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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 1
TÍTULO: MARUNE: A ESTRELA DE BATALHA
TÍTULO ORIGINAL: BATLESTAR GALACTICA
AUTOR: GLEN A. LARSON / ROBERT THURSTON
TRADUÇÃO: SARA SERUYA
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel1969@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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GLEN A. LARSON / ROBERT
THURSTON

A ESTRELA DE BATALHA
Tradução de Sara Seruya

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 1


DO DIÁRIO DE ADAMA:
Há mais de mil anos rebentou abruptamente a guerra com os Cylons —
sem pré-aviso, nem sequer uma declaração formal de que ia haver guerra.
Como piratas, sem advertências e acoitando-se sob cores falsas, os Cylons
abriram fogo sobre as nossas naves comerciais, sem nos deixarem sequer
tempo para uma última prece ou lançarem um único disparo admonitório de
canhão laser. Vieram para destruir, e destruíram as nossas naves, milhares
delas. Lançaram sobre os doze mundos uma frota de naves de guerra, bases
estelares, como por vezes são chamadas. Raça arrogante que eram, os Cylons
não contaram que estivéssemos preparados para o embate. Estávamos
preparados e no próximo milhar de anos continuámos em estado de alerta.
Mas um milhar de anos é muito tempo, mesmo quando a duração de
alguns anos é reduzida petas deturpações temporais da navegação espacial.
Esquecemos a extensão da perfídia cylon. Antes nos tornámos escravos dos
nossos próprios mitos. Não podíamos ser subjugados, éramos pessoas
desembaraçadas e engenhosas que amávamos a liberdade, éramos amigos da
aventura. Quando os Cylons nos ofereceram a paz tão abruptamente como
tinham aberto as hostilidades, tínhamo-nos esquecido de que não eram de
confiança. Embarcámos na missão de paz com esperança, na expectativa de
ver, finalmente, terminados dez séculos de belicismo ininterrupto.
Pacificamente, tínhamos explorado mundos diversos do universo que não
tinham conta, pacificamente tínhamos estabelecido o sistema de doze mundos
que passaram a ser as nossas colônias principais, pacificamente voltaríamos a
viver. A alegria renasceu nos nossos corações. Aqueles de nós cujas vidas
tinham sido integralmente dedicadas à guerra deviam ter visto mais longe,
deviam ter tido a percepção de que a alegria nos nossos corações tinha um
significado estratégico. Quanto mais nos afastávamos dos factos que
formavam a estrutura dos nossos desígnios, mais nos tornávamos
semelhantes aos políticos que nos governavam, homens e mulheres que
tinham turvado de tal maneira os espíritos com as palavras do poder que não
souberam compreender as palavras dos poderosos quando lhes vieram
oferecer a paz de sorriso nos lábios.
Continuo a dizer que nós devíamos ter visto mais longe. É essa a falácia
do instinto democrático. Eu devia ter visto mais longe. Eu sempre fora
especialmente dotado para enfrentar uma mente alienígena que não fosse
compreensível. Daquela vez falhei. A partir daí jurei solenemente que nunca
mais voltaria a falhar.
CAPÍTULO I
O sensor de contacto implantado no uniforme de voo de Zac, a meio das
costas, emitia ondas de impulsos vibrantes que lhe percorriam a espinha de
cima a baixo. O sistema de sensores detectava uma anomalia naquela área do
espaço; as suas guinadas ligeiras e pulsantes deram sinal a Zac que
verificasse. Aos impulsos induzidos veio juntar-se uma excitação expectante
quando ligou a sonda automática e olhou para os dados, tanto em números
como em diagrama, que se acumulavam na sua tela de radar. Quando voltara
pela primeira vez à estrela-de-batalha Galactica como praticante verde
inchado com a bagagem informacional que lhe vinha dos anos de treino na
Academia Espacial, Zac fora aconselhado pelo pai, o comandante Adama, a
não se entusiasmar demasiado com a guerra ou qualquer coisa que tivesse a
ver com ela. Há uns mil anos que estavam em guerra e não havia necessidade
de ansiar por ela como se se tratasse do nosso melhor amigo. No entanto, Zac
nunca fora capaz de calar a emoção arrepiante de cortar o espaço no seu caça
individual de linhas graciosas e fazer saltar as naves cylons em pedaços de
infinito. Agora, que era tenente, aos vinte e três anos, bem depois da
maioridade, ainda sentia a mesma ânsia pela batalha que experimentara no
seu primeiro lançamento da rampa da Galactica.
O radar apresentava agora a interferência localizada pelo sistema de pré-
alerta. Dois veículos aéreos não identificados pairando nas imediações de
uma velha lua chamada Cimtar no mapa estelar e que girava em volta da
órbita decadente do único planeta deste sistema solar remoto e desabitado.
Lugar ideal para estação-base para um ataque-surpresa à frota colonial. Como
parte da patrulha dianteira da frota, competia a Zac investigar esta ameaça
bizarra, latente.
— Há ali qualquer coisa... — interveio a voz de Apollo. O murmúrio de
Apollo era tão sibilante, as suas palavras enunciadas com tanta precisão, que
Zac teria jurado que o irmão estava ali mesmo na cabina de comando com
ele, e não em missão de reconhecimento noutro caça a uma certa distância
dali.
— Sim... — respondeu Zac —, estou a ver. Que é que te parece?
— Já pensamos nisso quando formos verificar. Pode ser uma patrulha
cylon.
— Pode ser. Mas tão longe da base... Onde é que têm a nave-base?
— Talvez não tenham nave-base. Forças de reconhecimento de longo
alcance, depósitos de reabastecimento com carregamentos suplementares de
tylium. Estranho...
— O quê, Apollo?
Uma das coisas que Zac aprendera como piloto de cockpit era atender a
todos os pressentimentos do irmão.
— Só estou a apanhar elemento estático para o lado de lá daqueles tipos,
Zac.
Apollo tinha razão. Zac deu uma olhadela ao radar e apenas via as duas
silhuetas misteriosas e um estranho campo estático de interferência,
constante, para lá delas. Por ser estático, poderia sugerir uma tempestade,
mas as previsões cartográficas não haviam indicado tempestades para aquela
zona.
— Estou a ver o que queres dizer — disse Zac. —Pensei que o meu
radar tivesse qualquer coisa.
— Podia ser uma tempestade, mas isso não faz...
A voz de Apollo sumiu-se, deixando no ar uma nota de preocupação
perplexa no meio daquele silêncio estático. Uns momentos depois, Apollo
prosseguiu:
— Se for mesmo uma tempestade, vai apanhar a frota mesmo em cheio,
e já não falta muito para isso. É melhor irmos lá ver o que se passa. Carrega
nos turbos.
— Mas o que é isso, Apollo, as ordens que temos de poupança de
combustível proíbem especificamente o uso dos turbos, exceto em
circunstâncias de batalha ou quando se faz o salto para voltar à base!
Zac podia ter previsto a resposta irritada do irmão.
— Meu menino, deixa-te de trazer para aqui aquela conferência de paz,
que não tem nada a ver com o que tens de decidir agora. Até termos
confirmação oficial de uma assinatura qualquer, vale tudo. Ainda é esta a
regra de jogo.
Nos auscultadores, Zac ouviu a aceleração ribombante da nave de
Apollo, como que a pontificar a admoestação anterior. Okay, pensou, vamos
lá a isso. Todo o seu corpo se encheu da tensão que precede o combate. Era
uma sensação estupenda. Zac premiu ferozmente os botões de lançamento do
trio de turbinas e enterrou o pé num pedal. O impulso resultante atirou-o para
trás, de encontro ao assento.
Rumando a toda a velocidade à velha lua. Apollo pensava, apreensivo,
na suspeita de que qualquer coisa se passava na zona desabitada do sector
Lianus. É que, pura e simplesmente, não batia certo. As ordens que o pai
mandara obrigavam especificamente a que todas as naves, fossem elas de
guerra ou mercantes, transmitissem a todo o momento as suas posições
exatas. Não havia razão para que alguma delas o ignorasse, não podia haver
razões de ordem estratégica ou comercial que as levassem a tomar os
perigosos riscos de andar incógnitas. Uma vez eliminadas todas as naves
conhecidas das doze colônias, incluindo veículos não registados, só restava
uma solução —cylons. Não era solução a que Apollo estivesse
particularmente interessado em chegar.
Ouviu-se a voz de Zac no comunicador.
— Ei, mano!
— Que é, menino?
— Já sei porque é que me meteram neste trabalho. O Tigh está-me a
pregar — não, regista bem —, o Tigh está a fazer-me pagar aquela
escapadelazinha de repouso-recuperação com a enfermeira-chefe do Paye na
enfermaria de bordo. Mas tu, como é que vieste parar a esta patrulha?
Zac tinha sempre de estar ao par de tudo. Às vezes, a sua curiosidade de
rapazinho irritava Apollo até às últimas.
— Ah —disse Apollo —, é que pensei que uma vez que o armistício seja
assinado, nos vão pôr a todos na rua, nós, guerreiros, e nos mandam para um
daqueles planetas onde te obrigam a tanta dose de lazer organizado que ficas
doido de tanto enfado. Por isso... Apeteceu-me só cheirar pela última vez
uma missão.
— Hum... —disse Zac. — Ouve lá, não foi, por acaso, por quereres
armar em guardião do teu impulsivo irmão mais novo, não? Quer dizer, fazer
de meu cãozinho de guarda enquanto está...
— Deixa-te de asneiras, Zac. Não estou a fazer de cão de guarda. De
modo nenhum. Como te disse...
— Tens a certeza, irmão mais velho?
Apollo detestou aquela ênfase sarcástica no «mais velho». Às vezes, o
irmão era mesmo difícil de aturar, quando se punha com estes desabafos.
— Não sejas parvo, Zac. Tens uma folha de serviços impecável, para já
não falar daquele velho assunto, que já cansa, das notas que tiveste quando
saíste da academia e com as quais bateste o recorde lá do sítio. Não preciso
de armar em guardião de...
— Esquece isso, Apollo.
O comunicador crepitou em silêncio por alguns momentos e logo depois
Zac voltou a falar:
— Ouve lá, que é que vais fazer quando for assinado o armistício? Vais
mesmo para um daqueles chatos planetas de ócio?
Apollo sorriu. Não tinha a certeza que Zac, que precisava de ter sempre
alguém ao pé com quem conversar, fosse perceber o que ia dizer.
— Quando a guerra acabar oficialmente, não me parece que me apeteça
ficar de vez seja em que planeta for. É só o tempo de reabastecer e voltar a
subir.
Nova crepitação no comunicador antes que a voz de Zac se fizesse ouvir
novamente.
— Mas então quais são os teus planos para o pós-guerra, Apollo?
— Não sei bem, mas ainda há imenso espaço por explorar. É esse o
verdadeiro desafio, Zac, a exploração profunda da galáxia! Sabe-se lá o que é
que vamos encontrar para lá das doze colônias!
— Desde que não sejam cylons também... Essa gente faz-me gelar o
sangue nas veias. Estás à espera que se faça a paz com eles? Quer dizer, que
se faça mesmo?
— Se queres dizer se eu acredito ou não na paz com os Cylons,
sobretudo uma paz que dure até a tinta ficar ressequida no papel do tratado,
só te posso responder que não sei. Mas não me parece que seja bom estarmos
a discutir isso pelo comunicador. Se nos estiverem a seguir, era capaz de ser
um bocado embaraçoso depois lá na Galactica.
— Pois é... E isto, a Galactica? Coradinho, coronel Tigh?
— Para com isso, Zac. Concentra-te na patrulha. Cimtar já ali está à
frente. Vamos até lá deitar uma boa olhadela, está bem?
— Vamos a isso, meu espertalhão!
Num instante se aproximaram do objetivo, sobrevoando-o. Era um
bólide espacial volumoso e pesado, de aspecto gasto. Dir-se-ia flutuar ao
abandono, balanceando como uma isca de pesca sem engodo na sua própria
área do mar espacial. Por cima estava à velha lua, por baixo uma camada
violácea de nuvens que, segundo Apollo se recordava, não eram
características do planeta desértico e desabitado.
— Que é isto? —sussurrou Apollo.
— Digo-te já num segundo —respondeu Zac.
Introduzindo no cartão perfurado os dados necessários, Zac obteve a
combinação que identificaria o veículo apresentado no radar. A intensidade
da imagem neste ia variando à medida que diversos perfis de aeronaves
existentes eram comparados com o antiquado aparelho em análise. Surgiu a
breve trecho um protótipo e logo a seguir a identificação, impressa na parte
inferior do desenho.
— O manual de guerra diz que é uma nave de abastecimento cylon —
informou Zac. — Pela leitura do radar, está vazia.
A voz de Apollo tornou-se agitada.
— Uma nave-tanque vazia? Longa vida às doze colônias se me
explicarem o que é que faz nestas paragens uma nave-tanque...!
— E onde é que se meteu a outra nave, aquela que...
— A outra deve-se-lhe ter sobreposto no radar, com certeza. Manobra de
dissimulação, tanto quanto consigo perceber. Esquisito... Gostava de saber o
que é que estão a esconder.
— Não sei, mas está extraordinariamente perto daquelas nuvens.
Zac sentia-se impaciente, não disposto a esperar pelas ordens do irmão.
Quando subisse a capitão, como Apollo, já podia dar ordens. Claro, nessa
altura já Apollo devia ser almirante, ou coisa parecida, e, se calhar, ainda
devia continuar a ser ele a dizer-lhe o que havia a fazer. Apesar de ter seguido
desde pequeno as pisadas do destemido irmão mais velho, e de o seu próprio
prestígio na Academia Espacial ter sido esbatido pelas fábulas do heroísmo
de Apollo, que reproduzira aos companheiros de classe, Zac estava ansioso
por subir ainda mais pelos seus próprios meios, executar as proezas
espampanantes que tinham tornado Apollo tão famoso em todas as estrelas-
de-batalha.
Porque é que estava a pensar nesses termos agora? O pai e os outros
grandes líderes dos doze mundos estavam na Atlantia a elaborar um acordo
de paz, e ele para ali a especular em tornar-se grande herói da guerra... Havia
qualquer coisa que não jogava bem naquele seu raciocínio. Havia de falar
nisso tudo com Apollo, mais tarde, quando voltassem para a estrela-de-
batalha e tivessem a habitual conversa pós-missão.
— Bem, meu menino — interveio a voz de Apollo, sussurrando
suavemente no auscultador. — Viemos para ver. Vamos aproximar-nos mais
um bocado.
— Tem cuidado, Apollo — disse Zac, logo espantado com aquela sua
cautela, que lhe era tão pouco característica. —Não estou a gostar disto...
— Não gostas, hem?— E a voz de Apollo soava mais expressiva, tocada
por uma nota de ternura fraternal. — Sempre disse ao pai que tu te
comportavas mais como um natural de Scorpia, que não parecias nada ser de
Caprica.
— Não interessa, não gosto nada disto...
— Não tens idade para gostares ou deixares de gostar destas coisas,
piloto! — Zac acenou com a cabeça, embora Apollo não pudesse vê-lo. Não
era raro nele ter uma reação física tão imediata a uma censura de Apollo. —
Seja como for —continuou Apollo —, enquanto estamos para aqui enfiados
na patrulha, o Starbuck arrastou um par daqueles gemons para um jogo de
cartas e eu quero lá chegar antes que ele limpe aqueles atrasos de vida.
Olhando pela escotilha lateral, Zac avistou o viper de Apollo virar sobre
a asa para descer na direção do antigo cargueiro. Sentindo com agudeza a sua
condição de irmão mais novo, Zac programou o voo para o seguir, batendo
mal-humorado nos botões de curso.
***
Os ossos angulosos do queixo do comandante Adama pareciam obra de
um qualificado cortador de diamantes. Mas os seus olhos frios e penetrantes
não poderiam ter sido concebidos nem pelo melhor dos artesãos. Os
elementos da tripulação temiam Adama tanto quanto o estimavam. Existia a
bordo da Galactica a superstição popular de que, quando o comandante ficava
furioso, aqueles olhos poderosos recolhiam para dentro do crânio e emitiam
raios que o faziam parecer tão inumano como se se tratasse da materialização
de um deus de alguma nova mitologia estranha. Embora alto e forte, nada
tinha que se parecesse com o típico desconchavo do homem musculado no
movimento normal. Os seus gestos eram suavemente elegantes e possuía um
à-vontade na sua maneira de estar que fazia que mesmo os seus inimigos se
sentissem confortáveis em sua companhia — pelo menos quando ele próprio
se sentia confortável com eles.
Mantinha-se distante dos outros, os seus colegas comandantes do
Quórum dos Doze. Os seus brindes à recém-encontrada paz soavam-lhe a
falso. Na sua frente, como se propositadamente ali disposto para sua visão
particular, os milhões de estrelas visíveis através do visor galáctico da
Atlantia lembravam-lhe, como lembrariam a qualquer homem contemplativo,
a sua insignificância neste universo. E mais ainda a pequenez dos
acontecimentos históricos que lhe ficavam para trás. Os homens faziam
guerras, aclamavam o advento da paz, mas parece que arranjavam sempre
outra guerra que impedisse que a paz se tornasse demasiado bem
estabelecida.
Esta paz preocupava-o particularmente. Havia demasiada tensão no
entusiasmo, demasiada simplicidade nas conversações. Não lhe agradava o
facto de os Cylons, ausentes, controlarem os acontecimentos como
manipuladores de marionetes — mandando um intermediário humano e
combinando o último encontro para a assinatura de tratados nas coordenadas
espaciais por eles escolhidas.
O presidente Adar, com a sua aparência, milímetro a milímetro, de
homem de saber tradicional, com a sua barba grisalha e toga ondulante, tinha
designado o acordo como o mais significativo acontecimento na história da
humanidade. A fila de velas na mesa do banquete, iluminando as joias
vermelho-sangue refletidas no seu cálice, tinham emprestado à celebração
oficial uma certa religiosidade. E a untuosidade da reação de Baltar ao brinde
deixou na boca de Adama uma sensação de sabor amargo. Porque teriam os
Cylons usado Baltar como enviado a esta conferência? Embora se
autoproclamasse conde, Baltar era pouco mais que um comerciante, um
negociante de peças raras. Que era rico, isso sim, tremendamente rico, mas
não propriamente a ligação perfeita entre humanos e Cylons, não o portador
adequado de créditos sagrados. Por que mandar um corpulento mercador cuja
pele, pouco saudável, fazia lembrar uma moeda baça, quando se dispunha de
diplomatas sequiosos de poder?
Quem poderá alguma vez adivinhar o que se passa numa mente
alienígena? Talvez os Cylons tenham dispensado alguma reflexão até
chegarem à escolha do pesadão e balofo comerciante. E. além disso, quem
era Adama para julgar as facetas da paz? Não conhecia a paz: tinha orientado
toda a sua vida para a luta na guerra. Não sabia nada, fatual ou
filosoficamente, sobre a paz.
Adama voltou de novo a sua atenção para a celebração, que estava na
fase final das formalidades. Adar abraçava Baltar. Os enfeites do
comerciante, as vestes coloridas, especialmente a capa de veludo comprida e
flutuante, faziam parecer rústica a indumentária simples do presidente. A
única semelhança entre os dois homens estava nas botas altas que ambos
usavam — um elo bizarro, uma vez que as botas de Adar não condiziam de
forma alguma com as linhas austeras da sua toga de seda branca. Mesmo
aqui, as botas de Baltar, com os seus arabescos, pareciam mais sumptuosas.
Era ridículo o presidente do Quórum dos Doze ter de abraçar oficialmente o
enviado-mercador. A voz de Adar ressoou através da sala de jantar da
Atlantia:
— Fez bem. Baltar. O seu incansável trabalho tornou possível esta
conferência de armistício. Assegurou para si próprio um lugar nos anais da
história.
« Na verdade... Um lugar nos anais da história!», pensou Adama. « O
homem nem sequer é digno de nota de fim de página...! »
Sempre aborrecera Adama ouvir o seu velho amigo Adar falar tão
oficiosamente e de uma maneira tão abertamente política. Tinham ido para a
Academia Espacial juntos, Adama e Adar. A proximidade alfabética dos seus
nomes juntava-os sucessivamente na mesma turma, um exemplo significativo
— como sempre diziam — da força do destino a cimentar uma valiosa
amizade. A sua caminhada lado a lado fora mais tarde assegurada quando
ambos haviam sido destacados para a mesma frota de estrelas-de-batalha
como pilotos de caças. Depois de ter sido eleito presidente do Quórum dos
Doze, Adar continuara a ter em muita conta o conselho de Adama. Até esta
data.
A obsequiosa aparência de humildade na cara de Baltar obrigou Adama
a concentrar-se de novo no visor galáctico. Os músculos dos ombros
contraíram-se-lhe ao ouvir a resposta do comerciante a Adar:
— A escolha que os Cylons fizeram ao indigitar-me como elemento de
ligação com o Quórum dos Doze foi um ato da Providência, não apenas uma
opção da competência.
O ruído da assistência fez-se sentir com maior relevo e Adama não
conseguiu ouvir a resposta de Adar ao comerciante. Ainda bem... Já não
estava para ouvir mais politiqueirices. Já tivera a sua dose naquele dia.
— Pareces aborrecido, meu velho — disse Adar. Adama sentira o
presidente a aproximar-se, mas preferiu, num toque de leve insubordinação,
fingir que não dera por ele. Suspeitando do antagonismo de Adama, Adar
falou com aquela nasalidade condescendente que era sua característica
quando se sentia confrontado. Cofiando agitadamente a pera grisalha, como
se pensasse em ir barbeá-la de seguida, disse: — Bom, vejo que a festa não é
um grande sucesso para todos os meus pupilos.
Embora exasperado com a fraseologia patriarcal de Adar, Adama
resolveu não responder da mesma forma.
— O que me preocupa é o que ali nos espera — disse Adama, apontando
para o brilhante campo galáctico. Adar sorriu no seu mais condescendente
sorriso.
— Quero crer — disse ele — que não te manténs agarrado às tuas
suspeitas em relação aos Cylons. Eles pediram este armistício. Querem a paz.
Eu, cá por mim, estou ansioso pelo nosso próximo encontro com os
representantes dos Cylons.
Adama estudou a cara agradável e confiante do presidente e contemplou
mesmo a hipótese de se lhe dirigir nos termos rudes dos seus tempos de
pilotos do espaço. Mas não, Adar estivera demasiado afastado dessas lides, e
por um período demasiado longo, para ainda compreender a linguagem
corriqueira. Adama recorreu ao fraseado diplomático.
— Perdoe-me, Sr. Presidente, mas os Cylons detestam profundamente os
humanos com todas as fibras do seu ser. No nosso amor à liberdade, à
independência, na nossa necessidade de sentir, de questionar, de afirmar, de
reagir contra a opressão — em tudo isso somos diferentes deles. Para eles nós
somos os alienígenas e nunca hão de aceitar a nossa maneira de ser, as nossas
ideias, a nossa...
— Mas aceitaram. Por intermédio do Baltar, buscaram a paz.
Havia uma terminação na voz de Adar, uma ordem de acabar ali mesmo
a discussão. Adama fixou o homem barbudo, que, apesar de seu
contemporâneo, parecia tão mais velho que ele. Sabia que não valia a pena
opor-se-lhe neste momento supostamente feliz. Como em qualquer batalha,
havia sempre um ponto lógico de retirada em disputas políticas.
— Pois é — disse Adama — claro que tem razão.
É claro que Adar viera ter com ele para lhe arrancar a capitulação.
Satisfeito, o presidente deixou de afagar tão nervosamente as longas barbas e
agarrou o velho camarada pelos ombros. Irradiava confiança. Adama
desejaria estar igualmente seguro de si, mas a expressão vigilante de Baltar só
vinha acentuar a sua atual inquietação.
Deixando Adama sozinho, Adar voltou, cheio de si próprio, para junto
de um grupo formado pelos membros do Quórum mais jubilantes. Adama,
taciturno, caminhou ao longo da orla do visor galáctico gigante que apanhava
cerca de metade da sala de jantar. Deteve-se numa posição donde podia
avistar a sua própria nave, a estrela-de-batalha Galactica.
Para ele era motivo de grande orgulho o reconhecimento unânime da
Galactica como a maior nave de combate da frota colonial e, ao mesmo
tempo, a mais bem organizada das cinco estrelas-de-batalha da frota. Armada
dois séculos antes do nascimento do atual comandante pelo menos, e
comandada pelo pai de Adama, antes dele, a Galactica sobrevivera a milhares
de duros encontros com o inimigo, o que não é coisa pequena se se tiver em
conta a tortuosidade dos Cylons. Com a destruição da Pacifica, nave-irmã da
Atlantia, a nave de Adama passara a ser a maior estrela-de-batalha da frota
em ação. E, desde que esta assumiu o comando, passou a ter um palmarés tão
impressionante quanto a sua dimensão. As explorações mais heroicas, as
missões mais suicidas, o maior número de baixas infligidas aos Cylons, tudo
isso fazia agora parte da história aventurosa da Galactica. Se esta paz durasse
algum tempo, a estrela-de-batalha seria certamente considerada um
monumento à realização humana.
Apesar de parecer placidamente à deriva, a Galactica deslocava-se, de
facto, au ralenti, a uma velocidade perto da velocidade da luz. A sua lentidão
derivava de, como guarda-costas da Atlantia durante a conferência de paz, ter
de acompanhar a estrela-de-batalha de comando. Não admira. Enquanto a
Atlantia era um aglomerado de módulos desproporcionados ao longo do seu
comprimento, a Galactica era um delgado e elegante veículo
multipavimentado, a que a funcionalidade dos componentes imprimia a tão
raramente conseguida combinação entre dimensão e velocidade. Em
condições espaciais normais, podia percorrer distâncias quase, tão depressa
como as forças de assalto que catapultava para o exterior. O seu sistema de
alimentação, fornecia o limite máximo de energia a partir da mistura de
tylium com outros agentes. As suas rampas de lançamento podiam acionar-se
em minutos, emergindo da carapaça cilíndrica do veículo como longas pistas,
e os seus sistemas de navegação tinham sido afinados a um requinte tal —
por instruções de Adama— que os pilotos podiam utilizar um memo
interfrota para as aterragens sem ter de fazer um único rabisco.
Adama sentia igual orgulho pela eficiente organização social a bordo da
nave. Nenhum comandante poderia aspirar a uma tripulação mais coesa —
espantoso, se atendêssemos aos milhares de pessoas necessárias para fazer
funcionar uma estrela-de-batalha. A sua filha Athena estava sempre a dizer
que a tripulação trabalhava bem porque sabiam todos que tinham um
comandante justo e compreensivo. Enquanto lhe censurava o sentimentalismo
da observação, Adama sentia-se satisfeito por a atuação esmerada de todos na
Galactica ser um tributo às suas faculdades como comandante. (O pai
vaticinara que Adama excederia as suas próprias realizações, depois de se ter
retirado com grande pena sua do comando ativo, e a profecia vingara até
agora.) Sim, era uma nave estupenda e uma tripulação estupenda. Mesmo os
seus impulsivos filhos — Apollo, Zac e Athena — entravam nos eixos
quando tocava aos interesses da Galactica e do seu comandante.
Neste instante, porém, mais do que a eficiência interior ou exterior da
sua estrela-de-batalha, sobressaía a imagem de beleza que encarnava,
destacada de um pano de fundo de estrelas cintilantes. Eram tão delicadas as
suas linhas, tão multifacetada a joia da sua superfície azul-acinzentada, que
um observador casual que estivesse a olhar para lá da parede panorâmica do
visor galáctico da Atlantia não suspeitaria minimamente que as suas
dimensões fossem tão monumentais, o seu volume tão imenso. Adama
lembrava-se de ouvir o pai dizer que a Galactica era do tamanho de um
pequeno planeta, que um visitante podia demorar quase uma vida a percorrer
os seus corredores sem ter de voltar atrás. Mais tarde verificara que a
descrição do velhote tinha a sua dose de exagero, era uma daquelas
historietas desassombradamente aldrabadas que tanto apreciava contar. Fosse
como fosse, a Galactica não deixava de ser um poderoso desafio para o
caminhante persistente. Agora, que a tinha diante dos olhos, assaltava-o por
momentos uma sensação de descrença — seria mesmo aquele o seu lugar, o
seu mundo? Já experimentara o mesmo quando assumira o comando duas
décadas e meia atrás e experimentava-o agora outra vez, com grande
intensidade. Começou a ficar impaciente, ansioso por voltar para a Galactica
tão depressa quanto possível, para escapar ao vazio da algazarra festiva que
assinalava a vitória do Quórum.
***
Starbuck não precisava de olhar para trás para saber que tinha atrás de si
uma galeria de mirones. Quando tinha pela frente uns papalvos como aqueles
dois, a notícia depressa se espalhava pelas fileiras da Galactica e as pessoas
acorriam à sala de convívio. Considerava-se um privilégio assistir ao
massacre. A acutilância de Starbuck às cartas tornara-se tão famosa que o seu
nome era agora integrante da gíria dos pilotos de caças. Ser «starbuckeado»
queria dizer que a pessoa se tinha deixado manipular até cair numa situação
em que a derrota era inevitável. A expressão entrara no vocabulário de
batalha e também no das mesas de jogo.
Como um ator, o jovem e belo tenente sabia atuar para uma audiência.
Imprimia ao rosto, demasiado regular para um homem tão diabolicamente
astucioso, uma máscara de ingenuidade, como se acabasse de ingressar na
estrela-de-batalha ainda fresco da Academia Espacial. Um ar desastrado e
embaraçado substituía a graça natural dos seus movimentos e ele debruçava-
se sobre a mesa como alguém que se interrogasse por que razão se tinha
metido num sarilho daqueles sem ninguém lhe pedir. Fazia tudo parte da
jogada. A galeria sabia, assim como sabia que ele estava disposto a abater-se
sobre os incautos adversários tal como uma patrulha cylon que surgisse
subitamente de uma capa de nuvens.
Desta vez o seu alvo era um par de gemons do planeta Gemini. Tudo
indicava que ignoravam o renome de Starbuck, pois seguravam nas cartas
circulares com a segurança cavalheiresca típica daqueles que têm por certa a
vitória. Como todos os gemons, eram parecidos um com o outro, apesar de
terem traços bastante distintos: um de cara afilada, o outro de faces
ligeiramente bochechudas. Havia qualquer coisa na expressão dos Gemons,
uma placidez a aflorar a inanidade, que parecia torná-los todos semelhantes.
Os Gemons eram dos membros mais inteligentes em qualquer tripulação de
estrela-de-batalha, mas, quando se tratava de jogo, tornavam-se muitas vezes
das presas mais fáceis.
Starbuck estava agora preparado. Sentia a vitória na superfície macia das
cartas, como se aquela tivesse aí sido introduzida em código de comunicação
privada apenas com as suas mãos. Numa voz firme, anunciou:
— Só para manter o nível pedagógico do jogo e por vocês serem novatos
nisto, vou apostar... Bem, digamos apenas isto.
Friamente empurrou metade do seu monte, uma pilha alta de cúbitos de
ouro quadrados, equilibradamente arrumados. Os seus olhos azul-escuros
escondiam a superioridade trocista que intimamente sentia pelos seus
adversários. Os dois homens pareciam verdadeiramente espantados.
Simultaneamente, e com um enrugar de sobrancelhas em duplicado, tal como
tinham feito durante todo o jogo, passaram as cartas na mão de um lado para
o outro, enquanto segredavam entre si sobre a próxima jogada. Alguns
sorrisos e um par de gargalhadas em surdina animaram a até então estoica
galeria. Todos apostavam em cada um dos lances estratégicos de Starbuck. À
medida que tinham ido chegando. Boomer, amigo inseparável de Starbuck,
tinha recolhido dinheiro de cada um para juntar à pilha de cúbitos de
Starbuck. Neste momento estavam a sentir os seus lucros.
— Apesar da insignificância desta jogada — disse o gemon que
segurava nesse momento as cartas —, pela honra da nossa colônia pátria,
devemos aceitar o desafio.
— Honra. Desafio. Gemini — disse o outro gemon. Fosse qual fosse o
que falasse, o outro vulgarmente ecoava os pontos principais da frase.
O gemon das cartas empurrou para a frente uma pilha de cúbitos igual à
aposta de Starbuck. Este sentiu a tensão na galeria. Estava prestes a falar
quando o gemon calmamente se lhe antecipou:
— E pela glória de Gemini, mais uma medida igual.
— Glória. Igual. Medida — interveio o parceiro, que desta vez levou a
mão atrás e empurrou ele próprio a pilha de cúbitos que dobrava a parada.
Sentindo o nervosismo na sua galeria, Starbuck sabia que era importante
manter a sua aparência descontraída.
— Bom — disse, passando os dedos por uma ou outra longa madeixa do
seu cabelo loiro-trigo —, em nome do nosso planeta Caprica, e pela sua
eterna glória, aceito o seu aumento e dobro-o.
Se as pessoas não estivessem arrumadas tão junto umas das outras,
alguns elementos da galeria poderiam não ter aguentado e teriam caído
redondos no chão. Starbuck empurrou todos os cúbitos que lhe restavam e
recostou-se confiadamente. Sentiu uma pancada no ombro e deparou-se-lhe a
cara tensa e negra do seu velho amigo tenente Boomer. Quem mais senão o
supercauteloso, o «nunca joga a não ser mais seguro que a mais segura das
coisas», o intelectual Boomer?
— Onde está a parte restante da sua aposta?—perguntou o gemon que
segurava as cartas.
— Restante. Aposta.
— Um momento — disse Starbuck. — Então, rapazes, vamos a isto.
A galeria pareceu recuar em uníssono um passo. Boomer interveio como
seu porta-voz:
— Podemos falar contigo um momento? Em particular. — E, voltando-
se para os gemons, disse: — É só um segundo, pá.
Com uma vénia exagerada, Boomer levou Starbuck para longe da mesa.
Uma vez fora da vista dos gemons, por detrás de uma barreira nervosa
formada pela galeria dos mirones, vieram juntar-se-lhes o tenente Jolly e o
praticante Greenbean , o Bucha e o Estica da equipa de pilotos de caças, cujo
aspecto físico explicava facilmente a razão por que a tripulação da Galactica
os tinha presenteado com nomes tão descritivos. Jolly era um jovem pesado,
forte, mas com excesso de peso, enquanto, obviamente, Greenbean era alto e
esbelto. A conferência entre os quatro homens foi conduzida em acesos
sussurros.
— Estás louco? —perguntou Boomer, que raramente transpirava e agora
limpava da testa estrias luzentes de suor.
— Ah, vocês ouviram? —disse Starbuck. — Isto é tudo para glória de
Caprica.
— Glória, Caprica — secundou Jolly.
— Também és gemon, tu?—perguntou Starbuck, sorrindo. — Ouçam lá,
já os deixei ficar mal alguma vez?
As expressões dos três homens, especialmente a de Boomer, transmitiam
a mensagem de que realmente era esse o caso.
— Está bem — disse Starbuck. — Uma vez ou duas. Mas é que isto é
caça grossa, estes tipos estão-me no papo. Vocês têm de ver a coisa desta
maneira, isto dá-nos o dobro da massa. Eles estão a jogar no duro.
— Disseste-nos que eles não percebiam nada do jogo—disse Jolly.
— Bem, é óbvio que recuperaram rapidamente — resmungou Boomer,
soltando, no entanto, um suspiro. Era sempre pragmático, quer no jogo, quer
num recontro furioso com o inimigo. Todas aquelas vigílias na tarimba
tinham feito dele um atento analista de qualquer situação, e neste caso
particular era-lhe claro que eliminar os prejuízos não era simplesmente
prático: o investimento era demasiado elevado. — Ou fazemos o que
Starbuck diz, ou perdemos tudo o que já ganhámos no jogo.
Boomer percorreu a galeria, obrigando os participantes a produzir o
bastante para cobrir a aposta impulsiva de Starbuck. Entregando um bem
empilhado monte de cúbitos a Starbuck, disse-lhe que continuasse. Starbuck
empurrou com os cotovelos os cúbitos para o meio da mesa e virou as cartas.
— Batam isto — rosnou Starbuck com uma voz que produziu um eco
desaconchegador na calmaria da sala.
O gemon sorriu e mostrou as cartas. A galeria fixou esgazeada a tragédia
revelada pelos círculos de cartão plastificado: depois foi a vez de sentir em
conjunto que lhe fraquejavam as pernas, ao ter de presenciar o rodo do
gemon a arrecadar os cúbitos de ouro.
***
Por breves momentos, Apollo conseguiu uma boa perspectiva da
segunda nave de abastecimento, a que fora identificada como acompanhante
da primeira no seu radar e no de Zac, antes de desaparecer no tapete de
nuvens. Não sabia dizer se a manobra fora estratégica ou se a nave,
aparentemente vazia, deslizara simplesmente para o interior das portentosas
nuvens.
— Aí temos a nossa nave, e bem escondidinha, sim, senhor! — disse
para Zac. — Mas que raio está aqui a fazer e que será?
Refreou o desejo que o impelia a persegui-la. Ainda não se sentia
preparado para seguir uma hipotética nave-tanque a uma hipotética traição.
Não o faria antes de ter procedido primeiro a toda a espécie de verificações.
No entanto, mal começou a introduzir os dados para um programa de radar, a
tela deste apresentou uma baralhada de símbolos sem nexo. Era como se
qualquer coisa dentro daquelas nuvens estivesse a tentar seduzido e atraí-lo
lá, uma daquelas sereias do espaço tão queridas dos animadores de salão.
Várias vezes obteve o mesmo resultado. Depois de experimentar todas as
sondagens que lhe vieram à cabeça, informou Zac do falhanço de todo o seu
sofisticado equipamento em obter elementos sobre as misteriosas nuvens.
— A mim também só me saem disparates ali para o tanker de trás —
disse Zac. — Já tentei tudo, e só me sai baralhada.
— Alguém nos esta a bloquear.
— Não sei. O manual de guerra diz que são os dois cargueiros.
— O tanas... Se nos estão a bloquear, é porque estão a esconder alguma
coisa. Não há outra hipótese. Vou lá dentro.
— Mas a nuvem...
— Eu vou arriscar.
— Está bem. Mas não me parece que goste muito da ideia de irmos voar
às cegas.
— Irmos, não, menino. Tu ficas cá fora.
— Mas eu não posso...
— Se precisar de ti chamo-te para vires atrás de mim, tenente.
Apollo apontou o viper diretamente para o meio da massa de nuvens.
Ouviu a voz agitada de Zac falar-lhe pelo comunicador:
— O bloqueio está-me a tramar o radar agora.
Dentro das nuvens, Apollo tentou ajustar de novo o radar e recebeu a
mesma baralhada.
— É só uma inofensiva capa de nuvens — disse. — Nada pesada, nem
tão densa como parecia. Não percebo porque é que haviam de estar com
aquela eletronic...
Irrompendo do outro lado das nuvens, e olhando para baixo, percebeu
subitamente porquê. Por baixo via uma enorme estação cylon e ele tinha-se
vindo meter em cheio no seu núcleo central.
— Apollo, que é que se passa?—perguntou Zac.
Tanto quanto Apollo podia ver, havia naves de guerra cylons, com os
seus estranhos traços curvilíneos e as suas asas em arco. Numa das naves
distinguia a habitual tríade que compunha a tripulação de combate cylon.
Eram dois pilotos de capacete sentados ao lado um do outro. Os capacetes
tubulares cobriam aquilo que Apollo sabia, de observar de perto cadáveres
cylons, serem criaturas multioculares com cabeças que aparentemente
podiam alterar a forma conforme e quando quisessem. No meio do capacete
havia uma abertura longa, mas estreita, da qual emergiam raios de luz
delgados, mas concentrados. Ainda nenhum humano descobrira se a luz era
gerada pelos próprios cylons ou se fazia parte da tecnologia do capacete.
Apollo, agora absorto na contemplação deste peculiar trio de cylons, foi
surpreendido por um deles cuja luz no capacete se deslocara para cima, na
direção do seu viper. Ao mesmo tempo, o observador cylon fez sinal aos
colegas para olharem nesse sentido. Apollo ativou um loop de inversão no
quadro de controlo direcional. A nave arrancou, elevando-se, adiantando um
pouco e desarvorando com um silvo num círculo apertado. Ao mesmo tempo
gritou pelo rádio para Zac:
— Vamos sair daqui para fora!
— Por quê?
Avistou a nave de Zac ao sair das nuvens.
— Depois explico.
O viper de Zac deu rapidamente meia volta para disparar também atrás
do bólide que o irmão mantinha em aceleração.
— Apollo—disse Zac —, só por causa de um par de tankers inofensivos,
parece-me que estás a queimar desnecessariamente uma quantidade enorme
de...
A voz de Zac foi interrompida pelo ruído de explosões.
— Que é que foi, Zac?
— Naves. Naves cylons. Vêm atrás de mim. Estão a disparar. Espera aí,
já lá vou...
Verificando no radar, Apollo identificou quatro naves cylons em
perseguição do aerobólide do irmão. Premiu o botão da linha de comunicação
direta com a Galactica, mas a resposta era estática.
— Estão a bloquear a nossa transmissão, miúdo. Temos de voltar para a
frota, de os avisar. É uma armadilha, uma emboscada. Têm potencial de fogo
bastante para destruir a frota inteira.
— Mas, Apollo e a missão de paz, e o Quórum dos Doze, eles não
podem....
Apollo ouviu no auscultador uma explosão.
— Que é isso, Zac? Estás bem? Que é que se passa?
Respondeu-lhe a voz aterrorizada de Zac:
— Apollo, o motor de bombordo foi atingido.
— Tem calma. Ouve, não vamos mostrar as costas a estes patifes. Estou
a ver quatro naves no radar. Quantas é que tens aí?
— A mesma coisa. Quatro.
— Malditos Cylons! Só mandaram quatro atrás de nós. É insultuoso.
— Talvez, Apollo, mas estão a portar-se bastante bem.
— Só porque estão por trás de nós. Okay. Quando eu contar até três,
carrega nos reatores de inversão e põe os flaps em posição de travagem
máxima. Vamos fazer-lhes uma pequenina surpresa. Certo?
— Certo.
— Um, dois... Três.
Enquanto o som do impulso de inversão da sua própria nave lhe
ensurdecia os ouvidos, o silêncio subsequente dos caças cylons que agora se
cruzavam com ele era desconcertante e arrepiante. Apesar de não ver os
inimigos de capacete, Apollo tinha a certeza de que os confundira com aquela
manobra brusca. Imaginava-os a perscrutar os céus, com os raios de luz do
capacete voltados para todo o lado, a tentar localizá-lo a si e a Zac.
Semicerrando os olhos, pôs o dedo no botão de ajuste de tiro da sua
coluna de comando. Uma das naves cylons ficou-lhe na mira.
«Mesmo em cheio», murmurou, «criatura malvada, nojenta...»
Comprimiu o gatilho. A nave cylon desintegrou-se, transformando-se
imediatamente em detritos espaciais.
O caça de Zac apareceu, perseguindo outra nave cylon. Ciente da jogada
do irmão, Apollo sabia-o a ajustar o disparo para atirar. Realmente, o
segundo dos veículos cylons desintegrou-se. Os dois caças restantes
apartaram-se e afastaram-se. O elemento de surpresa presenteara Apollo e
Zac com dois golpes em cheio.
— Nada mau, maninho! — disse Apollo. — Okay, vai tu atrás dos tipos
da direita...
Apollo orientou o seu viper para o caça cylon da esquerda. Antes que ele
pudesse rodar para a posição de ataque, alinhou-o na mira de tiro, comprimiu
o gatilho e despedaçou-o. cometendo-o assim aos confins do espaço. Ao fazer
voltar o seu aparelho, avistou novamente Zac, que estava precisamente a
disparar, não acertando, aliás, contra o último dos atacantes cylons. Bolas,
pensou Apollo, o miúdo tinha muitas vezes uma pontinha de ânsia, de pressa
a mais a manusear aquele gatilho. A presa de Zac afastou-se e executou um
loop traiçoeiro que Apollo identificou como uma manobra hábil só dominada
pelos melhores pilotos cylons. Antes que Zac se apercebesse do que era, o
seu inimigo tomara posição por detrás do seu aeroveículo.
— Apollo... — disse Zac.
— Estou a ver. Mantém-nos interessados só mais um bocadinho. Já vou
ter contigo.
— Interessados? Descansa que estão mesmo interessados!
Quando Zac tentava escapar ao perseguidor, a sua nave voltou a ser
atingida.
— Lá vai um motor—disse.
O viper de Apollo investiu de lado sobre o caça cylon, avançando
perpendicularmente.
— Vá lá —sussurrou —, vá lá. Só peço que não olhem para este lado,
amigos.
Pareceu-lhe ver um dos pilotos cylons aperceber-se dele, tarde de mais
alguns segundos, mesmo antes de a nave explodir.
Suspirando e voltando a nave para a de Zac, Apollo disse:
— No dia em que estes tipos nos conseguirem superar na luta sem uma
margem de dez para um...
— Apollo—disse Zac —, o melhor é olhares para o teu visor.
Ele olhou e viu que um contingente maior de ataque acabava de emergir
das nuvens. Rumando naquela direção vinha o que parecia ser uma onda
maciça de couraçados cylons.
— Dez para um está bem —disse ele —, mas mil para um não é justo.
— Que quer isso dizer, Apollo?
Apollo riu com sarcasmo.
— Quer dizer que não vai haver paz nenhuma. A missão de paz foi
desde o princípio uma emboscada. Temos de voltar para trás e avisar a frota.
— Vai, vai. Apollo. Eu estou com um motor a menos, como sabes. Não
vou conseguir acompanhar-te.
Apollo ficou impressionado com o tom de coragem na voz de Zac. Ele
era membro da família, está certo. Mas família queria dizer mais do que um
lance forçado de coragem.
— Não te posso deixar sozinho, Zac. Juntos havemos de...
— Não, juntos não. Tens de te ir embora. Eu cá me hei de arranjar.
Consigo manter-me à distância deles. Vai lá. Enterro o pé naquela turbo e
consigo lá chegar muito antes deles. Vai lá. Tens de avisar a frota. Não há
outra hipótese.
— Okay, sócio. Encontramo-nos na sala de convívio. Tens lá o café
quente à espera.
— Não estou a precisar de calor neste preciso instante. Tenho bastante a
aproximar-se, descansa.
— Boa sorte, miúdo.
Antes de acionar os impulsionadores de turbina, Apollo olhou uma
última vez para o viper do irmão. Depois carregou no pedal e o viper como
que se eclipsou imediatamente no céu escuro, subitamente sombrio.
***
Quanto maior era a distância que o separava da Atlantia e do seu
desagradavelmente festivo grupo de políticos, mais descontraído Adama se
sentia dentro da sua naveta. Era sempre bom voltar para a sua própria nave.
Apetecia-lhe dar uma daquelas famosas voltas, ir ter com a tripulação para
uma conversa informal e, quem sabe? Alguns goles de uma daquelas bebidas
que nem sempre chegavam às cabinas de comando.
— Está a pensar nalguma coisa daquelas que nunca me diz o que são —
disse Athena, fazendo rodar o seu banco de piloto até ficar de frente para ele.
— Concentra-te no que estás a fazer, menina, e deixa o velhote gozar a
sua intimidade.
Ela fingiu ficar amuada, logo rindo, porém, enquanto levava o banco
para a sua posição inicial. Por momentos, Adama examinou o perfil da filha.
Sabia que era tida por bonita, especialmente por Starbuck e pelos outros
jovens oficiais que disputavam entre si as suas atenções. No entanto, mesmo
como pai extremoso que era, tinha dificuldade em ver beleza em Athena. E
por uma razão: é que ela era demasiado parecida com ele e demasiado pouco
parecida com a mãe, a verdadeira beleza da família. O rosto de Athena era
angular como o do pai, mas a impressão geral era mais suave, menos
granítica. O nariz apresentava a mesma ponta de aquilinidade, a boca os
mesmos lábios finos e direitos. Apesar de deduzir que estes traços
mostrariam ao mundo um olhar firme de determinação em si próprio, em sua
opinião, eles não ligavam bem com o cabelo loiro e lustroso de Athena e o
único traço bom que herdara de facto da mãe, os olhos azuis resplandecentes,
achava-se a evitá-los para escapar às saudades que sempre acompanhavam as
suas recordações de Ila.
Na sua vida de casados, ele e Ila tinham estado mais tempo separados do
que juntos — desta vez havia quase dois anos que não ia a Caprica — e essa
separação forçada era a única exigência da carreira militar que ele sempre
odiara. Se não tivesse sido a guerra, podiam ter tido aquela vida equilibrada e
feliz que agora só gozavam a intervalos bem espaçados, se bem que, como Ila
costumava argumentar, o seu amor talvez crescesse com essas roturas. Sem
estas, dissera, ela e Adama podiam ter-se tornado um chato casal velho, sem
nunca apreciarem realmente a existência um do outro. Em vez disso,
continuavam apaixonados, deslumbrados, jovens, estimando ainda as
virtualidades de cada um. Adama respondera que o que ela estava a dizer era
que a ausência torna o coração mais amante, se bem que pela maneira indireta
e de modo mais eloquente. «Claro», disse ela. «isso... E um pouco mais. »
Ao olhar agora para a filha, concentrada no trabalho, via uma réplica
feminina de si próprio. Até mesmo o corpo dela, com as suas formas
atraentes e claramente sensuais, parecia sugerir energia útil, mais do que
coqueteria inútil — ou talvez isso fosse apenas a visão deformada de um pai.
Ele amava-a. havia sempre de amá-la, mas nunca nos doze mundos seria
capaz de vê-la como objeto de intenso interesse para pretendentes.
A luz do comunicador acendeu e Athena enfiou rapidamente os
auscultadores. O sobrolho carregou-se-lhe ao escutar.
— Há qualquer coisa que não está bem — disse.
— O quê?
— Não sei, mas acabaram de pôr a ponte da Galactica em estado de
alerta.
— Alerta? Por que...
— Calma, pai, descanse que temos tempo de saber o que é que se passa
lá com a nossa velha carcaça. Deixe-me só levar aqui o caixote até à
plataforma de aterragem.
Posicionou o gato de aterragem e verificou o seu equipamento. Tudo em
ordem. A plataforma de aterragem emergiu do seu casulo, alongou e parecia
adaptar-se ela própria à nave descendente. Luzes estroboscópicas de grandes
dimensões desenhavam uma seta a indicar a entrada. Athena guiou o pequeno
aparelho até ao último ponto de paragem indicado por uma luz vermelha
intermitente. Quando a naveta se deteve, pai e filha saíram imediatamente a
correr.
Na ponte, Adama foi encontrar o imediato, coronel Tigh, absorto no
exame dos seus radares. Tigh, um homem baixo e duro que vivera muitas
batalhas com o seu comandante, não era pessoa que entrasse facilmente em
pânico; no entanto, parecia altamente apreensivo e agitado.
— Que é que se passa?—perguntou Adama.
— A patrulha teve sarilho — respondeu Tigh. — Estamos a apanhar
sinais, mas não conseguimos interpretá-los minimamente. É um bloqueio
qualquer.
— Donde vem o sarilho?
— Ainda não se sabe. Podiam ser piratas. Contrabandistas. Ou...
Adama podia ler nos olhos de Tigh a verdadeira conclusão. Os Cylons,
claro! Olhando no campo galáctico a nave de comando, placidamente à
deriva, ordenou ao radiotécnico que ligasse para o presidente Adar o mais
depressa possível. Quando Adar respondeu, ainda havia vestígios de festa na
sua voz. Adama ignorou isso.
— Uma das nossas patrulhas está a ser atacada. Sr. Presidente. Não
temos a certeza de por quem.
A expressão de Adar alterou-se tão rapidamente que Adama pensou por
momentos que havia uma interferência a afetar a qualidade da imagem. A
figura acobardada de Baltar, a sua cara bochechuda dando a Adama a
impressão de falsa preocupação, apareceu então na imagem.
— Como medida de precaução —continuou Adama —gostaria de lançar
caças de intercepção.
«Gostaria?», pensou. Esse era o tipo de expressão adocicada que Adar
esperava dos mais servis membros do Quórum dos Doze! Nos velhos tempos,
Adama teria dito que estava decidido a mandar os caças. O estômago
revolveu-se-lhe quando viu Baltar inclinar-se para o presidente a segredar-lhe
qualquer coisa. Adar concordou com um aceno de cabeça.
— Está certo, Baltar—disse ele. — Comandante... —Onde é que Adar
aprendera a tratar o seu mais velho amigo com tanta formalidade? Porque é
que assume ares tão oficiosos na frente do desprezível Baltar? —
Comandante, como medida de precaução, insisto em que não se inicie
nenhuma ação.
— Não se inicie ação? Mas...
— Comandante, se isto porventura acabar por ser um caso de tráfego
ilegal, poderíamos ameaçar toda a causa da paz ao exibir os caças quando
estamos tão perto de um encontro.
Para Adama, a escolha do ponto de encontro pelos Cylons pareceu mais
suspeita que nunca.
— Sr. Presidente, dois dos meus aparelhos estão sob ataque.
— Por forças não identificadas. Temos de ter informações certas. Não
vamos lançar nada até que a situação esteja mais clarificada.
— Sr. Presidente, posso, pelo menos, aconselhá-lo a colocar a frota em
estado de alerta?
A garganta de Adama apertou-se-lhe. Detestava implorar daquela
maneira.
— Vou pensar nisso. Obrigado, comandante.
O écran ficou abruptamente limpo. A imagem final de Adar apareceu
carregada de sombras sinistras na mente de Adama.
— Ele irá pensar nisso — disse Tigh irritadamente. Nunca conseguira
esconder os seus sentimentos. Isso já uma vez lhe custara a perda do
comando de uma nave estelar. — Será que ele perdeu a cabeça?
— Coronel...
Tigh olhou em volta. Estava claramente um pouco embaraçado pela
forma como os oficiais da ponte se tinham posto agourentamente a escutá-los
em silêncio.
— Desculpe, comandante — disse Tigh. —É que... Bem...
— Então? Diz!
— A patrulha debaixo de fogo. É... Bem, está sob o comando do capitão
Apollo.
— E, se eu não posso contar com o meu próprio filho, com quem
poderei...
— O Zac está com ele. Um dos homens adoeceu e, bom, o Zac estava na
ponte naquela altura e, bom, havia aquela pequena questão disciplinar, a
enfermeira, e, bom, eu...
— Chega, coronel. Compreendo a sua preocupação. Mas o Zac sabe
tomar conta de si próprio, tal como o irmão.
Saiu de junto do imediato, receoso de que o homem lesse nos seus olhos
que não estava a acreditar nem numa palavra do que dizia. Em ação, Zac
tinha bom instinto, bons passos, mas era demasiado impulsivo — sempre o
fora, desde os tempos de criança rebelde que se pendurava em todo o
autocarro ou cargueiro que conseguia apanhar. O facto de Zac ter abalado
para uma missão de patrulha continuava a parecer-lhe um dos erros
associados ao início daquele estranho festim que muito lhe tinham apertado o
coração.
Nos minutos seguintes, a tripulação da ponte trabalhou em silêncio,
ciente da tensão explosiva que rodeava o comandante como um campo de
minas. Adama e Tigh só abriam a boca para dar ordens. Quando não havia
mais instruções a dar, Adama disse para o imediato:
— Já há alguma coisa?
— Ainda não há notícia dos caças, comandante. De uma coisa tenho a
certeza: é de que a transmissão deles está a ser bloqueada deliberadamente.
Se não nos apressamos a mandar...
— Não podemos mandar, se isso nos foi expressamente proibido —
disse Adama, medindo cuidadosamente as suas palavras. Sentia os olhos de
todo o pessoal da ponte pousados nele. — No entanto, talvez fosse boa altura
de mandar proceder a um teste de disciplina das nossas estações de batalha.
Tigh sorriu e o seu exemplo foi logo seguido pela tripulação da ponte.
— Dê o alerta a todas as estações de batalha, coronel! —gritou Adama.
***
A enfatuação idêntica nas expressões dos dois gemons pôs Starbuck em
fúria. Nesse preciso instante, o objetivo principal da sua vida passou a ser
fazer desaparecer daquelas duas caras essa presunção. Sentado à mesa, com
os restos das reservas líquidas da galeria a transbordar nas suas volumosas
mãos, abriu o seu melhor sorriso amarelo de rapazinho para os adversários, e
arrastou para o meio da mesa a grande pilha de cúbitos.
— Bem, rapazes — disse.— Bem, uma última jogada para abrir o jogo,
certo? Uma mão. Morte instantânea.
Os gemons franziram o sobrolho simultaneamente e conferenciaram em
sussurro. Mesmo sem conhecer o seu dialeto, percebia-se pelo tom briguento
das suas vozes que estavam a discutir o montante da aposta. Chegaram a
acordo, assentiram com as cabeças em uníssono e puseram no monte a
quantia equivalente de cúbitos.
— É morte instantânea mesmo, piloto — disse um deles.
— Morte. Piloto — disse o outro.
Sorrindo jovialmente, Starbuck começou a baralhar as cartas. Uma vez
distribuídas, um dos gemons pegou nas deles com precipitação, enquanto o
outro se encostava ao seu ombro para inspecionar. Starbuck esperou uns
momentos antes de pegar nas suas. Sabia que o desprendimento de uma pausa
dessas iria enervar os gemons, já de si inquietos, e afetar a sua atuação no
jogo.
Ao olhar para o seu jogo, verificou, num rasgo de exultação, que não
teria precisado de uma representação tão elaborada. As suas cartas eram todas
de uma cor e todas do mesmo desenho, o valor mais elevado: a pirâmide!
Sentiu a reação em cadeia da multidão por trás, e começou a dispor as cartas
na mesa para os gemons verem e chorarem.
— Podem não voltar a ver outro igual, meus caros — exclamou, rindo
sonoramente. — Uma perfeita pirâmide.
As bocas dos dois gemons escancararam-se em perfeito uníssono. O que
tinha as cartas na mão ia para pô-las na mesa num gesto brusco.
Retiniu o claxon de alerta em toda a sala de convívio, galvanizando a
atenção de todos e mobilizando imediatamente para os seus postos alguns
membros da tripulação. Uma mulher que lia um livro num beliche a um canto
deixou cair o volume e pôs-se a correr para a saída. Um homem que dormia
saltou que nem uma mola da cadeira, perto da mesa de jogo, e, acordando um
minuto depois do seu salto instintivo, caiu sobre o lado ao tentar evitar a
mulher que vinha correndo. Na queda embateu contra a mesa. As cartas,
incluindo a pirâmide perfeita de Starbuck, escorregaram e dispersaram-se por
todos os lados, enquanto Starbuck tentava desnecessariamente agarrá-las no
voo. Os gemons observaram as cartas a espalhar-se, trocaram um olhar e
abriram um sorriso conjunto.
— Que azar — disse um deles. —Vamos ter de jogar novamente noutra
altura.
— Espere aí, seu... —gritou Starbuck.
— O dever chama—disse um dos gemons.
— Dever— interveio o outro, apanhando do chão o seu capacete de
combate (removendo com a mão algumas cartas circulares que se tinham
enfiado nas fendas da chapa) e vazando para dentro o seu quinhão do monte.
Fisicamente tensos na iminência da batalha, saíram os dois apressadamente
da sala.
— Venham cá, seus... —gritou Starbuck.— Eh, ninguém é capaz de os
agarrar?!
Mas era tarde de mais para deter fosse quem fosse. Após um momento
coletivo de choque, até membros da galeria se viam precipitar-se para as
saídas, recolhendo pelo caminho os capacetes e uniformes de voo.
Starbuck encolheu os ombros, enfiou no bolso a sua metade do quinhão,
registou mentalmente que teria de redistribuir o dinheiro pelos doadores (mas
só se o pedissem) e correu para o corredor-antecâmara de voo.
Correndo sob o teto luminoso da câmara alongada que constituía a pista
de catapultagem, um tubo transparente em vácuo descobria as fileiras de
caças da Galactica perfeitamente alinhados, lado a lado, nos seus poderosos
berços de lançamento. À medida que os aparelhos eram impelidos para fora
do tubo para a pista propriamente dita, os pilotos emergiam de rampas que os
tinham transportado da antecâmara de voo. Cada piloto corria pelo seu pé
para o respectivo aparelho, enquanto pessoal da base ativava para lançamento
as polidas máquinas de asa em triângulo. Starbuck emergiu de uma rampa e
precipitou-se para a sua nave. Depois de saltar para uma asa, executou o seu
famoso salto «sobre a sela» para dentro da cabina de comando. Jenny, o seu
técnico de controlo de base, apertou-lhe o cinto. O seu rosto de beleza negra
denotava extrema preocupação quando fechou sobre ele o cockpit de linhas
perfeitamente integradas no corpo da nave.
— Que é que se passa? —gritou ela.
— Nada de grave — respondeu Starbuck. — Se calhar alguma saudação
aérea ao presidente por estarem ali a assinar o armistício ou aos abraços aos
Cylons, ou lá o que é.
Jenny franziu o sobrolho.
— Isso é revoltante! —clamou ela.
— Revoltante? Que é que é revoltante?
— Isso de estar aos abraços aos Cylons; só a ideia me dá volta ao
estômago.
— Nunca digas desta água não beberei!
— Desaparece daqui, malandro!
Jenny premiu vigorosamente o botão de ignição e Starbuck sentiu-se
atirado contra as costas do assento, fenômeno já seu conhecido que
acompanhava sempre a ativação dos sistemas de voo. Pegou nos comandos,
manobrou até ao ponto de lançamento, juntando a sua máquina ao manancial
portentoso dos veículos iridescentes da Galactica, e ficou aguardando sob
tensão ordens de ataque ou de regresso.
***
Apesar de ter de estar atento às informações de todos os écrans de parede
que tinha na frente, Adama, inconscientemente, não deixava de olhar uma e
outra vez para aquele que apresentava a nave de Apollo a aproximar-se do
raio de alcance físico da estrela-de-batalha.
— Pista de aterragem de bordo pronta para recepção de caça solitário,
comandante — disse Tigh.
— Comandante —disse um dos tripulantes da ponte —, o radar de longo
alcance está a detectar uma vasta força de aparelhos que vem nesta direção a
grande velocidade.
Adama e Tigh entreolharam-se apreensivos e precipitaram-se para o
écran do radar que o tripulante lhes apontava.
— Tragam-me cá esse piloto logo que ele aterre — ordenou Adama,
verificando o progresso da máquina de Apollo à medida que se aproximava
da pista de aterragem —e chamem-me outra vez o presidente pela linha de
código.
Tentou decifrar minimamente o radar que revelava a barreira de naves
que se aproximavam dali, alguma evidência da ameaça terrível que sentia
emanar-se dela. A cara do presidente, parecendo um pouco menos presumida
que antes, apareceu na tela de comunicação.
— Diga, comandante — disse Adar em voz branda.
— Sr. Presidente, uma barreira de naves não identificadas está a
aproximar-se cada vez mais da frota.
O rosto inchado de Baltar apareceu na orla da tela, sorrindo
estranhamente.
— Talvez um comitê de boas-vindas cylon — disse o comerciante.
— Posso sugerir que, no mínimo dos mínimos —disse Adama—,
lancemos pela nossa parte também um comitê de boas-vindas?
