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Capítulo um.

Acendo um cigarro, inalando profundamente e liberando uma fumaça espessa e acinzentada.


Meu escritório, um lugar desorganizado e quase desmoronando, permanece em silêncio. Já se
passaram dias desde que o telefone tocou pela última vez, trazendo consigo um novo caso. Essa
falta de atividade é algo comum para um detetive particular recém-ingresso no ramo. No
entanto, é essa escassez que me dá a liberdade de percorrer as ruas escuras, investigando casos
que a polícia frequentemente ignora ou arquiva sem respostas.
Desde os últimos dois casos resolvidos, o assassinato de uma criança na rua Booksville, um
mistério aparentemente insolúvel, e o desaparecimento da filha de um idoso no prédio Walkin,
tenho buscado incansavelmente desvendar os enigmas ocultos nas sombras da cidade. As ruas
escuras tornaram-se meu território, onde eu, como um detetive solitário, tento trazer luz aos
casos que permanecem sem solução. Todavia, está me matando permanecer nesse escritório
empoeirado e barato, que, ironicamente, fica localizado no prédio Walkin.
O telefone interrompeu o silêncio, e eu apaguei a bituca de cigarro na mesa de madeira antes de
pegar o gancho, atendendo com uma saudação formal.
"Detetive Roger?" A voz, aparentemente de um senhor idoso, soava um tanto trêmula e abafada.
"Ouvi falar do senhor por meio de um amigo meu. Ele parece depositar total confiança em você
após a resolução do caso de sua filha."
"Amigo do senhor Walter?" Ouvi um "sim" abafado do outro lado da linha. "Não foi difícil de
solucionar. A polícia simplesmente não acreditava nas dicas, achavam-nas absurdas demais."
"A incompetência tem nome e distintivo, Roger. Por isso, gostaria de contratá-lo para um caso."
Arqueei a sobrancelha, captando a seriedade nas palavras do velho do outro lado da linha.
[...]
Fecho a porta do carro, observando o vilarejo diante de mim, enquanto os olhares curiosos dos
habitantes locais já se voltam na minha direção. A manhã quente traz consigo a sensação de que
nunca viajei tanto para resolver um caso. Travo o carro e, com as mãos nos bolsos, busco a
carteira de cigarro, acendendo um dos cigarros. É um ritual matinal, um ciclo vicioso que talvez
me conduza à morte um dia. Guardo a carteira e começo a caminhar lentamente pela cidade,
absorvendo cada detalhe ao meu redor.
O vilarejo exibia suas lojinhas, repletas de variados produtos, e uma agitação constante de vozes
ecoava para anunciar frutas e verduras. Era o típico cenário interiorano, onde a vida seguia seu
curso com calma e as peculiaridades do lugar se revelavam a cada passo. O senhor que busco é
um padre local, autoproclamado como o único na região. Não preciso indagar aos moradores
para descobrir seu paradeiro, pois o imponente crucifixo no topo de uma torre indica claramente
onde encontrá-lo. No entanto, ao percorrer o caminho até lá, fui abordado por diversos
vendedores, cada um oferecendo suas iguarias tentadoras. Além disso, um grupo de senhoras
passou por mim, indagando se eu era recém-chegado e questionando sobre a existência de
família na localidade. A atmosfera calorosa do vilarejo parece envolver cada interação,
revelando a natureza acolhedora, porém curiosa, da comunidade.
À medida que avançava, as casas simples começavam a se revelar: algumas construídas com
madeira, outras com barro, e poucas feitas de tijolos. Crianças corriam alegres, com suas vozes
infantis e palavras erráticas devido à falta de dentes. Um sorriso se formou em meus lábios,
mantendo o cigarro entre os dentes. O vento acariciava a atmosfera reconfortante, e eu me
perguntava como poderia coexistir com tanta alegria, mesmo em meio a circunstâncias
desconhecidas. Com um último trago, joguei o cigarro ao chão para depois pisá-lo. Meu olhar
dirigiu-se ao cemitério que emanava um ar pesado, e no centro desse cenário, erguia-se uma
imponente igreja de madeira. O contraste entre a vida vibrante do vilarejo e a serenidade do
cemitério e da igreja criava uma cena intrigante, onde o passado e o presente pareciam
entrelaçar-se em meio à paisagem simples e encantadora.
O caminho de pedras parecia conduzir-me inexoravelmente à minha última confissão. A
atmosfera transformou-se completamente daquela que eu testemunhara pouco antes, e agora, ao
me deparar com os túmulos que me cercavam, senti um arrepio na espinha. Meu passo tornou-se
rápido, e em breve alcancei os imponentes portões da igreja, abertos para aqueles que desejam
se reconectar com Deus. No entanto, não era o meu propósito ali.
