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SÉRIE: FICÇÃO CIENTÍFICA

VOLUME: 3
TÍTULO: OS NOSSOS FILHOS SERÃO MUTANTES
AUTOR: BOB STICKGOLD / MARK NOBLE
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:
PREÇO DA PUBLICAÇÃO:
PÁGINAS:

SCANS E TRATAMENTO: ABEL COSTA


aacneto@yahoo.com

FORMATAÇÃO: RÔMULO RANGEL


romulorangel@gmail.com

DISPONIBILIZAÇÃO
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BOB STICKGOLD/MARK NOBLE

OS NOSSOS FILHOS
SERÃO MUTANTES
Tradução de Lucília Filipe

Este livro é dedicado a Jessie e a todas as crianças do mundo. Que


possam crescer fortes e saudáveis como a natureza planeou!

F.C. EUROPA AMÉRICA – VOLUME 3

PARTE I
Primavera
O major Stanley Johnson invejava as secretárias e os técnicos. O
trabalho deles terminava às cinco horas em ponto e às cinco e cinco já tinham
desaparecido, esquecendo o trabalho até ao dia seguinte. Mas Stanley
Johnson já não fazia parte do despreocupado grupo de investigação das nove
às cinco. Através da janela fixou o olhar com desalento na paisagem de
Maryland, adiando a tarefa desagradável de telefonar à mulher a participar-
lhe que mais uma vez não iria jantar. No horizonte, a umas sessenta milhas de
distância, ainda conseguia distinguir a mancha de ar poluído que era
Washington.
Aos quarenta e dois anos, Johnson estava a perder cabelo e a ganhar
«banhas» em volta da cintura, se bem que, fardado, ainda parecesse saudável
e em forma. Voltando à sua secretária, pegou na missiva proveniente da
Intelligence e leu-a pela sétima vez.
«Porque é que nunca havemos de fazer uma ultrapassagem de jeito
àqueles safados?», pensou. «Metemo-nos neste programa de pesquisas só há
um ano e descobrimos agora que eles já se lançaram nele há nove meses ou
mais. Será que nos conseguem roubar todas as ideias que temos? Ou será que
as nossas brilhantes invenções são assim tão fastidiosamente óbvias?»
Cinco dos mais importantes investigadores soviéticos de ADN1,
radicalmente subtraídos às vistas públicas. Karpov desapareceu há pelo
menos nove meses. Tal era o conteúdo da mensagem. O suficiente para dizer
a Johnson que os Russos também estavam a tentar. Encheu um copo de gim e
ergueu-o, num brinde trocista, enquanto murmurava: «À grande corrida
soviético-americana de manipulação de genes!» e esvaziou o copo.
Sábado, 1 de Agosto
— Meu Deus! Deixaste-o crescer! — Ann Merrill afastou-se para deixar
entrar Doc. Alto e esguio, exibia um farto bigode e uma abundante cabeleira
encaracolada, que para ela eram novidade, já que há dois anos não o via,
Doc deu-lhe um grande abraço.
— Ann, estás simplesmente maravilhosa. Charlie deu-me a notícia.
Estou encantado! — Aos trinta anos, ela ainda passava bem por uma
adolescente. O cabelo negro e comprido, os olhos atrevidos e atentos
desviavam a atenção da maioria das pessoas das insidiosas marcas do tempo,
que uma observação mais cuidadosa do seu rosto poderia revelar. — A
propósito, onde é que ele está? — Acrescentou.
— Estou a vigiar o vosso jantar para que não se queime. Venham para a
cozinha. — Charlie Cotten deitou a cabeça fora da cozinha e acenou a Doc.
— Isto está naquela fase em que ou se vigia ou se fica sem nada. — Virando-
se outra vez para dentro, gritou: — Esse cabelo está giro. Que é que os teus
doentes dizem a isso?
Ignorando a pergunta, Doc seguiu Ann até à cozinha, deitando de
passagem uma olhadela à casa; comentou:
— Parece que vocês arranjaram uma bela casa.
Tinham-na comprado havia apenas um mês e só se tinham mudado
naquela semana, depois de percorrerem a longa distância entre a Califórnia e
Boston. Situada em Cambridge, a casa ficava a uns escassos dez minutos de
caminho de Harvard Square e do metropolitano.
Ela encolheu os ombros.
— Ainda está muito vazia, mas dá-nos mais algum tempo e vais ver
como fica agradável e desarrumada.
Charlie riu-se. As suas mãos grandes e grosseiras estavam
inconscientemente ocupadas na preparação da refeição, enquanto ele
passeava o olhar pela cozinha.
— Ann sente horror só de pensar em ter uma casa como a dos pais, cuja
característica fundamental é a limpeza irrepreensível.
Mudou um grande tacho do fogão para o forno, limpou as mãos às calças
de ganga e virou-se para eles.
— O jantar está pronto dentro de vinte minutos. Vamos sentar-nos e
descansar.
Na sala comum, Ann escolheu um velho disco de Charlie Parker e foi
juntar-se a Doc e Charlie.
Doc sorriu-lhe.
— Ann, não calculas como estou feliz por saber que estás grávida.
Tenho perguntado a mim mesmo quando é que alguém do velho grupo se
meteria nisso. Com todos os miúdos que observo no consultório, comecei a
gostar de crianças.
— Bom, estou contente por saber que é essa a tua opinião, já que
ultimamente muita gente se refere às crianças de forma desagradável — disse
Ann.
Charlie interrompeu dizendo:
— Ah, isso é porque têm medo de aceitar essa responsabilidade e medo
de se sentirem presos como os seus pais. Se pensassem por um momento
(mas não pensam) no assunto, compreenderiam que não foram os filhos que
fizeram dos pais aquilo que eles eram.
— Bom, eu estou simplesmente encantado — repetiu Doc; virando-se
para Ann, disse: — Como é que isso tem corrido?
— Dispensava os enjoos, mas adoro a ideia de estar grávida, de saber
que tenho um ser humano a crescer aqui dentro — e deu umas palmadinhas
no estômago. — E, por aquilo que tenho ouvido, o meu enjoo não tem sido
dos piores. Digamos que me torna apenas as manhãs menos agradáveis.
— Isto faz-me desejar poder passar mais tempo em casa — acrescentou
Charlie. — Sinto-me um pouco como que deixado à margem, como se
estivesse a perder o acontecimento. Mas tenho de ter o laboratório montado
antes do início das aulas. Logo que comece a lecionar vai ser-me difícil pô-lo
em ordem.
— Que tal te sentes como professor? — Perguntou Doc.
Charlie encolheu os ombros.
— Ambivalente. Adoro a ideia de ter o meu próprio laboratório e de
poder começar a trabalhar naquilo de que gosto, mas receio que, entre o curso
que tenho de lecionar e o diabo do trabalho da comissão em que estou
metido, não consiga passar no laboratório tanto tempo como gostaria.
E Ann acrescentou:
— Ele não gosta que lhe chamem professor, fá-lo sentir-se demasiado
velho.
— É que é estranho. Toda a minha vida estive do outro lado do muro e
agora sou um «deles». É uma sensação esquisita, porque ainda me sinto o
garoto Charlie Cotten.
Doc riu-se.
— Bom, se bem me lembro, a ideia de que todos me deviam tratar por
«Doc», em vez de Fred, partiu de ti, por isso eu devia incitar a que te
tratassem por «Professor», em vez de Charlie. Seria bem feito.
Charlie franziu o sobrolho.
— Vou voltar a chamar-te Fred. Acho que afinal para ti não teve graça
nenhuma, pois não?
Doc encolheu os ombros e sorriu.
— Aprendemos a ser o que somos e não ligamos aos rótulos que nos
põem. É o que temos a fazer.
O cronômetro tocou na cozinha.
— É o jantar — anunciou Charlie. — Tu e Ann vão andando para a casa
de jantar, que eu já lá o levo.
Durante a refeição contaram alguns «mexericos» e puseram-se ao
corrente das últimas novidades. Ann e Charlie tinham passado os três anos
anteriores na Califórnia e pouco tinham contactado com Doc e com os
amigos de Boston. Era bom estar de volta!
Pouco depois Doc perguntou a Charlie em que ponto iam as
investigações. Em resposta, o rosto deste iluminou-se como o de um pai «de
fresco», que tem a oportunidade de exibir as fotografias da filhinha de duas
semanas. Começou por descrever as suas tentativas para localizar agentes
teratogéneos utilizando sistemas de culturas de tecidos. Quando Doc o
interrompeu para lhe pedir que explicasse rapidamente as técnicas, Charlie
acedeu entusiasticamente.
— Bem, como deves saber — começou —, os agentes teratogéneos são
produtos químicos que interferem com o processo de desenvolvimento
normal de um feto. É o que a talidomida faz: interfere com o
desenvolvimento dos membros; a rubéola causa um atraso pelo mesmo
processo e há quem afirme que o LSD também causa anomalias congênitas se
for tomado por uma mulher nos três primeiros meses de gravidez. Mas o
processo de rastreio é enfadonho, porque consiste essencialmente em
ministrar os produtos químicos a cobaias grávidas — ratos, hamsters, porcos-
da-índia e macacos — e procurar afecções congênitas. Portanto, o que eu
estou agora a tentar fazer é criar um processo em que cultivamos pequenas
quantidades de tecido nervoso humano em laboratório; depois de lhe
juntarmos possíveis agentes teratogéneos, procuramos alterações. Isto
tornaria o rastreio muito mais rápido, barato e seguro.
Ann interrompeu:
— Já chega de ciência para um serão. Se vocês começam, vão pela noite
fora.
Doc riu.
— Há coisas que não mudam, pois não?
— Queira Deus que não! Quase tudo tem mudado. Olha, desde que Ann
está grávida que já nem sequer nos drogamos.
Ann explicou:
— Impus-lhe isso. Com toda esta preocupação com os agentes
teratogéneos, não tomo quaisquer medicamentos desde antes da concepção e
não suporto ver o Charlie drogar-se, não podendo eu fazê-lo.
Doc concordou.
— Estava para te falar nisso. Para uma grávida, quanto mais puder evitar
os químicos, mais segura estará. Recomendo às mulheres que evitem até
tomar aspirina. É um processo demasiado importante para que se corram
quaisquer riscos.
— Mas é uma chatice! — Disse Charlie amuado. — Não tocamos em
nada desde aqueles Gloryhits, muito antes de Ann ficar grávida.
Ah, sim, os Gloryhits! Em poucos meses tinham-se tornado lendários. O
LSD aparecia em «vagas» e cada «vaga» tinha o seu nome: Owsley,
Sunshine, Microdots, Blotters, Chuckles, etc. E os Gloryhits. Era o melhor
ácido que Charlie e Ann tinham experimentado — uma pequena e única dose
e Charlie dava-se por feliz de ter estado em Boston nessa altura. Sorriram
ambos ao relembrarem o facto.
Apenas Doc parecia contristado.
— Que há? — Perguntou Ann, vendo Doc de sobrolho franzido.
— Não estou contente com esse ácido — disse. — Penso que
passávamos bem sem ele. — Virando-se para Charlie, acrescentou: — Onde
diabo o arranjaste? Também foi na costa oeste?
— Não! Bill Lauter arranjou-me dez comprimidos quando cá esteve no
ano passado. Mas porque é que estás tão assanhado? Mandámo-lo analisar e
não era perigoso — explicou Charlie.
Doc estava preocupado.
— Porque raio haviam vocês de tomar isso se sabiam que Ann podia
estar grávida?
Ann repreendeu-o.
— Deixa-te disso, Doc, não somos neolíticos! Tínhamos a certeza de que
eu não estava grávida quando o tomámos.
— Quanto tempo depois disso engravidaste?
Ann encolheu os ombros.
— Poucas semanas. O ácido era como que para dar sorte. Ainda temos
seis comprimidos guardados no frigorífico.
Doc parecia perdido nos seus pensamentos. Virando-se para Charlie,
perguntou inesperadamente:
— Aqui podes ter acesso às investigações Medline?
Confundido com a súbita mudança de assunto, Charlie encolheu os
ombros e respondeu:
— Estou certo que sim. Queres que investigue alguma coisa?
— Que é isso? — Perguntou Ann.
Doc ficou calmamente sentado, com a atenção concentrada nos seus
próprios pensamentos, enquanto Charlie explicava que o Medline era um
índice informático e um sistema de informações para jornais científicos que
era utilizado para uma rápida obtenção de listas de artigos sobre um
determinado assunto. Quando Charlie acabou de dar esta explicação olhou,
para Doc.
Este, ainda mergulhado nos seus pensamentos, disse:
— Bom, talvez eu passe por cá daqui a uns dias para falarmos sobre isso.
Ficaram sentados e conversaram durante um bocado, mas Doc
permanecia ligeiramente distraído. Finalmente levantou-se para se ir embora
e despediu-se dos dois à porta, dizendo:
— Sejam bem-vindos a Boston. Estou contente por os ter aqui instalados
ao pé de mim. Ainda bem que não ficaram no oeste.
Ann gracejou:
— Não podíamos. Era demasiado selvagem!
Acompanharam-no até ao carro.
— Só mais uma coisa — pediu Doc. — Far-me-iam o especial favor de
conservarem esses Gloryhits no frigorífico até eu voltar a falar convosco?
Ann insistiu:
— Doc, que há? Nunca te vi assim.
— Não é nada, tenho a certeza — respondeu. — É apenas uma
impressão esquisita que eu tenho, mas nada para se preocuparem. Nós, os
médicos, somos pagos para nos preocuparmos mais do que o necessário.
Despediu-se sorrindo e arrancou.
Primavera
Um encontro casual com um velho amigo de liceu dera ao então tenente
Johnson um primeiro vislumbre da sua ideia. No ano anterior, os encontros
da Federation tinham sido embaraçosos porque, quando interrogado sobre
para quem estava a trabalhar, Johnson mentira e fizera vagas referências à
indústria em vez de responder «para o exército». Temia que os velhos amigos
o pusessem de parte se soubessem que trabalhava em pesquisas de guerra
biológica. Não, a expressão estava errada ou, melhor, tinha sido banida por
um tratado internacional. Ele dirigia pesquisas biológicas para o exército,
integradas num projeto de pesquisas de saúde, instaurado para levar a cabo as
necessárias investigações no sentido de proteger as tropas americanas de
possíveis incidentes biológicos em diversas partes do mundo. Era possível
legitimar uma infinidade de projetos classificados, que estavam tão próximos
de pesquisas de guerra biológica como ninguém se atreveria a pensar. Mas
não era uma pesquisa de guerra biológica. Arriscava-se a perder o lugar se
deixasse escapar semelhante inconfidência no momento impróprio.
Felizmente que o ex-colega de Johnson estava tão entretido a falar da
sua própria investigação que não lhe levantou problemas. E das descrições do
seu amigo germinou uma ideia, que daí em diante foi a sua própria ideia. Nas
horas vagas tinha lido textos científicos, imaginando como deveria ser
conduzido cada passo do projeto. Os recentes progressos na manipulação
genética, a ciência da transferência de genes duma espécie para outra, quase a
tinham tornado vulgar. Por isso o seu e só o seu nome figurara na carta que
dirigiu ao general Westland, o superintendente de todas as pesquisas no
campo de «saúde e ramos afins» do exército. Ultrapassar os seus superiores
fora arriscado, mas os caminhos transformam-se por vezes em labirintos e
assim Johnson poderia ver-se irremediavelmente afastado da sua proposta.
Enquanto ele andasse perdido pelo labirinto, algum burocrata das «altas
esferas» teria subtraído a sua ideia ao general. Mas tinha esperança de que
agora ia chegar a recompensa que justificaria o risco anterior.
Sentado de forma tensa na sala de espera do gabinete de Westland, com
a mala de diplomata no colo, olhava em silêncio a secretária que respondia ao
zumbido do intercomunicador e falava nele em voz baixa. Virando-se para
Johnson, que estava aterrado, sorriu e fez sinal para a porta da esquerda.
Sempre em silêncio, ele levantou-se e caminhou devagar para o gabinete do
general.
Por momentos Johnson sentiu-se desorientado no enorme gabinete. A
uns quarenta passos dele, Westland levantou-se da sua secretária de torcidos,
dizendo em tom brincalhão:
— Entre, Johnson, aqui não comemos ninguém acima de soldado raso.
Surpreendido pela voz forte, mas de certa forma simpática, fechou a
porta e avançou rapidamente para a secretária do general.
Retribuindo a continência, sorriu.
— À vontade, tenente. Li a proposta que me mandou e mal pude conter a
minha imaginação!
— Obrigado, senhor.
— Claro que a minha experiência é em química, como sabe, e não em
biologia, por isso não estou em posição de poder julgar o seu valor
científico... — Parecia perdido nos seus pensamentos. Depois remexeu no
monte de papéis que estavam em cima da sua secretária e, ao encontrar o que
procurava, agitou um dossier e resmungou baixo: — Com grande trabalho
meu, consegui encontrar meia dúzia de biólogos cujos relatórios, que aqui
tenho, confirmam o interesse científico da proposta... — Olhou fixamente o
dossier e deitou-o de novo para cima da mesa. — Ou pelo menos é o que eles
dizem, depois que você abriu caminho pelo esterco. — Olhou para Johnson,
que ainda estava nervosamente em posição de à-vontade. — Sabe, tenente, há
vias pelas quais devia ter mandado uma tal proposta (teria sido muito mais
fácil para mim se o tivesse feito) e estava a pensar, tenente, porque teria
escolhido esta via. — Westland tirou uma pasta da gaveta e deitou uma
olhadela à carta que Johnson lhe mandara. — Porquê, tenente?
Johnson mudou a posição dos pés, nervosamente.
— Bom, acho que foi porque pensei que assim seria lida mais depressa e
que o processo poderia iniciar-se um pouco mais cedo.
— Hum! — Westland parecia irritado. — Sabe, tenente, não cheguei a
general por acaso e não o consegui esquecendo o lugar que a cada um cabe.
Talvez que a razão que me apresentou seja aquela por que me enviou isto
diretamente. Já tenho julgado mal certas pessoas e se assim é não há
problema; há vias a quem esta proposta pode ser entregue para que lhe seja
dado seguimento...
Johnson murmurou:
— Mas é minha! Não que eu queira todo o mérito, mas, quando a enviar
pelas vias competentes, toda a gente vai modificá-la um pouco e ficar com
um pouco dos créditos. Bom, isso está muito certo e não lhes regateio algum
crédito. Mas de certa forma, quando todos lhe tiverem mexido, não me
restará nada e já terão tornado o projeto irreconhecível. Isto é, pus muito
tempo e muita reflexão nesta proposta e penso que é estuporadamente boa,
desculpe, refiro-me à forma como a expus.
Surgiu um sorriso na cara de Westland e ele tirou do bolso um maço de
charutos.
— Bom, tenente, sente-se. Parece-me que agora podemos começar a
falar a sério.
Ali ficaram sentados o resto da tarde e todo o dia seguinte, planeando as
possibilidades de pesquisa, o material, o pessoal necessário, etc., etc.
Westland tinha fama de, quando encontrava um projeto digno de levar por
diante, não descansar nele. Mas Johnson estava aparvalhado ao observar a
rapidez com que o seu projeto passava do papel à realidade.
Ao fim do segundo dia Westland sugeriu:
Talvez o melhor que você tenha agora a fazer seja ir a casa e resolver por
lá os assuntos pendentes. O exército transfere-o para aqui e começa na
próxima semana. Podemos manter tudo armazenado enquanto você e a sua
mulher arranjam casa. Acabam por ser umas duas semanas, pelo menos, antes
que o material e não sei mais quê se comece de facto a juntar. Não se
preocupe com os pormenores da sua mudança, tratamos deles no fim disto e
serão concretizados no fim da semana.
E assim foi… Dentro de um mês o tenente Johnson foi promovido e
repromovido até chegar a major. O pessoal começou a dar entrada no seu
laboratório e o Projeto Vector começou a avançar. Por volta do fim do ano
havia a certeza de que o projeto resultaria, que o vírus podia ser criado num
período de tempo razoável. Havia no entanto um obstáculo. Agora, com os
Russos a trabalhar num projeto clandestino de manipulação de genes de sua
autoria, a definição do período de tempo razoável estava a tornar-se cada vez
mais curto.
Westland deu resposta pronta à alteração de circunstâncias e, duas
semanas depois de ter recebido a comunicação relativa ao trabalho dos
Russos naquele campo, deu consigo a fazer uma palestra a um grupo alargado
de pessoal da investigação.
Sentia que a palestra decorrera muito bem. Passeando o olhar pela
audiência de uns cento e vinte trabalhadores, concluiu as suas observações:
— Dei-vos uma ideia, assim o espero, da nossa situação aqui. Visto que
foi aprovada a aceleração do processo, o espaço do nosso laboratório
duplicou, o quadro de pessoal triplicou, e a nossa verba é quase ilimitada. No
entanto, e infelizmente, aqueles de vós que estão comigo desde o inicio
acharão agora tudo um pouco mais formal. Mas deixamos hoje bem claro que
este é um projeto crucial e que os seus objetivos têm de ser alcançados. Posso
dizer-lhes que aquilo que começou por ser um projeto de investigação
bastante reduzido cresceu consideravelmente. Encontramo-nos agora a
competir com outras nações no desenvolvimento destas técnicas. O projeto
nasceu sem a preocupação que outras nações pudessem a qualquer tempo
tentar criar tais técnicas e tinha como objetivo explorar o campo de processos
apropriados para responder a uma libertação intencional ou casual de novos
vírus criados por técnicas deste gênero. Mas temo que elas possam afinal vir
a ser armas mais potentes do que qualquer das até hoje conhecidas, inclusive
as armas convencionais ou nucleares. Potentes não pelo seu poder puramente
destrutivo, mas pela sua capacidade de utilizar a força no sentido de um
acordo politico, no caso de se verificar o rebentamento de futuras guerras.
Com o aumento de espaço, pessoal e verba, podemos alcançar os nossos
objetivos, mas só com a ajuda e energia de todos nós, trabalhando em
conjunto.
Ao regressar ao seu gabinete, o otimismo de Johnson começou a
decrescer. Westland não se iria deixar impressionar pela sua capacidade de
proferir discursos de propaganda. Westland queria apenas o maldito vírus e
nada mais o satisfaria. Claro que o aumento de quadro de pessoal facilitaria o
trabalho, desde que tudo corresse bem. Mas havia problemas imprevistos, que
não dependeriam apenas da força bruta do dinheiro. Por vezes há que nos
sentarmos e pensar nos resultados obtidos, deixando que os dados nos
venham à mente, antes de darmos o passo seguinte. Já no gabinete, os seus
pensamentos foram interrompidos pelo besouro do intercomunicador
anunciando a chegada do major Pearson.
O major Stephen Pearson pertencia à Military Intelligence2. Era alto,
magro e enérgico. Cruzava e descruzava constantemente as pernas, fechava e
abria as mãos. «Declaradamente um homem de gabinete», pensou Johnson.
Com todo aquele nervosismo, devia ser pouco útil no campo de batalha.
Pearson começou:
— Agradeço-lhe, major, pelo facto de me ter dispensado este momento.
Na Military Intelligence temos estado a tentar fazer ideia da espécie de
experiências que os Russos possam estar a tentar. Pensei que me poderia ser
útil discutir o projeto do vírus consigo. Talvez aprenda algo que nos ajude a
entender o que é que os Russos estão a preparar.
Pearson lançou um meio sorriso a Johnson.
Acenando ponderadamente, Johnson perguntou:
— Se não está em preparação qualquer comunicado oficial, talvez possa
eliminar o palavreado sobre a manutenção da saúde, não acha?
— Esteja à vontade, major — disse Pearson. — Não estou a gravar, e se
escrever alguma coisa é instintivo e far-lhe-ei os acrescentos necessários. —
Sorrindo de forma estranha, lamuriou: — É um dos males que ainda ficou
desde Watergate. Mesmo estampando um cartaz de «Altamente
Confidencial», já não se consegue afastar as comissões do Congresso. Por
isso, tudo o que é escrito será convenientemente expresso.
Johnson replicou:
— Ótimo, isso torna a discussão muito mais fácil. — Instalou-se na sua
cadeira, acendeu o cachimbo e pensou um pouco antes de começar: — Tudo
começou com uma conversa casual com um ex-colega que agora é um
importante professor universitário na costa leste. Ele está a trabalhar na
manipulação de genes em plantas e falou-me da facilidade em separar um
gene de qualquer tipo de organismo vivo e de o juntar a uma bactéria ou a um
vírus. Assim, a bactéria ou o vírus exprimirão a informação contida nesse
novo gene, seja ela qual for. Por exemplo, separaram da célula humana o
gene da insulina, juntaram-no ao cromossoma de algumas bactérias e estas
produziram insulina humana, que é muito melhor e mais barata do que a que
as empresas farmacêuticas costumam vender.
»Bom, uns dias depois de falar com este tipo, veio-me à cabeça a ideia
do Projeto Vector, quase na sua forma acabada. O botulismo é uma grave
intoxicação alimentar causada pela ingestão duma toxina produzida por uma
família de bactérias denominada Clostridium botulinum. O que eu perguntava
a mim mesmo era se seria possível extrair o gene que codifica essa bactéria e
inseri-lo num vulgar vírus de gripe. O vírus produziria então também a toxina
e teríamos em breve um vírus de gripe altamente mortal.
»Surge então um problema que é o de a maior parte das pessoas ser
resistente à gripe, mas isso pode contornar-se, visto que novas epidemias
estão constantemente a aparecer devido às mutações do vírus que o
modificam o suficiente para que os sistemas de defesa do organismo o não
reconheçam. Podemos acelerar este processo em laboratório e já produzimos
alguns tipos de gripe às quais ninguém conseguiria resistir.
Reparando que o cachimbo se tinha apagado, Johnson parou de falar
para o acender. Depois de se ter elevado uma nuvem de fumo que o satisfez,
continuou:
— O único problema que subsiste é o de como parar o vírus, uma vez
posto a circular. Vacinar-nos e assim imunizar-nos, bem como aos nossos
aliados, não resultaria. O vírus da gripe sofre mutação geralmente a um ritmo
lento; deste modo, as pessoas imunizadas contra o botulino gripal seriam
provavelmente atingidas por uma nova família a que não eram resistentes.
Essa família poderia matar toda a gente.
Johnson fez uma pausa. Há meses que não falava em pormenor, acerca
do projeto, com alguém que não estivesse diretamente a ele ligado. Estava
orgulhoso deste projeto, especialmente da solução para o problema de
restringir a difusão do vírus. Isso fora o seu verdadeiro golpe de gênio.
Encontrara a resposta numa coisa chamada genes mutadores. Tinham sido
descobertos no princípio dos anos 50 por geneticistas agrônomos que
trabalhavam com milho. Os genes mutadores ou genes-M provocavam com
uma frequência muito maior a mutação de genes que lhes eram adjacentes.
Johnson concluíra isso ao ligar um gene-M a um gene de botulino antes de ter
transferido este para um gene da gripe e verificara que os dois produziam
uma família que não era mortal. Os diferentes genes-M funcionavam a vários
níveis de eficiência e assim podiam produzir uma série de famílias de vírus,
algumas das quais se tornariam não mortais rapidamente e outras que
levariam muito tempo.
Explicou tudo isto a Pearson, à medida que ia também respondendo a
perguntas. Quando terminou e Pearson parecia já satisfeito com a explicação,
ficou completamente desorientado com a seguinte pergunta:
— Que quantidade de tecido produzem?
Johnson não conseguia entender a intenção da pergunta e começou por
responder lentamente:
— Bem, cultivamos algumas células nervosas que se destinam aos testes
com a toxina do botulino. — E encolheu os ombros, dizendo: — É um
processo-tipo, nada de muito sofisticado.
— Tem muito pessoal a trabalhar nisso?
— Não — respondeu Johnson. — É um processo do tipo direto que a
indústria farmacêutica automatizou há anos. Aqui temos só quatro pessoas a
trabalhar nisso.
Tentando descobrir se elas estariam a precisar de outras culturas de
tecidos, Johnson perguntou:
— Os Russos estão a fazer culturas de tecidos? Custa a crer que estejam
assim tão atrasados que precisem de mais do que de um punhado de técnicos.
— É o que nós pensávamos — acrescentou Pearson —, mas nem sequer
sabemos se o grupo que está a trabalhar na cultura de tecidos está ligado ao
mesmo projeto que o grupo do ADN. Acontece é que desapareceram
simultaneamente.
Nas duas horas seguintes, Pearson interrogou insistentemente Johnson
acerca do Projeto Vector, do trabalho de cultura de tecidos e esporadicamente
acerca de assuntos cuja relevância escapava a Johnson. Por fim Pearson
pareceu dar-se por satisfeito.
— Bem — concluiu, levantando-se. — Agradeço-lhe o tempo que me
concedeu, major. Foi-me, de facto, muito útil.
— Espero que sim — replicou Johnson, exausto.
— Creio que compreende que tudo o que dissemos é «Altamente
Secreto» e não deve ser discutido seja com quem for.
— Claro — respondeu Johnson.
Pearson deitou uma última olhadela ao bloco, que lentamente tinha
enchido durante as duas horas precedentes.
— Apenas uma última pergunta. Quem foi o colega que lhe deu a ideia?
Johnson pareceu confundido.
— O colega? Oh, refere-se a Haenners. Lloyd Haenners... Acho que
trabalha em Boston. Ele não me deu efetivamente a ideia, limitou-se a fazer-
me pensar.
— Sim, claro. — Sorrindo, Pearson tomou nota do nome.
— Porque é que pergunta? — Quis saber Johnson.
Pearson encolheu os ombros.
— Por preciosismo, mais nada.
Quarta-feira, 5 de Agosto
Só na quarta-feira é que Doc arranjou tempo para passar pelo laboratório
de Charlie. Tendo ido sem avisar, ficou decepcionado por Charlie estar
ausente; depois de ter mudado umas caixas da cadeira para a bancada, sentou-
se à espera de que o amigo chegasse. A forte iluminação e a desordem não o
ajudaram a sair da sua depressão e quase ficou surpreendido ao ver Charlie
aparecer com declarada boa disposição, acompanhado por uma bonita mulher
de cabelo castanho pelos ombros e de rosto agradável. De impecáveis batas
brancas, pareciam simbolizar os jovens cientistas dedicados.
— Olá, Doc! Que te trouxe até à torre de marfim? — Lembrando-se
então da sua conversa de sábado à noite, disse: — Ah, já sei, disseste que
passavas por cá. — Fez sinal à colega. — Gostava de te apresentar Beth
Cordell, que é a melhor licenciada do laboratório de Lloyd Haenners, que fica
do outro lado do átrio. — Beth recebeu o elogio com um sorriso. Charlie
continuou: — Beth, este é Fred Blake, um velho amigo que chegou a médico
e a quem, por castigo, chamamos Doc.
— Muito prazer — murmurou Doc delicadamente; virando-se para
Charlie, perguntou: — É má altura para falar?
— De maneira nenhuma — disse Charlie. — Estávamos só a contar
histórias do laboratório e eu contava-lhe umas de terror dos meus tempos de
liceu.
— Mas eu só as suporto em pequenas doses — disse Beth. — Falem
agora vocês, porque me parece assunto sério. — Virando-se para Doc,
acrescentou: — Podemos continuar noutra altura. — Disse adeus a Doc e saiu
do laboratório.
Doc levantou-se e serviu uma chávena de café duma cafeteira que estava
no peitoril da janela. Ficou ali um momento, olhando pela janela sem falar.
Por fim virou-se e voltou para o seu lugar, parecendo ter ficado exausto de
repente.
— Que há? — Perguntou Charlie, preocupado.
Doc inspirou fundo e expirou lentamente.
— Trata-se dos Gloryhits e de Ann. — Rodou o copo do café, bebeu um
golo e, olhando de novo para Charlie, disse: — Podia ter-te falado mais cedo,
mas queria confirmar a minha informação antes, para estar absolutamente
certo.
»Charlie, há qualquer coisa de errado nos Gloryhits. Têm estado a causar
abortos e malformações nos fetos em mulheres que os tomaram. — Hesitou
por um momento e continuou: — Quero influenciar-te no sentido de
interromperes essa gravidez.
Durante segundos Charlie olhou-o aparvalhado, mas, de repente, foi
como que invadido por uma onda de alivio.
— Valha-me Deus, Doc, não me assustes com essa! Ann não os tomou
quando estava grávida... Tomou-os, sim, um mês antes de engravidar. Temos
a certeza.
Mas Doc insistiu:
— Ai é que está o problema. Todas aquelas mulheres os tinham tomado
antes de engravidar. Não é um agente teratogénico, mas sim um mutagénico,
está a criar uma espécie de mutação.
Charlie recusava-se a acreditar.
— Doc, isso não faz sentido. Nunca se ouviu tal coisa.
Doc respondeu delicada mas insistentemente.
— Olha, Charlie, não posso utilizar contigo o tal truque de «o senhor
doutor é que sabe» porque não é o meu gênero e além disso tu sabes muito
mais de ciência natural do que eu. Não vou portanto competir contigo nesse
campo. Se me disseres que não faz sentido, aceito; que não se adapta a nada
do que já ouvi, de acordo; é por isso mesmo que quero fazer aquela pesquisa
Medline, para ver se encontro precedentes. Mas com ou sem qualquer teoria a
apoiar-me, tenho dados suficientes para afirmar que os Gloryhits estão a
causar abortos e monstruosas deformações em fetos e estou convencido de
que Ann devia provocar um aborto.
O espirito analítico, racional e calmo, de que Charlie se prezava,
desapareceu. Recusava-se a pensar racionalmente ou a ouvir os argumentos,
limitava-se em vez disso a negar, pura e simplesmente.
— Não pode ser — dizia. — Mas que espécie de dados julgas tu que
tens? Não pode ser.
Doc soltou um suspiro silencioso e descreveu a Charlie os elementos que
conseguira recolher nos últimos três meses: sete mulheres que tinham tomado
os Gloryhits um mês antes da concepção haviam abortado e a única coisa que
essas mulheres tinham em comum era o facto de terem tomado os Gloryhits.
Ele vira dois dos fetos. Ambos tinham testas monstruosamente aumentadas,
semelhantes à figura do gênio louco dos filmes de terror.
Charlie riu amargamente.
— Queres então fazer-me acreditar que não só é um mutagénico como
ainda que causa mutações especificas? Doc, não engulo essa. Isso foge
descaradamente a tudo quanto a ciência conhece.
Como Doc não respondesse, continuou:
— Disseste que dois estavam deformados. Que há com os outros cinco?
Eram normais?
Doc esforçou-se para que a sua voz parecesse calma.
— Não sei. Há um tipo qualquer de Nova Iorque que está a proceder a
um estudo dos fetos resultantes dos abortos naturais, para detectar qual o grau
de incidência das deformidades. Está a fazer autópsias e por isso não
consegui deitar a mão a qualquer deles. Todos os obstetras da zona estão a
colaborar. Não cheguei a ver os outros antes de serem recolhidos.
Charlie replicou:
— Vá lá, Doc, que diz o tipo que está a fazer o estudo? Se está a fazer
autópsias detalhadas, deve estar na posse de todos os dados que tu dizes ter.
Doc começava a ficar aborrecido.
— Acredita-me, Charlie, está bem? Estou há um mês a tentar contactá-
lo, mas dou sempre com um serviço de recepção de chamadas que me diz que
ele me telefonará, mas não me telefona.
— Então não consegues a informação?
— Acalma-te, Charlie. Tenho um amigo que é obstetra e que prometeu
telefonar-me quando o Greene, que é como o tal tipo se chama, aparecer de
novo, o que deve acontecer dentro de duas semanas, o mais tardar.
»Charlie, não corras riscos destes com o teu filho! Não me interessa o
que diz a ciência. Um destes fetos chegou até aos cinco meses e tenho um
mau pressentimento de que outros poderão chegar ao termo da gravidez.
Podes recomeçar, Charlie. Dentro de cinco meses estarás no ponto em que
estás hoje e na certeza de que vem ai um bebé saudável.
Charlie lançou-lhe um olhar penetrante e furioso.
— Dois meses para engravidar, não é, Doc? Bom, é melhor dizeres dois
anos, pois foi o tempo que levámos desta vez.
»Claro que por dois meses é fácil, mas por dois anos não. Se Ann abortar
espontaneamente, como todas as outras de que soubeste, então paciência.
Nesse caso não sei o que faremos. Talvez mandemos tudo passear e
desistamos. Mas depois de todo este tempo não vamos deliberadamente
desistir deste filho.
Dirigiu-se à cafeteira e encheu uma chávena. Olhando pela janela,
continuou: — Sabes, Doc, é que é desgastante esperar mês após mês, sempre
com medo de ter demasiada esperança. — Virou-se e encarou Doc. — Não
era capaz de suportar o mesmo outra vez. — Pousou os olhos no chão. —
Deixemos isto por agora, por favor. Ajudo-te nessa investigação Medline,
mas só na próxima semana, está bem?
Doc encaminhou-se para a janela e ficar ambos a olhar os prédios velhos
do outro lado da rua.
— Certo, Charlie. Por agora basta, mas pensa nisso e no risco e fala no
assunto à Ann. Deves fazê-lo, porque não é o tipo de decisão que possas
tomar sozinho. — Sem responder, Charlie continuava a olhar pela janela. —
É meu dever, como teu médico e como teu amigo, dar-te a minha opinião. Já
ta dei, mas quero que saibas que, seja qual for a vossa decisão, estarei
convosco para vos ajudar como puder. — Agarrou no casaco, dizendo: —
Passo por cá no princípio da próxima semana.
Charlie desviou o olhar da janela e enfrentou o de Doc mas, não
encontrando palavras para se exprimir, virou-se para a janela com as lágrimas
nos olhos. Ouviu os passos de Doc encaminharem-se para o átrio e ficou só
com os seus argumentos e as suas dúvidas.
Lenta e mecanicamente, tirou da caixa o material de vidro e os produtos
químicos que tinham chegado nessa manhã. Dizia para consigo que não havia
dados suficientes para tomar uma decisão inteligente. Não havia dados
suficientes.
Terça-feira, 11 de Agosto
Só na terça-feira seguinte é que Doc voltou a falar com Charlie. Ao
chegar deparou com Charlie e com um homem mais velho debruçados sobre
uma enorme peça de material eletrónico, todo ele coberto de mostradores e
luzes. Sentou-se silenciosamente atrás deles sem que se apercebessem e
observou como eles se agitavam em volta da máquina. Fez-lhe lembrar uma
máquina de jogos. Um deles ajustava o mostrador enquanto o outro batia num
quadro para que a agulha saltasse. Finalmente, e depois de uma série de
pancadas e de murros infrutíferos, desistiram. Frustrado, Charlie virou-se e
quase pisou Doc.
Ao vê-lo, explodiu:
— Não entendo como raio se podem gastar quinze mil dólares numa
peça de material e não conseguir que ela funcione! Agora vai ser uma semana
antes que consiga pôr as coisas a funcionar, a não ser que me desloque pela
cidade com as amostras e peça uma máquina emprestada a alguém.
Avançou para a cafeteira e deitou uma chávena. Apercebendo-se de
repente de que os outros dois ainda não se conheciam, pediu desculpa e
apresentou-os.
— Doc, este é Lloyd Haenners, o diretor do laboratório que fica do outro
lado do átrio, que me tem ajudado a instalar-me aqui.
Doc sorriu, correspondendo ao cumprimento de Lloyd.
— Beth Cordell trabalha consigo, não trabalha? Conheci-a na semana
passada.
— É verdade — respondeu Haenners. Com pouco mais de quarenta
anos, tinha uma constituição atlética. O seu cabelo estava um pouco
comprido, roçando a gola do casaco de bombazina. Com uma pequeníssima
barba, era o retrato do intelectual liberal que de facto era. — Ela é um dos
mais qualificados membros do meu laboratório. Diria que quase é
inestimável.
Conversaram durante uns minutos e depois Lloyd deixou Doc e Charlie
sozinhos.
Este puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Doc.
— Há uma semana que não te vejo. Que tal vão as coisas?
— Febris — respondeu Doc. — A modificação do ar tem sido diabólica.
Entre a poluição e as alergias, parece que há metade da cidade que não
consegue respirar. O pobre do Kip chamou-me no sábado à noite, entre duas
atuações, para me implorar que o ajudasse, queixando-se de que durante a sua
primeira atuação tinha espirrado o tempo todo.
Charlie riu-se.
— Onde é que ele está agora a atuar? Ann e eu temos estado a pensar em
ir vê-lo.
Kip, um dos amigos mais íntimos de Charlie, era um guitarrista
profissional; tinham-se conhecido na faculdade.
— Não era má ideia — respondeu Doc. — Ele vai voltar a atuar no
Hungry Fox dentro de algumas semanas. A Justine e ele queixaram-se de que
El Professor parece andar demasiado ocupado para rever os velhos amigos.
— Merda! — Murmurou Charlie. — Este laboratório não aparece
ordenado por si próprio. Ann também se tem queixado. Que raio, tenho
trabalhado aqui que nem um cão — e, com um gesto, abarcou o laboratório.
— Mas havemos de ver se Warren e Justine estão livres uma destas noites.
Podemos ir todos a um espetáculo. Talvez pudesse convidar também a Beth.
Doc aquiesceu.
— Claro, uma cara nova seria agradável. — Fez uma pausa e continuou:
— E Ann, como está?
— Oh, muito bem — respondeu Charlie, evitando a pergunta implícita.
O enjoo parece que já acabou e acho que ela se sente agora muito melhor. Foi
até Nova Iorque na sexta-feira última, para passar lá uma semana com uns
amigos que já não via há mais de um ano.
— Falaste com ela?
Charlie pareceu perturbado. Tinha evitado falar a Ann da possibilidade
de vir a perder o bebé ou de este apresentar deformações. A verdade era que
nem sequer ele próprio quisera admitir essas probabilidades. Evitava as
verdadeiras razões.
— Acho que não valia a pena chocá-la com tudo isso exatamente antes
de partir para férias. Ter-lhe-ia estragado a semana e afinal de contas não há
pressa. Já está muito adiantada para um aborto por meio de ventosa e muitos
dos obstetras prefeririam esperar até aos cinco meses, para provocar o aborto
nessa fase.
Doc não pareceu ficar satisfeito com a resposta.
— Tudo isso está muito certo, mas não podes adiar a discussão do
assunto por cinco meses. Isso não é justo para a Ann.
— Está bem, já sei — replicou Charlie bruscamente mas não vale a pena
estares a repisar o assunto. Falarei com ela logo que regresse. Olha lá: que
dizes a uma amniocentese? Não podemos analisar...
— Charlie, não estás a raciocinar! Através da amniocentese consegues
obter umas células fetais extraídas do saco amniótico, mas que ficavas a saber
com isso? Tens de saber o que pretendes com a amniocentese. Não estou a
querer atormentar-te, mas acho que vocês se sentirão melhor quando
discutirem o assunto um com o outro. — Rebuscou nos bolsos e tirou de lá
algo semelhante a uma lista de compras e acrescentou: — De qualquer modo,
não foi por isso que eu cá vim. Pensei que pudéssemos organizar essa
pesquisa informática, se tiveres tempo.
A tensão desapareceu do rosto de Charlie.
— Ótimo — disse, feliz por deixar a discussão sobre Ann e os abortos.
— Vamos para o meu gabinete. É lá que tenho as informações. — Passaram a
hora seguinte a organizar a investigação Medline. O serviço de informações
cruzadas instituído pelos National Institutes of Health3 era um sistema
avançado e bem delineado, o que significava que era bastante utilizado.
Levaria uma semana a obter a informação que Doc queria e que abrangia
mutagénicos, teratogénicos e alucinogénicos e deformações cranianas nos
recém-nascidos. Uma vez organizada a pesquisa, só lhes restava esperar.
Uma semana mais tarde, Doc voltou lá e deu com Charlie estudando
atentamente um grosso molho de folhas de computador. Levantando a cabeça
acenou a Doc, dizendo:
— Por acaso não sabes ler italiano, pois não? Não há dúvida de que só
devíamos ter recolhido dados em inglês. Fico sempre atrapalhado com estes
títulos noutras línguas. — Pegou na folha que continha, à vontade, uns
trezentos dados. — A maior parte parece-me irrelevante, mas acho que há
algumas que vale a pena aprofundar.
Doc puxou uma cadeira para junto da secretária e sentou-se.
— Há alguma coisa especialmente interessante?
— Nada de óbvio — respondeu Charlie e continuou: — Não há nenhum
título que diga: «LSD causa testas aumentadas em fetos», se é isso que queres
dizer. Mas há diversas informações sobre efeitos teratogénicos da maior parte
das drogas que tínhamos listado e há alguns dados interessantes sobre
malformações congênitas. — Entregou um rolo de informações a Doc. — Fiz
uma fotocópia da lista e podes estudá-la com toda a calma. Marquei aqueles
que achei que podiam ter interesse, mas deves investigar outros que te
pareçam importantes.
Doc apontou para a lista:
— Pelo número de marcas, parece que só estes já nos vão dar que fazer.
Charlie lançou um olhar maldoso ao equipamento eletrónico que estava
agora silencioso e disse:
— Aqui a nossa «Berta» vai para a revisão na próxima segunda-feira,
por isso vou poder dedicar parte desta semana à leitura. Acho que em três
dias de leitura superficial poderei ter despachado a maior parte da lista. E, a
propósito — acrescentou — iniciei uma pesquisa sobre o LSD e outras
drogas suscetíveis de causar mutações específicas, tais como a deformação da
cabeça, visto que pensas que é isso que está a acontecer.
— Não acreditas que isso esteja a acontecer? — Perguntou Doc com
surpresa.
— Isso? Mas que isso? Se te referes ao facto de que mulheres que
tomaram os Gloryhits tenham sofrido abortos naturais, claro que acredito; ou
de que dois destes fetos traziam a cabeça deformada, também acredito. Mas
não engulo essa de que o ácido ou algum dos seus componentes causaram
mutações específicas. Tenho falado no assunto a outros cientistas daqui e eles
olham-me como se fosse doido. Até pode ser que seja verdade, mas contraria
tudo o que se sabe sobre mutações. Para se acreditar nisso, só com grande
persuasão. — Charlie dobrou a folha e meteu-a na gaveta de cima da
secretária. Querendo mudar de assunto, disse: — Chegaste a conseguir falar
àquele tipo que recolheu os outros fetos?
Um ar de irritação perpassou no rosto de Doc.
— Isso depende do que entendes por «falar a». O Dan Studeman
telefonou-me quando o Greene chegou ao gabinete e consegui interceptá-lo
antes que saísse do edifício. Nunca vi ninguém mais infeliz por me ver. Nem
calculas as evasivas com que apanhei. Disse-me que estava apenas a
superintender o projeto, que eram outras pessoas que estavam a efetuar as
autópsias e que estas eram feitas por um sistema de código, que não podiam
dizer senão no fim quais os fetos que tinham vindo e de que médicos, que ia
ver o que poderia fazer mas que não me podia prometer nada. Recusou-me o
número do telefone do seu gabinete, dizendo que o serviço de recepção de
chamadas era a melhor forma de o contactar. Disse-me ainda que lamentava
não ter podido contactar-me mais cedo e que tinha falado a outras pessoas
que tomavam parte no projeto e que a decisão não partia só dele e que para
prestar declarações precisava duma autorização dos médicos e dos pacientes,
etc., etc.! Se soubesse porquê, diria que o tipo estava a furtar-se a dar-me a
informação, mas a verdade é que isso não faz sentido. Disse-lhe que não
estava a participar na investigação e que por isso não tinha que se preocupar
com a competição e creio que o Studeman lhe disse o mesmo. De qualquer
forma, e para resumir, a verdade é que dali não levei nada. Por fim prometeu
tentar arranjar-me a informação e pronto. Eu fui delicado e não tentei forçá-lo
demasiado, mas pressinto que não terei notícias dele até que cá volte, no
próximo mês. Foi um diabo duma conversa mesmo frustrante. — Encheu
uma chávena de café, bebeu um golo e deitou o resto pelo cano abaixo. —
Estou tão amachucado que nem sei o que faço. Só preciso agora é de um
pouco de cafeína e vou voltar para o meu consultório.
Sentou-se outra vez e tentou descontrair-se. Charlie perguntou:
— Não é muito difícil obter autorização para trabalhar com fetos
humanos? Talvez pudéssemos falar com a comissão, ou lá o que é, que deu a
aprovação.
— Para abortos naturais, não. As únicas restrições referem-se a abortos
provocados, quando se teme que o médico possa influenciar a paciente a
abortar — respondeu Doc.
Charlie abanou a cabeça espantado.
— Há realmente doidos à solta na academia. Enquanto a coisa se passa
de igual para igual e os resultados não são de importância imediata, ainda se
admite que aconteçam coisas destas, mas tu frisaste bem que este era um
assunto de importância clínica imediata, não frisaste?
— Claro! — Disse Doc, irritado. — Até fui mais longe. Uma doente
minha fez um aborto voluntário e acontece que tinha tomado um Gloryhit
poucas semanas antes da data em que pensa ter concebido. Bom, o Studeman
é que lhe fez o aborto e a meu pedido poupou o feto. Hei de trazer-to para
veres, Charlie. Tem a mesma deformidade.
»Falei nisso ao Greene, mas não foquei a relação com os Gloryhits.
Insisti no facto de doentes minhas estarem implicadas e de eu ter de as
aconselhar, precisando para isso de estar informado.
E isso não deu resultado?
— Resultado? Isso preocupou-o e disse-me que tinha de lhe devolver o
feto para proceder a um estudo. Fiz-lhe ver que tinha sido um aborto
provocado e que portanto era irrelevante para a sua investigação, visto que
ele andava à procura de fetos de abortos naturais. Mas depois começou a
inventar razões disparatadas. Por fim sugeriu que, se quisesse que ele
colaborasse mais, deveria observar a mesma forma de atuação. Assim que se
convenceu de que eu não me adiantaria, disse-me que iria ver o que podia
fazer e foi-se embora.
Charlie abanou a cabeça.
— Espantoso! Mas que safado! Seria mais fácil tomar decisões se
soubéssemos se os sete estão deformados ou se todos os outros apresentavam
a mesma malformação.
Doc concordou e, olhando para Charlie, perguntou.
— Aceito esse comentário como uma indicação de que tu e Ann ainda
não decidiram se ela deve ou não abortar.
Charlie evitou o seu olhar.
— Por amor de Deus, Doc, não há informações suficientes para nos
permitirem tomar essa decisão. Talvez tenhamos bases para decidir, se
encontrarmos algo nesta pesquisa literária ou se aquele vampiro nos fornecer
alguma informação concreta. Mas, pelo menos antes de termos analisado
todos aqueles artigos, não acho que possamos tomar qualquer decisão.
— A Ann concorda? — Perguntou Doc.
— Acho que concordará — murmurou Charlie.
— Concordará? — Doc estava furioso. — Cotten, não estás com certeza
a dizer-me que ainda não falaste com ela sobre isso?
Charlie levantou-se, caminhou para a janela e perguntou furioso:
— Falar com ela sobre quê? Dizer-lhe que vieste com ideias malucas
dizer-me que o nosso filho viria deformado e que ela devia provocar um
aborto? — Virou-se e olhou Doc bem nos olhos. — Ouve: se surgir alguma
coisa desses artigos ou daquele «vampiro», prometo-te que nesse mesmo dia
falo com ela.
Doc cortou-lhe a palavra.
— Que diabo de jogo é o teu? Charlie, não podes tratar Ann dessa
maneira. Ela tem o direito de saber disto; se tu te recusas a dizer-lho, digo-lho
eu.
— Está certo, está certo — respondeu Charlie, irritado. — Ela só voltou
de Nova Iorque ontem à noite. Dá-lhe pelo menos um dia de descanso. Vou
dar uma olhadela a estes artigos e depois falo com ela. Telefona-me na sexta-
feira, depois de eu ter tido oportunidade de ler alguns, está bem?
— Está bem — concordou Doc —, mas tens de falar á Ann.
— Está bem — disse Charlie. Doc levantou-se para sair. — Ah, antes
que te vás embora queria dizer-te que Warren e Justine disseram que para
eles está bem no sábado e a Beth disse que também queria ir. Podemos então
contar com isso?
— Ótimo. Falo-te na sexta-feira.
Agosto
— Faça favor de se sentar, major Johnson.
Pearson, delicadamente, ofereceu-lhe a mais confortável cadeira da sala.
A constante irrequietude do major Pearson dava a Johnson uma ligeira
sensação de superioridade e fazia-o superar o facto de estar a pisar terreno
estranho. Dos cinco homens presentes só Pearson lhe era familiar. Todos os
outros lhe pareciam mais calmos e mais argutos. Com Pearson nunca tinha a
certeza de estar a ser compreendido. Este começou por dizer:
— Agradecemos a sua vinda a Washington para nos falar.
Compreendemos que representa um grande incômodo para si, sobretudo no
ponto em que estão as suas pesquisas, mas acho que não seria de boa política
que todos nós fossemos vistos a andar por ai juntos. — Lançou a Johnson um
sorriso de entendimento que os outros fingiram não ver. Johnson
correspondeu delicadamente e esperou que Pearson continuasse. A presença
dos outros quatro fazia com que Johnson se sentisse pouco à vontade.
— Bom, major, deixe-me cá ver... Desde Junho passado que não falava
consigo, por isso talvez o melhor seja pôr-me ao corrente do que tem feito
desde então.
Pearson suspirou imperceptivelmente, pensando que por vezes é
fastidioso ter de ouvir certas respostas. Tinha lido pormenorizadamente os
relatórios de Johnson e dois microfones dissimulados estavam a captar para
um gravador todas as palavras, para análise posterior. Mas Pearson ouviu
com uma atenção muito maior do que Johnson pensava.
Desde Junho que o Projeto Vector tinha avançado rapidamente. Tinham
conseguido, cortando o Clostridium botulinum ADN e adaptando pequenas
partes deste a um cromossoma duma bactéria vulgar como o E. colli, isolar o
gene da toxina botulino mortífera. A verba aparentemente inesgotável que
Westland tinha posto à sua disposição permitira-lhes isolar milhares de
bactérias em busca de uma que produzisse a toxina e tinham-na finalmente
encontrado. O próximo passo seria no sentido de adaptar o gene mutador ao
gene do botulino.
Depois de ouvir a exposição de Johnson, Pearson parecia estar
mergulhado nos seus pensamentos. Por fim perguntou:
— Agora que o gene da toxina é o E. colli, qual é a taxa de perigo?
Johnson ficou chocado.
— É um milhão de vezes mais elevada! As bactérias do Clostridium
morrem quando expostas ao ar. É por isso que só se apanha uma intoxicação
alimentar com a comida enlatada de que o ar foi extraído. Mas o E. colli
existe por toda a parte. Neste preciso momento você tem biliões deles
alojados nos intestinos e alguns milhões deles associados ao gene botulino
eram suficientes para matar um homem.
Johnson agitou-se nervosamente.
— Calculo que as devidas precauções...
Johnson riu-se ao ver o mal-estar de Pearson e disse:
— Foram tomadas as maiores.
Pearson olhou para o seu pequeno bloco e, depois de um lapso de tempo
que pareceu longo, olhou para Johnson.
— De que precisaria para criar um vírus de cancro que fosse altamente
transmissível?
A pergunta apanhou Johnson completamente desprevenido.
— Bom — gaguejou —, não sei se temos conhecimentos suficientes...
— Isto não é um exame, Johnson. Você não está a ser testado.
Quem falava era um dos quatro que tinham estado calados e que Johnson
chegara a pensar serem mudos. Pearson concordou.
— Compreendo que nem sequer tenha pensado nisto alguma vez, a não
ser como uma possibilidade remota... O que pretendo é apenas uma ideia do
que seria necessário. — Parecia tão nervoso como Johnson.
— Bom — respondeu este —, se querem apenas um cálculo ousado dos
problemas que isso envolveria, acho que primeiro haveria que isolar um
elemento cancerígeno. Talvez, se se tivesse um vírus causador de cancro, se
pudesse pegar em todo o ADN viral e enxertá-lo noutro vírus mais
transmissível, mas não tenho a certeza. — Sentou-se a pensar no problema.
— Como é que selecionaria esses vírus que receberiam os ADN
cancerígenos? — Perguntou Pearson.
— Como? — Repetiu Johnson. — Acho que teria de ter células humanas
e tentar infectá-las. Acho que seria desejável fazê-lo em células de cultura.
Desenvolvê-las e tentar infectá-las.
— E isso seria um trabalho de rotina de cultura de células? — Inquiriu
Pearson.
— Não — respondeu Johnson lentamente. — Acho que não seria um
trabalho corrente, porque é muito difícil dizer quando é, que uma célula se
transformou... Isto é quando é que atingiu um estado canceroso. É um
trabalho muito sofisticado.
— E precisava de muita gente?
— Claro, precisava de duas dúzias dos maiores especialistas neste
campo.
Pearson parecia satisfeito. Levantou-se da cadeira e acompanhou
Johnson até à porta.
— Bom, major, foi-nos muito útil. Se precisar de mais alguma
informação sua, espero poder deslocar-me ao seu laboratório para
conversarmos.
Johnson estava espantado com a brevidade da entrevista.
— É tudo?
— Acredite-me, major, que nos foi imensamente útil. A minha secretária
ocupar-se-á dos pormenores do seu regresso. Mais uma vez, muito obrigado.
E Johnson encontrou-se sozinho com a secretária de Pearson.
***
Dentro do gabinete falavam todos ao mesmo tempo; foi o homem de
aspecto vulgar, o terceiro à esquerda de Pearson, que pôs fim à confusão.
— Quero saber a opinião de cada um de vós sobre a possibilidade de os
Russos estarem a trabalhar num vírus de cancro aplicável numa situação de
guerra.
O homem que estava à sua direita, o segundo à esquerda de Pearson,
objetou:
— Primeiro quero saber se ainda temos as transcrições de Asilomar e se
já foram ponderadas.
O número quatro interrompeu:
— Se me derem uns quatro minutos, poderei passar em revista todo o
quadro de Asilomar. — O número três concordou. — Em 1975,o encontro de
Asilomar celebrou-se como o resultado de uma comissão da National
Academy of Sciences4, para tentar traçar linhas de orientação internacionais
para o uso seguro da transmissão do ADN de um organismo para outro. Por
razões ainda não esclarecidas, foram convidados investigadores russos. Esta
delegação veio, obteve o máximo de informações que pôde, à custa duma
cedência mínima das suas informações, e fotografou todos os slides da
investigação apresentados pelos americanos.
»Se bem que as reuniões fossem gravadas, nunca se procedeu a uma
transcrição e as gravações nunca foram publicadas. Obtivemos cópias das
gravações, transcrevemo-las e estudámo-las. As conclusões são simples e
aterradoras. Qualquer pessoa presente naqueles encontros poderia, sem
grande esforço, pôr de pé um projeto semelhante àquele em que Johnson está
a trabalhar. Com bons cérebros, poderíam tentar o projeto cancro. De facto, e
em consequência da análise que efetuámos às gravações originais,
considerando que não estavam em suficiente segurança, desgravámo-las sub-
repticiamente. Se ninguém lhes chegou até agora, a partir daqui ninguém lhes
chegará.
»É de calcular, no entanto, que os Russos tenham cópias das gravações.
Devo acrescentar que os quatro membros da delegação russa estão entre
aqueles que desapareceram no ano passado. É tudo. — Não transparecia na
sua voz qualquer emoção.
O número dois falou em seguida:
— Alguém pensa que eles não estão a trabalhar num vírus de cancro?
Pearson inquiriu:
— Verificou-se se essa gente do vírus de cancro foi transferida para
laboratórios de guerra biológica?
— Não — respondeu o dois. — Tudo quanto sabemos é que três deles
desapareceram da circulação. Mas não sei onde poderão estar.
Fez-se silêncio por alguns segundos e finalmente o três falou:
— Então parece que vamos partir do princípio de que eles estão a tentar
essa via. — Olhou um por um, recebendo de cada um deles um sinal de
aquiescência, com a cabeça. — Isso só nos põe mais um problema. Como
sabem, além dos convidados assistiram também sem convite membros da
imprensa. Temos passado em revista cuidadosamente as fotografias tiradas
durante o encontro, para verificarmos as identidades desses repórteres. Neste
momento há dois que parecem não se ajustar. Não conseguimos identificar
um porque parece que não se inscreveu; o outro inscreveu-se como repórter
do Boston Globe. O nome condiz com um novo escritor de assuntos
científicos deles, mas a cara não. Temos utilizado literalmente todas as vias
para os caçarmos. Demos-lhes os nomes de código de Mohair e Gabardine.
Receberão amanhã um dossier sobre eles, mas não está lá nada que eu não
vos tivesse dito.
— Mais alguma coisa? — Perguntou Pearson.
Ninguém falou.
— Então encontramo-nos de novo na próxima quinta-feira. Saíram os
quatro em silêncio, deixando Pearson sozinho no seu gabinete.
Terça-feira, 18 de Agosto
Deprimido pela conversa que tivera com Charlie, Doc voltou para o
consultório, conduzindo durante duas milhas de engarrafamentos. Não lhe
agradava a ideia de ser ele a dizer a Ann; mas, se Charlie o não fizesse, teria
de ser mesmo ele. Estava confuso com o procedimento de Charlie. Seria
possível que tivesse mudado tanto enquanto estivera na Califórnia?
Trabalhou todo o dia, mas o pensamento fugia-lhe de vez em quando
para Charlie e Ann e para o feto que obtivera de Studeman. Odiava aquele
feto, mas ao mesmo tempo sentia-se fascinado por ele. Na sexta-feira
anterior, num momento de desespero, pusera-o numa prateleira alta, atrás de
um monte de coisas, para não o ver, mas isso não evitava que pensasse nele.
O dia de trabalho, como de costume, durou até tarde e só às seis e meia é
que saiu o último doente do seu consultório. Sharon e Karla, a recepcionista e
a enfermeira, estavam a arranjar-se para sair. «Vou dar só uma olhadela»,
pensou, irritado pela sua fascinação pelo feto. Arrastou um banco até às
prateleiras e subiu a ele para tirar o frasco.
Desaparecera. Ficou ali olhando fixamente o lugar vazio no fundo da
prateleira. Perturbado, procurou por trás dos outros frascos e boiões, porque
poderia ter sido empurrado lá para trás. Mas sabia que desaparecera. Virou-se
e chamou Karla e Sharon. Foi Karla quem entrou no consultório.
— A Sharon já saiu. Precisa de mim?
Ele continuava empoleirado no banco e sentia-se aparvalhado.
— De sexta-feira para cá fez alguma coisa ao frasco que continha o feto?
Ela abanou a cabeça.
— Pensei que o tinha cá mais abaixo, ali. — E apontou para o sítio onde
ele o pusera antes de o ter mudado.
— Não, mudei-o na sexta-feira passada. Então não lhe mexeu?
— Não.
— E Sharon mencionou alguma coisa que tivesse a ver com ele?
Karla franziu a testa.
— Nem uma palavra, nem sei porque o faria. E, ao menos, ela sabia
onde ele estava?
Doc saltou do banco e enfiou-se na sua cadeira.
— Não. Tem razão. Mudei-o na sexta-feira, ao fim do dia, e creio que
não falei nisso a nenhuma de vós. Mas onde diabo poderá estar?
— Pensa que alguém o levou?
— Mas se ninguém sabia que ele ali estava! — Doc explodiu, furioso. —
Na verdade, tirando nós os três, só o Studeman sabia que eu o tinha. — Um
pouco mais calmo, acrescentou: — Além disso, para que é que alguém o
quereria? — Olhou em volta e comentou: — Se realmente alguém se
introduziu aqui, desprezou muitas outras coisas por aquele feto.
Karla não disse nada.
— Raios! Telefonarei mais tarde a Sharon, pode ser que ela tenha
alguma ideia. Alguém o pôs em qualquer lado. — Ao dizer isto olhou para a
prateleira. — Afinal também não se perdia grande coisa.
Quinta-feira, 20 de Agosto
Recostando-se na cadeira, Lloyd Haenners riu.
— Que vergonha, Charlie, terias falhado logo a primeira pergunta do
exame final do ano passado. É contraditório em si um mutagénico ter um
efeito específico. As mutações, por definição, têm de ser casuais. — Sentia
um prazer perverso em apanhar um colega num erro tão primário. Agora era a
vez de Charlie.
Haenners criara nome desenvolvendo técnicas de criação de células
vegetais em condições de cultura de células. A planta do milho levava meses
a desenvolver-se, o que significava uma duração de meses para cada
experiência. Utilizando a técnica de cultura de tecidos, tornou-se possível
efetuar um largo número de experiências rapidamente e dentro das paredes
dum pequeno laboratório. Com o advento da manipulação de genes,
Haenners começara a desenvolver uma estirpe de milho resistente a doenças,
utilizando as técnicas de transferência de genes. Beth Cordell estava agora a
proceder à construção dum vírus que veicularia os genes até às células de
milho.
Charlie encolheu os ombros à interrupção de Lloyd.
— Isso era o que eu pensava, mas surgiu uma questão esquisita e
perguntei-me se haveria algo de novo nesse campo. Por exemplo, se a
talidomida não podia ser um mutagénico.
— Claro que não — roncou Lloyd. — Primeiro que tudo, só atua quando
uma mulher a tomou já grávida; em segundo lugar, os mutagénicos não
atuam assim.
Charlie sentiu-se aliviado, se bem que o estilo de Lloyd o irritasse.
Adotara Lloyd como modelo de atuação na vida, pelo êxito da sua
conciliação da investigação com a política. Haenners era sincero quando
falava da sua recusa em aceitar dinheiro do exército, se bem que muito do seu
apoio financeiro proviesse de fonte industrial, duma firma de pesquisas
agrárias chamada Crop Research Associates.
Charlie prosseguiu:
— Ótimo, mas vamos supor (é apenas uma hipótese) que uma mulher
ingere uma substância desconhecida e que duas semanas mais tarde concebe
um filho. Essa substância não poderia causar uma malformação específica?
— Bom, espera ai, agora não estás a falar necessariamente duma
mutação. Talvez se trate dum químico que danifica, por exemplo, a glândula
pituitária da mãe e isso causa, por uma forma qualquer e mais tarde, um
efeito teratogénico. Não sei se já aconteceu qualquer coisa desse gênero, mas
parece possível.
Poderia ter sido possível, mas não aconteceu de facto. A pesquisa feita
por computador convencera Charlie. Os agentes teratogénicos não se mantêm
no corpo durante duas semanas; e se bem que, interferindo com diversos
órgãos da mãe, possam vir a causar malformações no feto, estas eram sempre
devidas a uma falha nutricional generalizada e facilmente identificáveis.
Quase não havia forma de imaginar o tipo de acontecimento que Doc sugeria
que podia acontecer. Quase.
Era uma daquelas referências que o computador em certas alturas
forneceria sem razão aparente. Tratava-se dum velho jornal do princípio dos
anos 70. Um laboratório de pesquisas em Inglaterra estivera a trabalhar com
um vírus que se julgava causar certos tipos de cancro. Chamava-se um
adenovírus e fixava-se sempre num certo local dos cromossomas humanos. A
razão por que se fixava só nesse local e como é que causava o cancro não
estava esclarecida. Mas existiam cancros do sistema nervoso e era admissível
que um vírus específico se pudesse fixar num local dum cromossoma humano
no esperma, ou num óvulo, e vir a causar um tumor no cérebro. Era uma boa
ideia, só que tais vírus não existiam.
— E que dizes a um vírus? — Perguntou Charlie.
— Isso é desleal — disse Lloyd a sorrir. — Falaste num agente químico,
não biológico.
Charlie estava furioso com as técnicas de debate utilizadas por Lloyd e
cansado do jogo.
— Está certo, mas consideremos agora os agentes a vírus.
Lloyd pensou por um momento.
— Bem, tenho de admitir que teoricamente é possível. Sabes que a
rubéola pode causar afecções nervosas específicas em fetos, mas para isso é
preciso que a mãe a contraia enquanto está grávida. Tem de atuar enquanto o
sistema nervoso se está a formar.
— Por outro lado — objetou Charlie uma mulher pode contrair sífilis e
transmiti-la ao feto dez anos depois, sem que para isso tenha tido de ser
infetada durante a gravidez.
— A sífilis é uma infecção por bactérias e tu falaste de infecções a vírus,
Charlie.
Este já não aguentava mais. Falava do seu filho que estava para nascer e
Lloyd brincava com as palavras. Perguntou:
— Lloyd, não academicamente, mas na realidade: achas que poderia
acontecer algo deste gênero?
Haenners ficou surpreendido com a entoação e respondeu:
— Não. Talvez pudesse em teoria, mas não na prática.
Charlie suspirou de alívio.
— Obrigado — murmurou e levantou-se para se ir embora.
— Se estás interessado em vírus que afetam a genética daqueles que
contaminam, podias assistir aos seminários no nosso laboratório, de vez em
quando — sugeriu Lloyd. — É uma das abordagens que estamos a encarar,
para o problema das influências malignas. Acho que é o Bill que fala hoje,
mas devias falar com a Beth, porque é ela a encarregada.
De regresso ao seu laboratório, Charlie afundou-se na cadeira. Não havia
bases para afirmar que o palpite de Doc estava certo, mas não se sentia tão
confiante como uma hora antes. Estava esgotado pelas dúvidas e pela
confusão das duas últimas semanas. Altos e baixos. Ora certo da segurança
da criança, ora temendo pela sua vida. Sentia-se como uma palha no ciclone,
esperando ser pousada em qualquer lugar desconhecido. Deprimido e ainda
inseguro da sua decisão, deu uma olhadela aos resultados da investigação por
computador, mas não viu nada que não tivesse já visto. Por fim voltou a
organizar o seu laboratório.
Trabalhou decididamente durante o princípio da tarde, esquecendo por
completo a sugestão de Lloyd para que assistisse aos seminários, até que Beth
irrompeu pelo laboratório e se atirou para uma cadeira.
— Aquele idiota vai pôr-me fora de mim! — Exclamou, com as faces
vermelhas de raiva.
Charlie virou-se para ela com interesse:
— E quem é o feliz mortal que conquistou a tua eterna gratidão?
Os olhos dela brilharam de irritação.
— Aquele louco do Bill Hebb!
— O investigador adjunto de Lloyd?
— O seu famoso adjunto — respondeu zangada. — Como é que
conseguiu doutorar-se é que eu não entendo. Aquele idiota tem métodos de
empregado de lavandaria! É incrível que tenha gasto uma hora e quinze
minutos a dizer-nos que parece que as coisas correram mal no mês passado.
Depois disto ainda descobri que pegou no meu frasco de soluto de fosfato e
que lhe deitou um tipo diferente de fosfato, sem mudar o rótulo e sem sequer
me avisar. Isto equivale a dizer que as minhas experiências da última semana
estão estragadas. Ainda mato aquele tipo, juro que o faço! — Pôs-se em pé e
começou a andar às voltas pelo laboratório, tentando acalmar-se.
— Já é tempo de te afastares do laboratório por um bocado — sugeriu
Charlie. — E que tal se fôssemos até ao café? Eu também estou a precisar
duma pausa.
— Ótimo — disse ela —, mas receio não ser boa companhia.
***
De regresso ao seu gabinete, Charlie caiu pesadamente na cadeira: as
emoções extenuavam-no. Cumprindo a promessa, Beth tinha sido má
companhia. Como Charlie lhe oferecera um ouvido atento, estivera a atacar
não só Bill, mas também Haenners, pela forma anárquica como dirigia o
laboratório; finalmente tinha atribuído a responsabilidade à influência
perniciosa que sobre ele Bill exercia sem que disso se apercebesse. Para
piorar ainda a situação, quando Charlie tomou a defesa de Lloyd, ela virou-se
contra ele.
Normalmente não se sentia afetado pelas críticas feitas à sua vida de
cientista, mas as opiniões de Beth pareceram-lhe mais importantes,
especialmente à luz da aversão que sentira por Lloyd aquando da sua
discussão. Além disso, sentia que Beth o atraía e a sua atitude agressiva feria-
o.
Compreendia que também Ann não gostara de Lloyd desde que o
conhecera; um segundo encontro só servira para confirmar essa impressão.
Charlie atribuíra o facto ao ciúme, porquanto, sendo um novo amigo, Ann
não estava tão à vontade para o compartilhar; mas, se a opinião de Beth
corroborava a de Ann, então já não sabia que pensar.
Charlie pegou na cópia da pesquisa literária que ele e Doc tinham feito.
Nenhum artigo de interesse se lhe deparara e isso, pelo menos, era um alívio.
Estava a folheá-la para uma última observação quando o telefone tocou.
— Olá, Charlie! Daqui é Doc. Estou atarefado aqui no consultório e por
isso decidi substituir a visita por um telefonema. Que descobriste?
Charlie pousou a cópia na secretária.
— Nada, Doc, absolutamente nada. Não há mutagénico nem
teratogénico, absolutamente nada suscetível de causar uma tal malformação.
Existe de facto uma doença genética rara que parece assemelhar-se àquilo de
que falamos, mas os fetos nasceram sempre vivos. Acho que aquilo que
vimos é apenas o resultado duma coincidência muito improvável e que isso é
tudo sobre o assunto. Assim, parece-me que Ann e eu vamos ter um bebé
normal e ótimo.
Doc parecia aborrecido.
— Bom, então aceito que tenham conversado e decidido que é isso que
querem; não foi o que fizeram?
Charlie hesitou por um momento.
— Bem, de facto não falámos sobre o assunto, mas tens de concordar
que não há nada a dizer, Doc! — Continuou a falar sem lhe dar oportunidade
de argumentar. — Olha, tiveste uma ideia e pensámos que estaria certa, foi
por isso que fizemos a pesquisa literária; mas, afinal, a resposta obtida prova
que a tua ideia está errada. Não pode realmente ser o que pensavas e por isso
não há qualquer razão para nos preocuparmos. Vale a pena preocupar-nos,
isso sim, com o efeito da tensão nervosa no desenvolvimento do feto. Isso
está bem documentado e não vale a pena expor a Ann a qualquer tensão
desnecessária, principalmente tendo sido tão difícil engravidar. Este miúdo
significa demasiado para nós e eu não quero desencadear a confusão. Não sei
se há alguma causa comum por detrás dos abortos naturais que tu descobriste;
mas, mesmo que haja, o que duvido, é improvável que eu e Ann tenhamos a
ver com ela. Além disso, ainda que tenhamos e se viermos a perder o feto,
sentir-nos-emos muito mais à vontade para tentarmos de novo do que se
provocarmos um aborto e verificarmos que o feto era normal.
Houve um momento de silêncio e Doc perguntou então;
— Acabaste?
A pergunta apanhou-o desprevenido e respondeu:
— Não creio que haja muito mais a dizer.
— Charlie, não acredito que estejas a ser tão burro como isso! O grande
Charlie Cotten a proteger a sua companheira dos perigos do mundo exterior.
Charlie, desculpa, parece-me que aparentemente não me fiz entender da
última vez que falei contigo, Ann vai ser informada. Sou o médico dela e o
teu e cabe-me a responsabilidade de velar para que ela saiba. Não acredito
que te julgues no direito de decidires por ela!
Charlie estava furioso e assustado. Não queria sequer pensar em dizer a
Ann, mas também não queria que Doc o fizesse. Tentou parecer calmo e
razoável.
— Doc, não estou a fazer de Deus, mas não ganhamos nada em falar
com ela. Sabes tão bem como eu que, no fim, ela apoiará a minha opinião,
porque não sabe nada sobre o assunto. Li todos os escritos e tu próprio viste
os resultados. Procurámos os efeitos mutagénicos e teratogénicos do LSD,
mutações que afetassem o sistema nervoso e até mutagénicos que
provocassem uma afecção especial! Não há nada semelhante, é o que temos a
dizer. Até falei com um dos «cérebros» daqui, que está a trabalhar em
técnicas de manipulação de genes, e não há nada desse gênero.
Doc falou em voz calma e forte:
— Houve outro ontem. Outro aborto e outro feto deformado. Podes vir
ter comigo e ver com os teus olhos, se quiseres. Está no consultório do Dave
Butler. Outra coincidência, Charlie? Que probabilidades há de o ser? Tu é
que és o cientista.
Charlie não soube o que dizer.
— Hoje é quinta-feira. Na segunda telefono à Ann. Se até lá não tiveres
falado com ela, falo eu.
Charlie olhou em silêncio o telefone e desligou-o sem responder. Virou-
se para a folha de computador que continha a prova de que o receio de Doc
era infundado. Por fim empurrou a cadeira para trás e saiu do laboratório.
***
Ao sair do metro em Harvard Square, Charlie foi assaltado pela
aglomeração louca daquela que se tornara a maior zona comercial de
Cambridge, além do lar de cinco mil estudantes. Evitando o caminho direto
para casa, subiu a Brattle Street, virando no beco pavimentado por trás da
Coop. Parou ao cimo dum lanço de escadas que descia para o Hungry Fox,
apercebendo-se de que o seu subconsciente o conduzira até ali. Dentro do
café vazio encontrou Kip a ler o jornal.
O cabelo loiro caído pelas costas e a túnica de algodão bordada davam a
Kip o ar do típico hippie. Quando eram estudantes universitários Charlie e ele
tinham estado metidos em organizações políticas e, apesar de já não se verem
há três anos, ainda se sentiam ligados.
— Que é que traz o Professor até este antro húmido, entre as nove e as
cinco? — Perguntou alegremente.
— Olá, Kip. Deixa-me sentar primeiro um pouco, certo?
— Certo. — Kip via que o rosto de Charlie indicava cansaço e tensão.
Tinham feito muitas noitadas juntos, planeando e organizando, e por isso
cada um deles lia no rosto do outro como num livro. — Parece que tens
passado um mau bocado.
Charlie estava sentado em silêncio e recusara as batatas fritas que lhe
tinha estendido.
— Kip, achas que o Doc se tem portado de forma mais autoritária e
rabugenta, no aspecto médico e profissional, desde que eu me fui embora?
Tem sido mais chato contigo ou coisa do gênero?
Kip sorriu.
— Não mudaste, Charlie, mas eu também não. Nada de subterfúgios.
Que há?
Charlie sorriu agradecido e compreendendo melhor a razão por que
procurara Kip para desabafar. Ele era a única pessoa com quem Charlie podia
falar aberta e honestamente, sem temer ser atacado ou depreciado. Mesmo
com Ann sentia que havia demasiado em jogo para deixar andar sem
objeções. Com Kip a relação era de tal forma livre que conseguiam evitar
uma atitude defensiva ou ofensiva em relação ao que o outro dizia.
— Não imaginas como estou bera com o Doc. Sinto que estragou a
nossa amizade com um golpe cruel, ao querer brincar aos deuses.
— Que aconteceu? — Perguntou Kip delicadamente.
— Oh meu Deus, Kip, é tudo tão confuso! Já ouviste falar num ácido
chamado Gloryhits?
— Claro que já e é um material de primeira. — Kip parecia atrapalhado.
— Há alguma coisa sobre isso, que eu desconheça?
— Há. Talvez seja um pesadelo. Raios, eu também não sei! —
Lentamente Charlie despejou a história; ao falar pela primeira vez do assunto
com outra pessoa sem ser Doc, apercebia-se de como estava preocupado. No
fim estava a tremer. — Estava convencido de que Doc andava «à nora», mas
agora já não estou tão certo.
— De facto pareces demasiado preocupado para quem pensa que não há
problema — concordou Kip.
— Que raio! E se ele tem razão?
— Charlie, não compreendo o problema. Tu não queres perder a criança,
e isso entendo, mas se Ann abortar naturalmente será assim tão diferente de
provocar um aborto?
Charlie abanou a cabeça.
— Isso estava muito certo, mas não para Doc. Ele acredita que a
gravidez pode chegar ao termo, mesmo com uma malformação, e isso é uma
realíssima treta, porque ele não possui quaisquer dados em que se apoiar,
nem a mínima razão, e no entanto admite essa possibilidade. Acho que
afirmou isso só para me forçar a um aborto provocado e é por isso que estou
tão bera com ele. Se todos os casos resultaram em abortos aos cinco meses, e
resultaram mesmo, a discussão dele não tem bases. Por isso sinto como se ele
tivesse dado o alarme para ficar conhecido. Por isso te perguntei se ele estava
mais autoritário. Não me parece coisa do Doc, inventar um facto só para
convencer o doente.
— Não, esse não é o gênero dele — concordou Kip. — Não mudou
assim tanto desde que te foste embora, nem sequer de maneira que eu desse
por isso.
— Mas então como pôde ter dito aquilo? — Insistiu Charlie. — Não há a
mínima razão para que ele pense daquela maneira. Ele diz que é um
pressentimento e isso não me parece muito científico...
— Não tens de concordar com ele, mas não o avalies mal. Não creio que
te esteja a mentir. Não é o gênero dele.
— Mas que hei de eu dizer a Ann? — Perguntou. — Ainda que o
argumento de Doc esteja mais furado que um passador, mesmo assim tenho
de lho apresentar?
Kip concordou penalizado.
— Faz o mesmo que fizeste comigo. Não foi disparatado e acho que Doc
não exigiria mais, — Kip agitou o gelo que se derretia rapidamente na
bebida. — Vai ser duro, Charlie, bestialmente duro. Não te invejo, mas não
culpes o Doc, não foi ele que tornou as coisas difíceis. Elas é que o são, de
facto.
Charlie não estava satisfeito.
— Não sei, mesmo assim ainda estou chateado com ele. Parecia tão
insensível ao facto e mostrou tanta pena como um açougueiro por um
novilho. Acho que por uns tempos o dispenso bem.
— E então no sábado? — Perguntou Kip.
— Oh, merda! — Lamentou-se. — Esqueci-me completamente disso.
Olha, Kip, sê um bom rapaz e pede desculpa por nós não comparecermos. Se
eu falar no assunto à Ann, nenhum de nós vai querer ir, se não tivermos ainda
falado, também não quero ver o Doc.
Kip acenou a cabeça em sinal de compreensão, mas acrescentou:
— Fazes mal em pôr o Doc de lado dessa maneira, mas é contigo. Dir-
lhes-ei que não te sentias bem e que não tinhas a certeza de poder ir. E quanto
a essa mulher com quem trabalhas?
— Beth? — Inquiriu Charlie. — Acho que Doc lhe dará boleia e
portanto deve ir. Sê agradável para ela, porque de todos nós o único que ela já
conhece é Doc.
— Está bem, Charlie.
Charlie olhou para o relógio e suspirou. Ann devia esperá-lo para jantar
dentro de pouco tempo e não lhe agradava nada pensar no serão.
Pressentindo a situação, Kip levantou-se.
Permite-me que me retire agora, Charlie. Tenho ainda de ensaiar alguns
números antes do espetáculo e quero fazê-lo antes de jantar. — Agarrou na
caixa da guitarra.
Charlie levantou-se e começou a avançar para a porta.
— Certo, Kip, acho que também tenho de ir.
— Esta noite dedico uma música ao teu filho. É para dar sorte — gritou
Kip.
Domingo, 23 de Agosto
Charlie fora para casa nessa noite temendo a inevitável confrontação;
mas, de qualquer maneira, ainda conseguiu passar essa noite, sábado e a
maior parte do domingo sem tocar no assunto. Finalmente, depois do jantar
de domingo foi impossível adiar por mais tempo, porque no dia seguinte Doc
telefonaria a Ann.
— Parece que de repente ficaste assustado — queixou-se ela. O jantar
fora bom e eles tinham-se alongado acerca dos planos sobre a casa e o
quintal. Agora, ali na sala comum, Charlie mantinha-se calado, sentado e
incapaz de começar a conversa. Ao ver que ele não respondia, Ann ficou
ainda mais séria. — Charlie, que há? Tens andado à deriva, perdido nesse
olhar ligeiramente infeliz, durante todo o fim de semana. Queres contar-me?
Charlie acenou com a cabeça, mas permaneceu sentado e em silêncio,
sem se virar para Ann.
Ann veio para o seu lado. Pondo um braço em volta dele, virou- -lhe
ternamente a cara para ele.
— Vá lá, Charlie, diz-me o que há.
Ele começou a falar num tom monocórdico.
— Doc tem uma ideia maluca e insistiu em que eu ta expusesse. Eu
estou convencido de que ele não tem razão, e mesmo que a tenha não há nada
a fazer, mesmo assim, temos de discutir o assunto, porque nos afeta a ambos.
— Charlie, a que é que te referes? — Na voz de Ann havia uma nota de
apreensão.
— Doc pensa que o nosso filho sofre de uma malformação, devido aos
Gloryhits que tomámos, e que vais abortar aos cinco meses. — Charlie
despejou a frase com raiva na voz. — Em qualquer dos casos, temos dois
meses negros para esperar o que aconteça ou o que provavelmente não
aconteça. — Sentou-se em silêncio por um momento e por fim virou-se para
ela. Ann estava chocada e as lágrimas começavam a aparecer. — Ann, peço-
te desculpa de te ter atirado com uma destas, assim. Há duas semanas que
ando a tentar puxar o assunto, simplesmente não fui capaz. Tenho a certeza
de que ele está enganado e não queria preocupar-te, acho que era isso. Doc
convenceu-me de que tu devias saber e partilhar na tomada de decisão.
— O bebé não, Charlie!... Oh, meu Deus, isso não! — As lágrimas
correram-lhe pela face. — Que nada lhe aconteça. Suportarei tudo menos
isso!
Charlie abraçou-a, embalando-a ternamente.
— É isso que estou a querer dizer-te. O que Doc pensa é impossível.
Não passa duma ideia maluca que ele teve não sei bem como e que atirou
para o ar. Por isso temos de tratar do caso e preocupar-nos, mas garanto-te
que não há nada de grave com o nosso filho.
Ela soluçava apoiada no ombro dele.
— Charlie, eu não suportaria um filho deformado... Já sabes, não sabes?
Não quero dar à luz um filho aleijado. Não seria capaz de tratar dele!
— Mas, Ann, estou a dizer-te que mesmo que esteja deformado, como
Doc diz, abortará naturalmente aos cinco meses. A malformação é mortal e o
feto só consegue atingir metade do tempo de gestação. Por isso, na pior das
hipóteses, perdê-lo-emos nessa altura. Mas não vai haver qualquer
deformidade. — Nesse momento Charlie compreendeu que nunca diria a Ann
que Doc pensava que o feto podia sobreviver.
Olhando em frente, ela teve um sorriso forçado e disse:
— Afinal de contas, daqui a dois anos e meio podemos recomeçar a
mesma história. É assim?
— Ann, não vai acontecer nada! Tens de acreditar em mim. Não haverá
bebé deformado, nem aborto, o que vai haver é um bebé normal e saudável.
Ao dizer-lhe isto quase gritava. Ela dirigiu-lhe uma expressão dura e
vazia.
— Está bem, mas agora diz-me de que se trata. Diz-me porque é que
Doc julga que vamos perder o nosso filho.
E, pela segunda vez em três dias, Charlie contou a mesma história,
omitindo desta vez a possibilidade de uma criança deformada sobreviver. Era
absurdo, dizia para consigo. Nem sequer tinha a certeza de que Doc
acreditasse nisso. Ele apenas o mencionara uma ou duas vezes.
Falou a Ann da malformação e da relação com pessoas que tinham
tomado os Gloryhits, da pesquisa de literatura pelo computador, de como
nada se tinha descoberto e acerca da sua conversa com Lloyd.
— Disseste ao Haenners? — Perguntou Ann com desalento.
— Não, não foi bem isso — explicou Charlie. — Falei com ele como se
se tratasse duma possibilidade teórica de que algo desse gênero acontecesse.
Ela não pareceu convencida.
— Parece-me que lhe disseste mesmo. Não achas que ele desconfiou que
não se tratava duma conversa casual? — Ann mostrava-se agora zangada.
— Por amor de Deus, Ann, já te disse que não. Aliás, até tomou a coisa
como se se tratasse dum debate superficial. Afinal, porque é que te mostras
sempre tão irritada com ele? Seria assim tão terrível se alguém mais
soubesse?
— Não gosto dele, está bem? — Gritou ela. — Será que tenho de gostar
de todos os malditos dos cientistas teus amigos, sem ligar ao facto de serem
repugnantes? Só não quero que ele se dirija a mim nalguma festa, piscando-
me o olho e dizendo: «Olá, ouvi dizer que você vai ter uma criança
deformada.»
Afastou-se de Charlie à beira de uma crise de histeria. Ele puxou-a para
si e carinhosamente encostou-lhe a cabeça ao seu ombro. Ali ficaram
sentados em silêncio, tentando ambos acalmar-se. Charlie desejava ser ele a
chorar e Ann a confortá-lo.
— Charlie, por favor, não digas nada a mais ninguém. — A sua voz era
suave, implorando. — Acho que consigo viver assim, esperando, dois meses,
mas não quero falar com mais ninguém sobre isto. Não quero chorar em
frente de ninguém, não quero ter de ser forte. Não quero, positivamente, falar
do assunto. Prometes?
— Claro que prometo. — Não mencionou a conversa com Kip. Isso
ainda a preocuparia mais. Silenciosamente, advertiu a sua memória de que
deveria dizer a Kip que não falasse em nada.
Docemente, esfregando a nuca de Ann, murmurou:
— Agora esperamos. Esperamos que o feto se mexa. Nenhum dos outros
deu pontapés ou se moveu sequer. Se se mexer, estamos salvos.
Mas dois meses, Charlie, dois meses que iam ser tão lindos agora vão ser
horríveis.
— Eu sei — murmurou ele e finalmente chorou pelo seu filho.
PARTE II
Setembro
Stanley Johnson olhava pela janela o pôr-do-sol de meados de Setembro.
Havia nas árvores e na frescura do ar como que uma sugestão de proximidade
do Outono. Mas as janelas hermeticamente fechadas, o ar condicionado e as
luzes fluorescentes não deixavam a atmosfera de Outono penetrar no seu
gabinete. Para Johnson, o pôr-do-sol servia apenas como indicativo da
chegada de outro serão caseiro, perdido. No gabinete exterior ouvia Carol, a
sua secretária, a escrever à máquina. «Pelo menos ela recebe horas
extraordinárias», pensou.
A zona de estacionamento estivera sempre cheia nas últimas semanas.
As horas extraordinárias estavam a tornar-se mais regra do que exceção, à
medida que o grande acontecimento começava a levantar fumaça. E com a
fumaça vinha a inevitável pressão oriunda do gabinete de Pearson, na
Military Intelligence. Era impossível falar a Pearson, ou melhor, com
Pearson! Era fácil falar-lhe, mas dele só saiam vagos avisos de que de certa
forma as coisas eram mais sérias do que Johnson pensava e que o Projeto
Vector era mais importante do que poderia imaginar. E isso não lhe agradava.
De certa forma, quando pensara pela primeira vez no projeto, ele não passava
de facto disso: um projeto. Mas, agora, parecia ser mais uma arma do que
outra coisa, uma arma que pelo menos Pearson parecia julgar ser necessária e
depressa. Mesmo a visita do dia seguinte era inesperada, visto que Pearson
telefonara naquela mesma manhã a marcá-la, em vez de esperar pela reunião
mensal. Dissera a Johnson o assunto específico de que iriam tratar nessa
reunião. Disse-lhe ainda que exerceria sobre ele maior pressão e que ficaria
nessa noite acordado até tarde trabalhando com um dos seus homens para
decidir qual seria a melhor orientação a dar à reunião do dia seguinte.
Atrás dele, Peter Stanker continuava a discutir.
— Mas por que diabo não dizes: «Olhe, não temos suficientes
informações para lhe fornecer cálculos exatos, mas estes são os nossos
melhores palpites.» Não podem esperar que façamos o impossível!
Ele era a única pessoa ligada ao projeto que poderia falar tão
asperamente a Johnson. Era dez anos mais velho que ele, parecia não ter
qualquer interesse em subir mais e, atendendo à idade e ao seu cadastro
banal, embora imprevisível, Johnson não sentia que ele representasse
qualquer ameaça.
— Pete, adorava dizer isso. Mas aqueles safados não são cientistas e não
percebem nada do assunto. Aquilo são meninos de «capa e espada» e, quando
dizem que querem saber o número de operações até à aniquilação total,
julgam que é como se dissessem: «Descubram se o Joe Shmoe anda a passar
segredos aos Russos.» Pensam que podemos sacar de uma experiência e
mandar o computador reproduzi-la dez ou vinte vezes, limpinha e pronta.
Stanker acenou a cabeça compreensivamente. Não era situação que se
invejasse e em parte por essa razão ele sentia-se feliz por estar numa situação
de subalternidade.
— E o que é que tinha se declarasses que a determinação desse número
exige estudos atualizados em seres humanos, com o vírus de botulino que,
nem sequer isolámos ainda? — Perguntou, sem insistir demasiado. — Não
achas que seria uma resposta razoável?
Johnson afastou-se da janela e sentou-se à secretária. Os montes de
papéis em cima desta pareciam dar razão ao seu sentimento de desamparo.
— Mas quem é que disse que eles são gente razoável? Acho que se
tivesse que lhes dizer que procurassem outra pessoa a quem perguntar,
alguém que lhes forjasse um número, para depois colher os louros de ter
apresentado uma resposta, e se é isso que eles vão fazer, então antes quero
fornecer-lhes um parecer científico. Acho que nós estamos na posição ideal
para o fazer. — Stanker concordou com relutância. — Não consigo sequer
imaginar onde é que eles iriam buscar outro palpite, mas acho que
encontrariam alguém. Tens razão, Stan, se é essa a alternativa, acho que lhes
podemos dar um belo cálculo. Só assim é que compreenderão que não
estamos cem por cento seguros dos dados. Johnson suspirou: — Só espero
que me ouçam quando lhes disser.
Juntos debruçaram-se atentamente sobre os escassos dados que
possuíam, anotando frequentemente onde tinham de calcular e onde
ocasionalmente tinham de adivinhar e era uma e trinta da manhã quando
Carol acabou de dactilografar as suas conclusões. Johnson saiu finalmente do
edifício às duas horas, desejando a meia hora de viagem até casa, durante a
qual esperava «desatar» os nós que sentia no estômago. Pearson insistira para
que a reunião fosse às oito e meia, por isso Johnson ia dormir muitíssimo
pouco.
Os nós desfizeram-se finalmente às três e trinta. Caiu num sono agitado.
— O major Pearson, senhor.
Johnson olhou para o relógio. Eram oito e trinta e um.
— Mande-o entrar, se faz favor, Carol — falou para o intercomunicador,
perguntando a si próprio se Carol se sentiria tão cansada quanto ele. Tendo
dormido apenas três horas e meia, viera de casa sem tomar o pequeno-almoço
e engolira no bar um donut e um café não havia ainda dez minutos. A cabeça
latejava; estava irritado pela falta de sono e o seu estômago também não
estava satisfeito com o donut.
Pearson parecia satisfeito como de costume, se é que se pudesse chamar
àquilo satisfeito. Tinha sempre no rosto um esgar que nunca se abria
completamente num sorriso. «De facto», pensou Johnson, «o tipo está sempre
na mesma todas as vezes que o vejo.» Johnson levantou-se e apertou a mão
de Pearson.
— Bom dia, major, muito prazer em vê-lo.
Sorriu para ver por curiosidade se Pearson correspondia. Por um
momento o semiesgar abriu-se numa coisa que não chegava a ser um sorriso
completo.
— Obrigado, major. Alegra-me que tenha podido dar-me novas tão cedo.
— Sem mais barulho, sentou-se e abriu a pasta. — Receio que esteja a tornar-
se muito importante para nós a obtenção duma noção de quantas operações
faltam ainda para obter os vossos vários mutadores de genes que levam à
extinção. Precisamos de saber se estamos a falar de armas de guerra ou de
máquinas infernais. — Ao largar esta piada sorriu e começou o tal
movimento constante de cruzar e descruzar as pernas.
Johnson retribuiu-lhe com um sorriso um pouco nervoso. Pela primeira
vez, Pearson referira-se ao vírus como uma arma.
— Bom, digamos que, em princípio, não se trata dum vírus infernal.
Mesmo que o enxertemos de forma a que nunca se tome num vírus
inofensivo, haverá sempre alguns que, por acaso, resistirão à gripe e até
haverá alguns que serão resistentes à toxina botulina. Além disso, não se
esqueça de que as armas apocalípticas destroem toda e qualquer vida
humana, enquanto neste caso podemos vacinar alguns contra a toxina.
— E os filhos e os filhos dos filhos desses? — Perguntou Pearson.
Johnson sentia-se parvo. Talvez por estar cansado, pareceu-lhe que a
pergunta era mais astuta do que as habitualmente feitas por Pearson.
Respondeu lentamente:
— Bem, acho que nunca encarei o assunto por esse lado, mas porque
não?
— Talvez porque isso implicaria que houvesse um número de
sobreviventes suficiente para manter uma tecnologia capaz de produzir
antitoxinas. Não acha? — Sugeriu Pearson.
— Acho que sim — concordou Johnson, que estava declaradamente na
defensiva. — Mas há obviamente uma série de elementos desconhecidos que
uma resposta deste tipo envolve. Parece, por exemplo, óbvio que o gene
botulino seria preterido em favor dos vírus vulgares.
Pearson parecia surpreendido.
— Isso é novo para mim. Porque é que não começamos por ai?
Recostou-se na cadeira com o bloco na mão.
Johnson soltou um suspiro de alívio. Hoje ele não iria maçá-lo muito e
sentia-se muito melhor a tratar de pontos que tinha preparado e nos quais
estava à vontade.
— A razão consiste no facto de ele matar a pessoa que infecta —
continuou a explicar. — Um dos grandes problemas é que, ironicamente, o
vírus tem uma atuação demasiado mortífera. Se bem que, obviamente, não
tenhamos experimentado o vírus da gripe em seres humanos, podemos fazer
extrapolações partindo das experiências realizadas em animais, no sentido de
que uma pessoa contaminada morreria logo que um número mínimo das suas
células fosse infetado, porque a toxina é muito poderosa. De facto, a vítima
típica morreria antes de ter começado a espalhar a infecção, o que anularia a
possibilidade duma epidemia. Em teoria, haveria um dia ou dois de intervalo
entre o início da infecção e a morte. Assim, as pessoas que seriam primeiro
contaminadas morreriam e mais nenhumas seriam infetadas. Tendo isso em
atenção, isolámos um mutante que tem uma toxina botulina menos ativa
(aliás, milhares de vezes menos ativa) e que servirá perfeitamente os nossos
intentos.
— E a antitoxina botulina é eficiente contra a toxina mutante? —
Inquiriu Pearson.
— Não tenho a certeza — gaguejou Johnson. — Só recentemente é que
isolámos o mutante e ainda não tivemos tempo de verificar isso.
Na verdade, ele não tinha era posto essa hipótese.
— E então, preparou alguma antitoxina para o mutante?
— Não, mas estamos a caminho. Mas leva tempo.
— Então, neste momento, não tem a certeza de ter uma antitoxina capaz
de atuar eficientemente contra o vírus se, digamos, lhe perdêssemos o
controlo?
— Bem, não estamos ainda na fase da gripe, estamos na da pesquisa de
bactérias. — Johnson sentiu-se de repente aliviado por assim ser. O facto de
não ter preparado a antitoxina era um grave descuido e a consequência da
rapidez com que estavam a trabalhar.
— Claro, tinha-me esquecido — comentou Pearson. Tomou nota no
bloco. — Tenho a certeza de que estão a trabalhar no assunto tão rapidamente
quanto possível. — E o tal esgar abriu-se de novo.
— Claro que estamos — mentiu Johnson. O comportamento de Pearson
era completamente diferente do que fora anteriormente. «É mais astuto do
que eu pensava», disse Johnson para consigo. — Contudo, o vírus de gripe
ideal, atendendo apenas à sobrevivência do vírus, é aquele que não afeta o
hospedeiro e por isso pode ser espalhado tão generalizadamente quanto
possível. A gripe botulina, independentemente de quão se possa restringir a
sua letalidade, será menos ativa ao ser difundida. Assim, com o tempo, será
ultrapassada em desenvolvimento por outras gripes preexistentes. É uma
regra estabelecida no padrão evolutivo — concluiu.
Pearson parecia convencido.
— Certo. Mas então assim não teremos, pelo menos, a última das
máquinas de apocalipse. Temos alguma coisa de semelhante, não é?
— Semelhante sim, razoavelmente semelhante — concordou Johnson.
— A questão consiste em saber que parte da população seria atingida pelo
vírus. Acho que poderemos dizer que a mortalidade ultrapassará os 99%
naqueles que forem contaminados, mas toda a gente será contaminada?
Normalmente, quando surge uma epidemia de gripe, de l0% a l6% ou l7%
apanham-na. Possivelmente os índices mais baixos referem-se a gripes
vulgares, de tipo já conhecido, às quais as pessoas tinham criado resistências
desde os últimos surtos. Podemos provocar uma mutação na gripe que baste
para que o sistema de imunização, seja de quem for, o não reconheça. De
facto, até já o fizemos. Experimentá-lo numas duas centenas de voluntários
do exército e todos apanharam a gripe; portanto, sob esse aspecto, sabemos
que resulta.
— Bem, pelo menos esses sobreviveriam ao «bicharoco» infernal, agora
que estão imunizados, não é? — Disse Pearson, sorrindo.
— Acho que, de facto, aqueles foram os primeiros a ser imunizados,
razão por que tomámos precauções no sentido de que não o transmitissem a
mais ninguém — concordou Johnson. — Teoricamente, poderíam espalhar
uma epidemia e nesse caso toda a gente ganharia resistências, por isso foram
mantidos de quarentena, o que excedeu de longe o período considerado
necessário.
— Então porque é que não haveria um índice de mortalidade de 99 %?
— Perguntou Pearson.
— Bom, isso envolve todo um conceito de epidemiologia. Sempre que
um governo se vê a braços com uma epidemia, começa a restringir as
deslocações e a colocar de quarentena as áreas e as pessoas que estão
contaminadas. A real eficácia destas formas de atuação ainda não é
conhecida. Além disso, sempre que existe uma percentagem de 30% a 60%
de mortes, há problemas sanitários que começam a escapar-nos. Ninguém
quer mexer em cadáveres que ainda podem estar infetados. E, numa grande
cidade, como é que se garante a alimentação depois da quarentena? E quem
manterá a funcionar a eletricidade, o gás e a água? É um problema ainda sem
resposta. Por tudo isto, só poderemos falar de parte da população duma
cidade, que morreria ao ser apanhada de surpresa pelo vírus. Por isso acho
que poderemos dizer que com o vírus botulino simples obteremos 90% a 95%
de mortalidade. — Johnson deixou por dizer uma série de «ses» que,
atendendo à agressividade que Pearson demonstrava, iriam arranjar grandes
complicações.
— E espalhar-se-ia de cidade em cidade tão rapidamente como uma
epidemia de gripe? — Inquiriu Pearson.
— Sim — concordou Johnson —, a não ser nos casos em que as
deslocações fossem restringidas e iniciados processos de quarentena.
Pearson escrevinhava furiosamente no seu bloco, acenando com a
cabeça ora para Johnson, ora para si próprio — não estava esclarecido.
Acabando de tomar as suas notas, disse lentamente:
— Então, o vírus botulino simples teria um número quase infinito de
passagens até à extinção, salvo se se utilizasse a seleção natural?
— Se é assim que define «passagens até à extinção», respondo-lhe que
sim. Penso que a expressão pode ter várias definições.
— Que quer dizer? — Perguntou Pearson, perfeitamente confuso e
levantando os olhos das suas notas.
— Bom, a expressão «passagens até à extinção» está diretamente ligada
aos genes mutadores. Lembra-se que, quando lhe falei pela primeira vez no
projeto, lhe disse que um dos maiores problemas ainda presentes era o de que
a gripe sofre uma mutação de tantos em tantos anos e por isso mesmo as
pessoas imunes à botulina estariam sujeitas a ela alguns anos mais tarde,
quando o vírus tivesse sofrido uma pequena mutação. Teríamos de nos
assegurar que o vírus se extinguiria antes que isso acontecesse.
»A solução em que ficámos foi a de adicionar um gene mutador
anteposto a um gene de toxina botulina. Os genes-M foram descobertos nos
anos 50, no milho. Mais recentemente, encontraram-se em elevado número,
através de grupos de plantas e de animais e finalmente em bactérias. Os genes
mutadores provenientes de bactérias atuam aparentemente utilizando a
separação do cromossoma de um pequeno segmento contíguo de ADN.
Acontece assim que tudo o que está situado depois do gene mutador se perde.
Enxertando um gene mutador à frente de um gene de toxina botulina, causar-
se-á eventualmente a supressão do gene da toxina. Conseguimos obter genes
mutadores que separarão o ADN numa frequência que vai de uma em cada
dez divisões de células até uma em cada cem mil. No primeiro caso, sempre
que o vírus se reproduziu, haveria uma hipótese em dez de se perder o gene
da toxina. Assim, depois de dez replicações, apenas um terço dos vírus seria
ainda infeccioso.
— Isso dá a entender que não desapareceriam ainda assim muito
rapidamente — objetou Pearson.
— Esquece-se de quantas vezes o vírus se replica num só indivíduo —
explicou Johnson. — Se o vírus tiver de passar por trinta replicações antes
que a vítima desate a contagiar outras pessoas, apenas 4% dos vírus ainda
terão genes da toxina botulina e só morreriam 4 % dos indivíduos infectados
pela vítima.
Pearson parecia ainda confuso:
— Então como é que se extingue?
Johnson dirigiu-se ao quadro.
— Digamos que partimos de um número de cem indivíduos
contaminados pela gripe botulina. Todos eles morrerão. Digamos agora que
cada um deles contagia cinco pessoas, teremos assim quinhentos indivíduos
contagiados, mas lembre-se que, desses, apenas 4% estão contaminados com
a gripe botulina, já que o gene mutador desativou os restantes; assim, só vinte
apanharão a gripe botulina. Continuando. Os quinhentos infetarão dois mil e
quinhentos, dos quais vinte com gripe botulina infetarão cem. Mas
novamente apenas 4% apanharão uma gripe que não sofreu mutação; e assim,
desta vez, apenas quatro em dois mil e quinhentos apanham a gripe botulina.
Em seguida, os dois mil e quinhentos contaminarão cerca de doze mil
pessoas, mas os quatro portadores de gripe botulina infectarão apenas vinte e
destes apanharão de facto a gripe botulina só 4 %, ou seja, menos de uma
pessoa. «Passagens até à extinção» significa simplesmente o número de vezes
que o vírus é transmitido de um indivíduo para outro antes que haja menos
que uma pessoa a ser contaminada dum total de cem indivíduos infectados.
No nosso quadro exemplificativo, cem pessoas transmitiram-no a vinte, vinte
passaram-no a quatro e estas quatro contagiaram apenas quatro quintos, ou
seja, menos de uma pessoa; aqui, houve apenas três passagens até à extinção.
Resumindo, haveria apenas cento e vinte e cinco pessoas que morreriam, por
cada cem inicialmente contaminadas, e o vírus desaparece assim muito
rapidamente.
— Compreendo — disse Pearson lentamente, enquanto revia os números
que Johnson escrevera no quadro.
— O vírus simples, sem qualquer gene mutador, teria um número
infinito de passagens até à extinção, visto que quase não sofre qualquer
mutação — prosseguiu Johnson. — Ao defini-lo assim, não estamos a levar
em conta fatores como a seleção evolutiva de outros grupos de gripe. Por isso
é que disse que tudo depende da nossa definição. Acho que a nossa é a mais
restrita e prefiro pecar por excesso de precauções.
Pearson assentiu em sinal de concordância.
— Isso é sensato, mas voltemos às frequências. À medida que a
frequência das mutações diminui, o número de passagens até à extinção
aumenta, não é?
— Mais devagar — respondeu Johnson, enquanto se dirigia para o
quadro. — Se reparar no número de indivíduos que foram contaminados pelo
botulino de cada vez, verá que ele foi de cem para vinte e de quatro para
menos de um. Para se atingir a extinção tem de continuar a baixar o número
de pessoas contaminadas pelo botulino. Dai que, se 20% dos que foram
inicialmente infectados transmitiram os genes de botulino e cada um deles
transmitir o vírus a cinco ou mais pessoas, então os primeiros cem
contaminariam outros quinhentos. 20% destes, ou seja, cem indivíduos,
contrairiam o gene botulino.
Pearson continuava a acenar com a cabeça em sinal de assentimento,
enquanto anotava todos os números.
Johnson copiava os números dum bloco para o quadro.
Imaginando um número de trinta replicações numa pessoa, antes de
atingir a contagiosidade, e cinco pessoas contagiadas por cada pessoa, os
totais serão estes:

