Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Era a manhã depois do meu encontro com o homem que dizia ser o meu futuro
eu, e não tinha dormido nada. Minha mente não estava funcionando muito bem
neste momento, é claro, mas precisava decidir o que fazer.
Meu eu do futuro me deu alguns conselhos: “Consulte Nanahoshi”, “Escreva
uma carta para Eris” e “Duvide do Deus-Homem sem se opor a ele”.
Escrevi a carta para Eris na noite passada, mas não iria enviá-la até que tivesse
conversado sobre isso com Sylphie e Roxy. Dependendo de como essa
conversa for, talvez eu precise revisá-la significativamente.
A coisa sobre o Deus-Homem soou bem para mim. A próxima vez que ele
aparecesse em meus sonhos, eu o deixaria saber exatamente onde as coisas
estavam entre nós.
Quanto a falar com Nanahoshi… Fiquei tentado a ir vê-la imediatamente, mas
como explicar a situação? A coisa toda era uma loucura. Contudo, Nanahoshi
foi convocada aqui de um mundo paralelo, então minha história pode parecer
maluca, mas ela provavelmente não iria apenas rir dela.
Comecemos com as prioridades, no entanto. Precisava revisar o diário, aquele
que meu futuro eu trouxe de volta com ele. Não tinha ideia do que aquele livro
continha e, honestamente, estava com medo de descobrir, mas não poderia
simplesmente enfiá-lo em uma gaveta e esquecê-lo. Era o único registro do que
aquele velho desesperado tinha visto e feito.
O diário estava velho e desgastado. A capa estava arranhada e as primeiras
páginas amareladas pelo tempo. Ainda assim, as palavras eram pelo menos
compreensíveis.
Preparando-me, comecei a ler.
Decidi começar a manter um diário.
Tem sido um par de semanas agitadas, sabe?
Conheci Perugius e recebi algumas dicas sobre a condição de Zenith. E estarei
aprendendo mais sobre magia de invocação e teletransporte em breve. Há
muitas situações com as quais preciso lidar, então acho que vou tentar escrever
as coisas para ajudar a manter o controle de tudo.
Aisha estava bem deprimida esta manhã. Ela encontrou algum “rato esquisito”
morto, eu acho. Talvez ela não seja fã de roedores.
Aparentemente, alguém encontrou um gato com Síndrome de Petrificação na
vizinhança. Algo assustador. Vou ter que lembrar minha família de lavarem
bem as mãos e enxaguarem a boca com cuidado.
Acabamos de descobrir que Elinalise está grávida! Cliff parecia incrivelmente
nervoso, mas Elinalise tinha um grande sorriso no rosto. Fizemos uma festa
para eles, é claro. Você tem que apreciar os bons momentos enquanto eles estão
aqui.
No começo, pelo menos, parecia um diário relativamente mundano. Uma
passagem descrevia o estudo da magia de invocação com Perugius. Outra
mencionou sobre vagar pela fortaleza flutuante com Zanoba, olhando todas as
obras de arte. Havia também muitas notas laterais como “Encontrei uma nova
maneira de fazer Roxy gritar de prazer ontem à noite!” ou “Lucie parece um
anjo quando está dormindo. Aposto que ela será uma beldade quando crescer”.
Era o diário de alguém que estava claramente aproveitando sua vida.
As primeiras passagens estavam datadas, mas ele rapidamente parou de se
incomodar de fazer isso. Isso tornava impossível dizer exatamente quanto
tempo havia se passado. A julgar pela história do velho, porém, eu
provavelmente estava há cerca de duas semanas no futuro neste momento.
E foi aí que as coisas pioraram.
Roxy entrou em colapso hoje.
Ela não estava se sentindo bem por um tempo, mas agora ela desenvolveu uma
febre. Vou ter que dizer à Universidade que ela não vai trabalhar por um tempo.
Tentei de tudo, incluindo magia de desintoxicação avançada, mas não teve
nenhum efeito. Estou preocupado que possa ser algo sério. Vou pedir a Cliff
para dar uma olhada nela o mais rápido possível.
As pontas dos dedos dos pés de Roxy estão se transformando em algum tipo de
cristal roxo. Chamei Cliff imediatamente para dar uma olhada com seu Olho de
Identificação. Aparentemente, ela tem algo chamado Síndrome de Petrificação.
É uma doença horrível que só pode ser curada com um feitiço de
desintoxicação de nível Deus.
Vamos usar os círculos de teletransporte para visitar Millis e obter o
encantamento para o feitiço que precisamos. Cliff e Zanoba estão vindo
comigo. Sylphie queria ir também, mas pedi a ela para segurar as pontas por
aqui.
Bem, chegamos a Millishion. Aparentemente, a igreja mantém os
encantamentos de nível Deus armazenados nas profundezas da catedral daqui.
Cliff sabe onde eles estão, mas o lugar está fora dos limites para todos abaixo
do posto de arcebispo. Estamos planejando invadir durante a noite. Assim que
conseguirmos copiar o encantamento, podemos sair de fininho novamente.
Fizemos a parte da invasão muito bem, mas não esperávamos que o
encantamento fosse um livro grosso como uma enciclopédia. Era impossível
copiar a coisa toda no local. Tivemos que roubá-lo. E então eles nos viram na
saída. Estamos fugindo agora.
Fomos pegos em uma emboscada no círculo de teletransporte. O próprio
círculo foi danificado enquanto lutávamos. Não é mais utilizável. Cliff foi
envenenado durante a luta. Ele está inconsciente e parece sério.
…Eu matei um ser humano pela primeira vez. Ainda posso ouvir o som que
fez. Me faz mal ao estômago.
Droga. Droga!
Estamos indo para outro círculo de teletransporte.
Cliff ainda está inconsciente e parece que eles divulgaram nossos nomes e
descrições por todo o país. Agora somos criminosos procurados.
Me tornei um inimigo da Igreja de Millis para a vida toda.
Cliff morreu hoje.
Não quero escrever nada por um tempo.
Conseguimos chegar a outro círculo de teletransporte de alguma forma. Este
pesadelo está quase no fim.
Estávamos muito atrasados.
Não posso escrever nada hoje.
Acho que preciso escrever o que aconteceu ontem.
Encontramos Eris e Ghislaine na entrada da cidade. Eris começou a tagarelar
para mim, mas eu disse a ela que tinha duas esposas e uma família e não tinha
mais tempo para tomar conta dela. Ela se afastou, parecendo atordoada.
Ghislaine me lançou um olhar de desprezo antes de sair. Aquilo realmente me
irritou.
Quando voltei para casa, encontrei todos parecendo miseráveis. Roxy estava
morta. Metade de seu corpo se transformou em cristal no final. Toda a viagem a
Millis acabou sendo inútil.
Contei a Elinalise sobre a morte de Cliff. Ela me deu um tapa no rosto e saiu
correndo chorando.
Não suporto isso. É demais para mim.
Fizemos um funeral para Roxy.
Mal consigo me levantar da cama agora. Tudo que eu faço é chorar.
Não dou a mínima para mais nada.
Parece que Elinalise saiu da cidade sem contar a ninguém. Não tenho certeza se
uma mulher grávida deveria estar vagando sozinha, mas isso é problema dela,
eu acho.
Sylphie continua tentando me animar. Não está funcionando.
Roxy nunca mais vai voltar.
Ela era tão doce. Tão séria. Foi ela quem me tirou daquela casa. Quem me
confortou quando Paul morreu. Ela foi minha bússola por todos esses anos.
E agora se foi.
Eu não tenho feito nada além de ficar bêbado ultimamente. Quando estou
sóbrio, me lembro de Roxy. E então começo a soluçar.
Sylphie continua dizendo que não posso continuar assim, mas o que ela sabe?
Perdi a mulher que me ensinou tudo.
Lilia começou a me incomodar quando bebia em casa, então estou ficando
bêbado em tavernas.
Às vezes, Eris aparece para me assediar quando estou bebendo. Ela geralmente
grita um monte de insultos, então dá um soco em mim. Qual é o problema
dessa mulher? E por que Ghislaine não a impede?
Norn também não está falando comigo esses dias. Ela apenas olha para mim
como se eu fosse um pedaço de lixo.
Ninguém entende como me sinto.
Ultimamente, Sylphie tem vindo para mim de forma agressiva. Fica me
pedindo para dormir com ela e tentar esquecer Roxy. Ela foi tão persistente que
acabei gritando com ela.
Por que ela diria algo tão impensado? Por que ela pensou que isso funcionaria?
Não é só isso, eu acho. Se dormisse com Sylphie agora, provavelmente seria
muito duro com ela. Eu a trataria como uma substituta da Roxy. E descontaria
toda a minha dor e raiva nela. Isso não pode ser a coisa certa a se fazer.
Estraguei tudo.
Alguma prostituta começou a flertar comigo na taverna. Eu estava bêbado
como o inferno e acabei levando-a para um quarto no andar de cima. Ela era
ótima na cama, é claro. Uma verdadeira profissional, mas acho que todas as
mulheres com quem dormi até agora não tinham tanta experiência, realmente…
Ok, essa não é a parte importante.
Quando cambaleei para dentro de casa cheirando a outra mulher, Sylphie
começou a chorar. Ela me perguntou: “Eu não sou boa o suficiente para você?”
e então se trancou em seu quarto antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
Lilia me deu uma verdadeira bronca e até Aisha fez uma cara feia para mim.
Ainda posso ouvir Sylphie soluçando em seu quarto. Ela não respondia quando
eu batia na porta.
Fiz tudo errado. Ela estava disposta a suportar qualquer coisa. Ela queria que eu
jogasse minha dor nela.
Amanhã, vou pedir desculpas.
Sylphie ainda não fala comigo. O que eu deveria fazer?
Deus, se ao menos Elinalise estivesse aqui…
Sylphie desapareceu.
Quando acordei esta manhã, encontrei o quarto dela vazio. Bem, quase vazio,
ela deixou para trás as roupas e outros presentes que comprei para ela ao longo
dos anos.
Lilia ordenou que eu a encontrasse imediatamente; mas nem sei se tenho esse
direito. Sylphie tem todos os motivos do mundo para se divorciar de mim.
Enquanto estava sentado tentando decidir o que fazer, Zenith se aproximou e
me deu um tapa no rosto. Ela não disse nada, apenas me deu um tapa uma e
outra vez. Acho que ela estava me dizendo para me recompor.
Decidi ir atrás de Sylphie.
Pelo que descobri perguntando pela cidade, parece que ela partiu para o
Reino Asura com Ariel e seus aliados. Ainda faltam alguns meses para a
formatura de Ariel, por que correr de volta agora? Não obtive uma resposta
satisfatória, mas acho que alguma coisa aconteceu em Asura. Eu mesmo terei
que me mover rapidamente.
Encontrei Eris novamente.
Aquela maluca começou a tagarelar sobre como ela ia me dar “uma última
chance” ou algo assim. E quando eu inevitavelmente a ignorei, ela começou a
me dar socos. Estava ficando muito cansado de toda essa insanidade dela, então
a derrubei com magia. Como reação ela puxou sua espada e veio atrás de mim,
eu fugi dela.
Qual é o problema dela, afinal? Ela me largou anos atrás!
Quem entra na chuva, deveria estar preparado para se molhar.
Sylphie já passou por esta área? Estou me sentindo mais ansioso a cada dia.
Hoje cheguei ao Reino Asura, mas eles me pararam na fronteira. Como sou
inimigo da Igreja Millis, aparentemente também sou considerado um criminoso
procurado em Asura. Tive que fugir antes que me prendessem. Preciso
encontrar uma maneira de atravessar a fronteira.
Consegui fazer um acordo com uma guilda de ladrões local. Ainda bem que o
crime organizado é tão difundido por aqui.
Aparentemente, sou uma espécie de celebridade para os ladrões do mundo. Eu
vi inveja na maneira como eles olhavam para mim. A notícia correu sobre o
meu roubo daquele encantamento do País Sagrado, eu acho.
Expliquei a situação e eles concordaram que uma ladra chamada Triss me
acompanhasse pela fronteira. Ela é uma mulher bastante voluptuosa. Estou
preocupado que Sylphie possa ter uma ideia errada se nos vir juntos.
Consegui entrar no Reino de Asura.
A guilda me disfarçou com uma máscara e capuz. A partir de hoje, meu nome é
Ludo Ronouma. Convenientemente, estou sofrendo de uma maldição que me
petrificará se alguém vir meu rosto. Este personagem “Ronouma” deveria ser
um mago de Basherant que veio a Asura para trabalhar, viajando com sua
prima Triss como guia.
A guilda realmente pensou em tudo, isso eu tenho que reconhecer.
Pelo que estamos ouvindo nas tavernas, o rei de Asura está em seu leito de
morte. Também há rumores de que os príncipes reais estão lutando pelo direito
de sucedê-lo. Isso explicaria o porquê de Ariel ter voltado para cá antes do
previsto.
Chegaremos à capital em breve.
Infelizmente, as únicas notícias que ouvimos sobre Ariel parecem bastante
duvidosas. As pessoas parecem pensar que ela está reunindo suas forças para
lançar algum tipo de golpe de estado. Ninguém acha que ela tem alguma
chance de conseguir isso, no entanto.
Ariel não é estúpida o suficiente para começar uma luta que ela não pode
vencer. É apenas um boato.
Chegamos a Ars hoje. Triss viu Eris em uma taverna enquanto coletava
informações. A garota me seguiu até aqui?
Não, não pode ser isso. Asura era sua terra natal, certo? Provavelmente
acabamos na mesma cidade por coincidência.
Ariel foi para o submundo, pelo que dizem os rumores. E, claro, Luke e Sylphie
foram com ela. Não sei por onde começar a procurá-los.
Não pudemos encontrá-los.
Triss parece pensar que eles já deixaram a capital, mas quem sabe para onde
eles foram?
A única coisa que vem à mente é… bem, talvez Ariel esteja unindo forças com
a família de Luke ou algo assim. Amanhã de manhã, sugeri que
prosseguíssemos para a região governada pelos Notos Greyrats.
Nós fizemos nosso caminho para a região de Milbotts, onde Pilemon Notos
Greyrat governa. No caminho para cá, ouvimos um boato de que Ariel está se
escondendo sob a proteção da família Notos no momento.
Agora tenho que descobrir como eu chego até Sylphie. Sinto que pode envolver
mais arrombamento e invasão.
Por alguma razão, Eris estava esperando por mim quando tentei invadir a
propriedade dos Notos. Ela me bateu bastante.
Depois que eles me trancaram no porão, aquele cara Pilemon apareceu e
abusou verbalmente de mim por um tempo. O rosto do homem se parece muito
com o de Paul, mas é aí que a semelhança termina.
Ele parecia ter a impressão de que eu vim para assumir o controle da família
Notos. Depois de anunciar que me executaria amanhã e enviaria minha cabeça
para a Igreja Millis, saiu da sala.
Consegui escapar com bastante facilidade… mas Ariel não estava em lugar
algum.
Eles deram um golpe na capital. Aquele boato sobre Ariel fugindo para
Milbotts era um monte de merda. Eles estavam à espreita em algum lugar de
Ars, esperando o momento de atacar.
Não sei se conseguirei voltar a tempo.
Estamos a cerca de um dia da capital agora. As pessoas estão dizendo que o
golpe terminou em fracasso.
Ariel havia tentado imprudentemente assassinar simultaneamente o primeiro e
o segundo príncipes, mas eles foram protegidos por dois poderosos mestres de
espadas, a Deus da Água e um Imperador do Norte, que foram trazidos para a
capital como convidados reais. O assassinato terminou em fracasso. As forças
de Ariel foram exterminadas e ela mesma foi capturada. Estão dizendo que ela
será executada em breve.
Entretanto, suas forças foram “eliminadas”?
Apagadas… completamente?
E quanto a Sylphie…?
…Não aguento mais isso.
Por que isso está acontecendo? Onde tudo deu tão errado?
Vou escrever sobre o que aconteceu há alguns dias.
Os corpos dos “co-conspiradores” de Ariel estavam em exibição nos campos de
execução do palácio real. Luke estava entre eles. E assim como Sylphie
também.
Um de seus braços tinha sido cortado e havia uma enorme laceração em seu
rosto. Uma pequena multidão estava jogando pedras nos cadáveres. Eles
estavam jogando pedras em Sylphie e a chamando de traidora do reino. Sempre
que atingiam os corpos, os corvos que bicavam sua carne batiam ruidosamente
no ar.
Eu não conseguia mais me controlar. Queimei seus corpos com magia. E então
queimei todos que tentaram me impedir também.
Para o inferno com este país. Todos eles merecem queimar.
Levantei-me rapidamente. Meu coração batia forte no meu peito e minha
cabeça estava girando. Ler isso foi incrivelmente doloroso. Eu não queria
continuar.
Eu realmente tinha que ler essa coisa? Não havia realmente outra escolha?
— Hurp…
Uma onda de náusea tomou conta de mim.
Esta era apenas uma história doentia que o velho tinha inventado, certo? Tinha
que ser isso. Não queria acreditar que um futuro como esse fosse possível. Era
horrível demais para sequer considerar…
—…
Não. Eu precisava ler tudo. Havia informações neste livro, informações
valiosas e cruciais.
No entanto, quando olhei para ele de novo, não consegui virar a página. O
pensamento de continuar me deixou enjoado. Que novos horrores estariam
esperando por mim na próxima passagem? Estava literalmente enjoado de
pavor.
— Ok, eu… eu preciso de uma pausa…
Saindo do quarto com as pernas instáveis, fui para o banheiro. E então vomitei
no banheiro.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto. De certa forma, eu escrevi aquele diário,
e pude sentir, com uma clareza terrível, exatamente o que senti quando meu
mundo desabou ao meu redor. Podia sentir minha dor quando Roxy morreu,
podia sentir meu pânico e desesperança quando Sylphie me deixou. E pude
sentir minha dor devastadora quando encontrei o cadáver de Sylphie.
— Bleegh…
Enfiei meu rosto no vaso sanitário e vomitei até não sobrar nada para vomitar.
Meu estômago estava completamente vazio agora, mas eu não tinha apetite.
Provavelmente não conseguiria comer nada hoje.
Depois de enxaguar a boca com água, saí do banheiro. Sylphie estava parada no
corredor esperando por mim com um olhar preocupado em seu rosto.
— R-Rudy? O que tem de errado? Você está bem?
Ela estava vestindo suas roupas casuais e cotidianas. Seu cabelo prateado
estava solto em torno de seus ombros. Eu me peguei imaginando-a morta, seu
rosto marcado, seu braço faltando. Fria e sem vida. Pendurada para os corvos.
— Uau! O que é isso?
Sem uma palavra, joguei meus braços ao redor dela. Seu corpo estava tão
macio e quente como sempre.
— Você ainda está pensando naquela batalha com Atofe?
— …Sim.
— Mesmo? Aw… Pronto, pronto — murmurou Sylphie, esticando-se para me
dar um tapinha gentil nas costas. — Sabe, Rudy, estou sempre disponível se
você precisar de um pouco de conforto. Sei que você não é tão forte quanto
parece.
Estou sempre disponível se você precisar de um pouco de conforto. Meu eu do
futuro ignorou essas palavras e isso lhe custou caro.
— Sim… Desculpe, Sylphie…
— Ah, está tudo bem.
— Sabe, quando eu estou… realmente sofrendo, posso estragar as coisas…
posso dizer coisas estúpidas, maldosas, em vez de chorar no seu ombro…
— Huh? O que é isso, de repente?
— Mas, por favor, não fuja de mim…
— Uhm… bem, se isso acontecer, acho que ficaria chateada. Poderia dizer
algumas coisas duras também, então talvez tivéssemos uma briga… mas
sempre podemos fazer as pazes, certo?
— Sim. Claro. Claro que podemos…
Sylphie é tão legal. Como eu poderia ter traído uma coisinha doce como ela?
— Hum, Rudy? Você está apalpando minha bunda?
— …Você quer que eu pare?
— Quero dizer, acho que não é grande coisa, mas… Wah!
Agora que recebi sua permissão, peguei Sylphie em meus braços e fui para o
quarto. Eu não estava planejando fazer nada muito sexual. Só precisava de um
carinho particular no momento, para ser honesto. Parecia que eu tinha…
acabado de recuperar algo que perdi para sempre, sabe? Embora eu realmente
não a tivesse perdido ainda, então… sim. Não era fácil de explicar, mesmo para
mim mesmo.
Ler aquele diário me deixou triste e sentimental, eu acho. Não faria mal se valer
de um pouco de terapia com Sylphie.
Quando Roxy chegou do trabalho, não pude deixar de segui-la pela casa.
Quando ela se acomodou no sofá, me sentei bem ao lado dela e comecei a
brincar com as pontas de suas tranças.
— Qual é o problema, Rudy?
Parecia que minha inquietação constante tinha se tornado demais para ela.
— Uhm, bem… eu estava esperando que pudéssemos conversar um pouco.
— Hum? Conversamos o tempo todo, Rudy. Ah… há algo sério que
precisamos discutir?
— Não, não. Eu só queria um pouco, er, de um tempo íntimo, sabe?
— Uhhh… tudo bem então, mas não vamos fazer nada muito físico esta noite.
— Certo. Sim. Eu só quero, bem, abraçar um pouco. Se estiver tudo bem para
você.
— Tudo bem para mim, Rudy.
Com isso, Roxy se sentou no meu colo e se recostou em mim. Colocando uma
mão em volta de seu ombro, olhei para seu rosto, agora a apenas alguns
centímetros do meu.
Foi quando percebi que não tinha ideia do que queria falar.
— Uhm, então… como foi o seu dia?
— Ah, não foi muito agitado, realmente. No entanto, algum estudante travesso
fez a peruca do diretor voar em um determinado momento.
— Ah. Pena que perdi isso.
— Vamos ver, o que mais…
Roxy passou o dia inteiro no trabalho e estava claramente um pouco cansada.
Ainda assim, ela teve tempo para me agradar. Conversamos sobre coisas
triviais por um tempo, rindo das piadas um do outro. Acabei apalpando um
pouco sua bunda, o que me rendeu um tapa na mão, mas quando protestei que
estava apenas tentando abraçá-la, Roxy suspirou e me permitiu continuar.
Depois, fomos juntos para o banho, onde lavei suas costas e massageei seus
ombros. Basicamente, eu a adorava como um filho bajulando sua mãe.
— Você parece um pouco carente hoje, Rudy. Aconteceu alguma coisa ruim?
— Não, de jeito nenhum. Estava pensando em como estou muito feliz por tê-la
sã e salva, isso é tudo.
