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Sumário

Capítulo 1: A Chegada do Forasteiro............................................................................................. 4


Capítulo 2: Ponto Fraco............................................................................................................... 14
Intermissão: Uma Traição Esperada............................................................................................21
Capítulo 3: Armadilhas.................................................................................................................23
Capítulo 4: Uma Falha nos Planos................................................................................................35
Capítulo 5: O Teixo.......................................................................................................................47
Capítulo 6: O Exército.................................................................................................................. 56
Intermissão: Banis Saqueada.......................................................................................................68
Capítulo 7: Lar..............................................................................................................................69
Intermissão: Kai Nen....................................................................................................................82
Capítulo 8: Velhos Amigos........................................................................................................... 84
Capítulo 9: Um Novo Destino...................................................................................................... 96
Primeira Parte
Capítulo 1: A Chegada do Forasteiro

— Agora! — Gritou o irmão mais velho. O outro não hesitou, apontou a tocha que tinha
em mãos na direção da criatura em formato de tigre e com um movimento de mãos e uma
palavra as chamas cresceram e se lançaram onde ele desejou. O felino, feito inteiramente de
gelo, já tinha várias partes do corpo lascadas e derretidas. Aquela labareda seria a derradeira. O
corpo inteiro começou a se liquefazer, terminando como uma enorme poça d’água.

— Finalmente! Derrotamos o último deles! — Comemorou Cassius, com um enorme


sorriso no rosto. Olavo estava exausto demais para sorrir. — Temos que contar para Isabelle!
Sabe o que isso significa, Olavo?

O outro rapaz sentou-se no chão frio da caverna onde estavam e soltou um suspiro de
alívio. O mais velho continuou:

— Significa que iremos embora de Banis! Chega de ter que aguentar Kor e os aldeões
nos incomodando. Vamos para um lugar onde haja vida! Quem sabe você não encontra uma
esposa também.

— Vamos para casa por hoje, Cassius. Ainda tenho que terminar de copiar as runas, mas
faço isso outro dia. — O outro respondeu:

— Parece que você tem oitenta anos Olavo! Consegue pensar em outra coisa que não
trabalho?

— Não enquanto estou congelando dentro de uma caverna escura. Ah, olha só, agora
essa água gelada do elemental entrou na minha bota!

— Pelo visto não é só o cabelo que é de moça...

— Tem inveja porque o meu cabelo é bem cuidado.

E os dois irmãos voltaram para suas casas, satisfeitos e brincando. Felizes.

...

A garota, de longas tranças castanhas, roupas simples e de expressão bondosa estava no


pequeno santuário do vilarejo, dedicado aos deuses conhecidos como os Filhos de Torus. Dez
crianças, e uma garota não tão criança assim, também estavam presentes, prestando atenção
em tudo que ela dizia.

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— E foi então que Taos, a deusa da guerra e da primavera, atingiu a espada de Torus,
separando o cabo da lâmina. — A moça falava de uma maneira cativante, até mesmo para o
estrangeiro parado na porta — O deus lançou o cabo no meio da terra, formando uma enorme
cratera, que hoje está cheia de água: o Mar Central. A lâmina, arremessou além do horizonte,
onde nenhum homem jamais chegou. — Nesse momento ela virou o olhar para a entrada. —
Crianças, eu terminarei essa história amanhã. — os ouvintes soltaram um sonoro “ahhhh” —
agora vão, filhos dos deuses! — Os pequenos se voltaram para a porta e espantaram-se com a
visão que tiveram.

Ao sul do continente, na região mais fria, a maioria das pessoas tinha peles brancas e
cabelos claros. Ali na porta estava parado um homem de quase dois metros de altura, com a
pele negra como o ébano, mais forte do que o mais forte dos homens que já viram. Trajava
uma armadura metálica feita de anéis de metal, por baixo de um grosso casaco de peles e trazia
em suas costas um enorme bastão de madeira. Na cabeça, um singelo chapéu de palha. Ele
adentrou o pequeno santuário, sob os olhares suspeitos das crianças, que logo correram para
espalhar a notícia de sua chegada.

O santuário era uma pequena casa de madeira. Havia sete estatuetas formando um
heptágono, cada uma representando um dos filhos de Torus. A moça aproximou-se, do
forasteiro. Ao contrário das crianças ela sabia que se tratava de um habitante do norte, apenas
não entendia o que ele poderia estar fazendo tão ao sul, em um lugar tão inóspito como
aquele.

— Olá senhor, o que o traz a um lugar como nosso humilde vilarejo? — Cumprimentou-
o gentilmente Isabelle.

— Olá senhorita. — Falou enquanto se aproximava da garota — Deixe eu me


apresentar. Chamo-me Adônis Ley e você?

— Sou Isabelle, sacerdotisa da deusa Glacial.

— É um prazer. — Respondeu um pouco seco, se esforçando para ser simpático. — Ouvi


dizer que nesse vilarejo habita um mago, estou certo?

A garota tomou um choque. Magos costumam ser temidos, é raro alguém falar deles
com tamanha naturalidade. Ela permaneceu em silêncio, mas sua expressão já havia
denunciado a resposta. Adônis continuou:

— Com o nome de Eritros. — Novamente a jovem não pode conter o espanto.

— De fato um mago habitava esse vilarejo, mas não era esse o nome dele. — Adônis
sabia que Eritros não seria ingênuo e dizer seu nome verdadeiro aos aldeões. Insistiu:

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— Habitava?

— Ele faleceu alguns meses atrás.

Agora foi a vez do homem se incomodar. Sua presa havia fugido há mais de vinte anos
da Ordem dos Magos e escondia-se realmente muito bem. Adônis nem mesmo era parte da
Ordem nessa época. Somente nos últimos tempos havia se tornado crucial encontrá-lo. Mas,
por mais que ele estivesse morto, a missão tinha uma segunda parte.

— Por um acaso esse senhor tinha filhos?

— Não que eu tenha conhecimento. – Veio imediatamente a resposta. Os dois ficaram


se olhando por alguns instantes. Um clima pesado se instalou ali.

— Onde posso encontrar o prefeito desse vilarejo.

— O regente mora na casa maior, no final da única estrada. — prefeito era um nome
utilizado somente pelos povos do norte. Por mais alguns segundos ficaram parados, apenas se
olhando.

— Muito obrigado senhorita Isabelle. — Virou-se e saiu sem se despedir, para alívio
momentâneo da moça. Realmente momentâneo. Caso contrário ela não teria saído em
disparada do templo.

...

O homem trajava orgulhosamente sua cota de malha e carregava em sua cintura uma
maça de armas ao receber o nortista. Adônis parecia maior ainda perto de alguém com menos
de um metro e setenta de altura.

— O que o traz aqui, enorme forasteiro. — Após dita a frase, Kor notou como ela foi
ridícula.

— O senhor é o regente? — “Pequeno homem”, por muito pouco Adônis não o disse.

— Sim, sou Kor, o regente de Banis. — Recitou orgulhosamente, estufando o peito.

— Vim aqui à procura de dois magos. — Kor espantou-se imediatamente, como era de
se esperar. — Dois rapazes, um deles deve ter por volta de vinte anos e outro deve ser mais
novo.

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— Sim, há de fato dois malditos magos aqui! — A ênfase no “malditos” foi muito forte.
— O que você quer com eles?

— Vejo que não são benquistos. Eles tem feito algo de errado aqui?

— Hah! Há algum jeito de um mago fazer algo que não seja errado? São seres profanos
esquecidos pelos deuses!

— Pois então eu tenho uma notícia boa para lhe dar. Saberia me levar até onde eles
moram?

— Sim, certamente. Mas o que você quer com eles?

— Logo você saberá.

...

A porta da casa de madeira se abriu e entraram dois homens. Ambos eram altos e
tinham a mesma cor de cabelo: castanho-avermelhado, quase ruivos. Um deles tinha uma
barba espessa e um cabelo curto e desgrenhado, era musculoso e trazia consigo um enorme
machado amarrado às costas além de outros dois menores, presos na cintura. O outro tinha o
rosto liso, com um sedoso cabelo descendo até a metade das costas. Era mais magro e
carregava somente uma espada curta, embainhada ao lado da perna esquerda. E os dois
tinham os mesmos olhos. “Os olhos da sua mãe”, sempre dizia o falecido pai. Olhos cor de mel.

Os dois sorriram ao ver quem os aguardava, mas certamente o barbudo sorriu mais.
Correu, abraçou-a e beijou-a na boca.

— Eu definitivamente não poderia ter um dia melhor! — disse Cassius, após afastar sua
boca de Isabelle. — Já estou feliz e ainda encontro na minha casa o maior motivo de felicidade
que eu poderia ter!

A garota abriu um sorriso e logo em seguida trocou-o por uma expressão de


preocupação, ainda abraçada com Cassius. Apertou-o com mais força. Olavo notou e
perguntou:

— Isabelle, algo de errado?

— Um homem do norte foi ao templo hoje. Estava procurando por Eritros... E por vocês.
— Disse em um tom de voz sombrio.

— Minha amada, não vejo porque se preocupar. — Respondeu Cassius, ainda bem
humorado. — Acabamos de retornar da caverna de gelo, onde estão as runas que faltavam

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para a pesquisa do nosso pai. Derrotamos o ultimo elemental de gelo! Só resta Olavo copiar as
runas e poderemos ir embora daqui! — Falou após se afastar um pouco de Isabelle.

— E se esse homem vier até aqui? — Colocou Olavo.

— Deixe que venha!

— E se ele for da Ordem?

— Irmãozinho, destruímos um bando de elementais e você terá medo de um homem?

— Ele era enorme e muito forte — Acrescentou Isabelle.

— Dentre todas as criaturas que habitam nosso mundo, os Humanos certamente são as
mais vis e perigosas. — Respondeu Olavo.

— Aonde você leu isso? — Replicou Cassius.

— Em a era gloriosa, de Octavio. E não importa, o que importa é que é verdade!

— Deixe de ser medroso irmãozinho, seja lá quem for, seja um mago ou não, ele é um
homem apenas. Nós somos dois e mais que isso, somos fortes! Não vejo motivos para temer.

— Cassius, meu amor — começou Isabelle, fazendo o rapaz se virar para ela — Em uma
batalha, sempre há o risco de alguém morrer. Taos pode proteger os guerreiros, mas ela não
lhes garante a segurança. Não seria melhor sairmos daqui agora mesmo? — Se aproximou e
agarrou-se ao forte braço do rapaz.

— Isabelle tem razão. Podemos voltar no futuro em busca dessas runas, em um


momento mais seguro! — Completou Olavo.

— Fugir. — Cassius fechou o rosto. — Para onde?

— Sete Torres, não é para lá que iríamos de qualquer forma? — Disse Olavo. —
Podemos encontrar Teodoro, ele saberá nos ajudar!

O irmão mais novo e Isabelle ficaram olhando Cassius, enquanto ele mantinha o rosto
fechado. Ponderou um pouco e respondeu:

— Vocês têm noção de que em Sete Torres há um conclave da Ordem dos Magos? Se
esse forasteiro fizer parte da Ordem, lá ele não estará sozinho. Somos fortes o bastante para
enfrentar um deles, mas não me arriscaria contra uma tropa inteira. — Contra-argumentou
Cassius.

— Podemos fugir para outro lugar... — Tentou Olavo.

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— Sim, e então ele irá até esse lugar. Aí fugimos para outro, e ele irá até esse outro.
Iremos fugir para sempre. É isso o que está sugerindo irmãozinho? Se ele quiser nos perseguir a
batalha é inevitável. Além do que, nem sabemos o que ele quer. Continuo dizendo, deixe que
venha!

— Eu acredito que ela já deva estar a caminho — comentou Isabelle.

— Então é melhor você ficar aqui, minha amada. — Sugeriu Cassius. — Não sabemos o
que ele quer, mas vocês dois certamente estarão seguros enquanto estiverem comigo. Eu
tenho um plano.

...

Kor guiara Adônis até uma trilha na floresta. Estava sendo ocupada pela vegetação
nativa. O sol já se punha e em seu lugar a estrela Glacial brilhava no céu. Esse astro recebia esse
nome, pois brilhava muito forte no inverno e chegava a desaparecer completamente no verão.
As pessoas acreditavam que era uma estrela de gelo, contrária ao sol. Um trazia calor e vida. A
outra, frio e morte. Assim como o dia, o outono também chegava ao fim. E para um homem do
norte, o outono do sul era mais frio do que o pior de seus invernos.

A trilha era um pouco longa, quando chegou até a casa já havia anoitecido
completamente. Ele caminhava com o cajado em mãos, não que precisasse dele para caminhar.
Enfim avistou a casa. Era um casebre simples de madeira no meio da floresta de coníferas. Um
pouco de luz passava pelas frestas da porta. Bateu. Após algum tempo a voz de um rapaz
respondeu:

— Quem é?

— Um viajante em busca de ajuda.

Silêncio. Adônis aguardou um pouco e bateu novamente.

— O que quer? — Não era nada amigável a voz que respondia.

— Ouvi dizer que um mago habita essa casa.

— Ouviu errado então. Vá embora!

— Por favor, sou um homem doente! — Arriscou uma mentira.

— Não há nem magos nem curandeiros nessa casa! — Recebeu outra como resposta.

Novamente silêncio. Adônis notou algo se movendo na mata, muito sutilmente.


Preparou sua mente enquanto voltava a falar:

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— Juro que não pretendo lhe fazer nenhum mal.

— Um homem de bem não viria bater à minha porta tão tarde.

— Já disse, sou um homem doente, sofro dia após dia, senhor mago! Cassius, esse é seu
nome? Conheci seu nobre pai há muito tempo... por favor, peço encarecidamente...

— Suma daqui!

Novamente o silêncio. Adônis resolveu mudar de estratégia.

— Venho como um emissário da Ordem dos Magos. Venho apenas conversar, não
desejo lhes causar mal algum.

Sem resposta.

— Vou lhe dar duas opções. Ou você abre essa porta, ou irei pô-la abaixo!

— Não tinha vindo em paz?

— Sim, você me fez mudar de ideia.

— Vou lhe avisar... vá embora daqui agora, para o seu próprio bem!

— E eu lhe retorno o aviso, abra a porta agora, ou irei abri-la eu mesmo!

— Pois tente!

...

Cassius estava ouvindo tudo através de uma magia para aguçar seus sentidos. No
instante em que o homem se preparou para atacar a porta ele saiu de sua camuflagem,
investindo com seu machado. Mas seu oponente virou a mão aberta em sua direção e dela saiu
um forte flash de luz, ofuscando-o, porém não o impediu de avançar brandindo cegamente sua
arma.

Adônis abriu os olhos logo depois do feitiço, desviou do ataque cego do inimigo, sacou o
punhal e o esfaqueou. Cassius tinha um escudo místico em volta do corpo e sofreu somente
uma perfuração superficial. Logo em seguida girou o machado, forçando o oponente pular para
trás.

Olavo abriu a porta e começou a gesticular e pronunciar palavras de poder. No entanto,


antes que pudesse terminar, Adônis lançou o punhal em sua direção. A arma penetrou em seu
ombro esquerdo e fazendo-o errar o gesto e urrar de dor.

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Após arremessar sua arma, o homem empunhou o cajado que levava e pronunciou:

—Sefer!

O bastão imediatamente tornou-se uma enorme espada, reluzindo à luz da estrela


glacial. A visão de Cassius voltara ao normal e o rapaz virou-se bem a tempo de bloquear um
golpe.

Os dois combatentes estacaram. Cassius falou:

—Porque está nos atacando?!

—Foi você quem me atacou primeiro. — Mantinha a voz baixa, porém rancorosa.

—Ameaçou entrar à força!

—Apenas quero conversar.

—Não temos nada a tratar com a ordem! E você feriu meu irmãozinho! — Olavo urrava
de dor.

—A ordem tem assuntos a tratar com vocês.

—Vá embora e fingiremos que nunca apareceu. — Ambos estavam ofegantes.

—Não irei embora até resolver meus assuntos.

O mago com o machado apertou o cabo de sua arma com raiva e retrucou:

—E que assuntos são esses?

—A ordem deseja recrutá-los. — Adônis prestou atenção no mago que havia


apunhalado. Estava fazendo um feitiço de cura.

Cassius riu com gosto, rebatendo:

—E se não quisermos?

—Devo levá-los até a ordem, não importa como. — Olhou fixamente para o oponente
em sua frente. — Venha comigo, essa batalha é inútil.

—Inútil? — ele ria sarcasticamente enquanto dizia isso.

—Sim, serão levados até lá de qualquer forma.

Após outra gargalhada, o mago respondeu:

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—Leve-nos então! — E avançou com o machado erguido.

Enfrentaram-se por um momento, entre esquivas e ofensivas. Adônis notou que o outro
mago estava se levantando, já recuperado do ferimento. Logo iria tentar outro feitiço e
provavelmente acabaria com aquela luta. Precisava fazer alguma coisa e rápido. Com um
movimento enérgico derrubou o machado do oponente e em seguida fez um corte no peito
dele, derrubando-o e fazendo um rasgo na armadura.

Olavo se recuperara e agora lançava um feitiço mais rápido. Folhas e poeira se


levantaram em volta de seu inimigo, criando uma nuvem espessa onde era impossível enxergar.
Isso o distraiu por tempo suficiente para Cassius se levantar e sacar um machado de arremesso.

Adônis usou uma magia de anulação e a nuvem de poeira se abaixou. Viu o machado
voando para seu pescoço e colocou o braço esquerdo na frente. A arma cortou através de sua
braçadeira de couro e ficou cravada na carne. O ferimento era profundo, não seria capaz de
usar sua espada nesse estado. Além disso, Olavo estava novamente gesticulando
freneticamente. Adônis ficou espantado com a rapidez que o jovem tinha para conjurar magias.
Não teria como derrotar aqueles dois magos. Precisava fugir. Largou a espada no chão, apontou
para o mago que estava conjurando e revogou sua magia, atrapalhando o fluxo de mana do
garoto com o seu próprio. Uma atitude arriscada, pois demandava uma enorme quantidade de
energia. Após isso se virou e, usando um feitiço para aumentar sua velocidade, correu.

Cassius foi atrás, também sob efeito de um encanto semelhante. Começaram a adentrar
a floresta. Olavo gritou:

—Cassius! Volte! — E começou a correr após vê-los sumindo em meio às árvores.

O fugitivo estava em apuros, afinal de contas os magos deviam conhecer muito bem
aquela floresta, enquanto cada passo que ele dava o deixava mais perdido. Quase podia ouvir a
respiração de seu adversário. Ambos estavam feridos e cansados, porém ele preferia não
arriscar. Criou algumas ilusões sonoras e torceu para que o adversário se perdesse.

O perseguidor ouviu-o conjurando e xingou ao ouvir os passos dele se dividirem em


cinco direções diferentes. A escuridão da mata estava forçando-o a utilizar sua audição para
seguir os rastros. Não era muito hábil com ilusões e simplesmente tentou a sorte. Após algum
tempo os passos pararam. Cassius desistiu da perseguição e urrou de frustração.

Os dois lados saíram perdendo aquela batalha. E sabiam que era apenas a primeira.

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Capítulo 2: Ponto Fraco

Adônis continuou sua fuga durante a noite toda, aliviando-se ao ouvir ao longe um grito
frustrado. Estava muito cansado, mas ainda conseguiu encontrar seu caminho de volta para a
estrada. Se os magos o encontrassem ele não teria chance alguma. Afastou-se até não aguentar
mais e descansou escondido. Já amanhecia quando parou de fugir. Dormiu até o meio da tarde.

Ao acordar deu-se conta da derrota. Seu braço estava ferido, sua espada perdida e
demoraria alguns dias até recuperar suas capacidades mágicas inteiramente. Além disso, fora
derrotado em combate direto, significando que os inimigos eram de fato mais poderosos que
ele. Certamente poderia vencê-los individualmente, mas os dois juntos estavam além de sua
capacidade.

Jamais imaginaria que Eritros teria um filho tão bom em combate corpo a corpo. Além
disso, o garoto lutava com um machado, uma arma que não estava acostumado a enfrentar.
Mas nada disso era desculpa, no fim fora derrotado por um menino. Outra ferida e pior do que
o corte no braço. Uma enorme e nojenta ferida no orgulho.

Começou a organizar os pensamentos. Precisava se recuperar. Poderia pedir reforços,


no entanto isso iria ferir mais ainda seu orgulho. Seria o mesmo que fugir.

Não, não iria fugir.

Derrotaria o inimigo. Precisava encontrar uma fraqueza em seus inimigos e explorá-la.

Lembrou-se do encontro com a sacerdotisa voltando daquela trilha, e dela mentindo


sobre a existência dos magos. Aí estava, o ponto fraco deles.

...

Os dois magos estavam tratando seus ferimentos na manhã seguinte. Isabelle preparou
uma infusão de ervas e Olavo passava-a sobre o ombro. O feitiço que usara para fechar o seu
ferimento não representava uma cura verdadeira. Magias de cura verdadeira requerem rituais
mais complexos, muita energia e alguns componentes específicos. Ele gastou esses
componentes recuperando seu irmão. O golpe que recebera no peito foi mais profundo do que
imaginaram. Não estavam em condições de buscar mais componentes para curá-lo também.
Acabou contentando-se com a infusão de ervas.

Cassius estava sentado em uma cadeira. O ritual fora efetivo e seus ferimentos não
doíam mais, apesar dele continuar exausto. Olhou para o irmão e disse:

—Viu irmãozinho, deu tudo certo no final.


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O outro retribuiu com um olhar severo:

—Certo? Ele quase arrancou meu braço e por pouco não te repartiu em dois.

—Ele era um inimigo poderoso, não é minha culpa. Além disso, veja que bonita espada
nos deixou.

Olavo apenas bufou. O mais velho olhava a arma. Tinha belos detalhes em forma de
raios na lâmina. O cabo prateado tinha uma dezena de pequenas esferas vermelhas
incrustadas. Apesar de ser enorme, não era tão pesada. Realmente uma obra-prima.

—Temos que encontrá-lo.

—O que?! Ficou louco?!

—Ele vai querer essa arma de volta. Se não formos atrás dele, ele virá atrás de nós. —
Manuseou um pouco a espada e continuou: — Quero revanche, vou fazê-lo sentir o gosto da
própria lâmina.

—Mas é muito arriscado!

—O que sugere então?

O rapaz ficou pensando um pouco. Não tinha nenhuma ideia do que fazer, mas não
gostava de ir correndo atrás do inimigo.

— E Isabelle? Ela não ficará em perigo quando sairmos?

— Sim, enquanto ficarmos também.

— Não se ela estiver conosco...

— Você acha que ele vai bater na nossa porta e nos atacar de frente de novo? Estou
supondo que ele não seja tão idiota a ponto de querer tomar outra surra.

Olavo estava extremamente tenso, deixou o pote com a infusão que passava no ombro
cair no chão e pôs as mãos no rosto.

— O que acha que ele vai fazer então?

— Ele está ferido, provavelmente vai tentar se recuperar antes de mais nada.

— Nós também estamos...

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— Menos do que ele. Ambos conseguimos lutar, o ferimento no seu ombro não é tão
profundo quanto aquele que derrubou a espada dele.

Olavo pegou o pote e colocou-o de lado. Fez uma careta de dor. — E depois de se
recuperar, o que acha que ele vai fazer?

— Provavelmente buscar reforços. E se quisermos que isso não aconteça, precisamos ir


atrás dele. — Levantou-se — imediatamente.

...

Naquela noite Adônis ainda caminhou um pouco mais. Resolveu deixar indícios na
direção que levava a outra cidade. Após isso, escondendo seus rastros o melhor o possível,
voltou por outro caminho em direção à aldeia de Banis. Era uma tática arriscada, mas confiava
em suas habilidades.

Pretendia descansar pelo menos parte daquela noite, mas estava receoso. Não
conhecer o inimigo era certamente uma desvantagem. Não sabia o quão implacáveis aqueles
dois poderiam ser e talvez já o estivessem caçando. Entretanto, confiava que os ferimentos que
causara neles foram profundos o bastante para deixá-los ocupados se recuperando antes de
persegui-lo. De qualquer forma, a única outra opção que via era a fuga e a recusou de pronto.

Seu plano era observar as pessoas, principalmente a sacerdotisa. Precisava descobrir


que juízo faziam dos magos. Isabelle possivelmente conhecia alguma fraqueza neles e ele iria
descobrir mesmo que à força. Se não precisasse ferir ninguém seria melhor, no entanto tinha
uma missão e eventualmente males menores eram necessários por um bem maior.

Parou no meio do caminho e conseguiu capturar um esquilo com uma armadilha.


Amarrou o animalzinho e desenhou uma série de espirais quadradas na barriga dele, enquanto
o bichinho tentava fugir inutilmente. Pronunciou algumas palavras e usou a energia vital da
criatura para curar seu ferimento, restando apenas um cadáver seco.

Chegou ao vilarejo perto do anoitecer e buscou um esconderijo adequado. Precisava ser


perto o bastante da vila e longe da casa dos magos. Gastou algumas horas procurando e chegou
a um ponto agradável da floresta. Fez um feitiço que o avisaria caso algum animal grande se
aproximasse, achou essa atitude mais sensata do que acender uma fogueira e declarar que
estava ali.

Começou sua investigação no dia seguinte. Foi até a aldeia para observar como se
portavam no dia-a-dia. Havia somente uma rua de terra batida que cruzava o local. Fora isso,
todas as casas e fazendas cresciam de forma aleatória para todos os lados. Usando uma ilusão
simples para criar um disfarce, não teve muita dificuldade em ser ignorado ali. Alguns achavam

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um pouco estranho a chegada de dois forasteiros em tão pouco tempo, no entanto estavam
ocupados demais levando suas vidas para se importar e, para a sorte dele, eram leigos demais
sobre magia para sequer imaginar que ele pudesse ter se disfarçado.

As pessoas levavam uma vida simples ali, vivendo do cultivo de trigo, da criação de
caprinos e da caça. Os caçadores aparentavam ser os homens mais habilidosos do vilarejo,
andavam armados com bestas e tinham uma boa pontaria. Talvez conseguisse a ajuda deles.

Viu o regente caminhando com sua maça e sua armadura pelo povoado, devia ser o
responsável por manter a ordem. Tomou o cuidado de não ser visto por ele. Ele e a sacerdotisa
provavelmente eram os únicos que poderiam lhe causar alguma dor de cabeça. Acompanhou-o
por um momento e viu que ele foi até o santuário, onde Isabelle permanecia. Seguiu-o, se
encostou à parte de trás da humilde construção e conjurou um feitiço para aguçar sua audição.
Pode ouvir a conversa dos dois:

—Eles foram para o leste — dizia a voz feminina — seguir os rastros do forasteiro.

—E descobriu o que ele queria? — respondeu a voz do regente, parecia nervoso.

—Foi hostil, chegou atacando os dois.

—Felizmente foi embora não é mesmo. Não sei por que os dois encrenqueiros estão
atrás dele... Só falta eles o trazerem de volta...

—Kor, ele não os deixaria em paz, mesmo porque perdeu sua espada. De qualquer
forma, se o vir na aldeia me avise. Talvez ele saiba do meu envolvimento com eles... Se aqueles
dois saíram feridos de uma batalha com ele então deve ser muito perigoso, prefiro não arriscar
encontrá-lo.

—Tudo bem. Irei mandá-lo embora caso o veja.

—Duvido que vá, mas lhe agradeço.

Os passos do regente começaram a se afastar de onde Adônis estava, em direção à


porta da capela. Pararam e a voz masculina falou:

—Isabelle...

—Diga, Kor. — Ela tinha uma voz suave, encantadora.

—Você... Você seria capaz de perdoar-me um dia?

Ela suspirou antes de responder:

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—Do que adiantaria agora? Já encontrei outra pessoa para mim, assim como você o fez.
Não acha que já é tarde demais? Não acha que Helena odiaria ouvir você me dizendo isso?

Novamente ouviu os passos do regente e resolveu sair dali, antes que fosse visto pelo
homem e tivesse que explicar quem era.

Enquanto fugia de Kor, começou a raciocinar. Então eles estavam longe. Muito
conveniente. Podiam ser poderosos, mas ainda eram ingênuos. Ele tinha a vantagem da
inteligência e da experiência e, se quisesse vencer, teria que utilizá-las bem. Conseguira
informações o bastante para o momento, retirou-se para o meio da floresta novamente, onde
poderia planejar em paz seu curso de ação.

...

Isabelle estava preocupada com os boatos de outro estrangeiro andando no vilarejo. Ela
imediatamente lembrou-se que Olavo era capaz de se transformar em outras pessoas num
piscar de olhos e até mesmo Cassius, que sempre reclamava de ilusões, podia fazê-lo com um
pouco mais de dificuldade. Pensou em ir até a casa dos magos, no entanto sabia que a
encontraria vazia. Podia refugiar-se lá até eles retornarem, mas o inimigo conhecia o caminho e
se não a encontrasse na aldeia certamente iria procurá-la lá. Restava recorrer a Kor.

Foi até a casa do regente e descobriu que ele não estava lá, então começou a procurá-
lo pelo povoado. Manteve-se atenta à presença do tal estrangeiro, mas tampouco o viu. Gritou
por Kor durante algum tempo, até que o viu saindo da floresta. Estava amedrontada e correu
ao seu encontro, logo desabafando:

—Pelos deuses, onde esteve?

—Um dos caçadores me chamou...

—Pouco importa agora, precisa me ajudar. — Ela suava enquanto falava. — Há um


estrangeiro no vilarejo e temo que seja aquele que procura por Olavo e Cassius. Esteve
andando entre nós ontem o dia todo e não apareceu no templo, acho que estava me evitado.