— Sr. Presidente —interveio Baltar — , ainda subsistem muitos
sentimentos de hostilidade entre os nossos guerreiros. A probabilidade de um
incidente infeliz com todos aqueles pilotos no ar assim de repente...
— Bem visto, Baltar—disse Adar. — Ouviu, comandante?
Adama mal podia conter a sua fúria, mas manteve a voz inalterada ao
responder:
— Não, Sr. Presidente. Não posso ter ouvido bem. Será que o conde
Baltar sugeriu que deixemos as nossas forças paradas aqui, totalmente
indefesas, que...
— Comandante! — E a voz de Adar estava especialmente aguda. —
Estamos numa missão de paz. Pela primeira vez desde há mil anos.
— Sr. Presidente...
Tigh tocou no ombro de Adama, com um relatório de telimpressor
apertado entre as mãos.
— Há uma nave solitária que vem para aqui e está a ser atacada pelo
grosso da coluna que se aproxima — disse Tigh.
***
À medida que o seu aparelho como que abria caminho no espaço. Zac ia
podendo ver no radar o ritmo a que os caças cylons estavam a transpor a
distância que os separava. Os elementos de que dispunha, apresentados no
fundo da tela, indicavam que não tinha de facto hipótese de regressar à
Galactica adiante dos cylons, e não havia maneira de imprimir maior
velocidade à sua nave danificada.
— Posso ter de me virar para lutar — disse em voz alta. Estava um
pouco inquieto por não conseguir comunicar com Apollo, que não podia
secundar a demonstração de coragem do irmão mais novo, Apesar de
ressentir muitas vezes as rédeas curtas em que Apollo o mantinha. Zac só
desejava agora que ele voltasse para lhe dizer o que fazer.
As naves cylons abriram fogo e o aparelho de Zac estremeceu,
novamente atingido em cheio. O radar iluminou-se com uma luz forte, e
deixou de emitir. Um estranho gemido oscilante encheu o cockpit, e o caça
abrandou ainda mais a velocidade. Zac puxou ao máximo a alavanca,
tentando arrancar à nave algum resto de velocidade.
— Anda lá, meu velho, não falta muito... — disse. —Esforça-te ao
máximo!
A máquina vibrou ao impacte de um novo tiro certeiro. Zac sentiu o
sangue esvair-se-lhe da face, enquanto o coração começava a bater
desordenadamente.
***
Enraivecido, Adama arrancou das mãos de Tigh a folha de telimpressor
e acenou com ela na direção da tela, que mostrava a expressão agora
perturbada de Adar.
— Ouviu isto, Sr. Presidente? — gritou, sentindo-se já senhor da
situação, agora que deixava irromper a sua fúria contra os políticos
descuidados e intrometidos. — O seu comitê de boas-vindas está a disparar
sobre a nossa patrulha.
Adar recuou, afastando-se da câmara, enquanto o corpo parecia ter
abatido dentro da tenda da sua toga.
— Disparar... —disse. — Mas... Disparar... Sobre a nossa patrulha... Não
pode... Como é que explica isto, Baltar? — Olhou desesperadamente em
volta, procurando Baltar, mas este já não se encontrava a seu lado com o seu
ar auto satisfeito. — Baltar!... Baltar!— Olhou novamente para o écran. —
Ele... Saiu aqui da ponte... Adama...
— Estou a mandar sair as nossas esquadrilhas — disse Adama. Na tela,
o homem derrotado assentiu com a cabeça, parecendo encavacado.
— Claro—disse. — Com certeza. Imediatamente. Já.
Antes de Adar ter terminado a frase, a tripulação da ponte da Galactica,
respondendo aos gestos rápidos de Adama, precipitara-se para os seus postos.
Adama fixou os olhos no écran que mostrava o caça de Zac sob ataque
cerrado do grupo de assalto cylon, e o sobrolho carregou-se-lhe. Pressentindo
o que estava para acontecer, apertou-se-lhe a garganta. A nave de Zac estava
agora ao alcance da frota. A estática causada pelo bloqueio dos cylons foi
diminuindo, e a voz de Zac ressoou repentinamente com sonoridade na ponte
da Galactica.
—... Eles vão... Parece-me que não posso... Espera aí, estou a ver-vos
agora, Galactica. O meu radar está a funcionar outra vez. Está tudo Okay.
Conseguimos, conseguimos!
Ao mesmo tempo que sentia uma onda de alegria perante o júbilo do
filho, Adama viu os três caças cylons acercarem-se para o golpe final.
— NÃO! Zac, cuidado! — gritou para o visor, logo secundado por Tigh,
como que em eco.
Obviamente impedido de captar a transmissão da Galactica, a voz de Zac
tornou-se friamente profissional, corriqueira.
— Voo Azul dois. Em dificuldade. Peço aterragem de emergência...
Os aparelhos cylons dispararam simultaneamente.
A nave de Zac explodiu, tornou-se um raio de luz, desapareceu.
Em volta de Adama, apenas silêncio, só entrecortado pelos sons dos
instrumentos. No écran junto àquele que transmitira a destruição do bólide de
Zac, o manancial de caças da frota colonial prontos para descolagem
estendia-se a perder de vista.
— Que foi isso? — Era a voz de Adar a cortar o silêncio. Durante uns
segundos Adama não conseguiu perceber do que é que o presidente estava a
falar. Que era o quê? Veio-lhe à cabeça a imagem-relâmpago de um Zac
sorridente, em uniforme de combate, tão ativamente apostado em fabricar
para si uma reputação de herói. Voltou-se então para a figura de Adar. Falou
numa voz baixa, amarga, sacudida por raiva incontida.
— Era o meu filho, Sr. Presidente.
Tigh deu instruções ao pessoal de bordo, no momento em que a frota
assaltante de cylons se fez avistar e abriu fogo. Adama afastou-se dos
pequenos écrans e examinou o vasto campo galáctico. Centenas de caças
cylons cruzavam os ares, disparando salva após salva os seus torpedos de
partículas laser. O campo galáctico — irradiando chamas, explosão,
destruição —, transformara-se subitamente numa mortífera demonstração de
fogo-de-artificio. Dois cruzadores da frota explodiram ao mesmo tempo. Tigh
olhou ansiosamente para Adama, à espera de uma ordem sua.
— Lançar caças! — gritou Adama.— Fogo, todas as baterias. Repito,
fogo!
Quando a sirena ecoou pela nave e se fizeram ouvir os estrondos do
contra-ataque, o pulso fortemente cerrado de Adama ergueu-se no ar,
embatendo no vazio.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
É frequente debaterem-se as diferenças entre a morte individual e a
morte em massa. As pessoas acham que é mais profunda a mágoa quando se
chora a vida de um ente querido do que quando se chora o aniquilamento
trágico de centenas, de milhares ou de milhões de vitimas cujas identidades
desconhecemos. Não estou assim tão seguro de que isso seja verdade.
Presenciei a morte em ação de um filho meu, e também me vi forçado a
encarar mortes individuais e mortes em massa, todas elas parte do mesmo
acontecimento amaldiçoado da história. Parece-me que todas essas mortes
tinham qualquer ligação obscura com a minha mágoa, eram ligações que
nunca consegui explicar. A mágoa, complexa e controlada, pelas múltiplas
mortes de qualquer catástrofe em massa não é, segundo creio, menos intensa,
menos significativa, menos importante, que a manifestação exterior, mais
dramática, de pesar por uma pessoa que teve o considerável azar de morrer
sozinha.
CAPÍTULO II
Enquanto Adama dirigia o arranque das forças de contra-ataque da
Galactica com voz soante de comando e gestos sacudidos e violentos, a sua
réplica do lado inimigo encontrava-se num estado calmo de distensão
vigilante, procedendo à minuciosa fiscalização da sua estratégia de batalha
meticulosamente planeada. Estava sentado rigorosamente no centro da
contrapartida cylon de uma estrela-de-batalha, um veículo circular que
afunilava ao longo de vários andares sombrios articulados numa estrutura
metálica, quase formando um vértice na sua parte inferior. A alimentação de
energia à nave provinha do seu ponto-base, onde um líquido altamente
volátil, tylium, era misturado com combustíveis neutralizantes e
impulsionado para os sistemas geradores pela ação, dir-se-ia, de carretos
rotativos. Humanos que tinham avistado de perto as formidáveis naves-bases
cylons eram unânimes em descrevê-las como piões.
O comandante cylon, cujo nome, traduzido na linguagem de Adama,
seria «líder imperial», estava sentado acima dos seus oficiais num enorme
pedestal cujas arestas eram marcadas por centenas de pontas afiadas em
flecha que emitiam esporadicamente raios ameaçadores à luz intermitente da
vasta câmara. A cabeça, nodosa, de múltiplos olhos, coloridos
superficialmente de vários tons de cinzento, como sombras sem origem,
estava agora coberta por um capacete que constituía a versão cylon do maciço
painel de comunicações a bordo da Galactica. Exatamente as mesmas
unidades de informação dispostas num dos lados da ponte da Galactica
estavam contidas em miniatura no capacete. Com ele, o líder imperial podia
seguir simultaneamente todas as fases da batalha. Ao mesmo tempo, o
capacete ia-lhe fornecendo os dados abstratos indispensáveis, a partir dos
quais ele podia formular as improvisações exigidas à estratégia básica. Toda
esta informação lhe estava a ser transmitida por um contingente de oficiais
executivos dispostos circular mente em volta do pedestal, que enviavam os
seus dados em raios invisíveis dirigidos ao capacete do líder. Os oficiais
cylons também comunicavam entre si através dos capacetes, de modo que
quaisquer elementos supérfluos ou desnecessários eram filtrados e anulados
antes de serem passados ao líder. Se os raios transmissores fossem visíveis, a
câmara que servia de quartel-general ao líder imperial apareceria aos olhos do
observador acidental como uma teia de aranha incrivelmente intrincada.
Apesar de toda a atividade de comunicação, a sala tenuemente iluminada,
povoada de figuras imóveis cimentadas em posições eretas ou sentadas,
sugeria uma serenidade rígida, um clube de estranhos cavalheiros com
frequentadores concentrados em contemplações aparentemente inofensivas.
No seu terceiro-cérebro, aquele que coordenava e fiscalizava o
funcionamento dos seus outros dois cérebros, o líder imperial experimentava
um profundo fluxo de satisfação. Toda a sua vida fora orientada em função
deste momento, a derrota definitiva e esmagadora da peste estranha que
infectara a unidade perfeita do universo. Quando nascera, a guerra já vinha
durando, pelo critério humano, há cerca de setecentos anos. O seu primeiro-
cérebro, que substituía o outro, rudimentar, que o treinara e educara nos
primeiros anos da sua vida, fora-lhe concedido na cerimônia própria que
assinalava a sua passagem da infância à maturidade. Os primeiros-cérebros
eram o sistema orientador básico tanto do cidadão como do guerreiro cylon.
Dado que as atividades do primeiro-cérebro incidiam em percepções
relacionadas com a colheita de informação e eficiência de execução em
qualquer missão que tivesse sido confiada a um determinado cylon na
cerimônia de maturidade, nele apenas estavam implantados os poderes
interpretativos simples. No caso do líder imperial, as suas realizações de
infância, especialmente no domínio físico, tinham-no tornado apto para o
cobiçado nível profissional de guerreiro. Ainda melhor, depressa ascendera
ao estatuto de piloto de caças e ganhara o nome que traduzido (pobremente)
na linguagem humana daria «ás dos ases». Como resultado do seu domínio
das técnicas belicistas fora-lhe atribuído o seu segundo-cérebro muito mais
cedo do que aos seus iguais. O segundo-cérebro dava-lhe as aptidões
necessárias a um oficial cylon, nomeadamente o dom de analisar e interpretar
informações. Quando o segundo-cérebro atuava integralmente em conjunção
com o primeiro-cérebro, como sempre acontecia no caso do líder imperial,
subia-se ao estágio de oficial executivo. Tomara-se um dos oficiais
executivos mais jovens na história da sua raça. Neste momento, sabia que, se
retirasse o capacete e deixasse os seus múltiplos olhos passear pelos oficiais
que rodeavam o pedestal, seria assaltado por recordações vividas de si
próprio desempenhando essas mesmas funções, interpretando e filtrando
dados para líderes imperiais seus antecessores.
Quando o líder imperial mais recente atingira o termo do seu reinado
(cada líder estava no poder durante um prazo específico: cerca de três quartos
de século em tempo humano, se bem que os Cylons não usassem parâmetros
tão restritivos de medição do tempo linear), ditara a escolha dele como
sucessor. Qualquer que fosse o seu critério, nunca se teriam ouvido reações
por parte dos oficiais executivos cylons, pois não havia aspiração ao poder.
Para os cylons, as leis emanadas dos seus superiores de qualquer hierarquia
ou posição provinham de um plano superestrutural de que apenas o líder
imperial era inteiro conhecedor. Para eles era coisa perfeitamente natural,
visto que os líderes imperiais eram os únicos cylons com terceiro-cérebro, e,
portanto os únicos cylons detentores de toda a informação.
Apesar de não mostrar a sua reação a qualquer dos oficiais seus pares, o
atual líder imperial ficara consideravelmente surpreendido quando o seu
antecessor o escolhera. A liderança era geralmente atribuída a um oficial já
versado no comando. Servira longa e dignamente, mas não se considerava
elegível para o escalão supremo senão no próximo período de seleção. No
entanto, com o mesmo estoicismo com que se teria reconciliado com a ideia
da morte em batalha, aceitara a atribuição do terceiro-cérebro. Mal este fora
implantado, compreendera por que razão o seu antecessor, que agora
comunicava com ele telepaticamente, o selecionara. Além de fazer parte
daquela rede telepática que ligava entre si os poucos detentores de terceiro-
cérebro que ainda não tinham escolhido a altura da morte, possuía agora,
assim criam os Cylons, a capacidade da sabedoria ilimitada. Enquanto o
segundo-cérebro lhe fornecera uma percentagem substancial de compreensão
em relação àquilo que acontecia, porque acontecia e como acontecia, o
terceiro-cérebro permitia-lhe transcender a tirania de meros factos,
ultrapassar as limitações da especulação, perspectiva e ideia triviais. Com o
seu terceiro-cérebro, associava a informação do primeiro-cérebro, e
interpretações dessa informação pelo segundo-cérebro, a uma vasta
acumulação de conhecimentos que recuava no tempo quase aos primórdios
da cultura cylon. Descobriu que nem todos os cylons comportavam no seu
corpo o terceiro-cérebro, e, na realidade, a maioria dos seus compatriotas tê-
lo-iam involuntariamente rejeitado. Era principalmente por essa razão que a
seleção de sucessor para o líder imperial era sempre rodeada do mais extremo
cuidado. Testes por altura da implantação do primeiro-cérebro indicavam os
poucos cylons com potencial para terceiros-cérebros. Os que preenchiam as
condições necessárias ficavam sujeitos a aturado e minucioso exame ao longo
dos anos seguintes. Alguns eram eliminados pela detecção de determinados
sintomas de instabilidade de caracter em situações de teste mais complexas,
outros sucumbiam simplesmente na guerra — e em número elevado, pois os
aspirantes a terceiro-cérebro tendiam expor-se a grandes riscos nas lides
guerreiras. Por altura da ascensão do atual líder imperial ao pessoal
executivo, ele estava entre os únicos seis sobreviventes elegíveis para
implantação de terceiro-cérebro, A seleção final estava a cargo do cylon-
chefe, sob conselho de todos os líderes imperiais ainda vivos, a que se
juntavam análises baseadas em recordações de líderes mortos cujos cérebros
eram preservados nos reservatórios históricos. Ao acordar da implantação do
terceiro-cérebro, imediatamente ciente dos motivos por que sobre ele recaíra
a escolha, dera o seu pleno acordo a essa decisão.
Tudo isto, mais a história inteira e saber acumulado da raça cylon,
chamava a si num instante.
Neste momento, passava em revista o progresso da sua batalha de
surpresa, escrupulosamente projetada, contra a frota humana, e perspectivou
o plano-mestre que em breve iria ser executado. A aniquilação do inimigo era
certa. A sua vitória sobre os humanos assegurar-lhe-ia um lugar na história
cylon. Esperava com satisfação o momento de entregar as rédeas do comando
a um sucessor, num futuro remoto, pois sabia que continuaria a ser um líder
influente, mesmo em estase voluntária.
A sua nave-base aproximava-se agora do alvo principal, o mais
importante dos doze alvos contra os quais dispusera as forças maciças sob o
seu comando. Queria fiscalizar pessoalmente a destruição do planeta Caprica.
A sua rede de espiões informara-o de que era o planeta natal do seu primeiro
inimigo humano, Adama, e queria para si o prazer de provocar essa
destruição.
Coisa curiosa, pensava, o facto de tratar estrategicamente com humanos
por inimigos já há tanto tempo forçara-o não poucas vezes a pensar como ser
humano. O seu antecessor avisara-o de que seria necessário fazer uso de uma
parte da massa do terceiro-cérebro para idealizar o pensamento humano, de
forma a dar réplica às evoluções do inimigo durante a batalha. Não podia
negar que a faculdade de copiar os processos de raciocínio humano lhe fora
preciosa na luta contra esta raça obstinada, irracional, que constituía o
inimigo, mas nunca fora com gosto que movimentara a parcela do seu
cérebro que continha a essência do conhecimento humano, aquele reduto
desconexo de insensatez que abrigava as filosofias humanas. Mesmo agora
que recebia uma imagem do atual estado de Caprica, transmitida de várias
origens, não podia deixar de olhar para a aniquilação iminente dos humanos
nos seus próprios termos. Bem e mal, eis a espécie de preocupações que
enchiam as mentes unicerebrais e ineficazes dos humanos. Se algum deles
tivesse os seus poderes e pudesse penetrar as dimensões ilimitadas dos três
cérebros cylons, o analista humano ficaria aterrorizado por não existirem pura
e simplesmente para os Cylons dicotomias rudimentares como essa do bem e
do mal. Para qualquer cylon, o essencial era preservar a ordem natural do
universo, e assumiam-se guardiões implacáveis dessa ordem. Daí que os
humanos tivessem de ser banidos. O seu comportamento aventureiresco e a
sua necessidade obsessiva de explorar áreas onde a sua simples presença
ameaçava a ordem universal, votara-os irreversivelmente à eliminação por
parte dos Cylons. O líder imperial estava convicto de que se devia devolver a
paz ao universo. Era tempo de acabar com a infeliz tendência dos homens
para o pensamento e ação independentes, que perturbava os habitantes de
mundos que visitavam sem cartão de convite.
Bem e mal! Detestava a parcela humana da sua mente, que o forçava a
equacionar esta questão. Via diante dos olhos as mortes que ia causar, as
cidades que ia destruir, os mundos que havia de reduzir a poeira — e tinha a
noção de que do ponto de vista humano toda aquela guerra necessária era
mal! Os Cylons eram mal. Ele era mal. Detestava o simples conceito de mal,
tanto como desprezava o conceito de bem. Não eram opostos, e não se
excluíam mutuamente. Mesmo a maioria dos humanos o sabia. Os cylons
primeiros-cérebros aceitavam sensatamente as consequências da guerra como
essenciais, e nem choravam os seus próprios mortos nem triunfavam por
matar humanos. No entanto, antes de iniciar a destruição de Caprica, o líder
imperial achou necessário libertar-se de todas as suas filosofias humanas,
para poder concentrar-se na estratégia.
Dois oficiais executivos aproximaram-se dele a passos largos, detendo-
se diante do pedestal, e comunicaram formalmente o pedido de passar ao
ataque, ritual que datava da gênese da história cylon.
— Às vossas ordens — disse o primeiro oficial.
— Fala — disse o líder imperial.
— Já todas as naves-base estão em posição para atacar as colônias —
disse o segundo oficial.
Como ditava o ritual, o líder retirou o capacete de comunicações e fixou
os subalternos, ao mesmo tempo que os seus múltiplos olhos irradiavam num
raro momento de júbilo.
— Sim — disse —, o aniquilamento definitivo da peste estrangeira, a
forma de vida conhecida por homem. Que comece o ataque.
Os dois subordinados inclinaram-se em vénias ligeiras e voltaram a
juntar-se à teia de aranha dos oficiais executivos seus companheiros. Ainda
antes de terem retomado as suas posições, e de o líder imperial ter voltado a
enfiar o capacete, tinham-se aberto vastas fendas em toda a superfície do anel
circular principal de cada uma das naves-bases cylons. De cada abertura
emergiram, em sequência precisa, naves de guerra cylons que correram a
tomar as suas posições antebatalha, formando uma parede disposta em doze
fileiras, fulgurante, que, uma vez completada, se ramificou em ondas, cada
uma das quais tinha por alvo eventual um mundo humano.
***
Nenhuma outra estrela-de-batalha da frota colonial conseguira mobilizar
a tempo contingentes completos de forças de ataque. Os assaltantes cylons
não tinham dificuldade em atingir as naves que eram ejetadas para o exterior,
dir-se-iam patos apanhados antes de se lançarem em voo. Adama
compreendeu, num misto de tristeza e de fúria, que só lhes restavam os caças
da Galactica para levar a cabo a luta contra a gigantesca força invasora. Em
minoria, tão depressa evitavam como investiam contra os caças cylons.
Baterias laser disparavam de um e de outro lado, e os seus finos raios
resplandecentes iam-se transformando em erupções espetaculares de chama
amarela e vermelha ao atingir os alvos. Como habitualmente, as naves de
guerra da frota combatiam com maior habilidade e mais precisão, mas a
esmagadora desproporção entre contendores — aquela emboscada traiçoeira
— parecia estar a atuar em seu desfavor, e Adama sentia como que uma
espinha atravessada na garganta cada vez que uma das suas naves era
destruída pelo fogo cylon. A frota ia perder muitos pilotos, hoje, talvez todos.
Já tinham perdido Zac. Adama intimou-se a si próprio a deixar de pensar na
morte do filho. Tinha de deixar de pensar nisso. Já chegava ter tido de
presenciar, ciente da sua impotência, a cena que se desenrolara no visor
defronte dos seus olhos, tal como uma cassete recreativa daquelas que muitas
vezes passava nos seus aposentos. A dor seria maior mais tarde, mas agora,
como todos os comandantes que tinham perdido filhos tragicamente em
combate, recuando no tempo ao longo das múltiplas guerras devastadoras que
tinham assolado a raça. Adama tinha de concentrar-se nas suas funções.
Apollo apareceu correndo na ponte, e Adama foi-lhe rapidamente ao
encontro. O jovem vinha sem fôlego e falava como que em staccato:
— Cylons... Emboscada... Assaltaram-nos de surpresa... Tive de deixar
lá o Zac... Não tinha outra hipótese... Tinha de me vir embora... Não queria,
mas tinha de ser... Ele está em apuros, avariado... Vou voltar lá e ver se...
— Receio bem que isso não seja possível — disse Adama. O seu espírito
tentava desesperadamente encontrar maneira de informar Apollo da morte de
Zac. Os dois irmãos eram íntimos amigos, e não se antolhava fácil dar a
notícia.
— Pai —disse Apollo, numa voz desesperada —, deixei-o para ali...
Assim à deriva... Tinha uma avaria na nave... Achei que não havia outra coisa
a fazer. Já fiz o meu relatório... Se não voltar lá...
De repente, fixando atentamente os olhos do pai, Apollo apercebeu-se da
triste mensagem que continha.
— Zac?—murmurou em voz tênue.
Tigh aproximou-se e falou-lhe.
— Capitão Apollo, a nave do Zac foi destruída a pouca distância da
frota.
— Mas... Mas... Eu deixei-o lá.
— Não tinhas outra hipótese — disse Adama baixinho.
Apollo voltou à cara para o lado, empalidecendo. Adama recordou os
raros momentos em que Apollo, em criança, manifestara uma dor tão
lancinante. Apetecia-lhe poder tomar esse homem nos braços, tal como
outrora abraçara o rapazinho que chorava. Mas sabia muito bem que Apollo
repeliria qualquer movimento de simpatia nesta hora, e a experiência de
Adama dizia-lhe que deixasse o filho enfrentar pelos seus meios a sua dor.
Voltando a afirmar a Apollo que ele não tivera qualquer outra hipótese, o
comandante passou rapidamente a sondar os écrans do painel de
comunicações, e ordenou a Tigh que fizesse o seu relatório.
— Capitão—disse Tigh —, temos de saber quantas naves-bases temos
contra nós.
— Não são naves-bases—respondeu Apollo, recuperando alguma
segurança na voz ao sentir o dever chamá-lo. — São só forças de assalto. Aos
milhares. Vi-os passar ali...
— Deve estar enganado, capitão — disse Tigh. — Quer dizer, caças
nunca poderiam atuar assim tão longe da base de guerra cylon sem naves-
bases. Não têm depósito suficiente de combustível, e...
— Não têm lá naves-bases! —gritou Apollo, em voz exaltada.—Só
caças. Caças alinhados a perder de vista, até ao inferno. Eu vi-os. Talvez mil,
talvez mais, talvez...
— Como é que explicas isso, Apollo? — perguntou Adama, forçando-se
a manter uma voz normal para abrandar a ira natural do filho.
— Não sei — disse Apollo, baixando a voz. — Localizámos um tanker
nos nossos radares. Palpita-me que os cylons o usaram para se reabastecerem
para o ataque. Corriam para lá a partir seja de onde for que tenham as naves-
bases neste preciso momento.
Adama franziu o sobrolho enquanto processava as informações que
Apollo lhe estava a fornecer. Eram precisamente os dados de que precisava,
davam sentido ao enigmático mistério desta emboscada repentina e à
mascarada da conferência de paz. O pensamento que o vinha perseguindo
desde que soara o alerta passou a primeiro plano na sua mente. Tigh estava a
dizer qualquer coisa.
— Porquê atuar tão longe das bases quando...
— Faz sentido— disse Adama.— É mais importante ter as bases noutro
sítio qualquer. Ligue-me ao presidente. Já!
O rosto lívido do presidente apareceu no visor adequado antes que o eco
da ordem sonora de Adama se tivesse diluído na ponte. Por trás de Adar via-
se a ponte da Atlantia sob fogo intenso. Adar estava apavorado — Adama
não lhe via semelhante expressão desde aquele dia na Academia em que
tinham suado as estopinhas na sala de exame do curso superior.
— Sr. Presidente — disse Adama, esforçando-se por controlar a voz. —
Peço autorização para abandonar a frota.
— Abandonar a frota! — gritou Adar histericamente. —Mas isso não é
mais do que uma cobarde...
— Adar! Tenho razões para suspeitar que os nossos planetas natais
possam estar sujeitos a um ataque iminente.
O presidente, com os olhos a turvarem-se-lhe de desespero, desapareceu
por momentos da imagem. A máquina da Atlantia reajustou a mira,
apanhando o homem derrotado encostado a uma parede.
— Não — balbuciou Adar. — Estás enganado. Tem de ser. Não é... Não
é possível... Eu não me posso ter enganado a esse ponto. A esse ponto, não.
— Adar, não estamos em altura de debater o...
— Cala-te, Adama. Não vês... Não podes... Levei a raça humana, toda a
raça humana à ruína, à...
— Deixe-se de considerações sobre o seu lugar na história. Temos de
atuar, bolas! Temos de...
— Não consigo... Não consigo atuar... Nem sequer consigo pensar
direito... Não consigo...
— Ouça, Adar, a culpa não é sua. Não nos levou a esta calamidade. Mas
nós fomos levados.
— Levados? Mas q... Baltar?
— Claro, Baltar!
— Não, comandante, isso não pode ser. Não acredito. Não vou...
Uma explosão ensurdecedora abafou o resto da frase de Adar. A câmara,
arrancada dos seus apoios, captou por momentos a imagem de uma secção da
ponte de comando a ser desmantelada, depois um mar de chamas a engolir
tudo, depois nada. Adama desviou a sua atenção para o espaço estelar, onde
pôde distinguir a nave-almirante que navegava a distância. Viam-se focos de
chamas irrompendo de vários lados. De repente, num rebentamento de luz
ofuscante, despedaçou-se, desintegrou-se em milhares de bocados. Momentos
depois, não havia senão vazio no lugar onde antes estivera a Atlantia.
Na ponte da Galactica toda a atividade parou, enquanto a tripulação
olhava em frente num silêncio atordoado. Entretanto, naves de guerra cylons
apertavam o cerco em volta da sua própria nave, desta vez, e havia pouco
tempo para aquele silêncio reverente. Tigh deslocara-se para junto de Adama,
trazendo na mão as inevitáveis folhas de telimpressor.
— Olhe, comandante, os nossos radares de longo alcance detectaram
naves-bases cylons aqui, aqui e aqui. Ora isso põe nas ao alcance — a
posição de tiro é perfeita— dos planetas Virgon, Sagitara e...
Não conseguia terminar, mas Adama fê-lo por ele.
— Eu sei. Caprica.
Athena, que estivera a colaborar no traçado do curso da Galactica e das
naves-bases inimigas num grande mapa estelar translúcido, voltou-se
bruscamente ao ouvir as palavras do pai,
— Caprica... — murmurou.
— Helm — disse Adama, não olhando para ela —, prepara a meia-volta.
Vamos embora daqui. Coronel, vamos partir para casa. Dê-me o curso...
— Pai — interrompeu Athena, abeirando-se de Adama —, que é que
está a fazer?
— Comandante — disse Apollo, do outro lado —, as nossas naves...
— É indispensável — disse Adama. — Deixamos para trás as nossas
naves para defender a frota.
— Mas eles depois não podem ir ter connosco— disse Athena.
— Podem, podem voltar. Podem usar estações de reabastecimento para...
— Se as estações de reabastecimento também não tiverem sido
destruídas — disse Apollo amargamente.
— Bem —disse Adama —, as que tiverem combustível suficiente, as
que conseguirem combustível suficiente, podem, bem, podem ir ter connosco,
lá se desenvencilharão.
— Não posso deixar de protestar... —disse Apollo.
— Depois, por favor — respondeu Adama.
— Devíamos falar com eles, transmitir-lhes as nossas intenções...
— Não. A única vantagem que nos resta, se é que nos resta alguma, é a
surpresa.
Adama sentiu-se momentaneamente irritado com os seus dois filhos,
enquanto os via regressar aos seus lugares na ponte, mas breve reprimiu toda
e qualquer emoção, ordenando num tom sacudido as manobras necessárias
para transportar a Galactica para longe das forças coloniais em combate.
Tentou não dar muita atenção ao facto de a maioria das naves de
abastecimento da frota estarem em chamas.
Uma vez fora do campo de batalha, um oficial da ponte anunciou que
tinham cessado todas as interferências eletrônicas.
— Estão a neutralizar tudo para abrir caminho aos sistemas de
navegação eletrônica — disse Apollo.
— Isso quer dizer que se preparam para atacar — disse Tigh.
— Não, senhor— disse um oficial da ponte —, estamos a apanhar sinais
de satélite no vídeo de longo alcance. Parece tudo perfeitamente normal, lá
em casa.
Todos se concentraram nos instrumentos que apresentavam cenas de
Caprica. Adama centrou a sua atenção particularmente numa vista aérea que
mostrava num ângulo especialmente vantajoso a bela arquitetura piramidal de
Caprica. Tinha uma perspectiva semelhante na sua sala de trabalho em casa,
não muito longe do cenário que estava observando. Fora Ila que lhe dera a
holovista. Agora não podia estar a pensar em Ila.
Indubitavelmente, estava um dia lindo na cidade capital de Caprica. Via-
se um troço do centro animado pelo bulício dos compradores, uma fileira de
pirâmides residenciais de aspecto sereno. A consola de comunicações estava
a apanhar transmissões radiofônicas. Tudo parecia tão pacífico, tão parecido
com as cenas que todos tinham idealizado para o regresso no dia em que
concluíssem a missão de paz, tão corriqueiro, que Adama por momentos teve
a sensação de que a batalha que tinham deixado para trás acabava por não ser
mais que uma mentira, um sonho, e que na verdade estavam a rumar a uma
realidade gloriosa.
— Comandante — disse Tigh numa voz calma — , talvez... Talvez
tenhamos vindo a tempo. Ou talvez... Talvez o ataque cylon à nossa frota
fosse só uma operação qualquer de uma fação dissidente, qualquer
movimento menor antipaz a querer fazer barulho...
— Não me parece, Tigh — disse Adama. — Não me parece.
A onda de naves de guerra cylons surgiu de repente, como que do nada,
num radar adjacente às imagens do planeta natal.
***
Os olhos de Serina lacrimejavam perante a luz fixa e ofuscante que
irradiava das fachadas dos edifícios, envidraçados da zona comercial. Entre
duas ordens aos técnicos quanto à posição adequada do equipamento de
televisão, sussurrou para o microfone do seu estojo de maquilhagem,
instruindo-o para fornecer qualquer coisa que lhe aliviasse a névoa dos olhos.
Apareceu um tecido grosso, tratado, com que limpou o líquido intruso. Além
de atuar como esponja, também lhe acalmava medicamente a irritação dos
olhos.
Assim ocupada nestes preparativos, ia chamando a atenção de muitos
dos passantes, que ficavam especados a olhar para ela — o preço de se ser
uma personalidade conhecida em toda a Caprica. Ela, propriamente, já estava
farta daquela cara tão familiar a milhões de pessoas. Era bela, sem dúvida —
aquele cabelo castanho-aloirado, aqueles olhos verdes e aquela boca cem por
cento sensual, para não falar naquela figura esbelta e bem torneada que se
tornara o ideal capricano de beleza —, mas quando se tinha de sujeitá-la
todos os dias, quase todas as horas, à mira dos aparelhos para verificar se
estava em condições de ser apresentada ao público, facilmente se podia ficar
cansada de toda essa graciosidade.
O auscultador anunciou-lhe que dentro de trinta segundos a emissão ia
para o ar, e ela postou-se em frente da máquina. Enquanto o contador descia
até zero, deitou uma olhadela ao cenário que tinha imediatamente por trás.
Agradou-lhe a beleza dos arranjos de flores, especialmente aquele quarto de
círculo destacado de flores vivamente coloridas que desenhavam a palavra
PAZ. Por cima da palavra alinhavam-se as bandeiras das doze colônias.
Cheio de significado, pensou, e que admirável fundo para os festejos que hão
de estoirar quando for anunciada oficialmente a paz. O contador atingiu o
zero, acendeu-se a luz vermelha, e Serina iniciou a sua reportagem.
— Fala-vos Serina, aqui do Presídio de Caprica, onde continuam os
preparativos, que aliás não pararam noite fora, para as cerimônias que
começarão logo que nos ligarem à conferência de paz para ouvirmos a tão
esperada proclamação. Apesar da hora matutina aqui, as pessoas acorreram
ao complexo do Presídio, agora repleto já de uma grande multidão. É grande,
cada vez maior a expectativa, agora que os Capricanos se preparam para
abraçar uma nova era de paz. Até ao momento, não nos têm chegado,
conforme esperávamos, pormenores dos encontros do armistício, devido a
uma inusitada interferência eléctrica que está a bloquear a comunicação
interestelar. Ainda nem sequer recebemos notícias oficiais sobre a reunião
com os emissários cylons. No entanto, logo que dispusermos de quaisquer
informações, terão oportunidade de ver imagens em primeira mão daquilo
que tem sido descrito como o acontecimento mais relevante desde que...
Chegou-lhe aos ouvidos o som distante de uma explosão estrondosa,
logo seguido pelo ruído arrepiante, mais próximo, de vidros a despedaçar-se,
ao mesmo tempo que as janelas e os painéis das portas a toda a volta do
Presídio ruíam, ejetando pelo ar em todas as direções fragmentos de vidro. O
operador da câmara apontou algures para lá das costas de Serina e para todo o
lado esquerdo desta. Ela voltou-se e olhou nesse sentido. Todos à sua volta
tinham interrompido o que estavam a fazer. A maioria olhava para trás, para
o lado onde se dera a explosão. Uns poucos passaram-lhe ao lado a correr, em
direção à desembocadura da praça. Mais ao longe começou a fazer-se ouvir
uma gritaria surda. Serina acenou para o operador da câmara e para a rapariga
do som, continuando a fitar a máquina.
— Peço desculpa. Passa-se alguma coisa. Vamos, Morei. Prina, vamos
ver o que é. Perdão, o senhor e a senhora, não nos podiam deixar passar, por
favor? Não sei o que foi, mas pareceu-me uma explosão qualquer. Talvez
uma sabotagem qualquer de dissidentes, se é que existem dissidentes em
Caprica. Prestem atenção àquele estalar de vidros ali em baixo. Estás a
apanhar, Prina? Estás? Ótimo. Realmente, não sei... Esperem, aqui temos
uma pessoa. Minha senhora, podia dizer-nos o que é que... Parece-me que ela
não vai contar nada a ninguém. Parecia aterrorizada, tive essa sensação.
Talvez tenham notado. Esperem um minuto... Desculpe, sim? Perdão...
Abrindo caminho à cotovelada por entre a multidão apinhada, ao mesmo
tempo que verificava continuamente se a sua equipa ainda vinha atrás, Serina
conseguiu chegar a uma clareira. Morei, o operador de câmara, montou
rapidamente a máquina e fez-lhe sinal que começasse.
— Ainda não consegui perceber o que é que... Oh, não! Morei, vire a
câmara para ali, depressa!
Morei apontou-a para a direção que ela lhe indicava, para o horizonte
além da cidade, onde uma gigantesca bola de fogo brilhante subia no céu
como um sol volante mas excêntrico. Seguiu-se-lhe um outro, igualmente
gigantesco e igualmente brilhante.
— Uma explosão tremenda — disse Serina, olhando para a rapariga do
som a certificar-se de que ela o tinha registado. Passado o primeiro impacte,
voltou aos seus comentários. — Duas explosões. Viram-nas nos vossos
écrans. As pessoas estão a começar a correr em todas as direções. Isto é
terrível, horrível.
Esperava que a voz não traísse a sua sensação de que tudo aquilo era
excitante, também.
— Parece que ninguém percebe...
Foi interrompida por uma nave de guerra cylon que cruzou os céus,
disparando feixes de raios laser sobre a multidão. A sua volta começaram a
cair pessoas. «Oh, meu Deus», pensou Serina, « isto é mesmo real! É a
guerra! Não é um simples desastre, é... »
À sua esquerda uma pirâmide explodiu num estrondo troante, mais
adiante um edifício monolítico começou a cair para a frente, desprendendo-se
dos alicerces e abatendo-se aos pedaços sobre a massa de gente em
debandada. O chão estremeceu... Violentamente, e Serina caiu
aparatosamente sobre um tufo de verdura. Olhou para cima: Morei
continuava persistentemente de câmara apontada para ela.
— Para aqui não. Morel. As explosões, o fogo. Isto é horrível. Senhoras
e senhores, é terrível, alguém está a bombardear Caprica City... Parece que
são cy...
Um caça em voo rasante sobre a cidade fê-la enfiar a cabeça nos
arbustos. Disparou na sua direção. Uma mulher jovem, que passava por ela a
correr, caiu no chão. Serina levantou-se e preparava-se para a socorrer
quando se apercebeu repentinamente de que ela estava morta.
— Está morta... Está... Morei. Prina, o melhor é abrigarmo-nos em
qualquer sítio, é melhor...
Passavam por ela torrentes de pessoas que a empurravam e quase a
faziam cair novamente. Mais explosões, gritos, naves a disparar. Morei
continuava de câmara apontada para ela.
— É desesperante — disse. — As pessoas à minha volta caem como
tordos. Nem sequer sei se ainda estamos no ar. Estou a ver um rapazito ali
adiante, a correr atrás do... Cuidado! Olha...
Uma outra nave em voo rasante lançava nova descarga laser. Morei foi
atingido juntamente com a câmara. Libertando faíscas em várias direções,
esta despedaçou-se ao mesmo tempo que Morei caía. Prina desatou a correr,
largando a aparelhagem de som. Serina atirou ao chão o microfone e correu
para o rapazinho que vira perseguir um animal. Mais um caça em voo picado
se aproximava diretamente deles, com o canhão laser a toda a potência.
Atirando-se para o chão, Serina arrancou a criança do pavimento tornado
incandescente pelo laser, antes que este os apanhasse. Mantendo a trêmula
criança de encontro ao peito, viu passar uma autêntica onda sibilante de
caças, cujas armas faziam alastrar indiscriminadamente a sinistra destruição.
A poucos passos dali, abateu um pilar de betão. Serina tentou ignorar os
berros de dor Por entre as pedras. Sentiu qualquer coisa cair-lhe em cima, e
de repente faltou-lhe o ar.
Tinha um dos braços ainda liberto, e conseguia mexê-lo. Freneticamente,
começou a abrir caminho até à superfície, resistindo ao impulso premente de
inspirar. O braço conseguiu perfurar até acima. Como louca, desenhou uma
abertura de saída nos destroços e içou-se para fora com a criança. Depois de
uma breve inspiração, retirou a criança completamente do buraco e
examinou-a atentamente, para se certificar de que estava bem. Era um
rapazinho miúdo, talvez tivesse seis anos.
— Agora fica quietinho por uns minutos disse-lhe.
O rapaz começou a chorar, e Serina aconchegou-o a ela para o consolar.
— Pronto, já passou... — disse.
— Muffit! — disse o rapaz. — Onde está o Muffit?
— Quem?
— O meu daggit, o meu daggit. Onde é que ele...
— O teu daggit. Ah, está ótimo com certeza.
Os daggits, raça animal oriunda de Caprica, tinham sido facilmente
domesticados pelos primeiros colonos e haviam-se tornado o brinquedo e
companheiro preferido dos mais pequeninos. Os pais gostavam dos
engraçados bichinhos de quatro patas e pelo curto, pois, apesar do seu
espírito brincalhão, protegiam sempre as crianças. Serina sorriu. Não deixava
de se deslumbrar com a originalidade da criança na escolha dos objetos da
sua atenção. Este rapaz, ignorando o significado da invasão cylon, estava
mais preocupado com o seu animal de estimação perdido do que com a
devastação à sua volta. Talvez pensasse que a recuperação do seu daggit
restauraria a ordem natural das coisas.
Apesar de os caças cylons já não cruzarem os ares, a poeira levantada
pela sua carga ainda pairava em volta de Serina e do rapaz.
— Muffit! Muffit! —chamou o rapaz.
— Descansa que não lhe aconteceu nada, querido— disse Serina,
tentando pela sua voz dar a entender que acreditava no que dizia.
Um homem alto acercou-se deles correndo, com o braço esquerdo
ensanguentado pendendo inerte e inútil ao longo do corpo.
— Todos para fora daqui— berrou.— Fora daqui! Evacuar o centro!
— O meu daggit — disse o rapaz—, onde está...
— Não estamos em altura de pensar em... — o homem. Mas Serina fez-
lhe sinal para se calar.
— Anda — disse suavemente. — Temos de ir. Tenho a certeza de que o
teu daggit está ótimo.
— Por favor, minha senhora — gritou o homem em desespero. —
Aquele edifício ali está mesmo a ruir.
Serina olhou na direção para a qual apontava o braço são do homem.
Antes de localizar o edifício prestes a desabar, os olhos fixaram-se-lhe num
pilar sob o qual apareciam o que se diria serem as patas de um daggit.
Interpondo-se entre o rapaz e o pilar, avançou alguns passos na direção deste.
Era realmente o daggit, esmagado sob o pilar, com o focinho submerso em
lama e pedras. Deslocando o corpo de modo a cobrir qualquer ângulo que
permitisse ao rapaz captar o animal morto, apontou na direção oposta e disse:
— Ali vai ele, parece que era ele, a correr para ali. Vamos lá ver.
— Eu quero o Muffit. Ele está bem?
Serina pegou na criança ao colo, apertando-a de encontro a si.
— Claro que está bem. Não há problema nenhum. Descansa que vai tudo
correr bem. Muito bem. Como é que te chamas?
— Boxey.
Serina limpou parte do pó que cobria a cara do rapaz. Era uma criança de
rosto angélico, com olhos grandes e castanhos e uma madeixa de cabelo
castanho encaracolado a pender-lhe sobre a testa. Veio-lhe à ideia que aquela
madeixa lhe devia estar sempre a ir para os olhos.
— Olá, Boxey — disse-lhe.
E olhou para lá do rapaz, para o que na cidade ficara de pé. Não havia
muita coisa de pé. Os edifícios intactos eram abalados por explosões,
rebentavam em chamas. O homem ferido puxou-a com o braço são, e ela
começou a correr, continuando com a criança nos braços. Não se voltou
quando sentiu desabar atrás de si o edifício. Ao passarem precipitadamente
pelo local onde estivera originalmente montada a sua câmara, frente ao
arranjo floral que desenhava a palavra PAZ, reparou que as flores tinham sido
totalmente devastadas e as bandeiras das doze colônias estavam em chamas.
***
Athena não deixava de olhar dissimuladamente para o pai, sondando as
suas reações à terrível matança que todos estavam a presenciar, impotentes,
nos múltiplos visores do banco de dados da Galactica. Para a maioria das
pessoas, Adama estaria impávido, impermeável à emoção, não estaria a reagir
minimamente àquele holocausto, mas Athena conhecia-o bem. Lia-lhe nos
olhos a dor sombria que o atormentava. Mantinha-se firme e direito, tomando
conhecimento superficial dos relatórios dos seus oficiais, mas Athena ia jurar
que ele tinha o pensamento na sua mãe, que vivia num subúrbio de Caprica
City agora em fogo. Quem lhe dera pudessem os dois largar os seus afazeres,
voltar a ser pai e filha nem que fosse por um minuto, ir para uma sala
sossegada e apertarem-se num abraço. Mas não era possível. «A mãe tem de
estar bem», pensou, «tem de estar!»
Tigh aproximara-se do comandante com o último relatório.
— Radares de longo alcance estão a detectar naves-bases cylons. Estão a
lançar forças sobre todos os nossos planetas.
Ao ouvir isto, Athena teve vontade de bater com os punhos no painel de
instrumentos que tinha na frente. Vinha-lhe à memória com nitidez uma
conversa que tivera apenas alguns dias antes com Zac e Apollo. Tinham
estado a discutir a futura missão de paz, e ela mantinha que se podia confiar
nos Cylons. Eram pelo menos uma raça inteligente. Apollo disse que podia
ser que os Cylons fossem mestres na tecnologia, mas não diria com tanta
certeza que se lhes pudesse chamar inteligentes, pelo menos em termos
humanos. Era um argumento já velho, em que já se envolvera vezes sem
conta desde que entrara para o serviço. Os Cylons podiam ser inteligentes,
mas clementes é que não eram de certeza; aliás, mal se podia dizer que
fossem emocionais. Tal como muitos outros, Apollo sustentava a opinião de
que para se ser inteligente era preciso ter a faculdade de sentir. Athena estava
convicta de que os Cylons tinham de ter sentimento, tinham de ter emoção,
simplesmente não era descritível em linguagem humana. Como os dois
sistemas culturais eram tão inteiramente diferentes, dizia ela, temos de
procurar e descobrir as outras diferenças, também.
A discussão tornara-se bastante acesa, se bem que ela e Apollo
soubessem que o debate em si vinha de longe, era quase ritualista. Zac viera
interrompê-la dando uma súbita gargalhada e dizendo que o melhor era
porem-se a beber até cair para o lado para tornar o argumento mais lógico.
Riram todos. O pai. juntando-se ao histérico trio, dissera-lhes que se
deixassem de tolices e voltassem aos seus lugares. Fora um momento
agradável, estupendo, a última vez que haviam estado juntos na intimidade da
família. Agora Zac morrera — e Athena, para já, não queria pensar a sério
nisso.
Tentou arrancar da cabeça aqueles pensamentos deprimentes com uma
leitura dos instrumentos. No entanto, os olhos fugiam-lhe constantemente
para os monitores. Ao nível dos planetas, as coisas estavam mais feias.
Incêndios por toda a parte. Edifícios ainda a cair. Cadáveres amontoados às
portas e pilhas de pedras, como que dispostos para exposição. Os poucos
sobreviventes dispersos moviam-se mole e lentamente, num estado coletivo
de choque. Adama tirou os olhos daquelas imagens de horror, afundando-se-
lhe os ombros com a derrota. Ela sabia que o seu aspecto também era
lastimável. Sentia-se como que adormecida; o pesadelo tinha de acabar
depressa, ela tinha de acordar. Sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro. Olhou
para cima, para o rosto abatido de Apollo. Fez menção de o repelir, sentindo-
se ilogicamente irritada com o sofrimento dele, furiosa com o ar abatido do
pai. Não conseguiu dominar-se mais tempo, e desabafou com Apollo.
— Primeiro o Zac, agora isto! Eles confiaram em nós para os
protegermos! — Sentiu os olhos do pai cravados nela com angústia. — Como
é que nós permitimos uma coisa destas? Porque é que nos pusemos a guardar
um punhado de políticos corruptos em vez de olharmos para as nossas terras
natais? Fomos nós que permitimos uma coisa destas, fomos mesmo nós.
Olhando na direção de Adama, leu-lhe de novo a dor no rosto, e
arrependeu-se de ter falado. Ele era comandante. Quando disse «como é que
nós permitimos uma coisa destas», percebeu que no seu íntimo ele estava a
ouvir «porque é que tu permitiste uma coisa destas». Não seria capaz de
retirar o que dissera. Era verdade, mas não ia ser capaz de o retirar.
Durante alguns minutos, trabalhou ainda nesse estado de absorção
sonhadora. Mas, por muito que conseguisse concentrar-se, não era capaz de
apagar do espírito aquelas desoladoras imagens de destruição. Se ao menos
Starbuck estivesse ali ao pé dela para animá-la — mas nem sabia onde ele
estava. Tinham-no deixado para trás com os outros que haviam... Que haviam
abandonado. Starbuck pelo menos tinha de voltar. Precisava dele, agora.
Tigh chamou a atenção de todos para o maior écran de controlo.
Tinham-se finalmente localizado as bases-naves cylons. Uma delas aparecia
em primeiro plano, as outras duas à distância. Qualquer delas ejetava os seus
caças para o exterior. Um outro oficial trouxe ao visor cenas de todos os doze
mundos. Cada imagem mostrava caças cylons em missões de
bombardeamento.
— Que dizem os relatórios dos doze mundos, coronel?—perguntou
Adama.
— Não há qualquer esperança, comandante.
— Há sempre. E Sagitara? Têm o sistema de defesa mais sofisticado de
todos os mundos. Talvez ainda haja tempo...
— Lamento, comandante. O planeta está em chamas.
Athena nunca tinha visto o pai tão pálido, tão próximo do colapso. Fez
menção de ir ter com ele. Adama reparou e fez-lhe sinal para não sair de onde
estava. Voltou-se para Tigh.
— Prepare a minha naveta — disse.
Tigh pareceu tão espantado quanto todos os outros que ouviram as
instruções do comandante.
— A sua naveta?... —perguntou Tigh.
— Quero ir até Caprica, Tigh.
— Isso está fora de questão, comandante. Nem pensar.
— Prepare a...
— Comandante, se os radares cylons o apanharem quando sair do nosso
campo de força de camuflagem...
— Eu vou consigo— disse Apollo.
— Pois — disse Athena.— Eu também.
Adama tocou-lhe levemente no braço, e falou-lhe com ternura:
— Tu ficas aqui. Não nos há de acontecer nada.
— Mas eu quero...
— És precisa aqui.
Ela cedeu perante o tom firme de comando na voz de Adama. Como
irmão mais velho, Apollo estava no seu direito se queria participar nesta
viagem particular, apesar de lhe competir normalmente a ela pilotar a naveta
do pai.
— Vamos no meu caça, pai — disse Apollo.— O pai é o último
sobrevivente dos membros do Quórum. Se dermos com uma nave de combate
cylon, ao menos terá hipótese de...
— O capitão tem razão— disse Tigh. — E como sou eu que lhe tomo o
lugar no caso de acontecer alguma coisa, bem, insisto em que vá no caça,
comandante.
Adama assentiu com a cabeça, olhando para Tigh.
— Preparem-se para receber os sobreviventes da frota. Façam tudo o que
é preciso. Têm de atuar como se eu pudesse não voltar.
— Não voltar? — exclamou Tigh. — Vai voltar, comandante.
Tigh estendeu-lhe a mão, e os dois homens, velhos amigos e
companheiros de trabalho que há mais de três dezenas de anos serviam
juntos, apertaram-se as mãos num cumprimento.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Ninguém gosta de ser chamado cobarde. Eu nem sequer percebi as
interpretações deturpadas da minha retirada com a Galactica após a
emboscada dos Cylons.
Há uma lenda que recua a tempos tão remotos do conhecimento
galáctico que ninguém sabe qual a sua origem. Um mineiro lunar, no sistema
solar original que integrava a tão lendária Terra, trabalha os satélites naturais
dos vários planetas. Um mineiro não é como os outros, tem de enfrentar áreas
desoladas onde humanos normais tremeriam de medo, só para desenterrar
matérias vitais para o progresso humano. Segundo reza a lenda, os mineiros
lunares vivem na maior rudeza e os seus festejos são mais selvagens que os
de quaisquer outros heróis na fraternidade do espaço. Numa cerimônia festiva
num dos recônditos mundos do sistema, em cumprimento de um dos feriados
normais a celebrar as colheitas ou a história, está reunido em animado festejo
um grupo de mineiros lunares. De repente a festa é interrompida pelo rugido
de uma voz sonora e feia. Um homem estranho, horrendo, vestindo uma
variação colorida do normal equipamento verde de pesquisa, avança a passo
largo para o meio do grupo. Põe-se imediatamente a criticar os mineiros pela
sua cobardia e propõe-lhes um desafio. Diz-lhes que escolham o mais valente
entre eles, que poderá então enfrentá-lo com a arma de sua escolha. O nosso
herói, denominado Gavin na maioria das versões da história, salta logo para á
cena e faz a sua escolha. Em muitas versões trata-se de um veiculo,
normalmente um bulldozer munido da pá de escavação de superfície.
Apontando o bulldozer para o irreverente intruso, Gavin fá-lo avançar contra
ele a todo o vapor. Dá uma pazada tão violenta no vilão que ele vai parar às
alturas e entra em órbita temporária. Mas desce de novo, aterra pelos seus
meios e diz ao herói mineiro que hão de encontrar-se outra vez, na próxima
celebração do feriado, e então será a vez de Gavin apanhar. « Mas onde é que
te posso encontrar? », pergunta Gavin. « Isso terás tu de descobrir por ti
próprio », responde o vilão. Entre mineiros lunares, a acusação de cobardia é
o pior dos insultos, e assim o nosso herói passa o ano seguinte, no meio de
muitas aventuras, incluindo os desvarios românticos do costume, na demanda
da morada do irreverente intruso. Mas nenhuma das pessoas que encontra
parece saber onde vive esse vilão.
Finalmente, diz a lenda, o mineiro lunar chega à Lua original, a que gira
em volta da Terra. Nunca lá esteve, não conhece as suas propriedades
mágicas, nem nunca tinha visto o planeta berço da humanidade da
perspectiva vantajosa da sua própria lua. Se encontrar o vilão e sobreviver à
experiência, tenciona descer à Terra, talvez passar lá o resto dos seus dias.
Na Lua as suas aventuras prosseguem, mas ele começa a desesperar de
encontrar alguma vez o alvo da sua demanda e desferir o golpe de desforra.
No entanto, no dia aprazado para o encontro, dá com uma velha bruxa
aninhada numa pá abandonada no interior de uma cratera cavada por
humanos, e ela diz-lhe aonde dirigir-se. O vilão vive num castelo em órbita
permanente, algures por cima da Lua, e Gavin tem de se catapultar para lá. «
Por que catapultar?», pergunta ele. « Porque é que não hei de simplesmente
meter-me na naveta de trabalho ou num cargueiro que passe por lá?» Ela diz
que o impostor vilão acha que o mineiro só prova ser um cobarde se for lá
acima de naveta ou qualquer outro veiculo seguro.
Gavin prende-se dentro de um impulsionador de massa, um aparelho em
forma de correia longa utilizado para lançar o produto das minas para a caixa
de um veiculo posicionado com precisão, veiculo esse chamado apanhador,
donde é transferido para uma estação espacial em órbita. Aciona o
mecanismo, e começa a ser levado ao longo da pista do impulsionador de
massa. Primeiro devagar, depois mais depressa e cada vez mais depressa. À
medida que a velocidade aumenta ele sobe gradualmente poucos metros
acima da pista do impulsionador de massa, depois uns metros mais, o seu voo
só é impedido por umas chapas destinadas a evitar que um carregamento seja
lançado para o espaço antes do tempo rigorosamente calculado. Com a
aceleração, chega a grande velocidade à rampa final de lançamento. As
chapas são baixadas, e ele é lançado no espaço, para o céu negro por cima da
Lua. Carregamento corpóreo, vivo, Gavin progride rápido no vácuo espacial.
A sua velocidade aumenta para seiscentas milhas por hora. Na sua frente, o
castelo verde do vilão, flutuando no espaço, aparece, como se vindo de parte
nenhuma. No último momento, faz sair o seu próprio apanhador, e
interrompe rudemente o voo do mineiro da Lua.
Bom, é claro que o nosso mineiro se teria partido num milhão de
bocados, exatamente como um carregamento de minério — mas isto é uma
lenda, e ele acorda na câmara de repouso do seu hospedeiro. O vilão estende
agora a mão com amizade, e diz que a divida está paga. Gavin confirmara a
sua bravura, não era cobarde nenhum. E — quem sabe? — em histórias onde
os vilãos são instantaneamente transformados em hospitaleiros amigos, talvez
Gavin, o mineiro da Lua, realize o seu sonho de visitar a Terra.
Houve alturas em que a minha aparente cobardia me fez sentir como o
mineiro da Lua, quando encarava o destino onde poderia ficar feito num
milhão de bocados. De qualquer maneira, não podia contar com um acordar
confortável na câmara de repouso do meu opositor.
CAPÍTULO III
Quando a Galactica abandonou a batalha, Starbuck quase caiu do cockpit
com a fúria.
— Que é que se passa?—perguntou pelo rádio a Boomer.
— Não me perguntes a mim. O comandante está a atrair a si o fogo.
Havia uma ponta de sarcasmo na voz de Boomer, o tom do piloto
calejado que sabe muito bem que não se pode confiar em ninguém no poder.
— Mas ele não nos pode deixar para aqui assim como...
— Eh, rapazes — ouviu-se a voz de Greenbean a interferir na
transmissão. — Que é que se passa? A Galactica está a pôr-se a andar.
— Ah, notaste! — disse Starbuck. — Eu não... Deve ser... Tem de haver
uma boa razão.
— Claro que há — disse Boomer. — As coisas aqui estão perigosas. Um
tipo ainda pode... Abre-me esses olhos, Greenbean, tens um par deles na tua
cauda.
— Abre tu os olhos. Boomer — interveio a voz de Jolly. —Estás na mira
de um deles também. Vou ver se consigo tirá-los daqui
Ao arremeter contra os sinistros caças no encalço de Boomer, Starbuck
olhou para trás, para a Galactica em retirada, e pôs-se a resmungar, mais para
si do que para alguém que pudesse estar a ouvir:
— Tem de haver uma boa razão.
O tempo era escasso para introspecções sobre o mistério da partida
precipitada da nave-mãe: fileiras de caças cylons exigiam irreverentemente a
sua atenção. Várias vezes esteve quase a ser apanhado num daqueles seus
insidioso e temíveis ataques em parafuso, em que uma dúzia de veículos
cylons cercava o alvo e cada um, numa complexa e intrincada sequência de
voltas em arco, picava sobre os veículos humanos. Um ataque em parafuso
era um estilo de manobra particularmente duro de enfrentar, mas Starbuck já
se batera com todas as tácticas traiçoeiras do repertório dos malévolos e
iníquos Cylons, e sabia como programar as suas evoluções para igualar as
deles — limpando muitos deles pelo caminho.
O tempo e o facto de os cylons serem largamente superiores em número
aos humanos levaram a melhor. Starbuck depressa descobriu que a carga das
suas armas descera a um nível perigosamente baixo. Sem uma Galactica à
mão a quem recorrer para recarregar, podia tornar-se presa fácil mesmo para
o mais verde dos guerreiros cylons. Perscrutou os céus em busca de uma
outra estrela-de-batalha, onde pudesse fazer uma aterragem de emergência
em demanda de mais combustível e de novas cargas para o armamento.
Encontrou a Solaria, mas estava sob ataque intenso de uma nave de guerra
cylon. Starbuck distinguia, através das suas espaçosas aberturas, os clarões de
centenas de fogos dentro da estrela-de-batalha. Dirigiu o seu caça para a
sitiada Solaria.
— Também aqui vou — disse-lhe uma voz ao ouvido. Era Boomer, que
lhe passava mesmo por cima. Os pilotos cylons não tinham visto ainda
nenhum deles. Precipitavam-se sobre o objetivo.
— Eu vou pela esquerda — disse Boomer.
— E eu pela direita— respondeu Starbuck.
Boomer e Starbuck libertaram em sincronia os seus torpedos laser. Um
segundo depois, a nave cylon explodiu, deixando milhares de partículas
metálicas a flutuar indolentemente naquela zona do espaço. Mais um caça
cylon emergiu do outro lado da Solaria, apontou à estrela-de-batalha,
disparou uma carga maciça e atingiu-a a meia-nau. Starbuck viu a Solaria
começar a partir-se em dois, quando o caça desandou. Praguejando
violentamente, picou sobre o inimigo e, saboreando a vingança, fez a nave
em pedaços com o que parecia ser o último disparo decente que se podia
permitir.
— Boa pontaria — disse Boomer.
— É, mas um bocadinho tarde, já — murmurou com sarcasmo, ao
assistir aos últimos instantes da desintegração da Solaria.
Localizou um outro caça cylon ao longe e arrancou nessa direção. Mas o
bom senso prevaleceu sobre a raiva. Experimentando o botão de fogo na
coluna de comando, ouviu o gemido sumido que lhe dizia que a carga do
armamento estava agora abaixo do nível de eficiência. Desviou o seu
aparelho para a direita, para escapar a algum ataque que o cylon pudesse
tentar. No entanto, para surpresa sua, os vários aparelhos inimigos que podia
divisar descreviam agora arcos abruptos, encaminhando-se no sentido oposto
às forças dos humanos.
— Então? — disse Starbuck.
— Então?... A derrota total, é o que é — respondeu Boomer.— A
Solaria era a nossa última estrela-de-batalha. Sem contar com a Galactica,
claro, que por razões militares parece que achou necessário virar costas e...
— Aguenta aí, Boomer. Ainda não sabemos o que aconteceu.
— Está bem, está bem. De qualquer maneira, esses piolhos pegajosos
destruíram a frota, e não temos já nada a fazer aqui.
A voz de Jolly interrompeu,
— Estão a virar costas. Vamos apanhá-los!
— Não — interveio Starbuck. — Tal como estamos já não vamos muito
folgados em reserva de combustível.
— Para fazer o quê? —perguntou Boomer. — Para passear aqui pelo
sector? Onde é que propõe que aterremos, tenente Starbuck? Já não há nada
para...
— A Galactica deixou-nos — disse Starbuck. — Sugiro que tentemos
encontrá-la.
— Certo—retorquiu Jolly —, e quando...
— Atiramos-lhe no duro — continuou Boomer.
— Calma aí, Boomer — interveio Starbuck. — Demos-lhe tempo e
ouçamos a sua versão. Devem ter tido boas razões para retirar, quando o
fizeram.
