do que antes. — Por que diabos ele iria ficar preocupado comigo?
Por acaso sou um fracasso como pai?
— Sim, com toda certeza do mundo.
— Tch. Certo, acho que você tem razão. Sou um homenzinho fraco que
se afoga na bebida por motivos idiotas. Suponho que nosso pequeno
prodígio sentiu muita pena ao me ver.
— Odeio ser quem te conta isso, Paul, mas não é preciso ser um
prodígio para ter pena de você agora — disse Geese, deixando um suspiro
escapar. — Sei que você não pode ver seu próprio rosto, então deixe-me
dizer uma coisa. Cara, você está péssimo.
— Ah, é? Péssimo o bastante para ganhar alguma simpatia até do meu
próprio filho?
— Aham. Se ele aparecesse aqui justo agora, não acho que acabariam
brigando. Rudeus provavelmente se sentiria muito mal se você dissesse
qualquer coisa.
Eu estendi a mão e toquei meu rosto. A barba por fazer que não tinha
me incomodado em barbear por vários dias raspou audivelmente contra
meus dedos.
— Olha, Paul. Só vou repetir o que já falei aqui — disse Geese
enquanto seu tom de repente ficava firme. — Você esperava muito do seu
filho.
Esperar muito foi realmente algo irracional da minha parte? Rudy
sempre fez tudo o que queria, desde quando era pequeno. Tudo o que sempre
fiz foi criar obstáculos em seu caminho com minhas tentativas desajeitadas
de ser pai. Para falar a verdade, ele nunca precisou de mim.
— Me conta uma coisa. Por que você não pode simplesmente ficar feliz
por ele ter chegado até aqui? Realmente importa que tipo de viagem o garoto
fez? Digamos que foi realmente um cruzeiro despreocupado, e que passou
cada minuto do seu tempo aos amassos com sua namorada. E daí? Agora ele
está aqui, e está seguro. Não é algo para se comemorar?
Claro que seria. No começo eu até fiquei feliz.
— Você preferia que seu filho voltasse com os olhos fundos e com um
ou dois membros faltando? Porra, existia a chance até de você só se “reunir”
ao cadáver dele. Ah, não, erro meu… Se ele tivesse morrido no Continente
Demônio, não haveria nem mesmo um corpo para você encontrar.
Rudy? Um cadáver? Eu o tinha visto saudável e cheio de vida, então
agora era impossível até mesmo imaginar esse tipo de coisa. Mas apenas
alguns dias atrás… eu não tinha imaginado exatamente esse cenário
enquanto me afundava no desespero?
— Deus, que pooobre criança! Depois daquela longa e difícil viagem,
finalmente encontrou seu querido pai novamente, mas o cara acabou virando
um saco de bosta bêbado! Se eu fosse ele, teria rompido os laços na hora.
Ah, bom. Agora ele já estava de teatrinho.
— Já entendi o recado, Geese. Você não está errado, tá bom? Mas há
uma coisa que ainda não entendo.
— Hm? E o que é?
— Por que Rudy não sabia sobre o que aconteceu com Buena Village?
Tenho certeza de que tinha uma mensagem esperando por ele em Porto Zant.
Geese abriu a boca como se quisesse explicar, depois fez uma careta e
desistiu. Eu reconheci essa expressão. Isso significava que ele estava
escondendo algo.
— Uh, sei lá. Provavelmente só deu azar e não viu a mensagem.
— Espera… exatamente onde você se encontrou com Rudy? Eu estava
supondo que você o encontrou em Porto Zant.
Eu não sabia onde Geese passou o último ano, mas Rudeus tinha vindo
para Millis pelo norte. E Porto Zant era a única cidade naquela direção que
era grande o suficiente para o homem realmente se dar bem.
Definitivamente deixei uma mensagem para Rudy naquela cidade. E,
além disso, tínhamos membros de nossa equipe posicionados lá. Seu
trabalho era coletar informações de qualquer viajante que cruzasse do
Continente do Demônio. Se o garoto era um aventureiro, a Guilda seria uma
parada obrigatória, certo?
— Na verdade, me encontrei com Rudeus no vilarejo do Clã Doldia.
Bem, pra ser sincero, foi um choque. Ele foi jogado nu em uma cela de
prisão, acusado de agredir a Fera Sagrada deles.
— Nu? Em uma prisão do povo-fera? Isso é sério…?
Ghislaine já tinha me falado dessas coisas. Para os membros da tribo
Doldia, ser despido, acorrentado em uma cela de prisão e encharcado com
água gelada era a maior de todas as humilhações. Quase nunca submetiam
estranhos a tal tratamento, mas, quando o faziam, geralmente acabava com a
morte do prisioneiro. Uma vez molhei Ghislaine, era só uma brincadeira, e
ela me olhou como se eu tivesse matado seus pais.
— Então, uh… o que aconteceu lá?
— O quê? Rudeus não te contou tudo?
— Tudo o que ouvi foi a parte em que ele viajou pelo Continente
Demônio. — Por que não me falou que não tinha visto a mensagem que
deixei em Porto Zant? Isso era realmente muito importante.
Ah, certo. Nem perguntei sobre essas coisas.
Droga. Por que eu tinha que ser tão pavio curto?
Precisava me acalmar e começar a pensar nas coisas com mais cuidado.
Rudy era um garoto inteligente, mas de alguma forma falhou em ver minha
mensagem, ou até mesmo ouvir sobre a situação. Se tivesse passado algum
tempo em Porto Zant, teria tropeçado nesse tipo de informação sem nem
procurar.
Em outras palavras, deve ter se metido em algo no momento em que
chegou lá – algo que o fez ser levado pela tribo Doldia. Seja lá o que fosse,
devia ser um enorme incidente. Parte do nosso pessoal localizada no Porto
Zant deveria voltar em dois ou três dias para fazer seu relatório regular, mas
talvez algo grande tivesse acontecido no norte.
— Bem, eu mesmo não sei todos os detalhes — disse Geese. — Mas
estava andando com os Mildett na Grande Floresta quando soube de um
boato de que os Doldia tinham prendido uma criança humana.
— Hm? Espera aí. Aonde você estava? — Os Mildett? Não era uma
tribo de gente-fera? Não eram os únicos com orelhas de coelho?
— Em um vilarejo Mildett. Naquele em que o chefe mora, aquele lugar
na verdade é bem grande, mas…
A explicação de Geese foi dolorosamente prolixa e irritante. Sério,
fiquei tentado a interrompê-lo no meio do caminho. Mas eu havia perdido a
chance de obter informações importantes ao ficar impaciente com Rudy
antes. E embora raramente aprendesse com meus erros, não era estúpido o
suficiente para estragar tudo do mesmo jeito duas vezes, ainda mais no
mesmo dia.
Eventualmente, o conto errante de Geese chegou ao fim. Tentei resumir
o que ele me disse.
— Então, basicamente, você estava passeando por todas as tribos da
Grande Floresta… e os convencendo a enviar quaisquer humanos perdidos
que encontrassem para Millishion?
— Isso aí. Heh heh. Fique à vontade para demonstrar gratidão!
— Tá, te devo essa… — Isso provavelmente explicava o constante
fluxo de refugiados aparecendo da área da Grande Floresta e que vinham me
pedir ajuda.
— Bem, enfim! Quando ouvi sobre esse garoto humano, meio que tive
uma ideia, então saí correndo. Não quero me gabar nem nada, mas sou um
homem com muitas conexões, né? Acontece que conheço até um pessoal do
vilarejo Doldia. Pedi para um de seus guerreiros, um amigão meu, para me
jogar na mesma cela que o garoto.
— Calma aí. Por que você precisava ficar preso com ele?
— Se o pior acontecesse, só poderia ajudar em sua fuga se fizesse isso.
É muito mais fácil escapar de uma prisão de gente-fera do que invadir uma.
Eu estava familiarizado com o talento de Geese para escapar de prisões.
Sempre que ele era preso por executar algum tipo de esquema, voltava logo,
como se nada tivesse acontecido.
— De qualquer forma, eu estava assumindo que encontraria o garoto
deitado em posição fetal e chorando sem parar, sabe? Mas em vez disso… ha
ha!
— O que aconteceu? Ele estava bem?
— Cara, ele tava de boa lá, todo peladão! E as primeiras palavras que
saíram de sua boca foram: “Bem-vindo ao destino final da vida!” Como
deveria reagir a isso?! — Geese teve que parar por um momento para rir de
sua própria história.
— Cara, isso não parece ser motivo para risada…
— Mas foi hilário! Paul, na mesma hora eu saquei que ele era seu filho!
Eu não entendia o que havia de tão engraçado nisso. Ou como havia
descoberto tão rapidamente.
— Cara, ele é a sua cópia — Geese continuou. — Ridiculamente
arrogante! Adora mandar nos outros! Uma vez, ele estava tentando flertar
com uma garota fera, sabe? Ela olhou para ele e disse: “Posso sentir o cheiro
da sua excitação”, mas mesmo assim o garoto continuou cobiçando o corpo
dela! O menino é seu filho, sem dúvidas!
Neste ponto, o homem parou para outra crise de riso. Eu me mexi
desconfortavelmente na cadeira, lembrando de alguns episódios de minha
juventude.
— Mas ainda demorei um pouco para ter certeza absoluta — disse
Geese, fazendo uma pausa para esvaziar uma segunda caneca de cerveja. —
Mas, sim, é isso aí. Não dá para culpar o garoto por não ter visto sua
mensagem. Pelo que parece, ele não passou nenhum tempo em Porto Zant.
— Hm? Geese, calma aí. Vocês ficaram na mesma cela, não ficaram?
Então…
Ele não poderia ter simplesmente explicado tudo?
— Enfim! — disse Geese, levantando-se de seu assento. — Tenho
certeza de que haverá um pouco de constrangimento familiar remanescente
aqui, mas faça um favor ao seu velho amigo Geese e vá se reconciliar com o
garoto, certo?
— Ei, espera. Eu ainda quero…
— Ah, claro. Esqueci de mencionar, mas parece que Elinalise e
companhia foram para o Continente Demônio no seu lugar. As pessoas
estavam dizendo que alguma elfa andou ordenhando metade dos homens de
Porto Zant, e ambos sabemos o que isso significa.
— O quê? Sério? — Para ser sincero, eu achava que Elinalise era a que
mais me odiava.
— Heh heh. No final das contas, não te odeiam tanto quanto deixam
transparecer.
Com isso, Geese saiu do bar. Claro, ele não pagou pelo que bebeu. O
sujeito nunca fazia isso. Mas, desta vez, não me importei em pagar sua
conta.
De qualquer forma, bebi mais do que o suficiente por um dia. Já estava
na hora de ir embora e esperar a noite passar.
Em breve teria que conversar com Rudy. Talvez no dia seguinte…
— Chega de bebida por esta noite, amigão — disse Geese, que colocou
a cabeça pela porta. — Amanhã você vai para a Pousada Luz D’Alvorada
sóbrio, entendeu?
— Tá, tá! Eu sei! — Com um suspiro irritado, coloquei minha caneca
de cerveja na mesa.
Agora que pensei nisso, parecia que tinha exagerado nos últimos dias.
Por que continuei me afogando nessa merda? Eu ainda tinha muitas outras
coisas que precisava fazer.
— Um… Capitão Paul? Terminou de falar com seu amigo?
Enquanto eu revirava as coisas na minha cabeça, uma mulher se
aproximou da minha mesa, toda hesitante. Havia uma expressão de
desculpas em seu rosto. Minha cabeça não estava boa o suficiente para
reconhecê-la já de cara, mas depois de estudar seu rosto por alguns
segundos, percebi que era Vierra – um dos membros do meu esquadrão.
— Heh. O que há com você, garota? Sentiu vontade de usar algo
modesto pela primeira vez?
— Bem, sim… — Com um aceno ambíguo, Vierra sentou-se no assento
que Geese havia acabado de desocupar. Por alguma razão, nesta noite não
estava usando seu costumeiro traje provocante. Ela havia trocado para uma
roupa perfeitamente normal que a fazia parecer mais com uma garota
comum da cidade. — Eu estava preocupada sobre o que aconteceu com seu
filho antes poder ter sido minha culpa, senhor.
— O quê? O que te faz pensar uma coisa dessas?
— Er, bem, parecia que… a maneira como me visto pode ter feito com
que ele entendesse mal a natureza do nosso relacionamento…
— Isso não faz sentido. O rebeldezinho deu uma olhada no tamanho do
seu peito e tirou suas próprias conclusões.
Havia uma razão para Vierra se vestir daquele jeito. A mulher tinha
sido uma aventureira comum em Fittoa, mas o Incidente de Deslocamento a
deixou presa no Continente Millis, sem nenhum equipamento para usar. Ela
foi rapidamente capturada por uma gangue de bandidos que a trataram como
seu brinquedo. Era o tipo de pesadelo que deixaria a maioria das pessoas
destruídas por dentro, mas ela conseguiu superar tudo com pura força de
vontade.
No entanto, também tínhamos acolhido uma garota que não se
recuperou tão rapidamente: Sua irmã, Shierra. Mesmo agora, Shierra tremia
incontrolavelmente em cada vez que um homem olhava para ela. E tivemos
vários casos semelhantes em nosso esquadrão.
Para proteger todas de atenção indesejada, Vierra começou a usar uma
armadura deliberadamente reduzida para atrair os olhares de todos os
homens. Ela também era o membro de nosso esquadrão mais adepto para
confortar e cuidar de mulheres que foram submetidas a esse tipo de trauma.
Como um homem sem forma de compreender aquele tipo específico de dor,
eu a considerava uma parte indispensável da equipe.
Não tínhamos qualquer relacionamento sexual, é claro. Essa era uma
ideia ridícula.
— Não foi culpa sua. Entendeu?
— Sim, senhor…
Ainda parecendo um pouco abatida, Vierra se levantou e voltou para a
mesa onde as outras garotas estavam sentadas. Olhando ao redor do cômodo
com um pouco mais de cuidado do que antes, percebi que mais do que
algumas pessoas estavam me olhando com óbvia preocupação em seus
olhos.
— Ah, fala sério… Não me olhem assim, seus idiotas! Eu vou fazer as
pazes com ele amanhã, tá bom?!
Empurrei minha cadeira para trás, me levantei e saí do bar.
Quando voltei para o meu quarto na pousada, encontrei Norn já
dormindo.
Me servi de um copo d’água da jarra que estava em nossa mesa e bebi
tudo de uma só vez. O líquido morno desceu até meu estômago embrulhado.
Consegui sentir a sobriedade voltando ao meu corpo. Sempre tive uma
alta tolerância ao álcool; ficava meio duro quando bebia bastante, mas os
efeitos nunca pareciam durar muito tempo. Quando a névoa em minha
cabeça começou a se dissipar aos poucos, olhei para minha filha, que estava
enrolada com seu cobertor na cama, e acariciei suavemente a sua cabeça.
Me senti mal por Norn. Realmente mal. Com um pai como eu, ela tinha
muito para reclamar, mas sempre guardava tudo para si e fazia o possível
para sorrir. Se eu a perdesse, não teria forças para continuar vivendo.
— Mm… Papai…
Norn se mexeu um pouco na cama. Não parecia que eu tinha a
acordado; provavelmente estava apenas falando enquanto dormia.
Norn não era como Rudy. Ela era uma criança normal. Eu tinha que
mantê-la segura.
De repente, um pensamento estranho me ocorreu: se Rudy também
fosse uma criança “comum”, não estaria dormindo neste quarto com Norn?
Ele teria ficado em casa conosco, em vez de sair para ser um tutor. E, no
momento do desastre, poderia estar puxando minha manga, perguntando se
também poderia abraçar Norn.
Se Rudy fosse comum – um garoto normal de onze anos – eu não o
olharia da mesma forma que olhava para Norn? Como alguém que precisava
proteger?
Com isso senti minhas pernas tremendo. Finalmente entendi por que
Geese me disse que “Ele ainda é uma criança.”
Que diferença fazia se Rudy fosse comum ou não? Isso importava
mesmo? E se o gênio fosse Norn? Eu teria falado com ela daquele jeito? Se
Norn tivesse voltado para mim depois de partir em uma aventura, sem saber
de nada do que tinha acontecido… eu teria dito que esperava mais dela?
Depois que comecei a pensar nisso, não consegui dormir. Não queria
nem deitar na cama. Saí de nossa pousada, encontrei um balde de alumínio
cheio de água do lado de fora e joguei ele todo na minha cabeça.
E então, lembrando-me da expressão no rosto de Rudy quando ele saiu
do bar, inclinei-me e vomitei.
Refresque sua memória, Paul. Quem foi que machucou a criança
daquele tanto?
Olhando para o balde de alumínio, vi o rosto de um completo idiota.
Quem quer que fosse esse idiota, era obviamente o último homem no mundo
que tinha qualquer direito de se chamar de pai.
— Ah, merda. Isso pode ser complicado…
Se eu estivesse no lugar de meu filho, cortaria as relações sem pensar
duas vezes.
✦✦✦✦✦✦✦
Ponto de vista do Rudeus
Na manhã seguinte, quando me sentei para tomar o café da manhã, meu
humor estava relativamente melhor.
Tínhamos acabado de caminhar até o bar ao lado da pousada. A comida
em Millishion era definitivamente saborosa. Nossas refeições estavam
ficando cada vez melhores conforme viajávamos pelo continente e pela
Grande Floresta. Nesta manhã, comemos pão fresco, uma espécie de sopa
clara de sabor leve, uma salada simples de vegetais e fatias grossas de bacon.
Nada mal.
Embora eu não tivesse comido na noite anterior, o jantar parecia ser
acompanhado por algum tipo de sobremesa. Era um tipo específico de
gelatina doce que era muito popular entre os jovens aventureiros, tendo
conquistado até mesmo uma menção em uma balada popular recente sobre
as aventuras de uma jovem maga.
Bem, isso era até legal. Era sempre bom ter alguma comida decente na
barriga. Ficar com fome deixa qualquer um irritado. E ficar irritado arruina o
apetite. E um apetite arruinado só deixa você com ainda mais fome. Era um
ciclo vicioso. Seria o suficiente para deixar até um andróide carrancudo.
— Entre…
Enquanto eu refletia sobre esses assuntos e tomava um gole de uma
bebida parecida com café após a refeição, o barman voltou sua atenção para
a entrada. Um homem cansado e de cara pálida estava parado na porta.
Quando vi seu rosto, estremeci por puro reflexo.
Ele olhou ao redor por um momento, então me viu.
Naquele momento, todas as emoções que experimentei no dia anterior
voltaram à tona. Mesmo que não tenha dito uma palavra para mim, me
encontrei desviando o olhar para o chão.
Só pela minha reação, as duas pessoas com quem eu estava sentado
pareceram perceber quem devia ser o homem na entrada. Ruijerd franziu a
testa; Eris chutou a cadeira para trás e se levantou.
— Quem você pensa que é?
O homem começou a caminhar em nossa direção, mas Eris havia se
plantado bem no meio do seu caminho. Com os braços cruzados, os pés bem
separados e o queixo levantado, olhou para o homem severamente – apesar
do fato de que ele era duas cabeças mais alto do que ela.
— Sou Paul Greyrat… o pai dele.
— Eu sei disso!
Enquanto eu olhava para as costas de Eris, Paul falou sobre sua cabeça
com uma voz ironicamente jocosa.
— O que há, Rudy? Agora está se escondendo atrás de garotinhas? Que
playboyzinho.
Algo nessas palavras – ou talvez seu tom – me aliviou um pouco. Isso
me lembrou da maneira como ele costumava me provocar no passado. Eram
boas lembranças.
Decidi que Paul estava tentando preencher a distância que se formou
entre nós. Afinal, ele tinha saído de seu caminho para me encontrar logo
cedo. Eu estava calmo o suficiente para pelo menos tentar conversar.
— Rudeus não está se escondendo atrás de mim! Eu é que estou
escondendo ele! De um pai fracassado! — Fechando as mãos em punhos,
Eris estremeceu de fúria. Parecia que estava prestes a dar um soco no queixo
de Paul.
Lancei um olhar para Ruijerd. Pelo visto, sentindo o que eu queria, ele
agarrou Eris pelo pescoço e a levantou do chão.
— Ei! Me solta, Ruijerd!
— Devíamos deixar os dois sozinhos.
— Você viu Rudeus ontem à noite, não viu?! Esse homem não tem o
direito de se chamar de pai!
— Não seja tão dura com ele. A maioria dos pais está longe de ser
perfeito.
Ruijerd se dirigiu para a saída, carregando uma Eris relutante. Mas, ao
passar por Paul, ele parou por um momento.
— Você tem todo o direito de dizer o que quer. Mas a única razão pela
qual pode fazer isso, é por que seu filho ainda está vivo.
— Uh… sim…
As palavras de Ruijerd carregavam um peso real. Ele parecia se
considerar o pai mais fracassado do mundo. Talvez sentisse algum tipo de
simpatia por um colega desastrado.
— Você realmente não deveria mandar nas pessoas com um movimento
de queixo, Rudy.
— Você entendeu tudo errado, Pai — protestei. — Na verdade só foi
um contato visual. Nem precisei mover o queixo.
— Não tenho certeza se isso realmente faz diferença — disse Paul,
sentando-se à minha frente. — Então, era aquele o cara demônio de quem
você estava me falando ontem…?
— Sim. Aquele é Ruijerd da tribo Superd.
— O Superd, hein? Parece um cara bastante amigável. Acho que os
rumores devem ser um pouco exagerados.
— Não ficou com medo dele nem nada do tipo?
— Não seja idiota. Ele é o homem que salvou meu filho.
No dia anterior, Paul não parecia pensar assim, mas… provavelmente
não seria muito útil apontar esse ponto.
Então…
— Enfim. Posso perguntar por que você está aqui?
Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia, e Paul se encolheu na
cadeira.
— Uh… bem, eu queria dizer que sinto muito.
— Pelo quê?
— Por tudo o que aconteceu ontem.
— Não precisa se desculpar. — Era bom que ele estivesse disposto a
fazer isso, mas depois de uma boa noite de sono no peito de Eris, eu estava
pronto para confessar os erros que cometi. — Para ser honesto, até agora na
verdade fiquei só brincando.
No começo as coisas foram um pouco complicadas, é claro. Mas, na
maior parte do tempo, nossa jornada transcorreu sem problemas e tive muito
tempo para me entregar a várias perversões. O fato de nunca ter conseguido
reunir informações sobre a Região de Fittoa foi, sem dúvida, um fracasso da
minha parte. Nunca tive a chance de bisbilhotar em Porto Zant, mas
passamos um bom tempo em Porto Vento. Poderia ter encontrado algum tipo
de corretor de informações por lá e descoberto mais sobre a Calamidade.
Não procurei pelas coisas que deveria. Foi algo desleixado e
descuidado da minha parte.
— É compreensível que tenha sentido raiva de mim, Pai. Eu também
sinto muito… Não consigo imaginar como as coisas devem ter sido agitadas
para você.
Toda a Região de Fittoa foi “deslocada” e nossa família acabou
espalhada ao vento. Quando pensei em como Paul deve ter se sentido nos
dias e semanas que se seguiram, não consegui o culpar por sua atitude
severa. Fiquei viajando em uma bolha de ignorância, felizmente ignorante
quanto à tragédia em curso ao meu redor.
— Não fale algo assim, Rudy. Sei que você também deve ter passado
por momentos difíceis.
— Não, isso não é verdade. Para ser sincero foi moleza. — Afinal,
Ruijerd estava comigo. Depois de nosso começo conturbado em Rikarisu, as
coisas correram relativamente bem. Nosso guarda-costas garantiu que os
monstros nunca nos emboscassem. Ele caçou nosso jantar sem ser solicitado,
e até interferiu quando Eris e eu brigamos. Para mim, pelo menos, a jornada
foi virtualmente relaxante. A palavra “moleza” parecia adequada.
— Ah, é mesmo? Então foi moleza, hein…? — Eu não sabia o que Paul
estava pensando no momento, é claro. Mas, por alguma razão, sua voz
tremia um pouco.
— Aliás, sinto muito por não ter visto sua mensagem. Sobre o que era?
— Eu só disse que estava bem e pedi que você fizesse uma busca na
parte norte do Continente Central.
— Entendi. Bem, posso ir lá dar uma olhada assim que deixar Eris na
Região de Fittoa.
Por que eu estava falando como um robô? Tudo o que disse parecia
estranhamente tenso. Parecia até que estava ansioso. E porque estaria?
Perdoei Paul e ele me perdoou. As coisas definitivamente não seriam as
mesmas de antes, mas esta era uma situação de emergência, certo? E todo
mundo fica tenso em uma emergência. Claro. Fazia sentido.
— Deixando isso de lado por enquanto, poderia entrar em mais detalhes
sobre a situação atual na Região de Fittoa?
— Sim, com certeza. — A voz de Paul era tão robótica quanto a minha
e tremia um pouco cada vez que ele falava. Será que também estava
nervoso?
Não, não. Primeiro devia tentar descobrir o que estava por trás do meu
próprio comportamento. Realmente havia algo estranho nisso… Eu não
conseguia agir da maneira de costume.
Como é que falava com Paul antes daquilo acontecer? Costumávamos
ser bem casuais um com o outro, não é?
— Vejamos. Por onde devo começar…?
Com a voz ainda tensa, Paul me deu um resumo completo do que tinha
acontecido em Fittoa enquanto eu estava fora. Todos os edifícios da região
desapareceram e todos os residentes foram teletransportados para algum
canto aleatório do planeta. Muitas mortes já haviam sido confirmadas e
muitas outras pessoas ainda continuavam desaparecidas.
Paul descreveu como recrutou voluntários para o Esquadrão de Busca e
Resgate e os transformou em uma organização funcional. Escolheu basear
suas operações em Millishion, já que era o lar da sede da Guilda dos
Aventureiros e um bom ponto central para reunir informações.
O esquadrão tinha outra base de operações na capital do Reino Asura, e
o ex-mordomo Alphonse comandava as coisas por lá. Alphonse também era
o líder geral da organização e estava ativamente fornecendo ajuda aos
refugiados que haviam voltado para a Região de Fittoa.
Paul também explicou que havia deixado mensagens para mim em
cidades de todo o mundo. Esperava que pudéssemos nos separar e procurar
os membros desaparecidos de nossa família em lugares variados.
Como o mais velho e independente de seus filhos, provavelmente seria
minha responsabilidade ajudar. Eu ainda era uma criança, sim, mas tinha a
mente de um adulto. Se tivesse visto a mensagem, teria me incitado a agir.
Zenith, Lilia e Aisha estavam todas desaparecidas. E era perfeitamente
possível que eu tivesse passado por uma delas em algum lugar no Continente
Demônio. Isso era apenas um fato, e foi o suficiente para me fazer lamentar
tudo que fiz por lá. Estive com tanta pressa que raramente ficávamos em
uma única cidade por mais do que alguns dias.
— Então está tudo certo com Norn?
— Aham, tivemos sorte. Ela estava me tocando quando tudo aconteceu.
De acordo com Paul, era assim que a magia de teletransporte
normalmente funcionava: Se estivesse em contato físico com alguém quando
ela o atingisse, seriam enviados para o mesmo destino.
— Ela está bem?
— Aham. No começo ela pareceu um pouco desconfortável por ter ido
parar em um lugar desconhecido, mas agora é basicamente a mascote do
esquadrão.
— Sério? É bom ouvir isso.
Ao menos Norn estava segura e feliz. Esta era definitivamente a única
colher de chá ao se analisar toda a bagunça que foi feita. Era algo a se
comemorar, com certeza.
Mas, por alguma razão, eu ainda estava me sentindo meio triste.
Nossa conversa foi interrompida. Isso parecia estranhamente…
esquisito. Paul e eu não éramos assim antes, não é? O que aconteceu com a
maneira como costumávamos fazer piadas e brincar um com o outro? Mas
que peculiar.
Depois de um tempo, Paul disse uma coisa ou outra, mas não consegui
responder direito.
Minhas respostas foram ficando cada vez mais breves e apáticas.
Em algum momento, todos os outros clientes tinham ido embora do bar.
Em pouco tempo, provavelmente seríamos convidados a sair para que
pudessem se preparar para a correria do almoço.
Acho que até Paul percebeu isso. Então passou para o tópico principal,
e também final.
— Rudy, o que você planeja fazer a partir de agora?
— Em primeiro lugar, vou levar Eris de volta à Região de Fittoa.
— Não sobrou quase nada de Fittoa, sabe?
— Eu sei. Mas ainda assim, vou fazer isso.
Mesmo que Philip, Sauros e Ghislaine ainda estivessem desaparecidos e
não encontrássemos nenhum rosto familiar esperando por nós, tínhamos que
ir. Afinal, voltar para lá sempre foi nosso objetivo. Seguiríamos nosso
objetivo inicial. E assim que chegássemos a Fittoa, poderíamos testemunhar
seu estado com nossos próprios olhos.
Depois disso, eu poderia partir para buscar na parte norte do Continente
Central… ou talvez até mesmo pediria a Ruijerd para me ajudar a voltar ao
Continente Demônio. Inferno, poderia até mesmo tentar ir para o Continente
Begaritt. Bem, eu meio que sabia a língua de lá.
— Depois disso, vou começar a procurar nas outras partes do mundo.
— Tudo bem…
Com isso, a conversa esfriou de novo. Eu não fazia ideia do que dizer.
— Aqui. — Nesse momento, o garçom abruptamente colocou dois
copos de madeira na nossa frente. Nuvenzinhas de vapor subiam suavemente
do líquido dentro deles. — Isso é por conta da casa.
— Ah. Obrigado. — Agora que pensei nisso, minha garganta estava
dolorosamente seca.
Assim que percebi isso, também notei algumas outras coisas. Eu estava
apertando minhas mãos com força; minhas palmas estavam úmidas de suor.
Minhas costas e axilas também pareciam estranhamente frias. E a franja do
meu cabelo estava colada na minha testa.
— Ei, garoto. Não vou fingir que sei o que está acontecendo aqui,
mas…
— Hm…?
— Ao menos olhe para a cara dele.
Foi só quando ouvi essas palavras que me dei conta. O tempo todo
evitei de encarar o olhar de Paul. Depois de desviar meus olhos quando ele
entrou, não voltei a olhar para seu rosto. Nem uma vez.
Engolindo em seco, olhei para meu pai. Seu rosto estava cheio de
incerteza e angústia. Parecia um homem prestes a desabar em lágrimas.
— Por que você está fazendo essa cara?
— Que cara? — disse Paul, sorrindo amarelo.
Com sua expressão apática e bochechas fundas, parecia uma pessoa
completamente diferente do homem que eu conhecia. Mas, por alguma
razão, senti como se já tivesse visto um rosto muito semelhante em algum
lugar. Onde foi? Tinha a sensação de que fazia muito tempo…
E me lembrei…
Tinha visto algo parecido no espelho do banheiro, na minha antiga casa.
Tinha acontecido um ou dois anos depois de eu me tornar totalmente
recluso. Naquela altura, ainda achava que tinha tempo para mudar as coisas.
Mas também estava ciente de que havia uma distância cada vez maior entre
mim e todos que conhecia – uma que talvez nunca fosse capaz de superar.
Ainda assim, eu estava simplesmente com muito medo de voltar a sair.
E assim, sentimentos de ansiedade e frustração constantemente cresceram
dentro de mim. Talvez tenha sido o período mais emocionalmente volátil da
minha vida.
Entendo. Então era isso…
Paul, sem sucesso, procurou desesperadamente por sua família. Apesar
de todos os seus esforços, não tinha encontrado um único rastro de notícia
por muito tempo. Ficava constantemente preocupado. E, finalmente,
começou a se perguntar: E se estiverem feridos? E se estiverem doentes? E
se já estiverem mortos? Quanto mais pensava nisso, mais preocupado ficava.
E então, finalmente, eu apareci… com um sorriso alegre no rosto. Foi
tão diferente do que Paul havia imaginado que ele acabou ficando irritado.
Uma vez passei por algo semelhante. Não muito depois de começar
minha vida como um perdedor, alguém que eu conhecia desde o ensino
fundamental foi me visitar e começou a me contar sobre o que estava
acontecendo na escola. Eu estava profundamente deprimido e com muita
dor, mas ele falava sobre sua vida como se não existisse nenhuma
preocupação com o mundo. Aquilo fez meu estômago doer. Acabei
explodindo e lançando insultos ásperos contra aquela pessoa.
No dia seguinte, disse a mim mesmo que me desculparia na próxima
vez que o cara aparecesse. Mas ele nunca mais voltou. E eu também não
estendi a mão para ele. Deixei algum tipo de orgulho teimoso me segurar.
Agora me lembrava. Era exatamente a mesma cara que vi no espelho.
— Pai, tenho uma proposta.
— O quê…?
— Nessas circunstâncias, acho que precisamos tentar agir como
adultos.
— Uh, sim, acho que não agi de forma muito madura ontem… Mas não
tenho certeza de onde você quer chegar.
O gelo dentro do meu coração estava derretendo rapidamente.
Finalmente entendi como Paul estava se sentindo. Depois de resolver uma
parte do quebra-cabeça, o resto, na verdade, seria bem simples.
Voltei a pensar no passado – no dia em que Paul me criticou por brigar,
e respondi com minhas próprias palavras ásperas. Na época, não fiquei nem
um pouco impressionado com suas habilidades de pai. Mas ele tinha apenas
vinte e quatro anos, era muito jovem para ser pai, então decidi não fazer um
julgamento muito severo.
E já tinham se passado seis anos. Paul agora já tinha entrado na casa
dos trinta. Ele ainda era um pouco mais jovem do que eu na minha vida
anterior e já havia realizado mais do que eu. Quando briguei com meu
amigo, nem tentei consertar as coisas. Acabei encontrando maneiras de me
convencer de que era tudo culpa dele. Em comparação, Paul estava se
esforçando muito mais.
Eu não era mais a mesma pessoa daquela época. Jurei para mim mesmo
que iria mudar, não jurei? Acabei esquecendo disso, mas não podia me
permitir repetir os mesmos erros estúpidos de novo e de novo.
Esta era uma briga muito maior do que a última, sim. Mas eu estava me
comportando exatamente da mesma maneira que naquele dia, de seis anos
atrás. Estávamos ambos cometendo os mesmos erros estúpidos, de novo.
Achei que tinha percorrido um longo caminho desde então, mas, em vez
disso, parecia que só tinha andado em círculos. Precisava reconhecer isso.
E o mais importante: Tive que dar um verdadeiro passo adiante.
— Vamos fingir que o dia de ontem nunca aconteceu.
A proposta parecia bastante simples. Fiquei profundamente magoado
com o que Paul me disse naquele bar. A dor era quase insuportável. Meu
amigo, que passou em minha casa, preocupado comigo, deve ter sentido algo
semelhante quando o afastei. E foi daquele jeito que as coisas terminaram.
Nunca mais nos vimos.
Desta vez as coisas não seriam iguais. Eu não deixaria meu vínculo
com Paul ser quebrado.
— Ontem nós dois não brigamos. Agora, neste momento, estamos nos
vendo novamente pela primeira vez em anos. Entendido?
— Do que você está falando, Rudy?
— Não pense demais nisso, por favor. Apenas abra bem os braços. E
anda logo!
— Uh… tá bom… — Paul abriu os braços, parecendo um pouco
indeciso.
E eu prontamente me joguei neles.
— Pai! Senti sua falta!
Seu corpo exalava um cheiro sobressalente de bebida. Ele parecia estar
sóbrio, mas eu não ficaria surpreso se ainda estivesse de ressaca. Afinal de
contas, quando foi que começou a beber tanto? Nos velhos tempos, eu
achava que ele nem bebia.
