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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 82
TÍTULO: A LENDA VIVA
TÍTULO ORIGINAL: THE LIVING LEGEND
AUTOR: GLEN A. LARSON / MICHAEL RESNICK
TRADUÇÃO: MARIA DE LURDES MEDEIROS
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:1984

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel1969@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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bolsilivroclub@gmail.com
GLEN A. LARSON / MICHAEL
RESNICK

A LENDA VIVA
Tradução deMaris de Lurdes Mederiro

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 82


PRÓLOGO
Troy estava sentado à mesa de controlo, na sua cabina a bordo da
Galactica. Estava sozinho e olhava fixamente para o écran, no qual apareceu
o rosto de um homem já muito idoso. Esse homem era o avô adotivo de Troy
e, em vida, fora comandante da Galactica.
— Troy — disse Adama —, sei que és tu, porque a mais ninguém será
dada a chave deste programa. E se estás a ver este programa, isso quer dizer
que eu já morri. É possível, e isso não tenho forma de o saber, que eu tenha
acabado de partir ou que já esteja morto há algum tempo. Não há maneira de
prever o que o futuro nos guarda e não tenho forma de saber quando é que
vais ouvir estas palavras, e muito menos se alguma vez as ouvirás. Mas se
isso acontecer, então saberás que o Senhor te guardou e que és agora o novo
comandante da Galactica.
A imagem de Adama fez uma pausa:
— Enquanto pronuncio estas palavras, sei que estou a morrer. Esse fato
não me perturba. Estou preparado para morrer. A minha vida foi longa e
produtiva e o Senhor houve por bem permitir-me viver todo este tempo. Não
posso pedir- -lhe mais, e estou contente.
Se houve alguma coisa que pedi sem a ter recebido, foi que o meu filho
me sobrevivesse. Ainda... ainda sinto a sua perda. Quando penso em todos os
ianos em que ele serviu sob as minhas ordens como comandante de choque, o
melhor piloto de viper que jamais vi, o guerreiro mais corajoso, é com
sofrimento que recordo que, ao longo de todos esses anos, não lhe disse uma
única vez que o amava. Ah, ele sabia-o, mas também sei que teria tido muito
mais significado eu ter sido capaz de lhe dizer essas palavras em voz alta.
A imagem de Adama soltou um profundo suspiro. Por momentos, Troy
pensou que ele não seria capaz de continuar, mas voltou a falar:
— O teu pai era um grande homem, Troy. Eras apenas uma criança
quando morreu. Lembras-te? Todos costumávamos chamar-te «Boxey».
Ainda me lembro de como acabaste por odiar esse nome à medida que foste
crescendo e como tivemos de te arranjar outro, pois nunca soubemos como te
chamavas na realidade. Mas isso não é o que interessa agora. Perdoa as
divagações de um velho. Lembro-me de como tentaste não chorar no dia em
que Apollo não regressou da sua missão. De certa maneira, naquele dia foste
mais sensato do que eu, pois enquanto tu sabias a verdade, eu ainda me
permitia a esperança louca de que um milagre pudesse vir a devolver-mo,
como já acontecera da última vez em que ele não regressara de uma missão.
Adama fez nova pausa, perdido nas suas recordações.
— Foi quando encontrámos Cain — disse. — O teu pai regressou de
entre os mortos, naquele dia, e trouxe alguém com ele. Alguém que eu
julgara morto havia mais de dois ianos. Eras muito novo nessa altura, Troy, e
não sei se te lembras, mas ele salvou-nos a vida a todos.
— Isso é um simples capítulo da história da Galactica. Sempre esperei
que o comandante que me sucedesse seria o meu filho, mas isso não viria a
suceder. Agora a Galactica é tua, Troy, e cabe-te a ti decidir do seu destino.
Mas antes que determines o futuro da tua nave, é necessário que conheças o
seu passado.
— Está tudo aqui neste programa, cuja chave só tu possuis. Estes são os
meus diários, Troy, Fui-os mantendo escrupulosamente desde aquele dia em
que, lá em Caprica, a Galactica recebeu a sua missão e a minha mão passou a
ser o seu guia. Em todos estes ianos não conheceu outro senhor, e agora passa
para as tuas mãos. Nunca outra pessoa viu os meus diários, Troy. És tu o
primeiro. Aquilo que farás com eles, depois de os teres visto, é contigo. Vê-
os por ordem, se quiseres, do princípio ao fim... ou seguindo a tua memória.
Se houver quaisquer incidentes dos quais te recordes, o computador poderá
localizar-tos nos diários. Basta pedires.
— As minhas últimas palavras para ti, Troy, são as seguintes: as
circunstâncias impediram-te de teres qualquer coisa que se parecesse, ainda
que vagamente, com uma infância normal. É isso que eu lamento, embora te
tenhas tornado num homem que merece o meu respeito. Tentámos o melhor
que pudemos dar um lar às crianças da nossa frota, pois eram elas a nossa
esperança no futuro, mas no teu caso foi muito difícil. Perdeste os teus pais
verdadeiros na altura em que Caprica foi destruída. Encontraste um novo pai
em Apollo e acabaste por lhe ter amor, para vires afinal a perder uma vez
mais o teu pai. Em Serena encontraste uma nova mãe, e pela segunda vez
perdeste a tua mãe quando Serena morreu. Duas vezes órfão, tornaste-te uma
criança extremamente sossegada, muito diferente daquilo que antes eras.
— Tentei ser o melhor avô que consegui, mas não bastou. Tendo ficado
duas vezes órfão, começaste a erguer barreiras que ninguém conseguia
transpor. Não querias voltar a amar quem quer que fosse, com medo de
perder essas pessoas. Passou-se muito tempo antes que alguém conseguisse
aproximar-se de ti. Faço uma ideia de como devias sentir-te, pois também eu
tinha as minhas barreiras.
— Na verdade, nunca chegaste a conhecer o teu pai, Troy. Ficarás agora
a saber como ele era. Aprende a conhecer esse homem. Está tudo aqui. Deus
sabe que é tudo o que me resta. Mas, antes de te deixar, há mais uma coisa
que quero dizer-te. Quase cheguei a dizê-lo a Apollo, daquela vez com Cain,
mas não o disse e ainda não deixei de lamentar esse fato. Depois disso já to
disse a ti, mas quero repeti-lo uma vez mais.
— Amo-te. Adeus.
O écran tornou-se branco.
Troy ficou sentado largo tempo em silêncio. Depois inclinou-se sobre a
mesa para ver os diários de Adama.
Começaria com Cain.
CAPÍTULO I
Para os pilotos dos vipers de combate da Galactica não existiam
patrulhas de rotina. Tanto Starbuck como Apollo sabiam que a rotina levava à
complacência. Não podiam dar-se ao luxo de pensar nas suas missões em
termos de «mais uma patrulha de rotina», apesar das inúmeras missões em
que já tinham participado, apesar da semelhança dessas mesmas missões.
Fora tempo em que tanto Starbuck como Apollo tinham entrado pela
primeira vez nas carlingas dos seus vipers como cadetes recém-formados, em
que ambos tinham sentido a forte emoção da expectativa que se apoderava de
todos os oficiais que eram mandados para a sua primeira viagem. Embora
todos os cadetes tivessem oportunidades de viajar sozinhos antes de lhes
serem confiados quaisquer cargos, isso não era a mesma coisa que pilotar
pela primeira vez um viper de combate sem que o mais pequeno gesto do
piloto fosse observado por um instrutor. Ao regressarem, se regressassem,
sabiam que não estaria ninguém à sua espera, quer para os felicitar pela sua
atuação, quer para lhes apontar os erros que tinham cometido. Se tinham
alguém perante quem prestar provas, esse alguém eram os guerreiros cylons.
E não lhes seria dada a oportunidade de compensarem uma jogada menos
feliz.
No entanto, embora o seu batismo de fogo não se tivesse verificado com
as suas primeiras missões, o prazer de pilotarem os seus vipers pela primeira
vez como oficiais da frota nem por isso fora menor. Só muito mais tarde é
que vieram a ter consciência dos perigos da rotina.
Ainda crianças, ambos tinham sonhado com voos espaciais, mas depois
de adultos é que aprenderam a triste realidade de que os voos espaciais são
muitas vezes aborrecidos. Depois de passada a novidade, a fascinação
desaparecia. Para um piloto de viper já maduro, realizar uma missão de
reconhecimento era tão vulgar como caminhar de um lado para o outro.
Starbuck e Apollo pilotavam os seus vipers como se os engenhos polidos
fossem o prolongamento dos seus próprios corpos. Conseguiam realizar a
maior parte das suas funções sem pensar, automaticamente, tal como não era
preciso pensar para pôr um pé em frente do outro. Mas com o perigo sempre
iminente do aparecimento inesperado de uma esquadrilha de combate dos
Cylons, não havia a possibilidade de um piloto se entregar a uma confortável
sensação de rotina. Se um tal ataque viesse a verificar-se, não haveria tempo
para hesitações. Pilotos experimentados já tinham sido reduzidos a estilhaços
por terem permitido a si próprios alguns momentos de distração, perdidos nos
seus devaneios durante uma missão de «rotina». Todas as missões tinham de
ser conduzidas como se a qualquer momento pudessem levar até junto do
inimigo, ainda que não houvesse notícias de qualquer atividade por parte dos
Cylons no sector que estava a ser patrulhado. Um piloto de viper tinha de se
manter num alerta constante. A paranoia era uma qualidade muito útil num
guerreiro.
No entanto, manter o espírito num estado de alerta constante era um
esforço exaustivo. Quando um piloto começava a sentir o esforço exigido por
esse estado de vigilância constante, o seu espírito começava a divagar. Para
impedir tal situação, os pilotos mantinham uma conversa animada entre si
sempre que executavam os seus voos de patrulha. Era uma forma de encurtar
a distância que separava os aparelhos, uma forma de se manterem vigilantes,
de terem a sensação reconfortante de que tinham um amigo ali perto, pronto a
estender-lhes a mão, se necessário. A camaradagem que resultava destas
conversas aparentemente banais era qualquer coisa que só um piloto podia
compreender. Depois de voltar de uma missão, então sim, haveria tempo para
se descontraírem, para descansarem juntamente com as suas tripulações, os
seus amigos e companheiros.
No caso do capitão Apollo, se a patrulha indicasse que a Galactica, bem
como a sua frota, não estava na iminência de um ataque por parte das forças
dos Cylons, ele teria tempo para estar a sós com o filho, Boxey. E sua irmã,
se conseguisse libertar-se um pouco das suas obrigações, viria também
juntar-se a eles. Apollo apreciava particularmente aqueles momentos de
intimidade com Boxey e Athena. Ambos constituíam a sua família. Embora
tivesse adotado Boxey, que ficara órfão quando da destruição da colônia em
Caprica, Apollo não tinha menos amor ao pequeno do que se ele fosse
realmente seu filho. Seu e de Serena.
Havia dentro dele um vazio que nunca mais o deixara desde a morte de
Serena. Havia soluções que permitiam a Apollo evitar aquele sentimento de
desespero que lhe rasgava as entranhas sempre que tinha de viver sem ela. No
mais aceso da luta, nunca tinha consciência da perda. Por vezes servia-se das
suas obrigações a bordo da Galactica como de um escudo que o protegia do
sofrimento, mas todos os esforços que fazia para escapar ao desgosto eram,
na melhor das hipóteses, soluções temporárias. Costumava dizer para consigo
mesmo que com o tempo o desgosto abrandaria. Mas ninguém sabia
exatamente quanto tempo seria preciso.
A guerra tinha-os juntado e fora também a guerra que os separara. O
tempo que passaram juntos fora tão intoleravelmente curto... Quando pensava
em Serena, o olhar de Apollo turvava-se com as lágrimas, que mal conseguia
reprimir. Não permitia a si próprio chorar quando em serviço ou na presença
de camaradas. Mas por vezes, nos seus aposentos privados, a visão do
pesadelo de Caprica a arder acordava-o e, instintivamente, estendia o braço à
procura de Serena. Mas ela não estava lá. E então, naquela altura em que
ninguém o podia ver ou ouvir, Apollo permitia-se dar largas à sua dor.
Chorava pela perda da mulher, pela perda de Caprica e de outras colônias do
espaço e pela perda da relação estreita que outrora tivera com o pai.
Apollo amava Adama e sabia que o pai o amava também, mas nunca
mais poderiam voltar a ser como eram dantes, antes de Apollo receber a sua
missão, antes de a traição dos Cylons os ter tornado a todos órfãos das
estrelas. Os laços entre pai e filho continuavam a existir, tal como o seu amor
reciproco, mas a guerra significava que, em primeiro lugar, Adama era o seu
comandante e só depois podia pensar que era seu pai. E isto muitas vezes
criava entre eles um distanciamento doloroso mas necessário.
Cabia a Adama o fardo terrível da responsabilidade pelos sobreviventes
do holocausto. O seu bem-estar e a sua sobrevivência estavam em primeiro
lugar. Ainda que isso significasse mandar o filho ao encontro da morte,
Adama fá-lo-ia. Era esse o seu dever, tal como era o dever de Apollo
sacrificar a sua própria vida, se necessário, para proteger a frota. Era uma
situação que tanto o pai como o filho compreendiam. E ambos a aceitavam.
Não tinham outra alternativa.
Starbuck, por sua vez, tinha uma maneira pessoal de passar sozinho o
tempo que se seguia a uma missão, de fazer face às tensões da situação. De
certa maneira, as coisas não eram tão complicadas para Starbuck como para
Apollo, dado que Starbuck se sentia estimulado nas situações de tensão. Tal
como a guerra o estimulava também. E esse era para ele o problema mais
difícil. Starbuck não gostava da guerra. Via nela uma manifestação de
loucura. Desprezava a guerra com os Cylons com uma veemência só
comparável, talvez, à de Apollo. E no entanto Starbuck era um guerreiro.
Sabia que nascera para o ser. Nas suas horas de folga, gostava de passar o
tempo a jogar as cartas e a beber baharri com os outros pilotos; apreciava a
companhia das mulheres e elas, por sua vez, apreciavam a companhia dele.
Mas Starbuck sabia que as únicas ocasiões em que vivia plenamente era
quando estava na cabina do seu viper, arrastando os guerreiros cylons para a
maior de todas as jogadas, a jogada mortífera da vida e da morte.
À semelhança de Apollo, Starbuck tinha nascido durante a guerra.
Nunca conhecera outra coisa, e o mesmo acontecia com todos os outros
sobreviventes. Parecia-lhe que a raça humana andava em guerra com os
Cylons desde o princípio dos tempos, lutando para salvar a própria vida
contra um inimigo totalmente empenhado no extermínio da raça humana. A
sua maior aspiração era a paz. Mas apesar disso, Starbuck perguntava muitas
vezes a si próprio se haveria lugar para ele em tempo de paz. Era um
guerreiro, um rebelde, um jogador. Nos momentos em que se encontrava
sozinho, em sossego, debatia-se com o dilema da sua própria existência.
Perguntava a si próprio que é que havia nele que o enchia de uma vitalidade
de tal forma vibrante cada vez que entrava em combate? Que seria que o
levava a correr riscos que mais ninguém corria? Que estranho, perverso,
aspecto da sua personalidade o levava a desafiar a Ceifeira, correndo muitas
vezes riscos insensatos, só para se deleitar na euforia de derrotar a morte?
Quando o sono não vinha, Starbuck ficava deitado no seu beliche, fixando o
teto, perguntando a si próprio que espécie de homem poderia viver para o
risco da morte. Não sabia como responder, e por vezes nem sequer tinha a
certeza se queria conhecer a resposta. Era uma faceta sua que ninguém
conhecia. Para a tripulação da Galactica, o tenente Starbuck era um maroto
sem cuidados, um piloto altamente qualificado, jogador inveterado, femeeiro
e patifório. A velha piada de caserna «Nunca ser voluntário para nada»
tornara-se conhecida dos homens e das mulheres da Galactica como sendo a
«Lei de Starbuck». No entanto, aqueles que o conheciam bem sabiam que,
apesar da sua reputação de egoísta e autopreservação, Starbuck acabava
sempre por aceitar aquelas missões, que, como ele próprio dizia, ninguém
queria nem a brincar.
Era uma vida dura. Uma vida que tinha de ser vivida inteiramente a
pensar no presente. Não podiam permitir-se alimentar quaisquer esperanças.
Mas, como guerreiros, tinham de viver cem ianos de cada vez. Tinham de
levar a cabo as suas missões com os olhos pregados nos instrumentos de
bordo, sem nunca permitirem a si mesmos qualquer distração. Aos olhos dos
homens e mulheres mais novos da frota, e em especial dos cadetes, a vida de
um piloto de combate parecia cheia de brilho e aventura. Starbuck e Apollo,
ambos comprovados veteranos de guerra, sabiam que não era assim. A guerra
não tinha nada de brilhante. E o sabor da aventura depressa se deteriorava
quando o fluxo de adrenalina provocado pelo combate se gastava e era
substituído por um estado de exaustão profunda, exaustão e tremuras, que
todos os pilotos sentiam, embora nenhum deles quisesse admiti-lo, mesmo
perante os outros pilotos.
Sentado na cabina do seu viper, Apollo manuseava os controlos com um
à-vontade que só era possível após ianos de prática constante. Os seus olhos
nunca se desviavam do escrutinador. Encontrava-se num estado de alerta total
e era-lhe agradável saber que o viper de Starbuck o seguia. Os dois homens
atuavam em conjunto como peças bem oleadas da mesma máquina. Apesar
da diferença das suas personalidades, como pilotos de viper completavam-se
perfeitamente.
Estavam a chegar ao ponto de regresso do que fora uma patrulha de
reconhecimento sem história, quando qualquer coisa fez arrepiar os cabelos
na nuca de Apollo. Estremeceu ligeiramente, como se tivesse sentido alguma
coisa rastejar naquele sítio.
— Starbuck? — disse Apollo, observando ansiosamente o seu
escrutinador.
— Sim. — A voz de Starbuck soou forte e nítida no circuito de
comunicação instalado no capacete de Apollo.
— Não sei o que é — disse Apollo —, mas tenho a estranha sensação de
que não estamos sozinhos.
Starbuck deixou que o olhar se lhe desviasse momentaneamente dos
instrumentos e foi pousá-los no viper de Apollo, que voava ao lado do seu.
Tinha o instinto do jogador, e nenhum jogador alguma vez despreza um
sentimento intuitivo. Starbuck era bem conhecido pela sua sorte de jogador,
mas havia ocasiões em que o instinto de lutador de Apollo batia os famosos
palpites de Starbuck, aproximando-se da premonição.
— Não tenho nada no meu escrutinador — disse Starbuck, começando a
sentir-se ligeiramente tenso.
Na cabina de Apollo dois pontos ameaçadores apareceram no écran.
— Starbuck...
O outro conhecia bem de mais aquele tom de voz.
— Oh, oh...
Starbuck passou a língua pelos lábios, nervosamente, com os olhos
pregados no escrutinador. Este continuava vazio. Inclinou-se ligeiramente
para a frente para lhe ajustar a inclinação direcional, afinando-a
cuidadosamente.
— Não encontro nada — disse. — Não temos nada à frente...
— Estou com o escrutinador traseiro — disse Apollo. — Tenho dois
pontos atrás de nós...
— Ótimo. A que distância? — Starbuck ligou o escrutinador traseiro e
foi precisamente nesse momento que ficaram sob fogo, quando raios de
energia, de um brilho ofuscante, cortaram o espaço em redor deles e por
pouco não acertaram nas duas naves.
— Estão perto, hem?
— Aproximam-se a toda a velocidade — disse Apollo. — E nós não
temos combustível suficiente para uma fuga. A coisa não me parece lá muito
boa. Vou seguir para a direita...
— E eu para a esquerda — retrucou Starbuck, sentindo-se impelido pelo
habitual fluxo de adrenalina. — Boa sorte, meu velho.
— Vamos precisar bem dela — disse Apollo. — Vou mandar um sinal
automático à frota. Até depois...
Apollo tocou no botão que emitia o sinal de perigo para a Galactica.
Não deixaria de transmitir enquanto não fosse desligado ou atirado pelos
ares. Na sua mesa de comandos acendeu-se uma luz vermelha quando o sinal
começou a ser emitido, enquanto os dois pilotos, atuando em conjunto como
peças de relojoaria, fizeram rolar os seus vipers em direções opostas,
separando-se, numa tentativa de evitar os raios laser dos seus perseguidores.
Sheba soltou uma praga em voz baixa ao ver as duas naves afastarem-se
uma da outra, rolando para a direita e para a esquerda. Estavam ainda
demasiado distantes para que pudesse vê-las claramente, mas não estava
disposta a correr riscos com os guerreiros cylons. As duas naves que ela
estava a perseguir juntamente com o companheiro Bojay não haviam de lhe
escapar. Disparara logo que as tivera ao alcance e tinha a certeza de não o ter
feito precipitadamente; no entanto, falhara. Apesar de terem sido apanhados
de surpresa, as naves tinham reagido quase instantaneamente.
«Quase como se soubessem que os íamos atacar», pensou Sheba. Parecia
que os ianos de luta estavam a começar a fazer dos Cylons melhores
voadores. Um pensamento inquietante. Ouviu a exclamação de surpresa de
Bojay através do circuito de comunicação do seu capacete e ficou a saber que
a manobra repentina do seu alvo também o tinha impressionado. Mas não
havia tempo a perder com comentários dirigidos aos pilotos inimigos quanto
à sua destreza no voo. Ambos tinham diante de si a tarefa que lhes competia,
depois de perdida a vantagem do inesperado.
— Eu encarrego-me do da direita — disse Sheba, voltando o seu viper
de maneira a seguir a nave de Apollo.
No interior da cabina, Bojay sorriu e tocou na insígnia em forma de
cabeça de cavalo que lhe enfeitava o capacete. Era qualquer coisa de muito
pessoal, aquele gesto que representava a sua única superstição, mas o ato de
tocar no emblema do capacete era uma maneira de desejar sorte ao seu
comandante, esperando que essa sorte fosse também a sua.
— O da esquerda já está como há de ir — disse Bojay. — Eu volto já
para te ajudar com o outro.
— Bom, se eu precisar de ajuda — respondeu Sheba.
Os dois vipers separaram-se para a perseguição, rolando cada um para o
seu lado e a caçada começou. O fato de chegarem pela parte de trás constituía
uma vantagem para Sheba e para o seu companheiro. Uma coisa que os caças
cylons tinham em comum com a concepção dos vipers era o fato de não
estarem preparados para disparar à retaguarda. Os caças eram concebidos
para serem o mais leves possível, tanto por uma questão de economia como
pelo fato de, entre todas as naves, serem os caças esguios os que tinham a
mais elevada taxa de mortalidade. Uma nave mais leve era mais fácil de
preparar para a luta e mais fácil de lançar a alta velocidade. A maior parte do
seu peso residia no combustível que transportava. A finalidade dos caças era
a sua rapidez e facilidade de manobra. Acrescentar-lhes baterias de lasers
posteriores seria o mesmo que sacrificar peso e espaço preciosos para
combustível. O que se pretendia obter de um caça era um veículo para o
transporte de um número mínimo de baterias lasers tão longe e tão
rapidamente quanto possível, dentro dos limites das suas possibilidades. Não
transportava nem mais nem menos do que aquilo que era suposto ser
necessário para cumprir uma missão. O que, nas circunstâncias presentes, era
uma sorte para Bojay e Sheba, pois significava que enquanto os seus alvos
estivessem em fuga não poderiam disparar. Praticamente a única forma de as
naves inimigas responderem ao ataque, naquela situação, seria usarem os
jatos de manobra para os fazerem dar uma cambalhota, invertendo portanto as
suas posições, mas isso significava que durante a manobra iriam expor uma
superfície maior, constituindo portanto um alvo também maior. Nem mesmo
os Cylons era estúpidos àquele ponto.
A única possibilidade que lhes restava era continuarem a fuga, na
esperança de conseguirem fazer que nem Bojay nem Sheba lhes
adivinhassem a rota. Assim, talvez conseguissem ganhar avanço sobre eles
ou tentar uma inversão, indo colocar-se-lhes à traseira. Sheba não ia deixar
que isso acontecesse. Recorrendo a todas as reservas de habilidade e intuição
que adquirira em ianos de experiência em combate, respondeu rigorosamente
a cada movimento da nave inimiga. E para isso tinha de recorrer à sua mais
íntima partícula de habilidade. Sheba mordeu o lábio inferior ao perceber que
por uma fração de segundo não teria conseguido evitar que a nave inimiga a
ludibriasse.
«O malandro é mesmo bom», pensou. Melhor do que aquilo que deveria
ser. Mas a situação dele era mais difícil. Na posição em que estava não podia
ripostar ao fogo que caía sobre ele e, na medida em que escolhera pôr-se em
fuga, permitia-lhe a ela reduzir a distância entre ambos, desde que
conseguisse não cometer qualquer erro.
Bojay estava passando pelas mesmas dificuldades. Mal conseguia ter o
inimigo à vista, a nave lançava-se a toda a velocidade para um dos lados,
fazendo que o seu tiro se perdesse no espaço. Lamentava ter-se gabado antes
de que seria capaz de dar cabo da nave «num abrir e fechar de olhos». Na
realidade, estava a demorar bastante mais do que isso. O piloto da nave que
ele perseguia era absolutamente de primeira categoria. Havia ianos que não
via ninguém conduzir daquela forma um aparelho em fuga. Pelo menos
desde...
Ao aproximar-se da nave de Apollo, Sheba carregou num interruptor da
sua mesa de comandos que lhe permitiria fazer uma leitura da forma de vida
do piloto inimigo. Havia uma coisa que começava a preocupá-la. À medida
que a distância entre as duas naves diminuía, começava a tornar-se-lhe visível
na configuração do seu oponente qualquer coisa que lhe parecia muito
familiar e, ao mesmo tempo, errada. Ou os Cylons tinham começado a usar
de repente um desenho totalmente novo ou...
Fixou o olhar no escrutinador e os olhos dilataram-se-lhe ao ler a
informação que lhe era fornecida.
«FORMAS VIVAS... HUMANAS... HUMANAS... HUMANAS...»
Bojay! Tinha de o fazer parar antes que fosse tarde de mais. Pôs-se a
gritar para o microfone que tinha no capacete:
— Bojay! Cessar fogo! Cessar fogo!
A voz dele chegou-lhe através do intercomunicador.
— Cessar fogo? Estás doida? Cain come-nos ao jantar se os deixamos
fugir! Já comunicámos a ocorrência e eu estou quase a...
— Mas eles são humanos, Bojay!
— O quê?
— Foi o que eu disse... são humanos'.
Bojay não tinha a certeza de ter ouvido bem.
— É impossível — disse. — É uma artimanha qualquer. Um
escrutinador que não está a funcionar bem.
Ligou o seu próprio escrutinador de maneira a obter a informação da
forma de vida e ficou espantado com o que viu. Não podia ser. Pura e
simplesmente não podia ser.
— Não acredito — disse baixinho.
A voz de Sheba chegou de novo até ele.
— Ligação ao unicom...
Ligou para a frequência de chamada que levaria a mensagem até às
outras naves. Vipers. Foram vipers!.
— Atenção — Sheba dirigiu-se às naves. — Atenção... atenção... daqui
o chefe de grupo do Lança de Prata ordenando aos pilotos dos vipers que
abrandem e se rendam. Temos o alvo em mira...
***
Não havia engano possível quanto à voz humana que chegava até ele
através do circuito de comunicação. Mesmo enquanto continuava a fuga, o
espírito de Starbuck trabalhava veloz. Esquadrilha Lança de Prata? Que diabo
era aquilo? Bem podia ser uma partida. Um sintetizador vocal; já
anteriormente isso tinha sido tentado. «Sejam eles quem forem», pensou
Starbuck, «são mas é muito bons.» Bons de mais. Tentasse ele o que tentasse,
não conseguia ver-se livre do seu perseguidor. Ligou o escrutinador de forma
a obter uma informação sobre a forma de vida. Eram mesmo humanos!
— Apollo!
— Já sei — disse Apollo. — É verdade. Tenho-os no escrutinador e a
informação mostra que se trata de humanos, mas pode ser uma artimanha. Os
Cylons podem ter aparecido com qualquer novidade que nós desconhecemos.
Mas não há nada a fazer, Starbuck; sejam eles quem forem, têm-nos na mão.
Ligou o circuito para a frequência de unicomunicação.
— Daqui capitão Apollo, comandante de choque do estrela-de-batalha
Galactica. Quem são vocês?
A voz da mulher chegou até ele pelo circuito de comunicação, falando
ao companheiro.
— Bojay?
— Eu ouvi. Mas não é possível. Eles morreram. Não é possível...
Apollo ouviu a interrupção vinda da voz de Starbuck.
— Bojay? Foi Bojay que ela disse?
— Starbuck! — O indivíduo a quem chamavam Bojay parecia que
acabava de ver um fantasma. — Por tudo o que há de mais sagrado...
Apollo ouviu Bojay soltar um brado que quase o ensurdeceu.
— Apollo! — A voz de Starbuck revelava choque e incredulidade. — É
mesmo Bojay! Não te lembras? Fazia parte da nossa esquadrilha até...
A voz de Starbuck sumiu-se.
— Até ser transferido para a quinta frota — Apollo concluiu a frase
começada. — Lembro-me muito bem. E desapareceram todos na batalha de
Molecay.
— Há dois ianos — disse Starbuck. — Só que ou não morreram ou...
— Ou quem morreu fomos nós? — disse Apollo. — Não me venhas com
essas bebedeiras do espaço, Starbuck. Tem de haver uma explicação racional.
De qualquer maneira, se nos quisessem matar já o podiam ter feito. Acho que
será melhor fazermos o que disse aquela senhora.
CAPÍTULO II
O oficial de voo Tolen levantou os olhos dos écrans da ponte de
comando do Pegasus.
— Previna o comandante Cain — disse para um dos oficiais que
estavam ali ao pé.
A patrulha vinha de regresso escoltando duas naves. Dois vipers de
combate! Ligou o circuito de comunicação para o exterior e ficou espantado,
tal como os outros homens e mulheres que se encontravam na ponte, ao
ouvirem a conversa que se desenrolava entre os membros da sua própria
patrulha e os pilotos dos dois vipers que eles escoltavam.
— Bojay — o homem cuja voz o circuito trazia até eles chamava-se
Starbuck, nome que parecia acordar uma certa reminiscência em Tolen —,
mas és mesmo tu? Santo Deus, nem posso acreditar! Mas conta-nos lá o que
aconteceu! Como diabo conseguiste salvar-te?
A voz de Sheba interrompeu-o.
— Mantenham-se em silêncio até aterrarmos a bordo da estrela-de-
batalha Pegasus.
— Pegasus! — A voz que Tolen escutava agora era a de Apollo.
Ignoravam as ordens de Sheba para se manterem em silêncio. Dadas as
circunstâncias, pensou Tolen, não lho podia levar a mal. Devia ter sido uma
surpresa tão grande para os outros como para ele próprio. — Não é possível
— disse Apollo.
— O Pegasus era a nave de Cain — disse Starbuck.
— O maior de todos os comandantes militares — replicou Apollo. —
Era ele o meu ídolo.
A voz irada de Sheba interrompeu-os de novo.
— O teu ídolo acaba mas é por te transformar em particulazinhas
cósmicas se não desligas esse transmissor. Caso não saibam isso, seus
engraçadinhos, estamos num sector controlado pelos Cylons.
— Oh, meu Deus... — continuou Apollo, como se não a tivesse ouvido.
Estavam agora à vista do Pegasus, que flutuava majestosamente no espaço.
— Não é um sonho — disse Apollo numa voz cheia de espanto. — E é
mesmo o Pegasus. A nave almirante do comandante Cain!
O Pegasus era gêmeo da Galactica e semelhante nos mais pequenos
pormenores à nave de Adama, exceto no que dizia respeito à idade, pois a
nave de Cain entrara ao serviço alguns ianos antes da de Adama, sendo
portanto ligeiramente mais velha. À medida que se aproximavam do Pegasus,
Apollo e Starbuck começavam a ver as diferenças em relação à sua própria
nave. O Pegasus apresentava numerosas marcas.
Viam-se os locais onde os recontros com outras naves deixaram as suas
cicatrizes. Os estragos tinham sido reparados, mas mesmo assim eram do tipo
que justificava que a nave tivesse sido enviada para ser revista. Mas
simplesmente já não havia nenhum lugar para onde a mandar. Tinha o casco
amachucado, cheio de reentrâncias e queimado em vários pontos. O Pegasus
assemelhava-se a um velho guerreiro a postos para a batalha. As estrelas-de-
batalha, a classe battlestar, eram das obras mais perfeitas das colônias do
espaço, maravilhas de uma tecnologia sofisticada, capazes de aguentar uma
boa dose de maus tratos. Pelo que viam naquele momento em relação ao
Pegasus, tanto Starbuck como Apollo deduziam que Cain não lhe dera uma
boa vida.
— Pelos Senhores de Kobol — disse Starbuck —, olhem só para aquilo!
Santo Deus, que é que consegue ainda aguentá-lo?
No interior do seu viper, Sheba cerrou os punhos, furiosa com os dois
pilotos que traziam debaixo de escolta. Estavam a comportar-se como dois
principiantes boquiabertos.
— E não se calam — disse ela. Tolen não tinha a certeza se o
comentário era dirigido a ele ou a Bojay. — Parece que acabam de ter uma
visão.
— Também não tenho a certeza se não foi isso que me aconteceu.
Tolen sabia que Cain devia estar também a ouvi-los e perguntava a si
mesmo o que é que o comandante pensaria do acontecimento. Eles ali
estavam, tentando sobreviver no meio de um território controlado pelos
Cylons, e dois vipers estranhos surgiam não se sabia de onde. De onde
podiam eles vir? As vozes dos dois pilotos pareciam humanas, mas os Cylons
eram capazes de tudo. Podia muito bem tratar-se de uma artimanha, um
truque para introduzir dois falsos vipers a bordo do Pegasus. Podia mesmo
haver qualquer engenho explosivo... Por uma questão de segurança, Tolen
mandou uma guarnição completa de guerreiros para a pista de aterragem.
Os quatro caças abrandaram, usando os mancais dianteiros para travar à
medida que se aproximavam. Ficaram alinhados em frente à escotilha,
esperando ordens da ponte. Cautelosamente, Tolen deu-lhes ordem para que
avançassem.
Uma de cada vez, as naves avançaram em direção à escotilha gigante
com o seu aro luminoso, a pista de aterragem com o seu campo de força que
impedia que as moléculas de ar aquecido quê estavam no interior escapassem
para o espaço. À medida que cada um dos vipers se aproximava do campo de
força, milimícrons antes de qualquer contato, as caixas negras que estavam
ligadas aos computadores de bordo eram desligadas automaticamente. As
luzes indicadoras do perímetro do campo de força reagiam, breves e rápidas,
à passagem de cada uma das naves, como se estivessem a atravessar uma
membrana semipermeável. A entrada do aparelho era acompanhada de
pequenas detonações provocadas por ligeiras fugas da atmosfera, que, no
entanto, não eram suficientes para afetar o ambiente no interior do local de
aterragem. A tripulação de terra indicou-lhes onde deviam pousar os vipers e
dentro de pouco tempo os pilotos erguiam as cúpulas das carlingas e
misturavam-se com a multidão de guerreiros que os rodeava.
Apollo saiu da nave sacudindo a cabeça, incrédulo.
— É uma espécie de milagre vê-los a todos aqui — disse.
Bojay veio ao encontro dele e estendeu-lhe a mão. Apertaram-se as
mãos, fitando-se reciprocamente, num misto de espanto e sobressalto.
— Imaginem então como nós nos sentimos — disse Bojay. — Há mais
de dois ianos que andamos a tentar salvar dos Cylons Molecay e os seus
satélites, sem que tivéssemos visto a partir daí um único ser humano.
— Quer isso dizer que o resto da frota foi...
— Destruída — disse Bojay com ar sombrio. — Nós somos os únicos
sobreviventes. Graças a Cain. Se não fosse o velho, também não teríamos
escapado.
Starbuck tinha-se vindo juntar a eles, atravessando por entre a massa dos
guerreiros. Tanto ele como Bojay soltaram gritos de alegria e abraçaram-se,
batendo nas costas um do outro como se o contato físico lhes viesse garantir a
ambos que o outro existia realmente.
— Vocês devem ter-se afastado das colônias para virem parar aqui tão
longe — disse Starbuck. — Por que foi isso?
— Ideia de Cain — disse Bojay. — Ele sabia que os Cylons estariam a
postos, desde Molecay até às colônias, à nossa espera. Por isso dirigiu-se para
os confins do espaço e continuou sempre em frente. Não havia outro rumo a
seguir. E nunca mais paramos de lutar.
— De fugir, queres tu dizer — comentou Apollo, compreendendo bem a
sua situação.
— Fugir? — Bojay voltou para ele o rosto com um sorriso irônico. —
Cain fugir? Essa é uma palavra que ele não conhece. Estamos
ininterruptamente em missão de ataque.
— Missão de ataque? — Starbuck ficou a olhá-lo fixamente. — Há dois
ianos que estão ininterruptamente em missão de ataque? Com quê? Como se
abastecem?
A Galactica não fazia mais do que isso; para poder continuar, parava,
sempre que possível, onde quer que pudessem pedir abastecimentos ou
arrebanhar matérias-primas. Mesmo assim tinha sido necessário desmantelar
muitas das naves mais pequenas para poderem prosseguir. E mais não
podiam fazer para conseguirem defender-se. No entanto, o Pegasus estava
sozinho. E considerava-se em missão de ataque. Na ofensiva!
— Poderia dizer-se que requisitamos os nossos fornecimentos aos
Cylons, Sr. Starbuck — disse uma voz diferente.
Tolen mantivera-se à distância, para lá da multidão, ouvindo a conversa.
Ninguém tinha dado por ele, mas o som da sua voz fizera que os homens e as
mulheres do Pegasus abrissem caminho para ele passar. Aproximou-se dos
dois pilotos da Galactica.
— Meus senhores — saudou-os com um aceno de cabeça. — Oficial de
voo Tolen. Tenho a certeza de que devem estar desejosos de fazer inúmeras
perguntas, mas antes de mais o comandante Cain gostaria de os receber nos
seus aposentos. Querem fazer o favor de me seguir?
Os olhares de Starbuck e de Apollo cruzaram-se, depois ambos se
afastaram seguindo Tolen. Starbuck falou em voz baixa para Apollo,
enquanto atravessavam a vasta pista de aterragem.
— As histórias do comandante Cain fazem parte da minha infância e
juventude — disse. — Chamavam-lhe o Jaganata.
Apollo fez um sinal de assentimento. Quando ele ainda não passava de
um rapazinho que sonhava um dia vir a ser um guerreiro, já Cain era um
herói consagrado.