Frequência de Passagens Número de mortos


transferência até numa cidade de I
(Percentagem) à extinção milhão
1 2 105
2 3 111
3 3 118
5 4 133
10 7 197
20 - 639
30 - 2522
50 - 25,731
70 - 145,186
90 - 561,082
95 - 754,226
99 - 946,133

»Como pode verificar, abrangemos toda a gama possível. Temos


frequências de contágio que vão de 1% a 99%. Estes 99% causariam 99% de
mortes em todo o mundo, tendo o processo sido iniciado com cem pessoas
infetadas.
Pearson parecia satisfeito.
— Qual o nível de precisão destes dados? — Perguntou.
Johnson exprimiu a resposta de forma tão cuidadosa quanto possível.
São tão exatos quanto nos é possível sem termos efetuado experiências
de campo. Isso implicaria a aplicação do vírus botulino em seres humanos. E
teria de se efetuar em campo e não em laboratório. Baseando-nos apenas
nestes cálculos, não creio que se consigam quaisquer progressos. Como sabe,
isto não é como uma bomba-A, que se pode experimentar em qualquer atol.
— Então, com o mutador mais poderoso, apenas os que fossem
infectados pela pulverização inicial, ou lá o que é, viriam a morrer?
Johnson concordou:
— Sim, em princípio. Haveria uma média de vinte e cinco pessoas
mortas por cada cem contaminadas.
Pearson pensou por um momento.
— Se obtiver dados certos, será possível fazer extrapolações?
— Bom, hã! Sim — respondeu Johnson, que não gostou das implicações
da pergunta. — Mas isso envolveria várias centenas de mortes para se poder
tomar medidas exatas.
Compreendendo o que Johnson pensava, Pearson riu-se.
— Não se preocupe, major, não estamos a ponto de iniciar experiências
de campo.
Johnson sorriu, pouco à vontade. Era a primeira vez que via Pearson rir.
— Além disso — salientou — temos o mutador enxertado no gene
botulino, mas ainda temos de o transferir do hospedeiro bacteriano para a
gripe e isso leva o seu tempo.
Pearson assentiu:
— Temos confiança em si, major. Estamos certos de que o conseguirá
muito em breve.
Sábado, 3 de Outubro
— Dispenso bem ajudas dessas — disse Charlie. Apanhou uma
almofada do chão e atirou-a para o divã.
— Não vejo onde está a razão de queixa — retorquiu Ann. — Ficaste
fulo com Doc por ele ter feito aquilo que tu sabes perfeitamente que era o que
tinha de fazer e devia ter feito e resolveste então «fazer» uma dessas tuas
estúpidas viagens e recusares-te a vê-lo. Bom, já lá vão seis semanas e eu
estou farta! Se quiseres safar-te pela porta de trás antes que ele chegue, isso é
contigo. — Ela acendeu um cigarro e começou a fumar, coisa que só fazia
quando estava sob grande tensão. — Queres fazer o favor de me dizeres
claramente por que razão o não queres ver? Será por zanga ou por vergonha?
Se fosse a ti, sentiria vergonha.
— Talvez seja porque não gosto que os outros, planeiem a minha vida!
— Gritou ele. — Como não gosto que me digas com dez minutos de
antecedência que resolveste convidá-los a todos. Gosto de sentir que sou
capaz de decidir por mim com quem quero sair.
— Só que eu já estou farta de viver isolada. Há seis semanas que não
saímos com ninguém, Charlie, e eu estou farta! Eles também são meus
amigos e fui eu que os convidei. — Ann estava grávida de quatro meses e
meio e começava a cansar-se com maior facilidade. — Vá lá, Charlie, não o
faças por mim, mas fá-lo pelo Disney. — Era este o nome que eles tinham
dado ao feto. Mudá-lo-iam quando ele ou ela nascesse.
Charlie afundou-se no divã, aborrecido.
— Está bem, seja então pelo Disney.
— Obrigada — disse ela, dando-lhe um beijo carinhoso. Ficaram
sentados abraçados até a campainha da porta soar.
— Olá, Doc, entra. — Ann conduziu-o até à sala comum onde Charlie já
tinha posto a girar um disco de Miles Davis. Virou-se para cumprimentar
Doc.
— Tenho prazer em ver-te — disse, forçando um sorriso.
Doc retribuiu-lhe o sorriso.
— Tenho prazer em voltar a vê-los. — Olhando a sala comum, disse: —
Vocês fizeram aqui maravilhas desde a última vez que cá estive. — Era uma
forma discreta de fazer sentir a ausência.
— Nós não — afirmou Charlie. — Ann é que ultimamente tem tido esse
trabalho. Eu tenho estado a ser pressionado no sentido de pôr aquele maldito
curso a funcionar. Julgam que dar aulas universitárias é canja, mas quando se
leciona pela primeira vez é incrível a quantidade de trabalho que isso nos
exige. O laboratório tem estado num autêntico marasmo nestas últimas
semanas.
Ann confirmou:
— É verdade. Mal o vejo. Desaparece de manhã, vem a casa almoçar a
correr e sai a correr para a sala de estudo. Até já concordámos que eu ficaria
por agora com mais trabalho do que o que me compete aqui em casa, até que
o curso abrande o ritmo. — Sorriu para Charlie. — Mas mais tarde ele vai
pagar-mas. A verdade é que ele adora aquilo. A única coisa que consegui que
fizesse foi que tirasse esta noite de folga para ir ouvir o Kip.
Charlie resmungou:
— Oh, quem me dera voltar a ser estudante, livre para viver a vida!
Estou a ficar farto do trabalho.
— Pobre rapaz! — Disse Doc penalizado. — Mas ao menos esses teus
estudantes não te fazem saltar da cama às três da manhã. — Aceitou uma
fatia de queijo e uma bolacha que Ann lhe estendia e prosseguiu: — Mas tu já
estás a lecionar, não estás?
— Só há uma semana. As aulas começaram no fim de Setembro, para
que o período acabe antes do Natal, e depois há um intervalo até meados de
Janeiro.
— O facto de teres começado não te aliviou um pouco a tensão?
— Bom, pelo menos diminuiu o receio — concordou Charlie —, mas eu
queria já ter um mês de aulas preparado quando o curso começasse e não
tenho. Por isso estou a ver se consigo adiantar as minhas aulas durante mais
uma semana e depois abrando o ritmo. Vivo no terror constante de ter de
preparar uma aula de véspera.
— De momento é esse o seu pesadelo preferido — disse Ann.
— E tu, como é que vais, Ann? — Inquiriu Doc. — Pelo trabalho que
tens feito em casa, depreendo que te sentes bem!
— É verdade! O enjoo desapareceu ainda antes do nosso último encontro
e desde ai tudo tem corrido bem. Acho fantástico ver-me assim a ficar gorda.
— Em breve vai começar a dar pontapés — comentou Doc.
— Eu sei. Temos estado à espera desse momento, ansiosamente.
Nenhum dos outros atingiu essa fase, pois não? — Perguntou Ann.
— Não e acho que agora estou disposto a dar razão a Charlie — disse
Doc. — Se isso acontecer e o feto mexer, o perigo está passado.
A autoridade que ele imprimiu à frase deixou Ann confusa, mas Charlie
interveio antes que ela pudesse falar.
— O «feto», não: Disney. É o nome dele até nascer.
— Disney? — Inquiriu Doc.
— É melhor do que «o feto» e assim não é masculino, nem feminino.
Além disso, não é nome que quiséssemos manter depois e por isso é um
nome mesmo fetal. Detesto tratá-lo por «ele», por isso chamo-lhe Disney —
explicou Ann.
— Certo. Pois seja Disney — disse Doc.
Abriu-se a porta de entrada e apareceram Warren e Justine. Esta gritou:
— Vá lá! Então vamos ficar aqui todo o dia à vossa espera? E se não nos
despachamos vamos perder o início da atuação do Kip. Não querem que ele
fique zangado, pois não? — O par parecia irmão e irmã, ambos eram
pequenos, de caras redondas e angélicas e sorrisos rasgados.
— Entrem só por um instante — disse Charlie, enquanto os fazia entrar.
— Lá porque vocês chegaram atrasados, não é caso para nos fazerem correr.
Warren levantou as suas mãos sujas de tinta.
— Nem sequer nos lavámos antes de vir. Foi aquela impressora que nos
atrasou. Vai fazer com que um dia destes desistamos de tudo.
— É a velha «Grace»? — Perguntou Justine. — Essa ainda vai aguentar
mais uns vinte anos de trabalho. Aquelas impressoras não morrem assim às
primeiras.
Doc levantou-se.
— Já sei. A impressora está a desaparecer. — Foi-os empurrando até à
porta. — Vamos lá. Se a Beth ficou de se encontrar connosco lá, não
devemos fazê-la esperar sozinha.
— Só estás preocupado por ela ter de esperar sozinha — disse Justine
para o provocar.
Doc resmungou uma resposta ininteligível enquanto Charlie olhava
inquiridoramente para Justine.
— Não te devias ter baldado à nossa última reunião, Charlie. A pobre
Beth apareceu e Doc era o único que ela já conhecia. Tentámos sentá-la longe
dele, mas ele «furou» até conseguir sentar-se mesmo ao lado dela.
Doc enfiou o casaco e empurrou Justine pela porta fora, enquanto
murmurava asperamente:
— Não admito má-língua a meu respeito, na minha frente.
— Não te preocupes — segredou muito baixinho Warren a Charlie. —
Ele nunca poderá competir com um professor, dos autênticos.
Foi uma caminhada agradável que durou dez minutos, descendo a
Cambridge Street, atravessando Harvard Square até ao Hungry Fox. Cá fora,
algumas almas corajosas estavam sentadas junto das janelas dá cave,
guardando os lugares desconfortáveis mas gratuitos, para assistirem ao
espetáculo. Lá dentro encontraram Beth, que já estava sentada a uma mesa,
das da frente. O café estava na obscuridade, apesar de o espetáculo ainda não
ter começado; uma dúzia de mesas, juntas duas a duas, estavam viradas para
um palco que lhes ficava num plano ligeiramente superior. Os retardatários
tinham de se ficar pelas cadeiras de pau dispostas em dez filas atrás das
mesas. O local estava superlotado sobretudo de estudantes universitários que
tinham regressado de férias.
Ann reparou na forma «casual» com que Doc arranjou lugar ao lado de
Beth.
— Você deve ter chegado muito cedo, para ter arranjado esta mesa —
comentou Ann.
— Nada disso — disse Beth a sorrir. — Quando cá cheguei estava tudo
cheio e eu perguntei se vocês já tinham chegado, o empregado disse-me que
não, mas que Kip mandara reservar uma mesa para nós. Eu só cheguei há
momentos. Se não fosse o Kip, estaríamos encafuados ali, a um canto do bar.
— Onde não se ouve nada — comentou Doc.
Quando acabaram de se instalar e de pedir as bebidas, Kip começou.
O público era bom e Kip correspondia. Lentamente, Charlie foi-se
descontraindo e no fundo agradecia a Ann por lhe ter proporcionado aquele
serão. A sua zanga fora provocada por um complexo de culpa e sentia-se
aliviado por ter ultrapassado a situação. Além disso estava interessado em
saber o que havia com Beth e Doc. Ela fizera referência ao facto de ter
gostado da companhia de Doc, naquela noite, já lá iam umas cinco semanas,
mas não voltara a referir-se a ele, desde ai. Era óbvio que eles tinham
continuado a ver-se, entretanto. Havia no espirito de Charlie qualquer coisa
semelhante ao ciúme, mas sobretudo sentia era curiosidade.
Entre dois atos, Kip veio juntar-se a eles. Deu um beliscãozinho na cara
de Ann.
— Há muito que não vos via. Ann, põe-te em pé e deixa-me mirar-te —
disse intencionalmente.
Ann corou.
— Mais tarde, Kip... Estás a envergonhar-me, mas... Olha. — Mesmo
sentada, esticou o tecido do vestido de forma a pôr em relevo o alto que era
Disney. — Já não consigo enfiar-me nas minhas calças de ganga; por isso, e
até arranjar umas calças adaptáveis, estou condenada a usar só vestidos.
— Ah, julgava que o vestido era devido ao facto de agora seres a mulher
de um professor, porque, segundo me consta, Charlie agora dá aulas.
— Resmungão — murmurou Charlie. — Até agora, ser professor faz-me
lembrar mais o facto de ter sido lavador de pratos do que ter sido estudante.
Pode ser que o não entendas, Kip, mas agora eu tenho de trabalhar. Adeus,
bons velhos tempos.
Justine meteu-se na conversa;
— Vês, Kip, continua como sempre a queixar-se e não sei que mais...
Nem sei como ainda não se queixou de o estarmos a tratar pelo nome próprio.
Riram-se todos. Charlie protestou:
— Não tem graça nenhuma. Todos os miúdos me chamam Dr. Cotten, e
isso dá-me vontade de os mandar tomar duas aspirinas e meterem-se na cama.
Mesmo quando lhes digo: «Por favor chamem-me Charlie», ficam enervados.
Querem por força fazer de mim uma figura de autoridade perfeitamente
isolada.
— Conta-me lá isso — disse Doc a sorrir. — Se achas que tens
problemas, experimenta seres médico. Já perdi doentes só por lhes pedir que
me tratassem por Fred e todos vocês me chamam Doc.
Warren interveio.
— Bom, ao menos o Charlie e a Ann parece que conseguiram ultrapassar
a subida de estatuto social, sem abandonar completamente os velhos amigos.
— E, piscando o olho a Ann, acrescentou: — Abalados pelo seu belo
exemplo, Justine e eu resolvemos encarar a hipótese de termos também um
filho.
Charlie sorriu sarcasticamente.
— Se fosse a vocês, falava primeiro com o Doc.
Warren olhou com curiosidade para Doc e perguntou:
— Agora és antifilhos?
Doc esboçou um sorriso forçado.
— Não sabes que deves consultar o médico antes de tomar qualquer
medida? — O seu tom de voz, porém, traiu a falta de humor da sua
afirmação.
Ann disse incisivamente:
— Realmente talvez devam falar contigo, se pensam a sério no assunto.
— E deitou um olhar furioso a Charlie.
Warren e Justine pareciam ambos confusos e esta perguntou:
— Esperem aí! Afinal, que é que se passa?
Charlie rendeu-se. Evitando o olhar zangado e atormentado de Ann,
murmurou:
— Visto que fui eu que puxei o assunto, acho que tenho de ser eu a
explicá-lo. — Pensou por um momento e prosseguiu: — Bem, isto é, para
ficar só entre nós, mais ninguém deve saber, seja quem for. Olhou em volta
esperando sinais de concordância e evitando o olhar de Ann.
— Charlie, de que é que estás a falar?
Assim, e mais uma vez, Charlie contou a história, mas desta vez
apercebeu-se de que era capaz de contá-la calmamente. O feto que Ann tinha
dentro dela deveria mexer-se durante as semanas seguintes e ele estava certo
de que não havia problema.
— Oh, agora compreendo porque é que não queres que ninguém saiba!
— Disse Warren que, virando-se para Justine, perguntou: — Nós não
ouvimos já dizer que alguém conhecido também tinha posto os olhos nesse
material? Aqui não — disse ele virando-se para Charlie —, uns amigos do
Sul falaram-nos nos Gloryhits. Mas quem diabo foi?
Doc disparou como uma seta:
— Claro! Mas porque é que não pensámos já nisso? Nós não fomos os
únicos a tomá-lo. E isso seria uma forma de controlarmos as coisas, além de
o fazermos através do ácido. — Virando-se, acrescentou: — Warren, tens de
te lembrar a quem é que ouviste falar nisso.
— Seria o Eric, em New Haven? — Perguntou Justine.
— Tenho a certeza de que não foi — disse Warren. — Há anos que não
se mete nisso.
Charlie pediu:
— Pensa nisso, sim? Com certeza que dentro de dias te lembras. Não te
esforces demasiado, senão arriscas-te a não te lembrares.
Kip pensou por momentos.
— Eu vou também investigar. Há muita gente que passa por aqui e pode
ter estado em contacto com isso, mas não me lembro de ninguém que me
tenha mencionado. — E ali ficou a pensar no assunto.
O silêncio aborreceu Charlie, tornando-o mais inquieto. Virou-se para
Doc e perguntou:
— Que aconteceu àquele tipo que estava a investigar as abortantes?
Encontraste o que querias saber?
Doc respirou fundo.
— Depois falamos. É uma história bera.
Beth virou-se para Doc.
— Fred, é esse o tal tipo asqueroso de que me tinhas falado?
— O quê? Ah, sim, é esse mesmo. Só de me lembrar desse safado fico
fulo, mesmo neste momento.
— Vá lá, Doc, não podes deixar-nos assim em suspenso — insistiu Kip e
os outros concordaram.
— Está bem, vá lá — Doc lamentou-se. — É uma história irritante, mas
acho que me poderão interessar as vossas opiniões acerca do que ele queria
dizer. Ora bolas, estou a ficar como o Charlie: nunca vou direito ao assunto.
— Calou-se por um momento e depois começou a contar. — Já tinha falado
com aquele tipo uma vez, mas não passou de conversa fiada. Por isso, desta
vez, decidi enfrentá-lo um pouco mais energicamente. Já então tinha visto
mais abortos em mulheres que tinham tomado o ácido e senti que estava em
melhor posição para o poder pressionar a fornecer-me informações, se ele não
se mostrasse com vontade de cooperar. Resumindo, não se mostrou. Passei a
última terça-feira à espera no consultório de um colega onde se aguardava
que ele aparecesse. Finalmente apareceu, eram duas horas da tarde. Pareceu
não se lembrar de mim quando me apresentei, por isso voltei a contar-lhe que
era um médico da região e que estava interessado na pesquisa em que ele
estava a trabalhar.
»Ele mostrou-se francamente amigável e desatou a conversar acerca da
investigação e do que dela esperava concluir. Está a trabalhar com um grupo
de investigação de Nova Iorque. Deu-me um cartão com a morada e o
número de telefone. Acho que se tratava dum número de caixa postal. De
qualquer modo, explicou-me como tinha sabido que cerca de metade dos
fetos provenientes de abortos espontâneos tinham anormalidades de
cromossomas ou malformações evidentes, comparados com uma
percentagem quase nula de anomalias em bebês que chegaram até ao fim do
tempo de gestação. Pretendem, no entanto, levar a cabo a autópsia dos fetos,
para inferir quais as anormalidades físicas que se poderíam vir a verificar.
— Mas não há já hospitais a fazer isso? — Perguntou Charlie.
— Oh, sim, com certeza, mas o Greene (assim se chama o indivíduo)
afirma que o seu plano de autópsias é muito mais vasto, incluindo cortes
histológicos e tudo. Parece que até estão a efetuar recolhas em diversas
comunidades, para ver qual a diferença de cidade para cidade. O facto de
terem um único grupo de investigadores a trabalhar em todas as autópsias e
testes evita-lhes ter de equacionar os resultados de diversos laboratórios. O
trabalho é inegavelmente valioso e digno de ser feito. Mas não é ai que bate o
ponto. Da última vez que falei com ele, dissera-me que tentaria obter-me
informações sobre aqueles fetos e agora foi como se nunca me tivesse visto.
Depois de muito instado, pareceu recordar-se — ou melhor, decidiu recordar-
se. E depois murmurou qualquer coisa acerca de o diretor não querer os
«dados falsificados».
— Espera aí! — Interrompeu Charlie. — Pensei que ele era o
investigador-chefe. Que história é essa de «diretor»?
— Não sei — respondeu Doc. — Da última vez, não há dúvida que quis
dar a impressão de que era ele o chefe.
— Parece uma situação típica — disse Charlie. — Muitos tipos tentam
passar por cabeças de turco quando pensam que assim se podem safar.
— Só que ele nunca me daria o número de telefone nem a morada do
diretor. Disse-me que podia escrever ao cuidado do «diretor» para a morada
indicada no cartão que ele me deu e eu assim farei. Telefonei para aquele
número, mas era um serviço de gravação de chamadas. Deixei recado para
que o diretor me telefonasse — isso foi na passada quarta-feira de manhã e
até agora nem uma palavra. Bem, adiante. Quando lhe perguntei o que é que
ele queria dizer com «dados falsificados», começou a desfiar a história
dizendo-me como os dados eram armazenados em computador e como não é
permitido aos investigadores saber os resultados dos outros fetos autopsiados
para lhes evitar a tendência de procurarem sempre as mesmas anomalias.
— Isso é uma prática bastante comum — afirmou Beth. — Nós
procedemos da mesma forma em muitas das nossas experiências. É uma
técnica importante.
— Não discuto isso! — Insistiu Doc. — Disse que recorreria a
economias para pagar a alguém descomprometido que fizesse o levantamento
dos vários dados, tal era a importância que eu via neles. Nessa altura ele pôs-
se a resmungar dizendo que gostaria muito de colaborar, mas que a decisão
não dependia dele e que seria uma chatice ter gente estranha a vasculhar os
bancos de dados, etc., etc. Quando insisti um pouco mais, declarou-me
subitamente que era uma cláusula seu contrato a exigência de que nenhum
resultado seria publicado antes de um relatório completo ter sido entregue na
repartição de verbas. Disse-me que por isso não podia ajudar-me, mas que, se
eu lhe desse o meu nome, me mandaria uma cópia logo que este saísse.
— Não acreditas nessa história da repartição de verbas? — Inquiriu
Justine.
— Claro que não! — Afirmou Doc. — Via-se logo que estava a
inventar, mas também se via que estava disposto a manter essa versão.
— Bom, não restam dúvidas — disse Warren esse gajo é um imbecil.
Beth interferiu:
— Sabes, a gente ouve toda essa propaganda que proclama que a ciência
é um empreendimento aberto e de colaboração, mas quando nos metemos
nela não lhe encontramos diferença nenhuma de tudo o resto. Posição social,
emprego, verbas — é tudo uma competição dos diabos. Alguns dos tão
famosos cientistas até serão capazes de mentir para afastar as pessoas das
pistas certas. — Olhou para Charlie, que confirmou numa aquiescência
silenciosa.
Doc argumentou:
— Sou capaz de detectar esses investigadores irritáveis e
superagressivos e ele não me parece um desses. De qualquer modo, isso não é
tudo.
»Quando estava bem definido que ele iria limitar-se a recusar
delicadamente quaisquer pedidos que eu lhe fizesse, por mais vagos que
fossem, decidi jogar a última cartada. Puxei duma lista que eu elaborara com
o nome de mulheres que tinham tomado os Gloryhits e que tinham abortado e
dos obstetras que em cada caso lhe tinham entregado os fetos resultantes dos
abortos. Também puxei de uma série de autorizações assinadas por essas
mulheres que tinham abortado em que lhe pediam que me entregasse as
informações sobre os fetos. Disse-lhe que todas aquelas mulheres eram
minhas clientes, além de serem assistidas por vários obstetras, e que pensava
ser de grande importância saber se os fetos tinham qualquer malformação
comum suscetível de sugerir a utilização em larga escala de um agente
teratogénico no seu ambiente.
— E continuou a recusar? — Perguntou Kip.
— Disse-me que eu tinha andado a ler demasiadas histórias de ficção
científica. Informou-me de que os abortos espontâneos sucediam em toda a
parte e que não eram indício doutra coisa senão dum processo natural em
curso. Acrescentou que aquela comunidade não fazia qualquer diferença de
qualquer outra do país e que, se eu pensava que as minhas doentes tinham
qualquer coisa de especial, andava a procurar agulha em palheiro.
»E há mais. Como se lembram, eu tinha visto dois dos fetos com a
cabeça deformada e disse-lho, acrescentando que o fenômeno era tão raro que
eu pensava que as malformações tinham de ter um fator comum. Até insinuei
muito vagamente que talvez tivesse uma pista que indicasse qual a causa
comum.
»De repente o Green começa a mostrar-se interessado, dizendo: ‘Oh,
anda a brincar aos Sherlock Holmes de trazer por casa?’ Calculo que ele
queria saber o que é que eu pensava que poderia ser, mas depressa frisou que
não estava interessado: ‘Se há coisa que detesto, são as pessoas não
habilitadas a brincar aos cientistas. Se eu fosse a si’ disse ‘concentrava-me na
medicina e deixava-me de brincar aos detetives particulares’.
»Nessa altura fiquei chateado e acho que levantei a voz, perguntei-lhe
qual era o organismo que estava a patrocinar a investigação, ameacei-o de
contactar a AMA5, a ordem ou o conselho disciplinar. Passei-lhe com as
autorizações pela cara e disse-lhe que não lhe restava outra alternativa senão
entregar as informações. Eu estava furioso!
— E nada? — Perguntou Justine.
— Bom, nada não, mas também não foi aquilo que eu esperava. De
repente ele recuou e deixou-se de arrogâncias e agressividades para se tornar
astuto e passar à defensiva. Até parecia que tinha encolhido e que recuara
fisicamente. «Certo, Blake», disse sorrindo ironicamente, «parece que quer
fazer de mauzão.» Só da maneira como o disse senti arrepios na espinha.
«Bem, acho que tenho de consultar os meus superiores sobre o assunto.
Dentro de uma semana entramos em contacto consigo. Fica contente?»
Acreditem que o tom era arrepiante.
— Afinal, que lhe respondeste? — Perguntou Warren.
— Não me dei por vencido e não me arrependi de o ter feito. Disse-lhe
que me agradava saber que iria falar com o seu chefe, mas que não ficaria
satisfeito se ele desse as mesmas respostas. Então e num tom supersinistro
declarou: «Não se preocupe que não dá!», e foi-se embora. — Doc abanou a
cabeça, sentindo-se novamente baralhado e deprimido e pensando no Greene.
De repente Kip soltou uma gargalhada disparatada e disse:
— Doc, essa foi uma das melhores representações que eu já ouvi contar!
— A conversa não o tinha ajudado a descontrair-se entre os dois atos. —
Olha, tenho de voltar para o palco já, mas se alguma vez desistires da
medicina, tens lugar no mundo do espetáculo. — Levantando-se da cadeira,
despediu-se do grupo, acenando. — A contar histórias à volta da fogueira do
acampamento é que ele devia ser bestial — acrescentou e dirigiu-se para a
entrada do palco.
Doc olhou em volta espantado:
— Acham que eu tinha ar de quem estava a inventar?
Ann falou pela primeira vez desde que a conversa começara. Estava
magoada e furiosa e sentia-se atraiçoada por ver o seu caso divulgado e
discutido de forma tão banal e casual. Em voz áspera, respondeu com
azedume à perguntou de Doc:
— Nós sabemos lá! Talvez Greene não passe dum porco. — Tentou
fazer parecer que a sua raiva se dirigia ao antagonista de Doc.
— Vá lá, Ann, acredita no Fred — objetou Beth. — Ele saberia ver se
alguém se comportasse de forma diferente, isto é, diferentemente de nós. —
Virando-se para Charlie acrescentou: — Não achas que esse Greene parece
um pouco mais forte que o habitual? No fim, quase pareceu ameaçar.
Charlie riu-se, pouco à vontade. Teria sido ele o único a compreender a
razão da forma hostil como Ann reagira?
— Ai é que está a desvantagem de quem tem de contar a história. No fim
de contas foi o Doc que ameaçou Greene com o AMA e com o conselho
disciplinar. Pessoalmente, eu diria até que a resposta do Greene foi bastante
comedida. — Virando-se para Beth, disse. — Deixemo-nos de coisas, não és
obrigada a defender sempre as afirmações de Doc.
Ela pareceu irritada com o comentário e não reagiu. Atrapalhado,
Charlie virou-se para Doc.
— Ele voltou a mencionar aquele feto?
— Qual? — Perguntou Doc, que perdera o fio à conversa.
— Aquele do tal aborto provocado que o teu amigo fez, lembrasse?
Disseste-me que tinhas obtido através dele o tal aborto e que o Greene te
tinha pedido que lho desses.
Beth interveio:
— Fred, queres dizer que Greene sabia dele antes de ter desaparecido?
Doc concordou com um sinal de assentimento, surpreendido pelo
raciocínio.
Warren ia perguntar-lhe de que falavam quando as luzes se apagaram e
Kip entrou no palco. Durante a primeira canção, Doc manteve-se tristonho,
de olhos postos na mesa, só olhando para os outros quando a canção acabou.
— Bom, acho que vou apanhar um autocarro para casa. Esta história do
Greene traz-me muito preocupado. Não estou com disposição para ouvir
música. Expliquem ao Kip, está bem?
Levantou-se para sair. Beth imitou-o:
— Dou-te uma boleia. Amanhã tenho muito que fazer e, se fico para
assistir ao segundo ato, amanhã durmo até ao meio-dia.
Doc aceitou a oferta e Beth disse, virando-se para os outros:
— Digam ao Kip que gostei muito de o ver atuar hoje. Gostei muito do
serão.
Despediram-se todos e os dois saíram.
— Mas, afinal, que se passa com aqueles dois? — Perguntou Charlie.
— Onde é que tens andado metido? — Disse Justine a sorrir.
***
Beth e Doc mantiveram-se em silêncio durante a viagem entre Storrow
Drive e Back Bay. Ele ainda se sentia perturbado com o encontro que tivera
com «o vampiro»; a semana estava a acabar e nada de notícias do Greene,
nem do seu pretenso superior. Não sabia porquê, mas a verdade é que o tom
que Greene utilizara lhe dava a convicção de que algo iria sair dali.
— Por que razão nunca me falaste dessa história com o Greene? —
Perguntou Beth.
Doc virou-se e dirigiu-lhe um leve sorriso.
— Bom, agora não comeces tu a ficar maluquinha. Essa é que eu já não
aguentava. Acontece que eu não poderia ter falado nisso sem mencionar Ann
e Charlie e eles são meus doentes e para mim o sigilo profissional entre
médico e doente é muito importante. — Fez uma pausa e prosseguiu: — Ia
acrescentar: «sobretudo quando são nossos conhecidos», mas isso não é
verdade. Há muitos médicos que têm a mania de contar aos amigos histórias
sobre doentes seus sem revelar a sua identidade, mas eu detesto isso.
Beth concordou:
— Eu compreendo perfeitamente. Acontece é que tenho andado a
matutar por que razão tens estado toda a semana tão rabugento. — Estendeu a
mão e pousou-a nas costas da dele. — Meu Deus, deve ser terrível para eles a
incerteza de saberem se vão ou não perder o bebé. Sinto que devia ter sido
mais amável para com o Charlie durante este mês.
Doc não respondeu. Limitou-se a apertar-lhe levemente a mão. Após uns
momentos de silêncio, Beth perguntou:
— Quando o feto mexe é sinal de que o problema deixou de existir, não
é?
Doc encolheu os ombros.
— Charlie e eu somos realmente bons amigos, mas digo-te que há neles
coisas que não suporto. — Beth parecia confusa, mas Doc prosseguiu em tom
irritado: — Olha, eu sei de sete abortos espontâneos em pessoas que tomaram
os Gloryhits. Cinco abortaram aos três meses e duas outras chegaram aos
cinco. Nenhum desses fetos tinha mexido. Que é que isto te diz!
— Bem — disse Beth — diz-me que talvez esteja salvo, se mexer.
— Talvez — repetiu Doc. — Mas só talvez. Não sei. Eu disse-o a
Charlie, mas acho que ele não o repetiu a Ann; no fundo tenho um
pressentimento de que aquela horrível mal informação pode atingir o termo
da gravidez.
— E sobreviver? — Perguntou Beth.
Doc acenou com a mão e disse:
— Como raio posso eu sabê-lo? Talvez os cinco meses sejam a
encruzilhada. Talvez até possa sobreviver e vir a ser um gênio. Sei lá! É
apenas um pressentimento.
Beth apertou-lhe as costas da mão.
— Achas que a Ann devia ter provocado um aborto?
Doc aquiesceu em silêncio.
— Há quanto tempo os conheces? — Inquiriu Beth com curiosidade.
— Há anos. Charlie e eu partilhámos o mesmo quarto durante anos,
quando éramos universitários, aqui há oito ou nove anos, e vivemos os dois
na zona de Boston até à licenciatura. Fomos sempre muito íntimos, exceto de
há três anos para cá, quando Charlie foi para o Oeste.
— Há quanto tempo é que eles andam juntos?
— Desde o primeiro ano de Charlie na faculdade. Conheceram-se numa
oficina durante um exame médico de rotina e foi amor à primeira vista.
— A Ann também está metida na política? — Perguntou Beth.
Doc encolheu os ombros.
— Francamente, não sei. — Calou-se por um momento e depois
continuou, num tom de censura: — Ann parece imitar Charlie. Quando ele
estava empenhado numa tarefa política, ela fazia o mesmo. Agora que ele se
afastou, ela fez o mesmo.
Viraram em Clarendon e percorreram em silêncio os quarteirões que
faltavam para chegar ao apartamento de Doc. Beth parou em frente da porta e
desligou o motor.
— Queres entrar? — Perguntou Doc.
— Claro — respondeu Beth a sorrir.
Ele vivia num belo apartamento, restaurado, com tetos altos e soalhos de
parqué. Uma janela de vidro colorido filtrava uma luz velada no apartamento
escuro. Dirigiram-se à cozinha, esquadrinharam o frigorífico e puseram água
ao lume para o chá. Sentados à mesa da cozinha, comendo pedaços de queijo
e um resto de salada, esperaram que a água fervesse.
— E tu? — Perguntou Doc. — Nunca te perguntei quais os teus planos
de vida.
— Não, de facto nunca falámos disso. — Beth sorriu e mordiscou uma
folha de alface. — Já exclui a ideia de vir a ser uma investigadora industrial,
portanto acho que vou acabar numa lista de algum departamento de biologia
da faculdade, mas ainda não fiz nada por isso a não ser pensar no assunto.
»Dou comigo a observar o Charlie e a pensar como é que ele irá acabar.
Acho que estou a brincar aos modelos. O que sei é que antes queria lecionar
biologia no liceu do que ser o Lloyd Haenners.
— Ah sim, o teu patrão — aquiesceu Doc. Pegou-lhe na mão e resolveu
provocá-la dizendo: — Não te preocupes. És uma pessoa demasiado
agradável, para que isso te possa suceder. — Inclinando-se, beijou-a
suavemente.
— Uhm! — Disse Beth. — Duvido até que Lloyd aprovasse o simples
facto de eu ter uma ligação com um médico, em vez de a ter com um
licenciado em qualquer outra coisa. — Retribuiu-lhe o beijo.
— Também me parece que Charlie devia desaprovar.
— Que é que isso quer dizer?
— Apenas que ele parecia ter os olhos mais postos em nós do que no
Kip. Acho que sentir ciúmes é próprio dele.
— Mas nós nem sequer nunca nos tocámos! — Protestou Beth.
Doc encolheu os ombros.
— Não, só têm estado juntos.
Ela fez uma cara aborrecida.
— Bom, ele que lá se arranje. Eu dispenso esse gênero de professorzinho
de liceu.
— Acho que o Charlie aceitará a ideia com facilidade. Estou a carregar
demasiado nas tintas do seu retrato. Além disso, acho que com esta história
do «Disney» o seu tempo e a sua energia estão demasiado comprometidos. —
Levantou-se e acendeu duas velas. — Que tal se mudássemos de assunto? —
Perguntou enquanto descalçava os sapatos.
— Parece-me boa ideia — concordou Beth e, tirando também os dela,
dirigiu-se à cômoda da sala comum e puxou a última gaveta. — Hã, está
encravada — declarou.
— Deixa-me ver.
— Senta-te — disse-lhe Beth. — Posso não passar de uma simples
mulher, mas ainda sou capaz de desencravar uma gaveta. — Tirou a gaveta
do meio e pôs-se a procurar o que poderia estar a obstruir lá por baixo.
Doc explicou:
— Essa é uma gaveta de segredo. Se não se fechar bem, ela tranca-se
automaticamente. — Olhou para a fechadura. — Pois. Foi exatamente o que
aconteceu. Tenho a chave na gaveta de cima. — E começou a revistá-la. —
Espero que não comece a trancar-se a toda a hora. Tenho a certeza de que a
deixei bem fechada antes de ir ter com o Charlie.
Beth espreitou-lhe por cima do ombro.
— Deixem cá ver o que é que o «senhor doutor» tem guardado na gaveta
de cima. — Meteu um dedo na gaveta e começou a escarafunchar.
— Aqui está a chave! — Anunciou Doc. Passando por baixo de Beth, de
gatas, inclinou-se para abrir a gaveta de baixo. Ela continuava a esquadrinhar
a de cima. Nisto soltou um gritinho.
— Ooh! Aqui temos um vulgar saco de papel. Que é que ele terá dentro?
— Tirou-o da gaveta e espreitou lá para dentro. — Um saco de plástico! —
Exclamou, fingindo-se surpreendida. Tirou o saco e exibiu-o. Continha uma
onça ou mais de pó um muito branco. — Que é isto? — Perguntou com
curiosidade.
Doc levantou os olhos da gaveta de baixo.
— Não sei. Onde é que o descobriste?
— Na gaveta de cima. — Ao dizer isto estendeu-o a Doc.
Ele virou-o e murmurou:
— É esquisito. Tenho a certeza de que nunca o tinha visto. — Abriu o
saco e cheirou-o.
— E não sabes o que contém?
— Não, mas tenho um palpite. — Levou o saco para o escritório,
acendeu a luz e fechou as cortinas.
— Que estás a fazer? — Perguntou Beth.
Ele afastou alguns frascos de vidro de cima da secretária.
— Vou investigar se isto contém morfina. Utilizei heroína em doentes
que estavam a tentar deixar de consumir droga e precisavam de doses de
compensação. Muitas vezes querem utilizar essa porcaria que se vende no
mercado negro, porque estão mais habituados a ela.
— Achas que é heroína? — Perguntou Beth.
— Pelo menos parece. — Deitou uma conchinha de pó num tubo de
ensaio e ficou a vê-lo tornar-se púrpura. — Meu Deus! — Exclamou.
— É heroína?
— Não é só heroína, é a coisa mais forte que já vi!
— E não te parece uma grande quantidade? — Perguntou Beth chocada.
— Uma grande quantidade? — Murmurou Doc. — Este saco deve valer
entre cinquenta mil e cem mil dólares. Acho que isso é realmente uma grande
quantidade.
— Donde é que isso terá vindo?
— Não sei, mas o facto é que isto não me agrada nada. — Pensou por
um momento. — Sou levado a pensar que alguém escondeu isto aqui por
razões de segurança, mas nem sequer conheço alguém capaz de estar
implicado numa «negociata» desta envergadura.
— Não poderíam ter-se introduzido aqui enquanto estavas ausente? —
Perguntou Beth.
— É pouco provável. Como tenho em casa alguns narcóticos para fins
clínicos, deixo sempre tudo fechado com bastante segurança. Teria de ser um
profissional de alta escola, para se introduzir aqui sem ter de arrombar nada.
— E que dizes à hipótese de se tratar de uma prova forjada? — Sugeriu
Beth. — Não haverá ninguém interessado em ver-te dar o estouro?
Doc pensou por uns momentos.
— Adorava poder pensar que a AMA ou até a polícia local andam a
perseguir-me, mas a minha intervenção politica não é assim tão ameaçadora.
Além disso, tu não podes calcular o valor que está naquele saco. Ninguém
gastaria tanto só para forjar uma prova, a não ser que tivesse toneladas
daquele material, o que exclui quase toda a gente, excetuando talvez os do
«meio».
— Podia ser a polícia, não podia?
— Duvido que a polícia local tenha uma tal quantidade do produto que
lhe permita andar a brincar com ele, mas talvez seja uma hipótese. Mas se
fosse uma prova forjada não seria de esperar que a deixassem o tempo
suficiente para que eu a encontrasse.
Ali ficaram sentados, enquanto a chaleira apitava na cozinha.
— Fred! — Beth deu um salto. — Que é que estamos aqui a fazer? Se
isto é de facto uma prova forjada, deves livrar-te dela. Se tens a certeza de
que a gaveta não estava fechada, então a coisa passou-se enquanto estávamos
hoje a assistir ao espetáculo.
Doc ergueu-se rapidamente e dirigiu-se para a porta da rua.
— Bolas, tens razão! Podem estar ai a rebentar!
— Onde é que vais? — Gritou Beth, saindo do escritório atrás dele.
— Vou fechar esta porta à chave — explicou ele, enquanto trancava a
porta e punha a corrente de segurança. — Verifica a porta das traseiras, sim?
Ela atravessou a cozinha a correr e foi verificar a porta.
— Está o mais fechada possível! — Gritou.
Ao regressar quase esbarrou com Doc.
— Traz o pacote da droga e despeja-o na sanita — disse ele. — Eu vou
buscar a amostra ao escritório. — Juntaram rapidamente o produto e
despejaram-no, puxando o autoclismo. — Descarrega mais uma vez quando
encher — disse a Beth —, eu vou certificar-me de que não há quaisquer
vestígios ou baratas.
Quando Beth voltou para o pé dele, viu-o a dar volta a todas as gavetas
do escritório.
— Um dos efeitos secundários de ser médico é o de não ter tempo, por
isso tenho uma mulher que vem fazer a limpeza uma vez por semana.
Felizmente que, como ela cá esteve ontem, eu tinha passado revista à casa no
dia anterior, mas pode ainda haver material desse nalguma gaveta.
— Eu procuro na sala comum — disse Beth, enquanto saia do escritório.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, os dois, exaustos, deixaram-se cair
no sofá da sala. Ali ficaram durante alguns minutos, recompondo-se da
frenética busca que tinha revelado três baratas e uma onça de droga que Doc
tinha perdido seis meses atrás. Finalmente Beth perguntou:
— Fred, quem é que poderia ter feito isto?
Ele abanou a cabeça.
— Não sei. Não vejo quem poderia querer apanhar-me.
— E que dizes ao teu trabalho com viciados em heroína e à tua recusa
em participares deles? Não estará a brigada de droga furiosa contigo por isso?
— É certo que estão furiosos comigo, mas não acredito que o estejam a
este ponto. — Continuou sentado e manteve-se pensativo por uns momentos.
— Se bem que, realmente, pense que alguns deles devem estar furiosos. Sei
que o Diederson se enfureceu perante a legislatura estatal e classificou uma
das minhas propostas como «um programa delineado por traficantes e
viciados para benefício mútuo». E eu também tenho estado a lutar, perante a
câmara legislativa, contra uma lei que pretendia obrigar os médicos a
denunciar à polícia os seus pacientes viciados.
Beth agarrou-se à ideia.
— Então não vês? Se um dos principais opositores a essa proposta se
revelasse um traficante, isso serviria para reforçar a opinião deles. Achas que
a tua prisão poderia aumentar as possibilidades de a proposta passar?
Doc pensou e aquiesceu.
— Acho que sim. Falei pessoalmente com bastantes legisladores que
ainda se mantinham indecisos quanto ao seu voto. Se eu fosse apanhado com
semelhante quantidade de heroína... — A sua voz arrastou-se. — Meu Deus,
só de pensar que alguém tentou tal coisa, sinto arrepios. — Riu-se. — É giro,
sabes? Eu sei que a polícia faz coisas deste gênero, até me vi metido com a
polícia por causa dum amigo meu que foi apanhado com provas forjadas, mas
nunca pensei que tal coisa me pudesse acontecer! Charlie é que tinha razão
— concluiu. — Há anos ele afirmou que o governo se revelará sempre pior e
mais cobarde do que se possa imaginar, e isso tem-se mostrado certo vezes
sem conta.
Lentamente Beth contornou os dedos de Doc com os dela e disse:
— Bom, haja o que houver, sabemos que tudo nesta relação valeu de
facto a pena. Provavelmente até te devolveu trinta anos de vida.
Doc sorriu.
— Tens razão e nem sequer te agradeci a boleia.
Beth levantou-se e puxou-o pelas mãos, obrigando-o a pôr-se de pé.
— Sei como me poderias agradecer — sugeriu.
— Oh, não! — Acrescentou Doc a rir, empurrando-a de novo para o
sofá. — Acontece, minha linda, que estamos no Estado de Massachusetts,
que na sua forma delicada e muito própria ainda vive nos tempos dos
Puritanos. Serei condenado se lhes der a satisfação de me acusarem de
«relações físicas à margem da lei».
Beth amuou.
— Será que todos os médicos são os mesmos chatos?
— Ah, já experimentaste muitos? — Perguntou Doc.
Ela deu-lhe um leve beijo e pôs-se em pé dum salto.
— Nunca to direi, porque a sala pode ter microfones!
Doc levantou-se e deu-lhe um grande abraço.
— Olha, gostaria muito que ficasses, mas estou a ficar preocupadíssimo
com este problema e não te quero aqui quando se der o estouro,
— Porquê? — Perguntou. — Talvez te fizesse falta um certo apoio,
quando eles aparecerem.
Às quatro e meia da manhã, não. Isso é estar a pedir sarilhos.
— Deu-lhe outro beijo. — Olha, arranca para casa que eu prometo
telefonar-te logo que haja qualquer coisa, ou pelo menos amanhã de manhã.
Certo?
— Mas telefona-me logo, sim? Vou ficar morta de preocupação! —
Concordou Beth.
— E muito gentil da tua parte dizeres isso. — Doc sorriu. Seguiu-se um
longo beijo. Beth saiu e Doc caiu exausto no sofá, tentando pôr em ordem os
acontecimentos daquela noite.
Sábado, 4 de Outubro
— Está bem, já lá vou! — Doc acordou dum sono agitado e acendeu a
luz. — Não é preciso deitarem a porta abaixo! — O relógio marcava quatro e
meia. «Mesmo à hora», murmurou para consigo.
As pancadas recomeçaram.
— Já disse que já vou! — Berrou enquanto se enrolava num robe turco.
— Não é preciso acordarem todo o prédio! — Caminhando descalço pela sala
comum, foi destrancar vagarosamente a porta e abriu uma frincha.
«Impressionante», pensou. «Três fardados e dois à paisana; e tudo isto por
minha causa!» — Que raio é que vocês querem? — Perguntou com voz
irritada. — É de madrugada!
— É você o Doutor Fred Blake? — Perguntou um dos polícias fardados,
acentuando sarcasticamente a palavra Doutor.
— Sim, sou eu. — Doc reconheceu-o. Tratava-se de Diederson.
— Abra. Temos um mandato de busca. — Diederson enfiou o papel pela
fresta da porta, metendo como que casualmente o pé na abertura.
Doc pegou no papel, olhando de novo para Diederson. O tipo era maior
do que ele julgava. Pensou que talvez fosse por o ver agora de mais perto ou
por estar a olhar para ele através dum mandato. Leu-o cuidadosamente,
verificando as assinaturas. O juiz que o assinara não era daqueles histéricos
antidroga. Para o conseguirem deviam ter alegado testemunho ocular. Estava
perfeitamente em ordem.
— Isto é a coisa mais maluca que eu já vi! — Murmurou de forma
audível. — Mas parece legal. Têm de me deixar fechar a porta para soltar a
corrente — disse a Diederson.
Este sorriu e enfiou uma placa de zinco na ombreira. Assim evitaria que
a porta se trancasse quando Doc a fechasse.
— Faz favor! — Disse.
No momento em que a corrente foi retirada a porta foi violentamente
empurrada, esmagando os pés descalços de Doc. Quatro homens arremeteram
e passaram por ele, espalhando-se pelo apartamento, o quinto ficou no átrio.
— Sente-se e meta as mãos nos bolsos — ordenou Diederson depois de
o ter revistado.
— Não há mais ninguém — disse o outro agente fardado e sentou-se em
frente de Doc.
— Bom — disse Diederson — isto não é coisa para demorar muito. —
Ele e os dois à paisana começaram a revistar o apartamento. Diederson disse
para um deles: — Não tenhas pressa, Patterson, e sê cuidadoso.
O de fato à paisana respondeu com um grunhido.
— Limita-te a preocupar-te com os teus homens, Diederson. — Havia
nesta troca de palavras um tom de desagrado mútuo.
Doc olhava com curiosidade. Aparentemente Patterson parecia uma
espécie de estranho. «Que é que o terá feito meter-se nisto?», pensou Doc.
Havia qualquer coisa nele que não condizia com um chui. O cabelo era
ligeiramente mais comprido que o habitual e os fatos um pouco mais caros e
havia nos seus modos algo que Doc não conseguia definir, mas que não
condizia.
Depois de ter procurado casualmente atrás dos cortinados e debaixo do
sofá em que Doc estava sentado, Patterson dirigiu-se à cômoda. Começando
pela gaveta de baixo, revistou-a de uma forma bastante natural. Continuou
com a segunda e finalmente com a terceira. Na de cima, começou pelo canto
aposto àquele em que a heroína tinha sido colocada. Quando acabou de
revistar a gaveta parecia confuso. Recomeçou então a revistar a gaveta,
rebuscando ponto por ponto, revistando bolsos, sacudindo mangas e pernas
de calças. Como não encontrasse nada, apressou-se a voltar... À gaveta do
meio, nitidamente ansioso e preocupado, mas sempre cuidadoso e minucioso
na busca. Doc pensou que o tipo sabia o que fazia. Acabando de revistar
novamente a terceira gaveta, examinou o interior da cômoda, depois de
retiradas as gavetas, procurando um esconderijo secreto, mas nada encontrou.
Virou-se e fixou o olhar em Doc, que tentou quanto possível manter um
ar de preocupação e espanto. Esperava profundamente que qualquer traço de
sorriso não transparecesse.
Patterson, obviamente frustrado, dedicou-se a esquadrinhar o resto da
sala, procurando por vezes pormenorizadamente e outras com absoluta
superficialidade.
Cerca de quinze minutos mais tarde, Diederson voltou à sala comum e
olhou para Patterson.
— Então? — Perguntou.
Patterson dirigiu-se a Diederson e começou a segredar-lhe, de costas
viradas para Doc.
— O quê? — Exclamou Diederson. Começaram então a trocar segredos,
mostrando-se cada um deles obviamente furioso com o outro. De repente
Diederson levantou o tom de voz de forma a torná-la audível: — Merda! Os
meus homens nem sequer sabiam onde iam quando se meteram no carro. É
melhor que investigue o que vai pelo seu gabinete, Patterson. A fuga só pode
ter sido dai.
Doc riu para dentro. «É sempre agradável assistir às zaragatas entre
departamentos. Talvez atirem uns para cima dos outros», pensou. Os dois
polícias separaram-se e continuaram a busca.
Finalmente, às seis e trinta, Diederson reuniu os seus homens na sala
comum e disse:
— Blake, nem penses que te safaste desta! Estou cada vez mais perto de
acabar contigo! Sei muito bem o que tu e os teus amigalhaços davam para ver
aquela lei aprovada. Vinha mesmo a calhar para o negócio, não vinha?
Doc limitava-se a olhá-lo com uma expressão de surpresa.
— Um médico, nem menos! Blake, és a coisa mais nojenta que eu já vi.
Nem sequer o fazes por dinheiro. Será que fazes isso apenas porque te
comprazes em ver esses garotos destruídos!
Doc começou a empalidecer. Diederson estava mesmo convencido de
que se tratava dum golpe efetivo. Estava demasiado furioso para fingir. Doc
olhou para Patterson, que nunca dissera palavra, limitando-se a olhar para
Doc com um misto de ódio e de irritação. Parecia estar a decidir qual o
movimento que se seguiria. Por fim pôs-se em pé.
— Vamos, Diederson. Por agora acabámos. — Diederson e os outros
dois levantaram-se e saíram da sala. Patterson virou-se para Doc antes de sair.
— Desejo-lhe um bom dia, doutor.
Outubro
Stanley Johnson pegou no relatório manuscrito e estendeu-o a Carol.
— Isto deve chegar às mãos do Westland o mais depressa possível e
acho que devia mandar também uma cópia a Pearson. Ele tem andado a
badalar por eu não ter esta parte feita, por isso é bom que lhe faça saber que
já está pronta.
Carol pegou nos papéis e folheou-os.
— Parece que o general Westland não tem aparecido, pois não?
— Não — concordou Johnson. — Tenho estado a enviar-lhe relatórios
semanais e penso que os tem lido, pois de vez em quando manda um bilhete a
pedir esclarecimentos, mas no fundo tem-me deixado bastante à vontade.
Agrada-me pensar que isso significa que está contente com o trabalho que fiz
até agora. O mesmo já eu não posso dizer de Pearson.
Carol olhou para ele com ar inquiridor.
— Qual é o papel de Pearson no meio disto? Ele é da Military
Intelligence, não é?
— É, mas o papel dele, para mim, ainda não está claro. A princípio
julgava que o que ele queria era a minha opinião acerca da hipotética
atividade dos Russos no campo da engenharia genética, mas ultimamente tem
demonstrado um interesse quase histérico sobre tudo o que aqui se passa. E é
chato como o Diabo!
— E ele tem poderes para isso? — Perguntou. — Não me parece que
hierarquicamente lhe seja superior.
— Oficialmente não é — concordou Johnson. — Mas Westland
mandou-me um bilhete há um mês, dizendo que o trabalho de Pearson era de
importância capital e que devia pensar que ele estava a falar com autorização
do próprio Westland. Nunca ouvi semelhante coisa, mas a afirmação tem
peso suficiente. Às vezes chego até a pensar que Westland não fala comigo
mais vezes porque atua através de Pearson.
Carol interveio:
— Eu pensava que o trabalho ia bem. Então porque é que Pearson é
chato?
— Realmente talvez ele tenha razão — concordou Johnson. — O
problema estava em que trabalhávamos tão depressa que eu não conseguia
controlar tudo o que havia a fazer. Mas isso deve pô-lo contente — disse,
apontando para os papéis que Carol tinha na mão. — Conseguimos obter um
soro imunizante contra a toxina botulina com mutação, portanto com isso já
não temos de nos preocupar.
Carol sorriu e disse:
— É agradável ser-se secretária de alguém cujas experiências nunca
falharam. Você não é um resmungão como outros para quem já trabalhei.
Johnson riu-se.
— Temos ambos sorte. Nunca tive um projeto que marchasse assim
sobre rodas. Temos todas as facilidades. De facto, estamos tão adiantados em
relação aos prazos previstos que para a semana começaremos a fazer
imunizações.
— Imunizações! — Inquiriu Carol. — Contra quê?
Contra a gripe que criámos e contra a toxina botulina que pensamos
enxertar-lhe. Lembre-se de que ambas sofreram uma mutação para que as
pessoas não possuam qualquer resistência à doença e não queremos que os
nossos trabalhadores tenham problemas.
— Mas não é mais perigosa do que qualquer outra gripe, pois não? —
Perguntou.
— Ainda não, mas, logo que se complete a imunização, estaremos
prontos para introduzir os genes da toxina no vírus e nessa altura será a coisa
mais perigosa que até agora apareceu.
Carol dissimulou um arrepio nervoso.
— Bom, veja lá se eu também sou vacinada, hem?
— Não se preocupe. Não esqueceremos vivalma — disse ele,
tranquilizando-a com um sorriso.
— Bom — disse Carol levantando-se da cadeira —, se quer que isto siga
hoje, acho que é melhor eu ir andando. — Dizendo adeus a sorrir, saiu do
gabinete de Johnson.
Johnson ficou sentado e respirou de alívio. Estava satisfeito por ter feito
aquele relatório. Pearson telefonara-lhe duas vezes desde o seu último
encontro, havia um mês, durante o qual Johnson confessara não ter ainda um
soro imunizante contra a nova toxina botulina com mutação. Ultimamente
Pearson mostrara-se mais arguto e Johnson notara-o.
Olhou para o seu calendário. Tudo corria às mil maravilhas. No mês
seguinte, com sorte, teriam transplantado os genes das bactérias para os vírus
da gripe. Tudo estaria pronto para a experiência em tecidos de cultura.
Franziu o sobrolho ao lembrar-se das insinuações de Pearson acerca de
experiências de campo. Nenhum deles voltara a mencionar o assunto. Mudou
a folha do calendário para o mês seguinte e isso fez-lhe lembrar o encontro
sobre ADN, a realizar em Squaw Valley e marcado para a primeira semana
de Novembro. Consistiria numa semana de relatórios dos mais importantes
laboratórios do país, relacionados com os seus trabalhos sobre engenharia
genética; esse encontro poderia ser de grande valor para o trabalho que
Johnson estava a realizar.
Mas seria Peter Stanker e não Johnson quem iria. Johnson ficara
descontente com a decisão, mas com os acontecimentos a desenrolarem-se
tão rapidamente no laboratório ele não poderia, de facto, deixar tudo e
ausentar-se por uma semana. Por isso, Stanker, o seu braço direito, iria no seu
lugar. Mesmo assim, Johnson não querería trocar de posições. Stanker era um
discípulo, limitando-se essencialmente a cumprir o que lhe era ordenado.
Johnson era agora um chefe, tendo sob as suas ordens cento e cinquenta
pessoas, dirigia agora aquele que era agora provavelmente o maior
laboratório de pesquisas do pais. Era quase a concretização dum sonho.
E afinal talvez fosse melhor não ir ao encontro. Seria de enlouquecer ter
de guardar para si todo o trabalho e descobertas que tinha feito.
Provavelmente durante o ano anterior ele tinha feito mais pesquisas reais e
progressos mais significativos em engenharia genética do que qualquer
daqueles grandes acadêmicos. Sempre sentira inveja dos cientistas que
conseguiam triunfar no mundo acadêmico. Eram esses os criativos, os que
faziam as investigações interessantes, fazendo avançar as fronteiras do
conhecimento e isso enquanto ele se limitava a andar às voltas, tentando fazer
coisas velhas por processos ligeiramente diferentes.
Mas isso era antes. Antes do Projeto Vector. Ele imaginava-se a fazer
uma exposição a todos aqueles «crânios» de Squaw Valley. Havia de siderá-
los!
Rindo para consigo, pensava: «Um dia irei a um desses encontros e não
direi uma palavra, só para ouvir esses tipos que julgam que estão a fazer
grandes investigações.» O seu pensamento virou-se para Pearson e para a sua
atitude de reprovação. «Pearson também», pensou. «Aposto que os Russos
não estão a mexer-se tão depressa como nós.»
Quinta-feira, 15 de Outubro
O sol matinal irrompeu pela janela do quarto, quando Charlie ainda
estava deitado, com a mão pousada no estômago sempre a crescer de Ann.
Uma risca no ventre ia aparecendo lentamente acima e abaixo do umbigo,
mas ainda não tinham sentido qualquer movimento.
Outubro ia a meio e havia no ar um cheiro a Outono. Era um tempo de
consolidação, de fortalecimento, como se tudo se preparasse para o Inverno.
Toda a sua existência não estava ainda, no entanto, consolidada. Eles não se
atreviam a planear, a assumir ou sequer a esperar demasiado. Cinco meses
tinham decorrido, fora ultrapassado o prazo durante o qual Doc assistira ao
último aborto; devia estar salvo. Mas a verdade é que também já ultrapassara
o tempo em que normalmente se sentem os primeiros leves movimentos do
feto. Tentando acalmar o medo que sentiam, Doc dissera-lhes: — «É muito
variável. Algumas mulheres sentem o feto mexer aos três meses e outras só
depois dos seis. Isso não quer dizer nada.» «Nada», pensou Charlie, «salvo
que nem sequer sabemos se chegaremos a ter o nosso filho.»
Havia já catorze dias que eles passavam assim um bocadinho das
manhãs, desde que Ann atingira os cinco meses. Falavam pouco sobre o facto
de terem decorrido já os cinco meses e de o feto ainda não mexer. Nunca
falavam em nomes ou mencionavam sequer se seria rapaz ou rapariga. Ainda
não o sentiam como seu e por isso digno de se fazer planos acerca dele.
Embora aquela manhã de quinta-feira estivesse alegre e fresca, Charlie
sentia-se esgotado. Um dia como aquele instilaria energia na maior parte das
pessoas, mas a Charlie fazia descer o nível da sua depressão. Limitava-se a
levar uma semana de preparação de aulas de avanço e no laboratório tudo
estava parado. Sempre que tentava descansar o espirito e ocupá-lo nas suas
pesquisas e nas suas aulas, via o feto deformado que Doc lhe descrevera, a
boiar num frasco de formol, e o seu espirito fechava-se completamente.
Tinha ficado uns dias em casa porque queria estar com Ann, temendo
que o bebé se perdesse, mas ela acabara por lhe pedir que saísse. A depressão
dele ainda a deprimia mais. Por isso voltara à universidade, não tendo pedido
mais dispensas.
No laboratório a coisa ainda era pior. Sempre que o telefone tocava,
sentia que a sua esperança morria, porque esperava a toda a hora ouvir Ann
ou Doc dizer-lhe que tudo estava perdido. Os telefonemas eram, porém, os
vulgares telefonemas e o feto ia crescendo a olhos vistos e pelos sinais
apresentados devia ser saudável e normal.
Todas as manhãs gozava esse momento durante o qual sentia que a
criança era realmente sua, aninhada no ventre de Ann e sob a sua mão. Ali
ficava em silêncio, tentando apenas sentir com os dedos, e não com o coração
ou com o espirito. A pele, esticada, tinha o toque da pele dum bebé. Adorava
senti-la. Ann permanecia deitada, sempre em silêncio, respirando tão
superficialmente quanto possível, e tentavam ambos detectar qualquer
movimento.
***
Pareceu um deslizar, um tremor num músculo, mas diferente,
perfeitamente localizado. Charlie sentiu-o, mas não disse nada. Ann sentiu-o
também, mas ficou petrificada. Ali ficaram um, dois, três minutos e de novo
se fez sentir. Não era um deslizar ou um tremor dum músculo, era um
pontapé. Um minuto mais tarde repetiu-se pela terceira vez.
Ann começou a chorar baixinho. Charlie rolou para o lado dela e
abraçou-a. Tinha os olhos marejados de lágrimas.
— Está vivo — dizia ela a soluçar está a mexer-se.
Agora as lágrimas brotavam e todo o seu corpo estremecia, abalado pelo
tremor do medo acumulado nos últimos dois meses.
— Acabou, acabou a espera — murmurou Charlie e afastou-a de si para
lhe ver a cara. — Vamos ter um bebé!
Aquele dia foi o mais belo de quantos se lembravam ambos. Limparam a
casa, falaram no berçário, imaginaram o sexo do bebé, brincaram com o seu
nome e telefonaram a todos os que estavam a par do perigo, convidando-os
para passar o serão.
Os amigos reunidos como uma família e o ar de festa que pairava faziam
lembrar o Natal a Ann. Por fim acalmaram-se um pouco e a conversa
abordou outros temas sem ser Disney.
Criticando Charlie pela sua falta de energia nos últimos tempos, Beth
provocou-o:
— Sabes, Charlie, ultimamente tens-te portado como o Bill: esquecido,
com um olhar vazio, a pegar a toda a hora nas coisas e a olhá-las como se
nunca as tivesse visto. Acho que muita gente no laboratório anda a pensar no
que tu terás. — Como Charlie franzisse o sobrolho, Beth apressou-se a
acalmá-lo: — Oh, se fosse a ti, não me preocupava. A meio da semana já eles
se terão esquecido e tu pareces estar a voltar à normalidade.
— Acredito — disse Charlie abanando a cabeça. — Eu estava tão
cansado e deprimido, fazia melhor se ficasse sentado na sânitas, porque ao
menos não andava para trás e para diante. Meu Deus! Será que o Bill se sente
sempre assim? — «Talvez eu deva ser mais condescendente com ele»,
pensou.
Kip interrompeu-lhe os pensamentos.
— Quem diabo é esse Bill? Parece-me que se trata dum músico que eu
conheço.
— É um investigador auxiliar que trabalha no laboratório do Lloyd, é
supostamente humano... O que de facto é discutível. Nem sequer passa pela
cabeça de ninguém que ele seja um trabalhador responsável.
Cansado da história, Doc pestanejou, mas Beth prosseguiu:
— O espirito dele tem a arrumação duma sala desarrumada há dois anos.
Aparentemente há nele qualquer espécie de ordem interior, mas nunca
perceberei de que tipo. Por exemplo: eu precisei de utilizar uma técnica que