—Não entendo...

—Kor! Não seja tolo! — Ela começou a se irritar. — Olavo pode se transformar em
qualquer pessoa é claro que ele também pode! Deve imaginar que eu saiba disso! O que
faremos? Se eu ficar aqui ele irá me encontrar.

—Posso defendê-la... — disse hesitantemente.

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—Não seja prepotente! Nem mesmo os dois puderam derrotá-lo, sabe muito bem do
que são capazes!

—Então é melhor escondermos você. Vamos primeiro sair do meio do vilarejo, então
discutimos onde você pode ficar em segurança.

Segurou-a pelo braço e puxou-a para dentro da floresta. Por um momento ela ficou sem
reação, deixando-se levar. Só então se deu conta do que pensara sobre as magias de ilusão.
Estavam entrando na floresta quando ela resistiu ao homem que a arrastava. Abriu a boca para
falar algo, porém, antes de dizer qualquer coisa, o regente colocou a mão na testa dela e
pronunciou algumas palavras, fazendo-a dormir imediatamente.

...

Ela abriu os olhos. Estavam vendados. Descobriu logo em seguida que estava
amordaçada e tinha os braços e pernas amarrados. Tentou se desvencilhar, mas sentia-se fraca.
Ouviu uma voz grave pronunciando palavras estranhas. Cada palavra pronunciada fazia com
que ela se sentisse um pouco mais fraca e então entendeu que estava sendo afetada por
alguma espécie de encantamento.

Gritou desesperadamente enquanto tentava se soltar, porém seus esforços forma


inúteis.

Independente do que ela fazia a voz continuava, impassível. Procurou se acalmar.


Lembrou-se que os irmãos a ensinaram a se proteger de encantamentos. Era difícil se
concentrar, mas começou a lembrar dos ensinamentos.

“Primeiro você tem que entrar em contato com sua energia primitiva, sua mana. A
princípio será complicado, mas com o tempo você deve conseguir sem maior esforço.”
Lembrou-se claramente das palavras de seu amado. A voz continuava drenando sua energia e
sua respiração estava se tornando ofegante. O desespero tentava tomar conta, porém ela foi
mais forte e concentrou-se. Sentiu a energia que precisava.

“Sente a energia? Ótimo! O próximo passo é pensar em como desejar modelar essa
energia. Nós estudamos durante muito tempo para aprender as melhores maneiras para
manipulá-la. Cada gesto, cada palavra, molda a mana de uma forma diferente. O que vou lhe
ensinar é uma forma muito elementar de modelagem, que nem sequer precisa de gestos.”

O homem continuava e ela sentiu sua energia se esvaindo. Quase perdeu a


concentração.

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“Basta imaginar um manto envolvendo seu corpo e com apenas com força de vontade
sua mana irá lhe envolver. Essa é uma maneira muito rude de utilização da energia, mas tem
suas vantagens. Não requer muita concentração, sendo que é apenas pura força de vontade. Há
poucos usos para isso, o único que consigo me lembrar é atrapalhar o fluxo de mana de outra
pessoa que tente te afetar. Basicamente, serve para que você se proteja contra
encantamentos.”

Ela começou a imaginar o manto e aquela energia que sentia a envolveu. A voz
continuava e ela ainda se sentia enfraquecer. Tentou com mais convicção. Não se deixaria
vencer. Parou de enfraquecer e foi uma sensação de alivio. A voz continuava, no entanto nada
acontecia. Sua cabeça começou a doer, não estava acostumada àquele esforço.

A batalha entre a força de vontade dela e o poder do homem continuou por alguns
minutos. Ela não sabia o quanto iria aguentar, seus olhos lacrimejavam e ela estava começando
a gemer, mal suportando o cansaço. Até que o seu sequestrador cessou sua ladainha e disse,
irritado:

—Como uma simples camponesa pode ter tamanha força de vontade! Vou lhe avisar:
pare de resistir, será melhor para você.

A sacerdotisa respirava rapidamente, tentando retomar o fôlego. O homem voltou a


falar as palavras do ritual e ela voltou a se defender, ficando assim por mais alguns minutos.
Quando ela sentiu que não suportaria mais ele cessou também, urrando de frustração.

Tirou as vendas dos olhos dela, deixando-a reconhecê-lo imediatamente. Os olhos


negros lhe inspiravam terror. Ela estava apavorada, no entanto não deixou isso transparecer,
fitando-o com profundo ódio. Ele apertou o pescoço da garota ofegante. Lágrimas escorriam
dos olhos dela, porém ele não poderia dizer se eram de dor, medo ou raiva. Adônis falou, irado:

—Sua resistência só tornou as coisas piores para você, garota. — apertou com um
pouco mais de força a garganta dela — Não pretendia feri-la, mas não me deixa escolha. Terei
de recomeçar o ritual e isso irá deixá-la ainda mais exausta, provavelmente além do ponto onde
poderia se recuperar naturalmente.

Ela sentiu o ar faltando e tentava se desvencilhar, agitando todo o seu corpo. Inútil. O
homem continuou sufocando-a. Quando ela estava perto de desmaiar, ele colocou a mão em
sua cabeça e mais uma vez usou o encantamento para fazê-la dormir.

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Intermissão: Uma Traição Esperada

Viajavam há mais de uma semana e, desde que partiram, aquele homem não tirava os
olhos dela. Não havia lhe dirigido a palavra uma vez sequer e foi evasivo quando ela mesma
tomou a iniciativa de descobrir o que diabos ele queria. Na verdade ela sabia, fora avisada por
Jasmim:

- Tem certeza que deseja me acompanhar? Não garanto que serei capaz de protegê-la,
Cecília. Eu permitirei, com uma condição: acate qualquer ordem que eu lhe dê, por mais
absurda que seja.

Cecília aceitara, dificilmente Jasmim daria uma ordem insensata. Jasmim era uma das
flores, uma guerreira de elite do templo de Taos e Cecília era uma de suas pétalas, a mais jovem
delas. Formava com mais três garotas a guarda pessoal da sacerdotisa-guerreira. Estavam
viajando acompanhados por outros três sacerdotes e quatro magos da Ordem.

E um desses magos, Klaus, a vigiava o tempo inteiro. Há quase dez anos a ordem
desejava tê-la e há quase dez anos o templo de Taos a protegia. E nada disso mudara. Não
conseguira dormir desde a partida, a impressão de que poderia ser atacada pelas pessoas que
dormiam ao seu lado era constante.

Estava deitada segurando sua lança naquela noite, como em todas as outras. Somente
assim conseguia descansar. Jasmim ordenara que sempre uma das pétalas estivesse montando
guarda, não confiava o bastante nos outros sacerdotes e definitivamente deixar um dos magos
não seria uma ideia sensata.

Era o turno de Naila, uma sacerdotisa que não gostava muito de Cecília, talvez por
inveja. Tinha quase trinta anos e nenhum filho. Provavelmente morreria sem ter, servindo
como pétala de Jasmim até o final. As pétalas faziam um voto de castidade, pois sua dedicação
à flor que serviam devia ser exclusiva, logo não podiam ter um filho.

Um dos magos dividia o turno com ela. Os cochichos dos dois impediam Cecília de
dormir. Já passava da metade da noite quando ela ouviu passos se aproximando pela floresta.
Naila parecia não ter ouvido nada. A garota disse aos dois vigias:

— Silêncio. Parece que ouvi alguma coisa. — Prestou atenção e teve certeza. Naila
virou-se de costas para o mago ao mesmo tempo em que Cecília gritava: — Acordem! Ataque!

A velocidade dos eventos pareceu acelerar. Os magos levantaram-se com tamanha


rapidez que pareciam já estar acordados. Jasmim levantou-se de um pulo graças a sua

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prontidão. Um dos sacerdotes, Erodus, também aprontou-se rápido demais. Flechas voaram em
direção ao acampamento, nenhuma mirando Cecília.

- O que... – Naila tentou dizer algo, mas não pode, pois sua garganta agora estava cheia
de sangue. O mago que dialogava gentilmente com ela atravessara um punhal em seu pescoço.
Os outros avançavam para cima das outras sacerdotisas que dormiam. Um deles começou a
falar palavras ininteligíveis e apontar para Cecília, a garota correu e atravessou seu peito com a
lança. Ivi e Miela estavam mortas também. Jasmim lutava e gritou:

- Cecília! Fuja!

Hesitou por um instante e quase perdeu sua oportunidade. Erodus tentou desarmá-la.
Os magos e os outros sacerdotes lutavam contra um grupo de bandidos que saía da floresta. Ela
se desvencilhou do rapaz que segurava sua lança e atingiu-o na cabeça com o cabo metálico da
arma. Olhou para Jasmim, que lutava ao lado de Klaus. Ele conjurava uma magia enquanto ela
atacava um homem enorme que brandia um machado de batalha. Quando Klaus terminou a
conjuração que fazia e o colar de Jasmim começou a apertar seu pescoço, Cecília lembro-se da
promessa feita antes da viagem e correu deixando os magos e bandidos lutando. Todos seus
aliados estavam mortos naquele campo de batalha, não havia porque continuar ali. Precisava
voltar e avisar a sumo sacerdotisa sobre aquela traição.

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Capítulo 3: Armadilhas

—Parou! — gritou Olavo enquanto corria — Sinto somente um resíduo!

—Vamos continuar na mesma direção! — Respondeu seu irmão.

Olavo usava uma magia para sentir fluxos de mana, enquanto era guiado pelo irmão que
o segurava pela mão. O que sentia era um fluxo fraco e constante, característico de rituais de
magia humana:

—Vou à frente, Isabelle pode estar em perigo! — E conjurou um feitiço de aceleração,


sumindo na frente de Olavo.

Os dois temiam estar muito atrasados. Partiram dois dias atrás seguindo os rastros de
seu caçador. Parecia que ele tinha voltado de onde viera e logo se preocuparam, achando que
ele poderia ter reforços consigo. Por sorte, Olavo tem uma percepção muito sensível à magia e
notou que estavam sendo enganados. Viajaram um dia inteiro atrás de um rastro falso e
voltaram para o vilarejo o mais rápido que puderam. Ao descobrirem o sumiço de Kor e
Isabelle, o medo tomou conta deles, fazendo-os esperar o pior.

Olavo ouviu logo em seguida o grito de seu irmão:

—Isabelle!

O coração queria fugir de seu peito e o rapaz chegou somente um minuto depois, tempo
que pareceu infinito. A moça estava caída no chão. Cassius já havia soltado as amarras e agora
fitava-a com olhos arregalados.

O recém-chegado apressou-se em analisar a situação. A sacerdotisa estava pálida e sua


respiração muito fraca. Não notou nenhum ferimento, mas o vestido estava rasgado nas costas.
Virou-a e viu uma série de símbolos cuidadosamente desenhados. Reconheceu de imediato
como uma magia que afeta a mente, devido aos triângulos desenhados dentro de círculos.
Identificou também símbolos de necromancia — uma escola de magia ligada à manipulação da
morte —, indicando que provavelmente ela teve sua própria energia utilizada no ritual.

—Faça alguma coisa! — Exigiu seu irmão.

—Acalme-se, estou analisando! Não há nenhum ferimento explicito no corpo dela,


preciso descobrir o que ela tem. — Dito isso tocou nas costas da garota e concentrou-se um
pouco, comunicando o veredicto ao outro:

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—Ela perdeu energia demais, vai aguentar um dia ou dois no máximo, passou do ponto
em que pode se recuperar por conta.

Cassius ficou aterrorizado. A garota estava tão pálida que parecia prestes a morrer.
Olavo explicou então:

—Há duas opções: podemos transferir energia humana para ela ou teremos que
encontrar componentes para realizar um ritual de cura.

—Transfira sua energia então, não encontraremos o que precisamos a tempo!

—Cassius, pense bem, se eu fizer isso ficarei enfraquecido e nosso inimigo poderá se
aproveitar disso e atacar! Então estaremos nós três mortos!

O mais velho segurou-o pelos ombros e respondeu:

—Prefiro tomar esse risco a deixar Isabelle morrer. Faça o que eu estou falando!

—E porque não a sua energia? — rebateu indignado o mais novo.

—Se ele nos atacar, eu ainda tenho chances, mesmo sozinho. Lembre-se de como ele
anulou todos seus encantos, além do que, temos a espada dele.

Olavo, contrariado, aceitou:

—Vamos para casa então, acho que estaremos mais seguros.

—Ele pode ter preparado uma armadilha.

—Não me lembro de cor do ritual, preciso consultar.

—Prepare-se para o pior então irmãozinho. Vamos rápido, não suporto ver Isabelle
nesse estado.

Voltaram para casa.

...

Melissa estava cuidando dos porcos quando viu Isabelle junto de algumas crianças
caminhando pela aldeia. Era estranho, apenas quatro dias atrás estiveram no santuário e isso só
costumava acontecer uma vez a cada dez dias. Isabelle acenou para ela sorridente e disse:

—Chame todas as crianças, vamos brincar na floresta hoje!

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As crianças amavam a sacerdotisa. Os pais a odiavam, mas a alegria das crianças ao
voltar do santuário era tamanha que eles mesmo assim deixavam com que passassem seu
tempo com a garota. Além disso, o culto aos sete deuses devia ser ensinado e a sacerdotisa era
a pessoa mais apta a isso. Parecia que as crianças tornavam-se realmente mais inteligentes.

Melissa era a mais velha do grupo, tinha 12 anos e Isabelle acreditava em seu potencial
para tornar-se sacerdotisa. Tanto que havia lhe ensinado outras coisas além da religião. Mas
não somente a inteligência da garota incentivava Isabelle. Ambas eram órfãs e acabaram se
tornando a família uma da outra.

O padrasto de Melissa iria surrá-la caso parasse o que estava fazendo para ir atrás da
sacerdotisa. Ela já o havia feito outras vezes e a cada vez que era pega, a surra se tornava pior.
No entanto, aquela situação parecia muito, muito estranha. A garota zelava pelo bem estar das
crianças, tomava para si a responsabilidade de protegê-las. Abandonou os porcos, com as botas
imundas de esterco, e acompanhou Isabelle. Comentou ao se aproximar:

—Mas Isabelle, você sempre nos diz que a floresta é muito perigosa...

—Não se preocupe, o regente e os caçadores estavam lá e garantiram que é seguro. —


A sacerdotisa aproximou-se dela e afagou-lhe a cabeça. A garota disse:

—Você está estranha... Há algo de errado?

O semblante de Isabelle alterou-se, parecia preocupada ao responder:

—Quero mostrar-lhes algo diferente.

Melissa tinha um mal pressentimento, mas confiava cegamente na sacerdotisa e amava-


a como irmã, não iria decepcioná-la.

Logo que todas as crianças se reuniram, extremamente animadas com a ideia de


passear pela floresta, partiram. Andaram alguns minutos e começaram a afastar-se demais da
aldeia. Algumas começaram a ficar com medo e a sacerdotisa falou:

—Não há nada a temer, os deuses estão conosco. Além do que, seria perigoso deixar
vocês voltarem sozinhas, podem se perder.

Isabelle começou a contar-lhes histórias sobre magos e magias. Melissa novamente


notou que sua maneira de falar não era convencional. Pensou em voltar e chamar alguém, no
entanto preferiu acompanhar as crianças, pensando ser capaz de protegê-las.

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Já passava do meio tarde quando pararam em uma clareira. Deviam ter andado por
mais de uma hora e todas as crianças reclamavam de cansaço e estavam irritadas. Então a
sacerdotisa falou:

—Esperem aqui um minuto e descansem, vou chamar um amigo. — dito isso,


embrenhou-se na mata. O vento assobiava e os pequenos choramingavam de medo e frio. Os
pais costumavam contar histórias sobre animais feitos inteiramente de gelo que comiam
criancinhas, uma forma de evitar que elas se perdessem na mata. Melissa começou a contar-
lhes uma história que Isabelle ensinara sobre a Deusa Glacial. A menina realmente tinha
vocação, pois logo acalmou os ânimos das crianças. Tinha sentido vontade de ir atrás da
sacerdotisa, mas achou que seu dever era atender aqueles pobres meninos que sofriam.

Dois minutos depois, um homem alto, barbudo e de cabelos avermelhados saiu de onde
Isabelle estava. Ele apresentou-se:

—Olá crianças, sou Cassius, o mago. — Todas as crianças arregalaram os olhos, algumas
de admiração, outras de medo. Os pais haviam contado diferentes histórias sobre aquele mago.
Certa vez, ele, seu irmão e seu pai salvaram a aldeia de um monstro. Mas todos os magos
devem ser temidos, pois em um momento de loucura podem sacrificar todas as pessoas para
realizar rituais sombrios e profanos. Magos são criaturas sem deuses. O homem falou:

—Isabelle me trouxe aqui para ensinar magia! Não há nada a temer.

Um garotinho de oito anos, com o nariz escorrendo, perguntou-lhe:

—E porque a gente tá aqui?

—Seus pais ficariam com medo de vê-los comigo. Testarei quais de vocês estão aptos a
ser magos.

Alguns deles imediatamente se animaram. As crianças eram totalmente leigas e jamais


imaginariam os riscos envolvidos em possuir tal poder. Para elas seria simplesmente mais uma
brincadeira. Melissa indagou:

—Onde está a senhorita Isabelle?

—Não se preocupe mocinha. Ela logo virá.

Dois meninos começaram a chorar e correram. Cassius gritou para que parassem e foi
totalmente ineficiente, dizendo às outras crianças:

—Devemos buscá-los, não podemos deixá-los se perderem na floresta! — Conjurou um


feitiço para aumentar sua velocidade e foi eficiente para impressionar os animados e dissuadir

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da fuga os assustados. Melissa impediu que outro deles corresse. Agora era tarde demais para
fugir e ficar perdido na floresta durante a noite era arriscado demais.

O feiticeiro voltou e começou a explicar o que deveriam fazer:

—Vamos tratar isso como um jogo. Eu ensinarei magia àqueles que vencerem. Primeiro,
fechem os olhos e respirem fundo. Vou passar em cada um de vocês testando se podem ou não
ser magos, por isso fiquem com os olhos fechados!

Ele dirigiu-se primeiro a Melissa, mas a menina afastou-se e disse:

—Não quero. — Estava muito séria ao dizer isso. Podia-se dizer que era a mais
assustada de todas, pois era a única capaz de entender o risco. Antes que qualquer uma das
crianças pudesse abrir os olhos, o mago avançou em sua direção, colocou a mão em sua testa,
pronunciou uma palavra e ela adormeceu.

Quando acordou viu dois olhos negros fitando-a profundamente. Cassius segurava-a
pelos ombros e ela pode ver todas as crianças amarradas às arvores atrás dele. Ele disse:

—Vá até o vilarejo e encontre Kor. Diga para que venha até aqui, sozinho. É melhor ir
rápido, garota, logo irá escurecer e você não deseja estar na floresta quando isso acontecer.

Melissa levantou-se e correu. Era tudo sua culpa, pensava. Não entendia porque Isabelle
tinha feito aquilo. O mago devia tê-la enfeitiçado e a obrigado, a sacerdotisa nunca faria mal às
crianças. Se ela tivesse desistido desde o principio, quando notou que algo estava errado, nada
daquilo estaria acontecendo. Correu o mais rápido que pode. Conhecia muito bem os caminhos
da floresta.

Gritou por Kor quando chegou ao vilarejo e não tardou a encontrá-lo, junto da esposa
Helena, vagando. O regente veio de encontro à menina, que falou:

—Cassius! — estava ofegando — Levou... Ah... As crianças... Ah... para a floresta! Ah... O
senhor deve ir até lá!

—O que?! Acalme-se e explique isso direito! — respondeu o homem.

Ela respirou e contou rapidamente toda a história, concluindo:

—O senhor deve ir sozinho, é o que ele disse.

A mulher que acompanhava o regente gritou:

—Sempre soube que devíamos ter banido aquela bruxa e seus amigos magos! Vamos
chamar os caçadores e vamos até lá!

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—Não. — respondeu calmamente Kor — Ele disse para que eu vá sozinho, então irei.

—Seu estúpido! Ele vai te matar!

—Se levarmos mais alguém ele pode matar as crianças. Eu vou só.

—Mande os caçadores escondidos! — Ela gesticulava de irritação.

—Ele vai notar, ele sempre sabe quando alguém está chegando. Fique aqui e não fale
nada para ninguém! — Olhou para Melissa e perguntou — Sabe me levar até lá?

—Acho que sim — Ela tremia.

—Vamos rápido então!

...

Helena não permitiria que os magos e a falsa sacerdotisa acabassem com seu marido e
as crianças. As crianças! Que ultraje! Sempre soubera que no final esses forasteiros trariam a
perdição. Nem sequer acreditavam nos deuses verdadeiros e aproveitaram-se da hospitalidade
do povo de Banis. Ficavam na floresta fazendo rituais estranhos e atraindo monstros e ainda
aproveitavam-se disso para enganar a todos, dizendo que “salvaram a aldeia”. Sim, de um
monstro que eles mesmos trouxeram!

Certa vez a sacerdotisa e seus pais foram expulsos do vilarejo, quando Helena
descobrira a verdade sobre eles: eram adoradores dos deuses Astrais, falsos deuses padroeiros
da magia negra. Foram expulsos e bandidos os atacaram na estrada. Deixaram somente Isabelle
viva. O antigo sacerdote insistiu que ela voltasse a viver ali. Como se não bastasse ainda tornou-
a uma sacerdotisa.

A esposa do regente aceitava com um gosto amargo. Mas as crianças! Isso era demais.
Convocou todos os aldeões até o templo. Antigamente aquele era um lugar de fé, mas foi
maculado pela presença daquela bruxa. Quando todos estavam reunidos, começou a falar:

—Todos que têm filhos pequenos, pergunto-lhes, onde eles estão?

Uma enorme mulher loira, com uma criança de colo, falou:

—Meu filhinho está sumido desde o entardecer. Ele disse que estaria com a sacerdotisa,
mas...

—Mas a sacerdotisa sumiu, não é mesmo? — interrompeu-a, Helena — Sabem aonde a


vossa amada sacerdotisa levou nossas crianças? — Todos os que tinham filhos fitavam-na
apreensivos — Ela levou-as para a floresta, até onde estão os magos!

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Houve uma pequena exaltação enquanto as pessoas murmuravam, um dos caçadores se
expressou então:

—Pois então não há o que temer. Se estão com os magos não há como ficarem mais
seguras.

Esse comentário foi seguido de vaias e murmúrios de desaprovação. A maior parte da


vila temia os feiticeiros e o argumento de Helena que seguiu teve muito mais força entre os
aldeões:

—Aquela menina Melissa viu tudo e veio nos contar. — Disse, olhando para os pais
adotivos da garota. —Um dos bruxos amarrou todas as crianças e agora estão preparando um
ritual profano para oferecer as almas delas para seus deuses malignos! — O espanto foi geral. A
ausência das crianças durante a noite causava muito medo nos pais. — E não só isso, para
garantir que ninguém o impedisse mandou a garota para buscar meu marido, que agora foi até
a floresta, sozinho!

—Cassius e Olavo nunca nos fizeram mal! — Tentou argumentar o caçador.

—Eles estão com nossas crianças! Lembre-te quem eram os pais da sacerdotisa! —
berrava Helena —Ela é uma falsa sacerdotisa, adoradora de deuses profanos e por isso tornou-
se amiga dos magos! Estavam fingindo ser bons esse tempo todo, apenas esperando uma
oportunidade para agir contra nós!

—Oh, pelo amor dos deuses, nossas crianças vão morrer! — Gritou uma senhora
desesperada. — É castigo por termos permitido uma infiel ser nossa sacerdotisa!

—Sim! Temos que nos livrar dela e de tudo que foi maculado por sua presença! Peguem
suas tochas e suas armas! Vamos expulsar de uma vez por todas os demônios! — Comandou a
esposa do regente e ninguém se opôs.

A multidão se dispersou e a mulher esperou ali para que voltasse a se reunir. Tocou a
cicatriz em seu rosto, outro presente de Isabelle. Sua ira seria satisfeita.

...

A noite caía quando Cassius vagava pela floresta em busca das plantas necessárias para
um ritual de recuperação. Seu irmão transferira um pouco de sua energia para Isabelle, mas
acharam melhor não se enfraquecer demais. Não sabiam quando o inimigo voltaria a aparecer.
Na verdade era arriscado demais sair à noite com um inimigo à solta e deixar Olavo e Isabelle
desprotegidos. No entanto, não poderia deixar sua amada naquele estado deplorável. Precisava

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ver aquele sorriso mais uma vez. Além do que, ele sabia onde cresciam peônias, flores rosadas
necessárias para o ritual de cura, e dirigia-se rapidamente até lá.

Aproximando-se de onde queria chegar ouviu um ruído. Passos. Parou e fez silêncio. Ele
tinha os sentidos aguçados e talvez pudesse ter o elemento surpresa. Notou que eram dois
seres caminhando, um pesado e outro pequeno. Espreitou até que pode ver duas silhuetas
caminhando apressadamente. Uma parecia um homem e estava armada com uma maça, outra
era um pouco menor e tinha cabelos compridos. Reconheceu o homem e chegou rapidamente
do seu lado, cochichando:

—Kor, o que diabos faz aqui?

O regente pulou apavorado e brandiu a arma que trazia na mão, mas antes que pudesse
atacar ela voou de sua mão e caiu no chão, levando Cassius a perguntar:

—Enlouqueceu? Por que trouxe essa mocinha para o meio da mata à noite? — Somente
então ele reconheceu a garota. Nunca a vira pessoalmente, mas Isabelle lhe contara de uma
garota de pele escura, com cachinhos e olhos notáveis. — Melissa?

—Onde estão as outras crianças? — Demandou Kor, bradando. Cassius colocou um


dedo em frente à boca para pedir silêncio respondendo:

—Estúpido! Não grite, pode atrair animais perigosos.

O regente repetiu, em um tom de voz menos intenso e tão agressivo quanto antes:

—Aqui estou como pediu. Onde estão as crianças, maldito?

—Do que está falando? — A menina fitou os olhos do mago e disse:

—Não era ele.

—Era o outro então?

—Não, era muito parecido, mas os olhos... Eram negros, não eram esses olhos bonitos,
eram olhos amedrontadores. — Os dois homens ficaram perplexos e o mago abaixou-se, para
ficar da altura da garota. Ela já deixava de ser uma criança e tinha um rosto muito bonito. O
mago falou:

—Melissa, Isabelle me falou de você. Me explique o que está acontecendo.

Ela começou de pronto. Ao contrário do mago que prendera as crianças, aquele homem
não inspirava medo.

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—Isabelle nos chamou para ir à floresta hoje à tarde. — Antes que pudesse continuar, o
feiticeiro interrompeu.

—Isabelle está em nossa casa, está ferida e estou aqui em busca de uma planta
necessária para salvá-la. Ela não poderia estar no vilarejo!

—Do que está falando, pare de mentiras! — Bradou Kor novamente.

—Pare de gritar! — Cochichou violentamente, apontando um dedo para Kor — há


feitiços que podem ser utilizados para se parecer com outra pessoa. Continue a história. —
Disse para a jovenzinha. Uma luz de compreensão surgiu na cabeça dela.

—Chegando lá, um homem, muito parecido com o senhor, mas de olhos negros,
apareceu. Ele disse que nos ensinaria a ser magos. — Cassius fechou os punhos e franziu as
sobrancelhas ao ouvir isso. — Eu disse que não queria, ai ele colocou a mão na minha cabeça e
eu dormi.

—Um dos caçadores fez o mesmo comigo hoje... — Comentou Kor e o mago fez um
sinal para que se calasse, querendo que a garota continuasse.

—Ele me acordou e me disse para chamar o senhor Kor. Todas as crianças estavam
amarradas.

—Ilusionista desgraçado! — Xingou Cassius. — E onde ele está?

—Eu estava levando o senhor regente até lá...

—Kor, tem noção de que também foi enganado? — Perguntou o mago. O líder de Banis
hesitou um pouco — Disse-nos que também foi enfeitiçado e agora estava certamente sendo
guiado para uma armadilha. Vocês têm sorte de ter me encontrado. — Ainda sem muita
convicção, Kor assentiu. — Pelo seu bem, o das crianças e o de Isabelle, tem que me ajudar
agora.

—Vamos logo encontrar esse inimigo, seja quem for...

—Não, vamos primeiro à minha casa. Tenho um plano.

...

Um grupo de aldeões se reuniu. Havia doze homens (entre eles o padrasto de Melissa) e
dez mulheres armados com facões, foices, tochas e mais quatro caçadores com suas bestas.
Helena esperava que todos a apoiassem, mas esse grupo seria o suficiente. Alguns preferiam

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ficar em casa cuidando das crianças que restaram, outros temiam demais os magos para
enfrentá-los e ainda havia aqueles que gostavam dos bruxos.

Agruparam-se em volta do templo e então a mulher que os liderava gritou:

—Vamos começar livrando nossa cidade da presença da falsa sacerdotisa! Ela profanou
nosso templo, tentando atrair a ira dos nossos deuses. Precisamos de um templo novo, livre de
qualquer impureza! Vamos pôr esse lugar amaldiçoado abaixo!

Os aldeões urraram, concordando. A maior parte deles ainda temia Isabelle. Logo as
chamas começaram seu trabalho e o templo dos Sete Deuses não demoraria a deixar de existir.

Helena sorria.

...

