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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 16
TÍTULO: MARUNE: ALASTOR 933
TÍTULO ORIGINAL: MARUNE: ALASTOR 933
AUTOR: JACK VANCE
TRADUÇÃO: MARIA DE LOURDES MEDEIROS
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel1969@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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bolsilivroclub@gmail.com
JACK VANCE

MARUNE: ALASTOR 933


Tradução de Maria de Lourdes Medeiros

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 16


NOTA DO EDITOR SOBRE O AUTOR
Jack Vance é um autor pouco conhecido do público português, apesar
de ter conquistado o muito desejado e famoso «Prémio Hugo» (o «Óscar» da
literatura de ficção cientifica), concedido anualmente pela World SF
Convention (Convenção Mundial de Ficção Cientifica).
Uma das características mais notáveis nas obras de Jack Vance é a
extraordinária habilidade com que harmoniza ciência, mitologia e magia,
documentando-se principalmente na história e lendas do Sul da Arábia com
uma civilização (e cultura) nômada mas densa, mais ideológica do que
lógica, recuperando para este universo ficcional o clima do maravilhoso e
fantástico com raízes profundas nos contos de fadas, nas mitologias, no
maniqueísmo moralista e no delírio da aventura.
O livro agora apresentado ao público português, tal como Wist: Alastor
1716 e Trullion: Alastor 2262, são bem o testemunho do talento de Jack
Vance para a moderna literatura de ficção científica.
PROLOGO
Alastor, aglomerado de trinta mil estrelas vivas, sem contar com os
corpos mortos nem com as enormes quantidades de detritos interestelares,
colava-se à orla interior da galáxia, tendo em frente o Deserto Infeliz, o Golfo
Nonéstico um pouco mais adiante e Gaean Reach a brilhar-lhe ao lado. Para o
viajante do espaço, viesse ele de que lado viesse, o espetáculo era
deslumbrante: as constelações brilhavam em tons brancos, azuis e vermelhos;
as cortinas de matéria luminosa eram interrompidas aqui, obscurecidas além
por negras tempestades de poeira; correntes de estrelas ziguezagueavam de
um lado para o outro; redemoinhos e manchas de gás fosforescente.
Deveria Alastor ser considerado como um segmento de Gaean Reach?
As gentes de Alastor, em número de quatro ou cinco triliões, espalhadas por
mais de três mil mundos, raramente pensavam no assunto e, de facto, não se
consideravam naturais de Gaean nem de Alastor. O habitante típico, quando
interrogado sobre a sua origem, citaria talvez o seu mundo de origem ou,
mais frequentemente, o seu distrito, tal como se esse local fosse tão
extraordinário, tão especial e famoso que a sua reputação devesse ser
conhecida em toda a galáxia.
O paroquialismo dissolveu-se antes da glória do connatic que governou
Alastor do seu palácio de Númenes. O atual connatic, Oman Ursht, 16.° da
dinastia Idita, meditava muitas vezes sobre os caprichos do destino que o
tinham levado à sua posição singular, sem poder deixar de sorrir da sua
própria falta de racionalismo: fosse quem fosse que ocupasse aquele lugar,
essa pessoa não deixaria de pôr a si mesma essa pergunta cheia de admiração.
Todos os planetas habitados daquele mesmo grupo tinham pouca coisa
em comum, exceto a sua falta de uniformidade. Havia-os grandes e pequenos,
húmidos e secos, acessíveis e perigosos, povoados e solitários: só não havia
dois iguais. Alguns apresentavam altas montanhas, mares azuis, céus
límpidos; noutros havia permanentemente nuvens sobre os pântanos, sem
qualquer variedade que não fosse a alternância dos dias e das noites. Um
desses mundos era Bruse-Tansel, Alastor 1102, com uma população de
duzentos mil habitantes, instalados na sua maior parte nas vizinhanças do
lago Vain, onde trabalhavam principalmente a tingir tecidos. Bruse-Tansel
era servido por quatro portos espaciais, sendo o mais importante o que se
situava em Carfaunge.
CAPÍTULO I
O respeitável Mergan chegara ao posto de superintendente do porto
espacial de Carfaunge, em parte, porque esse lugar exigia grande tolerância
perante uma rotina inflexível. Mergan não só suportava bem a rotina como
dependia dela. Ter-se-ia oposto à eliminação de coisas tão incomodativas
como as chuvas da manhã, os lagartos vítreos com os seus gritos e estalidos e
as lesmas locomotoras que todos os dias invadiam aquela área, porque nesse
caso teria de alterar o procedimento já estabelecido.
Na manhã de um dia que ele havia de identificar mais tarde como o
décimo Mariel Gaean1, chegou, como de costume, ao seu escritório. No
momento mesmo em que acabava de se sentar à sua secretária, o porteiro da
noite apareceu com um jovem de rosto inexpressivo, vestindo um estranho
fato cinzento. Mergan teve um grunhido ininteligível; desagradavam-lhe os
problemas, fosse em que altura fosse, mas sobretudo antes de se ter preparado
para o dia. A situação prometia, quanto mais não fosse, uma quebra da rotina.
Por fim, murmurou:
— Bom, Dinster, que é que temos?
Dinster anunciou, em voz muito alta e estrídula:
— Desculpe incomodá-lo, mas que havemos de fazer com este
cavalheiro? Parece que está doente.
— Arranje um médico — resmungou Mergan. — Não o traga para aqui.
Eu não posso fazer nada.
— Não é uma doença dessas. É mais mental, não sei se percebe o que
quero dizer.
— Não, não consigo perceber — disse Mergan. — Porque não me diz
pura e simplesmente que é que não está bem?
Dinster apontou delicadamente para o indivíduo que tinha à sua guarda.
— Quando entrei de serviço, ele estava sentado na sala de espera e lá
ficou até agora. Quase não fala, não sabe como se chama nem o que quer que
seja a respeito de si próprio.
Mergan observou o jovem, sentindo despontar nele um interesse vago.
— Olá — berrou. — Que é que há?
O jovem desviou o olhar da janela para Mergan, mas não deu qualquer
resposta. A pouco e pouco, Mergan começou a ficar perplexo. Porque teria o
cabelo castanho-dourado do jovem sido cortado curto, de uma forma que
parecia evidenciar os golpes selvagens e rápidos de uma tesoura? E as
roupas: eram bem de um tamanho acima do do corpo que as usava!
— Fale! — Ordenou Mergan. — Está a ouvir? Diga-me o seu nome!
Ele tomou um ar pensativo, mas continuou silencioso.
— Um vagabundo qualquer — declarou Mergan. — Talvez tenha vindo
das fábricas de tinturaria. Mande-o outra vez para a estrada.
Dinster abanou a cabeça.
— Este jovem não é nenhum vagabundo. Olhe para as mãos dele.
Com certa relutância, Mergan seguiu a sugestão de Dinster. As mãos
eram fortes e bem cuidadas e não apresentavam quaisquer indícios de que ele
se dedicasse a trabalhos pesados ou que alguma vez as tivesse mergulhado
nas tintas das fábricas. Os gestos dele eram firmes e regulares; a postura da
cabeça sugeria um indivíduo com certa posição. Mergan, que preferia ignorar
as circunstâncias do seu próprio nascimento, sentiu uma incômoda pontinha
de deferência e o consequente ressentimento. Gritou novamente para o
jovem:
— Quem é você? Como se chama?
— Não sei. — A voz era lenta, elaborada e colorida com um sotaque que
Mergan não conseguiu reconhecer.
— Donde é você?
— Não sei.
Mergan tomou-se disparatadamente sarcástico.
— Será que sabe alguma coisa?
Dinster lançou uma opinião:
— Quer-me parecer que ele é capaz de ter vindo nalguma das naves que
chegaram ontem.
Mergan perguntou ao jovem:
— Em que nave é que chegou? Tem amigos aqui?
O jovem olhou para ele com os olhos cinzento-escuros um pouco
zangados e Mergan começou a sentir-se pouco à vontade. Voltou-se para
Dinster.
— Ele tem alguns documentos? Ou dinheiro?
Dinster voltou-se para o jovem.
— Desculpe. E pôs-se a revistar cuidadosamente as algibeiras do fato
cinzento e amarrotado. — Não encontro nada.
— Cadernetas de bilhetes, vales, senhas?
— Nada, nada.
— É aquilo a que chamam amnésia — disse Mergan. Pegou numa folha
e pôs-se a ler uma lista. — Entraram seis naves ontem. Podia ter vindo em
qualquer delas. — Mergan carregou num botão. Ouviu-se uma voz.
— Prosidine, portão de chegada.
Mergan descreveu o amnésico.
— Sabe alguma coisa acerca dele? Deve ter chegado ontem.
— Ontem foi um dia muito ocupado; não tive tempo de reparar em nada.
— Interrogue o pessoal e depois informe-me.
Mergan ficou pensativo por momentos, depois ligou para o hospital de
Carfaunge. Falou com o diretor dos internamentos, que o escutou
pacientemente, mas não apresentou qualquer proposta construtiva.
— Não temos verbas para casos desses. Diz que não tem dinheiro com
ele? Então não podemos aceitá-lo, em definitivo.
— Que é que hei de fazer? Não posso ficar com ele aqui!
— Fale para a polícia, eles sabem o que hão de fazer.
Mergan ligou para a polícia e, em pouco tempo, chegou um funcionário
numa carrinha da polícia e levou o amnésico.
Na sala de interrogatórios, o detetive Squil tentou interrogá-lo, sem
qualquer êxito. O médico da polícia tentou recorrer ao hipnotismo e acabou
por erguer as mãos para o céu.
— Um caso de teimosia extrema; já encontrei três parecidos, mas nada
que se possa comparar.
— Quais são as causas?
— Autossugestão provocada por um estado de tensão emocional. Muito
raro. Mas aqui — fez um aceno em direção ao impassível amnésico— os
meus instrumentos não mostram qualquer carga psíquica. Não tem quaisquer
emoções, o que não me permite determinar níveis.
O detetive Squil, um homem razoável, perguntou:
— Que poderá ele fazer por si próprio? É evidente que não se trata de
nenhum vadio.
— Deveria dirigir-se ao Hospital do Connatic, em Númenes.
O detetive Squil riu-se.
— Isso é bom de dizer. E quem lhe paga a passagem?
— O superintendente do porto espacial deve poder arranjar-lhe a
passagem, pelo menos assim me parece.
Squil emitiu um som dúbio e voltou-se para o telefone. Tal como
esperava, o respeitável Mergan, que tinha transferido a responsabilidade do
caso para a polícia, não queria ter mais nada a ver com ele.
— Os regulamentos são bem explícitos — disse Mergan. — Eu não
posso de forma alguma fazer o que sugere.
— Não podemos ficar com ele aqui na base.
— Ele não parece ter qualquer problema físico; que ganhe o dinheiro
para a passagem, também não é nenhuma fortuna.
— Isso é bom de dizer, com o problema que ele tem.
— Geralmente, que acontece aos indigentes?
— Sabe-o tão bem como eu; mandamo-los para Gaswin. Mas este
homem sofre de doença mental, não é um indigente.
— Quanto a isso não posso dizer nada, porque não sei. Pelo menos dei
uma sugestão.
— Quanto é a passagem para Númenes?
— Terceira classe, Linha Pridânia: duzentos e doze ozóis.
Squil deu a chamada por terminada. Voltou-se e ficou de frente para o
amnésico.
— Percebes o que te digo?
A resposta veio em voz clara:
— Sim.
— Estás doente. Perdeste a memória. Compreendes isso?
Houve uma pausa de dez segundos. Squil perguntava a si mesmo se iria
obter resposta. Finalmente, com uma certa hesitação:
— Foi isso que me disseram.
— Vamos mandar-te para um sítio onde podes trabalhar e ganhar
dinheiro. Sabes trabalhar?
— Não.
— Bom, não há dúvida de que precisas de dinheiro: duzentos e doze
ozóis. No porto de Gaswin podes ganhar três ozóis e meio por dia. Em dois
ou três meses terás o dinheiro necessário para ir para o Hospital do Connatic,
onde te curarão da tua doença. Percebes tudo isto?
Ele refletiu um momento, mas não deu qualquer resposta.
Squil pôs-se de pé.
— Gaswin é um bom sítio para ti. Talvez até te volte a memória —
Observou com ar duvidoso o cabelo louro-acastanhado do amnésico, que, por
qualquer razão misteriosa, alguém tinha cortado brutalmente. — Tens algum
inimigo? Há alguém que não goste de ti?
— Não sei. Não me lembro de ninguém assim.
— Como é que te chamas? — Gritou Squil, esperando surpreender a
parte do cérebro que estava a reter a informação.
Os olhos cinzentos do amnésico fecharam-se um pouco.
— Não sei.
— Pois bem, temos de te arranjar um nome. Jogas a «Hussada»?
— Não.
— Imaginem! Um indivíduo ágil e forte como tu! Mesmo assim, vamos
chamar-te Pardero, como a grande avançada dos Faíscas de Schaide.
Portanto, a partir de agora, quando alguém chamar «Pardero» tens de
responder. Está entendido?
— Sim.
— Muito bem, e agora toca a andar para Gaswin. Quanto mais depressa
começares, mais depressa chegas a Númenes. Eu falo com o diretor; ele é
bom tipo e há de tratar-te bem e ajudar-te.
Pardero, como seria a partir de agora o seu nome, continuava sentado,
sem perceber.
Squil teve pena dele.
— Não vai ser mau. Claro que nem tudo é um mar de rosas no campo de
trabalho, há por lá uns tipos duros. Sabes como hás de lidar com esses tipos?
Tens de ser ainda um bocadinho mais duro do que eles. Mas não chames a
atenção do oficial disciplinador. Pareces ser um tipo decente; vou
recomendar-te e hei de acompanhar os teus progressos. Só um conselho...
Não, dois. Primeiro: nunca tentes fazer batota na tua quota de trabalho. Os
encarregados já conhecem todos os truques; sentem o cheiro dos madraços,
como a ave de rapina cheira a carniça. Segundo: nada de jogatana! Sabes do
que estou a falar?
— Não.
— Quero dizer, arriscar o teu dinheiro em jogos ou apostas. Nunca te
tentes nem te deixes tentar! Deixa o teu dinheiro depositado no
acampamento! Aconselho-te a não arranjares amizades! À exceção de ti
próprio, só há escumalha no acampamento. Desejo que tudo te corra bem. Se
tiveres algum problema, telefona ao detetive Squil. Consegues lembrar-te do
nome?
— Detetive Squil.
— Ótimo. — Squil conduziu o amnésico até uma das docas e embarcou-
o no transporte diário para Gaswin. — Um último conselho! Não te abras
com ninguém! O teu nome é Pardero; à parte isto, não contes os teus
problemas a ninguém! Compreendes?
— Sim.
— Boa sorte!
***
O transporte voou baixo sob as nuvens, perto dos pântanos sarapintados
de negro e púrpura, e, dentro em pouco, aterrou perto de um aglomerado de
edifícios de cimento: o campo de trabalho de Gaswin.
Nos serviços de pessoal, Pardero passou por todas as formalidades
habituais, que foram facilitadas pelo aviso emanado de Squil para o diretor do
campo. Foi-lhe distribuído um cubículo num bloco de dormitórios, botas e
luvas de trabalho e foi-lhe entregue um exemplar do regulamento do campo,
que ele estudou sem o compreender. Na manhã seguinte foi integrado num
grupo de trabalho e mandado colher as vagens de uma trepadeira colucóide,
fonte de uma tinta vermelha particularmente rica.
Pardero colheu a sua parte sem dificuldade. No meio do grupo taciturno
de indigentes onde se encontrava, a sua deficiência passava despercebida.
Comeu o jantar em silêncio, ignorando a presença dos companheiros,
que, por fim, começaram a sentir que havia qualquer coisa em Pardero que
não estava certa.
O sol pôs-se por detrás das nuvens; um triste crepúsculo caiu sobre os
pântanos. Pardero estava sentado a um lado da sala de recreio, a ver um
melodrama cômico no écran de holovisão. Escutava atentamente o diálogo;
cada palavra parecia encontrar imediatamente um nicho receptivo no interior
do seu cérebro, onde havia igualmente um conceito semântico à mão de
semear. O seu vocabulário desenvolveu-se e a gama dos seus processos
mentais aumentava. Quando o programa terminou, sentiu-se melancólico e
enfim consciente do seu estado. Foi ver-se ao espelho que ficava por cima do
lavatório; o rosto que o fitava era ao mesmo tempo uma imagem
desconhecida e familiar: uma face sombria de testa alta, com as maçãs do
rosto salientes, as faces encovadas, olhos cinzento-escuros, um tufo bravio de
cabelo louro-escuro.
Um patifório corpulento de nome Woane tentou um gracejo.
— Olhem ali para o Pardero! Parece que está a admirar uma obra de
arte!
Pardero observava o espelho. Quem era aquele homem cujos olhos
fitavam tão atentamente os seus?
O murmúrio roufenho de Woane veio do outro lado da sala.
— Agora está a admirar o corte de cabelo.
O comentário divertiu os amigos de Woane. Pardero voltou a cabeça de
um lado para o outro, perguntando a si mesmo porquê aquele ataque ao seu
cabelo. Algures, ao que parecia tinha inimigos. Afastou-se lentamente do
espelho e retomou o seu lugar do outro lado da sala.
Os últimos vestígios de luz tinham desaparecido do céu; caíra a noite
sobre o campo de Gaswin.
Qualquer coisa se agitou mesmo no fundo da consciência de Pardero:
uma força que o impelia e que lhe era totalmente incompreensível. Pôs-se de
pé de um salto. Woane olhou em volta com um certo ar de desafio, mas o
olhar de Pardero deslizou sobre a sua figura sem parecer vê-lo. Contudo,
Woane viu ou sentiu qualquer coisa suficientemente sinistra para que o
maxilar lhe descaísse um pouco enquanto murmurava algo para os amigos.
Todos olharam para Pardero enquanto ele atravessava em direção à porta e
saía para a noite escura.
Pardero ficou de pé no alpendre. Holofotes iluminavam fracamente o
recinto, agora vazio e desolado, habitado apenas pelos ventos do pântano.
Pardero saiu do alpendre para a escuridão. Sem qualquer finalidade,
contornou a extremidade do recinto e encaminhou-se para o pântano; o
acampamento ficou atrás dele como uma ilha iluminada.
A escuridão era completa. Pardero sentia a alma expandir-se-lhe numa
embriaguez de poder, como se fosse um ser elementar, nascido da escuridão e
ignorando totalmente o medo... De repente, parou. Sentia as pernas rijas e
fortes; as mãos formigavam-lhe de competência. O acampamento de Gaswin
estava já a meia milha de distância e era o único objeto visível na noite.
Pardero respirou fundo numa espécie de soluço e examinou de novo a sua
própria consciência, meio esperançado, meio receoso quanto àquilo que ela
lhe poderia revelar.
Nada. A memória apenas o levava até ao aeroporto espacial de
Carfaunge. Todos os acontecimentos anteriores eram como vozes num sonho.
Porque estava aqui em Gaswin? Para ganhar dinheiro. Quanto tempo teria de
ficar aqui?
Tinha-se esquecido ou talvez não tivesse registado as palavras. Pardero
começou a sentir uma agitação sufocante, uma claustrofobia do intelecto.
Deitou-se no pântano, bateu na fronte, gritou de frustração.
O tempo foi passando. Pardero levantou-se, ficando primeiro de joelhos.
Depois pôs-se de pé e voltou lentamente para o acampamento.
***
Uma semana depois, Pardero soube da existência do médico do
acampamento e das suas funções. Na manhã seguinte, à hora da consulta,
apresentou-se no dispensário. Uma dezena de homens estavam sentados nos
bancos enquanto o médico, um homem ainda novo, acabado de sair da escola
médica, os chamava, um de cada vez. As suas queixas, reais ou imaginárias,
relacionavam-se geralmente com o trabalho: dor nas costas, reação alérgica,
congestão pulmonar, picada de um inseto infectada. O médico, jovem em
anos, mas já velho na sua astúcia, distinguia os verdadeiros doentes dos
imaginários, prescrevendo medicamentos aos primeiros e unguentos
irritativos e medicamentos com mau sabor aos segundos.
Pardero foi encaminhado para a secretária e o médico olhou-o de cima a
baixo.
— De que se queixa?
— Não consigo lembrar-me de nada.
— Ah, sim. — O médico recostou-se na cadeira. — Como se chama?
— Não sei. Aqui no acampamento chamam-me Pardero. Pode ajudar-
me?
— Se calhar, não. Volte a sentar-se e deixe-me acabar a consulta; são só
alguns minutos.
O médico despachou os doentes que lhe faltavam e voltou depois a
Pardero.
— Diga-me quais são as suas memórias mais antigas.
— Cheguei a Carfaunge. Lembro-me de uma nave espacial. Lembro-me
do entreposto... Mas nada antes disso.
— Absolutamente nada?
— Nada.
— Lembra-se de coisas de que goste ou que lhe desagradem?
— Não.
— Tem medo de alguma coisa?
— Não.
— A amnésia é o resultado típico de uma tentativa do subconsciente
para banir recordações intoleráveis.
Pardero abanou a cabeça com ar duvidoso.
— Parece-me pouco provável.
O médico, simultaneamente intrigado e divertido, soltou uma risada que
denotava um certo embaraço.
— Visto que não consegue lembrar-se das circunstâncias, não está em
posição de julgar.
— Lá isso é verdade... Será que há alguma coisa no meu cérebro que não
está bem?
— Refere-se a uma lesão? Tem dores na cabeça? Uma sensação de
entorpecimento ou pressão?
— Não.
— Bom, é pouco provável que um tumor pudesse provocar uma amnésia
geral, mas de qualquer forma... Deixe-me consultar as minhas referências...
— Ficou alguns momentos a ler. — Podia tentar a hipnoterapia ou o choque.
Francamente, não creio que servisse de nada. A amnésia geralmente cura-se
sozinha, se a deixarmos em paz.
— Não creio que me possa curar. Há qualquer coisa que me envolve o
cérebro como um cobertor. Sufoca-me. Não consigo libertar-me dela. É capaz
de me ajudar?
A simplicidade de Pardero agradou ao médico. Também ele sentia a
estranheza do caso: tragédia e drama que ultrapassavam as suas conjecturas.
— Se pudesse, ajudava-o — disse o médico. — Afirmo do fundo da
alma que o ajudava. Mas não saberia o que estava a fazer. Não sou
suficientemente qualificado para fazer experiências com a sua pessoa.
— O oficial da polícia disse-me que fosse para o Hospital do Connatic,
em Númenes.
— Pois claro. É o melhor que tem a fazer: eu próprio lho ia sugerir.
— Onde é que fica Númenes? Como posso lá chegar?
— Tem de tomar uma nave estelar. A passagem custa um pouco mais de
duzentos ozóis. Foi o que me disseram. Você está a ganhar três ozóis e meio
por dia... Mais, se exceder a sua quota. Quando tiver duzentos e cinquenta
ozóis, vá para Númenes. É o melhor conselho que lhe posso dar.
CAPÍTULO II
Pardero trabalhava com uma energia louca. Sem falhar, excedia em
metade a sua quota e por vezes duplicava-a, o que, a princípio suscitou
comentários jocosos dos outros trabalhadores, que se transformaram depois
em risos sardónicos e finalmente numa hostilidade glacial, ainda que
encoberta. Como resposta às ofensas, Pardero recusou-se a participar nas
atividades sociais do acampamento, limitando-se a ficar sentado a olhar para
o écran de holovisão, sendo-lhe assim atribuídos sentimentos de
superioridade, o que era de facto o caso. Não gastava nada no
estabelecimento local; apesar de todas as insistências, recusava-se a jogar,
embora ocasionalmente observasse os outros com um sorriso sombrio que
fazia que alguns dos jogadores se sentissem pouco à vontade. Por duas vezes
lhe arrombaram o cacifo, na esperança de se apoderarem dos seus ganhos,
mas ele não retirara o dinheiro da sua conta. Woane fez uma ou duas
tentativas pouco convincentes para o intimidar e depois resolveu castigar o
altivo Pardero, mas a retribuição foi de tal maneira feroz que foi com a maior
satisfação que ele conseguiu regressar ao santuário da messe; a partir daí,
Pardero foi literalmente ignorado.
Em nenhuma ocasião Pardero conseguiu detectar qualquer infiltração
através da barreira que se instalara entre a sua memória e o seu consciente.
Enquanto trabalhava, perguntava constantemente a si próprio: «Que espécie
de homem sou eu? Onde é a minha terra? Que sei eu? Quem são os meus
amigos? Quem me fez esta maldade?» Expandia a sua frustração contra a
trepadeira e passou a ser conhecido' como um homem possuído por um
demônio interior e que devia ser evitado com o maior cuidado.
Por sua vez, Pardero relegou Gaswin para o canto mais remoto do seu
espírito; levaria consigo o menor número de recordações possível. O trabalho
parecia-lhe tolerável; mas desagradava-lhe o nome de Pardero. Usar o nome
de um desconhecido era como usar a roupa de um desconhecido — não se
podia dizer que fosse uma situação melindrosa. O nome servia como
qualquer outro; era um tal menor.
Mais pungentemente desagradável era a conspicuidade. Era-lhe
detestável a intimidade estreita de mais trezentos homens, especialmente às
horas das refeições, em que ele se sentava com os olhos fixos no prato para
evitar as mandíbulas abertas, os montículos de comida, a mastigação.
Contudo era impossível ignorar os arrotos, os grunhidos, os assobios e os
sinais de saciedade. Certamente que esta não era a vida que conhecera no
passado! Que fora então a sua vida?
A pergunta apenas criava o vazio, um vácuo sem qualquer informação.
Algures vivia uma pessoa que o lançara no espaço com o cabelo escortinhado
e tão despido de qualquer identificação como um ovo. Algumas vezes,
quando meditava sobre este inimigo, parecia-lhe ouvir vestígios de um som
possivelmente imaginário — ecos daquilo que podia ter sido riso; mas,
quando se dispunha a escutar, as pulsações cessavam.
A hora do escurecer continuava a perturbá-lo. Sentia-se muitas vezes
atraído para a escuridão da noite — num impulso ao qual resistia, em parte
por fadiga, em parte pelo receio da anormalidade. Relatou ao médico do
acampamento a sua inquietação noturna e este concordou que tal tendência
devia ser desencorajada, pelo menos enquanto não se lhe conhecessem as
causas. O médico felicitou-o pela sua diligência e aconselhou-o a juntar, pelo
menos, duzentos e sessenta e cinco ozóis antes de partir para fazer face a
qualquer despesa inesperada.
Quando a conta de Pardero chegou aos duzentos e setenta e cinco ozóis,
ele reclamou o seu dinheiro ao tesoureiro. Agora que deixara de ser um
indigente, era livre de seguir o seu próprio destino. Despediu-se com bastante
tristeza do médico, que passara a estimar e a respeitar, e tomou o transporte
para Carfaunge. Deixou Gaswin com uma pontinha de tristeza. Aquele lugar
tinha-lhe oferecido poucos prazeres, no entanto, dera-lhe abrigo. Mal se
lembrava de Carfaunge, e o porto espacial não era mais do que a lembrança
de um sonho.
Não viu vestígios do superintendente Mergan, mas foi reconhecido por
Dinster, o porteiro da noite, que ia precisamente entrar de serviço.
O Ectobant, da Linha Pridânia, levou Pardero até Baruilla, em Deulle,
Alastor 2121, onde fez a transferência para o Lusimar, da Linha Gaen Trunk,
tendo sido levado até ao entroncamento de Calypso, em Imber, de onde
seguiu no Wispen Argent para Númenes.
Pardero gostou da viagem: a grande variedade de sensações, incidentes e
panoramas espantavam-no. Não imaginava que pudesse haver tal variedade:
as idas e vindas, os trajos, os chapéus, ornamentos e bijutarias; as cores, luzes
e músicas estranhas; o murmúrio das vozes; a visão obcecante de raparigas
bonitas; o drama, a excitação, o patético; objetos, faces, sons, surpresas. Era
possível que ele tivesse conhecido tudo isto e esquecido?
Até aí Pardero não sentira pena de si próprio e o seu inimigo parecia ter
sido uma terrível abstração. Mas que grande e feroz fora o crime praticado
sobre ele! Isolaram-no da casa, dos amigos, da compreensão, da segurança;
tornaram-no neutro; tinham-lhe assassinado a personalidade.
Assassinado!
A palavra fez-lhe gelar o sangue nas veias, contorceu-se e estremeceu. E
algures, muito ao longe, veio até ele o fantasma de um som: risadas de troça.
Ao aproximar-se de Númenes, o Wispen Argent passou primeiro junto
de Blazon, o mundo que lhe ficava a seguir na órbita, para receber ordem de
aterrar — uma precaução para atenuar o perigo de um ataque do espaço
contra o Palácio do Connatic. Depois de receber a informação de que o
caminho estava livre, o Wispen Argent prosseguiu e Númenes começou a
crescer lentamente.
À distância de cerca de três mil milhas deu-se o deslocamento
característico: em vez de ficar suspenso de lado, um ponto de destino no
vácuo, Númenes tomou-se um mundo lá em baixo, em direção ao qual o
Wispen Argent descia — um panorama brilhante de nuvens brancas, ar azul e
mares cintilantes.
O porto espacial central de Commarice ocupava uma área com três
milhas de diâmetro, rodeada por uma orla de esguias palmeiras-jacinto e
pelos edifícios habituais, construídos dentro do estilo baixo e arejado
igualmente típico de Númenes.
Ao descer do Wispen Argent, Pardero foi numa pista rolante até ao
terminal, onde procurou informar-se acerca do Hospital do Connatic.
Encaminharam-no primeiro para a Secção de Auxílio aos Viajantes e depois
para um escritório que ficava ao lado do terminal, onde se lhe apresentou
uma mulher alta e magra, de idade indeterminada, vestindo um uniforme azul
e branco. Saudou Pardero com laconismo.
— Sou a enfermeira Gundal. Disseram-me que deseja ser internado no
Hospital do Connatic?
— Sim.
A enfermeira Gundal carregou nalguns botões, obviamente para pôr em
funcionamento algum mecanismo de gravação.
— Como se chama?
— Chamam-me Pardero, mas ignoro o meu verdadeiro nome.
A enfermeira Gundal não fez qualquer comentário.
— Origem?
— Não sei.
— De que se queixa?
— Amnésia.
A enfermeira observou-o de uma forma comedida, que poderia talvez
indicar interesse.
— E quanto à saúde física?
— Parece boa.
— Vão levá-lo ao hospital.— A enfermeira Gundal levantou a voz. —
Ariel.
Uma jovem loura entrou na sala, num uniforme que estava em desacordo
com o seu aspecto luminoso. A enfermeira Gundal deu-lhe instruções:
— Por favor, conduza este senhor ao Hospital do Connatic. — Depois,
para Pardero: — Tem bagagem?
— Não.
— Desejo-lhe rápidas melhoras.
A assistente sorriu delicadamente para Pardero.
— Por aqui, se faz favor.
Um táxi aéreo levou-os para o norte através da paisagem azul e verde de
Flor Solana, enquanto Ariel mantinha a conversa com grande naturalidade.
— Já alguma vez visitou Númenes?
— Não sei; não me lembro de nada que se tenha passado há mais de dois
ou três meses.
— Oh, lamento muito! — Disse Ariel, confusa. — Bom, então, caso não
saiba, não há continentes aqui em Númenes, só ilhas. Todas as pessoas que
vivem aqui têm um barco.
— Deve ser muito agradável.
Ariel abordou cuidadosamente o problema de Pardero, observando-o
disfarçadamente para ver se ele mostrava quaisquer indícios de
suscetibilidade ou desconforto.
— Que estranha sensação, não se conhecer a si próprio! Que é que isso
lhe faz sentir?
Pardero ficou pensativo por momentos.
— Bom... Não dói.
— Ainda bem! Repare: você pode ser não importa quem... Talvez um
homem rico e importante!
— O mais provável é eu ser um homem vulgar: calceteiro ou um
tosquiador de cães ambulante.
— Tenho a certeza de que não! — Afirmou Ariel. — Você parece...
Bom... — A rapariga hesitou e depois prosseguiu com um sorriso um tanto
embaraçado: — Parece ser uma pessoa cheia de confiança e inteligente.
— Espero que não esteja enganada. — Pardero olhou para ela e
suspirou, lamentando que o seu encanto e frescura tivessem uma passagem
tão breve na sua vida. — Que me irão fazer?
— Nada de assustador. O seu caso vai ser estudado por pessoas muito
inteligentes e que dispõem da maquinaria mais avançada. É quase certo que
vão conseguir curá-lo.
Pardero sentiu-se pouco à vontade.
— É um autêntico jogo. Posso muito bem ser alguém que não quero ser.
Ariel não conseguiu evitar um riso trocista.
— Segundo julgo saber, essa é uma das razões que leva as pessoas a
tornarem-se amnésicas.
Pardero ecoou tristemente.
— Não a assusta viajar com um homem que pode ser um criminoso
horrível?
— Pagam-me para ser corajosa. Já tenho acompanhado pessoas muito
mais assustadoras que você.
Pardero olhou para fora, para a ilha de Flor Solana. Um pouco adiante
via-se um pavilhão construído numa estrutura fina com painéis transparentes,
num conjunto que ficava meio encoberto pelas palmeiras-jacinto e pelas
ciniborinas.
À medida que o táxi se aproximava, começaram a distinguir-se seis
cúpulas, das quais os edifícios irradiavam em seis direções. Pardero
perguntou:
— Aquilo é o hospital?
— Tudo o que vê é o hospital. O hexágono é o centro de
computadorização. Os edifícios mais pequenos são laboratórios e blocos
operatórios. Os doentes ficam instalados nos edifícios laterais. Agora ficará a
viver aqui até recuperar a saúde.
Pardero perguntou timidamente:
— E você? Será que a volto a ver?
As covinhas de Ariel ficaram mais vincadas.
— E quer voltar a ver-me?
Pardero considerou as suas inclinações.
— Sim.
Ariel disse, meio trocista:
— Você vai estar tão preocupado que nunca mais se lembra de mim.
— Não quero voltar a esquecer seja o que for.
Ariel mordeu o lábio com ar pensativo.
— Não se lembra de nada que diga respeito à sua vida passada?
— Nada.
— Talvez tenha família: alguém que sinta amor por si, filhos.
— Deve ser possível... Mas, não sei porquê, não me parece.
— É assim com a maior parte dos homens... Tenho de pensar.
O táxi aterrou; os dois desceram e encaminharam-se por uma avenida
sombreada de árvores em direção ao hexágono. Ariel deitou-lhe uma olhadela
de lado e talvez a sua evidente apreensão tenha suscitado nela um sentimento
de compaixão. Disse numa voz que pretendeu tornar alegre, mas impessoal:
— Venho cá muitas vezes e, logo que comece o tratamento, venho vê-lo.
Pardero teve um sorriso pálido.
— Fico à espera.
Conduziu-o à área de recepção, disse algumas palavras a um funcionário
e depois despediu-se.
— Não se esqueça! — Gritou-lhe por cima do ombro e o tom impessoal,
quer fosse intencional ou não, tinha desaparecido da sua voz.
— Voltamos a ver-nos em breve!
***
— Sou T. O. Kolodin — disse um homem alto e um tanto amarrotado
com um nariz enorme e o cabelo escuro despenteado e ralo. — T. O. quer
dizer técnico ordinário; chame-me apenas Kolodin. O seu nome está na
minha lista, por isso vamos ver-nos muitas vezes. Venha. Vou tratar de o
instalar.
Pardero tomou banho, foi sujeito a um exame físico e recebeu um fato
leve azul-pálido. Kolodin acompanhou-o ao quarto, numa das alas laterais, e
ambos tomaram uma refeição num terraço próximo. Kolodin, que não era
muito mais velho que Pardero, mas incalculavelmente mais sofisticado,
interessou-se vivamente pelo estado de Pardero.
— Nunca estive em contacto com um caso destes. É fascinante! Quase
lamentamos curá-lo!
Pardero deixou aflorar um sorriso pálido.
— Tenho as minhas próprias dúvidas. Dizem-me que perdi a memória
por causa de qualquer coisa que pretendo esquecer. Talvez não me agrade
ficar curado.
— É uma situação difícil — concordou Kolodin. — Mas mesmo assim a
situação não deve ser tão má como isso. — Fixou a unha do polegar e
observou uma série de números brilhantes. — Dentro de um quarto de hora
encontramo-nos com o T. P. Rady, que vai decidir qual o tratamento a fazer.
Regressaram os dois ao hexágono. Kolodin acompanhou Pardero ao
gabinete do técnico principal Rady e pouco depois apareceu o próprio Rady:
um homem de meia-idade, magro e de olhar agudo, que parecia já saber os
pormenores mais importantes do caso de Pardero. Perguntou:
— Como se chamava a nave que o trouxe a Bruse-Tansel?
— Não consigo lembrar-me de grande coisa.
Rady acenou com a cabeça e aplicou um quadrado de esponja áspera a
cada uma das omoplatas de Pardero.
— Isto é uma inoculação que facilita o estado de descontração mental...
Sente-se confortavelmente. É capaz de fixar o espírito em qualquer coisa de
agradável?
O quarto obscureceu-se; Pardero pensou em Ariel. Rady disse:
— Vai ver dois desenhos na parede. Quero que os examine ou, se
preferir, pode fechar os olhos e descansar... Sim, descontraia-se totalmente,
escute só a minha voz; e quando lhe disser que durma, então pode dormir.
Os desenhos na parede latejavam e moviam-se; um som brando, que
aumentava e diminuía, parecia abafar e apagar todos os outros sons do
universo. As formas na parede aumentavam a ponto de o envolver e a única
realidade era ele próprio e o seu espírito.
— Não sei. — A voz parecia vir de um quarto distante, embora fosse a
sua própria voz. Estranho. Ouviu um murmúrio cujo significado só em parte
lhe foi perceptível:
— Como se chama o seu pai?
— Não sei.
— Como se chama a sua mãe?
— Não sei.
Mais perguntas, algumas casuais, outras urgentes, e sempre a mesma
resposta, até que cessou o som.
Pardero acordou num gabinete vazio. Rady voltou quase ao mesmo
tempo, e ficou a olhar para ele com um sorriso fraco.
Pardero perguntou:
— Que é que descobriu?
— Nada de que vamos falar. Como se sente?
— Cansado.
— É absolutamente normal. Passe o resto do dia a descansar. Não se
preocupe com o seu estado. Havemos de conseguir chegar ao fim.
— E supondo que no fim não há nada? Suponho que eu não tenho
realmente memória?
Rady recusou-se a tomá-lo a sério.
— Todas as células do seu corpo têm a sua memória. O seu espírito
armazena factos a muitos níveis. Por exemplo, você não se esqueceu de como
se fala.
Pardero disse duvidoso:
— Quando cheguei a Carfaunge sabia muito pouco. Não conseguia falar.
Quando ouvia uma palavra lembrava-me do seu significado e era capaz de a
usar.
Rady fez um aceno breve.
— Isto é a base de um tratamento que vale a pena tentar.
Pardero hesitou.
— Pode acontecer que, ao recuperar a memória, venha a descobrir que
sou um criminoso.
Os olhos de Rady brilharam.
— Tem de correr o risco. Depois de lhe restituir a memória, o connatic
pode muito bem decidir mandá-lo matar.
Pardero fez uma careta.
— O connatic costuma visitar o hospital?
— Sem dúvida. Ele vai a toda a parte.
— Como é ele?
Rady encolheu os ombros.
— Nas fotografias oficiais parece uma figura de um nobre, importante e
imponente, pela maneira como se veste. Mas, quando se desloca a pé, fá-lo
tranquilamente e ninguém o reconhece, é esta a sua situação preferida. O
Aglomerado de Alastor é habitado por quatro triliões de pessoas e diz-se que
o connatic sabe o que cada uma delas come ao pequeno-almoço.
— Nesse caso — disse Pardero — bastava-me ir ter com o connatic e
perguntar-lhe simplesmente pormenores da minha vida.
— Pode ser que cheguemos a isso.
Os dias foram passando, depois uma semana, duas semanas. Rady tentou
uma dezena de estratagemas para libertar o espírito de Pardero. Registou as
suas reações a toda uma gama de estímulos: cores, sons, odores, paladares,
texturas; altitudes e profundidades; luz e escuridão. A um nível mais
complexo registou as reações de Pardero, manifestas, fisiológicas e cefálicas,
perante absurdidades e festivais, situações eróticas, crueldades e horrores,
rostos de homens, mulheres e crianças. Um mecanismo computadorizado
assimilava os resultados dos testes, comparava-os para obter os parâmetros e
sintetizava um análogo do espírito de Pardero.
Rady, quando obteve finalmente os resultados dos seus testes, poucos
esclarecimentos pôde tirar deles.
— Os seus reflexos básicos são bastante comuns; uma anomalia é a sua
reação à escuridão, que parece estimulá-lo de uma forma bastante curiosa. A
sua percetividade social parece estar subdesenvolvida, facto este que pode ser
devido à amnésia. Você parece ser um tipo que se afirma e não se retrai; tem
uma reação mínima à música e a simbologia das cores pouco representa para
si... Possivelmente também por causa da amnésia. Os odores por sua vez
estimulam-no mais do que eu esperaria, mas também não atingem valores
significativos.
— Rady recostou-se na cadeira. — Estes testes podem facilmente
provocar uma reação consciente. Notou qualquer coisa até agora?
— Nada.
Rady acenou.
— Muito bem. Vamos tentar um novo caminho. A base teórica é a
seguinte: se a sua amnésia resultou de circunstâncias que você está decidido a
esquecer, podemos dissolver a amnésia trazendo novamente tais
acontecimentos ao seu consciente. Para isso, temos de descobrir a natureza
das circunstâncias traumáticas. Resumindo, precisamos descobrir a sua
identidade e ambiente natural.
Pardero franziu a testa e olhou pela janela. Rady observava-o
atentamente.
— Não está interessado em conhecer a sua identidade?
Pardero teve um sorriso contrafeito.
— Não disse isso.
Rady encolheu os ombros.
— A decisão é sua. Pode ir-se embora daqui quando quiser. Os serviços
sociais arranjam-lhe emprego e você pode começar uma vida nova.
Pardero sacudiu a cabeça.
— Nunca poderia libertar-me completamente. Talvez haja quem precise
de mim, quem sofra com a minha ausência.
Rady limitou-se a dizer;
— Amanhã começamos o trabalho de detetive.
***
Uma hora depois do crepúsculo, Pardero encontrou-se com Ariel num
café e relatou os acontecimentos do dia.
— Rady admitiu que se sentia perplexo — disse-lhe Pardero, num tom
que parecia de triste satisfação. — Não tão explicitamente, claro. Disse
também que a única maneira de saber de onde eu era seria descobrir onde
vivia. Resumindo, quer mandar-me para lá. Mas primeiro temos de saber
onde é. O trabalho de detetive começa amanhã.
Ariel abanou a cabeça, pensativa. Não estava nos seus melhores dias; de
facto, pensou Pardero, a rapariga parecia tensa e preocupada. Ele estendeu a
mão para lhe tocar no cabelo louro e macio, mas ela recuou.
— E depois? — Perguntou.
— Nada de especial. Disse-me que se eu tivesse qualquer relutância em
continuar, era agora a altura de tomar uma decisão.
— E que respondeu você?
— Disse-lhe que tinha de continuar, que talvez algures alguém andasse à
minha procura.
Os olhos azuis de Ariel ensombraram-se.
— Não posso continuar a encontrar-me consigo, Pardero.
— Oh! Porquê?
— Pelas mesmas razões que você citou. Os indivíduos que são atacados
de amnésia afastam-se geralmente de casa e... Bom, criam novas ligações.
Quando recuperam a memória, a situação acaba de forma trágica.
— Ariel pôs-se de pé. — Vou-me despedir, antes que mude de ideias. —
Tocou-lhe na mão e depois afastou-se da mesa. Pardero viu-a desaparecer ao
fundo da avenida. Não fez qualquer gesto para a deter.
***
Em vez de um dia, passaram-se três dias antes que o T. O. Kolodin o
procurasse.
— Hoje vamos visitar o Palácio do Connatic e explorar o Anel dos
Mundos.
— Com certeza que vou gostar da excursão. Mas porquê?
— Tenho estado a estudar o seu passado e acontece que é um
emaranhado terrível; ou, mais propriamente, uma névoa de incertezas.
— Eu próprio lho podia ter dito.
