Você está na página 1de 64

(P-156)

LEMY E O
LOBO-BATRÁQUIO

Autor
K. H. SCHEER

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Lemy e Kasom x os Antis!

Estamos no ano 2.326 do calendário terrano. Grandes


modificações se verificaram nos setores da Via Láctea explorados pelos
terranos, desde que se desenrolaram os acontecimentos descritos no
volume 149.
A partir de 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou, o
Império Solar e o Império de Árcon deixaram de existir. Em seu lugar
surgiu o Império Unido, governado por Perry Rhodan, que exerce as
funções de Administrador Geral. O arcônida Atlan passa a exercer as
funções de chefe da USO, cujos especialistas são chamados de
bombeiros galácticos.
Sempre que surge um problema ou um perigo que não seja de
âmbito estritamente planetário, estendendo seus efeitos por toda a
Galáxia, a USO, criada de dirigida pelo Lorde-Almirante Atlan, entra
em ação.
A fuga precipitada do Ser espiritual de Peregrino e a distribuição
da vida eterna multiplicada por 25, sob a forma dos ativadores
celulares, criaram tumultos entre todos os povos da Galáxia. As
espaçonaves correm de um planeta para outro. Geralmente são os
tripulantes das naves terranas que conseguem êxito na busca da
imortalidade relativa. Afinal, a frota do Grande Império é a maior da
Galáxia conhecida...
Já foram encontrados 19 ativadores celulares, mas para a mutante
Anne Sloane, que possui o 19o ativador, a fonte da vida se transforma no
anjo da morte. Um especialista rebelde da USO, pertencente ao povo
dos antis, assassina a mutante, rouba o ativador e deserta. Os
especialistas mais competentes da USO grudam-se nos calcanhares do
assassino. Dessa forma verifica-se o grande encontro entre Lemy e o
Lobo-Batráquio...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Lemy Danger — A menor criatura que faz parte do corpo de
especialistas da USO, a polícia cósmica.
Melbar Kasom — Um ser cuja figura gigantesca faz dele o
gladiador ideal.
Atlan — O lorde-almirante que se disfarça como mendigo cego.
Tenente Ebrolo — Um homem que abandonou a USO e
assassinou Anne Sloane.
Mahana-Kul — Um anti que recebe voz de prisão de Lemy.
Akussa — Instrutor dos gladiadores do planeta dos bárbaros.
Perry Rhodan — Administrador Geral do Império Unido.
PRÓLOGO

Meu nome é Lemy Danger. Sou especialista e major da USO, a polícia galáctica.
Peço que me desculpem por voltar a apresentar-me. Acontece que Melbar Kasom,
um supergigante adaptado ao ambiente, manifestou a opinião de que nosso relato não
seria prejudicado se, mais uma vez, explicássemos aos leitores terranos desta série quem
somos, de onde viemos e o que pretendemos fazer no interesse dos povos amantes da paz
que habitam a Galáxia.
No momento encontro-me a bordo de um supercouraçado terrano. Os corredores e
compartimentos da nave são tão extensos que me perdi nos mesmos. Foi Perry Rhodan
em pessoa que me levou ao camarote especialmente instalado para mim, onde finalmente
encontrei objetos adaptados ao tamanho do meu corpo.
O camarote fica no centro de computação da nave. Pelo que sei, antes de minha
chegada servia para guardar medicamento. Ainda há uma garrafa com comprimidos
verdes num canto. Receio que caia por ocasião da próxima manobra de correção de rota
e me machuque.
A Eric Manoli, nome que o administrador geral deu à nave ultramoderna em
homenagem a um amigo falecido, não foi preparada para receber siganeses. Por isso
tenho de contentar-me com a gaveta embutida na parede, pois, do contrário, correria
perigo de ser pisado pelos gigantes distraídos.
A ventilação de meu camarote é deficiente. Não quero chegar ao ponto de dizer que
essa ventilação não existe, mas não fugirei às regras da discrição se disser que o fluxo
de ar que penetra pela rótula entreaberta não é nada refrescante.
Minha escrivaninha consiste no revestimento de um telefone queimado... Um oficial
terrano pegou um alicate e abriu um buraco na chapa de plástico, para que eu possa
abrigar as pernas. De início achei isso bastante deprimente, mas já me acostumei.
A cadeira não é tão ruim assim. Foi-feita com uma caixa de plástico que servia
para guardar um pó desinfetante. Um técnico teve a idéia de aquecer o material para
amolecê-lo e transformá-lo numa cadeira de encosto. Mas o cheiro penetrante do
desinfetante não desapareceu por completo. Constantemente tenho que tossir ou espirrar.
Naturalmente esforço-me para não deixar que os gigantes terranos percebam, pois não
quero transformar-me mais uma vez no alvo de suas piadas.
Afinal, a vida não é nada fácil para uma criatura que tem apenas 22,21cm de
altura; ou, mais precisamente, 222,11 mm.
Tenho certeza de que haveria manifestações de protesto em meu mundo natal —
Siga, o segundo planeta da estrela Glador — se soubessem como fui acomodado a bordo
da espaçonave. Por isso prefiro ficar calado e deixar de lado meu orgulho másculo, pois
sei perfeitamente que os terranos não querem ofender-me.
Além disso fui convocado ao quartel-general terrano para apresentar um relato, e
isso me deixou muito contente. Pelo que sei sou o primeiro especialista siganês que teve
permissão para dirigir a palavra ao personagem mais importante do Império Unido.
Faço votos de que ninguém ria de mim ou pense, de modo zombeteiro, onde pode estar o
cérebro numa cabecinha como a minha...
Bem, minha cabeça realmente não é grande. Como explicar a essas pessoas, sem
praticar discriminação contra mim mesmo, que a cada geração os indivíduos de meu
povo ficam mais baixos, sem que ninguém saiba por quê?
Pelo que dizem, isso acontece por causa das condições do meio ambiente. Meus
antepassados eram homens perfeitamente normais, que se fixaram no planeta Siga há
cerca de trezentos anos do calendário terrano.
Acontece que as pessoas nascidas no planeta foram ficando cada vez menores, sem
que isso acarretasse qualquer tipo de degenerescência. Pelo contrário. Hoje em dia os
siganeses são os melhores microtécnicos da Galáxia. Já alcançamos mesmo o nível de
desempenho dos homens-pepino, os swoons, que há cento e cinqüenta anos ainda eram
inigualáveis em sua especialidade.
Fabricamos objetos tão pequenos que um homem só consegue localizá-los por meio
do microscópio. Produzimos, por exemplo, rolamentos destinados a dispositivos de mira
ótica ou positrônica, que são tão pequenos que até mesmo um técnico siganês tem de
usar óculos microscópicos para trabalhar com eles.
Foi graças ao nosso trabalho que se tornou possível a precisão fantástica do tiro
das grandes naves de guerra terrana e as incríveis manobras realizadas em viagem e
durante as batalhas. Para nós, uma tolerância de um milionésimo de milímetro já é
excessiva. O leitor poderá imaginar a precisão desses aparelhos. Mas, nos vôos
realizados à velocidade da luz e diante das distâncias imensas do espaço, toda precisão é
pouca.
Menciono isso apenas para deixar claro que o volume dos nossos cérebros não tem
nenhuma relação com a exatidão dos nossos processos mentais. Acontece que em nossos
corpos tudo encolheu. No entanto, por estranho que possa parecer, o número das células
nervosas de nosso cérebro é um pouco superior ao do cérebro humano normal. Parece
que os siganeses são parte de um plano fenomenal da Criação. Deve ter havido um
motivo para ficarmos tão pequenos.
Tomara que consiga provar aos chefes do Governo Imperial que meu cérebro
funciona muito bem. O que mais me martiriza é a idéia de que alguém possa duvidar de
minha condição humana. Pelo que sei a meu respeito, isso me fará perder o
autocontrole.
Surpreendo a mim mesmo rangendo os dentes e comprimindo o estilete de escrever
com tamanha força que o corante sai na parte de cima. Trata-se de um pesado estilete de
12 mm de comprimento.
Faço uma autocensura e lanço um olhar para minhas mãos. Um desportista amigo
disse que eram patas. Eu o pus nocaute no segundo round. Essa vitória me deu o título
de campeão siganês de peso pesado do ano 2.326.
É bem verdade que neste ponto não posso deixar de mencionar meu peso enorme de
nada menos de 852,18 g meus 30 anos de treinamento na Academia da USO e minha
condição juvenil, pois tenho apenas 92 anos de idade. É claro que tenho certa
superioridade sobre os outros siganeses. Por isso ficarei modestamente afastado da
próxima olimpíada galáctica, a fim de não privar meus irmãos das condecorações a que
fazem jus.
Prefiro não dizer mais nada a meu respeito. Conforme já ressaltei, só fiz esta
apresentação porque Melbar Kasom acha que o leitor ainda não está bem informado a
nosso respeito.
Mas, ao refletir sobre as idéias de Melbar Kasom, noto que ele me enganou.
Naturalmente fez questão de ficar em evidência. Logo ele, que é apenas um montão de
carne, vindo do superplaneta Ertrus.
É bom que o leitor saiba que o tamanho dos ertrusos chega em média a 2,40 m e
que pesam cerca de 700 kg. Estão acostumados a uma gravitação de 3,4 G, o que os
obriga a usar microgravitadores quando se encontram num mundo normal. Sem isso
ficariam saltando que nem uma bola de borracha. A altura de Melbar chega a 2,51 m e
seu peso é de 815 kg. O leitor poderá imaginar que isso o deixa muito convencido.
Só neste momento compreendo como foi traiçoeiro ao convencer-me a escrever,
mais uma vez, algumas palavras a título de apresentação. Sabe perfeitamente que,
quando começo uma coisa, costumo concluí-la.
Meu orgulho de homem não me permite atirar à cesta de papéis o relato que acabo
de iniciar. Além disso, em meu camarote não existe nenhuma cesta de papéis. Os
terranos se esqueceram desse detalhe, da mesma forma que esqueceram as instalações
sanitárias com o respectivo lavatório.
Olho para trás, furioso, cerro o punho e caminho em direção à porta da gaveta
embutida. Ao agir assim, penso no ertruso que naquele momento deve divertir-se à
minha custa.
Provavelmente está fazendo malabarismo com terranos adultos, para dar-lhes uma
demonstração de sua força. Gosta de atirar ao ar quatro homens de uma vez, para pegá-
los um por um...
Vou para onde está minha bagagem e pego o relatório conjunto da ação que
realizei juntamente com Melbar, no planeta Haknor. Esse moleque, que certa vez me fez
dançar e tocar tambor durante duas horas, disfarçado em macaco, chega a afirmar que
fui engolido por um peixe, juntamente com o traje espacial...
Trata-se de uma mentira desavergonhada, manchando minha dignidade, pois só
representa uma meia verdade. Entrei de propósito na boca aberta do peixe, para evitar
que o inimigo me localizasse com suas sondas submarinas. Foi isso mesmo! Lemy
Danger nunca será engolido por um peixe contra sua vontade, mesmo que se trate de um
monstro de quase um metro.
Estou revoltado e vou concluir a apresentação. Infelizmente este trabalho me faz vir
à lembrança um “montão de músculos ertruso”, que nunca será capaz de compreender a
beleza harmônica de minha figura bem treinada.
Da penúltima vez que nos encontramos em ação me transformei num pássaro, mais
precisamente, num kubu haknorense. Os nativos fizeram de mim um animal sagrado, até
que descobriram o logro, e por isso até hoje tenho que padecer com o sarcasmo de
Melbar. Nunca mais entrarei numa máquina-pássaro na presença dele para executar
meu difícil trabalho. Melbar nem desconfia de que, para um homem de 63,32 mm de
largura nos ombros, é muito difícil dominar uma máquina-pássaro.
A raiva abala todo o meu ser. É bom que não apareça ninguém para dizer uma
insolência. Quando alguém o quer fazer de bobo, um siganês pode tornar-se muito
sensível.
Ouço um ruído às minhas costas. Viro-me abruptamente, saio da poltrona
improvisada e lanço um olhar para a porta.
A rótula abre-se e o rosto do terrano aparece na mesma. É tão grande que não lhe
vejo o queixo. Franzo a testa, procuro desviar-me do hálito do homem e grito em tom
furioso:
— Dê o fora, seu demônio, senão não respondo mais por mim!
O terrano estremece, assustado. Naturalmente notou minha postura e as divisas de
meu uniforme.
Volto à escrivaninha para concluir meu relatório. O melhor meio de castigar esses
gigantes é ignorá-los.
Acontece que o sem-vergonha ri tão alto que meus ouvidos começam a doer. Atreve-
se a enfiar a mão no meu camarote para pegar a gigantesca garrafa com os
comprimidos verdes. Dou um salto para colocar-me fora de seu alcance.
— Perdão, sir — diz a voz retumbante do homem. — Precisamos deste frasco, que
contém veneno para ratos.
Empalideço e começo a berrar:
— O senhor quer insinuar que sou um rato?
— Sir, nunca me atreveria a tanto. Apenas esquecemos de tirar o veneno do
armariozinho embutido.
— Retire-se — disse em tom reservado. — Afinal, este é meu camarote. Já preparou
minha refeição?
— Cozinhei dez grãos de arroz terrano, sir. Quer que eu os parta? Ou prefere
dançar sobre os mesmos?
Pego minha arma e faço o terrano olhar para a abertura do cano. Ele implora que
não atire e retira seu rosto da rótula.
Presto atenção ao rugido dos propulsores. Dentro de dez minutos,
aproximadamente, a Eric Manoli iniciará o vôo a velocidade superior à da luz.
Está na hora de concluir minha apresentação, pois pretendo contar a ação que
acabo de realizar. Por enquanto ninguém sabe o que andei fazendo contra minha
vontade. Na verdade, o ato em si tornou-se conhecido, mas não há como prever as
conseqüências que dele resultarão...
Não quero que o leitor acredite que fiz uma coisa condenável ou vergonhosa. Um
especialista siganês nunca seria capaz de uma coisa dessas. Ainda ajustarei contas com
Melbar Kasom, por causa de sua insolência, embora os siganeses sejam pessoas alegres,
respeitosas e pacatas, que só se tornam furiosas quando alguém as ofende sem motivo.
Peço sua compreensão e assino
atenciosamente,
Lemy Danger.
Relatório de Lemy Danger