— Vai ser um encontro com a própria lenda — disse.
No caminho para os aposentos de Cain, os dois homens não pararam de
olhar em volta, notando o estado da nave, observando a sua tripulação.
A notícia da sua chegada parecia ter-se propagado pela nave como um
incêndio numa floresta. Todas as pessoas por quem passavam ficavam a olhá-
los fixamente. Muitos membros da tripulação pareciam desejosos de entrar
em diálogo com eles, mas a presença de Tolen não deixava dúvidas quanto ao
local para onde se dirigiam. Era evidente que ninguém fazia esperar o
comandante Cain.
Nenhum dos dois precisava de falar. Além de não conseguirem dizer
palavra, cada um deles sabia o que o outro estava a pensar.
Havia dois ianos que o Pegasus fazia guerra aos Cylons, absolutamente
só. Mas apesar desse fato, e apesar do seu aspecto exterior, a nave era
mantida em tal estado que poderia ser submetida a uma inspeção em qualquer
altura. Os rostos dos tripulantes por quem passavam não acusavam o cansaço
da luta. Os seus movimentos eram vivos, o seu aspecto cuidado. A tripulação
do Pegasus, considerando as inevitáveis privações provocadas pela falta de
fornecimentos, parecia pronta para tomar parte numa parada. Era evidente
que Cain mantinha a bordo uma rígida disciplina militar. Para Starbuck e
Apollo tornava-se cada vez mais evidente como é que a tripulação do
Pegasus conseguia aguentar uma luta tão prolongada e tão insuportavelmente
difícil. Fortalecia-os a vontade de ferro do seu comandante.
Afinal, pensou Apollo, estavam todos sob as ordens de uma lenda viva.
Tinham muito com que alimentar o seu entusiasmo.
Quando chegaram aos aposentos de Cain, Apollo descobriu que tinha as
palmas das mãos cobertas de suor. Ia encontrar frente a frente o herói da sua
infância. De repente, sentiu-se muito jovem e muito inexperiente. Tolen fez
soar uma campainha para anunciar a sua chegada. De dentro, Cain mandou-
os entrar.
As acomodações não eram aquilo que se esperaria para o comandante de
uma tal nave. Era um fato que os aposentos de Adama a bordo da Galactica
nada tinham de luxuosos, mas a cabina de Cain era positivamente espartana.
Só por ser maior e ter uma mesa com vários écrans, uma salinha de estar e
uma cadeira grande e confortável, que era, evidentemente, o único privilégio
de posição que Cain permitia a si próprio, e uma janela aberta para o espaço,
só por isso é que a cabina de Cain se distinguia da de qualquer outro
guerreiro. A janela, que naquele momento não tinha nada a cobri-la, permitia
ver uma imensidão de estrelas e a luz no interior da cabina era muito fraca.
Um homem estava de pé, de costas para eles, deixando que a sua silhueta se
recortasse de encontro à janela panorâmica. Vestia um uniforme semelhante
ao deles, um uniforme de piloto de viper. Voltou-se, ficando de frente, mas
ainda assim não conseguiam ver-lhe claramente as feições.
— Arranje uma bebida para os nossos visitantes, Tolen — disse. —
Parecem um bocado pálidos.
Com um ligeiro movimento de cabeça, apontou para a salinha de estar.
— Instalem-se, meus senhores — continuou. — Sou a favor da
disciplina, mas não cultivo a cerimônia. Além disso, não me parece que
consigam aguentar-se lá muito bem de pé.
Os dois homens sentaram-se. Apollo passou a língua pelos lábios,
nervoso.
— É uma honra conhecê-lo, comandante — disse. — Uma grande honra.
— Sim, acredito que seja — foi a resposta.
Apollo não sabia que responder. Seguiu-se um momento de
desconfortável silêncio.
— Foi só uma tentativa de fazer humor, capitão — disse Cain. — Vão
ter de me desculpar, mas nunca consegui habituar-me a que as pessoas
ficassem a olhar para mim ou me tratassem como se eu fosse uma espécie de
divindade. Não sou. Sou apenas um soldado. Um guerreiro como o senhor.
Acontece que sou realmente um bom guerreiro, mas não deixo de ser de
carne e osso.
Tratava-se, quanto mais não fosse, de um incrível exagero depreciativo.
Quando Cain avançou para a luz, viram que o seu uniforme simples
apresentava mais condecorações do que as que qualquer deles jamais tinha
visto, incluindo o Cacho de Ouro, que trazia ao pescoço, sobre uma gravata
de plastrão, seu único toque de vaidade. O Cacho de Ouro não era entregue a
alguém só por ser um bom soldado. O ouro exigia heroísmo.
A Apollo parecia-lhe um sonho estar finalmente perante o seu ídolo, um
sonho que ele há muito julgava morto. Cain não era alto. Era de estatura
média, musculado, com o cabelo de um cinzento cor de ferro. Os olhos, de
um azul impressionante, constituíam a sua feição mais notória. A maneira de
olhar era desconfortavelmente direta. O rosto parecia esculpido em granito.
Era um homem bem-parecido, mas já não muito novo, embora aprumado
como uma vara e respirando autoridade por todos os poros.
— Pensava que não voltaria a ver outros rostos humanos, à exceção dos
da minha gente aqui do Pegasus. E, no entanto, heis-vos aqui. Mas a pergunta
que se põe é: saídos de onde?
— Da Galactica, senhor — disse Apollo. Sentia-se desconfortável, ali
sentado na presença de Cain. — Sob o comando de ...
— Adama?
Cain deslocou-se bruscamente em frente, fitando com atenção o rosto de
Apollo.
— Sim, senhor. O meu pai.
— Sim... Sim, estou a ver a semelhança. Com que então você é o filho
de Adama. Como vai o velho guerreiro?
— Bem — respondeu Apollo —, se considerarmos o peso que ele tem
carregado desde que a nossa nação foi destruída.
Cain fez um aceno de cabeça.
— Sim. Imagino. E o resto da frota?
— O único sobrevivente foi a Galactica. Juntamente com mais umas
cento e vinte naves de vários tipos, que transportam o que resta da nossa
gente.
— Santo Deus — disse Cain. — E eu a pensar que nós tínhamos
problemas. Só cento e vinte naves? E isso é tudo o que resta de todas as
colônias?
Apollo fez-lhe sinal que sim.
Cain ficou uns momentos absorto nos seus pensamentos.
— Havia uma certa jovem... — Disse, quase para si próprio.
Encaminhou-se para a sua mesa, em cima da qual havia um pequeno
projetor de hologramas. Quando falou, havia grande intensidade na sua voz,
como se quisesse saber a verdade, mas ao mesmo tempo a receasse.
— De toda essa gente das colônias — disse num tom brando —, acho
pouco provável que ela se encontre justamente no número dos raros
sobreviventes. No entanto...
Estendeu a mão para o projetor e deixou-a ficar ali a pairar, cheio de
incerteza.
— Como se chamava ela? — Perguntou Starbuck suavemente.
— O nome dela era Cassiopeia — respondeu Cain.
Enquanto falava, ligou o projetor e uma coluna de luz difusa apareceu no
centro da cabina. Cain acionou a projeção e apareceu uma imagem
holográfica de Cassiopeia. Apollo ouviu a aceleração da respiração de
Starbuck. A imagem de Cassiopeia pôs a cabeça de lado e sorriu.
— Nunca me esquecerei de ti, meu velho guerreiro. Volta depressa.
Volta depressa para junto de mim.
A imagem desapareceu.
Os dois homens continuaram sentados, num silêncio cheio de espanto. A
expressão que se via no rosto de Cassiopeia e o tom da sua voz não
enganavam ninguém. E no entanto ela nunca lhes dissera que conhecia Cain.
Mas também nunca nenhum deles lho perguntara.
Starbuck pôs-se a pensar na primeira vez que se tinham encontrado. Fora
pouco depois da destruição de Caprica. Na altura em que os Cylons
imploravam a paz, as suas naves base tinham-se colocado em posição para
atacar as colônias. Quando a traição foi descoberta, era tarde de mais.
Entre o punhado de sobreviventes que Adama tinha reunido havia uma
mulher, uma socializadora, uma cortesã altamente especializada e
companheira paga. A diferença entre uma socializadora e uma prostituta
vulgar era comparável à diferença existente entre um viper e um simples
vaivém espacial, entre um guerreiro experimentado e um cadete sem
experiência. Era uma profissão antiga e respeitada, mas havia ainda quem não
compreendesse a diferença entre uma mulher com a profissão de Cassiopeia e
uma meretriz. Starbuck dissera para si próprio nessa altura que tinha afastado
Cassiopeia por ela ter um braço partido e necessitar de cuidados clínicos e
porque as pessoas nas mãos de quem ela caíra não desejavam a sua
companhia e a tinham maltratado. Mas havia mais a dizer sobre esse assunto.
Muito mais.
Não tinha quaisquer direitos sobre Cassiopeia, mas a ideia de entrar em
competição com alguém como o comandante Cain perturbava-o
enormemente. Que era que Apollo lhe tinha chamado? Uma lenda viva?
Como se pode competir com uma pessoa assim?
— Vejo que ela teve o mesmo efeito sobre vós que sempre tem tido
sobre mim — disse Cain, interpretando mal o seu silêncio. — Ao que parece
já a conheciam.
Desviou o olhar, fitando novamente o projetor. Parecia aos dois pilotos
que Cain se sentia embaraçado por lhes ter revelado os seus sentimentos.
Antes que qualquer dos dois tivesse tido a oportunidade de dizer o que quer
que fosse, Cain mudou rapidamente de assunto.
— A propósito de mulheres bonitas — disse —, já conhecem a minha
filha?
Cain acionou uma nova projeção, fazendo aparecer a imagem de uma
jovem morena de longas pernas esguias, com os olhos negros e brilhantes. De
uma forma diferente, era tão bela como Cassiopeia. Era de uma beleza escura
e ardente, tinha um porte agressivo.
— Feliz aniversário, pai — disse. — Gosto muito de si. Sou a filha mais
feliz do universo.
Se a mensagem continha mais alguma coisa, não o ouviram porque Cain
desligou o projetor naquele momento.
— Se alguma vez eu tivesse encontrado essa jovem — disse Apollo —,
com certeza que me havia de lembrar dela.
— No entanto a voz parece-me vagamente familiar — disse Starbuck.
Cain teve um riso abafado.
— É normal. Trata-se do piloto que esteve quase a dar cabo de vocês há
bocadinho, capitão Apollo. Tal pai, tal filha, não lhes parece? É o melhor
piloto de viper que temos a bordo do Pegasus.
— Não sou eu quem o vai contradizer — disse Apollo, lembrando-se, e
muito bem, da sensação que se apoderara dele ao perceber que não havia
nada que o pudesse libertar do caça que o perseguia. Se se tratasse de um
cylon, sem dúvida teria sido reduzido a pó.
Cain sorriu de novo e voltou-se de novo para a janela, como se
procurasse qualquer coisa.
— Adama — disse em voz suave. — Quem é que havia de pensar? Sem
dúvida que a Galactica vai ser uma visão para estes olhos cansados. Os dois
juntos, novamente, na ofensiva. Golpe direto contra os Cylons.
Voltou-se, ficando de frente para Starbuck e Apollo:
— Meus senhores — disse. — Parece-me que acabaram as nossas
preocupações. O império está prestes a cair.
CAPÍTULO III
Adama estava exausto. Se o seu cabelo não tivesse embranquecido
prematuramente havia muitos anos, certamente isso teria acontecido agora,
em consequência dos rigores da sua posição de comando. E não eram apenas
os rigores do comando que faziam que Adama sentisse o peso dos anos de
uma forma como nunca sentira antes. Embora já não fosse um rapaz, Adama
tinha reservas de energia que nem os mais jovens guerreiros sob o seu
comando podiam igualar. Nem podia deixar de ser assim; o peso que tinha
sobre os ombros como oficial em chefe de uma estrela-de-batalha não era
nada, comparado com a responsabilidade que lhe coubera. A tarefa de
conduzir uma frota de pequenas naves que não tinham sido concebidas para
aquele tipo de missão no espaço, numa jornada de incalculável extensão, era
por si só bastante difícil, mesmo sem lhe acrescentar a perseguição constante
do Império Cylon.
Nada o detinha. Os seus chefes tinham jurado exterminar a raça humana
e os guerreiros cylons eram incansáveis nos seus esforços para levar a cabo as
ordens dos seus superiores. Na verdade, nada podia cansá-los. Eram
verdadeiros mísseis, zângãos programados para destruir, e tinham de cumprir
o seu programa ou morrer na luta. Não sabiam fazer mais nada. A
exclusividade desse propósito fazia deles o inimigo mais formidável que um
ser humano jamais tivera de enfrentar.
Se eles fossem qualquer outra coisa que não simples cylons, talvez
Adama tivesse sentido admiração pelo seu esforço incansável; poderia ter
sentido o respeito do guerreiro pelo inimigo valoroso. Mas Adama não
conseguia despertar em si próprio qualquer sentimento de respeito por uma
sociedade de máquinas à qual o conceito de livre arbítrio era completamente
estranho. Estranho. Uma boa palavra para descrever os Cylons. Eram as
criaturas mais estranhas que Adama jamais encontrara. Os humanos não
tinham qualquer hipótese de os compreender, nem mesmo superficialmente.
O pouco que conheciam da raça dos Cylons era já bastante assustador. Aquilo
que não conheciam era positivamente aterrador, com todas as suas
implicações.
A estrutura da sociedade cylon parecia ter muito em comum com a dos
insetos. O nível mais baixo da sociedade dos Cylons, pelo menos aquele com
o qual os humanos se tinham cruzado, eram os guerreiros. Um guerreiro
cylon era pouco mais do que uma máquina. Na realidade, as suas armaduras
tornavam-nos até semelhantes a robots, e ninguém sabia ao certo onde
terminava a armadura e começava o ser. Os Cylons pareciam organismos
cibernéticos, seres vivos parcialmente transformados em máquinas pelas
armaduras que usavam. Cada cylon, por virtude da sua sofisticada armadura,
fazia parte de uma vasta rede de comunicações. Eram como peões que os
chefes deslocavam sobre maciços tabuleiros de xadrez. No entanto, o próprio
tamanho da sua organização era um obstáculo para eles. Dada a quantidade
imensa de informações que recebiam, os seus chefes apenas podiam reagir na
medida em que fizessem uma escolha do material recebido e estabelecessem
prioridades. Embora se dissesse que os chefes cylons tinham vários cérebros
que os auxiliavam nesta tarefa, era uma sorte para Adama eles não serem
computadores. A verdade é que cometiam erros.
Os Cylons eram lentos nas suas iniciativas. A sua dependência em
relação aos chefes constituía uma vantagem para os humanos. Os Cylons não
possuíam nada que se assemelhasse à iniciativa humana. Em batalha eram
impiedosamente metódicos, mas os pilotos humanos eram capazes de
improvisar, de usar a sua intuição. Num encontro frente a frente, um caça
cylon não chegava para um viper, mas os Cylons não lutavam frente à frente.
Em luta, os seus guerreiros eram como um circuito em série, em que cada um
funcionava com todos os outros como peças de uma unidade. Era este fato
que tornava os seus ataques em torvelinho de tal forma devastadores. Para
pilotos como Starbuck e Apollo eram precisos ianos para aprenderem as
reações um do outro e poderem trabalhar em conjunto como se formassem
um todo. Os Cylons faziam-no automaticamente.
Adama quase conseguia compreender por que é que eles consideravam
os humanos como uma verdadeira ameaça. A ideia de perfeição dos Cylons
tinha as suas raízes numa sociedade em que a individualidade era sacrificada
ao ideal do bem comum. Houvera, em épocas passadas, filósofos humanos
que tinham exprimido ideias semelhantes, mas os Cylons levaram esses
princípios até ao extremo. Na sociedade cylon, o individual não existia. Cada
organismo separado não passava de uma peça da imensa máquina cylon.
Desta forma tinham sem dúvida conseguido ordem, mas por um preço que
nenhum humano estaria disposto a pagar. E era por essa razão, Adama tinha a
certeza, que os chefes cylons tinham ordenado o extermínio de todos os
humanos. Não bastava para eles a destruição de todas as colônias. A
humanidade tinha de ser apagada por completo, na totalidade. Ninguém podia
sobreviver.
Adama perguntava muitas vezes a si próprio por que razão, se tinham
atingido a perfeição, como afirmavam, os Cylons receavam tanto a raça
humana. Parecia-lhe que conhecia a razão, mas ela também não lhe dava
qualquer conforto.
A tarefa de Adama reduzira-se a um só imperativo. Sobreviver a todo o
custo. Não podia permitir a si próprio perder a esperança. Tinha de
permanecer forte para que os outros sentissem confiança e não
desesperassem. No entanto, na situação em que se encontravam, era muito
difícil manter o otimismo. As dificuldades que se lhes apresentavam
pareciam insuperáveis. E como se isso não bastasse, os últimos relatórios
sobre a sua situação nada tinham de encorajador.
— Estamos nas lonas, chefe — disse o sargento Jolly. — Entrei em
contato com todas as naves da frota. Toda a gente tem agora apenas o
indispensável para sobreviver. Se não fazemos uma paragem rápida...
Adama tinha vontade de fechar os olhos e poder simplesmente deixar de
pensar em tudo aquilo. Era-lhe preciso recorrer a todas as suas forças para
manter o controlo enquanto fixava uma vez mais os écrans da ponte de
comando da Galactica. Mais uma vez tinham de enfrentar uma catástrofe,
mas Adama não podia dar-se ao luxo de deixar transparecer os seus receios.
Era o comandante. A sua gente estaria com os olhos fitos nele para encontrar
uma solução. A única coisa para a qual Adama podia voltar-se era para a sua
fé.
— Obrigado, sargento — disse, desligando o écran. Não havia mais
nada a dizer.
O coronel Tigh veio colocar-se junto dele. Adama voltou-se, grato pela
sua presença. Havia um limite para a frustração que conseguia guardar dentro
do peito.
— Bom, realmente é de mais — disse. — Depois de conseguirmos
chegar até aqui, acabar-se-nos o combustível...
— E depois ainda não é o pior — disse Tigh, lamentando não poder
trazer ao seu comandante notícias mais encorajadoras, mas tudo o que tinha
para lhe dizer era mau.
— Oh? — Disse Adama. — Quer dizer que abandonar naves,
desmantelá-las e aproveitar tudo o que fosse possível e meter o dobro das
pessoas nos alojamentos miseráveis que nos restam ainda não é o pior? Mas
que pode haver de pior?
— Estamos a receber comunicações muito estranhas — disse Tigh.
Adama franziu a testa:
— Mas isso pode querer dizer que estamos perto de alguma civilização.
— É verdade. Mas as transmissões são dos Cylons.
— Santo Deus — disse Adama. — Não nos faltava mais nada. Estamos
a chegar ao fim das nossas reservas de combustível e começamos a receber
transmissões de uma base estelar.
— Não, meu comandante, não se trata de nenhuma base estelar —
respondeu Tigh. — A maior parte daquilo que estamos a receber são
transmissões civis.
— Civis? Mas estamos pelo menos a um sistema estelar de distância de
Cylon!
— Eu sei, meu comandante, e não encontro explicação para o fato, mas
não há dúvidas quanto àquilo que estamos a receber. — Tigh respirou fundo.
— Algures, não muito longe, há uma cidade. Uma cidade dos Cylons.
Omega aproximou-se no momento exato em que Tigh concluía a frase.
— Talvez isso explique por que é que a nossa patrulha de
reconhecimento está tão atrasada.
— Quem é que fazia parte da missão? — Perguntou Adama, receando o
pior.
— Starbuck e Apollo, senhor — disse Tigh.
Adama voltou a cabeça, para evitar que eles vissem a expressão do seu
rosto.
— Quanto tempo faltaria para lhes acabar o combustível? — Perguntou.
— Se não pararam de voar desde que partiram — disse Tigh —, já se
lhes deve ter acabado.
Adama deixou descair o corpo de encontro à mesa de comandos. Ergueu
ligeiramente o punho cerrado e deixou cair o braço ao longo do corpo.
— Então está tudo acabado — murmurou com voz fraca.
Tigh e Omega entreolharam-se. Compreendiam bem como Adama devia
sentir-se naquele momento. Ambos tinham perdido pessoas de família na
guerra com os Cylons.
— Senhor — disse Tigh —, talvez se lançássemos uma sonda...
Adama aprumou-se e voltou-se de frente para eles. Sabia que não podia
fazer nada por Starbuck e Apollo. Naquele momento tinha era de pensar na
frota.
— Não temos combustível que chegue para andar à procura de dois
combatentes. Temos de guardar o combustível que nos resta para manter os
sistemas de apoio à vida dentro da frota. Tome nota de que a patrulha de
reconhecimento desapareceu durante a missão.
O oficial de voo Rigel ergueu os olhos dos écrans do escrutinador.
— Estou a receber uma coisa muito esquisita...
— Que é? — Perguntou Tigh, aproximando-se dos écrans do
escrutinador.
— Não sei. Parece uma espécie de eco, talvez seja a imagem da
Galactica que nos vem de algum campo de iões...
Tigh sacudiu a cabeça.
— Eu já vejo o que se passa, meu comandante. Ela não tem prática do
escrutinador. Vou ver o que ela está a apanhar. Transmita isso para os écrans
da ponte, Rigel.
A imagem apareceu agora no écran imenso da ponte. Adama e Tigh
ficaram a olhá-la fixamente. Rigel tinha razão. A imagem assemelhava-se na
realidade a uma estrela-de-batalha. Tigh inclinou-se para a frente e entrou em
contato pelo intercomunicador com o pessoal de manutenção.
— Mandem verificar imediatamente a torre do escrutinador — disse. —
É evidente que há qualquer coisa que não está a funcionar bem, comandante.
Controlo... Dar maior firmeza...
Após uma hesitação momentânea, a imagem parecia querer saltar dos
écrans de controlo, tornando-se maior e mais nítida. Não havia dúvidas.
Tratava-se de uma estrela-de-batalha, o que era obviamente impossível.
— Se se trata de um eco — disse Adama —, é a transmissão mais nítida
que jamais vi.
Tigh sacudiu a cabeça.
— Devemos estar a apanhar uma transmissão antiga, meu comandante.
Qualquer coisa que tem andado por aí aos tombos há ianos. É a única
explicação possível. E no entanto...
Omega, pálido, ergueu o olhar da mesa de controlo.
— Estamos a receber um sinal pela linha de comunicação Alpha!
Adama fitou-o com um ar francamente incrédulo.
— É impossível. A linha Alpha é um comunicador indiscriminado entre
naves de guerra, e nós somos a única nave sobrevivente. Verifique os
circuitos, tem de haver...
Nesse momento a imagem do écran foi substituída pelo rosto do
comandante Cain.
— Adama, meu velho guerreiro, eu sabia que te havia de encontrar, a ti e
à tua frota, aí num canto qualquer.
Adama ficou com os olhos pregados no écran, arregalados de espanto.
Lentamente, deixou-se cair na cadeira.
— Cain! Por tudo o que há de mais sagrado...
Cain soltou uma risada:
— Não tenho nada de sagrado, meu velho. Que se passa? Dir-se-ia que
viste um fantasma. Não é possível que eu esteja com tão mau aspecto.
A tripulação reuniu-se em torno de Adama, olhos fitos nos écrans de
controlo. Não havia ninguém entre eles que não tivesse ouvido falar no
comandante Cain. No entanto, todas as informações recebidas diziam que a
sua nave fora destruída havia dois ianos.
Os écrans mostraram Cain sentado na sua cadeira de comando, na ponte
do Pegasus, com a perna por cima do braço da cadeira. Segurava numa das
mãos uma pequena bengala e batia com ela, distraidamente, de encontro à
bota.
— Adama! Acorda, homem. Tencionas ficar aí sentado, a deixar-me
abrir caminho pelo meio da tua frota ou será que vou receber algumas
instruções quanto ao nosso ponto de encontro?
Adama conseguiu finalmente refazer-se do choque que tivera ao ver um
homem que julgava morto há muito.
— Sim, sim, claro. Coronel Tigh, prepare-se para receber o comandante
Cain a bordo e coloque o Pegasus de maneira a defender-nos o flanco. Isto é
um milagre, Cain. Um milagre bendito...
— Eu é que faço os meus próprios milagres — respondeu secamente
Cain. — Mas podes pensar o que quiseres. Daqui a nada já estou a bordo.
— E eu tenho cá ambrosa de uma colheita especial à tua espera — disse
Adama.
Cain sorriu.
— Acho bem.
A imagem dele desapareceu dos écrans.
Tigh sacudiu a cabeça:
— Meu Deus, está vivo. Pensava que tivesse morrido com a quinta frota
há mais de dois ianos.
— É disso que se fazem os milagres, coronel — disse Adama —, do
impossível. E mais uma vez estamos salvos.
Os homens e as mulheres que se encontravam na ponte irromperam em
aplausos e aclamações entusiásticas.
***
As portas do vaivém abriram-se e Cain saiu para o convés de aterragem
da Galactica, acompanhado por dois guerreiros vestidos a rigor. A multidão
que enchia a pista de aterragem aclamou-o à chegada. Era como se se tratasse
de uma família a aplaudir o filho pródigo perdido há muito. Adama correu ao
encontro de Cain e abraçou-o.
— Deus te abençoe, meu velho amigo — disse. — Não fazes ideia como
me sinto neste momento. Não encontro palavras.
— Nem eu — disse Cain. Bateu no ombro de Adama. — É bom voltar a
ver-te, meu velho. Trago-te um presente para celebrar a ocasião. — Voltou-se
para uma das ordenanças. — Onde estão aqueles dois vagabundos do espaço
que nós apanhámos? Apresentem-se!
Adama não acreditava no que via. O seu próprio filho e Starbuck
emergiam da cápsula. Quando abraçou Apollo, lutava para reprimir as
lágrimas.
— Filho! Já pensava que não voltaria a ver-te.
— E era isso mesmo que teria acontecido — afirmou Cain —, se a
minha filha não os tivesse interceptado naquele preciso momento. Iam
justamente em direção a Gomoray.
— Gomoray? Não fazia a menor ideia de que estávamos assim tão perto
do Império Delfiano.
— Do que foi o Império Delfiano — disse Cain. — Agora é a mais
recente colônia do Império Cylon. Transformaram-na num modelo de
eficiência mecânica.
— Mas... Tratava-se de uma sociedade de cerca de cinquenta milhões de
seres vivos — disse Adama.
Cain sacudiu a cabeça:
— Deixou de o ser.
Um silêncio cheio de espanto espalhou-se pelo cais de aterragem à
medida que o verdadeiro alcance das palavras foi atingindo as pessoas. Os
Cylons tinham exterminado toda uma espécie.
— Parece-me que estás um pouco fora das novidades das linhas
avançadas — disse Cain. — Bom... Vamos lá ver, meu velho, onde está essa
ambrosa que me prometeste?
***
Nos aposentos particulares do comandante Adama, Cain sentou-se em
frente do amigo, brincando com o pé do copo que tinha na mão.
— Quando a quinta frota foi destruída — disse Cain —, levei todos os
sobreviventes que consegui reunir para bordo do Pegasus e dirigi-me a
Gomoray, o seu posto de abastecimento mais recente. Não havia outro sítio
para onde ir. Qualquer tentativa de regresso às colônias teria levado à
destruição da minha nave. E era isso que os Cylons esperavam que eu fizesse.
Por isso me dirigi a Gomoray. Só quando lá chegámos é que viemos a saber
que os Delfianos tinham sido exterminados pelos Cylons. Felizmente trata-se
de uma colônia recente e que ainda não dispõe de grande força. Conseguimos
sobreviver a partir daí, pondo-nos na posição de piratas e saqueando-os
sempre que precisávamos de alguma coisa. Não tínhamos outra solução.
Precisávamos de nos abastecer e não podíamos voltar atrás, era demasiado
arriscado.
— É inacreditável — disse Adama. — Se eles já conseguiram conquistar
Gomoray, isso quer dizer que o seu poderio abrange metade do universo.
Cain fez um sinal de assentimento com a cabeça:
— Estamos cercados. A única coisa que consegui fazer foi cair-lhes em
cima o maior número de vezes possível para os impedir de organizar um
ataque em força contra mim. Tenho tido muita sorte. O que nunca consegui
compreender é por que razão eles nunca mandaram vir uma frota para dar
cabo de nós. Agora já percebo porquê.
— Queres dizer que nós somos essa razão?
— Agora tudo faz sentido — disse Cain. — Nunca tinha conseguido
compreender o que se estava a passar, mas agora percebo que esta tua frota
rebelde deve ter tido prioridade. Devem estar muito interessados em te
apanhar. Nunca consegui decifrar o código deles. Não fazia ideia de que
houvesse mais sobreviventes.
— Nem eu — disse Adama. — A vossa chegada deu uma alma a toda a
nossa gente.
— E foi um golpe mortal para os Cylons — disse Cain com ar sombrio.
— Agora já podemos deitar-lhes a mão, Adama! Estamos num ponto crucial!
Adama sacudiu a cabeça:
— Meu caro amigo... A única coisa que podemos esperar conseguir dos
Cylons é o combustível de que tanto precisamos. Uma vitória militar é
impensável.
Cain franziu a testa:
— Que queres dizer? Com uma única estrela-de-batalha consegui
controlá-los neste sector. Com duas naves vou conseguir dar cabo deles! Pelo
menos em Gomoray.
— E depois?
— Depois teremos todo o combustível de que precisamos — disse Cain,
pousando o copo com tanta força que o partiu. — Além disso, temos uma
base para organizar os nossos ataques.
Adama suspirou. Cain não tinha mudado. Como sempre, estava ansioso,
pronto a esquecer toda a prudência.
— Cain, não vamos conseguir, conquistar este planeta. Todas essas
naves que não te têm incomodado andam a perseguir-me en masse. A nossa
única esperança é organizarmos um raide para arranjar combustível e seguir o
nosso caminho.
Cain ficou a olhar para Adama, longamente.
— Queres dizer, fugir?
— O que quero dizer é pormo-nos a salvo.
— Mas porquê, cos diabos? Somos capazes de voar mais depressa do
que eles. Podemos vencê-los em combate. Podemos...
— Não sei se já reparaste — interrompeu Adama —, mas eu tenho na
minha guarnição cento e vinte naves que se deslocam a uma velocidade que
apenas pode fazer delas bons alvos de treino. Tu talvez consigas voar mais
rápido do que eles, mas não é esse o meu caso.
— Deve haver outra solução — disse Cain.
— Não, não há. Mas o teu conhecimento das linhas de abastecimento
dos Cylons é de um valor incalculável. Se conseguíssemos interceptar
algumas das naves-tanques...
— Para quê preocuparmo-nos com os tanques? — Disse Cain. — Por
que não atacar de preferência a base abastecedora de Gomoray?
— Estou com muita falta de combustível. De momento, mal
conseguimos aguentar em funcionamento os sistemas de apoio. Não posso
deixar estas naves sem proteção enquanto vou conquistar um planeta inteiro,
contando apenas com as minhas reservas de combustível.
— Pois então deixa-te ficar — disse Cain. — Só preciso que me dês
duas das tuas melhores esquadrilhas, e eu próprio vou conquistar esse
depósito de combustível.
— Terei muito prazer em ajudar-te a arranjar o combustível necessário
para sair daqui para fora — disse Adama. — Faz o teu plano de ataque contra
as naves-tanques dos Cylons e podes contar com a minha aprovação.
Entretanto, permite que te façamos saborear a hospitalidade da Galactica.
Kobol sabe que bem a mereces.
Cain fez um sinal de assentimento, embora fosse evidente que não ficara
satisfeito.
— Muito bem, Adama, se é isso que desejas.
— É assim que tem de ser — disse Adama. — Não tenho qualquer
alternativa.
CAPÍTULO IV
Apollo e Starbuck avançaram rapidamente por um dos corredores da
área habitacional da Galactica, em direção à cabina de Cassiopeia.
— Que vais fazer? — Perguntou Apollo ao amigo.
— Arranjar uma forma suave de pôr as coisas — disse Starbuck. — Um
herói nacional não se pode pura e simplesmente pôr de lado.
— Partes do princípio de que Cassiopeia não vai ficar tão entusiasmada
como todos os outros quando souber que ele está de volta. Talvez até ela já
saiba... A notícia já se espalhou a bordo.
Pararam junto à porta dela.
— Apollo — observou Starbuck.
— Ah, sim, está bem — disse Apollo, olhando bem de frente para o
amigo. — Já me esquecia. Depois de experimentarem o lendário encanto de
Starbuck...
— Ora, deixa-te disso, está bem? Não era isso que eu queria dizer, e tu
bem o sabes. Mas temos de encarar as coisas de frente, ele é um homem de
mais idade. E fosse o que fosse que existiu entre eles, isso foi há muito
tempo.
Starbuck fez soar a campainha para anunciar a sua presença.
— Agora deixo-te — disse Apollo. — Boa sorte.
Starbuck entrou.
Cassiopeia não estava sozinha. Tinha junto dela Boxey e o seu
brinquedo mecânico. As crianças não tinham uma vida fácil a bordo da
Galactica. Não havia muitas na frota atual e todos os adultos tinham
consciência de que era fundamental para o seu desenvolvimento terem tempo
de serem verdadeiramente crianças. Por isso todos eles procuravam dedicar
algum tempo aos pequenitos, sempre que tinham possibilidade de o fazer. As
suas possibilidades de sobrevivência não eram muitas, mas mesmo assim eles
representavam a esperança da humanidade para o futuro.
— Starbuck!
Ela levantou-se de um salto e abraçou-o, dando-lhe um beijo amigável.
Starbuck sentia que teria havido uma grande diferença se Boxey não estivesse
presente.
— Olá, Starbuck! — Boxey levantou-se de um salto e correu para junto
dele. — O meu pai já voltou?
De repente, Starbuck sentiu que perdera uma boa parte da autoconfiança
que sentia momentos antes.
— Sim, meu rapaz. Já voltou.
Houve qualquer coisa na voz dele que alertou a grande sensibilidade de
Boxey para o fato de que alguma coisa não estava bem.
— Que é que há? — Gritou o rapaz tomado de súbita ansiedade. — Não
lhe aconteceu nada de mal, pois não?
— Não, não. Não é nada disso — acalmou-o Starbuck.
— Vem daí, Muffey — disse Boxey para o seu androide. — Vamos à
procura do pai.
Saiu precipitadamente do quarto, seguido pelo seu robot preferido, que
deslizava atrás de si o mais depressa que podia.
— Starbuck — disse Cassiopeia logo que ficaram sós. — Que há? Vejo
que tens qualquer coisa que te preocupa. Que aconteceu?
Starbuck esqueceu-se do discurso que ensaiara com todo o cuidado. As
palavras saíram-lhe desconexas e desastradas.
— Tenho uma novidade para ti — disse. — Trata-se de um velho amigo
teu. Alguém com quem é bem possível que tenhas tido uma ligação. Ou
talvez apenas uma pessoa de quem tenhas gostado, não sei, mas, seja como
for, ele foi encontrado vivo...
— Starbuck, de quem estás a falar? — Disse ela. — Quem é que foi
encontrado vivo?
— Olha, eu sei que está tudo acabado entre vocês, mas temos de arranjar
uma maneira suave de o pôr de lado. Se quiseres ser tu a fazê-lo, ótimo. Mas
terei muito gosto em tratar do caso por ti, se achares que vai ser demasiado
difícil...
— Starbuck, és capaz de te explicar? De quem estás a falar?
— Do comandante Cain.
Starbuck nunca esperara que ela reagisse daquela forma. Parecia que
parara completamente de respirar. Durante um breve momento os olhos dela
pareceram brilhar. Depois passou por ele como uma seta e correu para a
entrada, seguindo a toda a velocidade ao longo do corredor. Starbuck limitou-
se a ficar a olhá-la estupidamente.
Apollo estava na ponte, em reunião com o filho, quando Starbuck
entrou.
— Bom, então como recebeu ela a notícia? — Perguntou Apollo.
— Pior do que eu esperava. Quis ficar sozinha.
Apollo olhou fixamente para Starbuck. Conhecia o amigo bem de mais
para não ser capaz de perceber quando ele não estava a ser completamente
franco com ele.
— Então — disse —, sou eu, o Apollo, lembras-te? Sou teu amigo.
Parece-me que com os amigos se pode desabafar.
Starbuck acenou afirmativamente com a cabeça:
— Sim, pois é... Acho que não gosto de admitir perante quem quer que
seja que sou capaz de me ligar a alguém.
— Não gostas de o admitir nem sequer para ti próprio — disse Apollo.
— Isso é uma coisa que nunca consegui entender.
Starbuck sentou-se numa das cadeiras que ficavam por detrás da mesa de
controlo.
— Sempre fizeste parte de uma família numerosa — disse. — Isso foi
coisa que eu nunca tive. Limitei-me a crescer procurando ter à minha volta o
maior número de pessoas que me era possível.
— Para evitares ser magoado por alguém em especial — disse Apollo.
— Starbuck, não é mal nenhum uma pessoa sentir-se vulnerável.
— Não é que eu me rale que Cassiopeia sinta o que quer que seja por
Cain — disse, tentando resolver a questão com um encolher de ombros. —
Só não consigo é imaginar essa possibilidade. Ele é... É...
— Velho de mais? Seria melhor que lesses o Livro da Palavra —
observou Apollo. — Alguns dos anciães de Kobol estavam ligados a esposas
muito jovens.
— Esposas? Não estaremos a exagerar um bocado? Ela não podia... Não
podia ter casado com ele! Mas também quem é que se importa com isso? Eu
não, com certeza.
Starbuck levantou-se e abandonou a ponte em passo rápido.
— Pobre Starbuck — disse Boxey, que tinha ouvido tudo e percebera
muita coisa para a idade. — Bom, o que vale é que ele tem a Athena. E a
Miran. E a Noday e...
— Bom, chega de falar nesse assunto — disse Apollo. — E quem é que
te mandou ficar à escuta?
***
Cain estava a descansar nos seus aposentos de hóspede da Galactica,
numa cabina que fora temporariamente desocupada por causa dele. Na
situação que estavam a viver não havia acomodações livres a bordo da nave.
Cain estava a terminar a garrafa de Ambrosa que Adama lhe dera de presente,
quando o besouro anunciou um visitante.
— Entre.
Levantou-se e compôs o lenço que trazia ao pescoço. Depois ficou como
que paralisado. Cassiopeia estava à entrada da porta.
— Cassi... — Disse numa voz que pouco mais era do que um murmúrio.
Havia lágrimas nos olhos dela. Hesitantes, começaram a aproximar-se,
até que se encontraram nos braços um do outro, ela com a cabeça enterrada
no peito dele. Cain estreitou-a muito, roçando-lhe os lábios pelos cabelos.
