Os sinos da Catedral anunciam a chegada da Cruzada de
Expurgadores em Nasalto, uma pequena cidade, religiosa e
conservadora. “Os Expurgadores estão aqui” exclamava os cidadãos da cidade em uníssono, eles se dirigiram a Catedral. Adolphus, o Bispo, os recebeu dentro da Catedral para eles receberem o Solver, Faustus, o líder da Cruzada, colheu o Solver e se retirou da cidade junto de seus homens, todos eles com olhares amendoados, enquanto se podia ouvir os gritos e agradecimentos dos cidadãos. Na penumbra, dentro da Catedral, um olhar trevoso observa o encontro dentro da Catedral. Nesta cidade apenas vive eu e minha irmã gêmea, minha mãe faleceu ano passado, e desconheço meu pai. Histórias eram contadas, mitos e lendas, sobre seres terríveis e asquerosos que rodavam a cidade, verdade ou não, todos os habitantes acreditavam. A Cruzada dos Expurgadores eliminavam e protegiam a cidade em troca do Solver (como chamávamos), todos os habitantes doavam mensalmente por sua proteção contra esses seres das trevas. O pagamento era feito por cada pessoa, ou seja, você tem que pagar para permanecer na cidade, caso não tivesse dinheiro para o Solver, a Cruzada se recusava a praticar seu trabalho e o habitante que não pagasse era “Despejado” de Nasalto. Eu e minha família somos agricultores, infelizmente, o Inverno do ano passado foi devastador, não conseguimos nem nós alimentar direito, tanto quanto ter o dinheiro para o Solver, minha mãe decidiu pagar apenas a estadia minha e da minha irmã, ela não conseguiu pagar sua quantia e foi “Despejada”, nós imploramos ao Adolphus para fazer uma excessão, mas, as regras são absolutas, ela foi embora da cidade, e nunca mais a vimos ou ouvimos falar dela. O inverno está chegando, e promete ser mais rigoroso do que o último, conseguintemente necessito de um novo emprego, além de agricultor, para manter eu e minha irmã alimentados e pagar o próximo Solver, tento encontrar emprego em qualquer lugar, mas não encontro, porém, eu consegui um papel de faxineiro na Catedral. Nunca pisei na Catedral, fora os dias de Culto, porém, ao pisar na Catedral “vazia” pela primeira vez, senti um olhar ínfimo, interminável, que observava com tremenda curiosidade e determinação o ponto mais profundo da minha alma. Semanas se passaram, e cada vez mais eu explorava a catedral mais afundo, certa vez encontrei uma porta robusta de metal com entalhes de carvalho, que levava ao “porão” da catedral, não sabia que a catedral tinha um porão ou algo do tipo, tentei abrir mas a porta estava trancada. A curiosidade é perigosa. Novamente o dia do Solver chegou, Adolphus ordenou que eu me retirasse da catedral, pois era um assunto muito importante e não queria intrusos. Acatei o comando, a Cruzada começou a entrar na catedral e eu, respectivamente, estava me retirando, evitei encara- los, nunca gostei dos rostos arrogantes daqueles homens. Novamente a curiosidade me atiça, e perguntas surgem na minha cabeça: “Por quê ninguém pode presenciar o Solver, sendo ele apenas um pagamento?” “O que tem atrás daquela porta?” “E o que era aquela sensação de olhares me fitando”. Perguntas sem respostas, apenas isso, tomei coragem e adentrei na catedral da maneira mais imperceptível possível, a reunião está acontecendo na sala de comunhão, eu me esgueirei pelas sombras em direção a sala, a porta estava aberta, me ocultei atrás de uma pilastra, e foquei em ouvir a conversa: – Estou quase conseguindo, preciso de mais pessoas, logo iremos realizar a Cerimônia – Exclamou Adolphus. – Tudo bem, vamos prosseguir então – Faustus Concordou. Mais pessoas? Cerimônia? O que estava acontecendo? Eu não estava entendendo nada. – Curioso né? – Uma voz feminina. – Vocês realmente querem prosseguir com isso, mesmo sabendo que ele não irá responder a cerimônia de vocês, ele é muito “Rigoroso” com os “Contratados” dele – A voz feminina debocha. – E te transformou nisso, não foi? O que o impede de nos transformar também, e você está se recusando a nós ajudar, então não temos escolhas. – Adolphus responde. – Sou