1
O Pastor Inkon, capelão do cruzador siganês Namano, conclui o culto com uma
advertência: o poderio técnico não deve ser confundido com a maturidade espiritual.
Lanço os olhos para a tela na qual cintilam as estrelas da Galáxia, dando testemunho
da majestade do Criador. Equipamos a capela de bordo com essa tela, para que sempre
tivéssemos em mente a grandeza infinita do Universo e a pequenez do ser humano.
Noto que meus irmãos também olham para lá. Depois disso levantamo-nos e
dirigimo-nos à eclusa de ar da capela. Dali a dez minutos, a Namano voltaria a penetrar
no espaço linear, para num último vôo ultraluz alcançar o destino.
Este ficava a 39.834 anos-luz da Terra. O sol verde Eyciteo já pertencia às estrelas
centrais, embora tivesse sido descoberto apenas há alguns meses.
Eyciteo possuía quatro planetas. O de número dois era um pujante mundo de
oxigênio de nome Eysal.
Os habitantes inteligentes desse planeta haviam regredido para a barbárie. Eram
descendentes de antigos colonos arcônidas que, pelos dados de que dispúnhamos, deviam
ter colonizado o sistema de Eyciteo há cerca de quatro mil anos.
As influências do meio ambiente haviam causado uma mutação nos descendentes
desses colonos. O fato em si não tinha nada de extraordinário, pois as modificações
positivas ou negativas verificam-se sempre que um grupo de seres inteligentes abandona
seu habitat primitivo, para conquistar um novo mundo escolhido pelo grupo.
Para os siganeses, isso representava uma lei de Deus, pois também estávamos
pagando nosso preço, pelo fato de nossos antepassados terem abandonado seu mundo
natal para fixar-se em Siga.
Não era isso que me levava a embarcar no cruzador mais poderoso de nossa frota
planetária independente, para dirigir-me a áreas desconhecidas da Via Láctea.
O arcônida Atlan, que era meu chefe supremo e comandante da USO, transmitira
uma hipermensagem urgentíssima para pedir minha presença.
O lorde-almirante, título que Atlan usava desde a fundação da USO, ocorrida no ano
de 2.115, estava em dificuldades. Coisas incríveis tinham acontecido no segundo planeta
do sol anão Eyciteo.
Um dos nossos especialistas, o Tenente Ebrolo, ex-membro do povo dos antis,
esquecera Deus, a lei e seu juramento ao deixar-se arrastar a um ato de loucura como o
assassinato de uma mutante.
Ainda não sabíamos como uma coisa dessas pôde acontecer. Só sabíamos que as
antifaculdades de Ebrolo deviam ter sido suficientes para provocar uma paralisia
parapsicológica na telecineta Anne Sloane e cometer o ato repugnante.
Ao receber a notícia, transmitida em forma de um derradeiro pedido de socorro da
mutante, Atlan passara a sofrer com as pesadas auto-recriminações, pois afinal fora ele
quem enviara Ebrolo para apoiar a ação de Anne Sloane em Eysal. Acontecera justamente
o contrário, pois Ebrolo cometera o crime mais repugnante que se possa imaginar:
destruiu a vida de outro ser humano. Evidentemente era necessário encontrá-lo e puni-lo.
O fato de ser um anti tornava as coisas mais difíceis. Não se poderia recorrer aos
mutantes, pois suas emanações mentais neutralizavam as faculdades dos psi de Rhodan.
De resto, cabia a nós prender o especialista da USO, o malfeitor saído de nossas
fileiras, para entregá-lo ao juiz.
Sendo o menor ser humano existente nas fileiras dos especialistas da USO, nunca
me atreveria a condenar Ebrolo. Isso não era da minha competência, e sabia
perfeitamente que Ebrolo não escaparia ao castigo merecido.
Fazia quase um mês que Atlan e Melbar Kasom se encontravam em Eysal, onde
estavam preparando a ação a ser realizada.
Precisávamos ter muito cuidado. O último relatório de Anne Sloane provava que a
Segurança Galáctica, comandada pelo Marechal Solar Allan D. Mercant, cometera um
engano...
A nave exploradora constatara a presença de irradiações de energia no segundo
planeta de Eyciteo. As mesmas só poderiam provir de máquinas atômicas. Evidentemente
o fato era alarmante, pois os bárbaros que habitavam o planeta não sabiam mais que essas
máquinas existiam.
A mutante fora enviada ao planeta para verificar o que estava acontecendo. Se os
homens da Segurança soubessem que os criminosos sacerdotes do culto pagão de Baalol
desenvolviam sua ação condenável justamente em Eysal, onde dominavam os nativos e
deles se aproveitavam, nunca se teria cogitado da utilização de um mutante. Os
especialistas da USO estariam em melhores condições para cuidar disso, pois nenhum
deles possuía dons parapsicológicos.
Naturalmente Anne Sloane lançara mão de suas faculdades, e dessa forma se
colocou numa situação muito perigosa.
Os baalols a reconheceram. Apesar disso conseguiu chegar a um esconderijo seguro,
de onde enviou sua mensagem de hiper-rádio.
Foi justamente o fato de nosso especialista Ebrolo também ser um anti que levou
Atlan a destacá-lo, para dar ajuda à nossa colega do Exército de Mutantes e prosseguir
nas investigações.
Mas Ebrolo deixou-se dominar pela ânsia de alcançar a imortalidade biológica
relativa e assassinou a possuidora de um ativador celular.
Anne trazia consigo o décimo nono dos aparelhos espalhados pelo Ser fictício de
Peregrino. Esse aparelho extraordinário detinha o processo de degenerescência das
células, provocava uma regeneração ininterrupta e dessa forma evitava o envelhecimento
natural. Mas era bastante duvidoso que se pudesse falar em imortalidade. O portador de
um ativador celular não morreria de velhice ou doença, mas podia ser morto da mesma
forma que qualquer outra criatura viva. Também não estavam livres de acidentes. Isso
provava que o pequeno aparelho oval era apenas o produto de uma superciência. Não era
de origem divina, e isso me deixava conformado com o fato de ter cumprido meu dever,
entregando o primeiro aparelho desse tipo, encontrado em Haknor.
Além do mais, os siganeses de minha geração costumavam alcançar 800 ou 900
anos de idade, e para mim isso era mais que suficiente. Se durante todo esse tempo
conseguisse cumprir meu dever da melhor maneira possível e servir à Humanidade, não
acompanharia a mania que se vinha espalhando pela Galáxia.
Todo mundo esforçava-se para conseguir um ativador, a fim de prolongar a
miserável existência. A ganância e a malquerença, a violência e a traição passavam a
dominar criaturas que até então tinham levado uma vida honesta, tranqüila.
Por vezes toda essa história parecia ser uma grande prova. Sentia-me orgulhoso por
tê-la enfrentado com êxito. Até mesmo Melbar Kasom conformou-se em entregar o
aparelho que havíamos encontrado.
Ao contrário de todos nós, o Tenente Ebrolo esquecera suas obrigações. Matara a
possuidora do ativador e desaparecera. Sabíamos que ainda se encontrava em Eysal. Por
isso Atlan interviera pessoalmente no assunto, pois o terrível caso poderia desacreditar a
USO, prejudicando seu bom nome. Além disso a prisão do criminoso representava um
dever perante a Humanidade.
São estes os antecedentes de minha viagem apressada. Atlan me chamara.
Convocara a mim, o especialista Lemy Danger, embora devesse saber que no planeta
recém-descoberto não poderia usar nenhum disfarce de animal.
Ainda não sabíamos como era a fauna de Eysal. Por isso seria impossível
apresentar-me como pássaro, o que teria facilitado bastante o cumprimento de minha
missão.
Estava decidido a provar que um homenzinho como eu não pode ser subestimado,
nem mesmo não estando em condições de voar pelos ares sem ser reconhecido, sob o
disfarce de um pássaro nativo.
Meus irmãos deram-me todo o apoio. O governo fraternal siganês enviara o
cruzador Namano. Embarquei juntamente com os especialistas de meu povo em Quinto
Center, o porto espacial central da USO. Depois disso, a nave partiu em direção ao centro
da Galáxia.
Neste ponto quero ressaltar que uma pessoa de meu tamanho só pode ficar aos
cuidados de gente igual a mim. Nenhum gigante terrano seria capaz de fabricar o
equipamento de que precisava, ou de acondicioná-lo de forma a poder ser facilmente
encontrado. Afinal, a maior parte dos objetos usados em minhas operações eram tão
pequenos que um terrano não conseguiria enxergá-los sem uma lente.
Por isso o leitor há de compreender que tenho necessidade de uma equipe de
técnicos e cientistas siganeses que passaram por um treinamento especial. Sem isso não
posso entrar em ação.
A Namano era uma nave gigantesca de 35 m de diâmetro.
Suas máquinas e aparelhos de rastreamento eram os produtos mais avançados da
microtécnica siganesa. Posso asseverar que a potência de um reator catalítico de fusão da
Namano chega a mil megawatts.
É verdade que os gigantes terranos costumam dizer, em tom de desprezo, que uma
coisa destas pode ser carregada na mão, mas quando lhes falamos qual é a capacidade de
uma coisa dessas, geralmente perdem toda a arrogância.
Bem, não quero escarnecer dos meus amigos. Afinal, não são culpados de uma
grandeza primitiva. Gosto muito deles e nem penso em acusá-los por causa de sua pele
áspera com os poros enormes, ou por causa de suas maneiras rudes. Um siganês não
costuma agir assim, pois isso contraria as regras da decência e as Leis de Deus. Não se
deve condenar nenhum ser por causa da forma do corpo, da cor da pele ou da crença que
professa. Isso seria injusto e indigno de um ser humano.
Os siganeses sentiram-se profundamente atingidos pelo “Caso Ebrolo”. Éramos
incapazes de compreender que uma criatura inteligente fosse capaz de matar outro ser
para alcançar uma vantagem.
No meu belo mundo natal, denominado Siga, não houvera sequer um furto em
trezentos anos de História. Os contratos escritos são desconhecidos. Os negócios são
selados com um aperto de mão. Recusamo-nos a sacramentar nossa participação na
Aliança Galáctica por meio de nosso carimbo e assinatura. Para um homem decente não
há necessidade dessas coisas. O Administrador Geral Perry Rhodan acabou por
reconhecer isso. Somos o único povo pertencente ao Império sem qualquer vínculo
contratual.
Demos nossa palavra, e é claro que isso vale muito mais que cem mil assinaturas e
carimbos.
Por isso o leitor poderá imaginar que ficamos apavorados quando soubemos o que
havia acontecido em Eysal.
Cabia-me fazer tudo para cumprir minha tarefa conforme dispunha a lei e ordenava
minha consciência.
Quando entrei na sala de comando juntamente com meus irmãos, sabia que tinha
pela frente uma ação muito difícil.
O especialista Ebrolo não se deixaria prender sem mais aquela. Conhecia a USO e
sabia como costumávamos agir.
Dali a três minutos a Namano penetrou no espaço linear. Ouvi o ruído ensurdecedor
do conversor kalupiano, que nos protegia contra as influências energéticas do Universo
einsteiniano e do espaço de cinco dimensões. Deslocávamos num semi-espaço instável
situado entre dois universos, onde as leis de um e de outro não prevaleciam.
Uma concentração de estrelas cintilava na tela-destino. Um dos pontos luminosos
que apareciam nessa tela era o sol Eyciteo.
***
O Coronel Tilta, comandante do cruzador Namano, pilotava pessoalmente o
destróier. Meu irmão Tilta fez questão de deixar-me em Eyciteo II, pois achava que o
“Caso Ebrolo” era muito importante. Além disso Tilta e eu éramos amigos, motivo por
que era apenas natural que ele se preocupasse comigo.
Tilta tinha apenas 19,11 cm de altura, mas naturalmente nunca permiti que ele
sentisse que eu era um gigante. Na opinião de Tilta não havia necessidade de um veículo
maior. O destróier de 1,90 m era suficiente. Mas, mesmo para mim, era apertado. Meu
equipamento especial era muito volumoso.
Os cientistas que cuidavam do equipamento não haviam atendido integralmente aos
meus desejos. Por exemplo, na minha opinião o desajeitado defletor de campo visual, que
permitia que seu portador se tornasse invisível, não era necessário. Afinal, Lemy Danger
só é visto por alguém quando ele o deseja! Apesar disso o irmão Boltre insistira em que
eu levasse o defletor.
Tilta penetrou em alta velocidade na atmosfera cada vez mais densa do planeta
bárbaro. Gritava ininterruptamente certas instruções. Como sou um homem educado,
prometi guiar-me pelas mesmas.
Dali a alguns minutos, a cidade mais importante desse mundo apareceu nas telas.
Colhera informações detalhadas e passara por um treinamento hipnótico, que me
deixou familiarizado com o arcônida antigo falado pelos habitantes de Eysal.
Todos descendiam dos mesmos colonos, mas no curso dos tempos formara-se uma
tribo que, há 300 anos, desempenhava um papel decisivo em Eysal.
Os eysalenses pertencentes a essa tribo costumavam ser chamados de salonenses.
Nossos cientistas comparavam os salonenses com os antigos romanos de “nosso” planeta
Terra. Haviam construído um grande império, subjugado ou escravizado as outras tribos e
estavam prestes a conquistar novas áreas.
Sua capital, chamada de Malkino, era o centro cultural e espiritual do planeta. As
outras cidades salonenses não eram tão importantes. E as povoações dos outros nativos,
que chamávamos de eysalenses, para nós não tinham a menor importância.
O Império Salonense era governado por um chefe chamado de Masho. Tratava-se de
um senhor absoluto, que tinha o direito de designar seus sucessores. Estes eram os pontos
mais importantes, que eu havia guardado na memória.
Os verdadeiros governantes de Eysal eram os sacerdotes de Baalol, que
conseguiram obrigar todo o povo a venerar sua divindade pagã.
Isso acontecia por causa dos truques técnicos dos antis, que dispunham de inúmeros
meios que faziam tremer o queixo dos bárbaros!
Sabíamos perfeitamente qual era o jogo em Eyciteo II. Tudo dependia de que
conseguíssemos neutralizar o domínio absoluto dos antis e encontrar Ebrolo. Apertei os
cintos e olhei para o traçador de contornos, que naquele momento começava a mostrar o
oceano central.
Malkino, a capital, ficava na zona sub-tropical do hemisfério norte. Fazia bastante
calor no segundo planeta do sol verde. Tal sol possuía um total de quatro satélites.
— Localização — disse Tilta de repente e apontou para o aparelho de ecossonda. —
Alguém está trabalhando com impulsos ultracurtos. Será que nos descobrirão?
Fiz um gesto negativo.
— Irmão, você está superestimando o tamanho deste destróier. Nenhum anti
acreditará que o objeto que aparece em sua tela é uma espaçonave. Fique tranqüilo.
— De qualquer maneira ficarei por perto com a Namano — disse o coronel,
contrariado.
Acenei com a cabeça e refleti sobre a eficiência do armamento da nave. Nossos
canhões térmicos tinham aproximadamente o mesmo empenho das armas de impulsos
pesadas de um robô terrano. Tive de confessar a mim mesmo que eles não nos serviriam
para muita coisa.
Porém, se iniciássemos um bombardeio de mísseis, o planeta estaria
irremediavelmente perdido. As coisas não deveriam chegar a este ponto. Aliás, nem nos
competia ativar uma intervenção militar em Eysal. Foi exatamente por isso que Atlan
preferiu não realizar nenhuma manobra de desembarque. Não teríamos nada a ganhar
com a mesma.
As leis do Império Unido não permitiam qualquer tipo de ação bélica. A morte de
Anne Sloane e o roubo do ativador celular representavam casos que eram da competência
dos serviços secretos.
Se conseguíssemos provar que os antis se haviam intrometido nos assuntos internos
de outro mundo, aí as coisas seriam diferentes. Nesse caso, a intervenção da Frota da
USO se justificaria.
Por enquanto não dispúnhamos das provas necessárias. Teríamos de agir com muita
cautela, para não melindrar os nossos aliados galácticos. Por várias vezes já havíamos
sido acusados de visar aos interesses da Humanidade e do Império, em vez de agir como
uma tropa policial destinada a proteger todos indistintamente...
Não tivemos outra alternativa senão renunciar ao emprego de uma frota. Teríamos
de realizar um trabalho minucioso e estafante, para desvendar os fatos que havia atrás do
“Caso Ebrolo”. Antes disso não poderíamos desenvolver nenhuma ação oficial.
Fitei as telas e me pus a refletir sobre os seres que deviam viver nas gigantescas
matas do planeta. Para mim, os animais desconhecidos representavam um grande perigo.
E os seres racionais daquele mundo nunca compreenderiam que a criatura que se
encontrava à sua frente era um homem adulto do planeta Siga! Se explicasse-lhes tudo o
que sei, demoraria vários dias.
Comecei a sentir certa antipatia por Eyciteo II. Dali a alguns minutos atingimos o
continente do noroeste. Tilta reduziu a velocidade. Atravessamos o ar em vôo livre, com
as asas bem abertas.
A cidade de Malkino entrou na área de alcance do dispositivo ótico. Liguei a
ampliação e percebi imediatamente que se tratava de uma área povoada muito extensa.
Pelo que se dizia, Malkino possuía cerca de dois milhões de habitantes. Era um número
bastante respeitável para um povo bárbaro, se bem que este, segundo as informações
disponíveis, acreditava ser muito progressista.
Tilta fez a nave pousar numa área coberta de mata virgem, cortada por uma estrada
larga, que levava às fortificações.
Desembarquei a poucos metros de um conjunto de bombas movidas por vento.
— Fique quieto. O que é isso? — cochichou Tilta.
Peguei minha arma e pus-me a escutar. A faixa poeirenta da estrada estremeceu sob
os passos de numerosos pés que estavam marchando. Abrigamo-nos atrás do destróier e
esperamos que o exército passasse. O tilintar das lanças e espadas ainda não havia
cessado quando surgiu outro grupo de guerreiros, cujas armaduras brilhavam ao sol.
Animais quadrúpedes puxavam um veículo sobre o qual estava montada uma
espécie de bomba contra incêndio.
— É um lança-chamas — explicou Tilta. — Bastante primitivo, mas muito eficiente.
Por aqui existe um óleo leve, que se volatiliza rapidamente ao calor. Colocado sob
pressão, é soprado e incendiado. Os salonenses usam este aparelho para expulsar os
selvagens de suas fortalezas. Que coisa horrível! — disse Tilta, em tom de repugnância.
— Tenta...
Interrompeu-se no meio da frase e deu um enorme salto para abrigar-se sob o corpo