— Ah! —respondeu Jolly. — São mas é uns cobardes!
Starbuck ouviu a gargalhada leve e maliciosa de Boomer em tácito
acordo com a acusação de Jolly.
— Como é que propões que cheguemos à Galactica, rapaz voador? —
perguntou Boomer. — Vais agarrar-nos pela mão e levar-nos a casa?
— Havemos de a encontrar, não te preocupes. Primeiro temos de passar
por uma estação espacial de reabastecimento de combustível, ou ficaremos
pelo caminho.
— Que é que te faz pensar que os Cylons não tomaram todos os postos
de combustível? — perguntou Boomer.— Faço a pergunta com toda a
cortesia, claro, cavaleiro dos céus.
— Teremos de descobrir, não achas, Boomer?
— Se assim o dizes.
A nave de Boomer guinou, afastando-se da asa de bombordo de
Starbuck. Jolly seguiu-se-lhe. Depois de um momento de hesitação, Starbuck
fez o mesmo.
Felizmente as estações de reabastecimento de combustível, escondidas
dos Cylons por campos de força de camuflagem, estavam todas intactas, e os
esquadrões puderam reabastecer-se. Uma vez que a emissão de linhas
posicionais já se encontrava desanuviada, calcularam imediatamente as
coordenadas da Galactica. Starbuck estava confundido com o facto de a
estrela-de-batalha estar na região do seu planeta. Aquela localização só
parecia confirmar a acusação de Boomer e Jolly de que Adama tinha levado a
Galactica para fora da barafunda por pura cobardia. Durante a jornada de
volta, um tanto longa, pois tiveram de dar ainda duas saltadas a estações de
combustível, Starbuck convenceu Boomer, Jolly e os outros pilotos irados da
necessidade de ter cuidado — não só para esperar e saber o que Se tinha
passado, mas também para se salvaguardarem a si próprios e aos seus
aparelhos. Contudo, sentia a sua própria cólera a aquecer até ao ponto de
ebulição.
Quando se aproximaram da Galactica, Starbuck deu ordens para se
seguir uma linha de voo direta à plataforma de aterragem da estrela-de-
batalha. Quando acionou o seu botão de curso, no entanto, saltaram do painel
de controlo faíscas que se espalharam rapidamente por toda a cabina. Ao
mesmo tempo, uma peça do painel de instrumentos saltou, ficando pendurada
pela base. O aparelho começou a vacilar em relação ao curso programado.
Tentando mantê-lo direito manualmente, Starbuck teve de tratar diretamente
do curto-circuito. Com a cabeça a aconselhá-lo a trabalhar devagar, apertou
fortemente os dedos de forma a conservar os fios separados e a resolver o
problema.
— Estou a vê-lo, líder Vermelho número um — disse uma voz no
comunicador. — Daqui parece que algo está mal no seu aparelho.
— Algo mal no extremo da direita. Problema, problema.
A voz de Tigh interrompeu:
— Ouvimos-te, líder Vermelho. Que ajuda podemos dar?
Starbuck experimentou o foguete estabilizador de bombordo.
Normalmente o seu impulso podia ser controlado por uma alavanca no painel
de instrumentos. Mas desta vez, ao acionar a alavanca, verificou que não
havia reação. Em vez disso, deu um sacão, balançando a nave de uma
maneira errática.
— Avaria de combate — emitiu Starbuck. — O estabilizador não
mantém um impulso constante. Coloquem um analista de sistemas na linha.
— Em linha — disse uma voz imediatamente. Starbuck reconheceu a
voz de Athena. Olhou por um momento para o retrato dela, pequeno e
redondo, que afixara para recordação na parte superior do painel do visor do
radar, e imaginou-a de sobrolho franzido, debruçada sobre o mecanismo de
direção. — Qual é a tua condição, Starbuck?
— Isto não é altura para aprendizes, Athena. Estou atrapalhado.
— Sou o melhor que podes arranjar neste momento, piloto. Continuarás
em sarilhos se insistires em falar assim. Que combustível tens?
Deu uma olhadela ao ponteiro.
— S Baixo.
— Está bem. Segue a verificação comigo. Circuito alfa, fechado e em
alternativa ao servocircuito esquerdo...
Com destreza, passando o quadro, pendurado sob o painel de
instrumentos, donde saltavam faíscas, alcançou o interruptor do circuito, que
desligou.
— Circuito alfa fechado e em alternativa ao servocircuito esquerdo —
respondeu.
Verificou o estabilizador, que estava agora inoperacional, não
respondendo minimamente ao toque na alavanca.
— Inoperacional.
— Circuito ómega C — disse Athena. A voz era calma, distante, soando
tal como aquando da resposta que ela dera na sala de convívio às suas
propostas maliciosas. — Fechado e em alternativa ao servocircuito de apoio.
— Em alternativa ao servocircuito de apoio.
Sentiu o suor escorrer-lhe em catarata ressoante. O estabilizador
continuava a não responder.
— Não responde.
Um breve som de afogado — o motor começava a funcionar mal.
— Combustível mesmo no fim — disse.
A voz de Tigh interrompeu de novo, dirigindo-se a Athena.
— Trá-lo sem propulsão, com todos os estabilizadores desligados. Não
há outra hipótese.
— Espera — disse ela. — Uma verificação final. O teu estabilizador da
direita está regular?
— Estabilizador da direita, regular.
— Cruza servocircuito direito para a esquerda.
— Cruzar servocircuito direito para a esquerda.
Trabalhando com o máximo de calma, Starbuck fez as ligações no
painel. Olhou de novo para fora, para o estabilizador. Oscilava sem energia,
frio como uma pedra.
— Nada feito — disse ele. — Não posso inverter o impulso. Abram alas,
tirem todos do caminho, vou entrar na brasa.
Houve uma pausa antes que a resposta de Athena viesse.
— Tudo bem, caminho aberto para entrares.
A sua voz soava apreensiva.
— Entrarás aqui como um míssil — disse ela. —A pista está livre para
uma emergência.
— Obrigadinho por esses pensamentos reconfortantes.
— De nada. Vemo-nos na pista.
— Está marcado o encontro.
A voz de Boomer interrompeu.
— Não querem lá ver este tipo? Perde um raio de um estabilizador e
quer ter as damas todas a vê-lo levantar o pó todo à pista! Se as damas
também...
A voz de Jolly interrompeu.
— Boa sorte, Starbuck.
— Obrigado, Jolly. Líder Vermelho a fazer-se à pista. Vou entrar na
brasa, pronto ou não. Espero que a rapaziada não esteja à espera de coisa
limpinha.
Sentia o suor que nem mar raivoso numa tempestade torrencial. A
plataforma emergiu da Galactica antes de ele estar preparado. Sabia que na
pista, dentro da estrela-de-batalha, havia mãos preparadas para o desastre,
preparadas para limpar o sangue dele se viesse a ser essa a tarefa necessária.
Podia ser que perdesse desta vez. A famosa sorte de Starbuck tinha de
acabar algum dia. Ligou todos os aparelhos que ainda funcionavam no seu
painel de instrumentos. A nave precipitou-se para a plataforma. Sentia-se
desfalecer à medida que descia e, para o evitar, abanou repetidas vezes a
cabeça. Imediatamente antes da aterragem, conseguiu orientar o viper para
algo que se assemelhava à atitude correta de entrada. Arrancou uma série de
luzes estroboscópicas de aterragem quando o viper tocou a plataforma.
Saltaram faíscas em todas as direções. Quando a nave transpôs a escotilha de
entrada e embateu na almofada de choque de emergência, perdeu os
sentidos...
... Quando, apenas poucos segundos depois, regressou das trevas, viu os
pequenos carros de emergência sair apressadamente de bolsas nas paredes e
dirigirem-se para o viper empanado.
Tudo estava bem. Tinha dores terríveis, mas tudo estava bem. A velha
sorte de Starbuck continuava a valer ouro. Encaminhou-se para a comporta
de ar.
— Estás bem, Starbuck? — gritou Athena, correndo a lançar-se-lhe nos
braços. Ele abraçou-a com indiferença, libertou-a abruptamente e pôs-se a
andar rumo aos elevadores.
— Para um tipo a quem acabam de tirar uma frota inteira de debaixo dos
pés, estou ótimo — disse ele. — Agradecimentos ao teu pai.
Athena precipitou-se atrás dele.
— Que é que estás para aí a dizer do meu pai? — perguntou ela. —
Imaginas por acaso o que nós passámos?
— Ah, sim? Deviam ter visto como nós passámos o dia. A passear,
apenas a passear. A manter os Cylons longe dos vossos pescoços, enquanto
vocês partiam num pequeno cruzeiro para fora de...
Athena deteve-o em frente do elevador.
— Starbuck — disse—, não sabes o que aconteceu?
Ele conduziu-a para dentro do elevador, um tanto bruscamente.
— Aposto a tua vida em como sei o que aconteceu, pequena querida. Só
queria que visses o que este bebé parece, visto do espaço, quando
calmamente se esgueira para fora do cenário de batalha. Uma visão
maravilhosa, serena... A menos, claro, que aconteça tratar-se da tua nave-base
a acelerar e a pôr-se a andar pela calada para longe, deixando-te para ali em
seco como um...
— Para com isso! Ouve! As colônias, Starbuck, foram-se todas. Todas.
Limpas por esses Cylons...
— Espera, que estás tu a dizer? Destruídas? Como é que...
A porta do elevador abriu-se, e o ruído roufenho da ponte abafou o resto
da pergunta de Starbuck. Zangado, entrou de rompante no compartimento.
Ninguém reparou nele. A voz de um dos oficiais da ponte elevou-se acima do
normal.
— Caças a entrar em ambos os pavimentos, Sr. Comandante.
Tigh dirigiu-se ao oficial e disse:
— Dá-me um relatório completo. Quantos são?
« Tigh? », pensou Starbuck. « Que tem ele que dar ordens? Onde está
Adama? Não pode ter acontecido nada a Adama!» Sentiu-se desorientado,
empurrado para um mundo alternante onde Adama já não existia e onde a
terrível cobardia de retirar a Galactica do lugar que lhe competia tinha de
certa forma sido transformada em heroísmo.
— Sessenta e sete caças ao todo, Sr. Comandante, vinte cinco nossos.
— E quantas estrelas-de-batalha?
O oficial fez uma pausa antes de revelar a informação.
— Nenhuma.
— O quê?
— Somos a única estrela-de-batalha que escapou.
— Meu Deus... — Tigh parecia chocado. Quando voltou a falar, fê-lo
numa voz sufocada: — Recebam o melhor possível os pilotos das outras
naves.
Starbuck avançou por detrás dele e disse:
— É um bocadinho tarde de mais para isso, coronel.
Ouviu Athena, que o seguira, sussurrar-lhe:
— Não, Starbuck, não...
Sentia os olhares de todos os oficiais da ponte cravados em si, e Tigh
voltava-se neste momento para ele.
— Para alguns daqueles rapazes que quer receber — disse Starbuck —,
o caso resumia-se a atirar moeda ao ar para ver se se havia de aterrar aqui ou
fazer a Galactica em pedaços com uma mão cheia de torpedos. Talvez os
tenham dissuadido disso, ou talvez ninguém tivesse torpedos de sobra, mas...
— Que quer dizer esta insubordinação, tenente?—rugiu Tigh.
— Ele ainda não compreende o que aconteceu — interveio Athena. — Já
lhe adiantei alguma coisa, mas parece que não chegou lá. Parece-me que
nenhum deles está bem ao par.
Perplexo, Starbuck olhou em volta. Reparou em Boomer e em Jolly, de
expressão tão furiosa e frustrada como ele próprio, acabados de chegar num
dos elevadores.
— Não compreendo o quê? — perguntou Starbuck. —O velhote virou
costas e pôs-se a mexer, e deixou todas as nossas naves para trás, para
esgotarem o combustível, fazer...
Um gesto furioso de Tigh obrigou Starbuck a deter-se no meio da frase.
O coronel apontou para um dos oficiais.
— Põe outra vez nos visores as fitas das transmissões que nos chegaram
de lá. Aqui para os nossos jovens patriotas.
Starbuck recomeçou os queixumes, mas as imagens que subitamente
apareceram em quatro visores da consola silenciaram-no efetivamente. A dor
de assistir ao desastre num único visor era aumentada até à intolerância
quando multiplicada por quatro. Os punhos de Starbuck cerravam-se de
frustração ao aperceber-se de que não havia hipótese de subir de novo ao seu
cockpit e enfrentar as naves de guerra cylons que tinham infligido toda
aquela desgraça algumas horas antes.
— Desculpem —disse—, desculpem.
Por trás de si, ouviu Boomer e Jolly resmonear tristemente, associando-
se ao seu remorso.
***
Adama encontrava-se na velha colina sua conhecida, inspecionando a
nova cicatriz de guerra, sua desconhecida, que percorria a sua terra num sulco
profundo. A linha parecia alongar-se até ao infinito, ou pelo menos até à orla
da fileira de fogos que lavravam na orla da cidade longínqua em ruínas.
Todos os edifícios deviam estar em chamas, nesta altura.
Começou a descer a colina, alheio à presença de Apollo que vinha logo
atrás. Um som remoto de muitas vozes chegava-lhes cada vez mais forte.
Olhando por cima do ombro, Adama distinguiu a luz trêmula de uma dúzia
de archotes para lá do viper de Apollo. «Já cá temos as turbas desnorteadas.»
Bem, havia de tratar com elas quando viessem ter com ele. Se não viessem
com um daqueles líderes fanáticos de olhos esbugalhados, parecia-lhe que
sabia enfrentar qualquer multidão.
Voltou-se de novo e recomeçou a andar ao longo do caminho, aquele
que tão meticulosamente abrira, pedra a pedra, no primeiro ano do seu
casamento com Ila. Também aqui o terreno era atravessado pela cicatriz de
batalha, larga e funda, que ia mesmo até sua casa. Manteve o olhar desviado
da casa tanto quanto pôde, mas acabou por ter de olhar. O que fora um
atraente conjunto de módulos residenciais — ele próprio dispusera os
semicírculos intercomunicantes, tão amorosamente como colocara as pedras
do caminho — estava agora também cortado ao meio, de cima a baixo, pela
linha reta da cicatriz de batalha. Para um dos lados da linha, a maior parte da
habitação ainda estava de pé, mas a outra metade, aquela que continha a sala
de estar de Ila, estava reduzida a pedra carbonizada. Toda a esperança latente
na sobrevivência de Ila o abandonou quando se deteve a fixar a estrutura em
ruínas. Era pouco provável que Ila tivesse resolvido sair dali. Ela sabia que o
seu primeiro impulso, quando estivesse livre, seria ir ter com ela ali, e havia
de esperar. Se estivesse ali agora, teria saído de casa a correr, a precipitar-se
nos seus braços. Que fazia ela normalmente à hora em que se dera o ataque?
Fim da tarde. Era a altura em que ela geralmente se encostava um bocadinho.
Se calhar fora apanhada a dormir, ou acordara aos silvos agudos de caças
cylons em voo picado. Não lhe agradava imaginá-la aterrorizada. Aliás, era
pouco provável. Ultimamente Ila estava ligeiramente dura de ouvido, apesar
de não gostar de o admitir. Fosse como fosse, tinha um sono de chumbo,
insensível ao mais sonoro dos ruídos. Se calhar tinha continuado a dormir.
« Deixa-te de divagações dessas!», pensou ele. « Ela está morta! Admite
isso perante ti próprio. Tem de estar morta! Não há outra possibilidade. »
Adama sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. No limiar da casa, não
teve de parar no dispositivo de identificação, reduzido a uma massa informe
de destroços cheia de protuberâncias e pendente por um fio eléctrico de um
buraco recortado na parede. A porta de entrada estava presa apenas num
gonzo, baloiçando insegura. Entrou diretamente para a sala de estar, para a
fila de fotografias holográficas que haviam sido implantadas na parede anos
atrás. Havia uma simples fonte de luz na divisão, uma vela retangular com
todas as suas doze mechas perenes acesas. Cada chama representava um dos
doze mundos, e Adama sentiu uma momentânea onda de alegria invadi-lo ao
ver que ardiam todas ainda, como se a vela lhe estivesse a afirmar que as
colônias tinham de sobreviver, e sobreviveriam.
Recordou o prazer que Ila encontrara naquela vela ao descobri-la num
bazar da cidade próxima. Ela adorava procurar pechinchas, e não raras vezes
deslocava-se pouco economicamente quilômetros e quilômetros fora de
caminho para depois voltar dizendo que a sua última aquisição era
especialmente econômica. A luz intermitente emitida por esta vela especial
lançava auréolas estranhas nos jogos de fotografias que ela tão
cuidadosamente selecionara antes de tratar do acabamento laser que as
integrava na parede. Havia fotografias de toda a família, ele e Ila, Athena,
Apollo e Zac. Zac... Não suportava agora olhar para o sorriso ardente e
confiante de Zac, nem podia pousar os olhos no cronológico semicírculo de
fotos que retratavam Zac de criança a adulto.
Adama trouxe à memória uma conversa recente com o filho mais novo,
uma das últimas vezes que tinham estado a falar juntos. Zac, algo estonteado
por um copo daquele vinho librano excepcionalmente forte que parecia
sempre tão suave ao paladar mas subia sempre à cabeça que nem pedrada
violenta, revelara ao pai o seu propósito de eclipsar Apollo. Dissera que
orientava toda a sua vida para superar as realizações do irmão. Quando
Adama começara a emitir os seus conselhos paternais, Zac interrompera-o
alegando que ele pura e simplesmente não compreendia.
«Pai, desde que me conheço que ouço Apollo para aqui, Apollo para ali,
coisa sim, coisa não que ouvia era certo e sabido ser alguma façanha heroica
do Apollo. Bem, não me interprete mal, eu sinto-me tão orgulhoso dele como
o pai ou a mãe, como a Athena, mas não vê que todos temos de ter alguém a
quem bater...? Às vezes é só um modelo que idealizamos seguir, outras vezes
e uma pessoa real. Comigo é o Apollo. Gosto imenso dele, mas tenho de o
bater.»
Adama tentara convencer Zac de que a vida era mais do que um
estratificado sentido de competição, mas não havia meio de o rapaz lhe dar
ouvidos. Quando se despedira do filho nessa noite, sentira uma vaga
impressão de falhanço. Teria incutido aos filhos uma distorcida ambição de
sucesso? Ou era a guerra que exacerbava as suas ambições de heroísmo?
Talvez Adama tivesse dedicado uma parte tão grande da sua vida à guerra,
mal notando os seus feitos consideráveis nela, que não conseguira dar à sua
descendência uma perspectiva correta da vida. Talvez tivesse feito de Zac e
de Apollo, e mesmo de Athena, pálidas réplicas de si próprio. Todos os três
estavam talhados para realizar atos heroicos, tomar decisões importantes,
assumir liderança, tão naturalmente como quaisquer outros acorriam às
tarefas corriqueiras do dia-a-dia. Anos antes, o próprio Adama aceitara
responsabilidades dessas como consequências naturais de ser filho de seu pai.
Seria possível que as brechas numa vida tão integralmente votada às lides
militares começassem a vir ao de cima na terceira geração? Não — estava a
ser demasiado duro consigo próprio. Zac podia ter sido insensatamente
ambicioso, mas também era jovem. Adama suspeitava que aos vinte e três
anos podia ter estado canalizado de maneira semelhante para o sucesso e ter-
se comportado tão energicamente quando se tratasse de debater esperanças
futuras. E os seus outros dois filhos, Apollo e Athena, não mostravam
indícios de qualquer problema de personalidade ou psicológico. Apollo, que
aliava a valentia à inteligência, era um estupendo piloto de caças, um dos
melhores, e a capacidade de Athena de sintetizar informações para chegar a
uma decisão rápida parecia predestiná-la a um posto de comando.
Ao afastar os olhos das fotografias dos filhos, Adama compreendeu que
estava a exagerar as declarações literalmente disparatadas de Zac devido à
profunda mágoa que ele próprio sentia. Zac apenas mostrara um desejo
natural, juvenil, de escapar ao ninho. Mas mesmo ao dizer de si para si que as
aspirações de Zac não eram sua culpa como pai, Adama não conseguia
libertar-se totalmente do pensamento desconfortável de que se calhar até
eram.
Durante alguns momentos apeteceu-lhe que todas aquelas fotografias
não estivessem tão solidamente embutidas na parede. Teria gostado de as
voltar ao contrário, colocadas viradas para a parede, como faziam as pessoas
zangadas nos romances antigos que muitas vezes passava no visor durante os
tempos livres.
Finalmente, teve de olhar para os retratos de Ila.
As poses no círculo bem arranjado mostravam-na em várias idades, dos
dezessete aos cinquenta. Na fotografia mais recente estava com um grande
sorriso na festa dos cinquenta anos, o ano passado. Em segundo plano, ele e
os três filhos de pé, os seus rostos um tanto apagados, talvez obscurecidos
pelo esplendor do brilho dela. Estendeu a mão para ver se tocava no rosto do
retrato em primeiro plano, mas ficou surpreendido por o vidro da moldura o
impedir de tocar com a mão nas figuras tridimensionais de dentro.
Ele e Ila tinham ambos bebido um copinho de vinho a mais na noite do
aniversário, e haviam especulado tolamente sobre o futuro longínquo —
sobre o dia em que Adama chegaria ao limite da sua utilidade na frota
colonial e se poderia reformar e viver na sua casa em Caprica. Mesmo na
altura em que falavam, sabiam quão absurdas eram as suas especulações
desejosas. Enquanto a guerra continuasse, Adama teria recusado retirar-se e
viver da pensão, e, quando estivesse já demasiado fraco para o comando,
serviria certamente num posto de conselheiro, pelo menos. Na última carta de
Ila, que chegara mesmo antes do início da conferência de paz, ela tinha
escrito que, se as conversações fossem bem-sucedidas, talvez os seus desejos
absurdos para o futuro pudessem vir a ser realizados. Ele gozara um
momento de esperança — mas apenas um momento. Era tudo o que os
Cylons permitiam, um momento.
Olhou para uma Ila mais nova, a fotografia mais antiga, tirada
imediatamente antes do casamento. Chegaram-lhe em torrente recordações
dessa data. Quando se conheceram, Ila era uma aplicada mulher de carreira,
decidida a vir a pertencer ao Quórum dos Doze. Aos dezessete anos
candidatou-se e ganhou um lugar no conselho local. As suas ideias radicais já
tinham chamado sobre si as atenções, especialmente o plano de reduzir a
contribuição da sua cidade para o orçamento militar de Caprica. Visto estar a
angariar algum apoio nas populações, elas próprias cansadas da guerra que
então já durava há quase um milhar de anos, alguns círculos militares e
políticos chegaram à conclusão de que ela devia ser investigada. Adama, na
altura um jovem praticante na base de treino de Caprica, foi mandado lá para
verificar o estado dessa ligeira agitação, e ver se conseguia aplanar um pouco
as coisas. A lei de Caprica não admitia que o direito de liberdade de
expressão de Ila fosse cerceado, mas não havia nada nos livros que dissesse
que um praticante jovem e bonitão não pudesse influenciar no bom sentido
uma agitadora jovem e bela. A perspicácia dos militares graúdos, nesta
matéria, revelou-se extremamente presciente. Não só Ila foi influenciada no
bom sentido pelo praticante, como ele se perdeu de amores por ela, da ponta
da cabeça à ponta dos pés, desde o primeiro minuto em que a viu fazer um
empolgante discurso no seu conselho. Sempre preferira as mulheres de
carácter forte, e Ila revelou-se uma das mulheres mais fortes que jamais
encontrara. A sua força interior tinha-o salvo vezes sem fim ao longo da sua
vida de casados, especialmente nas alturas em que era necessário dizer-lhe
que não, quando se inclinava para qualquer curso de ação ridículo.
Cada expressão de Ila que olhava trazia consigo uma onda de
recordações semelhantes. Via a sua beleza ao longo de todas as fases,
lembrava-se do seu amor crescente ao longo dos anos. Subitamente foi-se
abaixo e desatou a chorar.
— Desculpa, Ila — soluçou. —Eu nunca estava quando era preciso.
Nunca estava quando...
Inevitavelmente, pensou em tudo o que ainda podiam ter realizado em
conjunto, tudo o que podiam ter feito no passado.
A dor tornou-se-lhe insuportável. Obrigou-se a parar de chorar, obrigou-
se a tirar os olhos da parede de fotografias. Quando olhou para cima, viu
Apollo à porta de casa. Obviamente já ali estava há muito a observar. Adama
esquecera-se de que Apollo o acompanhava: por momentos ficou
desorientado. Com as pontas dos dedos limpou algumas das lágrimas mais
renitentes e esforçou-se por controlar a voz ao dirigir-se ao filho.
— Não te... Não te senti chegar.
— Desculpe, pai — disse Apollo.— Eu devia ter-me ido embora, tê-lo
deixado...
— Não, não, isso não tem importância. Eu estava apenas... Estava
apenas a evocar algumas recordações.
Havia algumas fotografias não-holográficas espalhadas na prateleira do
fogão, por baixo dos retratos dispostos em séries. Pegou numa e ofereceu-a a
Apollo.
— Queres esta imagem tua e do Zac?
Apollo recuou. Quando falou, havia uma clara ponta de amargura na sua
voz.
— Não — disse. — Ouça, há grupos de pessoas por aí a chegar. Se
calhar viram aterrar a nossa nave.
— Não me preocupam. Vou ficar mais alguns minutos aqui...
A decisão ia claramente contra tudo o que Apollo pudesse pensar, mas
assentiu rispidamente com a cabeça e deu alguns passos para a saída. Um
segundo depois estava de novo no limiar da porta, dizendo:
— Talvez ela não estivesse aqui, talvez...
— Ela estava cá — disse Adama com determinação. — Ela estava cá.
Apollo murmurou entre dentes: «Pois, claro», e saiu.
***
Postado ao lado da sua nave, Apollo observava a turba furiosa que se
aproximava. Avançavam em tropel, desorganizados, com muitos braços
levantados e muitos empurrões. As suas vozes, estridentes e agudas,
tornavam clara a sua hostilidade. Apollo interrogou-se se o pai teria feito bem
em manter-se por ali. Uma multidão como esta podia matá-los aos dois, e que
bem adviria daí? Talvez devesse ter insistido com mais firmeza, arrastado o
velhote de volta ao aparelho e levantado voo antes da chegada do
ajuntamento.
Talvez Adama estivesse afinal demasiado extenuado neste momento
para tomar uma decisão acertada. De facto, Apollo não achava de todo
racional que o velhote chorasse assim a sua mágoa em silêncio diante de um
molho de fotografias antigas. Apollo não gostava de fotografias. Não eram
mais do que esculturas de gelo que derreteriam se uma pessoa se recusasse a
olhar para elas, e o que Apollo menos queria no mundo era olhar para
fotografias da mãe e de Zac. Recusara a oferta da imagem da prateleira, que o
pai lhe fizera — e essa fotografia fora em tempos a sua preferida —, porque
não suportava olhar para ela, ver o rosto sorridente de Zac e os braços de
cada um nos ombros do outro. Se ficasse com essa fotografia, era certo que
lhe recordaria para sempre a última batalha que haviam travado juntos, era
certo que se obrigaria a especular sobre o seu possível erro em deixar Zac
para ali sozinho. O miúdo não estava preparado para ser abandonado aos seus
próprios recursos; apesar do facto de o mais elementar conhecimento das
artes de guerra ditar que Apollo voltasse a toda a pressa para a frota com as
informações de que dispunha, ele haveria para sempre de se interrogar se
deveria ou não ter voltado atrás, para junto de Zac, socorrer o miúdo numa
altura em que ele de facto precisava de ajuda. Nas atuais circunstâncias
trágicas da guerra, era uma recordação que não se podia dar ao luxo de
chamar.
A turba deteve-se a cerca de cinquenta jardas da nave. Algumas das
pessoas apontavam ameaçadoramente para ela. Apollo avançou alguns
passos, tentando aferir da profundeza da sua inimizade: Alguns dos que
estavam a apontar voltaram-se e apontaram para ele. A pouco e pouco toda a
multidão se apercebeu da presença de Apollo que vinha ao seu encontro. Um
homem destacou-se do meio deles, agitando o punho e gritando:
— Onde estão eles, todos os vossos pilotos de estimação?
Um outro homem, mesmo por trás do primeiro orador, berrou:
— Onde é que tu estavas, rapaz, quando eles entraram a matar toda a
gente? Que é que estavas a fazer?
Outros homens e mulheres se destacaram da turba e marcharam sobre
Apollo. Vinham enraivecidos, dir-se-ia que prontos a despedaçá-lo e espalhar
depois os pedaços dali até à cidade em chamas.
— Esperem! — exclamou uma mulher que abria caminho por entre a
multidão, correndo. As fileiras da frente apartaram-se e ela avançou,
segurando pela mão um rapazinho.— Deixem-no falar.— E voltou-se para
Apollo, caminhando inseguramente alguns passos na sua direção. Apollo
ficou impressionado pela sua beleza, que sobressaía por entre os traços de
sujidade na sua face e o desalinho do cabelo e do vestuário. — Antes que lhe
saltem em cima, gostava de saber uma ou outra coisa. Onde estava. Aliás,
onde estavam todos, o grosso da nossa força militar? Onde é que vocês se
meteram todos? Mesmo depois de ter começado a batalha, rezámos para que
viessem reforços, mas vocês nunca apareceram.
Falava com precisão, numa dimensão teatral. «Esta mulher espantosa
pode ser para mim o verdadeiro perigo», pensou Apollo. A multidão, essa
podia ele dominar usando tácticas que aprendera no treino, mas uma pessoa
inteligente podia facilmente enfrentar tácticas dessas. Tentando ganhar um
momento para pensar, baixou os olhos para o rapaz que a acompanhava. A
cara da criança quase não se distinguia no meio da porcaria que a cobria, mas
os seus olhos inocentes eram límpidos a fixá-lo de baixo para cima.
— A maior parte dos nossos morreram — disse Apollo, tentando falar
num tom tão descontraído quanto possível. A multidão acalmou. — Fomos
atacados de surpresa. Já não há frota nenhuma.
Primeiro ouviu-se uma exclamação coletiva de espanto por entre a turba,
depois reações individuais de choro angustiado e desespero enfurecido. A
mulher olhou em volta para as pessoas em mágoa, e o seu rosto denotava a
desorientação em que se encontrava.
— Mas — disse ela —, mas porque é que... Quer dizer, você está aqui.
Donde é que você veio?
— Da estrela-de-batalha Galactica.
— Sobreviveu...
— Sim...
— Bem, e o presidente, e o Quórum dos Doze? E as outras colônias?
Com certeza que podemos responder ao ataque. Estamos unidas, todas as
doze colônias, há centenas e centenas de anos. A nossa força combinada não
pode ser derrotada, foi isso que nos ensinaram a todos, o que aprendemos
desde o berço.
Adama, postado junto à asa do engenho de Apollo, veio junto da luz
intermitente e falou:
— A nossa unidade e a nossa força apareceram tarde de mais.
A mulher tinha evidentemente reconhecido Adama, e a cabeça inclinou-
se-lhe automaticamente numa reverência.
— Comandante Adama! —gritou ela.
Mais pessoas na multidão reagiram ao nome.
— Serina — disse Adama.
A sua mera aparência parecia ter reavivado em Serina e na turba o
impacte e dimensão da derrota.
— Então sempre é verdade. Bateram-nos. Estamos condenados.
Adama mantinha uma expressão firme, magistral. Apollo tirou os olhos
dela para se concentrar no rapazinho que, inexplicavelmente sorriu, ao
levantar os olhos para Apollo, com admiração.
— O senhor deixa-me ir na sua nave? —perguntou o miúdo.
Apollo inclinou-se e pegou na criança ao colo. Era mais leve do que
parecia. Ao responder ao rapaz, pensou em Zac, e teve de olhar para o pai
enquanto falava.
— Os caças não são sítio para crianças.
Adama deve ter compreendido o significado do olhar do filho, pois
desviou o seu, de expressão magoada.
— Vão ter mesmo de ser, se quisermos que a nossa gente sobreviva —
disse Serina.
Adama caminhou lentamente colina acima, concentrando a sua atenção
na cidade em chamas. Serina avançou também com ele. Apollo seguiu-os,
ainda com o rapaz nos braços.
— Comandante — disse Serina —, vamos ter de responder ao ataque.
Não podemos... Não podemos pura e simplesmente desistir.
Seguiu-se um longo silêncio. Tanto Serina como Apollo fixavam o
comandante, buscando sinais de decisão. Quando Adama voltou a fitá-los,
parecia estar a fixar algo para além deles.
— Sim —disse baixinho —, vamos responder ao ataque.
Aqueles dentre a multidão que conseguiram ouvir as suas palavras
passaram-nas aos que lhes estavam próximo. A declaração depressa se
espalhou. Quando todos já tinham conhecimento dela, a multidão reagiu
clamorosamente, com gritos de satisfação, frustração, fúria desabafada.
Adama deu alguns passos na direção de Apollo antes de voltar a abrir a
boca. Quando começou a falar com o filho, era como se a turba para lá deles
não existisse. A intimidade gerada era uma combinação de pai falando para
filho e comandante dirigindo-se a capitão.
— Mas não podemos responder-lhes aqui, nem agora. E também não nas
colônias, nem sequer neste sistema galáctico. Temos de reunir todos os
sobreviventes de cada um dos doze mundos, todos os homens, mulheres e
crianças que sobreviveram a esta infâmia. Temos de lhes fazer chegar à
ordem de partirem imediatamente em qualquer veículo que os possa
transportar, seja em que estado estiver.
— Pai — disse Apollo —, não temos tempo, tempo suficiente para
arranjar provisões. Tenho a certeza de que os Cylons hão de mandar forças de
terra para acabar com os sobreviventes. O que devíamos fazer... Se ao menos
pudéssemos mandar-lhes ao encontro os caças que nós restam...
— Não! Eles são de mais, nós de menos. Há de chegar a altura de
lutarmos, mas não agora. Temos de retirar, lutar noutra altura qualquer, é só...
— Mas... Mas não há hipótese de meter toda a população na Galactica, e
já não temos nenhuns transportadores de tropas. Esses veículos... Bem, não
fariam mais que uma frota de ferro-velho. A sua capacidade de adaptação ao
hiperespaço é mais que precária.
— Estás a pensar com lógica, sim, mas não estamos em altura de
raciocínios lógicos. Vamos utilizar aquilo que de facto temos. Todas as naves
de passageiros intercolónias, cargueiros, tankers, mesmo transportadores
intracolónias, táxis aéreos, eu sei lá, tudo o que possa levar a nossa gente para
as estrelas.
— E quando se tiverem reunido nas estrelas? —perguntou Serina
brandamente.
— Havemos de orientá-los. E protegê-los até voltarem a ser fortes.
Os olhos de Adama brilhavam com uma confiança tão sólida que, por
momentos, Apollo ficou na dúvida se estaria em presença de um louco ou de
um salvador. A avaliar pela expressão embaraçada de Serina e pelos curiosos
olhares emanados da multidão, era evidente que eles também não tinham essa
certeza.
Apollo tentou imaginar o que o pai tinha proposto. Toda a casta de naves
a descolar de planetas em chamas — como ele dissera, uma frota de ferro-
velho. Os sobreviventes de todas as colônias, os Aeries de Aeriana, os
Gemons de Gemini, os Virgos de Virgon, os Scorpianos, os Leos, os
Piconeses, os Sagitarianos. Pura e simplesmente não parecia realizável. Mas,
a julgar pela determinação espelhada na face de Adama, não valia a pena
Apollo adiantar pressentimentos de dúvida.
Apollo assentiu com a cabeça, disse que tinham de tentar. Serina
concordou. A disposição da turba em breve mudara de perplexidade para
confiança, e largaram a aclamar o seu líder.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Reunir os sobreviventes! Que milagre... A mensagem irradiou através de
todos os canais secretos. Duma maneira ou de outra, cada um dos doze
mundos a recebeu. Dizem-me que mal as ondas que transportavam a
mensagem penetraram as camadas mais finas dos limites da atmosfera
planetária, foram despachados mensageiros em todas as direções. Encontrar
um ponto de convergência, recuperar todas as naves com impulso suficiente
para chegar às coordenadas escolhidas, esgueirar-se de um lado para o outro,
por cima e por baixo das patrulhas cylons que esquadrinhavam em terra
milímetro a milímetro e teciam teias de aranha nos céus.
Nem todos os refugiados conseguiram chegar ao nosso rendez-vous
secreto. Na realidade, não temos maneira de saber quantos falharam. Na
sequência de um holocausto como o massacre cylon, não há tempo para
crônicas alusivas, nem cenotáfios que possam ser implantados no espaço
vazio de ar. Alguns conseguiram, outros não. Vieram até ao ponto de
confluência estabelecido, em volta do qual Apollo habilmente improvisara
um campo de força de camuflagem, envolvente, que nos tornava invisíveis às
múltiplas patrulhas cylons que passavam ali perto à nossa procura. Como é
que nenhuma das naves levou os Cylons diretamente até nós, eis
simplesmente uma outra faceta do milagre histórico que então se passou.
Houve quem visse mão divina na fantástica cadeia de acontecimentos
que trouxe até nós milhares de naves sobreviventes. Quer seja interpretado
secular, quer misticamente, o milagre aconteceu.
CAPÍTULO IV
O líder imperial cylon há muito aprendera a dominar o seu desagrado
pela presença física de um ser humano. Nas raras vezes em que, por alguma
infeliz exigência do ofício, fora obrigado a confrontar-se de facto com um
inimigo capturado, sentira-se enjoado e assim ficara por longo tempo após o
interrogatório. Os humanos perturbavam intensamente o seu sentido de
unidade. Nunca percebera bem porquê, mas absorvia pequenas doses da sua
irracionalidade quando forçado a estar fisicamente próximo deles. Claro que
a autodisciplina e a omissão deliberada de determinadas porções do terceiro-
cérebro lhe permitiam encontrar-se com um humano sem reação posterior
imprópria. Fosse como fosse, o ser humano postado na sua frente neste
momento ameaçava seriamente restaurar as velhas atitudes irracionais de
resposta. Ao mesmo tempo que tentava, perceber por que razão este humano
em especial era tão especialmente repugnante, vedou cuidadosamente as
partes do seu espírito que pudessem ser significativamente afetadas pela mera
presença física do ser.
A resposta ao seu crescente sentimento de nojo seria a mais simples, a
mais óbvia. O homem, o conde Baltar, era um traidor. Os traidores perturbam
deliberadamente a ordem para seu proveito próprio, egoisticamente. Eram os
mais vis de uma raça vil. E Baltar era sem dúvida o maior traidor entre todos,
pois a sua traição tinha tornado possível a aniquilação dos humanos. Se o
líder teria gostado de tratar este traidor com merecido desdém, ao mesmo
tempo as cerimônias cylons de cortesia exigidas pelo momento requeriam
dele pelo menos boas-maneiras.
— Bem-vindo, Baltar — disse, controlando a saída de voz do capacete,
de modo a emprestar à entoação da fala um fundo de cordialidade humana.
— Fizeste um bom trabalho.
Baltar, que mantivera uma atitude despida de qualquer emoção desde
que fora trazido ao pedestal do líder, começou repentinamente a falar
enraivecido, juntando à sua voz aquela estranha inflexão a que os humanos
chamavam sarcasmo.
— Fiz um bom trabalho, não é? E tu, que é que fizeste? Que é feito da
nossa combinação? A minha colônia devia ser poupada.
Mais um rasgo inesperado e desarrazoado de emoção por parte de um
humano. Um líder imperial devia estar preparado para isso, ele bem o sabia,
mas nem sempre julgava corretamente o uso errático de emoções que tornava
os humanos tão aborrecidamente imprevisíveis.
— A combinação foi alterada— disse o líder, com o terceiro-cérebro a
instruir a caixa sonora no sentido de incutir um sarcasmo tipicamente humano
às suas palavras. O sarcasmo tinha saído numa aproximação bastante boa, e
ele ficou satisfeito.
— Como é que podes alterar uma parte de uma combinação?—disse
Baltar.
Era mesmo de humano colocar o pouco de lógica de que dispunha numa
estrutura de extremo egoísmo. Nunca conseguiam ver a dimensão de um
plano mais amplo, a não ser que estivessem orientados para isso. Mesmo
assim, o seu espírito parecia incapaz de absorver uma plenitude de plano
como essa. Podiam, segundo parecia, ver partes, mas nunca o todo. Não
admira que não fossem dotados para governar uma porção distinta do
universo. Ao responder a Baltar, continuou a dar entoação humana à sua voz,
para não confundir o estúpido e traiçoeiro homem.
— Conde Baltar, não há outra parte senão essa. Não apreendeste todo o
significado da guerra.
— Não sei o que queres dizer — disse Baltar. Com a voz repentinamente
submetida, o corpo parecia dobrar-se-lhe numa insegurança servil.
— O que quero dizer é que não podia haver domínio sobre as espécies
enquanto o homem existisse como poder no universo. Não há nebulosidades
de significado, quando se trata disto. O homem ou a Aliança, a resposta é
óbvia. O compromisso não é minimamente aceitável.
A voz de Baltar emergiu num gemido sibilante quando voltou a falar:
— Mas tens o que queres. A ameaça desapareceu, já não existe. Eu
desempenhei-me bem da minha parte da combinação. No meu mundo, a
minha reputação é sólida... Seja o que for que o conde Baltar disser que faz,
ele faz mesmo, e ninguém mais do que ele. Fiz o que me comprometi a fazer!
Os meus domínios seriam poupados, disseste que era para...
— Domínios? Só pode haver um domínio, um poder, uma autoridade.
Não pode haver exceções.
— Mas que és tu, pensas que és algum deus?
— Os deuses são uma das trivialidades intelectuais da tua raça.
— Está bem, esquece que eu disse isso. Mas, acredita-me, não tenho
ambições contra ti.
O líder imperial misturou uma gargalhada ao produto sarcástico da sua
caixa de som.
— Olho para ti e vejo-te ficar cada vez mais pequeno, Baltar. Alguma
vez pensaste que eu seria suficientemente idiota para confiar num homem que
estava pronto a ver destruída a sua própria raça?
— Destruída, não: subjugada. Sob a minha liderança...
— Não pode haver sobreviventes. A Aliança fica ameaçada mesmo que
só fique vivo um único ser humano numa das colônias.
— Claro que... Claro que, bem, com certeza que não te referes a mim.
Estava a receber mensagens urgentes dos seus assistentes espalhados
pela câmara. Já gastara tempo a mais com este miserável representante
humano. E ele que se julgava um sobrevivente de mérito!
— Agradecemos-te a tua ajuda. Baltar. O teu tempo, chegou ao fim.
Dois centuriões cylons materializaram-se das sombras em que o líder os
colocara. Cada um deles agarrou num braço carnudo de Baltar, levantando-o
do chão.
— Não! —gritou Baltar. — Não podes fazer isso! Ainda precisas de
mim!
— Precisar de ti... Não é provável.
— Eu tenho... Tenho informações a dar-te. Por favor. A minha vida pela
minha informação.
«Sempre disposto a negociar», pensou o líder imperial, «aquele humano
nunca acabaria de oferecer trocas desesperadas.»
— Quais são as tuas informações?
Baltar desprendeu-se dos centuriões e aproximou-se do pedestal. Havia
uma arrogância surpreendente no seu andar.
— A minha vida?—perguntou Baltar.
— A tua vida — disse o líder. Promessa fácil. Fácil, porque não fazia
tenção de a cumprir.
Baltar olhou para um lado e para o outro como se suspeitasse que podia
ser ouvido. Por quem?
— No espaçódromo em Caprica... Quando os teus centuriões estavam a
juntar e a exterminar sobreviventes, um deles passou-me informações.
— Ah, sim? Com que garantias?
— Que eu lhe pouparia a vida.
— E poupaste?
— Claro que não. Cortei-lhe eu próprio a cabeça.
— Ah, interessante. Continua. Que é que ele te disse?
— Que escaparam muitos humanos — disse ele.
— Mas como foi isso?
— Escaparam em naves, em tudo o que conseguiram encontrar. Uma
mão-cheia de sobreviventes. E tu não os localizaste.
— Talvez tenhas razão. Mas eles não iam ter nem combustível nem
comida bastante para uma viagem prolongada.
— Ele disse-me que iam partir para um rendez-vous com uma estrela-de-
batalha que escapou.
— Uma estrela-de-batalha!
— Sim, parece que é a Galactica.
— Isso não pode ser! Não consentirei!
— Não vejo o que possas fazer contra isso.
— Deixa estar que hei de destruir essas naves. E a preciosa Galactica lá
deles. Como te vou destruir a ti.
— Mas a minha informação... Prometeste... Disseste...
— Façam-me desaparecer esse homem.
Os centuriões agarraram Baltar e começaram a arrastá-lo para fora da
câmara.
— Não tens o direito de me fazer isto! —gritava Baltar.
— Gostaria de te lembrar que foi exatamente isto que fizeste ao teu
informador.
Enquanto aguardava o regresso do centurião com a notícia de que a
cabeça de Baltar já fora separada do corpo, o líder imperial quedou-se a
pensar na asquerosidade daquele homem. Pelos parâmetros humanos, o
comerciante era mal. Para os humanos, o mal era um conceito relativamente
simples. Um pouco de malícia premeditada, uma dose ou duas de ato nocivo,
alguns pensamentos negativos que não se conciliavam com um padrão que de
qualquer maneira haveria de mudar, eventualmente. O tipo de sentimentos
triviais que guiavam Baltar, características como a fraqueza e o egoísmo,
eram demasiado facilmente equacionados com a ideia de mal na mente
humana. Para esta, o líder imperial devia ser mal, o que incontestavelmente
dava a medida do absurdo dessa sua maneira de ver.
O centurião voltou para anunciar que o traidor humano fora decapitado e
que tinham feito desaparecer o seu corpo — por um cano de despejo por onde
se escoavam normalmente os detritos cylons.
O líder imperial ordenou à sua rede de auxiliares que desencantassem e
destruíssem os humanos sobreviventes, com especial atenção para a
desintegração completa da estrela-de-batalha Galactica. Quando os centuriões
começaram a emitir a mensagem, o líder permitiu-se um momentâneo rasgo
de contentamento. Estava agora próximo do seu objetivo. Com a aniquilação
dos humanos, poder-se-ia restaurar a ordem no universo, ordem universal
essa de que ele era fundador. Apesar de não ir admitir que os seus
sentimentos se aparentavam ao egoísmo repugnantemente humano de Baltar,
não podia deixar de reconhecer perante si próprio que o seu lugar na história
cylon tinha sido consideravelmente reforçado pela iminente eliminação da
peste humana.
***
Adama pediu aos céus que as suas esperanças nascentes não fossem
insensatas, ao vigiar a reunião da sua frota de ferro-velho nas coordenadas
espaciais estabelecidas. Muitas das naves sobreviventes estavam decrépitas,
algumas até danificadas, mas tinham conseguido passar as linhas cylons em
muito maior número do que aquilo que esperava. Segundo as informações,
cerca de vinte e duas mil naves, representando todas as colônias, cores e
credos dos doze mundos, tinham sido pescadas em resultado das
comunicações e pesquisas físicas iniciadas pela sua gente. Podiam não estar
propriamente em condições de combate, mas ao menos eram naves. Davam à
raça humana, agora reduzida a uma fração minúscula da população que
florescera nos doze mundos, mais uma hipótese. Hipótese de sobrevivência,
hipótese de — algum dia— derrotar a Aliança.
Examinando as imagens que lhe chegavam aos vários visores, as letras
nos flancos gastos de algumas das naves recuperadas ainda conseguiam
diverti-lo minimamente. Serviço Espacial Transestelar, Cargueiro Gemini,
Carreiras Tauronesas. A nova frota consistia em veículos de todo o tipo,
tamanho e forma. Podia não parecer grande coisa, mas era tudo o que tinha.
— O pai parece o gatinho que engoliu o pardal — disse Athena,
referindo-se a um conto de crianças capricano muito conhecido. E sorria
timidamente. Há quanto tempo estaria ali a observá-lo?
— E tu não tens maneiras, para um subordinado cuja única desculpa para
não ter maneiras é ser a filha do comandante.
Ela voltou-se para o visor estelar, e percorreu com a mão de um lado ao
outro a imagem que se lhes oferecia de vários dos estranhos aparelhos.
— Tem aqui um bom estendal de esquadrilhas — disse ela.— Se é que
vai dividi-los em esquadrilhas... Podia pôr todos os veículos de transporte
numa, todos os de carga noutra, os sanitários...
— Basta por agora, minha senhora.
— Era só uma maneira indireta de lhe perguntar o que é que tenciona
fazer.
Perturbado pela pergunta, afastou-se de Athena. O movimento não lhe
adiantou muito. Starbuck andava por ali, quase de frente para um perplexo
coronel Tigh. Na sombra, a repórter, Serina, estava sentada juntamente com
Apollo, de costas para o painel de comunicações.
— Está bem —disse ele —, vocês querem todos que eu lhes dê uma
explicação qualquer. Seja. É uma ideia que tenho.
— Ideia? —exclamou Athena, um pouco animadamente de mais para o
gosto do pai.
— É apenas isto: há muito tempo, e não tenho noção de há quanto
tempo, houve uma civilização antiga, uma raça de que descendemos. Está
tudo nos livros de história confidenciais, mas duvido que algum de vocês
tenha tido o privilégio de os examinar.
Todos abanaram a cabeça a confirmar.
— Pois bem, a nossa raça-mãe abandonou a terra natal e partiu a
estabelecer colônias por esse universo fora. Fixaram-se em muitos planetas,
mas — devido a perigos inerentes ao planeta em questão ou desastres
imprevisíveis que arrasaram colônias — só alguns foram bem sucedidos.
Finalmente, descobriram os doze mundos, as explorações provaram-lhes que
eram habitáveis por excelência e os sobreviventes de todas as outras colônias
mudaram-se para aqui. Estabeleceram-se novas colônias e, como sabem,
vingaram. Agora, aqueles que estão nesta coleção de naves heterogêneas são
tudo o que resta. Representamos todas as colônias sobreviventes conhecidas,
exceto uma...
— Exceto uma?—perguntou Athena. — Não percebo. Tanto quanto sei,
qualquer dos doze mundos tinha sobreviventes e conseguimos salvá-los.
— Não estou a falar dos doze mundos. Não, refiro-me a uma colônia
irmã, lá longe no universo, talvez nem seja colônia nenhuma, talvez o planeta
do qual provém a nossa raça. Seja o que for, só é recordada hoje por escritos
antigos. Eu mostrava-vos alguns, mas é que também isso ficou destruído no
ataque cylon.
— Sim, senhor— disse Athena —, todos nós sabemos alguma coisa
disso. Há anos e anos que faz parte da nossa mitologia: um lugar de origem
chamado Terra, às vezes Jardins da Terra, se bem que isso para mim nunca
tenha feito grande sentido, parece...
— Pode não ser mitologia, Athena.
— Mas também pode ser.
— Bem, veremos.
Adama estava aborrecido com as insinuações da filha. Tinha vindo a
desculpar-lhe os últimos rasgos de temperamento por pensar que ela tinha
passado muito desde o início da traição cylon, mas agora interrogava-se se
não seria altura de combinar a disciplina de pai com a de militar e falar-lhe
com rispidez.
— É minha intenção — recomeçou, falando mais lentamente para pôr à
prova, palavra por palavra, a sua própria paciência — ir em demanda dessa
última colônia que nos resta... Chamem-lhe Terra se quiserem. Seja o que for
que lhe chamarem, pode ser o último reduto de humanidade no universo,
talvez uma civilização como a nossa, talvez com pessoas como nós. Podemos
pedir-lhes auxílio para a nossa reconstrução e talvez pô-los de sobreaviso
contra a Aliança e o objetivo, que prossegue, de exterminar a raça humana.
— Mas se a Aliança ainda não os descobriu, talvez eles escapem ao
ataque. Talvez nós nem devêssemos...
— Athena! É a única solução que temos. A Aliança vai perseguir-nos
por todo o universo. Tenente Starbuck, parece que tem uma pergunta a fazer.
— Sim, senhor. Se estamos a falar de semelhante colônia, essa colônia
mitológica, bem, não me parece que haja alguém que saiba onde ela é.
Mesmo que soubéssemos, mal temos combustível que chegue para...
— Muito bem visto, tenente. Temos de encontrar uma fonte de energia,
nesse caso. Uma fonte de energia e provisões reforçadas para uma viagem
prolongada.
O coronel Tigh adiantou-se.
— Comandante, a nossa frota não está propriamente florescente, nem
tem a servi-la um bom punhado de soldados bem equipados, aptos a aguentar
batalhas pelo universo fora. O que eu quero dizer é que a maior parte desta
gente mal conseguiu salvar a vida. Estão emocional e fisicamente pouco
preparados para o tipo de viagem que está a propor...
Apollo levantou-se e falou.
— Menos de um terço destas naves têm potencial de alta velocidade.
Podemos demorar gerações a encontrar a Terra.
— Ah, mas já estás a falar no caso como se acreditasses nisso, ou pelo
menos na possibilidade que temos. É sinal de que vale a pena demandarmos.
Havemos de encontrar, porque não temos outra alternativa. Não há
alternativa. Se marcarmos passo nesta zona do universo, a Aliança há de dar
conosco. Não, havemos de viajar tão rapidamente quanto o permitir a nossa
nave mais lenta, seremos apenas tão fortes quanto o nosso irmão mais fraco.
— A sua retórica é linda, mas parece-me que devíamos lutar.
Até Apollo se voltava contra ele. Bem, não interessa. Tinha de continuar
na sua.
— Somos a única estrela-de-batalha que sobreviveu, e os nossos pilotos
ficam com a tarefa de proteger toda a frota. Deixemos as coisas assim. Podes
expressar a tua opinião no próximo conselho.
— Muito obrigado.
Serina inclinou-se para a frente e falou no estilo da sua profissão de
jornalista.
— Eu sou bastante leiga neste assunto, mitologia galáctica nunca foi o
meu forte. — Queria, claro está, dizer que sabia muito daquilo e aparentava
ignorância para o fazer falar.— O senhor diz que essa décima terceira
colônia, ou mundo dos nossos antepassados, se chama Terra, e que deve estar
algures por esse universo, ainda habitada e ainda em condições de receber
habitantes coloniais retornados?
Adama voltou a cabeça para o campo estelar, como se fosse encontrar
uma resposta fácil para a pergunta de Serina desenhada lá fora em letras
enferrujadas desenhadas pelos decrépitos veículos. Sentia-se como um vulgar
homem do mar perscrutando o horizonte em busca de uma vela.
— Penso que há um mundo real chamado Terra e que está algures para
ali e há de receber-nos — disse por fim. — Acredito que está lá.
— Crer é uma palavra mais intimamente ligada à esperança do que ao
facto... —disse Serina, acrescentando, à última hora: — Comandante.
— Crença, esperança — disse Adama —, são tudo o que temos, tudo o
que sempre tivemos.
— Desculpe o meu ceticismo, comandante Adama, mas o senhor está a
pedir-nos que embarquemos consigo numa cruzada religiosa.
— Talvez.
— Não pode partir para uma cruzada religiosa quando nós...
— Posso — disse Adama — e é o que vou fazer.
Passou em revista longamente as suas expressões perplexas.
— E vocês vão comigo.
Quando viu que Serina ia protestar de novo, disse brandamente:
— Não há outra alternativa.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Há uma coisa que descobri sobre liderança durante o período de êxodo
dos doze mundos. Um líder, por muito benevolente que seja a analisar-se,
tem de ter algo de tirano. Se chama a si toda a gente em todas as fases do seu
plano, e lhes permite pleno acesso a toda a informação, de modo a que se
apercebam das esmagadoras desvantagens que se levantam contra eles, está a
incorrer no risco de que venham a perder alento ao ponto de não executar as
pequenas tarefas que nos fazem progredir em transes difíceis. A
adaptabilidade humana é uma qualidade maravilhosa, e nós provámos isso
durante o tempo em que reorganizámos a nossa sociedade, reparámos os
nossos prejuízos, convertemos as nossas naves a energia de hiperespaço,
acalentámos as esperanças da nossa gente mesmo quando lhes reduzíamos as
rações de alimentação. Eu tinha fé na nossa adaptabilidade, mas sabia que ela
dava o melhor de si quando os objetivos fossem compassados. As emoções
de pessoas que se debatem com as sequelas de uma tragédia podem ser
levadas a um ponto de rotura se se exigir de mais de uma só vez. Por isso tive
de me manter tirano, alheio aos próprios amigos e à família. Mais de uma vez
a minha própria adaptabilidade foi posta à prova. Não admira que os tiranos
enlouqueçam tão amiúde.
CAPITULO V
— Dava tudo para dormir — gemeu Starbuck, quando se encaminhava
apressadamente com Boomer por uma estreita passagem que pairava sobre
um labirinto de tubos e canos.
— Eu dava sei lá o quê... — murmurou Boomer. — Quero é ver este raio
desta missão pelas costas.
Starbuck encolheu os ombros.
— Não sei. Dá-me gozo ser investigador, faz-me sentir um detetive a
sério. É assim que vejo as coisas. Há piores missões na frota do que andar a
fazer milhões de perguntas. Ouvi dizer que vão pôr uns pobres infelizes da
Secção Beta a farejar a carcaça de um velho transportador espacial à procura
de uma fuga de solium.
— Mmmm... Como é que não nos pescaram a nós para esse serviço?
— Ultrapassa-me.
Tal como a maior parte dos guerreiros da frota, Starbuck detestava a
ideia de uma fuga de solium. Derivado da fonte de energia tylium, o
composto de solium era menos volátil, mas mais insidioso, pois
frequentemente era difícil de detectar até já ser tarde de mais.
Deixaram a passagem e entraram na casa das máquinas do cargueiro. Ao
virar uma esquina, deram de caras com o capitão Apollo, concentrado num
mecanismo electrónico de medição, ao mesmo tempo que a sua tripulação
apontava varas de detecção de solium em várias direções.
— Que é que temos aqui? — disse Starbuck.
— Não sei nem quero saber — respondeu Boomer.
Apollo levantou os olhos do mecanismo de detecção e lançou uma
expressão furiosa para os recém-chegados. Starbuck sentiu o corpo crispar-
se-lhe. A sensibilidade de Apollo andava muito estranha nos últimos dias,
desde que o pai começara a montar a frota ferro-velho.
— E se vocês os dois se pusessem a andar? — perguntou Apollo. —
Estou a ver se vislumbro sinais de fuga de solium.
Starbuck e Boomer entreolharam-se um segundo, voltando-se depois em
uníssono, preparando-se para voltar à passagem.
— Adeus — disse Starbuck.
— Alto aí — disse Apollo.
Os dois homens estacaram.
— Apollo — disse Starbuck. — Essa coisa é perigosa. Não quero meter-
me nisso. Ou seja, essas naves velhas nem sequer deviam estar no espaço.
— Não havia, na prática, outra hipótese, pois não? Quantas pessoas é
que tivemos de deixar para trás por falta de naves, fazes ideia?
— Ninguém sabe.
— Mas podes ter a certeza de que eram muitas, e ficaram lá para serem
todas exterminadas por aqueles patifes dos cylons. Portanto, a não ser que
queiras ser voluntário para um lugar permanente nesta gamela, que
incidentalmente mostra todos os sinais de adaptabilidade para uma conversão
hiperespacial, terás de ajudar a vistoriar toda a nave da frota que tiver avarias.
Ou então sou tentado a mandar-te de empréstimo para a Companhia Beta.
Sem esperar qualquer resposta de Starbuck ou de Boomer, Apollo
voltou-se abruptamente, fez um sinal à sua tripulação, e encaminhou-se para
a antepara da nave.
Quando estava fora de alcance auditivo. Boomer segredou a Starbuck:
— Continua a conversa, velhinho, e arranjas-nos um bom sarilho.
— Ah, ele arranja é maneira de voar pelo tubo de escape acima. Não sei
o que se passa com toda a gente. Se me perguntares, dir-te-ei que está tudo
feito em fanicos. A dez mil anos-luz de parte nenhuma, com o nosso planeta
mandado para o Diabo, andamos às voltas à procura de fugas em velhas
carcaças, a nossa gente com fome, e tu a preocupares-te com os sarilhos que
eu posso arranjar. Que se passa contigo? Que se passa com todos? Eu cá por
mim acho que se deve é viver o dia-a-dia. Não nos restam muitos!
Seguiram Apollo pela escotilha da antepara que dava para um
compartimento de passageiros. Pelo menos agora era um compartimento de
passageiros, fosse qual fosse a sua função original. Starbuck ficou a princípio
surpreendido pela sensação de ar pesado, que parecia impedir a respiração.
Não admirava. A sala estava apinhada de gente — velhos, novos, mutilados,
bebês de colo. Alguns deitados no chão, claramente exaustos e gastos. Outros
comprimidos contra grades de empacotamento de mercadoria. Outros ainda
tinham aproveitado as grades para delimitar os seus espaços privados.
Quando este monte de gente se apercebeu da presença de Apollo, muitos
avançaram sobre ele, com os dedos enfarruscados fincados no jovem oficial,
como que a querer esgatanhá-lo.
— Para trás — disse Apollo. — Por favor, para trás!
A multidão dir-se-ia querer despedaçar Apollo, mas foram
aparentemente detidos pelo movimento de Boomer e Starbuck que se
puseram ao lado do capitão.
— Onde está a comida? — gritou uma mulher esfarrapada e
visivelmente desesperada. — Que é que se passa? Já não vemos água há dois
dias! Dois dias!
— Por favor! — gritou Apollo. Starbuck nunca ouvira tão estridente a
voz de Apollo. — Terei muito prazer em ajudar todos e cada um de vós. Mas
cheguem-se para trás. Starbuck, Boomer...
Starbuck puxou da arma. Brandiu-a, apontando-a ao teto para intimidar a
multidão ameaçadora.
— Larga isso, Starbuck — disse Apollo.— Esta gente já está em estado
de choque devido à batalha.
— Ah, sim? Pois olha, mais uns minutos e faziam de ti tapete de entrada,
capitão.
— Onde é que está a comida? — berrou um velho escanzelado. A frase
ia-se rapidamente transformando em ritual para aquela gente sofredora,
observou Starbuck. — Porque é que não víamos nem ouvíamos ninguém há
dois dias?
— Que diabo de coisa é esta? — disse um outro homem. —
Esqueceram-se de nós?
Apollo inspirou profundamente e fez sinal para se calarem. A multidão
acalmou.
— Não foram esquecidos — disse Apollo numa voz uniforme. — Deve
haver problemas na distribuição. Mas vamos tratar disso, posso garantir-lhes.
Sintam-se gratos por estarem vivos e peço-lhes que nos deem uma
oportunidade de nos reajustarmos e estudarmos quais são as nossas
necessidades.
— Necessitamos de comida, disso é que precisamos — disse em voz
gemente o velho escanzelado.
— E remédios — disse uma mulher. — Há gente doente aqui.
— Essa é uma das razões por que estamos aqui — disse Apollo. — Para
detectar casos desses, averiguar quais os vossos problemas.
— O problema — disse um homem de meia-idade de barbas e ar
professoral —, o problema é que vamos todos morrer.
Apollo suspirou.