— Sem dúvida, mas não se deve aceitar as coisas tal como nos são
apresentadas. Os factos, devidamente confirmados, são os seguintes: a dada
altura, no décimo Mariel Gaean, você aparece no aeroporto espacial de
Carfaunge. O dia fora particularmente movimentado e você pode ter chegado
em qualquer de seis naves de quatro linhas diferentes. As rotas anteriores
destas naves tinham-nas levado a um total de vinte e oito mundos, podendo
qualquer deles ser o seu local de origem. Nove destes mundos constituem
entroncamentos importantes e é possível que você tenha viajado em duas ou
mesmo três etapas. A amnésia não constituiria um impedimento insuperável.
O pessoal de bordo e de terra, tomando-o por um anormal, teria consultado o
seu bilhete, mudando-o de uma nave para outra. De qualquer forma, o
número de mundos, entrepostos, naves e possíveis correspondências torna a
busca impraticável. Ou pelo menos o inquérito quanto ao local onde você
tomou o último transporte. Primeiro vamos visitar o connatic! Embora duvide
de que ele nos receba pessoalmente.
— É pena. Gostava de lhe apresentar os meus respeitos.
Foram de táxi aéreo de Flor Solana para Moniscq, uma cidade junto ao
mar, e daí, de túnel submarino, por baixo do oceano das Tempestades
Equatoriais, até à ilha de Tremone. Um autocarro aéreo levou-os para o sul, e
em breve avistaram o chamado «palácio» do connatic, aparecendo-lhes a
princípio como uma silhueta frágil, um brilho etéreo que se solidificou numa
torre de magníficas dimensões, apoiada em cinco pilares que iam pousar em
cinco ilhas. Mil pés acima do mar, os pilares uniam-se e alargavam para fora,
criando uma abóbada com cinco nervuras, que constituía a parte inferior do
primeiro piso. A torre erguia-se a partir daí, atravessando os ares e as
camadas mais altas e soalheiras, atravessando as nuvens e indo terminar nas
alturas cheias de sol. Kolodin perguntou com ar natural:
— Tem algumas torres como estas no seu mundo de origem2?
Pardero olhou para ele com desconfiança.
— Está a tentar pregar-me alguma partida? Se eu conhecesse isto não
estaria aqui.
— Voltou a contemplar as torres. — Onde vive o connatic?
— Os apartamentos dele ficam no pináculo. Talvez esteja lá agora, junto
de alguma das janelas. Ou talvez não. Nunca se sabe: afinal de contas os
dissidentes, malandris e rebeldes não são desconhecidos em Alastor e há que
tomar precauções. Suponha, por exemplo, que um assassino era mandado
para Númenes, disfarçado de amnésico ou talvez mesmo na pele de um
verdadeiro amnésico em cujo espírito estivessem latentes instruções
horríveis.
— Não tenho quaisquer armas — disse Pardero. — Não sou nenhum
assassino. Estremeço só de pensar nisso.
— Tenho de anotar isso. Creio que a sua psicometria também mostrou
aversão ao crime. Bom, mas se é de facto um assassino, o plano não vai
resultar, pois não me parece que nos vamos encontrar hoje com o connatic.
— Então com quem nos vamos encontrar?
— Com um tal demosofista chamado Ollave, que tem acesso aos bancos
de informações e aos mecanismos de confrontação. É muito possível que
ainda hoje fiquemos a saber de que mundo é você oriundo.
Pardero considerou a questão da maneira cuidadosa que lhe era habitual.
— E que me acontecerá depois?
— Bom — disse Kolodin com precaução —, há pelo menos três
possibilidades. Pode continuar o seu tratamento no hospital, embora receie
que Rady se sinta um tanto desencorajado. Pode aceitar o seu estado e tentar
uma nova vida. Ou pode ainda regressar ao seu mundo de origem.
Pardero não fez qualquer comentário e Kolodin, delicadamente, absteve-
se de fazer mais perguntas.
Uma rampa conduziu-os até à base do pilar mais próximo, de onde já
não era possível ter uma perspectiva das proporções da torre, restando apenas
a impressão de uma espantosa e transcendente massa de engenharia.
Subiram juntos num globo elevatório; o mar, a praia, a ilha de Tremone
ficaram lá em baixo.
— Os primeiros três pisos e os seis passeios inferiores estão reservados
ao uso e divertimento dos turistas. Podem passar dias aqui, andando de um
lado para o outro, limitando-se a descansar ou, se assim o preferirem,
saboreando divertimentos exóticos. Podem dormir gratuitamente em quartos
simples, embora haja luxuosos apartamentos à sua disposição a preços
baixíssimos. Podem comer pratos que lhes são familiares ou experimentar
qualquer dos tipos de cozinha mais famosos no universo, tudo isso também
por um preço ínfimo. Os viajantes vão e vêm aos milhares; é esse o desejo de
connatic. Agora atravessamos os pisos administrativos, onde se encontram os
escritórios do governo dos Vinte e Quatro Agentes... Passamos agora o Anel
dos Mundos e continuamos a subir até à Escola Superior de Ciências
Antropológicas, que é o nosso destino. Ollave é um homem muito culto, e se
há alguma coisa que pode ser aprendida, ele aprende-a com certeza.
Avançaram para um patamar forrado de ladrilhos azuis e brancos.
Kolodin pronunciou o nome de Ollave em direção a um disco negro e dentro
em pouco apareceu este. Era um homem de aspecto perfeitamente comum,
com o rosto encovado e pensativo, o nariz comprido e fino e o cabelo negro
encimando uma testa estreita. Saudou Kolodin e Pardero com uma voz
surpreendentemente pesada e conduziu-os a um gabinete escassamente
mobilado. Pardero e Kolodin sentaram-se em cadeiras e Ollave instalou-se
por detrás da secretária. Ollave dirigiu-se a Pardero:
— Segundo me parece, você não consegue recordar absolutamente nada
da sua vida precedente.
— É verdade.
— Não posso restituir-lhe a memória — disse Ollave —, mas, se é
nativo de Alastor, devo ser capaz de determinar de que mundo vem, talvez
possa mesmo dizer a localização exata do distrito de onde é oriundo.
— Como vai conseguir isso?
Ollave apontou para a secretária.
— Tenho o registo da sua antropometria, os índices fisiológicos,
pormenores da sua química somática, perfil psíquico... Bom, todas as
informações que os técnicos Rady e Kolodin conseguiram reunir. Julgo que
talvez saiba que o facto de se residir num dado mundo e numa sociedade
específica, participando numa determinada maneira de viver, deixa traços
tanto mentais como físicos. Infelizmente, tais traços não são absolutamente
específicos e alguns são demasiado subtis para que possam ser medidos de
forma satisfatória. Por exemplo, uma pessoa que é caracterizada pelo tipo
sanguíneo RC3 é pouco provável que seja oriunda de Azulias. As próprias
bactérias intestinais fornecem indícios e o mesmo se passa com a musculatura
das pernas, a composição química do cabelo, a presença e a natureza de
quaisquer fungos corporais ou parasitas internos; ou ainda a pigmentação da
pele. No caso de um indivíduo costumar fazer gestos, estes também podem
ser típicos. Outros reflexos sociais, tais como as áreas e graus de modéstia
pessoal, são igualmente reveladores, mas aqui torna-se necessária uma
observação paciente e demorada, podendo ainda ser obscurecidos pela
amnésia. A dentição e os tratamentos feitos aos dentes podem por vezes dar
uma sugestão, o mesmo acontecendo com o arranjo dos cabelos. E agora, já
está a compreender o processo? Estes parâmetros, aos quais podemos atribuir
um peso numérico, são trabalhados num computador, que depois nos
apresenta uma lista de sítios, por ordem decrescente de probabilidades.
«Vamos preparar duas listas destas. Aos mundos que ficam mais
acessíveis ao porto espacial de Carfaunge atribuiremos fatores de
probabilidade e tentaremos codificar os seus reflexos culturais: trata-se de um
empreendimento complexo, na medida em que a amnésia deve ter modificado
muitos destes elementos, ao mesmo tempo que você foi adquirindo também
hábitos novos. De qualquer maneira, se quiser ter a bondade de entrar no
laboratório, tentaremos fazer uma leitura.
No laboratório, Ollave mandou sentar Pardero numa imensa cadeira,
ligou-lhe receptores a várias partes do corpo e ajustou-lhe à cabeça uma
bateria de contactos. Colocou hemisférios óticos sobre os olhos de Pardero e
introduziu-lhe auscultadores nos ouvidos.
— Em primeiro lugar vamos determinar a sua sensibilidade aos
conceitos arquetípicos. A amnésia pode muito bem diminuir ou distorcer as
reações e, segundo o T. P. Rady, a sua é um caso extraordinário. No entanto,
se for apenas o cerebelo que está obstruído, as outras áreas do sistema
nervoso darão as informações. Se recebermos qualquer sinal, seja ele qual
for, partiremos do princípio de que a sua força relativa se manteve constante.
A carga recente, tentaremos isolá-la. Você não tem de fazer nada, a não ser
ficar sentado, imóvel; não tente sentir nem deixar de sentir; as suas
faculdades internas fornecer-nos-ão tudo aquilo que precisamos saber. —
Cerrou os hemisférios sobre os olhos de Pardero. — Primeiro, uma série de
conceitos elementares.
Aos olhos e aos ouvidos de Pardero foram apresentados sons e cenas:
uma floresta banhada pelo sol, as ondas quebrando numa praia, um prado
salpicado de flores, um vale onde ecoava uma tempestade de Inverno; um
pôr-do-sol, uma noite estrelada, o panorama de um oceano tranquilo, uma rua
da cidade, uma estrada serpenteando ao longo de colinas tranquilas, uma nave
espacial.
— Agora outra série — soou a voz de Ollave.
Pardero viu uma fogueira rodeada por figuras sombrias, uma bela
rapariga nua, um cadáver pendurado numa forca, um cavaleiro com uma
armadura de aço negra galopando em cima de um cavalo, uma parada de
arlequins e palhaços, um barco à vela mergulhando nas ondas, três velhas
damas sentadas num banco.
— A seguir, músicas.
Uma série de sons musicais entraram pelos ouvidos de Pardero: dois
instrumentos de cordas, vários ensaios orquestrais, uma fanfarra, a música de
uma harpa, uma jiga.
— Agora, rostos.
Um homem sério e grisalho fitou Pardero, uma criança, uma mulher de
meia-idade, uma rapariga, um rosto contorcido num riso de troça, um rapaz a
rir, um homem cheio de dor, uma mulher a chorar.
— Veículos.
Pardero viu barcos, carruagens, veículos terrestres e aéreos, naves
espaciais.
— O corpo.
Pardero viu uma mão, um rosto, uma língua, um nariz, um abdômen,
órgãos genitais masculinos e femininos, um olho, uma boca aberta, nádegas,
um pé.
— Sítios.
Uma barraca ao pé de um lago, um palácio com uma dúzia de abóbadas
e cúpulas num jardim, uma cabana de madeira, um aglomerado urbano, um
barco com habitação, um templo, um laboratório, a entrada de uma caverna.
— Objetos.
Uma espada, uma árvore, um baraço de corda, um penhasco de
montanha, uma arma de energia, um arado com uma pá e uma enxada, uma
proclamação oficial com um selo vermelho, flores num vaso, livros numa
prateleira, um livro aberto numa estante, ferramentas de carpinteiro, uma
seleção de instrumentos musicais, acessórios matemáticos, uma retorta, um
chicote, uma máquina, uma almofada bordada, uma coleção de mapas e
roteiros, instrumentos de desenho e papel em branco.
— Símbolos abstratos.
Vários motivos apareceram em frente dos olhos de Pardero:
combinações de linhas, formas geométricas, números, caracteres linguísticos,
um punho cerrado, um dedo esticado, um pé com pequenas asas a nascerem-
lhe dos tornozelos.
— E finalmente... — Pardero viu-se a si próprio, à distância e depois
bem perto. Olhou para o seu próprio rosto.
Ollave afastou o aparelho.
— Os sinais foram extremamente fracos, mas perceptíveis. Registámos
os seus dados psicométricos e agora podemos determinar aquilo que
chamamos o seu índice natural.
— Que descobriram?
Ollave fitou Pardero de uma forma estranha.
— As suas reações são inconsistentes. E isto é o menos que se pode
dizer. Você parece provir de uma sociedade bastante especial. Receia a
escuridão... No entanto, ela desafia-o e excita-o. Receia as mulheres; o corpo
feminino deixa-o pouco à vontade... Contudo, o conceito de feminilidade
atrai-o. Reage positivamente às técnicas marciais, aos recontros heroicos, às
armas e uniformes; por outro lado detesta a violência e a dor. As suas outras
reações são igualmente contraditórias. A pergunta que se põe é a seguinte:
será que todas estas reações estranhas formam um todo ou indicam um estado
de perturbação? Não me vou perder em especulações. Todos os dados foram
fornecidos a um integrador juntamente com o outro material que mencionei.
Tenho certamente um relatório à minha disposição.
— Quase tenho medo de o examinar — murmurou Pardero. — Parece
que sou um caso único.
Ollave não fez mais comentários: voltaram para o gabinete, onde o T. O.
Kolodin esperava pacientemente. Ollave retirou de um registo um quadrado
de papel branco.
— Cá está o nosso relatório. — Estudou o papel de uma forma talvez
inconscientemente dramática. — Temos aqui uma configuração. — Voltou a
ler a folha. — Sim, sim... São identificadas dezoito localidades em cinco
mundos. As probabilidades relativamente a quatro destes mundos, com
dezassete localidades, agregam três por cento. A probabilidade relativamente
à única localidade do quinto mundo está avaliada em oitenta e nove por
cento, o que, nestas circunstâncias, é o equivalente a uma certeza muito
próxima. Na minha opinião, Sr. Pardero, ou lá como se chama, você é um
rhune, do reino dos Rhunes, a leste de Port Mar, no continente norte de
Marune, Alastor 933.
CAPÍTULO III
No vestíbulo lajeado a azul e branco, Kolodin perguntou a Pardero:
— Ora bem... Com que então é um rhune. Que tal? Reconhece a
palavra?
— De forma nenhuma.
— Era o que eu pensava.
Ollave veio juntar-se a eles.
— Vamos travar conhecimento com esse seu mundo. O anel fica mesmo
por baixo de nós; o Compartimento 933 fica no nível cinco. Vamos descer.
Enquanto o globo baixava de um nível para outro, Kolodin falava acerca
do Anel dos Mundos.
—... Uma das poucas áreas em que a entrada é controlada. Ao princípio
não era assim. Qualquer pessoa podia visitar o compartimento
correspondente ao seu mundo, fazendo aí todos os disparates que lhe viessem
à cabeça, tal como escrever o nome na parede ou espetar um alfinete na
esfera no sítio onde tinha a casa, alterando a linhagem da nobreza local ou
colocando relatórios indecentes nos registos. Em consequência disso, as
pessoas agora têm de se identificar.
— Felizmente as minhas credenciais facilitarão as coisas — disse Ollave
secamente.
Cumpridas as formalidades, um assistente levou-os a um portal com o
número 933 e facultou-lhes a entrada.
No centro havia um globo com dez pés de diâmetro, que flutuava junto
ao pavimento e rodava facilmente com um ligeiro toque.
— Aí tem Marune — disse Kolodin. — Parece-lhe familiar?... Tal como
eu esperava.
Ollave tocou o globo.
— Um pequeno mundo denso não muito habitado. As gradações de cor
representam o relevo; Marune é muito acidentado. Reparem nos picos e nos
desfiladeiros! As áreas verde-azeitona são tundras polares; as áreas azul-
metálico são águas visíveis, comparativamente poucas. Reparem também nos
grandes pântanos equatoriais! É evidente que a área habitável é pequena. —
Tocou num botão; o globo resplandeceu com pequenos pontos de luz cor-de-
rosa. — Isso indica-lhe a distribuição da população: Port Mar parece ser a
cidade maior. Mas esteja à vontade e veja tudo o que há por aí; talvez haja
alguma coisa que lhe estimule a memória.
Pardero deslocou-se de um lado para o outro, estudando tudo quanto
estava exposto, cartas e pormenores de menor interesse. Em breve perguntou
numa voz pouco segura:
— A que distância fica este planeta?
Kolodin levou-o junto de uma reprodução a três dimensões do
Aglomerado de Alastor.
— Aqui está Númenes, ao lado desta estrela amarela. — Carregou num
botão, fazendo acender um indicador vermelho a um lado. — Ali está
Marune, quase na Ponta Fria, na Fontinella Wisp. Bruse-Tansel fica algures
por ali, no sítio em que se unem aquelas linhas cruzadas. — Aproximou-se de
outro modelo. — Isto representa a localização: um grupo de quatro estrelas.
Marune fica — tocou num botão — no final da seta vermelha e tem a sua
órbita próxima do anão cor de laranja chamado Furad. A estrela verde é
Cirse, o anão azul é Osmo; as quatro estrelas dançam uma bela sarabanda ao
longo da Fontinella Wisp.
Kolodin leu um letreiro que estava fixado na parede: «Em Marune, o dia
e a noite não alternam como acontece com a maior parte dos planetas. Em
vez disso há diversas gradações de luz, conforme o sol ou sóis que governam
o céu; e estes períodos são designados com uma nomenclatura específica.
Aud, isp, sorva vermelha, sorva verde e umbra são as gradações mais
vulgares. A noite verifica-se a intervalos regulados por um esquema
complexo; em média, de trinta em trinta dias.
»A maior parte de Marune é pouco indicada para a habitação humana e a
população é escassa, dividida mais ou menos igualmente entre agricultores
das vertentes das terras baixas e residentes das poucas cidades, das quais Port
Mar é, de longe, a mais importante. A leste de Port Mar ficam os Reinos das
Montanhas habitados pelos altivos e excêntricos intelectuais-guerreiros
conhecidos como Rhunes, cujo número não se conhece exatamente. A fauna
nativa inclui um bípede quase inteligente e de humor pacífico: o fwai-chi.
Estas criaturas habitam as florestas das terras altas e estão protegidas contra
agressões por estatutos e pelo hábito. Para informações mais pormenorizadas
consultar o catálogo».
Pardero aproximou-se do globo e em breve descobriu Port Mar. A leste
elevava-se uma série de enormes cordilheiras, com os seus picos rochosos
erguendo-se acima da linha da floresta, acima das neves e glaciares, para
regiões onde já não existiam nem chuva nem neve. Uma multidão de
pequenos rios atravessavam a região, atravessando estreitos vales das terras
altas, alargando-se até formar lagos, lançando-se em precipícios e acabando
por se reconstituir de novo noutros lagos e correntes. Alguns dos vales
apresentavam nomes: Haun, Gorgetto, Zangloreis, Eccord, Wintaree,
Disbague, Morluke, Tuillin, Scharrode, Ronduce e uma dezena mais, todos
com nomes estranhos ou em dialeto arcaico. Alguns dos nomes eram-lhe
fáceis de pronunciar, como se os conhecesse bem; e quando Kolodin,
espreitando-lhe por cima do ombro, os começou a ler, notou-lhe as inflecções
incorretas, embora não lho tivesse dito.
Ollave chamou-o e apontou para uma grande caixa de vidro.
— Que pensa disto?
— Quem são?
— E um trismet eiodarkal.
— Essas palavras não têm qualquer significado para mim.
— São palavras em rhune, claro. Pensei que talvez as reconhecesse. Um
eiodark é um barão de alta estirpe; trisme é uma instituição análoga ao
casamento; trismet designa as pessoas nela envolvidas.
Pardero inspecionou as duas figuras. Ambos eram altos, magros, de
cabelos escuros e pele clara. O homem envergava um trajo complicado em
tecido vermelho-escuro, um colete feito em tiras de metal negro e tecido
igualmente negro. O trajo da mulher era bastante mais simples: uma túnica
comprida e direita em gaze cinzenta, sapatos baixos e uma touca negra e solta
que lhe rodeava as feições claras e bem modeladas.
— Rhunes típicos — disse Ollave. — Rejeitam totalmente os padrões e
as modas cosmopolitas. Repare bem neles. Observe as expressões calmas e
controladas. Repare também que os seus fatos não têm nada em comum, o
que é sinal evidente de que na sociedade rhune os papéis do homem e da
mulher são diferentes. Cada um deles constitui um mistério para o outro, tal
como se pertencessem a raças diferentes! — Deitou um olhar penetrante a
Pardero. — Estas figuras sugerem-lhe alguma coisa?
— Não me parecem estranhas, tal como a fala em Carfaunge também
não me pareceu estranha.
— É isso. — Atravessando a sala em direção a um écran, Ollave premiu
alguns botões. — Aqui está Port Mar, no extremo das terras altas.
Uma voz, vinda do écran, comentou a imagem.
— Estão a ver a cidade de Port Mar, tal como se estivessem a chegar
num carro aéreo, vindos do sul. O tempo é aud, o que quer dizer plena luz do
dia, vendo-se no céu Furad, Maddar, Osmo e Cirse.
O écran apresentou um panorama de pequenas residências meio
escondidas entre a folhagem: estruturas construídas em madeira escura e
estuque castanho-rosado. Os telhados elevavam-se pontiagudos, formando
uma enorme variedade de ângulos irregulares e empenas excêntricas: um
estilo muito gracioso e invulgar. Em muitos casos, as habitações tinham sido
ampliadas, e estes acrescentos surgiam naturalmente da estrutura antiga, tal
como um cristal cresce de outro cristal. Outras estruturas, abandonadas,
estavam em ruínas.
— Estas casas foram construídas por majars, os habitantes originários de
Marune. Restam poucos indivíduos de origem puramente majar; é uma raça
quase extinta e a cidade Majar está a ser abandonada. Os Majars, juntamente
com os Rhunes, deram o nome ao planeta, que era originariamente conhecido
por «Majar-Rhune». Os Rhunes, ao chegarem a Marune, dizimaram os
Majars, mas foram expulsos pelos Whelm para as montanhas do leste, onde
até ao presente nunca lhes foi permitida a posse de quaisquer armas de
energia ou ataque.
A cena mudou para uma albergaria de proporções imponentes. O
comentador fez-se ouvir:
— Vê-se aqui o Royal Rhune Hotel, invariavelmente escolhido pelos
rhunes que têm de se deslocar a Port Mar. A gerência atende às necessidades
específicas dos Rhunes.
Atravessando um rio, a cena passou a apresentar uma área um tanto mais
moderna.
— Vemos agora a Cidade Nova — disse o comentador. — O Colégio de
Artes e Técnicas de Port Mar, situado nas proximidades, vangloria-se de ter
uma Faculdade distinta com quase dez mil alunos, provenientes tanto de Port
Mar como das regiões agrícolas do sul e oeste. O colégio não é frequentado
pelos Rhunes.
Pardero perguntou a Ollave:
— Como é que se explica isso?
— Os Rhunes preferem os seus próprios processos educacionais.
— Parece ser um povo muito especial.
— Sim, sob muitos aspectos.
— E eu sou uma dessas pessoas notáveis.
— Assim parece. Vejamos os Reinos das Montanhas. — Ollave
consultou um índice. — Primeiro quero mostrar-lhe um dos autóctones: os
fwai-chi, como são chamados. — Tocou num botão, fazendo aparecer uma
montanha alta manchada de neve e escassamente arborizada, com algumas
árvores negras e contorcidas. A imagem centrou-se numa destas árvores,
mostrando o tronco rugoso negro-acastanhado, que se mexia e movimentava.
Do vulto da árvore destacou-se um volumoso bípede, num passo largo, todo
ele coberto com um pelo desordenado. O comentador falou: — Aqui veem
um fwai-chi. Estas criaturas são inteligentes à sua maneira e como tal são
protegidas pelo connatic. O pelo hirsuto serve-lhe não só de camuflagem
contra os ursos das neves, como também são órgãos para a produção de
hormonas e estímulo reprodutivo. Ocasionalmente vêem-se os fwai-chi
mordiscando-se uns aos outros; estão a ingerir um produto que reage como
um rebento nas paredes dos seus estômagos. O rebento dá lugar a um
pequeno ser, que, na devida altura, é vomitado para o mundo. Noutras franjas
pendentes dos seus pelos são produzidos outros estímulos semivitais.
» Os fwai-chi são calmos, mas não deixam de reagir se provocados para
além de um certo limite; de facto têm fama de possuir importantes
capacidades parapsíquicas e ninguém ousa maltratá-los.
A cena mudou, vendo-se a vertente da montanha até ao vale. Uma aldeia
constituída por cinquenta casas de pedra ocupava um campo ao lado do rio:
uma alta mansão ou castelo, empoleirada numa escarpa, dominava o vale.
Aos olhos de Kolodin, a mansão ou castelo evidenciava uma forma e um
pormenor superelaborados e arcaizantes; adicionalmente, as proporções
pareciam atarracadas, a construção desproporcionadamente pesada, as janelas
em número insuficiente, demasiado altas e estreitas. Fez uma pergunta a
Pardero:
— Que pensa disto?
— Não faço ideia nenhuma. — Levou as mãos às têmporas, apertou e
esfregou. — Sinto uma pressão; não quero ver mais.
— Com certeza — afirmou Ollave cuidadosamente. — Vamo-nos
imediatamente embora. — E acrescentou: — Venha até ao meu escritório;
vou arranjar-lhe um sedativo, sentir-se-á menos perturbado.
No regresso ao Hospital do Connatic, Pardero manteve-se sentado em
silêncio durante a maior parte da viagem. Por fim perguntou a Kolodin:
— Quando poderei ir para Marune?
— Quando quiser — disse Kolodin; depois acrescentou, no tom de quem
espera conseguir persuadir uma criança teimosa: — Mas para quê tanta
pressa!? O hospital é assim tão aborrecido? Tire algumas semanas para
estudar e aprender e para fazer alguns planos bem elaborados.
— Quero conhecer dois nomes: o meu e o do meu inimigo.
Kolodin pestanejou. Avaliara mal a intensidade das emoções de Pardero.
— Talvez não haja nenhum inimigo — afirmou Kolodin um tanto
pensativo. — Ele não é absolutamente necessário para o seu caso.
Pardero deixou aflorar um pequeno sorriso amargo.
— Quando cheguei ao porto espacial de Carfaunge, o meu cabelo tinha
sido escortinhado curto. Isto pareceu-me um mistério até ver o eiodark rhune.
Reparou no cabelo dele?
— Estava penteado e esticado no alto da cabeça, descendo-lhe pelo
pescoço.
— E isso é algum sinal característico?
— Bom.... É muito pouco vulgar, embora não seja bizarro ou singular. É
suficientemente característico para facilitar a identificação.
Pardero fez um sinal de assentimento, um tanto sombrio.
— O meu inimigo não desejava que ninguém me identificasse como
rhune. Cortou-me o cabelo, vestiu-me de palhaço e depois meteu-me numa
nave espacial e mandou-me através do espaço, na esperança de que nunca
mais voltasse.
— Assim parece. Mesmo assim, porque não se limitou ele pura e
simplesmente a matá-lo e a atirar o seu cadáver para uma ravina? Seria muito
mais decisivo.
— Os Rhunes receiam matar, exceto em combate: aprendi isto com
Ollave.
Kolodin estudou à socapa a fisionomia de Pardero, que, naquele
momento, estava sentado a observar a paisagem. Alteração notável! Em
poucas horas, deixara de ser uma pessoa uniformizada, vaga e confusa, para
ser um homem com uma finalidade, e integrado; um homem, pelo menos na
opinião de Kolodin, cujas paixões violentas estavam sob um controlo severo,
o que, de certa maneira, era típico dos Rhunes.
— Por uma questão de retórica, imaginemos que esse seu inimigo existe
— disse Kolodin com aplicação. — Ele conhece-o; você não o conhece a ele.
Ao apresentar-se em Port Mar, você estará numa posição de desvantagem e
talvez mesmo exposto a riscos consideráveis.
Pardero parecia quase divertido com a conversa.
— Nesse caso, devo evitar Port Mar? Estou a contar com esse risco e
tenciono preparar-me para ele.
— E como é que se vai preparar?
— Em primeiro lugar, quero aprender tudo o que me for possível acerca
dos Rhunes.
— Isso é muito simples — disse Kolodin. — Os conhecimentos
encontram-se no Compartimento 933. E depois?
— Ainda não tomei uma decisão.
Sentindo que ele tentava fugir, Kolodin franziu os lábios.
— A lei do connatic é explícita: os Rhunes não são autorizados a servir-
se de armas de energia nem de veículos espaciais.
Pardero mostrou um sorriso trocista.
— Enquanto não conhecer a minha identidade, não sou um rhune.
— De um ponto de vista técnico, isso é verdade — disse Kolodin com
precaução.
***
Cerca de um mês depois. Kolodin acompanhou Pardero ao porto espacial
central de Commarice e atravessou com ele o campo até ao Dylas
Extranuator. Despediram-se na rampa de embarque.
— Provavelmente nunca mais o vejo — disse Kolodin —, embora
gostasse muito de saber o resultado das suas buscas. Provavelmente nunca
chegarei a saber.
Pardero respondeu-lhe num tom inexpressivo:
— Estou-lhe grato pela sua ajuda e por todas as suas atenções pessoais.
Partindo de um rhune, pensou Kolodin, mesmo de um rhune
transplantado, esta reação podia considerar-se quase efusiva. Falou com
precaução:
— Há um mês você deu a entender que necessitava de uma arma.
Conseguiu obter alguma?
— Não — disse Pardero. — Pensei esperar até estar fora do raio de
atenção imediata do connatic, por assim dizer.
Deitando olhadelas furtivas à direita e à esquerda, Kolodin enfiou uma
pequena caixa de cartão na algibeira de Pardero.
— Agora é portador de uma Dys modelo G de fender crânios. As
instruções estão na caixa. Não a exiba; as leis são bem claras. Adeus, boa
sorte e, se puder, entre em contacto comigo.
— Mais uma vez, obrigado. — Pardero agarrou Kolodin pelos ombros,
depois voltou-se e subiu para a nave.
Kolodin voltou ao terminal e subiu ao posto de observação. Meia hora
depois viu a nave negra, vermelha e dourada subir no ar e deslizar para longe
de Númenes.
CAPÍTULO IV
Durante o mês que antecedeu a sua partida, Pardero passou muitas horas
no Compartimento 933, no Anel dos Mundos. Ocasionalmente, Kolodin
fazia-lhe companhia; Oswen Ollave descia também muitas vezes do seu
gabinete para discutir os estranhos hábitos dos Rhunes.
Ollave preparou um quadro e insistiu com Pardero para que o decorasse.
— O quadro indica as condições normais de luz do dia3 durante as quais
o carácter da paisagem muda profundamente. A população é naturalmente
afetada, em especial os Rhunes.— A voz de Ollave apresentava uma
suavidade quase pedante, enquanto enunciava as suas palavras com grande
precisão. — Port Mar não é o que se possa chamar uma cidade sofisticada.
Os Rhunes, no entanto, consideram-na um lugar extremamente mundano,
caracterizado por uma alimentação desavergonhada, incúria, lassidão e uma
espécie de lascívia bestial à qual aplicam a designação de «sebalismo».
»Na Cidade Velha de Port Mar vivem uns quantos exilados-jovens
rhunes que se revoltaram contra a sua sociedade ou que foram expulsos por
falhas de comportamento. Constituem um grupo desmoralizado, miserável e
amargo; todos criticam os pais, que, segundo dizem, lhes recusaram os seus
conselhos e orientação. Dentro de certa medida, isto é verdade; os Rhunes
sentem que os seus preceitos são evidentes mesmo para a compreensão de
uma criança — o que não é o caso; em nenhum outro ponto do Aglomerado
as convenções são mais arbitrárias. Por exemplo, o processo de ingestão de
comida é considerado tão deplorável como o desfecho final da digestão, pelo
que o ato de comer é realizado na maior intimidade possível. Os Rhunes
pretendem que a criança atinja este ponto de vista automaticamente, o mesmo
acontecendo com outras convenções típicas dos Rhunes. A criança deve
desenvolver capacidades misteriosas e sem qualquer sentido prático; deve
controlar o seu sebalismo.
Pardero agitou-se inquieto.
— Já usou esta palavra antes; eu não a entendo.
— É o conceito especial dos Rhunes para sexualidade, coisa que eles
acham degradante. Como é que conseguem procriar? Isto faz-nos pensar.
Mas eles resolveram o problema com elegância e habilidade. Durante as
trevas. Na escuridão dos sóis, eles sofrem uma transformação importante.
Quer ouvir? Se está interessado, tem de me permitir que divague um pouco,
pois o assunto é verdadeiramente maravilhoso.
«Mais ou menos uma vez por mês, a terra mergulha na escuridão e os
Rhunes ficam inquietos. Alguns aferrolham-se em casa; outros envergam
trajos estranhos e embrenham-se na noite, onde praticam os atos mais
extraordinários. O barão, cuja retidão é inegável, rouba e espanca um dos
seus rendeiros. Uma matrona sossegada comete atos ousados e de uma
depravação desmedida. Ninguém está em segurança na sua proximidade. Que
enorme mistério! Como se pode conciliar tal atitude com o decoro
evidenciado à luz do dia? Ninguém tenta fazê-lo; os atos praticados durante a
noite são considerados males necessários pelos quais ninguém é responsável,
como acontece com os pesadelos. As trevas são um tempo de irrealidade. Os
acontecimentos têm esse mesmo cunho irreal e a culpabilidade não tem
qualquer base.
»Durante as trevas, reina o sebalismo. Na realidade, a atividade sexual
só se realiza como ato noturno, sob o disfarce da violação. O casamento —
trisme, como é chamado — nunca é encarado como um acasalamento sexual,
mas sim uma aliança — uma união de forças econômicas ou políticas. Os
atos sexuais, se os houver, serão praticados de noite — atos de pretensa
violação. O participante masculino enverga um trajo negro sobre os ombros,
os braços e a parte superior do corpo e botas de tecido negro. Sobre a cabeça
usa uma máscara masculina. Tem o tronco nu. Apresenta-se
propositadamente grotesco, uma abstração da sexualidade masculina. O trajo
despersonaliza-o e acentua a fantasia ou os elementos irreais. O homem entra
no quarto onde a mulher dorme, ou finge dormir; num silêncio absoluto, dá-
se a copulação. Nem o estado de virgindade nem a sua ausência têm qualquer
significado ou podem servir de base a qualquer especulação. O dialeto dos
Rhunes não inclui tal palavra.
»Aí tem portanto o trisme. Pode haver amizade entre os trisméticos, mas
ambos se dirigem um ao outro formalmente. A intimidade entre essas duas
pessoas é rara. As divisões das casas são espaçosas para as pessoas não terem
de estar muito juntas. Nenhuma pessoa toca outra deliberadamente; de facto,
as ocupações que requerem contacto físico, tais como a de barbeiro, médico,
alfaiate, são consideradas profissões de pária. Para tais serviços, os Rhunes
deslocam-se a Port Mar. Um pai não bate nem acaricia o filho; um guerreiro
tenta matar o inimigo à distância, e armas tais como espadas e punhais têm
apenas uma função cerimonial.
«Agora permita-me que descreva o ato da ingestão de alimentos. Nas
raras ocasiões em que um rhune é obrigado a comer na companhia de outras
pessoas, ingere a comida por detrás de um guardanapo ou por detrás de um
instrumento que é desconhecido em Marune: um biombo montado num
pedestal de metal que é colocado em frente do rosto do comensal. Nos
banquetes formais não se serve comida — apenas lufadas de odores variados
e complicados, cuja seleção e apresentação é considerada uma capacidade
criadora.
»Os Rhunes não têm sentido de humor. São extremamente sensíveis ao
insulto; um rhune nunca se expõe ao ridículo. Os amigos de longa data têm
de tomar em consideração as sensibilidades recíprocas e entregar-se a uma
complicada etiqueta para lubrificar as ocasiões sociais. Em resumo, parece
que os Rhunes negam a si próprios todos os prazeres humanos habituais. Que
fazem eles para os substituir?
»Em primeiro lugar, o Rhune é de uma sensibilidade apuradíssima em
relação às suas próprias paisagens de montanhas, florestas, prados e céu —
tudo isto se modificando com a mudança dos modos do dia. Avalia a sua terra
pela sua atração estética; empenhará uma vida inteira para alcançar alguns
acres. Gosta da pompa, do protocolo, das minúcias heráldicas; as suas
amabilidades e graças são calculadas tão cuidadosamente como se fossem
figuras de ballet. Tem orgulho na sua coleção de escamas de sherliken; ou
nas esmeraldas que arrancou da terra, cortou e poliu com as suas próprias
mãos; ou nas suas rodas mágicas de Arah, importadas de um sítio a meio
caminho de Gaean Reach. É capaz de se aperfeiçoar em matemática especial
ou numa língua antiga ou no toque das fanfarras, ou ainda nas três coisas ao
mesmo tempo ou em três outras parvoíces semelhantes. A caligrafia e
habilidade para o desenho são consideradas indispensáveis; o trabalho da sua
vida é o Livro dos Feitos, que executa, lustra e decora com fervor e exatidão.
Alguns destes livros apareceram no mercado; em Reach os preços são
extremamente altos.
»O Rhune não é um indivíduo de quem se goste. É tão sensível que
chega a ser truculento; despreza todas as raças, exceto a sua própria. É
egocentrista, arrogante, frio nos seus juízos.
»Falo naturalmente do rhune típico, podendo haver desvios individuais a
estas características, e tudo aquilo que eu disse se aplica igualmente a
mulheres e homens.
»Os Rhunes apresentam ao mesmo tempo grandes virtudes: dignidade,
coragem, honra, intelectos de uma incompreensível complexidade, embora
aqui também os indivíduos possam diferir da norma.
«Qualquer indivíduo que seja proprietário de terras considera-se um
aristocrata e a hierarquia vai de kaiark, passando por kang, eiodark, baronete,
barão, cavaleiro até escudeiro. O fwai-chi retirou-se dos Reinos, mas ainda
faz as suas peregrinações pelas florestas superiores e pelas terras altas. Não
há qualquer intercâmbio entre as duas raças.
»É inútil dizer que, no seio de um povo tão apaixonado, orgulhoso e
destemido e tão desejoso de expansão territorial, o conflito não é
desconhecido. A força do Segundo Édito do connatic e, de forma ainda mais
eficiente, a proibição quanto à posse de armas de energia, eliminou a guerra
formal. Mas os assaltos e as incursões são comuns e as inimizades duram
para sempre. As regras que regem a atividade guerreira baseiam-se em dois
princípios. Em primeiro lugar, nenhum homem pode atacar uma pessoa cuja
posição é superior à sua; em segundo lugar, dado que a violência sangrenta é
um ato das trevas, a morte é praticada à distância com dardos; os aristocratas,
no entanto, usam espadas, mostrando assim a sua valentia. Os guerreiros
vulgares não olham um homem de frente antes de o matar; tal ato persegue
um homem para sempre — a menos que o ato seja feito nas trevas, não sendo
então mais que um pesadelo. Mas só se não premeditado. O assassínio
premeditado durante as trevas é um crime vil.
Pardero disse:
— Agora já sei a razão por que o meu inimigo me enviou para Bruse-
Tansel, em vez de me deixar morto numa valeta.
— Há um segundo argumento contra o assassínio: não pode passar
despercebido. Os fwai-chi detectam os crimes e ninguém escapa; diz-se que
eles têm a faculdade de provar o sangue de um morto e repetir todas as
circunstâncias da sua morte.
***
Naquela tarde, Pardero e Kolodin resolveram passar a noite nos quartos
turísticos do piso inferior da torre. Kolodin fez uma chamada no videofone e
voltou com um pedaço de papel, que estendeu a Pardero.
— Os resultados das minhas pesquisas. Tenho perguntado a mim próprio
qual a nave que saindo de Port Mar teria levado ao aeroporto espacial de
Carfaunge no décimo Mariel Gaean. O computador da central de tráfego
forneceu-me um nome e uma data. Em 2 Ferario Gaean, o Berenicia, da
Linha Vermelho e Negro, partiu de Port Mar. O mais provável era que você
seguisse a bordo.
Pardero enfiou o papel na algibeira.
— Uma outra coisa me preocupa: como vou eu pagar a minha passagem
para Marune? Não tenho dinheiro nenhum.
Kolodin teve um gesto largo.
— Aí não há problema. A sua reabilitação inclui mil ozóis extra para
esse fim. Mais alguma preocupação?
Pardero teve um riso irônico.
— Centenas delas.
— Vai ver que vai ser interessante — disse Kolodin.
***
O Dylas Extranuator afastou-se passando junto do Pentagrama,
circundou o diadema existente no chifre do Unicórnio e acostou em
Tsambara, Alastor 1317. Aqui, Pardero fez ligação com uma nave da Linha
Vermelho e Negro, que, depois de visitar inúmeras pequenas povoações, fez
um desvio ao longo da Fontinella Wisp e em breve se aproximou de um
sistema isolado de quatro anões, respectivamente laranja, azul, verde e
vermelho.
Marune, Alastor 933, estendia-se lá em baixo, mostrando uma superfície
um tanto escura e de textura pesada por baixo dos numerosos bancos de
nuvens. A nave desceu e pousou no aeroporto espacial de Port Mar. Pardero e
cerca de uma dúzia de passageiros desceram, entregaram o seu último cupão,
atravessaram o vestíbulo e pisaram o solo de Marune.
Estava-se no isp. Osmo brilhava azul, a meia altura no céu, a sul:
Maddar estava no zénite; Cirse espreitava por cima do horizonte, a nordeste.
A luz estava um tanto fria, mas enriquecida com as tonalidades fortes que lhe
vinham de Maddar e Cirse, de forma que os objetos tinham uma sombra
trifásica.
Pardero parou em frente ao terminal, observou a paisagem que o
rodeava, olhou o céu, inspirou profundamente, depois exalou o ar. Este
parecia-lhe fresco, vivo, leve, muito diferente tanto do ar húmido de Bruse-
Tansel como do ar quente e doce de Númenes. Os sóis que deslizavam em
direções diferentes através do céu, as luzes subtis, o sabor do ar, acalmaram-
lhe uma dor espiritual que até aí não tinha notado. Para oeste, a cerca de uma
milha, as estruturas de Port Mar erguiam-se claras e bem recortadas; mais
além, a terra formava um declive. O panorama não lhe parecia de todo
estranho. De onde lhe vinha esta sensação de familiaridade? Das pesquisas
feitas no Compartimento 933? Ou da experiência própria? A leste, a terra
inchava e expandia-se em massas de montanhas cada vez mais altas,
atingindo alturas assustadoras. Os picos brilhavam com a neve branca e as
manchas cinzentas do granito; lá em baixo, faixas de floresta escura
camuflavam as encostas. A massa colidia com a luz para criar formas e
sombras; a claridade do ar que atravessava o espaço era quase palpável.
O autocarro que esperava produziu um toque de impaciência; Pardero
embarcou lentamente e ele partiu ao longo da Avenida dos Estrangeiros em
direção a Port Mar.
O assistente anunciou:
— Primeira paragem, Estalagem do Viajante. Segunda, Estalagem do
Mundo Exterior. Depois é o Royal Rhune Hotel. Em seguida atravessamos a
ponte até à Cidade Nova para ir à Estalagem de Cassander e Estalagem da
Universidade.
Pardero escolheu a Estalagem do Mundo Exterior, que lhe pareceu
suficientemente grande e impessoal. A iminência pairava no ar, tão pesada
que o seu próprio inimigo também se devia sentir oprimido.
Pardero observou cuidadosamente a entrada da Estalagem do Mundo
Exterior, mas apenas viu pessoas de outros mundos que não lhe prestavam
atenção. O pessoal do hotel ignorava-o. Até aí tudo corria bem.
Almoçou sopa, carne fria e pão, na sala de jantar, em parte para se
recompor, em parte para matar a fome. Demorou-se um pouco à mesa para
rever os seus planos. Para espalhar a mínima onda de perturbação, tinha de se
mover suavemente, com delicadeza, trabalhando da periferia para o centro.
Saiu do hotel e voltou a subir a Avenida dos Estrangeiros em direção à
cúpula de vidro verde do terminal espacial. Enquanto caminhava, Osmo
mergulhou cada vez mais fundo e desapareceu por detrás da orla oeste de
Port Mar. Isp tornou-se sorva, com Cirse e Maddar ainda no céu, produzindo
uma luz suave e quente, que flutuava no ar como neblina.
Ao chegar ao terminal, Pardero entrou e dirigiu-se à recepção. O
empregado avançou — um homem baixo e corpulento, com a pele cor de
canela e os olhos dourados da casta superior majar, um daqueles que viviam
nas casas de madeira e estuque nas encostas da parte de trás da Cidade Velha.
— Em que o posso servir, senhor?
Era evidente que Pardero não despertava nele qualquer estremecimento
de reconhecimento.