— R-Rudy? — Paul parecia não saber como reagir.
Descansando meu queixo em seu ombro, murmurei um conselho bem
baixinho.
— Vamos lá. Você acabou de se reunir com seu filho. Não há nada que
queira dizer?
Isso era meio ridículo, claro. Mas, mesmo assim, abracei o corpo sólido
de Paul com todas as minhas forças. Não foi apenas seu rosto que ficou mais
magro. Seu manequim parecia estar um ou dois tamanhos menor do que
antes. Claro, eu cresci nos últimos anos, então isso provavelmente tinha algo
a ver com isso; mas era óbvio que meu pai havia passado por alguns
momentos muito difíceis.
Após um momento de hesitação, Paul conseguiu murmurar:
— Eu… eu também senti sua falta.
E uma vez que ele disse aquelas primeiras palavras, foi como se as
comportas se abrissem.
— Também senti sua falta, Rudy… Senti tanto a sua falta! Eu procurei
e procurei, mas não consegui encontrar ninguém… Comecei a pensar que
vocês poderiam estar todos mortos… Comecei… imaginando você…
Quando olhei para Paul novamente, várias lágrimas escorriam por seu
rosto. Não era uma imagem lá muito bonita. O homem estava soluçando
feito um bebê.
— Desculpa… Eu sinto muito, Rudy…
Bem, ótimo. Agora ele também está tornando as coisas mais fáceis.
Afaguei a sua nuca algumas vezes. Por um tempo, nós dois apenas
choramos juntos.
E então, pela primeira vez em cinco anos, finalmente me reuni com
meu pai.
Capítulo 05:
Objetivos Confirmados
Depois de tudo, Paul e eu passamos muito tempo apenas conversando.
Não discutimos nada particularmente importante, na maior parte do tempo
nos limitando apenas a tópicos mais triviais.
Em primeiro lugar, ele me contou como as coisas estiveram em Buena
Village durante os anos que passei na Cidadela de Roa.
Paul atualmente tinha duas esposas, mas isso aparentemente não se
traduzia em “diversão” em dobro. Zenith e Lilia tiveram algumas discussões
em segredo e chegaram a um acordo. Como regra geral, esperava-se que ele
mantivesse as mãos longe de Lilia. A única exceção seria se Zenith
engravidasse pela terceira vez, mas, nesse caso, Paul seria obrigado a obter
sua aprovação com antecedência.
Zenith ainda estava um pouco em conflito quanto a essa situação, mas
pelo visto meio que concordou com isso. Com certeza era algo conveniente
para meu pai. Para ser honesto, fiquei até com um pouco de inveja.
— Então, acha que vou ter uma terceira irmã chegando?
— Nah. Por algum motivo, não estamos mais conseguindo… Então sei
lá. Fizemos você na primeira tentativa.
— Então no primeiro tiro você acertou em cheio e conseguiu um filho
perfeito? Que homem de sorte que você é, hein Pai.
— Você realmente se acha o engraçadão, não é?
Não parecia o tipo de conversa que um menino de onze anos deveria ter
com o pai, mas mesmo assim estávamos aproveitando.
Uma das coisas que não discutimos foi a possibilidade de Zenith e Lilia
estarem vivas. Era como um elefante na sala, mas nós dois sabíamos que
mencionar isso só serviria para estragar o nosso humor.
— E como Sylphie estava sem a minha companhia?
— Ah, sim. Rudy, aquela garota é incrível. Acho que você tem algum
talento como professor.
Pelo que parecia, Sylphie estava se saindo bem. Ela passava as manhãs
correndo e praticando técnicas mágicas básicas e, à tarde, normalmente
trabalhava em seus feitiços de cura com Zenith.
A propósito, após alguns anos, a pequena Aisha também começou a
receber lições de Lilia, embora a maioria delas incluísse coisas como
etiqueta, em vez de feitiços.
— Enfim, aquela criança é definitivamente… uh, acho que séria é a
palavra certa. Ela sempre vinha à nossa casa para fazer uma coisa ou outra
no seu quarto.
— Sabe se Sylphie encontrou alguma coisa por lá…?
— O quê? Havia algo escondido por lá que você não queria que ela
visse?
— Não, não! Claro que não. Pai, não seja ridículo.
Ha ha. Mas que absurdo.
— Bem, agora, de qualquer forma, acho que não sobrou mais nada.
Pelo que Paul me contou, todos os objetos da Região de Fittoa
desapareceram com o desastre. Isso incluía tudo, desde pequenas coisas
como canetas de pena e frascos de tinta até grandes estruturas como edifícios
e pontes. As únicas exceções eram os itens que as pessoas carregavam
consigo no momento em que foram teletransportadas.
— Ah. Entendo…
Mas que pena. Não conseguia lembrar o motivo do por que era uma
pena, mas ainda assim senti um gostinho de melancolia.
— E aí, o que andou fazendo nos últimos tempos, Rudy?
— Ah, lá em Roa?
Obedientemente, comecei a contar um resumo rápido do meu tempo
como tutor.
A história começou com meu primeiro dia de trabalho, quando Eris me
deu um soco e eu quase desisti na mesma hora, então passei para o nosso
“infeliz” sequestro. Expliquei que Eris se animou comigo um pouco depois
que nos tirei daquela situação difícil, mas ainda se recusava a levar minhas
aulas a sério.
Em seguida, descrevi como fui pedir ajuda a Ghislaine e como ela
convenceu a mocinha a prestar atenção nas aulas. E depois disso, falei sobre
como meu relacionamento com Eris havia melhorado pouco a pouco, sobre
nossas aulas de dança e os eventos do meu décimo aniversário.
— Ah, é mesmo. Seu aniversário. Sinto muito por isso, garoto…
— Por que está pedindo desculpas?
— Bem, eu não pude dar as caras por lá, lembra?
Para o povo do Reino Asura, o décimo aniversário de uma criança era
um evento de importância monumental. Eu ainda não entendia exatamente o
porquê, mas parecia ser considerado algum tipo de marco de sorte. A família
deveria dar uma grande festa e encher a criança de presentes.
— Está tudo bem. A família de Eris me deu uma festa maravilhosa.
— Ah, é mesmo? E o que te deram?
— Um cajado mágico muito bom, embora o nome seja um pouco
constrangedor. Chama-se Aqua Heartia – Arrogante Rei Dragão da Água.
— O que há de errado com esse nome? Achei bem legal.
Ele estava falando sério? Só por falar isso em voz alta eu ficava com
vontade de enfiar a cabeça em algum buraco. Talvez, neste mundo, fosse
normal dar nomes exagerados aos itens mais poderosos.
— Ah, Rudy, não te deram nenhum outro presente? Ouvi Alphonse
comentando algumas coisas.
— Outro presente? — Hmm. Então o que seria isso? Sabedoria,
coragem e poder ilimitado? Eu sentia que ainda estava um pouco carente em
todas essas coisas…
— Vamos lá, estou falando sobre a filha do Philip. Hoje foi a primeira
vez que a vi, mas ela é uma criança bonita. E também é bem devota! Aquilo
foi totalmente comovente, a maneira como ela te protegeu…
Entretanto, eu na verdade não ganhei Eris de ninguém.
Digo, Philip disse que eu tinha permissão para tentar o que quisesse,
mas ainda assim não fiz muita coisa. Eu me preocupava com Eris e não
queria apressar as coisas. Na noite anterior mesmo, ela esteve lá para mim
quando mais precisei de sua companhia. Nunca tive ninguém me abraçando
e acariciando minha cabeça até que eu adormecesse. Não planejava trair sua
confiança. Ela me prometeu que poderíamos dar o próximo passo quando eu
fizesse quinze anos. Mas, mesmo assim, caso Eris não estivesse pronta, eu
iria me conter.
Claro, eu tinha um impulso sexual ligeiramente forte, e isso poderia
ficar ainda pior dentro dos próximos quatro anos. Havia uma chance de que
não fosse capaz de me controlar… mas, no momento, planejava ao menos
tentar.
— Eris é importante para mim, sim. Mas prefiro não falar sobre ela
como se fosse algum objeto que ganhei dos seus pais.
— Bem, acho que você vai se casar com a família deles, então é mais
como se eles estivessem te ganhando.
— O qu…?! — Quem vai se casar com o quê?
— Você vai se juntar à nobreza com o apoio de Philip, não é?
— Do que está falando? Quando foi que alguém disse isso?
— Hã? Acho que foi mais ou menos um ano antes do desastre. Philip
me enviou uma carta dizendo que você e Eris estavam realmente se dando
bem, então ele queria que você se casasse com a família dele. Se me
perguntar, a nobreza Asurana não passa de um bando de canalhas podres,
mas eu disse que você poderia fazer o que quisesse…
Interessante. Philip já havia falado com Paul sobre isso antes mesmo de
nossa conversa no meu décimo aniversário. Mesmo se eu tivesse rejeitado a
ideia, ele provavelmente estava planejando passar os próximos anos tentando
nos juntar. Aquela não foi uma proposta espontânea.
Em qualquer caso, isso explicava por que Paul tirou algumas
conclusões precipitadas quanto a mim e Eris. Dois jovens apaixonados,
perdidos em uma terra desconhecida, sozinhos e profundamente ansiosos?
Qualquer um poderia supor que “se conheceriam melhor” ao longo de sua
jornada.
— Pela sua expressão, acho que Philip armou para você.
— Parece que sim.
Nós dois soltamos suspiros ao mesmo tempo. Philip era um homem
engenhoso, mas provavelmente tinha que ser assim para sobreviver no
mundo implacável e cruel da alta nobreza Asurana.
— De qualquer forma, parece que você anda bem amigável com a
mocinha. Isso significa que Sylphie… — Paul hesitou no meio da frase. —
Uh, foi mal. Esqueça que eu disse qualquer coisa.
Até onde nós dois sabíamos, Sylphie ainda estava desaparecida. Ainda
assim, me peguei considerando a pergunta que Paul começou a fazer.
Eu me preocupava com Sylphie, mas o que sentia por ela não era
exatamente o mesmo que sentia por Eris. Ela era mais como uma irmãzinha,
ou talvez até mesmo uma filha. Fiquei chateado quando a vi sendo
atormentada, e queria ajudá-la a crescer forte e feliz, mas nos separamos
antes que esses sentimentos pudessem se transformar em algo mais.
Não era tão diferente do meu relacionamento com Eris, mas nos últimos
dias ela andou me apoiando tanto quanto eu estava a ajudando. Se alguém
me perguntasse em qual delas eu estava mais interessado agora, a resposta
teria que ser Eris.
Mas, claro, não era como se eu tivesse feito uma comparação completa
colocando as duas lado a lado. Na verdade, tudo se resumia à quantidade de
tempo que passávamos juntos. Eris já tinha se tornado parte da minha vida
há anos. As pessoas adoram escrever histórias sobre rapazes se reunindo
com suas amigas de infância, mas é mais fácil se apaixonar por alguém
quando passa muito tempo fazendo companhia um ao outro. Até então,
estive com Eris pelo dobro do tempo que estive com Sylphie. E, para não
dizer muito, nosso tempo juntos foi bem agitado.
Claro, isso não significava que não estava preocupado com minha
amiga desaparecida.
— Espero que Sylphie esteja bem…
— Bem, a garota não está exatamente no seu nível, mas tem se
esforçado muito. Digo, ela consegue usar magia de cura não verbal, sabia?
Isso é o suficiente para ganhar a vida em qualquer lugar em que esteja. Os
curandeiros são realmente valiosos, pelo menos fora do Continente Millis.
— Ah. Certo… — Hein? Espera. Ele acabou de falar o que eu acho que
falou? — Espera. Sylphie consegue lançar feitiços de cura não verbais?
— Hm? Aham. No começo Zenith ficou chocada. Mas você também
pode fazer isso, não é?
— Não, magia de cura não. — Eu não entendia os princípios
subjacentes daqueles feitiços, então nunca consegui lançá-los sem entoar.
Não importa quantas vezes os usasse, não conseguia descobrir os
mecanismos pelos quais curavam o corpo.
— Sério mesmo?
— Aham. Só posso lançar feitiços de cura se usar os encantamentos.
— Bem, não vou fingir que sei muito sobre magia, mas dizem que todo
mundo é naturalmente melhor com alguns tipos do que com outros, certo?
Acho que Sylphie tem um talento especial para a cura.
Talvez Sylphie tenha ficado muito mais forte do que eu desde que nos
separamos. Fiquei até com um pouco de medo de reencontrá-la. E se ela
desse uma olhada na minha magia e dissesse: “Você não melhorou nada,
hein Rudy”…?
Paul e eu continuamos conversando por algum tempo. Quando
chegamos ao final do papo, aquele abismo que tinha se formado entre nós já
tinha sumido.
Quando a noite estava chegando, duas camaradas de Paul apareceram
para buscá-lo.
Para ser mais específico, era a moça da armadura de biquíni e sua
amiga maga. A primeira, desta vez, estava usando roupas comuns e sem
graça, por seja lá qual fosse o motivo. Foi uma troca dramática quando
levando em conta o seu outro traje. Ela foi uma das causas da nossa briga, no
entanto… Será que estava tentando mostrar um pouco de consideração?
— Pai.
— Sim?
— Confio em você, sério. Mas depois de tudo que aconteceu ontem, só
quero uma confirmação formal… Você não está tendo nenhum caso, está?
— Inferno, não.
Foi bom ouvir isso. No dia anterior, nós dois tínhamos tomado decisões
precipitadas. Em vez de buscar por provas concretas, apenas acusamos um
ao outro de ser idiotas loucos por sexo… Opa. Não, não. Eu já tinha dito que
aqueles acontecimentos foram apagados da história.
Em qualquer caso, parecia que Paul atualmente não tinha tempo ou
energia sobrando para ser um mulherengo. Ele estava focado em encontrar
sua família e não estava disposto a arriscar qualquer separação. Eu teria que
aprender com seu exemplo e dar um tempo para as minhas próprias
travessuras pervertidas.
— Rudy. Você vai levar Eris até a Região de Fittoa, não é? —Antes de
partir, meu pai aparentemente queria confirmar se eu estava decidido.
— Sim — respondi com um aceno firme. — Mas você quer que eu
também me junte ao esquadrão de Busca e Resgate?
— Não, isso não é necessário. De qualquer forma, temos a obrigação de
levar qualquer membro da família Boreas que encontrarmos de volta para
Asura.
— Isso soa como uma missão muito importante. Tudo bem em deixar
isso comigo?
— Não consigo pensar em ninguém mais adequado para o trabalho. E
parece que você também já conquistou a confiança dela.
Evidentemente, Paul tinha muita fé em mim. Talvez fé até demais,
sério. Senti que ele estava mais uma vez tendendo a superestimar minhas
capacidades. Entretanto, isso não importava. Independentemente do que ele
esperasse de mim, desta vez eu tentaria corresponder às suas expectativas.
— Claro — disse Paul com um sorriso malicioso —, mas também
posso encarregar isso a alguns guarda-costas, caso você queira ficar aqui em
Millishion.
Ah, por favor.
Se fôssemos encarar isso racionalmente, me separar de Eris até que era
uma opção válida. Mas não era como se eu quisesse ficar em Millishion
neste momento – poderia simplesmente sair e procurar por minha família em
outras partes do mundo. Um retorno ao Continente Demônio, por exemplo,
parecia ser algo bem razoável.
Mas isso só era verdade ao se encarar com a mais pura racionalidade.
Eu não poderia simplesmente abandonar Eris para sair cuidando das coisas
para meu próprio benefício. Precisava levá-la para casa em segurança.
Além disso, a ideia de deixar meu trabalho pela metade para poder
trabalhar em outra coisa despertou algumas velhas e desagradáveis
memórias. Na minha vida anterior, nunca terminei nada do que comecei.
Não queria retomar esse hábito destrutivo. Me conhecendo, isso
provavelmente acabaria com Eris falhando em chegar a Fittoa em segurança,
e minha busca solitária pelo Continente Demônio poderia acabar resultando
em um incrível nada.
Então seria melhor se concentrar em uma coisa de cada vez. Afinal,
também precisava levar a questão de Ruijerd em consideração. Era difícil
imaginar nosso amigo teimoso se dando bem com alguns membros
aleatórios do Esquadrão de Busca e Resgate, e ele provavelmente ficaria
furioso se eu tentasse sair de nosso grupo neste momento. Em seu livro de
regras, isso com certeza estaria classificado como uma conduta inadequada
para um guerreiro.
— Fico feliz por você oferecer isso, mas acho que é melhor eu
acompanhá-la.
— Sim, e, de qualquer forma, não é como se tivéssemos alguém mais
forte do que você no esquadrão. Não fico surpreso por não querer entregar o
trabalho. — Tive a impressão de que Paul quase fez uma careta ao dizer
essas palavras.
Será que ele ficou um pouco constrangido por eu ter ganho em nossa
briga? Naquela hora, Paul estava evidentemente bêbado, então senti que não
contava… mas se eu falasse isso, provavelmente pareceria muito mais
humilhante do que qualquer outra coisa. Às vezes, ficar de boca fechada é a
melhor opção.
— De qualquer forma, por quanto tempo você vai ficar em Millishion?
— Bem, estamos planejando ganhar algum dinheiro aqui para seguir
com a próxima etapa de nossa jornada, então provavelmente cerca de um
mês.
— Podemos cobrir suas despesas de viagem — disse Paul. Voltando-se
para as duas jovens atrás dele, e falou com a maga cheia de sardinhas e de
aparência tranquila. — Temos algumas reservas, não temos?
— Sim. O Sr. Alphonse nos confiou fundos que podem ser usados no
caso de localizarmos algum membro da família Boreas.
Claro, o ex-mordomo da família havia entregue a Paul uma generosa
quantia em dinheiro, destinada a garantir uma viagem de retorno confortável
para qualquer membro da família de Eris que fosse encontrado.
— Certo. Então pode ficar com isso.
— Entendo… Bem, fico feliz que você não tenha gasto tudo com
bebida.
— Por que acha que deixei Shierra cuidando do dinheiro? — Por algum
motivo, Paul parecia realmente orgulhoso de si mesmo. Foi meio triste, mas
resolvi não falar nada.
— E isso é exatamente quanto dinheiro? — perguntei.
— É o equivalente a vinte dólares do rei — respondeu Shierra na
mesma hora.
Os dólares do rei eram a moeda mais valiosa no Continente Millis.
Usando a conversão de um iene para uma moeda de pedra, seriam o
equivalente a cerca de 50.000 ienes. Portanto, vinte deles seriam…
— Um milhão de ienes!
— Um milhão do quê…? — disse Paul, erguendo uma sobrancelha.
Tá, talvez eu tenha exagerado um pouco na minha reação. Mas alguém
poderia me culpar por isso? Durante o último ano e meio, fiquei obcecado
com cada moeda que gastamos, e agora jogaram um milhão no meu colo
assim, do nada.
— Isso é sério?! Com esse dinheiro dá pra passar a vida inteira fazendo
o que quiser!
— Bem, acho que isso seria o bastante para construir uma casa no sul.
Mas não seria o bastante para uma vida inteira.
O quê? Mas, cara, um milhão! Um milhão de ienes! Isso seria tipo… o
quê, mil moedas de minério verde?! Com isso, poderíamos pagar pela
passagem de navio até para um Superd!
Ah, é mesmo.
— Hm. Na verdade, ainda há outro problema com o qual teremos que
lidar.
— Sério? E qual é?
— Lá em Porto Vento pediram uma quantia absurda de dinheiro para
deixar um Superd embarcar para Millis. Não tenho certeza de como são as
coisas em Porto Oeste, mas presumo que também vão exigir uma tarifa
enorme. Não sei se vinte moedas do rei serão o suficiente…
— Ah, é mesmo… — Paul cruzou os braços, pensativo. Ele não iria
exigir que deixássemos Ruijerd para trás ou coisa do tipo, né?
— Shierra, quanto cobram para levar um Superd para o Continente
Central?
Com um breve aceno de cabeça, Shierra prontamente respondeu:
— Cem moedas do rei.
Ela tinha memorizado o preço de todas as taxas ou o quê? Essa garota
parecia estar realmente por dentro das coisas. Parando para pensar, parecia
ser algo como uma “secretária extremamente capaz”…
Quando olhei na direção de Shierra, nossos olhos se encontraram por
um momento. Ela soltou um gritinho e olhou para o chão na mesma hora. A
moça que já não estava mais de biquíni casualmente deu um passo à frente
para escondê-la da minha vista. Não pude deixar de me sentir magoado.
— Sinto muito, mas ela fica um pouco desconfortável com contato
visual. Poderia tentar não olhar muito?
— Uhm, tá bom…
Eu tinha normalizado meu relacionamento com Paul, mas os outros
membros de seu time aparentemente ainda não gostavam muito de mim.
Bem, eu poderia conviver com isso.
Mas, mais importante… cem moedas do rei, hein? Estávamos falando
do equivalente a cinco milhões de ienes. Não era um montante que poderia
ser juntado com pressa. Era o suficiente para fazer qualquer um deixar um
suspiro escapar.
— Afinal, por que sempre cobram tanto dos Superds?
— É principalmente porque as regras foram estabelecidas há algum
tempo, quando a perseguição àquela tribo estava no auge — respondeu
Shierra, de algum lugar atrás da moça da armadura de biquíni.
Pelo tom de sua voz, qualquer um pensaria que isso era de
conhecimento geral, mas mesmo as pessoas que trabalhavam no posto de
controle em Porto Vento se provaram incapazes de explicar essas coisas. O
peito da garota era bastante pequeno, mas, pelo visto, ela tinha um cérebro
enorme.
— Além disso, o nobre que administra a alfândega de Porto Oeste é
conhecido por seu ódio aos demônios — acrescentou Paul. — Mesmo se
você tiver o dinheiro, ele pode encontrar algum motivo para negar sua
passagem.
— Fala sério. Uhm… será que não podemos pedir para a família da
Mãe dar um jeitinho nisso?
— Desculpe, mas, do jeito que as coisas estão, já estão se arriscando
bastante por nós. Não podemos arrastá-los em direção a mais problemas.
Em outras palavras, provavelmente precisaríamos recorrer mais uma
vez aos contrabandistas. Da última vez isso não deu muito certo, então eu
queria encontrar algum outro jeito. Por um lado, ainda estávamos no mesmo
continente que o grupo que atacamos. Se os criminosos locais tivessem
conexões com alguns sindicatos maiores, poderíamos já estar em algum tipo
de lista negra.
Quanto mais eu pensava no problema, mais minha cabeça doía.
— Então tá bom. A gente se vira.
— Desculpe, garoto — disse Paul, e então sorriu e se virou para as
mulheres que esperavam atrás dele. — Ei, e aí, o que acharam do meu
garotão? Bem autossuficiente, não é?
— Uhm, claro.
— Err…
As duas se entreolharam, ambas com sorrisos amarelos. Não sei o que
ele esperava que elas dissessem. Será que ao menos se lembrava daquela
“briga de bar” do dia anterior?
— Pai, você realmente não deveria ter o hábito de pedir às garotas para
avaliarem o seu “garotão”. Isso pode acabar com a reputação da família
Greyrat.
— Suas piadas sujas não estão ajudando, garoto!
Paul e eu caímos na gargalhada. As duas mulheres não pareciam estar
se divertindo tanto, mas ninguém consegue agradar todo mundo.
— Então tá, Rudy. Já está na hora de eu ir.
— Tá bem.
Finalmente se levantando de sua cadeira, Paul girou os ombros com um
estalar audível. Eu nem tinha notado, mas pelo visto ficamos conversando
por um bom tempo.
Quando olhei para o balcão, o barman tinha um sorriso um tanto irônico
na cara. Tínhamos ocupado uma de suas mesas durante a hora do almoço,
não foi? Eu teria que dar uma boa gorjeta com o pagamento.
— Depois de definir seus planos, entre em contato comigo. Deveríamos
jantar com Norn ao menos uma vez antes de você pegar a estrada.
— Isso me parece bom.
Com isso, Paul saiu do bar com as duas jovens no seu rastro.
Às vezes ele realmente parecia um velhote sujo, não parecia?
✦✦✦✦✦✦✦
Não muito depois de Paul sair, Eris e Ruijerd voltaram para o bar. A
garota estava com um olho roxo e o Superd tinha uma expressão nitidamente
infeliz no rosto.
— Ei, vocês dois, o que houve?
— Nada — disse Eris, cruzando os braços enquanto bufava irritada. —
Como foram as coisas com aquele homem?
— Nós nos reconciliamos.
Assim que essas palavras saíram da minha boca, Eris franziu as
sobrancelhas com força.
— O quê?! Por quê?! — perguntou enquanto batia o punho na mesa
com tanta força que o objeto chega rachou.
Pela deusa, mas que garota mais forte…
— Entendo — disse Ruijerd calmamente. — Fico feliz por ouvir isso.
— Rudeus! — Eris me agarrou pelos ombros com bastante força. E foi
com força mesmo. O aperto da garota era de outro mundo. — Por que você
fez isso?!
— Como assim, por quê? — perguntei, um tanto quanto surpreso.
— Você não lembra mais do tanto que ficou deprimido ontem?!
— Bem, é claro. E sou grato pelo que você fez por mim. Seu abraço
realmente me acalmou.
Foi só por causa do apoio de Eris que consegui voltar a olhar no rosto
de Paul. Se ela não estivesse lá para me confortar, eu poderia ter ficado
trancado no meu quarto por dias.
— E é disso que estou falando! Aquele homem não apareceu nem no
seu décimo aniversário, Rudeus. E a maneira como te tratou ontem foi
inacreditável! Você teve que fazer todo o caminho do Continente Demônio
até aqui! Foi jogado até em uma cela de prisão na Grande Floresta, pelo
amor de deus! Mas quando você finalmente conseguiu voltar, ele
basicamente disse para você sumir! Como você pode simplesmente perdoar
aquele idiota?!
Uau. Mas que sermão.
Entendi o ponto de Eris. Quando se colocava desse jeito, Paul
realmente parecia ser um pai péssimo. Eu podia até acreditar que ele
desprezava os meus esforços. Se eu fosse uma criança comum, suas ações
teriam sido imperdoáveis.
Mas do jeito que eu via as coisas, era inevitável que ele cometesse
alguns erros tentando lidar com um filho como eu. Reencarnei com minhas
memórias intactas e tirei proveito disso desde o início. Como alguém poderia
ser um pai “normal” para uma criança tão estranha? Paul teve dificuldade
para aprender como interagir comigo, então imagine para me criar. E, para
ser honesto, em primeiro lugar, não acho que o homem realmente sabia o
que significava ser um bom pai… não que eu também soubesse, é claro.
Como filho dele, tudo que precisava fazer era observar suas tentativas
estranhas de ser um pai caloroso, compreensivo e um pouquinho
condescendente. Paul poderia fazer tantas besteiras quanto quisesse. Eu iria
encarar seus erros com calma. Nenhum deles me machucaria tanto quanto
aquela briga de bar.
Mas, é claro, de qualquer forma, logo começaríamos a seguir caminhos
diferentes.
— Eris.
— Hã? O quê…?
Eu não tinha certeza do que dizer. Eris estava com raiva porque ela se
importava comigo. Mas, para mim, já tinha ficado tudo no passado.
— Meu pai é um ser humano. E todo mundo comete erros, sabia?
Com isso dito, coloquei minha mão em seu rosto e comecei a trabalhar
para curar seu hematoma. Eris aceitou minhas atenções com mansidão, mas
o olhar em seu rosto me disse que não estava convencida. Assim que
terminei meu feitiço, voltamos para nosso quarto na pousada, com ela
sempre mal-humorada.
Enquanto a observávamos andando, falei com a outra pessoa do nosso
grupo.
— Então, Ruijerd…
— O que foi?
— De onde saiu aquele hematoma no rosto dela? — Aquilo com
certeza não existia no dia anterior.
— Tive alguns problemas para segurá-la — respondeu Ruijerd com um
tom de voz contido.
Hmm. Normalmente, ele era o tipo de cara que explodiria de raiva se
visse alguém bater em uma criança, mas seus princípios talvez fossem mais
flexíveis do que eu pensava. Eris devia ter se debatido como uma lunática
enquanto estava furiosa. E, claro, os dois treinavam constantemente, então
esta não foi a primeira vez que ele a deixou com um ou dois hematomas…
Olhando seu rosto mais de perto, porém, percebi que isso não era
realmente relevante. Ruijerd não parecia tão calmo assim. O Superd não era
um homem expressivo, mas eu podia ver algo parecido com angústia em
seus olhos.
Ele não queria bater nela. Mas parece que não teve escolha.
Eu não sabia exatamente o que tinha acontecido, ou que palavras
trocaram. Mas havia uma coisa que com certeza poderia dizer: foi por minha
culpa que os dois brigaram. Mas, como resultado, fui capaz de fazer as pazes
com Paul… o que significa que devia estar, acima de tudo, grato.
— Obrigado, Ruijerd. Seria complicado fazer as pazes com meu pai se
ela matasse ele.
— Não precisa me agradecer.
Ainda assim, aquilo chegou ao ponto de Ruijerd precisar bater em Eris
para a impedir. Com o passar do tempo essa garota devia ficar cada vez mais
forte.
Um pouco depois, realizamos uma reunião de equipe bem rápida.
— Então tá bom. Pessoal, vamos começar nossa segunda reunião oficial
em Millishion!
Desta vez, estávamos conduzindo nossos negócios no bar, e não em
nosso quarto. Pensando bem, durante o dia todo, eu não tinha pisado fora do
estabelecimento. Era um lugar aconchegante e nunca ficava lotado… embora
eu tivesse certeza de que o proprietário tinha alguns sentimentos confusos
quanto a isso.
— Já não tivemos uma dessas há apenas dois dias? — disse Eris.
Ela não parecia mais estar com raiva. Eu esperava que ficasse de mau
humor por pelo menos algumas horas, mas a garota acabou superando depois
de apenas cerca de dez minutos. Eris com certeza sabia como seguir em
frente. Eu precisava aprender com o seu exemplo.
— Sim, mas a situação agora é outra. Para ser específico, não há mais
necessidade de ganharmos dinheiro aqui em Millishion. Acho que logo logo
seguiremos em frente.
Com vinte moedas do rei na carteira, não adiantava muito tentar ganhar
mais dinheiro. E quanto à coleta de informações, Paul já havia me contado
basicamente tudo o que sabia. Com nossa campanha de relações públicas
para os Superds em modo de espera, não tínhamos muito mais para fazer
nesta cidade – conforme resolvi explicar.
Fiquei hesitante em contar a Eris sobre o estado atual da Região de
Fittoa. Mas, no final das contas, aproveitei a chance para ir em frente e fazer
isso. Provavelmente seria melhor se ela soubesse o que nos esperava, assim
poderia já começar a se preparar.
— Eris, parece que nossa casa não existe mais.
— Aham.
— Além disso… Philip e Sauros ainda estão desaparecidos.
— Não fico surpresa.
— E ninguém sabe onde Ghislaine está, então é possível que…
— Escuta, Rudeus — disse Eris, cruzando os braços e erguendo o
queixo. — Eu sempre imaginei que isso seria o mínimo.
Seu olhar estava firme. Sua expressão era tão intensa e arrogante quanto
sempre. Não havia nenhum indício de dúvida ou incerteza em seus olhos.
Eris não tinha se esquecido de Fittoa. Ela estava pronta para enfrentar o
pior.
Bufando, continuou:
— Aposto que Ghislaine ainda está por aí em algum lugar, mas eu sabia
que havia uma boa chance de meu Pai e meu Avô estarem mortos.
Afinal, nós dois fomos parar no meio do Continente Demônio. Acho
que ela percebeu que muitos outros podiam ter sido pegos em situações
igualmente perigosas. Claro, também havia a hipótese de que a garota
estivesse apenas tentando parecer corajosa. Com Eris, era difícil dizer a
diferença entre confiança real e arrogância.
— Ah, aliás, eu sabia que você estava tentando esconder essas coisas de
mim.
Eu não sabia exatamente o que ela pensou que eu estava “escondendo”.
Entretanto, isso não parecia ser apenas atuação. Eris, ao seu modo, já estava
pensando nas coisas. Em outras palavras, eu era o único que tinha se
esquecido totalmente da Região de Fittoa.
Isso foi meio constrangedor.
— Entendi. Bem, então tá bom.
Ela realmente era uma jovem impressionante. Tendo chegado a essa
conclusão, decidi passar para o nosso próximo tópico.
— Em qualquer caso, eu estava pensando que poderíamos partir de
Millishion dentro de uma semana a partir de agora.
— Tem certeza? — perguntou Ruijerd.
— Por que não teria?
— Assim que partirmos, talvez você nunca mais veja seu pai.
— Bem, isso é um pouco pessimista… — Vindo de Ruijerd, essas
palavras tiveram um peso real. Mas não era como se eu estivesse indo para a
linha de frente de alguma guerra. — A questão é que também tenho alguns
outros membros da família que talvez nunca mais veja. Agora, acho que vou
me preocupar em encontrá-los.
— Entendi. Isso é verdade.
Visto que Ruijerd parecia ter sido convencido, passei para a essência da
questão.
— Para o resto de nossa jornada, gostaria de priorizar a coleta de
informações.
Ainda passaríamos cerca de uma semana em todas as grandes cidades
por onde passássemos. Mas, em vez de nos concentrarmos em ganhar
dinheiro, usaríamos esse tempo principalmente para descobrir os boatos e
fofocas locais.
Em primeiro lugar, estaríamos procurando encontrar os Fittoanos
deslocados. A rota de Millis a Asura era algo como a Rota da Seda; não
havia nenhuma outra estrada tão transitada, principalmente por mercadores e
comerciantes. O Esquadrão de Busca e Resgate sem dúvida vasculhou cada
centímetro dela. Ainda assim, havia uma chance de encontrarmos algo que
tinham deixado passar.
Também faríamos o que pudéssemos para melhorar a reputação do
Superd enquanto investigávamos. Mas, infelizmente, o nome Fim da Linha
não era tão conhecido em Millis e no Continente Central. Talvez tivéssemos
que reconsiderar nosso método de abordagem.
— Entretanto, há um problema. Não tenho certeza de como podemos
atravessar o mar.
Esse era, com certeza, o nosso maior problema. Neste mundo, mesmo
as viagens marítimas “rotineiras” eram um negócio sério. Havia muitas
maneiras de cruzar as fronteiras nacionais por terra, mas quando se tratava
de barcos, as opções eram severamente limitadas… especialmente se fosse
para um Superd.
— Quanto a isso, Rudeus… Dá uma olhada nisso.
Ruijerd puxou um envelope. Era o mesmo que ele estava prestes a me
mostrar no dia anterior, antes de perceber minha condição.
Peguei e examinei. As palavras “Para o Duque Bakshiel” estavam
rabiscadas na parte da frente. No verso, encontrei um selo de cera vermelha,
impresso com algo que parecia um brasão de família.
— O que é isso?
— Uma carta. Ontem um conhecido meu escreveu ela para mim.
Ah, certo… Pensando bem, ele mencionou que iria dizer olá para
alguém que conhecia nesta cidade.
— Ruijerd, pode nos dizer quem é esse conhecido?
— Um homem chamado Gash Broche.
— Qual é a ocupação dele?
— Não sei. Mas parece que tem algum status por aqui.