Ao me aproximar, avistei uma figura sentada no primeiro banco, claramente um jovem. Entre os
bancos, sentei-me ao seu lado, ambos encarando a figura de Jesus crucificado. Um silêncio
tomou conta do ambiente por um instante, enquanto meu olhar permanecia fixo na cena diante
de nós. O peso da quietude parecia ecoar a gravidade dos meus pensamentos, preparando o
terreno para a confissão que se desenrolaria.
--Senhor Roger, creio que já tenha entendido o motivo de estar aqui. – O rapaz ao meu lado
quebrou o silêncio, olhando-me com grandes olhos amendoados e um sorriso reconfortante.
--Sim, mas pelo que me lembro, acho que falei com o padre Carlton. Quem seria você para estar
a par da situação? – Ele riu diante do meu comentário e se levantou, fazendo uma saudação
antes de começar a andar.
--Por favor, me siga.
Curioso, levantei-me e segui seus passos lentos. Vestindo uma batina e sandálias rasteiras, ele
me conduziu até um cômodo grande atrás da igreja, assemelhando-se a um quarto
compartilhado entre ele e o mencionado padre. Indicou-me uma mesa, pedindo que eu me
sentasse e aguardasse um momento. Enquanto olhava ao redor, vi o rapaz sair brevemente do
local. O alojamento era uma mistura de elementos, com prateleiras repletas de livros, quadros
emoldurados nas paredes, todos relacionados a Cristo. No entanto, algo se destacava: a moldura
da Virgem Maria, com o rosto rasgado.
O jovem retornou com uma xícara e, junto a ele, um velho corcunda que se apresentou como
padre Carlton. Ele parecia sério ao se sentar à minha frente.
-- Roger, é surpreendente que tenha vindo até aqui. Além de distante, não sei como acreditou na
minha história. – Ele me encarou com olhos entreabertos, evidenciando uma visão cansada. O
jovem se sentou e me ofereceu a xícara que carregava.
--Não é todo dia que se escuta um relato como o seu. –Sorrio pegando na alça da xícara e
provando um chá amargo e que deixa todo meu corpo quente. –De verdade, já sou alguns meses
desse ramo, ouvi sobre cultos no meu primeiro e segundo caso, mas nunca sobre uma criatura
folclórica.
-- É um pouco absurdo, eu o entendo. – O rapaz disse. – Me chamo Romeu, sou o acólito, e fui
o que presenciei tudo que o padre relatou. – Ele me olhou como se pedisse permissão para
continuar, e o padre assentiu. – É estranho, eu sei. Algo que uma criança poderia relatar
facilmente para se divertir conosco. Porém, acho que após aquela noite, é bizarro que eu tenha
sobrevivido. Nos últimos meses, a cidade vinha enfrentando mortes inexplicáveis, não algo
como morte súbita ou doenças. Os animais estavam morrendo, as crianças também. Acredito
que tenha visto tudo isso ao vir para cá. – Eu concordei com a cabeça, bebendo novamente o
chá. – Era tudo estranho, mas por ser uma cidade do interior, precisamos ir até a cidade para
encontrar um médico, além do senhor Frederico, mas a maioria daqui não tem condições para
isso. Foi aí que surgiram os relatos. Começou com o Sebastião, um senhor carrancudo que vive
sozinho com algumas vacas e um cachorro. Ele nunca vinha se confessar, mas um dia apareceu
assustado, dizendo que ninguém acreditava nele e no que havia visto.
“Ele contava com detalhes no confessionário. Falava do desaparecimento e morte do seu
pequeno gado. Então, decidiu observar as vacas numa noite de lua cheia e viu uma criatura
enorme se aproximando de uma das vacas. Peluda, agarrou a vaca sem piedade alguma. Repetia
constantemente que aquilo não era humano e que não conseguiu nem ao menos atirar, por estar
com medo de tudo. Tinha receio de que a criatura voltasse em algum momento, e que, em vez
de suas vacas, ele fosse o próximo, deixando apenas a carcaça como a de seu gado morto.
Obviamente, não pude acreditar nele, mas pedi para que rezasse e comparecesse à igreja
constantemente, dizendo que podia ser obra do inimigo levar suas vacas dessa maneira.
Entretanto, ele apenas repetia: ‘Nem o Diabo seria capaz de fazer isso com um animal’. ”
O silêncio imperou no local durante aquele período, e tanto o padre quanto Romeu fizeram o
sinal da cruz após a menção ao nome "Diabo". Padre Carlton pigarreou e o seu acólito brincou
nervosamente com os dedos antes de continuar sua história.
-- Após isso, relatei ao padre, e ele mesmo afirmou que não há muito o que fazer além de
desejar proteção. Em seguida, foi a vez da dona Carmen. Ela contou que sentia como se sua
casa estivesse sendo rondada por diversas noites, e isso só parou quando ela veio ao
confessionário. No entanto, seu relato era semelhante ao do seu Sebastião: uma criatura peluda e
enorme, visível através de sua cortina fina. Era assustador e demoníaco, como ela repetia
incessantemente com sua voz trêmula – ainda posso ouvir isso na minha mente. Houve vários
relatos e mais mortes ocorreram; o cemitério ficou repleto de corpos que agora ostentam a
mesma marca que carrega o rosto da Virgem Maria. – Ele apontou para o quadro que já havia
visto antes.