— Talvez me possa dar uma informação — disse Pardero. — Por volta
do 2 Ferario fui passageiro do Berenicia da Linha Negra e Vermelha. Um dos
outros passageiros pediu-me que lhe fizesse um recado que não tive a
possibilidade de executar. Agora preciso de o prevenir, mas esqueci-me do
nome dele e gostava de consultar a lista dos respectivos passageiros.
— Não há problema, senhor; os registos são consultados facilmente. —
Acendeu-se um écran; o empregado deu a volta a um botão, fazendo aparecer
números e listas que iam desaparecendo. — Aqui temos o 2 Ferario. Está
certo. O Berenicia chegou, recebeu oito passageiros e partiu.
Pardero estudou a lista dos passageiros.
— Porque estão os nomes em colunas diferentes?
— Por ordem do Instituto Demográfico, para poderem ter uma ideia do
tráfego entre os diferentes mundos. Aqui são as partidas de passageiros de
Marune. Estes nomes, apenas dois, como vê, representam pessoas de Marune
em viagem para outros mundos.
— O meu homem deve ser um destes. Qual deles seguiu para Bruse-
Tansel?
O empregado, um tanto espantado, consultou a lista.
— Nenhum deles. O destino do barão Shimrod era Xampias. O nobre
Serie Glaize viajava com um bilhete «aberto».
— Que espécie de bilhete é esse?
— É geralmente comprado por um turista sem destino fixo. O bilhete
contém um determinado número de unidades de viagem; depois de
terminadas estas, o turista compra novas unidades, conforme as suas
necessidades.
— Este bilhete «aberto» usado por Serie Glaize poderia tê-lo levado até
onde? A Bruse-Tansel, por exemplo?
— O Berenicia não toca em Bruse-Tansel, mas deixe-me ver. Cento e
quarenta e oito ozóis até ao entroncamento de Dardanisse; até Bruse-Tansel,
cento e dois ozóis... Sim, está certo. Repare que o nobre Serie Glaize
comprou um bilhete «aberto» no valor de duzentos e cinquenta ozóis: para
Bruse-Tansel exatamente.
— É isso mesmo: Serie Glaize. É este o meu homem. — Pardero refletiu
sobre o nome. Faltava-lhe toda e qualquer ressonância, todo o sabor familiar.
Passou dois ozóis por cima do balcão, para o empregado, que os recebeu com
cortesia e seriedade.
Pardero perguntou:
— Quem vendeu o bilhete a Serie Glaize?
— A inicial é «Y»; deve ser Yanek, do turno seguinte.
— Talvez pudesse telefonar a Yanek e perguntar-lhe se se lembra das
circunstâncias. Estou pronto a pagar cinco ozóis por qualquer informação
significativa.
O empregado olhou de lado para Pardero.
— Que espécie de informação considera o senhor significativa?
— Quem comprou o bilhete? Não creio que tenha sido o próprio Serie
Glaize. Deve ter vindo acompanhado de alguém cuja identidade desejaria
conhecer.
O empregado dirigiu-se a um telefone e falou de forma velada, olhando
de vez em quando por cima do ombro para Pardero. Voltou por fim, com um
ar um tanto contrafeito.
— Yanek mal se lembra do caso. Parece-lhe que o bilhete foi comprado
por uma pessoa que usava a capa negra dos Rhunes, tinha também um boné
cinzento com visor e palas laterais, de forma que Yanek não lhe notou as
feições. Era uma hora de muito movimento; Yanek estava muito ocupado e
não notou mais nada.
— Não é este o tipo de informação que preciso — resmungou Pardero.
— Haverá alguém que me saiba dizer mais alguma coisa?
— Não me lembro de ninguém.
— Muito bem. — Pardero contou mais dois ozóis. — Pela sua amável
colaboração.
— Muito obrigado. Permita-me que lhe faça uma sugestão. Os rhunes
que visitam Port Mar utilizam, sem exceção, o Royal Rhune Hotel. No
entanto pode ser difícil conseguir qualquer informação.
— Obrigado pela sugestão.
— O senhor não é também um rhune?
— Sim, de certa maneira.
O empregado acenou com a cabeça e teve um riso abafado.
— A verdade é que um majar nunca confundirá um rhune, nunca...
***
Um tanto pensativo, Pardero voltou a percorrer a Avenida dos
Estrangeiros. As doutas computações do T. P. Rady, as deduções sociofísicas
de Oswen Ollave tinham sido avalizadas. No entanto, por que meio obscuro é
que o majar o tinha reconhecido? As suas feições nada tinham de especial; a
sua pigmentação não o distinguia; os seus fatos e corte de cabelo eram,
segundo os padrões cosmopolitas, bastante vulgares; resumindo, pouca
diferença fazia dos outros hóspedes que se encontravam na Estalagem do
Mundo Exterior. Não restavam dúvidas de que se traía a si próprio através de
gestos ou atitudes inconscientes; talvez ele tivesse mais de rhune do que lhe
parecia a ele próprio.
A Avenida dos Estrangeiros acabava junto ao rio; quando Pardero
chegou à ponte, Maddar inclinava-se por detrás das terras baixas ocidentais;
Cirse subia lentamente no céu; sorva verde. Círculos verdes enrugavam as
águas; as paredes brancas da Cidade Nova brilhavam num verde-maçã-
pálido. Ao longo do rio viam-se cordões de luzes, indicando locais de
diversão: jardins de cerveja, pavilhões de dança, restaurantes. Pardero
invectivou a transitoriedade da cena e depois deu uma espécie de ronco,
suave e desalentado. Teria ele surpreendido todo um conjunto de atitudes
típicas dos Rhunes e que vinham à superfície através da sua amnésia?
Entrou na estreita Rua das Caixas de Latão, que se ia encurvando
gradualmente encosta acima por entre construções antigas feitas de madeira
enegrecida pelos anos. As lojas que deitavam para a rua apresentavam
uniformemente um par de janelas altas, uma porta chapeada a latão e uma
pequena indicação o menos conspícua possível acerca da natureza dos seus
artigos, como se cada um estivesse apostado em exceder o vizinho na sua
reserva.
A Rua das Caixas de Latão acabava numa praça sombria, rodeada por
loja de curiosidades, livrarias, casas de especialidades de muitos tipos.
Pardero viu os primeiros rhunes, indo de loja para loja, estudando a
mercadoria, explicando aos majars, empregados das lojas, com um aceno do
dedo, quais as mercadorias de que necessitavam. Nenhum deles lançou um
simples olhar a Pardero, o que, contra toda a lógica, lhe provocou
sentimentos antagônicos.
Atravessou a praça e subiu a Avenida dos Jangkars Negros até chegar a
uma entrada em arco numa parede de pedra. Passou por baixo do arco e
aproximou-se do Royal Rhune Hotel. Parou em frente do vestíbulo. Depois
de entrar no Royal Rhune já não podia voltar para trás; tinha de aceitar as
consequências do seu regresso a Marune.
Dois homens e uma mulher atravessaram as portas altas — os homens
usavam fatos beges e negros e faixas vermelho-escuras, tão parecidos que
sugeriam uniformes militares. A mulher, quase tão alta como qualquer dos
homens, usava um fato cingido ao corpo, cinzento-azulado, com uma capa
azul-escura a cair-lhe das dragonas negras: este era considerado um trajo
apropriado para visitar Port Mar, onde os cerimoniosos vestidos compridos
de gaze que usavam nos Reinos teriam parecido descabidos. Os três passaram
junto de Pardero, deitando-lhe cada um deles uma olhadela rápida. Pardero
não sentiu neles qualquer estremecimento que indicasse que o tinham
reconhecido. O que não era para admirar, pois os Rhunes eram em número
muito superior a cem mil.
Pardero empurrou para o lado as portas, altas e estreitas, que pareciam
fazer parte do ambiente arquitetural dos Rhunes. O vestíbulo era uma sala
enorme de teto alto e os sons ecoavam pelo chão nu de ladrilho negro e cor
de ferrugem. As cadeiras estavam forradas a couro. Sobre a mesa central
havia grande variedade de revistas técnicas e, na outra extremidade da sala,
um porta-revistas continha brochuras com propaganda sobre ferramentas,
produtos químicos, artigos artesanais, papéis e tintas, madeiras raras e pedras.
Um arco estreito e alongado flanqueado por colunas finas de pedra verde
comunicava com o escritório. Ainda no vestíbulo Pardero olhou rapidamente
em volta e atravessou o arco.
Um empregado de idade avançada pôs-se de pé e aproximou-se do
balcão; apesar da idade, da cabeça calva e das pregas no pescoço, mostrava-
se cheio de vivacidade e exatidão. Observou rapidamente Pardero, a sua
roupa e modos e fez-lhe uma vénia em que a cortesia fora calibrada com
precisão.
— Em que vos podemos servir? — Quando falou, pareceu surgir nele
um vestígio de incerteza.
— Há vários meses — disse Pardero —, por volta do primeiro Ferario,
para ser mais exato, estive hospedado neste hotel, e estaria interessado em
reavivar a minha memória. Quererá ter a bondade de me mostrar os registos
dessa altura?
— Como queirais, Vossa Dignidade4. — O empregado dirigiu a Pardero
uma olhadela lateral e meio sub-reptícia e os seus modos alteraram-se ainda
mais, ficando marcados pela dúvida, constrangimento ou mesmo ansiedade.
Curvou-se com um estalido das vértebras, quase audível, e colocou em cima
do balcão um livro de registo encadernado a couro. Com um gesto cheio de
deferência, afastou as capas e, uma após outra, foi voltando as páginas, cada
uma das quais apresentava um esquema das acomodações do hotel, com
anotações em tintas de cores várias. — Aqui tem Vossa Dignidade a data que
indicou. Se me quiser esclarecer, posso ajudá-lo.
Pardero inspecionou o livro, mas não conseguiu decifrar a caligrafia
arcaica. Numa voz que pretendia transmitir um sentimento de discrição
refinada e compreensiva, o empregado continuou a falar.
— Nesta altura lutávamos com falta de espaço. Na nossa ala Cortesia
Sincera encontravam-se instalados os trismets5 de várias pessoas nobres.
Repare na indicação dos quartos. Nas nossas instalações da Aprovação
servimos o eiodark Torde e a wirwove Ippolita com os seus respectivos
trismets. A suite Altitude estava ocupada pelo kaiark Rianlle de Eccord, a
kraike Dervas, a lissolet Maerio. Na suite Hyperion recebemos o falecido
kaiark Jochaim de Scharrode, que o seu fantasma se tranquilize em breve,
com a kraike Singhalissa, os kangs Efraim e Destian e a lissolet Sthelany. —
O empregado dirigiu a Pardero o seu sorriso trêmulo e dúbio. — Não é
verdade que tenho neste momento a honra de dirigir a palavra a Sua Força o
novo kaiark de Scharrode?
Pardero disse um tanto pesadamente:
— Reconhece-me, portanto?
— Sim, Vossa Força, depois de vos ter falado. Admito que fiquei um
tanto confuso: a vossa presença modificou-se de uma forma que eu nem sei
explicar. Pareceis, como dizer, mais amadurecido, mais controlado e, claro
está, o vosso trajo estrangeiro acentua estas diferenças. Mas tenho a certeza
de que não estou enganado. — O empregado olhou-o, numa dúvida
repentina. — Ou estou, Vossa Força?
Pardero sorriu com frieza.
— Como poderia demonstrar esse facto sem uma garantia da minha
parte?
O empregado abafou uma exclamação. Murmurando por entre dentes,
colocou sobre o balcão um segundo livro encadernado a couro, com o dobro
do tamanho do primeiro. Olhou Pardero com ar enfastiado e depois virou as
páginas espessas de pergaminho castanho-claro.
Pardero perguntou:
— Que livro é esse?
O empregado ergueu os olhos das páginas e os seus velhos lábios
acinzentados encurvaram-se numa expressão de incredulidade.
— Tenho aqui o Grande Almanaque Rhune. Não o conheceis?
Pardero conseguiu fazer um aceno breve.
— Mostre-me quem ocupava a suite Hyperion.
— Força Inexorável, ia justamente fazê-lo. — O empregado continuava
a voltar as folhas. À esquerda ficavam as cartas genealógicas com as várias
ligações marcadas em tintas diferentes; à direita as fotografias estavam
arrancadas conforme as cartas: milhares e milhares de nomes e igual número
de fotografias. O empregado voltava as páginas com uma deliberação
entusiástica. Finalmente parou, ficou uns momentos a pensar, depois bateu
com o dedo na página.
— A linhagem de Scharrode.
Pardero não conseguiu dominar-se mais tempo. Voltou o livro e pôs-se a
observar as fotografias.
A meio da página, um homem de meia maturidade, de cabelos claros,
olhava em frente. O seu rosto, angular e magro, sugeria uma interessante
complexidade de carácter. A fronte poderia ser a de um intelectual, a boca
larga parecia opor-se a qualquer emoção indesejável ou inadequada, tal como
o humor. A legenda dizia: «Jochaim, Casa de Benbuphar, septuagésimo nono
kaiark.»
Um traço de ligação verde conduzia ao rosto tranquilo de uma mulher,
de expressão imperscrutável. A inscrição dizia: «Alferica, Casa de Jent.» Em
baixo, uma linha castanha pesada levava ao rosto de um jovem sério: um
rosto que Pardero reconheceu como sendo o seu próprio. A inscrição dizia:
«Efraim, Casa de Benbuphar, kang do reino.»
«Finalmente sei o meu nome», pensou Pardero. «Sou Efraim e era kang,
agora sou kaiark. Sou um homem de estirpe elevada!» Olhou para o
empregado, surpreendendo-lhe uma expressão de observação sagaz e atenta.
— Sente-se curioso — disse Efraim. — Não há qualquer mistério. Estive
fora do planeta e acabo de regressar. Não sei nada do que aconteceu na minha
ausência. O kaiark Jochaim morreu?
— Sim, Vossa Força. Tanto quanto sei tem havido certa incerteza e
confusão. Têm estado preocupados convosco, a partir de agora, como é
evidente, o senhor é o octogésimo kaiark e o prazo permissível está quase a
terminar.
Efraim abanou lentamente a cabeça.
— Agora sou portanto kaiark de Scharrode. — Voltou a consultar o
almanaque, consciente do olhar do empregado.
Havia três outros rostos na mesma página. A partir do de Jochaim, uma
segunda linha verde descia para o rosto de uma bela mulher de cabelos
escuros, com uma fronte alta de pele clara, brilhantes olhos negros, o nariz
elegante e altivo. Uma inscrição identificava-a como kraike Singhalissa.
Partindo de Singhalissa, linhas vermelhas levavam primeiro a um jovem de
cabelos escuros com as feições aquilinas da mãe: kang Destian, e a uma
rapariga, de cabelos escuros e pálida, de expressão meditativa e a boca um
pouco descaída aos cantos, uma rapariga de uma beleza notável. Era
identificada como lissolet Sthelany.
Efraim falou numa voz que tentou manter natural:
— Que recordação lhe ficou da nossa visita aqui a Port Mar?
O empregado refletiu.
— Os dois trismets, de Scharrode e de Eccord, chegaram em conjunto,
conduzindo-se em geral como um só grupo. Os jovens visitaram a Cidade
Nova, enquanto os mais idosos trataram de negócios. Tornou-se evidente que
havia determinadas tensões. Verificou-se uma discussão a seguir à visita à
Cidade Nova, que não mereceu a aprovação de algumas das pessoas mais
idosas. Os mais ativos foram a kraike Singhalissa e o kaiark Rianlle, que
achavam que a tal expedição faltava dignidade. Quando Vossa Força não
apareceu no isp 25 do Terceiro Ciclo, todos se sentiram preocupados: era
evidente que não havíeis informado ninguém da vossa partida.
— É evidente — disse Efraim. — Houve trevas durante a nossa visita?
— Não, não houve trevas.
— Não ouviu qualquer comentário, não se recorda de quaisquer
circunstâncias que pudessem explicar a minha partida?
O empregado pareceu espantado.
— Essa é uma pergunta muito curiosa, Vossa Força! Não me recordo de
nada importante, embora me surpreendesse saber que tinham travado relações
com aquele vagabundo de outros mundos. — Fungou. — Certamente que ele
abusou da vossa condescendência; ele é conhecido como um malandrim
cheio de persuasão.
— Que vagabundo é esse?
— O quê? Não vos lembrais de ter explorado a Cidade Nova com esse
tal Lorcas?
— Tinha-me esquecido do nome. Foi Lorcas que disse?
— Matho Lorcas. Tem ligações com o que há de pior na Cidade Nova; é
o cabecilha de todos os cretinos sebalíticos da universidade.
— E quando ocorreu a morte do kaiark Jochaim?
— Pouco depois do seu regresso a Scharrode, em batalha contra Gosso,
kaiark de Gorgetto. O vosso regresso é muito oportuno. Dentro de poucos
dias já não seríeis kaiark; ouvi dizer que o kaiark Rianlle propôs um trisme
para unir os reinos de Eccord e Scharrode. Agora o vosso regresso pode
alterar a situação. — O empregado voltou algumas páginas do almanaque. —
O kaiark Rianlle é um homem entusiasta e decidido. — O empregado
apontou para uma fotografia. Efraim viu um rosto belo e distinto, rodeado por
um capacete de anéis de prata brilhantes. A kraike Dervas olhava em frente,
inexpressiva, o seu rosto parecia destituído de caráter. O mesmo se podia
dizer da lissolet Maerio, que olhava em frente, com ar vazio, embora
mostrando uma beleza jovem, ainda que um tanto oca.
O empregado perguntou cautelosamente:
— Tencionais ficar connosco, Força?
— Não creio. Além disso, peço-lhe que não diga nada acerca do meu
regresso a Marune. Tenho de esclarecer determinadas circunstâncias.
— Compreendo perfeitamente, Força. Muitíssimo obrigado! — Esta
última observação referia-se aos dez ozóis que Efraim colocara sobre o
balcão.
Efraim emergiu do hotel para uma umbra melancólica. Caminhou
lentamente pela Avenida dos Jangkars Negros e, ao voltar à praça, resolveu
dar-lhe a volta, investigando as lojas com admiração e espanto. Seria possível
encontrar em qualquer outro ponto do Aglomerado de Alastor uma
concentração mais rica de artigos misteriosos, esotéricos, especiais? E Efraim
perguntava a si próprio quais teriam sido os seus próprios campos de
erudição, as suas virtuosidades únicas. Fossem quais fossem, não retivera
nenhuma delas; o seu espírito estava vazio.
Um tanto desolado, prosseguiu pela Rua das Caixas de Latão, em
direção ao rio. A Cidade Nova parecia tranquila. Ao longo da margem
continuavam a brilhar grinaldas de luzes, mas não havia animação nos jardins
de cerveja, nem nos cafés. Efraim tomou a direção oposta, subiu a Avenida
dos Estrangeiros e dirigiu-se à Estalagem do Mundo Exterior. Foi para o
quarto e dormiu.
Teve uma série de sonhos muito vividos e acordou numa onda de
excitação. Passados breves instantes, tentou reunir as imagens fragmentárias,
trazendo-as a primeiro plano, a fim de atingir o significado daquilo que lhe
atravessara o espírito adormecido. Em vão. Recompondo-se, voltou a
adormecer até um gongo anunciar a hora do pequeno-almoço.
CAPÍTULO V
Efraim emergiu do hotel para aquela fase que era às vezes designada
como meio-aud. Furad e Osmo reinavam no céu, produzindo uma luz amarela
e quente, que os conhecedores desses assuntos consideravam fresca,
efervescente e alegre, mas sem a riqueza e a suavidade do verdadeiro aud.
Ficou parado uns momentos, respirando o ar fresco. O sentimento de
melancolia atenuara-se; era melhor ser o kaiark Efraim de Scharrode do que
Efraim, o cortador, ou Efraim, o cozinheiro, ou Efraim, o homem do lixo.
Pôs-se a caminho ao longo da Avenida dos Estrangeiros. Ao chegar à
ponte, em vez de voltar à esquerda, para a Rua das Caixas de Latão,
atravessou em direção à Cidade Nova e descobriu um ambiente totalmente
diferente da Cidade Velha.
A geografia da Cidade Nova, como Efraim iria descobrir, era simples.
Quatro artérias principais corriam paralelas ao rio: a Estrada, que terminava
na Universidade; a Avenida da Agência; depois a Avenida de Haune e a
Avenida de Douaune, nomes dos dois pequenos planetas mortos de Osmo.
Efraim caminhou para oeste, ao longo da Estrada, examinando os cafés e
jardins de cerveja com um interesse melancólico. Da sua perspectiva atual,
eles pareciam de uma inocência quase flagrante. Entrou num dos jardins de
cerveja e olhou para um jovem par que estava sentado, muito chegados um ao
outro. Poderia ele alguma vez sentir-se tão facilmente licencioso à vista de
todos? Talvez que mesmo naquele momento ele ainda não tivesse escapado à
rigidez de princípios que regera o seu passado, que, afinal, se situava apenas
a uma distância de seis meses.
Aproximou-se de um homem forte, com um avental branco, que parecia
ser o gerente.
— Por acaso conhece um tal Matho Lorcas?
— Matho Lorcas? Não, não conheço esse cavalheiro.
Efraim continuou para oeste, ao longo da Estrada, e em breve chegou
junto de um quiosque onde se vendiam periódicos de outros mundos. O nome
de Matho Lorcas foi reconhecido. A empregada apontou para um sítio mais
adiante, na mesma avenida:
— Pergunte ali, na Caverna do Sátiro. Pode ser que esteja a trabalhar. Se
não, eles sabem onde ele mora.
Matho Lorcas estava realmente a trabalhar, servindo canecas de cerveja
no bar. Era um jovem alto com um rosto vivo e alegre. Tinha o cabelo escuro
cortado curto num estilo simples e despretensioso. Efraim observou-o por
momentos, antes de se aproximar. Matho Lorcas era uma pessoa cujo humor,
inteligência e natural brilhantismo podiam facilmente suscitar o antagonismo
de indivíduos menos favorecidos. Era difícil suspeitar de malícia ou mesmo
de astúcia na pessoa de Matho Lorcas. Mas a verdade era que, pouco depois
de travar conhecimento com Lorcas, Efraim fora destituído do seu espírito e
enviado para longe.
Efraim aproximou-se e sentou-se; Lorcas aproximou-se dele. Efraim
perguntou:
— Você é Matho Lorcas?
— Sim, sou eu!
— Lembra-se de mim?
Lorcas observou-o, muito sério. Depois o seu rosto iluminou-se.
— Sim, você é o rhune! Não me lembro do seu nome.
— Efraim, de Scharrode.
— Lembro-me muito bem de si e das duas raparigas que estavam
consigo. O seu comportamento era tão sério, tão cheio de gravidade! Mas
você está mudado! Parece até uma pessoa diferente. Como vai a vida no seu
reino das montanhas?
— Como de costume, pelo menos assim penso. Estou desejoso de ter
uma conversa consigo. Quando é que está livre?
— Em qualquer altura. Agora mesmo, se quiser; estou farto do trabalho.
Ramono! Encarrega-te disto! — Passou por baixo do balcão e perguntou a
Efraim: — Quer uma caneca de cerveja? Ou talvez um pouco de vinho Del?
— Não, obrigado. — Efraim decidira tomar uma atitude de precaução e
reserva. — É muito cedo para mim.
— Como queira. Venha, vamos sentar-nos ali, para vermos o rio. Pois
bem, sabe que pensei muitas vezes em si e na maneira como você acabou
por... Se acomodar, chamemos-lhe assim, ao seu dilema... Embora ele deva
ser bastante agradável.
— Que quer você dizer com isso?
— As duas lindas raparigas que estavam consigo. Embora eu saiba que
nos Reinos das Montanhas as coisas não são assim tão fáceis.
Certo de que devia estar a parecer denso e estúpido, Efraim perguntou:
— Lembra-se de alguns pormenores?
Lorcas ergueu as mãos em sinal de protesto:
— Já lá vai tanto tempo! Já se passou tanta coisa! Deixe-me ver... —
Riu. — Estou a enganá-lo. Pensei muito nessas duas raparigas, tão parecidas
e tão diferentes, a desperdiçarem-se nesses inefáveis Reinos das Montanhas!
Andam e falam como blocos de gelo encantados, embora esteja convencido
de que uma delas, ou talvez mesmo as duas, em circunstâncias adequadas são
capazes de deixar derreter o gelo. Eu, pela minha parte, adoraria criar tais
circunstâncias. Considera-me sebalítico? Sou muito pior, sou positivamente
corástico6! Deitou um olhar de soslaio a Efraim. — Você não me parece
admirado, nem mesmo chocado. Uma coisa é certa: você é uma pessoa
diferente do jovem e sério kang de há seis meses.
— Isso pode muito bem ser verdade — disse Efraim sem mostrar
impaciência. — Voltando àquela ocasião, que se passou?
Lorcas deitou uma olhadela inquiridora a Efraim.
— Você não se lembra?
— Não muito bem.
— É estranho. Você pareceu-me bem desperto e consciente. Lembra-se
de como nos encontrámos?
— Não muito bem.
Lorcas encolheu os ombros, meio incrédulo.
— Eu acabava de sair da Livraria Caduceus. Você dirigiu-se-me e
perguntou-me como se ia para os Jardins das Fadas, onde nessa altura havia
um espetáculo com as marionetas de Galligade. O modo, se bem me lembro,
era o aud baixo, caminhando para a umbra, o que sempre me dá a sensação de
ser uma altura festiva. Notei que você e o kang Destian — parece-me que era
assim que se chamava — acompanhavam não uma mas duas bonitas
raparigas e eu nunca tivera a oportunidade de travar conhecimento com um
rhune, por isso ofereci-me para os acompanhar. Nos Jardins das Fadas
soubemos que Galligade terminara nesse momento o seu espetáculo e a
decepção das raparigas levou-me a um espasmo de altruísmo louco. Insisti
em vos convidar, o que geralmente não me acontece, garanto-lhe. Mandei vir
uma garrafa de vinho e biombos de cortesia, para quem os achasse
necessários, e lá estivemos: a lissolet Sthelany, observando com um
distanciamento aristocrático, a outra rapariga — não me lembro como se
chamava...
— A lissolet Maerio.
— Exato. Ela era ligeiramente mais cordial, embora, repare bem, não
esteja a queixar-me. Havia ainda o kang Destian, sardónico e carrancudo, e
você, que se comportava com um formalismo cheio de elegância. Vocês
foram os primeiros rhunes que eu conheci e, quando descobri que eram de
sangue real, dei os meus esforços e os meus ozóis por bem empregados.
»Ficámos sentados a beber vinho e a ouvir música. Para ser mais
preciso, eu bebi vinho. Você e a lissolet Maerio, cheios de ousadia, beberam
alguns golos por detrás dos biombos. Os outros dois declararam que não
estavam interessados. As raparigas observavam os estudantes e admiravam-se
com a sua grosseria e sebalismo. Eu apaixonei-me pela lissolet Sthelany, que
evidentemente nem deu por isso. Usei todo o meu encanto; ela estudava-me
com uma repulsa fascinada e, dentro de pouco tempo, ela e Destian voltaram
para o hotel.
»Você e a lissolet Maerio ficaram, até que Destian voltou trazendo
ordens de que Maerio devia regressar também. Você e eu ficámos sós. Eu
tinha de ir para as Três Lanternas; você subiu comigo a Colina de Jibberee.
Eu fui trabalhar; e você voltou ao hotel: é tudo.
Efraim teve um suspiro profundo.
— Você não me acompanhou ao hotel?
— Não. Foi-se embora sozinho, num estado de espírito muito inquieto.
Se me posso permitir a ousadia da pergunta: porque está tão preocupado com
o que se passou naquela noite?
Efraim não via qualquer razão para lhe ocultar a verdade.
— Nessa noite perdi a memória. Lembro-me de ter chegado a
Carfaunge, em Bruse-Tansel, tendo acabado por me dirigir a Númenes e ao
Hospital do Connatic. Os peritos declararam que eu era um rhune. Voltei a
Port Mar; cheguei ontem. No Royal Rhune Hotel fiquei a saber o meu nome e
que era agora o kaiark de Scharrode. Para além disto, não sei mais nada: o
meu passado está vazio. Como posso conduzir os meus negócios com
responsabilidade, quanto mais os do reino? Tenho de pôr as coisas no seu
lugar. Por onde começar? Como devo proceder? Porque me roubaram a
memória? Quem me levou ao aeroporto espacial e me pôs a bordo da nave?
Como me posso justificar perante a minha gente? Se o passado está vazio, o
futuro, por outro lado, parece-me cheio de preocupações, dúvida e confusão.
E não me parece que vá encontrar grande compreensão junto dos meus.
Lorcas soltou uma exclamação suave e sentou-se para trás, com os olhos
a brilhar.
— Sabe uma coisa? Invejo-o. Que sorte a sua, em ter o mistério do seu
próprio passado para resolver!
— Não compartilho do seu entusiasmo — disse Efraim. — O passado
paira sobre mim; sinto-me sufocar. Os meus inimigos conhecem-me; eu
procuro-os às apalpadelas. Volto para Scharrode cego e inútil.
— A situação não deixa de ter as suas compensações — murmurou
Lorcas. — A maior parte das pessoas teria todo o prazer em governar um
reino das montanhas, ou mesmo qualquer outro reino. E não poucos teriam
grande satisfação em habitar o mesmo castelo que a lissolet Sthelany.
— Todas essas compensações estão muito certas, mas não me fazem
conhecer o meu inimigo.
— Partindo do princípio que esse inimigo existe.
— Existe certamente. Foi ele que me pôs a bordo do Berenicia e pagou a
minha passagem para Bruse-Tansel.
— Bruse-Tansel não fica nada perto. Ao que parece, o seu inimigo não
tinha falta de fundos.
Efraim resmungou.
— Quem sabe se eu próprio não tinha dinheiro comigo? Talvez eu
tivesse pago o meu bilhete até aos limites do que tinha na carteira.
— Isso seria uma partida cheia de ironia — concordou Lorcas. — Se for
verdade, temos de concordar que o seu inimigo tem estilo.
— Ainda há outra possibilidade — murmurou Efraim. — Talvez eu
esteja a ver as coisas ao contrário.
— Uma ideia interessante. Mas como exatamente?
— Talvez eu tenha cometido qualquer ato horrível que nem eu próprio
consiga enfrentar, provocando assim a amnésia, e alguém — mais um amigo
do que um inimigo— pode ter-me afastado de Marune para eu não ter de
sofrer as consequências dos meus atos.
Lorcas soltou um riso incrédulo.
— A sua conduta na minha presença foi perfeitamente irrepreensível.
— Como se explica, portanto, que, logo que me separei de si, tenha
perdido a memória?
Lorcas ficou uns momentos pensativo.
— Talvez não seja assim tão misterioso.
— Os sábios de Númenes ficaram perplexos. Mas você consegue
decifrar os meus problemas?
Lorcas riu, irônico.
— Conheço alguém que não é um sábio. — Pôs-se de pé de um salto. —
Venha, vamos visitar esse homem.
Efraim pôs-se de pé, um tanto duvidoso.
— Acha que é seguro? Você pode ser o culpado e eu não quero ir parar a
Bruse-Tansel pela segunda vez.
Lorcas deu uma gargalhada.
— Você já não é um rhune. Os Rhunes não têm sentido de humor; as
suas vidas são tão estranhas que o absurdo parece simplesmente outra fase da
normalidade. Eu não sou o seu inimigo secreto, garanto-lhe. Em primeiro
lugar, faltam-me os duzentos ou trezentos ozóis para poder mandá-lo para
Bruse-Tansel.
Efraim saiu atrás de Lorcas para a Avenida. Lorcas disse:
— Vamos entrar num estabelecimento um tanto especial. O proprietário
é um excêntrico. As pessoas mal-intencionadas consideram-no um
desavergonhado. De momento, ele está fora de moda, devido aos esforços
dos Benkenistas, que geralmente levantam todos esses problemas. Cultivam
uma impassibilidade estoica perante tudo, exceto as suas próprias normas
interiores, e as misturas de Skogel interferem seriamente com a normalidade.
Quanto a mim, rejeito todos os prazeres que não sejam preparados por mim
próprio. Imagina o que me preocupa de momento?
— Não.
— Os Reinos das Montanhas. As genealogias, o fazer e desfazer de
fortunas, a poesia e a declamação, os cerimoniais, a galantaria e as posições
românticas, a erudição, o estudo. Sabe que as monografias dos Rhunes
circulam por todo o Aglomerado e em Gaean Reach? Sabe que o desporto
não é conhecido nos Reinos? Que não há quaisquer jogos ou distrações
frívolas, nem mesmo entre as crianças?
— Nunca pensei nisso. Onde vamos?
— Ali, ao cimo da Rua da Pulga Inteligente... Claro que não se sabe
porque é que a rua se chama assim. — Enquanto caminhavam, Lorcas voltou
a contar a lenda do dissoluto. Efraim escutava-o apenas em parte. Dobraram
uma esquina e entraram numa rua de empreendimentos marginais: um
quiosque que vendia amêijoas fritas, uma sala de jogo, um cabaré decorado
com luzes vermelhas e verdes, um bordel, uma loja de novidades, uma
agência de viagens, uma loja que exibia na montra uma árvore da vida
estilizada, com uma etiqueta ilegível no fruto dourado. Aqui Lorcas deteve-
se.
— Deixe-me ser eu a falar, a menos que Skogel lhe faça alguma
pergunta direta. Ele tem uma maneira estranha, que afasta as pessoas, mas eu
sei que não significa nada, que é fingida. Ou, pelo menos, estou fortemente
convencido disso. De qualquer maneira não se surpreenda com nada; outra
coisa, se ele falar em preço, aceite, sejam quais forem as suas reservas. Não
há nada que mais o incomode do que regatear preços. Venha, vamos tentar a
nossa sorte. — Entrou na loja, seguido de Efraim, que caminhava devagar.
Skogel surgiu dos fundos da loja que estavam mal iluminados: um
homem de estatura média, magro como um poste, com os braços compridos e
o rosto redondo cor de cera, acima do qual surgia em tufos o cabelo cor de
terra.
— Modos agradáveis — disse Lorcas. — Já recebeu do nosso amigo
Boodles?
— Nada. Mas eu também não esperava nada e tratei com ele nessa base.
— Como é isso?
— Sabe do que ele precisa. Apenas lhe dei tintura de cacodilo diluída em
água, o que pode ou não ter servido para o fim desejado.
— Ele não se me queixou, embora de facto me pareça que tem andado
um bocado caído ultimamente.
— Se quiser, pode vir ter comigo para ser consolado. E quem é este
senhor? Há qualquer coisa nele que parece rhune e outra coisa que diz mundo
exterior.
— Tem razão nas duas afirmações. Trata-se de um rhune que passou um
período de tempo considerável em Númenes e Bruse-Tansel. Vai perguntar
porquê. A resposta é fácil: perdeu a memória. Eu disse-lhe que se havia
alguém que o pudesse ajudar, esse alguém seria você.
— Bah. Eu não tenho memórias armazenadas em caixas,
cuidadosamente etiquetadas como os catárticos. Ele vai ter que inventar as
suas próprias memórias. Não acha que é fácil?
Lorcas olhou para Efraim com uma expressão de divertido pesar.
— Mas ele, com o seu espírito de contradição, quer recuperar as suas
memórias.
— Não é aqui que as vai encontrar. Ele sabe onde as perdeu? Aí é que
tem de procurar.
— Um inimigo roubou-lhe a memória e meteu-o numa nave a caminho
de Bruse-Tansel. O meu amigo está ansioso por castigar este bandido, daí o
queixo avançado e os olhos brilhantes.
Skogel, atirando a cabeça para trás, riu-se e bateu com as mãos no
balcão.
— Essa já é melhor! Há demasiados malandrins que escapam com a pele
inteira e ainda têm lucro! Vingança! É essa a palavra! Desejo-lhe boa sorte!
Bons modos, senhor.
— E Skogel, voltando-lhes as costas, caminhou com as pernas esticadas
para os fundos escuros da loja. Efraim ficou a olhar para ele espantado, mas
Lorcas indicou-lhe com um sinal que devia ter paciência. Em breve Skogel se
aproximou outra vez.
— E do que é que precisa neste momento?
Lorcas disse:
— Lembra-se do que me disse há uma semana?
— A propósito de quê?
— Psicomorfose.
— Uma grande palavra — resmungou Skogel. — Disse-a por acaso.
— Será que isso tem alguma coisa a ver com o meu amigo?
— Com certeza. Porque não?
Skogel apoiou as mãos no balcão e, inclinando-se para a frente, observou
Efraim com a intensidade de um mocho.
— Você é um rhune?
— Sim.
— Como se chama?
— Parece que sou Efraim, kaiark de Scharrode.
— Então deve ser rico.
— Não tenho a certeza se sou ou não.
— E quer que a sua memória volte?
— Naturalmente.
— Veio parar ao sítio errado. Eu trabalho com mercadorias de outra
espécie. — Skogel bateu novamente no balcão e fez menção de se ir embora.
Lorcas disse brandamente:
— O meu amigo insiste em que aceite, pelo menos, um honorário pelos
seus conselhos.
— Honorário? Por simples palavras? Por especulações e hipóteses?
Toma-me por um homem sem vergonha?
— Claro que não! — Declarou Lorcas. — Ele só quer saber para onde
foi a sua memória.
— Pois então esta é a minha ideia e pode tomá-la de graça. Ele comeu
pelo de fwai-chi. — Skogel apontou para as prateleiras, estantes e armários
que tinha na loja e que estavam cheios de garrafas de todo o tamanho e feitio,
ervas cristalizadas, jarros de pedra, pedaços de metal, latas, frascos, boiões,
numa miscelânea inqualificável e confusa. — Vou-lhes revelar uma verdade
— declarou pomposamente Skogel. — Grande parte da minha mercadoria é
totalmente ineficaz numa base funcional. Psiquicamente, simbolicamente,
sublimemente, a história é diferente. Cada coisa por si exerce a sua própria
força sombria e por vezes sinto-me na presença de seres elementais. Com
uma infusão de erva-aranha, misturada talvez com olho do diabo pulverizado,
consigo resultados espantosos. Os Benkenistas, idiotas e atrasados como são,
pretendem que só os crédulos são afetados: enganam-se! Os nossos
organismos nadam num fluido para-cósmico que ninguém consegue
compreender, nenhum dos nossos sentidos consegue dominá-lo, por assim
dizer. Apenas por processos atuantes, que os Benkenistas repudiam, é que
nós conseguimos manipular este meio inefável: e por afirmar tal coisa sou
portanto um charlatão? — Skogel bateu no balcão com um imenso riso
triunfante.
Acentuando delicadamente as palavras, Lorcas perguntou:
— E o fwai-chi?
— Paciência! — Cortou Skogel — Permitam-me o meu breve momento
de vaidade. Afinal também não me estou a afastar muito.
— Com certeza — disse Lorcas apressadamente. — Declame à sua
vontade.
Não totalmente desmotivado, Skogel retomou o fio da conversa.
— Há muito que eu penso que o fwai-chi tem uma interação com o para-
cosmos um tanto mais rápida do que a do homem, embora se trate de uma
raça taciturna e que nunca explica os seus feitos ou talvez tome as coisas
como factos arrumados. De qualquer forma, é uma raça muito especial e
versátil. O que pelo menos os Majars reconhecem. Refiro-me, evidentemente,
àquele pobre fragmento final da raça que vive do outro lado da montanha. —
Skogel olhou de forma truculenta, primeiro Lorcas, depois Efraim, mas
nenhum deles atacou a sua opinião.
Skogel continuou:
— Um certo Shaman dos Majars convenceu-se de que está em dívida
para comigo, e não há muito tempo convidou-me para Atabus, para assistir a
uma execução. O meu amigo explicou-me uma inovação da justiça majar: o
suspeito ou o condenado — entre os Majars a diferença é pequena — é
tratado com pelo de fwai-chi e as suas reações, que vão desde o torpor,
passando por alucinações, convulsões, agilidade frenética, comportamentos
grotescos, até à morte instantânea, são devidamente notadas. Os Majars não
passam de um povo pragmático; tomam vivo interesse pelas capacidades do
organismo humano e consideram-se grandes cientistas. Na minha presença,
ministraram-lhe uma pasta castanho-dourada, tirada do pelo dorsal do fwai-
chi, e o suspeito imaginou-se imediatamente quatro pessoas diferentes que
conduziam uma conversa animada entre si, bem como aqueles que a ela
assistiam, servindo-se de uma só língua e laringe para produzir duas e às
vezes três vozes ao mesmo tempo. O meu anfitrião descreveu alguns dos
outros efeitos que presenciara e mencionou um certo pelo cuja exsudação
obstruía a memória humana. Sugiro, portanto, que o seu amigo deve ter
ingerido pelo de fwai-chi. — Olhou para um e para outro com um pequeno
sorriso trêmulo e triunfante. — Resumindo, essa é a minha opinião.
— Tudo isso está muito certo — disse Lorcas —, mas como é que o meu
amigo se há de curar?
Skogel fez um gesto vago.
— Não se conhece nenhuma cura, pela simples razão que ela não existe.
O que lá vai, lá vai.
Lorcas olhou tristemente para Efraim.
— Aí tem. Alguém lhe deu pelo de fwai-chi.
— Mas quem? — Disse Efraim. — Quem?
Lorcas voltou-se para falar para Skogel, mas ele desaparecera nos fundos
escuros do estabelecimento.
***
Lorcas e Efraim regressaram pela Rua da Pulga Inteligente até à Estrada,
Efraim pensativo e triste. Lorcas, depois de ter olhado uma dúzia de vezes
para o companheiro, não conseguiu refrear por mais tempo a curiosidade.
— Que pensa fazer agora?
— O que tem de ser feito.
Depois de darem umas dez passadas, Lorcas disse:
— E evidente que você não tem medo da morte.
Efraim encolheu os ombros.
Lorcas perguntou:
— Como vai tratar da questão?
— Tenho de voltar a Scharrode — disse Efraim. — Não há outro
caminho. O meu inimigo é alguém que conheço bem; eu não ia beber com
um desconhecido. Em Port Mar estavam as seguintes pessoas: o kaiark
Jochaim, que morreu, a kraike Singhalissa, o kang Destian, a lissolet
Sthelany. De Eccord: o kaiark Rianlle, a kraike Dervas e a lissolet Maerio. E
na realidade, Matho Lorcas, exceto no caso presente, porque é que você me
iria levar ao Skogel?
— Justamente — disse Lorcas. — Nessa ocasião distante, limitei-me a
tratá-lo com um bom vinho, que não lhe fez mal nenhum.
— E não viu nada de importante ou suspeito?
Lorcas refletiu.
— Não notei nada de declarado. Senti paixões sufocadas e correntes de
emoção, mas não consegui adivinhar para onde se dirigiam. Ingenuamente
esperava encontrar personalidades estranhas nos Rhunes e não fiz qualquer
esforço para compreender aquilo que via. Sem memória você também fica
muito limitado.
— É provável. Mas agora sou kaiark e todos têm de me seguir. Posso
recuperar a memória sem pressas. Qual é o melhor meio de transporte para
Scharrode?
— Não tem que escolher — disse Lorcas. — Aluga um carro aéreo e voa
até lá. — Olhou para o céu; Cirse estava prestes a partir. — Se me permite,
acompanho-o.
— Qual é o seu interesse? — Perguntou Efraim com desconfiança.
Lorcas respondeu-lhe com um gesto vago.
— Há muito que tenho vontade de visitar os Reinos. Os Rhunes são um
povo fascinante e tenho muita vontade de aprender mais coisas a seu respeito.
E, para dizer a verdade, estou desejoso de reatar um ou dois conhecimentos.
— Talvez a sua visita não venha a ser agradável. Eu sou kaiark, mas
tenho inimigos e eles podem não fazer diferença entre nós.
— Tenho confiança na reputada repulsa dos Rhunes contra os atos de
violência, repulsa essa que só abandonam durante as suas guerras incessantes.
E quem sabe? Um companheiro pode vir a ser-lhe útil.
— Talvez. Quem é o conhecimento que está desejoso de retomar? A
lissolet Sthelany?
Lorcas acenou tristemente com a cabeça.
— É uma mulher intrigante; de facto, vou ao ponto de dizer que ela
representa um desafio. Geralmente as mulheres bonitas simpatizam comigo,
mas a lissolet Sthelany mal se apercebe da minha existência.
Efraim teve um riso amargo.
— Em Scharrode, a situação será pior e não melhor.
— Não espero autênticos triunfos; se, no entanto, conseguir levá-la a
modificar a expressão uma vez por outra, passo a considerar a viagem um
êxito.
— Duvido que as coisas se passem com essa facilidade. Os Rhunes
acham as maneiras estrangeiras grosseiras e de mau gosto.