Ruijerd passou a explicar que conheceu Gash no Continente Demônio
cerca de quarenta anos atrás, depois de resgatar seu grupo de viagem de um
grupo de monstros que quase os eliminou. Na época, Gash era só uma
criança, e no começo olhou para Ruijerd com uma mistura de terror e
hostilidade. Depois de passar algum tempo juntos, porém, eles se separaram
em termos relativamente amigáveis. O Superd levou seu grupo até a cidade
mais próxima, em segurança, e Gash disse para fazer uma visita caso
passasse por Millishion.
Como ele nunca deixou o Continente Demônio, Ruijerd havia se
esquecido completamente disso. Mas então viu o homem com seu “terceiro
olho” enquanto circulávamos pelas muralhas externas da cidade, e então
lembrou de tudo. Interessado em ver como os anos tinham passado para
Gash, embora também um tanto ansioso com a possibilidade de que o
homem pudesse tê-lo esquecido, Ruijerd dirigiu-se para fazer uma visita.
Para sua surpresa, Gash o reconheceu na mesma hora e o cobriu com
hospitalidade. No início, o Superd pretendia apenas dizer olá, mas parece
que os dois se deram muito bem. Ele acabou recontando toda a história de
nossa jornada, e assim que terminou, Gash escreveu uma carta e disse para
entregá-la ao responsável em Porto Oeste.
Foi uma história interessante. Por um lado, Ruijerd geralmente não
fazia tantos amigos. Será que esse cara era algo como Gustav, do povo-fera?
A julgar pela maneira como ele enviou uma carta casual a um duque,
provavelmente tinha alguma influência real…
Sério, eu queria dar uma olhada no conteúdo da carta. Mas, conforme
lembrava, quebrar esse tipo de selo invalidaria seu conteúdo.
— Parece que esse Gash deve ser algum tipo de nobre, hein?
— Não sei dizer, mas ele tinha muitos homens.
Mas vai saber o que isso indicava. Ele estava falando sobre servos ou
algo assim? A palavra “muitos” também era bem vaga…
Bem, em qualquer caso, o homem era amigo de Ruijerd. Eu não ficaria
muito surpreso se acabasse se tratando de alguém que se candidatou para ser
o próximo Rei Mamodo.
— Você foi na casa dele?
— Sim.
— Era grande?
— Bastante.
— Uhm, quão grande?
— Não é tão grande quanto o Castelo Kishirisu.
Castelo Kishirisu? Certo, então isso descartou o grande palácio no meio
do lago. Mas não era como se eu esperasse que o cara fosse um membro da
família real. Ainda assim, o edifício devia ser muito grande, já que Ruijerd
estava usando um castelo como ponto de comparação.
Hmm…
Estávamos falando sobre um amigo de Ruijerd. Então ele
provavelmente não seria um cara mau. Mas, pelo que Paul me disse antes, o
nobre encarregado da alfândega de Porto Oeste amava odiar os demônios. Se
nosso amigo Gash fosse apenas um pouco influente, entregar esta carta
poderia acabar sendo um horrível tiro pela culatra. Será que deveríamos
gastar algum tempo descobrindo exatamente quem ele era?
Mas Ruijerd parecia tão orgulhoso enquanto segurava aquela carta. Se
eu expressasse qualquer suspeita sobre seu novo amigo, o homem
provavelmente me encheria de palavras sobre confiança e honra.
Bem, tanto faz. Não era como se eu tivesse ideias melhores. Por
enquanto, seria melhor seguir a maré e deixar o Superd feliz. Depois, em
segredo, poderia perguntar para Paul quem era esse Gash Broche.
— Então tá bom — falei. — Vamos torcer para que essa carta resolva o
problema.
Ruijerd respondeu com um pequeno aceno de aprovação.
Isso basicamente encerrava o assunto. Partiríamos de Millishion dentro
de uma semana. Até então, faríamos o que pudéssemos dentro da cidade.
— Eu não me importaria de irmos embora amanhã cedo!
Com um pequeno sorriso diante da proposta de Eris, declarei que nossa
reunião de equipe estava oficialmente encerrada.
Capítulo 06:
Uma Semana em Millishion
Na manhã seguinte, fui ao quartel-general do Esquadrão de Busca e
Resgate para reportar nossos planos a Paul.
O próprio QG era um prédio de dois andares igual a qualquer outro.
Não demorei muito para encontrar meu pai. Ele estava trabalhando duro no
que parecia ser uma sala de conferências, discutindo uma coisa ou outra com
cerca de uma dúzia de outros homens. Mesmo do lado de fora consegui
escutar um trecho da conversa; parecia que estavam se preparando para
algum tipo de grande operação.
Pela aparência que Paul tinha naquele outro dia, presumi que ele
passava todos seus dias em Millishion bebendo ou sofrendo com a ressaca,
mas talvez eu tenha apenas o visto em uma hora ruim. Neste momento, o
homem era a perfeita imagem de um líder competente e focado. Fiquei
realmente impressionado… pelo menos, até que alguém aludiu ao fato de
que ele havia faltado a um mês de reuniões graças ao excesso de bebida.
Pelo visto, o cara só tinha voltado a se motivar no dia anterior.
Isso provavelmente era porque queria me mostrar o seu melhor lado.
Em outras palavras, voltou a trabalhar por minha causa.
Pela graça da deusa. Garotos adoram se exibir na minha frente…
Com um suspiro teatral, decidi esperar até que Paul conseguisse um
pouco de tempo livre.
Ficar sentado na sala do lado de fora podia ser entediante, então optei
por vagar pelo prédio, sem nada de exato para fazer. Após alguns minutos de
exploração, encontrei minha irmã mais nova, Norn, brincando. Ela estava em
uma sala que parecia servir de berçário, brincando com alguns blocos com
um bando de outras crianças de sua idade.
— Olá — falei, levantando a mão em saudação quando seus olhos
encontraram os meus.
Norn se assustou, então fez uma careta e arremessou o bloco de
madeira que estava em sua mão, mas consegui o pegar.
— Saia daqui!
Essa não me parecia a mais amigável das maneiras de se dizer olá.
Hmm. Será que fiz algo para deixá-la chateada comigo? A única coisa em
que consegui pensar foi na surra que dei em Paul bem na frente dela.
Aham, provavelmente tinha algo a ver com aquilo.
— Hum… O Pai e eu nos reconciliamos, Norn — protestei gentilmente.
—Seu mentiroso! — gritou ela em resposta, e saiu correndo com toda a
velocidade que suas perninhas poderiam permitir.
Pelo visto, agora eu era odiado pela minha irmãzinha. Isso foi um
pouco deprimente.
Eu não queria que ela ficasse incomodada com a minha presença, então
voltei para a coisa mais próxima de uma sala de espera que existia no prédio.
Quando me sentei em um canto, várias cabeças se viraram em minha
direção. Reconheci pelo menos alguns dos caras que vi “sequestrando”
Somal no outro dia.
Comecei a sentir que talvez não fosse muito popular pelo QG.
Mas antes que realmente tivesse tempo para me banhar naquela
estranheza, uma mulher familiar entrou no cômodo e todos os olhos se
voltaram para ela. Era a senhorita da armadura de biquíni, de volta aos seus
velhos hábitos, agora seminua. Ela me viu e imediatamente se aproximou.
— Bom dia — falei.
— Bom dia — respondeu ela com um sorriso e um ligeiro inclinar com
sua cabeça. — Está precisando de alguma coisa hoje?
— Sim. Vim aqui para ver meu pai, um… — Qual que era o nome
desta moça mesmo? Parecia até que Paul não tinha me falado. — Ah,
perdão. Eu não me apresentei, não é? Meu nome é Rudeus Greyrat,
senhorita. — Ficando de pé, coloquei uma das mãos no peito e fiz uma
reverência aristocrática.
— Uh, ah… m-meu nome é Vierra — respondeu a moça da armadura
de biquíni, suas mãos estavam tremulando ansiosamente no ar. — Eu sou um
membro do esquadrão do Capitão Paul. — Ela começou a devolver meu
cumprimento, oferecendo-me uma visão verdadeiramente irresistível de seu
decote.
Esta garota com certeza era um colírio para os olhos. Na verdade, era
um colírio para qualquer coisa, sério. Eu tinha acabado de resolver cessar o
meu comportamento pervertido, então não queria ficar encarando. Mas não
conseguia desviar o olhar. Todas as minhas boas intenções foram abaixo em
face da atração gravitacional exercida por seu peito.
Mas que roupa mais injusta.
— Sinto muito por ter sido tão rude no outro dia. Meu pai é meio
mulherengo, por isso acabei tendo a ideia errada.
— Não, não! Está tudo bem. Posso entender por que você acha isso,
considerando como eu estava vestida. — Vierra enfatizou suas palavras
balançando a cabeça vigorosamente. Como resultado, algumas outras partes
de seu corpo também balançaram. A armadura de biquíni parecia estar
fixada em algum lugar, mas não era o suficiente para impedi-la de balançar
diante de movimentos repentinos. Afinal, aquelas coisas eram bem grandes.
Opa. Eu estava fazendo isso de novo.
Com uma verdadeira demonstração de força de vontade, consegui
desviar os olhos.
— Sabe, senhorita, não sei se é boa ideia andar com essa armadura por
aí, já que tem homens por todos os lados. Imagino que algumas pessoas
podem acabar achando isso meio chamativo. Será que você não poderia ao
menos usar uma capa?
Vierra sorriu sem jeito.
— Sinto muito, mas há uma razão para eu usar isso.
Talvez eu estivesse imaginando coisas, mas do nada parecia que tinha
um monte de gente olhando para mim. Será que falei algo que não deveria?
Bem, tanto faz. Depois poderia perguntar sobre isso para Paul.
— Sabe quando meu Pai sairá da reunião?
Vierra pensativamente inclinou a cabeça para o lado.
— Bem, atualmente ele está com um mês inteiro de trabalho atrasado.
Então imagino que vai ficar ocupado por um bom tempo.
— Então tá bom. Quando você tiver uma chance, poderia avisá-lo que
estou planejando deixar Millishion daqui a sete dias?
— Sério? Mas que rápido.
— Bem, é o cronograma que seguimos até agora.
— Entendo… Nesse caso, deixe-me buscar Shierra para você. Um
momento, por favor.
Com isso, Vierra saiu enquanto tagarelava com uma pessoa ou outra.
Poucos minutos depois, voltou com uma curandeira de rosto familiar.
Quando a garota viu que eu estava olhando para ela, soltou um breve
suspiro e deu um passo atrás de Vierra antes de dizer qualquer coisa.
— A agenda do capitão está lotada no momento, mas ele tem algum
tempo livre durante a noite, daqui quatro dias. Então gostaria de marcar um
jantar com ele?
— Um, não tem problema se ele estiver muito ocupado, sabe.
— Quando ele fala com você, o capitão sempre parece cheio de vida e
energia. No momento ele está muito ocupado, mas espero que mesmo assim
vocês se encontrem.
A voz de Shierra soou bem composta, mesmo considerando que ela
ainda estava se escondendo atrás de Vierra. Essa garota realmente parecia
me odiar. Ou talvez sentisse até medo de mim. Isso era meio lamentável,
mas… tudo bem.
— Daqui a quatro dias, certo? Então tá bom. Devo me encontrar com
ele na pousada?
— Vou fazer uma reserva para vocês em um restaurante que nosso
esquadrão sempre visita. Então vá direto para lá.
Shierra começou a calmamente me passar a hora e local exatos. Iríamos
comer em um lugar chamado “Millis Indolente” no distrito comercial. Só
para garantir, perguntei sobre o código de vestimenta, mas parecia não
existir nenhum.
Bem, isso parecia no mínimo meio estranho. Foi tudo como se eu
estivesse agendando uma reunião de negócios com o CEO de alguma grande
empresa. Agora Paul tinha até uma secretária cuidado da agenda dele, hein?
Ele realmente tinha subido na vida.
— Você levará alguma companhia?
O rosto de Eris surgiu em minha mente, mas no mesmo instante me
lembrei dela gritando: “Vou matar aquele idiota estúpido!” enquanto saía
furiosa para tentar assassinar Paul.
— Não, acho que vou sozinho.
Com isso, acertamos todos os detalhes, então me despedi.
✦✦✦✦✦✦✦
Bem. Uma semana passava voando, então teríamos que usá-la bem.
Com isso em mente, fui para a Guilda dos Aventureiros de Millishion.
O prédio era grande, assim como já era de se esperar da sede de toda a
organização. Tinha dois andares de altura e ocupava muito mais espaço do
que qualquer outra filial da Guilda que eu já tinha visto. Claro, eu tinha visto
alguns arranha-céus nos velhos tempos, então a visão não era bem de tirar o
fôlego.
Uma vez lá dentro, comecei a trabalhar reunindo informações.
A princípio perguntei sobre a Região de Fittoa, mas ninguém parecia
saber de nada que Paul já não tivesse me contado. Nesta cidade, pelo menos,
o Esquadrão de Busca e Resgate provavelmente era mais bem informado
sobre Fittoa do que qualquer outra pessoa.
Em seguida, procurei informações sobre os monstros nativos da área de
Millishion.
Pelo visto, o nível de ameaça deles não era comparável ao das criaturas
do Continente Demônio. Os mais comuns eram as Locustas Gigantes, que
eram basicamente um tipo de gafanhoto superdesenvolvido; o Coelho Fatia-
Carne, um coelho carnívoro; e a Pedronhoca, que não passava de uma
minhoca supercrescida. A maioria dessas coisas não representava qualquer
perigo para ninguém.
Também tendiam a ser muito pequenos, pelo menos em comparação
com as feras do Continente Demônio. Naquela terra árida, monstros várias
vezes maiores que os humanos eram comuns. Até os Coyotes Pax, que
havíamos caçado até ficarem à beira da extinção (isso é um pouco de
exagero), tinham mais de dois metros; e os Lobos Ácidos tinham mais de
três. Quanto às Grandes Tartarugas, um espécime comum podia ter uns oito
metros, e as maiores podiam ter até vinte. Os monstros que surgiram durante
a estação das chuvas na Grande Floresta também eram quase do tamanho de
um homem adulto.
Claro, tamanho não é documento, mas a massa corporal e o peso das
coisas seriam, por si só, uma arma. Ao todo, os monstros ao redor de
Millishion eram fracos e insignificantes.
Ainda bem. Assim tínhamos uma coisa a menos com o que se
preocupar.
Depois de ouvir o suficiente sobre os monstros, levei algum tempo para
pensar em como poderíamos melhorar a opinião dos moradores locais sobre
o povo Superd.
Infelizmente, parecia que nosso trabalho seria difícil.
Por um lado, havia uma facção política proeminente em Millishion que
defendia a “expulsão” dos demônios. Os líderes desse grupo eram
associados aos Cavaleiros do Templo, uma das ordens militares sagradas da
Igreja Millis. Eles declaravam em voz alta que todos os demônios deveriam
ser inteiramente banidos do Continente Millis.
Entretanto, não estavam no poder do continente, pelo menos não no
momento. O atual papa pertencia a uma facção mais poderosa que clamava
pela coexistência com os demônios; como resultado, os Cavaleiros do
Templo não podiam tomar medidas ativas para os expulsar. No entanto, se
um demônio causasse problemas na cidade, eles correriam ansiosamente
para assediar todos os envolvidos. Apesar de sua fraqueza política, muitas
vezes se safavam tomando medidas agressivas em nome da “justiça” ou da
“ordem pública”.
Se Ruijerd anunciasse publicamente que era um Superd e começasse a
fazer trabalhos ao redor de Millishion, os Cavaleiros do Tempo com certeza
tornariam nossas vidas em existências miseráveis em um instante. Pelo visto,
esse povo tinha olhos e ouvidos por toda a cidade.
Nesse caso, talvez pudéssemos trabalhar de outro jeito.
Com isso em mente, peguei uma tarefa de rank B que a Guilda tinha
acabado de colocar no quadro de avisos. Pelo visto, havia um monstro
furioso em algum vilarejo local e que precisava ser exterminado. O lugar era
próximo o suficiente para que pudéssemos cuidar de tudo em apenas um dia
de viagem.
Desta vez, nosso alvo seria um Tigre Folha. Era um monstro nativo das
regiões ao sul da Grande Floresta, mas por alguma razão ele havia vagado
até o lugar para fixar residência nesta área.
Tigres Folha tinham peles verdes com manchas marrons. Isso permitia
que se misturassem perfeitamente com a vegetação. Por serem difíceis de ver
e frequentemente se moverem em pequenos bandos, eram considerados
monstros de rank B. No entanto, aquele que procurávamos estava sozinho e
sua camuflagem seria inútil naqueles campos abertos. Provavelmente
representaria uma ameaça inferior a um Lobo Ácido comum. Eu o
classificaria, no máximo, como rank D. Quando estávamos no Continente
Demônio, eu teria pulado de alegria se encontrasse um trabalho tão fácil no
quadro de avisos.
Nós três avançamos sem nem pensar. E assim que chegamos, um
grande gato verde estava saindo do vilarejo com uma galinha na boca.
Ele nos notou e largou seu prêmio para rosnar em nossa direção, mas
Eris apenas disse: “Vou cuidar disso”, correu até ele e cortou a coisa ao
meio.
Missão completa! Huh, mas que rápido.
As pessoas da aldeia nos ofereceram seus mais sinceros
agradecimentos. O tigre tinha recentemente matado muitos rebanhos e
atacou vários fazendeiros da região.
Normalmente, uma das ordens militares sagradas teria sido enviada
para protegê-los. Mas apenas alguns dias atrás, aparentemente houve um
grave incidente em que uma Criança Abençoada foi atacada nas
proximidades. Sua escolta, uma unidade de Cavaleiros do Templo, foi quase
totalmente exterminada; apenas seu capitão havia sobrevivido.
O capitão cavaleiro mal conseguiu proteger a Criança Abençoada. Mas
ainda foi dispensado de seu posto como punição pelas graves perdas
sofridas.
As ordens militares sagradas já estavam nervosas após uma recente
série de sequestros de escravos, mesmo antes deste desastre. Essa notícia
deixou tanto a Igreja Millis quando seus cavaleiros em alvoroço. Como
resultado, falharam totalmente em fazer qualquer coisa sobre um certo
monstro perigoso de rank B. Por falta de opções melhores, os aldeões se
voltaram para a Guilda dos Aventureiros.
Era uma história bem interessante. Mas não era como se isso tivesse
muito a ver conosco.
Quando reuni todas as informações que consegui, parti para um
pequeno experimento.
Para ser mais específico, contei aos moradores sobre os Superds.
Expliquei que nosso amigo Ruijerd pertencia àquela tribo e que seu povo
estava viajando por todo o mundo fazendo boas ações na tentativa de ganhar
a amizade das outras raças.
— À primeira vista, um Superd pode parecer frio ou até hostil, mas é
bastante fácil passar pela casca dura deles. Conseguem ver essa estatueta
aqui, pessoal? Basta mostrar uma delas para um Superd e mencionar o nome
de Ruijerd. A carranca assustadora deles vai se transformar em um sorriso
feliz, e vocês vão virar melhores amigos para o resto da vida em um
segundo!
Foi um ótimo discurso de vendedor, se é que posso dizer. Ainda assim,
o chefe da aldeia parecia menos do que entusiasmado. Eles estavam gratos a
Ruijerd, mas isso não era o suficiente para mudar seus pontos de vista sobre
os demônios como um todo. E como seguidores da Igreja Millis, não
estavam interessados em possuir uma estátua de um demônio. Com isso dito,
empurrou a pequena estatueta de volta para minhas mãos.
Parecia que o experimento foi um fracasso. Esse provavelmente não era
um problema que poderíamos contornar com tanta facilidade.
Uma estatueta de uma garota sexy talvez seria mais eficaz. Aah, e se eu
fizesse uma versão feminina de Ruijerd?
Espera, não. Isso acabaria com todo o propósito da coisa.
— Eu não fazia ideia que você tinha feito tal coisa — disse Ruijerd,
estudando a estatueta com admiração enquanto nós três marchávamos de
volta para Millishion.
— Não é incrível? Rudeus é muito bom em fazer essas coisas! — Por
algum motivo, Eris parecia muito orgulhoso por eu ter recebido a aprovação
do homem.
Embora esta versão tenha sido rejeitada, minhas obras na verdade já
tinham alcançado um bom valor de mercado. Afinal, tinham qualidade
suficiente para ganhar a admiração de um certo Rei da Espada do povo-fera
e de um príncipe de algum país estrangeiro.
Sim, de fato. A essa altura, eu já era praticamente um artesão real.
— Mas essa posição não é nada boa.
— Sim, a postura está toda errada. Você teria que se agachar muito
mais…
Womp womp womp womp…2
Aqueles dois com certeza sabiam como acabar com o ânimo de alguém.
✦✦✦✦✦✦✦
Três dias depois – um dia antes do meu compromisso para jantar com
Paul – percebi que não tinha nada para vestir e ir ao restaurante.
Não havia um código de vestimenta, e esta era apenas uma reunião de
família. Ainda assim, as roupas que comprei no Continente Demônio
pareciam um pouco gastas, então saí com Eris para fazer algumas compras.
Isso provavelmente se qualificava como um encontro, mas não era um
dos mais emocionantes. Eris nunca estava muito motivada para comprar
roupas e tendia a pensar que tudo estava “bom”. Achei que deveria
aproveitar a chance para comprar algumas roupas novas para ela também.
Desse ponto em diante, estaríamos viajando pelo território da humanidade, e,
bem, a primeira impressão é a que fica. Eu queria, no mínimo, que
estivéssemos bem vestidos para que as pessoas não nos tratassem com
grosseria.
Meio que gostaria de pedir conselhos a uma amiga que soubesse algo
sobre moda. Mas as únicas pessoas que eu poderia chamar de “conhecidos”
nesta cidade eram aquele sujeito com cara de macaco e Vierra. Eu não tinha
ideia de onde Geese estava e não era amigável o suficiente com Vierra para
pedir um favor pessoal a ela.
No final das contas, decidi analisar as pessoas passando até ter uma
noção das coisas. Eris e eu nos sentamos em uma rua e nos engajamos em
observar a multidão que passava.
Depois de um tempo, percebi que as roupas azuis pareciam um tanto
populares no momento. Além disso, algumas pessoas usavam capas ou
jaquetas, mas muitas outras nem se importavam com essas coisas. O clima
local era bom o suficiente para que a maioria dos agasalhos fosse mais leve.
— Parece que azul está na moda, não é?
— Azul não combina com você, Rudeus.
Uau, mas que direta. Felizmente, eu não me importava muito com as
tendências do momento.
— Então o que combina comigo?
— Você ainda tem aquele negócio que o Geese te deu, não tem? Aquilo
combina.
Ela estava falando daquele colete de pele, não é? Mas aquilo ficava
meio grande em mim. E era longo o suficiente para ficar parecendo com um
casaco. Mas, ainda assim, não era nada desconfortável, então às vezes eu
ainda usava. Principalmente nos dias mais frios.
— Aquilo não é ruim, mas acho que é um pouco grande para mim.
— Aham, imagino que sim. Então porque simplesmente não corta para
ficar do tamanho certo?
— Mas aí seria um desperdício. Ainda sou um garoto em fase de
crescimento, lembra?
Conversando casualmente, nós dois escolhemos algumas coisas para
comprar. Não levamos muito tempo, então atribuí isso à nossa falta de
interesse. Então, foi uma surpresa quando, no final, Eris escolheu um vestido
preto bastante moderno com pequenas rosas brancas bordadas.
— Você realmente quer este, Eris?
— O quê…? Algum problema com isso?
— Não, não. Aposto que ficaria ótimo em você.
— Hmph. Sabe, não precisa ficar me bajulando.
Depois de pagar pelas compras, voltamos para a pousada.
E, finalmente, chegou o grande dia.
À tarde, avisei Ruijerd e Eris que jantaria com meu pai naquela noite.
— Fico feliz em ouvir isso — disse Ruijerd com uma expressão
ligeiramente aliviada no rosto.
Eu consegui até mesmo ver a felicidade em seus olhos. Ao que parece,
ele queria muito que eu deixasse esta cidade estando em boas relações com
meu pai. Mas não era como se existisse algum motivo para se preocupar, é
claro. Eu iria aproveitar esta oportunidade ao máximo para reforçar nossos
laços familiares.
— Eu também vou! — anunciou Eris.
Virando-me, eu a encontrei olhando para mim em sua pose usual de
braços na cintura.
— Uhhh…
— O quê? Algum problema com isso?
Se não fosse pelo outro dia, eu teria cedido imediatamente, mas Eris
com certeza ainda sentia alguma hostilidade em relação ao meu pai. Isso, na
verdade, não passava de eufemismo. Parecia que ela o odiava até na alma.
Eu, de certa forma, entendia como a garota se sentia, mas já tinha decidido
ser legal com Paul.
Se esse fosse o único problema, poderia levá-la comigo e fazer algumas
tentativas para que os dois ficassem em melhores termos. Mas esse jantar
seria nossa primeira refeição como família em muitos anos, sabe? E eu ainda
não tinha corrigido as coisas com Norn. Além disso, falei que iria ao jantar
sozinho.
— Eris, você se importaria de ficar aqui em vez de ir junto?
Considerando todas as coisas, eu queria que ela mostrasse um pouco de
autocontenção. Carregar uma bomba no meio de um incêndio florestal
violento não me parecia a melhor das ideias. Uma apresentação formal para
a minha família poderia esperar até que ficássemos um pouco mais íntimos
do que já éramos.
— Sim, eu me importaria! Também vou, entendeu?!
Como fui tolo. A palavra “autocontenção” não fazia parte do
vocabulário de Eris.
— Ruijerd, você poderia dizer algo?
Quando me voltei para o Superd em busca de ajuda, encontrei-o com a
mão no queixo, pensando. Seu olhar intenso mudou do meu rosto para o de
Eris, e depois de volta para o meu.
— Você fez as pazes com seu pai, não fez? Então não deve ter
problema. Leve ela junto.
Uau! Fui esfaqueado pelas costas! Este era o mesmo cara que socou
Eris para impedi-la de atrapalhar da última vez?
Ah, bem. Dessa vez acho que teria que seguir a opinião da maioria.
— Bem, se você diz, Ruijerd…
— Hmph! E o que você esperava?
— Só uma coisa, Eris. Eu quero ficar em boas relações com meu pai,
então por favor, seja educada com ele, tá bom?
— Certo…!
A julgar por seu tom de voz, a garota não tinha intenção de realmente
manter essa promessa. Não foi lá muito reconfortante.
Depois, subi as escadas para colocar minhas roupas novas e fui para o
restaurante como um novo eu (também conhecido como Novodeus). Eris foi
junto, usando aquele vestido preto que compramos no outro dia.
Fiz o possível para evitar os becos escuros. Havia muitos
sequestradores à espreita naqueles lugares, e às vezes eles podiam ficar um
pouco violentos. Não havia qualquer razão para arriscar a boa condição de
nossas roupas novas.
As avenidas principais também tinham seus perigos, é claro. Como era
hora do jantar, algumas pessoas estavam comprando algo parecido com
yakitori nas barracas ao ar livre. Se eu trombasse com alguma daquelas
pessoas, o resultado com certeza seria trágico. E se um deles desse um
encontrão com Eris, seu Soco Boreas provavelmente deixaria nós dois
encharcados de sangue.
Como medida de precaução, mantive meu Olho da Previsão ativo.
Constantemente tendo a visão de um segundo no futuro, então fui capaz de
nos guiar em segurança, mesmo em meio à multidão. Me senti um pouco
mal por usar uma habilidade tão poderosa para algo tão mundano, mas pelo
menos chegamos ao nosso destino sem incidentes.
Toda aquela coisa sobre as “reservas” me deixou um pouco nervoso. No
final das contas, porém, Millis Indolente era um lugar perfeitamente comum.
Era um bar e restaurante independente, não parte de uma pousada; a maioria
da clientela parecia ser de moradores locais relativamente respeitáveis.
Quando dei meu nome ao garçom na entrada, ele guiou Eris e eu para a
nossa mesa na mesma hora. O fato de que éramos dois passou despercebido.
Paul já estava sentado à mesa com um sorriso estranho no rosto, junto com
uma Norn aparentemente muito mal-humorada.
— Desculpa, me atrasei muito?
— Uh, nah… Sinto muito por isso, garoto. Shierra meio que, por algum
motivo, ficou empolgada demais. Eu disse que o lugar de sempre estaria
bom, mas…
— Não tem nada de errado em mudar as coisas de vez em quando,
certo?
Comecei a puxar uma cadeira, então parei quando notei que Eris estava
parecendo bastante mal-humorada. Tecnicamente, não foi a primeira vez que
ela viu Paul, mas apresentar um ao outro poderia acabar sendo uma boa
ideia.
— Um, Pai, esta é a Eris. Como eu disse no outro dia, ela é filha de
Philip e parte dos Boreas…
— Ah. Claro, claro. — Me cortando bem no meio da frase, Paul se
levantou e virou na direção de Eris. Ele se endireitou e colocou uma das
mãos no peito, depois abaixou a cabeça, mas só um pouquinho. Foi um
cumprimento treinado – não menos charmoso que o de Philip. — É um
prazer conhecê-la, senhorita. Sou Paul Greyrat, pai de Rudeus.
Pega de surpresa, Eris tentou olhar para mim, mas não conseguiu
quebrar totalmente o contato visual com meu pai.
— Uh, eu sou… E-Eris Greyrat… senhor. — A expressão em seu rosto
ainda estava carrancuda. Mesmo assim, ela agarrou as pontas do vestido e
fez uma pequena reverência estranha. Parecia que tinha perdido a chance de
começar a gritar ou dar socos.
Eu tinha que admitir, fiquei impressionado com Paul. Pelo visto, ele
aprendeu uma ou duas coisas sobre como lidar com garotas em seus anos
como mulherengo.
Desde quando ele podia fazer um cumprimento daqueles…?
— Então tá bom. Por que não nos sentamos?
De qualquer forma, nosso jantar em família começou sem qualquer
derramamento de sangue.
Eris e eu nos acomodamos em nossos assentos. No momento, ela estava
se mantendo quieta, mas era óbvio que revelaria suas presas no mesmo
instante em que as coisas tomassem um caminho ruim. Paul ainda parecia
um pouco desconfortável. E quanto a Norn… Bem, ela nem mesmo tinha
olhado na minha direção.
Resumindo, não era o melhor dos climas. Talvez levar Eris comigo
realmente tenha sido um erro.
Parecia que eu não era o único que achava a situação um pouco
estranha. Após alguns momentos de silêncio, Paul se virou para Norn com
uma expressão preocupada no rosto.
— Vamos lá, criança. Seu irmão mais velho está aqui, viu? Por que não
diz oi para ele?
— Não! Eu não quero jantar com um idiota que deu um soco no meu
Papai!
Eris fez uma careta e começou a abrir a boca, mas Paul foi mais rápido.
— Não diga isso, criança. Às vezes o Papai merece levar um ou dois
socos.
— Mas você não fez nada de errado! — disse Norn, estufando as
bochechas numa adorável demonstração de indignação.
— Seu irmão mais velho e eu já fizemos as pazes, sabia? Isso não é
verdade, Rudy?
Ah, cara. Ele ia mesmo jogar a batata quente no meu colo, hein? Bem,
talvez essa fosse uma espécie de oportunidade. Uma oportunidade de
demonstrar minha inteligência e charme!
— Ah, com certeza — falei com um sorriso. — Quer que a gente se
beije e prove isso?
— Hã?!
— Hein?
Por algum motivo, o que eu falei não foi lá muito bem visto. Na
verdade, eu não poderia culpar o cara. Eu também não queria dar um beijo
nele. Talvez pudéssemos esquecer que aquilo foi dito.
— Uh, de qualquer maneira… nós dois já voltamos a ser amigos, Norn.
Por que você também não faz as pazes com seu irmão mais velho?
— Não mesmo!
Paul afagou a cabeça de Norn enquanto ela fazia beicinho. Seu cabelo
dourado era realmente bonito. Ele me lembrava o de Zenith. Pensando bem,
ela costumava ficar de mau humor sempre que algo a incomodava. Será que
Norn tinha herdado esse hábito de sua mãe?
Depois de se submeter aos carinhos de Paul por um tempo, a criança se
virou abruptamente para me encarar. Ela teve que inclinar a cabeça para trás
apenas para me olhar no rosto, então o efeito geral foi mais adorável do que
intimidante.
— Papai está se esforçando muito mesmo.
Já que este comentário parecia ser dirigido a mim, respondi o mais
gentilmente que pude.
— Aham. Eu sei que está.
— Ele não beija nenhuma garota nem nada do tipo!
— Escutei sobre isso. Sinto muito por ter duvidado dele.
— E ele também é sempre bem legal comigo! — Os olhinhos de Norn
se encheram de lágrimas. Merda, será que eu disse algo maldoso? Por favor,
não comece a chorar, criança… — O Papai parece que está sempre querendo
chorar!
Perturbados pela óbvia angústia de Norn, Paul e eu nos entreolhamos
com incerteza.
— Espera, isso é sério?
— Uh, bem, às vezes…
— Sinto muito por ele!
Nenhum de nós tinha nada a dizer sobre isso.
— Como você pôde bater nele daquele jeito? Você é muito malvado!
Olhando para o rosto de Norn, tive que lutar contra a vontade de soltar
um suspiro longo e pesado. Paul e Norn foram teletransportados juntos. Isso
era tudo que eu sabia. Ela ficou muito doente durante a jornada de volta para
Fittoa e quase foi atacada por monstros várias vezes ao longo do caminho.
E foi seu pai quem a protegeu de todos aqueles perigos.
Com a ausência de sua mãe, empregada e irmã, e seu coração
explodindo de ansiedade, Paul era a única pessoa em quem ela podia confiar.
Por anos, ele foi a única família que Norn teve.
E então um estranho apareceu do nada, derrubou-o e começou a socá-lo
no rosto. Isso seria o suficiente para traumatizar a maioria das crianças de
sua idade.
— Norn, olha. Aquilo foi tudo minha…
— Está tudo bem, Pai.
Se ela fosse um pouco mais velha, nós três poderíamos ter encontrado
uma maneira de conversar sobre isso. Na idade dela, porém, isso
provavelmente seria impossível. Paul e eu cometemos erros e tiramos
conclusões precipitadas; havíamos nos reconciliado reconhecendo nossas
falhas. Mas não dava para esperar que uma criança entendesse isso.
— Norn ainda é muito jovem. E se eu estivesse no lugar dela, acho que
também não perdoaria um idiota que começasse a te socar.
Era triste que Norn me odiasse, mas não havia muito que eu pudesse
fazer a respeito. Só precisaríamos conversar um pouco no futuro. Quando ela
ficasse mais velha, eu tinha certeza de que ela entenderia. O tempo não é um
recurso infinito, mas pode curar pelo menos algumas feridas.
— Não, não está tudo bem. — Entretanto, ficou claro que Paul não
estava de acordo com meu plano. — Vocês dois podem ser os únicos irmãos
que restaram, sabiam? Quero que vocês sejam bons um para o outro.
Quando o sentido dessas palavras foi absorvido, franzi a testa para meu
pai.
— Isso é um pouco agourento, não acha?
— Sim, você está certo… Foi mal.
Bem, isso não era nada bom. A cada segundo o clima ficava mais
pesado. Parecia que era hora de mudar o assunto.
— A propósito, Pai, o que há de bom aqui? Hoje não tive tempo para
almoçar, então estou morrendo de fome.
Não foi a transição mais suave, claro, mas Paul pareceu entender o que
eu estava fazendo. Com um sorriso tenso, ele entendeu a deixa.
— Hm, vejamos. Eles têm um ensopado de frutos do mar muito
saboroso, usam peixe fresco do mar do sul. Ah, e a carne também é boa.