— Não —disse ele —, ninguém vai morrer. Agora, vai é demorar um
bocado, mas estamos neste momento a verificar quantos de nós
sobreviveram...
— Não os mais capazes, com certeza — disse o homem de ar
professoral. Apollo optou por ignorar o sarcasmo.
— Temos de saber quais são as vossas especializações — continuou
Apollo —, para podermos utilizá-las para o bem comum. Boomer, liga o
comunicador e avisa o Centro de Controlo de que esta gente não tem comida
nem água há dois dias.
Boomer assentiu com a cabeça e encaminhou-se para uma zona mais
recatada, onde, com um piparote dos dedos, ligou o comunicador.
— Bem — disse Apollo —, algum de vós precisa de assistência imediata
do Centro de Vida?
Uma velhota levantou a mão. Apollo baixou a cabeça ao mesmo tempo
que a fitava, e ela começou a falar numa língua estranha.
— Que está ela a dizer? —perguntou Apollo a Starbuck.
— Parece-me que é um dialeto qualquer. Não sou muito forte nisso,
talvez o Boomer saiba traduzir.
— O Boomer está a fazer outra coisa, agora não pode. Há alguém aqui
que perceba o dialeto desta mulher?
Uma mulher alta, quase da altura de Starbuck ou de Apollo, avançou
para a frente da multidão. Tinha as vestes em farrapos, e Starbuck reparou na
figura elegante, comedida de busto e esbelta de ancas, sugerida nas partes do
corpo da mulher que apareciam à vista. Apesar da face suja e enfarruscada e
do cabelo desalinhado, teve a impressão de que, bem limpa e arreada, aquela
senhora devia ser uma grande pêssega. «Ou, se calhar, era mesmo uma
maravilha», pensou.
— Ela diz que o marido está febril — disse a mulher laconicamente,
numa voz profunda que soava quase quente apesar da sua aparência
desordenada. Trazia o braço esquerdo pendurado ao longo do corpo, num
ângulo que a Starbuck pareceu peculiar.
— Tem alguma coisa no braço? —perguntou Starbuck.
Ela voltou-se para ele. Tinha os olhos escuros, que pareceram
resplandecer de força emocional enquanto o fixavam diretamente.
— Há quem esteja pior do que eu — disse ela.
— Tirem-na daqui para fora — resmungou uma mulher rechonchuda
que viera postar-se à direita de Apollo. — Ela devia era ser lançada borda
fora com os mortos.
Um grupo de murmúrios veio reforçar a opinião da mulher. Starbuck
sentiu perigo naquela hostilidade, uma cólera facilmente elevável a inimizade
aberta.
— Tens razão, Starbuck — disse Apollo.— O braço dela parece estar
partido. Leva-a a ela e ao velhote para a naveta.
Starbuck ajudou o velhote e a mulher a porem-se de pé, levando depois
pelo braço são a mulher ferida. Estava ciente das muitas obscenidades e
insultos que irrompiam em seu redor. O escárnio parecia ascender a um ponto
de perigo. Talvez tivesse de puxar novamente da arma, apesar do que Apollo
ordenara.
— Façam-na em carne para daggit — gritou uma mulher, ao que
assentiram várias vozes. Starbuck não olhou nessa direção, apesar de manter
um olho atento a movimentos suspeitos na sua vizinhança imediata.
— Porca — disse uma outra mulher.
— Animadora social — disse um homem.
— Não há lugar para entulho — murmurou uma voz que não deixava
dúvidas pertencer ao barbudo de ar professoral.
Um homem musculoso avançou para Apollo como que desafiando-o
para uma luta.
— É crime deixar-nos morrer à fome — disse o homem —, enquanto os
burocratas e os políticos se regalam nos seus santuários privativos.
— Ninguém se está a regalar — disse Apollo —. posso garantir-lhes...
— Eu vi — disse o homem mais franzino, juntando-se ao musculoso na
sua confrontação com Apollo. — Eu vi com os meus próprios olhos, a bordo
do Rising Star, antes de me terem mandado para aqui.
Boomer poupou a Apollo o esforço da resposta, avançando para o lado
dele e anunciando em voz alta:
— O Centro de Controlo está ciente do problema.
— Então posso dizer a esta gente que água e comida já vêm a caminho?
—perguntou Apollo.
— Estão cientes do problema!
— Que é que se passa? —disse o homem professoral. — Está a
esconder-nos alguma coisa, não está?
— Tenho a certeza de que já estão a tratar de vós — disse Apollo. —
Têm a minha palavra de militar.
Starbuck tinha finalmente caminhado até à escotilha da divisória, mas
deteve-se, hesitante, caso Apollo precisasse de ajuda. A mulher e o casal de
velhotes aguardaram junto dele, com os corpos visivelmente tensos na
apreensão de que a violência irrompesse a qualquer momento.
— A tua palavra de militar... — disse uma mulher rechonchuda. —
Foram vocês que nos puseram neste velório de morte, militar!
Apollo olhou para trás, na direção de Starbuck, fazendo-lhe sinal de que
atravessasse a escotilha com a mulher e o casal de velhos. Ele e Boomer
começaram a recuar lentamente para a abertura à medida, que se reduzia o
espaço entre eles e a multidão.
— Corruptos... — gritou o homem professoral. — O Quórum inteiro era
corrupto. Fomos traídos. Traídos... Por vocês todos.
Do outro lado da escotilha. Starbuck viu Apollo e Boomer passar pela
abertura. Aparentemente mesmo a tempo de evitar que fossem esmagados
pela multidão irada, mas aterrorizada. Boomer fechou rapidamente a
escotilha e apressou-se a fazer girar as rodas para isolar o compartimento. Do
outro lado da divisória circular ainda se podiam ouvir sons de agonia e de
fúria.
— Meu Deus... — murmurou Boomer.
— É mesmo... — disse Starbuck.
A tripulação de Apollo, que ficara na sala das máquinas a detectar fugas
de solium, acercou-se deles, enquanto Boomer lhes explicava o que se tinha
passado no compartimento de passageiros. Starbuck chegou-se a ele.
— Que se passou? Porque é que estes veículos não estão a ser
abastecidos? Eu sei que as nossas provisões estão baixas e que Adama cortou
nas rações, mas não somos...
— Não sei! — gritou Apollo, de novo com a voz ligeiramente mais
estridente do que aquilo a que Starbuck estava habituado. — Mas alguma
coisa deve ter corrido mal. e tenho de descobrir o que foi.
Quando se fez ouvir o batimento de punhos de encontro à parede do lado
de lá da escotilha, Apollo mandou toda a gente voltar à naveta. Ele e Boomer
assumiram os comandos, enquanto Starbuck ficava com a jovem mulher e o
casal de velhotes. Logo que se viram a uma certa distância do velho
cargueiro, Apollo ligou o comunicador da naveta e falou irritado para o
microfone.
— Naveta serviço Alpha ao centro de comando.
— Centro de Comando. Fale, capitão Apollo.
— Peço esclarecimento sobre desvio de víveres.
Seguiu-se um silêncio crepitante, e foi então que o Centro de Comando
se fez ouvir.
— Nenhuma informação a dar neste momento.
Apollo explodiu de fúria.
— Que é que estão para aí a dizer, não há informação a dar? Que vão
para o Diabo, acabo de vir de uma nave atulhada de gente esfomeada. Não
veem uma bucha há dois dias, nem tão-pouco água. Em nome dos Doze
Mundos, que é que se passa?
Mais uma longa pausa antes da resposta do Centro de Comando:
— Lamento, serviço Alpha. O Centro de Comando não tem informações
a dar neste momento.
Apollo desistiu e desligou o comunicador. Voltando-se para Boomer,
disse:
— Que é que se passa? Que é que te disseram quando assinalaste a falta
de víveres?
— O mesmo que a ti. Um vago reconhecimento do problema, digamos
assim.
— Boomer, sinto que há qualquer coisa que não está bem.
***
Cassiopeia tinha a sensação de que o seu braço partido estava melhor
desde que os oficiais da Galactica a tinham arrancado àquela multidão
exaltada. No espaço exíguo e superlotado do compartimento de passageiros,
o braço andava aos encontrões, comprimido entre corpos em deslocação.
Neste momento. parecia-lhe cheio de um reconfortante entorpecimento. O
pânico emocional em que estivera havia também amainado. Sabendo que
tantos e tantos daqueles pobres desesperados eram conhecedores da sua
anterior posição de animadora social, temera que alguns deles pudessem
canalizar para ela a sua frustração. Havia muita arma escondida no meio
daquela multidão. Uma delas podia ter sido usada contra ela. Sentia-se muito
mais descontraída agora, ajudando Starbuck a entrevistar o velho casal
gemon. Depois de ter acabado a entrevista, aquele voltou-se para ela e disse:
— Agora preciso que você me dê alguns dados. É para o Centro de Vida
poder recebê-la logo, quando chegarmos.
— Centro de Vida?
— É assim que chamamos à enfermaria de bordo. Não é disparate
nenhum. Ora vejamos. Primeiro, preciso do seu nome e profissão.
— O meu nome é Cassiopeia.
— Lindo nome.
— Acho que sim.
— Profissão.
— Sou designada pelo nome de animadora social.
Viu nos olhos dele a reação habitual. Estava acostumada a isso. Os
homens dos outros mundos, capricanos em especial, enchiam-se logo de
suspeitas quando vinha à baila a animação social.
— É uma profissão honrada — disse ela para o experimentar —,
praticada com a bênção dos mais velhos há mais de quatro mil anos.
Interrogou-se se lhe haveria de explicar todos os anos de preparação a
que fora submetida — os cursos incontáveis sobre comportamento social,
conhecimento humano— antes de lhe concederem a licença. Decidiu que,
embora houvesse bondade nos olhos deste jovem e belo oficial, um olhar
quente que espelhava potencial de compreensão, o melhor era não desbobinar
os argumentos que defendiam a sua profissão.
— Eu não disse nada — disse Starbuck. —Só estava a tentar imaginar a
razão de toda a excitação naquela carcaça velha.
Ela sorriu.
— Aquelas mulheres eram da seita Otori dos Gemons. Não acreditam no
contacto físico entre gêneros, exceto quando santificado pelos sacerdotes
durante a adoração suprema da Tempestade Solar, que acontece de sete em
sete anos.
— Não admira que aqueles tipos duma figa sejam tão bons às cartas.
— Que é que disse?
— Nada.
Fez-lhe mais uma série de perguntas de rotina antes de terminar a
entrevista.
— Bem — disse, ele —, quando chegarmos eles estarão à sua espera já
com estas informações. Tem dores agora? Quer que lhe dê alguma coisa?
— Já foi muito amável para mim.
O sorriso de Starbuck era cativante. Estava capaz de o abraçar, se tivesse
dois braços sãos para o fazer.
— Que é que quer? — disse. — Faz parte do meu trabalho. Outra coisa:
não sou da seita Otori, estamos entendidos? E tenho andado a braços com
umas dores de cabeça... — Obviamente. Starbuck sabia das faculdades de
uma animadora social em curar indisposições com intrincadas técnicas de
massagem. — Deve ser esta tensão em que andamos. Preciso mesmo de me
relaxar de qualquer maneira.
— Marque um encontro — disse ela, usando o seu tom de voz
profissional.
— Talvez faça mesmo isso. Talvez... Talvez... Eh...
O seu modo desajeitado de falar ainda o tornava mais atraente aos seus
olhos. Parecia estar a representar o papel de jovem oficial tímido. E ninguém
diria que ele fosse do gênero. «Bem», pensou ela, «será interessante explorar
aquela linha particular entre realidade e fingimento.»
Para coordenar ideias, Starbuck fabricou uma desculpa e passou à cabina
de comando da naveta. A mulher intrigara-o desde o primeiro momento. A
descoberta de que ela era animadora social ainda o excitava mais. Já ouvira
falar de animadoras sociais, e muitas vezes se interrogara sobre as suas
faculdades milagrosas — alguns diziam-nas mesmo metafísicas. Se as coisas
se compusessem e ele conseguisse sacudir a lassidão que aquela sobrecarga
de trabalho lhe tinha provocado, talvez fosse interessante sair com
Cassiopeia. Athena, claro, ia ficar chateada. Ultimamente, a filha do
comandante vinha-lhe com exigências de propriedade privada, e ele não
gostava disso. Que ficasse chateada, era uma boa lição para ela.
Na cabina de comando, Starbuck reparou que Apollo parecia
particularmente tenso e irado. Ia para dizer alguma coisa ao capitão, quando
Apollo premiu o comunicador e ligou para o Centro de Comando.
— Daqui naveta de serviço Alpha mudando para rendez-vous com a
nave transestelar Rising Star. Naveta prossegue com destino à Galactica com
doentes para o Centro de Vida.
E desligou o comunicador tão furiosamente como o ligara.
— Que é que te deu agora? —disse Starbuck.
A expressão de Apollo ameaçava sanções disciplinares caso Starbuck
prosseguisse com aquela familiaridade. Até ali. sempre haviam sido bons e
íntimos amigos. Que se passava naquela cabeça? Estava a começar a atuar
numa versão falseada do pai.
— Se é que o senhor capitão não se importa que eu faça essa pergunta...
— acrescentou Starbuck.
Apollo esperou alguns segundos antes de responder:
— Vou passar pelo Rising Star. Parece-me que já sei o que está por trás
daquela conspiração de silêncio lá deles.
Reagindo à fúria espelhada nos olhos do capitão, Starbuck decidiu não
perguntar o que é que ele queria dizer com «conspiração de silêncio».
***
Depois de Tigh lhe ter trazido a notícia de que tinham chegado várias
informações de pré-amotinação devido a deficiências na distribuição de
comida. Adama, sentado na sua cadeira, ficou-se a fitar o campo estelar e
com ele a sua frota de ferro-velho, dispersa, visivelmente vulnerável. Os
cylons haviam de fazer aquelas pobres naves em pedaços se alguma vez
descobrissem o campo de camuflagem.
— Pai? —disse uma voz por trás dele. Athena. — Sente-se bem?
Durante alguns momentos não lhe apeteceu responder-lhe, mas aqueles
olhos tristes e implorantes arrancaram-lhe as palavras da boca.
— Bem, bem, não posso dizer que me sinto, não. Se alguém neste
momento me viesse dizer que se sentia bem, eu mandava-o fazer um exame
psiquiátrico, tratamento especial...
— Isso nem parece daquele guerreiro que eu conheço. Que é feito
daquela alegria de viver para enfrentar um novo dia?
— Fui dar uma volta lá abaixo às cobertas. A presença do comandante
para animar os passageiros, se assim se pode dizer. Só queria que visses as
caras daquela gente. Desesperados, sequiosos de uma hipótese de
sobrevivência. E aqui estou eu, o comandante, o representante da autoridade.
Posso fazer escolhas, posso dizer quem deve viver e quem deve morrer,
decretar prioridades como as fichas num jogo de azar. Uma mulher com um
bebé ao colo agarrou-me com um braço. Eu fiquei sem saber o que lhe havia
de dizer, fiquei...
— Pai, não comece.
— Não, tenho de falar, Athena. Já estou saturado disto, estou farto
daquilo a que chamam com tanta propriedade a responsabilidade do
comando. Que venha outro para o meu lugar, que venha outro aguentar o
fardo...
Adama voltou-se na cadeira. Athena sentou-se ao lado e puxou-lhe a
cabeça para o seu ombro. Sentiu-se esquisita naquela posição reconfortante,
era como se por momentos estivesse possessa do espírito da mãe, Ila.
— Então, pai, deixe-se disso — murmurou ela. — Ouça. Se não tivesse
sido pai, a esta hora todos nós tínhamos desaparecido. Mas não, muitos de
nós estamos salvos. É extraordinário. Olhe aí para fora, para essa imensidão
de estrelas. É o quadro mais bonito que vi em toda a minha vida. Olhe para as
nossas naves. Se olhar para elas do ponto de vista técnico, claro que estão
velhas, ferrugentas, batidas, arrombadas. Mas contêm vida. Vida em busca de
um novo mundo, um lugar para ficar e crescer. A felicidade, um futuro.
Adama ia para protestar, estava ansioso por dizer que era altura de passar
a liderança a outro qualquer — mas por momentos os seus olhos pousaram na
vista que tinha na frente. Olhou para ela tal como Athena a descrevera, e era
de facto assustadoramente bela.
***
Apollo separou-se de Starbuck para pilotar a naveta de volta à Galactica
e levou Boomer com ele até ao Rising Star. O tenente Jolly, que fora avisado
da chegada de Apollo, juntou-se a eles num corredor tenuemente iluminado
que fazia a ligação entre os dois depósitos de bagagens. Apollo ficou
abismado com as informações que o rechonchudo oficial forneceu.
— Contaminação? — exclamou, incrédulo. — Mas isso é impossível!
Então não se verificaram as provisões antes de virem para bordo?
— Para detectar radiações, sim —disse Jolly —, mas não houve tempo
para exames de envenenamento por plutônio.
— Queres tu dizer que toda esta comida não serve para nada? —
exclamou Boomer.
— Não podemos ter a certeza — disse Apollo.— Ainda não. O plutônio
deteriora a estrutura da comida. Jolly, as tuas tripulações já inspecionaram
todos os contentores. Há hipóteses de que algumas provisões estivessem
suficientemente resguardadas das bombas e tenham sido poupadas.
Jolly não pareceu particularmente confiante.
— Esta é a terceira nave que inspecionei até agora — disse ele. —Não
parece grande coisa.
— Salva o que quer que consigas — ordenou Apollo. — Até migalhas
serão úteis.
— Que fazemos com o resto?
Apollo teve dificuldade em encontrar as palavras certas para a sua
resposta:
— Deita carga ao mar. E continua a controlar o problema. Se as pessoas
descobrirem que não temos comida, vamos ter de nos confrontar com um
motim. Anda daí. Boomer, quero inspecionar uma coisa lá em cima, nos
alojamentos de elite.
Apollo trepou pela escada de ferro como se em resposta a um estado de
alerta total. Serina apareceu de uma esquina do corredor e chocou com o
homem de passo enérgico. Quando se afastaram um do outro, Serina deu uma
gargalhada perante aquela situação desastrada, mas o olhar frio de Apollo fê-
la reconsiderar. Mudou o riso para um sorriso, e depois esperou pela resposta
dele. Apollo continuava a fixá-la com os seus olhos azuis opacos que não
mostravam qualquer emoção. Serina ficou tão impressionada com a
expressão do homem como quando se tinham encontrado pela primeira vez
em Caprica, há tempos. Com o seu corpo forte, os ombros largos, o cabelo
castanho-claro tão cuidadosamente arranjado que dir-se-ia copiado de uma
revista, a cara de traços rudes mas atraentes, cuja sugestão de cinismo
apontava para vasta experiência num homem tão novo, parecia ser
exatamente o tipo de pessoa em quem se pode confiar numa emergência; e,
nestes dias, ela podia bem contar com emergências de frequência regular.
Contudo, apesar do seu aspecto impressivo, havia decididamente uma
nota de arrogância, um distanciamento daquilo que não devia ser aflorado,
sugerido pela sua postura rígida e pelo modo como descaia um canto da boca
de lábios finos.
Ela estendeu a mão, que ele agarrou com clara ausência de submissão
pressurosa às boas maneiras em sociedade. Ela perguntou a si própria se se
atreveria a pedir-lhe ajuda.
— O meu nome é Serina, capitão Apollo — disse num tom amigável.
— Lembro-me do seu nome — disse ele rispidamente.
— Desça das suas dragonas, capitão. Preciso de lhe falar.
— Oiça, Miss Serina, agora estou muito ocupado, tenho de...
— Longe de mim querer interferir nos seus deveres. Até à vista, capitão.
E deu meia-volta, afastando-se de Apollo.
— Espere um minuto — disse Apollo, virando-se então para o jovem
oficial negro que estava um pouco atrás. — Boomer, porque é que não vais lá
acima, aos alojamentos de elite, ver se há alguma coisa que mereça cuidado
especial?
Serina, lembrando-se da bandalheira horrível que por lá vira na única
vez que a visitara, pensou em dizer a Apollo que ele não iria gostar do que lá
encontraria, mas decidiu que o capitão teria de o ver com os seus próprios
olhos, mais cedo até do que esperava. Quando o oficial negro os deixou.
Apollo virou-se para ela e disse:
— Então, que posso fazer por si?
Apesar da sua cortesia indiferente, soava como se estivesse assaz irritado
com ela.
— Venha comigo, por favor-disse ela. — Não demora muito.
E levou-o por uma série de espaços abertos que normalmente alojavam
os passageiros da classe mais baixa no Rising Star. As pessoas amontoavam-
se nos seus exíguos cubículos.
— Não me passava pela cabeça que uma celebridade como você
estivesse nestas condições — disse Apollo. — Talvez um
compartimentozinho jeitoso para as bandas dos alojamentos de elite, que tal?
— Por acaso, vários homens de abordagem até muito subtil ofereceram-
me um. De qualquer modo, não estava interessada em roubar espaço. Fiquei
com o que consegui arranjar honestamente.
— Acredito.
Serina ficou espantada com a sinceridade calorosa daquele comentário.
Afinal, talvez viesse a gostar deste capitão, mesmo tendo ele de facto
engolido uma vassoura.
— Gostava que me ajudasse com o miúdo — disse Serina.
— Miúdo? Aquele que conheci lá em Caprica?
— Sim. Chama-se Boxey. Encontrei-o no meio dos escombros durante
os bombardeamentos.
— Que tem ele? —perguntou Apollo.
— Receio que nada de bom. Está a meio caminho do estado de choque.
— Têm comida?
— Consegui arranjar umas coisas do Sire Uri, no piso de elite. Mas o
Boxey recusa-se a ingerir seja o que for.
— Vou mandá-lo imediatamente para o Centro de Vida.
— Não me parece que seja essa a boa solução. Não sei o que hei de
fazer. A pobre criança tem a memória totalmente em branco, não sabe contar
nada da família nem de onde vem. A única coisa de que fala é daquele
cachorrito que morreu quando fugiam pelas ruas. Não sabe que o bicho está
morto, pensa que se perdeu, simplesmente. Eu... Ah... Talvez você pudesse
ajudar...
— Eu? Se ele não come por si, não sei o que é que eu posso fazer.
— Bem, se se recorda, ele pareceu arrebitar um pouco quando você lhe
falou, lá em Caprica. Francamente, fiquei com a sensação de que você tem
bastante jeito para crianças, capitão.
Serina não compreendeu a fugaz expressão de tristeza que perpassou no
rosto de Apollo, mas começou a ver que o jovem capitão distante era mais
complicado do que pensara.
— Cresci com um irmão mais novo — disse Apollo.— Bem, vamos lá
dar uma fugida ali ao Boxeyzinho.
Serina levou-o por uma longa passagem onde refugiados se tinham
empilhado em múltiplos espaços habitacionais improvisados. Alguns dos
pequenos nichos já estavam decorados com expedientes de ocasião, um casal
até pusera cortinas a dissimular a frieza das paredes.
Pararam junto a um nicho que tinha uma cortina a tapar uma entrada.
Através do tecido fino distinguia-se uma tênue luz noturna que vinha de
dentro. Apollo olhou para Serina, que lhe fez sinal para entrar. Já na divisão,
foi dar com o rapazinho deitado num tosco leito, de olhos fixos no teto.
— Perdão — disse Apollo. — Espero não vir interromper nada.
— Os olhos do rapaz dilataram-se ao reconhecer o visitante. — Fui
encarregado de arranjar jovens para treinar como futuros pilotos de caças. O
teu nome é Boxey, não é?
— Ah, ah...
Apollo assentiu com a cabeça. Avançou para a cabeceira da cama e
acocorou-se junto dela. O rapaz, atemorizado ou receoso, recuou até à borda
da cama que tocava a parede.
— Muito bem — disse Apollo. — Tenho andado à tua procura por todo
o lado. Sabes, devias ter entrado em contacto com o comandante. Temos
imensa falta de pilotos.
O rapaz tomou uma expressão zombeteira. Apollo lembrou-se de que às
vezes, quando se metia com Zac, obtivera dele uma expressão semelhante.
— Sou pequeno de mais para ser piloto — disse Boxey.
— Claro, isso é verdade agora. Mas quanto tempo é que pensas que é
preciso para chegar a guerreiro colonial de pleno direito?
— Não sei.
— Tens de começar de muito pequeno, ou só chegas a coisas destas
quando o cabelo te ficar branco.
Apollo apontou para as insígnias de capitão no seu ombro. Interessado,
Boxey levantou a cabeça para fixar os brilhantes símbolos.
— Gostas disto? —perguntou Apollo.
Boxey parecia ir responder entusiasticamente, mas o seu interesse
desvaneceu-se tão depressa como surgira, e voltou a baixar a cabeça sobre a
almofada.
— Quero o meu Muffit — disse a criança.
As lágrimas vieram aos olhos de Serina, e ela interrogou-se se seria
melhor sair da pequena divisão, ficar fora das vistas na passagem até que o
capitão se desse por satisfeito ou desistisse.
— Bem, disso não sei — disse Apollo. — Não há assim muito espaço
para um daggit num caça.
— Ele desapareceu. Fugiu.
— Ah, sim? Bem, talvez se arranje um amigo do Muffit.
— Não há daggits. Eu perguntei.
Apollo olhou para trás, para Serina. A sua expressão parecia menos
severa por entre a luz sombria. Ela não achou que dizer.
— Bem — disse Apollo para Boxey —, já sei. Olha, toma lá... — e tirou
uma das insígnias do ombro, colocando-a por cima do bolso da túnica do
rapaz. — Fica com esta enquanto eu te arranjo o emblema próprio. E agora,
como guerreiro colonial de primeiro escalão, passas a ter direito ao primeiro
daggit que aparecer.
Levantou-se e caminhou para a entrada, detendo-se, hesitante, para
acrescentar:
— Mas só na condição de que descanses como deve ser, comas o que for
preciso e deixes de andar atrás das meninas. Boa noite, oficial.
Fazendo a continência, saiu. Serina seguiu-o, mas não resistiu a deitar
uma espreitadela ao quarto. Viu Boxey de olhos postos na insígnia que
Apollo lhe pregara na roupa. No corredor. encontrou Apollo que estava à sua
espera.
— Muito obrigada — disse ela. — Vê, eu tinha razão: você sabe lidar
com miúdos. Você e o seu irmão devem dar-se lindamente.
— Dávamo-nos, sim
— Oh, desculpe! Foi a guerra?
— Parece-me...
— Ouça, se preferir não se envolver com...
— Não, que disparate. Já perdi a cartada maior, agora posso permitir-me
ganhar umas mais pequenas.
— A que ali está dentro não é pequena, capitão. Ganhe aquela, e pode
crer que conseguiu muito.
— Pois claro, animei um rapazito de seis anos. Receio que isso não seja
propriamente...
— Receio bem que sim, quer você admita, quer não.
Um esboço de sorriso iluminou a face de Apollo. «Um sorriso
potencialmente atraente», pensou Serina, sempre atenta.
— Peço desculpa, mas tenho mesmo de ir, agora — disse Apollo. —
Tenho de ir ver o que se passa lá nos alojamentos de elite.
— Espero que tenha uma reação semelhante à minha, capitão.
— Não percebo.
— Mas vai perceber.
Levantando o braço quase em continência, afastou-se a passo largo.
Serina notou, obscuramente interessada, que o capitão já não parecia tão
distante e desprendido aos seus olhos.
***
Apollo encontrou um elevador que levava diretamente ao piso de elite do
Rising Star. Mal as portas se fecharam diante de si, foram acionados vários
dispositivos originalmente concebidos para preparar o visitante para a sua
estada nos alojamentos de elite de um veículo transespacial de luxo.
Perfumes subtis desprendiam-se das aberturas de ar; sugeriam comida ou
sexo, conforme a orientação do utente do elevador. Uma bizarra toada
musical — calma, acariciante, intrincadamente melódica — emergia de
altifalantes estrategicamente colocados em toda a cabina. De modo estranho e
subliminal, a música dir-se-ia sugerir vivências românticas iminentes. Apollo
identificou a insípida melodia como uma sucessão de variações sobre um
tema de Leon. O que era admissível, pois Sire Uri era leon. O que Apollo
achou curioso na música foi o facto de ela originalmente ser um cantar de
agricultores celebrando as dádivas da colheita. A versão do elevador
transformara a sua simplicidade de sons numa melodia de amor arrítmica e
ridiculamente complexa.
Sobre a porta acendeu-se subitamente uma luz dourada, a indicar que o
elevador acabava de parar no piso principal dos alojamentos de elite. As
fragrâncias desvaneceram-se e a música baixou, quando as portas deslizaram
para os lados. Apollo sentiu os olhos feridos ao encarar a profusão de
ornamentações douradas. Passando para a área de recepção, reparou com
desagrado numa ridícula seta dourada a dizer CLUBE ÉLITE que apontava
para os recônditos do piso. Apollo já viajara numa nave de luxo, quando não
houvera alojamento decente noutra zona, mas não se lembrava, recordando
essas viagens, de nada que se assemelhasse minimamente às decorações de
mau gosto que enchiam a área de recepção.
Quando os seus olhos se tinham já acostumado ao brilho ofuscante dos
ornatos, Apollo ouviu, espantado, a voz de Boomer ressoando na pequena
câmara.
— Oficial! É a última vez que lhe peço para se afastar.
Boomer dirigia-se a um guarda entroncado e musculoso cujo volumoso
corpo bloqueava a entrada.
Numa voz enfadada, como se estivesse habituado a desencorajar outros
passageiros da nave de forçar a entrada nos alojamentos de luxo, o guarda
disse:
— Estes são os aposentos privados de Sire Uri e dos amigos dele.
— Não me interessa que...
— Devo lembrar-lhe que Sire Uri é membro do Conselho da Frota,
acaba de ser eleito, E encarregou-me de zelar para que não fosse incomodado
por intrusos.
— E que tal esta intrusão, meu cabeça de cachorro?
A «intrusão» de Boomer era a sua arma, agora apontada à narina
esquerda do guarda. Este pareceu surpreendido, mas não propriamente
assustado. «O Boomer pode estar a levantar mais cabelo do que era preciso»,
pensou Apollo; «talvez fosse melhor cingirmo-nos um bocado mais ao
manual.»
— Que se passa. Boomer? — disse, aproximando-se.
— Este fulano parece que não nos quer deixar passar.
— É mesmo, soldado?
— Bem, ah, é sim, senhor. Sire Uri disse...
— Sabes quem eu sou, soldado?
— Sei, é o capitão Apollo.
— Sabes que tenho plenos poderes para passar revista a todos os pisos
de qualquer nave, por ordens da frota?
— Ah... Sei, sim.
— Vais deixar-nos passar essa porta ou não?
— Façam favor!
Apollo sorriu para Boomer, enquanto o guarda abria a porta para os
deixar entrar. Afinal, às vezes sempre tinha as suas vantagens ser-se filho do
comandante...
Avançando por um corredor tão sobrecarregado de decorações como a
entrada do clube. Boomer murmurou:
— Quando penso naqueles pobres esfomeados, só me...
— Não precisas de dizer. Boomer. Isto põe-me tão doente como a ti.
O soberbo salão de baile da nave fora transfigurado naquilo que a Apollo
pareceu uma sala de trono, com o que isso tinha de suspeito. Cobrindo toda
uma parede estava um jogo de tapeçarias, representando, segundo Apollo
identificou, um famoso ciclo de cenas de caça do planeta Tauron. Outras
paredes apresentavam pinturas, esculturas e holovistas, que Apollo podia
jurar terem sido confiscadas um pouco por todos os Doze Mundos. Uri e o
seu bando deviam ter agarrado em todas as obras de arte que tinham
conseguido arrancar aos planetas moribundos, pilhar aos museus e galerias,
enquanto a seu lado morriam cidadãos. Antes da invasão cylon Uri ganhara
fama em todas as colônias como manipulador político de certa habilidade.
Por momentos foi difícil localizar Uri por entre as impressivas obras de
arte, as mobílias luxuosas e o amontoado de gente, aparentando na sua
maioria tratar-se de estadistas de certa idade acompanhados das suas
mulheres do momento. Quase todos na sala estavam reunidos em volta de
arranjos de comida, enfiando vitualhas na boca com obscena sofreguidão. Uri
encontrava-se indolentemente recostado por trás de uma das maiores mesas
do banquete, quase encoberto por uma pilha imensa de frutos exoticamente
coloridos. Continuava tão atraente como Apollo o conhecera, e não parecia
de todo ter envelhecido assim muito. Havia algo de papudo, de bojudo, na
sua cintura —prováveis resultados da presente orgia —, mas no conjunto Uri
era ainda da cabeça aos pés o político aristocrático tão estrondosamente
popular no planeta Leon. A seu lado, pendurando-se-lhe ao pescoço, estava
uma rapariga de escasso vestuário cuja beleza era apenas deteriorada pelos
vestígios de comida em volta da boca.
Apollo brandiu a arma e fez sinal a Boomer para o imitar. Quando os
esbanjadores viram aparecer as armas, logo acalmaram os sons da folia.
Enquanto Apollo e Boomer avançavam lentamente para Sire Uri, pessoas de
olhos vidrados recuavam, saindo-lhes do caminho. Apollo deteve-se na mesa
de Uri. Este levantou os olhos para ele, com as pálpebras pesadas.
— Presumo que tenha uma explicação para esta intrusão?! —disse.
— Pois! — disse a rapariga a seu lado.
Apollo separou-a de Sire Uri e fez sinal a este para se levantar. Uri era
uns três centímetros mais alto do que Apollo, e tentou aproveitar-se da
diferença de alturas assumindo uma voz imperiosa:
— Que vem a ser isto, meu rapaz?
Apollo lançou sobre o atraente político um olhar de desdém.
— Deseja fazer alguma declaração antes de eu o prender. Sire Uri?
Uri ergueu a mão direita para fazer cessar toda a atividade ainda em
curso. Até o músico parou abruptamente de tocar.
— Ainda bem que sabe quem eu sou — disse Sire Uri.— Pelo menos
fica a saber as linhas com que se cose.
— Deixe-se de filosofias baratas. Sire Uri. Vou levá-lo para a minha
naveta.
— Não vou coisa nenhuma, rapaz. Você não tem autoridade judicial aqui
a bordo do Rising Star.
— Tenho toda a autoridade que quiser. Posso levar esta carcaça de
entulho e confiscá-la para a frota, se me apetecer. Melhor ainda, se não quiser
ir comigo de volta para a nave de comando, o que faço é soltar os seis pisos
de passageiros esfomeados que há aqui em baixo. Amanhe-se com eles.
Apollo apontava para a mesa atulhada de comida, e Uri entendeu a
mensagem.
— Capitão —disse —, admito que tudo isto lhe pareça, como direi, algo
excessivo. Só prova o nosso sobreentusiasmo.
— Excessivo? Sobreentusiasmo? Tudo isto? Diria antes obsceno e...
— Espere aí um momento, rapaz. Eu e os meus amigos só estávamos a
celebrar, numa festa discreta e aliás bem merecida, chame-lhe se quiser a
nossa ação de graças pela nossa salvação. Temos direito a...
— Não têm direito nenhum, nenhum privilégio de Deus, para uma...
Uma celebração como esta! Caso lhe tenha escapado, conselheiro, já
morreram umas cem pessoas desde a nossa salvação do invasor cylon.
— Não tive conhecimento de que houvesse casos de morte por fome,
capitão.
— Talvez não. Até pode ser que a fome ainda não nos tenha levado
nenhuma vida. Pelo menos ainda não. Mas é só uma questão de tempo, se não
seguirmos à risca o plano de racionamento que o meu pai enviou a todas as
naves da frota. Se...
— O seu pai?
— Sim.
— Ah, então você é filho do comandante Adama! Deve ser o capitão
Apollo, com certeza. Não o reconheci, as minhas desculpas. Então não
admira.
— Não percebo o que quer dizer. Sire Uri.
Olhando para a audiência mais próxima. Uri empertigou-se. Obviamente
o que ia dizer era para cativar a assistência.
— Estou a dizer, capitão, que não admira que me venha com essa tão
importuna farsa de poder. — E, voltando-se para a assistência: — Bem veem,
meus amigos, este jovem é um emissário do pai, o nosso respeitável
comandante. Quando ele fala de confiscar a nave, é mesmo a sério, e afinal
não somos autorizados a discutir com o filho do comandante.
— Que é que está para aí a dizer?
— Estou a dizer, capitão, que você se agarra a qualquer desculpa para
confiscar naves. Para sugar combustível para a Galactica, se calhar.
Desconfio que seja essa a razão por que anda para aí a fazer-se de bom, e não
por se apiedar de passageiros esfomeados. Vejo uma golpada política por trás
disso, e pode ir dizer ao Adama...
— Posso, Sire Uri. Com o devido respeito. Boomer, notifique o
Comando Central de que localizámos provisões que vamos distribuir
integralmente.
A face de Uri coloriu-se de um vermelho de fúria.
— Mas isto é uma violação dos procedimentos legais, rapaz. Não vou
consentir uma coisa dessas.
— Não se lhe oferece escolha. Lembro-lhe que está sob prisão.
— Todas e cada uma destas migalhas são minhas. Consegui trazê-las dos
meus próprios domínios, e pertencem-me a mim e aos meus convidados.
Ainda não se escreveu lei nenhuma que permita confiscar propriedade
privada sem ordem presidencial.
Alguns dos convidados estavam visivelmente de acordo com os
propósitos aristocráticos de Uri, apesar de Apollo ver outros que pareciam
algo embaraçados e envergonhados. A jovem embriagada ao lado de Uri
agarrou-se ainda mais a ele e apontou o braço na direção de Apollo num
gesto dramaticamente significativo. Só queria poder prendê-la, a ela e a todos
aqueles esbanjadores que secundavam as ideias de Uri...
— A sua mulher partilha essa atitude de negar a sua comida aos outros?
—perguntou Apollo, olhando num significativo relance para a prostituta de
Uri.
— A minha mulher?—perguntou Uri com voz débil.
— Siress Uri. Não estou a vê-la.
Uri não pôde suportar o olhar de Apollo e passou de súbito a fixar o chão
espessamente atapetado. Apollo recordava Siress Uri como uma mulher
rechonchuda, simpática, cuja principal ocupação na vida era descobrir
maneiras de salvar o impulsivo marido de situações potencialmente
perigosas. Fora amável com ele e com Zac, uma vez que a tinham visitado
quando eram pequenos.
— Não, Siress Uri desapareceu — disse Uri. — Infelizmente não chegou
ao Rising Star a tempo de fugir a bordo connosco.
Apollo nem por um segundo acreditou no soluço que Uri emprestou à
voz ao falar.
— Os meus sentimentos — disse Apollo.— Também lamento a sua
perda. Siress Uri era uma mulher fora de série.
Uri mantinha a cabeça baixa. Por respeito, aparentemente.
— É... — murmurou.
— Tenho a certeza de que havia de ficar sensibilizada com o seu período
de luto e com o estilo que escolheu para lhe honrar a memória. Boomer?
— Sim, capitão?
— Diz ao Jolly que mande cá uma equipa para recolher e distribuir esta
comida pela nave.
— Não acha que devíamos avisar primeiro o Comando Central?
— Já!
Agarrando Uri pelo braço, arrastou-o para a saída. A jovem continuou
agarrada ao braço do político durante os primeiros passos, antes de cair, num
torpor de enfartamento e embriaguez, sobre a grossa carpete encarnada.
Enquanto aguardavam Jolly e os seus homens. Boomer disse para
Apollo, em surdina:
— Sem pretender criticar, capitão... Não será possível teres ido um
bocadinho longe de mais, visto que Sire Uri está no novo Conselho?
— Isto não é nenhum jogo de cartas. Boomer, como aqueles em que tu e
o Starbuck se metem a rios de dinheiro. Aquela gente ali está a morrer de
fome, cos diabos!
— Calma, calma, Cap. Estou do teu lado.
— Tens a certeza?
— Capitão...
— Desculpa, Boomer. Ando muito irritável nestes últimos dias. Deves
ter reparado.
— Bem, agora que o dizes, de facto...
O elevador chegou, deixando aparecer a poderosa figura de Jolly, que
parecia encher toda a largura da porta aberta.
— Anda lá! —disse Apollo. — Recolhe todos os bocadinhos de comida
que aqui encontrares e leva-a àquela gente.
O olhar de ódio de Sire Uri, quando dois dos homens de Jolly o levaram
para dentro do elevador, provocou em Apollo um arrepio que lhe percorreu a
espinha.
***
Manobrando com delicadeza, o Dr. Paye colocou o braço partido de
Cassiopeia dentro de um tubo cilíndrico transparente, articulado a um jogo de
aparelhos médicos maior e mais impressivo. Ela sentia o braço morto, e o
facto de o médico lhe mexer de toda a maneira e feitio não lhe provocava a
mínima dor. Colocado o braço na posição desejada, Paye puxou de uma
cavidade numa das máquinas qualquer coisa que parecia um trio de canos de
espingarda. Depois de apontar cada um dos canos a uma zona distinta do
braço enfiado no tubo, o médico premiu uma série de botões, fazendo sair dos
canos de espingarda tênues raios que lembravam laser. Quando tocaram na
superfície transparente do tubo, os raios dispersaram e penetraram no braço a
alturas diferentes. O braço deixou nesse instante de estar adormecido,
sucedendo ao torpor sensações que lembravam picadas ou formigueiros.
Abruptamente, Paye voltou a premir os botões, ao que os canos de espingarda
recuaram de novo para o interior da máquina. Ao retirar o braço da rapariga
do tubo transparente, Paye disse:
— Como é que o sente agora?
Cassiopeia estendeu o braço, dobrando-o em seguida. A própria
sensação de formigueiro estava a desvanecer-se.
— Parece até que nem se partiu — disse ela.
— O osso foi fundido de alto a baixo — disse Paye, numa voz amigável
de profissional. — Se calhar, até está mais forte do que antes.
— É fantástico. Bolas, mesmo fantástico! Obrigada, doutor.
— Com uma aparelhagem destas eu não sou mais do que o mecânico.
Um mecânico hábil, concordo, mas simplesmente mecânico. Que mais posso
fazer por si, Cassiopeia?
A oferta parecia significar mais do que mero cuidado médico. Como
animadora social, estava habituada a abordagens tão subtis como esta, e foi-
lhe fácil declinar delicadamente.
No corredor, fora da enfermaria de bordo, encontrou Starbuck
laconicamente encostado à parece, ainda em uniforme de voo. Sorriu-lhe,
contente por estar de novo com o jovem oficial atrevido. Mas breve franziu o
sobrolho, compreendendo o motivo por que ele estaria ali à sua espera.
— Está à espera para me levar de volta, não está?—perguntou ela.
— Bem, não é fácil arranjar boleias por aqui — disse ele.
Ela recuou, virando-lhe as costas. Sentiu o rosto encher-se de lividez.
— Morro só de pensar em voltar àquela nave.
Não lhe agradava admiti-lo, mas receava a estupidez dos passageiros do
Rising Star. Estava solidária com a sua situação de fome e desorientação, mas
por outro lado não estava interessada em oferecer-se como vítima das suas
frustrações. Starbuck pareceu compreender, pois disse:
— Olhe, talvez eu possa dar uma volta por aí e ver se encontro outro
sítio qualquer para você ficar. Há naves melhores, talvez até haja lugar na
Galactica.
Bem, se alguma coisa aquele jovem oficial não era, era tímido.
— Que é que se passa? — perguntou Starbuck.
— Estou a cheirar uma negociata qualquer. Você faria a mesma coisa se
eu não fosse animadora social?
— Talvez. E talvez também não.
— Peço-lhe que não brinque. Estou... Estou um bocado fraca. Quer
dizer...
— Pronto, pronto. Vamos pôr de parte as graças por agora. Olhe, na
verdade, só quero ajudá-la. Não há nada de pessoal.
— Nada de pessoal?
— Bem, alguma coisa. Mas vou na mesma procurar alojamento para si.
E mais nada. Parta-me o braço se estiver a mentir. É claro que talvez valesse
um braço partido...
— Está bem, está bem.
— Está combinado, então?
— Acho que fez uma combinação horrível, mas está bem.
Starbuck sorriu genialmente, enquanto pegava no braço de Cassiopeia,
aquele que acabara de ser reparado no Centro de Vida, e começaram os dois a
caminhar pelo corredor.
***
Adama, entrando na ponte, veio encontrar o coronel Tigh de sorriso
muito aberto, apertando de encontro ao peito os últimos relatórios, como se
de cartas de amor se tratasse.
— Que há, Tigh? — perguntou Adama.
— Chegaram informações das patrulhas de longo alcance. Os visores
deles não descobrem sinais de perseguição por parte dos cylons. Todos os
vetores estão bem. O campo de camuflagem que o Apollo inventou parece
estar a cumprir muito bem. Exceto daquela vez há algum tempo que passaram
por aqui perto, nenhum grupo de naves cylons se tem aproximado.
— Enquanto estivermos dissimulados desta maneira no espaço, é
altamente improvável que deem connosco. Só peço a Deus que a camuflagem
continue em boas condições. Tigh.
— Não faço outra coisa senão olhar por isso, de manhã à noite. Seria
desastroso eles descobrirem-nos agora. Não estamos em condições de nos
abalançarmos a uma grande batalha, agora não.
— Eu sei disso, Tigh. Sei, e dói-me saber.
— Que fazemos a seguir?
— Tenciono deixar essa pergunta para outras cabeças.
Tigh pareceu chocado e irritado ao mesmo tempo.
— Sempre vai para a frente com a sua ideia de se demitir?
— Vou apresentá-la ao Conselho...
— Comandante, precisamos de falar.
— Com certeza, amigo, mas a decisão está tomada.
— Com o combustível tão baixo e as provisões também, não pode
demitir-se agora. Se alguma vez precisámos de uma liderança...
— A frota está cheia de homens válidos. E você entre eles, Tigh. O
Conselho decidirá.
— Comandante...
— Diga, Tigh.
Tigh hesitou, manifestamente relutante em abrir-se.
— Vamos, desembuche, velho amigo — disse Adama.
— Se se demitir agora, vai parecer exatamente como o seu gesto de levar
a Galactica para longe da luta contra os cylons. Lamento, mas...
— E eu lamento que você pense assim. Talvez os dois acontecimentos
estejam ligados. E talvez apenas venham reforçar a minha decisão de que é
altura de me retirar.
— Não, não pode ser!
— Já decidi assim.
— Isso vejo eu, cos diabos!
— Quer acompanhar-me à câmara dos conselheiros?
— Preferia não ir, se não se importa.
Adama ia a dizer que se importava mesmo, mas deu meia volta e saiu da
ponte. Ao passar pela escotilha, ouviu atrás de si uma forte pancada surda.
Não havia dúvidas, era o coronel Tigh a bater com o punho em algo de
metálico. Adama não se virou para confirmar esta sua especulação.
O recém-nomeado conselho dos mais velhos, órgão colegial que
governaria até se poder eleger um verdadeiro Quórum, começou a exprimir o
seu desagrado mesmo antes de Adama ter conseguido acabar o seu discurso
de demissão. Alguns levantaram-se num pulo, gritando:
— Não! Não consentimos uma coisa dessas!
— Inaceitável!
— Não se pode demitir. Logo você!
O conselheiro Anton silenciou a vaga de protestos com um largo gesto
do braço. Anton fora em tempos ajudante-de-campo do presidente Adar.
Político da velha guarda, de fácies de coruja, emaciado, oriundo de Scorpia,
era também astucioso, mas Adama sempre o tivera na conta de inteligente e
digno de confiança.
— Adama —disse Anton, levantando-se — , você conduziu-nos sábia e
eficientemente. É por isso que não podemos aceitar a sua demissão. As coisas
estão muito sérias, nesta altura.
— Discordo — rugiu o conselheiro Uri. Adama já contava que, a haver
oposição séria a algum plano razoável, esta viria certamente do representante
dos sobreviventes de Leon. Rotulado como estava de escândalo, a sua gente
não deixara por isso de lhe dar um voto de confiança para permanecer no
Conselho.
— Parece-me que o nosso caro Adama é a pessoa que melhor pode
julgar da sua capacidade de liderar — disse Uri.
Adama lançou uma olhadela a Apollo, que estava sentado com a repórter
Serina na galeria frente à mesa do Conselho. O filho aparentava estar furioso,
e a bela jovem tinha a mão pousada no seu braço, como que a convencê-lo a
manter-se sentado. Adama gostava do que conhecera da repórter capricana, e
apreciava o facto de ela mostrar interesse pelo filho. Apollo, tão abatido com
a morte de Zac e da mãe, precisava de uma amiga compreensiva como ela.
Voltou a concentrar-se em Uri.
— Com o devido respeito — dizia ele —, não tenho de todo a certeza
que o comandante nos tenha conduzido assim tão sabiamente, assim tão
eficientemente. Em consciência, não posso qualificar a nossa atual situação
difícil como resultante de bom planeamento.
— Uri, se não fosse o Adama nenhum de nós tinha escapado aos
cylons!... —gritou Anton.
— Isso talvez — retomou Uri —, mas eu coloco toda a responsabilidade
do caos que atualmente sofremos nos ombros do comandante. Foi o seu fraco
discernimento na distribuição de comida e combustível que nos levou e ainda
nos mantém à beira da desgraça.
— Conselheiro Uri — disse Anton —, é preciso ter estômago para vir
com acusações sobre faltas de comida, quando você mesmo foi acusado de
açambarcamento quando a seu lado havia mortes por fome.
— Ninguém tem telhados de vidro, Anton... Não foi você também que...
— Meus senhores! — interrompeu Adama. — Meus senhores, por favor.
Estas questiúnculas não servem minimamente os nossos interesses. O Uri tem
alguma razão quanto à situação em que nos encontramos, e também quando
me censura. O problema é, e aliás, sempre foi, que somos gente de mais.
Gente a mais, naves a mais. Teríamos tido problemas mesmo que uma
percentagem tão grande da nossa comida não tivesse sido contaminada,
mesmo que tantos dos nossos aparelhos não se viessem a revelar em tão
precário estado. Se tivéssemos tempo... Mas aí é que reside a verdadeira fonte
das nossas preocupações. Temos de arranjar provisões e combustível, é a
nossa única solução. De contrário, sucumbiremos todos, lenta e
gradualmente, à medida que as nossas reservas se forem esgotando. Temos de
converter as nossas naves a propulsão hiperespacial, e deixar ficar para trás as
que não puderem ser convertidas.
— Isso obrigar-nos-ia a amontoarmo-nos ainda mais —disse Uri. — E
as condições já são intoleráveis agora.
Adama resistiu à oportunidade de comentar a solução do próprio Uri
para a suposta intolerabilidade de condições.
— Pois obrigaria, Uri. Por isso é que tencionava propor que
concentrássemos todo o nosso estoque de combustível e mandássemos à
frente a Galactica e os aparelhos mais capazes da nossa frota improvisada, em
busca de combustível e provisões para o resto da nossa gente.
— Deixar naves para trás? — gritou Uri. — Comandante, diga-me lá
quantas naves tenciona enviar nesta missão insensata, de andar às cegas por
esse universo fora?
— O capitão Apollo é que tem com ele as contagens reveladoras,
conselheiro Uri.
Apollo levantou-se e falou sacudidamente, sendo evidente que se estava
a controlar para não explodir.
— Cerca de um terço da frota atual. É o que temos em combustível para
repartir, e repartir pela medida curta, meus senhores.
— Medida curta, hem? — disse Uri. — O que eu digo é que isto não é
mais do que uma golpada para vocês e os vossos eleitos fugirem de nós que
cá ficamos, deixarem-nos cá, sem combustível, a morrer lentamente. Isto é...
— Sire Uri — interrompeu Apollo.— Da maneira que as coisas estão,
não temos combustível bastante para ir seja onde for com toda a frota. Temos
de deixar ir os poucos que podem partir em demanda de uma solução.
— Você é mesmo filho do seu pai — observou Uri zombeteiro. —Não
garanto que vocês não estejam os dois de acordo para nos ludibriar.
— Isso é perfeitamente descabido! — gritou Anton. —Você sabe-o bem.
Uri, você...
— Então você também está na jogada, Anton?
— Senhores, por favor! —disse Adama. — Ouçam-me até ao fim.
— Você está muito autoritário, para um líder que acaba de se demitir —
disse Uri.
— É apenas um conselho — disse Adama.
— Que venha lá esse seu conselho, então. Estou ansioso por ouvi-lo,
comandante.
Adama aclarou a garganta para ganhar tempo. Só lhe apetecia mandar
Uri para o Inferno. Já era mau ter de enfrentar oposição ignorante numa
reunião destas, mas pior ainda era saber que o oponente não passava de um
escroque alardeador que de qualquer maneira nunca ouvia a voz da razão.
— Proponho — disse Adama — que enviemos as nossas melhores naves
a Carillon com o fim de arranjar combustível e provisões.
— Carillon? — perguntou Uri, com um curioso sarcasmo na voz.—
Pelos Doze Mundos, porquê um local como Carillon?
— Carillon foi em tempos meta de uma expedição mineira a partir das
nossas colônias. É muito rico em tylium.
— Mas, se bem me recordo, foi abandonado porque não tinha condições
de extração.
Uri vinha obviamente preparado. Os seus informadores deviam ter tido
acesso ao plano de Adama antes da assembleia.
— Só foi abandonado — disse Adama — porque não havia mão-de-obra
local, e era demasiado distante das colônias para tornar prático um serviço de
transporte de um sítio para o outro. No entanto, não são aspectos de
rendibilidade que nos preocupam agora.
— Não acredito que Carillon seja o que nos convém. Os mesmos
problemas subsistem. Carillon é longe demais. Podiam surgir milhões de
contratempos aos nossos aparelhos e termos de deixar ficar lá gente.
— É a única solução. Uri.
— Acha? E Borallus? É mais perto, e sabemos que tem tudo aquilo de
que precisamos. Comida, água, combustível.
Muitos dos conselheiros estavam nitidamente a inclinar-se para a
proposta de Uri. « Como é que podiam ser tão tapados, tão inconscientes! »,
pensou Adama.
— E têm com certeza uma força cylon estacionada lá — disse Adama.—
E podia ser fatal neutralizarmos o nosso campo de camuflagem para tentar
aterrar em Borallus.
— Podia ser fatal — gritou Uri. — Pois a mim parece-me de certeza
fatal rumarmos a Carillon.
— Carillon é a nossa única esperança — disse Adama. Reparou, por
uma rápida contagem das cabeças que se inclinavam afirmativamente, que
mais de metade do grupo parecia agora do seu lado. — Meus senhores, têm
de compreender que a situação atingiu um estado crítico muito mais depressa
do que imaginávamos. As rações de comida já foram cortadas em dois terços.
Não nos podemos dar ao luxo de continuar com estas questiúnculas. Temos
de agir, e temos de conseguir apresentar um plano de ação à nossa gente em
unanimidade.
— Unanimidade quer dizer limitarmo-nos a ser o vosso eco — disse Uri
amargamente, sentando-se, porém.
Era o último foco de resistência ao plano. Quando se passou à votação.
Uri só votou a favor do plano depois de o Conselho aceder a aceitar a
demissão de Adama de presidente, e depois de aceitarem que a nave de Uri, a
Rising Star, fosse um dos veículos escolhidos para o salto no hiperespaço até
Carillon.
Depois da reunião do Conselho. Apollo sentiu-se aliviado por finalmente
se ir passar a algo de concreto, mas contrariado por o pai ter decidido demitir-
se. Também se sentia profundamente irado pelo insulto que Uri lhe lançara
no meio da reunião. O safado só estava a vingar-se dele por o ter ido prender.
Também tinha valido de muito, a detenção. Uri tinha manipulado a situação a
seu favor e tornara-se chefe das facções opostas ao pai.
— Parece tão triste... — disse Serina mansinho. Já há algum tempo que
estava de pé a seu lado, em silêncio.
— Esqueça. Ia perguntar-lhe: trouxe Boxey consigo para aqui?
— Sim, senhor, conforme me mandou, capitão. Enfiei-o naquele
compartimento maravilhoso que nos arranjou. Obrigada, a propósito.
— Não tem de agradecer. Vamos buscar o Boxey.
Apollo pôs-se a caminhar pelos corredores labirínticos, numa
determinação firme. Serina, apesar de ter pernas compridas e quase a sua
altura, só dificilmente conseguia acompanhar-lhe o passo.
— Como é que está o rapaz?—perguntou Apollo, mesmo em frente da
porta que dava para o quarto de Boxey.
— Continua a não querer comer, e não dorme.
— Acho que vamos arranjar-lhe uma coisa de que ele vai gostar.
— Agora mesmo?
— Sim.
— Mas você tem tanto que fazer, preparar tudo para a viagem a Carillon
e sei lá mais o quê. Não acha que devia descansar também um bocadinho?
— Pensei que era capaz de dormir melhor se conseguíssemos resolver o
problema do Boxey.
— Mas isso é tramado!
— Já vai ver.
Boxey, deitado na cama inferior de um beliche duplo, parecia mais
apático que nunca. Apollo ordenou-lhe que se levantasse e viesse com eles. A
criança perguntou se tinha mesmo de ir. Apollo respondeu-lhe que ordens
eram ordens, ao que o rapaz pegou resolutamente na mão que se lhe estendia.
Passando por caminhos sinuosos, chegaram a um sector da nave onde Apollo
apenas estivera duas ou três vezes desde o início da sua missão na Galactica.
Detendo-se a uma porta com uma tabuleta a dizer «Laboratório de
Manutenção Dróide», Apollo disse: «É aqui.» E sorriu ao ar surpreendido de
Serina, enquanto entrava com ela e Boxey para o laboratório. Imediatamente
diante deles estava uma fileira de dróides apoiados contra uma parede, todos
obviamente desligados. Alguns tinham sido abertos, e vários fios pendiam da
zona das cabeças, peitos e patas.
— Que é isto? —perguntou Serina.
— Dróides. Modelos mecânicos concebidos para simular tipos humanos
ou animais...
— Eu sei o que são dróides. Pensei que estivessem proibidos.
— Em Caprica, sim. Os Capricanos não admitem o recurso a substitutos
mecânicos para o esforço humano. Uma filosofia louvável, mas...
— Lá de filosofias não sei; sei, sim, das poucas experiências que tive
com dróides, que me desagrada perceber características humanas numa coisa
que acaba por não ter nada de humano.
— Acho que não tem razão, mas, dada a presente situação, não é
discussão que valha a pena empreender. Deixe-me só dizer-lhe que os dróides
se tornaram uma necessidade para a navegação espacial. Podem enfiar-se em
buracos onde os volumosos corpos humanos não conseguem chegar, e podem
efetuar pequenos trabalhos de reparação na superfície da nave ou em
atmosferas que hão conseguimos respirar.
Um homem entroncado de meia-idade, vestindo uma bata de laboratório,
apareceu vindo de uma porta. Havia qualquer coisa de mecânico nos seus
movimentos, e Serina interrogou-se se seria também um dróide. O modo
como o semblante se lhe iluminou ao reconhecer Apollo demonstrou-lhe que
afinal se tratava de um humano.
— Ah, capitão Apollo. Mesmo a tempo. Estávamos à sua espera. É este
o jovem oficial que foi encarregado do novo projeto?
Boxey, surpreendido com a atenção que o estranho lhe dispensava,
escondeu-se por detrás das pernas de Apollo.
— Bem, Dr. Wilker, não tive tempo de discutir pormenorizadamente o
projeto com ele. Todos esperamos que ele aceite.
Boxey puxou pela perna de Apollo. Este baixou os olhos para o
baralhado miúdo.
— Quero ir-me embora — sussurrou Boxey.
— Boxey, isto é uma ordem militar. Pelo menos temos de ouvir o doutor
até ao fim. Fale-nos mais sobre o projeto, doutor.
O Dr. Wilker assumiu um ar professoral, dirigindo-se agora a Boxey.
— Bem, sabe, em breve estaremos a aterrar em vários planetas
alienígenas, e não se faz ideia do que lá vamos encontrar. A nossa segurança
é importante. Normalmente, o que faríamos era treinar daggits para manterem
a vigilância de noite, quando os nossos dormem nos acampamentos, mas não
temos daggits nenhuns. Portanto, tivemos de ver o que se conseguia arranjar.
Vamos chamar Muffit Dois ao primeiro.
Boxey olhou de esguelha para Apollo.
— Que é que ele está a dizer?
Apollo encolheu os ombros.
— Eu realmente não percebi tudo bem, Dr. Wilker. Talvez fosse melhor
o senhor mostrar-nos.
— Certo. Lanzer!
O chamamento pelo assistente soava a uma desajeitada e exagerada
deixa digna de antigo melodrama. Lanzer, um homem novo, de óculos,
trouxe nos braços algo que parecia uma trouxa de peles. Apollo sabia que a
pele de pelo curto era falsa, implantada no corpo dróide, mas teria tomado o
modelo por um daggit verdadeiro se não estivesse já a par de tudo. Lanzer
pousou o dróide daggit no chão, e este pôs-se imediatamente a ladrar num
tom estridente, irresistivelmente amigável. Abeirando-se de Boxey, pôs a
língua de fora e começou a arquejar. O balançar da cauda era natural e
convincente, a não ser que uma pessoa olhasse mais de perto e pudesse ver
que ela emergia de uma abertura quadrada na parte traseira do dróide.
— Claro que o primeiro terá de ser tratado com muito cuidado — disse o
Dr. Wilker.
Boxey, incrédulo, recuou alguns passos para longe do expectante dróide
daggit.
— Isto não é o Muffit — disse Boxey. — Nem sequer é um daggit
verdadeiro.
— Não —disse Wilker brandamente —, mas pode aprender a ser em
tudo como um verdadeiro. É muito esperto. Se você nos ajudar, ainda se faz
mais esperto.
Boxey não conseguia tirar os olhos do cachorrinho. A réplica do arquejo
de um animal parecia exercer nele igual fascínio. No seu primeiro esboço de
sorriso de há alguns dias, Boxey recuou alguns passos cuidadosamente,
afastando-se do daggit, que parou de arquejar e levantou, desafiador, os
olhos. O rapaz começou a voltar-se e o cachorro correu para ele. Olhando
para trás, por cima do ombro, Boxey começou a atravessar a sala. O dróide,
com ar visivelmente satisfeito, não largava os pés do rapazinho.
— Servimo-nos da imagem de Boxey que nos deu para treinar o dróide a
reagir a ele — sussurrou Wilker para Apollo e Serina.
Boxey deteve-se e voltou-se, baixando os olhos para o daggit.
Lentamente, abriu os braços. O dróide avançou, sentou-se nas patas de trás e
levou as dianteiras ao peito do rapaz. Estava acabado o período experimental.
Boxey abraçou-se ao daggit e sorriu para os três observadores adultos.
Apollo sorriu para Wilker e disse:
— Fico-lhe a dever esta, doutor.
— Cá fico à espera — disse Wilker.
Seguindo Boxey e o seu novo bicho de estimação para o corredor, Serina
murmurou para Apollo:
— Fico a dever-lhe esta, Apollo.
— Cá fico à espera.
— Você parece-me um presunçoso, sabe?
— Se você o diz...