— Voce é kaiark, as suas ordens têm de ser obedecidas. Se decretar
tolerância, a lissolet Sthelany terá de se submeter imediatamente ao seu
desejo.
— Será uma experiência interessante — disse Efraim. — Bom, então
prepare-se, vamos partir imediatamente.
CAPÍTULO VI
Durante o princípio do isp, Efraim chegou ao escritório dos serviços de
transportes locais e descobriu que Lorcas já havia alugado um carro aéreo que
nada tinha de elegante — a parte metálica estava manchada pela ação
prolongada dos elementos, o vidro da cúpula estava enevoado, as chapas
laterais estavam corroídas e com buracos. Lorcas pediu desculpa:
— É o melhor que se conseguiu arranjar e merece toda a confiança; em
cento e dois anos o motor nunca teve uma falha, pelo menos foi o que me
disseram.
Com um olhar cheio de ceticismo, Efraim observou o veículo.
— Desde que isto nos leve até Scharrode, não me interessa o aspecto.
— Mais cedo ou mais tarde a máquina vai-se abaixo e o mais provável é
que seja no ar. Mas a alternativa é ir de égua pelos caminhos dos fwai-chi. A
região é impressionante e a chegada não teria a mesma dignidade.
— Tem uma certa razão — admitiu Efraim. — Está pronto para partir?
— Quando quiser. Mas permita-me que faça uma sugestão. Porque não
envia uma mensagem para os preparar para a sua chegada?
— Para dar a alguém a oportunidade de vir ao nosso encontro e abater-
nos a tiro?
Lorcas abanou a cabeça.
— É por essa razão que os carros aéreos estão interditos aos Rhunes. Na
situação presente é uma questão de dignidade. E se me permite um conselho,
um kaiark anuncia a sua chegada para que possam preparar-lhe uma recepção
formal. Eu falarei por si como seu ajudante, o que dará maior dignidade à
ocasião.
— Está bem, faça como quiser.
— A kraike Singhalissa é agora o chefe da casa?
— Suponho que sim.
Lorcas fez uma chamada num videofone tão antiquado como o carro
aéreo. Respondeu-lhe um criado de uniforme negro e escarlate. — Falo em
nome de Benbuphar Strang. É favor dizer o que pretende.
— Desejo trocar algumas palavras com a kraike Singhalissa — disse
Lorcas. — Tenho uma informação importante a transmitir-lhe.
— Tem de telefonar noutra ocasião. A kraike está em conferência por
causa da investidura.
— Investidura? De quem?
— Do novo kaiark.
— Quem é o novo kaiark?
— O atual kang Destian, o segundo na ordem da sucessão.
— E em que data se vai realizar a investidura?
— Dentro de uma semana, depois de o atual kaiark ter sido declarado
desertor.
Lorcas riu.
— Informe por favor a kraike de que a investidura deve ser cancelada,
porque o kaiark Efraim vai regressar imediatamente a Scharrode.
O criado olhou fixamente para o écran.
— Não posso tomar a responsabilidade de tal declaração.
Efraim deu um passo em frente.
— Reconheces-me?
— Ah, Força7, reconheço de facto.
— Transmite portanto mensagem tal como a ouviste do nobre Matho
Lorcas.
— Imediatamente, Força! — O homem inclinou-se numa vénia rígida e
desapareceu no meio de uma infinidade de auréolas.
Os dois voltaram ao carro aéreo e subiram para os seus lugares. Sem
cerimônia, o piloto fechou as portas, ligou a ignição e o velho aparelho
ergueu-se no ar rumo a leste, por entre estalidos e vibrações.
Com o piloto, que se identificou como sendo Tiber Flaussig, falando por
cima do ombro e ignorando tanto o altímetro como o território que
sobrevoava, o aparelho passou as cordilheiras da Primeira Escarpa, a uma
distância de cem jardas. Como se fosse coisa que lhe tivesse ocorrido depois,
o piloto fez subir um pouco o avião, embora a terra recuasse imediatamente
cerca de mil pés, para formar um planalto. Centenas de lagos estendiam-se
por todos os lados, refletindo as nuvens; aqui e além cresciam árvores
isoladas, algumas delas contorcidas e com ar fúnebre. Trinta milhas para leste
a Segunda Escarpa lançava as suas agulhas de rocha nua acima das nuvens.
Flaussig, discutindo as condições do solo, declarou que havia ricas fontes de
turmalina, olivina, topázio e espinela — tudo protegido da exploração
humana por causa dos preconceitos dos fwai-chi.
— Afirmam que este é um dos lugares sagrados e o mesmo está escrito
no tratado. Eles não dão mais importância às joias do que a qualquer pedra
vulgar; mas são capazes de cheirar a presença de um homem a cinquenta
milhas e lançar-lhe em cima a sua praga das mil sarnas, da bexiga em fogo ou
da pele malhada. Presentemente ninguém ousa aproximar-se daqui.
Efraim apontou para a escarpa que se erguia mais adiante.
— Dentro de poucos segundos ficaremos todos em puré, a menos que
você suba rapidamente este aparelho, pelo menos dois mil pés.
— Ah, sim — disse Flaussig. — A escarpa aproxima-se e nós tratá-la-
emos com todo o respeito. — O carro aéreo subiu tão precipitadamente que
os estômagos se contraíram. Da caixa do motor veio uma chiadeira
entrecortada, que fez Efraim voltar-se sobressaltado. — Será que este veículo
se está finalmente a desintegrar?
Flaussig pôs-se à escuta com uma expressão carregada de surpresa.
— Não há dúvida de que é um som misterioso, nunca ouvi nada assim.
Claro que, se tivéssemos a idade deste veículo, as nossas vísceras também
haviam de produzir sons estranhos. Sejamos tolerantes para com a idade.
Logo que o aparelho retomou o seu nível, os ruídos perturbadores
desapareceram. Lorcas apontou para a Terceira Escarpa, que ficava ainda a
cinquenta milhas.
— Comece a subir agora, gradualmente. É mais fácil o aparelho
sobreviver a um tratamento assim.
Flaussig fez como lhe tinham pedido e o veículo começou a subir
gradualmente, acompanhando o vulto prodigioso da Terceira Escarpa. Lá em
baixo passava uma desolação de gargantas, desfiladeiros, abismos e,
raramente, um pequeno vale plantado de árvores. Flaussig acenou com a mão
em direção à paisagem assustadora.
— Dentro do nosso raio de visão, em toda aquela profundidade
cataclísmica, vivem talvez vinte fugitivos: indivíduos desesperados,
criminosos condenados e outros assim. Não cometam crimes em Port Mar,
senão vêm acabar aqui.
Nem Lorcas nem Efraim acharam que devessem fazer qualquer
comentário.
Surgiu uma fenda; o aparelho deslizou por entre as paredes de rocha que
o acompanhavam de perto à direita e à esquerda, enquanto grandes lufadas de
vento lançavam o aparelho de um lado para o outro; depois a fenda ficou para
trás e o aparelho sobrevoou uma paisagem de picos, rochedos e vales fluviais.
Flaussig acenou novamente, abrangendo a paisagem num movimento
rotativo.
— Os Reinos, os gloriosos Reinos! Por baixo de nós fica agora Waierd,
guardada pelos Soldados do Silêncio... E agora sobrevoamos o reino Sherras.
Reparem no castelo do lago...
— Quanto falta para Scharrode?
— Além, por detrás das falésias. É esta a resposta a perguntas desse tipo.
Porque querem visitar um lugar tão pouco aprazível?
— Curiosidade, talvez.
— Deles não tiram nada; são fechados como pedras, como todos os
rhunes. Lá em baixo agora, por detrás daquelas grandes árvores, fica a cidade
de Tangwill, que alberga não mais de duas ou três mil pessoas. O kaiark
Tangissel tem fama de ser doido por mulheres, tendo por isso cativas em
caves, onde não conseguem saber quando são as trevas, e ele visita-as durante
todos os períodos do mês, exceto durante as trevas, em que ele sai a vaguear.
— Que disparate — murmurou Efraim, mas o piloto não lhe prestou
atenção.
— A grande agulha, à direita, é chamada Ferkus...
— Suba, homem, suba! — Gritou Lorcas. — Vai pregar connosco de
encontro à cordilheira!
Com um gesto petulante, Flaussig fez subir o aparelho com um
estremeção, passando a rasar a ponta à qual Lorcas fizera referência; durante
algum tempo seguiu em silêncio. O solo, lá em baixo, ora subia, ora descia, e
Flaussig, desdenhando subir a novas altitudes, desviava-se de um lado para o
outro por entre os picos cristalinos, aflorava os precipícios, contornava os
glaciares e os montes de detritos, exemplificando da melhor maneira o seu
controlo descuidado em relação ao aparelho, à paisagem e às pessoas. Lorcas
interpelava-o frequentemente, o que Flaussig ignorava, acabando por
conduzir o veículo aéreo para um vale irregular, com três ou quatro milhas de
largura e quinze milhas de comprimento. Na extremidade leste uma cascata
caía da altura de dois mil pés, precipitando-se num lago, nas proximidades da
cidade de Esch. Afastado do lago corria um rio tranquilo, que atravessava um
prado e passava por baixo de Benbuphar Strang, indo depois para trás e para
a frente, de lago em lago, até à extremidade ocidental do lago, onde saía por
uma garganta apertada.
Perto de Esch, o vale tinha sido convertido à agricultura; os campos
estavam rodeados por densas sebes de silvas, que pareciam pretender
escondê-los da vista. Noutros desses campos pastava o gado, enquanto as
encostas de ambos os lados do vale estavam plantadas de pomares. Noutros
sítios os prados alternavam com florestas de diversas árvores, tais como o
carvalho branco, o teixo interestelar; através do ar límpido, as respectivas
folhagens — verde-escuro, carmesim, ocre-ferrugem, verde-pálido —
brilhavam como cores pintadas sobre veludo negro. Efraim esboçou um meio
sorriso perante o roçar fugitivo de uma emoção aguda e repentina. Talvez um
sopro da sua memória obstruída? Tais sensações ocorriam-lhe com uma
frequência cada vez maior. Olhou para Lorcas e deu com ele a olhar em volta
numa atitude de espanto e ansiedade.
— Tenho ouvido dizer que os Rhunes amam cada uma das pedras da sua
paisagem — disse Lorcas. — A razão é bem visível. Os Reinos são pequenos
segmentos do Paraíso.
Flaussig, depois de ter descarregado a bagagem reduzidíssima, ficou
numa atitude de expectativa. Lorcas falou lenta e meticulosamente.
— O preço foi pago adiantadamente em Port Mar. A gerência queria ter
a certeza de que receberia o dinheiro, acontecesse o que acontecesse.
Flaussig sorriu delicadamente.
— Em circunstâncias como a presente é costume acrescentar uma
gratificação.
— Gratificação? — Exclamou Efraim num acesso de furor. — Já tem
muita sorte em escapar a um castigo por incapacidade criminosa!
— Além disso — disse Lorcas — fique aqui até que Sua Força, o kaiark,
lhe dê autorização de partir. Caso contrário, ele dará ordens ao seu agente
secreto em Port Mar para lhe partir todos os ossos do corpo.
Flaussig fez uma reverência, com um ar de dignidade ofendida.
— Será como desejarem. A nossa firma construiu a sua reputação com
os seus serviços. Se eu soubesse que estava a transportar os grandes de
Scharrode, também teria usado de maior formalidade, pois um
comportamento apropriado é também palavra de ordem na nossa firma.
Lorcas e Efraim já se tinham voltado para Benbuphar Strang, um castelo
de pedra negra, telha cinzenta, madeira e estuque, construído segundo os
ditames daquele estilo particularmente sombrio, típico dos Rhunes. Os
compartimentos do primeiro piso estavam rodeados por paredes com trinta e
três pés de altura, com as janelas altas e esguias e que formavam na parte
superior um complicado sistema de torres, torreões, passarelas, vãos, torres
altas e varandas. Esta era a sua casa, meditou Efraim, este era o terreno que
ele pisara milhares de vezes. Olhou através do vale na direção oeste,
passando pelos lagos e prados para além das silhuetas sucessivas das
florestas, com as cores alteradas pela neblina, até se tornarem numa sombra
cinzento-purpurina por baixo dos picos mais distantes: contemplara esta
mesma vista dez mil vezes... Não sentiu qualquer indício de reconhecimento.
Da cidade, as pessoas tinham-no reconhecido. Algumas dezenas de
homens de jaleca negra e calças tufadas precipitaram-se ao seu encontro,
seguidos de algumas mulheres vestidas de gaze cinzenta.
Os homens, ao aproximarem-se, faziam complicados gestos de respeito e
depois avançavam, detendo-se a uma distância exatamente calculada pelo
protocolo.
Efraim perguntou:
— Como correram as coisas na minha ausência?
O mais venerável dos homens respondeu:
— Tragicamente, Força. O nosso kaiark Jochaim foi atravessado por um
dardo dos Gorgets. À parte isso, nada de mau, nem de bom. Tem havido
dúvidas e desavenças. A nossa terra foi invadida por um bando de guerreiros
da Torre. O kang Destian mandou sair um destacamento, mas havia pouca
correspondência de estirpe8 por isso não resultou nenhum grande combate. O
nosso sangue está desejoso de vingança contra Gosso de Gorgetto. O kang
Destian tem atrasado a nossa resposta; quando mandará ele avançar as nossas
forças? Não esqueçamos que segundo o brasão de Haujefolge, as nossas velas
comandam o seu castelo. Podemos invadi-lo e depois, enquanto Gorgetto sua
e geme, podemos atacar e conquistar Gorgance Strang.
— Cada coisa a seu tempo — disse Efraim. — Vou agora para
Benbuphar Strang para descobrir as irregularidades, caso as haja. Têm
alguma informação ou mesmo suspeitas nesse sentido?
O velho teve outro gesto ritual de humildade.
— Eu nunca refletiria sobre as irregularidades de Benbuphar, quanto
mais falar nelas.
— Fá-lo agora — disse Efraim. — Estarás prestando um serviço ao teu
kaiark.
— Como quiserdes, Força, mas lembrai-vos, pela natureza das coisas,
nós os da cidade não sabemos nada. Pessoas menos caridosas veem com
maus olhos o trisme projetado entre a kraike Singhalissa e o kaiark Rianlle de
Eccord.
— O quê? — Exclamou Efraim. — E que acontecerá à kraike Dervas?
— Deverá ser mandada para o campo, pelo menos é o que corre por ai.
Esse é o preço de Singhalissa pelo Dwan Jar, onde Rianlle está desejoso de
construir um pavilhão. Isto pelo menos é do conhecimento geral. Ouvimos
falar também em trisme entre o kang Destian e a lissolet Maerio. Se estes
trismes se viessem a realizar, que aconteceria? Não parece que Rianlle
ocuparia um lugar bem alto nos concílios de Scharrode? Mas agora que
Vossa Força está aqui e é kaiark de direito, a questão é discutível.
— Estou satisfeito com a tua franqueza — disse Efraim. — Que mais
aconteceu durante a minha ausência?
— Nada de importante, embora, na minha opinião, o estado de espírito
do reino seja frouxo. Malandrins e vilões vagueiam durante as trevas, em vez
de ficarem nas suas casas para as guardarem; e depois, quando a luz volta,
receamos abrir as portas, com medo de descobrir um cadáver na soleira. Mas
agora que Vossa Força está cá novamente, as más influências têm de ceder.
Fez uma vénia e recuou; Efraim e Lorcas encaminharam-se para o
castelo, depois de terem despedido o sorumbático Flaussig, mandando-o de
volta para Port Mar.
Quando se aproximavam, apareceram dois arautos nos dois torreões
geminados que encimavam o portal; erguiam duas cornetas torcidas em
bronze e sopraram uma série de agitadas fanfarras. As portas abriram-se de
par em par; um pelotão de guardas encontrava-se ali a postos e desta vez
quatro arautos avançaram e tocaram fanfarras: os sons perseguiam-se
loucamente, num contraponto apenas perceptível.
Efraim e Lorcas passaram por um túnel abobadado para um pátio. A
kraike Singhalissa estava sentada numa cadeira de espaldar; de pé, ao lado
dela, estava o kang Destian, franzindo as sobrancelhas escuras.
A kraike pôs-se de pé, ficando quase da altura de Destian; era uma
mulher de olhar brilhante e feições angulosas, cuja força era evidente. Um
turbante cinzento escondia-lhe os cabelos escuros e o vestido de gaze
cinzenta parecia pouco interessante e incaracterístico, enquanto o olhar não
registava o subtil jogo de luz e a sombra do corpo meio escondido.
Singhalissa falou numa voz alta, mas afável:
— Apresentamos-vos as boas-vindas rituais, embora tenhais regressado
numa altura pouco conveniente; para quê negá-lo? Em menos de uma semana
a legitimidade da vossa sucessão ter-se-ia dissolvido, como sabeis
certamente. Parece-me pouco correto que não tenhais tido o cuidado de nos
informar dos vossos planos, porquanto tomámos as medidas necessárias para
a transferência da sucessão.
— As vossas observações estão absolutamente certas. Não poderia
refutá-las se não estivessem baseadas em premissas falsas. Garanto-vos que
as minhas dificuldades foram de longe superiores às vossas. No entanto,
lamento o transtorno que vos causei e compreendo a decepção de Destian.
— Sem dúvida — afirmou Destian. — Posso saber quais as
circunstâncias do vosso desaparecimento prolongado?
— Certamente; tendes direito a uma explicação. Em Port Mar fui
drogado, colocado a bordo de uma nave espacial e lançado no espaço.
Enfrentei grandes dificuldades e só ontem consegui voltar a Port Mar. Logo
que me foi possível, aluguei um carro aéreo e fiz-me transportar a Scharrode.
A boca de Destian comprimiu-se ainda mais nos cantos. Encolheu os
ombros e afastou-se.
— É muito curioso — disse Singhalissa, na sua voz sonora e clara. — E
quem cometeu essa maldade?
— Discutiremos a questão pormenorizadamente num futuro próximo.
— Como desejardes. — Ela inclinou a cabeça em direção a Lorcas. — E
quem é este cavalheiro?
— Desejava apresentar-vos o meu amigo, o nobre Matho Lorcas. O seu
auxílio foi-me precioso e vai ser nosso convidado. Creio que ele e o kang
Destian se conheceram ocasionalmente em Port Mar.
Destian observou Lorcas rapidamente durante cerca de três segundos.
Depois, murmurando qualquer coisa por entre dentes, afastou-se. Lorcas
falou com gravidade:
— Recordo-me perfeitamente da ocasião; é um prazer reatar o nosso
conhecimento.
Ao fundo da colunata, na sombra de um dos altos portais, o vulto de uma
mulher jovem pareceu materializar-se pouco a pouco. Efraim viu que se
tratava de lissolet Sthelany, quase imaterial na sua nuvem de gaze cinzenta
luminosa. Os olhos da rapariga, tal como os da kraike, eram escuros e
brilhantes, mas as feições eram mais meditativas do que ameaçadoras, mais
delicadas do que incisivas, e só muito vagamente se assemelhavam às de
Singhalissa ou de Destian. Outro aspecto que acentuava esta diferença era
uma expressão de distanciamento e de indiferença. Tanto Efraim como
Lorcas podiam ser dois desconhecidos, a julgar pela frieza do seu
cumprimento. Em Port Mar, Lorcas achara Sthelany fascinante e Efraim
notou agora que esse interesse não tinha diminuído — era quase
demasiadamente óbvio, embora ninguém se desse ao trabalho de o notar.
Singhalissa, sentindo a presença de Sthelany, falou por cima do ombro.
— Como vê, o kaiark Efraim está de novo entre nós. Sofreu
indignidades incríveis; um desconhecido fez-lhe uma série de partidas
maldosas.
— Ah, sim! — Observou ela numa voz suave. — Fico muito
surpreendida por saber isso. De qualquer forma, não se pode andar pelos
becos esconsos de Port Mar sem lhe sofrer as consequências. Se bem me
lembro, ele andava em companhias muito duvidosas.
— Todos nós estamos perturbados com a situação — disse Singhalissa.
— Claro que o kaiark tem a nossa simpatia. Trouxe um convidado, o nobre
Matho Lorcas, ou pelo menos parece-me ser este o nome: um amigo de Port
Mar.
A forma como a lissolet correspondeu à apresentação passaria
despercebida se fosse ligeiramente menos empática.
Falou para Efraim numa voz tão clara e suave como a de Singhalissa.
— Quem praticou esses atos cruéis contra vós?
Singhalissa respondeu no lugar de Efraim:
— O kaiark prefere não adiantar mais nada, por agora.
— Mas nós estamos muito interessados! Tais indignidades ofendem-nos
a todos!
— Isso é verdade — disse a kraike.
Efraim estivera a escutá-las com um sorriso amargo.
— Pouco vos posso contar. Estou tão admirado como vós próprias, ou
antes, talvez a minha admiração seja ainda maior.
— Maior? Pela minha parte, não sei de nada.
A kraike falou abruptamente.
— O kaiark e o amigo tiveram um dia muito fatigante e devem querer
repousar. — Depois dirigiu-se a Efraim. — Penso que desejeis ocupar agora
os Grandes Aposentos?
— Na verdade, parece-me apropriado que o faça.
Singhalissa voltou-se e acenou para um homem grisalho e forte que
ostentava, por cima da libré negra e escarlate de Benbuphar, um casaco de
veludo negro bordado a prata e, na cabeça, um tricórnio, igualmente de
veludo negro.
— Agnois, traz da Torre Norte alguns dos objetos pessoais do kaiark.
— Imediatamente, Vossa Presença. — Agnois, o camareiro-mor,
afastou-se.
***
A kraike Singhalissa conduziu Efraim através de um hall escassamente
iluminado, onde estavam pendurados os retratos de todos os kaiarks mortos,
todos eles tentando comunicar através dos séculos a sua sabedoria, pela
seriedade do olhar e pela forma como erguiam a mão.
Duas portas esguias chapeadas de ferro, com uma cabeça de górgona, ao
centro, igualmente em ferro, vedavam o caminho; obedecendo talvez à sua
cogência9 de kaiark, Singhalissa deteve-se junto das portas; Efraim avançou
para as abrir, mas não conseguiu encontrar o mecanismo que as controlava.
Singhalissa disse secamente:
— Dai-me licença — e carregou numa saliência. As portas abriram-se.
Penetraram numa comprida antecâmara, ou sala de troféus. Alinhadas ao
longo das paredes havia diversas vitrinas, nas quais estavam expostas
coleções, curiosidades, artefactos, objetos de pedra, de madeira, de argila
cozida, de vidro; insetos conservados em cubos transparentes; esboços,
pinturas, manuscritos; Livros da Vida, milhares de outros volumes e pastas,
inúmeras monografias. O meio da sala era ocupado por uma mesa comprida,
sobre a qual brilhavam dois candeeiros em tons de vidro verde. Acima das
vitrinas, retratos de kaiarks e kraikes contemplavam aqueles que passavam.
A sala dos troféus deitava para um quarto espaçoso, de teto alto e
forrado a madeira que o tempo tornara quase negra. Tapetes, com desenhos
em castanho, azul e negro, cobriam o chão; as janelas altas e esguias
deitavam para o vale.
A kraike apontou para uma dezena de vitrinas colocadas ao longo da
parede.
— Estas coisas pertencem a Destian; ele partiu do princípio de que iria
ocupar estes aposentos; está aborrecido com o caminho que as coisas
levaram, como é natural. — Aproximou-se da parede e premiu um botão;
Agnois, o camareiro-mor, apareceu quase imediatamente. — Sim, Vossa
Presença?
— Leve os pertences do kang Destian.
— Imediatamente, Presença. — Retirou-se.
— Posso perguntar como é que o kaiark encontrou a morte?
A kraike olhou duramente para Efraim.
— Não tivestes notícia disso?
— Apenas que foi morto pelos Gorgets.
— Nós próprios pouco mais sabemos. Eles vieram como homens das
trevas e um deles atingiu Jochaim com uma seta nas costas. Destian planeava
uma incursão de vingança logo após a sua investidura.
— Destian pode ordenar uma incursão quando desejar. Não lhe porei
qualquer entrave.
— Não tencionais participar? — A voz límpida da kraike tinha um laivo
de emoção fria.
— Seria loucura da minha parte, enquanto certos mistérios não estiverem
esclarecidos. Sabe-se lá que se eu não viria a morrer também por causa de
uma seta dos Gorgets?
— Deveis proceder como a vossa sabedoria vos indicar. Quando vos
sentirdes mais repousado, encontrar-nos-eis na sala. Agora, se mo permitis,
deixo-vos.
Efraim inclinou a cabeça.
— Sinto-me grato pela vossa solicitude.
A kraike afastou-se. Efraim encontrou-se sozinho na sala antiga. No ar
pairava uma mistura de odores: o couro das encadernações, madeira
encerada, tecidos antigos e também o vago bafio das coisas pouco usadas.
Efraim olhou por uma das janelas, cada uma das quais estava protegida por
uma persiana de ferro. O tempo era sorva verde; a luz que se estendia sobre a
paisagem era suave.
Voltou-se e começou a inspecionar cuidadosamente os aposentos do
kaiark. A sala estava mobilada com peças maciças, bem usadas e de forma
alguma desconfortáveis, ainda que um tanto pomposas e imponentes. Numa
das extremidades da sala, vitrinas com dez pés de altura continham livros de
todas as espécies. Efraim interrogava-se quanto às virtuosidades especiais de
Jochaim. E a propósito, quais teriam sido as suas?
Num aparador encontrou vários frascos de licor, para uso particular do
kaiark. Num suporte havia uma dúzia de espadas, que eram evidentemente
armas de fama e glória.
Um vão com nove pés de altura e três de largura abria para uma sala
octogonal. Uma abóbada de vidro em segmentos, lá no alto, inundava o
compartimento de luz. O chão estava coberto com um tapete verde; as
paredes estavam pintadas, representando vistas de Scharrode tomadas de
vários pontos altos; o trabalho devia ter sido feito por algum kaiark morto
havia muito que se dedicara à pintura de paisagens. Uma escada em espiral
levava a uma varanda alta, ligada sem dúvida a um passeio exterior. Do outro
lado da sala, um pequeno vestíbulo levava ao vestiário do kaiark. Em
armários, estavam pendurados uniformes e trajos de cerimônia; as cômodas
continham as camisas e roupa interior; em prateleiras, alinhavam-se dezenas
de botas, sapatos, sandálias, pantufas; todos limpos e reluzentes. O kaiark
Jochaim era um homem meticuloso. Os seus objetos pessoais, fatos e
uniformes não diziam nada de especial. Efraim sentia-se pouco à vontade e
um tanto irritado; por que motivo estas roupas não foram retiradas já há
bastante tempo?
Uma porta alta abria para o quarto de cama do kaiark: um
compartimento relativamente pequeno e mobilado com simplicidade; a cama
pouco mais era do que uma tarimba, com um colchão duro e pouco espesso.
Efraim viu que aqui teria de fazer alterações; de momento não tinha qualquer
tendência para o ascetismo. Um pequeno vestíbulo abria primeiro para uma
casa de banho e um toilette e depois para um pequeno compartimento que
estava mobilado com uma mesa e uma cadeira: era o refeitório do kaiark. No
preciso momento em que Efraim examinava a sala, um elevador subiu das
cozinhas, trazendo uma terrina de sopa, um pão, um prato com lentilhas em
óleo, uma porção de queijo castanho quase negro e uma caneca de cerveja.
Efraim viria a ser informado de que o serviço era automático; a refeição era
renovada de hora a hora, para evitar ao kaiark a situação embaraçosa de ter de
pedir comida.
Efraim descobriu que estava com fome e comeu com grande apetite. De
regresso ao vestíbulo notou que este se estendia até um lanço de escadas
escuras, em caracol. Um ruído proveniente do quarto de dormir chamou-lhe a
atenção. Ao voltar ali, deu com dois criados que estavam a retirar a roupa do
defunto kaiark, substituindo-a por um guarda-roupa notoriamente menos
vasto: provavelmente aquele que ele próprio deixara nos seus aposentos
anteriores.
— Vou tomar banho — disse Efraim para um dos criados. — Ponham de
fora qualquer coisa que sirva para eu usar no momento.
— Sem demora, Força!
Meia hora depois, Efraim observava-se a si próprio no espelho. Vestira
um casaco cinzento por cima de uma camisa branca, calças pretas, meias
negras e sapatos de veludo igualmente negros — um trajo adequado para usar
informalmente dentro do castelo. A roupa ficava-lhe larga — perdera peso
desde o episódio em Port Mar.
As escadas ao fundo do vestíbulo ainda não tinham sido exploradas.
Subiu vinte pés até alcançar um patamar, onde abriu uma porta que o levou a
um novo vestíbulo.
Entrou. A porta, que se tomava invisível depois de fechada, formava
como que uma secção do revestimento da parede. Enquanto examinava a
porta, especulando sobre a sua finalidade, a lissolet Sthelany emergiu de um
compartimento na extremidade do vestíbulo. Ao ver Efraim, hesitou, depois
aproximou-se lentamente, com a cara voltada. Os raios verdes de Cirse,
brilhando através da janela ao fundo do vestíbulo, faziam-na aparecer em
contraluz; Efraim perguntava a si próprio como pudera alguma vez achar que
os vestidos de gaze eram pouco atraentes. Observou a rapariga enquanto ela
se aproximava e pareceu-lhe que as faces dela apresentavam um ligeiro rubor.
Modéstia? Aborrecimento? Excitação? A expressão dela não dava qualquer
indicação quanto aos seus sentimentos.
Efraim continuou a observá-la à medida que ela se aproximava mais. Era
evidente que tencionava passar sem dar qualquer sinal de se ter apercebido de
que ele estava ali. Ele inclinou-se, já meio disposto a passar-lhe o braço em
volta da cintura. Pressentindo-lhe a intenção, ela parou e lançou-lhe um olhar
alarmado. Não havia dúvidas quanto à sua beleza, pensou Efraim; era
encantadora e talvez ainda mais por causa das suas predisposições especiais
de rhune.
Ela falou numa voz ligeira e inexpressiva:
— Porque surgis de forma tão precipitada pelo caminho das trevas?
Tencionais assustar-me?
— Caminho das trevas? — Efraim deitou um olhar vazio por cima do
ombro, em direção à passagem. — Sim, pois é... Não tinha pensado... —
Vendo-lhe a expressão de surpresa, parou repentinamente.— Não faz mal.
Vinde comigo lá abaixo ao Grande Quarto, se não vos importais. Gostaria de
falar convosco. — Ele abriu a porta, mas Sthelany recuou cheia de espanto.
— Pelo caminho das trevas? — Os seus olhos iam de Efraim para a
porta, até que soltou uma risada fria.— Dais assim tão pouca importância à
minha dignidade?
— Claro que não — declarou Efraim precipitadamente. — Ultimamente
ando muito distraído. Vamos pelo caminho normal?
— Como desejardes, Força.— Ela esperou.
Efraim, que não recordava absolutamente nada da planta interna do
castelo, refletiu um momento e depois enveredou pelo corredor abaixo na
direção que parecia levar logicamente aos aposentos do kaiark.
A voz fria de Sthelany fez-se ouvir atrás dele.
— Tenciona a Vossa Terrível Presença inspecionar primeiro a coleção
de tapeçarias?
Efraim parou e tomou a direção oposta. Passou ao lado da lissolet sem
qualquer comentário e continuou até onde o vestíbulo fazia uma curva, dando
para uma sala de estar. Atrás dele, uma larga escada de pedra ladeada por
pesadas balaustradas e candeeiros arcaicos de ferro forjado levava ao andar
principal. Efraim desceu, seguido pela lissolet, com o seu ar de modéstia e
gravidade. Após um ou dois segundos de hesitação, encaminhou-se para os
aposentos do kaiark.
Abriu as portas com as cabeças de górgona, sem qualquer dificuldade, e
acompanhou Sthelany à sala dos troféus. Fechou a porta e afastou uma
cadeira da mesa para ela se sentar. Dirigindo-lhe o seu olhar já habitual de
perplexidade sardónica, ela perguntou:
— Porque estais a fazer isso?
— Para que possais sentar-vos e, na melhor das hipóteses, descontrair-
vos, para podermos falar à vontade.
— Mas eu não posso sentar-me na vossa presença, sob o olhar dos
nossos antepassados! — Ela falou num tom suave e razoável. — Quereis
expor-me à maldição dos fantasmas?
— Claro que não. Vamos para a sala, onde não há retratos que possam
perturbar-vos.
— Mas isso também não é nada convencional.
Efraim perdeu a paciência.
— Se não estais interessada em falar comigo, tendes a minha permissão
para vos irdes embora.
Sthelany encostou-se graciosamente à mesa.
— Se me ordenais que fale, tenho de obedecer.
— Claro que não ordeno nada disso.
— Sobre que quereis falar?
— Para dizer a verdade, não sei. Do que não duvido é que estou meio
deslumbrado. Passei por centenas de experiências estranhas; vi milhares de
rostos novos; visitei o Palácio do Connatic, em Númenes... Agora que estou
de volta, os costumes de Scharrode parecem-me estranhos.
Sthelany ficou pensativa.
— De facto, pareceis uma pessoa diferente. O outro Efraim era
rigorosamente correto.
— Pergunto a mim mesmo... De facto, pergunto a mim mesmo... —
Murmurou Efraim. Quando ergueu os olhos viu que Sthelany o observava
atentamente. — Achais então que estou diferente?
— Claro. Se não vos conhecesse tão bem, pensaria que éreis outra
pessoa, especialmente no que diz respeito às vossas estranhas distrações.
Após alguns momentos, Efraim disse:
— Confesso que estou confuso. Lembrai-vos de que, até ontem, não
sabia que era kaiark. Ao chegar aqui encontro uma atmosfera de
ressentimento que não é absolutamente nada agradável.
Sthelany mostrou-se surpreendida com a ingenuidade de Efraim.
— Mas isso era de esperar. Singhalissa já não pode considerar-se kraike;
a sua posição aqui em Benbuphar Strang já não tem qualquer legitimidade; o
mesmo acontece comigo e com Destian; todos temos de fazer preparativos
para recolher ao velho e insípido Disbague. Vivemos aqui graças à vossa
tolerância. Para nós as coisas passaram-se de uma forma triste.
— Pela minha parte não tenho qualquer interesse em que vos ides
embora, a menos que o desejeis.
Sthelany encolheu os ombros com indiferença.
— Os meus desejos só a mim própria interessam.
— Não é assim. Eu estou interessado naquilo que vós desejais.
Sthelany voltou a encolher os ombros.
— É claro que prefiro Scharrode a Disbague.
— Compreendo. Dizei-me, quais são as vossas recordações do que se
passou em Port Mar nas poucas horas que antecederam o meu
desaparecimento?
Sthelany fez uma careta.
— Essas não foram exatamente edificantes nem divertidas. Como deveis
estar lembrado, estávamos a viver no hotel, que é um lugar absolutamente
decente. Vós, Destian, Maerio e eu resolvemos dar uma volta pela cidade, a
pé, e ir até um sítio que se chama Jardins das Fadas, onde veríamos um
espetáculo de marionetas. Todos nos preveniram de que iriamos achar tudo
aquilo extremamente grosseiro. Mas nós considerávamo-nos inabalavelmente
insensíveis e atravessámos a ponte, embora alguns de nós não nos
sentíssemos muito entusiasmados. Haveis perguntado o caminho a um jovem
típico dali, caprichoso e hedonista — de facto, estou convencida de que se
trata da mesma pessoa que vos acompanhou até aqui. Ele levou-nos até aos
Jardins das Fadas, mas as marionetas já tinham acabado. O vosso amigo,
Lorca ou Lortha, ou lá como é o nome dele, insistiu em despejar uma garrafa
de vinho, para podermos sorver e gorgolejar e dilatar o nosso trato intestinal à
frente de todos. Desculpai-me da linguagem; apenas posso contar-vos a
verdade. O vosso conhecido não mostrava qualquer vergonha e ridicularizava
questões que desconhecia em absoluto. Enquanto conversava e, tanto quanto
me lembro, muito entusiasticamente, com a lissolet Maerio, esse tal Lorca
tomou-se extraordinariamente familiar para comigo, fazendo-me algumas
propostas absolutamente insensatas. Destian e eu abandonámos os Jardins das
Fadas, mas Maerio, no entanto, ficou convosco. Na verdade, ela é demasiado
tolerante. Voltámos para o hotel, onde o kaiark Rianlle ficou muito
perturbado. Mandou que Destian fosse buscar Maerio e a acompanhasse ao
hotel, o que ele fez, deixando-vos com o vosso amigo.
— E passado pouco tempo — disse Efraim — fui drogado e atirado para
o espaço!
— Eu, por mim, perguntaria ao vosso amigo o que sabe ele sobre essa
questão.
— Bah — disse Efraim prontamente. — Porque haveria ele de me fazer
uma partida dessas? Devo ter arranjado um inimigo algures, mas não consigo
suspeitar de Lorcas.
— Arranjastes muitos inimigos — disse Sthelany na sua voz suave e
meiga. — Há Gosso de Gorgetto e Sansevery da Torre, ambos vos devem
sangue e aguardam as vossas represálias. A kraike Singhalissa e o kang
Destian só têm a perder com a vossa presença. A lissolet Maerio sofreu com a
vossa efervescência em Port Mar; nem ela nem o kaiark Rianlle vos
perdoarão facilmente. Quanto à lissolet Sthelany — aqui ela fez uma pausa e
olhou de soslaio para Efraim; se se tratasse de outra pessoa, tomaria isto
como uma atitude coquete —, reservo os meus pensamentos só para mim.
Mas não sei se conseguirei continuar a encarar a possibilidade de um trisme
convosco.
— Nem sei o que diga — murmurou Efraim.
Os olhos de Sthelany brilharam.
— Pareceis distraído e totalmente desinteressado. É claro que pusestes
de lado o acordo como trivial ou talvez o tenhais mesmo esquecido.
Efraim fez um gesto desajeitado.
— Tornei-me tão distraído...
A voz de Sthelany tremeu.
— Por razões que a minha imaginação não alcança, pareceis querer ferir-
me.
— Não, não! Aconteceu tanta coisa; estou francamente confuso!
Sthelany observou-o erguendo as sobrancelhas com um ar de profundo
ceticismo.
— Conseguis lembrar-vos seja do que for?
Efraim ergueu-se e encaminhou-se para a sala, depois, imaginando a
emoção de Sthelany se lhe oferecesse um cordial, voltou lentamente para
junto da mesa.
Sthelany observava-lhe todos os movimentos.
— Porque haveis voltado a Scharrode?
Efraim teve um riso oco.
— Em que outro lugar poderia eu governar um reino e pedir obediência
a alguém tão bela como vós?
Sthelany recuou abruptamente, com o rosto coberto de uma palidez
extrema, à exceção das manchas vermelhas que tinha dos dois lados. Voltou-
se, pronta a abandonar a saia dos troféus.
— Esperai! — Efraim deu um passo em frente, mas a lissolet recuou,
com a boca entreaberta, sentindo-se de repente desnorteada e cheia de medo.
Efraim disse: — Se estáveis preparada para um trisme, devíeis pensar bem de
mim.
Sthelany recompôs-se.
— Não é forçoso que seja assim; e agora tenho de me ir embora.
Saiu apressadamente da sala. Fugiu ao longo do corredor como uma
Visão, atravessou o Grande Vestíbulo, entrando e saindo de um raio de luz
verde da estrela Cirse, e depois desapareceu.
Efraim chamou Agnois, o camareiro-mor.
— Leva-me aos aposentos do nobre Matho Lorcas.
***
Lorcas fora instalado no segundo piso da Torre Minot, em quartos de
uma vastidão grotesca e exagerada. Traves veneráveis suportavam um teto
que a altura e a escassez da luz tornava quase invisível; as paredes, que
tinham sido cobertas com placas de pedra esculpida — novamente o produto
da cogência de alguém—, apresentavam uma espessura de cinco pés nos
sítios em que quatro janelas esguias se abriam sobre um panorama das
montanhas setentrionais. Lorcas estava de pé, voltando as costas para a
chaminé com dez pés de largura e oito de altura, onde ardia um fogo de uma
pequenez fora de proporção. Olhou para Efraim com um sorriso pesaroso.
— Não estou nada apertado e há muito que aprender nos documentos
que se encontram além. — Apontou para uma vitrina maciça com dez pés de
altura e trinta de comprimento. — Descobri dissertações, contradições e
reconsiderações sobre as contradições e contradições das reconsiderações —
tudo classificado e reclassificado naqueles dois volumes azul e vermelho,
além. Estou a pensar em usar algumas das reconsiderações mais discursivas
como combustível, a menos que me tragam mais alguns paus para a minha
fogueira.
A kraike Singhalissa pensara deslumbrar e subjugar aquele pretensioso
impertinente de Port Mar, segundo as suspeitas de Efraim.
— Se se sente desconfortável, é fácil mudá-lo para outros aposentos.
— De maneira nenhuma! — Declarou Lorcas. — Agrada-me a
grandeza; estou a armazenar recordações que me vão dar para o resto da vida.
Venha fazer-me companhia junto deste fogo miserável. Que conseguiu
descobrir?
— Nada de importante. O meu regresso não deu alegria a ninguém.
— E as suas recordações?
— Não passo de um estranho.
Lorcas ficou uns momentos a ruminar naquilo.
— Podia ser uma boa ideia visitar os seus antigos aposentos, examinar
tudo o que lhe pertence.
Efraim abanou a cabeça.
— Não me apetece. — Deixou-se cair numa das cadeiras pesadas e
maciças e encostou-se para trás, com uma perna para cada lado.— A simples
ideia me oprime. — Olhou para as paredes. — Sem dúvida que há dois ou
três pares de ouvidos a escutar a nossa conversa. As paredes estão cheias de
fossos das trevas. Pôs-se de pé num salto.— O melhor é irmos ver como
estão as coisas.
Voltaram aos aposentos do kaiark; os pertences de Destian tinham sido
retirados. Efraim carregou no botão para chamar Agnois, o qual, ao entrar,
executou uma vênia um tanto rígida, que, de uma forma quase imperceptível,
parecia não ser acompanhada do devido respeito. Efraim sorriu.
— Agnois, tenciono fazer muitas alterações em Benbuphar Strang,
incluindo talvez pessoal novo. Podes espalhar a notícia de que estou a avaliar
cuidadosamente o comportamento de cada um, do mais alto ao mais baixo.
— Muito bem, Vossa Força. — Agnois, com uma nova reverência,
mostrou-se bastante mais comunicativo.
— A propósito, porque é que negastes ao Nobre Lorcas um fogo em
condições? Considero isso uma incrível falta de hospitalidade.
As faces de Agnois tornaram-se rosadas; o nariz abatatado estremeceu-
lhe.
— Foi-me dado a entender — ou melhor, dito, Força —, devo confessar-
me culpado de negligência. Vou imediatamente remediar o caso.
— Um momento, gostaria ainda de tratar de uma outra questão. Creio
que estás familiarizado com todos os assuntos da casa?
— Apenas na medida em que isso possa ser considerado discreto e
apropriado, Vossa Força.
— Muito bem. Como talvez saibas, fui vítima de um acidente bastante
misterioso e tenciono investigar a questão a fundo. Posso ou não contar com
a tua colaboração total?
Agnois hesitou apenas um instante, depois pareceu soltar um suspiro de
tristeza.
— Estou ao vosso serviço, Força, como sempre.
— Muito bem. Agora queria perguntar-te se alguém está a escutar a
nossa conversa neste momento.
— Que eu saiba, não, Força.— E continuou com relutância: — Suponho
que se pode dizer que essa possibilidade existe.
— O kaiark Jochaim tinha uma planta exata do castelo, com todas as
passagens e fossos das trevas. — Efraim estava a falar inteiramente ao acaso,
partindo do princípio de que no meio de tantos papéis e tantos relatos
minuciosos devia certamente existir uma planta pormenorizada do castelo,
com todos os seus fossos das trevas. — Traz-mo aqui, desejo examiná-lo.
— Certamente, Força, se me derdes a chave do armário privado do
kaiark.
— Com certeza. Onde está a chave do kaiark Jochaim?
Agnois pestanejou.
— Provavelmente nos aposentos da kraike.
— E onde posso eu encontrar a kraike neste momento?
— A kraike está a refrescar-se10 nos seus aposentos.
Efraim teve um gesto de impaciência.
— Conduz-me até lá. Desejo trocar algumas palavras com ela.
— Força, ordenais-me que caminhe à vossa frente?
— Sim, precede-me no caminho.
Agnois curvou-se. Deu uma volta com toda a elegância, conduziu
Efraim até ao Grande Vestíbulo, depois pela escada acima e ao longo de um
corredor até à Torre Jaher, parando em frente de uma porta alta com granadas
embutidas. A um sinal de Efraim, ele acionou a granada central e a porta
abriu-se. Agnois deu um passo para o lado e Efraim penetrou na antecâmara
dos aposentos privados da kraike. Apareceu uma criada, que executou uma
reverência rápida e graciosa.
