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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 2
TÍTULO: A ARMADILHA MORTAL
TÍTULO ORIGINAL: THE GUN ON ICE PLANET ZERO
AUTOR: GLEN A. LARSON / ROBERT THURSTON
TRADUÇÃO: EDUARDO SALÓ
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel1969@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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GLEN A. LARSON / ROBERT


THURSTON

A ARMADILHA MORTAL
Tradução de Maria de Eduardo Saló
F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 2
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Croft.
Quem é? De onde veio? Serei realmente uma parte das suas memórias,
ou apenas um substituto de figuras de autoridade em geral? Mesmo quando
descreveu o incidente em que os nossos caminhos se cruzaram e fingi
recordar-me porque ele precisava que recordasse e eu necessitava dele para a
minha missão, não consegui evocar um único aspecto da breve aventura.
Mais tarde, quando dispus de algum tempo, dirigi-me às minhas
instalações e pedi ao computador da Galactica uma cópia do meu diário
respeitante a esse período, em que eu dirigira a captura do seu bando e da
nave que continha o saque, no momento em que se afastavam após o assalto
às minas de platina de Cylon. Ao estudar as páginas, a única alusão ao
incidente, ou episódio que pudesse ter sido o incidente, que consegui
encontrar foi o seguinte:
A rotina foi hoje interrompida por uma nave supostamente pirata que se
introduziu no nosso sector, ao que parece em resultado de um erro de
cálculo da rota. Tentou escapar-se, mas quando os nossos caças se
encontraram focados nas suas miras o comandante recusou-se a abrir fogo
contra nós, e a nave e respectiva tripulação foram capturadas com
facilidade. Tigh afirma que os porões estavam cheios de carga pilhada.
Indiquei-lhe que se ocupasse do assunto com imparcialidade e enviasse os
prisioneiros aos magistrados apropriados.
Seria Croft esse comandante e a carga compor-se-ia de platina? Como se
explicava que eu não tivesse registado o nome do homem que preferira
deixar-se capturar, juntamente com a sua tripulação, a disparar sobre os seus
semelhantes? O fato de a carga consistir em platina cylon não justificaria que
fosse anotado?
O teor do registo parece indicar que nem sequer vi os salteadores, apesar
do que Croft insiste em que tivemos uma confrontação direta. Eu devia
recordar nitidamente um encontro dessa natureza. Na verdade, teria ficado
impressionado pela circunstância de o chefe de um grupo pirata haver sido
outrora comandante de uma guarnição e devia ter registado a minha
estranheza por um homem tão importante e inteligente corromper o seu valor
com um crime insignificante. Na minha opinião, as escapadas desse arrojado
comandante renegado mereciam mais do que uma referência ocasional no
meu diário.
Não existe coisa alguma nas entradas das proximidades que sugira que
me achava imerso em algum outro assunto mais importante justificativo do
impedimento de inscrever elementos pormenorizados sobre o incidente. Por
outro lado, a anotação registada no diário contém um fraseado tão rotineiro,
nimbado de uma indiferença tão militar, que não acredito que não
mencionasse pelo menos elementos vagos da personalidade de Croft ou da
sua extraordinária proeza. Que me dominaria os pensamentos nessa altura,
responsável pela omissão do pormenor essencial do episódio? Só posso
admitir que as provas internas sugerem que a entrada contida no diário diz
respeito a um grupo de delinquentes diferente e Croft me confundiu com
outra pessoa, outro comandante que executava as suas atribuições normais.
Todavia, se se tratava de Croft e o seu bando, lamento não me recordar
dele ou dos pormenores da sua captura que constituíram uma obsessão tão
profunda para ele durante o seu encerramento na nave-prisional. Para Croft, o
episódio parece ter representado o acontecimento mais importante da sua
vida. É lastimável que, enquanto ele acalentava veementes esperanças de se
vingar, a nossa confrontação não passasse de um momento esquecível para
mim, uma entrada no meu diário que não evoca qualquer imagem dos fatos
que descreve.
CAPÍTULO I
Desta vez, a armadilha tinha de resultar.
O líder imperial dos Cylons determinara que capturassem totalmente a
frota humana. Os humanos não deviam poder executar uma das suas ardilosas
fugas de último momento. Não se podia registar um mau funcionamento
imprevisto do mecanismo da armadilha. Havia já demasiado tempo que as
forças dos Cylons perseguiam o grupo de naves desirmanadas de Adama (um
prisioneiro referira-se-lhes pela designação de esquadrilha de sucata,
expressão sem significado, pois não podia ser traduzida para a linguagem
cylon).
Os seus oficiais superiores, cansados de combater a peste humana,
aceitaram com prontidão o plano do líder para atrair as naves humanas, em
especial a Galactica, ao campo de tiro do terrivelmente eficaz canhão laser
situado no planeta gelado Tairac.
O líder imperial estava particularmente satisfeito pelo fato de o assalto
destrutivo final ter a sua origem em Tairac, porque a respectiva guarnição era
comandada pelo primeiro-centurião exilado, Vulpa. Convinha que fosse o
desinibido Vulpa a aplicar o golpe de misericórdia. Assim, aprenderia a
obedecer e, ao mesmo tempo, melhoraria a sua situação.
O líder recordava vividamente o dia em que fora obrigado a mandar para
o exílio um dos seus mais prestimosos oficiais.
— Talvez conviesse abandonar a perseguição aos humanos — sugerira
Vulpa no meio de um briefing, e os oficiais superiores trataram de se afastar
imediatamente dele, conscientes de que o ambicioso primeiro-centurião
acabara por exceder os limites das conveniências.
— Abandonar a perseguição? — ecoou o líder.
Vulpa encarou a pergunta como um convite para aprofundar o assunto,
enquanto o líder reconhecia que o arrastava para os erros inevitáveis do
decoro de cylon e lamentava que tal sucedesse, mas não lhe restava qualquer
alternativa, visto que um cylon acabava de proceder de uma forma pouco em
conformidade com a sua raça.
— Proponho que deixemos os humanos prosseguir a sua investigação
insensata até aos confins do espaço conhecido — continuou Vulpa, num tom
arrogante que excedia a sua posição oficial. — Desde que não contaminem
qualquer parte dos nossos domínios, não constituem uma ameaça justificativa
do esbanjamento contínuo do tempo e pessoal dos Cylons. De resto,
alcançámos o nosso objetivo. À exceção daquele pequeno bando de
sobreviventes em fuga e uns humanos escravizados dispersos por planetas
remotos sob o nosso domínio, a raça humana foi exterminada. Vencemos a
guerra.
— Pretende criticar a minha decisão? — inquiriu o líder imperial
delicadamente, conferindo ao subordinado uma derradeira oportunidade de se
retirar da incômoda posição.
— A sua sabedoria e discernimento são vitalmente necessários nos
nossos mundos. Até o aclamariam por abandonar os...
— Silêncio, primeiro-centurião Vulpa! Assume o meu direito de
julgamento omnisciente. Enquanto houver um humano livre vivo, as
possibilidades de eles voltarem em número elevado mais tarde representam
uma ameaça que não podemos ignorar. Os humanos reproduzem-se mais
rapidamente que os Cylons, embora o seu período de vida seja mais curto.
Esqueceu como os seus recursos fizeram com que a guerra contra eles
durasse muitíssimo mais do que o previsto? Ainda agora os insetos humanos
vencem batalhas e escaramuças contra nós. Lembre-se de que uma pequena
esquadrilha de vipers arrasou a nossa muralha de ataque de caças na Batalha
de Carillon. Não descansarei enquanto não os exterminarmos por completo.
Um período de exílio, primeiro-centurião Vulpa, servirá para compreender a
importância dos meus objetivos e porventura atenuar os seus deploráveis
impulsos de ambição.
Ao ver Vulpa afastar-se, pesaroso, da ponte de comando, o líder imperial
quase se compadecera do centurião castigado. Todavia, há muito que previra
que o oficial acabaria por dar origem a semelhante medida. As excessivas
manifestações de ambição tinham de ser neutralizadas. Era óbvio que
esperava tornar-se o líder imperial seguinte, e não lhe faltavam qualidades
para tal, se conseguisse dominar a ambição que deixava transparecer tão
abertamente.
A ambição representava uma característica rara entre os Cylons, e o
próprio líder imperial só suspeitara do significado do termo quando fora
reconhecido terceiro-cérebro e obtivera poderes absolutos sobre a Aliança
Cylon.
Vulpa, porém, sempre fora uma espécie de cylon renegado. Como piloto
de caça, quando ainda não ultrapassara a categoria de primeiro-cérebro,
revelava-se mais agressivo que os camaradas, tão alucinadamente que parecia
incrível que tivesse sobrevivido até se tomar segundo-cérebro e, mais tarde,
oficial superior. Em regra, os cylons do nível de Vulpa sabiam exibir uma
atitude de obediência absoluta, quer a sentissem quer não. O líder imperial
acalentava a esperança de que o exílio lhe incutisse um pouco de bom senso,
pois era evidente que possuía o potencial para se tornar o líder imperial
seguinte, além de capacidades que o fariam ser excepcional naquele cargo.
Agora, tudo indicava que o exílio do primeiro-centurião resultaria
vantajoso para os Cylons. Na verdade, era o melhor oficial que se poderia
encontrar no planeta gelado Tairac. No fundo, um cylon com os recursos de
Vulpa constituiria a mola principal da armadilha.
Como sempre, o líder imperial desfrutava com a elaboração dos
pormenores do seu plano. Os pormenores eram confortantes. Se a sua cabeça,
agora coberta pelo maciço capacete de comunicações, pudesse ser vista pela
intrincada rede de oficiais em torno do seu pedestal, estes observariam uma
aura reluzente destacando-se de cada olho. Os poucos humanos que haviam
visto o impressionante chefe alienígena tinham experimentado assombro e
repulsa, tanto em virtude dos numerosos olhos da criatura, como devido ao
seu corpo irregular e desequilibrado (assemelhava-se a um monte de pedras
dispostas a esmo) e também por causa do aspecto insólito da pele repleta de
poros largos. À medida que aumentava a capacidade do líder imperial para
imitar os processos de raciocínio humano, descobria que devia de fato
parecer repelente aos olhos do inimigo. A perceção que estes tinham dele
como uma fera hedionda contribuía para que odiasse ainda mais a peste
humana. Sobretudo porque, para ele, um humano era a coisa mais horrível
concebível do universo, que continha uma diversidade de espécimes
detestáveis.
Enquanto aguardava as primeiras informações sobre o início da sua atual
estratégia — um ataque de surpresa à periferia da esquadrilha de sucata—, o
líder recapitulava o seu plano global. Não lhe encontrava qualquer
deficiência, mas continha lacunas. Necessitava de obter elementos que
evitassem que elas permitissem mais uma das fugas afortunadas dos
humanos. Mais uma sessão com o simulador poderia proporcionar-lhe dados
sobre o comportamento humano, susceptível de lhe revelar pormenores
fundamentais sobre os seus padrões, aparentemente incoerentes, de
motivação e ação. Já se inteirara de alguns elementos básicos através da
análise de vários simulacros. Ordenou a um oficial superior que mandasse
transferir o simulador para as instalações do comandante, após o que seguiu
para lá, onde já o foi encontrar.
Inclinando a cabeça para o tempereiro telepático ao centro da consola do
simulador, pediu mentalmente a simulação do comandante Adama, chefe da
esquadrilha humana. Como sempre, Adama revelou-se uma operação
demasiado difícil para o simulador. As margens do seu simulacro
apresentavam-se imprecisas. Sabia-se muito pouco do comandante — como
não havia informações suficientes a seu respeito armazenadas nos bancos de
dados do simulador, este não podia fornecer um duplicado exato. Fosse o que
fosse que o líder exigisse, a forma indistinta de Adama facultava elementos
insuficientes. Por vezes não conseguia dar qualquer resposta e limitava-se a
encarar o líder com indiferença. Tornava-se impossível extrair o mínimo
pensamento íntimo ou associações reveladoras do simulacro de Adama. Por
fim, o líder mandou-o retirar com abruptidão e chamou o filho de Adama, o
capitão Apollo, cujo simulacro se apresentou mais nítido.
Os humanos consideravam o jovem bem-parecido, o que tornava aquele
simulacro ainda mais repelente aos olhos do líder. Afortunadamente, podia
libertar sinapses no seu terceiro-cérebro para eliminar a reação fisiológica da
simulação. Fez algumas perguntas a Apollo, mas pouco mais apurou do que
obtivera do simulacro do comandante Adama. Segundo parecia, as
informações do simulador relativas ao filho eram quase tão escassas como as
que se referiam ao pai.
O líder imperial pediu um rastreio de informação que sugerisse nomes
acerca dos quais o simulador tivesse acumulado mais dados. Como a maior
parte dos elementos sobre os humanos era obtida dos prisioneiros, o
simulador continha frequentemente melhores informações sobre os oficiais-
chave em posições inferiores de comando, em contato mais direto com os
guerreiros em ação. Na lista do écran, reconheceu o nome de Starbuck, um
humano heroico à sua maneira (ou, pelo menos, eles assim pensavam), que
costumava ser mencionado com frequência nos interrogatórios dos Cylons.
Por fim, indicou ao tempereiro que fornecesse uma simulação desse tenente
Starbuck.
De repente, sentado diante do líder imperial, encontrou-se um humano
de olhos tão brilhantes e perscrutadores que lhe recordaram os raios
luminosos provenientes dos capacetes dos guerreiros cylons. O rosto de
Starbuck abriu-se imediatamente num largo sorriso. Os humanos pareciam
experimentar um prazer singular em sorrir. O líder congratulava-se por ter
desligado a reação fisiológica à vista dos humanos, de contrário não
conseguiria suportar a imagem daquele indivíduo sorridente de olhos
brilhantes.
— Olá, amigo — proferiu o simulacro de Starbuck.
A saudação surpreendeu o líder imperial, porquanto os simulacros — no
fundo, programados a partir dos bancos de dados do simulador — raramente
iniciavam uma conversa.
— Suponho que me dirijo ao tenente Starbuck, da estrela-de-batalha
Galactica?
— Deixe-se de fantasias, cylon. Sabe perfeitamente que sou tanto
Starbuck como você um viçoso lírio do vale. Não passo de uma reprodução, e
estrangulava-o se as minhas mãos possuíssem alguma substância.
O líder lançou uma olhadela fugaz ao tempereiro do simulador,
perguntando-se se o dispositivo teria alguma anomalia. Era altamente
invulgar que programasse tanta independência num simulacro — a menos,
claro, que a independência fosse uma característica tão arreigada no homem
que se tomava impossível separá-la do perfil mental, emocional e fisiológico
extraído do simulador. Existia a possibilidade de aquele Starbuck se revelar
extremamente útil, nem que fosse apenas como um estudo da independência
de pensamento dos humanos. O líder poderia elucidar-se consideravelmente a
partir da atitude arrojada e insultuosa do jovem oficial. Poderiam estabelecer-
se relações capazes de preencher as lacunas da estratégia que concebera.
— Quantas naves restam na vossa frota, tenente?
— Tantas quantas as partículas de imundície entre os dedos dos seus pés,
cylon — replicou Starbuck, com uma gargalhada.
— Os Cylons não têm dedos nos pés.
— Então, talvez nós não tenhamos qualquer nave — admitiu, parecendo
sinceramente surpreendido.
— Sabemos que a vossa frota ainda conta com muitas naves e...
— Então, é melhor inspecionar mais atentamente a imundície entre os
dedos dos seus pés.
— Já lhe disse que os Cylons não têm...
O líder imperial fez uma pausa. O simulacro de Starbuck não só tomava
a iniciativa do diálogo, como ainda por cima interrompia. Decididamente o
interrogatório resultaria difícil e talvez até muito desagradável.
***
Quando surgiu o ataque de surpresa dos Cylons, o comandante Adama
encontrava-se numa sala de aula a bordo na nave de pesquisas Infinity,
leccionando o grupo de cadetes de voo de aspecto mais incipiente que jamais
vira. Os rapazes olhavam-no como alunos de instrução primária que
prefeririam aprender a história dos Doze Mundos a debruçar-se sobre os
complexos meandros da aerodinâmica dos caças e manobras de combate. Um
dos mais jovens da primeira fila não parecia mais velho que Boxey, o neto
adoptivo de Adama. Notando a expressão vítrea nos olhos do cadete, o
comandante ponderava se haveria maior perigo em confiar os comandos de
um viper a Boxey, de seis anos, do que àquele rapaz apático. Tinham-lhe
garantido que a nova leva de cadetes tinha a idade legal, mas os perigos que
necessitariam de enfrentar após a conclusão do curso de treino abreviado
eram tão consideráveis, tão terríveis, que Adama gostaria que não
precisassem de ser tão jovens. No entanto, eram todos voluntários. Quando
foi transmitido o apelo às centenas de naves da frota, o comando recebeu
candidaturas em número suficiente para tripular e pilotar pelo menos cem
esquadrilhas... Se dispusessem de naves suficientes para constituir esse
número de esquadrilhas.
O transe desesperado que a frota atravessava não era atenuado pelas
condições inadequadas e improvisadas em que os novos guerreiros se tinham
de treinar. Uma nave de pesquisa não podia substituir uma academia espacial
devidamente equipada e guarnecida de docentes, embora a faculdade
conseguisse converter laboratórios enormes em ginásios, áreas de voo
simulado e câmaras de ensaio de condições de combate. Adama evocou
mentalmente a academia espacial que frequentara no seu planeta natal,
Caprica, agora destruído. A Academia Capricana dispunha dos estrategos
militares mais brilhantes dos Doze Mundos, enquanto as aulas a bordo do
Infinity eram conduzidas por oficiais demasiado incapacitados para
conservarem os seus postos e pilotos gravemente feridos em combate. A
Academia Espacial vangloriava-se de possuir a melhor tecnologia existente.
Qualquer situação de combate, voo ou apoio podia ser reproduzida dentro das
suas paredes ou nos numerosos estádios de manobras. As facilidades do
Infinity eram aceitáveis, desde que uma pessoa não as inspecionasse duas
vezes.
Não obstante, essa improvisação representava a chave do êxito constante
da frota na sua evasão à força principal dos perseguidores cylons. Cada
membro da tripulação de cada nave consagrava o máximo do seu tempo à
melhoria da eficiência e velocidade da frota. Meia dúzia de cargueiros tinham
sido transformados em fundições voadoras, as quais, por seu turno,
convertiam sucata metálica e outros materiais em caças para a tripulação de
pilotos de caças da Galactica. Todos os componentes da frota se haviam
tomado scavengers1, que procuravam metais dispersos e componentes
electrónicos postos de lado no seio das suas naves e nos poucos planetas que
se lhes deparavam com material disponível. Atendendo às fontes da sua
construção, os vipers que agora saíam da fundição podiam considerar-se
veículos notavelmente bem confeccionados. Sem dúvida que estavam mais
expostos a avarias técnicas e mecânicas que os caças provenientes das
esquadrilhas originais, mas isso era natural, em face da rapidez forçada da
construção, substituições, tensões aplicadas aos metais usados, características
que tomavam os novos veículos um pouco menos manobráveis e um pouco
mais atreitos a deficiências de funcionamento que com frequência
acompanham a improvisação.
Apesar de tudo isso, Adama admirava-se constantemente com o que os
pilotos experientes conseguiam fazer, mesmo com equipamento precário. Um
piloto como Starbuck, Boomer ou Apollo sabia operar maravilhas com
qualquer caixote voador que lhe colocassem nas mãos. Mas os cadetes da
academia espacial improvisada não possuíam a capacidade instintiva para
corrigir a rota, emergir de um «parafuso» ou efetuar uma aterragem suave,
quando todo o equipamento à sua volta emitia chuvas de faúlhas. Mesmo
assim, as suas folhas de serviços sob fogo inimigo não eram más... Um
tributo à capacidade de comando e instinto de proteção dos pilotos
experientes e oficiais de voo. Starbuck, por exemplo, inspirava tanta
confiança à esquadrilha que um cadete na sua primeira ejecção dos tubos da
Galactica conseguia com frequência proezas aerodinâmicas miraculosas. O
próprio Apollo, mais militarista que os outros jovens oficiais e mais distante
das tripulações sob seu comando, operara maravilhas na ajuda aos novos
cadetes. Era lamentável que não os pudessem treinar melhor e proporcionar-
lhes mais voos para adquirirem prática. A conservação de carburante e o
perigo constante de um ataque cylon tornavam impossíveis os voos que não
se relacionavam com a batalha, reconhecimento ou exploração planetária.
O tema fundamental da preleção de Adama era a necessidade das
precauções, mensagem que necessitava de repetir com frequência, mesmo aos
oficiais experientes. Insistia em afirmar que não constituía manifestação de
cobardia o afastamento de um fenômeno planetário ou interespacial, quando
os instrumentos de bordo registavam a mínima ameaça de perigo. Não era
vergonhoso nem censurável retirar de uma batalha com os Cylons, quando as
forças alienígenas se apresentavam largamente superiores em número. Não
merecia a mínima reprovação levar uma mensagem importante à frota,
mesmo que isso implicasse abandonar alguns pilotos envolvidos num
combate aparentemente desastroso.
Contemplando os semblantes dos cadetes, Adama apercebia-se de que,
embora se esforçassem por exibir expressões de respeito para com um oficial
cujo nome era lendário entre eles, ainda não se achavam preparados para
aceitar a sua mensagem. Aliás, nem o próprio Adama tinha a certeza de a
apresentar com sinceridade total. Recordava-se da amargura de Apollo,
quando fora forçado a abandonar o irmão Zac sob intenso fogo dos Cylons, a
fim de poder regressar à Galactica e advertir a frota da emboscada do
inimigo. Zac perdera a vida, e transcorrera muito tempo antes que Apollo
deixasse de se sentir culpado da sua morte. Ainda agora, Adama não tinha a
certeza de que o filho houvesse superado a sensação de culpa. De qualquer
modo, Apollo agira da forma conveniente e o seu aviso à frota permitira a
fuga de um punhado de humanos à maciça máquina de guerra dos Cylons.
Afigurava-se trágico a Adama que Apollo, porventura o mais destemido
de todos os oficiais da Galactica, nunca tivesse disposto de um momento em
que as emoções lhe permitissem sentir-se na verdade um herói. Tratava-se de
um mero epíteto que lhe fora atribuído, como uma medalha que nunca
retirasse do estojo para exibir com orgulho.
— Alegra-me que Apollo seja tão reticente acerca do seu heroísmo —
observara a filha de Adama, Athena, quando o pai abordara o assunto. —
Nunca confiei num herói que se vangloriasse dos seus feitos.
— O teu amigo, tenente Starbuck, não parece muito relutante em ventilar
as proezas cometidas.
— Trata-se de uma exceção a numerosas regras. E não pense que o
sarcasmo passou despercebido.
Adama sabia que Athena sentia algo semelhante a amor por Starbuck,
pelo que se absteve de explorar o tema. Ela fingia sempre que os seus
sentimentos pelo arrojado e imodesto oficial não eram tão profundos como
realmente acontecia.
O sinal de alarme anunciando o ataque dos Cylons soou a meio da
preleção de Adama e os cadetes levantaram-se com prontidão, conscientes
dos seus deveres. O comandante largou os apontamentos no sobrado e
precipitou-se para a rampa de lançamento, onde o aguardava a sua naveta,
pilotada por Athena. Assim que se fixou no assento, sentiu o agradável
solavanco enquanto o veículo deslizava pelos tubos de lançamento, a fim de
ser expelido do Infinity.
— Que temos, desta vez? — perguntou à filha, que escutava a série
ininterrupta de mensagens que acudiam às linhas de comunicação da naveta.
— Nada de extraordinário. Um punhado de caças cylon conseguiu
perfurar o campo de força de camuflagem. Mais valia que puséssemos de
parte o campo de força, para o que nos serve. Sempre economizávamos
energia. Os Cylons detectam-nos com grande frequência.
— Começo a perguntar-me se não saberão onde estamos a todo o
momento.
— Talvez tenha razão.
A concordância de Athena acentuou as suspeitas de Adama. Ela possuía
notáveis capacidades de comando e rejeitara vários lugares importantes para
permanecer a bordo da Galactica. Ele sempre considerara valiosas as suas
opiniões, mesmo quando não coincidiam com os seus instintos.
— Que há a respeito da emboscada?
— Só atingiram uma das nossas unidades — informou a rapariga. — A
nave-fundição Hephaestus, que sofreu estragos superficiais, fáceis de reparar.
— E quanto a baixas entre os Cylons?
— Não foram especificadas. A mensagem de Boomer diz que
aniquilaram uma série de luzes vermelhas antes de baterem em retirada.
— A sorte voltou a proteger-nos.
— Starbuck anunciou que ia fazer um donativo de uma elevada
percentagem de sorte para distribuir por todas as tripulações em luta.
A gargalhada de Adama foi demasiado breve e seca, e Athena olhou-o
com apreensão.
— Preocupa-o alguma coisa.
— A sorte. Temos tido demasiada. Mantemos vantagem sobre os Cylons
há muito tempo. Parte disso deve-se à nossa perícia e parte à sorte.
— Acho natural preocupar-se com a possibilidade de ela se voltar contra
nós, mas...
— Não é isso que me apoquenta. De resto, penso que a sorte não passa
de um domínio instintivo dos nossos recursos humanos naturais. O que me dá
que pensar é o fato de me parecer demasiado oportuna, demasiado calculada.
— Receio não estar a...
— Às vezes, sinto a impressão nítida de que os Cylons têm alguns
cordelinhos presos a nós e os movem como se manipulassem marionetes.
Parece que os seus ataques não se destinam a triunfar, servindo antes para nos
encaminhar para determinadas formas de proceder.
— É uma teoria um pouco forçada. Se não o conhecesse bem, diria até
que a considero paranoica. E, se não o conhecesse...
Ela interrompeu-se com uma expressão pensativa e fingiu-se
concentrada no exame dos instrumentos que verificara poucos momentos
antes.
— Desembucha — urgiu Adama. — Que ias dizer?
Athena encheu os pulmões de ar antes de declarar:
— Estive a analisar um relatório sobre a última emboscada dos Cylons,
aquela em que os nossos homens dizimaram quase todo o contingente de
guerreiros inimigos. Tigh sublinhou uma passagem e inscreveu um ponto de
interrogação na margem da folha. Os nossos detectores pareciam indicar (e
saliento a palavra pareciam) que não havia nenhuma forma de vida de
qualquer espécie no interior de duas das naves destruídas. É claro que as
observações tinham sido feitas sem método e as suas leituras podem carecer
de rigor, sobretudo por serem efetuadas em situação de combate, na qual nem
todas as unidades cylon foram alvo de um rastreio eficiente. Em todo o caso...
— É uma informação interessante e compreende-se que Tigh nos
chamasse a atenção para ela.
— Exatamente.
— Na tua opinião, que significa?
— Não tenho bem a certeza. Que possibilidades há de os caças serem
telecomandados por cylons de bordo das naves que se escaparam?
— É uma hipótese que merece ser encarada.
— Adapta-se à sua teoria das marionetes, hem?
— Eu disse que era merecedora de consideração. — Vendo a filha rir,
Adama acrescentou: — Detecto uma ponta de escárnio na tua risada, minha
menina.
— Mesmo que as suas botas tivessem asas, resistia à tentação de dar um
passo em falso, pai.
— Não me deves chamar pai nas horas de serviço.
— Arrisco-me a ser castigada por afeto insubordinado?
— Um par de semanas de serviço num recinto prisional só te fariam
bem.
— Convenceu-me, senhor.
A Galactica pairava agora diante deles, assemelhando-se, aos olhos de
Adama, a uma espécie de pedra preciosa (uma joia metálica sobre o veludo
negro do espaço, no Museu Universal de Caprica). Ao lado dela, o resto da
frota parecia um conjunto de joias de valor modesto. Aqueles veículos
continham os únicos sobreviventes da cruel emboscada dos Cylons que
destruíra os Doze Mundos e a maior parte dos seus habitantes.
Adama experimentou uma sensação de dor no peito ao recordar o dia em
que, impotente na ponte de comando da Galactica, vira os Doze Mundos
devorados pelas chamas, escutara as transmissões dos humanos dominados
pelo sofrimento, assistira à queda dos planetas nas mãos escravagistas dos
Cylons e emitira o toque de clarim para reunir os humanos que puderam
furtar-se à captura, levando as suas naves para a frota. A sobrevivência
contínua destas últimas perante os assaltos dos Cylons testemunhava da
coragem do que restava da raça humana, da coragem inerente a todos os
humanos. Naves destinadas a fins comerciais, de transporte ou abastecimento
tinham conseguido atuar como unidades de combate. Uma delas, com os
dizeres « Mudanças Colonial — Efetuamos Transportes para toda a Parte» no
costado, conseguira, com armamento improvisado, repelir uma esquadrilha
de caças cylons, proeza que fora traduzida numa canção e lendas que
circulavam entre as pessoas refugiadas a bordo das naves.
Adama orgulhava-se da forma como a sua esquadrilha de sucata,
segundo a designação corrente, se comportara até então. No entanto, o receio
de que, um dia, se registasse um ataque em que o engenho e perseverança
humanos ficassem impossibilitados de neutralizar as investidas dos Cylons
povoava-lhe insistentemente o sono.
***
Cada vez que reclinava a cabeça no apoio do assento e via Jenny, sua
chefe de tripulação, fechar a canópia à volta dele, Starbuck sentia-se assolado
pelo mesmo desejo. Se ao menos tivesse um charuto...
Fartara-se de pedir a Boomer, perito nos aspectos botânicos dos
dispositivos do fumo, que desenvolvesse um charuto que não se esmagasse
contra a parte da frente da canópia ou enchesse o reduzido espaço de uma
densa fumarada e pudesse ser adaptado ao equipamento de respiração e
comunicação. Todavia, Boomer ria com gosto e explicava que, embora
julgasse possível conter o fumo num cilindro de dimensões apropriadas e até
descobrir uma maneira de o adaptar ao equipamento de respiração, duvidava
de que o Núcleo de Comando aprovasse um dispositivo tão revolucionário.
Os Núcleos de Comando mostravam-se sempre relutantes em aceitar as
noções de combate realmente inovadoras, acrescentava secamente.
— Tenente Starbuck?
A voz aguda, talvez deformada pelos «atmosféricos» que interferiam na
transmissão, parecia a de um adolescente, um pouco efeminada.
— Que há, cadete Cree?
Starbuck viu o rosto do rapaz na sua mente — olhos de expressão
infantil, lábios ávidos e cabelos revoltos. Seria imaginação sua, ou Cree tinha
várias sardas no nariz e imediações? Não, não era sardento.
— Tenente, aquilo que disse no briefing sobre tomar todas as precauções
e só fazer fogo quando...
— Sim, foi isso mesmo. Por quê? Usei demasiadas palavras de duas
sílabas ou quê?
— Não se trata disso. Compreendi perfeitamente. Mas foi-nos ensinado
que, em certas ocasiões, a iniciativa agressiva era...
— Sim, mas é muito diferente quando nos encontramos na cabina dum
viper. Entendido?
— Sim, senhor, mas...
Starbuck suspirou. Dava a impressão de que em cada três ou quatro
cadetes havia um como aquele: ainda não totalmente preparado para fazer
parte de uma esquadrilha, demasiado ansioso para pôr em prática lições mal
assimiladas e, por outro lado, pouco inclinado a encarar sequer a hipótese de
morte ou dor.
— Ouça, cadete Cree. Quando tiver tomado parte em algumas missões
de combate, saberá tudo o que há para saber sobre a iniciativa agressiva. Até
lá, obedeça à Regra Dourada de Starbuck.
— Regra Dourada?
— Conserve-se calado quando alguém pretende alguma coisa, planeie a
maneira de os apanhar mais tarde e nunca se ofereça, mesmo que a missão
pareça um mar de rosas.
— Não acho muito...
— Esta é uma das alturas em que se deve conservar calado.
— Pois sim, tenente.
Soou uma breve risada divertida na linha, soltada pelo companheiro de
equipa de Starbuck, Boomer.
— Penso que o jovem guerreiro aprendeu a lição — observou este
último.
— Qual lição?
— Ficou sabendo o que significa ser starbuckiado.
Starbuck sorriu. Na gíria da esquadrilha, ser starbuckiado representava
deixar-se arrastar para uma situação menos airosa, no jogo, numa batalha ou
muna argumentação.
Uma luz azul começou a cintilar no painel de comando do viper, por
meio da qual a ponte de comando informava que todas as naves se
encontravam preparadas para o lançamento. A voz grave e bem modulada do
coronel Tigh, adjunto do comandante, vibrou na linha:
— Sonda do espaço exterior. Esquadrilha Azul. — Starbuck contraiu os
músculos, pois sabia que era o primeiro a partir. — Lançamento do primeiro!
Sentiu-se repentinamente colado ao banco do cockpit, quando o caça
iniciou a longa propulsão para abandonar os tubos de lançamento da estrela-
de-batalha Galactica. A voz de Tigh voltou a soar na linha:
— Lançamento do segundo!
Foi a vez de Boomer ser catapultado da segunda rampa. Starbuck
corrigiu o rumo do seu viper no momento em que abandonou o tubo e
descreveu um largo arco sobre a maciça nave de comando. Ao mesmo tempo,
pelo canto do olho, viu Boomer executar idêntica manobra com o seu caça,
após o que pairou ao lado do caça de Starbuck.
— Atenção unidade da Academia de Voo — ordenou Tigh. — Cadetes
Cree, Bow e Shields: preparem-se para o lançamento.
Cada uma das naves dos cadetes foi lançada sucessivamente, e os cinco
caças de sondagem avançada dispuseram-se numa formação em estrela à
frente da Galactica. Starbuck premiu um botão de sinalização do quadro de
comando, a fim de advertir os outros pilotos de que ligassem as turbinas para
maior propulsão. Os cinco caças, incluindo os três vipers improvisados
acabados de sair das fundições, foram acelerados uniformemente pelos
respectivos pilotos. Atrás deles, a estrela-de-batalha de comando pareceu
distanciar-se subitamente, até que se converteu num ponto ao longe.
Starbuck sentiu um arrepio ao contemplar o espaço aparentemente
deserto à sua volta. Nem as remotas estrelas cintilantes lhe incutiam a mínima
confiança de que nada havia ali. Há qualquer coisa, sem dúvida, refletia.
Quanto mais não seja, cylons. Por ai, algures. Atrás de nós, à frente. Ou até
por cima ou por baixo. Soltou uma leve risada, lembrando-se de que Boomer
costumava dizer, nas horas de ócio, que «atrás», «à frente», «por cima» ou
«por baixo» eram conceitos que não existiam, quando uma pessoa se achava
só no espaço. Cada inclinação da nave, a mínima alteração do ângulo de voo,
cada anomalia nos instrumentos de registo — todas essas alterações
modificavam a realidade do piloto. Boomer manifestava particular predileção
por expressões como «modificação da realidade». De certo modo, a longa
amizade de Starbuck com o corajoso, inteligente e experiente Boomer
alterava a sua própria realidade de forma positiva. Com efeito, o amigo fazia-
o readquirir o equilíbrio cada vez que os ângulos da sua vida oscilavam, e
acudia-lhe quando se envolvia em apuros.
Starbuck consultou o painel de rastreio, que agora expunha, em silhuetas
electrónicas, a formação da esquadrilha. Uma das naves desviara-se
ligeiramente e parecia adquirir uma trajetória perigosa.
— Atenção, Boomer. O fulano a teu lado prepara-se para te cortar a
cauda.
Registou-se uma breve pausa, antes de o visado, que decerto tentava
identificar o piloto desviado da formação, se pronunciar:
— É você, cadete Cree?
— Sim, senhor — admitiu uma voz tensa de adolescente.
— Continue a aproximar-se e derrete todo o nariz do aparelho.
O caça de Cree desviou-se ligeiramente para trás. Mas apenas
ligeiramente. Imaginando o rapaz sardento — não, não era sardento —, de
fronte franzida, Starbuck descobriu com surpresa que se sentia
simultaneamente divertido e irritado com o arrojo insensato do jovem cadete.
— O nosso instrutor ordenou que nos mantivéssemos unidos —
anunciou Cree com autoridade.
É capaz de ter levado um quadro preto para o «cockpit», pensou
Starbuck.
— O vosso instrutor ficou na base, provavelmente a jogar sete-onze,
com uma bebida ao alcance da mão — replicou Boomer. — Você, meu caro
piloto do céu, está a bordo de uma sonda do espaço exterior. Há riscos que
não pode evitar parando o veículo de voo simulado e levantando a mão para
fazer uma pergunta ao instrutor!
— O nosso instrutor nunca nos deixa levantar...
— Cadete! Este voo, apesar de mera rotina, é diferente de tudo o que
experimentou na nave de treino Infinity.
Não é a mesma coisa que errar numa simulação. Se aquecer de mais,
evapora-se. Afaste-se da minha cauda, está bem?
Cree deixou transcorrer uns segundos antes de assentir:
— Sim, senhor.
Starbuck voltou a examinar o écran de rastreio e viu o cadete retomar a
posição apropriada na formação. O rapaz tinha de ser vigiado, de contrário
converter-se-ia em destroços espaciais na primeira vez que alguma coisa
corresse mal. Qualquer que fosse a natureza de uma missão, surgia sempre
uma complicação — uma nave construída tão apressadamente que não
aguentava a tensão da batalha ou um piloto que não se encontrava em
condições de participar numa operação fora dos campos de treino. Starbuck
suspirou. Para algumas pessoas, as atuais dificuldades das esquadrilhas de
combate da Galactica não passavam de contingências da guerra. Ele tinha
demasiados problemas a assolá-lo, para encarar a guerra numa perspectiva
tão horrivelmente materialista. Se existia alguma figura de retórica orientada
financeiramente que se lhe aplicasse era a de que a guerra — pelo menos, o
gênero de batalhas que Starbuck e os seus tinham de combater— constituía a
aposta de uma partida de cartas em que cada participante ia elevando a parada
até que um deles expunha a «mão» vencedora. Ou, como acontecia com
frequência no caso do tenente Starbuck, o jogador vitorioso conseguia evitar
que lhe descobrissem o bluff.
***
Adama viu o coronel Tigh traçar uma linha no mapa do campo de
estrelas. Os finos dedos de aristocrata do coronel pareciam pretender criar as
suas trajetórias individuais na carta. Há muito, durante a guerra de mil anos
que terminara abruptamente com a simulada oferta de paz dos Cylons e sua
subsequente emboscada aniquiladora, Adama e Tigh tinham sido pilotos de
combate e partilhado uma reputação de bravatas e proezas, mais ou menos
como a de que agora desfrutavam os destemidos tenentes Starbuck e Boomer.
As duas equipas de combate, uma do passado e outra do presente,
assemelhavam-se em centenas de maneiras. Ambas contavam feitos de
combate extraordinários, eram escolhidas para as missões mais perigosas e
até possuíam composições similares, pois cada uma incluía um branco e um
negro. E (embora Adama sentisse embaraço em o reconhecer) existiam claras
semelhanças na composição das personalidades dos duos do passado e do
presente. Se bem que nunca o revelasse a Starbuck, Adama fora um jovem
igualmente intrépido e, por vezes, irrefletido, que se envolvera em proezas
arriscadas, sobretudo se pareciam preparadas para o pôr à prova. E, em
numerosos aspectos, Tigh fora o Boomer de Adama, corajoso e igualmente
arrojado. No entanto, Boomer e Tigh sabiam quando deviam refrear
aventureiros como Starbuck e Adama, quando a prudência devia substituir a
intrepidez como palavra de ordem. Era lamentável que Tigh não tivesse
conquistado o lugar de comandante de estrela-de-batalha, que tanto merecera.
Infelizmente para ele, mostrara-se imprudente na forma de manifestar
opiniões, no lugar errado, pelo que os postos de comando lhe haviam sido
sempre negados. Adama recomendara-lhe com insistência que medisse as
palavras, porém ele nunca mostrava a mínima hesitação em revelar o que
pensava, indiferente às situações. Na ponte de comando da Galactica, Adama
apreciava a franqueza do amigo e até confiava nela. Não obstante, merecia o
posto de comando, e ele ter-lho-ia obtido, se houvesse mais estrelas-de-
batalha para comandar.
— Já temos a nossa nova rota de voo — informou Tigh. — O rumo
corrigido encontra-se aplicado.
Adama estudou o rumo e a mudança de vector que o outro introduzira.
— Não me agrada — articulou a meia voz.
— Mas é o único que faz sentido. — Tigh parecia surpreendido. — E
repara que nos afasta ainda mais de...
— Mesmo assim, não me agrada. Tudo o que se ajusta com tanta
simplicidade e conveniência, tem de ser examinado mais atentamente. Para
nossa própria segurança.
— Julguei que ficasses contente. — Desta vez, esboçou um sorriso
irônico. — Destruímos dezesseis naves cylon, no último assalto.
— Quantas eram tripuladas?
Tigh hesitou antes de responder:
— O rastreio que efetuamos a cinco não indicou a presença de pilotos no
cockpit. Mas bem sabes que, em pleno combate, os instrumentos não podem
oferecer o rigor normal.
— Em todo o caso, não é absurdo supor que os Cylons nos enviam naves
sem tripulantes.
— Como especulação, é...
— Talvez queiram que destruamos esses atacantes. Para nos embalar.
Tigh aquiesceu com uma inclinação de cabeça.
— Confesso que já tinha pensado nisso. Leste o meu relatório, de resto.
Por outro lado, as suas forças de choque retrocederam para aqui. — Pousou o
dedo no mapa do campo estelar. — Fica a uma distância considerável e
parece indicar que voltaram a perder-nos o rasto.
Adama fixou o olhar no grupo de luzes do sector do mapa que o amigo
indicava.
— Duvido. Penso que continuam no nosso encalço, embora se
mantenham a uma distância prudente. E o mesmo se aplica às suas naves-
bases. — Desviou os olhos do mapa. — Uma coisa é certa: não podemos
retroceder.
— Alguma vez o fizemos?
Apercebeu-se do tom de frustração na voz do seu adjunto e
compreendeu-o. Com efeito, Tigh exprimia com frequência o desejo de
poderem parar de fugir à esquadrilha de choque dos Cylons, para efetuarem
meia volta e fazer desaparecer a sua máquina de guerra do espaço.
— Repara nisto. — Adama extraiu da algibeira um pequeno tubo
cilíndrico e, ajustando a luz laser até formar uma linha estreita, orientou o
raio para o mapa, começando por o apontar ao topo do campo estelar. — Por
cima de nós, encontra-se o planeta Cassarion, identificado no livro de guerra
como um posto avançado cylon. Portanto, não podemos seguir nessa direção.
— Deslocou a luz para a parte inferior do mapa. — Por baixo, temos a
cintura de asteroides Sellian, constituída por milhões de fragmentos do
mundo que os Cylons destruíram. Nunca a conseguiríamos atravessar.
Apollo, Starbuck e Boomer não teriam a mínima hipótese de a perfurar, como
fizeram naquele campo de minas de Carillon.
— Nesse caso, a nossa rota é óbvia — observou Tigh. — Sempre em
frente. Os nossos batedores revelaram uma passagem segura.
— Era demasiado fácil — considerou Adama, a meia voz.
— Como disse, comandante?
Adama levantou a voz:
— A última derrota dos atacantes cylon, a sua retirada repentina...
— Mas a Galactica preparava-se para lhes cair em cima.
— Sim... Dava essa impressão.
— Qual é a verdade? — perguntou Tigh, com um clarão de
entendimento no olhar.
— Verdade, talvez não. Mais que verdade. Chamemos-lhe instinto.
Penso que nos manobram subtilmente e conduzem para essa passagem segura
à nossa frente.
Athena, que entretanto se aproximara, inquiriu:
— Mas por quê? — Lançou uma olhadela ao campo estelar, parecendo
ver nas suas linhas, arcos e luzes cintilantes o vazio negro com as suas
escassas estrelas que era a realidade representada pelos símbolos no mapa. —
Que haverá ali?
— Não sei. Fantasmas, provavelmente. Planetas hostis ou amigos. É
possível que desta vez se nos depare a Terra, se na verdade não se trata do
produto imaginário de uma lenda. — Adama voltou-se de novo para Tigh. —
Acho que devíamos enviar lá mais patrulhas de batedores. Que tens? Pareces
relutante. Por quê?
— Os nossos caças têm andado numa roda-viva. Estão estourados.
— Estourados estamos nós todos. Não é só isso que te preocupa, hem?
De que se trata?
— Vamos ter de nos socorrer de mais cadetes da academia, o que me
parece perigoso.
Adama pensou nos cadetes que vira pouco antes e na exaustão
emocional que experimentara ao dirigir-se-lhes. Desejava ordenar ao seu
adjunto que mandasse recolher todos à base, mas reconhecia que era
impossível.
— Claro que é perigoso, mas não dispomos de qualquer alternativa, com
uma patrulha de choque cylon provavelmente na nossa peugada, e quem sabe
que mais. —Fez uma pausa, enquanto Tigh aquiescia com um movimento de
cabeça, embora a relutância continuasse desenhada no seu olhar amargurado.
— Temos de aumentar o contingente dos batedores, mesmo que haja
necessidade de recorrer aos cadetes.
— Pai...
Adama lançou um olhar acerado à filha, desaprovando semelhante
familiaridade na ponte de comando. Ela apercebeu-se do fato e o corpo
esbelto perfilou-se.
— Posso pilotar um viper para essa missão, comandante.
Os dois homens não puderam evitar um sorriso e Adama replicou:
— Fazes muita falta aqui.
— Perfeitamente — articulou ela, sem dissimular o desapontamento.
Tigh voltou-se para um oficial e ordenou-lhe que para projetasse a escala
de serviço no écran principal, para verificar quem se encontrava disponível
para as patrulhas de batedores. No entanto, a voz de Starbuck na linha de
comunicação interrompeu a ordem:
— Líder Azul à Base. Aproximamo-nos de um pequeno planeta, mesmo
na nossa frente. Podem fornecer-nos um rastreio sumário?
Tigh fez sinal ao chefe da secção de rastreio, que se apressou a
introduzir o pedido do tenente no sistema de computadores de bordo.
— Base ao Líder Azul. Vai sair à leitura do rastreio. — Virou-se para
Adama, com uma expressão apreensiva. — Comandante...
— Sim?
— Um objeto no Sector Sigma.
O oficial transferiu a leitura para o écran de Adama, em cujo canto
começaram a surgir palavras, antes de se desenhar a forma do planeta
mencionado por Starbuck. O comandante pediu um rastreio mais minucioso.
O planeta era tão escuro, envolto numa camada de nuvens espessas quase
negras, que só foi possível uma decomposição ligeiramente mais
pormenorizada. À medida que cada categoria de dados abarcada pela sonda
se projetava num canto da tela, surgia a mesma conclusão: elementos
insuficientes.
— Starbuck — proferiu Adama para o microfone.
— Sim, comandante.
— Observa algum sol ou qualquer outro fenômeno geológico ou
astronômico em volta do planeta?
— Absolutamente nada.
— Que se passa? — quis saber Athena, vendo o pai afastar-se da
consola. — Como se explica que ele não observe nada?
— Precisamos de mais dados.
— Não compreendo.
— Trata-se de um pequeno planeta, pouco maior que um asteroide, que
parece flutuar no espaço por sua conta própria, sem qualquer sol visível nas
proximidades. Pelo menos, que consigamos detectar. Pode ser o que resta de
um planeta que explodiu pertencente a um sistema estelar há muito
desintegrado. Ou... Outra coisa.
— Estaremos a pensar os dois o mesmo? —murmurou Tigh. — Um dos
asteroides dos Cylons?
— Exatamente.
— Um asteroide dos Cylons? — repetiu Athena. — Não percebo. Um
asteroide é um corpo geológico...
— Tens razão. Esquecia-me de que os asteroides dos Cylons já não são
do teu tempo. Houve uma época, no início da guerra dos mil anos, em que os
Cylons descobriram uma maneira de expelir asteroides no espaço, por vezes a
velocidades fenomenais, para fins de combate. Tomaram-se uma espécie de
unidades de combate de constituição geológica. Nunca conseguimos
descobrir como o faziam, pois pouco lográmos apurar da sua tecnologia.
— E esse suposto planeta pode ser uma das suas... Como direi, armas de
guerra?
— Bem, é um pouco grande para isso, mas não devemos descurar a
possibilidade — disse Adama. — Pode tratar-se de uma das suas unidades
abandonadas. Ou talvez não esteja abandonada — concluiu com inflexão
ominosa. — Precisamos de mais dados. No fundo, há a possibilidade de não
passar daquilo que parece: um asteroide perdido no espaço. — Virou-se para
um oficial. — Que indica agora o rastreio?
— Estrutura: elementos cristalinos da tabela M-um.
— Superfície? — inquiriu Tigh.
— Mares gelados. Campos de gelo. Condições de tempestades de neve
do tipo di-eteno.
Adama e Tigh mostraram-se desolados com as novas informações
enquanto Athena proferia:
— Di-eteno? Confesso que não...
— É uma corrupção de uma palavra muito mais longa — explicou Tigh.
— Trata-se de um gás manufaturado pelos Cylons.
— Se a memória não me atraiçoa, o di-eteno costuma ser formado como
um produto inútil do tipo de armas laser que os Cylons desenvolveram —
recordou Adama. — Essas armas expelem-no, em regra, para o solo e,
algumas vezes, para o ar. É muito perigoso, sobretudo se se escapa para a
superfície de um planeta sob a forma de nuvens ou neblina. Adquirindo, a
densidade apropriada, pode resultar fatal para nós. É um dos raríssimos casos
em que os elementos ejetados por uma arma se podem revelar tão perigosos
como a carga expelida pelo cano.
— Só de ouvir isso fico com arrepios — articulou Athena, encolhendo
os ombros.
— Sim, esse planeta parece suficientemente frio para tal — admitiu
Adama, com um sorriso. — Qual é a tua . opinião, Tigh?
Este olhou alternadamente para pai e filha por um momento e em
seguida para a tripulação da ponte de comando antes de anunciar:
— Ambiente: hostil!
***
Quando Starbuck conseguiu finalmente observar bem o planeta
enevoado, sentiu as mãos enregelarem-se e perguntou-se se reagia ao aspecto
espectral do planeta ou o frio que sem dúvida existia na sua superfície expelia
ondas glaciais que perfuravam o revestimento da nave, porventura para
advertir os intrusos. Após breve hesitação, ligou a linha de comunicação com
a Galactica e disse:
— É um local atraente. Não o terei visto indicado no guia R & R?
Descrevemos uma órbita sobre o equador ou?...
— Não se coloquem no seu campo gravitacional — ordenou Tigh, em
tom solene. Embora lhe desagradasse à irreverência nas transmissões para a
base, há muito que renunciara a ordenar ao tenente Starbuck que observasse a
devida gravidade durante as comunicações.
— Entendido. — Starbuck desligou a linha da Galactica e abriu o
circuito de comunicação direta entre os caças da formação. — Ora bem,
rapazes. Os mais novos ficam a pairar aqui, enquanto eu e Boomer
procedemos a um rastreio mais minucioso da superfície. Se...
— Tenente Starbuck... — interrompeu a voz aguda do cadete Cree.
— Que temos?
— Fui o primeiro classificado da cadeira de Rastreio, na academia.
Podia acompanhá-lo, para adquirir um pouco de experiência no...
— O momento não é próprio para adquirir experiência. Mais tarde, faço-
lhe algumas perguntas sobre o assunto. Entretanto, cumpra as ordens que
transmiti. Suponho que o seu instrutor se referiu vagamente à imperiosidade
de obedecer aos superiores?
— Sem dúvida, tenente!
— Óptimo. Fica a comandar a formação, cadete Bow.
Starbuck imaginou a indignação que as últimas palavras deviam ter
provocado em Cree. O jovem cadete, dominado por um excesso de
autoconfiança, decerto se considerava o mais indicado para comandar, em
substituição do chefe habitual. Aprenderia, com o tempo. De contrário seria
atingido por um feixe laser na garganta, pois não havia muitas outras
alternativas para os cadetes demasiado impulsivos, nos tempos que corriam.
Os caças desfizeram a formação. As três naves dos cadetes moveram-se
para diante, como fora determinado, embora Starbuck julgasse detectar uma
ponta de recalcitração na maneira como Cree executava a manobra.
— Vamos a isto, Boomer!
As naves dos dois experientes tenentes descreveram um arco, afastando-
se dos caças dos cadetes, e aproximaram-se cautelosamente do asteroide.
Através do circuito de comunicação, Starbuck ouviu o cadete Bow ordenar
em tom formal, embora ainda contivesse uma ponta de indecisão:
— Shields... Cree... Mantenham o contato visual. Não se desvie da
formação, Cree.
Nesse momento, a luz referente à linha de comunicação com a Galactica
acendeu-se no quadro de comandos e Starbuck premiu a respectiva tecla.
— Escuto, Galactica.
— Este planeta tem atmosfera — informou Adama. — Contém uma
certa percentagem de di-eteno, mas é respirável, embora o frio possa atingir
níveis irrespiráveis. Não quero que você ou qualquer membro da sua
esquadrilha se aproxime de mais. O di-eteno indica a possível presença de
cylons ou outras criaturas alienígenas. Tenham cautela. Espreitem e venham-
se embora.
— O di-eteno apresenta-se sob a forma de nuvens?
— Às vezes.
— Densas?
— Às vezes.
— Não se preocupe que não nos aproximaremos muito. — Starbuck
cortou a ligação com a Galactica. — Pronto, Boomer.
— Tens tempo para escrever isso?
— Há ocasiões em que...
Foi interrompido por um clarão intenso que parecia provir do outro lado
do asteroide, onde os cadetes se encontravam.
— Que foi isso, Bow? — Inquiriu pelo comunicador direto.
— Não faço a mínima ideia — replicou o cadete. — Nunca tinha visto
um clarão assim. Vou inteirar-me.
— Não, espere por nós. — No entanto, Starbuck viu no écran de rastreio
do quadro de comandos que Bow se destacava dos outros dois veículos e
seguia para o ponto de onde brotara a luz. — Não percamos tempo, Boomer.
Aquele garoto...
— É para já, Bucko.
Os dois caças alteraram o rumo e avançaram velozmente para as naves
dos cadetes. No instante em que estas se tornaram visíveis, com Bow na
vanguarda e Cree e Shields a relativamente curta distância, brotou, de súbito,
da camada de nuvens do planeta, um feixe de luz deslumbrante em direção ao
viper do primeiro. Palpitante e ardente, elevava-se a grande altura, com uma
facilidade que parecia deslizar. Bow principiou a alterar a trajetória, mas era
demasiado tarde. O feixe luminoso atingiu o aparelho manufaturado na
fundição, que dava a impressão de um grão de areia vagamente iluminado ao
lado do brilho da gigantesca lança de luz. A nave do cadete foi cortada ao
meio, em ziguezague, antes de irromper numa massa disforme em fusão e
explodir. A chama da explosão pareceu tênue em comparação com o fulgor
do feixe que a destruíra.
O feixe de luz continuou a afastar-se no espaço, como se seguisse uma
rota bem definida, sem deixar atrás de si o mínimo vestígio da nave
desintegrada.
As palavras que agora brotavam dos veículos dos dois cadetes eram
ininteligíveis, histéricas, desconexas. Ambos haviam alterado o rumo, a fim
de se dirigirem para a área onde, momentos antes, se encontrava o caça de
Bow.
— Cree! Shields! — bradou Starbuck. — Saiam daí! Vamos a caminho.
— Que aconteceu? — perguntou Boomer, aproximando o viper do de
Starbuck.
— Foi atingido! — Exclamou Cree. — É uma espécie de feixe de
energia. Avançou para Bow como uma pulsar enorme!
Recordando as palavras de advertência de Adama, Starbuck inquiriu:
— Que te parece, Boomer? Seria um canhão-laser, ou coisa do gênero,
com um feixe de estilo pulsar?
— Não é possível! Estamos fora do alcance de uma arma dessas. Nunca
vi uma que conseguisse atingir um alvo com tanta precisão, do solo, através
de uma camada de nuvens. Nunca observei um sistema de rastreio tão
eficiente, sobretudo para essa distância e situação.
— Está bem.
Starbuck premiu a tecla do sistema de comunicação com a Galactica e
proferiu:
— Líder Azul à Base! Estamos a ser atacados! Preparem a plataforma de
aterragem. Perdemos uma unidade e regressamos imediatamente! — Ao
mesmo tempo que retificava o rumo do seu caça, consultou as posições de
Shields e Cree e verificou que avançavam para o asteroide. — Cree! Shields!
Preparem o rumo de regresso. Já!
No entanto, os dois pilotos, indiferentes ao apelo, continuavam a
aproximar-se da camada de nuvens que envolvia o planeta.
CAPÍTULO II
Apollo observava em silêncio Boxey, que fazia Muffit executar as suas
intrincadas manobras. O peludo dróide daggit constituía uma réplica
manufaturada do animal que o garoto perdera durante a invasão de Caprica.
Na realidade, como Boxey salientara várias vezes, o dróide não era um
duplicado muito rigoroso do original. Com efeito, o outro tinha pelo
comprido e cinzento, enquanto o atual o apresentava curto e castanho, além
do que o corpo era maior. E as partes metálicas visíveis também não
contribuíam para acentuar a ilusão. Todavia, o laboratório que manufaturara o
protótipo incluíra os traços essenciais de qualquer modelo daggit: afeto e
lealdade. Por conseguinte, a pouco e pouco, Boxey habituara-se a estimá-lo
tanto ou mais do que o que perdera.