só a intermediadora, quem decide é ele, eu só faço o que ele concorda que eu faça, nada mais do que isso e ele não irá ajudar vocês, ainda mais com um desejo tão fútil, vocês apenas querem ser imortais, nada de novo. Além do mais, tem sorte que eu não os matei ainda, a minha curiosidade é maior do que a minha sede de sangue. – A voz feminina exclama em tom ameaçador. – Se você não tem a intuição de ajudar, por que continua aqui? – Indagou Adolphus. – Apenas curiosidade. – Ela respondeu de maneira amena. Quem é essa? Eu não consigo ver o rosto dela. Quem é esse tal de “ele”? O que Adolphus e os cruzados pretendem fazer? Muitas perguntas e poucas respostas, preciso entrar naquele porão, provavelmente lá terá respostas. Me virei para me retirar o mais rápido possível da catedral, até que: – Olha só, um intruso – Uma mulher esbelta, de cabelos prateados com olhos tão escuros quanto a noite, me encarava. Disse em um tom clamo e sereno, com um sorriso meigo no rosto revelando suas presas. – Eu... Eu... – Eu gaguejei de susto, ela estava na sala a dois segundos atrás, como veio parar aqui tão rápido? – Shhhh, não acho que é uma boa ideia falar tão alto, eles irão te escutar – Ela disse em um tom de deboche. – Oh, eles está vindo, melhor você sair – Ela exclamou, e em um piscar de olhos, ela desapareceu, eu corri em direção a saída e fui embora. Não consegui dormir naquela noite, permaneci martelando aquelas indagações na minha cabeça, preciso resolver isso o mais rápido possível, não quero esperar e ver a “cerimônia”, tenho que resolver esses problemas antes que acabem afetando a minha irmã. No próximo dia, adentrei a catedral normalmente, porém, algo diferente ocorreu, no momento em que Adolphus saiu para resolver deveres pendentes, aquela mulher apareceu novamente, surgindo das sombras de maneira bizarra, dessa vez eu estava mais calmo, logo, perguntei-lhe: – Quem é você? E o que você é? – Eu indaguei de maneira receosa. – Ninguém importante, mas se deseja saber meu nome, é Seraphine. Agora, o que eu sou? Tá aí uma curiosidade sua que eu não posso matar – Ela respondeu. – Você obviamente é um monstro, eu escutei a conversa na sala de comunhão – Confrontei-a. – Isso é rude, você não deveria chamar ninguém de monstro, que falta de respeito. Mas eu tenho algo que você quer – Disse em tom de deboche. Eu indaguei. Ela balançou um conjunto de chaves em sua mão, enquanto dizia: – É isso que eu tenho, eu sei que você queria entrar no porão então eu tomei a atitude de encurtar o caminho para você. – Por que está me ajudando, qual seu objetivo? – Eu indaguei completamente confuso. – Nada de importante em específico, só estou curiosa com o caminho que isso está levando – Concluiu, enquanto me entregava as chaves. Mesmo receoso, tomei lhe as chaves e novamente, Seraphine, desapareceu em um piscar de olhos. Ainda confuso decidi seguir para o porão, porém, nesse exato momento, Adolphus retornou, escondi as chaves, implorando a Deus para que ele não tivesse as vistos, ele me indagou das chaves pois ele alegava ter a perdido, disse que não fazia ideia, ele subiu para procurar, e eu deixei elas em um lugar visível para ele encontrar depois, a noite eu daria um jeito de entrar no porão. Anoiteceu, consegui pegar a chave no quarto do Bispo escondido, e segui em direção ao porão, destranquei. O ar estava pesado com um silêncio opressor, apenas o som dos meus passos cautelosos ecoava pelo corredor estreito que levava ao porão. A única iluminação vinha de lâmpadas carmesim penduradas irregularmente ao longo do teto, lançando um brilho sinistro que mal penetrava a escuridão envolvente. Cada passo descendo as escadas rangentes parecia um convite para o desconhecido, com as sombras se movendo de maneira quase imperceptível nas bordas de sua visão. Eu com a respiração contida, segurava uma lanterna trêmula em uma mão, enquanto a outra roçava na parede úmida do corredor, buscando algum conforto na sensação fria e sólida sob seus dedos. O corredor parecia estreitar-se à medida que ele avançava, as