da nave. Segui seu exemplo. Desviei-me de um réptil espinhento e pus a mão na arma
térmica.
Dois pés gigantescos envoltos por correias de couro e protegidos por uma sola
grossa saíram da mata. Prendemos a respiração e pusemo-nos a escutar. Ouvia-se o ruído
da água e um rumorejar tão alto que meu ouvido sensível começou a doer...
Um bárbaro estava bebendo o líquido do barril coletor da bomba!
O gigante usava um balde de madeira de dimensões tão gigantescas que Tilta mais
uma vez ficou perplexo. Afinal, ele ainda não tinha tido muito contato com as pessoas
gigantes de outros mundos.
Dali a pouco o salonense despejou o resto de água no recipiente, arrotou e foi-se
afastando. Sorte sua!
Sacudi meu corpo e segui o selvagem com um olhar enfurecido. O compartimento
de carga do destróier estava encharcado e meu precioso equipamento também fora
afetado.
Apesar de tudo resolvi instalar meu esconderijo nas proximidades da bomba. Ao que
parecia, por ali passava um tráfego bastante intenso. Talvez aquilo fosse uma das
principais vias de ataque das legiões salonenses.
Tilta ergueu-se, todo compenetrado, enxugou o cabelo e ajudou-me a guardar os
objetos que compunham meu equipamento especial.
Liguei o radiador de vaporização e abri um buraco no chão. Tinha 40 cm de
profundidade e 80 cm de largura.
Usei o elevador antigravitacional para colocar a chapa de sustentação enrolada no
abismo e inflei-a por meio de ar comprimido. O buraco ficou na medida exata. Sob a
pressão de dez atu, o teto do abrigo subterrâneo ficou tão firme que se podia pisar nele e
camuflá-lo com terra.
Uma vez concluído este trabalho, colocamos os equipamentos menores no abrigo.
Os objetos pesados foram transportados através da escotilha de carga superior, por meio
de um guindaste antigravitacional.
O trabalho durou duas horas. Meu irmão Tilta despediu-se com as seguintes
palavras:
— Tenha cuidado. Vi monstros terríveis. Alguns deles têm o seu tamanho. Se não
prestar atenção, poderá perder a vida.
Confirmei com um gesto e reprimi a observação que trazia na ponta da língua. Um
especialista da USO sempre conta com estas coisas.
O destróier levantou vôo. Ergueu-se acima da vegetação e acelerou. Subiu ao céu
com um rugido. Finalmente estava só.
Abaixei-me para passar pelo buraco. Fechei-o e pus-me a arrumar o equipamento.
Depois disso montei o hipertransmissor, coloquei a fita com os pedidos de socorro
condensados e pus em funcionamento o reator.
O rugido do banco conversor sacudiu meu alojamento. O medidor de corrente
mostrava que o reator podia ser posto a funcionar a toda capacidade.
Coloquei a cadeira e a mesa dobrável junto à entrada. Armei minha cama entre duas
caixas que continham microbombas. Estas eram tão perigosas que seria uma temeridade
dormir entre elas.
Saí para buscar água. Comi uma refeição farta e coloquei o traje: a mochila
antigravitacional. A grande mochila deste traje continha um microgerador, um
neutralizador gravitacional e um defletor de alta capacidade. Era, também, uma mochila
de combate... Um modelo pesado e desajeitado de quase 300 g! Mas tinha de carregá-lo;
não havia alternativa, pois precisava ter a capacidade de voar e de evitar que alguém me
visse.
Examinei cuidadosamente minhas armas. A pistola térmica estava em ordem. Os
projéteis nucleares de meu microlançador de mísseis seriam capazes de reduzir a cinzas
todas as fortificações do Império Salonense.
Devidamente equipado, saí do abrigo em que guardava os suprimentos, fechei a
porta e a camuflei. O dispositivo automático fez um ajuste muito mais preciso do
neutralizador gravitacional do que qualquer homem seria capaz. Liberado do peso de meu
corpo, empurrei-me com o pé, fiz o balanceamento para colocar-me em posição de vôo e
liguei o jato-propulsor que passou a funcionar com o meio existente, que era o ar. O
princípio de pulsação era antiqüíssimo, mas tornava-se mais eficiente num planeta que
possuísse um envoltório atmosférico.
A turbina aspirava o ar, condensava-o e o comprimia na câmara de expansão, onde
era submetido a um processo de aquecimento nuclear e expelido com uma pressão
extremamente elevada.
O jato giratório arrastou-me para o alto. Numa viagem vertiginosa subi além das
copas das árvores. Procurei orientar-me e segui em direção às fortificações de Malkino.
Parei muito acima das muralhas ciclópicas e espiei para baixo. O funcionamento do
meu propulsor era quase completamente silencioso e o campo de deflexão tornava-me
invisível.
Desci cautelosamente e voei em torno do rosto de um guerreiro que cochilava à
sombra. Encostado à parede, apoiava os braços num aparelho que disparava setas e,
assim, descansara a cabeça sobre as mãos. Que sentinela!
Fiquei zangado com esse tipo de relaxamento em serviço, se bem que isso não me
dizia respeito. Segurei a coronha do disparador de setas e liguei meu propulsor para a
potência máxima.
Puxei o aparelho para o lado. O dorminhoco perdeu o apoio e caiu.
Levantou-se furioso, olhou em torno com uma expressão colérica e levantou a arma.
Outro salonense soltou uma estrondosa gargalhada.
Prestei atenção ao diálogo que se seguiu e convenci-me de que dominava
perfeitamente a língua desse povo. Fiquei satisfeito com a peça que consegui pregar no
guerreiro. Voltei a subir e procurei abranger a cidade com a vista.
Atrás da primeira muralha havia outra. Os salonenses bem que sabiam construir
fortalezas.
Pessoas de vestes coloridas andavam pelas ruas. Os nobres montavam gigantescos
pássaros que, segundo parecia, nunca tiveram a capacidade de voar. Em compensação
possuíam pernas longas e robustas, que certamente lhes permitiam desenvolver grande
velocidade.
Outros salonenses eram transportados em liteiras. Guardas armadas abriam
passagem a pancadas em meio à multidão, que não se afastava com suficiente rapidez
diante dos poderosos.
Lancei um olhar furioso para baixo. Não gostava desses métodos, embora soubesse
que, em Eysal, a escravidão e a opressão eram consideradas perfeitamente naturais.
Desci um pouco e examinei um dos homens montados num pássaro. Exibia uma
armadura muito bem trabalhada no peito, perneiras de couro e uma espada longa.
Qualquer pessoa que não cumprimentasse esse salonense com uma expressão de
veneração era chicoteada pelos dois guardas que o acompanhavam, ou até espetada com
as lanças de arremesso. Eram costumes bárbaros.
Os salonenses possuíam aspecto humano, com a única diferença de que a pele era
esverdeada e as orelhas eram compridas e móveis, e terminavam em ponta. Não havia
outros sinais de mutação, a não ser que o esqueleto e os órgãos também fossem diferentes
do tipo arcônida normal.
Os corpos das mulheres e dos homens eram altos e musculosos. Pelos meus
cálculos, a altura média das pessoas era de 1,95 m. Por certo a robustez física era
conseqüência da gravitação reinante em Eysal, que chegava a 1,14 G.
Neste mundo, Atlan dificilmente despertaria a atenção de alguém. Seu corpo era alto
e robusto, e isso lhe dava condições de desempenhar sem dificuldades o papel de um
salonense. Com Melbar Kasom, as coisas eram diferentes, pois sua figura provocaria uma
verdadeira sensação. Ao lado dele até mesmo os salonenses pareceriam ser criaturas
“quebradiças”.
Sobrevoei os arrabaldes da cidade com suas casas baixas e vi os palácios da área
central. Mais à direita estendiam-se as fortificações de um porto, cujas dimensões me
surpreenderam.
Meu ouvido supersensível percebeu um rugido. Levei algum tempo para perceber
que tal rugido era formado pelos gritos de milhares de salonenses, que enchiam
completamente as arquibancadas de uma arena.
Comecei a desconfiar do papel que Melbar Kasom estaria desempenhando neste
mundo bárbaro... Sem dúvida voltara a fazer-se de gladiador, ocupação a que já se
dedicara em outros planetas, cujos habitantes também adotavam costumes brutais!
Melbar era um lutador nato. Ainda não conheci qualquer ser vivo que estivesse em
condições de enfrentar o ertruso adaptado ao ambiente. Era bem verdade que eu mesmo
sabia amansar esse montão de músculos. Tinha meus métodos para isso.
Não fiquei nada satisfeito em saber que mais uma vez Melbar se encontrava numa
arena, onde tinha de travar lutas de vida e morte. Provavelmente recebera ordens para
isso.
Sobrevoei lentamente a arena e procurei fixar todos os detalhes. Liguei o radiofone.
Era a primeira vez, depois de ter pousado no planeta. Atlan esperava minha chegada.
Provavelmente seu microrrádio siganês de ouvido sempre estaria em recepção. Melbar
também trazia um testemunho de nossa engenharia sofisticada sobre o corpo.
Pairei sobre a área em que se desenvolvia a luta e procurei esquecer a multidão
delirante. Lá embaixo quatro homens investiam uns contra os outros. Provavelmente essa
gente nunca compreenderia que seu comportamento era perverso e repugnante.
Coloquei o aparelho de pulso junto aos lábios e chamei Atlan.
— Peteca chamando rede. Peteca chamando rede. Favor indicar posição.
Estas palavras representavam o código previamente fixado. Eu era a peteca, o lorde-
almirante era a rede. A Melbar fora reservado o nome de batedor.
Não esperei muito tempo. Meu aparelho emitiu um estalo. Atlan respondeu ao
chamado.
— Entendido, peteca. Posição: ponto quatorze. Suspenda transmissão. Desligo.
Não sabia por quê, mas estava decepcionado. Provavelmente era porque no meu
íntimo contara com uma recepção mais amável.
Bastante preocupado, pus-me a refletir sobre onde ficaria o “ponto quatorze”. Atlan
dera ordem para que as diversas posições fossem fixadas pela central numa lista
codificada, que tive que decorar.
Gostaria de saber até onde chegava o perigo de escuta pelos antis. Ligado na
potência mínima, meu micro transmissor possuía um alcance de dois quilômetros.
Achava pouco provável que, justamente no momento de meu primeiro contato, um dos
sacerdotes pagãos se encontrasse nesse raio com um aparelho ajustado para nossa faixa
secreta de ondas.
Acontece que o acaso já custara a vida de mais de um especialista da USO. O ponto
quatorze ficava junto à entrada principal da arena. Estava a apenas algumas centenas de
metros do meu chefe, mas isso não me surpreendeu.
Aquele arcônida pertencente a uma velha família de nobres não recuara diante da
idéia de usar o disfarce de mendigo cego, que lhe permitiria mover-se à vontade. Cheguei
a ver retratos de Atlan que me deixaram assustado. Não se via o menor sinal dos traços
nítidos de seu rosto. Este desaparecera sob a cobertura de tecido sintético aplicado por
meios biomédicos, que o transformara numa caricatura.
Preparei-me prevendo um quadro ainda mais repugnante. Aqui, em pleno centro do
Império Salonense, o chefe deveria ter um aspecto ainda mais desleixado que o do
homem retratado nas fotografias.
Passei lentamente sobre as arquibancadas superlotadas do estádio. Segui a linha oval
ampla do muro e logo descobri a entrada principal. Gigantescas colunas de pedra
sustentavam um telhado saliente, por baixo do qual vários degraus largos subiam para as
diversas fileiras.
A única coisa que se via em toda parte eram os mendigos. Em Eysal, estes
formavam uma corporação misteriosa, cuja influência era bem maior do que se poderia
ser levado a supor. Atlan soubera introduzir-se nessa comunidade. Por ali obtinha
informações mais valiosas que nos palácios do Masho.
Voei pelas fileiras de figuras tristes. Constantemente descobria pessoas que apenas
se fingiam de aleijadas. Alguns cegos que acreditavam que ninguém os estivesse
observando conferiam a féria, enquanto outro, que fingia não ter pernas, gemia e
massageava as barrigas das pernas, que pareciam ter adormecido com a torção exigida
para provocar o disfarce.
Levei alguns minutos para descobrir o lorde-almirante. Quando isso aconteceu,
assustei-me de verdade. Nossos biomédicos haviam feito um trabalho genial. Qualquer
pessoa que não fosse um cientista bem informado da USO acreditaria que a cicatriz
comprida que passava por sobre os olhos de Atlan fosse verdadeira. Até parecia que essa
parte do rosto fora desfigurada por um golpe de espada. Outra cicatriz, em cujo interior
pulsava o tecido artificial vermelho, dividia os lábios, o nariz e a testa em duas partes. Os
cacos de dente que apareciam na boca entreaberta eram tão repugnantes que senti
náuseas.
Levei alguns minutos para recuperar-me do susto. Aproximei-me e procurei
descobrir os olhos de Atlan embaixo da cicatriz. Por mais que procurasse, não os
encontrei. Já me haviam ensinado que Atlan estava olhando através de uma finíssima pele
artificial. Fora preparada de maneira a só ser transparente para quem olhasse de dentro
para fora.
Circulei devagar em torno da cabeça daquele homem sentado na poeira. A única
peça de roupa de Atlan consistia numa tanga esfarrapada. Sua figura alta e musculosa
levava a acreditar que talvez já tivesse sido um ótimo guerreiro. Sua pele mostrava o
brilho verde dos salonenses, e o prolongamento biomédico das orelhas era tão perfeito
que conseguia mover sem dificuldades as pontas de dez centímetros de comprimento.
Estava encostado ao muro do estádio e olhava fixamente na mesma direção, como
costumam fazer os cegos. Vez por outra levantava a cabeça, para escutar melhor.
Segurava um recipiente amassado entre as pernas abertas. Nesse recipiente encontrei
algumas moedas, dois pregos enferrujados e um pedaço de carne escura.
Parei perto de seu rosto. Estava curioso para ver se o chefe realmente ouvia bem.
Mexeu as orelhas, cujas conchas ficaram viradas para a frente.
A boca abriu-se, e dela saiu o grito triste:
— Uma esmola, minha gente nobre, uma pequena esmola para Umbarth, o soprador
do fogo que, quando a serviço do divino Masho, queimou a fortaleza zelutense de
Llahakal. Uma esmola para Umbarth, gente nobre.
Estas palavras pareciam tão sinceras que me fizeram estremecer. Mas logo voltei a
assustar-me.
— Danger, é o senhor? — acrescentou ele, em voz baixa. — Cuidado! Meu vizinho
tem os ouvidos muito aguçados. Pouse sobre meu ombro.
Obedeci. Aproximei-me mais de Atlan. Meus pés tocaram seu ombro robusto.
Finalmente acomodei-me e deixei que minhas pernas balançassem à frente de seu peito.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, senti vontade de tossir. Não devo criticar
meu chefe supremo, mas o fato é que o lorde-almirante exalava um fedor tão forte que
quase não consegui respirar.
Atlan soltou uma risadinha, enquanto eu continuava a engolir em seco.
— Quando um mendigo unta o corpo com óleo, este certamente está rançoso —
cochichou sem mover os lábios.
Agarrei-me à corda que Atlan trazia presa nas costas, que servia para segurar a
sacola onde guardava seus pertences. Levei algum tempo para vencer a repugnância e
voltar a respirar sem dificuldade.
— Perdão, sir — disse com a voz ofegante. — O senhor não exala o perfume das
rosas terranas. O especialista Danger está presente, sir.
— Talvez você ache graça, mas o fato é que já percebi. Qual foi o idiota que lhe deu
ordem para me chamar pelo rádio? Se alguém ouviu os impulsos, a esta hora os antis já
sabem que suas maravilhas técnicas não são as únicas que funcionam em Eysal.
— A ordem foi dada pelo chefe do estado-maior, sir — respondi, enfatizando as
palavras.
— Está bem. Façamos votos de que ninguém nos ouviu. Daqui por diante, a
utilização do rádio fica proibida. Suas funções consistirão principalmente em transmitir
mensagens entre mim e o Tenente Kasom. Já o viu? Hoje terá de lutar contra um lobo-
batráquio zelutense. Alguém tem interesse em matar Kasom. Receio que ele seja
derrotado pelo monstro.
Empertiguei-me e soltei a corda.
— Um lobo-batráquio, sir? O que vem a ser isso?
— É um sáurio blindado que vive nas florestas habitadas pelos zelutenses. Estes
continuam a resistir aos salonenses. Quando vim a saber que Kasom terá de enfrentar o
monstro, já era tarde. Ainda bem que você chegou, miúdo. Preciso de você.
Tossi delicadamente. Achava que, naquela situação, o fato de ser chamado de
“miúdo” não representava nenhuma ofensa à minha honra. Afinal, sempre depende de
quem pronuncia as palavras. Além disso venerava Atlan a tal ponto que não conseguiria
zangar-me com ele por uma bagatela desse tipo.
— Diga uma coisa. Será que está usando uma mochila antigravitacional? —
cochichou o lorde-almirante.
— Estou, sim. Pensei que o senhor...
— Vá embora, vá embora imediatamente — ordenou o chefe. — Será que você está
com o juízo perfeito, Danger? Mesmo que as radiações produzidas por seu micro-
equipamento sejam muito fracas, você poderá ser localizado a qualquer momento. Tem
outro equipamento de vôo?
— Uma hélice movida por bateria, sir — respondi um tanto abatido. — Meu
defletor é...
— Pode ficar com o defletor — voltou a interromper Atlan. — A única coisa que
pode tornar-se perigosa são os impulsos gravitacionais. Mas convém ligar o defletor
somente quando se encontrar perto de algum salonense. Saia voando imediatamente,
troque de equipamento e ajude o Tenente Kasom. A luta será iniciada dentro de trinta
minutos, aproximadamente. Será a última luta de hoje. Apresse-se. Esperarei por você
aqui mesmo.
Não respondi nada. Liguei meu propulsor e precipitei-me pelos ares. A repreensão
fora tão inesperada que quase não consegui raciocinar mais. Ninguém contara com
tamanha atividade dos antis. Será que Ebrolo havia despertado sua atenção? Talvez
soubessem o que esse sujeito infame havia feito. Em caso afirmativo, Ebrolo estaria
sendo caçado não apenas por nós, mas também pelos chefes secretos de Eysal!
As poucas palavras pronunciadas por Atlan bastaram para que compreendesse tudo.
Havíamos entrado numa casa de marimbondos cósmicos. E, ao que parecia, Melbar
Kasom seria a primeira vítima...
Voei à velocidade máxima por cima das muralhas da fortaleza. Se quisesse chegar à
arena em tempo, teria de andar depressa!
Relatório de Melbar Kasom