Agora, enquanto o garoto ordenava ao dróide que se estendesse no
sobrado da cabina e efetuasse cabriolas, Apollo contemplava-o
pensativamente.
— Papá...
Quase não reagiu ao ouvi-lo chamar-lhe pai, pois ainda não se habituara.
— Diz, Boxey.
— Parece que não estava aqui.
— Desculpa. Entregava-me a meditações. Um mau hábito, diga-se de
passagem. Precisavas de alguma coisa?
— Não. Queria só ter a certeza de que ainda estava aqui.
Apollo sorriu ao garoto, embora não conseguisse evitar uma ponta de
amargura. Até Boxey tinha plena consciência dos riscos e não queria que ele
se afastasse, mesmo que fosse apenas espiritualmente. Mas surgiriam muitas
outras batalhas, muitas outras missões. Tenho de partir e não me ocorre uma
maneira de to explicar.
Boxey voltou a concentrar-se em Muffit.
— Faltam duas, daggit. Eu disse vinte e oito reviravoltas.
Apollo divertia-se com o tom autoritário da voz do garoto dirigindo-se
ao dróide. Na verdade, Boxey referia-se com insistência à forma como
planeava tornar-se um guerreiro colonial, um piloto de caça como o pai.
Parecia ter crescido apreciavelmente, nos últimos dias. A dificuldade em criar
um garoto forte e enérgico como aquele levava Apollo a ponderar uma vez
mais se o devia ter adotado. Sem lar nem família, Boxey necessitava de
alguém que olhasse por ele, mas talvez um comandante de esquadrilha não
fosse o pai mais apropriado. Com a Galactica constantemente alvo da
perseguição dos Cylons e de ameaças desconhecidas, existia sempre o risco
de o garoto voltar a ficar órfão, e Apollo não sabia se ele se recomporia de
mais uma perda entre as muitas que já suportara. Por associação de ideias,
pensou na sua própria família, no irmão, Zac, que Apollo abandonara numa
nave avariada, onde morrera sob o fogo dos Cylons, enquanto Adama assistia
através de um dos monitores da Galactica. Mais tarde, pai e filho tinham-se
deslocado à superfície de Caprica, para verificarem que Ila, esposa e mãe,
desaparecera sem deixar vestígios.
As reflexões de Apollo foram interrompidas pelo som estridente das
sirenas de alerta e, quando se precipitava para a porta, com uma rápida
despedida a Boxey, ouviu a voz de Adama ecoar em diversos altifalantes:
— Postos de combate!
Correu para a ponte de comando, onde um dos oficiais o elucidou
rapidamente, e foi-se colocar ao lado do pai.
— Todas as esquadrilhas estão a postos.
Adama inclinou a cabeça ligeiramente e pousou a mão no ombro do
filho.
— A sonda de Starbuck descobriu qualquer coisa e perdeu uma nave. —
Virou-se para Tigh. — Situação?
Tigh inclinou-se para o écran do telecomunicador e acionou um
interruptor.
— Starbuck? Envie pormenores.
A voz do outro surgiu na linha, ofegante, como se acabasse de efetuar
uma longa corrida, e a expressão do rosto na tela deixava transparecer
apreensão.
— Veio do asteroide, algures no quadrante superior. Era um feixe de luz
consistente e energia elevada, maciço, muito intenso, ofuscante. Pensamos
que se trata de alguma espécie de arma laser, com efeito de pulsar. Mas deve
ser uma pulsar gigantesca...
— Starbuck — interpôs a voz de Boomer. — Perdemos o contato com o
Cree. Visual e de rastreio.
— Não desligue, coronel. Perdemos mais uma unidade.
— E agora Shields! — tomou Boomer, excitado. — Deixei de conseguir
contatar com ele!
— Vou cortar a ligação, Galactica — informou Starbuck. — Volto já.
Quando a voz e imagem dele se extinguiram, Apollo voltou-se para
Adama:
— Deixe-me acudir-lhes com a minha esquadrilha.
— Ainda não — replicou o pai, em tom brando. — Primeiro, precisamos
saber mais. Mas coloca a tua esquadrilha em estado de alerta.
Apollo abandonou a ponte de comando e pegou o casaco de voo que
uma ordenança lhe estendia, antes de transpor a escotilha de acesso ao
corredor.
***
Starbuck ligava freneticamente todos os canais de comunicação, na
esperança vã de detectar um indício da presença dos cadetes desaparecidos.
— Cree! Diga alguma coisa! Onde está, Shields?
Boomer transmitiu-lhe as coordenadas identificativas da localização das
duas naves. No instante imediato, as interferências no comunicador
atenuaram-se e as vozes histéricas dos cadetes substituíram os estalidos.
— Cree! Shields! — Gritou Starbuck. — Voltem para trás! Não podem
pousar no planeta!
A resposta de Cree foi estridente:
— Vi de onde veio a coisa! Vou atingi-la!
— Voltem para trás! Não entrem na atmosfera. Repito: no vosso próprio
interesse, não...
— Bow era meu companheiro de quarto! — Balbuciou Shields, em voz
trêmula de comoção.
— É uma ordem! Voltem imediatamente!
O écran de rastreio do quadro de comandos de Starbuck indicava que os
veículos dos dois cadetes não se desviavam um milímetro do rumo que
haviam traçado.
— Estou apontado ao alvo — informou a voz de Shields, agora mais
calma.
— Sigo atrás de ti — indicou Cree.
Starbuck apontou o caça para baixo, na direção da camada de nuvens do
asteroide.
— Não os podemos deixar aventurar-se sós, Boomer!
— Talvez não possamos, mas não temos outro remédio. Não te
arrisques.
— Conheces-me bem, para formular uma recomendação dessas.
Acompanha-me ou regressa à base.
Registou-se uma pausa antes da resposta de Boomer:
— Aprecio o teu humor negro, mas podes contar comigo, Bucko.
Os dois vipers avançaram resolutamente para a camada de nuvens e,
transcorrido um momento, Boomer observou:
— Por mais que nos esfalfemos, não conseguiremos captar a imagem
deles.
— Regista a sua telemetria de curto alcance. Talvez obtenhamos uma
indicação por esse meio.
Involuntariamente Starbuck conteve a respiração no instante em que o
seu veículo penetrou na massa de nuvens negras e ficou envolvido numa
escuridão de pesadelo.
***
O primeiro-centurião Vulpa, guerreiro da classe de elite, sentava-se
majestosamente na sua cadeira de comando e disparava ordens abruptas aos
seus subalternos de primeiro-cérebro. Fora descoberto um intruso sobre as
nuvens de Tairac. Um feixe enviado do topo do monte Hekla atingira e
destruíra uma nave e, em seguida, fora detectada atividade de outras.
Vulpa sentia-se incaracteristicamente nervoso. Os Cylons quase nunca
experimentavam agitação de qualquer espécie. Mas neste caso Vulpa não era
um cylon típico. Quando era piloto de caça de primeiro-cérebro, acudia-lhe a
impressão esporádica de que existia algo de especial nele e apercebia-se de
que essa particularidade tinha pouco de comum com a sua capacidade
espetacular para manobrar um caça cylon e destruir centenas de naves
inimigas. Não, as qualidades que pressentia relacionavam-se mais com a
forma como abarcava o Universo e conseguia estabelecer paralelos mentais
que pareciam impossíveis aos outros cylons de primeiro-cérebro. Em
algumas situações de combate, conseguira executar manobras estratégicas
que ele sabia corresponderem às que se achavam ao alcance de um oficial de
segundo-cérebro. Quando tentara exprimir essas estranhas sensações a outros
guerreiros, estes tinham-se mostrado incapazes de compreender. Dera-se até a
circunstância de, em certas ocasiões, as suas palavras chegarem ao
conhecimento dos superiores, o que lhe valera sanções disciplinares. Em
virtude disso, aprendera a ocultar a perceção do seu nível mental especial, e o
isolamento íntimo proporcionara-lhe o sentimento de solidão, outra emoção
pouco vulgar nos Cylons.
Após a cerimônia em que lhe fora concedido o segundo-cérebro, essa
perceção de si próprio aumentara mais que o dobro. Não se equivocara:
existia à sua disposição o potencial de um destino especial. Compreendeu
imediatamente que era um dos poucos cylons de segundo-cérebro cujos
intrincados mecanismos corporais não rejeitariam a implantação de um
terceiro-cérebro numa fase mais evoluída da sua vida. A maioria dos cylons
não conseguia sobreviver a mais de uma implantação cerebral, pelo que eram
raros os considerados elegíveis para ascender à posição de líder imperial.
Desses, muitos não estavam talhados para o nível de comando global, por não
serem qualificados noutros aspectos físicos, mentais ou emocionais. Vulpa
descobriu mais tarde que a sua elegibilidade corria perigo em virtude da
tendência para os comentários impulsivos, duma arrogância pronunciada nas
suas maneira e duma necessidade de obrigar os outros oficiais a concordarem
com ele. O atual líder imperial advertira-o diversas vezes contra essas
características, salientando que, se atingisse a categoria de terceiro-cérebro,
compreenderia imediatamente as razões por que, de um ponto de vista
objetivo global, seriam encaradas como deficiências.
Não obstante, o líder imperial admitira que algumas tendências de Vulpa
poderiam ser ignoradas, porquanto, em certas situações, se resolviam em
engenhosas ações positivas. Vulpa procurava obedecer às advertências do
superior, como qualquer bom cylon. A sua ambição aumentava, alcançava
um ponto mais elevado do que os jamais atingidos pelos oficiais do seu nível,
que exprimiam ideias de ambição com dificuldade e talvez até nem fossem
ambiciosos. O conhecimento deste fato contribuía para que se sentisse mais
solitário do que nos dias em que possuía um único cérebro.
Apesar da sua prudência, Vulpa enfrentava situações em que as
características negativas acudiam à superfície, e ele amaldiçoava-se pela
perda de autodomínio. Não queria resvalar da linha estreita que percorria,
porque conduzia diretamente ao pedestal elevadíssimo em que se situava o
trono do líder imperial. A sua última explosão quase lhe cortara cerces todas
as aspirações e valera-lhe a missão disciplinar naquele frígido posto
avançado, distante e devidamente solitário. Embora se pudesse considerar
uma honra assumir o comando da arma mais mortífera jamais concebida para
uso dos Cylons, Vulpa não deixava de sentir fortemente a amargura da
disciplina e ansiava por executar feitos tão heroicos, naquele planeta, que
levassem o líder imperial a mandá-lo regressar à estrela-de-batalha em que se
encontrava a base do comando. Aí revelar-se-ia merecedor do trono até ao dia
em que se instalasse nele.
Se bem que a data da escolha do novo líder imperial ainda lhe parecesse
muito remota, Vulpa sabia que necessitava de dominar a impaciência. No
fundo, talvez não fosse tão remota como isso. Se o atual líder imperial
persistisse no desejo obsessivo de aniquilar todos os humanos sobreviventes e
exterminar a raça, haveria toda a espécie de possibilidades de abandonar o
trono prematuramente ou ser destruído por algum dos pestilentos e ardilosos
humanos. Era improvável, mas um ser ambicioso tinha tendência para sonhar
com um caminho para o futuro, com uma avidez imprópria dum cylon.
Agora talvez tivesse surgido a oportunidade pela qual Vulpa ansiava.
Assim que recebeu a informação de que a esquadrilha de humanos era atraída
ao seu sector e poderia haver necessidade de utilizar o imenso poder
destruidor do canhão-laser, mandou pôr a guarnição em estado de alerta. A
destruição do que restava da raça humana poderia levá-lo à posição
estratégica que ambicionava. Mereceria a aprovação do líder imperial e
arrastaria Vulpa para o primeiro lugar de todos os oficiais superiores.
Um técnico pôs termo às suas reflexões:
— Duas unidades de combate coloniais acabam de penetrar no perímetro
de defesa.
Vulpa levantou-se e examinou os écrans hexagonais, como se não
confiasse na competência profissional do outro. O que viu confirmava os
anteriores registos de anomalias e o fato de a nave destruída também ser de
origem colonial. Os dois veículos agora representados no écran tinham
atravessado a densa camada de nuvens e avançavam para um objetivo
definido. Os imprudentes planeavam um assalto ao monte Hekla, onde se
situava o canhão-laser! Vulpa teria soltado uma gargalhada, se as
manifestações de hilaridade não fossem encaradas com desconfiança pelos
Cylons.
— Quero um deles vivo — indicou aos subalternos.
***
O caça de Starbuck emergiu das nuvens e o de Boomer seguiu-lhe o
exemplo no momento imediato. A superfície do asteroide apresentava-se
quase tão obscura como o interior da massa nebulosa. As únicas luzes
discerníveis consistiam num clarão esférico nos contrafortes de uma
montanha vagamente delineada que se erguia até às nuvens e os sinais de
presença da cauda dos veículos dos dois cadetes à sua frente.
— Localizei-os, Boomer.
Enquanto se acercava dos vipers, menos velozes que o seu, Starbuck
premiu a tecla do instrumento de rastreio de terreno e ficou imediatamente
impressionado com a montanha. Embora as enormes cordilheiras de Caprica
contivessem elevações mais insólitas que aquela, tratava-se de um espetáculo
tenebroso no pequeno asteroide, destacando-se de uma área relativamente
plana. Com efeito, tanto os seus contornos como a superfície glacial
constituíam um desafio para o montanhista mais experimentado.
E os caças dos dois cadetes seguiam para lá em linha reta!
O que menos me convinha neste momento era esmagar-me numa
montanha em perseguição de dois pilotos desmiolados, reflectiu Starbuck.
Nunca ambicionei ter proezas de montanhismo registadas na minha folha de
serviços.
Ligou o ampliador do instrumento de rastreio e, na área que circundava o
topo, apareceu a indicação de formações não geológicas. E a informação na
parte inferior do écran obrigou-o a soltar uma imprecação.
— Que foi? — quis saber Boomer.
— Há uma plataforma de peça de artilharia no cimo daquela montanha.
Parece esculpida na rocha e gelo. A peça em si está protegida por uma
espécie de bastião de aço. E se os valores que obtenho correspondem à
verdade, é tão maciça como suspeitávamos. Olha, agora está a mover-se!
Apesar das dimensões gigantescas, é manobrável como um telescópio de
observatório. Quero dizer, o écran indica que é enorme, talvez o maior
canhão-laser jamais construído... Meu Deus!
Os vipers de Cree e Shields deslizavam agora para cima, na intenção
evidente de fazerem pontaria para o canhão. Ao mesmo tempo, o cano deste
rodou lentamente e apontou na direção deles, embora um pouco mais acima.
Starbuck emitiu mais uma das suas imprecações, quando viu o veículo de
Shields deslizar para o campo de tiro da peça. De súbito, o cano do canhão
emitiu um feixe de luz ofuscante, que iluminou o espaço e fez com que
milhares de raios reluzentes formassem uma espécie de rede labiríntica na
superfície gelada do planeta. No instante imediato, o caça de Shields
desintegrava-se numa bola de fogo deslumbrante. O feixe prosseguiu à
esquerda das naves de Starbuck e Boomer, continuando a iluminar o planeta
como em pleno dia, e penetrou nas nuvens.
— Shields! — bradou Starbuck, embora soubesse que o cadete morrera.
— É tarde de mais — articulou Boomer. — Também perdi o sinal de
Cree.
— Continua no ar. Vi-o há instantes. Mas desconfio que está em apuros.
Eles sabem que nos encontramos aqui. Conserva-te a baixa altitude, porque
assim o canhão não nos pode atingir.
— Entendido, Bucko!
O écran de rastreio de Starbuck apresentava agora um trio daquilo que
não podia ser senão caças cylon, os quais descolavam de uma área atrás do
canhão. Pelos primeiros tiros que dispararam, em direção a um alvo perto da
encosta esquerda da montanha, Starbuck compreendeu imediatamente onde
Cree se encontrava.
***
Vulpa ordenou a descolagem de três caças, para obrigar o piloto inimigo
sobrevivente a efetuar uma aterragem de emergência. O comandante da
pequena formação teve o cuidado de disparar de modo que o projétil cruzasse
o espaço à frente do viper de Cree. Na atmosfera glacial, o rasto deixado pelo
feixe laser lembrava uma série de sincelos.
— Invasor — ordenou o comandante da esquadrilha cylon. — Entregue-
nos o comando da sua nave.
A resposta do humano traduziu-se por uma rajada, e Vulpa indicou ao
comandante de esquadrilha:
— Obrigue-o a descer!
As três naves cylon convergiram para o inimigo comum.
***
Starbuck e Boomer tiveram de assistir, impotentes, à captura da nave de
Cree, obrigada a pousar no planeta. A voz angustiada do cadete chegou-lhes
aos ouvidos através de uma interrupção dos estalidos persistentes dos
«atmosféricos» :
— Starbuck! Estou cercado!
— Procure aguentar-se — replicou Starbuck, embora suspeitasse de que
o infortunado rapaz não o podia ouvir. — Seguimos já para aí.
— Nem penses nisso — acudiu Boomer. — É demasiado tarde para lhe
podermos valer. Quando lá chegássemos, já estaria morto ou nas mãos
daqueles patifes.
— Mas...
— Não há mas nenhum, homem. Temos de regressar, para prevenir a
Galactica. Esta arma não figura nos nossos livros.
— Perdi dois homens. Não quero ficar sem Cree.
— Tens de te conformar. Nada podemos fazer contra aquela arma.
Precisamos de regressar à Galactica imediatamente. É uma vida contra a de
milhares de pessoas!
Por um momento, Starbuck, furioso, sentiu-se tentado a ignorar as
advertências do amigo. No entanto, reconhecendo que tinha razão, emitiu
uma imprecação e seguiu o exemplo de Boomer, que já alterara a rota do caça
para regressar.
***
Vendo que o inimigo humano fora, de fato encurralado e capturado,
Vulpa voltou para a sua cadeira de comando. Quase no mesmo instante, um
dos centuriões de serviço nos monitores anunciou:
— Aproximam-se mais dois caças, a baixa altitude.
— Destruam-nos quando estiverem dentro do nosso raio de ação.
O pessoal dos monitores acompanhou atentamente a trajetória dos dois
vipers até que os viu descrever uma larga parábola e deslizar para o
horizonte.
— Os caças retiram-se — informou o técnico.
— Talvez seja vantajoso para nós, se conseguirmos utilizá-los para
localizar a sua nave de comando.
— Não é possível, senhor. Já conseguiram furtar-se à nossa
instrumentação.
Vulpa inclinou a cabeça em sinal de aquiescência. A linha luminosa
vermelha que se movia transversalmente no seu capacete reduziu a
velocidade e quase se imobilizou.
— Tragam-me o prisioneiro — ordenou.
***
O líder imperial voltou-se para a simulação de Starbuck, que agora
parecia reclinar-se insolentemente na cadeira, com um daqueles hediondos
paus, a que os humanos chamavam charutos, entre os dentes.
— Os seus compatriotas não desconfiam de nada, tenente. Tudo indica
que caíram inocentemente na minha armadilha.
Starbuck sacudiu o charuto, como se na realidade tivesse substância, e
redarguiu:
— Têm-nos nas vossas desprezíveis garras?
— Não, mas tê-los-emos a todo...
— Então, não caíram na armadilha, olhos de percevejo.
— Não está programado para me insultar, tenente.
— Desculpe. Foi uma distração. Às vezes, nem as ilusões podem deixar
de exprimir o que é óbvio.
As mãos do líder imperial seguraram os braços do trono num gesto
frenético, esforçando-se por não deixar transparecer irritação diante daquela
simulação invulgarmente autônoma.
— Gostava de trocar impressões consigo sobre o seu comandante.
Os olhos de Starbuck iluminaram-se e os lábios contraíram-se num
sorriso enervante.
— Ah, refere-se ao Invólucro de Ferro Adama?
— Não compreendo. Um invólucro de ferro? Não sabia que ele usava
fato de combate, como nós. Não existe qualquer elemento registado que
permita chegar a essa conclusão.
— Invólucro de Ferro é uma metáfora. — O sorriso enervante acentuou-
se. — Vocês não usam metáforas?
— Empregamo-las na poesia, mas não na linguagem vulgar.
— Não me diga que fazem versos!
Starbuck parecia surpreendido. Entretanto, o líder imperial sentia-se
impressionado com a nitidez dos contornos da simulação, como se fosse
possível estender a mão e tocar-lhe. Estava quase disposto a efetuar a
experiência, mas sabia que a mão atravessaria a forma incorpórea de
Starbuck.
— Temos uma fação da nossa sociedade que emprega metáforas na
poesia que canta. Mas nunca a escreve, porque a nossa lei não o permite. Em
todo o caso, creio que a maioria é preservada oralmente.
— Mas os Cylons têm uma linguagem escrita?
— Naturalmente.
— Porque não deixam os poetas escrever os seus trabalhos?
— Porque é costume desde tempos muito recuados, tão recuados que,
segundo parece, a vossa insignificante raça ainda não existia. Os poetas não
escrevem os seus versos. Seria impróprio.
— Impróprio porquê?
— Os poetas não... Não figuram entre os elementos mais desejáveis da
nossa sociedade. São marginais, por vezes criminosos. Verificámos que,
confinando-se aos enclaves da poesia, as suas perigosas características
criminosas ameaçadoras da ordem se fundiam.
— Disse fundiam ?
— Acho que sim.
— É uma metáfora, líder imperial. Tenha cautela com o que diz.
— Devia mandá-lo decapitar pela insolência.
— Experimente. — Starbuck soltou uma risada. — Gostava de ver a
lâmina deslizar através do meu pescoço. Pareceria uma víbora (viper)
perfurando as nuvens, se me permite a metáfora.
O líder imperial recapitulou o que fora dito até então e regressou ao
ponto em discussão.
— Falávamos do vosso comandante, Invólucro de Ferro.
— Pois. Invólucro de Ferro quer dizer que é rijo e nem sempre
penetrável aos olhos humanos comuns como os meus. A tripulação costuma
dar-lhe esse nome. Sobretudo quando não entende o que lhe passa pela
cabeça. Ficou mais elucidado?
— O suficiente. O comandante Adama será capaz de detectar o nosso
plano? Pressentirá que a nossa perseguição é uma maneira de o encaminhar
para um destino que escolhemos?
— Não me admirava nada.
— Porquê?
— Vocês não se podem considerar propriamente as criaturas mais subtis
do universo. Reconheço que são persistentes e existem áreas de psicologia
alienígena na vossa constituição que nos desconcertam, mas no capítulo da
guerra não recorrem a subtilezas. Gostam das ações espetaculares, com o
emprego de armas pesadas, preferem destruir o inimigo pela superioridade
numérica e o ataque direto às manobras aéreas de surpresa, pormenores que
jogaram com frequência a nosso favor, nas batalhas.
— Em algumas, sim. Mas convém não esquecer que, globalmente,
somos os vencedores. Os nossos métodos permitiram-nos provocar a
destruição quase total do vosso poderio militar, aniquilar os vossos doze
mundos e retirar-lhes o domínio do universo.
— Nesse aspecto, tem razão — concedeu Starbuck, com uma expressão
subitamente grave. — Quase obtiveram a vitória absoluta por meio de
ataques de surpresa, tortura e ausência total de compaixão. Mas não por
completo, olhos de percevejo. Continuamos a existir, embora em fuga. Um
dia, os papéis poderão inverter-se e então...
— Porque hesita?
— Os vossos bancos de dados não me podem proporcionar as palavras
adequadas para exprimir o desprezo que sinto por vós.
Starbuck falava agora quase automaticamente e os contornos do
simulacro pareciam atenuar-se.
— Receio que a oportunidade de nos enfrentarem abertamente nunca se
apresente, tenente. O vosso comandante segue uma rota que conduzirá à
aniquilação final da vossa raça. Quando estiverdes ao alcance do nosso
armamento de Tairac...
— Havemos de os liquidar antes disso.
— A nossa armadilha é a toda a prova, como vocês dizem.
Os olhos de Starbuck pareceram estreitar-se enquanto dizia:
— Com uma réstia de sorte, talvez consigam apanhar dois imprudentes.
O líder imperial premiu um botão ao lado do trono e o simulacro de
Starbuck desapareceu. No entanto, os seus contornos vagos pareceram
persistir por um momento, mesmo depois de a imagem se extinguir.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Não conheci o tenente Starbuck nos seus tempos de cadete. Contudo
chegaram-me ao conhecimento histórias — mitos, lendas da academia — a
seu respeito, embora não possa verificar a sua autenticidade.
Constou-me que, nas horas de ócio, costumava abrir a porta da sala de
jogos de guerra (com chaves «.emprestadas», claro) e transformá-la num
vasto recinto de diversões, promovendo lotarias sobre o número de tiros
certeiros que se podiam obter, dentro de lapsos de tempo específicos, com um
veículo em voo simulado que alvejava imagens de naves cylon, convocando
os melhores atletas de luta corpo a corpo para se enfrentarem em condições
simuladas e utilizando os números de perguntas escolhidas ao acaso de um
computador de ensaio para uma espécie de jogo de roleta. Embora explorasse
o local com uma clientela de cerca de um terço dos estudantes, nenhum
membro do pessoal docente conseguiu jamais surpreendê-lo em flagrante.
Tentaram, mas deparou-se-Ihes sempre uma sala de jogos de guerra obscura e
silenciosa.
Noutra ocasião, ao que se diz, desenvolveu-se uma rede de fraude entre
muitos cadetes que se achavam tão obcecados pelo êxito que o roubo de
testes ou o envio de estudantes mais brilhantes para os substituir nos exames
começou a parecer a maneira mais razoável de se livrarem do aperto.
Supuseram que Starbuck, com a sua reputação de perícia para a vigarice,
concordaria em os ajudar e procuraram-no.
— Com certeza — aquiesceu, sem dúvida com o seu sorriso irritante. —
De que precisam, amigos? Qual é a cadeira? Estratégia Militar Intermédia?
Muito bem. Encontramo-nos na sala do trono dos Cylons amanhã, pouco
antes da prova, e entregar-lhes-ei a relação das respostas.
(«A sala do trono dos Cylons» constituía um eufemismo em voga na
academia para designar as casas de banho comunais do estabelecimento.)
No dia seguinte, os cadetes da rede de fraude apresentaram-se no local
combinado e, com efeito, Starbuck já lá estava, com um brilho malicioso no
olhar e um maço de folhas com as respostas do teste na mão. Explicou-lhes
que aquela primeira fase de colaboração era gratuita e discutiríam o preço
quando os estudantes tivessem avaliado o valor do serviço.
Não sei como os cadetes introduziram as respostas nas salas de exame.
Talvez se limitassem a decorá-las ou recorressem a algum dos seus habituais
estratagemas. O certo é que os testes seguiam para cada cubículo de prova
individual através do sistema de transmissão habitual nestes casos, depois de
haverem permanecido fechados à chave numa gaveta desde a manhã anterior,
quando os instrutores os tinham elaborado. O examinador que me contou este
episódio garantiu que não existia maneira alguma de um intruso se aproximar
dos questionários ou descobrir as respostas. Pelo menos era o que os docentes
pensavam.
Os cadetes iniciaram os trabalhos, marcando as respostas com os seus
lápis electrónicos a uma velocidade que os monitores nunca tinham visto e
tudo indicava que muitos concluiríam a prova antes de expirado o tempo, o
que se podia considerar um fenômeno, atendendo à monstruosa dificuldade
dos testes da academia. Os rapazes que haviam recebido as respostas de
Starbuck experimentavam profunda confiança.
Por fim, chegaram à última página, ao fundo da qual descobriram uma
anotação traçada na letra inconfundível de Starbuck, que só figurava nas
folhas dos cadetes que faziam parte da rede de fraude, outra manobra que
levou o examinador a confidenciar-me que admitia a possibilidade de a
história ser apócrifa. Os termos da nota eram os seguintes:
Todas as respostas que lhes fornecí na sala do trono estão erradas. Se as
reproduziram nas provas, preparem-se para apanhar um zero. No entanto,
como se trata de um teste de Estratégia Militar Intermédia — um eufemismo
para designar decoro sob pressão ou o uso da razão e do instinto para se
manter à margem de sarilhos —, aqueles que merecerem passar e ir além da
categoria de cadete têm uma alternativa: ainda dispõem de tempo suficiente
para voltar ao princípio, ler as perguntas com atenção e escrever as respostas
apropriadas. Se tiverem a minha sorte proverbial, talvez obtenham nota
suficiente para passar. Antes, porém, convém destruir esta nota. Felicidades.
S.
O examinador que me descreveu o episódio reiterou várias vezes que
não podia ser verdadeiro.
Todavia, tenho observado Starbuck com atenção, desde que surgiu a
bordo da Galactica como simples, mas ardiloso graduado, e vi-o starbuckiar
toda a gente, incluindo a minha pessoa.
Portanto, acredito na história.
CAPÍTULO III
Se a tensão que pairava na ponte de comando fosse inflamável, bastaria
uma faísca para destruir toda a Galactica. Athena, num gesto afetuoso
instintivo, aproximara-se do pai, fora do seu campo visual, apenas para se
encontrar presente se necessitasse dela.
As mãos de Starbuck moviam-se com nervosismo no capacete de voo,
enquanto ele e Boomer informavam o comandante do que se passara. As suas
palavras, embora formais e militares na sua construção, brotavam dos lábios
em torrentes intermitentes. Em dado instante, Tigh pousou a mão no braço de
Starbuck para o acalmar. Entretanto, Apollo não conseguia manter-se imóvel
e percorria uma pequena área da ponte de comando em cadenciado vaivém,
ao mesmo tempo que fazia deslizar os dedos por um corrimão. No final do
relatório de Starbuck e Boomer, Adama quebrou o silêncio para indicar a
Athena:
— Projeta a gravação do que Starbuck recolheu do perscrutador de Cree.
Todos se contraíram visivelmente de apreensão, quando surgiram as
imagens da destruição do viper de Shields. Depois, no momento em que Cree
apontava a sua nave ao topo da montanha e era revelado o canhão laser,
registou-se um murmúrio colectivo de assombro.
— Santo Deus! — exclamou Adama. — Imobiliza essa imagem, Athena.
A rapariga apressou-se a parar a gravação e fê-la retroceder algumas
imagens, após o que aplicou o ampliador. Em seguida, prevendo que o pai
desejaria elementos sobre a arma, tratou de proceder aos respectivos cálculos.
— As muralhas têm catorze metros de altura. O poder destruidor é quase
infinito numa área de dois hectares.
— De momento, estamos fora do seu alcance — murmurou Tigh,
examinando os números obtidos por Athena. — Não pode visar-nos com
precisão, embora exista a possibilidade de sermos atingidos por um disparo
ao acaso.
— Pode destruir a Galactica num abrir e fechar de olhos! — reconheceu
Adama, abismado.
— É fantástico! — bradou Apollo, desferindo um soco no corrimão. —
Os Cylons são uma cultura mecanizada altamente avançada, sem dúvida, mas
não acredito que a sua tecnologia alcançasse essas proporções. O seu
armamento costuma ser menos...
— Quanto a mim, interessa pouco saber quem construiu aquilo —
atalhou Starbuck encolerizado. — Existe e abateu dois dos meus pilotos!
Ele e Apollo entreolharam-se com expressões agressivas, quase
dispostos a entrar em litígio devido à frustração provocada pelas mortes de
Shields, Bow e provavelmente Cree. Contudo, Adama interpôs-se e declarou
com serenidade:
— As perdas em combate são da minha responsabilidade. Fez a única
coisa aconselhável ao regressar à Galactica com essas imagens, Starbuck.
— Diga isso ao cadete Cree! — vociferou o outro, enfurecido. No
entanto, descortinou a desaprovação no olhar do superior e balbuciou: —
Queira desculpar, comandante.
Adama inclinou a cabeça em silêncio, o olhar dominado por uma
expressão de amargura. Athena sabia que o pai perdoava e compreendia,
sempre, as manifestações de insubordinação resultantes da cólera motivada
pelas mortes ocorridas em combate. Após um momento, ele virou-se para o
coronel Tigh e proferiu:
— Está explicado por que motivo os Cylons nos atraíram a esta rota.
— Dentro de quanto tempo poderão as suas forças de perseguição
alcançar-nos? — perguntou Apollo, apoiando-se no corrimão.
— Depende da localização das suas naves-bases — disse Adama. —
Possuímos demasiado poder de fogo para as suas esquadrilhas de ataque.
Manter-se-ão à distância, para efetuar ocasionais incursões de surpresa. Mas
podemos estar certos de que as naves-bases não tardarão.
Os outros oficiais presentes na ponte de comando conservaram-se
silenciosos, até que Starbuck anunciou:
— A Esquadrilha Azul pode neutralizar aquela peça, comandante.
É mesmo dele, refletiu Athena. Embora recomende aos seus cadetes que
nunca se ofereçam para uma missão, é sempre o primeiro a dar um passo em
frente, quando a «Galactica» está ameaçada.
— O envio de uma esquadrilha de caças seria um suicídio coletivo —
afirmou Adama. — Viu perfeitamente do que aquela arma é capaz.
— Seja como for — interpôs Tigh, apontando no mapa estelar a última
posição conhecida da força de perseguição cylon —, não podemos retroceder.
— Pois não — concedeu Adama,
— Que alternativa nos resta? — quis saber Boomer.
Adama voltou-se para a filha e ordenou:
— Projeta o rastreio geológico da superfície do asteroide. — Examinou
a imagem por um longo momento e acabou por decidir: — Podíamos pousar
na superfície uma pequena força de choque altamente especializada, para
detectar um ponto fraco no seu sistema defensivo e destruir a peça.
— Não nos podemos certificar de que existe um ponto fraco — objetou
Tigh, estudando igualmente a imagem.
— O risco é elevado — reconheceu Adama, arqueando as sobrancelhas
numa expressão de desafio. — Como sempre, segundo parece.
— Mas... Mas é um suicídio — articulou Starbuck.
Adama olhou-o, sem a mínima animosidade perante a linguagem
impulsiva do jovem.
— Não vislumbro outra solução. No entanto, estou aberto a qualquer
sugestão. — Fez uma pausa, verificando que a única coisa que os outros
podiam oferecer nesse capítulo eram algumas tosses discretas e murmúrios de
breve duração. — Programe uma pesquisa de pessoal qualificado —
determinou ao oficial de comunicações. — É indispensável possuir
experiência de sobrevivência em planetas gelados, montanhismo e
demolições pesadas. Quando os elementos forem assimilados, reunir-nos-
emos na sala de instruções. Até lá, quem não estiver de serviço deve recolher
à respectiva cabina e dormir o mais que puder. Uma vez iniciada a missão,
duvido que surjam muitas oportunidades para descansar.
Athena trocou com Apollo um olhar apreensivo, em que cada um
enviava ao outro a mensagem de que a única pessoa que devia repousar,
Adama, seria aquela que desobedecería à recomendação geral.
***
Uma luz... Uma luz vermelha... Movendo-se com lentidão de um lado
para o outro sobre um fundo metálico glacial... Formas imprecisas... Frio...
Um frio intenso que gelava o sangue, suspendendo a circulação... A luz
vermelha aproximava-se... Soou o grito de Shields no momento em que o
feixe luminoso lhe atingiu a nave... Os fragmentos do viper... Quantos?...
Incontáveis... Poderiam ser reunidos, como as peças de um Puzzle?... Shields
morrera, Bow também... Não, não podia ser... A luz vermelha feria-lhe os
olhos, tentando atraí-lo... A incomodativa luz vermelha nos capacetes dos
Cylons... Frio... Luz vermelha... Frio por toda a parte... Frio...
Cree acordou abruptamente. A luz vermelha que interferira no seu sonho
situava-se no capacete de um cylon que fitava o seu corpo estendido. Tudo
lhe acudiu à memória com prontidão. O feixe luminoso, a destruição dos
caças dos camaradas, o seu aparelho forçado a pousar. Os densos flocos de
neve que o assolaram, quando saiu da nave e enfrentou os quatro cylons que
o rodeavam, o seu quarteto de luzes vermelhas alarmantemente sinistras na
obscuridade gelada. Um centurião mandara desarmá-lo e dois outros haviam
cumprido a ordem antes de os braços aparentemente enregelados de Cree
poderem resistir. Que dissera o centurião comandante, antes de os outros o
arrastarem e ele perder o conhecimento? «Levem-no à presença de Vulpa.» E
pretendera que o cadete o entendesse, pois exprimira-se no idioma dos
humanos e não no dos Cylons.
O cylon que agora o observava era diferente dos que o tinham capturado.
O uniforme exibia mais faixas pretas largas nas zonas metálicas, as quais
indicavam a patente de um oficial, segundo Cree aprendera na academia.
Portanto, aquele era um chefe dos Cylons no mundo glacial em que se
encontrava. Um guerreiro da classe de elite várias vezes condecorado, se bem
recordava as suas noções sobre heráldica alienígena. Que fazia um guerreiro
da classe de elite num lugar árido como aquele? E onde se encontrava a frota?
Saberíam que Cree viera da frota? Talvez não. O uniforme dos cadetes diferia
do dos guerreiros e não continha qualquer insígnia da Galactica.
Cree recapitulou apressadamente no espírito as lições que aprendera
sobre o comportamento apropriado na eventualidade de ser capturado pelo
inimigo. «Nunca reveles mais que o nome, patente e número de classificação.
Nunca cedas à tentativa evidente de um inimigo para entabular uma conversa
banal. Lembra-te sempre que és um combatente colonial e o único contato
com o inimigo deve consistir na luta. Nunca fales, a menos que não o possas
evitar.»
O cadete recordava-se de o instrutor fazer uma pausa neste ponto das
recomendações. «No entanto, na eventualidade de seres torturado, a frota não
exige que cumpras qualquer destas premissas. Prefeririamos que ocultasses as
informações que conheces, mas não serás condenado se tas extraírem através
da tortura.» Outro cadete levantara o braço e perguntara se o suicídio não
seria preferível a sucumbir à tortura. E o instrutor replicara: «Sem dúvida,
mas uma opção dessa natureza não pode ser ordenada. A frota recomenda a
sobrevivência de preferência ao suicídio.» Cree decidiu permitir que os
cylons o matassem antes de lhes revelar coisa alguma, conquanto uma voz
remota no interior do cérebro parecesse advertir: «Não te precipites.»
O comandante cylon identificou-se como sendo o primeiro-centurião
Vulpa e, numa inflexão gutural, inquiriu:
— É um guerreiro colonial?
Cree quase respondeu afirmativamente, orgulhando-se disso, mas
equivaleria a uma resposta, uma quebra na armadura do silêncio. Embora
desejasse profundamente enfrentar com firmeza aquele arrogante oficial
cylon, conservou-se calado e limitou-se a exibir um olhar hostil.
Vulpa não pareceu de modo algum impressionado com a animosidade do
prisioneiro e, levantando-se da cadeira de comando, aproximou-se dele para
declarar:
— Resta apenas um vestígio da vossa raça: a estrela-de-batalha
Galactica e a sua frota. O vosso insignificante, estúpido e piolhoso grupo
de...
— Vai-te matar — interrompeu Cree, mas amaldiçoou-se imediatamente
por quebrar o voto de silêncio tão cedo. Na verdade, uma reação impulsiva
tão infantil não servia para enaltecer a causa do guerreiro colonial capturado.
Sempre lhe fora difícil dissimular as emoções. Quando frequentava a
academia, Shields costumava passar pelo seu cubículo e adverti-lo dos
inconvenientes de descurar a prudência. Todavia, afigurava-se-lhe que o
colega não era a pessoa mais indicada para o instruir nesse particular. Com
efeito, Shields não ansiava por se tornar um oficial de comando. Como
costumava dizer, contentava-se em pôr a voar as porcas e rebites do seu
viper.
O seu rosto rechonchudo e sorridente pareceu materializar-se na sua
frente, como que para substituir a imagem de Cree refletida no revestimento
metálico do uniforme do cylon. A seguir, porém, viu Shields no seu cockpit
segundos antes de o caça explodir num milhão de fragmentos, e os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas. No entanto, apressou-se a pestanejar duas
vezes, esperançado em que o cylon não tivesse reparado. Mas quem podia
determinar o que um cylon notava? Com aquela linha luminosa vermelha
movendo-se indolentemente de um lado para o outro do capacete, porventura
um mecanismo de focagem, tomava-se impossível definir o ponto em que a
sua atenção se concentrava.
Se Vulpa se apercebeu das lágrimas do prisioneiro, nada na sua atitude o
denunciou. O cylon continuou meramente a assediá-lo com as suas infernais
perguntas.
— Quantas caças restam na frota?
Agradava-te sabê-lo, hem?, pensou Cree. E sem dúvida gostarias de te
inteirar de que descobrimos métodos para manufaturar novos caças nas
nossas naves-fundições. Cree tentava afastar estes pensamentos do espírito,
pois a formulação das respostas que o monstro procurava arrancar-lhe ficava
a curta distância da sua revelação verbal.
Vulpa olhou-o diretamente, a linha vermelha do capacete deslocando-se
agora mais depressa.
— É feito de carne e osso, humano. Tem um sistema nervoso que
transmite impulsos, a sensação de dor. Dor intensa. Agonia. — Aproximou
mais a cabeça de Cree e quase se exprimiu na versão cylon de um murmúrio:
— Quantas naves de combate existem na frota?
O cadete manteve-se silencioso, esforçando-se por conter as imprecações
que lhe acudiam aos lábios. O cylon endireitou-se, fez sinal a dois guardas e a
outro par de alienígenas que se postavam junto de uma entrada.
— Não o deixem perder os sentidos.
Com estas palavras, regressou à cadeira de comando, na qual se afundou
pesadamente, à maneira habitual dos cylons. Os outros, de braços erguidos,
com numerosas imagens de Cree refletidas nos uniformes metálicos,
avançaram para o prisioneiro.
***
Starbuck conservava-se um pouco afastado enquanto os outros, reunidos,
aguardavam com nervosismo o resultado, das pesquisas do computador. Não
conseguia deixar de pensar nos três cadetes desaparecidos, sobretudo em
Cree. Evocava cada uma das perguntas ingênuas e, na altura, incomodativas,
e arrependia-se de ter sido tão abrupto para com o aluno curioso. Decerto
morrera e, por muito que Adama falasse na responsabilidade de comando, a
culpa era dele, Starbuck. Não lhe agradava sofrer desaires e de modo algum
se conformava com a perspectiva de perder mais um cadete.
Entretanto, o computador ia revelando os nomes dos indivíduos cujas
qualificações se adaptavam à missão em vista, consoante os dados
introduzidos no programa. Por fim, Athena arrancou o pedaço de papel do
registo e anunciou:
— Cinco especialistas. Três de apoio.
Adama acenou com a cabeça.
— Suspende-o aí — disse.
— Aqui está a lista — continuou Athena, entregando o papel ao pai. Este
examinou-o rapidamente e entregou-o a Starbuck.
— Aqui tem a equipa. Você e Boomer tratem de a reunir. Talvez se lhes
depare certa resistência. Portanto, procurem convencê-los com uma preleção.
Starbuck encaminhou-se para a saída, baixando os olhos para a relação
de nomes, e, de súbito, deteve-se.
— Deve haver engano, comandante.
Este arqueou as sobrancelhas, como se não fizesse a mínima ideia do que
o tenente queria dizer; porém, Starbuck acercou-se dele e murmurou:
— São todos criminosos. Encontram-se a bordo da nave prisional.
— Está autorizado a libertá-los — observou Adama, com um leve
sorriso.
— Bem sei, mas...
— Cumpra o que se lhe ordenou.
— Perfeitamente, senhor.
Com uma expressão apreensiva, Starbuck indicou a Boomer que o
seguisse, refletindo: Por que carga de água escolheu o computador uma lista
de presos? É esta a homenagem que prestamos aos três cadetes ceifados pelo
inimigo? Enviamos um punhado de marginais numa missão de importância
gravíssima. Abanou a cabeça de lado a lado, perguntando-se se o computador
estaria dominado pelo inimigo e aquilo fazia parte da armadilha a que o
comandante se referira.
— Que tens? — perguntou Boomer, quando atravessavam o corredor. —
Há alguma novidade desagradável?
— Não. Limitamo-nos a confiar a segurança da frota a um grupo de
assassinos.
Franziu o sobrolho e acabou por encolher os ombros.
— Enfim, desde que não seja a sério...
CAPÍTULO IV
CROFT.
No meu sonho, pareço separar-me do corpo e ser impelido para cima,
através das paredes desta cela imunda e da própria estrutura da nave
prisional. Por momentos, flutuo sobre a nave, contemplando o seu sombrio
exterior de metal baço e mal cuidado, afigurando-se-me ver simultaneamente
as centenas de desgraçados que se contorcem atrás das grades, no espaço
exíguo, tentando encontrar um recanto confortável para repousar. O maior
objetivo de um condenado consiste em procurar uma área confortável para
descansar. Nunca a descobre, mas continua a insistir. Assemelha-se a um rato
em busca de uma cavidade segura e terminando por se contentar com uma
corda corroída sacudida pelo vento impetuoso.
Não consigo continuar a olhar a nave prisional e pareço arrastado por
uma corrente de ar mágica, que logrou perfurar misteriosamente o vácuo do
espaço apenas para me localizar e ajudar a fugir. A fuga é, sem dúvida, o
único sonho real que um prisioneiro pode acalentar, independentemente do
aspecto que esse sonho assuma. Pode escapar-se do seu próprio corpo, como
eu faço, ou achar-se num país de sonhos de iguarias aprazíveis, pessoas
atraentes e conforto inexcedível.
Deslizo para o vazio, deixando a frota atrás de mim. Olhando por cima
do ombro, vejo as naves tornarem-se lentamente insetos em voo, diminuírem
gradualmente e acabarem por desaparecer. A Galactica é a última a
extinguir-se do meu campo visual, o maior inseto de todos. Quando me viro
de novo para diante, sei que, ao longe, na minha frente, se situa o sonho
agradável ou o pesadelo. No sonho agradável, pouso no topo de uma
montanha, só e desfrutando com a minha solidão. Devidamente equipado, a
minha mão delicia-se com o contato do cabo da picareta através da pele das
luvas, os pés movendo-se para que os pitões metálicos se cravem no gelo e o
capuz do parka envolvendo-me a cabeça, pelo que apenas posso descortinar
uma pequena porção do relevo à minha volta, e o vento intenso flagelando-
me o rosto, apesar da reduzida abertura do capuz. E, a menos que inclua a
escalada ou descida (num improvável deslizar em câmara lenta), a isto se
resume o sonho agradável. É agradável porque me sinto otimamente. Fui
perdoado, redimido, autorizado a reatar o único gênero de vida que jamais
amei.
O pesadelo é quase idêntico ao sonho agradável, com a exceção de que o
vento me assola com intensidade de furacão, o parka fica reduzido a tiras, a
picareta salta-me das mãos e resvala pela encosta íngreme e os pés começam
a deslizar na superfície resvaladiça. E Leda encontra-se lá.
Leda encontra-se lá, estendendo-me os braços. Não sei bem se tenta
salvar-me ou matar-me. E o dilema constitui a essência do pesadelo.
Desta vez, parece ser o sonho agradável. Ou será pelo fato de Leda, lá
em baixo, procurar arrastar-se através da comija para se me reunir?
Nunca o chego a determinar, porque nesse momento o guarda de esgar
permanente, Jester, me sacode para que acorde. E dá a impressão de que, ao
mesmo tempo, tenta esmagar-me o crânio no solo metálico.
— Para com isso! — grito. — Estou acordado. Não vê os meus olhos
abertos? Se estivesse a dormir, tinha-os fechados.
Por fim, com visível relutância, interrompe as sacudidelas e resmunga
naquela voz que soa como cascalho, pisado:
— Procuram-no.
— Procuram-me?
— Levante-se. Estão cá uns guerreiros coloniais para lhe falar.
— Diga-lhes que só recebo visitas à hora do chá.
Obriga-me a pôr de pé e empurra-me para fora da cela. Enquanto
percorremos o canal livre, entre as fiadas de celas, oiço as várias vozes de
sonho dos outros presos que permanecem encerrados e não se encontram a
trabalhar algures. Os grunhidos e gemidos parecem fundir-se num cântico de
ódio e desespero.
Jester conduz-me, surpreendentemente, a uma sala de instruções no
sector da administração da nave. A decoração é atraente: poltronas estofadas,
mesas reluzentes, espelhos decorados, nas paredes quadros horríveis mas
coloridos — o gênero de quadros que proporcionam a realidade aprovada
para os imbecis que não distinguem um quadro de uma fotografia.
De pé, a um lado da sala, como se desdenhassem da utilização dos
luxuosos móveis, encontram-se dois guerreiros coloniais de estatura elevada,
um branco e o outro negro, de aspecto impressionante. O de cor é
visivelmente inteligente, com uns olhos cuja expressão indica que ainda não
aprendeu tudo nesta vida e o seu interlocutor tão-pouco. O companheiro é
bem-parecido, daqueles que desfrutam de particular popularidade entre as
mulheres e no qual o uniforme parece moldado. O corpo é vigoroso e
musculoso posso afirmar que deve ser da melhor estirpe de pilotos. Porém os
olhos deixam transparecer astúcia. Dizem que ele pode enganar e sabe
desmascarar uma mentira. Revelam uma ponta de intrujice, de insensatez, de
heroísmo. Quem quiser que escolha. No fundo, penso que simpatizaria com
ele, ou melhor, com ambos, se não fossem guerreiros coloniais.
Enfim, se não querem aproveitar o mobiliário confortável, não vislumbro
razão alguma para lhes seguir o exemplo e, ignorando Jester, instalo-me na
cadeira da cabeceira da mesa, claramente destinada a quem preside às
reuniões ali celebradas, e pouso os pés no tampo reluzente. Os guerreiros não
revelam qualquer reação especial perante a minha audácia, mas Jester avança
para mim, claramente enfurecido. No entanto, antes de me poder tocar, o
negro faz-lhe sinal para que se afaste.
O branco começa a falar, dirigindo as suas palavras ao companheiro e
referindo-se-me na terceira pessoa, naquela maneira burocrática que se me
depara a cada passo e sempre detestei.
— Croft — profere, lendo os elementos do écran de um minicomputador
que tem na mão. — Comandante da Guarnição da Neve no planeta gelado
Kalpa. Ele e o seu bando saquearam um posto avançado cylon.
— Não há nada de ilegal nisso — replica o outro, com uma ponta de
ironia.
Um tipo arguto, como eu pensava.
— Não foi uma operação militar — volve o branco. — Roubo à mão
armada. Assaltaram e pilharam uma mina de platina cylon e negaram-se a
entregar o produto da pilhagem ao seu comandante colonial.
A semelhança de todos os outros, este encara a nossa aventura como um
ato de pirataria. Na altura, não pareceu. Levei muito tempo a reunir a equipa
apropriada para me acompanhar a mim e a Leda. Além de Wolfe e Thane,
havia mais quatro, cujos nomes não consigo recordar. As suas mortes
interferiram na minha capacidade de me lembrar das suas identidades.
E não foi uma brincadeira de crianças penetrar naquele sector cylon sem
dar nas vistas, escalar a íngreme escarpa norte da montanha sobranceira ao
acampamento cylon e à mina, tentar cravar pitões na rocha que se negava a
aceitá-los e perder dois homens que procuravam atravessar a superfície
resvaladiça, só porque Thane se atrasou uns segundos a fixar o cabo de
segurança que permitiria salvá-los. Depois, houve a descida pela corda até ao
acampamento pela calada da noite, depois de deslizar pela encosta gelada até
uma pequena plataforma. Embora estivéssemos solidamente presos por
cordas, sabíamos que o perigo nos espreitava a cada instante. Sobretudo
porque as armas dos Cylons nos podiam atingir, se eles nos descobrissem.
Por sorte, não se aperceberam da nossa aproximação. Introduzimo-nos no
acampamento e liquidámos todos os guerreiros cylons, no que perdemos mais
dois homens. Os restantes cylons, os operários, capitularam com prontidão, e
afastámo-nos com toda a platina que pudemos acondicionar no cargueiro
cylon cujos comandos Wolfe conhecia tão bem como os existentes no cockpit
de um caça. Depois de tudo isto, o presunçoso comandante colonial, com as
suas insuportáveis maneiras aristocráticas, tentou obrigar-nos a inverter a
marcha (quem eram os piratas, eles ou nós?) e a render-nos. Que direito tinha
de o fazer?
— Ele não se expôs às armas dos cylons, portanto não merecia coisa
alguma — digo aos dois homens. — Quem são vocês? Gosto de saber com
que ratos de porão lido.
Os dois homens mantêm-se altivos e entreolham-se com expressões
perplexas, e o branco informa:
— Starbuck, piloto de caças da Esquadrilha Azul da estrela-de-batalha
Galactica.
— Boomer. Piloto ao serviço do comandante Adama.
Adama, hem? Eu devia ter previsto que a sua hedionda pata estava
envolvida no assunto. Era o comandante colonial que tentara apoderar-se de
parte da minha carga. O seu rosto anguloso, de olhos glaciais mas
penetrantes, apresenta-se-me na mente. Apetece-me dizer a Starbuck e
Boomer que abram uma cova e se enterrem nela, mas decido aguardar, para
averiguar o que pretendem. Tudo é preferível a continuar naquela cela.
— Que querem de mim? — pergunto.
— Não tardará a saber — responde Starbuck, apontando para a porta.
Volto-me na direção do seu gesto e verifico que Wolfe se encontra lá, o
corpo possante quase obstruindo por completo a passagem. Bem, pelo menos
a parte inferior. Na verdade, não é muito alto, mas isso interessa pouco, dada
a constituição do seu corpo, com o centro de gravidade baixo e ombros de
músculos nodosos. Os cabelos estão desgrenhados, como sempre, pois Wolfe
e os pentes são inimigos irreconciliáveis, e os olhos encovados ardem de
cólera, como habitualmente, parte dela talvez devida ao fato de me ver
comodamente refastelado na luxuosa poltrona.
Um guarda empurra-o para dentro, e as correntes que são sempre
exigidas para um touro rebelde como Wolfe vibram em contato com o solo
metálico. Wolf volta-se para trás e fita o guarda, como que disposto a atacá-
lo, se as correntes não lhe condicionassem os movimentos.
Starbuck dirige-se a Boomer a meia voz, mas consigo detectar as suas
palavras:
— Aquele computador sabe de fato escolhê-los. — Baixa os olhos para o
écran do minicomputador. — Wolfe. Trepador. Ideal para operações
musculadas. Guarnição do Gelo. Uma força de choque individual.
Wolfe conserva-se calado, limitando-se a expelir animosidade pelos
olhos congestionados. Tem as faces cobertas de escoriações. Compreendo
que os carcereiros empregam métodos psicológicos para o manter na linha.
Acode-me, aos lábios uma frase contundente; mas, antes que a possa proferir,
a minha atenção é de novo atraída para a porta. Pressinto quem se avizinha,
embora ainda não esteja visível. Consigo sempre farejar Thane a um
quilômetro de distância. Com efeito, o seu corpo flexível e gracioso de
leopardo transpõe a entrada e sinto um arrepio percorrer-me a coluna
vertebral. Thane provoca-me invariavelmente esta reação. Os seus olhos
incolores lembram duas pedras de gelo, ou melhor, de verglas, a camada
gelada escorregadia e traiçoeira que cobre as montanhas. Os cabelos, em
contraste direto com os de Wolfe, estão cortados curtos e são brancos como o
marfim, parecendo uma continuação do rosto e fronte lívidos. Pergunto a
mim próprio se ainda me odiará, se ainda sente ressentimento por me
considerar uma figura de autoridade, por muito que as minhas qualificações
de comando fossem diminuídas pela permanência na prisão.
— Thane — informa Starbuck, cravando o olhar no écran. — Perito de
demolições e especialista de ambientes alienígenas.
Thane avança e fala. A sua voz é tão suave como os movimentos e, até
certo ponto, tão graciosa.
— Gosto de ver os olhos das pessoas que se me dirigem.
Starbuck levanta o olhar do minicomputador, e a interpretação das
expressões nas miradas dos dois homens é tarefa da exclusiva competência de
um perito de linguagem facial. Na realidade, o contraste entre ambos — a
astúcia nos olhos ativos de Starbuck e o alheamento no olhar plácido de
Thane — parece permitir a conclusão de que nunca se poderá estabelecer a
mínima comunicação entre eles.
— Trabalho com material de respiração — explica Thane, numa inflexão
tão branda como a neve em pó. — Gases raros, misturas químicas. Posso
conduzi-los através da terra, ar, fogo e água.
— O computador indica-me que está preso por homicídio — observa
Starbuck.
— Também sou capaz disso — admite Thane, com um sorriso
enigmático.
Homicídio. Esquecera-me disso. Após a nossa captura, ele envolvera-se
em conflito com oficiais coloniais, durante o qual derrubara quatro. Dois
deles não voltaram a levantar-se. Na verdade, eu não me devia ter admirado,
pois, quando nos conhecemos, já o haviam precedido rumores da sua
capacidade para eliminar com perícia aqueles que se lhe opunham.