Criam muito gado nas fazendas por aqui, sabe? Na verdade, a carne tem um
gosto bem diferente do tipo Asurano, especialmente porque costumam fazer
cozida. Dá um sabor bem rico e gostoso.
— Ah, preciso provar isso. Toda a carne do Continente Demônio era
nojenta.
— Você disse que comiam basicamente carne de Grande Tartaruga, não
é? Bem, a maioria dos monstros tem um gosto muito desagradável.
A conversa estava finalmente começando a ganhar força, mas Norn
ainda estava com a cara virada. Ela só respondeu quando Paul perguntou
alguma coisa, se recusando a até mesmo olhar em minha direção. eu já
estava meio que conformado com isso, mas ainda meio que doía, sabe?
Claro, isso era a mesma coisa que eu tinha feito com Paul há alguns
dias. Parando para pensar naquilo, acabei me sentindo muito mal.
E, a julgar pela maneira como Eris olhava para Norn, ela também não
estava muito satisfeita com essa atitude. Eu realmente não queria que isso se
transformasse em uma briga, mas… era melhor deixar as coisas estarem.
— Ah, claro. Tem uma coisa que eu queria te perguntar, Pai.
— Hã? O que é?
— Você conhece alguém chamado Gash Broche?
— Uh, não… Onde você ouviu esse nome?
Aproveitei a oportunidade para contar a Paul sobre a carta de Ruijerd e
o amigo misterioso que a escreveu para nós. Fiz uma cópia grosseira do
emblema no selo de cera, então peguei e mostrei a ele.
— Uma ovelha, um falcão e uma espada, hein? Parece o brasão da
família de um paladino. Mas acho que nunca ouvi o nome Gash Broche. Mas
não é como se eu estivesse familiarizado com todos os nobres de Millis ou
coisa do tipo.
— Entendo… Você acha que Shierra pode saber algo sobre ele?
— Hmm, não sei. Depois vou perguntar para ela.
Descobrir que ele nunca tinha ouvido falar do sujeito não foi
reconfortante, mas teríamos que esperar para ver.
Com esse tópico passado, Paul e eu voltamos a conversar sobre
qualquer coisa que vinha à mente. Por fim, chegamos ao assunto do meu
décimo aniversário.
De acordo com Paul, os monstros na floresta fora de Buena Village
ficaram muito mais ativos cerca de um mês antes do acontecimento. Paul e
Zenith estavam tão ocupados tentando colocar a situação sob controle que
simplesmente não tiveram tempo para se preocupar com meus presentes.
Finalmente conseguiram limpar a floresta, um dia antes do meu aniversário,
mas quando estavam se preparando para me enviar algumas coisas, a
Calamidade aconteceu.
Enquanto ouvia tudo isso, Eris fez beicinho e franziu as sobrancelhas.
Pensando bem, ela tinha ficado bem triste quando descobriu que Paul não
iria àquela festa.
— Só por curiosidade, o que você planejava me enviar?
— Ia te dar um par de manoplas. Me senti um pouco culpado, já que
tinha acabado de encontrá-las nos fundos de nosso armazém, mas eram itens
mágicos encontrados no fundo de um labirinto. Aquelas coisas eram leves
como penas. Nunca couberam em mim, mas achei que serviriam em você,
Rudy.
— Sério mesmo? Eu não sabia que você tinha uma coisa dessas.
— Aham. Zenith disse que o dela era um segredo, mas às vezes eu via
Lilia olhando para uma caixinha trancada com um sorriso no rosto. Acho
que também era para você.
— Uma caixa? — Agora ele me deixou curioso. O que será que tinha
dentro daquela coisa? Mas não era como se fizesse algum sentido pensar
nessas coisas. Seja lá o que fosse, já era.
Depois disso, de alguma forma chegamos ao assunto da família de
Zenith. Eles eram evidentemente bem conhecidos entre a nobreza Millis e
tinham uma história de produção de muitos cavaleiros talentosos e justos.
Infelizmente, meus avós deserdaram Zenith quando ela saiu de casa, então
no começo não ficaram muito entusiasmados em ajudar na procura.
Mas mudaram de opinião assim que deram uma olhada em Norn. Este
mundo era diferente do outro que eu conhecia em muitas coisas, mas, pelo
visto, uma netinha fofa tinha os mesmos efeitos em todos os lugares.
— Hmm. Será que te ajudariam mais se eu ficasse aqui?
— Uh, acho que isso não funcionaria…
— É, você tem razão. — Por eles, eu poderia tentar agir como uma
criancinha inocente, mas minha verdadeira natureza com certeza começaria a
aparecer com o passar do tempo. Isso não valia o risco.
Pouco depois desse papo, o garçom finalmente trouxe nossa comida
para a mesa.
— Certo, vamos lá — disse Paul enquanto segurava seu garfo no ar. —
Hmm, pelo que começo…?
— Isso parece apetitoso — murmurou Eris, estudando toda a variedade
com olhos brilhantes. Sério, seria mais fácil acreditar que ela era a filha de
Paul do que eu. Então, novamente, Paul e Philip eram primos, então isso
talvez não fosse tão bizarro.
Em qualquer caso, parecia uma oportunidade de ouro para melhorar um
pouco a imagem que Norn tinha de mim.
— Pai, suas maneiras são…
— Pare com isso, Papai! Você tem que orar antes de comer!
Nós dois falamos quase que ao mesmo tempo. Norn olhou para mim
com surpresa, mas se virou, mal-humorada, um segundo depois.
— Ha ha. Tá bom, crianças.
— Tá, tá…
Paul coçou a cabeça com tristeza e Eris parecia um pouco relutante,
mas os dois se recostaram nas cadeiras por um momento. Nós quatro
começamos a fazer uma breve oração ao estilo Millis. Tudo isso envolvia
juntar as mãos e fechar os olhos por alguns segundos.
Eris e eu não éramos crentes, e Paul provavelmente também não, mas
isso fazia parte das boas maneiras à mesa deste mundo. Quando em Roma, já
sabe, né? Seguimos os procedimentos sem reclamar.
Por algum motivo, parecia que o humor de Eris e Norn melhorou um
pouco após isso.
Nós apreciamos nossa comida enquanto conversávamos sobre nada lá
muito importante. E, claro, Paul e eu continuamos conversando. Norn nunca
olhou na minha direção e, por sua vez, Eris ficou em silêncio. Paul começou
a tentar trocar algumas palavras com ela, mas as ondas de hostilidade que a
garota emitia eram fortes o suficiente para que ele sempre pensasse melhor.
Isso provavelmente foi sábio da parte dele, já que resolveu não cutucar a
onça com vara curta.
— Hmph, acho que ele se manteve sob controle desta vez — murmurou
ela, bem baixinho, quando saímos do restaurante juntos.
Eu nem queria pensar sobre como ela poderia ter reagido se Paul tivesse
gritado comigo, muito menos se tivesse me dado um soco. Mas como não
aconteceu nada disso, sua vontade de o matar podia ter até sumido – ou ao
menos diminuído.
Ao menos por esse ponto de vista parecia que tudo tinha se saído bem.
✦✦✦✦✦✦✦
Nossa semana em Millishion chegou ao fim em pouco tempo.
No dia de nossa partida, fomos até o portão do Distrito dos
Aventureiros. Tínhamos acabado de carregar nossas coisas na carruagem e
estávamos nos preparando para sair quando Paul apareceu para se despedir.
— Ei, Rudy. Tem certeza de que não quer ficar mais um pouco?
Por mais que eu apreciasse o convite, já era meio que tarde demais para
isso.
— Tenho certeza de que seria bom, mas se não partirmos, podemos
acabar ficando aqui por um ano inteiro sem fazer nada.
— Mas você e Norn ainda nem fizeram as pazes.
— Teremos tempo suficiente para cuidar disso quando encontrarmos as
outras três.
Além do mais, isso não era só sobre mim. Olhei para Eris. Ruijerd a
agarrou pela nuca como uma medida de precaução, mas ela ainda estava
erguendo os punhos para Paul. Talvez eu tivesse superestimado a capacidade
dela de seguir em frente.
— E eu não sou o único que quer ver a família, sabe?
— Certo, claro. Mas a família Boreas provavelmente…
— Não vamos falar sobre isso — falei, dando um corte no que Paul ia
falar. — É possível que Philip e Sauros estejam esperando por nós quando
voltarmos para Fittoa, sabe? Pode ser que a notícia ainda não tenha chegado.
— Certo. Aham, isso é verdade. Mas, sabe, Rudy… — Paul parou por
um momento, seu rosto ficando sério. — Você realmente não deveria ficar
muito otimista quanto a isso. Mesmo se os dois estiverem vivos, não há
como dizer o que pode acontecer com eles depois de um desastre dessa
escala.
— O que quer dizer com isso?
Paul abaixou um pouco a voz.
— O irmão de Philip, James, está ocupado tentando salvar seu próprio
pescoço. Há uma chance de ele jogar toda a culpa por essa bagunça em um
deles.
Uau.
Eu não tinha pensado nisso antes, mas até que parecia plausível. Sauros
era o lorde de Fittoa, e Philip era o prefeito de Roa; ambos ocupavam
importantes cargos de autoridade. Mesmo se conseguissem voltar para casa,
poderiam ser considerados responsáveis pela perda massiva de vidas e
propriedades que foi causada pela Calamidade.
Eu não sabia exatamente o que isso significaria. Mas, no mínimo, era
difícil imaginar que voltariam a seus antigos papéis e retomariam seu poder.
Na verdade, não seria tão surpreendente se alguém mandasse assassinos
atrás deles. Isso impediria o irmão de Philip de usá-los como bodes
expiatórios, tornando muito mais fácil encurralá-lo na política.
— Se as coisas ficarem feias, apenas certifique-se de manter a pequena
senhora segura. Algumas pessoas podem falar um monte de merda sobre os
“deveres da nobreza”, mas você não tem que dar atenção a isso.
— Claro — falei, balançando a cabeça com a expressão mais séria que
pude fazer. — Tomarei cuidado, Pai.
Paul sorriu com orgulho e acenou com a cabeça.
— Ah, a propósito, falei sobre aquela carta com Shierra. Ela também
nunca ouviu falar sobre o cara.
— Entendo…
— Mas ela falou que ele provavelmente não é ninguém perigoso.
— Então tá bom. Você se importaria de agradecê-la por mim?
Paul balançou a cabeça por um momento. E então, finalmente, se virou
e falou com a garotinha que estava parada atrás dele.
— Vamos, Norn. Diga tchau ao seu irmão mais velho.
— Não quero…
Norn não saiu de onde estava, escondida atrás de seu pai. Entretanto,
estava espiando com metade do rosto à vista. Mas que adorável. Eu me
peguei me perguntando se ela cresceria e se tornaria uma beldade igual sua
mãe.
— Não sei quanto tempo vai demorar, Norn, mas vamos nos encontrar
de novo algum dia.
— Não quero.
Até o final, minha irmã se recusou a me olhar no rosto. Sorrindo sem
jeito, voltei para nossa carruagem.
E assim, nosso grupo deixou a cidade de Millishion para trás.
✦✦✦✦✦✦✦
Ponto de Vista do Paul
E, bem assim, Rudeus voltou à estrada.
O garoto continuava tão impressionante quanto sempre. Ele bolou todos
os seus planos em um momento, então colocou tudo em ação na mesma
hora. Elinalise uma vez me disse que eu estava “correndo com a minha
vida”, não foi? Então gostaria de saber o que ela diria ao dar uma olhada
nele.
Se os dois algum dia se encontrassem poderia ser divertido, mas…
talvez não fosse uma ideia lá muito boa. Sim. A última coisa que eu queria
era acabar como o sogro daquela mulher.
Assim que cheguei a essa conclusão, alguém me deu um tapa no ombro.
Virei-me para encontrar um homem com cara de macaco sorrindo para mim.
— E aí, Paul. Já se despediu do seu filho?
— Geese… — Eu estava grato a esse idiota; mais grato do que poderia
expressar em palavras. Se não fosse por ele, provavelmente nunca teria feito
as pazes com Rudeus. — Cara, te devo uma.
— Ei, não esquenta!
Nesse ponto, percebi que Geese estava vestido para pegar a estrada.
— Mas, e aí, o que há de errado com você? Vai para algum lugar?
— Aham. Ainda não sei para onde, mas há muitos lugares que vocês
ainda não visitaram, certo?
Demorei um pouco para entender o que ele estava dizendo. Geese
continuaria procurando por minha família. Isso foi um choque, francamente.
De todos os membros do meu antigo grupo, Geese foi o que mais sofreu
depois da separação. Ele não era um lutador, mas um pau para toda obra sem
nenhuma especialidade real. Nenhum outro grupo o aceitaria, e ele não era
forte o suficiente para lidar com trabalhos difíceis sozinho. O homem foi
forçado a deixar a vida de aventureiro para trás. Ele tinha todos os motivos
do mundo para se ressentir de mim, até mesmo para me odiar.
— Por que você está… fazendo isso, Geese? Por que está se esforçando
tanto para encontrá-los?
Geese contraiu os cantos da boca em seu costumeiro sorriso irônico.
— É só por boa sorte. — E com aquela “explicação” tipicamente
enigmática, se virou e foi embora.
Coloquei minhas mãos em meus quadris e o observei partir com um
sorriso irônico no meu rosto. O homem tinha muitas ideias sobre sorte e
nenhuma delas fazia muito sentido para mim. Mas, desta vez, eu não estava
exatamente reclamando.
— Então tá bom!
Assim que Geese desapareceu de vista, me abaixei e coloquei Norn em
meus ombros. Do nada, comecei a explodir de tanta energia e motivação.
Comecemos pelo começo – tínhamos que garantir que a operação de
realocação de refugiados ocorreria sem problemas. E uma vez que isso fosse
feito, eu sairia em busca do resto da minha família. Não importava as
circunstâncias.
Com minha resolução firmemente fixada em meu coração, voltei para a
cidade.
Interlúdio:
Eris, a Matadora de Goblins
Peço desculpas pela digressão abrupta, mas vamos falar sobre um
jovem chamado Cliff Grimor.
Cliff, atualmente, tinha doze anos – estava bem entre a idade de Eris e
Rudeus. Quando era criança, viveu em um orfanato em Millishion. O lugar
era operado pela Igreja Millis e servia como um símbolo de seu poder e
prestígio. Naturalmente, não faltava financiamento ou apoio; as crianças
eram muito bem tratadas e tudo mais, e muitas delas eventualmente
acabavam sendo adotadas.
Após vários anos naquela instituição de luxo, Cliff foi adotado, quando
tinha cinco anos, por seu atual pai adotivo. Harry Grimor, um homem idoso
e de alta posição na Igreja Millis.
Depois que Cliff se juntou à casa de Harry, passou por um rigoroso
programa educacional projetado para cultivar seus talentos naturais. Em
apenas alguns anos, alcançou o nível Avançado em magia de Cura,
Desintoxicação e no Ataque Divino. Ele também aprendeu a lançar feitiços
de nível Intermediário em todas as disciplinas de magia ofensiva, e até
mesmo feitiços de Fogo de nível Avançado.
Cliff era, em outras palavras, um prodígio.
Todos ao redor do garoto o elogiavam; todos diziam que, um dia, ele
deixaria sua marca no mundo.
Analisando assim, seus anos iniciais foram bem parecidos aos de
Rudeus. Mas, ao contrário de Rudeus, que tinha as memórias de sua vida
anterior e sabia que era melhor demonstrar humildade, Cliff se tornou
arrogante. Para ser sincero, o garoto vivia cheio de si. Muito mesmo.
De certa forma, seria difícil culpá-lo. Mesmo entre seus instrutores, não
havia ninguém proficiente em uma variedade de magias tão grande quanto
ele. Alguns podiam até lançar feitiços de Cura de nível Santo, verdade;
outros também tinham dominado os feitiços de Desintoxicação de nível
Santo. Entretanto, apenas Cliff tinha alcançado o nível Avançado em quatro
disciplinas distintas. A amplitude de suas habilidades era tal que alguns
diziam que ele estava trilhando o caminho de um sábio. O ego do garoto
aumentava a cada dia. Aos poucos, ele parou de dar ouvidos a seus tutores.
Algum dia, no futuro, seria esperado que Cliff sucedesse seu pai
adotivo e assumisse um cargo na Igreja Millis. E ele estava ciente disso,
claro. Mas, no momento, só queria ser um aventureiro.
Mas, por que um aventureiro?
A causa para isso era derivada de seu passado no orfanato. Muitos dos
que cresceram naquele lugar tornaram-se aventureiros. As crianças que não
eram adotadas até o décimo aniversário seriam enviadas para uma escola
administrada pela Igreja Millis, onde passariam por cinco anos de
treinamento nas artes práticas de combate, esgrima e magia. Após a
formatura, aceitariam empregos adequados aos seus talentos específicos.
Aqueles que produzissem resultados acadêmicos excelentes, além de serem
bons em esgrima e magia, às vezes se tornavam cavaleiros, mas a maioria
desses graduados acabava como aventureiros.
Aqueles rapazes e moças frequentemente faziam uma pausa para visitar
seu antigo lar. Sempre se deleitavam quando tinham a chance de falar com
seus velhos professores – e de contar histórias emocionantes sobre suas
aventuras para todas as crianças que viam. Muitos dos órfãos, cativados por
essas histórias, sonhavam em seguir seus passos, e Cliff não era exceção.
Claro, ele não acreditava que seu sonho se tornaria realidade. Apesar do
que seu coração queria, o garoto entendia suas circunstâncias com clareza.
Uma criança adotada de um orfanato não teria o direito de escolher seu
próprio destino.
Ele pôde aceitar isso… ao menos no começo. Mas a rotina monótona de
sua vida diária o desgastou, e os elogios constantes que recebia o deixaram
cheio de si. E então, um dia, teve a ideia de fugir de sua casa para se registrar
como um aventureiro.
Na verdade, o garoto só queria colocar suas habilidades à prova. Alguns
de seus instrutores eram inclusive aventureiros renomados. Ele, de certo,
teria uma experiência semelhante àquelas que escutara quando era jovem…
ou ao menos foi o que imaginou. Com o cajado que ganhou de seu pai
adotivo em seu décimo aniversário em mãos, Cliff se dirigiu do Distrito
Divino ao Distrito dos Aventureiros, onde comprou um robe azul de mago
para usar.
Agora que estava trajado para a função, se dirigiu até a Guilda.
Preocupado com a possibilidade de ser rastreado pela igreja, rapidamente se
registrou como um curandeiro, e então decidiu listar sua profissão como
“mago”. Ele pensou que, por algum motivo, isso poderia fazer diferença.
O registro de Cliff foi, em pouco tempo, concluído. Agora era
oficialmente um aventureiro. Um novo mundo de perigo, excitação e glória
se abriu diante dele.
Com o coração acelerado graças à alegria, Cliff olhou para os lados.
Quase todas as pessoas que viu eram homens musculosos. Estava claro que a
profissão da maioria era espadachim ou guerreiro.
Cliff já tinha ouvido os aventureiros que visitavam o orfanato
comentando que lançadores de feitiços talentosos eram muito requisitados.
Ele presumiu que só por ser mago, rapidamente encontraria lugar no grupo
de alguém. O garoto não tinha prestado atenção à explicação da
recepcionista sobre o sistema de ranks da Guilda, então pensou que poderia
entrar em qualquer um, independentemente de seu rank.
— Não vai dar certo, garoto.
E então foi, inevitavelmente, rejeitado. Todos que ele abordou o
rejeitaram sem pensar duas vezes. Quando isso aconteceu pela quarta vez
consecutiva, a paciência do menino finalmente se esgotou.
— Por quê?! Por que não me deixam entrar em seus grupos?!
— Eu já falei. Nossos ranks são diferentes.
— E daí?! Sou tão poderoso quanto qualquer mago de rank A! Vocês
deviam estar é gratos por eu estar disposto a trabalhar com gente como
vocês!
— Mas que merda é essa? Já cansei dessas suas idiotices, moleque
estúpido! Você quer mesmo cair na porrada comigo?!
— Idiotas, vocês só sabem brandir uma espada. Eu não ficaria tão
convencido assim se estivesse no seu lugar!
— Seu merdinha…
O aventureiro corpulento na frente de Cliff deu um passo à frente e o
agarrou pela gola de sua camisa. O garoto não tinha esperado que isso
acontecesse, mas, se conseguisse derrubar o homem, conseguiria fazer uma
verdadeira demonstração de sua força.
— Já chega. Você está sendo infantil.
Antes que ele tivesse qualquer chance, entretanto, uma garota ruiva
mais ou menos com a sua idade acabou intervindo.
✦✦✦✦✦✦✦
Vamos retroceder um pouco mais no tempo.
Naquela mesma manhã, Eris Boreas Greyrat se separou de Rudeus e
Ruijerd para fazer uma visita à Guilda dos Aventureiros de Millishion.
Enquanto ela descia a rua principal que levava ao prédio, sempre correndo, o
sorriso em seu rosto estava tão grande que qualquer pessoa que visse
acabaria sorrindo junto. Eris estava usando sua roupa padrão de aventureira:
uma camisa grossa, protetor de peito feito de couro, calças de couro e botas
de sola fina, mas resistentes. Com sua arma pendurada ao quadril, mesmo à
primeira vista ficava óbvio que se tratava de uma espadachim.
Entretanto, neste dia, não estava usando seu capuz de sempre. No
último ano, tinha aprendido que usar aquela coisa na Guilda faria
confundirem ela com uma maga… e isso tendia a encorajar sujeitos
estranhos a se aproximarem.
E, em pouco tempo, a garota chegou ao seu destino. A Guilda dos
Aventureiros de Millishion ficava no fim da rua principal. Era a sede de toda
a organização e o maior edifício do Distrito dos Aventureiros.
Seu portão de entrada, todo imponente, não foi o suficiente para
intimidar Eris. Ela foi direto lá para dentro. A entrada do prédio, entretanto,
foi quase o suficiente para fazê-la parar e cruzar os braços. O lugar não era
apenas maior do que qualquer um que tinha visto nas outras filiais da guilda,
como também era maior que o salão de banquete da mansão de sua família,
lá em Roa. Qualquer garoto ou garota que colocasse os pés nesse lugar para
se registrar na Guilda provavelmente teria hesitado diante dessa visão
impressionante.
Mas, claro, Eris não era uma recém-chegada tímida. Ela era uma
aventureira de rank A – uma verdadeira veterana. Levou apenas um segundo
para que fizesse um caminho rápido até o quadro de avisos.
Este quadro era muito maior do que qualquer outro que ela já tinha
visto, mas mesmo assim estava cheio de folhas de papel. Cruzando os
braços, a garota começou a olhar para todos.
Entretanto, em vez de seguir para as tarefas de rank B, que eram moleza
para o Fim da Linha, estava estudando a seção de rank E do quadro,
procurando tarefas classificadas como Missões Abertas. Eram missões
especiais, postadas periodicamente pelo país em que a Guilda estava
localizada. Suas recompensas eram menores, mas como eram de alta
prioridade, qualquer aventureiro poderia aceitá-las, independentemente de
seu rank.
Claro, não existia algo assim no Continente Demônio. Não existiam
“países” lá.
Entre um punhado de Missões Abertas, os olhos de Eris se fixaram em
uma em particular.
✦✦✦✦✦✦✦
Aberta
TAREFA: Exterminar Goblins
RECOMPENSA: 10 moedas de cobre Millis por orelha
DETALHES: Ajude a abater a população local de Goblins
LOCALIZAÇÃO: Leste de Millishion
DURAÇÃO: Nenhuma
Prazo: Nenhum
CLIENTE: Os Cavaleiros Sagrados de Millis
NOTAS: Novos aventureiros devem ser cautelosos com os Hobgoblins,
que às vezes são encontrados entre grupos de Goblins. Não remova esta
solicitação do quadro; simplesmente traga as orelhas coletadas diretamente
para o balcão da frente.
✦✦✦✦✦✦✦
Os Goblins eram uma espécie de monstros que viviam principalmente
nas fronteiras entre florestas e planícies abertas. Eles tinham forma
humanóide e usavam armas grosseiras, mas não podiam compreender a fala
humana. Em pequenos números, eram em sua maioria inofensivos, mas se
deixados sozinhos por muito tempo, se reproduziam rapidamente e
começavam a atacar quaisquer vilarejos próximos. Eram considerados um
tipo de praga um tanto perigosa. No entanto, como residiam na periferia de
áreas arborizadas, também agiam como uma espécie de amortecedor natural
contra os monstros mais perigosos que surgiam dentro das florestas.
Eram criaturas fracas e podiam ser mortos sem muita dificuldade por
qualquer um que soubesse usar uma espada. A Guilda dos Aventureiros se
aproveitou desse fato, oferecendo tarefas regulares de extermínio de Goblins
com recompensas generosas, servindo como uma espécie de introdução às
missões de combate.
Além do mais, embora Eris não soubesse disso, as criaturas às vezes
também eram usadas como ferramenta de tortura contra espiões estrangeiros
que acabavam sendo capturados. Por todas essas razões, o País Sagrado de
Millis não fazia nenhum esforço para exterminar os Goblins dentro de suas
fronteiras, preferindo manter sua população em um nível estável.
Eris era uma aventureira de rank A cujas habilidades foram
reconhecidas por Ruijerd Superdia, e era perfeitamente capaz de derrotar um
guerreiro de rank C comum usando apenas seus punhos. Ninguém entenderia
por que ela se importava com um trabalho tão básico em um momento
destes.
Mas existiam duas razões.
Primeiro: isso era algo que ela sonhava fazer há muito tempo.
Durante o breve período de sua vida em que frequentou a escola,
costumava escutar um grupo de meninos de sua classe. Eles sempre ficavam
falando sobre o que fariam quando virassem aventureiros. O plano deles era
começar caçando Goblins. Depois de economizar algum dinheiro e ficar
mais fortes, finalmente seguiriam para as regiões ao sul do Continente
Central, onde poderiam assumir tarefas de alto nível e mergulhar em
labirintos.
Ouvindo sua conversa animada, Eris começou a se entregar a essas
mesmas fantasias.
Um dia, caminhou até o pequeno grupo e exigiu que a deixassem entrar
na conversa, o que de alguma forma levou a uma briga na qual a garota
venceu brutalmente contra três garotos. Ela foi expulsa da escola, mas logo
conheceu Ghislaine, cujas histórias apenas intensificaram seu desejo por
uma vida cheia de aventuras.
Depois de conhecer Rudeus, constantemente sonhava em se tornar uma
aventureira em um grupo com ele. Em sua imaginação, formariam um grupo
de dois: Eris, a espadachim, e Rudeus, o mago. Juntos, desafiaram labirintos
desconhecidos em busca de tesouros.
Quando ela realmente se encontrou presa no Continente Demônio com
ele, no entanto, as coisas aconteceram de forma muito diferente de suas
fantasias. Rudeus, em particular, agia muito cheio de profissionalismo em
relação a tudo. Ele manteve o grupo longe de labirintos e de seus perigos
desconhecidos. Se Eris tivesse proposto que fossem matar alguns Goblins, o
garoto provavelmente teria levantado uma sobrancelha e dito: “Por que nos
incomodaríamos em fazer isso?”
Bem, só ressaltando, ela não era mais uma novata. Já tinha lutado
durante todo seu caminho cheio de perigos pelo Continente Demônio, então
sabia que não havia nenhum motivo real para aceitar este trabalho em um
momento desses. Mas, mesmo sendo inútil, matar Goblins sempre esteve no
topo de sua lista de “Coisas que quero fazer quando me tornar uma
aventureira”. Ela só queria passar pela experiência, nada além disso.
Essa era a sua primeira razão. A segunda… era segredo.
— Será que consigo voltar antes do sol se por…
Estudando a tarefa que encontrou no quadro, Eris tentou descobrir
quanto tempo levaria para a viagem de ida e volta. Desta vez, viajaria à pé.
Ainda estava cedo, mas seria melhor ter uma margem de erro confortável.
— Hm…?
Mas enquanto estava pensando nisso, percebeu uma nota postada na
borda do quadro, além das tarefas de rank F.
Cidadãos deslocados da Região de Fittoa: Por favor, entrem em contato
com o seguinte endereço:
Depois de ler a primeira linha, Eris desviou o olhar. Ela tinha visto essa
mesma nota na Guilda dos Aventureiros de Porto Zant.
Rudeus nunca mencionou a Região de Fittoa. Eris presumiu que era só
porque não queria a deixar ansiosa. A garota suspeitou que a razão pela qual
ele havia criado mais “dias de folga” era para que pudesse tomar algumas
providências necessárias quanto a isso.
Então tentou não pensar muito em coisas complicadas. A garota se
convenceu de que não era inteligente o suficiente para entender o que estava
acontecendo, e também tinha Rudeus para pensar pelos dois. Quando
chegasse a hora, tinha certeza de que ele explicaria seu plano de uma
maneira que qualquer um pudesse entender. Ela jamais sonhou que Rudeus
nem estava ciente da existência desse aviso.
— Então tá bom!
Tendo feito o que foi fazer, Eris se afastou do quadro com bom humor e
se dirigiu para a saída. Agora só faltava ir para o leste e matar alguns
Goblins. Dado o quão entusiasmada estava no momento, provavelmente
destruiria um ou dois ninhos inteiros antes de se cansar. Não havia nada nem
ninguém que pudesse detê-la. Por favor, um minuto de silêncio por nossos
amiguinhos verdes…
— Por quê?!
Não, espera, parece que nos adiantamos um pouco. Quando ela estava
prestes a deixar o prédio, parou de andar graças ao som de um grito.
Virando-se naquela direção, viu um menino cercado por um grupo de
homens com quase duas vezes seu tamanho.
— Por que não me deixam entrar em seus grupos?!
Levando em conta aquele robe azul, o garoto gritando parecia ser um
mago. Ele era um pouco mais baixo do que Rudeus; seu cabelo castanho
escuro era longo na frente, escondendo seus olhos de vista. O cajado que
carregava não era tão impressionante quanto o Aqua Heartia de Rudeus, mas
pelo tamanho de seu cristal mágico, qualquer um poderia dizer que era feito
de materiais de qualidade. Sua família provavelmente era rica, mas não tão
rica quanto a de Eris.
— Sou tão poderoso quanto qualquer mago de rank A! Vocês deviam
estar é gratos por eu estar disposto a trabalhar com gente como vocês!
Sua atitude arrogante também não estava sendo muito bem recebida
pelos homens que o cercavam. Isso não foi lá muito surpreendente. Caso
aquele garoto estivesse gritando essas coisas para ela, Eris daria um soco em
sua cara e não diria nada.
— Mas que merda é essa? Já cansei dessas suas idiotices, moleque
estúpido! Você quer mesmo cair na porrada comigo?!
— Idiotas, vocês só sabem brandir uma espada. Eu não ficaria tão
convencido assim se estivesse no seu lugar!
— Seu merdinha…
Um dos aventureiros agarrou o menino pela gola. O rosto do garoto
permanecia calmo, mas Eris podia ver que suas pernas estavam tremendo um
pouco.
Caminhando até o grupo, ela resolveu intervir.
— Já chega. Vocês estão sendo infantis. — Se Rudeus estivesse lá,
provavelmente teria ficado de boca aberta neste momento. Este não era o
tipo de coisa que se esperava escutar, dentre todas as pessoas, logo de Eris.
Sério, ela estava achando isso tudo muito emocionante. Como
aventureira de rank A, estava acima de qualquer uma dessas pessoas. Ela era
a veterana calma, intervindo para proteger o novato de um bando de
valentões! Se alguém perguntasse, diria que isso era muito legal.
Claro, Ruijerd frequentemente tinha que intervir assim para impedi-la
de socar algum idiota infeliz bem no meio da cara, mas esse fato
inconveniente havia fugido de sua memória.
— Tch… É, acho que você tem razão. Não fui lá muito maduro.
Para sua surpresa, o homem recuou na mesma hora. Ela esperava que
isso se transformasse em uma luta, então foi meio anticlimático.
— Vamos lá gente. Vamos embora. — Os homens foram embora,
deixando o menino mago para trás. Eris esperou que ele agradecesse com
um sorriso no rosto.
Em sua imaginação, seria algo assim:
Menino: Obrigado por me ajudar, senhorita. Quem é você?
Eris: Ah, ninguém especial.
Menino: Por favor! Pelo menos me diga seu nome!
Eris: Hmm. Tudo bem… então você pode me chamar de Ruijerd do
Fim da Linha.
Às vezes Rudeus gostava de falar essas coisas. Ela queria sentir o
mesmo gostinho.
— E quem foi que pediu a sua ajuda, hein?! — A expressão orgulhosa
de Eris congelou no lugar quando o menino gritou com ela. — Eu podia
lidar com aqueles valentões muito bem usando a minha magia! Não enfie o
nariz onde não é chamada!
De certa forma, o garoto teve sorte. Afinal, foi nocauteado pelo
primeiro soco dela, e aqueles homens de antes ainda estavam por perto. Se
não tivessem corrido de volta para tirar Eris de cima dele, o garoto
provavelmente teria acordado após perder uma parte bastante delicada de sua
anatomia.
✦✦✦✦✦✦✦
Com um humor um tanto ruim, ela fez seu caminho para o portão da
frente de Millishion. Eris geralmente deixava as coisas desagradáveis para
trás quase na mesma hora, mas, desta vez, ainda estava se sentindo irritada.
Havia uma razão para isso, é claro.
— Espera! Por favor, espera! — Foi porque o garoto da Guilda, tendo
recuperado a consciência, saiu correndo atrás dela. — Sinto muito pelo que
falei naquela hora. Foi só por causa do calor do momento…
Assim que ele a alcançou, imediatamente se desculpou e curvou a
cabeça de forma educada. Por causa disso, o humor de Eris ficou apenas
“um pouco” ruim. O menino havia escapado de um destino horrível – mas
foi por pouco.
Claro, se ele tivesse permanecido consciente depois do primeiro soco
para testemunhar sua raiva, não teria sido tolo o suficiente para a perseguir
dessa forma.
— Meu nome é Cliff. Cliff Grimor!
— Meu nome é Eris… — Por um momento ela pensou em usar o nome
Fim da Linha, mas decidiu não fazer isso. Não iria mencionar o nome de
Ruijerd para alguém que a irritou.
— Eris! É um nome maravilhoso! Pela sua roupa, suponho que seja
uma espadachim, sim? Gostaria de fazer um grupo comigo? — Cliff se
plantou bem no meio da estrada para tagarelar. Eris ficou extremamente
tentada a socá-lo na cara de novo, mas conseguiu se controlar.
— Não, obrigada. — Ela desdenhosamente virou a cara e voltou a
andar.
Bem, a garota não estava muito acostumada a lidar com esse tipo de
coisa. Rudeus era basicamente a única pessoa que voltou para mais depois
de sua primeira surra.
— Ah. Tudo bem. Nesse caso, ao menos deixe-me te apoiar pela
retaguarda! Todo mundo diz que sou um sábio em formação, sabe. Com
certeza vou ajudar!
Se Rudeus estivesse lá para testemunhar essa tentativa de avanço
desesperada, provavelmente teria feito um comentário do tipo: “Está mais
para um coroinha em desenvolvimento, seu virjão idiota!” para si mesmo.
Eris, entretanto, não era tão bruta. Ela, por um momento, se perguntou
quão “útil” o garoto poderia se tornar após ser picado e usado como adubo.
— Tenho certeza de que você nunca viu um feiticeiro tão incrível
quanto eu antes, Eris — disse Cliff com um sorriso confiante. — Eu sou
ainda melhor do que os magos de rank A normais, e isso é verdade!