— Que ordenais, Força?
— Desejo falar imediatamente com Sua Presença.
A criada hesitou, depois, assustando-se com a expressão de Efraim,
desapareceu pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Passou um minuto,
dois minutos. Apesar de uma exclamação mal contida de Agnois, Efraim
empurrou a porta e entrou.
Encontrou-se numa vasta sala de estar com as paredes cobertas de
tapeçarias vermelhas e verdes e mobilada com cadeiras e mesas de madeira
dourada. Através de uma porta lateral ouviu barulho. Aproximou-se em
passos rápidos e descobriu a kraike Singhalissa junto de um pequeno armário
embutido na parede. Ao ver Efraim, atirou um objeto pequeno para dentro do
armário e fechou a porta. Voltando-se, ficou de frente para Efraim, com os
olhos brilhantes de fúria.
— Vossa Força esqueceu as regras do bom comportamento.
— Deixemo-nos disso — disse Efraim—, desejo que abrais esse
armário.
O rosto de Singhalissa tornou-se duro e sombrio.
— O armário contém apenas tesouros pessoais.
Efraim voltou-se para Agnois.
— Traz-me um machado, imediatamente.
Agnois fez uma reverência. Singhalissa soltou um som inarticulado.
Voltando-se para a parede, carregou num botão escondido. A porta do
armário abriu-se. Efraim dirigiu-se a Agnois.
— Traz o que encontrares para cima da mesa.
Cuidadosamente, Agnois trouxe o conteúdo do armário: várias pastas de
couro e sobre elas uma chave bastante trabalhada em ouro e prata, que Efraim
tomou na mão.
— Que é isto?
— A chave do armário privado.
— E as outras coisas?
— São os meus papéis pessoais — declarou Singhalissa em voz
metálica. — O meu contrato de trisme, os papéis do nascimento do kang e da
lissolet.
Efraim deitou uma vista de olhos pelas diversas pastas. A primeira
continha um complicado plano arquitetónico. Olhou para Singhalissa, que lhe
devolveu o olhar com frieza. Efraim fez um sinal para Agnois.
— Verifica estes documentos; devolve a Sua Presença os que ela
enumerou. Todos os outros põe-nos de lado.
Singhalissa instalou-se numa cadeira, numa pose cheia de rigidez.
Agnois inclinou o corpo pesado sobre a mesa, perscrutando os documentos
com ar de desafio. Quando acabou, empurrou para o lado um grupo de
papéis.
— Estes dizem respeito aos negócios pessoais da kraike. Os outros
pertencem mais propriamente ao armário privado.
— Trá-los. — Saudando Singhalissa com a maior das friezas, Efraim
deixou os aposentos dela.
Encontrou Matho Lorcas no mesmo sítio em que o deixara, instalado
numa pesada cadeira de couro, examinando a história das guerras entre
Scharrode e o reino conhecido como Slaunt, que lhe ficava a cinquenta
milhas mais ao sul. Lorcas colocou o volume de lado e pôs-se de pé.
— Descobriu alguma coisa?
— Mais ou menos aquilo que já calculava. A kraike não tem qualquer
intenção de aceitar a derrota, pelo menos não vai ser fácil. — Efraim dirigiu-
se ao armário privado, introduziu-lhe a chave e abriu as pesadas portas. Ficou
uns momentos a contemplar-lhe o recheio: maços de documentos, registos de
contas, certificados, crônicas manuscritas. Depois voltou-se. — Hei de
examinar tudo isto em qualquer altura, mas por agora... — Olhou para o sítio
onde se encontrava Agnois, direito e silencioso como uma peça de
mobiliário. — Agnois.
— Sim, Vossa Força.
— Se sentes que és capaz de me servir com uma lealdade inflexível,
podes continuar no teu posto. Se não, podes demitir-te neste momento, sem
sofrer qualquer prejuízo.
Agnois falou em voz branda:
— Servi durante muitos anos o kaiark Jochaim; ele nunca me encontrou
qualquer defeito. Continuarei a servir o verdadeiro kaiark.
— Muito bem. Arranja o material necessário para fazer um esboço de
Benbuphar Strang, indicando os quartos usados pelas diversas pessoas.
— Imediatamente, Força.
Efraim aproximou-se da pesada mesa central, sentou-se e começou a
examinar os documentos que tirara a Singhalissa. Descobriu um que parecia
ser um protocolo cerimonial, certificando a linhagem da casa de Benbuphar,
começando nos tempos antigos e terminando com o seu próprio nome. Numa
inscrição confusa em rhune antigo, o kaiark Jochaim reconhecia Efraim, filho
da kraike Alferica do Castelo de Cloudscape11 como seu sucessor. Uma
segunda pasta continha correspondência entre o kaiark Jochaim e o kaiark
Rianlle de Eccord. O arquivo mais recente tratava da proposta de Rianlle com
vista à cedência por parte de Jochaim de uma extensão de terra conhecida
como Dwan Jar, a Cordilheira Sussurrante, a Eccord, pelo que Rianlle, em
consideração por esse ato, ofereceria a lissolet Maerio em trisme ao kang
Efraim. Jochaim recusava delicadamente considerar tal proposta, afirmando
que o trisme entre Efraim e Sthelany já estava a ser considerado; Dwan Jar
nunca poderia ser cedido, por razões que o kaiark Rianlle muito bem
conhecia.
Efraim falou por sobre a mesa para Agnois.
— Porque é que Rianlle quer o Dwan Jar?
Agnois olhou-o admirado.
— A razão é sempre a mesma, Força. Ele construiria o seu castelo de
montanha em Point Sasheen, cuja situação é muito conveniente para quem
chega de ou parte para Belrod Strang. O kaiark Jochaim, como certamente
estás lembrado, recusou-se a ceder ao capricho do kaiark Rianlle citando um
velho acordo feito com os fwai-chi.
— Os fwai-chi? Mas que têm eles a ver com o caso?
— A Cordilheira Sussurrante alberga um dos seus santuários12, Força.
— Agnois falou num tom absolutamente inexpressivo, como se tivesse
decidido nunca mais mostrar surpresa perante as imprecisões de Efraim.
— Pois é, claro. — Efraim abriu a terceira pasta e descobriu uma série
de esboços arquitetónicos, representando diversos aspectos de Benbuphar
Strang. Reparou que Agnois desviava o olhar, evidenciando um desinteresse
conspícuo. «Estas», pensou Efraim, «são as passagens secretas do castelo.»
Os desenhos eram complicados e de compreensão não muito imediata. A
kraike podia ou não ter feito cópias deste documento, mas pelo menos tinha-o
analisado fascinadamente; sem dúvida que conhecia as passagens secretas tão
bem como os corredores oficiais.
— É tudo por agora — disse Efraim para Agnois. — Não discutas os
nossos assuntos com ninguém, seja sob que pretexto for! Se te fizerem
perguntas, deves declarar que o kaiark proibiu explicitamente as discussões,
alusões ou intimações de toda e qualquer espécie!
— Será como ordenardes, Força. — Agnois ergueu para o teto os olhos
azul-pálidos. — Permiti-me, Força, se o desejais, que faça um comentário
pessoal. Desde que o kaiark Jochaim foi afastado das suas funções, as coisas
não têm corrido lá muito bem em Benbuphar Strang, embora a kraike
Singhalissa seja uma força positiva. — Hesitou primeiro, depois falou como
se as palavras fossem forçadas a sair-lhe da garganta por uma força interior
irresistível. — É evidente que o vosso regresso interfere com os planos do
kaiark Rianlle, não se podendo portanto esperar cordialidade da sua parte.
Efraim tentou mostrar-se admirado e sagaz ao mesmo tempo.
— Não fiz nada para hostilizar Rianlle, nada com esse intuito, pelo
menos.
— Pode muito bem ser que não, mas o intuito pouco adianta se Rianlle
chegar à conclusão de que foi contrariado. A verdade é que haveis anulado o
trisme entre o kang Destian e a lissolet Maerio e Rianlle já não poderá tirar
proveito de um trisme entre ele próprio e a kraike Singhalissa.
— Ele dá assim tanto valor ao Dwan Jar?
— Evidentemente, Força.
Efraim mal se esforçava por disfarçar a sua ignorância.
— Será então possível que ele venha a atacar pela força?
— Nada pode ser considerado impossível.
Efraim fez-lhe sinal de que podia retirar-se; Agnois fez uma reverência e
saiu.
O isp passou a umbra. Efraim e Lorcas traçaram, retraçaram,
simplificaram, codificaram e tornaram compreensíveis os planos de
Benbuphar Strang. A passagem que saía do fundo do refeitório não parecia
ser mais do que um simples caminho mais curto para o segundo andar da
Torre Jaher. Os verdadeiros caminhos das trevas irradiavam de um
compartimento situado a um lado da Grande Sala; as passagens espalhavam-
se por todo o castelo, intersectando-se, abrindo em nódulos, subindo,
descendo, cada um assinalado com linhas horizontais coloridas, cada um
deles deitando para quartos, corredores e vestíbulos, através de inúmeros
orifícios, periscópios, fendas e amplificadores de imagem.
Dos aposentos do antigo kang Efraim e do atual kang Destian irradiavam
passagens menos extensas e nas quais se podia entrar secretamente pelos
caminhos de treva do kaiark. Com um estremecimento de tristeza, Efraim
imaginou-se na sua grotesca máscara de homem atravessando
deliberadamente estes corredores secretos e perguntou a si mesmo a quem
pertenceria o quarto cuja porta ele abrira. Imaginou o rosto da lissolet
Sthelany: pálido e tenso, o olhar em fogo, a boca entreaberta numa emoção
que ela própria não sabia interpretar... Voltou a concentrar a atenção na pasta
vermelha e, pela décima vez, inspecionou o índice que a acompanhava e no
qual todos os fechos e molas que controlavam cada uma das saídas eram
descritos em pormenor, juntamente com os sistemas de alarme destinados a
evitar a passagem ilícita pelos caminhos das trevas do kaiark. A saída do
quarto terminal — o chamado «Sacarlatto» — estava vedada por uma porta
de ferro, ficando assim o kaiark protegido de possíveis intromissões,
enquanto outras portas semelhantes cortavam a passagem nos nódulos
estratégicos.
Efraim e Lorcas, tendo alcançado um conhecimento pelo menos
superficial do labirinto, puseram-se de pé e estudaram a parede da Grande
Sala. Esta estava envolta num pesado silêncio.
— Pergunto a mim mesmo — murmurava Lorcas —, pergunto a mim
mesmo... Se haverá alguém que deseje o nosso mal? Um poço ou uma teia de
veneno? Talvez seja o ambiente que me oprime. Afinal os Rhunes não têm
autorização para matar... Exceto durante as trevas.
Efraim teve um gesto de impaciência; Lorcas exprimira com exatidão
aquilo que ele próprio sentia. Dirigiu-se à parede e tocou diversas saliências.
Um dos painéis deslizou; eles treparam um lanço de escadas de pedra e
entraram no Sacarlatto. Caminharam sobre uma carpete carmesim-escuro, por
baixo de um candelabro com vinte braços. Sobre cada um dos painéis do
revestimento esmaltado vermelho e negro estava pendurada uma placa de
mármore esculpido representando uma máscara de homem em baixo-relevo,
que ficava quase totalmente achatada de encontro ao painel. Cada uma das
máscaras representava uma distorção diferente; cada uma delas apresentava
uma legenda em símbolos crípticos. Em seis pontos diferentes, espelhos e
biombos permitiam ver através da Grande Sala. Lorcas falou em voz bastante
baixa, que era ainda atenuada pelas características do próprio quarto.
— Cheira-lhe a alguma coisa?
— O tapete. Cheira-me a pó.
— O meu nariz é extremamente sensível. Noto uma certa fragrância,
uma essência de ervas.
De pé no quarto mal iluminado, rígidos e pálidos, os dois homens
pareciam um par de manequins antigos.
Lorcas voltou a falar.
— É a mesma essência que fica no ar quando Singhalissa passa.
— Está convencido de que ela esteve aqui, não?
— Sim, e há muito pouco tempo; a ver-nos e ouvir-nos enquanto
estivemos a trabalhar. Olhe, a porta de ferro está entreaberta.
— Vamos fechá-la; e agora vou dormir um bocado. Mais tarde podemos
fechar as outras portas e acabar-se-ão as incursões e a espionagem.
— Deixe isso comigo! Estas questões fascinam-me e não estou
absolutamente nada cansado.
— Como queira. Mas não se esqueça que a kraike pode ter mandado
instalar os seus próprios alarmes.
— Eu tenho cuidado.
CAPÍTULO VII
Efraim acordou no quarto de dormir do kaiark e ficou deitado na
obscuridade.
Na pedra da chaminé um relógio indicava que o modo era aud, com
Furad e Maddar prestes a porem-se e a deixarem o céu ao isp gelado. Um
segundo mostrador anunciava a hora local de Port Mar e Efraim viu que
dormira sete horas — bastante mais do que tinha pensado.
Olhou para o teto alto, pensando na posição em que se encontrava. As
suas vantagens eram fáceis de enumerar. Governava um belo reino de
montanha de um castelo com um esplendor arcaico. Enganara pelo menos em
parte o seu inimigo ou inimigos; neste momento ele, ela ou eles, deviam estar
acabrunhados com os próprios pensamentos. Benbuphar Strang albergava
antagonistas, mas com que finalidade? Estas pessoas estavam ao alcance da
mão quando ele perdeu a memória... O pensamento fê-lo estremecer de raiva
e levantar-se da cama.
Tomou banho e comeu um horrível pequeno-almoço de carne fria, pão e
fruta, no refeitório. Se não conhecesse os hábitos dos Rhunes, podia ter
considerado a comida uma afronta deliberada... Especulou quanto às
vantagens da inovação: porque é que os Rhunes se conduziam com uma
elegância de tal modo afetada, quando triliões de outras pessoas se
banqueteavam em público, sem se preocuparem um segundo que fosse com
os seus processos alimentares? O seu exemplo isolado apenas serviria para
provocar a repulsa e suscitar reprovação; tinha de pensar melhor no caso.
Nas prateleiras do seu quarto de vestir descobriu o que pensou ser o seu
guarda-roupa de há seis meses atrás. Um guarda-roupa um tanto escasso —
refletiu. Tirou para fora uma túnica cor de mostarda bordada a negro e
forrada a vermelho-escuro e observou-a: um fato bastante vistoso, que, sem
dúvida, nalguma ocasião informal deveria ter salientado as vantagens do
jovem kang Efraim.
Efraim produziu um som abafado e examinou os outros trajos. Tentou
lembrar-se do guarda-roupa do kaiark Jochaim, ao qual deitara uma olhadela
muito rápida, tendo-lhe ficado apenas uma impressão de elegância discreta,
de comedimento próprio de um kaiark.
Dirigiu-se pensativo para a Grande Sala e chamou Agnois, que lhe
pareceu pouco à vontade. Desviava o olhar azul-pálido e, ao fazer a
reverência, as suas mãos brancas apertavam-se e torciam-se.
Antes que Efraim pudesse falar, Agnois disse:
— Vossa Força, os eiodarks de Scharrode desejam uma audiência, o
mais depressa possível. Estarão aqui dentro de duas horas, caso convenha a
Vossa Força.
— A audiência pode esperar — berrou Efraim. — Vem comigo. —
Conduziu Agnois ao quarto de vestir, onde estacou, dirigindo a Agnois um
olhar frio, que o fez pestanejar. — Como sabes, estive afastado de Scharrode
cerca de seis meses.
— Sim, Força.
— Tive numerosas experiências, incluindo um acidente, que,
infelizmente, obscureceu partes da minha memória. Conto-te isto
confidencialmente.
— Não deixarei de respeitar a confiança de Vossa Força — gaguejou
Agnois.
— Esqueci muitos dos pequenos pormenores dos hábitos dos Rhunes e
preciso da tua ajuda. Por exemplo: estes fatos; não havia mais nada no meu
antigo guarda-roupa?
Agnois passou a língua pelos lábios.
— Não, Vossa Força. A kraike escolheu certos trajos; esses é que foram
trazidos para aqui.
— Estes eram trajos que eu usava enquanto kang?
— Sim, Força.
— Parecem-me um tanto vistosos e extravagantes no seu corte.
Considera-los adequados à minha posição atual?
Agnois puxava pelo pobre nariz pálido e pendurado.
— De forma alguma, Vossa Força.
— Se eu aparecesse assim vestido perante os eiodarks, eles considerar-
me-iam frívolo e irresponsável; um pobre jovem tonto.
— Eu pensaria o mesmo.
— Quais foram exatamente as instruções de Singhalissa?
— Ela ordenou-me que transferisse estes fatos; sugeriu ainda que
qualquer interferência nas preferências de Vossa Força seria considerada
insolente, tanto por Vossa Força como pela nobre Singhalissa.
— Ela disse-te de facto que me ajudasses a fazer figura de parvo. Depois
convocou os eiodarks para uma audiência.
Agnois falou com precipitação:
— Isso está correto, Força, mas...
Efraim interrompeu-o.
— Adia a audiência com os eiodarks. Explica-lhes que tenho de estudar
os acontecimentos dos últimos cinco meses. Depois leva daqui estes fatos. Dá
instruções aos alfaiates para que me preparem um guarda-roupa adequado.
Entretanto traz para aqui o que conseguires salvar do meu antigo guarda-
roupa.
— Sim, Força.
— Além disso, informa o pessoal de que a nobre Singhalissa está
privada do uso da autoridade. Estou farto destas intrigas mesquinhas. Ela
passará a ser chamada, em vez de kraike, wirwove de Disbague.
— Sim, Vossa Força.
— E para terminar, Agnois, estou admirado por não me teres prevenido
das intenções de Singhalissa.
Frustrado, Agnois gritou:
— Força, eu tencionava obedecer literalmente às instruções da nobre
Singhalissa; mas pretendia, mesmo assim, de uma maneira ou de outra,
proteger a dignidade de Vossa Força. Na realidade, Vossa Força adivinhou a
intriga antes de eu ter tido tempo de modificar a situação.
Efraim fez um aceno de cabeça breve.
— Prepara-me a roupa que possa servir pelo menos temporariamente.
***
Efraim vestiu-se e dirigiu-se à Grande Sala, meio convencido de que
Matho Lorcas estaria ali à sua espera. A sala estava vazia. Efraim ficou
indeciso por momentos, voltou-se no momento em que Agnois entrou.
Efraim sentou-se numa cadeira.
— Conta-me como morreu o kaiark Jochaim.
— Nada se sabe de concreto, Força. Os semáforos anunciavam que
homens das trevas desciam o Tassenberg vindos de Gorgetto. O kaiark
enviou dois corpos de tropas para os atacar de flanco, assumindo o comando
de uma terceira força para castigar os que seguiam à frente. Os homens das
trevas correram para a floresta de Suban e depois retiraram em direção a
Horsuke. De repente, as encostas apareceram povoadas de gorgets: os
schardes tinham caído numa emboscada. Jochaim ordenou a retirada e os
guerreiros schardes retiraram-se lutando enquanto desciam o desfiladeiro.
Algures, pelo caminho, Jochaim foi alvejado com um dardo nas costas e
morreu.
— Nas costas? Jochaim ia a fugir? Custa a acreditar.
— Julgo ter compreendido que ele se instalara numa pequena elevação
de onde comandava a disposição das suas forças. É evidente que um dos
homens das trevas conseguiu dar a volta aos penhascos e desferiu o seu golpe
pelas costas.
— Quem era ele? Qual era o seu posto?
— Não chegou a ser morto nem capturado, Força. Na verdade nunca foi
visto. O kang Destian assumiu o comando das tropas e trouxe-as de volta a
Scharrode, sãs e salvas; as populações tanto de Scharrode como de Gorgetto
esperam terríveis represálias; diz-se que Gorgetto é um verdadeiro campo de
batalha.
Efraim, repentinamente sufocado pela sua própria ignorância, bateu com
os punhos nos braços da cadeira.
— Sinto-me a jogar à cabra-cega e sou eu que tenho os olhos vendados.
Tenho de me informar, tenho de aprender mais coisas acerca do reino.
— Isso, Força, pode consegui-lo sem qualquer demora. Basta que
consulte os arquivos, ou, se preferir, as Pandectas Kaiarkais, que estão além
naquela parede; são os volumes encadernados a verde e vermelho. — Agnois
falou com ansiedade, aliviado por Efraim se ter distraído do episódio do
guarda-roupa.
***
Durante três horas, Efraim explorou a história de Scharrode. Entre
Scharrode e Gorgetto houvera séculos de luta. Cada um desferira ao outro
golpes cruéis. Eccord fora por vezes um aliado, por vezes um inimigo, mas
ultimamente ganhara grande poder e ultrapassara Scharrode em importância.
Disbague ocupava um pequeno vale sombrio nas alturas de Gartfang Rakes e
era considerado de menor importância, embora os Disbs tivessem fama de
terem hábitos um tanto obscuros e muitas das mulheres fossem bruxas.
Efraim passou em revista as linhagens nobres de Scharrode e aprendeu
alguma coisa dos trismes que as uniam com outros reinos. Leu acerca de si
próprio: da sua participação em arraiais, exercícios e campanhas, ficou a
saber que era considerado ousado, persistente e um tanto agressivo. Com a
sua tendência para a inovação parece ter tido alguns problemas com Jochaim,
que insistia na tradição.
Leu acerca da mãe, a kraike Alferica, que morrera afogada num desastre
de barco no lago Zule durante uma visita a Eccord. Uma lista de pessoas
presentes às exéquias incluía a então lissolet Singhalissa de Urrue Strang em
Disbague. Passado muito pouco tempo Jochaim contraía um novo trisme e
Singhalissa viera viver em Benbuphar Strang, com os filhos Destian e
Sthelany, ambos concebidos fora do trisme, circunstância que nem era
invulgar nem acarretava quaisquer consequências.
Empanturrado de factos, Efraim pôs de lado as Pandectas e, pondo-se de
pé, espreguiçou-se e percorreu lentamente a Grande Sala. Um som fê-lo
erguer os olhos, esperando ver Matho Lorcas, mas apenas deu com Agnois.
Efraim prosseguiu nas suas deliberações. Tinha de tomar uma decisão no que
dizia respeito à nobre Singhalissa. Ela tentara esconder vários documentos
importantes, depois tentara pô-lo numa situação embaraçosa e ridicularizá-lo.
Se ele se limitasse a assumir um ar de desdém altivo, ela não deixaria de
tentar novas intrigas. No entanto, devido à repulsa que Singhalissa provocava
nele, sentia uma relutância invencível em tratá-la com dureza; tais situações
criavam uma intimidade própria, como a empatia horrível que se gera entre o
torturador e a sua vítima. No entanto, tinha de responder de alguma forma,
senão ela considerá-lo-ia fútil e indeciso.
— Agnois, cheguei a uma conclusão. A nobre Singhalissa deve ser
transferida dos seus aposentos atuais para os que estão a ser ocupados
presentemente pelo meu amigo Matho Lorcas. Conduz o nobre Lorcas a
instalações mais adequadas na Torre de Jaher. Ocupa-te disto imediatamente.
Não quero qualquer demora.
— As vossas ordens serão cumpridas! Posso arriscar um comentário?
— Certamente.
— Porque não a mandais para Disbague? Em Urrue Strang ela estaria a
uma distância segura.
— A sugestão é sensata. Contudo, ela podia não permanecer em
Disbague e, em vez disso, começar a organizar toda a espécie de
complicações. Aqui, pelo menos, tenho-a debaixo de olho. Por outro lado
ainda não conheço a pessoa que me fez mal há seis meses. Para quê expulsar
Singhalissa antes de saber a verdade? Além disso... — Efraim hesitou. Se
Singhalissa partisse, era quase certo que Sthelany partiria também, mas ele
não queria explicar tudo isso a Agnois.
Pôs-se a caminhar de um lado para o outro, perguntando a si mesmo até
que ponto Agnois estava ao corrente do que se passava no castelo durante as
trevas e o que saberia a respeito de Sthelany. Qual seria o seu comportamento
habitual durante as trevas? Costumava trancar as portas e aferrolhar as
janelas, como faziam as raparigas medrosas? Onde estava Sthelany neste
momento? De facto:
— Onde está Matho Lorcas?
— Acompanha a lissolet Sthelany; passeiam no Jardim dos Odores
Amargos.
Efraim deu um grunhido e continuou o seu passeio, tal como era de
esperar. Depois fez um gesto brusco para Agnois.
— Que a nobre Singhalissa seja imediatamente mudada para os seus
novos apartamentos. Não precisas de dar explicações; as ordens são simples e
explícitas. Não, espera! Podes dizer que estou zangado contigo por trazeres
roupa velha e inútil para o meu guarda-roupa.
— Muito bem, Força. — Agnois saiu apressadamente. Passados poucos
momentos Efraim saiu também. Passando pela Sala de Recepções,
mergulhada em silêncio, subiu ao terraço. À sua frente estendia-se a
paisagem distante, tranquila sob a luz agradável da umbra. Matho Lorcas
subiu as escadas a correr.
— Oh! — Gritou Lorcas numa alegria que Efraim achou pouco natural
ou talvez fosse nervosismo. — Perguntava a mim mesmo quantas horas é que
ia ficar a dormir.
— Há muitas horas que estou acordado. Que tens andado a fazer?
— Muita coisa. Explorei as passagens que deitam para o Sacarlatto. Para
tua informação, as que levam aos aposentos da nobre Singhalissa e da lissolet
Sthelany estão obstruídas: seladas com paredes de pedra e cal. Quando
chegarem as trevas tem de voltar as atenções para outro lado.
— Singhalissa tem estado ocupada.
— Ela acredita demais no magnetismo do seu precioso corpo — disse
Lorcas — Sthelany é outra coisa.
— Parece que terá de a seduzir de uma maneira mais convencional —
disse Efraim num tom enfadado.
— Ah, ah! Esperava ter maior êxito a derrubar paredes. Mesmo assim,
qualquer dos métodos é um desafio, e os desafios estimulam-me. Que triunfo
para a filosofia liberal se eu triunfar!
— É verdade. Se quer apalpar terreno, porque não a convida para
almoçar consigo?
— Eu sei como é o terreno. Aprendi o mapa de cor há seis meses em
Port Mar. Num certo sentido somos velhos amigos.
Agnois entrou na Sala de Recepções, com a face cinzenta e enrugada
flácida e frouxa sob o tricórnio de veludo, emblema do seu ofício. Saudou
Efraim.
— A nobre Singhalissa está muito perturbada com as vossas ordens e
afirma que as acha incompreensíveis.
— Apresentaste-lhe a minha observação acerca do guarda-roupa?
— Sim, Força, e ela mostrou-se espantada. Insiste em que condescenda
em a receber numa inalação13, para discutirem o assunto.
— Com certeza — disse Efraim. — Dentro de, digamos, duas horas,
quando a umbra se tomar sorva verde, se aquele mostrador estiver correto.
— Duas horas, Força? Ela usou uma forma de discurso muito urgente e é
evidente que deseja que o benefício da vossa sabedoria lhe seja prestado
imediatamente.
— Desconfio muito das urgências de Singhalissa — disse Efraim. —
Duas horas dar-te-ão tempo de me arranjar roupa capaz e para o nobre Matho
Lorcas. Além disso tenho várias disposições a tomar.
Agnois partiu, espantado e desgostoso. Pela décima vez, Efraim
interrogou-se quanto à necessidade prudente de o substituir. Com todos os
seus conhecimentos especiais, Agnois era quase indispensável; mas ao
mesmo tempo era dado a indecisões e estava sempre à mercê da última
personalidade com quem estivera em contacto.
Efraim disse para Lorcas:
— Presumo que gostaria de assistir a uma inalação.
— Sim, claro, será uma experiência inesquecível; uma entre muitas, se
posso exprimir-me assim.
— Então venha ter comigo à Grande Sala dentro de duas horas. A
propósito, os seus aposentos passaram a ser na Torre de Jaher. Vou transferir
Singhalissa para os ocupados por si até agora. — Efraim teve um riso de
troça — Espero tê-la ensinado a não pregar partidas ao kaiark.
— Duvido que consiga — disse Lorcas. — Ela sabe partidas que nunca
lhe passaram pela cabeça. No seu lugar não me metia na cama antes de ver se
tinha cobras metidas entre os lençóis.
— Sim — disse Efraim. — Sem dúvida que tem razão. — Entrou no
castelo, atravessou o vestíbulo, passou pelo Corredor dos Antepassados, mas
em vez de entrar na sala dos troféus voltou para um corredor que estava
pavimentado com ladrilhos castanhos e brancos e foi dar a um compartimento
que servia de escritório, tesouraria e quartel-general do pessoal doméstico.
Um banco junto à parede lateral sustinha um antigo comunicador.
Efraim puxou a porta e fechou-a à chave. Dirigiu-se para o livro de
código do comunicador e depois premiu uma série de velhos botões
descolorados. O écran brilhou com uma luz pálida, mostrando de repente
discos irregulares vermelho-carmesins quando o toque de chamada soava na
outra extremidade.
Passaram três ou quatro minutos. Efraim esperou pacientemente sentado.
Esperar uma resposta rápida seria pura fantasia.
O écran brilhou com uma luz verde salpicada de pontos fugidios que se
reagruparam para formar o rosto pálido de um homem idoso com caracóis de
cabelo branco e fino que lhe ficavam pendurados para baixo das orelhas.
Espreitava Efraim com um olhar que era meio míope meio de desafio e falava
num tom roufenho.
— Quem chama Gorgance Strang e com que fim?
— Sou Efraim, kaiark de Scharrode. Desejo falar com o teu senhor, o
kaiark.
— Anunciar-lhe-ei que Vossa Força o aguarda.
Passaram mais cinco minutos e apareceu então no écran um rosto
maciço, cor de cobre, do qual pendia um nariz que mais parecia um enorme
bico e um queixo caído como um pêndulo.
— Kaiark Efraim, regressaste a Scharrode. Porque me chamais quando
tal comunicação não voltara a ser feita há mais de cem anos?
— Chamei-vos, kaiark Gosso, porque preciso de um esclarecimento. Na
minha ausência, homens das trevas de Gorgetto entraram em Scharrode.
Durante esta incursão, o kaiark Jochaim sofreu a morte de uma seta gorget
que lhe abriu as costas.
Os olhos de Gosso contraíram-se e transformaram-se em duas
fendazinhas de um azul glacial.
— Pode muito bem ser. E depois? Esperamos o vosso ataque. Mandai-
nos os vossos homens das trevas; nós os espetaremos nas árvores novas dos
cimos mais altos. Fazei avançar os vossos nobres, venham sobre nós com o
rosto descoberto. Enfrentá-los-emos, fileira após fileira, e mataremos o
melhor de Scharrode.
— Não vos chamei para sondar o vosso estado emocional, Gosso. Não
estou interessado nesse tipo de jogo.
A voz de Gosso tornou-se cava.
— Porque me chamastes então?
— As circunstâncias em que ocorreu a morte do kaiark Jochaim
parecem-me estranhas. No meio da confusão de homens das trevas e tropas
schardes, ele comandava da retaguarda. Teria ele voltado as costas à luta?
Muito pouco provável. Quem foi então entre os seus homens das trevas que
matou o kaiark Scharde?
— Nenhum reclamou tal triunfo — afirmou Gosso com voz sonora. —
Fiz um interrogatório minucioso, em vão.
— É uma situação intrigante.
— Sim, de facto, do vosso ponto de vista. — As pálpebras de Gosso
descontraíram-se ligeiramente; ele encostou-se mais para trás na cadeira. —
Onde estivestes durante a incursão?
— Estive muito longe, em Númenes e no Palácio do Connatic. Aprendi
muitas coisas, e uma delas é esta: as incursões e os ataques entre Gorgetto e
Scharrode redundam em catástrofes mútuas. Proponho as tréguas.
A boca viscosa de Gosso recuou, deixando ver os dentes, não num
sorriso de troça, mas, como Efraim não tardou a compreender, num esgar de
reflexão.
— Aquilo que dizeis é bem verdade — disse Gosso por fim. — Há
poucos homens velhos, quer em Gorgetto, quer em Scharrode. É verdade que
todos temos de morrer mais cedo ou mais tarde e se for vedado aos guerreiros
de Gorgetto fazer incursões a Scharrode, em que os vou ocupar?
— Já tenho problemas que me cheguem. Certamente que haveis de
arranjar alguma coisa.
Gosso pôs a cabeça de lado.
— Os meus guerreiros podem reclamar contra uma existência tão
insípida. As incursões esgotam-lhes a energia e a vida para mim torna-se
mais fácil.
Efraim disse sucintamente:
— Aqueles que puserem em causa a vossa autoridade, podeis avisá-los
que estou decidido a pôr fim às incursões. Posso oferecer uma paz honrosa;
ou então também posso reunir todas as minhas forças e arrasar Gorgetto.
Enquanto estudava as Pandectas, vi que isto estava dentro das minhas
possibilidades, ainda que à custa de muitas vidas. A maioria destas vidas
serão gorgets, tanto mais que nós comandamos as alturas com as nossas
velas. Parece-me que a primeira escolha é a que põe menos problemas a
todos.
Gosso soltou uma gargalhada sardónica.
— Assim parece. Mas não esqueçais de que há milhares de anos nos
deleitamos com a chacina dos Schardes. Em Gorgetto nenhum rapaz se torna
homem enquanto não mata o seu scharde. Mas vós pareceis falar a sério e eu
vou considerar a questão.
***
O salão das sherdas e pequenas recepções particulares ocupava o terceiro
piso da torre mais baixa de Arjer Skyrd. Em vez do compartimento de
proporções modestas que esperava encontrar, Efraim entrou num salão com
setenta pés de comprimento e quarenta de largura, com o chão em blocos de
mármore branco e negro. Seis janelas altas recebiam torrentes daquela luz
curiosa verde-azeitona, característica da passagem da umbra para a sorva
verde. Pilares de mármore interrompiam a parede numa série de recantos,
pintados a tinta de água num tom de ferrugem pálida. Em cada recanto havia
uma urna maciça com três pés de altura, talhada em porfírio castanho e negro:
produto de uma cogência. As urnas continham areia branca e erva seca, sem
cheiro. Uma mesa com dez pés de largura e vinte de comprimento sustentava
quatro biombos de etiqueta. Uma cadeira fora colocada de cada lado da mesa.
Agnois precipitou-se ao seu encontro.
— Vossa Força chega um pouco cedo de mais; os nossos preparativos,
receio dizê-lo, ainda não estão terminados.
— Fi-lo intencionalmente. — Efraim inspecionou a sala, depois a mesa.
Perguntou em voz branda: — O kaiark Jochaim frequentava este salão?
— Sim, Vossa Força, quando a companhia não era numerosa.
— Qual o lugar que lhe era reservado?
— Além, Força, é o lugar do kaiark. — Agnois apontou para a
extremidade oposta da mesa.
Efraim, já familiarizado com os sinais inconscientes que indicavam o
estado de espírito de Agnois, observava-o atentamente.
— Era essa a cadeira usada pelo kaiark Jochaim? É precisamente igual
às outras, são todas idênticas.
Agnois hesitou.
— Estas são as cadeiras que a nobre Singhalissa mandou trazer.
Efraim controlou a própria voz com esforço.
— Não te mandei ignorar as ordens de Singhalissa?
— Recordo-me de qualquer coisa assim, Força — disse Agnois
desastradamente —, mas tenho tendência a obedecer-lhe por reflexo,
especialmente em questões tão insignificantes como esta.
— Consideras isto uma questão insignificante?
Agnois fez uma careta e passou a língua nos lábios.
— Não tinha considerado a questão sob este aspecto.
— Mas a cadeira não é a que o kaiark costumava usar?
— Não, Vossa Força.
— A cadeira é de facto pouco própria para a dignidade de um kaiark,
especialmente nas condições atuais.
— Acho que tenho de concordar convosco, Força.
— Portanto, mais uma vez, Agnois, na pior das hipóteses conspiraste, na
melhor cooperaste com Singhalissa nas suas tentativas para me ridicularizar e
diminuir a minha autoridade.
Agnois soltou um grito de desespero. — De forma alguma, Força. Agi
inocentemente!
— Põe a mesa como deve ser, imediatamente!
Agnois olhou de lado para Lorcas.
— Devo arranjar lugar para cinco?
— Deixa estar quatro.
A cadeira ofensiva foi retirada e foi trazida outra, mais maciça,
incrustada com opalinas e turquesas.
— Reparai, Força — disse Agnois efusivamente —, no pequeno fio
junto do ouvido, pelo qual o kaiark pode receber mensagens e conselhos.
— Muito bem — disse Efraim. — Espero que fiques escondido e me
aconselhes quanto à etiqueta e aos hábitos.
— Com todo o prazer, Vossa Força!
Efraim sentou-se e colocou Lorcas na extremidade da mesa à sua direita.
Lorcas disse, refletindo: — Estas partidinhas são na realidade demasiado
mesquinhas, não correspondem àquilo que se poderia esperar de Singhalissa.
— Eu não sei o que esperar de Singhalissa. Creio que a sua finalidade é
demonstrar que sou um pateta e um amnésico, para que os eiodarks me
rejeitem a favor de Destian.
— O melhor que tem a fazer é correr com ela.
— Também acho. No entanto...
Singhalissa, Sthelany e Destian entraram na sala. Efraim e Lorcas
puseram-se de pé, delicadamente. Singhalissa avançou alguns passos e depois
parou, fitando com as narinas contraídas as duas cadeiras que restavam.
Deitou depois uma olhadela rápida à cadeira imponente ocupada por Efraim.
— Sinto-me um bocado confusa — disse. — Esperava uma discussão
informal, na qual todas as opiniões pudessem ser arejadas à vontade.
Efraim retorquiu em voz calma:
— Não consegui imaginar uma conferência baseada em qualquer outra
coisa que não fosse a propriedade. Mas estou surpreendido por ver o
escudeiro Destian. Pelas disposições tomadas, pensei que somente vós e a
nobre Sthelany tencionásseis estar presentes. Agnois tem a gentileza de
arranjar mais um lugar, ali, à esquerda de Sua Dignidade a wirwove.
Sthelany, quereis ter a bondade de vos sentardes nesta cadeira à minha
esquerda.
Com um sorriso vago, Sthelany ocupou o seu lugar. Singhalissa e
Destian ficaram de lado, com ar sorumbático, enquanto Agnois arranjava a
mesa. Efraim observava Sthelany, sub-repticiamente, perguntando a si
próprio, como de costume, o que lhe passaria pela cabeça. Neste momento ela
parecia indolente, descuidada e totalmente introvertida.
Singhalissa e Destian sentaram-se finalmente; Efraim e Lorcas
retomaram os seus assentos com gravidade. Singhalissa fez um pequeno
movimento, mas Lorcas deu uma pancada peremptória na mesa com os ossos
da mão, fazendo com que Singhalissa e Destian olhassem para ele com ar
interrogativo. Sthelany estudava Efraim com um interesse que era quase
embaraçoso.
Efraim falou.
— As circunstâncias presentes são bastante tensas e alguns entre vós
foram forçados a aceitar um abrandamento nas suas perspectivas. Com
referência aos acontecimentos dos últimos seis meses, desejo recordar-lhes
que fui a vítima principal do que se passou. Excetuando, claro, o kaiark
Jochaim, que perdeu a vida. No entanto, os inconvenientes que eu próprio
sofri tornaram-me insensível perante outros problemas menores, Íé nesta base
que se vai desenrolar a nossa discussão.
O sorriso de Sthelany tomou-se ainda mais vago; o ar sarcástico de
Destian era quase audível. Singhalissa apertava os braços da cadeira com os
dedos compridos, tão fortemente que os ossos brilhavam através da pele.
Singhalissa respondeu:
— Torna-se desnecessário dizer que todos necessitamos de nos adaptar
às circunstâncias; outro procedimento é mera futilidade. Conferenciei
longamente e com toda a seriedade com o nobre Destian e a lissolet Sthelany;
todos estamos perplexos com as vossas desventuras. Haveis sido vítimas de
violência fora das normas14, o que, segundo creio, não é caso raro em Port
Mar. — O olhar que Singhalissa deitou a Lorcas foi quase demasiado rápido
para ser notado. — Fostes certamente molestado por algum indivíduo de fora,
por razões que estão fora da minha compreensão.
Efraim abanou a cabeça com ar sombrio
— Essa teoria reveste-se de pouca verosimilhança, especialmente em
relação a certos outros factos. É quase certo que devo ter sido atacado por
inimigo rhune para quem os nossos padrões de decência devem ter perdido
todo o significado.
A voz clara e suave de Singhalissa tornou-se um tanto estridente.
— Não podemos avaliar factos ainda não revelados, mas de qualquer
forma o vosso inimigo é-nos desconhecido. Só pergunto a mim própria se
afinal não terá havido um engano.
Lorcas tomou a palavra pela primeira vez.
— A fim de esclarecer a situação de uma vez para sempre, estais a dar a
entender a Sua Força que, em primeiro lugar, nenhum de vós tem
conhecimento do que se passou em Port Mar, em segundo lugar, que nenhum
de vós foi informado do acontecido e, em terceiro e último lugar, que nenhum
de vós consegue adivinhar quem teria sido responsável por isso?
Ninguém respondeu. Efraim disse amavelmente:
— O nobre Matho Lorcas é meu amigo e conselheiro; a sua pergunta é
legítima. Que tendes a dizer, escudeiro Destian?
Destian respondeu num tom de barítono bastante baixo:
— Não sei de nada.
— Lissolet Sthelany?
— Não sei nada de nada.
— Vossa Dignidade, wirwove?
— É um caso incompreensível.
Através da rede que ficava nas traseiras da cadeira de Efraim soou o
sussurro rouco de Agnois.
— Seria a altura de perguntar a Singhalissa se gostaria de se refrescar a
si própria e às outras pessoas com uma mistura de vapores.
Efraim disse:
— Naturalmente que aceito as vossas afirmações. Se alguém se lembrar
de algo que julgue ser relevante, gostaria de o ouvir. Talvez devêssemos
agora rogar a Vossa Dignidade que nos refrescasse com os seus vapores.
Singhalissa inclinou-se para a frente com uma certa rigidez e retirou um
painel que tinha em frente, revelando um conjunto de manípulos, braços
articulados, globos e outros mecanismos e algumas gavetas, à direita e à
esquerda, contendo centenas de frascos minúsculos. Os seus dedos longos
trabalhavam com perícia e destreza. Frascos eram erguidos e algumas gotas
de líquido despejadas num orifício de prata, seguindo-se alguns pós e uma
gota de um licor verde em ebulição. Seguidamente carregou num botão e uma
bomba lançou os vapores através de tubos por debaixo da mesa e por detrás
dos biombos de etiqueta. Entretanto, com a mão esquerda, Singhalissa
alterava o primeiro vapor para que ele se modulasse num segundo vapor que
ela estava ocupada a preparar com a mão direita.
Os vapores seguiam-se uns aos outros, como notas musicais, e
terminavam, como uma coda, num sopro artisticamente acre.
O sussurro de Agnois soou novamente aos ouvidos de Efraim.
— Pedi mais; é essa a etiqueta!
Efraim então insistiu:
— Vossa Dignidade apenas estimulou as nossas expectativas; porque
havemos de parar agora?
— Lisonjeia-me que faça honra aos meus esforços —, mas Singhalissa
continuou recostada, longe dos frascos.
Após uma pausa, Destian falou, com um meio sorriso saturnino a tremer-
lhe nos lábios.
— Tenho curiosidade em saber como tencionais castigar Gosso e os seus
chacais.
— Aconselhar-me-ei sobre essa questão.
Singhalissa, como que impelida por um instinto criador irresistível,
inclinou-se uma vez mais sobre os frasquinhos; voltou a despejar algumas
gotas e os vapores surgiram por detrás dos biombos de etiqueta. Aos ouvidos
de Efraim soaram as palavras roucas de Agnois:
— Ela está a utilizar essências brutas ao acaso, fabricando uma série de
maus cheiros. Compreendendo o vosso estado de distração, espera arrancar-
vos louvores.
Efraim afastou-se do biombo de etiqueta. Olhou para Destian, que mal
conseguia disfarçar quanto a situação o divertia. Sthelany continuava sentada
com as feições crispadas. Efraim troçou:
— Sua Dignidade a wirwove parece ter perdido repentinamente os seus
instintos. Alguns destes vapores são absolutamente espantosos, mesmo para
um grupo tão pouco formal como o nosso. Talvez Sua Dignidade esteja a
experimentar novas combinações importadas de Port Mar?