Observo Wolfe e Thane, sem saber o que lhes dizer ou se devo
permanecer silencioso e apalpar o terreno, por assim dizer, antes de me
pronunciar. Preparo-me para fazer o sinal dos montanhistas, indicativo de que
tudo corre bem, quando uma voz proveniente da entrada quase me obriga a
saltar da cadeira.
— Olá, Croft, inseto miserável.
Não quero olhar. Com Wolfe e Thane presentes, devia calcular que Leda
não podia faltar. Não quero olhar, mas olho.
Não fico surpreendido com o que vejo. Os hediondos carcereiros não
conseguiriam dominar-lhe o espírito, por muito que se esforçassem. Ela
continua a ser deslumbrante. É uma mulher de ossos volumosos, um pouco
mais alta do que eu e, devido à minha atual condição debilitada, parece mais
poderosa. Cortou o cabelo curto, embora não tanto como o de Thane, pois a
tonalidade ruiva ainda lhe realça a agudeza do olhar de lince. Os malares
salientes contribuem para a sua aparência alienígena. Ela detesta-me e, neste
momento, apetece-me tomá-la nos braços e implorar-lhe que me volte a amar.
É difícil evocar o tempo em que as coisas nos corriam de feição.
Conhecemo-nos há muito tempo, antes do assalto à mina de platina e de
Kalpa, no nosso mundo mútuo de Scarpia. Recordo vagamente uma época em
que éramos tão jovens que o nosso amor superava todos os outros problemas,
mais importante que as preocupações que mais tarde nos dominaram. Após o
assalto à mina, Leda responsabilizou-me pelas mortes dos quatro homens e
mulheres, mas a verdadeira rutura entre nós dera-se muito antes. A última
ocasião feliz que consigo reconstituir no espírito é a expedição em que
escalámos as difíceis escarpas de Caprica. Encontrávamo-nos ambos em gozo
de férias, prolongadas em virtude de ferimentos recebidos em atos de
combate que os militares resolveram considerar heroicos, e escalámos
aquelas montanhas sós, negando-nos mesmo a levar comunicadores, para que
a Brigada de Controlo da Montanha não pudesse conhecer o nosso paradeiro.
Podíamos facilmente ter-nos perdido para sempre, esmagados pela morte
branca de uma avalancha, mas não só sobrevivemos como conquistámos
cinco cumes, um deles nunca atingido até então.
O que nos forçou a seguir rumos diferentes foi uma série de pequenos
mistérios. Uma divergência sobre um ponto de estratégia de batalha — em
termos de montanhismo, uma fenda numa rocha compacta — redundou em
acalorada altercação. Uma pequena divergência doméstica alargou a fenda
aberta pelo atrito anterior. Mais desacordos, mais insatisfações, mais
repressões de emoções reais transformaram-na num abismo, o qual, após o
trágico desenlace do assalto à mina, nos separou para sempre. Ainda agora,
os fragmentos de rocha e de glaciar das nossas vidas parecem jazer à nossa
volta. Talvez eu leve a comparação longe de mais. Leda diria que levo tudo
longe de mais.
— Tem aspecto de poder levar-nos à certa a todos — murmura Boomer
a Starbuck, claramente impressionado com a aparência de Leda. — Com ou
sem correntes, vencia-nos a todos.
— Leda — lê Starbuck no écran. — Médica de primeira classe.
Especialista em ferimentos provocados por armas laser. Experiência de
assuntos árticos e...
— Em que consiste a missão? — Interrompe ela, com abruptidão.
— O comandante Adama fornecerá todas as informações — esclarece
Boomer.
— Adama, hem? — Leda volta-se para mim. — Agora és amigalhaço
dele, Croft?
— Como a água e o fogo — replico, com uma gargalhada.
Leda enruga a fronte e dirige-se a Starbuck e Boomer:
— A minha presença e de Croft no mesmo lugar e na mesma altura é um
convite à catástrofe. Sugiro que me levem de novo para a cela. Sinto-me
melhor com a podridão de lá do que com indesejáveis como este.
— Depreendo que não simpatiza com Croft.
Leda exibe um largo sorriso de desdém que lhe permite expor os dentes
brancos e regulares.
— Estamos casados. — O sorriso extingue-se com a prontidão com que
surgiu. — Não, não simpatizo com ele — acrescenta em tom menos
agressivo.
— Olá, Leda — articulo. — Continuas tão bonita como uma librana...
— Cala a boca! — dispara, enfurecida. — Não estou disposta a ouvir as
tuas baboseiras. Nenhum de nós tem disposição para isso.
Boomer contempla-nos — a velha equipa de quatro, agora em plena
cisão— e murmura a Starbuck:
— É um grupo agradável. Tenho a certeza de que não te oferecerás para
esta missão.
Simpatizo contigo, Boomer, mas nunca conseguirei compreender-te.
— Bem, levemos estes... Cavalheiros e esta dama daqui — indica
Starbuck, guardando o minicomputador na algibeira da jaqueta de voo.
Boomer parece perturbado, enquanto o amigo ordena a Jester que retire
as correntes a Leda e Wolfe, e a seguir conduz-nos para a saída. 1
Vou ter saudades da poltrona, e calculo que passará muito tempo antes
que possa voltar a sentar-me numa tão confortável.
CAPÍTULO V
Apollo quase podia sentir a imobilidade da Galactica, como se a nave
tivesse conseguido travar miraculosamente, em vez de deslizar até um ponto
fora do alcance do canhão laser.
Quando bateu à porta da cabina de Adama, esforçou-se por fazê-lo com
firmeza e determinação. No momento em que se abriu, o comandante ergueu
os olhos e sorriu.
— Entra, Apollo. Pareces preocupado.
— Preocupado, não. Apenas irritado.
— Continua — urgiu Adama ao filho, semicerrando os olhos, ao mesmo
tempo que o sorriso desaparecia.
— A pesquisa do computador para selecionar os componentes da equipa
de assalto...
— Sim?
— Foi influenciada. Forjada.
Desta vez, a expressão do comandante deixou transparecer uma réstia de
cólera.
— É uma acusação grave.
Oferecia ao rapaz uma oportunidade de retificar a sua atitude, todavia ele
não vacilou.
— Estou perfeitamente ciente disso. É, na verdade, uma acusação grave.
— Diligenciando manter a voz firme, continuou: — Não quer que eu vá, pois
não?
Adama desviou um pouco a cadeira da secretária e dirigiu a Apollo um
olhar que teria feito estremecer o oficial médio da Galactica.
— Pensas que pouparia um membro da minha família?
Só nessa altura Apollo se apercebeu de que o sistema de gravação em
cima da secretária estava ligado, provavelmente desde o momento em que
formulara a acusação.
Medindo as suas palavras, declarou:
— Estou a insinuar que a escolha foi parcial, de contrário eu figuraria
nela. Tenho experiência de técnicas de sobrevivência, sou solteiro, e possuo o
grau de resistência adequado, superior ao da maioria do pessoal da Galactica.
Além disso, tenho larga experiência de manejo das armas mais diversas e...
— Mas falta-te experiência em temperaturas abaixo de zero — atalhou
Adama.
Todavia, Apollo achava-se preparado para a objeção.
— Nenhum dos nossos guerreiros tem treino dessa especialidade.
— Se o computador te ignorou, fê-lo por algum motivo.
O rapaz também estava preparado para aquela observação e,
desenvolvendo esforços porfiados para dominar a voz, replicou:
— E eu sei exatamente qual. O senhor é o único juiz de quem se deve ou
não sacrificar. E, segundo o coronel Tigh, pertenço à segunda categoria.
— És o comandante de combate com mais experiência que possuímos —
disse Adama, com um suspiro de resignação. — Precisamos imperiosamente
de conservar...
— Tem a certeza de que os seus sentimentos pessoais não lhe
obscurecem o discernimento objetivo neste caso? — Apollo aproximou-se do
pai, que se conservava imóvel, olhar fixo no tampo da secretária. — Pensa
que não compreendo? — Acrescentou em voz mais suave. — Perdeu tantos
membros da família... Zac. A mãe...
Calou-se igualmente. Adama decerto evocava no espírito as mesmas
cenas que obcecavam Apollo. Zac desintegrado pelos cylons. Ele e o pai de
regresso a Caprica, onde verificaram que Ila também morrera. As sensações
que aquelas recordações suscitavam não se podiam exprimir adequadamente
por meio de palavras, mesmo entre pai e filho. Por fim, Adama esfregou os
olhos, como que para afastar as imagens de um passado pungente, e
murmurou:
— Não mo peças, porque não reprogramarei a pesquisa.
— Não é necessário. Aumente uma unidade à equipa.
— Apollo, eu...
— Se, como disse, sou o seu comandante de combate mais experiente,
necessita de mim nessa missão. Que interessa a minha condição de
sacrificável ou não, quando enfrentamos aquela arma mortífera? Se a missão
abortar, estaremos todos condenados a voar em pedaços. E o senhor não o
ignora!
Os dois homens olharam-se em silêncio por um longo momento, cada
um tentando permanecer apegado à sua obstinação. Finalmente, porém,
Adama, assumindo a sua voz de comando, transigiu:
— Diz ao coronel Tigh que o determinei.
Apollo pousou a mão na do pai e replicou ao seu olhar glacial com uma
expressão de afeto. Nos olhos azuis acerados do comandante, despontou uma
sugestão fugaz de ternura. Acabou por inclinar a cabeça num gesto de
compreensão, e o rapaz, satisfeito, retirou-se.
***
Athena, que fora informada por Apollo do seu plano para participar na
missão e lhe recomendara que não enfrentasse o pai, ficou irritada quando
extraiu do computador a nova lista e viu nela o nome do irmão. Ponderou a
hipótese de procurar Adama para lhe verberar a decisão que tomara, mas
reconheceu a inutilidade de semelhante diligência. Com efeito, ele não
gostaria que os dois filhos o increpassem, pugnando em posições opostas. E,
pior que tudo, agora achava-se impossibilitada de solicitar que a deixassem
substituir a médica da missão, Leda, a qual manifestara particular relutância
em fazer parte da equipa expedicionária.
Nesse momento, Starbuck aproximou-se e cravou o olhar na folha que
Athena extraíra do computador.
— É a nova lista dos participantes na missão?
— É, e Apollo está incluído nela. Eu também queria ir, mas os
computadores escolheram esta... Esta Leda. Uma cadastrada!
— Custa-me dizer-te isto, querida, mas todos eles têm cadastro. Alegra-
te por não participares. Faço ardentes votos para que Apollo regresse intato,
mas tudo indica tratar-se de uma viagem de ida. Ainda bem que eu e Boomer
não fomos escolhidos.
Starbuck conseguia sempre levantar o ânimo de Athena e verificou com
agrado que o lograra uma vez mais com as últimas palavras.
— É essa a tua faceta que nunca posso compreender ou aceitar,
Starbuck. Tão depressa te ofereces, e à tua esquadrilha, para um assalto
insensato, como te congratulas por não fazer parte da missão. Essas pessoas
dispõem de uma oportunidade de salvar toda a frota. Confesso que dava o
braço direito para...
— Melhor para elas. Tenho uma carta muito mais arriscada para jogar.
Dá cá essa folha, que a vou levar ao comandante Adama.
Ela olhou-o, intrigada, sem compreender o que tinha em vista.
— De qualquer modo, tenho de estar presente no momento da
transmissão de instruções — acrescentou Starbuck. — Sou responsável pelo
grupo de prisioneiros até que concordem em aceitar a incumbência.
Athena hesitou, refletindo que era sempre preferível hesitar quando ele
se oferecia para alguma coisa, e, com um sorriso, entregou-lhe a lista.
— Conserva-te na sala o tempo que puderes. Talvez acabe por te
esmorecer um pouco a coragem.
Tratava-se de um desafio de escasso efeito, como reconhecia, sobretudo
por se destinar a um guerreiro com uma folha de serviços incomparável. No
entanto, pretendia apenas que agisse como o herói que era, papel que ele se
mostrava renitente em assumir, exceto em condições de combate.
Não devia ter falado assim, refletiu, enquanto Starbuck se afastava. Não
o devia irritar. Agora, estamos de novo de candeia às avessas! Quando
aprenderei?
CAPÍTULO VI
CROFT.
O imundo comandante da não menos imunda Galactica não me
reconhece. Enfurecido, avivo-lhe a memória e, apesar disso, lança-me um
olhar de indiferença. Diz que sim, que se lembra, mas não é verdade. Foi
apenas um momento banal na sua imunda vida, uma questão de dever.
Consigo visualizar todos os pormenores do seu rosto desde a nossa captura e,
todavia, é óbvio que não me distinguiria de um monte de carne de daggit.
Odeio-o mais do que nunca.
— Acalenta algum sentimento contra mim suscetível de comprometer o
seu rendimento na missão para a qual o escolhemos? — Pergunta-me.
Compreendo que é a minha oportunidade. Posso exprimir o desprezo,
sem receio de represálias, abstendo-me de executar um trabalho para um
homem que preferia matar a servir. Mas a recusa implica o regresso à prisão,
àquela putrefacta cela, onde se voltarão a esquecer de mim, agora talvez para
sempre. Não, não quero voltar para lá. Farei tudo para me afastar dela. Até
sou capaz de abraçar o imundo Adama como um velho amigo que não vejo
desde longa data.
— Os meus sentimentos nunca me afetam o rendimento — respondo,
por fim.
— Lá isso é verdade — interpõe Leda, com uma risada áspera, cujo eco
ricocheteia nas paredes da ponte de comando como um projétil de artilharia
transviado.
Adama fixa os olhos perscrutadores, quase cruéis, nos meus, que
descobre mais empedernidos que os dele.
— Como se explica que um homem com as suas qualificações, um
comandante, continue encerrado numa nave prisional?
— Deve sabê-lo melhor que eu, uma vez que me mandou para lá.
— Não me refiro a isso. Quando a nave prisional conseguiu escapar-se
da base de reclusão de Sagitara, foi oferecida uma oportunidade de
reabilitação a todos os prisioneiros. Necessitamos demasiado de pessoal
competente, para nos preocuparmos com o seu passado. Só negámos a
liberdade aos criminosos inveterados.
Lanço uma olhadela involuntária a Wolfe, perguntando-me qual será a
sua classificação e se lhe haviam oferecido a reabilitação. Em caso
afirmativo, ele não recusaria, pelo que depreendo que o não fizeram. Que terá
acontecido para alterar a situação ao ponto de até o meu antigo companheiro
se revelar útil?
— A maior parte dos prisioneiros aceitou a oferta do Núcleo de
Comando para se alistar na frota como pessoal útil, mas você recusou.
Porquê?
— No fundo, sou um romântico — replico, enrugando a fronte e os
olhos.
— Que quer dizer com isso?
— Não sei, ao certo. A reabilitação equivalia a dedicar-me a tarefas
insignificantes, do meu ponto de vista. Como a criada insinuante disse ao
patrão ansioso, não lavo janelas.
— Duvido que rejeitasse a reabilitação por questões de romantismo.
Inclino-me mais para o amor-próprio ferido.
— Poderemos discutir o amor-próprio de cada um noutra ocasião.
Adama assume maneiras mais formais e explica-me a natureza da
missão. É simples e complicada, ao mesmo tempo. A ideia, em si, não se
pode considerar má. A posição da peça de artilharia ocupa a maior parte do
topo da montanha, em virtude das suas dimensões. Existe uma pequena área
para aterragem de uma nave, e nada mais. Nada à parte uma montanha
escarpada que parece conter mais armadilhas mortais ocultas que passagens
acessíveis. Nos contrafortes há um vasto acampamento que tudo indica conter
uma guarnição cylon completa. Ao lado situa-se um largo aeródromo com
várias naves de guerra de diferentes classes, segundo o rastreio do
perscrutador. Ótimo! Os pormenores obrigam-me a pensar na incursão que
efetuamos para nos apoderarmos da platina. Se formos descobertos, poderão
utilizar-nos para praticarem tiro ao alvo.
— E quer que subamos até aí? — Pergunto.
— Não é tão alto como parece — intervém o capitão Apollo. Quem será
este tipo, que procede como um indivíduo importante?
— Vê-se que é uma autoridade em montanhas. Felicite-se por não ter de
a escalar.
— Faço parte da equipa — anuncia, corando como um pimentão,
empenhado em manter a sua posição.
— Então, que Deus nos acuda. Escute, comandante: o pior que pode
fazer para sabotar a missão é confiar-me um amador que não distingue um
pitão de um...
— Está estabelecido que meu filho participará na operação —
interrompe Adama secamente.
— Seu filho! Ótimo! Vou ter de velar pelo filho, fraturar a coluna
vertebral para lhe servir de ponte e provavelmente ir para ao fundo de uma
ravina devido a um dos seus numerosos erros. E tudo isto porque um
comandante quer iniciar o herdeiro numa missão arriscada. Esta missão
afigura-se-me um primor!
— Tenho experiência de montanhismo — assevera Apollo, como se
estas palavras bastassem para justificar a sua presença na equipa.
— Sim? Nesse caso, porque fez uma observação tão obtusa? Repare bem
no rastreio geológico da montanha. Disse que não é tão alta como parece? A
altura não representa uma medida de dificuldade quando se assalta uma
montanha, sobretudo se não existem elementos de expedições anteriores para
nos elucidarem de passagens possíveis. Alguma vez ouviu falar no monte
Cyimklen, capitão Apollo?
Assume o ar de quem não deseja trocar impressões sobre montanhas
comigo, mas responde:
— Sem dúvida. Situa-se no meu planeta natal, Caprica.
— Pois bem: é a segunda montanha mais alta de Caprica. E, se calhar,
escalou-a?
— Por acaso...
— Toda a gente o fez. Não custa nada. Um miúdo de seis anos pode
conquistar o monte Cyimklen. Apesar da sua altitude, compõe-se de encostas
de acesso fácil e degraus abertos na rocha. Houve uma época em que
representava um desafio devido à altitude extraordinária, mas foi há um
milênio. Assim que a primeira pessoa chegou ao cume, a ascensão passou a
ser fácil. Permita-me que lhe faça outra pergunta. Conhece o monte
Pannurana?
— Decerto.
— Mas aposto que nunca o escalou.
— Tentei, uma vez.
— Tem pouco mais de metade da altitude do monte Cyimklen e o topo
só foi atingido cinco vezes, duas das quais por mim. Sabe porquê? Porque é
uma autêntica armadilha. Rocha putrefacta, pontos de apoio sem um mínimo
de segurança, gelo como chapas de vidro, um pico que se destaca do resto
como uma agulha e uma atmosfera tão rarefeita como o seu bom senso,
capitão. Morreram mais homens no monte Pannurana que em todas as
montanhas em redor, juntas. Todas elas mais altas. Portanto, não me venha
dizer que esta elevação não é tão alta como parece.
Apollo parece embaraçado, o que me agrada. Gosto de desconcertar os
tipos como ele. Se escutar a voz da razão, talvez consiga comportar-se como
um membro da equipa, em vez de não passar de um peso morto nas cordas.
Em todo o caso, o aspecto desta montanha não me satisfaz, seja quem for que
faça parte da expedição.
— Bem, vamos assentar ideias — proponho. — Não se trata de uma
ascensão fácil para amadores ávidos de emoções. Pondo momentaneamente
de lado a possibilidade de sermos desintegrados num abrir e fechar de olhos
se os cabeças capacetes detetarem a nossa presença, não vislumbro uma única
passagem utilizável, pelo menos através deste rastreio geológico. As áreas a
norte e oeste são claramente demasiado íngremes para justificar qualquer
tentativa, nas condições que imperam na região. As do sul e leste parecem um
pouco mais animadoras, mas não me agrada o aspecto do material glacial
próximo do topo. A parte sueste apresenta-se mais prometedora, embora não
muito. Por outro lado, não nos concede tempo suficiente para estudar a
montanha minuciosamente e planearmos um percurso seguro...
— Tempo é uma coisa de que não dispomos, Croft — afirma Adama. —
Sei que lhe faria falta para uma análise conveniente da situação; mas, se os
cylon nos apanham entre as forças de perseguição e o canhão, estamos
perdidos.
— Compreendo, comandante, mas não posso dizer que estou satisfeito.
Uma boa escalada exige uma preparação demorada. Tem a certeza de que não
há qualquer alternativa?
Parece irritado com a pergunta. Talvez não lhe agrade a forma como
encaro as suas instruções. Perdes o teu tempo, comandante!
— Que alternativa sugere, Croft?
— Suponho que o ataque direto com caças está posto de parte. — Faço
uma pausa, enquanto ele inclina a cabeça num gesto de aquiescência. — E se
abríssemos uma passagem no interior da montanha? Nunca vi uma instalação
dos cylons que não dispusesse de facilidades subterrâneas. As passagens no
subsolo parecem desfrutar da sua predileção especial. Apostava a minha
liberdade em como a montanha contém uma rede de túneis e mesmo um
sistema de elevadores.
Adama estuda-me a expressão por um momento antes de replicar,
convencido de que me consegue ler o pensamento.
— É possível, mas todas as nossas tentativas de rastreio do interior da
montanha são neutralizadas. Reconheço que, se se descobrisse um caminho
alternativo, o utilizaríamos. Para já, temos de partir do princípio de que a
única maneira de destruir o canhão laser consiste, infelizmente, em escalar a
montanha.
É um homem razoável, sem dúvida. Lamento não o ter para
companheiro de equipa, em vez do seu excessivamente zeloso e inexperiente
filho. Continuaria a odiá-lo, mas pelo menos poderia confiar nele.
— Compreendo a sua avaliação da situação, comandante. Penso que
uma parte do nosso objetivo deve envolver uma certa dose de oportunismo.
Procuraremos alternativas à escalada da montanha.
— E se não existirem?
— Treparemos — declaro, com um encolher de ombros.
Mostra-se satisfeito. Bem, por mim, não vejo inconveniente. Se
conseguirmos realizar a proeza, talvez eu possa regressar à Galactica e
estrangular o seu comandante. Os desafios aparentemente insuperáveis são
mais fáceis de enfrentar se uma pessoa tem uma finalidade atraente à sua
espera, no regresso.
A seguir, Adama enumera-nos o equipamento. Verifico que se compõe
de quase todo o indispensável. Ótimo. Até contém alguns pitões de fixação
molecular. Em circunstâncias normais, não gosto de utilizar equipamento
especial; mas, numa ascensão recheada de tantas incógnitas, um pitão de
fixação molecular representa uma ferramenta útil. Se a rocha é boa, basta
introduzi-lo, enquanto o efeito de fixação faz o resto. Duas vantagens para
nós: algumas fases da escalada podem abreviar-se, porque não
necessitaremos de perder tempo a fixá-los convenientemente, e os cylons não
nos poderão detectar através do som das marteladas. As cordas também
obedecem a requisitos especiais, sendo tão manipuláveis e flexíveis como
serpentes ou rígidas, bastando para isso dar-lhes um puxão para a esquerda ou
para a direita, respectivamente. Embora eu deteste a especialização numa
ascensão de semelhante natureza, sinto-me inclinado a abrir uma exceção
para os pitões de fixação molecular e para as cordas mágicas.
Adama completa as suas explicações e apresenta os cadastrados aos
cidadãos íntegros que também participarão na equipa.
— A naveta transportará um veículo para a neve da classe Ram, armado
com lasers. O sargento Haals é um artilheiro especializado.
O visado inclina a cabeça numa saudação. É um tipo atarracado, de
expressão pouco tranquilizadora, com o qual eu só mediria forças em última
instância.
Entretanto, Adama prossegue:
— Vickers pertence a uma equipa de artilheiros que participou na
proteção da retaguarda na fase final da Batalha de Caprica.
O homem dá a impressão de ter uma opinião elevadíssima a seu respeito.
O tipo clássico do herói. Mais um insensato como Apollo. Enfim, pelo menos
parece que sabe manejar uma arma. Valha-nos isso.
— Necessitarão de um técnico de laser. Voight é o chefe da secção de
reparação de armamento.
Pressinto tratar-se de um fulano ponderado, calado, mas
profissionalmente consciencioso. Não será de grande utilidade numa luta
corpo a corpo, embora semelhante requisito não se torne indispensável para
conhecer a mecânica das armas laser.
— Já conhece a unidade de demolições da Guarnição da Neve chefiada
pelo comandante Croft.
— Comandante? — repito. A maneira como Adama me olha indica-me
que devo perfilar-me, o que faço sem hesitar. — Sou completamente
reintegrado?
Deixa transcorrer um longo momento antes de replicar:
— Temporariamente. A reintegração definitiva depende do resultado da
operação.
Os laços vinculadores foram colocados. No fundo, era de esperar que tal
acontecesse.
— A reintegração por um lado e a morte por outro — comento.
Thane e Wolfe olham-me com animosidade, e adivinho que a
perspectiva de voltarem a ficar sob as minhas ordens não lhes agrada. Aliás,
nunca gostaram que lhes indicassem o que deviam fazer. A expressão de
Leda não me revela coisa alguma, porque é neutra. Pode odiar-me, mas
reconhece que a minha reintegração reforça as condições de segurança.
— Neste momento, você, Croft, e os seus companheiros de prisão não
são diferentes de nós — afirma Adama. — Encontramo-nos todos numa
espécie de cela construída pelos Cylons.
Wolfe solta uma gargalhada sarcástica e observa:
— Sim, comandante. As nossas correntes são exatamente iguais.
Não sei se os outros podiam captar a mensagem tão bem como nós, mas
alegra-me que o pequeno torpedo dissesse isso. As pessoas fora da nave
prisional nunca sentem a dor de se encontrar dentro, apesar das suas curiosas
analogias filosóficas com as suas próprias prisões. De momento, a atitude de
Adama é aceitável, mas as pessoas como ele manifestam tendência para
esquecer a fraseologia compreensiva, uma vez fora das suas ratoeiras. Decido
quebrar o silêncio desconfortável subsequente às palavras sarcásticas de
Wolfe:
— Tenho plenos poderes?
Se ainda há algum nexo, deveria tê-los.
— Da unidade de demolições, sim. Da expedição, não. Três guerreiros
comandarão a vossa equipa e a autoridade máxima será assumida pelo
capitão Apollo.
Ergo mentalmente as mãos num gesto de desespero. Só faltava isto para
que o quadro ficasse completo: o capitão Apollo investido de poderes
absolutos. Não há dúvida de que não só a vida carece de sentido, como o seu
absurdo constitui um conjunto de crueldades calculadas.
Adama volta a examinar a lista. Que outras surpresas agradáveis terá
para me oferecer numa bandeja?
— O apoio da equipa estará a cargo de dois dos meus melhores oficiais:
os tenentes Boomer e Starbuck.
Bem, isso posso aceitar sem relutância. Boomer decerto atuaria da
melhor maneira numa emergência e Starbuck também não deveria deixar os
seus créditos em mãos alheias. No entanto, Apollo mostra-se surpreendido
com a revelação do pai.
— Starbuck e Boomer? — exclama.
Starbuck sorri e lança um olhar a Boomer, que parece algo confuso.
— Acho que é por causa daquela missão que «executámos» na Estação
de Gelo de Aeriana.
Aproximo-me dissimuladamente deles, convencido de que poderia
aprender algo escutando as suas palavras em surdina.
— Detectamos naves-bases cylons que se aproximam através do
perscrutador de longo alcance — informa Adama. — Devem alcançar-nos
dentro de oitocentos a novecentos centões. Tanto se vocês tiverem destruído
a sua peça pulsar como não, a frota desloca-se exatamente a setecentos. — A
sua expressão de amargura impressiona todos os presentes. — Boa sorte para
todos nós.
Boomer e Starbuck não se apercebem da minha presença atrás deles, e o
segundo murmura:
— Vai repetir-se o caso da Estação do Gelo de Aeriana.
— Em Aeriana nunca visitámos qualquer Estação do Gelo.
— Os computadores não mentem — replica Starbuck.
Boomer abana a cabeça, um pouco perturbado, segundo me parece, com
o aspecto dos fatos. Afasta-se dois ou três passos do companheiro e pergunto
a mim mesmo se devo denunciar a alteração da verdade de Starbuck, mas
resolvo conservar-me calado. Prefiro tê-lo a meu lado, com ou sem
experiência de estações geladas, do que presunçosos como Apollo.
A propósito de presunçosos, o jovem capitão acerca-se de Starbuck e
diz-lhe em tom afável:
— Sei o que sente acerca de Cree, com a perda dos cadetes em geral,
mas não pertence a esta missão.
O tenente mantém-se silencioso por um momento e riposta:
— Nesse caso, consigo, já são dois nas mesmas condições, capitão.
— Alterar as leituras de um computador é um delito grave — torna
Apollo.
— Sou da mesma opinião — admite Starbuck, sem pestanejar.
Admiro-me com o largo sorriso de Apollo. Até dá a impressão de se
alegrar com a presença do outro na equipa. Nesse aspecto, pelo menos, dá
indícios de bom senso.
Confesso que me sentiria mais confortável sobre a missão em geral se
Leda, Wolfe e Thane deixassem de me olhar com tanta animosidade.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
A comunicação é impossível. A comunicação é improvável. A
comunicação é implausível.
Ponderei várias vezes a hipótese de mandar fazer um quadro com estas
doze palavras, cada uma delas bordada a ouro, e pendurá-lo atrás da
secretária do meu gabinete oficial.
Quando me sinto particularmente frustrado, julgo que as pessoas nunca
podem chegar a um entendimento. Quando muito, atingem um nível de
intercâmbio verbal que investem com a ilusão de um entendimento. Nos
meus momentos especialmente sombrios, até acredito que as pessoas não
podem sequer alcançar um ponto de comunicação, quanto mais de
entendimento, sobretudo um em que algo de verdadeiramente significativo
para os dois interlocutores é ventilado no mesmo momento. Numerosos
fatores — pormenores, aspectos, traços característicos, tiques, sincronismo,
obsessões temporárias, todas as palavras que servem de capa às intenções —
interferem de forma frustradora no contato humano. Para algumas pessoas, as
distinções de classe, raça e personalidade não podem ser superadas, exceto
para a permuta de banalidades correntes, que constituem substitutos da
comunicação.
Na vida militar, verifiquei com frequência que as obrigações da
hierarquia representavam obstáculos em momentos em que necessitava
vitalmente de confiança suficiente para que um subordinado falasse sem
reservas. A bordo da Galactica, procurei estabelecer o costume de que o
comandante estava recetivo a todos os pontos de vista. Mas continuo sendo o
comandante, o que interfere na situação, mesmo quando enfrento membros
da tripulação desinibidos como Tigh e Starbuck. Até Apollo e Athena, que
sofrem com as formalidades que têm de empregar para se me dirigirem
oficialmente, parecem titubear um pouco quando exprimem as suas ideias na
ponte de comando. Em todo o caso, falam abertamente diante de mim, a sós.
Por muito que me esforce para pôr os meus oficiais e tripulação à vontade,
regista-se sempre uma formalidade na ordem de apresentação que afeta a
minha resposta à mensagem. Tenho de admitir essa formalidade como parte
da disciplina indispensável à continuação da nossa frota na sua missão
desesperada. E a plataforma de verdadeiro entendimento, a ponte para a
comunicação autêntica, parece pender sempre entre nós, invocada mas não
transposta. Por vezes, desejaria escutar a mensagem da maneira —
encolerizada, suplicante, arrogante ou obscena — que fosse mais confortável
para quem a exprimisse.
Mostrei esta passagem a Tigh, a fim de conhecer a sua opinião sobre o
assunto. Sorriu e recomendou-me que pusesse de parte as preocupações,
porque toda a comunicação possível na Galactica se desenrolava com
regularidade. Se tal não acontecesse, solicitaria transferência para a nave de
transporte das Mudanças Coloniais.
CAPÍTULO VII
Boxey não conseguia que Muffit se pusesse de pé. Por muito que o
daggit se esforçasse, tinha demasiado peso para se dobrar confortavelmente
pela cintura, embora, visto haver sido programado para agradar ao garoto,
não se poupasse a diligências para o comprazer. Boxey indicou-lhe que podia
parar de tentar e Muffit respondeu apoiando-se na cabeça.
O garoto voltou-se para a porta, onde o pai acabava de surgir vestindo
um parka para a neve. Quando os seus olhares se cruzaram, sorriu ao filho e
este julgou notar vestígios de lágrimas, cuja razão não compreendia.
— Está bem treinado — disse Apollo, inclinando a cabeça para Muffit.
— É muito inteligente. Para um daggit.
De vez em quando, Boxey recordava-se do seu primeiro Muffit, em
Caprica, que perdera, e nem sempre estava seguro de que o segundo fosse tão
satisfatório como o anterior. O primeiro mostrava-se mais afetuoso,
sobretudo na maneira como lambia a face do dono. A língua do atual Muffit
era áspera e seca e o garoto evitava que ele lhe lambesse a face.
Apollo agachou-se junto de Boxey e anunciou com suavidade.
— Tenho de me ausentar por uns tempos.
— Não queremos que nos deixe — protestou Boxey, visivelmente
contrariado.
— Não tardarei muito. Prometo.
O garoto pressentia que havia uma força misteriosa que levava os
adultos a tomarem decisões que eles, ou outras pessoas, não encaravam com
agrado. Não sabia se essa força era o deus ao qual lhe tinham ensinado a orar
todas as noites, ou se os adultos se limitavam a obedecer a regras que se
pareciam com as instruções que o pai lhe transmitia acerca de se alimentar
convenientemente ou preparar-se para vir a ser um guerreiro colonial.
— Aonde vai? — Perguntou Boxey.
— Ao planeta gelado. Com Starbuck e Boomer.
— Um planeta gelado! — Repetiu Boxey, entusiasmado. — Eu e Muffit
podemos ir também? Nunca vimos neve verdadeira.
— Desta vez, não. Trata-se de um projeto especial, sabes. Destina-se a
melhorar a situação da Galactica.
— Mas sou um guerreiro.
— Com certeza. — Apollo sorriu e apertou o braço do filho com ternura.
— Como tal, deves cumprir as ordens. Não é assim?
— Sim, senhor — murmurou Boxey, baixando os olhos.
— Ótimo. O desapontamento por não participar numa missão faz parte
do treino de um guerreiro. Quando as tuas qualificações satisfizerem as
necessidades de determinada operação, serás escolhido. Compreendes?
— Acho que sim.
— Bom. — A voz de Apollo tornou-se mais militar. — Para já, deves
comer pontualmente a todas as refeições e ir para a cama quando o
comandante Adama disser que são horas.
— Sem esquecer as orações.
— Exato.
Quando se despediram, Boxey pareceu notar que o abraço do pai era
mais apertado e prolongado do que habitualmente. Por fim, Apollo soltou-o e
afastou-se.
O garoto conservou o olhar fixo na porta por um momento e proferiu:
— Lembras-te, Muffy, daquela vez em que o pai nos mostrou a naveta,
durante o nosso treino?
Os sensores no interior do daggit captaram o som interrogativo na voz
do dono e ele inclinou a cabeça afirmativamente.
— E recordas-te da escotilha que ele disse ser uma saída de emergência?
Muffit voltou a mover a cabeça. Como desta vez a pergunta continha
uma inflexão mais conspiratória, os sensores transmitiram a mensagem de
que o dróide devia acompanhar o gesto de um grunhido.
— E de nos explicar que tinha salvo uma esquadrilha cercada utilizando
a escotilha para entrar?
O daggit continuou a acenar.
— Posso comer a horas e dizer as orações no planeta gelado. Vamos
experimentar essa escotilha.
Reagindo à ação da transmissão dos sensores, o daggit latiu com
ansiedade.
CAPÍTULO VIII
CROFT.
Nunca falha. Todos os tripulantes de uma nave ficam um pouco tensos
nos momentos de agonia que precedem o lançamento. Os desta naveta não
constituem uma exceção. Wolfe cruza e descruza as pernas, como se
pretendesse libertar-se das correntes que já lhe tiraram. Leda examina
atentamente as correias de um respirador, como se a sua aplicação fosse de
uma dificuldade transcendente. Thane conserva-se imóvel e empertigado,
parecendo calmo, mas sei que só assume uma posição tão rígida quando se
prepara para provocar uma explosão ou explodir emocionalmente.
A naveta está tão atulhada de material que uma pessoa quase não se pode
mover no compartimento. Não compreendo a ideia de Adama ao enviar-nos
tanta tralha de que nunca utilizaremos metade. Indiquei-lhe a conveniência de
levarmos pouco peso e inclinou a cabeça como se tivesse entendido. Os tipos
como ele acenam que sim e acabam por proceder em conformidade com os
seus princípios.
A tripulação da secção de artilharia, que esteve no porão para verificar o
trenó blindado que usaremos na superfície do planeta, precipita-se no nosso
compartimento como um grupo de bêbados regressando de uma libação.
Vickers tropeça nos pés de Thane e estende-se sobre o peito de torpedo de
Wolfe. Este afasta-o com um gesto brusco, enquanto Wolfe lhe lança um
olhar turvo e resmunga:
— Vê onde pões os pés.
Vickers endireita-se e indica em voz rouca:
— Desvia os teus.
Thane olha-o com uma expressão de desdém, mas não se move um
milímetro. O sargento Haals irrompe no compartimento, com um pequeno
arsenal nos braços. Tudo indica que nenhum daqueles tipos gosta de viajar
com pouca bagagem.
— Deixa passar — ordena o recém-chegado.
— Não há espaço — replica Thane.
Haals entrega o armamento a Voight e agarra o outro pelos ombros.
Pondero a hipótese de intervir, mas decido não o fazer. Que dividam a
hostilidade entre si, até ver. Mais tarde teremos de atuar como uma equipa
homogênea.
— Tira as mãozinhas — articula Thane, sem se alterar.
— Presta atenção, rato de porão — interpõe Vickers. — Quando um
artilheiro te manda afastar, tratas de remover a carcaça imediatamente!
Já sabia que ele provocaria aborrecimentos. Vou ter de intervir nesta
confusão. Entretanto, Wolfe levanta-se para apoiar Thane.
— Disseste rato de porão?
— Monte de esterco é a expressão mais apropriada — replica Vickers, o
imprudente, virando-se para Wolfe.
Este projeta-o contra a parede mais próxima e, por um momento, dá a
impressão de que o artilheiro vai atravessar o metal. Na precipitação para
segurar Wolfe, não me apercebo do movimento de Thane em direção ao
bolso da jaqueta. Pelo canto do olho, vejo-o extrair uma pequena cápsula. Era
de prever. Onde quer que se encontre, consegue sempre munir-se de produtos
químicos. Quebra a extremidade da ampola junto do nariz de Vickers e este
inclina a cabeça para trás e desliza para o chão, inanimado. Leda puxa o
braço de Thane, quando se prepara para aproximar a ampola ainda mais das
narinas de Vickers. Uma segunda dose, e o artilheiro não voltaria a acordar.
— Imbecil! — murmura ela.— A nossa única possibilidade de fuga
situa-se na superfície. — (É então esse o seu plano! E olha para mim, como
se fosse ponto assente que o aprovarei.) Virando-se de novo para Thane,
acrescenta no mesmo tom: — Queres que nos voltem a meter na cela?
— Não admito que me pisem — articula ele, calmamente.
E pousa os dedos no bolso da jaqueta, como se estivesse disposto a
utilizar nova cápsula. Tenciono adverti-lo de que deve deixar os produtos
químicos sossegados, mas a confusão atrás de mim desvia-me a atenção. Ao
virar-me, vejo que Wolfe e Haals se engalfinharam, embora o reduzido
espaço quase não lhes permita estender os braços para se socarem com
eficiência. Do outro lado deles, sem dúvida atraídos pelo barulho, os três
oficiais da Galactica precipitam-se no compartimento.
— Haals! Wolfe! — Grita Apollo. — Parem com isso!
Considero conveniente revelar um pouco de iniciativa ao nível de
comando, apoiando a atitude do capitão:
— Larga-o, Wolfe!
Os dois homens separam-se, não sem visível relutância, embora pareçam
dispostos a reatar a peleja na primeira oportunidade. É daqueles embates a
que, em condições apropriadas, eu gostaria de assistir. Haals é
suficientemente possante e rijo para fazer passar um mau bocado a Wolfe, se
bem que, em regra, ninguém consiga dominar este último. Eu venci-o uma
vez nas cinco em que nos enfrentámos.
— Como está ele? — Pergunta Apollo a Leda, que se entretém a
friccionar o pescoço de Vickers com os dedos esguios mas vigorosos,
ajudando-o a respirar enquanto a dosagem química de Thane continua a
exercer os seus efeitos.
— Não corre perigo. É uma paralisia de curta duração.
Ela responde numa intonação suave, quase terna. Porquê? Sentir-se-á
atraída pelo garboso capitão? Ou porventura acalenta a esperança de o
entontecer para pôr em prática o plano de fuga com maior facilidade?
Boomer retira suavemente uma pequena unidade eletrónica do outro bolso da
jaqueta de Thane e mostra-o a Apollo.
— Veja isto.
Thane não esboça o mínimo gesto para recuperar o objeto, limitando-se
a advertir:
— Não toquem no interruptor; é uma mina portátil.
— Estas coisas não se utilizam contra os camaradas — afirma Apollo,
irritado.
Wolfe coloca-se ao lado de Thane e observo uma vez mais que formam
um duo impressionante: um indivíduo entroncado, de pescoço largo, que
seria um colosso se não fosse a sua pouca altura, e outro esguio e sereno, mas
perigoso como uma carga de explosivos a curta distância de um detonador.
— Não somos montes de esterco — resmunga o primeiro.
— Nem ratos de porão — acode o segundo em tom brando, mas
ameaçador.
— Somos sim — intervenho, colocando-me entre eles e Apollo. —
Esterco e ratos. Melhor ainda, apenas corpos. Escolheram-nos para esta
operação porque somos sacrificáveis.
— Ninguém é sacrificável — assevera o capitão. (Abstenho-me de
retorquir: «Tu, talvez não, pois, como filho do comandante, deves ter previsto
um meio de bateres asas.» Na realidade, a sua presença é reconfortante.
Enquanto estiver connosco e vivo, haverá a certeza de que Adama enviará
uma expedição de socorro.) — Foram escolhidos por um computador que se
estava nas tintas para o esterco, ratos ou guerreiros — prosseguiu Apollo.
(Pelo menos, classificou-nos a todos.)— Vieram para executar uma missão
contra os cylons — devolve a mina portátil a Thane, que se apressa a guardá-
la — e não para lutarem uns com os outros. Arrumem o equipamento e
prendam os cintos, porque principiou a contagem decrescente.
A nave é percorrida por um rugido surdo e confortável, à medida que
nos aproximamos do ponto de lançamento.
CAPÍTULO IX
Killian, o «Assassino», era daqueles guerreiros coloniais que jamais
encarava a possibilidade da sua própria morte no campo de batalha.
Possuidor de músculos nodosos, tinha todo o aspecto do veterano de
combates que na verdade era. Ninguém se apercebia da expressão de
perspicácia no olhar, porque as atenções de qualquer observador se
concentravam invariavelmente no bigode abundante.
Apoiou os ombros ao espaldar do banco, enquanto aguardava o sinal
para o lançamento do seu caça. Se alguém lhe tivesse dito que era a última
vez que participava numa operação do gênero e não tardaria a morrer, limitar-
se-ia a cofiar o bigode e encolher os ombros, comentando que, se chegara a
sua vez, nada havia a fazer.
De súbito, a ordem esperada vibrou no comunicador:
— Voemos!
O viper de Killian, escolta da naveta da expedição, deslizou pelo tubo de
lançamento com um rugido ensurdecedor.
***
O primeiro-centurião Vulpa começava a duvidar de que pudesse arrancar
qualquer elemento de valor a Cree. Até agora, o verme humano conseguira
resistir à tortura, limitando-se a proferir o nome e uma série interminável de
números.
— Vestígios de aproximação — anunciou um técnico.
— Quantos? — inquiriu Vulpa.
— Dois.
— Descreve-os.
— Um grande. Aquilo a que os humanos chamam naveta. O outro é um
caça, um viper, que lhe serve de escolta, ao que parece.
— Alguma indicação da sua origem?
— Não.
Vulpa considerou a possibilidade de deixar as naves pousar, mas havia
demasiados fatores desconhecidos. Se a naveta contivesse uma força de
salvação ou uma equipa de assalto, a hipótese de se registarem baixas na sua
guarnição em luta com falta de pessoal não podia ser descurada. Ordenaria
que utilizassem o canhão para os aniquilar e varrer do... Mas não, era
impossível. O Dr. Ravashol e um grupo de técnicos encontravam-se na
instalação pulsar para a habitual operação de conservação e reparação de
pequenas avarias. Constituiria um erro advertir naquele momento Ravashol
das modificações introduzidas por Vulpa na sua invenção, embora este
suspeitasse de que o cientista já se inteirara. O melhor era destruir os intrusos
através de meios mais convencionais.
— Ativem um cruzador com ogiva de solenite.
O cruzador em causa era uma variação do novo tipo de aparelho sem
piloto cylon, que podia ser guiado por pessoal instalado em caças vulgares. A
diferença no modelo equipado com ogiva de solenite consistia em que se
achava formado pelo número mínimo possível de componentes. Como a nave
explodia juntamente com o alvo, não houvera necessidade de esbanjar
material. Quando ainda fazia parte do estado-maior do líder imperial, Vulpa
ordenara o desenvolvimento do cruzador de ogiva de solenite, em virtude das
pesadas baixas registadas, desproporcionadas do potencial de fogo dos
deficientemente equipados adversários humanos.
Agora, ordenou aos pilotos que orientassem o cruzador em direção à
naveta, enquanto eles enfrentavam o viper de escolta e o destruíam.
***
Para Apollo, a densa camada de nuvens do planeta a seus pés tinha um
aspecto espectral. Cinzenta e de superfície uniforme, dir-se-ia encobrir
mistérios sinistros. A aparência do que observava contribuiu para intensificar
a sua natural prudência. Assim, olhando por cima do ombro, indicou a
Boomer:
— Obtenha as coordenadas de navegação antes de penetrarmos nas
nuvens, pois não sabemos o que nos espera na superfície. Pode reinar
profunda escuridão, como quando você e Starbuck foram atrás de Cree e...
Starbuck, instalado no banco do copiloto, interrompeu:
— Cylons a baixa altitude, a estibordo!
Apollo determinou um rastreio sumário. Havia uma formação de
patrulha cylon logo a seguir a outra nave que, segundo os dados do
perscrutador, não era tripulada e carecia da maioria das características
familiares dos caças cylon vulgares.
— De que lhe parece que se trata? — Perguntou Apollo a Boomer.
Antes que este pudesse responder, a voz de Thane informou:
— Não é uma nave.
— Que faz aqui?
— Cansei-me de estar amarrado ao banco e resolvi visitá-los.
— Sabe que é expressamente proibido...
— Não me parece o momento apropriado para invocar o seu estúpido
regulamento, capitão. Aquilo que o seu ineficiente perscrutador descreve
como uma nave é, na realidade, uma arma. Trata-se de um dispositivo guiado
cujo focinho contém uma ogiva de solenite com potência suficiente para nos
reduzir a átomos. Penso que foi programado para nos atingir.
Thane exprimia-se com tanta serenidade e frieza que Apollo hesitava em
acreditar nas suas palavras. Descrevia a morte iminente de todos e o fato
parecia não lhe causar a mínima apreensão.
— Empregue a manobra de evasão — ordenou, por fim, a Starbuck, que
se apressou a retificar a rota da naveta.
— Não é possível fugir àquela arma — tornou Thane. — É um dos
maiores êxitos tecnológicos dos cylons. Não se pode evitá-la, por muito
sofisticados que sejam os métodos de evasão.
— Que sugere?
— Destruí-la antes que nos destrua.
Apollo preparava-se para lhe perguntar como pretendia neutralizar uma
arma nova e estranha, porém Thane desapareceu com a prontidão com que
surgira.
***
Killian, alertado por Starbuck do ataque repentino, fez o caça descrever
uma larga curva, no intuito de avançar para o trio de caças cylon que voavam
atrás da sinistra nave que transportava a ogiva letal. De repente, uma das
unidades inimigas destacou-se da formação e dirigiu-se para Killian.
— Starbuck! — Bradou este último pelo comunicador. — Mergulhem
para a camada de nuvens!
— Não adiantava nada. Eles alcançavam-nos.
— Não se preocupe. Eu trato de os entreter.
Com estas palavras, Killian premiu o botão da arma e uma dúzia de
projéteis laser seccionaram parte da retaguarda do aparelho cylon, que não
tardou a converter-se numa bola de fogo. Como reação à perda de uma
unidade, outro cylon abandonou a formação para a vingar.
Os tripulantes da naveta ficaram virtualmente colados aos espaldares dos
bancos no momento em que Starbuck acelerou. O som dos motores
assemelhava-se, aos ouvidos de Apollo, a um uivo de terror.
— Starbuck! — gritou. — Isto não é um caça! Rebenta com as turbinas!
— Vá dizer isso aos cylons — retrucou o tenente, no mesmo tom.
A naveta mergulhou na camada de nuvens. A única luz existente no
cockpit provinha do perscrutador que reproduzia a batalha de Killian nos céus
sobre eles. Os tripulantes viram o segundo caça cylon disparar uma rajada,
enquanto o terceiro aparelho e o cruzador alteravam o rumo para perseguir a
naveta. Starbuck tentou exigir maior potência aos motores, mas apenas
obteve um som agudo ainda mais intenso.
Killian fez pontaria ao último caça, mas este esquivou-se a tempo e
colocou-se por baixo do viper, de onde ripostou com vários projéteis laser.
Instintivamente, Killian consultou o perscrutador para se inteirar dos estragos
produzidos. O cylon destruíra o motor da secção inferior. Antes que
conseguisse retificar a posição, o cylon voltou a disparar uma rajada. Desta
vez, foi cortado um tubo de carburante. Portanto, o caça explodiria a todo o
momento.
Entretanto, o caça cylon aproximava-se e Killian tentou alvejá-lo, mas a
arma não reagiu à pressão no botão. Fazendo inclinar o aparelho para a
direita, logrou furtar-se à rajada seguinte, embora soubesse que não poderia
evitar o pior por muito tempo.
— Não posso imprimir mais velocidade a esta caranguejola — proferiu a
voz de Starbuck, pelo comunicador. — Não consigo desviá-la da trajetória da
ogiva.
— Deixe isso por minha conta — indicou Killian.
Esquivando-se ao caça cylon mais uma vez, apontou o viper ao cruzador
que transportava a ogiva, ao mesmo tempo que imprimia a maior propulsão
possível aos motores sobreviventes. Soltou uma imprecação que tinha longa
tradição a bordo da Galactica, segundos antes de colidir com o alvo, pouco
acima da camada de nuvens do planeta gelado. A explosão resultante
iluminou o espaço com um clarão quase ofuscante. O caça cylon tentou
desesperadamente afastar-se da sucção, mas foi absorvido pelas chamas que
se propagavam velozmente.
A naveta sofreu um solavanco abrupto e a mão enluvada de Starbuck
largou a alavanca do acelerador, como se acabasse de ficar ao rubro.
— Que foi? — Perguntou Apollo.
— Ou fomos atingidos por um disparo perdido ou a velocidade é
excessiva para este veículo.
— Capitão Apollo! — Exclamou Leda da entrada do compartimento dos
passageiros. — Está tudo a voar, aqui atrás! O vento é impressionante!
Partiu-se qualquer coisa num dos lados do veículo. Não consigo localizar o
ponto, nesta confusão, mas...
— Tente dominar os comandos, Starbuck — indicou Apollo. — Vou ver
o que se passa.
— Farei o possível, mas isto oscila como um balão que se desprendeu.
O capitão precipitou-se para a cabina contígua e descobriu
imediatamente o rasgão num dos flancos da naveta.
— Há uma rotura! Ponham as máscaras!
Todos se apressaram a obedecer — exceto Croft, que procedia em
movimentos metódicos, e Thane, o qual aplicou a máscara com lentidão,
como se lhe fosse indiferente usá-la ou não. Momentos depois, a voz de
Starbuck informou pelo comunicador:
— Os comandos não reagem. Estamos a perder altitude rapidamente.
Visibilidade zero. Contagem decrescente! Três! Dois! Um! Zero! Abaixem a
cabeça!
A naveta foi percorrida por uma espécie de rugido, como que numa
advertência de que estava na iminência de se desfazer em milhares de
fragmentos. Impelida por ventos violentos, principiou a rodopiar e os
passageiros viram-se sacudidos brutalmente. De repente, Starbuck fez subir o
«nariz» do veículo segundos antes de contatar com o solo e deslizar pela
superfície. A imobilização súbita traduziu-se por um ruído ensurdecedor, com
todo o impacte demolidor de uma força de três-G, e envolveu os membros da
expedição num amplexo glacial que lembrava o da morte.
***
A tripulação de serviço na ponte de comando da Galactica imergiu em
silêncio no instante em que os écrans dos monitores se apagaram
repentinamente. Adama, alertado pela súbita quietude, desviou os olhos das
informações sobre a perseguição dos cylons e fixou-os em Tigh.
— Perdemos o contato com ambos os veículos — anunciou este último.
Adama recordou a sua conversa com Apollo acerca de pessoas
sacrificáveis e experimentou uma sensação desagradável no estômago.
— Não há recepção alguma?
— O canal do viper está silencioso. A telemetria indica destruição total.
— Quem o tripulava?
— Killian.
Evocou com clareza o oficial de bigode abundante, cuja experiência e
instintos em combate seriam lembrados com saudade.
— E quanto à naveta?
Tigh não respondeu imediatamente.
— O canal de emergência apresenta as luzes vermelhas acesas. A
telemetria indica danos estruturais. Podemos tentar contatar com eles em alta
frequência.
— Não. É preferível manter silêncio.
— Mas...
— Estou tão interessado em conhecer a sua sorte como tu, mas não o
podemos fazer sem denunciar a nossa posição.
Se pudesse falar com o filho naquele momento, Adama dir-lhe-ia que o
fato de uma pessoa ser ou não sacrificável nada tinha a ver com o de Apollo
não figurar entre os escolhidos pelo computador para a expedição.
Relacionava-se mais com o receio de ter de enfrentar o vazio daquele
momento.
***
Vulpa aproximou-se do quadro de comunicações, onde o operador
observava o que se passava nas nuvens sobre Tairac.
— Um caça destruído — informou este último. — Outro provável.
— E a patrulha do cruzador com ogiva?
— Perdeu-se todo o contato. Podem ter sido destruídas todas as
unidades.
— Contacta com o chefe de patrulha da retaguarda.
— Guarnição de comando ao chefe de patrulha da retaguarda!
Vulpa ponderou a possibilidade de a patrulha avançada ter sido
totalmente destruída. A perspectiva não lhe agradava. Em virtude daquilo a
que haviam chamado assuntos importantes relacionados com a guerra com os
humanos, fora-lhe negado um contingente completo para a guarnição de
Tairac. O estado-maior-general argumentara que, no fundo, era extremamente
improvável que os humanos tentassem abrir caminho através daquele
perímetro defensivo. Agora, encontravam-se ali. Não só isso, mas o estado-
maior-general e o seu líder imperial tinham-nos guiado até lá. Como se tal
não bastasse, esperavam que Vulpa ripostasse a qualquer assalto, apesar da
escassez de pessoal. Talvez confiassem demasiado na eficiência do canhão-
laser. Era, sem dúvida, exato que os impulsos provenientes da peça podiam
destruir com facilidade a Galactica e as naves da sua frota. No entanto, antes
disso, tornava-se indispensável localizá-las.
O chefe de patrulha deu sinais de vida do outro lado do comunicador e
Vulpa dirigiu-se-lhe:
— O perscrutador indica a destruição certa de um invasor e provável de
outro.
— Isso condiz com as indicações dos nossos instrumentos. O provável
entrou na camada de nuvens e descontrolou-se antes de perdermos o contato.
No sector Hekla.
Vulpa sentia-se contrariado pelo fato de a situação da naveta continuar
incluída na rubrica «provável».
— Procurem os destroços! — Vociferou. — Não deixem sobreviventes.
— Não deixaremos sobreviventes — ecoou o chefe de patrulha,
mecanicamente.
A naveta devia ter-se esmagado no solo. Se os humanos não tivessem
morrido, a tarefa de Vulpa para os destruir tomava-se mais complicada. As
condições atmosféricas instáveis que predominavam na superfície de Tairac
provocavam demasiadas interferências e distorção no equipamento dos
monitores dos cylons. As tempestades de neve podiam ocultar os intrusos, o
terreno acidentado oferecia-lhes esconderijos seguros e a escuridão tomava a
observação visual praticamente impossível. Se havia sobreviventes, impunha-
se que fossem descobertos imediatamente, antes que tivessem oportunidade
de se aperceber das condições aproveitáveis para os seus fins.
CAPÍTULO X
CROFT.
Durante o momento de desorientação após a queda, vejo estrelas e fogo,
o que de modo algum se adapta ao frio que me percorre os ossos. Sinto-me
como uma estátua de gelo. Uma estátua de homenagem a quê? À minha
estupidez por ter abandonado a cela da nave prisional, imunda,
claustrofóbica, mas quente? Não é á primeira vez que o frio me assola,
mesmo tão intenso como o atual. Estive em montanhas cujos violentos ventos
glaciais quase me arrastaram para precipícios. Vi-me no interior de uma pilha
de neve de uma avalancha que levei centões a desmoronar. Experimentei frio
húmido que originou fendas no meu vestuário, fez as cordas quebrarem-se
inesperadamente e produziu cadáveres de olhos dominados por uma
expressão de eterna incredulidade na sua imortalidade.