Esta observação acabou a irritando. Para ela, o mago mais incrível do
mundo era, claramente, Rudeus Greyrat. Até Ruijerd reconhecia suas
habilidades. Embora ele fosse um aventureiro de rank A, não havia nada de
“normal” nele.
— Você devia ao menos querer ver o que eu faço por si mesma!
Tudo bem então, Eris se pegou pensando. Vamos ver se você é tudo
isso.
— Tá bom, certo. Siga-me.
— É claro!
E então, Eris e o jovem mago Cliff começaram a matar alguns
monstros.
✦✦✦✦✦✦✦
Em um instante, uma grande onda de chamas consumiu sete Goblins de
uma vez.
— O que achou disso? Bem incrível, não é? — disse Cliff, examinando
os cadáveres dos monstros com uma expressão de imensa satisfação no
rosto. — Os magos comuns que você conhece jamais seriam capazes de
fazer isso!
Eris também olhou para os restos mortais. Todas as criaturas foram
reduzidas a cinzas, o que significa que não havia mais orelhas para coletar.
— Você acha? Não posso dizer que estou impressionada. — Essa era
sua mais sincera opinião. Na verdade, ela não poderia estar menos
impressionada. Cliff usou um feitiço de Fogo de nível Avançado chamado
“Chamas do Êxodo”. Ela já tinha visto Rudeus lançando a mesma coisa.
Mas, ao contrário de Cliff, ele não pronunciava um longo encantamento, e
suas chamas também eram mais poderosas. Claro, para começo de conversa,
Rudeus não usaria um feitiço desses contra um bando de Goblins. Ele teria
matado todos de uma vez sem tocar nas orelhas.
Além do mais, Eris manteve os monstros ocupados até Cliff terminar
seu encantamento, dando-lhe a chance de mostrar o que poderia fazer; mas
como o garoto não a avisou quando terminou, ela quase foi pega no alcance
de seu feitiço. Rudeus nunca teria cometido um erro desses.
— Ah, parece que você não sabe muito sobre magia, Eris. Olha só,
existem vários tipos diferentes de feitiços, e…
Cliff começou a dar uma longa palestra sobre os vários níveis de
feitiços, explicando que a magia que acabara de usar era um feitiço de nível
Avançado, tão complexo que até mesmo a maioria dos adultos era incapaz
de lançar.
Mas, claro, Eris já sabia tudo isso. Ela aprendeu essas coisas durante
suas aulas com Rudeus. E, em comparação com as explicações desconexas
de Cliff, as aulas de Rudeus tinham sido dez vezes mais fáceis de entender.
— E aí? Agora entende o quão incrível eu sou?
Eris queria muito dar um soco na cara desse idiota. Ele realmente
estava acabando com seu tão esperado dia de matadora de Goblins. Com os
braços ainda cruzados, ela friamente deu seu veredito.
— Certo, já vi o bastante. Você não vai ser de muita ajuda, então já
pode ir embora.
Se Rudeus estivesse no lugar de Cliff neste momento, provavelmente
teria escolhido bater em retirada tática. Mas esse garoto não percebeu a
hostilidade nos olhos de Eris.
— Isso é sério?! Não posso te deixar aqui sozinha! Você estava
sofrendo pra matar um punhado de Goblins!
Assim que essas palavras, soaram, Eris o acertou. Com força.
Cliff cambaleou para trás e levou a mão ao rosto. Havia sangue
escorrendo de seu nariz. Ele rapidamente lançou um feitiço básico de Cura
em si mesmo para parar o fluxo.
— Ei, mas o que foi isso?!
Eris, irritada, estalou a língua. Ela foi um pouco mole com ele desta
vez, já que deixá-lo inconsciente em um campo aberto não parecia uma
opção muito boa. Mas, pelo visto, o garoto precisava de uma punição maior
para aprender.
Assim que ela cerrou o punho para um ataque consecutivo, porém, Cliff
finalmente pareceu entender a situação.
— Espera, não! Entendi! Eris, você com certeza é muito forte. Então
que tal darmos uma passada pela floresta? Eu realmente não posso
demonstrar meu real valor como mago lutando só contra um bando de
Goblins.
Não havia quaisquer segundas intenções por trás dessa proposta. Cliff
só queria se exibir na frente de Eris. Não era que ele tivesse uma queda por
ela ou quisesse impressioná-la; só estava ansioso para se deleitar com seu
próprio poder.
— Florestas são perigosas — disse Eris secamente. Isso era algo que
Rudeus sempre dizia, e Ruijerd concordava com ele. E ela confiava
plenamente no julgamento daqueles dois.
— Você não está com medo, está?
— Claro que não!
Mas, claro, Eris era uma garota simples. Quando alguém desafiava seu
orgulho, ela mordia a isca de uma só vez. Afinal, ninguém da família Boreas
que se prezasse deixaria algum aventureiro novato falar esse tipo de
bobagem.
— A floresta, certo? Tá bom! Vamos!
E então, os dois fizeram um desvio para uma floresta sombria e escura
que ficava nas proximidades.
— Acho que nem a floresta de Millis é tão ruim assim, hein?
Eris fatiou uma criatura parecida com um macaco, chamada Gotango,
enquanto falava. Este era um monstro de rank D, consideravelmente mais
perigoso do que um Goblin, mas não representava uma ameaça real para ela.
— Acho que não. Essas coisas não são páreo para mim!
Cliff, por sua vez, estava matando Gotangos com feitiços de Vento de
nível Intermediário enquanto entrava cada vez mais para dentro da floresta.
— Ah… — De repente, Eris parou no meio do caminho.
— Eris, qual o problema? — disse Cliff, voltando-se e se aproximando
dela com um grande sorriso no rosto.
Com uma careta, a garota cruzou os braços, plantou os pés no chão e
ergueu o queixo para o ar.
— Me conta uma coisa. Você está marcando a nossa rota de retorno?
— Não, na verdade não. — Cliff nem pensou em dar atenção a isso.
Toda sua viagem estava sendo impulsiva, levada pelo momento, então ele
não tinha feito nenhum planejamento ou preparado qualquer coisa de
antemão.
— Entendi. Então estamos perdidos — disse Eris, cheia de categoria.
Cliff ficou em silêncio. Depois de um momento, seu rosto ficou muito
pálido.
— Uh… o que devíamos fazer?
Como Eris parecia imperturbável, Cliff presumiu que ela devia ter
algum tipo de plano. Mas não era o caso.
Isso não era nada bom. O que Rudeus e Ruijerd diriam se descobrissem
que ela se perdeu na floresta? Como poderia explicar como acabou ali,
quando deveria estar caçando Goblins?
Claro, Eris não deixou sua ansiedade transparecer. Como uma mulher
da família Greyrat, esperava-se que permanecesse calma e composta o
tempo todo.
— Cliff, atire-se para o céu e veja para que direção fica a cidade.
— Você está brincando? Isso é um absurdo.
— Rudeus consegue fazer isso sem qualquer problema.
— Rudeus? Quem diabos é Rudeus?
— Ele é meu tutor.
— O quê?!
Eris soltou um breve suspiro. Não fazia sentido entrar em uma
discussão. O que deveria estar fazendo em uma situação como essa?
Ghislaine não ensinou o que deveria fazer ao se perder?
Claro. Deveria juntar um monte de galhos e acender uma fogueira,
certo? Seria possível ver a fumaça mesmo de longe. Mas quem veria o sinal?
Ruijerd e Rudeus tinham que cuidar de outras coisas. Eles não sairiam à sua
procura.
Eris cruzou os braços e começou a fechar a cara. Fechou os olhos e
tentou pensar cuidadosamente. Ghislaine sempre disse que era fundamental
manter a calma, ainda mais quando se sentia ansiosa, por isso a garota nunca
se permitiu a entrar em pânico.
— E-Eris, o-o que devemos fazer?
— Provavelmente existem alguns outros aventureiros nesta floresta,
certo?
— Ah, é claro! Podemos apenas gritar por socorro… Vamos tentar
encontrar alguém!
Cliff não perdeu tempo e começou a correr, mas Eris não se moveu.
Ruijerd sempre falava que nesse tipo de situação seria melhor não se mover.
Ele ensinou a garota a ficar quieta e conscientemente aguçar seus sentidos.
Ela não tinha aquele terceiro olho conveniente dele, mas tinha suas orelhas e
seu nariz. E podia até sentir o fluxo de energia mágica na área. A garota
ainda era inexperiente em muitas coisas, mas treinava duro todos os dias.
— Uh, Eris…?
— Fica quieto!
Com os olhos ainda fechados, ela respirou fundo e esvaziou a mente.
Ouviu os sons da floresta. Podia escutar o farfalhar de galhos, monstros em
movimento, o zumbido de insetos voando… e em algum lugar meio longe,
breves sons de um combate.
— Tudo certo. Siga-me. — Sem um momento de hesitação, ela voltou a
andar.
— O que está acontecendo?! — disse Cliff, correndo atrás dela. —
Você achou algo?!
— Bem, tem mais gente aqui. Estão nessa direção.
— E como você sabe disso?!
— Fiquei apurando meus sentidos por algum tempo.
— Seu professor te ensinou a fazer até isso?!
Eris teve que pensar nisso por um segundo. Ruijerd era seu professor?
Provavelmente sim. Ele a ensinou muitas coisas, se não tantas quanto
Ghislaine. Ela provavelmente poderia até mesmo chamá-lo de seu mestre
atual.
— Aham, isso mesmo.
— Este Rudeus deve ser realmente alguma coisa…
— Hm…? Aham, Rudeus é incrível.
Um pouco confusa sobre por que o assunto mudou tão de repente, Eris
seguiu em frente.
Assim que os dois chegaram à orla da floresta, avistaram uma
carruagem tombada no meio dos sulcos que suas rodas haviam feito.
— Abaixe-se!
— Ack!
Eris agarrou Cliff pela cabeça e empurrou-o para o chão, então se
abaixou ao lado dele para observar a situação.
Ainda tinham outras seis pessoas de pé. Uma delas era uma cavaleira
totalmente armada e usando elmo, de pé com as costas contra uma árvore e a
espada desembainhada. Os outros cinco eram homens vestidos todos de
preto, posicionados em um semicírculo em torno da guerreira solitária.
Três cadáveres jaziam na grama. Todos usavam a mesma armadura que
a cavaleira que estava sendo cercada. Lenta, mas continuamente, os homens
de preto estavam se aproximando de sua presa.
A batalha já estava decidida. Mas, por alguma razão, a cavaleira não fez
nenhum movimento para fugir. Olhando mais de perto, Eris percebeu que
havia uma jovem se encolhendo na base da árvore atrás da guerreira de
armadura – uma garota cujo rosto estava transparecendo terror e brilhando
com lágrimas.
— Aquela armadura… Eris, ela é uma Cavaleira do Templo! —
sussurrou Cliff
O coração de Eris acelerou. Ela sabia sobre os Cavaleiros do Templo.
Eram uma das três ordens militares sagradas de Millis. Os Cavaleiros da
Catedral de elite eram encarregados de questões de defesa nacional. Os
Cavaleiros Missionários eram despachados para o exterior como uma
espécie de mercenários, para que pudessem espalhar os ensinamentos da
Igreja Millis e demonstrar seu poder. E os temidos Cavaleiros do Templo,
com seus infames Inquisidores, eram encarregados de erradicar a heresia.
Os Cavaleiros da Catedral usavam branco, os Cavaleiros Missionários,
prata, e os Cavaleiros do Templo, cerúleo. Mesmo de longe, a armadura da
cavaleira emboscado era visivelmente de um tom azul. Então não sobrava
qualquer dúvida. Um grupo de Cavaleiros do Templo tinha sido emboscado.
— Seus tolos! Vocês não sabem quem é esta lady?! — Foi só quando a
cavaleira encurralada gritou essas palavras que Cliff e Eris perceberam que
ela era uma mulher.
Os homens vestidos de preto se entreolharam e bufaram de tanto rir.
— É claro que sabemos.
— Então por que iriam querer machucá-la?!
— Não deveria ser óbvio?
— Então vocês são lacaios do Papa?! Brutos malditos!
Eris não conseguiu entender a conversa. Mas uma coisa estava muito
clara: aqueles homens ameaçadores vestidos de preto iam matar aquela
garotinha aterrorizada. Ela alcançou a espada em seu quadril.
— O que você acha que está fazendo? — sibilou Cliff. — Não podemos
nos envolver nisso! Aquela garota é a Criança Abençoada que supostamente
será a próxima Papa, sabia? Isso significa que aqueles homens de preto são
os assassinos pessoais do atual Papa! Eles são bem treinados e implacáveis.
Mesmo eu não teria chance contra eles!
Eris nem mesmo parou para se perguntar por que Cliff sabia tanto sobre
tudo isso. Só havia uma coisa em sua mente: a menos que interviesse, aquela
garota iria morrer diante de seus olhos.
Ela, afinal de contas, era parte do Fim da Linha. Caso se escondesse e
observasse uma criança sendo assassinada, nunca seria capaz de voltar a
olhar Ruijerd nos olhos. E, mais de uma vez, viu Rudeus se colocar em
perigo por razões muito semelhantes.
— Vamos lá. Vamos ficar quietos e esperar que não nos percebam…
— Desculpe, mas isso é inútil. Já sabem que estamos aqui. — Um dos
homens vestidos de preto percebeu sua presença no momento em que ela
empurrou Cliff para o chão. Eris não tinha esquecido da breve reação que
tinha sido demonstrada.
Ela não sabia exatamente o que fariam uma vez que sua missão fosse
cumprida, mas isso não importava. A garota pretendia tomar a iniciativa ali,
naquele mesmo momento.
— Apenas se esconda aqui, Cliff!
— Eris! Não!
Sacando sua espada, a garota saltou na frente dos assassinos.
Os homens vestidos de preto imediatamente se espalharam, mas…
— Lentos demais!
Ela se moveu muito mais rápido do que eles haviam esperado. Seu
ataque principal foi a técnica de nível Avançado do Estilo Deus da Espada:
“Espada Silenciosa” – um movimento de menos complexidade do que a
“Espada de Luz”, mas tão mortal quanto. Sua espada cortou o ar sem sequer
fazer som.
Ao decorrer de seu treinamento com Ghislaine e Ruijerd, suas
habilidades de esgrima foram aperfeiçoadas a um grau notável. Sua lâmina
acertou um dos homens pelo ombro, cortou sua caixa torácica na diagonal e
o dividiu em dois.
Embora esta fosse a primeira vez que Eris matava alguém, não vacilou
nem por um instante. Seu foco já havia mudado para seu próximo alvo. Os
homens vestidos de preto estavam se movendo rapidamente para cercá-la,
mas Eris continuava um passo mais rápido do que qualquer um deles.
Ruijerd havia a ensinado a maneira correta de se mover quando cercada por
vários inimigos. Muitos monstros caçavam em bandos; o objetivo
normalmente seria eliminá-los o quanto antes, sem dar uma chance para que
criassem um cerco.
— Haaah! — Em um piscar de olhos, Eris matou outro dos assassinos.
Os três homens restantes estavam visivelmente nervosos. Os
movimentos dessa garota eram erráticos e seus ataques surgiam de ângulos
inesperados, sem qualquer aviso prévio. Era quase impossível evitá-los
enquanto tentavam fazer qualquer outra coisa.
Mesmo assim, ainda eram assassinos profissionais. No momento em
que Eris matou seus camaradas, a cercaram com sucesso. Dois dos
assassinos pularam em direção dela quase ao mesmo tempo, escalonando
seus ataques.
Eles eram rápidos, mas não tão rápidos quanto Ruijerd. E não eram tão
bem coordenados quanto os Coiotes Pax do Continente Demônio.
Esses homens não eram bons o suficiente.
— Suas adagas estão envenenadas! Tome cuidado! — Gritando
palavras de advertência, a cavaleira que estava defendendo a menina correu
para acertar um dos assassinos pelas costas.
Eris antecipou com precisão como os homens vestidos de preto
reagiriam a isso, e encontrou sua chance de se libertar de seu cerco. No
mesmo instante em que percebeu que iria vencer a luta, sua espada cortou
um terceiro assassino.
— Maldição! Retirada!
Os dois homens restantes giraram bruscamente e começaram a correr.
Mas Eris jamais deixaria um trabalho pela metade. Em um piscar de olhos,
alcançou um e ferozmente o cortou pelas costas, estripando-o. Suas
entranhas se espalharam pelo chão enquanto ele caía.
O último assassino não olhou para trás. No momento em que Eris se
virou para ele, o sujeito já tinha fugido para muito longe.
Com um pequeno bufo de desdém, ela agitou vigorosamente a espada
para espirrar o sangue e entranhas para longe. Pelo que parecia, a garota
estava tão calma como sempre. Mas seu coração ainda estava disparado. Eris
tinha acabado de experimentar sua primeira batalha de vida ou morte contra
outros seres humanos. E, pela primeira vez, matou alguém.
Além do mais, seus oponentes empunhavam adagas envenenadas – até
mesmo um único arranhão poderia ser fatal. E Rudeus e Ruijerd também não
estavam por perto para protegê-la. Ela entrou na briga sem pensar muito,
mas se não fosse por aquela mulher cavaleira, poderia ter morrido.
Naturalmente, manteve esses pensamentos apenas para si mesma.
Embainhando sua espada, ela se virou para enfrentar a Cavaleira do Templo.
— Desculpa. Um deles acabou escapando.
Essas palavras deixaram a cavaleira um tanto perplexa. A garota que
estava diante dela não era nem mesmo uma adulta, mas abriu caminho
através de um grupo de assassinos. E, para completar, parecia
completamente imperturbável.
Sem nem mesmo tirar o elmo, a mulher pressionou o punho contra o
estômago e se curvou ao estilo dos Cavaleiros Sagrados de Millis.
— Meus sinceros agradecimentos por sua ajuda.
Eris se lembrou de como Ruijerd respondia palavras como essas e
decidiu seguir seu exemplo. Sem fazer nenhuma reverência, disse:
— Estou feliz que a criança esteja ilesa. — E nada mais.
— Sou Therese Latria dos Cavaleiros do Templo. Senhorita, é certo
presumir que seja uma aventureira? Posso perguntar seu nome?
— Eu me chamo Er… — Eris começou a dar seu nome verdadeiro, mas
então parou bruscamente. Não, isso não estava certo. O que Rudeus sempre
fazia nessas situações? — Sou o Ruijerd do Fim da Linha. Queira ou não
acreditar, eu sou, na verdade, uma Superd.
Sob o elmo, o rosto de Therese ficou tenso. Embora Eris não soubesse
disso, os Cavaleiros do Templo, como um todo, defendiam a expulsão de
todos os demônios do Continente Millis.
Claro, a garota não tinha todas as características distintas de um
verdadeiro Superd. Therese levou apenas um momento para voltar a relaxar.
A menina tinha dado um nome claramente falso e assumiu a identidade de
um demônio contra o qual os Cavaleiros do Tempo seriam hostis. Parecia ser
uma mensagem de que não tinha interesse em criar qualquer tipo de
envolvimento duradouro.
Em outras palavras, não esperava recompensa, apesar de ter salvo a
vida de alguém importante. A Cavaleira achou isso agradavelmente
surpreendente.
— Entendi. Tudo bem, então… — Por um momento, ela parou para
estudar Eris enquanto a garota a observava com os braços cruzados. Depois
de memorizar seu rosto, assobiou bem alto.
Em pouco tempo, um cavalo saiu correndo da floresta.
Era o animal que estava anteriormente puxando a carruagem. Ele fugiu
quando a carruagem tombou, mas retornou ao chamado de Therese,
exatamente como fora treinado para fazer. Depois de colocar a jovem no
lombo do animal, a Cavaleira saltou atrás dela.
— Se você precisar de ajuda, procure por Therese dos Cavaleiros do
Templo! — Com essas palavras finais, saiu a galope. Eris a observou
partindo sem dizer uma palavra.
De volta às sombras, um certo jovem – ainda incapaz até de ficar de pé
– também estava observando. E, aos olhos dele, a cavaleira em fuga e a
destemida espadachim ruiva que a viu partir pareciam nada menos que
personagens de um conto de fadas.
Algum tempo atrás, um prelado da Igreja Millis se apaixonou por uma
mulher da raça Hobbit. A mulher deu-lhe um filho e, com o tempo, a criança
cresceu e tomou uma esposa para si. Cliff foi o primeiro e único filho desse
casal.
Na época de seu nascimento, várias facções dentro da igreja estavam
envolvidas em uma violenta luta pelo poder. A violência custou a vida de
seus pais. Para manter Cliff a uma distância segura do conflito, seu avô – o
prelado – o deixou temporariamente com o orfanato em Millishion. Ele
triunfou sobre seus inimigos, tomou o papado para si e o levou de volta para
sua casa.
Em outras palavras, Cliff Grimor era o verdadeiro neto do atual Papa de
Millis… embora poucos, mesmo dentro da Igreja, estivessem cientes desse
fato.
Por causa disso, o garoto sabia perfeitamente bem por que aquela
carruagem fora atacada. Aquela Criança Abençoada, que supostamente
possuía poderes milagrosos, era a ferramenta mais poderosa no arsenal de
um certo arcebispo. E a facção daquele arcebispo estava atualmente em
conflito ativo com o avô de Cliff.
Ele, na verdade, já tinha até se encontrado com a garota antes. Não
fazia ideia do que ela estava fazendo naquela floresta; mas já estava
familiarizado com os assassinos vestidos de preto que a atacaram. Aqueles
homens eram seus instrutores. Cliff já tinha descoberto, há algum tempo, que
eles realizavam esse tipo de trabalho para seu avô. E também sabia o quão
poderosos eram. Já tinham lutado muitas vezes, mas ele nunca chegou
sequer perto da vitória. E, ainda assim, não tiveram uma chance contra Eris.
Na verdade, a luta fora bastante equilibrada. Mas, da maneira como
Cliff via, essa garota havia superado totalmente um grupo de homens que ele
nunca poderia ter vencido, mesmo em um milhão de anos. Enquanto faziam
seu caminho de retorno, o garoto se viu olhando para o rosto cansado dela
com profunda e genuína admiração.
Essa garota um dia seria alguém.
Com esse pensamento firmemente formado em sua mente, Cliff fez
uma oferta impulsiva.
— Eris, aceita se casar comigo?!
— O quê?! Sem chances! — Foi um golpe sem misericórdia. E ainda
por cima fazendo uma careta horrível.
Parecia bizarro para Cliff que qualquer garota recusasse uma proposta
de alguém tão profundamente talentoso quanto ele, então começou a buscar
uma explicação. O garoto pensou em todas as conversas que tiveram. Depois
de um momento, se lembrou dela mencionando um certo “professor” por
diversas vezes. Como é que ele se chamava? Ru… Ru…
— Rudeus.
Eris se virou ao som desse nome.
— Esse é o nome do seu professor, certo? Como ele é?
Em minutos, Cliff começaria a se xingar por ter feito essa pergunta. Ele
teve a impressão de que Eris não era do tipo que falava muito, mas esse
claramente não era o caso. Depois que a garota começava a falar sobre
Rudeus, se enchia de orgulho enquanto tagarelava sem parar. Ela falou das
planícies além de Millishion até a Guilda dos Aventureiros. Tudo o que
falava eram elogios enormes, e a expressão em seu rosto deixava muito clara
a intensidade de seus sentimentos. Foi mais do que suficiente para deixar
Cliff com um ciúme profundo.
— Já vou voltar para casa — disse quando finalmente decidiu
interromper, ciente de que sua expressão devia estar um tanto quanto
abatida.
Eris parecia pronta para continuar falando por mais uma ou duas horas,
mas apenas acenou com a mão, fazendo um gesto vago e desinteressado.
— Ah, tá bom. Tchau. — Era difícil acreditar que ela era a mesma
garota que tinha falado tão apaixonadamente sobre seu tutor apenas alguns
segundos antes.
Cliff silenciosamente a observou se afastar até que a garota desapareceu
de vista. Quem era esse “Rudeus” que encantou tanto aquela jovem
poderosa, linda e perfeita?
Com visões de um rival misterioso flutuando em sua mente, o jovem
mago voltou para a sede da Igreja Millis, onde levou um sermão das pessoas
que estavam procurando por ele.
Incidentalmente, a luta pelo poder dentro da Igreja logo se intensificou
após o incidente com a Criança Abençoada. O Papa então decidiu que era
muito perigoso para seu neto permanecer em Millishion, então Cliff foi
enviado para viver em uma terra estrangeira. Mas, é claro, isso não tinha
nada a ver com Eris.
Quanto à própria garota, ela basicamente se esqueceu de todo o
encontro no momento em que voltou para a pousada e viu Rudeus sentado
miseravelmente em sua cama. Mas isso também era uma outra história.
Capítulo 07:
Para o Continente Central
Depois de dois meses na estrada, nosso grupo finalmente chegou à
cidade de Porto Oeste. Suas ruas eram muito semelhantes às de Porto Zant, a
cidade costeira ao norte. Entretanto, era consideravelmente maior.
A rota entre as capitais do País Sagrado de Millis e o Reino Asura era
uma artéria crucial para o comércio. Muitas cidades ao longo de sua
extensão serviam como bases de operação para mercadores e comerciantes;
Porto Oeste era uma das mais proeminentes.
Embora não pudesse se comparar ao Distrito Comercial de Millishion,
várias empresas tinham sua sede no local, e as ruas da cidade estavam
repletas de lojas e negócios subsidiários.
Como tínhamos chegado tão longe, era hora de dizer adeus ao nosso
cavalo e carruagem.
Neste mundo, não existiam balsas para transportar veículos terrestres
através de rios e coisa do tipo. Assim como quando deixamos o Continente
Demônio, precisávamos vender nossos meios de transporte e comprar um
novo do outro lado.
Ao contrário daquele lagarto encantador, eu não tinha me apegado
muito ao nosso cavalo, então decidi dar um nome a ele só no final. Adeus,
querido Biscoito Molhado.
Assim que vendemos nosso amigo, fomos direto para o posto de
controle. Este acabou por ser um edifício bem grande, ao contrário daquele
de Porto Vento. Havia até soldados com elmos e armaduras do lado de fora
da entrada.
Também era bem comum ver cavaleiros totalmente trajados nas ruas de
Millishion. À primeira vista, o equipamento parecia ser muito resistente, mas
quando pensei no que Eris ou Ruijerd poderiam fazer, me perguntei se
serviria a algum propósito. As pessoas e monstros deste mundo tendiam a ter
um grande poder de fogo. Um golpe podia ser suficiente para quebrar a
armadura extravagante e deixar essas pessoas só de cueca. Poxa, apenas um
coice poderia jogar as pessoas em um buraco sem fundo, e isso seria como
um game over automático…
Certo, foi mal. Já parei.
Ao entrar no prédio aduaneiro, descobrimos que estava lotado. Muitos
daqueles lá dentro pareciam ser aventureiros, enquanto os outros se vestiam
como mercadores. Vários funcionários que pareciam permanecer em estado
de alerta processavam todas as solicitações sem perder tempo. Se comparado
com Porto Vento, parecia outro mundo, já que lá o escritório ficava quase
vazio e o pessoal era, na melhor das hipóteses, apático.
Caminhei até o balcão mais próximo.
— Olá.
— Olá. Como posso te ajudar?
Mais uma vez, me vi diante de uma recepcionista com seios
impressionantemente grandes. Neste mundo, parecia haver algum tipo de
regra tácita de que as balconistas deviam ser todas peitudas. Mas não era
como se eu tivesse do que reclamar, é claro.
— Uhm, quero atravessar o mar com o meu grupo.
— Tudo bem. Por favor, pegue isso. — A mulher me entregou um
pequeno cartão de madeira com o número 34 gravado nele. Evidentemente,
este era o método que adotaram para realizar as operações burocráticas.
Voltei para a sala de espera e me sentei. Eris se deixou cair na cadeira
ao meu lado, mas Ruijerd permaneceu de pé. Quando dei uma olhada ao
redor, parecia haver muitas outras pessoas esperando que seus números
fossem chamados.
— Hmm. Parece que vai demorar um pouco.
— Você não vai entregar a carta a eles? — perguntou Ruijerd.
Fiz que não com a cabeça.
— Não até que chamem o nosso número.
— Bem, que seja.
Eris já estava um pouco inquieta. Compreensível, já que esperar
pacientemente não era uma de suas especialidades. Depois de um momento,
porém, ela murmurou:
— Rudeus, acho que alguém está olhando para mim…
Olhei ao redor do cômodo, dessa vez com mais cuidado, tentando
localizar a pessoa de quem ela estava falando. No final das contas, eram os
guardas. Muitos deles estavam lançando breves olhares na direção de Eris; e
ela estava retornando os olhares, é óbvio.
— Eris, por favor, não comece uma briga com eles.
— Eu não estava planejando isso.
Isso era algo difícil de se acreditar. Em todos casos, qualquer um ficaria
confuso com o motivo pelo qual olhavam na direção dela. Mas não consegui
pensar em nenhuma explicação plausível. Será que tinham ficado cativados
por sua beleza? Nah. Eris definitivamente estava ficando mais bonita a cada
dia, mas ainda era uma criança. A menos que todos os cavaleiros que
trabalhassem no local fossem pedófilos desgraçados, não poderia ser o que
estava acontecendo.
— Número trinta e quatro, por favor, avance.
Enfim, finalmente chamaram o nosso número, então me levantei e fui
até o balcão.
Expliquei à recepcionista que queríamos reservar uma passagem para o
Continente Central e, em seguida, entreguei a carta de Ruijerd. Ela pegou o
envelope com um sorriso educado, mas quando olhou para o nome que
estava escrito, sua expressão ficou um tanto duvidosa.
— Espere um minuto, por favor. — Com isso, ela se levantou e foi para
os fundos do prédio.
Depois de um tempo, ouvi um baque forte e o som de alguém gritando.
Um soldado totalmente trajado logo saiu correndo da parte de trás, se
aproximou de outro guarda e sussurrou algo em seu ouvido. O guarda saiu
correndo do escritório com uma expressão muito séria no rosto.
Tudo isso me pareceu um tanto quanto sinistro. Entreguei aquela carta
porque confiava em Ruijerd, mas talvez fosse mais inteligente pesquisar um
pouco mais sobre quem era Gash Broche.
— Desculpe por deixar todo mundo esperando! — A recepcionista de
antes havia retornado. Mesmo seu sorriso profissional era insuficiente para
esconder a tensão em seu rosto. — O Duque Bakshiel disse que o verá agora.
Tive um pressentimento extremamente ruim quanto a isso.
— Sou o Duque Bakshiel von Wieser, diretor do Escritório
Alfandegário do Continente Millis.
Este suíno parecia muito com um porco.
Opa, erro meu. Este homem parecia muito com um porco.
Seu pescoço era tão grosso que seu queixo todo tinha sumido. Seu
cabelo loiro claro estava grudado na testa, e havia olheiras enormes sob seus
olhos. Ele tinha o rosto de um velho astuto e desagradável.
E também estava carrancudo diante de nós, sendo claramente hostil.
Eu tinha visto um cara muito parecido com ele nos velhos tempos… o
via toda vez que me olhava no espelho.
— Hmph. E pensar que algum demônio imundo seria descarado o
suficiente para me trazer uma carta como esta…
O Duque Bakshiel estava sentado em uma luxuosa poltrona de couro, a
qual não parecia inclinado a abandonar. Ela rangeu embaixo dele enquanto o
gordão batia no pedaço de papel em sua mão com uma caneta. Havia
incontáveis pedaços de papel em sua mesa aparentemente cara. Entre eles, vi
um envelope familiar, agora rasgado. Ele, presumivelmente, estava
segurando o que tinha dentro daquilo.
— Você certamente escolheu um nome impressionante, devo admitir. E
aquele selo também parecia bem real. Mas eu não nasci ontem, meus
amigos! Isso com certeza é falso!
Bakshiel jogou a carta descuidadamente na nossa direção. Estendi a
mão por reflexo e a peguei.
✦✦✦✦✦✦✦
Este homem é um Superd. No entanto, tenho uma grande dívida com
ele.
Trata-se de um homem de poucas palavras, mas de caráter nobre.
Renuncie todas as taxas habituais e leve-o em segurança ao Continente
Central.
Galgard Nash Vennik,
Comandante dos Cavaleiros Missionários
✦✦✦✦✦✦✦
Uma simples olhada no nome na parte inferior do envelope fez minha
cabeça girar. O que aconteceu com Gash Broche? Quem era esse tal de
Galgard Nash Vennik?
Demorei alguns segundos para perceber que poderia encurtar “Galgard
Nash” para “Gash”. Será que era o tipo de cara que se apresentava com um
apelido? Ruijerd talvez tivesse ficado com a impressão de que o homem se
chamava apenas Gash. Mas isso ainda não explicava a parte do “Broche”, é
claro.
Mas, mais importante… “Comandante dos Cavaleiros Missionários”?!
Ele era realmente o líder de uma das três ordens militares sagradas?!
Comecei a sentir uma enorme dor de cabeça. Por que o velho conhecido de
Ruijerd seria um figurão tão importante?
Mas isso, de certa forma, até que fazia sentido. O comandante dos
Cavaleiros Missionários devia estar bem posicionado na hierarquia de Millis,
certo? Podia acabar sendo ruim se todos descobrissem que era amigo de um
Superd. Talvez fosse por isso que tenha usado um nome falso.
Claro, existia uma explicação ainda mais simples para isso. Fazia
quarenta anos desde que Ruijerd conheceu o homem. Talvez ele tivesse se
casado com uma família poderosa e por isso acabou mudando de nome, ou
coisa do tipo.
— Em primeiro lugar, não há a menor chance de um homem tão calado
escrever uma carta como esta. Eu o conheço bem e sei que ele detesta
colocar uma caneta no papel, mesmo quando é simplesmente necessário.
Você espera mesmo que eu acredite que ele escreveu isso em nome de algum
demônio bonzinho? Mas que farsa.
Ruijerd ouviu tudo em silêncio, mantendo uma expressão conflitante no
rosto. Este homem estava afirmando abertamente que sua carta era falsa,
apenas porque ele era um Superd – ou ao menos era o que parecia. E o
sujeito poderia não estar completamente errado, para ser sincero. Mas Paul
havia me avisado que esse Duque Bakshiel era famoso por seu ódio por toda
espécie demônio.
Este tal de Gash, ou Galgard, também estava ciente disso, não estava?
Se ele soubesse como Bakshiel era, realmente deveria ter escrito uma
explicação um pouco mais completa.
Será que então o homem não era quem dizia ser?
Não, não. Lembre-se do que Ruijerd disse.
Ele conheceu Gash em um edifício grande o suficiente para compará-lo
ao Castelo de Kishirisu. Isso seria muito grande para uma casa ou mansão,
mas, e se fosse a sede dos Cavaleiros Missionários? Provavelmente seria um
grande edifício, com muitos cavaleiros dentro dele o tempo todo… e se Gash
fosse o comandante, todos aqueles cavaleiros seriam seus subordinados. Isso
explicaria por que Ruijerd disse que ele tinha “muitos homens”.
Mas, claro, descobrir isso já não era mais lá muito útil. O Duque
Bakshiel já havia decidido que a carta era falsa. Já que as coisas chegaram
até esse ponto, dizer: “Sim, é uma farsa! Sinto muito por isso!” não seria
muito bom para o nosso grupo.
Dei um passo à frente.
— Em outras palavras, você acredita que esta carta seja uma
falsificação, senhor?
— E quem é você? — disse Bakshiel, olhando para mim com
desconfiança. — Não tenho tempo para tagarelar com crianças.