— Pensava que estivesses morta — disse. — Já tinha posto de lado toda
a esperança...
— Oh, como senti a tua falta — disse Cassiopeia. — Tive de apelar para
todas as minhas forças para deixar de pensar em ti. Eu...
Abruptamente, afastou-se dele.
— Eu entendo — respondeu Cain suavemente. — Não ia pensar que
ficarias à minha espera. Não seria justo. Especialmente com tantos jovens
guerreiros por aí. Tenho a certeza de que estão todos loucamente apaixonados
por ti.
— Não. Há apenas um — disse ela. — E esse não dá facilmente o seu
amor.
— Então não percas tempo com ele.
Cassiopeia abanou a cabeça.
— Neste caso não há tempo perdido. O que ele tem é medo de gostar de
mais. Às vezes faz-me pensar em ti. Teve uma infância bastante difícil.
— Não deve ter sido mais difícil do que a tua, tenho a certeza — disse
Cain.
Ela suspirou.
— Todos nós enfrentamos a solidão, à nossa maneira. A minha maneira
foi aproximar-me de todos. A de Starbuck excluir os outros da sua vida.
— Starbuck. — Cain pensou no momento, a bordo do Pegasus, em que
lhes mostrara uma imagem holográfica de Cassiopeia. Pensara que eles não a
conhecessem. Mas agora compreendia por que é que não tinham dito nada.
Perguntava a si próprio o que teria sentido Starbuck naquela ocasião.
— É um grande guerreiro — disse Cassiopeia. — Um dos nossos
melhores pilotos. Talvez o melhor.
— Ah, sim? — Cain sorriu. Era evidente que ela já não lhe pertencia. De
qualquer maneira, seria loucura da sua parte esperar outra coisa. O fato de
saber que ela estava viva bastava para o encher de alegria.
— Não estava a compará-lo contigo — disse na defensiva. — Peço-te
que me dês algum tempo para pensar. Neste momento é de mais para mim.
— É provável que não tenhamos muito tempo — observou Cain.
Fez que sim com a cabeça:
— Eu sei. E Sheba? Está...
— Está uma linda mulher — disse Cain. — E é o melhor piloto de
combate que temos na frota.
— Tenho a impressão de que não vai ficar lá muito contente quando
souber que eu ressuscitei de entre os mortos — disse Cassiopeia.
— Talvez não. Os filhos não entendem as necessidades que um homem
pode ter nas diferentes fases da sua vida. Tu entraste na minha vida logo após
a mãe dela ter morrido. É natural que isso tenha sido difícil para ela, mas se
não fosses tu...
— Não precisas dizê-lo — interrompeu Cassiopeia. — Mas já alguma
vez te deste ao trabalho de pensar que talvez Sheba desejasse ter tido esse
papel?
— Sheba é minha filha.
Cassiopeia sorriu:
— Também eu podia ser tua filha.
— Podias ser, mas não és.
— As coisas não são tão diferentes como queres fazer parecer — disse
Cassiopeia. — Se a única coisa que procuravas era o prazer físico e uma
companhia que te impedisse de te sentires só, qualquer socializadora te teria
servido.
— Sabes muito bem que não era só isso, Cassi...
— Pois sei. E Sheba também o sabe. Por isso é que eu constituía uma
ameaça para ela.
— Sheba agora é uma mulher, Cassi. Tenho a certeza de que é capaz de
compreender.
— Gostava de ter essa certeza. Temos quase a mesma idade. O
ressentimento que ela sente por mim é causado por eu ter conseguido dar-te
alguma coisa que ela nunca soube dar-te, independentemente do amor físico.
Há alguma razão para que os sentimentos dela se tenham modificado?
Cain olhou-a nos olhos:
— Não sei, Cassi. Parece-me que muita coisa depende de ti.
***
O Clube dos Oficiais da Galactica ficou à cunha quando os pilotos das
duas naves se reuniram para celebrar o encontro. O centro das atenções era
uma jovem alta, de uma beleza vibrante, que pilotava um dos vipers do
Pegasus.
— A nossa estratégia básica — dizia Sheba — tem sido os ataques
contínuos à base cylon de Gomoray. Atacá-los sempre que possível e com a
maior violência possível, dando-lhes um mínimo de hipóteses de se
reorganizarem. Cada vez que conseguem reequipar-se, nós entramos em ação
e destruímos-lhes a base. Só assim temos conseguido sobreviver, mantê-los
constantemente na defensiva.
— Gostava de ouvir os pilotos da Galactica — observou Bojay. — Estou
convencido de que também têm dado que fazer aos cabeças de lata.
Apollo aproximou-se da mesa deles e puxou uma cadeira.
— Claro — disse. — Ainda a semana passada abatemos uma nave de
patrulha dos Cylons. Importam-se que me sente à vossa mesa?
Sheba olhou-o de alto a baixo.
— O meu nome é Apollo. Capitão de comandos Apollo. Parece-me que
andou um bom bocado atrás de mim. Você é a Sheba, não é?
A rapariga sorriu:
— Sim, a ambas as perguntas.
— Com certeza que não estava a falar a sério quando disse que abateram
uma única nave cylon numa semana inteira — observou Bojay.
— Muito a sério — respondeu Apollo. — Quando se é responsável pelas
vidas de centenas de civis apinhados em barcaças que se deslocam
lentamente há que aprender a não dar nas vistas.
— Pelo que oiço, parece que vamos ser incompatíveis — disse Sheba
secamente.
— Todos vamos ter de aprender a ajustar-nos — disse Apollo
pacientemente. — Até o lendário comandante Cain pode vir a ter de alterar as
suas técnicas de combate.
Sheba soltou uma risada:
— E quem é que lhe vai dizer uma coisa dessas?
— Na medida em que sou uma espécie de aprendiz das técnicas de
combate de seu pai — retorquiu Apollo —, estou convencido de que ele vai
tomar por si próprio essa decisão. Caso contrário, bom...
Tolen entrou justamente naquele momento no Clube dos Oficiais e
mandou os pilotos porem-se em sentido. Quando Cain entrou com a sua
guarda, todos se puseram de pé. O comandante ia acompanhado de
Cassiopeia.
— Não, não — protestou Cain. — Por favor, deixem-se estar sentados.
Não estamos em serviço. Isto é uma festa.
Aproximou-se da mesa ocupada por Sheba, Apollo, Boomer e Bojay.
— É muito bom, isso que estão a fazer — disse. — Todos nós devíamos
procurar conhecer-nos. Afinal, a partir de agora vamos ser companheiros de
luta. A próxima rodada sou eu que pago.
Os pilotos de ambas as naves aplaudiram Cain; todos, exceto a filha.
Esta ouvira dizer que Cassiopeia estava a bordo, mas era a primeira vez que
se encontravam, desde os tempos, havia muitos ianos, em que a socializadora
de cabelos louros usurpara o lugar da mãe.
— Vão ter de me desculpar — disse Sheba, pondo-se de pé. — Mas,
pela minha parte, já me chega de combates por hoje.
Quando se afastou, todos os olhares se voltaram para ela. Seguiu-se um
momento de silêncio desconfortável. Nem todos sabiam da situação que
acabara de se fazer sentir, mas não levaram muito tempo a compreender que
existia uma fricção nítida entre as duas mulheres, fosse qual fosse a razão.
— Desculpem-me — disse Apollo, levantando-se para ir atrás de Sheba.
— Nada muda — observou Cassiopeia com ar sombrio.
— Tudo muda — disse Cain. — Vem, vamos tomar uma bebida em
honra dos velhos tempos.
— As coisas podem mudar — comentou Cassiopeia suavemente —, mas
não as pessoas.
No corredor, Apollo acelerou o passo para ir ao encontro de Sheba.
— Sheba, posso falar consigo?
— Agora não — respondeu ela. — Não me parece que esteja com
disposição para isso.
— Todos nós vamos ter de trabalhar em conjunto, se queremos
sobreviver — disse Apollo.
— O problema não vai ser trabalhar consigo — retorquiu ela secamente.
— Não me parece que você esteja a entender-me bem — respondeu
Apollo. — Não podemos permitir-nos ter desentendimentos pessoais ou
rivalidades. No fim de contas, somos seres humanos, e como tal podemos ter
os nossos problemas, mas também temos um inimigo comum. E perante essa
situação não há uma única pessoa a bordo da Galactica por quem eu não
fosse capaz de arriscar a vida.
— Pois eu acho isso uma atitude muito nobre da sua parte — disse
Sheba numa voz carregada de sarcasmo. — No entanto, não estou certa de
que todos compartilhem da sua pureza de intenções. Não é possível que você
conheça todos tão bem como parece crer.
— Conheço a mulher que provocou esta sua reação.
— Ah, sim?
— Conheço-a tal como ela é agora — disse Apollo muito sério. —
Quem ela era noutro tempo ou como era não interessa. Todos nós passámos
por uma chama purificadora. Uma chama que nos limpou até ao âmago. O
que lá vai, lá vai. Agora não podemos dar-nos ao luxo de pensar noutra coisa
que não a sobrevivência.
— Não necessariamente. A sorte tem muito a ver com o caso. Eu sei
alguma coisa sobre a sobrevivência, capitão.
— Também sei que está convencida disso. Mas a verdade é que as coisas
são mais fáceis para si, numa cabina de pilotagem, com propulsores e lasers,
do que para a nossa gente, que apenas pode limitar-se a ficar sentada, à
espera. Angustiada. Acho que entendeu mal. Eu não estava a falar da força de
um lutador. Cassiopeia não é nenhum guerreiro, é sim uma das pessoas que
trabalham dia e noite para ajudar os feridos que não têm a sorte de não serem
atingidos. É um trabalho que não exige a perícia de um guerreiro, mas que
requer uma boa dose de coragem.
— Cassiopeia trabalha nos serviços de saúde? — Perguntou Sheba com
evidente admiração.
Apollo sorriu:
— Não há muito lugar para uma mulher com a antiga profissão dela a
bordo da Galactica. De uma forma ou de outra, todos tiveram de aprender a
dar o seu contributo. Estamos todos metidos no mesmo, todos. Cassiopeia
tem trabalhado muito, mais do que a maioria, e tornou-se um dos nossos
melhores técnicos de medicina.
— Ótimo, Apollo. Estou informada.
— E convencida?
— Deixe-me ser franca consigo, de piloto para piloto. Eu não sou fácil
de convencer. A fraqueza humana faz parte das pessoas. Pode tornar-se
menos conspícua em momentos de crise, mas não desaparece.
Começou a afastar-se.
— E você, Sheba? — Gritou-lhe. — Alguma fraqueza? Ela voltou-se e
olhou-o fixamente:
— Nenhuma que possa fazer-se sentir entre nós, capitão.
***
Os comandantes Cain e Adama encontravam-se em frente do mapa de
guerra multidimensional, revelando o seu piano de batalha sob o olhar atento
dos chefes de esquadrilha. Cain dava-lhes as últimas instruções.
— Os Cylons fazem passar as suas naves de combustível por esta rota —
disse, apontando para o mapa. — Trazem um tanque de quinze em quinze
dias. A sua esquadra transportadora já deve ter partido de Gomoray, mas se
avançarmos a toda a velocidade, ainda conseguiremos apanhá-los antes de
estarem fora do nosso alcance.
— A toda a velocidade? — Observou Adama. Sacudiu a cabeça. — É
muito arriscado, Cain. O combustível de que dispomos mal chega para ir até
lá e voltar.
— E não vamos precisar de mais — replicou Cain cheio de segurança.
— Mesmo assim é um grande risco — disse Adama. — Com certeza que
as naves transportadoras vão sob escolta. Uma luta prolongada levar-nos-ia a
esgotar as nossas reservas.
— Só que eles não vão estar à espera que os ataquemos — retorquiu
Cain. — E além disso eu nunca travo lutas prolongadas com os Cylons. Eles
não são assim tão bons, ao passo que nós somos!
Adama franziu a testa. A retórica bombástica de Cain estava a ter o
efeito desejado sobre os chefes de esquadrilha, estava a conseguir levantar-
lhes o moral, mas era inegável que o seu plano de batalha pressupunha um
ataque em grande escala que não deixava qualquer margem de erro. Não
podiam dar-se ao luxo de perder mais nenhuma nave. Para não falar na
eventual perda de mais vidas. Já tinha havido bastantes mortes. E ainda
haveria mais antes de chegarem ao seu destino. Era inevitável. Ele continuava
a ser o mesmo velho Cain.
O homem que vivia para lutar. Com Adama nunca fora assim.
— Muito bem — disse Adama, capitulando perante a opinião mais
abalizada do outro. Precisavam desesperadamente daquele combustível e,
embora o plano fosse arriscado, não o era de maneira nenhuma tanto como
um ataque à base dos Cylons. Tinha de escolher o mal menor. — Enviaremos
apenas uma esquadrilha de cada uma das naves.
— Sem melindre — observou Cain, dirigindo o olhar para os chefes de
esquadrilha da Galactica —, mas eu preferia mandar só gente da minha nesta
missão.
— Comandante, por razões psicológicas, parece-me que seria preferível
começar a integrar ambas as esquadrilhas, para eles começarem a criar um
espírito de equipa.
Cain encolheu os ombros:
— Como queira. Tenho a certeza de que os meus pilotos terão o maior
prazer em compartilhar a sua experiência. Vamos a isso.
Cain voltou-se e saiu do quarto, seguido com prontidão pelos seus chefes
de esquadrilha. Depois de os homens da Galactica terem saído, Apollo
deixou-se ficar, sem dúvida um tanto ressentido com as observações de Cain.
— Haverá alguma coisa que ele não faça melhor que toda a gente? —
Disse Apollo.
Adama teve um aceno de cabeça.
— Eu teria de me incluir no número dos desistentes dessa categoria.
— Ele não é bem como eu esperava — disse Apollo. — Nunca vi
ninguém ser tratado assim como... Como um deus.
— É possível — observou o pai —, mas não podes esquecer-te de que
ele tem mantido a sua gente com vida, em pleno território cylon, ao longo de
mais de dois ianos. Essa gente é capaz de tudo por ele. E também se
compreende.
— E espero que compreenda — disse Apollo — que esta... Esta
idolatria, esta veneração que todos sentem por ele, não influencia em nada
aquilo que os homens sentem por si.
Adama pousou as mãos nos ombros de Apollo:
— Isto não é nenhum concurso de popularidade, meu filho. É uma luta
de vida ou de morte pela sobrevivência de todos nós. Precisamos de homens
como Cain. A nossa gente precisa de heróis. Precisa de homens e mulheres
que lhes sirvam de exemplo. Pessoas que saibam dar-lhes coragem para
continuar.
— É o que eles sentem em relação a si.
— E espero bem nunca os decepcionar. Agora vai andando. Não quero
que a tua esquadrilha chegue ao pé dos tanques depois de Cain já ter
cumprido a sua missão. — Sorriu. — Há aqui também uma questão de
orgulho, compreendes?
— Sim, senhor.
Enquanto Apollo seguia para a luta, Adama pensava naquilo que dissera
ao filho. Uma questão de orgulho. Era o que Apollo queria ouvir. Os
sentimentos dele eram os de qualquer filho que visse o pai ser ofuscado por
outro homem. Era uma reação compreensível, especialmente num indivíduo
tão jovem como Apollo.
«Ele é um bom guerreiro», pensou Adama, «mas ainda tem muito que
aprender. Quando for mais velho... Se tiver essa sorte... Há de aprender que
há ocasiões em que temos de engolir o orgulho.» Lembrou-se de quando
Apollo era ainda um rapazinho, da sua adoração por Cain. Costumava ouvir
contar as vitórias de Cain e sonhava com o dia em que também ele seria um
guerreiro, comandante de uma estrela-de-batalha. Agora que já era um
homem, Apollo começava a compreender que até os heróis têm o seu
calcanhar-de-aquiles.
Cain tinha uma vontade forte, era um homem que não conhecia o
compromisso. Os homens e mulheres sob o seu comando, como aliás muitas
das pessoas que estavam a bordo da Galactica, tinham por ele o mesmo
sentimento que Apollo conhecera havia muitos ianos. No entanto, Apollo
reconhecia agora os perigos inerentes à adoração do herói. Ter respeito pelo
seu comandante era uma coisa, mas colocá-lo num pedestal e render-lhe
homenagem era completamente diferente. Fazer uma coisa dessas era negar a
sua humanidade. Os seres humanos cometem erros, os deuses, não.
Adama sabia que ele não teria descanso enquanto não cumprisse a
missão com êxito. Naquele momento não podiam dar-se ao luxo de cometer
erros.
***
No momento em que as naves de ataque de ambas as frotas se
preparavam para partir, a agitação era frenética nas condutas de saída das
duas naves base. As equipas de lançamento dos vipers verificavam
apressadamente os seus sistemas e os pilotos, com os seus fatos de voo,
subiam os degraus que levavam às cabinas das respectivas naves. Sentados
nas suas cabinas, Boomer e Jolly puseram os motores em movimento,
olhando com ar perfeitamente calmo e controlado as luzes indicadoras da
mesa de comandos. Através dos intercomunicadores dos capacetes ouviam as
vozes das equipas de lançamento, que percorriam agora os pontos de controlo
finais, preparatórios para o voo. Apollo pousou as mãos ao de leve nos
controlos da sua nave esguia. Estava no seu elemento. O seu espírito
encontrava-se num estado de meditação calma, enquanto aguardava a
contagem final.
A bordo do Pegasus, o comandante Cain em fato de voo caminhava
confiantemente ao longo da pista de aterragem, em direção a um viper. Sheba
interceptou-o:
— Pai, que está a fazer? Acabo de saber que tenciona seguir nesta
missão!
— Não passa de um ataque de rotina, Sheba. Não é nada de especial.
— Então por que é que vai? — Disse, mostrando no rosto toda a sua
preocupação. — Não podemos arriscar-nos a perdê-lo.
— Tenho de ir, Sheba.
— Mas porquê?
— Está a pôr em causa a minha decisão, piloto?
— Não, senhor, mas...
A expressão de Cain suavizou-se por momentos:
— Depois explico-te, Sheba. Não te preocupes. Eu sei o que estou a
fazer.
Voltou-se e subiu para a cabina do viper. Sheba sentiu vontade de
protestar, mas ele fez-lhe compreender que a sua decisão não podia ser
discutida. Além disso, não havia tempo. A rapariga correu também para o seu
viper e rodopiou para dentro da cabina. Dentro de momentos começou a
ouvir através do circuito do capacete a voz do oficial que dirigia a operação
de partida.
— Transferência do controlo para a Esquadrilha Lança de Prata. Podem
partir logo que estejam prontos.
Tanto Cain como Sheba dispararam ao mesmo tempo e os seus vipers
precipitaram-se através das condutas e lançaram-se no espaço.
CAPÍTULO V
Athena levantou os olhos dos écrans para apresentar o relatório de
partida ao seu comandante.
— A Esquadrilha Azul partiu e está a encontrar-se com a Esquadrilha
Lança de Prata do Pegasus.
Adama fez um sinal de assentimento para a filha. Sabia como Athena
teria gostado de se encontrar naquela missão. A rapariga era um bom piloto
de viper, mas a verdade é que precisava dela na ponte de comando. Além
disso já tinha um dos filhos a arriscar a vida naquele momento. Tinha de
admitir para si próprio a possibilidade bem real de vir a perder Apollo. Ser-
lhe-ia insuportável perder os dois.
— É como noutros tempos — disse o coronel Tigh, de pé junto dele. —
Refiro-me ao luxo de podermos dividir a carga da luta entre duas naves.
— Sim — respondeu Adama —, é uma grande sorte. Assim como foi
uma grande sorte encontrarmos Cain com todo o seu conhecimento da
atividade dos Cylons nesta área. Só Deus sabe o que é que podia ter
acontecido se tivéssemos penetrado no território deles.
— De certa forma é quase providencial que nos tivesse faltado o
combustível.
O comandante fez um sinal de assentimento.
— As coisas por vezes acontecem de uma forma que ultrapassa o
espírito dos mortais; Cain foi um enviado de Deus.
— Com todo o respeito — disse Tigh —, mas acho que isso é o que
ainda falta ver.
Na cabina do seu viper, Boomer ouviu a voz de um dos pilotos do grupo
Lança de Prata que lhe chegava através do intercomunicador.
— Mais quatro centons até ao nosso alvo...
Boomer franziu a testa:
— Capitão? Não parecia a voz de... Cain?
— Do comandante Cain — foi a resposta imediata. — E não deve falar,
a menos que lhe dirijam a palavra, sargento... Boomer, não é verdade?
— Sim, senhor, mas...
— Faço questão de conhecer todos os homens que estão sob o meu
comando — disse Cain. — Três centons até ao nosso alvo.
Apollo sentia-se perplexo:
— Comandante, o meu escrutinador não acusa nada. Se estamos apenas
a três centons do alvo...
— Nem pode ver nada no seu escrutinador — respondeu Cain.
— Então como...
— Mas eu sinto-os, capitão. Sinto-os no espaço. Um pouco mais à frente
já pode receber qualquer indicação ou mesmo as naves inimigas. A julgar
pela velocidade de um tanque abastecido e pela hora de partida deles, os
nossos escrutinadores não devem tardar a apanhá-los. Portanto é aqui que
temos de nos separar, antes que descubram a nossa presença.
— Julgava que íamos atacar em massa — disse Apollo.
— Capitão, eles devem ter pelo menos meia dúzia de naves de combate
a escoltá-los e que se vão lançar sobre nós. Vamos fazer isto à minha
maneira. Esquadrilha Azul, em frente. Lança de Prata, sigam-me...
Quando a esquadrilha de Cain se separou da coluna, a voz de Boomer
fez-se ouvir no intercomunicador de Apollo. Parecia um tanto duvidoso.
— Ele está a usar uma tática de evasão e nós nem sequer temos um alvo
nos escrutinadores — disse Boomer.
— Seja como for, tenho um pressentimento de que ele sabe o que está a
fazer — observou Apollo. — De qualquer maneira, se Cain tiver razão, daqui
a um micron já o saberemos, porque...
Nesse momento o alvo surgiu-lhe no escrutinador.
— Aí o temos — disse Apollo. — Um tanque cylon.
— Raios ma...
— Diz antes dois tanques — acrescentou Apollo no momento em que o
seu escrutinador recebia uma segunda imagem.
No entanto, o fato de ele estar a ver o alvo significava que os estavam
igualmente a ver a eles. Percebeu então o que Cain pretendia fazer. Mandara
a esquadrilha de Apollo seguir ao encontro deles, entrando bem no raio de
visão dos escrutinadores dos Cylons, enquanto ele os ladeava com a sua
esquadrilha para ir atacá-los de flanco, aproveitando a sua concentração na
esquadrilha de Apollo. A estratégia estava correta, mas se ele se atrasasse...
Os escrutinadores não davam qualquer indicação da presença de uma
escolta de naves de combate. Isso preocupava-o. Mas de repente viu-os surgir
a toda a velocidade de detrás do segundo tanque.
— Vamos a isto — disse. — Vamos apanhá-los, Azuis. Mas pelo amor
de Deus, aconteça o que acontecer, não toquem nos tanques!
A Esquadrilha Azul atacou em força. Cada um dos pilotos destacava-se
da formação na última fração de segundo. A diferença em número era de
quatro para um a favor dos Cylons. Enquanto defrontavam o inimigo, Apollo
não tinha tempo para pensar onde estaria Cain. Não tinha mãos a medir.
Quase imediatamente Boomer deu-se conta de que tinha duas naves a
segui-lo. Disparou contra a nave que tinha à frente, falhou, e depois,
servindo-se dos propulsores, tentou desviar-se para o lado, obliquamente,
para fugir ao fogo dos lasers que lhe rodeava a cabina, cegando-o. Teve de
calcular tudo com a maior precisão, dando tempo aos seus próprios lasers
para se reajustarem, embora não lhe fosse possível ter uma certeza, pois as
duas naves cylons não tinham disparado ao mesmo tempo. Dispunha apenas
de alguns segundos para fazer a manobra e com o risco de vir a concentrar-se,
ao deslocar-se para a direita, em pleno campo de ação dos seus raios de
energia. Acionou os propulsores e desviou-se como uma flecha para o lado,
tentando colocar-se atrás dos cylons. Teve êxito na manobra, mas um dos
raios laser passou tão próximo que, por momentos, ele ficou aturdido e os
cylons aproveitaram para recuperar.
Apollo conseguiu evitar as naves que convergiam em direção a ele, mas
observou que Jolly estava em apuros e ele não lhe podia valer. A única coisa
que podia fazer era continuar a tentar evitar os raios lasers que pareciam
cercá-lo por todos os lados.
— Desvia-te, Jolly, ele está em cima de ti!
— Não posso perdê-lo, Apollo — respondeu a voz de Jolly. — Estou em
apuros.
De repente, uma rajada de lasers atingiu a nave cylon pela traseira,
fazendo-a explodir e transformando-a numa bola de fogo silenciosa.
— Vamos a eles! — Ordenou Cain; e, com grande alívio de Apollo, a
Esquadrilha Lança de Prata entrou na luta, apanhando os cylons inteiramente
desprevenidos.
— Obrigado, seja a quem for — era a voz de Jolly, ainda com pouca
firmeza.
— O prazer foi todo meu — respondeu Cain. — Apollo... Um à sua
direita!
Apollo viu o cylon aproximar-se a grande velocidade, em ângulo e a
disparar.
— Acertei-lhe, Apollo — disse Sheba, aparecendo quase por cima do
cylon e fazendo-o desaparecer.
Apollo aproveitou o momento para abater uma nave dos Cylons por sua
conta. O ataque inesperado de Cain levara a que cerca de metade da escolta
dos Cylons fosse destruída, enquanto a sua atenção se concentrava na
Esquadrilha Azul. Antes que os cylons conseguissem recompor-se, já Apollo,
Boomer e Jolly tinham acertado uns quantos tiros.
— Estão a fugir, Apollo — gritou Boomer.
Apollo ouviu imediatamente as ordens de Cain pelo intercomunicador:
— Esquadrilha Azul, dois caças cylons estão a destacar-se para fugir.
Persigam-nos.
Ainda enquanto falava, Cain descia vertiginosamente sobre o tanque
mais próximo. Esta nave, com a sua velocidade reduzidíssima, nunca seria
capaz de escapar aos caças. Cain visou o tanque e disparou. O tanque cylon
explodiu, transformando-se numa gigantesca bola de fogo, e Cain avançou
através do braseiro, antes que ele se dissipasse, para se lançar sobre o
segundo tanque.
Apollo encarregou-se da única nave cylon de combate que restava. O
piloto nem sequer ia a tentar fugir. Tentou apenas correr à frente de Apollo,
mas a posição em que estava não tinha qualquer hipótese de escapar. Apollo
tinha-o na sua linha de fogo. Carregou no botão de controlo dos lasers e pôs
fim à situação.
— Já estão todos — disse. — Agora temos de voltar para escoltar os
tanques de volta. Bem precisamos daquele combustível.
Ao voltar-se, Apollo viu a nave de Cain abater-se sobre o tanque como
um couraçado. Cain disparou. Já não havia tanques para escoltar até chegar
novamente à frota.
— Comandante? — Disse Apollo.
A voz de Cain era clara e neutra quando respondeu pelo
intercomunicador:
— Sim, capitão, que há?
— Estava a disparar sobre um caça? Não o vi.
— Não me viu, capitão? Pois eu vi-o tão claramente como uma estrela.
— Que aconteceu aos tanques?
— Não sei, mas parece que vamos voltar de mãos vazias. Vamos reunir
as esquadrilhas para regressar.
Apollo manteve-se silencioso.
***
— As esquadrilhas de caças regressam, comandante — disse o coronel
Tigh.
Adama soltou um suspiro de alívio. A jogada tinha valido a pena. As
reservas de combustível estavam perigosamente baixas.
— Só que... — Disse Tigh, e a voz morreu-lhe na garganta.
— Só o quê, coronel?
— Nem um tanque. Parece que não conseguiram localizá-los.
O coração de Adama quase parou de bater:
— Cain parecia tão seguro da situação.
— O que é certo é que não podemos ficar aqui mais tempo. Somos
demasiado vulneráveis. E sem combustível não podemos mexer-nos. Parece
que só nos resta um caminho. Vamos ter de atacar a base deles.
E de repente tudo se tornou claro e límpido como o cristal. Cain! Adama
tinha-se recusado a aprovar o plano dele para atacar a base terrestre dos
Cylons e agora o comandante do Pegasus forçara os acontecimentos. Só lhes
restava fazer a vontade a Cain.
— Quero que o comandante Cain e os capitães compareçam nos meus
aposentos logo que aterrarem — disse Adama. Voltou-se com rapidez e
afastou-se da ponte em passo vivo.
Tigh ficou no mesmo sítio, tenso, observando os escrutinadores
enquanto a força de ataque se aproximava para aterrar. Já tinha idade
suficiente para se lembrar das táticas de combate de Cain. O comandante do
Pegasus era sem dúvida um guerreiro brilhante e um piloto soberbo, mas
sempre fora um rebelde. Um homem de menor estatura ter-se-ia destruído
com as coisas que Cain fizera, só Cain conseguira sempre resultados
positivos. Mas desta vez os resultados podiam ser desastrosos. Um ataque a
uma base cylon era já de si um empreendimento perigoso, mas tentar aterrar
lá e roubar-lhes o combustível... Pilhar-lhes os transportes de combustível, tal
como Cain fizera para se manter vivo, era uma coisa. Mas aquilo que ele os
obrigava agora a fazer parecia indubitavelmente ser o suicídio de quem
tentasse empreender tal missão. Cain pusera em ação o seu plano e agora era
impossível detê-lo. De fato, pensou Tigh, como é que se detém um Jaganata?
***
Apollo encontrava-se nos aposentos particulares do pai, observando
como Cain se livrava habilmente de ser responsabilizado pela destruição dos
tanques. Todo ele era brandura. A julgar pela maneira como falava, até o
próprio Apollo poderia ter acreditado nele. Mas Apollo tinha lá estado e sabia
aquilo que vira.
— Lamento muito, Adama — dizia Cain. — Mas eles eram em maior
número e nós tivemos de tratar de sair de lá com vida. O fato de não termos
sofrido baixas faz honra aos nossos pilotos; mas mesmo assim, com tantas
naves a combater à volta dos tanques... — Sacudiu a cabeça, tristemente. —
Eu sabia que tinha razão quando sugeri que mandássemos apenas as minhas
esquadrilhas. Não tenho nada contra a Esquadrilha Azul, mas os meus
homens têm mais experiência da tática de atacar e fugir perante um transporte
de combustível.
— Talvez tenhas razão — disse Adama num tom fatigado —, talvez
tenha sido um erro misturar duas forças que nunca tinham lutado em
conjunto.
Apollo mal conseguia controlar a fúria. Cain dava a entender que os
tanques tinham sido destruídos por simples falta de cuidado da sua ala de
ataque.
— Comandante — interrompeu com ar formal —, sem pretender faltar-
lhe ao respeito, a Esquadrilha Azul não estava de todo na proximidade dos
tanques quando eles foram pelos ares. O comandante Cain sabe-o muito bem.
Foi por ordem sua que perseguimos e atacámos as naves cylons em fuga.
Apollo olhou diretamente para Cain enquanto falava, desafiando o
comandante do Pegasus a contradizê-lo. Depois olhou para Sheba, que não
podia ter deixado de ouvir a ordem dada pelo pai à esquadrilha de Apollo. Ela
desviou o olhar.
— Não se trata de uma questão pessoal, Apollo — disse Cain. — Você e
os seus guerreiros portaram-se também como os melhores. Foi uma honra tê-
los connosco. Nem eu poderia imaginar um ataque à base dos Cylons sem
vocês.
— Não está realmente a pretender sugerir que nós...
— Não me parece que tenhamos qualquer alternativa neste momento.
Não achas, Adama?
— Parece realmente que não temos outra alternativa — disse Adama. A
voz dele era tensa. — Comunicar-te-ei a minha decisão mais tarde.
— Não podemos esperar que seja mais tarde — observou Cain. —
Temos de começar já a fazer um plano de ataque. Gostaria...
— Comunicar-te-ei a minha decisão.
— Adama, com o devido respeito...
— É tudo, comandante.
Cain retesou-se. Era a primeira vez que Adama puxava dos galões junto
dele, e era evidente que não lho levara a bem. Ia a dizer qualquer coisa em
resposta, mas reconsiderou. Fez um sinal de assentimento.
— Muito bem. Estarei no Clube dos Oficiais. Quando chegar a uma
conclusão, manda-me recado.
Bateu os calcanhares e deu meia volta com elegância, partindo sem mais
palavras. Os outros seguiram-no. Ninguém parecia desejoso de continuar
naquela atmosfera de tensão. Ninguém, a não ser Apollo.
— Pai...
Adama voltou-se, ficando de frente para ele. De repente não valia a pena
dizer mais nada. Aquilo que Cain fizera só lhe deixava uma saída. A saída de
Cain. Adama tinha de tomar uma decisão difícil, e o pior era que Cain não lhe
deixara qualquer alternativa. Quer gostassem quer não, tinham de resolver o
assunto à sua maneira.
— Nada — disse Apollo, e saiu da cabina.
Cá fora, apressou-se a ir ao encontro de Cain e Sheba.
— Sheba...
Eles pararam.
— Gostava de falar consigo.
Era evidente que Sheba não estava em estado de espírito para conversas.
Acabava de ver o pai ser repreendido. Apollo perguntava a si próprio que
mais ele teria visto na missão de ataque.
— Tencionava juntar-me ao meu pai no Clube — disse, numa voz que
indicava que não estava de maneira nenhuma interessada na companhia de
Apollo.
— Não faz mal, pequena — anuiu Cain. — Fala lá com ele. Cassi e eu
reservamos-te um lugar.
Sheba estremeceu ligeiramente ao ouvir mencionar o nome de
Cassiopeia.
— Por outro lado, talvez prefira voltar ao Pegasus em vez de ir ao
Clube.
Cain fez um sinal de cabeça:
— Faz como quiseres — e seguiu.
Apollo barrou-lhe o caminho.
— Sheba, que aconteceu durante a missão?
— Você ouviu o relato — disse, tensa. — Os tanques foram alvejados
acidentalmente.
— Está a querer dizer-me que uma pessoa tão competente como você,
como a Esquadrilha Lança de Prata, destruiu por acidente a finalidade da
nossa missão? É isso o que está a querer dizer-me?
Ela hesitou:
— Sim, é isso que estou a dizer.
Os lábios de Apollo comprimiram-se.
— Bom, parece que já encontrámos uma ou duas fraquezas, não é
verdade tenente?
Sabia que o pai tinha sabotado a missão propositadamente. Apollo não
tinha dúvidas a esse respeito. O que Apollo não podia suportar era que ela
não quisesse admitir esse fato. Zangado, voltou-se e saiu do pé dela, antes
que dissesse alguma coisa de que ambos pudessem vir a arrepender-se mais
tarde. Tal como dissera antes, iam ter de trabalhar juntos. Só que ela tornara
essa situação bastante mais difícil. As palavras de Cain ocorreram-lhe de
novo nesse momento: «Tal pai, tal filha.»
***
Todos os oficiais se encontravam reunidos na ponte da Galactica,
esperando a decisão de Adama. Falavam baixinho entre si. Só Cain se
mantinha silencioso. Não havia dúvida de que ele sabia qual ia ser a decisão.
Ele próprio já tinha forçado essa ocasião. Adama entrou e todos ficaram em
silêncio.
— Meus senhores e minhas senhoras — disse Adama, baixando a cabeça
numa saudação breve. — Os dados fornecidos pelos escrutinadores instalados
no Pegasus demonstraram-nos que um ataque à base dos Cylons em
Gomoray exigiria o sacrifício de inúmeras vidas. Não posso aceitar a ideia de
tais perdas, ainda que isso nos permitisse lançar mão ao combustível
existente no depósito dos Cylons.
— Adama — retorquiu Cain. — Não podemos dar-nos ao luxo de
escolher. Sabe-lo tão bem como eu. Sem combustível a tua frota está
condenada a morrer. É só uma questão de tempo até que as naves dos Cylons
cheguem e nos ataquem. Eles sabem que lhes destruímos os tanques. Sabem
que estamos aqui, Adama.
— Temos uma outra alternativa — disse Adama. — O Pegasus leva a
carga máxima de combustível. Vou dividi-lo pelas duas frotas.
— Vais o quê?
— Será o suficiente para nos fazer sair da área controlada pelos Cylons
sem perda de vidas. Com um pouco de sorte, havemos de encontrar outra
fonte de combustível antes que ele nos falte.
— Comandante — observou Cain —, com o devido respeito, não
podemos arriscar-nos a perder as vidas de todos os homens, mulheres e
crianças da frota por uma questão de sorte. Todo o combustível de que
precisamos está ali, na base de Gomoray. Por tudo o que há de sagrado,
Adama, temos duas estrelas-de-batalha para os atacarmos!
— Parece-me que estás a esquecer-te de uma coisa — respondeu
Adama, calmamente. — Já pensaste no que poderia acontecer se deixássemos
esta frota de naves civis sem proteção enquanto partíamos à conquista de um
planeta?
— Não vamos conquistar planeta nenhum — protestou Cain. — O nosso
objetivo é a base dos Cylons. E podemos conquistá-la, Adama. Temos a
possibilidade de entrar e sair antes de eles perceberem o que lhes caiu em
cima.
— Cain, sabes tão bem como eu que temos sido perseguidos por naves
cylons desde que deixámos o nosso sistema estelar. Atacam sem prevenir.
Neste mesmo instante podem estar a preparar-se para nos cair em cima. O
que me estás a pedir é que jogue as vidas de todas as pessoas que fazem parte
da frota.
— Tudo é possível — disse Cain. — Por mim prefiro contar com as
probabilidades, e as probabilidades são que as nossas forças combinadas nos
tragam a primeira vitória redundante desde que perdemos a guerra.
Podemos...
— Não estou interessado em vitórias — cortou Adama. — Estou
interessado em salvar vidas. As poucas vidas que nos restam. Coronel Tigh,
encarregue-se da distribuição do combustível do Pegasus pela frota.
Cain disse numa voz que parecia gelo:
— Não vou permitir uma coisa dessas, comandante.
O olhar de Adama cruzou-se com o de Cain.
— Não tem outro remédio.
— A mim parece-me que tenho. Acho que dois ianos passados a
enfrentar os Cylons sem qualquer ajuda sua deram à minha gente o direito de
escolher o seu próprio destino.
— Da mesma forma que tu decidiste o destino dos tanques dos Cylons?
— Disse Adama.
Finalmente a coisa tinha sido dita abertamente. Não havia ninguém a
bordo de qualquer das duas naves que não tivesse ouvido falar no falhanço do
ataque contra o transporte de combustível dos Cylons. Na ponte, o silêncio
tornou-se qualquer coisa de tangível.