Quando recupero o conhecimento, a primeira coisa que vejo é a neve
redemoinhando por toda a cabina dos passageiros. A temperatura baixou tão
rapidamente que não consigo ajustar o respirador de forma conveniente. Os
meus olhos adaptam-se ao ambiente e parte da neve desaparece. Estamos
todos emaranhados. O material caiu-nos em cima e embrulhámo-nos uns nos
outros. Luz. Apollo empunha uma lanterna, cujo foco incide num rasgão na
fuselagem da naveta. Lá fora, uma tempestade de neve uiva à nossa volta.
Não quero sair. Mesmo que morra enregelado aqui dentro, prefiro ficar.
Starbuck rasteja da parte da frente da naveta, exibindo um fio de sangue
proveniente do couro cabeludo.
— A aterragem com que um piloto sonha — articula, entre dentes. —
Sem instrumentos, motores ou pista...
Boomer, que se move atrás dele, acaba por se levantar e indica-lhe:
— Arranja uma luz.
Starbuck põe-se igualmente de pé, pega numa lanterna e diz, com uma
expressão de amargura:
— Executaste um trabalho estupendo, Starbuck. Dominaste uma naveta
descontrolada e fizeste-a pousar de «nariz» para cima. És um piloto
extraordinário...
— Quando acabar com os lamentos, ajude a examinar os feridos —
interrompe Apollo. — Perdemos parte da retaguarda.
— Sim, senhor.
Apollo mostra-se autoritário. Assume o comando das operações. Não sei
até que ponto aguentarei as suas manifestações de superioridade.
Boomer pousa a mão no ombro de Starbuck e tenta consolá-lo:
— Não estejas tão contristado. Outro no teu lugar não evitava um
embate catastrófico.
— Não te preocupes comigo — resmunga Starbuck, com um olhar
irritado ao capitão, o que me leva a pressentir que não simpatiza com ele. —
Isto passa.
Afasto duas pesadas caixas e avanço para a retaguarda da naveta, onde
se me depara um pandemônio. Uma amálgama de metal retorcido, no meio
de material irrecuperável. Wolfe inclina-se para Voight e Apollo aproxima-
se.
— Como está ele?
Wolfe dá, por um momento, a impressão de que a resposta envolve um
esforço sobre-humano e acaba por informar:
— Tem apenas uma mossa na cabeça. Deve voltar a si dentro de
momentos.
— Apollo — chama Leda, do outro lado da cabina de passageiros, e vejo
que se debruça sobre Vickers. — Posso valer-lhes, se descobrir a minha
maleta.
O capitão principia a esquadrinhar os destroços, mas apercebo-me de um
movimento estranho de Wolfe. Inclina-se ligeiramente para o corpo de
Voight e estende a mão para algo que faz desaparecer no seu parka, após o
que se afasta. Decido examinar o ferido e descubro que tem o coldre aberto e
a pistola laser não se encontra no seu lugar. Por conseguinte, está em poder
de Wolfe. Não tenho a certeza absoluta, mas trata-se de uma suposição muito
aceitável. Não lha posso arrebatar e, em virtude do seu temperamento volátil,
não me atrevo a divulgar o fato, sob pena de se registar uma cena sangrenta.
Portanto, resolvo guardar silêncio e procurar solucionar o problema da
melhor maneira, mais tarde.
Apollo encontrou a maleta debaixo de um monte de destroços e entrega-
a a Leda, perguntando:
— Que lhe parece?
— Tem um braço e duas costelas fraturados. — Ela exprime-se com
indiferença profissional. É um pormenor que sempre me agradou
particularmente em Leda: uma pessoa pode confiar em que proceda da
melhor maneira possível, sem permitir a interferência da sua opinião pessoal.
— Talvez também haja lesões internas. — Olha em volta para os outros. —
Mais alguém ferido?
— Eu — declare Thane, em inflexão suave.
Leda aproxima-se dele e pergunta:
— De que te queixas?
Ele esboça um sorriso malicioso, inclina o corpo flexível para ela e
murmura em tom suficientemente alto para que todos ouçam:
— Sinto-me só.
Isto é mesmo de Thane. As suas piadas especiais não faltam, mesmo em
circunstâncias dramáticas como estas. Claramente irritada com ele, Leda pega
na maleta e afasta-se, advertindo:
— Não posso perder tempo. Tenho mais que fazer do que aturar-te.
Vendo-a imobilizar-se de novo junto de Vickers, Thane comenta:
— Não o percas com esse. De qualquer modo, temos de o abandonar
para que morra.
A atitude «humanitária» suscita a cólera de Apollo, que exclama:
— Não abandonamos ninguém!
— Veremos, capitão. — Thane olha-o friamente, com a expressão que
costuma exibir antes de saltar sobre a presa. — Veremos.
Todavia, Apollo torna a concentrar-se no estado de Voight e não presta
atenção a estas palavras.
Boomer aponta a lanterna a outro rasgão na fuselagem e anuncia:
— Isto nunca mais volta a voar.
Encantadora perspectiva!
— Pior — comenta Apollo—, não tem condições de manutenção de
vida. Todos os sistemas estão esgotados.
Cada vez melhor!
— Para não haver só más notícias — acrescenta —, penso que o trenó
está operacional.
— Nesse caso, levemo-lo já lá para fora, a fim de colocarmos nele os
feridos — decide Apollo.
Aproxima-se de um dos rasgões, ao mesmo tempo que se começa a ouvir
o ruído de uma nave aérea. O capitão tenta espreitar pela abertura e o som
intensifica-se no momento em que um caça cylon nos sobrevoa.
— Há de voltar — profetiza Apollo, enquanto o ruído se atenua
gradualmente. — Temos de sair daqui sem demora. Croft, Boomer, ajudem-
me a tirar o trenó.
Encaminhamo-nos para o porão que contém o veículo. Apollo instala-se
diante dos comandos e principia a acionar interruptores. No momento em que
entro pelo outro lado, ouço uma espécie de grunhido. O capitão volta-se para
trás e aponta a lanterna. Avisto uma criança e um animal peludo agachados a
um canto, na iminência de ficarem enregelados para sempre.
— Boxey!
Segundo parece, o meu companheiro conhece o garoto, que nesse
instante se acerca e tenta exibir um sorriso.
— Muffit queria ver a neve.
Concluo que Muffit é o animal, o qual se coloca ao lado do dono.
Verifico então que não se trata de um animal, mas de uma versão dróide, a
reprodução de um daggit, salvo erro, embora não veja um espécime desses
desde Deus sabe quando.
Apollo parece prestes a admoestar o rapaz, mas acaba por reagir ao fato
óbvio de que ele tem frio e profere com brandura:
— Anda cá, filho.
Terei ouvido bem? O miúdo é filho dele? Só nos faltava isto!
— Perdoe-me — murmura Boxey, enquanto se abraçam com ternura.
— Não tem importância — diz Apollo, acalmando-o.
Resisto à tentação de dizer: talvez não tenha importância para si, mas
pense também nos outros. O dróide deve possuir a faculdade de ler o
pensamento alheio, pois olha na minha direção e rosna.
Não gosto da situação e do modo como se vai desenvolvendo. Wolfe
deve ter uma pistola laser, Thane parece na iminência de atacar quem se lhe
opuser e Leda... Quem pode prever o que se desenrola na sua mente? Apollo
procura estabelecer o comando sobre um grupo de pessoas para as quais as
ordens constituem uma ameaça. Não dispomos de naveta para regressar à
Galactica. Um caça cylon pode reaparecer a todo o momento. O filho do
capitão é um passageiro clandestino. Tenho de suportar o seu animal
mecânico, que rosna ameaçadoramente. Há neve por toda a parte e faz mais
frio que no interior de uma câmara frigorífica. Incumbiram-nos de escalar
uma montanha em que talvez não exista uma única aresta a que nos possamos
segurar sem deslizar para o fundo do abismo, neutralizar uma peça de
artilharia capaz de destruir uma frota inteira e bater em retirada intatos. Não,
a situação não me agrada absolutamente nada e tudo indica que me competirá
providenciar para que tudo corra da melhor maneira.
CAPÍTULO XI
As naves exploradoras cylon tinham, uma vez mais, detectado um ponto
fraco no campo de força de camuflagem da estrela-de-batalha Galactica e a
sua frota de sucata, e o líder imperial verificava com satisfação que os
humanos, cujo avanço se achava quase imobilizado, haviam caído na
armadilha. Era evidente que tentavam manter-se fora do alcance do canhão-
laser instalado no monte Hekla. Chegara o momento de espicaçar Adama e as
suas abjetas forças humanas. Virando-se para os oficiais superiores, em volta
do seu elevado pedestal, ordenou:
— Quero aproximar-me da frota humana. Dupliquem a nossa velocidade
e comuniquem aos guerreiros que se preparem. Será a batalha final. Enviem
imediatamente uma falange de naves-fantasma para atacar a frota. Quero que
fiquem assustados e conscientes de que os descobrimos.
Satisfeito com a sua estratégia, fez um gesto largo para que os oficiais se
afastassem. A falange de naves-fantasma contribuiria para perturbar a frota
de Adama. O desenvolvimento do cruzador com ogiva de solenite não-
tripulado fora uma das melhores ideias do primeiro-centurião Vulpa. Se, este
viesse a ser o novo líder imperial, a sua inovadora capacidade tecnológica
melhoraria consideravelmente com a imposição do terceiro-cérebro.
Recapitulou mentalmente os pormenores do seu plano, satisfeito com a
intenção geral de comprimir os humanos entre a força de perseguição cylon e
a peça instalada no monte Hekla. Embora não houvesse qualquer motivo
aparente para duvidar, decidiu consultar de novo a simulação de Starbuck.
Voltou-se para o simulador, que ainda não mandara retirar do pedestal,
cravou o olhar no tempereiro telepático e solicitou o simulacro do arrogante
tenente humano.
— Olá, compincha — proferiu a imagem de Starbuck, assim que o corpo
se solidificou. — Continuo disposto a não colaborar.
— Não o pode evitar. A sua programação obriga-o a responder a todas
as perguntas em conformidade com os conhecimentos que acumulámos sobre
a sua verdadeira pessoa.
— Pode pegar em todas as tiras de programação e comê-las ao pequeno-
almoço, olhos de percevejo.
— Vocês estão ao corrente dos nossos aparelhos não-tripulados?
— Os vossos aparelhos não são tripulados, mesmo quando transportam
pilotos.
Dominando a cólera com dificuldade, o líder imperial virou-se para o
tempereiro e ordenou que o conhecimento das naves-fantasma fosse
adicionado às informações do simulacro. A imagem de Starbuck sorriu assim
que se inteirou dos novos elementos e proferiu:
— Pretendem assustar-nos, hem? É uma ideia luminosa.
— Parece-lhe?
— Sem dúvida. Nós, humanos, temos a tendência natural para a
desconfiança. Se surge uma força que não conseguimos explicar ou uma
forma estranha pairando na escuridão, sentimos um peso no peito, um tremor
na espinha e o impulso para fugir para as montanhas.
— Nesse caso, as naves-fantasmas terão êxito?
Starbuck fingiu refletir por um momento, a menos que o simulador
esquadrinhasse os seus bancos de dados à procura da resposta apropriada em
linguagem humana.
— Custa-me a crer — declarou, finalmente.
— Porque diz isso?
— É difícil iludir Adama com truques mágicos. Não reage como nós. Às
vezes, até parece completamente desumano.
— Então pensa que não se impressionará com os nossos aparelhos não-
tripulados?
— Bem, talvez se impressione um pouco, mas não se assusta.
— Qual é a diferença exata na terminologia?
— Para uma pessoa se impressionar, basta a sensação de que um objeto
se reveste de mistério. Para se assustar, o mesmo objeto tem de a convencer
de que pretende apoderar-se-lhe da alma.
— Confesso que não compreendo.
— Nunca conseguiria, por mais esforços que fizesse.
— Estou convencido de que a nossa estratégia triunfará.
— Felicidades — articulou Starbuck, com um sorriso enigmático.
— Deseja-me felicidades? — Estranhou o líder imperial.
— Estou-me nas tintas para o resultado das suas diligências. Não passo
de uma simulação.
O cylon ponderou por um momento se, em face da atitude insólita do
simulacro, o verdadeiro Starbuck seria louco.
CAPÍTULO XII
CROFT.
Nada é tão mau que não possa ficar pior, se se aplicar um pouco de
engenho humano à situação. Detectávamos o som do caça cylon à distância,
descendo até quase ao solo e depois acelerando na ascensão. O som possuía
uma qualidade fantasmagórica. O aparelho podia localizar-nos em qualquer
momento e estávamos demasiado enregelados ou feridos para nos afastarmos
com prontidão.
Boomer efetua uma tentativa para sacudir a letargia:
— Todos lá para fora! Já!
Wolfe arrasta-se através da abertura e Thane segue-o. Inspeciono os
contentores esmagados e consigo recolher alguns machados próprios para
escavar no gelo, vários pitões de fixação molecular e diversas outras peças de
equipamento para trepar. Talvez não sejam suficientes, mas necessitamos de
recuperar tudo o possível. Junto da abertura, enquanto procuro material,
tropeço num vulto estendido na escuridão, de que se destaca um rosto de
expressão enfurecida. Leda.
— Era de esperar que me atropelasses para saíres primeiro.
— Não ia sair — asseguro-lhe. — De resto, não te tinha visto.
— Nunca me vês.
Lança-me um olhar incendiário, no qual noto igualmente uma ponta de
satisfação pelo que acaba de dizer. Deixemo-la desfrutar com o seu
minúsculo triunfo. Não adianta nada estimular-lhe a animosidade. Se a
expedição for bem sucedida, talvez possamos voltar a viver juntos... Enfim,
não merece a pena perder tempo com desejos fúteis.
Boomer passa junto de nós sem nos ver.
— Vou levar Vickers. Starbuck! — Este assoma à entrada da cabina da
frente. — Ajuda-me aqui.
— Estou a ver se desmonto o comunicador — protesta o outro. — É-nos
indispensável.
— Desculpa, não sabia. O capitão Apollo pensa que nos localizaram. O
caça cylon não tarda a aparecer de novo. Portanto, ajuda-me a levar Vickers.
Starbuck entra no compartimento dos passageiros e pega nos pés do
ferido, enquanto Boomer o levanta pelos ombros. Arrasto-me para a abertura
e sinto imediatamente o frio cortante na parte do rosto que não está coberta
pelo respirador. Apesar da neve e escuridão, a massa cinzenta do cylon toma-
se prontamente visível, avançando para nós.
— Aí vem ele! — Grito.
O aparelho «pica» e os feixes mortíferos dos seus lasers silvam ao
perfurar a superfície gelada. Atiro-me ao chão e sinto o contato desagradável
do gelo por todo o corpo. Atrás de mim, oiço o restolho produzido pelos
outros membros da equipa rastejando apressadamente para fora da naveta.
Ergo os olhos e vejo a parte da frente desta explodir numa labareda
amarelada.
No momento em que o caça descreve um loop, para se voltar a precipitar
na nossa direção e aplicar-nos o golpe de misericórdia, registam-se sons no
interior da naveta.
O trenó entra em atividade. Com uma espécie de rugido, o veículo
atravessa a fuselagem, criando mais uma abertura, e adquire a posição
característica para utilização da artilharia defensiva. Apollo emerge a cabeça
pela janela de bombordo do trenó e vocifera:
— Chegue aqui, Starbuck.
— Não tenho mãos a medir — resmunga o tenente, instalando-se aos
comandos da peça do aparelho.
O caça cylon, que não esperava encontrar resistência, volta a investir.
Starbuck atua nos comandos eletrónicos do pequeno canhão e aponta-o ao
aparelho inimigo, cada vez mais próximo. As peças do caça cylon, com o seu
maior raio de ação, atingem o trenó em dois pontos, e a cobertura da bateria
exterior desaparece. Mas Starbuck não liga importância ao fato e aguarda
calmamente que o inimigo se ache à distância conveniente, observando as
suas dimensões crescentes na mira.
Quando me preparo para gritar que dispare, ele fá-lo. Os projéteis
atingem o alvo e o caça explode como um meteoro em contato com a
atmosfera, obrigando-nos a proteger os olhos do clarão ofuscante.
Apollo inverte o sentido do trenó e coloca-o ao lado da naveta, cujo
incêndio entretanto se atenuou. Reunimo-nos à luz cada vez mais fraca; pelo
menos, os que ainda estão conscientes. O motor do trenó «tosse» e estremece,
indicando que se passa algo dê anormal.
De súbito, o garoto assoma à janela e exclama:
— Grande pontaria, Starbuck!
Pela expressão deste último e de alguns dos outros, deduzo que Apollo e
Boomer se esqueceram de os informar da presença de Boxey. Quando ouvem
o dróide começar a ladrar no interior do trenó, sobressaltam-se com o som,
insólito naquelas paragens.
Apollo põe termo às interrogações dos companheiros sobre o
aparecimento, do garoto e do animal mecânico e ordena a todos que se
juntem em torno do trenó. A seguir, acende uma lanterna e apercebo-me mais
nitidamente da agressividade do vento à medida que o incêndio da naveta se
extingue.
— Acendam a outra lanterna da neve — indica o capitão. — Evitem que
o clarão se observe de longe. — Faz uma pausa, enquanto Starbuck se
encarrega de obedecer. — Reúnam-se no maior número possível dentro do
trenó. Estabeleceremos um sistema rotativo para ocupar a parte superior.
Haals e Wolfe são os primeiros.
Nenhum dos visados parece apreciar o privilégio de ser o primeiro.
Entretanto, a velocidade do vento aumenta e continua a nevar com
intensidade. Starbuck entrega-me a sua lanterna e começam todos a carregar
o veículo. Quando a operação está quase concluída, tenho consciência da
presença de Thane e Wolfe atrás de mim. Volto-me para eles, depois de me
certificar de que os outros se mantêm ocupados.
— Que há? — pergunto em voz tão baixa quanto possível, apesar dos
uivos da ventania.
— Não me digas que os vais guiar até à montanha — profere Thane.
— Há uma possibilidade de chegarmos lá.
— É a nossa oportunidade de bater asas.
Precisamente o que eu suspeitava. De fato, conservavam-se sossegados
há demasiado tempo. O seu desejo de fugir dominou-lhes o bom senso e não
me escutarão por muito tempo, antes de tentarem abandonar o grupo.
— Bater asas para onde? — Replico. — Estamos impossibilitados de
sair desta bola de gelo.
Tudo indica que Thane consagrou profundas reflexões ao assunto, pois
apressa-se a dizer:
— Podemos caçar e construir um abrigo. Já estivemos em situações
muito mais críticas.
Wolfe aproxima-se mais e articula na sua voz roufenha:
— Talvez consigamos apoderar-nos de um transporte cylon e seguir para
um sistema solar.
— Ou arrancar-te todos os pelos e enriquecer vendendo-os como
produtos de um espécime raro. — Noto que ele parece com vontade de me
saltar em cima. — Não fugiremos para parte alguma. Comprometemo-nos a
destruir o canhão-pulsar ou lá o que é.
— Queres dizer que és capaz de escalar aquela montanha para recuperar
o cargo que te tiraram? — Resmunga Thane, semicerrando as pálpebras
numa das maiores manifestações de cólera que jamais lhe observei.
Apetece-me destacar-lhe a cabeça dos ombros e apertá-la entre as mãos
até lhe fazer saltar os olhos das órbitas.
— Perdeste toda a sensatez?
— A sensatez é para quem pode discutir em pé de igualdade. Deram
cabo de ti, Croft. Costumavas morder, mas agora estás sem dentes. Muito
bem, fica, para recuperares os galões. Nós partiremos na primeira
oportunidade.
Recordo-me da época em que aqueles tipos não costumavam proceder de
forma tão estúpida. Thane afirma que deram cabo de mim. Não estou bem
certo disso, mas talvez tenha razão. É possível que eu perdesse a minha noção
de lealdade, o sentimento de camaradagem que todos experimentávamos
antes do roubo da platina. Mas será desleal preterir o desejo egoísta de fuga e
liberdade pessoal em favor do nosso dever para salvar a frota de uma
catástrofe certa? Penso que não, e preparo-me para o dizer, mas, nesse
momento, verifico que Apollo se aproxima de nós e abstenho-me de replicar.
— Quando acabarem de carregar, partimos — anuncia o capitão.
Lanço uma olhadela a Thane e Wolfe e pressinto que desistiram de me
convencer a acompanhá-los. Talvez consiga fazê-los mudar de ideias, mais
tarde.
— Já acabámos — informo, e afasto-me com Apollo, sentindo cravados
nas minhas costas os dois pares de olhos dos meus antigos companheiros.
Junto dos destroços da naveta, Leda ocupa-se freneticamente de Vickers
e Voight. Nesse instante, Haals sai do veículo e enfia os braços nas correias
de uma mochila.
— Como estão eles? — Pergunta Apollo, agachando-se ao lado dela.
O olhar com que Leda o distingue recorda-me uma expressão especial
que outrora reservava exclusivamente para a minha pessoa. Ora, como anseia
por fugir, o olhar deve ser falso. Como sempre aconteceu, provavelmente.
— Devem sobreviver, se pudermos protegê-los da intempérie.
— Levem-nos para o trenó. Há espaço suficiente, com Wolfe e Haals na
parte superior.
Wolfe aproxima-se e, ouvindo as últimas palavras, argumenta:
— Não morro de frio, portanto...
— Já disse que segue na parte superior — interrompe Apollo. — É uma
ordem.
— Não admito que um puto qualquer...
Wolfe não completa a frase e lança uma mirada acerada na minha
direção. Tento convencê-lo com um encolher de ombros de que prefiro ficar
fora do assunto. Roda nos calcanhares e afasta-se. Eu devia prevenir Apollo,
se porventura ainda não o compreendeu, de que Wolfe é um elemento
extremamente perigoso, nas suas fases de beligerância. Mas teria então de
revelar o suposto roubo da pistola-laser e nada lucraria com isso. O jovem
capitão limitar-se-ia a afirmar que estava senhor da situação. Acalento a
esperança de que um dia se lhe depare uma em que não saiba o que fazer.
Dentro de pouco tempo.
Transportamos os dois feridos para o trenó e Apollo instala-se diante dos
comandos. Quando é a minha vez de entrar, oiço Wolfe e Haals ocuparem as
suas posições no topo do veículo.
— Chega-te para lá! — Grita Wolfe.
— Este lado está gelado — queixa-se Haals.
— O problema é teu.
Deixemos Wolfe ser o problema de Haals por algum tempo. Acomodo-
me no trenó e procuro aconchegar-me a alguém, de preferência Leda, mas ela
sentou-se entre Starbuck e Boomer. Talvez gostasse mais de se colocar ao
lado do capitão, mas sempre se mostrou suficientemente atilada para não
exigir demasiado da sorte.
Percorremos uma certa distância em silêncio. Até o comunicativo
Starbuck fixa o olhar no espaço sem proferir palavra. Uma vez por outra, o
garoto murmura algo ao dróide. A tensão é palpável. Se as coisas correram
tão mal até aqui, que nos aguardará? O nosso objetivo será a montanha, a
fuga ou um lugar menos frio para o daggit mecanizado, que, de qualquer
modo, não deve possuir sensores para registar a temperatura.
De repente estabelece-se confusão sobre as nossas cabeças e soa um
baque, seguido de um ruído intenso e seco. Sem sequer «tossir», o motor do
trenó para e o veículo desliza mais alguns metros antes de se imobilizar.
Apollo salta do assento imediatamente e sigo-lhe o exemplo, logo
imitados por Leda.
A curta distância atrás de nós, Haals encontra-se estendido na neve,
imóvel, de braços abertos. Wolfe desce do topo do trenó, tropeça e rola no
solo, enquanto Leda se precipita para Haals e principia a examiná-lo.
— Encontra-se em mau estado — anuncia. — Muito mau. Dá mesmo a
impressão de poder morrer.
— Que aconteceu? — Pergunta Apollo, voltando-se para Wolfe.
O interpelado enche os pulmões de ar antes de replicar em tom de
desafio:
— Fartou-se de me provocar e disse-lhe que me deixasse em paz.
Quando o empurrei, sem muita força, note-se, tentou agredir-me, escorregou,
a sua lanterna contatou com aquilo — aponta para a bateria exterior sem
proteção —, saltaram várias faíscas e ele caiu do veículo, quando parou.
Desconfio que o seu desajeitado guerreiro estabeleceu curto-circuito entre as
células de energia.
Starbuck, que acaba igualmente de emergir do trenó, parece na
iminência de se lançar sobre ele.
— Deve ter sido isso!
— Calma! — adverte Apollo, interpondo-se. — Já temos problemas em
número mais que suficiente.
Esquadrinho o terreno à nossa frente e detesto aquilo que receava.
— Mas ainda teremos mais, se não intensificarmos o poder protetor dos
respiradores — comunico a Apollo. — Está-se a formar uma onda de di-
eteno.
— O trenó não se pode deslocar sem as baterias. Temos tempo para o
esconder?
Deixa finalmente transparecer um pouco de bom senso ao pedir-me a
opinião.
— Que remédio! Não o podemos deixar visível.
Começamos os dois a escavar na neve, a fim de erguer uma parede em
torno do veículo, enquanto Starbuck e Boomer ajudam Leda a transportar
Haals para dentro do trenó. Wolfe hesita por um momento, como que
amuado, e acaba por nos ajudar. O próprio Thane abandona o esconderijo no
veículo, a fim de proceder a ajustamentos no equipamento de respiração. Por
uns momentos, pelo menos, trabalhamos em conjunto, como uma equipa
unida. Para o que isso possa servir.
Depois de construída a parede, reunimo-nos no trenó, momentaneamente
impossibilitados de efetuar qualquer diligência positiva. Apollo tem o garoto
nos braços. A máscara que este usa parece demasiado grande para ele,
embora Thane lhe aplicasse duas correias suplementares para que se
adaptasse melhor. No entanto, dá a impressão de não funcionar da melhor
maneira. De qualquer modo, quando ele «esticar», ficaremos com uma
indicação do tempo que nos resta. É um pensamento indigno de mim.
Quando me tornei um tipo que deixa um miúdo morrer para sua vantagem
pessoal? Baixo os olhos para o daggit, aconchegado às pernas do dono,
proporcionando-lhe calor em vez de o obter. Tem sorte, pois não necessita de
usar máscara.
Quando tivermos expirado todos, poderá mover-se à vontade sobre os
nossos corpos.
— Como te sentes, Boxey? — Pergunta Apollo.
— Tenho frio.
O capitão aperta-o mais. No fundo, não é desagradável assistir à
manifestação de um pouco de afeto humano, ainda que esporadicamente, se
atendermos à composição da nossa equipa. Desvio o olhar para Leda, a qual
parece imersa em cogitações. Lembro-me de a ver assim, há muito tempo,
quando repousava numa pequena plataforma de uma montanha. Não me
recordo do local exato ou do que aconteceu antes ou depois. Só consigo
evocá-la sentada assim e ao amor que lhe dispensava. Apetece-me estender a
mão e tocar-lhe, perguntar no que pensa, convidá-la a anichar-se nos meus
braços, mas sei que o mínimo movimento nesse sentido me valeria um murro
em plena cara.
Starbuck arrasta-se até junto de mim e pergunta:
— Que possibilidades temos?
Mais uma consulta à minha perícia por parte de outro oficial da
Galactica. Não haja dúvida de que a minha cotação sobe a olhos vistos.
Infelizmente, tudo indica que o fato se verifica tarde de mais.
— Tudo depende da duração da tempestade e de a atmosfera, sob a
influência do di-eteno, começar a baixar até ao ponto crítico dos gases que a
compõem. Esse ponto é o momento em que se não pode notar uma distinção
na curva da temperatura crítica entre as fases gasosa e líquida. Pela parte que
nos toca, o ar exterior liquefaz-se. Há quem lhe chame ponto mortal, embora
a designação nunca fizesse sentido, a meu ver, pois, em regra, a morte
sobrevêm muito antes do ponto crítico. Bastam-lhe estes esclarecimentos?
— Acho que sim. Em todo o caso, não me satisfazem. Obrigado.
— Sempre às ordens.
Afasta-se com lentidão. O frio principia a afetar-lhe os músculos. Na
realidade, afeta-nos todos dessa forma. Tenho de me esforçar por exercitar
todos os músculos que posso na incômoda posição em que me encontro.
De repente, o dróide empertiga-se, arrebita as orelhas e afasta-se do
garoto. Tudo indica que ouviu qualquer coisa, se bem que eu não compreenda
o que pode haver notado, com os uivos do vento lá fora. Finalmente, põe-se a
ladrar com fúria, sem ligar à ordem do dono para que se cale, precipita-se
para a porta, impele-a com o corpo e sai. Starbuck tenta apanhá-lo, mas não
consegue.
— Não... Não me posso mover — murmura.
— Muffit!— Geme o garoto, em voz débil. — Anda cá, Muffit!
Apollo aperta-o ainda mais ao peito e profere:
— Não te preocupes, filho. Ele não é como nós. Pode sobreviver ao di-
eteno.
— É mais feliz que nós — comento.
— Voltará? — Pergunta Boxey.
— Sem dúvida.
Apollo olha em redor e, sem se dirigir a ninguém em particular,
resmunga:
— Oxalá não traga uma patrulha cylon no seu encalço.
Quase desejo que tal aconteça. Que lucramos em permanecer dentro
deste veículo avariado? Os cylons decerto nos encerrariam numa cela quente
antes da execução. Aplicar-se-me-ia especialmente. Completaria o ciclo. De
uma cela quente para outra cela quente. Seria bem-vinda, apesar de agora não
sentir tanto frio. Principio a ficar entorpecido. Sonolento. Não posso deixar-
me dominar pela sonolência! Se adormeço, não volto a acordar. Não devo
consentir que tudo termine assim. Não é justo. Não é.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Quem sabe se, depois de expulsarmos ou destruirmos os Cylons e
encontrarmos um planeta acolhedor, poderemos reconstruir as nossas lendas
perdidas, os nossos livros destruídos, as nossas distrações. Parte disso
encontra-se preservado nos bancos dos computadores, mas não tudo. Ontem
pedi um exemplar do romance capricano Sharky, o Vagabundo das Estrelas,
persuadido de que se achava arquivado nos registos da frota, mas obtive a
resposta rastreio negativo. De início, não me resignei a aceitar a informação.
Um livro que eu lera e relera há muitos anos já não estava disponível,
podendo mesmo considerar-se perdido! Ninguém o voltaria a ler, a menos
que aparecesse um exemplar perdido no armário de alguém ou sob a forma de
um artefacto num abandonado posto avançado planetário. Quase dei ordem
para que se procedesse a diligências.
Só nas minhas instalações, tentei evocar o enredo de Sharky, o
Vagabundo das Estrelas. Convenci-me de que o poderia recordar totalmente
com facilidade. Talvez conseguisse renovar a tradição oral e pelo menos
conservar viva a maior parte de um romance que tanto me agradara. No
entanto, em breve descobri que conservava poucos pormenores no espírito e,
sobretudo, a sua sequência.
Sharky, o herói, era um rapaz vulgar, que acabava de transpor a idade da
puberdade. Isolado num asteroide remoto, onde o pai, inválido da guerra,
passava o tempo mortificando a paciência da mãe e esta se vingava tornando-
se uma megera insuportável, Sharky ansiava por abandonar aquele ambiente.
Não me recordo como o conseguiu, mas apoderou-se de uma naveta de carga,
depois de aprender a pilotá-la, e afastou-se do complexo de asteroides
militares, com rumo a uma área considerada despovoada, embora lhe
tivessem chegado aos ouvidos rumores de cidades do pecado e palácios de
prazer. Arranjou um amigo de confiança, Jameson, que não sei se seguiu na
naveta sem o conhecimento inicial de Sharky ou se se encontraram numa das
muitas colônias que este último visitou. Jameson era representante de uma
raça alienígena particularmente impopular em certos sectores da galáxia, e
Sharky teve de o ocultar diversas vezes. Todavia, quando se tornava
necessário, lutavam ferozmente lado a lado.
É a amizade dos dois amigos que me interessa evocar. Atuavam
maravilhosamente em conjunto no comando da naveta através da galáxia e
passavam parte do tempo instruindo-se mutuamente com os diferentes
conhecimentos que possuíam. Havia uma meditação especial de Sharky na
qual ele quase afirmava desejar que fosse possível um verdadeiro amor entre
um humano e um membro da raça de Jameson. Nunca declarou que o
desejava abraçar — e convém ter presente que o alienígena não podia ser
abraçado, por mais que uma pessoa se esforçasse —, mas era óbvio que a
fantasia de Sharky incluía um Jameson magicamente transformado numa
forma humana e «abraçável».
As aventuras são ainda mais difíceis de recordar que as impressões de
carácter. O livro era basicamente uma coleção de episódios sobre as
aventuras de Sharky nos vários planetas que percorria. Nas colônias mais
civilizadas, descobriu que o roubo da naveta fora registado e o procuravam
como um criminoso. Atravessou alguns momentos difíceis para se esquivar
às autoridades e evitar que o enviassem para casa. (A fuga continua era uma
característica particularmente importante da obra, parecendo sugerir que a
irresponsabilidade constituía uma forma de vida desejável, e considero
curiosa a circunstância de o meu ego adulto responsável recordar esse tema
com tanta nostalgia.) Juntou-se a um grupo de marginais, fingiu concordar
com os seus desígnios e acabou por lhes comprometer os planos fazendo
intervir Jameson no momento do crime. Mas em que consistia o crime?
Quem eram os criminosos? Porque não me recordo dos seus caracteres? Certa
ocasião, Sharky (convém não esquecer que era um mero adolescente) quase
conseguiu personificar com êxito um comandante de cruzador estelar,
disfarce que usava para tentar obter comida dos porões de um cargueiro,
numa altura em que ele e Jameson estavam famintos. Lembro-me desse
episódio com extrema clareza. Costumava lê-lo a meus filhos, e Zac fingia
que era Jameson e rastejava pelo chão.
Ainda consigo sentir a amargura do final do livro, quando Sharky e
Jameson eram finalmente capturados. O rapaz queria que o alienígena fosse
enviado para casa com ele, mas o regulamento não o permitia. O oficial que
comandava a brigada que procedera à captura explicou a Sharky que Jameson
não sobreviveria em qualquer instalação militar. Seria alvo da chacota geral e
a separação representava um ato de compaixão e não de crueldade. Por fim,
Sharky admitiu que compreendia, mas nunca me convenci disso, nem,
segundo penso, os outros leitores do livro. Quem conseguisse ler a cena de
separação de Sharky e Jameson, sem chorar, devia saber dominar muito bem
as suas emoções. Não me recordo do regresso de Sharky a casa,
provavelmente porque não desejo. Sei que foi sentimental. Talvez o pai se
comportasse mais humanamente e a mãe se tivesse tornado uma santa. No
fundo, não interessa. Ninguém dos meus conhecimentos que leu a obra se
preocupou muito com o desenlace.
Sem dúvida que Sharky, Vagabundo das Estrelas era um livro imperfeito
e possivelmente algum bibliotecário programador julgou existirem bons
motivos para não o incluir no computador da biblioteca da Galactica.
Paciência. As atribulações de Sharky em busca de uma vida mais aventurosa
afiguram-se-me muito similares aos nossos esforços para encontrar a Terra. O
romance poderia incutir-nos esperança numa altura em que nos falta. Por
muito do livro que consiga reconstituir, por elevada que seja a eloquência que
tentar incutir na sua descrição a alguém, nunca voltarei a ter Sharky junto de
mim. Grande parte dele foi destruída. Uma parte substancial.
CAPÍTULO XIII
Embora a ponte de comando da Galactica pudesse parecer imóvel e
inativa a um observador exterior, registava-se uma abundância de movimento
humano. Numerosos técnicos consultavam os aparelhos e instrumentos de
medida cujas informações se haviam mantido estáveis por algum tempo. Os
oficiais das comunicações comprimiam os auscultadores nos ouvidos,
procurando descobrir sons encorajadores. O coronel Tigh sentava-se no seu
lugar habitual, rasgando distraidamente os cantos das folhas dos registadores
que há muito deixara de consultar. Os olhos de Athena examinavam com
atenção todas as linhas horizontais do perscrutador, ao mesmo tempo que
introduzia novas combinações dos mesmos dados no computador. As mãos
largas e nodosas de Adama seguravam, num gesto frenético, o corrimão que
se prolongava até à entrada da sala de comando.
De súbito, uma das oficiais mastigou uma imprecação e chamou Tigh, o
qual se precipitou para ela, com Adama no seu encalço.
— Este perscrutador captou uma esquadrilha de caças cylon — anunciou
a mulher, apontando para o aparelho de longo alcance.
— Quantos são? — Quis saber Adama.
— Parece tratar-se de uma falange de ataque. Começam a acelerar.
— Ordene à Esquadrilha Azul que patrulhe a retaguarda — indicou ao
coronel.
— Muito bem. — Tigh acionou o interruptor do comunicador mais
próximo, enquanto a atividade à sua volta se multiplicava. — Atenção,
Esquadrilha Azul! Patrulhe sectores da retaguarda, de Sigma a Ómega!
As sereias começaram a soar por toda a Galactica e o pessoal de serviço
na ponte de comando quase detectava a torrente de pilotos correndo para as
rampas de lançamento. Nos vários écrans viam-se diversas tripulações
aprontando os caças e ouviam-se as reverberações dos motores.
A esquadrilha foi lançada para o espaço e constituiu-se em formação
muito antes de se registar contato visual com a falange de ataque cylon.
Postados à retaguarda da própria frota, os vipers estavam preparados para
enfrentar o ataque de surpresa do inimigo.
A bordo da Galactica, a tripulação da ponte permanecia nas posições de
combate, os olhos atentos observando os écrans de informação e
equipamento. Adama mandou transferir a imagem do Chefe Azul Um para o
écran principal, e, de músculos tensos, todos observaram os pontos distantes
que aumentavam gradualmente até se converterem nos caças de diferentes
níveis dos cylons. A primeira rajada proveniente dos aparelhos inimigos foi
dirigida ao Chefe Azul Um, e o pessoal da ponte estremeceu e encolheu-se
instintivamente, pois os projéteis pareciam avançar na sua direção. De
repente, o espaço encheu-se de fogo laser e explosões abruptas de alvos
atingidos. Dois caças cylon perfuraram a linha defensiva da Esquadrilha Azul
e prosseguiram rumo à frota.
— Protejam os cargueiros! — Determinou Adama.
— Galactica ao Chefe Azul — transmitiu um dos oficiais. — Trave
combate!
Um viper da Esquadrilha Azul destacou-se da frota numa elegante
parábola, alvejou os dois atacantes e transformou-os em outras tantas massas
de fogo, cujas chamas se juntaram, antes de perderem altitude e explodirem
num clarão intenso que iluminou o largo triângulo de naves que constituía a
atual formação da frota.
— Meu Deus! — Murmurou Athena.
— Boa pontaria? — Perguntou o pai, que se encontrava atrás dela.
— Não só isso. O feito foi cometido por um dos cadetes.
— Nesse caso, foi mesmo boa pontaria.
Adama afastou-se, o semblante aparentemente inexpressivo, mas a filha
detectou-lhe um brilho de satisfação no olhar como reação ao heroísmo de
um graduado do seu curso da academia.
Os aparelhos cylon, prontamente derrotados pelas manobras inesperadas
e desconcertantes dos caças da Esquadrilha Azul, retiraram para longe e
voltaram a converter-se em pontos nos écrans. Um oficial acercou-se de
Adama e informou:
— A Esquadrilha Azul regressa à base. Foram destruídos quatro
aparelhos inimigos e os restantes fugiram.
— Hão de voltar — profetizou o comandante. — Às matilhas, como
lobos. Que indicam as tuas informações, Tigh?
O coronel, com uma expressão apreensiva, analisava um conjunto de
folhas de registo que tinha nas mãos. Havia, sem dúvida, algo que o intrigava.
— Voltámos a abater aparelhos, mas sem tripulantes. Os cylons da
retaguarda guiavam os outros, como antes. Perdemos um caça e um dos
melhores pilotos, enquanto eles ficaram apenas sem os veículos, se
porventura é esta a designação apropriada. Vão-nos desgastando com essas
unidades desertas. É sinistro.
— Talvez seja isso mesmo que pretendem que pensemos. Se tornarem a
investir, recorre às naves da retaguarda. Coloca alguns guerreiros nos
cargueiros mais lentos com artilharia pesada para liquidarem qualquer desses
aparelhos sem piloto que consiga atravessar as nossas linhas.
— Entendido.
Athena, que escutara esta troca de palavras, aproximou-se do pai e
solicitou:
— Deixe-me ir.
— Aonde?
— Forneça-me artilharia pesada e...
— Já te disse que fazes falta aqui.
A voz de Adama denotava firmeza e ela devia ter regressado
imediatamente ao seu posto, mas decidiu insistir:
— Vai ter de retirar alguns guerreiros do serviço de rotina. Deixe-me
descolar num caça, quando se registar o próximo ataque. Posso...
— Nem pensar nisso. Ficas aqui.
— Sou tão eficiente no cockpit de um caça como qualquer desses
cadetes que o senhor envia para a luta.
A expressão chocada de Adama deixava transparecer com clareza o grau
de apreciação que o desabafo da filha lhe merecia.
— Um desses cadetes, segundo a tua terminologia, abateu dois caças
cylons sem a mínima dificuldade, há poucos momentos.
— Muito bem, comandante, convenceu-me. Mas as proezas afortunadas
de um cadete não passam de uma racionalização para me conservar agarrada
a uma consola de observação na ponte de comando. Quero dispor de uma
oportunidade...
A expressão de Adama descontraiu-se um pouco.
— Prometo conceder-te essa oportunidade, Athena. Mas, para já,
regressa ao teu lugar.
— Perfeitamente, senhor.
Tigh, com novo maço de folhas de registador na mão, acercou-se de
Adama e perguntou:
— Há alguma estimativa do tempo que falta para a expedição completar
o seu trabalho?
— É irrelevante. Temos de avançar dentro de... — Adama consultou o
cronômetro —... Quatrocentos e vinte centões, sejam ou não bem-sucedidos.
A atividade na ponte de comando foi-se reduzindo gradualmente, até
readquirir o ritmo normal.
CAPÍTULO XIV
CROFT.
Vestuário rasgado às tiras, machadinhas de gelo resvalando de uma
cornija. Pés descalços cada vez mais entorpecidos pelo frio intenso que
impera em volta. Leda estende-me os braços, mas sem a mínima intenção
ameaçadora. As mãos estendidas destinam-se a confortar-me. Quer abraçar-
me, apertar-me ao peito. Deslizo numa tentativa para lhe tocar. O seu
vestuário também se encontra rasgado em numerosas tiras. O rosto contém
diversos cristais de gelo. A pele das suas mãos toma-se negra, leprosa. Os pés
perdem o apoio. Não, Leda, não! Começa a afastar-se de mim, sem deixar de
manter os braços estendidos na minha direção. Principio igualmente a cair,
mas agarro-me a uma saliência gelada e o corpo oscila como uma bandeira
batida pelo vento. Inclino o pescoço e olho para baixo. Leda continua a olhar
para mim, com uma expressão de súplica, enquanto o corpo rodopia em
queda lenta, dobrando-se quando contacta com a superfície rochosa. Pretendo
largar o apoio e mergulhar na sua direção, mas não consigo mover os dedos,
que parecem colados ao gelo permanentemente. Tento gritar, porém não
consigo ouvir a minha voz em virtude do uivo agudo do vento.
E, de súbito, acordo.
Onde estou? O sonho parece persistir. Sinto o corpo tão entorpecido que
talvez ainda sonhe, de fato. Mas porque sonharia com um lugar destes? E
com tanta placidez? Isto é a matéria que constitui os pesadelos. Verifico que
se trata de uma gruta, com várias entradas. Mas que é aquele material de
guerra em todas as paredes? Há uma escotilha de uma nave cylon. O cano de
um atordoador laser. Troços e fragmentos de um metal não identificável.
Écrans de perscrutadores. Diversos uniformes metálicos cylon. Símbolos da
linguagem dos Cylons. Metade de um painel de controlo. Tudo isto pende das
paredes da gruta como decorações vulgares. Tenho de averiguar o nome do
autor de semelhante ideia, para o eliminar da minha lista de decoradores. O
fogão no centro da gruta foi improvisado com um bidão de combustível. Um
fogão! Tenho de me aproximar dele. Apesar da distância a que me encontro,
sinto o lado direito do corpo começar a descongelar. Mas ainda não me
consigo mover. Que é aquilo na parte inferior das paredes? Peles. Na sua
maioria, brancas e castanhas. Haverá animais indígenas neste inóspito
planeta? E aquela tralha ao canto, amontoada numa pilha enorme? Parecem
botas para a neve e, ao lado, uma montanha de esquis e trenós vulgares,
embora a sua grotesca configuração permita acalentar dúvidas a esse respeito.
Como vim parar aqui? Lembro-me de nos encontrarmos no trenó
blindado, onde o frio se tornara insuportável. Olho em volta e noto que
alguns dos meus companheiros começam a mover-se. Apollo endireita-se
repentinamente e olha em redor. No mesmo instante, uma das peles ao canto
dá um salto, aproxima-se e principia a lamber-lhe a face. Do outro lado de
Apollo, o garoto levanta-se e afaga o dróide.
— Muffit! Voltaste.
— Boxey... — Murmura o capitão, rodeando-lhe os ombros com o
braço.
— Está bem, pai? — Pergunta o garoto, sorrindo.
— Perfeitamente — afirma Apollo, embora o seu sorriso pareça mais
forçado que o do filho.
Os outros dão agora nítidos sinais de vida. Verifico que já me posso
mover. Arrasto-me até junto do fogão e tento absorver o seu calor como se
fosse água corrente. Quando me volto para aquecer as costas, avisto um vulto
coberto de peles de largas dimensões, que não pode ser Muffit, de pé à
entrada da gruta. É um fulano de constituição possante. Mais alto que
qualquer de nós, exibe o ar nobre característico de muitos indivíduos de
cabelos louros e olhos azuis, mesmo quando nem são capazes de produzir
saliva suficiente para colar uma estampilha postal. Isto não significa que o
tipo seja um cobarde. Com músculos daqueles, deve ser um lutador. Tem um
aspecto quase de super-homem. É um daqueles tipos que, quando se reúne
uma equipa para luta corpo a corpo, se escolhe em primeiro lugar.
Todos os outros se apercebem da sua presença. Quando começa a falar, a
sua voz revela-se tão estentórica que chego a duvidar de que seja real:
— Tiveram sorte em que o daggit descobrisse o nosso grupo de caça.
Estavam no Planalto da Morte, onde ninguém consegue sobreviver muito
tempo.
Exprime-se no nosso idioma, o que não deixa de ser animador.
— Estamos-lhe gratos — declara Apollo, adiantando-se e tratando
imediatamente de reassumir o comando da situação. — Quem são vocês?
— Simples caçadores — responde o tipo de ar nobre.
— Nesse caso, suponho que nos devolverão as mochilas — torna o
capitão, olhando em volta. — E as armas. Depois poderemos retomar o nosso
caminho.
Assim mesmo é que é, Apollo. Descubro-me perante um estratego
magistral como tu. Entra no assunto, de uma vez. Não te preocupes em
apalpar as intenções dos tipos que te salvaram. Começa logo por fazer
exigências. Contenho com dificuldade o impulso para o afastar da frente,
assumir o comando das operações e empregar certa subtileza para com o
desconhecido, a fim de me inteirar da situação.
— Para onde pretendem ir? — Estranha o caçador. — A tempestade
continua. O di-eteno deixou-os desidratados e vou providenciar para que
absorvam líquidos. Depois falaremos das possibilidades de partirem.
E, rodando nos calcanhares num movimento majestoso, abandona a
gruta através da abertura mais próxima. Com lentidão, como animais
selvagens circundando uma fogueira, os restantes componentes da equipa
expedicionária acercam-se do fogão, à exceção dos três feridos. Starbuck
continua a olhar por cima do ombro, para a abertura pela qual o caçador
desapareceu.
— Não gostei da maneira como ele disse aquilo — murmura, abanando a
cabeça.
Apollo examina o interior da gruta com desconfiança e afirma:
— Há qualquer coisa de estranho no meio de tudo isto. Humanos
vivendo num posto avançado cylon? Nunca tive conhecimento da sua
presença neste sector. Não faz sentido.
— Há outro pormenor que ainda faz menos — observo, enquanto ele e
Starbuck me olham com perplexidade. — Não são apenas caçadores, pois
estão pesadamente armados.
— Repararam nas paredes? — Intervém Boomer. — Estão cheias de
despojos. Há, por exemplo, uniformes cylon.
— Com queimaduras produzidas por lasers de combate — confirma
Starbuck.
— Proponho que dominemos o tipo e nos raspemos — sugere Wolfe.
Não há como ele para apresentar uma solução radical no momento
oportuno.
— Concordo — declara Leda.
Que ideia se terá metido na cabeça dela?
— Um momento — diz Apollo. — Se eles lutam contra os cylons, como
se pode depreender das recordações que vemos nas paredes, talvez estejam
do nosso lado. Há uma possibilidade de nos serem úteis.
— Tenho sede — anuncia Boxey, ao mesmo tempo que o seu malfadado
daggit principia a rosnar.
Voltamo-nos todos para o garoto e verificamos que o caçador acaba de
reaparecer, agora por uma entrada diferente. Pega num volume coberto por
uma pele e olha-nos com uma expressão indefinível.
— Como apareceu atrás de nós? — Murmura Starbuck.
Apollo aproxima-se do homem e, na sua voz mais cordial, começa:
— Trouxe a água? Precisamos...
— Silêncio! — Ruge o outro.
Starbuck adianta-se um passo e adverte:
— O garoto e os feridos necessitam de beber. Você disse.
— Disse que queria silêncio!
— Há qualquer coisa de errado nisto — admite Apollo, fitando o
caçador com incredulidade.
— Sinto os pelos da nuca eriçarem-se — articula Boomer, a meia voz,
colocando-se-lhe ao lado.
— Aqui está o líquido que prometi e comida — anuncia a voz do louro
de ar nobre.
Mas não é para ele que olhamos. Rodamos nos calcanhares
simultaneamente, como que obedecendo a uma ordem silenciosa. A voz
proveio da abertura através da qual o homem desapareceu da primeira vez.
Agora, encontra-se de novo aí, com embalagens de comida e sacos de pele
cheios de água. Ao mesmo tempo, dois outros caçadores irrompem de outras
tantas aberturas.
— Que demônio?... — Balbucia Boomer.
— Não acabamos de falar com este tipo? — Profere Starbuck, intrigado.
Os dois novos caçadores são réplicas exatas do fulano que traz os
mantimentos. Eu e Apollo voltamo-nos de novo. O homem junto da parede
mais afastada é precisamente igual aos restantes três! São todos louros, de
olhos azuis e compleição física possante.
— São clones! — Sussurra Apollo.
— Preferimos a designação de formas de vida da Classe Teta — declara
uma voz cuja inflexão difere radicalmente das do quarteto anterior.
Através de outra passagem, dissimulada por montes de peles, acaba de
surgir uma mulher! E devo reconhecer que se trata de uma visão feminina
impressionante. O rosto atraente lembra vagamente os dos clones; pelo
menos possui olhos azuis e cabelos louros, mas assemelha-se mais a uma
deusa do que a uma caçadora. O parka e calça de cabedal, juntamente com o
arsenal que exibe (incluindo uma espingarda laser a tiracolo) não conseguem
ocultar a configuração admirável do corpo por baixo de toda a tralha que usa.
Starbuck contempla-a de olhos arregalados, como se um dos seus sonhos
mais aprazíveis acabasse de se materializar.
— A situação começa a assumir aspectos agradáveis — segreda a
Boomer.
O caçador que se nos dirigiu em primeiro lugar diz chamar-se Ser 5-9 e a
mulher Tenna I. Os outros têm nomes similares. Ser 5-9 distribui a comida e
água, sobre as quais nos lançamos como um bando de monstros disputando a
presa. Ele e Tenna I sentam-se numa plataforma ligeiramente elevada e
observam com interesse a forma voraz como tragamos os alimentos. Por fim,
Ser 5-9 pergunta como se explica a nossa presença no seu planeta e Apollo,
antes que eu lhe possa recomendar um pouco de prudência, descreve
rapidamente a natureza da nossa missão. Tudo indica que aceita sem reservas
a atitude cordial e hospitaleira dos nossos anfitriões. Lamento não partilhar
do seu otimismo.
— Vieram para destruir a unidade laser-pulsárica Ravashol? — Articula
Ser 5-9.
— Ravashol? — Ecoa Apollo.
— Dr. Ravashol — esclarece Tenna. — É humano.
Irritado, Starbuck adianta-se um passo e increpa-a:
— Humano? Foi um nosso semelhante que criou aquela arma
monstruosa para nos destruir?
No entanto, ela, agora nitidamente na defensiva, replica:
— Se não fosse ele, não existiríamos.
— É o pai-criador — confirma Ser 5-9, em tom respeitoso.
O garoto, que não perde uma palavra do diálogo, puxa a manga de
Apollo e pergunta:
— Ravashol é Deus? Gostava de o conhecer.
A expressão do capitão constitui um misto de apreensão e embaraço.
— Não, filho. Não é Deus. Se fosse, não estava com os Cylons. —
Volta-se de novo para Ser 5-9. — Porque trabalha para eles?
O interpelado conserva o tom respeitoso, ao redarguir:
— Deixam-no realizar as suas experiências. Criar.
— Criar armas mortíferas para destruir os outros humanos!— Comenta
Starbuck, numa inflexão sardónica.
Tenna, dirigindo-se em especial ao jovem tenente, formula uma
advertência:
— Convém ter cuidado com o que se diz acerca do pai-criador.
Ser 5-9 parece regressar das nuvens ao dirigir-se a Apollo:
— O laser pulsárico não pode ser destruído. O local mantém-se
permanentemente sob vigilância dos cylons, além do que há guerreiros na
guarnição dos contrafortes do monte Hekla. Mesmo que conseguissem
transpor esse obstáculo, a peça foi construída com magna, praticamente
indestrutível.
— Dispomos de solenite — interponho com serenidade, e observo a
reação ocasionada.
Reagem como eu previ, com um momento de silêncio para assimilar a
informação. Quando Ser 5-9 volta a falar, revela o mesmo respeito com que
se refere a Ravashol:
— Solenite? Ravashol falou-nos nisso, uma vez.
É sempre útil recorrer a termos técnicos, quando se enfrentam tribos
aparentemente primitivas. Para dizer a verdade, a palavra «solenite» provoca-
me um arrepio. Empreguei-a noutras ocasiões e verifiquei que nunca o fazia
sem me impressionar. A designação deriva da utilização de um solenoide, o
enrolamento magnético que, quando ativado como parte principal do sistema
de ignição do explosivo, adere a praticamente tudo. Incluindo magna. Mais
fácil de colocar em torno do objetivo que os explosivos normais, que
requerem a abertura de furos ou ligações de fios de alta resistência embebidos
em substâncias plásticas ou por meio de soldaduras, a solenite apenas
necessita de ser fixada às superfícies de magna do canhão e depois ligada a
materiais de carga básica igualmente magnéticos em pontos estratégicos.
(Desde que se conheça a localização destes, o que não acontece em relação ao
malfadado canhão.) Em virtude do seu elevado grau de resistência à água,
não há perigo no transporte de solenite ao longo da encosta da montanha
gelada, sobretudo porque a combinação das suas substâncias explosivas
plásticas e químicas é estável a temperaturas inferiores às que os humanos
podem suportar. Por outro lado, a solenite tem o efeito de pressão mais
eficiente de todos os explosivos que jamais utilizei. A sua densidade é de tal
ordem que a velocidade de detonação resulta fenomenal. Um bom explosivo
deve possuir forte poder destruidor, o que se verifica largamente no caso da
solenite. O seu sopro parte em todas as direções, como a explosão de uma
estrela. É por esse motivo que se considera o explosivo mais seguro, porque
se quem o utiliza não se afasta com prontidão pode encomendar a alma ao
Criador. Compreendo a atitude de respeito de Ser 5-9, pois é a reação natural
de quem já ouviu falar da solenite.
Este último conferência com Tenna por um momento. Pelos seus gestos,
depreendo que a informa de que a nossa posse de solenite aumenta
consideravelmente as possibilidades de neutralizarmos a peça. Por último,
quando se viram majestosamente para nós, Ser 5-9 declara:
— Podem deixar aqui os feridos. Cuidaremos deles e conduziremos os
outros à aldeia.
— E depois? — Quer saber Apollo.
— Verão, quando lá estiverem — replica Tenna.
O capitão parece refletir por uns instantes e acaba por inclinar a cabeça,
após o que os clones principiam a reunir o equipamento para a viagem.
Apollo agacha-se junto dos três feridos e indica a Haals:
— Fique aqui com Vickers e Voight.
Os olhos do outro dão a impressão de não funcionar convenientemente, e
desconfio que a dose de eletricidade que recebeu no trenó ainda produz
efeitos residuais. No entanto, parece não pensar assim, porque se levanta e
protesta:
— Sinto-me em condições, capitão.
