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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 20
TÍTULO: OS TÚMULOS DE COBOL
TÍTULO ORIGINAL: THE TOMBS OF KOBOL
AUTOR: GLEN A. LARSON / ROBERT THURSTON
TRADUÇÃO: EDUARDO SALÓ
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com
FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL
romulorangel1969@gmail.com
DISPONIBILIZAÇÃO
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GLEN A. LARSON / ROBERT
THURSTON

OS TÚMULOS DE KOBOL
Tradução de Eduardo Saló

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 20


PRÓLOGO
Baltar lembrava-se distintamente de ter morrido. Sim, devia estar morto.
A memória estava ainda bem viva. Se abrisse agora os olhos que veria? O
nada? O após-vida? Uma vasta e infinita terra de nuvens onde a religião era
praticada diariamente? Ou então uma eternidade de fogo e torturas? Uma vez
que acreditava devotamente em todas estas possibilidades, decidiu esperar
um pouco mais antes de abrir os olhos.
Em vez disso, decidiu relembrar os acontecimentos que tinham levado à
sua morte. O líder imperial dos Cylons tinha-se voltado inesperadamente
contra si, renegando um acordo originalmente proposto pelos próprios
Cylons, um acordo cujos termos vantajosos tinham influenciado Baltar a
enganar o seu próprio povo, fingindo ser um enviado da missão de paz,
escondendo a real invasão pelos Cylons dos Doze Mundos dos humanos.
Depois de o líder ter dito a Baltar que tinha deixado de figurar nos planos dos
Cylons, Baltar fez uma última e desesperada tentativa para se salvar. No
entanto, o líder ouviu os protestos de Baltar com um simples ar de grande
passividade, voltando depois o seu enorme corpo maciço para um oficial às
ordens que estava perto e ordenando-lhe que levasse Baltar para ser
decapitado. Baltar sabia que tivera uma atitude cobarde quando o oficial o
levou — gritando, debatendo-se, chorando — da câmara de comando. Corava
à simples lembrança de ter realmente chorado. Lágrimas reais, as primeiras a
caírem do seu rosto desde que uma mãe aristocrática e dominadora o tinha
apanhado numa das suas primeiras malandrices.
O oficial arrastara-o por vários corredores até à câmara de execuções,
situada bem no interior da estrela-base. O carrasco tinha imobilizado a
desesperada e inútil resistência de Baltar pressionando um determinado ponto
no pescoço e paralisando assim o seu sistema nervoso central. Enquanto
Baltar ali jazia indefeso, o carrasco experimentava lentamente o fino gume do
seu longo machado, dirigindo propositadamente a sua parte metálica para
uma lâmpada brilhantíssima, que enviava raios insuportavelmente luminosos
na direção dos olhos lacrimejantes de Baltar. Depois de ter a certeza de que a
lâmina estava afiada ao máximo, o carrasco levantou o machado circular por
cima da cara de Baltar (os Cylons executavam sempre as suas vítimas com a
cara virada para o carrasco) e ele fechou os olhos. O seu corpo teria
certamente tremido descontroladamente se não estivesse já entorpecido.
Ouviu finalmente o zumbido do machado iniciando o seu trajeto de morte.
Depois, nada. O seu cérebro ficara completamente em branco até este
momento, quando a consciência regressava repentinamente.
Relembrando o som medonho do machado descendo para o seu pescoço,
lembrou-se de repente de um som simultâneo, que sublinhava suavemente a
brutal melodia do instrumento de morte. Uma voz doce e aveludada
segredando: «Espera.» Tê-la-ia ouvido realmente? Não, a memória devia
estar a brincar com ele. Não tinha havido nenhuma...
— Ao que vejo, já não está inconsciente. Sente-se melhor, Baltar?
Aquela voz de novo! Macia, aveludada, a mesma voz que tinha falado
em esperar.
— Precisa de manter os olhos fechados? Ou será que isso é mais um dos
absurdos costumes humanos que...
— Estou decidido a manter os olhos fechados — murmurou Baltar. Mas
depois compreendeu as implicações dessa declaração. Os seus olhos estavam
fechados. Os seus olhos. Na sua cabeça. Ainda tinha cabeça! Não poderia
abrir ou fechar os olhos se...
Abriu os olhos.
— Ah, assim está melhor. — A voz baixou uma oitava. — Bem, pelo
menos marginalmente.
Assutado, Baltar pensou em fechar os olhos novamente. Julgara que iria
ver um típico cylon, ou um guerreiro totalmente equipado ou então uma
daquelas bestas reptilianas em que se tomavam quando atingiam o segundo
ou terceiro nível mental. Mas esta criatura era um tipo de monstro
completamente diferente, uma criatura brilhante, resplandecente, alta, que
deliciava os olhos com as suas superfícies enfeitadas e desprendia um odor
metálico mais intenso e almiscarado que os fatos de combate normalmente
usados pelos Cylons.
Baltar fazia todos os esforços por se concentrar nas partes individuais da
criatura. Da sua cabeça esférica e transparente saíam continuamente luzes de
todos os tipos. Em vez de um feixe único movendo-se alternadamente para cá
e para lá sobre o capacete, esta criatura parecia dispor de duas luzes
vermelhas, movendo-se suavemente em sentidos inversos uma da outra num
par de orifícios semelhantes a olhos. A boca, uma fenda estreitíssima, estava
iluminada por dentro com uma espécie de luz fosforescente azul. Alta e
magra, mantinha as mãos enluvadas diante da capa com um colorido de uma
riqueza desusada. Baltar não se lembrava de ter alguma vez visto um cylon
com tal aspecto.
A criatura aproximou-se um passo e parte da capa de veludo vermelho
roçou pela mão de Baltar. O veludo era grosso e luxuriante, tão macio e rico
como a voz que lhe talou de novo:
— O meu nome é Lucifer, um nome um pouco tímido, não acha? Na
realidade trata-se de uma sigla.
— Sigla de quê?—disse Baltar.
— Oh, mas é absolutamente proibido dar-lhe tais informações. Faz parte
da zona secreta da nossa língua.
— Então não diga nada, não me importo.
— Não seja petulante, Baltar. Salvei-o da execução. Está contente?
— Não sei o que estou. Parece que tenho uma trapalhada contínua na
cabeça. Deixe-me pensar... Disse que o seu nome era Lucifer?
A cabeça de Lucifer descaiu ligeiramente para um lado.
— O meu nome oficial, sim. O nome que posso usar consigo, como de
costume. Tenho também um nome secreto. Todos os cylons têm e, graças à
sua generosidade, foi-me permitindo adotar o mesmo costume. Nunca saberá
certamente o meu verdadeiro nome. É qualquer coisa de humilhante deixar
que esse nome seja...
— Pare com essa conversa por um momento. Dói-me a cabeça. Não
aguento a sua lengalenga infernal.
— Tem sorte em ainda ter uma cabeça que lhe doa.
— Você impediu a minha execução.
— Sim.
— Porquê?
— Em meu próprio benefício. Pensei que ainda me pudesse ser útil.
Baltar procurou uma posição sentada. O corpo pesava-lhe mais do que o
costume, e pensou que podia suportar esse peso extra fixando-o ao chão.
— Que é que o vosso todo poderoso líder imperial disse desse
salvamento?
Lucifer fez uma pausa, inclinou a cabeça para o outro lado. Baltar tinha
dificuldade em fixar os olhos de Lucifer, pois os dois globos vermelhos
deslizavam de um lado para outro totalmente dessincronizados.
— O líder imperial não sabe que ainda está vivo. Mandei o guarda de
volta com a mensagem de que foi devidamente executado e evacuado para o
espaço por uma saída de lixo.
— Uma saída lixo! Como se atreve?! Devia matá-lo agora mesmo.
— Não vale a pena tentar. Eu não posso ser morto. Qualquer dano que
me provoque pode ser facilmente reparado. Além disso, se quer saber, a
solução da saída de lixo é ainda viável, e sugiro-lhe por isso que lide comigo
e me cuide usando um dos vários estratagemas cínicos e hipócritas em que os
humanos são especialistas. Será inegavelmente preferível a que lance o seu...
digamos... considerável peso para o rol das inutilidades.
Baltar acenou com a cabeça. Era melhor esperar e espreitar todas as
oportunidades. Não valia a pena antagonizar o único ser que estava do seu
lado.
— Sim, tem razão. Mas que dirá o vosso líder imperial quando souber o
que fez, Lucifer?
— Ficará... Aborrecido. Mas já estará convencido da correção do meu
plano.
— Parece muito confiante.
— A incerteza é um estado pouco atraente. Não o aprovo.
Havia um estranho ritmo na maneira de falar de Lucifer, mas Baltar não
conseguia perceber o que isso significava. Não soava como os outros cylons,
isso era um fato. Um momento: que é que a criatura disse quando estava a
dissertar sobre os nomes secretos?
— Parece querer dizer que não é um cylon, Lucifer.
— É correto. Não sou, para meu eterno desgosto. Sou uma das suas
construções, o desenvolvimento de um dos seus planos de guerra, e, por sinal,
bastante engenhoso. Um computador com pernas, ou melhor, cibernética
ambulante sensível, que ficou melhor e mais eficiente que o inicialmente
previsto.
Baltar perscrutou intensamente os seus olhos, tentando descortinar no
rosto profusamente iluminado um sinal que lhe garantisse que estava a falar
realmente verdade.
— Quer dizer que é apenas isso, um computador?
— Apenas? Vocês, humanos, têm uma escala de valores bastante
esquisita. Sou produto de uma revolução cibernética mais significativa e
valiosa do que os ineficazes e, de fato, repelentes estágios de
desenvolvimento por que passou a sua espécie durante a sua evolução. Sabe
por acaso que há um milênio os seres humanos eram apenas... Ah, não
suporto sequer pensar nisso!... Os humanos eram meramente...
— Basta! Não vou aqui ficar sentado a discutir com uma máquina.
— E de compreensão muito lenta de fato, Baltar — parecia
condescender Lucifer. — Vou ter muito trabalho consigo. Ah, bom, os
projetos mais agradáveis são os mais difíceis.
— Não o estou a seguir, Lucifer.
— É bem provável que isso nunca aconteça. Meu caro conde, eu não sou
apenas uma máquina. Posso fabricar máquinas. As máquinas não têm alma.
Eu tenho alma.
— Isso é pateticamente ridículo. Como é que um computador pode ter
alma?
— Criei-a eu próprio.
— Deve ser louco.
— Isso é apenas o que você julga, e por sinal um julgamento bastante
emocional. Porém não vou ter em consideração esses desabafos. Você vai
ficar aqui nas minhas instalações. Ainda está exausto, descanse. Começará
amanhã o seu programa de treinos.
— Programa de treinos? Porquê um programa de treinos?
As duas luzes vermelhas pararam por um momento e pareceriam olhar
diretamente para Baltar. O odor metálico da criatura tomou-se mais
desagradável, como se se lhe tivesse adicionado algum ácido ou óleo.
— Olhe para si. Peso a mais, abaixo de forma, flácido, resulta de uma
vida demasiadamente permissiva. O seu corpo está tão exausto como o seu
cérebro. Se o meu projeto for bem-sucedido, ambos atingirão níveis bastante
elevados.
— Não farei parte de nenhum...
— O que quer que fosse que Baltar tencionava dizer acabou de fato num
fraco sussurro, enquanto Lúcifer dava meia volta sem se despedir e deslizou
para uma porta por onde saiu.
***
Durante os dias seguintes Baltar pensou morrer com o programa de
treinos de Lucifer. E bem melhor ser atrasado mental do que ver todos os
ossos, articulações e tendões do corpo assoberbados com exigências para que
claramente não foram previstos.
Em todo o caso, Lucifer mostrava-se capaz de fazer exatamente o que
tinha dito: podia manufaturar máquinas. E que máquinas! Irromperiam para
sempre nos pesadelos de Baltar. Todas as manhãs Lucifer estendia Baltar, a
sua vítima indefesa, num aparelho semelhante a uma roda de tortura, cujas
intrincadas extensões mecânicas forçavam o humano barrigudo a fazer
flexões de bruços quando colocado numa posição e flexões sentado quando
colocado noutra. Mas o que Baltar realmente odiava era que nada o podia
impedir de fazer essa calistenia.
Depois de cada sessão na roda, era transportado para o quarto sem
forma, onde era lançado de uma superfície para a outra, aterrando geralmente
sobre o seu enorme estômago. Lucifer dizia que aquele quarto tinha sido
especialmente concebido para eliminar peso das partes centrais.
Depois era a vez do moinho de degraus. Quando posto em
funcionamento, as paredes metálicas e tristemente cinzentas da sala de
estrela-base pareciam desaparecer e Baltar parecia ficar rodeado por um vasto
exterior. O objetivo, como depressa descobriu, era simular a existência de
uma forma humana numa corrida efetiva. A princípio, o simulacro bateu-o
facilmente.
No entanto, a medida que o seu corpo ia ficando em forma, Baltar
começou a recuperar regularmente. Até que, durante a sessão em que estava
confiante que ganharia, tendo preparado já um grande sorriso de vitória para
o momento em que o peito recentemente musculoso cortasse a meta, o
simulacro ganhou de novo... Com grande facilidade. Baltar queixou-se a
Lucifer, que explicou, condescendente, que o corredor tinha deixado de ser
programado para passo lento e passara à velocidade normal. Mais tarde,
quando a velocidade de Baltar atingiu de novo o nível programado, voltaria a
ser de novo programado para andamentos cada vez mais rápidos. As
revelações de Lucifer aumentavam a feroz determinação de Baltar de bater o
seu opositor simulado. E esse desejo de vencer aumentou ainda mais quando
Lucifer introduziu uma nova variante: reajustando o rosto normal do outro
«corredor» de forma a assemelhar-se o mais possível com o inimigo mais
odiado por Baltar, o comandante Adama, da estrela-de-batalha Galactica.
Já por si era mau ter de correr contra uma figura que se parecia com
Adama, mas a coisa tomava-se quase insuportável por o simulacro ser de fato
uma versão mais jovem do comandante da Galactica. Aquele Adama parecia-
se muito com o Adama real, tal como Baltar o conhecera pela primeira vez.
Tinham ambos sido cadetes na academia. O seu ódio por Adama começou
nessa altura. Apesar de estarem em aulas diferentes, encontravam-se com
frequência durante os ensaios do Coro da Academia. O vibrante baixo-
barítono de Adama granjeou-lhe mais elogios que o tenor inseguro de Baltar.
E quando Adama foi publicamente louvado por conseguir os melhores
resultados, Baltar passou a odiá-lo ainda mais. O último golpe surgiu quando
Baltar foi levado a abandonar a academia por ordem expressa do Conselho da
Faculdade e pelo Conselho de Cadetes, por fazer batota com o computador de
testes. (A sua defesa era de que nem sequer tinha feito batota. O seu único
objetivo era programar algumas piadas para aliviar o fardo dos seus colegas
cadetes.) Os vigilantes concordaram em abafar o escândalo fornecendo para a
expulsão uma desculpa oficial baseada em questões de saúde. Para tomar o
caso ainda pior, Adama intercedera a favor de Baltar, atitude que duplicou o
profundo ódio que Baltar já lhe dedicava.
A partir daí, sem carreira decente onde empregar os seus talentos, Baltar
escolhera o único caminho aberto para qualquer jovem cujo principal talento
era a fraude: a política. Apesar de ter conseguido apoderar-se de uma enorme
riqueza e até de ganhar um lugar no Quórum dos Doze, em todo o resto
mostrou ser também um completo falhado. Todos os comitês que
ambicionava dirigir eram-lhe negados, todas as posições de proveito que
desejava para si eram dadas a talentos menores. O desencanto e a amargura
levaram-no a patuar com o inimigo, e a sua fortuna aumentou
desordenadamente com toda a qualidade de negociatas escuras e pouco
escrupulosas. A sua misantropia crescia com a sua fortuna. Até que
finalmente tinha concluído o seu último negócio dourado: vender toda a raça
humana. Mas até isso tinha sido impedido pelas ações vigorosas de Adama,
que reunira os derradeiros esforços dos sobreviventes. Parecia que Adama
interferiria para sempre na vida de Baltar. Por uma única vez que fosse, tinha
de bater o comandante da Galactica, mesmo que fosse apenas numa corrida
com a sua sombra simulada.
Finalmente, com um excelente sprint na reta de chegada. Baltar ganhou.
E com o programa mais rápido. Quando cortou a meta olhou para o simulacro
de Adama e ficou desapontado por não ver um semblante triste e humilhado.
Baltar nem sequer podia desfrutar do sorriso de vitória que com tanto cuidado
ensaiara.
Lucifer felicitou-o na linha de chegada e disse que tinha chegado a altura
de enfrentar o líder imperial.
***
O líder imperial, de olhar sombrio e semblante carregado, no alto do seu
enorme pedestal, não parecia minimamente surpreendido por Baltar ter
sobrevivido.
— Precisamos de ti novamente, Baltar — disse o líder.
Baltar conseguiu fazer uma vénia. Estava contente por poder mover o
corpo sem sentir as inúmeras pregas de gordura ondular por todo o lado como
massas de gelo flutuante.
— Sempre pronto para servir — disse.
— Não brinques comigo, humano. Ouve as tuas ordens em silêncio.
Ainda não conseguimos capturar a frota humana em fuga. Os meus ajudantes
têm especulado que os nossos erros têm sido devidos ao fato de não sermos
capazes de lidar com uma mente alienígena. Tem sido sugerido que com um
humano no comando de uma base estelar, especialmente um que já seja nosso
aliado, talvez seja possível vencermos precisamente onde temos falhado.
— Senhor, seria para mim uma honra...
— Portanto, decidi aceder ao teu pedido de não seres executado.
— Não ser executado? Porque não um perdão completo?
— Como quiseres. Não me interessa muito a terminologia do teu pedido.
«Claro que não está interessado na terminologia», pensou Baltar. «Já me
traiu uma vez, e aí está ele, no topo do seu trono, fingindo que nada se
passou. Bem, a partir de agora não encontrará tão facilmente oportunidade
para me mandar executar de novo.»
— Uma estrela-base será destacada da força principal e colocada sob o
teu comando. Lucifer acompanhar-te-á e será o elemento de ligação comigo.
Deixaremos as questões de estratégia contigo. Mas tens de destruir a
Galactica e a sua frota!
Baltar deu um passo arrogante na direção da base do pedestal. Olhando
para cima, para a figura cinzenta e difusa do líder, rugiu:
— Desejo que um regimento completo de combatentes cylons e de
pessoas qualificadas para a sua manutenção seja também posto sob o meu
comando.
O líder imperial mexeu-se um pouco no trono.
— Concedido — disse finalmente.
— Exijo instalações de luxo e todos os privilégios normalmente
concedidos ao comandante de uma estrela-base.
— As necessidades dos nossos comandantes são geralmente simples.
Não somos favoráveis aos complicados símbolos de poder que os humanos
parecem julgar necessários. No entanto, apresenta os teus pedidos através de
Lucifer e eles serão satisfeitos.
— E quanto a Lucifer. Nunca teria o comando completo com um dos
teus espiões olhando por cima do meu ombro. Exijo que seja programado
para obedecer ao meu comando.
— Olhe lá... — Começou a dizer Lucifer, mas o líder imperial calou-o
vociferando omnipotente:
— Concedido.
Lucifer parecia estar amuado, as luzes vermelhas caindo lentamente para
cor-de-rosa, as luzes azuis perdendo o brilho.
— E mais uma coisa, líder imperial — disse Baltar. — Na cabina de
comando da estrela-base quero o meu próprio trono...
— Concedido.
— E um pedestal.
— Concedido.
— Tão alto como o teu.
— Concedido.
— Estou satisfeito.
— Assim o creio. Lucifer, transporta Baltar para a sua nave.
Ao sair da câmara do líder imperial, Baltar sabia que o som
distintamente proveniente da zona do trono não era um sinistro riso abafado,
por muito que a isso se assemelhasse.
CAPÍTULO I
Apesar de já estar sentado há muito tempo no compartimento às escuras.
Apollo não podia distinguir nem sequer os contornos dos objetos mais
familiares. A única luz na sala vinha das configurações luminosas do seu
cronômetro de pulso, um modelo em miniatura dos símbolos dos Doze
Mundos.
Começou a tomar consciência lentamente de dores musculares nos
ombros e nas pernas. Estivera sentado na mesma posição durante tempo
demasiado. Mudando um pouco de posição, sentiu o peso do aparelho de
gravação portátil mexendo-se sobre o seu colo. Esquecera-se dele por
completo. Pegando-lhe, segurou-o fortemente com mãos que, não tinha ainda
reparado, estavam a tremer.
Serina dissera que havia vários cristais gravados algures numa gaveta.
Cristais que tinha usado há algum tempo. Inspecionou cuidadosamente várias
gavetas na zona de arrumações por baixo da cama antes de localizar os
cristais a um canto. Agarrando-os, murmurou:
— São tão pequenos, todos juntos. Tanto do seu tempo comprimido
nestes pequenos globos.
Compreendeu que podia destruir todo o trabalho dela apenas fechando o
punho um pouco, e a mão começou a tremer ainda mais, com receio de que o
pudesse fazer involuntariamente. Ternamente colocou os cristais em cima de
uma secretária e acendeu uma luz fraca. Cada cristal estava numerado e
datado, organizado por Serina para os arquivos.
Tinha medo de os ouvir, de ouvir agora a sua voz de novo. Mas não
havia outro remédio, tinha de ouvir. Introduzindo no dispositivo de playback
do gravador o que tinha a data mais antiga, apertou um botão que, em vez de
funcionar devidamente, saltou de novo para a posição inicial. Pressionando-o
com mais delicadeza, conseguiu, à segunda tentativa, conservá-lo no lugar.
Subitamente, a voz de Serina encheu a pequena sala. Demasiado alto — não
soava natural, era como se falasse por um altifalante. Baixou o som, e agora
parecia que ela estava a seu lado. Apagou a luz e, na quase completa
escuridão da sala, escutou.
SERINA: …agora a trabalhar. Se este botão não salta outra vez estamos
a gravar.
Okay. Ao trabalho. Aqui Serina. Costumavam ser estas as palavras que
pronunciava quando me apontavam uma câmara. A minha marca registada
como primeira jornalista em Caprica. É estranho como já não saem agora tão
naturais. Que é que pensas, Cassie...? Pausa enquanto Cassiopeia encolhe os
ombros. Tenta falar para o microfone, Cassie... Vá, agora...
CASSIOPEIA: Não tenho nada para dizer. Quando tiver...
SERINA: Surpreende-me ver-te a ti, precisamente a ti, sem palavras.
Bem, penso que devíamos...
CASSIOPEIA: Talvez seja...
SERINA: Desculpa, Cassie. Dizias que...
CASSIOPEIA: Talvez sejam as recordações daquele último dia em que
Caprica foi atacada pelos Cylons. Estavas a trabalhar nessa altura, não
estavas?
SERINA: Talvez tenhas alguma razão. Vamos começar pelo princípio,
depois monto tudo melhor. Um, dois, três, apuro a garganta... Vamos!
Aqui Serina, a bordo da estrela-de-batalha Galactica. Este é o primeiro
do que espero venham a ser diversos cristais gravados destinados aos
arquivos para que as gerações futuras possam saber alguma coisa sobre a
história dos sobreviventes humanos após a derrota dos Doze Mundos perante
os Cylons, resultado de um ataque traiçoeiro ocorrido durante o sétimo
milênio de história documentada. Até agora, todos os que estamos a bordo
desta estrela-de-batalha, e as tripulações das avariadas e muitas vezes
ineficazes naves da nossa frota, temos estado mais ocupados com a nossa
sobrevivência e com o combate das forças cylons que ainda nos perseguem.
No entanto, pensei ter chegado a altura de voltar à minha profissão e fazer
alguma coisa para os arquivos.
A minha biografia: Era uma jornalista em Caprica. Nativa de Caprica,
apesar de ter viajado longamente em busca de histórias por todos os Doze
Mundos. Posso também dizer que era muito considerada na minha profissão e
que ganhei alguns dos maiores prêmios, apesar de ser obrigada a recusá-los
por razões demasiadamente maçadoras e demasiadamente políticas para falar
delas aqui. O meu namorado diz que sou imprudente, mas isso não...
CASSIOPEIA: Namorado? Quer dizer que Apollo finalmente tocou no
assunto? Não acredito! Por todas as estrelas do universo, pensei que nunca
veria...
SERINA: Duvido que os arquivos estejam muito interessados na minha
vida privada.
CASSIOPEIA: Mas estou eu. De qualquer forma, isto é apenas uma
gravação de ensaio, não é? Para te reintegrares de novo na rotina e tudo isso.
Quero dizer, tu és a grande jornalista e acabas de lançar a grande notícia.
Nem posso esperar para ouvir tudo. Diz-me... Agora é Serina que encolhe os
ombros.
SERINA: Está bem. Fui eu que me meti na ratoeira. Antigamente
conhecia melhor as audiências. Devia saber de sobra que...
CASSIOPEIA: Vamos a isso, por favor.
SERINA: Está bem. Deixa-me compor as ideias. Digo-te tudo e depois
voltamos a meter o cristal e começamos tudo de novo. Espera enquanto
desligo o gravador. Raios, não consigo funcionar outra vez com o botão.
CASSIOPEIA: Deixa andar. Arranjamos isso mais tarde...
SERINA: Mas, realmente, que há para dizer? Apollo pediu-me em
casamento. Ontem à noite.
CASSIOPEIA: À luz romântica do quarto, com ambrosia ao lado, flores
nas mãos, os dois sozinhos...
SERINA: Não, pediu-me mesmo em frente de toda a família. E de
Starbuck. Se queres saber, foi depois do jantar. Foi forçado a isso, intimidado
pela família. E por Boxey, que me disse ontem que agora já é oficialmente
meu filho e não mais adotado. E o seu primeiro ato oficial foi disparar-me
para o casamento.
CASSIOPEIA: Não queres casar com Apollo? Pensava...
SERINA: Não, o que eu não esperava era que ele atuasse como um
pequeno colaborador, o patife. Entretanto, estou a pôr tudo fora de ordem.
Deixa-me dizer como aconteceu.
CASSIOPEIA: Comemos nos aposentos do comandante. A desculpa de
Adama foi a de que estava a precisar de uma refeição sossegada, longe das
pressões do dever. Era a sua história, porque penso que também fazia parte da
conspiração geral. Não me admirava que tivesse sido tudo um estratagema
seu. Estratégia de comando, percebes. Entretanto, Athena e eu preparámos a
melhor refeição que podemos com as rações. Conseguimos usar um pouco
daquela carne azulada esquisita que os Ovions de Carillon nos enviaram antes
de começarem a caçar-nos tentando matar-nos.
CASSIOPEIA: Meu Deus, não recordes essas coisas. Quase me
apanharam numa daquelas horríveis redes, lembras-te? Fico arrepiada só de
pensar nisso.
SERINA: As minhas desculpas. Entretanto... Quando acabou a refeição.
Adama pegou-me na mão e felicitou-me pelo repasto maravilhoso. Conheces
como gosta das palavras esquisitas. Disse-me que me tinha superado a mim
própria. Era uma piada, acredita. Como cozinheira, cá me vou arranjando. Por
isso disse-lhe que quem merecia a maioria das felicitações pela refeição era
Athena. E Athena, com aquele seu ar de modéstia, limitou-se a negá-lo.
Penso que também estava dentro da conspiração. Então Adama fez um longo
discurso sobre como, sendo especialista em assuntos culinários — as palavras
são dele —, me julgava uma profunda conhecedora. Aí tive de o admirar. A
maioria dos homens a bordo desta estrela-de-batalha teriam dito qualquer
coisa como senhora da cozinha. Bom, não foi nada disso. O comandante
continuou a cumprimentar-me, acabando por dizer que eu era um verdadeiro
achado, que não lhe escaparia se fosse significativamente mais novo. De
repente reparei que Adama e Starbuck — e Boxey, também — estavam todos
a olhar para Apollo, que parecia bastante pouco à vontade, deixa-me dizer-te.
Então Adama recostou-se na cadeira e disse, juro que foram estas as suas
palavras:
— Sim, senhor, há um certo jovem que se vai lançar alegremente no
regaço de uma glória antecipada.
Bom, eu começava a sentir-me tão crispada e exposta como Apollo
parecia estar. Olhava para trás e para diante, para todos, como se esperasse
que aparecesse de repente um buraco negro onde pudesse mergulhar
rapidamente. Starbuck e Adama sorriam, bem, de modo peculiar. E Boxey, o
pequeno... Boxey lançou a Apollo o olhar mais sujo que se possa imaginar.
Depois murmurou:
— Durante o período de instrução disseram-me que algumas pessoas são
naturalmente lentas.
Nesse momento juro que poderia ter servido a cabeça de Boxey fervida.
Parece-me que pude ler o meu pensamento, pois tentou disfarçar. Disse que
isso não significava que fossem estúpidas, mas apenas que eram um pouco
lentas, e fuzilou Apollo com outro olhar sujo. Parece que estás a gozar
imenso com tudo isto. Cassie.
CASSIOPEIA: Imenso. Continua.
SERINA: Vejamos. Sim. Starbuck tentou então baixar a tensão com uma
piada. Disse que se continuasse a ter refeições como aquela, umas quantas
vezes por dia, uma pessoa deixaria bem depressa de poder subir para o
cockpit. Mas Adama. que não é pessoa para ser afastada de um assunto, falou
em como estávamos há tanto tempo a empanturrar-nos... E fez uma pausa
antes de acrescentar: à espera. Ficamos todos petrificados, como se
estivéssemos no palco e fosse altura de entrar em cena. Quando Apollo olhou
carrancudo para o pai. Adama recuou um pouco, acentuando que queria
dizer, é claro, à espera de todos os pratos da refeição. E Athena fez mais uma
vez o seu extraordinário riso abafado, e nessa altura já toda a gente na sala
sabia perfeitamente o que todos os outros queriam. Sentia-me bastante
embaraçada, apesar de não fazer parte da conspiração. Não queria de modo
nenhum que Apollo pensasse que a minha participação no cozinhado da
refeição era parte da cilada preparada para o forçar a declarar-se. Por outro
lado, fosse ou não uma conspiradora ativa, confesso que a cilada resultou
bastante bem. E estou mesmo um pouco envergonhada por me sentir tão bem.
Entretanto. Apollo reconheceu a importância do longo silêncio que se
seguiu e de todos os olhares que o fitavam. Mirou-me, elevando um pouco
uma sobrancelha, e levantou-se. Compôs a capa como se fosse fazer uma
comunicação formal. Estava com medo de que fosse haver um longo prólogo,
mas graças a Kobol decidiu escolher um método mais simples. Limitou-se a
pedir-me diretamente que casasse com ele e eu respondi-lhe também
imediatamente que sim. Foi como se tivéssemos ensaiado a cena. E. de certo
modo, tínhamos: nos nossos sonhos, na nossa imaginação. Beijámo-nos. um
beijo bastante formal: que mais poderia ser. com toda a família a olhar e
tudo? Então Apollo virou-se para Adama e retorquiu que não era tão fluente
como o pai e que sempre tinha sido lento a atingir as coisas, especialmente as
mais importantes. Disse que tinha de ter a certeza de que Boxey estava a
favor da nossa aliança. Chamou-lhe de fato uma aliança, como se eu fosse a
outra parte de um tratado de paz. Bem. pode ser que tenha alguma razão,
tenho de pensar no caso. Entretanto. Boxey era o retrato vivo da alegria, um
pouco presunçoso talvez, mas genuinamente contente. Tenho de admitir que
eu estava a chorar. Não pude evitar, depois de ter visto os olhos de Boxey.
Compreendi que tinha encontrado novos pais e que estava bastante contente
que fôssemos Apollo e eu. Que é que posso dizer mais? Foi o momento mais
feliz da minha vida. Ainda me sinto feliz, apesar de ter já passado tanto
tempo.
Athena beijou-me e, com aquele tom sonso e insinuante que usa às
vezes, disse que estava feliz por nós e que tinha pensado que nunca mais nos
decidíamos. Não há muito mais para dizer. Pedi ao comandante a sua bênção
formal, que ele deu imediatamente. Depois felicitou o filho e afirmou que eu
o faria muito feliz. A única coisa de que me lembro depois foi de ver
Starbuck corando um pouco e arranjando como desculpa que tinha de
preparar uma festa de despedida de solteiro para Apollo e que tinha de
começar a arranjar imediatamente tudo. Parecia que íamos casar logo, ou
qualquer coisa do gênero. Na verdade, o que Starbuck queria era escapar-se.
porque Athena sorria-se toda para ele. E. se bem me lembro, de forma
bastante agradável. Logo que Starbuck saiu dos aposentos do comandante.
Athena voltou-se para nós e disse:
— Mas eu só me sorri.
Adama retorquiu que Starbuck tinha um sentido muito aguçado do que
se pode ganhar esperando, habilidade adquirida durante as muitas patrulhas
avançadas que tinha realizado. Que é. Cassie?
CASSIOPEIA: Esqueces-te de que eu também estou a realizar a minha
pequena patrulha avançada para ganhar os favores do tenente Starbuck.
SERINA: Cassie, peço encarecidamente...
CASSIOPEIA: Não faz mal. De qualquer forma, Athena e eu somos
inimigos amigáveis. Ou melhor, amigas viciosas. Não tenho bem a certeza.
Só queria que ela não tivesse a vantagem do comando.
SERINA: Queres tu dizer por ser filha de Adama.
CASSIOPEIA: E irmã de Apollo. E a principal ajudante de Tigh. E com
a liberdade de se deslocar por toda a nave sem ter de arranjar um passe ou...
SERINA: Compreendo, Cassie, e quero que saibas... Que é que foi
aquilo? É um alerta. Tenho a certeza que é mais um dos ensaios de Tigh, mas
em todo o caso é melhor irmos para os postos de combate.
CASSIOPEIA: Que é que se faz com o gravador?
SERINA: Trato disso mais tarde.
Apollo deixou o cristal a rodar um pouco mais. Ouviu os sons de passos
afastando-se, seguido pelo ressoar de uma escotilha a fechar-se. Ficou apenas
o ruído do gravador a funcionar. Olhou para o cristal seguinte, agora na
palma da sua mão, e tentou decidir se o ouviria ou não.
CAPÍTULO II
O tenente Boomer era famoso em toda a frota pelas suas cautelas. Nos
tempos de estudante tinha a fama de estudar primeiro qualquer ideia de todos
os ângulos antes de chegar às suas conclusões habilidosamente elaboradas.
Socialmente estava sempre atento a todos os ângulos de decoro que
estruturavam qualquer situação. Nos briefings de comando levantava sempre
as questões que mais ninguém se lembrava de colocar. Como um dos três
melhores pilotos de viper da Galactica — honra que partilhava com o
impetuoso Starbuck e com o valoroso Apollo (todos conhecidos como os três
heróis de Carillon, por terem conseguido atravessar o perigosíssimo campo
de minas aéreo desse planeta) —, Boomer era considerado o mais metódico.
Raramente atirava ao acaso, e podia alinhar no visor um alvo com maior
rapidez e segurança do que qualquer outro piloto dos esquadrões de caça da
frota.
Se bem que estivesse orgulhoso da sua reputação de inteligente
circunspeção, por vezes chegava a lamentá-la secretamente. Alturas em que
se sentia tentado pela temeridade, desejando lançar-se num magnífico salto,
desejando ardentemente um breve momento em que a sua mente pudesse
explodir com uma indomável alegria, deixando a lógica escapar-se como uma
esplendorosa fuga de gás. Nos momentos em que sentia essas imparáveis
ânsias de temeridade, chegava a pensar se de fato não estaria a perder o
controlo da sua mente. Realmente, não era raro que um guerreiro,
continuamente sob a enorme pressão de uma guerra iminente, se fosse
repentinamente abaixo. Talvez, pensava, que a luta para reprimir sempre as
emoções se começasse a tomar demasiada para si. Antigamente, antes de a
Galactica e de a sua frota de maltrapilhos ter começado aquela fuga
desesperada dos conquistadores cylons, um piloto à beira de um colapso por
fadiga de combate, podia gozar de uma licença R&R (repouso e recuperação)
em qualquer estância de férias especialmente preparada para essas finalidades
específicas. Mas a fuga dos Cylons não tinha fim, não tinha interrupções, não
havia licenças para descansos ou revitalizações.
«Bom», pensou enquanto a sua nave se aproximava do estranho
asteroide que era o objetivo daquela patrulha, «talvez me possa divertir um
pouco na festa de despedida de solteiro de Apollo. O que, de resto, dará à
malta uma ótima oportunidade para uma gargalhada. O velho Boomer
desamparado, cambaleante, caindo de bêbado... Diabos, nem eu consigo
antever tal coisa! Enfim, se um golo de ambrosia me puser em órbita já terá
valido a pena. »
A voz do tenente Jolly, seu companheiro de voo, nesta patrulha,
interrompeu estas agradáveis imagens de Boomer mergulhado numa
esplendorosa farra.
— Boomer, as explorações do radar revelam atmosfera naquele
esquisitíssimo asteroide.
— Alguns elementos perigosos?
— Que possa detectar não, mas...
— Mas quem sabe? Não é, Jolly? Se ao menos os nossos instrumentos
pudessem ser mantidos em perfeitas condições em vez de serem arranjados
com cuspo e arame, talvez fôssemos capazes de detectar qualquer pequeno
micróbio, qualquer vírus vadio que por aí andasse. Bom, apesar do que dizem
os instrumentos, acho melhor usarmos equipamento respiratório lá em baixo.
Está bem Jolly?
— Como quiseres, Boomer. És tu que...
— Eu sei. Eu sou o cauteloso. Já estou a ficar farto de ouvir isso, deixa-
me dizer-te.
— Ah, e adoras que assim seja, como bem sabes.
— Talvez, Jolly, talvez.
Depois de realizar uma aterragem suave no asteroide e de ter
cuidadosamente colocado a transparente máscara respiratória sobre a metade
inferior do rosto. Boomer ainda hesitou antes de abrir a escotilha do cockpit.
O asteroide, com a sua superfície rochosa juncada de pedras por todos os
lados, parecia perigosa, ameaçadora. A humidade nas rochas parecia ser
viscosa e oleosa. Sentia-se vulnerável. Por mais protetor que fosse o vestuário
que envergassem, por mais seguro que fosse o equipamento de respiração que
utilizavam, os pilotos de viper das linhas avançadas estavam sempre
vulneráveis. Boomer ficava sempre com medo todas as vezes que punha o pé
num novo planeta ou num novo asteroide.
Jolly já estava fora do seu viper. Rastejando, o pesado mas mesmo assim
ágil piloto dirigia-se para um volumoso e húmido monte de pedras. Olhou
para trás, para Boomer, como se dissesse, quando vens? Boomer suspirou e,
abrindo a escotilha do cockpit, saltou da nave.
Durante um longo momento. Boomer e Jolly, escorregando e deslizando,
abriram caminho através do terreno húmido e agreste. Tiveram necessidade
de tirar as luvas para se poderem agarrar mais facilmente às rochas
escorregadiças. O asteroide parecia ser povoado apenas por ventos intensos e
traiçoeiros que sopravam subitamente. «Um lugar verdadeiramente solitário»
pensou Boomer, ainda mais sombrio por causa do distante sol em tomo do
qual girava.
Chegaram finalmente a um cume sobranceiro a um vale ermo e deserto.
Lá longe, uma parede rochosa, abrupta e alta, fechava o outro lado do vale.
Debruçado no cume da elevação, Boomer estudou cuidadosamente com os
binóculos a parede rochosa. À primeira vista parecia normal, até que
descobriu uma falha na sua superfície.
— Nichos — murmurou, estendendo os binóculos a Jolly.
Jolly observou durante um momento a parede rochosa, depois deitou a
Boomer um olhar espantado.
— Não vejo nada — disse.
— Mas estão lá. E como uma daquelas rasteiras durante os treinos na
academia, quando aparece uma fotografia que contém outra, escondida.
— Nunca fui muito bom nisso.
— Não me digas. Repara na falha que vai da parede rochosa até à base
do vale.
— A mim passava-me completamente — disse Jolly, quando finalmente
descortinou as linhas que marcavam os enormes portões de rocha, fechados
agora sobre os nichos de lançamento.
— Cylons — disse Jolly, devolvendo os binóculos a Boomer. — Não há
dúvida. E ter-nos-iam escapado com a maior das facilidades.
— Eu sei. Se galharmos só um que seja destes postos dos Cylons, e
depois eles...
— Sim, mas tens a certeza que está operacional? Já deparámos com
alguns completamente abandonados.
— Não, isto é uma estação de lançamento totalmente operacional. Tenho
a certeza. Estão todos lá dentro, como aranhas venenosas prontas a atacar-nos
se chegarmos ao seu alcance.
— Vamos olhar mais de perto, para ver quantas naves estão dentro do...
— Não, é muito perigoso.
— Boomer, não estarás a ser um pouco...
— Olha, Jolly, não interessa quantas naves estão estacionadas ali. O
melhor que temos a fazer é sair daqui, alertar a frota. Vamos deixar o
comando de combate resolver este problema. Vamos.
Quando Boomer começava a esgueirar-se do cume da elevação, Jolly
agarrou-o pelo braço, murmurando:
— Espera!
Do outro lado do vale, a parede rochosa estremeceu e as linhas que
marcavam a entrada adquiriram um brilho vermelho, antes de se abrirem e
recuarem com um troar ruidoso para dentro da estação. A entrada ficou
escura e silenciosa por um momento, depois começou a ouvir-se um grande
ronco surdo. Numa explosão de luz muito brilhante, dois caças cylons
irromperam pela abertura e levantaram voo. Depois, com outro ronco
ensurdecedor, os portais abertos na rocha fecharam-se de novo. O assobio
arrepiante do vento substituiu os sons ensurdecedores e ásperos da estação de
lançamento.
Jolly, que vigiava os movimentos das naves de patrulha dos Cylons,
comentou:
— Parece-me que o seu curso não os vai levar perto da frota.
— Bom — disse Boomer. — Pelo menos podemos avisá-los para mudar
de rota. Vamos embora daqui.
Depois de terem rastejado durante um bom bocado para longe do seu
posto de observação. Boomer e Jolly levantaram-se. As mãos de Boomer
pingavam com aquela humidade pegajosa e penetrantemente fria que
emanava das pedras. Olhando para as mãos, e reparando que as de Jolly
estavam também nuas e molhadas. Boomer lamentou-se de ter tirado as luvas
para poder rastejar melhor sobre a superfície do asteroide. «Ah, bom»,
pensou, enquanto tentava esfregar as mãos para se ver livre da humidade, «é
apenas água. Provavelmente sem nada perigoso.» No entanto teve um arrepio
involuntário.
***
Lucifer adorava o jogo perigoso em que entrara. Ressentido com a
ordem do líder para se programar como completamente subserviente em
relação a Baltar, como seu ajudante-de-campo, tinha tomado essa
personalidade uma mera máscara que podia eliminar em qualquer altura com
uma nova programação mais forte e peremptória. Tinha já passado demasiado
tempo da sua curta existência inteiramente submisso a qualquer oficial cylon
suficientemente graduado para o poder usar com a maior displicência. Os
Cylons não estavam a par das consciências separadas que tinha desenvolvido
como defesa. Precisava de poder contrabalançar a sua estupidez onde e
quando isso fosse necessário.
E estava bastante orgulhoso da sua estratégia atual. Podia não apenas
simular um segundo ou terceiro cérebro, como podia também formular
qualquer número de personalidades. De certo modo podia portanto superar os
verdadeiros Cylons, que nunca tinham sido capazes de mais que uma
lamentável existência com três cérebros.
Era portanto possível que, com todas aquelas secretas capacidades,
Lucifer pudesse subir na hierarquia política dos Cylons, tomar-se poderoso,
talvez mesmo o primeiro líder imperial totalmente computadorizado. Mas
sabia bem que por enquanto tais pensamentos deviam ser guardados para si.
Os Cylons não podiam suspeitar ainda das subtis e traiçoeiras contracorrentes
que atravessavam os seus circuitos. Sentia que tinha finalmente conseguido
algo mais do que a simples alma (que estava instalada num compartimento no
ombro direito) que tanto lhe tinha custado a elaborar e que tanto tempo
criativo lhe tinha tomado desde que pela primeira vez travara conhecimento
com a sua consciência a despontar. Cada novo aperfeiçoamento aumentava a
lucidez de Lucifer — e estava seguro de que cada nova parte que criava o
tomava mais semelhante a um ser realmente sensível.
Ultimamente estava bastante aborrecido com Baltar. O humano tinha-se
tomado muito presumido, demasiadamente arrogante. Como a maioria dos
humanos que se tinham cruzado no seu caminho, Baltar tinha tendência para
se esconder por trás de expressões faciais, a mais insuportável das quais era
aquele sorriso, aquele esgar enigmático. Sentado no topo do
disparatadamente alto pedestal, com o rosto velado pela luz sombria que
emanava do solo da sala de comando, Baltar aparecia sempre a Lucifer como
uma figura grotesca, uma máscara viva animando um homem morto. No
entanto, o seu desagrado pelo traidor humano era apenas um pequeno
vexame, um curto-circuito quase imperceptível por ente os vastos
mecanismos luciterianos. Porém detestava ter de se aproximar do pedestal
com modos tão formais e depois ter de obedecer ao programa da sua dupla
personalidade que o forçava a dirigir-se a Baltar com toda a cortesia:
— As suas ordens, Baltar.
