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“Você acredita em fantasmas, Clara?” Essa foi a frase que o padre Bento me disse na última missa.

A
igreja que eu frequento é católica, logo a existência de almas convivendo no mesmo plano que nós
mortais seria injúria com o julgamento de Deus sobre os mortos. Sinceramente não consegui responder,
desviei o assunto falando sobre algumas histórias de terror que ouvi na internet. Essa pergunta ficou na
minha cabeça, “Você acredita em fantasmas, Clara?”. Se você perguntasse isso para mim há um mês
juraria de pé junto que essa merda não é real, mas eu tenho presenciado coisas estranhas há um
tempo…
Ontem fez três meses que meu irmão faleceu, ele nunca foi muito religioso e por isso o Artur e
nossos pais brigavam com bastante frequência. Ele sempre dizia que: “Se um Deus existisse e fosse
bom, seria impossível a humanidade estar viva”, ele dizia isso tanto que chegava a me irritar. Hoje em
dia eu chego em casa e não ouço mais nenhuma palavra vindo de ninguém, não os culpo, sinceramente
nem eu falo muito desde então. Ele estava passeando com o Hughie, nosso cachorro, quando decidiu
atravessar a linha do trem. O Artur tinha acabado de assinar Spotify com dinheiro do primeiro salário
dele, então não tirava o fone do ouvido. E ao som de “All things must pass”, o trem saiu da estação. Só
descobrimos uma hora depois quando fomos procurar ele porquê o cachorro chegou sozinho em casa.
Os dias têm sido silenciosos e as noites barulhentas. Minha mente grita, GRITA, GRITA pensando que
poderia ser diferente, mas do o que importa? Nada vai trazê-lo de volta, NADA! Pelo menos era o que
eu achava.
Meus pais me obrigaram a frequentar mais a igreja depois daquilo, diziam que tínhamos que orar em
dobro por ele não ter orado em sua vida. Aquilo só piorou tudo, o luto somado com a pressão e
desrespeito que estava fazendo com meu próprio irmão acabaram comigo. Nesse dia, eu saí da missa
sabendo que ouviria o caminho de casa todo, mas saí, precisava de ar. Eu simplesmente sentei nos
degraus da igreja e comecei a chorar. E minha tia Fátima, única pessoa que seguiu para me ajudar, veio
me consolar. Ela poderia dizer que ele me ama, que sempre vai me observar e tudo mais, mas não disse
nada disso. “Sei que está mal pela perda do seu irmão, você é uma boa menina não deveria passar por
isso tão cedo. E se… você pudesse o ver mais uma vez?”. Ela me ensinou algo que podeira me fazer
vê-lo, serviria como uma janela entre o céu e a terra.
Assim como dito, levantei de madrugada peguei um objeto de importância para ele, os fones, e
queimei-os, disse as palavras em hebraico que ela disse eu dizer, fiquei com medo de ter pronunciado
errado pois fazia anos que não falava uma palavra em hebraico. Nada, imaginei que nada aconteceria,
mas ela ter feito isso comigo agora, óbvio que eu iria tentar! “Nunca toque na aparição”, QUE
IDIOTICE DO CARALHO. Estava chorando e com raiva dela quando vi meu irmão no corredor.
Fiquei paralisada, sem reação, não sabia o que dizer ou o que fazer. Ouvi a voz dele de novo: “Clara?”.
Na hora caí em lágrimas e abracei-o, mas não consegui agarrá-lo. Quando fui tocá-lo ele sumiu, acabei
caindo e batendo a boca no chão. Fiquei lá o resto da noite, chorando chamando seu nome.
Por um lado estava feliz de ter visto ele, por outro, o fato de ter visto ele novamente fez meu luto
regredir alguns estágios. Mas foi melhor do o que nunca mais vê-lo, tive a chance que muitos não tem,
agradeci e orei por isso. Naquela noite vi ele de novo, ele estava ao lado da minha cama, só me olhando
até eu dormir. Gostava da presença dele, saber que ele estava por perto me fazia bem. Mas depois de
um tempo começou a ficar estranho, sem eu perceber ele aos poucos, noite após noite, deixando de ser
o Artur. Em uma noite fechei os olhos, ouvindo a respiração dele, e quando olhei o rosto dele estava
meio deformado, como ele estava depois do trem. Fiquei assustada, corri e tranquei-o no quarto. Passei
a noite abraçada com o Hughie na sala.
Contei sobre ao padre Bento, ele disse que aquele não era meu irmão, mas sim um demônio se
aproveitando do meu luto para drenar minha luz e sanidade. Ele foi na minha casa fazer umas bençãos,
e funcionou por alguns dias, mas quando Artur, ou sejá lá o que aquilo for, voltou ele estava
completamente deformado. Seu rosto estava borrado apenas acentuado pela carne exposta de seu rosto.
Mandei o padre refazer a benção, mas não teve o mesmo efeito, dessa vez ele veio pra ficar.
Hoje, durante a madrugada, eu fui até ele. Cheguei em sua frente e perguntei se ele realmente era
meu irmão. Ele me disse, ele me disse a bendita frase. “Se um Deus existisse e fosse bom, seria
impossível a humanidade estar viva”. Ao ouvir isso comecei a chorar, mas com um sorriso no rosto.
Nunca imaginei que essa maldita frase me traria tanta felicidade. Então, coloquei “all things must pass”
para tocar, e disse a ele tudo que tinha que dizer.
“Artur, eu tenho sentido muito a sua falta, nunca achei que fosse sentir falta das brigas entre você e
nossos pais de manhã, de competir com você para ver quem fica com a cama de cima, ou te zoar por
ser próximo demais do seu amigo Gabriel. Eu sei que não fui a irmã mais amável do mundo, mas eu te
amava e amo muito, e por isso eu sinto culpa. Culpa por não ter levado o Hughie para passear, culpa
por ter demorado uma hora para perceber que tinha algo errado, culpa por ter ofuscado como era seu
rosto, de lembrar apenas da sua carne exposta ou não reconhecer mais sua voz direito. Eu te amo
muito, Artur, e por isso te deixo ir, porquê mesmo longe sempre fará parte de mim.”
Meu irmão se ofuscou e junto aquele rosto que não conseguia me recordar mais sua figura havia
sumido, e eu tinha a sensação de que não o veria outra vez. E de pé no quarto à noite, apenas uma coisa
veio a minha mente. “Você acredita em fantasmas, Clara?”

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