Uau. Essa era, de certa forma, uma coisa nova. Já fazia muito tempo
desde que alguém me desprezou, sabe? Quando eu queria ser tratado como
uma criança, as pessoas me tratavam como um adulto. Mas quando queria
ser tratado como um adulto, as pessoas me tratavam como uma criança. Mas
que saco.
Mantendo esses pensamentos para mim, coloquei minha mão direita no
peito e me curvei ao estilo da nobreza Asurana.
— Minhas desculpas, senhor. Por favor, permita que me apresente. Meu
nome é Rudeus Greyrat.
Bakshiel deixou um ligeiro tremor atravessar suas sobrancelhas.
— Você disse… Rudeus… Greyrat?
— Isso mesmo. Apesar de me envergonhar ao admitir, sou uma parte
pequena e indigna do mesmo clã Greyrat que faz parte da alta nobreza de
Asura.
— Hrm. Mas as famílias Greyrat usam os nomes dos antigos deuses do
vento para se distinguir, não é?
— Isso é verdade, senhor. Pertenço a um ramo da família e, portanto,
não tenho o direito de usar um desses nomes. — No instante em que as
palavras “ramo da família” deixaram minha boca, pude ver a cautela nos
olhos de Bakshiel dando lugar ao desdém. Mas antes que ele pudesse dizer
qualquer coisa, indiquei Eris com a palma da minha mão. — No entanto,
Lady Eris aqui é um uma parte legítima da família Boreas Greyrat.
Quando bati levemente em suas costas, Eris também deu um passo à
frente. Ela me olhou surpresa por um momento, mas não entrou em pânico.
No início, cruzou os braços e abriu os pés na largura dos ombros, mas
rapidamente percebeu que isso não estava certo. Seu segundo impulso foi
alcançar a ponta da saia para poder fazer uma reverência; infelizmente, não
estava usando saia. Então, por fim, decidiu colocar a mão no peito e se
curvar como eu.
— Sou Eris Boreas Greyrat, filha de Philip Boreas Greyrat. É um prazer
conhecê-lo, senhor.
Seu fluxo de ações parecia um pouco enferrujado. Além disso, eu senti
como se ela tivesse feito toda a última parte errada.
Olhei para a cara de Bakshiel. Era difícil dizer como ele estava
reagindo, mas… tanto faz. Só teríamos que nos apoiar na imensa influência
da família de Eris.
— Hmph. E o que a filha de um família nobre Asurana está fazendo
aqui, pode dizer?
Essa com certeza era a questão mais óbvia do mundo. Felizmente, não
havia necessidade de respondermos com nada além da verdade.
— Senhor, você está familiarizado com a calamidade que se abateu
sobre a Região de Fittoa há cerca de dois anos?
— É claro. Muitos Asuranos foram teletransportados para todo o
mundo, pelo que eu soube.
— Isso mesmo. Eu e a jovem também fomos afetados.
Conforme expliquei a Bakshiel, escoltei Eris por todo o Continente
Demônio, com Ruijerd atuando como nosso guarda-costas contratado. Ao
cruzar para o Continente Millis, mal tínhamos conseguido pagar a viagem
vendendo todos os nossos ativos, mas não tínhamos fundos suficientes para
pagar a viagem de Millis ao Continente Central. O custo da passagem de
Ruijerd, em particular, era simplesmente alto demais.
Consequentemente, pedimos ajuda a Sir Galgard, já que ele era um
velho conhecido da família Greyrat e amigo pessoal de Ruijerd. Ele teve a
gentileza de nos escrever uma carta.
Essa história não era bem verdade, é claro. Mas parecia boa o
suficiente.
— A jovem pode estar vestida como uma aventureira no momento, mas
isso é apenas porque não queríamos nenhum caipira percebendo que ela
possui nascimento nobre. Tenho certeza de que você pode entender os
potenciais perigos, Duque Bakshiel.
— Entendo — disse Bakshiel, com uma expressão bastante azeda na
cara. — Então é assim. Você está aliado ao “Esquadrão De Busca e Resgate
de Fittoa” que tem causado um monte de problemas em Millishion, não é?
— Uh… o quê? Não, não. Do que você está falando, senhor?
— Eu nunca ouvi o nome Eris Boreas Greyrat — disse Bakshiel com
um distinto guincho digno de um porco. — No entanto, conheço um certo
Paul Greyrat; um bandidinho que supostamente está roubando um monte de
escravos.
Ah, mas que amável. Papai já criou até uma reputação.
— Duque Bakshiel, deixe-me ter certeza de que te entendi. Você
acredita que a carta de Sir Galgard é uma falsificação e Lady Eris não é parte
real da alta nobreza Asurana, é isso? E nos toma por meros lacaios desse
libertino inútil chamado Paul Greyrat, que bebe o dia todo, critica seu
próprio filho, tem pés chulezentos e cria preocupação sem fim à sua pobre
filha?
— De fato.
Sério, mas que coisa mais horrível para se dizer. Paul estava tentando o
seu melhor lá fora. Claro, ele tinha suas falhas, e alguns de seus métodos
podiam ser bem imperfeitos. Mas ele estava sendo chamado de “inútil”? Isso
era ofensivo!
— Posso perguntar por que você concluiu que o selo em nossa carta
não é autêntico? — perguntei, apontando para o envelope na mesa de
Bakshiel.
O homem franziu a testa por um momento e acenou com a cabeça.
— Não é incomum que falsificações do selo do Cavaleiro Missionário
circule no mercado negro.
Sério? Foi a primeira vez que ouvi falar disso.
— E por que acha que minha empregadora, Lady Eris, não é quem ela
afirma ser?
— Hah. Você realmente esperava que eu acreditasse nesse monte de
baboseira sobre uma espadachim ser filha de uma família nobre?
Olhei para Eris, que assumiu sua pose usual de braços cruzados.
Embora seus braços não estivessem marcados por nenhuma cicatriz, estavam
bronzeados e eram mais musculosos do que os de um jovem aventureiro
comum. Não era exatamente o que se esperaria de uma pequena princesa
superprotegida, claro.
— Ah — falei enquanto deixava uma risada escapar. — Parece que
você não está familiarizado com Sir Sauros.
— Sauros? Você quer dizer o lorde da Região de Fittoa?
Pelo visto ele reconheceu ao menos esse nome. Bom.
— Exato. Ele é o avô de Eris, e também o homem que escolheu cultivar
seus talentos com a espada desde muito jovem.
— O quê? Por que ele faria algo assim?
— Isso é uma espécie de segredo de família, mas… foi decidido há
algum tempo que Lady Eris se casaria com alguém da família Notos. E Sir
Sauros detesta o atual chefe daquela casa.
— Entendo.
Só para ficar bem claro, eu estava sugerindo que Eris havia sido
treinada para ser uma pequena guerreira selvagem, para que um dia pudesse
matar o chefe da família Notos enquanto ele dormia. Felizmente, a garota
parecia intrigada com minhas palavras. Se ela tivesse entendido o que eu
estava dizendo, provavelmente já teria arrancado alguns de meus dentes na
base da pancada.
— Por essa razão, entre outras, a jovem deve retornar para Asura. Se
você insistir que ela é uma impostora, nós simplesmente teremos que voltar
para Millishion e entrar com um recurso junto às autoridades competentes.
Eu não tinha ideia de quem seriam as autoridades competentes neste
caso, é claro. Não era algo que me preocupei em pesquisar.
— Hmph. Se você quer que eu acredite em tudo isso, mostre-me algum
tipo de prova.
— A carta de Sir Galgad certamente é prova suficiente.
— Mas que absurdo. Você está andando em círculos.
— E daí se estiver? Olhe, Duque Bakshiel, você realmente quer tornar a
família Greyrat sua inimiga? — Merda. Eu nem sei mais o que estou
dizendo.
Felizmente, a ameaça que deixei escapar parecia ter surtido algum tipo
de efeito, a julgar pelo quão severamente o Duque Bakshiel estava olhando
para mim.
— Tudo bem. Vou permitir que você e a jovem reservem uma
passagem.
— Mas nosso guarda…
— Por minha autoridade como duque, designarei alguns cavaleiros para
escoltá-los. Isso com certeza é melhor do que a proteção deste… demônio.
Comparado a conceder passagem a um demônio, Bakshiel preferiu nos
emprestar alguns de seus próprios homens. Ele parecia bem determinado a
não deixar Ruijerd passar, não importa o motivo. Eu não tinha visto esse tipo
de coisa com meus próprios olhos antes, mas a discriminação contra os
demônios neste continente era evidentemente pior do que tinha imaginado.
Que opções tínhamos neste momento? Devíamos simplesmente tentar
atravessar Ruijerd de outra forma? Eu podia muito bem imaginar outra
batalha sangrenta contra um grupo de contrabandistas acontecendo.
Realmente não parecia muito atraente…
Mas, no momento em que estava considerando minha resposta, ouvi
uma batida forte na porta.
— O que é? Estou ocupado — disse Bakshiel, parecendo um pouco
desconfiado.
A pessoa do lado de fora não esperou por permissão para entrar. Um
mulher loira com armadura azul abriu a porta e entrou no cômodo.
— Perdão. Disseram-me que um certo “Ruijerd do Fim da Linha”
estava aqui.
— Mãe…?
Essa era Zenith.
— Hã?!
Todos os presentes, de uma só vez, se viraram para olhar para ela.
A mulher olhou para mim, parecendo um pouco irritada.
— Eu sou solteira. Não tenho filhos, muito menos um tão velho quanto
você.
Como é que é? Ah, vamos lá, Mãe. Você perdeu a memória depois de
termos nos visto pela última vez? Ah, ela pode ter ficado cansada da falta de
noção de Paul…
Ao olhar mais de perto para a mulher, porém, comecei a notar alguns
detalhes em que ela diferia de minha mãe. Depois de anos separados, não
conseguia me lembrar muito bem de Zenith… mas o formato do rosto dessa
mulher e a cor de seu cabelo eram sutilmente diferentes. No final das contas,
não era ela.
— Sinto muito. Minha mãe está desaparecida e você se parece muito
com ela.
— Entendi…
Ótimo. Agora ela estava olhando para mim com pena em seus olhos.
Talvez até mesmo me considerasse uma criança perdida e solitária, ou
qualquer coisa do tipo. Atualmente, eu já não era mais tratado igual a uma
criança com muita frequência, mas ao menos ainda parecia com uma.
Com um guincho, o Duque Bakshiel olhou para a mulher com
armadura.
— Bem, se não é a nossa Cavaleira do Templo recém-rebaixada.
Precisa de alguma coisa?
— Um Superd apareceu no território Millis. Qualquer membro diligente
da minha ordem viria correndo diante dessa notícia.
— Você ainda levará dez dias para assumir seu posto aqui. Não enfie o
nariz onde não é chamada!
— Onde não sou chamada? Que coisa estranha para se dizer, Duque
Bakshiel. Só para avisar, ainda não assumi oficialmente minhas funções
aqui, mas meu antecessor já partiu para Millishion. Quando surgem
problemas em um posto de controle, eles são problemas dos Cavaleiros do
Templo, não são? Mesmo assim, pareço ser a única Cavaleira do Templo
nesta sala. Se importaria em me explicar isso?
Essa crítica severa deixou o homem sem palavras. Ele gaguejou um
pouco conforme seu rosto ficava pálido.
— Uma equipe de dois líderes deve supervisionar a defesa de cada
posto alfandegário. Essa é uma regra rígida estabelecida pela Igreja Millis,
Duque Bakshiel. Você não pretende desafiar isso, ou pretende?
— Claro que não. Eu só pensei… Bem, você acabou de chegar aqui.
Por que não tira alguns dias para relaxar e se acostumar com a cidade?
— Isso não será necessário.
Pela expressão no rosto do Duque Porquinho, dava para pensar que ele
estava prestes a ser abatido. Eu realmente ia me esbaldar da próxima vez que
comesse carne de porco.
— Então. Se importa em explicar o que está sendo discutido aqui?
Resumindo, parecia que a cavaleira estava em pé de igualdade com
Bakshiel. Normalmente um duque estaria no topo da hierarquia aristocrática,
mas no País Sagrado de Millis, a Igreja era extremamente poderosa e tinha
seus próprios direitos. Esse sistema diferenciado provavelmente tinha algo a
ver com o que estava acontecendo.
— Bem, acontece que…
Ele simplesmente resumiu a situação. Às vezes, fazia comentários com
base apenas em suas próprias suposições, então tive que intervir com
algumas correções.
A cavaleira ouviu toda a história em silêncio, e depois olhou para o
nosso grupo.
— Hm. Esse homem então é um demônio, não é…?
Ela semicerrou os olhos enquanto estudava Ruijerd, mas quando se
virou para Eris, sua expressão ficou instantaneamente mais suave.
E, por fim, ela cruzou olhares comigo… e colocou a mão no queixo,
pensativa.
— Jovem, você pensou que eu fosse sua mãe, não foi? Posso saber o
nome dela?
— É Zenith. Zenith Greyrat.
— E do seu pai?
Olhei para a cara de Bakshiel. Cara, isso ia ser estranho…
— Paul Greyrat.
Compreensivelmente, o duque arregalou os olhos. Eu só teria que falar
que meu pai era uma pessoa diferente daquele monte de bosta em Millishion.
Meu papai seria basicamente um santo. Ele até me daria dinheiro se eu o
socasse o bastante.
— Entendo — murmurou a cavaleira. E então, por algum motivo, ela se
agachou e colocou os braços em volta de mim.
— Hã?! — Isso foi, para não dizer mais, uma surpresa.
— Não consigo imaginar pelo que você passou… — Ela não estava
apenas me abraçando, mas também acariciando minha cabeça.
Não foi o mais suave dos abraços, graças à armadura que a mulher
usava, mas eu pelo menos estava sentindo um cheiro agradável de fragrância
feminina. Naturalmente, meu amiguinho lá embaixo… nem mesmo
despertou. Huh.
O que houve, garotão? Achei que você amava o cheiro de uma mulher
ligeiramente suada. Ora, naquele outro dia, bastou uma fungada em Eris para
você…
Olhando para a jovem em questão, eu a vi nos fitando com os olhos
bem abertos e as mãos cerradas em punhos. Mas que aterrorizante.
— Um… senhorita?
Depois de afagar minha cabeça por algum tempo, a cavaleira voltou a
se levantar. E em vez de olhar em minha direção, se virou para encarar o
Duque Bakshiel.
— Vou levar esses três sob minha proteção pessoal.
— O quê?! — Bakshiel estalou. — Mulher, um deles é um demônio!
Vendo-a com o canto do olho, a cavaleira arrancou a carta de Ruijerd de
minhas mãos e rapidamente a examinou.
— Esta carta é autêntica, aliás. Reconheço a caligrafia de Sir Galgard
quando a vejo.
— Você vai ignorar os ensinamentos da Igreja Millis? Que tipo de
Cavaleira do Templo é você?
Neste ponto, Eris deixou escapar um breve “Ah!”. A cavaleira se virou
para ela por um momento e piscou.
Eu estava começando a me sentir completamente perdido…
— Eu sou uma capitã de companhia. E estou falando sério sobre isso.
— Pah! Uma capitã rebaixada por perder sua unidade toda!
— Hmph. E as suas próprias condições não são bem semelhantes? Não,
erro meu. Eu pelo menos completei minha missão, enquanto você
simplesmente abandonou seu dever.
O Duque Bakshiel cerrou os dentes e rosnou. Pelo que parece, também
foi designado a esse lugar como um tipo de punição. Depois de descobrir
esse pequeno detalhe, seu grande título na verdade parecia mais patético do
que intimidante. Agora havia algo parecido com puro ódio em seu olhar.
— Olha aqui, mulher. Não me importa o quão poderosa sua família
seja. Este tipo de insolência não vai…
Bakshiel não foi capaz de terminar sua frase. No meio do caminho, a
cavaleira curvou a cabeça para ele.
— Peço desculpas. Minhas palavras foram desnecessárias. Desde que
fui designada para cá, não tenho nenhum desejo de me colocar em conflito
com você. No entanto, este assunto específico possui um significado pessoal
para mim. Espero que perdoe minha grosseria.
Foi realmente impressionante. Ela disparou tudo o que queria dizer,
mas logo depois se desculpou. Qualquer um seria capaz de ver a raiva no
rosto de Bakshiel evaporando. Eu teria que tentar imitá-la da próxima vez
que realmente irritasse alguém.
— Significado pessoal?
— Sim — disse a cavaleira, com um breve aceno de cabeça para seu
colega confuso. Ela então colocou a mão no meu ombro. — Esse menino é
meu sobrinho, sabe.
Perdão?!
✦✦✦✦✦✦✦
Therese Latria era a quarta filha da família Latria, uma parte crucial da
nobreza Millis. Ela também era uma cavaleira altamente promissora que
ganhou o posto de capitã dos Cavaleiros do Templo, mesmo sendo muito
jovem.
O Conde Latria era seu pai. E Zenith Greyrat sua irmã.
Depois de saber que eu era parente consanguíneo de Therese, o rosto do
Duque Bakshiel assumiu uma expressão resignada. Com um suspiro
relutante, ele concordou em liberar a passagem do meu grupo para o
Continente Central.
No momento, eu estava em uma pousada em Porto Oeste, envolvido
pelos braços de Therese.
Apenas Eris, Therese e eu estávamos no cômodo. Talvez sentindo que
sua presença poderia tornar as coisas estranhas, Ruijerd resolver se afastar
por um momento.
— Sabe, Rudeus, minha irmã me contou tudo sobre você nas cartas.
— Sério? O que ela disse sobre mim?
— Principalmente que você é adorável. Não posso dizer que foi a
primeira palavra que me veio à mente quando te vi naquele escritório, mas
agora entendi. Você é fofo como um botão de flor, isso mesmo! — Enquanto
falava, Therese esfregava o rosto afetuosamente em mim.
Foi uma experiência um tanto quanto incomum. Nos últimos treze anos,
algumas pessoas me descreveram como “assustador”, “atrevido” ou
“suspeito”, mas Zenith era a única que me chamava de fofo.
Em qualquer caso… apesar do fato de que eu estava sendo abraçado por
uma linda mulher com seios grandes, por alguma estranha razão a arma de
fogo entre minhas pernas não estava pronta para disparar nenhuma moeda.
Era só porque ela era minha parente?
— Therese, pode soltar o Rudeus?
Eris nos observou com o queixo apoiado em uma das mãos,
tamborilando os dedos contra a mesa, evidentemente irritada. Será que isso
era ciúme? A vida de um playboy não é nada fácil…
— Eu posso entender como você se sente, Senhorita Eris, mas não há
como dizer quando voltarei a ver Rudeus. E quando voltarmos a nos ver, ele
provavelmente terá perdido todos os vestígios da fofura que possui. Minhas
sinceras desculpas, mas gostaria de criar algumas lembranças com ele
enquanto posso. — Therese começou a me acariciar com ainda mais vigor
do que antes, sem mostrar nenhum sinal de arrependimento.
— Posso perguntar por que você está falando tão educadamente com
Eris?
— Porque devo minha vida a ela. — Isso despertou meu interesse.
No dia em que Eris saiu para caçar Goblins perto de Millishion, ela
aparentemente resgatou Therese de um grupo de assassinos que a cercou.
Therese estava de plantão na proteção de certa “pessoa importante”; se Eris
não tivesse aparecido naquela hora, ela e sua protegida teriam perdido a
vida.
Isso tudo era novidade para mim. Quando olhei para a garota, ela
demonstrou uma expressão um pouco envergonhada no rosto.
— Desculpa. Esqueci de te contar sobre isso…
Pelo que Eris me contou, assim que voltou para a pousada e viu como
eu estava deprimido, se esqueceu de tudo o que havia acontecido naquele
dia. Então, no final das contas, foi minha culpa, hein? Nesse caso, eu
realmente não poderia reclamar.
Aliás, Therese ainda estava me acariciando como uma louca. Já que
estava sentada atrás de mim, era difícil dizer com certeza, mas aposto que a
mulher tinha uma expressão bem feliz no rosto. Com certeza foi meio
estranho. Quer dizer, eu tinha uma mulher pressionando seus seios contra
mim e não estava nem remotamente animado. Foi uma sensação muito…
estranha.
— Brincadeiras à parte. Você é muito fofo, Rudeus. Eu poderia até te
devorar!
— Desculpe, isso significa que você quer dormir comigo?
Como resposta a essa tentativa falha de humor, Therese cobriu minha
boca com a mão.
— Você com certeza fica mais bonito de boca fechada. Ouvir você
falando me lembra de Paul Greyrat.
Parecia que minha tia não era uma grande fã do meu pai. Me
acariciando como um cachorrinho, ela foi em frente e mudou de assunto.
— De qualquer forma… O Comandante Gash nunca muda, hein? Ele
devia saber como o Duque Bakshiel reagiria a uma carta como aquela, mas
foi em frente e mesmo assim a escreveu.
Galgard Nash Vennik era, na verdade, o homem no comando dos
Cavaleiros Missionários de Millis. Esta ordem era essencialmente uma força
mercenária que despachava jovens cavaleiros para regiões turbulentas do
mundo, onde poderiam ganhar experiência de combate real enquanto
também espalhavam os ensinamentos da Igreja Millis. No momento, eles
estavam entre as campanhas e retornaram a Millis para reforçar seus
números com novos recrutas.
O amigo de Ruijerd, Gash, também conhecido como Galgard, era o
líder deles há algum tempo. Ele sobreviveu a uma expedição desastrosa ao
Continente Demônio quando era um jovem cavaleiro, e nas décadas
seguintes, reformulou sua ordem tornando-a na ordem mais forte que já
existiu. Era um homem brusco e quieto que raramente sorria, mas também
era conhecido por sua justiça e imparcialidade até mesmo com o pior dos
vilões.
Em Millis, ninguém era considerado um cavaleiro de pleno direito até
que tivessem experimentado pelo menos uma expedição com os Cavaleiros
Missionários. Essas campanhas costumavam ser altamente perigosas. Mas
com Gash no comando, mais de noventa por cento dos jovens cavaleiros
enviados agora voltavam vivos. Esta era a razão pela qual muitos o
saudavam como o maior comandante que a ordem já teve. Cada cavaleiro
das três ordens militares sagradas respeitava Gash profundamente. Muitos
até mesmo deviam a vida a ele.
— Claro, ele também é famoso por escrever pouco e falar menos ainda.
No campo de batalha, o homem dava ordens com rapidez e precisão,
mas na maioria das outras vezes ficava apático demais para retribuir a
saudação de um oficial. Ele quase nunca escrevia cartas de qualquer tipo, e
apenas carimbava relatórios que os outros escreviam. Sua letra tinha sido
vista por tão poucas pessoas, que documentos supostamente escritos por ele
rotineiramente começavam a circular.
Ruijerd o havia descrito como um homem falante e apaixonado. Mas,
claro, o Superd também era muito calado. Talvez seus padrões de “falante”
fossem diferentes dos nossos… ou talvez Gash apenas agisse de forma
diferente perto dele.
— Tá, olha — Eris interrompeu. — Você não vai soltar ele nunca?
Eu pude ver que a garota já estava a cerca de cinco segundos de
explodir, então finalmente saí do alcance de Therese.
— Aww… meu querido e caloroso Rudeus… — Minha tia parecia
levemente desolada, mas eu não era seu travesseiro de corpo. E não era
como se eu estivesse realmente gostando da experiência, de qualquer forma.
— Venha aqui, Rudeus!
Assim como ordenado, sentei-me ao lado de Eris. Ela prontamente
agarrou minha mão.
— Um…
Em poucos segundos, a garota ficou corada até as orelhas. Olhando
para o lado de seu rosto enquanto ela olhava para frente, não pude deixar de
sorrir.
Therese, por outro lado, estava ocupada socando um travesseiro na
cama. Compreensível, mas por que não socar a parede em vez disso? Isso, de
acordo com minha experiência, era muito mais satisfatório.
— Hah… aproveitem a juventude enquanto a têm, crianças. — Therese
balançou a cabeça e suspirou, depois olhou para nós com uma expressão
mais séria. — Certo. Há uma coisa sobre a qual gostaria de avisá-lo, Rudeus.
Pode não importar muito, já que você está prestes a deixar Millis, mas acho
que precisa estar ciente disso.
Ela fez uma pausa por um momento após essa longa introdução, e então
continuou com firmeza:
— Seria mais inteligente se você não mencionasse a palavra Superd
dentro das fronteiras deste país.
— Por quê?
— Um dos ensinamentos mais antigos da Igreja Millis afirma que os
demônios devem ser totalmente expurgados.
Isso, especificamente, significava que todos os demônios deveriam ser
expulsos do Continente Millis. No momento, era uma espécie de doutrina
morta que poucos levavam a sério, mas os Cavaleiros do Templo ainda
estavam se esforçando para colocá-la em prática. E, claro, os Superds eram
particularmente infames, mesmo entre as raças de demônios. Se a notícia de
algum se movendo por Millis se espalhasse, os Cavaleiros apareceriam atrás
dele com tudo o que tinham – mesmo se não fosse realmente o que dissesse
ser.
— Dado tudo o que ele fez por você e Eris, vou abrir uma exceção
nesse caso. Mas, normalmente, eu não teria olhado isso só por cima.
— Não seja ridícula — disse Eris friamente. — Vocês não venceriam
Ruijerd nem em um milhão de anos, não importa quantas pessoas fossem.
— Suponho que você esteja certa sobre isso, Senhorita Eris — disse
Therese, sorrindo ironicamente. — Mas, infelizmente, os Cavaleiros do
Templo são um bando de fanáticos. Inclusive eu. Nós travaríamos essa
batalha, mesmo se soubéssemos que não teríamos chance.
Aparentemente, existiam algumas pessoas assim entre os Cavaleiros
Sagrados de Millis. E, assim, ela enfatizou, devíamos ter muito cuidado se
por acaso voltássemos a este continente.
Todo esse incidente realmente mostrou como eram profundos os
preconceitos da humanidade em relação aos demônios. Achei que, desse
ponto em diante, seria difícil melhorar a reputação dos Superds.
Além do mais, se descobrissem que eu venerava Roxy como uma
deusa, poderiam acabar me tornando alvo de torturas e inquisidores, ou algo
assim. Provavelmente seria melhor manter minha religião pessoal só para
mim mesmo.
✦✦✦✦✦✦✦
Nossa travessia pelo mar, desta vez, foi tranquila.
Minha tia certificou-se de que estávamos bem preparados para a
viagem. Ela não só forneceu todas as provisões de que precisaríamos, como
até nos deu algum tipo de remédio para enjôo. Eu tinha a impressão de que a
medicina era um campo negligenciado neste mundo, mas, evidentemente,
não dependiam da magia de cura para tudo. Existiam ao menos alguns tipos
de remédios.
Mas, ainda assim, os medicamentos não eram baratos. Ainda bem que
eu tinha parentes em cargos importantes.
Therese teve um cuidado especial para atender todas as necessidades de
Eris. Ela sempre demonstrava alguma hostilidade no olhar quando fitava
Ruijerd, mas o que eu poderia fazer? As pessoas não mudam toda a sua
perspectiva do mundo da noite para o dia.
Graças ao remédio que Therese conseguiu, Eris passou a maior parte de
nossa viagem um pouco desconfortável, em vez de completamente
miserável. O que indicava que não estava me implorando para usar a Cura
nela o tempo todo.
Para ser totalmente honesto, isso foi um pouco decepcionante. Eu
queria ver ela toda mansa e manhosa de novo. Mas, pelo lado positivo, meu
medidor não carregou, não soltei meu Buster Wolf e Eris não precisou me
acertar com um Sunny Punch3. As coisas só correram como sempre.
Eris parecia um pouco ansiosa depois da última vez, já que grudou em
mim feito cola quando entramos no barco. Ela definitivamente não ficou
“mansa” em nenhum momento, mas pelo menos pude vê-la pulando de
alegria enquanto olhávamos para o mar. Isso já era bom o bastante para mim.
Entretanto, um dos marinheiros aproveitou a oportunidade para nos
provocar.
— E aí, pombinhos! Vocês dois vão se juntar as meias no Reino do Rei
Dragão ou o quê?
— Pode apostar — falei, colocando um braço em volta dos ombros de
Eris e sorrindo. — Vai ser um casamento daqueles.
Neste ponto, Eris me deu um soco na cara.
— A-ainda está muito cedo para nos casarmos, idiota!
Apesar da violência, ela não parecia tão chateada com a ideia em si, a
julgar pela maneira como se moveu depois. A parte da “provocação” foi
provavelmente o principal problema.
Se eu quisesse tocar nesse assunto, deveria ser em um lugar agradável e
tranquilo, com apenas nós dois, e só quando o clima apropriado fosse
estabelecido. Eris já tinha se tornado uma espadachim monstruosa, mas
ainda era uma donzela inocente nos caminhos do romance.
Ainda assim… casamento, hein?
Philip e os outros com certeza queriam nos juntar. Mas, agora, ninguém
sabia onde eles estavam. Paul disse para não ficar muito otimista…
E não eram apenas Philip, Sauros e companhia, claro. Zenith, Lilia e a
pequena Aisha também estavam desaparecidas. E também não tínhamos
notícias de Sylphie. Caramba, sequer sabíamos se Ghislaine ainda estava
viva. Havia tantos motivos para ficar ansioso.
Ainda assim, eu não poderia me deixar afundar no pessimismo. Quando
voltássemos para Fittoa, talvez estivessem todos esperando por nós, sãos e
salvos.
Eu sabia que a ideia era absurda. Sabia que não era nem remotamente
provável. Mas, ao mesmo tempo, arrancar os cabelos de preocupação não ia
adiantar de nada. Isso era, ao menos, o que eu falava para mim mesmo.
Para o bem ou para o mal, deixamos o Continente Millis para trás.
Interlúdio:
O Regresso de Roxy
Mais ou menos na mesma época que Rudeus e seu grupo zarparam de
Millis, Roxy Migurdia estava voltando para sua cidade natal pela primeira
vez em muitos anos.
O vilarejo Migurd não mudou nada. E todos aqueles que ela conhecia
pareciam também não terem mudado. Havia mais residentes do que antes,
talvez, mas ainda era um lugar assustadoramente silencioso.
Quando criança, Roxy não achava esse silêncio estranho, mas agora que
tinha viajado pelo mundo todo, podia dizer confiantemente que isso era bem
incomum. Neste vilarejo, era difícil ouvir qualquer voz que fosse. E, ainda
assim, seu povo se comunicava perfeitamente o tempo todo.
Quando os residentes avistaram Roxy, ficaram apenas lá, parados e
olhando. Ela sabia que estavam tentando se comunicar por telepatia, a
habilidade única inata que separava a raça Migurd das demais raças de
demônios. Mas não fazia ideia do que estavam falando. Tudo que ela era
capaz de ouvir era um tipo de zumbido bem fraquinho. Roxy não conseguiu
responder às palavras deles.
Depois de algum tempo, seus pais apareceram. Os anos também não
pareciam ter passado para eles. Saudaram a filha com palavras alegres e
perguntaram, repletos de preocupação, se ela tinha feito todo o caminho até
lá sozinha.
Elinalise e Talhand escolheram esperar fora do vilarejo. Talvez
tivessem pensado que Roxy gostaria de ter um pouco de privacidade.
Ela contou sobre suas viagens aos seus pais, sempre mantendo aquela
mesma voz calma e desapaixonada. Eles expressaram surpresa com sua
história e, com alívio em seus rostos, disseram-lhe para ficar o tempo que
quisesse.
Mas a maga se sentia fora do lugar – mesmo enquanto falava com seus
próprios pais. As palavras de preocupação e boas-vindas que eles
expressaram foram todas pronunciadas em uma língua que lhes era estranha.
Seu povo nunca falava nada com a própria boca, especialmente quando
queriam demonstrar amor ou afeto.
Era perfeitamente possível que seus pais estivessem preocupados com
ela do fundo do coração, mas não tinham como transmitir isso a Roxy. A
maga não podia usar telepatia, então não conseguia receber as mensagens
deles.
Isso a fez se sentir terrivelmente sozinha.
Ficar neste lugar por qualquer período de tempo seria doloroso demais.
Ela ficaria apenas remoendo o fato de que não era uma parte real do povo
Migurd, então decidiu partir de novo na mesma hora.
— Você já vai mesmo? — perguntou seu pai com uma expressão
preocupada.
— Sim.
— Você não pode ficar pelo menos uma noite?
Roxy balançou a cabeça, inexpressiva.
— Sinto muito, mas esta jornada é realmente urgente. Mas acabei
passando aqui, já que estava por perto.
— E quando você voltará, querida?
— Não sei — respondeu Roxy, honestamente. — Talvez eu não volte.
E então foi a vez de sua mãe parecer preocupada.
— Roxy… você não consegue começar a nos visitar ao menos a cada
vinte anos?
— Imagino — respondeu de forma evasiva. — Bem, talvez eu apareça
dentro dos próximos cinquenta anos.
— Sério? Você promete? Vamos te esperar.
— Tudo bem — disse Roxy, balançando a cabeça vagamente.
Nesse ponto, ela percebeu que sua mãe começou a chorar bem
baixinho.
— Uh… Mãe…?
— Ah, sinto muito. Eu me prometi que não iria chorar, mas… Sinto
muito, querida…
Ao ver aquelas lágrimas, algo dentro de Roxy ruiu. Antes que ela
percebesse, estava abraçando sua mãe com força, e então seu pai passou os
braços em volta das duas.
Naquele momento, a maga finalmente percebeu que palavras e
linguagens não significavam tanto assim. No final, ficou no vilarejo Migurd
por cerca de três dias. E, pela primeira vez em muito tempo, conseguiu
relaxar um pouco.
✦✦✦✦✦✦✦
O “Mestre do Canil” do Fim da Linha era, na verdade, Rudeus Greyrat.
Levou algum tempo até que Roxy aceitasse isso.
Depois de chegar ao Continente Demônio, seu grupo viajou
constantemente para o norte em busca de informações sobre Rudeus. Quanto
mais para o norte, mais pessoas reconheciam seu nome.
Roxy estava se aproximando, mas, ao mesmo tempo, parecia que havia
algo de estranho acontecendo. Todos que viram Rudeus o descreveram de
maneiras que se sobrepunham às histórias sobre os imitadores do Fim da
Linha. No curso de sua jornada, Talhand várias vezes apontou para o fato de
que o garoto poder lançar feitiços não verbais parecia exatamente com o que
o Mestre do Canil daquele grupo fazia.
Na verdade, Roxy tinha percebido isso desde o começo. Ela só não
queria admitir que havia cruzado o caminho de seu aluno e não percebeu.
Quando chegaram à cidade de Rikarisu, no entanto, não teve escolha a
não ser aceitar. Naquela cidade, soube do “Incidente do Fim da Linha” que
aconteceu lá há dois anos. E também ouviu a história de um homem
chamado Nokopara, com quem já havia feito um grupo no passado. Dado o
que seus pais lhe disseram quando ela parou em seu vilarejo… todas as
peças se encaixavam. Roxy simplesmente teve que admitir a verdade.
O Mestre do Canil só podia ser Rudeus.
No momento, Roxy estava em um bar de Rikarisu com seu velho
camarada Nokopara.
Quando ela perguntou sobre Rudeus, ele inicialmente hesitou em falar
muito. Parecia que, em algum momento, o homem tinha começado a
trabalhar de um modo meio desrespeitoso. Mas não era Roxy quem iria o
julgar por isso. No Continente Demônio, cada um fazia o que conseguia para
poder sobreviver.
— Entendo… Então Blaze morreu no trabalho, hein…?