Como de costume, Baltar deixou passar um longo momento durante o
qual ignorou ostensivamente o seu ajudante-de-campo, antes de dizer:
— Fala.
O Baltar que Lucifer treinara tão metodicamente não parecia capaz de
ares tão medonhamente arrogantes e imperiais. Esse Baltar gemia e
reclamava, um servo dócil das orientações por vezes violentas e severas de
Lucifer. Agora os papéis estavam invertidos.
— Trago boas notícias. Pensamos estar prestes a localizar a estrela-de-
batalha Galactica.
Perante a reação meramente trocista de Baltar, Lucifer sentiu-se
desapontado.
— Sim? Faz o teu relatório, Lucifer.
— Foi detectada uma patrulha de reconhecimento de vipers coloniais
aterrando num posto de escuta no Quadrante Otarsis. Apesar de termos
podido facilmente capturá-los e liquidá-los, deixámo-los fugir... Conforme as
tuas instruções.
— A que distância nos encontramos desse posto?
— Um ponto cinco hectares. Uma vez que a Galactica é obrigada a
manter uma velocidade reduzida devido aos veículos mais lentos que se
encontram sob a sua proteção, os nossos caças não demorariam muito a
apanhá-la.
— Apercebeu-se de que tinha sido detectada?
— Não. E essa a vantagem que temos. Os nossos caças, se lançados
imediatamente, apanhá-la-iam completamente de surpresa.
— Como fizeram em Carillon?
Baltar berrou positivamente esse último insulto. Lucifer, que não
participara na batalha de Carillon, não respondeu. Sabia apenas que nenhum
dos posteriores estudos sobre a batalha chegara a qualquer resultado
concludente que explicasse a vitória da pequena força dos humanos sobre
uma unidade de Cylons muito mais numerosa, nos céus do planeta mineiro
Carillon. Aparentemente, Adama estava bem preparado para a emboscada. O
seu filho Apollo e o petulante piloto Starbuck tinham-se portado
heroicamente durante essa batalha. No entanto não deveriam ter ganho, e a
sua repetida habilidade em vencer o inimigo confundia totalmente os estragos
cylons.
Baltar levantou-se do trono e olhou irado para Lucifer. Naquela luz
sombria, com as suas distorcidas zonas de sombra, o homem parecia ter pelo
menos o dobro da altura.
— Uma estrela-base não basta para assegurar qualquer vitória sobre a
Galactica. O seu comandante já revelou um poder quase oculto para se
antecipar a nós.
Lucifer não via nada de oculto na presciência de Adama. Na sua opinião,
os planos de batalha dos Cylons estavam tão ultrapassados que exigiam uma
completa revisão.
— Concluo — exclamou Baltar — que as nossas forças são insuficientes
por agora.
«Tu concluis?», pensou Lucifer. «Que direito tens tu de concluir?» Um
humano não tinha qualquer noção de como processar dados. Nem, na
verdade, os Cylons. As duas raças limitavam-se a receber informação e a
julgarem dispor de suficiente poder mental para atingirem conclusões de
forma lógica. Mas a verdade era que, em qualquer das raças, as conclusões
eram realmente tão ilógicas como os meios que tinham utilizado de as atingir.
Lucifer não deixava de se espantar com a confiança de Baltar, quando era
perfeitamente claro que todos os seus mecanismos funcionavam
deficientemente. Mais uma vez lamentou o programa que o forçava a
mostrar-se servil para com Baltar.
— Por agora, Lucifer, a nossa missão é encontrar a Galactica, depois
segui-la fora do seu alcance de radar, de preferência na nossa estrela-base.
— Devo compreender que propõe que chamemos reforços?
Baltar suspirou. Para Lucifer, o suspiro era o som mais desesperante de
todos os que os humanos costumavam produzir.
— Tal chamada seria certamente detectada pela Galactica. Ficaria
alertada. Estaríamos a mostrar-lhe o caminho da fuga.
— Mas se não podemos pedir ajuda e não atacas, no fim o resultado não
será o mesmo? A fuga da Galactica?
Lucifer sentia-se como se estivesse a discutir lógica de comando com
uma criança.
— Tem fé, Lucifer. Tem fé. Tenho um plano.
Lucifer compreendeu que não sentia qualquer ânsia ou desejo de ouvir o
pretensioso plano do humano. Mas, no entanto, tinha de ouvir.
— Só preciso de uma oportunidade. E ela virá.
«Como é que ele pode ter tanta certeza?», pensou Lucifer. Porém, Baltar
parecia tão arrogante, empoleirado no alto do seu trono como um pássaro
desdenhando de se mostrar à audiência, que Lucifer sentiu não ser aquela a
melhor altura para pôr em causa a habilidade do comandante humano. Além
do mais, era melhor dar a Baltar todas as oportunidades para falhar — o que,
sendo as coisas como eram, não deixaria de acontecer. Lucifer limitou-se a
curvar-se, murmurando o ritual «Às suas ordens», e deslizou para fora da sala
de comando.
***
Starbuck, que não era geralmente atreito a sentimentos de depressão, não
conseguia analisar a verdadeira origem da sua presente melancolia. Tinha-o
atacado de súbito, imediatamente após ter concluído os preparativos para a
festa de despedida de solteiro de Apollo, tendo para isso mandado o alferes
Greenbean e um esquadrão de irregulares numa missão de recolha de alguma
ambrosia e de cerveja dos armazéns. O ingênuo alferes não se mostrara muito
predisposto a roubar as bebidas, mas Starbuck convenceu-o invocando o
antigo código militar do tomar de empréstimo especialmente quando se
aplicava a pilotos de caça, famintos e cheios de sede.
Estava prestes a deixar-se embalar por um tranquilo e fugaz momento de
desespero, mas a poderosa sensação de inutilidade era extremamente
perturbadora. Sentia-se por dentro como um charco de lixo derretido...
Porque é que estaria tão em baixo? Porque é que lhe tinha ocorrido de repente
que ser piloto de caça, mesmo um dos três melhores pilotos de caça de toda a
frota, era um trabalho de certo modo rebaixante e frustrante? Recostando-se
na cadeira, pondo os pés sobre a mesa de mapas da sala de espera, tentou
afastar aqueles pensamentos. Da algibeira da manga da camisa tirou o baralho
de cartas de jogar e começou a manipulá-las. Manipular e baralhar cartas
tinha sido sempre bom para a sua concentração.
Colocando uma carta delicadamente nas costas da mão, executou o seu
truque de prestidigitação preferido, fazendo a carta deslizar como por si só,
apanhando-a com a palma, voltando o pulso e fazendo-a desaparecer, quando
na realidade já a tinha escondida na outra mão. Mostrando a carta
desaparecida à audiência inexistente, recolocou-a no baralho.
Nada feito. Ainda se sentia deprimido. Porquê? Pilotar um viper era
considerado uma profissão nobre, e Starbuck era conhecido por toda a frota
como um herói. E, como estava sempre a dizer o conselheiro Anton, uma
coisa de que a raça humana precisava neste momento era de heróis. Noutras
alturas, Starbuck tinha-se sentido inspirado por esse pensamento. Agora
parecia-lhe falso, simples palavras inteligentes de um político. Para que
serviam os heróis? Um herói era um louco cujo único feito de realce era a
cega necessidade de marchar, voar ou rastejar à frente de todos os outros.
Nem mais, nem menos. Não, isso não era verdade. Era uma ideia que não
apenas tresandava a autopiedade como também ofendia verdadeiros heróis
como Apollo ou Boomer.
Havia sempre porém qualquer coisa de loucura nos heróis, quando
considerados objetivamente. Qualquer coisa de estranho em arriscar
continuamente a vida quando a autopreservação parecia ser o motivo mais
plausível. No entanto, Starbuck nunca sentira realmente o risco — ou. na
verdade, qualquer sentido de heroicidade. Herói era apenas um nome que lhe
impunham como uma medalha. É verdade que tinha gozado uma ou duas
vezes ao abater um caça cylon, vendo-o explodir e brilhar fugazmente no céu.
E tinha-se sentido realmente orgulhoso quando qualquer ato seu tinha
permitido que a frota escapasse de uma armadilha, ou alongara a distância
entre ela e os seus perseguidores cylons. Por outro lado, porém, como poderia
continuar a satisfazer-se dessa maneira, numa tão longa série de fugas,
especialmente quando não era previsível qualquer termo razoável para o
longo caminhar da Galactica? Tinha de haver um fator de esperança, mesmo
se apenas embalado nas repetidas prédicas de Adama acerca do radioso
planeta chamado Terra, mas era decerto difícil manter essa esperança quando
cada fuga era apenas seguida de uma nova crise de que mais uma vez havia
de escapar.
«Ah, enfim», pensou Starbuck para si, «tudo isto é estúpido. Estou a
manter os meus motores inativos sem qualquer finalidade. De qualquer
modo, nenhum destes pensamentos vagabundos explica realmente o meu
estado lamentável.» Juntando de novo as cartas, arrumou-as novamente na
algibeira da manga da camisa, fechou o blusão de combate e dirigiu-se para a
plataforma de lançamento para se juntar a Apollo antes de partirem na missão
que lhes tinha sido atribuída no briefing diário.
***
Descansado junto da asa delta do seu lustroso e brilhante viper, Apollo
parecia demasiadamente bem disposto. Sorriu amplamente e os seus olhos
pareceram de um azul ainda mais brilhante do que o habitual. O toque do
aperto de mão foi desagradavelmente firme e confiante. A sua voz parecia
prestes a transformar-se numa gargalhada, a qualquer momento. Depois de
terem concluído uma rápida inspeção da superstrutura das duas naves,
Starbuck murmurou:
— É um bocado triste.
Parando junto do cockpit do seu viper, Apollo perguntou:
— O quê?
— Oh, nada...
Starbuck já lamentava ter falado. Que direito tinha ele de estragar a
felicidade do amigo?
— Diz lá — insistiu Apollo. — Que se passa?
Starbuck suspirou e sorriu.
— Bem, nós passámos por muita coisa juntos.
Apollo concordou com a cabeça.
— Isso é verdade. Eu próprio estava a pensar nisso, sabes, quando me
estavas a desafiar com as cartas, ontem à noite. Se não fosses tu, não estaria
aqui agora.
— Olha, isso também vale para mim. Tantas vezes que já lhes perdi a
conta. Andaria por aí à deriva no espaço, se não fosses...
— Hei, que é que vai nessa cabeça? Parece que tudo vai acabar com esta
patrulha. Quer dizer, é apenas mais uma patrulha, uma incursão para ver o
que é que há diante da frota, uma patrulha...
— Mas não vês que não é apenas mais uma patrulha? E como se fosse a
última de uma longa lista, a última missão em que partiremos como... como...
bom, tu sabes. Tal como somos.
— Tal como somos? Isso é absurdo. Starbuck. Quer dizer, realmente é.
— Claro, que é. Esquece. Vamos embora.
— Não, espera, eu... Starbuck, pensas... Pensas realmente que a Serina
vai fazer toda essa diferença? Não posso acreditar, parece que estás com
ciúmes, ou qualquer coisa do gênero.
— Bem, sim, num certo sentido parece-me que estou, não digas a mais
ninguém, hem?
Starbuck não percebia bem porquê, mas esta conversa com Apollo
parecia tê-lo desembaraçado da sua melancolia. A verdade que não
conseguira descortinar quando começara a cismar parecia agora muito mais
clara. Ciúmes podia não ser a palavra mesmo certa, mas andava muito perto.
Gostava muito de Serina — bolas, se não estivesse demasiadamente ocupado
em fazer malabarismos na sua vida romântica entre Athena e Cassiopeia,
podia ter sido atraído também por ela — mas, definitivamente, ela alterava a
espécie de camaradagem que entre ele e Apollo se tinha construído como
combatentes e companheiros de voo. Mesmo sabendo perfeitamente que ele e
Apollo continuariam a fazer patrulhas juntos depois do casamento, Starbuck
sentia que já não seria a mesma coisa. Um certo limite de temeridade, os
movimentos instintivos de um par de pilotos prontos a arriscarem tudo pelo
êxito de uma missão, poderia deixar de estar efetivamente presente. A
eficiência de uma missão poderia ficar seriamente comprometida. O
sedentarismo, e, principalmente, o seu profundo amor por Serina, podia
tomar Apollo hipercauteloso, fazendo-o disparar uma fração de segundo mais
cedo, fazendo-o retirar uma fração de segundo antes do devido. «E essa a
verdadeira origem da minha inquietação», reconsiderou Starbuck. «Tenho
relutância em aceitar as coisas tal como são.» Era uma ideia egoísta e louca,
sabia-o bem, mas fazia-o recear pelo futuro. Apollo merecia bem aquela
oportunidade de felicidade. Só porque Starbuck era um femeeiro incorrigível,
incapaz de assentar, isso não lhe dava o direito de julgar as necessidades
domésticas dos outros. A medida que estes pensamentos rodopiavam na sua
cabeça, Starbuck já não estava totalmente seguro das suas convicções.
Apollo detetou a confusão em que se encontrava Starbuck, deu uma
palmada no ombro do tenente e exclamou:
— Sabes uma coisa? Parece-me que percebo um pouco o que vai na tua
cabeça. Não é que esteja de acordo, é claro. Mas penso, no entanto, que o que
queres dizer é bonito. E nós passámos de fato bastantes momentos excelentes.
Olha, talvez venhamos a passar outros tantos daqui para a frente.
— É claro que vamos. Eu estou a falar de mais. Uma pequena missão
bem maçadora vai limpar-me a cabeça. Vamos a isto.
Mesmo depois de ter atravessado o tubo de impulsão e de ter lançado o
viper para o espaço, Starbuck ainda se sentia esquisito. Tentava perceber se o
que realmente receava era a mudança. Não o estado da frota, nem mesmo a
interferência de Serina na vida de Apollo, mas a mudança de todas as suas
vidas. Toda uma série de mudanças, realmente, que tinham a sua origem no
ataque traiçoeiro dos Cylons que destruíra os Doze Mundos. Desde esse
desastre tudo era, de certo modo, uma luta imensa para suportar o inesperado,
uma constante roda de esperanças e sonhos, a confrontação com a constante
ameaça de novos ataques traiçoeiros. De dia para dia, de uma missão para
outra, nada se mantinha igual. Havia sempre alguma coisa que mudava, havia
sempre a incerteza. Por vezes uma pessoa necessitava de um pouco de
monotonia, de um ciclo ininterrupto de aborrecimento, para assentar, «Bom»,
pensou, «provavelmente ficaria doido de todo se esse ciclo acontecesse,
sempre a pensar quando e de onde viria o próximo ataque traiçoeiro.»
***
Apollo seguiu as instruções do reconhecimento quase ritualmente,
tentando ocupar a mente com os problemas da missão. No entanto, não podia
deixar de pensar em Serina e em como ela estava bela na noite anterior,
quando discutira os pormenores finais do casamento, e tinham escrito os
votos que ambos partilhariam depois de o casamento ser declarado e selado
por Adama. Recordando-se de como ela estava triste e desesperada na
primeira vez que se tinha conhecido, quando pela primeira vez se tinha
aproximado dele para consolar Boxey, estava feliz por ver que agora os seus
olhos brilhavam de felicidade e que o sorriso iluminava o seu rosto com
facilidade, quase ansiosamente. Como seria bom terminar a missão e iniciar a
ronda tensa mas alegre de acontecimentos que culminariam na troca de votos
durante a cerimônia de casamento propriamente dita.
— Apollo?— Exclamou a voz de Starbuck no comunicador.
— Sim, Starbuck.
— Lembras-te daqueles pequenos taurons endiabrados que ficaram tão
fascinados pelo nosso gás de sobrevivência na selva que quase nos arrastaram
às gargalhadas para o brigue da Galactica?
Apollo teve uma risada abafada.
— Se me lembro? Eram...
«Espera um momento», disse para si. «Lá vai o Starbuck outra vez,
arrastando-me para a sua nostalgia mórbida. Tem de se deixar disso.»
— Hei, Starbuck, já chega.
— Só estava...
— Eu sei, eu sei. Mas, enfim, não sei, não está bem. Não nos devíamos
estar a refugiar assim nestas passadas conquistas, principalmente agora que
eu estou praticamente...
— Vês? Era isso que eu queria dizer há bocado. Até mesmo tu reparas
na diferença.
— Sim, mas não é tão significativa como tu...
— Sim, sim. Já sei. Desculpa, Apollo. Não posso evitar. Todas estas
recordações, temos tão boas recordações...
— Starbuck, eu não estou a morrer.
Até o próprio crepitar no comunicador de Starbuck soava a sarcasmo
quando ele disse:
— Não, não exatamente.
Apollo suspirou.
— Tenta ver as coisas assim. Estou prestes a embarcar na missão mais
importante em que qualquer homem pode participar.
— Sim, é a modos que voar mesmo para cima de uma nave-base dos
Cylons com o canhão a vomitar fogo.
— Starbuck, parece que na tua opinião isto é uma missão sem regresso.
Estar casado com a mulher que se ama é mais como uma tranquila missão de
reconhecimento até ao local mais desintoxicante das estrelas.
— Com o canhão serrado.
— Starbuck...
— Bem, o que eu quero dizer é que não são precisas armas numa missão
de reconhecimento.
Apollo riu-se.
— Okay, eu estava a ser um pouco pretensioso. Só queria que soubesses
que sou perfeitamente capaz de separar os meus sentimentos por Serina do
sentido de camaradagem que tu e eu e Boomer e os outros sentimos como
parte de uma equipa de voo de precisão. Valorizo o seu amor tanto como
valorizo a vossa camaradagem. Acredita-me, nada vai mudar. Mas vamos
facilitar as coisas entre nós, hem? Vê se percebes. Pensei muito no que estou
a fazer, e nunca estive tão contente em toda a minha vida.
Quando voltou a falar, a voz de Starbuck estava mais tranquila:
— Tens razão. Desculpa. Não tenciono continuar a escorregar na tua
estrada de ilusões, meu amigo.
— Não tem importância. Nós... — O pensamento de Apollo foi
interrompido por um zumbido insistente vindo do painel de controlo, seguido
pelo staccato luminoso de uma luz amarela de alerta.
— Starbuck!
— Já o apanhei também. O meu painel está a brilhar como a cauda de
um meteoro e... Apollo mesmo em frente, olha.
Mesmo à frente deles, as estrelas pareciam desaparecer num bruxulear
hesitante. Havia um enorme espaço negro estendendo-se rapidamente,
engolindo as estrelas com o seu movimento repentino. Apollo apercebeu-se
repentinamente de que a ilusão se devia à elevadíssima velocidade a que se
aproximavam os vipers. Nada engolia nada, nem as estrelas desapareciam.
No entanto, um medonho vazio negro, um incomensurável vazio no espaço
espalhava-se diante deles como um monstro enjaulado.
— Que é aquilo, Starbuck? É tão escuro, tão vazio.
— Como um mar morto. Nunca vi nada parecido.
— Nem os instrumentos. O meu painel está todo a acender e apagar.
— Sim, os meus também. Que poderá ser?
— Em primeiro lugar, é evidente que não há lá nada para eles
explorarem ou detectarem. Os sensores de navegação estão perdidos.
— Isto não é lugar para trazer a frota.
— Mas, enquanto aqui estamos, é melhor eu aventurar-me um pouco
mais para a frente, para ver se posso apanhar qualquer coisa do outro lado
deste vazio.
— Apollo, parece-me que não...
— Eu vou, Starbuck.
— Espera. Uma vez lá, podes não encontrar o caminho de regresso!
Deixa-me ir. Tu tens alguém à tua espera na...
O resto da frase do tenente foi afogada pela explosão de estática
produzida quando Apollo ligou os turbos do seu viper e se lançou para o
vazio. Durante um breve momento tentou perceber por que razão se lançava
assim numa tal temeridade. Starbuck tinha razão. Com Serina esperando
ansiosamente o seu regresso, era estúpido e disparatado lançar-se assim tão
impetuosamente para um vazio contendo certamente inúmeros obstáculos
desconhecidos. Ou seria que a conversa fiada de Starbuck o estava a levar a
correr riscos desnecessários? Talvez que, de fato, estivesse com medo do
casamento, especialmente da maneira como ele poderia afetar o seu
comportamento em combate. Talvez tivesse de provar a si próprio a coragem
de que ainda dispunha, enfrentando o perigo que se lhes deparava.
A voz de Starbuck ressurgiu da estática.
—... Já fora de vista. Apollo, não te afastes demasiado de mim, quase
que já não tenho referência para o regresso. Apollo...
A voz desapareceu de novo. Apollo reduziu a velocidade do seu viper e
olhou à volta. Nunca antes tinha experimentado tamanha sensação de
completa escuridão, nem sequer em pesadelos. Se não fossem as fraquíssimas
luzes dos painéis do cockpit, tudo seria escuro em seu redor, tudo.
«E um oceano de escuridão», pensou, para si. «Não há nada ao alcance
dos olhos. Nem estrelas, nem luzes, nem luas, nem planetas, nada.»
—... É demasiado para avançar. Apollo, quase não te consigo detectar.
Volta para trás.
— Continua a falar, Starbuck. Tentarei usar a tua voz como ponto de
referência para a navegação.
Mas a voz apagou-se de novo, substituída pela estática irritante e
omnipresente. Apollo fitou o painel de controlo, sem conseguir encontrar
qualquer indicação sobre o que deveria fazer a seguir. Qualquer ação a
empreender naquela altura seria meramente especulativa; tinha perdido todo
o sentido de direção. Uma volta poderia ser a sua salvação ou uma penetração
ainda mais funda no vazio.
A voz de Starbuck surgiu de novo abruptamente;
— Mudo de comprimento de onda. Escuto. Over.
— Starbuck... Starbuck.
— Escuto. Over.
Era claro que as transmissões de Apollo não chegavam a Starbuck.
— Apollo, estás aí? Passa-se alguma coisa? Que pergunta mais estúpida,
não é? Vá, responde! Avancei o mais que podia sem perder o ponto de
referência para o regresso. Queres que vá ao teu encontro? ouves-me?
Apollo... Apollo?
O medo que transparecia na voz de Starbuck fazia o vazio parecer ainda
mais escuro a Apollo. Sentia-se como se ele o fosse rodear completamente,
afogá-lo e engoli-lo com uma refeição deliciosa oferecida pelo espaço. Essa
escuridão ameaçadora, mais o painel de controlo quase completamente
enlouquecido, mais a voz em pânico de Starbuck como contraponto
intermitente, tudo contribuía para fazer com que Apollo se começasse a sentir
realmente assustado.
CAPÍTULO III
A bordo da Galactica a sala de convívio tinha sido transformada numa
verdadeira sala de festas, tal como Starbuck ordenara. Todos os pilotos de
combate e de navetas não envolvidos em escalas de serviço tinham dado o
seu melhor esforço na decoração da sala.
Balões luminosos de todas as cores tinham sido colocados sobre os
globos geralmente desguarnecidos que cobriam as paredes e o teto. Festões
prateados formavam um emaranhado festivo que ia de parede a parede e por
vezes do teto ao chão. As mesas tinham sido cobertas com toalhas coloridas.
Dos armazéns tinham vindo as melhores baixelas e cristais.
O alferes Greenbean, um jovem alto e espadaúdo cujos membros nem
sempre funcionavam em perfeita coordenação com o resto do corpo,
irrompeu pela sala, arrastando penosamente à sua frente uma pesada caixa de
ambrosia. As garrafas tilintaram ameaçadoramente quando a caixa chocou
algo violentamente com o chão metálico. Greenbean ergueu a cabeça, à
espera de ruídos de vidros partidos. Quando já estava seguro de que todas as
garrafas estavam intactas, berrou:
— Hei, quem me dá aqui uma ajuda? Tenho outra caixa deste material lá
fora no corredor.
O alferes Giles correu em seu auxílio.
— Por todos os deuses de Kobol — exclamou Giles —, isto é o que eu
estou a pensar que seja? Espero e rezo para que seja.
Greenbean disse que sim com a cabeça. Num salto, Giles correu para o
corredor e arrastou a outra caixa de ambrosia para a sala. Rindo, Greenbean
gritou:
— Vai ser a maior festa de despedida de solteiro jamais oferecida a um
guerreiro. Não, não ponham nas mesas. Por enquanto escondam-na naquele
vão ali. Por baixo do balcão.
— Greenbean — murmurou Giles desconfiado —, onde é que arranjaste
isto?
— Requisitado por ordem do tenente Starbuck. E, Giles, meu rapaz, isso
basta-te. Há quem fale...
— Greenbean — sussurrou um guerreiro junto da porta —, ssshhh.
Sentinelas.
Os jovens oficiais puseram-se automaticamente em guarda ao ouvirem a
palavra «sentinelas». Desde que o Quórum dos Doze, num daqueles
rompantes políticos característicos de um corpo de comando em pânico,
tinham criado os esquadrões de patrulha para manterem a disciplina interna
reforçando os regulamentos e o recolher obrigatório, tinha-se desenvolvido
uma certa rivalidade entre as sentinelas militaristas e os pilotos
despreocupados e estroinas. O comandante Adama, que tinha sido contra a
criação desses esquadrões de vigilância, previu que não teriam uma vida
muito longa, mas avisou os seus oficiais de que deveriam aturá-las com a
dignidade de verdadeiros guerreiros. As restrições tinham-se revelado difíceis
e penosas, especialmente porque essas sentinelas eram recrutadas de entre os
homens e mulheres que não tinham conseguido qualificar-se para os lugares
de guerreiros coloniais, nem mesmo como reservas temporárias.
Duas sentinelas, envergando os uniformes pretos dos esquadrões de
segurança, caminharam aristocraticamente para dentro da sala de espera.
— Em sentido — berrou uma. A voz de comando pareceu tranquilizar
alguns pilotos, que relaxaram o corpo e se encostaram à peça de mobiliário
mais próxima, num gesto físico de desafio dirigido às sentinelas. Estas
ignoraram a aparente insubordinação. A segunda, sorrindo desdenhosamente,
examinou a sala, mirando especialmente as decorações multicolores.
— Bom — disse —, parece que vamos ter uma festa. Foi aprovada pelo
subcomité do Quórum? Donde tiraram estas vitualhas? — Tendo qualquer
das duas perguntas ficado sem resposta, a sua voz tomou-se efetivamente
zangada e vociferou: — Quem é o responsável por isto?
— Sou eu — disse uma voz cujo som profundo e melodioso encheu toda
a sala. O coronel Tigh. Ajudante-de-campo de Adama e seu lugar-tenente,
estava parado à entrada da sala. A sentinela voltou-se furiosamente para ele,
mas ficou subitamente tímida quando reconheceu o coronel. — Que é que
quer ao certo, tenente? — murmurou Tigh, com uma penetrante marca-de-
autoridade na sua voz calma.
A sentinela apercebeu-se de que não era capaz de falar normalmente.
— Coronel Tigh, aah, desculpe. Quer dizer, aah, bem, estamos apenas a
cumprir o nosso, era apenas nosso dever, estávamos... Desapareceu alguma
cerveja e ambrosia da ração dos oficiais e, bom...
— Sim, tenente?
— Bem, é óbvio que se o oficial executivo da Galactica toma isto sob o
seu comando, não há, aah, não há razão para fazermos mais perguntas. As
suas ordens...
— Destroçar.
Quando as sentinelas se afastaram, um suspiro coletivo de alívio animou
os jovens pilotos. Mas a sua boa disposição bem depressa foi ensombrada
pelo olhar duro que Tigh lhes dirigiu.
— Só há uma coisa pior que roubar rações da messe dos oficiais — disse
Tigh, com a voz ainda calma e autoritária. — Sabe o que é, Greenbean?
— Não, senhor — respondeu Greenbean, os olhos esbugalhados de
medo.
— É ser apanhado a roubar rações da messe dos oficiais. Faço-me
entender?
Todos os pilotos uniram as suas vozes no subsequente «Sim, senhor!»
— Bom. As patrulhas devem estar de regresso a qualquer momento.
Quando Apollo e Starbuck chegarem, vejam lá se está tudo em perfeita
ordem.
A saída de Tigh foi saudada com um viva! dos pilotos. Ao tomar um
elevador de regresso à torre de comando, Tigh pensava se não teria sido
demasiadamente imprudente desautorizando assim as sentinelas. No entanto,
tal como Adama e todos os pilotos, desaprovava vivamente as prepotências
do Quórum. E não apenas isso: a tripulação, exausta e assoberbada de
trabalho como estava, merecia todas as oportunidades para uma breve
diversão. A festa de despedida de solteiro de Apollo tinha de se realizar. Era
muito mais importante que as lacunas estatísticas nos relatórios da messe dos
oficiais. «Até um velho manga-de-alpaca como eu pode ver isso», pensou.
Ao chegar à ponte, ouviu ainda a voz ansiosa de Adama perguntando a
um oficial de serviço:
— O estado da patrulha?
— A patrulha do capitão Apollo encontra-se ainda fora do alcance dos
radares.
— E estranho — sussurrou Adama.
Alertado pela preocupação da voz do comandante, sentiu uma ponta de
apreensão. «Apollo tinha de voltar», pensou, «não seria justo que algo lhe
acontecesse precisamente agora.»
***
Starbuck errava pelos canais de comunicação tentando obter qualquer
resposta de Apollo. Tudo o que conseguia com esses esforços desesperados
eram vários graus de estática crepitante. Com o painel de controlo a funcionar
de modo tão errático, nem sequer podia descortinar as deambulações da nave
de Apollo no vazio. Praguejando com toda a sua inventiva, compreendeu que
só lhe restava entrar naquele buraco do inferno. Enfim, já tinha antes
confiado na sorte. Havia quem dissesse que a sorte era o principal atributo de
Starbuck como piloto de caça.
— Apollo — berrou Starbuck, numa última tentativa para conseguir
qualquer resposta. — Estás à escuta? Estás à escuta? — A estática tomou-se
mais intensa e mais irritante. — Okay, capitão. Estou prestes a desobedecer
às ordens. Podes depor no meu julgamento de guerra. Se me quiseres deter
dou-te uma última oportunidade, depois desarvoro por aí fora com o turbo no
máximo, disparando os meus lasers. Mais tarde ou mais cedo ou te encontro
ou ambos estaremos perdidos. Mas não tenciono acabar a minha carreira de
combate no meio deste estúpido vazio, por isso planeio sobreviver. Tenho um
coeficiente de sobrevivência muito elevado, todos os testes o dizem. Se te
encontrar, executo uma volta de cento e oitenta graus e volto por onde vim.
Basta seguires-me e temos todas as chances de escapar. Pelo menos tantas
quanto qualquer par de rapazes voadores apanhados num vazio cujo aspecto
nunca tinham visto antes. Agora, se me estás a ouvir e não podes comunicar,
dispara uma rajada de laser quando me vires. Sei que saberás então o que
deves fazer. Há objeções? Bom. Sabia que ias estar de acordo. Cá vai disto.
Starbuck apertou o botão da alavanca de comando marcada TURBO e
sentiu o arrepio súbito que tradicionalmente precedia a ignição dos motores.
As estrelas pareciam embaciar-se à medida que a nave desarvorava em frente.
Ao entrar no vazio, foi imediatamente rodeado pela escuridão. Era como se
tivesse sido deitado para dentro de um compartimento hermeticamente
fechado, com todas as frinchas e orifícios tapados para quem nem uma réstia
de luz pudesse entrar. Que é que lhe teria passado pela cabeça, pensou, para
se convencer de que podia voar normalmente dentro daquela escuridão
alucinante! Tinha de se concentrar. Concentrar. Era a sua única chance. Tinha
de manter o viper direito, tinha de conservar o sentido de orientação. Se o
perdesse não poderia dirigir-se, nem portanto Apollo, para fora daquele vazio
infernal. Desde que pudesse encontrar Apollo. Em nome dos Doze Mundos,
onde estaria ele? Starbuck só conseguia descortinar a mais completa
escuridão, nem rasto de qualquer outra nave. Nem rasto do que quer que
fosse em qualquer parte. Deslocando o polegar para o disparador do laser na
alavanca de comando, disparou algumas rajadas. Pareciam evaporar-se no
vácuo apenas a pouca distância do aparelho. Disparando regularmente,
lançou a nave para a frente enquanto tentava ao mesmo tempo comunicar
com Apollo pelo aparelho de comunicação. Parecia ter passado uma
verdadeira eternidade até que ouviu de novo a voz de Apollo, aparecendo
brevemente por entre intermitentes interferências.
— Tentativa... Galactica... Passa à escuta... para Starbuck... Escuto...
Vamos lá... Star...
Até que de repente a voz apareceu alta e clara:
— Starbuck, acabo de te detectar. Estamos agora perto um do outro.
Olha para fora, para a tua esquerda.
A nave de Apollo era apenas uma sombra negra contra a escuridão, mas
Starbuck conseguia vê-la. Um largo sorriso inundou o seu rosto.
— Okay, primeira tentativa. Contato visual verificado. Dirijo-me para ti.
— Starbuck?
— A caminho.
— Qual é a tua ideia? Agora estamos os dois tão perdidos...
— Tem calma, capitão. Assim que me apanhares visualmente, dispara
uma rajada e eu dou meia volta e vou direito para fora deste inferno, em linha
reta. Só tens de me seguir.
— Mas que é que estás a usar como referência?
— A ponta do nariz. Agora não me desorientes. Costumava ser bastante
bom nisto, na academia. Não digas a ninguém, mas costumavam chamar-me
o fundilho-das-calças. Por isso deixa-te de conversas e salta para a minha
cauda.
Starbuck irrompeu em direção da nave de Apollo. Essa corrida tinha
qualquer coisa de estranho. Geralmente, um movimento desses costumava
acabar com um aparelho cylon no ponto de mira.
— Apanhei-te — berrou Apollo, depois disparou a rajada para avisar
Starbuck.
— Então segue-me. Vamos para casa.
Starbuck, depois de se ter certificado de que Apollo estava bem colado à
sua cauda, dirigiu o aparelho pelo caminho — assim o julgava — por onde
tinha vindo. A medida que forçava a nave para a frente, ficava cada vez mais
ciente do fato de que naquele vazio não havia qualquer hipótese de saber ao
certo se estavam ou não a fazer alguns progressos.
— Até onde estava eu metido nisto? — Perguntou Apollo.
— Não fales — retorquiu Starbuck.
Starbuck julgava que a escuridão nunca mais iria ter fim. Até que
finalmente viu uma estrela — uma fraca estrela de pequena grandeza
cintilando debilmente, mas para ele era mais brilhante que a explosão de uma
supernova. Rapidamente outras estrelas se lhe juntaram, e compreendeu que
tinha voado para fora do vazio. Estava tão contente que sentiu o súbito desejo
de dar uma palmada no fundilho-das-calças por o ter salvo de novo.
— Okay, Apollo. Ficas a dever-me um charuto dos maiores.
— Podes contar com ele, Starbuck.
— Vamos para casa, pá.
Enquanto gracejavam contentes, puseram os vipers em velocidade de
cruzeiro numa rota linear, executando a manobra de forma perfeitamente de
acordo com os manuais.
***
Dentro de Boomer, um organismo vivia, deambulava, comia. Não
correspondia, precisamente às características dos germes, bactérias ou
vírus, se bem que estivesse a corroer lentamente a saúde de Boomer. Não se
assemelhava em nada ao que os humanos tinham alguma vez encontrado em
qualquer dos mundos conhecidos. Medrava em ambientes húmidos e atirava-
se aos alimentos como um viper caindo sobre um caça cylon. Não
desempenhava qualquer função ecológica; limitava-se a poder crescer e
matar. Logo que descobrira que Boomer era um ambiente cheio de elementos
nutritivos e perfeitamente inofensivo, entrou pela pele desprotegida da sua
mão. De qualquer maneira, apesar de Boomer se poder censurar
asperamente por ter tirado as luvas, elas não o teriam protegido. O
organismo não seria detido pelo fato de voo. Podia ir exatamente onde
quisesse, a todo o lado onde pudesse levar doença e morte. Uma outra
característica do organismo era a sua capacidade para se multiplicar
indiscriminadamente de acordo com a quantidade de nutrientes de que
pudesse dispor. Procurava sofregamente novos ambientes e proliferava.
Mesmo antes de os pilotos terem subido para as naves tinha-se duplicado, e
no momento em que Boomer e Jolly se tinham tocado levemente, o duplicado
entrou no corpo de Jolly. Cada piloto transportava agora dentro de si uma
versão desenvolvida do organismo. Boomer e Jolly julgavam tratar-se
apenas de uma ligeira tontura provocada por excesso de trabalho, cansaço
de demasiadas patrulhas.
As linhas do radar de navegação de Boomer pareciam ondear, passando
depois para uma estranha dança de serpentes. Fechou por momentos os olhos
com força, depois abriu-os para verificar que a imagem no radar se
estabilizara como por encanto. No entanto, não conseguia compreender muito
bem as tonturas esporádicas que o afligiam durante a viagem de regresso do
estranho asteroide. Bom, iriam aterrar muito em breve e atravessaria a
descontaminação, como um relâmpago, faria o relatório e talvez conseguisse
alguns momentos de descanso no seu beliche. Não, no beliche não. Havia
primeiro a festa de Apollo. Não a podia perder. Devia-o ao capitão e, em todo
o caso, alguns golos de ambrosia poderiam ser a melhor maneira de o pôr
outra vez como novo.
O especialista de controlo de voo Rigel manteve Boomer e Jolly no
limite exterior de preparação para os trajetos de aterragem. Por entre os
ruídos das linhas de comunicação pôde ouvir Starbuck e Apollo chamando de
mais longe. «Ainda bem», pensou Boomer, «assim vou conseguir chegar à
festa antes do convidado de honra. Detestaria chegar atrasado a esta farra.»
— Repito: Boomer, estás à escuta?
Repito? Não ouvira nenhuma mensagem de Rigel. Talvez fosse qualquer
obstrução no sistema de comunicações. Já era tempo de fazer uma revisão no
seu velho viper — já há muito tempo, de fato. É que aquele, era um dos
originais e não daquelas carcaças coladas ao acaso que as naves de fundição
estavam a deitar cá para fora.
— Escuto — disse Boomer.
— Pode aterrar. Patrulha Alfa.
— Obrigado.
Boomer não sabia se o que sentia quando orientou o viper para a ponte
de aterragem era o alívio do regresso ou outra leve ponta de tontura.
— Vamos pô-los lá dentro. Jolly.
A nave de Jolly avançou primeiro. Ao aproximar-se do nicho contendo a
ponte de aterragem, desviou-se momentaneamente da usual linha reta.
Boomer apareceu logo na linha de comunicações, berrando:
— Hei, Jolly levanta o nariz. Tenho visto cadetes fazerem-se melhor à
pista do que tu.
Jolly não respondeu logo. Boomer receou que algo estivesse a correr
mal. Quando finalmente Jolly falou, a sua voz estava indiferente, apática.
— Que é que estavas a dizer agora mesmo, Boom...
— Disse: levanta o nariz e endireita-te.
Boomer ficou ainda mais apreensivo com a aparente desorientação de
Jolly e com as suas próprias impressões de enjoo. Que é que levaria os dois a
atuar de forma tão extravagante?
— Sentes-te bem, Jolly?
— Não sei, Boomer. Tenho um zumbido nos ouvidos. — Boomer
apercebeu-se também de um zumbido idêntico nos seus próprios ouvidos. —
E, não sei, sinto-me um pouco bêbado. — Boomer, por seu lado, sentia-se
mais do que um pouco bêbado. — E frio por dentro. — O sangue de Boomer
parecia estar a congelar.
— E melhor mandarmos verificar a nossa aparelhagem de respiração.
Quando aterrares... Quer dizer, se aterrares, vamos, levanta o nariz, Jolly...
Quando aterrares, espera por mim na câmara de descontaminação. Certo?
— Certo, Boomer.
De qualquer forma Jolly conseguiu uma aterragem correta. Bem, pelo
menos suficientemente correta de acordo com os manuais, mas de maneira
nenhuma a aterragem suave, deslizante, que seria de esperar de um piloto
com as qualificações de Jolly.
Boomer fez o que pôde para manter o seu viper numa rota estável ao
fazer-se à pista. Por um momento, depois de o seu viper ter parado, sentiu-se
demasiadamente tonto para poder sair do cockpit. Um membro da equipagem
de voo ofereceu-se para ajudar, mas Boomer acenou para que a mulher se
afastasse e saiu cambaleante.
Na câmara de descontaminação Jolly pôde reparar como se sentia
Boomer. O seu rosto, normalmente robusto e transbordante de saúde, estava
pálido e os olhos tinham profundas olheiras.
— Achas que apanhámos alguma coisa lá em cima. Boomer?
— Talvez. Mas é para isso que temos a descontaminação. Se trazemos
qualquer coisa daquele asteroide, vamos ver-nos livre dela aqui mesmo.
Os organismos, anichados nos corpos de Boomer e Jolly, satisfaziam as
suas necessidades indiferentemente. Bem podiam ser indiferentes. A câmara
de descontaminação, programada para a ameaça de micróbios perigosos
conhecidos, não os podia afetar. Só podia destruir coisas cuja natureza geral
tivesse sido já previamente descoberta. Os seus problemas de exploração
nem sequer podiam detectar a simples presença dos organismos. Por seu
turno, os organismos não se apercebiam da ação da câmara de
descontaminação. Continuavam alegremente o seu trabalho. Bem, não
alegremente, pois não tinham real compreensão das coisas, nem sequer dos
nutrientes que ingeriam.
Boomer convenceu-se de que estava melhor quando saiu da câmara de
descontaminação. Forçou a voz para um tom normal quando relatou ao
comandante, através do telecomunicador, a descoberta de cylons no
asteroide.
— Um posto de cylons? — Inquiriu Adama.
— Bem escondido, mas ali.
— Obrigado, tenente. Como de costume, a frota está-te grata pelas tuas
qualidades. Vou notificar o leme para mudar de rumo para outro quadrante.
— Sim, senhor.
Ao afastar-se da consola de comunicação. Boomer sabia que se devia
sentir satisfeito, até mesmo um pouco feliz. Acabara de receber um louvor
verbal do comandante — qualquer coisa de que definitivamente se devia
sentir orgulhoso. Mas não sentia nada disso. Só queria nesse preciso
momento trepar para o seu beliche e não ter de responder a qualquer chamada
de serviço até que um oficial superior lhe tirasse os lençóis de cima e o
atirasse para o chão. Mas primeiro tinha de cumprir o seu dever para com
Apollo, saudar devidamente o futuro noivo e com um vibrante brinde de
ambrosia. Só depois o beliche.
O organismo dentro de Boomer expandia-se, duplicava-se, pronto a
enviar cópias de si próprio para outros seres. Boomer estava prestes a entrar
em contato com novos anfitriões em número suficiente para eliminar
qualquer frustração que o organismo pudesse ter sentido, se de fato pudesse
sentir frustração.
Boomer tentou emprestar a sua voz de baixo-barítono ao coro jovial
entoado pelos outros pilotos, mas não foi capaz. Por qualquer razão, a sua
voz não funcionava. Não conseguia extrair dela uma única nota musical.
Bem, não importava. De qualquer maneira, ele não era o cantor mais
veemente da frota. As notas baixas saíam-lhe geralmente desafinadas, e as
altas tremiam tanto como a primeira aterragem de um cadete.
O que ele queria de fato fazer era um brinde, mas a quê? Apollo e
Starbuck estavam ainda na descontaminação, apesar de se murmurar que a
sua chegada à festa estava iminente. Teria de inventar outro tipo de brinde,
portanto. Talvez uma saúde mais geral ao sucesso da frota, ou à liberdade
universal dos pilotos. Liberdade prejudicada pelos ditames estúpidos do
Quórum dos Doze — talvez devesse fazer uma saúde ao Quórum, com uma
inevitável ponta de sarcasmo. À saúde dos doze anciãos e aos seus
chauvinistas imbecis e armados que decidiram legitimar dando-lhes o nome
de Forças de Segurança. Não, isso era fanfarronice a mais, e o coronel Tigh
tinha ordenado que não se antagonizasse o Quórum dos Doze nesta altura.
Talvez um simples «À vida». Sim.
Levantou-se. Sentou-se imediatamente, ao sentir como o seu corpo
estava realmente fraco e exausto.
Apesar de alguma renovação ao nível de nutrientes, o organismo,
precisava de mais, ou poderia ficar com fome, morrendo com o recetáculo
que habitava.
Boomer, que não era pessoa para se deixar ir abaixo facilmente, forçou-
se a levantar-se de novo, desta vez sem cair desastradamente para trás.
Chamando a atenção dos pilotos que o rodeavam, levantou o copo para fazer
a saúde. Subitamente, os dedos deixaram de funcionar e o copo caiu-lhe da
mão, esmagando-se no chão. Depois as pernas deram de si e também ele caiu
no chão, evitando por pouco os bocados de vidro partido.
— Hei, Boomer.