lâmpadas carmesim pulsando levemente, como se estivessem vivas, projetando sombras dançantes que distorciam a realidade ao seu redor. Descendo os últimos degraus da escada, uma sensação de desconforto crescente tomava conta de mim, uma mistura de medo e antecipação. O ar no porão era frio e úmido, carregado com um odor adocicado e enjoativo que fazia meu estômago revirar. A luz da lanterna revelava apenas fragmentos da escuridão, revelando paredes de pedra polida. Ao chegar ao final das escadas, eu hesitei, o silêncio do porão parecendo quase palpável. A atmosfera opressiva era intensificada pelo brilho vermelho das lâmpadas, criando um cenário que parecia pertencer mais a um pesadelo do que à realidade. Com cada respiração, ele podia sentir o peso do desconhecido à sua frente, cada sombra parecendo esconder segredos obscuros e perigos inomináveis. Respirei fundo na tentativa de acalmar os batimentos cardíacos acelerados. Sabia que não havia volta, o que quer que estivesse escondido nas sombras desse porão, eu estava determinado a descobrir. Com a lanterna firmemente em mãos, ele deu o primeiro passo hesitante para o desconhecido, mergulhando mais fundo nas sombras e nos mistérios que o porão guardava. Estantes repletas de livros e manuscritos, uma mesa acompanhada de uma cadeira de eucalipto, em cima da mesa, um livro relativamente grande, desgastado, detalhes de couro, folhas tão antigas quanto a catedral e sem título. Sentei na cadeira enquanto foleava o livro. Pactos, licantropia, maldição, Vampiros, sangue e mais sangue. Algumas peças se encaixaram, a vida eterna que o Bispo pretende ter é graças a maldição da licantropia e pretende utilizar toda a cidade como oferenda para o seu pacto com algum Vampiro poderoso. – Encontrou o que desejava? – Ela indagou. Fiquei pálido, suei frio, contendo um poderoso grito que estava pronto para ser clamado. E respondi: – Que susto! Você tem que parar de aparecer do nada, quase que eu gritei, poderia ter acordado o Adolphus, mas, isso não importa agora, você é uma...? – Eu perguntei, receoso da resposta que eu receberia. – Talvez, Quem sabe, não é? Mas parece que você encontrou o que queria – Ela respondeu em um tom cômico e irônico. – Não gostei desse seu tom, está brincando comigo, não tenho tempo para essas suas brincadeiras, tenho que resolver esse problema o quanto antes, preciso convencer a cidade de alguma maneira – Após terminar a frase, ela havia desaparecido novamente. Sai do porão, enquanto corria em direção a saída, uma quatro silhuetas estavam estagnadas em frente a saída: Adolphus, Faustus acompanhado por outros dois Expurgadores armados com lanças e escudos. – Você realmente acreditou que poderia adentrar no meu quarto, roubar as chaves, adentrar no meu querido escritório particular, conspirar contra mim e sair impune? – Adolphus me confrontou. Permaneci calado. – Enfim, peguem ele, ele é o primeiro passo para o ritual. – Adolphus complementou enquanto apontava para os dois Cruzados. Comecei a correr, minha cabeça só martelava uma pergunta: “Como eu posso avisar os cidadãos? não posso morrer antes disso, pensa Kyllian, pensa.” Uma ideia! O sino, corri em direção as escadarias, os Cruzados estavam com armaduras pesadas, ou seja, eu era bem mais rápido, haveria tempo para mim chegar no topo e tocar o sino. Cheguei no sino, badalei o mais forte que eu consegui, enquanto gritava: – OS EXPURGADORES E O BISPO ESTÃO CONSPIRANDO CONTRA A CIDADE, ELES QUEREM VENDER NOSSAS VIDAS EM TROCA DE PODER!!! – Gritei com a maior potência que poderia, eu consegui avistar bastantes cidadãos saindo de suas casas confusos, continuei repetindo a mesma frase várias enquanto badalava o sino sem parar. Os dois, cruzados chegaram até mim, e me seguraram, me impedindo de gritar. Sons de madeira rangendo, Faustus e Adolphus chegaram até mim: – Você tem bravura garoto, afinal, você é parecido com o seu pai, da maneira que eu queria que fosse. Faustus, poderia acalmar a multidão? – Adolphus se pronunciou. – Sim senhor – Faustus saiu em direção a multidão