— Mas vou na mesma dar-lhe um beijo.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Uma vez que houve uma pausa na guerra e nós estávamos em missão de
escolta a naves que levavam provisões a uma estação de reabastecimento em
construção, dei com o Starbuck apressado por um corredor abaixo a falar
sozinho e a tomar notas furiosamente num pequeno bloco. Ora, quando
tocava a assuntos militares, Starbuck era o famoso estagiário inocente — se
se lhe desse uma espreitadela lá para dentro, com certeza que se dava com
cueiros tão verdes como ele próprio. Mas se se tratava de assuntos de
dinheiro, especialmente quando havia apostas por trás, Starbuck já nascera
adulto. Na sua primeira semana na Galactica levara tanta gente à bancarrota
que só se viam pessoas curvadas sob o desalento. Nessa altura apeteceu-me
fazer de espertalhão, e decidi apanhá-lo com a boca na botija. Pensei que se
conseguisse dar com ele a fazer qualquer coisa de ilegal, podia recorrer a uma
certa dose de disciplina e levá-lo a confinar o seu pecado às áreas a isso
reservadas.
Ele andava depressa, e eu via-me aflito para não o perder de vista, pois é
difícil ser-se uma boa «sombra» quando se é comandante da nave, mas
depressa percebi que se encaminhava para o sector médico. Assim era.
Quando o apanhei, estava numa enfermaria vazia. À sua volta tinha uma série
de funcionários médicos, atirando-lhe aos ouvidos múltiplos elementos e
passando-lhe pequenos pedaços de papel juntamente com o que tudo indicava
ser uma boa maquia de dinheiro. Starbuck estava atarefadíssimo, não se sabe
como, mas lá conseguia tomar notas no bloco e receber o dinheiro e os
papelinhos.
— Que se passa aqui, praticante? — gritei eu na minha melhor voz
autoritária. — Jogatana fora de horas, não?
Starbuck fez uma cara embaraçada, idiota, mesmo própria de praticante
verde.
— Peço desculpa, capitão — disse baixinho. O malandrão diabólico
sabia que eu detestava ser tratado por capitão, mas fiz de conta que não tinha
dado por isso.
— E desta vez quanto é que vale a intrujicezinha, Starbuck?
Os funcionários de saúde começavam a parecer apreensivos, e eu tive a
sensação de que o praticante Starbuck, se pudesse, se enfiaria pelo chão
abaixo.
— Bem, estamos a apostar... Ah, estamos a apostar...
— Desembucha, praticante. Quero saber do que é que se trata, antes de
confiscar tudo para o fundo de aposentações da nave.
— Estamos a juntar para esta apostazinha, bem, sobre o dia em que o
senhor há de morrer...
Tenho de confessar que fiquei embasbacado com a resposta, e por
momentos não consegui abrir a boca.
— Vocês estão... Vocês estão a fazer apostas sobre... Sobre a data da
minha morte?
Ele fez que sim com a cabeça. Eu alarguei-me mais um pouco sobre o
assunto, e depois exigi que o Starbuck me passasse para a mão todo o
dinheiro das apostas. Fiquei a perceber que o dinheiro na mão dele era falso,
era o tipo de cúbito de chumbo usado por não apostadores em jogos de cartas.
— Também não faz mal ter sido apanhado — disse Starbuck para os
outros. — O capitão tem razão, isto é uma intrujice. A coisa já estava
arranjada.
Senti um certo mal-estar no estômago.
— Arranjada? — perguntei eu, em voz algo sufocada.
— Sim — disse Starbuck sorrindo. — Eu ia ganhar. Sem dúvida alguma.
— Ias ganhar? Sabes o dia em que vou morrer?
— Sim, senhor.
Ao vê-lo postado diante de mim, de sorriso malicioso nos lábios,
apeteceu-me estrangulá-lo.
— Está bem, Starbuck. Diz-me a tua previsão. Estou especialmente
interessado naquela do «arranjada». Quando é que vou morrer?
Sorrindo, entregou-me um dos papelinhos de aposta que segurava na
mão.
— É a minha previsão — anunciou.
Eu abri. Dizia «Nunca». Starbuck desatou a rir e deu-me para a mão uma
pilha bem construída de cúbitos falsos.
— Nunca — disse ele.
Que pateta me senti! Ali em pé, no meio de uma enorme enfermaria de
bordo, vazia, estava como que encurralado. Associei-me à risada e ignorei a
faceta de insubordinação de todo aquele episódio. Starbuck mostrou-me
todos os bocadinhos de papel. Diziam todos «nunca». Nunca mais me meti a
apanhar o Starbuck em falta.
CAPÍTULO VI
Starbuck tirou um charuto a Boomer e esgueirou-se do grupo de trabalho
para o seu refúgio particular — para a sua nave, na plataforma de lançamento
da Galactica. Enfiando-se num nicho sombrio na parede, acendeu o charuto e
encostou a cabeça à divisória metálica. Quase instantaneamente sentiu-se
prestes a dormitar, e uma parcela vigilante do cérebro fê-lo interrogar-se se
não deveria fazer alguma coisa ao charuto. Mas não conseguia raciocinar
direito. «Que charuto?», disse quase em voz alta. Visões de uma multidão
esfomeada que alternadamente aparecia e se desvanecia deram início a um
sonho que nunca evoluiu para pesadelo completo porque o som da voz de
Cassiopeia o despertou repentinamente.
— Starbuck! —disse ela. — Que estás aí a fazer metido nesse buraco?
Descobrindo que o charuto estava prestes a cair-lhe da mão, apertou-o
mais entre os dedos. Saindo do nicho, levou-o à boca e aspirou
demoradamente o fumo. Pairando nas narinas, sentia como que um tênue
narcotizante, resultado seguramente de uma das misturas extra especiais de
Boomer. Cassiopeia tomara banho e mudara de roupa — trazia um vestido
inteiro muito justo que ameaçava tornar-se transparente sob a luz adequada
— desde que Starbuck a deixara nos alojamentos das enfermeiras. Pelos
melhores padrões convencionais de beleza, neste momento estava
francamente espantosa, mas Starbuck interrogou-se de passagem se não
preferiria o aspecto anterior dela, coberta de porcaria e desalinhada. Nessa
altura desprendia-se dela como que uma vulnerabilidade, uma necessidade de
ser auxiliada a que ele de bom grado respondera. Agora apresentava-se-lhe
grande, atraente e forte. Mais uma mulher forte, como Athena. Sentia-se
sempre inclinado para mulheres fortes, mas havia alturas — momentos de
falsa nostalgia — em que quase suspirava por uma das donzelas fracas e
submissas das lendas intergalácticas. Uma ideia disparatada, talvez — sabia
que se enfadaria em menos de um dia com uma rapariga dessas, e o único
proveito real daí tirado para uma pessoa como Starbuck seria um descanso
altamente necessário.
— Como é que deste comigo? — perguntou ele.
— Segui-te parte do caminho. Perdi-te aqui, mas depois vi a luz desse
charuto tão bem cheiroso. Posso tirar uma «passa»?
— Claro.
Ela aspirou fortemente o delgado charuto, parecendo saborear-lhe o
gosto.
— Oooh! Muito obrigada! Esta droga foi mesmo muito bem trabalhada.
— O meu amigo é especialista na alteração química da composição
celular.
— Os meus parabéns ao botânico, então.
Recuando alguns passos, levantou os olhos para examinar a nave de
Starbuck. Jenny e o resto da tripulação de voo de Starbuck tinham feito um
excelente trabalho de reparação, substituindo o que ficara destruído pela
aterragem de emergência e afinando na generalidade todos os sistemas. Como
sempre, tinham polido soberbamente a superfície, e as chispas que pareciam
saltar do seu lustro davam a impressão de que o viper se entregava a uma
sarabanda estranha, abstrata, muito sua. Cassiopeia não tirava os olhos dele, e
só voltou a falar passado muito tempo.
— Tem qualquer coisa de belo, a pairar ali em cima como se estivesse
em voo permanente. Uma máquina perfeita, nascida para dançar com alegria,
ziguezaguear por entre constelações...
— Que maneira poética de pores a coisa... — disse Starbuck, levando o
charuto à boca.
Cassiopeia franziu as sobrancelhas.
— Mas não dás muito por isso, pois não?
— É poético de mais, não conta com o cheiro horroroso do metal com os
resíduos do combustível, com as aguilhoadas que sentes pela pele toda
quando alguma coisa faz curto-circuito e desata a largar faíscas que te sobem
pelas mangas acima. Seja como for, topo a ideia, menina. Prefiro mil vezes
estar no cockpit dessa carcaça a voar numa missão chata qualquer, a outro
trabalho, fosse ele qual fosse.
Starbuck sentiu nascer uma dor na cabeça que se desenvolvia numa
espécie de linhas evolutivas a partir do olho direito. Semicerrando os olhos,
esfregou a têmpora direita.
— Pareces esgotado — disse Cassiopeia, solidária.
— Esgotado, eu? Não. Esgoto-me só para fugir ao esgotamento. Mas
enfim, estes últimos dias têm sido estafantes, o trabalho, as pessoas
esfomeadas e...
— E o capitão Apollo? Tenho reparado que ele anda muito mandão com
vocês. Quase previ uma amotinação.
Starbuck riu-se.
— Amotinação? Duvido. Pelo menos, nunca contra o capitão. Já temos
problemas que cheguem sem precisarmos de andar a fazer de revolucionários.
Não, eu entendo o Apollo. Ele está com preocupações enormes às costas.
— Bem, vocês estão todos a sofrer. Não vejo porque é que ele
especialmente...
— Não, eu não queria dizer isso. Não estava a falar só na situação difícil
que toda a gente está a atravessar. O Apollo perdeu o irmão no ataque cylon e
ficou muito abalado com isso. Por isso é que anda com os nervos à flor da
pele.
— Oh, não sabia...
— Há determinada informação que não deixamos filtrar para baixo até
aos círculos civis.
— Vocês, rapazes, protegem-se mesmo uns aos outros. Gosto. Lá em
casa, sempre tivemos á ideia de que os pilotos espaciais eram uns
convencidos, gosto de ver...
— Ah, sim? Bem, não tem nada de transcendente... Protegermo-nos uns
aos outros, como lhe chamas. Tens de proteger uma ocasião qualquer da vida
privada de um tipo, assim como ele também te há de proteger quando tiveres
um par de caças cylons atrás de ti. Acaba por ser a mesma coisa.
— Amas-me?
A pergunta abrupta desorientou Starbuck. Queria de facto fazer amor
com ela, mas não queria que fosse ela a fazer-lhe a pergunta.
— Que se passa? —disse ela.
— É assim que vocês lá chegam, mudando de assunto e atacando sem
rodeios o centro da questão?
— Não, não é assim. Se estivéssemos lá no meu planeta e tu fosses
aceite pelo segmento adequado da nossa sociedade, e me tivesses dado a
entender que me amavas, mesmo assim não te podia fazer a pergunta. Não
quero amar-te como animadora social. Que já não sou, na verdade. Parece-me
que essa ocupação agora já só pertence à história, estou desempregada. Quero
fazer amor contigo. E mais nada. Não como animadora social, não como
refugiada. Eu própria, simplesmente, Okay?
— Vou pensar nisso.
Por longos momentos, ali ficaram a olhar um para o outro. Finalmente,
Cassiopeia disse:
— Já pensaste?
— Estou inclinado para um sim...
— Quando é que tencionas tirar da boca esse joio fumegante?
Retirando o charuto, Starbuck deitou-o para o chão da plataforma de
lançamento. Embatendo com a ponta acesa, libertou para o ar várias faúlhas.
Depois de se terem beijado, Starbuck disse:
— Se eu tivesse sabido que era este o prêmio, tinha preparado um
discurso.
— Já ouvi todos os discursos.
— Importavas-te se não passássemos muito mais tempo aqui na
plataforma de lançamento?
— Sugeres algum sítio mais agradável?
— Agora que penso nisso, não consigo imaginar nenhum sítio agradável
em toda a frota.
— Que há ali?
— É o tubo de lançamento. Não vais com certeza querer ir para lá...
Cassiopeia já avançara para o tubo, passando uma abertura lateral
circular. Com a mão, fez-lhe sinal. Ele passou os olhos por toda a plataforma
de lançamento, até mirou o teto.
— Meu Deus —disse —, faço tudo o que quiseres, amanhã. Mas, por
favor, não mandes nenhum alerta para esta noite.
***
Athena cheirava qualquer dissabor no ar. Starbuck não estava onde se
presumia que estivesse. Quando Starbuck não estava no lugar certo, era
porque andava a fazer alguma das suas. Era um axioma comum a todos os
que conheciam o jovem e descarado oficial. Ela tinha dado com ele algum
tempo antes a dedicar-se mais do que é costume a uma mulher esfarrapada
que à distância tinha ar sexy, apesar do seu estado miserável. Andando
lentamente até à ponte da Galactica, viu que estava deserta, excetuando o
sempre vigilante coronel Tigh, e interrogou-se então se o seu cansaço não
estaria a exagerar as suas suspeitas de Starbuck.
— Tem um ar cansado — disse Tigh. — Porque é que não vai tirar uma
boa soneca?
— É que há tanto para fazer, preparar para o salto de hiperespaço, educar
as pessoas. Alguns pensam que vamos é dar o fora daqui...
— Não há maneira de evitar isso, Athena. Eles não vão de facto acreditar
em nós até nos verem de volta com o combustível e as provisões.
— Está mais confiante do que eu consigo estar.
— Não se adianta nada em não estar confiante, estou sempre a dizer isso.
— Viu o tenente Starbuck?
— Você leva sempre tempo a chegar onde quer.
— Viu-o ou não?
— Não, parece-me que não... Espere, vi-o, sim, senhor, há bocado, numa
das telas, mesmo antes de fecharmos o convés de voo. Estava ao pé do viper.
Devia estar a verificar se tudo estava em ordem.
— Pois, é muito possível, de facto.
— Isso foi há um bocado. Deduzo que já se tenha ido embora de lá, a
esta hora. Deve estar a dormir um bom sono para o salto. É como digo, devia
fazer o mesmo. Vamos ter todos bastante que fazer, daqui em diante.
Ela assentiu com a cabeça. Tocando-lhe ligeiramente no braço, ele
despediu-se e saiu da ponte. Mal tinha desaparecido pela escotilha, Athena
dirigiu-se a passo largo para a consola de controlo de lançamento, ficando-se
a olhar longamente para as telas de supervisão. Depois, num movimento
quase casual da mão, estendeu o braço e premiu um interruptor. Num dos
écrans viu uma rampa de lançamento iluminada de lés a lés. Não se via
vivalma. O dedo passou preguiçosamente para outro interruptor onde dizia
«tubos de lançamento». Quando apareceu a imagem na tela, Athena tornou-se
escarlate de fúria ao dar de caras com Starbuck acompanhado da mulher
grande com quem o tinha visto antes.
— O malandrão, hem...! — exclamou alto e bom som. Deslocou o dedo
rapidamente até outro botão. Este tinha marcado «purga de vapor».
Tentou rir, mas não conseguia, perante a tela em que se viam os dois por
entre uma nuvem crescente de vapor. Starbuck deu um berro e, precipitando a
mulher na sua frente, evacuou o tubo de lançamento à velocidade que se
impunha.
Athena desligou rapidamente o écran, mas ficou ali sentada durante
algum tempo, de olhos fixos nele. Quando mais tarde foi dar uma
espreitadela à rampa de lançamento, não descobriu Starbuck nem a mulher.
Mentalmente fez a si própria promessas que, embora pudesse nunca vir a
cumprir, eram especulações maravilhosas.
***
Quando Marron desenvolvera a sua locomoção interestelar, séculos
atrás, que viera substituir os anteriores sistemas, mais problemáticos, havia
nos planetas descobertos tylium mais que suficiente para alimentar toda a
aparelhagem espacial humana, e o custo de extração do combustível das suas
fontes geológicas, para conversão ao estado líquido volátil, parecia bastante
rendível. Contudo, a expansão do aglomerado humano, seguida da guerra dos
mil anos, tinham desfalcado as reservas da única fonte de energia capaz de
acionar o impulso interestelar. No tempo anterior à emboscada cylon, o preço
do tylium subira vertiginosamente a novos máximos, devido aos controlos
exercidos por especuladores da guerra, como o conde Baltar (que, como
Adama verificava, parecia dispor sempre de contingentes suficientes para
satisfazer qualquer encomenda). Chegara-se a debater se a frota devia ou não
racionar severamente o consumo de tylium. Na realidade, pensava Adama, a
crise de tylium fora pelo menos parcialmente responsável pelo advento dos
políticos desnorteados, desejosos de cortar num orçamento sempre que se
conseguia detectar qualquer falha, por insignificante que fosse,
desmesuradamente ansiosos nos passos para a farsa de paz dos Cylons.
Agora que eles, a Galactica e o reduzido número de outras naves
preparadas para o salto do hiperespaço, tinham chegado ao sector que
abrangia o planeta Carillon, Adama fazia votos sinceros para que as velhas
lendas, que falavam deste lugar como centro básico de mercado negro para a
elusiva fonte de combustível, se revelassem verdadeiras. A não ser assim,
teria deixado para trás milhares de pessoas em milhares de naves a ansiar
inutilmente pelo seu regresso.
Quase simultaneamente à sua materialização no sistema solar de
Carillon, o radar da ponte alertou para um obstáculo com que não contavam.
O comandante chamou imediatamente os seus três melhores pilotos de caças
— Boomer, Starbuck e Apollo — para os industriar na sua inesperada
missão.
— Parece — disse-lhes — que os céus em redor de Carillon estão
fortemente minados. E...
— Minados? — interveio Apollo. — Mas quem é que terá montado tal...
— De momento, capitão, essa consideração é irrelevante. O que
interessa é que não conseguimos passar para lá para nos colocarmos em
posição de receber os contingentes. De certeza que a Galactica e as nossas
naves maiores não vão conseguir passar, com as coisas assim neste pé. É
possível que se consiga descobrir um corredor por entre as minas; não me
parece que o planeta tenha ficado incomunicável. As minas são claramente de
intimidação. Temos de descobrir esse corredor. É isso o que vocês têm de
fazer.
Deteve-se para deixar atuar o impacte da ordem.
— Bem, não temos tempo para buscas elaboradas. Vocês vão ter de
navegar por radar e vão varrendo tudo o que vos aparecer na frente com
turbolasers. Têm alguma coisa a perguntar?
— É a minha linha biopulsar, comandante — disse Starbuck. — Má
altura para eu me ir engaiolar num cockpit. Acha que é a altura indicada para
eu pedir licença de doença?
Adama sorriu. Os três pilotos riram nervosamente.
— Era — respondeu Adama —, mas o pedido está indeferido. Não vos
chamei a vocês três para nos abrirem o caminho sem que se me apertasse o
coração. — Os olhos de Apollo semicerraram-se às palavras do pai. — Vocês
os três têm o nosso destino nas mãos. Todos nós ficaremos aguardando a
prova da vossa perícia.
— Ou da falta dela — disse Starbuck, ao que Adama assentiu com a
cabeça.
Apollo ficou para trás quando lhes foi dada permissão para se retirarem.
Tocando no braço do pai, disse:
— Obrigado.
— Porquê? Por te escolher para uma missão arriscada? Apollo, se
pudesse dispensar-te, era isso que fazia.
— Não, não é nada disso.
— Então que é?
Apollo baixou os olhos para o chão da ponte, algo embaraçado.
— Bem, pai, é que... Bem, ultimamente tenho andado em baixo. Aquele
palhaço velho do Uri a insultar-me durante o Conselho, a acusar-me de estar
combinado consigo para enganar toda a gente. Quer dizer, acho que já
mostrei o que sou, mas ainda há pessoas aqui que atribuem a minha
promoção nas fileiras a nepotismo bem aproveitado. Quando prendi o Uri, ele
acusou-me de uma golpada política, de ameaçar confiscar o Rising Star só
para arranjar combustível para a Galactica. E depois há os dissidentes...
— Para com isso. Não te quero ver a falar nessas coisas. Há muitas
coisas de que não podemos falar, nem aqui nem agora. Talvez mais tarde. —
Tentou dizer mais alguma coisa, mas apenas pôde repetir. — Talvez mais
tarde.
— Claro, vou fazer uma lista de reclamações.
— Apollo, se isto te serve de consolação, há uma coisa que reparei sobre
esse maldito campo de minas.
— O quê?
— Todo o satélite minado fica em órbita permanente. Não se veem em
parte nenhuma sinais de uma órbita decadente. Portanto, há fortes indícios de
que este campo de minas existe a título regular, e de que existe alguém lá em
baixo na superfície de Carillon.
— E há bastantes probabilidades de extraírem tylium, não é?
— Exato. Devem estar a fazer qualquer coisa de sinistro, para se
armarem com uma defesa destas.
— Obrigado por me dizer isso — disse Apollo. E, olhando para o
cronômetro: — Bem, tenho de me despachar, vou tratar do aparelho.
***
Seguindo com os olhos Apollo que saía da sala, Adama sentiu-se
satisfeito por detectar no filho indícios de uma renovada confiança em si
próprio. Talvez todas as preocupações dos últimos dias tivessem afastado as
recordações da morte de Zac para os recônditos do seu cérebro. Com
problemas uns atrás dos outros, era natural que isso acontecesse. Interrogou-
se igualmente se a melhoria que notava em Apollo seria de algum modo de
atribuir aos encantos da maravilhosa jornalista, Serina, ou ao jeito com que
esta atraíra as suas atenções sobre o rapazito perturbado, Boxey.
Athena entrou de rompante na sala, como se tivesse estado de atalaia à
entrada, aguardando a saída de Apollo. Trazia na mão, bem agarradas entre
os dedos, cópias das ordens dos três pilotos.
— Pai —disse —, não posso acreditar que faça uma coisa destas! Porque
é que não havia de dar ouvidos aos outros e ter ido para Borallus, em vez
deste sítio horrível, perigoso?
Por momentos, Adama sentiu-se terrivelmente perturbado. Custava-lhe
transferir a sua concentração da satisfação pela confiança restabelecida do
filho para esta nova agitação da filha.
— Que é, Athena?
— Está a arriscar tanto as vidas deles!
— Claro. Eles sabem isso. E podiam recusar, sem censuras, sabes bem.
— Ora bolas, o Starbuck é doido de mais para recusar uma missão
perigosa!
Adama começava a perceber a fonte da sua fúria.
— É o Starbuck que te preocupa, não é?
Os ombros de Athena abateram subitamente, como se toda a sua ira se
tivesse desfeito num ápice.
— Não é só isso, pai. Estou preocupada com o Apollo, também, sabe
isso muito bem. E com o Boomer. Só que... Não sei o que é...
— Amas o Starbuck e naturalmente...
— Odeio esse...
Mais uma surpresa. Adama chegou Athena ao seu peito, perguntando-lhe
o que tinha. Reprimindo as lágrimas, ela contou-lhe da descoberta de
Starbuck e Cassiopeia fazendo amor nos tubos de lançamento.
— Bem, tens é de lutar pelo teu rapaz — disse Adama. —Não é assim
tão difícil. Tu és lutadora por natureza. Orgulho-me da tua coragem e da tua...
— Oh, pare com isso, pai. Não é coisas dessas que eu quero ouvir. Estou
é, não sei, fora de mim, e não sei que pensar. Dantes pensava que me podia
curar disto do Starbuck, tirar uma pílula qualquer da enfermaria e esquecê-lo.
Mas, não sei, é esta guerra, e a destruição dos nossos planetas natais, e esta
viagem desesperada a um sítio onde não sabemos o que é que vamos
encontrar. Tudo tem uma nova perspectiva, agora. De morte. Por isso é que
estou tão assustada com tudo isto... Com esta missão. Tudo tem sido de
morte, desde que... Se escaparem desta vez, se algum de nós escapar, que é
que vem a seguir? Vamos encontrar essa Terra que o pai diz que não é mito?
— Talvez não.
— Estava a pensar isso. Podemos ficar com cabelos brancos de tanto
esperar. Quer dizer, podemos nunca ter hipótese de, hipótese de... De...
— Desenvolver relações humanas permanentes, ter filhos e um lar?
— É isso.
— Sabes, acho que é demasiado prematuro, na tua idade, estares a
preocupar-te com isso. Enquanto eu, pelo contrário, devia pensar bem nesta
viagem. Quando voltarmos a ter a frota reunida e a minha demissão de
presidente do Conselho entrar finalmente em vigor, nessa altura...
— Tire essa ideia da cabeça! Não vai nada demitir-se. Tem de ficar à
frente desta gente. O pai é tudo o que lhes resta.
— Lá estamos a bater num velho argumento, que não é para aqui
chamado.
Athena apertou o pai num abraço. Há algum tempo que não tinha esse
gesto espontaneamente, e Adama alegrou-se ao sentir desvanecer-se a tensão
que há pouco reinava entre eles.
— Obrigada por me consolar-disse ela.
— Só estou a pagar um favor teu. Lembras-te com certeza de quando
tiveste de consolar o teu velho pai.
— Bem, desculpe se fui longe de mais no que disse.
— Estás à vontade para o fazer.
Depois de Athena sair, Adama ficou bastante tempo sozinho na sua
cadeira, a cismar nas conversas que tivera com Apollo e com Athena,
regozijando-se por ao menos estarem do seu lado — independentemente dos
assuntos em jogo.
***
Enquanto aguardava o sinal de ejeção. Starbuck sentia a nave vibrar, tão
ansiosa como ele por entrar em ação. Passou mentalmente em revista o
último briefing com Tigh. A única coisa que tinham conseguido discernir
através dos perscrutadores era que o campo continha pelo menos três tipos de
minas. Havia o tipo explosivo corriqueiro, que podia desfazer em estilhaços
qualquer nave que entrasse na sua área, além de qualquer outro aparelho num
raio de um quilômetro. O segundo tipo parecia mais instrumento que arma.
Possuía equipamento electrónico ao longo de toda a superfície, e ninguém a
bordo da Galactica conhecia algo semelhante àquela mina, se é que de mina
se tratava. O terceiro tipo era o mais problemático.
Em vez de explodir, emitia clarões de luz de intensidade tão concentrada
que cegava quem tivesse a infelicidade de o desencadear. Devido a esse
perigo, os três pilotos tinham de voar na missão com as cabinas de comando
em obscuridade, e tratadas com um produto químico que anulava a
irradiação. «Ótimo», pensava Starbuck, «se fosse esse o único tipo de mina.»
Mas a proteção química que tornava opaca a cabina de comando obrigava-os
a voar às cegas contra todas as minas, recorrendo aos radares para localizar os
alvos. Em combate, Starbuck gostava deste jogo de cabra-cega, mas numa
missão suicida de detecção de minas, era outra coisa.
Ouviu-se a voz de Tigh no comunicador, perguntando aos pilotos se
estavam prontos.
— Pronto — disse a voz resoluta de Boomer.
— Estou pronto — interveio Apollo, num tom frio. — E tu, Starbuck?
— Não estou pronto. Mas como tem de ser, o melhor é andar já para a
frente.
Uma pausa curta e tensa, depois apareceu à luz de lançamento e os três
aparelhos foram ejetados para o espaço. Em formação triangular perfeita,
rumaram ao campo de minas. No curto espaço de tempo que levaram até
atingir o campo, Starbuck rezou uma silenciosa oração à deusa da Sorte,
desejando-lhe a continuação de uma boa saúde e uma retribuição do favor.
— Eu vou à frente fazer um reconhecimento preliminar — disse Apollo.
— Boa sorte — disseram Boomer e Starbuck ao mesmo tempo.
— Não chamem mas é o Diabo com esses bons desejos todos — disse
Apollo, com riso na voz. — Bem. vou girar e passar ao pé de uma daquelas
coisas, a que estiver mais perto... Meu Deus!
— Apollo! — gritou Starbuck.— Que foi?
Como resposta, um silêncio intolerável. Depois:
— Descobri o que eram aquelas minas misteriosas. Afinal não são
mesmo minas, são acumulações eletrônicas. Mal me cheguei a uma delas,
aqui dentro do avião começou tudo a ficar desnorteado, incluindo os
controlos. Consegui com muito esforço recuperar o comando dos controlos e
sacar o aparelho para fora da área de influência daquilo, de contrário acho
que tinha sido arrastado para lá e depois, não sei, se calhar aquilo explode.
Entrem com cuidado, rapazes.
Starbuck avançou lentamente, concentrando-se sobretudo no radar, para
se desviar das minas provocadoras das ditas acumulações. Boomer seguia-lhe
na cauda, muito perto.
— Ei, Boomer!— exclamou Starbuck. — Chega-te para lá, deixa-te de
colagens!
— Só prova que sabes disto. Não há azo para colagens na navegação
espacial quando...
— Eu sei, eu sei. Temos de te fazer parar de decorar aqueles manuais no
teu beliche. Eu só estava a usar uma figura de estilo, e tu sais-me com
palavreado da Academia. O que quero dizer é que te safes sozinho.
— Só estava a ver se me colava à tua boa sorte. Bucko.
— A minha sorte tem decididamente virado, ultimamente.
No radar, uma das minas de luz junto da forma do caça de Apollo foi
acionada.
— Estás bem, Apollo? —perguntou Starbuck.
— Lindamente. Mas o cockpit ficou quase sem comandos. E eu ia
cegando. Se bem que agora esteja na mesma como cego, não vejo grande
coisa. O meu radar desatou numa dança extravagante. E esta a aquecer muito,
mesmo muito. Vou desviar-me. Alguém consegue ver mais alguma coisa do
campo, nos radares?
— Negativo — disse Starbuck. — O meu está quase a arder.
— O meu já se foi — disse Boomer.
— Estava mesmo à espera disso. As acumulações estão a causar estragos
nos nossos instrumentos. Devíamos ter ficado na cama.
— É um bocadinho tarde para isso, não? —disse Starbuck. — Que
fazemos agora?
— Só me consigo lembrar de uma coisa, meninos, e não é propriamente
dos manuais da Academia... Acho que nos guiámos pelos livros até onde foi
possível. A nossa única hipótese é arrancar, manter posições e abrir caminho,
varrendo tudo à nossa frente.
— Queres dizer, abrir um corredor pelo campo adentro? — perguntou
Starbuck. — Com os nossos radares desnorteados e os cockpits no escuro?
— Parece-te difícil, Starbuck?
— Não, que ideia. Canja. De maneira nenhuma. É como beber um copo
de água.
— E se falharmos uma mina? —disse Boomer.
— Um de nós há de dar primeiro por isso. Prontos?
— Pronto — disse Boomer.
— Pronto, também — disse Starbuck.
— Para a frente!— exclamou Apollo.
***
Na ponte da Galactica, Adama e Tigh não tiravam os ouvidos das
comunicações entre os três aparelhos. Quando Apollo propôs que abrissem
um corredor através do campo de minas, Tigh pareceu entrar em pânico.
— Quer que lhes diga para abortar a missão, comandante? — perguntou
a Adama.
— Não podemos. O Apollo tem plenos poderes.
— Mas temos de detê-los. Isto é demasiado imprudente, uma...
— Coronel, não há maneira de os deter. Não só é essencial que
atravessemos o campo de minas com as nossas naves, como o Apollo tem
muita coisa a provar.
— Que é que ele prova matando-se?
Adama encolheu os ombros, desistindo de argumentar. A verdade era
demasiado dolorosa de admitir. Apollo talvez quisesse pura e simplesmente
matar-se em pleno ato heroico temerário; ao menos, provaria aos outros que
afinal não era vassalo do seu rei-tirano pai, atuando em nome de Adama
numa vasta conspiração para iludir toda a gente.
Estavam todos de olhos postos no maciço écran por cima da consola, em
silêncio, vendo as três esbeltas naves de asas em delta ziguezaguear pelo
campo de minas, agora resplandecente devido a duas minas de luz ativadas.
Os três pilotos tinham todo o potencial ofensivo a disparar, e faziam-no com
assombrosa precisão. As minas explodiam e desapareciam, uma atrás da
outra. De repente, quando se tornou evidente que o ousado plano de Apollo ia
resultar, a tripulação da ponte irrompeu em aplausos e manifestações de
alegria.
— Não sei que dizer, comandante — disse Tigh. —Estão mesmo a abrir
caminho!
— A isto é que se chama voo de precisão — disse Athena do seu posto,
sorrindo para o pai. Era uma expressão típica de Adama, e ela evocara-a com
ternura. A voz de Starbuck surgiu no comunicador:
— Não vejo nem raspas! Vamos bater nalguma coisa?
— Sei lá, cos diabos! — respondeu Apollo. — Mas está a arrefecer.
Estou em crer que conseguimos.
— Iaoooooo! — gritou Boomer.
Depois todas as vozes se misturaram em algazarra, e a exuberância dos
três jovens heróis alegrou os espíritos de todos os habitantes da Galactica.
***
Desde que desaparecera a frota de sobreviventes humanos, a atividade a
bordo das naves-bases cylons decrescera, deixando ao líder imperial mais
tempo para especular sobre as falhas menores adentro do seu plano, para
todos os efeitos altamente bem sucedido. Sabia que não podiam ter escapado
muitas naves humanas, mas onde estavam? Se a cultura cylon tivesse tido
inclinação para provérbios, podiam ter sentido que estavam a procurar agulha
em palheiro — apesar de não existirem palheiros nos mundos cylons, onde
espécies grotescas de gado eram alimentadas com pedaços de substâncias
nutritivas através de um processo de osmose, e onde as agulhas não tinham
ponta, literal e figuradamente?
Talvez os humanos tivessem montado um campo de forças qualquer para
camuflagem. A rede de espiões do líder imperial descobrira pistas que
apontavam para essa aptidão por parte dos humanos, e ele dera ordens aos
seus peritos para criarem mecanismos anticamuflagem. Não recebera ainda
qualquer mensagem deles, até ao momento.
Não era tanto a tecnologia por trás do desaparecimento dos humanos que
preocupava o líder, mas antes o facto de que continuavam sem deixar rasto.
Baltar diria que estava à prova o imenso expediente humano, implicando que
essa capacidade de improvisação fora, ao longo da história humana, um traço
marcante da sua raça. Um humano, Baltar, dissera um dia que nunca um
humano se sentia tão confiante como quando estava encostado à parede.
Claro que isto constituía um grito de arrogância do presumido traidor
humano, de quem outra coisa não era de esperar, mas mesmo assim era um
conceito perturbador. A imagem, sobretudo, preocupava o líder. Um cylon
arranjava-se de modo a que nunca fosse encostado à parede. Avançaria para a
morte ou sairia vitorioso. Não havia meio termo. Mas os humanos estavam
sempre a achar meios termos. Curioso.
Pela rede chegou uma mensagem, dum oficial superior. Tinham sido
registadas algumas explosões próximo de Carillon. Evidentemente que
algumas minas colocadas no campo de proteção à volta do planeta tinham
sido acionadas ou tinham funcionado mal. Ocasionalmente, esse campo de
minas apanhara e eliminara piratas do espaço, que tinham sabido da
existência de Carillon. Se os humanos tinham a ver com a presente série de
explosões, era discutível. Contudo, o líder ordenou intensa vigilância, por
causa da importância do complexo mineiro de tylium. Durante todos os anos
de guerra, os humanos nunca tinham descoberto que Carillon era a mais
importante fonte abastecedora de combustível do seu inimigo. No entanto,
uma viagem de observação a Carillon, poderia ser o que o perverso Adama
estaria, de facto, tentando nesse momento.
«Esta guerra com os humanos tem de acabar de uma vez para sempre»,
pensou o líder. Já tinha durado de mais e desgastado de mais os recursos dos
Cylons. Desejava voltar às suas verdadeiras funções de chefia — procurar as
brechas e falhas na unidade e na organização da sua própria raça, transformar
os conceitos de ordem e paz em sinônimos do que deviam ser. Mesmo neste
momento, nalguns mundos cylons, a prática humana de monogamia tinha
sido transmitida a certos sectores da população, que estavam a praticá-la
ativamente. A monogamia ia contra os conceitos básicos da organização da
civilização cylon, onde era vital que cada cylon tentasse e levasse a cabo
tantas formas e graus de contacto quanto possíveis. A monogamia continha
na sua desagradável estrutura demasiadas formas e estádios de contacto
restritivo, condição que o líder imperial não podia suportar, e jurava a si
mesmo castigar severamente os cylons que a praticassem, quando pudesse
permitir-se voltar a dar atenção a questões domésticas.
Deu ordens aos oficiais executivos para o manterem ao corrente de
qualquer pista que apontasse para as paragens da invisível frota. Não haveria
mais meias-tintas — pelo menos com os humanos sobreviventes.
***
Após um reconhecimento preliminar levado a cabo por uma patrulha de
observação de naves da Esquadrilha Vermelha, as naves de gado puderam
fazer-se à superfície do planeta. Considerava-se essencial fornecer aos
animais áreas de pastagens e espaços livres. Os oficiais das naves de gado
tinham dado conta de uma crescente apatia nos animais, que não era de
atribuir simplesmente às rações limitadas de que dispunham para sua
alimentação.
As naves de lavoura aterraram pouco depois, aproveitando
imediatamente o fértil solo de Carillon, cuja textura e componentes minerais
sugeriam um ótimo meio para o cultivo de gêneros alimentícios de
crescimento acelerado. Ao mesmo tempo, os peritos agrícolas recolhiam da
superfície de Carillon o máximo material de pastagem que conseguiam,
transplantando-o para as pastagens dentro das naves de gado.
Enquanto Carillon se revelava excepcionalmente prolífico para pecuária
e agricultura, para alguns dos seus visitantes humanos não se apresentava de
grande interesse. Especialmente para Boomer e Starbuck, que tinham sido
enviados ao lado sombrio do planeta para averiguar de hipóteses de extração
mineira.
— Não me posso esquecer de cá vir na minha próxima licença de
repouso e recuperação — comentou Boomer. — É que adoro paisagens
monótonas.
— E, isto é lindo — disse Starbuck.— Não faço ideia porque é que terá
excesso de população.
Um piloto passando perto num viper informou-os de que os seus radares
detectavam formas de vida numa área não muito distante do local onde
Boomer e Starbuck seguiam no seu veículo de superfície. Boomer entrou em
contacto pela rádio com a força expedicionária principal, à hora estabelecida,
e anunciou que iriam investigar a alegada existência de formas de vida.
Starbuck acelerou o veículo terrestre e rumou para a área indicada pelo
piloto.
— Se isto aqui é tão podre de rico em recursos, como é que começou
logo por ser abandonado? — perguntou Boomer.
Starbuck encolheu os ombros.
— Segundo a lenda, as equipas de exploração mineira e de colonização
foram atemorizadas e arrancaram daqui. Se calhar é uma história como outra
qualquer. Por mim, acho que o planeta é que era desolado de mais. Naquele
tempo, as fontes de abastecimento eram mais que muitas, para não falar no
facto de estar fora das rotas do tráfego normal, por isso deduzo que Carillon
tenha sido pura e simplesmente posto de lado, riscado por ser mau
investimento.
— Então porque é que o velhote pensa agora de repente que já é bom
investimento?
— É o único investimento, Boomer, por isso é que ele nos falou nisso.
— É, o comandante tem mesmo uma inclinação para a fatalidade, de
facto.
— Pois, é que... Ena, olha-me para ali! Aquele brilho, ali em cima
daquele monte. Que é que poderá ser?
— Não sei, mas foi isso mesmo que nos mandaram vir aqui investigar.
Starbuck arrancou mais velocidade ao veículo de superfície, apontando
para a aurora que enquadrava o monte adiante deles.
***
Não muito longe de Boomer e Starbuck, o corpo principal da equipa de
exploração da Galactica coordenava o seu equipamento de detecção para
iniciar a busca da legendária mina perdida de tylium em Carillon. Do ponto
de vista de um quarteto de insectoides relativamente grandes que espiavam a
força da Galactica de uma montanha próxima, os próprios humanos
pareciam, pequenos insetos — insetozinhos organizados e disciplinados.
Cada um destes espiões tinha cerca de cinco pés de altura, olhos grandes e
bolbosos no topo das suas cabeças ovais, troncos longos e esguios de quatro
braços, todos ocupados ou com armas de duplo gatilho ou com máquinas
fotográficas de múltiplas lentes.
Um dos insectoides fez pontaria ao formidável alvo que o tenente Jolly
representava, mas um outro puxou-lhe para baixo o cano da arma. Seetol,
uma das líderes da raça, a raça dos Ovianos, como lhe chamavam os poucos
humanos que haviam tido a infelicidade de os encontrar, decidira para já não
matar nenhum dos invasores. Pelo menos enquanto não fosse informar a
rainha da sua chegada. Fez sinal aos soldados para se afastarem, tirou a
máquina fotográfica das mãos de uma oviana e na linguagem suave e
monossilábica da sua raça, ordenou-lhes que se retirassem do posto de
vigilância. A um gesto de Seetol, uma outra oviana serviu-se das suas quatro
mãos para rodar em direções e a velocidades diferentes um jogo de quatro
rodas dissimuladas sobre uma rocha. Num lamurio mal perceptível. apareceu
no chão uma abertura, por onde as ovianas desapareceram.
Transportadas num casulo cujas folhas macias as isolavam
integralmente, as quatro ovianas seguiram por uma passagem subterrânea
longa e descendente até a um cubículo onde o casulo se abriu para as deixar
sair. O túnel que agora atravessavam estava murado com painéis cubiculares
que irradiavam uma luz de âmbar. Desembocaram numa imensa caverna
subterrânea. A câmara gigante, pluricubicular, descia, descia, afundando-se
até Seetol a perder de vista, e ascendia a uma altura quase equivalente. Era
uma estrutura de incontáveis andares, cada um percorrido por
compartimentos em forma de colmeias. Dentro dos compartimentos,
operárias ovianas esburacavam nas paredes, extraindo pepitas de minério cor
de âmbar, que colocavam em pequenos veículos de múltiplas rodas, entrando
e saindo dos compartimentos em constante vaivém, manejados por outras
operárias, que depois os passavam para sombrios corredores intermédios.
Para um estranho, esta mina seria de pesadelo — mas para Seetol, que era
como que uma esteta entre o seu povo, tinha uma coerência artística que a
excitava cada vez que nela entrava. Hoje, no entanto, havia pouco tempo para
gáudios estéticos; tinha de prosseguir com a sua missão.
Atravessou uma ponte natural que se estendia através da vasta câmara.
Na arcada de acesso à câmara de Lotay, os quatro braços de Seetol
forneceram a senha ritual necessária, após o que foi admitida à presença da
sua rainha.
A sumptuosidade da sala do trono de Lotay contrastava vivamente com a
austeridade da mina. Tapeçarias finamente tecidas, de motivos elaborados,
decoravam as paredes e o teto. A própria Lotay estava recostada num monte
de almofadas sobre o chão, rodeada pela sua comitiva de escravas ricamente
ornadas de joias. Uma das escravas cantava uma melodia suave, utilizando
artisticamente a escala oviana de três notas, produzindo curiosas variantes no
seu limitado tema melódico. Duas outras escravas amaciavam os finos
espigões que despontavam ao longo dos membros de Lotay. Ainda outra
escrava segurava num tubo alongado do qual a rainha retirava
ocasionalmente uma substância líquida cujos resíduos soprava em lufadas de
fumo. Quando Lotay deu pela presença de Seetol, disse-lhe que a informasse
ao que vinha.
— Chegaram — disse Seetol, numa voz suave e agradável.
Lotay respondeu numa voz ainda mais musical:
— Não lhes faças nada. Só lhes iria levantar suspeitas. Não vão fazer
mal nenhum, a não ser que os enfureçamos ou amedrontemos.
— Exatamente o que eu pensei, alteza.
— Claro.
Seetol fez uma reverência e retirou-se, deixando Lotay agarrada ao longo
tubo, a inspirar e a soprar.
***
Apollo sentia-se extremamente confortável a comandar o veículo de
superfície que requisitara para uma busca particular à superfície de Carillon.
Gostava de andar num veículo de superfície, que atravessava as correntes de
ar com surpreendente suavidade, ajustando-se às características do terreno
com viragens mal perceptíveis para a direita e para a esquerda, para cima e
para baixo.
Também se sentia satisfeito com a presença de Serina a seu lado, no
banco do copiloto. Ficara impressionado com a facilidade com que ela
aprendera as artes de condução de um veículo de superfície sem nunca ter
entrado num: No banco de trás, Boxey brincava em silêncio com Muffit Dois.
— Aquilo é que foi uma demonstração que vocês nos deram lá em cima
— disse Serina de repente. — Você parecia que estava a tentar provar
qualquer coisa. Pus-me a pensar se teria alguma coisa a ver com o seu irmão.
O comentário dissipou a sensação de bem-estar.
— Estou a perceber — disse ele, agastado. — Você está a dizer que eu
ando a fazer de herói para compensar ter deixado o Zac para trás sozinho.
— Ou provar ao fantasma dele a sua coragem.
— Como é que aprendeu tanta coisa sobre o Zac e sobre mim?
— Informei-me por aí.
— Não gosto muito disso.
— Desculpe. Eu era jornalista em Caprica, lembra-se? Não me consigo
livrar desse hábito. Mude de assunto, está bem? Ou mudo eu. Fale-me do
projeto agrícola. Fiquei muito bem impressionada com esse, em especial.
Quanto tempo demora as coisas começarem a crescer?
— Oh, sei lá, talvez de manhã já se veja, parece-me que de manhã já
vamos ver uns tantos rebentos e verduras. Depois, amanhã ao fim do dia, já
cá temos uma colheita completa de alimentos frescos — que, como você
concordará, vão ser muito bem-vindos para substituir as nossas rações de
miséria. Vão-nos saber melhor. E tu, Boxey, vê la se comes bastante daquilo,
hem?
— Acho que sim.
Apesar de Muffit Dois, o rapaz apresentava sinais de apatia.
— Ouve lá, Boxey — disse Apollo —, agora é que entra a tua parte na
missão. O que quero que faças é ter os olhos abertos para este mostrador
aqui. Se o ponteiro subir para esta área colorida, quer dizer que estamos
mesmo em cima de um bom depósito de tylium.
— Sim, senhor.
A atribuição da tarefa parecia ter animado o rapaz.
— Tem a certeza que não se importa de trabalhar com tripulantes tão
verdes? — perguntou Serina.
— Fui eu que os escolhi, não fui?
— É que acho que, com as boas relações que tem, arranjava melhor...
Desculpe, não fiz de propósito para tocar na ferida. Está aborrecido por o seu
pai se ter demitido da presidência, não está?
— Deixe-se dos seus jornalismos, e vamos, mas é concentrar-nos na
missão. Temos muito que fazer, e muito pouco tempo. Não podemos dar-nos
ao luxo de ficar muito tempo em cada planeta.
— Porque é que tivemos de sair de casa? —perguntou Boxey. — Porque
é que aquela gente nos quer fazer mal?
— Não sei bem, Boxey. Há quem diga que tem a ver com muita coisa
complicada, coisas políticas. Há quem diga que os Cylons gostam pura e
simplesmente da guerra, e atacam seja quem for que interfira com o sector
espacial deles. Não sei. Às vezes penso que é só por sermos diferentes. Há
sempre formas de vida que não conseguem aceitar nada que não
compreendam. Também há humanos assim: não conseguem aceitar nada de
diferente.
— Diferente, como?
Apollo suspirou, embaraçado por ter de explicar assuntos complexos a
uma criança. Lembrava-se, anos atrás, de empreender conversas complicadas
com Zac, na altura mais velho que Boxey agora, para vir a descobrir que a
resposta de que Zac estava à espera era muito mais simples do que ele
pensava. Outras vezes, as respostas de Apollo eram demasiado simples, e Zac
espicaçava-o até não só lhe ter extraído as ideias mais complexas, como ter
argumentado com sucesso contra elas. Mas que é que havia de dizer a um
miúdo de seis anos, cuja preocupação primordial era o bem-estar de um
animal, acerca das razões da segregação?
— Bem, Boxey, há imensas coisas que marcam as diferenças entre uma
e outra espécie. A forma dos olhos, o número de membros, a cor da camada
exterior da pele, até pensamentos e ideias. Talvez os nossos inimigos não
estejam preparados para arcarem com as diferenças.
— Quer dizer que são estúpidos.
— Sim, de certa maneira. Quer dizer, há coisas em que são muito
superiores a nós, em certos assuntos de ciência e tecnologia, em certos
métodos de fazer a guerra. Mas, pois é, são estúpidos, também. É estúpido
matar aquilo que não se compreende.
— Porque é que também não os matamos a eles, e pronto?
Na controversa pergunta de Boxey, Apollo ouviu o som da voz de Zac,
quase que num eco fantasma. Zac às vezes mostrava um desejo positivamente
sanguinário de soluções violentas. Quando estava nessa disposição, nunca
ouvia as vozes mais calmas do irmão e do pai. Aliás, havia alturas em que as
teorias humanísticas de Adama sobre a guerra eram de mais até para Apollo,
a quem ainda assaltavam rasgos de dúvida sobre a retirada da Galactica do
cenário de batalha.
— Boxey, se nos puséssemos a matar à toa, como os Cylons fazem,
íamos mudar a nossa maneira de ser. Ficávamos como eles. Apesar de sermos
bastante bons na guerra, não somos uma raça beligerante por natureza, pelo
menos acho que não. Fomos arrastados para esta guerra, não tínhamos
alternativa. Aliás, se calhar o que estamos agora a fazer, procurar outro sítio
qualquer longe dos nossos inimigos, é a melhor coisa que temos a fazer.
Combatê-los usando os seus próprios métodos já se viu que...
— E se eles vieram atrás de nós?
Porque é que ele queria saber aquelas coisas todas tão complicadas?
— Tínhamos, se calhar, de nos defender.
— Quer dizer matá-los?
— Pode ser que sim.
— Então ficávamos como eles.
Apollo sorriu.
— Sabes, Boxey, parece-me que estás a ficar com uma ideia de como a
vida é complicada. É, nós não acreditamos na guerra — mas o oposto da
guerra não é necessariamente a paz. Não, o que nós queremos é liberdade.
Liberdade, mais nada. O direito de estarmos como queremos e onde
queremos. É um direito que nós, humanos, sempre tentámos proteger e
preservar. Mas é sempre possível que apareça alguém que estrague tudo...
Percebeu pelos olhos inquiridores de Boxey que o rapaz não estava a
entender bem esta parte da discussão.
— Portanto matam-se? —disse Boxey.
— Não. O que acontece é que se tenta estabelecer, digamos, penalidades,
qualquer coisa que torne não compensador estragar o modo de vida aos
outros.
— Matam-se.
— Boxey, tens a mania de reduzir tudo à expressão mais simples.
— Pois é, sou um miúdo...
— Certo. Às vezes esqueço-me que só tens seis anos.
— Quase sete.
— Quase sete. Mas não sei, talvez tenhas razão. Seja de que maneira for
que ponhas a coisa, não interessa as palavras que usares, no fim acabamos
por falar de vida e de morte. A vida é preciosa. Ninguém tem o direito de
interferir na vida dos outros, sem ficar a perder o direito à sua. Ah, parece que
estou numa daquelas aulas de planos de guerra que eu dava lá na Academia
— e acho que estou a aprofundar de mais as coisas para um rapaz da tua
idade.
— Por quê? Pode-se morrer numa idade qualquer, não?
— Pode, sim, Boxey. Vai olhando para o mostrador, está bem?
— Claro que sim. Anda, Muffy, vamos olhar para aquilo.
Muffit Dois ladrou, aninhando o focinho mais junto ao rapaz.
***
Starbuck estava no cimo do monte, e olhava fixamente para a evidência
de formas humanas genuínas que tinha abaixo de si, assinaladas desde há
algum tempo nos radares. Chamou Boomer, que saltava nesse momento do
veículo de superfície.
— Boomer...
— Sim, que há agora?
— Não vais acreditar nos teus olhos, Boomer.
— Bem, ver para crer. Acabei agora mesmo de dar cabo dum dedo
num...
— Não, é mesmo verdade...
Boomer olhou para baixo. A boca escancarou-se-lhe.
— Não pode ser!
Em contraste com a paisagem desolada em seu redor, o carnaval de cor e
luz e vidros na planície adiante deles era um espetáculo estonteante.
Circundando edifícios esféricos de janelas envidraçadas, via-se um jardim
cuidadosamente arranjado de verdura e plantas exóticas. Cataratas
deslizavam graciosamente por entre o que parecia um arranjo artístico de
rochas. Subiam no ar ecos de risadas. À distância ouviam-se tocar e cantar
melodias várias. Em alegre algazarra, um grupo de pessoas saía de um
edifício, iniciando uma perseguição mútua de evidentes intenções amorosas,
através das áleas do jardim guarnecidas de belas esculturas.
Starbuck lançou um olhar a Boomer, que parecia tão perplexo como ele.
— Que é isto?—perguntou Boomer.
— Não sei — disse Starbuck Puxando da arma, encaminhou-se pelo
estreito carreiro que ziguezagueava monte abaixo até ao bizarro complexo de
edifícios esféricos e jardins luxuriantes.
— Tens a certeza de que vais precisar disso?—perguntou Boomer,
apontando para a arma de Starbuck.
— Quando não tenho a certeza, é porque preciso mesmo dela.
Ninguém nos jardins parecia dar atenção aos dois homens. Aliás, as
vozes alegres de festa e de cantares recrudesceram quando chegaram ao
jardim. Durante algum tempo quedaram-se no limiar de uma álea, limitando-
se a observar as inúmeras cores e as luzes intermitentes que constantemente
alteravam a aparência do jardim e dos edifícios.
— Lá bonito é — disse Starbuck, algo cauteloso na voz. — E bem-
intencionado também parece.
Starbuck pôs-se a andar pela álea, e Boomer seguiu-o de muito perto.
Chegados a uma bifurcação do caminho, um súbito grito fê-los saltar,
assustados. Starbuck girou rapidamente sobre si, apontando a arma na direção
do berro.
No meio do caminho estava uma mulher, tremendo da cabeça aos pés.
Os grandes olhos esgazeados só acentuavam a expressão de beleza do seu
rosto. Starbuck estava impressionado com a sua figura voluptuosa, bem cheia
nos sítios apropriados. Vestia uma toga vermelha que se lhe colava
esteticamente ao corpo.
— Não dispare! — exclamou ela. — Que é que vocês querem?
Starbuck, corado, olhou para a arma que tinha na mão, fingiu repô-la no
coldre.
— Não quero fazer-lhe nada de mal — disse ele.
— É que eu normalmente deduzo que os homens de armas na mão têm
na mente fazer mal — disse a mulher.
— Você é de Taura — disse Starbuck.
— Sou — respondeu ela, nitidamente surpreendida com a mudança de
assunto —, sou taurana. Como é que sabe?
— Pelo dialeto. Por ele, sabe-se sempre. Que está aqui a fazer?
— Que é que eu estou aqui a fazer? E vocês, que fazem? A que é que
vêm soldados coloniais, que andam a cheirar aí pela estância, de armas na
mão? Aqui tudo está mais que legalizado.
Starbuck e Boomer, tão desorientados como a mulher, entreolharam-se,
baralhados.
— Não é? — disse a mulher.
— Importa-se de nos dizer como cá veio parar? — perguntou Starbuck,
tentando dar à voz a entonação mais oficial possível nas circunstâncias
presentes.
— Na nave da carreira.
A incongruência da resposta espantou os dois homens.
— Deve ter andado a cheirar essências de plantas — comentou Boomer.
— Hum, fale-nos lá dessa nave de carreira — pediu Starbuck.
— Com certeza. Foi tudo arranjado pelo meu agente de viagens. Isto
aqui é fabuloso! De maneira nenhuma consigo perceber como é que nos
podem dar isto tudo por tão pouco dinheiro. — Abriu uma bolsa vermelho-
cequim que lhe pendia do pulso. — Olhem, ganhei mais de mil cúbitos.
Alguns dos cúbitos escorregaram da borda da bolsa para o chão, sem que
a mulher fizesse qualquer esforço para os apanhar. Starbuck, sempre sensível
ao brilho do ouro, ficou excitado.
— Você ganhou esses cúbitos aqui?
— Lá dentro, claro. — E a mulher apontava para o complexo multicolor
de edifícios envidraçados. — Olhem, disseram-me que era tudo legal,
portanto, se não for, o melhor é pegarem no sistema solar inteiro, porque toda
a gente cá vem. Gostava de ficar aqui a discutir isto tudo com vocês, mas
inscrevi-me num passeio ao luar e já vou atrasada. Duas luas, não há que
enganar! E a propósito de encontrar pessoas, o que os prospectos traziam
sobre isso era mesmo verdade. Nunca me diverti tanto. Até logo, na igreja,
meninos!
A mulher deu uma risada e afastou-se. Boomer seguiu-a longamente
com os olhos, enquanto Starbuck apanhava os cúbitos do chão.
— Não topo — disse Boomer. — Até que ponto é que estarão desligados
de tudo? Ela não parecia nada ter ouvido falar da guerra.
— É isso — disse Starbuck, pensativo. — Se calhar não ouviram. Há
outra coisa estranha nisto tudo. Se é um negócio tão chorudo, como é que nós
nunca ouvimos falar deste sítio?
— Acho que é de crer que tu conheces todos os covis de jogo nos nossos
sistemas solares.
— E então?
— Tens razão. Onde haja jogatana, é certo e sabido que conheces a
coisa.
Starbuck recomeçou a andar ao longo da álea, rumando à esfera de
prazer mais próxima.
— Mas isto não é jogo de sala das traseiras! — disse ele. — Isto é o
maior centro de atrações que jamais vi fora de Orion!
— Mas quem é que ia montar uma estância de jogo num planeta cá nos
confins? Para que é que haviam de montar uma coisa destas e depois guardar
segredo?
— Isso também me transcende. Se não se diz nada a ninguém acerca de
um lugar como este, não se faz negócio nenhum.
Avançando pelo jardim verdejante até à entrada do edifício esférico, não
viram sinais de guardas a impedir-lhes o caminho. Na realidade, só foram dar
com grupos de pessoas em animado baile. E não eram só pessoas, como
verificaram numa observação mais atenta. Dir-se-ia estarem ali
representantes de todas as raças extraterrestres sencientes e civilizadas até
então descobertas no universo. Exceto, claro está, os Cylons — se bem que a
sua improvável presença não tivesse surpreendido Starbuck. O sentido de
ordem e austeridade dos Cylons não lhes teria permitido participar no jogo e
nas variadas formas de epicurismo que abundavam naquela estância. Patentes
numa maciça arcada, em várias línguas, viam-se variações da expressão
Festival do Paraíso, aparentemente o nome da estância.
— Vamos investigar um pouco mais?—perguntou Boomer.
— Com certeza, Boom-Boom, com toda a certeza.
Acostumados a só raramente encontrar alienígenas, Starbuck e Boomer
observavam algo fascinados os vários exemplares de vida não humana e
humanoide. Havia lagartos tentaculares, octópodes peludos, um grotesco
conjunto sextipartido de indivíduos interligados de uma espécie para eles
pertencente apenas às lendas galácticas, fenômenos volumosos de superfície
dura que se tomariam por rochas caso não houvessem falado e não se
tivessem deslocado — criaturas de toda a espécie e feitio. No entanto, a
maioria cabia aos humanoides, por vezes de singular aparência. Ao entrarem
num magnífico casino, Starbuck e Boomer foram abordados por uma felina
servidora de coquetéis, modestamente guarnecida de uma túnica moldada ao
corpo que revelava os seus quatro peitos bem delineados, a qual lhes
perguntou se desejavam beber alguma coisa. A uma recusa sua, ela sorriu e
afastou-se, retirando um copo sujo de cima de uma balaustrada, com um
movimento de cauda. Starbuck não conseguia tirar os olhos dela.
— Viste aquela cauda que... — disse para Boomer.
— Ah, não, não vi...
A uma mesa de jogo próximo dali, uma entre as muitas centenas
espalhadas pela enfeitada sala cavernosa, irrompeu um grito de vitória.
Olhando para lá. Starbuck viu um rechonchudo humanoide recolhendo
cúbitos com uma pata cavalar. A uma mesa adjacente, mais uma exclamação
de vitória.
— Deve-se jogar forte aqui — disse Starbuck. —As pessoas estão a
ganhar fortunas. Olha!
Investigando com mais atenção. Boomer avistou fileiras de mesas
servidas, cheias de deleitáveis manjares a que os jogadores deitavam
avidamente a mão.
— São mesmo bem alimentados, aqui — disse. — Vamos ver se
apanhamos o responsável disto, para levarmos alguma comida lá para a frota.
— Calma, pirata dos céus. Nada de pressas. A última coisa a que esta
gente pode achar piada é dar com uma estrela-de-batalha mesmo à porta.
— Então achas que isto é ilegal?
— Não achas nauseabundo um cylon? Pois, acho que isto é ilegal. Não
estava propriamente na lista do Guia Colonial de estâncias destas, de
atividades destas.
— E aqui estamos nós, todos bonitos de uniforme. Não vão ficar muito
satisfeitos quando notarem. Vamos mas é embora...
— Espera, espera! Não vamos deitar preciosidades destas a perder,
sobretudo quando a capa é de ouro. Nunca vi um raio dum covil de jogo que
não dependesse de pagamento a militares para manter as portas abertas.
Deixa ver o que é que este tipo tem para dizer.
Avançava para eles um homem com todo o aspecto de mestre-de-
cerimónias lá do sítio, com a boca aberta num sorriso franco.
— Bem-vindos, meus senhores! — disse. — Isso aí é um emblema da
frota colonial?
Boomer pareceu assustado, mas Starbuck respondeu com segurança:
— É, exatamente.
— Não sabia que andavam por estas bandas.
— Para dizer a verdade, viemos só os dois.
— Um pouco fora de caminho, para vocês, não?
— Missão secreta — disse Boomer, entrando no espírito da farsa.
Starbuck deu-lhe uma palmada nas costas e disse, gracejador:
— Ele gosta de dramatismos. Puro voo de reconhecimento. Ver se o
armistício está a ser cumprido.
Ficaram os três longamente em silêncio. « Seria o sorriso amarelo do
mestre-de-cerimónias resposta à sua mentira ingênua, ou puro reflexo da
hospitalidade genuína do casino? », pensou Starbuck.
— Fica-lhes muito bem — disse o mestre-de-cerimónias. Starbuck não
percebeu se o homem emprestara ou não sarcasmo à observação. — E que
felicidade termos-vos aqui connosco. Considerem-se convidados da casa. A
comida e a bebida são por nossa conta.
O mestre-de-cerimónias fez estalar os dedos e logo Starbuck e Boomer
se viram cheios de comida e bebida, fornecidos por pequenos criados
simianos que se moviam rápidos como relâmpagos por entre a multidão.
Starbuck bebeu um gole do copo. A bebida revelou ser um preparado de
araruta típico de Sagitaria. Deu uma trincadela no doce que tinha na outra
mão, um bolo de ambrosia característico de Aquaria.
— Isto é o que eu mais adoro, a minha bebida preferida, a minha
sobremesa preferida — disse Starbuck.— Como é que sabia o que me havia
de dar?
— Eles sabiam — disse o mestre-de-cerimónias, apontando para os
criados simianos que serviam agora uma criatura lembrando uma escultura de
plástico ligeiramente fundido. — São tipos primitivos, os criados, mas
consideravelmente telepáticos, pelo menos em questões de comida e bebida.
Divirtam-se.
O mestre-de-cerimónias sorriu, afastando-se. Starbuck enfiou na boca
mais um bocado de bolo de ambrosia, ficando com migalhas húmidas
agarradas aos lábios.
— Então — disse Boomer ironicamente —, que tal te sentes agora, pá?