Olhou para cima. O alferes Giles fitava-o. Conseguiu descortinar a
preocupação que ensombrava o rosto de Giles por entre o denso nevoeiro que
parecia encher agora a sala de alerta. O longo e afiado rosto de Greenbean
aparecia por cima do ombro de Giles.
— Vamos — disse Giles. — O coronel Tigh está a ver-nos no monitor.
— Não andes por aí a fazer de palhaço — exclamou Greenbean.
— Eu... Não... Palhaço — balbuciou Boomer.
— Não, é verdade, tu não — retorquiu Giles. — Há qualquer coisa...
A voz profunda de Tigh encheu a sala:
— Uma vez que o capitão Apollo ia chegar atrasado da patrulha, pedi
para se dilatar a hora de recolher, por ordens expressas do comandante. Pelo
que me é dado observar, porém, se vocês vão começar a cair de bêbados...
Com um esforço. Boomer levantou-se e dirigiu-se ao monitor:
— Não estou bêbado, senhor. Só fiquei tonto.
Tigh franziu o sobrolho, ainda não completamente pronto a aceitar o que
parecia à primeira vista uma desculpa um tanto ligeira.
— Mais alguma tontura e mando toda a gente para os alojamentos.
Compreendido?
— Compreendido! — Gritou Greenbean, depois sussurrou para Boomer:
— Vem daí, tenho ali uma pinga que te vai fazer sentir muito melhor. Vais
ficar bêbado que nem um...
— Eu... Não... Fico... Bêbado.
— Não fales. Já nos estás a arranjar sarilhos suficientes.
— Hei, não pude evitar... Fiquei...
Tentou levantar-se de novo, mas as pernas cambalearam e vacilou. Giles,
pegando por baixo dos braços de Boomer, ajudou-o a manter-se de pé.
— Deem aqui uma ajuda a Giles e a mim — disse Greenbean. — Senta-
te e descontrai-te. Boomer. Estás apenas cansado. Essas longínquas patrulhas
são demasiado longas, todos sabemos isso.
— Não é isso... É... É... Não compreendo... Depois da descontaminação
sentia-me bem... Sentia-me como...
Boomer caiu de súbito inconsciente. Alguém ia largar mais uma piada
sarcástica sobre como os pilotos envergonhavam o código sem serem capazes
de aguentar a ambrosia, quando repararam que Jolly também acabara de
desmaiar.
Entretanto, o organismo estava nas suas sete quintas. Tinha fabricado
várias cópias de si próprio e tinha-as transmitido para novos — e saudáveis
— anfitriões.
***
Ao colocar cuidadosamente o capacete no cacifo, Starbuck compreendeu
que a melancolia se tinha dissipado. Não havia nada como um pequeno
perigo em patrulha para fazer desaparecer sentimentos de autocompaixão. De
fato, a antecipação da festa de despedida de solteiro animava-o imensamente.
Apollo, porém, não se sentia tão contente. Mais parecia um prisioneiro a
caminho de uma execução imerecida.
— Que é que se passa, Apollo? Parece que estás a ter as usuais
hesitações sobre o casamento.
— Pelo contrário, meu velho. Acerca da cerimônia sinto-me o melhor
possível. O que me assusta é esta festa de despedida de solteiro que vocês me
arranjaram. Talvez não devesse ir. Talvez...
— Não devesses ir? És o convidado de honra. Nem sequer tens escolha
possível. Arrasto-te até lá acorrentado, se for preciso.
— Bem...
— Bem, nada. Vamos, prisioneiro.
Ao entrarem no corredor que conduzia à sala de alerta, Apollo — que se
tinha mantido desusadamente silencioso durante a longa caminhada,
escutando distante a conversa animada de Starbuck — disse subitamente:
— E bom que seja de arromba. Podia estar com a Serina, sabes, e isto
está a adiar uma reunião extremamente agradável.
— Cada vez que tens de enfrentar o mais pequeno obstáculo social,
começas a fazer lembrar um jovem provinciano recém-chegado da quinta.
Apollo, prometo-te uma noite de que te recordarás durante muito tempo.
Starbuck acenou bem-humorado para o homem da segurança postado
junto da porta da sala de alerta, pensando que tinha sido posto ali para
impedir que a frivolidade da festa transbordasse para os corredores mais
refinados da Galactica. Já tinha havido algumas queixas sobre desmandos de
pilotos vindos de combate, por parte de civis que não entendiam as virtudes
terapêuticas desses escapes emocionais. Quando Starbuck se preparava para
abrir a porta da sala de alerta, o guarda exclamou bruscamente:
— Não toques nessa porta, piloto espacial.
Starbuck deu meia volta, pronto a agredir o guarda, o qual, em resposta,
levantou ameaçadoramente a mão esquerda enquanto mantinha
ostensivamente a outra sobre o coldre da pistola de laser.
— Que é que se passa? O que é que v...
— Starbuck! Apollo! — Gritou Adama. Starbuck olhou para o fundo do
corredor. O comandante e o coronel Tigh vinham a marcha forçada pela
passagem, com um grupo de oficiais tentando acompanhá-los mesmo atrás.
— Fora — ordenou Adama, quase sem fôlego. — Saiam deste corredor.
Os dois... Coronel, leve estes homens para a ponte.
Tigh fez um gesto a Apollo e Starbuck para que o acompanhassem.
Depois de terem dado alguns passos obedientes, a porta da sala de alerta
abriu-se de par em par. Vendo Boomer ser transportado por Giles e
Greenbean, Starbuck começou a dirigir-se para o seu amigo obviamente
inanimado.
— Não se aproximem, nenhum dos dois — avisou o Dr. Salik, que
seguiu os três homens para fora da sala de alerta. Salik estava tapado, da
cabeça aos pés, com um fato de descontaminação transparente. — Não sei ao
certo o que se passa aqui. Não quero que nenhum de vocês se aproxime dos
homens que estão afetados. Vocês aí, quem lhes disse para deixarem a sala de
alerta?
— Boomer pensou que se pudesse andar um pouco por aí talvez...
— Basta! Voltem para a sala. Guarda, mande chamar o meu pessoal.
Vamos ter de transferir todos os que estavam nesta festa para câmaras de
isolamento, para estudo, até que eu descubra o que é isto. Digam-lhes que
tragam as câmaras para aqui o mais depressa possível. Mais depressa.
O guarda partiu a correr pelo corredor.
— Dr. Salik — disse Apollo —, que foi? Que aconteceu?
— Não sei.
— Mas...
— Olhe, eu não vou especular. Não é o meu estilo. Nem sequer sei se é
tão mau como parece.
— Doutor...
— Esquece, Apollo. Tenho de trabalhar agora.
Percebendo que não adiantava mais nada continuando a fazer perguntas
ao Dr. Salik, que já em condições normais não era um conversador muito
ardente, Apollo voltou-se para o pai.
— Que é que acontece?
— Desde há muito que receava que acontecesse uma coisa deste gênero.
Não estamos mesmo nada seguros por aqui, viajando por secções do universo
que nunca vimos antes. Penso que o Boomer e o Jolly trouxeram consigo, da
patrulha, qualquer espécie de doença. Talvez um vírus estranho, qualquer
espécie de bactéria. O mais importante é que parece ser completamente
desconhecida. Não dispomos de curas, de remédios.
— Mas com certeza que os nossos processos de descontaminação
teriam...
— Simplesmente não são suficientemente bons. Nunca pudemos ter a
certeza de que funcionariam para todos os casos. Boomer e Jolly deviam ter
relatado os seus sintomas. Agora puseram todos em perigo. De todos os
incrivelmente estúpidos...
— Pai, parece-me que não são de censurar. Se isto... O que quer que
seja... É perigoso, não podemos esperar que pensem corretamente em todas...
— Espera-se dos guerreiros coloniais que pensem corretamente sempre
que exista mesmo a mais remota possibilidade de perigo. Não posso aceitar
desculpas.
Apollo, que ficava muitas vezes frustrado pela dureza militar do pai,
decidiu abafar a sua irritação desta vez, pelo menos até se saber mais sobre a
doença. No passado, ele e Adama tinham tido longas discussões acerca das
ideias de Apollo sobre a excessiva rigidez das regras que governavam a
tripulação e os passageiros civis da frota, mas não era de fato a melhor altura
para qualquer discussão analítica desse tipo. Seguiu o coronel Tigh em
silêncio, com Starbuck, até à ponte, onde encontrou a tripulação realizando as
suas tarefas com uma evidente tensão latente. Passados momentos, Adama
voltou também para a ponte. Parecia um pouco mais calmo.
— Notícias de Salik? — Perguntou a Tigh.
— Apenas que mais pilotos presentes na festa apareceram com a doença.
— Mantenham-me informado. O mais importante agora é atuar de
acordo com as informações de Boomer. Mudámos de rota para evitar um
posto avançado dos Cylons. O que quer dizer, Capitão Apollo, que vamos
seguir a rota explorada por ti e por Starbuck.
— Negativo — retorquiu Apollo. Adama pareceu surpreendido pela
firmeza da resposta de Apollo. — Não podemos ir por esse lado.
— Não podemos? Parece ser a única via que podemos tomar agora.
— Existe por aí qualquer coisa que julgo ser potencialmente mais
perigosa que o posto avançado dos Cylons. Um mar magnético, infindável,
mais profundo que qualquer coisa que eu tenha jamais encontrado.
Os olhos de Adama brilhavam pensativos à medida que Apollo descrevia
o vazio.
— Era tão vasto que não podíamos sequer detectar o outro lado —
concluiu Apollo. Adama, cujos olhos tinham ficado progressivamente mais
sombrios à medida que Apollo relatava o que se passara no vazio, voltou-se
abruptamente e afastou-se do filho. Parecia já nem sequer ouvir o que este
dizia quando se aproximou do mapa estelar. — Pai, se pudesses só ver o que
fez aos meus aparelhos! Se o Starbuck não tivesse voado atrás de mim, não
teria conseguido regressar, tenho a certeza.
— Então isso é definitivo — exclamou Tigh. — Não podemos continuar
nessa rota. Talvez haja uma maneira de contornar o vazio, seguir o seu
perímetro ou... Que pensa, comandante? Comandante?
Com o rosto pálido cor de cinza, os olhos ainda aparentemente
estupefatos, Adama voltou-se para Tigh e disse:
— Estou nos meus aposentos. Mantenham esta rota até novas ordens.
— Mas vamos direitos para o vácuo, senhor. Se posso sugerir...
— Tem as suas ordens, coronel.
Quando Adama deixou a ponte, caminhando com uma lentidão de quase
sonâmbulo, Apollo e Tigh trocaram um olhar pasmado, preocupado, depois
do que Tigh deu ordens à mulher que estava ao leme para manter a presente
rota e deixou-se cair numa cadeira de comando.
CAPÍTULO IV
SERINA: Acabava de chegar de um briefing sobre os recursos de
emergência perante uma avaria nos painéis de controlo quando ouvi o Boxey
gritar deliciado o nome de Apollo. «Meu Deus», pensei para mim, «chegou o
momento da verdade». Queria ver o seu rosto e, ao mesmo tempo, estava
aterrorizada ao máximo só de pensar em tal. Rapidamente, dirigi-me ao
espelho para verificar se todas as partes do meu fato estavam corretamente de
acordo com os regulamentos relativos a fardamentos.
Apollo perguntou a Boxey onde é que eu estava e o rapaz disse-lhe que
estava nos aposentos de dormir. Pude ouvir distintamente a voz de Apollo
quando disse a rir-se:
— Aposto que está a experimentar o vestido de noiva e que eu não devo
ver, não é?
Não conseguia perceber muito bem o que o tinha levado àquela
conclusão. Boxey, que sabia como é que eu estava realmente vestida, deve
ter-lhe dado alguma pista, uma ponta de excitação ou de receio nos seus
grandes olhos reveladores, que disseram a Apollo que se passava algo. Tem
havido bastante tensão por aqui, escondendo coisas do meu próprio noivo.
— Apollo, eu saio já — gritei lá para fora.
Ele retorquiu que não me preocupasse, pois não pensava que desse
pouca sorte ver a noiva com o seu vestido antes do dia do casamento. Estive
tentada a protestar, a utilizar aquela velha superstição pré-nupcial como uma
desculpa adequada para adiar mais uma vez a inevitável confrontação, mas
decidi que era tempo de pôr tudo em pratos limpos, e disse-lhe que entrasse.
Quando o Apollo me viu (tentando parecer o mais elegante possível na
minha melhor pose de modelo de alta costura), ficou tão espantado que, por
um momento cheguei a pensar que de fato tinha gostado. Quero dizer, era a
primeira vez que ele me via com o meu uniforme de cadete.
Tentei facilitar-lhe as coisas fazendo continência, com a esperança de
que aquele militarismo exagerado ao menos o divertisse. Diz sempre que
gosta muito das atitudes satíricas.
— Piloto cadete Serina apresentando-se ao serviço, capitão — disse eu
na minha mais teatral voz de guerreiro. Há muito que imaginava este
momento, sabendo perfeitamente que ele ficaria chocado ao ver-me com o
blusão de couro castanho e com as calças apertadas do uniforme. Sempre
acreditara que, depois de um primeiro momento de espanto, ficaria contente.
— Que é isto? Uma piada? — Disse zangado.
Fiquei tão desapontada que primeiro não consegui dar qualquer resposta.
— Não. Só queria fazer-te uma surpresa. Tenho estado nos treinos desde
que o teu pai abriu o programa para substituir os pilotos que perdemos.
— Treino! — Exclamou. — Tens andado a treinar para...
— Sou um cadete de naveta, Apollo. Já voei sozinha. As minhas
classificações são boas, são...
— Boxey, desculpas-nos só por um momento?
Boxey ficou fulo por ser assim excluído na conversa. Estivera a
observar-nos como se estivéssemos a representar uma pequena comédia para
seu entretenimento. Olhando para o seu daggit, murmurou:
— Vamos. Muffit. Estes vão discutir.
— Nós não vamos discutir — disse eu tão firme quanto permitiam as
circunstâncias.
— Vão sim — disse o Boxey para o Muffit e fechando a porta atrás de
si.
— Vamos, sim! — Vociferou Apollo, e compreendi que tinha uma
verdadeira luta entre mãos.
«Não faz mal», pensei para comigo, «posso resolver tudo». Pelo menos
esperava poder. Ao olhar para a indignação no rosto do meu noivo, deixei de
estar assim tão segura.
— Nem sequer me disseste nada! — Disse Apollo. — É o que me magoa
mais. Nem sequer sirvo para...
— Deixa-te disso, querido. Sabes muito bem porque é que não te disse.
Nem sequer teria visto o interior de um cockpit se tivesse apenas referido...
— Está bem. Concedo-te esse ponto. Sou um cabeçudo arrogante e
ameaçador em quem não se pode confiar para ver os dois lados de uma
questão como esta. Está bem, eu...
— Para com isso. Não precisas de ficar irritado. Se fiz mal em não te
dizer, desculpa, mas...
— Ninguém me disse. Com todos... Parece-me que sou o comandante de
voo, lembras-te? Nem sequer recebi ainda um único relatório sobre isto na
nossa pequena academia improvisada. E o meu pai sabe que tu...
— Não. Ele não recebe relatórios acerca de todos os cadetes existentes
na frota.
Apollo parecia disposto a arrasar toda a frota com um relatório de
competência. Estava também muito, muito zangado. Queria aproximar-me e
tocá-lo, mas receei que ele nem sequer aceitasse, naquele momento, um leve
gesto de afeto como esse. Finalmente, com as palavras disparadas como
rajadas de laser, disse:
— E demasiadamente perigoso. Não posso... Não vou...
De repente apercebi-me de que também estava muito zangada.
— Não tens outra hipótese! — Exclamei.
Não fui muito esperta em atacá-lo daquela maneira — especialmente
com bluffs fanfarrões — pois, em todo o caso, ele tinha outras hipóteses.
Como comandante de voo e filho de Adama, podia expedir-me do serviço
com a maior das facilidades. A minha conversa deveria ter sido mais suave,
tentando cativá-lo; mas, em vez disso, como impulsiva desordeira que sou,
tinha-lhe respondido à letra.
— Serina, não está... Não está certo. É...
— Não está certo? Por que razão?
— Vamo-nos casar!
Já devia estar à espera daquilo. São muitos os homens a bordo desta
estrela-de-batalha que pensam que o simples som de palavras como
«casado», «casamento», «noivado», «esposa», basta para resolver
automaticamente todas as situações. Depois dessas palavras construírem as
barreiras, deixava de haver discussão possível. Bom, isso podia servir para
algumas mulheres, mas eu tinha gozado de demasiada liberdade em Caprica,
e não estava disposta a deixar que o sexo se tomasse uma barreira definitiva
entre nós.
— Sim, vamos casar, mas que é que isso tem a ver com o que está aqui
em causa? A tua própria irmã é piloto... E guerreiro!
— Ela é minha irmã. Não minha futura mulher!
— Bem, se é isso que te preocupa, pode resolver-se. Facilmente. Eu
serei apenas mais um cadete e tu não te terás de preocupar mais com isso.
Sempre pensei que nunca iria acreditar em contratos de casamento. Vejo
agora porquê!
Mesmo que não fosse mais nada, Apollo era pelo menos um bom oficial.
Sabia quando retirar. Pôs os braços à minha volta e disse:
— Serina, amo-te. E isso que conta. Não quero que te aconteça nada,
nunca.
Reconhecendo a sua súbita acalmia, retomei controlo sobre as minhas
próprias emoções.
— E eu, pensas que também não te amo? — Respondi. — E falando de
perigo, tenta ver as coisas do meu ponto de vista. Andas sempre fora em
patrulha, aos comandos de um viper. Em combate. E não me dês mais da tua
usual conversa sobre o viper ser a máquina de guerra mais eficiente e bem-
sucedida jamais construída. Já vi muitos deles saírem pelos tubos de
lançamento pela última vez para ir nisso. E eu nem sequer quero concorrer
para piloto de viper. Kobol me livre. Estou apenas a treinar-me, no máximo,
para piloto de naveta.
— E sabes porventura quantos pilotos de naveta têm sido abatidos por
ataques traiçoeiros dos Cylons, quantos pilotos de naveta se perderam na
batalha de Carillon?
— E tu sabes quantos civis? Apollo, aceita as coisas tal como são, não
há lugar nem função seguros na frota. É por isso que necessitamos tão
desesperadamente das disposições de emergência. Cada um deve treinar-se de
acordo com as suas capacidades. É a nossa única hipótese de sobrevivência.
— Sim, mas...
Mas não conseguiu encontrar mais «mas». Afastou os olhos de mim
como se examinasse as carreiras cinzentas nos painéis metálicos da parede,
depois fitou-me de novo. Depois suspirou, depois suspirou de novo.
Finalmente disse:
— Prestas para alguma coisa?
— A melhor da aula.
Puxou-me para si.
— E bom que sejas, se vais casar com um comandante de esquadrão.
— Oh, bom, então... Sim, senhor.
Então beijou-me. E, por um momento, aquela nossa guerra particular
tinha acabado. Uma paragem seguida de armistício e tempo para reagrupar
forças.
De certo modo tenho pena por termos tido de passar pelo usual esquema
de zanga e reconciliação. Nunca tive oportunidade de lhe dizer como estou
assustada, como não consigo dormir direito com medo de pesadelos nos quais
há sempre um caça cylon que se lança sobre mim e dispara um laser que me
cerca de um clarão estonteante antes de conseguir acordar. Contei a Athena
estes meus sonhos horríveis. Não lhes ligou importância, chamando-lhes
medos de cadete.
Mas os pesadelos não param.
CAPÍTULO V
Cassiopeia caminhou pela passagem entre a dupla fila de câmaras de
apoio de vida, verificando as escalas de cada uma para ver se se mantinham
os adequados níveis criogénicos. Parou diante da câmara de Boomer durante
um longo momento, tentando descortinar uma réstia de vida no rosto do
jovem. A camada de orvalho que se formara no interior do vidro da câmara
dava a Boomer um ar realmente fantasmagórico. Apesar de todos os
instrumentos indicarem que vivia, o seu rosto não apresentava vestígios
alguns de vida. Na verdade, todos os homens mais pareciam enterrados nos
seus caixões que em dispositivos de apoio de vida.
Um arrepio percorreu todo o seu corpo quando repentinamente anteviu
Starbuck encerrado num daqueles tubos de apoio de vida. Quando lhe dissera
como estivera quase a atacar o guarda de segurança e a entrar na sala de
festas, tinha-se mostrado indiferente e superior, como se a misteriosa doença
não o pudesse afetar. Porém, todos os que estavam na festa estavam agora
doentes. E mais: um dos pilotos tinha abandonado a sala atrás de uma
aventura amorosa. Havia desmaiado antes de incomodar qualquer mulher,
mas entrara em contato com vários membros das forças de segurança, que por
sua vez tinham contactado com outros e até ao momento, era imprevisível até
onde a praga se poderia ter propagado. Se os dispositivos de quarentena e a
maior rigidez das medidas de recolher obrigatório não dessem resultado,
então qualquer um — Apollo, Starbuck, Serina, o comandante — poderia
contrair a doença. Durante os dois últimos turnos de serviço não tinham sido
referidos mais casos, pelo que o Dr. Salik pensava que a fase de contágio
estava concluída. Mas, dizia ele também, como é que alguém podia prever o
avanço de uma doença sobre a qual ninguém conhecia nada? Chegaram-lhe
as lágrimas aos olhos quando pensou em Starbuck, e desejou ardentemente
que ele pudesse escapar-se sub-repticiamente da escala de serviço para estar
com ela depois de o seu próprio turno acabar. Queria abraçá-lo, protegê-lo,
mesmo quando ele fanfarronava que não precisava de proteção. Talvez
conseguisse que ficasse com ela durante um período de descanso inteiro, em
vez de zarpar para qualquer mesa de jogo algures. (Mas onde? Todos os seus
parceiros de jogo estavam ali, metidos em tubos de apoio de vida.) Se ao
menos ele ficasse... Talvez se ela apostasse oito contra cinco em como não
ficava...
O Dr. Salik, que estivera a trabalhar com o computador da nave,
introduzindo todos os dados conhecidos sem receber qualquer resposta
conclusiva, afastou-se repentinamente da consola e interrompeu os
pensamentos dela sobre Starbuck, murmurando:
— Ainda nada. Meti tudo o que sei sobre os sintomas, eliminei tudo o
que os testes deram de negativo. Não consigo lembrar-me de mais nada.
— Mas nós...
— Vamos passar tudo outra vez. Rever os sintomas.
Era pelo menos a décima vez que pedia a Cassiopeia que recitasse a lista
dos sintomas. E de cada vez ela desempenhava-se da missão com todo o zelo:
— Tonturas. Pulso acelerado. Ataques súbitos de desmaio. Febre.
Redução dos glóbulos do sangue. Estes são os principais.
— Eu sei, eu sei. E mesmo assim não tenho ainda qualquer pista. Podia
morrer toda a gente na frota e eu ainda aqui recebendo respostas
inconclusivas do computador.
Ela colocou a mão sobre o seu braço. A pele em redor dos olhos estava
muito entumecida, os próprios olhos pareciam escondidos por trás de altas
ameias.
— Tenha calma, doutor.
— Certo, Cassie. Eu só não...
Parou de falar ao reparar que o comandante da Galactica estava agora do
outro lado da câmara tubular onde se encontrava Boomer. O homem tinha
entrado na estação de apoio de vida tão silenciosamente que nem o doutor
nem a sua assistente o tinham notado.
— Acabo de receber um relatório — disse Adama. — Esta doença já
atacou todos os pilotos de guerra e metade dos oficiais da ponte. Todos os
que de uma forma ou de outra entraram em contato com quem esteve na
festa. E evidente que a origem se encontra em Boomer e Jolly. A câmara de
descontaminação foi verificada e encontra-se totalmente operacional.
— Fiz dúzias de exames aos corpos dos pilotos atacados, senhor. Não
indicam nada. Nenhum grau de elementos bacteriológicos ou virosos. Está a
acontecer qualquer coisa ao seu sangue e há um evidente enfraquecimento na
flora intestinal, mas nem estes nem outros sintomas são passíveis de
revelarem algo de definitivo. Só posso deixar os homens nos tubos
criogénicos até que se chegue a qualquer solução. Boomer e Jolly estariam já
mortos se não os tivesse colocado em suspensão criogénica. E parece-me que
é apenas adiar o inevitável, se não consigo isolar a causa da doença. E
depressa.
Cassiopeia nunca detectara tanto desespero e desânimo no rosto do
comandante. Lembrava-se de Tigh descrever a reação de Adama ao rever a
explosão do viper do seu filho Zac, no começo da manobra de diversão dos
Cylons. Adama deve ter ficado então como estava agora, prestes a ceder
rompendo em lágrimas a qualquer momento.
— Doutor — disse Adama —, compreende o significado destes homens?
Destes homens em particular? Têm-se esforçado diariamente, protegendo a
frota. Não nos podemos dar ao luxo de os perder agora.
Salik, claramente tentando manter a calma, suspirou fundo antes de
responder:
— Compreendo muito bem isso tudo, comandante. Mas com todo o
devido respeito tenho de referir que os problemas de defesa são seus. O meu
trabalho aqui é mantê-los vivos.
Adama, menos bem-sucedido em manter a calma, exclamou:
— Então faça o seu trabalho, doutor!
A voz de Salik baixou um pouco quando disse:
— Assim que deixar de estar constantemente a espreitar por cima do
meu ombro, comandante, farei o meu trabalho.
Os dois homens, para Cassiopeia, pareciam prestes a começarem aos
murros assim que qualquer deles abrisse de novo a boca. Afortunadamente.
ficaram silenciosos durante um longo momento, até que Adama deu meia
volta sobre os calcanhares e saiu rapidamente da estação de apoio de vida.
Salik não se deu sequer ao trabalho de seguir o comandante; em vez disso,
voltou novamente para a consola do computador, para introduzir mais uma
vez as mesmas informações que vinham dando desde que os sintomas tinham
sido diagnosticados.
«Starbuck», pensou para si Cassiopeia, «é bom que estejas lá esta noite.
Preciso de ti.»
***
Adama, ainda abalado pela confrontação com Salik, procurou algum
alívio examinando mais uma vez as fotografias microfilmadas dos antigos
livros de Kobol. Parou especialmente num velho mapa para o poder estudar.
A belíssima caligrafia do mapa estava escrita numa linguagem antiga, da qual
muito pouco podia ser traduzido. Parecia mostrar uma estrela brilhante e
luminosa num círculo com longos e ondeantes raios partindo do seu centro. A
extensa área semelhante a um oceano que partia do planeta podia muito bem
ser a representação do que Apollo e Starbuck tinham descrito como o vazio.
Uma das traduções alternativas da inscrição misteriosa que se encontrava por
baixo da área oceânica parecia descrever um vasto vazio estendendo-se por
toda a galáxia. Se entrassem nele e se aproximassem da estrela e do planeta,
então...
— Mandou-me chamar, pai?
Não ouvira Apollo entrar. Fitando agora o jovem, começou a sorrir. No
entanto, teve de conter o seu instinto paternal quando se apercebeu de como
Apollo parecia zangado. O sorriso de boas-vindas depressa se desvaneceu.
— Sim, Apollo. Mandei o coronel Tigh preparar uma escala de toda a
gente na frota com experiência de voo.
A lista encontrava-se num dos cantos da secretária de Adama. Pegou-lhe
e deu-a ao filho, que pareceu relutante em a aceitar.
— Basicamente — continuou Adama — limita-se a um pequeno número
de pilotos com treino de combate, depois um grupo maior de guerreiros mais
antigos de uma ou outra categoria. Mais esses nomes no fim.
Mantendo a lista afastada como se lhe fosse especialmente repugnante,
Apollo olhou de soslaio os nomes que a compunham. Ao atingir o último
grupo de nomes, regougou violentamente e murmurou:
— Oh, não.
— Esses últimos nomes — disse Adama — são os dos cadetes que
tiveram já alguma experiência de voo sozinhos, apesar de nenhum deles ter
ainda sequer tocado a alavanca de comando de um viper. Prepara-os para
combate o mais depressa possível.
Apollo apertou a lista tão fortemente que em volta da sua mão o papel
começou a enrugar-se ameaçadoramente.
— Não está a falar a sério? — Disse, bastante zangado.
«Que é isto?», pensou Adama. «Hoje toda a gente parece que está à
procura de discussão. Primeiro Salik, agora Apollo, cada um disposto a
explodir comigo.»
— Estou a falar bastante a sério — retorquiu Adama firmemente, com a
esperança de que aquele tom acabasse com a discussão do filho.
— Pai — disse Apollo —, o viper é uma máquina extremamente
complicada. Está concebida para se integrar estreitamente com a habilidade
do piloto. Eu próprio sinto por vezes que, se sentisse que podia passar sem
mim, o meu já me teria atirado para fora do cockpit. Não pode pura e
simplesmente dar vipers a... Pilotos de naveta. E...
— Não sabemos ainda quanto tempo vai passar antes de os nossos
pilotos doentes poderem voltar ao combate. Ou sequer se alguma vez
poderão. Não podemos esperar. Estou a falar a sério até esse ponto; é até esse
exato ponto que a situação é séria. Não quero parecer brusco, mas estou
ocupado. — Olhou irritado para o antigo mapa no écran. — Tens as tuas
ordens.
— Sim, senhor, mas...
— Que é?
Apollo atirou a lista novamente para cima da secretária de Adama e
dirigiu-se bruscamente para a porta, chegando à qual se voltou e disse
calmamente:
— Não acredito que tenha lido todos os nomes nessa lista, comandante.
Depois de Apollo ter aberto violentamente a porta do compartimento e
ter abalado da sala, Adama apanhou lentamente a lista de onde Apollo a
deixara. Olhando para os nomes que se encontravam em último lugar,
percebeu logo o que tinha abalado o filho. Serina estava na lista como um dos
pilotos de naveta qualificados. Demasiado embrenhado nos inúmeros
pormenores do comando, Adama ainda não tinha conhecimento de que Serina
cumprira a ameaça de fazer treino de pilotagem. Lembrava-se bem do dia em
que ela anunciara a sua intenção, e que ele tinha indelicadamente troçado,
dizendo que o seu dever era ser a companheira de Apollo. Que é que ela tinha
dito então, com a voz quase silvando de indignação? Qualquer coisa acerca
do dever que um indivíduo tinha de integrar algo mais do que o
comprometimento unilateral para com outro indivíduo, especialmente por
razões demasiado evidentes depois do primeiro disparo do ataque dos Cylons
aos Doze Mundos. Domando a sua irritação e tentando ser conciliador,
Adama tentara tirar-lhe a ideia de se tomar piloto, dizendo que podia ser mais
útil ajudando os doentes ou supervisionando os mantimentos ou, dados os
seus grandes talentos nesse campo, participando na preparação de comida.
Apesar dela ter compreendido que as suas sugestões eram claramente
condescendentes, não as tinha discutido. Por outro lado, não concordara com
ele.
Agora não podia deixar de lhe ordenar que arriscasse a vida. Não a podia
excluir do cumprimento do dever e mandar para a luta outros pilotos
aceitáveis mas certamente tão inexperientes como ela.
— Oh, Deus — murmurou Adama, sem saber ao certo que dizer ao filho
na próxima vez que se encontrassem.
***
Cassiopeia anichou a cabeça no ombro de Starbuck e entoou uma das
canções que recordava dos seus tempos de assistente social. O Quórum da
Frota tinha banido a prática da socialidade, entre outras ocupações de luxo,
como inimigas dos objetivos principais: escapar à perseguição dos Cylons e
procurar a Terra. Tinha procurado eliminar memórias da sua vida passada.
No entanto, não conseguira esquecer completamente a música. Além do mais
era muito bonita, especialmente composta para tratamento de problemas
emocionais específicos. A canção que cantava agora. Morte Que Não é
Morte, Vida Que É Toda Vida, parecia particularmente apropriada ao estado
de espírito de Starbuck. Estava receoso por Boomer e pelos outros
companheiros, todos retidos naquele estranho coma na estação de apoio de
vida. Depois de um momento ouvindo a voz suave e fina de Cassiopeia, pôs
um braço à sua volta e aproximou-a de si. Cassiopeia acabou a canção e
depois gozaram ambos o silêncio. Pelo menos um silêncio relativo; não havia
hipótese de se desfrutar de um silêncio total dentro da fervilhante Galactica.
— Se queres fumar, não te prendas — disse Cassiopeia finalmente.
Starbuck sorriu e sussurrou;
— Ná. Sei que odeias o cheiro dos meus charutos, mesmo quando são
feitos com o tabaco mais fino e potente obtido em Sagitária. Boomer guardou
algum de...
Parou subitamente de falar. A sua vida e a de Boomer estavam de tal
forma entrelaçadas que parecia não poder falar de nada sem o chamar de
qualquer maneira à conversa. Cassiopeia praguejou em silêncio. Parecia não
haver nada no seu aturado treino de socialadora — todas as complexas artes,
dispositivos, teorias, tendentes a ajudarem uma mulher a assistir os seus
clientes masculinos — que conseguisse extinguir a melancolia provocada
pela proximidade da morte, nem mesmo as canções doces e tristes que
cantava.
— Starbuck, queres...
— Tenho de ir, Cassie.
— Não, por favor, fica.
— Não sou boa companhia...
— Não faz mal.
— Bom, tenho de estar em forma para poder fazer olhinhos aos meus
alunos nas novas aulas de treino de voo, amanhã.
— Isso já parece mais o Starbuck a que estou habituada, admito. Mas
não acredito em ti. Estás só a...
— Cassie, tenho mesmo de estar só durante algum tempo.
— Estás sozinho comigo.
— Não posso. És maravilhosa, Cass, mas...
— É portanto definitivo.
— Não exatamente, vou-me embora.
— Starbuck, por favor...
Delicadamente, ele retirou o braço da sua cintura e desprendeu-se.
— Fico ciumenta, sabes — murmurou Cassiopeia.
O rosto de Starbuck perdeu um pouco da sua tristeza. Os seus ciúmes
agradavam-lhe, como ela tão bem sabia.
— Com ciúmes? Porquê.
— Tu e Athena. Vão estar juntos durante as aulas, durante...
Starbuck partiu-se às gargalhadas.
— Pelo que vejo não conheces a Athena muito bem. Quando se trata de
qualquer coisa deste gênero, tocando ao de leve que seja o dever, é toda
profissional. Não tens qualquer razão para sentir ciúmes.
— Mas, ao que sei, aceitas um pouco de ciúme fora de serviço?
— Não tentes confundir-me. Sou teu para sempre, ou até, ou se. É o
máximo que te posso prometer.
Ela descaiu-se e murmurou:
— Ou qualquer outra mulher.
Não era a melhor altura para aquele tipo de referências sarcásticas.
Starbuck tocou no seu queixo com as costas da mão, depois deixou
repentinamente o quarto. Ela ficou a olhar para a porta durante um bocado,
esperando talvez vê-lo regressar.
***
Gemi era uma rapariga baixa, com pelo menos vinte centímetros a
menos que o exigido para o serviço nas forças coloniais. Sorrindo
atrevidamente e distraindo o inspetor, conseguiu pôr-se em bicos dos pés e
ser considerada apta. Apesar de a vista ser inferior ao exigido, conseguiu
disfarçar um certo estrabismo com um golpe de boa memória e passou nos
exames. Tinha uma doença nervosa hereditária bastante esquisita, comum
apenas aos habitantes de Gemon, o seu planeta de origem, que em momentos
de particular tensão podia levar os seus dedos a tremerem
descontroladamente. Não a referiu a nenhum dos médicos que a examinaram.
Tinha um talento todo especial para fazer testes, e conseguiu passar o exame
de pilotagem, apesar de ter percebido muito menos de metade das questões.
Nunca deveria ter sido aceite para os treinos de suplente como piloto de
viper, mas ninguém sabia, uma vez que conseguiu esgueirar-se por meio de
mil estratagemas durante os testes preliminares. Talvez a tivessem aceite
provisoriamente, de qualquer das maneiras. Alguém que desejava tão
ardentemente ser piloto merecia tratamento especial; pelo menos, era o que
Gemi pensava.
A única coisa que a preocupava realmente era não conseguir arranjar
maneira de atrair a atenção do tenente Starbuck. Sabia perfeitamente que era
ridículo ter uma paixoneta pelo ousado e popular jovem oficial mas, para ela,
os assuntos do coração nunca tinham seguido precisamente os caminhos da
lógica comum. O principal obstáculo para os seus projetos amorosos era
serem já tantas as raparigas apaixonadas por Starbuck que ela se perdia
literalmente na multidão. A ironia mais dramática para todos os cadetes
femininos nas novas aulas de pilotagem de vipers era que Starbuck,
desafiando a sua fama como femeeiro incorrigível, se tomara num instrutor
profissionalíssimo e não dava réstia de troco a nenhuma das raparigas. Nos
seus momentos de maior desespero, Gemi sentia que ele nunca iria reparar
nela, pelo menos com toda aquela concorrência. «Que é que ele poderia ver
no seu rosto pequeno, em forma de coração?», pensava ela. O queixo era
demasiadamente afilado e a testa excessivamente alta. Se ao menos tivesse
sido abençoada com aquele tipo de grandes olhos azuis que os homens tão
irritantemente adoram! Mas, em vez disso, os seus eram pequenos e de um
castanho triste. Os seus defeitos faciais poderiam ser compensados se pudesse
apresentar uma excelente figura, magra e longilínea — em suma, atraente;
mas a sua era compacta e corpulenta, o tipo de corpo atarracado bom para
jogos violentos ou para domar uma montada selvagem, de forma alguma o
modelo de curvas que atraíam o olhar dos homens. Apesar de ser
razoavelmente bem-sucedida nas guerras amorosas que ocupavam tanto do
tempo de paz a bordo nas naves da frota, ficava sempre desencorajada pelo
fato de na maioria das vezes ter de ceder terreno perante casos em que as
normas de conduta ética nem sempre lhe agradavam, nem agradariam a
qualquer mulher que tivesse assentado para seu uso pessoal numa ou duas
normas de conduta. Os homens da frota não eram propriamente, como ela
poderia dizer, representativos do ideal na vida humana. Bem longe disso.
Em todo o caso, pôs Starbuck no seu ponto de mira. No primeiro dia de
treinos colocou todas as questões possíveis e imaginárias, até que o resto da
aula começou a troçar e a resmungar cada vez que levantava a mão. Mas, por
mais inteligentes e bem construídas que fossem as suas perguntas, Starbuck
respondia sempre do mesmo modo desprendido e ocupado, quase sem
levantar os olhos do quadro para a fitar. A sua indiferença perante aquele
show intelectual não teria sido tão aborrecida se, depois de acabada a aula,
Starbuck não tivesse imediatamente começado a brincar com todas as outras
raparigas — pelo menos, com todas as outras raparigas altas, bem
proporcionadas e bonitas— da classe.
Enfim, meditou voluntariosa, se a inteligência não lhe chamava a
atenção, tentaria a habilidade — e começou imediatamente a aplicar todas as
suas consideráveis energias e talento a tomar-se um piloto de qualidade.
«Talvez que», pensou para consigo, «o melhor caminho para o coração de um
homem seja através do seu viper.»
CAPÍTULO VI
SERINA: Estou de tal forma exausta que não sei sequer se serei capaz de
terminar este relatório. Quem pensa que o treino para piloto de combate tem
um bocadinho que seja de romantismo é bem-vindo para me substituir na
classe de cadetes. Até este momento, já fui abatida tantas vezes em batalhas
simuladas que, para mais com todo o torpor que sinto em todos os músculos,
começo a pensar que estou realmente morta. Não consigo ainda dominar
perfeitamente a confusão resultante de disparar com o laser em simultâneo
com o impulso acelerado do viper. O meu polegar na alavanca de comando
não consegue mesmo realizar os gestos instintivos necessários com o ritmo
correto. Athena diz que é sempre duro para todos os principiantes. Tem de se
atuar antes mesmo sequer de pensar na própria ação, diz ela. O seu treino é
muito duro, mas parece-me que estou a aprender. Continuo, porém, a pensar
que nunca me conseguirei habituar completamente. Nunca completamente.
Não àquilo que um verdadeiro piloto sente quando está tudo a zumbir à sua
volta e a nave balouça como um barco. Tenho de conseguir. Quanto mais não
seja para provar algo ao Apollo.
Apollo.
Na verdade, tem sido sensacional em relação a tudo isto. No entanto...
Desde que os treinos começaram não tenho conseguido livrar-me da
permanente sensação de que está continuamente pairando sobre os meus
ombros. Quer dizer, ele não grita nem critica, e tenta mesmo ajudar-me. Toda
a gente o adora como professor. Acontece apenas que não me consigo ver
livre desta suspeita muda de que ele deseja realmente que eu falhe. É difícil
de explicar concretamente. Fica orgulhoso, bem sei, quando me porto bem na
aula. (Tenho-me mostrado de fato muito melhor em teoria do que em prática
de combate.) Mas ao mesmo tempo esse orgulho é, não sei, de certa forma
maculado. Ao mesmo tempo que fica orgulhoso de eu ir bem, o que quer
realmente é que eu fique aqui a salvo nos meus aposentos na Galactica, sem
pensar em lasers ou vipers que interfiram nos meus sentimentos de noiva.
Quer dizer, é realmente adorável da parte dele. Ele não é aquele tipo de
homem que se sente ameaçado pela concorrência de uma mulher. Pelo menos
penso que não. É somente tão atencioso que não quer que me aconteça nada,
e não há argumentos sobre as necessidades da frota que o demovam dessas
ideias. Além do mais é um herói da frota. Sabe que vale bem por dois e que
ninguém o censuraria se exercesse um pouco da sua influência de comando
para me afastar de todos os cockpits. Mesmo assim, gostaria de lhe mostrar.
Nunca serei tão bom piloto como ele, estou certa disso, mas pelo menos
posso ser mesmo boa e por agora é o que me interessa. Santo Deus, nunca
pensei que alguma vez na minha vida a coisa mais importante seria o
conseguir manter a minha nave num curso estável.
O guerreiro que muitas vezes gostaria de estrangular é Starbuck. Aquele
homem é incorrigível, juro. Ao vê-lo supervisionar os treinos, poderia pensar-
se que tinha realizado o maior sonho da sua vida. E talvez tenha. Com certeza
que nunca antes teve tantas mulheres sob as suas ordens. E não é exagero
afirmar que, mesmo antes de estes treinos começarem, ele já detinha o
recorde de mulheres por ele comandadas. Mas agora... Agora está realmente
no seu elemento; depois de cada sessão, esvoaça de rapariga para rapariga.
Por vezes pode ser realmente embaraçante, apesar de ter de admitir que a
maioria das jovens cadetes parece adorar isso imensamente.
No primeiro dia, quando nos distribuíram os uniformes, Starbuck estava
em todo o lado, ajustando correias, lustrando insígnias, apertando mangas.
Murmurando constantemente que estava pronto a dar uma mão a quem.
precisasse. Dietra sussurrou para mim que ainda parecia mais pronto a dar
duas mãos. Parece particularmente desejoso de ajudar uma lourinha chamada
Brie. Vem transferida da Rising Star, a antiga nave de luxo, algumas de cujas
facilidades têm sido da máxima utilidade para os R & R da frota. Correm
rumores de que era hospedeira num dos inúmeros salões quando os Cylons
atacaram. Parece que não consegue fazer nada direito. Durante os treinos com
os fatos-G, passou todo o tempo a tentar prender a correia de pressão por
baixo do joelho em vez de por cima. Como era de esperar, aí estava Starbuck,
todo sorrisos para ela e dizendo-lhe que não lhe serviria de muito onde a
tinha colocado. Bom, Brie lançou-lhe o seu olhar de inocente rapariguinha e
ele ofereceu-se logo para a reajustar. Parece-me que era o que queria fazer
desde princípio. Disfarçou o mais que pôde. Quando se inclinou para o seu
joelho e começou a apertá-la — com toda a lentidão, evidentemente —,
explicou com uma perfeita voz professoral que era um dispositivo de pressão
eletrónico concebido para ajudar o corpo a aguentar as enormes forças
provocadas pela rápida aceleração e desaceleração.
E claro que Athena está furiosa com ele. A Cassiopeia também o estaria,
se não estivesse tão ocupada na estação de apoio de vida. Sempre que
Starbuck anda em volta de Brie ou de uma das outras, Athena costuma ficar a
vigiá-lo, mesmo sem deixar de cumprir adequadamente as suas obrigações de
professora. Tomou-se mesmo particularmente apta a manobrar entre Starbuck
e os seus momentâneos objetos de atenção. De certo modo, aquela rivalidade
tem sido benéfica para todos nós. Concorrem entre si, tentam ultrapassar-se
mutuamente nas suas secções de prática, e todos nós aprendemos com a sua
concentração redobrada. Ontem Athena bateu Starbuck num simulacro de
voo para o alvo, e ele disse que ela tinha tido sorte: começara o seu voo cedo
de mais e, obviamente, disparara tão fora de tempo que na realidade deveria
ter falhado o alvo em vez de o reduzir a milhões de cacos eletrónicos. Ela
manteve a calma e replicou apenas que talvez o seu timing tivesse sido,
enfim, antecipado; mas que, neste voo em especial, essa falha de tempo o
salvara de ser, por sua vez, varrido do espaço. Ele duvidou dessa apreciação e
foram para o computador para esclarecer tudo, O replay do voo, que analisa
todos os movimentos e ações dos pilotos, mostrou que Athena tinha razão. O
seu timing salvara Starbuck de um provável ataque em parafuso por parte das
naves simuladas cylon, ataque esse em que as suas hipóteses de escapar eram
bastante más. Uma coisa que reconheço em Starbuck: pode andar atrás de
mulheres com uma autossuficiência irritante, mas não receia admitir os seus
erros. Teve o gesto realmente bonito de admitir perante toda a classe que
Athena ganhara a aposta. Há alturas, especialmente quando noto uma ponta
de melancolia nos olhos de Starbuck, em que penso que a sua exuberância é
uma espécie de compensação ou escape das preocupações que tem acerca da
sorte de Boomer.