— É isso? Bem, tive um pequeno arranhão no Labirinto de Teletransporte,
suponho. Sinta-se à vontade para confirmar minha “saúde” para o conforto do
seu coração.
Nós dois estávamos na banheira agora. Mais uma vez, Roxy estava sentada no
meu colo. Enquanto gentilmente acariciava seus ombros esbeltos, deixei cair
uma pergunta tão casualmente quanto pude.
— Como está se sentindo, Roxy? Não está indisposta nem nada, certo?
Eu a impedi de pegar Síndrome de Petrificação eliminando aquele roedor.
Estava bastante confiante disso, mas não tinha cem por cento de certeza ainda.
Havia uma chance de meu eu do futuro ter tirado conclusões precipitadas,
afinal.
— O quê? Estou bem. Por que você pergunta?
— Ah, não sei… eu realmente quero que você viva uma vida longa e agradável,
eu acho.
— Dada a vida útil da minha raça, é bem provável que eu viva mais que você.
Espero que cuide bem de sua saúde, senhor.
— Você me pegou.
Quando disse essas palavras, o rosto de Roxy se iluminou com um grande
sorriso. Aparentemente, ela de fato estava bem.
Sylphie e Roxy ainda estavam vivas. As coisas não iam sair do jeito que
aconteceram naquele diário. Eu não ia deixar isso acontecer.
Com aquele pensamento reconfortante firmemente fixado em minha mente,
finalmente me senti pronto para enfrentar o resto daquelas páginas horríveis.
Não seria fácil, mas tinha que ser feito.
Capítulo 2: O Diário (Parte 2)
Rudy Rudy estava agindo de forma estranha ultimamente. Ele passou dias
inteiros enfurnado em seu escritório. Quando saia, aparentava estar pálido e
ansioso.
O que exatamente ele estava fazendo lá? Eu estava ficando preocupada, mas ele
não me deu uma resposta direta quando o questionei sobre isso. Minha última
tentativa terminou com ele evitando a pergunta e me puxando para a cama. Mas
eu tinha certeza de que algo estava deixando-o inquieto… e isso me
incomodava.
Fui até Roxy para pedir conselhos e descobri que ela pensava o mesmo:
— Então você também notou, Sylphie? Receio que Rudy tende a manter seus
problemas para si mesmo. Vamos tentar estar prontas para caso ele precise do
nosso apoio.
Decidi que, se as coisas continuassem assim por muito mais tempo, talvez
precisássemos pressioná-lo para obter algumas respostas. Mas então, logo após
o jantar, Rudy finalmente quebrou o silêncio.
— Uh, Sylphie, Roxy? Posso pedir a vocês que venham ao meu quarto esta
noite?
Seu tom de voz estava um pouco estranho, mas isso não era muito incomum.
Era apenas o jeito que costumava falar quando queria dormir com nós duas ao
mesmo tempo. Eu nunca entendi o porquê de ele se sentir tão hesitante sobre
essas coisas. Não era como se houvesse algo para se sentir culpado.
De qualquer forma, Roxy e eu fizemos nossos preparativos habituais naquela
noite. Tomamos banho juntas e nos lavamos bem, depois passamos o perfume
que reservávamos para essas ocasiões especiais. Vesti uma calcinha que
comprei recentemente e escolhi uma camisola para combinar. Rudy parecia
preferir uma roupa simples a uma mais reveladora, então optei por algo
relativamente modesto.
Olhei para mim mesma e considerei desabotoar dois dos botões da frente para
expor um pouco mais de pele. Eu não era tão peituda, então provavelmente não
seria tão atraente…, mas eu queria chamar o máximo possível de sua atenção.
E se ele achar que estou desesperada? Não, é sobre Rudy que estamos
falando… Está tudo bem, né? Vai ficar tudo bem.
No outro dia, eu o peguei olhando para debaixo da minha camisa quando deixei
alguns botões desabotoados. Acho que ele quis ser sutil, mas estava muito na
cara. No entanto, parecia estar se divertindo, então fingi não notar. Um pouco
depois, ele me levou para a cama.
Roxy estava vestindo sua camisola simples e habitual. Porém, não parecia estar
usando nada por baixo. Ela era bastante agressiva do seu próprio jeito.
De qualquer forma, nós duas estávamos prontas. Respiramos fundo algumas
vezes e fomos para o quarto do Rudy.
Ele estava sentado em sua cadeira, calmamente esperando por nós. Roxy e eu
nos sentamos na cama uma ao lado da outra. Sentei-me à direita e Roxy à
esquerda. Nós nunca tínhamos decidido nossos lugares de antemão, mas agora
já havia se tornado um hábito.
Rudy normalmente viria em nossa direção com um sorriso malicioso…, mas
hoje, ele parecia um pouco diferente. Havia uma expressão séria em seu rosto, e
ele ainda não havia se levantado da cadeira.
Depois de um bom tempo, Rudy pigarreou e se virou para Roxy.
— Uh, Roxy?
— Sim?
— Como está sendo o desempenho escolar da Norn?
“Desempenho escolar”? Sério? Que estranha escolha de palavras. Roxy parecia
ter achado isso engraçado, também.
— Por que pergunta? A Norn já não te contou?
— Bem, eu estava esperando obter algumas impressões sinceras de você. Como
educadora.
Por quanto tempo ele continuaria falando assim? Estava ficando cada vez mais
difícil não rir…
— Uh… Tudo bem, então. O desempenho acadêmico dela é mediano e sua
esgrima está progredindo muito lentamente. No entanto, estou impressionada
com seus esforços no conselho estudantil. Com destaque ao seu trabalho
disciplinar que está lhe rendendo algum reconhecimento. A Universidade tem
alguns alunos bagunceiros, mas todos se aquietam quando ela os repreende.
Tenho certeza de que tem algo a ver com o fato de você ser o irmão dela, mas
ela também conquistou bastante apreço de alguns alunos mais velhos. De
qualquer forma, a Norn tem muitos amigos e ninguém tenta puxar briga com
ela. Acho que você não tem nada com que se preocupar.
— Hmm, entendo. Muito obrigado.
A Roxy não exagerou. A Norn realmente estava dando o seu melhor. Pelo que
os membros do conselho estudantil me disseram, ela provavelmente era a
pessoa mais trabalhadora que tinham. Às vezes, eu desejava ser mais uma
“irmã mais velha” para ela.
— E você, Roxy?
— O que quer dizer?
— Alguma coisa tem te incomodado? Não sei… Talvez esteja ficando com
muita fome? Pegando muitos lanches da cozinha?
— Uh, não. Na verdade, você tem feito eu comer tanto ultimamente que estou
um pouco preocupada que possa engordar.
— Então, como estão indo as coisas na escola?
— … Oh, estão indo bem. Suponho que alguns alunos zombam de mim por ser
tão baixinha, ou se recusam a prestar atenção nas minhas aulas. Mas isso quase
nunca acontece.
— O quê? Eles não estão focados nas suas aulas?! Que bando de ingratos! Que
tal eu ensiná-los uma lição de boas maneiras, Roxy? Vou garantir que rastejem
aos seus pés na próxima vez que a virem!
— Hã? N-Não, eu não acho que seja necessário. São só os ossos do ofício. Mas
de qualquer forma, agradeço a oferta.
Roxy inclinou a cabeça para Rudy, parecendo um pouco exasperada…, mas
também um pouco tímida. Percebi que ela estava brincando com as pontas de
suas tranças. Eu sabia como ela se sentia. Às vezes, me dava um pouco de
inveja vendo o quanto Rudy a respeitava.
— De qualquer forma — Roxy continuou —, há algo mais que me preocupa…
— Se não se importa que eu pergunte, o que seria?
Roxy fez uma pausa, e então balançou a cabeça.
— Prefiro te contar só depois de eu confirmar uma coisa.
— … Sendo assim, vou esperar ansiosamente.
Ooh. Acho que sei do que se trata.
Parando para pensar, Roxy mencionou estar se sentindo um pouco estranha
ultimamente. Talvez eu tenha que organizar uma pequena comemoração? Ou
aquilo ainda está muito prematuro? Não tínhamos como ter certeza.
— Tudo bem, então. Sylphie?
— Sim, Rudy?
Quando a conversa mudou para mim, inclinei a cabeça para o lado e tentei
parecer o mais charmosa possível. Os olhos do Rudy desceram do meu rosto
para a parte superior do meu corpo. Pelo que parece, minha estratégia foi um
sucesso.
— Como, uhm… como você acha que a Lucie está indo?
— Bem, você está cuidando dela, não? Ela é um bebê feliz e saudável.
— Você não a ouviu murmurando “No céu acima e na terra abaixo, eu sou o
mais honrado”, não é?
— Do que diabos você está falando? Uhm… acho que em pouco tempo ela vai
conseguir engatinhar sozinha.
— Hmm.
Graças à ajuda da Lilia, as coisas estavam indo muito bem com Lucie. A
Princesa Ariel parecia achar que as crianças eram melhor criadas por
empregadas, em vez de suas mães. Mas a vovó Elinalise me disse que eu
deveria tentar cuidar pessoalmente da minha filha o máximo possível e dá-la
todo o amor do mundo. Eu tendia a concordar com Elinalise, e Rudy parecia
querer que nós dois estivéssemos envolvidos na criação da Lucie, então eu
estava investindo muito tempo e esforço nisso.
— Você notou algo estranho ultimamente, Sylphie? — perguntou Rudy. —
Algo que está te incomodando?
— Nada demais. Na verdade, acho que estou me perguntando o motivo do meu
marido estar escondendo coisas de mim, mas é só isso.
As palavras saíram sozinhas. Eu não tinha a intenção de ser tão dura com ele,
porém…
— Uh… certo — disse Rudy, desviando o olhar nervosamente. — Me
desculpe.
Então havia algo acontecendo. Será que ele iria nos contar?
Depois de um momento, Rudy olhou de volta para mim. Desta vez, seu olhar
estava firme e determinado. Sempre que tinha esse olhar em seu rosto, Rudy
mostrava o seu melhor lado.
— Na verdade, esta é exatamente a razão pela qual eu pedi a vocês duas que
viessem aqui.
Com estas palavras, sentei-me de forma mais ereta e abotoei a minha camisola.
Roxy também se endireitou, embora sua expressão fosse um pouco difícil de
decifrar.
— O problema é que não sei como explicar… acho que vou começar do início.
Alguns dias atrás, conheci um indivíduo.
— Você poderia ser mais específico?
— Certo. Ele era… algo como uma Criança Abençoada, eu acho. Uma com o
poder de prever o futuro.
Rudy começou a descrever sua conversa com essa pessoa. Os detalhes eram
alarmantes, para dizer o mínimo. Em suma, havia alguém lá fora que queria
fazer mal a ele e a sua família. Coisas terríveis poderiam acontecer conosco se
esse misterioso inimigo conseguisse o que queria. E, para nos manter seguros,
Rudy talvez teria que fazer algumas coisas que pareceriam muito estranhas de
vez em quando.
Sendo honesta, eu queria acreditar que ele estava levando isso à sério demais.
Mas eu podia dizer que Rudy estava convencido de que era a mais pura
verdade. Percebi que estava guardando alguns detalhes para si mesmo,
provavelmente havia partes dessa história que ele achava melhor não sabermos.
Isso definitivamente não era bom. Ainda assim, podia entender a razão de ele
querer ser tão cauteloso ao nos contar essas coisas.
— Ok, então — eu disse. — Há algo que possamos fazer para ajudar?
— Tenho certeza de que terá. Porém, sendo sincero, prefiro não colocar vocês
duas em muito perigo.
E lá vai ele de novo…
Rudy estava fazendo muito isso ultimamente. Acho que começou logo após a
morte de seu pai. Era bom saber que se importava tanto conosco, mas às vezes
ele podia ser um pouco superprotetor. Eu não era mais uma criança indefesa.
Hoje em dia, consigo carregar alguns dos seus fardos…
— Isso não significa que você estaria se colocando em perigo sem a nossa
ajuda?
— Não posso confirmar ainda, mas é bem provável que sim.
— Bem, eu não gosto de como isso soa…
Aquela batalha contra Atofe já tinha sido ruim o suficiente. Rudy era um mago
poderoso, mas nunca quis lutar com ninguém. No entanto, sempre pulava de
uma missão a outra e quase morria no processo… Eu deveria apenas ficar
sentada, esperando para animá-lo quando ele voltasse mancando para casa?
Não suporto mais isso. Eu queria ir com ele, pelo menos. Talvez eu possa
ajudar de alguma forma.
Enfim, só não quero mais ficar sentada torcendo por ele.
— Tudo bem — disse uma voz calma ao meu lado. — Eu entendo.
Roxy tinha falado pela primeira vez em algum tempo. Mexendo no cabelo, ela
olhou para o Rudy nos olhos e sorriu.
— Enquanto você estiver fora de casa — ela continuou —, manterei Norn e
Aisha em segurança.
Sua voz estava clara e confiante. Ela parecia ter genuinamente aceitado isso
como seu papel a desempenhar.
— Você realmente está satisfeita com isso, Roxy? — perguntei.
Não pude deixar de pensar que havia uma parte dela que também queria
acompanhá-lo. Mas Roxy apenas assentiu.
— Eu sei que Rudy prefere se colocar em risco do que ver sua família em
perigo.
— Sim, mas…
Pensando bem, Roxy estava com Rudy quando o seu pai morreu. Era difícil
para eu imaginar o quão devastado ele ficou com aquela tragédia, mas pelo que
parece, ele se afundou em uma depressão muito profunda. No mínimo, foi um
choque tão grande que fez com que quebrasse sua promessa comigo…
Ugh. Pare com isso, Sylphie. Você está sendo tão infantil. Rudy voltou para
mim no final. Era isso que importava, não é?
— Mas, Sylphie… eu não tenho a menor intenção de apenas ficar sentada sem
fazer nada enquanto Rudy coloca a sua vida em risco por nós.
O que ela quis dizer com isso? Ela não tinha prometido ficar em casa?
— A gente pode ficar de olho nele — Roxy continuou. — E se decidirmos que
ele realmente precisa da nossa ajuda, nós o seguiremos, mesmo se ele não
quiser.
Ah… sim, isso realmente faz muito sentido…
Não precisávamos da permissão do Rudy para ajudá-lo. Nós poderíamos tomar
nossas próprias decisões. Contanto que as coisas acabassem bem, ele não teria
do que reclamar.
— … Sim, acho que você está certa.
Rudy ouviu tudo isso com um sorriso sincero no rosto. Eu meio que esperava
que ele tentasse nos repreender, mas em vez disso apenas ouviu – com algo que
parecia confiança em seus olhos.
— Vá e faça o que quiser, Rudy — Roxy continuou, sorrindo de volta para ele.
— Não se preocupe com as coisas aqui – vamos manter todos sãos e salvos.
— Tudo bem. — ele finalmente respondeu. — É bom saber que terei vocês
duas cuidando de mim caso as coisas fiquem feias.
Havia algum alívio genuíno por trás desse sorriso. E talvez fosse apenas minha
imaginação, mas pensei que seus olhos estavam brilhando levemente. Eu tinha
que admitir, fiquei impressionada com a facilidade com que Roxy lidou com
isso. Havia uma razão pela qual Rudy a respeitava tanto.
De qualquer forma, o mais importante era que ele pudesse enfrentar esse
desafio com a mente tranquila. E se ele se meter em problemas, eu sempre
posso ir ajudá-lo. Eu seria uma esposa boa e leal na maioria das vezes, mas
quando as coisas ficassem feias, eu cavalgaria para o resgate. Sim. Esse era o
tipo de relacionamento que eu queria.
— Uhm, continuando. Na verdade… há outra coisa que preciso falar.
Eu estava ficando entusiasmada, mas a conversa ainda não havia terminado.
Por alguma razão, a voz do Rudy soou extremamente mansa, de repente. Sua
linguagem corporal também parecia um pouco diferente. Ele estava escolhendo
as palavras com cuidado o tempo todo, mas agora parecia que estava relutante
em dizer qualquer coisa.
— … Sendo honesto, não sei como falar sobre isso.
— É um problema complicado? — Roxy disse gentilmente, tentando fazê-lo
continuar.
Rudy assentiu em resposta.
— Muito complicado. Não é uma coisa fácil a dizer para vocês duas.
Bem, agora ele me deixou ansiosa. Isso poderia ter algo a ver com o quão
abatido parecia estar ultimamente? Espero que não tenha pegado nenhuma
doença que magia não possa curar.
— Eu acho, uh, há uma chance de que… mais um membro seja adicionado à
família.
—…
Hmph. Ele está falando de uma mulher? Sim, tem que ser.
Eu realmente não tinha motivos para reclamar. Ele deu algumas dicas sobre
isso antes, e eu não fiz objeções ou o desencorajei. No entanto, não significava
que eu estava pronta para dar minha aprovação a qualquer uma. Meus
sentimentos não eram tão simples.
— Quem é ela? É a Nanahoshi?
Tentei manter minha voz o mais normal possível. Eu senti que tinha
conseguido. Não parecia zangada, pelo menos.
Porém, se fosse a Nanahoshi, isso pareceria um pouco errado a meu ver. Não
acho que ela realmente ame o Rudy do jeito que nós amamos. Seus sentimentos
eram algo mais como gratidão. Ela provavelmente não o recusaria se ele a
pressionasse para um relacionamento, mas isso não significava que seria bem-
vinda…
— Não, não é a Nanahoshi.
Bem, isso era um alívio. Porém, por alguma razão, Rudy parecia ainda mais
culpado do que antes.
— É uma mulher chamada Eris.
— Eris…?
Quem era essa mesmo? Eu já tinha ouvido o nome antes, mas não era alguém
que eu conhecia da Universidade.
— Não é aquela garota que você foi professor durante a sua estadia na região
de Fittoa, Rudy? — Roxy perguntou.
Foi o suficiente para refrescar minha memória.
— … Não foi ela quem te causou aquela condição?
— Ah, sim. Acho que foi.
Rudy já havia esquecido de como estava deprimido quando chegou à
Universidade? Eu não tinha percebido na época, mas depois de ver a forma
como ele foi transformado pelo nosso casamento, percebi que estava sofrendo
de uma séria falta de autoconfiança. Para ele, aquela “condição” não era motivo
de risada. Foi difícil para eu entender completamente seus sentimentos, mas eu
sabia que ele estava sofrendo. Também foi um choque quando descobri.
— Você ainda a ama, mesmo depois do que ela fez com você?
— Não tanto quanto amo vocês duas — respondeu Rudy, olhando-me
diretamente nos olhos. — Isso é uma coisa que posso dizer com certeza.
Corei ao ouvir essas palavras. Quando queria, Rudy podia ser um perigo para
as mulheres. Foi difícil suprimir a vontade de dar um gritinho. Quase quis me
gabar para a Linia e Pursena sobre isso. Era uma pena que não estavam mais
por perto…
Gah. Pare com isso, Sylphie! Foco! Estamos falando da Eris. Não deixe que ele
te distraia.
— Certo, então… é ela quem quer fazer as pazes com você? Mesmo que tenha
sido a responsável pelo término do relacionamento?
— Não exatamente. Talvez eu tenha me enganado sobre ela ter me largado.
Parece que seus sentimentos nunca mudaram.
— … Talvez, mas ela ainda partiu o seu coração, certo?
— Sim, é verdade.
Teoricamente, eu não tinha nenhuma objeção a Rudy ter uma terceira esposa.
Eu tinha chegado a um acordo em relação ao nosso relacionamento. Não que eu
não quisesse tê-lo só para mim, é claro…, mas Rudy não era adepto a Igreja de
Millis, e eu sabia que não era forte o suficiente para apoiá-lo sozinho. Contanto
que fosse alguém que o amasse e que ele ama, eu não iria me opor. Já tinha
decidido isso há algum tempo. Mas estávamos falando de alguém que o
machucou profundamente no passado. Isso tornava as coisas muito mais
complicadas.
— Sabe, Rudy, ainda me lembro de como você estava triste e desesperado.
— Sim. Naquela época, não conseguiria perdoar a Eris. Apenas o pensamento
de vê-la de novo provavelmente teria me aterrorizado.
Então, por que as coisas eram diferentes agora? Talvez tivesse algo a ver com
aquela Criança Abençoada que ele encontrou no outro dia. Devem ter feito
alguma previsão envolvendo-a.
No entanto, isso não parecia uma razão boa o suficiente para mim. Quero dizer,
se alguém tivesse me dito “Você vai se casar com um homem chamado Rudeus
e terá cinco filhos com ele”, provavelmente teria sido muito emocionante.
Porém, eu não teria ido me casar com o primeiro cara chamado Rudeus que
encontrasse. O Rudy realmente via sentido em se casar com essa mulher
mesmo não tendo certeza de que ela o ama?
— Se você se opõe firmemente à ideia, não vou me casar com ela. Mas, pelo
menos, acho que preciso vê-la para explicar as coisas.
Rudy fez uma pausa e franziu a testa, como se tivesse se tocado de algo.
— Sabe, o ponto é que… a Eris vem treinando em um lugar chamado Santuário
da Espada há anos, e parece que ela esteve fazendo isso por mim.
—…
— Não seria meio cruel eu apenas rejeitá-la quando ela finalmente conseguir
voltar para mim?
— Bem, acho que sim..
Eu podia imaginar o quão doloroso seria ter o seu tapete puxado assim depois
de anos de trabalho duro. Eu me esforcei muito na Vila Buena para tentar
chegar no nível do Rudy.
— Eu realmente não estou dizendo que sou contra ou algo assim…
E se o Incidente de Deslocamento nunca tivesse acontecido, e Rudy nunca
tivesse se dado o trabalho de voltar para a Vila Buena? E se eu o tivesse
rastreado, apenas para encontrá-lo casado com outra mulher? Isso teria sido um
grande choque.
— É que… eu não sei. Nunca conheci essa pessoa…
Esse era o cerne da questão, na verdade. Eu não conhecia a Eris. Até o
momento, sempre pensei nela como uma pessoa cruel que maltratava o Rudy.
No entanto, tudo parecia se tratar de um mal-entendido. Ela não queria
machucá-lo, certo?
— Posso dar a minha opinião? — disse Roxy, interrompendo minha linha de
raciocínio. — A meu ver, precisamos conhecer a Eris primeiro para só depois
tomarmos uma decisão.
— Acha melhor?
— Sim. Por um lado, tenho a impressão de que você ainda não tem certeza dos
seus próprios sentimentos, Rudy. Quando você a vir novamente, tenho certeza
de que será muito mais fácil decidir.
Como a própria Roxy se sentia sobre tudo isso? A última vez que discutimos
sobre o Rudy tendo outra esposa, ela parecia ter aceitado a ideia. Mas agora,
era difícil dizer o que estava pensando.