— Aham. O pobre coitado foi engolido vivo por uma Cobra Capuz-
Vermelho.
Passaram-se anos desde que Roxy deixou o Continente Demônio; os
dois tinham muito que pôr em dia. E, ainda assim, se pegaram falando
principalmente sobre os velhos tempos.
Fechando os olhos, pensou em Blaze. O homem tinha cara de porco e
uma boca suja; ele a xingava sempre que ela errava. Ainda assim, lá no
fundo, não era um cara mau, e seria difícil encontrar um guerreiro mais
confiável.
De acordo com Nokopara, no momento de sua morte, Blaze já era o
líder veterano de um grupo de rank B. E, no Continente Demônio, essa era
uma enorme conquista. Roxy ficou impressionada com o quão longe seu
velho colega de boca suja havia chegado. Ao mesmo tempo, porém, seu
grupo aparentemente se chamava Super Blazers. Sério? O homem nunca foi
bom em nomear as coisas.
Em qualquer caso, Nokopara disse que o monstro que exterminou a
equipe de veteranos de Blaze foi então morto por Rudeus e seu time, que
tinha acabado de formar seu próprio grupo. Em outras palavras, ele derrubou
um monstro de rank A logo depois de se tornar um aventureiro.
Não existia uma chance, sequer das mais remotas, de que Roxy pudesse
ter feito isso nos seus velhos tempos. Mas isso com certeza soava como algo
que Rudeus faria. O pensamento fez com que um sorrisinho se formasse em
seu rosto.
Bebendo sua bebida, uma tipicamente forte do Continente Demônio,
Nokopara murmurou:
— Você realmente mudou, Roxy.
Ela olhou para seu reflexo em sua bebida e se perguntou se isso era
verdade.
— Mudei? É meio difícil para mim dizer.
— É. Você parece muito mais adulta do que antes.
— O quê? Você está tirando sarro de mim ou algo assim? — Quando
ela começou a se aventurar com Nokopara e Blaze, já tinha a aparência de
um Migurd adulto. E, desde então, seu rosto e corpo não mudaram muita
coisa. Ela estava perfeitamente ciente de que sua aparência era quase a
mesma.
— Nah, é sério! É, tipo, sua vibração, eu acho. Você costumava ser
mais infantil, sabe?
— Bem, eu já passei por várias luas, sabe? Mesmo não parecendo. —
Roxy deu de ombros, jogou um punhado de salgadinhos assados na boca e
mastigou. Essas coisas eram, na verdade, sementes de Ente de Pedra. Ela não
os achava particularmente saborosos, mas por algum motivo era difícil parar
de enfiá-los na boca depois de começar.
— Mas é disso mesmo que estou falando. Antigamente, você
costumava ficar desesperada para que todos pensassem em você como uma
adulta e provavelmente ficaria nas nuvens se escutasse algo tipo o que falei.
— É sério…? É, acho que já fui assim mesmo.
Isso foi quando ela não entendia corretamente suas próprias habilidades
e limitações. Naquela época, Roxy trabalhava furiosamente para convencer
as pessoas de que era adulta e também alguém a ser levada a sério. Se
gabava de seu talento como maga e de sua competência em todos os
aspectos da magia. Ela insistia que era capaz de fazer qualquer coisa.
Sua opinião sobre si mesma havia sido completamente invertida desde
então, mas a reputação que construiu continuou a se espalhar por conta
própria. Atualmente, parecia que as pessoas estavam constantemente
esperando que ela fizesse coisas que não podia fazer. Roxy estava recebendo
muitas reações de surpresa de pessoas no Continente Demônio, sempre que
falava que era a ex-professora de Rudeus. Por algum motivo, o garoto dizia a
todos que devia suas habilidades “aos ensinamentos de sua mestra”.
Naturalmente, presumiram que a maga também deveria ser capaz de lançar
feitiços não verbais, o que definitivamente não era.
Talvez o próprio mestre de Roxy, que uma vez a rebaixou de diversas
formas, tivesse experimentado sentimentos semelhantes a estes. Se fosse
esse o caso, se sentiria mal sobre como tinha reagido. Era difícil ser mentor
de alguém mais talentoso do que si mesma. Pelo visto, era necessário
experimentar por si mesma antes de realmente entender.
No caso de Roxy, além de ser uma fonte de orgulho, também era de
constrangimento. Ela não queria mais que Rudeus parasse de chamá-la de
sua mestra, mas, por algum motivo, o fato de que ele ignorou totalmente
suas ordens nesse caso a deixou meio que feliz.
— De qualquer forma, você não mudou nada, Nokopara.
— Ah, é?
— É. Exceto fisicamente, é claro.
O homem sempre foi louco por dinheiro e tinha a tendência de
infernizar os mais fracos, e obviamente continuava o mesmo. Antigamente,
Roxy sempre pensava que ele era a última pessoa de quem queria se tornar
inimiga.
— Ei, o que isso quer dizer? Quer dizer que já estou ficando todo babão
e enrugado?
— Pode-se dizer que sim. Você envelheceu, Nokopara. E ficou
enrugado.
— Hah! Você tem uma boca e tanto, garota! — Nokopara soltou um
relincho sarcástico, depois suspirou. — Cara, isso realmente me lembra…
— Eu sei o que você quer dizer.
Antigamente, haveria mais dois nesta mesa: um menino que estava
sempre xingando Nokopara, sem parar, e outro que interrompia suas brigas
enquanto suspirava. Agora, os dois já tinham partido, deixando apenas dois
ex-aventureiros de meia-idade para trás.
Claro, nenhum tinha envelhecido tanto, graças às suas raças, mas os
velhos tempos nunca voltariam. Isso era certo.
Os dois acabaram conversando sobre os velhos tempos por horas, até
que Nokopara finalmente ficou bêbado e caiu sob da mesa.
Roxy tinha visto seus pais, e agora um conhecido muito antigo. Isso por
si só significava que sua viagem até ali não tinha sido uma total perda de
tempo. Ela estava verdadeira e profundamente feliz por ter feito essa
jornada.
✦✦✦✦✦✦✦
Será que Rudeus já tinha alcançado Millishion? perguntou-se Roxy.
Supondo que tinham se cruzado em Porto Vento, ele provavelmente já
tinha deixado este continente há uns seis meses. A estação das chuvas estava
prestes a começar, é verdade… mas a Estrada da Espada Sagrada era um
caminho seguro e fácil de seguir. A menos que tivesse parado em um
assentamento de Elfos ou Anões, seu grupo certamente já teria chegado à
cidade.
Em outras palavras, desde o começo ela não precisava ter saído em sua
procura. Exatamente como Paul presumira naquela carta, o garoto podia se
virar sozinho.
Ele abriu caminho através de todo o Continente Demônio em um
instante, junto com aquela garota chamada “Eris” com quem foi
teletransportado. A maioria dos viajantes se tornaria vítima dos perigos
locais ou sofreria para avançar, mas ele fez com que tudo parecesse fácil.
Além de tudo, de alguma forma recrutou um Superd, algo que Roxy sempre
temeu, para seu grupo.
— Seu pupilo é um garoto impressionante, Roxy.
— De fato. Mal posso acreditar que o Paul é mesmo o pai dele.
Elinalise e Talhand não se cansavam de fazer elogios.
No entanto, da maneira como Roxy via as coisas, realmente não
importava quem era mestre ou pai dele. O garoto foi um prodígio desde o
começo. Ele poderia muito bem ter feito tudo isso, mesmo sem nunca ter a
conhecido.
Mas, deixando tudo isso de lado…
— E aí, o que fazemos agora?
Roxy fez uma pausa para considerar a pergunta de Elinalise. O objetivo
inicial desta jornada era encontrar Rudeus, mas ele provavelmente já estava
seguro em Millishion. Ela queria muito vê-lo, mas, ao mesmo tempo, não
queria abandonar seu objetivo maior.
— Vamos procurar na região noroeste do Continente Demônio.
Eles rastrearam Rudeus, mas os outros três membros de sua família
ainda estavam desaparecidos. Na estrada, já tinham encontrado vários
humanos deslocados da Região de Fittoa; provavelmente também teria
alguns na região noroeste.
— Tem certeza que não quer ver seu pupilo? — perguntou Talhand.
— Sim, tenho certeza — disse Roxy com um breve aceno de cabeça.
Parando para pensar, e se Rudeus descobrisse que ela havia passado por ele
sem nem mesmo perceber? Isso seria muito humilhante. Sua posição como
sua “mestra” já era bastante instável. — Há muitas cidades no Continente
Demônio que ainda não verificamos. Vamos continuar passando por elas,
uma a uma, assim como já temos feito.
Talhand e Elinalise apenas se entreolharam e riram.
De uma forma ou de outra, a viagem de Roxy Migurdia ainda não havia
terminado.
Capítulo Extra I:
Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi
Tínhamos chegado à cidade de Porto Leste no Reino do Rei Dragão – a
maior cidade portuária do mundo inteiro.
As pessoas falavam a mesma língua que no País Sagrado de Millis, mas
os nomes e a aparência das lojas eram sutilmente diferentes. Ainda assim,
esta era a quarta cidade portuária que eu via, então o lugar realmente não
parecia nada novo. Assim que saímos do barco, comecei a trabalhar na tarefa
rotineira de encontrar uma pousada.
Enquanto caminhávamos pela rua, no entanto, Eris fez uma pausa e
murmurou:
— Algo cheira bem.
Hmm. Tipo o cheiro do seu pescoço depois de um treino? Sabe, esse é
um dos meus preferidos. Mas, com uma fungada no ar, entendi o que Eris
quis dizer. Certamente havia um aroma tentador flutuando ao redor da área.
Olhei para cima, em direção do sol lá no céu. Assim que parei para
pensar, notei que meu estômago estava meio vazio.
— Acho que já deve ser hora do almoço.
— Sim… — Eris concordou, balançando a cabeça ligeiramente.
Nós dois estávamos com o olhar fixo em um restaurante que parecia ser
a fonte desse cheiro interessante. Sua fachada não era nada promissora. As
paredes de tijolos estavam em péssimo estado, com buracos visíveis aqui e
ali, e a placa de madeira estava tão suja e gasta que era impossível de ler. Até
a porta da frente estava prestes a cair das dobradiças. Parecia mais uma casa
abandonada do que um restaurante requintado.
Entretanto, o cheiro saindo lá de dentro era outra história. Não era o
tipo de fragrância rica que faria um homem ficar com água na boca na
mesma hora, mas havia algo de nostálgico nisso. Senti meu estômago roncar.
— Quer entrar lá?
A pergunta de Ruijerd me assustou um pouco. Eu estava indo na
direção do restaurante mesmo sem perceber.
— Sim… Algum problema?
— Você não vive dizendo que devíamos comer apenas em lugares bem
arrumados?
Eu me lembro de ter dito algo nesse sentido, sim. Mas isso foi lá no
Continente Demônio, onde aqueles lugares visualmente pobres só tinham
comidas horríveis. Às vezes aparecia alguma exceção à regra, onde tudo
acabava sendo melhor que o esperado, mas… de uma forma ou de outra, eu
normalmente não colocaria meus pés em um lugar destes.
Por alguma razão, porém, realmente me senti atraído por este.
— Uma mudança de ritmo não vai machucar, certo?
— Bem, que seja…
Com Ruijerd e Eris me seguindo, empurrei a porta da frente. Ela
protestou fazendo barulho contra o tratamento cruel e incomum que sofreu.
Sem surpresa, o restaurante em si também era bem sujo. Bom…, talvez
“sujo” não fosse bem a palavra certa. Parecia limpo o suficiente ao menos
para um lugar onde as pessoas iriam para comer. Mais do que qualquer outra
coisa, era apenas pobre. Parecia que faltavam pernas em metade das
cadeiras, a maioria das mesas estava rachada e havia buracos por todo o
chão.
Como era de se esperar, não havia outros clientes lá dentro.
— O lugar é todo nosso — murmurou Eris alegremente. Creio que ela
não viu nada de suspeito quanto a um restaurante estar totalmente vazio na
hora do almoço. Mas isso era o bastante para me deixar ansioso, é claro.
Mas, por algum motivo, meu senso de expectativa ainda estava forte.
— Bem-vindos, pessoal… — Quando nós três sentamos, um homem
magro feito um esqueleto se aproximou de nós com um cardápio. Será que
era ele quem dirigia o lugar? Bem, seu rosto era bem sombrio. Digo, era
óbvio à primeira vista que o estabelecimento não estava tendo muito
sucesso, mas não faria mal pelo menos mostrar um sorriso amarelo para os
clientes…
— Rudeus, você tem certeza de que não devemos reconsiderar isso?
Uau. Não era todo dia que Ruijerd ficava me questionando assim. Mas,
ainda assim, não podíamos sair por aí julgando as pessoas por suas
aparências, certo?
— Bem, bem. A comida pode ser deliciosa, não acha?
Sorrindo sem jeito com minhas palavras, o homem esquelético abriu
seu cardápio para nós. Havia apenas dois itens listados nele:
✦✦✦✦✦✦✦
● Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi
● Moqueca de Peixe Alba
✦✦✦✦✦✦✦
Em Millishion, os restaurantes normalmente ofereciam mais de dez
opções de escolha. Mesmo os bares que se concentravam principalmente nas
bebidas ofereciam um pouco mais de variedade do que isso. Mas havia um
lado bom, os preços deste lugar eram baixos. Talvez isso compensasse tudo.
— E aí, pessoal?
Então a escolha era carne ou peixe, hein?
O Peixe Alba era uma espécie nativa dos mares do sul. Era algo padrão
na dieta das pessoas nesta parte do mundo; eu já tinha experimentado isso
em Porto Oeste. O cardápio dizia que era uma “moqueca”, mas, nesse caso,
provavelmente seria só uma espécie de sopa com peixe e legumes. Era
supostamente um prato muito comum no Reino do Rei Dragão.
Por outro lado, tínhamos “Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi”. Eu
nunca tinha ouvido falar disso antes. Só sabia que o Dragões residiam em
uma cordilheira próxima que foi nomeada em sua homenagem. Diziam que
eles eram capazes de manipular até a gravidade. Essa era realmente a carne
daqueles monstros? Ou será que era algo com um gosto bem parecido…?
Além disso, o que “Nanahoshi” significava? O termo era totalmente
novo para mim, embora soasse quase… Japonês. Claro, eu não estava muito
familiarizado com as várias cozinhas deste mundo. Talvez fosse um método
de culinária popular no Reino do Rei Dragão.
De uma forma ou de outra, definitivamente chamou minha atenção.
— Vou querer a carne.
— Eu também.
— Então serão três porções de carne.
Assim que seus carnívoros clientes fizeram seus pedidos, o homem
esquelético desapareceu para dentro da cozinha, sempre inexpressivo.
Não forneciam nenhuma água da casa, mas não era como se eu
esperasse algo diferente. Era uma regra meio que geral, ninguém ganhava
nada de graça neste mundo. Isso exigia algum autoatendimento. Criei copos
com magia da Terra, os enchi com água e entreguei para Ruijerd e Eris. Com
alguns cubos de gelo, seriam o melhor tônico existente para um corpo
cansado.
Eris engoliu o conteúdo de seu copo em segundos, mastigou o gelo e
estendeu o recipiente para mim.
— Rudeus, mais.
Balançando minha cabeça tristemente, voltei a encher o copo para ela.
Normalmente, poderia ter dito para que lançasse o feitiço por si mesma, mas
estávamos dentro de um restaurante. Não havia razão para arriscar bagunçar
tudo e inundar o lugar.
Como sempre, Ruijerd estava apenas bebericando sua água. O homem
comia rápido, mas sempre demorava para beber.
— De qualquer forma, não parece que existe muita informação a ser
coletada nesta cidade, não é?
— Acho que não. Eu meio que queria dar uma olhada melhor nas
espadas, mas talvez devêssemos simplesmente seguir para a próxima cidade.
Havia uma grande variedade de armas de lâminas sendo vendidas no
lugar. Havia até mesmo uma barraca de beira de estrada com uma enorme
variedade de espadas sendo exibida. Eris ficou com os olhos brilhando só
por ter visto, mas logo percebeu que eram todas peças de lixo, que seriam
vendidas apenas a iniciantes que não sabiam de nada. Suas habilidades como
lutadora haviam melhorado muito, mas isso não significava que poderia
distinguir uma espada boa de uma ruim à primeira vista. Isso não era tão
surpreendente, sério.
— Ei! Estou entrando!
Nossa conversa foi abruptamente interrompida por um grande estrondo.
Alguém havia aberto a porta. Um homem com aparência de bandido entrou
no restaurante sem nem mesmo tirar os sapatos. Mas não era como se
alguém fizesse isso. Então não era realmente nada de demais.
Ao som da voz do intruso, o homem esquelético emergiu da cozinha.
— Shagall…
— E aí, Randolph! Já decidiu tomar a decisão certa hoje?
— Minha resposta não vai mudar, não importa quantas vezes você
pergunte. Poderia simplesmente ir embora, por favor?
— Hah! Por quanto tempo vai manter esse lugar vazio funcionando,
cara?
— Até eu morrer, claro. Isso é da minha família há gerações…
A partir da conversa, eu poderia dar um palpite razoável a respeito da
situação. Para encurtar a história, esse negócio estava lutando para
sobreviver. O proprietário provavelmente havia feito todos os tipos de
empréstimos apenas para manter as portas abertas. Este bandido devia ser
algum especulador suspeito que queria comprar o terreno barato ou algo
assim.
— Espere ao menos um pouco. Tenho clientes no momento.
— Clientes? Ah, uau, você realmente tem. Mas que visão mais rara!
— Não vou desistir deste lugar, não enquanto eu tiver um único cliente.
— Hah! — Roncando enquanto ria, o bandido se jogou em uma das
cadeiras vazias. Com um olhar de soslaio em sua direção, o homem
esquelético voltou para a cozinha.
Definitivamente parecia que os tempos estavam difíceis. Eu não sabia
de todos os detalhes, é claro, mas se a comida fosse boa, talvez pudéssemos
tentar espalhar a palavra sobre este lugar.
— Aquele homem está nos encarando…
Tive a sensação de que Eris poderia reagir de forma exagerada a
qualquer contato visual do sujeito, então fui em frente e cobri seus olhos
com as mãos. Um problema como esse precisava ser resolvido pelo poder da
comida, não por seus punhos furiosos.
— Ei! Rudeus! Não consigo ver!
Agh. Espera. Isso aí não é meu pulso, Eris! Ah, meus ossos. Meus
pobres e delicados ossos…
— Desculpem pela demora, pessoal.
Enquanto eu estava brincando com Eris, nossa comida saiu da
cozinha… e arregalei meus olhos diante da visão.
— Sem chances…!
“Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi” era aparentemente uma refeição
dividida em três porções.
Em primeiro lugar, havia uma espécie de sopa de vegetais transparente.
Eu poderia dizer à primeira vista que teria um sabor simples e refrescante.
Isso era bom. Conteúdo padrão. Mas as outras duas partes eram uma
história diferente.
Primeiro, à esquerda, tínhamos um alimento básico que eu não tinha
visto nenhuma vez depois de chegar a este mundo. Era arroz! O imperador
de todos os grãos!
Não… espera. Pensando bem, a cor não parecia ser a certa. Parecia que
tinha alguns outros grãos na mistura. Certo, então era arroz multigrãos. Fazia
tanto tempo que eu não via nada desse tipo que fiquei até um pouco confuso.
Em todo caso, isso certamente explicava por que o cheiro que vinha
daquele lugar era tão nostálgico. Naquela hora, o homem devia estar
cozinhando arroz. Não era de se admirar que fui atraído como um ímã.
Finalmente, havia a terceira parte de nossa refeição. Isso consistia em
pedaços marrom-dourados de produtos fritos. Em outras palavras…
Era, sem dúvidas, karaage.
Então… embora a sopa não fosse exatamente missô, e o arroz não fosse
exatamente branco… essa era uma refeição clássica de karaage.
— Não acredito!
— O que foi, Rudeus…? — Eris estava olhando para mim com dúvida.
Compreensível, já que eu estava tremendo e segurando a mesa com as duas
mãos.
— Uh, foi mal… Não foi nada.
Nunca imaginei que comida frita ao estilo japonês existiria neste
mundo. Os céus realmente estavam sorrindo para mim! Talvez aquele
maldito Deus Homem estivesse finalmente começando a entender o que eu
queria da vida.
Então tá bom! Vamos lá! Hora de comer! Agora!
Juntando minhas mãos, fiz uma rápida oração de agradecimento a todos
os espíritos dos céus e da terra.
— Vamos comer!
Não havia pauzinhos, naturalmente, então coloquei um grande bocado
de arroz na boca, usando o garfo.
— Aaaah… — Uma única lágrima escorreu pela minha bochecha.
Na minha vida anterior, minha paixão por arroz não conhecia limites.
Era basicamente para aquilo que eu vivia, ainda mais no final dos meus vinte
anos; já devia comer um pacote daquilo por dia. E, comparado com o arroz
que comia naquela época, essa coisa era péssima. De acordo com o sistema
de classificação de sabor japonês, não seria nem de Tipo C.
Entretanto, ainda era arroz. O bom e velho arroz de verdade.
Pela primeira vez na minha vida, realmente entendi que todo arroz era
cozido da mesma forma.
— R-Rudeus? Qual é o problema?
— Ah, não é nada… absolutamente nada! — Chorei silenciosamente
enquanto comia, dando minha melhor impressão de um soldado japonês que
acabara de voltar para casa depois de anos em um albergue na Sibéria. Cada
mordida encheu minha boca com o sabor familiar e reconfortante do arroz.
Ah, espera. Não tem muito, certo? Eu devia comê-lo com os
acompanhamentos…
Já era hora de provar o karaage. Com uma gananciosa apunhalada com
o garfo, espetei um pedaço de carne frita e o levei à boca.
— Mergh!
Minha alegria, na mesma hora, deu lugar ao choque.
Isso era carne frita, com certeza. Mas definitivamente não era karaage.
O revestimento estava úmido e oleoso; a carne estava seca e dura. E quanto
mais eu mastigava, mais forte ficava seu odor rançoso.
Na verdade, estava me deixando com náuseas.
Comecei a tremer de raiva. Você espera que eu… Você espera que eu
coma arroz com ISSO?!
Poderia comer o arroz puro, claro. Poderia comer infinitas porções,
desde que estivesse temperado. Sim, arroz branco temperado era tudo o que
minha alma de samurai realmente precisava.
Mesmo assim. Não consegui reprimir minha fúria. O karaage não era
nada menos que um ato de blasfêmia ao arroz.
— Quero ver o cozinheiro! Agora mesmo!
✦✦✦✦✦✦✦
Quando o dono do restaurante saiu da cozinha todo ansioso, comecei
fazendo alguns elogios.
Em primeiro lugar, o pseudo-missô era bastante aceitável. Era uma sopa
de legumes simples e salgada, mas complementava muito bem o sabor
característico do arroz multigrãos. Combinados, esses dois pratos, por si só,
serviriam quase como uma refeição completa. Somente um artesão
habilidoso poderia ter feito isso.
A maneira como ele cozinhou o arroz também foi impressionante.
Parecia que tinha usado a quantidade certa de água e a quantidade perfeita de
calor. Também era possível sentir o toque de um profissional veterano nisso.
Cada grão que provei fez com que uma lágrima se formasse em meus olhos.
Se ele tivesse ido um pouco mais longe e prestado mais atenção à qualidade
da água que estava usando, teria sido digno de uma nota perfeita. E eu estava
perfeitamente disposto a presenteá-lo com alguns megatons da deliciosa
H2O da marca Rudeus. As coisas que eu cuidadosamente conjurava do nada
eram mais saborosas do que qualquer uma que ele tiraria de qualquer lugar.
Com tudo isso dito, mudei para o tópico do karaage… ou melhor, a
carne de Dragão ao Estilo Nanahoshi.
Eu retalhei aquilo. Retalhei completa e brutamente.
Aquilo não era adequado para consumo humano. Como ousava servir
algo assim para um cliente? Ele tinha alguma ideia de quem eu era? Eu era
Rudeus Greyrat do grupo Fim da Linha, droga! O homem pagaria caro por
este insulto!
Para encurtar a história, surtei com o cara, igual um chefe celebre com
um humor particularmente ruim faria naqueles programas de culinária. Em
retrospecto, nem tenho certeza de por que fiquei tão zangado. Talvez o fato
de que ainda estava com fome tivesse algo a ver com isso.
Eris e Ruijerd deviam ter pensado que perdi a cabeça. No final daquele
episódio horrível, tiveram que me arrastar para fora do lugar enquanto eu
chutava e gritava.
Honestamente, fui longe demais. Meu amor por arroz levou o melhor
sobre mim, sim… mas isso não justificava algumas das coisas que falei.
Especialmente porque eu também era apenas um amador.
Este mundo não tinha os tipos de ingredientes que estavam disponíveis
no Japão. Até mesmo o óleo necessário para fritar a carne era de uma
qualidade muito inferior neste mundo. No final do dia, aprendi que algumas
pessoas deste mundo comiam arroz com acompanhamentos, e que fritar era
uma coisa corriqueira. Essa foi uma notícia fantástica. Então, por que diabos
fiquei tão furioso?
Quando saímos do restaurante, o dono do lugar havia murchado
completamente e pude ver as lágrimas brilhando em seus olhos. Com certeza
fui um idiota infantil.
Vamos fazer melhor da próxima vez, Rudeus.
✦✦✦✦✦✦✦
Ponto de Vista do Proprietário
Os negócios estavam indo de mal a pior.
Nos últimos anos, quase não recebi visitantes. Mesmo quando alguém
acabava aparecendo, nunca se tornava um cliente regular. Estava me
afogando em cada vez mais dívidas, sem poder fazer nada.
Para piorar, um cliente me atingiu com uma enxurrada de críticas. Pelo
visto, eu não estava deixando meu óleo quente o suficiente, ou prendendo
umidade suficiente na carne. Ah, e deveria ter adicionado tempero agridoce
antes de colocar o revestimento. No final de seu discurso, o menino me disse
que até o tipo de carne que eu estava usando era inapropriado.
Mas Dragão era a espinha dorsal do cardápio deste restaurante por
centenas de anos. O que deveria fazer se o problema era tão básico?
— Cara, isso me assustou de verdade…
Um homem que tinha uma forte semelhança com um bandido quebrou
o silêncio constrangedor. Seu nome era Shagall Gargantis, e vinha me
importunando implacavelmente há anos.
— Mesmo assim, acho que isso deve deixar as coisas bem claras, certo?
Sua comida é péssima o suficiente para que até uma criança ranhenta possa
criticar até não aguentar mais, cara.
Shagall tinha um sorriso feio estampado no rosto, como sempre.
Quando sua expressão estava séria, o homem ficava razoavelmente bonito e
também não parecia estúpido. Se ele fizesse as coisas certas, dezenas de
subordinados curvariam a cabeça por vontade própria. Mas, por algum
motivo, o sujeito gostava de se vestir como um bandido e zombar de mim.
Isso talvez fosse algum tipo de disfarce.
— Você está certo… mas…
— Olha, eu entendo por que você quer proteger algo que está em sua
família há gerações. A questão é que, entretanto, você não tem cabeça para
os negócios. Ou o poder para manter este lugar funcionando.
As palavras me acertaram como um soco no estômago. Ele tinha toda a
razão. Eu era um empresário sem esperança. E também não tinha nenhum
talento como cozinheiro. Minha comida era claramente horrível, já que não
conseguia satisfazer sequer uma criança daquelas.
— Dito isso, você tem habilidades reais em um campo diferente. Todo
mundo tem alguns empregos para os quais são mais adequados do que
outros, não acha?
— Suponho que sim…
Não pude deixar de concordar. Toda a minha determinação finalmente
desmoronou, deixando apenas resignação em seu lugar.
— Tudo bem, você venceu. Vou fechar meu restaurante.
Este lugar foi fundado há 250 anos; havia passado de geração a geração
de minha família. Mas eu falhei em preservar esse legado.
Simplesmente teria que carregar essa desgraça comigo pelo resto dos
meus dias.
Naquele dia, o Alto General Shagall Gargantis do Reino do Rei Dragão
conseguiu recrutar um certo indivíduo… só para saber: Randolph Marianne,
o Deus da Morte, classificado em quarto lugar entre os Sete Grandes
Poderes.
Por que Randolph de repente aceitou a oferta de Shagall, depois de anos
de recusas constantes?
Muito poucos saberiam a resposta para esta pergunta.
Capítulo Extra II:
A Morte de Ariel
Meu nome é Gustaf. Sou um humilde corretor de informações que mora
na cidade de Ars, capital do Reino Asura.
Quando digo “humilde”, isso não significa que não tenha uma opinião
negativa de mim mesmo. É justo dizer que sou muito bom no que faço, na
verdade. Pelo preço certo, posso descobrir qualquer coisa que queiram saber
sobre qualquer coisa que aconteceu dentro das fronteiras de Asura.
Um dia, não muito tempo atrás, ouvi um certo boato.
Era mais ou menos assim: A Segunda Princesa, Ariel Asura, foi
assassinada por assaltantes desconhecidos enquanto ia se matricular na
Universidade de Magia de Ranoa.
Sendo o cara inteligente que sou, rapidamente percebi que essa
“notícia” estava sendo deliberadamente espalhada pela cidade pelo Príncipe
Grabel, o rival mais acirrado de Ariel.
Há cerca de um mês, a princesa havia deixado Ars, aparentemente para
estudar no exterior. Sua partida foi tranquila. Dada sua popularidade com os
cidadãos da capital, qualquer tentativa de um grande desfile de despedida
poderia ter ficado totalmente fora de controle. Supostamente, foi por isso
que escapou da cidade em segredo. Sua comitiva, incluindo guardas e
assistentes, contava apenas com dezessete indivíduos. Era uma comitiva bem
pequena para uma princesa real. Mas como incluía o infame playboy Luke
Notos Greyrat e o guarda-costas altamente conspícuo conhecido como “Fitz
Silencioso”, minha rede de informações logo me trouxe a notícia de sua
partida.
A essa altura, é claro, já proliferavam os rumores de que Ariel fora
mandada para um exílio após perder a luta pelo poder na corte real. E agora,
poucas semanas depois, tínhamos esse novo boato circulando.
Se a princesa realmente tivesse sido assassinada, a notícia se espalharia
muito rapidamente. Se houvesse alguma testemunha que pudesse nomear os
responsáveis, seria uma coisa, mas, em vez disso, tínhamos “agressores
desconhecidos” e uma fonte anônima. O fato de um boato tão frágil estar se
espalhando pela cidade tão rápido parecia prova suficiente de que estava
sendo espalhado de propósito.
Como provedor profissional de informações precisas, fiquei tentado a
vasculhar e descobrir a verdade. No entanto, a última coisa que queria era
chamar a atenção de qualquer nobre ardiloso responsável por esta situação,
então decidi me manter no escuro sobre isso.
Porém… um pouco depois que o boato sobre a morte de Ariel começou
a se espalhar, um certo indivíduo me fez uma visita.
Este homem sabia sobre mim e minha reputação como um corretor de
informações de primeira linha. E eu o reconheci como um servo de Pilemon
Notos Greyrat, líder da facção da Princesa Ariel entre a nobreza. Seu papel
principal era fornecer a seu senhor informações atualizadas. Claro, ele veio
me ver disfarçado e deu um nome falso, mas poderia muito bem não ter se
incomodado com essas coisas.
O sujeito parecia me considerar alguém suspeito e falou comigo de uma
maneira bastante condescendente. Quando finalmente disse que sabia
exatamente quem ele era, o homem abaixou a cabeça e me apresentou uma
oferta de trabalho.
Especificamente, queria que eu descobrisse se a Princesa Ariel estava
mesmo morta.
Isso foi uma grande surpresa, sério. Eu nunca teria imaginado que os
próprios aliados de Ariel haviam perdido todo o contato com sua facção e
nem mesmo sabiam se ela estava segura. Até mesmo um cara inteligente
como eu pode ficar um pouco confuso de vez em quando. Inicialmente
escolhi ficar longe de toda essa bagunça… mas acabei decidindo aceitar o
trabalho.
Por quê, me pergunta?
Bem, porque o dinheiro oferecido era muito bom, é claro.
✦✦✦✦✦✦✦
Comecei refazendo os passos da Princesa Ariel.
Depois de deixar a capital, seu grupo viajou direto para o norte, em
direção a Ranoa. Considerei a possibilidade de ela ter fugido para uma
direção totalmente diferente depois de espalhar mentiras sobre a matrícula na
Universidade de Magia, mas não parecia ser o caso.
Enquanto seguia a trilha dela e reunia informações, logo ficou claro que
um grupo de perseguidores estava em seu encalço. Algumas pessoas
relataram ter visto pessoas suspeitas vestidas de preto bem na época em que
o grupo da princesa estava passando por sua cidade, e Ariel parecia ter
perdido uma escolta ou duas quando chegou à próxima cidade ao longo de
sua rota.
Mas isso não foi inesperado. Se a viagem tivesse corrido bem, seus
aliados não teriam procurado freneticamente por notícias de sua segurança.
Apesar de perder um guarda após o outro, Ariel, no entanto, continuou
seguindo para o norte. Com sua comitiva reduzida a dez, finalmente
alcançou o posto de controle na fronteira norte. Era uma instalação sólida e
bem protegida que pressionava contra uma grande floresta ao sul do vale
conhecido como Mandíbula Superior do Wyrm Vermelho.
Neste lugar, consegui obter um testemunho útil de um homem que se
lembrava muito bem da chegada de Ariel.
Oficial de Controle da Fronteira
Depoimento de Smily Gatlin
Eu estava de péssimo humor naquele dia. Não que nos outros dias meu
humor fosse melhor. Afinal, na época, sentia que estava sendo
completamente desperdiçado em meu posto.
Hmm? Exatamente no quê eu trabalhava? Bem, meu trabalho era na
maior parte do tempo tedioso e chato. Eu verificava os passes de viajantes
que procuravam deixar o território Asurano. Às vezes, poderia revistar as
pessoas ou seus pertences enquanto procurava por contrabando. Mas, é
claro, a grande maioria dos que passavam por este posto de controle eram
aventureiros, mercenários ou mercadores que queriam fazer negócios no
norte por algum motivo estranho. A maioria dos mercadores tinham passes
válidos, e os aventureiros tinham permissão por simplesmente usar seus
cartões da Guilda.
Bandos mercenárias e viajantes de primeira viagem precisavam passar
por um processo de inspeção formal antes que seus passes pudessem ser
emitidos, mas esse não era o meu trabalho. Eu simplesmente os encaminho
para um oficial diferente. E, a menos que fosse algum tipo de criminoso
notório ou algo assim, os documentos logo ficariam prontos. Não somos
muito rígidos com essas coisas deste lado do posto de controle. Afinal, muito
mais pessoas querem entrar em Asura do que sair.
Tecnicamente, também sou responsável por impedir criminosos que
tentam cruzar a fronteira usando documentos falsificados, mas o trabalho
bruto também não é meu departamento. Os soldados é que lidam com
problemas dessa natureza.
Como falei antes, no entanto, normalmente não é muito difícil
conseguir um passe, a menos que seja um grande criminoso. Pessoas desse
tipo geralmente estão na lista de procurados. Em vez de correr o risco de
visitar um posto de controle, recorrem a contrabandistas para fazer a
travessia. E, claro, caçar e erradicar redes de contrabando também não estava
na minha descrição de trabalho.
Eu achava meu trabalho muito enfadonho e completamente inútil. Não
importa o quanto tentasse, sabia que nunca ganharia nenhum
reconhecimento. A ideia de envelhecer neste lugar me deixava totalmente
infeliz.