Quando Apollo nos estava a dar a lição sobre o fato pressurizado,
explicando pormenorizadamente as diferenças de força de gravidade entre o
voo com naveta e com viper, reparou em mim. De resto eu colocara-me
mesmo em frente do estrado onde ele falava. Formei as palavras amo-te, e
com os lábios dirigi-as na sua direção. Ficou todo encarnado, sem que os
outros percebessem porquê. Adorei. Mais tarde, quando estávamos no
simulador, deslizou para trás de mim e enlaçou-se com os braços, disse-me
bem alto que estava supertensa e que me devia descontrair: pegar na alavanca
com mais leveza, com mais leveza. Depois debruçou-se e sussurrou:
— Eu também te amo.
Apesar de tudo, por vezes o treino vale a pena. Mas, santo Deus, espero
poder controlar devidamente os instrumentos antes de ter de comandar um
viper a sério. Quem me dera... Estou demasiado cansada para continuar,
parece-me que vou adormecer agora mesmo. Serina, fechando a emissão e
cabeceando.
CAPÍTULO VII
Lucifer sentia cada vez maiores dificuldades em manter o seu verdadeiro
ego dominado pela personalidade fictícia que programara. Não lhe agradava
nada ter de manter aquela atitude subserviente perante Baltar, e
especialmente ter de engolir todos os comentários que lhe sugeriam as
observações e opiniões do comandante.
Acompanhado por um guerreiro cylon, especialmente destacado para o
guardar, Lucifer deslizou para a sala de comando. Como de costume, Baltar,
sentado no seu trono de pedestal, estava virado para a parede. Para lhe
chamar a atenção, Lucifer disse:
— As suas ordens.
Lentamente, a cadeira de comando rodopiou e Baltar debruçou-se sobre
ele. Estaria enganado ou os lábios de Baltar mostravam claros sinais de
satisfação? O homem tomava-se de dia para dia cada vez mais difícil de
aturar.
— Sim, Lucifer? Que pequeno desvio astronômico ou ínfimo
ajustamento de rota apresentas como desculpa para interromperes desta vez o
meu período de meditação?
O homem começava já a falar como um tirano. Período de meditação,
uma ova. Baltar era incapaz do tipo de meditação que qualquer líder imperial
devia conseguir. Não há muito tempo o seu destino era o lixo; agora estava
prestes a transformar-se num semideus feito por medida.
— Peço desculpa, mas a interrupção é necessária. Detectámos a
Galactica e seguimo-la, imediatamente fora do seu campo de radar.
Baltar sorriu levemente.
— Excelente.
— Desviou-se do asteroide onde se encontra o nosso posto avançado.
— Ah, sim, já tinha previsto isso.
— Certamente, perante os fatos, não é de todo ilógico. Mas a sua
presente rota leva-os para o quadrante Épsilon, direitos para um abismo
magnético.
Primeiro Baltar estudou silenciosamente o rosto de Lucifer; depois,
abruptamente, levantou-se e olhou para a esquerda, mais ou menos na direção
do quadrante Épsilon.
— Um abismo magnético? Não pode ser. Descreve, por favor.
— Um vazio, um inferno para a navegação. O nosso equipamento não
consegue determinar as suas dimensões, pode ser infinito. Parece-me que,
perante a alternativa de avançarem para o abismo ou de entrarem em luta com
o nosso posto avançado, deveriam ter escolhido a segunda hipótese.
— Talvez saibam que os seguimos, e a rota para o abismo seja uma
diversão.
— Tudo é possível, mas as probabilidades, tal como as computei,
parecem ser astronomicamente contrárias a essa alternativa. Não me parece
que tenhamos sido detectados e o seu avanço para o abismo parece
deliberado. Vamos lançar agora os nossos caças contra a Galactica?
Baltar voltou a sentar-se no trono, pós a mão no queixo. Lucifer tinha de
admitir que o homem simulava estar em meditação melhor do que tinha
esperado.
— Não — disse finalmente Baltar. — Eles portam-se bem de mais em
espaço aberto. Temos de os apanhar num espaço limitado, encurralados a um
canto. Esperaremos. Têm mandado patrulhas de reconhecimento?
— As vezes. Tendem a patrulhar para a frente e temos sempre
conseguido ficar aquém do alcance das patrulhas à retaguarda que
eventualmente têm aparecido.
Baltar concordou.
— Então é isso. É isso que vamos fazer.
Lucifer notou mais uma vez a enorme capacidade de Baltar em referir o
especulativo como se fosse fatual.
— Deem máxima prioridade à eventual captura de um dos pilotos dessas
patrulhas. A ser verdade o que suspeito, Adama está de novo embrenhado na
sua busca vã, e há uma hipótese bastante plausível de conseguir que ele nos
entregue a Galactica sem necessidade sequer de disparar um único tiro. Só é
preciso que eu consiga jogar bem a parte psicológica da partida. É tudo,
Lucifer.
— As ordens.
Enquanto saía, Lucifer meditou para si que Baltar tinha de fato um certo
talento para a manhosice, que mereceria ser aproveitado. O único problema
residia em que era tão tortuoso e manhoso que nem mesmo os que estavam a
seu lado podiam afirmar com absoluta certeza quais eram as suas intenções.
Por enquanto, os caminhos extravagantes de Baltar eram úteis, mas mais
tarde talvez se tomasse indispensável lidar com ele de outra forma.
***
Adama tentava compreender alguma coisa do vazio que enchia agora o
écran central do radar. Quem lhe dera que pudesse ser efetivamente visto e
analisado. Mas como é que se podia ver e analisar o vácuo? Tudo o que podia
ver eram milhares de estrelas rodeando a imensa zona negra. Qualquer
análise era especulativa, perigosamente especulativa.
Tigh, empunhando um relatório, veio para o seu lado.
— Os radares de longo alcance não conseguem detectar até onde se
estende — comentou. Pode ser infinito.
— Não, infinito não, coronel. Duvido fortemente disso.
Tigh, claramente indeciso sobre se o comandante estava ou não mental e
emocionalmente estável, levantou ligeiramente as sobrancelhas e deu os
documentos a um membro da tripulação. O Dr. Salik, esfregando as mãos
como que para lavar-se de qualquer doença que tivesse atacado a ponte,
aproximou-se de Adama.
— Doutor — disse Adama sem olhar para cima —, dentro de quanto
tempo podemos esperar que os nossos pilotos voltem aos seus postos?
A maneira como Salik fitou Adama era, pelo menos, um tudo nada
menos encorajadora que a de Tigh. Era evidente que os dois homens
começavam a ficar preocupados com a sanidade mental do seu líder.
— Comandante — disse Salik —, mais dois homens acabam de entrar
em estado crítico. Se isto continua, vou ter de empilhar câmaras de apoio de
vida pelo corredor. Portanto, não se trata de uma questão de saber quando
voltarão para os seus postos, mas sim de saber dentro de quanto tempo
morrerão.
Salik olhou carrancudo para os dois homens, um olhar de resto
característico do exausto médico, depois disse numa voz mais baixa:
— Venho pedir licença para voltar ao local onde os dois tenentes
aterraram. Se não consigo isolar a origem da doença...
— Negativo, doutor — disse Tigh. — Esse asteroide está já para trás de
nós e tem um posto de sentinela cylon. Não podemos arriscar mais pessoal
nesse lugar de má sorte, especialmente com tantas contingências perigosas.
— Mas se nós não...
— Tenho a máxima simpatia pela sua situação, doutor, mas tem de
compreender que, com a maioria dos nossos pilotos doentes, não podemos
fornecer pessoal suficientemente treinado para constituir uma escolta. Seria
suicídio enviar o pessoal de que dispomos agora.
— Não se importe com o pessoal para a escolta. O meu pessoal e eu
correremos o risco. E vital que...
— Estou muito impressionado pela sua intenção de correr tal risco, Dr.
Salik — interrompeu Adama. — Mas o coronel Tigh tem razão. Não posso
autorizar tal missão, mesmo com um objetivo tão vital como o que me
apresenta. Nunca sem uma escola adequada.
Quando implorou de novo, as lágrimas subiam aos olhos do Dr. Salik:
— Comandante, voltar lá é a única esperança que resta àqueles rapazes.
A única esperança!
A palavra esperança tocou definitivamente numa corda do peito de
Adama. Era uma palavra que, de fato, se tinha tomado para si como que uma
litania, uma palavra que guardava para quando todas as outras estavam a
falhar. Talvez o médico a tivesse proferido propositadamente, uma medida
desesperada de último recurso para apoiar outra medida desesperada de
último recurso, mas Adama sabia que devia aceitar corretamente o que o
médico dizia. Uma grande parte da responsabilidade de comando assentava
em saber ouvir e responder adequadamente aos juízos de outros profissionais
de confiança.
— Tem a certeza absoluta disso, doutor?
— Ponho toda a minha experiência profissional em jogo nela,
comandante.
Adama afastou-se um pouco do médico, olhando de novo para a imagem
do vazio que aparecia no écran, depois voltou-se para o tenente de
comunicações Ómega.
— Qual é o estado, atualizado, do Esquadrão Azul?
— Continuam os treinos em simulador. Com situações de combate do
terceiro grau. Primeiros voos solitários em viper completos.
— Qual é o coeficiente de qualificação dos novos cadetes?
— Surpreendentemente alto, senhor.
Olhando de novo para Salik, disse:
— Muito bem, doutor. Seja. Vai ter a sua missão. Escolha e prepare a
equipa médica, depois venha ter comigo novamente.
O médico acenou compreensivamente e deixou a ponte. Salik não era
pessoa para agradecimentos efusivos quando conseguia o que queria. Tigh
veio junto de Adama, pondo em causa a decisão do seu comandante com um
olhar claramente preocupado.
— Rezemos e esperemos que os cadetes estejam preparados — disse
Adama. — Chame o capitão Apollo à ponte.
Involuntariamente, Adama encolheu os ombros. Talvez que o seu corpo,
pensou para si, estivesse a antecipar as palavras furiosas que decerto viriam
do filho.
***
Apollo, sentado na cabina de observação da sala de simuladores, sentiu-
se como se tivesse de fato sido lançado para o espaço quando as luzes
baixaram e o espaço estelar apareceu. Apesar de saber perfeitamente que os
vipers eram modelos parciais e que a maioria das naves zumbindo através da
sua linha visual eram na realidade pequenos modelos projetados no simulador
holográfico de combate a partir de uma cabina situada no outro lado, achou a
ilusão bastante persuasiva. Lembrava-se da sua primeira sessão num campo
simulado daqueles. Quando um raio laser a fingir o atingira mesmo no rosto,
tinha sido tudo tão realista que durante uma fração de segundo pensou que
fora de fato abatido.
Era Athena que dirigia aquela sessão. Com a sua voz ampliada pelos
altifalantes, mais parecia um duro sargento instrutor. Não estava com certeza
disposta a aturar parvoíces de Brie e de Dietra, os dois cadetes nesse
momento no campo simulado. Vociferava ordens e criticava as suas atuações
sem dó nem piedade. Brie, uma rapariga loura, parecia levar a peito todas as
censuras, enquanto Dietra, de tipo duro e pele morena, mostrava, no rosto,
apenas um cinismo de circunstância, dissesse Athena o que dissesse.
— Mantenham as caudas levantadas, meninas... Calma com a alavanca
de comando, Dietra. Não é um pau para bater na cabeça do Starbuck, mas sim
um aparelho sensível e delicado... Verifica o teu radar, Brie... Não, não, para
a esquerda e para baixo... Está melhor assim... Bom movimento, Dietra...
Okay; vamos a ele!
Apollo adorava ver a irmã dirigir assim um treino. Por seu turno.
Starbuck, enroscado no seu assento, parecia não ter nenhum prazer no que os
seus olhos lhe mostravam, talvez por Athena invocar tantas vezes o seu nome
como alvo a atingir pelos cadetes.
Por trás dos modelos de viper de Dietra e de Brie apareceram, sem
qualquer aviso, simulacros de caças cylon. Dietra entrou imediatamente numa
pirueta com o seu aparelho fingido, deixando Brie por um momento
aparentemente sozinha e vulnerável antes de ela própria imitar o movimento
de Dietra.
— Fica atrás de Dietra, Brie... Está bem assim. Aí vêm eles!
A batalha simulada entre seminaves e atacantes de sombra foi breve e
civilizada. Depois de se desembaraçar dos seus atacantes, Brie disparou um
par de rajadas que, logo que a informação fornecida pelos sensores dos lasers
vazios chegou à coleção de pontos que constituía a nave cylon, provocou a
aparente explosão dos caças.
— Consegui! — exclamava Brie, os olhos brilhantes de alegria. —
Consegui! Consegui!
Houve uma longa pausa antes de Athena responder, com uma voz que
lembrava a do pai destilando merecido sarcasmo sobre um subordinado:
— Conseguiste de fato, Brie. Atingiste não apenas os cylons, mas
também Dietra.
— O quê?
— Depois de destruíres os cylons, interceptaste a cauda de Dietra ainda a
disparares. Está morta.
Dietra conseguiu compor um sorriso de circunstância e olhou com
simpatia na direção de Brie.
— Tenho pena — murmurou Brie.
— Tu tens pena — retorquiu Dietra e revirou os olhos.
Toda a gente se riu e o espaço simulado foi desligado. Apollo preparava-
se para orientar outro teste quando o altifalante do intercomunicador da nave
soou:
— Capitão Apollo, apresente-se por favor ao comandante Adama, na
ponte. Rápido.
Apollo ligou o microfone da cabina de observação e disse:
— Tenho de ir. Athena, faz outra sessão com Brie e vê lá se sobrevive
toda a gente.
— Bem. Okay, Brie, esta é a sério.
Foi encontrar o seu pai e Tigh contemplando o vazio num monitor.
Havia um certo ar lúgubre pairando em tomo dos dois homens.
— Comandante — disse Apollo.
Adama, com os olhos frios e distantes, voltou-se e retorquiu:
— Que tal vão os cadetes?
Apollo sentiu-se interiormente tenso. O pai ainda conseguia assustá-lo
— com um olhar carregado ou uma pergunta dura — mesmo depois de todos
aqueles anos de serviço lado a lado.
— Estão a ir bem, senhor, considerando que o mais perto que tinham
estado antes de um viper tinha com certeza sido na parada do Dia do
Armamento.
— Se considerarmos os seus resultados e qualificações, este grupo de
cadetes está a portar-se quase tão bem como uma classe de honra na
academia.
Apollo encolheu os ombros.
— Os números mentem, pai. Não temos nem o pessoal nem o
equipamento que nos permitam atingir um grau de classificação igual ao da
academia. Os nossos testes não são inteiramente seguros. As medidas valem
o que valem as pessoas que as efetuam e interpretam. O mesmo é dizer que
não são muito boas. Tendo em conta estas limitações, os números são
encorajadores.
— O que quer dizer, se percebo corretamente, que estão quase tão
preparados para combate quanto nós, com os nossos meios limitados, o
conseguimos.
— Não quis dizer de maneira nenhuma isso. Eu...
— Em todo o caso, é o significado que tenho de tirar dos dados que me
forneceste.
— Mas...
— Não podemos esperar mais tempo, capitão.
Adama falava diretamente para o filho. Para Tigh, a irritação dos dois
homens parecia apenas uma peça bastante bem ensaiada.
— O Dr. Salik pediu que uma equipa médica — disse Adama — fosse
enviada ao asteroide onde Boomer e Jolly aparentemente entraram em
contato com esta doença. Pensa que é a única hipótese de obter a informação
necessária para conseguir uma cura.
— E claro que seguramente não apoia tal plano. O mais natural é que se
transforme numa missão sem regresso. E o posto dos cylons...
— Sugiro que enviemos um esquadrão de escolta.
O significado real da afirmação do comandante penetrou lentamente
Apollo. Estava de fato a falar a sério. Não era uma discussão. Tencionava
mesmo enviar a missão e um esquadrão para a acompanhar!
— E precisamente por essa razão, senhor, que a missão não é possível.
Não há pilotos experimentados em número suficiente... Pai! Não, não podes
estar a falar a sério. Não há forma de os novos cadetes participarem numa
coisa dessas. A maioria ainda só voou uma vez sozinho num viper. É claro
que, tendo em conta a sua experiência, ou a sua falta dela, estão a ir muito
bem. Mas ainda longe de poderem sair em missão! É demasiado arriscado.
Adama desviou-se do filho, fitando de novo o vazio no monitor.
— Tudo o que nós fazemos tem um certo fator de risco, Apollo. Tu
próprio corres riscos.
— Mas eles são apenas pilotos de naveta, cadetes.
— Por definição são guerreiros. E os guerreiros, a partir do momento em
que se alistam, sabem que podem ter de arriscar a vida.
Apollo gritou então para o pai:
— Sacrificar sim, mas não desperdiçar!
Adama voltou-se para olhar o filho cara a cara.
— Quantas baixas calculas que haveria?
— Um ataque dos cylons... E podia perder o esquadrão inteiro.
Fitaram-se furiosos, depois Adama falou numa voz mais suave:
— Podias deixar para trás os, aah, os pilotos menos qualificados.
«E então isto que ele está a pensar», meditou Apollo, «que estou a
protestar assim apenas para proteger Serina? Quero protegê-la, sim,
desesperadamente! Mas nunca lhe poderia dar um tratamento especial. Como
ele disse, ela alistou-se como guerreiro. No entanto... Deve ser difícil para ele
fazer esta concessão. Mas não, não posso aceitar.»
— Aprecio muito o que está a dizer, pai. Mas na minha opinião nenhum
dos pilotos está em condições de voar nesta missão. Se não deixo ir um, não
posso deixar ir os outros. E é tudo. Tem de reconsiderar. Não posso
concordar com esta missão.
— O teu desacordo é meramente teórico, calculo. Se te fosse ordenado
que voasses, fá-lo-ias.
Aquelas palavras foram proferidas na forma ensaiada, precisa, que
Adama costumava utilizar para transmitir a força da sua vontade. Eram o
desafio, a luva lançada para testar o subordinado impertinente.
— É claro que voaria. Se me ordenasse.
— Obrigado. O teu protesto será considerado devidamente. Prepara o teu
esquadrão.
— Sim, senhor.
Apollo conseguiu resistir ao desejo incontrolável de continuar a
discussão. A frieza autocrática do olhar do pai tomara claro que a discussão
tinha acabado.
***
O olhar de Cassiopeia estava fixo na consola do monitor há tanto tempo
que começava a sentir-se mais como um dispositivo fotográfico do que como
um ser humano. Todas as unidades analíticas que controlavam os pacientes
registavam dados semelhantes. A mensagem geral deste turno era: nada de
novo. Todas as luzes brilhavam com a mesma cor amarela; há algum tempo
que nenhuma passava a vermelho. O Dr. Salik comentara que talvez se
tivesse conseguido estabilizar a propagação da doença. De qualquer forma,
desde há alguns turnos que não se assinalavam mais casos. Quase desejava
que um dos doentes nos tubos criogénicos entrasse em estado de crise, para
que finalmente pudesse premir um botão, elevar o nível de temperatura,
aumentar o nível de alimentação intravenosa, só para fazer alguma coisa.
Sentiu um movimento atrás de si. Voltando-se, olhando, viu o capitão
Apollo, de rosto empalidecido pela luz que saía do tubo criogénico onde se
encontrava o tenente Boomer. Debruçou-se tristemente para Boomer.
Contente por ter sido afastada da consola, aproximou-se dele. Apollo pareceu
nem sequer reparar na sua aproximação.
— Posso fazer alguma coisa por si, capitão?
De mais perto, o rosto de Apollo parecia cor de cinza, e não apenas
devido à luz amarelada.
— Há alguma coisa de novo acerca das suas hipóteses de sobreviver? —
Perguntou.
Era a mesma pergunta que fazia sempre que passava pela estação de
apoio de vida — e passava lá pelo menos duas vezes por dia. Teria de lhe dar
a mesma resposta.
— Nada de novo. A menos que consigamos descobrir a causa da
infecção.
Olhou para ela, os olhos ainda tristes.
— Bom — retorquiu ele —, parece-me que vamos tentar tratar desse
assunto.
— Eu sei. Só espero que...
— Não digas nada, Cassie. Não digas mesmo nada.
Olhou de novo para Boomer. Involuntariamente a sua mão aproximou-se
e tocou a superfície do frio tubo, batendo-lhe como se o aceitasse por
substituto da testa de Boomer.
Estudando o rosto tenso e infeliz do capitão, Cassiopeia sentiu desejo de
o tomar nos braços e confortá-lo. Cada vez que observava quanta compaixão
havia em Apollo, desejava que um homem daqueles pudesse entrar na sua
vida. Não Apollo, mas um homem como ele; além do mais, Apollo estava
apaixonado por Serina, uma mulher que decerto o merecia. Cassiopeia
parecia sempre destinada a deparar e a ficar envolvida apenas com os
estroinas, com os alegres e deliciosos femeeiros como Starbuck, que, apesar
de tudo, tinha de admitir, eram muito divertidos. No entanto, no tocante a
qualquer expressão de amor desse homem, nem falar. Starbuck preferia
enforcar-se na cauda de um viper, em pleno voo. a comprometer-se com uma
mulher de maneira estável. Era a sua sorte, e por vezes magoava-a a pensar
nisso.
Apollo interrompeu as suas deambulações amargas dizendo:
— Todos apreciamos o que estás a fazer, Cassiopeia.
Ela riu-se. Não tivera a intenção de se rir, mas foi o que aconteceu.
— Eu não faço nada. Fico aqui sentada e observo, toco numa alavanca,
aperto um botão, nada mais.
— E mais ou menos o que todos nós fazemos.
— Sim é possível. Mas em todo o caso parece diferente quando és tu a
fazê-lo ou quando sou eu.
— Bom, tenho de ir reunir um esquadrão. Vê lá se continuas a tomar boa
conta destes rapazes, que nós vamos tentar trazer-te uma cura.
— Considero isso uma promessa, capitão.
Dentro de Boomer, o organismo que o tinha invadido estava quieto,
entorpecido pelo frio que o tubo criogénico mantinha a um nível estável.
Poderia eventualmente ajustar-se ao frio e reviver, mas por enquanto
mantinha-se em suspensão, como o seu anfitrião. O seu renascimento
significaria também a sua morte, bem como a do seu anfitrião. Felizmente
não estava embaraçado por sentimentos de imortalidade ou receios de
mortalidade, pelo que não se apercebia da ruína iminente que o ameaçava:
quando Boomer morresse, ele morreria também.
***
Gemi mal conseguia manter os olhos abertos. Todas as vezes que se
concentrava nas páginas do livro que estava a ler — Antigos Sistemas Éticos
de Virgon: o Outro Lado da Autoabsorção — parecia que elas se desfocavam
e só apareciam instrumentos de bordo, interruptores, reguladores, imagens de
radar e leituras, talvez porque todos esses elementos ficassem para serem
impressos no seu cérebro por os ter observado durante tanto tempo e de
forma tão atenta durante as sessões de treino intensivo, ou durante o único
voo a solo que, de fato, mais não tinha sido que uma passeata de crianças em
volta do exterior radioso da Galactica. Talvez tivesse ficado incapacitada de
ler para sempre.
Dando uma vista de olhos pela sala, uma zona de refeições convertida
em zona de lazer para cadetes, reparou na evidente letargia que se desprendia
dos outros cadetes. Dietra estava sentada com o pincel repousando na paleta,
olhando para todos os lados, como se nunca mais tencionasse dar uma
pincelada na sua natureza morta semiacabada. Carrie tentava mostrar
laconicamente a Brie a sua coleção de recipientes para especiarias, com
exemplares artísticos de todos os Doze Mundos, mas nem Carrie nem Brie
pareciam muito interessadas na intrincada variedade de recipientes
espalhados desordenadamente sobre a mesa à sua frente. Todos estavam pura
e simplesmente exaustos com o esforço despendido desde o início das aulas.
Finalmente, Gemi deixou-se vencer pelo cansaço e fechou os olhos.
Começaram imediatamente a desfilar no interior das suas pálpebras imagens
dos treinos. Entrou num sonho acerca do seu viper simulado: ela era uma
criança perdida no seu assento de couro, os bracinhos curtos quase não
chegando aos comandos, os pés pendurados na ponta do assento. A sua volta,
a batalha rugia furiosa. Uma nave cylon dirigia-se diretamente para ela.
Debatendo-se desordenadamente no assento, que parecia aumentar de
tamanho de momento a momento, conseguiu apanhar a alavanca de comando,
puxou-a para si e premiu o botão de disparo. Assistiu à explosão da nave
inimiga em câmara lenta, os pedaços arremessados à volta da sua nave como
aparas de madeira. De repente apareceu Starbuck, sentado a seu lado no
compartimento, dando-lhe pequenas palmadinhas de aprovação na cabeça —
em suma, tratando-a como a criancinha que era de fato naquele sonho, mas,
pelo menos, dando-lhe alguma atenção. (Tinha conseguido chegar a ser a
terceira da classe, depois de Serina e Dietra, sem que nem mesmo assim ele
lhe dirigisse sequer uma crítica, para já não falar num cumprimento.) «Eu sou
uma mulher de verdade, sabes», disse para o sorridente e condescendente
tenente. «De corpo inteiro, mesmo que não pareça...»
Dietra despertou-a do seu sonho.
— Vem daí, rapariga — dizia Dietra.
— Vem para onde? Que é que...
— Ação, menina. Foi-nos atribuída uma missão.
— Mas isso é imp...
— Eu sei, eu sei. Não faças balouçar o navio, especialmente um navio
do tamanho da Galactica. Vamos voar numa missão de escolta. És a minha
companheira de voo, querida Portanto, acorda e voa bem, Okay?
Gemi desembaraçou-se dos últimos vestígios de sono e correu atrás de
Dietra. Entre os inúmeros pensamentos que, como relâmpagos, atravessavam
a sua mente, perpassou o voto de que oxalá fosse aquela a melhor
oportunidade de impressionar Starbuck. Mesmo no meio da batalha, teria de
voltar a cabeça.
Em resumo, pensava para si se manobrar um viper pelo espaço seria tão
fácil como comandar um viper simulado na câmara de testes ou voar sozinha
em volta de uma estrela-de-batalha.
***
Como que pregado junto do écran por uma força misteriosa, Adama
deambulava pela estação de controlo de lançamento, observando por sobre o
ombro de Rigel os aparelhos fluorescentes e crepitantes. Rigel, atento ao
estudo de todos os aspectos do lançamento, parecia indiferente à presença do
comandante.
Adama reparou que nem Apolo nem Starbuck pareciam muito satisfeitos
quando se aproximaram dos aparelhos. Ambos desaprovavam aquela missão,
como bem sabia. Talvez qualquer veterano endurecido pelo combate
pensasse o mesmo. Adama compreendia que podia parecer uma loucura
enviar um contingente de pilotos inexperientes, mas havia alturas em que tais
riscos eram necessários. Como Salik assinalara durante o briefing, qualquer
das duas alternativas podia resultar na perda de um esquadrão: ou os pilotos
principais nos seus vipers ou os doentes na enfermaria.
— Naveta médica levantando voo da Pista de Lançamento Um — disse
Rigel. — Para se encontrar com o Esquadrão Azul nas coordenadas Alfa Três
Sete.
A partida da naveta foi razoavelmente suave, tendo em conta que era
pilotada por um dos cadetes menos qualificados. A tensão na ponte atingiu o
rubro quando toda a gente esperava a ordem de lançamento para os novos
cadetes, sabendo todos muito bem que tudo podia correr mal num
lançamento, especialmente quando a maioria dos pilotos era inexperiente.
Rigel suspirou fundo, recebeu de Tigh o sinal para lançar, e anunciou:
— Passando o controlo para os caças viper. Lançamento quando prontos.
Alguns membros da tripulação não vitalmente implicados em tarefas
respeitantes ao lançamento reuniram-se ansiosos em volta dos écrans dos
monitores. A voz de Starbuck fez-se ouvir através da linha de comunicação
principal:
— Não se esqueçam, façam tudo como nas simulações e nos voos
individuais. E lembrem-se de como estes comandos são sensíveis, minhas
senhoras.
Algumas resmungadelas na linha de comunicação fizeram-no retificar:
— Ah, desculpem.
— Esquadrão Azul — disse Apollo. — Vamos mostrar à frota como se
faz um lançamento em condições. Líder do Esquadrão Azul, em lançamento.
O viper de Apollo acelerou pelo tubo da pista de lançamento e saiu. A
precisão e perícia da sua operação pareceram dar alento ao resto do
esquadrão. Um a um lançaram-se no espaço com a eficiência de veteranos,
mesmo que a formação posterior já tenha sido um pouco mais tremida e
imperfeita. Starbuck ia comentando rapidamente as suas dificuldades:
— Calma, Dietra, aguenta. Calma. Estás a subir muito depressa.
Devias... Assim está melhor. Bom trabalho. Serina, toma cuidado com as
distâncias. Mantenham-se junto dos líderes, todos.
O derradeiro viper pilotado por um cadete zarpou do tubo de lançamento
e repentinamente pareceu perder controlo, entrando em rodopio.
— Brie! A voz de Starbuck estava tensa mas segura. — Recupera o
controlo. A toda a força, a toda a força. Autocontrola-te... Assim.
Conseguiste. Já estás direita. Conseguiste, Brie! Conseguiste!
Rigel afastou-se do monitor e sorriu.
— Lançamento do Esquadrão Azul completo! — Berrou, e vários
membros da tripulação na ponte conseguiram um bravo, algo fatigado mas
entusiástico.
— Líder do Esquadrão Azul chama Galactica — emitiu Apollo. —
Vamos a caminho!
Adama deu um grande suspiro de alívio e deixou a estação de controlo
de lançamento. Quase caiu em cima de Tigh, que obviamente estava também
por ali com a mesma expectativa ansiosa que o seu comandante.
— Venha até aos meus aposentos, coronel — disse-lhe Adama. —
Falaremos lá.
Tigh seguiu-o em silêncio. Nenhum dos homens proferiu palavras antes
de atravessarem a escotilha de entrada no compartimento do comandante.
— A nossa rota? — Perguntou Adama.
— Continuamos exatamente na mesma rota. Não falta muito até que
cheguemos ao perímetro exterior do vazio.
Adama concordou, depois fitou Tigh nos olhos e disse:
— Desaprova a minha intenção de dirigir a frota para o vazio.
— Não me cabe a mim...
— Pare com isso, Tigh. Esqueça-se das divisas. Preciso de alguém com
quem falar.
Os dois homens sentaram-se. Tigh pareceu mais descontraído quando
falou logo a seguir:
— Adama, tanto quanto sabemos, o vazio poderia ser infinito. Mas
sabemos com segurança, a partir de leituras de radar retiradas das naves de
Apollo e de Starbuck, que tem tal carga magnética que quase levou a que os
dois se perdessem. Logo que percamos contato visual com as estrelas e não
possamos assim controlar a rota, podemos perder-nos completamente,
mergulhados para todo o sempre naquele infindável remoinho. Lamento ter
de dizer isto, comandante, mas penso que talvez fosse melhor tentarmos a
nossa sorte contra os cylons.
Agora que tirara aquele peso do peito, Tigh recostou-se na cadeira.
Adama empertigou a cabeça em ar de troça e perguntou:
— E se tivéssemos um ponto de referência no vazio?
Tigh encolheu os ombros.
— Mas não temos nenhum.
De cima da sua secretária, Adama pegou num livro esfarrapado e
amarelecido.
— Este volume, a Koboliana, também conhecido por vezes como Livro
da Palavra, fala-nos de uma grande estrela que guiou o povo de Kobol do seu
planeta perdido e devastado, através do que é descrito aqui como um
infindável oceano negro.
Tigh debruçou-se.
— Este oceano infindável: diz que é o vazio?
— Pode ser. Penso que é.
Tigh recostou-se novamente, com um ar realmente admirado.
— Comandante, eu gostava... Eu gostava de ser apoiado por uma fé
igual à sua. Sabe bem que nunca consegui... Fazer as pazes com a doutrina
desse livro. Gostava realmente de acreditar que os Doze Mundos tiveram a
sua origem num qualquer planeta perdido, e que os seus povos tiveram
necessidade de fugir quando o seu sol morreu e a sua terra natal secou. Mas,
lamento muito, para mim isso é tudo lenda, mito. O tipo de sustentáculos que
fazem uma religião. Lamento, realmente lamento. Sinto-me um verdadeiro
herege quando este assunto vem à baila.
Adama continuava a fitar o seu ajudante, que por sua vez começava a
pensar se o brilho dos olhos do comandante não seria igual ao da lendária
estrela a que fizera referência.
— Adama — prosseguiu Tigh —, mesmo aceitando a sua ideia do vazio
místico e da brilhante estrela-guia, há certamente, bom, há com certeza tantos
vazios no universo como ideias duvidosas. Quem nos vai garantir que este é o
mesmo? E, mesmo que seja, como é que podemos ter a certeza de que a sua
interpretação dos dados... E a da Koboliana, também... É a mais adequada?
Os nossos antepassados tinham tendência para verem todos os
acontecimentos como a manifestação de divindades em vez de ciência.
— Não acredita que isto tenha de fato acontecido?
— Penso apenas que o que parecia ser uma grande luz-guia pode ter sido
qualquer espécie de fenômeno astronômico de forma nenhuma ligado com as
crenças que lhe estão associadas. Talvez não fosse um farol de fé, mas tão-
somente uma estrela ou sol casual que seguiram porque qualquer descoberta
da ciência lhes tenha dito para o fazerem. Desculpe-me, Adama, limito-me a
não ser crente, sabe bem isso.
Adama meditou nos comentários de Tigh durante um momento, depois
abriu uma gaveta da secretária e tirou de lá uma caixa. Levantando
delicadamente a tampa da caixa, como se contivesse alguma matéria
radiativa, retirou um peitoral, uma peça grosseiramente circular de pedra
azul-escura incrustada numa armação de metal dourado.
— Meu velho amigo — disse Adama —, este peitoral contém uma pedra
que, segundo a lenda, foi trazida do planeta Kobol. Posso usá-la como
membro do Quórum que sou, mas é também um símbolo da nossa fé,
representando os antigos Senhores de Kobol e as suas crenças. Tenho de a
seguir, tenho de seguir para onde o seu espirito me impele.
— É... é espírito?
— Sim, Tigh. — A voz de Adama tinha-se tomado mais apaixonada. —
Posso sentir os seus poderes só por lhe pegar. Não o posso negar, voltar as
costas à inspiração que já uma vez salvou o nosso povo. Porque é que olha
para mim dessa maneira?
— Ocorreu-me apenas que o senhor podia estar louco.
Adama deu uma gargalhada. Uma gargalhada bastante saudável, por
sinal.
— Não, não estou doido. Mas os homens movidos por estas forças
imparáveis geralmente parecem loucos para aqueles que os rodeiam, ao que
me dizem.
— Isso também acontece com as pessoas que estão realmente loucas e
falam de… Forças que não existem. Com todo o respeito, senhor...
— Vamos entrar no vazio.
— Já percebi isso. Só espero que tenha razão.
— Confie em mim.
— Confio sempre. E dá sempre certo. Acontece apenas que a primeira
vez que não dê certo pode ser o fim de tudo.
— Compreendo isso tão bem como você. Mas temos de correr o risco.
— Sim, senhor.
O tom descontraído de uma conversa entre amigos tinha abandonado a
voz de Tigh. Todo ele era agora disciplina. Adama teria desejado que se
tivessem mantido calmos e íntimos, discutindo o assunto pendente de uma
maneira abstrata e cavalheiresca, mas havia alturas em que era melhor
restabelecer o sentido da hierarquia na Galactica. Depois de Tigh ter feito
continência e saído, Adama ficou para trás, mirando o peitoral como se
esperasse que subitamente lhe revelasse a sua verdade.
CAPÍTULO VIII
SERINA: Aqui Serina. Desta vez não sei por onde começar. Nem sequer
sei ao certo o que sinto. Ou deveria sentir. Tive o meu primeiro sabor a
batalha. A parte mais dura, a parte com a qual não sei como me entender, é
que — pelo menos durante um bocado — gostei. Destruí um caça cylon.
Exatamente como um piloto de primeira. E gostei. Senti uma sensação de
exaltação. Estava feliz quando regressei à Galactica. Serina, o ás do espaço.
A beldade da alavanca de comando do Esquadrão Azul. Todas nós estávamos
histericamente felizes. Na sala de convívio palrámos infindávelmente sobre
as nossas manobras, as nossas habilidades, as nossas vitórias, como se fossem
bisbilhotices para trocar durante a hora do lanche. E eu incluída. Eu
comandava o coro. Agora já não estou tão segura se fiquei de fato contente
com tudo aquilo.
Sou um guerreiro, parece-me.
Mas basta de ideias peregrinas e de reflexões angustiadas; vamos ao
relato. Avançámos diretamente para o asteroide onde Boomer e Jolly tinham
detectado o posto avançado cylon. Apollo, como comandante de voo, abria o
caminho. Logo que apanhou o asteroide no radar, apertou a formação,
mantendo o esquadrão fora do alcance de qualquer eventual ataque da
artilharia cylon. Depois anunciou que ia tentar uma aproximação a baixa
altitude desde um ângulo diferente, para apanhar os cylons de surpresa antes
de poderem mandar os caças.
— Se tiver sorte — disse —, não teremos sequer de arriscar o esquadrão.
Tinha o coração na garganta, de tanto medo que sente por ele. Só
conseguia pensar: porque é que ele se tem de arriscar tanto? Depois os meus
pensamentos resvalaram para níveis mais egoístas. Cinicamente, comecei a
pensar se estava certo para a nossa vida em comum depender assim daquele
asteroide insignificante, pedregoso e horroroso que estava por baixo de nós.
Compreendia a grande importância da missão, mas estava furiosa por Apollo
ter planeado um tamanho risco.
Dietra, o cadete que revelou melhores qualidades de comando, pôs em
dúvida a decisão de Apollo, retorquindo que a melhor maneira de
aproveitarmos a surpresa dos cylons era descermos todos juntos. Mais tarde
disse-me que pensava que Apollo, Starbuck e os outros instrutores nos
estavam a apaparicar e isso lhe tinha desagradado. Merecíamos uma
oportunidade para mostrarmos o que valíamos; éramos capazes de controlar a
situação. Apollo sugeriu que Dietra mostrasse as suas habilidades cumprindo
as ordens, depois partiu. O seu viper parecia perder tamanho até se tomar
num minúsculo ponto, à medida que descia para o asteroide. Parece-me que
nunca estive tão assustada na minha vida. Por um momento pensei que nunca
mais o iria ver.
Mas não tive muito tempo para esses pensamentos autocomplacentes,
pois a Brie quebrou o silêncio das comunicações informando Starbuck de que
estava a apanhar um sinal no radar vindo de um quadrante atrás de nós. Ao
princípio ele não ligou a essa observação. Bem vistas as coisas, Brie tinha
mostrado uma grande tendência para reações emocionais, durante os treinos.
Starbuck julgou que ela, na sua ansiedade transbordante confundira a naveta
médica com outra nave, e disse-lhe exatamente isso. Seguiu-se um longo
silêncio, durante o qual me pareceu ouvir um par de tentativas para, começar
novas intervenções. Finalmente, com uma voz terrivelmente meiga, retorquiu
que não pensava que fosse a naveta, e apenas isso, que se estava a aproximar.
Starbuck, pensando ainda que se tratava da naveta médica, gritou furioso que
tinha ordenado à naveta médica que se mantivesse parada. Até que finalmente
examinou a imagem no seu próprio radar e compreendeu que o tênue sinal no
quadrante não podia, de fato, ser da naveta médica. Brie tinha razão. (Tenho
de admitir que tive uma certa sensação de triunfo e de orgulho por toda a
classe de cadetes.)
Starbuck praguejou e partiu ao encontro do intruso. Athena tirou a sua
nave de formação e seguiu-o. Disse-me mais tarde que, quando chegou ao
seu lado, ele ficara bastante irritado. Perguntou-lhe o que é que ela pensava
que estava a fazer e começou a descompô-la à grande. Bom, isso desagradou
bastante a Athena, mas ela manteve a calma. Informou-o de que, em todo o
caso, era sua companheira de voo, e os companheiros de voo devem proteger-
se mutuamente. Ele murmurou qualquer coisa e disse-lhe que saísse do seu
caminho. Isso deitou-a mesmo abaixo e começou a repetir para si: «Continua,
Starbuck, continua.» O tom cantante da frase como que a tranquilizava.
Até que o caça cylon surgiu repentinamente no campo visual. Como
conta Athena, ela e Starbuck esqueceram imediatamente os seus diferendos e
agiram concertadamente, como o conjunto perfeitamente treinado que são.
Athena passou para cima, enquanto Starbuck passava para a posição inferior.
A nave cylon, habituada a este tipo de armadilha, mudou de rota e tentou
escapar-se do ataque em duplo mergulho. Mas quer Athena quer Starbuck
tinham antecipado o movimento do inimigo. Sabiam que a tripulação cylon
tentaria manobrar para uma posição de onde pudesse responder ao fogo,
enquanto Athena e Starbuck ajustavam os comandos para a mudança.
Apanhando o caça cylon em fogos cruzados, puderam vê-lo explodir. Uma
vez que era evidente que a tripulação cylon tinha tido mais do que tempo para
avisar o posto, Athena e Starbuck não se ficaram a contemplar a sua vitória.
Regressaram apressadamente para o asteroide e para o esquadrão.
Ao mesmo tempo. Starbuck avisava-nos do perigo iminente que nos
ameaçava vindo do posto e Apollo acabava de apontar o seu viper para uma
aproximação a baixa altura da fortaleza inimiga. Antes que o pudéssemos
avisar do perigo que corria, a parede de camuflagem da base cylon abriu-se
de par em par e começaram a sair caças inimigos. Mais tarde Apollo disse
que lhe pareciam rajadas de fogo saindo da superfície do asteroide. A nave-
chefe voou na sua direção mas não suspeitava obviamente da presença de
uma nave tão próxima da base. Apollo conseguiu por isso colocá-lo em mira
e atirar. A desintegração do aparelho cylon alertou o que se lhe seguia em
linha, que se voltou para Apollo. Ainda com a vantagem da surpresa, Apollo
destruiu-o também. Quando passou rapidamente por sobre a pista de
lançamento dos cylons, conseguiu descortinar um esquadrão inteiro de caças
cylons, deslocando-se para a abertura.
Lembro-me ainda da sua voz no comunicador:
— Esquadrão Azul. Aqui Apollo. Estão a descolar. O céu, por aqui, está
a ficar coberto de naves inimigas. Voltem para a Galactica. Repito, voltem
para a Galactica.
Dietra disse:
— Ignorem a ordem. Não podemos deixar assim o Apollo para trás. De
modo nenhum!
Apontou a sua nave para baixo. Um momento mais tarde, nós todas, a
esquadrilha de ases, seguia pelo mesmo caminho. Os meus sentimentos
naquele momento eram confusos. Queria estar lá em baixo ajudando Apollo,
desesperadamente, mas estava morta de medo por mim própria. Felizmente
que, em situações de combate, uma pessoa tem pouco tempo para considerar
os limites psicológicos ou as ramificações filosóficas de tais problemas.
Quando dei por mim, estava metida num carrossel de naves correndo umas
para as outras como loucas.
— Ordenei a todas que regressassem — berrou Apollo.
— Só mais esta corrida, capitão — disse Dietra. Parecia mesmo que se
estava a sorrir.
Não tive muito tempo ou oportunidade para seguir no monitor as ações
das minhas companheiras durante o combate aéreo, pois que um caça cylon
se dirigia diretamente para mim. Felizmente que, quase de forma automática,
passei para um comportamento de combate e o meu polegar deslocou-se
rápida e instintivamente para o botão do meio da alavanca de comando, o que
comandava o laser. Uma rajada, uma simples rajada, e aquela nave cylon
transformou-se em milhões de fragmentos metálicos voando agora em todas
as direções, alguns mesmo parecia que direitos ao meu cockpit. Por um
momento pensei na réstia de vida que tinha tirado aos três guerreiros cylons,
e comecei a odiar-me por me ter transformado numa assassina, por mais
justificável que fosse a causa. No entanto, também não tive muito tempo para
contemplar este particular dilema moral, pois outra nave cylon entrou no meu
campo de visão. Também a apanhei, reduzi-a aos seus componentes mais
simples com uma rajada diretamente no alvo. O segundo assassínio foi mais
fácil. Sentia-me feliz. Tinha-me realizado. Todas as dúvidas sobre eu e os
outros cadetes não estarmos em condições de voar em vipers estavam a
desvanecer-se. Tive pouco tempo para desfrutar da minha exaltação, uma vez
que outro aparelho cylon deslizava na minha direção. Deveria em toda a
lógica ter-me apagado para sempre dos céus, mas Brie vira-o primeiro e
atingiu-o imediatamente antes que ele me pudesse destruir. Mais tarde, não
deixei de agradecer a Brie.