Sem uma palavra, Singhalissa desistiu das suas manipulações. Efraim
sentou-se muito direito na sua cadeira.
— O assunto que ainda não tínhamos abordado era o da minha ordem
para transferir Sua Dignidade para a Torre Minot. Por causa das cadeiras e
dos vapores, não reconsiderarei a minha decisão. Já houve demasiadas
interferências. Espero que já tenham acabado, porquanto não gostaria de ter
de tomar uma atitude ainda mais incômoda para com Vossa Dignidade.
— Sua Força é muito amável — disse Singhalissa, sem o mais leve
estremecimento na voz.
Vinda das janelas altas, a luz tinha mudado, à medida que a umbra cedia
a vez à sorva verde, com Cirse a desaparecer por cima do horizonte.
— A treva aproxima-se; horrível treva negra em que os gharks e os hoos
saem e o mundo fica morto — disse Sthelany.
Lorcas perguntou num tom alegre:
— Que é um ghark e que é um hoo?
— Seres maléficos.
— Em forma humana?
— Nada sei dessas coisas — disse Sthelany. — Refugio-me por detrás
de uma porta com trancas triplas e fortes persianas de ferro nas janelas. Tem
de procurar as informações noutro sítio.
Matho Lorcas abanou a cabeça num gesto de espanto extravagante.
— Já viajei muito — disse — e nunca deixo de ficar espantado com a
diversidade do Aglomerado de Alastor.
A lissolet Sthelany teve uma espécie de bocejo e depois falou com
naturalidade:
— O nobre Matho Lorcas inclui os Rhunes entre os povos que excitam a
sua admiração.
Lorcas riu e inclinou-se para a frente. Aqui estava o ambiente que ele
amava: conversa! Frases leves com primeiro e segundo sentido, entoações,
desafios ultrajantes contendo armadilhas inteligentemente planeadas,
refutações de um laconismo elegante; decepções e armadilhas, explicações
pacientes sobre o óbvio, alusões fugidias ao impensável. Como fase
preliminar o conversador deve avaliar o estado de espírito, a inteligência e a
facilidade verbal da sua companhia. Para este fim, algumas palavras de
exposição pedante tornavam-se por vezes extremamente valiosas.
— Segundo um axioma de antropologia cultural, quanto mais isolada
está uma comunidade tanto mais idiossincráticos se tomam os seus costumes
e convenções. Isto, como é evidente, não constitui necessariamente uma
desvantagem.
»Por outro lado, se considerarmos uma pessoa tal como eu: vagabundo
sem raízes, cosmopolita — essa pessoa tende a tornar-se flexível; adapta-se
ao ambiente que o rodeia sem escrúpulos ou receios. A sua bagagem de
convenções é simples e natural, é o denominador comum mais baixo da sua
experiência. Evidencia uma espécie de cultura universal que lhe pode servir
em qualquer ponto de Alastor, por todo o Gaean Reach. Não pretendo que
esta flexibilidade seja uma virtude, sugiro apenas que ela constitui uma
bagagem mais confortável do que todo um conjunto de convenções que, ao
sofrerem qualquer contusão, provocam grande tensão emocional sobre
aqueles que as partilham.
Singhalissa entrou na conversa, falando num tom que era tão seco como
um roçar de folhas mortas.
— O nobre Lorcas propõe com uma convicção grave um ponto de vista
que, segundo me parece, nós os Rhunes consideramos banal. Como é do seu
conhecimento, nós nunca viajamos, exceto para ir a Port Mar. Mesmo que
estivéssemos dispostos a viajar, duvido que desejássemos instruir-nos em
hábitos que consideramos não apenas grosseiros, mas repelentes. Estamos
numa reunião informal; por isso me vou aventurar num tópico desagradável.
O cidadão normal do Aglomerado evidencia uma falta de consciência
relativamente aos próprios intestinos que é tipicamente animal. Exibe sem
qualquer espécie de vergonha a sua vitualha, saliva, introdu-la no seu orifício,
tritura-a com os dentes, massaja-a com a língua, impele a polpa ao longo do
trato intestinal. E é com uma modéstia apenas ligeiramente superior que ele
defeca a massa que digeriu, fazendo ainda ocasionalmente os seus gracejos,
como se se sentisse orgulhoso da sua facilidade alimentar. Não há dúvida de
que nós estamos sujeitos às mesmas leis biológicas, mas mostramos maior
consideração pelo nosso próximo e realizamos aqueles atos na maior
intimidade. — Enquanto falava, Singhalissa nunca abandonou o tom
monotonamente mordaz.
Destian soltou uma risada, como que a subscrever as afirmações dela.
Lorcas, no entanto, não se deixou vencer. Acenou sabiamente a cabeça.
— Tudo depende da qualidade das convenções de cada um. De acordo!
Mas temos de examinar a chamada «qualidade» debaixo do ponto de vista da
utilidade. As convenções supercomplicadas, super-restritas limitam as opções
de uma pessoa em relação à vida. Confinam-lhe o espírito e embotam-lhe as
percepções. Porquê, em nome do mocho favorito do connatic, havemos nós
de considerar a mera possibilidade de pôr um limite a tudo o que esta nossa
vida única e verdadeira nos pode oferecer?
— Acabará por nos confundir a todos se se põe a falar em conceitos
escatológicos — afirmou Singhalissa com um sorriso frio. — De qualquer
forma, não têm nada a ver com o caso. Pode exemplificar-se qualquer ponto
de vista, por mais absurdo que ele seja, desde que se cite cuidadosamente
uma teoria apropriada ou mesmo artificial. O viajante e o cosmopolita que
escolheu como paladino deveria em primeiro lugar compreender a diferença
entre uma abstração e um ser humano autêntico, entre conceitos sociológicos
e comunidades duráveis. Ao escutá-lo, apenas ouço engenho e teorias
didáticas.
Lorcas comprimiu os lábios.
— Talvez por estardes a ouvir pontos de vista que contradizem as vossas
emoções. Mas estou a afastar-me do assunto. As comunidades duráveis que
mencionais estão fora de causa. As sociedades são espantosamente tolerantes
para com o abuso, mesmo aquelas que estão sobrecarregadas com dezenas de
convenções obsoletas ou antinaturais ou mesmo nocivas.
Singhalissa permitiu-se mostrar abertamente que estava divertida.
— Desconfio que estais a tomar uma posição extremista. Só as crianças
são intolerantes para com as convenções. Elas são indispensáveis numa
civilização organizada, tal como a disciplina o é para um exército, as
fundações para um edifício ou os marcos para um viajante. Sem convenções,
a civilização é um punhado de água. Um exército sem disciplina é uma
multidão. Um edifício sem fundações é uma pilha de entulho. Um viajante
sem marcos está perdido.
Lorcas afirmou que não se opunha a toda e qualquer convenção, mas só
àquelas que achava enfadonhas e inúteis.
Singhalissa recusou-se a deixá-lo tão depressa.
— Desconfio que vos referis aos Rhunes e aí, como estrangeiro, os
vossos juízos são forçosamente limitados. A maneira como vivo parece-me
perfeitamente ordenada e razoável, o que deveria sem dúvida satisfazê-lo. A
menos que me acuseis de falta de espírito de discriminação e de estupidez?
Lorcas viu que tinha um adversário à sua altura. Abanou a cabeça.
— De forma alguma! Pelo contrário. Concordo sem hesitar que, pelo
menos, a vossa atitude perante a vida é muito diferente da minha.
Singhalissa já perdera o interesse pela conversa. Voltou-se para Efraim.
— Com a vossa permissão, Força, retiro-me.
— Como queirais, Vossa Dignidade.
Singhalissa abandonou a sala numa nuvem de gaze cinzenta, seguida por
Destian, rígido e direito, e depois Sthelany. Atrás seguiam Efraim e Matho
Lorcas, um tanto abatidos. Encontraram-se na arcada que ligava o terceiro
piso de Arjer Skyrd com os aposentos superiores da Torre Norte, levando
depois à varanda superior do herbário.
Ao descerem a escada da Torre Norte, foram surpreendidos por um
súbito vibrar de gongos, seguido de um violento soprar de cornetas, numa
fanfarra agitada.
Singhalissa olhou para trás por cima do ombro; tinha as faces magras
contraídas num sorriso inconfundível.
CAPÍTULO VIII
Efraim continuou a descer a escada, acompanhado pelo frenesim da
fanfarra produzida por seis homens com trompas de bronze contorcidas. Seis
trompas, notou Efraim? Ele próprio, o kaiark que regressava, fora saudado
apenas com quatro. Uma falha que ele não notara.
Os portais da frente tinham sido abertos e aqui estava Agnois, com uma
comprida capa branca, coberta com bordados a azul e prata e tendo na cabeça
um complicado turbante: este era o trajo reservado para as ocasiões mais
profundamente sérias. Efraim comprimiu os lábios. Que havia de fazer com
aquele miserável do Agnois, que lhe dera toda a assistência durante a
recepção e contudo não o prevenira do que se ia seguir?
A fanfarra tornou-se uma verdadeira e estrídula manifestação de
histerismo, parando depois abruptamente quando um homem envergando um
esplêndido trajo negro semeado de riscas cor-de-rosa e prata atravessou o
portal. Atrás dele caminhavam quatro eiodarks. Todos usavam um toucado de
tecido rosa e negro, enrolado em bandas de prata dentadas.
Efraim deteve-se um momento no patamar, depois começou a descer
lentamente. Agnois gritou:
— Sua Força Majestosa, o kaiark Rianlle de Eccord!
Rianlle deteve-se, observando Efraim com os seus olhos cor de avelã sob
as sobrancelhas louro-escuras. Ficou muito direito, consciente do espetáculo
magnífico que oferecia: um homem em todo o vigor da sua existência, não
tendo ainda atingido a meia-idade, o rosto largo, emoldurado pelo cabelo
louro-escuro, encaracolado; um homem orgulhoso e apaixonado, talvez com
pouco humor, mas de forma alguma uma pessoa que pudesse ser encarada
com ligeireza.
Efraim ficou à espera até Rianlle avançar mais dois passos. Depois disse:
— Bem-vindo a Benbuphar Strang. Estou satisfeito, ainda que
surpreendido, por o ver.
— Agradeço-lhe. — Rianlle desviou-se abruptamente de Efraim e fez
uma vénia formal. Singhalissa, Destian e Sthelany desciam as escadas.
Efraim continuou:
— Certamente conhece bem Sua Dignidade a wirwove, o escudeiro
Destian e a lissolet Sthelany. Este é o nobre Matho Lorcas, de Port Mar.
Rianlle limitou-se a confirmar a apresentação com um olhar frio. Matho
Lorcas curvou-se com toda a cortesia.
— Às vossas ordens, Força.
Efraim deu um passo para o lado e fez um sinal a Agnois.
— Conduz estes nobres senhores a aposentos apropriados onde se
possam refrescar e em seguida vem à Grande Sala.
Dentro de pouco tempo, Agnois apareceu na Grande Sala.
***
— Sim, Vossa Força?
— Porque não me preveniste de que Rianlle ia chegar?
Agnois falou num tom ofendido:
— Eu próprio não o sabia até que Sua Dignidade, ao sair do salão, me
ordenou que preparasse uma recepção. Mal tive tempo de o fazer.
— Estou a compreender. Ele usa o toucado no interior do castelo. É uma
atitude habitual e cortês? — Disse Efraim.
— É um hábito formal, Força. O toucado significa autoridade e
autonomia. Num colóquio formal de indivíduos da mesma posição, ambos
vestem da mesma maneira.
— Traz-me roupa adequada e um toucado, se o houver.
Efraim vestiu-se.
— Conduz Rianlle aqui, quando ele o desejar. Se o seu séquito se
preparar para vir também, explica que eu prefiro ter uma discussão em
particular com Rianlle.
— Como desejardes, Força. — Agnois hesitou. — Gostava de frisar que
Eccord é um reino poderoso com tradições vitoriosas. Rianlle é um homem
vaidoso, mas não é estúpido. Estima-se a si próprio e ao seu prestígio em alto
grau.
— Obrigado, Agnois. Traz-me Rianlle. Tratá-lo-ei com o maior cuidado
possível.
Meia hora depois Agnois introduziu Rianlle na sala. Efraim ergueu-se
para o saudar.
— Não quer sentar-se? Essas cadeiras são bastante confortáveis.
— Obrigado. — Rianlle instalou-se.
— Evidentemente que a sua visita é extremamente bem-vinda — disse
Efraim. — Só lhe peço que me desculpe uma certa desorganização, mas mal
tive tempo de compreender o que se estava a passar.
— Voltou num momento muito oportuno — observou Rianlle, com os
olhos cor de avelã muito abertos e luminosos. — Pelo menos para si.
Efraim recostou-se na cadeira e observou Rianlle durante uns bons cinco
segundos. Depois disse numa voz fria e inexpressiva:
— Não calculei o meu regresso nessa base; ignorava que Jochaim tivesse
sido assassinado até ao momento da minha chegada a Port Mar.
— Permita-me que lhe ofereça as minhas condolências pessoais por essa
morte prematura. Usou a palavra «assassinado»?
— Os indícios apontam para qualquer coisa desse tipo.
Rianlle abanou lentamente a cabeça e olhou com ar pensativo através da
sala.
— Vim para exprimir a minha simpatia e, ao mesmo tempo, para
consolidar as relações amigáveis, entre os nossos dois reinos.
— Pode crer no meu desejo de que elas continuem.
— Excelente. Parto do princípio de que deseja uma suave continuidade
entre a política de Jochaim e a sua?
Efraim começava a sentir uma certa pressão por detrás das observações
suaves de Rianlle. Cautelosamente, afirmou:
— Em muitos casos, não restam dúvidas de que tudo se passará assim.
Noutros, a simples mutabilidade da vida e das circunstâncias levarão a que
sejam introduzidas alterações.
— Um ponto de vista prudente e flexível! Permita-me que lhe ofereça a
minha recomendação! Nas relações entre Eccord e Scharrode não haverá
mutabilidade; gostava de lhe garantir que tenciono respeitar à letra todos os
compromissos que assumi para com Jochaim; gostaria igualmente de ouvir
que a recíproca é verdadeira.
Efraim fez um gesto afável.
— Não falemos de alta política neste momento. Ainda não estou senhor
de todos os factos e tudo o que eu possa dizer agora seria apenas uma
tentativa. Mas uma vez que os nossos dois reinos estão tão estreitamente
ligados, o que beneficia um beneficia o outro e, pela minha parte, garanto-lhe
que tenciono fazer o melhor que puder por Scharrode.
Rianlle deitou um olhar penetrante a Efraim, depois fitou o teto.
— De acordo; as questões importantes podem esperar. Há no entanto um
assunto de menor importância que podemos facilmente resolver sem
prejudicar o seu programa. Refiro-me àquele território insignificante junto à
Cordilheira Sussurrante, onde desejo construir um pavilhão para nosso
divertimento mútuo. Jochaim estava prestes a doar-me aquela parcela quando
encontrou a morte.
— Pergunto a mim mesmo se não haverá qualquer ligação entre os dois
acontecimentos — murmurou Efraim.
— Claro que não! Como poderia haver?
— A minha imaginação está superativa. Com respeito à Cordilheira
Sussurrante tenho de admitir a minha aversão em ceder nem que seja uma
polegada quadrada do nosso solo sagrado de Scharrode; no entanto, prometo
estudar a questão.
— Isso não é satisfatório! — A voz de Rianlle tomara-se áspera e
denotava uma vibração metálica. — Os meus desejos estão a ser
contrariados!
— Alguém se pode gabar de ser constante e completamente satisfeito?
Não falemos mais no assunto. Talvez eu consiga levar a lissolet a produzir
uma série de atmosferas estimulantes...
***
Na grande mesa de vinte lados da Sala de Recepções Oficial, Rianlle
sentou-se ereto e sombrio. Sthelany produziu uma série de vapores sugerindo
de certa maneira um passeio pelas montanhas — o solo e a vegetação
banhados pelo sol, água e rochedos molhados, o perfume do ântino, da
violeta dos bosques, do bolor, da madeira apodrecida e da cânfora. Ela
trabalhava sem a destreza de Singhalissa, mais parecendo brincar com os
frascos como uma criança brinca com paus de giz coloridos. Os dedos de
Sthelany começaram a mover-se mais depressa; começara a interessar-se
pelos seus próprios resultados tal como um músico se apercebe
repentinamente de novos significados na sua música. Desapareceu a colina e
a floresta; a princípio, os vapores eram alegres, vividos e leves, gradualmente
começaram a perder o seu carácter, tomando uma doce melancolia, como um
heliotropo num jardim esquecido. E este odor, por sua vez, foi invadido por
uma exsudação amarga, depois por uma pungência salgada, e finalmente por
um vapor negro e desesperado. Sthelany olhou para cima com um sorriso
contorcido e fechou as gavetas.
Rianlle teve uma exclamação:
— A vossa atuação foi verdadeiramente artística; abalou-nos a todos
com visões cataclísmicas!
Efraim olhou em tomo da mesa. Destian estava sentado a brincar com
uma pulseira de prata. Singhalissa olhava, muito direita; os eiodarks de
Eccord murmuravam entre si. Lorcas contemplava Sthelany cheio de
admiração. Efraim pensou: «Ele está totalmente fascinado, mas será melhor
que tome as suas emoções menos evidentes, para não ser acusado de
sebalismo.»
Rianlle voltou-se para Efraim:
— Ao dizer «assassinado», haveis usado uma palavra inglória para
descrever a morte do venerando Jochaim. Como tencionais tratar com aquele
cão, o Gosso?
Efraim manteve-se impassível, embora se sentisse bastante contrariado.
Usara a palavra «assassinado» talvez indiscretamente; mas Rianlle não
precisava de expor os pormenores de uma conversa que Efraim considerava
confidencial. Sentiu repentinamente o interesse de Destian e Singhalissa.
— Não fiz planos exatos. Tenciono pôr fim à guerra com Gorgetto, seja
de que maneira for; é inútil e é uma sangria constante.
— Se vos estou a entender corretamente, tencionais prosseguir apenas
com guerras úteis?
— Se tiver que as haver, tenciono lutar apenas por fins tangíveis e
necessários. Não considero a guerra um passatempo e não hesitarei em
recorrer a táticas invulgares.
O sorriso de Rianlle era quase abertamente depreciativo.
— Scharrode é um pequeno reino. Realisticamente, estais à mercê dos
vossos vizinhos, por muito especiais que sejam as vossas campanhas.
— As vossas opiniões têm sem dúvida grande peso — afirmou Efraim.
Rianlle prosseguiu num tom comedido.
— Recordo uma discussão anterior a propósito de um trisme, que
poderia unir as fortunas de Scharrode e Eccord. Neste momento o assunto é
talvez prematuro, dadas as circunstâncias caóticas que prevalecem em
Scharrode.
Pelo canto do olho, Efraim notou a mudança de posições em volta da
mesa, enquanto os músculos tensos pediam alívio. Encontrou o olhar sombrio
de Sthelany; o rosto dela pareceu-lhe mais pensativo que nunca e — seria
isso possível? — Um tanto melancólico.
Rianlle voltou a falar e, em volta da mesa, todos os olhares se fixaram
naquele rosto invulgarmente belo.
— No entanto, tudo se arranjará, não há dúvidas. Há que chegar a acordo
entre os nossos dois reinos. Existe neste momento um certo desequilíbrio;
refiro-me ao contrato não realizado com respeito a Dwan Jar, a Cordilheira
Sussurrante. Se um trisme puder facilitar o desejado equilíbrio, considerarei
seriamente essa possibilidade.
Efraim riu e abanou a cabeça.
— Trisme é uma responsabilidade que não desejo assumir neste
momento, especialmente porque Vossa Força exprime tão claramente as suas
apreensões. De facto, as vossas percepções são notáveis e a forma como
haveis definido a situação aqui é absolutamente correta. Scharrode é um poço
de mistérios que têm de ser resolvidos antes de podermos dar qualquer passo
em frente.
Rianlle pôs-se de pé, sendo imitado pelo seu séquito de eiodarks.
— A hospitalidade de Scharrode é correta como sempre e leva-nos a
prolongar as nossas visitas, mas temos de nos retirar. Confio em que Vossa
Força fará uma avaliação realista do passado, do presente e do futuro
possível, agindo no melhor interesse de todos nós.
Efraim e Lorcas assomaram aos parapeitos da Torre de Deistary e
observaram Rianlle e o seu séquito enquanto subiam para o carro de
aluguer15, que logo a seguir subiu no ar e tomou a direção do norte.
Lorcas recolhera ao seu refeitório para tomar uma refeição furtiva;
depois resolveu dormir. Efraim deixou-se ficar nos parapeitos, contemplando
o vale que, à luz do meio-aud, constituía uma visão tão deliciosa que o
coração quase lhe deixou de bater. A substância do seu corpo fora retirada
desta terra; e ela era sua para alimentar, amar e dirigir, por tanto tempo
quanto lhe era possível prever; e no entanto como era inútil! Como estava
isolado! Scharrode estava perdido para ele; quebrara a carapaça da tradição.
Nunca mais voltaria a ser um rhune, o estrago nunca poderia ser reparado.
Nunca se sentiria completo em Scharrode, nem em qualquer outro lugar;
nunca poderia sentir-se contente.
Estudou a paisagem com a intensidade de um homem que está prestes a
perder a vista. A luz que descia oblíqua pelo penhasco de Alode iluminava
uma centena de florestas; a folhagem irradiante parecia brilhar com uma luz
interior; amarelo-lima, cinzento-azulado intenso avivado a fogo pelas vagens
escarlates, umbra-escuro, negro-azulado, verde-escuro. Em volta ficavam os
grandes picos, todos eles com nome e conhecidos nas fábulas antigas: o alto
Shanajra, com a sua barba de neve que, molestado com a troça dos Picos das
Aves, voltou a face para o sul e ficou amuado para sempre; as Duas
Feiticeiras Kamr e Dimw, rancorosas por causa de Danquil, encantadas e
adormecidas sob um manto de árvores; além, a Cordilheira Sussurrante,
cobiçada por Rianlle, onde os fwai-chi caminhavam para os seus lugares
sagrados entre as montanhas Lenglin. A sua terra para sempre, a sua terra de
nunca; o que havia ele de fazer? Em todo o reino havia um único homem em
quem podia confiar, o vagabundo de Port Mar Matho Lorcas. Gosso podia ou
não interpretar a sua oferta como uma aceitação de fraqueza. As ameaças
pouco subtis de Rianlle podiam ou não ter uma base de seriedade. Singhalissa
ainda podia criar uma nova intriga subtil que o fizesse sofrer. Efraim decidiu
que não podia tardar mais em chamar os eiodarks de Scharrode para o
ajudarem nas suas decisões.
A paisagem ia-se tornando menos visível, enquanto Osmo desaparecia
por detrás do penhasco de Alode. Furad pairava baixo por cima de Shanajra.
Um passo lento ressoou no mármore; voltando-se, Efraim viu Sthelany.
Ela hesitou e depois veio juntar-se-lhe. Juntos debruçaram-se do parapeito.
Pelo canto do olho, Efraim estudava o rosto de Sthelany. Que transpirava por
detrás daquela fronte pálida? Que provocava a expressão meio pesarosa meio
trocista dos seus lábios?
— As trevas aproximam-se — disse Sthelany. Olhou para Efraim. —
Vossa Força já estudou certamente as passagens que levam a um lado e a
outro dentro do castelo?
— Exclusivamente para me proteger da vigilância de vossa mãe.
Sthelany abanou a cabeça, rindo.
— E ela está de facto interessada nas vossas atividades?
— Pelo menos houve uma mulher desta casa que demonstrou o seu
interesse. Teríeis sido vós?
— Nunca pus os pés num caminho de trevas.
Efraim tomou nota do equívoco.
— Para responder mais precisamente à vossa pergunta, explorei de facto
os caminhos das trevas, e estou a fazer com que eles sejam, fechados por
pesadas portas de ferro.
— Parece então que Vossa Força não pretende exercer as prerrogativas
da sua posição?
Efraim ergueu as sobrancelhas perante a pergunta. Respondeu num tom
que pretendia fosse cheio de dignidade:
— Certamente não tenciono violar a pessoa seja de quem for contra a
vontade dessa pessoa. Além disso, como penso que sabeis, a passagem para
os vossos aposentos está fechada com uma parede.
— Ah, sim? Então sinto-me muito mais tranquila. Tem sido meu hábito,
durante as trevas, dormir com as portas triplamente trancadas, mas as
afirmações de Vossa Força tomam tais precauções desnecessárias.
Efraim não podia deixar de se interrogar: estaria ela a exibir-se? A
incitá-lo? A espicaçá-lo? Replicou:
— Posso vir a mudar de opinião. Adotei algumas atitudes de fora do
planeta e elas obrigam-me a confessar que a acho fascinante.
— Psssh! Isso são assuntos que não devemos discutir. — Sthelany, no
entanto, não se mostrou ofendida.
— E as três trancas na porta?
Sthelany riu.
— Não consigo imaginar Vossa Força no meio de uma excursão tão
deplorável e pouco digna; é evidente que as trancas não são necessárias.
Enquanto falavam, Furad, deslizando de encontro à linha do horizonte,
tomou-se meio invisível e o céu obscureceu-se. Sthelany, com a boca meio
aberta numa expressão de espanto infantil, exclamou:
— Estamos sob as trevas? Sinto uma estranha emoção.
E essa emoção, pensou Efraim, parecia bastante real. Tinha as faces
congestionadas, o peito arfava-lhe, os olhos brilhavam-lhe com uma luz
escura. Furad descia cada vez mais, deixando apenas o tom alaranjado do
céu. Estavam de facto sob as trevas? Sthelany arfava e parecia inclinar-se na
direção de Efraim; ele sentiu-lhe a fragrância, mas no momento em que ia
tocar-lhe a mão, ela estendeu o dedo e apontou:
— Furad subiu novamente no céu; as trevas foram afastadas e todas as
coisas vivem!
Sem mais palavras, Sthelany afastou-se atravessando o terraço. Parou
para tocar uma flor branca que crescia num vaso, volveu para trás um olhar
fugidio por cima do ombro e foi-se embora.
Efraim voltou pouco depois para o interior do castelo e desceu ao seu
gabinete. No corredor encontrou Destian, que parecia levar o mesmo destino.
Este, no entanto, fez-lhe um aceno glacial e voltou para outro lado. Efraim
fechou a porta, telefonou para a agência de aluguer em Port Mar e
encomendou um carro aéreo, pedindo um piloto que não fosse o temível
Flaussig. Saiu do escritório, hesitou, voltou atrás, fechou a porta e retirou a
chave da fechadura.
CAPÍTULO IX
Efraim e Matho Lorcas subiram para o carro aéreo e foram transportados
por sobre o vale do rio Esch: subindo sempre, até estarem à altura dos picos
que os rodeavam. Efraim repetiu-lhes os nomes:
— Horsuke, Penhasco Gleide, o Tassenberg; o penhasco de Alode,
Hassjefolge, Scarlume e Dragão do Diabo, Bryn, o Herói; Kamr, Dimw e
Danquil; Shanajra, Picos das Aves, Gossil, o Traidor — reparem nas
avalanchas —, Camanche e mais além: a Cordilheira Sussurrante. Condutor:
leve-nos à Cordilheira Sussurrante.
Os picos passavam em frente de outros picos de outros reinos mais
distantes. Sob a garra do Camanche, que parecia querer furar as nuvens,
avistou-se então plenamente a Cordilheira Sussurrante, que era mais um
prado das terras altas do que uma verdadeira cordilheira, deitando a sul para
Scharrode e o vale do Esch, a norte para os múltiplos vales de Eccord. O
carro aéreo aterrou; Efraim e Lorcas saltaram para fora e ficaram com os pés
cobertos de erva até aos tornozelos.
O ar estava calmo. As árvores formavam matas; a Cordilheira
Sussurrante era como uma ilha no céu, um sítio onde a paz era absoluta.
Efraim ergueu a mão:
— Escutem!
De proveniência indeterminada, vinha um murmúrio baixo, flutuando
musicalmente, por vezes perdendo-se em silêncio outras vezes quase
cantante.
— Vento? — Lorcas olhou para as árvores. — As folhas não mexem. O
ar está absolutamente tranquilo.
— Até isso é estranho. Aqui em cima sempre se espera um pouco de
vento.
Caminharam por cima da erva. À sombra da floresta, Efraim notou um
grupo de fwai-chi que os observavam impassíveis. Lorcas e Efraim pararam.
— Eles aí estão — disse Lorcas —, percorrendo o seu «Caminho através
da Vida», cobertos de trapos e farrapos, peregrinos típicos em qualquer
idioma.
Continuaram a atravessar o prado e contemplaram Eccord. Belrod Strang
ficava perdido no meio das encostas cobertas de árvores.
— O panorama é soberbo — disse Lorcas. — Tenciona ser generoso
com Rianlle?
— Não. No entanto, ele podia mandar para aqui amanhã uns mil homens
para preparar o terreno e mais mil para começar a construir o seu pavilhão
sem que eu pudesse fazer grande coisa para o deter.
— Estranho — disse Lorcas. — Bastante estranho, de facto.
— Que quer dizer com isso?
— Este lugar é magnífico, soberbo, na verdade. Eu próprio gostaria de
construir aqui um pavilhão. Mas tenho estado a estudar os mapas. Os reinos
estão cheios de locais como este. Só em Eccord deve haver uns vinte sítios
tão belos como este. É um autêntico capricho de Rianlle insistir neste sítio em
especial.
— Concordo que é estranho.
Voltaram através do prado e encontraram quatro fwai-chi à espera deles.
Quando Efraim e Lorcas se aproximaram, recuaram alguns passos,
soprando e resmungando entre eles.
Os dois homens pararam. Efraim murmurou:
— Parecem perturbados. Estamos a incomodá-los?
Um deles falou, numa versão gutural de gaean:
— Estamos a percorrer a Estrada da Vida. É um trabalho muito sério.
Não desejamos ver homens. Porque vieram aqui?
— Por nenhum motivo especial: só para ver.
— Vejo que não tencionam fazer mal. Este sítio é nosso, está-nos
reservado por um tratado muito antigo com os kaiarks. Não sabiam? Vejo que
não sabiam.
Efraim teve um riso amargo.
— Eu não sei nada... Nem acerca do tratado, nem acerca seja do que for.
Uma droga fwai tirou-me a memória. Há algum antídoto?
— Não há antídoto. O veneno corta as vias para as tábuas da memória.
Estas vias nunca se recomporão. Mas mesmo assim deve lembrar ao seu
kaiark...
— Eu sou o kaiark.
— Então deve saber que o tratado é autêntico.
— O tratado não significará grande coisa se a terra for transferida para
Eccord.
— Isso não é possível. Repetimos uns aos outros as palavras «para
sempre».
— Gostaria de ver eu próprio este tratado — disse Efraim. — Vou
procurar cuidadosamente nos meus registos.
— O tratado não está nos seus registos — disse o fwai-chi, e o grupo
recuou para a floresta. Efraim e Lorcas ficaram a olhá-los.
— Que querería ele dizer com aquilo? — Perguntou Efraim, admirado.
— Parece ser de opinião que não será capaz de encontrar o tratado.
— Ja vamos saber — disse Efraim.
Continuaram pelo prado até chegarem ao carro.
Lorcas parou e olhou para cima em direção ao Camanche.
— Já sei o que é o sussurro. O vento gira em volta do Camanche e por
cima dele. Parte, rodopia e passa por cima do prado. O que ouvimos são
inúmeras pequenas fricções: o som do ar de encontro ao ar.
— Talvez tenha razão. Mas eu prefiro outras explicações.
— Tais como?
— Os passos de um milhão de peregrinos mortos; fadas das nuvens;
Camanche a contar os segundos.
— Mais convincentes, concordo. Onde vamos agora?
— A sua ideia dos vinte lugares equivalentes existentes em Eccord é
interessante. Gostava de os visitar.
Voaram em direção ao norte, através dos picos, cúpulas e cordilheiras de
Eccord e, no espaço de uma hora, descobriram uma dúzia de prados situados
em pontos altos e com perspectivas pelo menos tão atraentes como as da
Cordilheira Sussurrante.
— Rianlle é demasiado arbitrário — disse Lorcas. — A questão é saber
porquê!
— Não consigo nem sequer especular.
— Supondo que ele consegue ficar com o prado e leva por diante os seus
planos, que acontecerá aos fwai-chi?
— Não me parece que Rianlle gostasse de ter peregrinos fwai-chi a
desfilar pelo seu pavilhão e a descansarem nos seus terraços. Mas, por outro
lado, como conseguiria ver-se livre deles? Eles estão sob a proteção do
connatic.
O carro desceu em espiral sobre Scharrode e aterrou em Benbuphar
Strang. No momento em que desembarcavam, perguntou a Lorcas:
— Não gostaria de voltar a Port Mar? Aprecio muito a sua companhia,
mas não há aqui nada que o possa divertir; só prevejo situações
desagradáveis.
— A tentação de partir é muito grande — admitiu Lorcas. — A comida
aqui é abominável e eu não gosto de comer fechado num cubículo.
Singhalissa oprime-me com a sua esperteza. Destian é insuportável. Quanto a
Sthelany: ah, a magia de Sthelany! Espero convencê-la a fazer uma visita a
Port Mar isto pode parecer uma tarefa impossível, mas todas as jornadas
começam com um passo em frente.
— Bom, então pensa ficar em Benbuphar Strang?
— Com a sua permissão, mais uma semana ou duas.
Efraim mandou o carro embora e voltaram juntos para o castelo.
— Tem estado a submetê-la aos seus encantos?
Lorcas acenou com a cabeça.
— Ela é curiosamente ambígua. Dizer que ela começa por soprar quente
e depois frio não é exato; ela primeiro sopra frio e depois ainda mais frio.
Mas também podia com toda a facilidade ordenar-me que me mantivesse à
distância.
— Ela já falou nos horrores das trevas?
— Garantiu-me que costuma trancar as portas com três barras de ferro,
cerra as janelas, tem à mão frascos com odores ofensivos e geralmente não
aparece a ninguém.
Pararam e olharam para a varanda por detrás da qual ficavam os
aposentos de Sthelany.
— É uma pena o caminho das trevas estar fechado — murmurou Lorcas.
— Quando tudo o resto falha pode-se sempre surpreender uma rapariga na
escuridão. No entanto ela deu-me a entender bastante claramente que não
ande a rondar. De facto, depois de eu ter tentado beijá-la no Jardim dos
Odores Amargos, ela disse-me claramente que guardasse as distâncias.
— Porque não tentar Singhalissa? Ou ela também o pôs à distância?
— Que pensamento! Sugiro que bebamos uma garrafa de vinho
tranquilamente, os dois, e que procuremos nos arquivos o tratado dos fwai-
chi.
O índice dos arquivos não mencionava qualquer tratado com os fwai-chi.
Efraim chamou Agnois, que negou ter conhecimento de tal documento.
— Um acordo desse tipo, Vossa Força, não seria provavelmente
registado como um tratado formal.
— Talvez não. Porque é que Rianlle quer a Cordilheira Sussurrante?
Agnois ergueu os olhos a um ponto que ficava acima da cabeça de
Efraim.
— Suponho que quer construir um pavilhão de Verão, Força.
— Rianlle tratou certamente este assunto com o kaiark Jochaim?
— Não saberia dizê-lo, Vossa Força.
— Quem se encarrega dos arquivos?
— O próprio kaiark com a ajuda de que necessitar.
A um aceno de Efraim, Agnois saiu.
— Ora aí está: não temos tratado — disse Efraim, tristemente. — Nada
que possamos mostrar a Rianlle!
— Foi isso que disseram os fwai-chi.
— Mas como é que eles sabiam? Os nossos arquivos não representam
nada para eles!
— O tratado provavelmente era apenas um acordo oral; eles sabiam que
não havia qualquer documento.
Efraim pôs-se de pé no meio da sua frustração.
— Tenho de reunir em conselho; a situação está a tomar-se intolerável.
Voltou a chamar Agnois.
— Que deseja Vossa Força?
— Envia mensagens aos eiodarks; quero que se reúnam aqui comigo
num prazo de vinte horas. É um caso urgente; conto com todos.
— A hora indicada, Vossa Força, vai cair em pleno período de trevas.
— Bom... Então trinta horas. Outro assunto: não digas nada a
Singhalissa sobre este encontro, nem a Destian, nem a Sthelany, nem a
ninguém que possa repetir a informação; mais, não dês quaisquer instruções
de forma que alguma destas pessoas as ouça e não escrevas a data em
nenhum pedaço de papel. Estou a ser bastante explícito?
— Perfeitamente, Vossa Força.
Agnois saiu da sala.
— Se voltar a deixar-me ficar mal — disse Efraim —, não deverá
esperar benevolência da minha parte. — Foi à janela e em poucos momentos
observou a partida de seis subcamareiros. — Eles aí vão com a mensagem.
Logo que voltarem a notícia vai chegar aos ouvidos de Singhalissa, mas
também não pode fazer grande coisa.
Lorcas disse:
— Provavelmente ela já se resignou perante o inevitável. E além no
terraço: aquela não é Sthelany? Com a sua permissão, vou tentar pôr um
pouco de animação na sua vida. hoos.
CAPÍTULO X
Após seis horas de aud, Furad e Osmo deixaram o céu. Cirse e Maddar,
em vez de descerem transversalmente em direção ao horizonte, deslocaram-se
verticalmente e com decisão. Maddar foi o primeiro a desaparecer, deixando
a terra momentaneamente na sorva verde e em seguida foi Cirse que
mergulhou por detrás da Cordilheira Sussurrante. O céu brilhou e depois
obscureceu-se; caiu a escuridão. As trevas chegaram a Scharrode.
Nos campos, luzes brilhavam e tremeluziam, depois apagavam-se, nas
cidades ouvia-se o cerrar das persianas, o bater das portas, o embate dos
ferrolhos. Os que se sentiam seguros, receosos ou desinteressados da
aventura, metiam-se na cama. Uns despiam-se à luz da vela e envergavam
dragonas negras, botas negras e horríveis máscaras de homem. Outros
retiravam os vestidos de gaze cinzenta, trocando-os por fatos largos de
musselina branca; depois abriam as persianas das janelas e os ferrolhos das
portas, mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo; depois, com uma pequena
vela a um canto do quarto, que praticamente não dava luz nenhuma,
estendiam-se nos leitos, numa mistura trêmula de esperança e receio ou
presas de uma emoção especial, composta em parte de um terror silencioso.
Havia outras pessoas que, tendo aferrolhado as persianas e a porta para se
lançarem sobre o leito sob a ação de uma dolorosa melancolia, acabavam por
se erguer para abrir a porta ou a persiana.
Através do negrume moviam-se as formas grotescas, ignorando-se umas
às outras. Quando alguém encontrava aberta a janela escolhida, pendurava-
lhe uma flor branca para que mais ninguém entrasse, depois, trepando pela
janela, apresentava-se ao silencioso ocupante do quarto — encarnação do
demônio Kro.
Em Benbuphar Strang as luzes foram apagadas, as portas trancadas, as
persianas cerradas e trancadas como em toda a parte. Nos aposentos dos
criados, alguns fizeram preparativos, outros dispuseram-se a um sono
inquieto. Nas torres, outras pessoas tomaram as suas disposições. Efraim,
armado com a sua pequena pistola, fechou persianas, trancou portas e passou
uma busca aos seus aposentos. Verificou a porta que vedava o ingresso do
Sacarlatto e bem assim a passagem para o segundo piso da Torre de Jaher.
Voltou depois para a sala e atirou-se para uma grande cadeira de couro
escarlate, encheu um copo de vinho e entregou-se a uma meditação
melancólica.
Passou em revista o tempo que estivera em Marune e tentou avaliar o seu
progresso. A sua memória continuava ausente, o seu inimigo era ainda
desconhecido. O tempo passava. Rostos flutuavam perante os seus olhos. Um
rosto voltou, recusando-se a desaparecer — um rosto pálido e frágil, de olhar
brilhante. Tinha-lhe praticamente garantido que a sua porta não estaria
aferrolhada. Pôs-se de pé e caminhou de um lado para o outro. Ela esperava-o
a cem jardas dali. Efraim parou e refletiu. Não havia mal em tentar. Bastava-
lhe subir ao segundo nível da Torre de Jaher e inspecionar o corredor, depois,
se o caminho estivesse livre, percorreria os cinquenta passos que o separavam
da porta. Se esta estivesse fechada, voltaria pelo mesmo caminho. Se
estivesse aberta, Sthelany esperava-o.
A máscara? As botas? Não, tudo isso lhe era estranho, entraria no quarto
de Sthelany sem disfarce.
Subiu os degraus e chegou ao painel de saída. Fê-lo deslizar e
inspecionou o corredor. Vazio.
Abriu a porta e escutou. Silêncio. Um som fraco? Escutou com maior
intensidade. Poderia ter sido o som do seu próprio sangue ao passar-lhe no
coração.
Com todo o cuidado, abriu a porta, um pé, depois dois pés. Saiu para o
vestíbulo, sentindo-se de repente exposto e vulnerável. Não se via ninguém,
não se ouvia qualquer som. Desejoso de correr, avançou para a porta de
Sthelany. Escutou. Não ouviu qualquer som. Inspecionou a porta: seis painéis
de carvalho esculpido; três dobradiças de ferro, uma pesada tranca também de
ferro.
Pois bem. Estendeu a mão para a tranca...
Ouviu-se um ruído no interior, um raspar de metal. Efraim recuou e
ficou a olhar para a porta. Esta, por sua vez, parecia olhar para ele.
Efraim afastou-se mais da porta, confuso, incerto. Recuou para a
passagem, fechou e trancou a porta, voltou aos seus aposentos.
Afundou-se na cadeira de couro vermelho e ficou a pensar durante cinco
minutos. Ergueu-se novamente e, tirando o ferrolho da porta principal, saiu
para a antecâmara. Num armário descobriu um pedaço de corda, que levou
para o quarto e voltou a fechar a porta.
Foi buscar o plano dos caminhos das trevas e estudou-o durante alguns
minutos. Subiu depois até ao Sacarlatto e dirigiu-se ao quarto desocupado
que ficava mesmo por cima do de Sthelany.
Saiu para a varanda, prendeu a corda e deu-lhe uma série de nós a todo o
comprimento, para apoiar os pés e as mãos. Cuidadosamente, baixou a corda
até ela ficar caída em direção à varanda de Sthelany.
Desceu com todo o cuidado e em breve se encontrou na varanda dela. As
persianas cobriam os vidros, mas por uma fenda via-se brilhar uma luz.
Efraim aproximou-se e espreitou para o interior.
Sthelany estava sentada junto de uma mesa, vestida da maneira habitual.
À luz de uma vela, entretinha-se a brincar com um puzzle. Junto à porta
estavam dois homens de calça negra e com máscara. Um deles tinha uma
clava e o outro um punhal. Atrás da porta, por cima das costas de uma
cadeira, via-se um grande saco negro. O homem da clava encostou o ouvido à
porta. Pela posição, pela maneira como inclinava os ombros e pelos braços
compridos e fortes, Efraim reconheceu Agnois, o camareiro-mor. O homem
do punhal era Destian. Sthelany olhou para eles, encolheu ligeiramente os
ombros e continuou com o seu puzzle.
Efraim sentiu uma tontura. Inclinou-se sobre o parapeito da varanda e
olhou para a escuridão. O estômago contraiu-se-lhe; pouco lhe faltou para
vomitar.
Não voltou a olhar para dentro do quarto. Com os músculos flácidos,
ergueu-se novamente até à varanda de cima. Puxou a corda, enrolou-a e
regressou aos seus aposentos. Aqui pôs tudo em segurança e, colocando a
pistola à sua frente sobre a mesa, encheu um copo de vinho e instalou-se na
cadeira de couro vermelho.
CAPÍTULO XI
Osmo ergueu-se a leste, seguido de Cirse a sul e de Maddar a sudoeste,
afastando as trevas com a luz alegre do isp.
Matho Lorcas não estava nos seus aposentos; nem se encontrava onde
quer que fosse dentro de Benbuphar Strang.
O estado de espírito dentro do castelo era tenso e sombrio. Agnois veio
dizer a Efraim que Singhalissa desejava que ele lhe concedesse audiência.
— Tem de esperar até eu ter conferenciado com os eiodarks — disse
Efraim. Não conseguia olhar para Agnois.
— Informá-la-ei disso, Vossa Força. — A voz de Agnois era suave. —
Devo chamar a vossa atenção para uma mensagem do kaiark Rianlle para os
membros da casa kaiarkal. Convida-vos urgentemente para uma festa em
Belrod Strang, amanhã, durante o aud.