O fato de eu não ser muito amigável com os soldados, que eram
essencialmente meus colegas de trabalho, também não ajudava muito. Os
considerava imbecis e eles pensavam em mim como um viadinho patético
com um ego enorme. O fato de nossas cadeias de comando estarem
separadas só piorava as coisas.
Eu era um homem formado em uma prestigiosa academia aristocrática
da capital. Meus talentos estavam claramente sendo desperdiçados neste fim
de mundo… ou assim acreditava.
O grupo da Princesa Ariel chegou por volta do meio-dia, se bem me
lembro.
A princípio, tudo que vi foi uma luxuosa carruagem de dois lugares
acompanhada por sete guardas a pé. Contando o motorista na frente e os dois
passageiros em potencial dentro, parecia ser um grupo de dez.
Meu pensamento inicial foi que um aristocrata estava se envolvendo em
algum tipo de expedição turística. No entanto, essa era a fronteira do Reino.
Além desse posto de controle, ficavam apenas as perigosas terras
estrangeiras conhecidas como Territórios Nortenhos, infestadas por neve e
monstros. Os nobres às vezes passavam a caminho de lugares distantes, mas
sempre traziam pelo menos três carruagens e vinte guardas ou mais. Talvez
pudessem se contentar com menos se contratassem um bando de
aventureiros de elite, mas esse grupo não me pareceu um de guerreiros
endurecidos pela batalha. Todos estavam vestidos para pegar a estrada, mas
alguns claramente não estavam acostumados a longas viagens, e outros
pareciam um tanto quanto magros para serem guarda-costas.
Então talvez não fosse uma viagem turística. Seria possível que
tivessem algum negócio neste próprio posto de controle? Não seria bom
descartar a possibilidade de uma inspeção surpresa de algum lorde de alto
escalão.
Por enquanto, decidi proceder como de costume.
— Posso ver seu passe, por favor?
— Aqui está.
A resposta à minha pergunta veio de um jovem que estava à frente do
grupo. Ele era incrivelmente bonito, até mesmo aos meus olhos, mas havia
sinais claros de exaustão em seu rosto. Os círculos escuros sob seus olhos se
destacavam muito.
Foi neste momento que senti, pela primeira vez, que poderia haver algo
estranho acontecendo.
Não havia problemas com o próprio passe. Era um documento genuíno
emitido pelo Reino Asura, carimbado com uma marca válida da família
Notos. Tudo estava em perfeita ordem. Eu normalmente teria acenado para
eles passarem através do portão sem nem pensar duas vezes.
Mas algo no rosto do jovem bonito me fez hesitar. Eu poderia jurar que
já tinha o visto em algum lugar. Em retrospecto, isso acontecia porque se
tratava de Luke Notos Greyrat, o famoso cavaleiro guardião da Princesa
Ariel. Suponho que não poderia o reconhecer, já que nunca tinha o visto de
tão perto.
Em todo caso, criei o hábito profissional de deter qualquer pessoa que
me parecesse vagamente familiar. Afinal, a maioria dos rostos que eu
memorizava eram de representações de criminosos procurados.
— Minhas desculpas, mas posso dar uma olhada no interior de sua
carruagem?
Com minhas palavras, vários soldados que estavam parados ao redor do
posto de controle se moveram para bloquear as saídas. Não éramos muito
amigáveis, é verdade, mas sempre cumpriam seus deveres em momentos
assim. Vários dos guardas ao redor da carruagem ficaram visivelmente
tensos com esse desenvolvimento. Eu me enrijeci um pouco, me
perguntando se realmente estava lidando com alguma gangue perigosa.
O belo jovem balançou a cabeça lentamente.
— Devido a certas circunstâncias extraordinárias, o passageiro deve
seguir com total privacidade.
Não havia nenhuma maneira de que isso funcionasse, é claro.
Quando repeti minha exigência em termos um tanto mais duros, o rosto
do jovem se contorceu em uma careta amarga. Vários de seus companheiros
– aqueles que pareciam mais acostumados a viajar, especificamente –
também olharam para mim e colocaram as mãos nas espadas que
carregavam. Seus movimentos não eram tão rápidos quanto os de guerreiros
mestres, mas tive a sensação de que haviam experimentado sua porção de
combates.
Principalmente o garoto de cabelo branco e estatura baixa que estava
bem atrás do belo líder. Ele, na verdade, era bastante intimidante. A única
arma que carregava era uma varinha do tipo que os iniciantes usavam para
praticar magia básica, mas algo sobre a maneira como se portava sugeria que
era um lutador verdadeiramente letal e com a cautela de um veterano
experiente. Suponho que devia ser o tal de “Fitz Silencioso”. Acho que
nunca senti tanto medo de um menino com menos da metade da minha
idade.
Minha experiência me disse que um grupo como esse poderia causar
danos significativos à nossa guarnição. Deveria ordenar aos soldados que os
prendessem, ou havia alguma outra opção?
Enquanto eu hesitava, alguém falou de dentro da carruagem.
— Pare com isso, Luke.
Era uma voz de ouro. O som disso transformou meu cérebro em
mingau. Havia algo quase hipnótico nela, acredito. Naquele momento,
realmente desejei ouvir aquilo para sempre.
Era uma voz que já tinha ouvido antes – uma que reconheci.
Tinha ouvido isso dez anos antes, na cerimônia de formatura da minha
academia na capital, quando certa pessoa fez um discurso congratulatório ao
nosso orador. Por mais breve que tenha sido o discurso, nunca o esqueci.
Nunca. Naquela época, acho que quase todos os graduados do local se
amaldiçoaram por não terem estudado mais.
— Esses homens estão simplesmente sendo diligentes em seus deveres.
Quando a porta daquela carruagem foi aberta, senti um enorme arrepio
correr pela minha espinha.
Não poderia a esquecer, mesmo se tentasse.
Eu me lembrava claramente, mesmo agora, da jovem princesa que
compareceu à nossa cerimônia de formatura como uma convidada de honra.
Lembrei-me da alegria que senti com a perspectiva de servi-la e servir a este
reino. Lembrei-me de como me senti privilegiado por ingressar nas tropas
deste país orgulhoso.
Vou me lembrar dela até o dia da minha morte.
— M-minhas desculpas, Vossa Alteza…
Mesmo quando criança, aquela princesa de cabelos dourados era
deslumbrantemente linda, e agora estava diante de mim, muito mais linda do
que antes. Caí sobre um joelho na mesma hora, incapaz de pensar em
qualquer coisa.
Não podia haver dúvidas a este respeito. Esta era a Segunda Princesa do
Reino Asura, Ariel Anemoi Asura – a mais amada da família real, que
regularmente aparecia em eventos ao redor da capital e defendia seus
cidadãos. Muitos dos soldados presentes já deviam ter ao menos a
vislumbrado em algum momento do passado. Mas com certeza foi a primeira
vez que qualquer um de nós a viu de tão perto.
— Não há necessidade disso. Pelo que me lembro, existe uma lei que
determina que ninguém servindo em um posto de fronteira precisa se
ajoelhar no desempenho de suas funções normais.
Com essas palavras, a princesa saiu de sua carruagem.
Quase todos os soldados ao nosso redor seguiram meu exemplo e se
ajoelharam. Mas, como a Princesa Ariel apontou, salvo algum tipo de
circunstâncias especiais, ninguém em serviço deveria se ajoelhar. Não sei o
motivo exato, mas há muitos e muitos anos já era assim. Desde que comecei
a trabalhar neste lugar, nunca me ajoelhei diante de ninguém, não importa
sua posição. Esta também foi a primeira vez que vi algum dos soldados fazer
isso. E ninguém jamais nos repreendeu ou desafiou por essas questões.
Mas é claro que o fato de não ser obrigatório não significava que fosse
proibido. Ficamos como estávamos e inclinamos nossas cabeças para Ariel.
Simplesmente parecia ser o que deveríamos fazer.
— P-Princesa Ariel, eu… sinto que é meu dever perguntar… por que
você veio para uma travessia de fronteira como esta com um séquito tão
pequeno?
— Não consegue dizer só de olhar?
Eu sabia que algo estranho estava acontecendo, é claro, e quando
procurei minha memória com base no que Ariel disse, um evento de cerca de
um mês antes da ocasião passou pela minha mente.
O indivíduo no comando geral deste posto de controle não era eu, é
claro, nem meu superior direto, o Oficial Sênior de Controle de Fronteira.
Era um nobre que também servia como prefeito de uma cidade próxima, o
lugar mais próximo onde os viajantes podiam encontrar hospedagem. O
homem poderia passar meses sem dar as caras, mas aparecia para nos dar
algumas ordens quando sentia necessidade.
Em sua última visita, ele nos disse: “Nos próximos meses, alguém
muito nobre pode acabar fazendo uma visita.” Com base na frase “alguém
muito nobre”, imaginei que isso envolveria dezenas de carruagens cercadas
por enxames de atendentes, então nem me lembrei do incidente até que
realmente vi a princesa.
— Disseram-me que alguém muito nobre poderia estar chegando,
sim…
— E foi só isso que lhe disseram?
Sua pergunta fez minhas memórias daquele momento ficarem ainda
mais claras. O homem havia, de fato, continuado: “Esta pessoa
provavelmente tentará cruzar a fronteira e fugir para o norte. No entanto,
você não deve permitir isso. Encontre um motivo para atrasar o grupo e
manter todos esperando na cidade por vários dias.”
Recebi ordens para não permitir a travessia. Para detê-la aqui.
Em outras palavras, para garantir sua morte.
Não era a primeira vez que recebíamos um pedido do tipo. Era
relativamente comum que nobres que cometeram erros graves na capital
tentassem fugir para o norte e, em tais casos, o comandante nos daria
instruções semelhantes. Às vezes, diziam-nos para deixá-los passar, e
chegariam em segurança ao norte. Mas, às vezes nos diziam para atrasá-los
um pouco e, inevitavelmente, “desapareceriam” na floresta logo além da
fronteira.
Nasci e fui criado na capital, mas sou plebeu de nascimento. Sei muito
pouco sobre a corte real e suas facções. Claro, estava ciente de que a nobreza
como um todo estava constantemente envolvida em violentas lutas pelo
poder. Percebi que meu superior não estava condenando certos fugitivos em
troca de dinheiro, muito menos ao acaso. Aqueles que sobreviviam sem
dúvida pertenciam à sua facção da aristocracia, enquanto aqueles que
morriam eram leais aos seus inimigos.
Essa adorável jovem princesa havia perdido uma luta contra os aliados
de meu supervisor e agora estava fugindo. Essa parecia, de longe, a
possibilidade mais provável.
— Qual o problema? Me responda.
Por um momento, fiquei perdido em pensamentos.
Seria fácil sorrir abertamente e responder “Não. Disseram-me
simplesmente para tratá-la com a maior cortesia. No entanto, parece haver
algumas pequenas irregularidades no seu passe. Pode demorar um pouco
para resolver isso, então poderia voltar amanhã?” No passado, fiz sempre
assim. Encontrar algum pequeno detalhe para justificar um atraso não me
representaria nenhuma dificuldade.
Mas, ao mesmo tempo, me perguntei se isso era o que deveria fazer.
Qual era o propósito do meu trabalho, preso a este ponto de fronteira
monótono?
Certamente não estava “servindo ao meu país” de maneira apreciável.
A própria ideia era absurda. Tal pensamento nunca passou pela minha
cabeça, sequer uma vez, mesmo em todo o tempo que já desempenhava o
cargo.
E, ainda assim, apesar de todo o meu cinismo, houve um momento
solitário em minha vida em que senti um verdadeiro dever patriótico. Como
mencionei antes, foi na minha cerimônia de formatura, quando vi a Princesa
Ariel pela primeira vez. Naquele dia, realmente me considerei uma pequena
parte de um grande e orgulhoso país. A ideia de servir a minha nação e a ela
me deu alegria.
Agora que me lembrava desses sentimentos, tinha que me perguntar:
Será que estava realmente disposto a recuar e deixar essa jovem princesa ser
entregue ao seu destino?
A resposta decisiva surgiu de imediato. Não senti necessidade de
hesitar.
— Disseram-me para parar aquele nobre aqui e garantir que passasse
vários dias à espera na cidade vizinha.
Todos os guardas da princesa reagiram a essas palavras, mas a própria
Ariel permaneceu totalmente calma e imperturbável.
— Entendi. Então, o que pretende fazer?
— Nada em especial.
— Você não vai cumprir suas ordens? Não importa o quão estranhas
possam ser, ignorá-las pode te fazer perder a cabeça.
Eu não pude deixar de rir suavemente com a franqueza de suas
palavras.
— Minhas ordens, senhorita? Não tenho certeza do que você está
falando. Nunca ouvi falar de qualquer “pessoa muito nobre” indo para um
país estrangeiro com uma única carruagem surrada e menos de dez guardas.
— Oh?
— No momento, estou lidando com uma jovem bastante pomposa cujo
nome eu nem sei. Se importaria de me dizer quem você é, aliás?
A Princesa Ariel riu com o que parecia ser uma diversão genuína.
Talvez estivesse gostando dessa farsa quase tanto quanto eu.
— Sou Ariel Canalusa. A única filha de um nobre de baixo escalão, na
verdade.
— Muito bem então, Senhorita Canalusa. O que a traz para o norte?
— Estou viajando para Ranoa para me matricular na Universidade da
Magia.
— É mesmo? Bem, não vejo problemas com o seu passe, por favor,
prossiga. Que tenha uma viagem segura.
— Obrigada.
Com uma pequena reverência graciosa e inconfundivelmente real, a
princesa Ariel voltou para a carruagem. O cocheiro pôs os cavalos em
movimento na mesma hora, e seus guardas correram ao lado, parecendo um
tanto perplexos.
— Então. Quem é o próximo da fila?
Quando essas palavras saíram da minha boca, percebi que vários olhos
estavam fixos em mim. Na verdade, praticamente todos os soldados da área
estavam olhando na minha direção.
Me peguei me perguntando se tinha sido muito precipitado quanto a
isso.
Todos esses homens eram fiéis aos seus deveres. Eles não eram como
eu – eram lutadores estúpidos que foram treinados na capital para acatar
ordens como algo absoluto, sem nunca pensar duas vezes. Enquanto estavam
tecnicamente sob meu comando neste posto de controle, no final das contas
eu pertencia a um departamento completamente diferente. Era perfeitamente
possível que seus próprios superiores tivessem ordenado para que não
deixassem Ariel passar. Nesse caso, minha desobediência resultaria em
consequências para todos. Já que a Princesa era um alvo de alta prioridade,
não seria nenhuma surpresa se seus oficiais tivessem mandado um recado
para os soldados rasos, falando que ela poderia estar chegando.
Me preparei da melhor forma possível. Parecia plausível que esses
homens me espancariam até ficar azul para só depois expor o que eu havia
feito. Afinal, permitir a travessia foi uma decisão unilateralmente minha.
Enquanto mordia meu lábio, um dos homens se aproximou de mim sem
pressa.
Era o capitão de todos os soldados no pátio. Seus ombros eram, aliás,
quase três vezes mais largos que os meus.
Ele ergueu a mão, larga e pesada como uma frigideira… e então bateu
nas minhas costas.
Cambaleei para frente, mas, para minha surpresa, quase não senti dor.
— Bom trabalho, amigo.
No momento em que seu capitão falou essas palavras, os outros
soldados ergueram os punhos no ar e rugiram em aprovação. Alguns até
mesmo piscaram para mim.
Embora eu só tenha descoberto isso mais tarde, praticamente todos os
soldados que trabalhavam neste posto de controle eram fãs leais da Princesa
Ariel. Parece que ela também tinha o hábito de frequentemente aparecer mas
cerimônias de formatura do exército. A maioria deles só a tinham ouvido
falar algumas breves palavras, mas eu não estava em uma situação diferente.
Conseguia compreender muito bem como se sentiam.
— Permissão para falar livremente, Oficial Gatlin? Todos nós
acabamos perdendo a cabeça com a frustração por sermos abandonados aqui,
mas, pela primeira vez em anos, você nos deixou de bom humor! Não é
mesmo, rapazes?
— Isso aí!
— Apareça na taverna da cidade nesta noite, certo? Eu pago!
Quando o capitão me deu mais um tapinha nas costas, senti uma
sensação muito peculiar tomando conta de mim. Até alguns minutos atrás,
pensava nessas pessoas como… diferentes de mim em um nível
fundamental, sabe? Me convenci de que eram um bando de bandidos
caipiras e burros, e não súditos leais da família real. Mas não era o caso.
Assim como eu, foram jogados no meio do nada e orientados a obedecer
algum bastardo maldito. Assim como eu, também estavam de saco cheio.
E, depois que percebi isso… estranhamente, comecei a sentir algum
orgulho do meu trabalho.
Desde aquele dia, tenho me dado bem com os soldados, e meu trabalho
me trouxe um verdadeiro prazer.
Tudo graças à Princesa Ariel, sem dúvida. Simplesmente por agraciar
este posto de controle com sua presença, ela o tornou um lugar muito mais
feliz.
Depois disso, o Oficial Gatlin fez um longo discurso sobre a
profundidade de sua adoração pela Princesa Ariel, que optei por omitir.
✦✦✦✦✦✦✦
Bem. Por mais que eu gostasse de ouvir o Oficial Gatlin elogiando a
Princesa Ariel e a elevando aos céus, não era esse o motivo exato pelo qual
estava falando com ele.
— Será que um grupo de homens vestidos de preto passou por este
posto de controle em sua perseguição?
Com essa pergunta, a expressão do homem mudou repentinamente para
uma mais sombria.
— Eles não estavam… exatamente em busca dela, eu acho.
— Como assim?
— Um grupo de pessoas suspeitas passou pelo posto de controle talvez
três dias antes da chegada da Princesa Ariel. Naquele dia eu não estava em
serviço, então só fiquei sabendo disso algum tempo depois.
Isso foi interessante. Se os inimigos de Ariel tinham cruzado a fronteira
primeiro, provavelmente estavam esperando para emboscá-la quando
deixasse o país.
— Se eu soubesse, poderia pelo menos ter avisado… mas, neste
momento, só posso orar por sua segurança.
— Entendi. Muito obrigado.
O Oficial Gatlin claramente não tinha ouvido o boato de que a princesa
já estava morta. Parecia que a história nasceu na capital.
No entanto, isso por si só não era suficiente para me dizer se Ariel
estava viva ou morta.
Decidi continuar coletando informações. O que eu tinha no momento
estava aquém do que precisava para concluir este trabalho.
Conversei com os demais oficiais no posto de controle e tentei dialogar
até mesmo com alguns soldados. Em seguida, fui até a cidade vizinha e
tentei encontrar pessoas que pareciam cruzar a fronteira regularmente.
Precisava saber o que aconteceu com Ariel. Ela conseguiu ficar inteira
após atravessar a floresta? Ou tinha morrido, assim como diziam os
rumores? Corri pela cidade inteira em busca de alguém que pudesse me dar a
resposta… e finalmente encontrei um certo jovem comerciante com uma
história para contar.
Depoimento de Bruno, o Mercador
Naquele dia, eu estava ocupado trazendo minhas mercadorias para o
sul, para Asura, assim como sempre. Desci pela Mandíbula Superior do
Wyrm Vermelho e estava seguindo a única estrada que passa pelas Patilhas
Wyrm… Hein? Ah, certo. Sim, é assim que todos daqui chamam a floresta
ao norte. Mas não sei quem foi que inventou isso.
De qualquer forma, eu estava transportando uma carga de… hmm. Não
consigo me lembrar direito o que era. Provavelmente algumas peles que
você só consegue pegar lá nos Territórios Nortenhos, eu acho.
O quê? Não, era só eu.
Guardas? Pareço ter dinheiro para contratar guardas? Sou bastante bom
em uma luta, sabe. Aliás, já passei até algum tempo treinando no Santuário
da Espada. Err, do que estávamos falando mesmo?
Certo, certo. Eu estava descendo pelas Patilhas Wyrm. Estava sozinho
com meu amigo Robinson.
Hm? Você quer saber onde ele está? Heh. Nos estábulos. Infelizmente
não aceitam burros aqui. De qualquer forma, nós dois estávamos tendo um
desempenho decente. Eu estava de bom humor, pelo que me lembro. Os
negócios estavam indo bem e quase economizei dinheiro suficiente para
comprar uma carroça. Até uma daquelas pequenas que usam em burros
servem para mover muito mais coisas de uma vez, sabe? Essa era uma
perspectiva realmente excitante.
Mas então ouvi o som de metal batendo vindo de algum lugar à frente,
e meu humor piorou na hora.
Não era só o som. Eu podia sentir um cheiro suspeito no ar. Já ganhei a
vida como comerciante por um bom tempo, sabe? Por isso tenho um olfato
excelente para o perigo.
Evitar problemas é sempre bom, claro. Mas, como disse, só há um
caminho através das Patilhas, e eu não poderia simplesmente voltar atrás.
Decidi ir para a floresta com Robinson e seguir pela borda. Sabia que seria
mais inteligente simplesmente deixar o burro para trás, mas ele é meu amado
parceiro de negócios, certo? Não podia arriscar que fosse devorado por um
monstro ou algo assim.
De qualquer forma, eu e ele começamos a nos mover pela floresta,
garantindo que ficaríamos escondidos. O som de metal colidindo ficava mais
alto à medida que avançávamos, e comecei a ouvir até o grito das pessoas.
Robinson estava um pouco assustado, mas nós estávamos juntos, então ele
ficou manso e quieto. Já passamos por altos e baixos juntos, sabe?
O que foi?
— Chega de falar sobre o burro, diga-me, o que você viu?
Cara, você é bem impaciente… Mas, tá bom, tanto faz.
Quando espiei a cena por trás da vegetação rasteira, a primeira coisa
que notei foi uma carruagem. Bem, não era tão grande assim para uma
carruagem. Provavelmente estava carregando três pessoas, isso se formos
contar com o cocheiro. A maioria das desse tamanho usa só um cavalo, mas
naquela estavam usando dois, então provavelmente era uma personalizada.
Hmm? Ah, quer saber por que sei tanto sobre isso? Bem, estou tentando
decidir qual carroça comprar para o meu burro, certo? O vendedor de
carruagens me explicou um pouco sobre toda a linha dele, e… Tá, tá, tá
bom. Você não tem que ficar olhando pra mim desse jeito, cara! Vou voltar
ao assunto.
De qualquer forma, logo percebi que a carruagem foi atacada. Digo, ela
estava tombada, e alguns caras que pareciam guardas estavam lutando com
um monte de outros caras usando roupas pretas. Quando cheguei lá, eram
sete caras de preto enfrentando quatro guardas. Dois guardas, ou talvez
servos, já estavam caídos no chão. Ah, e também havia quatro garotas
escondidas perto da carruagem, tremendo muito. Provavelmente estavam
sendo vítimas de um ataque.
Os caras das roupas pretas tinham maiores números, mas não parecia
que estavam na vantagem nem nada do tipo. Afinal, muitos deles estavam
caídos no chão. Já devia ter uns doze deles caídos. Eu fiquei meio pasmo, na
verdade. Fiquei pensando no tipo de gente idiota que enviou um bando de
amadores desajeitados para cuidar de um trabalho desses.
Entretanto, entendi tudo errado. Quando olhei com um pouco mais de
atenção, percebi que os caras de preto não eram nada ruins. Eram, no
mínimo, mais habilidosos que os guardas. Em uma luta justa, no mano-a-
mano, com certeza ganhariam.
Hein? Quer saber como sou capaz de dizer isso? Presta atenção. Como
eu disse, sou um espadachim melhor do que você imagina. Quando vejo
alguém lutando, posso dizer o quão forte é.
De qualquer forma, tudo aquilo me pareceu muito estranho, então
acabei parando para assistir a batalha. E depois de alguns segundos, percebi
que um cara do lado dos guardas era habilidoso demais. Era uma criança de
cabelo branco, sabe? Bem magrinha, e só usava uma varinha mágica de
iniciante. Mas, por alguma razão, estava em um nível totalmente diferente do
resto.
De volta ao Santuário da Espada, vi alguns caras que estavam se
tornando Santos ou Reis da Espada. E, deixe-me dizer, parecia que o tempo
passava dez vezes mais devagar para eles. Não tinham apenas um trabalho
de pés rápido; podiam fazer julgamentos adequados em um piscar de olhos.
O menino não era tão bom assim, mas eu posso dizer que ele tinha uma
consciência absoluta e excelente do campo de batalha. Sempre que um de
seus amigos estava em perigo, lançava um feitiço no momento perfeito e
salvava o traseiro de todos.
Ah, e ele também só estava usando feitiços de nível Iniciante. Acho que
estava tentando preservar mana. E estava fazendo um trabalho divino, sério.
Um mago comum não conseguiria fazer uma coisa daquelas nem em um
milhão de anos. Sabe, a pessoa precisa ser muito bem treinada, de uma
forma bem específica, para fazer as coisas daquele jeito.
Bem, e de onde eu estava, não conseguia ouvir nem os encantamentos.
Acho bem possível que fossem feitiços não verbais… sabe, aquelas magias
sem encantamentos. Nunca vi aquilo antes, mas acho que tem gente por aí
que consegue fazer isso.
De qualquer forma, foi impressionante. Mas acho que os caras de preto
se adaptaram ao estilo depois de vê-lo derrubar metade do time. E, além
disso, parecia que os guardas estavam muito cansados. Em outras palavras, a
luta estava mais equilibrada do que pensei. Senti que, assim que um único
homem de qualquer um dos lados caísse, estaria tudo decidido.
Mas, no geral, acho que os caras de preto estavam mais organizados.
De repente, mudaram toda a estratégia. Deviam ter se comunicado com
sinais, mas eu com certeza não percebi.
Até aquele ponto, estavam adotando uma abordagem direta de dois
contra um, contra os três guardas da linha de frente, com um outro cara
ajudando quem parecia precisar. Do nada, os sete se retiraram e foram na
direção do garoto de cabelo branco.
Os três espadachins não conseguiram reagir a tempo. Mas a criança
sim. De alguma forma, mantendo seu foco, imediatamente lançou um feitiço
em área que matou dois inimigos de uma só vez.
Nesse ponto, os caras de preto se espalharam. Dois deles seguiram em
direção ao menino de cabelo branco, e os outros três correram direto para as
garotas perto da carruagem. Acharam a oportunidade que queriam para
romper a defesa dos guardas.
Mas o mago de cabelo branco ainda conseguiu reagir. Sem nem mesmo
olhar para os dois assassinos caindo sobre ele, o garoto apontou sua varinha
para os que estavam indo até as mulheres. Inacreditável, né? Normalmente,
qualquer um ficaria mais preocupado com a própria vida.
No instante seguinte, aconteceram várias coisas de uma só vez.
Primeiro, o garoto de cabelo branco lançou um feitiço desagradável que
matou dois dos assassinos que estavam atacando as garotas.
Em segundo lugar, dois dos guardas correram para interceptar os dois
caras de preto que foram atrás do garoto. Os quatro foram abaixo de uma só
vez.
E, finalmente, o último dos homens de preto puxou uma das garotas
assustadas e trêmulas do grupo e cortou sua linda cabecinha fora.
Um instante tarde demais, o último dos espadachins o apunhalou pelas
costas. Orgulhosamente segurando a cabeça decepada de sua vítima, o
homem morreu com uma expressão satisfeita no rosto.
Suponho que ela era a jovem que os guardas lutaram tanto para
proteger.
Os cinco sobreviventes ficaram lá, parados, em silêncio, completamente
atordoados. Compreensível, né? Digo, perderam a maioria de seus
companheiros e também a garota que queriam proteger.
Quando o show acabou, silenciosamente me movi pela floresta. Para
começo de conversa, existia a possibilidade de alguns monstros serem
atraídos para a área graças ao cheiro de sangue. E eu realmente não queria
lidar com eles me pedindo ajuda. Robinson e eu demos no pé na mesma
hora.
✦✦✦✦✦✦✦
E essa foi toda a história de Bruno.
Em combinação com o que eu descobri com o Oficial Gatlin, parecia
que a Princesa Ariel havia passado em segurança pelo posto de controle,
apenas para ser emboscada na floresta ao norte, onde os assassinos tiraram
sua vida durante uma batalha violenta.
Afinal, os rumores eram verdadeiros. Assim como os nobres de sua
facção temiam, Ariel estava morta.
Ainda assim, havia alguns mistérios restantes.
Por exemplo, o que aconteceu com os sobreviventes? Pelo que Bruno
me contou, cinco membros do grupo conseguiram superar a batalha. O
estado de Luke Notos Greyrat continuava desconhecido, mas ao menos o
Fitz Silencioso ainda estava vivo. Esse cara realmente se destacava na
multidão, e eu não tinha ouvido uma única palavra sobre ele voltando para
sua casa na capital.
Havia uma chance de que tivesse seguido alguma rota secundária em
vez da que eu segui aqui, mas isso ainda implicaria em uma passagem pela
fronteira. Ninguém no posto de controle havia mencionado que ele voltou,
então eu tinha que pensar que continuou se movendo para o norte.
Mas isso não me parecia tão estranho assim. Seria preciso alguma
coragem para voltar para casa, em desgraça, após deixar a Princesa Ariel ser
assassinada. Talvez tenha decidido que seria mais inteligente fugir para os
Territórios Nortenhos.
Se cruzasse a fronteira, não seria difícil descobrir se isso aconteceu
mesmo, só precisaria passar um tempo por lá, é claro… mas, infelizmente,
meu campo de especialização é “qualquer coisa dentro das fronteiras de
Asura”. Não trabalho com assuntos internacionais.
Além disso, meu trabalho era determinar o paradeiro da Segunda
Princesa Ariel Anemoi Asura. Seus guardas estavam fora do escopo dessa
missão, então decidi voltar para a capital real. Meu coração pertence à
cidade, sabe? Não consigo ficar confortável quando estou longe de casa.
Mesmo assim, consegui comprar uma bebida rara dos Territórios
Nortenhos com meu parceiro Bruno. Depois de terminar todo o trabalho, iria
me presentear com uma festinha particular.
✦✦✦✦✦✦✦
Sério, mais alguém precisava ter visto a expressão de Pilemon quando
relatei minhas descobertas. Foi bom ver um homem que lidava com
informações muito acima do meu escopo ficar branco feito um fantasma por
causa de alguns fatos que relatei.
De qualquer forma, o caso foi oficialmente encerrado e recebi meu
pagamento integral.
Decidi fazer um bom jantar de comemoração para saborear minha pilha
de dinheiro, a bebida que comprei de Bruno e a lembrança do rosto do meu
cliente.
Fui até meu bar favorito, pedi uma comida leve e me sentei para relaxar
no meu lugar de sempre. Sabe, ali de onde eu ficava, dava para ter uma boa
visão do ambiente todo; era basicamente a minha mesa pessoal.
Quando me concentrava o suficiente, conseguia ouvir todas as
conversas aos arredores. Esta era uma das minhas habilidades mais úteis.
Quem quisesse ser um corretor de informações de primeira categoria não
poderia deixar nenhuma notícia passar despercebida.
— Ouvi dizer que apareceu um boato de que a Princesa Ariel foi morta
no norte, hein?
— Sim. É uma pena. Eu era um grande fã…
— Vamos lá, não me diga que você acredita nessa merda.
— Bem, não é como se eu quisesse, mas…
Alguém estava falando sobre o assunto do momento, então olhei
naquela direção. Um cara de aparência robusta estava bebendo com um
homem significativamente mais velho. Claro, nenhum deles conhecia a
verdade. Eram apenas fantoches sem noção, dançando da maneira que os
últimos rumores desejavam.
O pensamento me deixou com um humor ainda melhor. Às vezes, é
muito bom ser um homem que está por dentro do assunto.
— Olha, estou estacionado no posto de controle perto da fronteira,
sabe?
— É claro que eu sei disso, Tio. Você acabou de completar 20 anos de
trabalho, não foi? É por isso que te deram uma licença estendida.
— Que sabe-tudo. Também sabe o que eu faço naquele posto de
controle? Hm?
— Uh, não…
O assunto parecia estar se afastando de Ariel, então me vi perdendo o
interesse. Eu podia ver o barman dando os toques finais no meu pedido.
Mas, o caso foi encerrado, certo? Meu próximo trabalho seria encontrar a
melhor maneira de aproveitar essa bebida.
— Eu trabalho na torre de vigia.
Bem, assim fiquei interessado de novo.
— Bem no topo do posto de controle, temos um implemento mágico
que nos permite ver muito longe. Nós o usamos para ficar de olho no outro
lado da floresta ao norte, sabe? Eu sou o responsável por isso.
— Não brinca.
— De qualquer forma, a notícia se espalhou bem rápido depois que a
Princesa Ariel passou pelos portões lá embaixo. Todos os meus garotos da
equipe de vigia estavam morrendo de vontade de pelo menos dar uma olhada
nela, então ficamos olhando até ficarmos cansados.
— E-então o que houve? Você a viu saindo da floresta?
— Com certeza. Era a Princesa Ariel, sem dúvida.
Isso não pode estar certo, pensei comigo mesmo. Este velho soldado
estava mentindo? Ou será que Bruno tinha, por algum motivo, mentido?
Não parecia provável… mas era possível que Bruno tivesse entendido
tudo errado. Talvez a garota que o último assassino matou não fosse
realmente a Princesa Ariel. Pelo que eu ouvi, a família real Asurana possuía
alguns instrumentos mágicos extravagantes que podiam transformar alguém
em um substituto perfeito. Ela provavelmente usou um desses para
sobreviver ao ataque.
Tirei a conclusão errada. Entreguei informações erradas. Isso não era
bom. Precisava obter uma confirmação desta história, então contar a verdade
ao meu cliente…
— Aproveite, parceiro. — O barman deixou minha comida na mesa.
Havia um prato de comida fumegante na minha frente e, ao lado, uma
garrafa de bebida rara que quase nunca se via em Ars.
— Ah, para o inferno com isso… — Eu meio que me levantei da minha
cadeira, mas optei por me jogar de volta nela. Se a princesa estivesse
realmente viva e matriculada na Universidade de Magia de Ranoa, a verdade
iria se espalhar mais cedo ou mais tarde. A última coisa que eu precisava era
de algum nobre arrogante me pedindo um reembolso, então simplesmente
teria que deixar a capital em breve.
Mas, sério… Quem teria pensado que os vigias daquela torre poderiam
tê-la visto daquela distância? Até mesmo um cara inteligente como eu às
vezes acaba deixando alguma coisa passar, acho.
No final, o corretor de informações conhecido como Gustaf forneceu a
seu cliente informações enganosas.
Como resultado, Pilemon Notos Greyrat, o principal membro da facção
Ariel, foi compelido a fazer uma escolha dolorosa que o deixou em uma
situação difícil… mas essa é uma história para outra hora.
Arte de Personagens
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.
[←2]
Womp womp womp womp…
[←3]
São ambos golpes especiais do Terry, de The King of Fighters.
Table of Contents
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Capítulo 01: O País Sagrado de Millis
Capítulo 02: A História de Paul
Capítulo 03: Contenda de Família
Capítulo 04: Reunidos
Capítulo 05: Objetivos Confirmados
Capítulo 06: Uma Semana em Millishion
Interlúdio: Eris, a Matadora de Goblins
Capítulo 07: Para o Continente Central
Interlúdio: O Regresso de Roxy
Capítulo Extra I: Carne de Dragão, Estilo Nanahoshi
Capítulo Extra II: A Morte de Ariel
Arte de Personagens

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