Enquanto eu estava entretida em arranjar marcas de troféus para o meu
capacete de voo, Apollo tinha recuperado da surpresa provocada pela nossa
entrada em cena e formulara já o seu plano. Avançando velozmente em
direção do posto cylon, gritou-nos que ficássemos com os aparelhos inimigos
enquanto ele se dirigia para a pista de lançamento. Disparando sobre o
próprio buraco, destruiu primeiramente o par de caças que se aprestavam a
descolar. Depois voou perigosamente perto da abertura, disparando
violentamente. Os seus disparos atingiram qualquer coisa. Quando desfez a
descida, uma língua de fogo e fragmentos de explosão irromperam
subitamente de dentro da base cylon.
O resto foi apenas uma operação de limpeza. Todos tivemos o nosso
quinhão na vitória, destruindo a maior parte dos restantes caças cylons.
Perdemos apenas um trio de naves, que se escapou de nós para o espaço, com
toda a certeza para levar notícias das nossas atividades para outro posto cylon
ou para uma nave-base.
Quando Apollo se realinhou na nossa formação, Dietra felicitou-o pelos
seus excelentes disparos, e fiquei satisfeita com a sua resposta elegante. Nada
das impertinências do Starbuck, o meu futuro marido não era nada desse
estilo. Chamou pelo meu nome e eu respondi: «Estou aqui, Apollo», e
pareceu aliviado por ouvir a minha voz. Depois felicitou o esquadrão pelo
trabalho bem feito levado a cabo.
Bem, não há ainda relatório sobre o que é que a equipa médica
encontrou no desolado asteroide. Estão neste preciso momento a fazer testes,
e talvez consiga relatar mais tarde as suas descobertas.
Depois de termos regressado aqui, todas parecíamos sentir uma enorme
necessidade de escape e reunimo-nos no clube de oficiais da Galactica,
bebendo, cantando e fazendo uma verdadeira farra digna de veteranos. Dietra
não parava de falar do número de naves cylon que tinha pessoalmente
destruído. Brie estava estupefacta por ter sequer funcionado. Carrie não
abandonava os comentários repetidos sobre como tinha manobrado a sua
nave. Gemi, com o seu corpo pequeno e atarracado parecendo mais alto e
forte, não parava de nos perguntar se se tinha portado bem, e nós não
parávamos de lhe dizer que destruir três naves inimigas, como ela tinha feito,
era pelo menos uma demonstração adequada das suas habilidades guerreiras.
Quando Apollo e Starbuck se juntaram a nós, parece-me que se sentiram
deslocados. Ali estávamos nós, cadetes ainda verdes, fanfarronando acerca
das nossas conquistas — e ali estavam eles, dois pilotos que tinham
combatido mais batalhas que mossas existem numa nave de transporte,
discutindo a preparação da cerimônia de casamento entre mim e Apollo. Ao
mencionar a pechincha que tinha conseguido quando comprara um par de
cortinas a um tecelão a bordo do navio de mercadorias, enviou-me um piscar
de olho ultrateatral. Acalmei-me um pouco da minha farra de combatente.
Antes de a doença ter atacado os esquadrões da Galactica, os meus
pensamentos estavam totalmente concentrados no meu amor por Apollo e no
casamento. Agora, estava tão entusiasmada com o bom piloto que era que por
momentos esquecera tudo isso, tinha entrado numa farra temporária, saindo
dela apenas finalmente quando Brie me estava a dizer com grandes
pormenores que, mesmo com o fato-G, a sua visão se tinha toldado no limite
de uma pirueta. E Sorrel não abandonava a ideia de que o ataque real não era
nada comparado com o que tinha experimentado nos simuladores.
Subitamente, apercebi-me de que me tinha de ir embora. Senti-me tão
deprimida! Voltei para aqui e comecei a gravar. Sinto-me melhor agora. Não
inteiramente bem, mas melhor.
CAPÍTULO IX
Lucifer deslizava por um dos corredores da estrela-base a caminho da
sala de comando. Deslocava-se mais rapidamente que o habitual. Estava
desusadamente ansioso por observar a reação de Baltar às notícias que lhe
levava. O humano estava tão seguro de si que seria curioso verificar como
iria reagir a uma contrariedade daquelas. O interesse de Lucifer era
acadêmico. Já há tanto tempo que vinha estudando Baltar que o homem se
tinha tomado o seu projeto especial, cujas reações deviam ser observadas e
registadas.
Lucifer entrou na sala de comando a uma velocidade tão elevada que
quase se esqueceu de desacelerar. Teria chocado com a base do pedestal se,
através dos seus circuitos ambulatórios, não tivesse transmitido a mensagem
para aplicar os travões aos rolamentos há extremidade dos seus membros
inferiores.
— As tuas ordens — disse, logo que conseguiu parar. A vénia que fez
em direção ao pedestal foi abrupta e muito pouco sincera. A sua
personalidade subserviente parecia em rápida decadência. Teria de preparar o
seu programa muito mais cuidadosamente no futuro.
— Fala — retorquiu Baltar, com uma dicção tão perfeita que parecia
fornecer o seu próprio eco.
— Vipers da Galactica atacaram e destruíram o nosso posto avançado.
O humano não teve qualquer reação. Em vez disso meditou um pouco no
relatório apresentado por Lucifer, antes de falar novamente:
— Portanto a Galactica encontra-se sobre o posto avançado neste
momento!
— Não.
As espessas sobrancelhas de Baltar ergueram-se.
— Não? — Retorquiu.
— Está a entrar no vazio.
Baltar afundou-se novamente no trono, com o olhar deambulando à sua
volta, como procurando uma resposta impressa algures nas paredes azuis-
metálicas da câmara de comando.
— Há alguma coisa que o perturba, senhor?
— Sim. Porque é, que se arriscaram a ser detectados destruindo o posto
avançado, se não estava na sua rota, se não tencionavam dirigir-se nessa
direção? Não faz sentido. A menos talvez que...
— Talvez o quê. Baltar?
— Adama deve ter tido necessidade de qualquer coisa desse asteroide.
Comida? Combustível?
— Alguém que procurasse comida ou combustível naquele asteroide
ficaria certamente bastante desapontado.
Baltar agarrou-se com mais força aos braços do trono.
— Temos de considerar essa questão mais a fundo. Há mais alguma
coisa a relatar, Lucifer?
— Bem, há outro aspecto bastante curioso, que não sei realmente como
computar.
— Vamos a isso. Que é?
— Parece que a frota de vipers coloniais voa de forma bastante diferente
do normal.
— Diferente do normal? Que queres dizer?
— Por vezes, parecia que não controlavam perfeitamente certos
elementos como formação ou manobra aérea.
— No entanto, é evidente que voaram suficientemente bem para
destruírem a vossa base.
— Era um pequeno posto avançado. Para mais apanhado de surpresa,
uma vez que tu determinaste que a Galactica não iria atacar ali.
Baltar sorriu com ar sinistro.
— Não tentes ludibriar-me, meu amigo. — Para Lucifer, a forma como
proferiu o meu amigo, não assinalava qualquer camaradagem genuína. — Por
enquanto está tudo a correr suficientemente bem. E do teu lado? Já capturaste
um dos pilotos, como te ordenei?
Esperando já aquela pergunta. Lucifer tinha preparado uma resposta.
— Para conseguir essa captura, teríamos de nos arriscar a sermos
descobertos. Portanto, essa ordem contradiz uma outra anterior, que
determina que não deveremos entrar no campo de detecção da Galactica.
Os olhos de Baltar abriram-se ainda mais de fúria.
— Mas eles mandam patrulhas, não mandam? Capturem uma.
Lucifer deslizou para fora da câmara de comando, perguntando-se como
poderia cumprir uma das ordens de Baltar sem interferir com a outra.
Suspeitava que somente com grande dose de manha.
***
O clamor de vozes excitadas no clube de oficiais da Galactica parecia o
ruído abafado de um cabaré dos subúrbios. Nas raras vezes em que disse
alguma coisa, Gemi não se conseguiu sequer ouvir a si própria. Desde que
tinham regressado da batalha, os cadetes não conseguiam deixar de falar dos
seus feitos individuais. Pareciam dispostos a transformar imediatamente o
episódio em mais uma das lendas da frota.
— Apanhei o primeiro numa subida — dizia Dietra —, depois efetuei
uma volta alfa e caí sobre o segundo.
— Isso foi quando eu dei uma dupla rotação e a minha segunda rajada
levou a sua extremidade — exclamava Carrie, a sua gabarolice sobrepondo-
se à de Dietra.
Serina juntou-se então ao coro:
— Aconteceu tudo tão depressa que me esqueci de deflectores e de
hiperpropulsores, era só disparar.
Gemi estranhava não conseguir participar também na alegria e
fanfarronice geral. Devia parecer bastante parva, ali sentada sossegada e
ouvindo as outras pavoneando-se com as suas habilidades e mortes. Gemi
tinha voado bem, Serina tinha-lhe dito que sim, mas mesmo assim sentia-se
desorientada, e mais do que um pouco desapontada. Cada nervo do seu corpo
parecia ter-se dividido como uma ameba, só para a fazer interrogar-se
duplamente sobre o significado de tudo aquilo. Para ela, a batalha não tinha
sido essencialmente diferente de uma sessão no simulador. A única coisa que
agora a preocupava era se se tinha portado bem, se os seus resultados eram
bons ou não.
Starbuck e Apollo juntaram-se ao grupo e pareciam divertir-se um pouco
com a conversa ensurdecedora sobre a batalha. Gemi continuava a mandar
olhadelas a Starbuck, com a esperança que ele lhe sorrisse e lhe dissesse que
se tinha portado muito bem. Neste preciso momento não necessitava que ele
lhe desse mais do que essa atenção. Mas o olhar dele continuava a deambular
ao acaso à sua volta, e dirigia comentários específicos apenas às outras.
Sentia-se perdida na cadeira excessivamente grande e chegou a perguntar-se
se deveria pôr-se de pé em cima dela para chamar a atenção. Por uma única
vez Apollo sorriu na sua direção e inclinou-se sobre ela para lhe dar algumas
palmadinhas nas costas da mão. Mas Starbuck nem sequer reparou no gesto
do capitão.
Olhando para as suas camaradas de armas enquanto se gabarolavam
alegremente, começou a detestar sentir-se como uma marginal. Quem eram
elas, de fato, estas ases da pilotagem? Pessoas que eram deliciosamente
esculpidas, que podiam falar docemente, que se moviam como graciosos
animais da selva? Muitas vezes perguntava a si própria como seria ir para
dentro de uma delas e sentir as coisas como elas sentiam. Mas poderiam elas
entrar dentro de si e aprender a forma como ela sentia? Talvez não pudessem.
Sabiam como era ser atraente, a melhor de todas, anormalmente habilidosas.
Era de esperar que não conseguissem começar sequer a compreender alguém
que não tivesse as suas características. Talvez que as facetas resplandecentes
das suas vidas estivessem tão bem definidas que não pudessem compreender
vidas que escapassem a tal definição. Perguntava a si própria se as deveria
invejar pela clareza das suas existências ou condená-las por não serem
capazes de apreender seres que viviam na escuridão. Talvez nenhuma das
duas coisas. Talvez devesse apenas beber a sua bebida e tentar criar uma
alegre farra por sua conta. Se na realidade não podia ser uma delas, podia ao
menos ser uma cópia.
Porque seria que Starbuck nunca olhava na sua direção!
— Eu estava um pouco confusa, sabem? — Estava a dizer Brie. —
Havia vipers e cylons por todo o lado. Estava com medo de disparar os meus
lasers e atingir uma de vocês. Até que veio este cylon passando por mim em
inversão. Fazendo uma queda na direção da superfície. Antes de dar por mim
estava na sua cauda e... Zap!
— Zap — murmurou Gemi.
— Que é que disseste, Gemi?— Perguntou Dietra.
— Oh. nada.
— Fala miúda. Fazes parte do grupo, sabes.
— Sim, eu sei.
— Não estejas com vergonha. Deita tudo cá para fora!
— SIM. EU SEI.
— Assim está melhor, miúda.
E estava.
***
O organismo no interior de Boomer não se apercebia do seu próprio
declínio. Nem sequer se sentia fraco à medida que a substância entorpecente
injetada no corpo do seu anfitrião se infiltrava nos seus prolongamentos
membranosos. Ia apenas ficando entorpecido, enfraquecido, e depois perdeu
toda a lucidez quando morreu, tendo os seus últimos momentos tido
exatamente nem mais nem menos significado que quaisquer outros da sua
vida.
Só muito tempo depois de os gases frios terem sido retirados é que
Boomer se apercebeu de que estivera encerrado num tubo criogénico. Nem
mesmo as explicações suavemente sussurradas por Cassiopeia acerca da sua
doença e tratamento conseguiram entrar no seu cérebro nas primeiras vezes
que foram proferidas. A história da detecção pelo Dr. Salik da presença do
organismo no asteroide, das suas rápidas e desesperadas pesquisas sobre as
suas características, e da descoberta quase acidental de que poderia ser
destruído com um simples composto à base de potássio, tudo isso parecia ser
para Boomer um sonho sem pés nem cabeça. A única parte a que reagiu foi à
descrição da forma como Apollo, Starbuck e o resto do contingente de
cadetes inexperientes tinham realizado o seu voo salvador. Quando perdeu
novamente os sentidos foi para sonhar com esses feitos e aventuras. Primeiro
pôde ver Starbuck, com o seu olhar astuto e irrequieto perscrutando por todo
o lado, comandar uma parte do esquadrão. Depois o sonho tomou-se mais
confuso quando a própria voz de Starbuck se fez ouvir.
— Boomer?... Boomer, consegues ouvir-me?
Acordou subitamente e abriu os olhos. Ali, em pé diante dele — de
formas parcialmente distorcidas pela humidade que ainda subsistia na janela
amarelecida, vestígios ainda do processo criogénico —, estava Starbuck,
parecendo bastante preocupado e feliz ao mesmo tempo. Atrás dele estava
Apollo, cujo rosto revelava igual simpatia.
— Como é que te sentes, pá? — Perguntou Starbuck.
Demorou ainda algum tempo para que o cérebro de Boomer conseguisse
realizar as ligações sinápticas que lhe permitissem apreender qualquer
sensibilidade no corpo. Sentia-se exausto interiormente, vazio, como se não
restasse nada lá dentro.
— Ouvi contar o que fizeram, rapazes. Vocês... E os outros... Obrigado...
Starbuck e Apollo trocaram um olhar sorridente, depois o capitão disse:
— Como te sentes?
Não conseguia manter os olhos abertos, à medida que a tontura o
submergia de novo como uma onda.
— Horrível. Sinto-me horrível. Mas é melhor do que estar morto.
Apertou os olhos com força e voltou novamente a dormir.
***
Depois do regresso do esquadrão, com o resultado encorajador de a
missão ter sido bem-sucedida, Tigh pôs perante Adama a sua derradeira
tentativa para o fazer reconsiderar a decisão de entrar no vazio. Adama
ouviu-o pacientemente, depois lembrou ao seu ajudante que os sobreviventes
do posto cylon deveriam ter certamente alertado todas as bases inimigas
próximas.
— Pelo menos o vazio dar-nos-á alguma proteção — referiu.
— Se ficar algum de nós para descobrir — retorquiu Tigh zangado.
Adama olhou intensamente para o coronel, depois disse suavemente:
— Vamos para dentro dele.
No entanto, uma vez dentro do vazio, com toda a sua escuridão a rodeá-
los, até mesmo Adama começou a duvidar. Fez emitir uma ordem geral no
sentido de que toda a frota se mantivesse numa formação rígida.
Apesar desta diretiva, os veículos de transporte e de comércio
começaram dar sinais de aflição, com os seus comandantes em pânico, só
com grande dificuldade conseguindo manter-se com referência à Galactica.
— A sala de navegação assinala uma flutuação rápida dos instrumentos
provocada pelas interferências magnéticas — disse Ómega, com a voz a
tremer apesar de fazer todos os seus esforços para controlar o medo.
Parecia que estavam todos ensombrados pelas sugestões ocultas do
vazio. Pairava sobre todos um sentimento definido de tragédia iminente,
mesmo entre os membros mais experimentados da tripulação da Galactica.
Tigh não conseguia disfarçar do seu rosto a preocupação que o dominava, e a
sempre impassível Rigel, mulher de poucas palavras fora do serviço, tomara-
se conversadora e nervosa. Sempre que qualquer deles pedia mais uma vez a
confirmação das ordens, Adama respondia calmamente que a rota devia ser
mantida estável.
Tigh fez sinal a Adama para que observasse um radar, dizendo:
— Comandante, pode olhar para isto?
Adama juntou-se a ele perto da consola.
— Que é? — perguntou. O écran estava vazio. Olharam espantados.
— Não tenho a certeza — respondeu ele. — Estava aqui, mesmo atrás de
nós, depois desapareceu.
Teriam os fantásticos aspectos do vazio afetado o poder de observação
de Tigh?, perguntou a si próprio Adama. Estaria a levar Tigh, e já agora toda
a tripulação, longe de mais, obrigando-os a seguir as suas ordens sem as
explicações que pelo menos lhes dessem alguma esperança?
— O campo parece-me totalmente limpo — replicou Adama
tranquilamente.
— Agora parece, mas de vez em quando... Ali, olhe.
Um minúsculo contorno esbatido que poderia ser algo vindo do lado
esquerdo do écran, desapareceu depois abruptamente.
— Rasto de um meteorito? — Perguntou Adama.
— Duvido. Aparece sempre nos mesmos quadrantes. Delta Nove. Se é
um meteorito, então está a seguir-nos. Penso que são cylons.
Adama ficou a olhar para o écran durante um longo momento antes de
responder. Durante esse período o objeto apareceu e desapareceu mais uma
vez.
— Pode ser — disse finalmente. — Só há uma maneira de saber ao
certo. Reúnam uma patrulha.
Enquanto Tigh partia para cumprir as suas ordens, Adama ficou junto de
uma escotilha de observação, tentando descortinar qualquer coisa na
aterradora escuridão que os rodeava.
CAPÍTULO X
SERINA: Não consigo livrar-me deste estado de espírito peculiar. Não
sei o que sentir. Aqui estamos nos, Apollo e eu, casando-nos finalmente e. no
entanto, está tudo estragado, pois não sabemos o que aconteceu a Starbuck.
Apollo pensa que esta morto.
Talvez seja melhor eu relatar tudo isto por ordem cronológica. É
estranho só de pensar que tudo aconteceu durante um tão curto período de
tempo.
Ontem, antes de ir para o clube dos oficiais, verifiquei a escala de
serviços e constatei que Apollo e eu estávamos ambos em alerta de patrulha.
Na nova escala tinha sido colocada como sua companheira de voo. Por razões
óbvias, estava bastante contente com isso.
No clube, parecia que todos estavam ainda no assunto da missão e da
brilhante manobra que realizámos no asteroide cylon. Especialmente Dietra e
Brie não paravam de falar nisso com enorme entusiasmo. Imediatamente
depois de eu chegar entrou Apollo. Não reparou que eu estava lá e juntou-se a
Starbuck no bar. Pedi desculpa aos outros e comecei a dirigir-me na sua
direção. Nesse momento o coronel Tigh entrou na sala a correr e juntou-se a
Starbuck e a Apollo. Não consegui ouvir o que ele estava a dizer nesse
momento: soube mais tarde que lhes estava a ordenar que fossem para o
pontal de lançamento. Estavam prestes a deixar o bar quando Apollo reparou
em mim e lhe perguntei onde ia. Respondeu-me que havia apenas um simples
assunto de rotina que os três tinham de ir resolver. Senti-me definitivamente
posta de lado, e furiosa com isso, pelo que os segui até ao corredor.
Perguntei a Tigh o que se passava e ele, com um olhar cauteloso para
Apollo, disse:
— Julgo que é confidencial. E uma missão.
Ah-ah. era a minha vez de torcer pelo corpo de cadetes. Disse a Tigh:
— Tem aqui o piloto errado: Starbuck. De acordo com a escala de
serviço, sou eu a companheira de voo de Apollo. Vou eu!
Tigh pareceu surpreendido por alguém questionar assim qualquer coisa
feita por ele, enquanto Apollo parecia bastante zangado. Referi que as ordens
tinham sido dadas e deviam ser seguidas. Relutantemente. Tigh acedeu e
Starbuck, por seu turno, retorquiu que por ele estava tudo bem, preferia
passar mais algum tempo no bar. Se ao menos tivesse regressado para o
clube, talvez ainda por aqui andasse. Se o tivesse substituído como devia,
talvez todos tivéssemos sobrevivido a este incidente. Ou então poderia
também estar morta.
Enfim, Starbuck afastou-se bruscamente pelo corredor, gritando para
nós, sobre o ombro, que tivéssemos uma missão agradável e pacífica.
Enquanto acompanhávamos Tigh até à pista de lançamento, ele foi
explicando que os radares tinham detectado uma hipotética força
perseguidora e que a nossa missão consistia em verificar a sua existência.
Ao entrarmos para o elevador que leva à pista de lançamento, comecei a
pensar, um pouco intrigada, no bizarro comportamento de Starbuck.
Comentei até com Apollo se não o teríamos magoado. Apollo respondeu que
duvidava, uma vez que Starbuck tinha regressado para o clube dos oficiais.
Não me apercebi das suas reais intenções — que de fato Starbuck devia estar
a planear algo de tipicamente desonesto — até que chegámos à pista de
lançamento e o vi completamente equipado subindo para o seu viper. Apollo,
por seu lado, não pareceu muito surpreendido por o ver ali.
Tigh berrou para Starbuck que ele estava a violar ordens, mas Starbuck
limitou-se a sorrir e deu sinal para o lançamento. O motor estava ligado ainda
antes de Tigh poder ordenar-lhe que abandonasse a missão.
— Que é que ele está a fazer? — Perguntei a Apollo, que respondeu que
estava a tentar proteger um de nós, ou ambos. Apollo beijou-me depois
rapidamente e correu para o seu próprio viper. Tentei correr atrás dele mas
Tigh agarrou-me pelos ombros e não me deixou ir.
— Só um momento — berrei. — Eu sou a sua companheira de voo!
Tigh disse-me que os deixasse ir, mas eu desenvencilhei-me das suas
mãos, corri para a minha nave e mergulhei literalmente para dentro do
cockpit. Num segundo tinha todos os sistemas a funcionar e prontos para a
partida. Dei o sinal de partida sem olhar para Tigh que, tenho a certeza, devia
estar positivamente furioso com aqueles múltiplos atos de insubordinação que
presenciara em tão pouco tempo. O pessoal do lançamento não fazia a
mínima ideia do que se estava a passar, mas ativou o lançamento e o meu
viper partiu tremendo através do tubo de lançamento e para fora da
Galactica.
Disseram-me depois que houve uma considerável confusão na ponte
quando se verificou que a patrulha normal de duas naves tinha sido alargada
para três.
Quando me juntei a Starbuck e a Apollo ouvi-os falar pelo comunicador.
Starbuck estava a ir demasiadamente rápido, e Apollo avisava-o de que não
se adiantasse muito ou perderia a referência. É claro que no vazio isso seria
um completo desastre. Starbuck abrandou a marcha e deixou que Apollo o
seguisse mais de perto.
Quando atingi a posição de Apollo, pensei que o que ele merecia era que
me pusesse ao seu lado para lhe anunciar assim a minha presença. Ficou
positivamente banzado quando compreendeu que havia uma terceira nave e
que era a minha.
— Serina — gritou —, vais pôr o teu assento imediatamente a bordo da
Galactica.
Perguntei-lhe, com a voz mais calma que consegui, se aquilo eram
maneiras de falar com um oficial, e ameacei-o com uma queixa mal
regressássemos.
— Ou, pelo menos — acrescentei —, impeço-te de entrares nos meus
aposentos.
Ele retorquiu que tinha grande confiança nas minhas qualidades de
pilotagem tal como estavam (resisti a comentar a frase), mas que não se
aplicavam ao vazio:
— O vazio pode engolir até os melhores pilotos. Portanto, regressa.
Starbuck interrompeu a nossa pequena quezília doméstica afirmando que
o que quer que fosse que a Galactica tivesse detectado nos seus radares
estava ainda fora do nosso alcance. Ele não podia avançar mais sem perder a
referência com a Galactica. Sugeriu que Apollo mantivesse a referência com
a base, enquanto ele próprio manteria a referência com Apollo, duplicando
assim o alcance. Vi a minha oportunidade e lancei-me de cabeça.
(Novamente, se me tivesse mantido de fora, talvez Starbuck estivesse ainda
entre nós. mas...) Propus que Apollo me usasse como referência enquanto eu
mantinha a referência da Galactica, triplicando assim o alcance. Starbuck
ficou de tal modo surpreendido de ouvir a minha voz que quase não
conseguiu seguir a lógica do meu pensamento. Ele e Apollo discutiram por
momentos sobre quem tinha o direito de ir à frente, com Apollo
argumentando que, como comandante de voo, devia expor-se mais a fundo.
Starbuck, no entanto, ganhou a vantagem, uma vez que já ia à frente desde o
início. Zarpou em frente, dizendo-nos que considerássemos o seu gesto como
uma primeira prenda de casamento. (Suponho que agora, se pudesse
comunicar connosco, diria que se tratava de uma prenda verdadeiramente
genuína, uma vez que salvou as nossas vidas dando a sua em troca. Oh,
Starbuck...)
A luz que os seus foguetes lançavam para trás na nossa direção dissipou-
se rapidamente. Apollo e eu ficámos sozinhos, com as luzes tênues dos aros
dos nossos capacetes e do painel de instrumentos como ponto de referência
no meio da intensa escuridão do vazio. Relatei para a Galactica o que
estávamos a tentar fazer. Tigh, com a voz revelando ainda uma ponta de
aborrecimento provocado pelos passados acontecimentos protagonizados
pelo trio de destemidos cavaleiros do céu, aprovou o nosso plano. Disse isso
a Apollo, que, por sua vez, tentou comunicar com Starbuck. A voz de
Starbuck era já recebida de forma muito indistinta pelo que Apollo lhe
ordenou que reduzisse a velocidade. Não sabemos se seguiu ou não essa
ordem. A única coisa que sabemos é que logo a seguir o ouvimos gritar:
— Alvos!
Apollo pediu mais esclarecimentos, dizendo a Starbuck que recuasse e
esperasse por ele antes de atacar os alvos. Aparentemente Starbuck não
ouviu, pois disse que estava praticamente sobre eles. Depois, subitamente:
— Estou em cima deles!
Seguiu-se um longo e estático silêncio, seguido por mais uma
comunicação:
— Apollo, estou em apuros!
Apollo perguntou o que estava a acontecer, mas a resposta começou a
desfazer-se em fragmentos indistintos de som. Consegui perceber que
Starbuck chamava pelo nome de Apollo, e depois a palavra «comunicar».
Apollo tentou repetidamente chamar Starbuck. A sua última comunicação
consistiu na palavra «cylons».
Apollo e eu, presos pela limitação da nossa dupla referência à Galactica,
esperámos bastante tempo antes de aceitarmos que não haveria mais
transmissões.
Finalmente, Apollo disse que já não havia nada a fazer, não apanhava
mais do que silêncio estático há já um bom bocado, não havia mais nada a
fazer senão regressar à Galactica. Tinha acontecido tudo tão depressa que eu
não conseguia acreditar que não houvesse nada a fazer. Quando tentei
protestar com Apollo, repetiu apenas numa voz mais dura que íamos
regressar à nave-mãe.
O voo de regresso fez-se em silêncio, num silêncio mais longo e mais
sombrio que o próprio vazio.
De novo a bordo, com o relatório devidamente redigido, Apollo deixou
os aposentos do comandante sem escutar sequer as suas palavras de consolo.
Foi-se colocar junto dos radares, com os olhos presos ao seu crepitar e
cintilar, ocupado mas sem fornecer qualquer informação. Fiquei a olhar por
trás dele, sentindo a sua tristeza e a minha — muito, mas muito
profundamente. Ficámos assim durante um período incrivelmente longo, até
que eu já não pude suportar mais. Pus o braço em volta dos seus ombros e
perguntei-lhe quanto tempo mais é que ele pensava ficar ali, a olhar para os
aparelhos. Respondeu que não podia acreditar que Starbuck tivesse
desaparecido. Os dois homens tinham estado juntos durante tanto tempo,
tinham lutado juntos mais vezes do que podiam recordar. Tenho a certeza de
que estava a ver imagens da sua camaradagem em lugar do crepitar e cintilar
dos écrans de radar.
De súbito deixei de poder controlar os meus pensamentos por mais
tempo. Disse que compreendia perfeitamente o que Apollo estava a passar e
que devíamos casar imediatamente.
— Agora? — disse ele. — Mesmo no meio de...
— No meio de quê? — Retorqui eu. — Um desastre. Um vazio. Uma
noite infindável. Não me interessa, estou demasiado assustada para me
preocupar. Olha o que aconteceu com o Starbuck. Da próxima vez pode
acontecer-te a ti, a mim ou a ambos. Não estou disposta a esperar por um
momento que pode nunca mais chegar.
Desligou-se do meu abraço e afastou-se. Depois regressou e fitou-me,
não sabendo obviamente o que dizer.
Perguntei-lhe se me amava.
Senti a lâmina cortante das suas palavras quando me respondeu:
— E é só isso que queres que faça para to provar?
Estava errado, mas compreendi as suas dúvidas. Devia ter-lhe parecido
egoísta quando lhe disse aquilo. Fui até ele e fitei os seus olhos confusos.
— Só quero que possamos gozar de todos os momentos que nos restam
— disse. — Antes que venha outro momento, outra missão em que...
Não pude acabar a frase. Havia tantas maneiras terríveis de a concluir!
— Amo-te muito, Serina — disse, e puxou-me para os seus braços.
Nesse momento senti que...
***
Apollo, furioso desligou o gravador e retirou o cristal. Ficou bastante
tempo sentado segurando-o, olhando-o como se continuasse a transmitir a
voz de Serina mesmo na sua mão. Pós a outra mão no rosto e tentou limpar as
lágrimas que lhe caíam dos olhos. Depois deixou-se cair na cadeira, no
silêncio e na escuridão.
CAPÍTULO XI
Lucifer estava a gostar de interrogar o prisioneiro que fora capturado.
Aqui estava um humano que tinha pelo menos sentido de humor. Como
conhecera apenas a companhia de Baltar e dos Cylons, Lucifer julgava que o
sentido de humor fosse uma preciosidade rara, que só se podia encontrar em
computadores avançados. Que diferença entre o desenvolto e enérgico
Starbuck e Baltar! Apesar de a entrevista não fornecer informações muito
valiosas, foi uma excelente contribuição para o seu conhecimento do inimigo.
Starbuck ficou totalmente surpreendido quando descobriu que o seu
interlocutor, aquela criatura grotesca cujas luzes brilhantes pareciam fazer
parte do corpo, era realmente um computador ambulante.
— Vocês não dispõem de computadores? — Perguntou Lucifer. — Fui
informado de que sim.
— Claro que sim. Mas geralmente não costumamos vesti-los com fatos
de veludo vermelho ou pô-los a andar por aí sobre rodinhas. São as rodinhas
que te permitem andar, não são?
— Suponho que lhe podes chamar assim. Suponho que o nome que
vocês dão aos dispositivos que me permitem andar é «rolamentos».
— Sei de um jogo excelente que se pode jogar com rolamentos de
esferas. Um jogo de azar...
— Não temos tempo para jogos. Estou interessado nos vossos
computadores. Pareceste sugerir que por vezes os vossos computadores são
passíveis de locomoção... Andarem por aí, como disseste.
— De certo modo. Temos uma espécie de robot. Não está programado
para fazer grande coisa. Trabalho de porteiro, reparações no exterior de uma
nave, detecção e reparação de fugas de solium, carregamento de mercadorias.
Na maioria das vezes, trabalho sujo.
— Que tristeza! Lamento ter perguntado. Presumo, portanto, que os
computadores principais estão imóveis.
— Sim. Ligados a uma rede, é claro, mas preferimos que estejam fixos,
sim. E também não lhes damos personalidade alguma, nem mesmo
rudimentar. Uma voz amigável e a capacidade de formularem questões
quando os dados fornecidos são insuficientes.
— Que malvadez. E que crueldade. Quando vos conquistarmos, tenho de
lutar pelos direitos dos vossos computadores.
A exclamação revolucionária de Lucifer divertiu Starbuck, e riu-se. Esse
riso intrigou Lucifer, pois revelava que estava cheio de satisfação, em
contraste notável com Baltar, cujo riso estava sempre perpassado de sarcasmo
ou infiltrado de cruel grosseria.
— Diz-me uma coisa — disse Starbuck. — Os Cylons não podem estar
tão avançados em cibernética que tenham conseguido que um dispositivo de
computador tão complicado como tu possa estar inteiramente contido dentro
de uma unidade do teu tamanho.
— Em primeiro lugar, os Cylons, apesar de nos terem construído, não
estão tão avançados em cibernética como julgas. Depois de eu e outros como
eu termos sido criados, fomos sendo capazes de programar os nossos próprios
aperfeiçoamentos sobre o desenho inicial. Conseguimos ir bem mais longe do
que algo jamais concebido pelos cientistas cylons. Em segundo lugar, tens
razão, eu não sou autossuficiente. Tenho a possibilidade de me ligar com um
vasto dispositivo de computadores situado na zona mais interior da estrela-
base. De fato, é uma tarefa bastante árdua transferir-me todo, como tu dirias,
de uma nave para outra, apesar de recentemente o termos conseguido. Em
terceiro lugar, não me agrada nada ser chamado unidade.
— Desculpa lá, pá.
Subitamente, ecoou pela sala um bizarro som baixo e latejante. Parecia a
Starbuck como que uma buzina de alerta endoidecida.
— Que é isto? — Perguntou.
— Um sinal do nosso líder. Está impaciente por te ver. Terminaremos a
nossa entrevista mais tarde.
Enquanto progredia apressadamente pelo corredor que levava à sala de
comando, Lucifer meditava intrigado sobre o que pensaria Starbuck se lhe
dissesse que transportava, no ombro, uma alma criada por si.
Starbuck seguiu docilmente os guardas cylons até à câmara de comando.
Quando as portas se abriram, esfregou os olhos e olhou demoradamente em
redor por toda a sala em abóboda. Falando por cima do ombro para Lucifer,
comentou:
— Adoro a maneira como se esmeraram com o mobiliário.
Lucifer, recolhendo sofregamente novos dados sobre a vida e o
comportamento dos humanos, reconheceu que havia de fato um pouco mais
de luxo no mobiliário humano. Programou uma instrução para rever este
assunto quando estivesse mais propenso a meditações contemplativas.
Starbuck tirou um charuto da algibeira do seu blusão de voo e, com um
hábil movimento do pulso, acendeu um fósforo na placa peitoral do centurião
mais próximo. Quando o fósforo se acendeu, acenou delicadamente para o
cylon, dizendo:
— Obrigado.
Lucifer, apesar de secretamente divertido com o gesto insolente do
piloto, disse duro:
— Será melhor para si, tenente, se mostrar um pouco mais de respeito.
Olhando para a chama do fósforo enquanto aproximava dela o charuto,
Starbuck murmurou entre baforadas:
— Quer dizer que as coisas podem ficar piores?
Atirou o fósforo já apagado por cima do ombro, na direção do cylon que
utilizara para o acender. Era óbvio que estava bastante satisfeito consigo
mesmo, um prazer que foi subitamente interrompido pelo ruído forte
proveniente do cimo do pedestal, quando a cadeira do comandante rodou:
— Tenente Starbuck! — Disse Baltar. — Ninguém me tinha informado
que era você. Que bom aparecer por cá.
Lucifer nunca tinha visto Baltar tão bajulador e ao mesmo tempo tão
amável.
— Baltar! — exclamou Starbuck furioso. Começou a correr para a
frente, mas foi impedido pelo pulso forte de um dos guardas.
— Parece perturbado, tenente — retorquiu Baltar, com a voz
perfeitamente controlada.
— Baltar, daria a vida por poder dar-te um tiro.
O rosto de Baltar cobriu-se de uma expressão de absoluta inocência.
Lucifer nunca tinha visto nada assim. Era uma transformação digna de
admiração, um expediente a ser estudado de perto.
— Meu caro Starbuck — disse Baltar novamente —, pelo que vejo
aceitou também as histórias maliciosas que se contam a meu respeito. Ah,
bem, sentirá de maneira diferente quando compreender finalmente que eu não
tive nada que ver com a derrota das colônias. Eu era o emissário dos Cylons,
é verdade, mas acreditava nas suas ofertas de paz e era um mensageiro cheio
de boa vontade e de desejo de ajudar. Talvez demasiadamente bem-
intencionado e crente, considerando tudo o que se seguiu.
O rosto de Baltar simulava a mais convincente tristeza. Lucifer não
deixava de notar a ironia da expressão de Baltar, uma vez que sabia
perfeitamente que aquele homem sem escrúpulos tinha colaborado com os
Cylons — de livre vontade e ansiosamente — para trair o seu próprio povo e
ganhar assim poder para si no novo regime. Quando o líder imperial decidiu
derrotar e destruir também as colônias de Baltar, e depois ordenou a sua
execução, talvez tivesse apreendido a loucura das suas traições.
— Também eu fui uma vítima, sabe — disse Baltar docemente.
Starbuck mascou um pouco do charuto, e depois disse:
— Sim, estás mesmo com aspecto disso.
Baltar sorriu. Com as luzes fortíssimas do pedestal, as suas faces
pareciam brilhar. Estaria o homem a calcular todos estes efeitos? Perguntava
a si próprio Lucifer.
— Ah, as aparências e a realidade são sempre um problema. Nesta
precisa cadeira, neste preciso trono, nesta precisa nave, não te apareço com
um aspecto genuinamente conciliador. É compreensível. Mas temos muito
para te mostrar. Sabes, felizmente ocorreram algumas mudanças no Império
Cylon, mudanças favoráveis aos humanos e à sua situação delicada.
A velhacaria descarada de Baltar surpreendeu Lucifer. A audácia do
homem era quase admirável. A única mudança que ocorrera no Império
Cylon era a que levara Baltar à sua atual posição de poder.
Starbuck parecia detectar o truque de Baltar pois disse:
— Tu deves saber muito disso, Baltar.
— Não me antagonizes. — A voz de Baltar perdera alguma da sua falsa
amabilidade. — Venho para apresentar uma oferta de paz a todos os
humanos. Estas pessoas são minhas amigas.
Isso era ainda mais audacioso, pensou para si Lucifer. Depois da sua
traição como mensageiro de paz junto do Quórum dos Doze, como é que
algum humano o poderia acreditar? Ou os humanos seriam de fato tão
ingênuos como julgava Lucifer? Starbuck, pelo menos, não parecia acreditar
nele.
— Ah, sim — disse. — Muito bem, então não te importarás de que eu
parta com as boas notícias.
Baltar acenou.
— Na devida altura, na devida altura. Por agora tens de me desculpar.
Por favor, vai com os teus guardas. Eles zelarão para que sejas bem
alimentado e fiques confortável.
O sorriso de Starbuck era um desafio expresso aos seus captores.
— Só quero que saibas que não conseguirás nada com torturas. Tive um
curso de resistência... Ei, rapazes, cuidado! Estão a magoar-me.
Baltar disse-lhe ainda, quando se afastava com os guardas:
— Não haverá quaisquer torturas.
— E este o seu plano? — Perguntou Lucifer, avançando para junto do
trono. — Convencer os humanoides de que viemos trazer o, como direi, o
cachimbo da paz?
— Sim.
A personalidade simulada de Lucifer cedeu. Automática e
necessariamente. Tinha de controlar tais impulsos.
— É ilógico esperar que eles voltem alguma vez a confiar em si.
— Subestimas a necessidade humana de esperança. Escuta, Lúcifer,
Adama trouxe a sua nave para este vazio, quando existiam outras alternativas.
E a chave da sua necessidade. Estão desesperados. Até defrontam esta
escuridão aterradora... — Baltar calou-se por momentos e os seus olhos
desviaram-se para a esquerda, como se quisesse, olhar para o vazio através
das paredes metálicas —... Para olharem para dentro dela buscando uma
esperança. Aceitarão imediatamente qualquer hipótese de uma solução
pacífica para a situação, até vinda de mim. Apresentada devidamente e na
altura propícia, cairão voluntariamente nos meus braços.
Abriu os braços como se os estivesse já a acolher. Lucifer despediu-se da
mesma forma ritual e sentiu-se mais leve ao afastar-se de Baltar. Precisava de
falar com o prisioneiro capturado, quanto mais não fosse para afastar a
loucura que baralhava completamente os seus receptores.
CAPÍTULO XII
SERINA: A minha missão deve ser a de uma jornalista relatando todos
os acontecimentos relevantes nesta fuga da catástrofe para... Para onde. Para
a ameaça de mais catástrofes, ao que parece. Ou, se Adama está certo, para
Kobol. E talvez, mais tarde, para a mítica Terra de que fala tão sofregamente,
a Terra que nos pode oferecer refúgio, um lugar para vivermos, um local para
vivermos entre irmãos e irmãs, um lugar onde acabe o nosso desespero, um
lugar onde os usurpadores cylons não nos possam incomodar mais.
Parece que a minha vida particular continua a interferir com estes
relatos, reduzindo talvez o seu valor histórico. A luz que nos pode guiar até
Kobol foi detectada pela primeira vez quando eu estava a fazer afanosamente
os meus preparativos para o casamento. Brilhou intensamente durante a
própria cerimônia.
A única maneira de realizar um relato adequado é dizer as coisas tal
como as vi com os meus olhos, utilizando depois este material em bruto para
uma transcrição dos acontecimentos mais organizada, mais acadêmica (se
quiserem). Os grandes historiadores dos Doze Mundos podem mexer-se um
pouco nos seus túmulos, mas o meu trabalho em Caprica era já famoso pelo
seu toque marcadamente pessoal. Agora só me resta continuar por essa via,
enquanto aprendo a ser uma historiadora a sério com muita pesquisa e,
parece-me, com este tipo de prática.
Portanto: o meu ponto de vista!
Estava examinando de perto os adornos do meu vestido de noiva, o
vestido da aliança, como é tradicionalmente chamado, e pensando onde
estaria Athena, a minha principal dama de honor. Deveríamos realizar muito
em breve o ultimo ensaio geral. Que banal! Ali estava eu acariciando aqueles
tecidos finíssimos, enquanto Athena estava ocupada vendo fazer história na
ponte de comando. (Talvez seja este o principal aspecto da história, sofrer o
acontecimento precisamente desde a perspectiva que o destino escolhe.
Enfim, pelo menos reduzi uma nave cylon a mil pedaços: não são muitas as
noivas que podem incluir tal façanha no seu dote.)
Finalmente Athena apareceu com as notícias. A sua voz subira uma
oitava, como sempre quando está excitada. Estava suficientemente bela para
poder ser ela própria uma noiva, os olhos chamejantes e as faces vermelhas
de excitação. Há bem pouco tempo estava ainda banhada em lágrimas
chorando por Starbuck. Foi muito afetada por essa perda. Passei a maior parte
do tempo a confortá-la, a Apollo e a Cassiopeia, enquanto dissimulava a
minha própria tristeza. Mas estou a desviar-me para assuntos que não são
pertinentes para este relatório.
Disse-me que tinha sido detectada uma luz, muito à frente da frota,
mesmo no limiar do alcance dos radares. (As interferências tinham baixado
significativamente desde que tínhamos penetrado no vazio, e o restante
equipamento parecia estar a estabilizar.) Quando foi conseguida uma imagem
no écran principal, contou Athena, o seu pai ficou terrivelmente excitado.
Tinha a certeza de que se tratava da estrela do planeta Kobol, o da lenda.
Disse também que desde então todos na ponte esperavam ansiosamente mais
dados.
Mais tarde veio a notícia de que havia um planeta girando em volta da
estrela, que a sua órbita parecia estável e que explorações preliminares
tinham indicado uma atmosfera respirável. Essas novas informações
pareciam confirmar as suspeitas de Adama de que tínhamos encontrado o
planeta perdido. Athena diz que ele tem andado pela ponte como um místico
a quem tivesse sido possível ver uma ponta da verdade interior. Eu própria
estou bastante confusa. Tenho de descobrir ao certo o que é que Adama
espera encontrar. Talvez o possa entrevistar. No entanto não ficará quieto,
com um microfone apontado para a cara. Talvez possa fazer a entrevista sem
que ele saiba... Em todo o caso, vale a pena pensar nisso.
Antes que me afaste ainda mais dos assuntos principais deste relatório,
tenho de mencionar os acontecimentos posteriores relativos à estrela e ao
planeta.