Aqui estamos nós a deleitar-nos enquanto a nossa gente está para lá a morrer
de fome e a esfalfar-se para arranjar cereais e pastagens.
— Que é que esperavas que eu fizesse? Que pedisse ao tipo comida
suficiente para uma frota de ferro-velho, quando ele pensa que somos apenas
dois pilotos retardatários que vieram num voo de reconhecimento?
— Bem, talvez devêssemos contar a verdade ao tipo.
— Claro, parece um tipo bestial, um tipo decente. Boomer, até sabermos
quem é esta gente, mete bem na tua cabeça que bastava um único informador
para termos toda a máquina de guerra cylon a caminho.
— Então, que é que fazemos? Temos de arranjar maneira de levar
combustível e comida para as naves.
— Antes de mais, vamos tentar descobrir quem está por trás desta coisa.
Quantos cúbitos tens?
— Cúbitos? Starbuck, enojas-me, sabes? Com pessoas na frota meio-
esfomeadas, tu pões-te a jogar?
— Queres que eu seja um comandante Adama em miniatura, mas tens
uma coisa bem diferente na tua frente. Além disso, desta vez é por questões
de serviço. Temos de nos pôr a fazer perguntas por aí, arrancar informações...
Mas com cuidado, muito cuidado.
Boomer parecia relutante em passar o dinheiro a Starbuck.
— Bom, está bem, mas que seja a última vez. Não tenho mais que isto.
E Boomer deitou três cúbitos na mão estendida de Starbuck.
— Boomer, homem, neste momento os cúbitos não têm grande interesse,
seja de que maneira olhares para a coisa.
Os olhos ativos de Starbuck puseram-se em busca do melhor cenário
para um brilharete. Decidiu-se pela mesa de hi-lo, pois hi-lo era um jogo
onde facilmente podia multiplicar os seus limitados fundos, antes de procurar
outro jogo, de pedalada mais alta. Havia uma cadeira vazia. Starbuck sentou-
se junto a uma atraente mulher que, segundo disse para os seus botões, seria
autenticamente de tarar se desistisse de uns tantos quilos a mais na sua figura
agradavelmente rechonchuda. Os outros jogadores eram homens, ambos
alegres, ambos obesos. Sentando-se, a mulher, nitidamente agradada com o
que via, pousou os olhos em Starbuck.
— Ora vejam! — exclamou ela. — Temos a frota por cá. Sente-se,
tenente. Escolheu uma mesa com sorte.
— Sério?
— Sério! Não sei bem o que é que quero dizer com isso. Se tem sorte
porque tenho estado na mó de cima, se porque você veio para cá.
Starbuck mostrou o seu sorriso mais tentador, e fez sinal para que se
baralhasse. O baralhador não humano, com um sorriso amigável, começou a
remexer as cartas com um piparote elegante da sua mão triarticulada,
cinzenta-esverdeada.
***
Apollo resolveu comunicar com os outros elementos da equipa de
exploração. O praticante Greenbean apareceu em linha, comunicando um
problema.
— Que é, Greenbean? —disse Apollo.
— É o Jolly, capitão. Parece que desapareceu.
— Como é que uma pessoa do tamanho dele pode ter desaparecido?
— Não faço ideia, mas perdemo-lo.
— Mande uma equipa de batedores e diga-me para cá alguma coisa.
— Roger.
Apollo recostou-se no assento encurvado.
— O homem se calhar andava a passear e perdeu-se — disse Serina.
— Talvez.
Ia a dizer mais qualquer coisa, quando o detetor de tylium fez ouvir os
seus bips. O sinal lançou em ladridos o daggit-dróide de Boxey.
— Caluda, Muffit. Estou a ver, capitão... Tylium!
Apollo desacelerou o veículo e examinou o mostrador. O ponteiro
parecia realmente fixar um filão de tylium, e dos grandes. Abrandou o
veículo até parar. Mal se deteve, Muffit saltou pela janela.
— Muffit! — gritou Boxey. — Espera, eu vou buscá-lo.
Antes que alguém o pudesse deter, Boxey saltara também pela janela em
perseguição do daggit.
— Acha que vamos atrás dele? —perguntou Serina, com a voz alterada.
— Por agora estamos a vê-lo. Deixe-o correr à vontade um bocado.
— Tem razão. Talvez eu tenha as rédeas muito curtas com o miúdo.
Obrigada, a propósito.
— Por quê?
— Por me ter salvo a vida.
— Está a exagerar um bocado as coisas. Aliás, eu é que talvez lhe
devesse agradecer.
— Agora é a minha vez de perguntar: por quê?
— Bem, é que você tem-me ajudado a...
Parou de falar, inclinando-se para a frente a perscrutar as vizinhanças
pela janela do lado de Serina.
— Que é? —perguntou ela.
— É o Boxey. Estava ali ainda agora.
— Talvez esteja encoberto por um monte qualquer.
— Talvez, mas o melhor é irmos dar uma vista de olhos. Venha daí.
Serina ficou apavorada com a agitação de Apollo ao apoiar-se para sair
do veículo e aventurar-se pela superfície de Carillon.
***
Seetol emergiu do seu esconderijo na terra e, num movimento rápido,
abarcou Boxey e Muffit num abraço dos seus quatro membros. Antes que o
rapaz pudesse berrar e o animal emitir um dos seus repelentes sons, Seetol
tinha-os arrastado para a abertura camuflada no chão, enfiando-se com eles
num casulo que imediatamente acionou para descerem ao subsolo, onde se
situava a mina de tylium. No corredor que levava à câmara da rainha, o rapaz
debateu-se tenazmente. Quando Seetol tentava apertar mais o rapaz entre os
braços, o animal saltou para o chão e pôs-se a correr pelo corredor.
— Muffy! — gritou o rapaz. — Maldito daggit. Volta para trás!
O animal obedeceu imediatamente. Seetol, pouco habituada a animais
domesticados ou a substitutos robots, ficou impressionada com a pronta
obediência de Muffit. Voltou a pegar-lhe, e tanto o animal como o rapaz se
mantiveram calmos até chegarem à sala do trono de Lotay, onde Muffit se
escapuliu novamente dos braços de Seetol, desta vez para correr até ao trono,
ladrando furiosamente.
Uma das escravas fez menção de o matar, mas a rainha estava demasiado
divertida. Os espigões aguçados do corpo tinham descolorado para um suave
amarelo, como sempre acontecia quando ela se sentia satisfeita. Boxey
desembaraçou-se dos braços de Seetol, correndo para o cachorrinho. O outro
humano na sala adiantou-se alguns passos para ele, e Boxey levantou os
olhos para fixá-lo.
— Tenente Jolly! — exclamou Boxey. — Que é que estava a fazer aqui?
— Não vim fazer uma visita de cortesia, menino — respondeu Jolly. E,
olhando de relance para Lotay, recostada no seu trono: — Deixei os meus
cartões de visita todos no uniforme de gala, alteza.
Lotay não entendeu o humor sarcástico contido nas observações do
volumoso homem. Seetol ia pegar de novo em Boxey, mas Lotay fez-lhe
sinal, demovendo-a:
— Deixa-o.
Com Muffit a lamber-lhe a cara, Boxey ergueu os olhos para a rainha, da
sua posição acocorada. Lotay levantou-se do trono. Os espigões do corpo
ficaram mais brilhantes quando ela apontou para a criança, o aviador
corpulento e o dróide.
— Um grupo curioso — disse. — Mas servem muito bem. Seetol,
providencia para que tomem conta deles, e prepara as coisas para os outros o
mais depressa possível.
Seetol assentiu aprovadoramente com a cabeça, avançando para os
humanos cativos. Jolly deslocou-se lentamente para junto de Boxey,
passando o braço em volta do rapaz. Seetol delirou com o evidente receio do
homem gordo. Observava a sua própria raça com olhos cínicos. Sempre
gostara do que era, mas não de quem era — ou, aliás, de quem era outra
criatura qualquer. Mesmo o amor pela sua rainha parecia incompleto, por
muita adoração que ensaiasse. Só poderia ser completo se a rainha retribuísse
esse amor, possibilidade nem sequer compreendida nos limites do raciocínio
oviano. Seetol, movimentando os quatro braços qual quarteto de gestos
elegantes, guiou Boxey e Jolly para a saída, com Muffit trotando alegremente
na retaguarda. No trono, Lotay pôs-se a rir misteriosamente. Seetol nunca
sabia o significado do riso da sua rainha.
***
Apollo e Serina passaram a pente fino a área em volta do veículo, sem
qualquer resultado. Serina, reprimindo as lágrimas, murmurava baixinho que
nunca devia ter deixado a criança afastar-se dela. De volta ao veículo de
superfície, Apollo ligou o comunicador e falou com Greenbean, que
informou não haver ainda sinais de Jolly.
— Mas que é que se passa? — exclamou Serina. — Que é que está a
acontecer neste planeta?
— Não entres em pânico. Havemos de encontrá-lo.
Apollo daria tudo para estar tão esperançoso como queria fazer crer. Por
momentos, só lhe apeteceu envolver nos braços esta mulher linda, de cabelo
castanho-claro e olhos verdes, e consolá-la, dizer-lhe que tudo se ia compor.
O pior era que ele próprio não tinha a sensação de que tudo se ia compor.
— Este planeta é de arrepiar. Com esta escuridão de breu e as duas luas,
é... Que há, Apollo?
Apollo puxara da arma e apontava-a a algures para lá do veículo de
superfície. Serina seguiu-lhe o olhar, e foi então que deu um grito. Duas
guerreiras ovianas emergiam de uma abertura no solo, um buraco que
segundos antes não estava lá. As suas duas armas de duplo gatilho estavam
apontadas a Apollo e a Serina.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
O meu pai disse-me como que em despedida, quando me passou o
comando da Galactica, que o melhor conselho que me podia dar era que,
quando tudo parecesse estar no devido lugar e tudo estivesse tranquilo, era
altura de começar a pensar no que faltava. O questionar da realidade aparente
e a faculdade de acrescentar o ausente ao visível, era requisito primordial
para qualquer comandante. Na altura não liguei muito ao conselho. Mais
tarde, quando tive de estudar um mapa estelar e perscrutar perigos antes de
lançar no seu seio uma força de assalto, percebi exatamente aquilo que o
velhote queria dizer. Quando lidei com criaturas aparentemente dóceis e
amigáveis, aprendi que era imperativo ouvir o que não estava a ser dito. Na
altura, quando a paz era uma realidade mais que aliciante, impunha-se-me
questionar a ausência da parte mais importante para o acordo. Quase não
consigo olhar para um quadro sem pensar naquilo que o artista terá eliminado
da paisagem ou modelo original. Dá a impressão de que, exceto nos raros
momentos em que um ato ou série de acontecimentos atinge um estádio
concludente definitivo, estou sempre a pôr em causa aquilo que vejo, a
realidade aparente, e estou nervosamente em busca de qualquer coisa que
preencha as lacunas do que não vejo.
CAPÍTULO VII
Os dois soldados ovianos arrastaram Apollo e Serina por longos
corredores íngremes e labirínticos. Após a atmosfera sufocante do casulo em
que tinham descido a estes, patamares subterrâneos, as correntes de ar frio e
húmido eram refrescantes. Ao chegar à enorme câmara principal da mina,
Apollo, surpreendido, reteve a respiração. Serina também ficou espantada
pela altura e profundidade da câmara principal, aparentemente infindas, e
pelo agitadíssimo ritmo de trabalho patente em todas as suas células.
— Que é isto? —perguntou ela a Apollo.
— Incrível! Talvez a maior mina subterrânea de tylium existente. O pai
tinha razão ao dizer que aqui havia tylium. Há aqui tylium em quantidade
suficiente para abastecer todas as nossas naves e percorrer meio universo.
Mas...
— Mas o quê?
— Não sei bem. Que exista algo de semelhante sem termos sabido que
tivesse sido reativado, é... Estranho. Quem consome toda esta energia, e para
quê?
Uma oviana deu-lhes um empurrão, encaminhando-os para a ponte que
atravessava a vasta câmara.
— Onde poderá estar Boxey? — disse Serina. — Estou muito
preocupada com ele.
— Eu sei. Se lhe fizeram alguma coisa, eu...
— Não continues. Cheia de medo já eu estou.
Os guardas pararam à porta da sala do trono de Lotay e indicaram aos
dois humanos que entrassem. Apollo e Serina entraram na câmara da rainha.
A princípio Lotay não reparou neles — ou, num gesto real, aguardou um
minuto imperial até lhes dar atenção. Entretanto, Serina estava fascinada com
o colorido dos tecidos que decoravam a sala, com os escravos apressados que
cumpriam todo o gênero de serviços estranhos, com os músicos que tocavam
uma ária muito pouco melodiosa, que mais parecia um gerador desafinado.
Finalmente, a rainha olhou para eles do seu trono no alto de um amontoado
de almofadas.
— É o capitão Apollo? — perguntou ela. A sua voz, embora não aguda,
tinha um som estridente. Tanto Apollo como Serina teriam ficado espantados
se soubessem que, para os Ovianos, a voz de Lotay era considerada
etereamente musical.
— Em pessoa — respondeu Apollo.
— Bem-vindo a Carillon. Presumo que esteja impressionado.
— Furioso seria o termo mais apropriado. Onde está o rapaz?
A criatura esboçou o que para um humano seria um sorriso, embora o
gesto parecesse estranho naquela face insectoide.
— Gostaria de ir ter com ele, capitão?
— Pois não havia de querer? E se lhe aconteceu alguma coisa terá de
responder perante as colônias.
Lotay sorriu outra vez, meneou dum modo desprendido a sua cabeça
desproporcionada e ergueu-se das almofadas. Serina, já acostumada à
pequena estatura das ovianas que até então vira, ficou pasmada com a altura
da rainha. Erguia-se acima de todas as outras ovianas. Num andar
definitivamente majestoso, Lotay dirigiu-se para a saída da câmara real.
Serina percebeu que as guardas facilmente retomavam os seus lugares atrás
deles à medida que ela e Apollo a seguiam para fora da câmara. Caminhando
ao longo do estreito corredor, Serina inclinou-se em direção a Apollo e
murmurou:
— Será que o misterioso sorriso dela significa que sabe que já não
existem colônias?
— Não sei — segredou-lhe Apollo em resposta.
Lotay dirigiu-os para uma pequena câmara e fê-los parar. Fez sinal a
uma das guardas, que bloqueou a entrada. Imediatamente sentiram o chão
mover-se debaixo dos pés.
— Que se passa? —perguntou Serina.
— Deve ser a versão deles de um elevador, exceto que este, além de se
mover em sentido vertical, move-se também para os lados.
Quando a câmara movente parou, Lotay deu ordem à guarda para abrir a
porta. Trocando olhares circunspectos, Apollo e Serina deixaram-se
encaminhar pela porta de acesso. Não estavam de modo algum preparados
para o que se lhes ia deparar: um enorme salão de banquete fervilhando de
movimento, reverberando com música dissonante e forte. Algumas ovianas
dançavam perto deles, agitando os seus quatro braços em gestos
harmoniosos. Havia uma troupe de malabaristas. Serina nunca imaginara um
malabarismo tão intrincado produzido por um quarteto de braços. Mesas de
banquete, enormes e repletas, ofereciam pratos suculentos que pareciam ali
estar em representação das melhores cozinhas do mundo. O cheiro
maravilhoso reavivou-lhe a fome que há já tanto tempo sentia.
— Capitão!
Starbuck aproximou-se de Apollo, de mãos estendidas para o
cumprimentar. Outros convivas viraram-se para ver. Jolly agarrava
firmemente entre os dedos papudos um espeto com qualquer coisa.
— Boxey! — exclamou Serina, imediatamente recebendo resposta. O
rapaz saltou dos joelhos de Boomer e correu para Serina. abraçando-a.
— A sorte está do nosso lado — disse Starbuck, brincando com um fruto
azul, chato e de feitio hexagonal.
— Nada que alguma vez pudéssemos imaginar — disse Jolly, com
nódoas de comida na túnica exemplificando bem a sua alegria. — Têm tudo
aquilo de que necessitamos e em quantidade.
— E gostam de compartilhá-lo — disse Boomer.
— Parece um paraíso — disse Serina, numa voz que não aparentava a
mesma certeza que as suas palavras. Ao abraçar Boxey, envolvia-o num
sentimento composto de partes iguais de alegria e proteção.
— Parece mesmo — disse Apolo, percorrendo com os seus olhos
cautelosos a abastança da sala.
Lotay deu um passo em frente e dirigiu-se aos seus convidados
humanos.
— Somos uma ordem comunitária, desde que nascemos. Todos
trabalhamos. Todos compartilhamos. Não há competição, não há inveja, não
existe conflito. Apenas paz e ordem.
— A felicidade perpétua — observou Apollo. Não percebeu se Lotay
compreendera a ironia das suas palavras.
— A felicidade é objetivo de uma ordem imatura. Todos a procuram.
Poucos a atingem. Ninguém a consegue manter. O Oviano está satisfeito. É
melhor.
Serina notou uma dúvida nos olhos de Apollo que vinha comprovar o
que ela própria sentia.
— Parece que resulta, no vosso caso —d isse ela à rainha.
— Assim é, há milênios. Agora, juntem-se a nós. Estejam à vontade
como nossos convidados. Comam, divirtam-se como quiserem. Não façam
cerimônia, se precisarem de alguma coisa é só pedirem.
— Ela não está a brincar — disse Starbuck. — Se vocês pensam que este
banquete é magnífico, esperem até ver o casino alguns andares acima deste.
— Casino? — disse Apollo.
— Sim. Volto para lá, assim que tenha comido.
— Tenente Starbuck, há pessoas esfomeadas, ali na...
— Eu sei, eu sei, capitão. Tenha calma. Esta gente está neste momento a
juntar comida para nós. E combustível. Temos os nossos problemas
resolvidos.
— Parece ótimo, Starbuck, mas...
— Mas nada, capitão. Venha, já alguma vez provou este vinho de
laranja? Prove um gole.
— Por agora, dispenso.
Lotay, atenta àquela conversa, sorriu benignamente para os humanos.
Para Apollo e Serina, o sorriso da rainha parecia mais misterioso que nunca.
Parecia ocultar algo que ela não estava disposta a revelar. Apollo pressentira
um tom de comando nas suas invocações ao prazer, serina não estava bem
certa do que sentia, mas, fosse o que fosse, sentia-se saturada. Estava
desesperada por voltar à superfície, por se reencontrar nos reconfortantes,
embora austeros, domínios da Galactica.
***
Os oficiais executivos que se encontravam junto ao pedestal do líder
imperial apenas transmitiam banalidades através das suas teias de
comunicação. A nível de primeiro-cérebro, um cylon detestava a inatividade.
Ao atingir o nível de segundo-cérebro, o cylon detestava a confusão. Cylons
de terceiro-cérebro odiavam tanto a inatividade como a confusão, mas, mais
do que isso, odiavam a trivialidade. O oficial centurião, que enviara ao
planeta Carillon a fim de se encontrar com os seus aliados ovianos e
averiguar da veracidade dos rumores que assinalavam naves humanas
naquele sector, ainda não se apresentara. O líder sentia-se inutilizado, era
como se entrasse em decadência caso algo de importante não acontecesse
rapidamente.
O seu cérebro estava atulhado de inconsequências que ele nem sequer
precisava de relacionar. Apanhava-se a fazer ligações ao acaso, que, embora
exatas, não tinham qualquer interesse.
Lembrou-se de uma conversa que uma vez tivera com um humano
aprisionado. O homem era um cientista, um sujeito baixo e algo encorpado,
que gostava de usar grandes patilhas para compensar as entradas que tinha no
cabelo. Suspeitando que daria um bom conversador para um cylon, o líder
fizera algumas tentativas nesse sentido. Enquanto se mantiveram na teoria e
na tecnologia, o seu nível de comunicação revelou-se mais elevado que o da
interação média entre um cylon e um humano. Mas o cientista fizera-se
letárgico após alguns dias e começara a dar respostas monótonas.
Quando o líder perguntou qual a razão da mudança de atitude do
cientista, este tentou explicar ao cylon o conceito de enfado. O conceito
pareceu de tal modo detestável aos olhos do líder que este se recusou a aceitá-
lo. Ficou mesmo fora de si. O homem tomou uma atitude idêntica à do cylon
e retorquiu exaltado, defendendo o conceito de enfado como um traço
humano perfeitamente comum e mesmo aceitável. Ninguém gostava de estar
enfadado, disse o homem num tom estridente, mas era uma componente
necessária na vida do homem que frequentemente levava ao tipo de
contemplação que eventualmente resultava em perspectivas revolucionárias.
O enfado até podia ser uma coisa benéfica para a humanidade, disse o
homem. O líder observou que, desde que tinham começado a discutir o
enfado, o homem parecia muito menos enfadado, e portanto falar de enfado
não podia ser coisa enfadonha. O homem gritou que estava mais enfadado do
que nunca, que o líder e todos os outros cylons eram tais hipócritas
presunçosos, com uma tal desconformidade infinitesimal na atitude ou na
personalidade, que qualquer humano dotado de sensatez não podia deixar de
se sentir enfadado após alguns dias na sua companhia. Embora o líder não
acreditasse que o enfado fosse um estado útil ou mesmo genuíno, ofendeu-se
com a afirmação do homem de que a companhia de um cylon provocava
enfado, e expulsou o cientista para sempre da sua presença. Possivelmente
condenara-o à morte, embora isso fosse uma parcela de informação que não
se teria dado ao trabalho de conservar em qualquer dos seus cérebros.
Agora perguntava a si próprio se tais acumulações de dados triviais
como aquelas que neste momento o perturbavam seriam de qualquer forma
comparáveis ao que o cientista designara de enfado. Não teve de considerar
tal hipótese ofensiva durante muito tempo, pois logo lhe chegou uma
informação fresca importante. O centurião em Carillon transmitira finalmente
uma mensagem. Entrincheirara-se numa caverna subterrânea do planeta e
estava em comunicação com os seus aliados ovianos. Estes tinham-no
informado de que os humanos haviam de facto entrado no sector de Carillon.
Alguns encontravam-se já em terra ovion, outros pairavam em órbita em
redor do planeta na estrela-de-batalha Galactica e mais algumas naves. As
suas naves de combate tinham já destruído largas secções do campo de minas
que os Cylons, através de um tratado com os Ovianos, tinham plantado em
redor do planeta, a fim de proteger a fonte de energia secreta de que os
Cylons dispunham desde que tinham escravizado os Ovianos e os tinham
transportado para o planeta despovoado. O líder, satisfeito por estar de novo
em ação efetiva, transmitiu ordens para que uma numerosa frota de caças
cylons estacionados no planeta Borallus se aprontasse e seguisse para o sector
de Carillon. Em seguida, descontraiu-se, satisfeito com a ideia de que aquilo
que agora sentia — as ondas de informação importante — não era de modo
algum aquela característica tolerada pelos humanos sob o nome de enfado.
***
No visor junto à secretária de Adama, a imagem do planeta Carillon
mostrava-se insuspeita. Os dados do relatório que tinha na mão confirmavam
a sensatez da sua decisão em vir até ali. Não só poderiam abastecer-se
facilmente de comida e outras provisões, como obter tylium suficiente para o
consumo de toda a frota de ferro-velho por algum tempo. Ativando a sua
linha de registo privativa, começou a gravar o seu diário de bordo.
« Os Ovianos dispensaram aos sobreviventes das colônias as maiores
provas de generosidade e apoio que se possa imaginar. Temos agora razões
para supor que toda a frota possa recomeçar dentro em breve a nossa viagem;
dentro de... »
Ouviu-se bater à porta. Adama desligou o comunicador e gritou:
— Entre.
O coronel Tigh apareceu com um ar preocupado. Tigh estava sempre à
procura de algo com que se preocupar, especialmente se essa fonte de
preocupação se pudesse condensar num relatório.
— Não deve haver nada mais grave do que essa sua cara, Tigh. Que é
que aconteceu?
— É este relatório da superfície, senhor.
— É um relatório muito optimista, coronel.
— Demasiado optimista. O Uri pôs toda a gente da frota em picos para ir
a terra, e, além disso, ninguém se está a oferecer para os trabalhos miúdos.
Adama imaginou Uri dirigindo-se às pessoas extenuadas ainda a bordo
da Galactica. O conselheiro tinha um jeito especial de aproveitar o seu
encanto físico de homem amadurecido num sentido político de estratégia.
Com reservas de víveres tão reduzidas, não era de admirar que dessem boa
resposta às sugestões de Uri.
— Bem — disse ele —, talvez Uri tenha alguma razão. Talvez
pudéssemos deixar alguns dos nossos irem a terra. Em números pequenos,
num sistema rotativo ordenado. Que há de errado nisso, Tigh?
Tigh aclarou a garganta antes de falar novamente:
— Receio bem que seja tarde de mais para os planos cautelosos. O Uri já
passou licenças de visita à metade da nossa população.
— Metade da população! Anule imediatamente essas ordens.
— Receio bem que isso não seja possível. Como membro do Conselho,
o Uri tem direito a tomar certas decisões de carácter não militar. Se o senhor
se tivesse mantido como presidente, bem...
— Não insista, coronel. — O comandante suspirou. — Bem, faça o que
puder para tentar remediar as coisas. Como é que se estão a organizar os
grupos de trabalho?
— Muito bem. O gado está a ser bem alimentado e as primeiras
sementeiras já estão a nascer.
— Bom, coronel, então pode ir.
Adama refletiu sobre aquilo que Tigh dissera. Não se podia tolerar tanta
licenciosidade política no Uri, e era perigoso mandar tanta gente a terra. Seria
necessário gizar planos de contingentação. Quando ia a pegar no estilete
electrónico para registar as primeiras notas, alguém bateu à porta da cabina.
— Entre! — gritou ele. Era Athena.
— Peço autorização para descer ao planeta — disse ela.
— Porque é que me vens pedir a mim? — perguntou Adama. — Pensei
que o Sire Uri estava a distribuir licenças como brindes de amizade.
Athena ficou surpreendida com aquela hostilidade do pai, mas disse:
— Não ia lá nem que ele me pagasse, pai. E não vou se me disseres para
não ir.
Adama ia para rejeitar o seu pedido, mas uma sombra de tristeza nos
olhos dela fez-lhe dizer:
— Está bem. Porque é que não hás de ir?... Tu mais do que ninguém
precisas de te descontrair, tens estado a trabalhar tão...
— Não é para me descontrair que quero ir!
— Ah, é? O Starbuck outra vez, não?
— Talvez.
— Sei que ele está lá e que descobriu aquele casino. Para o Starbuck, um
casino deve ter parecido que lhe caía dos céus. Pensei que estivesses furiosa
com ele.
— E estou.
— Mas... Parece-me que estou a compreender. A mulher com quem o
apanhaste. Ela foi num dos grupos de visitantes do Uri, não é?
— Talvez.
— Olha, manda-a passear.
— Devo interpretar isso como uma ordem, pai?
— Manda-os ambos passear, praticante.
— Sim, senhor!
Ele sorriu, perante a vivacidade com que ela se virou sobre os
calcanhares, saindo da sala.
Quando ia novamente a pegar no estilete, zumbiu o comunicador. Era
Tigh.
— O combustível está a chegar das minas ovianas de tylium nas navetas
de serviço.
— A sua voz reflete preocupação, coronel.
— É que os fornecimentos são inferiores àquilo que foi combinado com
o capitão Apollo. O líder oviano mandou uma desculpa frágil qualquer, disse
ele que não estavam preparados para uma encomenda tão grande, para já. No
entanto, pelos relatórios que nos têm chegado de Apollo e dos outros, essa
desculpa não me parece justificada.
— Estou a compreender. Mantenha-se atento, coronel.
No momento em que Tigh desligou, Adama pegou no estilete e começou
a escrever furiosamente no seu registador. Sentia cada vez com maior
intensidade a urgência de medidas de precaução. Medidas extraordinárias.
Assim que acabou de esboçar as suas medidas de contingentação,
chamou Tigh pelo comunicador.
— Sim, senhor?
— Prepare a minha naveta. Vou a terra. Quero ver esse paraíso com os
meus próprios olhos.
— Mas, tem a certeza...
— Está a sugerir que devia pedir autorização a Sire Uri?
— Não, senhor! Vou mandar preparar a naveta.
Adama rodou na cadeira, saboreando o formigueiro que sentia na ponta
dos dedos e o pulsar do sangue nas veias. Já há algum tempo não sentia este
impulso para a ação.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Quando eu era miúdo, costumava imaginar o Paraíso. Se bem que não
me recorde de muitos dos pormenores dessa imagem, lembro-me que havia
muitos aviões de brincar e a maior parte das coisas era azul. As minhas visões
mais adultas do Paraíso colocavam-me no centro dele, tendo à mão tudo o
que eu desejava de melhor. A Athena diz que imagina o Paraíso como uma
estrela-de-batalha com ela própria no comando. O de Tigh é um paraíso onde
não existem papéis. Os nossos paraísos tendem a ser sonhos solipsísticos
onde não existe mais do que aquilo que cremos amar e de que julgamos
necessitar, ou em que somos os felizes contemplados com tudo o que
normalmente nos é negado. O que me parece é que, em todos os nossos
paraísos, não atribuímos qualquer importância aos escravos que constituem o
resto da população destas regiões ideais, por nós imaginadas. Um paraíso,
que deveria sugerir uma expansão do potencial humano, é normalmente uma
redução, geralmente ao estado de inércia. As pessoas gozam no Paraíso um
pouco mais do que na vida fazem ou mesmo desejariam fazer. O paraíso de
Carillon era, na realidade, uma armadilha, tão falsa como a oferta de paz feita
pelos Cylons ou as agradáveis palavras do conde Baltar. Nós, os humanos,
temos a lamentável tendência para acolher de braços abertos uma armadilha,
desde que lhe consigamos dar o nome de paraíso. Distraiam-se à vossa
vontade, dissera Lotay, a rainha oviana. E nós conseguimos ser felizes, se não
tivermos de pensar nos escravos ou na inércia e enquanto houver muitos
aviões de brincar e tudo for azul.
CAPÍTULO VIII
Adama já visitara anteriormente minas de tylium, mas esta de Ovion não
se assemelhava a qualquer outra prospecção mineira que ele tivesse visto,
sobretudo quando observada da gigantesca caverna subterrânea, e
contemplando as suas infinitas profundezas. A sua rede de células constituía
um espantoso fenômeno para quem apenas estava familiarizado com túneis e
poços fundos. Adama sentiu um certo mal-estar. Os mineiros, seres vivos
apesar de tudo, moviam-se como máquinas. As guardas ovianas permaneciam
muito perto deles, como se analisando atentamente cada um dos seus
movimentos. Em tudo pairava um cheiro de escravatura que lhe desagradava.
Durante o percurso, a voz suave mas estridente de Lotay fornecera todo
o tipo de estatísticas que geralmente impressionam os visitantes. Acabou
considerando aquela prospecção como a mina de tylium mais eficiente que
alguma vez pudera existir.
— É um tributo ao sistema comunitário — disse, obsequioso, o
conselheiro Uri.
— Muito obrigada — replicou Lotay. — Permitam-me agora que vos
mostre alguns dos aspectos mais refinados da existência oviana.
Levou-os até à sala de banquetes, onde a enorme mesa fora reabastecida.
Os conselheiros precipitaram-se sobre a comida como homens há certo tempo
esfomeados — o que, claro, era verdade. Embora Adama tivesse sofrido
também os rigores da privação, não sentia tanta urgência em aceitar a
hospitalidade oviana e manteve-se afastado da mesa. A música vigorosa
tocada por um conjunto de instrumentos de corda bulia-lhe com os nervos.
— Não esperávamos tanto — disse Uri, com bocados de comida caindo-
lhe pelos cantos da boca.
— Temos muita fartura — respondeu Lotay. — Desejamos ajudar-vos.
Todos os que de entre vós quiserem, serão considerados nossos convidados.
Uri, triunfante, virou-se de rompante para Adama.
— E o senhor, comandante, que queria privar a nossa tripulação de um
convite tão amável!
Adama sentiu-se incomodado sob o olhar cortante do homem. Naquele
momento todas as cartas se encontravam na mão de Uri, e Adama só
conseguiu replicar:
— Eu apenas sugeri um sistema rotativo de pequenos grupos e não uma
descida em massa sobre...
— Mas eu julguei que o tempo fosse o fator mais importante a ponderar,
para nós — interrompeu Uri, falando por entre pequenos goles dum líquido
de cor purpúrea. — Quantas mais pessoas trouxermos aqui de uma só vez,
mais depressa poderemos regressar e juntar-nos aos outros. Sabe, parece-me
mais acertado que, uma vez todas as nossas naves reabastecidas e
reconvertidas à propulsão hiperespacial, os tragamos todos aqui para eles
aproveitarem a hospitalidade deste planeta. Talvez com um pouco de trabalho
pudéssemos mesmo fixar-nos aqui. Foi a melhor ideia que tive desde há
muito, tenho de pensar a sério nisto.
A proposta de Uri, nitidamente política, levantou um murmúrio de
aprovação por parte dos outros membros do conselho presentes, até mesmo
Anton que, normalmente, não era tão pronto a dar o seu acordo. Adama
decidiu não responder ao desafio implícito na voz de Uri. Nunca é muito
prudente argumentar com um político que está a meio caminho da bebedeira.
E, de volta aos sóbrios andares da Galactica, os outros veriam como a sua
proposta era insensata.
Adama virou-se para Lotay e disse:
— Posso saber que andamento teve o nosso pedido de tylium?
— Já preparámos e processámos o primeiro carregamento para vocês,
não foi? — disse Lotay com um tom demasiado político para que Adama não
suspeitasse de algo. Tentar interpretar uma entonação possivelmente
calculada da parte de um alienígena parecia-lhe demasiado exigente para
consigo próprio depois de ter enfrentado as estratégias insidiosas de Uri.
— Sim, embarcámos o primeiro carregamento de tylium líquido —
disse. — Contudo, segundo percebo, haverá um atraso na obtenção de mais.
A parte inferior da face da rainha, chupada, conseguiu expressar um
amuo bastante semelhante ao dos homens.
— Os nossos processos são antiquados — disse ela. — Leva tempo a
obter-se o minério, e não estamos preparados para uma encomenda tão
grande. Vocês caíram-nos em cima praticamente de surpresa. Normalmente
não nos pedem que forneçamos o minério em estado líquido para uma frota
espacial inteira.
— Ah!? Para que fim costumam vocês processá-lo, normalmente? Ou
devo perguntar para quem costumam vocês processá-lo?
— Os nossos registos não são revelados aos nossos clientes,
comandante. Somos industriosos, mas também pequenos, e temos todas as
razões para recear qualquer intruso, especialmente quando abrem caminho à
força, rompendo as nossas barreiras protetoras. Contudo, apreciamos a
importância da vossa encomenda, e também não descuramos os lucros que
uma transação desta natureza nos traz. Mas temos de dar tempo ao tempo e
vocês têm de ter paciência.
O sorriso de Lotay, que pretendia ser insinuante, era tão falso que
Adama sentiu como que uma dor na boca do estômago.
— Acho que estamos a desafiar a nossa sorte, comandante — disse Uri,
com os dedos a remexer freneticamente no que parecia ser um bocado de
carne azulada. — Não sejamos indelicados perante uma tal hospitalidade.
— Por favor, divirtam-se como quiserem — disse Lotay. —Estão na
vossa casa. Comam bem, divirtam-se. Estejam à vossa vontade.
A rainha fez menção de se esgueirar em direção ao arco de entrada, mais
parecendo um escravo leal do que uma regente. Adama cortou-lhe o caminho,
dizendo:
— Não nos acompanha?
Ela deitou um olhar sem grande interesse sobre os manjares servidos.
Atravessou-lhe o rosto um vago sorriso.
— Não, receio que não.
Com uma graciosa vénia, desapareceu da sala.
— Ora bem — disse Uri, voltando-se para o comandante enquanto
descascava um fruto gomoso, cor de lavanda. — Não me parece que haja
qualquer dúvida quanto à nossa decisão. Levará tempo a arranjar o tylium.
Daremos a todos uma oportunidade de compartilharem da nossa felicidade
aqui em baixo, em Carillon.
— Mas, Uri...
— Sim?
Todos os membros do Conselho olhavam para Adama, profundamente
interessados.
— Deixe lá.
Adama sentia a sua unanimidade de opinião. Todos assentiam com as
cabeças em apoio a Uri, enquanto atulhavam a boca de toda a casta de
alimentos. Com um sentimento de náusea a crescer-lhe dentro do estômago,
Adama não conseguiu obrigar-se a abeirar-se da mesa do banquete e, em vez
disso, sentou-se num cadeirão forrado de pelúcia junto à entrada. Não
conseguia olhar para os homens apinhados em redor da mesa. Eram humanos
como ele, mas, para si, pelo menos nesse momento, pareciam-se mais com
insetos do que qualquer dos Ovianos.
***
Quando se reuniu à sua rainha no corredor que dava para o salão de
banquetes, Seetol pôs-se a seu lado, acompanhando-a no seu passo apressado
através da passagem que dava para o elevador-casulo dissimulado. Os
espinhos delgados do corpo da rainha tinham agora um brilho amarelo, tal
como acontecia nos raros momentos em que Lotay se sentia altamente
excitada. Antes de descerem ao nível da sala do trono, olhou atentamente
para o túnel em frente do elevador, a fim de se certificar claramente de que
não se encontrava por perto nenhum humano a espiar. Acenando a Seetol
para que a acompanhasse, entrou no elevador e desceu à sala do trono.
Quando a rainha saiu do elevador à sua frente. Seetol sentiu por ela um
frêmito de desejo.
Lotay aproximou-se do trono, mas, em vez de se sentar, curvou-se diante
dele numa reverência grácil e majestosa. Seetol reparou então no grande
centurião cylon sentado no pedestal.
— Às vossas ordens — disse Lotay. Seetol ficou irritado por ver a sua
amada rainha numa postura tão servil perante um cylon. Seetol detestava
aquelas criaturas arrogantes de capacete, mais ainda do que os humanos, e
não suportava o seu jugo sobre os Ovianos. Pior, sentia medo deles.
— Já cá estão muitos dos humanos, mas o comandante deles só deixou
alguns dos guerreiros vir a terra. O resto ficou de alerta na estrela-de-batalha.
— Isso mudará à medida que eles se sentirem mais seguros da vossa
hospitalidade. Afinal, quem mais do que tu tem experiência de jantares com
humanos?
— É muito amável, centurião — disse Lotay. — A nossa vida é servir-
vos.
— E assim tem de ser. O nosso líder tenciona exterminar todos os
humanos que escaparam neste sector espacial. Exceto, claro está, os que
forem úteis para a vossa gente.
— Como queiras.
— Assim que iludirmos as forças humanas e apanharmos de emboscada
a estrela-de-batalha deles, faremos isso. O nosso líder aprecia a vossa
colaboração, e tenciona continuar a sua proteção aos Ovianos como membros
da nossa gloriosa Aliança.
— Muito nos apraz, centurião.
Lotay fez uma vénia e deu uma cotovelada a Seetol para que a imitasse.
Embora o ato lhe repugnasse, Seetol obedeceu ao pedido da sua rainha.
***
Só quando Greenbean informou que o projeto agrícola da Galactica em
Carillon estava já na fase da colheita, Apollo compreendeu como perdera a
noção do tempo. Não era de admirar que o pai parecesse aborrecido com ele
quando se deslocara na naveta à Galactica a informar sobre todas as
atividades dos humanos em Carillon, incluindo o repouso e restabelecimento
no casino e salão de banquetes. O pai ficara, segundo Tigh lhe dissera,
especialmente perturbado com a visita que ele próprio fizera à mina oviana e
a área de recreio. Adama não se mostrara interessado nas estatísticas, nem na
conclusão que Apollo finalmente tirara de que a missão em que se haviam
empenhado não só excedera as previsões como redundara em estrondoso
sucesso. Quando Adama disse que se sentia desassossegado sem saber bem
porquê, Apollo respondeu que ao princípio sentira o mesmo, mas que a
felicidade evidente dos seus durante as visitas que faziam a terra apaziguara
as suas apreensões. Adama retorquiu-lhe que era exatamente isso que não
parecia bater certo, era exatamente isso que não conseguia entender. A
discussão com o pai deixara Apollo ainda mais desorientado.
Hoje à noite havia de esquecer tudo, decidiu então, hoje à noite havia de
deitar mão a parcelas do gozo que todos os outros tinham vindo a saborear
em pleno naqueles dois dias em Carillon. Serina acedera a acompanhá-lo ao
casino, e sabe-se lá aonde mais, e ele havia de se divertir, para variar. Só o
fascínio daquela espantosa repórter capricana era capaz de o convencer a
enfiar o fato azul, fosse em que ocasião fosse, e foi de boa disposição que
entrou no casino. Serina, que lhe dava o braço, mudara para um vestido
comprido esvoaçante cor de lavanda, e estava linda, ao ponto de até os
jogadores mais fanáticos levantarem os olhos do jogo para olhar para ela. Os
que não estavam ocupados com o jogo não se saciavam de devorar os
manjares da mesa. O jogo propriamente dito estava mais divertido e alegre do
que qualquer atividade recreativa que Apollo já tivesse visto. Dava a
impressão de estarem todos a ganhar. Talvez a sorte de Starbuck estivesse a
propagar-se a todos eles.
— É um circo — disse Serina —, um país das maravilhas.
— Isso é — respondeu Apollo —, mas, pelo menos, consegue dar a uma
porção de gente o interregno de descontração de que estavam mesmo a
precisar.
— Estou contente por você ter arranjado tempo para se divertir também.
Nunca vi ninguém que se esforçasse tanto a trabalhar.
— No trabalho, é sempre a aviar, minha senhora.
— Gosto de o ver tão alegre e estou contente de os ver todos tão felizes.
Aquela mulher ali junto à mesa...
Apontou para uma matrona de meia-idade tão empolgada no seu jogo de
dados que o loiro carrapito postiço quase lhe caía da cabeça.
— Que é que ela tem?
— Vi o marido morrer-lhe nos braços apenas há alguns dias. Não olhe
para mim tão espantado. Vou tentar divertir-me. A mudança não é fácil.
Estou exausta. Têm acontecido tantas coisas, parece que só agora estou a
conseguir pôr as minhas ideias em ordem.
— Posso levá-la até aos aposentos de hóspedes que os Ovianos nos
concederam.
« Estará o jovem capitão finalmente a chegar a vias de facto? »,
interrogou-se Serina. Não sabia se queria que isso acontecesse ou não. Ainda
não há muito tempo pensava que não poderia manter uma relação afetiva com
um homem, pelo menos enquanto os humanos sofressem. Olhou em redor.
Ninguém parecia estar em sofrimento. Não sabia bem o que é que a mantinha
de pé atrás. Qualquer coisa que não jogava bem, qualquer cor a destoar na
sala, qualquer coisa. Tentou descontrair-se, nem sequer já era oficialmente
jornalista, e não tinha de proceder como tal.
— Vamos ficar aqui mais um bocadinho — disse para Apollo, que anuiu
sem aparente desapontamento. — Vou-me divertir também. Quero sentar-me
aqui mesmo a uma destas mesas.
Apollo sorriu.
— Que tal ganharmos uma fortuna?
— E porque não, meu capitão?
Sentaram-se a uma mesa de roleta e compraram umas tantas fichas ao
humanoide escamoso e esverdeado que servia de croupier.
***
Num canto afastado do casino, perto de uma sala de jogos, Starbuck
nadava numa onda de sorte em nada comparável ao que jamais experimentara
desde o dia em que o pai, jogador também, passara o primeiro baralho de
cartas para as mãos ávidas que o esperavam. Tinha na sua frente uma grande
pilha de cúbitos de ouro, e avançou mais uma mão vencedora para o meio da
mesa. Alcançando a pilha, gritou extasiado:
— Vamos a isto outra vez!
Ganhou mais uma batelada e recostou-se finalmente na cadeira. A
algazarra da multidão que comentava a jogada quase abafava a música
roufenha que vinha do salão. Passando os olhos pela galeria, deu de caras
com Athena, que o fixava atentamente, de pé junto à cadeira vazia a seu lado.
— Este lugar está ocupado?—perguntou ela.
— Hum... Bem... — murmurou ele, remexendo-se no assento.
Cassiopeia estivera ali sentada até há momentos e levantara-se bruscamente,
dizendo que tivera uma boa ideia. Uma vez que não fazia a mínima ideia do
que seria para a animadora social uma boa ideia, não sabia quando voltaria,
nem se voltaria.
Athena sentou-se na cadeira e debruçou-se para ele, dizendo:
— Parece-me que te devo uma desculpa.
— Ah, sim?
— Não tive coragem de te falar até agora. Sabes como eu te ando sempre
a dizer que a filha do comandante não se deve meter com um guerreiro.
— Tenho uma vaga ideia...
— Por amor de Deus, este paraíso é a oportunidade ideal para todos nós
sermos honestos uns com os outros. Para nos libertarmos de todas as
inibições psicológicas. Eu magoei-te, admito.
Starbuck, sentindo que era melhor concordar até perceber onde ela
queria chegar, anuiu e tentou estampar uma certa dose de ressentimento no
rosto. Athena prosseguiu atabalhoadamente:
— Não disseste que eu era a única mulher que alguma vez te tinha
interessado a sério?
Então era isso! Ciúmes... Ela sabia da história com a Cassiopeia. Mas
que saberia ela exatamente?
A expressão de Athena endureceu ao insistir na pergunta:
— Então, disseste ou não?
— Claro, claro. Só que depois senti-me tão infeliz e tudo o mais, que
afastei para longe esses sentimentos. Para evitar sofrer, percebes?
Os olhos dela semicerraram-se.
— Não acredito. Ouve, eu esqueço o teu desvario com a animadora
social.
Starbuck esgazeou os olhos, surpreendido.
— Foste tu que ligaste o maldito vapor! Eu devia era...
— Devias o quê? Não estavas mesmo a pedir?
— Não, claro que não estava a pedir.
— Ora essa, não se pode saltar assim para um tubo de ejeção com uma
animadora social qualquer que te aparece!
— Sabes muito bem que estás a ser curta de vistas. Uma animadora
social não é qualquer...
— Não me rala que ela seja especial ou não. Está bem, eu não sou
propriamente um amor de simpatia, sobretudo quando há trabalho para fazer.
Enfim, praticamente empurrei-te para os braços dela.
— E ela tinha uns braços bem interessantes.
— Starbuck!
Logo se censurou por ter deixado escapar o comentário. Na verdade, não
queria magoar Athena, mas a piada desta sobre a animadora social fora
impensada e um tanto baixa. E ele não estava habituado a baixezas por parte
de Athena.
— Está bem. desculpa, mas não vamos reparar tudo isto com um
simples...
— Parece-me que está no meu lugar — disse Cassiopeia, que se
encontrava agora por detrás da cadeira que Athena ocupava.
« Não!», pensou Starbuck. « Que coincidência mais inconveniente!»
Sentia o suor a perpassar-lhe a pele. Isto era pior do que fazer-se a uma pista
torta para uma aterragem de emergência. Mal reparou que tinha acabado de
ganhar uma batelada. Talvez se escorregasse para debaixo da mesa...
Athena voltou-se lentamente para Cassiopeia com uma deliberação
estudada.
— O seu lugar? — disse ela elegantemente.
— A maturidade não lhe assenta bem, pequena — disse Cassiopeia,
virando-se depois para Starbuck, muito vermelho. Ergueu a mão. Nos dedos
longos e finos balançava uma brilhante chave dourada.
— Boas notícias, piloto! Arranjei a Suite Real para nós!
Na gíria da frota espacial, esta situação era conhecida para círculos
formais pelo momento em que o cylon furava a couraça. Athena tornou-se
lívida de raiva. O seu olhar voou da face vitoriosamente sorridente de
Cassiopeia para o rosto atormentado de Starbuck. O tenente decidiu que
devia apresentar um ar derrotado, mas não tinha ideia sequer de como simulá-
lo, tão longe estava do seu comportamento normal. Engoliu em seco e
raciocinou que a melhor táctica era nada dizer. Athena e Cassiopeia eram
ambas lutadoras, elas que se entendessem. Recostou-se na cadeira, detendo-
se por momentos a assinalar ao homem da banca que mantivesse a sua
aposta.
Athena, com um sorriso manhoso, ergueu-se e arrancou a chave dos
dedos de Cassiopeia.
— Muito obrigada — disse ela. — Estamos muito agradecidos.
Olhou para Starbuck e agarrou-lhe num braço, tentando puxá-lo da
cadeira.
— Vamos embora daqui — disse Athena.— Para a Suite Real. Starbuck!
Ele olhou para Cassiopeia e de novo para Athena. Um débil sorriso
amarelo desencadeou-lhe no rosto o pânico que sentia.
— Hum — disse ele —, olhem lá, estou mesmo a meio de uma jogada
das boas.
— Querido — disse Cassiopeia —, a tua jogada não é essa porcaria
dessa pilha de ouro que está na mesa. A tua jogada está aqui, em mim, e o teu
interesse arrefeceu.
— Exatamente, foi isso mesmo! — disse Athena.
— Eh, lá! —disse Starbuck.
— Deixe lá, tenente! — retorquiu Cassiopeia. — Mesmo uma ex-
animadora social tem a noção de quando deve desaparecer.
— Espertinha — comentou Athena.
— Não esteja muito convencida, pequena — replicou Cassiopeia. —Não
disse que tinha abandonado a luta.
— Você, sua...
— Escusa de dizer. Já ouvi isso em qualquer sítio.
Furiosa, Cassiopeia afastou-se por entre a multidão.
— E quanto à Suite Real... — declarou Athena.
— Pois...— disse Starbuck.
— Esquece-a!
Atirou a chave para cima da mesa de jogo, empurrou a cadeira e seguiu o
caminho de Cassiopeia. Starbuck deixou escapar um longo suspiro de alívio e
começou a juntar os seus cúbitos, enquanto o homem da banca empurrava na
direção dele os seus últimos ganhos. Boomer deu-lhe uma pancadinha no
ombro e disse:
— Precisamos de falar.
Havia na voz de Boomer uma certa urgência a que Starbuck não pôde
ficar indiferente.
Boomer conduziu Starbuck para longe das mesas de jogo e do salão de
diversões do casino. À medida que abriam caminho, furando em ziguezague
através da sala apinhada, a atenção de Starbuck foi-se gradualmente
concentrando no palco, onde um trio de cantores humanoides entoava
infinitamente uma canção que não se assemelhava a nenhuma outra que
tivesse já ouvido. Cantavam num tom estridente e roufenho, mas não sem
uma certa doçura no timbre mais profundo que sobressaía da melodia.
Starbuck ficou bastante encantado com a interpretação e não conseguia tirar
os olhos delas, mesmo depois de Boomer e ele se terem sentado a uma mesa
encostada a uma parede lateral.
— Que é que sabes acerca daquele número? — perguntou Starbuck.
Boomer deu uma olhadela para o palco e disse num tom aborrecido:
— Tucanas.
— É o nome do grupo ou da espécie delas?
— São do planeta Tucan.
— Nunca ouvi falar. Não deixam de fazer um som interessante e de
certo modo são atraentes, se bem que estranhas.
— Muito estranhas.
— Que queres dizer com isso?
— Vê lá melhor.
Starbuck olhou com mais atenção. De súbito, descobriu o que Boomer
queria dizer. Cada uma das mulheres tucanas tinha duas bocas e ambas
participavam no canto. Não era de admirar que conseguissem produzir um
som tão bizarro!
— É difícil que estes malditos ovianos consigam ouvir o que dizemos ou
ler lábios aqui — disse Boomer.
— Lábios? — exclamou Starbuck. — Ah, queres dizer os nossos lábios.
Olha lá, tens a certeza que não estás a bloquear o teu visor, a imaginar coisas?
Porque é que alguém havia de querer ler nos nossos lábios?
— Não tenho bem a certeza, mas há por aqui alguém a tramar uma coisa
qualquer.
Starbuck despejou uma série de cúbitos para cima da mesa e meteu um
num pequeno suporte ao centro. Apareceu uma chávena cheia de um líquido
acastanhado.
— Onde é que arranjaste esses cúbitos todos? — quis saber Boomer.
— Ao jogo! Não se consegue perder. As cartas estão do meu lado.
— É a isso mesmo que eu me quero referir. Toda a gente está a ganhar.
— Boomer, há uma coisa que este sítio não está: viciado.
— Já estiveste nalgum lugar onde não se consiga perder dinheiro?
— Não, mas também nunca estive aqui. Olha, e se desses atenção a estas
cantoras?
— Starbuck, também mais ninguém que eu conheço esteve aqui antes.
Eu bem sei que este planeta fica um tanto fora do caminho, mas...
— Um tanto fora de caminho? Quase morremos de fome para cá chegar!
— Pois, por problemas de abastecimento, porque levámos muito tempo a
velocidade inferior à da luz. Vê bem, metade das pessoas aqui vieram dos
nossos planetas natais: Caprica, Tauron, Sagitaria. Foram transportados para
aqui mesmo antes da invasão cylon. Nem sequer sabem dela. Não tem havido
comunicações de cá para o exterior e vice-versa. Tentei explicar a um destes
palhaços o que se tinha passado. Julgou que eu estava a brincar.
— É compreensível. Não é uma história muito crível quando te estás a
divertir num sítio como este.
— E outra coisa. Nunca tínhamos ouvido falar deste, digamos, centro de
diversões, nem sequer tínhamos encontrado ovianos antes, certo? Fiz um
rápido inquérito. Jamais alguém ouviu a mínima publicidade sobre o mais
eficiente reduto de jogo nesta área.
— Talvez seja uma espécie de clube secreto.
— Nunca podia ser assim tão secreto. Como é possível que todos cá
venham, mas depois não voltem para casa a contar a toda a gente?
— Se fosses tu a descobrir uma mina de ouro, contavas a toda a gente?
O que quero dizer é: sabe-se lá quanto tempo eles vão manter isto? Pode
muito bem ser uma espécie de oferta introdutória. Ena, aquelas miúdas são
espantosas!
— Deixa as raparigas. Fala mas é comigo. Que informações colheste por
aí?
Starbuck continuava de olhos postos nas cantoras, não obstante os
protestos de Boomer.
— Que tipo de informações? —disse Starbuck.
— Por exemplo: porque é que toda a gente come tanto por aqui.
— E porque não? A comida é praticamente de graça e é sensacional,
parece... Ena. Ouve-me, mas, é aquilo! Elas são únicas!
Uma das cantoras descera do palco para executar algo que se
assemelhava a um solo, enquanto as outras produziam uma complexa e
harmoniosa toada de fundo. Starbuck estava a ficar admirado por apenas seis
bocas conseguirem emitir tais maravilhas musicais. Reparou então que a
solista utilizava nesse momento apenas a boca superior para reproduzir
aquela melodia tão insinuantemente doce.
— Podíamos fazer fortuna se conseguíssemos pôr estas raparigas no
circuito galáctico — gritou Starbuck. — Mesmo muito dinheiro. Boomer.
Boomer franziu o sobrolho, frustrado.
— Não acreditava se não te tivesse aqui, palavra! Podiam estar todas as
criaturas do universo atrás de nós para acabar connosco, mas tu só pensas em
contratar um grupo vocal!
— Caramba, vê se alargas um pouco mais as tuas vistas! Sabe-se lá
quanto tempo mais vai durar esta estúpida guerra... quer dizer, do modo como
as coisas correm agora, até já pode ter acabado, e nós não sabermos nada
ainda. De qualquer maneira, havemos um dia de deixar de ter préstimo para
as outras pessoas e nessa altura passam-nos à reserva e riscam-nos da cena. E,
nessa altura, que é que seremos? Soldados galácticos antiquados, gastos.
— Parece-me optimista pensares que só vais estar gasto. Deixa-te de
cálculos para a reforma. Bucko! Já acho muita sorte estarmos vivos amanhã
de manhã.
— Ora, de que é que estás a falar?
— De pessoas que estão a desaparecer.
— Quem?
— Não tenho a certeza, mas ouvi uma conversa, uma coisa esquisita
sobre os convidados que desapareceram simplesmente de vista.
— Referes-te à visita? Boomer, isto aqui é enorme, e eles têm uma volta
qualquer, organizada, em que muita gente participa antes de se ir embora para
casa.
— Casa? Qual casa! Estou a dizer-te que ainda ninguém soube de
alguém que voltasse a casa! Também, que casa é que tinham agora para
voltar... Que...
— Tu fazes perguntas de mais.
— E tu não estás em ti. Aconteceu-te alguma coisa, Starbuck. Estou a
dizer-te. Há aqui algo que não está bem.
— Olha, elas estão. Ouve-as.
O trio estava a chegar ao fim da sua atuação. As duas tucanas que
cantavam a música de fundo atacavam uma nota sustida, enquanto a voz da
solista se erguia, cada vez mais alto, e mais alto ainda. Então, mesmo no
acorde final, a boca inferior da solista abriu-se e emitiu uma nota baixa
ressoante que não só deu à música um remate sensacional como estilhaçou o
copo que Starbuck tinha na mão. A assistência rompeu em aplausos
tumultuosos. Varado. Starbuck ergueu-se do lugar, gritando:
— Tenho de falar com elas.
Boomer começou aos murros à mesa, berrando:
— Não pode ser! Não pode ser!
Starbuck correu para o palco, tentando chamar a atenção das cantoras
tucanas.
***
A doçura enjoativa do ar, a riqueza ligeiramente repulsiva da comida e o
ruído roufenho do casino, tudo isso incomodava Apollo, enquanto parecia
divertir Serina.
— Gastei tempo a mais da minha vida com a minha carreira — disse ela.
— Estou farta das batalhas ridículas que tive de travar e das pessoas venais
que nelas tive de enfrentar para poder ter o que queria: uma notícia relatada
corretamente. Quero aprender a divertir-me. Estou a tentar aprender. Ajuda-
me?
— Tenho algumas ideias formadas — disse Apollo. — Vamos
experimentar o jardim.
— Você manda, capitão.
A secção central do jardim do casino era uma fonte da qual parecia
emergir um vinho purpúreo em pequenas cataratas por entre a folhagem. As
pessoas recolhiam o vinho em pequenas taças de ouro de largas asas.
Levavam-nas depois a esquentar em pequenos fogos que rodeavam a fonte. O
resultado, como Apollo e Serina em breve descobriram, era um preparado
tantalizador que parecia aliar o quente ao frio em deliciosas erupções de
gosto. A tripulação da Galactica, que fora dos primeiros a experimentar a
mistura, tinha-a batizado de «gregue». Não só era deliciosa, parecia ter certo
efeito afrodisíaco, segundo se via pelos vários pares que se eclipsavam
abraçados para a verdura circundante.
Depois de ter bebido um gole. Apollo dificilmente resistiu a sugerir a
Serina um pequeno passeio até às árvores. Foi arrancado à sua disposição
romântica pela voz desagradável de Uri que, uns metros adiante, conversava
com outro membro do Conselho — Lobe, o representante de Piscera.
— Tive uma grande conversa com a rainha deles, qual é o nome dela?
Lorry ou qualquer coisa assim — dizia Uri — Uma grande conversa. Ela é
muito amável e generosa, e mesmo atraente, se é que se pode pensar nalgum
destes insectoides nesses termos. Disse que estava feliz por lhe parecer que
estávamos a gostar bastante de aqui estar.
— É verdade — disse Lobe. — Uri, já viu os aposentos dos convidados?
São tão opulentos como os do palácio de um rei, e intermináveis. Se este
planeta pudesse voar, podíamos ir nele rumo ao nosso destino, numa vida de
estadão.
— Para que é que é preciso ele voar?
Uri beijou uma bonita jovem a seu lado. Apollo achou-a diferente da
bonita jovem que vira pendurada nele quando o fora prender. Sentiu um
arrepio percorrer-lhe a espinha com a conversa dos dois conselheiros e a sua
retórica de embriagados. Uri continuou:
— É exatamente esse o meu ponto de vista. Lobe. Exatamente aquilo
que eu disse à rainha. Porque, meu Deus, repare bem, se um homem fosse
criar um ambiente para viver, para a sua realização integral, não teria feito
melhor. Aqui temos comida, tudo o que é indispensável para alimentar a
nossa gente, e os Ovianos têm condições para produzir tudo isso em grande
escala. E, com os Ovianos, temos o apoio de uma cultura que não recusa
curvar-se perante as nossas necessidades. Quando perguntei à rainha se
poderíamos ficar cá, ela respondeu que de muito bom grado nos acolheriam,
mas que havia um contra.
— Qual, Sire Uri?
— Diz ela que são uma raça pacífica e que receiam o nosso potencial
bélico. Justifica-se, parece-me. Justifica-se. Que pensaríamos nós se uma raça
superior descesse dos céus e nos ameaçasse com um potencial bélico também
superior? Quero eu dizer que percebo o ponto de vista deles. E, de qualquer
modo, aqui ficamos tão distantes dos Cylons que não constituímos sequer
ameaça para eles. Pelo menos não devíamos constituir, e não o seríamos se
acalmássemos os receios dos Ovianos desarmando-nos, deitando fora armas e
as nossas temíveis máquinas de guerra.
Não foi o facto de Uri ter falado tão disparatadamente que surpreendeu
Apollo, mas sim o facto de todas as pessoas em seu redor assentirem com a
cabeça num sim.
— O senhor está a medir bem as suas palavras. Sire Uri?—disse Apollo,
dando um passo em frente na direção do grupo do conselheiro. Serina ficou
de fora, sorvendo em pequenos goles a sua bebida e tentando fixar os olhos
na cena que se desenrolava na sua frente.
— Ah! — exclamou Uri. —Aqui temos o nosso jovem herói-guerreiro,
ou devo antes dizer salvador? O filho do nosso divino comandante. Capitão,
eu só estava a frisar que este planeta nos oferece uma oportunidade
maravilhosa.
— A mim parece-me que é uma oportunidade para sermos todos
chacinados de vez pelos Cylons.
— Se é que eles se dessem a esse trabalho, o que não me parece.
— Sire Uri, eles destruíram os nossos mundos!
— Atacaram-nos, devo lembrar-lhe, porque representávamos uma
ameaça para o sistema deles. Aqui, isolados deles, não oferecemos qualquer
ameaça. Sobretudo se puséssemos de lado as nossas naves e as nossas armas.
Que pensa da minha proposta, jovem guerreiro?
— Só espero que seja do grogue.
Uri ergueu a sua taça, num brinde.
— Bem — respondeu ele —, talvez esta noite seja do grogue, mas
amanhã...
Apollo deu meia volta e saiu do círculo. Levando Serina pelo braço,
conduziu-a de volta ao casino por uma rua do jardim.
Olhando para trás, Serina teve a impressão de que Uri a olhava um tanto
lascivamente.
— Não deixe que seja ele a arruinar esta maravilhosa animação — disse
ela, algo estonteada. — Ninguém levará a proposta dele a sério.
— Talvez não. Mas ele tinha uma porção de gente ali a apoiá-lo, a dizer
que sim com a cabeça.
— Quem está a mover a cabeça sou eu, mas é de sono.
— Nesse caso, importa-se de ouvir a minha proposta? É um tanto mais
pessoal.
— Capitão, tenho estado a considerar essa proposta já muito antes de se
ter decidido a fazer-me a pergunta. Mas não tenho certezas a esse respeito.