— Fiz aquilo que achei que tinha de fazer para assegurar a sobrevivência
da nossa gente — defendeu-se Cain. — Até quando é que achas que teria
durado o combustível daqueles dois tanques? Precisamos de combustível
suficiente para manter esta frota por tempo indeterminado. Temos de
conquistar aquela base.
— É um ponto de vista, comandante — disse Adama. — Mas acontece
que não é o meu. E vou evitar que te vejas obrigado a tomar mais decisões
contrárias às ordens recebidas. A partir deste momento és exonerado do
comando. Coronel Tigh, queira assumir o comando do Pegasus.
Adama deixou a ponte. Ninguém disse uma palavra. Lentamente, todos
os oficiais começaram a ir-se embora. Nenhum deles olhou para Cain, que
ficou para trás, estupefato e solitário.
***
Sheba e Bojay foram encontrar Cain no Clube dos Oficiais, sentado
sozinho, a beber. Sheba nunca vira o pai com um ar tão... Derrotado.
Aproximaram-se da mesa dele.
— Pai — disse a rapariga. — Quero que saiba que tanto eu como os
homens o seguiremos naquilo que decidir fazer.
Cain soltou uma risada irônica:
— Obrigado, Sheba. Mas tu ouviste o que ele disse. Eu já não tenho
mais nada a decidir.
Bojay passou nervosamente a língua nos lábios:
— O que nós queríamos dizer, senhor, era...
— Eu sei o que é que queriam dizer. Aquilo que eu fiz nessa missão de
ataque foi um erro de decisão tática. Talvez esteja a exagerar, mas aquilo em
que estão a pensar chama-se motim. Eu posso ser o guerreiro mais teimoso e
mais egocêntrico da história das colônias, mas sou também o raio do melhor
guerreiro da história das colônias. Não tenho qualquer intenção de ficar na
memória de todos como aquele que se pôs a caminho e deixou um punhado
de civis indefesos à mercê dos Cylons. Deus bem sabe que eu sempre fui...
Bastante criativo na interpretação das ordens dos meus superiores, mas não
há lugar para quaisquer interpretações relativamente à ordem de Adama ao
exonerar-me das minhas funções. Ele retirou-me o Pegasus. Em frente de
todos. E quanto a isso eu nada posso fazer.
Sheba lutou para disfarçar o tremor da voz:
— Ele não tem o direito...
— Ele tem todos os direitos — disse Cain. — Mesmo que não
pertencesse ao Conselho dos Doze, Adama foi nomeado antes de mim e o
posto dele é superior ao meu. É como se me queimassem vivo, Sheba, mas
recuso-me a dirigir um motim. Posso ter sido forçado a viver como um pirata
nos dois últimos ianos, mas raios me partam se me vou tornar num
verdadeiro pirata.
***
Baltar fizera uma longa carreira, e em mais do que um sentido. De
traidor condenado à morte, por já não ter qualquer utilidade para o Império
Cylon, passara a comandante de três naves base dos Cylons. E percorrera
também um longo caminho, em que atravessara na realidade metade da
Galáxia, para ir ao encontro da Galactica e da sua patética frota.
A sua tarefa suscitava-lhe sentimentos contraditórios. Desejava ver
Adama morto como nunca desejara nada na vida, e sabia que os chefes
cylons eram tudo menos pacientes. Adama escapara-lhe repetidas vezes, e se
ele não conseguisse descobrir e exterminar em breve os últimos
sobreviventes das colônias dos Cylons podiam chegar à conclusão de que a
sua utilidade terminara. Por outro lado, se conseguisse destruir a frota de
Adama, era possível que os Cylons decidissem que ele já não lhes era preciso
para nada. Tinham contratado um humano para apanhar um humano, mas ao
mesmo tempo tinham jurado exterminar a humanidade. Baltar não estava
convencido de que viesse a ser excluído. Já sabia como os Cylons efetivavam
os seus negócios.
Nos tempos em que o Império Cylon tinha suplicado a paz só dois
homens não tinham sido levados. Ele próprio e Adama. Adama tentara
prevenir o Conselho da traição dos Cylons, mas todos eles eram já muito
velhos e cansados da guerra. Estavam desejosos de aproveitar toda e qualquer
possibilidade de pôr termo àquele conflito que durava havia gerações.
Baltar não se deixara enganar. Suspeitava que os Cylons estivessem a
tramar alguma coisa na sombra, e em vez de se arriscar a ser destruído com
todos os outros palermas, dirigiu-se aos Cylons com uma oferta que se
ajustava perfeitamente aos seus desígnios. Serviria de mediador do Império
Cylon, acalmando o Conselho com um falso sentido de segurança, fazendo
malograr os esforços de Adama e comprando ao Império Cylon o tempo
necessário para eles porem as suas naves em posição e lançarem-se num
ataque a toda a força contra as colônias. Em paga dos seus serviços, os
Cylons tinham prometido a Baltar poupá-lo, a ele e à sua colônia, pondo-o
num lugar de chefia. Prometeram. Baltar não via qualquer possibilidade de as
colônias escaparem. E não tinha vontade de morrer com elas.
Os seus esforços tinham ajudado os Cylons a alcançarem uma vitória
devastadora. Só que não tinha poupado a sua gente. Ainda se lembrava do
terror que sentira quando fora arrastado da presença do chefe imperioso,
gritando e suplicando que lhe poupassem a vida, levado por centuriões
cylons. Se não fosse a intervenção de Lucifer, teria sido decapitado e atirado
para fora da nave base dos Cylons juntamente com o lixo.
Tudo isso parecia ter sido há muito tempo. Baltar sabia que estava
apenas a ganhar tempo, mas que talvez, apenas um talvez, fosse capaz de
convencer os Cylons de que lhes era mais útil vivo do que morto. Entretanto
tinham-lhe concedido os privilégios de comandante de uma base e ele tinha
todas as intenções de gozar ao máximo a sua nova posição na vida.
Lucifer deslizou silenciosamente para cima do seu trono.
— Às vossas ordens — disse a estranha criação a quem Baltar devia a
vida.
— Fala.
— Os nossos batedores localizaram as últimas naves da frota colonial.
— Regressaram antes de serem descobertos, segundo creio — disse
Baltar.
— Tal como ordenaste — respondeu Lucifer.
— Ótimo. Chegámos ao momento final — disse Baltar com um suspiro.
— Finalmente consegui apanhar Adama, e com uma força suficiente para
fazer desaparecer a Galactica e a sua dita frota.
— Deve ser uma batalha — observou Lucifer.
— Batalha — sibilou Baltar. — Não vai ser batalha nenhuma. Uma
simples estrela-de-batalha não chega para três naves base. O que temos aqui,
meu caro Lucifer, é o que se chama uma derrota completa... Uma
humilhação... Um massacre.
— Então não tencionas mandar vir naves de apoio da nossa base de
Gomoray?
Baltar sorriu:
— A única coisa que eu quero de Gomoray é uma parada de boas-
vindas, uma celebração vitoriosa, um tributo do povo de Gomoray ao maior
chefe militar que o Império Cylon jamais conheceu. Não é possível que o
chefe imperioso não fique impressionado. Hei de convencê-lo a deixar-me
ficar com Gomoray como sede do seu poder, para daí estender o meu
domínio através do sistema estelar, em nome do Império Cylon!
— Seria mais prudente — disse Lucifer — concluir primeiro a
formalidade de correr os humanos antes de ordenar qualquer celebração da
vitória.
Havia ocasiões em que o sofisticado artefacto dos Cylons enfurecia
Baltar, mais do que ele podia tolerar. Apesar de Lucifer lhe ter salvo a vida,
Baltar odiava a máquina sensível. Com a sua capacidade de entrar em ligação
com os computadores da nave base, Lucifer tinha ao seu dispor mais
conhecimentos do que aqueles que Baltar jamais conseguiria reunir, e Lucifer
parecia ter prazer em salientar as limitações de Baltar. No entanto, Baltar é
que tinha sido feito comandante pelo chefe imperioso, não Lucifer. Um fato
que Baltar gostava de recordar a Lucifer sempre que tinha oportunidade para
isso.
— Isso foi dito num tom de sarcasmo, Lucifer — observou Baltar. —
Cuidado. Não és o único VI. És muito fácil de substituir.
— Desculpai o meu arrojo — disse Lucifer, embora sem qualquer
arrependimento na voz. — Quer que dê a ordem de partida?
— Sim, sim, claro — concordou Baltar, ansioso, agora que sabia que a
Galactica estava ao seu alcance. — Não... Espera. Tenho uma ideia ainda
melhor. Eu mesmo acompanharei a força de ataque.
— Vós? Em combate? — Lucifer modulou a voz de forma a pôr nela
uma nota de sarcasmo ainda mais subtil.
— Por que não? — Disse Baltar. — Pensa na sensação que isso vai
causar na cidade de Gomoray, quando souberem que eu próprio conduzi o
ataque final contra os humanos. Prepara uma nave com os teus dois melhores
pilotos.
— Às vossas ordens — disse Lucifer.
CAPÍTULO VI
Apollo e Boomer postaram o vaivém junto do Pegasus e esperaram
instruções para desembarcar. Na ponte, o comandante Tigh estava em frente
da mesa de comandos, andando nervosamente de um lado para o outro,
enquanto Tolen se encarregava dos escrutinadores.
— As naves de abastecimento aproximam-se — disse Tolen.
— Ótimo. Que venham a bordo e procedam à redistribuição do
combustível a todas as naves da frota — disse Tigh.
Não era fácil. A tripulação de Cain era-lhe nitidamente hostil. Tigh
sonhara em tempos comandar uma estrela-de-batalha, mas não desta forma.
Cain tivera a culpa do que acontecera. Tinha ido longe de mais. Mas parecia
que Adama tinha finalmente conseguido deter o Jaganata. Pelo menos era o
que parecia. Tigh tinha umas certas dúvidas. «Derrota» era uma palavra que
Cain não conhecia.
— Coronel? — Disse Tolen, parecendo ler-lhe os pensamentos.
— Que há?
— Penso que sabe que existe uma grande má vontade espalhada por toda
esta nave — disse Tolen. — Pergunto a mim mesmo se não seria melhor
retardar essa operação até que as coisas estejam um pouco mais calmas.
Tigh sacudiu a cabeça. Recebera ordens. Eram ordens firmes, e era
tempo de afirmar a sua autoridade.
— O comandante Adama quer que a frota esteja pronta para se meter a
caminho dentro de alguns centons — disse Tigh. — Não podemos fazer nada
disso sem combustível. Agora cumpram a ordem.
— Sim, senhor.
Apollo conduziu o vaivém suavemente através do campo de força da
pista de aterragem e pousou-o na coberta. Jolly surgiu, vindo da secção de
carga, para anunciar que tudo estava em ordem. Saíram juntos do vaivém e
imediatamente se viram confrontados por uma dezena de guerreiros, à frente
dos quais se encontravam Sheba e Bojay.
— Podemos ajudá-lo nalguma coisa, capitão?
— Não, a menos que queiram ajudar-nos a fazer a transferência do
combustível — respondeu Apollo.
— Oh? — Disse Bojay. — Que transferência é essa?
Apollo não estava com disposição para brincar.
— Nós temos um trabalho a fazer — disse. — Saiam do nosso caminho.
Nenhum dos guerreiros se mexeu.
— Muito bem — disse Apollo, olhando de soslaio para Starbuck. —
Que se está a passar aqui?
— Estamos simplesmente a defender o nosso comandante — observou
Bojay.
— O vosso comandante aceitou a ordem que o exonerava do comando
— disse Apollo. — Fariam melhor em seguir o exemplo dele.
— Olhe, capitão — retorquiu Sheba num tom zangado, que era um
desafio para Apollo. — Não parece estar a compreender a situação. Adama
humilhou o meu pai, o maior guerreiro da história das colônias. Um homem
que é de longe melhor guerreiro que o seu pai. Ele não tinha o direito de fazer
uma coisa dessas. Foi um ato inadmissível.
— Ela tem razão, Apollo — acrescentou Bojay. — Cain salvou-nos a
todos de morte certa. O menos que podemos fazer é tomar partido por ele.
Você não vai tocar nesse combustível.
— Olhe — disse Apollo, ansioso por evitar uma confrontação. —
Ninguém deseja o mal ou a desonra de Cain. Não é isso...
— Já é um bocado tarde para dizer uma coisa dessas, não é? — Atalhou
Sheba.
— Não percebem que o comandante Adama não tinha outra solução? —
Disse Boomer. — Ele não lhe deixou qualquer alternativa. Levou Adama
longe de mais e só lhe restava fazer isso. Suceda o que suceder, só pode haver
um chefe. Aquilo que estão a fazer é uma revolta.
— Está certo — comentou Bojay. — Você disse que só podemos ter um
chefe e, na nossa opinião, não temos o chefe que devíamos ter. Lutámos para
arranjar esse combustível e vamos ficar com ele.
— Só vou dizer mais esta vez o que tenho a dizer — replicou Apollo,
tenso. — Adama é o comandante da frota. Ele decidiu que não vamos mandar
as nossas defesas numa incursão duvidosa à conquista de uma base dos
Cylons enquanto o resto da frota fica indefesa. Acontece que eu até estou de
acordo com ele. Portanto, só lhes resta afastarem-se... Senão terei de os fazer
ir pelos ares.
Antes que qualquer dos guerreiros do Pegasus pudesse reagir, Apollo
puxou da arma e Boomer e Jolly fizeram o mesmo.
— Então? — Disse Boomer. — Como é que vai ser?
Nunca chegaram a descobrir. Nesse momento, por toda a nave soou o
alerta vermelho vindo da ponte.
— Aí está! — Gritou Apollo, mal conseguindo fazer-se ouvir com o
retinir do alerta. — Precisamente o que o meu pai receava; estamos a ser
atacados! Vamos, Boomer, Jolly, temos de voltar para a nave!
Na ponte do Pegasus, Tigh descobriu de repente que o ressentimento da
tripulação era o menos grave dos seus problemas.
— Aproxima-se uma grande força de ataque dos Cylons...
— Cinquenta microns... E continua a avançar...
— Ligue-me à Galactica — atalhou Tigh.
Na ponte de comando da Galactica gerou-se igual pandemônio quando a
nave se preparou para o ataque.
— Quarenta e cinco microns, e continua a avançar — informou Athena
frente aos escrutinadores.
— É a maior força cylon desde a destruição de Caprica — disse Adama,
com um rosto sombrio. — Desta vez querem mesmo acabar connosco.
Cain surgiu a toda a pressa na ponte.
— Que é? — Perguntou. — Que é que eles têm?
— Ainda não temos bem a certeza — respondeu Adama —, mas, a
julgar pela dimensão da força de ataque que vemos nos escrutinadores, quer-
me parecer que são pelo menos três naves base que vêm sobre nós.
Cain ficou a olhar para os escrutinadores, incrédulo. Furioso consigo
próprio, praguejava:
— Tens razão, Adama. Eu é que estava errado. Terrivelmente errado. Se
tivéssemos atacado a base deles, a frota teria ficado inteiramente à mercê do
inimigo. Totalmente indefesa. Fui um idiota.
— Não temos tempo para recriminações — disse Adama. — Do que
preciso agora é da tua perícia tática. Eles não precisaram de muito mais de
três naves base para aniquilar toda a nossa frota em Caprica.
— Sim, mas aí tiveram a vantagem da surpresa — disse Cain. — Desta
vez a vantagem podia ser nossa.
— Avançar com o Pegasus?
— Exatamente. Está na extremidade da frota e duvido que os
escrutinadores deles já o tenham apanhado. Não sabem que temos duas
estrelas-de-batalha. Posso fazê-lo dar a volta e esmagá-los entre as duas
naves. Isto é... Se tiver o Pegasus de volta?
— Mãos à obra, Cain. E não leves muito tempo a tomar posição. Vai ser
muito apertado.
— Está bem — disse Cain. — Mas vou ter de queimar imenso
combustível. Vou ter de usar praticamente a velocidade da luz.
— E que outra hipótese me resta? Vais ter de queimar pelo menos
metade do teu combustível para passar em volta deles sem entrar no campo
de ação dos seus escrutinadores, e além disso fazê-lo a tempo. O que preciso
é que estejas a postos quando necessitarmos de ti.
— Vinte e cinco microns. Continua a aproximar-se — disse Athena.
***
A bordo de um dos caças cylons, Baltar saboreou com deleite o
momento em que o seu piloto deu ordem para atacar.
— Vai ser uma derrota clássica — exultou Baltar, passando a língua nos
lábios, na expectativa do momento ansiado.
Será falada por toda a nação cylon no próximo milhar de ianos! Adeus,
Galactica. Adeus, Adama. É o fim.
Nem sequer faziam qualquer esforço para fugir, pensou
Baltar. Sabiam que seria inútil. A Galactica talvez conseguisse ser mais
veloz que eles, mas isso significaria abandonar o resto da frota à destruição, e
aquele pateta do Adama nunca faria uma coisa dessas. Haviam de ficar e
lutar, mesmo sem qualquer probabilidade de êxito. Não tinham qualquer
hipótese, absolutamente nenhuma. Baltar sabia que ia alcançar a sua vitória e
que o seu lugar na nação dos Cylons estaria assegurado.
***
Starbuck foi atirado para trás de encontro ao assento quando ele e todos
os vipers a bordo da Galactica se lançaram ao ataque contra a força dos
Cylons. Sentiu o habitual surto de adrenalina quando o seu viper se precipitou
pelo tubo de lançamento. Sabia que era uma loucura. Quem era o homem que
ia sorrir perante a iminência de se lançar contra uma força de ataque dos
Cylons? E no entanto sorria. Tinham-se-lhe varrido do espírito todos os
pensamentos relacionados com Cain e Cassiopeia. Tinham desaparecido
todas as perguntas que o assediavam quando não conseguia dormir. Era para
isso que ele vivia. O coração parecia bater-lhe de encontro aa peito como se
quisesse libertar-se a todo o momento e cair, pulsando doidamente, no chão
da cabina. Todos os seus sentidos pareciam transbordantes. Starbuck sentia
um verdadeiro terror, e isso dava-lhe uma sensação de euforia.
«Pois bem, rapazes», disse para consigo mesmo, «se me querem,
venham buscar-me!»
***
Na ponte do Pegasus alastrava uma verdadeira onda de atividade,
enquanto a tripulação corria para os seus postos de batalha.
— Estamos a receber uma comunicação do comandante Cain, senhor —
disse Tolen para Tigh. — Estamos a recebê-la em frequência.
— Passem-na para a p. a. — Pediu Tigh.
A imagem de Cain, sentado na cabina de um viper, apareceu nos
monitores.
— Vou retomar o comando do Pegasus, coronel.
— Fui informado pelo comandante Adama — disse Tigh.
— Ótimo. Agora tirem-me essa nave daí. Façam-na rodar cento e oitenta
graus e façam-na avançar na rota um um zero. Mantenham-se fora do raio de
visão dos escrutinadores dos Cylons. Eu vou ao vosso encontro.
— E a força que vem sobre nós?
— Deixem isso comigo. Todos os caças a postos, prontos para o
lançamento. Dentro de dez minutos estarei a bordo. — Cain terminou.
Todos os homens e mulheres que estavam na ponte soltaram aclamações
de alegria. Tolen, levado pelo espírito do momento, voltou-se para Tigh e
tentou, em vão, apagar-lhe o sorriso do rosto.
— Não se trata de uma questão pessoal, coronel — disse. — Só que...
— Eu compreendo — retorquiu Tigh. — Afinal quem é que consegue
combater uma lenda viva?
***
Todos os monitores a bordo da Galactica mostravam os caças dos
Cylons preparando-se para o ataque. Athena contava o tempo que faltava
para o contato.
— Aproximam-se a grande velocidade... dez... nove... oito... sete... seis...
cinco... quatro... três... dois... um...
— Escudo positivo — disse Adama.
O escudo deslizou sobre o posto de observação da ponte no momento em
que os Cylons atacaram. Todos os monitores mostraram o recontro entre os
caças cylons e os vipers.
Baltar conservou a sua nave longe da contenda, a uma distância segura
que lhe permitia observar a batalha.
— Desta vez a Galactica não tem qualquer hipótese — disse. Estava em
comunicação com Lucifer, que se encontrava a bordo da sua nave base. — É
preciso concentrar os nossos caças nas pistas de aterragem da Galactica. Há
que as destruir, para que os guerreiros deles não possam descer a reabastecer-
se.
Os caças cylons convergiram sobre as pistas de aterragem e alvejaram-
nas com êxito.
— Fogo na pista — informou Omega. — Coberta três.
— Controla os estragos — interrompeu Adama. — É grave?
— Não responde ao controlo, senhor. Vamos ter de inutilizar a pista
Alpha e desligar o campo de força.
— Estão a usar contra nós as nossas próprias táticas, para variar — disse
Adama. — Eliminar as nossas possibilidades de fazermos aterrar os nossos
caças e depois esgotar-lhes o combustível. Não é que nós tenhamos algum
para lhes dar.
— Baltar! — Disse Omega.
Adama acenou com a cabeça:
— Claro.
— Por mim diria que vão ter uma surpresa — comentou Omega.
«Espero bem que sim», pensou Adama, «Cain! Onde estás?»
— Continua a afastar-lhes os guerreiros da frota — disse Baltar. — Não
vão poder usar os propulsores a toda a força durante muito mais tempo.
— Só uma chamada de atenção. — A voz de Lucifer chegou até ele pelo
circuito de comunicação. — Também nós estamos a gastar uma grande
quantidade de combustível com este ataque prolongado.
— Mas os nossos caças têm onde aterrar, os deles não. Ou pelo menos
vão deixar de ter.
— Sempre nos pareceu melhor atacar e depois afastarmo-nos — disse
Lucifer.
— É por isso que perdem sempre — replicou Baltar. — Temos a última
sobrevivente das estrelas-de-batalha praticamente a postos para ser destruída.
Desta vez não temos nada que nos afastar. Vai ser o fim!
***
A bordo do Pegasus, Cain estava de novo no comando, depois de ter
praticamente queimado os motores do seu viper para chegar a tempo.
— Vamos, vamos, sempre na periferia dos escrutinadores deles, mas o
mais perto possível, para que não nos apanhem. Não podemos trair a nossa
presença. Por enquanto.
— Já estamos a deslocar-nos paralelamente à traseira dos atacantes
cylons — informou Tolen —, mas a Galactica está a sofrer um pequeno
ataque.
— Manter a direção... Estamos a chegar.
***
Baltar exultava ao ver a Galactica ser alvejada sucessivamente. Os
escudos já não aguentavam muito mais tempo. Tinham apagado os incêndios
nas pistas de aterragem, isolando-as e desligando os campos de força,
fazendo sair todo o ar do interior, mas neutralizando também ao mesmo
tempo essas pistas, pois a tripulação não podia lá entrar sem os seus fatos e os
atacantes podiam agora fazer fogo diretamente através dos portos de entrada,
causando assim prejuízos ainda maiores. Baltar observava os vipers que
tentavam em vão interceptar as naves dos Cylons no seu ataque contra a
Galactica. Não podia deixar de reconhecer que a gente de Adama estava a
oferecer uma resistência valorosa, só que eram em muito menor número.
— Senhor, se me permite...
— Agora não — disse Baltar, interrompendo um dos seus pilotos cylons.
— Não quero perder um único momento da destruição da última estrela-de-
batalha.
— E a outra estrela-de-batalha? — Perguntou o piloto.
— Que estás para aí a dizer? Qual outra... — A voz de Baltar sumiu-se
quando o escrutinador do seu caça lhe mostrou uma imagem do Pegasus, que
avançava sobre eles a grande velocidade.
— É impossível — disse.
— Não, senhor, é uma segunda estrela-de-batalha, e está a avançar sobre
nós à velocidade de...
— Vira, idiota, vira! Vêm direitos a nós!
Como sementes que saltassem de uma vagem, os vipers do Pegasus
saíram da nave-mãe e atacaram a força inimiga. Baltar entrou em pânico.
— Retirada! Ordem de retirada! Regressamos à base!
— Mas a Galactica...
— Os nossos caças já gastaram metade do combustível e esses vipers
acabam agora de chegar — disse Baltar. — Vamos, façam o que eu digo
antes que eles nos cortem a saída!
***
Tolen levantou os olhos dos écrans do monitor da ponte do Pegasus. O
plano tinha resultado.
— Os caças dos Cylons estão a retirar.
— Vão atrás deles — disse Cain. — Apanhem todos os que puderem
antes que eles cheguem às bases. Depois voltem com os vossos guerreiros.
Cain voltou-se para o oficial das comunicações.
— Liga-me com a Galactica.
Adama não tinha um momento de descanso enquanto coordenava as
esquadrilhas de defesa e dirigia os trabalhos da equipa de controlo dos
estragos.
— Qual é a situação nas pistas de aterragem seladas? — Perguntou.
— Estragos pesados, mas não irreparáveis — disse Omega, cujo rosto
acusava o esforço. — Estamos a trabalhar nos geradores do campo de força
para tentar limpar alguns dos destroços, mas perfuraram-nos o casco em
vários sítios e ainda vai demorar até conseguirmos fazer as reparações e
deixar aterrar qualquer dos nossos vipers.
— Felizmente que o Pegasus está connosco, senão perdíamos todas as
nossas naves.
— Comandante Cain em linha — disse Athena.
— Adama? Estás vivo?
— É o que parece — respondeu Adama. — Obrigado pela ajuda. As
coisas não pareciam lá muito boas por esse lado...
— E continuam a não estar lá muito boas — retrucou Cain. — E por aí?
— Neste momento está tudo em ordem — disse Adama. — Os meus
homens andam a correr como loucos para tentar reparar os estragos, mas
gostaria de fazer aterrar alguns dos meus caças. Ainda vai levar algum tempo
a reparar todas as nossas pistas de aterragem.
— Com todo o prazer — respondeu Cain. — Comandante, posso sugerir
que seja convocado um Conselho de Guerra o mais depressa possível? Neste
momento os Cylons estão em estado de choque, mas isso não vai durar.
— Concordo — disse Adama. — Encontramo-nos daqui a vinte centons
nos meus aposentos.
— Lá estarei — disse Cain.
CAPÍTULO VII
Estava escuro dentro da sala do Conselho de Guerra. A única iluminação
vinha de um gigantesco mapa das estrelas em frente do qual se encontravam
Adama, Cain, Apollo, Tigh e Tolen. No silêncio sombrio da sala do Conselho
era quase impossível esquecer a atividade frenética que se desenrolava no
resto da Galactica, enquanto a sua tripulação trabalhava desesperadamente
para fazer que a nave recuperasse do ataque devastador dos Cylons. Cada um
dos homens que se encontravam no interior da sala do Conselho sabia que a
Galactica não poderia aguentar outro ataque como aquele.
— Está confirmado — disse Apollo. — Eles têm três naves base.
— E mais tudo aquilo que resolverem mandar contra nós a partir de
Gomoray — disse Cain.
Tigh sacudiu a cabeça.
— Não podemos permitir-lhes que efetuem esse assalto conjunto. Não
seríamos capazes de sobreviver.
— Temos de destruir-lhes a base de Gomoray, e tem de ser agora —
disse Cain.
Adama sabia que, mesmo contando com o Pegasus, não conseguiriam
defender-se, e, no entanto, entrar numa ofensiva quando a situação lhes era
tão nitidamente desfavorável parecia loucura. De resto, tudo o que dizia
respeito à sua frota era uma loucura. Aquelas naves não tinham sido
concebidas para voar nas profundidades do espaço e, no entanto, tinham
chegado até ali. As probabilidades de alguma vez virem a encontrar a Terra
eram diminutas e, no entanto, era esse o seu propósito. «Até quando», pensou
Adama, «vamos poder continuar a jogar na sorte?»
— Tem de ser, Adama — disse Cain, vendo a hesitação do comandante
da Galactica. — Iríamos apanhá-los totalmente de surpresa. Temos uma
oportunidade e devemos agarrá-la. É a única maneira.
— Ele tem razão, pai — acrescentou Apollo. Sabia que agora já não era
uma questão de deixar a frota indefesa para organizar um ataque
desnecessário a Gomoray. Se Gomoray reunisse as naves base no seu
máximo ataque, nada poderiam fazer para defender a frota e a si próprios
ainda menos.
— Dispor de vidas a troco dessa base territorial é contra tudo aquilo em
que acredito — disse Adama. — Não teremos possibilidade de escolher
qualquer outra solução?
— Adama — insistiu Cain. — Duas estrelas-de-batalha chegam para
subjugar Gomoray. Não sofreremos quaisquer baixas.
Apollo sacudiu a cabeça:
— Com o devido respeito, senhor, não posso concordar consigo nesse
ponto. As baterias antiaéreas dos Cylons são à prova de qualquer ataque de
surpresa. Não podemos contar passá-las sem sofrer baixas.
— Sim, se os atacássemos em força — disse Cain. — Mas podíamos
mandar primeiro um pequeno grupo para neutralizar as baterias antiaéreas.
Depois as nossas esquadrilhas de vipers poderiam varrer a cidade e fechá-la
definitivamente. Então é que nós entramos e mantemos a luta até que
Gomoray seja nossa.
— Não — interrompeu Adama. — Não podemos tentar capturar uma
base territorial. A única coisa que podemos esperar tirar de Gomoray é o
combustível de que necessitamos para fugir.
— Logo que eles descobrirem o que nós fizemos — disse Apollo —, vão
enviar as naves base contra nós com tudo o que tiverem. As nossas equipas
transportadoras de combustível constituiriam alvos vulneráveis... Nem sequer
chegariam a levantar voo.
— Logo que tenhamos dominado a base de combustível — disse Cain
—, proponho que retiremos uma das naves para retardar o avanço das naves
base.
— E ficamos só com uma nave para fazer frente a três naves base dos
Cylons? — Disse Adama.
— Para fazer frente, não, meu velho. Para os retardar, dar-lhes-ei a
impressão de que estou a abandonar Gomoray. E levo-os para longe.
— Segundo parece, decidiste que vai ser o Pegasus a retirar e a enfrentar
as naves base.
Cain encolheu os ombros.
— A Galactica sofreu danos.
— E a força territorial? — Disse Adama. — Não temos nenhuma
informação sobre as instalações deles.
— Alguns dos meus caças já as sobrevoaram tão de perto que
provavelmente até já sabem os nomes de todos os cylons que lá se encontram
— replicou Cain.
— Bom, pai, se as instalações de Gomoray forem como as de Naytar,
Starbuck e eu conseguimos dar cabo desta última. Basta que entremos lá
dentro.
Adama afastou-se deles e atravessou a sala do Conselho. Como oficial
mais categorizado, competia-lhe a ele tomar a decisão final. E daria tudo para
não ter de o fazer. Não podia deixar a decisão a Cain. O comandante do
Pegasus era um bom oficial, mas corria demasiados riscos. Não havia dúvida
de que o Jaganata merecera a sua própria alcunha. Depois de tomar uma
decisão, Cain seguia em frente a todo o custo; ganhar era o seu único
objetivo. Adama não podia censurá-lo por isso, mas neste caso não podia
permitir-se seguir a tática de Cain. Já eram tão poucos, pensou. A vida
humana era preciosa. Correr o risco de perder um só que fosse parecia-lhe
impensável e, no entanto, como era possível pôr em prática uma operação
militar sem perda de vidas? Especialmente uma operação como aquela que
Cain propunha.
No entanto, havia uma coisa em que ele tinha razão, e Apollo, tal como
os outros, tinha-o compreendido. Seria impossível à frota sobreviver a um
ataque conjunto das naves base e da frota territorial de Gomoray. De certa
maneira, deviam agradecer a Baltar terem sobrevivido ao ataque das três
naves base. Baltar poderia ter chamado uma força de ataque de Gomoray; no
entanto, desconhecia a presença do Pegasus e tinha pensado, com razão, que
não precisava de mais para destruir a Galactica e a sua frota de naves
indefesas. Se as suas ambições se tivessem concentrado apenas na realização
do seu objetivo, talvez tivesse tomado a precaução de pedir auxílio à base
territorial, mas Baltar procurava a glória. Adama conhecia-o bem. Queria
chamar a atenção dos seus superiores cylons. Agora que sabia que tinha de
fazer frente não a uma, mas a duas estrelas-de-batalha, Baltar tentaria sem
dúvida reunir a maior frente de ataque possível. Talvez naquele mesmo
momento já estivessem a reunir-se e a elaborar o seu plano de batalha,
preparando-se para um novo ataque. Desta vez Adama sabia que não iam ter
o benefício da surpresa. Desta vez os Cylons estariam prontos para os
receber, e não iam bater em retirada.
Voltou-se novamente para Cain.
— Gostaria de falar consigo nos meus aposentos, comandante.
***
Não havia tempo para conversas. Cain foi direito ao assunto.
— Olha, Adama, se estás preocupado com uma possível repetição do
incidente dos tanques...
— Pois é mesmo isso que me preocupa — disse Adama calorosamente.
— Sou um grande admirador do teu gênio estratégico, Cain, mas a tua
história é feita de iniciativas individuais. Não de trabalho de equipa. Não
tenho a certeza de que compreendas realmente o nosso problema. Agora já
não estamos em guerra com os Cylons, pelo menos da forma que tu pensas.
Essa guerra já terminou, e nós perdemo-la. Não estou interessado em obter
vitórias militares, Cain. Gomoray só me interessa na medida em que posso ir
lá buscar o combustível de que preciso desesperadamente. A minha luta é
pela sobrevivência.
Cain soltou um suspiro.
— Adama, não te posso mentir. Eu pretendo ganhar. Sobreviver apenas
não me basta. Nada me agradaria mais do que capturar Gomoray e içar a
nossa bandeira nesse território, mas agora sei que isso é impossível.
— Sabes mesmo? Compreendes toda a responsabilidade de ter de
conduzir uma campanha militar protegendo ao mesmo tempo uma frota de
cento e vinte naves civis?
— Adama, acredita, compreendo como te sentes. Sei o que tens de
enfrentar e o que tens enfrentado desde que deixaste Caprica em chamas atrás
de ti. Sei que não pode ter sido fácil e não quero tornar-te as coisas ainda
mais difíceis. O meu verdadeiro plano é usar o Pegasus para distrair as naves
base que te estão a atacar e dar-te a possibilidade de regressares à frota com o
combustível suficiente para te pores em segurança fora do seu alcance.
— Aprecio as tuas boas intenções — disse Adama. — O que não quero
são mais surpresas. Não posso dar-me a esse luxo.
— Então a ordem é partir?
— Não me resta outra alternativa, pois não?
— Não, meu velho, receio bem que não.
— Só sei que vais correr um risco enorme — disse Adama —, e se
falhas, para nós será o fim.
— Não vou falhar.
— Espero que saibas o que estás a fazer.
— Acredito naquilo que estou a fazer.
— Isso não é a mesma coisa — disse Adama.
— Talvez não seja, mas é o que me resta, e a ti também.
— Sim — observou Adama. — Receio bem que seja. Boa sorte, Cain.
— Para ti também.
Cain saiu da sala. Cá fora, Tolen e os seus dois ajudantes seguiram-no,
acertando o passo pelo dele. Caminhavam em passo vivo, em direção à única
pista de aterragem da Galactica que estava em funcionamento. Cain ouviu
um som de passos em corrida e voltou-se. Era Cassiopeia que tentava apanhá-
lo. Vinha ofegante.
— Cain... Que se passa? Que está a acontecer? Acabo de saber que vais
voltar para o Pegasus.
— É verdade.
— Gostaria de ter uma conversa contigo.
— Pela minha parte, era isso mesmo que eu gostava que tu sugerisses,
Cassi. Mas não é a altura indicada. Lamento muito...
— Mas eu podia ir contigo até ao Pegasus.
— Receio bem que não. Aqui estarás mais segura. Além disso, não creio
que possam dispensar-te.
— Mais segura? Os olhos de Cassiopeia dilataram-se de medo. —
Porquê? Que estás a pensar fazer?
— Trata-se de uma missão, Cassi. Nada que não esteja nas nossas
possibilidades, mas não é coisa para civis.
— E quem é que é civil? Estamos todos a lutar para salvar a vida. Deves
precisar de mais técnicos de medicina no Pegasus. Leva-me contigo.
— Cassi... Mais tarde compreenderás. Confia em mim. Por favor.
Cain inclinou-se para a frente e beijou-a ao de leve nos lábios.
— Comandante — disse Tolen contrafeito.
— Sim, vamos imediatamente. Cassi, eu hei de voltar. Tu sabes. Tenta
passar algum tempo com Sheba.
— Como? — Disse Cassiopeia num tom de desespero. — Ela odeia-me.
— Tenta. Eu amo-te, Cassi.
Ele voltou-se e afastou-se a toda a pressa com os outros, sem olhar para
trás.
Cassiopeia teve vontade de correr atrás dele, mas sabia que não serviria
de nada. Nada que ela fizesse ou dissesse poderia alguma vez desviá-lo do
que tinha decidido. Cain era assim. Mas fora tempo em que ela tinha
conhecido outro Cain, muito diferente do homem a quem todos chamavam a
«lenda viva».
E não se passara muito tempo, mas a Cassiopeia parecia- -lhe que
decorrera uma eternidade. Tinha acontecido tanta coisa desde que uma
socializadora de dezoito anos conhecera um homem alquebrado numa taberna
de Caprica.
Quando o encontrara pela primeira vez, ela ainda não sabia que se
tratava do célebre comandante Cain, da estrela-de-batalha Pegasus. Tudo o
que sabia era que se tratava de um homem torturado por um grande
sofrimento.
Estava sentado sozinho num canto sombrio, com as mãos em concha em
volta de uma taça de baharri, mas parecendo ter esquecido completamente a
bebida. Não parecia ter consciência do local em que se encontrava. Estava
sentado muito direito, muito rígido, com os olhos fixos, sem ver nada. A
princípio pensara que estivesse embriagado, e teria passado por ele
indiferentemente, mas depois viu como os seus olhos estavam límpidos.
Parou mesmo em frente dele, mas Cain não a viu. Parecia estar a olhar para
dentro, para qualquer coisa que estava a torturá-lo. Lágrimas escorriam-lhe
pelas faces. Cautelosamente, ela aproximara-se e depois sentara-se ao lado
dele.
— Sente-se bem? — Tinha-lhe perguntado.
Ele não dera resposta. Suavemente, ela colocara-lhe a mão no braço
direito. Cain voltara-se para ela, tentando fixar-lhe o rosto. Cassiopeia vira-
lhe um brilho momentâneo de surpresa e depois de espanto.
— Desculpe! — Tinha dito. A voz dele parecia perfeita- mente calma e
controlada.
— Perguntei-lhe se se sentia bem.
— Sim, claro, estou ótimo. — Franzira ligeiramente a testa. — Por que é
que pergunta?
— Bom... — Hesitara. — Uma das razões é por você estar a chorar.
