Acendo um cigarro, inalando profundamente e liberando uma fumaça espessa e acinzentada.
Meu escritório, um lugar desorganizado e quase desmoronando, permanece em silêncio. Já se passaram dias desde que o telefone tocou pela última vez, trazendo consigo um novo caso. Essa falta de atividade é algo comum para um detetive particular recém-ingresso no ramo. No entanto, é essa escassez que me dá a liberdade de percorrer as ruas escuras, investigando casos que a polícia frequentemente ignora ou arquiva sem respostas. Desde os últimos dois casos resolvidos, o assassinato de uma criança na rua Booksville, um mistério aparentemente insolúvel, e o desaparecimento da filha de um idoso no prédio Walkin, tenho buscado incansavelmente desvendar os enigmas ocultos nas sombras da cidade. As ruas escuras tornaram-se meu território, onde eu, como um detetive solitário, tento trazer luz aos casos que permanecem sem solução. Todavia, está me matando permanecer nesse escritório empoeirado e barato, que, ironicamente, fica localizado no prédio Walkin. O telefone interrompeu o silêncio, e eu apaguei a bituca de cigarro na mesa de madeira antes de pegar o gancho, atendendo com uma saudação formal. "Detetive Roger?" A voz, aparentemente de um senhor idoso, soava um tanto trêmula e abafada. "Ouvi falar do senhor por meio de um amigo meu. Ele parece depositar total confiança em você após a resolução do caso de sua filha." "Amigo do senhor Walter?" Ouvi um "sim" abafado do outro lado da linha. "Não foi difícil de solucionar. A polícia simplesmente não acreditava nas dicas, achavam-nas absurdas demais." "A incompetência tem nome e distintivo, Roger. Por isso, gostaria de contratá-lo para um caso." Arqueei a sobrancelha, captando a seriedade nas palavras do velho do outro lado da linha. [...] Fecho a porta do carro, observando o vilarejo diante de mim, enquanto os olhares curiosos dos habitantes locais já se voltam na minha direção. A manhã quente traz consigo a sensação de que nunca viajei tanto para resolver um caso. Travo o carro e, com as mãos nos bolsos, busco a carteira de cigarro, acendendo um dos cigarros. É um ritual matinal, um ciclo vicioso que talvez me conduza à morte um dia. Guardo a carteira e começo a caminhar lentamente pela cidade, absorvendo cada detalhe ao meu redor. O vilarejo exibia suas lojinhas, repletas de variados produtos, e uma agitação constante de vozes ecoava para anunciar frutas e verduras. Era o típico cenário interiorano, onde a vida seguia seu curso com calma e as peculiaridades do lugar se revelavam a cada passo. O senhor que busco é um padre local, autoproclamado como o único na região. Não preciso indagar aos moradores para descobrir seu paradeiro, pois o imponente crucifixo no topo de uma torre indica claramente onde encontrá-lo. No entanto, ao percorrer o caminho até lá, fui abordado por diversos vendedores, cada um oferecendo suas iguarias tentadoras. Além disso, um grupo de senhoras passou por mim, indagando se eu era recém-chegado e questionando sobre a existência de família na localidade. A atmosfera calorosa do vilarejo parece envolver cada interação, revelando a natureza acolhedora, porém curiosa, da comunidade. À medida que avançava, as casas simples começavam a se revelar: algumas construídas com madeira, outras com barro, e poucas feitas de tijolos. Crianças corriam alegres, com suas vozes infantis e palavras erráticas devido à falta de dentes. Um sorriso se formou em meus lábios, mantendo o cigarro entre os dentes. O vento acariciava a atmosfera reconfortante, e eu me perguntava como poderia coexistir com tanta alegria, mesmo em meio a circunstâncias desconhecidas. Com um último trago, joguei o cigarro ao chão para depois pisá-lo. Meu olhar dirigiu-se ao cemitério que emanava um ar pesado, e no centro desse cenário, erguia-se uma imponente igreja de madeira. O contraste entre a vida vibrante do vilarejo e a serenidade do cemitério e da igreja criava uma cena intrigante, onde o passado e o presente pareciam entrelaçar-se em meio à paisagem simples e encantadora. O caminho de pedras parecia conduzir-me inexoravelmente à minha última confissão. A atmosfera transformou-se completamente daquela que eu testemunhara pouco antes, e agora, ao me deparar com os túmulos que me cercavam, senti um arrepio na espinha. Meu passo tornou-se rápido, e em breve alcancei os imponentes portões da igreja, abertos para aqueles que desejam se reconectar com Deus. No entanto, não era o meu propósito ali. Ao me aproximar, avistei uma figura sentada no primeiro banco, claramente um jovem. Entre os