— E de qualquer forma — ela continuou —, a Sylphie já pediu isso de você.
Eu pisquei confusa. Não tinha mais certeza do que ela estava falando.
— Não se lembra, Sylphie? Acho que suas palavras foram “Apenas certifique-
se de trazê-la para mim primeiro para eu conhecê-la.”
Ah! Verdade. Eu disse isso, não é?
— Traga Eris aqui e a apresente para nós, Rudy. Vamos conversar e nos
conhecer. Mas se eu sentir que não vai dar certo… também terei que me opor à
ideia.
Quanto mais eu pensava sobre isso, mais a ideia parecia razoável. Não nos
comprometeríamos com nada, mas ainda ficaríamos abertos à ideia. A Roxy
com certeza era muito inteligente. Vê-la em ação me fez sentir um pouco
inadequada como esposa.
— Claro, imagino que também teremos que discutir essa ideia com várias
outras pessoas… E pode não valer de muita coisa, Rudy, mas você tem o meu
apoio e a minha confiança.
— Obrigado, Roxy. Isso significa muito.
— Tudo o que peço é que tente não me esquecer, independentemente de
quantas garotas acabe se casando.
— Pode ficar tranquila, eu não conseguiria te esquecer nem se tentasse.
— Posso considerar isso uma promessa, então?
— Com certeza.
Ela era inteligente e atenciosa, e Rudy confiava plenamente nela. Às vezes me
dava ciúmes…
Não, não. Essa era a maneira errada de pensar sobre isso. Eu só teria que fazer
o meu melhor para seguir seus passos.
Eu posso ser uma adulta, também! Vou mostrar para todos! Hmph.
— Está de acordo, Sylphie? — Rudy disse hesitante, virando-se para mim. —
Sinto muito por tudo isso.
— Está tudo bem. Desculpe por ter sido tão difícil de lidar hoje. Não foi muito
justo da minha parte, depois de todas aquelas coisas que eu disse da última vez.
Rudy e eu acabamos pedindo desculpas um ao outro por algum motivo. Eu
podia ouvir Roxy rindo baixinho.
Chegamos a uma conclusão muito boa. Me senti totalmente confortável neste
quarto. Era algo que não conseguiria em nenhum outro lugar, nem mesmo com
a Princesa Ariel e com o Luke.
Mas agora outra pessoa pode ser adicionada à equação. Isso me deixou um
pouco ansiosa.
Essa garota não ia roubar o Rudy de nós, certo?
Rudeus
Após a nossa conversa nós três dormimos lado a lado na minha cama. Eu não
fui insensível ao ponto de tentar começar um ménage depois de uma discussão
tão pesada. Além disso, o rosto de Eris continuava aparecendo em minha
mente, o que não era bom para o meu estado emocional. Eu pensei que já tinha
superado, mas quanto mais pensava nela, mais podia sentir aquela antiga
sensação de dúvida e ansiedade que borbulhava do fundo do meu intestino.
Assim como Roxy apontou, eu não tinha muita certeza de como me sentia em
relação a Eris, no momento. E tudo que sabia sobre seus sentimentos era com
base no que foi me dito por outra pessoa.
De um jeito ou de outro, eu tinha que acertar as coisas entre nós.
Porém, para ser honesto, a ideia de vê-la novamente era assustadora. Com
certeza haveria alguns socos envolvidos. Pelo que parece, Eris ficou
incrivelmente forte nos últimos anos. Não havia como ela não reagir caso eu a
encontrasse com Sylphie e Roxy ao meu lado. O diário não a mencionou
atacando a Sylphie ou algo assim, mas… não havia garantia de que essas
passagens fossem totalmente precisas, e eu obviamente deixei muitos detalhes
de fora. Além disso, algumas escolhas erradas de palavras facilmente podem
tornar a situação perigosa.
Eu tinha um bom motivo para estar preocupado. Era difícil adivinhar o que
aconteceria quando eu me encontrasse com a Eris mais uma vez.
Com tanta coisa em minha mente, demorou um pouco antes que eu conseguisse
dormir.
Naquela noite, o Deus-Homem me fez uma visita.
Me encontrei em um lugar familiar, um espaço totalmente branco. Como
sempre, voltei a ser o homem que era na minha vida passada. De acordo com
meu eu do futuro, este era um mundo estéril – uma espécie de espaço
quadrimensional, situado no centro de um cubo composto por seis outros
mundos. Quando se usa magia de Teletransporte, você viaja por este plano de
realidade. Mas com base na pesquisa do velho, não havia uma maneira fácil de
chegar até lá.
Porém, aqui estava eu, de pé em seu centro. O que isso significava,
exatamente? Dada a mudança em minha aparência… talvez fosse um tipo de
convocação que só afetava a mente, ou a alma?
—…
O Deus-Homem estava aqui, como sempre, com seu habitual…
Espere, não. Pela primeira vez, ele não estava sorrindo.
Na verdade, sua linguagem corporal sugeria que ele claramente estava de mau
humor. Embora fosse difícil dizer com certeza, devido a todo o embaçamento.
— Isso não é nada divertido.
É. Parece que está irritado.
— Teve que ir e estragar tudo…
O tom de sua voz era baixo e hostil. Sua habitual atitude hospitalar e
despreocupada havia desaparecido completamente.
— Voltar no tempo para se avisar? Vamos lá, isso não é justo. Tudo estava
indo tão bem.
Ok, eu já entendi. Você não está feliz. O que significa que o velho estava me
dizendo a verdade? Você esteve me fazendo de trouxa esse tempo todo? Você
matou a Roxy e a Sylphie? Acho que isso significa que o plano dele funcionou.
Ele acabou de te dar um gostinho do seu próprio remédio?
— Perguntas, perguntas, perguntas. Sempre com as perguntas. Quem sabe?
Quem liga? Parece que seu eu do futuro esteve trabalhando com alguns
equívocos, só para você saber.
É, ele está brincando comigo de novo, mas não parece que está se esforçando
em fazer isso. Preciso tentar manter a calma. Preciso continuar essa conversa.
— Ooh, ele precisa continuar a conversa! Quer parar de fingir ser algum tipo de
estrategista? Você ainda não percebeu que é um idiota?
Ah, cale a boca. Eu posso ser um idiota, mas ainda vou tentar o meu melhor.
De qualquer forma, se importa de me dizer uma coisa? Por que você faria isso
comigo? Por que tentaria machucar a minha família?
— Hum, por que eu faria isso? Talvez eu só quisesse matá-los para poder ver
você surtar? Ou algo parecido.
Uau. Ele nem está se esforçando hoje. É quase como se estivesse frustrado,
como se tivesse montado uma grande e complexa armadilha em um jogo, mas
então alguém estragou tudo ao vagar na direção errada, e agora ele nem quer
mais jogar…
— É, mais ou menos isso. Você estragou com tudo, seu retardado burro,
estúpido!
… Você pode me dizer o que está acontecendo aqui? Não ligo para o seu
objetivo final. Não estou interessado em ficar no seu caminho. Meu eu do
futuro me disse que não posso te matar, de qualquer maneira. Ele me disse para
te bajular, não te desafiar, e eu particularmente estou bem com isso. Afinal, as
coisas estavam indo bem entre a gente até agora… mesmo que você só
estivesse armando para me trair, ainda me ajudou muitas vezes. Pode me usar
se quiser. Não é como se eu tivesse algum motivo para te desobedecer. Tudo o
que estou pedindo é que não vá atrás da minha família.
— Ora, veja só quem está disposto a ajudar.
Quero dizer, o que quer que tenha feito com aquele velho, ainda não conseguiu
me prejudicar. Até onde sei, pelo menos. Você tentou matar a Roxy e o seu
bebê, mas ambos saíram ilesos. Já que estão bem, acho que posso fingir que
isso nunca aconteceu. Ainda posso controlar minhas emoções. Quero encontrar
uma maneira de coexistir com você antes que as coisas cruzem um ponto sem
volta.
— Hmmm…
O Deus-Homem parou por um momento, aparentemente considerando algo que
acabara de pensar.
— E se eu te disser que o meu objetivo é a paz mundial? Acreditaria nisso?
Paz mundial, né? Parece bom. Estou dentro. Paz e amor é o meu lema pessoal.
Nada melhor do que um dia tranquilo rolando na cama, não é mesmo?
— Vamos deixar a coisa do sexo de fora por enquanto.
Beleza.
— Se lembra daquele cara, o Deus Dragão? Seu velho amigo, Orsted? Então,
seu objetivo final é destruir o mundo.
Espera, quê? Ele não parecia ter essas intenções, não.
— Ele está se escondendo nas sombras há muito tempo, elaborando todos os
tipos de planos malignos. Entenda uma coisa: se eu morrer, este mundo vai se
quebrar em um milhão de pedaços e desaparecer completamente. Então, Orsted
está procurando uma forma de me matar.
Tem certeza que não fez algo horrível e o irritou? Não sei, talvez matar a sua
família sem motivo aparente?
— Não se lembra do que eu te disse antes? Não posso fazer nada contra Orsted.
Até onde sei, ele não tem motivos para me odiar.
Tudo bem, então. Prossiga.
— Orsted é muito poderoso, mas também está sozinho. Sua maldição o mantém
assim. E enquanto estiver isolado, nunca será capaz de me machucar.
Por que você simplesmente não o ignora?
— Esse era o plano… até você aparecer.
E o que eu tenho a ver com isso?
— É que você não é o problema, exatamente. Mas parece que você e seus
descendentes são imunes aos efeitos da maldição de Orsted. Em algum
momento no futuro, esses descendentes irão unir forças com ele, e juntos vão
me matar.
Ah, entendi agora… Então é por isso que você foi atrás de Roxy quando ela
engravidou? O velho achou que você tinha manipulado o Luke para fazer a
Sylphie morrer, também…, mas não disse nada sobre você mirar em Lucie.
Acho que é o meu segundo ou terceiro filho que vai ser o problema, né?
Espera. Você não poderia ter me matado anos atrás ou algo assim? Por que
deixou as coisas se estenderem tanto?
— Bem, quando te notei pela primeira vez durante o Incidente de
Deslocamento, tentei algumas coisas só para ver o que ia acontecer. No
entanto, receio que você tenha um destino muito forte. Nunca funcionou do
jeito que eu queria.
Um destino forte? O que quer dizer com isso, afinal?
— Hum, como posso explicar? Eu consigo ver uma série de rotas amplas que o
futuro pode seguir se ramificando à minha frente, e posso alterar o curso dos
eventos até certo ponto. Mas quando tento manipular eventos que envolvem
pessoas com destinos fortes, raramente dá certo no final. Você sobreviveu à
luta contra Orsted, por exemplo. E mesmo que eu tentasse te manter longe da
Roxy, você acabou se encontrando com ela, se casou e teve um filho.
Oh, é por causa do “princípio de causalidade”? Como quando você viaja ao
passado para reescrever a história, mas as coisas acabam se desenrolando da
mesma maneira por algum motivo?
— Algo assim, eu acho.
… Hum. Ok. Então a Roxy e eu estávamos destinados a nos casar? Isso me
deixa meio feliz.
— Não posso dizer que sinto o mesmo.
Sim, tá certo. Me desculpe. Mas de qualquer forma, por que decidiu ir atrás dos
meus filhos em particular? Quero dizer, imagino que esses descendentes de que
estamos falando são de algumas gerações no futuro. Você não poderia só lidar
com eles antes que unam forças com Orsted?
— Os responsáveis pela minha morte também nascerão com destinos
extremamente fortes. A propósito, não é só você – Sylphie, Eris e Roxy
também são fortes, assim como seus filhos. Dito isto, as mulheres têm
momentos em sua vida em que seu destino fica um pouco… vago.
Hã? Espera, você quer dizer…
— Isso mesmo. É quando estão grávidas.
Eu tive que lutar contra o desejo intenso e repentino de socar a cara do ser em
minha frente. A única coisa que me parou foi o pressentimento de que eu não
poderia vencê-lo em uma luta, não aqui, não nesta forma.
— Claro, eu ainda consegui fracassar de algum jeito.
… Então por que você matou a Sylphie? Ela não estava grávida na época e já
tinha me concebido uma filha.
— Quê? Estamos falando do diário agora? Difícil saber, acho que foi porque
quis me precaver. Por outro lado, talvez apenas fosse o destino de Sylphie
morrer caso ela te deixasse naquele momento.
Acho que é possível… Meu deus, isso é deprimente.
— Sabe, eu realmente achei que meu plano era perfeito. Quando percebi que o
seu destino era forte, comecei a agir com calma. Guiei você, passo a passo…
tudo para que eu pudesse te atacar da maneira mais eficiente, no momento em
que estivesse mais vulnerável.
Ele está tentando me irritar agora? Mas não posso deixá-lo me abalar. Preciso
me acalmar… A Roxy e a Sylphie estão bem. Está tudo certo…
— Não sei o porquê está tentando se convencer disso. Acha mesmo que
ganhou? Só para você saber, o destino de seus filhos, esposas e descendentes
não são tão fortes quanto o seu. Também não pretendo desistir. Afinal, não
quero morrer.
É, eu sei que você não vai parar. Mas não há nenhuma maneira de nós dois
sairmos ganhando? Estou disposto a fazer qualquer coisa para salvar a minha
família. Talvez eu pudesse começar uma tradição familiar de ensinar a cada
nova geração a não confiar em Orsted. Podemos contar aos nossos filhos sobre
o quão maravilhoso o Deus-Homem é, e o quão malvado é aquele desagradável
Deus-Dragão.
— Desculpe. Não vai funcionar. Não é tão fácil alterar o destino.
Não dá para pensar mais um pouco, por favor? Eu tenho um destino forte, não
é? Deve ter algo que eu possa fazer.
— … Oh.
Que foi? Pensou em algo?
— Bem, não tenho certeza se é possível…, mas certamente há uma chance…
hmm. Você disse que faria qualquer coisa, certo?
… Uh, sim.
— Tudo bem, então…
Parando por apenas um momento, o Deus-Homem sorriu para mim como uma
criança travessa.
— Mate Orsted por mim.
— Rudy! Isso dói… Rudy!
Quando acordei, estava apertando Sylphie com força em meus braços. Minha
garganta estava seca, e meu corpo estranhamente frio.
— Oh… Desculpe, Sylphie.
Soltei meu punho de ferro, deixando minha pobre esposa livre para respirar.
Toquei meu rosto e notei minha testa coberta de suor.
— Você está bem, Rudy? — Disse uma voz calma atrás de mim.
Eu me virei e descobri que Roxy tinha me abraçado.
— Eu sinto muito…
Sentei-me na cama. Pelo jeito, ainda era o meio da noite. Tinha sido apenas um
sonho? Não, não foi só um sonho. Era o Deus-Homem, sem dúvida.
— Cof, cof… Qual é o problema, Rudy? Você está bem?
Sylphie também se sentou e começou a enxugar o meu suor com a manga.
Roxy ainda estava me segurando por trás, esfregando suavemente as minhas
costas com uma mão.
— Estou bem. Acabei de ter, uh… um sonho estranho, só isso.
Mate Orsted por mim.
Não tenho dúvida, foi isso que me disse. Ele estava falando sério? Qual era o
seu objetivo?
Acalme-se. Acalma-se, porra. Preciso organizar os pensamentos.
Orsted era um inimigo declarado do Deus-Homem. Isso era um fato. No
entanto, Orsted estava sozinho. Ele não poderia derrotá-lo por conta própria.
Algo que também parecia ser uma certeza.
Era difícil para eu entender o motivo de alguém tão poderoso precisar de ajuda,
mas era assim que as coisas eram. Em algum momento no futuro, meus
descendentes acabariam se tornando seus aliados. Juntos, iriam até o Deus-
Homem e o derrotariam.
Por essa razão, o Deus-Homem tentou impedi-los de existir, matando Roxy e
Sylphie. Ele não queria que elas tivessem filhos. Sem a minha família em cena,
Orsted nunca chegaria ao mundo estéril, e o Deus-Homem sairia vitorioso.
Mas hoje, o Deus-Homem percebeu que não poderia matar a minha família.
Deve ser por isso que me ordenou a matar Orsted. Tanto Orsted quanto meus
descendentes precisavam estar vivos para derrotá-lo. Contanto que um estivesse
fora de cena, o Deus-Homem estaria seguro.
A questão era se eu conseguiria derrotar Orsted. Pelo que parecia, o meu
destino era muito forte. Mas isso certamente se aplicava a Orsted, também.
Afinal, ele ainda estava vivo, apesar de travar uma guerra contra o Deus-
Homem por tantos anos.
Como diabos eu deveria matá-lo, afinal? Ele era incrivelmente poderoso. Eu
não tinha como feri-lo…
Ou tinha?
Esse diário abrangia uma descrição detalhada de algo que meu eu do futuro
havia usado em batalha – algo que amplificou o seu poder significativamente.
Talvez eu pudesse fazer a minha própria versão da Armadura Mágica.
Não parecia impossível, e eu tinha a sensação de que seria extremamente eficaz
em combate.
Meu eu do futuro também usou uma ampla gama de magias, incluindo
Manipulação da Gravidade, Teletransporte e ataques elétricos. No entanto, ele
não se preocupou em me contar como havia dominado esses feitiços… Não
acho que eu vá descobrir os mais estranhos tão cedo.
Dito isso… na minha primeira luta contra Orsted, consegui causá-lo uma
quantidade pequena de dano com um Canhão de Pedra. E o meu feitiço Elétrico
havia ferido Atofe. Em outras palavras, eu tinha meios para machucá-lo. Desde
que eu conseguisse permanecer vivo por tempo suficiente para usá-los, talvez
houvesse alguma chance de sair vitorioso.
… Merda. É de Orsted que estamos falando! Por que estou levando isso à
sério?!
— Rudy, por favor… me diga se há algo errado. Não tente lidar com tudo
sozinho…
Sylphie parecia estar prestes a chorar. Com a mão direita, puxei sua cabeça
contra o meu peito. Estendi a mão esquerda para trás para agarrar a mão de
Roxy.
Que pergunta idiota. É porque tenho que protegê-las.
— Parece que vou ter que matar alguém.
— … O quê?
— Rudy… do que você está falando?
Sem responder à pergunta da Roxy, me afastei e saí da cama. O calor deu lugar
ao frio ar noturno.
— Me desculpem.
Com isso, saí da sala.
Meus passos eram instáveis, e a minha cabeça estava girando.
Eu estava indo estudar; queria entender o quanto antes aquele diário por
completo – para ter uma noção, por mais vaga que fosse, da maneira como
aquele velho havia travado as suas batalhas.
Eu ia matar Orsted. Era a única forma de proteger a minha família. Eu faria
isso, de um jeito ou de outro. Mesmo que custasse a minha vida.
— … Oh.
Quando entrei no escritório, meus olhos se encontraram com a carta que eu
planejava enviar amanhã, se não houvesse imprevistos.
—…
Risquei algumas das últimas linhas.
… No fim, talvez eu não consiga ver a Eris novamente.
Capítulo 4: Hipótese da
Nanahoshi
Vários dias antes desses eventos, duas mulheres apareceram nos portões da
Cidade Mágica de Sharia. Uma delas era uma mulher-fera de cabelos grisalhos
e músculos impressionantes. A outra era uma humana com uma magnífica juba
de cabelo carmesim. A mulher-fera era uma cabeça mais alta que sua
companheira, mas ambas usavam casacos idênticos e carregavam espadas na
cintura.
Eris Greyrat e Ghislaine Dedoldia finalmente chegaram ao seu destino, após
uma longa jornada partindo do Santuário da Espada.
A viagem não foi fácil, para dizer o mínimo. Eris estava com tanta pressa para
ver Rudeus depois de tanto tempo que escolheu um atalho através de uma
floresta, onde elas rapidamente se perderam e foram parar em um ninho de
monstros, que levou um tempo para matar. Quando finalmente conseguiram
sair da floresta e chegaram à cidade mais próxima, um grupo de bandidos locais
imprudentemente provocou Eris, levando a uma grande briga, que as tornou
inimigas de um monte de gente, o que levou a outra grande briga, que levou a
problemas na fronteira, os quais as duas resolveram com violência mais uma
vez. Honestamente, em grande parte foi culpa de Eris, mas elas acabariam
levando algum tempo para chegar em Sharia, de qualquer forma.
Ainda assim, tanto Ghislaine quanto Eris já foram aventureiras. No decorrer da
jornada, eventualmente pegaram o jeito das coisas e, após entrarem no Reino de
Ranoa, o trajeto para a cidade foi relativamente tranquilo.
Quando chegaram em Sharia, também agiram de forma eficiente. Ajudou
bastante o fato de que muitas pessoas na Guilda de Aventureiros local
soubessem exatamente onde era a residência de Rudeus Greyrat. Pelo que
parecia, todos nesta cidade conheciam o nome de Rudeus. Um cidadão
prestativo até as explicou que poderiam encontrar sua casa ao procurar por uma
criatura incomum e escamosa oriunda de Begaritt em seu quintal – ou por seu
companheiro, um Ente de aparência peculiar supostamente cultivado no
Continente Demônio.
Na verdade, o lugar provou ser fácil de encontrar.
A residência de Rudeus não se comparava à enorme mansão em que Eris viveu
quando criança, é claro, mas era grande o suficiente para facilmente se passar
como algum tipo de pousada. O quintal também era espaçoso e parecia servir
muito bem como um campo de treinamento.
Enquanto discutia suas impressões com Ghislaine, Eris, ao contrário do que
normalmente faria, estava hesitante em passar pelo portão. Em vez disso, ficou
bem defronte a ele com os braços cruzados.
Por um tempo, o silêncio reinou. Ghislaine não disse nada, assim como sua
companheira. Com o queixo erguido, Eris simplesmente olhava para o prédio
em sua frente. Pelo que parecia, estava convicta de que Rudeus de alguma
forma sentiria sua presença e emergiria de dentro a qualquer momento.
Os pensamentos que surgiam em sua mente eram relacionados aos diversos
rumores que ouviu sobre Rudeus ao decorrer de sua jornada.
Era dito que Rudeus “Atoleiro” Greyrat matou um dragão e derrotou um Rei
Demônio. Como o mago mais poderoso da Universidade de Magia de Ranoa,
causava medo e admiração; mas apesar de sua arrogância e ousadia, era amigo
dos fracos, e havia muitas histórias cômicas sobre seu estranho comportamento.
Em outras palavras, ele era uma figura relativamente popular.
Aqueles que o viram em ação tinham dificuldades para descrever a extensão de
seus poderes. Ouvir os louvores a ele sempre fazia Eris sorrir, quase como se a
estivessem elogiando. Porém, entre os muitos rumores que tinha ouvido até
agora, foram algumas anedotas “cômicas” que realmente chamaram sua
atenção.