Ele levara a mão à cara e sentira as lágrimas. Engolira em seco e olhara
para as mãos, continuando a segurar a taça.
— Não tinha reparado — dissera suavemente.
— Talvez queira falar? — Sugerira.
Ele limpara os olhos.
— Não. Não. Não creio. Mas obrigado na mesma.
Colocara algumas notas em cima da mesa e fizera-as deslizar em direção
à rapariga. Esta olhara para as notas e depois novamente para ele. Não dissera
nada, nem fizera qualquer movimento para pegar no dinheiro.
— Peço... Peço-lhe que me desculpe — tartamudeara. — Parece-me que
cometi um erro embaraçoso. Pensei que fosse... — Desistira de tentar compor
o erro.
— E se eu for? — Dissera a rapariga.
— Parece-me que não entendo.
— Não lhe pedi dinheiro. Seja o que for que sente neste momento, não
creio que lhe seja possível comprar uma saída para os seus problemas.
Os cantos da boca tremeram-lhe ligeiramente:
— Não, lá nisso tem toda a razão.
Guardara novamente o dinheiro.
— Olhe que por vezes faz bem falar com um desconhecido — dissera-
lhe Cassiopeia. — Não é a mesma coisa que despejar sobre os ombros de um
amigo todos os nossos problemas. Além disso, eu sou boa ouvinte.
Continuara silencioso.
— Que tem a perder? — Dissera Cassiopeia.
— Isso é verdade — afirmara Cain. — Já perdi tudo.
E começara a abrir-se com ela, hesitante a princípio e depois despejando
tudo numa torrente de emoção. Estivera ausente numa campanha militar e na
sua ausência a mulher tinha adoecido e morrera. Era um soldado dedicado, e
como tal tinha pouco tempo para passar em casa com a família. Vivera na
expectativa do dia em que a guerra com os Cylons chegasse finalmente ao
seu termo e ele pudesse regressar a Caprica, para junto da família... E agora a
mulher, a única mulher que ele jamais amara, sem ela sentia-se destruído.
Enquanto falava, as lágrimas voltaram a correr-lhe pelo rosto e dentro em
pouco começara a soluçar abertamente, sem vergonha. Cassiopeia via bem
que ele não era um homem que chorasse com facilidade.
Não se tornaram amantes logo desde o início. Do que Cain precisava era
de um amigo. Alguém com quem pudesse falar, em quem pudesse buscar
apoio, e Cassiopeia prestou-se alegremente a esse papel. Viam-se com
frequência; conversavam até altas horas da noite, compartilhando um com o
outro as suas experiências. Muitas vezes reuniam-se em casa dele, e foi aí que
Cassiopeia viu Sheba pela primeira vez.
Eram mais ou menos da mesma idade, e pelas projeções holográficas
que Cain lhe tinha mostrado, Cassiopeia pôde ver como era parecida com a
mãe. Apesar de muito jovem, Cassiopeia compreendeu logo por que é que
Cain não conseguia compartilhar com Sheba aquilo que compartilhava com
ela. Sheba era a imagem viva da mãe e lembrava constantemente a Cain a
mulher que ele amava e perdera. Culpava-se a si próprio pela morte da
mulher, embora os médicos lhe dissessem que ele nada poderia ter feito. A
doença não tinha cura. No entanto, Cain sentia-se culpado por não ter estado
junto dela no momento da sua morte e, em consequência disso, tinha
dificuldade em ficar muito tempo junto da filha. Embora compreendesse a
situação, a ferida ainda não tinha sarado o suficiente para que conseguisse
ultrapassar a situação e culpava-se a si próprio por falhar em relação a Sheba,
tal como falhara com a mãe dela.
Sheba idolatrava o pai, e, embora compartilhasse do desgosto dele,
sentia-se frustrada por não conseguir ajudá-lo. Esta frustração transformou-se
em ressentimento. Sentia ressentimento contra Cassiopeia por ela conseguir
dar ao pai aquilo que ela não conseguia e, ao mesmo tempo, tinha-lhe raiva
por o afastar dela. Esta raiva acabou por se transformar em ódio quando,
passado algum tempo, Cain e Cassiopeia se tornaram amantes.
Passado algum tempo, Cain modificou-se, ou antes, voltou a ser o que
era antes. Quando foi novamente chamado a prestar serviço, a melhor terapia
do mundo para ele, tornou- -se de novo no conhecido comandante do
Pegasus, com a sua vontade de ferro e, embora continuassem a sentir a
mesma afinidade especial, Cassiopeia não voltara a ser testemunha da sua
vulnerabilidade. Durante um curto espaço de tempo, Cain mostrara a
Cassiopeia os seus sentimentos mais íntimos. Ela ajudara-o a recompor-se e,
quando se separaram, foi com o pressuposto de que ele voltaria para junto
dela e que nessa altura veriam onde a sua relação os levaria. Enquanto Cain
esteve ausente, tendo levado com ele a filha para a treinar como cadete,
Cassiopeia continuou a fazer a sua vida habitual, sonhando com o dia em que
ele regressaria e esperando vir a conseguir arranjar maneira de ultrapassar a
má vontade de Sheba contra ela. Então soubera que tinham morrido na
batalha de Molecay.
Nessa altura pensara que o mundo tinha acabado. Nunca suspeitara de
que o seu mundo terminaria literalmente quando os Cylons atacassem as
colônias e as fizessem desaparecer. Tivera a sorte de sobreviver e a sorte
maior ainda de encontrar abrigo na Galactica. Quando tinha encontrado
Starbuck pela primeira vez, sentira-se atraída para ele, e só muito mais tarde
veio a compreender até que ponto essa atração se devia ao fato de, em muitos
aspectos, ele a fazer pensar em Cain. Os dois homens eram diferentes, mas
ela imaginava que Cain, muitos anos atrás, se devia ter assemelhado bastante
a Starbuck. Ambos tinham personalidades fortes e dinâmicas, uma energia
enorme e ambos eram ousados e inclinados a correr riscos. Agora sentia-se
dividida entre ambos e não sabia o que fazer.
Starbuck fora muito compreensivo. Não a pressionara a escolher, e
embora tentasse não mostrar ciúme, ela sabia que devia tê-lo sentido. Além
disso, também em Starbuck existia uma vulnerabilidade que ele mantinha
oculta, tal como Cain. As coisas não se tornavam de todo mais fáceis pelo
fato de todos eles se encontrarem no meio de grande perigo. Cassiopeia
amava dois homens e qualquer deles, ou ambos, podiam morrer dentro dos
centons mais próximos. De certa maneira, Cassiopeia invejava-os. A guerra
deles era só uma.
***
A ponte da Galactica fervilhava com a atividade de um alerta vermelho.
Athena e Omega estavam sentados às suas mesas de comandos, recebendo os
relatórios do controlo de danos e coordenando esforços para arranjar a
matéria-prima necessária nas outras naves da maltratada esquadra.
Felizmente, os Cylons tinham concentrado o seu ataque na estrela-de-batalha,
na esperança de destruir primeiro a sua principal ameaça, para poderem
depois ocupar-se à sua vontade do resto da frota. Graças ao Pegasus, a frota
escapara aos estragos de um ataque dos Cylons, havendo apenas algumas
naves que receberam acidentalmente um ou outro tiro. Só as naves mais
seriamente danificadas é que seriam depois desmontadas para obter material
para reparar a Galactica. As acomodações iam ficar ainda mais superlotadas,
mas ninguém ia queixar-se. Sentir-se-iam felizes por terem sobrevivido.
— O comandante Cain acaba de partir para o Pegasus — anunciou o
coronel Tigh.
Adama acenou a cabeça com ar pensativo.
— Pergunto a mim mesmo se voltaremos a vê-lo — disse suavemente.
Tigh franziu a testa:
— Pensava que o plano dele lhe parecia bom.
— Era o único plano que tínhamos — respondeu Adama. — Daria tudo
para ter uma alternativa.
— Mas vai mandar o Apollo com a equipa de assalto à base — disse
Tigh.
— É verdade — confirmou Adama. — Vou.
Sentou-se no seu lugar e recostou-se e fechou os olhos. Tigh não o
invejava. Tivera uma breve oportunidade de saborear o que era comandar
uma nave de guerra, e, embora breve, essa oportunidade bastara-lhe. Talvez a
glória fosse toda para Cain, mas o verdadeiro herói era Adama. Era um papel
que ele nunca quisera, mas aceitava-o porque não havia mais ninguém. Se
conseguissem alcançar a Terra, Adama seria aclamado como salvador, mas
naquele momento Tigh sabia que ele trocaria tudo isso por uma noite de sono
tranquilo.
CAPÍTULO VIII
Boomer deitou uma olhadela a Apollo enquanto este afivelava o coldre
do laser. Estavam na sala de preparativos dos pilotos, reunindo todo o
material de que necessitariam para a sua missão de infiltração.
— Olha lá — disse Boomer, passando nervosamente a língua nos lábios.
— Que probabilidades temos nós de sair daqui com vida? O que eu quero
dizer é que isto me parece uma loucura. Penetrar numa cidade cylon... Que
hipóteses temos nós?
— Queres mesmo saber? — Disse Apollo.
Boomer soltou uma risada:
— Claro, é o que eu pensava.
O rosto de Apollo mostrava-se sombrio:
— Queres desistir? Ninguém te vai censurar por isso.
Boomer endireitou-se e pôs a mão no ombro de Apollo.
— Que é isso, amigo? Para onde tu fores também eu vou. Está bem?
Starbuck entrou na sala trazendo com ele um enorme saco de
equipamento. Retirou dele várias pistolas laser, que entregou a Boomer e a
Apollo.
— Requisitei umas armas de fogo extra para esta missão — disse
Starbuck. — Pareceu-me que havíamos de precisar delas.
— A coisa parece mesmo encorajadora — troçou Boomer, colocando a
arma do outro lado para poder usar uma em cada mão, caso fosse necessário.
— É aqui que devemos apresentar-nos para a missão? — Disse Bojay
entrando com Sheba.
— Que queres dizer com isso? — Perguntou Apollo.
— Fomos incorporados na força territorial da Galactica.
— Por ordem de quem? — Disse Apollo.
— Do meu pai — respondeu Sheba. Deitou para o chão o saco do
equipamento e começou a vestir o fato de assalto. — Afinal nós somos as
únicas pessoas aqui presentes que conhecemos o alvo. É capaz de ser útil
fazer uma ideia do local para onde vamos, não acha, capitão?
— Vocês já lá estiveram? Em terra?
— Não — disse Sheba —, mas já sobrevoámos muitas vezes aquela base
nas nossas missões relâmpago. Uma vez que vamos saltar em voo livre, não
faz muita diferença. Pelo menos sei onde descer.
— Não quero fazer comentários às tuas habilidades — comentou Apollo
—, mas estou um bocado admirado. Nem parece do teu pai, arriscar-te
numa... — Hesitou.
— Missão sem regresso? — Disse Sheba.
Starbuck tossiu para aclarar a voz:
— Não, minha rica senhora, sem ofensa, mas cá o rapaz não vai em
missões sem regresso. E não aceito lá muito bem os heróis que partem do
princípio de que não vão voltar.
— Desculpa-me — disse Sheba. — Estava apenas a ser realista.
— Se nós fôssemos realistas, tínhamos morrido todos em Caprica —
retorquiu Starbuck. — Onde está o nosso técnico de medicina? Quero pôr-me
a mexer antes de começar a ficar nervoso.
— Não levamos nenhum técnico de medicina — disse Sheba.
— O quê?
— Disse que não vamos levar nenhum. Não vamos ter tempo de parar
por causa dos feridos. Vamos ter de entrar e sair o mais depressa possível.
Starbuck teve um sorriso forçado.
— Está bem. Isso também é ótimo. É mesmo o tipo de missão de que eu
gosto... Rápida.
— Estás a ser otimista — disse Sheba.
— Queres fazer uma apostinha que tudo vai correr bem? — Perguntou
Starbuck.
Os olhos deles cruzaram-se.
— E qual é a aposta? — Perguntou Sheba.
— Vamos arranjar qualquer coisa de muito pessoal? — Disse Starbuck,
sem desviar os olhos dos dela.
Os lábios de Sheba encurvaram-se num meio-sorriso:
— Má ideia, tenente. Não quer que eu desista da missão só para não ter
de pagar, pois não?
Acabou de abotoar o fato de assalto e saiu com Bojay.
— Uma mulher interessante — disse Starbuck.
Boomer sacudiu a cabeça, incrédulo.
— Tu és qualquer coisa, Starbuck — comentou. — Como podes pensar
em sexo numa altura destas?
— Mais tarde talvez já não tenha tempo — disse Starbuck.
Além disso, com a sorte com que eu ando, ela é capaz de desistir da
missão só para me deixar frustrado.
Apollo teve um sorriso trocista:
— Starbuck? Frustrado?
— Isso mesmo. Lembra-te desta conversa.
Vestiram-se e pegaram no resto do equipamento. Encaminharam-se
juntos para o elevador que os faria descer até às pistas de aterragem. Todos
fizeram o percurso em silêncio, cada um guardando para si os seus
pensamentos. As probabilidades eram bastante desfavoráveis. E o
pensamento de que, se eles não conseguissem salvar-se, o mais provável era
que ninguém conseguisse não lhes dava qualquer conforto. Quando saíram do
elevador, Cassiopeia estava à espera deles.
— Starbuck, preciso de falar contigo.
— Arranjaste uma boa altura — disse. — Estamos prontos para a
partida.
— É mesmo sobre isso que te quero falar. Sei para onde vais. Onde é
que eles mandaram Cain?
— Estou eu a preparar-me para mergulhar no Inferno e tu vens falar-me
de Cain? Muito bem.
— Não estás a perceber — disse a rapariga, agarrando-o pelo braço para
o fazer parar. — Cain não está a contar voltar.
— Starbuck! — Chamou Apollo já na escotilha do vaivém.
— Vamos, toca a andar!
— Olha, Cassi — retrucou Starbuck, libertando-se e caminhando
rapidamente para o vaivém. — Cain é dos que sobrevivem. Ele há de voltar,
se é isso que te preocupa.
Cassiopeia pôs-se a caminhar ao lado dele.
— Se Cain contasse voltar, ter-me-ia deixado ir a bordo do Pegasus —
disse.
Sheba atirou com o saco para dentro do vaivém aos ouvidos.
— De que estão a falar? — Perguntou ao ouvir o último comentário de
Cassiopeia.
— Não é nada — disse Apollo. — Estamos todos na mesma alhada. As
probabilidades são contra nós, mas havemos de nos safar. Tem de ser.
— Não — observou Sheba. — Ela tem razão. Se o meu pai não a deixou
ir a bordo da nave dele é porque está a planear qualquer loucura. Tenho de
voltar ao Pegasus.
Apollo deteve-a.
— Desculpa, mas tens de vir connosco, aconteça o que acontecer.
Ordens do teu pai, lembras-te?
— É mentira — disse. — Ele não sabe de nada. A ideia foi minha.
— Eu vou no lugar dela — propôs Cassiopeia.
— Estás louca? — Disse Starbuck.
A reação de Apollo foi mais objetiva:
— Tu não sabes levar-nos ao nosso objetivo na base de Gomoray —
observou ele. — Ela é que sabe.
— E o vosso técnico de medicina? — Disse Cassiopeia. — Não vejo
nenhum aqui.
— Não temos.
— Pois ele aqui está — respondeu, empurrando-o para entrar no vaivém.
— Cassiopeia... Pelo...
— Apollo — disse Boomer —, vamos. Estamos a poucos microns da
partida.
Cassiopeia sentou-se ao lado de Starbuck.
— Onde é que pensas que vais? — Disse ele.
— Com a missão.
— Vestida dessa maneira? Vamos saltar.
Apontou para o saco com o equipamento que trouxera para o vaivém
antes de os outros terem chegado à pista.
— Tudo o que eu preciso está aí. — Abriu o saco, tirou o fato de saltar e
começou a vesti-lo.
— De maneira nenhuma — disse Sheba. — Não vou permitir que ela
venha. Nem sequer a quero no mesmo vaivém que eu.
— Tarde de mais — lamentou-se Apollo. — Estamos prestes a partir.
Além disso, não tens nada com isso. Ela é dos nossos.
— Que grupo homogêneo que nós somos — resmungou Boomer.
— É isso mesmo — respondeu Starbuck. — Com uma tropa de apoio
como esta para que é que precisamos dos Cylons?
— Vaivém, atenção à partida. — A voz de Tigh veio até eles pelo
intercomunicador.
Ao fundo ouvia-se a voz de Adama, não totalmente fora do alcance do
microfone, dando as ordens de partida. Tigh repetiu-as, e quando iam já a
deixar a pista da Galactica ouviram de novo a voz de Adama, mesmo ao lado
do microfone.
— Que o Senhor vos acompanhe — disse Adama.
***
Lucifer deslizou até às portas transparentes da sala do trono da nave
almirante dos Cylons. Os seus sensores óticos, vermelhos e brilhantes,
captaram a figura de Baltar, sentado no trono, pensativo. Lucifer podia ter
aberto as portas comprimindo a placa que estava embutida na parede, mas era
mais fácil e mais rápido usar a sua ligação remota ao computador da nave,
que constituía uma extensão do seu cérebro extremamente complexo. As
portas abriram-se e Lucifer deslizou para a frente, nos seus carris silenciosos,
indo parar mesmo em frente do trono.
— Baltar...
O humano voltou-se, ficando de frente para ele. Estava zangado por ter
sido incomodado.
— Que é?
— Temos de falar — disse Lucifer, ajustando os seus mecanismos
vocais de forma a produzir um som diferente e subtil.
— Agora não.
— O tempo é fundamental, Baltar. Lamento que a sua vitória não tenha
resultado tal como previra...
— Desaparece daqui!
— Baltar, o próprio chefe imperioso, num dos seus momentos mais
duros, só dificilmente poderia não levar-lhe a mal ter fugido de duas estrelas-
de-batalha.
— Eu não fugi — disse Baltar com os dentes cerrados. — O que fiz foi
executar uma retirada estratégica, seu imbecil.
— Não é preciso proferir insultos — observou Lucifer, desejoso de ter
uma conversa com o superior. — Esquece-se de que estou do seu lado.
Coloquei o meu destino nas suas mãos. A minha ascensão a uma posição de
supremacia em relação aos meus colegas cylons da série VI depende
inteiramente do seu êxito. Ou da ausência do mesmo.
— Por que não me poupas? — Disse Baltar em tom fatigado. — Qual é
a última novidade? Como se eu pudesse ter alguma confiança em
escrutinadores que não conseguem assinalar a presença de duas estrelas-de-
batalha em vez de uma.
— A opinião unânime dos comandantes que se encontram a bordo das
duas naves base que nos dão apoio é que devíamos pedir imediatamente o
auxílio da base de Gomoray — disse Lucifer.
— Ah, então é isso que eles pensam?
— Parece ser uma ideia prudente — observou Lucifer. — Ou tinha outra
coisa na ideia?
Baltar fez uma careta:
— Alguma coisa faz que eu ache ligeiramente desagradável a ideia de
que um comandante qualquer de Gomoray venha a ficar com a fama de ter
destruído a Galactica. Sobretudo depois de termos vindo até aqui e estarmos
já em posição para o abate.
— Já tivemos uma oportunidade de destruir a frota dos fugitivos
humanos e não fomos lá muito brilhantes — disse Lucifer.
Baltar abateu o punho com estrondo no braço do trono:
— Fomos apanhados de surpresa! Graças aos teus ditos relatórios
secretos. Quantas esquadrilhas estão estacionadas em Gomoray? Ou será que
as forças cylons nessa área são também um mistério para ti?
— Sei dizer-lhe exatamente aquilo com que podemos contar quanto a
apoio por parte de Gomoray — disse Lucifer. — Quatro esquadrilhas
completas. O equivalente a uma nave base.
— Por outras palavras, temos à nossa disposição a capacidade de fogo de
quatro naves base.
— Exatamente.
— Quanto tempo levariam a entrar em ação? Em caso de emergência?
— Isso dependeria largamente do tempo que levassem a preparar-se e da
eficiência do pessoal e do comandante — respondeu Lucifer. — Não
aconselho que se espere muito tempo.
Baltar considerou a sugestão:
— Se apanhássemos a Galactica e a nave que lhe dá apoio entre as duas
forças, a vitória seria certa.
— É a opinião dos nossos comandantes de apoio.
— Muito bem — disse Baltar. — Prepara as nossas naves para outro
ataque.
***
— Informem os capitães de todas as naves de que a Galactica e o
Pegasus se vão deslocar, deixando-os temporariamente sem guarda — disse
Adama, com a nave já preparada para se meter a caminho.
— Isso não vai deixá-los nada felizes — observou Tigh. — Dizemos-
lhes alguma coisa além disso?
Adama sacudiu a cabeça:
— Não me parece necessário. Se ficarmos aqui e formos atacados,
também não lhes vamos servir de nada. Acho que eles compreendem isso.
Mas fala-lhes em código. Não vamos dizer aos Cylons que vamos a caminho.
Navegador, preparar para a partida. Velocidade de contornamento e nada de
preocupações com o combustível. Se aquelas naves nos atacam de novo,
também já não vamos precisar dele. Já não vamos a mais lado nenhum.
Na ponte do Pegasus, Tolen mantinha Cain ao corrente do progresso dos
outros elementos da missão.
— O vaivém com a equipa de assalto já alcançou o espaço aéreo de
Gomoray — disse. — A Galactica vai a caminho.
— Chegou o momento. Todos os guerreiros aos seus postos para o
combate.
Fez soar o alerta vermelho.
— Navegador, a toda a velocidade contra essas naves base.
— Sim, senhor — respondeu Tolen nervoso. Cain nunca os deixara ficar
mal, mas ele também nunca se lançara sozinho contra três naves base dos
Cylons.
— O Pegasus vai a caminho — disse Athena à mesa de comandos da
ponte da Galactica.
Adama respirou fundo.
— O meu coração está com esses quatro jovens guerreiros em Gomoray
— disse. — Eles é que têm o papel mais difícil. E se eles falharem, é o fim...
Para eles e para nós.
— Devem estar a chegar ao ponto de descida — anunciou Tigh.
— Sim, uma descida mesmo no coração da capital dos Cylons. Quando é
que nós fizemos uma coisa parecida?
***
A bordo do vaivém, que se aproximava do ponto de descida, as luzes da
cabina passaram de um branco suave a vermelho e um pequeno besouro
começou a tocar intermitentemente.
— Chegou o momento — disse Apollo.
Puseram-se de pé e encaminharam-se para a escotilha, esperando a
ordem do piloto do vaivém. Omega voltou-se para olhar para eles.
— Atenção — gritou.
Apollo deu as instruções finais.
— Sheba, Bojay, nós vamos seguir-vos, uma vez que têm mais
probabilidades de localizar a base central dos Cylons. Não se preocupem
connosco... Concentrem-se apenas no ponto em que devem descer.
— Se alguma vez me dissessem que havia de descer deliberadamente de
uma nave para uma base cylon — disse Bojay —, eu cá...
Não teve tempo de acabar. O besouro passou do toque intermitente para
um grito agudo contínuo e insistente.
— Chegou o momento — disse Starbuck. — Boa sorte para todos.
— Saltar! — Gritou Omega, e abriu a escotilha. Um a um todos saltaram
para o espaço.
CAPÍTULO IX
A nave almirante dos Cylons, levando a bordo o chefe imperioso, entrou
numa órbita de estacionamento por cima de Gomoray e um vaivém desceu
em direção àquela base territorial. A bordo do vaivém, o cylon supremo
descansava numa cabina particular. Agora que os Delfianos tinham deixado
de existir, mais uma raça imperfeita fora apagada e Gomoray tornara-se um
posto avançado dos Cylons.
Os Delfianos, tal como os humanos pestilentos, não tinham constituído
preocupação para a raça cylon, até ao momento em que desenvolveram a
capacidade de viajar no espaço. Nessa altura passara a ser necessário vigiá-
los de perto. Só podia haver uma raça de seres com domínio sobre o universo.
Era necessário manter a ordem, e os Delfianos, tal como os malditos
humanos, tinham ameaçado essa ordem. Já acontecera antes e ainda voltaria a
acontecer. No momento em que uma raça sensitiva descobria as viagens
espaciais, começava a comportar-se como se o universo existisse
exclusivamente para ser explorado por eles. No passado, os Cylons tinham-se
visto obrigados a neutralizar a ameaça de outras raças, que não hesitavam em
devastar mundos por causa dos seus recursos naturais, danificando
irreparavelmente os seus ecossistemas. Nalguns casos tinham encontrado
seres que não hesitavam em destruir planetas inteiros para lhes extrair as
matérias-primas. Era intolerável. Os humanos é que criaram tal ameaça.
Tinham-se espalhado pelo espaço com incrível rapidez, estabelecendo
colônias noutros mundos, explorando planetas, onde a sua presença
perturbava a ordem natural das coisas. Tinham parado finalmente, após uma
guerra que durara mais do que qualquer outro conflito na história da raça
cylon. Contudo, havia sobreviventes. Infelizmente, pensou o chefe imperioso,
não conseguiram apagar a raça humana tão completamente como aconteceu
com os Delfianos. Uma raça extinta deixava de constituir ameaça, mas onde
houvesse sobreviventes, havia sempre a possibilidade de a raça crescer e se
expandir de novo. Isto acontecia especialmente com os humanos. Era como
arrancar do chão uma erva daninha, deixando ficar a raiz. A planta voltaria a
florir na sua altura.
Os sobreviventes humanos estavam constantemente no espírito do chefe
imperioso. Aquilo que teria sido uma monomania num ser humano era
apenas um estado de consciência permanente para o chefe imperioso, cujos
três cérebros lhe permitiam ocupar-se simultaneamente de um volume
espantoso de fatos. Ele era um produto do gênio dos Cylons, um testemunho
vivo da perfeição da sua raça. Fora criado para ser o chefe supremo, produto
de um treino altamente especializado e da engenharia biológica. Quando
recebera o seu terceiro cérebro, no qual estava armazenada toda a informação
acumulada reunida pela cultura cylon, ficara espantado ao saber como
funcionava a sociedade humana. Fora nesse momento que decidira que
deviam ser completamente exterminados, pois se a cultura cylon era qualquer
coisa de ordenado, a deles era uma anarquia completa. Os humanos pareciam
não exercer virtualmente qualquer controlo sobre si próprios. Os seus chefes,
em vez de terem sido criados, gerados e engendrados para cumprir os seus
papéis, eram na realidade selecionados por um voto dos membros menores da
sua sociedade. Como é que aqueles que haviam de ser dirigidos podiam
escolher aqueles que os deviam dirigir? Era um desafio à lógica. As suas
normas de acasalamento não passavam de uma escolha ao acaso. Na cultura
cylon, a reprodução era controlada unicamente pelos geneticistas e os
acasalamentos organizados de tal forma que daí resultassem os tipos
necessários à sociedade dos Cylons. Operários, guerreiros, chefes, todos eram
criados como produtos de uma engenharia genética sofisticada. Em
comparação, os hábitos de acasalamento dos humanos eram tão ocasionais
como os dos animais. Com os humanos, o principal critério do acasalamento
era uma coisa a que eles chamavam «amor», um conceito abstrato, que não
fazia qualquer sentido. O cylon médio não sabia como interpretar aquilo, e
mesmo o chefe imperioso, com o seu terceiro cérebro, não conseguia chegar
a uma definição mais próxima do que uma coisa que parecia ser uma mistura
de atração física e talvez um sistema de valores comuns. Sabia que era mais
complexo do que isso e irritava-o não conseguir compreender a fundo,
porque os humanos eram seus inimigos, e a melhor maneira de derrotar o
inimigo é conhecê-lo.
Havia muitas coisas nos humanos que o chefe imperioso não
compreendia. Espantava-o enormemente que eles tivessem conseguido
realizar tanta coisa, apesar de exercerem tão pouco controlo sobre o seu
próprio destino.
Se os Cylons tivessem agido como os humanos, teriam ficado
essencialmente inalterados durante milhares de anos. A evolução era um
processo lento e os resultados conseguidos pela natureza, quando não
orientados pelo pensamento racional, nem sempre eram desejáveis. Os
Cylons tiveram uma participação direta no seu próprio desenvolvimento.
Fora seu destino tornarem-se a raça suprema de todo o universo, e para esse
efeito os cientistas cylons trabalharam para conseguir um ser totalmente
superior. Os humanos, à exceção das diferenças quanto às características
físicas superficiais, eram virtualmente impossíveis de distinguir uns dos
outros. O mesmo não acontecia com os Cylons, que conseguiram um nível de
diversificação que não se encontrava em qualquer outro ponto do universo.
Os chefes cylons, tal como o chefe imperioso, eram organismos
complexos, produto de engenharia biológica, com três cérebros capazes de
receber e avaliar, simultaneamente, uma quantidade quase ilimitada de
informações e percepções sensoriais, cujos olhos múltiplos estavam aptos a
observar e acompanhar muitas coisas ao mesmo tempo, e cujos sistemas
auditivos, altamente desenvolvidos, atuavam como canais múltiplos e
receptores num sofisticado aparelho de comunicações. Mesmo enquanto
repousava na sua cabina, a bordo do vaivém, o chefe imperioso conseguia,
através de um reforçar dos seus sentidos físicos, por meio do capacete de
comunicações, manter-se ao corrente das principais atividades dos Cylons no
seu mundo de origem. O capacete permitia-lhe entrar em contato com a rede
de comunicações da nave almirante, recebendo informações e enviando
ordens por todo o sistema cylon. Não era omnisciente, mas estava tão
próximo disso quanto possível. Nesta situação, a habilidade dos
sobreviventes humanos para fazer malograr constantemente todos os esforços
no sentido de os exterminar era uma irritação permanente. Eram
desesperadamente inferiores e, no entanto, persistiam em iludir todos os
esforços para os fazer desaparecer. Era um espanto que tivessem conseguido
sobreviver durante tanto tempo.
Os humanos eram inferiores até em relação ao mais baixo zangão cylon,
a forma de vida orgânica mais elementar dos Cylons. Os oficiais executivos
cylons, com os seus dois cérebros, eram superiores aos humanos. Os
guerreiros cylons, organismos cibernéticos que eram, em parte produto da
genética e em parte um êxito tecnológico, possuíam apenas um primeiro
cérebro e, no entanto, deviam ser capazes de ultrapassar os humanos a todos
os níveis. Os cidadãos cylons, com o seu primeiro cérebro, mas destituídos de
aumento inorgânico, tinham alcançado um nível evolutivo superior ao dos
bárbaros humanos. Os zângãos cylons, cujas capacidades, ou antes, a
ausência delas não lhes permitiam ir mais longe do que os cérebros
rudimentares que os tinham treinado e educado nos primeiros anos,
ocupavam-se apenas das tarefas mais rudimentares da sociedade cylon. No
entanto, realizavam essas tarefas sem a mínima falha, incapazes de se
deixarem distrair da sua concentração, como acontecia com os humanos.
Mesmo os cylons inorgânicos, os computadores da série VI, tal como Lucifer
e os guerreiros cibernautas, robots usados para aumentar as forças de ataque
dos Cylons, conseguiam levar a melhor com os humanos. O chefe imperioso
sabia que os humanos já tinham tentado várias vezes arranjar guerreiros
cibernautas danificados e que deviam ter passado ianos a estudá-los, mas que,
apesar disso, não aprenderam praticamente nada. Os androides criados pelos
humanos eram de um primitivismo patético. E por que é que era tão difícil,
afinal, exterminar um punhado de sobreviventes das colônias humanas, seres
de tal forma primitivos que a sua destruição não devia ter levantado mais
problemas que a dos Delfianos? O chefe imperioso estava desejoso de
resolver este problema, pois tinha muitos outros assuntos a resolver e não
gostava de deixar as tarefas incompletas. Tentara aprender a pensar como um
humano e, embora estivesse mais próximo de conseguir esse propósito do
que qualquer outro cylon, continuava a não ser humano e o sistema de
pensamento deles continuava a ser para ele, de longe, um grande mistério.
Eram simplesmente incompreensíveis, destituídos de tudo o que se
assemelhasse a lógica ou ordem. Assim, para facilitar a realização da tarefa, o
chefe imperioso tinha escolhido Baltar. Lançar um humano contra humanos.
Baltar era mais um exemplo de tudo o que os humanos tinham de
incompreensível. Um traidor da sua própria raça. Seria impossível para um
cylon fazer aquilo que Baltar fizera. Negociando a sua própria salvação à
custa de inúmeras vidas, Baltar oferecera-se para servir de medianeiro dos
Cylons. Fora com a ajuda de Baltar que os Cylons tinham engendrado o
plano que culminara com a destruição das colônias dos humanos. Tinha
convencido os chefes humanos de que os Cylons estavam cansados da guerra
e desejosos de conseguir a paz. Fora através dos esforços de Baltar que se
tinha organizado uma conferência de paz. Por causa de Baltar, os humanos,
cansados da guerra, tinham abandonado o estado de alerta, loucamente
convencidos de que os Cylons alguma vez iam aceitar a coexistência. O
homem esperava que, em troca das suas traições, os Cylons poupassem o seu
mundo e fizessem dele o seu chefe fantoche. O chefe imperioso concordara
com o negócio, mas entre membros de raças diferentes nunca poderia haver
uma troca equitativa. Usara Baltar como instrumento e depois pusera-o de
lado, pensando que o instrumento já fizera o seu papel. Lucifer é que o tinha
convencido de que matar Baltar seria desperdiçar uma fonte valiosa.
O chefe imperioso tinha grande apreço por Lucifer. A mais avançada das
séries VI, o computador autoconsciente, tinha, ao lidar com os humanos, uma
vantagem que o chefe imperioso não possuía. Apesar dos seus três cérebros,
o chefe imperioso era incapaz de uma análise puramente objetiva, tal como
acontecia com Lucifer. Todas as suas percepções eram coloridas pela
experiência, pelo fato de ser um cylon, o cylon supremo. O seu raciocínio era
um raciocínio cylon, ao passo que Lucifer, embora fosse um produto da
tecnologia cylon, era capaz de um raciocínio puramente objetivo, sem
qualquer contaminação de conceitos ou juízos prévios. Lucifer fora
construído por máquinas e, à medida que reunira maior soma de
conhecimentos, tinha-se autorreconstruído, incluindo aperfeiçoamentos até
alcançar o senso total. Lucifer era o produto acabado da evolução mecânica
dos Cylons e, como tal, não tinha reagido a Baltar com os mesmos
sentimentos de repúdio que o chefe imperioso. Lucifer era capaz de ter
«sentimentos», de certa forma, mas funcionava apenas através da avaliação
de informações e não por reação emocional. Embora Lucifer tivesse
repudiado a sentença de morte de Baltar, o chefe imperioso tinha-lhe
perdoado. Não se tratara de um ato de rebelião. Lucifer apenas fizera notar
que, embora Baltar já tivesse sido usado, a sua utilidade não terminara. Era
um raciocínio válido. Graças a Lucifer, o chefe imperioso tinha aprendido a
tirar partido de uma fraqueza humana da qual ainda não tivera consciência. A
vaidade.
Ao que parecia, o comandante da Galactica e Baltar tinham-se
conhecido havia muito tempo, e o êxito de Adama entre os humanos
ultrapassava em muito o de Baltar. Se ambos fossem cylons, teria sido apenas
um fato aceite que Adama ocupava um lugar mais alto na sua sociedade por
ser mais qualificado para isso; mas tratando-se de um ser humano, Baltar era
vaidoso e acreditava que as honras feitas a Adama lhe eram igualmente
devidas a ele. Era absurdo pensar assim, mas parecia que os humanos não se
satisfaziam em se aceitar tal como eram, em vez de se iludirem a si próprios
com falsas percepções acerca daquilo que eles próprios achavam que
deveriam ser. Fora preciso bastante tempo para Lucifer conseguir explicar
isto ao chefe imperioso, por se tratar de um tipo de pensamento que lhe era
totalmente estranho. Tal pensamento provava mais uma vez a inferioridade
da raça humana. Os sentimentos de Baltar em relação a Adama levavam-no a
odiar o homem com tal paixão que ele se prontificara a vender a sua própria
raça para conseguir triunfar sobre Adama.
Depois de conseguir compreender tudo isto, não escapou também ao
chefe imperioso que, ao dar a Baltar o comando da força enviada para atacar
os sobreviventes humanos, estava a mandar um humano menos qualificado
contra outro mais qualificado, segundo os padrões da raça deles. De certa
maneira, era como mandar um zângão cylon realizar as tarefas de um
guerreiro. No entanto, havia compensações que deviam permitir a Baltar a
realização da sua tarefa. Por um lado, tinha-lhe sido dado o comando de uma
força que era de longe superior à que Adama comandava e, por outro lado,
tinha Lucifer com ele, cuja capacidade superior de raciocínio seria mais do
que suficiente para compensar a inferioridade intelectual de Baltar. A
presença de Lucifer na missão servia um duplo propósito. Além de
compensar a inferioridade de Baltar, Lucifer estava em posição de observar
Baltar de muito perto. Através da observação feita por Lucifer, o chefe
imperioso poderia aprender muito mais coisas acerca dos humanos.
Na sua qualidade de ser humano, Baltar reagia como um humano e
estava portanto em melhor posição para perseguir os sobreviventes. Na
medida em que era vaidoso, tinha um duplo incentivo para ver a sua tarefa
cumprida. Essa tarefa resultaria na destruição de um homem que detestava até
ao ponto do ódio e, pensava ele, provaria ao chefe imperioso que tinha as
qualidades necessárias para ocupar um posto importante na nação dos
Cylons. De fato, se ele realizasse a sua tarefa, a sentença de morte que
Lucifer adiara seria executada. Se não conseguisse exterminar os únicos
sobreviventes da sua raça, seria executado no momento em que Lucifer
determinasse que nada mais havia a aprender dele sobre os humanos. De uma
forma ou de outra, o objetivo acabaria por ser alcançado.
***
Se não fosse a vaidade de Baltar, o comandante da base de Gomoray
teria sabido da presença das duas estrelas-de-batalha no seu sector, mas a
batalha entre a frota comandada por Adama e a força dos Cylons dirigida por
Baltar ocorrera muito para além do raio de ação dos escrutinadores da base,
de forma que ele nada sabia da ameaça contra Gomoray. A única ameaça que
o preocupava naquele momento era a que resultava da visita do chefe
imperioso. O cylon supremo vinha a caminho para consagrar a base de
Gomoray como um novo centro da cultura cylon. Os Delfianos eram uma
sociedade já bastante avançada. A sua cultura empalidecia em comparação
com a dos Cylons, mas mesmo assim tinham sido arquitetos brilhantes. A
cidade capital de Gomoray era uma maravilha de cristalina beleza. A
conquista e exterminação dos Delfianos tinha causado muitos estragos nas
suas obras e o comandante da base cylon trabalhara de forma incansável para
reconstruir as cidades. A atmosfera e o clima de Gomoray eram de tal forma
que podiam facilmente apoiar a vida dos Cylons e seria um desperdício não
estabelecerem uma colônia florescente naquele planeta, uma nova extensão
do glorioso Império Cylon.