Olavo acariciava o rosto pálido de Isabelle. Por enquanto ela estava a salvo, no entanto
sua respiração continuava fraca. O rapaz estava indignado. Aquela moça nunca fizera nada de
errado para merecer ser atacada. Na verdade, ele mesmo não tinha razões para ter de fugir.
Segurou a mão da garota e levou-a a boca, beijando-a carinhosamente. Disse então:

—Não se preocupe. — Na verdade, dizia isso mais a si mesmo. Não esperava uma
resposta, mas ela veio:

—Cassius? — A fraqueza daquela voz foi um golpe para o garoto.

—Não... Sou eu, Olavo. — Os olhos da garota ainda estavam fechados.

—Onde está Cassius?

—Na floresta, está procurando plantas para te curar.

Ela levantou as pálpebras. Ficaram apenas se olhando por um tempo, até que Olavo não
aguentou e desviou o olhar. Ela disse:

—Olavo.

—Sim? — Espantou-se com a gravidade com a qual seu nome foi pronunciado.

—Saiba que eu te amo. — O coração do rapaz começou a bater desesperadamente —


Como se poderia amar um irmão. Obrigada por tudo que sempre fez por mim. — Ela levantou-
se, com esforço e abraçou-o.

—Porque diz isso agora?

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—Não sei. Estou com medo. — Olavo não pode conter suas lágrimas.

Antes que pudessem continuar a conversa, a porta se abriu e Cassius entrou


acompanhado de Kor e Melissa. A menina viu Isabelle e correu em sua direção, abraçando-a. O
clima ali dentro era fúnebre. O feiticeiro mais velho falou:

—Olavo, venha rápido, temos algo a resolver!

—O que está acontecendo? — perguntou o irmão mais novo, limpando as lágrimas.

—Nosso inimigo sequestrou as crianças do vilarejo e jogou a culpa em nós. Precisamos


resgatá-las. É nossa chance de derrotá-lo!

—Eu sabia que seus motivos eram egoístas! — Exclamou Kor.

—Egoístas ou não, são convenientes para você. — Rebateu Cassius — Você e Melissa
devem ficar aqui e tomar conta de Isabelle. Eu e Olavo vamos até onde ele está.

—Vamos enfrentá-lo de frente, irmão?

—Ele está esperando por Kor, você irá se disfarçar e iremos pegá-lo de surpresa. Não
podemos perder essa chance.

—E se ele descobrir meu disfarce? Sabe muito bem que ele pode me matar com um
único golpe!

—A espada dele está conosco e você pode defender-se magicamente do primeiro golpe
dele. Intervirei imediatamente antes do segundo. Pare de se amedrontar, irmão, as crianças
estão em perigo!

Ficaram todos em silêncio por um momento. Isabelle estava abraçada com Melissa e Kor
estava taciturno. Olavo disse, por fim:

—Vamos então.

—Eu vou junto. — Falou Kor.

—Ele é perigoso demais para você. — Argumentou Cassius.

—E quem é você para dar-me ordens? Quem deve lutar pela segurança de Banis sou eu!
— Ele começava a se exaltar.

—Sua presença irá apenas nos atrapalhar! A ideia é pegá-lo desprevenido, por isso
precisamos de poucas pessoas. Além do que, as capacidades de combate dele nem se
comparam às suas!

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—Ora, seu! — E o regente avançou para cima de Cassius. Isabelle gritou:

—Kor! Pare com isso! —Ela começou a ofegar após o grito. Até mesmo isso era esforço
demais. O silêncio reinou por um instante até que ela o quebrou — Por favor, escute-os. — O
regente hesitou, mas assentiu.

Olavo começou a falar algumas palavras enquanto olhava para Kor. Cada conjunto de
gestos e palavras mudava um pouco de sua aparência, deixando-o, aos poucos, igual ao
regente. Cassius foi até seu quarto e pegou a espada do inimigo. Isabelle, com ajuda de sua
aluna, foi atrás. A sacerdotisa sentou-se na cama e pediu para a garota se retirar. Quando
Melissa saiu, o mago aproximou-se e beijou-a. A mulher falou:

—Estou com medo. — Tinha lágrimas nos olhos. O rapaz a abraçou. — Tome cuidado.

—Tudo vai acabar bem. Confie em mim. — Fez uma pausa — E no meu irmãozinho.
Temos tudo sobre controle. — Ele não poderia estar mais enganado e Isabelle sentia isso. Não
disse nada, pois apenas iria abalar a confiança de seu amado. Apenas desejou-lhe sorte e
beijou-o.

...

33
Capítulo 4: Uma Falha nos Planos

Adônis aguardava há horas. Era uma noite de céu limpo e muito fria. Seria bom ver-se
livre das terras do sul. Acendeu uma fogueira para aquecer as crianças. Elas ainda dormiam,
agora não sabia mais se era devido ao seu encantamento ou naturalmente.

Logo poderia por em pratica seu plano. Diria que resgatara as crianças e explicaria que
fazia parte da ordem dos magos. Então pediria a ajuda de Kor e dos caçadores do vilarejo para
capturar os magos. Duvidava que seus inimigos iriam ferir os habitantes do vilarejo.

Pensava em levar a sacerdotisa para a ordem também, seria cruel demais tirar dela tudo
o que lhe restara. Quando entrou na mente dela, viu que toda a vida dela agora se baseava
naqueles rapazes e na sua fé. A garota tinha uma história triste, perdeu os pais de uma maneira
horrível e ainda era acusada injustamente de não ser uma sacerdotisa digna. Aqueles rapazes
apareceram quando todos viraram as costas para ela, não era de se espantar que gostasse
tanto deles.

Quanto à garotinha esperta que foi buscar o regente, ainda estava em dúvida. Ele a viu
repetidas vezes na memória de Isabelle, não seria nenhum problema levá-la. Parecia uma
menina inteligente demais para passar a vida em mundo tão limitado quanto aquele vilarejo.
Talvez pudesse até mesmo aprender magia na ordem.

Ouviu alguém se aproximando com seus sentidos aguçados. Concentrou-se para definir
se não era nenhum animal e então notou algo estranho. Ouvia passos humanos, mas sentia
uma magia conhecida aproximando-se de outra direção. Reconheceu a aura mágica de sua
espada e essa foi a falha no plano dos garotos. Preparou-se para fugir. Viu Kor, que a essa altura
ele sabia ser um dos magos, chegando à clareira. Imediatamente preparou uma barreira mental
e correu.

Olavo tentou paralisá-lo com um encantamento, esbarrando na proteção do adversário.


Cassius avançou imediatamente para a clareira e só viu o vulto de Adônis. Gritou então:

—Atrás dele!

—E as crianças?! — perguntou seu irmão.

—Mande um sinal para Kor, não podemos perder tempo! — Dito isso, disparou atrás do
adversário.

Olavo lançou um sinal luminoso ao céu e concentrou sua energia, liberando-a em um


brado descomunal.

34
...

—Kooooooooooooooooooooooor! — A voz vinha de longe, do meio da mata.

O regente e Melissa espantaram-se mais do que Isabelle. A sacerdotisa disse então:

—É Olavo. Vá, Kor. — Olhou para sua aprendiza e continuou — Estou bem
acompanhada. Se eles estão atrás do forasteiro, estamos seguras.

O homem saiu da casa e viu uma coluna de luz se erguendo da mata. Correu.

...

Helena liderava os aldeões, estavam a caminho da casa dos magos quando viram a
magia de Olavo se erguendo do meio da mata. O brado assustou-os, não tinham ideia do que
podia ser. A mulher que os liderava falou:

—Devem estar realizando um ritual com nossas crianças! Devemos nos apressar!

Marcharam pela trilha da floresta, sob a luz da estrela glacial e de suas tochas. Logo
chegariam à casa dos magos.

...

Cassius seguia a frente quando foi enganado pelo mesmo truque de dias atrás, ilusões
sonoras. Olavo chegou um instante depois, tempo gasto mandando a mensagem para Kor. O
mais velho disse:

—O maldito está nos despistando com uma ilusão ridícula!

Olavo concentrou-se para sentir os fluxos de energia mágica e notou que um deles era
muito diferente dos outros. Seu oponente só conseguira enganar seu irmão por ambos serem
péssimos ilusionistas. Apontou para uma direção e começaram a correr.

O homem corria um pouco à frente, com velocidade reduzida para se concentrar em


suas ilusões. Quando notou os inimigos se aproximando, tentou conjurar um forte flash. Outro
truque velho. O mago mais novo era bom demais para cair e usou uma contra mágica imediata.
Cassius se aproximou rapidamente e atacou Adônis, brandindo a espada roubada. Quando a
lâmina se aproximou, o homem negro bradou:

—Sefer!

A espada tornou-se um cajado e Adônis segurou-o, aproveitando a surpresa do


oponente para tomá-lo. Cassius sacou seu machado de duas lâminas, murmurando um

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encantamento para aumentar sua força. O mago da ordem repetiu “Sefer”, fazendo a espada
voltar a sua forma original. Notou que seu outro oponente já começava a lançar um feitiço. Não
tinha escolha, teria que usar o poder latente de sua arma. Usou um feitiço para aumentar sua
agilidade e quebrou uma das pequenas pedras vermelhas do cabo da espada.

Cassius foi surpreendido pela velocidade do oponente que se desviou de um golpe e o


ignorou, avançando para Olavo. Seu irmão mais novo nada pode fazer quando o inimigo
avançou com a espada, atingindo-o com o lado da lâmina na cabeça. Poderia tê-lo decapitado.
O jovem mago tombou, com sangue saindo de seu ouvido.

O guerreiro com machado arriscou um encantamento para aumentar sua própria


agilidade. Uma tática arriscada, seu corpo não aguentaria por muito tempo tantas magias ativas
sobre si. No entanto era um risco necessário, pois Adônis avançava em sua direção com
velocidade sobre-humana e Cassius só conseguiu se defender graças à sua magia.

A experiência do mago da ordem e a potência superior do feitiço de velocidade que


usara falaram mais alto. Ele forçou seu ritmo em cima do outro feiticeiro, ferindo-o no braço e
depois na barriga, cortes superficiais graças à armadura, mas começou a cansá-lo e logo não
aguentaria manter todos seus encantos de apoio.

Adônis atingiu com muita força o machado de Cassius, derrubando o rapaz e quebrando
a arma. Ergueu a espada, preparando-se para atacar e então sentiu um enorme cansaço. Sua
agilidade e força sobre-humanas se esvaíram. Olhou para trás e viu Olavo em pé. O jovem mago
havia revogado suas magias e agora tirava um punhal da cintura.

O espadachim avançou em direção ao feiticeiro que se recuperara, mas este lançou o


punhal na direção daquele. O lançamento foi falho, porém Olavo guiou-o através de uma magia
de comandar metais, mirando no peito de Adônis. Ele errou a pontaria e acabou atingindo o
ombro do guerreiro, que deixou a espada cair.

Cassius se levantou e se recuperou, sacando um machado menor de uma única lâmina.


O espadachim parou e pegou a espada no chão. Olavo sacou sua espada curta e preparava
outra magia. Os três olharam-se por um instante, todos cansados e ofegantes. Pela segunda
vez, Adônis fugiu, fazendo seu corpo chegar ao limite repetindo seu clássico feitiço de
velocidade.

Olavo sentou-se no chão e pôs uma das mãos na cabeça. Parecia que iria explodir. Ele
gemeu de dor. Cassius andou até o irmão. Não adiantaria perseguir o inimigo sem Olavo, agora
ele via o quão perigoso era o adversário. Sua barriga sangrava, mas o ferimento não era fatal de
forma alguma. Sentou-se, exausto do lado do irmão.

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Viram uma luz vinda da direção de sua casa. Prestaram um pouco de atenção e notaram
que havia fumaça também. Fogo.

—Isabelle! — Gritou Cassius, levantando-se com um pouco de dificuldade. Estava


exausto. — Temos de voltar, rápido! — E começou a conjurar o feitiço para correr mais rápido,
Olavo interveio:

—Não use essa magia! Vai acabar com você se precisarmos lutar!

—Se não chegarmos rápido, não precisaremos lutar!

—Não seja tolo, se chegarmos incapazes de lutar, será pior! Pelo bem de Isabelle!

Cassius forçou-se a aceitar a verdade pelo bem de sua amada. Os dois correram em
direção a casa. Não sabiam que já era tarde demais.

...

Melissa preparava uma sopa para Isabelle quando ouviu o som dos passos vindos da
trilha da floresta. Aproximaram-se. Eram muitos e apressados. A garota abriu a porta e
surpreendeu-se quando viu uma mulher grande, de cabelos claros e com uma cicatriz no lado
direito do rosto perguntando:

—O que faz aqui, garotinha? — A mulher estava acompanhada por dezenas de pessoas
armadas. Viu o homem que se casou com sua mãe adotiva entre elas. Ele a fitava com ódio. —
Onde estão Kor e as outras crianças?

Melissa estava assustada. O que todas as pessoas do vilarejo tinham vindo fazer na casa
dos magos no meio da noite? Respondeu à pergunta de Helena:

—O senhor regente foi buscá-las...

—Está mentindo, não está? — Helena aproximou-se. O coração da menina palpitava, a


multidão estava hostil.

—Não! Não estou...

—Está do lado dos magos, não está? Eles te mandaram para enganar meu marido, não
é? — A mulher estava quase na porta da casa. A turba também avançou.

—Não! O senhor regente está na floresta... — A mocinha recuou um passo — as


crianças estão bem, Cassius e Olavo foram resgatá-las!

—Resgatá-las? Não foram eles quem as sequestrou?

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—Não... foi um outro mago, um forasteiro. Ele se disfarçou de Isabelle e depois de um
dos magos... Está enganando a todos nós! — Helena já estava a menos de um metro da garota
e rebateu:

—Está se contradizendo! Veio em desespero agora a pouco falar que os magos a


sequestraram e agora os defende. Onde estão eles e a bruxa?

—Bruxa? — Indignou-se a garota.

—Sim, a falsa sacerdotisa, onde está?

—Isabelle não tem nada de falsa!

A multidão se impacientava, o padrasto de Melissa se adiantou:

—Saia daí menina. Eu lhe disse inúmeras vezes para não se envolver com essa mulher,
pare de protegê-la! — Avançou até onde a garota estava e disse: —Agora saia do caminho.
Vamos tirar esses demônios daqui de uma vez por todas!

Várias pessoas concordaram e Helena pediu a calma deles:

—Devemos primeiro descobrir se as crianças não estão ali dentro! — E avançou para a
porta. Melissa se interpôs. — Saia da frente! — Desesperada, a menina berrou:

— Não, estão enganados! As crianças estão a salvo, com o senhor regente! Os magos
vão capturar o responsável!

O padrasto da garota puxou-a para fora e deu-lhe um tapa no rosto. Foi tão forte que a
jogou no chão, com a boca sangrando. Esbravejou:

— É só o começo da surra que vai levar!

Isabelle cambaleou até a entrada da cabana e deparou-se com Helena. O ódio que
sentiam era mútuo. A esposa do regente falou:

—Onde estão as crianças?

— Kor foi buscá-las. O que está você fazendo aqui? — Não entendia ainda a situação.
Notou a multidão, o ódio nos olhares. Melissa se levantava.

— Pare de mentiras! Todos sabem que foi você quem levou as crianças para os magos!
— Melissa gritou:

— É um engano! Isabelle não fez nada!

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O padrasto da garota segurou-a com força e tapou sua boca. Isabelle se segurava no
vão da porta para se manter em pé. Respondeu:

— É a verdade, as crianças estão na floresta e Kor foi buscá-las. E o que você diz é uma
mentira, estive nessa casa o dia inteiro.

Helena não pode se conter e esbofeteou a sacerdotisa, derrubando-a. Após isso,


bradou:

—Pare de mentir, sua bruxa!

Um dos homens que a acompanhavam falou:

—Senhora, deve ser a verdade! Levaram nossos pequenos para a floresta e estão
fazendo rituais com eles!

—Como podem ser tão estúpidos? — perguntou Isabelle. — Cassius e Olavo sempre os
defenderam e agora vêm até aqui e me agridem?

—Cale-te! — Ordenou Helena, chutando o estômago da garota caída no chão.

Um dos homens ergueu-a pelos cabelos e disse, olhando em seus olhos:

—Traga nosso filhos de volta, bruxa!

—Esperem e Kor logo chegará com eles! — Rebateu.

—Pare de mentir! — Jogou a com força no chão, em meio à multidão. A garota gritou de
dor. Melissa tentou fechar os olhos, mas a cena de covardia prendia sua atenção.

Uma mulher gritou:

—Bruxa maldita! Levou meu filho para a morte! — E correu na direção da sacerdotisa,
dando-lhe uma pancada nas costelas. Logo sua iniciativa foi seguida e alguns dos homens
começaram a chutar a moça indefesa.

Alguns entraram na casa e começaram a atear fogo em tudo, enquanto gritavam. Não
demoraria até o incêndio crescer. Os livros e pergaminhos de Olavo foram espalhados e logo
devorados pela chama. Além de queimar, os aldeões enfurecidos destruíam tudo que podiam.

Melissa, desesperada, conseguiu se libertar do padrasto, que estava ansioso para


auxiliar na destruição. Ela gritou para que parassem. Um esforço obviamente inútil. Correu para
dentro da casa e pegou uma faca. Isabelle já não aguentava mais. O rosto da sacerdotisa estava
ensanguentado e ela tossia sangue.

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Melissa avançou enfurecida com sua faca e foi direto até Helena. Com uma forte
estocada atravessou o ventre da mulher, fazendo-a gritar de dor e indignação. A menina puxou
a faca, mas, antes de perfurá-la novamente, seu padrasto a puxou pelos ombros e jogou-a no
chão. Helena sacou a espada de seu marido, que levava na cintura, e fez um corte do peito até
a barriga da garota, espirrando sangue. A criança gritou de dor e se encolheu, rolando no chão.

—O que está fazendo? — Bradou o homem que derrubara Melissa.

Helena ignorou-o e pisou fortemente no estômago e depois na cabeça da garota.


Melissa lançou um olhar suplicante para o homem. Ele não fez nada enquanto Helena a
espancava.

—Ela quase me matou! — E então caiu de joelhos no chão. Notou que sangrava muito e
sentiu a dor do ferimento. — Queimem a bruxa! E queimem a pequena! Está aprendendo a
mesma magia negra e tentou me matar! Deixem que morram queimadas junto com esse lugar
profano!

As chamas cresceram e todos que estavam dentro da casa saíram. Alguns homens
jogaram Isabelle dentro da casa em chamas. Melissa foi jogada na fogueira pelas mãos do
padrasto. A sacerdotisa estava quase inconsciente. Tinha ossos quebrados por todo o corpo,
seu rosto estava cheio de sangue e lhe faltava ar. A garotinha gritava de dor e chorava,
sangrando muito devido aos golpes de Helena. Atearam fogo à porta de entrada e agora as
moças não tinham mais como escapar. Além da dor, sentiam o calor insuportável das chamas.
Não demoraria até seus corpos serem consumidos.

...

Kor chegou ao local indicado pelos magos e logo viu todas as crianças amarradas.
Estavam dormindo tranquilamente. Avançava em direção a elas quando, por sorte, ouviu o som
de passos. Não eram passos humanos. Apertou o cabo de sua maça. Seja lá o que fosse,
nenhuma criatura que ronda a noite pela floresta devia ser subestimada. A respiração do
regente tornou-se tensa. Olhava atentamente na direção de onde viera o som dos passos.

Um rugido. Quase não conseguiu ver quando o enorme felino branco deu o bote. Ele
reagiu rápido o bastante para acertar a cabeça do animal com sua maça, mas foi atingido pelas
duas garras no peito, caindo no chão. O animal ficou aturdido, mas logo recobrou-se e avançou,
atacando com as garras novamente. O homem rolou para o lado rapidamente e atingiu uma
das patas com sua maça. A outra garra acertou-o em cheio no braço esquerdo. O peso do golpe
inutilizou seu braço. Gritando de dor, o regente rapidamente largou a maça, sacou uma besta
armada que levava e atirou à queima-roupa, atingindo a testa do animal, que cambaleou e caiu.

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Ofegante, Kor notou que as crianças acordaram e começaram a chorar. Seu braço era
puro sangue, as garras do animal chegaram até o osso. Sentiu que seu peito também sangrava.
A cota de malha salvou sua vida. Tentou se levantar e caiu. Segurou um grito de dor pelo braço
destruído. Ficou de joelhos e foi até as crianças. Sacou seu punhal e libertou o maior dos
meninos, entregando-lhe a arma e dizendo:

—Liberte as outras. E nossas vidas estão em tuas mãos agora. — Pobre garoto. Devia ter
uns oito anos de idade e nem sequer era filho de caçadores. Começou a chorar, forçando o
regente a gritar com ele — Pare de chorar! Agora não é hora. Se quiser que ninguém morra,
torne-se homem! — O pequeno discurso não o fez parar de chorar, mas ao menos incentivou-o
a tomar a atitude de soltar as outras crianças.

Kor ofegava. Pediu ajuda para enrolar o ferimento, mas foi muito difícil. As crianças não
estavam acostumadas com tanto sangue e choravam de medo. Após conseguir realizar seus
primeiros socorros levantou-se e andou um pouco na direção da casa. Não aguentou e foi
obrigado a descansar um pouco para recuperar o fôlego. Notou as chamas vindas da direção da
casa. Precisava voltar logo, antes que qualquer outra criatura aparecesse e matasse as crianças.
Precisava ver se Isabelle estava bem. Usando suas ultimas forças, começou a cambalear
lentamente até a casa dos magos, acompanhado por um bando de crianças choronas.

...

Quando Cassius e Olavo chegaram, desesperaram-se. A casa estava em chamas, cercada


por uma multidão de aldeões com tochas nas mãos. Eles discutiam alguma coisa e não havia
sinal algum de Isabelle. Cassius perdeu a cabeça e atirou-se contra a parede da casa em
chamas, derrubando-a e atravessando-a. Olavo concentrou-se em tirar o fogo do caminho do
irmão.

Isabelle estava caída num canto onde as chamas ainda não haviam alcançado. Estava
abraçada com Melissa. Ambas estavam ensanguentadas e dois rastros de sangue estavam
desenhados no chão. Uma delas havia arrastado a outra para um canto sem fogo e agora
estavam desmaiadas. O mago avançou em direção a elas, queimando-se um pouco e respirando
a fumaça. Engasgou, mas não parou. Segurou cada uma delas em um braço e voltou. As chamas
abriram caminho para que ele passasse.

A turba agora percebeu a presença dos magos e sua líder gritou:

—Lá estão! Salvando as bruxas! Deixem todos os bruxos queimarem juntos! — A


multidão começou a avançar em direção aos dois irmãos. Cassius deixara as duas no chão e
olhava desamparado para a sacerdotisa agonizante. Virou-se para a multidão, sacando seu
machado de uma lâmina. Parou frente a todos eles. Suas veias pulsavam e ele apertava com

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força o cabo da arma. Os olhos estavam tão abertos que doíam devido ao calor de sua casa em
chamas. A multidão parou perante a visão do feiticeiro. Helena exigiu:

—Diga onde estão as crianças!

—Foram vocês que fizeram isso a Isabelle? — Sua voz era quase inaudível e estava um
pouco abafada devido ao crepitar do fogo.

—A bruxa não nos contou onde estavam as crianças. Conte-nos e deixaremos que s... —
Foi interrompida por um grito. Era um misto de horror e ódio o que se passava pela mente do
rapaz. Sua expressão tornou-se aterradora, o grito fez com que todos estremecessem. Deram
um passo para trás.

Cassius começou a avançar lentamente em direção à turba. Os caçadores dispararam


sua setas, porém, antes que qualquer uma atingisse, Olavo ergueu uma barreira de vento em
volta do irmão, desviando os projéteis. O irmão mais velho correu então e, antes que qualquer
um pudesse reagir, a cabeça de um dos fazendeiros voou, o corpo caindo inerte no chão. Todos
gritaram de horror e então avançaram, cercando-o. Ele girou o machado, derrubando vários
deles de uma vez. No entanto eram muitos e logo ele começou a receber vários cortes das
foices e facões, que terminaram de destruir sua armadura.

Olavo não queria ver seu irmão morto naquela noite. Em desespero começou a
controlar as chamas do incêndio. Usando uma enorme quantidade de energia fez com que as
chamas saltassem da casa em chamas em direção á multidão que massacrava seu irmão. Gritou
com o esforço. Uma chuva de bolas de fogo se ergueu e voou em direção aos aldeões, fazendo-
os entrar em ignição. Desesperadas, as pessoas em chamas começaram a se dispersar. Algumas
tentavam rolar no chão para se livrar do fogo, outras simplesmente corriam, gritando de dor e
caindo quando seus corpos não aguentavam mais.

Cassius, apesar de já ter vários cortes, incluindo alguns bem profundos, continuava
atacando os aldeões. Quando a população se dispersou ele seguiu Helena, que fugira antes de
ser queimada. Ela estava ferida e não conseguia se deslocar rapidamente. O mago alcançou e
fez-lhe um corte nas costas, derrubando-a.

—Sua maldita! — disse, chutando com força suficiente para fazê-la rolar. Via o terror no
rosto da mulher, ela sentia tanto medo que era incapaz de gritar de dor.

Pisou no peito dela e desceu o machado, quase amputando um dos braços da mulher.
Falou:

—Não se preocupe, ainda viverá mais alguns minutos, para que possa sofrer tanto
quanto Isabelle! — Novamente atacou-a, terminando de arrancar-lhe o braço. Ela se contorcia

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de dor, sem ar. O mago cortou-lhe ainda o outro braço e então ela desmaiou. Logo morreria
devido à perda de sangue.

Olavo ajoelhou-se, olhando a carnificina que causaram. Dezenas de pessoas estavam


carbonizadas ou decapitadas no chão. Alguns ainda gritavam de dor enquanto seus corpos
queimavam. Ele levou as mãos ao rosto, tentando tapar os olhos, mas não pode. Tinha que ver
aquilo, imagens que jamais se apagariam de sua memória. Encostou a testa ao chão, gritou e
chorou.

—O que está fazendo ai parado! Isabelle está à beira da morte! — Gritou o irmão mais
velho. Ele cambaleava, mal conseguindo se manter em pé. Puxou o mais novo até as garotas
espancadas. Olavo tremia e respirava irregularmente. Parecia estar entrando em choque.
Cassius deu-lhe um tapa na cara e falou:

—Seu idiota! Salve Isabelle! — Seu tom era de choro — Salve-a! Eu imploro!

Olavo olhou para a garota inerte no chão. Respirou fundo, procurou se acalmar, mas
não conseguiu. Mesmo assim notou o óbvio. Apenas balançou a cabeça para Cassius.

—Transfira sua energia, faça alguma coisa! — Segurava-o pelos ombros e o chacoalhava.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas — Faça alguma coisa... — Soltou-o e caiu no chão,
chorando.

—Cassius. — murmurou Olavo. — Ela... Ela está morta.

...

Adônis não conseguia acreditar no que via, quando chegou alguns minutos depois do
que os magos no local do incêndio.

Corpos carbonizados. Cadáveres sem cabeça. Uma chacina.

Era tudo contra o que ele lutava. E lá estavam, dezenas de inocentes mortos. Lembrou-
se das crianças na floresta, e pensou que agora eram todas órfãs. Não eram somente os
mortos, uma dezena de crianças tinha perdido o rumo de suas vidas.

Caiu de joelhos no chão e Orou:

—Ó poderoso Sefer, por quê? Por que as coisas terminaram assim? — Não pode segurar
o choro.

Ele fazia parte da ordem dos magos para evitar que o poder fosse usado para o mal,
evitar que magos tirânicos escravizassem ou sacrificassem inocentes. E agora, graças a sua

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presença, praticamente uma aldeia inteira fora destruída. O que significava isso? A missão não
devia envolver nenhum morto. Agora ele tinha dezenas. E mais algumas dezenas de vidas
destruídas.

Viu Cassius deitado no chão, ensanguentado, abraçado ao corpo inerte da sacerdotisa.


Seu irmão estava ao seu lado, de joelhos, com olhos vidrados. Aquele mago mais jovem não
devia ter nem vinte anos. Não passava de uma criança. “Ó piedoso Sefer, é esta uma provação?
Ou é esta uma falha minha?” Notou aquela menina de cachos negros, também sagrando,
deitada ao lado dos outros. Pareceu que ela ainda respirava. Prestou mais atenção e viu que era
verdade, ainda tinha uma vida a ser salva naquele lugar de horror.

Aproximou-se. Olavo fitou-o. Nada disse e nada fez. Adônis examinou Melissa e falou
para o rapaz:

—Ainda há uma vida que pode ser salva. — Puxou o corpo da garota até o lado do
jovem mago e continuou — Pegue minha espada e use seu poder para salvá-la. Eu imploro. — E
ajoelhou-se, entregando-lhe a arma. Tinha dificuldades para erguê-la, seu ombro ainda tinha o
punhal cravado.

Olavo, perplexo, assentiu. Pegou a espada e lembrou-se do que Adônis fizera para
utilizar o poder dela. Só aguentaria utilizar mais uma magia. Poderia salvar a garota ou tirar a
vida de seu algoz.

Conjurou o melhor feitiço de cura que conhecia de cor, utilizando uma das pedras
vermelhas da espada. A respiração de Melissa tornou-se regular e o corte em seu peito fechou-
se, mas não sem deixar cicatrizes. Largou a espada e caiu no chão, fitando a casa em chamas.
Jamais se esqueceria do fogo.

Segunda Parte

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“Não podes mudar o passado,

Cicatrizes continuarão.

Vamos, se ficares cansado

Tuas derrotas serão em vão.

Vá, Limpe tuas lágrimas,

Já choraste o bastante.