para acalma- lá. – Continuando, eu precisaria de uma pessoa de coração valente e de caráter teimoso, e você era a pessoa perfeita, digamos que seu pai era uma pessoa especial, bom, você não precisa saber, afinal, vai morrer e cair no esquecimento, igual a ele. – Adolphus complementou em tom de deboche. Mesmo me esforçando para tentar sair das amarras, eu obviamente não conseguia, só conseguia gritar de maneira abafada, estava agoniante, até que Adolphus se aproximou de mim com uma adaga cerimonial em sua mão direita, e disse: – O fogo do inferno, tal fogo que arde em mim, não é culpa minha se Deus fez o Homem bem mais fraco que o mau – Ele concluiu enquanto perfurava o meu coração. Senti um frio enquanto caía no chão, estava prestes a morrer, e o pior, não conseguiria nem salvar a minha irmã. Adolphus disse e enquanto eu agoniava no chão: – Vamos deixá-lo agonizando aí até a morte o levar, vamos acalmar a multidão e mais tarde vamos terminar a cerimônia – Adolphus disse enquanto caminhava escadas abaixo junto dos dois Cruzados. – Você foi bem mais corajoso do que esperava, cabeça dura, mas acho que esse é o ponto final, já está na hora de descansar, não? – Ela me indagou com um sorriso meigo no rosto. Eu tento dizer algumas palavras, mas não consigo, apenas grunhidos. – Eu posso te ajudar, mas, você vai virar um semelhante ao que eu sou, vou te transformar e em troca você irá realizar um pacto junto comigo. – Ela disse enquanto colocava o meu corpo em seu colo. – E... Eu... Acei... To. – Concordei. Ela abriu um sorriso lascivo enquanto aproximava sua boca no meu pescoço. A única coisa que me lembro é de uma sede insaciável por sangue, desci as escadas o mais rápido possível, cravei meus dentes no Adolphus, antes mesmo dele ter alguma reação, os dois Cruzados que estavam acompanhando ele nem tiveram chance, me escondi nas sombras, no momento em que Faustus adentrou na catedral, eu o matei sem hesitar. Faustus havia conseguido acalmar os cidadãos, os cidadãos votaram as suas casas, ou seja, não presenciaram nada. Eu partir para fora dos limites da cidade para terminar de exterminar cada Cruzado ainda vivo. Após essa chacina eu me vejo largado no chão coberto de sangue, meus olhos se tornaram vermelhos escarlates, minhas orelhas se tornaram mais pontiagudas, e meu cabelo se tornou branco pelo estresse que passei. – Meu Senhor, quem diria que você poderia fazer tudo isso, você realmente virou um monstro em, e aí como se sente? – Ela debochou. – Eu não sei o que fazer, não posso voltar para a minha irmã, o que eu vou fazer agora? – Eu indaguei. – Mesmo que você pudesse voltar, você não iria, afinal, você decidiu fazer um pacto comigo, então vamos aos termos – Ela disse em um tom cômico. – Eu posso garantir a segurança da sua irmã, e posso libertar essa cidade e em troca você irá procurar um artefato para mim, um artefato que possa me permitir alcançar o Sol – Ela concluiu – Após encontrar esse artefato e te entregar eu poderia conseguir minha humanidade de volta? – Eu indaguei. – Não sei se existe uma maneira de conseguir sua humanidade de volta, mas se haver uma maneira eu posso te falar depois que você conseguir o que eu quero, temos um acordo? – Ela estendeu a mão com um sorriso amigável no rosto. – Mais uma coisa, preciso que você arranje um jeito de ajudar as pessoas da cidade, sem o Adolphus e os Cruzados eles ficaram perdidos – Disse em um tom sério e preocupado. Ela disse: “Eu resolvo”. Em um piscar de olhos ela se transformou em Adolphus utilizando magia, se dirigiu a cidade, tocou o sino e disse para toda a cidade que os Expurgadores exterminaram os seres malignos de uma vez por todas, a cidade finalmente estava livre, e deu uma desculpa a minha irmã de que eu iria junto dos Cruzados para outra cidade, ajudar na luta contra esses seres malignos. Ela voltou até mim, estendeu a mão e perguntou: – É isso, eu lhe darei poderes mágico para conseguir ir em busca do artefato, de acordo com o Pacto? – Ela indagou com um sorriso lascivo no rosto. Eu apertei a mão dela.