A seguir ao que, pelas medidas humanas, correspondia a cinco ianos de
trabalho incessante e maciço por uma força de trabalhadores cylons,
Gomoray fora restituída à sua beleza inicial. Mas os assaltos dos humanos
tinham atrasado seriamente a reconstrução. Os seus ataques foram dirigidos
exclusivamente à base territorial, mas de todas as vezes provocaram grandes
estragos, que levavam tempo a reparar. O comandante da base não sabia de
onde tinham vindo os humanos; apenas sabia que eram um forte
aborrecimento. Fora encarregado de instalar a colônia cylon em Gomoray e
era essa a sua única preocupação. Os humanos eram uma fonte de irritação,
mas não podia organizar uma ofensiva contra eles. Não tinha nenhuma nave
base sob o seu comando e os assaltantes humanos tinham-se mostrado
extremamente hábeis em evitar-lhe as defesas. Dispunha de caças que podia
enviar contra eles, mas tinham o contra de serem forçados a voltar à base por
causa do combustível, e por isso não podiam perseguir os malditos vipers,
cuja nave os podia levar prontamente para fora do seu alcance. Não tinha
informado os seus superiores das incursões de que fora vítima porque eles
teriam querido saber por que é que levara tanto tempo a terminar a sua tarefa
em Gomoray. Se anunciasse a presença de uma nave de combate humana, os
seus superiores teriam mandado uma nave base para Gomoray, e aí ficariam a
saber que os estragos causados quando da conquista dos Delfianos pelos
Cylons ficavam muito aquém daquilo que lhes anunciara. Todos os relatos
que fizera tinham sido largamente exagerados porque os humanos
provocaram grandes atrasos no cumprimento da sua missão. Cada vez que
atacavam a base, precisava de tempo para reparar os estragos sofridos, o que
queria dizer que tinha de desviar uma parte importante da sua força de
trabalho da tarefa de reconstrução das cidades. Esperava levar a bom termo
essa tarefa, dado que os humanos só tinham atacado a base territorial,
deixando intactas as cidades, e o trabalho ia progredindo pouco a pouco.
Quando tudo estivesse terminado, poderia então informar da presença da
nave de combate, sem ter de se preocupar que o comandante de uma das
naves informasse os seus superiores de que o comandante da base de
Gomoray não estava à altura da incumbência que recebera.
Agora tinham-lhe dado a saber que o chefe imperioso vinha a caminho
para consagrar a nova capital dos Cylons, e essa visita enchia-o de terror.
Levara os seus trabalhadores zângãos ao ponto da exaustão e os seus robots
ao ponto de colapso para conseguirem reparar os estragos causados pela
última incursão dos humanos antes da chegada do chefe imperioso, e o seu
maior receio era que os humanos fizessem novo ataque enquanto o chefe
imperioso estivesse em Gomoray. Isso faria ver ao chefe imperioso toda a
dificuldade que o comandante da base tinha em repelir tais ataques e esse fato
prejudicá-lo-ia grandemente. O comandante da base não tinha qualquer
desejo de perder o seu cérebro e passar o resto da vida como simples
guerreiro ou, pior ainda, perder os dois cérebros e receber em troca um
cérebro rudimentar, tornando-se um simples zângão trabalhador. Preferiria
morrer. Se ao menos os humanos não atacassem enquanto o cylon supremo
não se fosse embora. Depois poderia, sem perigo, informar da «chegada
inesperada de uma nave de combate humana» e pedir que fosse mandada para
Gomoray uma nave base. Não pensava que os humanos se arriscassem a
atacar a base numa altura em que os seus escrutinadores assinalavam a
presença da nave almirante do chefe imperioso em órbita em torno de
Gomoray, mas a verdade era que o comandante deles era de uma audácia
incrível e nunca se podia saber o que os humanos eram capazes de fazer.
Empertigou-se quando o centurião cylon de bronze entrou na sala de
comando da base.
— Sua eminência, o chefe imperioso, estará connosco dentro de
momentos — anunciou o centurião. — O seu vaivém já aterrou e ele vai
neste momento a caminho do Grande Hall.
O comandante da base verificou mais uma vez se o seu aspecto estava
impecável e apressou-se a ir ao encontro do chefe imperioso. Se tudo corresse
bem, podia acabar por ser promovido. Se alguma coisa corresse mal, podia
acabar em desastre.
Quando chegou, o Grande Hall estava a transbordar. Todos estavam
ansiosos por ver o chefe imperioso em pessoa, por lhe fazer a recepção que
lhe era devida. A sua visita a Gomoray era uma grande honra para todos e
esperavam-no num silêncio cheio de expectativa. A maior parte nunca vira o
chefe imperioso. Ele era a personificação da grandeza da sua raça. A sua
entrada seria um momento de prodigiosa importância.
Um centurião de bronze marchou para dentro da sala e todos os olhos se
fitaram imediatamente nele.
— Apresentamos sua eminência — disse o centurião —, o nosso chefe
imperioso!
O chefe imperioso, escoltado por um grupo de oficiais executivos,
apareceu numa das extremidades da sala e a multidão abriu alas enquanto ele
avançava para o centro, em direção ao trono colocado na outra extremidade.
Todos os cylons tinham os olhos postos nele, esforçando-se por ver bem a
figura vestida de vermelho que se erguia mais alto que todos os outros.
Movia-se rapidamente, mas de forma majestosa, enquanto se aproximava do
trono e subia os degraus que lhe ficavam por detrás. Deteve-se uns momentos
na plataforma, olhando por cima da multidão ali reunida, e depois instalou-se
no trono, sentando-se num imenso pedestal cilíndrico. A música estranha e
dissonante, que era o hino dos Cylons, parou logo que o chefe imperioso se
sentou.
— Compatriotas cylons — disse. — É na verdade uma honra dedicar
este centro da cultura cylon ao avanço e perfeição da raça cylon. Com este
posto avançado, seguro e forte, mesmo no coração do sistema estelar
Cryllion, a nossa supremacia está garantida...
Foi interrompido quando uma série de explosões fizeram estremecer o
Grande Hall. O chefe imperioso voltou-se para o comandante da base.
— Quererá dizer-me o que se está a passar? — A voz dele era
ameaçadora.
O comandante da base respondeu a gaguejar que não sabia, embora
tivesse a certeza de que as suas piores apreensões acabavam de se tornar
realidade.
— Então trate de saber, antes que eu arranje um posto mais adequado
para quem tem uns conhecimentos tão restritos.
Enquanto o comandante da base saía apressadamente da sala, fazendo
um gesto a vários oficiais para que o seguissem, outra série de explosões
lançou uma chuva de destroços sobre a multidão.
CAPÍTULO X
Os membros da força de assalto da Galactica nunca chegaram a saber
quanto a sua missão tinha estado prestes a terminar mesmo antes de começar.
Não sabiam da chegada do chefe imperioso a Gomoray e a única coisa que
impediu que o seu vaivém fosse detectado pelos escrutinadores da nave
almirante foi o próprio Gomoray. A nave do cylon supremo estava do outro
lado do planeta quando o vaivém entrou na atmosfera de Gomoray. Omega
sabia que havia boas hipóteses de o vaivém ser detectado pela estação de
controlo da base, mas contou com a possibilidade de estarem antes à procura
dos velozes vipers. Segundo o comandante Cain, o tráfego de vaivéns entre a
base territorial e as estações orbitais dos Cylons ajudá-los-ia na sua missão.
Não era invulgar para as estações orbitais e para os satélites sofrerem danos
devido a lutas ocasionais entre os caças cylons e os vipers de Cain. Ao longo
dos dois ianos em que Cain conduzira a sua guerra particular contra
Gomoray, conseguira retardar seriamente os trabalhos de reconstrução e
destruir várias estações orbitais.
— A aproximação vai ser difícil — dissera Cain para Omega. — Mas
eles vão estar à espera de uma esquadrilha de vipers, se é que estão à espera
de alguma coisa. Não vão pensar que alguém seja suficientemente louco para
tentar pilotar um vaivém por entre as defesas deles.
— Obrigado — zombara Omega em tom azedo.
— Bom, não era esse o sentido das minhas palavras — retorquira Cain.
— De qualquer forma, é uma loucura, e você vai ficar completamente
sozinho. Contamos consigo para que os nossos guerreiros consigam chegar lá
abaixo. Não vamos poder dar-lhe qualquer cobertura. A coisa mais difícil que
terá a fazer vai ser manter-se calmo. Tem de ganhar a essa gente todo o
tempo que puder. Quando todos tiverem saltado, terá a tentação de fugir dali
a toda a velocidade. Não o faça! Não vai querer alertar os Cylons. Mantenha
a calma e continue a uma velocidade reduzida e uniforme, como se fosse a
caminho de um satélite ou de uma das estações orbitais. Se fosse a si dirigia-
me a um dos satélites, que não estão equipados com escrutinadores. Logo que
se aproximar de um dos satélites, então já pode fugir a toda a velocidade. Há
boas hipóteses de não darem por si, mas se isso acontecer, já estará em
posição de tentar escapar-lhes e não terá alertado a base senão no último
momento. Acha que consegue?
— Consigo sim, senhor.
— Eu também acho que sim. Boa sorte.
Logo que Apollo, Starbuck, Boomer, Cassiopeia, Bojay e Sheba
saltaram para o espaço, Omega compreendeu imediatamente o que Cain
queria dizer. De repente sentiu-se sozinho, completamente vulnerável ali no
céu, por cima da base territorial. Desde o princípio que se sentia nervoso, mas
enquanto os outros estavam com ele tinha sido mais fácil. Agora sentia que
de um momento para o outro podia estar debaixo do fogo de uma das baterias
antiaéreas instaladas lá em baixo ou de algum caça cylon. Os seus nervos
gritavam-lhe que desse toda a força aos motores e regressasse o mais
depressa possível, mas ele sabia que tinha de comprar tempo para a equipa de
assalto em terra. Havia ainda a considerar que, se os alertasse da sua
presença, qualquer caça o podia facilmente alcançar. Pôs-se portanto a voar
lentamente, com segurança, mantendo uma rota fixa em direção a um dos
satélites climatéricos dos Cylons. Quando deixou a atmosfera de Gomoray,
estava encharcado em transpiração. Mordendo o lábio inferior, repetia
constantemente para si próprio:
«Vamos, sempre a direito, calma, não estragues tudo...»
No momento preciso em que parecia prestes a ir ao encontro do satélite,
deu a força toda aos motores. Seguiram-se momentos de agonia enquanto não
teve a certeza se tinha escapado de ser seguido, mas por fim verificou com
satisfação que não tinha sido notado. Soltou um fundo suspiro de alívio.
Agora só lhe restava ir ao encontro da Galactica. A sua participação na
missão estava terminada. Para os outros estava apenas a começar.
***
Bojay foi o primeiro a saltar. Seguiu-se-lhe Sheba e depois Apollo,
Cassiopeia, Starbuck e Boomer. Bojay tomou a posição de queda livre; de
braços abertos e com o rosto voltado para baixo. Segundos depois, Sheba foi
juntar-se-lhe, depois Apollo e dentro em pouco estavam todos juntos,
formando um cacho e respirando através dos respiradouros dos respectivos
capacetes enquanto mergulhavam em direção ao solo. A queda parecia
interminável. Havia já muito tempo que nenhum deles dava um salto
daqueles e, embora tivessem sido treinados nesse sentido, a qualidade
hipnótica da experiência era esmagadora. Apesar de estarem a mergulhar em
direção ao perigo, ao território inimigo, sentiam-se mesmo assim
embriagados com a sensação de voo. Tinham de se forçar a si próprios a não
desviar os olhos de Bojay, o seu chefe de equipa, perdendo-se no seu
devaneio. Dentro em pouco Bojay fazia-lhes sinal para que abrissem os
paraquedas auxiliares. Todos ao mesmo tempo, soltaram os pequenos
paraquedas que haviam de os ajudar a abrandar a velocidade antes de abrirem
os paraquedas principais.
Bojay observou o território por baixo deles, servindo-se do queixo para
ajustar o capacete. Ele ali estava, o alvo, à sua esquerda, a dez graus do ponto
imediatamente abaixo deles. Omega conduzira-os perfeitamente. Bojay fez-
lhes sinal com o polegar e, um após outro, soltaram os paraquedas auxiliares
e depois os principais, que abriram como asas por cima deles. Bojay foi o
primeiro a descer, num deslizar prolongado, com os outros atrás dele. Agora
podiam contar com sarilhos. Os seus enormes paraquedas, semelhantes a
asas, em breve seriam visíveis com toda a nitidez, constituindo alvos fáceis.
Starbuck pensava mais ou menos a mesma coisa quando começou a
deslizar seguindo Cassiopeia.
«Seja lá o que for que estão a fazer lá em baixo, suas latas de folha»,
disse para consigo mesmo, «não olhem para cima.»
Quando se aproximavam do solo, um centurião cylon fez precisamente
isso. Talvez uma sombra lhe tivesse chamado a atenção, talvez a sua intuição
de cylon o tivesse prevenido de que eles estavam a descer, a verdade é que
olhou para cima, localizou-os e imediatamente ergueu a arma para fazer
pontaria. Apollo, prevendo tal eventualidade, puxara do laser quando
começara a aproximar-se do solo e fez fogo, fazendo o cylon cair redondo no
chão. Dois outros cylons viram o camarada cair, correram para junto dele,
olharam para cima e com toda a rapidez apontaram as armas, mas Bojay
aproximava-se já por detrás deles. Quando estava quase a tocar o solo,
disparou e ambos os cylons caíram. Bojay tocou no chão, vulnerável ainda
com o seu paraquedas. Um cylon veio a correr do edifício mesmo por detrás
dele, mas Starbuck abateu-o antes que pudesse dar o alarme, alertando os
outros. O cylon caiu pelos degraus do edifício e os sons metálicos da sua
armadura, enquanto batia nos degraus, produziam tal estrépito que parecia
aos guerreiros tão forte como o toque ao alerta vermelho.
A equipa reuniu-se precipitadamente, abandonando os paraquedas. Não
valia a pena tentar escondê-los, pois a sua presença não tardaria a ser
descoberta e a rapidez era a essência da manobra.
— Estes depósitos de munições bem podiam criar-nos uma diversão
enquanto tentamos invadir-lhes o quartel-general — disse Apollo.
— Não deve ser muito difícil fazê-los ir pelos ares — concordou
Boomer.
Starbuck procurou as cargas para demolições no seu saco de apetrechos:
— Vamos a isso.
Deslocaram-se com rapidez, colocando as cargas e regulando-lhes os
relógios, enquanto Cassiopeia e Bojay vigiavam a possível aproximação de
mais cylons. Starbuck pôs a última carga e verificou o cronômetro.
— Bom, vamo-nos embora daqui. Para onde?
— Por aqui — disse Sheba.
Afastaram-se a trote, com as armas a postos e, sempre que possível,
rentes às casas.
— Esperem — alertou Apollo. Starbuck e Cassiopeia vieram juntar-se-
lhe. — Onde está Bojay?
— Eu vou voltar atrás — disse Starbuck.
— Não podes. As cargas vão disparar de um momento para o outro.
Mesmo antes de ele acabar de falar, Bojay apareceu a uma esquina,
correndo para os apanhar. Um cylon vinha atrás dele.
— Para!
Bojay voltou-se, ao mesmo tempo que puxava da arma, mas já era tarde.
O cylon fez fogo. Bojay disparou enquanto caía. Matou o cylon e começou a
rastejar, afastando-se dos depósitos de munições, para evitar ser apanhado
pela explosão que estava prestes a produzir-se. Sheba largou a correr a toda a
velocidade em direção a ele.
— Sheba — gritou Apollo. — Raios parta! — E largou a correr atrás
dela.
Sheba parou junto de Bojay, inclinou-se e tentou ajudá-lo a pôr-se de pé.
O tiro tinha-o atingido na coxa, queimando-lhe um pedaço de carne e de osso.
A ferida ficara parcialmente cauterizada, mas o sangue escorria do local
atingido.
— Sai daqui — disse Bojay com os dentes semicerrados.
Cassiopeia correu para junto deles, para dar a assistência que lhe fosse
possível.
— Esta porcaria toda está quase a ir pelos ares — gritou Starbuck.
— Não podemos perder tempo com eles — disse Boomer. — Temos de
destruir aquelas malditas baterias, senão há duas estrelas-de-batalha que vão
ser feitas em frangalhos.
Starbuck rangeu os dentes. Detestava a ideia de ter de os deixar para trás,
mas cada momento que perdiam aumentava as probabilidades de fazerem
falhar a missão que os levara ali. Boomer tinha razão.
— Vamos — disse. Precipitaram-se para a entrada do Grande Hall,
preparados para irromper por ali dentro.
Cassiopeia retirara um pequeno cauterizador do estojo que levava com
ela. Não tinha tempo para fazer mais nada, a não ser tentar parar o sangue que
empapava a perna de Bojay.
— Vai doer — avisou.
— Não podes dar-lhe qualquer coisa para a dor? — Perguntou Sheba.
— Não há tempo — respondeu Cassiopeia, lançando rapidamente mãos
à obra.
— Não podemos narcotizá-lo — disse Apollo —, tornar-se-ia num peso
morto. Põe-te de pé, Bojay. Não tens outra hipótese.
Com Sheba a dar-lhes cobertura, Apollo e Cassiopeia colocaram Bojay
entre ambos e, com dificuldade, ele acabou por se pôr de pé. A perna não
aguentava com ele e tentar apoiar-se nela era uma verdadeira agonia. O rosto
de Bojay era uma máscara de dor, enquanto o levavam, meio encostado, meio
no ar, para longe do arsenal. Ouviu-se a primeira série de detonações e os três
foram atirados ao chão. Bojay gritou de dor. Levantaram-se e continuaram a
andar.
No interior do Grande Hall, Starbuck e Boomer deslocavam-se devagar,
observando todas as saídas do corredor. Ouviram a primeira série de
detonações e refugiaram-se num pequeno compartimento.
— Onde diabo é que eles estarão? — Soprou-lhe Starbuck.
— Não sei — respondeu Boomer. Ouviu-se a segunda série de
detonações e o edifício estremeceu. — Lá se vai o arsenal.
— Mas que se passa? — Disse Starbuck. — Será possível que eles não
oiçam?
Ainda ele não tinha acabado de falar quando as portas principais se
abriram de rompante para dar passagem a uma multidão de cylons. Starbuck
e Boomer comprimiram-se de encontro à parede.
— Revistem tudo — rugiu o comandante da base. — Eu vou para o
centro de controlo. — E afastou-se rapidamente por outro braço do corredor.
— Ele disse que ia para o centro de controlo? — Perguntou Starbuck.
Boomer fez sinal que sim com a cabeça:
— Estamos com sorte, amigo. Espero bem.
Deram tempo a que os últimos cylons saíssem, todos eles preocupados
em ir lá fora ver o que tinha provocado a explosão, e depois avançaram
rapidamente na direção tomada pelo comandante da base e seus
acompanhantes.
Lá fora, os outros comprimiam-se na sombra enquanto os cylons saíam
em catadupa dos edifícios vizinhos. Cassiopeia tapara a boca a Bojay com a
mão, para o impedir de soltar algum grito involuntário.
— Como está ele? — Perguntou Apollo.
— Não devia mexer-se. — Sacudiu a cabeça sem saber o que fazer. Não
podiam arriscar-se a ficar ali.
— Eu fico com ele — disse Sheba.
Cassiopeia sacudiu a cabeça:
— Não. Apollo precisa de ti. Esta tarefa pertence-me a mim.
— Ela tem razão — disse Apollo. Estendeu a Cassiopeia uma das suas
duas armas de bolso. — Deixa-te estar de cabeça baixa — avisou. — Espero
que não tenhas de usar a arma.
— Preocupa-te antes com a Galactica — respondeu. E depois, olhando
de soslaio para Sheba, acrescentou: — E com o Pegasus.
***
A Galactica aproximava-se rapidamente de Gomoray. Athena ergueu os
olhos da mesa de comandos para olhar para Adama. No rosto do pai havia
uma expressão de ansiedade intensa.
— Estou a captar perturbações sonoras vindas da superfície de Gomoray
— disse.
— Estamos a aproximar-nos — alertou o coronel Tigh.
— O que quer dizer que estamos ao alcance das baterias antiaéreas dos
Cylons — disse Adama com voz tensa.
— Descemos? — Perguntou Tigh.
Adama sacudiu a cabeça:
— Vamos esperar.
***
A bordo do Pegasus, Tolen cerrou os punhos e praguejou exasperado.
— De que está ele à espera? Não tarda que sejamos apanhados pelos
escrutinadores deles e sejamos atacados!
Cain olhou para os écrans com toda a atenção:
— Ele quer dar à equipa de assalto todo o tempo possível para lhes
destruírem os sistemas de defesa e porem-se a salvo.
— E os caças deles? Logo que levantarem voo...
— Temos oito esquadrilhas contra quatro — disse Cain. — Temos de
nos preocupar mas é com as baterias antiaéreas. Quando estivermos ao
alcance delas podem dar cabo de nós. Um viper consegue iludir-lhes as
manobras e abatê-los, mas nós não conseguiríamos fugir-lhes. Tenham todas
as baterias das naves a postos... Se eles não conseguem destruir-lhes os
postos de defesa, a nossa única salvação será tentar abater esses passarões
antes que nos atinjam.
— E que hipóteses temos?
— É melhor não perguntar. Só serve para ficar preocupado.
— Estamos a aproximar-nos da linha de perigo — anunciou o homem
que estava a tomar conta dos escrutinadores.
— Não esperes demasiado, Adama — disse Cain suavemente.
***
Quando o comandante da base cylon entrou no centro de controlo, um
dos cylons da série VI que estava à mesa de comandos informou que os
escrutinadores assinalavam a presença de intrusos.
— Identifiquem-nos — pediu o comandante, embora tivesse a certeza de
saber de quem se tratava. Aquele danado assaltante humano tinha estragado
tudo, mas talvez a sua audácia tivesse acabado por o levar longe de mais.
Tudo indicava que tivera a loucura de se aproximar das baterias antiaéreas.
«Elas são bem capazes de lhe tratar da saúde e finalmente ficaremos livres
dele.» — Alertem as estações antiaéreas e interceptem os caças — disse.
***
Quando os cylons começavam a assestar as armas, Starbuck e Boomer
entraram de um salto, disparando em todas as direções. Uma das mesas de
controlo, juntamente com o operador, foi imediatamente destruída.
— Alerta geral — berrou o comandante da base, tirando a arma do
coldre.
— São demasiado numerosos, Boomer — gritou Starbuck. — Vamos
para fora!
Starbuck saiu mesmo a tempo do centro de controlo. O raio de energia
da arma do comandante da base ainda lhe chamuscou o cabelo. Entretanto
puxou de uma das cargas de demolição, acertou-lhe rapidamente o relógio e
atirou-a para dentro da sala.
— Baixa-te — gritou para Boomer. Tinham acabado de se deitar no chão
quando o centro de controlo foi pelos ares. Rolos de fumo saíram do
compartimento. Starbuck ergueu os olhos e viu um cibernauta cylon deitado
mesmo em frente da cara dele.
— Temos de nos pôr a andar.
Correram em direção à saída, abrindo caminho a tiro e tirando partido da
confusão. Dobraram uma esquina do corredor e quase dispararam contra
Apollo e Sheba.
— Encontraram o centro de controlo? — Perguntou Apollo.
— Claro que encontrámos — disse Boomer.
— Onde...
— Era ali — anunciou Starbuck sacudindo a cabeça na direção de onde
tinham vindo.
— Belo trabalho. Agora vamos ao depósito de combustível.
***
— Estamos no raio de alcance dos escrutinadores — disse Tigh. — Vir-
nos-ão no encalço, com ou sem apoio de mísseis antiaéreos.
— Vamos descer — ordenou Adama. — Previnam o Pegasus.
— A Galactica vai descer — disse Tolen a Cain.
— Ótimo.
— E agora? — Perguntou Tolen.
Cain franziu a testa:
— Não estou a segui-lo, coronel.
— Que fazemos agora? Qual é o seu plano? Nunca me disse quais eram
as suas intenções.
— Tem razão, nunca lhe disse nada, pois não? — Sorriu Cain.
***
A morte do comandante da base provocou um atraso fatal na partida das
esquadrilhas de caças. Os vipers abateram-se como relâmpagos sobre a base
territorial, espalhando um lençol de fogo. Alguns dos caças cylons
conseguiram levantar, mas a maior parte foram destruídos antes de se
afastarem do solo. Com a estação central de controlo destruída, os lança-
mísseis tornavam-se inúteis e os vipers não encontraram oposição.
Jolly, chefiando a força de ataque de Apollo na ausência deste, sentia-se
maravilhado com a facilidade de tudo aquilo. Era a primeira vez que
conseguiam apanhar os Cylons no seu próprio terreno, a primeira vez que
conseguiam ser em maior número que eles. No entanto o seu entusiasmo não
durou muito, pois apareceram algumas esquadrilhas de novos caças cylons
mergulhando em direção a eles. Nem sequer houve tempo de tentar descobrir
de onde é que eles vinham. De repente viram-se envolvidos em luta.
Antes da morte do comandante da base cylon, este tinha conseguido
enviar um pedido de socorro ao comandante da nave almirante do chefe
imperioso. Embora o comandante da nave almirante desejasse ardentemente
entrar em luta com a Galactica, não ousou fazê-lo. A sua principal
responsabilidade era o chefe imperioso. O cylon supremo tinha de ser
protegido custasse o que custasse. Pôs a sua nave fora do alcance da
Galactica, atrás de Gomoray, longe dos escrutinadores de Adama, e mandou
avançar as esquadrilhas de caças. Iriam fazer frente aos vipers, mas a sua
principal missão era salvar o chefe imperioso e reconduzi-lo à nave almirante.
Quando o chefe imperioso estivesse seguro a bordo, então poderiam dar cabo
dos invasores humanos. O maior receio do comandante da nave almirante
naquele momento era que o chefe imperioso pudesse ser morto no ataque.
Não podia permitir-se correr qualquer risco. Tinha de arrancar o chefe
imperioso dali para fora, por muitos caças que isso lhe custasse.
***
Baltar estava ansioso por fazer nova avançada contra a frota de Adama.
Conseguira ultrapassar os seus receios iniciais relativamente às duas estrelas-
de-batalha. Afinal tinha três naves sob o seu comando. Só tinham conseguido
fazê-lo recuar a primeira vez por o terem apanhado de surpresa. E se as coisas
corressem mal, pediria ajuda à base de Gomoray. Nem mesmo duas estrelas-
de-batalha conseguiriam sobreviver a esse ataque conjunto. Fez vir Lucifer à
sua presença.
— As nossas naves estão prontas para o assalto final contra a Galactica
e a sua nave gêmea?
— Há um problema — disse Lucifer.
— Não quero ouvir falar em problemas — interrompeu Baltar. — Os
problemas surgem onde nós os pomos. Vamos, faz os caças entrarem em
ação!
— Mas os problemas não estão onde nós os pomos — replicou Lucifer.
— Que queres dizer com isso? Fala!
— Neste momento estão sobre Gomoray — disse Lucifer.
— O quê?
— Estão a reduzir a base territorial a estilhaços, se é que as informações
recebidas estão corretas.
— Eles não podem atacar Gomoray — disse Baltar num tom de
incredulidade — estando eles próprios em vias de extinção.
— Eu sei isso — observou Lucifer. — E o senhor também o sabe, mas
eles não parecem compreender a situação. E ainda há uma notícia pior.
— Pior? Como é possível?
— Uma embaixada tinha chegado à base momentos antes do assalto.
Ele...
— Não me interessa a embaixada! Tenho a minha própria missão a
cumprir. O fato de Gomoray estar a ser atacada é ótimo. Significa que a frota
colonial está sem proteção. Faça sair imediatamente a nossa força.
Lucifer não se mexeu.
— Ouviste-me? Eu disse: destruam a frota!
— A missão especial enviada a Gomoray era acompanhada pelo nosso
chefe imperioso — disse Lucifer.
— O chefe imperioso está em Gomoray?
— Pergunto a mim mesmo o que é que ele vai pensar quando souber que
a base em que ele se encontra está a ser destruída por duas naves que
estiveram ao seu alcance há apenas alguns centons...
— É incrível — disse Baltar.
— Não conseguimos contactar com a base de Gomoray — continuou
Lucifer. — Só podemos concluir que os humanos destruíram o centro de
controlo e conseguiram neutralizar as defesas territoriais daquela base. Tenho
estado em comunicação com o comandante da nave almirante do chefe
imperioso. Já mandou as suas esquadrilhas de caças para salvar o chefe
imperioso. Temos de ir depressa ajudar à defesa.
— Pois claro — disse Baltar. — Manda tudo aquilo que temos para
destruir essas duas estrelas-de-batalha e que nenhuma nave regresse enquanto
a missão não tiver sido cumprida.
— Se conseguir isso, Baltar, será recebido em Gomoray como o maior
chefe militar da história dos Cylons.
— Obrigado.
— Isto é, se Gomoray ainda existir.
— Vamos, vamos... Vamos!
— A ordem já foi dada — disse Lucifer. E silenciosamente deslizou para
fora do quarto.
Talvez ainda viesse a conseguir alguma coisa, pensou Baltar. O que
parecera a princípio uma catástrofe podia ainda vir a tornar-se na resposta a
todas as suas preces. Se conseguisse salvar o chefe imperioso, o seu lugar na
hierarquia cylon estaria garantido. Entre as suas três naves base e a nave
almirante do chefe imperioso podiam pulverizar as duas estrelas-de-batalha.
E em seguida fazer desparecer sem a menor dificuldade a frota indefesa.
CAPÍTULO XI
Adama esperava, tenso, notícias de Jolly. O piloto do viper informara
que tinha apanhado os cylons na base e que a maior parte dos seus caças
tinham sido destruídos. Sabendo que não havia tempo a perder, Adama
mandara os tanques buscar o combustível existente no depósito dos Cylons,
que lhes era tão necessário. Tornara-se necessário esgotar as reservas de
quase todas as naves da frota improvisada para arranjar combustível
suficiente para levar a cabo o ataque. Se as naves base de Baltar viessem
contra eles naquele momento, seria o fim. Adama recebera a informação
favorável de Jolly e, confiado em que a missão de ataque a Gomoray
protegeria o depósito de combustível, mandou para lá os tanques. Só agora é
que Jolly informava que uma nova esquadrilha de caças cylons tinha surgido,
ao que parecia saída do ar. Acabava de interromper o contato, depois de ter
informado que mais uma esquadrilha acabava de vir contra eles. Ou as
informações de Cain estavam erradas e a base territorial de Gomoray tinha
caças em reserva noutro local ou era a força de Baltar que avançava contra
eles. Se se tratava realmente de Baltar, então estava tudo perdido.
— Jolly no circuito misto — disse Athena. Ligou-o aos écrans
principais. O rosto de Jolly apareceu acima das cabeças deles. A expressão
dele era tensa e denotava confusão.
— Não compreendo — exclamou. — Estão a dar-nos luta, mas é um
esforço quase simbólico. Alguns dos seus caças foram pousar do lado de fora
do Grande Hall e os restantes sobrevoam o edifício, atacando quem quer que
se aproxime deles. Mas não nos perseguem.
Adama franziu a testa:
— Diz lá outra vez: como é?
— Eles não nos perseguem! O seu principal interesse parece ser
unicamente manterem os nossos caças bem longe da área que circunda o
edifício principal. Mas isso não faz sentido. Já lhes destruímos o centro de
controlo, a brigada de assalto já tratou disso. Vê-se o local onde um lado
inteiro do edifício foi pelos ares.
— Jolly — disse Adama, inclinando-se para a frente e fitando
atentamente o écran de controlo —, parece-te possível que tenham
conseguido reparar o centro de controlo de forma que as baterias dos mísseis
ficassem operacionais?
— De maneira nenhuma, comandante. A equipa de Apollo fez um bom
trabalho. Não vão conseguir reparar o centro de controlo a tempo de ele lhes
servir para nada.
Adama franziu a testa:
— Deve haver lá dentro alguma coisa ou alguém que eles estão
desejosos de proteger. Infelizmente, com as naves base do Baltar aqui perto,
não tenho tempo para descobrir de que coisa ou pessoa se trata. Precisamos
do combustível. Não os largues, Jolly. Se querem proteger o seu quartel-
general, fá-los trabalhar para isso. Preciso do depósito de combustível em
segurança e livre de incêndios. Se aqueles tanques são atingidos, é o nosso
fim.
— Nós vamos mantê-los entretidos.
Jolly interrompeu o contato.
A equipa de Apollo tomara conta do depósito de combustível e os
tanques aterraram, acompanhados por vaivéns que transportavam tropas.
Fizeram um cerco em volta do depósito para proteger a tripulação que estava
a carregar o combustível. Apollo dirigiu-se a um dos vaivéns.
— Vou voltar lá acima — disse. — Starbuck, ficas a comandar.
— Eu? E tu, que vais fazer?
— Não são precisos pilotos especializados para carregar combustível —
disse Apollo. — Há neste momento três naves base que avançam contra nós.
— E que tal mais um voluntário para ir até lá? — Observou Sheba.
— Digamos mais dois — acrescentou Boomer.
Apollo avaliou rapidamente a situação.
— Aqui as tropas parecem estar a dominar a situação.
— Se pensas que vou ficar cá em baixo enquanto vocês vão tratar da
saúde a essas naves base — disse Starbuck —, deves estar doido. Vamos a
isso.
Embarcaram num dos vaivéns, levando Bojay com eles. O choque
começava a desvanecer-se e sentia agora muito mais a dor. Starbuck tomou
conta dos controlos e o vaivém elevou-se no espaço. Sem deixar de estar
alerta, à procura de algum caça cylon, Starbuck fez-se ao largo.
— Esperem — disse Apollo, aproximando-se dos écrans. — Não é da
Galactica que estamos a aproximar-nos, mas sim do Pegasus.
Starbuck fez um sinal de assentimento:
— São ordens.
— E quem deu essas ordens?
— Fui eu — anunciou Cassiopeia. — Trata-se de uma emergência
médica, capitão. Bojay necessita absolutamente de tratamento e o Pegasus é a
nave mais próxima.
— Temos ordem para aterrar — disse Starbuck. — Sigo?
Bojay gemeu. Estava pálido e banhado em suor. Tinha os dentes
cerrados enquanto lutava com a dor.
— É melhor irmos, e depressa — disse Boomer.
Apollo acenou com a cabeça:
— Para o Pegasus.
***
— Os escrutinadores de grande alcance estão a assinalar um número
incrível de naves inimigas que vêm em direção a nós — disse Tolen.
— Preparem coordenadas para as interceptar — respondeu Cain.
— Quer dizer atacar e afastá-las? Atacar e fugir, como nos velhos
tempos...
— Não, o que quero dizer é interceptar — disse Cain. — Passar mesmo
pelo meio deles.
— Pelo meio deles?
— Tolen, quanto tempo acha que conseguiríamos aguentar-nos contra
uma frota que tem três vezes o tamanho da nossa?
Tolen sacudiu a cabeça.
— Vamos, homem, pense.
— Eu julgava que a ideia era atacar logo que lhes puséssemos a vista em
cima e depois fugir — disse Tolen. — Ver se conseguíamos fazer que
viessem atrás de nós até as forças do Adama se terem posto a salvo.
— Que é que você faria, Tolen, se fosse um lunático egocentrista como o
Baltar e de repente surgisse uma crise? Continuava a perseguir o Adama?
Continuaria a querer salvar Gomoray?
— Não — disse Tolen devagar, começando a compreender. — Tentava
mas era salvar-me a mim mesmo.
— É isso mesmo — confirmou Cain. — Portanto, vamos passar mesmo
pelo meio da força de ataque dele, direitos às suas naves base.
— E quando Baltar perceber que é a pele dele que procuramos, chamará
todas as suas forças para o protegerem. Só que já será tarde de mais — disse
Apollo. Tinha chegado à ponte a tempo de ouvir Cain revelar a estratégia que
delineara ao seu executivo: — É um plano brilhante — acrescentou. — Se
resultar.
— Os meus planos resultam sempre — disse Cain. — Posso perguntar-
lhe que está a fazer no Pegasus? Julguei que ainda estivesse em Gomoray.
— Viemos no último vaivém — observou Apollo. — As tropas têm o
depósito de combustível sob o seu controlo e a nossa missão estava
terminada. Além disso, a sua nave era a que nos estava mais próxima.
Tínhamos um guerreiro ferido...
— Quem? — Interrompeu Cain.
— Bojay. A sua filha e Cassiopeia estão as duas bem. E Bojay também
vai ficar bom, mas desta vez ficou de fora.
— A Sheba esteve nessa missão consigo?
— Ela disse que foi o senhor quem a mandou ir.
— Disse-lhe isso?
Apollo permitiu-se sorrir:
— Decidiu mostrar um pouco de iniciativa. Tal pai, tal filha?
— Sim, acho que se pode dizer isso — disse Cain. — De qualquer
forma, fizeram bem. Eles não fizeram sair nenhuma nave e nós não tivemos
baixas.
— Não é bem assim — observou Apollo. — Não tivemos baixas e não
deixámos que a maior parte dos caças deles levantassem, mas eles tinham
naves de reserva noutro sítio qualquer. Jolly está agora a braços com várias
esquadrilhas, mas com as forças combinadas das duas estrelas-de-batalha está
a conseguir controlá-las e mantê-las longe do depósito de combustível. Estão
agora a proceder ao carregamento.
— Mais duas esquadrilhas? — Disse Cain. — Impossível. Ataquei
aquela base vezes sem conta e eles não têm reservas. Tem a certeza disso?
— Absoluta.
— Temos de nos pôr a andar se queremos interceptar as naves de Baltar
antes que cheguem a Gomoray — disse Tolen.
— Leve-nos daqui para fora, coronel, a toda a velocidade. Capitão, se
quer ir para a Galactica é esta a sua última oportunidade.
— Estamos a receber uma mensagem de Gomoray — avisou Tolen. —
Os nossos caças vêm de regresso ao Pegasus. Os caças da Galactica vão
servir de escolta aos tanques que se destinam à frota.
— Suspenda essa última ordem — disse Cain. — Deixemos a nossa
gente vir para bordo. Que há com aquelas esquadrilhas de cylons com quem
estavam em luta?
— Não vai acreditar nisto... — Disse Tolen.
— Ligue os écrans.
O rosto de Jolly apareceu nos écrans.
— A sua gente vai de volta, comandante — anunciou Jolly. — Missão
terminada. Mas não vai acreditar nisto...