Aprenda com as lástimas,

É hora de seguir adiante.”

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Capítulo 5: O Teixo

Olavo acordou com muita dor. Gastar todo o mana diminuiu sua imunidade, fazendo
seu ferimento de alguns dias atrás infeccionar. Estava em cima de uma carroça, com as mãos
atadas às costas. Cassius e Melissa estavam ao seu lado, nas mesmas condições. Aliviou-se ao
notar que a menina respirava regularmente. Sentia fome e sede. Deitou-se e olhou para o céu
nublado e agourento. Ouviu o barulho de algo batendo no chão e virou-se. Adônis estava
cavando e o corpo inerte de Isabelle figurava ao seu lado. Essa imagem doeu tanto que o fez
chorar. Fechou os olhos e não demorou até desmaiar novamente.

...

Estava quente, muito quente. Tudo em volta estava em chamas, pessoas corriam com
seus corpos em combustão. Gritos, gritos de todas as partes. O céu estava nublado e as nuvens
eram fumaça. Ele começou a conjurar um feitiço para apagar as chamas e elas aumentaram,
começaram a criar vida própria e consumir tudo. Viu Isabelle e Cassius vindo em sua direção,
gritou para eles se afastarem. Caiu fogo dos céus sobre suas cabeças. Ele avançou intocado
pelas chamas.

...

—Acorde — recebeu uns tapinhas no rosto e viu os profundos olhos negros de Adônis
encarando-o. Já era noite. — Coma, antes que você morra. — Ele esticou uma tigela de sopa.
Não sabia do que era, tinha uns pedaços de carne boiando e isso embrulhou seu estômago.
Vomitou. O sequestrador falou: —Tem que se alimentar, rapaz, ou a infecção irá matá-lo.

Manter-se acordado estava difícil. Melissa estava dando sopa para Cassius na boca,
parecia que o irmão não podia usar os braços. Houve um forte clarão e segundos depois um
trovão ecoou, fazendo a menina se assustar e derrubar um pouco do alimento no chão. Cassius
estava taciturno e engolia de má vontade a comida. Uma tempestade se aproximava.

Olavo estava quente, suando, ardendo de febre. Notou uma fogueira acesa perto dele e
fitou-a. Ouviu o crepitar do fogo e assistiu a dança das chamas.

...

Os aldeões cercaram Cassius e logo iriam matá-lo. Sua casa ao lado queimava, mas ele
não conseguia usar aquele fogo, estava com medo. Cassius gritava:

—Olavo! Me ajude! Vamos seu inútil!

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Tentou conjurar uma magia, mas as palavras tropeçavam em sua língua. Os aldeões
caíram mortos e Cassius também o fez. Ainda no chão, o mago gritou:

—Assassino de inocentes!

...

Estavam dentro de uma caverna e chovia forte lá fora. Melissa derramava um liquido
em sua boca. Cassius gritou algo e Adônis respondeu. A garotinha estava com olheiras
profundas e o olhar baixo. Olavo acariciou seu rosto e depois a abraçou. Disse então:

—Desculpe. — A menina chorou e ele afagou seus cabelos. Demorou-se até soltá-la.
Terminou de beber, seja lá o que fosse, e apagou.

...

Monstros de fogo começaram a entrar na caverna. Eram metade homem e metade


lagarto, de peles vermelhas e cabelos bruxuleantes. Traziam armas exóticas consigo, uma
espécie de picareta de guerra. “Primordiais”, disse a voz em sua cabeça. Um deles avançou na
direção de Melissa e agarrou-a, outro veio em sua direção e Olavo não viu mais nada.

...

Cassius carregava-o nas costas. Adônis e Melissa sumiram, teve a impressão de que
alguma coisa estranha andava ao seu lado, mas não conseguiu identificar o que poderia ser.
Caminhavam pela floresta e a chuva parara. Um fio de luz passou por entre as árvores,
iluminando uma pequena poça de água. Ele sorriu.

...

Isabelle ficava muito bonita quando trajava aquele vestido azul. Estava a sós com ela e
caminhavam pelo bosque, procuravam uma verbena para um feitiço de cura. Isso estava
errado, a verbena era utilizada na necromancia e ele disse isso para sua companheira. Ela sorriu
e falou:

—Eu sei, Olavo. Para os mortos não há mais cura.

Ela aproximou seu rosto para beijá-lo.

...

O vento balançava as arvores. Tudo estava silencioso, nem sinal de Cassius, de Melissa,
de Adônis, de Isabelle. Sentou-se e sentiu que seu corpo não aguentava. Desabou.

47
...

Isabelle avançou em sua direção com o punhal de Adônis na mão. Ele estava com as
mãos amarradas e não pode conter a loucura dela. Cortou seu ombro e ele sentiu o ferimento
queimando. Ela disse:

—Acalme-se, é para seu bem.

...

A estrela glacial brilhava fortemente no céu. Havia um rio à sua esquerda e as brasas de
uma fogueira recém-apagada à sua direita. Era uma noite clara e fria. Sentou-se e notou um
vulto andando ao redor do acampamento. Fitou-o por um momento. Ele notou e se aproximou.
Não era muito alto, tinha cabelos curtos e desgrenhados, trazia uma lança improvisada na mão
e trajava um vestido curto. Quando chegou perto, Olavo notou que era uma mulher.

Ela se abaixou e tocou a testa do rapaz. Perguntou a ele:

—Como se sente? Tem fome ou sede? — Apesar de a noite ser clara, ele não conseguiu
distinguir as feições da garota. Seu corpo ainda doía e sua cabeça rodava, mas parecia ver com
mais clareza do que nos últimos dias. Respondeu:

—Sim, fome e sede. — Sua voz estava ridiculamente fraca e ele mesmo se surpreendeu
com isso. A moça buscou pêssegos e trouxe uma tigela de água. Sentou-se do lado do rapaz
enquanto ele comia, em silêncio. Quando terminou, ela disse:

—Deite-se e descanse, amanhã você irá se sentir melhor.

Ele obedeceu.

...

Acordou com o nascer do sol. Levantou-se e, pela primeira vez desde o incêndio, sentiu
sua mente lúcida. Seu corpo doía e suas pernas tremiam de fraqueza, porém ele pode sentir o
mana fluindo dentro de si. Espreguiçou-se e caiu no chão.

Sentou-se e olhou em volta. Uma jovem corria em sua direção, devia ser a mesma da
noite anterior. Seus cabelos castanhos claros eram curtos e bagunçados, tinha braços e pernas
fortes e sua pele era mais clara que escura. Notou marcas de queimadura na coxa esquerda da
garota. Era magra e alta para uma mulher, porém menor do que ele. Sentou-se ao seu lado e
perguntou:

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—Tudo bem? — Os olhos cor de mel de Olavo se cruzaram momentaneamente com os
olhos castanhos da moça. Ele respondeu:

—Onde está Cassius?

—Foi procurar algo para comermos. — Ela não parecia ser mais velha do que ele. Tinha
um rosto fino e Olavo achou-a bonita, apesar de estar imunda.

—Então ele está bem?

—Sim. Você é quem não parece bem, está muito pálido. —Tocou a testa do rapaz — a
febre passou ao menos. Venha, vamos até o rio. — Ela levantou-se e ajudou-o a fazer o mesmo.
Apoiando-se na garota, foi até um pequeno riacho. Olavo sentou-se, lavou o rosto e bebeu
água. Estavam em uma floresta ainda, mas notou que as arvores estavam mais esparsas.
Indagou à garota:

—Onde estamos?

—Estamos saindo da floresta de Azuria e logo chegaremos à estrada Sul.

—E para onde estamos indo?

—Sete Torres.

—Sete Torres?

O coração de Olavo começou a palpitar. Era o lugar onde ele nascera e onde passara a
maior parte de sua vida, saiu de lá aos 11 anos, quando tiveram que fugir da Ordem dos Magos.
Era a segunda maior cidade humana, sendo menor somente do que a Catedral de Sefer. Sete
Torres levava esse nome pois lá se localizavam os principais templos dos filhos de Torus, sendo
cada torre dedicada a um deles.

—Sim — respondeu a garota — seu irmão me contou que vocês viveram lá por muito
tempo. Eu também passei boa parte da minha vida lá, sou uma sacerdotisa de Taos.

Taos era a deusa da guerra e da primavera e seus sacerdotes eram conhecidos por
serem a elite guerreira de Sete Torres, estando entre os melhores guerreiros humanos do
mundo.

—Que bom que acordou — disse a voz de Cassius — estava cansado de te carregar. — O
tom não era nada amigável.

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Ainda usavam as mesmas roupas com as quais saíram de Banis, mas as de Cassius
estavam irreconhecíveis. Suas calças não chegavam ao joelho e o peito estava praticamente nu.
Olavo levantou-se rápido demais e caiu sentado no chão. A garota falou:

—Acalme-se, você ainda está se recuperando. — Ela se ergueu e estendeu a mão para
ajudá-lo. Ele aceitou a ajuda e foi até Cassius apoiando-se na mulher. Abraçou o irmão, mas
este não retribuiu.

—Porque você não tentou salvá-la? — Foi a pergunta de Cassius — Porque salvou
aquela menina e não ela?

Silêncio.

Olavo sentiu um aperto no peito e as lágrimas chegando aos olhos.

—Ela estava morta. — Lembrou-se da voz de Isabelle: “Para os mortos não há mais
cura”.

A garota desconhecida se afastou e deixou-os. Foi comer alguns pêssegos que Cassius
deixara perto da fogueira. Olavo encostou a cabeça no ombro do irmão e deixou a água correr
dos olhos. Cassius desvencilhou-se e foi sentar ao lado da moça, deixando-o caído no chão,
chorando.

—Vai deixá-lo lá? — Ela lhe perguntou após engolir um pedaço de fruta. O irmão mais
velho apenas acenou negativamente com a cabeça, pegou um galho do chão e começou a
quebrá-lo e atirar seus pedaços violentamente. A moça completou:

— Temos de continuar, pode ser que os primordiais ou os magos ainda estejam nos
perseguindo. — A garota levantou-se e pegou um pedaço de madeira com uma ponta afiada
que poderia ser usado como arma, mas provavelmente quebraria no primeiro golpe.

Olavo notou a aproximação da moça, no entanto continuou sentado, chorando. Ela


abaixou-se, abraçou-o e colocou a mão por entre seus cabelos longos e acariciou ternamente a
parte de trás de sua cabeça. O rapaz passou os braços por trás da garota, encostou a cabeça no
ombro dela e passou a chorar alto como uma criança.

Cassius viu a cena e aumentou a violência com que atirava os pedaços de madeira que
encontrava. Levantou-se e foi até os dois, dizendo-lhes:

—Vamos.

A moça sussurrou “vamos” no ouvido de Olavo e levantou-se. Puxou o rapaz, que estava
com os olhos inchados e molhados e ajudou-o a caminhar.

50
Seguiram em silêncio durante a maior parte do dia. Andaram algumas horas em meio às
árvores coníferas, sempre acompanhando o rio, sob um céu azul muito claro. Estavam na
metade do outono e passavam muito frio, suas roupas eram só frangalhos e o vento os
castigava agora que saíam da floresta. Carregavam em seus braços o máximo de comida que
podiam: Alguns pêssegos, mexericas e dois esquilos. Teriam problemas sérios em encontrar
mais estando desarmados em um descampado no meio do outono.

Lá pela metade do dia avistaram uma árvore erguendo-se no meio do campo, afastava-
se um pouco da direção que pretendiam seguir, no entanto acharam que valia a pena verificar.
Sentaram-se e comeram as frutas. Olavo estava um pouco melhor e perguntou o nome da
garota.

—Cecília. — Ela respondeu. O rapaz admirava os traços finos do rosto dela; os fios
curtos de cabelo balançando ao vento gélido; os lábios vermelhos, rachados pelo frio, e o olhar
castanho, perdido, melancólico. Não se lembrava de tê-la visto olhando-o diretamente em
nenhum momento.

Esse foi o máximo de conversa informal que tiveram, os maxilares batendo e o


estômago roncando desencorajava qualquer tipo de diálogo. Estavam descalços e parecia que
os dedos dos pés iriam congelar e quebrar a qualquer momento. Era difícil carregar qualquer
coisa, pois as mãos estavam tão geladas que mal podiam sentir os dedos. Tentavam manter-se
atentos para encontrar qualquer coisa comestível, mas não havia nada. Ao menos encontraram
algumas plantas que Olavo poderia utilizar para seus feitiços.

Quando chegaram mais perto da árvore Cecília a reconheceu.

—É um teixo. — Noticiou Cecília. — com sorte teremos fogo e comida.

Por fim alcançaram a árvore solitária, um enorme tronco erguendo-se sozinho no meio
do descampado. Os galhos fortes saindo de cima da árvore e caindo para todos os lados, cheios
de pequenas folhas, parecendo uma névoa verde. Para a sorte dos viajantes, a árvore estava
cheia de frutos vermelhos. Cecília disse:

—Não comam a semente, pois é tóxica.

Cecília e Cassius escalaram o teixo, comeram o fruto gelatinoso até se satisfazer e


quebraram os galhos mais fracos, para acender uma fogueira. A moça jogou alguns frutos para
Olavo, o rapaz ainda não estava em condições de subir.

Ainda demoraria um pouco para anoitecer, mas decidiram descansar por ali mesmo.
Tinham uma boa visibilidade dos arredores e não viam nada que parecesse perigoso. Olavo

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estava desenhando alguns símbolos no chão em volta da árvore, muito concentrado. Cecília
perguntou para Cassius:

—O que ele está fazendo?

—Um feitiço de proteção, eu creio. — Ele continuava azedo, embora tivesse matado a
fome.

Olavo estava tendo um pouco de dificuldade para se lembrar dos símbolos certos da
magia de proteção. Seu intuito era utilizar o mana do teixo para criar um abrigo, um santuário
mágico onde eles poderiam se proteger um pouco do frio. Era um ritual relativamente simples,
no entanto ele teria que deduzir todas as fórmulas mágicas de cabeça e isso não era simples. Os
outros dois acenderam a fogueira e ficaram esquentando-se ao lado dela enquanto ele
trabalhava nisso.

Terminou ao cair da noite, gastou muito do seu próprio mana e ficou exausto, mas valeu
a pena. Imediatamente os ventos frios começaram a mudar seu curso e evitar uma pequena
região em volta da árvore e a temperatura ficou mais amena. Cassius manteve sua atitude,
porém Cecília ficou imediatamente aliviada ao descobrir que não morreriam de frio durante a
noite. Ela levantou-se e correu sorridente na direção de Olavo quando ele terminou o feitiço.
Abraçou-o com força e deu ao rapaz o prazer de sentir seus corpos se tocando. A garota
parabenizou-o:

—Isso foi incrível!

O coração dele disparou ao ouvir essas palavras e, apesar de toda a dificuldade, sentiu-
se feliz. Fechou os olhos, ainda agarrado à Cecília. Quando abriu-os viu seu irmão, sentado á
beira da fogueira, fitando-o com raiva. Aquele olhar o fez lembrar-se de Isabelle e a fogueira,
dos aldeões e da casa em chamas. Sua felicidade momentânea foi-se tão rápido quanto veio,
substituída por um aperto no peito e uma enorme aflição.

Olavo e Cecília sentaram-se à fogueira e Cassius retirou-se. O mais jovem pensou em


chamá-lo, mas não o fez, tinha medo do irmão mais velho quando ele ficava nervoso. Olhou
para Cecília, desamparado e ela lhe contou como acabaram juntos.

— Eu fui capturada pelos primordiais primeiro. No fim da primeira semana eles


trouxeram vocês. Cassius teve que te carregar o tempo todo, você parecia mais morto do que
vivo. — Mantinha um sorriso no rosto, falava de um jeito leve — no dia seguinte você estava
suando demais, respirando irregularmente. Apenas sei que em um momento Cassius o
carregava e no outro, não mais. Naquela noite ficamos amarrados um ao lado do outro. Por
alguma razão ele falou comigo, disse-me que era um mago e que precisava escapar para te

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buscar. — Puxou a mão do rapaz e segurou-a entre as suas. — Nós três tivemos sorte de termos
nos encontrado. Eu nos livrei das amarras e tentamos nos esgueirar para longe dos primordiais,
mas eu sabia que isso era inviável e por isso não havia fugido antes. No entanto, eu não tinha
um mago ao meu lado, seu irmão atordoou o inimigo com algum feitiço e conseguimos fugir.
Nos escondemos deles por algum tempo. — Cassius estava sentado do outro lado da árvore,
em silêncio. — A verdade é que antes de se importar com nossa segurança, ele queria
encontrá-lo. Nós fomos até o local onde ele o havia abandonado. Tivemos sorte de não sermos
perseguidos, eu acredito.

Ela deitou-se e ficaram calados por algum tempo. Olavo observava o irmão, sentia-se
culpado pela raiva dele. A moça quebrou o silêncio depois de algum tempo.

—Não há nada por perto num raio muito grande, creio que podemos dormir
tranquilamente essa noite. — Virou o rosto para o rapaz e completou — descanse, não quero
você apoiado no meu ombro o dia todo novamente. — sorriu e fechou os olhos.

Olavo deitou-se e contemplou a fogueira. A madeira tomava formas diversas conforme


queimava e isso hipnotizou-o por algum momento. Uma torrente de pensamentos negativos e
lembranças passaram por sua cabeça, assim como as lágrimas voltaram aos seus olhos.
Felizmente estava cansado demais e não demorou a adormecer.

...

Cassius não conseguiu dormir direito, acordou diversas vezes durante a noite e
desistiu antes de amanhecer. O pensamento de que jamais veria Isabelle novamente não saía
de sua cabeça. Sentia-se triste, mas, principalmente, sentia raiva. Raiva de Adônis, tudo
começou graças a ele; raiva de Banis, mesmo com os responsáveis todos mortos, continuava
odiando os assassinos de sua amada; raiva de Olavo, por ter sido incapaz de salvá-la; e raiva de
Melissa, como gostaria que ela tivesse morrido no lugar de Isabelle. Somado a isso tudo sentia
arrependimento, por não ter sido capaz de derrotar Adônis na primeira vez.

Olhou seu irmãozinho... Não, olhou Olavo dormindo ao lado de Cecília e sentiu uma
pontada de ciúmes. Os dois estavam se dando tão bem. “Isso foi incrível”! Claro, o maguinho de
biblioteca com seus truques espalhafatosos sempre é incrível. Desde a infância foi assim. O pai
parabenizava Cassius por obrigação e ficava incrivelmente excitado com a facilidade com que
Olavo aprendia magia.

Escalou a árvore e colheu mais alguns frutos. Esperou Cecília acordar e ofereceu-os à
garota. Ela agradeceu com um sorriso no rosto, mas resolveu deixar alguns para Olavo. Cassius
falou:

53
—Melhor voltarmos para o rio, não temos como carregar água conosco. — A garota
anuiu. O dia tinha um pouco mais de nuvens, mas o sol continuava forte. Ventava menos, o que
era muito bom. O céu ainda estava vermelho, a manhã nem havia começado. — Vamos acordar
Olavo, quanto mais cedo chegarmos a Sete Torres, melhor.

—Deixe-o descansar, ele ainda está se recuperando. Será melhor do que ter que
carregá-lo novamente. Vou tentar preparar outra infusão para ele com algumas daquelas
plantas que vocês recolheram, quando chegarmos ao rio.

Entre as diversas habilidades das sacerdotisas de Taos estava o conhecimento de


botânica. Olavo se recuperava graças à Cecília, que encontrara plantas adequadas em meio à
floresta para tratar do rapaz. Não era nenhuma poção mágica, mas ajudou-o a melhorar. Foram
vários dias em que não sabiam se ele ia sobreviver ou não.

Olavo demorou um pouco para acordar. Dessa vez pode levantar-se sem problemas.
Comeu alguns dos frutos que deixaram para ele, mas continuava com fome. Dirigiu-se à árvore
e começou a subir. Cassius notou e falou:

—Vamos embora, é mais fácil você se machucar do que se alimentar tentando subir aí.
Quando chegarmos à cidade, poderemos comer.

Olavo não deu ouvidos. Acordara mal-humorado e não estava com paciência para
aguentar o irmão. Cecília viu-o subindo e simplesmente deixou-o, estava no direito dele. O
rapaz caminhou por cima de um galho não muito forte e cheio de frutos. Estava relativamente
alto. Quando chegou à ponta, ouviu o barulho do galho rachando. Ficou parado, pensando no
que poderia fazer. O irmão mais velho correu e parou quase embaixo do galho, gritou:

—Pule, eu te seguro!

O moço hesitou um pouco, mas quando viu que não teria como voltar pulou. Cassius
segurou-o e caíram os dois no chão, assim como o galho, que terminou de quebrar quando o
rapaz saltou. Por sorte ninguém se machucou, apesar da queda ter sido dolorosa. Cecília correu
para acudi-los.

—Seu idiota. — Foi o único comentário de Cassius, ao levantar-se, muito irritado. Pegou
o galho caído. Devia ter quase dois metros de comprimento. Quebrou a ponta e entregou o
resto ao irmão. — Ao menos faça bom uso disso. Agora pare de enrolar e vamos.

Voltaram a seguir viagem, caminhando junto ao rio.

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Capítulo 6: O Exército

As criaturas não pareciam ter pressa. Cada dia traziam mais pessoas para se unir ao
grupo de prisioneiros. Melissa caminhava cabisbaixa entre dezenas deles. À frente, atrás e pelos
flancos seguiam diversas das criaturas lagarto. A metade superior do corpo era de um homem
robusto, a inferior, de uma espécie de lagarto, cauda longa e pernas curtas. Eram enormes,
maiores, muito maiores do que Adônis. Tinham escamas vermelhas por todo o corpo. Certa
noite um homem tentou fugir e teve sua cabeça esmagada pela arma estranha que eles
utilizavam. Ela ainda não compreendia como os magos podiam ter sumido durante a noite.

Uma semana havia passado desde quando foram capturados na caverna. O mago
covarde que prometera levá-la até a Cidade da Ordem conseguiu fugir. Não esperava que ele
fosse fazer algo para salvá-los, mesmo porque não poderia. A menina estava com medo,
imaginava que seria comida viva por aquelas criaturas em um momento oportuno. Não
comeram o fugitivo, mas talvez porque preferissem algum tipo especial de preparo.

Melissa não sabia a sorte que tinha de estar sendo levada por primordiais. Ao contrário
dos homens, eles não torturavam nem estupravam. Alimentavam-nos adequadamente e
entendiam que escravos bem tratados trabalhavam melhor. Não tinham necessidade de fazer
nada para deixar seus prisioneiros apavorados, sua própria força e presença causavam terror o
suficiente. No entanto a sorte da garota estava para acabar.

No final daquela semana os homens lagarto trouxeram um prisioneiro diferente. Era


uma criatura bípede e humanóide, mas não andava ereta. Seu rosto lembrava uma mistura de
felino com humano, com dentes afiados e olhos de gato, além de um focinho achatado. Havia
garras na ponta de seus dedos e todo o seu corpo era coberto por um pelo amarelo com
manchas pretas. Ele tinha uma expressão de poucos amigos e todos preferiram manter
distância.

E essa não foi a única coisa que mudou naquela semana. Pareciam estar em uma região
diferente, pois as plantas que ali cresciam não eram as mesmas. Além disso, tinha a impressão
constante de estarem se aproximando de uma região mais baixa e o tempo ficara mais ameno.

Naquela noite Melissa demorou a dormir. As criaturas lagarto conversavam entre si em


um idioma estranho, com suas vozes roucas e guturais, misturando palavras com silvos e
assovios. Ela parou os olhos naquele novo e curioso prisioneiro. Fizeram questão de amarrá-lo,
ao invés de levá-lo livre como os humanos. A certa altura da noite, quando o número de
homens-lagarto que os vigiava estava reduzido, ele começou a mudar suas feições de uma
maneira esquisita. Seus braços começaram a encurtar e seu corpo encolheu um pouco e mudou
de forma, sua cabeça perdeu tudo o que tinha de humano e suas orelhas tornaram-se pontudas
55
como as de gato. Tornou-se uma onça por completo, com o longo rabo balançando de um lado
para o outro. Tentou se esgueirar, mas uma das criaturas lagarto o viu e avançou rapidamente
em sua direção. No fim o homem gato levou a melhor e disparou para o meio do mato,
sumindo.

Na manhã seguinte ouvia-se um som estranho, uma espécie de rugido que se repetia a
intervalos irregulares. Um dos homens ao lado de Melissa, um rapaz adulto com cabelos muito
negros, comentou:

—Mar?

Saíram da floresta e pela primeira vez na vida Melissa viu aquela imensidão azul. Uma
quantidade infinita de água que se estendia para todos os lados. E tinha vida. Ondas erguiam-se
do nada e vinham atacar a enorme quantidade de areia que também se estendia além do
alcance da vista. O rapaz avisou-lhes:

—Não bebam dessa água, é salgada e venenosa.

Ao sul podiam ver os Cumes do Gelo Infindável, enormes montanhas brancas que se
estendiam por toda a extremidade do continente. Não deviam estar muito longe. Havia uma
falésia naquela direção e dezenas de pontinhos pretos a rodeavam. E é para lá que
caminhavam.

Andaram por horas até parar para comer os mesmos frutos e grãos que comeram
durante toda a viagem. Agora já era possível distinguir os pontinhos pretos, tanto no mar
quanto na terra. Dezenas de navios encalhados na areia e barracas estendidas pela praia. Não
demoraria até chegarem lá. Enquanto comiam, Melissa teve a impressão de ter visto um par de
olhos amarelos vigiando-os da floresta.

Antes do final da tarde chegaram ao acampamento. Era guardado por pequenas torres
de madeira e o grosso da ocupação era constituído por tendas de pano e pele ou casebres
improvisados de madeira e folhas. Estacas de madeira estavam cravadas no chão por todos os
lados. Melissa espantou-se ao serem recebidos por um grupo de humanos. Tinham peles
escuras, barbas grossas, trajavam corseletes de couro e traziam chapéus de palha em suas
cabeças. Estavam apoiados nas hastes de suas lanças e cumprimentaram respeitosamente as
criaturas lagarto quando elas passaram e aproveitaram para troçar dos escravos:

—Sejam bem vindos, todos vocês! — Um deles apertou o seio de uma jovem que
passou por ele — ficamos muito felizes que estejam aqui! — Tinham um forte sotaque,
arrastando os “is” e falando com a boca meio mole.

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A maioria no acampamento era composta por esses homens de peles escuras. Havia
centenas deles e para cada cinco deles, uma das criaturas lagarto. Além disso, encontravam-se
muitas pessoas de tez clara trabalhando. Essas utilizavam roupas simples e muitas delas tinham
cordas amarradas ao pescoço ou às pernas. Escravos, assim como ela, entendeu a garota.

Melissa ainda viu outro homem muito estranho. Sua cabeça era totalmente lisa e
desprovida de pelos; sua pele, branca como a neve; seu corpo, esguio e ligeiro, um pouco mais
baixo que um homem adulto; os lábios, finos e azulados. Escondia os olhos atrás de duas lentes
negras, amarradas à sua cabeça por uma espécie de tiara. Vestia-se de maneira estranha, uma
roupa de couro que não chegava a ser uma armadura, com pedaços de metal no peito e nos
braços. Na cintura trazia uma espécie de cano de bronze, com um gatilho semelhante ao de
uma besta e no peito, dois cintos de couro cheios de pequenos pedaços de metal. Ela não sabia
se ele os estava observando quando virou a cabeça em sua direção.

Quando chegaram mais perto da falésia notou que estavam levando rochas e madeira
para cima dela. Construíam muros e dezenas de braços trabalhavam lá, humanos ou de criatura
lagarto, tanto de pele negra como branca.

Ela também prestou atenção nos navios. Nunca vira um na vida. Imaginava-os
diferentes, diziam que eram feitos de madeira, mas aqueles pareciam ter cascos feitos de
metal. Além disso, diziam ter velas e ela imaginava algo feito de pano, não uma chaminé
metálica.

Por fim foram levados até uma região cheia de jaulas de madeira. Algumas pessoas
dormiam dentro delas, vigiadas por alguns dos escravistas. Algumas tendas de pano se erguiam
ali por perto. Uma das criaturas lagarto gritou um nome:

—Zabi!

Um jovem alto e careca, vestindo uma armadura de couro com rebites metálicos e
portando uma espada longa na cintura saiu de uma das tendas, respondendo ao chamado da
criatura lagarto. Quando viu o rapaz, a criatura rugiu:

—Seus — apontou para os prisioneiros. O rapaz assoviou e um grupo dos escravistas


não demorou em trazer corda e amarrá-los. Um deles puxou as mãos de Melissa e as atou às
costas. Quando os homens de Zabi cercaram os prisioneiros, as criaturas lagarto se retiraram. O
homem começou a lhes falar, com aquele irritante sotaque:

—Olá, peles de neve. — Ele mascava alguma coisa enquanto falava, estalando a língua.
Isso apenas o tornava mais irritante — Tenho uma noticia boa para vocês, nunca mais vão
precisar se preocupar com água e comida na vida. Basta obedecer e trabalhar. — Caminhava

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por entre a fileira de prisioneiros, eram cerca de trinta. — Os primordiais são mestres
bondosos, garanto. Não deixam que ninguém os machuque ou abuse de vocês... A não ser que
dêem motiiiiivo. — Ele chegou perto de um homem alto, com ar de orgulhoso — Sabe o que é
dar motiiiiivo?