2
Sou um gladiador zelutense a serviço do nobre Voszogam e em minha testa não se
vê a marca de fogo que assinala os escravos. Por isso sou um homem cuja chama da vida
pode ser extinta a qualquer momento.
Eu, o Tenente Melbar Kasom, especialista da USO e engenheiro especializado em
armas de guerra energéticas, fora obrigado, desde o momento em que entrara na nave, a
esquecer meu treinamento científico.
A única chance de sobrevivência consistia na destreza com que manejava as armas
primitivas, na capacidade de avaliar o inimigo e na habilidade de ser mais competente na
área da Psicologia que na da Engenharia.
Em Eysal, meus conhecimentos sobre os segredos do átomo não me adiantavam
nada. Tudo dependia de que conseguisse satisfazer os espectadores e alcançasse as boas
graças dos poderosos. A escolha dos meus adversários era feita por pessoas que só
conhecia pelo nome. Não tive outra alternativa senão colocar-me a serviço de um homem
cuja posição social e condições de nascimento lhe davam o privilégio de explorar os
gladiadores. Por isso transformei-me numa vítima da paixão generalizada pelas apostas.
Voszogam era considerado o maior chefe guerreiro do Império Salonense. Além
disso era comandante das tropas de elite estacionadas em Malkino, cuja tarefa consistia
em proteger a cúpula do Império.
Até este ponto tudo estava em ordem, na medida em que isso era possível face aos
nossos planos de ação. Na verdade, o Lorde-Almirante Atlan assumira um grande risco
ao enviar um supergigante do meu tipo a um mundo em que um ertruso não poderia
deixar de chamar a atenção, embora os homens altos não fossem nenhuma raridade.
Tenho 2,51 m de altura, a largura dos meus ombros é de 2,31 m e, à gravitação de 1
G, meu peso chega a 815 kg. Estou acostumado a uma gravitação de 3,4 G, e por isso,
sempre que me encontro num mundo mais leve, tenho de usar um microgravitador, que
dá ao meu corpo a carga a que este está habituado.
No segundo planeta do sol Eyciteo não podia usar o aparelho, pois suas emanações
seriam interceptadas imediatamente pelos antimutantes.
Poderia parecer que esse fato só me ajudaria nas lutas na arena, pois a gravitação
reduzida do planeta me permitia executar saltos de até 20 m.
Mas aconteceu exatamente o contrário. Tinha que cuidar-me constantemente para
não demonstrar muito claramente as minhas capacidades, pois nenhum nativo possuía
tamanha força física, nem mesmo um selvagem vindo das matas virgens dos zelutenses.
Era claro que não existia nenhum inimigo que representasse um perigo real para
mim. Os ertrusenses ou ertrusos adaptados ao seu ambiente são as pessoas mais fortes do
Universo conhecido. Porém eu precisava ter cuidado para não esmagar os outros
gladiadores...
Assim sendo, Atlan — conforme já ressaltei — poderia mandar que eu entrasse em
ação sob o disfarce de um nativo. Mas teve motivos plausíveis para não agir assim, de
maneira que há cerca de trinta dias, tempo padrão, abandonei a nave nas matas virgens do
ocidente.
Dali a dois dias encontrei um grupo de salonenses ávidos de conquistas. Menti a
eles, dizendo que estava a caminho de Malkino.
Depois de um ensaio de luta contra os três homens mais robustos da tropa de
choque, o comandante convenceu-se de que eu representava uma boa presa.
Fui levado à capital. Uma vez lá, o comandante do grupo vendeu-me ao nobre
Voszogam. Dali em diante tinha de ir à arena todos os dias, pois esperava que minha
presença fizesse com que Ebrolo saísse do seu esconderijo.
Atlan me usava por assim dizer como isca. Esperava que Ebrolo se sentisse tentado
a fazer alguma coisa contra mim, pois era claro que perceberia imediatamente que eu não
era nenhum nativo.
Ebrolo recebera seu treinamento na Academia da USO. Sabia perfeitamente quais
eram os homens de que a organização podia dispor. E conhecia muito bem os ertrusos,
respeitados em toda a Galáxia. Além disso não poderia ignorar que, nas fileiras dessa
organização de defesa galáctica, existisse um sujeito formidável que, além de ser um
especialista de primeira ordem, era campeão em várias modalidades de esportes no
gigantesco planeta Ertrus.
Neste ponto quero desviar-me do assunto — para o que conto com a compreensão
do leitor — e assim, com a modéstia que me é peculiar, mencionar que o campeão
ertrusense de peso pesado ao qual acabo de aludir não é outro senão eu mesmo, Melbar
Kasom.
Durante quase trinta dias, os resultados do plano de Atlan foram quase totalmente
negativos. Tive de fazer um grande esforço para não praticar malabarismo com certos
selvagens, e Ebrolo não dera sinal de vida.
Se não tivesse sido tão bem preparado pelos nossos especialistas, nós o teríamos
encontrado em poucos dias. Acontece que Ebrolo recebera uma máscara especial, que o
fazia passar por salonense. Afinal, fora enviado ao planeta para apoiar a mutante Anne
Sloane.
Não conseguimos encontrar sua base de operações. Ebrolo fora bastante inteligente
para, depois do crime, desfazer o depósito e guardar seu equipamento em outro lugar.
Não havia mais possibilidade de realizar a localização goniométrica do ativador
celular, e por isso tivemos de recorrer às técnicas antiqüíssimas da investigação criminal.
Se Ebrolo não caísse na cilada que lhe armáramos, nunca o descobriríamos.
Havia indícios de que se encontrava em Malkino. Além do mais, isso resultava do
psicograma elaborado com base nos traços de caráter de Ebrolo.
Um homem ávido de gozar a vida — e ele o era — não seria capaz de viver na
solidão da selva. Ebrolo precisava de outras pessoas, não podia dispensar a atmosfera de
uma grande cidade, que lhe proporcionava emoções e distrações de todo tipo.
Além de tudo possuía um aparelho que impedia o envelhecimento das células e
matava os germes de tudo quanto era doença, proporcionando uma vida eterna relativa.
Nestas condições, Ebrolo não teria capacidade de autocontrole suficiente para fugir
à sociedade e passar alguns anos na selva. Dessa conclusão vinham nossas chances de
sucesso.
O quadro do assassino Ebrolo, que nos era bastante favorável, era completado pelo
fato de ser ele um anti que desenvolvera ao máximo as faculdades inatas de seu povo por
meio de um treinamento especial.
Os mutantes do Império Unido seriam impotentes diante de Ebrolo. Ele não reagia
aos telepatas, e era totalmente impossível utilizar quaisquer forças parapsicológicas perto
dele.
Atlan tinha certeza de que logo após o assassínio de Anne Sloane, Ebrolo conseguira
insinuar-se na sociedade salonense, onde estaria utilizando seus conhecimentos com o
objetivo exclusivo de enriquecer. Provavelmente estava à procura de uma possibilidade
de abandonar o planeta bárbaro. Para isso precisaria de uma nave espacial dos antis, que
há séculos eram os verdadeiros donos do planeta.
Até mesmo os salonenses das castas dirigentes, que não eram nada tolos, deixaram-
se enganar pelos antis.
O deus chamado de Kulan, que não passava do produto de um culto pagão criado
pelos antis, era venerado e temido por todos. Realmente, para um grupo de criaturas
primitivas cuja tecnologia mal chegara ao uso da pedra e dos metais, o fato de a estátua
da divindade Kulan falar ou fazer desabar uma trovoada devia ser algo de medonho.
Kulan deixara bem para trás os outros deuses pagãos, ainda mais que os antis, numa
ação bem dosada, faziam com que certos desejos fossem cumpridos e provocavam alguns
milagres.
Esse culto idiota deixava as coisas ainda mais complicadas para mim, pois, em
hipótese alguma, devia dar mostras de que desaprovava aquilo. Tinha de fazer um grande
esforço para, ao entrar na arena, dobrar os joelhos e implorar as boas graças de Kulan.
O que se tornava ainda mais difícil era esquecer que nos camarotes havia antis, que
deliberavam com uma meticulosidade científica sobre se esta ou aquela luta deveria ou
não ser fomentada no âmbito de sua política.
Entre os numerosos gladiadores vindos de todas as partes do Império e dos
continentes bárbaros, eu era o único que sabia perfeitamente que nunca se deveria agir
contra os interesses dos verdadeiros chefes. Quem se atrevesse a isso, estaria assinando
sua própria sentença de morte.
A sentença de morte. A expressão sacudiu minha mente e me fez lembrar que
desagradara a alguém.
Dali a trinta minutos teria de enfrentar um monstro que ainda não fora derrotado por
nenhum gladiador. Entre os que travavam as lutas de vida e morte, não era nenhum
segredo que o confronto com um lobo-batráquio só era determinado em circunstâncias
especiais. Os grandes senhores não gostavam de perder um gladiador de primeira classe.
Ainda mais eu, que já rendera muito dinheiro ao nobre Voszogam. Além do mais, este
podia gabar-se de que o homem mais forte do planeta estava a seu serviço.
O fato de obrigar-me a enfrentar um monstro só podia representar uma sentença de
morte. Algum inimigo desconhecido devia ter encontrado um meio de convencer meu
dono a conceder a permissão para a luta, ou obrigá-lo a isso. Em Eysal as intrigas eram
uma constante e, talvez por isso, Voszogam achara preferível sacrificar-me.
Só soube da luta há oito horas. Com seu disfarce de cego, Atlan nunca entrara na
arena, e eu não podia sair de lá... Por isso arrisquei um chamado pelo rádio. Queria que o
chefe ao menos estivesse informado.
Confessei a mim mesmo que diante de um lobo-batráquio minhas chances eram
praticamente nulas. Provavelmente conseguiria derrotá-lo, se pudesse dar-me ao luxo de
lançar mão de todas as minhas faculdades.
Porém não poderia arriscar-me a dar saltos gigantescos ou arremessar grandes
blocos de pedra. E teria de resistir à tentação de procurar golpear o adversário com a
coluna de ferro que pesava pouco mais de cem quilos. Se agisse assim, seria reconhecido
pelos antis, que sem dúvida ainda não sabiam que o planeta Eysal fora descoberto por
uma nave exploradora do Império Unido.
Ebrolo nem pensaria em informar seus irmãos de raça a respeito de tal descoberta.
Só estava interessado em sua vantagem.
Talvez os antis desconfiassem de que eu não vinha deste mundo. Era possível que a
utilização do lobo-batráquio fosse um teste. Se me deixasse arrastar a supersaltos e a
outros atos que revelassem que as condições gravitacionais a que estava acostumado
eram outras, os antis teriam a prova que procuravam. E isso representaria um risco para o
êxito de nossa missão. E de qualquer maneira eu perderia a vida.
Há várias horas estava refletindo sobre a maneira de colocar o sáurio das florestas
fora de ação, sem trair minha condição. Não havia nenhuma possibilidade. Não procurei
enganar a mim mesmo. Se a língua revestida de córnea arranhasse minha pele, ou se ele
me alcançasse com uma patada, estaria perdido.
Apesar dessas preocupações martirizantes, consegui comer muito bem e dormir
algumas horas. A única pessoa que poderia ajudar-me era Atlan. No entanto, não tinha a
menor idéia de quais eram os meios de que quisesse ou pudesse lançar mão.
A missão chamariz que estava desempenhando já me deixara isolado do mundo
externo há mais de vinte dias. Só tinha um conhecimento bastante superficial daquilo que
o chefe descobrira nesse tempo. Estávamos aguardando o especialista Lemy Danger, cuja
presença fora solicitada pelo lorde-almirante. Não sabia se o baixinho já tinha chegado a
Eysal. Há poucos dias o homem que servia de elemento de ligação entre mim e Atlan fora
morto em luta. Dali em diante fiquei sem notícias.
Devo confessar que nunca desejei tanto a presença do anão siganês como naquelas
horas. Geralmente ele me deixa nervoso, o que o leitor há de compreender diante do fato
de que Lemy gosta de ressaltar sua qualidade de superior hierárquico e costuma fazer
chicanas comigo.
Afinal, a mania de ser grande de que são possuídos os anões de Siga é muito
conhecida. É claro que o baixinho sabe contar histórias muito bem, enquanto eu não
tenho muita habilidade nesse terreno. Por mais que me esforce, de vez em quando deixo
escapar uma palavra que o baixinho não seria capaz de usar.
Se o leitor pudesse ver o sorriso de deboche que Lemy costuma exibir nessas
oportunidades, haveria de compreender por que não me sinto muito bem quando penso no
major. Para mim, uma criatura que se deixa devorar pelos peixes, usa o disfarce de
cachorrinho de madame e cai sobre os robôs para provocar um curto-circuito nos mesmos
não é um homem. E Lemy ainda se orgulha das peças que vive pregando nos mais
diversos planetas.
É claro que, quando as coisas não dão certo, o culpado sempre sou eu. Às vezes, no
momento decisivo não consigo conter o riso, ou então o baixinho assume certos riscos
que, em virtude do meu tamanho, não posso suportar.
Neste ponto e face a face com a morte, só quero dizer que eu, Melbar Kasom,
campeão no mundo gigante chamado Ertrus, perdôo tudo que Lemy me fez.
Até lhe perdôo por me ter culpado em diversas oportunidades do fracasso de certas
missões, embora a culpa realmente não fosse minha. Quero ver alguém manter a
seriedade, quando Lemy se disfarça de macaco, faz acrobacias em trilhas de cortinas ou
ameaça um grupo de mercenários fortemente armados com suas granadas de mão
atômicas.
Bem, não quero falar muito no baixinho. Se estivesse aqui neste momento, ao
menos poderia mandá-lo para junto de Atlan, a fim de saber o que o chefe pretendia fazer
por mim. Naturalmente o lorde-almirante não permitiria que eu morresse na arena...
Quanto a isso não tinha a menor dúvida.
Consolado por esses pensamentos, dirigi-me à porta de tábuas grossas do meu
aposento e saí para o corredor. Aqui embaixo, o berreiro dos espectadores soava como o
ruído de uma cachoeira.
Dois membros da guarda pessoal fitaram-me com uma expressão de desconfiança.
Seguraram suas lanças de arremesso numa posição que lhes permitiria atacar-me a
qualquer momento.
De propósito pisei fortemente e aproximei-me deles. Akussa, diretor da Escola de
Gladiadores de Malkino, apareceu mais ao longe. Parei à frente de um dos guardas,
apoiei as mãos nos quadris e fitei-o de alto a baixo. Minha coxa direita era mais grossa
que o corpo desse fracote, que apenas tinha quase dois metros de altura. Minha
vestimenta consistia unicamente numa tanga, pois Akussa pretendia equipar-me
pessoalmente.
— E daí...? — perguntei em voz alta, fazendo com que o guarda recuasse dois
passos.
A ponta de sua lança estava apontada para meu estômago. Fiz tremer a musculatura
e mostrei-a dizendo:
— Isto não deixará penetrar seu ferro. Já pensou o que farei com seu pescoço
depois?
Passei pelos guardas com um sorriso de deboche e lancei um olhar curioso para as
celas dispostas de ambos os lados, nas quais estavam trancados alguns zelutenses.
Aqueles homens altos, que pensavam que eu era um dos seus, cumprimentaram-me com
um sinal. Sabiam que teria de enfrentar um lobo-batráquio.
Akussa esperava-me na porta em arco do depósito de equipamentos. Três
gladiadores que haviam escapado com vida nas últimas lutas, estavam sendo tratados
pelo médico da arena.
Todos eles haviam recebido ferimentos mais ou menos graves. O médico de
campanha, com muita força e pouca habilidade, os queimava, costurava ou cobria de
emplastros.
Fiz como se não ouvisse os gritos de dor. O quadro que se oferecia nos calabouços
situados atrás dos muros da arena sempre era o mesmo. Ali embaixo ninguém possuía
amigos. Se alguém procurasse fingir um sentimento de simpatia, isso acontecia apenas
para descobrir as fraquezas do futuro adversário.
Akussa era um homem alto e robusto. Nunca havia visto um corpo tão cheio de
cicatrizes como o seu. Seu rosto era anguloso e seu senso de humor parecia marcado por
uma vida de lutas. Era um dos poucos homens que conseguiram sobreviver durante dez
anos. Era bem verdade que tivera a sorte de nunca lutar contra um lobo-batráquio.
Empurrei o auxiliar do médico para fora do meu caminho e sentei no banco em que
costumava ser colocado o equipamento. Akussa aproximou-se e pôs-se a massagear os
músculos das minhas costas.
— Estão duros; ótimo — disse no tom bonachão que lhe era peculiar. — Você aí! Se
voltar a atirar o médico contra a parede, ficarei aborrecido.
Um homem robusto, vindo do sul do Império Salonense, praguejava terrivelmente.
Chegou mesmo a insultar a segunda divindade do país, o que fez com que o médico, que
estava deitado no chão e gemia, se levantasse de um salto, todo apavorado.
— Com isso você arranjará uma infecção de suas feridas — afirmou em tom
odiento.
Os auxiliares de Akussa trouxeram meu equipamento, que consistia numa couraça
de ferro forjado, com as ombreiras engatadas. As trilhas para os braços e as pernas, feitas
com o mesmo material, completavam o traje de combate.
— Quer um capacete fechado? — perguntou Akussa.
Sacudi a cabeça.
— Prefiro um aberto.
— Muito bem. Acho que você deveria dispensar também o protetor do pescoço. Se
uma das garras do animal ficar presa nas correntes entrelaçadas, ficará sem cabeça...
Apenas quero dar-lhe um bom conselho.
Fitei prolongadamente aquele salonense experimentado. Seu rosto parecia
indiferente como sempre.
— De repente você começou a ficar muito preocupado comigo — observei,
esticando as palavras.
— Jamais gostei que eles pusessem um homem a lutar sozinho com um lobo-
batráquio. Não franza a testa, zelutense. Quando falo com um morto, costumo ser sincero.
Um dos feridos soltou uma estrondosa gargalhada. O médico soltou uma risada de
bode, virou a cabeça para mim e por engano encostou o ferro incandescente no ombro
sadio do ferido. Dali a um segundo estava novamente colado à parede. Desta vez perdeu
os sentidos.
Os costumes ásperos que prevaleciam nos alojamentos dos gladiadores não me
esquentavam. Há alguns dias ainda tive o cuidado de ser cortês para com os funcionários.
Essa gente podia preparar o inferno para um ferido.
O auxiliar do médico acidentado passou pomada na nova ferida do gladiador. Peguei
meu capacete. Tratava-se de um modelo especial, pois os tamanhos comuns não cabiam
em minha cabeça. A couraça e os trilhos das pernas e dos braços também haviam sido
feitos sob medida.
Em média, a espessura do material era dois milímetros maior que a das chapas
geralmente usadas. Akussa colocou o capacete em minha cabeça e apertou a correia
embaixo do queixo.
— De que parte do país você veio, zelutense? — perguntou como que por acaso.
Desconfiei imediatamente.
— Por que faz essa pergunta?
A esta altura isto não importa mais.
O diretor da Escola de Gladiadores de Malkino preferiu não responder. Examinou
cuidadosamente meu equipamento o pôs-se a prestar atenção aos sons vindos do lado de
fora. Falando ainda mais baixo, recomendou:
— Preste atenção, Akwor. Você poupou a vida de meu filho. Aqui não se costuma
fazer isso. Não me esqueci. Foi sua luta inaugural.
— Meu adversário era seu filho?
O diretor fez que sim e enfiou mais um acolchoado de couro sob a blindagem que
cobria meus ombros.
— Posso garantir que já assisti a muitas lutas contra lobos-batráquios. Nenhum
gladiador escapou vivo das mesmas, mas nenhum deles era tão forte como você. Posso
revelar os pontos vulneráveis do monstro, mas preciso que você me diga que tipo de arma
vai escolher. Já decidiu? O gongo já vai soar.
Olhei para as prateleiras. Sim, já havia decidido. Para isso tivera necessidade de
certas reflexões científicas.
O lobo-batráquio era um grosso revestimento de chitina. Era um material muito
duro, que também era bastante quebradiço.
Se embaixo desse revestimento não houvesse uma camada de tecido elástico de pelo
menos seis centímetros de espessura, uma clava esférica de alto poder de impacto
causaria sua morte, pois com ela poderia quebrar a espinha do animal.
Acontece que o tecido elástico evitava que a força do impacto fosse transmitida a
algum órgão vital. Concluí que as clavas de todos os tipos estavam fora de cogitação.
Uma espada seria inútil. O revestimento do lobo-batráquio não poderia ser
despedaçado nem perfurado com a mesma. Além disso nunca conseguiria atingir as
partes moles, junto a boca e as enormes ventas, pois o monstro poderia rechaçar qualquer
ataque frontal com sua ágil língua em lança.
A arma ideal, que reunia a elevada força de percussão à pequena área de impacto e
ao grande poder perfurante, era um machado de grande peso, com uma lâmina de 40 cm
de comprimento e apenas 3 cm de largura. Além disso devia ter um cabo bem comprido,
a fim de que, num golpe em círculo de grande raio, a força do impacto fosse multiplicada
por três.
Não havia outra possibilidade de romper o revestimento e, no mesmo golpe,
perfurar o tecido elástico, a fim de desferir um golpe decisivo contra uma parte vital do
corpo.
Akussa fitou-me com uma expressão tensa. Possuía um grande arsenal de
experiências, mas não havia dúvida de que era incapaz de formular reflexões baseadas em
elementos técnicos. Resolvi dizer com um sorriso de gratidão:
— Dê-me o machado-cunha mais pesado que tiver, juntamente com um escudo
redondo com uma cova para a mão, na qual deverá ser colocado um punhal. Com o braço
que segura o escudo ainda pegarei uma rede de malhas finas feita de tecido de guldir, que
talvez me permita aprisionar a língua do monstro.
O diretor fitou-me prolongadamente, e, franzindo a testa, mexeu nervosamente as
orelhas pontudas.
— Um machado? — repetiu em tom de incredulidade. — Tem certeza de que quer
mesmo um machado? Se eu fosse você, pegaria uma lança com lâmina cortante. Bateria
com a mesma, depois a arremessaria e a seguir atacaria com uma clava esférica de
pontas.
— O primeiro golpe com a lança seria meu fim. E não adiantaria arremessar a lança.
Um lobo-batráquio costuma proteger a boca. Esse monstro tem algo de inteligente. Dê-
me o equipamento que acabo de pedir.
Dali a dez minutos as armas estavam em minhas mãos. O machado era do tipo que
devia ser seguro com ambas as mãos. Só podia ser usado por lutadores muito fortes, que
quisessem usar ambos os braços.
Para meu gosto o machado que pesava cerca de 40 kg era muito leve. Acontece que
era o modelo mais pesado.
No momento em que peguei o escudo e o machado, Akussa disse em tom de
advertência:
— Não pense em fugir. Todas as saídas estão sendo vigiadas. Colocaram dois sopra-
fogo. Antes que você chegue à grade, eles o transformarão em bife. Está preparado,
zelutense? Boa sorte e bons golpes. Se eu fosse você, me concentraria exclusivamente em
dois pontos: o crânio, e a parte da coluna vertebral, que fica logo atrás da cabeça. Você
terá de saltar. Entendeu? Procure desviar-se da língua. O lobo-batráquio leva algum
tempo para encolhê-la. E, enquanto está fazendo isso, não pode fazer nenhum movimento
rápido. Use a língua como trampolim, salte com ambos os pés sobre a crista e golpeie
forte. É sua única chance. Na escolha das armas, você seguiu seu caminho. Mas é bom
que pelo menos adote a tática de ataque que lhe estou ensinando.
Bati suavemente em seu ombro e Akussa quase caiu... Mais uma vez fitou-me
atentamente, o que não me deixou muito à vontade.
Quando estávamos saindo e a escolta enfileirou-se de ambos os lados, Akussa ainda
cochichou:
— Obrigaram Voszogam a entregar você.
— Quem foi? — cochichei de volta. — Algum sacerdote de Kulan?
— Não. Foi um desconhecido vindo de Oszala. Dizem que é um homem muito
poderoso.
— Há quanto tempo está aqui?
— Falam em três ectadas. Possui muitos navios. Você machucou o pescoço dele ou
de algum dos seus amigos?
Pus-me a refletir. No linguajar dos gladiadores, a expressão “machucar o pescoço”
significava causar incômodos ou, como se costuma dizer no planeta Terra, pisar os calos
de alguém.
Passei a desconfiar de que aquilo era obra de Ebrolo. Sem dúvida examinara o
ambiente em Malkino e descobrira imediatamente que eu não era nenhum nativo.
Quer dizer que os antis não estavam envolvidos naquilo. Sem que ninguém
desconfiasse, meu ex-colega encontrara um meio excelente de me pôr fora de ação.
Provavelmente estava esperando para ver se me atreveria a demonstrar minhas
superfaculdades ertrusas, diante dos antis que assistiam ao espetáculo. Estava brincando
com fogo, mas Ebrolo tinha todos os trunfos. De uma forma ou de outra, eu estaria
liquidado.
Parei à frente da grade, que separava o labirinto subterrâneo da arena. Lá fora a
penúltima luta acabara de terminar.
Os cadáveres foram arrastados para fora da área. O chão revolto foi coberto com
areia fresca vinda das praias.
Ouviu-se o som das fanfarras. A guarda pessoal do Masho marchou diante da
assistência. Akussa deu-me uma palmadinha no ombro. Era uma despedida sem palavras.
Depois disso a grade foi levantada. Saí.
Flanqueado por dez guerreiros suntuosamente trajados, dirigi-me ao camarote do
soberano. Acima de mim erguia-se a estátua de bronze do deus Kulan. Era impossível
abrangê-la totalmente com a vista, pois dominava toda a área de combate. Mostrava um
guerreiro armado com cabeça de um lobo-batráquio.
A multidão começou a aplaudir. Gritos roucos atingiram meu ouvido. Meu nome,
que nas últimas semanas se transformara num símbolo para os salonenses, soava cada vez
mais nítido.
Como sempre, o espetáculo me fascinava. Os ertrusos são lutadores natos, que
nunca fogem do perigo. Quando vi a multidão colorida levantar-se, passei a acreditar que
a luta com o lobo-batráquio fosse menos perigosa do que realmente era. Senti-me
arrebatado pelo entusiasmo da multidão.
Logo que percebi o nervosismo dos nobres, a confiança na vitória tornou-se ainda
mais forte. No segundo planeta do sol Eyciteo acontecia a mesma coisa que em outros
mundos: sempre que o homem do povo manifesta seus sentimentos em altas vozes, a
minoria dominante fica nervosa.
O Masho até condescendeu em erguer-se do seu leito majestoso e estender as mãos.
Ao lado dele estavam sentados dois sacerdotes de Kulan, trajando mantas vermelho-
sangue, feitas de finíssima penugem.
A cor de sua pele era de um marrom leve. Não eram deste mundo, mas nem os
salonenses nem os outros povos haviam percebido isso. Afinal, os sacerdotes de Kulan
não eram verdes como os eysalenses comuns.
Vi os geradores de campos protetores que os verdadeiros governantes de Eysal
usavam abertamente... Traziam os aparelhos pendurados nos cintos largos. Tive certeza
de que, naquele momento, os dois antis preferiram ativar seus campos defensivos e
reforçá-los por meio de suas emanações mentais. Dessa forma se tornavam invulneráveis
diante das armas usadas em Eysal.
Os membros da guarda pararam. Abri os braços. Dobrei o joelho direito e, de olhos
fitos na estátua de Kulan, pronunciei as palavras do ritual, que prefiro não reproduzir
aqui, porque são ridículas e representam uma blasfêmia. Acontece que tinha de adaptar-
me ao uso geral, para não colocar em risco a missão que estava desempenhando.
O Masho concedeu permissão para a luta. Depois disso, ainda tinha de aguardar o
pronunciamento de um anti, que era considerado o servo principal e a mão direita do deus
Kulan.
O nome do sujeito era Mahana-Kul. Utilizava seu poder da maneira peculiar aos
antis. Quando se levantou e sacudiu em minha direção o penacho que trazia na mão, eu
poderia tê-lo matado, se tivesse uma arma energética. Sem dúvida seu campo energético
individual fora regulado para os objetos materialmente estáveis. E a polarização unilateral
fazia com que, naquele momento, o campo defensivo pudesse ser atravessado pelas
radiações energéticas. Infelizmente não tinha nenhuma arma de impulsos. De resto, um
ataque ao anti não me serviria para nada.
— O braço de Kulan será seu, desde que você mereça — gritou o patife em direção
à arena.
Agradeci, batendo com o punho cerrado contra o peito. Além disso tomei a
liberdade de apresentar um pequeno número extra, que os espectadores receberam com
uma manifestação de entusiasmo delirante, enquanto os nobres e os ricos se mostraram
assustados.
Num movimento muito rápido, abri os braços. E, segurando o cinto de cada um dos
guardas que me ladeavam, elevei os dois acima de minha cabeça.
— Dedico esta carne e este sangue a Kulan, e peço-lhe que me conceda estes
guardas como servos, caso não sucumba na luta.
Os guardas debatiam-se furiosamente. Atirei-os ao chão. Ficaram inconscientes.
Aguardei a reação dos antis. Fui a única pessoa que viu Mahana-Kul colocar um
minúsculo radiotransmissor à frente dos lábios. Dali a um segundo ouviu-se uma voz
saída do enorme alto-falante que, é claro, achava-se embutido na boca da divindade. O
anti estava aceitando meu jogo, pois sabia perfeitamente o que o povo esperava de seu
deus.
O rugido era enervante. Devia atemorizar aquela população primitiva. Pelos meus
cálculos, a potência do alto-falante era de duzentos watts. O berreiro saído da boca do
deus justificava tamanho desempenho técnico.
— Ouvi seu pedido, gladiador. Eles serão seus, desde que você subsista diante dos
meus olhos.
Seguiu-se um momento de silêncio. Depois os espectadores voltaram a gritar
furiosamente. Todos os bons desejos me favoreciam. Até mesmo o Masho exibiu um
sorriso bondoso. O anti foi o único que me fitou com uma expressão pensativa. Será que
eu arriscara demais?
O oficial do grupo de guardas aproximou-se e cochichou ao meu ouvido:
— Se você não vencer, minha lança atravessará seu peito.
Não consegui dissimular um sorriso. Provavelmente um dos soldados que eu
acabara de pedir ao deus era amigo do oficial. Minha morte seria o fim do guarda.
Aproveitei imediatamente a chance e cochichei de volta:
— Certo... Para retribuir, você pode espalhar tempero kulkat em pó junto à grade
atrás da qual está o lobo-batráquio. Como de costume, ele passará as patas pelos olhos.
— Vou tentar. Meus bons desejos o acompanham. Preciso de um pouco de tempo.
Atravesse a arena.
O oficial retirou-se apressadamente.
Contornei a arena. As fanfarras voltaram a soar. No mesmo instante passou a reinar
um silêncio absoluto. A própria Natureza parecia prender a respiração. A coisa começava
a ficar séria.
Saltei de volta para a pista de luta e segurei firmemente o escudo. No centro deste
fora montado um punhal de cinqüenta centímetros de comprimento. Segurava a rede com
a mesma mão que prendia o escudo. Uma forte correia prendia o machado ao pulso
direito.
O oficial não conseguiu espalhar o tempero, que era semelhante à pimenta-do-reino.
Atrasou-se em alguns segundos.
“Pronto!”, pensei com a mente fria. “Terei de lutar contra um monstro não
enfraquecido...”
As barras de ferro da grade, que tinham a grossura de um braço humano, foram
levantadas. O lobo-batráquio não se apressou. Já estava ali há alguns anos e sabia
perfeitamente o que esperavam ele.
No início vi apenas o crânio com a boca, que tinha um metro de largura e era
encimada por um par de gigantes ventas. Os olhos eram relativamente pequenos. Jaziam
no fundo de órbitas, protegidas por córneas. Seria extremamente difícil atingi-los.
Nenhum gladiador conseguira realizar a façanha.
O crânio do sáurio era semelhante ao de um sapo terrano, com a diferença de que
tinha pelo menos 4 m de largura e 3m de altura.
O sáurio arrastou lentamente o corpo, como se quisesse sondar a situação. Em
comparação com o crânio, o tronco do animal era bastante fino, mas sempre media seus 3
m de espessura.
O traço mais característico do animal eram as gigantescas pernas traseiras, que
também tinham certa semelhança com as do sapo. Mostravam duas dobras e o monstro as
usava para arremessar o corpo para a frente. Um lobo-batráquio era capaz de percorrer 20
m num salto.
As pernas dianteiras eram muito mais curtas e bem retas. No entanto, teria de prestar
muita atenção às mesmas. As patas eram mais largas que meu peito.
O comprimento do sáurio devia chegar a cerca de 10 m. Aproximou-se como se
fosse um desajeitado veículo blindado. Seus movimentos pareciam pesados, mas isso era
apenas uma ilusão. O andar saltitante resultava das pernas traseiras, feitas para pular. Ai
do lutador que se iludisse sobre a verdadeira capacidade do monstro...
Parei no centro da arena. O lobo-batráquio também parou. Abriu as ventas,
transformando-as em buracos de mais de 50 cm de diâmetro, e farejou o ar. O único som
que emitiu foi um rugido surdo. O lobo-batráquio era um dos animais mais inteligentes
do planeta. Muita gente chegava a afirmar que o animal era capaz de pensar.
Pus-me a refletir. Mas minhas reflexões giravam em torno de Atlan, que devia ter
recebido meu chamado desesperado pelo rádio e dessa forma sabia com quem me
defrontava naquele momento.
Minha arrogância já tinha desaparecido. Parecia enfeitiçado diante do inimigo
implacável, que abriu ligeiramente a boca blindada e mostrou a ponta de sua língua
saltadora. Sabia que era capaz de atirá-la a uma distância de cerca de 5 m. A ponta
endurecida de chitina tinha um canal cheio de veneno, que se esvaziava ao atingir o alvo.
O sáurio voltou a emitir o rugido e deu um salto. Caiu na areia a uns 30 m do lugar
em que me encontrava. Uma nuvem de pó levantou-se. Vi que suas pernas traseiras
voltaram a entesar-se. Teria que desviar-me daquela massa imensa. Por quanto tempo
agüentaria?
Enrijeci o corpo para saltar e constatei que pensava mais no Lorde-Almirante Atlan
que na luta. Era um erro. Não devia permitir que nada distraísse minha atenção.
No momento em que o corpo do sáurio se abaixou ainda mais e o animal fez sair a
ponta da língua, ouvi um estalo no meu receptor de ouvido. A mensagem de Atlan era
formada por três palavras:
— Auxílio chegando. Agüente.
Relatório de Lemy Danger