— Acreditar em quê? — Ralhou Cain. — Não tenho tempo para
brincadeiras. Se tem alguma coisa a relatar, faça-o sem rodeios.
— Não se tratava de uma reserva de caças existente em Gomoray —
disse Jolly. — Esses caças pertenciam a uma nave base.
— Uma nave base! Onde?
— Já se foi. Os nossos escrutinadores apanharam-na no momento exato
em que se ia embora. Estava por detrás de Gomoray, escondida. Fizeram
aterrar uns quantos caças e retiraram alguém do edifício principal. Em
seguida, cerca de metade levantou a toda a velocidade, enquanto os outros
ficavam para trás para nos manter à distância. Logo que a nave base se
afastou, todos os caças cylons que tinham ficado para trás a seguiram.
Considerando a direção tomada pela nave base, duvido que consigam ir ao
encontro dela. Esses caças foram sacrificados, comandante. Nós não os
perseguimos.
— Isso é uma loucura — disse Apollo. — Se eles tinham uma nave base
para lançar contra nós, por que é que a mantiveram à distância? Por que é que
mandaram apenas aquelas esquadrilhas de caças? E porquê irem-se embora
sacrificando essas naves?
— Porque o comandante da nave base estava cheio de pressa, capitão —
observou Cain. — E a nave base não podia fazer fogo, com receio de matar
quem quer que estavam tão empenhados em proteger. Precisavam dos seus
caças mais manobráveis para afastar os nossos vipers, para os manter à
distância do edifício principal. Jolly, viste quem foi retirado de lá?
— Um cylon, presumo — disse Jolly. — Parecia estar ferido, mas não
consegui aproximar-me para ver melhor. A verdade é que eles perderam
quase metade das suas naves para o tirar de lá.
— Raios me partam — berrou Cain. — Há um único cylon que pode ser
considerado insubstituível a esse ponto. Parabéns, Jolly. Acabas de ter uma
visão do chefe imperioso, em pessoa.
— O chefe imperioso? Em Gomoray? — Jolly estava espantado. — Quer
dizer que tivemos o cylon supremo à mão de semear e perdemos a
oportunidade?
— Coisas da guerra, Jolly — disse Cain. — Vocês não podiam
adivinhar. Além disso, ele salvou-lhes a vida.
— Não estou a perceber, comandante.
— Se o chefe imperioso não tivesse ficado ferido, como deve ter sido o
caso, visto que a nave base se afastou com tanta pressa, deixando para trás
metade das esquadrilhas no momento em que ele entrou a bordo, a nave teria
ido atrás de vocês. E se não fosse a presença dele em Gomoray, quando a
vossa equipa atacou, os caças deles ter-vos-iam atacado em força, em vez de
se limitarem a uma ação defensiva com vista a conseguir tirá-lo de lá. Foi um
golpe de sorte, Jolly. Conseguiram arranjar combustível e, ao mesmo tempo,
atingir o cylon número um. Com um pouco de sorte, ele não vai sobreviver.
Não foi nada mau para um dia de trabalho.
— As nossas esquadrilhas voltam para bordo, comandante — disse
Tolen.
— Ótimo. Precisamos dessa vantagem para ir contra as naves base.
— Não me parece que seja grande vantagem — observou Apollo. —
Ainda vai ficar em desvantagem no que respeita a armas.
— Eu sei como se ganham as guerras, capitão — disse Cain. — E sei
tomar conta dos meus guerreiros.
— E serão esses os seus pensamentos quando se lançar sozinho contra
aquelas três naves base? Ou será que vai pensar na história... Na lenda do
comandante Cain?
— O senhor não está no seu posto, capitão.
— É possível que não esteja — disse Apollo. — Mas o senhor vai
precisar muito de quem o ajude.
Deu meia volta e saiu. Starbuck estava cá fora à espera dele. Juntos,
encaminharam-se para o cais de saída.
— Apollo, diz-me que não é verdade — gemeu Starbuck. — Três naves
base? Ir direito a elas?
— É verdade.
— Ele é doido.
— Um bocado — disse Apollo, sombrio. — Mas é essa a sua vantagem.
Quem poderia pensar numa coisa dessas a não ser Cain?
***
Na estação salva-vidas, Cassiopeia estava inclinada sobre um cilindro de
apoio no qual Bojay jazia em repouso. Estava pálido, mas ia recuperar.
— Obrigado por me ter conseguido trazer com vida — disse Bojay com
voz fraca. — Você é uma mulher formidável.
— Estava só a cumprir o meu dever, Bojay — observou ela. — Tal
como você estava a cumprir o seu.
Cassiopeia voltou-se e viu Sheba de pé, à entrada, a ouvir a conversa de
ambos. O rosto dela tomou uma expressão cautelosa.
— Ele pode falar — disse para Sheba —, mas não durante muito tempo.
Precisa de descansar.
Sheba foi até junto de Bojay. O rapaz ergueu os olhos para ela e sorriu.
— Disseram-me que lhes demos uma boa trepa — gracejou.
— Sim. Estragámos-lhes a festa. E eu tenho outra à minha espera. Mas
tu não estás convidado. Descansa, meu amigo. Quando voltar venho ver-te.
— Quem me dera ir também — disse Bojay.
— Eu depois conto-te tudo. — Fez uma festa na cara dele e depois
voltou-se para Cassiopeia. Cain entrou nesse preciso momento.
— Bom — disse jovialmente —, estão reunidas na mesma sala todas as
pessoas de quem mais gosto.
Sheba deitou um olhar frio a Cassiopeia e saiu, passando pelo pai sem
dizer uma palavra.
— Sheba... — Cain olhou para Cassiopeia, desesperado. — Eu bem
quero falar, Cassi... Mas...
— Mas a ocasião não é das mais indicadas — acrescentou, completando
a frase por ele. — Eu sei. Eu já estive nessa situação, lembras-te?
Ele sacudiu a cabeça tristemente e precipitou-se para apanhar a filha.
— Sheba, espera.
A rapariga parou junto ao elevador.
— Não posso — disse. — Vamos ser um contra três. Lembra-se?
— Sheba — pediu Cain. — Quero que leves Bojay num vaivém de
regresso à frota.
— Desculpe, pai. Mas aquilo que planeia para a minha esquadrilha é
planeado para mim também.
No momento em que ela entrou no elevador o alerta vermelho começou
a soar.
— Há mais uma coisa — disse. — Quanto àquela senhora... Aquela que,
segundo parece, é tão importante para si. Hoje vi-a salvar uma vida. Arriscou
a própria vida para o fazer. Isso faz-me pensar que talvez eu não conheça tão
bem as pessoas como julgo.
Abraçou o pai. Tinha os olhos húmidos.
— Amo-te muito — disse Cain —, e quero voltar a ver-te. Tem cuidado.
— O senhor também, comandante.
As portas fecharam-se.
***
Os humanos fascinavam Lucifer. Baltar fora o primeiro humano que ele
jamais tinha conhecido. A princípio, Lucifer considerava Baltar como pouco
mais que uma ferramenta com a qual não estava familiarizado, uma
ferramenta que tinha a sua utilidade, mas da qual Lucifer apenas possuía um
conhecimento bastante rudimentar. Lucifer tinha à sua disposição a soma
total de toda a informação que o Império Cylon reunira acerca dos humanos
durante a sua prolongada luta com eles. Estava perfeitamente familiarizado
com a anatomia humana, com a sua composição química, com os seus
sistemas circulatório e nervoso, resumindo, Lucifer sabia tudo o que os
cientistas cylons tinham conseguido aprender acerca dos humanos, de um
ponto de vista puramente patológico. Sabia como eles funcionavam, mas não
sabia como pensavam. Esse conhecimento não tinha sido prolongado nele,
nem tão-pouco existia em qualquer dos computadores aos quais tinha acesso.
Os humanos eram um mistério para os Cylons, na mesma medida em que os
Cylons eram um mistério para os humanos. No entanto, Lucifer não pertencia
a uma nem a outra espécie, pois era uma forma de vida inorgânica. Devia
obediência à raça cylon, os seus criadores, embora num sentido lato Lucifer
fosse um exemplo de autoconcepção. A entidade criada pelos cientistas
cylons era bastante primitiva, comparada com aquilo em que Lucifer se
tornara, aquilo em que ele se modificara a si próprio. Os Cylons tinham
programado em Lucifer um imperativo que lhe dava uma sede insaciável de
conhecimento. Fora isso que o levara a procurar todos os dados existentes, a
organizar e classificar essas informações, a reestruturar-se a si próprio vezes
sem conta, para conseguir reunir mais conhecimentos e organizá-los
corretamente. Tinha sido Lucifer quem permitira aos cientistas cylons
desenharem a série VI, seres iguais a ele próprio, êxito que não teriam
alcançado se Lucifer não lhes mostrasse o caminho. De certo modo, Lucifer
sentia reconhecimento para com a raça que o tinha criado, mas também não
odiava os humanos. Reconhecia que eram os inimigos do Império, mas não
via que fosse necessário odiá-los. Não era preciso odiar um inimigo para o
derrotar, o que era preciso era aprender o mais possível acerca desse inimigo.
Lucifer tinha aprendido a reagir de uma forma que era aceite pelo chefe
imperioso, mas nem mesmo o cylon supremo compreendia perfeitamente o
que se passava no «espírito» de Lucifer. Nesse aspecto, Lucifer era-lhe tão
desconhecido como os humanos, só que Lucifer sabia fazer que ele não desse
por isso. O chefe imperioso não compreendia os humanos, embora soubesse
mais acerca deles do que qualquer outro cylon, e por conseguinte odiava-os.
Lucifer não queria que o chefe imperioso se desse conta de quão pouco
entendia o primeiro produto da série VI. Lucifer não tinha qualquer desejo de
ser desmontado.
Lucifer tinha salvo Baltar da execução, não tanto por o homem ainda ter
uma certa utilidade, embora esse fosse certamente um fator considerado no
seu esquema de pensamento, mas porque Baltar constituía a sua primeira
grande oportunidade de estudar um humano. E não se tratava de uma
oportunidade que Lucifer estivesse disposto a desperdiçar. Desde o momento
em que fora nomeado pelo chefe imperioso imediato de Baltar, os
conhecimentos de Lucifer acerca do processo de pensamento humano tinha
aumentado enormemente. Baltar era um puzzle interessante, uma curiosidade.
Mas só depois de ter tido a oportunidade de observar outro humano, ainda
que por breve tempo, é que Lucifer ficou completamente fascinado pela
espécie.
Por um curto espaço de tempo, o humano chamado Starbuck tinha
estado prisioneiro a bordo da nave de Baltar. Este tinha dado ordem para que
o soltassem como parte de uma jogada para ganhar a confiança de Adama,
uma artimanha que falhara inteiramente, mas durante o tempo que passaram
juntos, Lucifer aprendera bastante. A coisa mais importante que aprendera era
que existia nos humanos uma complexidade a que ele nunca dera o devido
valor.
Observando a interação entre Starbuck e Baltar, Lucifer detectara
fraquezas em Baltar de que nunca se apercebera antes, porque não tinha
termo de comparação. Graças a Starbuck, Lucifer aprendera maneiras subtis
de manipular o seu «superior». Lucifer aprendera também alguma coisa
acerca daquilo a que os humanos chamavam «jogo», coisa que constituía uma
obsessão para Starbuck. Este ensinara a Lucifer o jogo da pirâmide, praticado
em Caprica, e que era jogado com cartas, sobre apostas monetárias. A
primeira impressão de Lucifer era de que se tratava de um jogo de azar, e
considerou-o um desperdício de tempo e das suas capacidades. Para ele não
havia qualquer dificuldade em computadorizar as probabilidades, mas, apesar
da sua vantagem matemática, Starbuck derrotara-o. Numa determinada
partida, Lucifer tinha calculado rapidamente as probabilidades contra a
hipótese de Starbuck ganhar a partida. Eram astronômicas. No entanto,
Starbuck acabara por conseguir o número exato de cartas necessárias para
ganhar a partida, três quartos de uma pirâmide perfeita, faltando-lhe apenas a
parte superior.
Lucifer considerara a possibilidade de Starbuck ter feito batota; no
entanto, observara o jogo de muito perto e não apanhara Starbuck a fazer
batota. Starbuck não demonstrara nenhum dos sinais emocionais que Lucifer
tinha observado em Baltar em várias ocasiões em que este tentava ludibriá-lo
por qualquer razão. Eram sinais muito subtis, um acelerar da respiração, uma
diferença notória nos batimentos do coração que os sensores de Lucifer
conseguiam detectar, movimentos musculares subtis, especialmente em volta
dos olhos. Starbuck não revelara nenhum destes sinais. Parecia impossível
que uma entidade orgânica mostrasse tanto controlo sobre si mesma. Não
havia dúvida de que Baltar era incapaz de o fazer.
Então Starbuck tinha-lhe dito qualquer coisa sobre um conceito a que os
humanos chamavam «sorte». Era a sorte que parecia dar a Starbuck aquela
sensação de fascinação pelo jogo. Claro que não se tratava apenas de uma
questão de sorte ao acaso. Lucifer não compreendia bem, mas parecia que, se
se tinha essa coisa chamada «sorte», resultava daí uma capacidade de
ultrapassar as probabilidades com uma consistência matematicamente
impossível. Não fazia sentido, era totalmente ilógico e Lucifer dissera-o a
Starbuck. Este respondera apontando para tudo o que tinha ganho, dizendo:
— Então como explicas tudo isto, Lucy?
Lucifer tivera de admitir que não tinha qualquer explicação lógica. Em
seguida, Starbuck explicara-lhe as complexidades do fingimento. A discussão
parecia divertir Starbuck, e Lucifer reconhecera que Starbuck estava a
praticar aquilo a que os humanos chamavam o seu «sentido de humor», e que
não era um sentido à maneira convencional, embora Lucifer o tivesse
aprendido na observação de Baltar. No entanto, o sentido de humor de
Starbuck era consideravelmente mais subtil e complexo que o de Baltar. Ele...
Ele exercia-o melhor.
Lucifer apreciara enormemente a companhia de Starbuck. O humano
constituía um desafio de uma complexidade estimulante e Lucifer tivera
muita pena quando Baltar insistira em o libertar. A experiência mostrara que
tinha sido um erro em vários aspectos. No entanto, Lucifer aprendera alguma
coisa com Starbuck sobre a dissimulação. E isso tornara-lhe o contato com
Baltar notoriamente mais fácil.
Lucifer recebera uma comunicação do comandante da nave almirante do
chefe imperioso. Um caça da nave base conseguira libertar o cylon supremo,
embora não sem dificuldade, e o chefe imperioso acabara por ficar ferido
com os escombros. O ferimento era grave, mas não fatal. Tinha sido
necessário colocá-lo em suspensão criónica e levá-lo para o seu mundo de
origem, onde os cientistas cylons iriam reparar o estrago. No entanto, isto
queria dizer que a nave base não poderia ajudá-los no ataque e que as forças
humanas eram deixadas em Gomoray, onde a resistência era mínima, agora
que o centro de controlo fora destruído e o comandante da base morto,
juntamente com todos os cylons da série VI existentes em Gomoray e a maior
parte dos seus oficiais. Era imperioso que regressassem imediatamente a
Gomoray para neutralizar a ameaça. No entanto, Lucifer sabia que, se
dissesse a Baltar que o chefe imperioso tinha sido salvo e ia a caminho do seu
mundo de origem, Baltar não iria defender Gomoray. Estava de tal forma
obcecado com a destruição da frota humana que mudaria imediatamente de
rota para ir atacar as naves humanas deixadas sem defesa. Do ponto de vista
estratégico, seria uma atitude correta, dado que a perda das naves que tinha
sob a sua responsabilidade desmoralizaria Adama, dando-lhe assim mais uma
vantagem contra ele, mas era também uma atitude que eles não estavam em
posição de tomar naquele momento.
Gomoray tinha uma importância vital para o Império Cylon e precisava
de ser defendida a todo o preço. Não se sabia quais os estragos que os
humanos já tinham causado naquele mundo. Se a base territorial fosse
completamente destruída, seria um golpe devastador para o Império. Além
disso, os humanos certamente fariam uma incursão ao depósito de
combustível. Seria uma perda valiosa, mas o pior era que isso permitiria à
frota humana escapar-lhes, como já acontecera vezes de mais no passado.
Lucifer tinha de assegurar que Baltar fosse em defesa da base territorial e de
Gomoray. Para o conseguir, Lucifer resolveu pôr em prática o que Starbuck
lhe tinha ensinado sobre o fingimento. Decidiu não contar a Baltar a
mensagem do comandante da nave almirante. Baltar tinha de pensar que o
chefe imperioso estava ainda em Gomoray e que se encontrava em perigo.
Entrou na sala do trono de Baltar.
A sala era quase uma réplica exata da sala do trono do chefe imperioso
na sua nave almirante. Baltar insistira nesse ponto, a sua vaidade exigia-o. O
chefe imperioso, que desconhecia totalmente a vaidade, pensara que se
tratava de um pedido simples e concedera-o.
— Tens alguma coisa a informar? — Disse Baltar em tom formal.
— Uma comunicação da nossa força de ataque — replicou Lucifer. —
Uma das estrelas-de-batalha foi enviada para a interceptar.
— Uma única estrela-de-batalha — disse Baltar, esfregando as mãos
uma na outra. — Maravilhoso. Diria mesmo que é bom de mais para ser
verdade.
— Entramos em luta com eles ou continuamos para o nosso destino, para
salvar o chefe imperioso e Gomoray?
Lucifer esperava que o tom que escolhera tivesse tanto êxito como
aquele que Starbuck empregara ao fazer bluff num jogo de pirâmide.
— Claro que entramos em luta com eles — interrompeu Baltar. —
Destruímos a nave e depois seguimos para Gomoray. Não deve levar muito
tempo.
— Às vossas ordens — disse Lucifer. Tinha resultado. Mais uma coisa
que ele aprendera com os humanos. Arquivou-a para futura referência.
CAPÍTULO XII
O Pegasus lançou-se através do espaço, preparando-se para interceptar a
força de ataque de Baltar. Todos os membros da tripulação estavam nos seus
postos, aguardando, tensos, o confronto que estava prestes a produzir-se e
que seria o maior risco que o comandante Cain jamais correra. Se tivesse
êxito, a lenda do Jaganata tomar-se-ia ainda maior, se não, desapareceriam
todos num torvelinho de glória, e se alguns dos humanos da frota fugitiva
conseguissem sobreviver, nunca mais seriam esquecidos.
— Aproximação de uma força cylon — disse Tolen. — Vinte microns.
— Lançar esquadrilhas de vipers — ordenou Cain.
Todos os pilotos estavam prontos, à espera, sentados nas cabinas dos
seus vipers, silenciosos, ganhando energia para a luta que se ia seguir. Todos
ouviram a ordem seca de Tolen através dos circuitos de comunicação dos
capacetes.
— Preparem-se para largar.
Apollo passou a língua pelos lábios, num gesto nervoso, enquanto fazia a
verificação final dos instrumentos de bordo. Lembrou-se da conversa que
tivera momentos antes com Starbuck, no corredor, à saída da ponte do
Pegasus.
— Ele é doido.
— Um bocado, mas é essa a sua vantagem. Quem poderia pensar numa
coisa dessas a não ser Cain?
«Quem, na verdade? Um bocado doido? E quanto era esse bocado? E eu
provavelmente sou tão doido como ele para fazer parte de uma coisa destas»,
pensou Apollo. Mas o seu lugar era ali, era ali que precisavam dele. Se
perdesse a vida por causa do plano louco de Cain, pelo menos saberia que
tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para ajudar a salvar a frota. Se
escapassem, teria valido a pena.
Quando ainda criança, e à medida que foi crescendo com as histórias do
comandante Cain, sonhara tornar-se ele também um guerreiro, tal como o seu
ídolo, o Jaganata. Mal suspeitava que havia de chegar a altura em que estaria
ele próprio a bordo do Pegasus, voando sob o comando de Cain, participando
na missão mais ousada da lenda viva. Perguntava a si próprio se, caso
soubesse naquele tempo o que sabia agora, teria sentido o mesmo entusiasmo.
Descobrira que a lenda viva tinha o seu calcanhar de Aquiles e que, em vez
de se sentir transportado de alegria com a perspectiva de travar batalha lado a
lado com o herói da sua infância, se sentia assustado. Mas isso era bom,
pensou. Só um louco é que ia para a guerra sem medo. Perguntava a si
mesmo o que estaria a sentir o comandante Cain.
Boomer estava tranquilamente sentado na cabina do seu viper. Estava a
recitar de memória a sua passagem favorita do Livro da Palavra quando
ouviu a ordem de Tolen para se preparar. Sentiu-se isolado no interior da
cabina. Era um sentimento que já antes experimentara muitas vezes. A cabina
de um viper era como um lar para ele; conhecia-lhe todos os recantos. No
entanto, cada vez que se sentava sozinho no interior do seu viper, dentro do
útero metálico do tubo de lançamento, recordava sempre o seu primeiro voo
sozinho. Voltava-lhe sempre à memória com toda a clareza, como se tivesse
sido na véspera.
Lembrava-se de ter ouvido a voz do instrutor no circuito de comunicação
do capacete, enquanto verificava nervosamente, pela décima sexta vez, os
instrumentos de bordo. Lembrava-se de como tinha as palmas das mãos
alagadas em suor, de como lhe batia o coração, de como a base do estômago
parecia querer cair-lhe.
— Pois bem, cadetes, é aqui que se separam os homens dos rapazes, os
guerreiros da tripulação de terra. Três de vós vão ser lançados no ar e
seguir os caminhos de voo já traçados. Fareis separadamente todos os
vossos exercícios para depois vos juntardes e fazer as mesmas manobras em
formação de «asa com asa». Vou observá-los com todo o cuidado. Aqueles
que quiserem prosseguir e tornar-se pilotos de viper, os que não estão aqui
apenas por diversão, é agora que vão saber se têm o que é preciso para isso.
Atenção ao lançamento!
Boomer lembrava-se de que as mãos lhe tremiam no momento em que
agarrara os comandos, pensando: «Deus queira que passe, Deus queira que
passe...»
***
Sheba estava sentada na cabina, com as lágrimas a correrem-lhe pelo
rosto. Qualquer outra mulher podia ter pensado que a vida a ludibriara, mas
não Sheba. Em pequena apenas via o pai de tempos a tempos. Afinal, ele era
um guerreiro, o maior guerreiro das colônias, dissera-lhe a mãe, e as pessoas
precisavam dele.
«Não devemos guardar ressentimento pelo tempo que o teu pai passa ao
serviço dos outros, Sheba. Ele é um grande homem e nós temos de aprender a
partilhá-lo. Não devemos ser gananciosas.»
Embora lhe tivesse custado muito, Sheba acabara por aprender a viver
com as longas ausências do pai. Isso fizera que o amasse mais e apreciasse
melhor todo o tempo que passava com elas, mas também levara a que o
colocasse num pedestal, situação não pouco comum entre pais e filhas, mas
que no caso dela era muito mais profunda.
Crescera na posição de filha do comandante Cain, o Jaganata, a lenda
viva. Nunca tivera realmente uma infância normal. As pessoas tratavam-na de
maneira diferente. Ela era especial. Era a filha de Cain. Mesmo as amigas,
que podiam ter sentido um certo ressentimento por ela ser filha de um homem
famoso, queriam sempre falar com ela acerca do pai. Sheba via a maneira
como era tratada, por ser quem era, ouvia as histórias dos feitos do
comandante Cain e sabia que toda a gente o considerava um herói. E quando
se tratava de venerar o pai como herói, Sheba não deixava que ninguém lhe
passasse adiante.
Depois a mãe morrera. Sheba tivera de aguentar não apenas o seu
próprio desgosto, mas o do pai também. Nunca o vira tão desesperado. Nunca
pensara que ele fosse vulnerável. Ficava sentado em casa, a mexer nas coisas
dela e a admirar-lhe a imagem holográfica, com o rosto entorpecido. Não
queria comer e, muitas vezes, nem ouvia Sheba quando ela lhe dirigia a
palavra. Ficavam sentados à mesa, em silêncio, enquanto Cain, de olhar
perdido no infinito, ignorava a comida que tinha à frente. Sheba desejava
desesperadamente ajudá-lo. Tentara tudo o que sabia, mas em vão.
«Vou tomar contra ele», dissera para si própria. «Agora que a mãe
morreu, ele precisa de mim. Eu é que sou responsável por ele.»
Mas Cain não tinha precisado dela. Sheba não compreendera isso logo,
não compreendera que o que ele precisava ela não lhe podia dar. Quando
conheceu Cassiopeia, Cain começou a voltar a ser o que era e Sheba odiou-a
por isso. Cassiopeia não era muito mais velha do que ela própria e Sheba não
compreendia por que é que Cain se voltara para ela, uma desconhecida, e não
para a própria filha. E como era possível que tivesse esquecido tão depressa a
mãe?
Não faltava nenhum ingrediente para fazer de Sheba uma mulher azeda.
Primeiro perdera a mãe, agora parecia ter perdido igualmente o pai, por causa
de uma mulher pouco mais velha do que ela. E pouco depois Sheba perdera
também o seu mundo, quando a armada cylon destruíra Caprica. No entanto,
de toda essa catástrofe resultara alguma felicidade para Sheba. A rapariga
tornara-se piloto de um viper, servindo a bordo da nave do pai. Quando a
frota deles fora destroçada na batalha de Molecay, fugiram em direção às
estrelas, certos de que nunca mais voltariam a ver outros seres humanos, que
não voltariam a ver o local de onde tinham vindo. Agora não tinham nenhum
local para onde voltar. No entanto, Sheba sentia-se feliz. Conquistara de novo
o pai. Compartilhava dos feitos dele, lutando lado a lado com ele, e nada
podia voltar a separá-los. Sheba sentira-se feliz até ao momento em que
Cassiopeia regressara do passado morto.
Ela enganara-se quanto a Cassiopeia. Agora que era uma mulher feita,
compreendia melhor as coisas do que quando Cassiopeia surgira pela
primeira vez na vida do pai. Sabia que, de uma maneira muito lata, fora
Cassiopeia quem fizera que o pai regressasse do abismo. Cassiopeia e o
tempo curaram a ferida do pai. Ela não teria sido capaz disso. Sheba sabia-o e
compreendia a situação, mas apesar disso não conseguia controlar os seus
sentimentos em relação a Cassiopeia. Se ao menos Cassiopeia fosse diferente,
se fosse um pouco menos do que aquilo que era, teria sido fácil detestá-la.
Sheba ter-se-ia sentido justificada nos seus sentimentos. Mas Cassiopeia era
uma mulher bondosa. Possuía coragem e abnegação, todas as qualidades que
Sheba admirava.
— Raios parta! — Praguejou Sheba num murmúrio. — Não está certo!
— Preparem-se para o lançamento — disse Tolen.
«Pronto, estás feito, meu velho Starbuck», disse o piloto para si próprio.
«Desta vez estás até por cima das orelhas. Três a um. Nada bom. Podia ser
pior, mas lá bom não é. Qualquer tipo com um bocadinho de senso
esmorecia. Qualquer que não fosse o Starbuck, isso é que é. Não, Starbuck,
aguenta sempre. Starbuck arranja sempre maneira de se safar. Ele aqui está, o
ás dos vipers, sentado na sua cabina, esperando ser lançado para a ação.
Esperando para ativar ao máximo os seus propulsores e ir ao encontro da
armada dos cylons, esperando para mergulhar sozinho numa nuvem de caças,
para abrir caminho para a imortalidade, com os dentes, as mãos, os pés, as
unhas, com os lasers a brilharem por todos os locais, à espera de ver se o
pânico cego que sente irá desaparecer, permitindo-lhe parar de falar
sozinho...»
— Atenção ao lançamento — disse Tolen.
— Oh, merda — praguejou Starbuck.
— Largar!
Starbuck foi atirado para trás de encontro à cabina do seu viper,
enquanto este se precipitava pela conduta de lançamento.
«Shiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!»
— Starbuck! Estás bem? — A voz de Apollo chegou-lhe pelo circuito de
comunicação no momento em que saíam das condutas de lançamento e
começavam a tomar posições.
Starbuck compreendeu que tinha apoiado inadvertidamente o queixo no
circuito de comunicação no momento do lançamento.
— Sim, está tudo bem. Eu só disse «vamos a isto».
— A mim pareceu-me...
— Deixa lá o que te pareceu, limita-te a voar, ‘tá bem? Já tenho bastante
com que me preocupar para me estares ainda a encher os ouvidos.
Apollo sorriu e sacudiu a cabeça. Starbuck estava bem.
— Os caças já foram lançados e vão ser a ponta de lança do Pegasus —
disse Tolen.
— Inimigo à vista — avisou Sheba.
— Muito bem, filha — respondeu Cain. — Agora é contigo. Abre-me o
caminho pelo meio deles.
— Já o tem, comandante.
O comandante da esquadrilha dos cylons não acreditava no que via. Uma
estrela-de-batalha solitária contra três naves base e todas as suas esquadrilhas.
Os humanos deviam estar loucos.
— Vêm direitos a nós — disse o chefe da esquadrilha dos cylons. —
Preparem-se para entrar em combate.
— Abrir fogo — ordenou Apollo.
Os vipers entraram em ação com as baterias de laser logo que ficaram à
distância necessária. Os caças cylons responderam ao fogo, e o espaço entre
eles, à medida que se aproximavam rapidamente, tornou-se num complicado
entrançado de luzes mortíferas. Houve baixas de ambos os lados e os cylons
fugiram ao ataque, abrindo caminho aos vipers pelo meio deles, para
poderem reagrupar-se e apanhá-los na sua próxima passagem.
— Reagrupar — ordenou o chefe das esquadrilhas cylons aos pilotos. —
Os caças vão voltar para defender o Pegasus.
— Os nossos vipers abriram um belo corredor pelo meio das forças
inimigas — disse Tolen —, mas eles estão a atacarmos por todos os lados.
Estamos servidos.
— Mantenham a rota — disse Cain numa voz glacial. — Sempre em
frente, a toda a velocidade. Temos de nos manter atrás dos nossos vipers
enquanto eles cortam a segunda leva.
O Pegasus avançou através da esquadrilha de caças cylons, levando
alguns tiros enquanto abria caminho através das naves que o rodeavam,
girando como loucas.
— A estrela-de-batalha não para para lutar connosco — informou um
dos pilotos de um caça cylon ao seu chefe de esquadrilha.
— Estão loucos. Vão ser apanhados entre o nosso primeiro e segundo
voo de ataque. A menos que contem fazer disparar a nossa segunda formação
e fugir a correr. Perseguir e destruir.
Os caças cylon reagruparam-se e perseguiram o Pegasus, enquanto uma
segunda vaga atacava os vipers. Os pilotos humanos mantiveram um fogo
constante, sem darem às baterias um minuto de descanso.
— Starbuck...
— Hum — respondeu o piloto à voz de Apollo, que lhe chegava pelo
circuito de comunicação.
— Eles são tantos que não há hipótese de falhar um tiro.
Starbuck sorriu sem alegria aos esforços de Apollo para manter a boa
disposição.
— Sim, mas eu acabo de perder o Bunker e o Taggs — disse. — Eles
vêm de todos os lados. Os raios lasers são tão juntos que se lhes pode andar
em cima.
Cain estava em todos os cantos da ponte, recebendo comunicações sobre
os danos sofridos e trabalhando ele próprio com os escrutinadores, para tentar
localizar as naves base de onde tinha partido o assalto dos cylons.
— Mas onde estão eles? — Bateu com o punho cerrado na mesa. — O
raio dos caças parecem moscas, baralham os dados dos escrutinadores...
Tempo. O tempo era crucial. Tinham de fazer que Baltar pensasse que
estavam a tentar uma diversão para ganhar tempo para a Galactica e para eles
próprios.
— Comandante — disse Tolen de uma outra mesa —, já os localizámos!
Cain surgiu imediatamente junto dele.
— A que distância?
— Podemos alcançá-los dentro de uns cem centons — respondeu Tolen.
Cain sacudiu a cabeça.
— É muito tempo. Temos de nos aproximar mais. E eu não posso
empurrar muito este brinquedo enquanto o Baltar não morder a isca.
— E se ele não morder? — Disse Tolen taciturno. — Ele deve saber que
o chefe imperioso já não está em Gomoray. Supondo que ele não passa ao
assalto e não manda avançar os caças dele? E então?
— Vai ter graça, não vai? — Disse Cain.
— Sempre lhe digo uma coisa, comandante — acrescentou Tolen,
erguendo os olhos dos écrans para Cain e voltando a baixá-los. — Aconteça
o que acontecer, a vida a bordo do Pegasus nunca foi monótona.
A voz de Sheba fez-se ouvir no sistema de intercomunicadores.
— Esquadrilha Lança de Prata, reunir para proteger o Pegasus — disse a
rapariga. — A nave está a sofrer um ataque cerrado.
— Negativo! — Ordenou Cain, inclinando-se rapidamente para a frente
e falando para o microfone da mesa de comandos. — Cancele a ordem! As
esquadrilhas devem continuar em frente! Repito, as esquadrilhas devem
continuar em frente!
— Se não lhe dermos proteção — disse Sheba —, vai ficar encurralado
entre a primeira e a segunda leva de atacantes!
— Se continuarmos a avançar, não precisamos de proteção — retorquiu
Cain. — Já sabe quais são as suas ordens.
— Sim, senhor.
A primeira onda de assalto de caças cylons reagrupara-se e aproximara-
se novamente deles. O Pegasus ficou sob um fogo cerrado. Ao passar, um
dos caças acertou em cheio nas torres externas dos escrutinadores. A torre
caiu e a energia recuou ao longo das condutas, sobrecarregando o circuito.
Tolen estava sentado à mesa de comandos quando o écran perdeu o controlo
e, antes que tivesse tempo sequer de respirar, a energia brotou através da
mesa e fê-la explodir numa chuva de centelhas, atirando-o para o outro lado
da ponte.
— Tolen! — Cain correu para junto dele. Tolen estava imóvel. —
Levem-no ao posto de reanimação. Temos um sinistro na ponte!
Starbuck voltou-se contra o aparelho cylon que o perseguia e fê-lo em
estilhaços. Olhou rapidamente por cima do ombro.
— Apollo! O Pegasus está sob um tiroteio cerrado... Não podemos
continuar, temos de voltar para ajudar Cain.
— Mas as ordens de Cain eram que se abrisse uma brecha na segunda
leva de atacantes para ele poder passar atrás de nós com o Pegasus.
— Raios parta! Já não vai haver nenhum Pegasus para vir atrás de nós!
Os cylons estão em cima dele como um enxame de abelhas!
— Tens razão — respondeu Apollo, depois de ter visto por si próprio a
situação desesperada de Cain. — Vamos.
Os vipers abandonaram a formação de ponta de lança e voltaram-se em
direção ao Pegasus. No momento em que desfaziam a formação, Sheba, que
ia à frente das esquadrilhas, recebeu um golpe em cheio, no momento em que
a Lança de Prata cruzava a segunda leva de caças cylons.
— Sheba? Estás bem? — Disse Apollo. O viper da rapariga deslocava-se
de forma descontrolada.
— Não me parece — respondeu, numa voz que lhe, traía o sofrimento.
— Consegues controlar o aparelho?
— Hum... Mal. A direção foi atingida. Não consigo disparar, os lasers
não reagem...
— Muito bem. Vou colocar-me à tua frente... Tenta vir atrás de mim.
Vamos tentar chegar até ao Pegasus, à pista Beta.
— Obrigada, Apollo...
Starbuck aproximou-se para proteger Sheba pela retaguarda. A formação
da segunda leva de ataque dos cylons tinha sido destroçada, mas estavam a
reagrupar-se no momento em que o Pegasus veio sobre eles, tentando seguir
de perto as esquadrilhas de vipers, antes que os cylons conseguissem
reagrupar-se e deixá-lo isolado. A primeira leva de atacantes cylons vinha-lhe
no encalço, com as naves de comando a fazerem-lhe passes por todos os
lados, tentando atingir a ponte.
— Só espero que o Pegasus aguente até lá chegarmos — disse Starbuck.
***
O chefe da esquadrilha dos cylons encarregado da primeira leva entrou
em contato com Lucifer a bordo da nave de Baltar. Lucifer recebeu a
mensagem e apressou-se a comunicá-la a Baltar.
— Baltar, mais uma informação...
— Excelente! O Pegasus já está destruído e as nossas forças vão a
caminho de Gomoray para tratar definitivamente da saúde de Adama — disse
Baltar com um ricto vulpino na face.
— Não é bem isso — respondeu Lucifer.
— Que queres dizer com o «não é bem isso»? — Atalhou Baltar. — Que
aconteceu?
— A estrela-de-batalha e os seus guerreiros não param para dar luta aos
nossos caças. O chefe da primeira onda de caças informou que os vipers
atravessaram a formação e o Pegasus seguiu no rasto da sua ponta de lança.
Os vipers já contactaram com a segunda onda de ataque e parece que estão a
seguir uma estratégia semelhante.
Baltar franziu a testa:
— Não dão luta? Mas isso é impossível, com certeza que vieram com a
finalidade de deter o nosso... — A voz dele tornou-se arrastada. — Claro! Por
que não vi isso logo?
— Ver o quê, senhor?
— Agora tudo faz sentido — disse Baltar. — Eles não passam de uma
diversão. Estão a tentar uma tática de ataque e fuga para tentar atravessar as
nossas formações e afastar os nossos caças, fazendo-os persegui-los e
queimar combustível, enquanto Gomoray está a ser atacada!
— É um plano muito inteligente — observou Lucifer.
— Sim, mas a mim não me escapou — disse Baltar com vivacidade, o
rosto resplandecente de satisfação consigo próprio. — Não vai resultar.
Interrompe o ataque. Dá ordem aos nossos caças para que sigam para
Gomoray. Daremos cabo da Galactica e depois voltamos ao Pegasus quando
tivermos salvo o chefe imperioso.
***
A segunda onda de ataque dos cylons começou a convergir sobre o
Pegasus, juntando-se à primeira, que já se abatera sobre a nave quando ela
tentava seguir a toda a velocidade no rasto das esquadrilhas de vipers.
— Podemos acabar com o Pegasus — disse o comandante da segunda
leva para o chefe da primeira. Nesse momento, a voz de Lucifer fez-se ouvir
nos seus circuitos de comunicação.
— As esquadrilhas devem interromper imediatamente a luta e prosseguir
a toda a pressa para Gomoray, repito, as esquadrilhas devem interromper
imediatamente a luta e seguir para Gomoray.
— Mas nós podemos destruir o Pegasus...
— Já sabem quais são as vossas ordens — retrucou Lucifer.
Ambos os grupos de caças se desviaram do Pegasus, refizeram a
formação e dirigiram-se para Gomoray.
— Boomer! — Disse Starbuck.