Em vez de pôr em causa a bravata, Apollo brinda-o com palavreado
tranquilizante:
— Acredito, mas convém que fique alguém capaz de se defender, pelo
sim pelo não. Mais tarde viremos buscá-lo.
— Muito bem, capitão — concorda o artilheiro, com um sorriso.
Depois de examinarmos o equipamento, eu e Apollo juntamo-nos aos
clones e restantes membros da expedição diante de uma das entradas.
Apercebo-me de que Starbuck conversa de temas banais com Tenna. Era de
prever.
— Esperava ter tempo de descongelar antes de me aventurar de novo lá
fora.
— Encontraremos um compartimento adequado na aldeia — afirma ela.
— Poderei aquecê-lo lá.
— Não duvido...
Nem eu, e lamento não poder participar na operação de aquecimento.
Por fim, Apollo pergunta se estamos todos preparados e transpomos a
abertura. Na nossa frente estende-se um túnel. A avaliar pela forte corrente de
ar e flocos de neve dispersos, calculo que nos encontramos perto do exterior
da gruta. Muffit precipita-se para a frente, com a habitual ansiedade. Abrando
o andamento, resolvido a abandonar o quente em último lugar, quando me
apercebo de que Wolfe desenvolve esforços porfiados no mesmo sentido.
— Quando nos raspamos? — Murmura repentinamente.
Um indício interessante: ainda confia o suficiente em mim para me
dirigir a palavra.
— Não te impacientes.
Olha em volta, para se certificar de que todos nos precedem e, do interior
da jaqueta, extrai a pistola-laser. Deve ser a que roubou a Voight. Julgo
conveniente fazer-me de novas, embora consciente de que terei de o dominar
se se descontrolar.
— Quero que saibas que estou preparado — insiste no mesmo tom.
— Onde arranjaste isso?
— Não interessa. Posso utilizá-la contra os cylons. Ou contra quem se
nos atravessar no caminho.
Afigura-se-me prudente não apresentar objeções. Enquanto tiver a arma
em seu poder, é um indivíduo perigoso. Baixo os olhos para ela e faço um
gesto para que a guarde. Depois de esboçar um sorriso de confiança, obedece
e vai juntar-se aos outros.
No exterior da gruta, a tempestade de neve e o vento abrandaram. Não se
avistam nuvens de di-eteno em parte alguma. Todavia, o frio persiste. E como
persiste, meu Deus!
Avançamos pelo campo gelado com extrema lentidão. As mochilas
dificultam-nos a marcha e o cansaço duplica o seu peso. As botas, sem
dúvida as melhores que o quartel-mestre da Galactica nos pôde proporcionar,
não aderem ao solo com a eficiência que desejaríamos. Enfim, mais um
pequeno problema entre muitos.
Apollo faz sinal para que me aproxime da vanguarda, onde troca
impressões com Ser 5-9, o qual comunica:
— O campo de gelo termina aqui. A partir deste ponto, temos de seguir
ao longo das ravinas.
Concordo, satisfeito por o clone manifestar tanta confiança em mim.
Tudo indica que ele e os seus semelhantes sabem deslocar-se em campos de
gelo e montanhas e poderão tomar-se guias úteis.
Atravessamos as ravinas geladas, operação a todos os títulos melindrosa.
Os três guerreiros da Galactica experimentam dificuldade em manter o
equilíbrio e sou forçado a rir duas ou três vezes das suas manobras para não
se estatelarem. A certa altura, Ser 5-9 faz sinal para que nos detenhamos e
informa:
— Estamos perto da aldeia.
Regista-se uma onda de alívio entre os nossos, pois sentimos um frio
mais intenso que o dos olhos de Thane. A última vez que me assolou uma
sensação tão penosa foi em Kalpa, quando tivemos de travar luta corpo a
corpo, ao longo de uma série de pontes nevadas, com uma força de ataque
cylon.
— A escotilha de entrada situa-se na extremidade da ravina — explica o
clone. — Aguardem aqui.
E, desviando um pouco o corpo do lado da ravina, desce, seguido por
Tenna. Enquanto os acompanho com a vista, invade-me uma ponta de
desconfiança e, apesar de a sensação me parecer injustificada, pergunto a
Apollo:
— Acha que nos vão denunciar?
— Não — responde, com abruptidão, visivelmente irritado com a
possibilidade. — Não sei porquê, mas estou convencido de que não o farão.
— Possui a intuição de um comandante.
Lança-me um olhar acerado e principiamos a seguir Ser 5-9 e Tenna
pelo declive íngreme. Starbuck imita-nos imediatamente, precedendo de perto
Boomer. Reparo então que este último quase não pronunciou uma palavra
desde que pousámos neste inóspito planeta, mas confesso que o quero a meu
lado se as coisas derem para o torto.
À nossa frente, Ser 5-9 e Tenna detêm-se abruptamente e agacham-se
atrás de um rochedo. Trocam impressões por um momento e ela começa a
trepar na nossa direção. Starbuck adianta-se e profere:
— Calculei que teria saudades minhas, mas...
Há coisas que parecem nunca lhe sair do pensamento.
— Uma patrulha cylon! — Murmura Tenna, apontando para o topo da
ravina. — Passem palavra.
Apressamo-nos a procurar esconderijos. A patrulha inimiga é
descortinada a intervalos sob a forma de sombras metálicas que quase se
confundem com o gelo da superfície, consistindo a única cor identificativa
nas luzes vermelhas dos capacetes, que deslizam sinistramente de um lado
para o outro. Por sorte, nenhuma delas parece apontada para baixo, onde nos
agachamos com ansiedade. Quando estão prestes a desaparecer, o estúpido do
daggit-dróide começa a rosnar e o garoto adverte-o num murmúrio :
— Caluda, Muffit.
Com efeito, o animal mecânico cala-se. Um cylon olha para baixo, mas
não deixa transparecer que notasse algo de anormal. Transcorridos longos
momentos e quando principiamos a convencer-nos de que ficaremos
transformados em estátuas de gelo para sempre, Ser 5-9 aproxima-se e
anuncia:
— Passou o perigo.
Observo-o com curiosidade e distingo uma expressão de apreensão no
olhar, pelo que todas as minhas dúvidas se dissipam.
— Afinal, parece que não nos vão entregar aos cylons.
— Detestamo-los — afirma Tenna, enfurecida.
Ser 5-9 arrasta-se até junto de mim e lança-me uma mirada em que
vislumbro forte animosidade.
— Desculpe — murmuro —, mas não sou a pessoa mais confiante do
universo.
— Somos formas de vida da Classe Teta. Os cylons consideram-nos sub-
humanos.
A amargura da sua voz convence-me da aversão aos cylons.
— Fomos criados para trabalhos de escravo — acrescenta Tenna. — A
maior parte dos nossos irmãos e irmãs encontram-se escravizados na aldeia.
— Mas revoltaram-se? — Objeta Apollo.
Ela e Ser 5-9 parecem embaraçados com a implicação das palavras do
capitão, e o clone replica:
— Não. É evidente que não somos perfeitos.
— Pois não — admite Apollo, com um sorriso que contém uma dose
apreciável de amargura. — Apenas humanos.
Ser 5-9 e Tenna mostram-se satisfeitos com a compreensão dele e
exibem mesmo largos sorrisos.
— Portanto — continua Apollo —, como humanos, ajudar-nos-ão a
destruir o canhão-pulsar.
Os sorrisos dissipam-se com prontidão.
— Primeiro temos de nos introduzir na aldeia — observa Ser 5-9. —
Vamos.
Deslocando-nos com uma rapidez que há muito não conhecíamos,
seguimos em direção à escotilha de entrada da aldeia. Servindo-se de uma
pequena picareta, Ser 5-9 retira o gelo que cobre o tampão metálico e, depois
de acionar as válvulas, abre-o. No mesmo instante, regista-se o silvo
característico de libertação de pressão. Por fim, estende o braço para nos
ajudar a entrar no corredor em baixo. Tenna assume o comando da expedição
e inicia a marcha ao longo do túnel subterrâneo. Embora a superfície esteja
coberta de geada, a temperatura parece muito menos agreste que na superfície
do planeta, com o que me congratulo particularmente.
CAPÍTULO XV
Depois de se inteirar com fúria, através dos seus batedores, de que a
patrulha cylon enviada para liquidar os intrusos humanos fora abatida, o
primeiro-centurião Vulpa expediu exploradores com ordens para perseguirem
os humanos e abaterem-nos.
Num dos planetas da Aliança Cylon havia uma espécie de inseto,
pequeno, de corpo cinzento, com oito patas e antenas que permaneciam
constantemente em atividade. Não era venenoso, nem mordia, além do que
não se revelava destruidor dos sistemas ecológicos do planeta. O seu único
inconveniente consistia na atração irresistível para o brilho metálico dos
uniformes dos cylons. Todos os cylons estacionados no planeta, como
acontecia a Vulpa desde longa data, detestavam esses insetos, porque
possuíam maneiras engenhosas de penetrar pelos interstícios e alojar-se na
pele, por vezes, de caminho, estabelecendo curto-circuito num ou outro
condutor situado na camada intermédia do uniforme. Em contato com a pele,
produziam uma comichão irresistível, que não havia possibilidade de coçar.
Se vários conseguiam penetrar, até o cylon mais imperturbável podia atingir
as fronteiras da loucura. Ora Vulpa pensava que a equipa expedicionária de
humanos parecia composta por aqueles revoltantes insetos. Suscitavam-lhe
um mal-estar terrível e queria-os exterminados sem demora, a fim de poder
transferir a atenção daquela insignificante e fútil missão para o objetivo
fundamental constituído pela destruição da Galactica e sua frota.
— Encontrámos os destroços da naveta dos humanos — comunicou o
chefe de uma das patrulhas. — Eles desapareceram num trenó blindado, que
viemos a descobrir, avariado e abandonado, no planalto.
— Perseguem-nos? — inquiriu Vulpa.
— Não, porque os humanos não podem sobreviver no planalto.
— Oxalá não te enganes.
O primeiro-centurião estava contrariado, pois preferia que os humanos já
estivessem mortos, em vez de o assolar a impressão de que continuavam a
mover-se pelo planeta como aqueles insetos sob os uniformes dos cylons.
***
O corredor ao longo do qual Ser 5-9 e os outros clones conduziam o
grupo expedicionário era uma parte de um vasto sistema subterrâneo de
cavernas. Apollo pressentia que as habitações existentes naquelas depressões
e encostas de penhascos se revestiriam de elevado interesse para os geólogos
e arqueólogos da frota especial da Galactica, se tivessem tempo para se
entregar a pesquisas, nesses tempos. As moradias dos clones achavam-se
esculpidas na rocha relativamente macia. Aos olhos de Apollo pareciam
deveras primitivas, com as suas janelas e entradas assimétricas e fachadas de
pedra e barro. A sua coloração acastanhada sugeria que tinham estado
expostas a um sol. Ora, como tal era impossível, Apollo ponderava se as
cores e textura seriam naturais ou porventura o resultado de algum tratamento
especial aplicado às superfícies das habitações.
Ser 5-9 fez sinal para que se detivessem e gesticulou para se
conservarem na sombra.
— Esta passagem conduz à parte inferior da estação de pesquisas —
informou.
— Estação de pesquisas? — Repetiu Apollo, enrugando a fronte.—
Como?...
— Há uns tempos, um grupo de cientistas humanos, fugidos da guerra
com os Cylons, aterrou neste planeta e estabeleceu uma estação de pesquisas
experimental, cuja finalidade consistia em desenvolver inventos que
pudessem proporcionar e manter a paz. Depois do seu esforço árduo para
construir a estação e iniciar as experiências, surgiram os cylons, que atacaram
o grupo humano, mataram quase todos os seus membros, ocuparam o planeta
e afastaram-no do sistema solar a que pertencia. Começou a acumular-se
gelo, que cobriu as grutas e até se infiltrou em áreas da própria estação de
pesquisas. Já não é utilizada para esse fim, mas os planeadores reúnem-se lá.
— Planeadores?
— O pai-criador produziu duas formas de vida Teta. Nós somos os
caçadores, trabalhadores; os planeadores são pensadores. Eles, melhor que
ninguém, poderão determinar a maneira mais segura de alcançar a área do
canhão-pulsar. — Ser 5-9 aproximou-se de Tenna, com a qual conversou em
surdina por um momento, e virou-se de novo para Apollo. — Venha comigo.
Tenna ficará com os seus amigos na aldeia.
— Não sei se convirá que nos separemos...
— Se virem muita gente junta, os planeadores podem assustar-se. Não
são particularmente corajosos.
— Penso que compreendo. Na nossa frota, há um grupo desse gênero a
que chamamos Conselho dos Doze. Um momento. — O capitão chamou
Starbuck à parte e, quando se julgou fora do alcance dos ouvidos dos outros,
anunciou num murmúrio: — Se me acontecer alguma coisa, você assumirá o
comando das operações.
— Entendido. Mas lembre-se que as posições de comando me perturbam
o estômago. Portanto, não se demore muito.
— Sabe perfeitamente que adora comandar.
— Quando voltar, conserve os olhos bem abertos.
— Que quer dizer?
Starbuck olhou por cima do ombro, como se esperasse ser atacado a todo
o instante, e explicou:
— Eu e Boomer fizemos uma aposta.
— Continuo a não compreender.
— Qual dos membros da nossa equipa especializada vai atacar primeiro?
— Observando a expressão de estranheza do superior, o tenente acrescentou:
— Pensa de fato que tencionam levar a missão a cabo?
— Confesso que contava com isso.
— As nossas vidas correm perigo.
— As deles também.
— E a sua liberdade. Se triunfarmos, regressaremos e voltarão a colocar-
lhes as correntes.
— Não forçosamente. O comandante pode...
— Fie-se nisso! Adama talvez se arriscasse a conceder a liberdade
definitiva a Croft e mesmo a Leda, mas consegue imaginar Wolfe ou Thane
enveredando pelo caminho do herói redimido?
— Não têm de ser guerreiros.
— São sempre guerreiros. Não saberiam ser outra coisa, de resto. Não,
hão de tentar escapar-se. Se não agora, nesta missão, noutro ponto qualquer.
No lugar deles, eu não me arriscava.
— Compreendo ao que se refere — assentiu Apollo, com uma inclinação
de cabeça.
— Não esperava outra coisa.
— Preste atenção aos seus movimentos, hem?
— Não se preocupe.
Entretanto, Tenna reunira o resto do grupo e, antes de se separar deles,
Apollo aproximou-se de Boxey, para lhe segredar:
— Conserva-te junto de Starbuck.
— Vá descansado, pai. Olharei por ele.
O capitão abraçou o garoto e fez sinal a Tenna para que se ocupasse do
grupo. Enquanto os via afastarem-se, experimentava uma ponta de apreensão.
Mas porquê? Cogitava. Boxey não corre perigo, enquanto Starbuck e Boomer
estiverem presentes para o proteger. Por fim inclinou a cabeça para Ser 5-9 e
entraram na passagem que conduzia à estação de pesquisas.
***
Os planeadores não se assemelhavam aos caçadores, embora como
clones fossem todos iguais. Eram magros e frágeis, o que contribuía para
acentuar a intelectualidade do seu aspecto. Os rostos apresentavam uma
configuração esguia, dominados por narizes aquilinos, quase obscurecidos
por largos capuzes que encimavam túnicas de mangas folgadas. Cinco deles
sentavam-se a uma mesa de conferências de modelo primitivo, sob o
emblema da Estação Experimental de Pesquisas, uma fotografia mural
holográfica do pai-criador. O Planeador Um bateu com um martelo de
madeira no tampo da mesa para atrair as atenções gerais e anunciou:
— O trabalhador Ser 5-9 encontra-se aqui, na aldeia!
O Planeador Dois, irritado, desferiu um murro na mesa e levantou-se,
bradando:
— Foi advertido para manter esses marginais longe daqui!
A voz deste era tão aguda como a do outro, mas continha uma inflexão
de petulância, ausente na do companheiro. O Planeador Três, numa versão
mais suave de voz, indicou-lhe que se sentasse, o que o Planeador Dois se
apressou a fazer.
— Discordo da classificação de marginais atribuída aos caçadores de Ser
5-9 — declarou o Planeador Três, com suavidade. — São guerrilheiros que
lutam pela libertação.
A afirmação desencadeou um debate entre os cinco componentes do
grupo. Para um estranho, a situação apresentaria algo de insólito, como se
uma pessoa discutisse com quatro reproduções exatas de si própria. Por fim,
o Planeador Cinco deu uma palmada vigorosa no tampo da mesa e
determinou em tom imperioso:
— Um pouco de ordem, por favor!
Os outros serenaram e o Planeador Um ordenou a um guarda:
— Vai buscá-los.
Pouco depois, Apollo e Ser 5-9 entravam na sala em passos firmes, para
se deterem diante da mesa.
— Membros do Conselho de Planeadores — principiou Ser 5-9, a voz
assumindo a intonação estentórica com que saudara os componentes da
equipa expedicionária. — Procuramos os vossos conselhos sensatos. Trouxe
comigo o capitão Apollo... Da estrela-de-batalha Galactica.
— Galactica! — Ecoou o Planeador Três, abismado, enquanto os
companheiros se mostravam igualmente surpreendidos.
— Os cylons transmitiram avisos contra vós a todos os recantos do
sistema estelar! — Acudiu o Planeador Cinco.
— Todos os postos isolados permanecem em estado de alerta constante!
— Disse por seu turno o Planeador Um.
— Se o descobrem aqui, estamos... — O Planeador Dois interrompeu-se,
estremecendo. — Temos de comunicar o fato!
Ser 5-9 adiantou-se um passo, pousou as mãos possantes na mesa e
asseverou:
— Ninguém comunica coisa alguma.
O outro, embora claramente intimidado pela autoridade física do
interlocutor, aventurou:
— Não é a ti que compete decidir.
— Apollo e a sua equipa podem...
— Equipa? — Guinchou o Planeador Quatro. — Há mais?
— Sim. Vieram para destruir o canhão pulsárico Ravashol.
Todos os planeadores empalideceram simultaneamente e apresentaram,
aos olhos de Apollo, o aspecto de um espelho de cinco secções.
— Impossível! — Balbuciou o Planeador Dois.
— Impossível ou não, tentaremos — afirmou Apollo.
Os cinco clones sentiam-se impossibilitados de replicar. Ao invés,
juntaram as cabeças para trocar impressões em surdina. A sua discussão
assemelhava-se a um cacarejar de aves de capoeira agitadas pela suspeita da
proximidade de um predador. E julgam-se intelectuais! Refletiu Apollo.
Nunca devia ter concordado em consultar estes lunáticos. E óbvio que Ser 5-
9 e os outros trabalhadores cometem um erro ao confiar nestes planeadores,
incapazes sequer de planear a ementa para um manicômio. Por último, o
colóquio foi interrompido e o Planeador Um comunicou em tom formal:
— Vamos estudar a sua pretensão e dar-lhe-emos a conhecer a resposta
dentro em breve.
Enfurecido, Apollo aproximou-se impetuosamente da mesa.
— Não há tempo para discussões burocráticas! A frota não tarda a ficar
ao alcance daquela grotesca arma. Temos de a destruir sem demora!
— Não nos devemos precipitar — interveio o Planeador Três, no seu
melhor tom conciliatório. Parecia genuinamente perturbado e, na opinião de
Apollo, era o mais sensato dos cinco. — Lastimo imenso.
No entanto, com sensatez ou não, estas palavras apenas tiveram o
condão de aumentar a irritação de Apollo, que se voltou para Ser 5-9.
— Vamo-nos daqui. — E encaminharam-se para a porta.
— Dar-lhe-emos uma resposta —• prometeu o Planeador Quatro. —
Oportunamente.
Ser 5-9 estacou, rodou nos calcanhares e cravou os olhos no quinteto de
planeadores, contendo a indignação com dificuldade.
— Não se lembrem de nos denunciar — proferiu em inflexão pouco
tranquilizadora.
Por indicação do companheiro, Apollo conservava-se junto das paredes
do corredor, movendo-se de sombra para sombra, no regresso à entrada. Em
dado momento surgiu um trabalhador e Ser 5-9 puxou o capitão para um
nicho, onde permaneceram até que o outro se distanciou.
— Esperemos mais um momento — indicou o clone. Após breve pausa,
murmurou: — Lamento o sucedido. Pensava que eles nos ajudariam. Devia
conhecê-los melhor.
Tinha a voz impregnada de revolta e Apollo compreendia o seu estado
de espírito. Para Ser 5-9, os planeadores constituíam sem dúvida o apogeu da
perfeição mental e agora tinha de se curvar ao fato de que não passavam de
um conjunto de perturbados cobardes. Era uma lição amarga, que não carecia
de reiteração, pelo que o capitão articulou em inflexão conciliadora:
— Não merece a pena estarmos com lamentações. O que interessa é
atingir o topo daquela montanha.
Ao abordar de novo o objetivo da sua missão, experimentou um
estremecimento de angústia. Era fácil dizer: «atingir o topo daquela
montanha»; porém a prudência de Croft que, no fundo, se podia considerar
um perito na matéria, e os infortúnios registados até àquele momento haviam
contribuído para que Apollo abarcasse com realismo a envergadura do
empreendimento em que se envolvera. Eram todos peritos nas respectivas
especialidades, decerto, mas a perícia resultava inútil quando a temperatura
glacial fazia desprenderem-se fragmentos dos dedos.
Por outro lado, a última troca de impressões com Starbuck enervara-o.
Se o tenente tinha razão e os quatro criminosos se preparavam para
abandonar a expedição, não subsistiria a mínima possibilidade de os restantes
atingirem o topo da montanha. Necessitavam de Croft e da sua coleção de
marginais. Tudo indicava que o destino da Galactica — de toda a frota, dos
sobreviventes da raça humana— estava suspenso de um fio tênue e tenso.
— Mas quando lá chegarmos, não saberei o que fazer — acrescentou. —
Segundo as análises dos nossos perscrutadores, o canhão é uma bomba de
energia multifásica, e não temos a certeza da natureza do seu modelo. Não
me agradaria destruir a lente ou o sistema de focagem, facilmente reparáveis.
Os olhos azuis de Ser 5-9 semicerraram-se, como se tentasse reduzir o
sistema de focagem na sua cabeça.
— Há alguém que nos poderia valer.
— Quem?
— O pai-criador. Ravashol.
— Encontra-se aqui? — Inquiriu Apollo, surpreendido.
— Na aldeia?
O possante caçador abanou a cabeça com veemência.
— Na base do Hekla, junto do posto de comando cylon.
Havia uma estranha relutância na maneira como o clone proferia a
revelação.
— Receia alguma coisa? — Perguntou Apollo.
— Sim.
— Custa-me a crer. De que pode ter medo?
— A sua residência é considerada território sagrado.
— Mas leva-me até lá?
Os olhos de Ser 5-9 quase se cerraram por completo. No entanto,
pareceu tomar uma decisão repentina e afirmou:
— Para libertar o meu povo, sim!
Apollo sorriu e pousou a mão no ombro do interlocutor, com firmeza.
Por sorte, eram quase da mesma altura; de contrário, o ombro do caçador
achar-se-ia fora do alcance de um indivíduo de estatura vulgar.
***
Athena conservava-se silenciosa, enquanto o pai e o coronel Tigh se
agachavam, como observadores de um espetáculo desportivo, diante do écran
do perscrutador. Acabava de ser detectada uma nave cylon na retaguarda da
frota.
— Procura uma unidade transviada para abater — murmurou Adama.
Voltando-se para a filha, perguntou: — Qual é a distância de separação?
— A defensiva habitual.
— Manda reduzir para vinte e cinco.
— Algumas das nossas naves têm cadetes nos comandos — protestou
Tigh. — O risco de colisão...
— Temos de o correr. Quero que os nossos caças disponham de um
agrupamento mais cerrado para defender.
O coronel deixou transparecer certa hesitação antes de transmitir a
ordem, mas acabou por fazê-lo com um suspiro de resignação. Athena
observou o rosto do pai e notou que ele focava os olhos num ponto distante,
como se conseguisse avistar o planeta gelado e a sua ominosa arma no topo
da montanha. Na verdade, parecia profundamente apreensivo.
***
Cree havia muito que não se dava conta de um único pensamento no seu
espírito. Durante centenas de centões, segundo lhe parecia. A sua única
perceção era de dor. Agora, a mente não conseguia sequer evocar um dos
vários instrumentos de tortura dos cylons, embora soubesse que tinham
empregado diversos. Permaneciam apenas memórias vagas. Fios com agulhas
aguçadas cravadas em diferentes pontos de pressão do corpo. Pinças presas à
pele para permitirem a passagem de cargas elétricas. Algo que lhe dilatava o
cérebro como um balão e obrigava a pensar unicamente em que explodiria em
milhares de fragmentos.
Dor. Nada mais. Era tudo o que conseguia recordar. Quando a tortura
principiara, Cree jurara a si próprio não revelar coisa alguma ao chefe cylon.
Esperava que tal tivesse acontecido, embora não pudesse ter a certeza.
Agora, a consciência reaparecia gradualmente. Ou qualquer coisa que se
lhe assemelhava. Regressava à sala de comando cylon, mas o aspecto das
coisas parecia distorcido. A distorção podia constituir um efeito residual da
tortura. O chefe cylon sentava-se na cadeira de comando, alheio à presença
do prisioneiro. Vulpa apresentava-se mais hediondo e repulsivo que
habitualmente. Em longas discussões com Shields e Bow, Cree argumentara
que a suposta fealdade dos cylons era o resultado de condicionamento,
havendo-lhes sido incutida essa ideia na mente para intensificar o desejo de
os matar. Agora, ao observar o chefe cylon e sentindo o coração latejar de
ódio, não ousaria sustentar o mesmo ponto de vista.
Um humano envergando vestes religiosas transpôs a entrada da sala de
comando e postou-se atrás da cadeira de Vulpa, à espera de que a sua
presença fosse notada. Transcorreu um momento antes de Cree abarcar o
surpreendente fato de o recém-chegado ser mesmo um humano. Que faria ali,
em território cylon, aguardando numa atitude subserviente?
Quando Vulpa se dignou finalmente conceder-lhe atenção, proferiu em
tom displicente:
— Vejamos... És o Planeador Dois, salvo erro. Que queres?
O Planeador Dois acercou a cabeça do capacete do cylon e segredou-lhe
algo que Cree não conseguiu detectar. No entanto, Vulpa reagiu com
prontidão:
— Apollo?! Da Galactica?
O cadete experimentou uma onda de alegria. A invocação do nome do
seu comandante de esquadrilha e da estrela-de-batalha animou-lhe o espírito.
Mas onde estaria Apollo? Afigurava-se-lhe improvável que o capitão se
tivesse deslocado ao planeta gelado apenas para salvar um cadete.
Vulpa voltou-se para um subordinado e articulou em tom incisivo:
— Com que então, os humanos não podem sobreviver no planalto!
Afinal, parece que sim, centurião! Manda revistar a aldeia. Quero que os
intrusos sejam localizados e trazidos à minha presença!
O outro afastou-se imediatamente, levando alguns guerreiros. Cree quase
soltou uma risada de satisfação, mas reconheceu que era cedo para cantar
vitória.
***
Assim que Tenna aumentou o nível da luz intensa no meio da sala, a
equipa acudiu à sua volta, disposta a recolher o conforto que irradiava como
se se tratasse de raios caloríficos tangíveis. Em seguida, ela tocou no braço de
Starbuck e fez-lhe sinal para que a seguisse a um canto do compartimento.
— Eu aqueço-o — murmurou surpreendentemente.
O tenente lançou uma olhadela aos outros. Thane parecia ser o único que
se apercebera do seu afastamento do grupo. Na realidade, o seu olhar de lince
não perdia um pormenor.
— Boa ideia — concordou Starbuck. — Mas não há um lugar mais
reservado?
— Reservado? — Ecoou Tenna, genuinamente admirada.
— Um sítio em que possamos estar na verdade sós.
Entretanto, haviam despertado a atenção de todo o grupo, que os
observava com curiosidade, incluindo Boxey, embora o sorriso deste não se
assemelhasse aos esgares maliciosos dos restantes, à exceção de Thane, que
nunca sorria.
— Não há nenhum lugar desses na aldeia — declarou ela. — Para que
havíamos de estar sós?
— Bem, para... Já não tenho frio. Vou voltar para junto dos meus...
— Não precisa de ter frio. Até é preferível que...
— Compreendo. A ideia não é má, mas... Escute cá, Tenna...
Nesse momento, Apollo e Ser 5-9 reapareceram e Starbuck soltou um
suspiro de alívio.
— Ainda bem que voltou! — Disse ao capitão, que se mostrava
intrigado com o entusiasmo do outro pelo seu regresso, enquanto Boomer
emitia uma risada.
— Que conseguiram? — Perguntou Croft.
— Há apenas uma pessoa que nos pode ajudar — informou Apollo, com
uma expressão sombria. Fez uma pausa, enquanto o grupo o rodeava, e
acrescentou a meia voz, depois de referir o que apurara: — Se Ravashol se
negar a valer-nos, teremos de nos arriscar.
— É possível que a sorte nos proteja — resmungou Croft.
Starbuck não conseguia determinar se o musculoso montanhista se
exprimia com sarcasmo ou sinceridade e, antes que pudesse analisar o
problema mais profundamente, outro clone que se assemelhava a Ser 5-9
surgiu bruscamente à entrada e anunciou:
— Os cylons estão a revistar a aldeia!
— Acalma-te — recomendou Ser 5-9. — Que se passa?
— Há patrulhas de busca por todos os lados, através da aldeia e na praça
pública. Afastam-nos do caminho, revistam-nos e aplicam pontapés aos que
param a observá-los. Introduzem-se nas habitações, destroem mobiliário e
ameaçam prender quem oferecer a mínima resistência. Na sala de reuniões,
voltaram os bancos e rasgaram as colgaduras das paredes. Dizem que
procuram os intrusos que pousaram no planeta e, se não lhes revelarmos onde
estão, começarão a matar-nos. E...
— Basta! — Ordenou Ser 5-9, com um gesto imperioso. — Devem ter
sido os planeadores. Um ou todos alertaram-nos.
— Que esperava? — Redarguiu Apollo, com uma ponta de amargura. —
Precisamos de contatar com Ravashol, e já!
— Concordo — disse o clone. — Tenna: leva os outros para um
esconderijo.
— Mas qual? — Volveu ela.
Ser 5-9 hesitou por uns instantes e cravou o olhar no teto, como se
esperasse inspiração daquela origem. Por fim, suspirou e decidiu:
— O recinto das crianças.
— Ouviste, Muffit? — Exclamou Boxey. — Há crianças!
O daggit latiu e agitou a cauda com visível satisfação.
— Ninguém tinha falado nelas, até agora! — Observou Boomer.
— Os cylons consideram-nos estéreis — explicou Tenna, sorrindo. — É
uma exigência obrigatória para perpetuar aquilo a que eles chamam pureza da
forma de vida Teta. No entanto, nós temos filhos.
— E escondem-nos?
— Sim.
— Não podemos perder tempo — lembrou Ser 5-9.
Postou-se à entrada e fez sinal para que se movessem com rapidez.
Alguns membros da expedição pareciam não ter pressa, como se receassem
abandonar aquele raro local de calor. No corredor, separaram-se em dois
grupos Apollo e Ser 5-9 afastaram-se numa direção e os outros seguiram
Tenna. Para se reunirem às crianças, supôs Starbuck.
Avistando um pelotão de cylons num cruzamento à sua frente, Tenna fez
sinal ao grupo para que se ocultasse em nichos ao longo das paredes do
corredor. Thane decidiu refugiar-se no mesmo nicho que Leda, a qual
pressentiu tratar-se de uma manobra calculada, pois tivera de o manter em
respeito noutras ocasiões.
De súbito, movendo-se com rapidez e sem denunciar a mínima emoção
no rosto, ele enlaçou-a com vigor e murmurou:
— Grita, se quiseres. Se te ouvirem, morreremos todos, mas é-me
indiferente.
E tentou beijá-la, ao mesmo tempo que lhe impelia o corpo contra a
parede.
Leda conseguiu libertar uma das mãos e levou-a prontamente ao pescoço
de Thane, que interrompeu o ataque no momento em que a pressão na
garganta se tomou insuportável. Lentamente, utilizando a força que
concentrava no braço, ela obrigou-o a soltá-la por completo.
— Grita, se quiseres — sussurrou, imitando-lhe a inflexão.
Era óbvio que ele não o faria, mesmo que pudesse. E Leda
provavelmente não o largaria sem lhe cortar a respiração definitivamente, se
Tenna não anunciasse nesse momento que o perigo passara.
CAPÍTULO XVI
CROFT.
Há cylons por todos os lados. Quando Starbuck anuncia que podemos
abandonar o esconderijo, sinto relutância em fazê-lo. Talvez pudesse contatar
com eles, estabelecer um acordo, oferecer-lhes... Mas não, é impossível
chegar a qualquer entendimento com os cylons. Embora afirmem aceitar as
condições propostas, faltam ao prometido assim que obtêm o que pretendem.
Corro menos perigo se tentar escalar o monte Hekla de olhos vendados do
que entrando em negociações com os luzes-vermelhas, como alguns lhes
chamam.
À minha frente, Leda, de faces afogueadas de raiva, abandona o
esconderijo. Pouco depois, Thane esgueira-se para fora do mesmo nicho,
olhando em volta com insistência. Ele não se apercebe de mim ou não me
liga e, em vez de se incorporar no grupo, começa a retroceder. Qual será a sua
ideia? O momento não é o mais propício para tentar a fuga. No entanto,
parece na verdade disposto a fazê-lo. Pondero a hipótese de o seguir, mas
receio que provoque rebuliço deliberadamente. Não possui o mínimo instinto
da sua própria sobrevivência. Que vá. Talvez fiquemos melhor sem ele.
Verifico que desaparece noutro nicho. Quando volta a sair, veste um daqueles
uniformes de trabalho, de cabedal, dos clones. Onde o terá desencantado?
Não se lhe ajusta bem ao corpo, pois é muito franzino em comparação com a
corpulência possante dos nossos protetores, mas o pormenor parece não o
apoquentar. Não me devo opor. Como prisioneiro, assiste-lhe o direito de
tentar evadir-se. Eu não pensava noutra coisa quando me encontrava na nave
prisional, embora neste momento não me decidisse a seguir Thane por preço
algum.
Reúno-me ao grupo e Leda abranda o andamento, para se colocar a meu
lado e murmurar:
— Thane não se encontra connosco.
— Bem sei. Afastou-se no sentido oposto, à procura de uma saída.
—Tenciona evadir-se?
— Exato.
— O patife! Ao menos, podia levar-me consigo. E daí, talvez não,
depois do que...
— Depois de quê?
— Nada que te interesse. Tu e ele merecem o mesmo destino.
— É possível. Em todo o caso, só um louco tentaria fugir daqui. Para
onde irá? Que pode fazer?
— Não sei, mas, de qualquer modo, não fica de braços cruzados.
— Percebo. Queres dizer que não me mostro tão corajoso como ele.
— Interpreta as minhas palavras como entenderes. Nem sei porque perco
tempo a falar contigo. Desconfio que engoliste mesmo a patranha que os
guerreiros coloniais te venderam. Queres recuperar o lugar perdido e...
— Para com isso, Leda! Não tenho ilusões a esse respeito. Terminada a
missão, voltam a encerrar-me na nave prisional.
— E, mesmo assim, tencionas ajudar esses idiotas?
— Ainda não decidi o que farei.
— Não podes aguardar muito tempo. Espero que não precises que
ninguém te ponha a cabeça a funcionar.
— Leda, eu...
Interrompo-me, furioso comigo mesmo por me achar na iminência de
dizer algo que queria evitar. Não obstante, ela parece pressentir de que se
trata e replica:
— As coisas não podem voltar a ser o que eram. Não sabes que a
verdadeira razão que nos faz correr é o ato de nada poder voltar a ser o que já
foi.
— Não costumavas exprimir-te com tanta amargura.
— Sim, quem o fazia eras tu. É uma viragem curiosa, não achas?
Tenna faz sinal para que nos calemos e Leda mostra-se aliviada.
Lamento não a poder arrastar para um dos nichos e obrigá-la a escutar a voz
da razão.
Tenna conduz-nos para um compartimento idêntico ao anterior, à parte o
fato de haver numerosos uniformes de trabalho dos clones pendurados numa
das paredes. Starbuck fica no corredor, junto da entrada, para nos advertir de
um possível perigo. Existe igualmente uma luz de aquecimento no centro da
sala, como acontecia na outra. De pé, perto dela, encontra-se outra mulher.
Sei que é outra, porque a nossa guia continua presente, de momento ao lado
de Wolfe. Depreendo que se trata de um exemplar da mesma série de Tenna.
Com efeito, é-nos apresentada como Tenna II, e a semelhança entre ambas é
tão grande que se poderia chamar «Tenna também»2.
— Depressa — diz a primeira Tenna à segunda. — Temos de esconder
estes humanos.
— Mas...
— Não há tempo para conversas do tipo planeador. Os planeadores
ainda nos hão de conduzir todos à morte. Temos de os levar para junto das
crianças.
Tenna II concorda e carrega num botão. Ato continuo, uma secção da
parede desliza para o lado e expõe outro compartimento em que se encontram
várias crianças de cabelos louros e olhos azuis. A sala não é igual às outras:
mais iluminada, com abundância de cores nas ornamentações das paredes e
no vestuário das crianças. Vêem-se diversos brinquedos rudimentares
espalhados pelo chão rochoso. Ao princípio penso que são meros clones, mas
um exame mais atento revela-me algumas diferenças nas características
gerais.
Assim que as avista, o daggit-dróide põe-se a ladrar estupidamente e
elas, que decerto nunca viram um animal do gênero, assumem expressões
apreensivas. No entanto, Boxey puxa-o pela coleira e dirige-se às crianças:
— Não faz mal. É apenas um daggit. Anda cá, Muffit.
Aproxima-se do círculo formado por elas e, após um momento de
hesitação, os pequenos clones começam a afagar o dróide.
Aproximo-me discretamente da entrada e faço sinal a Starbuck para que
abandone o posto de observação e me siga. Mal se lhe deparam as duas
Tennas lado a lado, o rosto ilumina-se-lhe e comenta:
— Isto está de fato a tomar-se interessante.
— Pois está, e não duvido de que ambas reagirão igualmente aos seus
encantos.
— Quem me dera!
Nesse momento, Boomer avista-nos e acerca-se.
— Starbuck! — Descobre onde a atenção deste se concentra e puxa-o
pelo braço. — Deixa isso para mais tarde. — Olha em volta. — Onde está
Thane?
— Não sei. Talvez se perdesse de nós num cruzamento.
Decido não lhes revelar o que vi. Thane merece uma oportunidade de se
escapar, embora só um imbecil como ele escolhesse esta altura.
— Que lhe parece, Croft? — pergunta Boomer, repentinamente. —
Penso que ele aproveitou a primeira oportunidade para fugir.
— Nunca pode haver a certeza das suas verdadeiras intenções — replico
secamente.
— É melhor procurarmo-lo — propõe Starbuck.
— Não — intervém uma das Tennas. A primeira, salvo erro. — Nós
tratamos disso. Temos mais possibilidades de o encontrar. Como veem —
acrescenta, apontando para a companheira —, no nosso pequeno mundo, os
forasteiros são muito fáceis de distinguir.
Conduz a equipa à sala das crianças e fecha a porta atrás de nós.
Entretanto, a miudagem rodeia Boxey e criva-o de perguntas, ao mesmo
tempo que acaricia o daggit. Procuro um canto confortável junto da parede e
encosto-me às peles que a revestem. A situação não pode deixar de se
considerar insólita. Apollo foi tentar catequizar o pai-criador e nós ficámos
encerrados no meio de crianças. Pensando bem, talvez eu consiga escalar a
montanha montado num cavalo de balouço.
CAPÍTULO XVII
A entrada da habitação em abóbada de Ravashol estava decorada com
gravuras que, na opinião de Apollo, se deviam relacionar com a influência
religiosa que ele exercia sobre a população clone. Ser 5-9 e o capitão
entraram nas instalações de Ravashol por uma passagem aparentemente
secreta e emergiram dela atrás de uma pilha de embalagens de equipamento.
Apollo verificou que o espaço habitacional do homem contrastava
nitidamente com o aspecto primitivo do resto da aldeia. Uma estante repleta
de livros prolongava-se pelas quatro paredes e, a um canto, existia uma área
abarrotada de equipamento de investigação, eletrónico e químico.
Ravashol sentava-se atrás de uma enorme mesa de trabalho, iluminada
por uma lâmpada suspensa do teto alto, e Apollo perguntou-se se o efeito fora
calculado para conferir uma aura religiosa à imagem do pai-criador imerso no
trabalho. Juntamente com a luz, havia um clarão de tonalidade estranha que
parecia proceder das paredes acima dos numerosos livros. Era fácil
compreender porque os clones tinham tanto respeito pelo seu criador. E tudo
indicava que ele desejava as coisas assim.
De início, Ravashol não se apercebeu da presença dos dois visitantes.
Enquanto escrevinhava rapidamente numa folha de papel, os olhos
permaneciam semicerrados e uma das pequenas mãos cofiava a barba. Os
cabelos apresentavam abundantes vestígios grisalhos e estavam penteados
para trás. Um desvio da sua aparência religiosa consistia no vestuário, velho,
coberto de pó e amarrotado.
De súbito apercebeu-se da presença dos intrusos e ergueu os olhos,
alarmado. Ato contínuo, pousou a mão nos papéis à sua frente, como se
fossem mais dignos de proteção que a sua pessoa. No momento em que
estendeu o braço para um botão de alarme, Apollo notou que a coluna
vertebral do homem se apresentava ligeiramente deformada: uma pequena
torsão, que inclinava o tronco alguns graus para o lado em relação à parte
inferior do corpo.
Ser 5-9 precipitou-se para a frente e, num tom que lembrava o de um fiel
em oração, suplicou:
— Não chame, por favor, pai-criador.
Ravashol fez retroceder a mão, um pouco mais calmo ao reconhecer uma
das suas criações clones, e contornou a mesa para se postar na sua frente, o
que permitiu a Apollo observar que tinha metade da estatura de Ser 5-9.
— Não podes entrar aqui — advertiu. — Apenas os planeadores. E os
trabalhadores nunca devem utilizar a passagem secreta.
— Necessitamos urgentemente da sua ajuda, pai-criador.
— Pertences à Série Cinco — observou Ravashol, parecendo hesitante.
— Sim — admitiu Ser 5-9, com altivez. — À Série Cinco, Cultura Nove.
É, então, assim que eles derivam os nomes, refletiu Apollo. A sua
identidade consiste em palavras e números.
— Mas este... — Articulou Ravashol, indicando o capitão, numa
inflexão receosa. — Não foi produzido por mim. — É um... Um humano!
— Capitão de esquadrilha Apollo, da estrela-de-batalha Galactica.
Impressionado, retrocedeu um passo, como se Apollo estivesse
contaminado por alguma doença incurável.
— A Galactica é uma nave de guerra! Eu e os meus colegas refugiámo-
nos neste planeta para escapar à guerra. Oponho-me a ela e à violência de
toda a espécie.
— Tem uma maneira muito curiosa de o demonstrar — comentou
Apollo.
Ravashol deu a impressão de sinceramente surpreendido com estas
palavras e perguntou:
— Que quer dizer?
— Que quero dizer? Se se opõe à guerra, que nome dá àquela arma no
topo da montanha? Será um instrumento de paz?
O homem pareceu perturbado, embaraçado. Sabia que se achava numa
situação difícil e procurava desesperadamente uma saída airosa.
— É... É um sistema de lente de energia. Destina-se a transmitir
inteligência através das galáxias.
— O seu sistema de lente de energia liquidou dois dos meus caças, com
os respectivos tripulantes, e mantém a frota colonial à distância até que as
estrelas-de-batalha cylon a possam destruir.
Os olhos de Ravashol percorreram a sala, como se procurassem um
apoio de qualquer espécie.
— Impossível! — Bradou. — O meu sistema está a cargo de formas de
vida Teta da Série Cinco!
A expressão furtiva do olhar do interlocutor levou Apollo a suspeitar de
que mentia e recorria a argumentos ocasionais para se justificar perante o
intruso. Ser 5-9, que parecia um gigante ao lado do seu criador, adiantou-se
um passo e proferiu:
— Salvo o devido respeito, pai-criador, os trabalhadores das formas de
vida da Série Cinco são chicoteados se se aproximam da arma pulsárica,
exceto durante a sua presença.
Ravashol fitou-o como um deus perante um súbdito rebelde na iminência
de cair em desgraça.
— Enganas-te! Sou eu que procedo aos ajustamentos necessários e
reparações. Eu é que transmito, ajudado por indivíduos da Série Cinco.
— É possível — concedeu Apollo —, mas de momento a sua preciosa
arma pulsárica, ou como lhe quiser chamar, encontra-se nas mãos dos
Cylons. E como arma de guerra!
— Mas isso não... — Ravashol principiou a mover-se em excitado
vaivém. — Não há... — Encheu os pulmões de ar. — Enfim, não passa de um
uso indevido da sua função. Um abuso temporário de...
— Então, sempre sabe como a utilizam — disse Apollo.
— Não tenho a mínima influência no uso que fazem das minhas
criações! — Explodiu finalmente. — Posso considerar-me muito feliz por
não me haverem eliminado e ainda dispor de oportunidade de criar. As
minhas invenções serão finalmente utilizadas para fins pacíficos...
— Finalmente? — Repetiu Apollo, levantando a voz.—Quanto tempo
pensa deixar transcorrer antes de explorar a sua preciosa arma para
consolidação da paz?
— Não tenho a mínima influência nisso, como disse, nenhuma
responsabilidade.
— Nesse caso, quem a tem?
Antes que Ravashol pudesse responder, começaram a bater à porta com
insistência e, consultando um monitor ao lado da entrada, ele balbuciou:
— Cylons! — Visivelmente impressionado, ao ver que Apollo e Ser 5-9
puxavam dos lasers com prontidão, hesitou por um momento e preveniu: —
Não conseguem nada com semelhantes métodos. As detonações só servirão
para atrair mais cylons. Escondam-se atrás dos caixotes. — E apontou para o
fundo da sala.
Depois de Apollo se dissimular no meio dos numerosos caixotes vazios e
enfiar um na cabeça, Ser 5-9 colocou-se num nicho junto da estante, no
instante em que as pancadas se repetiam. Não ê costume dos cylons bater
antes de entrar de rompante, refletiu o capitão. Ravashol deixou transcorrer
mais um momento antes de proferir em tom contrariado:
— Entre! — Ao mesmo tempo, premiu um botão que acionava o fecho.
Surgiu uma patrulha cylon, cujo chefe inquiriu:
— Porque nos fez esperar tanto?
— Fi-los esperar? Não dei por isso. A concentração no trabalho leva-me
a ignorar o que se passa em volta. Teriam preferido que arruinasse as minhas
experiências? Os componentes são delicados.
— Revistem tudo — ordenou o cylon aos subordinados.
— O comandante da guarnição será informado de que interferiram com
o meu precioso tempo — resmungou Ravashol.
— Recebemos ordens para revistar todas as instalações habitadas.
Os soldados levantaram alguns caixotes perigosamente próximos do
esconderijo de Apollo, o qual empunhou o laser com firmeza, para a
eventualidade de ser descoberto, enquanto outros se aproximavam da estante
e faziam cair alguns volumes das prateleiras.
— Isto é intolerável! — Protestou Ravashol.
— Recebemos ordens para... — Reiterou o chefe da patrulha.
— Já vamos ver. — Ravashol ativou um comunicador que tinha em cima
da mesa de trabalho. — Quero falar com o centurião comandante.
Instantes depois, surgia no écran a imagem do primeiro-centurião Vulpa.
— Sim, Dr. Ravashol? — Proferiu num tom respeitoso, quase cordial.
— Por que razão me interrompem o trabalho? Encontra-se uma patrulha
no meu laboratório. No meu laboratório!
— Procuramos invasores humanos — explicou Vulpa, polidamente.
— Humanos? Aqui, na aldeia? Tem a certeza?
— Já capturámos um dos seus pilotos. Agora procuramos os
companheiros.
— Não sei nada a esse respeito. As minhas experiências correm o risco
de ficar comprometidas, se as interromper por muito tempo. Portanto, queira
mandar retirar os seus centuriões, para que possa continuar a trabalhar e...
— Primeiro-centurião Vulpa! — Interveio o chefe da patrulha.
— Que há, centurião?
— Acabamos de encontrar um sub-humano, um trabalhador clone,
escondido aqui. — E, a um gesto do cylon, dois subordinados arrastaram Ser
5-9 para o raio de ação da câmara do comunicador.
— Chamei-o para que me ajudasse — alegou Ravashol.
— Só os planeadores o podem visitar — lembrou Vulpa, friamente.
— Precisava de alguém robusto para mudar equipamento pesado.
— De qualquer modo, Dr. Ravashol, a utilização de um trabalhador
clone sem a minha autorização representa uma violação do nosso acordo...
O primeiro-centurião calou-se, porque alguém a seu lado acabava de lhe
chamar a atenção:
— Capturámos outro humano nos corredores da aldeia — informou um
cylon.
Vulpa concentrou-se de novo em Ravashol.
— Ouviu, doutor? Não posso permitir a mínima infração ao que está
estipulado, sobretudo agora. Centurião!
— Sim, comandante Vulpa — proferiu o chefe da patrulha.
— Deixem o Dr. Ravashol continuar as suas experiências.
— O clone fica?
Vulpa refletiu por um momento e decidiu:
— Não posso admitir que desobedeçam ao regulamento. Castiguem-no
em conformidade com a infração cometida.
Antes de os cylons o levarem, Ser 5-9 fez um gesto para serenar a
indignação de Ravashol e disse:
— Resigno-me a ser castigado, pai-criador. É justo. Eu devia ter-me
munido da autorização necessária antes de vir.
Quando a porta se fechou atrás dele e dos cylons, Apollo abandonou o
esconderijo e perguntou:
— Viram quem é o prisioneiro? — Perguntou Apollo, enquanto trepava
pela parede de caixotes.
— Não — articulou Ravashol, com uma expressão de desalento. —
Porque não nos deixaram em paz? Se vocês e a vossa estrela-de-batalha não
se introduzissem neste quadrante, não haveria o mínimo atrito.
— Fala com insistência da paz, como se o termo possuísse qualidades
mágicas. A paz não se produz por artes mágicas, doutor. Não pudemos deixar
de visitar o quadrante. Os cylons obrigaram-nos a isso. Juraram exterminar
todos os humanos do universo. — Apollo fez uma pausa, a fim de acentuar o
impacte das palavras seguintes. — Mais cedo ou mais tarde, o senhor sofrerá
a mesma sorte.
— Eles deixaram-me viver! Podiam ter-me liquidado, mas não o
fizeram.
— É natural que continuem a poupar-lhe a vida, enquanto lhes for
fornecendo as suas armas de paz...
— Escute, capitão, não posso... Não devo... — Ravashol pareceu em
apuros para encontrar os termos que procurava. — Tente compreender a
minha obra. A sua única intenção consiste em destruir o que criei.
— Sem ofensa, receio que a sua mente sofresse uma ligeira perturbação.
A sua criação merece ser destruída, porque representa um instrumento de
destruição.
— Mas pode fazer chegar unidades de comunicação através de toda...
— Talvez sirva para esse fim, mais tarde, quando a teoria for
aperfeiçoada e a máquina já não puder servir de arma. Temos de agir e sem
demora. Os nossos homens são capturados gradualmente e as criaturas que
criou sofrem castigos por...
Ravashol fez um gesto para interromper o capitão.
— Antes da vossa vinda, tudo corria satisfatoriamente — murmurou. —
Os planeadores pensavam e os trabalhadores dedicavam-se às suas atividades
normais.
— Deixe-me que lhe diga que a ordem que invoca é a dos cylons,
baseada no extermínio de todas as espécies que não estiverem em
conformidade com as suas especificações. Por outro lado, os seus
planeadores são uns pensadores tão evoluídos que já não conseguem tomar
decisões independentes. E os seus trabalhadores pensam... E reproduzem-se.
— Impossível!
— Os seus filhos estão ocultos na aldeia.
— Filhos!
— Se não me quer ajudar a salvar as vidas que se encontram na
Galactica e as naves da frota e se lhe repugna a nossa participação numa
guerra que nos impuseram, faça-o pelos Tetas. Até certo ponto, podem
considerar-se seus filhos.
Mal acabou de pronunciar estas palavras, Apollo sentiu-se embaraçado
por recorrer a semelhante tática sentimental. Todavia, sentimental ou não,
impressionou o interlocutor.
— Utilizei algumas células de membros das nossas equipas chacinados
pelos cylons nas minhas primeiras experiências, alterando a sua estrutura para
desenvolver um estilo de ser humano mais perfeito. Penso que nunca cheguei
a um resultado espetacular. O aspecto dos clones não merece reparos, mas
nunca pareceram totalmente humanos. Adotei a linha cylon para compensar o
meu insucesso e encarar as minhas criações como seres sub-humanos. Afinal,
enganei-me. Ignorei o clarão ocasional nos seus olhos e os raros gestos de
mãos que me recordavam os colegas mortos. Tem razão, capitão. São meus
filhos, até certo ponto. E, mais do que isso, são humanos.
Movendo-se mais depressa do que o corpo defeituoso parecia permitir-
lhe, Ravashol aproximou-se da mesa de trabalho e principiou a premir botões
furiosamente numa pequena consola ao lado. No écran começaram a formar-
se diagramas complexos e intrincados, e ele explicou que a imagem
reproduzida em estilo de mapa representava a instalação no topo do monte
Hekla.
— Há duas câmaras na montanha: uma contém a unidade laser pulsárica
e a outra uma pequena guarnição destinada a protegê-la e comandá-la. Do
outro lado, existe um pequeno aeródromo com capacidade para um único
aparelho, o qual transporta os aprovisionamentos que não podem seguir pelo
elevador que os cylons construíram no interior da montanha.
— Um elevador? Podemos chegar até lá e utilizá-lo para que a nossa
equipa alcance o canhão?
Ravashol ponderou a questão por um momento antes de declarar:
— Não me parece uma ideia recomendável. É muito arriscado. Além de
pequeno, o elevador está fortemente guardado. Mesmo que a sua equipa
conseguisse acomodar-se nele, a sua presença seria detectada antes de
completar o longo percurso até ao topo. Os cylons capturavam-nos, um a um,
à medida que saíssem da cabina.
— Tem de haver uma via de acesso aproveitável. E a respeito do
aparelho de abastecimento: podemos apoderarmos dele?
— Também não o aconselho. Podiam de fato apoderar-se dele, mas a
faixa de aterragem é tão estreita que a manobra tem de ser orientada da torre
de controlo da guarnição. Duvido que conseguissem surpreender os cylons, e
a surpresa é o elemento essencial para que o vosso plano triunfe.
— Tem razão, doutor. Refira mais pormenores da instalação.
— O que lhes interessa conhecer é a maneira de a destruir. Trouxeram
solenite?
— Sim.
— Então podem destruí-la.
Apollo soltou um suspiro de alívio ao verificar que Ravashol tencionava
na verdade colaborar no plano para destruir a temível arma.
— Para a destruição total do laser pulsárico sugiro a avaria ou inversão
da bomba principal, o que se pode conseguir pela desintegração do duplo
turborrefrator.
— O cientista pousou o bico do lápis em determinado ponto do
diagrama. — Têm de atingir esta área e dispor de tempo suficiente para
colocar a solenite. Não é uma operação fácil, mas pode realizar-se. No
entanto, como o elevador interno e o aparelho de abastecimento estão postos
de parte, necessitarão de escalar a montanha.
— Temos pessoal especializado em ascensões.
— Com experiência?
— Com a maior experiência possível que pudemos obter numa nave
prisional.
Ravashol enrugou a fronte, mas continuou a fornecer elementos ao
jovem capitão da Galactica.
***
Starbuck observava Croft, Leda e Wolfe. Ao mesmo tempo, tinha a
curiosa sensação de que cada um deles lhe vigiava os movimentos, embora
existisse pouco contato visual entre si. Wolfe, especialmente, parecia agitado.
Em dado momento, Boomer aproximou-se e murmurou:
— Continuas convencido de que tentarão fugir?
— Não sei. Para já, estão engaiolados. Na verdade, pode dizer-se que
saíram de uma prisão para entrar noutra. Wolfe, por exemplo, parece disposto
a abrir um buraco na parede para se safar.
— De fato, as coisas levaram uma volta.
— Não estou a perceber, Boomer.
— Nem eu próprio sei bem o que quero dizer. Estiveram presos muito
tempo. Sob a pata de carcereiros e quem sabe que mais. No fundo, não
ignoram que precisamos dos seus préstimos, o que lhes confere algum
ascendente. De certo modo, pode dizer-se que os prisioneiros, agora, somos
nós.
— A tensão começa a afetar-te os nervos. Ninguém nos pode
transformar em prisioneiros. Ninguém. Descontrai-te. Vai brincar com as
crianças.
Boomer soltou uma gargalhada, e os dois homens volveram os olhos
para as crianças, que pareciam encantadas com a presença de Boxey e,
sobretudo, do seu daggit.
De súbito, a porta da sala secreta começou a abrir-se.