ele estava a empregar. Quando finalmente consegui que ma escrevesse — o
que levou duas semanas —, anotou a primeira fase em último lugar e a
segunda em quarto e acabou pura e simplesmente por deixar de fora toda a
terceira fase! — Ela ruborizava-se de irritação só de pensar noutros casos. —
O tipo nem sequer se apercebe do quanto aborrece os outros. Um dia, durante
o almoço, contou-nos sorridentemente que, quando era universitário, o seu
mentor o fizera passar revista a todo o material, à noite, antes de se ir embora,
para se assegurar de que não deixava nada a derreter. E nessa mesma noite,
depois de nos ter contado toda aquela história, foi para casa e deixou material
plástico no valor de quinhentos dólares a derreter num fogão.
Riram-se todos e Justine perguntou:
— Mas será que todos nós não fazemos uma dessas uma vez na vida?
Charlie concordou:
— Sim, é verdade. Devias falar com pessoas que trabalham com
químicos radiativos. Todos consomem alimentos nas suas zonas de trabalho,
ainda que saibam estar a violar uma lei federal, sem falar dos derramamentos
que sucedem a todos.
— Mas isto não é tudo! — Disse Beth. — Como daquela vez em que
decidiu fazer umas pequenas férias e deixou um rato morto em cima da
bancada durante três dias. Ele é dos que partem as coisas só de olhar para
elas! Ninguém no laboratório lhe empresta seja o que for. O laboratório dele é
uma tal porcaria que até o pessoal de limpeza se recusa a pôr-lhe a mão, e eu
faria o mesmo!
Warren parecia surpreendido.
— E o que é que o teu chefe diz a isso?
— Não sei — disse Beth. — Faz de conta que não sabe. A certa altura
sugeriu-me que trabalhasse com Bill numas experiências, mas era
literalmente impossível e Lloyd pareceu nunca acreditar nesse facto. E isso
devido à forma como ele orienta o laboratório. Não intervém muito, salvo
durante a nossa reunião semanal. É verdade que se interessa pelo nosso
trabalho, mas quer é os resultados e não os pormenores sórdidos das nossas
dificuldades para os obter. Tenho a certeza de que Lloyd tem esperança de
que «o assunto se resolva por si», como ele diria.
— Já chega — implorou Doc. — Fico maluco cada vez que oiço falar
nisso!
— Ámen — corroborou Charlie. — Já estamos fartos de ouvir isso.
— E mesmo assim acho que ainda não os convenci — disse Beth
sarcasticamente.
— Nada de discussões! — Pediu Kip e virou-se para Doc: — Vamos
agora ouvir as palavras dum importante traficante de droga!
— Ah, é verdade — interrompeu Ann —, eu ainda não tirei bem a limpo
toda essa história.
Doc olhava de uns para os outros.
— Bom, eu julgava que a tinha bem guardada — murmurou. — Isto é,
só a vendia a filhos de polícias e de políticos. Acho que o que estragou tudo
foi o anúncio classificado.
— Anúncio? — Perguntou Kip.
— Claro — disse Doc. — Fiz sair um anúncio que dizia assim: «Sente-
se em baixo? Temos a resposta. Nova droga miraculosa, que em princípio era
utilizada na cura do vício de morfina, dar-lhe-á uma nova maneira de encarar
a vida.» Acho que a Polícia suspeitou.
Ann atirou-lhe com uma almofada à cara.
— Por amor de Deus, Doc, devias falar desse assunto um pouco mais a
sério.
— Bom, em parte até estou a falar a sério — retorquiu Doc. — Dantes
usava-se ópio para curar o alcoolismo, cocaína para curar o vício do ópio,
morfina para curar o vício da cocaína e heroína para curar o da morfina.
Agora têm a metadona para curar o vício da heroína. Daqui a uns anos
implantarão elétrodos no cérebro para curar o vício da metadona. Depois
teremos viciados em eletricidade e a Mafia há de negociar pilhas no mercado
negro.
Desataram a rir com a ideia. Charlie perguntou com uma risada:
— Quem pensas tu, Doc, que está por trás disto?
Doc franziu o sobrolho.
— Não sei. A AMA pode não gostar de mim, mas duvido que tenham
um departamento especializado em golpes baixos. O estoiro teria de ser pelo
menos apoiado pela Policia. Quem diabo poderia ter uma tal quantidade de
droga, para o poder esbanjar assim? Não me passa sequer pela cabeça quem
poderia ter sido.
— E que dizes a esse tipo, o Diederson? — Perguntou Ann. — Sei
perfeitamente que ele está informado de que tu trabalhaste e ajudaste
drogados e que te recusaste a testemunhar contra eles.
Doc fez um sinal de assentimento.
— É verdade que ele me detesta. Disse-o bem claramente, mas parece-
me que se trata mais de um gênero de ódio pessoal. De qualquer forma,
duvido que ele tenha poder suficiente para sozinho montar uma operação
deste tipo.
— E Patterson? — Inquiriu Beth. — Chegaste a saber alguma coisa
sobre ele?
— Ele quem? — Perguntou Warren.
— Patterson — respondeu Doc. — Ele veio por arrastamento, quando se
deu a bronca. Aliás, até talvez ele seja a chave. Não sei donde ele é, mas
aparentemente pertence a um departamento totalmente diferente do de
Diederson. Quando viram que não descobriam nada, começaram a discutir
sobre isso.
Beth continuou:
— Mas não era o Patterson que parecia saber onde aquilo estava?
— Sim, tens razão — concordou Doc. — Realmente o Patterson deu a
impressão de ir direitinho à cômoda onde a droga fora colocada. — E
prosseguiu, explicando aos outros: — Ele ficou atrapalhado como um raio,
quando descobriu que a coisa não estava lá. Não há dúvida de que ele, pelo
menos, sabia onde aquilo devia estar.
— Ficaste com a impressão de que ele sabia que se tratava duma prova
forjada, ou não? — Inquiriu Kip.
— Não — disse Doc —, não guardei dele outra impressão que não a
duma imparcialidade profissional. Por outro lado, Diederson mostrava
claramente pensar que a queixa era legítima. Cuspia ódio. Nunca tinha visto
ninguém manifestar um tal ódio para comigo.
— Então, se havia ali alguém que soubesse que se tratava duma prova
forjada, seria Patterson — disse Charlie.
— Certo — concordou Doc. — Parecia que, embora Diederson fosse
oficialmente o chefe, era Patterson quem conduzia a dança.
— A que departamento pertence ele? — Perguntou Ann.
— Não sei — respondeu Doc. — Tentei descobrir qual a ligação de
trabalho que Patterson tinha com a polícia e parece que não era nenhuma. Ele
podia estar embrenhado numa investigação ou ter uma cobertura e portanto
seria impossível obter-se tal informação, mas se assim fosse não seria de
esperar que participasse numa busca. Se tivesse encontrado o material onde
esperava, teria de testemunhar em tribunal e assim quebraria o anonimato.
Por isso, essa hipótese parece-me improvável, mas também não vejo outra.
— Tentaste interrogar diretamente a polícia sobre os indivíduos que
tomaram parte na busca? — Insistiu Ann.
— Tentei, mas só me forneceram os nomes de Diederson, do juiz e dos
outros cujos nomes figuravam no mandato. Também se referiram a um
«informador» não identificado, mas não pude saber mais nada sobre esse
porque só me poderíam informar se se tivesse efetuado a prisão. Por isso,
parece-me que estou num beco sem saída.
— Bom, pelo menos falharam, e ainda bem, porque assim ainda aqui te
temos — acrescentou Ann.
— Podes agradecer à Beth — disse Doc a sorrir. — Se não fosse ela, a
esta hora estava eu na choça.
Beth riu-se.
— Ele agora usa-me como amuleto, desde que descobri a droga.
— Tu até dás sorte a ti própria — disse Doc. — Já lhes contaste?
— Não, ainda não. — E, virando-se para os outros, anunciou com um
gesto floreado: — Recebi hoje a minha primeira oferta de trabalho, à mistura
com uma embaraçosa proposta de salário.
Enquanto todos a felicitavam, Kip disse num gemido:
— E tu que parecias uma joia! Vais ficar igualzinha ao Charlie,
enfadonha e doutoral.
— Oh, vai ser muito pior do que isso. A história não acaba aqui —
esclareceu Doc.
Beth levantou as mãos pedindo silêncio e anunciou com grande
solenidade:
— Minhas senhoras e meus senhores, foi-me oferecida uma colocação
não para trabalhar no mundo acadêmico, mas para o fabuloso mundo da
investigação industrial!
A declaração foi recebida com mais felicitações e «vivas». Charlie
interrompeu.
— Espera ai. Sabia que andavas à procura dum lugar em qualquer
universidade, mas não sabia que encaravas a hipótese de trabalhares na
indústria.
— Não encarava, mas trata-se duma colocação à qual não concorri. O
Tom Darnell, que trabalha no laboratório, conseguiu que a proposta fosse
feita a seu pedido — explicou Beth. — O Tom está a trabalhar no nosso
laboratório apenas há uns dois anos. Ele colabora com um grupo chamado
Crop Research Association, que é um subsidiário duma equipa de trabalho
ligada a coisas de agricultura. Ele está a trabalhar numa espécie de sistema de
«dispensa para estudo», para aprender as nossas técnicas. Acho que ele
pensou que eu poderia ser um bom elemento para o tal grupo e acenou-me
com uma proposta.
— Se ele for do gênero desse tal Bill, calculo porque é que não queres
trabalhar com ele — comentou Warren.
— Ah, não! — Disse Beth. — Ele é quase o oposto de Bill. De vez em
quando lixa o juízo a toda a gente, como todos, mas pelo menos apercebe-se
disso. Não será tão esperto como Lloyd ou Charlie, mas é de absoluta
confiança. Se pedir algo emprestado por uma hora, devolve-o ao fim de uma
hora. Se disser que está às duas, está às duas menos cinco. Tudo o que utiliza
volta limpinho e operacional. Dá gosto trabalhar com ele.
— Esse serve para compensar do Bill — insinuou Justine.
— Sim, é uma ajuda. É limpo e cuidadoso e sabe de facto teoria e vou
até ao ponto de dizer que se interessa mais pelo meu trabalho do que o Lloyd.
Mas é tão calado! Nunca se senta a cavaquear assim. Tem uma visão geral do
que se está a passar, talvez até melhor que a do Lloyd ou a de qualquer outro,
mas só fala quando se lhe dirige diretamente a palavra ou quando tem
informações a fornecer sobre coisas do laboratório. Nem sequer sei se é
casado ou não. Não frequenta reuniões sociais ou coisas do gênero, por isso
não é pessoa ao lado de quem nos possamos sentar e conversar. Já tentei
várias vezes, mas acabo por dar comigo a fazer a despesa da conversa.
— Bem — disse Warren —, não parece ser mau tipo.
— Não, realmente não é. Na verdade é até a única coisa positiva
relacionada com esta oferta de trabalho.
— Estás então a pensar nisso a sério? — Inquiriu Kip.
— Não é bem isso, se bem que tenha de concordar que o salário é
suficientemente elevado para me tentar por um minuto — replicou Beth.
— Posso perguntar quanto? — Indagou Ann.
— Trinta mil. Acho que tão cedo não terei vislumbres duma oferta tão
grande — respondeu Beth.
— Pode ser que não acredites — disse Charlie —, mas eu teria de ser
professor catedrático para ganhar semelhante quantia. Isso é muito dinheiro!
— Eu sei — afirmou Beth — e de certo modo não seria mau.
Instalavam-me em laboratório próprio e a princípio até podia continuar o
trabalho que iniciei com o Lloyd. Ofereceram-me trinta mil dólares em
dinheiro, material e dois técnicos a trabalhar a tempo inteiro.
— Se podes fazer aquilo que desejas, então que é que não te agrada? —
Perguntou Justine.
Charlie explicou:
— Essas facilidades de se poder fazer o que se quer nunca vêm
expressas no contrato. Esses grupos industriais só têm um fim em vista e que
consiste em tirar o maior lucro que lhes for possível. Deixam-te à vontade
desde que pensem que lhes podes dar lucro, mas quando estiveres a trabalhar
em investigação pura vais ver que o caso muda de figura. A maior parte das
grandes descobertas da ciência vieram de muitas pessoas que fizeram
descobertas casuais e depois as perseguiram. Na maior parte dos laboratórios
industriais, nunca te seria permitido seguires uma pista desse tipo a não ser
que fosse coisa que pudesse vir a dar massa. Há exceções. Há sítios onde te
deixam fazer o que queres, mas esses são muitíssimo raros.
Beth concordou:
— É assim que as universidades se safam, pagando metade dos salários
que a indústria paga; sabem que o trabalho é muito mais gratificante.
— Bom, pelo menos é consolador saber que há alguém que pensa que tu
vales uma quantia dessas — disse Ann.
— É verdade — afirmou Beth. — Tenho de concordar com isso. Ainda
ao almoço estava sentada a sorrir e a dizer para comigo: «Tu vales trinta mil
dólares por ano» e de repente apercebi-me do facto de que não passaria o
resto da minha vida no laboratório do Lloyd.
— Acho que arranjar outro emprego não deveria ser-te assim tão difícil,
pois não? — Interrogou Kip.
— Com a ajuda de Lloyd, não — respondeu Charlie. — Ele tem bastante
influência no meio acadêmico e sei que apoiaria Beth completamente, que era
o que seria preciso. Atrevo-me a dizer que não precisas de pôr um «senão» na
tua carta de recusa. Não tenho dúvidas de que vais arranjar um lugar na
Academia.
Beth corou.
— É realmente bom ouvir-te dizer isso, Charlie, mas até ver essa
proposta por escrito continuarei a sentir-me nervosa.
— Sei que continuarás — atalhou Ann. — Toda a gente dizia a Charlie
que não se preocupasse e mesmo assim ele continuava a ficar acordado toda a
noite a pensar o que faria se não recebesse uma única proposta ou, pior, se a
única oferta lhe viesse do Alabama ou de Iowa.
Após uns momentos de silêncio, Charlie acrescentou:
— Talvez agora que tudo voltou à normalidade eu consiga fazer todas
aquelas coisas maravilhosas e emocionantes que nós, que estamos no meio
acadêmico, temos tempo de fazer. Nestes últimos dois meses também podia
ter estado a trabalhar para a indústria, em vez de ter estado a procurar «o
conhecimento puro».
— Mas talvez pudesses passar a ter uma semana de aulas adiantada, em
vez de teres um mês — disse Ann. — Por outro lado, vais passar as próximas
seis semanas a tentar adiantar mais um mês. — Já estava na terceira semana
do semestre e não se sentia agora tão intimidado com a ideia de lecionar.
— Talvez faça isso — concordou. — Assim talvez consiga acabar
qualquer coisa no laboratório. — Virando-se para Beth perguntou: — O
Lloyd parece safar-se muito bem com o laboratório e as aulas. Qual é o
segredo?
— É fácil — replicou Beth —, é dar as mesmas cadeiras todos os anos
com uma quantidade mínima de atualizações e conduzir o laboratório de
dentro do gabinete, sem trabalhar nele. Assim, tudo é muito mais fácil.
— Hrra! Eu sabia que a minha opinião sobre o Lloyd não era única —
gritou Ann.
Charlie encrespou-se.
— Já sei, agora vão unir-se contra mim. Acho que nenhuma de vós está
em posição de poder falar. Vocês não fazem a mínima ideia do tempo que se
perde a fazer esses requerimentos de subsídios, a assistir às reuniões de
departamento e de comissão, sem falar das horas para recepção de alunos.
São horas e horas por dia.
— É tudo uma questão de prioridades — insistiu Beth. — Tencionas
trabalhar em experiências de laboratório, não tencionas?
— Claro — insistiu Charlie. — Só estou a dizer que não é tão fácil como
parece à primeira vista.
Kip lançou o gracejo:
— Bem, talvez fosse melhor mandares lixar o ensino e aceitares essa
colocação na indústria. Pelo menos ai aposto que não tens de redigir
requerimentos de subsídios. — A ideia foi vaiada em coro.
Beth explicou:
— Sabes, Kip, a verdade é que Charlie tem um fraquinho por aquele tipo
e já sabes como as coisas são: quando estamos apaixonados, tudo nos parece
formidável. Virou-se para Charlie. — Ainda não cumpri a minha promessa.
Prometi-te que te apresentava a uns cientistas, que eram dignos de ser vistos,
lembras-te? Há de ser para a semana. Lloyd não é digno de servir de modelo.
Mudando de assunto, Doc perguntou:
— Ó Warren, conseguiste lembrar-te onde ouviste mencionar os
Gloryhits?
— Oh, merda! Esqueci-me por completo. Deixa-me pensar um pouco.
— Pôs as mãos nos ouvidos e inclinou a cabeça sobre o colo.
Doc prosseguiu:
— É que ainda é importante. Estou aliviado porque Ann parece ter
ultrapassado o perigo, mas há outras oito mulheres que perderam os filhos
devido a qualquer coisa que eu continuo a acreditar estar relacionada com
esses Gloryhits. Se esses pertencerem a outra comunidade, acho que pelo
menos deviam ser avisados.
— Mas será oito um número suficiente para se estar seguro? — Inquiriu
Justine.
Doc respondeu:
— Que raio! Se isto tivesse sido detectado num grande hospital, tinha-se
desencadeado um gigantesco projeto de investigação sobre o assunto. Mas,
pensando bem, tirando esse vampiro do Greene, ninguém, exceto os
computadores, daria por isso.
Warren entrou na conversa.
— Merda — lamentou-se —, quase estou a ver o tipo, mas há qualquer
coisa que me falha. — Virando-se para Doc: — Prometo que vou fazer um
esforço. Tenho a certeza de que conseguirei lembrar-me.
Kip informou o grupo:
— Ninguém com quem eu tenha falado tem conhecimento deles, exceto
alguns que sabiam que o ácido tinha andado para ai em circulação, mas vão
estar alerta e talvez venham a saber de alguém a quem tenha sido vendido.
— Bem, acho que só nos resta esperar — concluiu Doc.
— Warren há de lembrar-se. Dá-lhe mais alguns dias — disse Justine
para o encorajar.
— Claro que me lembro — prometeu Warren. — É apenas uma questão
de tempo. Mas que história é essa dos computadores?
Doc explicou:
— É um processo que o governo federal montou há já alguns anos e que
se chama Epidemiological Survey Network6. Em, meados dos anos 70 foram
feitos alguns estudos no sentido de determinar a frequência da incidência de
certos tipos de cancro em função da localização geográfica e foram
detectados os chamados «locais quentes». Assim, durante os anos
subsequentes, foi possível determinar fatores ambientais e ocupacionais que
conduziam a taxas mais elevadas nessas áreas.
»Bom, esta técnica funcionou tão bem que o governo federal criou uma
rede maciça de detecção de taxas de doença, causas de morte e, entre outras
coisas, frequência e causas de abortos, bem como tipos de malformações em
fetos e recém-nascidos. Deste modo, se surgisse algo do gênero da talidomida
seria rapidamente detectável. — A meio da explicação, Doc parou e olhou
para Charlie.
— Haverá algum meio de espiar esse sistema? — Inquiriu. — Podíamos
investigar as taxas mais elevadas de aborto espontâneo. Ou investigar sobre
essa malformação da cabeça. Podia não nos dizer até onde foram os
Gloryhits; mas, se tivessem tido o mesmo efeito que pensamos que tiveram
aqui, talvez o pudéssemos localizar.
Charlie não tinha a certeza.
— Talvez pudéssemos. O pessoal da escola médica deve utilizar
frequentemente esse sistema.
— Mas achas que conseguiríamos sacar os dados? — Inquiriu Beth. —
Não estamos a tratar com um número significativo de abortos, em relação a
toda a população.
— Acho que conseguíamos — afirmou Doc. — Primeiro, porque a tal
malformação saltaria à vista como uma mosca no leite. Nunca vi nada de
semelhante e por isso, mesmo se fossem apenas um ou dois nestes últimos
seis meses, facilmente se destacavam. Acho que por ai conseguíamos. E
abortos entre os três e seis meses não são assim tão vulgares. A maior parte
ocorre ou no primeiro trimestre ou próximo do fim do tempo; por isso, sete,
digamos em dois ou três meses, destacar-se-iam. Acho que têm os dados
divididos em segmentos geográficos muito pequenos, de tal modo que
mesmo áreas vizinhas se podem distinguir umas das outras. Pensaram
realmente em tudo, quando montaram este sistema.
Charlie estava a pensar nos pormenores.
— Não estou certo da forma como vais preparar a tua investigação, mas
faço uma ideia e não deve ser assim tão difícil. — Virando-se para Doc,
acrescentou: — Olha, amanhã passa lá pelo laboratório, ao fim da tarde. Vou
tentar falar com o pessoal do centro médico antes de tu chegares.
Doc consultou o calendário de bolso.
— Não vás. Guarda isso para segunda-feira. Não me seria possível
dispor do tempo suficiente para me deslocar ao teu consultório e voltar.
— Muito bem — disse Charlie. — Assim dá-me mais possibilidade de
investigar tudo quanto necessito sobre o sistema.
Kip soltou um suspiro sonoro e disse:
— Não sei bem como, mas vocês conseguem sempre cair em conversas
sobre ciência!
— Ciência, não — declarou Ann. — Vidas humanas.
Segunda-feira, 19 de Outubro
A manhã de segunda-feira trouxe uma promessa de Primavera. Charlie
desceu apressadamente a Cambridge Street, direito a Harvard Square e ao
metro, enquanto ia pensando em tirar o seu blusão de cabedal do armário
onde estaria encafuado. Experimentava uma sensação de alegria. A primeira
noção de alívio surgira-lhe na quinta-feira, quando Disney mexera, mas fora
preciso todo o fim de semana para expulsar a tensão já entranhada no seu
sistema nervoso. Dir-se-ia, utilizando um lugar-comum, que se sentia um
novo homem. O ar fresco parecia limpar-lhe os pensamentos e o espirito.
Meia hora depois desceu do trólei e foi a pé o resto do quarteirão até ao
laboratório.
Ali, começou a pensar na vida que tanto amava, a qual golpeia
levemente a casca dura e impenetrável que rodeia as verdades do universo. O
trabalho penoso dos últimos dois meses desaparecera.
Beth passou por lá ao fim da manhã e deu com ele ao telefone. Charlie
indicou-lhe uma cadeira e fez-lhe sinal de que se demoraria apenas um
minuto. Escrevinhava freneticamente numa sebenta, pedindo de vez em
quando, a quem quer que estivesse do outro lado do fio, que lhe repetisse a
frase. Alguns minutos depois agradeceu e desligou.
— Estamos safos — disse com ar de satisfação. — Era a Barbara
Waterper, do centro médico. Ela trabalha muito com a Epidemiological
Survey Network — ou ESN, como ela lhe chama — e diz que não há
problema em juntarmos a nossa investigação à próxima série dela. Se não for
assim, é necessária uma montanha de papelada para se obter autorização. De
qualquer maneira, vai fazer um pedido na quarta-feira e disse que, se
conseguirmos entregar-lhe amanhã o nosso relatório, ela terá oportunidade de
ver se está em ordem antes de ser entregue.
Beth estava encantada.
— Quanto tempo vamos ter de esperar pelos resultados?
— Quase duas semanas — respondeu Charlie, claramente descontente
com a resposta. — Parece que há gente a mais a fazer uso desta rede e há
sempre muitos pedidos a executar. — Suspirando, acrescentou: — Mas acho
que podemos esperar.
— Especialmente porque não temos outra alternativa — concordou
Beth.
Charlie sorriu e perguntou:
— Como é que te correm as coisas?
— Muito bem. A oferta daquele lugar, por parte da Crop Research, foi o
pontapé de saída para me pôr a escrever dúzias de boletins de concurso para
colocações na faculdade. Lloyd prometeu-me umas cartas de recomendação
dentro de um ou dois dias, o que equivale a dizer dentro de uma semana, na
melhor das hipóteses.
Charlie riu-se.
— Isso equivale a um diploma de curso. Para onde é que concorreste?
Beth corou ligeiramente.
— Bom, parecem estar mais virados para a zona de Boston, do que eu
aqui há uns meses imaginaria. Tirando isso, acho que concorrerei para todos
os lugares vagos. Quero concorrer para manipulação genética e há montes de
vagas no país. O Lloyd insiste para que eu concorra só para lugares-chave;
diz que eu não teria problemas para ficar num deles, pelo menos.
— Isso da zona de Boston é por causa do Doc? — Inquiriu Charlie.
— É, mas não digas nada disso ao Lloyd, senão ele corta-me às postas.
Já sabes como ele é: a ciência über alles — respondeu ela, ligeiramente
embaraçada.
— Não. Está descansada — disse Charlie a sorrir. — Já escreveste para a
Crop Research? — Perguntou.
— Estava mesmo para escrever, mas o Tom fez-me prometer que
aguentava mais umas semanas até receber ofertas de outros lugares. Disse-me
que iria participar ao CRA que não era provável que eu aceitasse a oferta.
— Então disseste-lhe que não aceitarias? — Perguntou-lhe ele.
— Bom, não quis dificultar as nossas relações; por isso, como que me
escudei com as minhas razões. Disse-lhe que queria ficar no ensino, se fosse
possível, e do que gostava acima de tudo era de ensinar e da investigação.
Acho que devia ter sido mais direta, porque ele conseguiu argumentar
bastante convincentemente contra as minhas razões.
— Ah, sim?
— Afirmou que, se o meu interesse básico era a investigação, ia adorar a
indústria. Que não teria de preocupar-me com corridas políticas para o
espaço, nem passar uma quantidade de tempo a redigir requerimentos de
bolsas. De facto, a proposta da CRA mencionava que me seria permitido
continuar a investigação atual durante os três anos do meu contrato. E que, ao
fim desses três anos, poderia voltar a ser incorporada num estabelecimento de
ensino.
— Hum, não sei. Acho que ele está a ser ingênuo quanto aos obstáculos
que se põem ao regresso do ramo industrial para o ensino — replicou Charlie.
— Mas o problema nem sequer é esse — prosseguiu Beth. — A
verdadeira razão pela qual eu não quero aquele lugar é porque penso que a
atmosfera seria irrespirável, com cada um mergulhado na sua própria
investigação, nos seus próprios progressos e no seu próprio aumento e
subsídio de Natal. Só a ideia de entrar todos os dias às nove e sair às cinco
me parece horrível.
— Então? — Interrogou Charlie.
— Então, ele fez-me prometer que não recusaria oficialmente, pelo
menos até ter uma semiproposta de outro lugar que eu preferisse. Que raio,
não me faz qualquer diferença quando vou rejeitar.
Doc entrou e interveio com um hum!
— Estes miúdos andam sempre a rejeitar qualquer coisa. Não sei onde é
que esta nova geração vai parar. Deu um rápido beijo a Beth e sorriu para
Charlie. — Como vai isso?
Charlie conteve uma pontinha de ciúmes.
— Ótimo! — Respondeu. — Acho que estávamos mesmo a precisar era
de um pontapé certeiro.
Doc sorriu.
— Chegaste a verificar a Epidemiological Survey Network?
— A ESN — corrigiu Beth de narizinho no ar. — Toda a gente lhe
chama ESN.
— Está no papo — disse Charlie, ignorando a piada de Beth. — Falei
com uma mulher chamada Waterper, no centro médico, e ela utiliza-a
frequentemente. Se conseguirmos amanhã ter o rascunho da investigação,
juntá-la-á à sua na próxima quarta-feira e teremos o resultado de hoje a duas
semanas.
Doc fez uma careta.
— Não há possibilidade de ser mais cedo?
— Não te queixes — repreendeu-o Charlie. — Se ela não estivesse
disposta a juntar a nossa pesquisa à dela, levaria seis semanas só o pedido de
autorização de utilização, antes sequer de podermos enviar a investigação.
— Certo. Não me queixo. Só que, já sabes, sinto que há por ai gente cujo
futuro depende do facto de recebermos isso a tempo.
— Oh, és sempre tão dramático — disse Charlie. — Dás a isso um ar de
caso de vida ou de morte.
Beth atalhou com ar incrédulo:
— Charlie! Que é que estás a dizer? Já te esqueceste?
Charlie ficou atrapalhado e concordou:
— Como sempre, estou a fazer figura de parvo. Acho que realmente me
empenhei nesta investigação partindo dum ponto de vista acadêmico e não
clinico.
— Não podes separá-los assim, Charlie — declarou Doc. — Sabe-lo tão
bem como eu. É isso que os cientistas têm andado a fingir há séculos. E tanto
tu como eu, temos lutado contra essa atitude.
Charlie corou.
— Não posso defender-me. Tens razão. Têm ambos razão. Acho que me
estou a deixar envolver pela carapaça de professor. É assustador.
— Isso é o resultado de teres o Lloyd como modelo — avisou Beth. —
Amanhã, ao almoço, permite-me que te apresente a um amigo.
— Certo — concordou Charlie. — Está combinado.
— Bom, já agora, que temos tudo assente, devíamos planear a
investigação. Como é que a vamos conduzir?
— É muito simples — começou por dizer Charlie. — Tenho aqui tudo
escrito. — Encontrou o bloco no meio dos milhentos de papéis que tinha
sobre a secretária. — No fim, tudo isto será reduzido a um número de código,
mas a Waterper disse-me que esse trabalho fá-lo-ia ela. — Olhou para o
bloco. — Bom, em primeiro lugar queremos o «universo», que é a zona do
país abrangida pela pesquisa.
— Será todo o país? — Perguntou Beth.
— Penso que não — disse Charlie. — Acho que a Nova Inglaterra é
suficiente. Seria mais fácil seguir uma pista, se encontrássemos qualquer
coisa.
— Certo — concordou Doc. — E poderemos prosseguir com o resto do
país, se a investigação inicial mostrar que vale a pena.
— Concordo — declarou Beth. — E depois?
— Espera ai — murmurou Charlie, enquanto escrevia numa folha limpa.
— Tenho que tomar nota por estados. — Acabou e passou à folha seguinte.
— Bom, segue-se «a área da zona», isto é, qual o tamanho médio duma zona:
queremos comparar estados? Ou municípios?
— Julguei que tínhamos em vista uma área o mais pequena possível —
disse Beth.
Doc e Charlie concordaram.
— Acho que para isso podíamos utilizar um hospital; embora não seja o
exemplo perfeito, pode dar-nos elementos aproximados — disse Charlie.
— Certo, mas tenho de consultar a Waterper sobre o assunto, porque não
sei muito bem como é que as coisas se processam.
E assim passaram a hora seguinte. O resultado final referia-se a duas
investigações: a de malformações na cabeça, observadas em nados-vivos e
mortos cujas idades variavam entre os três meses de gestação até ao
nascimento; e a outra, de mortes devidas a todas as causas ocorridas entre os
três e cinco meses de tempo de gestação.
— Posso ir entregar-lhe isto hoje à tarde — concluiu Charlie. — Tenho a
certeza de que ela vai apreciar o facto de ter mais algum tempo para trabalhar
no assunto.
Doc olhou para o relógio.
— Se nos apressarmos, ainda consigo apanhar o almoço para nós... Se
vocês estiverem dispostos a comer comida de snack. Que dizem a isso?
— Ótimo! — Exclamou Beth. — Também ficas connosco, Charlie?
— Eu? — Perguntou ele. — Eu sou professor. Nunca tenho que fazer.
Rindo, dirigiram-se os três para o snack. Ao chegar lá, Charlie
perguntou:
— Olha lá, Doc, alguém chegou a contactar-te sobre aqueles fetos que
tinham sido levados?
— Não, não me disseram nada. Com a bronca que me sucedeu, quase me
tinha esquecido da promessa que me tinham feito de me darem uma resposta
dentro de uma semana. Não voltaram a telefonar-me.
Charlie pegou na sua coca-cola, nas batatas fritas e no hamburger com
queijo e meteu-se na bicha para pagar.
— Já é tempo de Greene dizer alguma coisa, não é?
Doc franziu o sobrolho.
— Tens razão. Acho que marcou para vinte e seis — olhou para o
relógio-calendário o que é de hoje a oito dias.
Os três procuraram por momentos uma mesa.
— Vais tentar qualquer coisa contra Greene por te sonegar elementos do
seu projeto? — Perguntou Beth. — Desde a tua bronca que nunca mais
falaste nisso.
Doc franziu a testa e encolheu os ombros, concordando.
— Não sei. Nos meus momentos de desvario, penso por vezes em lhe
esborrachar a cabeça se não me fornecer os dados, ou pelo menos em fazer-
lhe um boicote pedindo aos obstetras que não colaborem na recolha.
Charlie sugeriu:
— Pessoalmente acho a segunda ideia melhor, ainda que menos
gratificante.
— Achas que os obstetras colaborariam? — Inquiriu Beth. — Penso que,
uma vez que concordaram em participar nisso, lhes seria agora difícil
boicotar o processo.
— Os obstetras com quem conversei não estão assim tão comprometidos
com ele — discordou Doc. — Acho que não conseguiu causar boa impressão
a ninguém. Aliás, não somos nós os únicos a tratá-lo por «vampiro».
Charlie ficou admirado.
— Sim?! Que é que lhes desagrada nele?
— Parece que não conseguem definir o que é. Creio que ficaram
ofendidos pelo facto de ele ter guardado segredo e não só acerca dos dados.
Acho que ninguém conseguiu saber grande coisa sobre ele, sobre para quem
ele trabalha ou quem é que está por trás do projeto. Parece-me que tem uns
maneirismos estranhos, que os obstetras acham ofensivos. Aquele meu amigo
obstetra, o Studeman, pensa que o Greene é um simples lacaio, uma espécie
de base da pirâmide que estão a tentar fazer passar por importante. Esta
versão adapta-se àquilo que discutimos no mês passado, mas é difícil de se
encaixar.
«Contudo — continuou —, acho que enfrentá-lo francamente de novo
não vai ser muito útil, se bem que eu estivesse a pensar em levar-te da
próxima vez, Charlie. Talvez outro investigador tivesse sobre ele um certo
ascendente moral.
— Não sei — disse Charlie franzindo o nariz. — Ele parece não querer
colaborar com ninguém. — Tudo aquilo era frustrante! Se ao menos
conseguissem saber quem estava por trás da investigação e obter a
informação que desejavam. Quem dera que pudessem ter algo de mais
concreto. — E o feto que te desapareceu? Nunca mais o encontraste? Poça!
Se ao menos tivéssemos esse, ou outro, poderíamos mostrá-lo ao pessoal do
hospital e talvez despertássemos algum interesse.
Doc levantou as mãos e soltou um grito de desespero.
— Cotten, estás a levar-me à parede! Há um mês disse-te que havia
outro que poderias ver.
Charlie parecia confuso.
— Quando é que me disseste isso? Não me lembro de me teres dito nada
disso.
Doc mostrava-se irritado.
— Isso foi talvez por estares em apertos por seres obrigado a dizer a
Ann. — Lembrando-se de que Beth não estava a par do facto de Charlie ter
sido coagido a dizer a Ann, prosseguiu apressadamente: — Lembras-te de
quando falámos pelo telefone sobre o assunto? Foi quando a pesquisa de
literatura se mostrou infrutífera. Disse-te que havia um feto dum aborto que
eu te poderia mostrar. Mas nunca mais me falaste nisso e ele foi recolhido
junto com os outros.
Charlie lembrou-se, após um enorme esforço para reconstituir
mentalmente o telefonema. Tinha sido quando Doc lhe dera três dias para
contar a Ann. Agora estava a recordar-se. Assaltado pelo sentimento de culpa
só conseguiu dizer:
— Bolas, realmente mandei esse lixar-se.
Doc engoliu a raiva que sentia por Charlie e tentou dizer que não tinha
importância. Talvez aparecesse outro.
De qualquer modo, paciência. Agora não havia nada a fazer.
Terça-feira, 20 de Outubro
Ila sorriu.
— A Beth disse-me que queria saber coisas sobre o meu trabalho na
«Ciência para o Povo». — Ila era assistente na escola médica; Beth arranjara
um encontro entre ela e Charlie durante o almoço.
Charlie confirmou com um gesto de cabeça.
— Trabalhei com eles na costa oeste e pensei que talvez pudesse voltar a
trabalhar.
— O Charlie tornou-se professor há pouco tempo e, talvez por isso,
procura algo de mais suave — gracejou Beth.
Charlie fez-lhe uma careta.
— Realmente — disse Ila a Beth pode fazer troça, mas eu passei pelo
mesmo quando entrei para a galeria das celebridades da faculdade. Até
organizei um grupo crítico da faculdade para discutir o facto de se ser um
membro da faculdade e o que isso tem de relação com a posição política de
cada um...
Charlie sorriu.
— Bom, espero que eu não seja tão reacionário que precise de me
submeter a ele. Acho que já tenho a visão suficiente do que deveria ser feito e
das forças que entravam as realizações.
— Talvez — respondeu Ila num tom neutro —, mas o que sei é que, a
par das pressões óbvias, existem outras mais subtis, que me estavam a
subverter. Na verdade valeu a pena, e a administração olha-me como uma
arrebatada radical.
— Bem — disse Charlie —, estaria interessado em aparecer por cá uma
ou duas vezes, se não por outra razão pelo menos para ver algumas pessoas e
ouvir o que têm a dizer, mas acho que estaria ainda mais interessado em saber
que tipo de projetos estão em curso.
Ila disse:
— Oh, disso temos muito. — Tirou um dossier da mala de diplomata. —
Aqui estão algumas cartas e boletins que pode guardar. Sublinham a maior
parte dos projetos que estão em curso na zona de Boston. O que mais me
entusiasma é o programa de responsabilidade profissional. O que estamos a
fazer é andar por ai a interrogar membros individuais da faculdade sobre a
investigação específica a que se estão a dedicar e sobre a forma como ela se
articula na comunidade, no país e no mundo. Por exemplo: muitas das
experiências no centro médico, experiências importantes, que têm como
objetivo aumentar os nossos conhecimentos sobre o funcionamento do ser
humano, são secundárias em termos de argumentação por se utilizar material
humano. Temos um membro do nosso grupo no Human Experimentation
Review Board e por isso temos de dar tudo por tudo a esse nível.
»Também temos perguntado às pessoas se será mais útil fazer
experiências no campo das transplantações cardíacas, as quais é na melhor
das hipóteses só servirão meia dúzia de ricaços, ou se deverão ser
despendidos mais tempo e energia a investigar a relação entre o regime
alimentar e as doenças de coração. Há indústrias inteiras que se baseiam na
venda de produtos considerados extremamente perigosos para as pessoas com
deficiências cardíacas e continuam a impingir os seus produtos. Sugerimos
que alguns alimentos levassem o rótulo: «A Ordem dos Médicos considerou
que este alimento pode ser perigoso para as pessoas com afecções cardíacas.»
Devia ter visto a zaragata que as indústrias de lacticínios e galináceos
levantaram. Mas, mesmo assim, esse tipo de problema tem de ser levantado,
senão as pessoas nunca pensam nisso.
»Ora, a outro nível, alguns dos nossos membros falaram na semana
passada ao Lloyd Haenners, o mentor de Beth, acerca do seu trabalho. Ao
fazer uma investigação sobre o assunto, descobrimos que o Lloyd Haenners
está a tentar inserir uma super-resistência num tipo de milho de resistência
fora do vulgar. Do ponto de vista de abastecimento alimentar mundial, há
várias famílias de cereais que poderíam ser muitíssimo mais úteis.
Charlie virou-se para Beth surpreendido.
— Já sabias disto?
— Só soube na sexta-feira passada — respondeu ela. — Mas também
não soube pelo Lloyd. O que é sabido é que o milho que se está a utilizar é
dum gênero muito fraco, não só em termos de abastecimento mundial, mas
também do ponto de vista de possibilidade de transplantação de novos genes
para o milho.
— E ele admitiu o facto? — Perguntou Charlie, um tanto ou quanto
desconfiado.
— Bom, assim como que a fugir com o rabo à seringa — respondeu
Beth. — Ele esteve metido naquele barulho acerca do tempo que se perde
com divergências mínimas, enquanto melhor seria desenvolver-se a técnica
num material mais resistente porque assim se teria a certeza de que a coisa ia
resultar noutros menos resistentes, e tretas deste gênero.
— Melhor num material mais resistente? Nunca ouvi tal argumento.
Ila interrompeu.
— Bom, claro que a verdadeira razão é aquela que verão se lerem o seu
contrato de subvenção que existe nos arquivos do edifício da administração, e
que diz que a Crop Research Association, que lhe concedeu a maior parte do
dinheiro, especificou no contrato que seria ela a fornecer o tipo de milho que
ele iria utilizar. Claro que o que eles querem é que a transplantação seja
efetuada no seu próprio tipo de milho, o que aliás está bem em conformidade
com um país capitalista.
— A maioria do dinheiro? — Perguntou Charlie. — Pensei que fosse
cerca de um terço.
— Informa-te no gabinete — sugeriu Ila. — Atinge setenta e três por
cento; se lhe juntares o vencimento daquele tipo, o Darnell, quinze mil que
dão ao Haenners para as despesas do Darnell, juntando-lhe o dinheiro das
deslocações e mais outras ninharias, é o que tudo junto perfaz.
Charlie assobiou.
— Isso é um grande subsídio!
Apesar dos esforços de Beth, a conversa resvalou para um plano cada
vez mais técnico. Por fim, e quando o almoço estava a terminar, Beth
conseguiu voltar com a conversa atrás.
— Ila, antes que nos vamos embora, talvez devesses dizer ao Charlie
quando é que esse tal grupo crítico se torna a reunir.
Ila consultou a agenda.
— Parece que não tomei nota — desculpou-se.
— Não te preocupes — retorquiu Charlie. — Telefono-te daqui a uns
dias e nessa altura pescas-me essa data. — Levantou-se para sair. — Foi um
prazer conhecer-te. Espero voltar a ver-te.
Ila levantou-se e apertou-lhe a mão.
— Gosto sempre de conhecer novos docentes que possam vir a estar
interessados em fazer política. E há tanto a fazer.
— Claro que há — concordou Charlie.
Quando se dirigiam de novo para o andar de cima, Charlie ia
excepcionalmente calado. Beth perguntou:
— Estás admirado com o trabalho do Lloyd?
— Não sei se acredite. Aquilo não condiz com ele.
Beth lançou-lhe um olhar furioso.
— Bom, se não acreditas, o melhor é investigares por ti, antes de
acreditares que o Lloyd está a fazer maravilhas.
Charlie respondeu-lhe:
— Não te zangues. Prometo que vou pensar no assunto.
— E se provares que é verdade, talvez tenhas de refazer ideias sobre o
Lloyd — disse ela, insistindo naquele ponto.
— Acho que teria, sim — respondeu Charlie, nada satisfeito com a
perspectiva.
Segunda-feira, 26 de Outubro
O dia seguinte, segunda-feira, foi o dia do «vampiro». Dan Studeman,
amigo de Doc, concordara em adiar o encontro com o Greene, quando ele
passasse por lá para ir buscar os fetos, e pedir-lhe que voltasse mais tarde.
Isso daria a Doc e a Charlie (este muito relutantemente) tempo de chegarem
ao consultório de Studeman. O obstetra era uns anos mais velho que Charlie e
Doc e o cabelo começava a rarear-lhe e a ficar grisalho. Os óculos de aros
grossos davam-lhe o aspecto de médico de província antiquado.
Studeman cumprimentou Doc e Charlie à porta.
— Fred, estás estupendo! — Exclamou. Fê-los entrar no consultório. —
Daqui em diante devo ter a tarde livre. As desistências, por vezes, são uma
bênção. — Virando-se para Charlie disse: — Você deve ser o Dr. Cotten. Eu
sou Dan Studeman.
Apertaram as mãos e Charlie frisou:
— Charlie. Só nas cartas é que me podem chamar Dr. Cotten.
— Há notícias do Greene? — Perguntou Doc.
— Nada — respondeu Studeman. — Mas é o gênero dele, aparecer
mesmo em cima das cinco. Não vale a pena preocuparem-se. — Olhou
atentamente para Doc. — Sentes-te bem, Fred? Nunca te vi com um aspecto
tão exausto.
— Fisicamente estou bem, só que as preocupações também podem levar
à sepultura e tenho tido um mês terrível! — Começou a contar a Studeman,
muito resumidamente, o caso dos Gloryhits e da rusga.
— Bem, assim já não me surpreende que estejas num frangalho —
declarou Studeman admirado. — Pode ser que no fim deste encontro
tenhamos conseguido alguns progressos. Acho que podemos informar o
Greene de que sofrerá um boicote para o mês que vem, se não estiver
disposto a fornecer-te informações. Tenho a certeza de que, assim, lhos
conseguimos sacar.
— Espero bem que sim — murmurou Doc.
Ali ficaram sentados a conversar até às quatro e meia, altura em que um
jovem com pouco mais de vinte anos, de cabelo louro muito claro que lhe
dava pelo colarinho, entrou no consultório.
— O Dr. Studeman? — Perguntou, olhando indeciso para os três.
Studeman levantou-se a sorrir.
— Sou eu. Que deseja?
— Bom, eu venho da parte do Dr. Greene, para levar uns frascos que
contêm fetos.
Por um momento reinou o silêncio, mas Doc acabou por explodir.
— Não posso acreditar! — Gritou, dando um salto da cadeira.
Assustado, o rapaz deu um passo para trás.
— Mas onde raio está ele? — Perguntou Doc em tom mais baixo. — Era
ele que devia vir pessoalmente buscar estes fetos!
O jovem olhou para Studeman e para Charlie, como que a pedir ajuda, e
gaguejou:
— Não... Não sei. —
Charlie pôs-se em pé e pousou a mão no ombro de Doc.
— Calma, Doc. Havemos de descobrir o que pudermos. — Virou-se
para o jovem, que parecia estar pronto a dar meia volta e safar-se, e
perguntou calmamente: — Disse que trabalhava com o Dr. Greene?
— Bom, não é bem assim — começou por dizer o rapaz.
Doc virou-se e começou a andar pela sala.
— Oh, não! Esta é de mais! Agora nem sabe se trabalha com o Greene
ou não!
— Continue — prosseguiu Charlie, ignorando a explosão de Doc.
— Sou estudante na Universidade de Boston e precisava de umas
massas; por isso, dirigi-me ao centro de empregos para estudantes, para ver
se me arranjavam qualquer trabalho em que pudesse ganhar rapidamente uns
cobres. Havia lá um cartão que dizia «Recolha amostras médicas» e pagavam
vinte e cinco dólares por meio-dia de trabalho; claro que lhe deitei logo a
mão. Dizia que era preciso ter carro e não há por aqui muitos moços que o
tenham.
Charlie parecia desolado.
Studeman perguntou:
— E que é que você tem de fazer depois de os ir buscar? E como é que
lhe pagam?
— O tipo deixou um caixote acolchoado onde devo acondicioná-los. Já
tem a franquia postal e tudo. Só tenho de o levar ao correio e despachá-lo
registado. Quando devolver o recibo e esta lista com os nomes dos médicos e
as suas assinaturas, eles dão-me um vale de caixa pelo dinheiro — explicou o
jovem, mostrando uma lista dactilografada com o nome dos obstetras locais.
— Quem são «eles»? — Inquiriu Charlie. — Quem é que lhe dá o vale?
— O centro de empregos para estudantes. Acho que o tipo já lá deixou
um cheque.
Doc enterrou-se novamente na cadeira.
— Você não se lembra do endereço, é claro.
— Não, mas está lá em baixo no carro, escrito no caixote — lembrou o
rapaz. — É um número de caixa postal na cidade de Nova Iorque.
Charlie abanou a cabeça.
— Provavelmente é o mesmo que nos deu da última vez. — E virando-
se para os outros dois: — E que tal metermos um cartão no caixote, dizendo
que, se não tivermos notícias deles nem recebermos a informação que pediste
da última vez, podem estar certos de que haverá um boicote? Isso pelo menos
deve provocar um telefonema.
Doc sentiu-se derrotado e queixou-se;
— Acho que nada vai dar resultado. Não há dúvida que não estou no
meu mês.
Mas Studeman estava irritado.
— Não. Acho que devíamos seguir a sugestão de Charlie. Pessoalmente,
creio que nenhum dos obstetras locais estaria disposto a fornecer mais fetos
ao Greene, se souberem como ele se tem portado contigo. — Sentou-se à
máquina de escrever, enquanto dizia ao rapaz: — Logo que acabe de escrever
este bilhete, dou-lhe as amostras. Certifique-se de que o bilhete vai no cimo
das amostras. Vou colá-lo com Fita adesiva.
— Está certo — respondeu o jovem farei como diz. Para mim tanto faz.
Via-se que estava perturbado pela intensidade das emoções dos outros.
Studeman acabou de escrever o bilhete, colou-o bem ao cimo dum frasco e
estendeu ao rapaz a caixa dos frascos.
— Só mais uma coisa — disse Charlie, dirigindo-se ao portador. — Se
esse tipo, o Greene, contactar consigo pessoalmente, seja por que razão for,
você ganha quinze dólares pelo relatório fiel de tudo quanto ele disser e vinte
e cinco se conseguir arranjar um número de telefone ou qualquer morada que
não seja um serviço de recepção de chamadas nem uma caixa postal.
O jovem pareceu interessado.
— Como é que eu entro em contacto consigo?
— Basta trazer aqui a informação — disse Studeman. — Eu
providenciarei para que lhe paguem e para que eles recebam o recado.
Charlie concordou.
— Desculpe se o atarantámos — disse ele, como que a desculpar-se
perante o rapaz. — É que queríamos realmente falar com ele.
— Sim, claro — respondeu ele e, pegando na caixa, saiu do consultório,
dizendo para consigo: «Safa! Agora percebo porque é que o tipo não quis vir
pessoalmente.»
Domingo, 1 de Novembro
A semana seguinte nada trouxe de novo. Charlie, tendo finalmente
conseguido integrar-se no ensino, iniciara algumas experiências no
laboratório e começava a assaltá-lo de novo a febre das pesquisas. Disney
mexia-se cada vez mais e Ann estava cada vez maior. Ela sentia-se bem.
Parecia que todas as suas preocupações se tinham evaporado e Charlie previa
uma «idade de ouro».
Para Doc as coisas não eram tão simples. Continuava preocupada com o
episódio relativo à posição de Greene, esperou aquilo que classificava desde
logo dum telefonema chato, mas ele nunca veio. Beth estava a preparar-se
para os encontros sobre ADN, em Squaw Valley, onde ia apresentar alguns
dos seus resultados, e por isso tinha pouco tempo para dedicar a Doc. O
estouro final deu-se no sábado, quando Diederson, do Departamento de
Narcóticos, apareceu no consultório de Doc.
— Pensei em passar por aqui de vez em quando — disse a sorrir. —
Pode ser que alguém que eu procuro esteja por aqui.
Aquilo era pura e simplesmente uma intromissão, mas parecia que não
havia nada a fazer. No sábado, Doc sentia-se disparatadamente nervoso e
deprimido.
Foi com este panorama que Beth saiu de Boston, de avião, no domingo à
tarde. Tinha passado a noite com Doc e ele fora-se despedir dela ao
aeroporto. Tinha sido uma despedida triste e pior ainda porque a presença de
Tom Darnell tornara impossível qualquer tipo de comunicação.
Aparentemente, a Crop Research Association achara que valia a pena
mandar o Darnell ao encontro, com todas as despesas pagas. Com a sua
maneira de ser alegre, mas pouco espalhafatosa, tomou lugar ao lado de Beth,
para o voo de quatro horas até Squaw Valley. Tentou entabular conversa mas,
quando se apercebeu do invulgar mau humor dela, fechou-se na sua concha.
Chegaram a Squaw Valley já de noite e bastante tarde. A Lua brilhava
sobre as altas montanhas já bem cobertas de neve. A transição brusca de
Boston, ainda chuvosa e outonal, para este belo cenário de Inverno era como
que um sonho, que ainda fazia aumentar a depressão de Beth. Foi buscar a
chave à recepção, disse um calmo «boa-noite» a Tom e arrastou-se até à
cama.
Acordou na manhã seguinte com perspectivas mais brilhantes. A
caminho do pequeno-almoço deu com um grupo de amigos da zona de
Boston, também já a pé devido ao atraso do jacto, e tomaram juntos um
pequeno-almoço com toda a calma. Lentamente a sua depressão começou a
desaparecer. Pegou nos sumários das conferências que iam ser feitas: os
encontros iam ser mais interessantes do que ela tinha pensado. Era como se
toda a engenharia genética se começasse a revelar, finalmente. No fim do
pequeno-almoço, a preocupação que sentia com o Doc fora afastada ou
mesmo varrida para um canto remoto do seu espirito.
O pequeno grupo dirigiu-se ao auditório para assistir às sessões da
manhã. Depois de ter falado o primeiro orador, Beth inclinou-se para o seu
vizinho e murmurou: «Não te queixes, que este acabou a tempo.» O orador
era um prêmio Nobel que fora um dos pioneiros na pesquisa de recombinação
de diferentes tipos de ADN, mas, como geralmente acontece, pouco tinha
feito depois disso. A palestra, que durara quarenta e cinco minutos, não
continha qualquer informação de interesse que não tivesse sido publicada
dois anos antes, pelo menos.
Contudo as duas palestras seguintes foram brilhantes e no átrio havia um
bruaá de conversas entusiásticas, depois de terminada a sessão.
— O trabalho do Mallory é simplesmente superior! — Exclamou Beth.
— Nunca imaginaria que alguém pudesse escolher aquilo como trabalho.
— É incrível — concordou a amiga. Karen Mae entrara para a faculdade
um ano antes de Beth e estava agora a trabalhar na Universidade de Chicago.
Não se viam desde que Karen partira, no mês de Junho anterior. — E não é
só isso, é que vai atirar com estes encontros para as primeiras páginas de
todos os jornais. Se não fosse tão belo e de tanto valor, diria que é uma
experiência de exibição.
Próximo delas, Mallory estava a ser assediado pelos jornalistas.
— De certo modo — comentou Beth é um trabalho perigoso e
assustador. Introduzir genes de bactérias em células humanas é um pouco
como que abrir a caixa de Pandora.
As pessoas que se encontravam à sua volta pareciam dizer o mesmo.
Naquela palestra, Mallory relatara o êxito da transferência dum gene de
bactéria para células humanas em cultura de tecidos, em laboratório. O gene,
utilizado pelas bactérias na digestão dum composto de glúcidos, permitia às
células humanas anular a celulose e utilizar como energético o açúcar neles
contido. De uma forma muito própria, constituía o primeiro passo com êxito
na mutação genética de seres humanos.
No fim da sua palestra, tentara salientar que os investigadores ainda se
encontravam muito longe de realmente conseguirem uma alteração específica
na genética humana, mas de certa forma parecia não estar convencido desta
afirmação. Dez anos atrás, tal conceito fora pura ficção científica. Cinco anos
atrás fora um caminho a percorrer ainda por muito tempo. Naquele momento,
Mallory tinha dito: «Decorrerão provavelmente ainda vários anos. Mas»,
acrescentara, «está na natureza da ciência que, quando a aplicação prática
segue de perto as descobertas fundamentais, pode haver uma alteração de
cálculo de tempo que varie de dez a cem. Com sorte, seria possível passar à
prática dentro de um ano.» E fora esta a mensagem que os jornalistas
captaram. Abrindo caminho entre a multidão excitada, Beth e Karen
dirigiram-se para a sala de jantar.
Naquela tarde partiram para um corta-mato de esqui. Os encontros
estavam planeados de forma a deixar as tardes livres para que pudessem
apreciar a zona de Squaw Valley. A hora e meia de distância da civilização,
as duas raparigas pararam para comer a merenda que tinham trazido. O ar
estava calmo e não chegava até elas qualquer sinal de presença humana. Ali
ficaram sentadas por um momento, mergulhando na tranquilidade que as
rodeava.
— Às vezes — dizia Beth baixinho, quase num murmúrio —, quando
encontro um lugar como este, custa-me a acreditar que vivo naquele mundo
supermecanizado do leste e que gosto daquilo. Fico, por vezes,
deprimidíssima ao compreender a forma brutal como temos mutilado o
mundo.
Karen concordou melancolicamente.
— Eu sei. Muitas das coisas terríveis que de facto fizemos, tais como a
poluição, a fuga de radiatividade, a quase destruição da camada de ozone aqui
há uns anos, enfim, todas elas olhadas à distância são tão obviamente
negativas!
Permaneceram ambas em silêncio por uns minutos, observando uma toca
de coelhos escondida nos arbustos cobertos de neve.
Decorridos algum tempo Beth disse:
— É como se, embora apercebendo-nos do que estamos a fazer,
recusemos assumir a responsabilidade dos nossos atos.
— E agora que já lixámos o mundo físico — respondeu Karen vamos
começar a fazer o mesmo ao mundo biológico. Se fizermos tanto estrago
neste como fizemos no ambiente, é possível que não sobrevivamos.
De regresso aos seus alojamentos, deitaram fora a melancolia da tarde e
voltaram aos encontros. Na terça-feira, Tom foi jantar com Beth. Estava
interessado nas sessões de trabalho a que ela assistira porque, como algumas
tinham decorrido em simultâneo, ele não conseguira ir a todas as que lhe
interessavam. Beth estava contente por poder trocar informações. Tom, como
sempre, prestava grande atenção aos pormenores, especialmente aos que
pareciam ser aplicáveis à cultura de células e à incorporação de novo ADN
em células de cultura. Falaram animadamente até ao fim da refeição.
Depois do jantar, Tom puxou o assunto dos planos de futuro de Beth.
— Está tudo na mesma. Tom. Continuo ainda à espera dum lugar na
docência.
» E como é que vamos de caça ao lugar? — Inquiriu.
Beth franziu o sobrolho.
— Bem, alguns pedidos que enviei foram-me devolvidos com desculpas,
dizendo que o lugar estava preenchido. A Universidade de Southern
California está interessada, mas não quero mudar-me para Los Angeles.
— Bem, pelo menos já é alguma coisa — respondeu Tom e acrescentou
de seguida: — Por muito que eu goste de te ver a trabalhar para a CRA,
desejo-te que encontres alguma coisa que te agrade.
Beth correspondeu a este encorajamento com um sorriso. Depois da
conversa que tivera na véspera com Karen, sentia-se cada vez mais avessa a
trabalhar para a indústria, mas durante os encontros daquela noite sentia uma
ponta de incerteza. Algumas das palestras, feitas por acadêmicos, pareciam
tão assustadoras como os planos que poderíam ser arquitetados pela indústria.
Terça-feira, 3 de Novembro
Charlie esperou ansiosamente por Doc para jantar. Acrescentara um
talher aos quatro já postos para ele, Ann, Warren e Justine depois de Barbara
Waterper lhe ter trazido os resultados da pesquisa epidemiológica. Tinha-se
revelado um número maior do que ele esperava. Enquanto esperava por Doc,
explicou aos outros os antecedentes da investigação.
— O que esperávamos obter disto era, primeiro, saber se a investigação
era suficientemente profunda de forma a poder localizar um aumento na taxa
de nados-mortos e, se o era, saber em que locais houve taxas semelhantes às
nossas. Em segundo lugar, pretendíamos descobrir em que outros locais se
revelaram as malformações cranianas.
— Pelo teu entusiasmo, concluo que surgiu algo de interessante —
observou Justine.
— Interessante não é bem o termo. Assustador. Simplesmente assustador
— respondeu Charlie, que mal se continha. — Mas não digo mais até o Doc
chegar. Ele merece estar presente.
Ann parecia aborrecida, mas não disse nada até o Doc chegar.
— Entra, Doc, e senta-te — disse-lhe ela com um terno sorriso.
Ele trazia ainda aquele ar cansado, mas parecia mais aliviado da sua
depressão.
— Estava a dizer para comigo que Charlie estava com um aspecto
demasiado alegre para que os resultados tivessem sido completamente
negativos e que a minha teoria segundo a qual tudo iria correr mal tivesse
prevalecido.
Warren contemporizou:
— Devias ver o Kip, numa daquelas noites em que não consegue afinar a
guitarra. Já assisti a isso algumas vezes. Fica como se quisesse devolver o
dinheiro à malta e ir deitar-se a afogar. Acho que toda a gente tem períodos
de azar desse gênero.
— E o facto de Beth se ter ido embora também não ajuda — sugeriu
Ann.
— Raios me partam! — Praguejou Doc. — Tens razão. Essa mulher
caçou-me. Já não sou frio e conquistador como era dantes.
Ann sorriu. Doc era um dos homens menos agressivos que ela conhecia.
Era o oposto absoluto de Charlie, quando Ann o conhecera.
— Bom, deixa lá que ela deve estar a regressar — disse Charlie para o
conformar. — Não deve ser assim tão difícil aguentares até sexta-feira.
— Sexta-feira à noite — emendou Doc. Desenrugando o sobrolho virou-
se para Charlie: — Bom, conta lá os resultados.
Charlie pegou num sobrescrito que estava em cima da mesa. Os seus
olhos brilhavam de entusiasmo quando começou a folhear as páginas da
informação do computador.
— Em primeiro lugar, as zonas observadas e comparadas são aquilo a
que eles chamam «hospitais adjacentes». O computador fornece um número
por cada hospital de Nova Inglaterra e esse número reproduz não só os
elementos estatísticos referentes àquele hospital, mas também a todos os
circunvizinhos. Deste modo é coberta uma larga área.
»Assim, surge a primeira pergunta: ‘Qual das dez áreas hospitalares
adjacentes mostrava maior taxa de incidência de abortos espontâneos ao fim
de três e cinco meses de gravidez, no período decorrente entre 1 de Julho e 30
de Setembro e qual era a diferença entre os tipos de malformações e
deformações registadas?’
Charlie ergueu a folha de papel.
— Esta é a lista dos hospitais adjacentes. Estendem-se da cidade de
Nova Iorque até Boston e situam-se sobretudo no litoral. O Massachusetts
General Hospital é o número seis.
Era a este que estava adstrita a maior parte dos obstetras que tinham
fornecido informações sobre abortos relacionados com os Gloryhits.
— Não percebo porque é que estás tão exultante — comentou Ann,
obviamente irritada.
— Não percebes? — Perguntou Charlie surpreendido. — Isto significa
que a rede de rastreio é suficientemente segura para detectar nascimentos
como estes que aqui sucederam.
— E significa também que temos a seta mais elevada incidência de
abortos espontâneos em toda a Nova Inglaterra — estalou os dedos e
continuou: — Esqueces-te depressa quão perto estivemos de fazer parte desta
maravilhosa estatística.
— Quem é que te diz que eu estou contente com o resultado? —
Replicou Charlie. — O que eu digo é que, uma vez que ele é verdadeiro,
podemos pelo menos saber onde é que se deram acontecimentos semelhantes.
É tudo.
Doc tentou adiar a discussão.
— Que é que eles dizem quanto às malformações e anormalidades?
— Limitaram-se a fazer uma pequena listagem das mais frequentes —
respondeu Charlie. — Mas, isto é que é notável, havia um asterisco abaixo do
cabeçalho de malformações e anormalidades.
Justine disse em tom de censura;