Por exemplo: O cara é louco por sua esposa. Eles sempre fazem compras juntos
no caminho de volta da Universidade.
Ou: Eu o vi agarrar a bunda da esposa no mercado. Ela ficou toda corada!
Ou: Ele se casou com uma mulher que parece ser uma criança, juro.
Ou: Ele já tem duas esposas, e quem sabe quantas mais vão entrar no harém.
Com certeza não é um cara muito religioso.
Em outras palavras, eram os rumores envolvendo suas esposas. Toda vez que se
lembrava dessas histórias, Eris franzia a testa profundamente.
Logo após cruzar a fronteira com Ranoa, descobriu seus nomes: Sylphiette
Greyrat e Roxy M. Greyrat. Eris não tinha noção do que deveria dizer quando
realmente as conhecesse. Tudo o que sabia sobre as esposas de Rudeus era
baseado na carta que ele a enviou. Embora tenha ouvido rumores sobre elas em
sua jornada e passado muito tempo pensando nelas… mas no fim, Eris
simplesmente não sabia como obter os resultados que desejava.
Por consequência, ficou parada como uma estátua em frente ao portão.
Felizmente, o impasse acabou sendo quebrado por uma jovem e atenciosa
empregada.
Quando Eris apareceu no portão, Aisha se perguntou: É a Eris? Deve ser, né? E
começou a preparar as coisas. Ela queria estar pronta para mostrar a
hospitalidade perfeita a Eris no momento em que batesse na porta.
No entanto, depois de quase uma hora de espera, ela finalmente decidiu tomar a
iniciativa.
Aisha sentiu que tinha uma grande dívida com Eris. Embora não a respeitasse
tão profundamente quanto seu irmão, era um fato que havia desempenhado um
papel vital em salvá-la de seu cativeiro em Shirone. Lilia sempre lhe ensinou a
pagar suas dívidas em dobro. Então, quando ouviu sobre a possibilidade de
Rudeus tomá-la como sua terceira esposa, decidiu ajudar silenciosamente a
fazer isso acontecer – presumindo que ela realmente amasse o seu irmão, é
claro.
Graças à ajuda da pequena empregada, Eris finalmente conseguiu entrar na
casa. Uma vez lá dentro, foi calorosamente recebida por Aisha e Lilia.
Enquanto Aisha corria para a Universidade a fim de chamar Sylphie e Roxy,
Lilia a informava sobre a situação atual de forma mais detalhada.
Eris ficou surpresa quando a apresentaram Lucie. Embora seu sorriso fosse um
pouco estranho, seus sentimentos não eram particularmente negativos. Afinal,
sempre poderia ter seu próprio bebê – e o seu poderia ser um menino.
Dado o quão incerta estava no início, essa foi uma atitude surpreendentemente
confiante. A saudação amigável de Aisha e Lilia ajudou muito a acalmar seus
nervos. Mesmo quando Sylphie, Roxy e Norn chegaram, a conversa
permaneceu calma e pacífica. As duas esposas de Rudeus talvez ficaram um
pouco chocadas ao se depararem com o corpo esbelto de Eris, mas estavam
longe de serem hostis em relação a ela.
Claro que o fato de Aisha e Lilia terem deixado o clima mais tranquilo também
ajudou, mas o mais importante foi que Sylphie e Roxy já haviam discutido
sobre o assunto ao longo de várias conversas particulares.
Como esperado, a expressão de Norn sugeria que não estava muito feliz com a
situação. Porém, como o problema estava essencialmente resolvido, não
demonstrou abertamente nenhuma oposição. Norn sabia que Sylphie, Roxy e
Rudeus estavam dispostos a aceitar Eris, e ela estava tentando levar a vontade
deles em consideração. Além disso, em poucos minutos ficou óbvio que Eris
estava apaixonada por Rudeus e o respeitava profundamente. Era um pouco
embaraçoso apenas ouvi-la, mas todo mundo gosta de escutar elogios de outra
pessoa direcionados a alguém que tem apreço.
No entanto, esse clima de paz não durou muito. Eris finalmente perguntou onde
Rudeus estava, e as coisas tomaram um rumo turbulento. Quando soube que ele
tinha ido lutar contra Orsted, Eris ficou extremamente zangada com suas
esposas. No que lhe dizia respeito, era responsabilidade delas acompanhá-lo em
batalha.
— Por que o deixaram ir sozinho? Estão tentando matá-lo?
— Nós tentamos ir junto, mas ele nos disse para ficarmos para trás! Disse que
só atrapalharíamos! — Sylphie protestou em lágrimas.
Surpresa com essa reação, Eris parou para pensar por um momento – tempo o
suficiente para se lembrar que havia treinado por anos a fio para poder lutar ao
lado de Rudeus de igual para igual. Ocorreu-lhe que essas mulheres estiveram
lá para ele durante o período que estava ausente. De acordo com sua carta, elas
o ajudaram muitas vezes ao longo dos anos. Eris acabou sentindo ciúmes e uma
leve sensação de superioridade.
Ela não seria um fardo; poderia ajudar Rudeus em sua luta contra Orsted.
Com essas palavras firmes e confiantes, convenceu Roxy, Sylphie e Ghislaine a
acompanhá-la no resgate de Rudeus.
Desta forma, Eris chegou em cima da hora.
O grupo correu para a área da emboscada, mas acabou indo um pouco longe
demais. Assustados com a grande explosão atrás deles, foram em direção aos
sons do combate; Eris correu pela floresta, procurando desesperadamente por
Rudeus.
Finalmente, o encontrou à beira da morte e saltou em sua frente para defendê-
lo.
Por conseguinte, ficou cara a cara com Orsted.
Eris fixou os olhos em Orsted e ergueu a arma bem acima da cabeça. Esta não
era uma espada comum. Seu nome era Espada do Dragão Fênix, e era uma das
Sete Lâminas do Deus da Espada.
— Ghislaine! Me dê cobertura!
Orsted, em contraste, não assumiu nenhuma postura. Simplesmente olhou para
Eris com uma expressão desconfiada no rosto. Não, não era só ela que tinha sua
atenção. Também observava Rudeus, que estava caído, e as duas mulheres que
correram para prestá-lo socorro.
Eris, por sua vez, começou a analisar cuidadosamente Orsted.
Ele estava nu da cintura para cima, parecia letárgico e sangrava de uma centena
de ferimentos, inclusive de sua cabeça. A ponta de seus cabelos estava
chamuscada, e havia um grande hematoma perto de seu ombro. Ele sofreu
danos significativos. No entanto, também havia uma espada longa e curva em
sua mão direita.
Eris nunca tinha visto a lâmina de Orsted antes. Embora não fosse uma
especialista em avaliar armas, podia dizer que havia algo de muito especial
nela. Sua espada era um tesouro do Estilo Deus da Espada, mas nem mesmo
seu poder se comparava ao que estava escondido naquela coisa.
Na última vez que se enfrentaram, Orsted não havia usado nada do tipo. Não
foi necessário, é claro. Ele havia os esmagado com as próprias mãos. Rudeus
não apenas feriu o Deus Dragão significativamente, como também forçou o
homem a desembainhar sua espada. Esse fato liberou adrenalina por todo o
corpo de Eris.
Agora é a minha vez de mostrar do que sou capaz…, mas não posso ser
impaciente. Tenho que ganhar algum tempo primeiro…
Com esforço, Eris conseguiu suprimir sua excitação. Ela não conseguiria
derrotar Orsted. Percebeu isso instintivamente no momento em que ficou cara a
cara com ele, e aceitou essa realidade com bastante facilidade.
Quando criança, a diferença de poder era tão grande que nem conseguia medi-
la com precisão. Era como olhar para uma torre centenas de vezes mais alta que
você: tudo o que realmente consegue dizer é que aquela coisa é muito alta. Eris
acreditava que poderia escalar até o topo daquela torre.
Porém, as coisas eram diferentes agora. Ela havia crescido e podia ver a
verdadeira altura de Orsted. Eris estava muito mais alta do que antes. No
entanto, Orsted ainda era mais alto. Muito mais alto. Olhar para ele era quase
estonteante.
Não era uma altura que ela poderia ter esperanças de escalar.
— Eris Boreas Greyrat… Rudeus é tão precioso para você? E Luke?
— Luke?
— O homem que estava destinado a se tornar seu marido.
— Isso é novidade para mim.
Eris desconsiderou as palavras de Orsted com bastante facilidade. Não sabia
quem era esse Luke, mas o único homem que era “precioso” em sua vida, era
Rudeus. Ela não desejava mais ninguém, e nunca iria.
— Não me surpreende.
Orsted ainda não havia assumido uma postura de combate. Ele só estava
assistindo enquanto as outras curavam os ferimentos de Rudeus. Pelo que
parecia, havia baixado a guarda completamente. Porém, Eris sabia que era
exatamente isso que o homem queria que pensasse. Ele se deixou vulnerável,
esperando que ela atacasse.
—…
Eris se recordou de seu último encontro com o Deus da Espada.
Após mostrar seu quarto para Eris, o Deus da Espada Gall Falion colocou três
espadas em sua frente e fez uma pergunta simples.
— Qual será?
Eris pegou as espadas em sua mão e as examinou uma por vez. Por um lado,
queria dizer que a espada que ganhou no Continente Demônio muito tempo
atrás era tudo que precisava. Porém, à medida que crescia, a arma começou a
parecer pequena demais. Ela honestamente queria algo mais longo. Além disso,
suspeitava que sua lâmina não seria capaz de ferir Orsted.
Um Santo da Espada poderia ter objetado que apoiar-se no poder de sua arma
refletia a falta de orgulho em suas próprias habilidades. Porém, Eris sabia que
orgulho não servia de porra nenhuma em uma luta até a morte.
— Esta.
A espada que Eris escolheu era a mais simples das três. Sua lâmina era fina e
apenas ligeiramente curvada. Não havia nada de ameaçador ou intimidador
nela; na verdade, sua superfície limpa e polida era uma visão muito agradável.
— É a Espada do Dragão Fênix.
A arma que escolheu foi um presente para o primeiro Deus da Espada do
lendário artesão conhecido como Imperador Dragão. Era uma espada feita para
os Deuses da Espada, projetada para maximizar o potencial de seu Estilo
ofensivo.
— Boa escolha, criança.
— Importaria de me dizer o motivo?
— Esta é uma Espada Mágica. À primeira vista, não parece ter nenhuma
habilidade especial, mas há pequenos canais de mana correndo por toda a
lâmina. Eles basicamente neutralizam a Aura de Batalha do seu oponente. A
Aura do Deus Dragão é insanamente forte, então a espada não vai anulá-la
completamente…, mas vai enfraquecê-la um pouco.
Em outras palavras, pode ser possível perfurar suas defesas com isso.
— Nunca gostei dela, mas aposto que você vai usá-la bem.
Aliás, a razão pela qual Gall só mostrou a Eris três das Sete Lâminas do Deus
da Espada foi porque as outras quatro já tinham dono. Ele carregava uma,
assim como os dois Imperadores da Espada e a Rei da Espada Ghislaine. As
outras duas, sem dúvida, acabariam nas mãos dos dois jovens e promissores
Santos da Espada deste Estilo, uma vez que tivessem progredido um pouco
mais em seu treinamento.
— Agora, vamos ao que interessa. Primeira regra para lutar contra Orsted…
O Deus da Espada fez uma pausa para dar ênfase, olhando Eris nos olhos.
— Nunca ataque primeiro.
Eris não perguntou o porquê. Ela mesma já sabia muito bem a resposta.
— O Estilo do Deus da Água dele é de nível divino. Ele vai te matar em um
único contragolpe.
Uma lembrança amarga passou pela mente de Eris; na qual saiu voando com
um único soco.
— Faça-o vir até você. Esse é o primeiro passo.
Os praticantes do Estilo Deus da Espada sempre buscam acertar o primeiro
golpe. Para derrotá-los, é necessário só esperar e contra-atacar. De acordo com
o Deus da Espada, essa estratégia simples era a essência da técnica inigualável
de Orsted.
Então, Eris não se moveu. Não podia arriscar atacar primeiro um mestre
praticante do Estilo Deus da Água. O Estilo do Deus da Espada era
inerentemente agressivo, e o Estilo do Deus da Água defensivo. Isso a colocou
em grande desvantagem. Os contra-ataques do Estilo Deus da Água não
falham. A menos que o estudante do Estilo do Deus da Espada
fosse superior até certo ponto, o Estilo Deus da Água sairia vitorioso.
Eris tinha aprendido essa lição muito bem, graças ao seu treinamento com a Rei
da Água Isolde. E, portanto, não cometeria o erro de atacar primeiro.
Naturalmente, ficar parada não era fácil para a notoriamente agressiva “Cão
Louco”. Porém, ela faria isso de qualquer maneira.
— Hmm…? Não vai atacar?
Enquanto Eris estava ali, apenas mantendo sua postura, Orsted estreitou os
olhos em perplexidade. O Estilo Deus da Espada sempre busca acertar o
primeiro golpe. Era a base de todas as suas técnicas. No entanto, ela não estava
fazendo absolutamente nada.
— Tudo o que preciso fazer é esperar. — Eris respondeu calmamente. —
Quando Rudeus se recuperar, podemos atacá-lo juntos.
— Bem, isto é uma surpresa. Eris Boreas Greyrat falando em lutar ao lado de
aliados? Outra mudança, ao que parece. Achei possível que pudesse se tornar
diferente, se aprendesse a esfriar a cabeça e treinasse com o mestre certo…
Acho que eu não estava enganado.
— Não sou mais uma Boreas. É apenas Eris Greyrat.
— Uma mulher diferente da Eris que conheço, então…
Movendo-se de forma lenta e deliberada, Orsted finalmente assumiu uma
postura.
Com a mão esquerda ainda pendendo frouxamente, levantou o braço direito
para mirar a ponta de sua lâmina em direção a Eris.
— Muito bem. Sendo assim, irei até você.
Embora nenhum dos dois tenha feito nenhum movimento até então, agora a
batalha estava entrando em seu segundo estágio.
Mais uma vez, Eris se recordou de sua conversa com o Deus da Espada.
Com a mão nua, Orsted pode usar sua Espada de Luz como uma lâmina.
Porém, depois de todo o seu treinamento com Nina, acho que sabe como lidar
com esse movimento. Basta cortar seu punho antes que atinja a velocidade
máxima.
Dito isto, não há como dizer se ele usará a mão esquerda ou direita. Se erguer
as duas, você terá que adivinhar. Ele também pode atacar por cima ou por
baixo. Então, escolha direita ou esquerda, cima ou baixo – esse é o passo dois.
Essas foram as palavras exatas de Gall Falion.
Eris não pôde evitar de fazer uma pequena careta. Orsted já havia sacado sua
espada. Com sua própria mão, ele estaria usando a verdadeira Espada de Luz,
não uma imitação dela. A questão era se Eris seria capaz de contra-atacar.
Ela chegou à conclusão de que era possível. Orsted não era invencível. Ele
estava respirando com alguma dificuldade e estava coberto de feridas. Mesmo
agora, sangue escorria do braço que segurava a espada.
Além disso… ele estava estendendo apenas o braço direito, e sua espada estava
baixa, assim como ela esperava. Apesar de seus ferimentos, Orsted ainda estava
segurando sua arma com uma única mão.
Ele realmente acha que não sou nada demais…
A Eris de sempre teria ficado furiosa, mas desta vez não se deixou abalar e
permaneceu calma. A seu ver, parecia até estranho, considerando os anos
conturbados que passou exigindo medo e respeito do mundo, mas hoje, estava
agradecida por ser subestimada.
— Estilo do Deus da Espada – Espada de Luz.
A mão de Orsted cortou o ar em uma velocidade assustadora. Porém,
simultaneamente…
— Estilo do Deus da Espada – Lâmina Reflexiva.
Eris também balançou sua espada para baixo.
Era um movimento que havia praticado milhares e milhares de vezes, bem
como a melhor maneira de neutralizar a Espada de Luz. Com sua espada na
velocidade máxima, mira-se no punho mais lento de seu oponente e o corta
antes que consiga completar seu golpe.
A espada de Orsted saiu voando – junto com a sua mão direita.
Peguei ele!
Por um momento, Eris pensou que a luta havia acabado. Porém, antes que
pudesse continuar, Orsted respondeu de forma surpreendente. Estendendo a
mão para cima, pegou o membro decepado, pressionou-o contra o punho e o
realocou instantaneamente. Em seguida, aproveitou do movimento que havia
realizado para executar um chute giratório.
Eris conseguiu desviar este ataque bizarro dando meio passo para trás, mas só
porque o Deus da Espada a advertiu que havia uma possibilidade de que ele
tentasse algo do tipo.
— …!
Sem perder tempo, Orsted desferiu um golpe cortante com a mão nua, mas Eris
bloqueou-o com a espada.
Nenhum desses ataques apressados tinha sido uma Espada de Luz. Como
resultado, a investida de Eris não feriu Orsted. Sua lâmina atingiu o alvo com
um tinido, redirecionando com sucesso a mão dele, mas não deixou um
arranhão sequer em sua pele.
Logo em seguida, a espada de Orsted bateu com a lâmina no chão atrás dele.
Pelo que parecia, a mão direita do homem estava novinha em folha. Os
ferimentos que Rudeus lhe infligiu também foram curados. Em um piscar de
olhos, se restaurou completamente com uma variedade incrivelmente poderosa
de magia de cura.
Que monstro, Eris pensou calmamente.
Seu último ataque pode não ter sido uma Espada de Luz, mas a velocidade e
poder foram consideráveis. No entanto, foi ricocheteado pelo homem. A
Espada de Luz era seu único meio de cortar a Aura do Dragão Sagrado, mesmo
com a Espada do Dragão Fênix.
— Vejo a astúcia do Deus da Espada em suas táticas. Você deve ter sido uma
aluna altamente favorecida, Eris Greyrat.
Eris havia reposicionado sua espada para cima da cabeça. Sua mente estava
clara, e suas emoções firmes.
Porém, em vez de balançar sua lâmina, Orsted decidiu atacar de um modo
diferente.
— Gall Falion contou histórias de suas façanhas enquanto você estava deitada
na cama dele?
Considerando tudo que o Deus da Espada fez por ela, Eris o respeitava
profundamente. Ao longo dos últimos anos, Gall Fallion se dedicou
inteiramente a treiná-la e confiou-a seu sonho. O relacionamento deles tinha
sido puramente platônico. Se resumia a uma relação de mestre e discípula. Ele
a treinou porque seus interesses estavam alinhados.
Normalmente, Eris teria ficado furiosa com o comentário grosseiro de Orsted…
Sobretudo porque ele falou de modo que as outras três mulheres e Rudeus
pudessem ouvir. Porém, seu mestre havia dado um aviso claro: se as coisas
começarem a correr bem, Orsted pode tentar te fazer perder a calma. Você não
vai cair nessa, entendeu?
O Deus da Espada havia antecipado a tentativa de provocação de Orsted.
Consequentemente, não teve nenhum efeito sobre Eris. Ela não tinha motivos
para ficar com raiva. Orsted estava provando que Gall Falion o conhecia como
a palma da mão.
— Hmph.
— Entendo. Você realmente ficou mais forte…
Enquanto Eris reprimia sua provocação com um bufo, Orsted murmurou estas
palavras em um tom quase melancólico, e lentamente levantou ambas as mãos.
Ao ver isso, Eris se lembrou do último conselho que o Deus da Espada lhe deu.
Por qualquer motivo que seja, Orsted não pode ir com tudo. Ele é um mestre na
magia e esgrima, mas tentará finalizar o combate só com sua Aura e artes
marciais… Começa com chutes e socos, depois usa magia apenas se for
realmente necessário. Porém, quando está enfrentando algo novo, por alguma
razão, tende a recuar e estudar as técnicas que está vendo pela primeira vez.
Isso tem que ser seu ponto fraco.
No momento, Orsted não estava atacando para matar. Ele parecia estar
brincando lentamente com ela, como um gato batendo cruelmente em um rato
exausto.
Eris rangeu os dentes audivelmente, largou a Espada do Dragão Fênix e, com a
mão esquerda, pegou a lâmina que recebeu na vila Migurd.
Sua mão direita segurava a Espada do Dragão Fênix acima de sua cabeça,
enquanto a esquerda segurava a espada sem nome, ainda embainhada atrás de
sua cintura.
Era uma postura estranha. Ainda mais porque o Estilo do Deus da Espada não
tinha o conceito de empunhadura dupla. Usar duas espadas ao mesmo tempo
era uma técnica do Estilo Deus do Norte.
Mais importante – enquanto Eris segurava a espada, que era uma arma mágica
mortal, acima de sua cabeça, não era capaz de usar a Espada de Luz com uma
única mão. E como havia técnicas de saque rápido de espada, sua empunhadura
invertida nunca seria a melhor escolha.
Sua postura, em outras palavras, era irracional. Não fazia nenhum sentido. Não
era o tipo de erro que uma Rei da Espada, e uma mestra do Estilo do Deus da
Espada, sob nenhuma circunstância, cometeria…
— Hum…?
Por isso mesmo, Orsted parou de se mover.
Com as mãos ainda no ar, ele a estudou minuciosamente. Seus olhos estavam
focados apenas em Eris – com exceção de Rudeus, que estava sendo curado
atrás dela.
Ela tinha toda a sua atenção no momento, mas não podia ficar na defensiva. A
menos que tomasse alguma atitude, Orsted daria um passo à frente para atacar.
Felizmente, Eris havia improvisado um certo movimento para uma situação
como esta. Era baseado em uma técnica que aprendeu com o Imperador do
Norte Auber… embora só tenha visto uma vez. Ela treinou para que pudesse
executar esse movimento com uma única mão, em velocidade máxima, no
mesmo instante em que desembainhava sua espada. Era uma técnica imperfeita,
mesmo assim, altamente letal.
Quando estiver contra a parede, um estudante do Estilo Deus do Norte jogará
sua espada.
A mão esquerda de Eris se moveu grosseiramente, mas com confiança.
Seus dedos agarraram o punho da espada, puxando-o para trás, e no mesmo
movimento, enquanto seu braço se lançava para frente, arremessou a arma em
Orsted. A espada sem nome que a acompanhou por tantas provações e
tribulações cortou o ar com precisão, com a ponta assestada para seu inimigo.
O impulso do arremesso levou a mão esquerda de Eris para cima – para a
espada que ainda segurava no alto. Assim, pegou a Espada do Dragão Fênix o
mais rápido que pôde e, sem um momento de hesitação, balançou-a para baixo
com ambas as mãos, executando uma Espada de Luz impecável.
