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MONÓLOGO

Entra dançando ao som de “De noite, na cama” de Caetano Veloso, versão instrumental.
Quando a música/dança acaba, o monólogo se inicia.
O Gabriel falar. Ele foi a melhor coisa que já tive. Era inteligente, carinhoso, sensível,
educado, gentil, lindo. Ele amava política e memes ruins. E ele sempre me escreveu muito:
cartas e bilhetes e e-mails e mensagens românticas.
Até que um dia escreveu uma carta de despedida. “Eu te amo como quem descobriu a
vida em você. E por isso não queria te deixar ir embora. Ainda que às vezes queira, ainda que às
vezes deixe, ainda que às vezes chore”.
Essa contradição do Gabriel é, no fundo, a contradição de qualquer relacionamento. Na
raiz do amor já está a destruição: a gente começa e já começa a terminar.
Mas não pensem que o Gabriel é um grande vilão e que eu não reconheço as coisas boas
que ele fez por mim. Um dia, por exemplo, ele me levou a uma peça sobre essa heroína e esse
herói que se conhecem e vivem apaixonados. Um dia, por uma série de circunstâncias, eles
precisam se separar. Ela segue a vida dela. Ele não aguenta e vira padre. Mas, depois de um
tempo, ela resolve buscá-lo e revivê-lo pra tudo aquilo que um dia eles passaram juntos, o
furacão descontrolado e íntimo que chamam “amor”.
Ressentido, ele a maltrata. Mas ela está determinada. Pergunta a ele: “Não é mais minha
mão, que as suas tocam? Não é mais minha voz? Ela não é para você mais uma carícia, como
antigamente? Eu não sou mais eu mesma? Não tenho mais o meu nome? Olha para mim. Não é
mais minha mão que as suas tocam, como antigamente? Não é mais a minha voz, não é mais
eu?”.
Ele cede.
Na primeira noite que o Gabriel dormiu na minha casa, eu tinha acabado de me mudar e
a gente deitou num colchão inflável no chão. No escuro, conversamos por horas sobre o
presente, o passado, o futuro. Nós tínhamos bebido antes, nos divertido muito e estar ali, no
escuro, falando sobre coisas tão bobas, mas tão profundas sobre um e o outro, uma voz falou na
minha cabeça:
Eu amo esse garoto!
E essa voz tinha muita certeza. Daí eu jurei pra ele que eu tinha comprado uma escova
de dentes pra ele, já que ele estava passando mais tempo na minha casa que na dele. E tinha
mesmo.
O Gabriel também sempre deixava meio aberta a torneira do meu banheiro. Ele ia lá,
escovava os dentes e, quando eu entrava no banheiro e via, eu falava: “Gabrieeeel”. Ele ria
deitado, enquanto via memes no celular – o que eu via pelo espelho, que tinha uma angulação
esquisita, mas certeira com a cama.
Parece mentira, eu sei, mas outro dia eu entrei no banheiro e a torneira estava pingando.
E a verdade é que eu vejo ele em todos os lugares.
Atualmente, sou um apartamento desocupado e acho que sem a placa de “aluga-se” na
porta. Até passou um interessado recentemente, entrou, gostou, mas sabe quando acaba não
fechando o negócio?
A gente já se conhecia, mas eu não olhava pra ele a não ser como amigo, né? Uma
noite, acabou rolando.
Mas já não rola mais um clima entre nós, infelizmente. Inclusive, todos que têm
acompanhado minha separação do Gabriel sabem que está sendo um processo duro e lento.
Sabe, a dor que eu senti quando ele desapareceu foi dessas que não se descreve. Foi
como uma explosão ao contrário, uma bomba atômica que traga tudo pra dentro do seu tórax.
Daí eu recolhi cada pedacinho destruído dentro de mim, fragmento a fragmento. Ele me
deixou e a gente precisa se valorizar, recompor o orgulho, a autoestima. Eu tive que me obrigar
a me desapaixonar por ele. Tudo é adaptável nessa vida.
Eu quero que você se dane, Gabriel! Desaparece. Raspas e restos não me interessam.
Eu queria que você me fizesse feliz.
Eu quero que você vá se foder!
Chega. Eu chorava porque doía e doía porque eu realmente te amei, mas algumas coisas
a gente só aprende mesmo sozinho. O amor que eu tenho por você é teu. Você não ia cuidar do
meu sofrimento e eu não ia insistir em te ensinar o que eu achava que você precisava saber.
Você não quis pegar os caminhos dos mapas que eu te mostrei, então eu precisava ir embora.
Isso era um adeus.
Começa a tocar “Porque eu sei que é amor”, dos Titãs. Canta.

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