3
Atlan interrompeu seus pedidos de esmolas e virou a cabeça para ouvir melhor.
Acabara de pousar em seu ombro. O zumbido do micromotor elétrico cessou. O mesmo
movia as duas hélices que giravam em sentido contrário. Todo o conjunto estava preso às
minhas costas. Seu desempenho era satisfatório, se bem que preferisse o equipamento
antigravitacional de jato-propulsão.
— Já está com o novo equipamento, Danger?
— Sim, senhor.
— Pois saia voando. A julgar pela gritaria, a luta com o lobo-batráquio acaba de
começar. Transmiti uma mensagem de três palavras para Kasom. Procure matar o sáurio
por meio de um disparo de radiações que atinja seu cérebro. Evite de toda maneira que
alguém veja a descarga.
Falar era fácil. Como atirar, se ninguém devia perceber? Afinal de contas, uma arma
energética tinha a mania de produzir uma luminosidade por ocasião do disparo.
E as coisas ainda ficaram piores!
— Trate também de evitar que alguém ouça o tiro. Apesar do tamanho reduzido, sua
arma energética é bastante barulhenta. Procure encontrar um meio, Lemy. Confio no
senhor. Do lugar em que me encontro não posso avaliar a situação. Vá embora.
Liguei o aparelho. Minha mão esquerda segurou o manche destinado a mudar a
posição das lâminas. Subi na vertical. A energia da microbateria era suficiente para dez
horas de vôo. Era pouco, ainda mais que em Eysal não existe nenhum ponto de
recarregamento. Se a energia acabasse durante a viagem, não teria outra alternativa senão
caminhar até o abrigo subterrâneo em que estavam guardadas minhas provisões.
O helicóptero individual arrastou-me por cima das altas muralhas. Baixei os olhos
para a arena e vi Melbar Kasom que, naquele momento, estava dando dois saltos
gigantescos para a esquerda a fim de evitar o impacto de uma enorme massa de dentes,
garras e carne.
O lobo-batráquio notou que errara o salto. Caiu na areia com um forte rugido, mas
logo virou o corpo e sua pata procurou atingir o ertruso.
Soltei um grito apavorado.
— Melbar...!
Mais uma vez o ertruso se desviou. Num movimento rapidíssimo atirou o braço para
trás. Um objeto reluzente cruzou o ar e penetrou no flanco blindado do monstro. Vi que
se tratava de um machado estreito e comprido em forma de cunha.
O berro do lobo-batráquio abafou os gritos dos espectadores. Kasom deu uma
demonstração de força. Retirou a lâmina que havia penetrado até o cabo, quebrando um
pedaço do revestimento do animal. Saltou sobre as costas do sáurio, que se sacudiu com
um movimento rápido.
Melbar pulou e saiu correndo. A língua venenosa precipitou-se para fora da boca do
animal e passou a alguns milímetros do ertruso. Esperava ver um dos saltos gigantescos
de Melbar, mas não houve nenhum. Não andava muito mais depressa que um salonense
normal. Em compensação podia desferir seus golpes com a força de um ertruso, que
dificilmente poderia ser comprovada por alguém. Compreendi que Melbar preferia não
brincar com a gravidade do planeta.
Até então duvidara de que o ertruso fosse derrotado na luta, mas comecei a
compreender que, na situação em que se encontrava, estaria perdido. Não conseguiria
agüentar o sáurio por muito tempo.
Um animal menor certamente teria sido morto pelo golpe de machado. O lobo-
batráquio não demonstrou a menor reação. Só se alguém lhe rachasse o crânio e atingisse
o cérebro, sucumbiria.
Melbar correu para afastar-se do muro, cuja proximidade era bastante perigosa. O
sáurio deu um enorme salto atrás dele e foi cair na areia pouco atrás dos pés de Kasom.
— Vá para a esquerda — gritei, sem compreender que meus gritos eram inúteis.
Melbar atirou o corpo para o lado. A língua do animal avançou num golpe e roçou o
escudo. Desviou-se para o lado e passou tão próxima do rosto de Melbar, que executei
uma manobra errada que quase provocou minha queda.
Consegui controlar o vôo pouco acima do solo. Passei ao vôo rápido para a frente e
aproximei-me do monstro.
Tinha certeza absoluta de que ninguém me via. Meu defletor funcionava
perfeitamente. Além disso não poderia ser localizado por meio de instrumentos.
A segunda ordem de Atlan, segundo a qual meu tiro não deveria ser ouvido, poderia
ser cumprida sem que eu contribuísse para isso. O berreiro dos dez mil salonenses era tão
forte que abafaria até mesmo um tiro de canhão.
Ainda desta vez, Kasom conseguiu pôr-se a salvo. Voltou a golpear com o machado.
Atingiu a perna, pouco acima da pata esquerda. O lobo-batráquio estremeceu e recuou
um pouco, dando tempo a Melbar para colocar-se fora do alcance da língua venenosa.
Foi quando cheguei perto da cabeça de Kasom. Bati na parte da armadura que lhe
cobria o ombro, segurei-me numa corrente e gritei a plenos pulmões para o grandalhão:
— Sou eu, Lemy. Assim que o monstro se preparar para o próximo salto, vou atacá-
lo.
Melbar entendeu.
— Pegue as narinas, baixinho — gritou e atirou-se para o lado.
Saí voando e virei a cabeça em direção ao monstro, que parecia refletir. A pata
esquerda descansava na areia tingida de vermelho.
Comecei a desconfiar de que Melbar não resistiria à próxima investida. Se o lobo-
batráquio era um animal semi-inteligente, aquele exemplar mudaria de tática. Kasom, por
ser muito forte, fazia com que seus golpes desabassem com a velocidade de um raio. O
instinto do animal deveria ter compreendido isso. Eu teria de agir imediatamente, pois, do
contrário, não poderia fazer mais nada por Kasom.
Voei em direção ao lobo-batráquio, desenvolvendo a velocidade máxima. Quando
cheguei acima de sua cabeça, desacelerei e entrei mergulhando em direção às narinas do
sáurio, que naquele instante deu um salto.
Fui atingido de raspão pela parte superior do corpo do animal e atirado para o alto.
Perdi o controle do vôo. Dali a um segundo, caí na areia, afundei e mal consegui tirar a
cabeça para não morrer sufocado.
Perdi a paciência. Ameacei o sáurio com um gesto furioso, peguei a arma e voltei a
levantar vôo.
Cego de raiva, desci sobre o lobo-batráquio, que se aproximava de Kasom aos
saltinhos, para encurralá-lo de vez.
Avancei pelo ar, gritando tamanhas ameaças que o monstro provavelmente teria
recuado de medo, se o berreiro dos espectadores não abafasse minhas palavras.
Pousei de pernas para a frente sobre a córnea, entre os olhos e as narinas. Desliguei
os rotores, arranquei o punhal e enfiei-o com tremenda fúria num ponto mole das narinas.
O lobo-batráquio soltou um grunhido.
Quando as narinas do gigante se abriram, dei uma pisada no cabo do punhal.
Pretendia, agora, inclinar-me para a frente, de arma em punho, a fim de atirar no
cérebro, fazendo o raio passar pelos condutos respiratórios, porém o animal malvado
aspirou fortemente o ar. Fui atingido pela força de sucção...
Antes que compreendesse direito o que estava acontecendo, vi-me a caminho dos
pulmões desse animal grosseiro, que provavelmente acreditava ser capaz de inspirar um
especialista da USO!
Vi-me cercado por mucosas que exalavam um cheiro repugnante. Uma réstia de luz
provava que eu não penetrara mais de 60 cm nas narinas do sáurio.
Vi-me encurralado de todos os lados. Um borbulhar e chiar mostravam que o
monstro lutava contra a vontade de espirrar. Comecei a sentir certa falta de ar. Apesar
disso liguei meus rotores. As lâminas cortantes de metal leve dilaceraram as mucosas do
nariz do monstro.
Ouviu-se um terrível rugido. Mas, no estado de justa indignação em que me
encontrava, isso não me impunha o menor respeito.
Pus a arma de impulsos acima da minha cabeça e puxei o gatilho. Percebi o rugido
da arma energética num estado de semiconsciência. Os fluxos energéticos ultraluminosos
romperam as membranas e coberturas ósseas, para “transmitir” sua energia ao cérebro
que ficava atrás delas.
Ainda estava atirando, quando o animal moribundo me expeliu com tamanha
violência, que o dispositivo de vôo e o defletor foram arrancados das minhas costas.
Quando recuperei os sentidos, depois do impacto no solo, e a visão começou a
clarear, vi que tinha perdido todo o equipamento. Só a arma energética continuava na
minha mão.
Enterrei-me apressadamente na areia, pus a cabeça para fora e fitei o fanfarrão do
Melbar Kasom, que estava sentado sobre a nuca do animal, despedaçando-lhe o crânio
com o machado. O lobo-batráquio fazia os últimos movimentos convulsivos.
Evidentemente a única pessoa a que o ertruso devia agradecer por isso era eu.
Recuperei o auto-respeito e pus-me a limpar minhas vestes. Nenhum dos
espectadores que vibravam de entusiasmo notou minha presença. Aos olhos daquela
gente ávida de sensações, provavelmente não passava de uma escama perdida pelo lobo-
batráquio.
Kasom continuou a golpear o crânio, até que o monstro ficasse completamente
imóvel. Sob o aspecto tático, era uma medida acertada. Provavelmente Melbar queria
remover os sinais de queimadura produzidos por minha arma.
Corri para junto de algumas pedras, que me davam certo abrigo. Dali podia observar
tudo. O muro alto, atrás do qual se localizavam os camarotes dos nobres, ficava a pouco
menos de 30 m. Notei que os homens que os ocupavam estavam perplexos e fascinados.
Melbar soltou gritos de vitória, que quase podiam comparar-se com os berros saídos do
alto-falante instalado na boca do deus Kulan.
Minha hombridade não permitiria que continuasse escondido. Um homem que
conseguiu derrotar o lobo-batráquio não tinha necessidade de esconder-se.
Empertiguei-me e comecei a cruzar o “deserto”. Peço encarecidamente ao leitor que
não sorria diante da expressão ou veja nela um motivo para fazer observações irônicas.
Para mim, a arena era um deserto de areia.
Fiquei sentido ao constatar que ninguém me via. Cheguei sem problemas ao lugar
em que estava Kasom, que naturalmente se encontrava de pé sobre o cadáver do monstro,
onde desempenhava seu papel de herói. Achei esse procedimento bastante condenável.
Escalei o animal, saltei sobre o pé de Kasom e lhe dei uma pisada fulminante sobre
o dedão.
O montão de músculos nem chegou a estremecer, mas me viu. Quando os guardas
pessoais se aproximaram para verificar se o sáurio realmente havia morrido, o ertruso
abaixou-se e colocou-me na palma da mão. Sem dizer uma palavra, o moleque enfiou-me
sob a couraça do peito, onde tive de segurar-me numa correia para não precipitar-me nas
profundezas.
Belisquei a barriga de Kasom, mas acabei por resignar-me. No momento eu não
podia fazer nada com o ertruso. Ao que parecia, notara que não estava mais em condições
de tornar-me invisível. Dali surgia um problema. Não sabia como faria para sair da arena.
No meu depósito havia outros aparelhos voadores. Mas, quando pensava na marcha
prolongada que teria de realizar antes de chegar lá, desanimava. Alguém teria de levar-
me.
Melbar passou muito tempo deliciando-se com seu triunfo. Enquanto isso durava,
subi pelo forro da couraça e fiz a cabeça passar pela abertura existente entre o pescoço de
Kasom e a parte superior da couraça.
O pomo-de-adão de Melbar tremia acima de minha cabeça. Toda vez que o ertruso
soltava um berro, tinha de tapar os ouvidos e procurar um apoio.
A estátua do deus Kulan voltou a falar, e o soberano também gritou algumas
palavras em direção à arena. Parecia que Kasom estava sendo levado à saída sob os
aplausos da multidão.
Finalmente chegou o momento em que meu subordinado julgou necessário informar
o superior sobre a situação. Inclinou a cabeça e disse em voz baixa:
— Veja o terceiro camarote à direita do leito do Masho. O velho de rosto magro é
Voszogam, meu senhor. Ao lado dele está sentado um jovem salonense com uma manta
de penas verde-azuladas. Seu cabelo é comprido e está preso por correntes junto às
orelhas. Está vendo?
Melbar fez um movimento discreto do corpo. Voszogam e o jovem estavam
conversando. Pareciam nervosos. O velho deu uma risada, e o jovem parecia contrariado.
— Reconheci — disse em voz alta, para que o gigante ertruso pudesse entender-me.
— Quem é aquele homem?
— Tenho noventa por cento de certeza de que é o homem que estamos procurando.
Está em Malkino há cerca de trinta dias. Pelo que se diz, veio da segunda cidade do
Império Salonense e possui muitos navios de carga.
— É Ebrolo? — perguntei, muito curioso.
Num movimento instintivo pus a mão na arma.
— É o que suponho. Ainda não sei qual é o nome que está usando, mas acho que
não será difícil descobrir. Você terá de ir imediatamente para onde está Atlan.
— Como? Minhas hélices estão jogadas na areia.
— Eu as vi. Pisei nelas e transformei-as em pó. Estavam inutilizadas. Ninguém mais
conseguirá identificá-las. Encontre uma maneira de ir para junto do chefe. Conseguiu
salvar seu rádio?
— Está no meu pulso. Mas não devo usá-lo.
— Pois eu usei o meu quando comecei a golpear o lobo-batráquio. Atlan já foi
informado. Precisa de você. No momento não posso levá-lo para fora da arena.
— Conseguirá sair mais tarde?
— Dentro de algumas horas. A vitória alcançada contra o monstro modificou
completamente a situação a meu favor. Solicitarei uma licença. Precisamos prender
Ebrolo.
Encolhi a cabeça. Um salonense dirigiu-se a Kasom para felicitá-lo. Seu nome era
Akussa. Só mais tarde fiquei sabendo que era o chefe dos gladiadores independentes. Os
lutadores escravos só lhe estavam submetidos nos dias de luta.
— Vou tomar um banho — disse Kasom.
Era um sinal de que deveria abandonar meu esconderijo.
Dali a pouco, Melbar tirou a armadura. Saí da couraça e corri para junto de uma tina
de madeira, atrás da qual me abriguei. Na sala havia várias banheiras embutidas no chão.
Os escravos encheram uma delas com água quente.
O ertruso deixou que o servissem como se fosse um dos poderosos desse mundo.
Dali a pouco aconteceu aquilo que eu esperara. Seria de admirar que o senhor de Kasom
não aparecesse nos calabouços para felicitar o melhor dos seus gladiadores...
O velho salonense entrou!
Dois guardas armados deram pancadas nos escravos que não se atiraram logo no
chão. Aqueles homens pareciam não compreender que não tinham nenhum direito de
bater em outros seres pensantes. Tive de fazer um grande esforço para não ceder ao
desejo de aplicar um castigo exemplar. O comportamento desses malfeitores era incrível.
Melbar contemplou a cena com uma expressão que quase chegava a ser de tédio e
cumprimentou seu senhor.
Voszogam acomodou-se numa poltrona trazida às pressas e sorriu na direção da
banheira.
— Foi uma boa luta, Akwor. Nosso contrato vencerá dentro de alguns dias. Quer
ficar comigo?
O velho que, segundo se dizia, era um grande chefe guerreiro, ainda estava sorrindo.
Kasom agiu com cautela. A pergunta podia ser mais importante do que nos convinha.
— Ficarei com meu senhor — disse a voz retumbante de Kasom. — Só peço que me
dê liberdade de movimentos por uma ectada.
— Por quê?
Kasom sorriu e fez um gesto cujo sentido não compreendi. Os dois guardas riram, e
o sorriso de Voszogam tornou-se menos impessoal.
— Compreendo. Os prazeres de Malkino o atraem. Concedo-lhe liberdade de
movimentos, mas é bom que não se esqueça de que fico à sua espera.
— Voltarei, meu senhor. Não há nada que me atraia para as matas em que vive
minha tribo.
— Está bem. Acho que você está interessado em saber por que permiti esta luta.
— Acho que esse ponto deveria ser esclarecido ao menos entre nós, senhor —
respondeu Kasom, com a maior calma.
Até parecia que Voszogam não agira criminosamente, mas apenas praticara um ato
decente.
— O nobre chamado Magontin, que é um poderoso dono de navios e comerciante de
Oszala, manifestou dúvida quanto às suas qualidades. Queria vê-lo junto à boca de um
lobo-batráquio.
— Será que machuquei o pescoço desse homem, senhor?
Voszogam hesitou um pouco.
— Não acredito. Acontece que fiz uma aposta com o Masho, que também tem uma
opinião muito boa a seu respeito. Por isso não pude deixar de concordar.
Acenei com a cabeça. Estava zangado. Então as coisas se haviam passado dessa
forma! O estranho nobre e armador de navios, da segunda cidade portuária salonense,
usara o Masho para colocar Voszogam diante de uma série de fatos consumados!
O chefe guerreiro trocou mais algumas palavras com seu gladiador e mandou que
chamassem sua liteira.
Quatro escravos entraram rastejando na sala de banhos. Os guardas ajudaram seu
senhor a subir ao leito coberto por um quebra-sol. Kasom pigarreou. Não haveria
necessidade disso, pois eu já havia compreendido que aquela liteira representava uma boa
oportunidade de deixar a arena rapidamente e sem correr maiores riscos.
Kasom fez uma observação para desviar a atenção dos guardas. Saí correndo de trás
da tina e saltei para cima do estofamento. Imediatamente me escondi embaixo do mesmo.
Dali a pouco Voszogam deitou. Tive de rastejar para a cabeceira, por baixo da
almofada, pois do contrário seria esmagado. Kasom viu minha mão que acenava para ele.
— Daqui a três horas a cidade será minha — disse, e eu o compreendi.
Não me interessei em observar os detalhes do caminho que levava através dos
corredores largos do estádio. Os guardas abriam alas. Consegui sair do labirinto sem que
ninguém observasse minha presença.
Antes que passássemos pelo portão principal, percebi um monstro. Afastei
cuidadosamente um pedaço da fronha do travesseiro e dei uma olhada. Vi um gigantesco
pássaro sobre o qual estava montado um homem. Tratava-se do salonense que, segundo
supunha Kasom, era Ebrolo.
Gravei o rosto do homem. Provavelmente o malfeitor fizera tudo para modificar sua
máscara de serviço, para que não pudesse ser reconhecido com base em retratos.
— Meus cumprimentos, Voszogam! — disse o desconhecido num dialeto que ainda
não havia ouvido.
Provavelmente era o linguajar dos habitantes do litoral.
— Meus cumprimentos, Magontin — respondeu o chefe guerreiro. — Mandar-lhe-
ei uma garra do lobo-batráquio. As lembranças de uma aposta perdida sempre são muito
importantes, pois levam-nos a ser cautelosos.
O homem que cavalgava o pássaro soltou uma gargalhada. Desempenhava muito
bem o papel de perdedor.
— O que decidiu seu gladiador? Você o cederá a mim?
Voszogam soltou um suspiro.
— Só os deuses sabem o que prende estes selvagens à minha pessoa. Para mim, essa
simpatia é algo de estranho.
— Então ele não quer?
— Prefiro dizer que dá mais valor à prudência que à cortesia. Para ser justo, tive de
informá-lo de que a luta não foi exclusivamente um ato de minha vontade. Para mim seu
desejo é uma ordem, nobre Magontin...
O homem que montava o pássaro fez um gesto de tristeza e despediu-se. Soltou um
grito estridente para pôr o pássaro a correr. Já havíamos saído do estádio. Atlan estava
apoiado num grosso bastão de madeira tosca. Encostado ao muro do estádio, soltava seus
gritos tristes.
— Umbarth, o sopra-fogo, servo fiel do grande Voszogam de Llahakal, pede uma
dádiva — lamentou-se o chefe. — Nobres senhores, não se esqueçam de Umbarth, o
sopra-fogo, que sacrificou a vista pelo Império.
Voszogam ouviu estas palavras. Fez a liteira passar perto do mendigo e atirou uma
moeda na panela.
Aproveitei a oportunidade e saltei de um metro de altura. O impacto foi muito forte,
mas é sabido que os siganeses agüentam muito mais do que seu físico faria supor.
Escondi-me atrás da perna de Atlan e esperei que ele me levantasse com um
movimento rapidíssimo e me colocasse na sacola que trazia a tiracolo. Uma vez lá, gritei
o mais alto que pude:
— Cuidado, sir. Parece que esse sujeito que está montando o pássaro é Ebrolo.
— Já foi filmado — cochichou o lorde-almirante.
Estas palavras me deixaram perplexo, embora para um especialista da USO não
devesse ser nenhum segredo, que Atlan possuía um excelente instinto para tudo quanto
era perigo. Durante sua longa vida, acumulara um tesouro de experiências que nenhuma
outra criatura inteligente da Galáxia poderia possuir.
Só depois de algum tempo, tive a idéia de examinar melhor o bastão tosco de Atlan.
Pus a cabeça para fora do saco malcheiroso, e só então comecei a imaginar o que os
especialistas siganeses haviam instalado no interior daquele pedaço de pau! Devia ser
muito mais que uma simples filmadora. Era provável que, se necessário, Atlan pudesse
desenvolver a força combativa de cinco exércitos eysalenses. Essa idéia me consolava.
— Perdi meu equipamento de vôo e meu defletor, sir — anunciei.
Atlan esperou que as multidões saídas do estádio se espalhassem. Os numerosos
mendigos afastaram-se mais ou menos depressa.
Atlan esvaziou a panela para dentro do saco e começou a andar às apalpadelas.
— Vamos ao lugar em que está instalada minha base — observou em voz baixa. —
Quando virá Kasom?
— Pelo que diz, em três horas.
— Muito bem. Você teve um excelente desempenho, Lemy. Muito obrigado. O
senhor nos salvou de um fracasso doloroso.
Fiquei vermelho de tão alegre e embaraçado pelas palavras de elogio do chefe.
Ainda bem que ele não podia ver. Mas logo me assustei.
Teria que contar ao chefe que o animal me havia inalado? Não seria suficiente dizer
que atirei pelas narinas, motivo por que a descarga não foi vista por ninguém, conforme
era seu desejo?
Fiquei zangado comigo mesmo. Meu orgulho de homem não permitia que
confessasse em que situação embaraçosa e indigna eu me vira. Mas, por outro lado, não
deveria esquecer que o lobo-batráquio era uma criatura ignorante, que não compreendera
a ofensa praticada contra minha pessoa.
No fim, minha educação levou a melhor.
Resolvi contar tudo. Um siganês não mente. No entanto, pretendia pedir ao
venerável chefe que não revelasse minha desdita àquele ertruso convencido. Imagine o
leitor como Kasom se teria aproveitado disso. Nem era bom pensar.
Atlan caminhava com uma rapidez surpreendente. Parecia saber até onde podia ir
sem pôr em perigo a credibilidade de seu disfarce.
Passou por vielas angulosas da cidade velha, que se estendia junto à margem de um
grande rio, que ficava atrás do estádio. Era ali que viviam os pobres de Malkino.
Geralmente as casas eram baixas e tinham janelas muito pequenas. As ruas estreitas
estavam cobertas de imundícies de toda espécie. Levamos uma hora para chegar ao
destino. Tratava-se de uma casa maior que as outras, cercada por um muro alto. A casa
ficava um pouco afastada da rua.
Ouvi um martelar e tilintar. Mais uma vez pus a cabeça para fora do saco. Um
escravo com avental de couro abriu o portão de ferro. Atrás dele havia um pátio, onde
dois homens estavam aquecendo a ponta de uma lança para torná-la incandescente.
Compreendi que Atlan escolhera uma fábrica de armas para servir-lhe de base de
operações. Andou às apalpadelas pelo pátio e gritou um cumprimento para os homens.
— A féria foi boa? — perguntou um salonense idoso.
Atlan riu e brandiu o bastão.
— O nobre Voszogam atirou uma importância considerável na minha panela —
respondeu. — Ainda não sei se já percebeu que nessa oportunidade ficou sem a bolsa de
dinheiro, o que naturalmente é um acaso bastante lamentável. Nos próximos dias não
sairei de casa. Metade da importância arrecadada é sua, Tromur.
Fiquei apavorado. Será que o lorde-almirante realmente se rebaixara a ponto de
praticar um furto?
Atlan caminhou em direção a um anexo da casa, tateou para encontrar a fechadura e
abriu a porta. Quando ninguém mais podia ouvir-nos, perguntei em tom hesitante pela
origem do saco de dinheiro.
O chefe soltou uma risadinha.
— Ora, meu amiguinho! Enquanto estiver em Eysal, você deve abandonar os
padrões éticos siganeses. É claro que peguei o saco de dinheiro. Preciso reabilitar-me
diante do fabricante de armas. O povo de Eysal acha que aliviar os ricos de seu dinheiro é
um esporte.
— Seja o que o senhor quiser, sir — respondi, desolado. — Posso sair da sacola?
Sinto falta de ar.
Atlan colocou-me no chão. Procurei um lugar em que a sujeira não era tão grossa.
Depois disso tive de espiar pelas frestas das portas, para ver se vinha alguém.
Mais tarde o fabricante de armas entrou, cobrou sua participação e garantiu ao
“velho companheiro de lutas” que poderia morar em sua casa o tempo que quisesse.
Finalmente ficamos a sós. Atlan afastou sua cama e abriu uma porta-alçapão. Parte
do equipamento especial estava guardada no subterrâneo.
— Ainda hoje Tromur remeterá armas reparadas e afiadas ao posto de vigilância de
Timo. É a fortificação que protege a via de ataque do oeste. Você disse que instalou seu
abrigo subterrâneo junto à bomba de água? Muito bem. Vá na carroça. Passará pelo ponto
de aguada. Quando chegar lá, salte, pegue novo equipamento e volte. Espero-o
juntamente com Kasom. Trouxe alguma novidade do quartel-general?
Não tinha muita coisa a contar. Relatei meu pouso no planeta e confessei ter sido
“inalado” pelo sáurio. Um tanto assustado, observei o rosto de Atlan, mas esse arcônida
formidável não fez pouco de mim. Disse em tom objetivo:
— Excelente, major. Não poderia ter encontrado uma posição mais discreta para
fazer o disparo.
Senti-me aliviado. Ajudei Atlan a retirar o filme já revelado da câmera. A mesma
fora instalada na protuberância superior do bastão.
As fotografias coloridas eram bastante nítidas e apresentavam-se em três dimensões.
Enfiamo-las no rastreador eletrônico de um aparelho de reconhecimento ajustado aos
dados do Tenente Ebrolo.
Dali a cinco minutos tivemos certeza de que Ebrolo e o nobre Magontin eram a
mesma pessoa.
— Pois então!— disse o lorde-almirante, em tom tranqüilo e enfático.
Sua voz me fez sentir um calafrio.
Antes de passar sorrateiramente pelo pátio e subir para a carroça que estava de
partida, Atlan deu-me mais algumas instruções. Ainda não sabia se diante da nova
situação seria recomendável abandonar a base que instalara na casa do fabricante de
armas.
— Caso não esteja mais aqui quando você voltar, vá ao porto. O Ogolam, um navio
a vela de dois mastros, pertence a mim. Apresente-se a bordo. Sou considerado o
comandante e proprietário desse navio de cabotagem. Meu nome é Fennetra.
Espantei-me de que o chefe já tivesse feito tanta coisa desde que chegara a Eysal. A
bordo do Ogolam havia um grande depósito com armas, aparelhos de comunicação e
equipamento especial do tipo criado para a defesa contra os antis.
O fabricante de armas partiu pouco antes do pôr do sol. Ouviu-o reclamar em altos
brados contra a exigência de percorrer de noite aqueles caminhos inseguros. Para mim
isso era indiferente. Procurei um lugarzinho e adormeci imediatamente. Sem dúvida
acordaria por ocasião do controle realizado junto às muralhas da fortaleza. Isso não me
preocupava.
Sonhei com um monstro que cuspia fogo e queria devorar-me. O sonho deixou-me
tão agitado que acordei com meus próprios gritos de guerra.
Assustado, procurei ouvir o que estava acontecendo lá fora. A carroça estava
passando ruidosamente por cima de uma ponte levadiça de madeira. O controle foi
bastante superficial. Não tive de esconder-me.
Só dali a uma hora, a região começou a parecer familiar. Eyciteo II não possuía lua.
Em compensação, a luminosidade do anel de hidrogênio que envolvia o centro da Galáxia
era tão forte que consegui reconhecer toda a vegetação.
Quando chegamos à bomba, saltei da carroça. Tirei a arma de impulsos e olhei em
torno, à procura de animais perigosos. Uma lagarta quis engolir-me e uma ave noturna
desceu com um grito estridente, o que me obrigou a procurar abrigo embaixo das tábuas
podres da tina de água.
Para uma pessoa pequena como eu, a vida é um martírio. Esperei uns dez minutos e
perdi a paciência. Se a ave não quisesse ir embora por bem, teria que ser obrigada a isso.
Atirei uma pedra em sua cabeça, urrei que nem um tigre terrano e exibi minha
vigorosa dentadura. Não foi preciso mais nada!
Cheguei são e salvo ao meu abrigo subterrâneo, onde finalmente voltei a ter
consciência de que era um homem civilizado.
Comi uma conserva fresca, engoli dois comprimidos de alimentos concentrados e
procurei reunir meu equipamento. Atlan dera ordens terminantes para que não utilizasse
qualquer dispositivo antigravitacional. Por isso tinha de contentar-me novamente com as
pás giratórias presas às minhas costas.
Desta vez preferi usar um microrreator para garantir o suprimento de energia. Dessa
forma não dependeria da potência reduzida da bateria. Olhei para o relógio e constatei
que já tinha perdido muito tempo. Os animais que puxaram a carroça carregada de armas
não eram muito rápidos.
Relatório do Lorde-Almirante Atlan