Pelo menos enquanto a minha cabeça continuar a andar à roda. Importa-se de
voltarmos outra vez a esse assunto depois de visitarmos as instalações que
nos foram atribuídas?
— O que nos conduz mais uma vez diretamente à minha proposta.
Queria levá-la lá.
— Desta vez quero lá ir para ver se Boxey está bem. Depois disso, não
façamos propostas que não consigamos cumprir depois de ter passado o
efeito do grogue.
Uma sinalização no elevador do casino informava que as instalações dos
hóspedes se encontravam nos três andares imediatamente inferiores. Serina
tocou na placa do piso dois, onde tinha depositado um Boxey ensonado, ao
princípio da noite.
— Gostava de saber o que é que existe nos outros pisos mais abaixo —
disse Serina, apontando para a confusão de botões do painel.
— Quer ir espreitar? — perguntou Apollo.
— Porque não? Há muito que sou bisbilhoteira, como sabe. Vamos
começar por baixo e continuamos para cima.
Tocou no botão do piso mais baixo. Imediatamente se fez ouvir uma voz
suave que descia sobre eles, vinda do teto.
— Desculpe, mas carregou no botão errado. Os aposentos para os nossos
convidados estão confinados aos três primeiros pisos. Os outros estão
preenchidos com a cozinha, as minas e pessoal de apoio, simplesmente.
Muito obrigada.
Serina sorriu.
— Fora dos limites, creio que é o que se diz na sua profissão, capitão —
disse ela.
— Curioso — murmurou Apollo.
O elevador parou no piso dois. Uma rápida visita ao quarto de Boxey
revelou que o rapaz dormia sossegadamente. Tinha o braço enroscado em
volta de Muffit Dois, que mantinha uma vigilância de dróide, arrebitando
mesmo para uma rápida inspeção a Serina e a Apolo, quando estes entraram
no quarto. Puxando Serina para um canto sombrio, Apollo beijou-a. Ao
princípio a resposta dela tinha algo de experimentação, mas, segundos depois,
estava a retribuir-lhe o beijo.
— Quanto à minha proposta...—disse Apollo.
— Façamos as coisas com um certo ritual. O meu quarto é ao lado.
Hum... Seja o que for que estava naquele grogue, estou a pensar que é de
levá-lo comigo quando nos formos embora daqui.
Enlaçados, deixaram o quarto de Boxey. A cabeça de Muffit Dois voltou
a recostar-se sobre o travesseiro, enquanto os olhos muito abertos mantinham
firme vigilância sobre a entrada.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Já por várias vezes tentei fazer registos neste diário sobre a traição de
Baltar, mas, de certo modo, não posso abordar o assunto sem me aparecer
pela frente a cara bochechuda e egoísta do homem tal como se de um
fantasma se tratasse, e sentir cruciantes ondas de ódio percorrer-me o corpo.
Fico tenso e não consigo pensar em palavras. Tentar pôr a sua traição em
palavras emprestava-lhe uma série de perímetros em que os próprios limites
diminuiriam o mal puro e inalteravelmente egoísta do ato. E eu não estou
para racionalizar uma traição de tão grandes dimensões. Os atos de
alienígenas como os Cylons ou os Ovianos são para mim pelo menos
compreensíveis, como manifestações de ideias que pertencem a culturas
diferentes, talvez, em última análise, incompreensíveis. No caso de Baltar,
posso compreender as ideias dele e posso mesmo imaginar o pavoroso
egoísmo que o levou a vender a sua própria gente a troco de recompensas que
em perspectiva parecem triviais — mas isto não me aproxima minimamente
de um conceito claro do homem em si mesmo. É o que consigo fazer para
tentar dissipar a sua cara-fantasma. No mal que encarna, ele é alienígena para
mim, mais alienígena do que qualquer criatura de múltiplos membros ou
olhos de outras paragens do universo.
CAPÍTULO IX
Na nave-mãe cylon, o líder imperial debruçava-se sobre o último
relatório do seu centurião em Carillon. O plano estava sendo eficientemente
executado, cada vez mais humanos caíam prisioneiros do engodo da
felicidade oviana. Lotay conseguira misturar na comida de vários chefes
humanos (exceto, infelizmente, na de Adama) uma droga que a ajudava a
deturpar-lhes as mentes para decisões absurdas. Fora bem sucedida, dizia ela,
em implantar no espírito de vários conselheiros a ideia de um desarmamento
unilateral. De igual modo conseguira atrasar os fornecimentos de tylium à
frota que pairava no espaço em torno do planeta, fornecendo-lhe apenas o
líquido necessário para desvanecer qualquer suspeita levantada. O líder
interrogava-se se o astuto Adama se deixaria enganar tão facilmente. Tudo
parecia indicar que sim, mas uma coisa que para o líder se mostrara realidade
através das muitas batalhas que travara com Adama era a imprevisibilidade
deste. Se alguma conclusão sobre ele parecesse inquestionável, então deveria
mesmo ser questionada.
De qualquer forma, a altura de atuar era chegada.
Enviou uma ordem para que a força estelar suprema estacionada em
Borallus, fosse imediatamente lançada em voo rumo a Carillon, com a missão
de aniquilar sobreviventes humanos e a sua frota. Desta vez, as forças de
Adama ver-se-iam impotentes, mesmo se uns tantos humanos acabassem por
realizar uma das suas escapadas milagrosas.
Alguns minutos mais tarde, outra mensagem chegou ao líder. A parte
restante da frota humana, as naves que Adama deixara para trás e se dirigiam
para Carillon a baixa velocidade, tinham sido localizadas. Uma avaria no
sistema de camuflagem tinha posto a descoberto as suas coordenadas. O líder
resistiu ao impulso de enviar um contingente que destruísse esse punhado de
reminiscências desventuradas e desmanteladas da frota humana. A melhor
estratégia que claramente se impunha era limitar-se a manter vigilância sobre
estas naves. Encontravam-se sem defesa e impotentes, com toda a certeza
necessitadas de tylium e provisões. Não, a atitude lógica era deixar a sua
destruição para mais tarde. Sem dúvida que Adama se encontrava em
comunicação com as naves que deixara para trás. Atacá-las agora seria atrair
uma frota de salvamento, e isso não devia acontecer. Sim, a tática de espera
parecia ser o melhor, por agora. Era uma estratégia que aprendera com os
humanos.
A vitória cylon era certa, disse para consigo o líder. O potencial mais
numeroso das forças estelares supremas derrotaria facilmente a frota humana
enfraquecida, pensou. As naves deixadas para trás podiam passar um bom
bocado com elas e desfazê-las depois em pedaços, pensou. Ficaria com a
cabeça de Adama como troféu de guerra, pensou. No entanto, um certo mal-
estar, uma tensão indefinida, vieram perturbar-lhe os pensamentos.
***
Na ponte da Galactica, Adama fazia a sua caminhada habitual, de um
lado para o outro do visor galáctico. Frequentemente batia com o punho
fechado da mão direita sobre a palma da mão esquerda.
— Aqueles idiotas! — murmurou a certa altura. — Dêem-lhes qualquer
coisa para comer e todo o discernimento lhes desaparece das cabeças. É
quase como se a comida lhes embotasse o espírito. Há alguma maneira de eu
suspender essa reunião do Conselho que eles estão a planear, Tigh?
— Não há nada nos regulamentos que lhe dê essa autoridade perante o
Conselho, exceto quanto a assuntos militares. Em questões militares, pode
vetar e dar contraordens.
— O desarmamento unilateral não é assunto militar?
— Tradicionalmente, essas decisões têm estado nas mãos dos civis,
comandante. Muitos acham que está certo e é lógico, mesmo...
— Eu sei, eu sei. Tenho profundo apreço pelas teorias que apoiam a
separação das responsabilidades militar e civil. E aprovo-as mesmo. Pelo
menos em teoria. Só que este grupo de cabeçudos parecem possessos! Tigh,
só me apetece ir para a sala de reuniões e desatar aos murros a toda a gente.
Tigh sorriu maliciosamente, dizendo:
— Permita-me que lhe lembre, comandante, com todo o devido respeito,
que, se não se tivesse demitido do cargo de presidente do Conselho, tinha
agora o privilégio de entrar por essa sala adentro e desatar a bater em toda a
gente.
— Sei isso muito bem, coronel, até bem de mais. E dói-me sabê-lo.
Na sala de reuniões, os conselheiros encararam o aparecimento de
Adama com prudente expectativa. Aos olhos de Adama pareciam estranhos,
era como se se tivessem transformado fisicamente em autênticos
desconhecidos.
Antes de se sentar na sua cadeira, que fora mudada para um dos lados, a
patentear a sua presente ausência de categoria no Conselho, Adama disse:
— Qual é, posso saber, o objetivo desta reunião extraordinária?
Anton, o novo presidente, fez um gesto na direção da cadeira e replicou:
— Adama, por favor, respeite a ordem de trabalhos até lhe ser atribuída
à palavra.
Adama sentou-se, sentindo recrudescer a sua fúria. Até mesmo Anton,
que fora seu aliado, lhe parecia esquisito agora. O emaciado conselheiro
chamou a assembleia à ordem.
— É consenso cada vez mais arreigado para todo o homem, mulher e
criança desta comunidade que palmilhar por esse espaço fora, às cegas, é uma
loucura — disse Anton.
— Apoiado, apoiado!— disseram os restantes conselheiros, quase em
uníssono. O murmúrio da concordância soava a um canto, orquestrado, claro
está, pelo conselheiro Uri.
— A questão —continuou Anton —é esta: o que fazermos quanto aos
Cylons. Obviamente que continuar aqui é correr o risco de sermos
descobertos. O conselheiro Uri tem uma proposta a fazer. Uri?
Levantando-se, Uri passou os olhos pela mesa do Conselho com um
sorriso que patenteava bem a sua presunção.
— Meus irmãos — disse, untuoso. — Uma tentativa precipitada de
escaparmos aos Cylons, gerada nas trevas do desespero, parece imprudente à
luz do dia.
Com que então trevas do desespero, hem!?, Pensou Adama. Quão
depressa estes políticos pegajosos conseguiam reduzir as circunstâncias da
tragédia a um cliché. Uri não se lembrava do sofrimento, do pânico, dos
caças cylons a matar a nossa gente e a reduzir a escombros as nossas cidades?
Não se lembrava ele sequer da alegria, efêmera que fosse, que deve ter
sentido quando se viu nos compartimentos almofadados do seu próprio
transespacial de luxo são e salvo, um dos poucos sobreviventes? Ou seriam
os homens como Uri vazios de todo o sentimento, vivendo apenas para
satisfazer qualquer voracidade ou cobiça do instinto que os movimentava
através da suas existências mesquinhas como transistores dentro de um
dróide? Talvez, pensou Adama, ele estivesse apenas procurando desculpas
racionais para o que, na realidade, não era mais que loucura.
— Proponho — continuou Uri, com uma olhadela significativa na
direção de Adama — que, em vez de nos lançarmos numa condenada cruzada
mística, tentemos apelar para a justiça e para a piedade.
Adama não conseguiu reter a sua ira por mais tempo. Pôs-se de pé,
gritando:
— Justiça dos Cylons? Piedade? Foi isso que você disse? Então você
chegou a um tal ponto...
— Calma meu caro Adama, calma — disse Uri. A sua voz baixara quase
para um murmúrio. O que realmente perturbava Adama era que os outros
conselheiros tinham parecido aborrecidos consigo quando falara, e haviam
depois anuído à imprecação suave de Uri. — Comandante, conheço a sua
oposição às nossas ideias, e compreendo-o. Do ponto de vista militar — do
ponto de vista militarista — os gestos de paz parecem quase sempre
insensatos. Mas acho que não está a avaliar bem a situação. Pelo preço de nos
virem escravizar tão longe da sua base de força, não parece que os Cylons
achem o esforço compensador.
— Escravizar? Base de força? — Adama, ainda incapaz de controlar a
ira na voz, gritou: — Meus senhores, são os senhores quem não
compreendem. O tipo de justificação que tentam utilizar poderia estar certa
no caso de estarmos a lidar com outros humanos, com qualquer espécie cujo
sistema de valores fosse análogo ao nosso. Mas estes indivíduos são os
Cylons, meus senhores! Eles afirmaram que não parariam enquanto todos os
humanos não tivesse sido exterminados. Nem sequer escravizados:
exterminados. Não tivemos sequer ainda o privilégio de entrar abertamente
em negociações com os chefes deles. Tudo o que sabemos a seu respeito tem
sido por dedução e observação. Por que razão alterariam eles os seus métodos
próprios? E mais, por que razão acreditariam eles que nós estamos dispostos
a aceitar agora o que sempre considerámos inaceitável? Viver sob domínio
cylon? Temos sido sempre tão inabaláveis neste campo como eles no seu
reconhecido desejo de nos exterminar.
Muitos sobrolhos em redor da mesa do Conselho começaram a franzir-se
gradualmente. Talvez, pensou Adama, estivesse conseguindo penetrar
naqueles cérebros entorpecidos.
— Comandante — disse Uri, numa pausa obviamente teatral —, a rainha
oviana, Lotay, tem contactado com os Cylons de perto, e em condições muito
mais pacíficas. A raça deles está em paz com os Cylons. É uma questão de
respeitar os seus códigos de ordem universal. Se qualquer indivíduo inimigo
ou grupo de inimigos ainda vagueia pelo universo, então eles sentem-se na
obrigação de os erradicar — limpar a mancha no seu sentido de ordem, por
assim dizer. Destruindo as nossas armas, para lhes demonstrar que queremos
viver em paz, a mancha desaparecerá e eles não...
— Destruir os nossos únicos meios de defesa!
— Ou de ataque. Posso lembrar aos meus irmãos que já em tempos
estivemos em paz com os Cylons. Não tínhamos qualquer conflito com eles
até interferir nas suas relações com as outras nações.
Adama lutou para não desatar aos murros a Uri. Interrogou-se
brevemente se o homem, caso ele lhe saltasse em cima de repente, se
recusaria a ripostar.
— Sim —disse Adama —, você tem razão. Não tivemos qualquer
conflito com os Cylons até defendermos os nossos vizinhos contra os Cylons,
que os queriam escravizar. E até termos auxiliado os Hasaris a recuperarem a
sua nação, que lhes fora tomada pela força pelos Cylons.
— Exato — disse Uri. — E isso só prova o meu ponto de vista. Se não
nos metermos na vida dos outros, há todas as razões para acreditar que os
Cylons nos deixarão em paz.
Uma vez mais os outros conselheiros, agradados do floreado retórico de
Uri, murmuraram o seu assentimento. Adama viu que não valia a pena tentar
chegar até eles por meio da lógica. Tinha feito os seus planos de alternativa.
Era tempo de os pôr em prática. Dirigiu-se ao Conselho numa voz tensa mas
calma:
— Meus senhores, se nos sentamos a esta mesa para voltar às costas aos
princípios da razão e da compaixão humanas, os princípios dos nossos pais e
dos Senhores de Kobol, de onde todas as colônias nasceram, fazem-no com o
meu mais profundo desprezo.
Voltou às costas e saiu da sala a passo rápido e largo. Depois de ter
saído, muitos dos conselheiros remexeram-se nas cadeiras. Uri virou-se para
eles e falou.
— Os guerreiros são sempre os últimos a reconhecer a inevitabilidade da
mudança. O comandante sempre gostou de nos dizer que não temos outra
escolha, o que significa sempre ter de aceitar submissamente as suas ideias.
Felizmente temos uma escolha, vida ou morte.
— Sugiro que uma questão tão grave como esta seja decidida pela nossa
gente — disse o conselheiro Lobe.
— Os militares vão ser duros de convencer — respondeu Anton. —
Como é que sugere que apresentemos um assunto tão delicado?
Depois de uma pausa embaraçosa, Uri declarou:
— Numa festa. É sempre mais fácil lidar com as pessoas durante uma
festa. Proponho que façamos uma cerimônia para condecorar aqueles três
valentes jovens que, com risco da própria vida, atravessaram o campo de
minas de Carillon, abrindo-nos caminho. Sem eles, estaríamos ainda do outro
lado, morrendo à fome. Um dos pilotos foi o filho de Adama, o capitão
Apollo, certo?
Alguns dos membros do Conselho deram lugar à sua satisfação; perante
a proposta de Uri, por se ter encontrado uma solução. Outros aplaudiram,
impressionados pelo astuto estratagema de Uri em incluir Apollo na
homenagem.
— Uma sugestão brilhante. Uri — disse Anton. — É mesmo o tônico de
que a nossa gente precisa numa altura destas. Uns heróis à moda antiga,
cheios de qualidades.
— Exatamente o que eu estava a pensar — disse Uri, com um sorriso um
pouco mais malicioso que o habitual.
***
Starbuck perdera muito tempo a tentar convencer a cantora principal do
grupo das tucanas de que podia arrancá-las àquele mesquinho contrato num
casino tão afastado, lançando-as numa carreira brilhante. A cantora não fora
sensível à sua argumentação. Limitara-se a remexer-se nervosamente na
cadeira, com um grosso charuto na boca inferior, olhando em redor do casino
como se esperasse ver espiões por todo o lado. Starbuck fora bastante longe,
a ponto de lhes oferecer uma divisão de lucros setenta-trinta, com as despesas
de transporte a seu cargo. Mas a cantora limitara-se a responder que pensava
que nada disso daria certo e que, de qualquer modo, não podia falar sobre o
assunto. Quando tentara pressioná-la sobre esse ponto, ela tornara-se ainda
mais nervosa. Deixando o camarim da cantora, Starbuck reparou que os seus
receios aparentes.de espionagem eram fundados. Uma oviana saltou de trás
de uma cortina do palco, ali perto.
No dia seguinte, encontrando-se Starbuck esparramado na cama do seu
quarto, na ala dos convidados, com a cabeça a latejar da ressaca. Boomer
entrou precipitadamente e abanou tão pesadamente o leito que o embate
espalhou guinadas de dor pela cabeça de Starbuck.
— Fora da cama, Starbuck. O capitão Apollo chamou a reunir e anda
atrás de ti especialmente.
— Boomer, tenho estado para aqui a pensar no que me disseste ontem à
noite. Começo a concordar contigo. Há aqui qualquer coisa de esquisito.
— Bem, seja o que for, terá de esperar. Temos de voltar à Galactica.
— Para quê?
— Os nossos uniformes de gala.
— Uniformes de gala? Olha, Boomer, detesto uniformes de gala e estou
com uma cabeça que não cabe em nenhum daqueles colarinhos apertados.
Fico cá. Não vou para nenhuma passagem...
— Starbuck, não se pode receber a maior honra militar do nosso povo, o
feixe de ouro, em fato de combate.
A informação de Boomer pôs Starbuck sentado. Demasiado depressa,
diga-se de passagem, pois a sua cabeça parecia ir explodir. Mas não se ralou.
Estava demasiado embasbacado.
— O feixe galáctico? Estás a brincar.
— Está-te no papo. Aliás, a mim também. Nós os três, os que nos
metemos naquela barreira do campo de minas. O Apollo também.
Starbuck sorriu.
— Ena! — disse ele. — Acho ótimo. Não temos também aumento de
salário?
Boomer desatou a rir, enquanto abanava a cabeça, descrente.
— És impossível resmungou ele. — Absolutamente impossível.
***
Serina acompanhou Apollo até à naveta que o levaria de volta à
Galactica a fim de se arranjar para a entrega da condecoração e responder ao
apelo do pai, que queria falar com ele. Boxey e Muffit Dois seguiam-nos de
perto.
— Foi uma noite maravilhosa — sussurrou ela a Apollo.
— Também para mim — respondeu ele. — E obrigado por teres tido a
paciência de me ouvir quando desabafei acerca do Zac. Sinto-me melhor. Vai
levar um certo tempo até eu me libertar deste sentimento de culpa, conforme
tu disseste, mas pelo menos já estou mais reconciliado comigo mesmo.
— Acho que deves sentir-te. És precioso, capitão Apollo. És um
verdadeiro filão de tylium com pernas, por assim dizer.
— E também tão perigoso como isso?
— Bem, isso depende do estado em que te encontras, não é? Tal como o
tylium.
— Talvez tenhas razão, nesse ponto.
Na prancha de embarque da naveta, ele beijou-a, a despedir-se, para
gáudio dos jovens tenentes, Starbuck e Boomer, que esperavam por ele à
entrada do aparelho. Depois de Apollo ter entrado, de a prancha ter sido
recolhida e de a terem mandado afastar para uma zona mais segura, ela pegou
na mão de Boxey e ficou a vê-los partir. Voltando para o casino, sentia-se
quase feliz, contente por ver que parecia estar a instalar-se de novo na sua
vida uma certa ordem. Aliás, na vida de todos eles, se o que alguns diziam
fosse verdade. Diante dela, Boxey brincava com Muffy. O rapaz melhorava
também a olhos vistos.
Uma oviana estava junto à entrada do casino. Quando viu Serina
aproximar-se, esboçou um movimento de recuo para o edifício. Serina pediu-
lhe que esperasse e a oviana deteve-se, respeitosamente.
— O seu nome é Seetol, não é? — perguntou Serina. — Foi você quem
nos conduziu durante aquela breve visita à mina?
— Exato — respondeu ela. — Em que posso servi-la?
— Oh, apenas satisfazendo a curiosidade de uma antiga jornalista.
— Jornalista?
Serina teve grande dificuldade em explicar a alienígena o que era uma
jornalista. Seetol pareceu ficar a pensar que relatar as atividades dos outros
era algo de pouco decente, embora digno de notícia.
— Fiquei fascinada — continuou Serina —com... Bem, com a ordem da
vossa sociedade e não deixou certamente de me impressionar a vossa
diligência, a vossa total aplicação. Nunca tinha visto algo de semelhante.
Quero dizer, tem-se a impressão de que todos os que estão nas minas
trabalham até caírem pura e simplesmente para o lado.
Ficou a pensar se não parecera demasiado ingênua. Contudo, a resposta
de Seetol foi dada num tom despreocupado:
— Sempre foi assim.
— E diga-me — inquiriu Serina, aproximando-se do que realmente lhe
interessava — , quanto a instituições familiares? Sinto que vos falta algo.
Seetol mostrava-se um pouco irritada. Os seus quatro braços moviam-se
expansivamente, enquanto falava.
— Somos muito completos.
— E quanto aos machos?
— Machos...
Seetol parecia não conseguir enfrentar o assunto.
— Bem, não queria ser indiscreta — disse Serina, embora a sua intenção
fosse mesmo essa —, mas os Ovianos são uma civilização de fêmeas. Sem
dúvida alguma. Com certeza que deve haver machos nalgum sítio. Vocês
devem precisar deles, ainda não descobriram a chave da partenogénese, pois
não? Talvez tenham os machos em casa...
— Não os temos em parte nenhuma.
O tom de voz de Seetol, geralmente estridente, tornara-se átono.
— Que quer dizer com isso?
A oviana olhou para Serina, com os seus olhos esféricos de insectoide, e
respondeu:
— O que você disse é correto. Os machos têm o seu lugar até terem
cumprido o seu fim. Depois disso, a nossa sociedade não tem mais lugar para
eles. Desculpe. Disse alguma coisa errada?
— Não, de maneira nenhuma. Parece-me, bem, parece-me que os
sistemas de valores na vossa sociedade mereciam ser estudados.
Serina afastou-se de Seetol, interrogando-se se a alienígena criatura
queria dizer que os machos eram simplesmente eliminados. Por vezes, ter
instintos jornalísticos tinha os seus inconvenientes.
***
Apollo ficou surpreendido por ver uma tripulação meramente simbólica
a guarnecer a ponte da Galactica. O pai, embrenhado num controlo rotineiro
ao equipamento com o coronel Tigh, voltou-se. saudando o filho
calorosamente. Apollo sentiu-se feliz por estar de novo nas boas graças do
pai.
— O Tigh estava só a informar-me das operações correntes — disse
Adama. — Ele quer assistir à celebração, hoje. Ofereci-me para o substituir
esta noite. Estritamente como favor.
— Quer dizer que não quer assistir à condecoração do seu filho? —
perguntou Apollo, perplexo.
Adama sorriu.
— É bem merecida, Apollo. Mas há mais alguma coisa por trás disso,
desta cerimônia de homenagem, do que tu, o Starbuck e o Boomer serem
condecorados. A minha presença iria, de certo modo, secundar a estratégia de
Uri, e a cerimônia não vai ser senão isso, uma das suas golpadas.
— Golpada? É estranho... Enaltecer o filho do seu maior rival, e
aproveitar isso para uma golpada.
— No entanto, é isso mesmo. Ele irá propor, durante a festa, que
destruamos as nossas armas. Está à espera que desencadear de emoções os
leve a fazer o que ele deseja antes de todos terem compreendido o que
fizeram.
Apollo injuriou-se pela sua própria estupidez... Claro, dado tudo o que
Uri urdira até ali, devia ter desconfiado desde o princípio. Depois de ter visto
Uri junto à fonte de grogue na noite anterior, Apollo deveria ter percebido
que o homem preparava alguma.
— Mas o pai pode impedi-lo! —disse Apollo para Adama.
— Parece-me bem que já não posso. Não ouviste a conversa? Eu sou o
mauzão, pelo menos para a maioria da população, que está predisposta a
acreditar em tudo o que o cativante Uri lhe disser. Fui eu quem os colocou
nesta situação, estás a perceber?
— Mas quem é que vai acreditar nisso? Com certeza que a maioria não...
— A maioria, pelo menos por agora, está do lado do Uri. Tens de
compreender. Apollo, o que eles passaram.
— Eu tenho imensa pena deles, pai. Herdei de si essa solidariedade. Mas
não é altura para isso, pai, e... Pai, tem de falar àquela gente.
Adama inspirou profundamente antes de responder ao apelo de Apollo.
— Estou retirado disso tudo, Apollo. Exceto quanto ao comando desta
nave e a, certas fases da operação global, estou...
— Não acredito no que está a dizer! Não é o pai que está a falar. Que
aconteceu? Ajude-me a compreender.
Era tudo o que Adama podia fazer para manter uma atitude oficialmente
neutra, quando o que mais desejava era abraçar o filho.
— Hás de compreender, meu filho. Na altura devida, hás de
compreender.
Apollo abriu a boca para falar, mas depois, pensando melhor, deu meia
volta e abandonou a ponte.
Tigh veio pôr-se ao lado de Adama.
— Não foi fácil para si, não abrir a boca — disse Tigh. —Talvez...
— Não. Preciso dele lá em baixo, na cerimônia. Se lhe tivesse dito, ele
teria insistido em ficar ao pé de mim. A jogada é minha. Se eu ganhar,
ganhamos todos.
— Mas se falhar. Uri terá a sua cabeça numa bandeja.
Adama observou o visor estelar. Pela primeira vez desde que reunira a
frota de ferro-velho, sentia renascer a confiança dentro de si.
— Não falho — disse ele. — Os Cylons já me levaram uma vez ao
engano, com a sua malícia. — Os olhos semicerraram-se, fazendo lembrar o
velho Adama da lenda galáctica. — Mas nunca mais o farão!
Voltou-se para Tigh, com os olhos brilhantes na antecipação de atuar.
— Relate. O gado.
— Todo a ser transferido da superfície do planeta neste momento. Sem
interferências.
— Relate. O projeto agrícola.
— Tudo colhido, comandante. O projeto em breve estará completado.
— Relate. O combustível.
— Outro carregamento de oferta acaba de chegar. Agora mesmo. O
maldito quase explodiu quando o piloto o pousou na plataforma um pouco
pesadamente de mais. Parece que há outros carregamentos prontos a ser
embarcados, mas os ovianos estão a abrandar propositadamente o ritmo de
trabalho.
— Não os deixe desconfiar. Mas arranque-lhes tanto tylium quanto
conseguir.
— Muito bem, comandante.
— Vamos a isto, coronel!
Tigh já estava em atividade. Como sempre. Em seu redor, a tripulação
parecia corresponder à energia turbulenta e reencontrada do seu comandante.
Adama lembrou-se duma história da sua infância sobre o acordar de um
gigante adormecido.
***
Apollo, esperando juntamente com Serina pelo elevador dos hóspedes
que os levaria ao casino, não conseguia deixar de pensar na recusa do pai em
expor o seu caso às pessoas. Tinha de se fazer qualquer coisa quanto a Uri, ou
em breve todos acordariam para ver que o astucioso político se colocara
numa posição de poder absoluto.
— Escreve-me um poema! — disse de súbito Serina, com a intenção
nítida de o distrair.
— Não seria capaz — respondeu Apollo, arrancado aos seus devaneios.
— Nem sabes o que me estás a pedir.
— Sei, sei. Tinha muito valor para mim.
Chegando-se a ele, deu-lhe um beijo na face, sussurrando:
— Faço melhor em privado.
Apollo estava mesmo para sugerir algo ainda mais específico quanto à
sua próxima intimidade, quando lhe chamou a atenção um passante que
vestia o uniforme da Galactica. O homem, cujo colarinho era nitidamente
demasiado largo para o pescoço, e cujas mangas passavam bastante abaixo
dos punhos, parecia um pouco velho de mais para estar no ativo. O exame de
Apollo foi tão ostensivo que o homem reparou. Voltou-se com evidente falta
de à-vontade e enfiou pelo corredor mais próximo, como se quisesse escapar-
se.
— Que foi? — perguntou Serina.
— Aquele homem com a insígnia da Esquadrilha Azul. Julgava que
conhecia todos os homens daquela esquadrilha. Não me lembro de ter visto
este.
— Talvez tenha sido transferido de uma outra unidade.
— Conheço todos os outros também. E viste como lhe ficava o
uniforme?
— Ora, quantas vezes é que vocês põem os vossos uniformes de gala?
Se calhar comprou o dele quando estava mais gordo e não o põe há anos.
— Não tinha pensado nisso.
— Seja como for, o convidado de honra fica bastante bem no seu
uniforme... E muito atraente, devo acrescentar.
Ele apertou-lhe a mão. Mas, apesar do glorioso sorriso que ela lhe
endereçou, não conseguia tirar da ideia aquele oficial num uniforme
demasiado grande.
***
Os ovianos, sempre pressurosos em servir, tinham enfeitado de novo
todo o casino para a cerimônia de entrega das condecorações. Tinham
arranjado luzes coloridas em desenhos de flores para abrilhantar e dar um ar
festivo ao ambiente. Acrobatas e artistas de todos os tipos faziam os seus
números numa das pontas do vasto salão. Os homens em uniforme militar de
gala completavam o quadro decorativo.
Starbuck não conseguia estar calmo. Enquanto ele e Boomer esperavam
junto ao pódio que a cerimônia começasse, não conseguia estar sossegado.
Boomer também parecia estar inquieto.
— Nunca te disse como ficas encantador de uniforme de gala? — disse
Boomer numa forçada tentativa de gracejar.
— Tira-me mas é daqui — respondeu Starbuck irritado. — Os
combatentes galácticos não se metem nesta pompa toda e...
— Cuidado. Os convidados de honra não falam mal. Não é bonito.
Sire Uri, com toda a aparência de chefe de cerimônias, levantou os olhos
para eles com ar fanfarrão.
— Não vejo o capitão Apollo. Espero que ele esteja...
— Teve de ir à Galactica — respondeu Starbuck —, mas já volta.
Uri olhou para o salão cheio de gente, onde predominavam os uniformes
azuis da Galactica.
— Pelos uniformes que vejo, dá-me ideia que a maior parte dos militares
se encontra cá — disse Uri. — Além do vosso capitão, claro.
— Bem, Sire Uri — replicou Starbuck —, é que a minha presença traz
sempre gente atrás.
Uri, sem saber ao certo que significado dar ao sarcasmo de Starbuck, deu
meia volta e afastou-se, procurando outro assunto a que dedicar a sua
atenção. Boomer puxou pela manga de Starbuck.
— Não me estragues os vincos — disse Starbuck. — Que foi?
— Aqueles três tipos ali ao canto, a ver os acrobatas, sabes dizer-me
quem são?
Starbuck estudou os três homens, todos eles com uniformes da frota
colonial que não lhes assentavam bem.
— Não, Boomer, macacos me mordam se os conheço. Vê-se que os
alfaiates deles não prestam, ou então todos estes jogos e divertimentos lhes
deram cabo da saúde.
— Starbuck, tu devias conhecê-los.
— Por que diabo devia eu conhecê-los?
— Eles tem a insígnia da nossa esquadrilha.
Starbuck olhou melhor para o estranho grupo. De súbito começou a
andar na direção deles, gritando para trás para Boomer:
— Não os deixes começar os festejos sem mim.
Um dos três homens viu Starbuck que se aproximava e chamou a
atenção dos outros dois. Imediatamente os três se começaram a dirigir para os
elevadores. Starbuck, acelerou o passo, tentando aproximar-se deles.
***
Saindo do elevador, Apollo embateu fortemente contra um homem em
uniforme da Galactica. Estava a preparar-se para repreender o incorreto
quando as portas do elevador se fecharam mesmo no seu nariz. Havia algo de
estranho no homem e nos que o acompanhavam. Encolhendo os ombros,
virou-se para Boxey e disse:
— Os ovianos fizeram disto um sítio bastante agradável, não te parece?
— Não gosto deles — respondeu o rapaz, lacônico.
Serina segredou a Apollo:
— Boxey está de mau humor porque uma oviana tentou impedi-lo de
trazer o Muffit à cerimônia.
— Já vi que ganhou a causa.
Apollo apontou para o daggit-dróide, nos braços do rapaz.
— Claro que ganhou — respondeu Serina. — Ele está a treinar-se para
oficial da Galactica, não está?
Starbuck aproximou-se, correndo, de Apollo e disse:
— Capitão, aqueles homens que se meteram agora mesmo no elevador...
— Sim, fiquei com uma estranha impressão de um deles, mas que foi
que aconteceu?
— Há aqui algo de anormal, e não estou a gostar nada disto —
respondeu Starbuck. — Acho que aqueles três são impostores. Há alguém
estranho que está usando os nossos uniformes, ou duplicados dos nossos
uniformes. Podemos falar?
— Claro. Serina, dás-me licença?
— Claro, mas não por muito tempo, está bem? Levo o Boxey comigo e
vou arranjar qualquer coisa para comer.
Muffit Dois saltou dos braços do rapaz e fugiu para o salão principal do
casino, com Boxey a correr atrás dele.
— Tenho de ir — disse Serina —, mas vocês dois não se demorem. Não
vão faltar à cerimônia em vossa própria homenagem.
Enquanto ela se afastava, Starbuck levou Apollo para um canto
sossegado.
— Ora fala-me lá desses impostores — disse Apollo, lembrando-se do
homem de uniforme largo que encontrara junto ao elevador.
— Não sei — começou Starbuck —, tenho encontrado uma porção de
gente que não pertence à nossa unidade. Mas todos eles trazem vestido o
uniforme da nossa unidade.
— Eu sei, também já dei com um. O melhor é averiguarmos o que se
passa.
A porta do elevador abriu-se na sua frente, e os dois enfiaram-se lá
dentro.
***
Cassiopeia levou muito tempo a encontrar um sítio escuro onde pudesse
estar longe da multidão. Um sítio sombrio para o seu humor sombrio.
Quando chegara ao casino, Starbuck mostrara-se distante e ela não apreciava
o humor caprichoso do jovem tenente. Depois, o indecente e lúbrico Sire Uri
fizera-lhe cerca de vinte propostas indiscretas, voltejando em seu redor, e ela
sempre a recusar todos os seus desejos, até que finalmente desistira,
resmungando que nenhuma maldita animadora social tinha o direito de o
insultar daquele modo. Por fim, o ambiente festivo deprimira-a ainda mais, e
ela sentiu que precisava de se isolar por uns momentos, tentar libertar alguma
da tristeza que sentia.
O que encontrou foi uma cadeira de pelúcia que fora posta por trás de
um painel de ornamentação. Deixou-se cair em cima e fechou os olhos. No
entanto, a escuridão não a isolou como devia ser, como normalmente
acontecia quando utilizava as técnicas de meditação que aprendera durante o
seu treinamento de animadora social. Havia a interferência de muitas outras
cenas: ter ganho as honras acadêmicas mais elevadas e a atribuição da franja
de ouro que estava autorizada a usar em torno do pescoço e da bainha do seu
traje de saída. A distinção exigia dos gemons que a tratassem com dignidade
especial. A sua seleção para animadora oficial e o inerente privilégio de
ensinar a juventude. O seu caso amoroso, longo e intermitente, com um
artista gemon, a sua delicadeza para com ela, o que sentira quando não o vira
aparecer entre os refugiados. A sua única e desastrosa noite com Starbuck, o
primeiro homem que a tratava com acentuada delicadeza de há muito tempo a
esta parte. Porque não poderia ele...
Uma oviana, aparentemente surgida da parede, veio interromper os seus
pensamentos. Antes que pudesse dizer alguma coisa, a alienígena colocara
uma das suas quatro mãos sobre a boca de Cassiopeia, começando a arrastá-la
para um pequeno elevador-casulo dissimulado na parede.
***
Serina correspondeu ao gesto de Sire Uri pedindo-lhe para se aproximar
do pódio. Ele perguntou-lhe onde estava o capitão Apollo.
— Está a chegar —disse ela —, tenho a certeza.
Uri olhou para Boomer, o único dos homenageados presente na
plataforma.
— Sugiro que vá procurar os seus dois amigos e lhes diga que vamos
começar —disse Uri —, com ou sem eles.
Boomer lançou-lhe um olhar cortante, saltou do pódio, com um sorriso
amarelo no rosto.
— Gostaria de falar consigo mais tarde — sussurrou Uri a Serina —, a
sós.
— Vá-se afogar na fonte de grogue — disse Serina suavemente e
afastando-se.
***
Seetol não conseguia descobrir porque se sentia desassossegada quanto à
operação que decorria no casino e nos vários andares da colônia oviana. A
maior parte dos combatentes coloniais encontravam-se reunidos para a
cerimônia. Seriam alvos fáceis quando chegasse o devido momento. As suas
tropas estavam a arrebatar com muito êxito os humanos que se afastavam do
grosso da multidão, levando-os para os andares inferiores. Tudo aquilo que
fora encarregada de supervisar estava feito. Contudo, sentia-se preocupada.
O centurião cylon dirigiu-se arrogantemente para a sala do trono; Seetol
e a sua rainha, automaticamente, esboçaram uma vénia.
— Às vossas ordens — disse Lotay.
— Fala — ordenou o centurião.
— Os humanos estão aqui reunidos em grande número.
— Quantos militares?
— Contámos mais de duas centenas.
— Os meus relatórios indicam que esse número perfaz quase o total.
Bom trabalho, Lotay.
O cumprimento condescendente do centurião provocou um arrepio de
repugnância no corpo de Seetol, agitando os seus quatro membros.
— Estamos aqui apenas para vos servir — respondeu Lotay na sua voz
suave e profunda.
— Serviste-nos bem. Faz com que os humanos fiquem entretidos até ao
fim.
— Como saberemos nós...
— Quando a Galactica for destruída, a noite iluminar-se-á como se
tivesse mil sóis, por um breve instante, depois virá a escuridão. Escuridão
eterna para os humanos. E os que ficarem estarão à vossa disposição, para as
vossas câmaras subterrâneas.
— Estamos muito gratos, centurião.
— Não fazes mais do que a tua obrigação.
Lotay e Seetol fizeram uma vénia e recuaram, saindo da sala do trono.
***
O líder imperial sentiu que finalmente chegara o momento de entrar em
ação. O seu centurião em Carillon informara-o de que os guerreiros humanos
se encontravam reunidos no local. A estrela-de-batalha Galactica e o resto da
frota estavam a ser comandados por tripulações simbólicas. Não poderiam
lançar um contingente de contra-ataque, nem ripostar adequadamente com a
sua artilharia. Podia-se desencadear um ataque neste momento, quer contra as
naves no ar quer contra os humanos encurralados no solo. Ordenou que a
força estelar suprema saísse do campo de camuflagem onde se escondera
após a sua chegada ao sector de Carillon e que avançasse em direção ao
planeta. Simultaneamente, ordenou a outra das suas frotas que partisse rumo
às naves que Adama deixara para trás. Podiam ser varridas com uma simples
descarga de artilharia dos seus caças, tão desprotegidas se encontravam.
Então, toda a humanidade exceto os que os Ovianos reclamassem para os
casulos dos seus andares subterrâneos, seria finalmente aniquilada.
O líder permitiu-se um breve instante de satisfação, o tipo de felicidade
que sentia quando conduzia uma campanha militar tão multifacetada. Ficaria
simultaneamente aliviado e feliz por se ver livre da peste humana. Andava há
tanto tempo em luta com eles que começara a pensar como eles. Estava
contente por essas coisas irem acabar.
***
Apollo e Starbuck não conseguiam encontrar qualquer rasto dos três
estranhos homens em uniforme da Galactica nos andares destinados aos
hóspedes.
— Eles têm de estar aqui, nalgum sítio — resmungou Starbuck
frustrado. — Se cá não estão, é porque foram para outro andar.
— Os outros andares estão interditos aos humanos.
— Mas os ovianos podem lá ir. Talvez alguém os tivesse levado. Sabes,
tenho estado a pensar: até que ponto serão inacessíveis os andares inferiores?
— Esse pensamento também já me atravessou o espírito. Vamos tentar?
— Às suas ordens, meu capitão.
Voltaram para o elevador. Dentro do carro, Apollo tirou a arma,
apontou-a ao painel de controlo e disparou. O fino feixe vermelho perfurou o
metal e fez saltar, num círculo quase perfeito, mesmo por cima dos botões
dos andares, uma secção do painel, que caiu ao chão. Dentro do painel viam-
se vários fios que tinham sido seccionados pelo raio da arma de Apollo.
Olhando para os fios balouçantes, Starbuck comentou:
— Estás ciente de que isto é propriedade privada?
Apollo sorriu.
— Acho que é um dever nosso para com eles pôr tudo outra vez no seu
lugar — disse ele. — Tens alguma sugestão a fazer?
— Sim, meu capitão. Sugiro que tente ligar aqueles fiozinhos ali uns aos
outros.
Apollo fez a ligação de um par de fios. Assim que estes se tocaram, o
elevador recobrou a vida e começou a descer.
— És jogador, não és? —disse Apollo. — Então escolhe um andar.
— Acho que devemos ir dar uma olhadela ao que está mais afastado dos
alojamentos dos hóspedes.
— De acordo.
Apollo premiu o botão referente ao andar mais inferior. Desta vez não se
fez ouvir a tal voz suave, a proibir e criticar.
***
A raptora levou Cassiopeia através de vários andares mais abaixo para
uma câmara escura e cavernosa. Durante todo o caminho, Cassiopeia
debateu-se, pelo que a oviana teve de pedir reforços numa voz aguda mas
sonora. O grupo de ovianas atirou-a para cima de uma mesa maciça e, antes
que ela pudesse fugir, uma grande cobertura lembrando um dossel caiu
rapidamente do teto e imobilizou-a, impedindo-a de se escapar. Tubagens
enfiadas na coberta começaram a largar um gás vermelho-escuro. Cassiopeia
tentou reter a respiração, mas, olhando para um braço, viu que o gás
penetrava através da pele. O seu espírito ordenou-lhe que gritasse, mas o
corpo começava a sentir-se extremamente confortável, extremamente
satisfeito. À medida que sentia a tensão escapulir-se do corpo, olhou através
da coberta transparente que a envolvia. As ovianas estavam a abrir dir-se-ia
grandes casulos. Num trio de casulos, três homens em uniforme da Galactica
apareciam aconchegadamente aninhados, com uma expressão calma no rosto.
Cassiopeia sorriu-lhes e conseguiu acenar-lhes debilmente.
Teve a vaga sensação de ouvir vozes humanas gemendo na distância.
***
Um gemido foi o primeiro som que Apollo ouviu ao pôr o pé,
acompanhado de Starbuck, na atmosfera opressiva do corredor do andar
inferior. Puxando pela arma, fez sinal a Starbuck para o seguir na direção do
som.
— Tu mandas — sussurrou Starbuck.
Mal tinham virado para um corredor, ouviram uma algazarra atrás deles.
Reconhecendo-a como a linguagem oviana, Apollo virou-se rapidamente,
pronto a disparar. Contudo, as ovianas encontravam-se reunidas em volta do
elevador, examinando os estragos provocados por Apollo e Starbuck e
discutindo o facto entre si. A rainha, Lotay, apareceu junto delas e examinou
o destruído controlo do carro. Na sua fala excitada, enviou as outras ovianas
correndo em todas as direções.
— Vão à nossa procura — murmurou Apollo —, vamos embora.
Quando se preparava para prosseguir, pareceu-lhe ouvir o latir de um
daggit adiante de si.
***
Serina conseguiu finalmente localizar Boxey do outro lado do grande
salão. Como de costume, andava à procura de Muffit Dois. O daggit-dróide
farejava um painel de decoração que isolava uma pequena parte do salão.
Como se estivesse a seguir uma pista. Muffit desapareceu atrás da tela.
— Anda cá, daggit! — berrou Boxey, desatando a correr atrás dele.
Serina sorriu. Estava na hora de juntar Boxey e Muffit e dar-lhes de
comer. Foi atrás da tela e viu uma cadeira virada. E nada mais. Boxey e o seu
daggit não se encontravam lá.
«Bem, nada de pânico», disse de si para si. « voltaram para o casino de
uma maneira qualquer.» Apressou-se em voltar ao salão principal. No pódio.
Uri tinha apresentado algumas desculpas pela ausência dos convidados de
honra e lançava-se num discurso sobre renascimento, esquecer animosidades
e começar vida nova, oferecer a paz aos seus inimigos.
As pessoas aplaudiam. «Uma verdadeira sala de doidos», pensou ela.
Onde estava Boxey? Onde estava Apollo? Que faziam ali aquelas ovianas
todas, reunindo-se lentamente, como que em filas, perto das saídas do casino?
Começou a andar depressa, procurando alguém em quem pudesse
confiar, mas sem encontrar ninguém.
***
Apollo e Starbuck encostaram-se à parede de um corredor, sem fôlego.
— Começo a pensar que tens razão — disse Apollo.
— Sobre quê?
— Sobre as tuas suspeitas de haver alguma coisa de errado nisto tudo.
— Mas o quê? Qual é a relação entre o casino, os alojamentos de baixo e
tudo isto?
— Sugiro que saiamos daqui e depois pensemos nisso.
A linguagem oviana e o som de latidos mais adiante fizeram Apollo
afastar-se da parede. Começou a correr pelo corredor em direção aos sons.
Starbuck seguia-o de perto. O agitado rosnar do daggit-dróide atuava como
sistema de orientação. Voltando uma esquina, viram Muffit Dois e uma
oviana que parecia embaraçada com o androide animal. A oviana tentava
agarrar Muffit com um dos quatro braços, saltando depois para trás quando
este se atirava a ela, com os dentes de aço a reluzir. Boxey surgiu de repente
de um corredor próximo, gritando: « Muffit? Muffit?» A oviana avançou para
o rapaz, tirando do seu cinto uma faca pequena, mas de lâmina bem afiada.
Boxey recuou quando a oviana ergueu a arma.
— Foge, Boxey! — gritou Apollo.
O rapaz correu para ele. A oviana deu meia volta. Starbuck surgiu à luz
sombria e disparou um raio laser sobre a alienígena, que pareceu ruir
interiormente, caindo no chão.
— Vamos embora daqui — disse Apollo, agarrando Boxey nos braços.
— Muffit! — berrou Boxey. O daggit ladrou e seguiu atrás deles.
Detiveram-se sob o arco do corredor que levava ao patamar do elevador.
Apollo espreitou.
— Oh, meu Deus! Não! — murmurou ele, saltando para trás e
encostando-se à parede.
— Que foi? —segredou Starbuck.
— Há uma porção de cylons ali adiante. Uma brigada completa, parece-
me.
— Cylons! Mas como é que eles...
— Devem poder abrir um caminho através do campo de minas. Ou isso
ou...
— Ou o quê, Apollo?
— Ou a Galactica está a ser atacada. Malditos, daí a cerimônia da
condecoração! Para nos trazer a todos para aqui enquanto os cylons nos
atacavam pelas costas. O meu pai está lá em cima apenas com uma tripulação
fictícia. Provavelmente está...
Muffit Dois, saindo de debaixo do arco, começou a ladrar. Apollo olhou.
Vários cylons olhavam na direção do arco, emitindo raios de luz dos seus
elmos. Quando se aperceberam da presença de Muffit e de Apollo, um dos
oficiais apontou para eles e um pelotão desatou a correr na sua direção.
— Vamos embora daqui! — gritou Apollo, ao que os três desataram a
correr. O daggit-dróide ficou uns instantes para trás, ladrando para os cylons,
partindo depois em correria atrás dos humanos em retirada.
***
As folhas do casulo estavam enroladas suavemente em torno do corpo de
Cassiopeia. Eram macias e aveludadas. Algumas ovianas agarram no casulo e
levaram-no para fora da câmara. Começou a sentir-se tonta. O sentimento de
paz parecia estar a desvanecer-se. Sentiu as folhas do casulo demasiado
apertadas, Não conseguia mover nem as pernas, nem os braços. Todo o seu
corpo começava a ficar entorpecido. Abriu a boca para gritar, mas não
conseguiu emitir qualquer som.
Chegaram a outra caverna larga. Dispostos um ao lado dos outros, no
chão, enchendo quase toda a superfície, estavam muitos casulos, cada um
deles com tubagem ligada a um maquinismo no fundo do compartimento. A
maior parte dos casulos continha humanos, mas outros apresentavam pedaços
de uma matéria vermelha e cinzenta, os quais, se se atentasse bem neles e se
preenchessem as áreas vazias, se podiam identificar como formas humanas.
Eram reconhecidamente formas humanas e pareciam estar a dissolver-se, a
decompor-se em matéria, a decompor-se.
A voz de Cassiopeia soltou-se de novo para largar um grito súbito,
lancinante.
DO DIÁRIO DE ADAMA:
Um dia, quando lhe deferiram o seu pedido de candidatura por um
pequeno círculo político, no seu planeta natal, Sagitaria, Adar veio visitar-nos
a Caprica. Por essa altura eu encontrava-me de licença, durante um desses
períodos de bonança que sempre se verificavam quando os Cylons se
afastavam por uns tempos da refrega. Ila gostava sempre das visitas de Adar
(muito mais tarde, pediu-me para nunca mais o deixar entrar em nossa casa) e
ficavam os dois conversando sobre temas literários e culturais, que ambos
apreciavam. Eu contentava-me em ouvi-los, enquanto observava as momices
de Apollo, então com dois anos apenas. (Athena e Zac pertenciam ainda ao
futuro.) Tínhamos então um animalzinho em casa, um daggit travesso cuja
maior felicidade era passar rasteiras a pés humanos intrometidos, e que
Apollo adorava arreliar. O cachorrinho gania, fugia e voltava novamente para
junto de Apollo, esperando novas travessuras. Ele adorava aquele daggit e,
três anos mais tarde, quando o bicho morreu com uma misteriosa doença
própria dos daggits, Ila e eu passámos um mau bocado tentando convencer
Apollo de que a morte do daggit não fora culpa sua.
Voltando ao assunto, Adar não conseguia esconder o seu bom humor
durante essa visita. Fervilhava de animação e de esperanças optimistas quanto
ao futuro. Não me lembro de muito do que disse, mas recordo que o que
ressaltava primordialmente das suas palavras era um objetivo que mais tarde
tomaria uma feição sinistra — tencionava acabar com esta coisa da guerra.
Achava que a guerra se tinha deteriorado devido à corrupção dos políticos
que a faziam, pelo menos, senti-me feliz por ele não acusar os militares, uma
vez que acabara de assumir o comando da Galactica e era bastante sensível ao
seu palmares. Lembro-me que parece ter dito que o primeiro objetivo tinha de
ser a paz. Na verdade, não me lembro bem das suas palavras. A única coisa
que posso reproduzir é a sua alegria e o seu entusiasmo. Que se comunicaram
a nós dois, a mim e a Ila. De qualquer modo, ele estava meio apaixonado por
Ila e ela meio apaixonada por ele.
No dia em que se foi embora para voltar a casa e fazer a sua campanha,
demo-nos as mãos, os três, e fizemos uma porção de votos idiotas que não
quero aqui registar. Tudo o que me interessa aqui recordar é o enlace das suas
mãos, as dele com as de Ila, e os sorrisos que não conseguíamos apagar dos
nossos rostos. Que nos déssemos às mãos e sorríssemos era, nessa altura, tão
normal, tão enraizado na tradição das nossas amizades e amores, que nunca
suspeitámos que aquela seria a última vez em que os três havíamos de estar
juntos. Oh, reunimo-nos outras vezes depois, mas Adar emprestava sempre
um clima de estratégia a essas visitas, uma sensação de que os nossos
momentos conjuntos no passado pertenciam a um livro de histórias cujos
contos ele já não apreciava ler.
Depois de Adar se ter ido embora, Ila abraçou-se a mim durante muito
tempo. Parecia triste. Nunca soube porquê, embora lhe tivesse feito a
pergunta bastantes vezes, na altura. Disse-me que se sentia triste, mais nada.
Então, o daggit, com Apollo correndo atrás dele, meteu-se entre os meus pés
e eu caí no chão. Enquanto se ria, ajudando-me a levantar-me, Ila disse que se
tinha esquecido de arranjar qualquer coisa para o almoço, e se eu me
importava de comer o que sobrara da refeição anterior. Perguntei-lhe de que
se estava a rir, e respondi que não me importava nada. Respondeu-me que me
achara absurdo ao cair ao chão e pediu-me que arranjasse uma bebida para os
dois. Abracei-a de novo. Ainda hoje sinto vividamente o modo como o seu
corpo se aninhou contra o meu.
CAPÍTULO X
Adama mantinha vigilância atenta sobre os trabalhos a decorrer em
Carillon. Várias navetas, adstritas ao projeto agrícola, corriam de regresso à
Galactica e outros aparelhos, carregadas com uma colheita que ultrapassava
todas ás previsões de produção. O último pedido de novo carregamento de
tylium esbarrara com o habitual paleio dos ovianos de que em breve seria
enviado outro contingente, assim que fosse corrigida uma pequena
deficiência na sua aparelhagem de extração. Zangado, Tigh queixou-se de
que tinha visto alguns tankers no planeta. Os écrans mostravam-nos repletos
de tylium no estado líquido volátil. Adama pediu aos seus medianeiros que
continuassem a tentar. Ficou satisfeito por um dos tankers já ter sido
despachado e foi orientar pessoalmente a delicada aterragem da desgastada
nave numa das pistas da Galactica. Um oficial informou que o embarque dos
contingentes de alimentos se tinha processado com êxito, e Adama deu
ordem para que todo o pessoal agrícola saísse do planeta. Com os
trabalhadores agrícolas e pecuários de volta, ficavam apenas os que se
encontravam reunidos no casino a assistir à cerimônia. O seu instinto
cronológico sugeriu-lhe que esperasse mais uns momentos antes de enviar a
ordem de recolher. Gostaria de trazer Apollo imediatamente para cima, mas
era impossível. Contudo, tratou de pôr Tigh alerta, em resposta à informação
do coronel de que um grupo de ovianos estava a agir estranhamente, dentro
do casino.
Athena, que estivera de vigia aos perscrutadores voltados para o planeta,
informou que detectava um número inusitado de naves e de grande
movimento na superfície do planeta. A escuridão integral deste tornava difícil
especificar exatamente o que estava a acontecer, explicou. Pelo menos uma
das naves parecia ter emergido da camada de nuvens que agora cobriam
grande parte do hemisfério em escuridão. A trajetória parecia indicar que a
nave, bastante grande, tinha emergido do denso centro do campo de minas.
— Será possível? — perguntou ela ao pai.
— Sim, se...
— Se quê?
— Se eles estiverem de posse de informações que lhes deem a chave
para atravessarem o campo de minas com segurança.
— Mas uma nave tão grande...
— Conseguiste apanhar uma imagem que dê para verificações?
— Infelizmente, não. A escuridão e a cobertura de nuvens para não falar
no adensamento de precipitação...
— Estou a perceber. Muito bem, Athena.
— Está com uma suspeita fisgada sobre esta nave, não está, pai?
Adama pensou se haveria algum perigo em confiar-lho. Parecia ter
chegado à ocasião de utilizar a perspicácia estratégica de Athena.
— Acho que pode ser um transportador de tropas.
Passaram-se alguns momentos antes que a informação lhe penetrasse
bem no cérebro; depois, Athena perguntou:
— Cylons?
— Possivelmente.
Athena voltou ao seu trabalho. Nos écrans de observação, certas
movimentações, que previamente lhe tinham parecido estranhas, tomavam
agora significado militar.
Um oficial da ponte voltou-se da bancada de observação e informou:
— A detectar vasto corpo de objetos a aproximar-se rapidamente daqui.
Parecem ter saído do nada.
— De trás de um painel de camuflagem, sem dúvida — murmurou
Adama.
— Que é que disse, comandante?
— Nada. Verifique os objetos para detectar formas vivas.
— Muito bem, comandante.
Adama afastou os olhos do banco de dados para deitar um rápido relance
ao rosto preocupado da filha. Era evidente que esta ouvira o seu murmúrio.
***
Antes de o pai a ter alertado para o perigo, Athena entregara-se à
autocomiseração por ter sido preterida e deixada a bordo da Galactica. O
espírito enchera-se-lhe de imagens de Starbuck correndo atrás da animadora
social. Desejava não ter reagido tão desastradamente, atirando a chave
daquele jeito. Se tivesse tido cabeça, teria atraído Starbuck às instalações dos
hóspedes, utilizando todas as suas faculdades para o fazer esquecer a mulher
gemon. Não lhe parecia que os homens arranjassem relações permanentes
com animadoras sociais, e isso confortou-a por algum tempo, até se lembrar
que Cassiopeia já não era considerada animadora social. Era uma ex-
animadora social, capaz de usar a sua considerável experiência dentro de
novos sistemas sociais.
Contudo, nesta altura não havia espaço para o ciúme. Se as suas
suspeitas crescentes estivessem certas, e se o que estava a acontecer no
planeta lá em baixo e no espaço acima era outra emboscada dos Cylons,
então não havia lugar para emoções mesquinhas. Porque não chamaria o pai
as tropas, em vez de as deixar no casino? Já tinham muito contra si, e o
tempo que se perderia em trazer para bordo os militares que estavam em
Carillon poderia significar a diferença entre a derrota e a vitória. Não estava
acostumada a que o pai hesitasse no seu papel de comando. Por outro lado,
não estava preparada para a sua demissão do Conselho, atitude esta que
parecia indicar perturbações emocionais. Seria possível que o pai estivesse a
deteriorar-se mentalmente, que a forte pressão do meio exterior estivesse a
desenvolver uma explosão de loucura? Abanou a cabeça, não querendo
sequer admitir uma coisa dessas.
Ligando a linha de comunicação com Tigh, que deixara o
transrespondedor aberto, pediu-lhe que informasse da situação.
— Os ovianos estão a juntar-se aos montes — respondeu ele. — Somos
capazes de ter de tomar uma atitude muito em breve. Se conseguirmos que
esta estúpida multidão se comece a mexer...
— Que quer dizer?
— Bebem uma a uma as palavras que o Uri está a dizer. Como é que vão
nisso! Oiça, vou ligar o transmissor e já pode ouvir...
Uri estava a falar.
—... Para aproveitarmos esta ocasião para invocar em cada um de nós
um renascimento. Varrer o passado de todas as animosidades e reservas
contra todos os nossos irmãos, quer tenham sido amigos quer inimigos...
O barulho dos aplausos que se ouviram quase ensurdeceu Athena. De
facto, o discurso do homem era cativante. Como podia a sua gente ser tão
ingênua? Lembrou-se de o pai ter dito uma vez que as panaceias eram a um
cúbito a dúzia, mas as verdadeiras soluções, essas, custavam muito, muito
mais.
— Athena? —Era Tigh novamente em linha.
— Sim?
— Diga ao seu pai que não vamos aguentar isto aqui muito mais.
— Certo, seja o que for que isso quer dizer.
— Vai saber, em breve.
O pavor de Athena parecia ter redobrado quando se afastou da bancada
de instrumentos.
***
Starbuck e Apollo tinham conseguido, por uns momentos, ganhar certa
distância aos cylons. Era sabido que os cylons eram lentos na corrida.
Infelizmente, a última esquina que dobraram levara-os a um beco sem saída.
— Como é que vamos sair daqui? —perguntou Starbuck.
— Sei lá!
— Tenho ou não razão em deduzir que, além de nos encontrarmos num
beco sem saída, estamos também irremediavelmente perdidos?
— Tem toda a razão, tenente.
— Bem, sempre gostei de saber as coordenadas da situação.
Especialmente quando elas aparecem em mil contra um a meu desfavor.
— Não se pode estar sempre a medir a vida por coordenadas de jogo.
Starbuck.
— Ah, não? Tens alguma alternativa?
— Starbuck, aqueles cylons vão dar connosco a qualquer momento. Não
é altura para...
— De acordo. Mas que devemos fazer? Irmos por ai fora a cerrar fileiras
e a arrebentar com tudo para abrir caminho, como fizemos para descobrir o
corredor no campo de minas? E o Boxey, e aquela máquina de latidos e
rosnadelas lá dele, e...
— O Muffy não é nenhuma máquina! — protestou Boxey.
Muffit deve ter-se sentido insultado, pois começou a ladrar.
— Caluda, daggit! — disse Boxey.
O daggit começou a correr na frente deles. Andou uns passos e depois
voltou para trás.
— Que está ele a fazer?—perguntou Starbuck.
— Quer que vamos atrás dele — disse Boxey. — Embora...
— Boxey, não me parece a melhor altura para... — repreendeu Apollo,
mas, antes que pudesse acabar, Boxey tinha-se-lhe desprendido dos braços e
pusera-se a correr pelo corredor adiante, atrás do daggit.
Apollo e Starbuck precipitaram-se atrás deles. Quando estavam quase a
apanhá-lo, o cachorro enfiou-se por um espaço escuro, na parede, que parecia
uma sombra. Boxey seguiu atrás dele. Starbuck e Apollo entreolharam-se.
Um exame mais atento mostrou-lhes ser a sombra um pequeno túnel que se
estendia entre o corredor e o que descobriram ser, rastejando através do túnel,
uma vasta caverna. Ao princípio, Apollo pensou tratar-se apenas de uma das
zonas mineiras, até atentar bem no solo.
— Que é aquilo? —perguntou ele a Starbuck.
— Parece-me um canteiro de vegetais, mas...
— Meu Deus!
Simultaneamente tinham-se apercebido das formas humanas dentro dos
casulos. Starbuck ajoelhou-se junto do casulo mais próximo e tocou na
mulher rechonchuda que estava lá dentro.
— Parece-me... Parece-me que estive a jogar hi-lo com esta mulher,
naquele primeiro dia em que dei com o casino. O homem dela era... Era... Já
me esqueci.
— Está viva? —perguntou Apollo.
— Respira. E o pulso bate. Deixa-me ver se consigo...
— Que foi?
— O corpo dela. Está colado a isto. E não está só colado. Está a tornar-
se parte do casulo, a fundir-se com as folhas. Por baixo, ela... Apollo, a parte
de trás da cabeça e dos ombros, estão a decompor-se em matéria, em...
— Não podemos ficar aqui. Anda.