Starbuck e Boomer, em estado de alerta, para o caso de haver cylons do
outro lado, empertigaram-se. No entanto, quando a abertura foi
suficientemente espaçosa, Tenna irrompeu por ela, exclamando:
— Os cylons capturaram um dos vossos!
— Thane! — Proferiu Leda. — Pobre diabo... — E principiou a correr
para a porta.
— Onde pensa que vai? — Inquiriu Starbuck, interpondo-se.
— Tentar libertá-lo.
O tenente estava quase tentado a deixá-la passar, mas ocorreu-lhe
repentinamente que ela poderia aproveitar a oportunidade para se afastar
deles definitivamente.
— Deixe-se estar aqui. Necessitamos de si para escalar a montanha. —
Starbuck voltou-se para Boomer. — Vou ver o que se passa. Se não
reaparecer dentro de dez centões...
— Não sei, Starbuck — articulou o outro, enrugando a fronte.
Nesse momento, Boxey acercou-se, com Muffit no seu encalço.
— Também vou. O papá disse que não o perdesse de vista.
— Ah, sim? — Vendo o garoto aquiescer com um movimento de
cabeça, Starbuck assumiu uma expressão apreensiva. — Conto contigo, na
tua qualidade de guerreiro colonial, para velares pela segurança destes
miúdos. Suponho que teu pai te recomendou que cumprisses as ordens
superiores?
— Com certeza.
— Nesse caso, cumpra o que acabo de determinar, cadete. — O tenente
dissimulou um sorriso ao ver Boxey perfilar-se. — Olhos bem abertos,
durante a minha ausência.
O garoto voltou para junto das outras crianças, enquanto Starbuck seguia
Tenna através da porta. Quando se encontraram na sala contígua, perguntou:
— Pode conduzir-me ao local em que eles têm Thane?
— Os cylons podem reconhecê-lo.
— Se adquirir o aspecto de um Teta, duvido.
Starbuck enfiou um dos uniformes de trabalhador clone que se achavam
pendurados na parede e indicou a Tenna que podiam partir.
Quando tinham percorrido uma curta distância avistaram dois cylons
movendo-se à sua frente no corredor e, pouco empenhado em pôr à prova a
eficiência do disfarce, o tenente fez sinal à companheira para abrandar o
andamento, escondendo-se por uns momentos num dos numerosos nichos ao
longo do corredor. A proximidade da atraente mulher inspirou-lhe uma
sequência de reflexões que de modo algum se relacionavam com a missão
responsável pela sua presença naquele planeta. Acercando-se mais dela,
murmurou:
— Quando tudo isto terminar, talvez possamos saborear uns momentos
de intimidade juntos. Sabe ao que me refiro...
— Não.
— Mas foi você que abordou o assunto.
— Engana-se — afirmou ela, com um sorriso malicioso.
— Claro que foi. No...
— Sei o que quer dizer. Mas o que quer que fosse dito, no que diz
respeito a esse assunto, não o foi por mim nem a mim.
— Mas...
— Julga que sou a Tenna que os conduziu às instalações das crianças?
— Bem, eu...
— Bom, não sou. Espere! O caminho está livre. Venha!
Enquanto a seguia, Starbuck assimilava a situação. A Tenna que o
acompanhava não era a que o quisera aquecer. Tratava-se da outra, da que
vira no... A menos que fosse uma terceira. Mais valia não pensar nisso,
naquele momento. A confusão era demasiado densa para que tentasse
deslindá-la. A quantidade de Ser 5-9 existentes carecia de importância, mas o
número de Tennas constituía um tópico merecedor de ulterior investigação.
Estudando a silhueta atraente da que agora o guiava, compreendeu que
poderia ter a sua graça escolhê-las todas mais tarde.
***
Vulpa observava o monitor que abarcava a área central da aldeia. Depois
de liberta da população clone, que se costumava juntar aí, foi erguida a
plataforma de execução. Os trabalhadores clones, apercebendo-se do que
estava para acontecer, trocavam animadas impressões. Pareciam apreensivos,
o que agradava particularmente a Vulpa. A execução servir-lhes-ia de lição.
Impeli-los-ia a revelar o paradeiro de outros homens ocultos na aldeia. Os
insetos humanos empenhado na sua fútil missão seriam gradualmente
eliminados e o primeiro-centurião deixaria de sentir a vaga comichão sob o
uniforme metálico.
Volveu o olhar para outro écran, que reproduzia toda a câmara
subterrânea. Os archotes colocados nas paredes eram responsáveis pela
principal iluminação, coadjuvados pelas reflexões provenientes das
fantasmagóricas estalactites que pendiam do teto elevado.
Um centurião entrou no posto de comando e anunciou que a cerimônia
da execução se iniciaria assim que Vulpa o determinasse. Ato contínuo, este
agitou a mão num gesto de assentimento, após o que se virou de novo para o
écran do monitor, no qual não tardou a observar um piquete de guerreiros
que conduzia o prisioneiro, atado e amordaçado, à plataforma de execução,
enquanto os clones, receosos, se afastavam com prontidão. O prisioneiro foi
conduzido para um estrado, onde se encontrava um carrasco.
Vulpa indicou a uma ordenança que fosse buscar o outro prisioneiro e,
quando o cylon reapareceu com Cree, apontou para o monitor, que nesse
momento apresentava um grande plano de Thane, e observou a reação do
cadete, ao mesmo tempo que perguntava:
— Conhece-o?
Cree dificilmente conseguia manter os olhos abertos, todavia ainda os
pôde focar na tela.
— É a primeira vez que o vejo.
— Tem a certeza?
— Absoluta.
—Pela última vez: quantos caças se mantêm operacionais?
— Chamo-me Cree, sou cadete e o meu número...
— Silêncio! Centurião, retira o prisioneiro da minha presença.
O outro apressou-se a obedecer e, assim que se encontrou estendido a
um canto, Cree imergiu de novo na inconsciência.
Entretanto, Thane era submetido ao derradeiro interrogatório. Um oficial
assegurara-lhe que salvaria a vida se respondesse com veracidade em público,
mas Vulpa tencionava mandá-lo executar independentemente das
informações que o humano fornecesse. Era essencial que os clones
recebessem uma lição objetiva, para que não lhes acudissem ideias
subversivas e permanecessem no estado de subserviência sub-humana.
O primeiro-centurião estudava a expressão do prisioneiro, à medida que
este proferia respostas lacônicas às interrogações do oficial. Afigurava-se-lhe
estranho que o homem optasse pelo disfarce de clone, pois tanto o seu rosto
pálido, em contraste com as faces coradas das criaturas congeminadas por
Ravashol, como a compleição física bastavam para dar nas vistas. Não
parecia sub-humano, mas também não tinha muito aspecto de humano. Havia
algo de extra-humano nos seus olhos inexpressivos e cabelos quase brancos.
— Que veio fazer a este planeta? — Inquiriu o oficial.
— Turismo — replicou Thane, numa inflexão sinistramente calma.
O cylon, que recebera instruções para não reagir à atitude do prisioneiro,
qualquer que ela fosse, prosseguiu:
— Quantos vieram consigo?
— Gosto de viajar só. Sempre fui um pouco... Antissocial.
— Pertence à Galactica, não é verdade?
— Não sei ao que se refere.
Todas as respostas se achavam desprovidas de emoção. Vulpa refletiu
que, se ele pressentia que o esperava a morte, devia pelo menos deixar
transparecer uma réstia de apreensão.
— Quantas unidades de combate contém a frota?
— É difícil de dizer. São tantas!
— Quantas?
Thane olhou o cylon em silêncio por um momento e, inclinando-se
ligeiramente para a frente, indicou:
— No bolso do lado direito do meu blusão encontra-se um gravador com
todos os dados que pretende.
Tudo indicava que se resolvia finalmente a colaborar, o que não deixava
de constituir uma surpresa para Vulpa.
O interrogador introduziu a mão no bolso mencionado e retirou-a com
uma pequena unidade eletrónica.
— Carregue no botão — instruiu Thane, sem a mínima emoção.
A mão enluvada do oficial moveu-se para concretizar a indicação, no
instante em que Vulpa, demasiado tarde, pressentia qual devia ser o conteúdo
da unidade e se precipitava para o comunicador, na vã esperança de impedir
uma catástrofe.
***
Ao entrar na alameda, Starbuck ficou surpreendido com a multidão que
se lhe deparou e, sobretudo, com a cena diante dos seus olhos. Numa
plataforma elevada avistou Thane, solidamente imobilizado por correntes,
com vários cylons à sua volta. Assolou-o o impulso quase irresistível de
libertar o prisioneiro e fugir com ele, mas a voz da razão não tardou a
predominar. Se Boomer estivesse a seu lado, poderiam conceber um plano
com probabilidades de êxito, embora o número de cylons presentes não
encorajasse qualquer diligência dessa natureza.
De súbito, Tenna pousou-lhe a mão no braço e apontou para a sua
esquerda, onde se encontravam Ser 5-9 e a outra Tenna, um pouco atrás da
multidão. Starbuck puxou o capuz para os olhos e seguiu a sua Tenna, para se
lhes reunir.
— Starbuck! — murmurou o clone, visivelmente surpreendido.
O caçador não tinha muito bom aspecto, pensou Starbuck.
— Não se sente bem? — Perguntou.
Ser 5-9 principiou a afirmar que nunca se sentira melhor, porém a
primeira Tenna interrompeu-o:
— Foi capturado pelos cylons, que lhe aplicaram o chicote laser.
Friccionei-lhe as costas com unguento, mas os vergões são profundos.
— Deixemos isso — volveu Ser 5-9. — Temos de procurar o capitão
Apollo.
— Apollo? — Ecoou Starbuck, perplexo. — Onde está?
— Ficou escondido no laboratório de Ravashol.
— Esse Ravashol é de confiança?
— Salvou Ser 5-9 da morte às mãos dos cylons — salientou uma das
Tennas.
As duas clones encontravam-se agora ao lado uma da outra e, como não
lhes vigiava constantemente os movimentos, Starbuck sentia-se
impossibilitado de identificar a que acabava de falar, pois ambas deixavam
transparecer a mesma apreensão.
— Mesmo assim, não evitou que o chicoteassem — comentou ele.
— Levaram-me preso, e matavam-me se o pai-criador não intercedesse
por mim — afirmou Ser 5-9. — Mentiu para me salvar a vida. No fundo,
prefiro ter sido chicoteado a executado.
— Bem, temos de voltar a reunir a equipa e tomar conhecimento do que
Apollo apurou. Podemos fazer alguma coisa por Thane?
— Não. Vão executá-lo.
— Executá-lo? Então, talvez possamos chamar os outros e...
— Não há tempo.
Starbuck concentrou-se de novo na plataforma e viu o oficial cylon
introduzir a mão numa das algibeiras do prisioneiro e extrair uma pequena
unidade eletrónica. Onde vi já aquilo? refletiu, enrugando a fronte. De
repente, lembrou-se e bradou:
— Temos de sair daqui imediatamente!
Naquele momento, a voz suave de Thane vibrava nas paredes
abobadadas da câmara principal:
— Carregue no botão.
— É uma mina portátil! — Exclamou Starbuck, precipitando-se para um
corredor, seguido de perto por Ser 5-9 e pelas duas Tennas. — Deitem-se ao
chão!
As ondas de choque da explosão fizeram o solo estremecer como sob o
efeito de um sismo, ao mesmo tempo que se registavam gritos e o som da
queda de pedras na câmara principal.
Por fim, os ecos da detonação atenuaram-se e Starbuck olhou para trás,
soerguendo-se do chão com prudência. A área de execução constituía um
pandemônio de corpos imóveis e pedras, dos quais se desprendiam colunas
de fumo. Viam-se cylons e clones movendo-se de um lado para o outro,
talvez procurando identificar os mortos.
— Que aconteceu? — Perguntou uma das Tennas, embora ele não
soubesse qual.
— Santo Deus! — Balbuciou o tenente, ainda incapaz de responder a
uma pergunta coerente. — Nunca supus Thane com coragem para uma coisa
destas. Julgava-o um cobarde e afinal...
— Mas que fez ele? — Persistiu Tenna.
— Costumava andar sempre com produtos químicos e explosivos.
Aquela pequena caixa que o cylon lhe tirou da algibeira era uma mina
portátil. Thane decidiu não partir só para a viagem eterna. Infelizmente,
também arrastou consigo alguns dos seus semelhantes, Tenna.
— Era seu amigo?
— Amigo? Talvez pudesse ter sido. É possível que não fôssemos muito
diferentes. Não gosto de me entregar a este gênero de considerações.
Procuremos os outros.
— Por aqui — indicou Tenna, mas não aquela para a qual ele olhava.
Voltou-se e viu a outra apontar para um corredor próximo.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Não deixo de pensar em Sharky, o Vagabundo das Estrelas. A noite
passada sonhei que tinha um exemplar do livro nas mãos; mas, quando o abri,
o texto era confuso e não o consegui ler, por mais que me esforçasse.
Recordo-me em particular daquela cena num planeta de vegetação
luxuriante. Sentindo-se exausto após a perseguição, por sorte infrutuosa, de
uns hirsutos habitantes daquele mundo, Sharky avista uma árvore admirável
que parece prolongar-se até ao céu. Possuía, se a memória não me atraiçoa
uma casca recortada irregular, que, na penumbra do planeta, emitia uma
luminescência que assumia formas por assim dizer abstratas. Uma delas
lembrava a Sharky o seu amigo Jameson, capturado pelos nativos. A última
vez que o vira, tudo indicava que os captores ponderavam a ideia de o cozer
para a refeição da noite. (Não me ocorre se Jameson foi salvo por Sharky ou
pelo destino. De resto, já nem sequer sei se era ou não comestível.) Como ia
dizendo, Sharky, amargurado pela recordação do amigo, pôs-se a examinar
mais atentamente a curiosa árvore. No alto, nos ramos contorcidos como
serpentes, as folhas eram hediondas, peludas, e brotava delas um líquido
oleoso, cujas gotas caíam em volta dele, como pequenas bombas. E, embora
não efetuasse a mínima tentativa para as evitar, nenhuma o atingia e algumas
até alteravam a trajetória para não o molestar.
Sharky conservou o olhar fixo na árvore por longos momentos, pois
nunca vira uma como aquela. Ao mesmo tempo, no espírito, contemplava
todas as árvores, paisagens e fenômenos naturais que vira nas suas viagens.
Até então, tudo o impressionara, avivando-lhe a consciência do vasto âmbito
do universo. Agora, porém, perguntava-se se essa impressão não passaria de
uma ilusão. O universo não era tão abissalmente vasto; simplesmente, nós
éramos demasiado pequenos para apreciar a sua finitude. Assim, a árvore
podia ser a única do gênero naquele planeta e talvez não se encontrasse outra
igual em todo o universo, mas era apenas uma árvore. Alguns planetas
tinham árvores, outros não. Sharky sabia que, dos tipos delas, apenas existia
um número finito no universo. E, qualquer que fosse esse número, não
aumentava muito com mais uma unidade. O fato obrigava-o a considerar a
pequenez do universo. Pensou que talvez as pessoas tivessem estado sempre
erradas ao meditarem sobre a sua insignificância no universo. Também elas
apenas representavam um mero número finito num universo finito. A
insignificância não constituía o fulcro da questão; isso equivalia unicamente a
envolver o número de um desnecessário aspecto emocional. Se as árvores
contemplassem as variedades de seres humanos, ou mesmo as variedades de
criaturas sensitivas no universo, poderiam chegar a conclusões similares
sobre o significado, ou falta dele, das árvores. Por fim, pôs-se a rir. Com
significado ou sem ele, finitude ou infinitude, a árvore tinha um aspecto
admirável naquele momento. Para ele. Mais ninguém experimentaria aquele
momento, fosse quem fosse que se sentasse junto da árvore.
Enquanto esquadrinho o universo em busca de um lugar para nos
instalarmos, recordo com frequência o dilema momentâneo de Sharky. Serão
as nossas possibilidades tão finitas que acabaremos por ter de cair nas malhas
das redes dos cylons? Ou, pelo contrário, temos de continuar a considerá-las
infinitas — ou, pelo menos, em número elevado (o número do tipo de árvores
no universo, por exemplo) —, para as encararmos com esperança?
CAPÍTULO XVIII
— Tenho informações que me permitem considerar a vossa ridícula
missão ao planeta gelado de Tairac um malogro — declarou o líder imperial a
Starbuck, que parecia meio sentado e meio deitado na sua cadeira simulada.
— Ah, sim? Capturaram toda a gente?
— Bem, toda não. Mas já não falta muito.
— Faço parte da missão? Também me capturaram?
— Disponho agora de elementos que me levam a admitir a sua presença.
— É muito natural. Sempre tive inclinação especial para me envolver em
sarilhos. Se não me capturaram, a missão não abortou.
— A sua intervenção parece-lhe significativa?
— Qualquer de nós tem importância significativa enquanto permanece
vivo. Em todo o caso, sempre desfrutei de certa tendência para me distinguir
dos outros. Há quem lhe chame sorte. Vocês não sabem utilizá-la.
— Se não é um fator tangível, não o podemos aplicar à nossa estratégia.
— Fazem mal. É tangível, mas nunca se vê.
O líder imperial considerou prudente mudar de assunto:
— Um dos vossos vai ser executado e há outro prestes a seguir o mesmo
caminho.
— Sim? Como se chamam?
— Thane e Cree.
— Não conheço.
— Mas fazem parte dos elementos que...
— Não esqueça que fui programado com base nas informações mais
recentes. Este meu produto não conhece Thane ou Cree, porque não faziam
parte dos vossos dados mais recentes sobre prisioneiros capturados. Por mais
esforços que façam, os bancos de dados não podem obter leite de um daggit.
O líder imperial perguntou a si próprio se o simulador, porventura
submetido a uma carga excessiva para manter a imagem de Starbuck,
começava a desvairar.
***
O primeiro-centurião Vulpa acalentava a esperança de que a notícia da
explosão não tivesse chegado ao conhecimento do líder imperial. Afigurava-
se-lhe singular como o chefe supremo se inteirava por vezes do que acontecia
sem que alguém o elucidasse diretamente. Talvez se devesse à posse do
terceiro-cérebro, pelo qual Vulpa tanto ansiava. O suicídio do prisioneiro
parecia-lhe inexplicável e até o assustava um pouco. Podia aceitar atitudes
humanas em conformidade com os conhecimentos que os cylons possuíam da
espécie, porém um ato como o daquele prisioneiro, autêntica sabotagem
suicida, situava-se fora da sua compreensão. Por outro lado, tão-pouco lhe
interessava que o líder imperial viesse a saber da extensão do número de
vítimas, que originava um rombo importante no pessoal da guarnição, já de si
em quantidade insuficiente para as necessidades.
— Atenção a uma mensagem do alto comando — anunciou o oficial das
comunicações.
Vulpa ligou o écran do seu telecomunicador, enquanto os outros cylons
se mantinham em rígido silêncio. Quando o contato se estabeleceu, a imagem
principiou por consistir num conjunto impreciso de pontos e linhas, até que
estes se converteram na cabeça de numerosos olhos do líder imperial, a qual
não se apresentava nítida por se encontrar na sombra.
— Primeiro-centurião Vulpa!
— Às suas ordens — proferiu este, em obediência ao ritual respeitado.
— Estamos em vésperas da ofensiva final. As unidades da nossa base
aproximam-se da Galactica e sua frota. O ataque decisivo está iminente. O
inimigo não tardará a encontrar-se ao alcance do canhão pulsar. Qual é a
situação nas instalações do monte Hekla?
— Estão totalmente operativas.
— Ótimo. Mande iniciar o fogo cego. Devem varrer todo o corredor.
Existe uma possibilidade de atingirmos a Galactica quando pretender entrar
no seu sector. Principiem imediatamente.
— Perfeitamente.
— Espero que se verifique a destruição da estrela-de-batalha e toda a
frota. Ficarão então reunidas as condições para o seu regresso ao estado-
maior da nave de comando, Vulpa.
— Sim, senhor.
Quando a imagem do líder imperial se desintegrou numa infinidade de
pontos, o primeiro-centurião ponderou as últimas palavras que acabava de
escutar. Com o êxito das operações, os dias de exílio de Vulpa naquele
insuportável planeta gelado aproximavam-se do seu termo. Por fim fez girar a
cadeira de comando e dirigiu-se aos oficiais, que permaneciam perfilados:
— Transmitam estas ordens à Estação do Topo. Devem programar para
fogo automático de rajadas que abarquem todo o corredor. Informem a
brigada de artilharia de que estarei presente para dirigir a operação. Deslocar-
me-ei na nave de abastecimento. Comuniquem à torre de controlo que efetue
os preparativos para a minha chegada.
— E quanto à força invasora humana? — Perguntou um dos oficiais.
— Duvido que ofereça perigo especial. Em todo o caso, reforcem a
vigilância em todos os pontos estratégicos, na guarnição daqui e no posto de
comando, e mandem um pelotão para junto do acesso ao elevador, não vá
meter-se-lhes na cabeça a estupidez de imaginar que podem entrar por aí. —
Apercebendo-se de que Cree jazia, inconsciente, a um canto da sala,
determinou: — Já não precisamos dele. Levem-no para uma cela fria.
Examinar-lhe-ei o córtex mais tarde. A nave de abastecimento está
preparada?
— Sim, primeiro-centurião.
Vulpa encaminhou-se para a saída. Dois oficiais cylons, que ficaram,
apanharam o corpo mole de Cree e arrastaram-no para fora das instalações do
posto de comando.
CAPÍTULO XIX
CROFT.
Apollo ainda não se recompôs totalmente dos últimos acontecimentos,
quando a porta atrás dele começa a abrir-se com lentidão. Ato contínuo, ele
roda nos calcanhares e empunha o laser. No entanto é o rosto sorridente de
Starbuck que surge na abertura, dizendo:
— Que maneiras de receber um guerreiro!
Apollo olha-o com ar de censura e observa:
— Julguei que o tinha deixado de serviço!
— Considerei aconselhável reconhecer o terreno.
O tenente entra na sala, envergando um uniforme de trabalhador clone.
Apollo estende a mão para a pousar no braço do outro e examina o pó que
aderiu aos dedos. Ser 5-9 e duas Tennas seguem Starbuck, mostrando-se
acabrunhados.
— Que aconteceu?
— Não ouviu?
— Pareceu-me notar um estampido quando corria para aqui, mas...
— Foi uma explosão enorme. Provocada por Thane, que perdeu a vida
nela.
Olho para Wolfe e Leda, mas nenhum de nós pronuncia palavra, por
termos presente o velho código: nunca se deve deixar transparecer emoção,
quando se toma conhecimento da morte de um companheiro. Apollo observa-
nos os rostos, em busca de reações à revelação de Starbuck e congratulo-me
por não denunciarmos coisa alguma. Aprendemos há muito que ninguém é
condecorado por revelar compaixão.
O tenente descreve a explosão e confesso que fico impressionado.
Embora soubesse que Thane sempre manifestou desprezo pela vida humana,
supunha que sentia consideração especial pela sua.
— Uma coisa é certa — acrescenta Starbuck. — Não denunciou a nossa
missão.
Quase me tinha esquecido da missão que nos trouxe a este malfadado
planeta. Contava com Thane para me ajudar com a solenite, pois sabia muito
mais disso que eu. Sem ele, ficamos alguns passos mais próximos da morte.
No plano da missão, Leda colaborava com Thane e comigo nas demolições.
Agora devo contar apenas com ela. Oxalá não aproveite a oportunidade para
me fazer voar com a montanha.
— Temos um problema — anuncia Apollo.
— Diga-me: é alguma coisa que... — Começa Starbuck, mas apercebe-
se da expressão acerada no olhar do capitão e cala-se.
— Ravashol afirma que a nossa melhor possibilidade de êxito...
— O pai-criador ajudou-os! — Profere Ser 5-9, surpreendido e satisfeito
simultaneamente.
— Sim. Elaborámos uma estratégia de ataque simultâneo. É o mais
aconselhável, nas circunstâncias. — Recorrendo a mapas fornecidos por
Ravashol, Apollo explica a disposição do topo do monte Hekla e da
guarnição nos contrafortes, após o que passa à operação em si: — O assalto
divide-se em três fases, que devem ser coordenadas com precisão. Eu, Croft,
Wolfe e Leda escalaremos o Hekla. Uma vez no topo, Croft e Leda tratarão
de colocar os explosivos. Ao mesmo tempo, eu e Wolfe dominaremos a
guarda aí existente, para que não incomode Croft e Leda e...
— Leva Wolfe consigo, capitão? — Atalha Starbuck.
— Sem dúvida.
As atenções gerais concentram-se no visado, que apresenta o ar
despreocupado e insubordinado de sempre. No lugar de Apollo, eu não o
levava.
Entretanto, Starbuck também não sabe para onde se virar.
— Com o devido respeito, capitão, penso que ele devia participar noutra
parte do assalto. Eu escalaria a montanha consigo.
— Não. Você fica incumbido de atacar a guarnição principal, para que
não possa acudir a qualquer chamada e interromper o nosso trabalho no topo.
— Mas...
— Acabaram-se os «mas». Wolfe possui experiência de trepador, o que
não acontece consigo. E não venha com a história de que prestou serviço num
planeta gelado qualquer, com Boomer. Sabemos perfeitamente que esse
pormenor merece escasso relevo na sua folha de serviços. Esta missão é
demasiado importante para que eu tenha de perder tempo a pescá-lo do fundo
de fendas na rocha. Portanto, o seu trabalho consiste em atacar a guarnição,
auxiliado por Ser 5-9 e um grupo dos seus melhores combatentes. Devem
tornar inoperantes todas as equipas de socorro cylon e, em especial, evitar
que nos caiam em cima, procedentes do aeródromo. Depois atravessarão o
túnel subterrâneo, para enfrentarem as tropas inimigas que guardam o
elevador, situado neste ponto do mapa. O nosso meio de saída mais
prometedor é precisamente através desse elevador. Se tentarmos descer pela
encosta, arriscamo-nos a ser atingidos pela explosão ou ficar sepultados sob
os destroços. Não quero encontrar cylons à nossa espera, lá em baixo.
Entendido?
— Cumpriremos a nossa parte da operação.
— Conto com o vosso êxito. A sobrevivência de todos nós depende da
vossa tomada do elevador.
O tenente inclina a cabeça em sinal de aquiescência, mas continua a
revelar preocupação. No fundo, não o censuro. Nem sequer sei se poderia
controlar o Wolfe em semelhante corrida. É melhor que Apollo não o perca
de vista.
Nesse momento, Ser 5-9 adianta-se e declara no seu tom formal:
— Posso escolher alguém para dirigir o ataque à guarnição principal e
comandar os nossos combatentes. A minha verdadeira utilidade é na
montanha. Tenna — aponta para a Tenna mais próxima — também possui
profunda experiência do Hekla. Podemos contribuir para reduzir o vosso
tempo a metade.
— Não quero que se arrisquem na montanha. Os seus combatentes
precisam de si e...
— Capitão Apollo — interrompo. — Necessitamos de alguém com as
capacidades de Ser 5-9 no Hekla. Lembre-se que nunca o vimos e, portanto,
não pudemos examinar o terreno de perto. Ele decerto conhece os caminhos,
as chaminés, as encostas mais acessíveis e pode poupar-nos muito tempo,
como diz.
Apollo deixa tudo isto agitar-se bem dentro da sua cabeça por um
momento e acaba por a inclinar.
— Está bem. Acertemos os cronômetros.
Puxamos dos instrumentos fornecidos pelo quartel-mestre da Galactica.
Confesso que nunca me habituei a usar uma coisa dessas, mas simulo a
sincronização e carrego no botão quando Apollo indica que principiemos a
contar o tempo. Terminado o ritual, assume uma expressão grave, comprime
os lábios e informa:
— Atingiremos o topo e iniciaremos o ataque em exatamente oitenta e
cinco centões.
— Oitenta e cinco centões levo eu a atar os cordões das botas —
observo.
Lança-me um olhar tão acerado que não lhe conseguiria cravar um pitão.
— Temos de atingir o topo em oitenta e cinco centões — repete. — A
Galactica avançará logo a seguir.
— Como queira. — Volto-me para Ser 5-9 e comento a meia voz: — Se
vocês não conhecem algum atalho, vão ter de nos atirar lá para cima.
O clone sorri, o que constitui uma revelação: ao que parece, aquelas
criaturas têm o sentido do humor.
— Você, Starbuck, e Boomer são as peças-chave cá em baixo —
continua Apollo. — Se não conseguirmos descer no elevador, voamos com a
peça. Portanto, no interesse de todos, não cheguem atrasados.
Starbuck reage uma vez mais ao olhar maldoso do capitão; então diz:
— Estaremos lá a horas — promete o tenente.
Enquanto examino os doze pontos de cada placa antes de a aplicar na
bota respectiva, invade-me a apreensão que senti no passado antes de uma
ascensão difícil e perigosa. No fundo, é um bom sinal.
Ser 5-9 faz-nos sair de uma gruta aberta na encosta da montanha.
Rodeados por rochas elevadas e turbilhões de neve, não podemos ser vistos
da principal guarnição dos cylons. Volto-me para observar o Hekla. Embora
não se trate de uma montanha muito alta, segundo o conceito de um
montanhista, apresenta um aspecto impressionante, pois eleva-se de uma área
relativamente plana, sem qualquer colina em redor para facilitar o acesso.
À semelhança das melhores elevações que tenho visto, o Hekla parece
concebido por mãos humanas. Os seus declives e ângulos dir-se-iam
esculpidos por um escultor magistral que nunca se cansasse de lhes alterar o
aspecto. Embora as superfícies não mudem de cor com as estações e posição
de um sol no firmamento, a sua tonalidade cinzento-escura sofre variações
produzidas por sombras misteriosamente atraentes. Os ventos uivantes e
colunas irregulares de neve que provocam contribuem para acentuar o
mistério e atmosfera sinistra que envolvem o Hekla. À medida que o frio
implacável vai penetrando nas numerosas camadas do meu vestuário, sinto-
me mais confiante com o resultado da operação. Ou, pelo menos, se não
totalmente confiante, pelo menos mais animado. Como todos os montanhistas
experientes, anseio pelo desafio suscitado por uma montanha como aquela. A
dor que provocará, a iminência da morte repentina e a possibilidade de
exaustão e derrota — tudo isto faz parte do desafio. O meu corpo principia a
desejar a dor, exaustão e frio. Talvez até a morte, pois prefiro morrer
enroscado no nicho de uma montanha do que deitado na cela mais luxuosa
que uma prisão possa oferecer.
Em silêncio absoluto continuamos a preparar o equipamento e
concentro-me em especial nos pitões, carabinas e machadinhas. Apesar da
proteção proporcionada pelos capuzes dos parkas, a neve e gelo que
conseguem introduzir-se formam estalactites e estalagmites na geografia dos
nossos rostos. Os respiradores talvez nos protegessem, mas não havia
indícios de di-eteno na montanha, pelo que me opus a que se utilizassem, pois
podem obstruir-se com facilidade durante uma tempestade de neve. Lembro-
me de há muito tempo ter dado com um alpinista apoiado a uma rocha,
asfixiado porque o seu respirador gelara completamente.
O ruído produzido pela fúria dos elementos é tão intenso à nossa volta
que não ouço Wolfe e Leda aproximarem-se. Quando me volto, descubro-os
na minha frente, examinando-me com expressões que sugerem já terem
determinado as respostas às perguntas que ainda não me formularam.
Wolfe é o primeiro a falar:
— Um dos clones disse-me que há uma nave de abastecimento no
aeródromo do topo, atrás das instalações do pulsar.
— Sim — confirmo. — Apollo falou-me nisso. Admitiu a possibilidade
de fugirmos nela, mas como não sabia se estaria lá ou a poderíamos conduzir,
figura no plano apenas como uma solução de emergência.
— Sei pilotar esses caixotes cylon. Lembras-te que tive de aprender para
a nossa aventura da platina? Proponho que nos apoderemos da nave, quando
chegarmos lá acima.
— Para irmos aonde? Quanto tempo pensas que passaria antes de a
Galactica nos caçar e abater?
— A Galactica é que é a caçada. Adama não vai esbanjar uma
esquadrilha para tentar neutralizar três condenados em fuga.
— Ele sabe isso — intervém Leda, em tom desdenhoso. — E tu também
não ignoras que, se a operação abortar, a Galactica não ficará em situação de
nos perseguir.
— Não os podemos deixar morrer.
— Sentes-te vinculado a deveres para com os teus carcereiros? A
Galactica e toda a sua frota estão perdidas.
— Estarão, se não destruirmos o canhão.
Leda recua um passo e olha-me como se eu fosse um quadro que não lhe
interessa comprar porque tem a camada da superfície a cair aos pedaços.
— Sim, e nós ficaremos livres — articula pausadamente. — E não
venhas com a balela de que este planeta é hostil, porque prefiro suportar a
intempérie mais inclemente a perder a liberdade. De resto, podemos encontrar
outro. Starlos não dista muito daqui. Depois de nos abastecermos de
carburante, água e gêneros, podemos ir aonde quisermos. Alinhas ou não
connosco, Croft?
No meio do seu arrazoado, só me desperta a atenção o fato de se mostrar
empenhada em que os acompanhe. Talvez possamos chegar a um
entendimento, eu e ela, regressando aos bons tempos de alegria, divertimento
e amor. Em todo o caso, ao observar os seus olhos glaciais, sinto dificuldade
em conceber que possa emanar deles um clarão mais terno.
— Tencionas voltar as costas à liberdade, Croft? Mais uma vez?
As suas palavras penetram-me mais pungentemente no corpo que o
vento cortante. Leda censura os meus malogros do passado, a minha inépcia
durante a nossa confrontação com os guerreiros de Adama, antes de nos
capturarem. A nave que nos perseguia encontrava-se centrada na minha mira
e eu não conseguira fazer fogo.
— Não podia abater guerreiros coloniais — replico, repetindo o que
dissera na altura.
— Bem sei — profere, rangendo os dentes. — Por causa do código. E,
em troca da tua compaixão, acorrentaram-te como um animal. Agora tens
uma oportunidade excelente de retificar o passado. Temos uma oportunidade.
Pela última vez, prezado marido.
Que posso responder? Ela sabe que, se eu não corresponder ao seu
derradeiro apelo, nunca aceitarei o plano que me propõe. E, na realidade, tem
razão. É a nossa oportunidade. Cheguei a pensar que cederia a alma para
poder recuperar Leda e, agora que se me depara o ensejo, hesito. Ou talvez já
tenha cedido a alma e é por isso que sinto um vazio tão profundo no meu
íntimo.
Wolfe inclina-se para mim e pergunta:
— Estás do nosso lado?
Se digo que sim, recupero Leda. Se recuso, não só a perco como
comprometo o êxito da operação, pois ela e Wolfe atuarão sem mim, eu e
Apollo encontraremos a morte e não haverá a mínima possibilidade de salvar
a frota do poder mortífero do canhão. Não posso de modo algum dizer que
não e, com uma certa sensação de alívio por protelar a verdadeira decisão,
concordo com o plano.
— Estou.
Quando volto a olhar para cima para contemplar as encostas
majestosamente pitorescas da montanha e pondero a utilidade aparente da
nossa missão, admito que talvez tenha falado verdade a Leda e Wolfe.
CAPÍTULO XX
— É altura de nos safarmos — observou Boomer. — Já não dispomos de
muito tempo.
Starbuck consultou o cronômetro e inclinou a cabeça.
— Estou preparado — declarou, com uma expressão sombria.
— Qual é a tua ideia? Tu e Apollo têm estado tão calados como...
— Trata-se de Cree. O comandante cylon comunicou a Ravashol que
tinha um prisioneiro.
— Com certeza: Thane. Mas desapareceu com a explosão.
— Foi antes disso. Só pode ser Cree.
— Fazes alguma ideia do lugar em que se encontra?
— Não. Os mapas que Apollo obteve não indicam qualquer área de
detenção. Mas hei de descobrir Cree, de uma maneira ou de outra.
— É natural que estejas desgostoso com a perda dos cadetes, mas mete
na cabeça de uma vez por todas que não tiveste culpa. Não vejo motivo
algum para transformar esta operação numa cruzada insensata, só para...
— Estou convencido de que o conservam preso algures no seu complexo
subterrâneo, Boom-Boom.
— Bem, nesse caso manteremos os olhos bem abertos.
— Obrigado, amigo — agradeceu Starbuck, com um sorriso.
— Esperemos que se nos depare uma oportunidade.
— Vou transmitir diretrizes ao nosso oficial da retaguarda e...
— Oficial da retaguarda?... Ah, compreendo. Espero-te junto da saída.
Starbuck aproximou-se de Boxey e ajoelhou a seu lado, enquanto Muffit
tentava partilhar do abraço do tenente.
— Ora bem, Boxey. Como guerreiro colonial de primeira classe, confio-
te a segurança destas crianças. Precisam de alguém com experiência. Tu e
Muffit devem protegê-las de todos os perigos. Não se impressionem, ouçam o
que ouvirem.
— Que ouviremos? — Quis saber o garoto, enrugando a fronte.
— Temos de fazer algum barulho. Depois viremos buscá-los. — E
Starbuck principiou a encaminhar-se para a porta.
— Olhe por meu pai — recomendou Boxey.
— Sem dúvida.
No corredor reuniu-se-lhes uma das Tennas, pois Starbuck não podia
determinar de qual se tratava, depois de ver tantas. Numa altura em que
passara pelo sono, tivera um sonho em que centenas delas se lhe acercavam,
de braços estendidos, convidando-o para o amor. A de agora, porém,
apresentava uma expressão apreensiva.
— Há alguma novidade? — Disse Starbuck. — Que se passa?
— Não quero trair os meus.
— Então não me enganei. Há novidade. Desistiram de atacar a
guarnição?
— Não. Estão dispostos a participar no ataque.
— Então de que se trata?
Ela hesitou por um momento, pareceu lamentar a impossibilidade de
desaparecer num dos nichos ao longo do corredor e, com um profundo
suspiro, informou:
— Os planeadores procuraram-nos, para os convencerem a impedir a
destruição do canhão-pulsar.
Starbuck emitiu um gemido de agonia e desespero. Não era a primeira
vez que sofria as interferências inoportunas de burocratas, sempre prontos a
apresentar um motivo para tentar dissuadir de um objetivo. No fundo, talvez
fosse a sua única especialidade.
— Como pensam impedir-nos? Apollo e os outros encarregam-se de
colocar as cargas, enquanto nós dominamos a guarnição e ocupamos o
elevador.
— Não sei bem. Creio que pretendem utilizar o elevador, depois de
vocês neutralizarem o inimigo, para convencerem Apollo a não destruir a
peça.
— Sendo assim, têm uma ideia muito deficiente das conveniências do
momento. Nunca conseguirão...
— É possível. Só sei que procurarão impedi-los por todos os meios ao
seu alcance. Estão à espera naquela câmara.
— Vou falar-lhes — decidiu ele, em voz firme.
A sala a que Tenna conduziu Starbuck e Boomer era larga e alta, apesar
do que parecia superlotada de planeadores e trabalhadores clones. Um destes
últimos, que se identificou como sendo Ser 7-12, adiantou-se e estacou em
frente dos recém-chegados, mostrando-se disposto a uma confrontação.
Starbuck solicitou as atenções gerais e disse:
— Antes de tomarmos alguma decisão precipitada, esclareçamos os
nossos verdadeiros objetivos.
— A destruição da guarnição cylon — retrucou Ser 7-12.
— Exato. Temos de a eliminar para ocupar a área do elevador dentro de
vinte centões, de contrário a Galactica está perdida. Por outro lado,
necessitamos de recolher os nossos companheiros, para que não voem com
metade da montanha.
O tenente fez uma pausa e lançou um olhar acerado ao interlocutor, para
o desafiar a revelar as suas intenções rebeldes. Com efeito, o clone proferiu
em voz pausada:
— Ajudá-los-emos a atacar a guarnição, conforme prometemos. Na
verdade, muitos de nós sentir-se-ão satisfeitos por poderem matar cylons.
Mas o canhão-pulsar pertence-nos e deve permanecer intato.
— Se a peça não for destruída, a Galactica desaparecerá do espaço.
Atrás de Ser 7-12, um grupo de planeadores assistia com curiosidade à
confrontação. De súbito desviaram-se e expuseram um homem, mais idoso,
cuja atenção parecia concentrada em algo longe dali, e Starbuck perguntou-se
se seria um planeador de outra geração.
— A destruição do canhão implicará a nossa — afirmou Ser 7-12. —
Assim que a revolta for conhecida numa base cylon, eles virão nos seus caças
para nos eliminar. A nossa única esperança consiste em recebê-los com a
peça. Vocês terão completado a missão e partido, deixando-nos sós e
indefesos, a menos que possuamos o canhão-pulsar para os repelir.
Um ruído surdo distante pareceu abalar as paredes da câmara, e Starbuck
exclamou:
— Ouviram? É o canhão, que dispara automaticamente. Um tiro ao
acaso pode destruir a Galactica, mesmo que desconheçam a sua posição
exata. Assim que a localizarem, um disparo bastará. Vejam se compreendem.
A Galactica é a última estrela-de-batalha colonial. Tem de sobreviver. O
destino de toda uma raça depende disso.
— É possível, mas não conhecemos o vosso povo. Só sabemos que estão
dispostos a sacrificar-nos aos vossos interesses. Portanto, não existe razão
alguma para que nos preocupemos com o que vos possa acontecer.
— Preocupo-me eu — anunciou o ancião, enquanto Ser 7-12 e os outros
clones se mostravam surpreendidos com a sua intervenção. — Pertenço a
essa raça que procura escapar à tirania dos Cylons.
— Pai-criador! — Balbuciou Ser 7-12, impressionado. (Ah! Afinal é
isso, pensou Starbuck. O velho é o célebre Dr. Ravashol.) — A luta deles não
é nossa. Temos de nos proteger. Não permitiremos que voltem a
subjugarmos. Não somos perfeitos, mas...
— Mas são humanos — volveu Ravashol erguendo-se para pousar a
pequena mão nos sólidos ombros de Ser 7-12. — Mais humanos do que podia
imaginar. — Soltou uma risada seca. — Tenho de rever os meus
apontamentos, para descobrir onde errei. — Virando-se para os outros,
continuou: — Estes são irmãos vossos em apuros no espaço. Num sentido
puramente mítico, são os vossos verdadeiros antepassados, a raça cujas
células proporcionaram a matéria-prima para a criação da série daquilo que
supus constituírem versões mais perfeitas de uma Humanidade que detestava
desde longa data. Reconheço agora que o alvo da minha animosidade era eu
próprio e não os meus semelhantes. E todos vós sois as manifestações dessa
aversão, desse ódio. Afinal, errei. Temos de os ajudar. Permiti que a unidade
pulsárica seja destruída e eu proteger-vos-ei. — Vendo que ainda não
pareciam convencidos, acrescentou em inflexão dramática: — Confiai em
mim, meus filhos.
Starbuck aproximou-se de Ser 7-12 e anunciou com firmeza:
— Não dispomos de mais tempo. Ou seguimos já ou desistimos.
— Conte connosco — proferiu o clone em tom igualmente firme.
Enquanto este principiava a organizar o grupo de participantes,
dividindo-os em brigadas e pelotões, Boomer murmurou ao ouvido de
Starbuck:
— Pensaste no que faríamos se eles se negassem a acompanhar-nos?
— Não me assustes com a tua lógica. — Starbuck esquivou-se a
ulteriores perguntas do companheiro acercando-se de Ravashol e observando
a meia voz:— Palpita-me que tem algum trunfo escondido na manga, doutor.
Como tenciona protegê-los?
— Não sou o traidor empedernido que vocês me julgam — replicou
Ravashol, com um sorriso fugaz. — Não forneci aos cylons todas as minhas
criações. Talvez pressentisse que, um dia, surgiria alguém como o capitão
Apollo, disposto a sacudir-me da letargia em que imergi voluntariamente. De
qualquer modo, não se preocupe que tudo correrá bem.
— Estou quase certo disso — admitiu o tenente, sorrindo por sua vez. —
Algumas pessoas invejariam a sua posição.
— Porquê?
— A sua influência, quase de um deus, sobre estas criaturas é daquelas
que satisfaz as fantasias de muita gente.
— Quase de um deus? — Ravashol enrugou a fronte. — Talvez tenha
razão. Chamam-me pai-criador... Eu devia ter-me oposto a isso desde o
princípio. Foi uma mera conveniência. Pior que isso: congelei as minhas
criações em atitudes submissas. Obrigado, tenente.
— Porque me agradece?
— Fez-me reconhecer que tenho de travar uma batalha implacável...
Com um falso deus.
Starbuck sentiu a necessidade de pronunciar algo de reconfortante, mas
não lhe ocorria nada nesse sentido. Ainda bem, refletiu. Que se pode dizer
para confortar um deus apeado?
Entretanto, Ser 7-12 organizara os seus efetivos e começava a conduzi-
los para a saída. Starbuck afastou-se de Ravashol com uma saudação cordial
e Boomer recomendou-lhe:
— Temos de andar depressa. Gostava de saber como o capitão e os
outros dão conta do recado Não me agradava nada ver os cylons caírem-nos
em cima quando tomarmos o elevador.
— Tens razão. Com Croft e o seu bando junto de Apollo, tudo é
possível.
— Bem, vamos a isto. — Boomer lançou uma olhadela a Ravashol e
comentou: — Tem piada.
— Encontras algum motivo para rir, no meio de tudo isto?
— Repara no velhote Parece tão insignificante e solitário, abandonado
por todos.
— Pois sim, mas aposto que tem alguma ideia luminosa na cabeça.
E os dois oficiais da Galactica encaminharam-se para a saída da câmara.
CAPÍTULO XXI
CROFT.
Quase juraria que esta montanha tem vida própria. Encontra-se na
disposição de nos liquidar. Não se podem dar dois passos sem ficar envolto
numa mortalha de neve que gela imediatamente. Cada seis ou oito passos,
tenho de utilizar a machadinha para quebrar o gelo. Necessito de todo o meu
poder de concentração para manter o atrito nesta encosta escorregadia.
Apollo resvala a cada momento. As pernas já me começam a doer.
Aproximo-me dele e berro-lhe ao ouvido:
— Conserve-se direito! — Deixa transparecer um clarão de desafio no
olhar. Continua a não gostar que lhe dê ordens. — Bem direito! Procure
manter as solas das botas totalmente apoiadas na superfície. Se não obtém
atrito suficiente, cai extenuado muito antes de atingirmos o topo.
Inclina a cabeça. Faço a demonstração em dois ou três passos e imita-
me. Pelo menos aprende depressa.
Não haja dúvida de que os dois clones sabem mover-se na montanha,
embora não trepem com estilo especial. Sempre fui da opinião de que o estilo
carece de importância numa encosta gelada. Prefiro a meu lado uma pessoa
desajeitada que conheça o terreno a um estilista convencido de que pode
avançar apenas à custa de movimentos graciosos.
Wolfe e Leda lançam-me insistentes olhares de entendimento e não sei
como interpretam a expressão anódina com que lhos devolvo. Mesmo que
atinjamos o topo do Hekla, ignoro como sobreviveremos.
A escalada começa agora a tornar-se mais traiçoeira. Deixamos para trás
as encostas fáceis. À minha frente, descortino os contornos vagos do que nos
espera. As configurações acasteladas de uma montanha desta natureza são
ainda mais pronunciadas, deste posto de observação. Assemelham-se a um
aglomerado de ameias, torres e muralhas íngremes que sugerem demônios
ocultos preparados para afastar as escadas que se lhes apoiarem.
— Precisamos de fazer uma pausa, capitão! — grito.
— Não há tempo. Não podemos descansar, agora que...
— Qual descansar! Temos de bivacar. Sei o tempo que nos resta e que
não podemos parar muito tempo, mas cada momento que repousarmos vale
vários microns na montanha.
— Croft, eu...
— Uma montanha deve ser escalada com lentidão e segurança. Nestas
paragens, a pressa é sinônimo de morte. Não me refiro apenas ao perigo da
exaustão. O ar toma-se cada vez mais rarefeito. Tentar subir demasiado
depressa é a mesma coisa que perder o ar respirável debaixo de água. Os
órgãos internos são afetados pela altitude e pela atmosfera rarefeita. A
percepção dos objetos pode alterar-se e os sentidos perdem a sua ação. Existe
a possibilidade de se chegar a um ponto em que a morte parece preferível a
empreender mais um passo. Acredite, capitão: se nos deslocarmos devagar,
beneficiaremos mais a sua preciosa frota do que com supérfluos atos de
heroísmo.
Olha-me em silêncio por um momento e acaba por concordar, embora
com relutância. Escolhemos uma área relativamente plana um pouco adiante.
Avanço em primeiro lugar e tento alisar um pouco a superfície, mas desisto
em virtude da solidez da camada de gelo. Por fim, assumimos posições de
descanso mais ou menos confortáveis. Wolfe e Leda parece colocarem-se
propositadamente afastados de mim. No entanto, Apollo instala-se a meu
lado e pergunta:
— Mais alguma recomendação?
A surpresa quase me impossibilita de responder. A sua voz não contém o
mínimo sarcasmo. Ele está mesmo interessado em se elucidar. Talvez
consigamos formar uma equipa homogênea. Com a tenacidade dos clones, o
impulso para a fuga de Leda e Wolfe e a condescendência de Apollo para
escutar a voz da razão, é possível que eu leve a operação a bom termo e
utilize os seus motivos divergentes para criar a ilusão de uma equipa. Pelo
menos durante o tempo suficiente para alcançarmos o local em que se situa o
canhão. Depois, Wolfe e Leda tentarão a sua sorte e eu terei de tomar uma
decisão. No entanto, para já, não merece a pena preocupar-me com isso
prematuramente.
— Recomendação? Neste momento, não lhe poderia transmitir nem as
indicações básicas. Tudo depende de os instintos exercerem ou não o seu
efeito. Lembre-se que é mais importante trepar com os pés que com as mãos,
que servem de alavancas para manter o equilíbrio e permanecer na encosta.
No entanto, não ajudam a obter um bom ponto de apoio; não evitam a queda
e o possível arrastamento dos companheiros. Âncoras firmes e os pés
colocados no melhor ponto possível para manter o corpo estável são as únicas
recomendações que lhe posso fazer nesta altura da operação.
Apollo inclina a cabeça e volve o olhar para a parte superior da
montanha, mas o topo não se encontra visível. Tudo o que se pode ver são
contornos indefinidos, colunas de neve erguendo-se com regularidade em
certas zonas — indicação inequívoca de ventos fortes— e uma massa de
nuvens à distância. Apesar da escuridão deste asteroide de gelo, a sugestão de
cor na superfície da montanha afigura-se-me impressionante. Ao longe, o
gelo tem uma coloração cinzento-escura; mais perto, há faixas e pontos azuis;
junto de nós, à luz incerta das nossas lanternas, descortino uma tênue
sugestão cristalina purpúrea, muito semelhante à que vi nas montanhas
geladas de Caprica.
— Quais são as possibilidades de uma avalancha? — pergunta Apollo,
abruptamente.
— Pelo que observo, não parecem maiores que o habitual nestas
circunstâncias. Não existem garantias de que tal não aconteça. Em todo o
caso, duvido que venhamos a enfrentar um obstáculo dessa natureza.
— Porquê?
— Trata-se de um planeta sombrio. Não há sol para acelerar a fusão ou
provocar alterações no peso da neve à superfície, principais causas das
avalanchas. Tudo permanece frio a mais ou menos a mesma temperatura. O
terreno e clima daqui devem combinar-se para tomar a montanha
relativamente estável. No entanto, nunca se sabe. De resto, há sempre o
perigo de nós próprios causarmos uma avalancha, se suscitarmos uma reação
em cadeia que faça desprender a neve de um ponto elevado e comece a rolar
na nossa direção, o que pode originar um efeito de bola de neve. Apesar de
tudo, não merece a pena preocuparmo-nos muito com isso. E acho que já
descansámos o suficiente. Reatemos a marcha.
Pronuncio as últimas palavras em surdina. É importante para Apollo que
os outros pensem que a iniciativa da expedição lhe pertence exclusivamente.
A mínima intromissão da minha parte no comando só serviria para estimular
o ressentimento dos outros. É sempre vantajoso empregar subtileza para com
um oficial superior, se se quiser que as coisas andem para a frente.
A fase seguinte da ascensão revela-se mais fácil do que eu previ. Apesar
do aspecto hostil do terreno, há muitos pontos de apoio. Ser 5-9, com o seu
conhecimento da montanha, faz-nos poupar muito tempo. Conseguimos
cobrir uma distância significativa utilizando unicamente as cordas para nos
elevarmos e existe uma percentagem apreciável de atrito. Ao ver Apollo
consultar o cronômetro com frequência, a tênue iluminação do mostrador
enviando sombras sinistras para as suas faces, começo a criar esperanças.
Talvez o Hekla seja uma daquelas elevações que parecem inabordáveis e
acabam por não constituir sequer um desafio excitante para uma boa equipa
de trepadores.
De repente, as coisas começam a assumir um aspecto menos agradável,
quando atingimos uma formação glaciar. Apollo pretende prosseguir em
linha reta, mas indico-lhe que a travessia do glaciar representa a melhor
estratégia disponível, e Ser 5-9 concorda. Coloco-me à frente do grupo e
avanço com lentidão, explorando a neve com a ponta da picareta antes de
aventurar um passo. É importante manter um andamento lento, pois qualquer
ponto diante de nós pode constituir uma fenda na rocha coberta pelo manto
gelado e tragar-nos irremediavelmente.
A certa altura, depara-se-nos uma dessas aberturas e atravessamo-la por
uma ponte de gelo, em fila indiana e movimentos prudentes. Do outro lado,
Apollo continua a consultar o cronômetro. Começa visivelmente a
impacientar-se, mas rejeito a sua sugestão de efetuarmos a travessia aos
pares, pois o momento afigura-se-me inoportuno para corrermos riscos de
semelhante natureza.
Alcançamos uma superfície gelada particularmente íngreme, e Ser 5-9
indica que representa o caminho melhor e mais direto para o topo. Desta vez
sou eu que concordo. Considero chegada a altura de utilizar os pitões pela
primeira vez, porquanto não são em número avultado e convém só os
empregar nas partes realmente difíceis da ascensão. Congratulo-me por serem
de fixação molecular, visto recear os sons excessivos nesta área da montanha.
Um eco sólido e mais forte, e só Deus sabe o que nos pode cair em cima.
Regulo o dispositivo do pitão para gelo e exerço pressão. O pitão introduz-se
com um som de intensidade crescente, que constitui um bom sinal. Se, pelo
contrário decrescesse, significaria que ficava preso num apoio instável. A
interpretação correta da canção do pitão representa uma técnica que salva
vidas. Como não há tempo para enfiar cordas pelos ilhós, limitar-nos-emos a
utilizar os pitões para a escalada direta.
Evitando pensar no nosso objetivo ou nas complicações inerentes,
trabalho com lentidão, introduzindo um pitão após outro e formando uma
escada em ziguezague no gelo. Sinto os outros subir atrás de mim, mas
abstenho-me de olhar para baixo. Esforço-me sempre por não o fazer. Numa
montanha não existe um lugar em que tenhamos estado que nos interesse ver
de novo. Concentro-me, pois, na colocação dos pitões nos pontos apropriados
e em escutar a monótona mas reconfortante canção que produzem .
O topo do declive gelado é estreito e ligeiramente inclinado, mas seguro.
Todavia, mais acima, existe uma saliência que nos pode provocar problemas.
Depois de a estudar por uns instantes, lanço a corda e a outra extremidade
fica suspensa. Ser 5-9 e Wolfe puxam-na, para se certificarem de que ficou
bem presa na saliência. Torço então a corda noutra direção, tomando-a rija e
firme como um cabo. Principio a trepar até que atinjo a saliência e me sento
nela, verificando que constitui uma espécie de plataforma.
Um pouco acima, avisto outra saliência mais segura. Indico a Ser 5-9 e
Wolfe que larguem as extremidades da corda e trepo até lá, onde cravo o
cabo da picareta o mais vigorosamente possível na neve. Em seguida, abro
um degrau por baixo, fixo o pé nele com firmeza, faço passar a corda em
tomo do cabo e atiro as extremidades dela aos outros, a fim de que subam
para a saliência: Ser 5-9 e Tenna em primeiro lugar e a seguir Apollo, Leda e
Wolfe.
Por sugestão de Ser 5-9, prendemo-nos todos em diferentes pontos da
corda e avançamos ao longo da saliência, por vezes quase encostados à
parede gelada, quando a passagem apresenta uma largura pouco
tranquilizadora. Alcançamos uma área em que uma inclinação suave se
prolonga para a nossa esquerda e faço sinal aos outros para que aguardem,
enquanto vou explorar o terreno. Num momento em que olho para cima, as
nuvens abrem-se momentaneamente e parece-me descortinar os contornos da
instalação do canhão, negros em contraste com a penumbra, a uma distância
razoável. Volto-me para Apollo mas, antes de poder proferir palavra, regista-
se uma explosão ensurdecedora sobre as nossas cabeças e o céu é fugazmente
iluminado por um disparo da peça. Talvez a Galactica já se encontre ao seu
alcance. O som produzido é terrível e a montanha parece estremecer. O troar
do canhão é secundado por um ruído surdo que parece provir das entranhas
do Hekla. Tomo a olhar para cima e vejo uma larga crista de neve deslocar-se
na minha direção, apenas me dando tempo para gritar:
— Avalancha!