4
O rastreador gravitacional voltou a zumbir. Interrompi meu trabalho. Era a quarta
localização de quinta dimensão que recebera no espaço de uma hora.
Mais rapidamente do que pretendia, arranquei do rosto o tecido vivo artificial e
esfreguei o solvente no mesmo. Os restos da máscara desmancharam-se e puderam ser
afastados rapidamente. Meu papel de mendigo chegara ao fim.
Encontrava-me no compartimento de carga do Ogolam. Adquirira o navio pouco
depois de ter chegado a Eysal. Os seis tripulantes estavam em terra há dois dias. Ninguém
me perturbaria.
O zumbido do rastreador deixou-me cada vez mais preocupado. Vesti uma roupa de
marinheiro e amarrei o cinto com a espada em torno do casaco que chegava até o joelho.
Olhei atentamente meu reflexo no espelho feito de chapa de cobre polida.
Então Atlan, o antigo imperador dos arcônidas, se transformara naquilo que estava à
minha frente: um marujo de pele verde, coberto de cicatrizes, que trabalhava num mundo
bárbaro, colonizado há milênios por meus antepassados.
As batidas do ativador celular fizeram com que me lembrasse de que não dormia há
vinte e quatro horas. O aparelho trabalhava mais intensamente que de costume, para
estimular meu metabolismo celular.
Os últimos dias foram muito cansativos, mas afinal havíamos encontrado Ebrolo.
Arrependi-me amargamente de ter acolhido um anti na USO e lhe ter dispensado o
treinamento da Academia. Os baalols, que eram descendentes dos acônidas atingidos por
um processo de mutação, não mereciam confiança. Estava na hora de tomar outras
decisões, em conjunto com Perry Rhodan.
A lembrança do terrano, que se encontrava em seu mundo, de onde planejava as
operações de busca dos ativadores celulares restantes, fez com que voltasse a pensar na
minha tarefa. Seria inútil fomentar as chances perdidas e entreter-me com reflexões
políticas relativas aos antis, enquanto Ebrolo não fosse preso.
Nunca deveria ter confiado uma missão a esse homem, nunca lhe deveria ter dado a
incumbência de ajudar uma mutante em dificuldades...
Provavelmente Ebrolo teria falhado, mesmo que Anne Sloane não possuísse um dos
vinte e cinco ativadores celulares que o Ser fictício de Peregrino havia espalhado pelos
mundos da Via Láctea.
Rhodan e eu não iríamos correr atrás desses aparelhos, pois tínhamos outros
problemas. Os povos dos sistemas conhecidos estavam em efervescência. As medidas
políticas de Rhodan haviam restabelecido a ordem por algum tempo, mas já estava
acontecendo aquilo que eu esperara.
Os terranos eram competentes, previdentes e, se necessário, sabiam tomar medidas
duras, quando não viam outra saída. A sugestão dirigida a Perry, de extinguir os eternos
focos de desordem segundo o modelo dos conquistadores arcônidas, não encontrara boa
acolhida. No entanto, continuava convencido de que o administrador geral não demoraria
a compreender que os habitantes dos mundos coloniais, que haviam adquirido a
autonomia, compreendiam muito melhor a linguagem dos canhões energéticos que a dos
diplomatas terranos.
Vez por outra perguntava a mim mesmo, bastante preocupado, se agira
acertadamente ao abdicar para entregar a Rhodan o governo de todo o Império. Era um
estadista e estrategista muito competente, mas o fato de que ultimamente se deixava
dominar por um espírito humanitário cada vez mais exagerado preocupava-me bastante.
Dessa forma não seria possível conquistar e manter um império estelar. Meus
colaboradores ressaltaram que Rhodan estava passando por uma crise passageira.
Procurava resistir à voz da inteligência, que lhe dizia constantemente que, pelo menos
uma vez, deveria atirar o poderio das frotas do Império Unido nos pratos da balança com
tamanha força, que alcançasse pelo menos uma pausa para respirar.
Eu mesmo tomara todas as providências para, se necessário, poder utilizar todos os
recursos da USO, uma organização criada por mim. Rhodan não compreendia muito bem
para que fim eu usava os bilhões tirados do tesouro do Império de Árcon.
Meus estaleiros fabricavam diariamente naves espaciais dos tipos mais modernos.
Velhas espaçonaves arcônidas, equipadas com os antiquados propulsores à base de
transição, que estavam reduzidas a sucata, saíam dos portos espaciais com os propulsores
lineares e um armamento que só costumava ser encontrado nas naves dos pos-bis.
Renunciara ao meu Império a favor dos terranos, por acreditar que estes seriam os
herdeiros naturais de meu povo, que perdera toda vitalidade. Ainda continuava a
acreditar, mas não conseguia livrar-me da impressão de que um belo dia teria de voltar a
intervir pessoalmente nos acontecimentos, a fim de reforçar a espinha dorsal dos
humanos. Foi o que sempre fiz durante milhares de anos. Para mim não era nenhuma
novidade.
Foi justamente numa época de tensões internas como esta que um dos meus homens
sofreu um deslize psicológico. Estava com as mãos atadas, por causa da política do
Império. Não poderia arriscar-me a lançar um ataque aberto contra o mundo bárbaro
situado na periferia do setor conhecido da Via Láctea, a fim de prender Ebrolo.
As atividades dos baalols, por aqui desenvolvidas, ainda não eram bastante
conhecidas para que pudesse transformá-las num caso a ser oficialmente tratado pela
USO. Por isso tive de realizar uma ação de comando com os dois elementos mais
competentes de minha equipe de especialistas. E esta ação poderia custar-me o pescoço.
Os mutantes de Rhodan haviam fracassado. Ultimamente seus fracassos tornavam-
se cada vez mais freqüentes, porque o inimigo havia aprendido alguma coisa e sua área
de atuação se tornara mais ampla. Até mesmo Reginald Bell, o defensor mais apaixonado
da atividade dos mutantes, acabou reconhecendo que os poucos homens e mulheres que
compunham o respectivo grupo não poderiam estar em toda parte ao mesmo tempo.
Só as expedições de minhas naves exploradoras exigiriam três a quatro mil mutantes
dotados das mais variadas faculdades parapsicológicas, se quisesse usá-los para controlar
todos os vôos.
A situação político-militar do ano 2.326 exigia que as pessoas dotadas de faculdades
parapsicológicas permanecessem num lugar do qual pudessem ser enviadas aos centros
dos acontecimentos. Acontece que o número dos focos de perigo era maior que o dos
mutantes.
Estava na hora de Rhodan reconhecer que, tal qual meus antepassados, teria de
operar com homens e armas normais, para não pôr em risco os êxitos já alcançados. Os
mutantes já não eram nenhuma panacéia, embora não se pudesse deixar de reconhecer
que a construção do Império Solar foi devida principalmente aos psi.
Tirei os dados da fenda do processador e examinei-os.
Os impulsos gravitacionais que haviam sido registrados vinham de objetos
voadores. Em todos os casos, a intensidade era inferior a oitenta mil merobins. Tratava-se
de um unidade arcônida, destinada à medição da intensidade dos campos da quinta
dimensão.
A freqüência com que apareciam as radiações provava que um grupo de seres,
tecnicamente bastante evoluídos, estava usando pequenas máquinas voadoras equipadas
com neutralizadores gravitacionais. O que significa isso? Será que alguém havia notado a
presença de Ebrolo? Ou será que Melbar Kasom se traíra?
Saí do compartimento de carga, passei pela escotilha e subi ao convés. Olhei em
torno. O Ogolam era um barco a vela. Estava ancorado num braço de mar, num velho
porto. Dizia a todo mundo que estava aguardando uma oportunidade de fazer um reparo
barato do cordame. Recusara as ofertas feitas pelos estaleiros, a fim de ter um motivo
para continuar nesse lugar.
Mais à direita ficavam as fortificações da nova bacia do porto. Era onde atracavam
os grandes veleiros. Um deles pertencia a Ebrolo. Ao que parecia, este tivera o cuidado de
esconder seu equipamento USO em diversos lugares.
Descobrira o navio de três mastros por meio de localização energética, antes mesmo
que meu rastreador energético registrasse a presença das inquietantes ondas
gravitacionais.
Ao que parecia, a vitória de Melbar Kasom na luta contra o lobo-batráquio colocara
o antigo especialista da USO em estado de alarma. Quando resolvi abandonar minha base
na fábrica de armas, que não servia para mais nada, segui Ebrolo e encontrei-o na casa de
hóspedes do nobre Voszogam. Antes que resolvesse se devia ou não atacar o anti sozinho,
este se pôs a salvo, dirigindo-se à mata virgem numa máquina voadora e procurando
apagar as pistas.
Esvaziei calmamente meu depósito, deixei um defletor para o Tenente Kasom perto
do estádio e dirigi-me ao Ogolam. Conforme esperara, Ebrolo apareceu no porto em que
deixara seu navio.
Meus vôos de reconhecimento foram bem-sucedidos. Já não havia a menor dúvida
de que Ebrolo deixara, nesse barco a vela, uma parte considerável de seu equipamento
especial.
Restava saber se acreditava não ter sido descoberto e se sentisse numa segurança
relativa, ou se já estivesse preparando a mudança do depósito instalado a bordo do
veleiro. Por enquanto não havia constatado nenhuma atividade de veículos
transportadores.
Se Ebrolo fosse um homem igual a qualquer outro, sua prisão não representaria
nenhum problema. Voltei a chamar-me de idiota por ter oferecido justamente a um
indivíduo bem-dotado pela natureza, como o anti, a possibilidade de aperfeiçoar seus
dons e conferir-lhe um grau de desempenho que nos causava grandes dificuldades.
Subi ao castelo de popa e movi lentamente o leme, por sinal muito simples. Olhei
para o cais. No momento não havia ninguém por lá.
Mais ao leste soou a trombeta de uma embarcação de patrulhamento do porto. Os
habitantes do Império Salonense sempre estavam preparados para um ataque. As tribos
bárbaras das florestas e dos planaltos do oeste eram inimigos que não podiam ser
subestimados.
Um sopra-fogo iluminou as muralhas das fortificações que protegiam a cidade. A luz
vermelha rompeu a escuridão. Um animal soltou um grito. Ouvi vozes confusas. As
tropas de vigilância de Malkino nunca dormiam... Esperava-se uma revolta dos
zelutenses, um povo muito belicoso, que descobrira recentemente o segredo dos canhões
de óleo volátil.
Passei a olhar em direção ao céu estrelado desse mundo estranho. Lá em cima, uma
esquadra de guerra da USO mantinha-se em posição de espera a alguns meses-luz do sol
verde. Ainda não poderia arriscar-me a chamar minhas naves. Se os sacerdotes de Baalol
conseguissem provar que já se encontravam em Eyciteo II há alguns séculos, nem se
poderia cogitar de uma intervenção nos assuntos internos de uma população planetária.
Isso nunca poderia representar um caso para a USO.
“Ataque de qualquer maneira!”, disse meu cérebro suplementar. “Sempre se
encontra um motivo.”
Sem querer, franzi a testa. O setor lógico de minha mente, ativado há alguns
milênios, também se rebelava contra a política muito macia do Império. Até parecia que
os terranos estavam ficando assustados com a própria coragem.
O cordame do navio rangeu ao vento. Apesar disso ouvi o ruído que surgia sempre
que o especialista Lemy Danger pousava em algum objeto, com as pernas estendidas para
a frente. Quem o conhecesse, sabia o que significava esse clique.
Afastei-me da amurada e esforcei-me para não sorrir. Aquele homem de 22 cm
possuía um código de princípios que não devia ser violado. Aliás, os siganeses eram um
povinho esquisito. Podia dar-me por feliz por ter angariado a simpatia desses homens
adaptados ao ambiente.
Entre os terranos normais, o aparecimento de Lemy Danger costumava provocar
uma tempestade de gargalhadas. Quanto a mim, achava necessário não ferir o orgulho
dessa gente pequena e sim dar-lhe o tratamento que mereciam. Não tenho a menor dúvida
em confessar que nunca encontrei criaturas tão honradas e sérias como os homens e
mulheres de Siga.
— Lemy, viu Melbar Kasom? — perguntei em voz baixa.
Quando ouvi o suspiro de surpresa, ri interiormente.
— Oh, sir, o senhor me ouviu?
A voz de Lemy parecia triste. Por si já era uma voz fina e difícil de entender. O tom
em que estava falando revelava que mais uma vez o especialista siganês se sentia
deprimido porque eu percebera sua presença.
Procurei acalmá-lo.
— Não, Lemy, não o ouvi. Acontece que pelos meus cálculos você deveria chegar a
esta hora.
O baixinho pigarreou. Descobrira meu estratagema.
— Muito obrigado, sir. O senhor é muito bondoso. Posso desligar meu defletor?
Fiz que sim. O Major Danger tornou-se visível. Sentado sobre o corrimão, lutava
para conservar o equilíbrio e queixava-se do terrível peso de seu equipamento de vôo.
Continuei sério e confirmei com um gesto, embora não conseguisse imaginar que
alguém pudesse ter dificuldades por causa de um peso de 200 g.
— Lemy, estou preocupado por causa de Kasom. Deixei um defletor no lugar
combinado, perto do estádio. Se o Tenente Kasom conseguiu sair de lá na hora prevista,
deve tê-lo encontrado. Você acha que alguma coisa o possa ter detido no caminho? Prendi
um bilhete ao defletor. É necessário que Melbar saiba que não estou mais naquela casa.
Ele conhece o caminho que leva ao porto.
— Ninguém consegue deter Melbar, sir — respondeu o baixinho em tom enfático.
Conhecia sua rivalidade íntima com o super-homem ertruso. Por isso mesmo achei
admirável que Lemy nunca fizesse uma tentativa séria de prejudicar Kasom. Sabia
perfeitamente quanto aquela criatura pequena se sentia deprimida diante da robustez
física do ertruso. O relatório da luta com o lobo-batráquio mais uma vez confirmara o
psicograma dos traços do caráter do siganês.
Naquele momento os sentimentos de Lemy balançavam que nem um junco ao vento.
Provavelmente estava refletindo sobre um meio de convencer o ertruso de que entrara,
por sua livre e espontânea vontade e com a cabeça fria, na narina do monstro.
Não perdi muito tempo em reflexões. Era necessário prender o Tenente Ebrolo ou
pô-lo fora de combate ainda naquela noite. Não podíamos permitir que voltasse a colocar-
se em segurança.
— Major Danger, faça o favor de sair voando e procure localizar Melbar Kasom. Já
deveria ter chegado. Esperarei mais uma hora. Depois atacarei. Avise Kasom de que
captei várias localizações gravitacionais.
— Localizações gravitacionais, sir!? — disse o baixinho, em tom assustado.
Apressei-me em segurá-lo, para que não caísse na água.
— Sir, isso só pode significar uma coisa: os antis também estão na pista de Ebrolo.
— É o que receio, se bem que não tenho a menor idéia de como podem ter
descoberto a pista. As máquinas voadoras estão patrulhando a área portuária. Desliguei
todas as máquinas. Tenha cuidado. É possível que Kasom saiba mais que nós. Vá logo.
Lemy empertigou-se e verificou as armas. Estava ardendo de entusiasmo.
— Na escuridão posso dispensar o campo defletor, sir — disse em tom enfático. —
Mas é possível que por ali haja muitos animais noturnos que talvez me veja obrigado a
matar.
Pigarreou, para não rir. “Talvez me veja obrigado a matar!” Gomo estas palavras
soavam em sua boquinha. As situações de anão em que Lemy se metia costumavam
deixar um homem normal descontrolado. Tive de fazer um grande esforço para imaginar
como se sentiria um homenzinho das dimensões de Lemy, quando, de repente, se
deparasse com os olhos chamejantes de uma coruja. Na verdade, esse homenzinho vivia
mais intensamente as ações que qualquer outro agente da USO. No caso de Lemy, as
situações de perigo sucediam-se ininterruptamente, e nós outros não percebíamos nada.
Quantas vezes teria escondido uma situação de perigo para evitar que zombassem dele?
Resolvi nunca fazer-lhe perguntas sobre isso. Só lhe recomendaria que tivesse muito
cuidado.
— Está bem, major. Mate os animais, se isso for indispensável — disse com a maior
calma. — Se tiver de atirar, tome cuidado para que o lampejo energético não seja visto.
— Provavelmente pensarão que sou uma estrela cadente, sir — disse Lemy, em tom
pensativo. — Caso o senhor se veja numa situação perigosa, eu o livrarei da mesma.
Basta um chamado pelo rádio, e Lemy Danger logo estará presente.
— Naturalmente, meu caro. Se isso acontecer, avisarei imediatamente.
Passei o dedo por seu cabelo sedoso. Lemy fez continência com tanta rigidez, que
perdeu o equilíbrio e caiu de costas por cima do corrimão.
O siganês inabalável respondeu ao meu grito de pavor:
— Desculpe a decolagem-relâmpago, sir. Tenho uma missão urgente a cumprir.
Cobri os lábios com a mão e acenei com a cabeça. Mais uma vez Lemy dera prova
de sua enorme capacidade de reação. Conseguira ligar os rotores durante a queda.
Naturalmente encontrou uma desculpa para a má sorte. Seu orgulho não permitia que
voltasse a mencionar o peso enorme da mochila que trazia nas costas.
O hábil especialista da USO desapareceu com um zumbido. O ruído de seu
microaparelho de vôo cessou dali a alguns segundos.
Lancei um olhar preocupado para o alto, onde seres invisíveis vasculhavam a cidade
e o porto com seus aparelhos antigravitacionais. O que teria atraído os antis para fora de
seus esconderijos?
Quando pretendia descer para colocar o traje de combate, voltei a ouvir o zumbido
da máquina de Lemy. Alguma coisa bateu nas minhas costas, e um par de mãos
minúsculas agarrou o tecido de minha blusa.
— O que houve, Lemy? Você... Ouvi um grito estridente e procurei abrigar-me. No
mesmo instante tentei golpear o objeto que, de repente, adquiriu um peso tão elevado que
me fez desconfiar.
Enquanto me atirava sobre as tábuas do convés, ouvi o chiado de uma microarma.
Um lampejo ofuscante doeu nos meus olhos. Alguma coisa explodiu depois de um estalo.
Senti que fora ferido por um tiro de radiações. Minhas costas ardiam como fogo. Virei-
me abruptamente e vi o objeto que acabara de pousar nas minhas costas. Lemy Danger
estava parado na escada que levava ao castelo de popa, de arma em punho. Olhava para o
objeto jogado perto de mim, que esvoaçava inutilmente com quatro asas transparentes.
Abaixei-me, dei um salto para o lado, peguei uma ripa e bati no objeto até que o
mesmo ficasse imóvel.
Levantei-me. Estava ofegante. Lemy e o atacante destruído apareciam perfeitamente
à luz das estrelas.
— Infelizmente tive de atirar, sir — disse o siganês. — Este inseto enorme é um
robô. Vários deles estão voando por aí. Vi-o assim que decolei e fui atrás dele. Quando o
divisei pousado em suas costas, achei que seria mais prudente atacá-lo. Sinto muito, sir,
mas...
Interrompi-o com um gesto e inclinei-me para examinar o inseto que media uns 30
cm de comprimento. Era feito de plástico e metal leve. Possuía um complicado
mecanismo voador e um microcérebro robotizado acoplado a um rastreador individual.
— Não é possível! — exclamei, estupefato. — Será que isso é um produto siganês,
Lemy?
Danger examinou o inseto. Curvado, de joelhos, esforcei-me para acompanhar os
movimentos rapidíssimos da mão daquela criatura pequena. Lemy ligou o farol de seu
capacete e enfiou a parte superior do corpo no ventre do microrrobô.
Estava ansioso para conhecer o resultado. Danger levantou-se e deu um pontapé no
terrível inimigo.
— Isso não foi feito em Siga, sir — asseverou. — O mecanismo é tosco e primário.
Meu povo se envergonharia de fazer uma coisa dessas. Este robô não pertence ao
equipamento de Ebrolo.
Confirmei com um gesto e levantei-me do chão. Danger apontou para a extremidade
mais volumosa do objeto voador.
— Nesta parte colocaram um ferrão venenoso, sir. Provavelmente este robô foi
ajustado para Ebrolo. Se não fosse assim, ele o teria picado imediatamente. Se
conferirmos a regulagem do rastreador individual, provavelmente verificaremos que a
mesma corresponde aos dados pessoais de Ebrolo. Trata-se de um infame instrumento
assassino dos antis, sir. Agora já compreendo por que estes insetos são considerados
mensageiros do deus Kulan. Os antis construíram este tipo de aparelho para eliminar
facilmente os nativos que lhes dêem trabalho. Tenho certeza de que os rastreadores
podem ser ajustados a qualquer tipo de freqüência individual.
Pus o baixinho nos braços e apertei-o suavemente contra minha face. Lemy soltou
uma risadinha e beliscou minha orelha. Falou em tom embaraçado:
— Sir, eu lhe agradeço se não falar em gratidão. Sua vez logo chegará. Além disso
não tenho certeza de que o robô realmente o teria picado. Naturalmente teria notado que o
senhor não é Ebrolo.
Bem, para mim isso não era tão natural assim. Minhas vibrações individuais eram
bem diferentes das dos eysalenses. Bastaria um pequeno erro de cálculo do analisador de
dados, e eu seria um homem morto. Provavelmente Lemy atirara no momento exato.
Lembrei-me da queimadura nas costas.
— Posso ajudar em alguma coisa, chefe? — perguntou Lemy.
O tom de sua voz revelava que isso o deixava muito abatido.
— Não. Saberei cuidar disso. Vá procurar Kasom. Tomara que não tenha sido vítima
de um microrrobô. Traga-o para cá. Atacaremos imediatamente.
Danger saiu voando. Subi às pressas. Passei um spray de bioplástico na ferida e
coloquei um traje de combate do último tipo. Armei-me com uma arma versátil,
construída especialmente para combater os antis.
Aquela arma pesada, que tinha mais de meio metro de comprimento, funcionava
com dois sistemas de disparo completamente diferentes. Um conversor direcional
irradiava energias termonucleares e um cano-guia expelia minifoguetes de plástico.
Sabia-se que os campos defensivos individuais dos antis, sustentados por energias
psicomentais, só atuavam num setor de cada vez. Absorviam as radiações energéticas de
todos os tipos, ou então evitavam a penetração de objetos materialmente estáveis.
A novidade mais recente criada pelos antis consistia em inverter as cargas do campo
com tamanha rapidez, que eram capazes de defender-se tanto contra as armas energéticas
como contra as de projéteis.
As experiências já realizadas provavam que era inútil disparar simultaneamente
projéteis materiais e raios energéticos.
O período de estabilização do campo durava um décimo milésimo de segundo. Seria
inútil tentar aproveitar este tempo minúsculo numa operação manual. Se disparássemos
microfoguetes, estes seriam repelidos na inversão seguinte. A mesma coisa aconteceria
com os raios energéticos.
As armas múltiplas estavam acopladas a um microcomputador positrônico.
Determinada a distância do tiro, o computador calculava o tempo de percurso do raio
energético e do projétil e transmitia os dados ao comando sincronizado.
Quando a arma múltipla era disparada, o foguete saía em primeiro lugar. O raio
energético, muito mais rápido, saía com a diferença de tempo resultante do cálculo
efetuado com base na distância.
Face a essa interpretação extremamente precisa, os dois tiros atingiam o alvo no
mesmo instante... e o anti não teria a menor chance! Seu campo energético estaria
ajustado para repelir a matéria ou para absorver a energia. E a arma múltipla trabalhava
com uma precisão de um décimo milésimo de segundo.
Pesei na mão a arma desajeitada. O jogo de Ebrolo chegara ao fim...!
Relatório de Melbar Kasom