— Terei todo o prazer em visitar Belrod Strang.
O tempo andava depressa; Efraim foi até ao prado que ficava junto do
castelo e depois caminhou ao longo do rio. Ficou meia hora a lançar pedras à
água, depois voltou-se e contemplou Benbuphar Strang — uma silhueta de
significado sinistro.
Onde estava Matho Lorcas?
Efraim voltou ao castelo. Subiu as escadas até ao terraço e parou,
hesitando em penetrar na penumbra opressiva. Obrigou-se a si mesmo a
avançar. Sthelany, saindo da biblioteca, parou, como se desejasse falar com
ele. Efraim passou sem sequer lhe deitar um olhar; de facto nem ousava fitá-
la com receio de que ela lhe lesse no olhar toda a intensidade das suas
emoções.
Sthelany ficou a olhá-lo, figurinha perdida e imersa em pensamentos.
Quando a hora se aproximou, Efraim saiu dos seus aposentos para
saudar os catorze eiodarks de Scharrode, todos eles envergando os trajos
negros de cerimônia, com coletes brancos. Os seus rostos apresentavam todos
expressões idênticas de ceticismo, mesmo de hostilidade.
Efraim conduziu-os à Grande Sala, onde os criados e subcamareiros
tinham preparado uma mesa circular. A fechar a procissão vinha Destian,
vestido como os outros. Efraim falou secamente:
— Não me recordo de o ter convocado para esta reunião, escudeiro
Destian, e de qualquer forma a sua presença não será necessária.
Destian fez uma pausa e olhou para os eiodarks.
— Qual é o desejo dos presentes?
Efraim fez sinal a um dos criados:
— Expulsa o escudeiro Destian deste quarto imediatamente, utilizando
os meios que julgares necessários.
Destian conseguiu mostrar um sorriso de troça, deu meia volta e afastou-
se. Efraim fechou a porta e juntou-se ao grupo.
— Trata-se de uma reunião informal. Sintam-se livres de se exprimir
livremente e com toda a franqueza. Isso só fará aumentar o meu respeito por
vós.
— Muito bem — respondeu um dos eiodarks mais idosos, um homem
sólido e forte, castanho como madeira antiga. Tratava-se do barão de Haulk,
como Efraim viria a saber dentro em pouco. — Vou pegar-vos na palavra.
Porque haveis expulsado o kang Destian de colóquio com os seus pares?
— Há várias e boas razões para a minha atitude e indicar-vos-ei
algumas, se não todas, dentro em pouco. Desejo lembrar-vos que, segundo os
protocolos de categoria, o seu título depende do da mãe. Logo que me tornei
kaiark, ela retomou a sua posição anterior de wirwove de Urrue e Destian
passou a ser escudeiro. Um pequeno pormenor técnico, talvez, mas é pela
mesma razão que eu sou kaiark e vós sois eiodark.
Efraim tomou lugar à mesa.
— Sentai-vos, por favor. Lamento ter tardado tanto em fazer este
encontro. Talvez esta aparente negligência explique a vossa falta de
cordialidade. Tenho razão?
— Não totalmente — disse o barão Haulk em voz seca.
— Tendes outros agravos?
— Pedistes-nos que falássemos francamente. Historicamente aqueles
que são suficientemente tolos para aceitar tais convites, pagam geralmente
por isso. No entanto, estou decidido a correr o risco.
»Os nossos agravos são os seguintes. Primeiro, a indiferença que
mostrais perante a tradição gloriosa da vossa posição, e aqui refiro-me à
forma frívola como haveis regressado para reclamar o vosso lugar apenas
alguns dias antes de expirar o prazo.
— Considerarei este como o ponto um — disse Efraim. — Prossegui.
— Ponto dois. Desde o vosso regresso, negligenciastes consultar os
eiodarks sobre questões urgentes com que se defronta o reino; em vez disso,
ligais-vos com um indivíduo de Port Mar cuja reputação, tenho-o de fonte
segura, não lhe faz crédito.
»Ponto três. Com a maior frieza, haveis insultado e prejudicado a kraike
Singhalissa, a lissolet Sthelany e o kang Destian, privando-os da sua posição
e privilégios.
»Ponto quatro. Haveis deliberadamente hostilizado o nosso aliado, o
kaiark Rianlle de Eccord, ignorando o bandido Gosso, que vitimou o kaiark
Jochaim.
»Ponto cinco. Enquanto enumero tais agravos, escutais-me com uma
expressão de aborrecimento divertido e de obstinação.
Efraim não conseguiu conter uma leve risada.
— Agradeço-vos a vossa franqueza. Responder-vos-ei com o mesmo
espírito. O aborrecimento divertido e a obstinação do ponto cinco estão longe
de corresponder às minhas verdadeiras emoções, asseguro-vos. Antes que vos
revele algumas circunstâncias estranhas, posso perguntar de que fonte
recebestes as vossas informações?
— O kang Destian tem tido a bondade de nos manter informados.
— Era o que eu pensava. Agora, aproximai as cadeiras e escutai com
atenção, pois ireis saber o que me sucedeu nos últimos meses...
Efraim falou durante uma hora, ocultando apenas os acontecimentos
ocorridos durante as trevas.
— Resumindo, voltei a Scharrode logo que possível, mas retardei o meu
encontro com os eiodarks porque desejava esconder a minha incapacidade até
conseguir, dentro de certa medida, repará-la um pouco. Propus tréguas a
Gosso porque a guerra com Gorgetto é extenuante, odiosa e improdutiva.
Nem Gosso nem os seus gorgets mataram o kaiark Jochaim; ele foi
assassinado por um traidor scharde.
— Crime! — A palavra soou como um eco de parede em parede.
— Quanto a Rianlle e à sua insistência em relação à Cordilheira
Sussurrante, tomei a atitude que competia a qualquer kaiark scharde
consciente das suas responsabilidades: contemporizei até conseguir consultar
os arquivos e descobrir qual tinha sido o acordo com o kaiark Jochaim. Não
encontrei qualquer referência. Em conjunto com Matho Lorcas, visitei a
Cordilheira. Não há dúvida de que se trata de um belo local para um pavilhão
de veraneio, mas há dezenas de locais semelhantes, que não lhe ficam atrás
em nada, dentro de Eccord. Chamei-vos aqui para fazer uma exposição dos
factos e pedir o vosso conselho.
O barão Faroz disse:
— A questão que se põe imediatamente é a de saber porque é que
Rianlle quer a Cordilheira Sussurrante?
— O único aspecto que a distingue dos outros locais, além do próprio
sussurro, parece ser o interesse dos fwai-chi por aquele sítio. A Cordilheira
Sussurrante é o seu santuário, uma das estações do seu Caminho da Vida. Os
fwai-chi pretendem ter feito um acordo com os kaiarks de Scharrode
relativamente à Cordilheira Sussurrante, embora eu não tenha conseguido
encontrar vestígios de tal acordo nos arquivos. Portanto, meus senhores, que
resposta devo levar ao kaiark Rianlle quando visitar Belrod Strang?
O barão Haulk interveio:
— Não me parece que seja necessária uma votação. Recusamo-nos a
ceder a Cordilheira Sussurrante. Pondo contudo esta recusa numa linguagem
delicada, para ele não ficar vexado. Não é necessário lançar-lhe a recusa à
cara.
O barão Alifer propôs:
— Podíamos declarar que a Cordilheira Sussurrante está sujeita a
tremores de terra e que não permitimos que o nosso amigo se exponha a esse
risco.
O barão Barwatz sugeriu:
— O pacto com os fwai-chi tem de ser preponderante. Podemos mostrar
a nossa relutância nessa base.
— Considerarei cuidadosamente todas as vossas sugestões — disse
Efraim. — Entretanto não posso confiar em ninguém em Benbuphar Strang.
Desejo mudar completamente todo o pessoal, à exceção de Agnois. Este não
deve partir. Quem se ocupará disto?
O barão Denzil disse:
— Eu o farei, Vossa Força.
— Um outro assunto. O meu amigo e confidente Matho Lorcas
desapareceu durante as trevas.
— Muitas pessoas desaparecem durante as trevas, Vossa Força.
— Isto é um caso especial que eu tenho de investigar. Barão Erthe,
quereis ter a bondade de iniciar uma busca?
— Assim farei, Vossa Força.
***
O carro aéreo transportou Efraim, Singhalissa, Sthelany e Destian por
cima das montanhas. A conversa limitou-se a uma troca formal de palavras.
Efraim manteve-se silencioso a maior parte do tempo, observando a
paisagem. De tempos a tempos, sentia o olhar disfarçado de Sthelany e uma
vez ela tentou dirigir-lhe um vago sorriso secreto, que Efraim ignorou. O
encanto de Sthelany tinha-se evaporado completamente, mal podia suportar-
lhe a proximidade. Singhalissa e Destian discutiam as suas cogências, um
tópico frequente nas conversas entre rhunes. Singhalissa, entre outras
competências, esculpia camafeus em opalinas, pedras da lua, calcedónia e
crisópraso; Destian colecionava minerais preciosos, e estas duas cogências
completavam-se uma à outra.
O carro passou por cima da Cordilheira Sussurrante. Destian explicou a
geologia da região:
— Essencialmente trata-se de uma grande elevação de diábase quebrada
por diques de pegmatite. Podem ocasionalmente encontrar-se granadas e
turmalinas sem grande valor. Ouço dizer que os fwai-chi as fazem em
pequenas lascas que guardam como recordação.
— Nesse caso pode dizer-se que o Dwan Jar não tem riqueza mineral?
— Sob todos os pontos de vista.
Singhalissa voltou-se para Efraim:
— E quais são os vossos pensamentos a respeito deste pedaço de colina?
— É um sítio delicioso para um pavilhão. O famoso sussurro é audível
como um agradável ruído de fundo.
— Pareceis decidido a efetivar o acordo entre os kaiarks Jochaim e
Rianlle. — Singhalissa falou num tom que era uma espécie de murmúrio,
com um ar de quem está a calcular os imponderáveis.
— Pondes a questão de uma forma demasiado conclusiva — disse
Efraim em tom cauteloso. — Nada está resolvido ainda. Tenho de verificar
primeiro os termos e a própria existência deste acordo.
Singhalissa ergueu as finas sobrancelhas negras.
— Certamente não pretendeis pôr em causa a palavra de Rianlle?
— Certamente que não — disse Efraim. — Mas ele pode ter confundido
a força do acordo. Não esqueça que um antigo tratado estabelecido com os
fwai-chi controla a região e não pode ser esquecido honradamente.
Singhalissa mostrou o seu sorriso invernoso.
— O kaiark Rianlle pode muito bem reconhecer a autoridade deste
antigo tratado, caso ele exista de facto.
— Veremos. O mais provável é que não se venha a tocar na questão.
Fomos convidados para uma festa e não para uma sessão de negociações.
— Veremos.
O carro aéreo desceu longamente em direção a Elde, povoação principal
de Eccord. Nas proximidades, quatro rios tinham sido desviados para criar
uma via aquática circular. No meio da ilha central ficava Belrod Strang: um
palácio construído em pedra cinzento-pálida e madeira esmaltada a branco,
com bandeirolas em rosa, negro e prata a esvoaçar em dezoito minaretes. Em
comparação, Benbuphar Strang parecia acanhado e sombrio.
O carro aéreo aterrou em frente aos portões principais: os quatro
visitantes desembarcaram e seis jovens arautos vieram ao seu encontro
transportando estandartes e seguidos por vinte músicos que sopravam
furiosamente uma fanfarra frenética nos seus cornetins.
Os recém-chegados foram conduzidos a aposentos particulares, para
poderem refrescar-se. Os quartos ultrapassavam luxuosamente tudo aquilo
que Efraim jamais conhecera. Ele banhou-se num lago de água perfumada e
em seguida envergou novamente a sua própria roupa, em vez de usar a
elegante túnica negra forrada a seda cor de fogo que fora exposta para seu
uso. Uma porta discreta levava a um gabinete de toilette e a um refeitório,
onde encontrou pão caseiro, queijo, carne fria e cerveja amarga.
O kaiark Rianlle deu as boas-vindas aos quatro no seu Grande Salão de
Recepção. Junto dele estavam também a kraike Dervas, uma mulher alta de
aspecto sombrio e poucas palavras, e a lissolet Maerio, que se sabia ser filha
de Dervas por Rianlle. Essa relação aliás era fácil de verificar; Maerio tinha
os cabelos de topázio de Rianlle e as suas feições bem modeladas. Era uma
pessoa de estatura não muito elevada, leve e flexível, movimentando-se com
uma animação mal contida, como uma criança ativa, mas bem comportada.
Os seus anéis de âmbar e a pele bronzeado-clara emprestavam-lhe
luminosidade. De tempos a tempos Efraim notava que ela o observava com
triste solenidade.
Belrod Strang excedia de longe Benbuphar Strang em esplendor, embora
estivesse longe daquela qualidade expressa pelo termo rhune que poderia ser
traduzido por «grandeza trágica». O kaiark Rianlle conduziu-se com grande
afabilidade, mostrando uma consideração conspícua em relação a Singhalissa,
que pareceu a Efraim um tanto falha de tato. A kraike Dervas comportou-se
com uma cortesia cheia de formalidade, falando sem expressão, como se
estivesse a recitar frases que se tinham tomado automáticas a pessoas que não
conseguia diferençar umas das outras. A lissolet Maerio, por outro lado,
parecia bem desperta e um tanto desastrada. Sub-repticiamente, não parava de
estudar Efraim; de tempos a tempos os seus olhares cruzavam-se e Efraim
perguntava a si próprio como podia alguma vez ter-se sentido atraído por
Sthelany, que, durante as trevas, se divertira com o seu puzzle. Sthelany era
uma jovem vespa negra, em companhia da velha vespa negra que era
Singhalissa.
Rianlle conduziu os hóspedes à Rotunda Escarlate, uma câmara com
vinte lados com um tapete escarlate por baixo de uma cúpula multicristalina,
construída como um brilhante floco de neve com vinte faces. Um candelabro
com cem mil peças estava suspenso sobre uma mesa de mármore rosa, cuja
peça central representava o pavilhão que o kaiark Rianlle projetava construir
na Cordilheira Sussurrante. Rianlle indicou o modelo com um gesto e um
sorriso tranquilo e depois dispôs os convidados em tomo da mesa.
Seguidamente entrou na sala um homem alto com uma túnica cinzenta
bordada a negro e com bicos vermelhos; empurrava um carrinho com duas
rodas, que colocou junto de Rianlle, dobrando-lhe depois para trás a
cobertura e expondo prateleiras e gavetas contendo centenas de pequenos
frascos. Maerio, que estava sentada ao lado de Efraim, disse-lhe:
— Este é Berhalten, o inventor-mor; já ouvistes falar nele?
— Não.
Maerio olhou para a direita e para a esquerda e baixou a voz para só
poder ser ouvida por Efraim.
— Dizem que perdestes a memória; é verdade?
— Sim, infelizmente.
— Foi por isso que desaparecestes de Port Mar?
— Penso que sim. Não tenho a certeza do que se passou.
Maerio falou num tom quase inaudível.
— Foi culpa minha.
Efraim sentiu-se subitamente interessado.
— Como assim?
— Lembrais-vos de que estávamos todos juntos em Port Mar?
— Sei que foi isso que aconteceu, mas não me lembro.
— Falámos com um indivíduo de outro mundo chamado Lorcas. Eu fiz
uma coisa que ele sugeriu. Vós ficastes tão admirado e envergonhado que
haveis perdido a razão.
Efraim produziu um som especial.
— E que foi que vós fizestes?
— Não seria capaz de o dizer. Eu estava entontecida e excitada; agi
impulsivamente.
— E eu perdi a razão imediatamente?
— Imediatamente, não.
— Talvez eu não estivesse dominado pelo horror. Duvido que
conseguísseis fazer-me sentir envergonhado por muito que tentásseis. —
Efraim falou com maior fervor do que tencionara. Maerio mostrou-se um
pouco confusa.
— Não deveis falar assim.
— Achais-me ofensivo?
Ela deitou-lhe um olhar rápido.
— Não estais a falar a sério! Não. Claro que não. Já esquecestes tudo a
meu respeito.
— Logo que vos vi recomecei logo a aprender.
Maerio sussurrou:
— Receio que possais enlouquecer novamente.
— Em primeiro lugar, eu nunca enlouqueci.
Do outro lado da mesa, o kaiark Rianlle falou.
— Vejo que admirais o pavilhão que tenciono construir na Cordilheira
Sussurrante.
— O projeto parece-me muito atraente — disse Efraim. É interessante e
está bem concebido e poderia alternativamente ser adaptado a outro local.
— Espero que não haja necessidade disso.
— Já conferenciei com os meus eiodarks. Tal como eu, eles sentem
relutância em ceder território de Scharrode. Há além disso outras dificuldades
de ordem prática.
— E muito fácil falar em questões de ordem prática — disse Rianlle
ainda num tom cheio de jovialidade. — O que é um facto é que eu me
apaixonei pela Cordilheira Sussurrante.
— Na realidade a decisão ultrapassa-me — disse Efraim. — Por muito
que eu queira obsequiar-vos, estou amarrado ao nosso acordo com os fwai-
chi.
— Gostaria de ver uma cópia desse acordo. Talvez tenha sido
estabelecido para um determinado período de tempo.
— Não tenho a certeza de que exista qualquer versão escrita.
Rianlle recostou-se na cadeira, incrédulo.
— Então como podeis afirmar tão categoricamente a sua realidade?
Onde haveis colhido informação sobre as suas disposições? Através da vossa
memória?
— Os fwai-chi descreveram o acordo; são muito peremptórios.
— Os fwai-chi são conhecidos pela sua falta de precisão. Seríeis capaz
de recusar o acordo feito entre mim e o kaiark Jochaim numa base tão tênue?
— Não desejaria fazê-lo em circunstância alguma. Talvez vós possais
fornecer-me uma cópia desse acordo para eu mostrar aos meus eiodarks.
Rianlle olhou-o com frieza.
— Parecer-me-ia pouco digno ter de documentar as minhas vividas
recordações.
— As vossas recordações não estão em causa — assegurou-lhe Efraim.
— Apenas pergunto a mim mesmo como é que o kaiark Jochaim conseguiu
ignorar o acordo com os fwai-chi. Tenho de fazer uma busca apurada nos
meus arquivos.
— Não estais disposto a ceder a Cordilheira Sussurrante numa base de
confiança e cooperação?
— Certamente não posso tomar precipitadamente decisões tão
importantes.
Rianlle fechou a boca e voltou-se na cadeira.
— Recomendo à vossa atenção o grande virtuosismo de Berhalten, que
tem um novo conceito a introduzir.
Berhalten, tendo terminado as suas preparações, bateu com o joelho
numa vara, fazendo soar um poderoso gongo. Do corredor avançaram sete
pajens vestidos de libré escarlate e branca. Cada um transportava um pequeno
jarro num tabuleiro de prata. Para cada um destes jarros, Berhalten lançou um
cilindro de uma substância sólida, em oito camadas de diferentes cores, após
o que os pajens pegaram nos tabuleiros e nos jarros e os colocaram em frente
de cada uma das pessoas que estavam à mesa. Seguidamente Berhalten
inclinou a cabeça na direção de Rianlle, fechou o carrinho e ficou à espera.
Rianlle disse:
— Berhalten descobriu um princípio novo e bastante divertido. Reparai
no botão dourado que encima o jarro. Se comprimirdes esse botão ele
libertará um agente que vai ativar o odorífero. Ficareis encantados...
***
Rianlle conduziu o grupo a uma varanda que deitava para um grande
palco redondo, construído para representar uma paisagem rhune. À direita e à
esquerda, cascatas precipitavam-se de agulhas rochosas, formando correntes
que iam dar a um lago central. Ouviu-se um toque que deu lugar a um forte
clamor de gongos e cornetins controlados por um staccato metálico, apenas
com três graus de variação16. De direções opostas avançaram dois grupos de
guerreiros com vistosas armaduras e grotescas máscaras e capacetes de metal,
encimados com bicos e dentes. Avançaram sacudindo os pés dentro de um
estilo combinado e dando curiosos passos com as pernas curvas, depois
atacaram e lutaram em atitudes rituais, ao som penetrante dos instrumentos
marciais. A um lado, Rianlle e Singhalissa trocaram algumas palavras breves.
Efraim estava sentado a uma ponta com Sthelany ao lado. Destian conversava
com Maerio, exibindo o perfil num ângulo que o favorecia. A kraike Dervas
estava sentada fixando o ballet com um olhar que não parecia seguir os seus
movimentos. Sthelany deitou uma olhadela a Efraim, que naqueles dias
incertos anteriores às trevas lhe poderíam ter causado palpitações. Ela falou-
lhe com voz suave:
— Gosta deste bailado?
— Os participantes têm grande talento, mas eu não sou um bom juiz
para tais coisas.
— Porque estais tão distante? Há dias que quase não falais.
— Deveis desculpar-me; o esforço de governar Scharrode não me parece
fácil.
— Quando viajastes fora do planeta deveis ter encontrado muitos
acontecimentos interessantes.
— Isso é um facto.
— As pessoas dos mundos exteriores são na realidade tão glutonas e
sebais como somos levados a acreditar?
— Os seus hábitos são realmente diferentes dos dos Reinos.
— E como os haveis achado? Ficastes admirado?
— Não estava em estado de me preocupar com qualquer outra coisa que
não fossem os meus próprios problemas.
— Ah! Não conseguis responder-me sem evasivas?
— Com toda a franqueza receio que as minhas observações ocasionais,
caso viessem a ser repetidas a vossa mãe, pudessem ser distorcidas e usadas
para meu descrédito.
Sthelany recostou-se. Olhou durante alguns momentos o ballet, que
atingira entretanto um ponto culminante com a entrada de dois campeões
lendários Hys e Zan-Immariot.
Sthelany voltou-se novamente para Efraim.
— Estais errado a meu respeito. Eu não repito tudo a Singhalissa. Julgais
que não me sinto sufocada em Benbuphar Strang? Anseio por experiências
novas! Talvez penseis mal de mim por causa da minha franqueza, mas muitas
vezes tenho de me controlar para impedir surtos de emoção. Singhalissa
preza as convenções rígidas; eu sinto muitas vezes que a convenção está bem
para os outros, mas não para mim. Porque é que as pessoas não podem com
todo o decoro tomar um copo de vinho juntas como em Port Mar? Não
precisais de olhar para mim com tal espanto; provar-vos-ei que também sei
transcender as convenções!
— Essas oportunidades poderíam bem aliviar o tédio. Mas Singhalissa
não as aprovaria certamente.
Sthelany sorriu.
— Mas Singhalissa é forçada a ter conhecimento de tudo?
— Certamente que não. No entanto, ela é especialista em conduzir
intrigas e em as farejar.
— Veremos. — Sthelany soltou um pequeno riso abafado e recostou-se
na cadeira. No palco, Hys e Zan-Immariot tinham lutado até à exaustão
mútua. As luzes diminuíram; os tons instrumentais baixaram em volume e
ritmo, depois ficaram silenciosos, à exceção de uma ressonância estrídula
produzida pela percussão dos gongos.
— Trevas! — Sussurrou Sthelany.
Para o palco saltaram três figuras com chifres negros e com o dorso
recoberto com uma espécie de carapaça de escaravelho, ostentando máscaras
de demônio.
Sthelany aproximou-se mais de Efraim.
— As três encarnações de Kro: Maiesse, Goun e Sciaffrod. Reparai no
esforço dos campeões! Ah! Estão feridos. Os demônios dançam triunfantes!
— Sthelany voltou-se para Efraim; com o ombro a tocar no dele. — Como
não serão as coisas nos países com um sol único em que alternam o dia e as
trevas!
Efraim olhou para o lado. O rosto de Sthelany estava perto do seu, os
olhos brilhavam-lhe com um brilho estranho. Efraim disse:
— A vossa mãe está a olhar para aqui. É estranho! Não me parece
surpreendida nem aborrecida por estarmos a conversar num tom de
intimidade.
Sthelany endireitou-se e, inclinando-se para a frente, observou os
demônios que lançavam para a terra os cadáveres dos heróis mortos,
atirando-lhes as cabeças para baixo e para cima, puxando-lhes os braços para
baixo e atirando-os ao ar.
***
Mais tarde, quando os quatro visitantes se despediam, Efraim teve um
momento para apresentar os seus respeitos a Maerio. Ela disse, um tanto
pesarosa:
— Não me agradou que vos tivésseis tornado tão cordial com a Sthelany.
Ela é demasiado fascinante.
Efraim teve um sorriso triste.
— As aparências enganam. Podeis, quereis ser discreta?
— Claro.
— Estou convencido de que Singhalissa deu instruções a Sthelany para
fingir intimidade, para me levar a cometer um ato impensado que lhe servisse
para me desacreditar aos olhos dos eiodarks de Scharrode. De facto...
— De facto, o quê? — Perguntou Maerio ofegante.
Efraim sentiu que não conseguiria exprimir-se com precisão e delicadeza
ao mesmo tempo.
— Contar-vos-ei noutra ocasião. Mas é a vós e não a Sthelany que eu
acho fascinante.
Os olhos de Maerio brilharam subitamente.
— Adeus, Efraim.
Ao voltar-se, Efraim surpreendeu o olhar de Sthelany fito nele e
pareceu-lhe ver nesse olhar uma expressão magoada, selvática, desesperada.
Era o mesmo rosto, pensou Efraim, que olhava com indiferença para o seu
puzzle enquanto dois homens, armados de punhal e clava e com um saco,
esperavam junto da porta.
Efraim apresentou a sua despedida formal ao kaiark Rianlle.
— A vossa hospitalidade atinge uma escala magnífica. Não saberíamos
reproduzi-la em Benbuphar Strang. Ainda assim, espero que retribua em
breve a nossa visita, em companhia da kraike e da lissolet.
O rosto de Rianlle não mostrou qualquer cordialidade. Disse:
— Aceito o convite, em meu nome, no da kraike e da lissolet. Achar-me-
eis presunçoso se marcar a data para daqui a três dias? Nessa altura já tereis
tido tempo de procurar o acordo lendário e também de consultar os vossos
eiodarks, convencendo-os de que o acordo entre o kaiark Jochaim e a minha
pessoa deve ser respeitado infalivelmente.
As palavras acorreram aos lábios de Efraim; e ele conteve-as com
esforço.
— Consultarei os meus eiodarks — disse por fim — chegaremos a uma
conclusão que pode ou não agradar-vos, mas que será certamente baseada
naquilo que consideramos o nosso dever. De qualquer forma aguardamos
com entusiasmo o momento de vos receber em Benbuphar Strang na ocasião
por vós sugerida.
CAPÍTULO XII
Ao regressarem a Benbuphar Strang, os portais foram abertos por
criados estranhos a Efraim.
Singhalissa parou bruscamente.
— Quem são estes homens? Onde está o nosso antigo pessoal?
— Substituí-os — disse Efraim. — Todos, exceto Agnois, que ainda
encontrareis ao serviço.
Singhalissa deitou-lhe um olhar de curiosidade.
— Será necessário romper com tudo? Porque haveis feito isto?
Efraim falou num tom extremamente formal.
— Desejo viver entre pessoas cuja lealdade não esteja sujeita a
prioridades e em quem possa depositar confiança. Tomei medidas neste
sentido pela única via possível: uma mudança completa.
— Dia a dia a minha vida vai-se tornando mais caótica — gritou
Singhalissa. — Pergunto a mim mesma onde é que levará toda esta confusão!
Tencionais também lançar-nos numa guerra por causa de um miserável
fragmento de colina?
— Gostaria igualmente de saber porque é que Rianlle tem um interesse
tão vivo por este «miserável fragmento de colina». Sabei-lo vós?
— Não gozo da confiança do kaiark Rianlle.
Um criado aproximou-se.
— Vossa Força, o barão Erthe está aqui.
— Fá-lo entrar, por favor.
O barão Erthe avançou. Olhou de Efraim para Singhalissa e depois
novamente para Efraim.
— Vossa Força, tenho um relatório a apresentar.
— Falai.
— Num monte de lixo perto da floresta de Howar descobrimos um
cadáver dentro de um saco negro. Foi identificado como sendo os restos
mortais de Matho Lorcas.
O estômago de Efraim estremeceu. Olhou para Singhalissa, que não
mostrava qualquer emoção. Se não fosse um pequeno roçar de metais por
detrás da porta, seria ele agora o cadáver no saco negro em vez de Matho
Lorcas.
— Tragam o cadáver para o terraço.
— Muito bem, Vossa Força.
Singhalissa disse brandamente:
— Porque fazeis isso?
— Não sois capaz de adivinhar?
Singhalissa afastou-se lentamente. Efraim chamou Agnois.
— Põe um banco ou um cavalete no terraço.
Agnois deixou que uma expressão de espanto lhe transparecesse no
rosto.
— Imediatamente, Vossa Força.
Quatro homens transportaram um caixão para o terraço e colocaram-no
sobre o cavalete. Efraim respirou fundo e ergueu-lhe a tampa. Ficou um
momento a olhar para o rosto do morto e depois dirigiu-se a Agnois:
— Traz a clava.
— Sim, Força. — Agnois começou a afastar-se, mas de repente parou e
olhou para trás assustado.
— Qual clava, Força? Há uma dúzia delas na parede na sala dos troféus.
— A clava com a qual o nobre Lorcas foi assassinado.
Agnois voltou-se e encaminhou-se lentamente para o castelo. Efraim,
rangendo os dentes, examinava o cadáver. A cabeça estava esmagada e um
ferimento na parte de trás evidenciava-se como um golpe de punhal.
— Fechem a tampa — disse Efraim.— Não falta saber mais nada. Onde
está Agnois? Ele demora-se, está a empatar! — Fez sinal a um criado. — Vai
procurar Agnois, pede-lhe que se despache.
O criado voltou dentro de pouco tempo, a correr.
— Agnois está morto, Força. Tomou veneno.
Efraim deu-lhe uma pancada nas costas.
— Volta lá dentro; investiga! Descobre as circunstâncias!
Voltou-se tristemente para o barão Erthe.
— Um dos assassinos escapou-me. Queira ter a bondade de enterrar este
pobre corpo.
Passado algum tempo o criado veio contar o que descobrira. Agnois, ao
entrar no castelo ter-se-ia encaminhado diretamente para os seus aposentos,
onde tomara a poção fatal.
***
Efraim banhou-se com um cuidado fora do habitual. Tomou uma
pequeníssima refeição no seu refeitório e deitou-se. Durante seis horas
dormitou, deu voltas, teve maus sonhos e acabou por adormecer
profundamente quando ficou exausto.
Efraim ainda não tinha mandado embora o carro aéreo que o havia
transportado a Belrod Strang. Ordenou então ao piloto que o conduzisse à
Cordilheira Sussurrante.
O carro aéreo ergueu-se por entre a luminosidade dos sóis coloridos e
voou para o norte, rodeando o flanco do Camanche, mudando depois de
direção para ir pousar na erva. Efraim desembarcou e atravessou o prado. A
serenidade fazia pensar na Arcádia perdida; à exceção do pico que ficava a
leste, a vista era constituída por nuvens e ar; o isolamento das ansiedades,
intrigas e tragédias de Benbuphar Strang era completo.
A meio do prado parou. O sussurro não era perceptível. Passaram alguns
momentos. Ouviu um suspiro, uma mistura de milhentos tons suaves, cada
um deles brando como uma respiração. O sussurro transformou-se num
murmúrio, desapareceu num trêmulo, voltou a aumentar, até se perder em
silêncio — um som de melancolia elemental... Efraim soltou um suspiro
profundo e voltou-se para a floresta onde viu, como anteriormente, um grupo
de fwai-chi que o observavam na sombra. Eles avançaram e Efraim foi ao seu
encontro.
— Antes das trevas estive aqui — disse. — Talvez tenha falado com
algum de vós?
— Estávamos todos aqui.
— Tenho problemas, problemas que são vossos também. O kaiark de
Eccord quer a Cordilheira Sussurrante. Quer construir aqui um pavilhão para
seu prazer.
— Esse problema não é nosso. É vosso. Os homens de Scharrode
prometeram defender para sempre o nosso lugar sagrado.
— Assim o dizeis. Mas tendes algum documento que ateste este acordo?
— Não temos qualquer documento. A promessa foi trocada com os
kaiarks de outros tempos e transferida para cada um dos kaiarks
sucessivamente.
— É possível que o kaiark Jochaim me tenha informado disso, mas as
vossas drogas tiraram-me a memória e eu agora não posso afirmar nada que
provenha dos meus próprios conhecimentos.
— Ainda assim, tens de fazer cumprir o acordo. — E os fwai-chi
voltaram para a floresta.
Efraim, abespinhado, voltou para Benbuphar Strang. Convocou uma
reunião com os eiodarks e contou-lhes as exigências de Rianlle. Alguns dos
eiodarks falaram em mobilização, outros sentaram-se, tristes e silenciosos.
— Rianlle é imprevisível — declarou Efraim. — Esta é, pelo menos, a
minha opinião. Os nossos preparativos bélicos poderíam dissuadi-lo. Por
outro lado, ele não estaria interessado em retirar perante o nosso desafio,
quando os nossos recursos são inferiores aos seus. Talvez ele mande as suas
tropas ocupar Dwan Jar e ignore os nossos protestos.
— Deveríamos ser nós os primeiros a ocupar Dwan Jar e a fortificá-lo!
— Gritou o barão Hectre. — Nessa altura poderíamos ignorar os protestos de
Rianlle!
O Barão Haulk alvitrou:
— O conceito é atraente, mas o terreno impede-o. Ele pode trazer as
tropas dele pelo outro lado do Camanche, subindo a escarpa Duwail; nós só
podemos abastecer as nossas tropas pelo carreiro que passa em frente do
penhasco Lor e o próprio Rianlle sozinho podia impedir-nos de o fazer. Seria
mais proveitoso fortificarmos Bazon Scape e a passagem ao cimo de
Gryphon’s Claw, mas aí estamos a invadir solo de Eccord e a forçar a
retaliação.
— Estudemos o fisiógrafo — disse Efraim.
O grupo seguiu em fila para a Sala de Estratégias, de forma octogonal.
Durante uma hora estudaram o modelo de Scharrode, à escala, de trinta pés
de comprimento, e as terras circundantes, mas apenas confirmaram aquilo
que já sabiam: se Rianlle enviasse tropas para ocupar o Dwan Jar, estas
tropas seriam vulneráveis ao ataque ao longo das suas vias de abastecimento
e bem podiam ficar abandonadas.
— Rianlle pode não ser capaz de exercer a sua força de forma tão eficaz
como ele próprio pensa — murmurou o barão Erthe.— Podemos metê-lo
num beco sem saída.
— Sois otimista — disse o barão Dasheil. — Ele pode comandar três mil
velas. Se as trouxer aqui — apontou para uma escarpa que dominava o vale
—, pode deixá-las ir até Scharrode enquanto as nossas tropas estão ocupadas
em Bazon Scape. Pela nossa parte, ou atrapalharemos a sua posição em Dwan
Jar ou guardamos o vale contra as suas velas. Não consigo encontrar um
sistema que nos permita fazer as duas coisas.
Efraim perguntou:
— De quantas velas dispomos nós próprios?
— Temos mil e quatrocentas águias e outros tantos winglets.
— Talvez pudéssemos mandar vinte e oito mil velas contra Belrod
Strang.
— Suicídio. A distância é grande e o ar varre os despenhadeiros
Groaning.
O grupo retomou os seus lugares em volta da mesa vermelha, de sienita.
Efraim disse:
— Tal como vejo as coisas, não me parece que alguém ache que
podemos resistir eficazmente a Eccord, se Rianlle decidir fazer a guerra a
sério. Não é assim?
Ninguém o contradisse.
Efraim continuou.
— Um ponto que não discutimos é o que diz respeito à razão por que
Rianlle está tão ansioso de ter o Dwan Jar. Pela minha parte, não acredito na
teoria do pavilhão. Acabo de regressar da Cordilheira Sussurrante. A beleza e
o isolamento são tão grandes que se tornam insuportáveis. Apenas consegui
pensar na transitoriedade humana e na vaidade da esperança. Rianlle é
orgulhoso e persistente, mas será insensível? A ideia do pavilhão parece-me
rebuscada.
— De acordo, Rianlle é orgulhoso e persistente — disse o barão Szantho
—, mas isso não explica o seu interesse original neste projeto.
— Em Dwan Jar não existe mais nada além do santuário dos fwai-chi —
fez notar Efraim. — Que proveito poderia ele tirar dos fwai-chi?
Os eiodarks consideraram a questão. O barão Alifer disse evasivamente:
— Ouvi um rumor segundo o qual os esplendores de Rianlle ultrapassam
o seu rendimento, que Eccord não consegue manter as suas fantasias. Não me
parece que seja de pôr de lado qualquer teoria quanto às suas esperanças de
explorar um recurso até aqui não explorado: o fwai-chi. Para manter o seu
santuário eles seriam obrigados a pagar-lhe um tributo em drogas, cristais,
elixires.
O barão Haulk retrucou:
— Nada disto tem que ver com os nossos problemas. Temos de decidir
qual a atitude a tomar.
Efraim olhou em volta da mesa.
— Examinámos todas as nossas opções, à exceção de uma: a submissão
aos desejos de Rianlle. Está o conselho convencido de que seja este o único
caminho possível, por muito detestável que nos pareça?
— Para sermos realistas, não temos outra escolha — murmurou o barão
Haulk.
O barão Hectre bateu com o punho na mesa.
— Não podemos tomar uma posição de defesa, ainda que seja apenas um
fingimento? Isso pode obrigar Rianlle a pensar duas vezes antes de nos forçar
ã uma decisão!
Efraim pôs fim à reunião.
— Adiemos a decisão para o próximo aud e nessa altura chegaremos a
uma decisão.
***
Efraim voltou a encontrar-se com os seus eiodarks. Pouco se falou.
Todos ficaram sentados, com os rostos sombrios. Efraim começou:
— Rebusquei os arquivos. Não encontro qualquer referência segura
quanto a um acordo com os fwai-chi. Eles têm de ser traídos e nós temos de
nos submeter. Quem discorda?
— Eu discordo — rugiu o barão Hectre. — Estou pronto a lutar.
— Eu estou pronto a lutar — disse o barão Faroz —, mas não pretendo
destruir-me a mim e ao meu povo sem qualquer finalidade. Temos de nos
submeter.
— Temos de nos submeter — disse o barão Haulk.
Efraim disse:
— Se o kaiark Jochaim acedeu na realidade aos pedidos de Rianlle, deve
ter sido submetido às mesmas pressões. Espero que a nossa humilhação sirva
uma boa causa. — Pôs-se de pé. — Rianlle chega aqui amanhã. Espero que
estejais todos presentes para conferir dignidade à ocasião.
— Estaremos aqui.
CAPÍTULO XIII
Uma hora antes da chegada do kaiark Rianlle, os eiodarks reuniram-se
no terraço de Benbuphar Strang. Por meio de processos psicológicos
diferentes de caso para caso, muitas atitudes tinham endurecido e onde dantes
havia apreensões vergonhosas surgia agora o desafio. Enquanto
anteriormente todos os eiodarks estavam resignados à submissão, todos
pareciam agora ter sido inspirados para a obstinação.
— Rianlle desafiou a nossa memória? — Gritou o barão Balthazar. —
Admitamos que tem razão. A minha não pode ele desafiar. Se os fwai-chi
declaram a existência deste acordo e se os arquivos sugerem pelo menos a
sua existência, eu recordo-me distintamente de o kaiark Jochaim ter discutido
este mesmo acordo.
— E eu também! — Declarou o barão Hectre. — Ele não pode desafiar-
nos.
Efraim riu tristemente.
— Mas fá-lo-á; porque não? Não tendes poder para o prejudicar.
— Esta será a nossa estratégia — disse o barão Balthazar. — Negaremos
os seus pedidos com força e decisão. Se ele invadir o Dwan Jar com as suas
tropas, prejudicá-lo-emos e destruiremos o seu trabalho. Se ele invadir o
nosso vale, mergulharemos no penhasco de Alode e arrancar-lhe-emos as
asas.
O barão Simic sacudiu no ar o punho cerrado.
— As coisas não hão de ser assim tão fáceis para Rianlle!
— Muito bem, — disse Efraim. — Se são esses os vossos sentimentos,
eu estou convosco. Lembrem-se, seremos firmes, mas não contundentes; só
falaremos em autodefesa se ele nos ameaçar. Agrada-me que, tal como
acontece comigo, a submissão lhes pareça intolerável. E parece-me que ao pé
de Shanajra vem Rianlle e o seu séquito.
O carro aéreo aterrou; Rianlle desceu, seguido pela kraike Devas, pela
lissolet Maerio e por quatro eiodarks de Eccord. Os arautos avançaram
prontamente, produzindo fanfarras cerimoniais. Rianlle e o seu grupo
avançaram para os degraus que levavam ao terraço; Efraim e os eiodarks
schardes desceram para os saudar.
Foram trocadas formalidades e depois Rianlle, atirando para trás a sua
bela cabeça, afirmou:
— Hoje, os kaiarks de Scharrode e Eccord encontram-se para ratificar
uma era de calorosa simpatia entre os seus dois reinos. Agrada-me portanto
afirmar que considerarei favoravelmente a possibilidade de trisme entre vós e
a lissolet Maerio.
Efraim curvou a cabeça.
— Trata-se de uma oferta muitíssimo graciosa, Força, e nada poderia ir
mais ao encontro das minhas inclinações. Mas vós estais fatigados da
jornada; tenho de permitir que vos refresqueis. Dentro de duas horas
encontrar-nos-emos na Grande Sala.
— Excelente. Posso partir do princípio que não haveis encontrado mais
objeções ao meu pequeno esquema?
— Podeis estar seguro, Vossa Força, de que as boas relações entre os
nossos dois reinos, numa base de igualdade e cooperação, são a base da
política scharde.
O rosto de Rianlle obscureceu-se.
— Não podeis responder diretamente? Tencionais ou não tencionais
ceder a Dwan Jar?
— Vossa Força, não transacionemos a nossa importante questão nos
degraus da entrada. Quando tiverdes descansado uma ou duas horas,
esclarecer-vos-ei o ponto de vista scharde.
Rianlle fez uma reverência e deu a volta. Os camareiros conduziram-no,
assim como aos outros membros do grupo, para os aposentos que lhes tinham
sido preparados.
***
Maerio estava junto de uma janela alta, em arco, a olhar o vale.
Esfregava a mão no parapeito de pedra, saboreando o contacto agreste. Como
seria a vida aqui em Benbuphar Strang, nestas salas altas e sombrias,
rodeadas de ecos? Muitos acontecimentos estranhos tinham ocorrido aqui,
alguns dos quais eram horríveis de escutar; dizia-se que em nenhuma outra
parte dos Reinos se podia encontrar um castelo com um labirinto de
caminhos das trevas comparável a este. Efraim tinha mudado; quanto a isto
não havia dúvidas. Parecia mais maduro e parecia obedecer às convenções
rhunes sem qualquer convicção. Talvez fosse melhor assim. Sua mãe,
Dervas, fora em tempos tão alegre e natural como ela própria, mas Rianlle
(que suspeitava que fosse seu pai) insistira em que a kraike de Eccord devia
ser um exemplo dos códigos rhunes e Dervas fora forçada à ortodoxia pelo
bem do reino. Maerio perguntava a si própria como seria com Efraim. Não
parecia ser o tipo de pessoa que insistisse na ortodoxia. De facto, a julgar pela
sua própria experiência, ela sabia bem que não era assim!
Um ligeiro som atrás dela e Maerio rodou sobre si mesma. Um painel do
lambrim tinha deslizado e ali estava Efraim.
Ele atravessou o quarto e ficou a olhá-la sorridente.
— Desculpai-me ter-vos assustado. Queria ver-vos secretamente e a sós
e não vi outra forma de o conseguir.
Maerio olhou para a porta.
— Deixai-me trancar o ferrolho; é preciso que não nos descubram.
— É certo. — Efraim trancou a porta e voltou para junto de Maerio. —
Tenho pensado em vós; não posso deixar de pensar em vós.
— Também tenho pensado em vós, especialmente desde que soube que
o kaiark tencionava unir-nos em trisme.
— É sobre isso que tenho de vos falar. Tanto quanto eu desejo esse
trisme, ele nunca poderá realizar-se, porque os eiodarks preferem lutar a
ceder Dwan Jar.
Maerio abanou a cabeça lentamente.
— Eu sabia que ia ser assim... Eu não quero ir em trisme para nenhum
outro lugar. Que hei de fazer?
— De momento, nada. Só posso fazer planos de guerra.
— Podeis ser morto!
— Espero que não. Dai-me tempo para pensar. Estaríeis disposta a fugir
comigo, para longe dos Reinos?