— …!
Seu temível ataque passou direto pela espada de Orsted, cortando o topo da
cabeça do homem ao longo da mais curta trajetória, na maior velocidade
possível.
Houve um tinido agudo.
— Tch…
Segurando sua espada e continuando o golpe até o final, Eris estalou a língua
em irritação. Orsted havia agarrado sua lâmina entre as mãos. E a espada sem
nome que atingiu o corpo dele, foi desviada pela Aura do Dragão Sagrado, e
voou para trás dela.
— Você superou minhas expectativas, mas acho que agora é o fim.
— Não!
Com a lâmina ainda travada nas mãos de Orsted, Eris gritou sua resposta
enquanto se virava para onde a espada sem nome havia caído.
Rudeus estava ali. As outras terminaram de curá-lo.
— Estamos apenas começando!
Levou um instante para Eris processar o que seus olhos estavam vendo. Era
Rudeus, claro, e ele estava de pé. Porém, havia círculos escuros sob seus olhos,
e seu cabelo castanho claro ficou branco. Suas pernas tremiam fracamente, seu
rosto estava mortalmente pálido e seus lábios roxos. Roxy e Sylphie o
apoiavam em ambos os lados.
—…
— Começando… com o quê, exatamente?
Rudeus não estava em condições de lutar, para dizer o mínimo. Sua mana havia
se exaurido, seu vigor se foi e até mesmo sua força de vontade fraquejava. Ele
estava acabado tanto fisicamente quanto emocionalmente.
— Você verá em breve.
A visão dele foi o suficiente para fortalecer a determinação de Eris.
Ela inalou profundamente e exalou três vezes. Quando o ar preencheu seus
pulmões, agarrou sua espada com mais firmeza, consciente de cada gota de
suor em suas palmas. Rangendo os dentes de trás com força por um instante,
lambeu os lábios.
Por fim, retesou os músculos do estômago e rugiu o mais alto que pôde.
— Vocês três, tirem Rudeus daqui! Agora!
A voz de Eris trovejou pelo ar.
— Vou segurar Orsted, mesmo que eu morra!
Ela quis dizer isso literalmente.
Sylphie sentiu a força de sua determinação. Ela sentiu a mesma coisa de seus
companheiros na jornada desesperada para Ranoa com a princesa Ariel. Eris
estava preparada para morrer.
— E-Espere! Eu também vou lutar!
As pernas de Sylphie estavam tremendo, mas gritou as palavras mesmo assim.
Orsted era aterrorizante além da conta. Este era o primeiro encontro deles, mas
ela sabia que ficar contra o homem significaria a morte. Ainda assim, a escolha
não foi difícil. Não com a vida de Rudeus em jogo. No fundo, estava cheia de
arrependimento por ter deixado o homem que amava partir sozinho para lutar
contra um monstro como este. As palavras “Você está tentando matá-
lo?” Ainda soava em seus ouvidos.
Essa nunca tinha sido sua intenção. Ela viu Rudeus recuperar sua energia e foco
habituais, apesar de seus medos, e assumiu que tudo daria certo. Afinal, ele era
um mago incrivelmente poderoso, e sempre dava um jeito de voltar para casa.
Além disso, a Armadura Mágica parecia onipotente. Ela se convenceu de que
nada, nem ninguém, poderia derrotar aquela coisa.
Foi apenas sua confiança em Rudeus que a fez decidir ficar para trás.
Eris olhou silenciosamente nos olhos de Sylphie por um momento, e então
assentiu.
— Tudo bem. Cuide da retaguarda! Ghislaine, tire Rudeus e Roxy daqui!
— Eris! Meu trabalho é protegê-la!
Agora foi a vez da Rei da Espada do Povo Fera protestar.
Ghislaine tinha visto Eris lutar durante toda a vida. Assistiu seu treino focado e
obstinado. E, por essa razão, ficou recuada e assistiu o desenrolar da batalha,
sem interferir ou objetar. Ela viu isso como uma maneira de retribuir o falecido
avô de Eris, Sauros, a quem devia tanto.
— Quê?! Não vai me ouvir?! Estou te dizendo para proteger as pessoas que são
importantes para mim!
— Não vou fazer isso! Eu nunca poderia encarar o Lorde Sauros ou Philip se
deixasse você morrer aqui!
Mas agora, a garota planejava seguir um caminho que terminaria em morte
certa, e Ghislaine não podia permitir isso. Sua recusa foi mais reflexiva do que
racional. Ela não era muito boa em pensar e evitava pôr o cérebro para
trabalhar, quando possível.
— Parem com isso! Todos nós precisamos fugir!
Dada a gravidez, Roxy sabia que não seria muito útil em combate. Ela veio
para cá sabendo que só seria um fardo caso chegasse a essa situação. Seu plano
era arrastar Rudeus até os cavalos que esperavam do lado de fora da floresta e
fugir o mais rápido possível. Havia uma chance de que um movimento muito
extenuante pudesse causar um aborto espontâneo, mas ajudar Rudeus a escapar
era prioridade. Sinceramente, ela não tinha pensado muito no que fazer depois
disso. Por ora, acreditava que tinham que correr e se reagrupar em um lugar
seguro.
Eris e Ghislaine discutiam; Sylphie e Roxy se preparavam para agir. E
enquanto via tudo isso com o canto dos olhos, Orsted soltou um suspiro longo e
alto.
Todos, exceto Rudeus, ficaram em guarda. Quatro pares de olhos olharam
ferozmente para Orsted. Indiferente a isso, o Deus Dragão aumentou o tom de
voz para um berro.
— Rudeus Greyrat!
Rudeus estremeceu visivelmente ao som de seu nome.
— Enquanto servir ao Deus-Homem, não permitirei que escape. Mesmo que
isso signifique matar todos aqui, e todos os outros esperando por você na
cidade, vou te caçar e tirar sua vida!
Rudeus estava trêmulo agora, de maneira ainda mais clara do que antes. Com
seus joelhos tremendo incontrolavelmente, olhou para o chão em sua frente.
— Embora eu não confie nas palavras do Deus-Homem… dado o que ele te
disse, também sequestrarei seus filhos quando você estiver morto!
Com essas palavras, a tremedeira parou.
Os olhos de Rudeus acenderam em chamas novamente. Socando as pernas
trêmulas com a mão esquerda, entendeu a mão direita para pegar seu cajado de
Roxy, esquecendo que havia perdido aquela mesma mão há pouco tempo.
Desequilibrado, poderia ter caído no chão se Roxy não o tivesse segurado
rapidamente. Porém, mesmo quando se apoiou contra ela, seus olhos estavam
olhando ferozmente para Orsted. Havia sede de sangue em seu olhar.
— No entanto, sua imitação da Armadura do Deus Lutador, a mana abundante
concedida a você pelo Fator Laplace, e sua imunidade à minha maldição ainda
podem ser úteis!
— …?
Com essas palavras, a raiva nos olhos de Rudeus vacilou um pouco. E enquanto
olhava com uma expressão dúbia e cautelosa, o Deus Dragão continuou a falar.
— Traia o Deus-Homem e junte-se a mim!
Duas pessoas reagiram instantaneamente a essas palavras.
— Você só pode estar brincando!
— Rudy, não dê ouvidos a ele!
Eris e Sylphie estavam convencidas de que Orsted estava mentindo. Elas não
acreditariam no homem, a não ser que tivessem uma razão clara para isso.
Ghislaine e Roxy ficaram em silêncio, mas também sentiram que Orsted estava
tramando alguma coisa – que alguma armadilha estava escondida em suas
palavras.
— Se aceitar minha oferta, vou ignorar esta emboscada irracional e restaurar
seu braço ferido à condição original.
—…
Mas Rudeus foi uma exceção.
Ele havia notado algo no tom de voz de Orsted. Percebeu que a garganta do
homem estava tremendo levemente, e esse fato o intrigava.
— Eu sou o Deus-Dragão. Uma vez que esteja sob minha proteção, o Deus-
Homem não achará tão fácil te tocar!
Dúvida e tentação se misturaram nos olhos de Rudeus.
— Não se preocupe, ele não pode ouvir o que estamos falando neste exato
momento!
—…
— Se sua lealdade ao Deus-Homem não for real, eu acharia essa oferta muito
atraente!
—…
— Escolha agora, Rudeus Greyrat! Ficará do lado do Deus-Homem e perderá
tudo em minhas mãos? Ou se juntará a mim e lutará contra ele?! Você é imune
à minha maldição! Esta é uma escolha que é capaz de fazer!
O olhar de Rudeus encontrou o de Orsted.
Primeiro, exalou lentamente. E então, estudou o rosto do Deus Dragão, como se
procurasse uma resposta nele. Rudeus estava tentando ver o que estava
escondido por trás da expressão pétrea do homem. Porém, obviamente seus
olhos não revelavam nada disso.
O silêncio se estendeu por vários segundos.
— Rudy?
Por fim, Rudeus cambaleou para longe dos braços de Roxy e começou a andar
lentamente para frente. A cada passo, corria o risco de cair de cara. Tropeçou
para o lado e se apoiou no ombro de Ghislaine. Quando perdeu o equilíbrio, se
agarrou em Sylphie, que correu para pegá-lo. Eventualmente, passou por Eris.
E então, caiu de joelhos aos pés de Orsted.
Ele não fez nenhum movimento para se levantar. Em vez disso, olhou para o
homem em sua frente e falou.
— Realmente há… uma maneira de proteger a minha família do Deus-
Homem…?
— Sim! Ele possui grande conhecimento do futuro, mas não é onisciente, muito
menos onipotente!
— Tem… absoluta… certeza disso…?
— Não, não tenho certeza absoluta. Eu não fingiria conhecer toda a amplitude
de seus poderes.
Orsted não fez nenhuma promessa definitiva. Nem mesmo ofereceu palavras
tranquilizadoras. No entanto, Rudeus olhou para ele com os olhos de um
homem em busca de salvação. Havia lágrimas nos cantos de seus olhos, embora
fosse difícil dizer o que havia as inspirado.
De um jeito ou de outro, havia tomado sua decisão.
— Eu vou te servir. Então, me ajude, por favor.
E foi assim que, deste dia em diante, Rudeus Greyrat se tornou aliado do Deus
Dragão.
Capítulo 10: Eris Greyrat (Parte 1)
***
Na mesa de jantar naquela mesma noite, anunciei oficialmente que Eris havia
concordado em se casar comigo. Ao contrário de quando foi com Roxy,
preparei as bases com antecedência, então não houve explosões de raiva para
lidar. Na verdade, ninguém sequer reclamou. Esperava um ou dois comentários
sarcásticos de Norn, se não uma oposição aberta, mas ela aceitou a notícia em
silêncio. Talvez ela tivesse perdido toda esperança de me devolver ao caminho
correto.
De sua parte, Roxy e Sylphie deram seus parabéns.
— Bem-vinda à família, Eris!
— Não se preocupe, podemos elaborar as regras básicas um pouco mais tarde.
Parecendo mais desconfortável do que eu jamais tinha visto, Eris conseguiu
gaguejar as palavras “Muito obrigada por me receberem” em resposta. De
alguma forma, essa não parecia a frase certa para usar nesta situação, mas tanto
faz.
Era raro Eris ficar tão nervosa com qualquer coisa, mas eu poderia dizer que ela
realmente queria ganhar a aprovação delas. Isso parecia um bom sinal. Eu
realmente esperava que as três aprendessem a se dar bem e evitassem brigas
feias, mas não tinha o direito de expressar esse pensamento em voz alta.
Depois do jantar, as três decidiram tomar banho juntas. Sylphie e Roxy dariam
uma palestra para Eris sobre a maneira correta de usar nossas instalações, e
depois teriam um pequeno tempo a sós na banheira. Estava morrendo de
vontade de acompanhá-las e ajudá-las a se lavarem com minhas próprias mãos,
mas desta vez consegui me conter para não pedir.
Minhas três esposas saíram da sala, deixando eu, Lilia, Zenith, minhas
irmãzinhas… e Ghislaine Dedoldia.
—…
No momento em que Eris saiu da sala, Zenith começou a me socar
silenciosamente na cabeça. Lilia murmurou: — Senhorita, acho que você já
deixou clara sua opinião —, mas não havia sinal de que o ataque pararia
mesmo depois de algum tempo.
Zenith era uma devota da Igreja Millis. Ela tolerou eu ter uma segunda esposa,
mas parecia extremamente descontente por uma terceira ter sido acrescentada.
— Ai! Ai! Isso dói, mãe! Desculpe, ok? Não vou fazer isso de novo!
Uma vez que expressei meu remorso, Zenith puxou os punhos para trás e
voltou para sua cadeira. Minhas irmãzinhas, que por acaso estavam sentadas
bem ao lado dela, agora me olhavam com reprovação.
— Não foi isso que você disse quando trouxe Roxy para casa, querido irmão?
— disse Aisha. — Sua palavra claramente não vale muito. Suspiro… Já espero
você arrastando outra garota de volta com você em breve. Ah, vai
ter tanta roupa para lavar…
Não havia muito que eu pudesse dizer sobre isso. Essa decisão claramente me
fez perder alguns pontos de afeição com minhas irmãs.
Ah bem. Acho que posso viver com isso.
Aisha tinha algumas queixas legítimas, mas sua voz estava totalmente
monótona. Ela provavelmente estava apenas me dando uma bronca, na maior
parte.
— Rudeus…
Neste ponto, no entanto, minha outra irmã falou. E a voz parecia muito séria. O
que quer que ela fosse dizer, precisava levar a sério.
— Sim, Norn? O que posso fazer por você?
— Uhm… como membro da Igreja Millis, realmente não posso aprovar seu
comportamento.
— Compreensível.
— Dito isso, posso dizer o quanto a senhorita Eris ama você, então não vou me
opor desta vez. Você pode não gostar muito dela ainda, mas espero que a dê
muito carinho de qualquer maneira. Isso é tudo que eu tinha a dizer.
— Entendo. Prometo fazer o meu melhor nesse sentido.
Norn parecia gostar até que bastante de Eris, na verdade. Pelo que ouvi, foi ela
quem pediu aquelas aulas de espada. Senti que Norn ficou muito mais
extrovertida em geral nos últimos anos. Talvez isso tivesse algo a ver com o
trabalho dela no conselho estudantil? De qualquer forma, era definitivamente
uma coisa boa.
— Mestre Rudeus.
Aparentemente, Lilia queria dizer sua parte agora. Sua voz estava um pouco
mais baixa que o normal.
— Sim, Lilia?
— Agora que você adicionou a senhorita Eris à família, esta casa vai ficar um
pouco apertada. Estou disposta a alugar um quarto próximo e morar lá com a
senhorita Zenith, para…
— Não. Isso não vai acontecer — interrompi rapidamente. —
Olha, quero cuidar de vocês duas. Er, bem… na verdade é você quem ainda
está cuidando de mim, mas você sabe o que quero dizer.
— Não posso dizer que concordo com essa avaliação, mestre Rudeus, mas vou
respeitar seus desejos neste assunto.
Se eu fosse e expulsasse minhas próprias mães da minha casa porque tinha
muitas esposas, meu pai provavelmente se transformaria em algum tipo de
espírito vingativo. Um bom garoto cuida de seus pais quando eles são mais
velhos. Na verdade, tínhamos ficado sem quartos de hóspedes agora que Eris se
juntou à família, mas isso não era um grande problema. Poderíamos pensar em
alguma coisa se precisássemos.
— Rudeus…
Finalmente, foi a vez de Ghislaine se dirigir a mim.
— Sim, senhorita Ghislaine?
— Apenas Ghislaine, garoto.
Estudei a temível espadachim por um momento. Ela devia ter cerca de quarenta
agora, mas seu corpo ainda era musculoso. Ficou claro que não estava
negligenciando seu treinamento.
— Posso deixar a pequena senhorita em suas mãos agora, certo?
— Sim. Cuidarei bem dela, eu juro.
— Ah vai? — Ghislaine fez uma pausa, depois sorriu um pouco. — Você
cresceu um pouco, eu vejo. Tem o mesmo olhar que Paul tinha nos olhos
quando decidiu se casar com Zenith.
Isso era para ser um elogio? Hmm. Bem, teria que entender isso como um.
Então puxei meu pai esses dias, hein? Que bom ouvir isso. Talvez
eu tenha crescido um pouco em maturidade…
Espere um segundo. Ghislaine só conhecia o Paul de antigamente, certo?
Quando ele era um total canalha?
Eu… realmente poderia tomar isso como um elogio?
— O que está planejando fazer a partir de agora, Ghislaine? Algum plano de se
estabelecer na cidade?
— Não. Agora que confiei a senhorita Eris a você, meu trabalho aqui está feito.
Acho que vou voltar para Asura.
— Asura? Planejando ajudar na reconstrução da região de Fittoa ou algo assim?
Os olhos de Ghislaine brilharam de emoção. — Não exatamente. Encontrarei
aqueles que executaram o Senhor Sauros e depois vou matá-los.
Parecia que a temperatura na sala havia caído significativamente. Não esperava
uma resposta tão… sinistra, mas podia entender seus sentimentos. Até então,
Ghislaine estava focada apenas em cuidar de Eris. Agora que a “pequena
senhorita” foi deixada em segurança comigo, seu trabalho estava completo. A
única coisa que restava a fazer era se vingar daqueles que derrubaram o homem
a quem ela serviu tão lealmente.
— Isso significa que você ainda não sabe quem eles são, certo? Parece que sua
morte foi parte de uma complicada teia de intrigas, então suponho que muitas
pessoas participaram disso.
— Vou cortar todos os antigos inimigos da família Boreas, um por um. Simples
assim.
Isso me pareceu um pouco simples demais. Essa é a clássica Ghislaine.
Hmm… como eu poderia impedi-la, no entanto? Nesse ritmo, iria atacar a
capital do reino sozinha e acabaria sendo morta.
Infelizmente, senti como se nada do que eu dissesse fosse fazê-la mudar de
ideia. Era de Ghislaine que estávamos falando, afinal. Nesse caso, talvez a
melhor coisa que pudesse fazer fosse ajudá-la a encontrar uma maneira melhor
de fazer isso…
De repente me peguei lembrando de algo daquele diário. Quando Ariel lançou
um golpe de estado em Asura, foi a Deus da Água e um Imperador do Norte
que a derrotou.
— Ghislaine, há algo que você deveria saber. Ouvi de uma fonte bastante
confiável que o Reino de Asura atualmente tem tanto a Deus da Água quanto
um Imperador do Norte trabalhando para eles.
— Ah. Aqueles dois.
— Você já os conhece?
— Sim, eu os conheço bem. O mesmo vale para a senhorita Eris, por falar
nisso. E o que tem isso?
— Bem, você pode acabar tendo que enfrentá-los. Sei o quão forte você é, mas
não acho que sairia disso viva.
— É verdade. Eu não poderia lidar com os dois sozinha. — Com um pequeno
aceno de cabeça, Ghislaine me olhou nos olhos e ficou em silêncio. Ela estava
esperando para ouvir o que mais eu tinha a dizer sobre isso.
— Por coincidência, conheço uma pessoa que foi pega na mesma confusão que
custou a vida de Lorde Sauros. É possível que ela estivesse trabalhando contra
a família Boreas na época, então você pode considerá-la uma inimiga, mas se
unir forças com ela, acho que terá a chance de matar as pessoas que quer
mortas — e uma justificativa legítima para isso.
— Quem é?
— Ariel Anemoi Asura.
As orelhas de Ghislaine se contraíram. Aquilo enviou um pequeno choque de
nostalgia através do meu sistema. Quando eu a ensinava, ela sempre fazia isso
quando via um problema que não conseguia resolver.
De qualquer forma… se ela não reconhecesse o nome, muito melhor.
— Ela é a segunda princesa do Reino de Asura.
— É?
Parei por um momento para me perguntar se isso era realmente uma boa ideia.
Ariel provavelmente iniciaria uma tentativa de golpe imprudente em Asura
num futuro próximo. Eu estava apenas enviando Ghislaine para a morte?
Não. O futuro pode mudar totalmente.
Por um lado, li aquele diário, então poderia oferecer a Ariel pelo menos um
pequeno conselho. Poderíamos transformar essa tentativa de golpe imprudente
em uma que teria sucesso. Era muito possível que o Deus-Homem estivesse
puxando as cordas por trás desses eventos. E como agora eu era subordinado de
Orsted, meu envolvimento poderia mudar um pouco as coisas.
Supondo que eu acabasse encontrando alguma maneira de Ariel sair triunfante,
seria melhor para todos nós ter uma espadachim como Ghislaine ao seu lado.
Eu tinha toda a intenção de ajudar pessoalmente, mas primeiro precisava
consultar Orsted.
— Acho que você deveria pelo menos ter uma conversa com ela e ver o que
acha.
— Tudo bem. Se você diz, eu vou.
Ghislaine aceitou meu conselho prontamente. Por enquanto, pelo menos,
parecia que eu a tinha convencido a não fazer nada muito precipitado.
— Uau…
Olhei por cima da mesa e encontrei Norn e Aisha olhando para mim com os
olhos arregalados. — Posso ajudá-las, pessoal?
— Ah, não é nada… Uhm, você realmente era o tutor de uma Rei da Espada,
hein?
— O que, você achou que eu tinha inventado isso?
— Quero dizer, não realmente… só não esperava que a senhorita Ghislaine
levasse seu conselho tão a sério.
Intrigada, Ghislaine e eu trocamos olhares. Houve algo tão estranho em nossa
conversa?
— Hum, Rudeus? — Norn interveio. — Conheço um estudante mais velho da
Universidade que quer ser um aventureiro e eles estavam me contando outro
dia sobre como essa “Rei da Espada realmente assustadora” havia chegado à
cidade. Até as pessoas mais duronas da cidade ficaram um pouco intimidadas
por ela, sabe? É meio impressionante vê-la falando com você de igual para
igual.
Ghislaine sorriu com isso. — Rudeus é muito mais assustador do que eu jamais
serei, garota. Quero dizer, ele ganhou o respeito do Deus Dragão.
— Uau…
Norn parecia genuinamente impressionada com isso. Talvez eu tenha
recuperado alguns daqueles pontos de afeição. Ou talvez fossem apenas pontos
de respeito? Eu não conseguia ver a opinião dela sobre minha vida amorosa
melhorando muito…
De qualquer forma, o elogio de Ghislaine me trouxe de volta um pouco de
dignidade, no mínimo. Sorte a minha!
Naquela noite, depois que Ghislaine voltou para sua pousada, Eris se juntou a
Sylphie e Roxy para algum tipo de reunião privada.