5
Bati com a ponta do dedo na cabeça do guarda e deixei que caísse lentamente ao
chão. Estava inconsciente.
Vi as pranchas do portão na parte final do muro. Este fechava a saída dos fundos da
arena, que só era usada por pessoas que tinham algo a fazer na área de luta.
Fiz mais uma tentativa para calcular a hora com base na posição das estrelas, mas
ainda desta vez não consegui. Nessa parte da Galáxia era impossível reconhecer as
diversas estrelas. O céu estava salpicado de bilhões de sóis, que formavam uma faixa
luminosa que se estendia até a linha do horizonte.
Face aos acontecimentos mais recentes, não poderia arriscar-me a usar o rádio.
Surpreendentemente, os antis resolveram examinar o cadáver do lobo-batráquio, e depois
disso começaram a desconfiar de mim.
Fugira da prisão há dez minutos. Akussa me ajudara, mas pedira que o deixasse
inconsciente. Foi o que fiz. O único amigo que tinha naquela fortaleza do ódio estava
estendido atrás da primeira grade do labirinto. Provavelmente, já fora encontrado.
Voltei a aguçar o ouvido e corri para junto do portão. Os ferrolhos primitivos não
constituíam nenhum problema. Levantei a tranca e empurrei o portão. Vi à minha frente o
caminho usado pelos fornecedores.
Mais atrás, a uns dez metros, estava a imagem de um deus pagão caído em desgraça.
Havíamos combinado que Atlan deixaria o defletor naquele lugar.
Agachei-me para saltar. De repente dois holofotes acenderam-se e os feixes
luminosos atingiram-me em cheio. Fiquei imóvel.
— Vejo que você é um homem razoável, superpesado — disse alguém num
intercosmo impecável, que diferia bastante do arcônida antigo falado pelos eysalenses.
Não me arrisquei a fazer o menor movimento. Naquele planeta só os antis possuíam
holofotes. Seria inútil saltar para fora do foco. Será que tinham encontrado meu gerador?
— Levante-se devagar, e dê dois passos para a frente — disse a mesma voz.
Continuei na mesma posição. A ordem foi repetida. Finalmente o desconhecido
disse em tom contrariado:
— Deixe de representar, superpesado. Você domina a língua que estou usando.
Esperarei três segundos. Se até lá não vier, farei surgir um pequeno vulcão entre seus pés.
Esperei dois segundos e endireitei o corpo. Caminhei lentamente para a frente e
parei. O portão rangeu às minhas costas. Havia mais alguém por lá.
Os holofotes apagaram-se. Meus olhos voltaram a habituar-se à luz das estrelas e vi
dois sacerdotes de Kulan. Os mesmos seriam totalmente inofensivos, se não fossem as
pesadas armas térmicas que seguravam.
Preferi ficar calado. Refleti sobre a situação. Devia deixar que me prendessem? Será
que estavam interessados nisso? Quando o anti muito alto começou a falar, compreendi
que minha vida estava por um fio.
Já haviam cometido um erro; na verdade, dois. Estavam confundindo minha bela
figura com o corpo grosseiro de um superpesado pertencente a algum dos clãs dos
mercadores galácticos. Isso não era nada inteligente. Um ertruso não pode ser comparado
a um verme, que na melhor das hipóteses está acostumado a uma gravidade de 2,4 G.
Além disso essa gente não deveria ter dispensado o efeito ofuscante dos holofotes.
Naturalmente não queriam que todo mundo notasse sua presença.
Tudo dependia de como avaliassem meus dotes mentais. Melbar Kasom só fica
impressionado com um par de armas térmicas caso estas se encontrem nas mãos de
lutadores experimentados.
Os adversários que tinha pela frente não eram lutadores. Não passavam de parasitas
amolecidos, que engordavam à custa dos eysalenses.
Os fatos levaram-me a desistir do jogo de esconder. Precisava iniciar o duelo
psicológico antes que esses sujeitos resolvessem matar-me.
— Pediram-me que, se fosse descoberto, lhes transmitisse os cumprimentos de meu
patriarca e lhes dissesse que trezentas naves de guerra estão esperando a poucas horas-luz
daqui, anti — disse, enfatizando as palavras. — Achamos que este mundo se presta muito
bem à instalação de uma base que fique próxima ao centro. Ofereço-lhes a sociedade ou a
morte. A escolha é sua.
— Sua fala é arrogante, superpesado — disse o porta-voz do grupo.
Quanto a mim, mexia constantemente com as mãos. Será que essa gente tinha
conhecimento da intervenção da USO? Pelo que revelavam nossas investigações, não
desconfiavam de nada.
— É só o que tenho a dizer. Quem é o chefe de vocês? Quero falar com ele, antes
que façam alguma tolice.
— Quantos homens de seu patriarca desembarcaram neste planeta?
Lembrei-me da troca de mensagens com Atlan. Teria de confessar alguma coisa.
— Mais alguns além de mim, mas os outros não são superpesados. Tenho um
interesse todo pessoal em saber a quem devo agradecer pela oportunidade de lutar com o
lobo-batráquio. Quem estava interessado em eliminar-me? Foram vocês?
— Não somos burros. Foi alguém que acreditava que você o estivesse perseguindo.
Este homem arranjou a luta.
Não sabiam nada a nosso respeito! Seria mesmo de admirar se soubessem.
Continuei no meu papel de mercador galáctico. Minha estatura permitia que me fizesse
passar por saltador.
— Alguém que acreditava que eu o estivesse perseguindo?! — repeti em tom de
perplexidade. — Neste mundo marginal e primitivo?! Não temos o menor interesse pelos
criminosos que vivem por aqui. Vim para cá por ordem de meu patriarca, a fim de sondar
a situação. É só. Acho que vocês deveriam tirar o dedo do gatilho. Se não interrompo
meu transmissor automático a intervalos regulares de dez horas, e o mesmo expedirá um
pedido de socorro pela faixa de hiperondas. Os dados que colhi também serão
transmitidos num impulso condensado.
“Acho que vocês deveriam chegar a um acordo comigo. Meu nome é Melbar
Kasom. Sou o chefe do clã de Barus, que obedece ao comando supremo do patriarca
Katzotel. Queremos ganhar dinheiro, anti, mas isso fora da área de influência do Império.
Minha permanência na arena valeu a pena. Por lá costumam conversar muito. Não vemos
por que vocês devem ficar sozinhos nos negócios. Como é? Posso falar com seu chefe ou
não posso?”
O anti fitou-me prolongadamente. O outro manteve-se em silêncio.
— Quem deu o tiro no lobo-batráquio, superpesado? — perguntou.
Soltei uma gargalhada e refleti.
— O tiro foi disparado das arquibancadas. Consegui desviar-me em tempo. Meus
homens não costumam dormir. Quem quis matar-me? Acho que é importante eu ser
informado sobre isso.
— Alguém que acreditava que você o perseguia. Já disse.
— Quem é esse alguém? Estou preocupado.
— Foi um agente da Segurança galáctica, enviado para cá a fim de ajudar uma
colega. Ele a matou. Há algum tempo nós o mantemos sob observação.
— Da Segurança Galáctica?! — perguntei, estupefato. — Como é que essa gente
veio parar aqui? Será que estão atrás de vocês?
— É o que queremos saber de você, superpesado. Nós o reconhecemos na primeira
apresentação, mas achamos preferível esperar um pouco.
— Vocês não podem permitir que esse agente ande por aí! — observei em tom
exaltado. — Basta um chamado pelo rádio, e a intervenção do Império será inevitável.
— Por enquanto não há perigo. Magontin será eliminado hoje de noite. Você virá
conosco. O planador está parado atrás destes arbustos.
Fez um sinal com a arma de radiações. Saí caminhando cautelosamente. Os dois
antis ficaram atrás de mim.
As mentiras que eu acabara de contar tinham pernas curtas. Quanto a isso não tinha
a menor dúvida. No entanto, descobrira tudo que desejava.
Sabiam do crime de Ebrolo, e por isso achavam pouco provável que ele fosse pedir
socorro pelo rádio. Os antis resolveram esperar para ver quais seriam as conseqüências do
assassinato de Anne Sloane.
Pouco depois me descobriram, e ficaram sem saber se estava atrás de Ebrolo ou não.
Até este ponto as conclusões dos antis tinham sido corretas. Provavelmente, se
desconfiassem de que Ebrolo tinha um ativador, teriam agido de forma muito diferente.
Não havia dúvida de que os baalols não se sentiam ameaçados pelos Império.
Ninguém podia provar que eram culpados de interferências desonestas nos assuntos de
outros povos. Minha ameaça de um ataque ilegal por parte de uma frota dos saltadores
pesava muito mais. Para esse tipo de gente não importava que a colonização de um
planeta fosse permitida ou não. Chegavam mesmo a duvidar da legitimidade das leis do
Império.
Parece que segui a trilha correta para salvar minha vida, pois até haviam resolvido
levar-me ao templo de Kulan! O que se devia concluir disso?
— Dentro de três horas saberemos se você realmente é um enviado do patriarca
Katzotel, ou se é um oficial do Império — disse o anti muito alto num tom irônico, que
até fazia desconfiar de que sabia ler meus pensamentos. — Na primeira hipótese,
conversaremos. Se a outra hipótese for a verdadeira, você voltará a enfrentar um lobo-
batráquio, com a diferença de que desta vez ninguém poderá atirar das arquibancadas. Se
a Segurança Galáctica realizar uma investigação, diremos que lamentamos muito não
termos tido conhecimento de sua missão, pois, do contrário, naturalmente impediríamos a
luta exigida pelos Masho. Não acha que somos inteligentes, superpesado?
— E meus colaboradores? Estão por perto. Será que você se esqueceu deles? —
perguntei em tom ainda mais irônico.
— Não os procuraremos. Por outro lado, nunca saberão o que conversamos com
você. Afinal, você é um gladiador, não é mesmo? Por isso ninguém se admirará de que
alguém exija que você lute.
— Sou o superpesado Melbar — respondi em tom furioso.
— O inquérito com detector dirá o que você é ou não é. Para a direita, gladiador.
A situação começava a tornar-se desagradável. Os antis ainda não sabiam a quantas
andavam. Se conseguissem levar-me ao templo, tudo estaria perdido. Além disso Ebrolo,
ou Magontin, seria morto naquela noite.
Será que tal acontecimento não interferiria nos planos de Atlan? Talvez também
tivesse descoberto Ebrolo, Não sabia qual era sua decisão. Fugira tarde demais, e além
disso me haviam agarrado. Naturalmente os antis me observavam, pois, do contrário, os
dois não teriam esperado atrás do portão.
Os antis encaravam com a maior tranqüilidade a possibilidade de uma investigação
da USO. Não tinham outra alternativa senão preparar-se para a mesma. A chegada de
Anne Sloane e Ebrolo constituíam a melhor prova de que esse mundo não pertencia mais
à classe dos planetas desconhecidos.
Pelo que sabia dos antis, estes encontrariam um meio de interpretar as leis do
Império a seu favor. Estava na hora de agir.
Descobri uma rocha que ficava à esquerda. Tinha uns dez metros de altura por vinte
de largura. Olhei para trás e notei que os antis não eram tão inexperientes como esperara.
Nenhum deles foi leviano a ponto de baixar o cano da arma. Poderia abater um
deles, mas não teria tempo para fazer a mesma coisa com o outro. A distância entre os
dois, superior a três metros, era muita para poder agarrá-los ao mesmo tempo.
Nem pensei em abrigar-me atrás de um deles. Conhecia os antis. Qualquer um deles
atiraria no outro para matar-me.
Só me restava a fuga... a fuga rapidíssima de um ertruso cujos músculos estavam
sendo subestimados.
Vi um planador antigravitacional à nossa frente. Desviei-me um pouco para a
esquerda, praguejei por causa de uma trepadeira, tropecei para a frente e aproveitei o
embalo para saltar.
Uma coisa com a qual os antis nunca teriam contado transformou-se em realidade.
Subi na vertical, empurrei-me na rocha e cheguei ao topo da mesma antes que os antis se
recuperassem da surpresa causada pela minha força.
Não me deixei cair do outro lado da rocha. Dei outro salto em direção a um barranco
e fui bater nele com as mãos e os pés.
Só agora ouvi um estalo atrás das minhas costas. Lampejos azuis iluminaram a
noite. O rugido das armas energéticas abafou o ruído dos meus saltos, que me levaram a
um lugar seguro. Cada um desses saltos me fazia percorrer uns vinte metros.
Nem cheguei a ouvir os gritos daqueles idiotas. Talvez já tivessem compreendido o
que se encontrava diante de suas armas.
Depois disso fiz outra coisa, com a qual provavelmente também não contavam. A
área oferecia excelentes abrigos. São e salvo, apenas perturbado vez por outra por alguns
tiros energéticos disparados ao acaso, cheguei à imagem do deus. O defletor estava
escondido num buraco que ficava na base da estátua.
Saltei pelo portão, que só estava encostado, e voltei à arena. Uma vez lá dentro,
liguei o aparelho.
Ninguém me via. Corri em direção à saída principal, que ficava do lado oposto do
estádio e esperei que um grupo de soldados da guarda abrisse o portão.
Haviam sido enviados para procurar-me. Passei por eles sem que ninguém me visse.
Os antis não me interessavam mais. Uma vez do lado de fora, estudei a mensagem
que Atlan escrevera numa folha de papel. Abandonara sua base na casa do fabricante de
armas e fora ao barco a vela.
Não sabia que horas eram. Saí correndo. Tinha de atravessar a cidade, ultrapassar as
muralhas da fortaleza e avançar até o litoral. Com a velocidade de um ertruso, a viagem
demoraria aproximadamente uma hora.
De vez em quando ouvia o chiado de um planador antigravitacional, mas meu
aparelho, muito bem protegido, não foi localizado.
Quando alcancei o velho cais, o dia já estava raiando. Ainda cheguei em tempo para
assistir ao fogo de artifício que se desenvolvia sobre as águas do porto novo.
O rugido das armas energéticas falava por si. Dali a pouco ouvi o matraquear de
uma arma mecânica, cujos microprojéteis atômicos transformaram as muralhas da
fortaleza num monte de destroços.
Os antis estavam atacando um grande navio a vela. Não acreditava que Atlan ou o
baixinho fossem capazes de uma tolice dessas. Pretendíamos prender Ebrolo sem alarde e
suspender nossa missão.
Permaneci muito tempo no mesmo lugar e vi os salonenses saírem correndo,
apavorados. Sem dúvida, os antis apontariam a raiva do deus Kulan como causa da
devastação.
Ao que parecia, Ebrolo se defendera com todos os meios ao seu alcance. Devia
encontrar-se no navio a vela. A essa hora estava morto, a não ser que tivesse acontecido
um milagre.
Saltei para a água e nadei para o navio de Atlan. Quando subi pelo costado, ouvi o
clique de uma arma que estava sendo destravada.
— Sou eu, sir, Melbar Kasom — disse em voz baixa.
Atlan apareceu diante dos meus olhos.
Encontrava-se junto à escada que descia ao compartimento de carga e fez um sinal.
Uma vez lá embaixo, informei-o sobre o motivo de meu atraso.
— Bem, perdemos nossa chance — disse o chefe, com a voz controlada.
Tive vontade de esbofetear-me, de tão zangado que estava com o fracasso.
— Fique tranqüilo, Kasom. Ebrolo era um lutador muito bem treinado, que também
sabia lidar com suas armas naturais. Provavelmente os antis não contavam com uma
resistência tão encarniçada. Talvez o uso das armas não estivesse planejado. Gostaria de
saber como explicarão o assalto diante de uma comissão de inquérito do Império.
— Ora, não se preocupe, sir — respondi com uma risada amarga. — Essa gente
sempre encontra uma explicação, e uma explicação tão boa que ainda seremos obrigados
a pedir desculpas. O que poderemos fazer se esses patifes afirmarem que apenas
pretendiam prender um rebelde perigoso, que pretendia subjugar a população com sua
tecnologia superior?
O lorde-almirante largou a arma e aproximou-se de uma vigia. Refletiu por algum
tempo e disse em tom pensativo:
— E o ativador celular? O que terá acontecido com ele? Será que foi destruído pela
explosão? Quem sabe se não o encontraram?
Atlan virou-se. Preferi não responder. Dirigi-me a uma caixa de mantimentos.
Peguei uma “latinha” de dez quilos de carne fresca e um “saquinho” com dois quilos de
biscoitos. Não fiquei satisfeito, mas paciência! A gente tem de aprender a sentir fome
durante uma operação desse tipo.
— Infelizmente não posso oferecer-lhe um boi eysalense, tenente! — disse o chefe.
Engoli o último quilinho de carne e lancei-lhe um olhar recriminador.
Pretendia explicar ao lorde-almirante que meu corpo quase quadrado correspondia
quase exatamente às medidas ideais, além do que continha um espaço estomacal muito
grande. Mas Atlan não deixou que tomasse a palavra. Vivia olhando para seu relógio
especial.
Nuvens de fumaça negra subiram na área portuária. Ao que parecia, vários navios
haviam pegado fogo.
— Onde está o Major Danger? — perguntou depois de algum tempo. — Não o
encontrou, pois, do contrário, o senhor teria mencionado o fato. Onde poderá estar neste
momento? Recebeu algum pedido de socorro?
Fiz um gesto negativo. Não vira nem ouvira nada do baixinho. Teria sido devorado
por uma coruja ou outra criatura? A idéia deixou-me assustado. Quem sabe se meu
companheiro de lutas não corria algum perigo?
Dali em diante não disse muita coisa, porque isso não corresponderia ao caráter de
um ertruso “ambientado”. Atravessei o compartimento de carga e abri a caixa onde estava
guardado meu equipamento de combate. Dali a dez minutos envergava meu traje de
batalha.
Quando examinei minha arma superpesada e enfiei no cano duplo um magazine
redondo com trezentos microfoguetes, já comecei a sentir-me melhor.
Os microfoguetes atômicos, as bombas de gás e a mochila energética completavam
meu equipamento.
— Pronto, sir — disse com a maior naturalidade. — Trago nos bolsos um total de
vinte megatons de TNT. O que é isso que está voando por aí?
— Tire essa roupa — disse o arcônida, com um sorriso irônico. — De dia não
faremos nada, a não ser que Danger tenha descoberto alguma coisa. Sairei à sua procura.
— E eu, sir?
— Sem o neutralizador gravitacional, seus rotores fazem muito barulho. Só quando
houver necessidade absoluta, você irá voar.
Sem dizer uma palavra, dirigi-me ao lugar em que estavam guardados os
mantimentos. O lorde-almirante ficaria espantado.
Esvaziei um “barrilzinho” de vinho eysalense. Depois disso deitei no colchão
pneumático.
— Se, quando o senhor voltar do seu vôo de patrulhamento, ouvir um trovejar
sacudindo as muralhas da fortaleza, não pense que é uma explosão. Acontece que, quando
estou cansado, costumo roncar muito.
Satisfeito com a explicação que acabara de dar, virei de lado. Neste momento exato
meu receptor de ouvido entrou em funcionamento. Os pios de Lemy fizeram cócegas no
meu ouvido.
— Peteca para rede e batedor. Alcancei primeiro estágio. Ativador em poder do
sumo sacerdote. Encontra-se no planador aéreo que se dirige ao templo principal. Das
palestras deduzi que existem instalações subterrâneas. Suspeito de que sejam laboratórios
secretos. Acho que a utilização da Frota seria justificada. Voltarei a chamar. Desligo.
Levantei-me. O “primeiro estágio” representava uma situação de perigo extremo.
Quando Atlan pegou seu radiofone, meu coração começou a bater mais forte. Lemy usara
o velho inglês terrano, que nenhum anti entendia. Uma eventual tradução demoraria
vários dias. Até lá a mensagem estaria superada pelos acontecimentos.
Atlan sabia perfeitamente que era uma leviandade transmitir uma mensagem de
bordo. Se alguém fizesse a localização goniométrica do Ogolam, seríamos alvo do
mesmo fogo de artifício que Ebrolo. Tomei todas as providências para estender uma
abóbada energética por cima do veleiro. Nesse estágio dos acontecimentos, já não se
poderia esconder muita coisa. Era para valer...
Atlan arriscou duas palavras:
— Onde está?
— Embaixo do revestimento de um rastreador individual portátil. O aparelho foi
usado para encontrar Ebrolo. O sumo sacerdote está pousando na área do templo.
Descerei com ele. Por enquanto permanecerei no interior do aparelho. Cuidado: o templo
possui uma barreira energética. Está sendo ativada. Vou...
A transmissão tornou-se pouco nítida. Seguiram-se alguns estalos e o baixinho
desligou. Era a interferência típica causada por um forte campo defensivo.
— Prepare-se, Kasom — disse Atlan.
Seu rosto não revelava a menor emoção. Só os olhos vermelho-dourados do
arcônida revelavam um pouco do que ia em sua mente.
— O sumo sacerdote?! — exclamei em tom de surpresa. — É o tal do Mahana-Kul,
sir. Se não me engano, os antis acabarão por matar-se uns aos outros. Todos eles sabem
que um ativador celular representa a promessa da vida eterna.
— “Promessa”! É isso mesmo. Atrevo-me a profetizar que nenhum dos possuidores
de um ativador desfrutará a chamada vida eterna por mais que alguns séculos, inclusive
os mutantes de Rhodan. Anne Sloane não teria morrido se não tivesse possuído um
ativador. Faço votos de que minhas previsões sejam pessimistas demais. Ligue o grande
reator para o controle remoto. Abandonaremos a nave e iremos separados até o
acampamento central. Você sairá voando; seguirá na frente. Tenha cuidado para que
ninguém ouça o ruído dos rotores. O neutralizador gravitacional não deverá ser usado em
hipótese alguma. Pronto?
Saí correndo para mover os controles. Se possível, o Ogolam seria conservado,
mesmo que resolvêssemos abandoná-lo. O equipamento especial valia milhões. Atlan
preferia não perdê-lo.
Liguei os rotores e voei para o alto-mar, onde ninguém poderia ouvir os estalos
produzidos pelos rotores.
Bem ao longe surgiram as velas de uma frota salonense. Regressavam de uma
campanha contra os zelutenses. Esses descendentes bárbaros dos arcônidas nem
desconfiavam de que lá em cima um homem invisível cruzava os ares.
Atlan chegou meia hora depois às encostas íngremes do litoral, onde havíamos
instalado nosso depósito central numa caverna aberta pela ação das águas. Para isso um
cruzador da USO desembarcara um submarino. O chefe usara o mesmo para localizar o
esconderijo e transportar as provisões.
Por aqui havia coisas com as quais os antis nem se atreveriam a sonhar. Afinal,
contávamos com o apoio do Império, com todas as possibilidades técnicas e científicas
que o mesmo oferecia...
Relatório de Lemy Danger