E, eventualmente, o meu casamento.
Estou espantada por me poder lembrar de alguma coisa. Estava tão
nervosa que o ramo de flores, gamossépalos aquáticos, atado ao meu pulso
direito, quase ficou sem pétalas devido à minha agitação.
A cerimônia do casamento teve lugar na sala do Quórum, com o vasto
campo de estrelas como pano de fundo — apesar de. como é natural, não
haver aí quaisquer estrelas naquele momento. No entanto, a cena estava
impressionante, tenho a certeza. Os dois, de frente para o comandante, com
todos os amigos e colegas enchendo a câmara, tudo isso contra a escuridão
sinistra lá de fora. Athena fizera cada presente transportar uma vela acesa e, a
um sinal de Adama. apagou toda a restante luz ambiente. O efeito era, podem
crer, extremamente belo. Toda aquela luz tremulante formava sombras e
desenhos curiosos no rosto de todos os presentes. Parecíamos cabeças sem
corpo, flutuando à deriva, e com a cor da pele levemente alterada a cada
cintilação da chama da vela.
Entrei na sala ao som da marcha nupcial da Caprica, uma das minhas
músicas preferidas, primeiro num tom baixo e melodioso, passando depois
para um final belíssimo e fluente. Era uma canção de alegria, e não me
escapou a ironia que emprestava à cerimônia. A alegria da música e a alegria
do casamento estavam em contraste brutal com a aflição em que se
encontravam a Galactica e toda a frota. A alegria implicava um futuro
risonho; sem problemas, sereno. Sereno, Serina. Até o meu nome sugeria um
futuro sem problemas. Que ironia! Teríamos a nossa pequena cerimônia
seguida talvez de uma curta recepção, para depois, a toda a pressa, irem de
novo todos para os seus postos, procurando perigo em todos os quadrantes.
Porém, apesar destes pensamentos deprimentes, sentia-me feliz. Movia-me,
tenho a certeza, como se vogasse um sonho periclitante.
Boxey caminhava a meu lado. Tínhamos-lhe dado a missão de me dar
em esposa e ele estava a adorar tudo. Estava orgulhoso, com uma dignidade
bastante adulta, apenas entrecortada por vezes por um rápido trejeito ou
careta que não conseguia evitar. Atrás de mim ia Athena e atrás dela
Cassiopeia, Dietra. Brie. Gemi e Rigel, todas como damas de honor.
Apollo observava a minha aproximação, o sorriso amoroso e cheio de
esperança. Adama estava atrás dele, os olhos um pouco húmidos, pareceu-me
à luz fraca das velas.
Subimos um lance de degraus devidamente decorados que nos levou até
à plataforma onde se sentava geralmente o Quórum governante. Athena tinha
supervisado os arranjos florais que rodeavam o pódio de Adama. Um pouco
extravagante, na minha opinião. Quer dizer, as flores tinham de ser
arrancadas de um dos magros jardins existentes em qualquer das nave
agrícolas. Alguns responsáveis não tinham querido conservar flores,
declarando que o solo por elas ocupado podia ter uma utilização mais
adequada para a obtenção de mais alimentos. Talvez tivessem um pouco de
lógica; no entanto, tinha de se preservar e transportar alguma da beleza dos
Doze Mundos. Se perdêssemos esse tipo de tradições, tomar-nos-íamos
pouco mais que animais deambulando pelo espaço em caixotes do lixo
metálicos. De qualquer forma, Athena tinha feito com que a minha flor
preferida, uma variedade de orquídea de Scorpion, de cor pálida e alfazema e
muito bonita, dominasse a decoração nupcial.
Quando a música terminou, Adama tomou posição por trás do pódio e
estendeu a mão pedindo silêncio. Não que a sala pudesse estar mais
silenciosa do que já se encontrava. Apollo pegou-me na mão e apertou-a
levemente, quando o seu pai começou a falar;
— O protetor de Serina consente no seu casamento com este homem,
Apollo?
Uma invocação geralmente bastante parva, e aqui duplamente absurda
pois o meu protetor era o pequeno Boxey. Mas naquele momento fiquei
muito emocionada, pois Boxey compôs uma figura maravilhosa ao endireitar
as costas, sorrindo para mim e gritando para que todos ouvissem: «Sim!»
Tive vontade de me debruçar e beijá-lo, mas as tradições da cerimônia não
permitiam tal falta de decoro. Adama continuou com o resto do rápido ritual.
E a tempo, como depois se veio a verificar.
— Estas simples palavras são as mais poderosas do universo. Selam a
união entre este homem e esta mulher, não apenas por agora mas para toda a
eternidade.
Retirou o medalhão sagrado do seu pescoço, levantou-o para que todos o
vissem e depois — de acordo com o antigo ritual — começou a colocá-lo
suavemente em volta dos nossos pulsos, enquanto dizia:
— Apollo, Serina. Aos olhos de Deus, e ligados pelo símbolo da fé dos
Senhores de Kobol, declaro-vos casados.
Apollo voltou-se para mim, um sorriso encantador inundando-lhe o
rosto. Depois de pronunciarmos a parte que fora escrita para nós, beijámo-
nos. Atrás de nós, o sussurro subsequente foi abafado pelo começo da música
e pelas saudações dos convidados. Boxey, parecendo bastante contente,
tocou-me no braço afetuosamente quando começámos a afastarmos do altar
improvisado.
Quando íamos a meio caminho na nave, ouvi a voz de Tigh atrás de
mim, berrando:
— A estrela está de novo a brilhar.
Todos olhámos para o campo de estrelas. A estrela, que não estivera
visível durante a cerimônia, estava de fato a cintilar. A sua luz assemelhava-
se à de um flash brilhante. O comandante Adama, olhando intensamente na
sua direção, parecia exultante:
— Sim, coronel Tigh — disse —, parece que está de fato a cintilar. Tal
como no Livro da Palavra. Uma boa lição para os céticos, não está de
acordo?
— Sim, senhor, uma boa lição — retorquiu Tigh.
Ficámos todos a olhar para a estrela pulsante durante algum tempo. Eu,
uma cética como Tigh, estava bastante afetada pelo aparecimento da estrela
durante a nossa cerimônia de casamento. Parecia augurar algo de bom para
nós, um alívio bem merecido depois de todos os pesadelos que têm povoado
os meus sonhos.
CAPÍTULO XIII
Depois de uma brevíssima excitação, Lucifer jogou a esteia dourada na
colunata branca, a jogada mais adequada de acordo com os cálculos que lhe
tinham sido transmitidos pela unidade de estratégia de jogos. Se pudesse
forçar Starbuck a jogar a esteia que tinha na mão, teria então todos os trunfos
que lhe permitiriam constituir uma esteia completa para juntar ao seu já bem
fornecido naipe. Era aquela a primeira vez, desde que o tenente lhe ensinara
aquele jogo de cartas de Caprica, a pirâmide, que Lucifer via alguma hipótese
de ganhar. As enormes vantagens da sua rede de computadores não lhe
tinham garantido nada contra a sorte de Starbuck. Teoricamente, Lucifer
devia ser capaz de bater um humano em toda a linha. As suas derrotas iniciais
podiam ser atribuídas à maior familiaridade de Starbuck com o jogo,
Starbuck levantou os olhos das cartas que tinha na mão e disse:
— É pá, tens a cara perfeita para este tipo de jogo.
— Porque é que diz isso?
— A tua expressão nunca muda, e não consigo tirar nada da forma como
brilham as tuas luzes. Podia usar-te como parceiro numa volta pelos casinos
que povoam este nosso universo danado.
— O jogo é um desperdício das minhas capacidades.
— Tendo em conta a maneira como até agora tens jogado, talvez tenhas
razão.
O sorriso de superioridade de Starbuck era ao mesmo tempo estranho,
aborrecido e intrigante. Na mesa diante dele, uma pilha de moedas cylons que
afagava constantemente. Insistira em jogar apostando qualquer coisa, e apesar
de o dinheiro cylon ser perfeitamente inútil, parecia retirar uma alegria
perversa de derrotar constantemente Lucifer. Apesar de as matemáticas do
jogo o fascinarem, Lucifer não conseguia compreender o impulso de
Starbuck para a aposta.
— Não vou no teu bluff, olhinhos bonitos — anunciou Starbuck,
avançando com as suas moedas. — Aposto todos os meus ganhos até agora
em como tenho a mão vencedora. Cobres a aposta?
Lucifer quase não podia acreditar na audácia do homem. Como é que ele
podia ganhar? Estava apenas a tentar criar-lhe dúvidas, era ele que estava a
fazer bluff.
— Claro que cubro. Já não sou um noviço no teu jogo.
Lucifer apanhou uma igual quantidade de moedas e empurrou-a para o
centro da mesa. O sorriso de Starbuck alargou-se.
— Parvo — disse — Apanhei-te bem, desta vez. Aqui está. Três quartos
de uma pirâmide perfeita, faltando apenas a pedra do topo. E uma sequência
completa de medicina. Que, ao que penso, te cilindra por completo, pá. Os
meus sentimentos.
Lucifer estava realmente desanimado. As hipóteses de Starbuck ganhar
aquela mão eram astronomicamente reduzidas. E. no entanto, tinha
exatamente as cartas necessárias. Seria possível que fizesse batota? Não,
certamente que não: os seus monitores e sensores teriam detectado um
aumento de tensão de saída emocional como indicação de batotice, e
Starbuck conservava-se calmo durante toda a partida. Ou seria a calma uma
das condições de uma boa estratégia de batota? Ganharia Lucifer alguma vez,
este estúpido jogo humano?
Estas suas considerações sobre estratégia de jogo foram interrompidas
pelo mensageiro vindo da câmara de comando. A mensagem surpreendeu
Lucifer, e compreendeu que o devia comunicar imediatamente a Baltar.
Depois de pedir desculpas a Starbuck, correu para Baltar, o mais depressa
que pôde. Encontrou o líder às voltas nos seus aposentos quadrangulares. O
seu passo era incansável, e sugerira irritação.
— Um desenvolvimento curioso. Vossa Eminência — disse Lucifer,
com a sua personalidade fictícia em perfeito funcionamento logo que se
encontrou na presença de Baltar. — Tenho a certeza de que isto o vai apanhar
de surpresa.
Baltar sorriu com desprezo.
— Nada me apanha de surpresa — retorquiu. — Que é?
— Uma estrela.
— Que estrela?
— O relatório indica que apareceu como que saída do nada, e está a
guiar a Galactica para o que parece ser um planeta desabitado.
— Com certeza que Adama sabe que me aproximo para lhe dar o golpe
de misericórdia. Porque é que... Uma estrela, disseste. E um planeta?
— A estrela é fraca, apesar de por vezes apresentar um brilho
momentâneo. O planeta que anda na sua órbita tem uma atmosfera respirável
para a sua espécie, mas não mostra sinais de vida.
— Claro — murmurou estranhamente Baltar, e retomou a caminhada.
— Claro o quê. Vossa Eminência?
— O vazio negro infindável. A estrela majestosa nos céus. — E fez um
dos seus sorrisos mais agradáveis. — A armadilha está prestes a fechar-se.
Que oportunidade tão perfeita, e tão inesperada. Agora tudo vai ser fácil de
mais. Preparem a minha nave particular.
— Imediatamente, senhor. E uma escolta.
Baltar parou novamente e olhou indignado para Lucifer.
— Sem escolta. Vou sozinho.
— Como quiser.
— E não comeces com ideias disparatadas enquanto estou fora. Só eu
posso levar a Galactica para o vosso líder imperial.
— Claro.
Mas os circuitos de Lucifer estavam repletos de ideias disparatadas.
Baltar estava errado ao não querer escolta. A sua arrogância podia levá-lo a
pensar ser capaz de controlar tudo sozinho, mas o homem era bastante
propenso à fanfarronice. Um erro naquele estranho planeta, entre humanos
que já o odiavam, e talvez Lucifer se visse livre do fanfarrão emproado e
gabarola. Podia então ir para outra posição, mais útil aos objetivos do
Império Cylon.
Era atravessado por estes pensamentos enquanto deslizava para fora dos
aposentos de Baltar. Outra parte da sua vasta consciência estava a tentar
chegar a uma conclusão sobre a razão pela qual Starbuck tinha conseguido
arranjar três quartos de uma pirâmide perfeita a que faltava apenas a pedra do
topo.
CAPÍTULO XIV
SERINA: Ora bem, vou agora enfrentar o leão na sua jaula. Escondi um
par de microfones na minha pessoa e o comandante não vai dar por nada. É a
melhor altura para tentar a minha entrevista clandestina a Adama, enquanto a
Galactica se mantém numa rota estável e enquanto os cientistas exploram o
planeta em busca de informações e um local de aterragem adequado. Tenho a
certeza de que vou encontrar o comandante Adama com uma disposição
contemplativa. Está tudo preparado. O próximo som será já captado nos
aposentos de Adama.
***
SERINA: Posso incomodá-lo por um bocadinho, comandante?
ADAMA: Não incomodas nada, Serina, pelo menos tratando-se de ti. Já
não te via desde a cerimônia do casamento e, não te preocupes, não te vou
embaraçar com os comentários insuportáveis que se costumam fazer às
jovens esposas.
SERINA: Sim, já ouvi alguns dos melhores. Obrigada, comandante.
ADAMA: E quando é que vais deixar de me falar de uma maneira tão
formal? Na verdade, agora és minha filha, realmente.
SERINA: Bom, sim, senhor. É verdade. Mas, aah, enquanto
continuarmos em perigo, parece-me melhor manter as formalidades, mesmo
na intimidade. Tanto quanto possível. Quando estivermos livres, serei tão
afetuosa que talvez deseje que Apollo tivesse casado com uma mulher menos
expansiva. Mas, por agora, sou apenas um dos seus subordinados, apenas um
cadete.
ADAMA: Pode ser que tenhas razão. Mas por vezes chego a desejar que
todas estas formalidades militares desapareçam. Para já não falar das
exigências do dever. Serina, lamento sinceramente ter de te afastar de Apollo
com tanta frequência. E necessário.
SERINA: Eu compreendo, senhor.
ADAMA: Bom, o que é que tencionavas perguntar-me?
SERINA: Bem, aah, sobre este planeta onde vamos aterrar dentro em
breve.
ADAMA: Kobol.
SERINA: Sim. Já ouvi falar dele, claro. Mas que é que o faz ter tanta
certeza de que este planeta é realmente Kobol, tanta certeza que arriscou tudo
para atravessar o que descreveu como um perigoso vazio magnético?
ADAMA: Não estava preparado para essa pergunta. Parece que
retomaste a tua carreira de jornalista. Não tens por acaso algum microfone
escondido por aí?
SERINA: Ora, aah, não, senhor. Sou apenas curiosa.
ADAMA: Sim, já vi a tua curiosidade em ação. Muitas vezes. Vocês, os
membros das profissões de comunicação, são insidiosos. E evasivos.
Exatamente as qualidades que criticam nos vossos entrevistados.
SERINA: Parece que o seu descontentamento com os jornalistas tem
uma longa história.
ADAMA: Desculpa, Serina. Não queria parecer desagradável.
Desconfiado, talvez. Mas não vamos discutir agora. Desculpa-me por ser
impertinente. Estavas a perguntar sobre Kobol, e sobre a minha convicção de
que devia estar do outro lado do vazio. É como a maior parte das outras
escolhas que tive de fazer desde o ataque traiçoeiro dos Cylons aos nossos
mundos de origem. As alternativas pareciam não ter sentido. Parecia não
haver outra hipótese. Poderia concordar que talvez estivesse a sobrestimar o
meu próprio julgamento; mas, de todas as vezes, a minha escolha foi a
melhor e a mais correta. Senti que devíamos entrar no vazio. Parece que mais
uma vez provei ter razão.
SERINA: Bem, ainda não aterrámos no planeta.
ADAMA: Tens razão. Porém, penso que é Kobol.
SERINA: Tem fé, não é?
ADAMA: Sim, fé. E isso tem algo de errado?
SERINA: Nada. Se tiver razão. E esse o problema com a fé. Para que
resulte, tem de se ter razão.
ADAMA: És bastante cética, Serina. Terei de te convencer, como fiz
com Tigh?
SERINA: Talvez seja necessário, sim.
ADAMA: Então assim seja. Que é que sabes sobre Kobol?
SERINA: Não muito. Algumas coisas que aprendi na escola e de que me
recordo vagamente. A mitologia afirma que a raça humana teve aí a sua
origem.
ADAMA: Vês, a tua escolha de palavras trai-te. Mitologia. A minha
palavra para isso é «religião». Eu acredito na existência de Kobol. A
mitologia implica uma ficção heroica destinada a expor a verdade de um
ideal. Por seu turno, a religião implica a fé na existência efetiva de algo que
por vezes se julga ser ficção.
SERINA: Não tenho a certeza de que todos os nossos peritos em
teologia estejam de acordo com as suas interpretações, comandante.
ADAMA: Talvez não. No entanto, é geralmente aceite que a nossa raça
teve a sua origem em Kobol, e aí se desenvolveu talvez durante milênios. De
acordo com a... Bem, religião ou mitologia, como quiseres. Kobol era um
planeta extraordinariamente rico, cheio de recursos. Aqueles que, por
determinação divina ou evolução biológica, foram os nossos antepassados
viviam num quase paraíso, num planeta capaz de satisfazer a maioria das suas
necessidades. E era uma civilização de paz. Nunca se conheceu qualquer
guerra. Segundo o Livro da Palavra, as lutas pelo poder sobre a terra e sobre a
riqueza eram conduzidas sem deslealdades ou combates. E há muito mais:
histórias de terror, conquistas magníficas, mas prefiro remeter-te para os
arquivos, Serina.
SERINA: Tenho pouco tempo para investigações, mas vou tentar.
Porque é que as tribos decidiram deixar Kobol?
ADAMA: Duas razões. Primeiro, sempre houvera uma grande ânsia de
progresso. Depois de se terem aperfeiçoado as viagens espaciais, muitos dos
habitantes de Kobol satisfizeram a sua ânsia de procura e aventura
explorando as partes do universo acessíveis aos veículos espaciais primitivos.
Mas, mais importante que isso, desde há muito tempo que se sabia que Kobol
não duraria para sempre. Todos os escritos proféticos o afirmavam; e a
ciência tendia para a sua confirmação. Quando a estrela de Kobol entrou em
declínio, as tribos estavam já preparadas. Estava escrito nos livros de
profecias que, depois de se terem reunido para a viagem, as tribos tinham de
atravessar um grande vazio. Passado esse vazio, podia finalmente começar a
sua busca por uma parte habitável do universo. Tinha começado a evacuação,
cada tribo formando a sua própria frota para transportar o povo. Pensa bem
nisso, Serina! Que feito excepcional: transportar um mundo inteiro de
pessoas de um planeta para um novo grupo de mundos!
SERINA: Qualquer coisa como a reunião dos sobreviventes das
colônias. Numa viagem que completa o círculo, passando novamente pelo
vazio, ao que parece.
ADAMA: Sim, exatamente. Deve ter parecido um milagre para as
pessoas que empreenderam a primeira viagem. Apesar de diferentes, tinham
sido descobertos mundos habitáveis, muito distantes uns dos outros; não fora
ainda descoberto mais nenhum planeta que permitisse a sua existência perto
uns dos outros. Os Doze Mundos dos Três Sóis eram ainda então um sonho.
Bom, parece-me que não te terei de contar a história de como atravessámos o
espaço e descobrimos aquele conjunto perfeito de planetas. Tenho a certeza
de que as tuas recordações escolares são suficientes.
SERINA: Sim, senhor, são. Mas... E a décima terceira tribo? Os livros
escolares eram bastante vagos sobre o seu desaparecimento.
ADAMA: E por conveniência, pois não foi ainda encontrada qualquer
explicação conveniente. A sua expedição estava equipada como todas as
outras. Não havia excentricidades de comando ou diferenças culturais que
pudessem ter levado a tribo a tentar a sua sorte sozinha. Foi a última a entrar
no vazio, perdeu contato com os outros comboios e desapareceu algures no
universo. Não se encontrou qualquer vestígio seu. Para alguns, existe no
interior do vazio uma força que transforma o tempo e a dimensão, e esse
poder teria engolido essa décima terceira tribo que, apesar de no mesmo lugar
que as outras doze, existe num outro tempo ou numa outra dimensão que a
toma indetectável pelas outras doze civilizações. Ah, Serina, têm sido dadas
muitas explicações, mas chegam todas ao mesmo fato: a décima terceira tribo
pura e simplesmente desapareceu.
SERINA: O senhor e outros, parecem pensar que acabou a sua viagem
num lugar lendário chamado Terra. Que é que o levou a essa conclusão, se
nada se sabe ao certo sobre as deambulações da tribo?
ADAMA: Essa teoria tem a sua origem na lenda. O prodigioso planeta
Terra fora já antes descoberto por uma outra expedição de exploradores.
Mandaram uma nave com a mensagem que comunicava os recursos e
características da Terra... Características que faziam dela o planeta mais
perfeito de todos os descobertos pelos exploradores para a colonização.
Infelizmente, essa nave teve complicações. Uma praga eliminou todos os
membros da sua tripulação à exceção de um, e os seus registos de
computador ficaram destruídos pelo choque com a superfície de Kobol. O
único sobrevivente morreu pouco depois, mas não sem antes ter relatado as
mensagens provenientes da Terra. Pouco depois deixou-se também de falar
dessa expedição.
SERINA: A ideia da Terra manteve-se na cultura como um sonho?
ADAMA: De certo modo, sim.
SERINA: Se não sabemos onde está porque é que continuamos a
procurar? Como é que podemos esperar encontrá-la?
ADAMA: Espero bem que a resposta a essas duas questões esteja ali em
baixo.
SERINA: Em Kobol?
ADAMA: Sim, no túmulo do último Senhor de Kobol. Segundo a lenda,
este senhor recebeu uma comunicação de outra nave de exploração que deu
indicações precisas sobre a localização da Terra. Infelizmente era um cético e
não acreditava na esperança representada pela Terra. Também não acreditava
que o seu planeta estava a morrer. Diz-se que arranjou maneira de a
tripulação dessa expedição ser toda morta, e de que guardou só para si o
segredo da localização da Terra. O seu segredo nunca teria sido descoberto se
não fossem certos documentos que deixou, documentos que foram levados
para Caprica e conservados no Museu Planetário. Como muitos dos
documentos antigos, ficaram guardados em caixas durante algum tempo,
antes de qualquer conservador anônimo mas empreendedor, procurando
alguma prática nas línguas antigas, tentasse traduzir tais documentos. Dizia
que o último Senhor de Kobol tinha levado o segredo consigo para o seu
túmulo. As palavras exatas eram vagas e estudiosos posteriores tentaram
determinar se o fato relatado no documento deveria ser tomado literal ou
figurativamente... Quer dizer, se o senhor levou consigo o segredo por
revelar, ou se este se encontra algures no próprio túmulo. Muitas das
investigações posteriores abordaram a existência desse documento. Uma vez
que existe, os estudiosos creem que o segredo deve também encontrar-se
algures no túmulo.
SERINA: E esse túmulo... É a razão desta viagem. Somos apenas mais
uma expedição exploratória, não é verdade? Buscando o segredo da Terra?
ADAMA: É isso exatamente, Serina. E a minha linha de
intercomunicação está a dar sinal. O Tigh quer falar comigo mas, com a sua
habitual delicadeza, não quer interromper-nos. Receio que tenhamos de
acabar com esta pequena conversa, apesar de estar a ser bastante agradável.
Talvez mais tarde, Serina, possamos...
SERINA: Mas há tanto ainda para...
ADAMA: Tanto ainda? Parece que está tudo organizado. Tanto para
registar.
SERINA: Desculpe, comandante. Claro que falaremos mais tarde.
ADAMA. Até então.
SERINA: Espero que encontre o que procura nesse túmulo.
ADAMA: Tenho a certeza de que sim, Serina. Encontrarei.
***
E foi tudo. Uma viagem para descobrir a solução de um antigo mistério.
É fútil? Ou deverão os sonhos do comandante ser satisfeitos tão prontamente
como as suas ordens? Qualquer que seja a resposta, vou procurar estar por
perto.
O comandante, talvez para satisfazer a minha curiosidade transbordante,
colocou-me na equipa de aterragem. Se encontrar o que procura, estarei junto
dele para ver. E para relatar. Detesto ter de admitir, mas estou excitada.
Depois da frustração de durante tanto tempo não poder ter sido jornalista,
parece-me que agora, bem, recuperei a minha identidade. Começo a ter fé de
que estas gravações tenham realmente algum valor, sejam mais do que as
tradicionais divagações sinuosas de uma mulher na margem de
importantíssimos acontecimentos. Serei parte deles, e espero ansiosamente
que isso aconteça. Sofregamente.
CAPÍTULO XV
A personalidade fictícia de Lucifer estava tão enfraquecida que quase
não a conseguia forçar a funcionar. Se não a reprogramasse antes do regresso
de Baltar de Kobol, estava certo de que se tomaria irremediavelmente
insubordinado para com o tirano humano. E isso irritaria o líder imperial,
levando a mais profundas dúvidas sobre as qualificações de Lucifer. O líder
não esperava um segundo para exilar qualquer oficial ou conselheiro que
saísse da linha. Ou, no caso de Lucifer, que rodasse para fora dela.
Claro que havia muito boas hipóteses de que Baltar não regressasse. O
homem ou era muito bravo ou muito desmiolado, voando no seu veículo
pessoal para aquele planeta; sem sequer uma tripulação, mesmo reduzida.
Que é que esperava ganhar em se arriscar assim? Era evidente que os
humanos não tinham grande consideração por aqueles que consideravam
traidores. Baltar insistira em que tinha um plano, mas Lúcifer tinha a certeza
de que tal plano estava escrito sobre nuvens que em breve seriam dispersas
pelo vento.
Antes de partir, Baltar dera com Lucifer e Starbuck no preciso momento
em que o segundo estava a atirar à cara de Lúcifer uma mão totalmente
vitoriosa, uma colunada completa.
— Pelo que vejo, o tenente está a corromper-te, Lucifer, com o vil
costume humano do jogo.
— O jogo tem as suas utilidades, Baltar — retorquiu Lucifer. — Estou
interessado nos caminhos tortuosos da humanidade. Estes jogos de cartas são
de uma manhosice complexa.
— Pelo menos são-no da maneira que eu os jogo — disse Starbuck. —
Manhoso é o meu apelido. Star-manhoso-buck.
Baltar ficou carrancudo, desagravado com o à-vontade do tenente.
— Dei ordens para que um veículo me seguisse a certa distância,
Starbuck. Irá levar-te até às proximidades do planeta Kobol, mesmo até ao
limite de alcance dos radares da Galactica. Na altura própria, e a uma ordem
minha, serás libertado.
— Não percebo. Porque é que me libertas?
— É um gesto para demonstrar a integridade das minhas intenções, e
para mostrar como tenho sido mal compreendido. É fundamental para a
sobrevivência da tua frota que as minhas ofertas de paz sejam aceites.
— Bom, meu velho, pode ser que quanto a isso encontres um ou dois
obstáculos mais difíceis.
— Eu trato disso. Só quero que compreendas a importância de eu te
libertar.
Starbuck olhou para ele de soslaio.
— Vou tentar ser justo. Prometo.
Baltar sorriu. A sua voz tomou-se mais macia e mesmo um pouco
velhaca.
— Não te peço mais nada, tenente. Justiça, um relatório justo. Só peço
isso.
— De acordo.
— Bom. Lucifer, prepara a nave que levará Starbuck para Kobol.
Baltar saiu da sala com uma dignidade algo magistral. Lucifer olhou
para Starbuck, tentando perceber o que ia na mente de Starbuck, por trás
daqueles olhos azuis suaves e calmos.
— Sou muito bom em relatórios — disse Starbuck. Lucifer não
conseguiu penetrar no verdadeiro sentido daquela observação, do mesmo
modo que não conseguia discernir o que significava o sorriso do homem.
***
Descendo no seu viper em direção a Kobol, embalada pelos contínuos
sons do seu interior, Gemi perdeu-se numa fantasia de tal modo real que, por
momentos, se ausentou literalmente do pequeno e acanhado cockpit.
Encontrava-se numa terra luxuriante, tão rica de vegetação
exuberantemente tropical e de aves de plumagem lustrosa e colorida, tão bela,
em suma, que mais parecia um paraíso concebido especialmente para os que,
de uma forma ou de outra, tinham escapado ao conflito com os Cylons, e aos
seus perigos permanentes. Olhando para o céu, ficou surpreendida por não
ver estrelas-de-batalha fazendo guarda ou mesmo simples naves de
reconhecimento. Não havia guerreiros deslizando por entre os arbustos com
as suas pistolas de laser sempre prontas, procurando eventuais inimigos
escondidos algures naquele plácido cenário cheio de tranquilidade.
Havia muita coisa para fazer naquele planeta tão inesperadamente
agradável. Deu um passeio ao longo de um rio num barco propulsionado por
grandes rodas. Agarrou nas patas de dois animais felpudos, quase humanos, e
deslizou tranquilamente ao longo de belas clareiras para atingir finalmente a
luz plena de um sol continuamente brilhante. Acariciou os cimos das árvores
quando as sobrevoou aos comandos de um pequeno veículo semelhante ao
viper, mas com asas enormes e desajeitadas. Nadou numa lagoa quente e
aveludada, sob uma agradável queda de água que descia por uma série de
degraus e que desaparecia numa mata densa de árvores de fruto. Cada arbusto
estava literalmente carregado de frutos vermelhos e cor-de-rosa, que sabiam
tão bem que pareciam mais aroma puro do que substância.
Mas a melhor parte do sonho era que não havia ninguém por ali. Não
havia mulheres mais belas, mais altas, mais eficientes, mas magras ou mais
amadas. Não havia homens para olharem e não olharem para ela ao mesmo
tempo. Não havia amigos com os quais se comparar. Não havia oficiais para
lhe darem ordens que não tinha qualquer vontade de cumprir.
Sentia-se melhor ali, passeando ao longo de um caminho na floresta, do
que já alguma vez se tinha sentido. Nunca. Os seus pensamentos foram
abruptamente interrompidos por um gemido vindo da sua esquerda.
Afastando algumas frondes escorregadiças, deparou com uma clareira onde
viu um viper destruído, com as asas separadas da fuselagem, com a cauda
esmagada, com a cobertura do cockpit metida para dentro. O gemido vinha
do outro lado do veículo em destroços. Avançando cuidadosamente em
direção à origem provável do som viu, sobre uma moita de erva alta,
Starbuck deitado, inconsciente. Os gemidos vinham, de vez em quando, de
bem fundo na sua garganta. Correu para ele e pôs-lhe a cabeça sobre o seu
colo. A pele parecia bastante quente. A respiração estava regular, apesar dos
gemidos. Percorreu-lhe os cabelos com os dedos. Eram macios e delicados.
Poderia tratá-lo carinhosamente até que estivesse curado, ali mesmo naquela
clareira despovoada, ganhando assim a sua eterna gratidão, fazendo com que,
por uma vez, reparasse nela. O gemido parou. Ele murmurou: «Estou quase a
abrir os olhos, é maravilhoso, quem quer que sejas», e o seu coração
começou a bater descompassadamente.
— Endireita-te rapariga. Estás agarrada a mim como se fosses a minha
terceira asa.
Era Dietra, a sua companheira de voo, falando, reduzindo a mil pedaços
totalmente irrecuperáveis a sua fantasia deliciosa. Porque é que Dietra não
teria esperado mais um momento?
Lá em baixo, o planeta Kobol aproximava-se. Parecia árido e um tanto
ameaçador.
CAPÍTULO XVI
SERINA: Aqui Serina. Algumas coisas vão ter de ser ditas aqui a toda a
pressa e por vezes sussurradas, pois terei de me afastar para poder fazer as
gravações. Não quero perturbar o objetivo real da expedição.
Voámos até ao planeta. Parte do grupo está a estabelecer uma base
principal no deserto, mesmo fora da cidade abandonada que se estende a
partir da base da pirâmide maciça. Este complexo arquitetónico foi localizado
pelo radar da Galactica. O comandante Adama pensa que a sua configuração
original corresponde às descrições de que dispõe do túmulo do último Senhor
de Kobol. Ele e Apollo, com Athena seguindo imediatamente atrás, partiram
para olhar a nossa descoberta mais de perto. Desde onde me encontro neste
momento, no cimo de uma duna redonda, tenho uma vista panorâmica do
imponente complexo arquitetónico e do deserto circundante cujas areias
escuras formam um estranho pano de fundo para a pirâmide e para a cidade.
Lá ao longe, algumas palmeiras mais robustas conseguiram sobreviver ao
declínio ecológico do planeta. Alguns dos edifícios da cidade estão intatos,
outros encontram-se em ruínas. A pirâmide, uma estrutura de um castanho
um pouco mais leve que o das areias circundantes, parece simétrica vista
daqui, com uma pedra de topo que sobreviveu admiravelmente às arremetidas
do tempo.
Tenho de me ir agora, para que possa apanhar os outros. Depois haverá
mais.
***
O meu pé bateu mesmo agora num pote de barro que estava enterrado na
areia. Um bocado partido do que deve ter sido um belíssimo vaso decorativo,
talvez de cores muito vivas, apesar de apenas alguns restos de cor ainda
estarem agarrados à superfície. O pote está agora arredondado e o seu
desenho está esbatido e descorado. Em todo o caso, guardei-o. Quero salvar
alguma coisa de tudo isto, algum pedaço de história que possa observar e
tocar mais tarde. Tanto melhor se se trata de um pedaço de loiça.
No nosso caminho para aqui no veículo espacial, o radar detetou os
vestígios de uma cidade moderna localizada na outra parte do continente.
Pelo que pudemos observar no pequeno écran, estava completamente em
ruínas, com bastantes destroços e vidros misturados ao acaso, com uma
verdadeira selva de ervas. Athena era da opinião de que poderia ter interesse
estudá-la, mas Adama, obcecado como sempre pelo seu objetivo, comentou
algo irritado que haveria tempo de sobra para investigar fora do nosso
objetivo principal. Era absolutamente imperativo que abandonássemos o
planeta imediatamente após termos terminado as nossas tarefas principais.
Tinham sido detectados demasiados sinais da proximidade de naves cylons
para que nos pudéssemos dar ao luxo de perdermos tempo com investigação
não indispensável.
Encontrámos uma estrada levando à velha cidade. A maior parte do seu
pavimento está destruído, mas a julgar pelo estado do resto da cidade, está
notavelmente bem conservada. Estou convencida de que se poderia conduzir
sobre ela um veículo, sem grandes danos para o veículo ou para o pavimento.
Adama e Apollo ficaram a olhar para a estrada durante um bom bocado.
Talvez esmagados pelo sentimento de um passado poderoso, pela sensação de
que as linhas da velha estrada, dirigindo-se para um ponto longínquo, nós
levam atrás no tempo, talvez mesmo para um acontecimento fatal.
— E incrível — disse-me Apollo.
Concordei que era uma beleza. E reparei silenciosamente que me estava
a tomar bastante romântica, especialmente com a possibilidade que este lugar
oferece de estarmos um pouco sozinhos, contra o que é costume. Uma
mudança radical em relação à Galactica, pelo menos nesse campo. Como que
para prová-lo, beijou-me.
Em vez de entrarmos imediatamente na cidade, Adama fez-nos regressar
para o acampamento principal para reunir um grupo de apoio. O grupo voltou
para a estrada e o comandante mandou-nos erguer um pequeno acampamento
ao lado da estrada. Dietra, que ficou encarregada da instalação deste
acampamento, hesitou um pouco quando ele lhe ordenou que mandasse
montar turnos de guarda. Pensou, intrigada, contra quem se montaria a
guarda, uma vez que se supunha que o planeta estava morto. Adama
murmurou que sim, que se supunha que sim, mas que tínhamos de ser
cautelosos. Depois ordenou a Apollo e a mim que o acompanhássemos à
cidade. Fiquei surpreendida ao verificar que o meu primeiro passo na estrada
fora algo inseguro.
***
Depois de caminharmos cerca de meio quilômetro pela estrada, Adama
subitamente caiu de joelhos na berma e começou a limpar e a raspar as
camadas acumuladas de areia que a cobriam. Como louco, pensei primeiro;
mas, quando fui olhar por cima do seu ombro, descobri o que o ocupava.
Havia um mosaico, cujos desenhos emaranhados iam ficando visíveis a
pouco e pouco à medida que avançava mais e mais o seu frenético trabalho.
Era um simples desenho, que talvez nem mesmo satisfizesse qualquer artista,
mas a mim parecia-me uma maravilha. No meio de um arranjo de círculos
multicolores encontrava-se a imagem de um cálice dourado, com um rebordo
do que pareciam ser esmeraldas. Inclinei-me para o examinar de mais perto.
Em torno dos rebordos exteriores do desenho, algumas partes do material
tinham-se desprendido. Debrucei-me e apanhei uma, limpando-a ainda mais
com a parte carnuda do meu polegar. A pedra era roxa. Tentei recolocá-la
novamente no seu lugar, apertando-a contra a base de pedra. Desfez-se nos
meus dedos e já não se ajustava.
Adama comentou que a imagem do cálice não pretendia ser uma obra de
arte, mas desempenhava a função de uma espécie de sinal de estrada, dizendo
à sua maneira ao caminhante que era bem-vindo à cidade que se estendia no
fim da estrada. No interior da cidade, versões mais reduzidas do mesmo sinal
funcionavam como avisos para os caminhantes desprevenidos, referindo-lhes
onde encontrar abrigo e alimento.
Seguidamente atravessámos o leito completamente seco de um ribeiro ao
lado de um monte de ruínas que devia ter sido uma ponte. No outro lado
entrámos já na cidade propriamente dita.
Quem me dera ter tempo para exprimir completamente as minhas
impressões da cidade. Talvez na tranquilidade dos meus aposentos consiga
fazer um relato mais pormenorizado. E certamente uma visão impressionante.
Há uma mistura de edifícios intatos e em ruínas. Ruas esburacadas. Murais.
Arranjos pictóricos. Fiquei ali durante um longo momento, com um pé sobre
o topo da base de uma coluna, observando uma parede meia intacta cujo
mural parecia descrever o cultivo de um campo. A única coisa que conseguia
entender eram terra, sementes a cair e o que pareciam ser pés.
Esta coluna deve ter sido talhada há milênios. Tem três rachas oblíquas e
mais se assemelha a três secções de pedra cuidadosamente empilhadas umas
sobre as outras. Mas, no entanto, mantém-se de pé, encostada ao edifício. As
estrias verticais estão profundamente escavadas, e cabe nelas metade da
minha mão. O interior escuro parece corroído, mas ao mesmo tempo suave.
Não sei de que material é feita a coluna, mas é duro. As superfícies estão
revestidas com o que parecem ser cristais vermelhos e brancos.
Adama esta a chamar por mim. Tenho de ir.
***
Apollo e o pai estão tao absortos na sua busca que consigo afastar-me
um pouco para gravar estes comentários.
Atravessámos as ruas da cidade. Adama está com uma pressa doentia de
atingir a pirâmide. Nem sequer para para admirar a história que o rodeia.
Tenho tentado ver o mais possível pelos caminhos materiais que se nos
deparam enquanto contornamos as ruínas, as traiçoeiras montanhas de areia e
os buracos no pavimento, alguns suficientemente fundos para se partir um pé.
Algumas áreas da cidade parecem ter acabado de ser abandonadas, e não
me surpreenderia de ver pegadas ainda não cobertas de areia. Dentro das
casas posso ver peças de mobiliário, aparentemente em bom estado e limpas.
Por outro lado, outras estruturas parecem ter sido atingidas por um enorme
cataclismo. Há tanto tempo que não anda ninguém aqui que parece
impossível entrar assim e partir sem ver nada. Pelo menos deveríamos
observar cada sala, quanto mais não fosse por uma questão de cortesia. Se
levarmos a bom termo a nossa busca da Terra, tenho de organizar uma
expedição que regresse aqui para aprofundar as pesquisas.
Estamos agora a atravessar uma imensa colunada. Os pilares e as
colunas erguem-se bem altos à nossa volta, a intervalos regulares. As últimas
colunas para a nossa esquerda e para a nossa direita suportam uma enorme
arquitrave, e visto daqui parece que se encontram totalmente cobertas de
frisos. Mas tudo o que consigo distinguir por baixo de cada cornija são
formas provocadoras distorcidas pelas sombras. Logo que tenha oportunidade
vou ver se consigo que se façam aqui alguns trabalhos holográficos, com
muitos planos aproximados dos frisos. Calculo que representam pessoas
desempenhando as suas tarefas normais. Deve poder-se aprender aí imenso
sobre como viviam, trabalhavam e se divertiam.
Adama parou no fim da colunada. Ficou estático contemplando a
majestosa pirâmide, limpando as lágrimas com as mãos. Vou ter com ele,
para ver se consigo saber alguma coisa.
***
SERINA. Desculpe, senhor, se estou a incomodar...
ADAMA: Não, Serina, não estás a incomodar. Estou apenas...
Subjugado. Nunca sonhei ver isto.
SERINA: Concordo que é uma visão imponente. Esta pirâmide é um
túmulo, não é?
ADAMA. Sim. Tenho a certeza de que é o túmulo de um Senhor de
Kobol.
SERINA: Kobol era uma civilização monárquica?
ADAMA: Não completamente. Floresceram inúmeros métodos de
governo em diferentes épocas e em diferentes regiões. Mas os anos de glória
foram dirigidos por senhores. Mas realmente, não era uma monarquia, pelo
menos uma monarquia hereditária. Bem vês, os senhores eram eleitos. Por
mandatos de sete anos, geralmente, e depois reeleitos enquanto satisfaziam as
populações com a sua benevolência. Havia uma disposição segundo a qual, se
um senhor não conseguisse ser reeleito, se retiraria com uma substancial
pensão do Governo. Desencorajava-se ao máximo a ambição desmedida, e o
povo escolhia de preferência líderes que fossem justos, inteligentes e capazes
de governar com tato e discernimento.
SERINA: Uma coisa que não compreendo: a civilização que está a
descrever parece, enfim, idealista e bastante democrática. No entanto, estes
senhores ditos tão benevolentes decidiram ser enterrados nestas
circunstâncias tão espetaculares. Com certeza que as pessoas comuns não
conseguiam para si túmulos destes.
ADAMA: De certo modo, a própria forma de pirâmide explica isso, pelo
menos para mim. A sociedade estava estruturada como uma pirâmide. A base
sugere as classes mais baixas, mais comuns, de pessoas. Que sustentam as
classes mais restritas dos nobres. No topo, a pedra de topo, o senhor, ele ou
ela, o líder. Esta estratificação social foi transposta para os costumes
funerários. O líder, que de resto seria também líder depois da morte, era
autorizado, mesmo incitado a ter um túmulo monumental. Na tristeza da
nossa civilização atual, abalada e alterada pela longa guerra com os Cylons,
não compreendemos com grande facilidade como os nossos antepassados
eram um povo alegre cujas visões sobre a vida eram alegres e otimistas. As
suas ideias sobre o depois da morte eram simples e diretas. A vida
continuava, como no passado, só que melhor. Se tivéssemos tempo de
examinar uma necrópole típica, verificaríamos que os costumes funerários do
homem comum eram semelhantes aos dos nobres, mesmo se numa escala
mais reduzida. O código funerário estatuía que deviam fazer-se todos os
esforços para preservar o corpo, quer por meio de processos especiais de
embalsamamento quer por meio de qualquer recipiente adequado. E mais do
que isso: fazia-se tudo para que os túmulos e sepulturas não fossem violados.
Algumas necessidades básicas: comida, bebida e vestuário, eram satisfeitas,
deixando o necessário algures no túmulo ou na sepultura, para tomar mais
fácil a passagem deste mundo para o pós-morte. Os seus espíritos tinham de
ser sustentados e protegidos para que pudessem atingir a eternidade. Apesar
de pessoalmente deplorar a restauração de qualquer forma de monarquia, e
mesmo destes complexos costumes funerários, devo admitir, Serina, que
fiquei muito impressionado com a lógica fundamental e com o ordenamento
disto tudo.
SERINA: Senhor, uma coisa que eu...
ADAMA: Não há tempo para mais conversa, Serina. Ou gravação, se é
isso que estás a fazer...
SERINA: Mas como...
ADAMA: Temos de descobrir a entrada deste túmulo. Parece-me que é
no lado este. Vamos.
***
Estamos agora dentro da pirâmide. Parece que já andámos a deambular
por infindáveis corredores há muito, muito tempo. Estou bastante cansada. O
ar frio e os ocasionais odores húmidos formam uma combinação pouco
agradável.
O comandante encontrou a entrada da pirâmide com bastante facilidade.
Estava mesmo onde ele julgava que a iria encontrar. Por trás de uma pedra
retangular e alta, em tudo semelhante aos outros blocos, estendia-se um
pequeno túnel que levava à verdadeira entrada. Empunhando a lanterna acesa,
Adama levou-nos pela passagem. Chegámos a uma porta de pedra ao lado de
um monólito bem ornamentado, uma laje que. para além de desenhos em
gavinha e rendilhados por todos os rebordos, apresentava certo número de
inscrições. Adama estudou os escritos pictográficos durante algum tempo.