Estava extremamente curioso sobre o que estavam discutindo, mas
presumivelmente não fui convidado por um motivo. Consegui conter a vontade
de ouvir. De relance, o clima parecia bastante amigável e Eris estava ouvindo
as outras duas atentamente, então provavelmente não havia nada para se
preocupar. Afinal, aquela garota tinha percorrido um longo caminho desde seus
anos mais selvagens de infância.
Acabei ensinando Norn um pouco no meu estudo. E uma vez que ela se deitou
para dormir, adicionei uma passagem ao meu diário. Este foi definitivamente
um dia digno de comemoração.
Quando meus pensamentos se voltaram para nosso futuro como família e meu
novo papel sob o comando de Orsted, me senti um pouco ansioso, mas
passamos por uma grande e turbulenta tempestade juntos. Isso era algo digno
de comemoração.
Quando saí do meu escritório, a casa estava completamente silenciosa. A
reunião deve ter terminado há algum tempo. Talvez as três estivessem
dormindo no mesmo quarto esta noite? Ou esperando por mim no meu quarto,
aliás…
Ok, não é provável.
De qualquer forma, quando o lugar estava tão silencioso, podia ser meio
perturbador. Pensando bem sobre isso, a visita do meu eu do futuro ocorreu em
uma noite tranquila como esta. Eu estava prestes a ter outra surpresa dramática?
Talvez algum carinha assustador com seu corpo inteiro escondido por uma
confusão borrada de pixels fosse aparecer das sombras para mim.
Vamos lá, agora você está apenas sendo ridículo…
Tinha chegado ao meu quarto agora. Não havia luz vindo de dentro, então
parecia que eu estaria sozinho esta noite…
Assim que estava pegando a maçaneta, a porta se abriu por dentro e fui
arrastado violentamente para dentro do quarto.
— Gaaaa!
Reflexivamente joguei a mão no meu agressor e comecei a canalizar mana
através dele, mas meu pulso foi agarrado e pressionado contra a porta, me
prendendo no lugar.
Por uma fração de segundo, pensei que estava acabado. Então notei quem eu
estava enfrentando.
— Ah. É só você, Eris.
Minha mais nova esposa, tendo colocado uma camisola casual, aparentemente
decidiu me emboscar.
— U-uhm, Rudeus…
Por alguma razão, seus olhos estavam extremamente vermelhos. Além disso,
seu rosto estava corado e ela respirava com dificuldade. Ela parecia
absolutamente furiosa. Eu já tinha feito algo para irritá-la? Precisava escolher
minhas palavras com muito cuidado.
— N-nós somos marido e mulher agora, certo? Oficialmente?
— Bem, sim. Oh, você quer ter uma cerimônia formal, talvez? Poderíamos
chamar um monte de gente e…
— Ah, não, eu nem me lembro mais como dançar… Olha, não é disso que
estou falando. Eu quero fazer aquilo.
Hmm. Fazer o quê, exatamente?
Contudo, antes que eu pudesse dar muito ao assunto, Eris jogou o braço em
volta dos meus ombros e me puxou para um beijo violento. Seus dentes
bateram contra os meus com força o suficiente para enviar uma pontada de dor
pela minha mandíbula. Tentei recuar, mas a porta atrás de mim tornou isso
impossível. Eris continuou esfregando sua testa contra a minha com
entusiasmo.
— Puah…
Quando finalmente consegui respirar, Eris moveu seu braço até minha cintura e
começou basicamente a me arrastar pelo chão. Em segundos, ela me trouxe
para cima da cama.
Espera. O que diabos está acontecendo aqui? Caralho. Você está indo muito
rápido, senhorita!
— Ah, Eris? Acho que devemos desacelerar um pouco. Você sabe, nós temos
que conversar sobre as coisas com Sylphie e Roxy primeiro…
— Eu já fiz isso. Sylphie disse que esta noite pode ser a minha vez.
— E quanto a Roxy? Ela pode querer que esperemos enquanto ela está
grávida…
— Ela estava bem com isso, na verdade.
Em algum momento durante essa conversa, Eris me jogou na cama. Ela estava
me segurando com tanta força que não conseguiria me libertar nem mesmo se
tentasse.
— Ei… eu quero que o primeiro filho seja um menino, ok?
A mulher ainda respirava com dificuldade pelo nariz. Ela não estava com raiva,
estava com tesão. Tinha que admitir, não esperava esse nível de entusiasmo
dela. Quero dizer, eu definitivamente não estava reclamando, era encantador
ver o quanto ela me queria. E meu corpo também não estava exatamente se
opondo aos avanços dela, se é que você entende o que quero dizer.
Mas, uh… não era para ser eu quem bancaria o dominador?
— Eu te amo, Rudeus. Você não iria me recusar, certo?
— Bem, c-claro que não. Mas tente se acalmar um pouco. Por que não
tomamos algum tempo para criar um clima primeiro? Podemos tomar algumas
bebidas, colocar em dia os últimos cinco anos e começar quando as coisas
estiverem agradáveis e românticas…
— Argh! Que se dane isso! Você sabe quanto tempo estive esperando para
fazer isso de novo?!
Mesmo enquanto falava essas palavras, Eris estava subindo na cama e se
posicionando em cima de mim. Suas pernas poderosas prenderam as minhas no
lugar e suas mãos pressionaram as minhas contra a cama; ela se inclinou,
empurrou o nariz contra a parte superior do meu peito e começou a cheirar
ruidosamente.
O que ela é, um cachorro? Espero não estar muito fedorento esta noite…
— Haah… haah… Rudeus… estamos casados agora, certo? Isso significa que
você é meu, certo?
— Huh?! Quero dizer, não exatamente… Estava esperando que você pudesse
me dividir com as outras duas, na verdade. Vamos todos nos dar bem…
— Mas é minha vez esta noite. Então você é meu agora.
Parecia que havia apenas uma resposta com a qual ela ficaria satisfeita.
— Bem, sim.
O aperto de Eris em meus pulsos ficou visivelmente mais forte.
Ai. Ai! Você está quebrando meus pulsos, garota! Nesse ritmo, vou ter que
pedir outro favor a Orsted!
— I-isso significa… que posso fazer o que eu quiser, certo?!
Hmm. O que ela estava planejando fazer, exatamente? O que seria de mim?
Bem, claramente ia envolver sexo. Eu era contra isso? Não. Então minha
resposta tinha que ser…
— C-claro, eu acho.
Assim que eu disse essas palavras, Eris se transformou em uma fera.
***
***
Depois de ler esta breve carta, pedi a Aisha que me preparasse o café da manhã
imediatamente.
Comi uma boa e sólida refeição, depois voltei ao meu quarto para me vestir.
Tentei escolher minhas roupas mais bonitas, checando com Aisha várias vezes
para ter certeza de que estava bem.
E então, com Aqua Heartia em uma mão e meu diário do futuro na outra, saí de
casa.
Zenith estava no quintal brincando com nosso animal de estimação Ente, então
gritei: “Volto logo, mãe”, ao sair. Ela acenou vagamente com a mão para mim
em resposta; quase parecia um gesto de até logo. Ao lado dela, Ente também
balançava seus galhos.
Eu não disse uma palavra para Sylphie ou os outros. Eu sabia que eles iriam
querer vir junto. Mas a carta me dizia para ir sozinho, então era exatamente isso
que eu ia fazer. Não é como se estivesse indo para a batalha desta vez, de
qualquer maneira.
Eu não poderia dizer que confiava completamente em Orsted. Ainda não, de
qualquer maneira. Mas sua carta mostrou alguma preocupação com meu bem-
estar, e seu tom não era hostil. Além disso, Nanahoshi parecia pensar que ele
era um cara decente, já que ela se opôs ao meu plano de lutar com ele em um
nível emocional. No mínimo, ele parecia mais confiável do que o Deus-
Homem. Isso era definitivamente o que eu queria acreditar.
— Ainda estou meio nervoso, no entanto — murmurei para mim mesmo
enquanto caminhava por uma rua tranquila em Sharia. Toda vez que passava
por uma poça de água na estrada, não podia deixar de parar para examinar meu
reflexo e me certificar de que estava bem. Decidi trabalhar para Orsted, em
outras palavras, ele era meu novo chefe. E quando seu chefe o chama para uma
reunião, você quer estar no seu melhor.
— Me pergunto se eu deveria ter colocado um pouco de colônia ou algo
assim…
Eu tinha tomado banho esta manhã, mas depois da noite que passei com Eris,
era bem provável que houvesse alguns cheiros infelizes em meu corpo. O que
exatamente o chefe pensaria se eu entrasse em seu escritório fedendo a sexo?
Não acho que me demitiria na hora, mas isso poderia deixar uma má impressão.
Era a última coisa que queria agora.
Orsted… era a única pessoa que tinha a chance de encontrar e derrotar o Deus-
Homem. E supostamente, ele faria isso acontecer algum dia, com a ajuda de
meus descendentes. É uma merda ser o Deus-Homem. Mas foi ele quem traiu
minha confiança primeiro, então tanto faz. Não estava disposto a simpatizar
com um cara que mataria Roxy e Sylphie para se proteger.
Eu era o cachorro de estimação de Orsted agora. Abanar meu rabo para ele e
mostrar minhas presas para seus inimigos. Essa é a única maneira que eu
poderia proteger minha família.
— Beleza…
Reconfirmada minha determinação, dirigi-me para os arredores da cidade com
passos mais rápidos e confiantes, evitando cuidadosamente a água barrenta
salpicada pelas carruagens que passavam.
Cheguei à minha cabana fora dos muros da cidade para achar algo diferente de
alguma forma. É difícil explicar em palavras, mas havia… algo estranho no ar
ao redor. Se isso fosse um mangá, a cabana definitivamente teria uma aura
ameaçadora rabiscada em torno dela. De relance, ficou óbvio que Orsted já
estava esperando por mim lá dentro.
Respirei fundo algumas vezes, então bati bruscamente na porta.
— Sou Rudeus Greyrat, senhor! Estou aqui conforme solicitado!
— Ah. Isso não demorou muito.
Mesmo sabendo que estava lá, tremi um pouco ao som de sua voz.
Definitivamente havia uma parte de mim que ainda estava com medo dele. —
Tenho sua permissão para entrar?
— Por que está me pedindo permissão? Você não é o dono desta cabana?
— Sim, senhor! Entrando, senhor!
Quando abri a porta e entrei na cabine, encontrei Orsted sentado em uma das
cadeiras, me encarando com raiva.
Bem… talvez ele não estivesse me encarando. Seu rosto era apenas assustador
por natureza.
Fechei a porta atrás de mim e caminhei o mais rápido que pude. Parei bem ao
lado da cadeira em frente a Orsted e fiquei em posição de sentido. Ele olhou
para mim com uma expressão ligeiramente desconfiada no rosto.
— Hmm. Eu meio que esperava que você viesse aqui com todos os seus amigos
unidos… mas vejo que há apenas dois de vocês.
— Sim, senhor! Eu vim sozi… Peraí, dois de nós?
Fiquei um pouco desconcertado com isso. A menos que os olhos de Orsted
estivessem ficando tão ruins que ele estivesse enxergando em dobro, o
comentário não parecia fazer muito sentido.
— Eris Greyrat! — gritou Orsted. — Você pode entrar também!
Um instante depois, a porta da cabine se abriu ruidosamente. Eris estava do
lado de fora. Sua espada já estava pendurada em sua mão, e havia morte em
seus olhos.
— Orsted! — ela gritou, balançando sua lâmina até apontar para ele. — Se
encostar um dedo em Rudeus, vou te cortar na hora!
A força e a fúria de sua voz teriam feito um homem inferior fazer xixi nas
calças, mas Orsted estava totalmente inabalável. — Não tenho intenção de
machucá-lo.
— Bem, eu não confio em você!
— Suponho que não.
Sem mais, Eris caminhou até um canto da cabine e cruzou os braços
ameaçadoramente.
Ainda um pouco atordoado por esta entrada dramática, olhei de Orsted para
Eris e de volta para ele. Deveria estar dando minhas desculpas agora?
Explicando que não a trouxe comigo? Insistindo que não o via como um
inimigo? O problema era que não podia dar desculpas para a espada que ela
estava segurando. O que deveria fazer aqui?
Enquanto eu hesitava, Orsted falou. — Qual é o problema, Rudeus Greyrat?
Sente-se. Nós precisamos conversar.
— Er, certo. Perdão. — Sentei-me, claro. Mas minha mente ainda estava em
Eris e sua arma desembainhada. — Uhm, sobre Eris…
— Sua reação deixou claro o suficiente. Ela o seguiu até aqui sem seu
conhecimento, imagino.
— Bem, sim. Acho que sim… Se importaria se eu tivesse uma palavrinha com
ela antes de começarmos?
— À vontade.
Pelo menos parecia que ele não estava muito chateado. Virando-me na cadeira,
rapidamente chamei Eris com minha mão.
— O que é isso, Rudeus?
— Eris, por que você me seguiu?
— Te vi todo bem vestido. Só queria saber para onde estava indo.
Todo bem vestido? Bem, hum. Eu tinha escolhido minhas melhores roupas e
mexi no meu cabelo por um tempo. Talvez ela tenha pensado que eu estava
saindo em um encontro secreto ou algo assim…
— Entende que estou trabalhando para Orsted agora, não?
— Sim. Mas é Orsted, Rudeus… Ele está obviamente planejando algo, certo?
Estou preocupada que ele possa estar enganando você de alguma forma.
— Isso é possível, mas é muito cedo para dizer com certeza. Por enquanto,
você acha que pode manter a calma e apenas nos deixar conversar?
“…”
— Nós podemos lutar contra ele juntos se eu descobrir que ele está me
enganando. Estou contando com você, Eris.
— Oh. Aí sim! Entendi.
Aparentemente satisfeita com isso, Eris embainhou sua espada e se sentou ao
meu lado. Era bom que sua mente funcionasse de maneira tão simples.
— Sinto muito por isso.
— Tudo bem.
— Parece que Eris tem muita dificuldade em confiar em você, Senhor Orsted…
Mas suponho que seja apenas a maldição em ação.
Os olhos de Orsted pareceram brilhar com isso. — Quem te contou sobre
minha maldição em primeiro lugar?
— O Deus-Homem. Ele contou que você sofre de várias delas, na verdade.
Respondi honestamente e sem hesitação. Me preparei para contar a Orsted tudo
sobre minhas conversas com seu inimigo.
— Entendo…
Orsted levou a mão ao queixo e virou o olhar para cima por um momento. O
teto da minha cabine não era muito para se olhar, então provavelmente estava
apenas pensando nas coisas.
— Prioridades antes. Deixe-me cumprir a promessa que fiz a você.
— Huh?
— Por que você parece tão surpreso? Não sou como seu mestre anterior.
Mantenho minha palavra.
Isso é bom de ouvir, mas eu só estou me perguntando sobre o que ele está
falando… ele me prometeu alguma coisa em algum momento?
— Falo de meu método para proteger sua família do Deus-Homem.
Oh. Ohhh! Mas é claro. Como pude esquecer de algo assim?
Acho que não tinha pensado em todo aquele acordo como uma promessa,
exatamente. Parecia mais um contrato. Você sabe, do tipo que você usa para
vender sua alma ao diabo. Mas, novamente, as cláusulas de um contrato são
basicamente apenas um monte de promessas, não é? Certo.
— Tem certeza? Na verdade, ainda não fiz nada em seu nome.
— Sim, mas imagino que não conseguirá se concentrar em nenhuma tarefa se
estiver constantemente preocupado com a segurança de sua família.
— Bem, sim. É uma verdade irrefutável.
Huh. Ele estava realmente sendo meio atencioso aqui, não estava? Não
esperava um tratamento tão amigável logo de cara, para ser honesto. Esperava
que me mandasse severamente. O homem tinha um rosto assustador, mas
parecia um chefe surpreendentemente bom. Não conseguia entender o porquê
de Eris ainda estar olhando tão ferozmente para ele.
— De qualquer forma, que método específico você tem em mente para protegê-
los?
— Não é nada muito complexo. Basta invocar uma fera guardiã com um
destino forte e a ordenar que os mantenha seguros.
— Entendo. Infelizmente, ainda não sei como usar magia de Invocação.
— Muito bem. Desenharei o círculo mágico. Apenas canalize a mana através
dele.
— Oh. Isso funciona, então. Desculpe o incômodo.
Hmm. Uma fera guardiã com um destino forte, hein? Em outras palavras,
teríamos um cão de guarda protegido pelas leis da causalidade…
— Isso será realmente suficiente para mantê-los seguros, no entanto?
— O Deus-Homem não tem influência sobre nada além dos humanos. Além
disso, não pode manipular muitos indivíduos a qualquer momento; enquanto
estivermos agindo, ele deve estar ocupado tentando nos impedir. Dada a
personalidade dele, isso deve ser mais do que suficiente para proteger seus
entes queridos.
Ótimo, agora estávamos psicanalisando o cara.
Essa parte sobre ele não ser capaz de influenciar muitas pessoas ao mesmo
tempo foi interessante, no entanto. Isso implicava que ele poderia controlar
pelo menos alguns simultaneamente. Ele estava se intrometendo na vida de
outras pessoas enquanto brincava comigo?
— No entanto, não deve baixar a guarda. O Deus-Homem é tortuoso e
imprevisível. Não deixe tudo para a fera guardiã, certifique-se de estar lá para
eles também.
Para ser honesto, essas palavras soaram meio erradas saindo da boca de Orsted.
Ele simplesmente não parecia o tipo de cara que lembraria você de passar
tempo com sua família. Não se pode julgar um livro pela capa e tudo, mas
sério…
De qualquer forma, já que ele estava disposto a preparar essa invocação para
mim, eu aceitaria com prazer.
Agora era hora de começar a trabalhar. Havia todo tipo de coisa que eu queria
perguntar a Orsted, é claro, mas também precisava cumprir minha parte nessa
barganha. Não faria mal perguntar proativamente quais eram minhas ordens.
— Tudo bem então. O que você gostaria que eu fizesse por você a partir de
agora?
— Não tem outras perguntas a fazer?
Hum. Não esperava que ele reagisse assim… — Claro que sim. Muitas, aliás.
— Por que não as está fazendo, neste caso?
— Bem, não queria incomodar muito, acho.
Orsted soltou um suspiro e balançou a cabeça. — Você é meu aliado agora. Em
outras palavras…
— Sou seu subordinado, Senhor Orsted. Acho que devemos manter a cadeia de
comando agradável e clara.
O homem tinha me espancado completamente. E agora pensava em maneiras
de proteger minha família. Mesmo eu não era sem vergonha o suficiente para
fingir que éramos iguais neste relacionamento.
— Muito bem, se é assim que prefere… Mas independentemente disso, nós
dois estaremos trabalhando juntos para derrotar o Deus-Homem. É importante
que você aprenda tudo o que precisa saber.
— Certo, mas e se eu fosse o espião do Deus-Homem ou algo assim? Por tudo
que você sabe, eu poderia começar a fornecer informações a ele todas as noites.
— Eu confio em você, Rudeus Greyrat — disse Orsted, olhando-me
firmemente nos olhos. — Você arriscou sua vida pelo bem de sua família, e
isso lhe rendeu meu respeito.
Uau, vai acabar me fazendo corar!
Quero dizer… acho que eu estava bem desesperado naquela época, claro. E se
isso era bom o suficiente para fazê-lo confiar em mim, certamente não estava
reclamando. Poderia muito bem aceitar sua oferta.
O que eu deveria perguntar a ele?
Várias coisas vieram à minha mente. Por que ele estava tão obcecado com o
Deus-Homem? O que era o tal Fator Laplace que ele havia mencionado? O que
ele sabia sobre o Incidente do Deslocamento? E ele poderia explicar um pouco
mais claramente sobre esse tal “destino”?
Eram as grandes perguntas do momento.
— Tudo bem então. Vou citar questão por questão, sendo assim.
Parecia melhor começar com sua rixa contra o Deus-Homem… ou a natureza
de seu relacionamento, na verdade. Hmm. Então, provavelmente precisava
ouvir mais sobre o próprio Orsted antes que eu pudesse chegar a isso.
— Poderia me contar mais sobre você, Senhor Orsted?
— Gostaria de ouvir a minha história?
— Isso. Se não se importar.
— O que o Deus-Homem lhe disse sobre mim? Parece que ele mencionou
minhas maldições, ao menos.
— Uhhhm…
Fazia cinco anos desde aquele encontro em particular, então foi um desafio
lembrar exatamente o que ele disse. Concentrei-me atentamente, tentando tirar
as palavras da minha memória.
— Contou-me que você possui quatro diferentes tipos de maldição,
especificamente.
— Siga em frente…
— A primeira maldição faz com que tudo que vive neste mundo o odeie ou o
tema. A segunda impede que o Deus-Homem o veja. A terceira impede que dê
tudo de si. E ele não sabia qual é a quarta.
— Entendo — disse Orsted com um pequeno aceno de cabeça. — Comecemos
com a primeira maldição, então. Desde o dia em que nasci, de fato fui odiado
por tudo que vive neste mundo.
— Eu particularmente não o odeio, no entanto…
— Algumas exceções assim existem. Como Nanahoshi e você.
— Certo então.
Então há exceções. O fato de Nanahoshi e eu termos vindo de um mundo
diferente provavelmente era relevante nisso. Devo aproveitar esta oportunidade
para revelar a verdade sobre mim mesmo? Com Eris ao meu lado, estava um
pouco relutante em fazê-lo. Mas manter segredos de Orsted não me parecia
uma ideia sábia neste momento.
— Eu não estava tentando esconder isso de você nem nada, mas… eu era
originalmente do mesmo mundo de onde Nanahoshi veio. Talvez tenha algo a
ver com isso?
— Então… Rudeus Greyrat não é seu verdadeiro nome?
— É uma longa história, mas não sou exatamente como Nanahoshi. Meio que,
uhm… acordei aqui no corpo de um bebê chamado Rudeus Greyrat, eu acho…
não sei como explicar, na verdade.
— Ah. Então você reencarnou.
Pisquei de surpresa. Não esperava que essa palavra saísse da boca de Orsted tão
suavemente. Agora que pensava sobre isso, porém… senti como se tivesse
visto algumas notas no diário sobre a Tribo dos Dragões possuindo algum meio
de reencarnação. Algo sobre como eles poderiam voltar em um novo corpo
algumas décadas depois de morrerem. Talvez fosse um conceito bastante
comum para eles.
— Muito provavelmente, a razão pela qual você não me teme está ligada à sua
reencarnação.
— Há outros que não o temem?
— Além de um punhado de exceções, apenas aqueles descendentes da antiga
Tribo dos Dragões.