— Vá lá, Charlie, não estejas a fazer suspense, está bem? O que é que o
asterisco quer dizer?
Charlie pareceu ficar um pouco acabrunhado.
— Quer dizer textualmente; «Grande número de fetos não puderam ser
incluídos no relatório, devido a terem sido guardados para um trabalho de
investigação.» — Ao dizer isto ainda mantinha um sorriso.
— Hurra! — Respondeu-lhe Doc calmamente. — E então, qual é a
novidade?
Charlie anunciou então triunfalmente:
— É apenas esta; o asterisco está colocado em sete das dez cidades mais
importantes!
— O quê? — Exclamou Doc. — Queres dizer que o Greene andou a
recolhê-los em sete das dez cidades de índice mais elevado?
— Exatamente! — Respondeu Charlie.
— Bom, isso parece-me razoável. Porque é que não havia de tê-los
recolhido nas cidades com índices mais elevados? — Inquiriu Ann.
— Porque o estudo que ele está a efetuar deveria ser sobre abortos
normais. Ao escolher cidades de elevado índice de incidência levanta uma
questão, que é a de presumir que existe uma razão especial pela qual nessas o
índice é maior do que nas outras.
Charlie parecia satisfeito consigo próprio.
— Isto quer dizer também que algo mais esquisito do que pensávamos se
está a passar.
— Não achas óbvio que o «vampiro» pudesse inventar a seguinte
réplica: «Escolhi locais com maior taxa de incidência porque ai poderia
recolher o maior número possível»? — Perguntou Warren.
— Charlie, antes de responderes: «Claro que acho», lembro-te que tu és
o tal que está sempre a pregar contra as falhas vitais demonstradas pela
maioria dos investigadores e parece que o Greene não é dos investigadores
mais brilhantes — objetou Doc.
— Acho que é possível. Não tinha pensado nisso. — Charlie parecia
estupefacto.
— Não se trata dos Gloryhits — disse Ann num tom peremptório que
deixou todos abalados.
— O quê? — Indagou Charlie.
— A causa desses abortos. Não foram causados pelos Gloryhits!
Começaram todos a berrar ao mesmo tempo. Ann gritou ainda mais alto
que eles:
— Porque o «vampiro» começou a recolher esses fetos antes que se
tivesse verificado qualquer aborto relacionado com os Gloryhits. — Pareciam
todos ainda confundidos. — E se ele escolheu essas cidades pelo seu alto
índice de abortos, então essa taxa já devia ser alta antes dos Gloryhits! —
Olhou triunfante para Charlie, enquanto este a fixava em silêncio ao
compreender o que ela acabara de afirmar.
Doc declarou em voz baixa:
— Bem, agora podemos voltar ao princípio. Certo? Bom, estávamos
então a dizer que não havia qualquer ligação entre os Gloryhits e estas
cidades, não era?
Warren estava a olhar para a lista e disse lentamente:
— Excetuando Middletown, Connecticut.
Olharam-no todos, sem compreenderem.
— Middletown é o número três e também tem um asterisco — continuou
devagar.
— E então? — Objetou Ann.
— Tony Belvedere vive em Middletown e foi ele quem me disse que
havia por lá Gloryhits! — Declarou Warren.
Quarta-feira, 4 de Novembro
Na quarta-feira abateu-se sobre Squaw Valley uma tempestade como
Beth nunca tinha presenciado, mas a estância de diversão ultrapassou
perfeitamente o facto e, tirando a perda de lucros que poderíam ter dado os
esquiadores que em condições normais teriam enchido os teleféricos agora
vazios, tudo ia às mil maravilhas. Beth passou a tarde com Karen sentada em
volta da chaminé, no novo abrigo. Ambas estavam surpreendidas e
maravilhadas por constatarem que os meses de separação pouco tinham
afetado a sua amizade e passaram a tarde a conversar uma com a outra,
ignorando os sorrisos e as apresentações dum não pequeno número de
cientistas — todos eles homens.
Karen comentou:
— É realmente muito duro obter-se uma colocação pós-doutoramento,
sabendo que a obtivemos não por sermos mulher, nem por pedido de
ninguém ao tipo para quem trabalhamos. — Olhou em volta para a multidão,
formada na sua maioria por homens de meia-idade. — Todas as pessoas a
quem vais apresentar requerimentos estão aqui esta semana e bastava-te
retribuir-lhes os sorrisos e sentares-te a ouvi-los falar das suas investigações
com um ar de admiração estampado no rosto. Isso a juntar à carta do Lloyd
levar-te-ia direitinha à tal colocação.
Beth franziu a testa.
— E se os mandares para o raio que os parta, num tom que não seja
superfino, afirmam que és uma lésbica e nunca mais arranjas o tal emprego,
sejas tu quem fores. Isso tem acontecido vezes sem conta. O mundo da
ciência não é assim tão diferente do resto do mundo.
Como o abrigo estava a ficar superlotado, era já quase impossível manter
por mais de dois minutos uma conversa sem serem constantemente
interrompidas por um cientista muito cordial. «Este local parece que lhes faz
subir o sangue à cabeça» pensou Beth. Olhando por sobre a multidão,
localizou Tom Darnell a falar com outro homem.
— Estamos salvas! — Gritou para Karen.
Esgueirando-se por entre a multidão, conseguiram finalmente chegar
junto de Tom e do amigo.
Tom lançou-lhes um «Olá» a sorrir. A brincar, Beth implorou-lhe:
— Por favor, tens de nos proteger desta multidão duma figa! — E riu-se
ainda sem fôlego, depois de ter aberto caminho por entre a multidão. — Acho
que se mais algum homem me diz enquanto balança o cocktail no copo:
«Hummm! Olá!», vai ficar até amanhã a tirar pedaços de vidro da cara.
Tom sorriu.
— Realmente, estão todos com ar muito conquistador, esta tarde. Faltou-
lhes o esqui, não sabem como despender as energias.
Karen desatou a rir.
— Visto que Beth é uma malcriada e não me apresentou, apresento-me
eu. Sou a Karen — disse ela, apontando para a placa com o nome que tinha
presa à blusa. Notando a falta da chapa de identificação de Tom, disse: —
Você não tem nome?
— Ah, tenho. Está aqui no bolso — explicou Tom, puxando um pouco a
chapa para lhes mostrar. As chapas eram necessárias para se poder assistir às
reuniões. — Não a uso porque conseguiram engatá-la completamente. —
Mostrou-lhes uma placa onde se lia John Darnle, MIT- Não entendo como é
que conseguiram isto, mas temo que, se tentar que ma emendem, me digam
que não há nenhum Tom Darnell inscrito e que me ponham na rua. — Todos
se riram com aquela. — Já agora, eu sou Tom — disse para Karen — e, como
sou mais delicado que a minha colega, apresento-lhe o meu amigo, Jim Karls.
Estivemos juntos em Brown há tanto tempo que me custa a confessá-lo.
Beth sorriu ao reconhecê-lo, de repente.
— É verdade! Você esteve com o Tom nos encontros de ADN o ano
passado, em Atlantic City.
Karls abriu um largo sorriso.
— Sinto-me lisonjeado pelo facto de se lembrar. — Virando-se para
Tom acrescentou: — Se bem que neste momento não esteja muito certo se
me agrada ser considerado uma ameaça para as mulheres.
— Que o traz por cá, Jim? — Inquiriu Beth.
— Nada de interessante — respondeu. — Escrevo sobre ciência e
trabalho para um grande jornal e estou a ver se me ponho a par desta história
de engenharia genética. Acho que é neste campo que vão aparecer as grandes
novidades durante a próxima década.
Karen sorriu.
— Um não acadêmico! Que bom! Já me tinha esquecido que os
estranhos a este mundo também podiam assistir a estas reuniões.
— Claro — confirmou Jim. — Estão aqui jornalistas e muita gente
ligada a firmas farmacêuticas, além de outros como Tom, ligados a diferentes
indústrias.
Karen olhou para Tom, confusa quanto às suas relações com o mundo da
indústria.
— É verdade — disse Beth. — Tinha-me esquecido que Tom também
trabalha para a indústria, mas é que ele está mesmo a condizer com o mundo
acadêmico.
Tom sorriu.
— Ah, isso é muito simpático da tua parte, Beth.
Ela agradeceu com uma respeitosa vénia, Virando-se para Jim,
perguntou:
— A que jornal é que está ligado?
Karl pareceu ficar ligeiramente embaraçado.
— A nenhum, por agora, para dizer a verdade. Estou a escrever por
conta própria e depois vendo o que escrevo a quem calha. — E prosseguiu,
mudando de assunto: — Olhe, já que aqui estou em missão oficial, posso
roubar-lhe as suas ideias sobre certos pontos? Estou a tentar indagar as
reações das pessoas ao discurso do Mallory. Até agora só obtive a opinião de
investigadores mais velhos e já perfeitamente integrados. Posso perguntar-
vos o que é que vocês pensaram?
Durante uma hora discutiram o trabalho de Mallory, os aspectos que lhes
tinham agradado e os que não tinham. Mas a verdade é que nem Beth nem
Karen expressaram as reservas que tinham posto uma à outra quando
esquiavam num local bem diferente.
***
Beth e Karen não voltaram a ver Tom e Jim senão na sexta-feira de
manhã, depois das sessões. Os colóquios de encerramento versavam os
aspectos sociais da engenharia genética e Beth foi mais pelo sentido do dever
do que por interesse especial. Aqueles colóquios acabavam sempre por fazer
referência ao «futuro grandioso que a humanidade tinha a esperar sob a égide
da evolução controlada». E o facto era que os cientistas que punham certas
reservas a este tema não figuravam nas listas de oradores convidados. Beth
esperava que aparecessem algumas questões bem elaboradas.
As palestras decorreram mais ou menos como se esperava. O primeiro
orador falou sobre a espantosa possibilidade de melhorar o mundo, utilizando
a engenharia genética, sobre uma fonte vulgar de medicamentos vitais, sobre
o desenvolvimento de novas plantas e da possível cura de doenças genéticas.
Os dois oradores seguintes disseram quase o mesmo, utilizando apenas
termos ligeiramente diferentes. Só o terceiro orador é que teve realmente
interesse.
Marilyn McCulloch, professora assistente em Berkeley, divagou sobre
os aspectos mais surrealistas da engenharia genética. Por exemplo, referiu-se
ao que havia a fazer para obviar ao desenvolvimento de formas de vida
completamente novas para preencherem as lacunas ecológicas, tal como uma
ave que devoraria os tão odiados caracóis da Califórnia e até talvez as lesmas
também, o que parecia um prolongamento lógico de todo este tipo de
trabalho.
— Ou ir até mais longe — sugeriu. — No ramo químico está a trabalhar-
se em materiais orgânicos de polímeros que terão propriedades úteis, como a
semicondutibilidade. Sempre que se desenvolve uma proteína, o que é muito
útil, seria razoável que se cultivasse um segmento de ADN que contivesse o
código dessa proteína e se inserisse numa bactéria, conseguindo assim que a
bactéria sintetizasse uma proteína completamente artificial. Ou, pelo menos
— continuou —, seriamos capazes de extrair genes de pirilampos e inseri-los
nalgumas bactérias, de tal modo que, alimentando-as com molhinhos de
relva, tivéssemos luz. Neste mesmo momento — disse num tom de desafio
—, estamos tão perto de conseguir produzir petróleo e gás natural a partir de
bactérias que vale a pena prosseguirmos a investigação. — Esta foi de longe
a melhor intervenção de toda a sessão.
Depois de ela ter falado foi aberto o colóquio. Um homem lá de trás
perguntou:
— Não seria possível selecionar genes de forma a aumentar a
inteligência humana e criar uma raça de super-génios?
Ao virar-se para ver donde partia a pergunta, Beth verificou que tinha
partido de Jim Karls. Estava sentado lá atrás com Tom. A pergunta provocou
na assistência uma certa zombaria.
— Teríamos de dizer — começou a McCulloch — que, pelo que
sabemos, pelo menos teoricamente é possível. Mas, para começar, exigiria
um gigantesco trabalho só para se poder definir o que é inteligência. Sabe-se
hoje que, seja o que for, não é mensurável por testes de QI e por isso parece
que nos faltam pistas. Além disso, não estou certa de que tenha havido
qualquer pesquisa séria no sentido de se descobrir uma base genética para a
inteligência, em oposição ao facto de ela assentar no ambiente e na educação.
Karl interrompeu-a:
— Mas que diria a fazer uma abordagem diferente do assunto? Que tal
se se pudesse aumentar a capacidade craniana, de forma a obter-se um
cérebro maior? Isso não poderia influir de forma positiva no aumento da
inteligência?
Ouviram-se mais gargalhadas entre a assistência, enquanto a McCulloch
se limitou a encolher os ombros.
— Duvido que seja assim tão simples, mas em todo o caso acho que a
pergunta ultrapassa a minha especialidade. — Olhando para a audiência,
perguntou: — Há aqui alguém que queira responder à pergunta?
Entre vaias e piadas, a questão não encontrou resposta e, após algumas
perguntas insignificantes, terminou o colóquio.
Depois de prometer a Karen que lhe escreveria em breve, Beth despediu-
se dela e dirigiu-se para o quarto. Estava ansiosa para regressar a Boston e
por voltar para Doc. «Espero que ele não tenha tido outra semana terrível»,
pensou. «Acho que não aguentava.»
Segunda-feira, 9 de Novembro
Doc estava em forma quando foi esperar o avião. Tirando a pesquisa,
não havia nada de especial e a rotina do consultório fora excepcionalmente
agradável naquela semana. E a ausência de Beth tinha-lhe feito compreender
quanto ela significava para si.
Depois de comunicar a Beth os resultados da pesquisa, obrigou-a a calar-
se com o assunto dos Gloryhits e desapareceu com ela direito à vivenda de
um amigo, em Vermont, para passarem um fim de semana de descanso e à-
vontade.
Na segunda-feira de manhã, Beth foi até ao gabinete de Charlie para ver
o resultado do computador.
— Agora sabes tanto como nós — disse-lhe Charlie, balançando-se nas
pernas traseiras da cadeira. — A única coisa que podemos concluir é que a
mais alta incidência de abortos espontâneos surgiu antes que Greene tivesse
selecionado as cidades que lhe interessavam, a não ser que esteja a trabalhar
num monte de cidades. Mesmo que estivesse, as probabilidades de escolher
por acaso sete das dez com maior índice devem ser mais de um milhão para
uma.
Beth franziu o sobrolho.
— Há demasiadas inconsistências. O Greene começou a proceder à
recolha antes de os Gloryhits terem sido introduzidos na nossa zona. Se ele
escolheu as cidades pela alta incidência, então isso significa que os Gloryhits
não estão relacionados com os elevados índices de aborto. Mas o amigo do
Warren, em Middletown, também está numa zona de elevada incidência de
abortos, o que parece improvável, a menos que os Gloryhits estejam
espalhados por toda a parte.
Charlie encolheu os ombros.
— Não discutas isso comigo. Kip tentou descobrir o nome da pessoa que
lhe vendeu os Gloryhits... Alguém que se chama Larry Seigal. Infelizmente o
tipo desapareceu pouco depois de ter negociado o ácido e Kip não conseguiu
localizá-lo.
— E que tal seguirmos a pista do tal amigo de Warren? — Perguntou
Beth.
Charlie abanou a cabeça.
— Warren já telefonou por duas vezes, mas sem qualquer resultado.
Acho que o tipo deve estar fora. Ninguém atende e por isso não podemos
utilizá-lo como pista. Mas acho que o Warren irá conseguir contacta-lo em
breve; até lá, resta-nos esperar.
Beth retraiu os lábios e deu um estalo com a língua.
— Bem, pelo menos é mais do que tínhamos conseguido há duas
semanas. Parece que foi o primeiro passo que conseguimos dar em toda esta
história e o certo é que ajudou a levantar o moral a Fred. Acho que ele já
pensava que tudo se conjugava contra ele. Já sabes que o Diederson voltou a
passar por cá na sexta-feira?
— Pelo consultório do Doc? — Perguntou Charlie.
— Sim. Parece-me que anda na volta semanal da chatice. Fred está
convencido de que Diederson pensa que ele anda a espalhar droga servindo-
se do consultório e que as suas visitas espantarão a clientela. O certo é que
Sharon lhe ofereceu café e donuts, o que aparentemente o deixou
espantadíssimo. Vale a pena ouvir o Fred a falar disto. Parece que está
desejoso das visitas dele para gozar um bocado.
— O fim de semana também deve ter ajudado — disse Charlie com uma
certa ironia na voz.
Ignorando a entoação, Beth limitou-se a sorrir e a confirmar com um
aceno de cabeça.
— Mas continua preocupado com o que esta pesquisa possa vir a dar.
Seja qual for a explicação, não parece muito convincente.
— Preocupado? — Indagou Charlie. — Entendo que esteja excitado,
mas preocupado... Porquê?
— Apenas porque ainda não sabemos se o ácido causa de facto
malformações e porque é que o índice de abortos é muito mais elevado na
zona de Massachusetts.
Charlie resmungou:
— Ele e a Ann — e havia na sua voz um lamento. — Não percebo
porque é que eles estão tão preocupados com estes números. Sabíamos que
íamos deparar com dez zonas de mais elevada incidência, tinha mesmo de
haver. Porque é que será assim tão assustador que a nossa seja uma delas?
Quero dizer, é claro que é assustador, mas parece que eles se sentem quase
destroçados por termos descoberto isso. Não será melhor sabê-lo do que
ignorá-lo? — Insistiu. — Talvez assim possamos fazer algo. Isto é, se há um
contaminante no ácido, talvez possamos alertar as pessoas ou fazer qualquer
coisa do gênero.
— Se há realmente qualquer coisa no ácido — respondeu Beth —, só me
parece possível que Greene o soubesse com antecedência, mas ainda não
estou suficientemente louca para acreditar numa coisa dessas.
Charlie tinha um ar frustrado.
— Eu sei, eu sei. Parece que não faz sentido, mas não é assim tão raro no
campo científico. Sabes tão bem como eu que, quando tivermos informações
suficientes para construir o puzzle, tudo nos parecerá compreensível. Mas
isso não explica porque é que eles hão de estar tão irritados com isto. Não há
processo de se poder prosseguir a pesquisa e o Doc sabe disso.
Ela retorquiu calmamente:
— Acho que o Fred entende isso tão bem ou melhor que nós, visto que
foi ele o primeiro a insistir em que algo se estava a passar e, como há doentes
dele envolvidas neste caso, isso afeta-o bastante.
— Ele preocupa-se pelas duas razões, mas não as mistura. Cá por mim,
acho que sinto o mesmo que Doc. Como é possível que uma coisa destas não
te assuste? Tenho a certeza que os primeiros que suspeitaram de que a
talidomida e os desfolhantes que utilizámos no Vietname eram teratogénicos
devem ter sentido o mesmo que nós, não achas?
Charlie ficou calado e Beth resolveu insistir no assunto:
— Charlie, nós somos seres humanos e não apenas cientistas. Não podes
lidar com a tua investigação como se se tratasse dum assunto meramente
científico, negando o seu efeito em ti e nos outros — disse Beth em tom de
desafio. — Se queres vir a tornar-te apenas mais um cientista normal e frio,
terás de passar primeiro por situações deste gênero. É perfeitamente natural
que exista em ti uma certa relação emocional com as tuas experiências e com
os seus resultados, sem que essa relação influa na alteração dos resultados.
Não reconhecer este facto é um erro capital.
Charlie remexeu nalguns papéis que tinha em cima da secretária. Os
comentários dela tinham-no tocado bem fundo. Tentando gracejar com o
assunto, disse:
— Parece que me apanhaste na curva e duma forma muito finória. Bom,
deixa-me pensar.
Beth não respondeu. Repetiu para consigo que tinha de fazer com que a
Ila telefonasse a Charlie quando da próxima sessão de crítica. Talvez Charlie
já visse nela qualquer utilidade.
— Que tal estava Squaw Valley? Algo de interessante? — Ele pusera
claramente ponto final ao assunto anterior, pelo menos por ora.
— Verdadeiramente empolgante — respondeu Beth. Durante a meia
hora seguinte, ela relatou os pontos altos das discussões, omitindo quase
todos os pormenores técnicos dos relatórios porque, não pertencendo à
especialidade de Charlie, pouco lhe diriam, mas ele mostrou-se interessado
nos resultados obtidos por Mallory ao tentar introduzir genes de bactérias em
células humanas e achou fascinante o relato da conferência de Marilyn
McCulloch. — Nessa altura um jornalista, amigo do Tom, fez uma pergunta
sobre a transferência de genes de inteligência para seres humanos e a
assistência desatou a rir.
Charlie sorriu. «Os jornalistas têm de facto um jeitinho especial para
levarem os cientistas a ultrapassar as barreiras do razoável», pensou.
— E que tal achaste passar uma semana com o Tom? — Indagou.
Ela fez uma careta.
— Acho que na altura foi agradável, mas deixou depois um gosto
amargo. Percebi o quanto ele tenta forçar-me a aceitar aquele lugar.
— Ele é muito subtil e na altura nem me apercebi disso, mas é como se
os meus pais já tivessem declarado que eu devo aceitar o lugar.
Ele riu.
— O tio Benny!
— O quê?
— O meu tio Benny, irmão da minha mãe, é uma «varejeira» da
indústria. Sempre que o vejo, falo um pouco sobre o meu trabalho e em
seguida ele diz: «Meu rapaz, conheço gente na indústria química que te
pagaria cinco vezes mais do que tu ganhas agora, se quisesses trabalhar para
eles. Não sejas tão orgulhoso! Afinal é à indústria que o teu trabalho se
dirige, não é?» E depois apresento-lhe algum argumento que me parece
sempre frouxo, quando estou em presença dele. — Riu-se ao recordar.
Mas Beth achara a atitude de Tom mais perturbadora do que
humorística. Para ela, o mundo da indústria continuava a ser um pântano
fétido, um ambiente onde se criavam produtos nocivos e formas de conduta
nocivas. E explicou:
— Preocupa-me ver um tipo, que parece ser tão inteligente e tão
considerado pelos outros, chegar a uma conclusão completamente diferente
da minha depois de lhe ter sido apresentada a mesma informação básica que a
mim. Parece-me que com tudo o que foi dito sobre Watergate, a guerra no
Vietname, a CIA, a ITT, etc., seria de esperar que se mostrasse mais sensível
aos aspectos negativos da indústria.
— Ah! Agora já queres que as pessoas olhem para os dados com uma
perspectiva completamente neutra e que não deixem os seus sentimentos e
informações interferirem na lógica. Isso é exatamente o contrário do que
acabaste de dizer. Todos olham para os mesmos dados, mas pesam de
maneira diferente os diversos fatores, interpretam diferentemente os dados e
por vezes até parecem ter obtido diferentes dados básicos. Por exemplo, tu
partes do princípio de que o bem das pessoas é soberano. Isso não passa dum
postulado. Se partires do princípio de que o bem da nação é que é soberano,
enveredarás por caminhos diferentes.
Beth não disse nada. Achou que o raciocínio de Charlie era apenas uma
forma de desculpar Tom, que nem isso merecia. Pegou na folha de
computador e voltou a lê-la. Nem sequer conseguiam imaginar o que aquilo
significava. De repente virou-se para Charlie:
— Há quanto tempo estamos na lista dos dez mais?
— Referes-te a Massachusetts? — Perguntou ele.
— Sim.
Charlie esboçou um esgar de orgulho.
— Pergunta-me dentro de uma semana, mais ou menos. Estas são apenas
as médias tiradas entre Julho e Setembro. Depois de termos recebido isto,
telefonei à Waterper para que iniciasse uma pesquisa no sentido de nos serem
fornecidas as taxas mensais dos últimos dois anos, comparadas com a taxa-
padrão, em todas as dez cidades de mais alta incidência.
Beth ainda estava aborrecida com as técnicas de discussão de Charlie e o
esgar infantil que agora ele tinha estampado no rosto era mais do que ela
podia suportar. Apresentou amáveis cumprimentos a Charlie pelos seus belos
raciocínios e regressou ao seu laboratório.
Novembro
Meados de Novembro é uma época feia em Washington. Mesmo em ano
em que não há eleições, todos os políticos estão ocupados a tentar decidir da
importância de milhares de eleições menores, em cada um dos seus distritos,
desde a dos lixeiros à eleição do administrador do canil. O ar frio parecia
concentrar a poluição, sempre crescente, que pairava sobre a cidade suja.
Pearson ainda se lembrava de quando o governo distrital tentava manter uma
aparência de limpeza, e até essa tinha desaparecido com o aumento da
poluição. Se semicerrasse os olhos, podia fingir que o nevoeiro não passava
duma leve neblina que rodeava o Pentágono e o isolava do resto do mundo.
Estava preocupado com a conversa com o general Westland. Johnson
queixara-se da pressão que Pearson estava a exercer e Westland pusera-se ao
lado de Johnson. O pior é que eles tinham razão. Inconscientemente, ele tinha
vindo a transferir para Johnson todas as culpas pela lentidão da Intelligence
no caso das pesquisas genéticas dos Russos.
Afinal o trabalho de Johnson desenvolvia-se a um ritmo que ninguém
ousara imaginar. Olhou o último relatório. O safado conseguira mesmo
introduzir o gene botulino no vírus da gripe! Não se sabia ainda era se os
genes seriam extraídos e se produziria a toxina, nem sequer se o gene
mutador teria de facto sido introduzido. Isso estava, no entanto, a ser testado
em culturas de tecidos e seria razoável poder esperar os resultados dentro de
um mês. O tipo ou tinha uma sorte extraordinária ou era um gênio. Pearson
suspeitava que se tratava da primeira das hipóteses.
Deprimido pelo rumo que as coisas tomavam no que lhe dizia respeito,
decidiu voltar a passar as gravações da última reunião da comissão executiva.
Sentia que se passara algo que ele não conseguira ainda captar
completamente. Ligou o gravador, enrolou a fita, encostou-se para trás e
fechou os olhos quando a gravação começou a ouvir-se.
«— O fim desta reunião é rever as nossas informações sobre o trabalho
do inimigo no campo da engenharia genética. Temos três relatórios: um sobre
o próprio trabalho da Rússia, outro sobre o agente Gabardine e outro sobre a
pesquisa militar nos EUA. Comecemos pelo trabalho dos Russos.
»— Certo, se bem que não haja muito a dizer. Fundamentalmente, não se
conseguiram informações básicas. No último mês isolaram os cientistas deles
e reduziram os acessos aos laboratórios numa segurança de alto nível.
Anteriormente, tal atitude tem correspondido quer à produção ativa de
armamento, quer, pelo menos, ao início duma sucessão de testes. De qualquer
forma, isso impediu-nos de introduzir algum dos nossos agentes disponíveis
nas instalações. Talvez fosse útil discutirmos neste momento se queremos ou
não fazer uma tentativa secreta, de grupo, para nos infiltrarmos nas
instalações.
»— E que há sobre afluxo de pessoal e material? Não temos estado a
acompanhar esse ponto?
»— Temos. Tem havido muito pouco. Mas não é necessária grande
quantidade de material e pessoal para iniciar um stock considerável de armas
bacteriológicas, portanto essa informação é de pouco interesse.
»— Nem sequer lá temos uma mulher-a-dias?
»— Ninguém. Fizeram melhor trabalho do que habitualmente na escolha
do pessoal.
»— O que é mau presságio.
»— Certo!
»— Sugiro que se suspenda a discussão sobre se devemos mandar uma
equipa antes de ouvirmos todos os relatórios. Se não há objeções, vamos
ouvir agora o relatório sobre o Gabardine.»
(Silêncio.)
«— Certo. Havia dois jornalistas, nos encontros de Asilomar, que até à
última reunião não conseguíramos identificar. O restante pessoal presente
parecia ser oficial. Mohair, um dos dois desconhecidos, foi identificado como
um jornalista do Post-Dispatch, de St. Louis, e estava ali obviamente a fazer
reportagem para o jornal. Quanto ao resto, parece insuspeito e por isso
perdemos o interesse nele. O outro era Gabardine, que, como se lembram, se
inscreveu como jornalista do Globe, de Boston. O nome condizia com o de
um fotógrafo de lá, mas as fotos não. Tivemos um encontro propositado com
o verdadeiro jornalista e ficou assente que ou ele não faz a menor ideia de
que alguém se serviu do seu nome ou está a encobrir o Gabardine. Visto que
não soubemos qual destas hipóteses era a verdadeira, temos neste momento
alguém a vigiar o jornalista.
»— E o Gabardine? Há sinais dele?
»— Estamos quase a atingir o ponto de podermos afirmar que não é
jornalista nem repórter radiofônico. Investigámos cuidadosamente e parece
que voltámos a localizá-lo.
»— Parece?
»— Sim. Olhe para estas fotografias. Esta é das reuniões de Asilomar e
este é o Gabardine. Este retrato é de alguém que esteve, há poucas semanas,
nos encontros de Squaw Valley.
»— E trata-se da mesma pessoa?
»— Olhem atentamente. Imaginem que ele usa peruca e que escureceu
um pouco a pele.
»— Isso não será forçar demasiado?
»— Só que... Olhem para isto. Isto são timbres de voz que gravámos
durante as duas reuniões e ambos são iguais. Os nossos peritos dizem que
isso não deixa dúvidas. Ele tem uma certa particularidade na voz que chama a
atenção.
»— Essa de Squaw Valley está ótima. Será que lhe meteram o microfone
na boca?
»— Não, ele é que teve a amabilidade de se levantar e fazer uma
pergunta durante um dos encontros. Já lá volto. Ele inscreveu-se com o nome
de Jim Karls, o que parece uma má cobertura para um comunista. De
qualquer modo, inscreveu-se como um jornalista independente. A morada e
todos os dados que forneceu são aparentemente falsos. Parece que alugou um
apartamento, fez com que lhe enviassem para lá a sua inscrição e é tudo. Os
vizinhos dizem que nunca o viram e o apartamento esteve vazio todo o mês.
»— Falou com alguém?
»— Ai é que está o problema. Ele falou com imensa gente, nós
contactámos pessoas que se lembram dele. Andava a interrogar as pessoas
sobre o que pensavam do trabalho relatado durante as reuniões sobre a
introdução de genes de bactérias em células humanas. A maior parte das
pessoas parecem de confiança.
»— A maior parte?
»— Temos uma que é estranha. Um tipo chamado John Darnle, do MIT.
Não existe tal pessoa no MIT. Parece que grande quantidade das inscrições
ficaram lixadas e assim pode ser que não seja nada. Estamos a tentar localizá-
lo.
»— Pensei que houvesse lá alguém encarregado de localizar o
Gabardine.
»— E havia, mas na altura não foi assim tão óbvio que Karls fosse o
Gabardine. O disfarce estava bem feito, mas acho que para a próxima cá o
esperamos.
»— E que há sobre possíveis fugas na nossa segurança? Temos alguns
indícios de que os Russos estejam a par do nosso projeto ou do seu
andamento?
»— Não. Não temos quaisquer provas de fugas, mas desde já posso dizer
que isso não quer dizer nada.
»— Pearson, voce disse que Johnson tinha originalmente tirado esta
ideia dum tal projeto de alguém de Boston...
»— Certo. Um tipo chamado Lloyd Haenners, mas por ai a resposta é
não. Haenners não devia ter a mínima ideia do projeto. Johnson nunca lhe
disse que trabalhava para as forças armadas. Haenners é uma espécie de
liberal e o Haenners não queria destruir a imagem que ele tinha de si, por isso
nunca passaram de discussões do tipo de como se pode hoje em dia proceder
a qualquer transferência de genes que se queira para um sistema viral ou
bacterial. Não temos ninguém introduzido no laboratório, mas vigiamos-lhes
o trabalho de perto. É de certa forma útil para nós sabermos de qualquer
novidade com que eles apareçam e, com base em relatórios de vigilância,
parece-nos muito improvável que suspeitem de alguma coisa.»
(Silêncio.)
«— Talvez devêssemos passar ao trabalho do Johnson.»
Pearson fez rodar rapidamente a fita até à sua exposição.
«—... Quanto à questão de enviar uma equipa secreta para tentar
infiltrar-se em qualquer oportunidade dada pelos Russos.
»— E isso virá a propósito neste momento?
»— Haverá algo que queiram discutir antes disso?
»— Não, não... Quero dizer: será conveniente mandarmos agora uma
equipa? Não temos quaisquer provas de que as coisas estejam num ponto tal
que mereça a pena perder uma boa equipa.
»— Estou tentado a concordar. Parece que as coisas ainda não atingiram
o ponto crucial.
»— Bom, eu discordo. Primeiro: acho que não é necessário atingir o
ponto crucial antes que se utilizem os nossos homens numa missão para a
qual foram treinados. Detestava perdê-los, tal como qualquer um de vós, mas
se tememos utilizá-los então são-nos inúteis. Segundo: não sei que mais
sinais esperamos. Temos indicações de que eles estão a produzir e a
armazenar aquilo em que estão a trabalhar...
»— Essas indicações são demasiado inconsistentes...
»— Eu sei, mas antigamente uma segurança máxima...
»— Foi sempre usada para pesquisas de armamento pesado. Com as
armas biológicas é completamente diferente. Com os mísseis, não há o perigo
de alguém levar acidental mente um agarrado à biqueira do sapato.
»— Não vou admitir aqui uma discussão. Sugiro que cada pessoa possa
acabar o que estava a dizer antes que os outros falem.
»— Obrigado. Terceiro e último: atendendo ao tipo de arma de que se
está a tratar, não é descabido pensar que já nos tenham atacado. Por um
pequeno ataque tático, como tentar atingir Washington com um vírus
cancerígeno, apenas para experimentar o agente, ou, pelo que sabemos,
podem ter utilizado um agente que tenha esterilizado toda a população! Acho
que devemos saber o que se passa antes que nos vejamos completamente
derrotados!
»— Está bem, mas um momento. Primeiro, não podem ter esterilizado
todas as mulheres deste país sem nós sabermos e nem toda a gente em
Washington está atacada de cancro.
»— Você não sabe de facto se assim é!
»— Deixe-o acabar.
»— Obrigado. Sim, de facto podemos afirmá-lo. E dentro de uma
semana podemos dizer se testaram de facto alguma coisa, seja onde for, que
pudesse afetar de forma significativa a saúde pública e se o teste foi um
fracasso.
»— Como?
»— Nos últimos anos, o governo organizou a Epidemiological Survey
Network, que computadorizou os dados correntes sobre coisas tais como
nascimentos, mortes e taxas de todas as doenças conhecidas. Se bem que
oficialmente seja um projeto HEW — que quer dizer gratuito —, a rede foi
essencialmente idealizada por nós e para fins específicos como este. Já
efetuámos um rastreio a nível de todo o país no sentido de localizar aumentos
de doenças mais graves, fertilidade, infertilidade e coisas assim e nada de
significativo se registou. No mês passado o computador esteve a passar a
pente fino todos os dados de cada anomalia que reteve na memória, para
constatar aumentos nos últimos seis meses. Se alguma coisa houver,
aparecerá quando se recolherem os dados.
»— E temos isso dentro de uma semana?
»— Uma ou duas. Já estamos a ocupar grande parte do tempo e não
queremos chamar a atenção para o que estamos a fazer, por isso temos de
avançar lentamente.
»— Talvez possamos então adiar esta decisão até ao próximo mês,
quando tivermos os resultados.
»— A não ser que algo de importante surja. Nesse caso, quero uma
reunião de urgência.
»— Claro. Claro.»
Pearson desligou o gravador. Não admira que andasse a morder as
canelas de Johnson daquela maneira. Se aqueles Russos dum raio tentassem
algo de muito hábil, seria praticamente impossível prová-lo. Pensou:
«Do que precisamos era de uma arma equivalente, para lhes mostrar que
chegamos para eles e que estamos preparados para eles, sem termos que nos
pôr a descoberto. Com sorte, tê-lo-emos pronto no próximo mês. Nessa
altura, eles estão tramados!»
Sexta-feira, 13 de Novembro
Doc estava mesmo a acabar de ver o seu último doente do dia, quando
Beth entrou no consultório. Reparando na sala de espera vazia, sentou-se.
Ultimamente ele andava extraordinariamente ocupado e os seus encontros
para jantar tinham sido adiados por vezes até à hora de fechar dos
restaurantes. Além disso, ele ficava sempre um pouco mais rabugento quando
tinha de trabalhar até horas demasiado tardias. Sharon lançou um «olá» a
Beth.
— Ele está despachado dentro de uns dez minutos e não esperamos mais
ninguém, por isso talvez consigam ter um jantarzinho a horas decentes, como
pessoas normais.
— Como correu o dia? — Indagou Beth.
— Nada mal. É estranho como se pode estar superlotado durante quatro
dias e na sexta-feira ter um dia quase calmo. Acho que as pessoas têm medo
de adoecer à sexta-feira. Isso significa perderem o fim de semana. — Ela
sorriu. — O nosso amigo Diederson fez-nos uma visita-surpresa esta tarde.
— Outra vez? — Perguntou Beth. — Pensei que tinha cá estado ontem.
— E esteve — disse Sharon com um sorriso. — Mas, como é muito
esperto, calculou que nós só contávamos que ele cá viesse uma vez por
semana, esperava portanto apanhar todos esses drogados aqui na sexta-feira,
visto que seria um dia seguro. É esquisito. Ele já não parece estar certo acerca
de Fred e até parece que está a começar a ficar um bocado atrapalhado com
tudo isto. Mas, pelo que sei, também pode ser um disfarce.
Doc saiu a saltitar do consultório e, atirando um braço sobre os ombros
de Beth, rodopiou com ela até à porta.
— Acabou-se. Não se pensa mais em coisas chatas!
Virando-se para Sharon ia a começar a dizer qualquer coisa mas ela
antecipou-se ao pedido:
— Vou fechar tudo a sete chaves e deixar tudo em ordem
— Obrigado — disse Doc e dirigiu-se com Beth para o parque de
estacionamento.
Durante um jantar calmo falaram sobre o dia.
— Aquela Waterper telefonou hoje ao Charlie — disse Beth a Doc. —
Recebeu uma chamada do departamento do computador, de Washington.
Parece que estão um pouco mais atrasados do que de costume, mas
esperamos que ela tenha os resultados dentro de duas semanas. Charlie estava
desapontado. Tinha esperado uma semana pela resposta e já contara esta
como parte das duas semanas que faltavam.
Doc riu-se.
— Tenho de ter mão nele. Quando se mete em qualquer coisa é como
um remoinho. Até me admira que não tenha telefonado para Washington a
explicar por que razão precisava do resultado imediatamente.
— Não brinques. Disse-me que queria fazê-lo, mas que a Waterper lhe
afirmou que não adiantava nada. Quase pediu desculpa por não telefonar. —
Ela abanou a cabeça. — Não há dúvida que ele está muito interessado no
assunto. — Tirou mais um pouco de lagosta da casca. — Ainda está melhor
do que habitualmente — disse, apontando a lagosta. — Não queres provar?
— Hoje não, obrigado. Se como mais, vou a rebolar para casa. —
Cruzou os braços sobre o estômago e emitiu uns ruídos pouco delicados.
Beth deu-lhe um pontapé por baixo da mesa.
— Cala-te — sussurrou-lhe — olha que tens toda a gente a olhar para ti.
Como resposta recebeu um estrondoso arroto.
— Ora esta! Mas hoje estamos bem-dispostos! Tenho de ser cuidadosa
— comentou Beth.
Doc riu-se.
— Prometo avisar-te dez segundos antes de te atacar. — E, ficando mais
sério, perguntou: — Há alguma novidade quanto a empregos?
Com um ar infeliz, Beth respondeu.
— Nicles. Hoje não apareceu nada de novo. Ah! Espera lá! — Disse ela,
empertigando-se de repente. — Adivinha quem é que hoje recebeu uma
oferta de emprego? Já quase me esquecia.
Ele ficou atrapalhado.
— Não foste tu?
— Ná — disse a sorrir. — Foi o Bill Hebb.
— O Bill Hebb? — Perguntou Doc incrédulo. — Eu nem sequer sabia
que ele andava a ver de emprego.
— Não andava — esclareceu Beth. — Adivinha quem lho ofereceu.
Doc abanou a cabeça.
— A Crop Research Association.
— O grupo para quem o Tom Darnell trabalha? — Perguntou Doc. —
Isso é uma loucura. Eu pensava que o Darnell tinha a mesma opinião que tu
acerca do Hebb.
— Também eu. Foi até o Tom que tentou por fim falar com o Lloyd
sobre a incompetência do Bill. Ele não arruinou declaradamente as
experiências de ninguém nestes últimos meses, mas o Tom e eu quase que
pusemos o nosso laboratório de quarentena. — Beth riu-se. — O que não
elimina os problemas. O pobre do Tom derrubou ontem um frasco de
nutriente radiativo e passámos a tarde a descontaminar o laboratório.
— E que é que o Tom diz quanto à oferta de emprego? — Perguntou
Doc. A avaliar pela descrição de Beth, a única maneira do Bill Hebb arranjar
um emprego seria se toda a gente que o conhecia mentisse a seu respeito e se
o patrão não o conhecesse. Parecia impossível que a CRA o contratasse,
estando o Darnell a trabalhar com o Bill e tendo contactos com a CRA.
— De facto, ele parecia confuso — disse Beth. — No fundo, a única
coisa que disse foi que não lhes tinha recomendado o Bill. Aparentemente, dá
a impressão de que a CRA quer mais alguém do nosso laboratório, além do
Tom. Ele disse que eles tinham considerado que, se ele trabalhava para o
Haenners e sem olhar à sua preparação, só por isso não devia ser mau de
todo.
— O que se calhar até é verdade — concordou Doc.
— Bom, se o é, ele enganou-nos, a mim e ao Tom — insistiu Beth. —
Por um lado estou satisfeita, porque isso significa que ele vai sair do
laboratório dentro de pouco tempo, mas ao mesmo tempo sinto-me ofendida.
— Não percebo.
— Ele vai ocupar o lugar que me ofereceram, a mim! Fiquei contente
por haver alguém que me quisesse contratar, mas depois vão e contratam o
Hebb. Acho que tudo isto é um insulto!
Doc riu-se.
— Bom, pelo menos o Darnell deixa de te chatear para aceitares o lugar.
— Quem me dera, mas esforçou-se por me assegurar que o facto de eles
terem contratado o Bill não significa de maneira nenhuma que a oferta que
me fizeram tivesse sido retirada. Quase desatei a rir. Disse-lhe que se
aceitasse o lugar seria só para me ver livre do Bill. Ele encolheu os ombros e
repetiu que se tinha oposto a que contratassem o Bill. Acho que estava
realmente aborrecido com o facto.
Doc sorriu compreensivamente.
— Acho que nem sequer sabemos em que coluna inscrever o incidente,
se na dos bons, se na dos maus. — Comeu um marisco e continuou: — Bom,
concluo então que não há nada de novo sobre mercado de trabalho na
faculdade.
Beth replicou-lhe, tristonha:
— Não, nada. Acho que o Lloyd ainda está mais admirado com o facto
do que eu. Ele toma o assunto como uma coisa pessoal e da a entender que
perdeu a influência. O único local que me ofereceu um lugar foi a Califórnia,
onde o Doc diz não conhecer ninguém. — E prosseguiu: — Realmente, há
algumas recusas que eu não entendo. Num dos casos falei com o diretor do
departamento e ele deu a impressão de que ficaria contentíssimo por me
oferecer o lugar. É quase como se eu tivesse alguma doença social.
— Talvez tenham sabido que tiveste uma oferta da indústria e isso fê-los
desistir — sugeriu Doc bem-humorado. Mas claro que Beth não achou graça
nenhuma. — Bem — disse Doc piscando o olho —, uma ajuda extra faz-me
sempre falta no consultório.
— Não tem graça nenhuma! — Respondeu ela, visivelmente
preocupada. — Acontece que é da minha vida que estás a troçar. Que é que
hei de fazer se a única proposta que receber for a da merda da companhia
para a qual o Bill Hebb está a trabalhar, situada lá para o centro de Iowa ou
algures em Los Angeles, onde o ar é irrespirável? Não tenciono passar o resto
da vida como empregada de bar ou amante dum médico!
Furiosa e preocupada, empurrou a cadeira para trás e saiu de rompante
do restaurante.
Sexta-feira, 20 de Novembro
Kip cumprimentou Beth à porta. A confusão de vozes que vinham detrás
dele diziam-lhe que a maior parte das pessoas já lá estavam. Ela saudou-o
com um sorriso e deu-lhe o casaco. Ele vivia numa casa de três assoalhadas,
típica de Cambridgeport, que ficava na Brookline Avenue, próximo de
Central Square. O apartamento estava levemente decrépito, mas Kip
conseguira desempenhar a quase milagrosa tarefa de o transformar no melhor
possível. Os buracos no estuque tinham sido tapados com posters e uma
colorida lanterna chinesa escondia a simples lâmpada que pendia do teto da
sala comum. Ela assomou à sala, tentando adaptar os olhos à obscuridade.
— O Doc veio contigo? — Perguntou Kip, ainda de pé à porta.
— Não — disse Beth. — Era muito difícil fazermos combinações com
antecedência, por isso decidimos vir cada um por si. — Ela alimentara a
esperança de que ele já lá estivesse. Só se tinham visto uma vez desde o
incidente do restaurante, uma semana atrás, e esse encontro tinha sido
forçosamente breve. Era a época das constipações em Boston e Doc tinha o
consultório a abarrotar de doentes.
Vendo Beth no hall, Ann levantou-se e veio ter com ela. Já tinha entrado
no terceiro trimestre e ia fazer oito meses dentro de uma semana. O seu andar
começara a tornar-se naquele balançar característico e ela estava a adorar
cada minuto da sua gravidez.
— Ann, tu estás estupenda! — Disse Beth. — Como é que te tens
sentido?
— Ótima, se bem que tenha de concordar que estou a ficar um pouco
cansada, lá para a noite.
— Acredito — disse Beth. — A teres de transportar todo esse peso
extra!
— Quinze quilos — respondeu-lhe Ann. — O Charlie diz que depois do
Disney nascer tenho de carregar com pesos maiores, quando transportarmos
embrulhos. Ainda bem que agora não estou a trabalhar.
— Há quarenta anos acho que serias aconselhada a ficar na cama, de
agora em diante.
Ann sorriu.
— E há dez ter-me-iam aconselhado a baixar o meu aumento de peso
para doze quilos, durante toda a gravidez. Se fizesse isso é que talvez ficasse
de cama! — Riu-se e dirigiram-se as duas para a sala. — Estou mesmo
contente por teres vindo! — Disse Ann baixinho. Ela e Charlie eram os
únicos que sabiam da sua discussão com Doc. — Estou farta de ver a mulher
ser sempre excluída do grupo quando o casal tem uma discussão. O Doc que
fique em casa!
— Pensei que ele vinha. Ele falou nisso? — Indagou Beth.
Ann ficou admirada.
— Parece-me que não me lembro. Warren disse que tinha visto o Doc e
que ele disse que não sabia se poderia vir. — Ela parecia estar atrapalhada. —
Deixa lá, não te preocupes. Se pensas que ele vem, talvez apareça mesmo.
Acho que tu o conheces melhor do que o Warren.
Sentaram-se no sofá e Beth tentou um sorriso.
— Olá, Beth — gritou Justine duma enorme cadeira estofada no lado
oposto da sala. — Devias cá ter estado há dez minutos. O Charlie estava a
cantar-te louvores.
— Ah, sim? Será que fiz alguma coisa sem saber? — Perguntou Beth.
— Se fizeste — disse Kip duvido que Charlie saiba. Há uma hora que
me está a impingir a história do vampiro. — Kip estivera fora da cidade, em
viagem, durante uma semana e só tinha regressado a Boston na véspera. —
Olha lá, Beth, diz-me lá o que é que deu a pesquisa. Explicado pelo Charlie
não consigo entender nada.
Beth riu-se.
— A razão por que não consegues perceber é porque ele não quer
admitir que os dados não fazem sentido. Primeiro, visto que o vampiro
escolheu sete das dez cidades com maior índice, ele devia saber
antecipadamente que estavam entre as dez de maior incidência antes de as ter
escolhido; a partir dai, elas devem ter-se mantido entre as dez mais pelo
menos durante os últimos seis meses. Por isso, dá a impressão de que já
deviam estar entre as dez mais antes de o ácido chegar a esta cidade. Mas
Warren diz que tem um amigo em Middletown, que está em número três, que
também tomou os Gloryhits e isso sugere que há relação entre o ácido e as
taxas elevadas, o que contradiz o ponto um. Ficamos assim com um
paradoxo, o que não agrada a Charlie. — Beth sorriu para Charlie, esperando
réplica.
Charlie disse, pegando na palavra de Beth:
— Por isso, em lugar de continuarmos a discutir isto em festas, resolvi
que devíamos investigar de facto e ver há quanto tempo as taxas têm mantido
este nível.
— Espera aí — interrompeu Kip. — Estou baralhado. Como é que
sabemos que os Gloryhits não entraram mais cedo noutras cidades do que na
nossa? Isso não faria sentido?
Houve um momento de silêncio e Charlie disse então:
— Isso explicaria tudo, salvo no que nos toca, porque só os tivemos mais
tarde e, isso, sabemo-lo. Mas uma cidade isolada é mais fácil do que sete. Se
as outras cidades os obtiveram mais cedo, devia então ter sido revelado pelas
estatísticas antes que o vampiro tivesse escolhido essas cidades.
— Queres dizer que, agora, estamos a afirmar que o ácido causou esse
aumento em todas as cidades? — Inquiriu Ann.
Warren ia a dizer qualquer coisa mas foi interrompido pela chegada de
Doc.
— O quê? Ainda estão a falar nisso? — Lamentou-se. — Pensei que, se
chegasse aqui suficientemente tarde, já teriam acabado com isso. — Parou de
falar para dar um longo abraço a Beth, dizendo-lhe: — Olá! Desculpa ter
chegado tarde.
— Pensava que já não vinhas — murmurou ela, aliviada por o ver
chegar. Ele beijou-lhe a nuca.
— Nada disso — frisou Kip. — Estávamos apenas a recapitular a nossa
teoria.
Para que Doc ficasse a par, repetiram a explicação.
— Então, quando vierem os resultados da nova pesquisa, saberemos se
de facto as taxas estavam aumentadas em relação a um momento anterior; até
lá, nada mais temos a dizer sobre o assunto — disse Doc.
— Esperem ai, todos vocês não me deram oportunidade de interromper
— queixou-se Warren.
Todos se calaram e Warren disse:
— Acho que o Tony não falou em nada acerca de eles terem o ácido em
Middletown antes de nós aqui em Boston. Até me lembro de termos estado a
pensar que seríamos nós quem o tinha obtido uns dias antes deles.
— Ainda não entraste em contacto com ele? — Perguntou Ann.
— Não, mas houve alguém que respondeu do seu número de telefone na
passada sexta-feira, quando eu tentei telefonar-lhe; informaram-me que ele
regressaria no fim desta ou no princípio da próxima semana.
— Sim, senhor! Mais progressos. Será que os milagres não vão acabar?
Essa é mais uma parte do mistério de que não temos que falar esta noite —
disse Doc.
Charlie riu-se.
— Só que o Warren tem de confirmar a data em que o Tony pensa que
eles entraram em Middletown e não apenas quando lhe chegaram às mãos.
Warren concordou.
— E agora, em atenção ao Doc, prometo não falar mais nisso durante a
noite.
Saiu então uma voz das profundezas da cadeira de braços.
— Como vai o mercado de trabalho, Beth? Ou será que não devia
perguntar?
— Não devias perguntar, Justine. Vai mesmo desastrosamente. Do estilo
de deprimir.
Fez-se por momentos um silêncio embaraçoso.
— Bem, disse Kip finalmente a minha semana de tournée não foi
propriamente um desastre e por isso aqui vai. — Tirou a caixa da guitarra
debaixo do sofá e abriu-a. — É agora, e como recompensa para todos vós,
cientistas e detetives amadores, vou arranhar umas canções. — E, logo que
todos se acalmaram e descontraíram, ele começou a tocar.
Sexta-feira, 27 de Novembro
Uma semana mais tarde Charlie recebeu finalmente um telefonema de
Barbara Waterper. Já tinha os resultados da pesquisa. Apanhando Beth ao
passar pelo átrio, atravessou o pátio em direção ao laboratório da Waterper.
Havia apenas um tênue sinal de neve no ar, mas Beth duvidava que Charlie
tivesse dado por isso. Estava numa das suas situações de excitação e só se
apercebia daquilo para que o seu espírito estava canalizado — a pesquisa.
No seu laboratório, a Waterper estendeu-lhe um sobrescrito.
— Veio no correio da tarde e ainda nem sequer o abri. Agora não posso
falar nisso, estou a meio de um trabalho. Ela corria de um balcão para outro
obviamente em meio de uma experiência urgente. Telefonem-me amanhã,
estou com curiosidade de saber o que aí têm.
— Com certeza — disse Charlie enquanto abria o sobrescrito.
Beth arrancou-lho das mãos, anunciando:
— Preciso dum café. Podes ver isto quando chegarmos à cantina.
Charlie implorou:
— Vá lá, deixa-me ver enquanto andamos.
— Nem penses — disse ela, dirigindo-se para a porta à frente dele.
Charlie seguia-a, sempre a rabujar, até à cantina. Finalmente, já sentada
à mesa com o café na frente, ela abriu o sobrescrito e Charlie puxou a cadeira
para junto dela. Durante alguns minutos limitaram-se a olhar os dados e a
tentar compreendê-los completamente.
— Quando é que o Greene começou a proceder à recolha? — Perguntou
Beth.
— Há um ano, Em Dezembro passado.
Ficaram a olhar para os dados, atrapalhados.
— Mas até Junho último, as cidades onde ele estava a efetuar a recolha
estavam absolutamente nas taxas médias. E até duas delas estavam ainda
abaixo da média em Junho.
Charlie olhava fixamente os dados.
— Isso significa que os números aumentaram quando ele começou a
fazer a recolha. Quando as escolheu não passavam de cidades de taxa média,
com índices normais de aborto espontâneo.
— Mas todas as cidades que ele escolheu revelaram um estrondoso
aumento da taxa de abortos espontâneos — disse Beth — seis meses após tê-
las escolhido?
— Não sei — respondeu Charlie. — Assim parece. Não, espera! —
Disse ele, mudando de ideias. — Só sabemos o que respeita a cidades que
estiveram entre as dez mais, de Julho a Setembro. Ele poderia ter andado
também por outras cidades onde não houve aumento.
— Ah, sim, mas diz-me lá quantas cidades poderia ele ter controlado?
Dez? Quinze? O Greene tem de ter qualquer ligação com os Gloryhits —
insistiu Beth.
— Mas como? Quanto às cidades, tens razão. Duvido que tentassem
inspecionar mais do que dez, o que torna o seu êxito de previsão de aumentos
bastante notável. Ele pensou por um momento. — Doc não soube nada deles?
Não teve resposta ao bilhete do mês passado?
Beth abanou a cabeça.
— Nada. E porque é que estás a pôr de parte uma certa relação entre
Greene e os Gloryhits?
— Era de esperar que pelo menos nos dissessem quais as cidades que
escolheram e porquê — insistiu Charlie. — Eu adoraria saber isso, pelo
menos, antes de imaginar algum conluio estrangeiro. Já estou a ficar
paranoico como o outro, mas uma coisa como a que estás a insinuar é
realmente muito estranha.
Beth encolheu os ombros.
— Mas parece que não podemos fazer nada, a não ser irmos a Nova
Iorque e tentarmos caçar o Greene.
Charlie concordou com um aceno de cabeça e mudou de assunto.
— A propósito, soubeste do Warren?
— Não — disse Beth, resignando-se a abandonar a sua ideia.
— Ele contactou com aquele tipo, o Tony Belvedere. Eles sempre
obtiveram os Gloryhits ao mesmo tempo que nós, o que ainda se adapta,
atendendo aos dados que temos. E só obtiveram uma remessa. A taxa deles
aumentou cerca de quatro meses depois dos Gloryhits terem entrado na
cidade, que é aproximadamente o prazo que previam. Parece que, afinal, o
palpite do Doc estava certo.
— Não pareces muito contente — observou Beth.
Charlie enrugou a testa.
— Começo a concordar contigo e com Doc. É assustador! É horrível
pensarmos em toda essa gente que está a perder as crianças só porque alguém
errou no fabrico dum lote de ácido. Faz-me ver como eu e Ann estivemos a
ponto de perder Disney.
Beth concordou.
— Pensar eu que há alguém por ai capaz de meter água no fabrico
daquilo e que os resultados são trágicos. Detesto pessoas assim.
— Por falar nisso — disse Charlie, tentando mudar novamente de
assunto —, que há sobre o Bill e a tal oferta de emprego? Ele vai aceitar?
A expressão de Beth tornou-se azeda.
— Sim, aceitou o emprego. «Assaltou-o», para ser mais precisa. Entrou
em órbita por causa do salário. O tipo nem desmente que aceitou só por essa
razão.
— Bem, pelo menos em breve deve estar longe do laboratório — disse
Charlie. — Quando é que querem que ele comece?
— Isso é que é pior — queixou-se Beth. — Já lhe começaram a pagar,
mas sugeriram que ficasse por aqui, por mais alguns meses. Querem que ele
tente desenvolver um vírus qualquer em tecido de cultura, mas aqui, onde o
Lloyd já tem as condições propícias à cultura bem implantadas e tudo.
— E qual foi a reação de Lloyd a tudo isso? — Inquiriu Charlie.
— O Lloyd? — Perguntou Beth a rir. — O Tom foi falar com ele. Pediu
ao Lloyd que lhe facilitasse aquilo, como um favor pessoal. Bill ficaria fora
da folha de vencimentos e assim só custaria a Lloyd em material, e Tom
sugeriu que se poderia arranjar as coisas e que poderia arranjar-se à roda de
mil dólares para material.
Charlie assobiou.
— Isso é um grande subsídio por uns meses apenas. Será que ele irá
despender assim tanto?
— Não sejas parvo — respondeu Beth. — Isso não passa dum suborno
estúpido do CRA. E Lloyd não é orgulhoso, por isso deitou-lhe a mão.
Charlie foi compreensivo.
— Parece então que vais ter o bom do Bill Hebb por cá mais algum
tempo. Bom, não será pior do que já era.
— Enganas-te — afirmou Beth porque agora vai trabalhar com tipos de
células que nenhum de nós emprega. Temos de nos preocupar com a
contaminação e eu estou aterrada só de pensar que ele vai trazer para aqui um
vírus. Até falei nisso ao Lloyd, porque o Bill é um desajeitado. Mas o Lloyd
disse que o Tom iria supervisionar o trabalho dele cuidadosamente e que por
isso eu não devia preocupar-me. Talvez ele não esteja preocupado, mas eu
estou aterrorizada.
Charlie sorriu.
— Maluco como ele é, não é natural que faça nada de horrível em dois
meses.
— Tu não o conheces — insistiu Beth. — Ele é capaz de baralhar tudo
antes que qualquer mente humana se aperceba disso!
— Bom, veremos! Talvez tu e o Doc possam apressar-se a partir para
férias ou coisa do gênero. Afastarem-se do laboratório por uma semana.
Beth franziu o sobrolho.
— Não sei.
Charlie ergueu as sobrancelhas:
— As coisas não vão bem?
— Nem sei dizer — admitiu Beth, furiosa. — Tudo está confuso, com
esta história do emprego. A única resposta que obtive foi uma da costa oeste.
Fred não quer que eu saia desta zona e eu tomara não sair, mas a situação está
a ficar desoladora. Agora, anda a dizer-me que podia ficar com o Lloyd até
descobrir qualquer coisa nesta zona. Mas como é que eu posso fazer uma
coisa dessas? Não posso desistir da minha carreira, para ficar nesta área.
— A vossa relação está assim tão séria?
— Não sei e o Fred também não. O que sei é que ele não está preparado
para se adaptar aos meus planos, se neles estiver incluído ter de deixar
Boston. E eu não tenho a intenção de levar a vida atrás dum homem, por mais
séria que a nossa relação possa ser.
Charlie respondeu compreensivamente:
— Não sei que dizer-te, Beth. Espero que te apareça alguma coisa por
aqui.
— O que sei — disse Beth, de olhos fixos na chávena de café — é que a
minha decisão tem de ser baseada no que for melhor para mim e para a minha
carreira e não no que for melhor para Fred ou para mim e Fred. Estou certa
de que quero ter uma carreira, mas não estou assim tão certa de querer o Fred.
Quarta-feira, 2 de Dezembro
Charlie estava sentado à secretária. A chegada de Dezembro trouxera-lhe
um aumento da pressão psicológica provocada pelo ensino. Os exames finais
seriam dentro de três semanas, e além de ter de encafuar nas próximas duas
semanas tudo o que, por uma razão ou por outra, não conseguira dar mais
cedo, tinha também de preparar um exame final. Os alunos também se
ressentiam com a aproximação das provas finais e havia sempre uma certa
tensão na aula.
O seu trabalho de laboratório tinha novamente voltado ao nível zero.
Pelo menos não teria de lecionar no semestre seguinte e isso dar-lhe-ia
oportunidade de pôr as coisas um pouco mais em ordem. Remexeu nalguns
papéis que tinha em cima da secretária e pensou: «Merda! Desde a hora do
almoço não consegui fazer outra coisa senão remexer em papéis.» Irritado,
pegou nos resultados da pesquisa epidemiológica. Desde que eles lhe tinham
chegado às mãos, na semana anterior, tinha evitado olhar para eles outra vez.
Pareciam ser um beco sem saída até o Greene ser contactado. Ele não fizera a
sua recolha de Novembro e Doc estava preocupado com isso. Até contactara
com a Universidade de Boston, para ver se ele teria contratado alguém outra
vez. Mas não houvera um tal pedido.
Ele olhou os dados. Tanto quanto sabiam, só Middletown e Boston é que
tinham obtido o ácido e ambas as cidades tinham revelado um aumento
notável na taxa de abortos, quatro meses depois. Como é que o Greene
escolhera as cidades? Todas as sete que ele escolhera eram normais quando
ele começara a proceder à recolha e todas sofreram um aumento por volta de
Junho e Julho. Como é que ele soubera? Subitamente fizeram-se certas
associações no espirito de Charlie. Todas tinham aumentado entre Junho ou
Julho e não só Boston e Middletown, o que sugeria que todas tinham obtido
os Gloryhits! Uma onda de gelo percorreu-lhe o corpo.
Precisava de mais informações. Parecia que era tudo o que se podia
fazer, mas de repente precisava urgentemente dos dados. Olhou para a lista.
New Haven. Se os Gloryhits tivessem chegado a New Haven, podia ser que
Terry Bernett soubesse ou pudesse descobrir. Charlie desenterrou dos papéis
da secretária a lista telefônica. Bernett era um amigo de liceu, que estava
agora em Yale, no departamento de biologia. Marcou o número e esperou
impacientemente que alguém respondesse.