No instante imediato, a neve atinge-me e a saliência sob os meus pés
parte-se como uma bolacha. Verifica-se um puxão seco na corda, logo
seguido da sensação abrupta de queda livre. Apollo agiu com prontidão e
sensatez. Cortou a corda para salvar o resto da equipa. O meu rosto fica
exposto ao ar por um momento e é quase imediatamente envolvido pela neve.
Parece-me cair ainda mais profundamente nela, como um nadador sugado por
um remoinho inesperado.
CAPÍTULO XXII
Depois de pousar a nave na estreita faixa do topo da montanha, Vulpa
libertou os comandos do controlo do pessoal de terra, enquanto vários cylons
se apressavam a prendê-la com cabos, a fim de evitar que o vento forte a
arrastasse. Como uma serpente, um túnel emergiu de um dos lados da
construção que alojava o canhão e fixou-se à escotilha de saída da nave. No
interior, um guerreiro reuniu-se ao primeiro-centurião e uma passagem móvel
conduziu-os à Estação do Topo, onde a peça ocupava a maior parte do
espaço, assemelhando-se a um pedaço maciço de metal cinzento cortado da
própria montanha.
— Está tudo preparado? — Inquiriu Vulpa.
O interpelado virou-se para o chefe da equipa de artilheiros e perguntou
por seu turno:
— O sistema lenticular está alinhado?
— Alinhado.
— O sistema de bomba?
— Ajustado.
Só então o guerreiro se voltou para Vulpa e anunciou:
— Tudo preparado.
Experimentando um momento de satisfação especial, o primeiro-
centurião determinou:
— Pode começar o fogo automático.
O chefe dos artilheiros premiu um botão e a peça entrou em atividade.
Vulpa sentia a energia acumular-se nas entranhas do canhão, à medida que
gerava o potencial para formar os seus impulsos. O primeiro deles pareceu
irromper inesperadamente. No instante em que partiu para cima, o céu foi
fugazmente iluminado por um clarão ofuscante. Por escassos instantes, o
asteroide dir-se-ia sob a claridade de um sol que tivesse reaparecido; depois,
o feixe penetrou na camada de nuvens e a escuridão restabeleceu-se. Sob os
seus pés, a montanha parecia estremecer, em obediência à reação habitual.
Vulpa distinguiu com clareza o som da avalancha que se formava. Embora as
fundações da pequena fortaleza se introduzissem profundamente na rocha,
nunca se lhe varria totalmente do pensamento a possibilidade de tudo se
afundar no abismo. No entanto, o canhão voltou a troar e registou-se novo
clarão ofuscante.
Vulpa contatou com a sala de controlo, para saber se a Galactica já fora
detectada no sector, mas obteve resposta negativa. Não obstante, acalentava a
esperança de um daqueles feixes letais a atingir por acaso nos seus sucessivos
disparos cegos, como lhes chamavam. Se tal acontecesse, maior seria a glória
que lhe caberia, e o líder imperial ficaria devidamente impressionado. Cada
vez se lhe afigurava mais próxima a data em que assumiria uma posição de
maior destaque e teria direito ao terceiro-cérebro, ao mesmo tempo que
abandonaria o exílio definitivamente.
***
O líder imperial teve de interromper os seus diálogos com a simulação
de Starbuck para dirigir a fase final do ataque à frota humana, pois a sua nave
chegara ao sector em que a Galactica e as suas unidades pairavam. Ordenou
a uma força de choque cylon que iniciasse a investida à retaguarda da frota
inimiga, não de surpresa, como anteriormente, mas em forma.
Enviaria vaga após vaga de aparelhos contra os humanos, em quantidade
suficiente para os desgastar ou obrigar a entrar na área abrangida pelo
canhão-laser. Era um plano destituído de pontos vulneráveis. Para o líder
imperial, o ataque já terminara. O seu ativo terceiro-cérebro analisava os
problemas posteriores à batalha e questões relacionadas com os planetas
dominados pelos cylons. Pareciam erguer-se fações políticas estranhas em
tomo do império cylon, e os membros desses grupos quase rebeldes ainda não
haviam sido localizados e irradiados para as classes inofensivas da sociedade
cylon.
Lançou uma olhadela ao simulacro de Starbuck, que se refastelava na
cadeira com a arrogância habitual. A lógica indicava que o simulador fosse
removido do pedestal, mas o líder imperial queria que o simulacro assistisse à
derrota final da raça da qual constituía uma ilusão representativa. Sabia que,
no momento em que o simulador fosse desativado, o simulacro deixaria de
existir, e a sensação de vingança que o líder pudesse experimentar da reação
de Starbuck em face da aniquilação não passaria de uma resposta à
informação recolhida dos bancos de dados e apresentada sob forma humana.
Starbuck dissipar-se-ia, transformado numa coleção de fragmentos de dados
que jamais se voltariam a formar. O líder imperial perguntava-se que
vingança obteria se mostrasse a Starbuck a destruição da raça humana. As
suas sensações de vingança seriam tão ilusórias como o simulacro do tenente.
Não obstante, se este deixasse transparecer alguma reação — horror, cólera,
agonia —, representaria uma característica satisfatória do momento de
vitória, E ele desejava ardentemente assistir ao desmoronar da arrogância de
Starbuck.
***
Adama observava o ataque da força de choque cylon numa série de
écrans sobre a consola de comunicações. Os caças coloniais travavam luta
furiosa com as unidades da vanguarda inimiga. Num écran central, viu uma
vaga de caças cylon disparar os seus lasers num largo arco. Dois caças
coloniais desintegraram-se em bolas de fogo que se apressaram a consumi-
los. Athena, postada ao lado do pai, mastigou uma imprecação e cerrou os
punhos, mas não havia qualquer alvo disponível para expandir a indignação.
Um quarteto de vipers destacou-se do grosso da esquadrilha, como se
pretendesse debandar e, de súbito, alterou o rumo e disparou freneticamente
em direção ao flanco direito das forças atacantes. Linhas de fogo laser
cruzaram-se e interceptaram-se, formando uma breve rede assimétrica de
linhas luminosas finas. Dois caças cylon explodiram, depois um terceiro e a
seguir um quarto. À medida que as unidades inimigas tombavam, Athena
murmurava palavras de encorajamento aos vipers que os haviam abatido. Em
poucos momentos, os écrans pareceram cheios de naves cylon a explodir.
Embora as esquadrilhas da Galactica tivessem repelido a primeira linha
de unidades inimigas, viam-se outras à distância. Sem proferir palavra, Tigh
entregou a Adama um relatório que indicava que a nave-base dos cylons
acabava de entrar no sector e avançava velozmente para a «esquadrilha de
sucata».
Adama ergueu os olhos do papel a tempo de ver uma espécie de lança
luminosa perfurar o espaço à frente da estrela-de-batalha e perder-se ao
longe, antes que alguém a bordo da Galactica tivesse ensejo de reagir.
Seguiu-se-lhe novo feixe luminoso, segundo um ângulo diferente. O terceiro
passou perigosamente perto.
— Estão a varrer todo o corredor com o canhão-laser — murmurou a
Tigh.
— A Esquadrilha Azul regressa — anunciou Athena. — Nove caças
destruídos, sete dos quais pilotados por cadetes, e dezassete demasiado
avariados para tomarem a sair imediatamente. Deve haver uns doze prontos
para o combate. A Esquadrilha Vermelha comunica baixas similares.
— E a respeito das forças cylon? — Perguntou Adama.
— Estão a retirar, mas entraram outras unidades inimigas no quadrante.
A nave-base não se encontra longe.
Adama consultou com o olhar Tigh, o qual concordou com uma
inclinação de cabeça ante a interrogação silenciosa.
— Chegou o momento — proferiu o comandante. Voltando-se para um
dos oficiais, ordenou: — A toda a velocidade! Vamos atravessar a barreira.
Novo feixe luminoso passou a uma distância excessiva para oferecer
perigo, mas circulou pela parte do sector que figurava na rota da Galactica.
— A expedição deve ter abortado — depreendeu Tigh, sentindo os olhos
marejarem-se.
— Ainda lhes restam seis centões — lembrou Adama, depois de
consultar o cronômetro da consola.
— Seis centões — sussurrou Athena, esforçando-se por não pensar em
que Apollo e Starbuck talvez tivessem morrido enregelados no planeta.
***
No entanto, Starbuck, esquivando-se ao fogo dos lasers dos cylons que
defendiam a entrada do complexo subterrâneo, nunca se sentira menos
enregelado. Aquecido pelos materiais em chamas à sua volta no posto de
comando destruído, assolava-o um calor como ainda não conhecera desde
que pousara no planeta gelado.
Os clones de Ravashol, impelidos pelo ódio acumulado durante a longa
opressão, depressa haviam dominado os cylons que guarneciam o posto de
comando. Aproximando-se, envoltos em peles brancas e cinzentas, tinham-se
confundido tão eficazmente com o ambiente que haviam colhido o inimigo de
surpresa. Boomer e Starbuck conservaram-se à distância até que principiou a
luta a sério e imergiram nela, empunhando e disparando as pistolas-laser.
Depois de subjugarem os guardas, Starbuck precipitou-se para o corredor de
acesso ao centro do complexo subterrâneo, seguido de perto por Boomer.
Quando já se afastavam, correndo, uma das Tennas alcançou-os. Um
cylon encontrava-se à entrada de uma passagem transversal e, reagindo com
prontidão, ela alvejou-o. Voaram faúlhas do uniforme blindado, ao mesmo
tempo que o cylon caía pesadamente.
Um grupo de cylons, ao fundo do corredor, começou a fazer fogo sobre
eles, que se lançaram ao chão instantaneamente.
— Estamos cercados! — Exclamou Boomer, voltando-se para trás, onde
se travava luta, e de novo para os atacantes que acabavam de surgir.
— Por aqui — indicou Starbuck, apontando para uma escotilha à sua
esquerda. — Que haverá do outro lado?
— As celas frias onde os cylons conservam os prisioneiros — informou
Tenna.
— Prisioneiros? Perguntei-lhe antes onde os mantinham e disse que não
sabia.
Os olhos dela arregalaram-se de admiração e depois exibiram um clarão
malicioso.
— Não me perguntou nada.
— Já sei, já sei. Foi a outra da série. É capaz de abrir isto?
Tenna agachou-se junto da escotilha e principiou a fazer girar a válvula
com lentidão. Registou-se um guincho surpreendentemente tênue e Starbuck
preparou-se para o que pudesse irromper da abertura, apontando a pistola-
laser.
— Deve haver guardas — advertiu ela.
— Encarrego-me deles. Não devem estar habituados à presença de
intrusos.
Assim que Tenna abriu a escotilha com lentidão, Starbuck introduziu-se
pelo estreito espaço e a seguir fez sinal a Boomer para que o imitasse. Uma
lufada de ar glacial dissipou rapidamente todo o calor que se acumulara
durante a luta.
***
Havia algum tempo que Cree se concentrava em mover a cabeça de um
lado para o outro, único movimento de que era capaz. Parecia ter perdido o
contato com o resto do corpo, desde que os guardas o haviam arrastado para
aquela cela gelada de forma tubular. Ao princípio, tentara manter os dedos
das mãos e dos pés em atividade, mas, quando ficaram totalmente
entorpecidos, resolveu passar a fazer exercício com a cabeça e pescoço.
Agora tudo indicava que também teria de pôr termo a isso.
As pálpebras começavam a fechar-se, quando divisou uma rápida
sugestão de movimento à sua direita e conseguiu reunir as energias que lhe
restavam, a fim de olhar nessa direção. Um homem fazia fogo sobre dois
cylons que permaneciam de guarda diante das três fiadas de celas frias. Devia
tratar-se de um guerreiro colonial, a avaliar pelo equipamento. Starbuck. Era
Starbuck. Mas quem era Starbuck? Não conseguia evocá-lo, embora o nome
se lhe tivesse infiltrado no espírito.
Por fim, um dos cylons caiu, e pouco depois o outro, junto de Starbuck,
agachado. O contato dos seus uniformes metálicos com o chão ecoou na
câmara que continha as celas. Parecia verificar-se mais movimento à direita,
porém Cree descobriu que já não podia voltar o pescoço nessa direção e
perdeu o conhecimento por uns instantes.
De repente, voltou a despertar. Starbuck forçara a porta da cela e
arrastava-o para fora.
— Pode mover-se? — Inquiriu o tenente.
— Está vivo? — Quis saber uma mulher atraente, que se encontrava
atrás dele.
— Penso que sim, a menos que as lágrimas que lhe observo sejam de
geração espontânea.
Cree tentou dizer algo, mas não conseguiu. Starbuck ergueu-o com
prudência, como se fosse um dispendioso objeto de arte, e retirou-o da
câmara. Uma lufada de ar que parecia quente restituiu a sensibilidade aos
dedos do cadete. Tentou informar Starbuck; mas, embora lhe brotassem sons
dos lábios, o tenente declarou que não lograva entender uma única palavra.
Gradualmente, Cree apercebeu-se de que se travava luta à sua volta e
tentou estender a mão para o coldre, mas lembrou-se de que os cylons o
tinham desarmado no momento da captura.
Starbuck deixou-o encostado à parede de um nicho imerso na penumbra,
como uma escultura em equilíbrio precário esquecida na arrecadação de um
museu. Enquanto escutava os sons da luta lá fora, Cree notava o regresso da
sensibilidade a todo o corpo e nessa altura convenceu-se de que o pior já
passara.
Pouco depois Starbuck reapareceu, apresentando o rosto sujo de terra.
— É capaz de andar?
— Posso experimentar.
— Oxalá que sim, porque, se o deixamos aqui, algum cylon que nos
passasse despercebido pode liquidá-lo. Se é que nos escapou algum. Venha
daí, para libertarmos um elevador.
— Um elevador? Não...
— Não se preocupe com pormenores. Preciso da sua presença. Se os
cylons o virem, talvez deponham as armas e se entreguem.
— Depor as armas? Entregarem-se? Tenente...
Todavia, Starbuck segurou o braço do cadete e puxou-o para fora do
nicho.
***
Sons intensos em cima e em baixo assustaram as crianças clones,
obrigando-as a juntar-se em grupos compactos e encostar-se às paredes, atrás
das peles penduradas. A cada ruído, Muffit corria para a entrada fechada e
dava saltos, excitado. Parecia querer ladrar, porém Boxey ordenara-lhe que
não o fizesse e o daggit distinguia-se pela obediência total.
De súbito, a porta abriu-se com lentidão, para dar passagem a uma das
mulheres atraentes, que recomendou às crianças o máximo silêncio, pois
alguns cylons, alertados pela agitação no aquartelamento da guarnição,
esquadrinhavam os corredores à procura de suspeitos. Atemorizadas, as
crianças apressaram-se a assegurar-lhe que evitariam todo e qualquer ruído, e
a mulher voltou a afastar-se.
Boxey agachou-se junto da porta e apurou os ouvidos. De início, não
conseguiu detectar coisa alguma, até que, na sequência de um dos sons
surdos, distinguiu a nasalidade gravemente mecânica que sabia pertencer às
vozes dos cylons. Encontravam se na câmara contígua. Um deles deu uma
pancada acidental na porta. A mulher dizia-lhes algo: não sabia o que se
passava e agradecia que respeitassem as suas instalações privadas. Nova
pancada na porta, e Boxey ouviu um cylon perguntar o que havia do outro
lado. Ato contínuo, o garoto indicou às outras crianças que se aproximassem,
o que fizeram com visível relutância, e explicou-lhes:
— Talvez precisemos de sair daqui. Se a porta se abrir, temos de correr.
Muffit! — O daggit ergueu a cabeça e arrebitou as orelhas. — Vais à frente,
ouviste?
O dróide replicou com um grunhido que constituía a sua reação vocal
programada a uma instrução murmurada. Boxey voltou a agachar-se junto da
porta, perguntando-se se o pai ou Starbuck se orgulhariam da forma como
assumia o comando das operações, como faria um guerreiro colonial.
De repente a porta abriu-se de rompante, saltando dos gonzos, e o garoto
apenas teve tempo de ver a mão enluvada de um cylon pousada no umbral
antes de entrar prontamente em ação. Bradando «Agora, Muffit!», precipitou-
se pela abertura, ao mesmo tempo que gesticulava às crianças clones para que
o seguissem. O daggit saltou para as pernas do cylon que forçara a porta e fê-
lo desequilibrar-se. O uniforme metálico exibiu uma fenda pronunciada no
momento em que contatou com a rocha aguçada sobre a qual caiu. Os outros
cylons, surpreendidos pelo fato de serem atacados por crianças, efetuaram
gestos fúteis para agarrar os pequenos corpos que se esgueiravam, operação
que não produziu resultados, pois as pesadas proteções metálicas
dificultavam-lhes os movimentos.
No corredor, Boxey seguiu para a esquerda, gritando:
— Por aqui!
Sabia que o pai ou Starbuck comandariam as suas tropas num tom
autoritário mais ou menos como aquele. O único problema consistia em que
não fazia a mínima ideia do rumo que devia tomar. Muffit ultrapassou-o e o
garoto considerou aconselhável segui-lo.
O daggit avançou através de vários corredores, detendo-se de vez em
quando, se avistava cylons nas imediações. O mínimo ruído que soasse como
uma patrulha cylon deslocando-se nas proximidades obrigava as crianças a
agacharem-se atrás de rochas e a ocultarem-se em nichos. Entretanto, os
rugidos surdos que abalavam as paredes dos corredores e provocavam uma
chuva de terra e pequenas pedras faziam-se ouvir com regularidade.
Por fim Muffit estacou diante de uma escotilha, cuja entrada fora
entreaberta pelas explosões, infiltrando-se uma corrente gelada pelo pequeno
espaço em redor.
— Faz frio aqui, Muffy — murmurou Boxey.
O dróide soltou um grunhido como única resposta e introduziu o focinho
pela abertura.
— Mas achas que é a nossa melhor oportunidade, hem, Muffy? — Novo
grunhido. — Muito bem. Vamos tentar.
O garoto hesitou por um momento e olhou em volta, para as crianças que
o acompanhavam. Todas se achavam bem protegidas por abafos de peles,
pelo que talvez suportassem satisfatoriamente a temperatura exterior. Mesmo
assim, talvez fizesse muito frio e fosse preferível limitarem-se a seguir pelo
corredor. De repente registaram-se os sons de uma patrulha cylon em
movimento nas proximidades e Boxey decidiu que tinham mesmo de
abandonar o corredor. Assim, abriu a escotilha por completo e indicou aos
companheiros que a atravessassem.
Fazia na verdade frio, no exterior, mas não tanto como antes, quando a
equipa da Galactica pousara no planeta. Boxey não sabia para onde deviam
ir. Avistou um clarão ao longe, do outro lado do campo gelado, e, como
constituía a única luz visível, resolveu encaminhar-se para lá. Instantes
depois, todo o céu se iluminou como um projetor, e ele pôde observar a
construção que ardia. Afinal não era muito distante e podiam alcançá-la sem
dificuldade.
Muffit voltou a colocar-se à frente do grupo, explorando o terreno e
retrocedendo quando se tomava necessário evitar que as crianças se
desviassem. Boxey começava a sentir algum sono provocado pelo cansaço,
no momento em que alcançaram a orla de um campo que não estava coberto
de gelo. As áreas chamuscadas no solo indicaram-lhe que se tratava de um
aeródromo, suposição prontamente confirmada pela presença de diversos
caças alinhados um pouco adiante. Atrás dos aparelhos, do interior do posto
de comando cylon, irrompiam chamas alterosas. Portanto era impossível
pensar em procurar refúgio ali. Virou-se de novo para os caças, que pareciam
desocupados e apresentavam um aspecto acolhedor, e tomou uma decisão
repentina.
— Subam para os aparelhos — indicou às crianças.
Estas apressaram-se a obedecer, distribuindo-se por vários, e
reconheceram que a temperatura lá dentro era muito menos agreste. Boxey,
porém, em vez de se lhes reunir, seguiu para um caça na extremidade da
longa fiada, de onde se aperceberia melhor da eventual aproximação de
cylons, acompanhado por Muffit. Quando entrou, surpreendeu-se com a
escassez de instrumentos, ao contrário do que sucedia no interior de um
viper, com a sua complexa tecnologia, ou os hologramas das naves dos
cylons, que Apollo lhe mostrara uma vez. Não parecia real, assemelhava-se
mais ao fantasma de uma nave. Não obstante, a temperatura era menos
desconfortável que lá fora, fator de importância primordial naquele momento.
Finalmente enroscou-se na sua pele, a um canto, logo imitado por Muffit.
Desse modo poderia observar o que se passava no exterior através de uma
escotilha, e recordava-se, das indicações fornecidas pelo pai, que era ali que o
navegador cylon se costumava sentar.
Era agradável. Confortável. Quente.
Sentiu-se sonolento.
Adormeceu.
CAPÍTULO XXIII
CROFT.
A primeira coisa que me acode ao espírito é lamentar ter garantido a
Apollo que existiam escassas possibilidades de se verificar uma avalancha.
Tratava-se de uma daquelas a que me referira: a neve rolando das alturas
desprendida por um som explosivo intenso. No fundo, porque me preocupo
com a figura que fiz? Que interessará isso a Apollo, quando examinar o meu
corpo esmagado e irreconhecível? O meu corpo? Qual história! Ele não terá
ensejo de o procurar, porque irei pelos ares com o canhão-laser, quando
explodir. Se explodir. A colocação da solenite está agora a cargo de Leda, em
cuja mente só se agita a ideia de se evadir.
Porque me apoquento com Leda e Apollo? Tenho de me ralar é comigo!
Começo a mover os braços como se pretendesse nadar, em busca da
superfície desta massa de neve. Preciso de encontrar uma passagem de ar, a
superfície. Tiro a mochila das costas para me aliviar e poder nadar até ao topo
da neve. Nada de me abandonar ao pânico. Tenho de conservar as mãos e
pernas em movimento. Agarrar seja o que for para adquirir impulso. Abrir
espaço respirável na minha frente com as mãos e prosseguir para cima,
respirando a intervalos regulares.
Não consigo. Devo estar enterrado a grande profundidade. Não posso.
Tenho de insistir. Insistir até morrer. É muito simples. A morte não apresenta
dificuldades, quando uma pessoa se habitua a ela. Necessito de manter os
braços em movimento, estendendo-os para cima, em busca da vida e
segurando no que aparecer. As mãos irrompem na superfície. Obrigo os
braços a desenvolver esforços ainda mais denodados. A cabeça parece em
apuros para lá chegar.
De súbito descubro que emergi à superfície há algum tempo, sem me dar
conta, e encho os pulmões de ar.
Impera silêncio absoluto à minha volta, até que o céu se volta a iluminar
com novo disparo do canhão-laser.
O clarão permite-me observar a situação. Não caí longe. Tive sorte, pois
devia encontrar-me no fundo da encosta.
— Croft.
É a voz de Apollo. Onde estará? O clarão de mais um disparo deixa-me
descortiná-lo a certa distância, num ponto mais elevado, descendo pela corda
da saliência donde caí.
Movendo as pernas com lentidão e firmeza, faço sair da neve todo o
corpo. Verifico então que Apollo se desloca lentamente na minha direção,
explorando a superfície à sua frente com o cabo da machadinha. Agacho-me
o suficiente para fincar os pés na superfície e conseguir um pouco de atrito,
após o que me movo com prudência em direção a ele. Por fim, estende-me a
mão enluvada e, imitando-o, quase consigo tocar-lhe. Mais um passo e sinto
o pulso rodeado pelos seus dedos vigorosos. Com um puxão brusco, arrasta-
me para cima e consigo agarrar-me à corda. Involuntariamente ergo os olhos
até à saliência e descubro que Leda também participa na operação de
salvamento.
— Larga um pouco mais de corda — indico-lhe.
— Está bem? — Pergunta Apollo, enquanto ela obedece.
— Fino. Não compreendo porque me veio salvar. Vai atrasar a missão.
— Precisamos de si para colocar os explosivos — replica, com um
sorriso. — Portanto, não o podemos perder.
— Desculpe, não era minha intenção dirigir-lhe uma graça parva. Vai
muito bem, Apollo. Raciocinou com notável rapidez, quando cortou a corda.
De contrário, arrastava-os a todos.
— Limitei-me a seguir as suas instruções.
— De qualquer modo, procedeu bem. Talvez devesse deixar-me
sepultado na neve, mas obrigado.
— Mostre a gratidão destruindo aquela arma.
Por um momento sinto-me divertido com a ambiguidade moral da minha
posição. Garanti a Wolfe e Leda que os acompanharei na fuga, embora
intimamente não estivesse seguro disso. Agora, asseguro a Apollo que
destruirei o malfadado canhão, apesar de ainda me sentir inclinado a bater
asas com eles. Quando atingirmos o topo do Hekla, se é que lá chegaremos,
talvez me surpreenda com a minha decisão. Finalmente dou um puxão na
corda e previno Leda:
— Vamos subir!
— Entendido! — Responde.
Eu e Apollo trepamos à saliência com lentidão.
Ser 5-9 e Tenna parecem contentes de me ver vivo. Wolfe não se mostra
tão entusiasmado. Quanto a Leda, tem os olhos tão inexpressivos como
costumavam ser os de Thane. Falaria verdade quando deixou transparecer
que poderíamos voltar aos bons tempos ou não passa de um estratagema para
aliciar a minha colaboração? Estratagema ou não, sempre cumpriu as suas
promessas. É-me indiferente que o faça de livre vontade ou como parte de um
acordo. Tudo resultaria mais fácil se a sua atitude não me interessasse, mas,
infelizmente, tal não acontece.
O resto da ascensão não apresenta problemas de monta. A avalancha
parece ter facilitado as coisas, pois há centenas de pequenas plataformas e
pontos de apoio que nos permitem atingir o nível superior do Hekla sem
complicações especiais. Entretanto, o canhão dispara intermitentemente e o
seu clarão expõe o caminho à nossa frente. Até certo ponto, os disparos da
peça ajudam-nos a recuperar o tempo que perdemos, facilitando a sua
destruição.
Na parte final da escalada, como que atraídos por ela, Wolfe e Leda
colocam-se à frente do grupo que se encaminha para lá. De repente, rodam
nos calcanhares, os seus contornos mal definidos na sombra, e transcorre um
momento antes que me aperceba de que ele empunha a pistola-laser, como se
a apontasse ao resto do grupo.
— Se fugimos, tem de ser agora — diz a Leda.
— Acompanho-te.
Com estas palavras, ela coloca-se-lhe ao lado e olha-me com
intensidade, na expectativa da minha reação. Detenho-me ainda no declive,
mas Apollo prossegue em frente, como se não soubesse que há um laser
apontado à sua cabeça. Por fim, alcança o nível em que se situa o canhão e
profere:
— Não pode ir para parte alguma, Wolfe.
— Se olhasse em volta com atenção, via o aparelho cylon pousado acolá.
— Wolfe estende o braço na direção de uma nave ancorada ao solo por meio
de raios eletrónicos. — Vamos abandonar esta bola de gelo, capitão, e...
— Não há tempo — interrompe Apollo, apontando para o cronômetro.
— A Galactica atravessa o quadrante neste momento. Temos de silenciar o
canhão.
— Pensa que a sorte da Galactica me preocupa? — replica Wolfe, com
um sorriso sinistro.
Apollo avança mais um passo para ele, enquanto eu continuo a trepar,
sem desviar os olhos de Wolfe.
— A Galactica é a única nave que os pode proteger. A todos — afirma o
capitão, fitando-os com uma expressão de ansiedade. — Sem nós, estão
perdidos.
Leda sorri e, apesar da penumbra, noto uma dose pronunciada de malícia
nas suas faces.
— Parece não se dar conta de quem está realmente perdido. O senhor. A
sua missão. A sua estrela-de-batalha.
— Os cylons não descansam enquanto não nos liquidarem — assevera
Apollo. — Incluindo-os a vocês.
— Não se preocupe connosco — torna Wolfe. — Havemos de nos safar.
Já passámos por situações piores.
— Para onde pretendem ir?
— Não é coisa que o deva apoquentar — declara em tom quase
inaudível.
Atinjo finalmente o nível superior e fico junto de Leda, do outro lado de
Wolfe e Apollo.
— O Bando do Gelo está de novo reunido — observa ela. — Ou, pelo
menos, o que resta dele. Alegra-me que fiques connosco, Croft. Ansiava por
que voltasses para junto de mim.
Quando a oiço dizer isto, sinto-me tão tentado a permanecer sempre a
seu lado que quase arranco a pistola da mão de Wolfe e abato Apollo, o qual
se mostra claramente chocado por me ver pactuar com os meus antigos
cúmplices.
— Devia esperar isto de si, Croft. — Virando-se para Ser 5-9 e Tenna,
que ainda se encontram na encosta, mas continuam a subir com lentidão,
indica-lhes: — Não se aproximem.
— Liquido-o, Croft? — pergunta Wolfe, apontando a pistola ao peito de
Apollo.
Sinto-me surpreendido, pois há muito tempo que ele não me trata como
seu chefe, e quase fico satisfeito com isso.
— Não — respondo. — Vamos dar-lhes uma possibilidade de se
salvarem. Embarcaremos na nave cylon e...
— Uma possibilidade de se salvarem? — repete Leda. — O teu mal
continua sendo o mesmo: humanitário até à última gota. Está bem. Vamos...
O canhão-pulsar troa sobre as nossas cabeças e o som é tão poderoso e
impressionante que só ele parece suficiente para matar. A vibração faz com
que Wolfe se desequilibre por uns instantes e apoie a mão à muralha de
proteção da peça. É a minha oportunidade. Precipito-me para a frente, coloco
um pé entre as suas pernas nodosas e obrigo-o a cair. Involuntariamente,
dispara a pistola e o feixe projeta-se para cima, parecendo tênue em
comparação com o clarão proveniente da peça. Encosto-lhe o braço à muralha
com um movimento brusco e a arma cai no chão, prontamente recolhida por
Apollo. Ciente de que estou em desvantagem em luta corpo a corpo com
Wolfe, afasto-me dele num salto e coloco-me ao lado do capitão.
— Está senhor da situação — indico-lhe.
— Cheguei a acreditar nas suas palavras de há pouco.
— Também eu. Por um momento.
— Apesar de tudo isto, ainda não sei se devo ou não confiar em si —
declara, sorrindo.
— No seu lugar, eu não confiava.
Wolfe levanta-se lentamente, lançando-me um olhar turvo. O ódio que
lhe inspiro parece ter duplicado, se é possível. Por outro lado, custar-me-ia
ver-me forçado a calcular o grau que a animosidade de Leda atingiu.
— Era a nossa única oportunidade, Croft! — Profere, rangendo os
dentes. — Tínhamos de a aproveitar e tu, tu...
— Não sei como fazer-te compreender. Podes acusar-me de humanitário,
se quiseres, embora duvide que mereça o epíteto. Mas lembra-te que
participamos numa missão. Aceitei-a e, se me acompanhaste, comprometeste-
te igualmente. Pensa no seguinte: trata-se de salvar o que resta da raça
humana, de uma civilização que prosperou ao longo de milênios nos Doze
Mundos. Não podemos deixar os sobreviventes morrer por causa dos nossos
objetivos egoístas. Portanto, temos de levar a missão a cabo e vocês vão
colaborar. Entendido?
— Um discurso muito comovente, mas prefiro ficar aqui quieta a assistir
— riposta Leda. — Não podes obrigar-me a...
— Muito bem. A nossa equipa desmembrou-se, e não ponho de parte a
hipótese de a culpa me pertencer. Mas falemos de acordos. Ambos sabem o
que isso é. Depois de colocarmos os explosivos e eliminarmos os cylons,
poderão embarcar na nave e seguir para onde entenderem.
— Croft, eu não... — Começa Apollo.
— Vamos fazer assim. O canhão vai pelos ares e Wolfe e Leda partem
na nave cylon. É a única maneira de todos obterem o que pretendem. Aqui, o
seu código de guerra não tem validade, capitão.
— E tu? — Quer saber Leda. — Para onde vais? Que obténs?
Apetece-me dizer-lhe que só a quero obter a ela, mas reconheço que não
lucrava nada com isso. É impossível convencê-la a entregar-se,
independentemente das condições propostas. Necessita de ser livre.
— Vou com Apollo, Ser 5-9 e Tenna. Seguiremos no elevador e,
enquanto descemos, vocês ficam com muito tempo para partir na nave com
destino aonde lhes aprouver.
Desvio os olhos da sua expressão hostil e contemplo o panorama a
nossos pés. Não descortino nada de excepcional que justifique a escalada da
montanha. Em condições normais, com tempo suficiente para planear,
proporciona uma ascensão fácil que não justifica o esforço. O planeta gelado
tem um aspecto hediondo. Do ponto em que nos encontramos, não se avista
um único pormenor atraente, daquela posição elevada, junto da arma
mortífera que projetamos fazer voar em pedaços dentro de momentos.
— Vem connosco — insiste Leda, numa inflexão que nada oferece além
da viagem.
Quase repudio as razões invocadas e respondo afirmativamente, mas
contenho-me a tempo e replico:
— Não contem comigo.
— Mas porquê, Croft?
— Não posso dizer. Qualquer coisa relacionada com a responsabilidade,
com o desejo de destruir esta arma no interesse da salvação da...
— Não blasfemes. Queres armar em herói, emular esta imagem arcaica
de guerreiro viril. — Aponta para Apollo, que não denuncia a mínima reação.
— Está bem. Aceitamos a proposta, mas dispensamos as tuas tiradas
sentimentais. Podes ficar com a salvação da Humanidade e utilizá-la para
fertilizar as tuas colheitas. Concordamos com o que sugeres. Não é assim,
Wolfe? — Este inclina a cabeça, após breve hesitação. — Vamos a isso.
— O tempo da Galactica aproxima-se do fim — anuncia Apollo.
Como que para confirmar as suas palavras, o canhão-laser vomita nova
descarga, porventura a que reduzirá a Galactica a poeira espacial.
— Reunamos os explosivos — indico.
Apollo — que, nos últimos momentos, tem suportado várias mudanças
de atitude de minha parte — hesita e acaba por concordar.
— Muito bem — articula. — As operações ficam a seu cargo. Conduza-
nos à estação pulsar.
Agindo em silêncio, reunimos o material, pegando cada um na carga
estipulada, enquanto Leda e eu dividimos a que competia a Thane. Thane...
Quase me esquecera dele. Que diferença se registaria na causa de Wolfe e
Leda se estivesse presente? Até que ponto influiria na minha decisão? No
fundo, sempre senti um pouco de medo dele. De uma coisa não subsiste a
mínima dúvida. Thane não escutaria a voz da razão e incutiria ao Bando do
Gelo o impulso de que necessitava para levar a fuga a bom termo. Talvez eu
também os acompanhasse. Enfim, de nada serve preocupar-me agora com
isso, sobretudo tendo em vista a tarefa que nos aguarda.
Contornando a fortificação, chegamos à entrada do tubo de acesso, que
dá para um túnel obscuro.
— Este tubo comunica com o sistema de arrefecimento — explico aos
outros. — O laser encontra-se lá dentro. Temos de colocar a solenite nos
pontos mais convenientes. A quantidade de que dispomos ficou um pouco
reduzida por culpa minha. Larguei alguma na queda provocada pela
avalancha. Tive de me desfazer da mochila, por uma questão de prioridades.
— És propenso a erros desses — comenta Leda, com o primeiro sorriso
que lhe observo desde longa data.
— Segundo o geograma de Ravashol, o elemento-chave é a bomba de
permuta de energia — esclarece Apollo. — Se conseguirmos avariá-la, o
canhão receberá uma carga excessiva e explodirá.
— É uma boa ideia — aprovo. — O capitão, Wolfe e os clones ocupam-
se dos cylons, enquanto eu e Leda estendemos o fio e instalamos o regulador
da explosão. Vamos dar uma olhadela.
Rastejamos para dentro do tubo, que é baixo e nos obriga a caminhar
agachados. Sinto-me como um inseto avançando em direção a uma presa. De
repente, as paredes do túnel começam a estremecer, no momento em que o
canhão-laser se desloca na sua base para alterar a pontaria.
— Segurem-se bem! — Adverte Apollo. — Eles vão utilizar este túnel.
Quando o ar principia a deslocar-se velozmente à nossa volta, julgo-me
lá fora, fustigado por uma tempestade de neve. Agarrados às paredes o
melhor possível, conseguimos prosseguir, embora com extrema dificuldade.
Uma rajada de vapor passa por nós e contenho a respiração, pois desconheço
a sua composição. Quando o laser vomita o seu jato seguinte, o som parece
reverberar no túnel durante uma eternidade, até que se interrompe antes de
ensurdecermos para sempre.
À nossa frente há uma espécie de grelha que deve ser utilizada como
entrada para fins de manutenção. Rastejamos até lá e Apollo abre-a. Do outro
lado avistamos a imensidão do interior da estação laser. A peça, um cilindro
cinzento de dimensões gigantescas, domina o centro da sala. Alargando-se a
partir da sua base, há um painel central de comando no qual trabalham vários
cylons. Pilares possantes suportam cúpulas em que parecem situar-se as
fontes de energia. Em obediência à forma de iluminação cylon, luzes ao
longo das elevadas muralhas que se assemelham às de um castelo emitem
clarões de intensidades irregulares. Dá a impressão de um ambiente em que
estão alojados pesadelos.
Um grupo de oficiais concentra-se diante do que lembra uma consola,
orientando a direção da peça. Atrás deles encontra-se outro oficial, sem
dúvida de patente diferente, pois apresenta um número mais elevado de
faixas negras no uniforme metálico. Se a memória não me atraiçoa, trata-se
de um primeiro-centurião. Por conseguinte, é o principal responsável pelas
operações. Apollo inclina-se para mim e murmura:
— O posto de tiro está no centro.
— Exato.
— Controla a bomba de energia.
— Então, é o nosso alvo — intervém Leda, com uma expressão rígida.
— Precisamente — confirma Apollo.
— Se o entendi bem, a destruição daquela parte provoca uma sobrecarga
em todo o sistema — observo. — Não sei se pensou nisso, mas também vai
fazer voar o topo da montanha. Antes de eu ajustar o dispositivo para a
explosão, aconselho-o a libertar de obstáculos o elevador. Não quero ter de
esperar que chegue do primeiro piso.
O capitão fecha a grelha e consulta o cronômetro, cujo mostrador emite
um clarão, à medida que as suas coordenadas se alteram.
— Três centões — informa em surdina. — Oxalá Starbuck e Boomer já
se encontrem no elevador, de contrário teremos de fugir no caça.
— Escute, Apollo — recordo-lhe. — Prometi essa nave a Wolfe e...
— Tratando-se da nossa sobrevivência, as suas promessas ficam sem
efeito. Mas não se preocupe. Entregarei a nave aos seus amigos, assim que
nos afastarmos da montanha... Que foi?
— Tenho-me concentrado na confiança que lhe posso inspirar e descurei
o inverso. Posso confiar em si?
— Não.
— Acordei demasiado tarde. Dava um bom membro do Bando do Gelo,
Apollo.
— Obrigado... Se é coisa que se agradeça.
O primeiro-centurião grita uma ordem qualquer na voz cylon típica que
soa como uma série de descargas elétricas, e os outros oficiais atuam em
alguns dispositivos do equipamento. Ato contínuo regista-se um acréscimo de
energia na atmosfera.
— Estão a aumentar o grau de intensidade dos disparos e a reduzir o
tempo que os separa — murmura Apollo. — Devem saber que a Galactica
entrou no quadrante. Talvez até conheçam as suas coordenadas.
— Quando quiser, estamos preparados, capitão.
Abre a grelha com lentidão e, fazendo sinal a Wolfe, Ser 5-9 e Tenna
para que o sigam, desliza pela abertura. Wolfe afasta o clone para o lado.
Uma vez iniciado um combate, anseia por imergir na refrega,
independentemente do lado em que julgue encontrar-se. Ser 5-9 e Tenna
transpõem a abertura atrás de Wolfe e, por um momento, eu e Leda, ficamos
sós.
— Eu ia contigo, mas...
— As tuas explicações não me interessam.
Com estas breves palavras ficam definidas as nossas atuais relações. Foi
para este ponto que os anos de amor e trabalho em conjunto se
encaminharam.
Com uma série de silvos abruptos, principiam os disparos na sala em que
se situa a peça. Atravesso a abertura de um salto, com Leda no meu encalço.
Pelo canto do olho, vejo Apollo alvejar os cylons, protegido por um dos
pilares, e abater dois. Embora não os descortine, adivinho onde os outros se
encontram pelo fogo dos lasers proveniente dos outros três pilares. Os
artilheiros cylons e guerreiros que os protegem tentam recompor-se da
confusão inicial. Mantendo-nos junto da parede, Leda e eu parecemos ter-
lhes passado despercebidos. Um dispositivo de comunicação perto de nós
explode subitamente, atingido por um disparo cylon transviado, e atiramo-nos
ao chão. Ela rasteja a meu lado, em direção à base da bomba de permuta de
energia e, com eficiência, sem um olhar à luta que se trava à sua volta,
começa a estender o fio. Movo-me para o outro lado da bomba e principio a
imitá-la, mas sinto um movimento à minha direita. Ergo os olhos e avisto um
cylon que avança para mim, de laser apontada. Puxo da pistola com prontidão
e abato-o. À semelhança da maioria dos da sua espécie, cai com um som
abafado.
Entretanto, os outros parecem não se dar conta da minha presença. O fio
de solenite cola-se à superfície metálica numa sequência absolutamente
uniforme e toma-se impossível de cortar pelos meios normais, mas não sei de
que equipamento dispõem estas criaturas. Se conseguirem desligar os fios ou
uma quantidade suficiente deles, a peça não explodirá. Por outro lado, se os
mantivermos à distância até ao ajustamento do detonador, existem fortes
possibilidades de não poderem intervir a tempo.
Volto a concentrar-me no trabalho, experimentando uma ponta de
satisfação especial com a maneira profissional como coloco o fio. Até agora,
tudo se desenrola o melhor possível. Pelo menos pela parte que nos toca, pois
não tenho oportunidade de observar o andamento do ataque de Apollo. Há
entalhes e saliências suficientes onde enrolar o arame, e bastantes áreas
côncavas onde colocar as cargas explosivas. O arame adere facilmente às
superfícies lisas da bomba.
Arrastando-me sob a bomba, através de um túnel abobadado que conduz
a um alimentador de energia, começo a instalar o detonador. Leda introduz-se
no túnel pelo lado oposto e, em movimentos metódicos, estende o fio para o
detonador.
— Como vão as coisas do teu lado? — pergunto.
— Bem. Apollo e Wolfe abatem as criaturas sem dificuldade aparente.
Dois cylons pareceram aperceber-se das nossas intenções, mas foram
liquidados antes de se poderem aproximar de mim.
— Pronto. Espreita para veres se Apollo tem o elevador desimpedido.
Ela rasteja para a saída e não tarda a reaparecer.
— Está a mexer nos comandos ao lado da porta, mas ainda não a abriu.
— Então temos de aguardar. — Observo-lhe a expressão tensa e
acrescento: — Tu e Wolfe estarão no ar dentro de alguns microns. Talvez
voltemos a encontrar-nos, um dia, num bar de qualquer planeta ou...
— Vou espreitar outra vez.
Quando regressa, informa que o caminho para o elevador está
desimpedido. Inclino a cabeça e ativo o interruptor que comanda
irreversivelmente o detonador. Agora, os cylons podem esfalfar-se a tentar
arrancar a solenite, pois nada conseguirão fazer para evitar a explosão do
canhão-laser. Este irá pelos ares.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Eu e Ila gostávamos de ir ao teatro pelo menos uma ou duas vezes em
cada um dos meus períodos de licença. Ela reconhecia a minha necessidade
de evasão espiritual e, de um modo geral, escolhia comédias ou espetáculos
musicais. No entanto, numa ou noutra ocasião, para a comprazer, íamos ver
uma tragédia.
As tragédias capricanas continham uma variação significativa das
representadas nos outros onze mundos, com a característica original de
desenlaces alternativos, destinados a proporcionar uma espécie de válvula de
escape após a tensão emocional resultante dos acontecimentos tristes ou
assustadores da peça. Alguns espectadores não ficavam para assistir ao final,
alegando que a reação apropriada ao destino do herói ou heroína consistia em
nos desoprimirmos participando emocionalmente na tragédia. Todavia, eu
sempre apreciara os desenlaces alternativos, por bizarros que alguns fossem.
Em regra, mostravam o que as vidas do herói ou heroína seriam se tivessem
superado ou sobrevivido aos fatos dramáticos que os haviam impelido para a
calamidade. Por vezes, as suas existências eram expostas com serenidade,
enquanto as suas experiências lhes tinham incutido um desenvolvimento
emocional e intelectual como seres humanos. Em virtude daquilo que se me
afigurava um otimismo forçado nesse desenlace, eu preferia a outra
alternativa tradicional, na qual o autor revelava, de um modo geral, que as
complicações da vida (e, por implicação, o drama) continuavam a afetar ou
flagelar os protagonistas, embora não de uma forma tão nobremente trágica
como o drama principal. Agradava-me a ideia de que todos devíamos esperar
prosseguir o drama das nossas próprias vidas para além de pontos de crise
importantes e necessitávamos de renovar as nossas esperanças, receios e
expectativas misteriosas numa base regular.
Ila afirmava que essa reação se adaptava ao meu temperamento,
porquanto, após os aprazíveis intervalos da licença, tinha de regressar sempre
à minha tragédia: a guerra com os Cylons. Ela preferia as significativas crises
isoladas, o teste de nobreza ou mesmo apenas as dimensões do carácter às
extensões incertas do desenlace alternativo. No fundo, talvez tivesse razão.
De qualquer modo, já não vive, encontra-se afastada do sofrimento, enquanto
eu tenho de enfrentar uma crise importante após outra. Por vezes pondero
desenlaces alternativos, em que os Cylons renunciam aos seus intentos ou
acabamos por os destruir ou ainda intervém uma terceira força misteriosa que
decide o resultado do confronto. Na realidade, porém, preferia nem ter de
considerar a tragédia. Precisava agora de ti, Ila, faz-me falta esse desenlace
alternativo.
CAPÍTULO XXIV
Quando o informaram de que o contato com o posto de comando nos
contrafortes do monte Hekla fora interrompido, Vulpa ficou intrigado, mas
não apreensivo. As tempestades abruptas na montanha interferiam
frequentemente nas comunicações entre o aquartelamento e a Estação do
Topo. Não obstante, a interferência era inoportuna. Pouco antes da
interrupção, Vulpa recebera a informação de que objetos semelhantes a uma
estrela-de-batalha e numerosas naves de menor envergadura tinham
penetrado no quadrante. Fora estabelecido um cálculo preliminar da sua
posição provável, e o primeiro-centurião determinara que a peça passasse a
disparar em direção ao ponto obtido. Por conseguinte, existiam fortes
possibilidades de a Galactica já se achar destruída. A seguir, ordenou ao
oficial das comunicações que continuasse a tentar contatar com o quartel-
general e indicou ao chefe dos artilheiros que mandasse aumentar a potência
e a velocidade de fogo da peça.
Enquanto escutava o troar confortante do canhão-pulsar, Vulpa
considerava o seu regresso triunfal à nave-base do líder imperial. Teria de ser
condecorado com mais uma cinta negra no ombro ou porventura a faixa
prestigiosa...
Quase lhe passou despercebido o início do ataque dos humanos.
Registou-se uma breve sugestão de movimento junto de um dos tubos de
admissão, e Vulpa viu um humano saltar de trás de um pilar de energia,
disparando a pistola-laser e abatendo um artilheiro cylon. Outro humano
irrompeu do tubo de admissão e utilizou igualmente a sua arma. Um trio de
oficiais, que constituíam o grupo de guarda-costas do primeiro-centurião,
acudiu à volta deste e quase lhe bloqueou o campo visual. Mais dois vultos
surgiram da abertura, enquanto Vulpa parecia não acreditar no que observava.
A menos que se tratasse de humanos disfarçados, eram clones. E auxiliavam
os atacantes humanos!
***
A sala não tardou a encher-se de clarões e vapor provenientes das
pistolas-laser, que dificultavam a visibilidade a Vulpa. De súbito, à sua
esquerda, um dos oficiais tombou, com o uniforme em chamas. Por um
momento, sentiu-se fascinado pelo cadáver, claramente sem vida, mas com a
luz vermelha do capacete ainda em atividade, perfurando as camadas de
fumo. Os humanos, sempre mais ágeis que os cylons, pareciam brotar de
todos os lados, ocupando novas posições atrás dos pilares. Os artilheiros e
guerreiros tombavam numa sequência quase tão rápida como a dos disparos
do canhão, e a brigada de reserva da guarnição teve de acudir sem demora.
Outro guarda-costas de Vulpa caiu pesadamente, enquanto o único
sobrevivente do trio impelia o seu comandante para a parede e principiava a
disparar sobre tudo o que se movia na sua direção, como se lhe fosse
indiferente se se tratava de um cylon ou um humano, desde que não
comprometesse a segurança de Vulpa. No entanto, um feixe laser acabou por
atingir o guerreiro ao nível do pescoço e brotaram faíscas dos fios de ligação
com o capacete. O primeiro-centurião, encostado à parede, começou a
deslizar ao longo dela, em direção ao elevador.
O fumo atenuou-se momentaneamente e ele verificou que três humanos
se concentravam em tomo do elevador, de onde repeliam os atacantes com
eficiência. Vulpa puxou da pistola e tentou alvejar um jovem corpulento que
parecia o chefe, mas um guerreiro cylon interpôs-se e viu-se forçado a bater
em retirada. O momento não era oportuno para se envolver na luta. Tinha de
alcançar a sua nave, alertar o resto da guarnição no posto de comando e
ordenar-lhe que liquidasse aquele estranho quarteto de atacantes humanos.
No fundo, que fariam ali? Porque queriam destruir o reduzido número de
cylons junto da peça? A peça! Porventura pretenderiam neutralizá-la? Não
poderiam interromper-lhe a atividade, enquanto o sistema automático
estivesse ligado. Só Vulpa ou o chefe dos artilheiros estavam em condições
de o fazer. De resto o canhão não podia ser destruído, pois Ravashol afirmara
categoricamente que o material de que se compunha era indestrutível. De
qualquer modo, o mecanismo revestia-se de uma complexidade excessiva
para que um curioso o conseguisse avariar. O cientista providenciara para que
apenas as mãos enluvadas dos cylons pudessem atuar na placa que desligava
o sistema de tiro automático da peça. Sim, mas ele também era responsável
pelos clones, os quais se achavam envolvidos naquele ataque de surpresa. Se
Ravashol mentira acerca das criaturas que criara, também podia ter faltado à
verdade quanto ao canhão.
Vulpa sentiu um impulso para o proteger, porém a luta que se travava
atrás dele era demasiado acesa. Arriscaria muito — as suas esquadrilhas de
guerreiros, a segurança da fortificação, ele próprio e a sua ambição — só para
confirmar uma suspeita. O objetivo importante e fundamental consistia em
instalar-se a bordo da sua nave e reunir as tropas para regressar e esmagar os
humanos.
Olhou para trás com uma expressão de perplexidade. Como se explicava
que apenas quatro atacantes conseguissem provocar tantos estragos? O chão
parecia totalmente sulcado de corpos de cylons, dos quais se desprendiam
faíscas e fumo, enquanto as suas luzes vermelhas se atenuavam e extinguiam.
Mas o momento não era apropriado para chorar as vítimas. As cerimônias
fúnebres realizar-se-iam mais tarde. Vulpa continuou a afastar-se velozmente
pelo tubo que conduzia à sua nave.
De repente avistou um humano atarracado que lhe bloqueava a
passagem, apontando uma pistola-laser. O primeiro-centurião atirou-se
freneticamente contra a parede, no momento em que o feixe letal partiu do
cano da arma.
***
As lanças luminosas avançavam agora na direção da frota a intervalos
mais breves. Uma nave de abastecimento fora atingida e, aparentemente,
tragada pelo poderoso feixe. Graças a rápidas alterações de rumo, a Galactica
conseguira furtar-se a ser atingida por duas vezes.
Athena observava a expressão grave do pai, que se conservava no seu
posto de comando, rodeando com os dedos o corrimão na sua frente, e
parecia fascinado pelos disparos quase incessantes do canhão-laser.
— Não podemos fazer nada para neutralizar a força desses impulsos? —
Perguntou Adama a Tigh.
Este abanou a cabeça e explicou:
— Analisámo-los de todos os ângulos, em busca de uma maneira de os
prever, mas não dispomos de dados suficientes. Se a expedição tivesse
conseguido...
— Não desesperemos, por enquanto. É possível que continue em
atividade.
Tigh parecia na iminência de protestar, mas acabou por encolher os
ombros e regressar ao seu posto de observação. Athena sabia que o coronel,
conhecedor da eficiência com que Apollo atuava, não esperava que este
prolongasse a missão até ao derradeiro micron. No fundo, ela confiava em
que Tigh estivesse equivocado. Contudo, não conseguia evitar um
pressentimento desagradável. Se eles pudessem destruir o canhão, já o
deviam ter feito.
As suas reflexões foram interrompidas abruptamente por mais uma lança
luminosa, tão próxima da Galactica que Athena se convenceu de que, se
pudesse ir lá fora examinar a superstrutura da nave, descobriria uma área
chamuscada.
***
O líder imperial sentia-se satisfeito com o andamento do ataque. A
armadilha estava devidamente preparada. A Galactica fora forçada a penetrar
no quadrante onde os disparos do canhão-laser resultariam mais eficientes.
Ordenara que as coordenadas da estrela-de-batalha fossem transmitidas com
regularidade a Vulpa e em seguida voltara a concentrar-se na perseguição às
naves humanas.
Pouco após a transmissão das coordenadas, a frota cylon perdeu o
contato com a guarnição estacionada no planeta Tairac. O fato representava
um aborrecimento, mas de reduzida envergadura. A Galactica encontrava-se
definitivamente apanhada na ratoeira entre a força de perseguição e o canhão-
laser. Não tinha a mínima possibilidade de salvação.
Porque seria que o simulacro de Starbuck, que era informado de todas as
fases da operação e devia estar ao corrente da aniquilação iminente, sorria
com uma expressão enigmática?
CAPÍTULO XXV
CROFT.
Não esperava o que vejo quando saio do túnel sob a peça. Há cylons
mortos por todos os lados. Apollo gesticula na direção do elevador e começo
a correr para lá. Leda separa-se de mim e segue para o túnel da nave cylon.
Esforço-me por não olhar para ela. De repente, para e grita:
— Croft!
À entrada do túnel, Wolfe luta com um cylon. É o oficial cheio de faixas
negras. Noto que uma parte do braço direito do uniforme deita fumo e deduzo
que Wolfe o alvejou, mas não acertou onde pretendia. Agora, o possante
cylon parece prestes a dominá-lo. Wolfe continua com a pistola em seu
poder, mas aponta-a futilmente para o teto. Dispara uma vez e oiço o estalido
de uma fonte de luz sobre a minha cabeça. O cylon levanta-o do chão como
um boneco e admiro-me do que observo, pois nunca supus tão fortes aquelas
criaturas. Leda tenta atacá-lo, porém ele pressente-a e desvia-se. Começo a
correr na sua direção e, ao mesmo tempo, empunho a pistola. Todavia o
cylon protege-se com o corpo de Wolfe e sou forçado a rever a minha tática.
Leda acha-se em melhor situação para o alvejar, mas o cylon muda
ligeiramente de posição e ela não consegue igualmente disparar sem o perigo
de atingir Wolfe.
A seguir, a criatura principia a retroceder para um túnel, sem nos perder
de vista nem largar Wolfe, que lhe serve de escudo. Na realidade, aperta-o tão
intensamente que ouço estalar ossos. Depois, puxa-lhe a cabeça para trás e
fratura a coluna vertebral. Por último atira o que resta de Wolfe na direção de
Leda, como se o corpo não passasse de uma trouxa de roupa suja. Por um
momento, os reflexos atraiçoam-me, pois não consigo compreender o que o
cylon fez, sobretudo porque nunca tive possibilidade de vencer Wolfe em luta
corpo a corpo, com uma única exceção, como já referi. Ora, o patife do cylon
liquidou-o num abrir e fechar de olhos. Finalmente, corro no encalço dele,
disparando às cegas. À minha frente, no túnel, nem sequer olha para trás.
Acaba por entrar para a nave e o túnel fecha-se antes que eu possa alvejar o
depósito de combustível. Sinto o solo deslizar sob os meus pés, enquanto o
túnel se destaca da nave. Recuo precipitadamente e atinjo a sala no momento
exato, de contrário resvalaria ao longo do túnel em direção à montanha, sem
nada para me entreter além de aguardar que o tempo passasse e a explosão
acabasse por me fazer voar.
Leda ajoelha junto de Wolfe, tentando encontrar uma poção miraculosa
na sua maleta para lhe restituir a vida. Pego-lhe no braço e tento afastá-la,
mas resiste e não a consigo mover.
— Está morto, Leda.
—.Eu sei.
— Vamos.
Levanta-se finalmente, contempla o cadáver por um momento, com uma
expressão grave e abana a cabeça.