O homem ficou em silêncio e Zabi respondeu, continuando a caminhada, estava quase


em frente à Melissa:

—Desobedecer é motiiiiivo — disse enquanto dava um passo lento —não trabalhar


direito é motiiiiivo — outro passo — brigar com qualquer um é motiiiiiivo — mais um passo e
estava em frente à garotinha agora, examinou-a da cabeça aos pés e falou — tentar abusar de
garotinhas indefesas... É motiiiiiivo. — Outro passo e parou, em frente a uma mulher chorona
— Tentar fugir é mais que motiiiiiiivo e por mais que motiiiiiivo quero dizer que é morte. Se
você for uma moça pelo menos agradável, garanto que não será rápida. — Isso calou a mulher.
Zabi cuspiu a folha amarela que mascava — hoje vocês descansam. Façam isso muito bem, não
descansar direito também é motiiiiiivo. Amanhã vão começar a trabalhar. Agora, vou soltar um
por um e vocês vão bem quietinhos pra jaula. — Virou-se e começou a caminhar de volta à sua
tenda. Disse de costas mesmo — Resistir é motiiiiiivo. — Sumiu pela porta da barraca.

Os guardas, seis homens armados com lanças e espadas, começaram a soltá-los.


Quando desamarraram o homem alto, ele tentou correr. Dois deles o perseguiram. O primeiro
lançou-se em suas pernas, derrubando-o e o segundo puxou seus braços para trás e torceu-os,
fazendo-o gritar de dor. Ele tentou se desvencilhar, mas o primeiro se levantou e falou:

—Como diria Zabi, você deu “motiiiiivo”. — Deu a volta no rapaz e bateu sua cabeça no
chão com muita força, fazendo-o sangrar. Repetiu o procedimento até desmaiá-lo. Foi
arrastado pelas pernas até a cela, deixando um rastro vermelho na areia. Depois disso ninguém
mais resistiu.

Melissa dividiu a jaula com outras cinco mulheres. Ao anoitecer chegaram outras
quinze. Comeram uma sopa de aveia com um ou outro pedaço de peixe no meio. Felizmente a
cela estava cheia, pois a noite era fria.

Na manhã seguinte dividiram as funções. As pessoas mais fortes foram enviadas para
cortar madeira ou carregar pedras. Alguns dos homens foram selecionados, incluindo o que
fora espancado na noite anterior, para irem às minas. Precisavam de rochas para as muralhas
da fortaleza que construíam.

Melissa ficou com diversos trabalhos leves. Levava mensagens, ajudava no preparo das
refeições e as servia, lavava roupas e panelas. Isso permitiu a ela conhecer o acampamento
todo e ouvir diversas conversas. Ninguém se importava com uma mocinha com rosto de criança

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que só andava para lá e para cá. Era cansativo, embora fosse melhor do que viajar em meio aos
primordiais, as criaturas lagarto. Aqueles homens não eram tão assustadores.

À noite costumava chorar e não era a única. Agora que suas noites eram mais tranquilas
ela lembrava-se de Isabelle. A sacerdotisa era a única pessoa que lhe importava e com sua
morte sentia-se totalmente abandonada. Fora abandonada pela mãe com apenas seis anos de
idade, pelo pai adotivo dois anos depois e agora a moça que tinha a adotado como irmã estava
morta. A mãe e os irmãos adotivos nunca se importaram com ela e por isso pediu para Adônis
levá-la até a Ordem dos Magos. Queria ser poderosa como ele, Cassius e Olavo. Queria não
depender mais de ninguém, não queria mais ser deixada para trás.

As lágrimas corriam quando ela pensava que ao invés de se tornar uma maga poderosa
tornara-se uma escrava dos primordiais, sem nenhuma perspectiva a não ser servi-los. Como
poderia escapar? Os magos o fizeram por que eram magos. O homem gato o fez, porque podia
se transformar em uma onça. Ela era totalmente indefesa e definitivamente não queria “dar
motiiiivo”. Chorava e ninguém parecia se importar. Não culpava aquelas outras mulheres, elas
mal deviam ter forças para suportar aquilo, porque teriam de ter forças para consolar alguém?
Pouco tempo atrás, Melissa teria essa força. Mas isso foi antes de terem lhe arrancado Isabelle.

...

No quarto dia mandaram-na servir o almoço para o capitão dos escravistas. Pegou uma
travessa de peixe assado com legumes e foi até um dos navios, com o dizer “Moeda de Latão”
escrito na proa. Estava acompanhada de outra menina, a Lambarizinho, uma mocinha de
cabelos cacheados um pouco mais nova que ela. Subiram por uma rampa de madeira e um dos
homens que cuidava do navio parou para inspecionar o que as duas faziam. Cheirou a comida e
passou um dedo por cima do peixe assado e o lambeu antes de deixá-las passar. Atravessaram
o convés e entraram na cabine do capitão.

Três “pessoas” estavam reunidas lá dentro. O capitão era um dos homens de pele
escura. Alto, sem barba, de olhos castanhos e com um cabelo longo amarrado em uma única
trança. Vestia uma belíssima armadura de couro tingida de azul e trazia em sua cintura uma
espada de lâmina curva. Ao lado dele estava um daqueles estranhos homens brancos e carecas.
Sua roupa de couro era adornada com pedaços de ouro e prata e tinha uma pintura cor de rosa
em forma de espiral em sua cabeça.

Porém o que mais chamou a atenção era o terceiro ser presente ali. Devia ter mais de
dois metros de altura, pois mal cabia ali dentro. Sua pele parecia feita de esmeralda, pois era
verde e sólida como uma; seus cabelos de um azul marinho tão forte que chegava a brilhar; os
olhos sem pupilas tinham a mesma cor que os cabelos e pareciam duas águas-marinhas; e seu

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rosto tinha feições muito quadradas e simétricas, fazendo-o parecer belo de uma forma bizarra.
Trajava somente um manto azulado e não trazia armas consigo.

Estavam todos em volta de uma pequena mesa cheia de frascos de bebidas, cada um
com uma taça metálica para si. Olhavam para um mapa que Melissa reconheceu como sendo
um mapa do continente. Certa vez Isabelle lhe ensinara a ler mapas e lhe mostrara o nome e a
localização dos lugares mais importantes. Era o capitão quem falava quando entraram:

—...Problemas, pois podemos saquear essas pequenas aldeias. Além disso, as terras
aqui em volta são férteis e temos escravos o suficiente para cultivá-las e o peixe é farto. Não
entendo porque ninguém havia colonizado essa região antes.

—É nosso território. — Explicou o homem branco.

—Está nos cedendo então? — perguntou o capitão.

—Não. Estamos cedendo à nossa causa. — O albino tomou um gole de sua taça — não
se preocupe, Kari, terá terras o suficiente para todos.

Melissa aproximou-se com cautela e ofereceu o prato ao capitão. Ele viu-a e disse:

—Ah, o almoço, sirva-nos. — olhou para seus companheiros e perguntou — aceitam


peixe assado?

—Preferia cogumelos. — Respondeu o homem branco. A outra criatura ficou em


silêncio, observando ameaçadoramente as duas mocinhas enquanto elas cortavam pedaços de
comida.

—Não sabe o que está perdendo. — Comentou o capitão enquanto era servido — de
qualquer forma, já enviei meus homens para essa tal de Banis e essa Campo Nevado para
extorquir os fazendeiros. Tem certeza que Sete Torres não irá reagir? — Melissa colocou um
pedaço de peixe no prato do homem, enquanto a outra menina enchia sua taça com gim.

—Estamos cuidando disso. Além disso, o máximo de reação que podem tentar é colocar
soldados para espantar os saqueadores, nunca vão imaginar que estamos bem embaixo do
nariz deles. — A criatura verde continuava observando as garotas. Quando a garotinha de
cabelos cacheados aproximou-se para encher a taça dele, ele falou com uma voz grave, de
comando:

—Porque deixam os escravos ouvirem toda a conversa? — A menininha ficou branca de


medo e derrubou a garrafa que segurava.

—São apenas garotinhas, o que acha que podem fazer? — respondeu o capitão.

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—Os primordiais foram derrubados por confiar demais na inocência de seus escravos. —
A garotinha continuava trêmula enquanto abaixava para recolher o que tinha derrubado. O
capitão continuou falando:

—Deixe as meninas. Como conquistaremos Sete Torres? Os albinos ajudarão? —Melissa


encheu a taça do homem branco. A criatura verde olhava para Lambarizinho e suas intenções
eram indecifráveis com aquele rosto inexpressivo.

—Não será necessário, mais primordiais da destruição virão e um ataque inesperado de


primordiais irá bastar.

—E quanto aos magos?

Antes que essa pergunta fosse respondida, a criatura verde segurou a cabeça da
menininha e ergueu-a. A criança gritou e esperneou.

—Ei, não mate meus escravos! — gritou o humano. — Eu as mando embora, são apenas
crianças!

—Elas já ouviram demais. — Ele torceu o pescoço da menina, como se torceria o


pescoço de uma galinha, e soltou o corpo mole dela enquanto se virava para Melissa. O capitão
gritou para ela:

—Saia já daqui! — Disse para Melissa enquanto sacava sua cimitarra e parava em frente
à criatura verde — Não vou permitir que você fique matando os meus escravos! — Melissa não
ouviu mais nada. Ela virou-se e correu para fora do barco o mais rápido que pode.

A imagem da criatura torcendo o pescoço da menina não sairia tão cedo de sua mente.
A garota correu até não aguentar mais, parou perto da entrada do acampamento e sentou-se à
sombra de uma das torres. Ficou ali, chorando por algum tempo. Notou alguém se
aproximando e olhou, ficando aliviada ao notar que era um dos escravistas. Tinha olhos
castanho-claros e um cabelo longo, era um homem magro e trazia um sorriso malicioso no
rosto. Disse:

—O que está fazendo aqui, parada, mociiiiiiinha?

Somente então ela se deu conta de que “estava dando motivo”. Tentou improvisar uma
desculpa:

—Eu vim trazer uma mensagem para a torre de vigia. — Gaguejava, ainda estava
abalada.

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—Claro, e aproveitou para descansar um pouquinho nessa sombra não é mesmo? — Ele
aproximou-se e Melissa rapidamente pôs-se em pé. — Não fuja, garanto que será pior. Eu não
vou lhe fazer nada que você não goste. — O homem saltou na direção dela e segurou-lhe um
braço. A menina começou a tremer, sabia que iria apanhar. O escravista puxou-a para perto
dele e segurou-a pelas costas, prendendo-a junto ao seu corpo com um dos braços. O outro ele
enfiou por dentro do vestido dela e começou a apalpar um dos pequenos seios da garota. — Eu
lhe disse que não iria fazer mal algum. Agora se você ficar bem quietinha, não vai apanhar nem
um pouquinho. — Melissa ficou pálida. Tentou se desvencilhar e gritou:

—Me solta! — Ele a apertou com mais força e mordiscou sua orelha, sussurrando:

—Grite de novo, e vou te bater até você não conseguir mais gritar. — De repente ele a
soltou e a menina caiu no chão. Ouviu uma voz conhecida:

—Ariiiii, você está me dando motiiiiivo. — Ela se virou e viu Zabi puxando o rapaz. — Se
quer foder alguém, pague umas das garotas para isso ou pegue uma das fugitivas.

—Essa aqui estava escondida sem trabalhar. — respondeu enquanto se recompunha.

—Então você a manda voltar para o trabalho. Não percebeu que é só uma criança que
não tem nem teta ainda?

—Zabi, vá à merda e me deixa. — Melissa tinha acabado de se levantar quando ele


avançou com uma espada para cima de Zabi. Este sacou sua própria lâmina e com um
movimento enérgico lançou a arma de Ari longe. Depois disso deu uma joelhada com muita
força no meio das pernas do rapaz e empurrou-o, jogando-o no chão. Ari rolou de dor.

—Não. — Respondeu Zabi. Ele colocou um pé em cima da genitália do rapaz e disse — é


melhor você parar com essa mania de atormentar as criancinhas, ou então eu esmago seu pau
e você não vai atormentar mais ninguém. — Virou-se para Melissa e falou — o que está
fazendo parada aí? Volte para o trabalho ou então vai estar me dando motiiiiivo.

A menina correu de volta para a “cozinha”, a tenda onde preparavam as refeições em


grandes panelões de metal. O cozinheiro, um rapazinho não muito mais velho que ela, de peles
negras e cabelo bagunçado, perguntou:

—O que foi? Porque demorou? Cadê a lambarizinho?

Melissa simplesmente começou a chorar. O rapaz deu-lhe um abraço e falou:

—É melhor voltar a trabalhar, antes que venham nos bater.

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Melissa chorou tanto naquela noite que não conseguiu dormir. Dessa vez alguém se
importou. Uma das mulheres mandou que ela se calasse, ou iria enfiar areia na boca dela para
que não fizesse mais barulho.

...

Nunca se sentiu tão ameaçada quanto nos dias que se seguiram. Tinha a impressão de
estar sendo observada constantemente. Eventualmente via aquela criatura verde, mas pelo
visto o ser não lembrava-se dela. Outra visão usual era Ari, o homem lhe fazia sinais obscenos e
gargalhava quando ela corria.

Num dos dias chegou um navio e dele desceu uma enorme quantidade de primordiais,
junto com outro daqueles homens verdes. O cozinheiro Berai, que estava se tornando amigo de
Melissa, comentou:

—Aquele também é um primordial, apesar de parecer mais humano que os outros, é


mais perigoso. É o comandante deles.

—Cachinhos! — Era o apelido de Melissa, devido ao seu cabelo. Na verdade, ela se


orgulhava dos seus cachos negros. — Vá servir o capitão! — Karre, a escravista que tomava
conta das cozinhas ordenou. A lembrança do primordial torcendo o pescoço de Lambarizinho
ainda era recente demais e Melissa falou:

—Aquele monstro vai torcer o meu pescoço se eu for até lá!

—Se você não for, quem irá torcer o seu pescoço sou eu mesma! — gritou a mulher.
Não adiantou, Melissa continuava recusando. Berai se ofereceu para ir em seu lugar e Karre
bradou — vá de uma vez, não deixe o capitão com fome! — Ela também falava os “is”
arrastados. — E você, cachinhos, venha aqui!

Puxou a garota pelo braço até uma árvore e ordenou:

—Abrace a árvore, e abrace bem apertado. — Ela buscou um pedaço de madeira e


voltou — E aí de você se tentar fugir! —Karre acertou a parte de trás de suas coxas com toda a
força e Melissa gemeu — pare de reclamar, é o castigo por desobedecer. Podia ser bem pior —
“sim, eu poderia ter meu pescoço torcido” pensou a garota, mas esse pensamento logo se foi,
substituído pela dor de outra paulada nas pernas. Na quinta ela não aguentou mais e gritou. Na
oitava sentiu sangue escorrendo e na décima caiu de joelhos, chorando. A mulher gritou:

—Se acha que vai ficar aí parada só porque tomou uma surrinha, tá enganada! Levanta
e de volta pro trabalho, a não ser que queira apanhar mais! — Karre lhe deu uma faca meio
cega e levou-a de volta à cozinha.

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Estava distraída com os legumes e a dor nas pernas quando sentiu uma mão apertando
suas nádegas. Outra mão negra prendeu o pulso que segurava a faca. O rosto de Ari apareceu
ao seu lado, com um sorriso, dizendo:

—Pensou que tinha se livrado de mim? — Melissa congelou. Karre observava tudo com
um canto de olho, mas não disse nada. — Não se preocupe, não vim fazer nada com você, não
ainda. — Ele lambeu a bochecha da garota — só vim dizer para você ir se preparando. Estou
pensando em fazer uma visitinha numa noite dessas. — Ele torceu o pulso da menina até ela
gritar — e só para avisar, naquele dia eu não iria te machucar, mas depois de levar uma
joelhada no saco por sua culpa, eu mudei de ideia. Quando eu vier, se prepare, garanto que vai
doer. — Deu um tapa com força nas coxas machucadas da garota — mesmo.

Naquela noite a garota não conseguiu dormir novamente. Já tinha aprendido a chorar
em silêncio e foi o que fez. Deitou-se de bruços, era o jeito menos doloroso. Qualquer som fazia
seu sangue gelar e o medo impediu-a de descansar. Ari não foi visitá-la naquela noite.

No dia seguinte mal se aguentava de tanta dor nas pernas. As coxas estavam inchadas e
só conseguia se deslocar mancando. Karre gritou nos seus ouvidos algumas vezes para que
parasse de reclamar e andasse direito. Nesses momentos ela se forçava a suportar a dor, mas
era tudo. Berai lhe falou sobre o dia anterior:

—Levou uma surra à toa, o primordial não estava lá. Não apanhe de novo.

Melissa ouviu o conselho do garoto e não reclamou de levar a comida. Ela aproveitava
para ler os documentos e mapas que tinha em cima da mesa. Ninguém imaginaria que uma
garotinha saberia ler. Havia cartas, tratados, estatísticas. Estavam se preparando para uma
guerra.

Na noite do dia seguinte, quando terminavam de esfregar as enormes panelas do jantar,


um homem aproximou-se e ordenou que entregasse uma mensagem para um dos escravistas
próximo à entrada do acampamento. Karre disse para ele ir buscar outro escravo, mas o
homem insistiu que fosse Melissa. Havia algo estranho nisso, porém a perspectiva de levar
outra surra a forçou a fazê-lo sem questionar.

Estava nublado e frio, o outono chegava ao final e ela sentia na pele, apesar de não
fazer ideia do dia em que estavam. Gostaria de ver o tamanho da estrela Glacial, tinha certeza
de que estaria enorme. Leu a mensagem que levava. “O peixe está assado” é tudo o que dizia,
numa caligrafia péssima. Não entendia o porquê alguém se daria ao trabalho de escrever
aquilo. Chegou à entrada do acampamento e dirigiu-se a uma tenda de pano que ali estava.

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Encontrou-a desabitada. Tinha um monte de palha jogado no chão, assim como uma
caixa de madeira, um barril destampado, roupas, alguns metros de corda, sacos de pano e
restos de comida. Levou a mensagem até a caixa de madeira e deixou ali o papel. Ouviu um
som atrás de si e, antes que pudesse se virar, sentiu a frieza de uma lâmina de punhal tocando
seu pescoço.

—Eu disse que não iria se livrar de mim. — Resmungou Ari em seu ouvido. Tapou a boca
da garota com a outra mão, enquanto apertava o gume contra sua garganta — se não quiser
morrer, faça tudo o que eu disser. Entendido? — Melissa ficou parada, com a respiração
ofegante e o coração quase saindo pela boca. — Entendido? — rosnou com mais violência e fez
com que ela sentisse a lâmina fria em seu pescoço. A menina anuiu levemente. — Se você
gritar, ou tentar chamar a atenção de qualquer jeito que seja, eu furo seu pescoço e você morre
afogada com o seu próprio sangue. Agora, fique de joelhos e em silêncio.

Melissa obedeceu. Tentava achar uma maneira de escapar, mas a única alternativa que
enxergava era correr e definitivamente não seria mais rápida do que ele, não com as pernas
machucadas. Ele enrolou um saco e colocou na boca dela, amordaçando-a. Pegou a corda e
amarrou os braços e as pernas da garota e depois a colocou dentro do barril. Falou:

—Se eu ouvir um ruído qualquer, te enterro viva.

Sentiu o barril sendo erguido. Estava carregando-a para algum lugar. Melissa começou a
chorar, um pranto abafado. Rezou para todos os deuses do panteão, rezou para que a
salvassem. Ari parou um instante e trocou algumas palavras com os guardas do acampamento.
Se ela gritasse talvez eles a ajudassem. Começaram a dar risada. Não, não ajudariam, era mais
provável que a estuprassem junto. Novamente o homem se pôs em movimento e os sons do
acampamento começaram a ficar distantes. Dentro do barril era escuridão absoluta.

Ouviu passos no mato, entendeu que estavam no meio da floresta. O desespero tomou
conta quando ela entendeu que não tinha mais nenhuma salvação. Começou a se debater com
força, o que fez o homem parar e abrir a tampa. Puxou-a para fora e jogou-a com força no
chão. Tentou se desvencilhar das cordas, no entanto não tinha como, apenas debatia-se como
uma minhoca em um anzol.

—Fique quieta! — Gritou, sem nenhum medo do barulho que fazia. Chutou-a nas
costelas com muita força. Melissa continuou lutando para se soltar. Ari se irritou com a
resistência dela e voltou a chutá-la, repetidas vezes. Cada pancada fazia a garota se contorcer
mais. Ela ouviu o barulho de metal cortando o ar, seguido pelo som de aço cortando a carne.

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Um instante de silêncio, seguido pelo baque de um corpo contra o chão. Os chutes
cessaram, mas a dor não. Ela se virou e viu um rosto familiar. Adônis era da mesma cor que
aqueles escravistas e um dia ele explicaria o porquê, mas antes cortou as amarras e falou:

—Me desculpe.

Melissa atirou os braços em torno dele e chorou.

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Intermissão: Banis Saqueada

Kor estava em sua cama quando a porta do quarto se abriu. Ele esperava ver o
curandeiro que um dos caçadores foi chamar ou talvez sua criada. Seu braço esquerdo teve de
ser amputado por um dos caçadores. Foi uma péssima operação, um homem acostumado a
cortar pedaços de javalis mortos não tem condições de arrancar um braço de um homem vivo.
Sentou-se e se espantou com a pessoa que viu parada à sua porta. Um homem de pele escura,
assim como o mago que trouxe a desgraça para sua vila. Esse homem era menor, ao menos.
Disse, com um sotaque engraçado:

—Me falaram que você é o regente daqui, confere?

—Sim, sou eu mesmo. — Respondeu Kor. Não entendia ainda o porquê, mas pelo visto
ninguém tinha coragem o bastante de tomar a responsabilidade por um vilarejo quase
abandonado.

—Vejo que não estão muito bem. Ainda conseguem plantar alguma coisa?

—Quem é você?

Os dois fitaram-se em silêncio por um instante. O homem respondeu:

—Não tenho porque te enrolar, não é como se você pudesse fazer alguma coisa comigo
mesmo. Funciona assiiiiim: vocês me dão metade de tudo o que plantam e eu e meus homens
não destruímos o vilarejo, ou o que sobrou dele.

Kor se perguntava por que diabos mandaram aquele homem falar com ele. Não é como
se o regente pudesse reunir a incrível força de defesa de Banis (dois caçadores, quinze donas de
casa, doze fazendeiros velhos e duas dúzias de crianças) e lutar contra. O homem ferido
resmungou:

—Leve o que quiser, não tenho como fazer nada contra isso. Desde a vinda daqueles
malditos magos não tenho como fazer nada contra coisa alguma.

—Magos? — Um profundo interesse se despertou no saqueador — onde estão?

—Morreram queimados e levaram minha esposa com eles. Por mim poderia acontecer
o mesmo com todos os malditos magos do mundo e com você também, se quer saber.

— Comigo não vai acontecer. — Sorriu levemente — Mas você não é único que deseja
que aconteça com todos os magos do mundo.

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Capítulo 7: Lar

Tiveram de abandonar o rio e torcer para encontrar água ou morreriam de sede antes
de atingirem alguma cidade. Tinham de seguir para o norte, até chegar à estrada Sul, se
quisessem alcançar Sete Torres. Aceitaram o risco.

Desde que Olavo quebrara o galho do teixo e se recuperara da infecção, a viagem dos
três tornara-se muito mais confortável. Com alguma ajuda de Cassius, ele conjurava feitiços de
proteção para ajudá-los. Separavam sempre algum pedaço de madeira quente das fogueiras e
ele utilizava-os como componentes de magias para esquentá-los. Cecília achou-se sortuda por
estar viajando ao lado de dois magos.

O pedaço da árvore tornou-se um cajado. O galho era um pouco desajeitado, mas


mesmo assim ajudava o rapaz a moldar o mana para os feitiços de proteção. A energia mágica
parecia converter-se melhor nas formas que ele desejava quando passavam pelo pedaço de
madeira. Eritros possuía um cajado, construído e encantando por ele próprio. Olavo nunca
entendera a razão de ele carregar um incomodo bastão para todos os cantos. Agora entendia.

Enfim tomaram a estrada. O céu estava azul, sem nenhuma promessa de chuva e,
durante a noite, a estrela glacial brilhava cada vez mais forte, indicando a proximidade do
inverno. Conseguiam caçar um ou outro animal, porém a comida era escassa e passavam fome.
Não encontraram nenhuma fonte de água durante o dia inteiro. A floresta tinha dado lugar a
um descampado e árvores frutíferas deixaram de ser comuns.

No segundo dia cogitaram voltar para o rio e esperar tempos chuvosos para voltar a
viajar, no entanto uma caravana veio em sua direção e Olavo enfeitiçou um dos homens para
que lhe desse alguns cantis de água. Tiveram de racioná-la e continuaram passando um pouco
de sede, mas sobreviveram. Acamparam na beira de estrada e o desconforto da viagem tornou
seus humores irritadiços, embora tivessem o bom senso de evitar atrito.

Avistar Sete Torres no dia seguinte animou-os. A cidade ficava no topo de uma colina e
podia ser vista de muito longe, teriam ainda um dia inteiro de caminhada pela frente. As torres
da cidade se destacavam, eram somente linhas estendendo-se em direção ao céu daquela
distância, mas os três já habitaram a cidade e tinham noção do quão colossais elas eram de
fato.

Na metade do dia chegaram às primeiras fazendas exteriores. Era arriscado viver tão
longe da cidade, pois lobos, felinos ou criaturas piores eventualmente se alimentavam de
cabras ou fazendeiros descuidados. A vantagem era não pagar impostos e poder vender a

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produção para os milhares de habitantes do local. Sete Torres não viveria em paz sem a
existência desses fazendeiros isolacionistas, por isso fazia o possível para protegê-los.

Cecília utilizou-se de sua condição de sacerdotisa de Taos para pedir água e comida para
os trabalhadores, sendo bem sucedida após algumas tentativas e um pouco de diplomacia. Os
fazendeiros não se importavam tanto com a deusa da guerra e da primavera, mas tiveram a
sorte de encontrar uma senhora com muitas filhas que pediu a benção da divindade para sua
prole ser muito fértil. O nome de Taos era invocado durante os partos, pedindo segurança, e
por mulheres recém-casadas, pedindo fertilidade.

Enfim aproximaram-se das muralhas maciças de pedra da cidade. Foram construídas


centenas de anos atrás por mãos de metamorfos e humanos, na época em que eram escravos
dos primordiais. Sete Torres fora uma importantíssima cidade desde que surgiu, sendo uma das
capitais do Império Elemental, estabelecido pelos primordiais no início da primeira era. Havia
oito torres. Sete delas representavam os ministérios: Caça, tesouro, agricultura, águas, cárcere,
destruição e dominação. A oitava torre era o templo de Torus, o antigo deus dos primordiais.
Todos os escravos eram forçados a reverenciá-lo.

A divindade foi adotada pelos humanos em sua própria religião e sua morte simboliza a
queda dos primordiais. Muitos temem habitar as proximidades do antigo templo. A construção
foi destruída durante a Primeira Guerra Elemental e agora é uma enorme torre abandonada.
Ladrões, assassinos, mendigos, fugitivos, todos os excluídos da cidade valem-se daquele lugar
como abrigo. A torre é flanqueada pelos templos de Taos e Ulines, os dois deuses mais bélicos
do panteão humano. Essa escolha foi feita originalmente com intuito religioso de proteger a
humanidade no dia do retorno de Torus, mas funciona bem com o intuito prático de vigiar as
atividades na torre quebrada.

Após atravessar os portões, Cecília perguntou aos rapazes:

—O que pretendem fazer agora?

Olavo ainda não tinha cogitado o que fariam. Desde a morte de Isabelle, não tinha
parado para pensar sequer uma vez sobre o que fariam. Estava apenas existindo e
sobrevivendo.

—Procuraremos nossos familiares, com alguma sorte ainda estarão aqui. — Falou de
pronto Cassius. — Eu ficaria muito grato se você nos honrasse com sua companhia. — Ela
esboçou um sorriso ao responder:

—Suas palavras são doces, mas o dever me chama. Devo reportar tudo o que aconteceu
ao templo de Taos. — Parou e colocou-se de frente para os dois rapazes. — Creio que seja um

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adeus então, Cassius e Olavo. Que as flores desabrochem em seu caminho. — Ela virou-se e
começou a andar. Olavo sentiu um fortíssimo aperto no peito quando viu a garota se afastando.
Teve vontade chamá-la ou de correr atrás dela, mas não o fez. Cassius agiu diferentemente,
puxando Cecília pelo braço:

—Espere! — Ela se virou, fitando o mago mais velho diretamente. — Não desejo que
essa seja a última vez que nos vemos, Cecília. — A moça virou-se e continuou a encará-lo, ainda
com um esboço de riso. — Se você permitir, eu poderia visitá-la no templo e poderíamos
conversar em uma situação menos crítica.

A sacerdotisa ficou parada um instante, pensando. Outro sentimento tomou conta de


Olavo nesse momento, sentiu-se subitamente irritado com o irmão ao mesmo tempo em que
desejava ter sido ele a impedir Cecília de partir. Ela falou:

—Visite-me, então. Ficarei feliz em vê-los novamente. — Dirigiu-se para o rapaz mais
jovem — você também Olavo. Não haveria razões para não recebê-los, estou a salvo graças a
vocês. Agora se me permitem, devo me apressar.

—Claro. — assentiu Cassius. — Até logo, Cecília.

Não demorou a sumir em meio à multidão. Olavo continuava imobilizado, sem entender
muito bem o que se passava. Seu irmão chamou-o, taciturno:

—Vamos, para o templo de Selenias.