— Gabinete do Dr. Bernett. — Era a secretária.
— Daqui fala Charlie Cotten. Desejava falar com o Dr. Bernett.
— Lamento, mas ele tem hoje a tarde livre. Podia deixar recado?
Ele meditou por um momento.
— Não, obrigado, eu depois entro em contacto com ele.
Desligou e começou a reunir as suas notas sobre os resultados da última
pesquisa, depois extraiu dos arquivos os da primeira. Se saísse já, poderia
estar em casa de Terry pelas quatro horas. Talvez a viagem valesse a pena, só
para que alguém novo observasse os dados.
Telefonou para casa e explicou a Ann o que ia fazer. A ideia não lhe
agradou, mas Charlie foi inflexível. Dois minutos depois de desligar já ele
estava na rua.
***
O trânsito em Boston rodava com lentidão e já passava das duas quando
Charlie saiu da cidade e passou a portagem. Mantendo-se numa velocidade
regular de 70 km, ia tentando pôr as coisas em ordem, mas mesmo assim não
se ajustavam. Era frustrante quase até à exasperação. A autoestrada 86 até
Connecticut estava livre. Era uma enorme extensão de betão que se estendia
até ao horizonte, atravessando florestas e campos, como uma linha deslocada
cortando a natureza. Puxou um pouco mais pelo velho Volvo, tentando chegar
a New Haven antes que o trânsito na cidade se tornasse terrivelmente
congestionado. Há uns anos tinha-se tornado quase intransitável, antes de
terem organizado um plano geral de trânsito; agora estava a voltar ao mesmo.
Chegou à periferia da cidade às quatro e meia e passou meia hora a
serpentear pelas ruas até a casa de Terry. Finalmente encontrou um espaço
para arrumar, fez a pé os cinco quarteirões até a casa dele e tocou à
campainha. De repente sentiu-se um bocado parvo ao pensar que ele podia ter
ido passar a noite fora. Nem sequer pensara naquela hipótese, o que o
surpreendeu. Não era essa a sua forma de tratar dos assuntos.
Alguns momentos depois, porém, a porta abriu-se e deixou ver uma
mulher com pouco mais de vinte anos. Charlie não a conhecia.
— Olá — disse —, procuro o Terry Bernett.
Sorrindo, ela abriu mais a porta para o deixar entrar.
— Está lá em cima, enfiado no escritório. Não veja nisso qualquer
animosidade, se ele o puser na rua: é que está a tentar acabar de escrever um
artigo que devia já estar no correio desde segunda-feira.
Charlie entrou. Há dois anos que não ia a casa de Terry. A casa parecia
agora menos limpa, mas ao mesmo tempo mais confortável e estava quase
supercheia de mobília. Ouviu vozes na cozinha.
— Sabe ir lá para cima? — Inquiriu ela. Charlie notou que era muito
atraente. No fundo o aspecto era vulgar, com uns olhos muito espertos que
pareciam captar tudo acerca dele.
— Obrigado. Eu já cá estive — respondeu e dirigiu-se para a escada.
Parou à porta do escritório e bateu delicadamente.
— Vai-te embora! — Respondeu uma voz áspera. — Aqui dentro
reinam o crime e a peste.
Charlie abriu a porta e enfiou a cabeça.
— Então em que é que isto difere da costa leste?
Terry levantou a cabeça para ver quem era o intruso. Tinha o cabelo
mais comprido do que Charlie se lembrava e estava a começar a ficar calvo
no alto da cabeça. Terry era alto e musculoso, irradiando uma força que fazia
com que se pudesse esperar ver a cada momento um falcão pousar-lhe no
ombro. Em certas circunstâncias, podia ser bastante assustador.
— Charlie! — Exclamou, enquanto a sua expressão dura de censura se
dissolvia num sorriso. — Donde é que surgiste? — Levantou-se da secretária
e avançou para ele. Apertando vigorosamente a mão de Charlie, perguntou.
— Vais cá ficar quanto tempo? Ficas para jantar? — Deitou uma olhadela à
secretária. — Escolheste um raio duma ocasião para apareceres, mas vamos
para baixo e conta-me o que tens feito ultimamente. Soube pelo Steve Mills
que ias para Boston, mas ainda não tinha tido tempo de te procurar. —
Seguindo os passos de Charlie, desceram para a sala comum. A mulher que
recebera Charlie estava agora enrolada numa cadeira, a ler algo que parecia
ser um texto médico, e levantou os olhos surpreendida.
— Margie, este é o Charlie Cotten, um velho amigo dos tempos de liceu.
Ela sorriu para Charlie e disse, à laia de explicação:
— Já nos conhecemos e disse-lhe que provavelmente o corrias a
pontapé.
— Nada disso. Decidi pelo contrário fazer uma pausa.
Margie olhou-o com ar de censura.
— Estás com sorte se esse artigo chegar a sair esta semana.
— Ná — insistiu Terry —, só preciso de mais duas horas de trabalho. A
não ser que Charlie seja tão simpático que resolva ficar connosco, tenho-o
pronto hoje à noite.
— Veremos — respondeu Charlie. — Talvez possa aceitar e ficar, mas
esconder-me-ei, se isso te facilita o trabalho.
— Ele para de escrever com as desculpas mais patéticas que possa
imaginar — afirmou Margie. — Ele gostaria que você ficasse por cá toda a
semana.
Charlie sorriu.
— Parece que ele, como aliás toda a gente, se anda a baldar.
— Bom — disse Margie, levantando-se da cadeira —, eu ainda conservo
um pouco de disciplina, por isso vou até lá acima, até à hora de jantar. Se o
Charlie ficar para jantar, diz ao Michael e à Allison. Acho que eles já
começaram.
— Ficas? — Perguntou Terry.
— Claro — concordou Charlie, de imediato. — Estava mais ou menos a
contar com o convite.
Terry levou-o até à cozinha e apresentou-o às duas pessoas que estavam
a tratar do jantar, explicando que Charlie jantaria com eles.
De volta à sala, explicou:
— Temos sempre tantas visitas que já cozinhamos automaticamente a
contar com mais um.
— Presumo que a Margie e os dois que estão na cozinha vivem aqui.
— Claro — disse Terry. — A casa é enorme e eu aborrecia-me de fazer
uma vida de solteirão. É muito mais agradável termos outras pessoas de quem
se gosta a viver connosco. Algumas pessoas na faculdade pensam que sou um
tipo esquisito por viver com uma quantidade de companheiros de casa. Mas
eu quero que eles se lixem! Eu é que sei. — Riu com gosto. — Mas conta-me
coisas de ti. Onde tens estado? A Ann ainda está contigo?
— Claro que sim — respondeu. — É incrível como os tempos mudaram.
Hoje em dia, sempre que se encontra alguém que já não se via há muito, não
se lhe pergunta como está o marido ou a mulher, mas se ainda vivem juntos.
Terry encolheu os ombros.
— Que é que se há de fazer? — Indagou. — Depois de se ter cometido o
disparate de perguntar a meia dúzia de divorciados como estavam os
cônjuges, tornamo-nos mais cautelosos. Quase diria que ficava surpreendido
se tu e a Ann se tivessem separado, mas, realmente, já desisti de dar palpites
sobre o que é uma relação estável e o que o não é. Nunca se pode dizer.
— É verdade — concordou Charlie. — Eu faço o mesmo. A verdade é
que nós estamos muito unidos. Aliás, até estamos a entrar no estilo de
família.
Terry pareceu satisfeitíssimo.
— Bestial! Já é tempo de os bons começarem a ter filhos. Estava a
começar a preocupar-me, pensando que o mundo ia ficar na mão dos cães,
tendo em conta a relação das taxas de reprodução. Quando é que esperam?
— A sete de Fevereiro ou duas semanas mais cedo ou mais tarde —
respondeu Charlie.
— Isso é ótimo! — Afirmou Terry.
Durante as duas horas seguintes falaram acerca dos dois últimos anos,
discutindo as semelhanças e diferenças das suas experiências. Terry estava na
faculdade em Yale há dois anos e tinha-se habituado à ideia.
— Não sou doido por New Haven — concordou —, mas estou contente
com o laboratório e o departamento em que trabalho.
— Foram interrompidos por um assobio proveniente da cozinha. —
Aquilo quer dizer que são horas do jantar — disse ele e dirigiram-se para a
casa de jantar.
— Que é que o trouxe de Boston até aqui, Charlie? — Perguntou
Allison, quando já estavam sentados.
— Realmente, isso é uma pergunta complicada. A resposta é um
mistério. Isto é, foi um mistério que me trouxe até aqui.
Todos pareciam muito interessados.
— Melhoraste como contador de histórias — comentou Terry.
— Bom, não é assim tão fácil de explicar — disse Charlie. Tentou
imaginar como começar. — Vejamos, já ouviram falar dum ácido chamado
Gloryhits?
Michael levantou a cabeça. A resposta era óbvia, mesmo antes de ele
falar.
— Tem ai algum? — Perguntou. — É o melhor ácido que por aqui
apareceu. Muita gente gostaria de mais.
Charlie sentiu-se preocupado. Toda aquela cena lhe fazia lembrar uma
reunião quando se tinham mudado para a nova casa. Também Kip mostrara o
mesmo interesse quando ele lhe falara nos Gloryhits. Agora era a sua vez de
desempenhar o mesmo papel que Doc.
— Não, já há muito que não sei nada deles. Onde é que as pessoas daqui
os arranjaram?
— Foi há muito tempo — replicou Michael. — Foi no Inverno passado,
não foi?
— Não — disse Allison — Então não foi na Primavera?
— Não, eu tenho razão — insistiu Michael. — Foi mesmo no fim do
Inverno passado, pelos fins de Fevereiro. Lembro-me, porque se pôs a
questão de se esperar até ao fim dos exames para os tomar.
Terry concordou:
— Tens razão. Foi pôr volta de vinte, Michael, porque tu até te queixaste
de eles terem aparecido logo a seguir ao concerto do Portrell e esse foi a
quinze.
Todos concordaram.
— Parece que foi nessa altura que apareceram também noutros sítios —
confirmou Charlie.
— Apenas essa remessa? — Perguntou Michael. — Nunca mais
voltámos a ver disso por cá e é de admirar, porque era um material bom e
havia mercado para ele.
— Que se saiba, só houve uma remessa deles em Boston — acrescentou
Charlie — e em Middletown foi a mesma história: só uma em meados de
Fevereiro.
— Pareces um perito no assunto — disse Terry.
Charlie franziu o sobrolho.
— Realmente assim parece, mas não que o facto me agrade.
Terry parecia confuso.
— Presumo que isso faça parte do mistério a que aludiste.
Charlie confirmou e começou a explicar.
Quinze minutos mais tarde, Margie objetou:
— Espera ai. Cada vez faz menos sentido. Que estás a insinuar que essa
segunda pesquisa revelou?
Charlie ergueu as mãos.
— Espera um momento. Assim não consigo comer. Espera até
terminarmos o jantar e vamos até ver os resultados das pesquisas. Trouxe-os
comigo, para os mostrar ao Terry. Entretanto que fale outra pessoa, para que
eu possa engolir o jantar.
Os outros, concordando com ele, desviaram a conversa para outros
assuntos enquanto Charlie devorava o jantar. Com a viagem e a discussão,
estava esfomeado.
Depois de jantar e de limpar a mesa, estendeu-lhe em cima os resultados
do computador e percorreu-os com o olhar.
— Deixem cá ver se entendo — disse Terry. — Primeiro, temos estas
sete cidades onde esse tipo, o Greene, anda a efetuar recolhas de fetos. Pode
ser que haja outras cidades, mas estas estão entre as dez de maior frequência
de abortos espontâneos entre os três e os cinco meses. Segundo, quando ele
começou a recolher os fetos, nenhuma das sete cidades apresentava índices
invulgarmente altos de abortos espontâneos.
Allison falou então.
— Terceiro: é que, pelo menos, três das sete tiveram os Gloryhits nos
fins do Inverno passado.
— Mas também não sabem quantos locais por esta zona obtiveram os
Gloryhits e que não têm elevados índices de aborto — disse Terry. — Se os
Gloryhits foram vendidos por cem cidades e por toda a costa, não é de
surpreender que se encontrem reflexos também nestas três cidades.
Michael objetou:
— Só que contactámos pessoas numa dúzia de locais, tentando localizar
mais alguns, e ninguém tinha sequer ouvido falar neles.
— Espera aí! — Disse Allison. — Isso não é verdade. Alguém ouviu
falar neles mas não lhes conseguiu deitar a mão. Quem foi?
— Tens razão — confirmou Michael. — Lembro-me disso, mas não me
lembro de quem era.
— Eu sei! — Exclamou Allison. — A Ursula Stringer, de Providence,
disse que tinha havido uma porção deles na cidade, mas não soubera como la
tinham entrado e quando ela regressou já tinha desaparecido.
Charlie olhou a lista das cidades. Condizia.
— Bem — disse — mudamos isto para quatro em sete. Isto está a
parecer-me cada vez mais provável.
— Queres dizer que todas as sete obtiveram os Gloryhits? — Inquiriu
Margie.
— Espera lá! — Insistiu Terry. — Primeiro quero pôr em ordem o que já
sabemos, depois podemos prosseguir com o que pensamos ou julgamos que
pensamos. — Fez uma pausa. — O ponto três era, deixem-me corrigir, que
quatro de sete cidades, pelo menos, tinham tido os Gloryhits à venda no fim
do Inverno passado. Allison, a tua amiga de Providence disse que foi pela
mesma altura?
— Tenho a certeza que sim — respondeu Allison. — Com diferença de
poucas semanas, quando muito.
Terry continuou.
— Certo. Esse é o terceiro ponto. O quarto é que em Boston houve uma
elevada correlação entre o ácido e os abortos.
— Sendo o ácido ingerido antes da concepção, não pode ser um agente
teratogénico. E essa é uma das pistas — salientou Charlie.
— Certo — disse Terry, anotando-o. — E o ponto cinco é que, pelo
menos, em três casos, os fetos provenientes dos abortos tinham cabeças
imensamente aumentadas, o que quer dizer que também não se pode tratar
dum agente mutagénico.
— É isso. Creio que tocámos em todos os pontos — afirmou Charlie.
Durante alguns segundos mantiveram-se sentados e calados, tentando
pensar se tinham esquecido algo.
— Bem, restam-nos então duas questões — disse Margie. — Primeira:
que é que há com o ácido? Segunda: que é que há com esse tipo, o Greene?
— Olhou para uns e outros, na esperança de que algum tivesse uma ideia.
— É claro que calculas que haja ligação entre Greene e o ácido, e que
ele sabia com antecedência que aquilo iria provocar o aumento da taxa de
abortos — disse Michael.
— Mas isso não faz sentido! — Insistiu Charlie. — Já alguém em
Boston insinuou o mesmo, mas isso não faz sentido.
— Porque não? — Inquiriu Allison. — Talvez ele quisesse verificar se o
ácido tinha quaisquer efeitos sobre fetos humanos.
— Não, isso obviamente não faz qualquer sentido — afirmou Terry. —
Porque, nesse caso, ser-lhe-ia muito importante saber quem tomara o ácido e
quem não tomara e principalmente quando era ingerido. Doutro modo, nunca
conseguiria fazer nada com os dados. Além disso, porque haveria ele de ser
tão reservado sobre o assunto? Bastava-lhe pedir aos obstetras que tentassem
descobrir se as pacientes tinham tomado LSD e, se tinham, quando. Não seria
assim tão difícil.
— Mas de que outro modo é que isto se pode explicar? — Insistiu
Allison.
— Isso é o mistério — disse Charlie.
Permaneceram todos sentados e em silêncio, olhando os resultados
computadorizados das pesquisas, lendo e relendo a lista de factos que Terry
fizera.
— Estou a tentar decidir — disse Margie — se mais dados poderíam ser
úteis.
— Mais dados? — Perguntou Michael.
— Claro — explicou Margie. — Como, por exemplo, se houve
Gloryhits à venda nas outras três cidades e se se verificou a correlação do
ácido com os abortos, como em Boston. Isto é, se é apenas em Boston que a
correlação se verifica, pode explicar-se de outras maneiras.
— Tens razão — concordou Charlie. — Se, de facto, não se
relacionarem nas outras cidades, então provavelmente o facto não é devido ao
ácido.
— Queremos, então, mais dados. Pois bem, arranjemo-los! — Concluiu
Terry.
— Como? — Inquiriu Charlie, confuso pelo súbito regresso à ação.
— Que é que achas? — Perguntou Terry, enquanto puxava da cozinha o
telefone com um enorme fio. — Vamos encontrar pessoas que saibam.
Passaram o resto do serão ao telefone. Finalmente, à meia-noite,
consideraram o assunto arrumado. Os resultados eram fantásticos. Ou
terríveis, conforme o ponto de vista. Em duas das três cidades restantes, as
pessoas tinham verificado que os Gloryhits tinham por lá aparecido no mês
de Fevereiro anterior, o que perfazia seis das sete cidades do vampiro. Em
New Haven e em Providence localizaram casos de pessoas que tinham
tomado os Gloryhits pouco antes de conceberem e tinham sofrido aborto
espontâneo aos três ou aos cinco meses.
Nunca Charlie sentira tão intensamente o dilema entre o cientista e o
humanista. Margie fez a soma.
— Meu Deus! Sinto-me lisonjeada por termos feito um bom trabalho de
recolha de dados-base, mas ao mesmo tempo sinto-me mal disposta. Tudo
isto é tão deprimente!
— Mas onde é que isto nos pode conduzir? — Perguntou Charlie a si
próprio em voz alta.
— É pena não teres mais quantidade do produto — lamentou Margie. —
Se tivesses, podíamos proceder a testes laboratoriais.
— De qualquer modo, seriam necessárias centenas de comprimidos para
se conseguirem dados razoáveis — salientou Allison.
— Nem por sombras — disse Terry. — Se utilizássemos cobaias, um
comprimido seria suficiente para cinquenta ou cem cobaias, baseando-nos no
peso, que é como se procede nestas experiências.
— Claro! — Gritou Charlie. — Tenho estado tão perto e nunca pensei
nisso! Ajuda-me a esquematizar a experiência e posso começar logo que
chegue a Boston.
— Essa agora! — Exclamou Margie. — Não tens qualquer hipótese de
encontrares agora os Gloryhits.
— Só que eu tenho alguns. Tenho sete comprimidos, guardados no
frigorífico — afirmou Charlie.
Foi o caos. Quando tudo finalmente se aquietou, estavam todos exaustos
e eram quase duas da manhã.
— Não acredito — dizia Charlie olhando os planos de experiências que
tinham arquitetado. — Fiz mais esta noite do que em Boston durante os
últimos dois meses.
— Acho que vocês lá já estão demasiado fartos do assunto — disse
Terry. — A razão principal por que cá vieste foi para obteres uma opinião
nova.
— É verdade, só que nunca pensei que pudesse ser tão útil — concordou
Charlie.
Margie bocejou ruidosamente.
— Bem, não sei o que é que vocês fazem, mas eu vou para a cama.
Charlie olhou para o relógio.
— Valha-me Deus! Acho que vou regressar esta noite. Tinha pensado
dormir aqui e sair às seis da manhã, mas isso ainda era pior. — Começou a
juntar os papéis.
— Tens a certeza? Olha que é chato guiar quando se tem sono.
Charlie abanou a cabeça.
— Tomo uma boa dose de café e vou a pensar nas experiências.
— Deixa a janela aberta — sugeriu Michael. — O ar manter-te-á
acordado.
Charlie prometeu assim fazer e vestindo o casaco agradeceu a todos,
novamente.
— Eu vou dando notícias. Agradeço muito a vossa ajuda. —
Despediram-se todos.
O ar frio fustigou-lhe a cara quando ele se dirigia para o carro, mas
mesmo isso não foi o suficiente para o libertar da sensação de irrealidade que
envolvia os acontecimentos daquela noite. Passaria ainda algum tempo antes
que ele os apreendesse por completo.
Quinta-feira, 3 de Dezembro
Uma hora depois de ter deixado New Haven, começou a nevar. Não com
grande intensidade, mas o suficiente para tornar perigosa a condução e para
fazer aumentar de hora e meia o tempo da viagem. Chegou a casa às seis e
meia. Trepou para a cama, sem querer acordar Ann.
— Charlie? — Murmurou ela semiadormecida.
— Olá, dorme.
— Que horas são?
— É tarde, dorme — murmurou. Ela virou-se e adormeceu. Com a
cabeça cansada como tinha, depressa ele a imitou.
Ann acordou-o às nove.
— Deixa-me dormir — resmungou Charlie.
— Vá lá, tens aulas daqui a uma hora — disse ela, abrindo as cortinas
para deixar entrar o sol. — A que horas chegaste a casa? Nem te ouvi.
Ele cobriu a cabeça com os cobertores.
— Às seis e meia.
— Quando? — Perguntou ela, destapando-o.
— Às seis e meia! Deixa-me dormir! — Mas lentamente ia acordando.
Sentia a cabeça como um gongo chinês, numa festa de Ano Novo. Lamentou-
se: — Oh meu Deus, estou um destroço! Não pode ser. Vai ser um suplício
dar esta aula.
E foi.
Mas às onze e quinze, meio a dormir, estava a tentar rever com Beth os
acontecimentos da noite anterior. Por fim ela riu-se.
— Charlie, volta para a cama. Não entendo metade das coisas que estás a
dizer. Por muito interessada que esteja, acho melhor falarmos amanhã.
Murmurando uma ligeira objeção, cambaleou até ao seu laboratório,
agarrou no casaco e foi direito a casa e à cama quentinha.
***
Charlie estava já perfeitamente normal na sexta-feira, e voltou a
discorrer com Beth sobre as experiências. Foram encomendadas as cobaias e
as experiências começariam na segunda-feira. No sábado, ao serão,
despejaram à malta os pormenores da visita de Charlie. Tinham-se reunido
todos no apartamento de Doc.
— As experiências com as cobaias são capazes de ser o mais importante
— concordou Beth. — Podemos iniciar a descoberta daquilo com que
estamos a lidar, se não em termos de agente, pelo menos em termos de efeito.
Ann foi ter com eles mais tarde.
— Podem fazer-me uma sinopse do que já foi planeado?
— Claro — disse Charlie —, com muito gosto.
— Resumidamente — avisou Ann.
— Certo — disse Charlie fingidamente amuado. — Um sumário
ultrarrápido: pegamos num único comprimido e dissolvemo-lo em água.
Sabemos, pela análise que foi feita quando os comprámos, que para uma
cobaia um comprimido equivale a setenta e cinco. Amanhã chegam-nos ao
laboratório cento e vinte cobaias-fêmea. Administraremos o ácido a oitenta e
cinco delas e depois provocamos a ovulação por meio de hormonas. Dentro
de uns dias devem estar todas no cio e, juntando-lhes os machos, devemos
obter cerca de cem gestações. O período normal de gestação é apenas de vinte
e um dias nas cobaias e por isso tudo se desenrolará muito mais rapidamente.
O que planeamos é levar a cabo cesarianas em diferentes fases, para
observarmos o desenvolvimento dos fetos: ver se estão ou não deformados,
se estão a morrer e coisas do gênero. E deixamos também uma boa porção
deles ir até ao termo, para vermos se nascem normalmente ou o que é que
acontece. Talvez alguns não sejam afetados, mas temos de ver. Pronto, só
demorou um minuto.
— Então vais confirmar nos ratos o que já sabemos que está a acontecer
nos seres humanos? — Perguntou algo confusa. — Não vejo o que é que
possas aprender com isso. E, além disso, como é que sabes que resulta da
mesma maneira nos ratos como nas pessoas? Nunca entendi como podem os
cientistas utilizar a fé nesse passo.
— Não se trata apenas de confirmar o que já sabemos que está a
acontecer nos seres humanos — explicou Charlie. — Trata-se de o provar.
Não sabemos se foram os Gloryhits que causaram o problema às pacientes
com que Doc se deparou. As perspectivas são boas, sobretudo à luz das
notícias provenientes de New Haven, Middletown e Providence, mas nada
temos de provado. Assim já podemos prová-lo. Podemos afirmar que os ratos
que ingeriram o ácido tiveram abortos, pequenas ninhadas ou descendência
com malformações, enquanto que com os rastreios não. Assim saberemos se
foi o ácido a causa real, e isso é o que importa. Não sei se temos a quantidade
necessária, mas poderíamos tentar isolar, no ácido, o fator ativo, presumindo
que não seja o próprio LSD.
»E isto é apenas uma parte — prosseguiu. — Além disso, se obtivermos
fetos deformados, poderemos observar mais de perto o tipo de malformações.
Uma série de informações, que esperávamos obter do Greene, poderão ser
obtidas pelos embriões dos ratos. Principalmente se descobrirmos essa tal
coisa do aumento da cabeça, podíamos então efetuar algumas dissecações e
ver o que descobriríamos.
— Outra coisa — acrescentou Beth. — Se bem que seja provavelmente
mais difícil efetuar extrapolações para os humanos, Valeria a pena ter em
conta a frequência da deformação. Sabemos pelo teu caso, Ann, que nem toda
a gente que tomou o ácido tem forçosamente de abortar aos três ou cinco
meses. Com os ratos temos possibilidade de ver a frequência com que
atingem o termo e se são ou não normais. Mas, tal como eu disse, não estou
certa de que possamos extrapolar o número, com certeza. Contudo, se se
perguntar se aquilo causa ou não deformações e abortos, se se trata dum
fenômeno do tipo ou tudo ou nada, se obtivermos uma resposta, afirmativa,
podemos estar certos de que se trata daquilo que pensamos. Se as cabeças se
apresentarem aumentadas, podemos estar certos de que é pela mesma razão
que nos fetos humanos.
Ann escutava.
— Que querem dizer com isso de «ver se são normais»? Os que
nascerem?
Fez-se repentinamente silêncio, quando os outros compreenderam o que
Ann estava a perguntar. Finalmente Doc respondeu:
— Deveria dizer-se que há possibilidades de que um feto com
malformação possa atingir o termo do tempo, mas até agora não temos
qualquer indicação de que isso possa acontecer. — Tentou dizê-lo tão
suavemente quanto possível.
— Eu... Eu acho que nunca tinha pensado nisso — disse ela, engolindo
as lágrimas.
Virou-se para Charlie, procurando apoio. Ele aproximou-se dela e pôs-
lhe o braço por cima.
— Trata-se apenas duma possibilidade teórica — insistiu. — Não há
razão absolutamente nenhuma para pensarmos que possa vir a acontecer.
Ela mordeu o lábio nervosamente. Olhando para os outros, tentou sorrir.
— Parece-me que gostaria de tomar ar — disse.
Charlie ajudou-a a levantar-se e foi buscar os casacos. Ela já ultrapassara
os sete meses e estava muito grande.
— Voltamos já — disse Charlie e dirigiram-se para a porta da frente.
Doc abanou a cabeça.
Há quatro meses que eu insistia que lhe dissesse. Agora vai ser-lhe mais
difícil.
— Espero que isto não lhe lixe os dois próximos meses — comentou
Justine.
Doc disse, em tom de acusação:
— Bom, se lhos lixar, a culpa é de Charlie. Ele sabia que estava a
esconder-lho.
— Sinto-me chateada por ter sido eu quem levantou o problema — disse
Beth. — Se não tivesse aprofundado tanto...
— Tretas! — Explodiu Doc. — O Charlie não pode mentir por omissão
e ficar à espera que o resto das pessoas lhe deem cobertura, quando nem
sequer chegaram a saber qual foi a mentira.
— Eu sei — murmurou Beth —, mas, mesmo assim, sinto-me chateada.
Doc pôs-lhe um braço nos ombros.
— Ninguém está contente com o que aconteceu.
Ali ficaram sentados, a pensar na angústia de Ann. Mudando finalmente
de assunto, Kip virou-se para Beth.
— Parece que tu também tens tido os teus problemas de trabalho.
— Oh, quais? — Perguntou Beth.
Kip riu-se.
— Charlie começou a contar-me umas coisas sobre esse tipo, o Bill...
Não me lembro do seu último nome.
— Ah, sim — disse Beth. — O Bill Hebb. Não é que eu tenha realmente
problemas com ele; estou apenas à espera que eles surjam.
E explicou tudo sobre o novo trabalho do Bill.
— Quando é que ele começa a trabalhar com esse vírus? — Indagou
Justine.
— Qualquer dia, acho eu. Chegaram hoje algumas fibras de tecido
celular, juntamente com uma coisa que julgo ser uma remessa do vírus
congelada. Acho que primeiro ele irá começar por trabalhar no
desenvolvimento das células.
— O Tom Darnell não está também a trabalhar com ele? — Perguntou
Doc.
— Há de estar — afirmou Beth —, mas por agora anda numa dessas
viagens para relatório e por isso, até ele regressar, lá para meio da semana
que vem, o Bill está entregue a si próprio.
— Que viagens são essas? — Doc não ouvira falar delas.
— Todos os meses, mais ou menos, é chamado ao seu quartel-general,
em Iowa, para fazer um relatório do seu trabalho, acho eu, e para falar ali a
alguns investigadores sobre os seus trabalhos. Ele é assim como que uma
figura de proa dos serviços de investigação deles. Tenho esperança de que
também se vá encarregar desta história do material em que Bill está a tentar
trabalhar. Acho que me vou sentir melhor depois disso.
— Será algum tipo de vírus de plantas? — Inquiriu Kip.
— Calculo — disse Beth. — Não consigo imaginar em que mais possam
estar a trabalhar. Meu Deus, espero que seja isso! — Riu-se.
— Duvido que Tom, mesmo desempenhando presentemente um papel
duplo, deixasse o Bill encarregar-se de algo perigoso. O Bill é tão parvo!
— Ele não irá trabalhar no mesmo grupo de células que tu? —
Perguntou Justine.
— Não. Eu estou a utilizar este grupo porque estou a trabalhar no
problema da ferrugem do milho. Possivelmente o Bill estará a trabalhar
noutro problema qualquer. Sei que se falou muito duma infecção por fungos
que começou a afetar as colheitas de soja e que, se se espalhasse, seria
verdadeiramente desastrosa. Ele deve estar a trabalhar em algo do gênero.
Nesse momento abriu-se a porta e entraram Charlie e Ann. O rosto de
Ann estava pálido e ela dirigiu-se logo para a cozinha, sem ir à sala. Charlie
entrou.
— A Ann está cansada — explicou desajeitadamente. — Acho que
vamos voltar para casa.
***
Depois de todos já terem saído, ainda Beth se sentia mal.
— Que coisa tão estúpida que eu disse — queixou-se a Doc.
Doc limitou-se a sentar-se em silêncio na cadeira.
Segunda-feira, 7 de Dezembro
1
O pessoal da Military Intelligence juntara-se de urgência em
Washington, para uma reunião.
Meus senhores, gostaria de começar por vos pedir desculpa da mudança
repentina da data desta reunião, mas foi imperioso antecipá-la da sexta-feira
próxima para hoje, segunda-feira, devido a alguns acontecimentos ocorridos
mesmo no fim da semana passada e durante o fim de semana. Também alterei
toda a agenda, por razões que se tornarão óbvias. Pearson, quer fazer o favor
de começar?
Com certeza. Todos têm memorandos com o mais recente relatório de
Johnson, que recebemos na sexta-feira. Nas costas desse relatório têm
também o meu sumário. Resumindo, Johnson testou a eficácia das suas
recém-construídas famílias gripe-botulino e isolou seis espécies de vírus,
cada um contendo um mutador distinto ligado ao gene atenuado da toxina
botulina. Foram denominados com sufixos segundo a letalidade do vírus.
Gostaria de falar deles por uns momentos. Lembrem-se de que lhes disse, em
Setembro passado, que a potência letal do vírus era expressa em termos de
número de pessoas que eventualmente mataria, partindo de cem pessoas
infetadas. O sufixo utilizado na nossa nomenclatura é esse número dividido
por cem, isto é, o número de pessoas mortas por cada uma em cem infetadas
inicialmente. Assim, se não se verificasse o alastramento do contágio, o
sufixo seria um e se houvesse cem por cento de estabilidade dos genes
botulino, o sufixo seria então dez mil. Baseados nos estudos em tecidos de
cultura, as seis famílias foram numeradas com 1.25, 3, 10, 78 e 4250. Isto
significa que temos famílias de vírus que matarão, pelo menos, mais uma
pessoa por cada quatro inicialmente infetadas e, no máximo, metade da
população numa cidade de dois milhões de habitantes. No primeiro caso,
poder-se-ia presumir que não se espalharia a outras cidades e que, da parte do
inimigo, não haveria capacidade de isolar o vírus botulino. No último caso,
poder-se-iam esperar as duas possibilidades. Claro que a sua utilização difere.
— Estão muito longe da fase de produção?
— O projeto tem progredido a uma velocidade espantosa. Diria que seria
possível começar com a produção do vírus para desenvolvimento
imediatamente. Por outro lado, a velocidade a que este projeto se processou
impediu a apresentação sob outra forma ou a avaliação que normalmente
ocorrem durante um processo deste tipo. De certo modo, o projeto processou-
se a um ritmo assustador. Pelo menos, uma vez, foi perfeitamente evidente
que Johnson deixou o processo desenvolver-se tão rapidamente que mesmo
as medidas elementares de proteção aos que trabalham no laboratório foram
temporariamente esquecidas, o que para mim não é um bom sinal e sugeria
que fosse imposto um adiamento de seis meses para o prosseguimento dos
trabalhos, a fim de que se pudesse meditar sobre tudo quanto já foi feito.
— Enquanto os Russos progridem?
— Meus senhores, gostaria de ouvir todos os relatórios antes que se
entrasse na discussão. Há mais algumas questões de natureza factual?
— Devo então acreditar que temos uma família de vírus que poderia ser
espalhada quase instantaneamente, que mataria apenas uma pequena
quantidade de pessoas, que não envolveria o perigo duma disseminação
rápida e que, mesmo assim, faria ver às autoridades da zona que algo de
muito estranho se estava a passar?
— Acho que o tipo 1.25 daria a saber aos Russos aquilo que possuímos.
— Obrigado. Isso foi perfeitamente obtuso.
— Mais perguntas? Passemos agora ao Gabardine.
— O agente Gabardine foi localizado na semana passada, nos encontros
da Federation of Societies of Experimental Biology, em Atlantic City. Nos
vossos dossiers estão fotografias. Verão que mais uma vez ele trocou de
peruca. O aspecto do rosto é o mesmo de Squaw Valley. Foi localizado no
último dia e, que saibamos, não fez quaisquer contactos durante as reuniões.
Foi mandado seguir e sabe-se que regressou a Nova Iorque, onde se hospedou
no Biltmore. No sábado contactou com um tal Ralph Masco, que vive
sozinho num apartamento em Parkway. Passou hora e meia no apartamento
de Masco, enquanto tentávamos colocar lá um microfone. A certa altura
podiam ouvir-se as vozes no átrio e estavam nitidamente a discutir. Não
conseguimos entender as palavras. Depois disso regressou ao Biltmore e
tomou o elevador para o décimo quarto, ou pelo menos assim o cremos. Não
voltámos a vê-lo.
— Ele percebeu que era seguido?
— Não parece provável. O agente encarregado de o seguir em Atlantic
City disse que Gabardine parecia ter leves suspeitas de ser seguido. Está
obviamente bem treinado.
— E o Masco?
— Estamos a envidar todos os esforços. O seu apartamento está já cheio
de microfones e, logo que saibamos melhor algo sobre os seus movimentos,
tentaremos colocar também algum na roupa. Mas isso demora algum tempo.
Colocamos uma agente no átrio e ela fará tudo o que puder para travar
conhecimento com ele, e não deve demorar muito, a não ser que o tipo seja
esquisito. Ela é boa.
— Sabe-se alguma coisa sobre o que o tipo faz?
— Lida com droga.
— O quê?
— Vende droga. Principalmente nas imediações da Columbia
University. Material fraco: «erva», LSD, anfetaminas. Tanto quanto pudemos
apurar, nada de heroína ou coisa parecida. Tem uma grande quantidade de
LSD no apartamento, mas não encontrámos vestígios de narcóticos. Nada de
rede montada ou coisa do gênero.
— Pensa que a visita de Gabardine foi por prazer?
— Duvido. Se realmente ele já suspeitava que estava a ser seguido,
presumo que não faria contactos desnecessários em semelhantes condições.
— Não estou assim tão certo. Ah, bem, isto não é um debate. Posso
esperar.
Só mais uma coisa que pode ou não ajustar-se em toda esta história. Ele
foi inicialmente localizado na sessão sobre a excisão de enzimas do ADN, a
que nós já tínhamos previsto que assistiria se chegasse a ir aos encontros
FASEB. Mas, ao ser seguido, passou a tarde num simpósio sobre a gênese da
inteligência humana. A nossa hipótese é que ou estava a dar uma falsa pista
ou esperava alguém que não apareceu.
Sei que esta pergunta está deslocada, mas poderei concluir que se
tomarão precauções para que, se ele voltar a ser localizado, não se perca tão
facilmente?
— Não esperávamos alguém tão profissional. Não havia forma de o
sabermos antecipadamente, mas não se preocupe. Não voltaremos a perdê-lo.
— Há mais questões factuais?
— Já puseram a hipótese de obter informações por esse tal tipo, o
Masco? Se ele está metido no mundo da droga, poderíamos pô-lo à prova
com o soro da verdade, sem sequer saber ao que estava a ser sujeito.
— Ponderámos isso e discuti-lo-emos mais tarde.
— Muito bem.
— Mais alguma pergunta? Bom, então, Cortman, faça o seu relatório
sobre a pesquisa epidemiológica.
— Certo. Podemos ter ou não descoberto qualquer coisa. Não está
perfeitamente esclarecido, mas está indubitavelmente a acontecer qualquer
coisa. Na faixa da Nova Inglaterra selecionámos oito cidades, ou distritos,
onde subitamente houve um surto dramático de abortos espontâneos em
mulheres no segundo trimestre de gravidez, período normalmente seguro. As
taxas médias de todas estas cidades aumentaram, em Fevereiro, Março e
Abril, para taxas que as colocam em Junho, Julho e Agosto entre os doze
distritos da Nova Inglaterra com mais elevado índice de aborto espontâneo
durante o segundo trimestre. Estamos a proceder à determinação estatística da
probabilidade de um tal aumento poder surgir por acaso. Mas há um outro
fator que torna perfeitamente claro que este fenômeno não se deve ao acaso.
Alguém tem andado a proceder, desde Dezembro passado, à recolha de todos
os fetos resultantes destes abortos, nestes oito distritos e em mais quatro.
Estamos neste momento a tentar localizar essa pessoa e a tentar saber qual a
sua jogada, mas isso leva tempo.
— E não há nada de anormal nas outras quatro cidades?
— Nada que possamos afirmar. Podem funcionar apenas como controlo.
— Não sei que pensar disto. Tratar-se-á de um ataque dos Russos?
— Não sei se está a falar a sério ou não.
— Nem eu.
— Estamos a encarar a hipótese de que os Russos estejam a testar um
agente abortivo, seja ele químico ou biológico, mas teremos que seguir várias
pistas até descobrirmos algo. A nossa maior esperança reside atualmente no
facto de encontrarmos o tipo que anda a proceder à recolha dos fetos.
— Segundo percebi, ele anda a fazer isso às claras.
— Pelo menos em Providence, onde contactámos com um obstetra. Ele
recolhe-os uma vez por mês, por volta do dia 24. Andamos a investigar as
outras cidades para ver se, antes dessa data, conseguimos pôr alguém a segui-
lo. O dia 24 é quase já daqui a três semanas.
— E as mulheres que abortaram tinham algo em comum?
— Ainda não tivemos tempo de verificar, mas estamos a trabalhar nesse
sentido.
— Na pior das hipóteses, de que é que poderá tratar-se?
— Na pior das hipóteses? Poderá ser um agente infeccioso que provoque
aborto, uma coisa semelhante à rubéola, que causa malformações. Mas
provavelmente tratar-se-á de algo que não apresenta outros sintomas e assim
poderia levar vinte anos a isolá-lo e a preparar uma vacina contra isso, tempo
durante o qual, na pior das hipóteses, não nasceria nenhuma criança nos
Estados Unidos. A pior das hipóteses é muito má.
— Está a sugerir que um tal ataque já poderia ter sido desencadeado?
— Nestas cidades, não. Não tem havido alastramento nenhum e até há
de facto indícios de que as taxas podem voltar a decrescer, sugerindo que se
tratou dum surto isolado. Mas podia ter-se tratado dum teste. A recolha dos
fetos, pelo menos, assim o sugere.
— Quais pensa serem as probabilidades de se estar a dar semelhante
caso?
— Parece-me perfeitamente claro que alguém está a ensaiar qualquer
coisa e qualquer coisa de pouco agradável.
— Pearson, você ainda se sente tão seguro desse tal compasso de espera
de seis meses?
— Não sei que dizer. Dadas as novas informações, apoiaria uma
iniciativa no sentido de proceder a armazenamento de vírus, mas ainda
querería o compasso de espera no que se refere à aplicação. Devem
compreender que se trata de um campo novo e que poderia transformar-se
numa catástrofe se algo corresse mal.
— Não seria também catastrófico se não houvesse nascimentos neste
país durante os próximos vinte anos?
— Não seja burro. O que eu estou a dizer é que não há necessidade de
agir neste mês ou no seguinte.
— Só que talvez teríamos de avisar os Russos que não desencadeassem
nada?
— Mas o que é que os impede de interpretarem a nossa jogada como um
ataque, ou como o contrário dum aviso?
— Poderíamos falar de armazenamento em vez de emprego? Será que
estou certo ao entender que há um consenso quanto ao facto de que o
armazenamento seria conveniente neste momento? Pergunto isto porque,
como todos sabem, seria uma violação do tratado internacional e poderia
levar algum tempo a convencer da necessidade disso certos partidos.
— Alguém se opõe a um pedido de autorização que permita o
armazenamento?
Ninguém falou.
— Vou então solicitar imediatamente essa autorização.
2
Beth chegou ao laboratório, na segunda-feira, quando faltava um quarto
para as nove. Ela e Charlie tinham concordado em começar às nove. Mesmo
assim, seria um longo dia. Os ratos tinham chegado às oito e Beth começara a
transferi-los a três e três para gaiolas, etiquetando os que iriam servir de
controlo, os que iriam sofrer cesariana, e assim por diante. Quando acabou de
os preparar eram dez menos um quarto e nem sinais de Charlie. Irritada,
resolveu começar a preparar a papelada. A parte mais crítica do trabalho
daquele dia seria verificar se os ratos recebiam as doses certas, se os ratos da
experiência eram afastados dos que serviam para controlo e anotar
meticulosamente tudo o que era feito. Por isso, passou uma fastidiosa hora
preparando uma folha de dados para cada rato, com espaços para registo do
peso diário, observações, registos de quando os ratos foram ou deviam ser
injetados com as hormonas, quando entraram no cio, quando se acasalaram e
por aí fora. Estava aborrecida por ter de fazer tudo aquilo sozinha, porque
esperava que Charlie viesse às nove. Eram onze horas quando acabou. Não
estando disposta a continuar a trabalhar sozinha, agarrou num jornal e sentou-
se a ler.
Ao meio-dia telefonou finalmente para casa de Charlie. Foi Ann quem
atendeu.
— Olá, Ann, daqui Beth. Como estás?
— Estou melhor, obrigada. Que desejas?
— O Charlie ainda ai está? Eu esperava-o às nove.
— Ele saiu há dois minutos — disse Ann em tom de desculpa. — A
culpa é minha, se ele se atrasou. Acho que ainda estou um pouco abalada por
causa de sábado à noite e eu insisti para que ficasse até eu me sentir melhor.
— Está bem — anuiu Beth. — Pensei só que ele se tivesse esquecido ou
qualquer coisa e achei melhor telefonar a lembrar-lhe.
— Não, ele lembrava-se. — A voz de Ann denotava depressão.
— Ann, lamento muito o que se passou no sábado à noite. Foi uma
estupidez da minha parte ter dito aquilo, assim.
— Porquê? — Perguntou Ann. — Porque também me querias evitar a
verdade? Sabes, não estou contente com as notícias, mas houve finalmente
alguém que me disse aquilo que segundo parece toda a gente já sabia.
Parecia que ela e Charlie não tinham tido uma manhã famosa.
— Nem sei bem o que quero dizer — disse Beth, atrapalhada. — Acho
que lamento é o facto de aquilo ter saído à frente de tanta gente e de forma
tão brusca.
Ann riu-se.
— Bom, concordo que foi uma grande bofetada. — Fez uma pausa antes
de prosseguir. — Beth, respondes-me sinceramente se eu te fizer uma
pergunta? Se não mo prometeres, não pergunto.
Ela inspirou fundo.
— Diz lá.
— Que mais é que eu ignoro? — Perguntou Ann.
Beth expeliu o ar.
— Nada. Nada, que eu saiba. Só sei que não tens qualquer razão para te
preocupares com o parto, tal como te disse Charlie. Eu penso sinceramente, e
o Fred concorda, que o facto de teres tomado qualquer coisa que causa
abortos e malformações nos fetos, torna mais provável a possibilidade de
surgir qualquer problema, mas não temos processo de calcular a
probabilidade disso e pode ser que não haja nenhuma.
— Que sugeres, então?
— Bom, primeiro, não recomendaria um aborto provocado. Acho que o
risco não é de tal nível. Além disso, agora já é impossível. Não seria um
aborto, mas um parto prematuro. — Ela calou-se por um momento. —
Falaste ao teu obstetra?
— Sobre quê?
— Bom, por vezes os recém-nascidos, podendo ainda clinicamente ser
mantidos vivos, morrem quando há sinais concretos de grave malformação ou
atraso.
— Queres dizer que se matam?
Beth gelou.
— Desculpa. É algo em que devias pensar, se nascesse realmente muito
deformado.
— Acho que sim. — A voz de Ann era de gelo. — Obrigada — disse
bruscamente e desligou.
Beth estava sentada, sem saber o que fazer, quando Charlie entrou.
— Olá — disse ele numa voz jovial. — Desculpa ter vindo tão tarde.
Nem sequer tento desculpar-me. — Olhou, em volta, as gaiolas dos ratos e as
folhas de registo que Beth preparara. — Começaste sem mim. Isso foi muito
bonito da tua parte. — Sorriu-lhe, mas reparou de repente na expressão dela.
— Telefonei para tua casa — explicou para saber onde estavas. Falei
com a Ann. — Tentou falar do assunto com naturalidade, mas a voz saiu-lhe
monocórdica e inexpressiva.
— Oh! — O entusiasmo de Charlie arrefeceu imediatamente. — Foi um
fim de semana difícil.
Beth assentiu.
— Se tens ai o ácido, podemos dissolvê-lo e começar a alimentação.
Tenho as agulhas preparadas e todos estão etiquetados e prontos a começar.
— O entusiasmo que ela sentira às nove horas parecia agora total mente
esgotado.
Ele tirou do bolso um frasco.
— Aqui está o ácido. — Passou-o a Beth. — Ainda não comi nada hoje.
Queres almoçar comigo lá em baixo, ou já comeste?
Beth estava longe de pensar em comer, mas sentia-se aliviada por poder
deixar o laboratório por momentos. Saiu com Charlie.
Lá em baixo, no snack, comeram calados, no meio do barulho. Por fim
Beth disse:
— Charlie, peço desculpa por sábado à noite. Não imaginei...
— Que eu lhe tinha ocultado? — Charlie riu tristemente. — Bom, já o
paguei e só lamento que tu tenhas sido metida nisto. Não fizeste nada errado.
Apenas pensaste que eu era a pessoa séria e honesta que pareço ser.
Ela pousou as mãos nas de Charlie.
— Deixa lá. Talvez tenhas feito mal, mas não deves começar a detestar-
te por isso. Não remedeias nada.
— Sinto-me terrivelmente acossado, como se tivesse de ficar de braços
cruzados à espera de ver que espécie de filho vou ter. Estava quase a chorar.
— Talvez saibamos mais alguma coisa dentro de algumas semanas —
sugeriu Beth. — As experiências com os ratos hão de dar-nos algumas
informações que queremos.
— Eu sei — disse ele. — Só que não consigo descobrir qual é o ácido.
Se eu ao menos conseguisse descobrir donde tinha vindo ou coisa do gênero!
Veio-me ontem à noite à ideia de que só houve um carregamento talvez
porque alguém descobriu porque não era seguro. Se conseguíssemos localizá-
lo... — Estava completamente deprimido. — Mas o tipo sumiu-se há meses.
É um beco sem saída, como todos os outros que tentámos.
Mas Beth não se deixara desencorajar pela depressão de Charlie e
perguntou obstinadamente:
— E que há quanto ao amigo do Warren? E quanto aos nossos amigos de
New Haven? Já lhes perguntaste?
A voz de Charlie soou baixa e triste:
— Não. Talvez devesse telefonar. — E, rindo tristemente, acrescentou:
— Talvez se descubra que todos os que contactaram com o ácido morreram.
3
Nessa noite, já em casa e exausto de ter alimentado à força oitenta e
cinco ratos, Charlie agarrou-se teimosamente ao telefone, Beth desculpara-se,
incomodada pela presença de Ann. Por isso, sozinho no seu escritório,
Charlie deitou-se ao trabalho. Começou por Kip.
— Está bem — disse Kip. — O nome dele era Larry Seigal. Conhece-lo?
— O nome não me é familiar — disse Charlie.
— É um tipo pequeno, judeu, tipo duro, de nariz grande e cabelo negro
comprido. Tem uma cicatriz feia em forma de W na face direita.
— Não, decididamente não conheço — disse Charlie.
— Ele costumava aparecer periodicamente — explicou Kip. — Não sei
bem se vive por aqui perto. De qualquer modo, há já seis meses que não o
vejo, por isso não creio que nos possa ser útil. O Warren já tentou falar com o
amigo dele?
— É o próximo da minha lista — respondeu Charlie. — Falo contigo
depois. — Desligou e soltou um profundo suspiro. «Nada é fácil», pensou.
A seguir telefonou a Warren, que de imediato se ofereceu:
— Claro que sim. Telefono-lhe já e depois volto a ligar para ti.
— Ótimo. Vou telefonar ao Terry Bernett, de New Haven, e ver se ele
me descobre isso. Um dos seus colegas de quarto conhecia pessoas em várias
outras cidades que também tinham tido contacto com o ácido, por isso tenho
esperança de que ele consiga descobrir qualquer coisa.
Charlie desligou e decidiu fazer uma pausa antes de voltar a ligar. Deu
com Ann na cozinha, comendo uma enorme salada.
— Olá — disse ele a sorrir.
Ela estendeu o braço e passou-lho à volta da cintura.
— Como vai isso?
— Devagar — respondeu — e há ainda um longo caminho a percorrer.
Estava a pensar deitar mão a uma chávena de café.
— Que sorte! — Disse amuada. — Andava a evitar o café, por causa da
cafeína. — Enfiou na boca um enormíssimo pedaço de alface. — Só posso
ingerir alimentos saudáveis.
— E para castigo vais durar mais também — disse Charlie em tom de
provocação. — Sentes-te melhor?
Ela encolheu os ombros.
— Sinto-me como se tivesse posto o assunto arrumado ao canto do meu
espirito, onde não dê por ele.
— Não podemos fazer mais nada — disse Charlie.
Ann levantou os olhos para ele.
— Foste tu que meteste aquela ideia na cabeça da Beth?
Charlie pareceu surpreendido.
— Que ideia?
— Aquela de falar ao obstetra.
— Não. Não sei de que estás a falar.
— Está bem, acredito em ti.
— Espera lá. Que é que ela disse?
Ann encolheu os ombros.
— Nada.
Charlie ficou irritado.
— Não, diz lá o que é que a Beth te disse.
— Agora não, Charlie, por favor. Estou cansada — implorou.
— Certo. — Ele abraçou-a. Depois pegou no café e sorveu-o levemente.
— Volta ao trabalho, que eu quero ler um pouco — disse Ann.
Ele curvou-se e beijou-a, depois retirou-se para o escritório. Sentou-se,
olhou o seu bloco, procurou o número de Terry e marcou-o.
Terry respondeu.
— Ainda bem que telefonaste — disse. — Temos estado a pensar como
irão as coisas.
— Muito bem — respondeu Charlie. — Administramos hoje o ácido,
por alimentação forçada, a oitenta e cinco ratas e amanhã vamos injetar as
hormonas para provocar a ovulação.
— Há algo de novo sobre o tipo que tem andado a fazer a recolha dos
fetos?
— Nada — Confessou Charlie. — Penso que temos de ficar à espera que
apareça por cá este mês. De outro modo, só indo a Nova Iorque e tentar
localizá-lo lá, o que daria um trabalho do caraças.
— Olha — sugeriu Terry —, nós estamos mais próximos de Nova
Iorque. Talvez pudéssemos procurar em teu lugar. As pessoas daqui vão
muitas vezes à cidade.
Charlie estava encantado.
— Sim, talvez aceitemos. Deixa-me falar nisso aqui e ver o que pensam,
mas, olha, há uma ajuda de que preciso já, se tens tempo.
Desembucha.
— Estou a tentar caçar esses Gloryhits. Vê lá se consegues saber algo
sobre a sua proveniência ou sobre a razão de terem deixado de aparecer.
Pensamos que só terão aparecido uma vez porque alguém se apercebeu do
que estava a acontecer. Gostava de ver se encontrava essa gente.
Terry soltou um leve assobio.
— Isso podia ser uma pista. Mas espera um segundo — Tapando o
bocal, gritou lá para baixo: — Michael, podes levantar o auscultador aí de
baixo?
Michael pegou na extensão.
— Está?
Terry explicou:
— Michael, o Charlie Cotten está ao telefone. Quer saber por quem é
que arranjaste os Gloryhits. Ele quer localizá-los.
— Ah, isso é boa ideia. Recebi-os do Mario Caletti, — disse.
— Quem? — Perguntou Charlie.
— Mário Caletti.
— Fala-me dele.
— Deixa ver — disse Michael. — Tipo pequeno. Italiano com nariz
grande e cabelo comprido. Do tipo bochechudo. — Fez uma pausa e
acrescentou: — Oh, mais uma coisa. Tem uma grande cicatriz na face.
— Espera ai — disse Charlie, uma cicatriz do feitio dum W?
— Sim, parece-me que sim — concordou Michael. — Conheces o tipo?
— Parece-me que sim — disse Charlie baralhado. — Mas o nome dele
era Larry Seigal e era judeu.
Michael riu-se.
— É natural. O tipo é mais falso que uma nota de três dólares. Seigal é o
tipo que te forneceu o ácido?
— É.
— Bom, não devem existir muitos «passadores» que condigam com essa
descrição.
— Olha — disse Charlie — não me interessa como ele se chama. Ele
está em New Haven?
Terry pensou.
— Desde o ácido que não o vejo.
Lá em baixo, Michael virou-se para Allison:
— Tens visto por ai o Mario Caletti?
— Não — disse ela. — Ele não desapareceu logo depois de a Sally
Carter ter abortado?
— Ela que fale mais alto ou então passa-lhe o telefone! — Pediu
Charlie.
Michael explicou:
— Parece que o Caletti se evaporou, imediatamente a seguir a uma
mulher que nós conhecemos ter abortado. Lembras-te, Terry? Ela tinha
tomado os Gloryhits e abortou ao fim de três meses.
— Já sei a que te referes — Disse Terry. — Mas que queres dizer com
isso de «imediatamente a seguir» a ela ter abortado?
— Ah, estávamos um grupo dos nossos na Taberna do Morty... Acho
que tu não estavas lá, pois não Terry?
— Quando?
— Quando o Steve entrou e nos contou da Sally?
— Não, mas lembro-me que vocês contaram, quando chegaram a casa.
— Pois. Bem, mas o Steve entrou e sentou-se, obviamente preocupado.
Disse-nos que acabara de deixar a Sally na sala de observações e que ela
abortara. Bom, o Mario, ou lá que raio de nome é o dele, ficou
assustadíssimo. Lembro-me disso, porque não me parecia que ele tivesse tido
qualquer ligação com ela. Ficou amarelo e alguns minutos depois levantou-se
e saiu. Desde aí, acho que não voltou a ser visto na cidade.
Charlie encheu o peito de ar e expeliu-o lentamente.
— Parece que o Mario sabia o que se ia passar.
— Ou depreendia depressa — sugeriu Terry.
— Meu Deus, mas que parvo que sou — disse Michael em tom de
desculpa. — Devia ter pensado nisso na semana passada.
— Deixa lá — disse Charlie. — Ainda estás a tempo. Olha lá, podes
investigar o que há com aquelas pessoas que conhecias nas outras duas
cidades e saber se todas elas obtiveram o ácido através dele?
— Claro. Podemos tratar disso já — concordou Terry.
— Insiste no sentido de te fornecerem descrições físicas. Já se viu que o
nome não tem grande importância — avisou Charlie.
— Assim farei — prometeu Terry. — E tentaremos encontrar-lhe o
rasto, esteja ele onde estiver.
— Obrigado — disse Charlie. — Se não tiver noticias tuas até à meia-
noite, posso telefonar-te para saber o que há?
— Não te preocupes que nós telefonamos-te por essa hora — afirmou
Terry.
— Ótimo. Obrigado.
Charlie desligou. «Devia telefonar ao Warren», pensou, «e pedir-lhe que
obtivesse das pessoas de Middletown uma descrição física. Sabe Deus
quantos nomes é que aquele tipo pode estar a utilizar.» Tentou imaginar a
vida dum vendedor ambulante de droga. Compreendeu que Seigal deveria
ter-se apercebido do que a droga estava a causar. Se não fosse isso, então
porquê a surpresa? Mas ele teria de ter visto muitos casos para ter feito a
associação. Tentou lembrar-se de quando lhe dissera Kip que tinha visto o
Seigal, pela última vez, em Boston. Seria depois de terem começado os
abortos? Não tinha a certeza. Mas se ele tinha desaparecido por causa
daquilo, seria difícil encontrá-lo.
O telefone tocou e Charlie levantou-o.
— Está lá? — Disse.
— Daqui o agente 047, informando de Middletown.
— És tu, Warren? — Perguntou Charlie.
— Ah, já estragaste o meu disfarce — lamentou-se. — Falei com as
pessoas de Middletown e trata-se dum passador diferente: um tipo chamado
Mario Caletti.
— É o mesmo — disse Charlie.
— O quê?
Charlie contou a conversa telefônica com New Haven.
— Bom, isto ajusta-se aos factos. Ele foi visto aqui, pela última vez,
entre fins de Maio e princípios de Junho; não tinham a certeza, nem fazem
ideia de para onde se sumiu.
— Certo — disse Charlie num suspiro e escreveu na sua lista, à frente de
Middletown: «Mario — fins de Maio princípios de Junho.» — Acho que,
agora, vou é esperar pelas notícias de New Haven.
— Muito bem — concordou Warren. — Se houver algo de importante e
não for ainda muito tarde, telefona-me.
— Está bem — prometeu Charlie. Desligou e, olhando uma pilha de
jornais que não lera e que estavam em cima da secretária, encolheu os
ombros. «Podia ler qualquer coisa até eles telefonarem de novo», pensou, e
pegou num ao acaso.
Já ia no terceiro jornal quando o telefone tocou, era um quarto para a
meia-noite. Levantou-o ao segundo toque.
— Pode ser que tenhamos alguma coisa — disse Terry. — Primeiro,
trata-se do mesmo tipo nas três cidades. Em duas chama-se Larry Seigal e na
terceira chama-se Mario.
— Isso condiz — disse Charlie. — Ele é Mario em Middletown.
— Então abrange-as todas, não é?
— É. Mas não nos fornece grande pista. Ele ainda frequenta algum dos
locais com que contactaste?
— Não — disse Michael do outro telefone de Terry. — Desapareceu
definitivamente da zona por volta de 1 de Junho. Desde ai, ninguém voltou a
vê-lo.
— Tens alguma ideia de para onde poderia ter ido?
— Realmente não — confessou Michael. — Alguém me disse que ele
costumava aparecer em Columbia.
— Isso não é de grande ajuda — disse Charlie.
— Eu sei — confirmou Michael. — Reduz-se a um milhão de pessoas,
se é que ele ainda lá está. Mas pensei que talvez, com aquela cicatriz, alguém
tivesse reparado nele.
— Também me parece — disse Charlie. — E podíamos também
investigar os dois nomes.
— Mas por hoje já é muito tarde para se fazer mais alguma coisa.
— Está bem. Se alguém souber alguma coisa dele, devemos ser logo
informados.
— Certo — respondeu Charlie. — Amanhã tentarei telefonar a alguém
de Columbia. Não me parece que conheça alguém, lá, que ande metido no
ambiente da droga, mas vou tentar desencantar alguém. Volto a contactar-te,
se descobrir alguma coisa.
— Certo — concordou Michael. — Nós faremos o mesmo.
— Ótimo — respondeu Charlie, bocejando inconscientemente. — De
qualquer forma eu contacto.
Trocaram despedidas e Charlie desligou. Exausto, desceu para o quarto
onde Ann já dormia a sono solto. Ann e Disney.
Quinta-feira, 17 de Dezembro
A busca em Columbia nada revelou. Entre Charlie e toda a malta de
Boston, Terry e os seus amigos de New Haven, foram umas trinta pessoas a
telefonar para Columbia. Nenhuma das pessoas de Nova Iorque reconheceu
os nomes e só um pareceu reconhecer a descrição. Mas, mesmo esse, por fim
acabou por não confirmar.
Charlie concentrou a atenção nas experiências com os ratos. Cada dia se
tornava mais evidente que a evolução que estavam a observar era a mesma
que Doc observara nas suas doentes. Na segunda semana, Beth e Charlie
pediram ajuda a Waterper para examinar os fetos.
Na quarta-feira da segunda semana pararam para proceder a um
reconhecimento. O Greene ia aparecer, mais dia menos dia, e eles queriam ter
dados para lhe atirar.
— Por onde é que havemos de começar? — Perguntou Charlie.
— Pelo princípio — sugeriu a Waterper em ar de troça. — Que há sobre
dosagens, níveis de hormonas, eficácia do acasalamento e toda essa treta?
Beth foi ao quadro.
— Tenho eu esses dados — disse. — Tínhamos dois comprimidos do
ácido experimentado, que continham cento e vinte e cinco microgramas de
LSD cada um, o que corresponde a uma dose de cerca de dois microgramas
por quilo de peso. Quanto aos elementos contaminantes, não sabemos qual a
quantidade presente mas presumimos que será uma dose para uma pessoa
com sessenta quilos de peso. Temos assim um centésimo de comprimido para
cada rato. Passaram fome toda a noite e foram depois alimentados à força
com ácido dissolvido em açúcar. A todos foram administradas hormonas para
provocar a ovulação, no mesmo dia em que tomaram o ácido. Todos foram
acasalados com machos adultos e normais. Quer os ratos de controlo, quer os
que tomaram o ácido apresentaram um índice de gravidez de 80%, por isso
não parece que aquilo interfira na concepção nem no acasalamento. Essa
parte está assim ultrapassada. — Acabou de escrever os pormenores no
quadro. — Queres que eu informe dos tamanhos das ninhadas, ou fá-lo-ás tu,
Charlie?
Charlie estava a copiar as notas de Beth.
— Não, continua. Vais muito bem.
Ela assentiu. Virando-se para Barbara forneceu-lhe alguns antecedentes.
— O que pretendemos saber relaciona-se com os abortos, tal como
aqueles a que assistimos nos seres humanos, entre os quais tendiam a incidir
nos três e cinco meses, o que corresponde a sete e onze dias nos ratos. Mas
isto é um cálculo aproximado. Até agora, vamos ainda nos nove dias. Nos
ratos não investigamos os abortos, porque não é esse o caso deles. Em vez
disso, o feto é reabsorvido pela mãe, como se fosse devorado, sempre que
morrem por outras razões. Assim, o que temos feito é observar quantos fetos
cada mãe tem nos diversos estádios da gravidez. — Desenhou um esquema
no quadro. — Primeiro, deixe-me fornecer-lhe os números por ninhada
média, nos que tomaram o ácido e nos que não tomaram. — Ela escreveu os
números.
Número médio por ninhada
Dias de gestação Tomaram ácido Não tomaram ácido
4 11,5 11
5 9,5 12
6 8,0 11.5
7 8,5 11
8 8,0 11.5
9 7.5 12