— Estou a ver — respondeu Boomer —, mas nem acredito no que vejo!
— Ele tinha razão — disse Starbuck. — Por Kobol, Cain tinha razão
mais uma vez! Morderam a isca!
— Repete lá isso!
— Depois. Vamos a bordo, ver como está o Pegasus.
À medida que se aproximavam da nave, começaram a ver que os cylons
podiam ter acabado com ela se não tivessem interrompido o ataque. Cain
podia ter reduzido os danos sofridos recorrendo a táticas de fuga, mas
continuara firme na sua rota, fazendo tudo o que podia para afastar os cylons
com as suas baterias de lasers. Quando aterraram e saíram dos seus caças,
viram que as equipas de controlo de estragos estavam a trabalhar em força.
Declararam-se diversos fogos elétricos na pista de aterragem e havia fumo
por toda a parte. Três das torres externas dos escrutinadores foram deitadas
abaixo e o Pegasus perdera uma das baterias de laser da retaguarda. Era
difícil relatar todos os estragos que sofrerá no casco e nos circuitos. Cain
sobrevivera a mais uma batalha, mas estivera por pouco. Se as esquadrilhas
cylons não tivessem seguido a jogada dele e interrompido o ataque, nada
poderia ter salvo a nave. Se Baltar tivesse demorado a ordem para
interromper o ataque, o Pegasus teria sido destruído. Cain correra um enorme
risco e fora uma sorte Baltar não se ter chegado a aperceber do estado em que
se encontrava a nave.
***
Cassiopeia estava exausta. Havia grande número de feridos. Estava
inclinada sobre Tolen no momento em que Cain entrou.
— Como está ele? — Perguntou Cain preocupado.
— Teve um choque muito violento — respondeu. — Queimaduras,
costelas partidas, o que deve ter acontecido quando foi projetado da mesa
para fora. Tem algumas hemorragias internas...
— Cos diabos, Cassi, ele vai salvar-se?
— Salva-se. Mas há muitos outros acerca de quem não tenho essa
certeza.
Continuavam a trazer mais feridos. Tinham toda a prioridade. Ainda não
houvera tempo para calcular o número de baixas. Também para que servia
contar; o que a preocupava naquele momento eram os vivos, conservar-lhes a
vida.
— O preço não foi pequeno — disse a rapariga enquanto tentava
estancar o sangue a Tolen. — Ganhámos?
— Nunca ninguém ganha — observou Cain.
— Levaste muito tempo a descobrir isso.
— Não. Tu é que só me conhecias dos jogos de sala. A verdade está
aqui.
— Mas também não suportavas perder os jogos de sala — disse
Cassiopeia. — Só que era menos doloroso para os outros.
— Cassi... — A voz dele traía-lhe o nervosismo. — Que querias que eu
fizesse?
Não teve tempo de responder. Apollo e Starbuck entraram com uma
maca, acompanhados por um técnico de medicina. Sheba estava deitada na
maca.
— Sheba... — Disse Cassiopeia.
Cain correu para junto da filha:
— Minha pequenina, como é que estás?
Ela teve um sorriso fraco:
— Desculpe, pai. Falhei um.
Cain olhou para o técnico desesperado:
— Que aconteceu? Como está ela?
— Se sair do caminho, comandante — disse Cassiopeia —, vamos ver o
que se pode fazer.
Levaram rapidamente a maca para junto de um dos cilindros de apoio e
colocaram Sheba lá dentro.
— Que aconteceu? — Perguntou Cain a Starbuck e a Apollo. — Como
foi ferida?
— Gostaria de lhe poder dizer que não há problema — disse Apollo —,
mas não faço ideia. Eles estavam por todos os lados e eu sou um piloto, não
um técnico de medicina. Agora está nas mãos deles.
— E o Pegasus? — Perguntou Starbuck. — Metade da nave parece estar
a arder.
— Os estragos não são assim tão graves e não haverá mais assaltos de
caças se você cumprir as minhas ordens. Logo que isso seja fisicamente
possível — disse Cain —, quero todos os feridos e o pessoal que não for
indispensável transportados de vaivém para a frota. Você servir-lhes-á de
escolta.
— E o resto do pessoal do Pegasus? — Perguntou Apollo. — E o
senhor? Qual é a sua ideia, comandante?
— Agora não tenho tempo para explicações. Mas se quiser que estas
pessoas sobrevivam, meta-se a caminho. Quero-os fora desta nave dentro de
vinte centons.
Aproximou-se de Cassiopeia:
— Ela pode viajar? — Perguntou, apontando para Sheba.
— Logo que eu puder tirá-la daqui — respondeu. — Mas viajar para
onde?
— Apollo e Starbuck explicam-te. As vidas de todas estas pessoas estão
nas mãos deles. Eu tenho que fazer.
Deu meia volta e saiu apressado.
— Será que ele está a pensar fazer aquilo que eu penso que ele está a
pensar fazer?
— Sim, sim — disse Apollo, acenando com a cabeça. — E sabes o que
me aborrece mais? É que estamos ambos a começar a pensar como ele.
— Que há? — Perguntou Cassiopeia. — Que se passa?
— Prepara os feridos para seguirem viagem — disse Apollo. — E o
mais depressa possível.
CAPÍTULO XIII
Adama caminhava nervosamente de um lado para o outro na ponte da
Galactica. Naquele preciso momento, pensava, Cain voava para o Inferno. Se
ao menos conseguisse desviar deles a força atacante, sem se deixar apanhar...
— As tripulações que se encontram em Gomoray informam que o
combustível já está quase todo carregado — disse o coronel Tigh,
aproximando-se dele. — Já embarcámos mais combustível do que nos era
dado esperar. O depósito dos Cylons vai ficar a seco depois da última
operação.
Nesse momento ouviu-se a voz de Athena:
— Os escrutinadores mostram uma enorme massa de naves que se
aproxima. Não há dúvida de que são caças cylons.
Tigh e Adama trocaram um olhar rápido.
— Ao que parece, o plano de Cain não resultou — disse. — Não
conseguiu desviá-los. Ou talvez fossem em tão grande número que...
— Há muitas possibilidades — atalhou Tigh.
— E as probabilidades?
Tigh sacudiu a cabeça:
— Não sei. Mas não podemos deixar esses tanques cheios de
combustível em Gomoray. Cheios, não vão poder deslocar-se muito depressa.
Vão ser alvos fáceis.
Adama acenou a cabeça com ar sombrio:
— Previna as respectivas tripulações para que se preparem para partir.
Mande fazer o lançamento dos tanques e os vaivéns que tragam as tropas.
Voltou-se para Athena.
— De quanto tempo dispomos antes que os caças cylons nos
interceptem?
— Vinte centons, mas continuam a aproximar-se — disse a rapariga.
Adama sacudiu a cabeça:
— Não vamos conseguir. Acabou-se; pura e simplesmente falta-nos o
tempo. E a sorte. Que o Senhor nos ajude. Se Cain não acabou por se deixar
matar, talvez possa voltar para junto de nós a tempo de... — Adama sacudiu a
cabeça. A tempo de fazer o quê? Mesmo assim era a sua única esperança. Se
é que ainda estava vivo: — Athena, vê se consegues saber alguma coisa sobre
o Pegasus com o escrutinador de longo alcance. — «Se ele ainda lá estiver»,
pensou.
Athena ligou os escrutinadores de longo alcance. Adama esperou, num
estado de grande tensão. Por fim, a rapariga ergueu os olhos com uma
expressão cheia de espanto.
— A telemetria está um pouco confusa. Segundo a leitura que me é
apresentada, o Pegasus vai diretamente ao encontro das naves base cylons.
Mas... Não é possível.
Tigh verificou os écrans-.
— Deve ter-se encaminhado de novo para eles depois de não conseguir
afastar os caças.
— Se é que alguma vez tentou afastá-los — disse Adama secamente.
— Mas o plano era precisamente esse — acentuou Tigh.
— Não, Tigh — respondeu Adama. — Esse era o nosso plano. Não era o
dele. Louco. Athena, prioridade no circuito misto, quero falar com o
comandante Cain.
— Sim, senhor... Atenção.
O rosto de Cain apareceu no écran principal. Estava com um aspecto
horrível.
— Estás ótimo, Adama — disse em tom jovial. — Espero que sobre
Gomoray o céu continue límpido por mais algum tempo.
— Cain! Qual é a tua rota neste momento?
Cain teve um riso irônico:
— Nunca me farias essa pergunta se não conhecesses já a resposta.
Adama cerrou os punhos:
— Ordeno-te que mudes de rota imediatamente. Os nossos
escrutinadores estão a apanhar caças cylons que avançam direitos a nós e tu
vais de encontro a essas naves base. Vais matar todos os homens e mulheres
que estão a bordo do Pegasus!
— Comandante... Já tomei as medidas necessárias para que todos os
feridos e o pessoal que não for indispensável sejam despachados para a frota.
Quando voltar de Gomoray já devem estar a chegar.
— Cain, tu e eu tínhamos feito um acordo. Tu não ias desperdiçar vidas
desnecessariamente. Eu...
— Adama, nós vemos as coisas de maneiras diferentes — interrompeu
Cain. — Acho que te posso prometer que não terás de abrir caminho a tiro
para sair da atmosfera de Gomoray. Tu e a tua frota estão em segurança.
— E tu e a tua tripulação?
— Se o meu plano resultar — disse Cain —, essas naves que os teus
escrutinadores estão agora a detectar em breve darão a volta para virem ao
meu encontro. Quando chegarem aqui, talvez já não tenham onde aterrar.
Ficarão para sempre à deriva como sarcófagos sem combustível.
— Cain! Por tudo quanto há de sagrado, és capaz de me ouvir? — Gritou
Adama, desesperado. — Consegues a mesma coisa se te desviares das naves
base no último micron. Não tentes entrar em luta!
O comandante do Pegasus sacudiu a cabeça.
— Nessa altura os caças deles podem reabastecer-se e perseguir-te a ti e
à tua frota — disse. — Não, Adama. Não há escolha possível. Pelo menos,
tenho de me desembaraçar de uma ou duas das naves base para eles não te
irem surpreender pelo caminho.
— Sabes que posso exonerar-te do comando — ameaçou Adama,
jogando a sua última cartada.
— Adama, suplico-te — disse Cain. — Não faças que a minha última
batalha seja um ato de rebelião. Manda-me seguir com a tua bênção.
Adama suspirou. Não havia nada que ele pudesse dizer ou fazer. Cain
estava decidido a honrar a sua reputação de Jaganata. Nada o desviaria da sua
rota.
— Não posso dar-te a minha bênção, Cain — disse Adama. — Mas
acompanham-te as minhas orações, a ti e a todos os membros da tripulação.
— Obrigado, Adama — teve um leve sorriso —, e talvez pela última
vez, Cain despede-se.
O écran ficou vazio.
***
Baltar esperava impaciente notícias das suas esquadrilhas de ataque.
Naquela altura já deviam estar à distância necessária do alvo. As coisas não
podiam ter resultado melhor para ele. Poderia apanhá-los enquanto as suas
forças estavam em Gomoray, com a frota indefesa, e Adama nada poderia
fazer para conseguir escapar. Uma vitória dos humanos, mesmo temporária,
como acontecera da última vez, estava absolutamente fora de questão. A sua
artimanha patética não tinha resultado. Não se deixara ludibriar pela sua
tentativa transparente para desviar as forças dele de Gomoray. A jogada
falhara e por isso a força deles estava bipartida. Os humanos tinham-se
condenado a si próprios.
Baltar deteve-se subitamente. «Uma vitória humana estava fora de
questão», tinha ele pensado. «Os humanos tinham- -se condenado a si
próprios.» Mas ele também era humano. Seria que já estava a pensar em si
próprio como um cylon?
Baltar sorriu. Bom, afinal por que não? Não tinham eles destruído as
colônias com a sua ajuda? Poderíam os Cylons ter chegado a enganar
verdadeiramente o Conselho sem os seus esforços a favor deles? Não fora ele
salvo da morte no momento em que reconheceram o seu verdadeiro valor,
tendo-lhe sido dada uma força equivalente a três naves base? Não fora a ele
que tinha sido confiada a responsabilidade de destruir a Galactica e a sua
frota? Que é que isso podia fazer dele a não ser um cylon? O chefe imperioso
tinha-lhe dado Lucifer, o mais sofisticado da série V.I., como seu lugar-
tenente. Permitira-lhe mesmo desenhar uma sala do trono a bordo da sua nave
exactamente igual à que o próprio chefe imperioso tinha na sua nave
almirante. Não era isso ampla prova da sua identificação com os Cylons?
«Este dia», pensou Baltar, «vai ser o fim de Adama e da Galactica.» Vai
ser o fim da frota humana, do Pegasus e um novo princípio para ele próprio.
Ia ser recebido em Gomoray como um salvador, sem dúvida pelo chefe
imperioso em pessoa. Podia contar com uma recompensa bem merecida. Que
deveria ele pedir à raça mais poderosa de todo o universo? O governo de um
planeta? Um reino seu, o seu próprio império? Talvez lhe dessem Gomoray.»
«Sim, ia pedir-lhes Gomoray. Por que é que haviam de lho recusar, a ele,
o homem que tinha salvo um mundo que era o centro da cultura cylon, o
homem que tinha salvo a vida ao próprio cylon supremo? Gomoray seria
perfeito. Poderia governá-lo do seu poiso na capital com a sua graciosa
arquitectura cristalina. Poderia importar tudo aquilo que desejasse para viver
luxuosamente até ao resto da... »
— Trago notícias — disse Lucifer, deslizando para dentro da sala.
Baltar nunca conseguira habituar-se à forma silenciosa como as séries VI
se deslocavam. Se não o via aproximar-se, o som da sua voz irreal, mesmo a
seu lado, sobressaltava-o sempre. Desconfiava de que isso era uma coisa que
divertia Lucifer.
— As nossas forças devem estar quase a chegar a Gomoray, onde vão
aniquilar Adama — disse Baltar, aborrecido por ter sido perturbado no seu
sonho.
— O Pegasus é que me preocupa — observou Lucifer.
Baltar fez um gesto para o interromper:
— O Pegasus não passou de uma isca. Um esforço patético para nos
levar espaço fora enquanto a frota se punha a salvo.
— Mas o Pegasus não se afastou espaço fora — disse Lucifer.
— Oh! — Baltar ergueu as sobrancelhas. — Ah, sim, claro. Quando
descobriram que o seu plano tinha falhado, o Pegasus deu meia volta, numa
tentativa vã para chegar a Gomoray a tempo de salvar a Galactica. Como se
houvesse alguma coisa que eles pudessem fazer, mesmo que chegassem a
tempo. Não faz mal. Não vão conseguir chegar a Gomoray antes dos nossos
caças.
— Não, senhor — continuou Lucifer —, porque o Pegasus também não
tomou a direção de Gomoray.
— Lucifer, és capaz de ir direito à questão? Se o Pegasus não tomou o
caminho de volta para Gomoray, nem se afastou de nós, para onde vai então?
— Vem direito a nós, senhor.
Baltar ficou a olhar para Lucifer cheio de espanto.
— Direito a nós? Mas... Mas isso é absurdo! Ele permite-nos destruir a
Galactica, exterminar a frota... Quem a não ser um louco poderia fazer uma
coisa dessas?
— Posso sugerir o nome do lendário comandante Cain? — Disse
Lucifer.
— Cain! Sim, Cain, claro. Ele é bem capaz disso. Esse homem é louco.
Quando o Jaganata decide fazer qualquer coisa... Que lhe importa a ele a frota
ou a Galactica? O que ele quer...
A voz de Baltar tornou-se um murmúrio.
— Meu Deus! — Empalideceu. — É a mim que ele persegue! E é
suficientemente louco para atacar três naves base sozinho. Mas ele deve
compreender que não tem qualquer hipótese. Nós somos três contra ele, e os
nossos caças... Os nossos caças! Lucifer, chama a nossa esquadrilha de caças
imediatamente!
Tomado de pânico, Baltar ordenou aos comandantes das suas duas naves
de apoio que tomassem posições em frente dele, enquanto a sua própria nave
recuava. Caso as esquadrilhas de caças não conseguissem chegar a tempo
para impedir que Cain o interceptasse, queria ter entre ele e o Jaganata todo o
fogo possível.
***
O coronel Tigh estava espantado.
— As esquadrilhas de caças cylons que vinham em direção a nós deram
meia volta de repente e seguiram na direção oposta! Não faz sentido!
— Sim, faz todo o sentido — disse Adama. — Baltar chamou-os para
lhe protegerem a pele, tal como Cain previa.
— Não está a querer dizer-me que o Pegasus... O Pegasus vai mesmo
atacar essas três naves base? E sozinho?
Adama rangeu os dentes.
— É isso mesmo que ele está a fazer. Salvou-nos a vida. E à custa da sua
própria. Raios te partam, Cain.
Apollo e Starbuck iam subir para os vipers quando Cain se aproximou
deles.
— Apollo... Starbuck...
— Senhor?
— Só queria que soubessem que os considero dois dos melhores
guerreiros que jamais encontrei — disse Cain. — Não consigo pensar em
mais ninguém a quem preferisse confiar as vidas de tanta da minha gente.
— Entre as nossas esquadrilhas e as suas — acrescentou Apollo —
havemos de os pôr a salvo.
— Senhor — disse Starbuck.
— Que é, Starbuck?
Starbuck hesitou:
— Alguns de nós têm muito a que se agarrar... Pelo menos eu não
tenho... Não me importava de ir consigo até ao fim.
Cain sorriu e deu-lhe uma palmada no ombro:
— Starbuck, agradeço a sua oferta. Mas, se não me engano, um grande
número de caças de Baltar vai dar a volta e dirigir-se para aqui para salvar a
pele a Baltar. Apollo vai precisar de todos vós para proteger os vaivéns
durante o regresso à frota.
— E o Pegasus? — Disse Starbuck. — Sem caças...
— As naves base dos cylons também estão sem caças neste momento —
avançou Cain.
— Mas têm armas — retorquiu Apollo.
Cain acenou com a cabeça:
— O Pegasus também as tem. É verdade que estamos um tanto
danificados, mas ainda podemos lutar. Além disso, só uma das naves base me
interessa verdadeiramente. A de Baltar.
Apollo estendeu-lhe a mão:
— Boa sorte.
— Para vocês também.
— Eu digo o mesmo — acrescentou Starbuck.
Cain apertou as mãos de ambos e afastou-se, caminhando rapidamente e
sem olhar para trás.
— Por que é que tenho um pressentimento de que não vou voltar a vê-
lo? — Disse Starbuck.
— Não sei, Starbuck — acrescentou Apollo. — Eu não sinto isso. Não
sei dizer porquê, porque se analisarmos a situação, não há qualquer hipótese
de ele sobreviver. Mas também isso é a história de toda a carreira dele, não é
verdade?
Subiram para as suas naves.
Cain esperou junto do elevador, para ver partir cada um dos seus
tripulantes feridos. Muitos não conseguiam vê-lo, mas ele estava lá na mesma
para os ver a eles. O pessoal que não era indispensável já se encontrava a
bordo dos vaivéns. Cassiopeia saiu do elevador com um técnico de medicina
e uma maca onde era transportada Sheba.
— Pai — disse ela, estendendo-lhe uma das mãos —, não quero ir.
Cain afagou-lhe suavemente os cabelos, depois baixou-se e beijou-a.
— É melhor levá-la depressa, Cassi — pediu. — Os outros vaivéns já
estão carregados e prontos para largar.
— Acho que vocês os dois gostariam de ficar um bocado sozinhos para
se despedirem.
Cassiopeia sacudiu a cabeça:
— Não, não há nada que eu alguma vez tenha dito ao teu pai que não
tivesse orgulho em dizer à tua frente, Sheba.
Aproximou-se de Cain e colocou-lhe as pontas dos dedos ao de leve
sobre o rosto.
— Tu és um homem especial — disse. Sorriu. — Um homem duro, mas
muito especial. Aconteça o que acontecer, quero que saibas que me sinto
satisfeita por ter sido uma pequenina partícula da tua vida, meu velho
guerreiro.
Beijou-o. Começou a contagem para o lançamento.
Cain baixou os olhos para Sheba e sorriu.
— Adeus, minha filha.
— Até breve — disse ela, mas a voz morreu-lhe na garganta.
— Claro, até breve.
Cain dirigiu-se a toda a pressa para a ponte, e logo que entrou parou,
estupefato. Tolen estava instalado atrás da mesa de comandos. Tinha o peito
envolto numa carapaça de plástico e as mãos ligadas.
— Que raio está você a fazer aqui? — Perguntou Cain. — Todos os
feridos deviam estar...
— Deixe-se disso, comandante. Eu fico.
— Compreende que está a cometer um ato de insubordinação? — Disse
Cain.
— Sim. Estou pronto para o tribunal militar — riu Tolen, ao mesmo
tempo que fazia um trejeito de dor.
Cain riu com ele:
— Raios o partam, Tolen. Se sairmos desta, dou-lhe um pontapé no
traseiro que o faço ir pelo ar.
— Se sairmos desta! — Exclamou Tolen. — Você é lunático. Que o faz
pensar que temos qualquer hipótese?
Ambos ficaram em silêncio durante um bom bocado.
— Tem sido uma grande tirada, não tem? — Disse Cain.
Tolen confirmou com a cabeça:
— Sim. Mas foi bom, cos diabos. Pena não termos tempo para tomar
uma bebida.
— Fale-me nisso quando acabarmos. Sou eu que pago.
Tolen sacudiu a cabeça e fez um sorriso amargo:
— Claro. — Ligou o microfone com o polegar. — Lançar os vaivéns.
Proteção dos caças. — Desligou o microfone e encolheu os ombros. — Que
raio, para que havemos de os levar connosco?
— Distância das naves? — Disse Cain.
— Trinta centons. Continuamos a aproximar-nos — anunciou Tolen.
Verificou a mesa de controlo. — Todas as naves foram lançadas e vão a
caminho.
— Ótimo — disse Cain. — Vamos a isso. Temos um encontro muito
importante com um homem chamado Baltar.
***
Baltar estava sentado no seu trono, inquieto, mordendo o lábio inferior.
— Quanto tempo vão tardar até os nossos caças virem defender-nos? —
Perguntou nervosamente a Lucifer.
— Receio bem que o Pegasus nos alcance primeiro — respondeu
Lucifer.
Baltar tinha as mãos enclavinhadas:
— Recua ainda mais e dá ordem às naves de apoio para interceptarem o
Pegasus.
— Não me parece que os comandantes das outras naves vão gostar lá
muito disso — disse Lucifer.
— Raios te partam, Lucifer, isto não é um pedido, é uma ordem!
— Às vossas ordens, senhor.
***
Tolen remexeu-se levemente na cadeira, com um esgar de dor.
Humedeceu levemente os lábios.
— Estamos a aproximar-nos de duas naves base — disse. — A terceira
recuou, encobrindo-se com as outras.
— É com certeza a nave de Baltar — ironizou Cain. — Como ele é
amável em nos dar a entender qual é a nave dele. Traça um caminho pelo
meio das duas naves base. Arma todos os misseis e ativa ao máximo os
escudos de defesa.
***
Starbuck olhou para o escrutinador e fez vários cálculos rápidos. Depois
sorriu e apoiou o queixo no circuito de comunicação.
— Apollo...
— Diz, Starbuck.
— Segundo o meu escrutinador e alguns cálculos que acabo de fazer, o
nosso vetor em direção à frota vai atirar com estes vaivéns para bem longe da
rota das esquadrilhas de caças cylons que vêm de regresso.
— Era isso que se pretendia — replicou Apollo. — Não queríamos levá-
los até uma frota de civis indefesos.
— Claro — disse Starbuck —, o que significa que na realidade eles não
precisam da nossa proteção. O que quero dizer é que esses caças não vêm
atrás de nós, o que eles vão fazer antes de mais nada é regressar às naves
base, não será? E que conta um viper a mais ou a menos, se percebes o que eu
quero dizer?
— Sim, percebo — respondeu Apollo. — Mas o que estás a sugerir é
uma violação das ordens.
— Ordens de quem?
— De quem? De Cain.
— E como se pode ser acusado de violar as ordens de um homem que
está ele próprio a ir contra as ordens? — Disse Starbuck.
— De certa maneira isso faz sentido — observou Apollo.
— Estás de acordo comigo?
— Boomer — disse Apollo.
— Tu...
— Passo-te o comando — anunciou Apollo. — Starbuck e eu vamos
verificar o flanco traseiro.
— O flanco traseiro, hem? — Disse Boomer. — A que distância fica
esse flanco?
— Não faças tantas perguntas — retorquiu Apollo.
— É o que eu pensava — respondeu Boomer. — Vocês estão doidos.
Mesmo assim boa-sorte.
Os vipers de Starbuck e de Apollo saíram da formação e voltaram para
trás, a toda a velocidade, em direção ao Pegasus.
***
Tolen verificou os écrans, fez as contas duas vezes e verificou de novo.
— Comandante?
— Estamos ao alcance dos mísseis? — disse Cain, tenso.
— Estamos a aproximar-nos — respondeu Tolen —, mas há dois vipers
que se estão a aproximar de nós, próximos à velocidade da luz.
— O quê? Quem são? Que diabo andam eles a fazer? Identifique...
— Não há tempo, senhor. Estamos a aproximar-nos do alvo, duas naves
base mesmo à frente...
As duas naves base abriram fogo com as baterias de laser dianteiras.
— Escudo negativo — ordenou Cain. O escudo desceu sobre o posto de
observação da ponte, deixando-os totalmente dependentes dos instrumentos,
e ainda por cima com algumas das torres dos escrutinadores inutilizadas. —
Responder ao fogo — disse Cain.
As mãos de Apollo agarraram com mais força os controlos do viper.
— Elas aí estão — disse. — Parece que ele tenciona tentar passar-lhes
pelo meio.
— Vamos ver se conseguimos destruir-lhes os lança-mísseis do flanco
— alvitrou Starbuck.
— Ena, pá! Bom, também quem é que quer viver para sempre? Eu
encarrego-me da nave da direita — disse Apollo.
— E eu da outra...
Com os motores a trabalhar no limite da sua potência, os dois pilotos
avançaram com os propulsores a toda a força, descendo e passando à frente
do Pegasus enquanto se lançavam sobre as naves base, ziguezagueando
fortemente para evitar o fogo dos lasers.
— Senhor — disse Tolen. — Os dois vipers estão a tentar dar um ataque
em forma naquelas naves base ali à frente!
Cain ficou sentado muito direito, o corpo ligeiramente inclinado para a
frente, com as mãos a apertar fortemente os braços da cadeira.
— Starbuck e Apollo! — Exclamou. — Eu disse-lhes...
— Parecem estar a fazer pontaria aos lança-mísseis laterais das duas
naves — disse Tolen.
— Estão a abrir caminho para nós — retorquiu Cain. Deixou cair o
punho cerrado na mesa de controlo. — Vamos, rapazes, vão-se embora! Vão!
Apollo avançou como um relâmpago, com Starbuck no flanco. As naves
base ali estavam, enormes, à frente deles, mais parecendo pequenos planetas.
Viram as baterias dianteiras no momento em que rodaram para fazer pontaria
contra elas e quase ao mesmo tempo os dois vipers rolaram, mergulhando no
meio das duas naves base.
Apollo olhou para cima, para ver o casco maciço da nave mesmo por
cima da sua cabeça. Por momentos teve a ilusão de que a nave gigantesca
estava a cair sobre ele, que ia esmagá-lo como a um inseto, mas a impressão
desfez-se quando orientou o aparelho numa outra perspectiva.
— Sabes que se está bem aqui — disse para Starbuck. — Não podem
disparar contra nós sem se atingirem um ao outro.
— O problema é que não podemos ficar aqui — respondeu Starbuck. —
Vamos fazer alguma coisa.
— Sim. Tratemos-lhes da saúde!
Ambos os vipers se lançaram em frente, fazendo disparar os seus lasers,
varrendo os flancos das naves, parando apenas o tempo indispensável entre
cada série de disparos. Depois afastaram-se das naves, rolando e voando em
manobras de evasão.
— Os escrutinadores indicam grandes danos em ambas as naves — disse
Tolen excitadíssimo. — Aqui... Aqui e aqui.
Apontou para o grande écran que mostrava as naves base, indicando os
pontos onde Starbuck e Apollo tinham acertado em cheio.
— Raios me partam! — Gritou Cain. — Conseguiram! É o que se chama
saber voar!
— E atirar — disse Tolen.
— Bom, não podemos deixá-los ficar mal. Vamos avançar. Armar os
mísseis para disparar horizontalmente. Nem os escudos vão conseguir valer-
lhes.
No meio de um verdadeiro oceano de raios de energia, as três naves
juntaram-se, quais imensos titãs mecânicos, embatendo uns nos outros com a
sua força bruta.
— Estamos a aproximar-nos do alvo — disse Tolen, estremecendo
ligeiramente enquanto uma verdadeira chuva de faíscas caía sobre ele vinda
de um écran que explodira por cima da sua cabeça. — Dez... nove...
— Starbuck! — Berrou Apollo. — O meu escrutinador está a mostrar-
me a aproximação de cylons... Milhares deles!
— Mais cem menos cem, hem? — Disse Starbuck. Voava mais alto que
o seu viper. Planava no maior surto de adrenalina que o seu corpo jamais
experimentara. O simples terror do mergulho entre as duas naves
desencadeara nele uma onda de vitalidade indescritível. — Não podemos ir-
nos embora agora — continuou Starbuck. — Quero ver o que acontece. E
ainda temos de ir à terceira nave.
— Starbuck, pelo amor de Deus — disse Apollo —, não conseguimos
fazer frente a umas quantas esquadrilhas de caças cylons!
— Apollo, já que viemos até aqui...
— Está certo, mas eu não quero acabar a viagem aqui — retorquiu
Apollo.
— Mas nós...
— Starbuck! Acaba com isso! A resposta é não, entendes? De maneira
nenhuma! Fizemos tudo o que podíamos!
— Três... Dois... Um — disse Tolen.
— Disparar os mísseis! — Ordenou Cain.
Na última fração de segundo, Cain fez rolar o Pegasus, evitando o fogo
das baterias dianteiras das naves e lançando-se pelo meio delas a uma
velocidade incrível, disparando mísseis que iam embater nas naves base.
Apollo olhou para trás e viu um clarão de um brilho impossível de
encontro ao escuro aveludado do espaço.
— Viste aquilo? — Gritou Starbuck.
— A única coisa que eu vejo são manchas — respondeu Apollo. —
Nunca vi um clarão como aquele.
— Consegues ver o Pegasus?
— Não, não sei dizer se conseguiu ou não.
— E nós, que fazemos?
As esquadrilhas de caças cylons aproximavam-se velozmente.
— Pomo-nos a mexer daqui para fora — disse Apollo —, voltamos para
casa a toda a velocidade!
***
A Galactica ia a caminho, depois de ter distribuído combustível à frota
inteira. Quando Starbuck e Apollo se encontraram com a nave, Adama ficara
radiante, embora tentasse esconder o que sentia por detrás de um exterior
estoico. Nunca pensara voltar a ver qualquer dos dois.
«É a segunda vez que os perco», pensou Adama, «e afinal são-me
restituídos de novo.» Embora não soubesse dá-lo a entender a Starbuck,
Adama sentia que ele era uma espécie de filho adotivo. Apesar de muito
diferente do seu verdadeiro filho, Apollo, os dois eram como irmãos.
Parecia a Adama que se passara uma eternidade desde que ambos tinham
partido juntos numa patrulha sem que tivessem regressado. Pensara que os
tinha perdido, mas no entanto acabaram por regressar, trazendo com eles
outro homem que Adama julgava morto havia muito.
Cain. Que se podia pensar de Cain? Chamavam-lhe a «lenda viva», o
Jaganata, nome que lhe era largamente devido, pois tratava-se do homem
mais teimoso e implacável que Adama jamais conhecera. Tinham sido
amigos durante anos, mais do que aqueles que tinham os seus filhos, embora
nunca tivessem passado muito tempo juntos. O destino sempre os fizera
seguir caminhos diferentes. Em muitas coisas eram como Starbuck e Apollo.
Adama, olhando para Starbuck, via despontar um novo Cain, ríspido,
agressivo, seguro de si e egocentrista, um homem que poderia facilmente
fazer-se detestar se não fosse a compensação do seu encanto e irrefutável
evidência das suas capacidades que justificava a sua intensidade e
autoconfiança. Apollo, por outro lado, era como o pai. Calmo, firme,
compreensivo, um homem que escondia a sua vulnerabilidade sob um
exterior de disciplina militar. Mas pelo menos Starbuck e Apollo andavam
juntos. Apesar de todas as suas disputas, de todos os seus diferendos e
impaciências um com o outro, Adama e Cain estavam tão próximos quanto
era possível a dois homens. O destino reunira-os outra vez e de novo os
separara. «Desta vez para sempre», pensou Adama.
Logo que os vipers que traziam Starbuck e Apollo chegaram a bordo,
Adama recostou-se na cadeira e fechou os olhos, permitindo-se a si próprio, e
pela primeira vez desde que tudo começara, um pouco de descontração. Da
primeira vez que os filhos pródigos tinham regressado, tinham-lhe trazido
Cain, e ele salvara-lhes as vidas, as vidas de todos os homens e mulheres da
frota. Além disso, fizera-o à sua maneira, como sempre acontecera. Era uma
velha piada que corria entre ambos que havia três maneiras de fazer as
coisas... A maneira certa, a maneira errada e a maneira de Cain. No entanto,
quer fosse certa ou errada, a maneira de Cain sempre dava resultado. Bom,
agora Starbuck e Apollo tinham regressado ao mundo dos vivos pela segunda
vez. Só que desta vez vinham sós.
Adama pôs-se de pé e encheu o peito de ar.
— Vou para os serviços de saúde — disse a Athena.
Ela sorriu-lhe e fez sinal que sim. Sabia como ele se sentira. Apollo era o
seu preferido, embora o pai não o mostrasse conscientemente, e ela
compreendia-o. Não sentia ressentimento contra o irmão, antes lamentava
que a força emocional que reinava entre o pai e o irmão não pudesse ser
revelada abertamente. Por razões pessoais, resultantes da natureza das suas
personalidades, pai e filho nunca conseguiram demonstrar realmente o amor
que sentiam um pelo outro. Escondiam-se por detrás dos seus papéis de
comandante e capitão, mas o amor existia, apesar disso. No entanto, ambos o
sabiam e, como muitos homens, tinham dificuldade em arranjar formas de o
exprimir.
Havia muitas ocasiões em que ela desejava estar lá fora no espaço num
viper, voando com a esquadrilha do irmão, mas sabia que cada vez que
Apollo partia numa missão, uma parte do coração de Adama ia com ele.
Apenas podia imaginar como é que o pai se sentia nessas ocasiões. Havia o
fato de ela ser a pessoa mais qualificada a bordo para executar o trabalho que
lhe estava destinado e o fato de, além de Starbuck, Apollo ser o melhor piloto
da frota, melhor do que ela jamais poderia esperar vir a ser. No entanto, ela
também compreendia que Adama precisava tê-la a seu lado. Precisava de
saber que ela estava ali. Tal como acontecera com Cain, Adama também
perdera a mulher. Ao contrário de Cain, tinha o imenso peso da
responsabilidade para com todas as pessoas que compunham a frota. Ao
contrário de Cain, nunca tivera alguém como Cassiopeia que o ajudasse a
atravessar os tempos difíceis. Tudo o que ele tinha era a Galactica. Graças a
Cain, a Galactica fora salva mais uma vez.
«Já terminou», pensou Athena enquanto via o pai sair da ponte. «Por
esta vez.»
***
Cassiopeia ergueu os olhos no momento em que Adama entrou com
Starbuck e Apollo. Sheba estava deitada numa das camas.
— Não demorem muito — disse Cassiopeia. — Ela precisa de recuperar
as forças.
Sheba estreitou a mão a Cassiopeia antes que ela se afastasse.
— Alguma novidade? — Perguntou Sheba ansiosamente.
— Não — disse Adama. Hesitou. — Mas também isso não quer dizer
nada. Ele não ia quebrar o silêncio e revelar a sua posição.
Sheba dirigiu-lhe um pequeno sorriso. Tentava conter as lágrimas.
— Obrigada pela boa vontade — disse —, mas quais são as hipóteses de
eles sobreviverem a todos aqueles caças? E a outra nave base? — Sacudiu a
cabeça.
— E quais eram as hipóteses quando pensámos que estivessem todos
mortos há mais de dois ianos? — Perguntou Adama.
— Na minha opinião — disse Starbuck —, ele mergulhou no espaço, tal
como fez da última vez. Os caças não podiam ter ido muito longe com os
depósitos de combustível vazios. Já tinham feito um longo percurso.
— Entretanto — continuou Adama —, enquanto não tivermos notícias
do teu pai, quero que te consideres como fazendo parte da família.
Pegou na mão da rapariga e estreitou-a.
— Já é isso que eu sinto — respondeu, a rapariga.
— Acho que deviam deixá-la descansar agora — disse Cassiopeia
fazendo-os sair da secção. À porta Starbuck deteve-se.
— Cassi... Olha... — Fez uma pausa, duvidoso. — Sei que as coisas têm
sido difíceis...
Ela fê-lo parar, encostando-lhe um dedo nos lábios:
— Não digas nada. Não é o momento nem o local indicado.
— Sim, mas...
— Por que não vens visitar-me mais tarde, na minha cabina, quando eu
sair do trabalho? Nessa altura podemos falar, se quiseres. Ou também
podemos não falar.
Inclinou-se para a frente e beijou-o demoradamente nos lábios. Depois
voltou ao seu posto, fechando a porta. Starbuck ficou parado a olhar para a
porta um momento, depois suspirou e coçou a cabeça.
— Que raio! Preciso de uma bebida. — Dirigiu-se ao Clube dos Oficiais.
Apollo e Adama caminharam lentamente ao longo do corredor, um ao
lado do outro. Durante alguns momentos ficaram em silêncio.
— Deve ser duro para ela — disse Apollo por fim.
Adama aquiesceu com a cabeça.
— Sim, sim.
— Era um homem dos diabos, não era?
— Era, sim.
— Não sei o que é que faria se o perdesse a si — disse Apollo.
Adama parou. Engoliu em seco e voltou-se de frente para o filho. Por
momentos, os dois homens ficaram simplesmente um em frente do outro,
olhando-se, depois Adama deu um passo em frente e pôs os braços em volta
do filho, apertando-o contra ele num abraço forte. Apollo retribuiu o abraço,
mas afastaram-se quando viram alguns membros da tripulação que se
aproximavam. Ficaram ali um momento, tomados de embaraço, e depois
Apollo disse:
— Que acha, comandante... Quer ir ver o seu neto adotivo?
Seguiram juntos pelo corredor fora, sem sequer reparar que iam a
caminhar a passo certo.
FIM

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