...

—Apenas mate-os. — Ordenou calmamente a sumo sacerdotisa.

—Já teria feito isso e não viria importuná-la se conseguisse, senhora. — argumentou o
jovem lenhador. — São muitos e esses episódios vêm se repetindo.

—O sul vem se tornando muito perigoso ultimamente e há poucos sacerdotes e


soldados estacionados aqui. Não posso mandar alguém lidar com ladrões agora. — Aquele
rapaz era o terceiro a pedir segurança para o templo de Taos. A sumo sacerdotisa sentia-se
incapaz por não poder ajudar nenhum deles, mas ameaças maiores do que ladrões rondavam a
cidade.

—Me perdoe, senhora, mas não entendo o porque damos dinheiro ao Conselho dos
Sete se nem mesmo nos protegem quando precisamos. — Ela espantou-se com a insolência do
rapaz e rebateu:

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—Retire-se, não há mais nada a tratarmos. — Ele já saía quando o homem do manto de
seda violeta, que esperava em pé ao lado do altar sagrado de Taos, falou:

—Visite o conclave da ordem, talvez possamos ajudá-lo.

—Eles ainda os temem, Klaus. — comentou a senhora.

—Sim, afinal de contas nós salvamos o mundo um século atrás, têm ótimas razões para
nos temer. — Já não era um homem tão jovem, alguns fios brancos cresciam em seus cabelos
negros, no entanto ainda não perdera o porte físico, mantinha os ombros largos e a postura
ereta.

—E dizimaram populações inteiras durante um século. Não digo que não os entendo. —
Ela também se aproximava da meia-idade. Não se podia dizer que era um exemplo de beleza,
mas daria inveja a outras mulheres de sua idade. A cota de malha pintada de roxo escondia o
vigor de uma guerreira. Provavelmente alguma de suas sacerdotisas-guerreiras já havia a
superado em habilidade de combate, mas ela tinha uma justificativa: Lidar com política
desgastaria qualquer uma.

—Se deixassem de nos temer e permitissem a formação de um Conselho dos Oito,


teríamos somente a ganhar. — Sentou-se na base da estátua de Taos — nesse momento estaria
mandando alguém lidar com esses arruaceiros, ao invés de mandar um homem embora
desamparado.

—Nunca o proibi de enviar alguém para ajudar.

—Nunca prometi que iria fazê-lo por bondade pura. Podemos começar nossa
negociação então?

—Só um instante. — Ela virou-se para a porta e gritou. — Salgueiro! —Um homem
moreno portando um escudo com o desenho de uma árvore entrou pelas enormes portas
duplas no salão sagrado do templo.

—Senhora Orquídea. Há mais uma pessoa que deseja vê-la. Uma sacerdotisa de Taos.

A sumo sacerdotisa respondeu, franzindo as sobrancelhas:

—E como se chama?

—Cecília.

O homem com o manto de seda violeta fitou-a gravemente.

—Deixe-a entrar.

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Orquídea reconheceu imediatamente a jovem que entrava, apesar da pobre coitada não
trajar mais do que farrapos e parecer extremamente desgastada. Cecília olhou espantada para
o homem parado ao lado da sumo sacerdotisa, avançando receosamente. Aproximou-se e fez
uma reverência:

—Vossa benção, senhora.

—Que tuas mudas floresçam e que tu venças tuas batalhas. — Orquídea aproximou-se
da garota e abraçou-a, perguntando — O que houve com você?

—Fomos traídas senhora.

—Klaus contou-me. —O homem olhava-a receoso.

—Contou-lhe que ele é o traidor? — Ameaçou Cecília, apontando energicamente.

—Então uma desertora acusa-me de traição? — Rebateu o mago sem nenhuma


hesitação.

—Não sou desertora, seu maldito! — Gritou a garota, avançando um pouco na direção
dele.

—Acalme-se Cecília! — Ordenou Orquídea. — Conte-me sua versão.

—Fomos atacados em uma das noites e nossos supostos aliados aproveitaram a chance
para matar Jasmim e as pétalas! — apontou novamente para Klaus — ele a matou!

—Eu tomaria cuidado com as acusações, jovenzinha. — Respondeu em tom rabugento o


homem.

—Ele tem razão Cecília. O que você diz é algo muito perigoso...

—É a verdade! — Ela gritou.

—Então explique como você sobreviveu à emboscada, explique como eu voltei junto
com outros três sacerdotes de Taos e você não estava em meio a eles. — Klaus aumentava o
tom de voz — Explique porque não terminei o serviço de matar os adoradores de Taos,
oportunidades para isso não me faltaram! Explique porque esperei tanto tempo para atacar
vocês? Pode explicar isso?

Cecília ficou sem reação. Suas mãos tremiam e seu rosto ficava vermelho. Argumentou,
já não mais tão confiante:

—Eu recebi uma ordem de Jasmim, ela mandou-me fugir.

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—E como pode provar isso?

—Cale-se! — A moça partiu para cima de Klaus, mas Orquídea puxou-a pelo braço,
falando com firmeza:

—Cecília, aquiete-se! — A expressão da sacerdotisa não era nem um pouco leve.

Somente as respirações ofegantes se faziam ouvir naquela sala. A sumo sacerdotisa


tomou a palavra:

—Cecília. — A garota abaixou a cabeça ao olhar para sua superior. — A acusação que
você fez é muito grave. Klaus disse-me que você abandonou o campo de batalha... — A moça
abriu a boca para falar e foi interrompida — cale-se. Outros três sacerdotes viram a mesma
coisa. Entende o que isso quer dizer?

—Eles estão mentindo! — A voz da jovem estava tremida.

—Prove — Retrucou Klaus.

—Cale-se você também. — Orquídea colocou as mãos nos ombros da garota e


continuou — Cecília, sabe a pena que os desertores sofrem.

—Eu não desertei! — falou, olhando para a suprema sacerdotisa.

—Não disse isso. — A moça virou o rosto para outro lado — olhe para mim. Vamos. —
Ela demorou um pouco até tomar coragem de fazê-lo. —Da mesma maneira que você acusa
Klaus de ser nosso inimigo, ele está lhe acusando de ser uma desertora. Tem que entender que
na minha posição, não sei no que acreditar. — Orquídea, no entanto, lhe deu um quase
imperceptível sorriso.

—Exceto por eu ter provas de não ser um traidor. — Comentou Klaus — Orquídea, se
quer que a ordem dos magos continue a respeitar o templo de Taos, não aceitarei que essa
garota tenha me acusado injustamente e saia impune. — A mulher virou-se para ele com as
sobrancelhas franzidas. — Não tenho medo de você, uma exigência é uma exigência.

Cecília resmungou:

—Ele está mentindo. A ordem dos magos sempre me perseguiu, a senhora sabe disso.
Ou você também vai mentir quanto a isso? — Dirigiu-se em tom acusador a Klaus. O mago
respondeu sem hesitar:

—Não nego. — Cecília espantou-se com a sinceridade — Não menti em nenhum


momento até agora e não irei começar agora. De fato, minha opinião é parcial, mas você deve

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ter noção de que não temos interesse no seu cadáver. Não temos algo contra você, garotinha.
Tê-la presa aqui não me traria benefício algum, exceto que a justiça estará sendo feita.

—Sinto muito, Cecília. — disse a sumo sacerdotisa — mas ele tem razão. Não se
preocupe, não deixarei a ordem dos magos tocar um dedo sequer em você. — A garota sabia
que a senhora ainda não havia terminado — não foi uma boa ideia tê-lo acusado de traição.
Nem ter fugido do campo de batalha, tendo recebido uma ordem ou não. Até que eu decida o
que fazer com você, terá de ficar no calabouço.

A moça apenas fechou os olhos e respirou fundo, murmurando “não é justo” por entre
os dentes. Orquídea chamou um guarda para acompanhá-la. Ele segurou um dos braços de
Cecília, que se desvencilhou e disse:

—Eu sei o caminho.

A jovem dirigiu-se cabisbaixa porta afora. Assim que a porta se fechou, Klaus falou,
sorridente:

—Aparentemente nossa negociação ficou um pouco mais interessante agora...

—Cecília não é uma mercadoria. — Reprimiu-o, aproximando-se e impondo sua


presença. Ela não era uma mulher pequena e conseguia ser assustadora quando desejava — Já
fiz mais do que devia ao mandá-la para o calabouço. Espero que isso baste para nossa
negociação estar mais interessante.

...

O templo de Selenias enchia-se conforme o outono chegava ao fim, pois era a deusa
dessa estação e da renovação. Todos corriam para fazer suas preces e pedir tempos melhores
antes que a oportunidade passasse. Cassius e Olavo esperavam sentir-se mais familiarizados
com o lado oeste da cidade, mas sentiam-se como intrusos. Não encontraram conhecidos e de
certa forma agradeciam, já que pareciam mendigos com as roupas rasgadas, as barbas por fazer
e os corpos imundos. No entanto, era uma sensação estranha voltar depois de seis anos. Era
como se não pertencessem mais a Sete Torres.

A construção era tão grande quanto as outras seis torres, mas tinha um diferencial. No
final do outono muitas pessoas faziam pedidos à deusa e reuniam-se para o ritual de pintar a
torre. Começavam no terceiro ciclo do outono e durante trinta dias pessoas de todos os tipos,
vindas de diversos lugares e de diversas classes sociais, traziam tinta e, com ajuda dos
sacerdotes, mudavam a cor da torre. Dificilmente as cores se repetiriam, pois cada um trazia a
tinta que conseguisse, deixando a construção com um mosaico de cores no lado exterior.

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Olavo perguntou à Cassius:

—Não será estranho aparecermos feito dois mendigos depois de seis anos longe e dois
anos sem dar noticia alguma?

—Vê alguma outra opção?

—Podíamos arranjar roupas primeiro... — Estavam quase em frente ao templo.

—O templo de Selenias é quem dá assistência aos mendigos. — Olavo franziu o cenho


quando o irmão disse isso. —É o que nós somos. Olhe para mim. — Cassius estava acabado. De
sua camisa praticamente nada restava, deixando os pelos do peito à mostra, sua calça se
reduzira a um calção, seus cabelos estavam sujos e desgrenhados, assim como a barba. —
Tenha certeza que você está muito pior, já que eu sempre fui mais bonito.

O portal de entrada estava muito movimentado. A falta de higiene dos irmãos ajudou-os
a conseguir seu lugar em meio à multidão. Todos se dirigiam para a grande estatua de Selenias
no meio da nave do templo. Uma mulher de pedra de mais de oito metros de altura, com as
mãos postadas entre os seios desnudos e o rosto virado para cima, com olhos fechados. Dizia-
se que algum dia a deusa abriria os olhos e chegaria o grande outono, onde todas as folhas do
mundo cairiam, tudo que era velho morreria e a vida seria renovada.

Cassius e Olavo logo se livraram da grande massa e dirigiram-se até o claustro onde
ficavam os sacerdotes. Estiveram ali inúmeras vezes durante suas vidas, comprando brigas,
fazendo amigos, rindo, chorando. E sempre estavam com sua prima, Tiria. Olavo estava ansioso
em revê-la, os dois cresceram juntos e viam um ao outro como irmãos. Quando a mãe dos
rapazes morreu, a irmã de seu pai, Cornélia, passou a viver com eles. Foi ama de leite de Olavo,
pois ainda amamentava uma menina de dois meses. Durante os onze primeiros anos de vida,
Tiria e Olavo quase não se desgrudaram e quando o fizeram não foi por vontade própria.

O irmão mais velho bateu à porta de madeira e uma voz masculina respondeu do outro
lado:

—A cerimônia irá começar ao anoitecer! Quanto à entrega de alimentos, somente de


manhã, como você deve bem saber!

—Desejo falar com Tiria. Diga que seus irmãos voltaram.

A porta de madeira abriu-se e um jovem vestindo uma túnica verde que o cobria dos
pés a cabeça atendeu-os. Espantou-se ao ver a situação dos dois rapazes altos que o
aguardavam do lado de fora.

—Tiria não é irmã de mendigos!


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—Somos Cassius e Olavo, diga esses nomes a ela e pergunte quem são, ela lhe dirá.

O homem ficou pasmo um pouco, alternando os olhares entre os dois rapazes.

—Ela me disse que os irmãos dela eram magos poderosos, se provarem isso, eu os deixo
entrar.

—Olavo? — O rapaz mais velho olhou para o outro. Este fez alguns gestos e criou uma
ilusão na ponta de seu cajado, transformando-o temporariamente em uma cabeça de pássaro.
O sacerdote ficou impressionado e falou:

—Tudo bem, esperem aqui, irei chamá-la. — Virou-se, fechando a porta e os dois
puderam ouvir seus passos se afastando rapidamente.

Olavo batia o pé no chão e mexia com seu cajado. Cassius apenas olhava em volta, sem
focar em nada. Os minutos pareciam demorar muito, mas ao mesmo tempo em que sofriam
por aguardar, estavam receosos de ver alguém tão importante e que não viam há tanto tempo.

A porta abriu-se e não esperavam ver a mulher que viram. Não sabiam o que os
impressionou mais. Esperavam ver a mesma menina de onze anos que deixaram para trás e
encontraram uma senhorita adulta, com toda a beleza que se pode ter aos dezessete anos de
idade. Os cabelos castanho-claros esparramados por sobre os ombros, seios fartos e os mesmos
olhos grandes de Eritros, herdados da mãe. E sem metade do braço esquerdo.

Por um instante não fizeram nenhum movimento, analisando uns aos outros,
espantados demais com suas respectivas situações para tomar alguma atitude. Olavo foi o
primeiro dessa vez, puxando-a para si e abraçando-a com força.

—Desculpe-me. — Foi a única coisa que o rapaz conseguiu dizer, enquanto apertava a
garota contra seu corpo imundo. Era estranho sentir somente um braço em suas costas
enquanto ela o abraçava.

Por um instante ficaram abraçados, chorando. Cassius manteve-se parado, quieto.


Notou que aquele sacerdote voltara pelo corredor. Ao redor deles as pessoas oravam e
suplicavam para Selenias. Se Cassius acreditasse no poder dos deuses, certamente faria o
mesmo.

Tiria soltou Olavo e pulou nos braços de Cassius. Esse abraço foi mais curto e sem
lágrimas. Ela soltou-o e falou:

—Vocês estão terríveis! Não sei o que aconteceu, mas definitivamente precisam de um
banho, de roupas novas e de arrancar essas barbas! Venham comigo! Conversaremos assim que
vocês estiverem limpos e bem alimentados.
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...

Estava agachada num canto, abraçada às pernas. Sentou-se e endireitou-se quando


ouviu os passos descendo as escadas. A iluminação daquele lugar era precária e a luz de mais
uma tocha uniu-se às luzes do calabouço. A sumo sacerdotisa aproximava-se. Chegou até a cela
da garota e falou:

—Chegue mais perto, Cecília.

A garota levantou-se, desanimada e foi às grades da cela. Orquídea lhe disse:

—Conte-me a verdade, conte-me o que aconteceu contigo.

Cecília hesitou e desviou a face antes de fazer a seguinte pergunta:

—Você acredita no que Klaus disse, senhora?

—Eu confio em você, uma sacerdotisa consagrada, muito mais do que naquele homem.
— A moça virou o rosto para a sumo sacerdotisa, radiante. Não conseguia distinguir a
expressão dela, pois a mulher segurava a tocha de forma que ficava difícil ver seu rosto. Teve
uma leve impressão de que os olhos da mulher estavam castanhos, ao invés de verdes. A
afirmação dela deixou Cecília confiante.

—Então porque estou presa?

—Não posso insultar a ordem dos magos nesse momento e Klaus se sentiria insultado se
você não fosse presa. Logo irei soltá-la, não se preocupe. Eu sei que você não é uma desertora.

Cecília ainda se sentia injustiçada, mas compreendia que as atitudes da alta sacerdotisa
eram justificáveis. Se ela tomara essa atitude, deveria ser em prol de um bem maior. Relatou
tudo: a traição dos magos, os primordiais, a fuga. Orquídea pareceu muito interessada quando
ela falou de Cassius e Olavo:

—Dois magos a ajudaram então? Eram da ordem?

A moça estranhou a pergunta e respondeu espantada:

—Óbvio que não! — notou a insolência, abaixou o rosto e disse — senhora. — Gaguejou
um pouco antes de explicar — se fossem magos da ordem, teriam me capturado e levado para
o conclave deles, tenho certeza.

—E para onde eles foram após deixá-la?

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—Disseram-me que iriam atrás de sua família, a prima deles é uma sacerdotisa, não
lembro-me de que deus.

—Temos de recompensá-los por ter lhe ajudado. — Cecília achou a afirmação muito
esquisita, nunca vira a sumo sacerdotisa insistindo para recompensar alguém. —Isso é tudo que
desejo saber, descanse, logo darei um jeito de tirá-la daqui.

Orquídea virou as costas e saiu, mas Cecília chamou-a:

—Senhora! — A mulher parou — sua benção.

Ela demorou um pouco antes de falar — Que tuas flores floresçam e tuas batalhas você
ganhe. — e saiu.

Parecia haver algo de errado com aquela benção, mas ela estava muito tranquilizada
por a sacerdotisa acreditar mais nela do que em Klaus. Deitou-se em um monte de feno no
canto da cela e descansou.

Foi acordada pelo barulho da cela abrindo. Levantou-se prontamente e viu Orquídea
entrando ali. Surpreendeu-se, não esperava sair dali tão rapidamente. A senhora lhe disse:

—Desculpe-me Cecília, não poderia tomar nenhuma outra atitude, mas acho que devo
no mínimo explicar-lhe o que está acontecendo.

—Senhora, do que você está falando? — Dessa vez a sacerdotisa não trouxe uma tocha
e fitou-a profundamente com os olhos verdes.

—Estou falando de hoje à tarde, de quando você chegou e eu conversava com Klaus,
você está bem Cecília? — A garota franziu as sobrancelhas e respondeu:

—Perdoe-me senhora, mas já tivemos essa conversa agora há pouco.

Orquídea ficou perplexa.

—Do que você está falando Cecília? Eu não estive aqui. — A garota continuava confusa,
até que as seguintes palavras foram ditas — juro em nome de Taos que não! — Uma
sacerdotisa nunca jurava em vão. Ainda mais uma sumo sacerdotisa, a máxima representante
da vontade de um Deus.

—Não é possível, eu lhe contei sobre os primordiais e sobre Cassius e Olavo e... —
Orquídea interrompeu-a.

—Primordiais?! — Exclamou assustada. — Não me disse nada sobre primordiais!

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Por um instante as duas se encararam, não compreendendo o que poderia estar
acontecendo. Cecília entendeu então, lembrando-se de como Olavo havia encantado os
mercadores da caravana quando pediram água.

—Klaus!

—O que? — perguntou Orquídea.

—Ele deve ter me enganado com alguma magia — A sumo sacerdotisa irritou-se com a
suposição — eu juro senhora!

—Falar isso não irá ajudá-la, Cecília. — Orquídea suspirou pesadamente — como posso
ter certeza de que não é realmente uma desertora se não para de acusá-lo?

A jovem entendeu que a sumo sacerdotisa iria continuar defendendo o homem.


Abaixou a cabeça e aceitou o sermão. Sua superior pediu que ela contasse tudo que acontecera
e mais uma vez ela falou tudo. A primeira interrupção foi no momento em que ela mencionou
ter sido capturada pelos primordiais:

—Você está dizendo que um bando de primordiais da destruição está agindo tão ao sul?

—Sim senhora.

—Sabe que eles teriam de atravessar o continente inteiro, isso considerando que
pudessem passar pela guarnição que a Ordem dos Magos mantém próxima à grande
devastação?

Há um século os primordiais, que haviam sido derrotadas seiscentos anos antes,


voltaram a atacar todas as raças do continente no que foi chamada de Segunda Guerra
Elemental. Eles foram derrotados e se isolaram no sudeste do continente, no local conhecido
como a Grande Devastação. A Ordem dos Magos, principal responsável por sua derrota,
construiu diversas fortalezas nas fronteiras com a Grande Devastação e cuida para que nenhum
exército de primordiais fique despercebido.

—Senhora — falou Cecília — eu fui capturada por primordiais, assim como diversas
pessoas. Estavam nos levando para o Sudeste.

—Essa é uma história difícil de acreditar, espero que você entenda o porquê Cecília — A
garota achava incrível como o mago disfarçado era muito mais compreensivo do que a sumo
sacerdotisa. — Há mais alguém que possa confirmar isso?

—Sim.

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E o destino não permitiu que ela se separasse de Cassius e Olavo.

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Intermissão: Kai Nen

Finalmente chegara à Floresta Ancestral, Ain Fos. Era crucial avisar sobre a presença dos
primordiais tão ao norte. Aparentemente os magos falharam em sua missão de impedi-los.
Avançava celeremente em sua forma de onça, derrapando na grama molhada e sujando seus
pelos de lama. Sentiu o cheiro de seu clã mais à frente, já se perdendo devido à chuva, e seguiu
naquela direção. Avistou um de seus primos mais à frente e parou a corrida, escorregando no
chão molhado e terminando seu trajeto deitado em frente ao outro metamorfo.

—Kai Nen? — falou o primo. Estava em sua forma híbrida, meio-homem e meio-onça. O
recém-chegado tomou também a forma híbrida. Na forma de animal os metamorfos não
podiam elaborar a fala.

—Niron — Respondeu, ainda caído, Kai Nen. — Preciso falar com Alfa. — Niron apenas
anuiu e os dois tomaram suas formas animais. Logo estavam correndo novamente em meio às
árvores. Não tardaram a chegar perto do rio, onde estava todo o clã reunido. Kai Nen passou
direto por sua mãe e irmãos, indo direto ao líder do clã. Ten Kir era um guerreiro no auge do
seu vigor físico e a maioria dos filhotes pequenos no clã eram seus filhos.

Ele estava descansando em sua forma animal, uma enorme e bruta onça lambendo seus
pelos. Assim que notou a aproximação dos dois, metamorfoseou-se em um ser humanóide de
quase dois metros de altura. Uma fêmea ao seu lado fez o mesmo, Naea. Ela era uma druida,
um tipo de metamorfa que domina a magia. Cada clã costuma ter um deles como curandeiro e
conselheiro e mais alguns aprendizes. Kai Nen e Niron apressaram-se em tomar suas formas
capazes de falar.

—Ten Kir. — Saudou Kai Nen — Naea — e em seguida a fêmea mais respeitada do
bando. — Estive a sudoeste e encontrei um bando de primordiais.

—Sudoeste? — Falou Naea, descrente.

—Sim, estavam junto com os peles-brancas. Parece que vieram em grandes barcos de
metal.

—Os sangues-diluídos estavam entre eles também? — Grunhiu Ten Kir, com um
semblante preocupado.

—Sim, alguns como escravos e outros do lado deles. Estão construindo suas muralhas
de pedra, por enquanto ainda não estão escondidos.

—Naea? — falou Ten Kir, pedindo apoio a sua conselheira.

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—Se eles se esconderem atrás de suas muralhas, iremos depender dos sangues-diluídos
para atacar. É melhor reunirmos os clãs antes disso. — Respondeu decididamente a druida.

—Kai Nen, reúna os outros corredores. — Ordenou Ten Kir. — Temos pressa.

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Capítulo 8: Velhos Amigos

Registros de Melenius, da fundação da Ordem Dos Magos:

“Ano 621 da Era Livre, Vigésimo dia do primeiro ciclo do verão.

[...] O Observatório foi tomado das mãos dos Filhos de Torus pelos primordiais. Não
demorará para que a Espada e o Escudo de Sefer, as duas fortalezas que guarnecem a Catedral,
sejam tomadas e outra das grandes cidades humanas caia perante a força primal. Outra
ofensiva parte em direção a Sete Torres e os sacerdotes não conseguirão se defender por muito
tempo. Mesmo a trégua entre humanos e metamorfos não bastará, os selvagens são
desorganizados demais para tomar uma cidade de assalto e não defenderão as cidades
humanas.

Não há consenso entre os feiticeiros e druidas. Parece que os conjuradores humanos e


metamorfos se esqueceram da Primeira Guerra Elemental e recusam-se a unir forças. Os
últimos cem anos de guerra falam mais alto do que o laço formado na queda dos primordiais.
Sem essa união os exércitos continuarão sendo massacrados. Parece que é o fim da Era Livre e o
recomeço de uma nova era de escravidão. [...]”

“Ano 621 da Era livre, Décimo nono dia do segundo ciclo verão.

[...] As fortalezas de Sefer caíram, mas a Catedral foi salva graças às tropas dos albinos.
Os habitantes do Subterrâneo finalmente saíram de seus túneis e trouxeram consigo armas que
utilizam um pó mágico para disparar. Agora os exércitos dos brancos cercaram Sete Torres, A
Catedral e até mesmo Altimata e Vir Fos, as florestas ancestrais dos Metamorfos. Ao mesmo
tempo em que suas tropas protegem, todos estão em dúvida se eles vieram para ajudar ou
conquistar.[...]”

“Ano 621 da Era Livre, Primeiro dia do primeiro ciclo do Outono.

[...] Nem mesmo as tropas dos albinos serão capazes de derrotar as forças dos
primordiais. Não há mais comunicação entre os feudos e os três países humanos não mais
existem, com suas principais fortalezas sob o domínio dos inimigos. As capitais resistem com
auxilio dos novos aliados do subterrâneo, mas não há muita esperança. [...]

[...] Um dos albinos, Lissac-Dirac, propõe uma medida desesperada. Parece ter
encontrado a solução para unir feiticeiros e druidas. Ele exigiu que os humanos e metamorfos
deixem sob seu comando os melhores conjuradores que possuem. Aparentemente nenhuma das
duas raças possui poder para resistir a essa exigência. [...]”

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“Ano 621 da Era Livre, Terceiro dia do terceiro ciclo do outono.

[...] A união dos druidas e feiticeiros realizada por Lissac-Dirac provou-se mais forte do
que se esperava. Forças mistas de humanos, metamorfos e albinos têm se mostrado eficientes
para rechaçar a presença dos primordias, sob a liderança de grupos organizados de magos.
Obtivemos a primeira vitória com a retomada da fortaleza da Nástor. Sentimos novamente a
esperança. [...]”

“Ano 624 da Era Livre, Quinto dia do primeiro ciclo do inverno.

[...] As tropas primordiais marcham de volta para a grande devastação. Após quase cem
anos de guerras o continente volta a ver a paz. Todos os povos estão exaustos e tratados de paz
foram assinados entre os filhos de Torus, os guardiões de Sefer e os metamorfos. [...]

[...] Todos aceitam a permanência de seus expoentes de magia na organização que


derrotou os primordiais. Lissac-Dirac mantém-se a frente dela e declara sua obrigação em
proteger todas as raças das ameaças que superem as fronteiras das espécies. [...]

[...] O nome dessa organização será Ordem dos Magos.”

Melissa abandonou o rolo de pergaminho, cansada. Chegaram ao conclave dos magos


de Sete Torres dois dias atrás, após quase duas semanas de viagem. Adônis lhe disse que se
quisesse tornar-se maga, teria que estudar muito. Descansou no primeiro dia e começou seus
estudos no segundo. Isabelle lhe ensinara muita coisa sobre vários assuntos e ela sempre
absorveu tudo com muita facilidade. Melissa adorava aprender. Adônis lhe pedira para ler
sobre a Ordem dos Magos, para que entendesse o papel deles no mundo. A menina costumava
gostar de estudar história, mas esse tópico específico lhe entediava.

Estava no quarto do mago, sentada frente a uma mesinha de canto. Havia uma
prateleira cheia de livros e pergaminhos na estante e o céu cinzento do outro lado da janela. Foi
até a prateleira, desejando mudar o tópico de estudos. Pegou um enorme livro com capa de
couro e começou a estudá-lo. O assunto era infinitamente mais interessante do que a história
da Ordem. Estava tão distraída que nem reparou na passagem do tempo. Adônis entrou
chamando-a para almoçar.

—Vamos ao refeitório, acho que você já estudou o bastante por essa manhã. — Ele
notou que ela havia deixado de lado o pergaminho de história. — Já leu tudo aquilo?

—Ainda não... — ela respondeu, meio sem jeito.

—Cansou do assunto então? — Aproximou-se e viu que ela estudava outra coisa, mas
não pode ver o que. — Bem, você vai precisar aprender matemática também — dirigiu-se à

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estante e deu a garota outro pergaminho. — Talvez você goste um pouco mais. Agora vamos
comer, O Arquimago está aqui e desejo falar com ele.

—Arquimago? — Perguntou enquanto levantava-se

—Sim, Lucius, o líder supremo da Ordem.

Ela imaginou um velho de barbas brancas, se apoiando numa bengala e deu uma
risadinha.

—O que é engraçado?

—Ele é o mago mais poderoso de todos?

—Não. — Uma resposta seca enquanto saíam em direção ao salão comunal.

—Então porque é o líder?

—Poder mágico e capacidade de liderar são duas coisas diferentes.

—Mas poder mágico não tem a ver com conhecimento?

—Sim, mas conhecimento e sabedoria são duas coisas distintas. Um bom líder deve ter
os dois, mas preferencialmente sabedoria. E chega desse assunto. — Disse, impedindo a garota
de continuar aquela discussão. Chegaram ao salão comunal depois de passar por alguns
corredores monótonos. Era uma sala ampla, quadrada, com enormes mesas de madeira com
diversas panelas espalhadas. Dezenas de magos estavam sentados ao redor delas, comendo.
Não era a melhor comida do mundo, mas certamente era superior ao que comeram durante a
viagem.