»Assim, os ratos que tomaram o ácido antes de engravidarem


apresentam perdas evidentes dos fetos, a partir do quinto dia. Devo salientar
que, aqui há anos, se provou que o LSD puro, administrado a ratos antes de
engravidarem, não provocava um tal efeito. Por isso, estamos em presença de
algum contaminante no ácido.
— No entanto esses números são enganadores, porque há uma
distribuição ambivalente nos ratos que tomaram o ácido — contrapôs Charlie.
— Ia mesmo falar nisso — disse Beth. — Está provado que alguns ratos
estão a ser afetados e outros não. Por exemplo... — Ela procurou uma folha
do seu bloco. — Aos nove dias examinamos quatro ratos, dois a quem o
ácido tinha sido administrado e dois a quem não fora. Os dois de controlo
tinham onze e treze fetos, o que anda próximo do normal. Mas aqueles a
quem fora administrado o ácido tinham quatro, cinco e onze. Dois deles
estavam normais, enquanto os outros dois tinham menos de metade do
número normal. E assim tem acontecido em todas as fases. Por isso, parece
que o tamanho de algumas das ninhadas é afetado, enquanto o de outras não.
Se deixar de lado as mães com dez ou mais fetos, os dados apresentar-se-ão
assim, a partir do sexto dia de gestação. — E Beth passou para o quadro as
suas notas:
Dias de gestação 6 7 8 9
Ninhada média (ratos afetados) 6.5 6.0 6.0 4.5
Ninhada média (ratos de controlo) 11.5 11.0 11,5 12.0
»Temos, assim, que nas ninhadas afetadas o número baixa para cerca de
metade ao fim de seis dias. Não sei se está a decrescer de novo ao nono dia.
Nessa fase só temos dois ratos e o número poderia ser até excepcionalmente
baixo. Temos de esperar para ver.
— Mas o mais sintomático é termos começado a observar nos fetos a tal
deformação característica da cabeça — disse Charlie. Beth pousou o giz e
sentou-se. Charlie parou. — Desculpa, Beth, não queria interromper-te.
Ela encolheu os ombros.
— É tudo quanto tenho a dizer. O resto dos dados refere-se às
malformações e isso é do teu foro e do de Barbara.
— Certo — disse Charlie. — Vou dar algumas informações sobre o
assunto e depois quero ouvir o que tens a dizer. Barbara.
— Ótimo — concordou ela.
— Bom. — Ele levantou-se e foi ao quadro. — Não vou falar da
natureza das malformações, mas apenas dos números. O que fizemos foi
pegar em cada feto e colocá-lo num frasco com formol, dando um número de
código a cada um. Punha um no frasco e o outro anotava-o na coluna de
maior ou menor deformação. Assim, quando os registávamos só sabíamos o
número de código de cada um. Desconhecíamos de que mãe provinham. Isso
livrava-nos de preconceitos em relação aos resultados. — Pôs depois os
dados na mesa, dando as percentagens de malformações nos ratos de
controlo, nos que tinham sido afetados pela experiência, e nos que tendo sido
utilizados não estavam afetados. Traçou no quadro uma grelha, junto da de
Beth. — Os números são assim:

Dias de gestação 4 5 6 7 8 9
Percentagem de
deformações, ninhadas
pequenas
(«afetadas») 10 35 75 91 83 89
Percentagem de
deformações, ninhadas
grandes
(«não afetadas») 0 0 5 10 5 20
Percentagem de 4
controlos, deformados 0 0 0 0 0