bancos, sentei-me ao seu lado, ambos encarando a figura de Jesus crucificado. Um silêncio tomou conta do ambiente por um instante, enquanto meu olhar permanecia fixo na cena diante de nós. O peso da quietude parecia ecoar a gravidade dos meus pensamentos, preparando o terreno para a confissão que se desenrolaria. --Senhor Roger, creio que já tenha entendido o motivo de estar aqui. – O rapaz ao meu lado quebrou o silêncio, olhando-me com grandes olhos amendoados e um sorriso reconfortante. --Sim, mas pelo que me lembro, acho que falei com o padre Carlton. Quem seria você para estar a par da situação? – Ele riu diante do meu comentário e se levantou, fazendo uma saudação antes de começar a andar. --Por favor, me siga. Curioso, levantei-me e segui seus passos lentos. Vestindo uma batina e sandálias rasteiras, ele me conduziu até um cômodo grande atrás da igreja, assemelhando-se a um quarto compartilhado entre ele e o mencionado padre. Indicou-me uma mesa, pedindo que eu me sentasse e aguardasse um momento. Enquanto olhava ao redor, vi o rapaz sair brevemente do local. O alojamento era uma mistura de elementos, com prateleiras repletas de livros, quadros emoldurados nas paredes, todos relacionados a Cristo. No entanto, algo se destacava: a moldura da Virgem Maria, com o rosto rasgado. O jovem retornou com uma xícara e, junto a ele, um velho corcunda que se apresentou como padre Carlton. Ele parecia sério ao se sentar à minha frente. -- Roger, é surpreendente que tenha vindo até aqui. Além de distante, não sei como acreditou na minha história. – Ele me encarou com olhos entreabertos, evidenciando uma visão cansada. O jovem se sentou e me ofereceu a xícara que carregava. --Não é todo dia que se escuta um relato como o seu. –Sorrio pegando na alça da xícara e provando um chá amargo e que deixa todo meu corpo quente. –De verdade, já sou alguns meses desse ramo, ouvi sobre cultos no meu primeiro e segundo caso, mas nunca sobre uma criatura folclórica. -- É um pouco absurdo, eu o entendo. – O rapaz disse. – Me chamo Romeu, sou o acólito, e fui o que presenciei tudo que o padre relatou. – Ele me olhou como se pedisse permissão para continuar, e o padre assentiu. – É estranho, eu sei. Algo que uma criança poderia relatar facilmente para se divertir conosco. Porém, acho que após aquela noite, é bizarro que eu tenha sobrevivido. Nos últimos meses, a cidade vinha enfrentando mortes inexplicáveis, não algo como morte súbita ou doenças. Os animais estavam morrendo, as crianças também. Acredito que tenha visto tudo isso ao vir para cá. – Eu concordei com a cabeça, bebendo novamente o chá. – Era tudo estranho, mas por ser uma cidade do interior, precisamos ir até a cidade para encontrar um médico, além do senhor Frederico, mas a maioria daqui não tem condições para isso. Foi aí que surgiram os relatos. Começou com o Sebastião, um senhor carrancudo que vive sozinho com algumas vacas e um cachorro. Ele nunca vinha se confessar, mas um dia apareceu assustado, dizendo que ninguém acreditava nele e no que havia visto. “Ele contava com detalhes no confessionário. Falava do desaparecimento e morte do seu pequeno gado. Então, decidiu observar as vacas numa noite de lua cheia e viu uma criatura enorme se aproximando de uma das vacas. Peluda, agarrou a vaca sem piedade alguma. Repetia constantemente que aquilo não era humano e que não conseguiu nem ao menos atirar, por estar com medo de tudo. Tinha receio de que a criatura voltasse em algum momento, e que, em vez de suas vacas, ele fosse o próximo, deixando apenas a carcaça como a de seu gado morto. Obviamente, não pude acreditar nele, mas pedi para que rezasse e comparecesse à igreja constantemente, dizendo que podia ser obra do inimigo levar suas vacas dessa maneira. Entretanto, ele apenas repetia: ‘Nem o Diabo seria capaz de fazer isso com um animal’. ” O silêncio imperou no local durante aquele período, e tanto o padre quanto Romeu fizeram o sinal da cruz após a menção ao nome "Diabo". Padre Carlton pigarreou e o seu acólito brincou nervosamente com os dedos antes de continuar sua história. -- Após isso, relatei ao padre, e ele mesmo afirmou que não há muito o que fazer além de desejar proteção. Em seguida, foi a vez da dona Carmen. Ela contou que sentia como se sua casa estivesse sendo rondada por diversas noites, e isso só parou quando ela veio ao confessionário. No entanto, seu relato era semelhante ao do seu Sebastião: uma criatura peluda e enorme, visível através de sua cortina fina. Era assustador e demoníaco, como ela repetia incessantemente com sua voz trêmula – ainda