Maerio perguntou ofegante:
— Para onde iriamos?
— Não sei. Não teríamos os privilégios que temos agora; poderíamos ser
forçados a trabalhar.
— Irei convosco.
Efraim pegou-lhe nas mãos. Ela estremeceu e fechou os olhos.
— Efraim, por favor! Voltareis a perder a memória.
— Não creio. — Ele beijou-lhe a fronte. Ela afastou-se ofegante.
— Sinto-me tão estranha! Todos vão notar a minha agitação!
— Tenho de ir. Quando vos tiverdes recomposto, descei à Grande Sala.
Efraim regressou aos seus aposentos pelo caminho das trevas e envergou
o trajo formal.
Uma pancada na porta. Efraim olhou para o relógio. Rianlle tão cedo?
Abriu a porta e encontrou Becharab, o novo camareiro-mor.
— Sim, Becharab?
— Vossa Força, em frente do castelo encontram-se vários nativos.
Desejam falar com Vossa Força. Disse-lhes que estais a descansar, mas eles
insistem.
Efraim saiu correndo, atravessou a Sala de Recepções e a de estar,
perante o espanto altivo de Singhalissa, que conversava com um dos eiodarks
de Eccord.
Em frente ao terraço encontravam-se quatro fwai-chi — machos antigos
de um vermelho-acastanhado, cobertos de farrapos. Dois criados com ar
enfadado tentavam enxotá-los. Desencorajados, os fwai-chi começavam a
afastar-se quando Efraim apareceu.
Desceu os degraus a correr e fez sinal aos criados para que se
afastassem.
— Sou o kaiark Efraim. Desejais falar-me?
— Sim — disse um deles. E Efraim pensou reconhecer o velho macho
que encontrara na Cordilheira Sussurrante. — Afirmais que não vos lembrais
de qualquer acordo em relação a Dwan Jar.
— É verdade. O kaiark de Eccord que deseja Dwan Jar encontra-se aqui
neste momento.
— Não deve ser-lhe concedido; ele é um homem que exige de mais. Se
ele tivesse o controlo de Dwan Jar, pediria mais e nós seríamos obrigados a
alimentar-lhe a avareza. — O fwai-chi brandiu um frasco poeirento que
continha um pouco de líquido escuro. — A vossa memória está fechada e não
há chaves para as fechaduras. Bebei este líquido.
Efraim pegou no frasco e examinou-o curioso.
— Que é que isto me fará?
— A vossa própria substância corpórea contém memória; é chamada
instinto. Dou-vos um remédio. Ele instigará todas as vossas células a produzir
memórias, mesmo as próprias células que agora bloqueiam a vossa memória.
Não podemos desaferrolhar as portas; mas podemos arrombá-las. Ousareis
tomar esta poção?
— Será capaz de me matar?
— Não.
— Far-me-á enlouquecer?
— Talvez não.
— Ficarei a saber tudo o que sabia antes?
— Sim. E quando tiverdes novamente memória, tendes de proteger o
nosso santuário.
Efraim subiu as escadas pensativo.
Singhalissa e Destian esperavam junto à balaustrada. Singhalissa
perguntou secamente:
— Que frasco é esse?
— Contém a minha memória. Basta-me bebê-la.
Singhalissa inclinou-se para a frente, as mãos tremiam-lhe. Efraim
recuou. Ela perguntou:
— Ides bebê-la?
— Naturalmente.
Singhalissa mordeu o lábio. A visão de Efraim tornou-se repentinamente
muito nítida, notou a falta de frescura da pele de Singhalissa, as pequenas
rugas que lhe circundavam os olhos e a boca, a posição do esterno, que mais
se assemelhava ao de um pássaro.
— Isto pode parecer-vos um ponto de vista estranho — disse Singhalissa
—, mas aconselho-vos a considerar. As coisas estão a correr-vos bem! Sois
kaiark; estais à beira de constituir trisme com um reino poderoso. Que mais
precisais? O conteúdo do frasco pode bem perturbar este estado de coisas.
Destian falou com ar autoritário:
— No vosso lugar, deixaria as coisas como estão!
Singhalissa alvitrou:
— Seria melhor trocar impressões com o kaiark Rianlle; é um homem
sensato; ele aconselhá-lo-á.
— O assunto parece dizer-me respeito apenas a mim — retorquiu
Efraim.— Duvido que a sabedoria de Rianlle sirva de alguma coisa neste
caso. — Passou para a Sala de Recepções, onde se encontrou com Rianlle,
que descia a escadaria principal. Efraim fez uma pausa.— Espero que o vosso
repouso tenha sido agradável.
Rianlle fez uma vénia de cortesia.
— Muito, na verdade.
Singhalissa aproximou-se.
— Insisti com Efraim para que pedisse o vosso conselho num assunto
muito importante. Os fwai-chi forneceram-lhe um líquido que, segundo eles,
lhe restabelecerá a memória.
Rianlle refletiu.
— Desculpai-me um momento. — Chamou Singhalissa de parte;
trocaram algumas palavras murmuradas. Rianlle acenou com a cabeça e
voltou para junto de Efraim.
— Enquanto descansava — disse Rianlle — passei em revista a situação
que provocou o estado de tensão entre os nossos dois reinos. Proponho que
adiemos a questão de Dwan Jar. Para quê permitir que um assunto de tão
pouca importância interfira com o trisme que eu sugeri? Não achais que tenho
razão?
— Inteiramente.
— No entanto, não tenho qualquer confiança nas drogas dos fwai-chi.
Provocam muitas vezes lesões cerebrais. Considerando as nossas relações
próximas, sinto-me forçado a insistir que não ingirais nenhuma vil poção
fwai-chi.
Muito estranho, pensou Efraim. Se a sua falta de memória era tão
vantajosa para outras pessoas, a desvantagem causada a ele próprio devia ser
proporcional.
— Juntemo-nos aos outros que nos aguardam na sala.
Efraim sentou-se à mesa vermelha e observou os rostos em volta: catorze
eiodarks schardes e quatro de Eccord; Singhalissa, Destian, Sthelany; Rianlle,
a kraike Dervas, Maerio e ele próprio. Cuidadosamente, colocou o frasco em
cima da mesa, à sua frente.
— Há uma nova circunstância a considerar — disse Efraim. — A minha
memória. Está dentro deste frasco. Em Port Mar alguém me roubou a
memória. Estou extremamente ansioso por conhecer a identidade dessa
pessoa. Das pessoas que estiveram comigo em Port Mar, duas já morreram;
por coincidência, ou talvez não por coincidência, ambas foram assassinadas.
»Avisaram-me que não bebesse este líquido. Dizem-me que não se deve
acordar o cão que dorme. É inútil dizer que não aceito este ponto de vista.
Quero recuperar a minha memória, custe o que custar. — Desrolhou o frasco,
levou-o à boca e despejou-lhe o conteúdo pela garganta abaixo. O paladar era
suave e sabia a terra. Parecia casca de árvore molda e bolor misturado com
água parada.
Ele olhou em volta para os rostos que formavam o círculo em volta da
mesa.
— Tendes de esquecer este ato de ingestão, mesmo em frente dos vossos
olhos... Por enquanto não sinto nada. Parece-me natural que haja uma certa
demora enquanto o produto me penetra no sangue, percorre o meu corpo...
Noto uma mudança de luzes e sombras... Os vossos rostos cintilam. Tenho de
fechar os olhos... Vejo manchas de luz, que se partem e rebentam... Vejo por
toda a parte no meu corpo... Vejo com as mãos e dentro das minhas pernas e
pelas costas abaixo. — A voz de Efraim tomou-se rouca. — Os sons, por toda
a parte... — Não podia falar mais; encostou-se na cadeira. Sentia, via e ouvia:
um tumulto de impressões: sóis rodopiantes e estrelas dançando, o gosto da
espuma salgada, o calor da lama dos pântanos, o sabor húmido dos juncos. O
atirar de lanças, o chamuscar do fogo, gritos de mulher. Intemporalidade: as
visões passavam, voltavam, desapareciam, como cardumes de peixes. Efraim
sentiu-se desfalecer; as pernas e os braços ficaram-lhe dormentes. Lutou
contra a letargia e observou fascinado a primeira explosão furiosa de imagens
enquanto recuavam e desapareciam. A sucessão de sensações continuou, mas
menos confusas, como que para controlar a cronologia. Começou a ver rostos
e a ouvir vozes: rostos estranhos, vozes estranhas, de pessoas
inexprimivelmente queridas, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Sentiu a
extensão do espaço; conheceu a dor das partidas, a exaltação da conquista;
matou e foi morto; amou e conheceu o amor; alimentou milhares de famílias;
conheceu mil mortes, mil infâncias.
Mais devagar vieram as imagens, como se a fonte estivesse quase
esgotada. Ele foi o primeiro homem a chegar a Marune; conduziu as tribos a
leste de Port Mar; ele foi todos os kaiarks de Scharrode e de muitos outros
reinos; foi muitas pessoas vulgares; viveu todas estas vidas no espaço de
cinco segundos.
O tempo começou a desacelerar. Assistiu à construção de Benbuphar
Strang; deambulou nas trevas; escalou o Tassenberg e fez despenhar um
guerreiro louro do alto do Khism. Começou a ver faces às quais quase podia
pôr um nome; ele era uma criança alta e ruiva que se transformou num
homem magro de rosto ossudo com uma barba curta e espessa. Com o
coração a bater, Efraim seguiu este homem, cujo nome era Jochaim, através
dos compartimentos de Benbuphar Strang, no aud, isp, umbra e sorva.
Durante as trevas, vagueou por todos os caminhos secretos e sentiu a
intoxicação de caminhar apenas com dragonas, máscara e botas para o quarto
da sua eleita, por vezes aterrorizada. Para Benbuphar Strang vê a jovem
Alferica de Cloudscape Castle, para ser tomada em trisme por Jochaim, e em
devido tempo nasceu uma criança a que foi dado o nome de Efraim, e
Jochaim apagou-se da consciência.
A juventude de Efraim passou. Sua mãe, Alferica, afogou-se durante
uma visita a Eccord; em breve veio para Benbuphar Strang uma nova kraike,
Singhalissa, com os seus dois filhos. Um deles era o escuro e mau Destian; a
outra, uma criança pálida de olhos grandes, Sthelany.
As três crianças foram educadas por tutores; escolheram cogências e
erudições. Sthelany dedicou-se a escrever poesia numa linguagem obscura, a
fazer tapeçaria, aos nomes das estrelas e à preparação de vapores e
fragrâncias, atividade que todas as damas bem-nascidas deviam incluir nas
suas habilidades. Ela colecionava ainda jarras de flores Glanzeln, vidradas
num inefável violeta transparente, e chifres de unicórnio. Destian colecionava
cristais preciosos e réplicas de medalhões dos punhos de espadas famosas;
professava também a heráldica e a música complicada das fanfarras. Efraim
professava a arquitetura dos castelos, a identificação de minerais e a teoria
das ligas de metais, embora Singhalissa considerasse a escolha
insuficientemente erudita.
Efraim escutava delicadamente as observações de Singhalissa, mas não
lhes dava qualquer atenção. Era o primeiro kang do Reino; as opiniões de
Singhalissa pouco lhe importavam.
A própria Singhalissa dedicava-se a várias habilidades, didáticas, e
especialidades; era a pessoa mais erudita das relações de Efraim. Talvez uma
vez por ano ela visitava Port Mar para comprar os fornecimentos necessários
para as necessidades especializadas das pessoas de Benbuphar Strang.
Quando Efraim soube que o kaiark Rianlle de Eccord, com a kraike Dervas e
a lissolet Maerio, planeavam acompanhar Jochaim e Singhalissa a Port Mar,
decidiu juntar-se a eles. Depois de considerável discussão, Destian e Sthelany
resolveram fazer igualmente jornada.
Efraim conhecia Maerio havia alguns anos, dentro das circunstâncias
formais impostas a todas as visitas de grupos kaiarkais. A princípio
considerara-a frívola e excêntrica. Faltava-lhe erudição, era desajeitada com
os seus frasquinhos e parecia estar constantemente a reprimir uma
espontaneidade temerária que fazia vibrar as sobrancelhas de Singhalissa e
obrigava Sthelany a desviar o olhar com visível aborrecimento. Estes mesmos
fatores levaram Efraim a aproximar-se de Maerio. Pouco a pouco começou a
notar que a companhia dela era extraordinariamente estimulante e que ela era
notavelmente agradável de contemplar. Pensamentos proibidos assaltaram-
lhe o espírito; rejeitou-os por uma questão de lealdade para com Maerio, que
teria ficado chocada e horrorizada!
O kaiark Rianlle, a kraike Dervas e Maerio voaram sobre as montanhas
até Benbuphar Strang; no dia seguinte fariam juntos a viagem até Port Mar.
Rianlle, Jochaim, Efraim e Destian reuniram-se na Grande Sala para uma
conversa informal; escondendo as cabeças por detrás dos écrans de etiqueta
bebiam discretamente pequenas taças de aguardente de arroz.
Rianlle estava em perfeita forma. Quase sempre um conversador notável,
nesta ocasião a sua conversa foi brilhante. Tal como Singhalissa, Rianlle
tinha uma erudição notável; conhecia os sinais fwai-chi e todos os itinerários
do seu Caminho da Vida; conhecia a Metafísica Pantécnica; colecionara e
estudara os insetos de Eccord e tinha feito três monografias sobre o assunto.
Além disso, Rianlle era um guerreiro notável, que tinha a seu crédito feitos
extraordinários. Efraim escutava-o fascinado. Rianlle discutia Dwan Jar, a
Cordilheira Sussurrante.
— Veio-me à ideia — dizia ele a Jochaim — que há um local de uma
beleza sublime. Um de nós devia servir-se dele. Sede generoso, Jochaim,
permiti-me que construa um jardim de Verão com um pavilhão no Dwan Jar.
Pensai como eu poderia descansar e meditar perante aquele sussurro bravio!
Jochaim sorrira.
— Impossível! Não tendes o sentido das conveniências? Os meus
eiodarks expulsar-me-iam como louco se concordasse com a vossa proposta.
Além disso, estou ligado aos fwai-chi por um acordo. Certamente que estais a
gracejar.
— Não há qualquer gracejo. Sinceramente cobiço aquele pedacito de
terra insignificante!
Jochaim abanou a cabeça.
— Quando eu morrer, já não poderei opor-me; nessa altura Efraim terá
de assumir essa responsabilidade. Enquanto viver, terei que vos negar essa
fantasia.
Rianlle disse:
— Parece que, pelo facto de morrerdes, retirais a vossa oposição.
Mesmo assim não quero que morrais. Falemos de assuntos mais ligeiros...
O grupo voara até Port Mar e, como de costume, instalara-se no Royal
Rhune Hotel, onde a gerência conhecia e respeitava os seus hábitos...
Efraim, ergueu a cabeça das mãos e olhou desesperadamente em volta da
mesa. Todos os rostos estavam tensos; os olhos fixavam-se nele; silêncio.
Fechou os olhos. As recordações vinham agora lenta e suavemente, mas com
uma luminosidade maravilhosa. Sentiu-se a si próprio sair do hotel com
Destian, Sthelany e Maerio para dar uma volta em Port Mar e talvez fazer
uma visita aos Jardins das Fadas, onde havia o espetáculo das marionetas de
Galligade.
Desceram a Rua das Caixas de Latão e atravessaram a Ponte da Cidade
Nova. Durante alguns minutos, caminharam ao longo da Estrada, espreitando
para dentro dos jardins de cerveja, onde as pessoas de Port Mar e os
estudantes bebiam cerveja e devoravam comida à vista de todos.
Por fim, Efraim pediu indicações a um jovem que saía de uma livraria.
Vendo que eram rhunes, este ofereceu-se para os acompanhar aos Jardins das
Fadas. Com grande desapontamento de todos, o espetáculo já tinha
terminado. O jovem que lhes servira de guia apresentou-se como sendo
Matho Lorcas e insistiu em mandar vir uma garrafa de vinho, juntamente com
os devidos biombos de etiqueta. Sthelany ergueu as sobrancelhas de uma
forma que fazia lembrar Singhalissa e desviou o olhar. Efraim, olhando para
Maerio, sorveu o vinho, protegido pelo biombo, e Maerio, ousadamente, fez
outro tanto.
Matho Lorcas parecia ser uma pessoa alegre e de um humor irreprimível;
recusou-se a deixar Sthelany ou Destian de mau humor.
— Tem-lhes agradado a vossa visita? — Perguntou.
— Muitíssimo — disse Maerio. — Mas certamente que há coisas mais
excitantes do que isto? Nós pensamos sempre em Port Mar como um sítio de
forte abandono.
— Não é bem assim. Claro que esta parte da cidade é absolutamente
respeitável. Não achais?
— Os nossos costumes são bastante diferentes — disse Destian, glacial.
— Também o penso, mas aqui estais em Port Mar; porque não haveis de
tentar os costumes de Port Mar?
— Isso não tem grande lógica — murmurou Sthelany.
Lorcas riu.
— Claro que não. Perguntava a mim mesmo se seríeis capazes de
concordar. No entanto, não sentis inclinação para viver... Bem, digamos,
vidas normais?
Efraim perguntou;
— Achais que não vivemos vidas normais?
— Do meu ponto de vista, não. Estais afogados em convenções. Sois uns
sacos de neuroses ambulantes!
— Estranho — disse Maerio—, sinto-me muito bem.
— Eu sinto-me bem — disse Efraim. — Deveis estar enganado.
— Ah! É possível. Gostaria de visitar um dos Reinos e ver por mim
próprio como as coisas se passam. Gostais do vinho? Talvez preferísseis
ponche.
Destian olhou em volta da mesa.
— Acho que seria melhor voltarmos para o hotel. Não vimos já o
suficiente da Cidade Nova?
— Ide, se quereis — disse Efraim. — Por mim, não tenho pressa.
— Eu fico com Efraim — disse Maerio.
Matho Lorcas dirigiu-se a Sthelany.
— Espero que queirais ficar também. Ficais?
— Porquê?
Sthelany ergueu-se languidamente e afastou-se sem uma palavra.
Destian, deitando um olhar duvidoso a Efraim e Maerio, seguiu-a.
— É uma pena — disse Lorcas. — Achei-a extremamente atraente.
— Sthelany e Destian são ambos muito dignos — disse Maerio.
Lorcas perguntou sorrindo:
— E vós? Não sois digna também?
— Quando a cerimônia o exige. Acho os hábitos dos Rhunes um bocado
enfadonhos. Se Efraim não estivesse aqui, experimentava esse ponche. Eu
não tenho vergonha dos meus mecanismos interiores.
Efraim riu.
— Pois bem. Se quereis, eu também vou experimentar, mas esperemos
que Destian e Sthelany se afastem.
Matho Lorcas mandou vir ponche de rum para todos. Efraim e Maerio
beberam primeiro com os biombos, mas depois, com um riso de atrapalhação,
puseram os copos à vista de todos e beberam.
— Bravo! — Declarou Lorcas muito sério. — Haveis dado um grande
passo na estrada da emancipação.
— Não é assim tão significativo — disse Efraim.— Eu pago mais uma
rodada, Lorcas. Que tal?
— Com muito gosto. Mas não convém que volteis os dois para o hotel a
cambalear, não achais?
Maerio deitou as mãos à cabeça.
— O meu pai ficaria cor de púrpura. De todos os seres vivos ele é o mais
rígido.
— O meu pai limitar-se-ia a olhar para o lado — disse Efraim. — Ele
parece rígido, e claro que o é, mas essencialmente é bastante razoável.
— Então vós não sois parentes?
— Não.
— Mas gostais um do outro.
Efraim e Maerio olharam de lado um para o outro. Efraim riu,
desconfortável.
— Não o nego. — Olhou novamente para Maerio, cujo rosto se
contorcia. — Ofendi-vos?
— Não.
— Então porque vos mostrais tão contristada?
— Porque é preciso vir a Port Mar para dizermos tais coisas um ao
outro.
— Sim, acho que é absurdo — disse Efraim. — Mas Port Mar é tão
diferente de Scharrode e Eccord. Aqui posso tocar-vos e não estamos em
trevas. — Pegou-lhe na mão.
Matho Lorcas soltou um suspiro.
— Devia deixá-los sós. Desculpai-me um momento, de facto, preciso de
falar com alguém.
Efraim e Maerio ficaram juntos. Ela reclinou a cabeça no ombro dele;
ele inclinou-se e beijou-lhe a fronte.
— Efraim! Não estamos em trevas!
— Estais zangada?
— Não.
Lorcas voltou para junto da mesa.
— O vosso amigo Destian está cá.
Efraim e Maerio afastaram-se. Destian aproximou-se e olhou
curiosamente de um para o outro. Dirigiu-se a Maerio.
— O kaiark Rianlle pediu-me que vos acompanhe ao hotel.
Efraim olhou espantado para Destian, que, tanto quanto ele sabia, estava
a julgar erradamente os factos. Maerio, sentindo a tensão, pôs-se de pé.
— Sim. Saber-me-ia bem descansar. Vejam! Com a umbra, a névoa e a
sombra das árvores quase parece trevas!
Destian e Maerio partiram. Com um gesto despreocupado, Lorcas
sentou-se ao lado de Efraim.
— É assim, meu amigo.
— Sinto-me embaraçado, — disse Efraim. — Que pensará ela de mim?
— Procure-a a sós e pergunte-lhe.
— É impossível! Aqui em Port Mar perdemos talvez o equilíbrio. Nos
nossos reinos, uma tal cena seria impossível. — Apoiou o queixo na mão e
olhou tristemente para o restaurante.
— Venha — disse Lorcas. — Vamos descer a avenida. Tenho de ir para
as Três Lanternas daqui a pouco; primeiro quero mostrar-lhe um bocado da
cidade.
Lorcas levou Efraim a um cabaré frequentado por estudantes. Ouviram
música, beberam cerveja. Efraim explicou a Lorcas como era a vida nos
Reinos.
— Em comparação, um lugar como este parece um jardim zoológico de
animais fecundos. Essa seria pelo menos a opinião da kraike Singhalissa.
— E você respeita as opiniões dela?
— Pelo contrário; é essa a principal razão por que estou aqui. Espero
descobrir benefícios e redenções num tipo de comportamento que, confesso,
me parece degradante. Repare naquele casal. Transpiram, arquejam, sem
qualquer vergonha, como cães com o cio. A atividade deles é, pelo menos,
pouco higiênica.
— Estão descontraídos. E além há pessoas que estão sentadas com todo
o decoro e nenhuma delas parece ofendida com as atitudes dos outros dois.
— Sinto-me confuso — admitiu Efraim. — Há triliões de habitantes em
Alastor, não é possível que todos estejam enganados. Talvez que tudo seja
inocente.
— Aquilo que vê aqui é relativamente inocente — disse Lorcas. —
Venha, vou mostrar-lhe lugares que já o são menos. A menos que prefira as
suas ilusões, por assim dizer?
— Não, eu vou consigo, desde que não tenha que respirar um ar
demasiado fétido.
— Quando achar que já viu bastante, diga. — Olhou para o relógio. —
Tenho só uma hora, depois tenho de ir trabalhar para as Três Lanternas.
Subiram juntos a Rua das Crianças Coxas e voltaram na Avenida de
Haune. Lorcas ia-lhe indicando os lugares menos respeitáveis da cidade, um
bordel de luxo, bares frequentados por transviados sexuais e um
estabelecimento mal iluminado, que se fazia passar por uma sala de chá mas
que tinha máquinas de nervos operando ilegalmente no andar de cima; e
ainda outros lugares sórdidos que ofereciam entretenimentos ainda mais
duvidosos.
Efraim observava tudo com o rosto empedernido. Sentia-se não tanto
chocado como desinteressado, como se aquilo que via fosse uma montagem
de teatro grotesca. Finalmente chegaram às Três Lanternas, uma velha
construção original de onde saía um som de violinos e banjos tocando árias
alegres à maneira dos Viandantes de Tinsdale.
Singhalissa tinha razão, pensou Efraim, quando declarava que a música
não passava de um sebalismo simbólico — bom, talvez «sebalismo» não
fosse a palavra exata. Talvez «paixão», que abrangia o sebalismo e todas as
outras emoções fortes. Nas Três Lanternas, Lorcas despediu-se de Efraim.
— Lembre-se, gostaria muito de poder visitar os Reinos. Talvez um
dia... Quem sabe?
Efraim, pensando na recepção glacial que Lorcas certamente receberia
nas mãos de Singhalissa, não adiantou o convite.
— Talvez um dia. De momento talvez não fosse conveniente.
— Adeus, então. Não se esqueça. Desça diretamente pela Avenida de
Haune, volte para sul em qualquer das transversais da Estrada e continue até à
ponte. Depois suba a Rua das Caixas de Latão até ao hotel.
— Sei muito bem. Não vou perder-me.
Com uma certa relutância, Lorcas entrou nas Três Lanternas; à entrada,
acenou-lhe. Efraim voltou pelo caminho por onde tinham vindo.
As nuvens eram pesadas e espessas; o tempo era umbra, ainda que muito
escuro. Furad pairava baixo por detrás da colina de Jibberee e tanto Maddar
como Cirse estavam obscurecidos pelas nuvens. Port Mar estava envolvida
numa escuridão quase como a das trevas e as luzes coloridas emprestavam
uma alegria quase ébria à Avenida de Haune.
Enquanto caminhava, os pensamentos de Efraim voltaram-se para
Maerio; como desejaria que ela estivesse junto dele naquele momento! Era
inútil tentar opor-se à vontade do kaiark Rianlle, cuja retidão só era
comparável à de Singhalissa.
Neste momento, Efraim passava em frente ao bordel de luxo, e no
preciso momento em que ele refletia sobre o caracter do kaiark Rianlle, da
porta do bordel, com a face descomposta e a roupa em desordem, saiu o
próprio kaiark Rianlle.
Efraim olhou-o sem poder acreditar. Começou a rir, primeiro de
incredulidade, depois totalmente intoxicado com o cômico da situação.
Rianlle ficou parado, primeiro com a boca aberta, depois fechada;
primeiro intumescido de raiva, depois tentando um sorriso cúmplice. Dadas
as circunstâncias, nenhuma das duas atitudes alcançava ser convincente ou
eficaz. O ridículo era insuportável para um rhune; quando Efraim contasse a
sua história, o que certamente iria acontecer — o episódio era bom de mais
para não vir a ser repetido; até Rianlle tinha consciência disso — o kaiark
Rianlle seria a partir daí uma figura ridícula, acompanhada por risadas
furtivas durante o resto da vida.
Rianlle, sob o efeito de qualquer contorção interior desesperada,
recompôs-se.
— Que andais a fazer por aqui pela avenida?
— Nada! A investigar coisas estranhas! — E Efraim começou
novamente a rir. Rianlle conseguiu produzir um sorriso de aço. — Pois bem,
não deveis julgar-me precipitadamente. Infelizmente para mim tenho de
apresentar a apoteose da galantaria rhune. A pressão torna-se insuportável.
Vinde, vamos tomar uma bebida quente, como as pessoas fazem sem
qualquer acanhamento aqui em Port Mar. A bebida chama-se café e não
provoca embriaguez.
Rianlle conduziu-o ao longo da Rua da Pulga Inteligente até um
estabelecimento chamado O Grande Empório do Café de Alastor. Mandou vir
uma bebida para os dois e depois pediu desculpa.
— Um momento; tenho de tratar de um assunto.
Efraim viu Rianlle atravessar a avenida e entrar numa lojinha minúscula
cujas montras estavam apinhadas com os artigos mais diversos.
O café foi servido; Efraim provou-o e achou-o saboroso, aromático e a
seu gosto. Rianlle voltou; juntos beberam o café, num silêncio cauteloso.
Rianlle levantou a tampa da cafeteira em que tinham servido o café e
espreitou para dentro. A sua mão pairou um momento sobre a boca da
cafeteira destapada, depois deixou cair a tampa com estrondo. Deitou uma
segunda chávena para Efraim e outra para si próprio. Tornou-se afável e
expansivo. Efraim bebeu mais café, embora Rianlle deixasse arrefecer o seu.
E o espírito de Efraim obscureceu-se e perdeu-se em nevoeiros flutuantes.
Como num sonho, sentiu-se caminhar com Rianlle ao longo da Estrada,
atravessar a ponte e, sempre por caminhos escondidos, chegar ao parque do
Royal Rhune Hotel. Rianlle aproximou-se do hotel com todas as precauções;
mas quis a sorte que, numa curva, Singhalissa lhes aparecesse pela frente.
Ela olhou para Efraim como se ele lhe provocasse repulsa.
— Encontraste-o em estado de embriaguez! Que vergonha! Jochaim vai
ficar furioso!
Rianlle ficou pensativo por momentos e depois abanou a cabeça com
desânimo.
— Vinde comigo, saiamos do caminho. Já vos explico o que se passou.
Rianlle e Singhalissa sentaram-se num banco escondido. Efraim
observava um pirilampo. Rianlle tossiu para aclarar a voz.
— A coisa é mais séria do que a simples embriaguez. Alguém lhe
ofereceu uma droga perigosa que ele ingeriu levianamente; a sua memória foi
completamente destruída.
— Que tragédia! — Gritou Singhalissa. — Tenho de prevenir Jochaim;
ele vai voltar a Cidade Nova de pernas para o ar e não parará enquanto não
descobrir a verdade!
— Bom — disse Rianlle numa voz rouca. — Isso talvez não sirva os
nossos melhores interesses.
Singhalissa fixou em Rianlle um olhar frio que parecia ver tudo.
— Os nossos melhores interesses?
— Sim. Pensai um pouco. Jochaim acabará por morrer... Talvez mais
cedo do que desejaríamos. Quando esse infeliz acontecimento se vier a
verificar, Efraim tornar-se-á kaiark.
— No seu estado atual?
— Claro que não. Ele em breve se recomporá e Jochaim renovará as
suas memórias. Mas... E se Efraim partir em viagem?
— E não voltar?
— Por morte de Jochaim, Destian será kaiark de Scharrode e eu dar-lhe-
ei Maerio em trisme. Jochaim nunca cederá a Cordilheira Sussurrante; mas se
eu conseguir a sua posse lançarei grandes impostos sobre os fwai-chi. E
afinal que representam as pedras preciosas e os elixires para eles? Se Destian
for kaiark, não haverá dificuldades.
Singhalissa refletiu.
— Não podeis subestimar Destian; por vezes ele é obstinado! Mas a
mim nada me negaria, se eu fosse kraike de Eccord. Com toda a franqueza,
Belrod Strang está mais de acordo com os meus gostos do que o velho e triste
Benbuphar Strang.
Rianlle fez uma careta e soltou um pequeno gemido involuntário.
— E Dervas?
— Tereis de dissolver o trisme; é bastante simples. Se as coisas se
passarem assim, tudo estará bem. Se não, será melhor esquecer tudo e eu levo
o Efraim à presença de Jochaim. Não receeis nada. Jochaim é ao mesmo
tempo tenaz e cruel, não terá descanso enquanto não conhecer os factos!
Rianlle suspirou.
— Destian será o próximo kaiark de Scharrode. Celebraremos dois
trismes: entre Destian e Maerio, e entre mim e vós.
— Nesse caso, trabalharemos juntos.
Embora Efraim tivesse escutado maior parte da conversa, o assunto em
si pouco significava para ele.
Singhalissa afastou-se e voltou com um velho fato cinzento e uma
tesoura. Cortou curto o cabelo de Efraim e juntos fizeram-no vestir o fato
cinzento. Depois Rianlle, entrando no seu quarto, voltou com uma capa negra
e um capacete que lhe escondiam o rosto.
As recordações de Efraim tornaram-se pouco nítidas. Mal se lembrava
de ter caminhado até ao aeroporto espacial ou de ter embarcado no Berenicia,
onde o dinheiro passou das mãos de Rianlle para as do assistente de bordo.
Pouco a pouco os acontecimentos fundiram-se com as suas recordações
conscientes. Abriu os olhos e fitou o rosto do kaiark Rianlle. Voltou a ver
aquela mistura de raiva, vergonha e afabilidade desesperada que Efraim
notara já na Avenida de Haune.
— A minha memória está perfeita — disse Efraim. — Sei o nome do
meu inimigo e conheço as suas razões. Razões de cogência. Mas trata-se de
assuntos pessoais e tenciono tratá-los numa base igualmente pessoal.
Entretanto outros assuntos mais importantes reclamam a nossa atenção.
«Tendo recuperado a memória, posso agora afirmar que o kaiark
Jochaim celebrou efetivamente um acordo com os fwai-chi e que fez também
a seguinte observação ao kaiark Rianlle: «Só quando morrer é que deixarei de
me opor ao vosso projeto», o que o kaiark Rianlle interpretou como sendo:
«quando eu morrer já não haverá oposição ao vosso projeto». Trata-se de um
erro muito razoável que o kaiark Rianlle agora compreende. Suspeito que ele
deseje retirar completa e definitivamente a sua pretensão quanto a Dwan Jar;
é assim, Vossa Força?
— Sim, de facto — afirmou o kaiark Rianlle em voz monótona. — Vejo
que interpretei mal o comentário jocoso do kaiark Jochaim.
— Há três outras questões a considerar — disse Efraim. — Vossa Força,
apelo para vós para que se efetue o trisme entre as nossas duas casas e os
nossos dois reinos.
— Tenho toda a honra em aceder à vossa proposta, se a lissolet Maerio
for da mesma opinião.
— Concordo — disse Maerio.
— Abandonarei temporariamente este assunto feliz, para me ocupar do
crime de assassínio — disse Efraim.
— Assassínio! — A horrível palavra soou em volta da mesa.
— O kaiark Jochaim — continuou Efraim — foi assassinado com uma
flecha nas costas. A flecha não foi disparada por nenhum atirador gorget,
logo o assassino é um scharde. Ou melhor, acompanhava as forças schardes.
«Durante as trevas ocorreu outro assassínio. De certa maneira, estou
demasiado próximo deste crime para o julgar a frio; agora, vós, eiodarks de
Scharrode, ouvireis as minhas provas; depois julgareis e eu não me oporei às
vossas conclusões.
«Falo agora como testemunha.
«Quando cheguei a Benbuphar Strang, em companhia do meu amigo
Matho Lorcas, recebi a mais fria das recepções e de facto mesmo um certo
antagonismo.
«Alguns dias antes das trevas, a nobre Sthelany surpreendeu-me pela sua
cordialidade e pelas suas afirmações de que, pela primeira vez, tencionava
não aferrolhar as portas durante as trevas. — Efraim descreveu os
acontecimentos que se deram anteriormente, durante e posteriormente às
trevas.
ȃ evidente que foi feita uma tentativa para me atrair aos aposentos de
Sthelany; mas o pobre Lorcas entrou no meu lugar, ou então foi reconhecido
e assassinado para impedir que me prevenisse da armadilha.
«Compreendo que durante as trevas se passam coisas muito estranhas,
mas este crime cai numa categoria diferente. Foi planeado uma semana ou
mais antes das trevas e posto em prática com uma eficiência cruel. Não é um
ato das trevas. É um crime.
— Estas afirmações são uma maquinação mal-intencionada — disse
Singhalissa — e são demasiado fracas para merecerem que as refute.
Efraim voltou-se para Destian.
— Que tendes a dizer?
— Apenas posso fazer eco com as observações da nobre Singhalissa.
— E Sthelany?
Silêncio, e pouco depois uma voz baixa:
— Não direi nada, a não ser que estou farta de viver.
Neste ponto, cheios de embaraço, os visitantes de Eccord saíram da sala.
Os eiodarks retiraram-se para uma extremidade. Durante dez minutos
conferenciaram em voz baixa e depois voltaram.
— O julgamento é este — disse o barão de Haulk. — Os três
compartilham a culpa em partes iguais. São acusados não de cometerem um
ato das trevas, mas de crime de morte. Terão as cabeças rapadas e serão
expulsos dos Reinos dos Rhunes, sem qualquer outro bem que não seja a
roupa que têm em cima. Serão exilados para sempre e nenhum outro reino
rhune os acolherá. Assassinos, neste mesmo momento despi-vos de todas as
joias, ornamentos e valores. Depois descei às cozinhas, onde as vossas
cabeças serão rapadas. Sereis depois escoltados ao carro aéreo que vos levará
a Port Mar, onde tereis de viver o melhor que puderdes.
CAPÍTULO XIV
Maerio e Efraim encontravam-se nos parapeitos de Benbuphar Strang.
— De repente — disse Efraim—, estamos em paz. As nossas
dificuldades dissiparam-se. Temos a vida à nossa frente.
— Receio que as novas dificuldades estejam apenas a começar.
Efraim olhou-a surpreendido.
— Como podeis dizer isso?
— É evidente que conhecestes a vida fora dos Reinos; tive uma leve
sugestão disso. Contentar-nos-emos em viver como rhunes?
— Podemos viver da maneira que nos agradar — disse Efraim. — Tudo
o que eu desejo é a nossa felicidade.
— Talvez nos apeteça viajar para mundos distantes. E então? Como nos
irão olhar os Schardes quando regressarmos? Achar-nos-ão contaminados... E
não verdadeiros Rhunes.
Efraim estendeu o olhar ao longo do vale.
— A verdade é que não somos rhunes da melhor água. Portanto... Que
havemos de fazer?
— Não sei.
— Nem eu.
Notes

[←1]
O elevado número de sistemas de cronometria provocam a
confusão em Alastor e Gaean Reach, apesar de já ter havido várias
tentativas de reforma. Em qualquer localidade são utilizadas
diariamente, pelo menos, três sistemas de cálculo: a cronometria
científica, baseada na frequência orbital do eletrão de hidrogênio K-
stato; o tempo astronômico — a «Hora Padrão de Gaean» —, que
permite o sincronismo do universo humano; e a hora local.
[←2]
Tradução aproximada da palavra geisling, de conotação mais
quente e afetuosa.
[←3]
FURAD OSMO MADDAR CIRSE

X
AUD X X UM X
DOS DOIS OU AMBOS

ISP X X COM OU

ISP
X SEM
GELADO
X
UMBRA X UM X
DOS DOIS OU AMBOS
LORN
X
UMBRA

SORVA X X

SORVA
X
VERMELHA
SORVA
X
VERDE

TREVAS

Estes são os modos reconhecidos pelo povo de Port Mar. Tanto os


Majars como os Rhunes fazem distinções mais elaboradas.
A progressão dos modos torna-se complexa devido à rotação
diurna de Marune, à rotação de Marune em torno de Murad, ao
movimento de Furad e Osmo em torno um do outro e, em conjunto, em
torno do sistema Furad-Osmo. Não há semelhança entre os planos dos
dois sistemas orbitais.
Os fwai-chi, que não têm conhecimentos de astronomia, sabem
prever com segurança os modos futuros e com a maior antecedência
com que alguém possa estar interessado em conhecê-los.
Nas montanhas baixas a sul de Port Mar vive uma comunidade
«perdida» de cerca de dez mil majars, decadentes, degenerados e em
número cada vez menor. Estes indivíduos vivem numa perfeita
escravatura em relação aos modos do dia. O seu estado de espírito, a sua
dieta, roupagem e atividades são regulados por essas mudanças. Durante
as trevas os Majars aferrolham-se nas suas cabanas e à luz das candeias
de azeite cantam imprecações contra Galula, o Gnomo, que maltrata e
esventra aquele que tenha a desgraça de estar fora depois de escurecer.
Essa entidade, Galula, existe na realidade, mas nunca foi identificada de
forma satisfatória.
Os Rhunes, que têm tanto de orgulhosos e competentes como os
Majars têm de desmoralizados, são também fortemente afetados pelas
mudanças. O comportamento adequado para um modo do dia pode ser
considerado absurdo ou de mau gosto durante outro. As pessoas
avançam na sua erudição e aguçam as suas habilidades especiais durante
o aud, o isp e a umbra. As cerimônias formais tendem a realizar-se
durante o isp, bem como durante a notável Cerimônia dos Odores. Há a
notar que a música é considerada hiperemotiva e indutiva de uma
conduta pouco elevada; nunca se faz ouvir nos reinos dos Rhunes. Aud é
o tempo apropriado para avançar para a batalha, para conduzir litígios,
lutar em duelo, receber rendas. A sorva verde é o tempo da poesia e da
meditação sentimental; a sorva vermelha permite aos Rhunes um ligeiro
abrandamento da sua etiqueta. Um homem pode condescender em tomar
um copo de vinho em companhia de outros homens, usando biombos de
cortesia; as mulheres podem igualmente tomar cordiais ou brandes. O
isp gelado inspira aos Rhunes uma brilhante exaltação ascética, que
ultrapassa completamente as emoções menores de amor, ódio, ciúme,
cobiça. As conversas decorrem num dialeto arcaico sussurrado;
planeiam-se grandes feitos; fazem-se juras galantes; propõem-se e
ratificam-se esquemas de glória e muitos destes projetos tomam-se
realidade e entram no Livro dos Feitos.
[←4]
Titulo honorífico polivalente, mais respeitoso que o de simples
«senhor», a ser dirigido a rhunes de posição indeterminada.
[←5]
Trismet: grupo de pessoas resultante de um trisme, o análogo dos
Rhunes para o casamento. Estas pessoas podiam ser um homem e o
outro membro trismético feminino; ou o homem, o outro componente
feminino, um ou mais dos seus filhos (dos quais o homem pode ou não
ser o progenitor). A noção de «família» aproxima-se do significado de
trismet, mas contém todo um conjunto de conotações inexatas e não
aplicáveis ao trismet. A paternidade é muitas vezes de determinação
incerta; a posição e a situação são portanto derivadas da mãe.
[←6]
Sebalítico em extremo.
[←7]
O termo tsernifer, traduzido aqui por «Força», refere-se àquela
generalização do poder psicológico que rodeia a pessoa de um kaiark. A
palavra encontra uma tradução mais exata em impulso irresistível,
sabedoria elementar, força despersonalizada. O apelativo «Força» é uma
diluição insípida.
[←8]
A atividade bélica dos Rhunes é controlada por convenções
rígidas. Reconhecem-se alguns tipos de compromisso. No combate
formal, a luta ocorre entre pessoas de igual estirpe. Se uma pessoa de
casta elevada atacar outra de casta baixa, esta pode proteger-se, retirar
ou retribuir. Se uma pessoa de baixa estirpe atacar uma pessoa de casta
elevada, sofre as reprimendas de todos. As armas utilizadas são espadas,
usadas apenas para atirar, e lanças.
Ocasionalmente, os incursores apresentam-se mascarados; são
então chamados «homens das trevas» e tratados como bandidos. Todas
as armas podem ser legitimamente usadas contra os homens das trevas,
incluindo o chamado «Bore», que expele uma seta ou lança curta, por
meio de uma carga explosiva.
Por vezes ocorrem grandes batalhas, quando todos os homens
válidos de um reino são mobilizados contra os de outro reino.
Os guerreiros treinados no uso de velas aéreas têm um prestígio
especial. As regras do combate aéreo são ainda mais complexas que as
do combate a pé.
[←9]
A palavra cogência é usada para exprimir a erudição fervente e a
virtuosidade dos Rhunes.
[←10]
O dialeto dos Rhunes está cheio de ambiguidades delicadas. O
termo refrescar-se é passível de várias interpretações. Neste caso pode
supor-se que a kraike dormia a sesta.
[←11]
A linguagem rhune é considerada pelo lado da mãe, dado que as
circunstâncias da procriação não são claras, embora em muitos casos o
pai e o filho tenham mutuamente consciência da sua relação.
[←12]
Tradução inexata. Mais exatamente: lugar de regeneração
espiritual, sítio de peregrinação, fase da estrada da vida.
[←13]
A palavra sherdas, numa tradução inexata. Aqueles que participam
num sherda sentam-se em volta de uma mesa. Através de orifícios
devidamente colocados é libertada uma série de odores aromáticos e de
perfumes. Louvar demasiado os vapores ou inalar demasiado fundo é
considerado um comportamento baixo e deixa a pessoa em causa sujeita
a ser suspeita de gula.
[←14]
Ato de violência — um ato de trevas, por assim dizer, que é
praticado à luz do dia, devassidão que uma pessoa digna não pode
conceber.
[←15]
Os Reinos dos Rhunes não têm autorização de possuir carros
aéreos por causa das suas atividades agressivas. Quando um rhune
deseja fazer uma viagem tem de entrar em contacto com Port Mar e
alugar o veículo que lhe convém.
[←16]
Os Rhunes não produzem verdadeira música e são incapazes de
pensar em termos musicais. As suas fanfarras e clamores são
controlados por progressões matemáticas e têm de alcançar uma simetria
igualmente matemática. Trata-se mais de um exercício intelectual do que
emocional.

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