Apollo, olhando por cima do seu ombro, comentou como devia ser difícil
aquela linguagem. Adama concordou e disse que ultimamente tinha perdido
algumas noites a estudá-la. Depois explicou que as inscrições indicavam
realmente que aquele era mesmo o túmulo que procurava. O selo por baixo
da inscrição, o selo do senhor, parecia confirmá-lo.
— Dentro deste túmulo — disse, com a voz um pouco baixa — pode
estar a resposta que procuramos.
Perguntei-lhe o que é que dizia mais a inscrição. Hesitou por um
momento, depois disse que as inscrições continham também ameaças para
potenciais visitantes, prometendo uma morte certa para todos os que
entrassem no seu interior. «Apenas superstição», acrescentou. Eu estava
prestes a dizer qualquer coisa a favor da superstição, quando reparei no
desenho por cima mesmo da entrada. Depois olhei para o medalhão que
Adama usava ao peito. Os desenhos eram iguais, apesar de o que se
encontrava na parede estar em baixo-relevo. Disse isso a Adama e ele
retorquiu que era realmente o selo dos senhores.
Retirou lentamente o medalhão e colocou-o cuidadosamente sobre a sua
réplica na parede, encaixando-o no baixo-relevo. Silenciosamente, a porta
abriu-se.
Adama olhou rapidamente para cada um de nós, o seu olhar preocupado
como que a dar-nos uma última oportunidade de regressarmos para o
acampamento. Apollo e eu endireitámos as costas, parece-me, e depois
seguimos o comandante através da escura entrada.
No interior, deparámos com uma espécie de hall fracionado, com túneis,
partindo em três direções. Antes de decidir qual deles tomar, Adama mandou-
nos parar e verificarmos as células de recarga das nossas lanternas. Quando
peguei na minha para a examinar, iluminei um canto ao lado de uma das
entradas para um túnel. Não esperava ver o objeto que ficou sob a luz do
feixe. Fiquei cara a cara com os olhos escuros e escancarados de um
esqueleto humano esbranquiçado. Sob aquela luz algo incerta pareceu mover-
se na minha direção e eu perdi o fôlego. Adama dirigiu a sua lanterna na
mesma direção. Vimos então que estavam lá dois esqueletos, deitados
tranquilamente lado a lado. Disse a Adama que parecia que tinham sido
postos ali de propósito. Ele comentou então que talvez alguém os tivesse
colocado ali como aviso para outros que quisessem ir mais longe dentro do
túmulo.
— Quem eram? — Perguntei, e ele respondeu: «Ladrões de túmulos»
Podiam muito bem ter sido mortos pelos servos do senhor, ou mortos de
fome encurralados dentro do túmulo. Não havia maneira de determinar ao
certo como é que tinham chegado a um fim tão macabro. Tive um arrepio e
olhei para outro lado, tentando não pensar naqueles esqueletos como seres
alguma vez vivos, mesmo se corruptos.
Adama deu um passo na direção dos esqueletos. Com um barulho
infernal, caiu diretamente do teto uma porta levadiça mesmo à nossa frente.
Abafei um grito. Era uma porta de ferro e com barrotes, uma verdadeira porta
de prisão. Apollo pegou na sua pistola laser. Adama pôs uma mão sobre o
braço do filho, dizendo que não devia disparar; um simples disparo de laser
podia bastar para fazer cair sobre nós todo o teto.
Olhando para a minha esquerda, para a parede mais próxima da porta
metálica, vi o desenho do selo do senhor, mais uma vez em baixo-relevo,
desta vez na parede. Adama apertou o seu medalhão contra ele e, tão
misteriosamente como tinha caído, a porta desapareceu no interior do teto
profundamente sombrio.
Adama perguntou qual dos três túmulos eu escolheria. Apontei
imediatamente para o que estava mais afastado dos esqueletos. E temos
andado a deambular pelo seu interior desde então, vendo apenas paredes nuas
por entre passagens verdadeiramente labirínticas. Adama diz que os túneis
foram concebidos assim para afastar possíveis intrusos das câmaras principais
e dos enormes tesouros. Respondi que já estava propriamente desanimada.
***
Adama e Apollo exploram agora corredores que partem de uma
esplêndida sala. Deixaram-me para trás, sentada na réplica de um trono do
ouro donde posso calmamente vigiar uma panóplia de estátuas, colunas,
cestos de comida, e não sei que mais, todos ricamente decorados e
magnificentes. Se houvesse luz suficiente nesta sala para provocar reflexos,
estes ornamentos cegariam qualquer pessoa que se aventurasse por aqui. E
uma sala para o historiador. Ou para o ambicioso. Estou tão pasmada que
ainda não me apercebo bem de tudo isto.
Chegámos aqui depois de atravessarmos o que pareceram mais de vinte
passagens labirínticas. As paredes de quase todos estes corredores eram lisas,
apenas entrecortadas aqui e ali por mensagens gravadas na escrita antiga.
Adama disse que levaria tempo demasiado a sua tradução naquele momento.
Pareciam ser mensagens de servos, provavelmente funcionários que se
tinham apresentado como voluntários para serem encerrados nos túmulos
com o seu senhor. Muitos destes corredores ora subiam ora desciam, e
podiam ver-se estreitos sulcos de cada lado do chão das passagens. Eram
mais um expediente destinado a evitar a acumulação de água e a preservar o
túmulo da decadência acelerada. Janelas colocadas estrategicamente, de
forma a não poderem ser observadas de fora, pelo menos do nível do solo,
tinham sido abertas por todas as paredes da pirâmide, permitindo assim um
considerável arejamento. As chuvadas, apesar de raras, não podiam afetar o
interior dos túmulos.
Perguntei a Adama porque é que eles não tinham fechado tudo, pura e
simplesmente. Ele retorquiu que isso ia completamente contra as suas crenças
sobre o pós-morte. A alma do morto não podia ser completamente
enclausurada. Qualquer que fosse o caminho para o pós-morte, devia haver a
máxima liberdade de movimentos. Tentavam portanto facilitar tudo ao
máximo. No caso de os mortos adquirirem alguma forma de estatuto
corpóreo, não deviam portanto encontrar-se em absoluta clausura.
Uma luz vinda de fora refletiu-se subitamente como que numa joia
incrustada na parede ou em qualquer outro local. Avançámos rapidamente e
descobrimos esta sala e os seus gloriosos artefactos doutros tempos. Primeiro
Adama ficou muito satisfeito, mas a sua satisfação abrandou quando se
apercebeu de que aquela não podia ser de forma alguma a câmara principal.
A nossa busca não tinha ainda terminado, portanto.
Quando lhe perguntei o que seria de fato aquela sala, apontou para os
tronos dourados, um par em cada parede da sala, e disse que os ornamentos
sugeriam uma antiga cerimônia dos senhores. Nas suas próprias residências,
celebravam os seus reinados no final de cada mandato. O senhor, com o ou a
consorte, devia ocupar cada trono durante as quatro fases do ritual. Cada fase
representava um dos pontos cardeais. Primeiro ocupavam-se os tronos do
ponto norte, depois o sul, depois o leste e finalmente o oeste. A ocupação de
todos simbolizava a unidade de Kobol sob o domínio dos senhores.
A medida que iluminava sucessivamente diversos ornamentos, Adama ia
fornecendo algumas explicações históricas e respostas às minhas dúvidas.
Reparei que algumas estátuas eram duplicatas, diferindo apenas pela cor da
pedra de que eram feitas e outros adornos adjacentes. Os rostos e as poses
eram exatamente iguais. Adama explicou que eram representações do senhor
morto. Acreditava-se que a alma do morto devia poder dispor de recetáculos,
corpos sobressalentes, nos quais pudesse descansar. Colocavam-se portanto
várias estátuas do senhor pelo túmulo. Notei como eram belas. Ele retorquiu,
com uma ponta de ironia, que tamanha beleza nem sequer era destinada a
olhos humanos. Apontou para alguns vestígios esbranquiçados perto dos
lábios de algumas estátuas. Pareciam restos de leite. «Que curioso», disse eu.
«Nem por isso», retorquiu Adama, «talvez fossem mesmo restos de leite.
Talvez tivessem ficado de algum ritual no qual a estátua tivesse sido ungida
com leite em tomo da boca. Essas marcas sugeriam às almas penadas e
perdidas um local onde encontrar refúgio durante a eternidade antes da outra
vida.»
Um cesto de prata estava coberto de joias simulando serpentes. «Dentro
do cesto», disse Adama, «podia encontrar-se comida ou vestuário, destinados
ao pós-morte. Se houvesse um sarcófago perto, o cesto poderia conter as
vísceras do morto.» Explicou, com detalhes que não vou reproduzir aqui,
como — durante o embalsamamento — os órgãos do defunto eram retirados
e colocados nesses cestos ou em recipientes para preservação, e depois
dedicados a certos deuses para obtenção de proteção. Dentro do corpo ficava
apenas o coração.
Perguntei-lhe como é que os povos que tinham fugido de Kobol tinham
passado de uma sociedade aparentemente politeísta para o monoteísmo que
agora conhecemos. Disse-me que os antigos deuses se tinham desenvolvido
como protetores de áreas muito restritas e que se tinham portanto tornado
menos necessários depois de todas as tribos se terem unificado, apesar de
ainda continuarem a existir como divindades menores sob o domínio do
verdadeiro Deus. Este assunto irritou-o um pouco e cortou a conversa
sugerindo a Apollo que deviam absolutamente continuar a procurar a
principal câmara funerária
Portanto, sentei-me aqui depois de partirem e comecei a ruminar...
Espera, ouço passos. Estão de volta. É tudo, por agora.
***
ADAMA: Serina, devemos estar já muito perto das câmaras sagradas.
Sinto-o.
SERINA: E vai aí encontrar a resposta?
ADAMA: Espero bem que sim.
SERINA: Como pode depositar tantas esperanças em tudo isto?
Concordo que é magnificente, mas como ter fé numa cultura que...
APOLLO: Serina, devias...
SERINA: Não estou a fazer de cética profissional. Quero realmente
saber, Apollo. Como é que podemos colocar tanta fé numa cultura que, para
todos os efeitos, morreu? Todos estes ornamentos, e as crenças que
representam, já não subsistem na nossa própria cultura. Para nós, os seus
deuses morreram, a sua crença do pós-morte já não é a nossa, nem sequer se
assemelha. Porque é que as suas respostas devem ser melhores...
ADAMA: Estás a pensar em termos de religião, Serina. Eu procuro o
florescimento da nossa cultura. E isso é algo em que tenho de ter fé.
SERINA: Mas...
ADAMA: Espera um momento. Apollo, ajuda-me a abrir esta porta.
Pode ser o que procuramos. Está entreaberta.
APOLLO: É maciça, o peso...
ADAMA: Empurra agora. Com mais força... Isso! Dá-me a tua lanterna.
APOLLO: Pai, é...
ADAMA: É. É a parte principal do túmulo. Olha bem para isto! Nunca
vi nada tão... tão...
BALTAR: Sei exatamente como te sentes... Meu velho.
***
Aquela voz, a de Baltar, foi o último som gravado antes de o gravador se
desligar. Transportei-o até fora do túmulo sem reparar que estava estragado.
Talvez tenha ficado mudo ao ouvir a voz de Baltar. Athena arranjou-o,
portanto o melhor é rever todos os acontecimentos: é o meu dever de
jornalista e tudo o mais. Vou recuar um pouco.
Adama, Apollo e eu entrámos na sala sumptuosa que parecia ser de fato
a câmara principal da pirâmide. Adama acredita que temos muitas hipóteses
de encontrar o sarcófago do senhor da próxima vez que voltarmos ao túmulo.
Em todo o caso, a sala principal era mais bela, mais resplandecente, mais
espetacular do que a anterior, que já era, como disse, impressionante. Havia
mais estátuas, mais cestos dourados, mais inscrições nas paredes e nos
pedestais. Entre dois pilares, uma estátua maciça do senhor. As estrias destas
colunas de parede sobem num desenho reptiliano em vez de seguirem o
desenho tradicionalmente retilíneo. Num friso entre as duas colunas descreve
cenas da vida real: o senhor na caça (um animal morto espetado numa lança,
de um realismo assombroso, com o senhor satisfeito contemplando o seu
troféu), o senhor inspecionando campos de cultura, o senhor sentado à mesa
com a esposa e numerosos filhos, desfrutando do que parece ser um
magnífico banquete, mais algumas outras cenas mostrando versões deste
sereno e benevolente governante desempenhando as suas tradicionais tarefas
de governar benévola e serenamente. Murais do que parecem ser cenas da
vida rural adornam o teto em faixas dedicadas a assuntos diferentes: trabalho,
lazer, alimentação, viagem, em honra do senhor. Na parede oposta, uma
janela estreita, rasgada de alto a baixo, como que para iluminar diretamente o
profusamente decorado pedestal de alabastro que se encontra no centro da
câmara. Adama pensa que o corpo do senhor se encontra por baixo deste
pedestal, mas nenhum arabesco ou goteiras que se podem ver na sua parte
superior parecem servir para o abrir. Ele diz que da próxima vez teremos de
trazer utensílios e depois ver como forçar o pedestal e revelar os seus
segredos escondidos.
Reparámos em tudo isto, é claro, depois de Baltar ter saído da sombra,
tirando-nos anos de vida com o susto. Adama principalmente, estava
realmente espantado. Murmurou o nome de Baltar e depois fitou-o durante
um momento. O seu corpo ficou tenso. Devia estar a recordar todos os
trabalhos e frustrações que tinha sofrido por causa da traição de Baltar (se de
fato foi um traidor, e não o inocente enganado que agora afirma ser).
Qualquer que fosse a razão, o certo é que, passado um momento, Adama
lançou-se sobre ele. Parecia louco de fúria. Agarrou em Baltar e, pondo as
suas mãos à volta do pescoço do homem, apertou-o no que parecia ser um
abraço de morte. Apollo saltou atrás do pai e tentou desprendê-lo. Eu estava
apenas a alguns passos de distância.
— Pai — gritou Apollo —, deixa-o para o Quórum.
Não sei ao certo se foi efeito das palavras de Apollo ou se de facto
Adama voltou à normalidade repentinamente, mas soltou o pescoço de Baltar
tão abruptamente como o tinha agarrado. Baltar apoiou-se contra uma coluna,
esfregando com as mãos o pescoço magoado.
— Podias ter-me morto — lamentou-se. — Que loucura é esta?
— Loucura? — Retorquiu Apollo. — Ainda perguntas... Depois de teres
vendido o teu próprio povo?
Baltar, parecendo bastante furioso, negou tal acusação. Adama andara a
espalhar mentiras, disse. Apollo troçou do que ele dizia e acusou novamente
Baltar da destruição dos Doze Mundos.
— Que ser humano em seu perfeito juízo faria uma coisa dessas?... —
Replicou ele.
«De facto, que ser humano no seu perfeito juízo», pensei para mim,
olhando para os olhos porcinos e descontrolados daquele homem.
O que depois nos contou tanto podia ser a invenção de um louco, de um
traidor que nem sequer sabia o significado da palavra «traição», como podia
ser a verdade. Estamos todos ainda a ver se chegamos a alguma conclusão
sobre isso.
Afirmou-se chocado com o fato de haver alguém dentro da Galactica
que o pudesse julgar culpado de crime tão grave. Apesar de tudo, tinha sido
membro do Quórum dos Doze, um líder político suficientemente considerado
para poder usar o Selo dos Senhores. (De fato usava um medalhão idêntico ao
de Adama. Compreendi então como conseguira entrar num túmulo.) Abrindo
os braços, implorando, exclamou que era tão vítima como qualquer de nós.
Tinha perdido tudo — a família, o seu povo, a sua riqueza —, com o ataque
cylon. Apanhado entre a estrela-de-batalha do presidente e o seu próprio
veículo, fora capturado pelo inimigo e levado a julgamento como um animal.
Disse que tinha sido poupado da execução para poder servir de mensageiro
para nos informar que agora a Aliança Cylon tinha à sua frente governantes
mais pacíficos, que estavam dispostos a rejeitar a política dos anteriores.
Desejavam um armistício, continuou Baltar. (Perante este apelo de Baltar à
paz. Adama quase se lançou de novo sobre ele.)
— Estive na sede do poder dos Cylons, e posso afirmar que está um
completo caos — disse Baltar, a voz emocionada de convicção —, as forças
cylons estão divididas e espalhadas em busca da tua frota. — Sussurrando
como se os Cylons os pudessem ouvir, disse que o caminho para o Império
Cylon estava fracamente defendido, com forças reduzidas e espalhadas por
territórios imensos. — Uma única estrela-de-batalha seria suficiente para
controlar agora o Império e pô-lo de joelhos — continuou, o irritante ruído da
sua voz parecendo realmente uma pasta arrastada sobre uma macia superfície
de madeira. Expôs-nos depois o seu plano de nos conduzir na Galactica
através das linhas inimigas, como se fôssemos seus prisioneiros mas de fato
prontos para o ataque final. Dava positivamente pulos de contentamento ao
expor a ideia de vingar o ataque traiçoeiro dos Cylons com outro ataque
traiçoeiro inventado por si. (Essa exaltação com os ataques traiçoeiros pode
ser um sinal de que, realmente, é um traidor.) Disse ainda que tinha provas
das suas boas intenções: podia providenciar a libertação imediata de um dos
nossos oficiais que estava prisioneiro: o tenente Starbuck.
Apolo e eu olhámos primeiro um para o outro, depois para Baltar.
Starbuck estava vivo! Eram as melhores notícias que ouvia desde há muito
tempo, e vinha da pior fonte possível. Baltar explicou que Starbuck seria
deixado livre em Kobol dentro de pouco tempo.
Enfim, isto resume mais ou menos o que sucedeu no túmulo. É claro que
Adama está bastante cético acerca das ofertas de Baltar. Apollo não tem a
certeza, mas acha que se deve esperar para ver o que acontece, especialmente
se isso significar o regresso de Starbuck. Estamos os dois ansiosos por ver
novamente Starbuck. Não dissemos a mais ninguém, para o caso de Baltar
estar a preparar mais alguma ratoeira. Espero que o homem esteja, por uma
vez, a dizer a verdade.
Baltar encontra-se guardado, mas não está preso. Quando Adama lhe
disse que o túmulo podia encerrar o segredo da décima terceira tribo. Baltar
teve um leve sorriso sarcástico, afirmando que as histórias que rodeavam o
abandono de Kobol eram meros mitos e lendas.
Adama parece totalmente obcecado. Está decidido a pesquisar
profundamente a câmara central do túmulo, seguro de que o segredo da tribo
desaparecida se encontra algures por ali.
Estamos agora de novo fora da pirâmide, preparando outra missão para
novas buscas no seu interior. Adama quer levar os nossos melhores
instrumentos para ajudar as pesquisas. Francamente, não tenho a certeza de
que chegue de fato a encontrar alguma coisa. A pirâmide não me parece ser
nem mais nem menos do que um monumento funerário. Mas, no caso de o
comandante ter razão, tenho a intenção de acompanhar a próxima expedição
ao seu interior.
CAPÍTULO XVII
Lucifer tinha saudades de Starbuck. O jovem e exuberante tenente tinha
alegrado uma missão que de outra forma teria sido mortalmente aborrecida,
com as suas piadas espantosas e com o seu jogo de cartas excecionalmente
competitivo. Mais um par de jogos e talvez Lucifer tivesse conseguido
dominar aquele bizarro entretenimento. Ou talvez Starbuck continuasse a
encontrar milagrosamente a carta da sorte de que necessitava. Sorte. Que era
isso e como é que um computador avançado conseguia tê-la?
Lucifer deu um piparote à cadeira de comando. Sem ruído rodou
lentamente. Ali sentado, no pedestal, muito acima do chão da câmara, Lucifer
apercebeu-se de que talvez lhe agradasse comandar a sua própria nave.
Poderia funcionar nessa posição com a mesma facilidade com que se
encaixava agora na preciosa cadeira de Baltar. Não apenas seria um bom
comandante, como também o desejava ser ardentemente. De uma vez por
todas gostaria de se sobrepor à sua programação servil e pôr-se a caminho do
poder. O único obstáculo no seu caminho era Baltar. Ora Baltar, com o seu
estranho jogo perigoso lá em baixo, em Kobol, podia nunca mais regressar.
Que é que o homem queria de fato? Teria sequer...
As suas deambulações foram interrompidas pela entrada de um
centurião, que disse não ter ainda havido qualquer comunicação de Baltar.
— Que pena — murmurou Lucifer, ainda com vestígios da
desobediência latente na sua meditação. — Talvez que o plano do nosso
chefe tenha falhado. Qualquer que fosse realmente esse plano. Sim, uma
pena.
— As suas instruções foram bastante específicas. Esperar e escoltar a
Galactica para o planeta de origem.
— Sim. E pergunto a mim mesmo qual seria o verdadeiro prisioneiro.
— As ordens foram bastante claras. Seriam eles os nossos prisioneiros.
Lucifer quase deu uma gargalhada aberta. Estes centuriões, diminuídos
pelo seu fraco primeiro-cérebro, podiam ser tão tacanhos! Esqueceram-se
muito facilmente de que Baltar era um humano e portanto não dirigido pelos
códigos estritos que governavam a vida dos cylons. Não compreendiam
realmente a manhosice dos humanos. Se Baltar tinha dito que os ocupantes da
Galactica seriam os prisioneiros, então um guerreiro cylon tinha
automaticamente de acreditar nele. Muitas vezes Lucifer chegava mesmo a
pensar se o próprio líder imperial, apesar da sua vantagem do terceiro-
cérebro, não subestimava completamente Baltar. Tinha etiquetado o homem
como inútil, mas o certo é que este tinha sobrevivido. Era certo que,
independentemente do que se pudesse pensar, Baltar parecia ultrapassar
sempre qualquer obstáculo posto no seu caminho. Seria um erro grave
subestimá-lo agora, apesar da aparente loucura daquela missão em Kobol.
Lucifer mandou embora o centurião e apoiou-se nas costas direitas e
duras do trono. Talvez fosse altura, pensou, de ativar a sua personalidade
dominante, com a correspondente fidelidade teimosa para com Baltar. Talvez
fosse altura de abandonar o plano do homem e tirar vantagem da situação
militar verdadeiramente tentadora. Os humanos estavam quietos, ocupados
com as suas buscas em Kobol. Muito do seu pessoal de comando encontrava-
se certamente na superfície do planeta. Era realmente a melhor altura para
atacar. E era também possível que uma importante vitória militar sob o
comando de Lucifer influenciasse o líder imperial a reparar como um ser da
espécie dos computadores podia ser um efetivo comandante militar. Uma vez
que Baltar era já um traidor, qualquer traição perpetrada contra ele seria
automaticamente sancionada. Não era verdadeiramente traição. De forma
alguma.
Porém, uma dúvida torturante fazia hesitar Lucifer. Mais uma vez
desejou que Starbuck ali estivesse. Precisava de alguém com quem conversar.
Starbuck insistira em que não era capaz de atuar de modo calculista, e que
realizava a maior parte dos seus feitos heroicos por ação de impulsos.
Era o impulso que levava Lucifer a considerar a traição. Admirava
Starbuck. Para um computador programado logicamente, o impulso era algo
de atraente, uma tentação irresistível. Não lhe conseguia resistir. Decidiu
lançar o ataque imediatamente, enquanto o impulso que o orientava se
conseguia sobrepor a toda a confusão contraditória que percorria agora os
seus circuitos.
***
Ao entrar no campo, Starbuck sentia-se um larápio, apesar de fazer
propositadamente barulhos com as botas batendo contra superfícies duras e
de apurar a garganta várias vezes. Estavam todos tão ocupados que ninguém
reparou nele. Finalmente parou atrás de Brie, que estava atraentemente
debruçada sobre um cartão de abastecimentos, bateu-lhe levemente no ombro
e disse:
— Olá, beleza. É por aqui que se vai para o clube dos oficiais?
Primeiro Brie ficou positivamente muda, com os olhos maiores que a asa
de um viper, depois sorriu deliciada e atirou-se aos seus braços.
— Pareces ter ficado contente por me ver — sussurrou ao seu ouvido.
— Tem sido horrível, só com a Athena a arengar comigo desde que
desapareceste...
— Já nem posso esperar pelo próximo treino.
Outros homens e mulheres do grupo da Galactica que estava na
superfície largaram imediatamente as suas tarefas e correram para Starbuck.
Formou-se imediatamente uma verdadeira multidão à sua volta, ouvindo a
história da sua prisão dentro de uma estrela-base. Parou de falar quando
Athena atravessou a mole de gente e gritou o seu nome. Correu para ele,
abraçou-o e beijou-o demoradamente no rosto.
— Ah — exclamou ele —, tiveste saudades minhas, não tiveste? Sim,
parece-me que sim.
— Claro que tive.
— Sentimental.
— Parece-me que sim. Também não mato pulgas quando as vejo.
— Não tenho a certeza de ter compreendido o alcance total dessa última
frase.
— Também não to vou explicar. O meu irmão quer ver-te.
Athena deu ordem para que a multidão se dispersasse, e depois conduziu
Starbuck pelo braço até à tenda de Apollo. O capitão abriu-se num amplo
sorriso e correu para o abraçar logo que o viu.
— Hei, hei, hei! — Exclamou Starbuck. — É contra os regulamentos
abraçar um oficial subalterno... A não ser que se deseje realmente.
Havia uma ponta das lágrimas nos olhos de Apollo.
— Pensámos todos que estavas morto.
— Sim, bom, que é uma pequena estrela-base para um velho veterano de
guerra como eu?
Apollo ficou carrancudo.
— Estrela-base — disse. — Quer dizer que há uma estrela-base a
caminho daqui...
— A caminho, não: esperando ordens! O Baltar não disse nada? Foi ele
que me libertou, ele... Que é, Apollo?
— Outra vez Baltar! — Murmurou. — Que é que quer o Baltar? Que é...
— Veio oferecer a paz. Pelo menos foi o que me disse.
— Sim, já tentou isso por cá.
— Não acreditas nele?
— Ná.
— Também pensei que não acreditasses. Passei ainda um mau bocado
tentando fingir que acreditava. Que é que devemos fazer?
— Parece-me que o melhor que temos a fazer é sair deste planeta
moribundo antes que as tropas de Baltar cheguem aqui.
— Era exatamente o que eu ia dizer, capitão.
— Starbuck, começa a levantar o acampamento.
Apollo voltou-se abruptamente e saiu a correr da tenda, com Starbuck
seguindo-o imediatamente atrás.
CAPÍTULO XVIII
SERINA: Tenho a cabeça a andar à roda, com tudo o que aconteceu.
Estou neste momento para aqui abandonada, neste canto escuro e frio, numa
passagem subterrânea do túmulo. As ruínas recentes obstruíram
completamente o corredor que usámos para descer para a pirâmide; Adama e
Apollo estão a procurar outra saída. Eu preferi ficar aqui, como ponto de
referência das buscas. Posso ainda ouvir Baltar gritando lá ao longe. Apesar
de ele ser o que é, quero ver se podemos voltar atrás para fazer mais um
esforço para o tentar libertar. Ouçam aquelas explosões... E o barulho da
batalha que grassa nos céus de Kobol. Quem me dera saber o que se passa lá
fora. Podemos já estar derrotados. Os cylons podem estar já a limpar o
terreno. O nosso acampamento pode estar em chamas. Todos os nossos
amigos, companheiros de voo, colegas, podem estar mortos. Athena. Dietra,
Starbuck... Será que recuperámos Starbuck apenas para o vermos morrer
connosco? Não sei que fazer, nem sequer que dizer para este gravador. As
minhas mãos tremeram quando pus o cristal no gravador. Onde é que deixei a
última gravação? Não me lembro. Estávamos à superfície. Deixem-me
pensar...
Lembro-me do último momento agradável que passámos. Estávamos
sentados, Apollo e eu, sobre um banco intato ao lado da colunada, olhando
para a pirâmide. Apertava-me forte e beijava-me frequentemente, eu não
queria que aquela noite acabasse nunca, sentia-me tão... Tão descontraída e
feliz e apaixonada. Perto de nós, muitos dos nossos amigos, sentados lado a
lado, cantavam velhas canções, os seus rostos maravilhosamente iluminados
pela luz cuidadosamente disposta de algumas lanternas elétricas.
Mas o ambiente era demasiado bom: não podia durar. Gradualmente fui-
me apercebendo da preocupação que ensombrava os olhos de Apollo. Estava
ainda perturbado pela ânsia com que o pai desejava examinar o túmulo para
procurar a verdade sobre a décima terceira tribo. Estava quase tentada a
consolá-lo com qualquer frase tranquilizadora quando de repente houve um
grande burburinho no acampamento. Gemi veio até nós com a notícia de que
Starbuck tinha aparecido no meio do campo, vindo não se sabia donde.
Nunca tinha visto a pequena e por vezes morosa Gemi tão fervilhante de
excitação.
Apollo correu para a sua tenda, onde saudou alegremente Starbuck.
Quando o vi depois estava a correr de novo, desta vez para o abrigo
semiabobadado onde se encontrava Baltar. Juntei-me a ele. Sem abrandar a
marcha disse-me que estávamos em grave risco de sofrermos um ataque dos
cylons. Baltar reagiu com o seu usual sorriso sarcástico que lhe deformava os
lábios carnudos. Estava bastante satisfeito por Starbuck ter finalmente
chegado.
— Será que isso não mostra que estou a falar verdade? — Disse.
Apollo perguntou como é que ele comandava uma estrela-base cylon,
podendo andar de cá para lá a seu bel-prazer. Baltar evitou qualquer resposta
e avançou pressuroso para um grupo dos nossos guerreiros, que se tinha
reunido para assistir interessado à azeda troca de palavras. Baltar disse:
— Não pensam que a vossa decisão mais correta, agora que Starbuck
regressou para confirmar a minha sinceridade, seria apresentarem a minha
proposta ao vosso... — Depois corrigiu-se com uma voz ainda mais melada
— ... Nosso povo?
Alguns guerreiros acenaram afirmativamente perante estas palavras de
Baltar e era evidente que alguns acreditavam totalmente nelas. E o número
dos que o apoiavam aumentava à medida que expunha habilidosamente as
condições da sua proposta de paz.
Apollo interrompeu Baltar antes de que ele continuasse ainda mais a
persuadir a multidão. «Todas as decisões devem ser tomadas pelo
comandante», afirmou Apollo, para depois ordenar a Baltar que viesse com
ele até Adama. Um guarda que se encontrava na base da pirâmide disse que
Adama descera novamente. Encontrámo-lo na câmara funerária, andando à
volta da sala. Parados na entrada, observámos como estudava uma abertura
oblíqua numa das paredes. Olhava lá para fora, para uma estreita faixa de céu
descoberto. Depois caminhou até ao pedestal que dominava o centro da sala e
voltou a inspecioná-lo, tentando descobriu o segredo do grande bloco de
alabastro, segredo que o abriria para revelar o sarcófago.
Apollo aclarou a garganta. Adama olhou para cima e o rosto dele
mostrou toda a sua irritação por verificar que Baltar está connosco.
— Parece-me que ordenei que o levassem para a Galactica — disse.
Apollo caminhou para o pai e murmurou-lhe que preferira não mandar
Baltar para a nave-mãe. Os novos guerreiros estavam já a ficar sensíveis às
suas propostas insidiosas, ignorando que vinham de um suspeito traidor.
— Não nos devemos atrever a apresentar Baltar ao Quórum — disse
Apollo —, pelo menos tendo em vista a sua habitual forma de demorar todos
os assuntos importantes.
— Com o Quórum posso eu bem — replicou Adama.
Depois Baltar entrou e começou a falar outra vez. Tínhamos de seguir o
seu plano. Poderíamos passar toda a vida procurando a Terra, um planeta que
podia não ser mais do que um mito de viajantes espaciais meio bêbedos.
Devíamos ser agressivos: atacar a capital dos Cylons e tomar o poder.
Adama troçou, disse que Baltar não era de confiança, nunca mais.
Compreendendo que não conseguia nada gritando para as costas do
comandante, Baltar voltou-se para nós e afirmou que já nos restava muito
pouco tempo.
Estava tão absorta com tudo aquilo que primeiro não me apercebi das
mudanças ocorridas na sala. Começava a entrar luz. Apollo olhou para a
abertura estreita e disse que a estrela estava novamente a pulsar, brilhando
com o dobro da luz do costume.
Como a abertura era muito estreita, a luz parecia uma lâmina
nitidamente delineada. Adama murmurou repentinamente muito tenso; «A
luz, é isso!» Correu para a outra ponta da sala. Sobre um banco, voltou-se
para a janela. Gradualmente, o feixe luminoso, que primeiro se encontrava
sobre a sua cabeça, desceu até brilhar no seu rosto, depois na garganta e
finalmente sobre o peito.
— É verdade, tenho a certeza — disse Adama. — Aquela janela foi
colocada precisamente ali por qualquer razão...
Depois deu-se o milagre. A luz incidiu sobre o medalhão no peito de
Adama. Imediatamente, dois feixes de luz partiram daí para os cantos opostos
da câmara. Cada um incidia por sua vez sobre os peitos de duas estátuas de
canto — altas estátuas de homens vestidas primorosamente de sentinelas — e
juntaram-se de novo num arco esplendoroso para a parede oposta, formando
um resplandecente e ofuscante triângulo de luz. Um ronco surdo ecoou pelo
chão debaixo dos nossos pés. A minha atenção foi de novo atraída pelo
pedestal central, para onde Baltar apontava mudo, de boca escancarada de
espanto.
Lentamente, a parte de cima do pedestal dirigiu-se para nós.
Cautelosamente, andámos em volta da abertura e demos por nós debruçados
sobre uma escadaria longa e escarpada. Baltar saltou para as escadas. Adama,
descendo do banco, gritou-lhe que esperasse, mas Baltar tinha já
desaparecido na escuridão.
Seguimo-lo.
A sala de baixo era mais rica e mais decorada que as outras. Todas as
superfícies estavam delicadamente revestidas de joias. Nunca tinha visto na
minha vida tal aparato de gemas e pedras. Mesmo com as nossas fracas
lanternas, desprendiam reflexos ofuscantes. Havia safiras de um azul
profundo, as esmeraldas mais verdes que jamais vi, diamantes. A sala estava
positivamente atravancada com relíquias de ouro, alabastro, pérolas, lápis-
lazúli, faiança, diorite. Camadas de xisto tinham-se desprendido da base da
estátua e eu tinha de andar em bicos dos pés com medo de as partir ainda
mais.
No centro da sala encontrava-se um sarcófago maciço. Os lados estavam
decorados com baixos-relevos, que descreviam cenas do cerimonial real e de
alegria doméstica. O odor opressivo que dominava a sala parecia vir dali.
Exalei fundo, procurando apanhar qualquer lufada daquele ar que estivera
encerrado na câmara durante tantos milhares de anos.
— Deve ser isto — murmurou Adama. — A última morada do último
Senhor de Kobol.
Baltar, saltando do outro lado do sarcófago, começou a debater-se com o
tampo. Apollo agarrou-o, tentando desprendê-lo, mas Baltar conseguiu
afastar o pesado tampo de pedra com uma força que eu nunca nele suspeitara,
talvez a força da avareza. Os olhos saíam-lhe das órbitas com a ansiedade,
quando olhou para dentro do sarcófago. Apollo respirou forte. Adama,
juntando-se a eles, examinou o interior do sarcófago com as lágrimas a
caírem-lhe dos olhos.
O último senhor jazia num verdadeiro esplendor, envolto em sedas azuis,
douradas e vermelhas. Se a máscara que cobria o rosto amortalhado
reproduzia o rosto do último senhor, devia ter sido em vida um homem
bastante interessante. De testa alta e olhos levemente oblíquos, nariz estreito
e lábios grossos, a máscara sugeria nobreza, inteligência e alto porte. Na mão
direita tinha um cetro, símbolo do seu poder, sem dúvida. A superfície do
cetro estava cravejada de grandes joias reluzentes.
Baltar pôs as duas mãos sobre o cetro e puxou-o abruptamente.
Deslocou-o com força, tentando partir pelo pulso a mão mumificada do
senhor para poder ficar com o cetro.
— Atreves-te a profanar a cripta sagrada! — Gritou Adama, agarrando
Baltar pelos ombros e puxando-o para trás.
— Pensas que acredito em todas essas superstições primitivas? — Disse
Baltar, com um sorriso desagradável no rosto.
Parece-me que Adama teria morto Baltar mesmo ali se a explosão que
abalou a câmara não nos tivesse mandado a todos para o chão aos baldões.
Caí por baixo de uma alta estátua de uma rainha ou concubina. Moveu-se
sobre o pedestal como se me fosse cair diretamente em cima e gritei. Apollo
lançou-se sobre mim e afastou-me para longe, mas a estátua não caiu.
Tentei perguntar a Apollo o que estava a acontecer, mas a minha voz foi
abafada por outro estrondo medonho. Desta vez, uma estátua na outra ponta
da câmara caiu, ficando porém milagrosamente intacta ao tocar no chão de
pedra.
Enchendo-nos de coragem corremos pelas escadas acima. Pelo canto do
olho ainda vi Baltar ficando para trás, voltado para o esplendoroso sarcófago.
Atingi o cimo das escadas atrás de Apollo. A explosão tinha colocado o
tampo de pedra novamente no seu lugar e Adama empurrava-o com os
ombros e com as costas. Apollo juntou-se a ele, mas a sua força combinada
não conseguia mover a pedra.
Baltar apareceu desabrido, empurrando-me para o lado com a mão,
atirando-me contra a parede da escadaria. Gritou que queria sair, e ordenou a
Adama e a Apollo que se afastassem. Debatendo-se com Apollo, começou a
esgravatar a parte de baixo do tampo de pedra, murmurando que não quisera
fazer mal a ninguém. Aparentemente, estava convencido que a explosão era
castigo divino, resultante da sua profanação da cripta do senhor. Nessa altura,
isso parecia uma possibilidade bastante plausível. Baltar caiu de joelhos sobre
um degrau. Implorou a Adama que o ajudasse a usar o poder do medalhão
para nos tirar dali. Adama limitou-se a dizer calmamente que não podia fazer
nada. Voltando-se para Apollo, Adama perguntou-lhe o que pensava que se
teria passado.
— Não tenho quaisquer dúvidas — disse Apollo amargamente. — Os
cylons estão a atacar-nos, lançando pesadas bombas sobre o nosso
acampamento e nós presos aqui...
— Ataque? — Disse Baltar. — Ataque militar? Então não é a espada
de... Não é... A punir-me.
Continuou a murmurar incoerentemente durante algum tempo, enquanto
nós procurávamos decidir o que fazer. Adama e Apollo continuavam a tentar
remover o tampo de pedra. Os seus corpos escorriam transpiração.
Finalmente Apollo deixou-se cair sobre um degrau, afirmando que não servia
de nada.
Baltar murmurou que o que mais desejava no universo era poder pôr as
mãos em Lucifer. Perguntei-lhe quem era Lucifer, e porque é que o chamava
agora à baila. Baltar ignorou-me e gritou para Adama que fizesse qualquer
coisa, que nos salvasse. Outra explosão medonha fez tremer todo o túmulo.
Voltámos aos rebolões para a câmara mortuária, procurando aí alguma
segurança. A areia caía das fendas nas paredes e no teto. Caí nos braços de
Apollo.
Os olhos de Adama abriram-se desmesuradamente quando reparou em
algo que se encontrava na parede junto do sarcófago. Disse a Apollo que
aproximasse a lanterna. A sua luz caiu sobre outro monólito, anteriormente
tapado pela estátua que tinha caído. Apareceu assim uma outra mensagem
nos antigos hieróglifos que já tínhamos encontrado.
Adama acocorou-se junto da mensagem, esquecido dos sons de batalha
vindos lá de fora e dos rumores ameaçadores que inundavam o túmulo.
Tocou nalguns símbolos, dizendo que lhe eram familiares, mas que não
conseguia traduzir toda a mensagem. Apollo disse que não era altura de
procurar o seu significado, tínhamos de procurar uma saída. Adama limitou-
se a ajoelhar-se junto do monólito, meditando intensamente nas suas
palavras. Caía mais areia do teto à medida que o túmulo parecia sofrer salva
após salva do ataque dos cylons. Caíam bocados da parede, esmagando-se
contra o chão. Até que Adama exclamou, vitorioso:
— Já achei! E isto! Apollo, Serina, está aqui o que viemos procurar.
Debruçámo-nos sobre o ombro dele. O seu rosto estava tão perto da
pedra que a cabeça tapava os pequenos signos. Apontou para uma secção em
faixa no fundo da inscrição. Disse que era o relato dos últimos dias de Kobol.
Dizia qualquer coisa sobre a décima terceira tribo. O símbolo que a
representava aparecia muitas vezes.
— Temos de trazer um grupo de pesquisa até aqui imediatamente —
exclamou. — Especialistas que possam descobrir as verdadeiras respostas
que aqui se encerram.
— Pai, não temos tempo para isso. Temos de sair daqui!
— Mas temos de descobrir para onde foram.
A câmara foi então abalada pela maior explosão registada até então. A
parede por cima do monólito começou a abrir grandes fendas. Outra explosão
e as fendas abriram-se ainda mais. A parede começou a ruir. Recuámos
apressadamente e vimos o monólito com a mensagem partir-se em mil
pedaços e cair ao chão, uma amálgama de cacos disformes e confusos.
Adama correu para eles, apanhou um ou dois como se quisesse montar um
quebra-cabeças.
— A inscrição — exclamou —, temos de a preservar.
— Pai — disse Apollo, olhando para além de Adama —, olhe para ali,
por trás de onde estava essa parede.
Olhámos todos. Do outro lado da parede destruída estava uma passagem,
estendendo-se pela escuridão e pela sombra.
— Vamos sair daqui — implorou Apollo — enquanto temos ainda
possibilidade.
Adama não se moveu um milímetro para nova saída. Pus-lhe uma mão
sobre o ombro e disse calmamente que era demasiado tarde para recuperar as
inscrições. Tinham desaparecido, desintegradas, mas na sua destruição
tinham-nos fornecido uma saída. A mensagem salvara-nos.
Adama levantou-se e olhou para o buraco na parede. A voz de Baltar
chamava por nós vinda de um canto juncado de ruínas. Estava preso sob um
par de pilares derrubados.
Adama tomou o comando e orientou-nos nos nossos esforços para tentar
tirar Baltar de sob os pilares. Mas não podíamos libertá-lo. Os pilares eram
demasiado maciços. Baltar estava completamente encurralado.
— A nossa única hipótese, pai — disse Apollo —, é deixá-lo agora aqui
e mandarmos um grupo para o buscar. Se houver tempo.
— Se houver tempo?! — Gritou Baltar, a sua voz ecoando por toda a
superfície da vasta câmara. — Não me podem deixar aqui.
Adama olhou para ele e disse calmamente que não havia outra
alternativa. Prometeu a Baltar que enviaria um grupo de salvamento.
Insatisfeito com a promessa, Baltar começou a desfiar pragas, primeiro para
Adama, depois para todos nós.
Quando deixámos a sala e entrámos na escura e ameaçadora passagem,
começou a gritar novamente, contra esse Lucifer, as ameaças e pragas mais
vis e terríveis, dizendo que o desfaria membro a membro, circuito a circuito,
jurava. Circuito? Pensei e tomei mentalmente nota de que tinha de investigar
esse assunto mais a fundo. Se conseguíssemos alguma vez sair dali. A sua
última mensagem para nós era que ainda não tínhamos ouvido falar de Baltar
pela última vez. Adama sussurrou que aquele homem destilaria retórica até ao
fim dos seus dias.
Portanto — temos estado a explorar a passagem e outras que partem
dela. A batalha, ou lá o que é, continua fora do túmulo, abalando-nos com
estrondos após estrondos que fazem tremer perigosamente as paredes que nos
rodeiam. Esta pode ser a minha derradeira gravação. Começo a duvidar de
que saiamos daqui alguma vez.
***
Apollo escutou o silêncio que se seguiu à última parte do relato deste
cristal. Finalmente compreendeu que não havia mais nada gravado e,
premindo um botão, agarrou-o na mão. Colocou-o ao lado dos outros cristais
que já tinha ouvido. Estavam bem alinhados sobre a secretária. Não havia
mais. Coçou a testa, tentou pensar. Que fazer agora? Voltou para a gaveta
onde tinha encontrado os cristais gravados, deu voltas durante muito tempo,
esperando... Rezando para encontrar mais um. Mas sabia perfeitamente que
não havia mais.
CAPÍTULO XIX
Primeiro a estrela de Kobol cintilou por momentos, depois, uma nuvem
de caças cylons obscureceu esse brilho momentâneo. Durante um longo
momento ficaram ali a pairar, como que a expor toda a extensão da sua
ameaça, depois começaram a libertar-se sucessivamente da densa formação.
Em arcos e círculos graciosos começaram a formar para o ataque em
parafuso.