— Mas esta mulher! Os outros! Não os podemos abandonar, nós...
— E também não podemos ficar aqui a ver quais é que podemos
recuperar. Mandamos uma equipa cá abaixo. Agora temos é de tratar dos
cylons. Anda. Vamos atrás do Muffit, ele parece saber para onde vai.
Atravessaram a câmara, passando cuidadosamente por cima dos casulos,
tentando não olhar para o que continham.
Adiante deles, um grupo de ovianos entrou na caverna, carregando
quatro novos casulos. Apollo agarrou em Muffit e agachou-se atrás do casulo
mais próximo. Starbuck e Boxey deitaram-se no chão a seu lado.
— Que é isto aqui? —segredou Starbuck.
— Parece-me que eles têm estado a arrebatar pessoas do casino e a trazê-
las cá para baixo. É essa a razão de ser do casino, a razão por que nos deixam
ganhar a todos e nos mantêm felizes e anafados.
— Mas por quê? Para que é que os fecham nestes casulos e...
— Não tenho bem a certeza. Talvez sejamos uma fonte de alimentação
para os Ovianos, talvez...
— Alimentação? Quer dizer que este casino é um armazém de víveres?
Os Ovianos são uma raça de canibais?
— Não, Starbuck, isso não é...
— Isso não é o quê?
— Canibais são espécies que comem a sua própria espécie. Ora aqui, os
ovianos não comem ovianos, estão...
— Que bela altura para explicações! Queres dizer que eles nos estão a
engordar, como ao gado, como...
— Pode ser isso mesmo. Aqueles casulos da frente que eles acabam de
trazer, os homens lá dentro parecem-me conhecidos.
Starbuck olhou de relance para os casulos, que estavam a ser pousados
com cuidado, horizontalmente, enquanto as ovianas pegavam numa tubagem
a que os ligavam.
— São os três homens atrás de quem andávamos!— exclamou Starbuck.
— Bem me parecia. Mesmo daqui se vê que lhes assentam mal os
uniformes.
— E o outro... Oh, não! É a Cassiopeia!
Starbuck tinha-se levantado e, antes que Apollo o pudesse deter, desatara
a correr. Precipitou-se para as carregadoras do casulo como se fosse um
corredor de competição, saltando por cima dos casulos como se estes fossem
os obstáculos. Num último salto, Starbuck atirou-se contra uma das ovianas
que tinha acabado de largar o casulo de Cassiopeia, para fazer a ligação à
tubagem.
O movimento de Starbuck pareceu ter estimulado Muffit Dois, que
correu atrás dele. Naturalmente, Boxey seguiu o seu daggit. Apollo, ainda
agachado atrás de um casulo, praguejou « Raios!» e começou a rastejar em
direção a Starbuck, por entre e por cima dos casulos.
***
Seetol, alertada para os distúrbios por um mensageiro, dirigiu-se
apressadamente para a câmara dos casulos. Por outra entrada surgiu Lotay,
acompanhada do alto espião cylon.
Um dos humanos, o arrojado jovem Starbuck, debatia-se no abraço
férreo de duas guerreiras ovianas. Quando Seetol se aproximou, ouviu-o
dizer:
— Não a pode transformar em... Em comida!
— Não é propriamente comida, senhor — respondeu Seetol. — Embora
as vossas substâncias nutritivas sejam parte daquilo que é absorvido. Na
realidade, são dissolvidas num líquido utilizado para a alimentação dos
nossos bebês, quando eles saem dos ovos.
Starbuck parecia enojado.
— Vocês são mais infames que... —e, vendo o cylon que se aproximava:
—... Mais infames que um cylon!
Seetol não reagiu ao insulto e prosseguiu:
— Dentro destes casulos conseguimos extrair tudo o que a vossa raça
tem de melhor. Aliás, de outras raças também. Minerais, líquidos dadores de
vida, ossos para materiais de construção. Até podemos extrair conhecimentos
dos vossos cérebros, e informações das células do vosso corpo. Pode-se dizer
que aproveitamos todos os vossos bocadinhos.
O centurião cylon riu-se, grosseiramente.
— É impossível, ver-se utilidade num pedaço de verme humano! —
disse ele.
Latidos e rosnados distraíram a atenção de Seetol. O rapazinho humano
estava a puxar o uniforme da perna de um dos seus soldados, enquanto que o
detestável animal lhe mordia. A rainha, nitidamente divertida com a situação,
avançou e, com os seus longos braços, afastou o rapazinho do soldado.
— Tenho planos especiais para esta criança — disse ela ao soldado, que
tinha puxado de uma arma. — Ele é meu. Mas, se quiseres, podes fazer
desaparecer o animal.
A oviana apontou friamente a arma para Muffit Dois, que saltava agora
de fúria. Apertando um dos seus dois gatilhos, disparou sobre o daggit no
ponto culminante de um dos seus saltos. Uma chuva de faíscas libertou-se do
corpo de Muffit, que caiu ao chão, feito num montão inerte de sucata.
-Muffy! Muffy! — gritou Boxey.
— Ah, seus... — exclamou Starbuck. Contorcendo o corpo com
violência, libertou-se do abraço em que os oito braços das duas guardas
ovianas o mantinham. Saltando rapidamente para a esquerda de Seetol,
Apollo disparou sobre a oviana que atingira o daggit, enviando um raio
mortífero que lhe trespassou o pescoço. Em reação, Starbuck rolou sobre o
lado esquerdo e pôs-se de pé, também a disparar. Tiro certeiro, pois o elmo
do cylon partiu-se em dois. Os dois homens desataram a atirar furiosamente
para todos os lados, parecendo, a cada disparo, que caía uma oviana ao chão.
Seetol aventurou-se destemidamente através do fogo, a proteger a sua rainha.
Lotay ainda tinha ao colo a criança, que chorava desalmadamente, olhando
para o cachorrinho estatelado no chão, enquanto ela o apertava firmemente
nos braços.
O tiroteio nas suas costas silenciou. Olhando para trás, viu que os
humanos tinham abatido todas as suas guardas. Starbuck avançava entretanto
sobre ela e Lotay.
— Para já onde estás, inseto nojento! — gritou ele.
Seetol deslocou-se para o lado, interpondo-se deliberadamente entre os
dois homens e a rainha. Acontecesse o que acontecesse, Lotay tinha de ser
protegida. Seria a prova definitiva do seu amor pela rainha, morrer por ela.
— Starbuck, para!—gritou Apollo.
— Quero matá-las às duas. Não temos já muito tempo.
— Podes matar o Boxey, também!
Ao apelo de Apollo, Lotay firmou ainda mais o rapaz entre os seus
braços.
— Desarma-os, Seetol! — exclamou Lotay, num grito estridente.
Condicionada a responder automaticamente a uma ordem vinda da sua
rainha, Seetol lançou-se sobre Starbuck. Este, surpreendido com o salto da
oviana, conseguiu ainda disparar sobre ela um raio que lhe atravessou um dos
braços esquerdos. Chegando ao chão, Seetol embateu contra Starbuck que,
desequilibrando-se, caiu. Seetol agarrou-se ao braço dele, tentando arrancar-
lhe a arma da mão. O movimento, empurrando-lhe o braço, fê-lo disparar
acidentalmente a arma. Por trás de Seetol ouviu-se um grito estridente que
acabou num gorgolejo. Voltando-se, viu Lotay caindo, com a cabeça meia
separada do pescoço pelo tiro casual. O grito de Seetol continuou o de Lotay,
que esmorecera, e ela correu para a rainha estendida. Boxey, vendo-se liberto
dos braços inertes de Lotay, correu para Muffit. Starbuck, apontou a arma à
cabeça de Seetol.
— Não, Starbuck! — gritou Apollo. — Já chega. Trata da Cassiopeia.
Starbuck correu até ao casulo que continha Cassiopeia, enquanto Apollo
se precipitava para junto do rapazinho em soluços.
Mal ficou liberta do casulo, Cassiopeia caiu nos braços de Starbuck,
drogada, semi-inconsciente, mas viva. Ele apertou-a por uns momentos
contra si, sentando-a logo depois para ir libertar os homens em uniforme da
Galactica. Ia interrogá-los, mas viu logo, pelo seu olhar vidrado, que não
estavam em estado de dar qualquer explicação.
A princípio, Apollo não soube que fazer com Boxey. Tinha a impressão
de que o corpo desbaratado do daggit-dróide lembrava a Boxey a morte do
verdadeiro cachorro lá em Caprica. Só que desta vez ninguém poupara ao
rapazinho a visão de um corpo desmantelado. O miúdo seria capaz de
ultrapassar novamente uma situação destas? Ou seria uma perda definitiva?
Talvez não.
— Temos de ir embora, Boxey. Não podemos ficar aqui.
— Mas eu não vou deixar o Muffit aqui sozinho.
— Eu sei o que estás a passar, mas tu és ou não um cadete da frota
estelar?
— Sou, mas...
— Então toca a andar, menino. Eu levo o Muffit. Prometo-te. Agora
vamos embora, ou então ponho-te de quarentena no porão.
Boxey, respondendo à autoridade que sentia na voz de Apollo, pôs-se de
pé num salto. Com cuidado, Apollo pegou no daggit-dróide. Alguns fios no
seu interior estavam pendurados, torcidos e queimados. Ordenando a Boxey
que começasse a andar, reuniram-se a Starbuck, levando também consigo
Cassiopeia e os três homens de uniforme, obedecendo todos às ordens como
se fosse robots. Formavam, pensou Apollo, um estranho pelotão, dirigindo-se
cautelosamente para a entrada da caverna. Starbuck, que vinha na cauda,
olhava para a chorosa Seetol. Ergueu a arma na sua direção e fez pontaria,
mas Apollo pediu-lhe que a deixasse com a sua dor. Já não constituía ameaça.
Seetol, consciente da partida dos humanos, não fez qualquer movimento
para os seguir. Já não era necessário. Lotay estava morta. Como em qualquer
morte de uma rainha oviana, os pequenos aguilhões pontiagudos da pele do
seu corpo começaram a colorir-se de um amarelo neutro, esbranquiçado. Em
breve recolheriam ao interior da pele.
Sem a sua rainha, Seetol ficava sem qualquer função. Nada havia que
mitigasse a sua dor. Ferida pelo disparo de Starbuck, limitou-se a sentar-se e
a deixar a vida escoar-se-lhe do corpo. Durante muito tempo manteve-se
inclinada sobre o corpo da rainha, murmurando sons agudos e prolongados
que eram a versão oviana do cântico fúnebre. Lentamente, a inconsciência
foi-a libertando da sua tristeza, e acabou por se abater, atravessada, sobre o
corpo de Lotay.
***
— Parece-me que já me orientei — anunciou Starbuck, depois de se
terem afastado da câmara dos casulos. — O elevador é para aquele lado.
— E o grupo de centuriões também — replicou Apollo.
— Ei!
Empurrando os atordoados homens de uniforme contra uma parede e
obrigando um deles a segurar a forma inerte de Muffit Dois, Apollo e
Starbuck refugiaram-se por trás de uma saliência na rocha da parede, quando
os cylons abriram fogo. Os raios laser arrancaram bocados de rocha da
parede. Starbuck e Apollo ripostaram, e dois centuriões caíram.
— Tens outra arma? — perguntou numa voz entaramelada Cassiopeia,
que rastejara até junto de Starbuck. — Sei manejar uma pistola laser. Uma
das minhas muitas...
Starbuck ia mandá-la para trás, pois ela ainda estava muito tonta. Em vez
disso, respondeu:
— Vai ver se aqueles palhaços têm pistola nos coldres.
Apontou para os três homens uniformizados e depois voltou-se,
disparando sobre os centuriões que bloqueavam o corredor e o elevador. Os
seus disparos e os de Apollo continuavam a acertar nos alvos: em breve havia
um monte de cylons por terra e ninguém a ripostar ao fogo dos humanos.
— Ei! — exclamou Cassiopeia, vacilando e apontando para a pistola que
tinha ido buscar ao fundo do corredor. — É a fingir. Estes tipos usam pistolas
falsas!
— Não me admira. Vamos sair daqui. Este tiroteio todo deve ter atraído
muitos intrusos curiosos.
Antes de fazer sinal aos outros para prosseguirem, tocou na parede perto
dele. Estava iluminada por um brilho fosco, mas aumentando
progressivamente.
— Apollo! —disse Starbuck. — Estás a pensar o mesmo que eu?
— Estou. Se todo este tylium começa a arder, isto pode alastrar para um
incêndio que fará este maldito planeta ir pelos ares, como uma bomba.
— Hum, que tal sairmos em bicos de pés daqui para fora, hem? Por este
lado, venham.
— Tens a certeza?
— Não há tempo para votações. Vamos embora.
Um cylon solitário saltou-lhes em cima, saído de trás da pilha de
cadáveres. Atirou sobre Starbuck, disparo que inflamou mais rocha. Starbuck
respondeu prontamente, matando o traiçoeiro alienígena.
Desviando-se dos cadáveres, desceram por outro corredor curto,
desembocando no patamar que continha a caixa do elevador.
— Eu não tinha dito, capitão? Estamos salvos.
A porta do elevador, que Apollo e Starbuck tinham acabado de
encontrar, abriu-se subitamente, dando lugar a um Boomer estupefacto que
saltou para fora. Abriu um amplo sorriso quando viu Starbuck e Apollo no
patamar, na sua frente.
— Viva, rapazes — disse ele. — Que se passa? Chamaram este
elevador? Tenho andado à procura...
Foi interrompido por disparos laser que emergiam da escuridão de um
corredor à sua esquerda. Puxou imediatamente da arma e, agachando-se,
atirou na direção de onde viera o ataque. O fogo de Boomer atuou como
cobertura para o grupo, permitindo a Apollo e Starbuck levar Cassiopeia,
Boxey e os três homens pelo caminho aberto. Quando chegaram ao elevador
e todos se enfiaram lá dentro, Starbuck gritou:
— Podem fechar-nos aqui dentro!
— Que importa isso? — gritou Apollo em resposta. — Se aqueles fogos
que ateámos se reunirem e se espalharem e fizerem explodir o tylium, não
importa o sítio onde estivermos. Vá, Boomer, entra!
Starbuck foi para junto de Boomer, duplicando o potencial de fogo de
cobertura para lhes permitir entrar e refugiarem-se no elevador. Quando
Starbuck saltou para o elevador, enfiando-se na abertura cada vez mais
estreita entre as duas meias-portas, surgiu-lhes um centurião de arma
apontada ao jovem tenente. As portas fecharam-se mesmo a tempo, mas
ainda inflamaram por uns instantes quando o disparo do centurião as atingiu
em pleno.
***
Serina procurara Boxey por todo o salão e caminhava rapidamente para
o pânico. Tentou obter ajuda do coronel Tigh, mas o imediato, absorvido num
pequeno aparelho electrónico escondido na mão, fez-lhe sinal para não se
aproximar. Não sabia o que havia de fazer. «Se ao menos Apollo voltasse»,
pensou ela: «ele saberia o que fazer.»
No pódio, Uri tinha arrancado vários aplausos e algumas ovações à
multidão. Atingira o ponto culminante do seu discurso.
— E por isso imploro-vos que se unam todos a mim, no espírito desta
grande comunhão, que depositem a vossa fé em mim e entremos em
negociações com os Cylons. Pois digo-vos que esta noite será recordada
como o alicerce sobre o qual assentou o pavimento da paz, para toda a
eternidade. Podem acalentar a esperança de...
O seu discurso foi interrompido abruptamente pela entrada de Apollo,
Starbuck e Boomer que saíam do elevador. Apollo apontou a arma para o teto
e disparou. Todos na sala se viraram para ele.
— Quero toda a gente a andar rápida e ordeiramente para as saídas. É
uma ordem.
— Não se mexam donde estão! — berrava Uri do pódio. — Aqui quem
dá ordens sou eu.
Antes que Apollo pudesse replicar, um grupo de centuriões tinha-se
reunido aos ovianos colocados nas entradas, e puseram-se a disparar. Todos,
na sala, procuraram refúgio.
— Oiçam o que Apollo diz! —gritava Uri.— Façam o que ele mandar!
Ele é que manda aqui!
De uma das entradas. Boomer e Starbuck varreram todo um contingente
de guardas, e Uri foi o primeiro a escapulir-se porta fora. O resto da
Esquadrilha Vermelha tinha empunhado as armas, e os raios laser
entrecruzavam-se em todas as direções. Ouviam-se vozes a gritar, e algumas
luzes, atingidas por raios extraviados, começavam a chiar, acabando por
extinguir-se.
Serina esquivou-se por entre as mesas e cadeiras caídas, em direção à
cabina do elevador.
— Boxey! Boxey! — gritava.
Descobriu a criança escondida atrás de Apollo. Agarrou-a nos braços.
— Por ali! — ordenou Apollo.— Aquela entrada está livre, agora!
Conduziu Serina e Boxey através da arcada. Lá fora, a chuva fustigou-
lhes o rosto. Raios de capacetes dos cylons cortavam a escuridão. Apollo
levou Serina e Boxey para trás da fonte de grogue, para se cobrirem.
A toda a volta e dentro do casino, reinava e bramia a batalha.
— Não temos potencial de fogo suficiente — disse Apollo a Serina. —
Havia muitas armas falsas no meio daquela falsa Esquadrilha Azul.
— Que falsa Esquadrilha Azul?
Apollo explicou o que se passara com os estranhos impostores que
traziam o uniforme da esquadrilha.
— Não sei o que e que o meu pai tinha em mente quando...
Acima da colina, perto da fonte, apareceu um veiculo de superfície com
o tenente Jolly montado numa das torretas de canhão. O corpulento tenente
desatou a disparar, abatendo um grupo de centuriões. Jolly fizera pontaria às
luzes dos capacetes.
Pedindo a Serina que se mantivesse a coberto, Apollo correu para o
veículo de Jolly. Dois outros veículos tinham surgido, e os seus atiradores
disparavam contra centuriões e ovianos.
— Reunir esquadrilha! — gritou Apollo, alcançando o veículo e
trepando para cima dele. — Como diabo apareceste tu aqui. Jolly?
— Estamos aqui por especial deferência do comandante Adama, meu
capitão.
— Mas, por que...
— Ele mandou os veículos de superfície para vos dar cobertura, no caso
de haver luta aqui no casino. E muito clarividente, o seu pai, capitão.
Também nos ordenou que reuníssemos a Esquadrilha Vermelha e os
mandássemos nas navetas para a Galactica. Está a contar com uma luta, diz
ele.
— Vermelha? Por que só a Vermelha?
Jolly sorriu, enquanto disparava mais um feixe, fazendo cair por terra
uns tantos alienígenas de capacete.
— A Esquadrilha Azul acabou por não ir à festa, capitão. Exceto o
Boomer e o Starbuck, que tinham o seu papel de heróis a desempenhar
consigo aqui em baixo. Parece que vocês os três tinham de ir, porque o Uri
não ficava descansado se não tivesse todo o pessoal militar na festa.
— Bem, se os Azuis não vieram à festa, então quem eram aqueles
palermas com os vossos uniformes?
— Os primeiros que o comandante apanhou na frota que pudessem vestir
os uniformes. Havia de ver o tipo que ficou com o meu.
— Parece-me que o vi. Jolly.
De súbito, o tiroteio parou. As ovianas dispersavam, enquanto os
centuriões batiam em retirada, para longe do casino.
— Que é que aqueles danados dos cylons estão a tramar? — perguntou
Apollo.
— Não tenho bem a certeza. Antes de ter rebentado este inferno recebi
uma informação de que tinham sido detectados nos radares da Galactica
movimentos aéreos. Pensam que foram caças cylons, Os tipos deviam estar a
voltar para os seus caças.
— Então o melhor é irmos para os nossos, e a toda a velocidade!
Apollo saltou do veículo de superfície. Da entrada principal, os restantes
convidados — civis, guerreiros e civis em uniforme de guerreiros —
correram para os veículos. Os verdadeiros combatentes estavam a ser
reunidos sob o comando de Starbuck e Boomer. Apollo uniu-se a eles,
explicando-lhes o que Jolly lhe contara, o mais sucintamente que podia.
— A Esquadrilha Vermelha tem de ir à frente, no primeiro carro.
Podemos não ter muito tempo. Starbuck, tu e o Boomer tratem dos civis.
Reúnam-nos e metam-nos nas navetas.
— Mas, capitão — queixou-se Starbuck. —, eu também quero voltar
para a minha nave.
— Faz o que te mandam, Bucko, despacha-te e eu vou ver se consigo
deixar-te uns quantos cylons para treinares a pontaria.
— Obrigadinho, capitão.
Apollo fez sinal à Esquadrilha Vermelha para seguir com ele até ao
primeiro veículo. Boomer e Starbuck, com a ajuda de Cassiopeia, começaram
a acalmar os civis estarrecidos, organizando-os. Tigh reuniu-se à Esquadrilha
Vermelha. Segurava o braço esquerdo, que pendia inerte ao longo do corpo.
— Está bem? — perguntou Apollo. — Um tiro extraviado dos cylons,
não?
— Foi, mas primeiro ainda deitei abaixo cinco deles.
Serina, com Boxey a seu lado, esperava junto do veículo.
— Eles levam-vos às navetas — disse Apollo. — Desculpa, mas...
— Não te preocupes — disse Serina. — Vai andando.
***
Athena tinha reparado que a força simbólica que ficara na ponte
aumentara para uma tripulação completa desde que soara o alerta, mas
estivera demasiado ocupada para especular sobre o assunto.
— Forma positiva no visor — anunciou, ao ver surgir a informação no
écran. — Múltiplos veículos de três tripulantes.
— Uma força de assalto de centuriões, nesse caso — disse Adama.
Athena anuiu. — Ei-los que fazem saltar a sua armadilha. Chame todo o
nosso pessoal em Carillon.
— A operação evacuação já começou — disse um oficial de
comunicações. — Acabo de receber a informação. Têm um esquema
qualquer de embarque, lá em baixo, e o Plano R está em execução. —
Escutou mais um pouco. — Tigh informa que a Esquadrilha Vermelha já
entrou na naveta e já arrancou.
— Ótimo.
Athena, estupefacta, olhou para o pai.
— Sabia que a força de assalto cylon vinha para cá? —perguntou.
— Sabia. Toquem a alerta geral.
O alerta soou imediatamente, como se o dedo de um oficial estivesse
colocado sobre o botão de alarme, aguardando apenas a ordem. O écran que
mostrava a sala de convívio dos pilotos acendeu-se, revelando inúmeros
guerreiros a pôr-se de pé num pulo, largando jogos, leitura, sono.
— Pai — exclamou Athena espantada. — De onde é que vêm estes
pilotos todos? É uma esquadrilha completa a responder à sua chamada! Não
tínhamos deixado tantos pilotos a bordo!
— Tínhamos, sim, senhora. Não to podia dizer, não podia dizer nada a
quem não estivesse absolutamente dentro do plano. Desculpa, Athena.
Na plataforma de lançamento, várias luzes começaram a acender-se,
cada uma indicando uma nave que aquecia nos berços de lançamento. Uma
vez todas as luzes acesas, Adama ordenou:
— Lançar quando estiverem prontos!
— Estou a perceber — disse Athena. — Deixou cá ficar alguns pilotos.
Uma esquadrilha completa?
— Sim.
— Exatamente o que eu teria feito!
Adama sorriu afetuosamente para ela.
— Não duvido disso — respondeu.
Observaram a ejeção das naves através do visor estelar. Os vipers,
voando em formação de pré-ataque, eram uma visão reconfortante, e Adama
sentiu a confiança renascer dentro de si. Um atrás do outro, os vipers
abandonaram a formação, como fora combinado, atravessaram o corredor
aéreo que os três heróis tinham aberto na sua façanha, e voltaram a sair em
fila única, para enfrentar o inimigo que se aproximava. Um oficial da ponte
informou que a força cylon era assustadora, ultrapassava três esquadrilhas
completas.
— A nossa esquadrilha não vai ter hipótese nenhuma — lamentou-se
Athena.
— Não vão estar sozinhos por muito tempo — disse Adama. — Os
outros já aí vêm e, segundo o plano alternativo de ataque, juntar-se-ão à
primeira esquadrilha.
— Podem chegar tarde de mais. Onde diabo se terão metido?
— Naveta aproximando-se da pista de aterragem — informou um oficial
da ponte.
— Achas que vieram a horas, Athena? — comentou Adama.
Mas Athena estava demasiado absorta a fixar os écrans que mostravam a
plataforma de lançamento e os pilotos a equipar-se precipitadamente para a
batalha, e não deu ouvidos ao que o pai dissera.
***
A chuva caía com mais força nos campos onde as navetas se
encontravam pousadas. Boomer e Starbuck incitavam as pessoas apavoradas
a sair dos veículos e a subir as passadeiras até às navetas, prontas a partir.
Uma brisa gelada fazia-lhes bater a chuva desagradavelmente na cara.
— Detesto estas tarefazinhas de nada — exclamou Starbuck.
— Ouve lá — disse Boomer com cuidado —, cada uma das nossas
funções tem a sua importância, está bem?
— Ora, isso parece um sermão do nosso comandante.
Cassiopeia, que ajudara um grupo de pessoas a saltar do último veículo
de superfície, informou que os carros já estavam todos vazios. O seu olhar
revelava que já estava totalmente desperta. Starbuck gritou para os últimos
retardatários que se mexessem.
— Boomer —disse ele —, assim que nos despacharmos destas navetas,
arrancamos para os berços de lançamento. Quero também a minha quota-
parte na ação.
A chuva diminuiu abruptamente e a atenção de Starbuck foi desviada
para uma nave pousada na encosta de uma colina próxima.
— Que é aquilo? — perguntou, apontando para a nave.
Boomer olhou.
— É um dos cargueiros de tylium dos ovianos. Supunha-se que teria sido
enviado para...
— Tem um carregamento completo?
— Sim, acho que tem. Por quê?
— Vou meter-me nela e levá-la para lá.
— Mas aquilo é mortífero. Eras atingido uma vez e voavas pelos ares!
— Ótimo. Foi sempre assim que eu quis acabar. Toma tu conta das
navetas, eu...
— Eu quero ir ter contigo.
— Tens o teu trabalho para fazer, Boomer. Fá-lo!
— Mas que é que tu percebes de naves ovianas?
— Sei pilotar qualquer coisa, Boom-Boom, desde que voe...
— Vais é fazer voar a tua cabeça, isso é que vais.
— Adeus, Boomer.
Starbuck começou a dirigir-se para a nave-cisterna. De súbito,
apercebeu-se de que Cassiopeia corria a seu lado.
— Que vais fazer? —resmungou ele.
— Vou contigo.
— Mas...
— Posso ser-te útil. Explico mais tarde.
***
Todos na ponte se retesaram quando Athena anunciou:
— Primeira ala de defesa prestes a contactar a força inimiga.
Quando a ala de defesa apareceu no écran principal do banco de dados,
Adama ficou impressionado com a sua deplorável pequenez, confrontada
com a barreira da armada cylon.
— Mãezinha!... — berrou um dos pilotos da ala através do comunicador.
Uma das naves cylons da frente girou sobre si mesma e disparou ao
passar junto a um viper. Este foi atingido em cheio e explodiu. Quase ao
mesmo tempo, dois outros vipers foram varridos pelos cylons. A voz de
Greenbean ressoou na ponte:
— São muitos! Desviem-se e ataquem-nos pelos lados!
Os vipers coloniais abandonaram a formação, mas a rede era demasiado
esparsa para causar grandes estragos.
— Onde está a Esquadrilha Vermelha? — berrou Greenbean.
Virando-se para o écran, viu mais dois vipers a explodir.
— É o resultado de os termos atacado pelos lados —exclamou, furioso.
— Onde estão eles? — perguntou Adama.
Ouviu-se então a voz do filho, através do comunicador:
— Prontos para a descolagem.
As luzes de lançamento acenderam-se.
— A tua ala está pronta. Jolly?— perguntou Apollo.
— Pronta, capitão.
— Então vamos.
A Esquadrilha Vermelha de Apollo cruzou os céus, atravessando o
corredor do campo de minas.
— As navetas estão a chegar, comandante — informou um dos oficiais
da ponte. — Temos informação de que outras naves estão a abandonar a
superfície de Carillon.
— Mais cylons? —perguntou Athena.
— Tenho contacto visual, agora.
Através do comunicador, ouviu-se o grito de satisfação de Greenbean,
pela chegada da esquadrilha de Apollo.
***
Na cabina de pilotagem do cargueiro, Cassiopeia punha Starbuck
absolutamente de boca aberta. A jovem e alta animadora social sabia
obviamente do oficio, estava à vontade com a tecnologia de uma nave-
cisterna oviana. Dispositivos que não tinham qualquer significado para
Starbuck eram canja para ela. Começou a puxar alavancas e a premir botões,
mesmo antes de se sentar no lugar de copiloto.
— Já estiveste num aparelho destes, Cassie? — perguntou Starbuck.
— O meu pai, nas poucas vezes que tive autorização para o ver, pilotava
um cargueiro. E, se me chamas Cassie outra vez, eu própria me encarrego de
fazer isto ir pelos ares.
A nave começou a vibrar de uma ponta à outra.
— Queres fazer-nos subir? — perguntou Starbuck. — Pareces...
— Quero e vou fazer, mas parece-me que tenho de admitir, embora me
custe, que os teus instintos agora nos ajudavam muito.
Starbuck instalou-se no lugar do piloto e tentou ambientar-se com a
estranha nave, através das suas ruidosas vibrações.
— Pronta para subir? —perguntou a Cassiopeia.
Ela sorriu e ergueu uma sobrancelha.
— Estou a estudar o equipamento — respondeu.
— Muito bem. Largada.
Cassiopeia tinha-se desempenhado tão bem das suas funções que
partiram mesmo a seguir às navetas. Mas a nave-cisterna era mais lenta e
estava demasiado pesada. Não conseguia acompanhá-las. Starbuck viu as
navetas desaparecer através das nuvens, deixando um breve rasto vermelho
sobre as suas superfícies de um negro sinistro. Era produto da sua
imaginação, sabia-o bem, mas deu em pensar que sentia o tylium líquido
volátil a chocalhar contra as paredes dos pesados contentores. Um choque
mais violento e adeusinho. Bucko. Starbuck ansiava pelo momento de pousar
o carregamento na pista da Galactica, onde os peritos o poderiam transportar,
suavemente, para a segurança dos porões.
— O radar mostra naves cylons a aproximar-se, mesmo por baixo do
nível da capa de nuvens — disse Starbuck.
— As navetas estão em perigo? — perguntou Cassiopeia.
— Não. Parece que se escaparam a tempo, ou então os cylons
marimbam-se para um punhado de navetas de circuito terra-ar.
— Mas parece que não se marimbam para nós.
— Tenho de tentar uma manobra de evasão. Segura-te!
Starbuck elevou a nave-cisterna e dirigiu-se para norte, passando sobre o
casino oviano e a mina de tylium, mantendo-se por baixo das naves cylons
reveladas pelo radar. Os cylons não alteraram a sua rota, antes rompendo por
entre as nuvens. Starbuck olhou para baixo. Algumas ovianas tinham
emergido do solo e corriam em todas as direções, atarantadas. Starbuck
interrogava-se por que motivo corriam elas que nem doidas, quando ouviu
um estrondo fundo, vindo das bandas do solo. O ruído fazia-se ouvir forte e
feio, abafando o ronco do tanker.
— Que é isto? —perguntou Cassiopeia.
— Uma explosão! Na mina. É qualquer coisa que está a fazer explodir o
tylium. Temos de nos afastar desta brasa toda!
Cassiopeia estremeceu.
Starbuck sabia exatamente o que ela estava a pensar. Se as vibrações da
explosão subterrânea fizessem estremecer o cargueiro, o tylium, com o
balanço todo, ia... Nem queria pensar nisso. O próprio planeta podia ir pelos
ares. Apontou a nave novamente para as nuvens. Se se conseguisse afastar de
Carillon, se conseguisse afastar-se dos limites das explosões, se conseguisse
evitar os perseguidores, se não se encontrasse com a força estelar cylon a
atacar, se conseguisse passar por entre todos os caças que atacavam a
Galactica, se conseguisse executar a dificílima aterragem de um cargueiro
cheio de combustível volátil sobre a pista de uma estrela-de-batalha cercada...
Se conseguisse fazer tudo isto, então tudo o mais seria fácil. Nessa altura,
tudo o que teria a fazer era trepar para o seu viper e partir a juntar-se aos
companheiros, na batalha suicida contra os cylons. «Não há nada a recear»,
disse para consigo, «tudo rola sobre esferas.»
Uma segunda explosão, mais forte que a primeira, abalou a nave-
cisterna.
— Oh, não! — gritou Cassiopeia, olhando através da janela lateral.
Starbuck, vendo reflexos de fogo no vidro, percebeu imediatamente que
algo na superfície de Carillon — talvez a própria mina — estava a arder e,
talvez, provocando reações em cadeia por toda a superfície do planeta.
Dirigiu a nave para uma nuvem particularmente negra. Quando entrou nela,
cruzou-se com uma nave de combate cylon. Sentiu que esta tinha dado meia
volta para o seguir, embora nada conseguisse ver agora em seu redor, senão a
nuvem escura, para lá da carcaça.
***
Apollo destruiu uma nave cylon em pequenos fragmentos
incandescentes. Olhando para a esquerda, viu a nave de Jolly em perigo.
— Cuidado com a tua asa, Jolly! — gritou.
— Qual delas? — perguntou Jolly. — Eles vêm de todos os lados. Eles...
Jolly foi interrompido por um golpe que atingira a cauda da sua nave. O
caça começou a balouçar de um lado para o outro.
— São muitos. Skipper!—gritou Greenbean.
— Que queres tu dizer com esse «são muitos»? —respondeu Jolly. —
Eu ainda aqui estou, não estou? Cuidado, no quadrante das três. Skipper.
Apollo conseguiu evitar o cylon girando rapidamente para a esquerda,
mais um quarto de volta e um parafuso para a direita. Ao sair do parafuso
abriu fogo, atingindo o adversário mesmo a meio. As duas metades
começaram a desnortear e precipitaram-se na direção de Carillon. Outro caça
cylon veio colocar-se-lhe na esteira, disparando; Apollo fez um loop
invertido com o seu caça, aparecendo a picar sobre o cylon, e cravejando a
tiro toda a parte de cima do inimigo. Uma explosão repentina, e a nave cylon
viu-se transformada instantaneamente em partículas.
À distância, viu um dos caças da Esquadrilha Azul despedaçar-se sob o
fogo de oito atacantes cylons.
— Não me parece que aguentemos muito mais tempo, capitão —
exclamou Jolly. — O Monk acabou de levar.
— Faça o melhor que puder.
— Já estou a fazer milagres, meu capitão, mas não é...
A frase de Jolly foi interrompida pelo aparecimento de três cylons em
voo picado. Apollo não pôde esperar até ao desfecho do ataque, porque se viu
subitamente perante uma dúzia de inimigos que tentavam fazer de si o eixo
de um ataque em parafuso.
***
Um oficial da ponte informou Adama de que quatro das naves cylons,
que se tinham infiltrado na superfície de Carillon, saíam agora das nuvens,
aparentemente para se reunirem à frota inimiga e atacar a esquadrilha da
Galactica por trás. Contudo, não contavam com a artilharia da Galactica e
com o luxuoso Rising Star. Apanhando as naves cylons quando tentavam
passar ao lado, ambas as naves abriram fogo com raios de longo alcance. Os
quatro aparelhos explodiram quase simultaneamente. A tripulação da ponte
da Galactica deu largas à sua alegria.
— Outra nave não identificada a aproximar-se — informou Tigh. —
Parece-me... É isso mesmo, é um dos cargueiros ovianos. Estarão a tramar
um ataque? Só nos faltava mais esta! Posso dar ordem para disparar?
— NÃO! — gritou Athena do banco de comunicações. — É o Starbuck.
Ele comunicou agora pela rádio. Traz um carregamento de tylium.
— Um carregamento de tylium? Para aqui? Em pleno combate?—disse
Tigh, incrédulo.
Adama largou uma gargalhada, som este que a tripulação em seu redor
achou bizarro, pois não o viam rir com tanto gosto há muito tempo.
— É mesmo dele! Preparem a plataforma de aterragem. Vá, preparem-
na!
A tripulação da ponte pôs-se logo em ação.
— Oh, não! — gritou Athena, olhando para o écran perscrutador.
Mesmo por trás da nave-cisterna, tinha surgido, por entre as nuvens, um
caça cylon que apontava diretamente à nave de Starbuck.
— Não, ele não pode morrer!— gritou Athena.
No outro canto do écran viu-se aparecer um viper, acabado de ejetar da
Galactica.
— É a nave do Boomer!— exclamou Tigh.
O viper de Boomer lançou-se numa corrida, para interceptar o cylon que
apontava as suas armas para Starbuck. Na ponte da Galactica, todos
suspenderam simultaneamente a respiração. O caça cylon ia mesmo abrir
fogo sobre o tanker, quando Boomer se interpôs com o seu caça entre este e o
inimigo, abrindo fogo. Num segundo, o caça cylon desintegrou-se em mil
partículas que pareciam uma momentânea cortina de interferência no écran.
Nova ovação entre a tripulação da ponte.
— Olhe-me para isto, Tigh! — exclamou Adama, apontando para o
écran. Depois apontou para outros écrans, que mostravam aparelhos cylons a
ser atingidos pelos vipers da frota colonial, mais pequenos mas mais
manobráveis. — Estamos a andar bem. Esta nave está, não sei, está...
— A voltar à vida — disse Athena, aproximando-se do pai.
— É isso mesmo, é como se a Galactica tivesse estado doente, manchada
por ter fugido da batalha. Hoje, estamos novamente a mostrar quem somos,
nós...
— Espere! — exclamou Tigh. — Oiçam!
Girou o botão do som. A voz de Boomer ressoou estrondosamente
através da ponte.
— Ei, rapazes, saiam daí! Também quero brincar um bocadinho!
— Boomer! — exclamou Apollo. — Onde é que estiveste metido?
— Sabe muito bem onde diabo eu estive. Nas suas tarefazinhas de nada
lá em baixo.
No écran, o viper de Boomer rompeu numa série de disparos sobre um
trio de naves cylons, que explodiram simultaneamente.
— Bum... Bum... Bum — exclamou Boomer.
— Ei, Boomer! — saudou Apollo. — Bem-vindo a casa.
A nave de Apollo surgiu também no écran. O seu viper e o aparelho de
Boomer pareciam tocar-se nas asas, enquanto se dirigiam para uma linha de
caças cylon.
— Ei, rapazes — gritou Jolly —, arranjaram-nos uma luta decente, a
sorte está connosco.
— Podes dizê-lo! — respondeu Boomer. — Dentro de um minuto vamos
encher este céu com fogo!
Adama voltou-se para Tigh.
— O Jolly tem razão — disse ele. — Tivemos mais do que sorte! Temos
toda a nossa gente a bordo?
— Quando o Starbuck chegar com o carregamento de combustível, já
não falta mais ninguém. Não ficou ninguém em Carillon. De qualquer modo,
as coisas parecem que não vão muito bem por lá. Explosões. — Tigh fez uma
pausa. — Meu Deus, perdemos lá muita gente.
Adama anuiu.
— É — disse ele —, e a única coisa que me vem à cabeça dizer é que já
vimos pior. Não é muito consolador. Mas parece que voltámos as coisas a
nosso favor. Havemos de dar cabo daqueles horríveis... A Galactica está viva
outra vez, percebe, Tigh, percebe?
Tigh olhou para o comandante, como se o estivesse a ver à beira da
loucura, mas não deixou de assentir com a cabeça.
Nos écrans, naves cylons explodiam por todo o céu, enquanto as pestes
humanas, dentro dos seus vipers, deslizavam agilmente para dentro e para
fora das ratoeiras inimigas.
Concentrando a sua atenção num écran à parte, Adama e Athena
observavam Starbuck a aproximar-se da pista de aterragem.
— Calma, rapaz — murmurou Adama.
— Não rebentes isso agora. Bucko, por favor, não o rebentes agora —
sussurrava Athena.
O tanker parecia demasiado volumoso, demasiado pesado para uma
aterragem suave, sobretudo nas atuais condições de combate.
— Ele tem de conseguir, pai!— exclamou Athena.
— Tem mesmo de ser. Filha. Se não conseguir, fará um buraco tão
grande na carcaça desta estrela-de-batalha que é capaz de a pôr fora de
combate por muito tempo, talvez para sempre. Cuidado, Starbuck. Isso
mesmo. Muito bom. Cuidado agora.
Um erro, uma abordagem errada sobre a pista da Galactica, e a nave-
cisterna explodiria logo. E Starbuck já era conhecido pelas suas aterragens
espalhafatosas. Mesmo antes de a nave entrar em contacto com a plataforma,
quer Adama quer Athena inspiraram profunda e sonoramente.
— Vá lá. Bucko — murmurou Tigh.
Starbuck pousou tão precisamente na plataforma, tão delicadamente, que
a nave de combustível até parecia uma pena. Assim que deslizou suavemente
até se deter, mais um aplauso unânime se elevou da tripulação da ponte.
Adama, não conteve um sorriso.
— Voo de precisão? —disse-lhe Athena.
— Exatamente!—exclamou Adama.
Starbuck desceu o passadiço a correr, enquanto a tripulação começava a
descarregar o tanker, rápida, mas delicadamente. A boa disposição de Athena
sumiu-se momentaneamente, quando viu a alta animadora social, parecendo
bastante satisfeita consigo mesma, aparecer atrás de Starbuck. Mas a sua
perturbação foi momentânea. Pelo menos, Starbuck estava vivo. Isso era o
que contava.
***
Starbuck, juntou-se à batalha, pagando o favor que Boomer lhe havia
prestado. Uma após outra, pôs fora de combate quatro naves cylons que
tinham enredado Boomer num ataque em parafuso.
— Há alguém que queira passar por aqui e tocar-me, para me dar sorte?
— gritou Starbuck.
— Starbuck!... — exclamou Apollo.
— Que é?
— Atrás de ti.
Ele olhou por cima do ombro. Dois caças cylons aproximavam-se, um de
cada lado.
— Não é grave — disse ele. Mas um torpedo laser cylon aproximou-se
demasiado e a explosão fez estremecer a nave de Starbuck. Este repô-la em
posição e afastou-se da dupla cylon que continuava a perseguição.
— Boomer — chamou Apollo —, dás-lhe uma ajudinha?
— Outra vez? Bem, vou tentar.
Boomer mergulhou e começou a disparar.
— Não demores muito, Boomer — pediu Starbuck.
Outra explosão fez balançar a nave de Starbuck. Boomer fez pontaria a
um dos caças e apertou o gatilho, vingativo. O caça cylon desfez-se em
milhares de belas particulazinhas.
— Vamos, Starbuck, Boomer!— gritou Apollo.— Vamos fazer-lhes
uma placagem tripla.
Os três caças puseram-se rapidamente em formação triangular, muito
semelhante à que haviam utilizado quando abriram a pista sobre o campo de
minas, e ficaram juntos sobre a formação das naves cylons, disparando à
esquerda e à direita, para cima e para baixo. As fileiras cylons pareciam ter
aberto fendas. Várias explosões propagaram-se às naves mais próximas.
Apollo, Starbuck e Boomer, todos juntos, deram uma volta apertada e
fugiram do contra-ataque.
— Estes agora são por conta da Atlantia — exclamou Starbuck.
— E pelo Zac — disse Apollo.
Outros vipers das esquadrilhas Vermelha e Azul juntaram-se a eles e
carregaram sobre as forças cylons. «A barreira ameaçadora está a
transformar-se rapidamente numa barreira de fogo e caças despedaçados»,
pensou Starbuck, picando sobre mais um alvo daqueles que eram mesmo
canja.
***
Na ponte, os relatórios sucediam-se tão vertiginosamente que se tornava
difícil assimilá-los todos. Adama sentia-se no centro de uma vasta rede de
comunicações.
— Comandante! O écran do perscrutador está a mostrar uma série de
gigantescas explosões na superfície de Carillon. Parece que metade do
planeta está a ir pelos ares!
Numa das telas viam-se vastos incêndios na superfície do planeta.
Noutra, as várias explosões a rebentar no ar, para as bandas da mina.
— Que significam estas explosões? — perguntou Adama.
— Não tenho bem a certeza, mas parece-me que é o resto da expedição
militar cylon que nos atacou de surpresa lá em baixo. Parece que nem todos
conseguiram levantar voo, antes de as explosões terem começado.
— Comandante — informou Tigh —, a força estelar suprema dos cylons
parece estar em retirada, pelo menos por agora. Acha que lhe vamos em
perseguição? Todos os pilotos estão a implorar isso.
Adama desejaria dar uma ordem afirmativa, mas seria demasiado
perigoso deixar os vipers afastarem-se mais do corpo principal da frota.
— Não — respondeu —, temos de conservar os nossos recursos. Ainda
há muito a fazer.
— Digo aos vipers para regressarem à base?
— Não, é melhor irmos nós ter com eles. Contacte o Rising Star e as
outras naves. Diga-lhes que vamos sair pelo corredor do campo minado.
Temos de sair deste sítio traiçoeiro e preparar todas as naves para voltarmos
para trás através do hiperespaço. Não sei bem o que se passa em Carillon,
mas não podemos correr riscos: temos de nos afastar daqui no caso de o
planeta explodir completamente. A situação lá em baixo está cada vez pior e,
com uma mina a arder de um lado e o planeta a explodir do outro, era
ficarmos entre a espada e a parede.
— Muito bem, comandante — respondeu Tigh. — Vou já tratar de tudo.
Adama pôs-se a caminhar de um lado para o outro, na ponte, à medida
que atravessavam o corredor do campo de minas. Dava ordens sonoramente,
dirigindo a junção da frota, o perigoso voo através do campo de minas e a
subsequente aterragem das esquadrilhas.
***
A nova crise eclodiu logo que todas as naves saíram do campo minado.
Os cylons tinham ido buscar reforços e reconstruído a sua frente de ataque, e
avançavam em direção à frota.
Adama dirigiu-se a Apollo.
— Muito bem, capitão — disse —, qual é o nosso potencial? Podemos
oferecer-lhes uma resistência decente, Apollo?
Apollo introduziu no cartão perfurado a informação, na consola por
baixo do écran principal, e examinou os dados que iam surgindo no visor.
— Receio bem que não, comandante. São ainda muitos. Acabam por nos
estafar. Se não tivéssemos acabado de combater, ainda éramos capazes de
fazer qualquer coisa, mas assim...
— Muito bem, muito bem. Depois daquela última vez, detesto fugir a
uma batalha. Não quero que o registo militar da Galactica fique manchado
mais uma vez.
— Comandante, nada fica manchado se for para tentar salvar o que resta
da raça humana.
— Isso disse eu da primeira vez.
— O senhor tem a mania de ter sempre razão.
Apollo e Adama trocaram um sorriso. Por cima do ombro do filho,
Adama viu que a filha apoiava as palavras do irmão.
— E, de qualquer modo — prosseguiu Starbuck —, o senhor conhece o
velho ditado: não estamos a retirar, estamos só a avançar noutra direção.
— Está bem, então vamos saltar pelo hiperespaço em...
— Comandante, não temos tempo — exclamou Tigh — , os cylons
chegam cá antes de o termos feito. Temos de montar uma manobra de
diversão.
— A Esquadrilha Vermelha encarrega-se disso — respondeu Apollo,
ficando à espera da ordem de Adama. Depois de um curto instante, Adama
acenou, concordando.
— Muito bem — disse ele —, mas a Galactica será a última nave a dar o
salto. O resto da frota partirá primeiro. Apollo, tu levas a tua esquadrilha lá
para fora, ilude-os e voltas a tempo do salto. São estas as ordens.
— Muito bem, comandante! — Apollo começou a correr em direção aos
elevadores da ponte, gritando para Starbuck, que se encontrava no banco de
comunicações: — Reúne a Vermelha!
— Jolly e Greenbean vão adorar isto — murmurou Starbuck, enquanto
soava o alerta.
Houve um momento de calma na ponte, com toda a gente a observar os
pilotos que se apressavam para os berços de lançamento e para os caças, já
reabastecidos e prontos, graças ao cuidado da eficiente tripulação da
Galactica.
De súbito, como aliando o insulto à injúria, Tigh gritou:
— Oh, meu Deus!
— Que foi, Tigh?
— Isto é horrível. Acabo de enviar uma mensagem, através do canal
transmissor secreto, para o resto da nossa frota, as naves que deixámos para
trás. Responderam-me assim. — E abanou a mensagem debaixo do nariz de
Adama. — Começaram agora mesmo a ser atacados. Um grupo de naves de
combate cylons está a cercá-los e começou a disparar.
— Eles têm alguma hipótese?
— Se conseguirem aguentar até nós termos dado o salto para junto deles.
Adama voltou-se para Starbuck.
— Tenente?
— Sim, comandante?
— Reúna o Esquadrão Azul. Quero que estejam prontos para a luta
assim que saltarmos.
— Muito bem, comandante.
Starbuck, acenando para Athena, correu para os elevadores.
Nos minutos seguintes, enquanto a frota se preparava para o salto no
hiperespaço, e a esquadrilha de Apollo se afastava em direção aos caças
cylon e a esquadrilha Azul se preparava, a ponte da Galactica fervilhou de
atividade,
A cronometragem tinha de ser exata — e foi-o. Quando a esquadrilha de
Apollo voltou à Galactica, depois do seu ataque de surpresa, os mecanismos
do pré-salto estavam em marcha. Depois de os pilotos se encontrarem
seguramente deitados nos leitos especiais, o salto foi efetuado.
Passou-se um longo momento e, de súbito, a Galactica encontrou-se no
meio do ataque cylon ao resto da frota. Starbuck e a sua esquadrilha correram
para as pistas de lançamento, entraram nos caças e atiraram-se para o meio da
refrega. Os cylons, tão habituados à emboscada, pareceram ficar
surpreendidos por se encontrarem, de súbito, sob um fogo inesperado.
***
Se o líder imperial cylon tivesse visto a batalha a bordo da Galactica,
teria ficado espantado com o contraste na sua própria nave. Até as mensagens
transmitidas pela sua rede de comunicações tinham diminuído, desde que os
humanos tinham começado a responder ao fogo e a ganhar. As perdas
verificadas nos cylons não tinham par ao longo de todas as derrotas sofridas
na sua história. Uma vez que o seu terceiro-cérebro tinha mais tempo do que
o normal para analisar a natureza da sua derrota, podia descobrir quais os
erros cometidos desde há muito tempo atrás. Pareceu-lhe que o seu maior
erro fora, em primeiro lugar, o de lidar com humanos. Ao tentar interpretar o
significado da derrota, o seu espírito voltava sempre à destruição que os
humanos tinham realizado.
O universo estivera em ordem até os humanos começarem a afirmar-se.
Mesmo nessa altura, os Cylons tinham evitado encontrar-se com eles.
Quando tentaram convencer os humanos a abandonarem as áreas do espaço
que tinham usurpado, eles não ouviram a voz da razão. Não houvera outra
solução a não ser a da guerra. Embora tenham sido os Cylons a fazerem o
primeiro ataque, foram os humanos quem, na realidade, precipitaram a guerra
através da sua interferência nos assuntos dos Cylons e pela sua recusa em
abandonar as colônias e regressarem para o sector do espaço de onde tinham
vindo.
O líder recorreu às memórias dos líderes anteriores e examinou todos os
contactos que os Cylons haviam tido com o inimigo. Eram como uma
doença, os humanos. Uma vez infestada uma área com a sua presença, não
havia qualquer cura: a doença espalhava-se até atingir todas as formas de
vida. Fora desse modo que eles tinham infectado os Cylons e os tinham
levado a este ponto tão baixo da sua história.
A derrota das duas forças de combate dos Cylons, por um pequeno
contingente humano, afetara profundamente o líder, especialmente o modo
como as suas naves tinham sido presa fácil para a ação de diversão do capitão
Apollo. Embaraçante. O líder sentiu uma onda de cólera ao pensar em Apollo
— o homem era, afinal, filho do odiado comandante Adama, a fonte principal
das vitórias humanas. Quem iria pensar, por exemplo, que ele retornaria ao
encontro das suas naves deixadas para trás, navegando lentamente através do
espaço, e emboscaria os atacantes cylons — a horrível derrota final que o
líder imperial tinha agora de ponderar. Toda a campanha teria tido êxito se
não fossem aqueles dois homens. Apollo e Adama. O mais profundo desejo
do líder era livrar o espaço destes mesquinhos humanos. Sentiria o maior
prazer se pudesse torturar pessoalmente os dois, pai e filho.
Pois bem, teria ainda a hipótese de matar Apollo e Adama.
Mas não, era impossível ter uns pensamentos tão cheios de ódio e de
vingança! Não era digno de um possuidor de terceiro-cérebro. Não devia
pensar mais nas derrotas, devia era pensar em novas estratégias de ataque.
Gradualmente, a verdade sobre a sua posição surgiu-lhe no espírito.
Qualquer outro líder imperial, percebendo a importância das derrotas
sofridas, teria apresentado a sua demissão imediatamente e pedido a pena de
morte. Era a única coisa lógica a fazer. A sua morte seria o preço que tinha de
pagar por os humanos estarem vivos, quando a sua destruição tinha sido
tomada como certa. Mas ele não o poderia fazer. Não, ele tinha de sobreviver.
Era essencial. Tinha de perseguir os detestados Adama e Apollo e o resto da
sua horrível raça, fosse para que parte do universo fosse que eles se
dirigissem, com a sua força recuperada e as suas novas reservas de
combustível. Todos os relatórios informavam que, depois da derrota dos
cylons, eles tinham ido para o hiperespaço nas suas naves e tinham
desaparecido da bolsa espacial de camuflagem onde se encontravam. Não
tinham sido ainda localizados. Pois bem, seria ele quem os encontraria. E
voltaria a persegui-los. E matá-los-ia. Não poderia morrer até que a
exterminação final fosse feita. Não se poderia dar ao luxo, questionável, aliás,
de se suicidar por um falhanço histórico.
Ocorreu-lhe que teria havido outros líderes que não desfaleceram
procurando a morte. Não teriam odiado, não teriam desejado a vingança tão
obsessivamente. «Porque estaria tão diferente?», pensou. E de súbito soube
porquê. Tinha lidado com os humanos durante tanto tempo, pensado como
eles tantas vezes, que se tinha tornado como eles. O seu desejo de vingança
era todo humano. Talvez fosse esta, afinal, a sua derrota: ter-se tornado igual
ao inimigo. Pois seja. Destruiria em si tudo o que se tivesse tornado humano,
destruindo os próprios humanos. Adama seria morto por ele, pessoalmente.
Por agora, tinha de esperar.
***
Adama elevou a sua taça de prata, fazendo um brinde. Todos os que se
encontravam em torno da mesa redonda colocada no meio da ponte,
tripulação, civis e membros do Conselho, se calaram. Fez uma pausa olhando
para eles e depois para lá dos que se achavam junto do visor estelar. Parecia
que as estrelas, naquela parte do espaço, brilhavam mais do que ele já alguma
vez vira. Sentia-se optimista, cheio de esperança.
— Brindo às nossas vitórias e à realização dos nossos objetivos—
principiou.
— Ouçam, ouçam — disse o conselheiro Anton, sentado à direita de
Adama.
— E peço-lhes que nos recordemos, por um momento, de todos os
homens e mulheres que morreram na invasão que os Cylons fizeram aos doze
mundos e de todos os acidentes que se seguiram depois, nos quais os
membros da Galactica tão valentemente se portaram.
Durante o momento de silêncio, muitos foram os que curvaram a cabeça,
orando. Adama retomou o seu discurso:
— Espero que, de toda esta... Toda esta tragédia... Tiremos algum bem.
Creio que a traição ainda não desapareceu, quer na espécie humana, como o
conde Baltar, quer na espécie inimiga, como os Cylons.
Deitou uma olhadela a Uri, que se enterrou um pouco mais na sua
cadeira, secretamente feliz por não se encontrar na lista dos mauzões feita por
Adama. Talvez que a sua demissão do Conselho tivesse acalmado a ira do
comandante.
— Quero aproveitar esta ocasião — continuou Adama —, para anunciar
oficialmente que aceito a minha nomeação para presidente do Conselho e
agradecer por me terem eleito.
— Nós não o elegemos — interrompeu Anton. — Limitámo-nos a pegar
na sua demissão e a rasgá-la.
— Seja como for, agradeço-vos. Vamos agora partir em busca de um
local para a nossa raça, um local onde nos fixemos e possamos viver em paz.
Um lugar do universo onde poderemos mostrar de novo os nossos potenciais.
Talvez o encontremos num planeta a que a nossa mitologia deu o nome de
Terra. Vejo que ninguém se ri desta vez, quando menciono o nome da Terra.
Talvez agora acreditem que a nossa mísera esquadra a possa encontrar, possa
realizar esta procura solitária que começou quando fugimos da tirania cylon:
descobrir finalmente o belo planeta Terra. Minhas senhoras e meus senhores,
como brinde, ofereço-vos... Esperança.
Beberam todos e a refeição, um simples festim preparado com os
alimentos obtidos com o projeto agrícola, durante a sua breve estada em
Carillon, começou. Muitos deles maravilhavam-se como um simples
alimento como aquele lhes sabia melhor do que as exóticas iguarias com que
os Ovianos os alimentavam. Os conselheiros estavam especialmente de
acordo com o facto. Paye, através de análises sanguíneas, tinha descoberto
que Lotay drogara os conselheiros, tornando-os susceptíveis a ideias que eles,
de outra forma, não teriam compartilhado.
Serina, sentada dois lugares afastada de Adama, dirigiu-se a ele e
perguntou:
— Acredita realmente que possamos encontrar esse local, essa Terra,
não acredita, comandante?
— Sim, acredito. Percebo o que a sua pergunta jornalística tem de
implícito: que procuramos um sonho. Por vezes, os sonhos merecem que
corramos atrás deles. Ao longo do caminho, quem sabe o que encontraremos
ou o que aprenderemos?
— Não me interprete mal, comandante. Eu estou do seu lado.
— Gosto de ouvir isso. Recentemente, houve várias ocasiões em que eu
não tinha a inteira certeza de quem estava do meu lado, inclusive certas
pessoas que me são muito chegadas.
Athena pousou uma mão consoladora no braço do pai e Apollo meneou
a cabeça.
— Mas, quando tudo se encontra tranquilo e as nossas necessidades são
tão adequadamente satisfeitas, não vamos falar nessas coisas agora. Estamos
em festa.
— Acho que sim — exclamou Starbuck.
— Achas, não achas? —disse Athena, com uma olhadela significativa na
direção de Cassiopeia, sentada à sua frente.
— Estou em paz consigo — declarou Cassiopeia.
— Acho bem que esteja.
— Ora.
Athena olhou para ela e, depois, começou a rir.
— Está bem — disse —, você ganhou.
— Pareces-te comigo — disse Starbuck.
— Uma aposta em como não pareço? — respondeu Athena.
— Eh, Starbuck— chamou Boomer de uma ponta mais afastada da mesa
— , quando é que me vais pagar por te ter salvo a vida, lá em cima?
— Mas eu salvei-te depois disso.
— E eu salvei-te depois, mesmo a seguir. Bucko.
— Esqueces a nave-tanque, Boom-Boom.
A conversa de Starbuck e de Boomer veio alegrar ainda mais o ambiente
festivo.
Apollo aproximou-se de Serina e sussurrou:
— Em princípio, isto é uma festa. Que cara é essa?
— Vê-se muito?
— Sim, e você é demasiado bonita para estar triste.
— Abandona a estratégia militar, por favor. Sabes muito bem como te
ouço sempre, mesmo sem ela.
— Desculpa. Não consigo libertar-me facilmente dos meus instintos
militares.
— Tenta.
Apollo sorriu-lhe. Serina nunca conseguia resistir àquele sorriso.
— Claro — disse ele. — Mas tens de explicar o motivo dessa tristeza,
Serina.
Ela olhou para o prato, empurrando uma ponta de espargos com o garfo.
— Bem, é... É o Boxey. Sabes como gosto dele e, bem, não consigo
sentir-me feliz, sabendo-o tão triste.
— Reparei que ele há bocadinho não parecia muito contente. Que se
passa?
— É o Muffit Dois. Boxey ressente-se por ter ficado sem ele.
Apollo deu uma palmada na testa.
— Esqueci-me. Como é que foi isto? E eu que lhe prometi que...
Serina tocou no braço de Apollo.
— Não se pode esperar que penses em tudo, no meio de batalhas e...
— Mas eu lembrei-me. Onde está o Wilker? Wilker! Onde está?
De um canto afastado da mesa, o doutor respondeu e levantou-se.
— Trouxe-o? — perguntou-lhe Apollo.
— Claro — gritou ele por resposta. — Estava só à espera que me
dissesse o que fazer.
Wilker segurava uma grande caixa de couro.
— Muito bem — disse Apollo, voltando-se para Serina.— Onde está o
Boxey?
— Vou buscá-lo.
Serina demorou-se pouco tempo. Voltou, arrastando um rapazinho
nitidamente relutante. Boxey mostrava-se bastante infeliz.
— Hei, cadete — disse Apollo —, que te aconteceu?
Enquanto se dirigia ao rapaz, fez sinal a Wilker que se aproximasse.
— Estou bem. Quero voltar para o meu quarto — disse Boxey.
— Mas estás convidado para a nossa festa de vitória —exclamou
Apollo.
— Não me apetece comer. Não tenho fome.
— Está bem, nesse caso fica o Muffit no teu lugar.
— Apollo! —exclamou Serina.
— Dr. Wilker, trouxe a mercadoria?
— Está aqui.
— Abra a caixa.
O doutor abriu a caixa e Muffit Dois saltou, caindo mesmo em cima de
um prato de puré de batata. Libertando as patas, saltou para os braços de
Boxey, que o esperavam. O rosto da criança estava completamente
transformado, os olhos brilhavam-lhe de felicidade.
— Que ias a dizer? — perguntou Apollo a Serina.
— Que fizeste?
— Foi fácil. Não devemos esquecer que o Muffit é um dróide. Aqui o
Dr. Wilker só teve de apertar uns quantos fios, substituir umas peças, colocar
um bocadinho de pelo aqui e além... Não foi, doutor?
— Foi um trabalho de reparação relativamente fácil.
— Pois foi, e o doutor tem a mania das minhoquices. Está sempre a ver
se está tudo como deve ser. O doutor é melhor que toda a gente no mundo, e
todos...
— Oh, Apollo, cala-te, e deixa-me, mas é apertar-te com força — disse
Serina.
Boxey, ainda com Muffit ao colo, esgueirou-se para a mesa, entre Serina
e Apollo. Conseguiu enfiar uma grande colherada de comida pela boca
abaixo. Serina ergueu o copo para Apollo, formando com os lábios, em
silêncio, as palavras: «Obrigada, meu amor.»
Adama sorriu para Serina, radiosa. Ela ergueu o copo uma vez mais para
o comandante, e disse:
— À Terra.
FIM
Víbora, tipo de nave. (N. da T.)
Jolly: «prazenteiro»
Greenbean: «feijão verde». (N. da T.)
Espécie de lemes nas asas que aumentam a sustentação a baixa
velocidade, ao mesmo tempo que travam aerodinamicamente a nave. (N. da
T.)

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