posso ouvir isso na minha mente. Houve vários relatos e mais mortes ocorreram; o cemitério ficou repleto de corpos que agora ostentam a mesma marca que carrega o rosto da Virgem Maria. – Ele apontou para o quadro que já havia visto antes. “Foi quando ocorreu comigo; o padre havia ido dormir mais cedo, então ficou sob minha responsabilidade arrumar a igreja após a missa de domingo. Uma grande lua cheia pairava no céu, e eu começava a escutar alguns barulhos estranhos. Enquanto arrumava os bancos, os ruídos se intensificaram, e uma sensação de desconforto se apoderou de mim. O som de passos pesados ecoava no interior da igreja, misturando-se com um rosnado gutural. Uma figura sombria emergiu das sombras, uma criatura peluda com olhos que refletiam a luz da lua, parecendo um lobisomem, mas ainda mais terrível. Seu avanço foi imperioso, e eu mal tive tempo de reagir antes que a criatura me atacasse. “A agressão foi rápida e feroz, e a igreja se encheu de grunhidos e uivos. Por algum motivo, a criatura parou subitamente, como se algo a tivesse distraído. Olhei ao redor, confuso, e percebi que o quadro da Virgem Maria, com o rosto rasgado, parecia emanar uma luz intensa. Sem hesitar, a criatura fugiu abruptamente, desaparecendo na escuridão da noite. O padre despertou e me viu ali, ferido e atordoado, caído no chão. Correu até mim, tentando entender o que acabara de acontecer. A marca sinistra que a criatura deixou comigo ecoava a mesma que agora adornava a Virgem Maria. ” Ele então de levanta e retira sua batina, revelando em seu corpo uma marca de garra enorme que cobria totalmente o seu abdômen. Uma expressão surpresa permaneceu em meu rosto confuso e adornado pela sua história. O padre pigarreou como se pedisse para ele se vestir novamente e me encarou. --A situação ficou um pouco grave, detetive, o que parecia ser só um caso de lenda na cidade, acabou tornando-se real e era necessário que alguém como você solucionasse isso. –Se levantou colocando as mãos para trás e observando as pinturas. –Se for parecido a um lobisomem, a lenda é sempre a mesma, uma mulher tem seis filhas mulheres e o sétimo um menino que tem o futuro de uma criatura carregada consigo em uma noite de lua cheia. Porém... –Ele me olha novamente e o observo silencioso –ele aparece não só em luas cheias, como também nas comuns e só quando parece ser de sua vontade. Por isso o chamei, mesmo vendo, eu não desconfio de apenas ser uma pessoa comum que está fazendo isso conosco, mas sua semelhança com o lobisomem, é assustadora. --Entendo, acho que então não vou ter opção. –Me levanto com as mãos no bolso e suspiro pesado enquanto olhava para ele. –Tenho que investigar os cidadãos da cidade, tu tens alguma sugestão de quem pareça estranho suficiente para isso? Eles assentiram igualmente e me forneceram algumas informações. A primeira era de uma mulher que tinha seis filhas e há anos seu sétimo filho havia desaparecido, sem deixar rastro. Outros eram relatos e indicações de onde poderia encontrá-los. Por fim, Romeu se aproximou e me entregou uma pistola simples, afirmando ter balas de prata para o que eu precisasse. Enquanto meu olhar permanecia fixo na imagem da Virgem Maria com o rasgo em seu rosto. Diante do quadro da Virgem Maria, cujo rosto carrega o rasgo profundo, encontro-me imerso em um monólogo silencioso e fúnebre, onde cada detalhe parece sussurrar mistérios do além. O rasgo na face da santa, antes pura e serena, agora exibe uma ferida que transcende o físico. É como se a própria divindade compartilhasse o fardo do desconhecido, uma marca que ecoa nos confins do mistério que paira sobre esta comunidade. A pistola, simples e austera, repousa em minhas mãos como uma extensão da minha decisão. Carregando balas de prata, ela se torna uma testemunha silenciosa do enfrentamento iminente com aquilo que se esconde nas sombras. A frieza do metal contrasta com a seriedade do meu propósito, e cada detalhe gravado na arma parece vibrar com a tensão que permeia o ar ao meu redor. E assim, mergulho em um silêncio fúnebre, onde as palavras parecem perder o significado, substituídas pelo peso das expectativas e pela iminência do desconhecido. Este silêncio não é apenas a ausência de som; é a calmaria antes da tempestade, é a reverência diante do que está além do alcance da compreensão humana. Cada suspiro ressoa com a seriedade da jornada que se desenha à minha frente, enquanto a Virgem Maria, com seu rosto ferido, parece observar silenciosamente, como se soubesse que o destino de todos está entrelaçado na linha tênue entre o sagrado e o profano.