6
Até onde não chegava a insensibilidade dessa gente! O anti que carregava o
rastreador individual me causou situações de perigo mortal. Enfim, o que estava
pensando esse sujeito? Sacudia o aparelho com tanta força que me fazia escorregar de um
canto para outro.
A situação era bastante séria, e por isso peço ao leitor que se abstenha de fazer
comentários...
Bem à frente do meu rosto ficava o setor de alta freqüência do aparelho. Não se
pode brincar com uma corrente de quarenta mil volts. Não tinha o menor interesse em ser
transformado num gafanhoto grelhado. Não é que eu costume recuar diante do perigo,
mas a perspectiva de uma morte como esta deixou-me deprimido.
Gostaria de estraçalhar o anti, se pudesse sair daquela caixa.
Meus nervos estavam sendo forçados há várias horas. Primeiro foi o ataque dos
robôs contra Atlan. Depois disso recebi ordem para procurar esse ertruso estúpido, que
provavelmente dormira durante a metade do tempo em que desenvolvíamos a operação,
ou então estava à procura de alimentos.
Naturalmente não o encontrei. Pouco antes do nascer do sol cansei-me de sobrevoar
Malkino, colocando minha vida em perigo. Sabe lá que tipos de monstros voavam por
aqueles ares? Não quero passar por fanfarrão, mas vi-me obrigado a matar dois pássaros e
“estrangular” uma cobra voadora. Não pude evitar isso, pois a mesma resolveu atacar-me
justamente em cima do portão principal, onde por certo o lampejo de minha arma
energética seria notado.
Bastante estropiado pela luta aérea, cheguei ao lugar em que se encontrava o veleiro
de Ebrolo. Ainda estava escuro. Como não conseguira localizar Kasom, resolvi
desenvolver uma ação individual.
Um especialista siganês do meu tamanho — afinal, tenho 22,21 cm de altura —
pode perfeitamente subjugar um mau elemento como Ebrolo. Pretendia aplicar umas boas
bofetadas no patife, deixá-lo inconsciente e apoderar-me do ativador celular.
Tudo teria corrido segundo o plano, se não fosse o ataque dos antis. Foi desfechado
no momento exato em que me introduzi no camarote de Ebrolo e me dispunha a saltar
sobre o traidor, que estava examinando suas armas.
Ebrolo localizou os antis e logo abriu fogo. Sem que ele o percebesse, agarrei-me ao
seu cinto de marinheiro.
Apesar de todas as precauções, Ebrolo tombou. Cinco antis absorveram suas
energias mentais e o abateram a tiros. Mal e mal consegui escapar, e isso mesmo apenas
porque me arrisquei a desligar o defletor. Dessa forma ninguém pôde localizar as
emanações do gerador. A uma distância tão reduzida isso provavelmente teria sido
possível.
Quando os antis revistaram o camarote, abriguei-me atrás do cadáver de Ebrolo e
procurei esconder o ativador, que continuava intacto. O peso do aparelho era enorme. Mal
consegui levantá-lo. Depois disso meus rotores entraram em pane.
Afinal, as micro-hélices tinham de sustentar o peso de meu corpo, que era de nada
menos que 852,18 g! A capacidade de sustentação não fora suficiente para, além desse
peso, levantar o ativador.
Dali a cinco minutos, o navio foi destruído por uma bomba-relógio. Segui os antis,
que fugiram apressadamente. Escondi-me embaixo da chapa de revestimento de um
rastreador individual. Dessa forma pude ouvir suas conversas. Mas, por outro lado, não
tinha nenhuma possibilidade de abandonar meu esconderijo.
Levaram-me a um planador antigravitacional. O Sumo Sacerdote Mahana-Kul
também se acomodou no interior do mesmo. E assim os antis me levaram para dentro do
templo como passageiro clandestino.
No início aquilo me divertira. Mas, depois de algum tempo, alguém teve a idéia de
balançar o aparelho portátil de um lado para outro. Dali em diante não achei mais
nenhuma graça e o espírito de luta acendeu-se em meu interior.
Ainda bem que Atlan ao menos havia recebido minhas mensagens. Ebrolo estava
morto, porque os antis acharam preferível eliminar o forasteiro incômodo.
Pelas conversas que ouvi, também fiquei sabendo que Melbar Kasom fora preso...
mas por pouco tempo. Naquele momento, os sacerdotes de Baalol estavam fazendo
conjeturas sobre se Kasom era um superpesado pertencente a um clã dos saltadores ou
um agente da Segurança Galáctica.
Àquela altura eu, o especialista Lemy Danger, campeão de todos os pesos em Siga,
teria de enfrentar valentemente o perigo e lutar contra cerca de duzentos antis.
Meu armamento não era adequado para isso. Apenas possuía uma arma térmica, que
não produziria o menor efeito se Mahana-Kul resolvesse ativar seu campo defensivo
individual. Este só poderia ser rompido com uma arma especial.
Mesmo que conseguisse matar esse homem, não seria capaz de transportar o
ativador celular.
Por enquanto seria inútil preocupar-me com esses problemas. No momento meu
problema era o balanço do aparelho, em cujo interior me encontrava.
Apoiei firmemente os pés de encontro ao suporte de uma tubulação e comprimi as
costas contra os isoladores de um condutor de 50 A, que pareciam bastante frágeis. Não
tive medo, mas não pude evitar que minhas pernas tremessem.
Nesta posição consegui resistir à viagem, até que resolvessem descansar o aparelho.
Quando tudo ficou em silêncio, afastei a chapa de plástico e pus a cabeça para fora.
Eu, o Major Lemy Danger, fora deixado num depósito, no qual havia, além de
outros equipamentos, cerca de cinqüenta robôs.
Os monstros eram de um tipo de que eu não gostava nem um pouco. Os antis
pareciam saber o que os esperava, caso fossem atacados. Por isso haviam arranjado as
máquinas de guerra. Qualquer uma delas seria capaz de enfrentar os exércitos dos
salonenses.
Liguei meus rotores e voei para cima do ombro de um robô. Ergui-me e pude ver
perfeitamente a chapa de programação que ficava em cima da nuca metálica.
Abri o fecho magnético e examinei os controles. As máquinas de guerra que se
encontravam ali haviam sido construídas pelos saltadores e estavam equipadas com
cérebros de comando positrônicos.
Em quinze segundos reprogramei o robô de tal forma que, ao receber o impulso
destinado a ativá-lo, se desmanchasse em fogo. Para um robô, um curto-circuito é a
mesma coisa que uma apoplexia para um homem.
Indignado pelo tratamento descortês que me fora dispensado durante o transporte,
resolvi gastar meia hora para inutilizar as máquinas. Quem sabe se isso não seria útil para
alguma coisa?
Muito constrangido, devo confessar que, durante o trabalho, sorri que nem um
moleque que faz uma arte. Paciência, a gente precisa divertir-se de vez em quando...
Ouvi vozes de homens. Pareciam estar na sala contígua. Davam mostras de
nervosismo. Discutiam para saber quem ficaria com o ativador celular de que se haviam
apoderado. No momento, o tal ovo estava pendurado ao peito do Sumo Sacerdote
Mahana-Kul, que protestava energicamente contra a idéia de desfazer-se da preciosidade,
afirmando que o ativador podia ser usado em benefício da coletividade.
Isso não me interessava. Queria mais que os antis quebrassem as cabeças uns dos
outros. Por enquanto estava ocupado exclusivamente com os robôs. Depois de algum
tempo ouvi um tiro. Alguém logo começou a gemer. Compreendi que um anti é sempre
mais inescrupuloso que qualquer outra pessoa...
Aquilo estava começando muito bem! Se as coisas continuassem assim, não
precisaria fazer nenhum esforço mental. Resolvi aguardar os acontecimentos...
***
Meu trabalho, que se revestia de grande importância estratégica, foi interrompido de
repente. Quando se abriu uma porta secreta, o último robô que estava sendo “preparado”
ameaçou escapar de minhas mãos.
Uma forte luminosidade rompeu o crepúsculo do depósito. Só agora percebi que o
tal depósito ficava junto à nave central do templo. Por lá costumavam ser recebidos os
idiotas que acreditavam em Kulan.
Dois antis aproximaram-se da porta. Um deles era Mahana-Kul. Não tive tempo
para sair voando, ainda mais que preferi não ligar o defletor.
Escorreguei rapidamente pelo ombro do robô, agarrei-me às soldas grosseiras do
revestimento do peito e, com o pé, abri a portinhola de reparos, que ficava mais ou menos
no lugar em que se encontram os rins de um ser humano.
Antes de desaparecer em seu interior, ouvi outro tiro. Preferi não olhar para trás. O
ruído de um corpo que tombava falava por si. Ao mesmo tempo ouvi o zumbido de
máquinas que entravam em funcionamento.
Mahana-Kul parecia um homem que, se necessário, estava disposto a jogar todos os
trunfos numa só cartada. Pouco lhe importava que com isso infringisse todas as normas
éticas. Imaginei que acabara de matar seu companheiro.
Liguei o farol de capacete e fechei a portinhola de reparos. Conhecia perfeitamente
o interior do corpo de um robô. Não era a primeira vez que usava uma máquina desse tipo
como esconderijo ou meio de transporte.
Segurei-me nas travessas metálicas e fitei o bloco do minirreator que forneceria
energia ao robô. Por enquanto os mecanismos continuavam imóveis, mas eu estava certo
de que, quando chegasse o momento, tudo sairia conforme previra.
Não tive necessidade de refletir sobre as intenções de Mahana-Kul. Antes que
pudesse encontrar um bom apoio, ouvi os estalos dos relês. O robô estava despertando
para a vida.
Depois foi um verdadeiro inferno. Os estalos e estrondos quase me fizeram perder
os sentidos. O anti parecia ter ativado todas as máquinas de guerra. Acontece que só meu
robô se dera bem com o controle remoto, pois a reação dos outros de forma alguma
correspondia à sua programação.
Um terrível fedor entrou-me pelas narinas. Senti o cheiro de isoladores fundidos e
plásticos queimados. O rugido foi diminuindo e voltei a ouvir.
Faço questão de ressaltar que compreendo perfeitamente um homem reclamar de
alguma coisa e, nessa oportunidade, usar expressões que não devem ser proferidas num
ambiente social. Mas, quando alguém pragueja da forma como fez o sumo sacerdote,
costumo tapar os ouvidos.
Quando aquele sujeito furioso se acalmou um pouco, percebi que ele se abrigara
atrás de meu robô. Parece que durante o caos vários objetos voaram pelos ares.
Mas não tive tempo de alegrar-me com a desgraça bem merecida desse mau
elemento, pois, dali a um segundo, estava lutando pela vida.
Eu me enganara. Só isso. No modelo de robô, em cujo interior me encontrava, o
estabilizador giratório ficava na altura do estômago. Nos outros robôs as massas de aço
ficavam nas proximidades da bacia, lugar em que deveriam ser instaladas segundo as leis
da Estética.
Aqui as coisas eram diferentes. Em virtude disso, as lâminas giratórias impelidas
por campos magnéticos ameaçaram minha vida.
É só imaginar que uma parte do corpo, cujo nome prefiro não citar, por uma questão
de decência, esteja pendurada à frente de massas cortantes que descrevem quarenta mil
rotações por minuto. Além de tudo o robô começou a movimentar-se. Agarrei-me à
travessa superior, ao qual estavam presos o reator, o conversor e um seguimento de
controle da memória positrônica.
Meus pés estavam apoiados sobre o rolamento traseiro do elemento giratório
vertical, cujo eixo de aço parecia querer agarrar minhas botas. Ao primeiro contato seria
arrastado e despedaçado. Todo mundo sabe que as peças fabricadas pelos saltadores são
muito toscas. Se essa gente fala que alguma coisa é bem polida, um siganês constata que,
na verdade, é torta e possui saliências e reentrâncias da grossura de um dedo humano...
Não conseguiria agüentar-me por muito tempo nessa posição. O robô zumbia e
rumorejava como se quisesse explodir. Ao meu ouvido, esses ruídos soavam dez vezes
mais forte que ao ouvido de um gigante terrano.
Quando cheguei a uma situação em que não sabia mais o que fazer, dei uma pancada
no fecho instantâneo de minha mochila, que caiu juntamente com o elemento energético e
os rotores.
O tilintar que ouvi me fez concluir que o elemento giratório transportara meu
equipamento para algum canto do corpo do robô. Mas não aconteceu nada.
Livre do peso, consegui puxar o corpo para cima e, dançando perigosamente na
corda bamba, atravessei uma barra horizontal. Esgueirei-me entre o reator e o conversor;
escorreguei para a frente, por cima de um condutor de alta tensão e finalmente cheguei à
parte lateral do peito.
Exausto, procurei apoio. Levei um minuto para que meu corpo enrijecido pelas
práticas esportivas ficasse novamente em condições. Antes de mais nada precisava
enxergar! Arrisquei-me a encostar o cano de minha arma energética contra o revestimento
do peito do robô e puxar o gatilho.
O raio pouco intenso derreteu um furo no revestimento. Esperei que os contornos
das bordas liquefeitas se estabilizassem e olhei para fora. Minha vigia ficava pouco
abaixo do pescoço do robô.
Este nem percebera que alguém lhe queimara a pele.
Marchava como se nada tivesse acontecido, apontava os braços armados para tudo
quanto era alvo e seguia o anti, ou melhor, Mahana-Kul.
Ao que parecia, esse cavalheiro estava fugindo dos companheiros. Achei que a
causa disso era o ativador celular, que continuava pendurado ao peito do baalol.
Tive a impressão de que descemos num elevador. Meu campo de visão era bastante
limitado, pois não podia encostar o rosto à abertura resultante do tiro, que ainda estava
muito quente.
Assim mesmo percebi que provavelmente nos encontrávamos muito abaixo do
templo. O robô estava com o círculo giratório dos braços armados apontado para trás.
Devia ter recebido ordens para cobrir a fuga.
Provavelmente Mahana-Kul pretendia levar todos os robôs de guerra. De repente
compreendi por que aquele malfeitor fazia tanta questão de acalmar os colegas.
Consegui ouvir parte da discussão violenta. Mahana-Kul soubera acalmar por pouco
tempo o ânimo dos outros representantes do culto de Baalol. A seguir agira
imediatamente...
O homem que matara a tiros provavelmente era um elemento de confiança. O chefe
do estabelecimento de Eysal tivera sua primeira pane com os robôs de guerra. Mas nem
por isso desanimara. Resolveu dirigir-se às profundezas situadas embaixo do templo, com
as quais provavelmente estaria muito bem familiarizado, graças ao posto importante que
ocupava.
Acreditava mesmo que Mahana-Kul era a única pessoa a possuir as chaves
eletrônicas das respectivas portas. Mas gostaria de saber por que tinha tanta pressa em
retirar-se da superfície do planeta. O que teria a ganhar se ficasse escondido aqui
embaixo? Nem por isso o ativador estaria em segurança.
Procurei levar o raciocínio até o fim. Só havia uma explicação lógica: Mahana-Kul
devia ter calculado uma chance. Se conseguisse sair de Eyciteo II, encontraria um meio
de ficar com o aparelho.
Acontece que na situação em que se encontrava, a idéia da fuga forçosamente estaria
ligada à de uma nave espacial. Preparei-me para inutilizar os comandos, a fim de
transformar o patife num prisioneiro dos subterrâneos de Eysal.
O robô parou. Arrisquei-me a aproximar o rosto do buraco aberto pelo tiro, cujas
bordas já estavam esfriando.
Uma escotilha sextavada de aço fechava nosso caminho. Era feita de um metal
brilhante avermelhado, cujas propriedades não conhecia.
O sacerdote pagão ficou escutando atentamente por algum tempo. Finalmente
resolveu encostar a chave eletrônica em bastão contra a fechadura invisível. O que estaria
acontecendo aqui embaixo? Quem teria sido o construtor da cidade subterrânea?
A tecnologia ali empregada era notável. Os elevadores que ligavam o templo ao
lugar em que me encontrava bastaram para despertar meu interesse profissional.
Acredito que, na modéstia, que é uma das minhas qualidades inatas, ainda não
mencionei que qualquer especialista da USO possui um estudo completo.
Basta dizer que sou engenheiro diplomado em Microtecnologia, na área especial da
Construção de Máquinas Ultra-energéticas.
As construções aqui existentes haviam consumido bilhões. Só o trabalho de
escavação, de revestimento das galerias e de instalação das centrais de abastecimento
deviam ter custado uma fortuna. Haveria um povo que pudesse dar-se ao luxo de realizar
obras tão dispendiosas num mundo bárbaro? E, o que era mais importante, qual seria a
finalidade disso? Ninguém constrói uma cidade subterrânea sem que tenha em vista um
objetivo definido. Comecei a desconfiar.
A escotilha sextavada abriu-se. Vi uma eclusa de ar. Entramos. A escotilha pela qual
acabávamos de passar fechou-se, e a que ficava à frente abriu-se.
O quadro que vi à minha frente me fez prender a respiração. Já vira muita coisa na
execução das minhas tarefas e conhecia as gigantescas fábricas robotizadas dos terranos e
dos arcônidas, mas não esperava ver aquilo que se encontrava à minha frente.
O tamanho do pavilhão não me impressionava tanto. O que mais me surpreendeu
foram as máquinas instaladas ali.
Não consegui descobrir sua natureza e finalidade, por mais que me esforçasse. Eram
figuras irreais de formatos diferentes. De vez em quando via um cabo fosforescente, que
tinha certa semelhança com os condutores arcônidas de alta-tensão. Mas era possível que
fossem mangueiras flexíveis ou condutos transportadores de corpos alongados.
O que mais me deprimia era o silêncio reinante nesses recintos enormes. Se aqueles
aparelhos eram geradores ou conversores, só podiam estar parados. No entanto, esperara
ouvir o zumbido de algum aparelho secundário.
Aproximei o rosto ainda mais do furo aberto a tiro. Meu campo de visão ampliou-se.
Mahana-Kul hesitava. Agia como um homem que só penetra numa área proibida porque
não tem outra alternativa. “Meu” robô agia normalmente, conforme era de esperar de uma
máquina desalmada.
Naquele momento convenci-me de que me encontrava na presença de um caso a ser
tratado pela USO, segundo as leis do Império Unido. Se além de tudo encontrasse uma
espaçonave que tornasse possível a ligação entre os baalols e os povos estranhos, não
poderia haver a menor dúvida.
Já fizera meu plano. Poria Mahana-Kul fora de ação na primeira oportunidade, e
logo a seguir procuraria levar o ativador a um lugar seguro. Mas aquilo que estava vendo
agora me fez hesitar...
Senti-me fascinado pelo gigantismo e pelo caráter surpreendente do pavilhão de
máquinas em cujo interior me encontrava. Mais adiante vi uma abertura na parede, atrás
da qual havia outros conjuntos. A iluminação era escassa. Mas depois que os olhos se
acostumassem, enxergava-se muito bem...
Mais uma vez meus pensamentos esbarraram numa série de perguntas. Quem
construíra aquilo? Qual era a finalidade dessas máquinas? Não acreditava mais que esse
labirinto fosse obra dos baalols. Seria um remanescente da colonização arcônida?
Voltei a olhar em torno, na medida em que pude fazê-lo através do buraco aberto a
tiro. Não, aquilo ali não fora construído pelos arcônidas. Quem teria escolhido este
planeta solitário para construir alguma coisa que, segundo parecia, não estava sendo
usada mais?
Travei minha arma de radiações e voltei a guardá-la no cinto. Mahana-Kul nem
desconfiara de que sua vida estivera por um fio.
Olhando muito assustado para os lados, o anti continuava a avançar apressadamente.
Atingiu o pavilhão seguinte. Mais uma vez descobri instalações técnicas. Desta vez tive a
impressão de que se tratava da unidade de geradores.
Um reator atômico sempre é semelhante ao outro, seja qual for a civilização que o
criou. Uma máquina desse tipo é ligada à sua finalidade e vinculada às leis físicas que
prevalecem em toda parte, motivo por que nunca pode opor-se ao fim para o qual foi
criada.
Era uma central energética, uma gigantesca central energética. Não me atreveria a
avaliar sua potência, mas tinha certeza de que era capaz de gerar alguns milhões de mega
watts.
Fiquei tonto. Será que Mahana-Kul sabia no que ele se metera? Se os técnicos da
USO, da Segurança Galáctica entrassem nesses pavilhões, o destino do planeta estaria
selado. Fossem quais fossem as circunstâncias, uma central energética como esta era
regida pelas leis de guerra e de emergência do Império. Ninguém, nem mesmo um
homem tolerante e generoso como Perry Rhodan, poderia dar-se ao luxo de não dar a
devida atenção a uma coisa como esta. Haveria necessidade de lançar mão de todos os
recursos militares, a fim de esclarecer o mistério. Quem sabe se um dia essa central
energética não seria utilizada contra o Império?
Resolvi transmitir uma mensagem. Pouco me importava que alguém me localizasse.
Tirei meu potente transmissor do bolso que trazia no peito e ajustei-o para a transmissão
de sinais Morse. Era o único meio de romper a camada de rocha que se amontoava sobre
minha cabeça e esperar que o destinatário tivesse uma boa recepção.
Transmiti o sinal de emergência de primeiro grau e acrescentei o código QXRR-
TETRA. Dessa forma estava fazendo uso dos meus extraordinários poderes e liberava a
área para o ataque.
O Lorde-Almirante Atlan não hesitaria um segundo. Alarmaria a Frota que se
mantinha de prontidão. Se um especialista transmitia o código QXRR-TETRA não havia
dúvida de que a intervenção militar era urgente e indispensável.
Dali a cinco segundos recebi o impulso que confirmava a recepção de minha
mensagem. Dali a menos de um minuto meu comunicador chamou. O hiper-receptor
revelou que Atlan havia transmitido a ordem de ataque para o espaço. Mahana-Kul não
percebera nada. Estava ocupado exclusivamente com seus problemas pessoais. Quanto a
mim, sabia que naquele momento as máquinas dos couraçados da USO estavam sendo
aceleradas ao máximo. A esquadra estava de prontidão, preparada para a partida-
relâmpago.
Isso significava um avanço muito rápido pelo espaço linear. E também significava a
chegada da Frota em apenas trinta minutos. Uma vez que também transmitira o código
TETRA, a Frota informaria os quartéis-generais do Império, situados na Terra e em
Árcon II.
Assim que o administrador geral recebesse a mensagem — e com a organização
minuciosa dos serviços terranos, isso levaria apenas alguns minutos — um grupo de
cruzadores e couraçados ligeiros chegaria a Eysal, para dar cobertura à operação.
Lembrei-me dos salonenses que ainda acreditavam serem as criaturas mais
desenvolvidas do Universo. Bem, todos os povos galácticos já acreditaram a mesma
coisa. Os salonenses não manteriam essa crença por muito tempo. Já não pensariam que
seus canhões primitivos de óleo volátil fossem a invenção mais formidável de toda a
História. Tinha tanta certeza disso quanto da existência da Galáxia.
***
O reator de fusão do robô trabalhava a toda força. Supria a energia das armas
térmicas, além do que fornecia a corrente para o mecanismo de deslocamento e para o
campo defensivo.
O aparelho de arejamento do gerador magento-hidrodinâmico começou a assobiar.
Era um equipamento antiquado. Ainda funcionava com base em ímãs hiper-condutores
que transformavam a energia térmica produzida pelo reator de função em corrente
contínua. A conversão em corrente alternada, que era indispensável ao funcionamento das
armas, exigia um desempenho técnico que me fez sacudir a cabeça de espanto.
Ao que parecia, para os construtores dessas máquinas, a refrigeração das máquinas
era o problema número um. Em todos os pontos havia aberturas de sucção. Meus pés
estavam encostados ao revestimento de plástico de uma turbina muito gasta, cuja tarefa
consistia em fornecer o ar de um refrigerador de óleo.
O ar quente era expelido acima de minha cabeça. O rugido e o matraquear dos
inúmeros aparelhos auxiliares quase me deixou surdo. Estava na hora de abandonar esse
alojamento desconfortável. Mas com isso começava nova série de problemas.
O robô estava lutando com vários antis, que de repente haviam saído de algumas
portas laterais.
Mahana-Kul se abrigara mais à direita. Seus companheiros haviam agido mais
depressa do que esperara. O ataque tivera início quando chegamos a um pequeno hangar,
em cujo interior havia uma pequena espaçonave.
O veículo espacial descansava sobre as aletas de popa. Não havia dúvida de que se
tratava de um modelo construído pelos antis. A escotilha de popa estava aberta. No
momento parecia que o sumo sacerdote ainda conseguiria entrar na nave. O robô fazia
um excelente trabalho. Desconfiei de que seu campo defensivo energético estava sendo
reforçado por meio de um fluxo de energia mental.
Deixara passar a possibilidade de dominar Mahana-Kul sem correr o menor perigo.
Em compensação acabara de descobrir que aqui embaixo realmente havia uma
espaçonave. Ao que tudo indicava, fora colocada num poço de decolagem não construído
pelos antis. Pertencia às instalações misteriosas situadas sob a superfície do planeta de
Eyciteo.
Foi tudo que consegui descobrir. Só tive um interesse secundário pela batalha
travada com os outros antis. Acreditei ter encontrado a solução de todas as indagações. A
única coisa que me interessava naquele momento era impedir a decolagem da espaçonave
e prender o sumo sacerdote.
O robô libertou a área para o traidor e foi avançando. Teria de apressar-me. Abri a
portinhola de reparos, preparei-me para o salto e avaliei a altura. Era de
aproximadamente um metro e meio. Seria um salto bastante arriscado.
Vi o tremeluzir do campo defensivo energético de alta potência à minha frente. Para
atravessá-lo, teria de inutilizar o projeto, da máquina.
Levantei a arma, fiz pontaria e puxei o gatilho. Um lampejo deu sinal da força
destrutiva do raio energético. No mesmo instante, uma onda de pressão atirou-me para
fora do robô.
Bati com toda força no chão. Fiz um rolamento para diminuir o impacto e corri em
direção à eclusa atrás da qual ficava o hangar e em cujo interior estava guardada a nave.
O robô lutou para conservar o equilíbrio. Conseguiu estabilizar-se, e em alguns
segundos seu gerador de emergência entrou em funcionamento.
Afastou-se, disparando ininterruptamente. Cheguei à escotilha externa da eclusa.
Estava sufocado e meu rosto e mãos estavam cobertos por bolhas produzidas pelas
queimaduras. Embora já não pudesse tornar-me invisível, Mahana-Kul não notou minha
presença.
Antes que se retirasse, entrei no hangar e coloquei-me na subida que levava à
escotilha de popa.
As aberturas das válvulas de escapamento do dispositivo de regulagem de pressão
proporcionaram-me um apoio seguro. Após isso subi pelos tubos pressurizados do
dispositivo hidráulico de pouso. Pouco antes de chegar à escotilha, segurei-me no
corrimão da escada e entrei na nave.
Antes que alcançasse a sala de comando, que ficava dez metros para cima, o rugido
vindo de fora cessou. Parecia que até mesmo o sumo sacerdote estava fugindo do ar
quente.
Passou apressadamente pela eclusa, fechou a escotilha interna e subiu correndo pela
escada de metal leve. Esperei-o de arma em punho bem atrás da porta.
Quando sua cabeça apareceu à minha frente, percebi que o anti desligara seu campo
energético. Achava que só poderia ter agido assim. Um homem sensato não entra numa
espaçonave pequena, sem antes assegurar a liberdade de movimentos...
Mahana-Kul deu mais um passo e seu quadril apareceu acima de minha cabeça. Não
o preveni. Num instante fiz pontaria para o gerador do campo defensivo preso ao cinto e
atirei.
O aparelho desfez-se numa chama azul. Mahana-Kul ergueu os braços, como se
estivesse procurando apoio, soltou um grito e caiu pela escada. Dei alguns saltos para a
frente e coloquei-me na borda da escotilha de popa.
O anti levantou-se. Gemia e olhava em minha direção com uma expressão de
perplexidade. Quase não estava ferido. Reunindo toda a força dos pulmões, gritei:
— Mahana-Kul, o senhor está preso em nome do Império. Levante os braços e fique
com o rosto virado para a parede. É bom que saiba que não deve subestimar o efeito de
minha arma.
Só agora o sacerdote me descobriu.
— Como...?! — perguntou e arregalou os olhos.
Parecia lutar para conservar o autocontrole. De repente o sem-vergonha começou a
rir como se não acabasse de escapar da morte. Fiquei com raiva.
— Levante-se e ponha as mãos para o alto! — berrei e fiz pontaria sobre seu peito.
— Sou o especialista Lemy Danger, Major da USO, e tenho poderes para prendê-lo. Volto
a preveni-lo...!
Mahana-Kul ainda estava rindo. Deu um salto para o lado e pegou a arma. Esperei
até o último instante antes de puxar o gatilho.
O corpo do anti foi atingido pelo hálito incandescente de minha arma térmica.
Uma luz azul envolveu-o. No início pensei que seu campo defensivo estivesse
funcionando de novo. Mas quando a estranha luminosidade se tornou ainda mais intensa
e emitiu um uivo, percebi o que acabara de fazer. Devia ter atingido o ativador celular
com toda a capacidade energética de minha arma!
O uivo tornou-se mais forte. Mahana-Kul estava morto, mas o aparelho estava
despertando para uma atividade que me deixou apavorado.
De repente o objeto oval pareceu transformar-se numa estrutura diferente. Inchou,
transformando-se numa esfera energética azul. Emitia radiações que fizeram com que me
retirasse às pressas para o interior da nave.
Um fluxo invisível martirizava meu corpo. Tive a impressão de que tal fluxo
produzia a dissolução das moléculas e a cisão dos grupos atômicos.
Finalmente houve uma detonação que quase me deixou inconsciente. Quando
recuperei os sentidos, a luminosidade se apagara e os uivos haviam cessado.
Levantei-me gemendo e fui rastejando para a frente. O corpo de Mahana-Kul
encolhera. Estava reduzido a uma fração de seu tamanho anterior. Não se via o menor
sinal do ativador celular.
Desci pela escada e esforcei-me para atingir o botão do mecanismo automático que
abria a porta. Ficava quase a dois metros acima do chão. Não consegui chegar lá.
Sentei-me e resolvi aguardar os acontecimentos. Dali a uns dez minutos ouvi os
berros de Melbar Kasom. Gritava meu nome. Gritei de volta. É claro que ninguém me
ouviu. Aguardei por algum tempo, depois disparei um tiro com minha potente arma. O
disparo levou Kasom a finalmente abrir a eclusa.
Parecia um monstro primitivo parado na câmara pressurizada. Estava com a arma
múltipla apontada para a frente. Seu campo defensivo superpotente emitia uma
fosforescência esverdeada.
Ouvi o chamado de outros homens, vindo de muito longe. Eram terranos. Concluí
que a Frota chegara conforme previra, e as tropas de desembarque haviam restaurado a
ordem.
Kasom desligou seu campo defensivo, colocou-me na mão e enfiou-me brutalmente
no bolso externo da calça. Depois disso, só senti que o ertruso estava correndo. Aquele
bruto nem parecia perceber que com isso me expunha a uma tremenda força de inércia.
Os movimentos de suas pernas atiraram-me para a frente e para trás com tamanha força
que perdi os sentidos. Era mais ou menos como se um homem normal ficasse exposto a
uma aceleração de 10 G!
***
Quando acordei, o planeta estava estremecendo. Um terrível rugido subia das
profundezas. O templo de Kulan desabara. Atrás dos destroços, as montanhas se abriram,
e gigantescas antenas subiram por poços de cuja existência nem se desconfiara.
Alguém me havia enrolado num pano. Senti-me ofendido por estar embrulhado
daquela forma e pus-me a gritar com toda força. Alguém veio e me desembrulhou. Vi o
rosto de Atlan acima de minha cabeça.
— O especialista Danger está presente, sir — disse em tom marcial.
A resposta de Atlan deixou-me deprimido.
— O que andou fazendo lá embaixo, seu azarado? Vamos. Fale logo! O que
aconteceu?
Kasom também apareceu. Fitava-me com um sorriso desavergonhado. Iniciei meu
relatório. Quando concluí, o rugido subterrâneo cessou.
Atlan começou a falar em tom enfático:
— Já sabe que todos os rastreadores estruturais da Galáxia estão queimados? O
ativador destruído pelo senhor parece ter funcionado como transmissor de impulsos. De
repente as máquinas desconhecidas entraram em funcionamento. Trata-se da maior
estação de hiper-rádio que já vi. O rugido foi causado pela transmissão de ondas de
quinta dimensão, cuja potência não pôde ser medida. Já sabia disso, major?
Cobri o rosto com as mãos e sacudi a cabeça. Atlan colocou-me no chão. Estávamos
fora do templo. Mais à direita vi o vulto gigantesco de um couraçado da USO. As tropas
robotizadas estavam vasculhando a área. Não se via nenhum sinal dos salonenses.
Dali a três dias apareceu Perry Rhodan com o supercouraçado terrano Eric Manoli.
As equipes científicas desceram até a cidade subterrânea, cujas máquinas já haviam
silenciado. Nada fora destruído; os abalos apenas fizeram desmoronar o templo de Kulan.
Os antis que haviam sobrevivido ao ataque das tropas da USO continuavam a
afirmar que nada sabiam sobre as finalidades das máquinas subterrâneas. Disseram que
haviam chegado a Eysal há trezentos anos, quando criaram um estabelecimento no
planeta. Acrescentaram que a cidade subterrânea fora descoberta por acaso, mas as
máquinas nunca chegaram a ser usadas.
Bem, já sabíamos disso. Perry Rhodan mandou prender os sacerdotes pagãos.
Teriam de enfrentar um tribunal do Império.
Dali a alguns dias um físico terrano criou o conceito de gerador energético-
gravitacional de impulsão.
Rhodan em pessoa explicou-me que não havia dúvida de que os maquinismos
haviam sido colocados em funcionamento pelos impulsos do ativador celular destruído.
As suspeitas de Atlan foram corretas.
— Mas, sir, o que poderemos conseguir com isso? — perguntei em tom de
desespero. — Sinto muito ter atingido o ativador. Quero ser punido, sir.
O grande terrano sorriu e perguntou em tom delicado se podia pegar-me na mão.
Podia, sim. Fitei os olhos cinzentos do grande administrador com uma expressão
radiante. Rhodan continuava a sorrir e disse:
— Major, não costumamos punir um ótimo oficial que arriscou tudo no desempenho
de uma missão. O senhor preveniu o anti e atirou em legítima defesa. Não foi isso
mesmo?
— Foi sim, senhor! — disse, ficando em posição de sentido.
Enfrentei um terrível martírio, pois receava cair a qualquer momento da mão de meu
chefe supremo.
— Pois bem, nesse caso não se fala mais nisso. O senhor não atingiu o aparelho de
propósito. Ainda descobriremos o que significa esse estranho choque gravitacional. Ao
que parece, ninguém foi prejudicado pelo mesmo.
Continuamos a conversar amistosamente por mais algum tempo. Finalmente
Rhodan sugeriu — de forma alguma ordenou — que voasse à Terra e relatasse minhas
experiências a um grêmio ilustrado.
É claro que Melbar Kasom ficou com inveja. Quando embarquei na Eric Manoli,
onde pretendia iniciar imediatamente meu relatório escrito, o ertruso gritou atrás de mim:
— Major, tome cuidado para não ser aspirado pelos aparelhos de ar condicionado.
Pálido de susto, olhei para aquele sem-vergonha, que saiu marchando com uma pose
exagerada. Estufou o peito como se tivesse sido ele que matou o lobo-batráquio.
Ao concluir, quero ressaltar expressamente que, evidentemente, entrei
conscientemente e de minha livre vontade na narina do monstro.
Não quero que ninguém se atreva a afirmar que Lemy Danger foi inalado... contra a
vontade. É bom não se esquecer disso...

***
**
*
Lemy Danger atirou. E o tiro teve
conseqüências catastróficas...
Um gigantesco gerador voltou a entrar
em atividade. Ninguém desconfia das
conseqüências que a onda energética
produzida por esse gerador provoca em muitos
mundos da Galáxia... até que uma nave
exploradora se veja em dificuldades! A Nave
Explorer em Perigo — é este o título do
próximo volume da série Perry Rhodan.

Você também pode gostar