»Aqueles 4%, nos de controlo foram devidos apenas a um feto. Não sei:
olhei-o e voltei a olhá-lo e era duvidoso, mas registei-o como deformado e
por isso aparece no quadro.
— E quanto aos não afetados? — Inquiriu Barbara. — Achas que é um
número verdadeiro?
— Ah, sim — respondeu Beth. — São os dez ao todo e é um número
demasiado elevado para ser casual.
Barbara fez uma anotação ao lado dos dados.
— Há mais uma coisa de que te deves lembrar — salientou Charlie —, é
que, nos dados de ninhadas afetadas, esses números não incluem os fetos que
possivelmente morreram e foram reabsorvidos. Se partirmos do princípio de
que esses também eram portadores de malformações, os números serão
devidamente mais elevados.
Barbara franziu o sobrolho.
— Parece-me que ao sétimo dia os números não poderíam ser muito
mais elevados.
Charlie acenou a cabeça.
— Acho que realmente no sétimo dia os números totalizados poderíam
estar próximo dos 100%.
Barbara olhou para os dados. Era a primeira vez que via tudo resumido e
esquematizado.
— Que pensam das ninhadas não afetadas e em que parece não ter
havido perdas de fetos? Há nessas algumas deformações?
Também desta vez não faziam ideia.
— Talvez — disse Charlie — venham a abortar numa fase mais
adiantada, a equivalente a cinco meses. Pensamos que o mesmo acontecerá
com os que estão deformados, no grupo dos afetados.
— Mas, fundamentalmente, temos de esperar para ver — concluiu Beth.
Barbara concordou.
— Mais alguns dias e devemos ter o que queríamos. Faltam doze dias
para o termo, não é?
— Certo — confirmou Charlie. — Da próxima terça-feira a oito dias.
— Parece-me que é tudo. Não é, Charlie? — Perguntou Beth.
— Que me lembre, é. Porque não revês tu agora os teus resultados,
Barbara?
— Ótimo. Não preciso do quadro. — Ela folheou alguns papéis. —
Quando falaram de fetos deformados vocês referiram-se sempre a esta
deformação específica, consistente no aumento de tamanho da cabeça. A
primeira coisa que quis saber é se haveria outras malformações que eu
pudesse detectar. Trabalhei, sobretudo, com fetos de oito a nove dias de
tempo, porque os outros são demasiado pequenos para que se faça alguma
coisa, mas também observei alguns dos mais pequenos. Resumindo: não
encontrei nada. Existia aqui e ali uma anormalidade, mas encontrei-a tanto
nos ratos de controlo como nos que foram submetidos a experiência, e numa
frequência semelhante à que se vê normalmente. Por isso, quando se fala de
anomalias causadas por este ácido ou pelo contaminante que ele contém, só
estamos a referir-nos ao aumento de tamanho da cabeça.
»O aumento é geralmente do tipo telencefálico: aumento da parte
anterior do cérebro. Dá a impressão de que duplicou todo o sistema de células
nervosas no telencéfalo. Dentro de dias, quando tivermos fetos maiores, vou
fazê-los observar mais pormenorizadamente por um neuranatomista, mas
resumidamente é disso que se trata.
Barbara sorriu.
— Bem, pouco mais há. Só deixei por dizer o que a deformação não é.
Não é nada de que já tivesse visto ou ouvido falar alguém meu conhecido.
Não é um tumor, não é um descontrolo geral de células, não é uma disfunção
dos neurônios. O telencéfalo apresenta os padrões normais de tipos de
células, de camadas e de divisões. Só que, por qualquer razão, há mais células
em cada camada do que deveria haver. Não sou um biologista especializado
em desenvolvimento, mas parece que todas as células se dividiram uma vez
extra, antes de pararem o desenvolvimento, se é que isto faz sentido. Até os
olhos são maiores.
— Os olhos? — Perguntou Beth. — Pensei que era só o telencéfalo.
— Isso é uma parte — explicou Charlie. — O olho é um alto da parte
posterior do cérebro que sobressai da face da cabeça. A visão não é como o
ouvido ou o olfato, em que as células periféricas enviam informações para o
cérebro; os olhos são de facto, uma parte do cérebro.
Beth encolheu os ombros.
— Certo.
Barbara voltou a sentar-se.
— E é tudo.
Durante um momento todos permaneceram sentados. Beth olhou para
Barbara e para Charlie.
— Parece sensato, ou não, continuarmos a atuar como até aqui? À luz
destes factos, haverá algo que tenhamos de modificar?
Foram interrompidos por uma pancada na porta. Bill Hebb espreitou.
— Olá, Charlie, a Beth está ai? — Olhou em volta e localizou-a. —
Estás ocupada? — Indagou.
Beth mostrou-se irritada.
— Estou!
Bill encolheu os ombros.
— Bom, quando acabares, podes ensinar-me a utilizar a capela de
escoamento vertical?
Barbara pareceu confusa.
— Uma capela de escoamento vertical?
Bill fez uma careta.
— Obrigam-nos a utilizá-la quando trabalhamos com estes vírus, se bem
que eles sejam inofensivos. — Ele estava obviamente aborrecido com tal
exigência.
— Trata-se de filtros — explicou Beth, ignorando por completo o
comentário de Bill. — Trabalhando dentro deles, asseguramo-nos de que
quaisquer vírus que saíssem dos frascos ou dos tubos de ensaio seriam
recapturados e não entrariam no ambiente.
Bill virou-se para a porta.
— Bom, eu estou no meu laboratório a trabalhar até tu estares livre. — E
começou a retirar-se.
— Espera aí! — Gritou Beth. — Que-vais fazer até lá?
Ele voltou a encolher os ombros.
— Vou começar a trabalhar nos vírus que a CRA me enviou. As células
estão a desenvolver-se bem.
Beth deu um salto na cadeira.
— Vais começar a trabalhar com os vírus em cima da bancada?
— Claro, e porque não?
Beth estava furiosa e, virando-se para Barbara e Charlie, disse — Vocês
continuem e acabem sem mim. Isto vai demorar, afirmo-lhes eu. —
Desalvorou porta fora, com Bill Hebb atrás.
Dirigiu-se ao laboratório do Tom Darnell, que ficava do outro lado do
átrio, e foi encontrá-lo sentado à secretária a escrever.
— Está na hora da conversa! — Disse-lhe, puxando uma cadeira para
junto da secretária.
Tom ficou surpreendido com o tom de Beth. Bill ficou em pé, a curta
distância deles.
— Que há? — Indagou Tom.
— Há que estou fula! — Retorquiu Beth. — Pensei que ias
superintender no trabalho do Bill, no que respeita àquela coisa do CRA.
— E vou — respondeu ele calmamente.
— E isso inclui deixá-lo trabalhar com o vírus em cima da bancada?
Tom virou-se para Bill.
— Pensei que ias utilizar a capela de escoamento vertical, de modo que
nenhum vírus extraviado pudesse passar para o ar. — Havia na frase um quê
de mordacidade.
Bill encolheu os ombros.
— Eu estava à espera que... Que Beth me demonstrasse como utilizá-la.
Tom olhou para Beth e ela explodiu:
— Mas ele ia servir-se da bancada até que eu tivesse tempo de lhe fazer
a demonstração!
Bill olhava para um e para outro, obviamente desinteressado da
discussão.
— Eu posso esperar, até que me possas demonstrar, se quiseres.
Beth ripostou:
— Se eu quiser?! Incrível, simplesmente incrível! Será que tens estado a
trabalhar, durante todo este tempo, no desenvolvimento de células, em cima
da bancada?
— Claro. Onde é que havia de estar? — Disse ele.
Ela olhou para Bill, que permanecia impassível perante a fúria dela.
— Quando tiver tempo venho buscar-te para veres como é. Não abras
nenhuma dessas cápsulas de vírus antes! Percebes?
Bill virou-se para sair.
— Sim, percebo — disse-lhe com ar trocista.
Beth esperou que ele saísse para se dirigir a Tom.
— Isto não pode continuar — declarou. — Sabias que ele estava a
trabalhar sem a segurança duma capela?
Tom respondeu cautelosamente:
— Sabia que ele estava a efetuar alguns trabalhos sem capela.
— Mas o que é que sabes acerca do tipo de células que ele está a
utilizar? Sabes que contêm alguns vírus ou plasmídeos? É realmente uma
estupidez utilizar essa espécie de células fora duma capela de segurança, sem
que primeiro se tenha passado horas a investigar o que elas de facto contêm!
— Então talvez devesses perguntar-me primeiro se as células tinham
sido testadas, antes de te atirares a mim dessa maneira — respondeu ele
calmamente.
Beth foi apanhada de surpresa.
— Queres dizer que foram testadas? Obedecendo a parâmetros que
Lloyd aprovaria? — Ela não queria apenas um atestado passado pelos da
indústria, que eram muitas vezes levados por razões diferentes das da
segurança pública.
— O que eu quero dizer é que, num laboratório civil, onde as pessoas
tentam manter-se de boas relações uns com os outros, seria sensato acertar
pontos sobre se há ou não problemas, antes de se lançarem num assalto em
larga escala. — Ele mostrava-se preocupado. — Todas estas experiências
foram discutidas com o Lloyd e ele deu a sua aprovação. Eu nunca pensaria
em agir doutra maneira.
Beth não sabia que dizer.
— Mas que dizes ao facto de o Bill trabalhar com o vírus sobre a
bancada e em espaço aberto? Tem paciência, mas isso é perigoso.
— É evidente que, se é perigoso ou não, isso depende da natureza do
vírus, mas concordo que ele não o devia fazer e já lhe disse que não o fizesse.
Agradeço teres-me chamado a atenção para essa divergência e daqui em
diante vou manter uma vigilância mais apertada sobre ele.
Falava num tom de porta-voz da administração.
Beth estava perplexa. Maldosamente perguntou:
— Quanto tempo mais ele vai ficar a trabalhar por cá?
— Provavelmente até meados de Março. É quando pensamos que ele
acabe o trabalho aqui.
Beth levantou-se e saiu, dizendo por cima do ombro:
— Quanto mais depressa melhor!
Charlie e Barbara iam a sair do laboratório, naquele momento. Ficaram
admirados com a sua explosão.
— Grrr! — Murmurou ela. — As coisas, ali, estão a atingir o ponto de
ruptura.
— Parece-me que não percebi bem aquilo — disse Charlie. — Vais
connosco lá abaixo tomar café?
— Vou com vocês, mas acho que preciso mais dum sedativo do que dum
café — respondeu Beth. Enquanto desciam, explicou o que se tinha passado.
— Parece que estás a deixar preocupada toda a gente por lá. Eu pensei
que o Darnell era um tipo sensato — disse Charlie.
— Também eu — respondeu Beth. — Mas parece-me que ele está a pôr
os seus vínculos de confraria acima da segurança pública.
— Pensei que havia normas muito rígidas, para esse tipo de pesquisas —
insinuou Barbara.
— E há — confirmou Beth. — Mas não são formas de atuação
compulsivas. Os cientistas são todos boa gente, não têm de ser controlados,
sabes? Nunca poderíam fazer alguma coisa de errado.
Charlie objetou:
— Ora vamos, isso não é verdade. Há uma constante pressão e vigilância
para obrigar à submissão, tal como tu fizeste agora. E, se bem que não haja
sanções pela não obediência, há uma comissão permanente que investiga as
queixas, se se tiver de chegar a esse extremo.
— Certo — concordou Beth. — Mas, durante todo este tempo, acho que
a comissão não fez absolutamente nada.
— O que significa que não houve queixas — insistiu Charlie.
— O que não quer dizer mais nada além de que os cientistas não cortam
na casaca uns dos outros.
— Talvez — concedeu Charlie.
Sábado, 19 de Dezembro
Ralph Masco estava deitado de lado e passeava lentamente um dedo pela
parte de trás das coxas dela. Ela enroscou-se, chegando-se para ele.
— Faz cócegas.
Ele puxou-a para si e beijou-a. Duas horas antes ainda ela era uma
estranha que vira no elevador do prédio. Mudara-se para o apartamento vago
no andar de baixo havia duas semanas, e assim é que ele gostava. Ela devia
estar nos vinte e muitos, o seu corpo era quase perfeito e tinha aprendido
muito durante a vida.
Percorrendo-lhe a espinha com um dedo ela perguntou: — Tens por ai
alguma droga?
— De que é que querias? — Indagou.
— Só uma erva suave.
— Espera ai.
Ele levantou-se e foi descalço até ao compartimento ao lado. Um minuto
depois surgiu com um saquito cheio de erva e um cachimbo. Ela sentou-se na
cama, de pernas cruzadas. Fumaram durante algum tempo em silêncio.
— Mmmmm... — Ela sorriu preguiçosamente. — Isto é mesmo bom.
Tive receio de trazer alguma comigo no avião e, desde que aqui cheguei, não
tinha conseguido encontrar nada.
Ele entregou-lhe o saco.
— É teu.
— A sério?!
— Considera isso uma oferta da casa.
Ela inclinou-se e pendurou-se-lhe ao pescoço.
— Obrigada.
Fumaram mais um pouco e voltaram a fazer amor.
— Este é realmente um bom fim de semana — disse ela. — Destes tive
poucos em Norfolk.
Ralph riu-se.
— Acredito.
Ela contornou com o dedo o traço da cicatriz.
— Como é que fizeste isto?
— Com uma garrafa partida — respondeu-lhe.
Ela estremeceu e imagens de brigas de rua percorreram-lhe o espírito.
— Já foi há muito tempo — disse ele.
— Sabes onde é que eu poderia arranjar algum ácido? — Perguntou-lhe
ela.
Ele sorriu e respondeu:
— Acho que arranjaste uma boa fonte, onde poderás obter o que
precisares.
— A sério? — Perguntou ela a sorrir. — Que bom! — Aconchegou-se
mais a ele. — Lidas com grandes quantidades?
Ele enrolou uma perna à volta dela.
— O suficiente para me manter. Não sou ambicioso.
— Ótimo — respondeu a rapariga. — Não gosto de gente ambiciosa.
Pelo menos por dinheiro. — E riu-se com a piada. — Aposto que aquele tipo,
aqui há umas semanas, não te comprou muito. Não tinha ar disso.
Ele ficou atrapalhado.
— Qual tipo?
— Aquele... Quando é que foi? Faz hoje duas semanas. Foi mesmo... Foi
no sábado de manhã, já me lembro. Todo bem vestido, de casaco e gravata e
sapatos de cabedal preto, muito engraxados. Não tinha tipo de drogado.
Masco passou os dedos pela cicatriz, nervosamente.
— Não sei de quem é que estás a falar. Talvez fosse outra pessoa do
prédio e não eu.
Mas ela insistiu.
— Tenho a certeza, porque foi nessa altura que reparei como eras giro.
— Bom, voltemos atrás, está bem? Por onde é que tens andado? —
Perguntou.
Ela rolou, afastando-se dele.
— Tenho tentado imaginar quem seria aquele tipo. — Franziu o
sobrolho, aborrecida.
— Esquece isso! — Gritou-lhe. — Não era ninguém. E isso não
interessa para nada.
— Bom, escusas de gritar! — Lamentou-se ela.
Ele sorriu.
— Tens razão. Desculpa. — E puxou-a de novo para ele. — Vais ver
como vai ser bom.
Ela voltou a escapar-se.
— Não, enquanto não me disseres quem era ele. Agora quero saber. Era
um chui ou coisa do gênero?
Ele saltou da cama.
— Desampara-me a loja, está bem? O gajo não era ninguém e, se é
assim tão importante para ti, vai mas é à procura dele. Não quero falar dele.
— Começou a andar em volta do quarto.
Ela levantou-se da cama, aproximou-se, enrolou-se nele e disse
ternamente:
— Anda cá. Eu não tenho nada com isso. Era apenas por curiosidade.
Ele acariciou-lhe o cabelo.
— Bem, esquece isso, de uma vez para sempre. Foi realmente um mau
bocado. Quem me dera nunca o ter conhecido.
Puxou-o de novo para a cama.
Não muito longe, os gravadores giravam em silêncio.
Segunda-feira, 21 de Dezembro
O telefone arrancou Charlie a um sonho desagradável. Olhou para o
relógio. Eram duas da manhã. «Um final típico duma segunda-feira», pensou.
Estendendo o braço às escuras, encontrou o telefone e arrastou o auscultador
até ele.
— Está?
— És tu, Charlie?
— Sou. Quem fala?
— Sou eu, o Kip. Estou em Nova Iorque. Estás acordado?
Charlie atirou o pé para fora da cama e sentou-se.
— Acho que sim. Estamos a meio da noite, sabias?
— Eu sei e peço-te desculpa, mas os músicos vivem a horas impróprias.
— Bom, que raio é que me queres? Se me telefonaste só para conversar,
mato-te.
— Encontrei-o.
— A quem?
— Ao Larry Seigal, Mario Caletti. Aqui chama-se Ralph Masco.
— Agarraste-o?
— Tenho um amigo que o conhece. Tem de ser o mesmo tipo. A
descrição assenta-lhe que nem uma luva, incluindo o pormenor da cicatriz em
W. E, para culminar, mudou-se para cá por volta de 1 de Junho.
Charlie estava agora bem acordado.
— Apanho o primeiro comboio da manhã. Poderemos falar com ele?
— Acalma-te. O meu amigo trabalha. Podemos ir falar com ele à noite.
Está cá às cinco.
— Onde?
— Quarenta e quatro West End. Apartamento A.
Lá estarei.
Sexta-feira, 25 de Dezembro
Chuviscava em Washington no Natal. Ao fim da tarde, Pearson voltou
ao escritório, tentando estabelecer em que ponto se encontrava no assunto
Gabardine. A agente destinada a Ralph Masco, portara-se excepcionalmente
bem. Estava maravilhado com as habilidades dela. Ali, no último momento
possível, ela conseguira a confissão. Pegou na transcrição. «Foi realmente um
mau bocado. Quem me dera nunca o ter conhecido.» Que é que ele tinha a
ver com aquele passador de droga? Meu Deus, se ao menos ele lhe tivesse
posto microfones, ou coisa assim. Será que o Gabardine tem algo a ver com
esta história do ácido? Pôs o gravador a girar pela décima vez.
«— Já lá vou, já lá vou. Quem é?»
(Ininteligível.)
«— Olá, Tommy, entra, Quem são os teus amigos?
»— Olá, Ralph. Este é o Charlie e o Kip, que acho que já conheces.
»— Claro. Como estão?
»— Bem... Ralph. E tu?
»— Oh, cá vamos. Tens andado afastado da cidade, ultimamente. Acho
que não te punha a vista em cima desde há um tempo.
»— Não. Desde Junho.
»— Bem, acho que o defeito é da cidade, pá. Adoro isto aqui.
»— Parece que estás aqui muito bem instalado.
»— Está bestial. Mexo-me o suficiente para me manter vivo.
»— Bom, sentimos a tua falta em Boston, sabes? Toda a gente lá ainda
se lembra daqueles Gloryhits que levaste. Gostariam de mais, se tu tivesses
alguma coisa.
»— Ah, sim? Eu não gostei muito deles. Algumas pessoas a quem os dei
também me disseram que eram demasiado rápidos e por isso desisti deles.
»— Verdade?
»— Isso foi chato, porque também os queriam em Providence.
»— Oh, sim? Também os queriam em Providence?
»— E em Middletown e em New Haven...
»— Mas afinal o que é isto?
»— Queríamos o ácido. É tudo. Foi uma pena teres saído da cidade
naquela altura. Podias ter feito uma fortuna com ele.
»— Sim, talvez devesse ter ficado. Nunca fui grande comerciante. Só
assim se explica que viva neste apartamento.
»— Tens ouvido falar da Sally Carter ultimamente?
»— De quem?
»— Da Sally Carter, de New Haven. Não te lembras? Aquela que teve
um aborto pouco antes de tu teres desaparecido da cidade.
»— Ah, sim, já me lembro. Não nunca mais ouvi falar dela. Eu mal a
conhecia. Era só «bom dia», «boa tarde».
»— Mas tu levaste a coisa a peito, quando ela perdeu o miúdo.
»— Sim, bem, aquilo foi mesmo um raio duma sorte!
»— Sorte?
»— Sim, tê-lo perdido.
»— Acho que sabes tão bem como nós que não se tratou de sorte.
»— Oh, Tommy, que é que se passa aqui com os teus amigos? Não se
dará o caso de estarem a atuar em nome de alguém?
»— Ralph, eles querem saber qual a proveniência dos Gloryhits.
— Eles desconfiam que foi devido a eles que Sally e outras mulheres
perderam os filhos. E sabem que tu também já suspeitavas. Ninguém está a
culpar-te, só queremos saber donde veio o ácido.
»— Oh Tommy deixa-te disso, já lá vai um ano. Um gato-pingado
qualquer apareceu por ai com um ácido barato e eu comprei-lho.
»— Quem mais lhe comprou?
»— Valha-me Deus, sei lá! Havia lá uma porrada de gajos. Sei lá quem
comprou e quem não comprou.
»— Como é que se chamava o tipo que o vendeu?
»— Merda, pá! Não consigo lembrar-me duma coisa dessas!
»— Ralph, para lá com isso. Tu mostraste-me aquele teu livro onde
anotas cada compra e venda que fazes.
»— Pois, mas esse não está lá.
»— Porra!
»— Não, pá, é verdade. Eu mostro-te... Olha, vê por ti. Cá está:
Dezembro, um tal Blotter. Janeiro, um Chuckles; Fevereiro, nada. Nada
mesmo. Nem sequer anotei as vendas. Vês? Nada em Boston. Nada em New
Haven. Não consta simplesmente do livro.
»— Porquê?!
»— Sei lá. Distrai-me. Esqueci-me... Palavra que me esqueci mesmo.
Olha, pá, não sei onde é que o arranjei! Não me lixes, ’tá bem?
»— Por amor de Deus, Ralph, tens estampado na cara a palavra
mentiroso. Nunca te vi assim! Quem é que queres proteger? Será que estás a
dar cobertura a um ácido perigoso? Assim, podes acabar mal e depressa.
»— Deixem-se disso, ’tá bem? A pele é minha. Não posso dizer-lhes.
Podem espancar-me, mas eu não posso dizer-lhes.
»— Referes-te à Mafia?
»— Sim, é a Mafia... Porra, não é. Sei lá quem são; só conheço um
contacto. Olhem, eu vou tentar pôr-me em contacto com eles, certo? Vou
tentar saber o que é que aquilo continha. Talvez eles saibam e me digam.
Dêem-me uma semana. Eu vou ver o que é que descubro. Mas é tudo. Se me
disserem que não, não vos direi nada.
»— O que é que estás a pensar?
»— Não serve de nada espremerem-me!
»— Bem, voltaremos então dentro de uma semana.
»— Estarás aqui?
»— O que é que esperam que vos diga? Que não? Não vou esconder-me
de vocês.
»— Certo.
»— Desculpe ter de ser assim, Ralph, mas é que se tratava mesmo de
ácido muito perigoso.
»— Eu sei, pá, eu sei. Acham que me mudei para aqui para me divertir?
Nunca mais quis ouvir falar daquela merda.»
Pearson desligou o gravador. Tinha as mãos suadas. Boston, New
Haven, Middletown: três das cidades que tinham sido detectadas pela
pesquisa. Seria que o ácido causava abortos? Os investigadores tinham já
observado esse ponto e não tinham encontrado nada de tão óbvio. Porquê
especialmente aquele lote? E qual seria a ligação de Gabardine ou Jim Karl
com tudo aquilo? Tinha em frente do nariz uma interpretação óbvia, mas que
lhe iria estragar o Natal.
Segunda-feira, 28 de Dezembro
1
Ann e Charlie tiveram um lindo Natal, cheio de neve. Esperavam Disney
dentro de cinco semanas e cada vez lhes era mais difícil acreditar que pudesse
haver algo de mal com o seu filho. Ou talvez se esforçassem cada vez mais
para não acreditar. De qualquer forma a ideia estava bem longe deles e as seis
semanas seguintes pareciam-lhes maravilhosas. Disney dava pontapés e socos
e rebolava-se dum lado para o outro. Por vezes batia dentro de Ann a ritmo
staccato. Com estetoscópios que Charlie pedira emprestados, ficavam
deitados escutando os fortes e bem definidos batimentos do coração. Iam ter
um bebé.
Na segunda-feira, Kip e Charlie viajaram até Nova Iorque, esperando
saber algo sobre o ácido. Larry Seigal, aliás Ralph Masco, ultrapassara o
prazo de uma semana para descobrir qualquer coisa. Nem Kip, nem Charlie
sabiam o que fariam precisamente se ele não tivesse nada a dizer.
Quando lá chegaram, não havia sinais dele. Estavam no átrio à espera
que ele regressasse quando apareceu uma mulher muito atraente e no fim da
casa dos vinte.
— Olá! Que desejam?
— Andamos à procura de Ralph Masco. Sabe se ele está por aqui? —
Kip estava admirado. Era a primeira vez que alguém em Nova Iorque se
prestava a ajudá-lo.
— Acho que não tem cá estado, nos últimos dias. Pensei que tivesse ido
passar o Natal fora. Vocês são amigos dele?
— Mais ou menos — arriscou Charlie. — Ele anda a tentar encontrar-
nos uma coisa.
Ela sorriu.
— Compreendo.
Charlie pensou que ela se estava a referir à droga.
— Quer deixar algum recado? — Indagou. — Eu vê-lo-ei quando voltar.
— Não, deixe lá — rematou Kip. — Nós passamos por cá daqui a uns
dias.
Ela encolheu os ombros.
— Certo. Até qualquer dia.
Já de volta, no elevador, Charlie inquiriu:
— Que pensam disto?
Kip manteve-se calado até chegarem lá abaixo.
— Acho que devíamos voltar para a semana.
Charlie insistiu:
— Onde é que pensas que ele possa estar?
Kip respondeu-lhe:
— Olha, o cientista és tu, faz tu as previsões. Eu, como sou músico,
limito-me ao acompanhamento. Talvez tenha ido passar o Natal a qualquer
lado, ou talvez se tenha sumido. Daqui por uma semana saberemos.
— E que é feito do teu amigo Tommy? — Indagou Charlie. — Não
achas que ele pode saber qualquer coisa?
— Desse sei eu que foi passar o Natal fora. Disse-me na semana passada
que iria. — Kip dirigiu-se para a entrada do metro. — Queres procurar o
Greene?
— O quê?
— Bom, temos o número da caixa postal, talvez conseguíssemos saber
quem a alugou.
O sorriso no rosto de Kip mostrava bem o prazer que ele sentia em
ultrapassar Charlie. Este riu-se e deu-lhe uma palmada nas costas.
— Conduz tu a dança, Sherlock.
Kip cravou vinte cêntimos a Charlie e parou numa cabina. Depois de
uma curta discussão com a telefonista, conduziu Charlie para a estação de
metro.
— Circular em Nova Iorque é uma arte — disse, enquanto tiravam um
passe local. — Só duas mudanças e em vinte minutos estamos lá. — Entre
saltos e encontrões abriram caminho pelo metro de Nova Iorque, emergindo
finalmente para a luz vinte e cinco minutos mais tarde. — Perdemos o
comboio. Por isso é que demorámos mais cinco minutos — explicou Kip.
O homem que estava ao balcão era uma caricatura de um empregado de
correios — pequenino, gorducho e de óculos a escorregarem do nariz.
— Vêm apresentar alguma queixa desta gente? — Indagou, deitando um
olhar a um monte de impressos em branco.
— Oh, não! — Respondeu Charlie. — Só queria falar com eles.
— Mandaram dinheiro e nunca mais chegou? — Perguntou. — Isso é
uma fraude e temos inspetores que se encarregam de vigiar isso. Geralmente
trata-se de engano ou de atraso no preenchimento dos impressos, mas por
vezes é mesmo fraude descarada.
— Ah, sim — respondeu Charlie.
— Então é disso que se trata? — Repetiu o funcionário. — Para isso há
um impresso especial.
— Não, não. Só queríamos falar com eles.
— Partiu-se, hem? Ou nunca chegou a funcionar? Com eles tudo é de
esperar.
— Não — Charlie insistiu —, não lhes comprámos nada. Eles andam a
recolher... — Kip deu-lhe um grande pontapé no tornozelo. — Eles andam a
recolher informações sobre uma coisa e gostaríamos de saber quais os
resultados que obtiveram. — A voz ia-lhe saindo arrastada.
O funcionário olhava-o, abanou a cabeça e voltou a ocupar-se dos
impressos.
— Bom, se só querem saber quem é que alugou, há para aqui um
impresso para isso.
— Podíamos dar-lhe só o número da caixa postal — sugeriu Charlie. —
E o senhor não podia procurar!
— Procurar? — Perguntou o funcionário. Resfolegou e disse: — Com
que então procurar, hem? Meu filho, isto é o United States Post Office. —
Apontou a Charlie um lápis com borracha. — Lidamos com milhões de
papéis por dia. Adoramo-los. — Por fim enfiou pela abertura do guichet um
impresso. — Aqui têm. Sim, senhor, adoramo-los e não perdemos a
oportunidade de obter mais um. Quer ir à casa de banho?
Charlie estava baralhado.
— Não.
— Ah, ah! — Gritou o indivíduo triunfantemente. — Isso é a única coisa
para que não têm de preencher impressos. — Riu à socapa e estendeu um
impresso. — Se o enviar daqui, nem tem de pôr selo.
Charlie continuava baralhado.
— Mas não posso limitar-me a dar-lho e o senhor preenche-o ao fim?
O funcionário abanou a cabeça e olhou para Kip.
— O seu parceiro é de compreensão lenta?
— Ele não é de cá — explicou Kip. — Quanto tempo é que isto vai
demorar?
— Uma semana, dez dias — respondeu o funcionário. — Só que ainda
estamos a trabalhar em coisas do Natal e portanto talvez vá até duas semanas.
— Olhou para a morada do remetente. Era a de Doc. — Boston, hem? Talvez
se extravie.
— O quê? — Gritou Charlie.
— Foi uma piada. — Sorriu, e desceu o letreiro de Encerrado e,
virando-se para uma mulher que estava atrás deles disse: — Já fechei, dirija-
se ao guichet ao lado.
Charlie e Kip deixaram a mulher a gritar ao guichet vazio. Kip começou
a rir à gargalhada.
— Charlie, acabas de assistir a um espetáculo raro.
— Referes-te ao funcionário semilouco?
— Não. Bem-disposto, o que é realmente um caso raro.
— Ele era doido — insistiu Charlie.
Kip continuou a rir.
— Bem, talvez. Os padrões de sanidade em Nova Iorque são um pouco
inferiores aos de qualquer outro lado. — Conduziu novamente Charlie até ao
metro. — Não fiques desesperado. Pelo menos preenchemos o impresso. Em
breve teremos a informação.
— Perda de tempo — murmurou Charlie. — Completa perda de tempo.
Mas Kip discordou.
— Pelo menos preenchemos o impresso para localizar o Greene. Isso há
de revelar qualquer coisa. Trouxemos pouca sorte ao Masco, mas pelo menos
conhecemos alguém que parece controlá-lo.
— Só que sabe Deus onde poderemos encontrá-lo. — Charlie sentia-se
deprimido.
— Que parvo! — Repreendeu-o Kip. — No doze K.
— Hã?
— No doze K. Ela abriu a porta e entrou enquanto estávamos à espera do
elevador. Para cientista não és lá muito observador. — Kip estava em ótima
forma.
— Em Nova Iorque parece que desabrochas — comentou Charlie em
tom bem-humorado pela esperteza de Kip.
Foram de metro até Pelham Bay Parkway, a conversar sobre a cidade e o
seu ambiente. Chegaram finalmente ao carro e regressaram a Boston. Não
tinham ainda viajado cinco minutos quando Charlie murmurou qualquer coisa
para consigo, desviou o carro para a berma e entrou numa bomba de gasolina.
— O carro? — Perguntou Kip apreensivo. Nunca pensara que o velho
Volvo ainda andasse e muito menos que não caísse aos bocados.
— Não. A minha cabeça — respondeu Charlie e saiu do carro. — Tinha
prometido ao Doc telefonar, logo que encontrássemos algo. — Dirigiu-se a
uma cabina. Remexeu os trocos e ligou para o consultório de Doc.
— Consultório do Dr. Blake. — Era Sharon, a secretária.
— Olá, Sharon, daqui fala o Charlie Cotten. É uma chamada interurbana.
Posso falar com o Doc?
— Bem, ele está acompanhado — disse ela. — Vou ver se demora
muito. — Deixou-o à espera enquanto Charlie ia tirando mais moedas do
bolso.
— Olá Charlie? — Era o Doc.
— Sou eu. Olá. É uma interurbana, por isso vou ser rápido. O Ralph
Masco não estava. Uma mulher que o conhece diz que ele tem estado fora há
tempo, ela pensa que terá ido passar o Natal a casa, ou coisa do gênero. Por
isso e por agora é um beco sem saída. O Kip e eu vamos tentar novamente
para a semana. Preenchemos também um impresso para sabermos o nome e
morada do proprietário da caixa postal do Greene, o que nos deve dar uma
pista. Mas isso vai levar umas semanas até que o correio de andamento ao
raio do impresso, por isso também por ai estamos num impasse.
— Parece que não foi uma viagem muito proveitosa — comentou Doc.
— Realmente, não — concordou Charlie —, se bem que tenha
contribuído para me levantar o moral. Acho que pelo menos tenho a sensação
de que estamos a esforçar-nos mais, agora.
— Talvez. Olha lá, falaste com a Beth?
— Desde ontem, não. Porquê?
— Ela telefonou por volta do meio-dia. Quer falar contigo, não me disse
de quê. Parecia muito misteriosa. De qualquer forma, ela disse que ficaria no
teu laboratório até conseguir contactar contigo, por isso talvez devesses
telefonar-lhe para lá.
— Certo. Talvez a Ann e eu apareçamos por ai esta noite. Ela tem
andado a queixar-se de que nunca te vê.
— Eu estou em casa.
— Ótimo. Falo contigo depois. — Desligou e marcou o número da
telefonista, pedindo-lhe uma chamada a pagar no seu laboratório. Beth
respondeu e aceitou a chamada.
— Olá, Charlie. Tenho estado a tentar contactar contigo. — Ela parecia
nervosa.
— Eu sei. Acabei de falar com o Doc e ele disse-me que te telefonasse.
Que há?
Ela fez uma pausa antes de responder.
— Quanto tempo demoras a chegar ao laboratório? — Perguntou.
— Cinco ou seis horas — disse. — Mal acabei de sair de Nova Iorque. É
mais provável que demore cinco, porque vou evitar o trânsito desviando por
New Haven.
Ele ouviu-a inspirar fundo.
— Charlie, alguns dos ratos drogados deram hoje à luz.
— E então?
— E alguns deles eram deformados.
— Charlie gelou.
— Mortos?
— Não. Parecem absolutamente saudáveis.
— Estão a mamar e tudo?
— Charlie, estão a portar-se de forma perfeitamente normal!
— Quantos são?
— Não sei. Três. Não, quatro; dois numa ninhada e um em cada, de
outras duas.
— Ninhadas de que tamanho? — As perguntas pareciam surgir
naturalmente e ele ia escutando impassível.
— Dois eram duma ninhada normal, eram doze ao todo. Mas as que
tinham só um, eles eram os únicos da ninhada. Charlie, eu ainda não disse a
ninguém, nem sequer ao Doc!
Ele tentou controlar os seus pensamentos desenfreados.
— Olha — sugeriu por fim porque é que não vais para casa? Eu vou
buscar-te quando ai chegar e podemos ir os dois ao laboratório. Não serve de
nada ficares aí.
— Não — murmurou. — Não posso. Tenho de ver se eles sobrevivem,
ou se nascem mais. Fico aqui no laboratório.
— Beth, estás a estourar contigo!
— Por amor de Deus, Charlie, não discutas. Vemo-nos quando voltares.
— E desligou.
Charlie ficou ali com o auscultador na mão, como se esperasse que algo
acontecesse. Por fim desligou e esfregou a cara, tentando afastar a confusão.
Mas sem resultado. Um minuto depois levantou-se e dirigiu-se para o carro.
— Sem dizer palavra, entrou e pô-lo a trabalhar.
— Que aconteceu? — Perguntou Kip.
— Nada — respondeu Charlie sem inflexão. — Falei ao Doc do dia de
hoje. — Concentrou-se na autoestrada.
— Charlie! Pareces semimorto. Que é que aconteceu?
Ele abanou a cabeça.
— Deve ser do cansaço do dia.
— Queres que eu conduza? — Perguntou Kip apreensivo. Charlie não
estava obviamente em si.
Charlie encolheu os ombros e encostou à berma.
— E porque não? — Disse, chegando-se para o lado para dar lugar a
Kip. De novo a caminho, Charlie deixou-se mergulhar na sonolência,
tentando desesperadamente fugir à realidade.
2
Peter Alder olhava em silêncio enquanto Greene andava para cá e para lá
na pequena sala. A televisão continuava a berrar, enquanto transmitiam um
jogo de hóquei sem qualquer interesse. «Ao fim de quarenta anos», pensou,
«ainda utilizamos os jogos de basebol e o barulho de torneiras como meios de
defesa contra os bisbilhoteiros.»
Greene virou-se para ele em ar de desafio.
— Já te disse que é demasiado perigoso para continuarmos! Talvez se
possa continuar noutras cidades, mas temos de desistir de Boston. E esse
serviço de entregas também não me está a agradar. Isso dá-lhes a
possibilidade de nos encontrarem o rasto, possibilidade que não deve existir.
Alder, se isto soa, os reflexos serão a nível mundial!
Alder puxou dum cigarro, calmamente. Desde que tinham começado a
chegar os resultados de Boston que ele esperava uma coisa do gênero. E as
coisas ainda tinham piorado quando Patterson levou a coisa até ao fim. Olhou
Greene intensamente, tentando determinar com precisão qual a sua
disposição.
Greene, se te acalmares pode ser que consigamos pensar numa solução
que seja satisfatória para ambos. Mas só se te controlares! Senta-te.
«Repercussões.» Meu Deus, tens cá um jeito para minimizar! Duvido que o
nosso governo tenha algo mais do que uma pálida ideia daquilo que estamos
a fazer e não confiamos no exército para mais do que um palpite, com medo
das fugas. Já estivemos em terrenos mais apertados do que este e não é agora
que vamos entrar em pânico.
Greene deixou-se cair na cadeira.
— Não estou em pânico, certo? No fundo, o que eu acho é que devias
aliviar-me desses indivíduos que andam em cima de mim.
— Temos pessoas a trabalhar nisso. Se elas não tivessem estragado o
arranjinho, o problema já tinha desaparecido. Tínhamos um agente a tentar a
afastar da cena o bom do Dr. Blake, mas estragou tudo.
»Não te conto isto para ter alguém com quem partilhar os meus
problemas, mas para te fazer notar que precisamos de ti em Boston. Não só
porque nos estás a recolher os fetos e isso já seria razão suficiente, mas neste
momento és um dos melhores elos de ligação com o que aqueles safados
estão a fazer.
— Bom, continuo a pensar que foi uma estupidez utilizar gente ao acaso.
— Fez um gesto largo indicando, pela janela, Manhattan. — Teria sido muito
mais fácil tê-lo experimentado nos nossos.
Alder suspirou. Em breve deixaria de dizer fosse o que fosse a Greene.
— Dizes que devíamos ter experimentado nos nossos. Porquê? —
Perguntou.
Greene pareceu embaraçado.
— Porquê? Porque podemos confiar neles, evidentemente!
— Confiar neles, em quê?
— Em que não badalem o assunto.
— Qual assunto? — As perguntas iam saindo monotonamente.
— O dos abortos. Nem sequer se viria a saber das malformações.
Alder abanou a cabeça.
— Pensas realmente que poderíamos encontrar mulheres de confiança,
dispostas a trazer dentro delas um filho durante três a cinco meses, sabendo
de antemão que iriam perdê-lo?
Greene espetou o queixo.
— Penso! Pelo seu país, estariam dispostas. A nossa gente está bem
treinada. — Corou de irritação. — Mas em vez disso fomos experimentá-lo
nestes hippies... Na América, nada menos! Melhor fora nas selvas da
América do Sul!
Alder olhava-o com ar sombrio.
— Mas se utilizássemos a nossa gente e eles soubessem (era essa a nossa
sugestão), que aconteceria se as gravidezes chegassem a termo?
— Queres dizer, se a experiência falhasse?
Alder inclinou-se na cadeira.
— Não. Se tivesse êxito.
Greene parecia não entender.
— Não te compreendo.
— Eu sei — disse Alder, recostando-se na cadeira — e isso deve-se ao
facto de eu estar aqui e tu lá fora. Por isso não sabes o que se passa! —
Voltou a inclinar-se para a frente. — Repito: os abortos são falhanços! O que
nós pretendemos é que nasçam vivos, e isso é apenas o começo. Como é que
conseguirias manter essas crianças em segredo durante os próximos dez
anos? Como é que impedirias as pessoas de dizerem que um elevado número
dos nossos colaboradores tinham crianças levemente, mas permanentemente,
deformadas? Não, nunca poderia ser alguém que estivesse em contacto
connosco. Porque, mesmo que a princípio o não notassem, seria visto e
virtualmente compreendido.
»E porquê os drogados? Porquê na América? Porque temos agentes aqui,
milhares deles, que poderíam exercer vigilância sobre essas crianças, fossem
elas para onde fossem. E temos pessoas como tu, que podem recolher os fetos
provenientes dos abortos. Nem sequer temos de saber quem tomou o ácido.
Saberemos os resultados quando os virmos. Mas, e mais importante que tudo
isso, quem suspeitaria? Um grupo de drogados que têm abortos espontâneos
ou descendência defeituosa — quem é que procuraria outra explicação?
«Drogas perigosas», diriam. «Que lhes fique de emenda.» E pronto, não se
falava mais nisso.
— Só que — murmurou Greene — não foi o que eles disseram e não se
sabe como isto acabará. Eu estou lixado, se volto a Boston!
Alder pouso o cigarro no cinzeiro e olhou pela janela.
— Já chegámos até aqui; iremos até ao fim. — Voltou-se e encarou
Greene. — Só precisamos de mais um mês. Consegue-nos isso e mantém-nos
afastados de nós, enquanto desmantelamos a máquina; depois podemos
desaparecer todos com o vento. — Sentou-se em silêncio, pensando por uns
momentos e aguardando a resposta de Greene. Como ela não surgisse,
continuou: — Greene, ouve lá. Temos setenta e cinco pessoas metidas neste
projeto, das quais apenas três conhecem todo o plano. Este número não pode
ser nem será aumentado, mas posso dizer-te isto: primeiro, tal como já te
disse, estes abortos são falhanços, mas já os esperávamos. Pudemos observá-
los em experiências anteriores com ratos e macacos. O teu trabalho consiste
em obter-nos esses fetos humanos, para que os comparemos com os dos
animais. É de importância vital para o projeto que estabeleçamos esta relação.
Por isso temos dez pessoas a trabalhar no nosso laboratório de Jérsia,
analisando cada um que tu trazes. E sem eles não podemos saber se
conseguimos ou não. Mas posso prometer-te que se descobrirmos que resulta
nas pessoas, da mesma maneira que nos ratos e nos macacos, então — e só
então — começaremos a utilizá-lo no nosso povo.
3
Charlie chegou ao laboratório por volta das oito, naquela noite, e
telefonou a Ann dizendo que chegaria tarde. Beth estava perturbadíssima.
— O Fred telefonou pouco depois de ti.
— A dizer o quê?
— Os obstetras da cidade receberam hoje uma carta do Greene.
— A dizer o quê?
— A dizer: «Obrigado, a experiência acabou.»
— Queres dizer que ele acabou? — Exclamou Charlie. — Nem sequer
vem buscar os fetos que foram recolhidos?
— Pediu às pessoas que mandassem os que tivessem para a caixa postal,
assegurando-lhes que seriam reembolsados de todas as despesas de envio. E é
tudo. O Doc ficou muito preocupado com isto.
Charlie deambulou furiosamente pelo laboratório.
— Bom, realmente hoje foi um dia em cheio!
— Ele disse que tinhas uma pista qualquer sobre o paradeiro de Greene.
— Oh, merda. Preenchemos um raio dum impresso, para ver se
descobríamos quem alugou a caixa postal e qual o endereço dessa pessoa.
Mas isso vai levar duas semanas. O sacana tinha a informação num ficheiro
mesmo por trás dele, mas insistiu na merda das formalidades. Por isso temos
de ficar sentados, à espera.
— Bom, desde que telefonaste nasceu mais um. Agora temos cinco e
todos são que nem um pero. Queres vê-los?
Charlie hesitou.
— Está bem. Mostra lá.
Ela levou-o ao compartimento onde estavam os animais em prateleiras
de gaiolas. Quatro das etiquetas tinham um grande X a vermelho. Ela tirou-as
e pô-las em cima da mesa.
— Estes são os novos duma ninhada de tamanho normal — disse.
Charlie limitou-se a acenar a cabeça. Por fim inclinou-se e olhou para dentro
de uma das gaiolas. Beth retirou o gradeamento de metal, que constituía a
parte superior. Era uma ninhada normal, os pequenitos lutavam
desesperadamente para alcançar as tetas. A mãe olhou preguiçosamente para
Charlie e voltou a deitar a cabeça. Ele não conseguiu distinguir os
deformados.
Beth pegou na mãe pelo rabo e sacudiu levemente para a separar dos
filhos.
— São sempre os últimos a despegar-se — murmurou. Por fim, dois
deles soltaram-se e Charlie pôde ver claramente as enormes cabeças. Sentiu-
se agoniado. Pousando a rata, Beth puxou-lhe uma cadeira. Senta-te — disse
ela. — A mim aconteceu-me o mesmo. — Voltou a tapar a gaiola. — Os
deformados são todos assim. São que nem um pero.
Charlie cruzou os braços em cima da mesa e deitou a cabeça sobre eles.
Parecia-lhe um pesadelo. Sem levantar a cabeça, perguntou:
— Mas porque é que estão vivos?
Beth limitou-se a abanar a cabeça.
— Têm um raio duma saúde, Charlie! Pensei que podiam morrer a
qualquer momento, mas agora estão tão saudáveis. Por vezes observei-os
durante meia hora. Conseguem sempre uma teta. São mais fortes que os
outros.
Houve um tremor na voz de Charlie.
— E agora?
Sentamo-nos e esperamos, penso eu. Tenho observado de meia em meia
hora, a ver se há mais, a ver se há mortos. Acho que não precisamos de ficar
os dois, mas esta noite não vou conseguir dormir, já sei.
— Não — disse Charlie. — Eu fico também. Vou telefonar à Ann.
Levantou-se para ir telefonar.
— Charlie, vais dizer-lhe?
Ele estacou de repente. Virou-se para ela e disse:
— Ainda não.
Beth concordou com um sinal de cabeça e sem argumentar. Agradecido
por essa atitude, ele voltou-se e encaminhou-se para o seu gabinete. «É como
uma ‘viagem’ provocada pela droga», pensou. «O corpo continua a funcionar
bem enquanto o espirito se revolta por não compreender o que se está a
passar.» A sua mão pegou no telefone e marcou os números, a sua boca deu
uma desculpa qualquer a Ann, mas o, seu espirito gritava de dor e confusão.
Desligou o telefone e afundou-se na cadeira. Beth entrou e, sem dizer uma
palavra, sentou-se na outra cadeira. Durante a noite mais dois nasceram,
vivos e sãos. De manhã eram sete ratitos saudáveis e deformados. A luz do
dia veio emprestar um toque de realidade aos acontecimentos daquela noite.
No snack, enquanto tomavam café, passaram em revista os resultados.
— Sabes uma coisa? — Disse Beth. — Todos nasceram um dia mais
cedo.
— O quê? — Estavam ambos semiadormecidos.
— Bom, olha — insistiu Beth, virando para ele o diário. — Não
esperamos mais ninhadas senão lá para qualquer momento de hoje. Os de
ontem nasceram um dia mais cedo.
Charlie encolheu os ombros.
— Nascem muitas vezes um dia mais cedo. Vinte por cento das vezes,
creio eu.
— Sim, acho que tens razão — murmurou Beth.
Mas na quarta-feira ficou bem claro que não tinha. Ao todo havia doze
ratos deformados, vivos, agora com dois dias e todos prosperavam. E todos
eles tinham nascido um dia mais cedo. As outras ninhadas nascidas de tempo
eram compostas por ratos normais
Barbara Waterper, que não sabia nada de Ann e Disney, estava
confundida ao vê-los tão deprimidos.
— Pessoalmente não vejo porque é que vocês hão de estar tão infelizes
ou porque é que pensam que os resultados não são esclarecedores. —
Percorreu com o dedo o diário. — Agora sabemos duas coisas. Primeira,
quinze por cento dos ratitos nascidos de ratas a quem o ácido foi
administrado são deformados, mas saudáveis. Segunda, a presença dum ratito
deformado, numa ninhada, implica que a ninhada tivesse nascido um dia mais
cedo.
— Mas e os seres humanos? — Indagou Charlie.
— Oh — disse ela. — Tens razão. Tinha-me esquecido que há seres
humanos que tomaram a droga. Isso significa que podem existir mulheres que
tragam em si fetos vivos e deformados. Acho que isso é possível. — A ideia
não lhe agradou. — Isso seria realmente trágico.
Charlie não conseguia aceitar. Levantou-se e saiu do escritório.
— Diz-lhe! — Gritou para Beth ao deixar o laboratório.
Vagueou pelo átrio, tentando em vão desatar os nós que sentia no
estômago. Em qualquer sítio um frasco caiu e partiu-se, o que voltou a pôr-
lhe os nervos em pé. Havia alguém que estava a divertir-se. Caminhou até ao
repuxo e bebeu um golo de água, sem vontade. Sentia-se à beira do colapso.
Ainda não dissera a Ann, a Doc ou a quem quer que fosse. Beth mantivera o
segredo. Vagueando pelo átrio, entrou no laboratório de Lloyd Haenners. Bill
estava a limpar um estardalhaço no chão e ainda se viam vidros partidos.
Charlie sorriu.
— Perdeu uma experiência? — Perguntou.
Bill pareceu levemente contrariado.
— Estes frascos são tão escorregadios, escapam-se-nos das mãos!
Levantou-se e passou uma esponja por água no lavatório, depois deixou-
a de novo cair ao chão. Passou-a pelo chão com o pé, apanhando o resto do
desastre. Curvou-se, apanhou-a e passou-a novamente por água. — Era quase
metade do meu stock de vírus. A sorte foi ter dois frascos.
— Foi mesmo sorte — disse Charlie. Aquele Hebb havia de ser sempre
o mesmo. Sentindo-se um pouco melhor, regressou ao seu gabinete.
Barbara veio ter com ele e pegou-lhe na mão.
— Charlie, desculpa. Eu nem imaginava.
Charlie sorriu levemente.
— Estamos todos a tentar adaptar-nos à ideia. Mas não espalhes.
Já não doía; por agora estava dormente. Virando-se para Beth comentou:
— O Bill acabou de perder metade do stock dos vírus. Foi o frasco que
ouviste estilhaçar-se.
Beth empalideceu.
— Onde é que ele o partiu? — Perguntou avidamente.
— No laboratório dele — respondeu Charlie. — Estava a limpá-lo com
uma esponja... — E de repente também ele foi atingido pela noção do que
tinha acontecido. Seguiu Beth, que saia do laboratório, e gritou: — O safado
acabou de os deitar pelo cano!
Quando chegaram ao laboratório de Bill, deram com a água fria aberta
com a máxima força e correndo pelo cano abaixo.
— Grande idiota! — Gritou Beth. Ela tivera esperança que ele os tivesse
ali deitado e deixado ficar. Muitos teriam sido apanhados. Agora não havia
nada a fazer. Olhou para Bill que tinha um ar confuso. — Seu grande
estúpido!
PARTE III
Sexta-feira, 1 de Janeiro
A véspera de Ano Novo chegou sem que qualquer festejo tivesse sido
planeado. Kip estava fora da cidade, a dar um grande concerto, e Warren e
Justine ainda não tinham regressado da visita que tinham ido fazer aos pais
dela em Vermont. Ann telefonou por fim a Doc e pediu-lhe que ele e Beth
fossem passar o serão com eles. Entre os dois, conseguiram arrastar Beth e
Charlie para fora do laboratório.
Foi um serão pacato. Ann esperava o bebé para dai a cinco semanas.
Tinha os pés suficientemente inchados para que se lhe tornasse penoso estar
de pé por muito tempo e já se cansava facilmente. Mas sentia-se
fundamentalmente bem-disposta e feliz pelo seu «estado». Disney
pontapeava furiosamente e ela estava convencida que até tinha nódoas negras
dentro dela.
Foi uma noite estranhamente pacífica. Tinham concordado em não trazer
à baila o assunto do Greene ou do Bill Hebb, ou das experiências com os
ratos ou o que quer que fosse relacionado com eles. Fazia lembrar a Charlie o
tempo, que lhe parecia ir muito distante, em que a vida era mais simples.
Mas na sexta-feira, 1.° de Janeiro, Beth e Charlie voltaram ao
laboratório. A experiência com os ratos terminara por uns dias e uma nova
série de ratos já lá estavam prontos para ser usados na repetição da
experiência. Beth estava sentada na cadeira de Charlie, quando ele chegou.
Quando ele entrou, ela fez rodar a cadeira.
— Tu é que ficas com a cadeira das visitas — disse ela. — Eu estou
demasiado espapaçada para me levantar.
Charlie deixou-se cair na cadeira.
— Quanto tempo é que conseguiste dormir?
— Pouco — queixou-se. — O Fred estava excitadíssimo por causa da
carta.
— Carta? Que carta? — Indagou Charlie.
— Ele não te disse? Ontem perdeu a cabeça e mandou uma carta
registada ao Greene, ao cuidado da caixa postal, dizendo que se não fosse
contactado dentro da data que estipulava, moveria imediatamente uma ação
judicial. Eu li-a antes dele a enviar. Estava cheia de fraseado legalista. Ele
tinha pedido a um amigo advogado que lhe arranjasse o vocabulário correto.
Acho que agora espera ter quaisquer notícias.
Charlie estava impressionado.
— Talvez receba. Só Deus sabe, tudo o mais falhou. Ele está mesmo
disposto a apresentar queixa se nada acontecer?
Beth encolheu os ombros.
— Ele não tem a certeza. Isso iria trazer à luz tudo e poderia ser
complicado em termos quer de publicidade, quer de legalidade, visto que a
posse do ácido é ilegal. Penso que ele também te quer falar sobre isso.
Charlie aquiesceu.
— Talvez devêssemos sentar-nos e falar calmamente do assunto esta
semana. Esperemos não ter de enveredar por esse caminho, mas não estou
grandemente impressionado com a colaboração do Greene. — Bocejou. —
Também não dormi lá muito — admitiu.
— E que há acerca daquele derramamento? — Perguntou. — Há
novidades?
— Não muitas — respondeu Beth. — O Tom está fora uma semana, a
fazer esqui, e ninguém sabe onde. Tentámos contactar com a Crop Research
Associates, mas parece que nunca lá está ninguém. Talvez toda aquela
maldita gente tenha ido de férias.
— Falaste acerca disso com o Lloyd?
— Oh, o Lloyd é um burro! — Lamentou-se Beth. — Sim, falei com ele
e ele telefonou ao Bill e tiveram «uma longa conversa muito a sério»,
palavras textuais. Mas o Lloyd insiste em que não há nada a fazer até o Tom
voltar ou conseguirmos contactar a CRA. Sobretudo, diz ele que é demasiado
tarde para fazer algo e que de qualquer forma até talvez sejam inofensivos. —
Ela estava obviamente irritada com a reação de Tom.
— Afinal, que era aquilo? — Perguntou Charlie.
— Acreditas se te disser que o Lloyd não sabe? — Inquiriu Beth. — Ele
deixa o Bill fazer estas experiências sem saber de que tipo de células ou de
que vírus se trata! E o Bill também não sabe! É uma palhaçada autêntica.
Charlie estava espantado.
— Mas como pode ele trabalhar neles, sem saber do que se trata?
Beth explicou naturalmente.
— Enviam-lhe os nutrientes para as células e tudo, a única coisa de novo
é que ele está a tentar utilizar as nossas técnicas para introduzir o vírus nas
células e verificar depois se elas lá estão. Pelo que ele sabe, tanto podiam ser
células cancerosas como vírus de peste negra.
Charlie sorriu.
— A peste negra é uma bactéria, e tu sabe-lo.
— Eu sei — lamentou-se ela. — Pelo menos trata-se obviamente de
células de plantas e de vírus, mas de qualquer forma preocupo-me por pensar
que podem interferir nas células animais. Não faço ideia de que vírus se trata
ou se está contaminado com qualquer outra coisa. Há certas preparações de
vírus verdadeiramente nojentas.
Charlie concordou.
— Isso foi ventilado na segunda convenção de Asilomar- a importância
de se ter um stock de vírus, virgem, antes que se possa afrouxar os métodos
de vigilância. Estou admirado de o Lloyd ter reagido de forma tão calma.
— Oh, ele não reagiu calmamente. Ficou muito preocupado, como era
de esperar. Só que no fim não fez nada.
— Se bem que pouco havia que se pudesse fazer — fez notar Charlie.
— Para começar — insistiu Beth —, podia ter posto o Hebb fora do
laboratório!
— Olha lá, essa parece-me um pouco extremista! — Replicou Charlie
com um sorriso.
Ela lamentou-se:
— Charlie, não te atires a mim como o Lloyd. Há dois anos que o Bill
anda a lixar tudo aqui, sem se ralar nada com as consequências. E o Tom é
melhor. Pelo cuidado e atenção demonstradas, é evidente que não estava a
cumprir a sua função de vigiar o Bill. Quando será altura de dizer: «Basta!»?
O Bill não poderia fazer pior do que fez a semana passada.
Ele lançou a Beth um olhar enigmático.
— Queres investigar o vírus?
— Que queres dizer com isso?
Ele apontou para a sala ao lado e para os ratos que lá estavam,
aguardando a experiência com o ácido.
— Vá lá. Não precisamos de todos para o ácido. Vamos aplicar o vírus a
alguns deles e acasalá-los de seguida. Se o vírus sobreviver, poderemos
investigar o seu efeito nos fetos e nas mães. Não há um sítio onde os isolar de
maneira que estejam seguros?
Beth concordou com um sinal de cabeça.
— Lá em cima, no quarto andar, é onde guardam os animais com vírus
perigosos e infecções. Acho que não estão nem de longe cheios. Acabaram de
o construir no ano passado, por isso há espaço para se expandirem. — Ela
levantou-se da cadeira. — Anda, vamos verificar.
Uma hora mais tarde tinham feito a ronda das novas acomodações, com
o diretor, e estavam a mudar os animais lá para cima, juntamente com um
frasco de vírus. O diretor levava o seu trabalho a sério e manteve-se junto
deles enquanto administravam o vírus aos ratos, os mudavam para as suas
instalações e limpavam.
— Vocês não tinham o direito de contar comigo, aqui, hoje — disse ele
a brincar. — O dia de Ano Novo parece-me que é feriado, mas nunca
ninguém disse isso a estes animais.
Charlie riu-se.
— Bem, agradecemos muito a sua ajuda acompanhando-nos durante a
primeira vez que efetuámos esta operação. Há aqui muitos sítios em que se
poderia escorregar.
Ele concordou.
— Manter os vírus em recipiente não é tarefa fácil, e eu detestaria ver
alguns deles cá fora. É minha norma pessoal acompanhar toda a gente,
quando aqui vêm pela primeira vez. Já imaginaram o que aconteceria se
alguém, por negligência, deixasse alguns desses vírus escapar-se?
Domingo, 3 de Janeiro
Patterson olhou, pela janela do décimo terceiro andar, para o trânsito que
serpenteava por Manhattan.
— Não me agrada — disse. — Aqueles microfones parecem material
militar e, se o exército o tem sob vigilância, é porque andam atrás de alguma
coisa. — E deixou cair as fotografias em cima da mesa.
Alder pensou por um momento.
— Ele sabe que tem os microfones em casa?
— Claro que não! — Desabafou Patterson. — Nem sequer sabe dos
nossos microfones. E por falar nisso: eles ainda estão operacionais?
Alder confirmou.
— Mas isso não quer dizer que não tenham sido localizados. Não
desliguei nenhum dos deles, a não ser o do telefone, e esse parecerá que foi
por acidente.
Patterson afundou-se na cadeira.
— Por isso, quem quer que tenha colocado os outros microfones tem
provavelmente uma gravação da reunião com aqueles três tipos. Tommy,
Charlie e... Quem é o outro?
Alder esmagou o cigarro.
— Kip. O terceiro chamava-se Kip, sejam lá eles quem diabo forem.
Claro que, se os outros microfones já lá estavam, também registaram a
conversa. — Acendeu outro cigarro. — Sem falar na minha breve conversa
com ele.
— O que levanta a questão da tal mulher que perguntou por ti — fez
notar Patterson.
Alder concordou.
— Temos alguém a segui-la neste momento; tanto quanto podemos
dizer, é insuspeita. Mas não pressagia boa coisa. Surgiram de repente
demasiadas atenções concentradas nele. Em Washington também não estão
satisfeitos com isto. Não querem qualquer interferência do exército e estão a
exercer pressão no sentido de os manterem no desconhecimento de tudo isto.
Entretanto, querem que nós restabeleçamos a ordem por aqui.
Patterson franziu o sobrolho.
— Bom, parece que é melhor irmos a isso.
Terça-feira, 5 de Janeiro
Beth olhava tranquilamente o rosto de Tom durante a sua reação à
notícia do derramamento do vírus. Compreendeu, de súbito, que o Darnell era
uma pessoa mais complicada do que ela pensava. Num só momento pôde ver
várias emoções perpassar-lhe pelo rosto e regressar depois à sua expressão
calma habitual.
— Não posso crer que Bill seja assim tão estúpido. Que fizeram, acerca
disso?
Beth respondeu naturalmente;
— Oh, ele deitou-os pelo cano abaixo com muita água corrente, por isso
era simplesmente tarde de mais quando lá cheguei. Eu e Lloyd gritámos-lhe,
mas foi tudo. Claro que o Bill não entendia porque é que estávamos tão
preocupados com um vírus de milho.
Novamente as emoções voltaram a perpassar-lhe pelo rosto quando Tom
mencionou Lloyd.
— Como é que o Lloyd soube? — Indagou.
— Contei-lhe eu — disse Beth, desafiando-o a objetar.
— Bom — respondeu cautelosamente —, isso provavelmente era o
melhor que havia a fazer. Foi uma pena ele estar fora.
— Porquê? — Insistiu Beth. — Que é que ele teria feito?
Ele não ficou satisfeito com o repto e respondeu com uma evasiva;
— Não sei. Talvez o vigiasse mais de perto e o tivesse apanhado antes
dele ter deitado o vírus fora.
Beth encolheu os ombros. Tom arranjava sempre maneira de se furtar às
respostas.
— O ponto está em que tínhamos de o vigiar permanentemente. De que
serve uma coisa desse tipo?
Tom enrugou a testa.
— Bem sabes que não fui eu quem o escolheu. Mas o CRA está decidido
a ter alguém com muita experiência do laboratório de Lloyd a observar as
suas técnicas mais eficazes neste tipo de trabalho. Por mim, teria gostado
muito mais da nossa primeira escolha. — Sorriu para ela. — Já tomaste
alguma decisão desde a última vez que nos vimos?
Beth abanou a cabeça.
— Ainda estou à espera que me apareça algo por aqui. — Mas voltou ao
assunto. — Tom, que vírus é aquele que o Bill entornou?
— Não tenho a certeza do nome, mas é alguma coisa com que eles estão
a trabalhar na CRA.
— Vá lá, Tom, isso não me diz nada. Trata-se de um vírus de plantas,
perigoso? Tem algum ADN recombinado? De que é que se trata?
Mas Tom não se demoveu.
— Beth, garanto-te que desconheço os pormenores. Estas coisas estão
fechadas a sete chaves, como segredos industriais, e só informam as pessoas
que têm realmente necessidade de saber.
— E não achas que nós agora temos necessidade de saber? — Insistiu
ela.
— Talvez — disse ele —, talvez tenhamos. — Parecia estar a ponderar.
— Olha, eu vou a Iowa, provavelmente nesta quinta-feira, e nessa altura vou
tentar saber. Tenho a certeza de que conseguiremos a informação de que
precisamos.
— Vais lá já outra vez? — Perguntou Beth. — Não estiveste lá ainda há
poucas semanas?'
— Bom, as coisas estão num ponto giro; há muitas decisões de fundo a
tomar e eles gostariam de ouvir a minha opinião.
Beth desistiu.
— Certo, mas prometes que vais indagar sobre os vírus?
— Prometo.
— E também sobre o tipo de células.
Beth sorriu vagamente.
— Obrigada. Se vir o Bill entrar, queres que lhe diga que pretendes falar
com ele?
Tom franziu a testa.
— Não. Eu próprio o procurarei, senão aparece-me quando eu estiver a
meio de qualquer coisa e não possa falar-lhe. Faz sempre isso.
Ela atravessou o átrio, no intuito de ir falar com Charlie acerca da
relutância de Tom em discutir o incidente. Estava ele ao telefone quando ela
entrou. Ele levantou os olhos e apontou para uma cadeira. Parecia apreensivo.
— Patterson? — Perguntou ao telefone. — O mesmo? — Ela ouvia a
voz da pessoa que falava do outro lado do fio, mas não conseguia distinguir
as palavras. — Então, descobriste alguma coisa?... Não, isso era talvez o
melhor que havia a fazer. Está bem, depois falo contigo, quando voltares. A
Beth está sentada mesmo aqui. Olha lá, e que há sobre o teu amigo
Tommy?... E o doze K?.. Está bem, parece que fizeste o que pudeste.
Telefonas-me logo que chegares? Obrigado. Adeus.
Desligou o telefone e ficou a olhar para ele. Finalmente ergueu o olhar.
— Era o Kip — explicou. — Estava em Nova Iorque, à procura do
Ralph Masco.
— O passador? — Indagou Beth. — O tal que vendeu os Gloryhits?
— Sim — respondeu Charlie. — Morreu.
Beth ficou petrificada.
— Morreu? — Havia um toque de medo na sua voz. — Foi assassinado?
— Provavelmente — explicou Charlie. — Foi um caso de atropelamento
e fuga. Houve uma testemunha, que estava no quarteirão seguinte e que diz
ter parecido propositado. Não está nada esclarecido.
»Parece que quando a polícia lhe revistou o apartamento encontrou um
grande fornecimento de droga. Foi então que decidiram chamar a brigada de
homicídios.
— Souberam isso pela polícia? — Inquiriu Beth.
— Não. Quando eu e o Kip lá estivemos, encontrámos aquela mulher
que conhecia o Masco e ele informou-se através dela. Ela estava
completamente apavorada. Parece que, naquela noite, ele disse que não se
podia encontrar com ela porque ia ter com um tipo. Mas nunca lá chegou.
Beth estava pálida.
— Têm algumas pistas?
— O Kip não sabia. A tal mulher também não sabia de nenhuma e o Kip
achou que não havia necessidade de ir meter-se com a Polícia, que
certamente havia de querer logo saber quem ele era e quem não era.
— Que é que disseste do Patterson? — Perguntou ela.
Charlie franziu o sobrolho.
— Parece que a polícia — a polícia urbana — foi mais ou menos posta
fora de jogo. Não ficou ainda bem esclarecido quem está a investigar, mas
havia um tipo chamado Patterson que estava de serviço. O Kip conseguiu
uma boa descrição dele e eu e o Doc vamos investigar se se trata do mesmo
tipo que estava metido na armadilha preparada.
— Achas que estão ligados? Como é que poderiam estar?
— Bem — disse Charlie — se a armadilha preparada ao Doc estava de
qualquer forma ligada aos Gloryhits, isso poderia constituir um elo de
ligação. — Ele estava armar em cientista. — Mas é difícil imaginar quem
poderia fazer ideia de que o Doc estava de qualquer forma ligado aos
Gloryhits, ou até que Masco o estava.
— Talvez o Patterson seja um agente da brigada federal de narcóticos —
sugeriu Beth. — Se o Doc ia ser incriminado com uma dose monumental de
heroína, sabe Deus o que terão encontrado em casa do Masco.
— Isso é uma conclusão simples — concordou Charlie.
— E como cientista...
— Tenho de aceitar a explicação mais simples. — Charlie acabou a frase
por ela e riu-se por um momento. — Ganhaste.
Mas a boa disposição depressa desapareceu.
— Acho que devia telefonar ao Doc — disse. — Ele não vai gostar
disto. Parece que as nossas pistas nesta história depressa se desvanecem.
— Talvez não seja tão fácil como parece nos filmes — sugeriu Beth. —
Mas não vale a pena telefonares porque, de qualquer forma, o Doc deve cá
estar dentro de dez minutos. Vamos jantar fora e hoje é a vez de ele conduzir.
— Uma união igualitária — comentou Charlie com um sorriso.
Beth retribui-lhe o sorriso. — Se estiveres disposto a pagar a gasolina e a
manutenção do carro, estou disposta a conduzir eu. Mas, a 1 dólar e 10
cêntimos o galão, parece-me que é demasiado.
Charlie levantou a mão num gesto de defesa.
— Desculpa. Desculpa. Retiro o que disse. Foi um comentário estúpido.
Beth aceitou as desculpas. Ficaram por momentos sentados e calados,
pensando no Masco.
Beth mudou de assunto.
— Que se está a passar com os ratos a quem aplicámos o vírus? Devem
estar a sofrer uma evolução.
Charlie encolheu os ombros.
— Só lá vão quatro dias. É pouco tempo de gravidez.
Beth pediu desculpa.
— Parece que o tempo custa outra vez a passar. Que tencionas fazer com
eles?
— Pouca coisa. Vou aplicar todo o meu esforço a repetir o estudo sobre
o ácido. Vou deixar os ratos que têm o vírus chegarem ao fim do tempo e ver
se o tamanho das ninhadas é normal ou quê.
— Nada de cesarianas? — Perguntou Beth um pouco surpreendida.
Charlie soltou um grande suspiro.
— Oh, meu Deus, sei lá! Talvez possamos fazer algumas, lá para os
quinze dias. Sinto-me tão amedrontado com esta história do ácido, que não
tenho muita energia para o resto. — Pensou por um momento. — Claro, com
os diabos, podemos fazer de facto algumas cesarianas. Não levam tempo
nenhum.
— Ora, desse entusiasmo é que eu gosto. — Doc entrou de um salto no
gabinete de Charlie. — Claro que podemos despachar algumas cesarianas e
talvez uma apendicectomia ou duas até, antes do almoço. Conheço cirurgiões
assim. Vocês os dois vão enriquecer em três tempos.
Beth sorriu.
— Que acaso te traz por aqui tão cedo?
Ele riu-se.
— Há realmente dias que acabam mesmo a tempo. Não há nada a fazer.
— Virando-se para Charlie acrescentou: — Como vai isso?
O sorriso desapareceu do rosto de Charlie.
— Más notícias — disse. — O Masco morreu, provavelmente foi
assassinado.
— O quê? Estás a brincar?
Charlie abanou a cabeça.
— Quem me dera que estivesse. O Kip acabou de telefonar de Nova
Iorque. — E voltou a contar a história.
— Parece ser o mesmo Patterson — disse Doc quando Charlie acabou.
— Mas, valha-me Deus, a descrição adapta-se a metade da América e a 95%
dos chuis à paisana.
— Mas o Kip diz que não pensa que o tipo seja um chui, porque não se
portava absolutamente nada como se o fosse.
— Foi a mesma impressão que eu tive — concordou Doc. — Com mil
diabos, estou certo de que se trata do mesmo. — Franziu o sobrolho. —
Achas que é um andarilho da droga?
— Como? — Perguntou Charlie.
Doc abanou a cabeça.
— Toda esta história me faz lembrar o Peter Alder.
— Quem? — Inquiriu Beth.
— Um porco — explicou Doc. — Aqui há... Quê? Há uns dez anos,
quando Charlie e eu estávamos metidos na política, houve esse tal tipo, o
Peter Alder, que se revelou um provocador. Preparou uma armadilha a umas
quantas pessoas e denunciou-as por sabotagem. Forjou provas contra um belo
grupo de investigação científica que tinha andado a pesquisar a aplicação, no
campo militar, de investigações científicas. Mas, afinal, foi tão espalhafatoso
que acabaram todos por se safar da armadilha. O Alder saiu da cidade à
pressa, logo que o julgamento acabou.
— Era um agente policial? — Perguntou Beth.
Charlie abanou a cabeça e franziu a testa.
— Não, não era nada disso. Era demasiado esperto para tal. Primeiro
pensámos que fosse um simulacro de cientista que tinha sido caçado por
drogas ou coisa do gênero e depois utilizado pela polícia.
»Mas depois — acrescentou — compreendemos que nem sequer era
nada disso porque se esforçava na acusação tão obviamente.
— Eu sei — acrescentou Charlie. — Ia a falar nisso. — Virou-se para