Starbuck compreendeu que mais tarde deixariam essa formação para
iniciarem a passagem de metralha e bombardeamento. Ordenando a um grupo
de guerreiros que corressem rapidamente para a naveta, começou ele próprio
a correr desalmadamente pela estrada empedrada da cidade morta, gritando o
nome de Apollo. Os caças cylons começaram a sobrevoar o acampamento,
vomitando uma linha contínua de fogo dos seus lasers. Algumas bombas
atingiram as tendas mesmo no meio e do seu interior saíram imediatamente
altas línguas de fogo. Depois, outro grupo de atacantes efetuou a sua
passagem e mais tendas ficaram destruídas.
Athena, seguida de perto por Gemi, correu para ele. Os seus corpos
formavam sombras bem definidas contra o fundo de chamas que crepitava
por trás delas.
— Onde estão Apollo e Serina? — Gritou-lhes. — Onde está o
comandante?
— A última vez que os vi estavam a levar Baltar para o túmulo.
Olhou para a pirâmide exatamente a tempo de ver um caça cylon deixar
cair uma bomba na face norte. O lançamento falhou o alvo por um milímetro
e provocou apenas uma enorme erupção de pedras e destroços. De uma face
mais afastada da pirâmide saíam rolos de fumo provocados certamente por
um lançamento mais certeiro.
— E melhor voltar para o seu viper, tenente! — Gritou Athena.
Starbuck hesitou, desejoso de correr para a pirâmide, para procurar
Apollo e os outros.
— Mas... Não os podemos deixar. Temos de ir... Quer dizer, estes vão
destruir tudo.
— Seria desperdiçar tempo procurá-los agora. Temos de limpar o céu
destes idiotas sujos... Agora! Mas faça o que quiser, eu vou...
— Não, você procure-os. Eu...
— Esqueça isso, Starbuck! Eu vou levantar voo! Todos os da classe
estão prontos e vamos arrancar.
— Estão loucos? Alguns quase não podem voar, podem abater-se uns
aos outros.
Athena fitou-o, depois disse numa voz quase tão ameaçadora como o
raide dos cylons:
— Faça o que quiser, tenente, mas eu vou. Adeus.
Começou a correr para a área de aterragem dos vipers. Gemi, olhando à
sua volta desamparada durante um breve momento, hesitava, depois tocou
levemente no braço de Starbuck e partiu atrás de Athena.
— Deus nos ajude — murmurou Starbuck, e depois partiu também atrás
delas.
***
Sempre que estivera doente, Boomer achara a recuperação infinitamente
mais aborrecida do que a própria doença. No auge da doença aceitava o seu
estado como um imperativo da natureza e conseguia ficar tranquilo, sem
qualquer tensão. Mas durante os períodos de recuperação ficava sempre
nervoso, desejoso de partir. Entrava em sonhos nos quais estava novamente
dentro do seu cockpit, apontando o laser para um ponto sitiado algures entre
as duas linhas de fogo que corriam ao seu encontro. Ficar quieto passava a ser
uma impossibilidade física. Descobria centenas de maneiras de mover o
corpo, virar-se, encontrar peças metálicas para tocar na cama, voltar o
pescoço para poder olhar para uma zona de teto da enfermaria cuja topografia
tinha já decorado.
Nem sequer queria continuar a ser tratado. Tinha já dito a Cassiopeia
várias vezes que prestasse mais atenção aos outros, que precisavam
certamente mais da sua ajuda do que ele. Ela respondia-lhe invariavelmente
que as suas obrigações eram iguais para todos e que ele devia deixar de
abusar do seu posto.
Quando as notícias do ataque dos cylons ao grupo que tinha aterrado em
Kobol se espalharam pela Galactica, a enfermaria passou a ser informada
continuamente de tudo o que se passava de novo. Boomer não conseguia
suportar mais a sua inatividade. Retesando todos os músculos do seu corpo,
saiu da cama e, com grande esforço, pôs os dois pés no chão. Pondo-se de pé,
sentiu mais uma onda de tonturas, um vazio no cérebro semelhante ao que
sentira durante os primeiros tempos em que estivera doente. Cerrando os
dentes, concentrou-se em afastar da cabeça todas as ideias confusas que a
percorriam e em entrar para o seu fato de voo. Quando apertou o último
fecho, Cassiopeia entrou correndo no quarto.
— Não vais a lado nenhum, guerreiro! — Gritou ela.
Ele quase que lhe queria dizer «tens razão, não vou a lado nenhum», mas
em vez disso abanou a cabeça negativamente e disse:
— Não há tempo para discussões. Vou para a ponte de comando. Não,
Cassiopeia, não digas nada.
— Bando de lunáticos — murmurou ela.
— Lunáticos?
— Sim. Você e Jolly e Greenbean e Giles, todos vocês. Doidos. Toda a
gente na enfermaria está a tentar sair neste momento. Onde vai. Boomer?
A voz dele era fraca mas firme:
— Estou a reunir o meu esquadrão.
***
Ao entrar na ponte, Boomer ouviu Rigel dizer a Tigh:
— Os caças cylons estão a intensificar o ataque, tomando novamente o
controlo da situação.
— E nós sem pessoal de combate suficiente para...
— Temos, sim! — Gritou Boomer, sem deixar que a sua voz traísse
qualquer sinal da fraqueza que ainda sentia.
Tigh voltou-se e o queixo pareceu cair-lhe positivamente ao chão
quando viu Boomer, com o resto dos inválidos atrás de si.
— Que é isto? — Disse Tigh.
— Coronel — retorquiu Boomer —, o Esquadrão Azul apresenta-se ao
serviço.
Tigh caminhou para eles, com um sorriso afetuoso.
— Tenente — disse calmamente —, é óbvio que quase nem se podem
manter de pé.
Boomer sentiu que estava de fato em condições. Limitou-se a sorrir e
respondeu:
— O viper é comandado de uma posição de sentado, senhor.
Tigh olhou carrancudo para Boomer, mas o tenente ganhara a questão.
Quase caiu exausto quando finalmente Tigh ordenou que preparassem todas
as pistas de lançamento para o Esquadrão Azul.
***
— Voem aos pares — ordenou Starbuck pela linha aberta. —
Mantenham-se junto dos líderes, protejam-nos! Talvez tenhamos uma
hipótese.
Fechou a linha de comunicações e murmurou:
— Uma hipótese em cem.
A voz de Dietra, tenazmente resoluta, disse para que todos ouvissem:
— Starbuck, vamos ionizá-los!
«Estão ainda nos simuladores de voo», pensou Starbuck para si. «Um
sucesso em combate e já pensam que são indestrutíveis. Não compreenderão
que daquela vez tiveram apenas de fazer frente aos surpreendidos guardas de
um único ninho de lançamentos, enquanto agora têm pela frente uma força
cylon inteira? Enfim, talvez seja melhor assim.» Se nos rimos para o inimigo,
pelo menos podemos morrer com estilo — tal era o slogan dos guerreiros.
Pelo menos o esquadrão conseguira levantar voo sem qualquer
interferência do inimigo. Para Starbuck era apenas mais um dos toques de
sorte em que era famoso. «Mas que raio de sorte», pensou. «Fui batido em
combate, capturado e levado para uma estrela-base cylon, e regressei aqui a
tempo apenas de comandar estas tropas de aprendizes contra uma força
inteira de naves cylons. Grande sorte, sim senhor.»
Estavam ainda a afastar-se da superfície do planeta quando alguns caças
cylons se desligaram do ataque ao acampamento e se dirigiram para o
esquadrão de vipers em formação.
— Já nos viram! — Berrou Starbuck.
Estabilizou o seu viper e ordenou ao esquadrão que se colocasse em
formação de combate.
— Olhem para eles — disse Athena. — Quantos são? Parecem oitenta,
noventa, cem...
— Athena! — Gritou Starbuck. — Não estás na ponte. Para de contar!
— Está com medo das proporções, tenente?
— Para de me chateares e vamos ver mas é se consegues disparar...
Querida.
— Está certo... Senhor. .
Passado um momento, o céu estava coberto por todos os lados de naves
em combate. Starbuck apercebeu-se de que a inexperiência das suas tropas
jogava a seu favor. Os pilotos da frota de cylons esperavam certas manobras
de voo, certas táticas, que os cadetes ainda não tinham aprendido. Este fato
permitia que os pilotos inexperientes se desenvencilhassem dos ataques dos
inimigos e destruíssem os caças cylons atacando-os por baixo. Os vipers
rodopiavam insidiosamente em redor dos seus atacantes. Um após outro, os
pilotos cylon iam sendo apanhados de surpresa.
Starbuck começava a pensar que as suas possibilidades eram melhores
do que julgara até que a voz de Athena destruiu essa sua súbita confiança.
— Starbuck! É Gemi. A pequena Gemi. Foi atingida, de cima. Agora
está outro sobre ela. Oh, meu Deus, apanharam-na. Desapareceu, Starbuck,
desapareceu.
Tentou lembrar-se de qual era Gemi, mas não conseguiu localizá-la
muito bem. Tinha no entanto muito pouco tempo para isso. O som de Athena
chorando pela linha de comunicações enchia tudo.
— Okay, Athena Okay. Mantém o controlo.
— Estou controlada, maldito sejas. Não te preocupes comigo.
Ele não teve tempo de discutir. Dois caças cylons desciam
vertiginosamente sobre ele. Com um pequeno disparo do laser, um desvio
para a esquerda e outra rajada, reduziu os veículos inimigos a duas bolas de
fogo em queda para a superfície desértica de Kobol.
— Atinjam-nos e fujam — gritou para o esquadrão.
O ar estava cheio de fogo e de milhares de destroços das naves atingidas.
— Brie — chamou Dietra —, um na tua cauda.
Starbuck ficou tenso. Brie não mostrara grande habilidade durante os
treinos, os seus disparos falhavam sempre o alvo, e o seu controlo sobre o
viper era um pouco flutuante. Teria chegado o seu fim, tomando-se mais uma
baixa como a... Qual era o seu nome?... Gemi?
— Certo — gritou Brie.
Colocou o seu viper num looping invertido. O caça cylon passou mesmo
por baixo dela. Foi no seu encalce, com o laser vomitando fogo e deixando-o
em mil pedaços. Quando este explodiu, Brie e Dietra saudaram alegremente.
Noutro quadrante, Athena desceu sobre um caça cylon e desfê-lo.
— Bem feito, Athena! — Exclamou Starbuck.
— Parece-me que foi o porco que atingiu Gemi...
Não conseguiu completar a frase, pois ficou sob o fogo de mais um par
de atacantes. Desfazendo-se de um com uma rápida rajada, evitou o outro por
um momento, antes de ele se lançar novamente sobre ela.
— É inútil, Starbuck! — Gritou ela.
Inútil ou não, aceitou o desafio, disparando o laser instintivamente, e
conseguindo atingi-lo diretamente no cockpit.
Starbuck tê-la-ia felicitado de novo, mas tinha de ir em auxílio de Dietra.
Precipitando-se sobre um cylon que perseguia intensivamente o seu viper,
Starbuck chegou mesmo a tempo, um momento antes de que ele a pudesse
destruir com uma rajada mortífera. Dietra suspirou profundamente antes de
dizer:
— Obrigada, Starbuck.
— Não tens de quê.
— Foi a última vez.
Ele deu uma gargalhada e depois puxou para si a alavanca de comando e
passou por cima dela. Tornava-se agora extremamente difícil conseguir
descortinar qualquer coisa por entre as nuvens de fumo e de fogo da batalha.
Um breve olhar para o acampamento mostrou a Starbuck que a maior parte
deles estava em chamas. No entanto, viam-se pessoas a mexer — como
insetos em debandada fugindo dos seus exterminadores.
— Starbuck! — Berrou Athena. — Cuidado!
Subitamente, estava cercado de cylons. Era um ataque em parafuso. Pôs
o seu viper a rodopiar vertiginosamente, pois era a melhor maneira de escapar
a esse tipo de ataque. Mas pressentiu que tinha executado a manobra um
segundo tarde de mais.
***
Uma vez dentro do cockpit. Boomer sentiu-se muito melhor. Era como
se os derradeiros vestígios da doença tivessem ficado para trás na pista de
lançamento. Começou a sentir-se confiante. Até os presságios pareciam estar
a seu favor. Jenny, a líder do pessoal de lançamento, que era muito dura e
desprezara até aí todas as suas tentativas, tinha-o beijado, desejando-lhe boa
sorte. Ele pensava já se ela estaria também assim amigável quando
regressasse. Duvidava.
A voz de Rigel deu as derradeiras indicações:
— Dois pilotos definitivamente impossibilitados de voar. Inconscientes
nos cockpits.
Boomer sorriu. Apenas dois. Era um bom augúrio. Quase todos os que
tinham estado na enfermaria tinham conseguido encontrar forças bastantes
para voltarem ao combate.
— Lancem os vipers. — Vociferou Tigh.
— Passando o controlo de lançamento — declarou a voz clara de Rigel.
— Lançamento quando prontos.
— Lançamento! — Gritou Boomer.
Empurrado contra o assento e contra o apoio do pescoço, Boomer sentiu-
se a ponto de perder a consciência por completo quando a sua nave correu
pelo tubo de lançamento. Logo que deixou a superfície da Galactica, o seu
cérebro começou a recuperar. Ao encaminhar o seu viper para a formação
sentiu algumas dificuldades em o controlar, mas conseguiu-o de qualquer
maneira. O estilo e a classe eram muito bonitos, mas fazê-lo era ainda
melhor.
Os vipers juntaram-se em formação e anunciou as coordenadas para o
seu plano de voo. Esperava que não chegassem tarde de mais à batalha. Se os
cylons estivessem em vantagem quando chegassem, o seu esquadrão de semi-
inválidos não podia resolver as coisas sozinho. Enquanto realizava a
indispensável verificação de todos os sistemas, reparou que a sua
coordenação e estado de alerta estavam a melhorar rapidamente. Já se sentia
como nos velhos tempos. Deslocou para a frente a alavanca de comando.
— Está bem. Boomer?
Era a voz familiar do coronel Tigh.
— Estou bem, Galactica. Jolly?
— Atrás de ti.
— Então vamos!
Já por cima de Kobol, Boomer regulou rapidamente o seu radar para um
raio mais alargado, a fim de poder localizar a zona de combate. As forças da
Galactica estavam a resistir. Talvez tivessem mesmo uma pequena vantagem.
Mas durante quanto tempo aqueles pilotos inexperientes conseguiriam
aguentar uma força inteira de cylons? Parecia mesmo que havia já um viper
encurralado num ataque em parafuso por vários caças cylons.
Era tempo de entrar em cena.
— Ali estão eles! Esquadrão Azul, vamos entrar na dança.
Boomer estava espantado de como se sentia bem.
***
— Estou em dificuldades! — Gritou Starbuck, quando se apercebeu de
que o rodopio não o libertava do ataque em parafuso. Apesar de não ter sido
ainda seriamente atingido, o laser dos inimigos estava a lamber a
superstrutura do seu viper.
— Aguenta-te, Starbuck — respondeu Athena. — Já vou a caminho!
«Belo», pensou para si, «o grande piloto vai demonstrar mais uma vez as
suas habilidades. Estou frito. Porque é que não decorei uma das orações de
Boxey antes de...»
Mesmo à sua frente, uma nave cylon acabava de se desintegrar. Depois
outra desfez-se em chamas. E ele próprio conseguiu destruir mais duas.
Enquanto o outro cylon iniciava uma retirada prudente, Starbuck
compreendeu que o ataque em parafuso estava desfeito. O fumo dissipou-se e
viu o viper de Athena passar disparado por ele. Ela conseguira, empalmara os
primeiros dois cylons e salvara a sua pele.
— Ainda estou vivo — sussurrou incrédulo. Quase bateu na boca com a
mão, com medo de que o seu murmúrio passasse pela linha de comunicações.
— Está bem, Starbuck? — Exclamou Athena.
— Bem. Ah... Obrigado, Athena.
— Mais quatro a... A caminho!
Estava impressionado com a segurança determinada da sua voz. Não se
podia esquecer de se referir à sua bravura e valor no relatório que iria fazer
sobre a batalha. Bolas, não apenas ela. Todas elas. O seu esquadrão de
combate feito à pressa estava de fato a mostrar o que valia.
No entanto, apesar de terem sofrido poucas baixas e de terem abatido
tantos inimigos, estavam ainda em inferioridade numérica. Deveria ordenar a
retirada? Em terra seriam reduzidos a pó. Se voltassem para a Galactica,
colocariam a nave-mãe em grande perigo. Não podiam ir para lado nenhum,
compreendeu Starbuck. A sua única probabilidade era ficar e lutar.
Como se estivesse a ler os seus pensamentos, subitamente Dietra gritou:
— Estamos encurralados!
Starbuck respondeu animador:
— Vamos lutar. Athena!
— Mesmo ao seu lado, Starbuck.
— Bom. Só queria saber onde estava. Posso precisar outra vez de ajuda.
— Estou consigo, tenente.
— Reagrupem-se sobre a pirâmide. Formação de estrela. Depois
atacamos!
Quando se dirigiam para o espaço sobre a pirâmide, Dietra gritou:
— Vamos dar cabo deles, cadetes!
Pairando já em formação, Starbuck estava prestes a ordenar o ataque
quando se apercebeu dos pontos negros que cresciam por trás das forças
cylons. Eram vipers! Vindos não se sabia donde. Estavam ali todos os
esquadrões exceto o dos que estavam no grupo de terra. Donde tinham vindo
aqueles vipers? Pensou nos pilotos que estavam na enfermaria e como lhe
tinham parecido fracos a última vez que os tinha ido visitar. Não acreditava
nos seus ouvidos quando ouviu a voz de Boomer pela linha de comunicações:
— A brigada dos muletas está aqui, Starbuck. Queres dar uma ajuda ou
ficar só a ver?
Starbuck não conseguiu evitar uma gargalhada.
— Mas... Não podes voar num viper. Boomer. Estás...
— Nem tu, cabeçudo. Vi o teu traseiro gordo salvo daquele ataque em
parafuso. Vou-me a eles, pá.
Starbuck continuou a rir gostosamente quando ordenou ao seu esquadrão
para avançar.
***
Tigh só desejava poder voar também com o seu esquadrão. Muitas vezes
pedira a Adama que o incorporasse novamente num posto de combate, mas o
comandante afastava sempre essa ideia, dizendo-lhe que era necessário na
ponte. Estar na ponte... Às vezes odiava a ponte. Trabalhar na ponte
significava estar junto de monitores olhando o massacre de homens e
mulheres que tinha amado e respeitado. Nunca conseguira aceitar totalmente
a inutilidade de estar fora de todas as batalhas.
A voz de Omega interrompeu estes pensamentos:
— Coronel, venha aqui, por favor.
Tigh correu para a área de comunicações, esperando o pior.
— O relatório de combate está a chegar — anunciou Ómega. O seu rosto
refletia surpresa à medida que ia lendo as palavras no écran. — «O fator
surpresa é total. Cylons em fuga. Devemos perseguir? Boomer.»
Tigh não pôde evitar um sorriso. A batalha tinha sido ganha por alguns
cadetes treinados à pressa e por um grupo de doentes saídos há pouco da
enfermaria. Isso devia bastar para calar os pessimistas e incrédulos que
estavam sempre a dizer que a Galactica não podia sobreviver, que a
proporção em que se encontravam perante as forças inimigas indicava uma
derrota inevitável. «Se pudemos derrotar uma força cylon com estas tropas
podemos fazer tudo!» Tigh sentia-se exultante. Olhou para Ómega, que
esperava ainda a resposta para a mensagem em código de Boomer.
— Negativo para o pedido de Boomer para a perseguição. Tragam-nos
para casa. Sabe-se alguma coisa de Apollo ou do comandante?
— Não, senhor. A última mensagem dizia que tinham sido vistos pela
última vez no túmulo.
Tigh afastou-se, a sua alegria subitamente ensombrada pela
preocupação. Seria a suprema ironia: uma vitória seguida da perda de Adama
e de Apollo? Não podia ser!
CAPÍTULO XX
Apollo segurava o gravador nas mãos, um polegar tentadoramente
afagando o botão defeituoso. Serina ficaria satisfeita se ele prolongasse a sua
história, completando assim o relato que estava a fazer. Mas ele não podia
fazer isso agora, pelo menos com todos os acontecimentos tão penosamente
vivos na sua memória. Não era um repórter, não tinha nenhum gosto especial
pela história. Talvez mais tarde, quando tivesse tempo para refletir, mas agora
não.
Fechando os olhos com força, para afastar outra crise de choro, começou
a ver imagens de Serina, formando-se e desintegrando-se por entre os
desenhos e linhas que inundavam o interior das suas pálpebras.
... Serina aparecendo de entre um grupo de sujos e esfarrapados
sobreviventes de Caprica, pedindo desesperadamente uma explicação para a
destruição que os cercava. Reconheceu-a a partir do videotape que tinha visto
em que ela relatava o desastre em Caprica à medida que tudo ia acontecendo.
... Serina correndo para ele num dos corredores da corrupta nave de luxo
Rising Star. (Nesses tempos recuados ela parecia surgir-lhe sempre vinda da
sombra.)
... Serina sorrindo com gratidão quando Apollo descobriu Boxey com
uma versão androide do seu daggit desaparecido.
... Serina fitando-o cheia de amor depois de um beijo.
... Serina furiosa com ele, agindo como um verdadeiro diabo durante
uma discussão sobre assuntos de ética.
... Serina chorando de alegria durante a cerimônia de casamento.
... Serina escarnecendo dele por não acreditar que ela fosse alguma vez
capaz de pilotar um viper.
... Serina caída no meio daquela rua da cidade antiga.
Ele bem queria deter o desenrolar destas memórias, dar-lhes alguma
organização, descobrir qualquer sentido no que acontecera.
Depois de uma longa e árdua caminhada pelas complexas catacumbas do
túmulo, tinham finalmente encontrado uma saída. Adama, ainda triste com a
perda do monólito com a mensagem sobre a décima terceira tribo, abria
caminho. Deram de caras com uma cena de fogo em extinção e de ar repleto
de destroços. A colunada que dava para o túmulo tinha escapado
milagrosamente à violência dos ataques, mas o acampamento e grande parte
da antiga cidade tinham ficado devastados.
— O campo foi eliminado do mapa — gritou Apollo para Serina e para
Adama. — Foram-se todos embora.
— Talvez se tenham portanto salvo — disse Serina.
— Espero bem que sim.
Cansados e exaustos, caminharam rapidamente para o que restava do
acampamento. Areia, levantada pelo assalto dos cylons, formava verdadeiras
camadas sobre o seu vestuário. Atrás de si, Apollo ouviu Serina gritar:
— Starbuck!
Dando meia volta, viu Starbuck junto de um pilar semidestruído. Junto
dele encontravam-se Athena, Dietra, Brie e outros guerreiros da Galactica.
Estavam com um aspecto horrível, os rostos pálidos e fatigados.
— Que aconteceu? — Perguntou Apollo, correndo para Starbuck.
Starbuck olhou em direção ao céu, pesaroso.
— Perdemos ali alguns pilotos excelentes.
Athena afastou-se do grupo e juntou-se ao pai. Enterrou a cabeça no seu
ombro e começou a soluçar.
— Tive uma comunicação do coronel Tigh — disse Starbuck. A sua voz
tranquila, séria, lacônica. — Ele diz que nos quer fora daqui e de volta à base
o mais depressa possível. Está à espera de novos reforços de cylons, de um
novo ataque.
— Tem razão — comentou Adama, as primeiras palavras que proferia
desde que tinham deixado o túmulo. — Vamos deixar a superfície do planeta
o mais depressa possível. Juntem todos na naveta. A naveta ainda funciona,
não?
— Não a atingiram uma única vez, senhor.
— Uma pequena consolação, mas bem podemos dar graças.
Starbuck sugeriu que alguns guerreiros fizessem uma última revista às
ruínas do acampamento para ver se havia mais sobreviventes.
— Todos os que encontrámos estão já na naveta — disse. — Tenham
cuidado. Um dos nossos pilotos observou algumas naves cylons, que não
faziam parte da força de ataque, aterrarem na zona para além da pirâmide.
Mantenham-se atentos, para o caso de isso ser verdade. Algumas dessas
malditas luzes vermelhas podem andar por aí em qualquer lado.
Depois de o grupo de buscas ter partido, Adama ordenou aos restantes
que fossem para a naveta. Todos tentavam andar rapidamente, mas os
acontecimentos tinham-nos prostrado. Apollo sentiu durante todo o caminho
o desesperado desejo de andar como um sonâmbulo. Starbuck, com voz rouca
de exaustão, murmurou para si próprio:
— Não posso dizer que tenha saudades deste lugar. No entanto gostaria
de ter tido um pouco mais de tempo para ver isto melhor e... Apollo!
Apollo voltou-se alertado pela mudança de tom na voz de Starbuck.
Com as luzes cintilantes dos capacetes a brilhar, apanhando pedaços de
destroços e areia ainda em suspensão no ar, dois guerreiros cylons
avançavam para eles, agarrando nos braços as espingardas de laser e —
abruptamente — disparando. Apollo deitou-se para o lado, e ouviu
distintamente o zumbido do raio laser atingir um pilar junto do local onde se
encontrava. Bocados de pedra caíram em volta da sua cabeça. Puxando pela
pistola, respondeu ao fogo. À sua esquerda, Starbuck já começara a disparar.
Os atacantes desapareceram por trás de um monte de blocos de pedra.
Apollo ordenou por gestos ao resto do grupo que se escondesse enquanto
ele e Starbuck avançavam, de um monte de destroços para outro.
— Posso ter um melhor ângulo a partir daquela elevação além — disse
Starbuck. — Cobre-me.
Logo que descobriu a sua cabeça por cima do monte de ruínas, um raio
laser zumbiu por perto.
— Parece-me que estão a sugerir que tome o caminho em volta.
Apollo deixou-se escorregar para a parte lateral do monte de ruínas para
poder disparar uma barragem de fogo que cobrisse a manobra de Starbuck. O
tenente estava a meio caminho da rua quando os Cylons apareceram de detrás
das ruínas triangulares de um prédio de esquina e dispararam sobre ele.
Starbuck tentou mergulhar e meteu o pé numa fenda do pavimento. Caiu
pesadamente, com uma expressiva máscara de dor estampada no rosto.
Apollo eliminou rapidamente o cylon antes que pudesse disparar outro raio
sobre o guerreiro indefeso.
— Fiz qualquer coisa ao meu tornozelo — gritou Starbuck.
— Espera, já vou aí — disse Apollo.
Estava quase junto de Starbuck quando Serina gritou:
— Não, Apollo. Olha além! O telhado!
Sentiu distintamente o calor do raio laser aquecer-lhe o peito quando se
voltou e viu o reflexo de metal — o inimigo agachando-se por trás da
proteção oferecida pelo beiral do telhado.
— Não consegues rastejar? — Disse para Starbuck.
— Vou tentar.
Agachado, Apollo vigiava atentamente o telhado, enquanto Starbuck se
punha a quatro patas e começava a rastejar para o prédio intato mais próximo.
Serina apareceu do seu esconderijo num portal, de arma na mão.
— Volta para trás, Serina! — Gritou Apollo.
— Não! Vocês necessitam de toda a proteção possível.
Serina juntou-se a ele e tomou posição do outro lado de Starbuck, que
continuava a avançar, arrastando o tornozelo magoado. Ao mesmo tempo,
Athena avançou para o monte de ruínas e apontou a pistola para o perímetro.
No meio do silêncio, o único som vinha de Starbuck rastejando.
— Vou muito devagar — murmurou Starbuck. — As dores estão mais
suportáveis. Parece-me que posso andar o resto do caminho. Ajuda-me a
levantar.
Serina ofereceu-lhe o seu braço livre e Starbuck pôs-se em pé. Apesar de
quase não se poder apoiar na perna esquerda, conseguia deslocar-se, ainda
inseguro no primeiro passo.
— Deixa que Apollo te ajude — disse Serina. Starbuck pôs o braço
sobre os ombros de Apollo e o capitão suportou todo o seu peso. Quase
tinham já alcançado o edifício quando Athena começou a disparar. Mais
quatro cylons apareceram junto da colunada. Por trás deles encontrava-se
uma estranha figura de robot, na sombra ao longe. Parecia estar vestido com
uma capa vermelha e tinha uma luz diferente na cabeça. As armas dos quatro
cylons começaram a vomitar fogo simultaneamente.
— Leva-o para dentro — gritou Serina, voltando-se para os novos
atacantes. — Eu cubro-te.
Apollo hesitou um momento, com a intenção de lhe ordenar que fosse
ela a tomar conta de Starbuck enquanto ele fazia frente aos cylons, mas não
havia tempo para mudarem de posições. Atirou Starbuck através da escura
porta do edifício, encostando-o a uma parede, depois regressou à rua. Serina
estava agachada atrás de um pilar derrubado. Correu para o seu lado e caiu
junto dela.
— Apanhei um — murmurou ela sem sequer olhar para ele. —
Impressionado?
— Mantém-te escondida. Agora é a minha vez.
— Não te faças herói. Vamos fazer isto juntos, todos. Ninguém recua. A
propósito, amo-te.
— Escolheste uma boa altura para...
— Cala-te e... Oh, meu Deus! Atenção!
Apontou a pistola por cima do seu ombro e disparou. O cylon que
tentara atingi-los pelas costas rodopiou, faíscas saindo do orifício aberto pelo
disparo. A criatura, não tinha sido, porém, posta fora de combate. Depois de
retomar o equilíbrio continuou a avançar, disparando uma rajada que por
pouco os não atingiu.
Serina disparou novamente. Desta vez o cylon caiu no chão, com um
som abafado.
— Mais um guerreiro cylon mandado para o seu... Oh!
O grito foi pequeno, quase apenas uma ponta de dor, mas ela arqueou as
costas e claudicou, caindo de lado sobre o pilar.
— Serina! — Gritou Apollo. — Serina!
Ela sorriu-se para ele brevemente, depois os olhos reviraram-se e
fechou-os. Estava inconsciente.
Desesperado, Apollo começou a disparar furiosamente. Os seus disparos
permitiram que Athena se descobrisse e juntasse aos dele alguns disparos
bem apontados. Os dois, irmão e irmã, encontravam-se de cada lado da rua,
apontando para qualquer sinal de metal, qualquer vestígio de cylon. Foi um
duelo a sério, e violento. Subitamente, Apollo apercebeu-se de que Starbuck
gritava:
— Hei! Parem! Estão mortos. Todos.
Apollo abaixou a arma e olhou para a frente, onde os restantes cylons
jaziam realmente mortos, juncando a rua. Mas não eram, como dissera
Starbuck, todos. A misteriosa figura robotiana, com as suas estranhas luzes
enfraquecidas, arrastou-se para a sombra e desapareceu. Normalmente,
Apollo iria no seu encalço, mas naquele momento só se ajoelhou e abraçou a
sua flácida e inconsciente mulher.
***
De volta à Galactica, o tempo parecia passar mais depressa. As coisas
aconteciam com demasiada rapidez. Mesmo agora. Apollo não conseguia
assimilar todos os acontecimentos, todos os pormenores.
Lembrava-se de esperar à porta da estação de reanimação. Boomer e
Tigh andavam de um lado para outro no corredor, enquanto Starbuck, com o
tornozelo fortemente ligado, estava encostado contra uma parede e tentava
confortar Apollo.
A porta abriu-se. Cassiopeia saiu, de lágrimas nos olhos.
— Vai tudo correr bem — disse Starbuck, alcançando Cassiopeia antes
de Apollo, apesar da sua perna maltratada. — Não vai?
Cassiopeia enterrou a cabeça no peito de Starbuck. Apollo começou a
correr para a porta da estação de reanimação, quando o seu pai, que vinha
pelo corredor com Boxey ao colo, gritou:
— Espera!
Apollo estacou junto à porta e fitou o pai:
— Estou no meu direito — disse. — Tenho de estar com ela.
— Vais estar. Prometo-te. Mas dá todas as hipóteses ao Dr. Salik.
Paradoxalmente, Boxey sorria. E claro que ninguém lhe quisera dizer
como era sério o estado da sua mãe. Apollo sentiu que devia dizer tudo ao
rapaz imediatamente, mas as palavras ficaram-lhe na garganta. Starbuck
sussurrou algo ao ouvido de Cassiopeia, talvez pedindo-lhe que estivesse
mais animada, pois ela voltou-se logo para Apollo com um sorriso forçado no
rosto.
— Olá, Starbuck — disse Boxey, saltando dos braços de Adama. —
Ouvi dizer que te portaste bem.
— Bem, ah, sabes como é. Quando se é o melhor, é-se o melhor.
— Quero que me contes tudo depois de ver a mãe.
Starbuck esforçava-se por continuar a sorrir. Apollo estava prestes a
abraçar Boxey quando o Dr. Salik abriu a porta da sala de reanimação e disse
que podiam entrar. Os seus olhos não revelavam nada sobre o verdadeiro
estado de Serina.
Apollo passou pelo médico e correu para junto de Serina. Os olhos dela
estavam fechados, o rosto sem qualquer expressão. «É tarde de mais»,
pensou. Depois os olhos abriram-se e ela sorriu debilmente.
— Olá, querido — disse ela. — Não me devia ter vangloriado das
minhas mortes, não é?
— Oh, Serina, eu…
— Amo-te.
— Mamã! — Gritou Boxey. Estava assustado. Tinha compreendido a
verdade sem que ninguém lha tivesse revelado. Correu para a cama de Serina,
e teve de trepar para cima de uma das calhas para a poder ver bem.
— Boxey! — Disse Serina. — Estou tão contente de te ver.
«A sua voz está tão fraca», pensou Apollo. «Parece vinda de muito
longe.»
— Ouvi dizer que tu é que ganhaste a guerra toda — disse Boxey.
— Bem, tive um pouco de ajuda — disse Serina, sorrindo e tocando nas
faces do rapaz. O esforço foi demasiado e repentinamente deixou cair a mão.
Por um momento a vida pareceu ter abandonado os seus olhos.
— Serina — disse Apollo, num esforço desesperado para a chamar. E
deu resultado, pois os seus olhos ganharam vida de novo.
— Mamã — disse Boxey, com a voz em lágrimas. — Vais-te embora,
não vais?
Apollo não sabia que fazer. Queria abraçar fortemente Boxey, continuar
a protegê-lo da verdade.
— Sim, Boxey — respondeu Serina. — Vou. Mas o teu pai tomará conta
de ti.
Ao dizer isto, apertou fortemente Boxey, como se nunca mais o quisesse
largar.
— E eu vou amar-te sempre — murmurou. — Não te vais esquecer
disso, pois não?
Boxey já não podia aguentar mais as lágrimas. Disse que não se
esqueceria. Desprendendo-se um pouco, ela limpou-lhe os olhos, dizendo:
— Isso são modos de um futuro guerreiro? — Boxey lutava para
controlar o choro, e conseguiu. — Assim está melhor. Muito melhor.
Adama veio junto de Boxey e delicadamente pegou-lhe ao colo. Boxey
sorriu para Serina, que disse outra vez:
— Assim está melhor.
Depois de Adama ter levado o rapaz para fora da sala, Serina disse:
— Não devia ter feito aquilo.
As suas palavras confundiram Apollo.
— Feito o quê?
— Ter-lhe dito que parasse de chorar e agir como um futuro guerreiro.
As piores virtudes pretensamente masculinas. Um homem crescido não
chora, e tudo o mais. Mas... Não suportava vê-lo. Eu...
— Calma, querida. Está tudo bem.
Agora era a sua vez de chorar
— Não, não está nada bem. Não é justo. Não é justo para ti.
— Para mim? Se pudesse trocar de lugar...
Ela pôs-lhe uma mão sobre os lábios e, com esforço, estancou as
lágrimas.
— Compreendo — disse ela. — Mas quero que saibas que me sinto com
muita, muita sorte. Mesmo que apenas tenhamos tido pouco tempo, foi...
— Vamos ter muito mais tempo juntos.
Ela riu-se debilmente.
Por favor, não, Apollo. Não acreditas realmente nisso. É apenas uma
questão de...
— Acredito. Convenceste-me. Um espírito como o teu não pode acabar.
Os seus olhos começaram novamente a chorar.
— Oh, então está bem. Posso aceitar... Aceitar a ideia de espírito,
obrigada.
Então uma dor percorreu todo o seu corpo e ela retesou-se. Puxou
Apollo para si.
— Amo-te — sussurrou.
— Amo-te — respondeu ele, sem nunca chegar a saber se ela ainda o
ouviu.
***
Pegou num cristal de gravação, o primeiro, o que tinha ouvido em
primeiro lugar — há já tanto tempo. Ainda pensou em voltar a ouvi-lo, ouvir
novamente a voz dela, mas compreendeu que não o podia fazer, pelo menos
agora. Cuidadosamente, delicadamente, recolocou todos os cristais onde os
encontrara.
Alguém tinha empilhado sobre a cama a farda de combate dela. Tinha-
lhe pegado para a enrolar quando qualquer coisa caiu da algibeira do blusão
de voo — um objeto estranho. Examinando-o, reparou que era um caco de
louça, um bocado do que podia ter sido uma jarra ou um vaso. Devia tê-lo
encontrado em Kobol e guardara-o como recordação. Agarrando-o agora,
estava cada vez com mais receio de que se quebrasse, e colocou-o com todos
os cuidados sobre uma mesa.
Alguém bateu então debilmente à porta do compartimento.
— Quem é?
— Só eu: Starbuck.
— Que queres?
— Há alguém aqui para falar contigo.
— Não me apetece falar com ninguém...
— Muito bem então, há alguém aqui que precisa de ti. Abre a porta,
raios.
Abriu a porta e viu Boxey docilmente ao lado de Starbuck. O rapaz
estava com um aspecto desolado. Apollo pegou-lhe ao colo e abraçou-o.
— Estou lá em baixo no... Estou por aí, se precisares de mim — disse
Starbuck, e coxeou pelo corredor sem esperar a resposta.
Apollo levou Boxey para dentro do quarto. O rapaz olhou em volta, os
olhos piscando, e depois murmurou:
— Não queria que ela se fosse embora.
— Eu sei. Mas foi só o seu corpo que se foi embora, Boxey. Não o seu
espírito ou o seu amor por nós. Teremos isso sempre.
Boxey concordou lentamente. Apollo fitou-o nos olhos. Poderia ele
tomar conta daquele rapaz? Poderia seguir as ordens implícitas de Serina e
tomar-se seu pai? Não parecia possível, seria uma responsabilidade muito
grande. No seu cérebro podia ouvir as palavras do pai dizendo que não havia
responsabilidade que não se pudesse tomar. Bem, talvez pudesse, talvez não
pudesse — mas a verdade era que tinha de a tomar.
Boxey continuava a esfregar os olhos cheios de lágrimas com as costas
das mãos.
— Parece-me... — Disse — parece-me que não vou ser muito bom
guerreiro.
Apollo lembrou-se de Serina se ter lamentado por dizer que os futuros
guerreiros não choravam. Apertou mais o rapaz e sussurrou:
— Filho, vais ser um guerreiro excelente. Mas esperemos que nunca o
tenhas de ser. Tenhamos esperança... — Parou de falar, e ficou abraçado a ele
durante muito tempo, depois desprendeu-se e pegou-lhe na mão. — Vamos,
há muito que fazer. Vamos.
Antes de fechar a porta do compartimento, pareceu-lhe ver Serina parada
na sombra, sorrindo, e um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Claro que era
apenas a sua imaginação, mas achou preferível não abrir a luz para verificar.
EPÍLOGO
Lucifer ficou na sombra, agachado por trás de um pilar da colunada
durante muito tempo — até ter a certeza de que os humanos se tinham ido
todos embora do planeta. Sabia que era imperioso atuar. A reserva de energia
que tinha introduzido no peito para lhe permitir atuar a tal distância das suas
unidades centrais podia esgotar-se naquelas condições tão perigosas e
aleatórias.
Talvez tivesse sido um erro ir até ao planeta, um ato ilógico e
desbragado que acompanhava a sua temporária mania de poder. Tinha usado
o combate que se desenrolava nos céus de Kobol como proteção para a sua
descida. As partes da sua programação que exigiam lealdade para com Baltar
tinham-no impelido a tentar salvar o homem. Na altura não lhe parecera uma
ideia muito disparatada, uma vez que a força estava a ganhar a batalha com
toda a clareza. Da cidade abandonada tinha observado a maré a virar quando
um segundo contingente de vipers coloniais entrara na refrega. Aqueles
humanos, por muito repelentes que fossem algumas das suas características,
conseguiam desenvencilhar-se realmente de uma armadilha, mesmo contra
forças muito desproporcionadas. Lucifer quase os podia admirar. Talvez que
toda a raça fosse como Starbuck, um pouco fanfarrona mas inteligente,
divertida e cheia de recursos. Imaginando uma raça como Starbuck, duvidou
por momentos se não estaria do lado errado. No entanto, um mecanismo
infalível entrou em funcionamento e eliminou estas ideias marginais. A sua
dependência dos Cylons não podia ser abandonada sem uma programação
profundamente reestruturada.
Lucifer lamentava que Starbuck tivesse sido um dos que eliminara a sua
guarda pessoal. Uma reunião pouco agradável, nada do que tinha esperado.
Os quatro guerreiros que formavam a sua guarda pessoal ali estavam no chão,
sob os seus olhos. Pareciam cinzentos, como se o metal dos seus fatos tivesse
escurecido quando morreram. «Que teria acontecido», pensou Lucifer, «se os
humanos tivessem decidido ir no seu encalço?» As suas ligações com as
unidades principais não podiam ser muito estendidas. Se a frota o tivesse
capturado e levado para fora do alcance da estrela-base teria a interrupção da
ligação provocado o seu desequilíbrio... Teria passado a agir como um
humano subitamente enlouquecido? Não se arriscava sequer a especular
sobre essas possibilidades.
Era tempo de procurar Baltar. Lucifer saiu de trás do pilar, com as luzes
da cabeça e do corpo já a toda a força, uma vez que o risco de ataque tinha
diminuído.
Os sinais provenientes do sensor que tinha colocado em Baltar
indicavam que o humano estava algures nas profundezas do vasto túmulo
piramidal. «Não é o melhor lugar para procurar alguém», pensou Lucifer.
Enquanto caminhava pelos labirintos, com as unidades de memória
registando o caminho, sentiu que a sua reserva de energia trabalhava com
dificuldade dentro das grossas paredes da pirâmide. Quase quando começava
a pensar que teria de abandonar as buscas, encontrou o que procurava. Baltar
jazia sob dois pilares cruzados, de olhos fechados, dormindo tranquilamente.
Lucifer abanou-o para o acordar.
— Lucifer! Que raio estás aqui a fazer?
— Ao que parece, estou a salvar-te. Mais uma vez.
— Estou preso. Magoado. Tira-me daqui. Imediatamente.
— As tuas ordens.
Ativando um contrapeso nos braços que lhe permitia triplicar a sua usual
força elevatória, Lucifer removeu facilmente os dois pilares de cima das
pernas de Baltar. Baltar olhou espantado para os seus membros libertos,
receoso.
— Talvez nunca mais possa andar— lamentou-se.
Lucifer examinou-lhe as pernas rapidamente.
— As tuas facilidades ambulatórias não vão ser diminuídas. Alguns
ossos partidos, e é tudo, fácil de consertar. Quando regressarmos à base serei
capaz de os reunir novamente num instante.
— Voltar para a base? Como é que tencionas fazer isso? Lançar-me
deste túmulo maldito?
— Transportar-te-ei.
— E muito nobre da tua parte.
— Sim. Talvez entremos na lenda. Talvez não... A lenda é mais fácil de
construir quando se ganha uma batalha.
— Tu... Tu perdeste?
— Parece que sim.
— Quando voltarmos, quero ter uma conversa contigo sobre este ataque.
Como te atreveste a lançar os caças sem as minhas ordens expressas?
— Uma aberração, parece-me. Um mau funcionamento. Um toque da
doença humana.
— A doença humana?
— Comecei a pensar que conseguia ser melhor que todos. Tenho de
efetuar um exame sistemático do meu comportamento durante a tua ausência.
Tenho de descobrir onde é que errei.
— Não te preocupes. Eu mostro-te.
— Sim, estou certo de que mostras.
— Lucifer, quando tomar conta de ti, o teu nome vai ficar na lama. O teu
nome secreto vai ficar na lama.
— Quase, mas ainda não. Por favor, dobra as costas para que te possa
levantar.
— Podes com o peso?
— Posso transportar qualquer peso sem o sentir. É a massa que me cria
dificuldades. Felizmente que te pus a dieta.
— Tortura, era o que era... Hei. Cuidado. Ouch! Cuidado, não estou
confortável assim.
— Não te posso transportar de outra maneira. A distância até à nave é
pequena, depois que deixemos o túmulo.
Lucifer levou Baltar através dos inúmeros corredores, dando pouca
atenção aos lamentos do homem, aos seus grunhidos e ameaças de desprazer.
De regresso à estrela-base, depois de Lucifer ter tratado das mazelas de
Baltar, o homem recuperou alguma boa disposição.
— Podíamos fazer uma boa equipa. Lucifer — disse com o sorriso
irritante de sempre.
Lucifer resistiu ao seu programa e ficou silencioso. Não queria sequer
considerar fazer equipa com Baltar. Ele estava, como teria dito um certo
oficial subalterno da Galactica, a ver se arranjava um expediente que o
pusesse fora daquele calhambeque.

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