Então Perugius, por exemplo… embora ele parecesse aterrorizado com Orsted,
na verdade. Talvez isso não tivesse nada a ver com a maldição. Às vezes você
tem razões perfeitamente boas para ter medo de alguém.
— Quanto à segunda maldição, que me mantém longe da vista do Deus-
Homem… isso não é maldição, na verdade.
— O que é, então?
Orsted parou por um momento para pensar, depois me olhou nos olhos mais
uma vez. — Uma espécie de arte secreta, criada pelo primeiro Deus Dragão
como uma ferramenta para usar contra o Deus-Homem. Isso me permite ver o
fluxo do destino e garante que certas… leis deste mundo não se apliquem a
mim.
— Hmm…
— O Deus-Homem possui grande conhecimento do futuro, e seus olhos
enxergam longe. Mas eles estão cegos para aqueles fora da jurisdição do
mundo.
Interessante. Não tinha ideia do que “fora da jurisdição do mundo” significava,
mas ser totalmente invisível para o Deus-Homem soava como algo realmente
atraente.
— Você poderia explicar essa parte sobre ver o fluxo do destino?
— Hm. Vejamos…
Em silêncio, Orsted assumiu sua pose contemplativa novamente. Tinha que
esperar que isso não significasse que ele estava pensando em uma mentira para
o momento.
— Quando olho para alguém, posso ver os grandes contornos da história de sua
vida.
Bem, isso é meio vago… — Isso significa que você também tem o poder de
prever?”
— Não… eu não vejo o futuro. Eu vejo a história como ela é ordenada pelo
destino.
Hmm? Agora ele parecia um filósofo ou algo assim. Não entendi bem a
diferença entre esse poder e a previsão real. No momento, parecia mais fácil
pensar nisso como uma versão de nível inferior da habilidade do Deus-Homem.
— Você poderia usar essa arte secreta em mim também?
— Isso seria imprudente.
— Por que diz isso?
Eu não tinha certeza de ver o destino das pessoas, mas seria muito bom me
esconder do Deus-Homem. Eu queria saber o motivo real por trás de sua
recusa.
— A arte tem o efeito colateral de diminuir drasticamente sua taxa de
regeneração de mana.
— Quão drasticamente?
— Você regenerou seu suprimento de mana completamente em dez dias, sim?
Sob a influência da arte, isso levaria cerca de mil vezes mais.
Mil vezes mais? Isso seria, algo como… trinta anos mais ou menos?
— Como resultado disso, não posso usar magia livremente. E essa é a razão
pela qual eu raramente luto com todas as minhas forças.
Aha. Basicamente, sua mana se regenerava tão lentamente que ele não podia
usá-la com muita frequência. Eu não sabia o quão grande era seu suprimento de
mana, mas supondo que levasse anos para reabastecer, ele teria que ter muito
cuidado com a conservação de energia.
— Embora eu não possa usar a arte secreta em você, o bracelete que lhe dei
fornece um efeito semelhante.
Olhei para o bracelete no meu pulso esquerdo. Aparentemente era uma espécie
de dispositivo de interferência ao Deus-Homem. — Então isso não tem nenhum
efeito colateral? Talvez se o produzíssemos em massa…
— Eu já teria feito isso, se fosse possível. E removido minha maldição também.
Certo. Uma pergunta meio imbecil.
— Usei uma quantia considerável de mana na minha batalha contra você —
Orsted continuou. — Serei incapaz de lutar com todas as minhas forças por um
tempo.
— Huh? Espere, realmente? Mas você me derrotou instantaneamente.
— Fui forçado a resistir a golpes diretos de sua magia muitas vezes e,
finalmente, a desenhar a Lâmina Divina — disse Orsted, seu tom de voz
distintamente amargo. — Me custou muito esforço.
Hum. Do meu ponto de vista, ele me jogou no chão sem suar a camisa… mas
aparentemente eu lutei melhor do que imaginava. Um esforço sólido, se assim
posso dizer. Hoh hoh hoh.
— De qualquer forma, meu suprimento de mana está bem baixo no momento.
Assim, precisarei que tome uma atitude em meu lugar.
— Certo… farei o que puder.
Então eu estava trabalhando no custo do dano que fiz, basicamente. Isso parecia
bastante justo.
— Sobre outro assunto, Senhor Orsted… poderia contar-me a razão de sua luta
contra o Deus-Homem?
— Ah… sim, há isso…
Orsted olhou de lado, olhando para o nada, seu tom um tanto relutante. Eu tinha
notado muitas dessas pausas pensativas nesta conversa. Afinal, o homem estava
mentindo para mim? Eu não queria pensar assim, especialmente depois de
ouvir que ele confiava em mim… mas, novamente, seria estranho se ele
confiasse em mim completamente neste momento. Havia uma boa chance de
que ele estivesse me alimentando com algumas falsidades simples por enquanto
e reservando seu julgamento final até que eu provasse ser confiável.
— O Deus-Homem… causou a morte de meu pai.
— Oh?
Vingança, hein? Definitivamente um motivo clássico. A mesma coisa que
motivou meu futuro eu a tentar matar o Deus-Homem. Seria fácil para mim
zombar de tais desejos no momento, já que ninguém que eu amava realmente
havia sido tirado de mim ainda. Mas aquele diário deixou bem claro que eu
acabei vivendo por vingança naquela linha do tempo.
— Além disso, sua destruição era o maior desejo da antiga Tribo dos Dragões.
Todos os Deuses Dragões existiram apenas para perseguir esse objetivo.
Certo, então havia algum senso cultural de dever envolvido também…
Espere, todos os Deuses Dragões?
— Uhm, quantos Deuses Dragões existiram?
— Eu sou o centésimo, parece. E todos os noventa e nove que vieram antes de
mim dedicaram suas vidas para derrubar o Deus-Homem.
— Uau. Entendo.
— No entanto, apenas um Deus Dragão de grande força e sangue puro
realmente tem uma chance de ter sucesso nesta tarefa. — Os olhos afiados e
brilhantes de Orsted fixaram-se nos meus; depois de um momento, ele
continuou com uma voz calma e firme. — Foi por essa razão que meu pai, o
primeiro dos Deuses Dragões, me reencarnou no futuro.
Capítulo 13: Explicações
— NGHAH?!
Os olhos de Eris se abriram violentamente. Ela acordou com um ganido um
tanto indigno.
— Hmm…?
Ela se sentou na cama e coçou o cabelo desgrenhado, olhando sonolenta ao
redor ainda confusa. Estava em uma cama desconhecida num quarto
desconhecido. A janela e o armário eram novos para ela também.
No entanto, ela reconheceu as duas espadas encostadas na cama — e as roupas
espalhadas descuidadamente pelo chão. Ficou claro que ela veio dormir aqui
por iniciativa própria na noite passada.
— Ah, certo…
Uma vez que tinha processado tudo isso, suas memórias da noite anterior
voltaram para ela com bastante facilidade.
Ela se lembrou de salvar a vida de Rudeus e lutar contra Orsted para protegê-lo.
Em seus anos no Santuário da Espada, sonhou em lutar contra Orsted em
muitas ocasiões. Nos dias em que ela se esforçava ao máximo em seu
treinamento e adormecia no momento em que sua cabeça batia no travesseiro,
quase sempre acontecia. Os sonhos mudaram um pouco à medida que ela
crescia e ficava mais forte, mas sempre envolvia ela lutando contra o Deus
Dragão ao lado de Rudeus, e ela sempre acordava antes que o duelo fosse
concluído.
Ontem, no entanto, sua batalha tinha chegado ao fim. Algo que nunca havia
acontecido antes. E o resultado não foi nada como ela havia imaginado. Parecia
estranho demais para ser real. Ela assumiu que deveria ter sido outro sonho.
Mas a julgar por onde ela se encontrou nesta manhã…
— Acho que aquilo realmente aconteceu — Eris murmurou pensativa.
No dia seguinte à batalha com Orsted, ela acordou na casa da família Greyrat.
Eris Greyrat estava começando a se sentir desconfortável.
Por muitos anos, seu sonho era lutar contra Orsted ao lado de Rudeus. Foi toda
a razão pela qual ela viajou para o Santuário da Espada. Agora havia cumprido
esse objetivo; as coisas não tinham saído exatamente como tinha imaginado,
mas ela se manteve firme contra o Deus Dragão.
Claro, ela havia pensado um pouco no que viria depois disso. Seu plano era
viver feliz para sempre com Rudeus. Nunca foi muito clara sobre como isso se
daria exatamente, mas ainda era sua intenção fazer isso acontecer.
No entanto, apesar de como ela se sentia sobre o assunto, nos dias depois de
chegar a esta casa, se viu incapaz de manter uma conversa com Rudeus.
Eris murmurou enquanto lavava o rosto. — Eu não entendo.
Este banheiro tinha um grande espelho sobre a pia, oferecendo-a uma boa visão
de si mesma. Ela estudou seu rosto por um momento: cabelo ruivo
despenteado, olhos arregalados e uma boca que parecia carrancuda toda vez
que a fechava. Ela conseguiu lavar a baba seca de sua bochecha, mas não
ajudou muito.
A palavra fofa definitivamente não se aplicava a ela. Quando considerou o
significado desse termo, dois rostos imediatamente apareceram em sua mente.
As feições de Sylphie e Roxy eram diferentes, mas ambas poderiam ser
descritas como adoráveis. Elas não tinham os olhos afiados e arrebitados de
Eris ou sua juba de cabelo bagunçado, e não pareciam zangadas quando
fechavam a boca. Suas figuras eram muito diferentes das dela também. Seus
corpos não eram tão… femininos, mas Rudeus parecia preferir as coisas assim.
Claro, Eris não poderia magicamente mudar sua aparência da noite para o dia,
então desistiu de competir com elas neste aspecto. Contudo
havia outros aspectos problemáticos a serem considerados também. Sylphie era
o tipo de mulher que cuidava bem de sua família e de sua casa. Não só podia
cuidar das tarefas ou cozinhar uma refeição decente — ela também era gentil e
atenciosa com todos. Não importa o quão estupidamente Eris pudesse se
comportar, Sylphie nunca iria rir dela pelas costas. E acima de tudo, era óbvio
que ela amava muito Rudeus. Qualquer um que pudesse reconhecer o quão
incrível Rudeus era, ganharia alguns pontos com Eris.
Quanto a Roxy, bem… ela era alguém que até Rudeus respeitava
profundamente. Tinha um lado um pouco desajeitado, mas parecia uma pessoa
calma e inteligente, com uma visão sábia da vida. E, além disso, tinha um bom
emprego na universidade, o que a tornava a que tinha o maior salário na casa.
Rudeus havia contado a Eris como ela era maravilhosa em suas viagens juntos.
No que dizia respeito a Eris, qualquer um que Rudeus respeitasse era alguém
digno de respeito também.
Assim, em comparação, onde isso deixava a própria Eris?
Ela não era muito boa em trabalhos domésticos ou cozinhar. Quando se tratava
de ganhar dinheiro, trabalhar como aventureira era a única coisa que ela sabia
fazer… e era difícil dizer o quão bem ela conseguiria isso sem Rudeus
cuidando de todos os detalhes complicados.
Para deixar claro: Eris tinha toda a intenção de ficar com Rudeus a partir de
agora. Algumas coisas não funcionaram bem como ela esperava, mas esses
eram todos apenas pequenos detalhes em sua mente. Claro, havia uma parte
dela que o queria só para ela, e tinha alguns sentimentos contraditórios sobre se
tornar a esposa número três, mas ela aceitou tudo isso algum tempo atrás.
Rudeus passou por um período muito difícil por causa dela, além disso, ela viu
muitos homens com várias esposas em Asura. Não havia nada de estranho nisso
para ela.
Dito isso, agora que realmente conheceu suas outras esposas, ela estava
começando a se sentir meio inadequada.
Eris não era mais uma criança. Sabia que a vida não era simples ou fácil. Ela
ainda não tinha uma grande noção de quão complicada poderia ser, mas estava
bem ciente de que não poderia passar por isso apenas com suas habilidades
com a espada.
Antigamente, ela nunca se preocupou com todas essas outras coisas. Em sua
mente, Rudeus poderia cuidar de tudo, e isso significava que ela não precisava
se preocupar, mas depois de ver Sylphie e Roxy em ação, não se sentia mais
assim. A razão pela qual fugiu para o Santuário da Espada em primeiro lugar
foi para se tornar igual a Rudeus. Ela queria se tornar mais forte a fim de não
ser mais um fardo para ele.
E ela com certeza havia alcançado esse objetivo, mas agora que estava de volta,
Rudeus já tinha duas mulheres o apoiando. Ambas tinham todos os tipos de
habilidades valiosas para a vida diária que usavam ativamente para ajudá-lo de
centenas de maneiras diferentes.
Talvez ela não tivesse as qualificações para ser sua esposa, afinal. Talvez fosse
por isso que ele continuava lançando olhares estranhos para seu rosto, em vez
de trazer à tona sua proposta de casamento.
Era um pensamento angustiante que não conseguia se livrar.
Em circunstâncias normais, Eris poderia ter deixado todas as suas preocupações
de lado e atacado Rudeus de frente, mas essas não eram circunstâncias normais,
e seus sentimentos de dúvida ficaram tão fortes que ela não conseguia começar
a conversa.
— Tudo bem!
No entanto, Eris naturalmente não era capaz de pensar muito. E não era a
jovem mimada que tinha sido uma vez, incapaz de agir por conta própria. Ela
era uma mestre espadachim que estudou no próprio Santuário da Espada,
ganhando o prestigioso posto de Rei da Espada.
Durante o caminho de sua ascensão, Eris aprendeu exatamente o que fazer
quando sentia dúvida. Quando lhe faltavam as qualificações necessárias, era
apenas uma questão de obtê-las.
Depois de se lavar e terminar seus treinos diários, Eris rapidamente enxugou o
suor e então foi direto para a cozinha onde Sylphie, Aisha e Lilia já estavam
agitadas.
Apenas alguns dias se passaram desde a batalha com Orsted, que foi uma
experiência estressante e cansativa para todos, mas com três cozinheiras
competentes na cozinha trabalhando em um número bastante pequeno de
pratos, as coisas pareciam estar indo bem o suficiente.
Mesmo assim, Eris gritou: — Deixem-me ajudar também! O que devo fazer
primeiro?!
— Você apenas espera pacientemente até que a comida esteja pronta, Eris! —
Aisha respondeu instantaneamente.
A mensagem implícita aqui era “não há nada para você ajudar”. Aisha era uma
garota alegre e doce por natureza e não tinha nada além de carinho e respeito
por sua nova irmã mais velha, mas também sabia que Eris não sabia cozinhar
nem se fosse para não morrer de fome. Além disso, elas tinham a situação sob
controle como estava.
Infelizmente, Eris também não era muito boa em ler nas entrelinhas.
— Não posso ficar sentada para sempre! Serei a esposa de Rudeus também!
Aisha de alguma forma resistiu ao desejo de suspirar de exasperação e olhou
para Sylphie, que estava sorrindo sem jeito. Sylphie era a responsável aqui,
então a decisão final cabia a ela.
— Uhm… você sabe cozinhar, Eris? — Sylphie perguntou, sua voz gentil.
— Posso ajudar, pelo menos! — Eris respondeu, estufando o peito com
confiança.
— Bem, tudo bem… Você poderia cortar esses vegetais para mim, então?
Vamos usá-los em um ensopado, mas eles são sempre um pouco difíceis de
cortar.
Sylphie entregou a Eris uma faca de cozinha e a apontou na direção certa. Eris
olhou para os legumes recém-descascados que pareciam abóboras diante dela,
transbordando de excitação.
— Eu só preciso cortar isso, certo?
— Sim, mas eles são bem duros. Acha que pode cuidar disso?
— Claro. Sou muito boa com uma espada.
— Uhm, mas isso é uma faca de cozinha…
Eris basicamente não tinha feito nada exceto praticar com a espada por anos,
mas em seus dias de aventureira, Ruijerd a ensinou como tirar a pele de um
monstro morto, e ela também preparou carne algumas vezes. Não era como se
não tivesse nenhuma experiência com culinária, em outras palavras.
Infelizmente, os preparativos para o café da manhã da família Greyrat não
envolviam a dissecação de monstros venenosos, mas Eris estava convencida de
que poderia cortar alguns vegetais com bastante facilidade.
— Huh?
No entanto, a abóbora provou ser muito mais dura do que Eris havia previsto e
sua faca parou no meio dela. Ela era muito boa em acertar alvos em movimento
rápido, mas esta era a primeira vez que enfrentava um objeto imóvel em uma
tábua de corte. Talvez fosse algo que você precisasse praticar.
No entanto, Eris era uma Rei da Espada agora; sabia como lidar com uma
lâmina. E sabia como cortar as coisas, mesmo que fossem um pouco duras.
— Uhm, Eris? Você quer cortar isso em mais de um…
— Hmph!
Assim que Sylphie estava prestes a ensinar-lhe o truque para isso, Eris exalou
bruscamente, levantou sua faca muito rápido para os olhos seguirem, e
balançou violentamente de volta para baixo.
Sylphie não viu nem um borrão. Ela acabou de ouvir o pedaço da lâmina
atingindo o alvo e viu a abóbora dividida ao meio… junto com a tábua de corte
embaixo dela. A tábua de corte que Rudeus comprara para ela quando se
casaram e ela vinha usando desde então.
— Gostou disso? — disse Eris orgulhosamente.
As bochechas de Sylphie se contraíram levemente, mas ela conseguiu se
controlar. Ela gostava daquela tábua de corte, sim, mas era um objeto prático e
acabaria se desgastando de qualquer forma. Eles sempre poderiam comprar
outra.
— Aaaah! Essa é a tábua de corte que Rudeus comprou para Sylphie como
presente de casamento! — Aisha gritou no lugar de Sylphie. Pegando as duas
metades da tábua quebrada, ela olhou para Eris com reprovação. — Eris, você
é terrível!
— Uhm…
Lenta e ansiosamente, Eris olhou para Sylphie. As bochechas da mulher ainda
estavam se contorcendo, mas de alguma forma ela conseguiu manter um sorriso
no rosto.
— Ah, e-está tudo bem. Não é como se ela tivesse feito isso de propósito,
certo?
— D-desculpe por isso.
O pedido de desculpas de Eris foi genuíno. Se alguém tivesse cortado um
presente que Rudeus lhe deu ao meio, ela sabia que teria surtado com eles.
— Acho que vamos deixar outra pessoa lidar com o corte dos legumes hoje, no
entanto.
Nos minutos seguintes, Sylphie fez um esforço para encontrar pequenas tarefas
nas quais Eris pudesse ajudar. Infelizmente, ela se mostrou muito mais
desajeitada do que o esperado. Quando tentou aquecer alguma coisa, quase
causou um incêndio; quando lavava uma panela que tinham acabado de usar,
ela de alguma forma dobrava o cabo; e quando levava comida para a mesa,
acabava derrubando tudo no chão. Normalmente, ela poderia ter lidado bem
com essas tarefas, mas estava fazendo tudo com um pouco de vigor em
excesso hoje.
Quando você está se esforçando muito, é fácil cometer erros que não cometeria
normalmente.
Por fim, Eris acabou a tarefa de afiar as facas de cozinha que estavam ficando
cegas. Enquanto a maior parte do que ela praticou recentemente dizia respeito a
como usar sua espada, ela também aprendeu como mantê-la. Ruijerd havia a
ensinado o básico e ela tinha uma extensa prática no Santuário da Espada
também. Havia boas razões para isso. Para os praticantes do Estilo Deus da
Espada, que procuravam derrubar seus oponentes em um único golpe, era
crucial manter sua espada afiada.
Uma faca de cozinha não era uma espada, obviamente, mas ainda era uma
lâmina. Não havia muita diferença em como você a mantinha. No final daquela
manhã, todas as facas na cozinha da família Greyrat pareciam afiadas o
suficiente para cortar aço; essa conquista rendeu a Eris uma boa quantidade de
elogios de Sylphie e das outras.
Claro, ela estava plenamente consciente do fato de que este não era bem o tipo
de trabalho doméstico que ela esperava ajudar.
Eris tinha estragado tudo na cozinha. Ainda assim, não estava disposta a
desistir. Parecia que cozinhar não era o seu forte, mas ela ainda podia encontrar
uma maneira de ganhar seu sustento, pelo menos. Com esse pensamento em
mente, partiu para a Universidade de Magia de Ranoa, onde Roxy trabalhava
como professora. O plano era explicar a situação e ver se Roxy sabia algum
trabalho para o qual ela pudesse ser adequada.
— Uhh… Você quer saber se há alguma coisa em que possa ajudar?
Eris chegou assim que Roxy estava começando seu almoço — distraindo-a do
mistério do porquê do conteúdo de sua lancheira estar levemente carbonizado
hoje.
— Sim! Todo mundo diz que é uma grande ajuda ter você trazendo para casa
aquele bom salário regular. Serei a esposa de Rudeus também, então realmente
deveria ganhar algum dinheiro.
— Ah, entendi. Bem, eu certamente posso fazer meu melhor para ajudá-la a
encontrar um emprego, nesse caso.
— Obrigada, Roxy!
— Primeiro de tudo, você pode me dizer quais são suas habilidades?
A mente de Eris imediatamente saltou para as coisas que Rudeus a havia
ensinado muitos anos atrás. Este lugar era uma escola, então parecia ser o
conhecimento mais relevante que possuía.
— Eu sei ler, escrever e fazer aritmética! Ah, e também conheço um pouco de
magia básica!
Claro, Eris não era especialmente boa em nenhuma dessas coisas, mas ainda
deu sua resposta com confiança.
Roxy ficou em silêncio e tentou pensar sobre isso.
Eris era uma Rei da Espada. Naturalmente, a melhor opção era encontrar um
emprego para ela em que esse título fosse relevante. Embora não estivesse claro
se ela tinha a capacidade de ensinar aos outros suas habilidades, encontrar para
ela um cargo como instrutora de esgrima parecia a opção ideal. Ela ainda não
tinha as qualificações necessárias para se tornar um membro formal do corpo
docente, mas poderia ser contratada como instrutora assistente imediatamente.
Felizmente, a Universidade de Magia oferecia aulas de esgrima a seus alunos e
a recomendação de Roxy contaria para algo aqui.
O atual instrutor de esgrima da Universidade era do nível Avançado em seu
estilo, o que o tornava inferior a Eris. Havia uma chance de que aceitar um
assistente tão poderoso fosse demais para seu orgulho tolerar… mas enquanto
considerava isso, Roxy se lembrou de ver o homem falando animadamente
sobre a chegada de duas Reis da Espada em Ranoa no outro dia. Ele até
mencionou algo sobre o quanto ele queria conhecê-las, e talvez até aprender
uma coisa ou duas sob sua instrução. Neste exato momento, o homem parecia
estar lançando olhares ciumentos em sua direção do outro lado da sala dos
professores. Roxy teve a sensação de que ele poderia endossar essa ideia com
entusiasmo se ela o chamasse.