“Foi quando ocorreu comigo; o padre havia ido dormir mais cedo, então ficou sob minha
responsabilidade arrumar a igreja após a missa de domingo. Uma grande lua cheia pairava no
céu, e eu começava a escutar alguns barulhos estranhos. Enquanto arrumava os bancos, os
ruídos se intensificaram, e uma sensação de desconforto se apoderou de mim. O som de passos
pesados ecoava no interior da igreja, misturando-se com um rosnado gutural. Uma figura
sombria emergiu das sombras, uma criatura peluda com olhos que refletiam a luz da lua,
parecendo um lobisomem, mas ainda mais terrível. Seu avanço foi imperioso, e eu mal tive
tempo de reagir antes que a criatura me atacasse.
“A agressão foi rápida e feroz, e a igreja se encheu de grunhidos e uivos. Por algum motivo, a
criatura parou subitamente, como se algo a tivesse distraído. Olhei ao redor, confuso, e percebi
que o quadro da Virgem Maria, com o rosto rasgado, parecia emanar uma luz intensa. Sem
hesitar, a criatura fugiu abruptamente, desaparecendo na escuridão da noite. O padre despertou e
me viu ali, ferido e atordoado, caído no chão. Correu até mim, tentando entender o que acabara
de acontecer. A marca sinistra que a criatura deixou comigo ecoava a mesma que agora
adornava a Virgem Maria. ”
Ele então de levanta e retira sua batina, revelando em seu corpo uma marca de garra enorme que
cobria totalmente o seu abdômen. Uma expressão surpresa permaneceu em meu rosto confuso e
adornado pela sua história. O padre pigarreou como se pedisse para ele se vestir novamente e
me encarou.
--A situação ficou um pouco grave, detetive, o que parecia ser só um caso de lenda na cidade,
acabou tornando-se real e era necessário que alguém como você solucionasse isso. –Se levantou
colocando as mãos para trás e observando as pinturas. –Se for parecido a um lobisomem, a
lenda é sempre a mesma, uma mulher tem seis filhas mulheres e o sétimo um menino que tem o
futuro de uma criatura carregada consigo em uma noite de lua cheia. Porém... –Ele me olha
novamente e o observo silencioso –ele aparece não só em luas cheias, como também nas
comuns e só quando parece ser de sua vontade. Por isso o chamei, mesmo vendo, eu não
desconfio de apenas ser uma pessoa comum que está fazendo isso conosco, mas sua semelhança
com o lobisomem, é assustadora.
--Entendo, acho que então não vou ter opção. –Me levanto com as mãos no bolso e suspiro
pesado enquanto olhava para ele. –Tenho que investigar os cidadãos da cidade, tu tens alguma
sugestão de quem pareça estranho suficiente para isso?
Eles assentiram igualmente e me forneceram algumas informações. A primeira era de uma
mulher que tinha seis filhas e há anos seu sétimo filho havia desaparecido, sem deixar rastro.
Outros eram relatos e indicações de onde poderia encontrá-los. Por fim, Romeu se aproximou e
me entregou uma pistola simples, afirmando ter balas de prata para o que eu precisasse.
Enquanto meu olhar permanecia fixo na imagem da Virgem Maria com o rasgo em seu rosto.
Diante do quadro da Virgem Maria, cujo rosto carrega o rasgo profundo, encontro-me imerso
em um monólogo silencioso e fúnebre, onde cada detalhe parece sussurrar mistérios do além. O
rasgo na face da santa, antes pura e serena, agora exibe uma ferida que transcende o físico. É
como se a própria divindade compartilhasse o fardo do desconhecido, uma marca que ecoa nos
confins do mistério que paira sobre esta comunidade. A pistola, simples e austera, repousa em
minhas mãos como uma extensão da minha decisão. Carregando balas de prata, ela se torna uma
testemunha silenciosa do enfrentamento iminente com aquilo que se esconde nas sombras. A
frieza do metal contrasta com a seriedade do meu propósito, e cada detalhe gravado na arma
parece vibrar com a tensão que permeia o ar ao meu redor.
E assim, mergulho em um silêncio fúnebre, onde as palavras parecem perder o significado,
substituídas pelo peso das expectativas e pela iminência do desconhecido. Este silêncio não é
apenas a ausência de som; é a calmaria antes da tempestade, é a reverência diante do que está
além do alcance da compreensão humana. Cada suspiro ressoa com a seriedade da jornada que
se desenha à minha frente, enquanto a Virgem Maria, com seu rosto ferido, parece observar
silenciosamente, como se soubesse que o destino de todos está entrelaçado na linha tênue entre
o sagrado e o profano.

Capítulo dois.

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