Sentaram-se o mais longe possível das pessoas. Alguns rapazes olhavam com
curiosidade para ela. Um deles era bonito, tinha olhos verdes e cabelos claros. Melissa
imaginava se ele pensava o mesmo dela. Não devia ser muito mais velho, parecia apenas um
menino. Talvez ele tivesse vontade de conversar, mas aparentemente a presença de alguém
respeitado como Adônis ao lado dela o impedisse. Apenas terminou sua refeição em silêncio.

...

Após fartar-se com carne de porco e creme de milho, Adônis seguiu até a sala do
Arquimago. Para o líder supremo da Ordem estar no conclave de Sete Torres, a situação devia
ser realmente séria. Esperava que ele já soubesse da presença dos primordiais, pois se
houvesse algum outro problema afetando o sul a situação seria crítica. Quando bateu à porta a
voz grave e séria do arquimago veio do outro lado:

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—Entre.

A sala estava toda bagunçada. Sacos e caixas estavam espalhados por todos os lados, a
escrivaninha estava atulhada de livros e pergaminhos, as estantes totalmente desorganizadas e
era até mesmo difícil achar um lugar para pisar. Um senhor de meia-idade estava em pé
próximo à janela. Trajava uma confortável camisa bege de algodão e nos pés trazia chinelos e
meias. Os cabelos curtos começavam a ficar brancos nas laterais e tinha a barba bem aparada.
Adônis fez uma reverência:

—Senhor. — O homem sorriu e fez um sinal para que relaxasse, respondendo:

—Como vai Adônis? Tem um ar cansado. — O guerreiro assentiu e demorou-se um


pouco para responder. Falhara em sua missão e era difícil contar isso para seu superior.

—Meu relatório não é bom, senhor...

—A missão não é tudo, amigo. — Aproximou-se despreocupadamente, pisando em


diversos papéis e objetos no chão, e deu um tapinha no ombro do rapaz. —Estou lhe
perguntando num sentido mais geral. — Adônis sempre ficava constrangido com toda essa
intimidade.

—Minha única preocupação tem a ver com a missão, senhor. — Lucius suspirou
desanimado, tirou o sorriso do rosto e falou:

—Pois bem, diga o que houve então.

—Eritros está morto. — O espanto no rosto do arquimago foi imediato, assim como a
resposta encolerizada:

—Você o matou?

—Não senhor, ele já estava morto assim que cheguei. Encontrei os filhos dele habitando
o lugar que nos foi informado.

O líder da Ordem dos magos andou até uma cadeira atrás da mesa e atirou para o lado
alguns pergaminhos que estavam em cima dela antes de sentar-se. Encostou os cotovelos na
mesa e apoiou a cabeça inclinada na mão direita, pensativo. Demorou um pouco procurando a
pergunta mais importante a fazer:

—Encontrou algo sobre as pesquisas dele? Ele deve ter deixado anotado.

—A casa deles foi destruída antes que eu pudesse investigá-la...

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—Como assim? — Exaltou-se o homem, franzindo o cenho. Adônis respirou fundo,
cabisbaixo. Então tomou coragem e relatou os acontecimentos de Banis, tudo de um fôlego só.
Falou de Cassius e Olavo, de como foi derrotado, de como as pessoas do vilarejo foram
assassinadas. No final do relato, o arquimago estava fitando-o perplexo.

—Eritros era um teórico da magia, por isso mandei você sozinho. Como pode ter sido
derrotado em combate direto duas vezes? — Indagou-o, indignado.

—Ambos os filhos dele sabem lutar. E juntos são mais fortes que eu — assumiu
envergonhadamente.

—E o que aconteceu com eles?

—Eu estava trazendo-os para cá quando fomos atacados por um grupo de primordiais
da destruição. Eram muitos e tudo que consegui fazer foi fugir.

—Quer dizer que perdeu os relatos de Eritros num incêndio e os filhos dele para um
grupo de primordiais da destruição? — Adônis continuava cabisbaixo, envergonhado. Mas
estava também decepcionado, parecia que a vida de dezenas de inocentes era menos
importante do que aquelas pesquisas. — Você sabe onde esses primordiais estão?

—Sei. No dia seguinte eu comecei a seguir os rastros deles e encontrei o grupo. De


alguma forma os filhos de Eritros escaparam...

—Ótimo, então sabe ao menos onde eles estão? — Indagou o arquimago, um pouco
menos desanimado.

—Eu preferi seguir os rastros dos primordiais. — Essa afirmação fez o homem lançar um
olhar de profunda desaprovação. — Senhor, desculpe-me, mas foi a melhor escolha. Eu
descobri que estão acampados no litoral, próximos aos Cumes do Gelo Infindável. Um
verdadeiro exército deles. — Espantou-se com a indiferença do arquimago àquela informação.

—Adônis, você sabe que o dever da Ordem dos Magos acima de tudo é vigiar os
primordiais. Realmente acredita que ainda não tenhamos essa informação? Abandonou sua
missão para realizar um mísero trabalho de batedor?

—Na verdade — arriscou um argumento — eu fui resgatar uma menina inocente que
sobreviveu ao massacre de Banis e também foi capturada pelos primordiais.

— Quer dizer que uma menina inocente era mais importante do que a missão? — Lucius
estava perplexo. E na verdade Adônis também. Não entendia perfeitamente bem o porque, ele
nunca havia agido de forma tão... Sentimental. — Sabe por que eu escolhi enviar você, ao invés

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de uma tropa de magos, ou de qualquer outro mago? Por que nessa missão, uma falha era
inaceitável. Você entende isso?

—Sim... — tentou falar, mas foi interrompido. O homem levantou-se e gritou,


apontando para Adônis:

—Calado! — O guerreiro abaixou a cabeça e apenas ouviu —Precisamos encontrar os


rastros desses dois rapazes, acima de qualquer outra coisa. — Adônis concordou com um aceno
e ficou ali parado. Virou-se para sair, quando o homem disse: —Não terminei. Essa informação
sobre os primordiais, já contou a mais alguém?

—Não senhor. — Isso pareceu diminuir o grau de irritação do superior.

—Ótimo. Não conte a ninguém, é um segredo. — agora já perguntava num tom de voz
ameno. —Por sinal, o que descobriu sobre a ocupação deles?

—Estão aliados aos Hielai e também aos albinos. Vieram em navios de metal, somente
os albinos seriam capazes de fazer algo mais pesado que a água flutuar. — O arquimago
colocou uma mão no queixo e tomou uma expressão séria. — Mas isso não é tudo. Melissa
disse que viu uma enorme criatura verde, tenho quase certeza que ela se referia a um
primordial da dominação. Aparentemente eles estão escravizando os habitantes das regiões
mais desprotegidas e utilizando-os para erguer uma fortaleza no nordeste.

—Adônis, essa informação não deve, em hipótese alguma, ser repassada. — respondeu
o arquimago, muito sério.

—Não deveríamos avisar Sete Torres?

—Não, não ainda ao menos. — O homem suspirou e foi até a cadeira do outro lado da
mesa, arremessando os papéis de cima dela no chão — sente-se.

—A Ordem é poderosa — disse Adônis, enquanto se sentava — mas não possuímos um


exército para lutar sozinhos...

—Não iremos. E a ação que iremos tomar também mudará isso... Você confia em mim?
— Demandou o arquimago, fitando-o profundamente nos olhos.

—Sim senhor. — Lucius desviou os olhos e relaxou um pouco, falando:

—Então confie que minha resolução é a melhor para Ordem. Não gosto de pedir para
que me obedeçam cegamente, portanto perdoe-me, porém dessa vez irei fazê-lo. Guarde essa
informação Adônis.

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—Sim senhor. — Assentiu o guerreiro.

—Confio muito em sua lealdade, por isso tenho certeza de que jamais irá revelar isso. —
O arquimago tomou uma expressão mais sombria, curvou-se na direção de Adônis e diminuiu o
tom de voz — no entanto, não confio na garotinha que você trouxe.

—E o que quer dizer com isso? — O guerreiro recuou um pouco, assustado.

—Ela é uma ameaça à Ordem. Eventualmente ela irá revelar essa informação.

—É apenas uma menina, quem a levaria a sério?

—Qualquer um que não fosse um tolo. — Rebateu. O arquimago voltava a se irritar. —


Sei que você se esforçou para salvá-la, mas não podemos nos dar ao luxo de simplesmente
deixá-la...

—O que pretende fazer com ela? — Adônis murmurou, com os olhos arregalados.

—Temos que nos livrar dela. — Explicou, sem emoção alguma.

—Não vou permitir que a matem! Me recuso! — Exclamou Adônis, levantando-se.


Lucius reagiu por reflexo e também se levantou.

—Irá me desobedecer?! — Desafiou-o.

—Se seus intuitos forem matar uma criança inocente, sim! — Bradou, aproximando-se
do rosto de seu superior. Adônis tornava-se ameaçador graças a sua estatura elevada, no
entanto o arquimago não deixou-se intimidar.

—Sente-se, insolente! Eu ordeno! — O guerreiro, notando que o desafiava, obedeceu,


mas não com calma. Suas veias pulsavam de raiva. O arquimago manteve-se em pé. — Acaba
de falhar miseravelmente em uma missão e acha que está em condições de me desafiar?
Deveria estar feliz por eu não lhe expulsar da Ordem e enviá-lo para o exílio! — Gritou, dando
de dedo no rosto do outro. Adônis abaixou a cabeça, ainda furioso, mas não continuou
desafiando-o. Lucius voltou a sentar-se e continuou falando:

—Não iremos matá-la. — Adônis ergueu o rosto, um pouco mais esperançoso — Eu


poderia enviá-la para a Cidade da Ordem, mas infelizmente não posso me dar ao luxo de
mandar sequer um soldado para longe daqui. Até que encontremos uma resolução, ela ficará
na masmorra. Se você tiver alguma objeção, eu volto atrás com minha decisão e mando
executá-la — Adônis meneou afirmativamente com a cabeça. —Ótimo. Por enquanto está
dispensado, até que eu encontre uma missão fácil o bastante para que você não volte com

89
outro fracasso e quem sabe outra criança. — Acenou desdenhosamente com a mão em direção
a porta e Adônis saiu.

Bateu a porta com força ao se retirar. Não acreditava no que acabara de ouvir, nunca
imaginara tais ações vindas do arquimago. Estava andando apressadamente pelo corredor
quando sentiu uma mão tocando em seu ombro. Lançou um olhar assassino até reconhecer seu
interlocutor. Klaus do manto violeta, um velho amigo.

—Aonde vai tão nervoso, Adônis?

—Desculpe-me. — Respondeu, virando o rosto. —É bom te ver Klaus, mas não é o


melhor momento. Procuro-o depois. — Retirou-se apressadamente.

...

O tempo se arrastava naquele quarto solitário. Não que Adônis fosse uma grande
companhia, mas ao menos fazia algum barulho. O ambiente era muito propício ao estudo e à
reflexão. Até demais. Ficou exausta da leitura que fazia, olhou para os outros pergaminhos.
Filosofia Natural, Tratados Sobre a Mente, Ilusão Básica, Primordialia. Não sentiu vontade de
pegar nenhum deles. Dirigiu-se à janela. Não poderiam ter lhe dado um quarto com uma visão
mais monótona. O cinza do céu tornava-se ainda mais sem vida quando unido ao cinza da
muralha, a única visão que ela tinha dali.

Jogou-se na cama e ficou olhando para o teto. Sentia saudades das crianças do vilarejo,
queria estar com elas agora, ensinando-as todas as coisas que aprendia com a sacerdotisa. Era a
mais velha e gostava de coordená-las e tomar conta delas, sentia-se como a mãe deles. Nem
sequer lembrava como era ter uma mãe, mas parecia algo muito bom. Talvez fosse até mesmo
melhor do que Isabelle. Lembrou-se de Banis, o que seria daquele lugar, com todos os adultos
mortos? Lembrou-se de Isabelle usando as últimas forças para arrastá-la na casa em chamas.
Chorou, chorou alto. Ao menos ali ninguém iria reclamar. Queria livrar-se daquilo que a
dilacerava por dentro, mas não conseguia sozinha e não tinha ninguém para ajudá-la. Resignou-
se em seu sofrimento até a noite cair, sem nenhum sinal de qualquer outra vida naquele lugar.
Teve um pouco de paz quando finalmente conseguiu adormecer.

...

Passou a tarde toda treinando. Destruiu alguns bonecos de madeira e palha com sua
espada. Arrancou braços, pernas, cabeças. Embriagou-se de cansaço e liberou a frustração
naqueles simulacros. Não sabia do que tinha raiva exatamente, não sabia quem era seu inimigo,
não entendia porque lutava. Apenas continuava leal. Essa era sua certeza. Olhou para os
pedaços de madeira no chão e pensou nas pessoas de Banis. Havia se unido à Ordem dos

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Magos numa tentativa de redenção e tudo o que conseguia era deixar um rastro de destruição.
Lembrou-se do seu passado. Um tempo em que não hesitaria em mutilar crianças, se assim lhe
fosse ordenado. Sentia remorso e vergonha até hoje. E naquele momento sentia medo que isso
voltasse a acontecer.

Já era noite quando voltava para o quarto, exausto. Entrou e viu Melissa jogada na
cama, com o rosto encharcado e olheiras profundas. Tinha até mesmo se esquecido dela. Não
conseguiria salvá-la e isso representava o fracasso total em sua missão. Falhou em cumprir os
objetivos da ordem, falhou ao causar uma chacina, falhou na sua tentativa de salvar aquela
garota.

Notou o pergaminho de matemática básica que lhe dera abandonado. No lugar estava
aberto o mesmo livro que a menina lia pela manhã. Matemática Avançada. Espantou-se ao
notar alguns rascunhos muito consistentes sobre geometria analítica num papel ao lado.
Aparentemente Melissa entendia aquilo melhor que ele. Teria toda essa inteligência
desperdiçada numa masmorra, apodrecendo entre as paredes úmidas.

Imaginava o que aconteceria com a menina assim que ele saísse dali. Alguém poderia
precisar de energia para um ritual ou uma cobaia para um feitiço. Ela já não tinha o corpo de
uma criança e não demoraria muito para que começasse a atrair os olhares dos homens.

Adônis desvencilhou-se desses pensamentos. Não podia fazer nada para salvá-la.
Retirou-se do quarto e foi dormir no alojamento comum, sem olhar para trás. Não queria
lembrar-se mais uma vez de como falhara miseravelmente.

Caminhava distraidamente quando passou ao lado do alojamento de Klaus. Um pouco


de luz passava por baixo da porta. Fazia um bom tempo desde a ultima vez que encontrara um
amigo. Bateu à porta e falou:

—Sou eu.

O mago do manto violeta logo abriu a porta, vestindo um camisão de dormir e com uma
lanterna na mão. Sorriu e fez sinal para que o amigo entrasse e sentasse à cama.

—Estava bem transtornado hoje à tarde.

Adônis suspirou, desanimado. Klaus continuou falando:

—Não precisa falar, o arquimago contou-me tudo.

—Como assim tudo?

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—Sobre os primordiais e sobre os filhos de Eritros. Tinha mais alguma coisa de
importância?

Adônis apenas negou com a cabeça. Melissa era um assunto irrelevante para a Ordem,
mesmo porque seria eliminada na manhã seguinte.

—Tenho uma boa notícia para você sobre isso tudo. — O espadachim apenas fitou-o,
incrédulo. — Acredito que encontrei o rastro dos seus fugitivos.

—O que? Como assim? Sabe quem eles são?

—Dois jovens de cabelos castanho-avermelhados, um com cabelos longos e outro com


uma barba espessa, fugiram de primordiais da destruição nas proximidades da floresta de
Azuria cerca de um ciclo atrás?

—Sim! — O ânimo de Adônis ressurgiu imediatamente — Onde eles estão?

—Possivelmente em um dos templos de Sete Torres. — Klaus sorriu ao ver o outro


animar-se — vejo que está mais tranquilo. Tenho outra boa notícia ainda, espero que goste
também.

—Diga.

—O arquimago incumbiu-me dessa missão e disse que eu poderia escolher quaisquer


magos disponíveis para levar comigo. — Bateu no ombro de Adônis — será bom agirmos juntos
novamente, não acha?

O espadachim estava feliz, mas comentou:

—Tem certeza? Eu falhei miseravelmente em minha tentativa. Talvez você devesse


procurar alguém mais apto...

—Adônis, você conhece nossos inimigos melhor do que ninguém. Além disso, eram dois
contra um. Acredita que eles sejam tão fortes a ponto de vencer nos dois juntos?

O guerreiro calculou. Ele era um combatente melhor do que o mago com machado.
Klaus, assim como Olavo, era mais feiticeiro do que guerreiro, tinha grande conhecimento
arcano e certamente era mais poderoso do que aquele garoto. Sim, bastaria. Seria arriscado, no
entanto, naquele momento, o orgulho falava mais alto que o bom senso. Não poderia falhar
novamente.

—Não, não podem. — Klaus sorriu.

—Partiremos amanhã então. Espero que eu tenha te animado um pouco.

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—Sim, e eu o agradeço. — Respondeu, ainda um pouco taciturno. Levantou-se
lentamente, em silêncio e dirigiu-se à saída. Klaus o parou:

—Ei, se eu ainda o conheço, está escondendo algo. — Adônis suspirou. — Como


sempre, não é mesmo? Vamos lá, talvez eu possa te ajudar nisso também.

O guerreiro hesitou um pouco, porém resolveu falar sobre Melissa. No final do seu
relato, Klaus, ainda com um sorriso no rosto, respondeu:

—Eu tenho uma solução para isso.

...

Amanhecia quando Adônis entrou no quarto. Ela já estava acordada, olhando para o
teto e pensando na vida. Os olhos estavam um pouco úmidos, sempre chorava enquanto
dormia. Ele aproximou-se e falou:

—Acordei-a? — Ela negou, sentando-se e balançando a cabeça. O homem sentou-se ao


lado dela, com uma expressão triste no rosto.

—Algum motivo para vir tão cedo?

—Iremos partir amanhã.

—Iremos? — Perguntou a garota, curiosa. — Eu também?

—Sim.

—Para onde? Eu não iria ficar aqui para estudar magia? — O mago suspirou e demorou
um pouco até responder. Tirou de seu manto um punhal.

— Tome, é seu — Melissa espantou-se, mas aceitou o presente. Era uma arma de
altíssima qualidade, a lâmina reta e pontiaguda tinha o comprimento do antebraço da garota, o
cabo de madeira entalhada tinha desenhos de espirais. Eram seis ao todo e três delas tinham
pequenas pedras vermelhas no meio.

—Porque isso?

—Você provavelmente enfrentará riscos que estão além de sua capacidade e não desejo
que você morra.

—Do que está falando? — A garota ficara assustada, olhando aquela arma.

—Essas pequenas pedras são joias de sangue, cada uma delas contém um feitiço. A de
cima possui uma magia de velocidade, a do meio, de cura e a de baixo um escudo. Não hesite

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em utilizá-las. Eu tentarei te proteger a qualquer custo, no entanto não sou infalível. — Adônis
levantou-se e dirigiu-se até a saída, cabisbaixo e sem conseguir direcionar o olhar para a garota.
Quando chegou à porta disse:

—Perdoe-me por ter lhe causado tudo isso.

94
Capítulo 9: Um Novo Destino

—É tão bom ter vocês de volta.

Tiria e Olavo estavam sentados no pátio do templo de Selenias. Era um dia nublado e
frio, o primeiro do inverno e era dia de festa. Os dois preferiram aproveitar o silêncio, os
sacerdotes e fiéis estavam todos nas feiras, bebendo e cantando, deixando o templo
praticamente vazio. O rapaz agora estava limpo, descansado, bem alimentado e relativamente
bem trajado, tinha roupas simples e confortáveis. Não era um incomodo, quem dominava
magias de cura era sempre bem-vindo. Segurou a mão de sua prima e sorriu:

—Não pretendo sair daqui novamente. — Tiria entristeceu-se.

—Aparentemente não é a mesma ideia de Cassius. Se ele for, você irá também, não é
mesmo?

—Não quero pensar nisso... — Tentou mudar o assunto.

—Mas eu quero. — Insistiu a garota — Se Cassius for, não quero que você vá também.

—Não há motivos para irmos a lugar algum. Os últimos quinze dias foram os mais
tranquilos que tive nos últimos quatro ciclos...

—Desde que o titio morreu? — Olavo sentiu um aperto no peito. Ainda era difícil
mencionar isso, foi tudo muito estranho e muito rápido desde a morte de seu pai.

—É...

—Venha aqui — Tiria puxou-o e o fez deitar em seu colo, acariciando os longos cabelos
do rapaz. — Essa dor vai passar Olavo, não inteiramente, mas você irá se acostumar com ela. —
Falava para si mesma tanto quanto para o primo. Cornélia, a mãe de Tiria, morrera três anos
atrás. Olavo tinha a curiosidade, mas não a indelicadeza de perguntar o que havia acontecido.
Ficaram em silêncio, observando o pátio do templo, cheio de ruazinhas, bancos vazios e árvores
despidas de folhas. Tiria arriscou — Você nunca me contou. — Ele fitou-a, interrogativo —
como aconteceu... — O moço virou o rosto, procrastinando um instante. Não sabia se estava
pronto para lembrar. Hesitou, mas por fim começou a falar:

—Ele saiu numa expedição para uma daquelas ruínas dos primordiais próximas a
Banis ... eventualmente eu e Cassius íamos junto com papai, mas dessa vez ele preferiu ir
sozinho. Voltou duas dezenas depois. — O rapaz sentou-se — Estava doente. Tosse de sangue,
fraqueza, falta de ar ... Não conseguimos identificar o que era e nenhuma de nossas magias
conseguia curá-lo... — Colocou as mãos no rosto, para esconder as lágrimas, falava com a voz
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pesada — tudo que pude fazer foi diminuir seu sofrimento e adiar o inevitável... Ele durou meio
ciclo e... Se foi. — Limpou os olhos e ficou cabisbaixo, sem nada dizer. Tiria puxou-o com seu
único braço e aconchegou-o. Olavo tentava segurar o choro, sem muito sucesso e a garota
falou:

—Solte tudo... será melhor. Não tenha vergonha de mim, irmão. — A moça também não
conseguia segurar, Eritros fora como um pai para ela, não era fácil saber que nunca mais iria vê-
lo. Olavo abraçou-a com força e deixaram as lágrimas correr. Há um bom tempo ele queria
chorar a morte do pai em paz e ainda não tivera a chance. No entanto, isso não era tudo que
lhe dava motivos para sofrer.

—Cassius... Eu sinto que ele guarda muito rancor. Eu me sinto culpado.

—Culpado por...?

—Deixar Isabelle morrer... — Os rapazes já haviam contado a história de como vieram


parar em Sete Torres naquele estado, apesar de não terem entrado em muitos detalhes. —
Acho que ele tem razão, mas eu queria que ele me desculpasse...

—Ele não tem razão, pois a culpa não foi sua. Vocês fizeram o que podiam, Olavo.

—Eu matei dezenas de pessoas Tiria. — Disse o rapaz com a voz chorosa — Eu os vi
queimando, gritando de dor. Não bastasse isso, não consegui salvar a mulher que meu irmão
amava... — A amargura se fazia sentir naquelas frases — do que adianta toda a magia que eu
estudei?

—Você não tinha escolha. Eram eles ou vocês.

—E porque nós somos melhores que eles? O que nos dá o direito de ter tirado todas
aquelas vidas? O poder de tirá-las? Não. Nada justifica, Tiria. Nada. — Ela apenas ficou calada.
Procurou palavras de conforto, argumentos, mas não havia nada que pudesse ser dito para
Olavo naquele momento. Apenas continuou abraçada com seu primo. — Desculpe-me. Você
não precisava ouvir essas coisas.

—Seu bobo, sou sua irmã, não me importo de ouvir isso. Aliás, me importo sim. Se você
não se abrir comigo, vai se abrir com quem? — Ele sorriu brevemente ao ouvir essas palavras.
Cassius não era uma pessoa nem um pouco doce, apesar de ouvi-lo e aconselhá-lo quando
necessário. — Não se culpe, Olavo. — No fundo, era isso o que ele desejava, porém era incapaz
de fazê-lo. — E já que você disse, prometa que não vai me deixar.

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O rapaz queria prometer, mas tinha receio de fazê-lo. Duvidava de que fosse capaz de
cumprir essa promessa. Poderia mentir, apenas para fazer a prima feliz, ou falar a verdade.
Teve medo de ambas as resoluções e ficou em silêncio.

—Olavo? — Ela notou o transtorno no rosto dele. —Promete?

—Eu... Não sei.

—Eu sei. Se Cassius for, você vai. — Ele abriu a boca para responder, mas não o fez —
Tudo bem — respondeu tristemente a moça. — Já me abandonaram uma vez e eu sobrevivi,
apesar de, literalmente, terem arrancado um pedaço de mim. Eu aguentarei mais uma vez.

—Eu prometo. — Olavo não suportou aquela chantagem emocional. Ela nunca contara
como havia perdido o braço. Tiria não pareceu muito animada com aquela promessa, mas
forçou um riso.

—Vamos lá preparar alguma coisa para comer? — Falou enquanto se levantava.

Olavo seguiu-a. Ele realmente queria cumprir aquela promessa. O mesmo não podia ser
dito de seu irmão.

...

Cassius recuperou-se rapidamente da viagem e após isso saiu todos os dias em busca de
uma pessoa: Teodoro, um mago com quem Eritros mantinha contato por meio de
correspondências. Sabia apenas seu nome e que habitava Sete Torres. Gastara a última dezena
procurando-o, mas finalmente o encontrara. Havia marcado uma reunião na casa do homem e
agora dirigia-se ao local.

Era um nobre e habitava a região central, próximo ao Conselho dos Sacerdotes, o local
onde reuniam-se eventualmente os sete grandes sacerdotes para tratar da política da cidade.
Cassius vasculhara boa parte da região perguntando onde poderia encontrá-lo e agora ia
decidido até sua casa. Passou por muitas mansões de pedra ou alvenaria, caras e pomposas.
Soldados patrulhando as ruas era uma visão comum naquela região. Chegou a uma casa de dois
andares com várias esculturas de grandes esferas no quintal. Aproximou-se e bateu à porta.

—Sou eu, Cassius, filho de Eritros! — Gritou. Pouco depois foi atendido por uma criada.

—Sente-se, o Senhor Teodoro está um pouco ocupado, mas logo virá atendê-lo.

O ambiente era acalentador. Havia um bonito tapete vermelho com um olho verde
bordado ocupando o chão, em volta dois confortáveis sofás de couro próximos à lareira. Alguns
quadros enfeitavam o lugar, um deles representava o Sol, outro parecia representar a estrela

97
glacial e outros mostravam bonitas esferas coloridas em um fundo negro. Tinha também uma
escultura móvel com várias esferas presas umas em volta das outras. Cassius esperava alguma
representação dos Sete Deuses, porém não encontrou nada. Ficou parado, mexendo
inocentemente na divertida escultura de esferas. Havia uma bola central e outras, algumas
menores e outras muito maiores giravam em volta dela.

—Vejo que gostou do meu sistema planetário. — Disse uma voz de homem. —
Interessantíssimas as órbitas excêntricas que as estrelas e planetas fazem em torno do nosso
mundo não?

Cassius virou-se para observá-lo. Era um homem velho e encurvado, apesar de cuidar-se
bem. Trajava um pesado manto de veludo vermelho, tinha longos cabelos grisalhos e nenhum
fio de barba no rosto. Seus olhos negros estavam afundados em olheiras. O rapaz lembrou-se
de Isabelle, ela eventualmente falava desses tais planetas. Sentiu um gosto amargo na garganta
ao lembrar-se de sua amada. Perguntou ao senhor:

—São seus deuses?

—Não exatamente. A posição dos planetas e estrelas rege nossas vidas, mas não creio
que sejam deuses na sua concepção. — Respondeu o senhor, pensando um pouco em como
explicar — não os reverencio, se é isso que quer saber.

—Ótimo, também não reverencio deus algum. — Um silêncio incômodo se fez entre os
dois por um breve instante. Teodoro o quebrou:

—Sente-se, Cassius, filho de Eritros. — Disse, enquanto sentava-se ele mesmo em um


dos sofás de couro. — Meiria — gritou para a criada, que logo entrou no aposento — acenda a
lareira, por favor. — Ela anuiu com um aceno de cabeça e se retirou. Cassius aceitou o convite e
largou-se no outro assento. Teodoro fitava-o com muito interesse.

—Como já sabe, meu pai está morto.

—Sim, entristece-me profundamente saber disso. Seu pai e eu éramos muito próximos.
Estranhei quando ele parou de responder minhas correspondências. — Falou cabisbaixo —
meus pêsames.

—Já lamentei o suficiente a morte de meu pai. Creio que ele se incomodaria e me
bateria com a bengala se eu o fizesse além da conta.

—Não respeita a memória de Eritros, garoto? — respondeu Teodoro, um pouco


incomodado.

—Primeiramente, não sou um garoto. Em segundo lugar, respeito. Por isso vim até aqui.
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—Não acredito que eu seja alguém importante para você, ao ponto de vir aqui avisar-
me de tal fatalidade. — Comentou, relaxando e encostando-se no sofá — diga o que deseja de
mim, Cassius.

—Meu pai correspondia-se muito com o senhor, Teodoro. — Começou Cassius,


endireitando a coluna de modo a parecer maior e mais sério — e eu creio que ele
compartilhava as pesquisas dele com o senhor... — Teodoro mexeu-se incomodamente antes
de responder:

—Sim, de fato. E o que poderia você desejar com tais pesquisas? — Indagou-o, olhando-
o diretamente nos olhos.