— Não passava de um assassino — insisto.
— Sim, e era um verme traiçoeiro, pelo que não compreendo a minha
amargura. Tens razão. Vamos.
Corremos para o elevador. Apollo impele-nos para a cabina e segue-nos,
juntamente com Ser 5-9, disparando furiosamente sobre os poucos cylons que
restam. Tenna, utilizando igualmente a pistola, acaba por se nos reunir, e a
porta fecha-se atrás dela. Toda a tecnologia do elevador é de manufatura
cylon, mas parece que Apollo está familiarizado com ela, porque prime as
teclas apropriadas e começamos a descer.
— Dispomos de muito tempo?— pergunto-lhe.
— Não sei, ao certo. Perdemos algum, com esta escaramuça.
— A explosão não cortará o cabo, se não alcançarmos o nível inferior
antes?
— É possível. Verificá-lo-emos no momento oportuno.
Devo descobrir-me perante a eficiência dos cylons no tocante à
construção de elevadores. Este desliza para baixo tão suavemente que se
torna impossível determinar a velocidade. De qualquer modo, acalento a
veemente esperança de que seja elevada. Leda encostou-se a um canto da
cabina, de olhar inexpressivo e lábios comprimidos. Tenna murmura lhe algo,
sem dúvida numa tentativa para a animar, mas ela mostra-se indiferente e
repele-a majestosamente. Em seguida, descalça as luvas e passa a mão pela
fronte para limpar a transpiração. Na verdade, todos transpiramos
abundantemente.
Apollo conserva o olhar cravado no cronômetro, e tento interpretar os
estranhos clarões nos hexágonos da placa de comando do elevador. Não há
possibilidade de determinarmos se conseguiremos chegar lá abaixo a tempo.
— Quanto falta? — Volto a perguntar.
— Dez microns — informa, sem desviar os olhos do mostrador.
— Sabe se o elevador está fora do alcance da explosão?
— Não. É possível.
— Sempre é uma esperança.
— Oito microns.
Cerro os dentes, na expectativa. O único som no interior da cabina é a
contagem decrescente proferida por Apollo a meia voz. Por fim, chega ao
um, e a tensão aumenta. Regista-se um longo silêncio.
— Talvez ligasse aquilo mal e... — Começo.
Mas sou interrompido pela explosão. Trata-se de uma espécie de ronco
seguido de uma série de sons mais intensos. O efeito de reação em cadeia da
solenite desenrola-se em conformidade com as previsões. Posso interpretar os
sons da solenite com tanto rigor como um amante de música médio detecta
alterações numa melodia.
No momento em que se verifica a explosão mais forte, o elevador para
com abruptidão e sinto as pernas como que puxadas para o sobrado. Ser 5-9
cai, colidindo com Apollo e Tenna; no entanto, o capitão estende a mão para
o painel dos comandos e equilibra-se.
As explosões cessam. Respiramos fundo e dá-me a impressão de que o
sobrado da cabina oscila.
— Estamos a cair? — Pergunto a Apollo.
— Não. Mas soltou-se qualquer coisa. Não sei se...
— Capitão Apollooooo! — Grita uma voz lá em baixo.
— É Starbuck! — Apollo agacha-se junto da porta e grita por sua vez:
— Estamos aqui em cima, Starbuck. Ouves-nos?
— Muito bem, capitão. E até parece que os vejo. Encontram-se uns
cinquenta metros acima de nós. Creio que há uma plataforma cerca de vinte
metros abaixo do ponto em que estão. Se conseguirem chegar até lá, podem
utilizar a escada.
— Entendido. — Apollo endireita-se e volta-se para mim. — Que
sugere?
— Abre-se um buraco no sobrado e descemos por meio de corda.
— É também a minha ideia. Afastem-se.
Aponta a pistola-laser a determinada área do sobrado e, com o feixe,
abre um círculo na superfície metálica. A seguir, guarda a arma no coldre,
exerce pressão com a machadinha e a rodela precipita-se no túnel do
elevador. Ouvimo-la atingir o chão muito mais rapidamente do que
pensávamos.
— Pronto — anuncia Apollo. — Quem fica a segurar a roldana?
— Não é necessária — informo. — Ainda me restam alguns pitões.
— Não compreendo. Como tenciona ir lá fora cravá-los na rocha?
— Ficam seguros no metal. Repare.
Regulo a escala molecular do topo dos pitões para metal. Instantes
depois, há vários cravados no sobrado, em semicírculo. Adivinhando o meu
plano, Leda tem a corda preparada e trata de a prender aos pitões, após o que
me certifico de que se encontram devidamente seguros.
— Bom trabalho — admite Apollo. — Vou à frente, para experimentar o
poder de segurança da corda e...
— Não — intervém Leda. — Apreciamos a sua heroica decisão, mas...
— Não se trata de uma manifestação de heroísmo, mas de sensatez.
Como chefe...
— Não concordo que seja sensatez alguma. Na montanha, demonstrou a
sua experiência no que se refere a ascensões. Salvo o devido respeito, o
mesmo se aplica à operação inversa. Eu e Croft possuímos mais experiência,
mais treino. Portanto, iremos primeiro. Achas bem, Croft?
— Sem dúvida.
Tenho de desenvolver esforços para não deixar transparecer a alegria
que me assola. Leda voltou a pedir-me que forme equipa com ela, ainda que
seja apenas para esta operação. Claro que acho bem.
— Pronto, Croft? — Pergunta, lançando a corda pela abertura circular.
Parece ter readquirido o estado normal, como nos velhos tempos:
eficiente, firme, ansiosa por imergir numa tarefa sem perda de tempo.
— Prendemo-nos à corda? — Pergunto.
— Não. É melhor descer um de cada vez. Parece-me mais seguro, no
caso de as condições da montanha afetarem a corda em algum ponto.
— Lançamos uma moeda ao ar para vermos quem vai à frente?
— Vou eu.
— Leda, eu...
— Esta operação pertence-me.
Noto que apela para o meu sentido de comando. Se me recusar a deixá-la
ir primeiro, acatará a minha decisão. Mas, por outro lado, indica-me que não
só lhe assiste o direito de ir à frente como desfruta das melhores
possibilidades de executar o trabalho devidamente. Em face disso, transijo:
— Muito bem. Mas tem cuidado.
— Com certeza — assente, com um sorriso.
Rodeia a corda com os dedos vigorosos e principia a descer antes que lhe
possa desejar felicidades. Conservo-me de bruços junto da abertura e vejo-a
afastar-se ao clarão incerto das nossas lanternas e da iluminação interior do
elevador. Descortino uma nesga de luz no fundo do túnel e verifico que não
estamos a uma altura muito elevada.
— É fácil — informa Leda. — Basta fincar os pés na parede e deixar as
pernas fazer o resto. Esqueci-me de calçar as luvas, que devem ter ficado aí, e
a corda é áspera como uma lima. Receio que as palmas das minhas mãos se
transformem em carne de daggit.
— Essa saliência por baixo de ti parece prestes a desprender-se.
— Já a vi. Obrigada, Croft.
Afastando os pés da parede, umas vezes, e fincando-os nela, outras, vai
descendo com lentidão.
— Penso que estás quase lá — comunico.
— Sim, mais meio metro, o máximo.
Quando atinge a plataforma, pousa nela com firmeza e vira-se para cima.
— Podes vir. Não tem dificuldade nenhuma. Posso fixar a corda aqui,
para te facilitar ainda mais a operação.
Reagindo com prontidão, estendo as mãos para a corda e atravesso a
abertura circular. Leda tem razão. A descida é mais fácil do que parecia à
primeira vista.
Encontro-me a três metros da plataforma quando ouço um ronco
reverberador sobre a minha cabeça.
— Que foi aquilo? — Pergunta Leda.
— Outra explosão. Ou uma avalancha ou um tremor de terra na
montanha.
Passo a deslocar-me mais rapidamente. Quando estou quase ao nível da
plataforma, o túnel principia a estremecer em reação à explosão e caem-me
algumas pedras na cabeça.
— Salta para aqui, Croft! — Grita ela.
Faço oscilar a corda na sua direção e Leda segura-me as pernas e puxa-
me. Entretanto, o ruído no interior do túnel aumenta e desprendem-se mais
pedras da parede. Leda agarra a minha mão esquerda com a direita, enquanto
conserva a outra na corda. No momento em que os meus pés pousam na
superfície da plataforma, regista-se novo ronco surdo e sinto o apoio
desaparecer. Ato contínuo, seguro-me firmemente à corda e tento conservar a
mão ensanguentada de Leda na minha. Ela procura fazer o mesmo, mas
nenhum dos dois logra coordenar os movimentos. A mão dela, esfolada e
ensanguentada, desliza um pouco na minha luva, mas consegue continuar a
segurar-se. Faz oscilar os pés, tentando pousá-los no fragmento da plataforma
que resta. Nova tentativa se malogra, embora um dos pés toque fugazmente
na superfície, e fica suspensa abaixo de mim. Balouçando.
— Vê se consegues agarrar-te à corda! — Indico-lhe, excitado. Aguardo
um momento, enquanto a vejo obedecer. — Não te soltes ainda de mim! —
Advirto.
Todavia, ela já o fez. Não sei se tenta agarrar-se à corda com ambas as
mãos, ou se a direita, demasiado esfolada para se segurar, escorrega da minha
enluvada. Seja como for, solta-se também da corda, começa a escorregar.
Procura agarrar esta com a mão livre, mas não consegue. Por fim, ficam as
duas mãos fora da corda e Leda precipita-se no espaço.
Recordo-me da sua queda no meu pesadelo. Esta em nada se assemelha à
outra. É mais rápida e os seus gritos ecoam no túnel mesmo depois de o
corpo embater no fundo.
CAPÍTULO XXVI
Athena focou o monte Hekla no écran do monitor. Tratava-se do
primeiro rastreio da superfície do planeta gelado que conseguiam obter desde
longa data. Agora, pelo menos por um momento, a montanha podia observar-
se com clareza. Em seguida, ela chamou Tigh, que inclinou a cabeça com
uma expressão de amargura.
— Parece que não conseguiram destruí-lo — murmurou, apontando para
o canhão-laser, que naquele instante expelia mais uma mortífera lança
luminosa.
Ela e o coronel conservavam os olhos fixos no écran, como se
reproduzisse uma cassete de entretenimento. A aparente imobilidade que
imperava na superfície do planeta dir-se-ia simbolizar a derrota da Galactica.
— Tinha quase a certeza de que eles...
Athena foi interrompida por um clarão intenso procedente do topo da
montanha. Por um momento, supôs que se tratava de mais um disparo da
peça. Todavia, viu o cano ficar vermelho e depois branco, antes de as
instalações explodirem totalmente. O topo do Hekla pareceu em erupção
repentina, ao mesmo tempo que se formava uma pequena nuvem sobre a área
em que pouco antes se erguera a fortificação. Ainda irrompiam fragmentos
em todas as direções, quando ela se virou para Tigh e bradou:
— Conseguiram! Conseguiram!
— Comandante! — Exclamou o coronel. — O canhão-laser foi
destruído!
Nesse instante, a Galactica foi sacudida pela proximidade de mais uma
lança luminosa. Ato contínuo, acendeu-se uma luz vermelha, indicativa de
incêndio num porão de carga, e Adama alertou uma das brigadas apropriadas.
— Terá sido o último disparo da peça antes de ir pelos ares? —
Perguntou a Tigh.
— Espero sinceramente que sim.
Dominado por forte tensão, todo o pessoal da ponte de comando
aguardava os acontecimentos, receando que a estrela-de-batalha fosse varrida
do espaço por um canhão já destruído.
— Não há dúvida — anunciou finalmente Athena, desviando os olhos do
écran do perscrutador. — Era realmente o último.
Registou-se uma sensação coletiva de alívio e alguns membros da
tripulação lograram mesmo soltar exclamações de triunfo.
— Conseguiram! — Disse Adama, sorrindo pela primeira vez desde o
início dos ataques. — Enviem uma unidade de socorro, escoltada por caças.
Athena pode pilotá-la. Estou certo de que apreciará particularmente a
incumbência.
A rapariga quase não ouviu as últimas palavras do pai, no meio dos
clamores de excitação à sua volta. Por fim, trocaram sorrisos de afeto e ela
abandonou a sua consola de comunicações, com destino à rampa de
lançamento.
***
Vulpa acercava-se do aeródromo do aquartelamento, quando a explosão
sacudiu a nave perigosamente. Em seguida, restituindo-lhe a estabilidade,
assistiu à deflagração final que destruiu o canhão-laser. Não dispunha de
muito tempo para ponderar o acontecimento, porquanto as ondas de choque
da explosão tomavam difícil o comando da nave. Finalmente, logrou dominá-
la poucos metros acima da superfície gelada e acabou por pousá-la a curta
distância do aquartelamento.
Receando uma avaria nos sistemas que a incendiasse, Vulpa saltou
precipitadamente do cockpit e afastou-se alguns passos. O braço, atingido de
raspão pelo humano, principiava a incomodá-lo. Percorridos uns vinte metros
voltou-se para trás e verificou que a nave não se incendiara, embora não se
achasse em condições de voltar a voar.
Por fim, encaminhou-se para o edifício do posto de comando e
apercebeu-se pela primeira vez dos escombros que se amontoavam no
interior. De súbito, compreendeu tudo. Enquanto uma equipa de humanos
assaltara a Estação do Topo, outra, provavelmente também auxiliada por
clones, atacara o posto de comando e sem dúvida o complexo subterrâneo.
Fora por esse motivo que os cylons encarregados da peça haviam perdido o
contato com o aquartelamento nos contrafortes do Hekla.
O primeiro-centurião sentia desejos de se entregar a uma manifestação
de cólera desenfreada, circunstância rara, embora não inédita, entre os cylons.
Pela primeira vez, abarcava na sua totalidade a natureza da ira. Aquele
infernal grupo de humanos, ainda por cima pouco numeroso, não só lhe
destruíra a guarnição como fizera explodir o canhão-laser e a sua própria
vida. As suas ambições estavam irremediavelmente comprometidas. Jamais
regressaria à nave-base do líder imperial. Passaria o resto da existência
saltitando de exílio para exílio. Nunca sucederia ao líder imperial no cargo de
chefe supremo. A sua vida tornara-se tão inútil como um poeta de rua nos
planetas da Aliança.
Entrou no posto de comando e inspecionou os estragos. Não havia
dúvida de que os humanos tinham semeado a destruição. O seu ataque e
incêndio subsequente haviam transformado tudo num caos fumegante.
Premiu o botão de ativação do transmissor, na esperança de ver a imagem do
líder imperial formar-se no écran quebrado, mas não obteve a mínima reação.
A única peça de mobiliário que continuava intacta era a sua cadeira de
comando, na qual se afundou pesadamente.
Recorrendo ao fator meditativo do seu segundo-cérebro, conseguiu
imergir numa espécie de transe, que não só o acalmou como lhe removeu a
percepção do que o rodeava. Não soube quanto tempo permaneceu naquele
estado. Quando regressou à realidade, pressentiu imediatamente o perigo.
Espreitou pela janela do posto de comando e avistou uma nave de grandes
dimensões que acabava de emergir das nuvens, seguida de uma escolta de
caças. Vipers. Naves humanas. Que fariam ali? Pretenderiam recolher a sua
força invasora, ou porventura completar a destruição daquela unidade? Os
motivos que animavam os humanos já não lhe interessavam. O único instinto
que lhe restava aconselhava-o a destruí-los. Principiaria pela força de socorro.
Abandonou furtivamente a estrutura do posto de comando e
encaminhou-se para o aeródromo sem ser pressentido pelo inimigo. O
primeiro aparelho que se lhe deparou foi um dos caças cylon equipados para
guiar as naves-fantasmas situadas nas filas da frente do aeródromo. De bordo
desse aparelho podia comandar cinco delas. Era precisamente o que lhe
interessava. Os humanos pensariam que eram atacados por toda uma
esquadrilha de cylons, quando na realidade se tratava apenas de Vulpa e um
quinteto de naves-fantasmas. O inimigo talvez fosse numericamente superior,
porém ele proporcionar-lhe-ia uma batalha renhida antes de se afundar.
Pousando a mão na placa do painel de comando, para que a configuração
da luva fosse reconhecida pelo equipamento de rastreio, levou o nível de
ativação de carburante ao ponto mais elevado. À sua esquerda avistou
algumas crianças, que reagiam porventura ao ruído repentino do aparelho e
emergiam do caça mais próximo. Mas que faziam elas a bordo de uma
unidade de guerra cylon, sobretudo crianças que se assemelhavam vagamente
aos clones concebidos por Ravashol? Dava a impressão de que tudo
enlouquecia à sua volta. Mas o essencial era a destruição das naves humanas,
o que lhe restituiria a sanidade mental. Finalmente acionou as teclas que
ativavam as naves--fantasmas e, à sua frente, cinco delas, apressaram-se a dar
sinais de vida.
Starbuck ajudou Apollo a sair do túnel do elevador. Cerca de metro e
meio mais abaixo, no solo, Croft continuava ajoelhado junto do corpo de
Leda, como se estivesse disposto a esperar eternamente que ela regressasse à
vida. Starbuck sentiu o impulso de se aproximar e convencê-lo a afastar-se,
assegurando-lhe que disporiam devidamente do corpo, mais tarde,
sepultando-o ou incinerando-o, mas acabou por deixá-lo entregue à sua dor
por mais uns momentos.
— Ela fez um bom trabalho, lá em cima — murmurou a Apollo.
— Os dois. Antes que me esqueça, obrigado por estarem aqui.
— Recomendei-lhe que não se preocupasse comigo. Em todo o caso, os
cylons ofereceram uma resistência tão tenaz que quase foram a vossa
comissão de recepção.
— Resta algum na guarnição?
— Não — informou Boomer. — Parece que foram todos eliminados.
— Temos de nos reagrupar. Vá buscar Haals e os feridos, Boomer. É
conveniente levar uma das brigadas de Ser 5-9. — Apollo fez uma pausa
enquanto o tenente se afastava, e voltou-se de novo para Starbuck. — Traga
Boxey e as crianças.
— Muito bem, capitão. Acompanhe-me, cadete Cree.
Este, profundamente combalido, surgiu de um nicho imerso na
penumbra, e perfilou-se diante de Apollo.
— Não esperava encontrá-lo aqui, Cree.
— Não lhes revelei absolutamente nada, capitão.
— Isso vai valer-lhe um pedaço de metal.
— Um... Um pedaço de metal?
— Uma condecoração, uma medalha.
— Ah, sim, senhor.
— Vá lá ajudar Starbuck. — Apollo encaminhou-se para o túnel do
elevador e comunicou a Croft, a meia voz: — Temos de partir. Enviarei
alguém para se ocupar de Leda.
— Eu podia tê-la salvo. Larguei-a...
— Acalme-se, Croft. Não podemos continuar aqui.
Croft endireitou-se e baixou os olhos para o corpo sem vida.
— Queria que nos reconciliássemos. Estava a pensar nisso quando
descíamos no elevador. No fundo, talvez não passasse de mera ilusão de
minha parte. Ela nunca concordaria. Mas havia tantas coisas que...
— Vamos.
— Sim, tem razão.
Quando saíam do túnel, Ser 5-9 acercou-se para informar:
— O Dr. Ravashol pediu-me que lhe comunicasse que estabeleceu
contato com a Galactica. O comandante enviou uma unidade de socorro, que
deve estar a chegar.
Apollo pediu ao clone que o conduzisse à presença do cientista e Croft
seguiu-os através dos corredores labirínticos da aldeia. Ravashol exibiu um
sorriso quando viu o capitão e anunciou:
— A vossa unidade de socorro encontra-se na periferia da camada de
nuvens e deve atravessá-la a todo o momento. Estão todos bem?
Apollo lançou uma olhadela a Croft, cujo rosto apresentava uma
expressão de alheamento, antes de responder:
— Razoavelmente.
— Os meus clones festejam o acontecimento na sala principal. Vejam.
— Ravashol apontou para o écran do telecomunicador, que na verdade
reproduzia as manifestações de regozijo dos clones. — A emoção andava
afastada deles. Congratulo-me por a terem recuperado.
— Os cylons voltarão — observou Apollo.
— Estaremos preparados para os receber. Vocês salvaram-nos. Salvaram
os meus filhos.
— Sugiro que deixe de lhes chamar filhos. É natural que lhe provoque
alguns problemas, doravante, pois cada vez parecem mais humanos.
— Ainda bem.
O aperto de mão dos dois homens foi interrompido por Starbuck, que se
precipitou na sala com uma expressão afogueada.
— Boxey e as crianças desapareceram, capitão! Uma das Tennas diz que
apareceram lá os cylons e elas fugiram espavoridas.
— Mande esquadrinhar os corredores — ordenou Apollo. — Venha
comigo, Croft. E você também, Ser 5-9. Preciso da vossa ajuda para me
orientar.
— Onde vamos? — Quis saber Croft, enquanto avançavam num longo
corredor.
— Ao aeródromo. As crianças podem andar pela superfície, onde se
expõem aos efeitos do di-eteno e do próprio frio.
— Mas porquê o aeródromo?
— Vamos apoderar-nos de uma nave cylon para as procurar.
— Ah.
— Acha bem?
— Decerto. Simplesmente, pensava que pretendia fazer alguma coisa
difícil.
***
Boxey fora acordado momentaneamente pelo som das explosões e pelo
clarão no céu e Muffit latira, porém ele impusera-lhe silêncio e voltara a
adormecer.
Agora despertava em virtude do solavanco sofrido pela nave em que se
encontrava.
— É melhor sairmos daqui, daggit — decidiu. No entanto, experimentou
dificuldades em movimentar o corpo, que se achava entorpecido. — Vai
chamar o papá, Muffit... Ou Starbuck.
O dróide tomou a ladrar, pareceu hesitar e impeliu com o focinho a
escotilha de saída da nave, que se entreabriu. Voltou a fechar-se atrás dele, e
Boxey ouviu o animal ladrar no exterior. Experimentou arrastar o corpo para
a escotilha, mas viu-se forçado a renunciar, pois não conseguia deslocar-se
com a rapidez necessária. No instante em que a alcançava, rastejando, sentiu
a nave erguer-se do solo.
Ficou sem saber se se devia alegrar ou assustar. Sempre ansiara por voar
num aparelho cylon, mas duvidava que fosse aquele o momento oportuno.
***
Athena estabilizou a naveta de socorro depois de atravessar a camada de
nuvens e ordenou a um tripulante que contactasse com a expedição. Após
breve colóquio com um homem de aspecto estranho chamado Ravashol, o
qual revelou que Apollo, Starbuck e Boomer se encontravam sãos e salvos,
ela indicou à tripulação que executasse as tarefas apropriadas. O oficial
médico, o piloto que conduziria o trenó blindado e o contingente de
guerreiros, para a eventualidade de os cylons atacarem durante a operação de
salvamento, declararam-se preparados para partir. Nesse momento, o oficial
das comunicações informou:
— Atividade no aeródromo sob os nossos pés. Naves cylon em
aquecimento.
— Tem a certeza de que são cylons? Ravashol garantiu que a guarnição
tinha sido aniquilada.
— Não posso determinar quem as conduz. A avaliar pelos aparelhos de
perscrutação, algumas estão desertas.
— Naves-fantasmas! Talvez equipadas com ogivas de solenite. Alerte a
esquadrilha de escolta, mas ninguém deve disparar sem haver a certeza de um
ataque.
Athena enrugou a fronte, apreensiva e os dedos crisparam-se na alavanca
de comando da naveta.
Cinco das naves cylon pousadas no aeródromo descolaram
simultaneamente, imitadas com prontidão por outra de uma das filas da
retaguarda. Athena ordenou nova leitura do aparelho perscrutador e foi
informada de que a nave da retaguarda era tripulada por um único cylon,
enquanto as restantes pertenciam, sem margem para dúvidas, ao tipo
fantasma e estavam equipadas com ogivas de solenite.
— Alguma indicação de atividade hostil?
— Por ora, não.
Um momento depois, uma das unidades cylon deu indícios de intenções
hostis, deslocando-se diretamente para um viper de escolta colonial.
Reagindo com prontidão à ordem imediata de «Fogo!» proferida por Athena,
o caça alvejou a nave-fantasma, que irrompeu em chamas e mergulhou na
superfície do planeta, onde explodiu.
— As outras naves cylon assumem posições de ataque — anunciou o
oficial de comunicações.
— Varram-nas do espaço! — Ordenou ela.
***
Vulpa pusera a primeira nave-fantasma em atividade com demasiada
precipitação. Não a devia ter enviado contra um dos caças. O aparelho
humano dispunha de grande facilidade de manobra e podia esquivar-se sem
problemas, fazendo explodir a ogiva de solenite antes que provocasse danos.
A melhor estratégia consistia claramente em destruir a nave de maior
envergadura e, por conseguinte, menos manobrável. Atuando nos comandos,
ajustou o sistema de orientação para um ataque à naveta humana por duas das
naves-fantasmas que restavam.
***
Sentindo-se um pouco menos afetado pelo frio, em virtude dos
movimentos efetuados, Boxey arrastou-se para a frente do cockpit da nave e
verificou que fazia parte de uma formação. A certa distância avistou um
aparelho muito semelhante a uma naveta da Galactica. Oxalá fosse da
Galactica.
Mais perto, uma das unidades que voavam a seu lado destacou-se das
restantes e progrediu em direção a um viper colonial, daqueles que Boxey
esperava pilotar, um dia. Tudo indicava que os dois aparelhos acabariam por
chocar, o que o obrigou a gritar:
— Cuidado, guerreiro! Deita-o abaixo!
Como se o ouvisse e seguisse as suas instruções à risca, o piloto do viper
atingiu a nave cylon, que se apressou a perder altitude.
— Boa pontaria!
Em seguida, Boxey viu dois outros aparelhos separarem-se da formação
e avançarem para a esquadrilha que protegia a naveta da Galactica.
***
Athena reconheceu imediatamente as intenções das duas naves-
fantasmas. Uma executaria um loop e atacaria a naveta de cima, enquanto a
outra faria o mesmo de baixo.
— Interceptem-nas! — Ordenou sem hesitar.
Dois vipers introduziram-se entre o atacante inferior e a naveta e,
surpreendendo-o entre dois fogos, não tiveram dificuldade em o incendiar.
Novo disparo e atingiram a ogiva de solenite. Nesse momento, a nave-
fantasma explodiu. A onda de choque sacudiu a naveta, e Athena só a
conseguiu estabilizar com extrema dificuldade e reflexos rápidos. O fato fê-la
deplorar não se achar a bordo de um dos vipers, mais leves e manobráveis
que o aparelho que comandava.
— A outra nave-fantasma apanhou dois caças e explodiu com eles! —
Informou o oficial de comunicações. — É horrível. — Concentrou-se de
novo na consola. — Está a chegar uma mensagem do Dr. Ravashol.
A voz de Ravashol soava tensa e desesperada e pediu para falar com o
oficial que comandava a formação.
— Que se passa? — Perguntou Athena.
— Os aparelhos que os atacam não são tripulados e...
— Sei tudo isso. Não se preocupe. Aliás, já destruímos três. Os outros
não tardarão a ter o mesmo destino...
— Não! Um deles pode conter uma criança humana.
— Boxey?
Ravashol trocou impressões rápidas com um indivíduo louro e alto,
envolto em peles, e voltou-se de novo para o écran.
— Sim, é esse o seu nome. Introduziu-se num dos aparelhos cylon, não
sabemos como. O capitão Apollo vai descolar num caça.
— Muito bem, doutor. — Ela virou-se para o oficial de comunicações.
— Novidades?
— As outras duas naves estão a aproximar-se. Tudo indica que se
preparam para atacar. Não subsistem dúvidas de que o aparelho da retaguarda
as comanda.
— Há possibilidades de determinar em qual se encontra Boxey?
— Não. O perscrutador não pode fornecer essa informação.
— Oxalá não o tenhamos matado, meu Deus. Bem, vamos executar ação
evasiva até nos certificarmos de que ele está ou não numa dessas naves. Diga
à escolta de caças que se afaste e se considere fora do combate até nova
ordem.
— Mas...
— Não quero que um dos pilotos se excite e abata a nave em que Boxey
se encontra. Cada vez que uma delas avançar para nós, teremos de nos
esquivar.
— Podíamos enviar um caça ao encontro do aparelho que as comanda
e...
— É muito arriscado. O piloto desse aparelho teria possibilidades de
fazer explodir as ogivas de solenite por telecomando. Nem sequer sabemos se
o maldito cylon está ao corrente da presença de Boxey numa das naves.
Athena sentiu o corpo adquirir forte tensão no instante em que o oficial
de comunicações anunciou:
— Vem aí uma ao nosso encontro!
CAPÍTULO XXVII
CROFT.
A avaliar pela forma como Apollo avança através dos campos de gelo,
ninguém diria que acaba de escalar uma montanha e atacar uma fortificação
cylon. Continua a usar metade do equipamento de montanhista. A
machadinha agita-se contra a sua perna, enquanto corre. Ser 5-9, que se
mantém a par dele e lhe transmite indicações, ainda se apresenta mais
carregado de material, incluindo a mochila.
Em todo o caso, quem me garante que passou pouco tempo desde que
destruímos o canhão-laser? Confesso que perdi a sua noção. Já não sei
quantos centões decorreram, quando me conservava junto do corpo de Leda.
Leda... Não quero pensar nela. Não quero recordar esse episódio. A cada
passo que dou, à medida que afundo os pés na neve, parece que a sua
memória também se me crava mais profundamente no espírito. Sabia o risco
a que se expunha e aceitou-o. Eu teria procedido do mesmo modo. Mas Leda
morreu. E eu continuo vivo. Devia estar morto. Leda...
Tento pensar noutra coisa. Ergo os olhos e avisto a nave de socorro
pairando sob a camada de nuvens. Vagamente delineada na penumbra, parece
uma abelha-mestra negra, com os vipers zumbindo à sua volta, como
zângãos.
Tenho de estugar o passo para alcançar Apollo e Ser 5-9. À nossa frente
destaca-se o aeródromo cylon, perto do posto de comando destruído. Um
grupo de crianças clones encontra-se a um lado e Apollo corre para elas,
gritando:
— Onde está Boxey?
A voz contém uma inflexão de desespero que nunca lhe tinha ouvido, e
uma das crianças responde:
— Não sabemos. Disse que nos escondêssemos nas naves e foi lá para a
frente.
E aponta para a fila da vanguarda dos aparelhos pousados na pista. De
repente, um caça atrás de nós começa a dar sinais de vida e cinco naves da
frente entram igualmente em atividade. Apollo corre para elas, enquanto eu e
Ser 5-9 o seguimos a curta distância. À medida que nos aproximamos, a
escotilha de um dos aparelhos entreabre-se e surge o daggit-dróide do garoto.
A escotilha volta a fechar-se com um estalido seco, enquanto o animal corre
para Apollo, ladrando com intensidade, e este parece entender a «mensagem»
de Muffit.
— Que foi? — Pergunto.
— Boxey deve estar naquele aparelho. É uma nave-fantasma.
— O que é...?
Sem se preocupar em me elucidar, Apollo principia a correr para o
aparelho, porém este afasta-se velozmente e descola, e o turbilhão produzido
obriga-nos a retroceder.
Acabo de recuperar o equilíbrio, quando Apollo me segura no braço e
puxa para o caça mais próximo. Entretanto, todas as naves-fantasmas
descolaram. Detendo-se junto do aparelho, o capitão vira-se para Ser 5-9 e
indica:
— Coloque todo o seu equipamento lá dentro e vá dizer a Ravashol que
previna a naveta da presença de Boxey numa das naves-fantasmas!
O clone reage com prontidão e já coloquei todo o equipamento a bordo
do caça antes de Apollo acabar de falar: a mochila, a machadinha para abrir
pontos de apoio no gelo e uma quantidade apreciável de pitões, o que me
surpreende, pois supunha que os meus eram os últimos. Apollo, depois de
depositar igualmente o seu material de montanhista no monte, indica-me que
suba para o aparelho e entra por sua vez, enquanto Ser 5-9 se afasta
velozmente.
Vendo o capitão manipular alguns cabos sob o painel dos comandos,
pergunto-lhe:
— Sabe pilotar uma coisa destas?
— Em teoria.
— Em teoria?! Quer dizer que nunca?...
— Exato.
Olho em volta. O interior do aparelho é algo insólito, cheio de rodas
dentadas e outras engrenagens estranhas, além de peças de cuja natureza e
finalidade não faço a mínima ideia.
— Pronto — profere finalmente Apollo, endireitando-se e ocupando o
assento do piloto.
— Pronto, o quê?
— Os comandos são fáceis, mas estão programados para o contato das
luvas dos cylons. Com as alterações que introduzi nas ligações dos cabos,
devo poder colocar isto no ar sem dificuldade.
Faz deslizar os dedos sobre alguns botões e teclas, e o caça entra em
atividade. Quase involuntariamente, afundo-me no assento do copiloto no
momento em que descolamos rapidamente.
Por cima de nós avisto uma nave-fantasma que acaba de explodir. Lanço
uma olhadela a Apollo, mas ele concentra-se nos comandos, sem tempo para
tecer comentários. Pergunto a mim mesmo o que faço aqui e por que razão
insistiu em que o acompanhasse. O seu olhar apresenta uma expressão
alucinada provocada pelo desespero. Que se lhe terá metido na cabeça? Um
pressentimento indica-me que não devo tentar inteirar-me.
Enquanto ganhamos altitude, vejo duas naves-fantasmas, aparentemente
comandadas pelo caça que se mantém da retaguarda, avançarem para a naveta
de socorro — uma pela parte de cima e a outra por baixo. Esta última é
aniquilada por dois vipers, mas a outra quase consegue fazer ir pelos ares o
aparelho dos humanos. No entanto, é interceptada por dois outros caças, que
colidem com ela e explodem os três simultaneamente. Vários vipers parecem
retificar o rumo para atacar as duas naves-fantasmas que restam.
— Não... — Murmura Apollo, com uma expressão angustiada. De
repente todos os caças se afastam das imediações da naveta e ele solta uma
exclamação de alívio. — Ser 5-9 conseguiu contatar com Ravashol. A bordo
da naveta já sabem que Boxey se encontra numa daquelas naves-fantasmas.
Embora me custe objetar, não deixo de o fazer:
— Como sabe que não estava a bordo de uma das que foram abatidas?
— Reparei nas indicações da fuselagem. É aquela da direita.
Viro-me para onde aponta. A nave que indica começa a separar-se da
outra e avança diretamente para a naveta. Por um momento, dá a impressão
de que vai colidir com ela, mas, no último instante, a naveta esquiva-se e a
nave-fantasma prossegue na sua trajetória, para se internar na camada de
nuvens, de onde não tarda a reaparecer.
— Ótimo — articula Apollo. — Quem comanda a naveta é um perito na
matéria. Aquela manobra não está ao alcance de qualquer.
— Não duvido. Mas que lucra com isso? Se bem entendi, a nave
transporta uma ogiva de solenite e não deixará de insistir até que...
— Temos de evitar que isso aconteça. Precisamos de retirar Boxey de
bordo.
Terei ouvido bem?
— Como pensa consegui-lo?
— Explico-lhe já. Deixe-me tratar da saúde à outra nave-fantasma, antes
que atinja a naveta.
Manipulando os bizarros comandos com eficiência, Apollo dirige-se
para a outra nave-fantasma, que entretanto avança para a naveta. Este
esquiva-se uma vez mais e, antes que o aparelho cylon possa retificar a
trajetória para nova investida, Apollo pousa os dedos numa placa à sua
direita. Da frente do nosso caça irrompe fogo laser e a nave-fantasma
explode. O fato obriga-me a desejar ardentemente que os seus cálculos sobre
a localização do garoto não estejam errados.
A última nave-fantasma, proveniente da camada de nuvens, parece
querer atacar a naveta por cima e, quando penso que esta não tem a mínima
possibilidade de evitar a colisão, nova manobra eficiente e inesperada conjura
o perigo uma vez mais. Ao mesmo tempo, porém, animada de uma
velocidade incrível, a nave-fantasma dá a impressão de se ir esmagar
irremediavelmente no solo, ante a expressão horrorizada de Apollo.
— Não se pode despenhar — murmura Apollo. — Não pode...
Todavia, é retificada a direção no último momento e descreve uma larga
parábola para ganhar altitude. Se Boxey está a bordo, deve divertir-se
particularmente com semelhantes acrobacias. O piloto do caça cylon revela
notável perícia no comando à distância.
De súbito, Apollo volta-se para mim:
— Agora, é a sua vez, Croft.
— A minha vez de quê?
— Preste atenção, que não dispomos de muito tempo. Fixe a corda no
aparelho, desça nela até à nave-fantasma e retire de lá Boxey. É a nossa única
possibilidade...
— Isso não é uma possibilidade, mas...
— Faça-o!
O desespero da sua voz põe termo a ulteriores argumentações. Claro que
o farei, digo a mim mesmo, enquanto reúno o equipamento necessário. Quero
lá saber! Mais vale que morra também, como Leda. Ao mesmo tempo que
admito a minha própria morte, porém, vou elaborando um plano. Talvez não
dê nada, o mais certo é não dar mesmo, mas não me agrada empreender uma
operação tão alucinada sem um plano. E porque não há de ter êxito? Tenho
apenas de descer pela corda até à nave-fantasma que se concentra no ataque à
naveta, enquanto o sonhador capitão Apollo conserva suficientemente
estabilizado um aparelho que pilota pela primeira vez, para que eu não me vá
estatelar no gelo, lá em baixo. No fundo, nada mais simples...
Quando fixo a corda ao cabo de uma machadinha, que prendo na base do
assento do copiloto, verifico que não oferece menos segurança do que alguns
sistemas que me vi forçado a improvisar em determinadas ascensões. A
seguir, explico a Apollo alguns sinais que utilizarei para lhe indicar como
deve voar enquanto atuo lá em baixo, pego em três pitões de fixação
molecular e, recorrendo ao meu famoso nó corrediço «escorpião» para cada
um, ligo-os a um troço de corda. Depois, ato novo troço a outra machadinha,
enrolo-o e coloco-o ao ombro. Certifico-me de que a pistola-laser continua no
coldre e executo alguns pequenos laços na extremidade da corda que usarei
para a descida, a fim de dispor de apoios para os pés, após o que faço outros
de maiores dimensões para me rodearem o peito e cintura. Por fim, fixo
vários pesos na extremidade da corda, enquanto Apollo olha repetidamente
por cima do ombro, com impaciência.
— Bela manobra! — Exclama, de súbito, e depreendo que o piloto da
naveta executou mais uma manobra hábil. — Estupendo!
— Até já, Apollo — despeço-me.
Sem esperar resposta, lanço a corda pela escotilha aberta e observo que,
apesar dos pesos, a extremidade inferior não se conserva na vertical. Em todo
o caso, se não os utilizasse, colar-se-ia sem dúvida à retaguarda do caça.
Enquanto desço, faço o possível por não reparar no frio intenso e no
vento furibundo e por ignorar as recordações de Leda soltando-se da corda no
túnel do elevador. O frio e vento são fáceis de repelir do pensamento, pois
não são mais agrestes que em algumas montanhas, mas a imagem de Leda
não se apaga com a mesma facilidade.
Atinjo a extremidade da corda e enfio os pés em dois dos laços que
preparei. Olhando para baixo, avisto a nave-fantasma movendo-se de novo
em direção à naveta, mas Apollo consegue manter-se a par dela, embora num
nível diferente. Concentrando-me na nave-fantasma, quase não me apercebo
da manobra de evasão da naveta. Agito a mão a fim de indicar a Apollo que
se aproxime e vejo a nave ficar a menor distância de mim. De repente
encontro-me a seu lado. Tenho de atuar depressa, pois não sei quando o
piloto cylon se lembrará de a afastar para nova investida. Verificando que os
laços que me rodeiam o peito e cintura oferecem a segurança indispensável,
posso libertar as mãos para trabalhar à vontade. Gesticulo a Apollo para que
me acerque um pouco mais e trato de cravar os três pitões na escotilha. De
repente, antes que consiga fixar a machadinha na corda que une os pitões, a
nave afasta-se um pouco, mas não me preocupo, porque contava com isso.
Puxo da pistola e faço fogo sobre a escotilha. Embora não esteja
familiarizado com a tecnologia da superstrutura da malfadada nave-fantasma,
viso o ponto onde se costuma situar o fecho nos aparelhos cylon vulgares, e o
resultado parece satisfatório.
Até aqui, tudo bem. A intensidade do vento, que ameaça rasgar-me a
roupa, fornece uma indicação concreta da velocidade a que nos deslocamos e,
por um momento, sinto-me aterrado. Reconheço que arrisco a vida confiando
apenas na perícia de piloto de Apollo, e procuro tranquilizar-me, recordando
que me foi bem recomendado.
Quando a nave-fantasma efetua nova tentativa para destruir a naveta,
passa muito perto do ponto em que me encontro suspenso e posso lançar uma
olhadela ao interior. O garoto acha-se, de fato, lá e parece divertido com as
acrobacias.
Apollo ganha um pouco de altitude e segue a nave, enquanto a naveta
executa mais uma manobra de evasão. Acompanhando a trajetória da minha
presa, indico ao capitão que desça ligeiramente e se desvie para a esquerda, o
que faz com suavidade. Agora, a escotilha fica quase ao meu alcance. Muito
bem. Pego na machadinha presa à corda, faço-a oscilar no ar por uns instantes
e lanço-me na direção dos pitões cravados na escotilha. A primeira tentativa
malogra-se e tenho de repetir a operação, depois de encher os pulmões de ar.
Desta vez, fixa-se com firmeza na corda que une os pitões, seguro bem a que
conservo na mão e faço sinal a Apollo para que se desvie abruptamente. A
corda estica e, por um momento, não sei se aguentará. De repente, regista-se
um estalido seco e a escotilha desprende-se da fuselagem e começa a
mergulhar no espaço. Sacudo o rolo de corda do ombro antes de o peso da
escotilha poder fraturar alguma peça da minha anatomia e não perco tempo a
observar onde tudo aquilo cai.
A abertura produzida na nave é mais irregular do que eu esperava. Tudo
indica que a escotilha arrancou pedaços da fuselagem em volta. Liberto
rapidamente dos laços o peito e cintura, seguro-me bem à corda suspensa do
caça, advirto Apollo de que se tome a aproximar da nave-fantasma e solto os
pés dos apoios. No momento em que ele principia a executar a manobra,
passo a imprimir ao corpo a maior oscilação possível nas circunstâncias,
consciente de que o devo apontar ao alvo com o máximo rigor.
O costado da nave aproxima-se demasiado depressa e não tenho tempo
para pensar. Limito-me a lançar as pernas para a frente, visando a entrada que
improvisei, enquanto Apollo mantém o aparelho bem estabilizado. Mesmo
assim, quase erro o alvo. Uma das pernas roça nas arestas aguçadas da
abertura no momento em que a atravessam. Deixando-me embalar pelo
impulso, atiro-me para dentro, e confesso que não compreendo como não vou
parar lá fora outra vez, pois colido com a parede oposta e ricocheteio para o
outro lado, a curta distância da abertura.
Conservo-me estendido por uns instantes, enquanto tento recuperar o
fôlego e procedo ao inventário apressado dos ossos, para me certificar de que
continuam todos nos seus lugares. De repente, vejo o garoto a meu lado, de
olhos tão arregalados como a abertura da escotilha que arranquei. Atrás dele,
avisto o caça de Apollo pairando à mesma altitude.
— De onde veio? — Quer saber Boxey.
Reprimo a custo todas as respostas sarcásticas que me acodem ao
espírito e limito-me a responder:
— Do aparelho aqui ao lado.
CAPÍTULO XXVIII
Athena desenvolvia esforços desesperados para não observar as
tentativas de Apollo e Croft para salvar Boxey e concentrava-se nos
comandos, regulando meticulosamente as manobras evasivas cada vez que a
nave-fantasma investia. Afigurava-se-lhe que cada evasão era mais difícil e
crítica que a anterior. Quase não acreditara nos seus ouvidos, quando um
oficial lhe comunicara que Croft saltara da corda suspensa no espaço para a
abertura produzida pela escotilha da nave-fantasma, que arrancara
previamente. Ela compreendia agora a razão pela qual o computador
escolhera o nome de Croft durante a seleção do pessoal para a missão. Por
outro lado, também se congratulava pelo fato de Apollo participar na
operação. Embora houvesse muitos pilotos experientes nas esquadrilhas da
Galactica, só ele conseguiria tripular um aparelho cylon com tanta eficiência
e precisão, com as possíveis exceções de Starbuck e Boomer. Enfim, no que
se referia à precisão, ela própria também não se comportava mal, reconheceu,
enquanto fazia a naveta descrever uma curva abrupta para se livrar de mais
um ataque.
— Que está a acontecer? — Perguntou ao oficial que se conservava
diante do écran do monitor.
— Nada... Não, espere. O tipo acaba de fazer um gesto pela abertura da
escotilha arrancada e Apollo aproxima o caça, para que a extremidade da
corda fique junto da entrada... Agora, o tipo vai a sair, com um volume nos
braços... É Boxey! Pelo menos assim parece, e encontram-se suspensos da
corda.
— Confirme se é Boxey.
O oficial examinou melhor a imagem do écran e exclamou com alegria:
— Confirmado! É ele, de fato!
— A que distância estão da nave-fantasma?
— Não muito longe. Não... Esperem. O caça de Apollo começa a
arrastá-los para longe.
— Encontram-se fora do alcance de uma explosão?
— Penso que sim.
— Confirme. Estão fora do alcance da explosão?
Nova pausa e surgiu a resposta:
— Confirmado.
— Chefe da escolta! — Bradou Athena para o comunicador.
— Diga, Athena — replicou a voz metálica procedente de um dos caças.
— Destrua a nave-fantasma e o aparelho que o comanda.
Imediatamente!
Ela viu com profunda satisfação a nave-fantasma desintegrar-se por
entre uma explosão ofuscante, enquanto outros caças da escolta moviam
perseguição ao caça, que começou a «picar». Um disparo de um dos vipers
atingiu a parte superior da nave cylon, que começou a trepidar. O piloto
conseguiu, inacreditavelmente, aguentá-la para fazer uma aterragem forçada
na superfície. A visão nítida da nave perdeu-se no remoinho de neve
provocado pela aterragem forçada.
À distância, Athena podia ver Apollo fazendo descer o seu aparelho com
precaução, em direção ao aeródromo, enquanto Croft e Boxey continuavam
suspensos da corda. Esta parecia principiar a contatar com o chão, quando
Croft saltou, sem largar o garoto, e deu uma leve cambalhota no gelo. Após
um momento de imobilidade, levantaram-se e Boxey lançou os braços ao
pescoço do salvador, num gesto impulsivo, a que ele pareceu não se opor.
Uma ordenança distraiu a atenção que Athena prestava aos
acontecimentos, anunciando que o comandante Adama estava em linha e lhe
desejava falar.
— Sim, comandante — proferiu ela em tom formal.
— É só para te felicitar. Estamos impressionados com a perícia de voo
que tu e o capitão Apollo revelaram.
— Obrigada. Agora, vou aterrar.
— Está bem, mas despacha-te. As forças cylon de perseguição
continuam no nosso encalço e não podemos mantê-las à distância
eternamente.
Athena aguentou o sorriso que lhe acudia aos lábios até que a imagem do
pai desapareceu do écran. O elogio que acabava de lhe dirigir valia todas as
condecorações da frota.
— Preparar para aterrar — ordenou à tripulação.
***
Junto da naveta de salvamento, Ravashol pousou a mão no ombro de
Apollo, para se despedir.
— Que a paz os acompanhe, capitão. Oxalá atinjam o destino sem
novidade.
— Que a paz o acompanhe também, pai-criador. — Em seguida, Apollo
e Ser 5-9 abraçaram-se — Também temos de lhe agradecer e aos seus o
auxílio prestado. Se você e Tenna não nos guiassem na escalada... Onde está
ela? Há momentos encontravam-se todas aqui.
O clone hesitou antes de aventurar:
— Creio que entraram na naveta para se despedirem do tenente
Starbuck.
— Era de prever!
Com efeito, no interior do aparelho, Starbuck achava-se imerso na
persistente, embora não fastidiosa, tarefa de distribuir beijos por três Tennas,
as quais pareciam apreciar particularmente o ritual.
— Chegou a altura da partida, tenente — lembrou Apollo, conservando
com dificuldade uma expressão grave.
Todavia, o outro mostrava-se relutante em obedecer e, acercando-se do
superior, murmurou em tom conspiratório:
— Não podem vir connosco? São só três e...
— Impossível. Não devemos interferir na vida desta gente mais do que
já fizemos.
— Não foi uma interferência desagradável — asseverou uma das
Tennas.
A observação de Apollo a Ravashol correspondia à realidade num grau
mais elevado do que ele supusera. Na verdade, os clones tornavam-se cada
vez mais humanos.
— É uma oportunidade única, capitão — insistiu Starbuck. — Três
versões da mesma mulher atraente. Já pensou nisso?
— Bem de mais. Fica para a próxima, Starbuck.
— Mas, capitão...
— Desculpe, Starbuck. Adeus a todas e obrigado. Estamos-lhes todos
muito gratos.
— Queria apenas pôr umas contas em dia — murmurou Starbuck; então
disse, de forma a englobar as três mulheres: — Adeus, Tenna.
As três acenaram-lhe em conjunto, com uma idêntica tristeza no olhar.
Enquanto o amigo as via abandonar a naveta, Boomer deu-lhe uma
palmada nas costas.
— Hoje conquista-se uma, amanhã perde-se outra.
— Mas eu perco três ao mesmo tempo. — Nesse momento, Starbuck
voltou-se e viu Athena fitá-lo com uma expressão incendiária. — Estou em
maré de azar — articulou entre dentes. E avançou para ela, proclamando: —
Éramos apenas amigos. Palavra! — Vendo que se mantinha silenciosa,
continuou: — Ouvi dizer que operaste maravilhas com esta caranguejola. —
Os cantos da boca de Athena deixaram transparecer contrações nervosas,
como se quisessem sorrir. — Foi pena não ter assistido. Hás de contar-me
tudo pormenorizadamente, hem?
Permanecendo calada, inclinou a cabeça na direção do compartimento de
comando da naveta e encaminharam-se para lá, onde Starbuck ocupou o
assento do copiloto, enquanto ela começava a examinar os instrumentos
como operação prévia da descolagem.
***
Pela primeira vez desde longa data, o líder imperial sentia-se abismado e
tivera de verificar três vezes o relatório com os seus oficiais adjuntos. Não
subsistia a mínima dúvida: o canhão-laser fora destruído. O contato com o
primeiro-centurião Vulpa e a sua guarnição perdera-se, tudo indicando que os
sistemas de transmissão tinham sido destruídos, com o canhão. Tinham sido
detectadas algumas naves humanas abandonando o planeta. Depois,
abruptamente, a própria frota dos humanos escapara-se ao raio de ação dos
cylons. Nenhum dos oficiais sabia como tal pudera acontecer, conquanto
suspeitassem de que a Galactica conseguira criar novo campo de força de
camuflagem. Todavia, quanto ao rumo que tomara, nem conjeturas logravam
traçar.
A armadilha devia ter resultado. Tudo se passara como se os humanos
houvessem caído nela e depois encontrassem um meio de se escapar.
O líder imperial emergiu das cogitações e descobriu que o simulacro de
Starbuck o contemplava com um sorriso.
— Como fugiram? — Inquiriu o cylon.
— Não fugimos, olhos de percevejo. Derrotámo-los, pura e
simplesmente. Derrotámo-los mais uma vez. E continuaremos...
O líder imperial lançou-se sobre Starbuck, decidido a estrangulá-lo. No
entanto, as mãos atravessaram a garganta do simulacro e não alteraram o seu
sorriso. Por fim, com um esforço gigantesco, o cylon impeliu o simulador do
pedestal, fazendo-o despedaçar-se no solo. Voaram faíscas em todas as
direções e, por um momento, Starbuck destacou-se dos fragmentos, após o
que se extinguiu repentinamente.
CAPÍTULO XXIX
CROFT.
Depois de tudo por que passei, a ponte de comando da Galactica parece
incrivelmente claustrofóbica, apesar de ser uma câmara imensa. No entanto,
não consigo evitar que os ombros se contraiam em virtude da exiguidade da
cela em que me julgo encerrado. Celas prisionais. A minha vida dá a
impressão de se resumir nisso. Talvez devesse ter aproveitado a oportunidade
para fugir com Leda e Wolfe. É possível que ainda vivessem e não me
sentisse tão enjaulado. Em todo o caso, ao observar as expressões de alegria
das pessoas que me rodeiam, não posso deixar de sentir que as vidas deles
foram trocadas por estas, do pessoal e passageiros das numerosas unidades da
frota. Talvez fosse a troca mais apropriada.
Adama enaltece as proezas de Apollo e da expedição que redundaram no
êxito absoluto da missão e engloba nos elogios Athena, pela sua perícia no
comando da naveta de socorro. Tento integrar-me emocionalmente no
ambiente, mas apenas consigo admitir que foi mais um trabalho que executei.
Não quero menosprezar a minha intervenção, sobretudo os malabarismos a
que me entreguei na corda, com o garoto nos braços, mas continuo
convencido de que não pertenço aqui, compartilhando da distribuição de
louvores. Serviram-se de mim, porque não lhes restava outra alternativa, de
contrário deixavam-me apodrecer na cela. Na cela para onde agora me vão
enviar de novo.
Adama aproxima-se agora de Cree e enaltece a sua coragem, com o que
concordo plenamente. Eu preferia continuar suspenso daquela corda ou
afundar-me numa avalancha a ser submetido às torturas dos cylons. Sim,
Cree, mereces os elogios.
De repente, vejo Adama na minha frente. Tento perfilar-me, numa
atitude reflexa dos velhos tempos, mas tenho os ossos demasiado doridos
para o conseguir com êxito.
— Croft...— Começa, olhando-me com gravidade.
— Já sei — replico, diligenciando esboçar um sorriso. — É altura de
voltar para a cela.
Adama sorri igualmente. O monstro sorri por me enviar para a cela!
— Não — declara, após uma pausa. — Penso que cumpriu o resto da
pena naquele planeta gelado. Os seus préstimos são necessários na Galactica,
comandante.
Quase não acredito no que oiço. Comandante! Sou reintegrado. Se Leda
estivesse aqui, talvez... Tenho de me habituar a não pensar nela. De qualquer
modo, diria que a reintegração carecia de valor material.
Adama pousa-me a mão no ombro e afasta-se para junto do garoto e do
seu daggit, que se entretém a fazer cabriolas.
— Boxey, se alguém merece ir para a nave prisional por desobedecer às
ordens transmitidas...
O miúdo parece assustado e quase acudo em seu auxílio, enquanto o
dróide solta latidos.
No fundo, porém, um bom susto talvez o cure da tendência para se
aventurar em lugares perigosos.
Mas custa-me a crer.
CAPÍTULO XXX
O primeiro-centurião Vulpa fez passar com dificuldade o corpo pesado
pela abertura da cornija despedaçada. O som do metal do uniforme em
contato com a superfície gelada produziu ecos que rolaram pela encosta da
montanha. Baixou os olhos para o uniforme e verificou que muitas das cintas
negras impostas devido a provas de bravura haviam sido arrancadas durante a
escalada. Por outro lado, os rasgões no revestimento metálico ocorridos
durante a aterragem de emergência do caça tinham-no tornado virtualmente
ineficiente para neutralizar a temperatura glacial.
Já não faltava muito. Recorrendo a toda a força de vontade que os dois
cérebros lhe podiam proporcionar, continuou a trepar. Quando alcançou a
Estação do Topo, reconheceu que esgotara todas as energias e conservou-se
imóvel por muito tempo.
Por fim conseguiu reunir o vigor necessário para se erguer e, sem olhar
em volta, arrastou-se pesadamente por entre os destroços, até atingir o centro
onde se achavam os resíduos da que fora a arma mais poderosa do universo.
A sua estrutura cinzenta e soturna ainda apontava majestosamente para o céu,
porém apoiava-se numa plataforma fragmentada. A potentíssima bomba de
energia achava-se transformada numa massa irreconhecível. Os destroços
espalhados e retorcidos, impossíveis de identificar, espalhavam-se por todos
os lados do solo ainda intato. Aqui e ali, Vulpa reconhecia um capacete ou
uniforme de um dos seus guerreiros. Formara-se uma ponte de metal
calcinado pelo calor sobre o túnel do elevador. À parte a estrutura da peça,
nada de tangível revelava o que ali existira.
Apoiando o pesado corpo na estrutura metálica, o primeiro-centurião
decidiu imergir numa fase meditativa. A capacidade para o conseguir no meio
de uma situação catastrófica como a atual constituía uma qualidade do
segundo-cérebro que lhe era extremamente grata.
Assim, podia agora meditar, alheio ao caos que o circundava e respectiva
influência na sua vida, durante muito tempo.
Talvez por toda a eternidade.
Ou até que chegasse uma guarnição de reforço.
Ou até que morresse.
Era-lhe indiferente.
Notes

[←1]
Designação atribuída aos animais que se alimentam de cadáveres ou carne podre. (N. do T.)
[←2]
Trocadilho com as palavras «dois» (two) e «também» (too). (N. do T.)

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