No entanto… Eris não mencionou sua esgrima em resposta à pergunta de Roxy
sobre suas habilidades. Por que será?
Roxy era uma mulher inteligente. Não demorou muito para ela chegar a uma
resposta.
Eris era uma Rei da Espada, um nível acima até mesmo dos Cavaleiros da
Espada. Somente os verdadeiramente talentosos e poderosos ganharam esse
título. Entre os magos que subiram para o nível equivalente, havia muitos que
só aceitavam alunos específicos que consideravam promissores. Com toda a
probabilidade, Eris também não estava disposta a ensinar suas habilidades a
qualquer um. Nesse caso, sugerir que ela aceite um emprego como instrutora
assistente de esgrima seria muito imprudente. Ela pode até tomar isso como um
insulto.
Claro, tudo isso era apenas Roxy pensando demais nas coisas, mas mesmo
assim, ela optou por uma sugestão diferente.
— Tudo bem então. Que tal um emprego como segurança?
— Uma segurança? Isso soa meio chato.
— Bem, a maioria dos empregos é um pouco monótona, receio.
— Hmm… Sim, acho que até mesmo se aventurar era um pouco chato às
vezes. Está bem então.
Em poucos minutos, a recomendação de Roxy garantiu a Eris um teste como
guarda de segurança da Universidade de Magia de Ranoa.
Uma vez que as formalidades foram cumpridas, Roxy levou Eris para a entrada
principal da Universidade de Magia. Como Eris ainda não tinha uma boa noção
do layout do campus, guardar o portão da frente era o único trabalho que ela
podia fazer no momento. A ideia era que ela fizesse um turno naquela tarde,
após o qual seria oficialmente contratada pela Universidade.
— Tudo bem então. Tenho uma aula para dar, então preciso ir agora. Passarei
para buscá-la à noite.
Com essas palavras, Roxy deixou Eris nas mãos do guarda veterano no portão e
voltou para o prédio principal da escola.
O guarda examinou Eris por um momento, então coçou a parte de trás de sua
cabeça incerto.
— Uh, vamos ver. Quero dizer, o serviço de portão é bem simples,
honestamente. Você apenas precisa parar qualquer um que pareça suspeito ou
perigoso, pede a eles que provem sua identidade e os expulsa quando
necessário.
— Isso parece fácil!
— Sim, com certeza é. Não é como se tivéssemos tantas pessoas suspeitas
vagando por aí, sabe? Mas ei, deixe-me mostrar como é feito de qualquer
maneira.
Com isso, o guarda se posicionou ao lado do portão e começou a ficar de olho
em todos que passavam por ele.
No entanto, a Universidade de Magia tinha uma grande variedade de
instalações e lojas no campus, então era bastante raro que estudantes ou
professores saíssem do local na hora do almoço. Isso significava que não havia
muito tráfego de pedestres além de um punhado de pessoas que pareciam ser
homens da manutenção ou vendedores trazendo suprimentos. O guarda chamou
um cliente de aparência durona com uma grande cicatriz na bochecha, apenas
para descobrir que ele era guarda-costas de algum estudante nobre que morava
nos dormitórios. Assim como ele disse, o campus não parecia receber muitos
visitantes de aparência suspeita.
— Então é isso. O tráfego de pedestres diminuirá ainda mais no início da tarde.
Por que você não tenta por um tempo?
— Entendi!
Em alto astral, Eris se posicionou ao lado do portão, onde assumiu sua pose
assinatura: braços cruzados, pernas abertas e queixo no ar.
Seu olhar era intenso. Muito intenso, na verdade. Ninguém parecia olhá-la nos
olhos; aqueles que passavam pelo portão o fizeram olhando para o chão, em um
esforço para não encontrar seus olhos. Não havia suspeitos à vista. Qualquer
um que estivesse considerando algum comportamento ilícito teria pensado duas
vezes depois de um bom olhar de Eris.
No entanto, entre todos os acovardados e encolhidos, havia um homem que
nem se mexeu. Indiferente à presença de Eris, ele caminhou pelo campus como
se fosse o dono do lugar. A expressão em seu rosto era calma e confiante. Não
havia nada de incomum em sua postura, mas, dadas as pessoas trêmulas ao seu
redor, ele se destacava como um polegar dolorido.
E assim, Eris tomou uma decisão rápida: há algo estranho com aquele cara!
— Pare bem aí!
O homem parou em seu caminho e olhou para Eris duvidosamente. — Posso
ajudar?
Seu tom era educado o suficiente, mas o olhar em seu rosto dizia: “Sou um
homem ocupado. Podemos acabar com isso logo?”
Claro, essa atitude só deixou Eris mais desconfiada.
— Há algo suspeito em você!
— Passo por este portão há mais de vinte anos e esta é a primeira vez que
ouço isso. Você parece meio… suspeita para mim. Não reconheço seu rosto…
Há quanto tempo você trabalha aqui?
— Comecei hoje!
— Entendi. Bem, suponho que não posso culpá-la, então…
O homem enfiou a mão no bolso para pegar seu crachá oficial de identificação
da universidade, mas naquele momento, uma rajada de vento forte e fora de
época passou, e sua mão pulou reflexivamente do bolso em direção à cabeça.
Eris reagiu instantaneamente a este movimento altamente suspeito. Dando um
passo à frente em um piscar de olhos, ela agarrou seu pulso com firmeza em
sua mão.
— O que você está escondendo aí?
— Guh…!
Diante dos olhos de Eris, o vento… carregou o cabelo do homem. Todo ele. De
uma vez só.
Tudo o que restou foi uma careca lindamente brilhante.
—…
Eris congelou. Ela reconheceu que o homem estava tentando
esconder algo, mas não tinha imaginado que era… isso.
Com a mão que Eris não estava agarrando, o homem enfiou a mão no bolso do
peito mais uma vez e tirou seu distintivo da Universidade.
— Meu nome é Georg. Sou o diretor da Universidade de Magia de Ranoa.
Enquanto falava, seu rosto estava vermelho de vergonha e fúria.
Para ir direto ao ponto, Eris foi demitida no local.
Bem… não era tecnicamente uma demissão, já que ela ainda nem tinha sido
contratada, mas a Universidade se recusou formalmente a contratá-la como
guarda de segurança.
— Suspiro…
Compreensivelmente, isso deixou Eris se sentindo um pouco deprimida. Ela
não era boa em tarefas domésticas e também não conseguia lidar com um
emprego. A crescente sensação de sua própria inutilidade havia sido
dolorosamente reforçada pelos acontecimentos de hoje. Poderia ter sido
diferente se ela pelo menos conseguisse tropeçar em algo que ela decidiu, mas
depois de dois desastres seguidos, sua autoconfiança estava atingindo fundos
do poço cada vez mais profundos.
No momento, Eris estava deitada em cima de um galpão no canto do quintal
Greyrat e olhando para o céu, como costumava fazer quando morava na cidade
de Roa. Em sua mente, estava repetindo uma conversa com Rudeus de muitos
anos no passado.
— Qual é o sentido de fazer algo que eu nem sou boa?!
A resposta de Rudeus foi bastante simples.
— Quanto pior você é em alguma coisa, mais satisfatório é quando finalmente
pega o jeito.
Em certo sentido, o trabalho doméstico e o emprego não eram diferentes da
dança com a qual ela lutava naquela época. Ela pegaria o jeito deles
eventualmente, contanto que continuasse tentando, apesar de seus fracassos.
Ao mesmo tempo, algo parecia um pouco estranho nesse plano. Provavelmente
seria satisfatório ter sucesso, mas mesmo assim… algo parecia errado.
Infelizmente, Eris não conseguia descobrir o porquê disso acontecer.
— Me deixe ir!
Nesse momento, o vento levou uma voz até ela. Foi uma que ela reconheceu.
Eris sentou-se no telhado do galpão e se virou na direção de onde a voz vinha.
Ao que parecia, havia uma discussão acontecendo perto da porta da frente da
casa da família Greyrat.
— Quero saber o que está acontecendo…
Ela pulou de seu poleiro e deu a volta ao redor da casa, onde viu a irmã de
Rudeus, Norn, com um menino da idade dela.
O menino estava ricamente vestido. Seu uniforme tinha o mesmo desenho do
de Norn, mas dava para ver de relance que o dele era feito com tecidos finos e
botões caros.
Não eram apenas suas roupas que se destacavam; ele tinha cabelos loiros
longos e ondulados, sobrancelhas bem cuidadas e uma pele que claramente
recebia muito cuidado. Os dois guardas em posição de sentido atrás dele
deixaram óbvio que era um nobre.
No momento, ele estava segurando a mão de Norn — aparentemente para a
impedir de entrar na casa.
— Vamos, Norn — disse o menino, passando a mão livre pelo cabelo em um
gesto detestavelmente vistoso. — Se você simplesmente vier comigo, estará
ajudando aquele seu querido irmão e sua amada princesa Ariel.
— Do que você está falando?! A princesa Ariel e Rudeus nem estão por perto
agora!
— Muito melhor! Se eles voltarem e descobrirem que tomamos medidas úteis
em seu nome, certamente nos elogiarão por nossa visão e iniciativa. Será um
passo valioso para ganhar a confiança deles.
— Eles só ficariam bravos comigo por agir sem permissão, na verdade.
Aparentemente, Norn não queria nada mais do que soltar sua mão, mas esse
garoto era um nobre e parecia ter alguma influência real; ela provavelmente não
queria correr o risco de irritá-lo.
— Oh, eles não ficarão chateados, eu garanto. Dê uma olhada nesses dois atrás
de mim. Eles são lutadores de elite que recrutamos de um dos melhores bandos
de mercenários de todo o Território do Norte. Seu irmão tem passado muito
tempo fora de casa ultimamente, não é? Permita-me protegê-la em seu lugar.
— Isso não é necessário. Temos Sylphie e Roxy para cuidar de nós.
— Nada além de mulheres, em outras palavras?
— Z-Zanoba e Cliff vêm o tempo todo!
— Mas eles não estão aqui agora, estão?
Diante da pressão implacável do menino, os protestos de Norn foram ficando
mais breves e menos firmes. Nesse ritmo, havia uma boa chance dele acabar
impedindo seu caminho para dentro da casa. Franzindo o cenho, Eris se
aproximou.
— Ela não está interessada. Tire suas mãos dela.
O menino franziu a testa com essa interrupção repentina. — Perdão? E quem
você deveria ser, afinal? Não sabe quem eu sou?
— Não.
— Eu vou te dizer, então. Sou Richard Moanarius, herdeiro da honrosa casa de
Moanar…
— Eu não poderia me importar menos. Você não me ouviu da primeira vez?
Tire suas mãos dela.
Quando Eris interrompeu sua tentativa de se apresentar, a expressão confiante
do menino Richard mudou para uma mal-humorada. — Você é uma mulher
notavelmente rude e ignorante! Olhe aqui, se eu quisesse, poderia demolir esta
sua casinha em um intan… Hm?
Richard parou no meio da frase, percebendo que suas pernas estavam
estranhamente frias de repente. Quando ele olhou para baixo, ele encontrou sua
calça caída em torno de seus tornozelos, deixando sua cueca totalmente
exposta. Com um pequeno guincho, o menino rapidamente puxou as calças
para cima — apenas para descobrir que seu cinto havia sido cortado ao meio,
forçando-o a segurá-las com as mãos.
Por um momento, ele não tinha ideia do que havia acontecido com ele. Então
ouviu um pequeno tilintar da espada na cintura de Eris… e ele olhou para cima
para encontrá-la olhando para ele com desdém frio em seus olhos.
— Da próxima vez, vou cortar esse braço em vez disso.
— Ei!
Richard era famoso por seu comportamento sem vergonha e às vezes era
chamado de uma falha como nobre, mas quaisquer que fossem suas falhas
morais, possuía um senso de autopreservação perfeitamente funcional.
Ele sabia que Eris não estava fazendo uma ameaça vazia. Imediatamente soltou
a mão de Norn e deu um passo rápido para trás.
— B-bem. Bom! Estarei indo por enquanto, então.
Com essas palavras, Eris desembainhou sua espada novamente. De alguma
forma, a espada deixou sua bainha sem fazer nenhum som. Algo sobre isso
parecia incrivelmente ameaçador.
— O-o quê?! Eu já disse que vou embora por hoje!
— Não volte amanhã também. Ou no dia seguinte.
As pernas de Richard começaram a tremer com a pura intensidade do olhar de
Eris. Ele não podia olhar nos olhos dela, é claro; mas podia senti-los o
perfurando. Ainda assim, ele tinha seu orgulho de nobre em jogo. Ele não podia
deixar essa plebeia grosseira fazer dele um completo idiota.
— Você se atreve a ameaçar…
No entanto, assim que abriu a boca para falar, um de seus guarda-costas o
agarrou pelo ombro e o puxou firmemente para trás.
— Desculpe, sua senhoria, mas é melhor sairmos daqui. Aposto um bom
dinheiro que aquela garota é a Rei da Espada Berserker de quem as pessoas
estão falando. Ela não está blefando sobre isso, entende? Não há conversa com
uma mulher que treinou no Santuário da Espada.
Normalmente, esses homens seguiam seu jovem mestre mesmo em suas
escapadas mais idiotas, limpando de forma eficiente sua bagunça com um
suspiro silencioso, mas foi precisamente suas habilidades e competência que
lhes permitiu perceber o quão perigosa Eris de fato era.
— Droga! Não me esquecerei disso!
Com essa tentativa inerte de um tiro de despedida, Richard começou a se virar,
mas antes que pudesse se mover uma polegada, Eris o chamou bruscamente.
— Não me esquecerei de você também. E se mexer com essa garota de novo,
eu te mato. Isso é uma promessa, ok? Vou me lembrar do seu rosto.
Essas palavras foram o golpe final. O conhecimento de que esta mulher
aterrorizante iria ficar de olho nele deixou o corpo de Richard tremendo de
medo.
— Guh…
Aterrorizado em silêncio, o menino de repente pálido virou-se e se afastou
rapidamente.
Eris continuou olhando para Richard e seus guarda-costas até que eles
desaparecessem completamente de vista. Só então ela finalmente relaxou.
— Hmph.
Claro, ela não quis dizer nada disso a sério. Eris podia ser um pouco violenta às
vezes, mas não saía por aí matando pirralhos detestáveis. Tinha sido apenas um
blefe. Honestamente, ela não pretendia lembrar o nome do menino, muito
menos de seu rosto. Lembrar das coisas nunca foi seu forte. Ainda assim, a
força de sua hostilidade muito genuína foi o suficiente para dar peso às suas
palavras.
— Ufa…
Com um pequeno suspiro, Eris se virou e voltou para dentro da casa.
Norn apenas a observou ir, sem conseguir dizer “obrigado”, mas suas mãos
estavam apertadas contra o peito e admiração brilhava em seus olhos.
Assustar aquele garoto tinha sido muito bom, sendo bem honesta, mas Eris já
estava se perguntando se havia estragado tudo de novo. Norn parecia infeliz
com a situação, mas a discussão deles parecia meio complicada. Talvez o
pirralho fosse realmente importante de alguma forma. Parecia que ela poderia
ser repreendida de novo mais tarde.
Assim que ela entrou na casa, Sylphie e Roxy colocaram suas cabeças para fora
da sala e acenaram para ela. Elas claramente estavam assistindo aquela pequena
cena se desenrolar à distância.
Preparando-se para uma conversa, Eris foi se juntar a elas…
— Obrigada, Eris!
— Bem feito.
…e se viu piscando surpresa com suas palavras repentinas de gratidão.
— Huh?
— Nós vimos aquilo! Você ajudou Norn, certo?
— Aquele garoto não ouviu uma palavra do que tínhamos a dizer, mas parece
que ele não vai incomodá-la novamente.
Havia grandes sorrisos em ambos os rostos, mas Eris franziu a testa incerta.
— Você tem certeza que eu deveria ter feito aquilo? Ele tem conexões, certo?
— Hmm. Bem, seu pai está contribuindo para a causa da princesa Ariel e ele
tem alguma influência na Universidade…
Isso era exatamente o que Eris temia. Sylphie explicou que Richard era filho de
um poderoso nobre de Ranoa. Este nobre não era apenas um dos principais
financiadores da princesa Ariel, ele também fazia grandes doações para a
Universidade regularmente e tinha uma influência considerável com seus
administradores. Para colocar as coisas sem rodeios, uma porcentagem decente
do pagamento de Sylphie e Roxy vinham do dinheiro que ele fornecia.
Claro, seu filho Richard não tinha nada a ver com nenhum desses assuntos.
Mesmo se ele corresse de volta para casa e choramingasse com seu pai por
horas a fio, era improvável que houvesse consequências para Sylphie ou Roxy,
muito menos para a princesa Ariel. No entanto, Richard havia se convencido de
que as contribuições de seu pai lhe davam o direito de se pavonear como se
fosse o dono do lugar. Não importa quantas vezes Sylphie e Roxy o
repreendessem, ele simplesmente as ignorava.
— Estávamos prestes a sair e enxotá-lo quando você apareceu, Eris —
acrescentou Roxy, seu nariz queimando de entusiasmo. — Fiquei um pouco
preocupada por um minuto, mas meu Deus! Foi gratificante assistir!
Sylphie riu um pouco, mas então se virou com uma expressão séria no rosto.
— Ei, Eris?
— O-o que foi?
Sylphie estendeu a mão e pegou as mãos de Eris nas suas. E então, como Eris
hesitou incerta, começou a falar.
— Às vezes tenho a sensação de que você pensa que não é… boa o suficiente
do jeito que é, mas isso definitivamente não é verdade, ok? Tente ter alguma
confiança.
Eris franziu a testa um pouco. Isso quase parecia uma rejeição de seus esforços
para melhorar. — De onde veio isso?
— Bem, você tem se preocupado muito ultimamente, não é? Acho que meio
que entendo como você se sente. Sempre que vejo Rudy trabalhando, sinto que
tenho que aprender todo tipo de coisas novas.
—…
Assustada pela perspicácia de Sylphie, Eris se viu sem palavras, mas Sylphie
ainda não havia terminado. — Sabe, Eris… nós somos muito boas em vigiar as
costas de Rudy, se você entende o que quero dizer. Estamos atentas às coisas
nos bastidores. Você definitivamente nos ajudou hoje, mas normalmente,
estamos a par desses tipos de problemas.
Sylphie parou por um momento e seu aperto nas mãos de Eris aumentou
visivelmente.
— Mas quando vi como Orsted, Rudy e você lutaram… bem, percebi uma
coisa. Quando Rudy está enfrentando algo realmente perigoso, não somos
fortes o suficiente para ficar na frente dele como você fez.
Ela estava olhando Eris diretamente em seus olhos agora. A força neles era
absolutamente intimidante, mas ela não vacilou ou desviou o olhar. Na verdade,
ela olhou de volta com todo o poder que podia reunir.
— Você treinou por anos para ser forte o suficiente para fazer isso. Acho que
isso é algo que você deve se orgulhar.
Com isso, Sylphie soltou as mãos de Eris e sorriu para ela.
— Isso é tudo que eu queria dizer, realmente. Além de… estou feliz por você
estar aqui, Eris.
Eris vagou pelo corredor meio atordoada. Que clichê. Depois de tanta
preocupação, ela acabou chegando à conclusão de que estava bem do jeito que
estava.
Entretanto, quanto mais pensava sobre isso, mais isso soava certo. Rudeus era o
mago e ela a espadachim. Era o que ela tinha em mente desde o dia em que o
deixou para treinar. Parecia natural que ambos desempenhassem os papéis para
os quais eram mais adequados.
Apesar disso, Rudeus não poderia lidar com todo o resto além de lançar
feitiços. Ele cresceu um pouco e aprendeu muitas coisas novas, mas isso não o
tornava sobre-humano. Havia algumas coisas com as quais ele não conseguia
lidar sozinho. E era aí que Sylphie e Roxy poderiam intervir para ajudar.
Claro, a própria linha de pensamento de Eris não era tão clara ou coerente…
mas ela se sentiu feliz e aliviada. Afinal, ela não tinha estragado tudo. Seus
esforços não foram em vão. Apenas sabendo que isso significava o mundo para
ela.
— Oh.
Os movimentos sem rumo de Eris pela casa a trouxeram para um quartinho
silencioso. E lá, ela encontrou uma mulher sentada que estava olhando pela
janela com uma expressão distraída.
Era Zenith Greyrat. Eris já tinha ouvido falar de sua situação; sabia que um
longo cativeiro nas profundezas de um labirinto havia deixado sua mente em
pedaços.
No entanto, para surpresa de Eris, Zenith virou-se para ela, como se sentisse
seu olhar. Os olhos da mulher estavam claramente focados nela. Eris endireitou
a coluna reflexivamente. Independentemente de sua condição, esta era a mãe de
Rudeus. Ela tinha que mostrar o melhor de si aqui.
Com passos lentos e cautelosos, ela caminhou até Zenith.
Eris definitivamente precisava dizer alguma coisa, mas não tinha certeza do que
deveria ser. Ela hesitou por um longo momento, desejando cruzar os braços,
mas se recusando a fazê-lo.
Ugh. Agora eu gostaria de ter prestado mais atenção naquelas estúpidas aulas
de etiqueta…
Por um momento, ela flertou com a ideia de sair da sala e voltar depois de
decidir o que dizer, mas Zenith estava olhando para ela pacientemente, como se
esperasse ela falar.
Curvando-se sob a pressão, Eris finalmente soltou a primeira coisa que lhe veio
à mente.
— Eu sou… ainda sou bastante inexperiente, mas… farei meu milhor.
Milhor? Meu milhor?!
Eris franziu a testa irritada por seu próprio erro, mas então notou a mudança de
expressão de Zenith também.
Ela estava sorrindo.
Eris sempre odiou quando as pessoas sorriam para seus erros, contudo, este não
parecia um sorriso de zombaria. Se fosse alguma coisa, estaria mais para
uma resposta. Zenith não disse uma única palavra, mas por alguma razão, Eris
pensou que podia ouvir sua voz.
— Tente dizer isso para Rudy ao invés de mim. Não faz sentido ser tão formal
para comigo.
—…
Sem dizer mais nada, Eris baixou a cabeça para Zenith. E, ao fazê-lo, renovou a
promessa para si mesma: vou me casar com Rudeus, aconteça o que acontecer.