—Eu lhe contei que fomos atacados e nossa casa, queimada. Os registros de meu pai
perderam-se e eu tenho interesse neles.

—Pelo que seu pai me escreveu — Teodoro entrecruzou os dedos da mão — quem
tinha interesse por tais assuntos teóricos era somente seu irmão, Olavo. — Cassius sutilmente
fechou os punhos — intriga-me que seja você e não seu irmão a buscar tais documentos.

—E o que quer dizer com isso?

—Onde está seu irmão?

—Isso é realmente importante? — Indagou Cassius, raivosamente. Preferia passar o


mínimo de tempo o possível com Olavo. O lado ruim disso é que passava menos tempo com
Tiria.

—Sim, é meu dever como amigo importar-me com os filhos de Eritros.

—Somos ambos adultos, eu e Olavo, não há porque se preocupar conosco.

—Ainda insisto em saber seu paradeiro, afinal de contas é filho de um grande amigo.

Cassius bufou, porém, resignou-se a responder:

—Está em um dos templos, com nossa prima. — Teodoro voltou a relaxar, expirando
profundamente. Cassius incomodou-se com a forma com que aquele senhor o encarava
diretamente nos olhos.

—Eu pergunto isso, pois eu creio que ele irá ajudá-lo a entender do que se tratam os
papéis que tenho aqui comigo. Não se preocupe senhor Cassius, não pretendo privá-lo do
acesso a esses documentos. — Falou com uma entonação de quem não havia terminado a

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frase. Cassius ficou esperando que completasse a frase, mas como Teodoro não o fez,
perguntou:

—Ótimo, e onde estão? — Mostrou-se ávido o rapaz.

—Não pretendo privá-lo do acesso, mas também não irei deixá-los em sua posse. —
Levantou-se — acompanhe-me. — Seguiram por um corredor à direita, subiram um lance de
escadas e logo pararam em uma porta de metal reforçada. Teodoro tirou uma chave de um
bolso e abriu-a. Era uma biblioteca pessoal e continha umas três ou quatro estantes cheias de
livros e pergaminhos. O velho adiantou-se até uma delas e apontou para uma série de
pergaminhos, falando:

—Aqui estão, Cassius, as pesquisas que seu pai compartilhou comigo. — Era uma
quantidade enorme de pergaminhos, Cassius imaginou-se gastando meses até conseguir ler
todos. — Podem parecer poucos — atalhou Teodoro — Mas é porque não compartilhávamos
interesses em todas as áreas, embora eu garanta que nosso principal interesse convergia.

—E qual seria esse, senhor Teodoro? — O homem riu discretamente.

—Você me pergunta sobre o homem com quem conviveu por mais de vinte anos? —
Cassius fez uma expressão de irritação — perdoe-me. Nosso interesse era principalmente sobre
a história dos primordiais.

—A magia primordial? — Cassius lembrava-se das diversas expedições que fazia


acompanhando o pai. Eles iam para ruínas nas proximidades dos Cumes do Gelo Infindável,
onde Eritros e Olavo ficavam copiando as escrituras das paredes ou procurando por livros,
enquanto ele cuidava da segurança dos dois. Eventualmente encontravam algum objeto de
valor para ser vendido posteriormente. Cassius nunca se interessou em aprender o Elemental,
idioma dos primordiais e muito menos em entender exatamente o que o pai pesquisava.

—Esse é apenas um entre muitos tópicos. — Respondeu, estremecendo um pouco. Em


comparação com a sala, a biblioteca era um lugar muito frio. — Pretende ler alguma coisa
agora? Se não convidá-lo-ei a voltarmos para perto da lareira. O calor emitido pelas chamas da
atrai-me mais do que o frio dessa biblioteca.

—Voltemos, então. — Apressaram-se a retornar para a sala de estar, conversando no


caminho. Era possível sentir um cheiro doce e agradável enquanto caminhavam.

—Agora que lhe dei acesso à minha biblioteca, diga-me, o que lhe interessa na pesquisa
de Eritros? — Cassius hesitou, calculando o que diria. Resolveu confiar um pouco naquele
homem que se dizia amigo de seu pai:

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—Você é membro da Ordem dos Magos? — O rapaz tinha quase certeza absoluta que
não, mas mesmo assim preferia fazer ainda um ultimo teste. Seu pai sempre odiou a Ordem
dos Magos, duvidava que se correspondesse com um membro dela.

—Porque pergunta isso?

—É algo importante sobre uma pessoa, quando essa pessoa é um mago. — Agora foi a
vez de Teodoro calcular a resposta:

—Não, não sou. Você pretende aderir à ordem? — Cassius riu ao falar:

—Um homem veio bater à porta da minha casa com um convite desses há um mês e eu
e Olavo o expulsamos, se você quer saber. Roubamos a espada dele, ainda por cima. — O velho
pareceu incomodado com isso, e indagou:

—Insultaram a Ordem? Sabem que eles são uma instituição mundial? Estão espalhados
por todos os lugares possíveis. — Disse Teodoro, censurando a brincadeira de Cassius.

—Por isso lhe perguntei.

—O que garante que não menti?

—Essa pergunta que acaba de me fazer, basta para mim. — O velho soltou um esgar de
desprezo, falando:

—Então é facilmente enganado, senhor Cassius. — Estavam novamente na sala e


sentaram-se próximos à fogueira. A criada trouxe-lhes um bule de chá — Ah, sempre tão
prestativa. Muito obrigado Meiria. — Cassius pegou sua xícara e voltou a falar:

— Sim, temos problemas com a Ordem. Eles foram até minha casa em busca de meu pai
e insistiram, mesmo depois de saber que ele estava morto. Eu não sou tão importante assim a
ponto de ser caçado em um lugar isolado como o vilarejo de Banis e muito menos Olavo.
Portanto, meu interesse em buscar a pesquisa de meu pai é descobrir porque a Ordem possui
tanto interesse nele.

Teodoro manteve-se em silêncio, pensativo, tomando seu chá.

— Vejo que você se engana em um ponto, senhor Cassius. — O rapaz se surpreendeu —


você e seu irmão são muito mais importantes para a Ordem do que você possa imaginar. E você
sabe a razão disso.

— Minha mãe. — Cassius e Olavo possuíam uma ascendência especial: Sua mãe não era
humana. Dai Nan era parte de uma espécie criada pelos magos, uma espécie que tentou

101
misturar humanos e metamorfos em uma nova raça. O nome oficial para essa espécie, dado
pelos magos, é Metahumano. Para os humanos eles são meio metamorfos, para os
metamorfos, impuros. Nenhuma das duas espécies os aceita, com raríssimas exceções. O
intuito era criar um novo tipo de arcanista, superior tanto aos magos humanos quanto aos
druidas metamorfos. No entanto, havia problemas sérios com o nascimento desses seres. A
mãe sempre morria no parto, independente de ser humana ou metamorfa.

— Sim. Você tem noção do quão intrigante é a sua existência? Acreditávamos que todos
os metahumanos tinham problemas com a reprodução. Os machos eram todos inférteis e as
fêmeas costumavam dar à luz a natimortos, além de morrer no parto. No entanto, está você
aqui, filho de uma metahumana. Mais incrível ainda, com um humano. E o mais incrível disso
tudo, você tem um irmão! — Teodoro começou a se exaltar enquanto falava.

Cassius ficou um instante absorvendo a informação, antes de gritar:

— Não chame minha mãe de fêmea! Não trate-a como um animal!

— Oh, mil perdões! — O velho arregalou os olhos — perdoe-me pela indelicadeza, por
favor! Estou acostumado a conversar com outros magos e eles insistem para que eu use esses
termos... — O rapaz continuava com uma expressão de ódio no rosto.

— Além disso, ela morreu no parto. Morreu quando Olavo nasceu. — Havia um certo
rancor nessa afirmação.

Teodoro não disse nada, aguardando o rapaz se acalmar. Cassius manteve a expressão
fechada, mas se acomodou no sofá. O velho falou:

— Você gostaria de saber mais da história de sua mãe e seu pai?

— Porque iria gostar?

— Porque talvez o ajude a entender porque seu pai sempre odiou a Ordem. Porque ele
não a odiava desde sempre, tanto que já foi parte dela. Entender porque seu pai era perseguido
e porque ele deixou esse legado para você e seu irmão. A compreensão sempre ajuda na
resolução dos problemas.

Cassius se mexeu no assento, estralou os dedos da mão e respondeu:

— Conte-me isso tudo então.

— Eu não conheço tudo muito bem, mas sei onde há alguém que pode lhe contar tudo
com detalhes. Para encontrá-lo, você deverá ir mais ao sul, além do ultimo vilarejo humano.
Deverá procurar entre as tribos dos homens tigre. Deverá procurar Kin Tar.

102
...

A água borbulhava e os pedaços de cenoura, maçã e coelho dançavam seguindo a


colher, uma dança em forma de redemoinho. Olavo mexia a sopa enquanto sua mente se
projetava. Desde que chegou não conseguiu parar de pensar na garota que conheceram na
viagem e sentia um aperto no peito todas as vezes que pensava nela. Lembrava-se do modo
carinhoso que ela o tratou logo na primeira vez que se viram, daqueles olhos castanhos tão
distantes, tão profundos, daquele rosto sereno. Essas memórias somaram mais uma dor ao
coração conturbado do rapaz. Ele fechou os olhos e parou de mexer a colher, levando uma das
mãos ao rosto. Sentiu alguém tocando seu ombro.

— Olavo? — disse Tiria — o que foi? — Ele virou-se e balançou a cabeça numa negação,
voltando ao seu trabalho. Sua prima pediu ajuda para preparar o almoço, apenas para que lhe
fizesse companhia — vamos, desembucha.

— Não é nada, Tiria.

— Vai me dizer que mexer uma sopinha esta te deixando cansado? — Brincou a garota.
Olavo sorriu timidamente e voltou ao seu trabalho e aos seus pensamentos. Imaginava se
Cecília estaria bem.

Assim que terminaram de preparar o almoço, levaram-no para uma pequena mesa.
Prepararam pouca comida, pois somente os dois e mais um garoto iriam comer ali naquele dia.
Serviram-se de um gordo prato de sopa com farinha de milho e sentaram-se á mesa. Tiria fez
uma oração a Ceras, deusa da colheita, agradecendo pela comida. Nesse momento Cassius
entrou e abraçou Tiria carinhosamente, falando:

—Boa tarde, irmãzinha. — A garota olhou-o e sorriu, dizendo:

—Bem vindo, Cassius. Chegou na hora certa.

—Eu bem vejo. Espero que tenha sobrado um pouco dessa sopa para mim.

—Olhe para mim e Olavo — o irmão mais novo permanecia perdido em seus
pensamentos, brincando com a sopa — não é como se fossemos capazes de comer muito. — E
de fato ambos eram bem magros. Cassius sorriu e serviu-se, sentando ao lado da prima. —
Pensei que estivesse comendo e se divertindo nas feiras, Cassius.

—Infelizmente eu tinha outras coisas a fazer — falou de boca cheia. — Coisas um pouco
mais importantes. — Ao ouvi-lo dizer isso, Olavo levantou o rosto e o encarou. Sentiu uma
pontada de ciúmes e lembrou-se que Cassius prometera a Cecília que iria visitá-la. O mago mais
jovem perguntou:

103
—O que você foi fazer?

Cassius comeu mais uma colherada de sopa, fingindo não ter ouvido-o. Tiria irritou-se.

—Cassius, seu irmão falou com você. — O tom de voz da garota estava alterado —
porque não deixa de ser infantil e responde seu irmão? — O rapaz barbudo bufou, antes de
dizer:

—Terei muito tempo para falar com Olavo, pois partiremos juntos em uma viagem.

—Do que está falando? — Perguntou Olavo, indignado.

—Lembra-se de Teodoro? — Cassius sequer olhava na direção do outro rapaz para falar
— eu o encontrei. Ele possui as pesquisas do papai e irá nos fazer um mapa.

—Mapa? Para onde?

—Ruínas dos primordiais, perto do Mar Central.

Um silêncio desconfortável se fez entre os três. Ouvia-se o barulho das colheres


batendo nos pratos e das gargantas engolindo a comida. Tiria quebrou-o:

—Cassius, porque você vai atrás disso?

—Para me livrar da Ordem dos Magos.

—Realmente acredita que eles ainda estão atrás de vocês? — Perguntou a garota.

—Porque não estariam? — Cassius respondeu irritado — Aquele homem maldito não foi
até lá somente para destruir Banis, ninguém se importaria com isso. Ele estava atrás da
pesquisa do meu pai. — A garota pensou um pouco antes de argumentar:

—Então porque não lhes dá a pesquisa de seu pai? Isso não o deixaria livre? — Dessa
vez Olavo interveio:

—Nosso pai — Enfatizou a palavra “nosso” —nos fez prometer que não deixaríamos
essas informações caírem nas mãos da Ordem.

—Por quê? — Insistiu a garota e nenhum dos dois rapazes soube responder àquilo. —
Nem mesmo sabem o motivo e estão arriscando suas vidas!

—Se meu pai nos disse para fazê-lo, ele tinha uma boa razão.

—De qualquer forma, como eles vão encontrá-los? — Argumentou a moça.

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—Há um conclave deles no lado de fora dos muros e magos são cheios de artimanhas.
— Explicou Cassius. — É uma questão de tempo.

—Irmão, Tiria tem razão. Não vejo como eles nos encontrarão, a última vez que aquele
homem nos viu estávamos sendo sequestrados por primordiais, deve pensar que estamos
mortos a essa altura.

—Não seja tolo, Olavo. — Rebateu Cassius — Realmente acredita que o desgraçado
simplesmente deixou os primordiais nos levarem sem ir atrás? Eu tenho quase certeza de que
ele nos perseguiu. Quando você estava à beira da morte eu o deixei jogado na floresta, para
que os monstros não o matassem. Na noite seguinte, quando fugi, você estava em um lugar
diferente, mais próximo e mais vivo.

—Isso não faz sentido nenhum então! — Exclamou a garota — porque ele iria ajudá-lo?
Porque ele simplesmente não levou Olavo?

—Ele nos deseja vivos. Além disso, é mais fácil nos capturar sem um exército de
primordiais à nossa volta. — Elucidou Cassius.

—Irmão, há muitas falhas em seu argumento... — Começou Olavo, mas foi


interrompido:

—Você realmente quer arriscar? Se eles chegarem aqui, a primeira pessoa a ser atacada
não seremos eu ou você, será Tiria! — Gritou Cassius, batendo o punho na mesa e derrubando
o pouco de sopa que restava em seu prato. — Não seja um covarde!

—O covarde é você! — Tiria exclamou. — Olavo, você prometeu que não iria.

—Prometeu? — Perguntou o rapaz mais velho.

—Sim — respondeu Olavo — não irei com você.

—Você me deve isso, seu maldito! — Gritou Cassius, dando de dedo no irmão — deixou
Isabelle morrer e agora me abandona!

Olavo abaixou a cabeça e fechou os olhos, sem resposta. Aquelas palavras doíam
profundamente. O outro continuou gritando:

—Eu via o jeito que você a olhava! Deixou-a morrer apenas para me machucar, não é?!
— Olavo levantou-se e Cassius fez o mesmo reflexivamente.

—Cale-se! — Ordenou Olavo.

—Faça eu me calar, se puder!

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O rapaz mais novo tentou esmurrar o mais velho. Cassius segurou a mão de Olavo e
torceu o braço do rapaz. O mais jovem gritou enquanto o outro lhe dirigia um murro com a
outra mão. Atingiu o queixo e derrubou-o. Tiria colocou-se entre os dois, apavorada e gritou:

—Parem!

Cassius se virou e saiu.

...

Esbarrava nas pessoas enquanto caminhava pelas ruas centrais da cidade. Finalmente
tomara a coragem de ir até o templo de Taos, após uma conversa com Tiria. A prima achava
que encontrar Cecília o incentivaria a permanecer na cidade e o encorajou a ir atrás da garota.
Sentia o cheiro da chuva que se aproximava e apressou o passo. Já via a torre em toda sua
imensidão.

Aproximou-se das muralhas que envolviam a Torre da Primavera. O lugar era


fortemente protegido, digno de um santuário da deusa da guerra. Do lado de dentro dos
portões as estradas eram todas cercadas por canteiros de flores, apesar de poucas deles
florescerem no inverno. Ouvia-se uma melodia suave, uma mistura do canto dos pássaros com
o som dos insetos vinda da direção do templo.

Chegou à entrada da construção. Era enorme, devia ter mais de cinquenta metros de
altura. Flores e plantas diversas agarravam-se às paredes da torre e dezenas de pássaros e
insetos voavam ao seu redor. Em torno do templo havia um enorme fosso, cortado por uma
ponte levadiça. Dentro dele uma imensa diversidade de plantas, de todas as formas e cores
possíveis. Mesmo no inverno aquele festival de tonalidades causava um pouco de tontura. Seus
conhecimentos de botânica identificaram que eram todas ervas venenosas, ao menos as mais
venenosas que ele já ouvira falar estavam ali presentes.

Aproximou-se da porta principal, um arco de pedra de cinco metros de altura que dava
numa nave circular de mais de quarenta metros de raio. Dezenas de fiéis levavam suas
oferendas e realizavam suas preces ali. Uma estátua enorme de uma mulher com uma lança
nas mãos era o que mais chamava a atenção lá dentro. Os sacerdotes de Taos, mulheres em sua
maioria, cuidavam do templo, armados. Todos os acessos para os andares superiores e
inferiores ficavam em posições de fácil defesa e eram bem vigiados. Alguns dos clérigos davam
bênçãos e pregavam a fé dos Filhos de Torus. O rapaz aproximou-se de uma das sacerdotisas,
uma garota jovem com uma cota de malha e com uma lança presa às costas.

—Que tuas mudas floresçam, e tuas batalhas sejam vencidas — Disse a moça ao vê-lo se
aproximar. — Veio buscar a benção de Taos?

106
—Sim. Quer dizer, não exatamente... Eu vim atrás de uma pessoa, na verdade. — Falou
e arrependeu-se imediatamente, sentiu vontade de se virar e sair correndo dali, mas agora era
tarde demais.

—E quem seria?

—É uma das sacerdotisas. — disse, esperando que a garota adivinhasse. Ela ficou
observando-o, aguardando que ele terminasse a frase. Não foi nada fácil — estou procurando
por Cecília. — O coração do rapaz disparou ao mencionar esse nome.

—Cecília? Não me recordo dela, mas irei perguntar sobre ela, apenas aguarde aqui. —
Retirou-se. O rapaz ficou ali esperando por um tempo que pareceu infinito. Olhou para as
próprias mãos e viu que tremia. Nunca se sentira tão ansioso e agora torcia apenas para que
aquela garota voltasse e falasse que Cecília não estava, ou que não havia nenhuma sacerdotisa
de Taos com aquele nome. Podia ser uma mentira dela, seria muito bom na verdade, ele nunca
mais a veria e nem teria onde procurá-la. Pensar nisso aumentou sua ansiedade, estava com
medo de não saber o que fazer ao encontrá-la. Acima de tudo, estava com medo dela estar
esperando seu irmão e não ele. Quando a garota voltou, tinha um rosto sério.

—Me acompanhe — disse a sacerdotisa — ela está no calabouço, mas a sumo


sacerdotisa disse-me para acompanhá-lo até lá.

—Calabouço? — O homem espantou-se com essa afirmação. — Por quê?

—Não sei lhe dizer, eu nem mesmo a conheço. Venha — seguiu até uma das escadarias
descendentes e pediu permissão a um brutamontes que vigiava o lugar. Ele assentiu e deu-lhes
passagem. Desceram alguns lances de escadas e terminaram num corredor escuro, úmido e
frio, cheio de grades e portas. Alguns homens bem armados estavam conversando encostados
em uma das paredes. A sacerdotisa perguntou a um deles sobre Cecília e ele apontou para uma
cela no meio do corredor. Os passos ecoavam e os tremores do garoto aumentavam e ele não
sabia mais distinguir o frio, a ansiedade e o medo. Por fim chegaram até a cela.

Cecília estava encostada à parede do fundo da cela. Usava outras roupas, trajes de
prisioneiro, que conseguiam ser melhores do que os farrapos que trouxera no corpo durante a
viagem. Virou o rosto e pareceu não acreditar no que via por um instante. Em seguida levantou-
se e falou:

—Olavo? — O rapaz aproximou-se da cela, receoso e respondeu:

—Sim, sou eu. — Não conseguia entender porque ela estava presa, mas vê-la naquela
situação o deixou constrangido. Desde que chegara estava tendo uma vida tranquila e

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confortável, sentia-se envergonhado ao ver a garota em uma situação tão precária. A
sacerdotisa que o guiou deixou-os a sós.

—O que está fazendo aqui? — Perguntou Cecília ao rapaz. Olavo, por sua vez, não soube
o que responder. Fora até lá somente visitá-la, no entanto parecia que o momento não era nem
um pouco adequado.

—Eu... — procurou suas melhoras palavras e tudo que conseguiu dizer foi: — Não sei.

—Não sabe? — Ela fitou-o perplexa e deu risada. Chegou perto das grades e buscou os
olhos cor de mel do rapaz com os seus.

—Não sei. Posso fazer alguma coisa por você?

—Se você me trouxesse algo para ler, eu lhe seria eternamente grata — as duas ultimas
palavras que ela disse fizeram Olavo tremer um pouco mais. — O tédio logo irá me matar.

—Ah, um... Um livro. Eu vou trazer um livro para você então... — Cecília sorriu. Não
tinha alguém com quem conversar havia quinze dias. Trocava algumas palavras com os guardas,
mas isso era tudo. Passava a maior parte do tempo pensando no passado e o tempo ali era
extremamente longo — Só isso? Como você ficou presa? Tem algum jeito de tirar você daí?

—Estou aqui graças à Ordem dos Magos, se você puder destruí-los acho que eu consigo
sair daqui...

—Ah, isso resolveria meus problemas também, vou pensar em um jeito de destruí-los.
— Respondeu o rapaz, seriamente. Um instante depois os dois estavam rindo. Olavo desejava
atravessar aquelas grades para poder abraçá-la. Naquele momento ele esqueceu Cassius, Tiria,
seu pai, a Ordem e todo o resto do mundo.

—Quem é você? — Disse uma voz masculina vinda das escadas. — Quem deixou que
entrasse? — Olavo espantou-se. Um soldado trajando um manto marrom e um escudo
metálico com o desenho de uma árvore vinha em sua direção. O rapaz olhou em volta,
desconcertado, procurando a mulher que o levara até lá, mas não conseguiu encontrá-la. O
recém-chegado sacou uma maça de armas e gritou pelos outros guardas, ameaçando — apenas
renda-se!

— Salgueiro, Pare! — Gritou Cecília — Uma das sacerdotisas o trouxe até aqui, é meu
amigo!

—Cale-se, prisioneira. — retrucou o homem. Logo cinco soldados estavam se dirigindo


para Olavo, vindos da única saída que ele conhecia. Estava encurralado. Poderia lançar um
encantamento contra um ou dois deles, mas os outros conseguiriam dominá-lo facilmente
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nesse meio tempo. A garota também não sabia o que fazer e o desespero era claramente visível
em seu rosto. O rapaz ergueu as mãos e disse:

—Eu me rendo! — Os soldados correram até ele e o seguraram. Cecília mais uma vez
gritou, desesperada:

—Permitiram que ele entrasse aqui! É um engano, não o machuquem!

—Sim, é um engano esse estranho estar no calabouço! —respondeu o homem da maça


de armas — levem-no para a solitária! — Tudo que o rapaz pode fazer foi lançar um olhar de
súplica para a garota.

Dois soldados o arrastaram até uma pequena sala vazia e escura no final do corredor. O
homem da maça de armas pegou uma tocha e levou-a para dentro. Assim que o fizeram,
ordenou que saíssem, trancando a porta após a retirada dos soldados.

—Isso é um engano! — gritou Olavo. — Uma sacerdotisa permitiu que eu a visse!

—Eu sei. — rosnou o homem. — Fui eu quem deixou que ela o fizesse. — O mago não
soube o que responder a isso. — Me chamam Salgueiro. Não tenho intuito de lhe fazer mal
algum, garoto. Eu o trouxe aqui para podermos conversar em privacidade.

—Sobre?

—Cecília. De onde a conhece? — O garoto hesitou em responder. — Responda apenas a


verdade, é para o bem dela.

—Está a ameaçando? — Respondeu, exaltando-se.

—De forma alguma. Mas fico satisfeito que se importe tanto assim com ela. — falou o
homem, sorridente. — Talvez seja uma injustiça ela estar presa, no entanto preciso confirmar
isso. Conte-me como a conheceu.

—Porque ela está presa?

—Responda minha pergunta, e responderei a sua. — Olavo notou que para pegar a
tocha Salgueiro havia guardado a arma. Poderia enfeitiçá-lo e sair dali. No entanto duas coisas o
impediram. Teria que se livrar dos outros quatro guardas e talvez de muitos mais deles no
andar de cima, o que tornava tudo muito mais arriscado. E talvez aquele homem estivesse
falando a verdade e fosse possível ajudar Cecília.

—E como exatamente contar como a conheci pode provar alguma coisa?

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—Simples — Disse o homem enquanto foi descansar a tocha em um pedestal na parede
— se suas histórias forem condizentes, saberei que estão falando a verdade. Tenho certeza que
não teve tempo de combinar nada com ela nesses poucos segundos que conversaram.

—E se não forem, o que fará com ela?

—Nada. Ela continuará presa. — Olavo acalmou-se um pouco, respirou fundo e resolveu
arriscar. Contou desde o momento em que foram capturados pelos primordiais até a separação
em Sete Torres. Achou preferível não omitir nada, se o homem estava falando a verdade, seria
melhor que ele também o fizesse.

—Eu sabia que Cecília não mentiria. — Comentou Salgueiro no término da história —
Rapaz, você gostaria de tirar a garota de lá?

—Como assim? — Temia responder alguma coisa que o comprometesse, ou pior,


comprometesse Cecília.

—Há dois motivos para ela estar presa. Em primeiro lugar, para não desafiar a Ordem
dos Magos e em segundo, para protegê-la da Ordem dos Magos. — Olavo fez menção de falar
algo, mas o homem ergueu a mão, sinalizando que iria continuar — Cecília acusou o
embaixador deles, Klaus do Manto Violeta, de alta traição. Na frente dele. Acontece que ele
não gostou da ideia e exigiu que ela fosse presa. A sumo sacerdotisa considerou essa opção a
melhor. Não sei se Cecília lhe contou, mas ela, assim como você, é perseguida pela Ordem. — O
rapaz assustou-se ao saber que a garota sofria com isso também. Antes que pudesse reclamar,
Salgueiro continuou:

—Após ser acusado é muito provável que Klaus a atacasse em um momento oportuno,
pois tenho quase certeza de que a acusação não é vazia. Ao deixá-la presa a sumo sacerdotisa
garante sua segurança e a satisfação da Ordem com relação ao templo de Taos.

—Então porque você está me falando sobre libertá-la?

—Cecília foi capturada por primordiais após falhar em uma missão de reconhecimento,
onde acompanhava Jasmim, uma sacerdotisa-guerreira. Ela acusou Klaus de ter sido o
responsável pela morte dessa mulher. Eu, assim como ela, acredito que a missão foi sabotada
pelos magos. No entanto, a sumo sacerdotisa não irá enviar outro grupo de reconhecimento,
pois alguns sacerdotes retornaram e afirmaram que os problemas com os primordiais são
pequenos.

—Certo... Ainda não entendi aonde você quer chegar.

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—Precisamos enviar um grupo externo ao templo para investigar essa situação. Algo
está errado, a Ordem dos Magos parece ter alguma relação com esse aparecimento misterioso
dos primordiais. A ideia é simples. Não pretendemos deixar Cecília presa indefinidamente por
um crime que não cometeu.

—Então pretendem enviá-la para uma missão extremamente perigosa? E que relação
isso tem comigo? — Perguntou Olavo, indignado.

—Você irá ajudá-la a cumprir essa missão.

—O que? Eu vejo diversas falhas nesse plano. —Disse o mago — Cecília fugir não
mancharia a imagem dela? Ao sair daqui ela não estará sujeita a ser atacada de qualquer
forma? E que credibilidade teríamos?

—Eu tenho uma carta que justificará tudo, dando credibilidade e absolvição a vocês
dois, no término da missão. — Explicou Salgueiro — E quanto à segurança dela, um dos magos
conseguiu se disfarçar e perguntar diversas coisas para Cecília. — Ele fez uma pausa, para
enfatizar muito bem a próxima frase — inclusive sobre o teu paradeiro. Não acho que seja
saudável para qualquer um de vocês permanecer em Sete Torres. — O mago lembrou-se da
briga com Cassius e da promessa feita à prima.

—E o que eu devo fazer então?

—Eu vou lhe entregar a carta. — puxou um pergaminho selado de dentro do manto e
deu-o ao rapaz. — Os detalhes estão todos nela. Não se preocupe, não há nenhuma prova de
que ela foi escrita por alguém de dentro do templo de Taos. Sua absolvição será assinada assim
que voltarem. — Destrancou a porta e pediu para que Olavo o acompanhasse. Passou pela cela
de Cecília e parou por um momento. A garota correu até as grades e sentiu-se imensamente
aliviada ao vê-lo são e salvo. Salgueiro fez sinal para que se apressasse.

Assim que chegaram às escadas, o homem lhe disse:

—Lembre-se que nunca falou comigo. Adeus, Olavo.

...

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