Beth e disse: — Por fim concluímos que pertencia ou ao F. B. I. ou à C. I. A.
ou coisa do gênero.
— Oh, quer dizer que nunca chegaste a saber? — Perguntou Doc.
— Saber o quê? — Inquiriu Charlie.
— Os resultados da investigação do Kip.
— Não, nem sequer ouvi falar em qualquer investigação do Kip. Que
foi?
Doc explicou:
— Quando o governo federal procedeu à revisão da lei da informação,
Kip decidiu retroceder e tentar desenterrar a história de Peter Alder. Esteve a
pesquisar em Washington e passou uns dias a revistar velhos memorandos do
F. B. I. Havia um em que se dizia ter sido impossível descobrir algo sobre o
passado de Peter Alder. Isto antes de ele se tornar informador. Havia depois
outro, já posterior às provas forjadas, insinuando que Alder tinha ligações
com a C.I.A. Faziam referência ao facto de ele estar ligado a uma «agência
independente». Kip pensou que se referiam à C. I. A.
— Não voltaste a vê-lo depois disso? — Perguntou Beth.
Doc fez um sinal negativo com a cabeça.
— Nunca mais. Tenho a certeza de que a C. I. A. o afastou de Boston e o
reinstalou em qualquer parte com novo nome e profissão. Havia aqui muita
gente que o conhecia. Não podia ficar por cá.
— Bom, pobre Masco, se calhar nem era um agente da C. I. A. Parece
que poderia estar mais perto era da Mafia — disse Beth.
— A C. I. A. não é lá muito melhor — fez notar Doc.
— Bem, de qualquer maneira quanto à origem do ácido atingimos um
beco sem saída. Que novidades tens acerca do Greene?
Doc encolheu os ombros.
— Só lá vão quatro dias, por isso ainda não estou demasiado
preocupado. — Fez uma pausa e apareceu-lhe no rosto uma expressão
preocupada. — Se ele recusar, não sei o que farei depois. Se ele for a tribunal
por causa disto, vai aparecer em todos os jornais.
— Bem, se é isso que tens a fazer, porque não? — Inquiriu Beth. — É
obviamente importante obter essa informação e talvez ainda andem Gloryhits
por ai à solta noutra zona do país. Não custaria nada passar a palavra.
— Disparate — objetou Charlie. — Os passadores começariam a chamá-
los por outro nome e pronto.
— Mesmo assim, talvez fosse bom fazer um pouco de publicidade —
insistiu Beth.
— De qualquer maneira, a semana ainda não acabou — lembrou Charlie.
Quinta-feira, 7 de Janeiro
Dois dias depois Doc telefonou, excitado, a Charlie.
— O Greene telefonou! — Anunciou.
— Bestial! — Exclamou Charlie. — Que aconteceu?
— Foi formidável! — Respondeu Doc. — Todo ele era doçuras. Disse
que tinha a intenção de voltar a procurar-me, mas estivera ocupado com outro
assunto. Pediu imensas desculpas e tudo.
— Mas concordou? — Inquiriu Charlie.
— Absolutamente. Disse que ficara um pouco preocupado com o tom da
carta e que eu lhe enviasse uma declaração pormenorizada do que pretendia,
para que assim estivesse defendido. Prometeu que eu teria os dados na minha
mão uma semana depois de receber a carta.
Charlie soltou um «ufa!» de alegria.
— Incrível! E já lhe mandaste?
— Se já lhe mandei? O safado acabou de desligar há dois minutos.
Ainda nem tive tempo de me sentar.
— Com que então estava um pouco preocupado com o tom da carta? —
Charlie riu-se.
— Acho que sim — resmungou Doc evasivamente. — Se não fosse
assim, é claro que nunca mais tinha notícias dele.
— Claro que não. Já disseste à Beth ou queres que eu diga?
— Não, mas deixa-me ser eu a telefonar-lhe. Quero ver a reação dela.
— Vais telefonar já?
— Vou.
— Certo, então eu vou atravessar o átrio para poder ao menos assistir.
Depois falo contigo.
— Certo. Olha, ouve lá, podemos juntar-nos hoje à noite, para falarmos
acerca do que irá na carta?
— Claro. Depois de jantar? A Ann disse que hoje faria ela o jantar e não
queria sobrecarregá-la com demasiado trabalho.
— Ótimo. Como vai ela?
— Cansada — respondeu Charlie. — Hoje é dia 7, não é? Ela espera o
bebé de hoje a duas semanas, o que significa que já estamos na fase do «a
qualquer momento». Agora acabaram-se-me as viagens a Nova Iorque.
— Apesar disso só está cansada?
— Sim, não é nada de cuidado. O inchaço das pernas desapareceu, e
agora mexe-se bem, só tem de carregar com mais quatorze quilos e isso custa.
— Bom, parece que ela se está a portar muito bem — disse Doc. — Diz-
lhe que estou ansioso por vê-la hoje à noite.
— Está bem. — Charlie desligou e dirigiu-se para o laboratório de Beth.
Ela estava sentada à secretária a ler. Sorriu para Charlie.
— Oh, estás a ler ficção. Isso não é permitido — declarou ele.
Ela fez uma careta.
— O Tom foi para Iowa e eu não vou dar tempo ao Hebb de fazer outra
asneira. Não vou tentar fazer mais experiências até o Tom regressar. Estou a
falar a sério, quanto a vigiar o Bill.
Foram interrompidos pelo telefone. Charlie olhava encantado, enquanto
Beth recebia as novidades. Ela virou-se para ele.
— Já sei — disse-lhe Charlie. — Já falei com ele.
Ela voltou a falar para o telefone.
— Fred, é tão bom! Nunca pensei que uma ameaça surtisse efeito, mas
não há dúvida que acertaste... Certo. Até logo. — Desligou o telefone e disse
para Charlie: — É formidável!
— Eu sei — respondeu ele com um sorriso. — Vim cá para assistir à tua
reação. Talvez seja agora que vamos ter sorte. — Mas Beth enrugou a testa.
— Será que eu disse algo errado? — Perguntou ele.
— Não — respondeu-lhe ela, abanando a cabeça. — Estava só a pensar
que a nossa última pista foi quando localizámos o Ralph Masco. — Ficaram
ambos calados por um momento. — Já sabes mais alguma coisa disso?
— O Kip tentou telefonar para o amigo dele, mas não conseguiu
localizá-lo. Não sei se voltou a tentar.
— Isso ainda me traz preocupada — disse ela —, embora não o
conhecesse antes daquilo. Quem me dera poder acreditar que foi mesmo um
acidente.
— Mas parece que não foi — disse Charlie. — E devia ter sido a pessoa
que lhe telefonou naquela mesma noite.
— Porquê? — Indagou Beth.
— Porque tinham de lhe preparar a armadilha... Levá-lo a pé até
qualquer lado onde pudessem atropelá-lo sem correrem demasiado risco de
terem testemunhas.
Ela estremeceu.
— Então o Masco devia conhecê-lo.
Charlie concordou. Olhando para fora viu o Bill Hebb que voltava ao
trabalho.
— Está de volta a tua cruz.
— Hem — suspirou Beth. — Vou conceder-lhe uns minutos para que ele
comece a fazer as suas trapalhadas e depois apareço.
— O Darnell demora-se muito?
— Não sei. Ele saiu de repente. Tenho a certeza de que foi por causa do
acidente com o vírus, mas ele afirmou que não. Em situação normal não se
ausentaria mais de duas semanas, mas disse que algo tinha surgido. Anda a
portar-se cada vez mais como se fosse lacaio de alguém. Começo realmente a
desgostar-me dele.
Charlie concordou.
— Eu sei. Tentei falar com ele acerca do acidente e mostrou-se evasivo.
Nem sequer consegui arrancar-lhe qual o tipo de vírus.
— Ele assegura que não sabe, mas prometeu «interessar-se pelo assunto»
durante esta viagem, como ele disse. Por isso, tenhamos esperança de que
dentro de uns dias já saibamos mais qualquer coisa.
— Ele sabe das experiências? — Perguntou Charlie.
— Não. Não quero dizer que lhe esteja a esconder o facto, mas não vou
desatar a dar-lhe informações, se ele não mas dá também.
— Parece que a amizade está a ir por água abaixo.
— Meu Deus, Charlie, tenho de me ir embora daqui — lamentou-se ela.
— Estou quase disposta a aceitar aquela oferta de Los Angeles.
— Quanto a emprego, nada de novo? — Perguntou ele.
— Até agora, nada. O Lloyd tem tido grandes dificuldades e começa a
pensar que é por não ter sido demasiado insistente.
— Olha lá, já tentaste o departamento do Sid Cramer? — Sugeriu
Charlie.
— No M. I. T.? — Perguntou Beth. — Disseram-me que ele já não tinha
vagas.
— Não tinha, mas eu falei com ele ontem e ele desconfiava que um dos
elementos da sua equipa jovem da faculdade estava decidido a ir-se embora,
mais ou menos inesperadamente, dentro de alguns meses. Assim, ficaria essa
vaga em aberto.
Beth ficou excitada.
— Vou já preparar uma carta. Eu estava para escrever-lhe logo ao
princípio, mas o Lloyd disse-me que não havia vagas.
— E eu vou dar-lhe uma apitadela. Pode ser que ajude — acrescentou
Charlie.
— Acho que o Lloyd o conhece muito bem, por isso talvez agora se
consiga alguma coisa! — Concordou Beth.
Sexta-feira, 8 de Janeiro
— Devias ter vindo cá ontem à noite — disse Charlie. — Escrevemos a
carta ao Greene e até a Ann colaborou. Foi uma carta bonita.
— Não vai responder — lamentou-se Beth.
— Nem penses. Caçámo-lo e ele admitiu que assim foi. Pedimos-lhe
dados sobre fetos específicos e uma fotocópia das notas dele sobre os fetos.
Pedimos também informações sobre deformações semelhantes, em outras seis
cidades. Isso foi ideia da Ann. O Greene deve ficar com os cabelos em pé.
Porque não imagina sequer que o Doc estivesse informado de que se estavam
a efetuar estudos noutras cidades.
Beth enrugou a testa.
— Espero que não o pressionemos demasiado.
— Olha, se conseguirmos um quarto daquilo que pedimos, já temos que
nos chegue. Além disso, continuas a esquecer-te que o Greene pouco importa
dar-nos ou não a informação.
Beth encolheu os ombros.
— Bem, então agora podemos tentar o mesmo truque com o vírus que o
Bill entornou.
— Que história é essa? — Inquiriu ele.
— O Tom ainda não voltou, é esperado hoje, parece-me — queixou-se
ela, frustrada. — Aqueles malditos estão a safar-se com facilidade. Olhem
para nós, os grandes e radicais cientistas dum raio, aqui sentados feitos
parvos por causa daquele acidente.
— E que é que querias que fizéssemos, que déssemos um tiro no Bill?
Passou no rosto de Beth um traço de felicidade.
— Eu digo-lhes o que é que devíamos fazer e no fundo até lhes agradeço
a ideia que me deram.
— Vá lá, continua — insistiu Charlie.
— Olha, lembras-te de teres mencionado a existência de um grupo de
jurados federais destacados para investigarem coisas como a não aplicação
das diretrizes estabelecidas em Asilomar?
— Sim — respondeu Charlie lentamente.
— Vamos denunciar o acidente do derramamento.
— Mas não sabemos se é ADN recombinante.
— Nem o Bill e o Tom, ou pelo menos não sabiam quando o
derramamento ocorreu. Charlie, trata-se de um caso típico. Eles nem sequer
sabiam com que estavam a trabalhar! Assim nem podiam saber se os graus de
proteção que estavam a fingir que empregavam eram suficientes.
Charlie não estava a gostar.
— Isso vai fazer aqui um estrago...
— Charlie, não te armes agora em liberal, comigo. Quando eu te disse
que os cientistas eram demasiado elitistas para se denunciarem mutuamente,
tu negaste esse facto. Bom, agora desafio-te a denunciar isto.
Ele estava furioso. Furioso por ela o ter na conta de um hipócrita, furioso
por ela o estar a colocar no papel de homem integrado no sistema e ainda
mais furioso por as suas acusações o tocarem de perto. Mesmo assim, ainda
hesitava.
— Espera pelos resultados da experiência com os ratos.
— Porquê?
— Bom, porque ela pode fornecer-nos algum dado. Se obtivermos
alguma indicação de que o vírus provoca quaisquer anomalias, sentir-me-ei
mais à vontade para fazer depois um grande barulho sobre o assunto e isso
obrigá-los-á a mexerem-se mais depressa.
— E ser-te-á mais fácil enfrentar o Lloyd? — Sugeriu ela.
— Está bem, porra, também é por isso! Mas de qualquer modo vou
apresentar queixa. — Pronto. Tinha dado o salto. Sentia-se bem e estava de
novo no meio da luta. — Achas que devíamos dizer ao Lloyd? — Perguntou.
— Não.
Apercebendo-se de que tinham estado a falar alto de mais, Beth sentiu-se
de repente enervada e espreitou para o átrio.
— Olá, Beth, tenho andado à tua procura. — Era o Tom Darnell.
— Olá — respondeu nervosamente. Ele era capaz de tê-los ouvido no
átrio. Se calhar até muito distintamente. — Quando é que voltaste de fora?
— Só esta manhã. Queria dizer-te que falei com o meu patrão sobre o
vírus e ele convenceu-me de que é absolutamente seguro. Pesquisaram todo
aquele tipo de células à procura de vírus e não encontraram nenhum. O vírus
só pode infetar células vegetais e, além disso, nem sequer é um vírus muito
poderoso. Fizeram algumas mutações neles, tal como tu fizeste nos teus. Isso
não desculpa o acidente do Bill, nem a mim por o não ter vigiado mais
atentamente. Quase me esfolaram por isso e começam a pensar que deviam
ter dado mais atenção à minha opinião sobre o Bill. Mas parece que o Lloyd
lhes escreveu uma carta de recomendação, o que os convenceu.
Beth enrugou a testa.
— Não percebo como é que o Lloyd pode ter feito uma coisa dessas.
— Talvez ele devesse passar mais tempo no laboratório — gracejou
Tom. — Tenho é de ir falar com o Bill. Discutiu-se o facto de ele ir para
Iowa mais cedo do que estava planeado.
— Quanto mais cedo melhor — retorquiu Beth.
Tom sorriu.
— Até logo.
Ela voltou a entrar no gabinete de Charlie.
— Calculo que o Tom já tenha regressado — declarou ele.
— Pois é.
— Esbarraste com ele quando ia a entrar?
Ela franziu o sobrolho.
— Não ele estava mesmo à porta.
— Achas que ouviu alguma coisa? — A ideia não lhe agradava.
— Ele portou-se como se nem sequer soubesse que eu cá estava.
— Ufa! Que alivio! — Exclamou Charlie.
— Não sei — disse Beth. — Eu fui lá porque me apercebi de que
estávamos a gritar. É impossível que não nos tivesse ouvido.
— A não ser que tivesse acabado de entrar — sugeriu Charlie.
— Foi um bocado esquisito. Ele estava apenas encostado à parede, junto
à porta. — Ela parecia confusa.
— É óbvio que estava a escutar — disse Charlie a rir. — Deixa-te disso,
estás a sonhar com conspirações.
— Bom, e quanto a dizer-se ao Lloyd? — Perguntou Beth, retomando a
discussão onde tinha ficado.
— Acho que devíamos dizer — afirmou Charlie.
Ela encolheu os ombros.
— Bom, já que adiamos a apresentação da queixa até as experiências
com os ratos estarem prontas, vamos adiar também isto. Tal como tu disseste,
se obtivermos um resultado será mais fácil dar-lhe uma justificação. —
Acrescentou a sorrir: — Não tenho um prazer especial em ser eu a dizer-lhe.
Afinal de contas, de quem é que nos estamos a queixar?
— Que queres dizer com isso?
— Estamos a falar como se fosse só do Bill e Tom que nos estamos a
queixar.
— E não é?
— Não, não é. Isto é o laboratório de Lloyd e é ele quem superintende. É
assim que ele quer e é assim que é. Por isso, é ele o responsável por tudo
quanto aqui acontece.
— Oh, deixa-te disso — interveio Charlie. — Ele limitava-se a permitir
que o Bill utilizasse o local.
— Que queres dizer com o «limitava-se»? Tu emprestas o teu carro a um
bêbado, ele atropela alguém e tu não tens qualquer culpa?
— Legalmente, receio que não — disse Charlie.
— Oh, Charlie, merda! Imagina que se tratava de alguém que não
conhecias. Agirias da mesma forma?
— Não — admitiu. — Tomaria a mesma atitude que tu. Tens razão.
Beth voltou a afundar-se na cadeira, exausta.
— Bom, vamos aguardar os resultados das experiências com os ratos.
Sábado, 9 de Janeiro
Na noite seguinte, Charlie não conseguiu dormir. Ann e ele tinham ido
ao cinema, uma velha tradição de sábado à noite, que tinham recentemente
retomado. Quando chegaram a casa, Ann estava estafada e adormecera de
imediato. Charlie acabara por desistir e levantara-se. Eram quase duas horas.
Tinha passado um bocado, na sexta-feira, a redigir um rascunho da queixa,
mas esquecera-se de o trazer para casa. Agora estava irritado, porque decidira
trabalhar um pouco nele no domingo. Decidiu meter-se no carro e ir até ao
laboratório.
As ruas vazias brilhavam com a neve amontoada e as veredas pareciam
estranhamente calmas. Conduzia em silêncio, sentindo a quietude da cidade
normalmente agitada. Subiu no elevador até ao terceiro andar. Perfeitamente
acordado, tinha esperança de conseguir dormir quando voltasse para casa.
Os seus passos ecoavam fortemente no átrio vazio. Lá ao fundo, viu luz
que vinha do seu laboratório. Pensou que seria Beth. «Não, sou o único a
sofrer de insônias.» Mas a pessoa que saiu do laboratório não era Beth. À
distância não conseguiu distinguir as características do estranho, a não ser
que era um homem e de compleição física normal. Ao ver Charlie, dirigiu-se
para o lado oposto do átrio e encaminhou-se para a escada.
«Quem raio seria aquele?», perguntou Charlie para consigo, enquanto se
apressava em direção ao fundo do átrio. Ao entrar no laboratório deparou
com cinco engradados de ratos. A roubar ratos? Seria a coisa mais louca de
que já ouvira falar. Era verdade, os engradados estavam cheios de ratos-
fêmeas grávidos.
— Oh, merda — resmungou como é que vou conseguir tirá-los todos?
Encaminhou-se para a sala onde estavam os animais e acendeu a luz. O
que viu ainda o confundiu mais. Não faltava nenhum rato! Pegou no telefone,
ligou para o gabinete de segurança e chamou um homem.
— Não compreendo. Tem ratos a mais?
— Exatamente — respondeu Charlie. — Só posso pensar que foram
roubados a alguém e quem quer que os roubou só teve tempo de chegar até ao
meu laboratório. Talvez ainda não tivesse os suficientes ou qualquer coisa.
O agente de segurança coçou a cabeça.
— Não faz sentido, mas eu tomo nota.
— Talvez devesse tentar saber se outras salas onde há ratos foram
danificadas — sugeriu Charlie.
O agente de segurança olhou para o relógio.
— Eu saio às três, mas talvez alguém do próximo turno possa verificar
isso. Apontou para os engradados. — Que quer que faça a esses?
Charlie suspirou.
— Vou pô-los aqui na minha sala. Precisam de comida e de água.
— Que coisas tão feias — disse o homem. — Não sei quem poderia
querê-los.
Segunda-feira, 11 de Janeiro
1
Na segunda-feira, Charlie recebeu um telefonema do gabinete de
segurança.
— Investigámos junto de toda a gente que anda a fazer experiências com
ratos e ninguém deu por falta de nenhum.
— Isso não pode ser — insistiu Charlie. — Tenho-os agora mesmo
instalados aqui no meu laboratório. Não caíram do céu.
— Olhe, professor, eu sei que o senhor tem ai esses cinco engradados de
ratos. Estou a telefonar-lhe só para lhe dizer que não vieram de nenhum
laboratório deste edifício.
— E do edifício de biologia? — Perguntou Charlie. — Ou do de
fisiologia?
— Bom, primeiro que tudo — respondeu nós só controlamos a
segurança do centro médico. Para isso tem de contactar com o gabinete de
segurança, situado na zona central da universidade. Mas não entendo porque
é que alguém que rouba ratos carrega com eles até ao terceiro andar do centro
médico!
— Tem a certeza de que não falhou ninguém? — Perguntou Charlie.
— Professor, há quinze anos que desempenho esta função e parece-me
que desempenhei sempre as minhas funções de forma correta.
— Está certo — concordou Charlie. — Não consigo imaginar donde é
que teriam surgido.
— Bem, acho que são seus, se é que os quer.
Charlie riu-se.
— Obrigado.
Desligou o telefone quando Beth ia a entrar.
— Como vai isso? — Perguntou ela. Ele tinha-lhe contado a história
logo de manhã.
— Oh, estava a falar com o agente de segurança. Diz que ninguém deu
por falta dos ratos.
— Então donde é que eles poderíam ter surgido?
— Não faço a mínima ideia — admitiu Charlie. — A única coisa que sei
é que tenho ratas grávidas numa quantidade que é o dobro do que preciso.
Beth riu-se e ia a dizer qualquer coisa quando o telefone tocou. Charlie
levantou o auscultador.
— Está lá?... Sim, é... Está bem. — Virou-se para Beth. — Uma
chamada do reitor da universidade. — Fez uma careta para indicar que não
estava nada impressionado.
— Está, Dr. Cotten?
— Sim.
— Daqui, reitor Armstrong. Estava a pensar se teria um minuto livre.
— Claro. Em que posso ser-lhe útil? — Para Beth se divertir, fez a
continência ao telefone.
— Estou a falar-lhe por causa dum acidente que ocorreu no laboratório
do Dr. Haenners, aqui há uns dias. Creio que o senhor está a par do tipo de
material que foi derramado.
O humor varreu-se do rosto de Charlie.
— Estou, sim — respondeu delicadamente.
— Bom, é que aconteceu esta manhã uma coisa muito estranha. Recebi
uma chamada de Washington, duma pessoa do governo...
— Sim?
— E disseram-me que tinham sido informados desse acidente e que não
é nada de perigoso, mas faz parte dum projeto bastante melindroso em que o
governo está a trabalhar. Queriam certificar-se de que não seria dada ao
assunto qualquer publicidade. — Armstrong calou-se esperando a reação.
— Compreendo — disse Charlie lentamente. — Contudo eu tinha a
impressão de que isto fazia parte dum projeto industrial de pesquisa.
— Bem — lançou Armstrong o governo está sempre a transferir
pequenos projetos para a indústria e poderia acrescentar que a universidade
também.
— Claro. E deverei entender que se trata duma pesquisa de certa forma
secreta? — Perguntou Charlie.
— Oh, não — insistiu Armstrong. — Não é trabalho confidencial.
Aquilo que me disse o indivíduo com quem falei foi que o projeto estava de
certo modo ligado a um possível acordo internacional que está a ser
negociado.
— Isso não é muito específico — fez notar Charlie.
— Eu sei isso e até já falei sobre o assunto com o Dr. Haenners. Nós
ainda reagimos ao facto de certos tipos de pesquisa serem levados a cabo na
universidade. Penso até que o Dr. Haenners decidiu cancelar o trabalho. De
qualquer modo, a pessoa que o faz vai em breve mudar-se para as instalações
industriais.
— Também tenho essa impressão — respondeu Charlie. — Mas não
entendo bem porque é que me telefona a mim. Foi o Dr. Haenners que
sugeriu?
— Não, não. A pessoa que telefonou de Washington pediu-me que
falasse consigo e com o Dr. Haenners, no sentido de tentar estabelecer um
acordo para que não houvesse procedimento excepcional em relação ao
acidente.
— Compreendo — disse Charlie. — Sim, acho que compreendo. Claro
que o Dr. Haenners concordou.
— Sim, concordou em absoluto.
Charlie respondeu evasivamente.
— Bom, asseguro-lhe que não vou andar por aí a espalhar seja o que for
sem falar primeiro consigo.
O reitor ficou calado por um momento.
— Há alguma razão para o fazer?
— Não, nenhuma — disse Charlie tentando aparentar naturalidade mas
detesto fazer promessas desse tipo sem meditar um pouco nelas.
— Ah, sim, com certeza. Não quero forçá-lo. Porque é que não pensa
por uns dias e depois telefona-me?
Lentamente, Charlie concordou.
— Está certo. Assim farei.
— Então está bem e obrigado pelo tempo dispensado.
— Não tem de quê. — Desligaram ambos.
— Que foi tudo isso? — Perguntou Beth.
— Penso — disse Charlie ainda a tentar entender — que o nosso amigo
Tom ouviu realmente a nossa conversa no outro dia.
— Acerca da queixa? E que é que isso tem a ver com o reitor
Armstrong?
Ele contou-lhe o telefonema.
Beth lançou um longo assobio; depois perguntou, furiosa:
— Mas que diabo se está a passar aqui? — Levantando-se da cadeira
disse: — Acho que devíamos falar com o Tom.
— Espera aí — respondeu Charlie. Talvez devêssemos pensar primeiro
um pouco. O Tom deve ter contactado a CRA depois de ter escutado a nossa
conversa. Só assim se explica que eles quisessem que eu fosse contactado,
bem como o Lloyd.
— Claro, mas que treta é essa do governo?
Charlie abanou a cabeça.
— Vamos perguntar ao Lloyd.
Atravessaram o átrio. O Lloyd estava em estado de choque e confessou:
— Estou completamente perplexo! E isto não me agrada nada. Já disse
ao Bill que tem de largar o balcão de trabalho no princípio da semana que
vem. E disse ao Tom que de agora em diante faço tenção de me informar de
tudo quanto ele pensa fazer aqui dentro. Estou mesmo preocupado com isto.
Pesquisas secretas do governo! Não quero nada disso aqui dentro! — Charlie
nunca o vira tão preocupado.
— Já falaste sobre o assunto com os tipos da CRA ou com o Tom?
Haenners respondeu:
— Já falei com o Tom, mas ele não parece saber grande coisa. Ficou
combinado que ele iria de avião a Iowa neste fim-de-semana, tentar saber de
que projeto se trata exatamente.
— Mas eu pensava que ele já tinha feito isso — lamentou-se Charlie.
— Não — disse Beth em tom sarcástico —, ele só descobriu que não
havia razão para nos preocuparmos. É quase tão fácil ele dar informações
como o Greene.
— Quem? — Inquiriu Haenners.
— Uma pessoa que nós conhecemos — disse Charlie. — Mas porque é
que não ligas para a CRA e não falas tu? Isso parecia mais sensato.
Haenners parecia furioso.
— Claro que parecia, mas tu não lidas com eles há cinco anos. Nem uma
vez, sequer, consegui chamar ao telefone alguém de lá que soubesse fosse o
que fosse. Na melhor das hipóteses, consegue-se que nos telefonem dai a um
dia ou dois. Falei com o Tom e decidimos que o melhor que ele tinha a fazer
era ir lá. Interrompi o projeto, por isso agora não sinto que haja assim uma
pressa tão grande.
— Ou para a semana — corrigiu Beth.
— Na próxima segunda-feira — disse o Haenners. — Não há razão para
se lhe fazer perder experiências que possa ter em curso.
— Ah, não, claro! — Respondeu Beth asperamente.
— Só o que eu não entendo... — Começou Haenners. — Bom, raios me
partam, não entendo nada disto, mas também não entendo porque é que te
telefonaram a falar disto.
— Também eu não — disse Beth apressadamente, antes que Charlie
pudesse dizer fosse o que fosse. — Mas não te disseram quando falaram
contigo?
— Não.
— Bom — disse Charlie pegando na deixa de Beth. — Acho que isso é
o menos. — Levantou-se para se ir embora. — Diz-me, se souberes alguma
coisa, está bem?
— Certamente.
Beth levantou-se também.
— Ah, Lloyd, queria perguntar-te se tinhas tido oportunidade de falar ao
Sid Cramer.
— Sim, de facto falei com ele hoje de manhã, mesmo antes de o
Armstrong telefonar. Quer que vás falar com ele um dia destes e que leves o
teu curriculum vitae e cópias dos teus artigos. Talvez recebas a carta dele
amanhã. — Sorrindo, acrescentou— Acho que desta vez conseguiste.
Beth franziu a testa.
— Já não tenho grandes esperanças, mas vamos a ver.
Ela e Charlie saíram do gabinete. De regresso ao seu, Charlie olhou para
a folha da sua queixa.
— Bom, parece que esta vai ficar pendurada por uns tempos.
— Só por uns tempos? — Perguntou Beth.
— Bem, se as experiências com os ratos demonstrarem alguma coisa,
então preencho-a. — Ela sorriu.
— Melhor para ti. — Sentou-se. — Estás a ver o que eu quero dizer com
isso de o Lloyd ser um burro?
Charlie pareceu surpreendido.
— O quê? Eu pensava que ele tinha feito, efetivamente, algo de bom.
— Claro. Depois de lhe ter telefonado o reitor da universidade a avisá-lo
de que há pesquisas secretas do governo, a decorrerem no seu laboratório sem
ele ter sequer conhecimento e que até houve um acidente e tudo, ele concede
ao Bill uma semana! Uma semana, porquê? É uma desculpa que está a dar-
lhe. É o mesmo que o Lloyd dizer-lhe: «Olha, Bill, detesto fazer-te isto, mas
tem de ser.» Acho que o Hebb deveria ter logo sido posto fora no momento
em que o Haenners soube. E o Tom! Pela maneira como tem atuado, acho
que seria tão capaz de ter causado o derramamento como o Bill!
— Talvez — concordou Charlie, — Então o Tom vai voltar a Iowa. Está
a tornar-se um viajante com assinatura.
— Eu sei — disse Beth. — Cada vez penso coisas mais estranhas sobre
ele. Como é que se explica que esteja tão tranquilo com tudo isto? E porque é
que continua a insistir em que nada sabe sobre o vírus, a não ser que a CRA
diz que é inofensivo? Acho que já nem sequer nisso acredito.
— Bom, pode ser que esta viagem esclareça finalmente as coisas.
2
Em Washington, o major Pearson olhava fixamente o obstetra e pensava
para consigo convictamente: «Os sacanas atacaram-nos mesmo!» Estavam lá
os cinco, na terça-feira à noite, já muito tarde, para uma reunião de
emergência.
— Acho que podemos guardar os nossos palpites para mais tarde. Há
mais perguntas a fazer antes de dispensarmos o Dr. Muller?
— Ficou com a impressão de que o indivíduo que recolhia os fetos
estava a boicotar a investigação?
Muller não tinha a certeza.
— Por vezes parecia, mas noutras dava a impressão de ser uma tremenda
pouca sorte. Mas conseguiu descobrir que havia uma série especial de LSD
em todas as cidades onde Greene andava a fazer a recolha.
— Ele forneceu o nome do passador, em Nova Iorque? — Perguntou um
deles.
— Não — respondeu o Muller. — Estava visivelmente preocupado com
o facto de o tipo ter sido assassinado ou pelo menos morto.
— Que quer dizer com «pelo menos morto»?
— Ah, desculpem. — Muller esquecera-se de dar pormenores, da
primeira vez que contara. — Aparentemente, morreu num acidente.
Atropelamento e fuga. A testemunha disse que parecia mesmo que o
condutor se dirigira deliberadamente para o tipo, por isso depreendo que se
tratasse de crime.
O outro enrugou a testa.
— Tratava-se do Masco, não é?
Por uns minutos, todos ficaram calados, tentando articular os factos, para
decidirem se haveria mais perguntas.
— Olhe, ao todo, quantos abortos pensa você que tenha havido? —
Perguntou Pearson por fim.
Muller encolheu os ombros.
— Só posso fornecer um cálculo — disse, enquanto fazia contas de
cabeça. — Talvez uns dez em cada cidade. É espantoso como o LSD se
espalha por aqui. Talvez, por isso, haja uns setenta e cinco a cem ao todo.
— Bem, se não há então mais perguntas, talvez devêssemos dar início à
sessão. — Não houve objeções. — Obrigado, Dr. Muller. Queria perguntar-
lhe se poderia esperar na sala ao lado enquanto decorre a sessão. Talvez o
chamemos para lhe fazer outras perguntas.
— Com certeza — disse Muller, levantando-se para sair.
— Vai achar a sala muito confortável.
— Obrigado — respondeu Muller e saiu. A porta fechou-se com um
clique sonoro.
Todos se olharam em silêncio.
— Estamos de acordo quanto a termos sido atacados? — Ninguém
objetou. — Poderia alguém fazer uma listagem daquilo de que já temos a
certeza?
— Eu posso fazer isso. Ponto um: sabemos que Jim Karls é o nome
suposto dum indivíduo que tem assistido às reuniões sobre ADN
recombinante. Ele tomou providências para ocultar a sua identidade. Ponto
dois: os Russos estão a trabalhar em qualquer coisa que podemos calcular
tratar-se dum projeto de guerra biológica com ADN recombinante. Ponto
três: Karls estabeleceu contacto, em Nova Iorque, com um passador de droga
que foi depois assassinado. Ponto quatro: o passador vendeu uma remessa
específica de LSD em oito cidades e o ácido causou um aumento espantoso
da taxa de abortos quando tomado antes da concepção. Isto é diferente da
ação do LSD, e por isso presume-se que seja devido a qualquer coisa
introduzida no LSD. Ponto cinco: alguém tem andado a recolher os fetos
resultantes dos abortos, nas oito cidades, e perdeu-se o rasto dessa pessoa.
»A conclusão, se me permitem, é que Karls, como agente russo, tem
andado a fazer duas coisas: primeira: a reunir informações sobre pesquisas
americanas em ADN recombinante; segunda: a dirigir um programa secreto
de testes duma arma biológica de concepção russa.
»Acho que essa é a única explicação possível.
Os outros baixaram a cabeça em sinal de assentimento.
— Nesse caso — prosseguiu Pearson gostaria de retirar o meu pedido de
adiamento e pedir a este grupo que informe a Joint Chiefs of Staff7 que
pensamos que uma espécie de represália, talvez utilizando a gripe botulina,
deve ser imediatamente desencadeada.
Terça-feira, 12 de Janeiro
ALTAMENTE SECRETO. SÓ PARA SER LIDO.
A partir desta data, 12 de Janeiro é concedida autorização para
desenvolvimento do agente Black, de potência real de 1.25 (Um ponto dois
cinco), para contaminação inicial de 100 (cem) pessoas por alvo, 8 (oito)
alvos, números de código de 62 (sessenta e dois) a 69 (sessenta e nove), folha
de código 142 (cento e quarenta e dois)
(Assinado) John Cordon
pela Joint Chiefs of Staff
ALTAMENTE SECRETO. SÓ PARA SER LIDO.
Stanley Johnson ficou a olhar fixamente a carta, depois rasgou-a ao meio
e atirou-a para o lixo. Não sabia porquê, mas nunca esperara que se chegasse
àquilo. Westland falara com ele na véspera, dizendo-lhe que estava a chegar
um pedido especial de material, mas não adiantara mais, a não ser para frisar
que não haveria perguntas a fazer nem explicações a dar.
Os stocks de vírus estavam no frigorífico, cem frascos para cada stock de
mutadores. O menor era do tipo 1.25, o que tinha menor alcance. Mesmo
assim, falavam em matar mil pessoas utilizando apenas oito alvos.
Apercebeu-se de que nem sequer sabia onde estavam os alvos. Rússia?
China? No Médio Oriente? Nem queria saber. Tirou oito frascos, verificando
e voltando a verificar os rótulos. Cada um deles continha vírus desenvolvidos
a partir dum único vírus. Cada um deles fora verificado quanto à presença da
toxina botulina. E cada um dos oito vírus originais fora desenvolvido a partir
dum único vírus no qual a velocidade do gene mutador tinha sido
multiplicada uma vez e um quarto. A única coisa que se poderia ter feito para
se assegurar de que estavam corretos teria sido observar os mutadores em
cada um dos cem frascos individualmente e não houvera tempo de o fazer.
Embalou os frascos em gelo seco e chamou um correio militar. Cinco
minutos depois iam a caminho.
Sexta-feira, 15 de Janeiro
Na sexta-feira, Beth apareceu no laboratório de Charlie completamente
transtornada. Estava a dissecar alguns dos ratos dos do ácido — com catorze
dias de gravidez — e os resultados eram uma duplicação dos verificados nos
testes anteriores, com números quase idênticos de deformação. Ele levantou
os olhos e reparou na expressão dela.
Pareces perturbada.
— E estou — respondeu Beth. — Acabei de receber um estranho
telefonema.
— Hã? — Charlie interrompeu o trabalho e perguntou-lhe o que era.
— Telefonou um tipo a dizer que era amigo do Bill Hebb e que o Bill se
tinha ido embora para Iowa e se eu podia limpar-lhe a bancada dele.
Charlie riu-se.
— E que tem isso de estranho? Parece-me mesmo coisa dele.
— Não, não parece — insistiu Beth. — Ainda ontem estivemos a falar e
ele estava preocupado por ter de se ir embora tão depressa. Disse-me que
tinha uma grande experiência em curso que iria conseguir concluir a tempo,
talvez no domingo à tarde. Ontem, à hora de saída, estava mesmo
entusiasmado com a experiência.
— Talvez cá tivesse vindo à noite e tivesse visto que a experiência
falhara. Acontece todos os dias e eu até compreendo que ele tenha
desaparecido depois de ter falhado uma experiência importante.
— Sim, tudo isso faz sentido — disse Beth —, só que ele nunca aqui
vem à noite. Mesmo quando tem em curso experiências em que está
empenhadíssimo, prefere saltar pontos a vir cá depois das cinco para os
aclarar. Além disso, estive aqui ontem, até à uma da manhã. — Calou-se por
um momento. — E, Charlie, ele nunca se lembraria de me telefonar a pedir
que fizesse as arrumações por ele. Nunca faria uma coisa dessas. Limitar-se-
ia a sair e a nunca mais dizer nada.
Charlie encolheu os ombros.
— Então que é que pensas disto?
— Não sei. Com esta história da pesquisa secreta do governo e tudo, isto
está a tornar-se assustador.
— Talvez a CRA o tenha convencido a ir imediatamente. O Lloyd disse
qualquer coisa sobre estarem a apressar tudo. Talvez o fizessem mudar-se de
um momento para o outro e depois nos telefonassem a avisar.
— Não sei — repetia Beth. — Só queria ter uma forma de entrar em
contacto com ele.
— E que há com o Tom? Fizeste-lhe alguma pergunta sobre isto?
Ele foi hoje de manhã para Iowa.
— Talvez o Bill tenha ido com o Tom — sugeriu Charlie. — É provável
que o Tom saiba quando é que ele volta.
— Espero que o Tom não seja o único a conhecer o jogo todo —
murmurou Beth.
Segunda-feira, 18 de Janeiro
Na segunda-feira, porém, as respostas de Tom pareciam boas de mais
para serem verdade.
— Nem calculam o alívio que senti ao saber o que era — disse ele. —
Esse pormenor de se tratar duma pesquisa secreta do governo trazia-me sobre
brasas! — Era de novo o mesmo Tom, sempre amigo de todos. — Afinal, o
governo apareceu com esta supersoja, como eles lhe chamam, que aumenta a
produção de soja, da mesma forma que o superarroz aumenta a produção de
arroz. Mas o busílis está em que é invulgarmente sensível a doenças de
plantas. Por isso fizeram o seguinte contrato com a CRA: inserir na planta um
plasmódio chamado PL 142. O plasmódio é portador da informação genética
de resistência a um grande número de doenças-padrão das plantas. Na
natureza, encontra-se ligado a um vírus, que também ataca a planta da soja.
Aparentemente o vírus combina-se bem com o plasmódio, porque impede a
planta de ser infetada por qualquer outra coisa. Por isso a CRA está a tentar
transpor o vírus para as células da planta e depois selecionar células do tecido
de cultura que sejam resistentes a outras doenças, mas que não estejam
contaminadas pelo vírus. Isso só acontecerá na altura em que o vírus for
separado do plasmódio. Ai é que reside o fator supersecreto da pesquisa.
— Bem, isso já me faz sentir melhor! — Disse Lloyd. — Já andava a ter
pesadelos, sobre a possibilidade de estarmos a fabricar material de guerra
bacteriológica, secreto. — Riu-se nervosamente. — Mas não devia ter
deixado aquilo acontecer no meu laboratório, sem saber mais alguma coisa
sobre o assunto. Não voltará a suceder.
— Duvido — murmurou Beth a Charlie; perguntou: — Sabes alguma
coisa sobre a ida de Bill para Iowa?
— Já foi? — Perguntou Haenners, deitando uma olhadela à confusão em
que estava a bancada dele.
— Sim, já foi — disse Tom. — Realmente fez até a última parte do
percurso, desde Chicago, comigo. Saiu de Boston num avião umas horas
antes do meu, mas os aviões para Iowa não são assim tão frequentes.
— E que se faz com as coisas dele? — Indagou Charlie. — Nem sequer
levou os livros do laboratório.
— A CRA paga a mudança, de certeza — disse Tom. — Desta
cangalhada do laboratório é que não sei... Talvez possamos juntar isto tudo e
eu levo-lhe para o apartamento dele antes de virem os homens da mudança.
Haenners franziu o sobrolho.
— Realmente ele deixou a bancada numa confusão.
Tom olhou para Beth.
— Ele disse-me que ia pedir a um amigo que te telefonasse a pedir que
lhe arrumasses aquilo. Pediu muita desculpa, mas parece-me que decidiu
mudar-se muito à pressa.
— Essa agora — disse Beth. — Parece-me que é um bocado tarde pedir
o favor depois de já se ter ido embora do laboratório. É como se eu não
pudesse rejeitar.
— Vamos todos ajudar — sugeriu Haenners.
— Não te incomodes — respondeu Beth. — Será um prazer apagar os
últimos sinais da passagem de Bill por este laboratório.
Charlie riu-se.
— Não é lá muito vulgar as pessoas mudarem-se antes de chegarem os
homens das mudanças? — Perguntou a Tom. — Pensei que eles não podiam
entrar numa casa sem que alguém lá estivesse.
— O Bill deu-me as chaves — disse Tom, pescando-as de dentro do
bolso. — Eu disse que ia lá ao apartamento quando viessem os homens das
mudanças.
— Ele teve sorte de te encontrar a caminho de Chicago — comentou
Beth. — Custava-lhe a acreditar que Bill pudesse alguma vez pedir muita
desculpa.
Tom ia a responder quando o telefone tocou. Levantou o auscultador,
disse: «Está lá», e passou-o a Beth.
— É para ti.
Ela falou calmamente para o telefone. Lentamente a sua expressão foi
mudando para a de prazer.
— Claro, isso parece-me ótimo... É formidável. Vou falar com o Dr.
Haenners e volto a falar consigo esta semana, quando tivermos uma
estimativa melhor, mas essa já me parece boa... Obrigada. Muito obrigada. —
Desligou o telefone e virou-se para a audiência expectante. — O Sid Cramer
acaba de me dar o lugar!
Charlie e Lloyd romperam em «vivas!». Charlie deu-lhe um grande
abraço.
— Ótimo! Parabéns! Não podias ter-te saído melhor.
Haenners apertou-lhe a mão.
— Cheguei a estar preocupado, por uns tempos, sabes?
Ela sorriu.
— Eu sei. Também eu estava.
Tom deu-lhe os parabéns.
— Tenho de confessar que de certo modo lamento. Mas acho que ficarás
mais satisfeita ali do que em Iowa.
— Bem, o Sid Cramer é o presidente de um dos mais importantes
departamentos de genética do nosso país. Não o trocaria por nada — afirmou
Beth.
— Nem sequer sabia que tinhas concorrido ao lugar — comentou Tom.
— É o que perdes em ir a toda a hora a Iowa — disse Beth, arreliando-o.
— Talvez — concordou com um sorriso. — Bom, parabéns.
Saiu do laboratório e deixou os outros a festejarem a sério.
Terça-feira, 19 de Janeiro
Na terça-feira, Doc e Beth foram jantar fora para festejar.
— Sabes — comentou ele — antes de começar tudo isto, primeiro com o
ácido e depois com o vírus, eu costumava esperar sempre que as coisas
corressem pelo melhor. Afinal, talvez até ainda corram. — Ele estava quase
tão contente como ela, por causa do emprego.
Agora ela já podia ficar na zona de Boston sem comprometer a sua
carreira.
— Não sei — desafiou-o ela. — Dantes estava convencida de estar farta
da costa leste e de que queria mudar-me para a Califórnia.
— Ná, tudo o que as pessoas lá sabem fazer é estender-se ao sol e
esturrar os miolos — respondeu Doc, e apertou-lhe a mão. — Estou tão
contente por ficares por cá, sem ser só por minha causa! Acho que isso iria
acabar por nos trazer problemas.
Beth concordou. Mas, à medida que iam falando, ela ia-se apercebendo
de uma tensão subjacente em Doc.
— Que é que me estás a esconder? — Perguntou por fim, apreensiva.
— Hã? Ah, é uma coisa mais acerca do ácido. Prometi a mim mesmo
dizer-te amanhã.
— É mau? — Perguntou ela.
— Mais tarde — prometeu ele. — Vamos ao nosso jantar.
— Não, vá lá. Que é?
Ele desistiu.
— Umas boas, outras más. Que queres primeiro?
— As más.
— Bem, não sei se já reparaste que o Greene já ultrapassou o prazo de
resposta?
— Ah, sim? Não tinha dado por isso. Há quanto tempo?
— Não muito — disse Doc. — Meti a carta para ele no correio fez na
quinta-feira passada oito dias, por isso penso que a deve ter recebido fez
ontem oito dias. Isso dava-lhe só um atraso de um dia.
— E isso é assim tão mau?
— Não; mas, para não deixar as coisas arrastarem-se, pensei em
telefonar para aquele serviço de recepção de mensagens e deixar-lhe recado
dizendo que eu estava a ficar inquieto.
— E então?
— Já não aceitam recados para o Greene.
— Quando é que foi isso?
— Deixaram de receber há uma semana, na segunda-feira, que deve ter
sido exatamente quando o Greene recebeu a carta.
A expressão de alegria de Beth ia-se tornando cada vez mais sombria.
— Ainda podes contactá-lo pela caixa postal?
— Aqui vai o resto, penso eu. Recebi o impresso do correio sobre a
caixa postal dele. — Parou por um momento. — Está alugada a um tal Felix
Greene em 540 Cathedral Parkway. Mas viram que o aluguer da caixa
terminou a semana passada e não foi renovado. Por isso também não posso
contactá-lo por ai.
— E que há sobre o telefone de casa — sugeriu Beth agora que já tens o
nome e a morada?
— Já tentei. Não consta na lista. Não há nenhum Felix Greene —
Enrugou a testa. — Estas são as más notícias.
Beth deu-lhe uma palmada nas costas da mão.
— Então não vamos tirar nada dele.
— Não sei — respondeu Doc. — O Kip vai lá amanhã. Talvez lhe peça
que vá a casa do tipo intimidá-lo, ou ao menos ver se ele ainda lá está. Tenho
o mau pressentimento de que se evaporou.
— Mas isso é uma loucura — objetou Beth. — O tipo tem casa e
emprego. Se até tinha a caixa em seu nome e tudo, não podia ser arraia-
miúda. Onde é que se poderá ter metido? E onde é que será esse instituto de
investigação para quem ele estava a trabalhar?
— Ah, esqueci-me disso — lamentou Doc. — Estava tão empenhado em
tentar sacar-lhe os dados que nunca me preocupei em saber a que instituto
estava ligado. Telefonei hoje a meia dúzia de obstetras e nenhum deles sabia.
Não está esclarecido se o Greene chegou a dizer a alguém.
Ela abanou a cabeça tristemente.
— Então não há quase nenhuma possibilidade.
Foram interrompidos pela empregada que lhes trazia a comida. Estavam
com fome e comeram em silêncio. Passado algum tempo, Doc disse:
— De qualquer modo, estamos aqui para festejar o teu emprego e não
para falar do vampiro.
Beth sorriu.
— É verdade. Já quase me tinha esquecido. — Estendeu o braço sobre a
mesa e apertou a mão dele. — Foi uma grande luta.
Comeram em agradável silêncio, felizes por saberem que ela tinha um
bom emprego, na cidade.
— Ummm — disse Beth com a boca cheia —, quais eram as notícias
interessantes? Disseste que havia duas coisas.
— Ah, é verdade. Tinha-me esquecido. Recebi há pouco um telefonema
dum obstetra de New Haven. Foi o Studeman que mo mandou.
— Acerca de quê?
— Acontece que ele se está a dedicar também ao problema dos abortos
naturais e veio a Boston para falar do assunto com alguém da Faculdade de
Medicina de Harvard. Sugeriram-lhe que falasse com o Studeman e ele
mandou-o para mim. Bom, ao fim de pouco tempo, falei-lhe do ácido e disse-
lhe saber também que havia um caso em New Haven. Isso depois de o ter
feito jurar silêncio sobre o caso, pelo menos até ao parto de Ann. Não me
parece que, baseado no que eu lhe disse, vá fazer grande coisa.
Enquanto Beth e Doc comiam a sobremesa, a conversa fluía entre o
emprego dela, a relação entre eles, o ácido e o vírus. Por muito que
preferissem os dois primeiros temas, os outros dois continuavam a
intrometer-se.
— Que é que esse obstetra de New Haven pensa da malformação? —
Perguntou Beth.
— Eu não lhe contei nada disso — respondeu Doc. Beth olhou-o de
forma inquiridora e ele explicou:
— Não me senti à vontade para falar nisso. Daqui a duas ou três
semanas, já tu e o Charlie repetiram a experiência, a Ann já terá dado à luz e
podemos pensar na forma de prosseguir com isto. É um risco falar-lhe nos
Gloryhits, mas isso pelo menos podemos provar-lhe. Quanto às
malformações, não quis arriscar-me a deitar tudo a perder, agora.
Beth sorriu.
— Parece-me razoável. Acho que eu devia ter feito o mesmo. — Voltou
à sobremesa e depois acrescentou: — Fred, há algo que está mesmo a
preocupar-me e gostaria de te falar nisso. É um tanto esquisito. Prometes que
me ouves?
Doc acenou com a cabeça em sinal de concordância.
— Fred, descreve-me a malformação — pediu ela.
Doc encolheu os ombros.
— A mal formação consiste num aumento geral da parte posterior do
cérebro, acompanhada pelo necessário aumento do tamanho do crânio. —
Olhou para ela, esperando uma explicação da razão da pergunta.
— Fred, lembras-te de quem é o Jim Karls?
Doc abanou a cabeça.
— O nome é-me conhecido, mas não consigo localizá-lo.
— É o amigo do Tom, de Squaw Valley.
— Ah, já sei. Foram eles que te salvaram da multidão, segundo me
constou.
Beth fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Mas lembras-te de eu te contar uma das perguntas que ele fez durante
uma das reuniões?
Doc abanou a cabeça.
— Ele perguntou se era possível transferir genes para aumento da
capacidade craniana e aumentar assim a inteligência do receptor.
Doc empalideceu.
— Não queres sugerir que...
— Que ele não só está a desenvolver a técnica, como também a aplicá-
la. — Ela terminou a frase em tom declarativo.
Doc ficou sentado por momentos, sem dizer palavras, depois abanou a
cabeça.
— Absurdo — disse baixinho. — E o Tom Darnell está a trabalhar nessa
técnica, no teu laboratório, certo?
— Sim! — Gritou Beth em voz demasiado alta para um restaurante.
Depois, mais baixo, disse:
— Achas que o Karls fez aquela pergunta por acaso? Que ele e Tom se
encontraram lá por acaso? Que Tom ouviu por acaso a nossa conversa sobre
denunciarmos o acidente do derramamento, o que teria posto tudo a claro e
que levou Washington a exercer pressão para que o caso fosse abafado?
Doc encolheu os ombros.
— É demasiado inconsistente, Beth. Porque é que estás tão inclinada a
considerar isto uma gigantesca conspiração?
— Mas tudo se articula tão bem! — Insistiu Beth.
— Exceto no que se refere ao facto de Tom estar a trabalhar em células
vegetais e vírus de plantas e à forma como poderia isto estar ligado ao
passador Masco, em Nova Iorque. E onde é que se encaixava o Greene?
— O Greene? — Gritou Beth. — Claro! O que eles queriam era aqueles
fetos. E aquele que te desapareceu, Fred, falaste nele ao Greene!
Doc pensou por um momento.
— Mas estás a dizer que eles os queriam vivos, supergénios... Não é isso
que estás a insinuar?
— É — concordou Beth. — Talvez quisessem afastar os fetos abortados,
para que ninguém notasse. Ou talvez seja o primeiro teste efetuado em seres
humanos e nem sempre resulte.
— Isso parece-me demasiado forçado — disse Doc. — E ainda não
arranjaste papel para o Tom. É ele o elo que mantém de pé a tua ideia e não
tens função para ele, a não ser o seu trabalho em ADN recombinante. Se ele
estivesse a trabalhar com células e vírus de células humanas, talvez eu
acreditasse em ti, mas não está.
— Não, não está — concordou Beth —, mas há algo de esquisito nessa
coisa da supersoja. — Calou-se por um momento e acrescentou: — Se ao
menos ele estivesse a falar verdade!
Doc soltou um suspiro longo.
— Vá lá, não vamos discutir esta noite, está bem? — Disse baixinho.
— Está bem, mas continuo a acreditar no que disse.
Ele pôs-lhe um dedo nos lábios.
— Nem mais uma palavra sobre isso, esta noite, de nenhum de nós.
Ela beijou-lhe o dedo, tristemente.
Quarta-feira, 20 de Janeiro
1
Na quarta-feira estava um frio de rachar e Charlie levou meia hora a pôr
o velho Volvo a trabalhar. Preferia ir de metro a estar a lutar com o carro, mas
Ann insistira. Ela esperava o bebe nas duas próximas semanas e podia dar à
luz a qualquer momento.
Mas Charlie não sentia pressa. Nunca falara a Ann nos 15% dos ratos
nascidos mais cedo e deformados. Um dia de antecipação num rato equivalia
a duas semanas de antecipação num ser humano e ele rezava para que Disney
viesse tarde. Os resultados da repetição da experiência deviam ser concluídos
no dia seguinte, mas os dados até agora tinham sido idênticos.
Ann deu-lhe um beijo de despedida.
— Passa um dia bom — disse-lhe — e não te metas em mais
experiências dessas de três semanas.
Ele sorriu.
— Amanhã termino todas as minhas experiências de longa duração e não
me meto noutra enquanto Disney não tiver outro nome.
— É um lindo mês — disse ela.
Ele concordou. Ia tirar um mês de licença de paternidade, tudo o que lhe
era autorizado.
— Até logo à noite.
No laboratório, pegou no correio e dirigiu-se ao seu gabinete. Como não
havia nada na correspondência que lhe parecesse interessante, resolveu ir
observar os ratos.
— Que raio! — Correu de prateleira para prateleira. Todas as gaiolas
estavam vazias. — Impossível! — Murmurou. Voltou a olhar à volta. Era
óbvio que tinham desaparecido. Atravessou o átrio a correr, esperançado em
que Beth os tivesse usado para qualquer coisa. — Tom, viste por ai a Beth?
— Perguntou.
— Não, ainda não chegou — respondeu. — Posso fazer qualquer coisa?
Charlie abanou a cabeça.
— Alguém roubou os meus ratos.
— Roubou? Tens a certeza?
Charlie encolheu os ombros.
— A não ser que Beth fizesse alguma coisa com eles.
— Para que era a experiência? É difícil de repetir?
— Não, era apenas uma experiência que estava a fazer para um amigo
— mentiu Charlie. — Pode repetir-se.
— Ah — Tom estava nitidamente a pensar em qualquer coisa, mas
passou. — Mando lá a Beth logo que ela chegue — declarou.
— Obrigado.
Charlie dirigiu-se ao seu gabinete mas, já no átrio, lembrou-se de que
havia outros ratos, esses, sim, insubstituíveis. Apressou-se a ir lá acima, à
zona de quarentena. Visto que o Darnell tinha entornado o resto dos vírus,
aquelas experiências não podiam ser repetidas. Encontrou à porta o vigilante.
— Estes seus ratos parecem a ponto de dar à luz — comentou.
— Já os viu hoje? — Perguntou Charlie.
— Sim, senhor, ainda não há vinte minutos. Alguns não parecem estar
grávidos, mas cerca de metade aparentam estar no fim do tempo.
Charlie deixou escapar um suspiro de alívio.
— Sim, esperam para depois de amanhã. — Lembrou-se de que
tencionava fazer algumas cesarianas na passada segunda-feira. Talvez quando
Beth chegasse fizessem algumas. Dirigiu-se para o laboratório.
— Quer alguma coisa? — Gritou-lhe o vigilante.
— Não, obrigado — respondeu Charlie.
Já de volta ao seu laboratório, decidiu telefonar para o gabinete de
segurança. Talvez os ratos tivessem aparecido em qualquer outro lado. Mas
estava com pouca sorte.
— Não, senhor, não há notícia de alguém ter ratos a mais. O senhor é
que os tinha da última vez, não era?
— Era — respondeu Charlie irritado.
— Bem, se aparecer alguma coisa, telefonamos-lhe.
Murmurou um «adeus» e pousou cuidadosamente o auscultador no
descanso. Deu consigo a meditar se estaria a ser intrujado por alguém e, se
assim era, por quem. Sentia-se como se estivesse a perder o contacto com a
realidade. «Será que estou a entrar em depressão?» Mas não que raio, o
mundo real é que estava a enlouquecer, não ele. Porque diabo havia alguém
de lhe ter roubado os ratos? Não fazia qualquer sentido.
— Andas à minha procura? — Era Beth.
Charlie franziu o sobrolho.
— Calculo que não te serviste dos ratos para nada ontem à noite? —
Pela expressão dela já sabia a resposta.
— Não. Porquê?
— Desapareceram — disse ele muito calmamente, porque estava
demasiado cansado para se irritar.
Beth é que não esperava.
— Desapareceram? — Gritou. — Que queres dizer com isso? Que ratos?
Charlie pegou numa régua e começou a brincar com ela, focando mais
nela a sua atenção do que em Beth.
— Os ratos do vírus ainda lá estão em cima. Só desapareceram os ratos
do ácido. Desapareceram. Sumiram-se, simplesmente. — Disse aquilo como
se fizesse uma previsão meteorológica das condições do tempo.
— Disseste ao Tom? — Perguntou ela.
— Disse.
— Que tal a reação dele? — Perguntou.
— Atenciosa.
— Ficou surpreendido ou parecia estar à espera?
Charlie encolheu os ombros.
— Beth, pergunta-lhe tu. Eu estou desfeito. Completamente desfeito. Já
não tenho mais forças para empregar nisto. Talvez depois do Disney nascer,
talvez nessa altura. Mas, por agora, não, por favor. — Parecia totalmente
abatido, sentado na sua cadeira e virando e revirando a régua.
Beth explodiu de raiva. Seria que toda a gente a iria abandonar?
— E quanto aos ratos do vírus? Também vais esquecer-te deles? —
Perguntou.
Ele inspirou profundamente e expirou lentamente o ar. Depois, e sempre
olhando a régua disse:
— Não, desses vamos tratar. Esta manhã ainda não havia ninhadas, mas
vou ver amanhã outra vez e todos os dias até terem dado à luz, todos. Pelo
menos farei uma contagem das ninhadas e conservarei metade delas em
formol. A outra metade ficará à espera até serem maiores.
— Eu sei — respondeu ela secamente. — Eu colaborei no planeamento
da experiência. — Parecia que vinham à superfície toda a sua raiva, a sua
frustração e o seu medo. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, depois
virou-se e saiu.
Charlie pousou a cabeça na secretária, tentando ao mesmo tempo pensar
e esquecer tudo. Ficou numa apatia de sonho e de semiobscuridade e nada
mais.
O telefone acordou-o. Olhou para o relógio. Tinha passado mais de uma
hora. Voltou a tocar. Atravessaram-lhe a mente, ainda semiadormecida,
imagens terríveis de Ann, em trabalho de parto duas semanas mais cedo.
Confuso, pegou no telefone.
— Está?
— Charlie? Daqui é Kip.
— Ah, o que há? — Todo o terror e confusão lhe saíram da mente e
ficou por fim completamente acordado.
— Passei por cá para ver o Tommy e saber se tinha descoberto mais
alguma coisa.
— Alguma novidade sobre o Masco? — Perguntou interessado, apesar
do seu cansaço.
— Charlie, está a passar-se algo de estranho.
— Disso não há dúvida. — Charlie sentia o cansaço apoderar-se
novamente dele, bem como o desejo de abandonar tudo e de ir para casa e
ficar apenas junto de Ann. — Continua — disse num suspiro. — Que é
agora?
— Não sei — disse Kip. — Fui a casa do Tommy e bati. Quando abriu e
me viu, bateu-me com a porta na cara. Bati de novo e ele disse-me que me
safasse dali, senão chamava a polícia! Quando gritei durante mais algum
tempo, deixou simplesmente de responder. — Parou, esperando um
comentário da parte de Charlie. — De qualquer modo, fui a uma cabina e
liguei para ele. Quando me ouviu a voz desligou e, quando voltei a telefonar,
não atendeu! — Charlie não dizia nada. — Charlie, estás ai?
— Sim, estou aqui. Temos então outro beco sem saída... Que é que há de
tão surpreendente nisso?
Kip não sabia o que dizer.
— Charlie, não faz sentido!
— Nada disto faz! — Retorquiu Charlie furioso. — Mas eu não posso
fazer nada, está bem?
— Que é que há, hem?
— Não há nada. Estou apenas um pouco cansado, como toda a gente.
Estou farto desta embrulhada.
— Charlie, aconteceu alguma coisa?
— Não, não aconteceu nada... Oh, merda, desapareceram os meus ratos,
mas isso não foi nada, foi apenas a última gota. Estou farto desta história
toda, seja ela qual for. Tudo são becos sem saída, uns atrás dos outros. Talvez
devêssemos aceitar a sugestão e desistir de tudo.
— Charlie, falaste nisso à Beth? — Kip sentia-se desamparado, a duas
milhas de distância.
— Sim — respondeu Charlie — e ela também está fula comigo. Olha,
agora estou ocupado. Depois falo contigo. — Desligou o telefone antes que
Kip pudesse responder e, agarrando no casaco, desalvorou porta fora.
2
Do outro lado do átrio, Beth viu-o sair. «Que se lixe», pensou. «Quando
toca a ser de mais, o bom do Charlie Cotten limita-se a pirar-se. Há de ser um
bom professor.» Ela sabia que não acreditava naquilo, mas era o que sentia.
Já era de mais ter o Fred a não acreditar na sua ideia, mas agora Charlie batia
em retirada a pretexto de que estava demasiado cansado. Sentia-se
completamente só. Do outro lado da sala, atrás dela, ouvia Tom a trabalhar
calma e firmemente. Desde o incidente ele estava ainda mais calmo, falando
com ela ainda menos que antes. Fazia-a sentir que estava a trabalhar em
presença de qualquer força maléfica.
No entanto, uma parte de si acreditava na afirmação de Doc, de que tinha
conspirações metidas na cabeça, e concordava com Charlie em que deveriam
deixar correr as coisas por uns tempos. Compreendia que era uma forma de
esquizofrenia, o facto de não saber se devia ou não acreditar naquilo em que
acreditava. De certa forma, não o fazer seria negar a sua própria realidade.
Sentou-se à sua secretária, demasiado esgotada para trabalhar. Como
precisava fazer qualquer coisa para distrair as ideias, decidiu arrumar a sala
do Bill Hebb. Haveria de certeza algum prazer em apagar os últimos traços
daquele idiota. «Não, idiota não», pensou. «Os idiotas não podem ser
censurados pelos seus atos.»
Foi para a sala ao lado e observou o local. Era um pesadelo onde não
havia qualquer vestígio de ordem. Como é que Tom alguma vez conseguira
dar com os stocks de vírus, era coisa que a ultrapassava. Mas tinha-os
encontrado e destruído, com uma energia invulgar. Porque seria que ele os
teria querido fazer desaparecer tão depressa? Ainda não entendera bem o
Tom.
Começou pelo fundo da bancada. Não havia ordem a estabelecer, nem
organização de qualquer espécie. Até nem conseguia dizer quais os vidros
limpos e sujos. Por fim decidiu que tudo teria de ser esterilizado, por questão
de segurança. Por isso, silenciosa e eficientemente, carregou o carrinho de
material de recipientes cheios de uma coisa que não sabia o que era. Estava
espantada com a quantidade de coisas que tinham cabido na bancada dele.
Quando já não conseguia meter mais nada no carrinho, empurrou-o até
às autoclaves e meteu tudo lá dentro. Ficariam a esterilizar durante meia hora.
«Não», pensou, «é melhor uma hora.» Depois levá-los-ia à lavagem. Ligou as
autoclaves e voltou para o laboratório do Hebb.
Ao canto da sala estava a incubadora onde ele desenvolvera as culturas
de tecidos. Pensou para consigo: «Será que o Tom deixou aqui algumas?» Foi
direita a ela e abriu a porta. Deixara. A incubadora estava cheia de pratos de
células. Teriam de esperar até que os outros vidros estivessem esterilizados,
então poderia tratar deles. Mas isso ainda demoraria uma hora, por isso
começou a dirigir-se para o seu laboratório.
Parou à porta, com um sorriso no rosto. Pensou qual seria o aspecto das
células de supersoja e tentou imaginar a expressão «Altamente secreto»,
escrita em cada célula por um cretino dum funcionário governamental.
Pegando num prato coberto, levou-o pelo laboratório até à tenda esterilizada
onde o Bill devia ter feito o trabalho. A sua limpeza demonstrava o contrário.
Pondo o prato sob um microscópio, tentou focá-lo sobre as células. «Oh, meu
Deus!», murmurou. Estava completamente desfocado. Passou os dez minutos
seguintes a pô-lo em condições, pensando como é que alguém o poderia ter
assim desfocado, mas depois riu-se consigo. Esquecera-se que era do Bill
Hebb que estava a tratar. Finalmente as células no prato saltaram à vista na
lente bem ajustada.
Sentou-se ali, olhando as células e mal respirando. Como num sonho,
dirigiu-se à incubadora e tirou de lá todos os pratos com tecido. Observou as
células que continham, um a um. Por fim, as lágrimas caiam-lhe na lente,
impossibilitando-a de continuar. Onde é que estava Charlie, Fred ou alguém
com quem pudesse falar? Pegou nos pratos e voltou a pô-los na incubadora,
limpou a cara e voltou para o seu laboratório. Ficou ali sentada, tentando
compreender como é que tudo se conjugava. Não eram células vegetais. Eram
células nervosas!
Atrás dela ouviu Tom pôr qualquer coisa no laboratório e sair. Seguiu o
som dos seus passos pelo átrio e ouviu o som de abrir e fechar o que fora o
laboratório de Bill. Uns minutos depois ouviu-a abrir-se e fechar-se de novo e
o som de rodas de um carrinho atravessar o átrio. Sorrindo amargamente, foi
à porta ao lado e observou. Tom tirara da incubadora todos os pratos com
culturas de tecidos. Ainda como num sonho, regressou ao seu laboratório e
sentou-se. Tom deitou-lhe um olhar quando voltou.
— Demasiado tarde — disse ela com um sorriso doloroso.
Ele fixou-a interrogadoramente.
— Já os observei.
Pegando no casaco, saiu antes que ele lhe pudesse responder.
3
O ar frio e húmido fustigou a face de Beth quando saiu do edifício. Os
seus pés viraram à esquerda, dirigindo-se para a área central da universidade,
mas não tinha onde ir. Sentia-se nervosa e assustada pela observação que
fizera a Tom. Fosse o que fosse em que ele estava implicado, já tinha causado
pelo menos a morte de Masco. Tinha havido no rosto dele, quando ela lhe
dissera que tinha visto as células nervosas, uma frieza como nunca vira.
Porque é que havia de lhe ter dito? Era como se ele fosse um reles gangster,
era... Nem sabia o quê.
Precisava desesperadamente de falar com alguém, mas quem? Não podia
ir ter com o Charlie, na disposição em que ele estava. E Doc — rir-se-ia outra
vez? Não poderia admitir isso, agora. Percebeu de repente que era com Ann
que queria falar. Virando-se de repente, dirigiu-se para uma cabina. Mas na
cabina parou. Não tinha falado à Ann nos ratos deformados que tinham
nascido e ela prometera a Charlie que não o diria.
Sentiu-se terrivelmente só, afastada de todos os amigos, afastada pela
própria razão pela qual precisava de ajuda. Compreendeu pela primeira vez
como o assunto do ácido interferira em todos os aspectos da sua vida. Deitou
uma olhadela por cima do ombro, esperando ver o Darnell, mas não havia
ninguém à vista. Chamou um táxi e mandou-o seguir para Common, vendo
sempre se era seguida. Seria que estava a enlouquecer? Se o seu mal era
paranoia, estava agora completa. Compreendeu que estava a fugir dum
desconhecido.
Caminhou pelas ruas de Boston, perdendo-se na multidão, vagueando
por armazéns, tentando desesperadamente distrair-se. Por fim, desesperada,
entrou num cinema, pensando de que é que se esconderiam os outros que lá
estavam.
Por volta das cinco estava exausta. Não querendo ir para o seu
apartamento, decidiu finalmente telefonar ao Doc. Estava semiconvencida de
não estar boa da cabeça. Todos agiam tão bem, tão normalmente. «Exceto o
Ralph Masco», pensou. Precisava de falar com alguém, qualquer pessoa.
Telefonou para o consultório de Doc.
— Olá, Sharon, sou eu. Posso falar com o Fred? — A sua voz soava
perfeitamente normal.
— Ele não está — disse Sharon. — Tomou um avião para Nova Iorque,
para ir investigar a morada daquele tal Greene. Tentou telefonar-lhe, mas
você não estava nem no laboratório, nem em casa, disse ele.
— Ah, não, não estava. Ele disse quando voltava?
— Logo à noite, acho eu. Tem um horário normal para amanhã. Posso
ficar com o recado? — Perguntou em tom encorajador.
— Não, não, eu depois falo com ele. — Desligou o telefone, confusa. No
apartamento dele estaria segura? Patterson também estivera envolvido na
morte de Masco. Sentou-se na cabina, olhando pelo vidro. Sentia-se como se
quisesse ali ficar, protegida pela cabina.
A exaustão invadiu-a e um arrepio de frio atravessou-lhe o corpo. Tinha
de fazer alguma coisa. Levantou-se entorpecida e saiu para o frio, tomando a
direção da casa de Doc. A neve começara a cair, pesada e húmida, enquanto
ela percorria os últimos quarteirões que a separavam do apartamento de Doc,
sempre na expectativa de ser alvejada de um carro que passasse.
Deu a volta à chave e abriu a porta do apartamento. Estava vazio e
quente, e exatamente como sempre estivera. Caminhou de divisão em
divisão, tocando os objetos como para se certificar de que eram reais. Tudo
estava normal. Simplesmente normal. Fechou e voltou a fechar a porta,
verificou as janelas e só então comeu qualquer coisa.
Mais tarde, no fundo do seu espirito, ouviu umas pancadas que lhe
chamavam a atenção. Abriu os olhos no silêncio. O quarto estava às escuras;
adormecera. As pancadas recomeçaram.
— Beth? Estás ai?
Era a voz de Doc. Correu para a porta, lembrando-se de que estava
fechada por dentro, e abriu-a. Era Doc, como habitualmente. As lágrimas
bailaram-lhe nos olhos e, atirando-se para os braços dele, deixou finalmente
expandirem-se todo o medo e ansiedade.
Mais tarde contou-lhe os acontecimentos do dia: o desaparecimento dos
ratos, o facto de Charlie se ter retirado do caso, as culturas de tecido nervoso,
a sua revelação a Tom e a sua fuga pela cidade. Ele escutava em silêncio.
— Isso então já nos diz do papel de Tom — afirmou por fim.
Permaneceu sentado a pensar em tudo.
— Que aconteceu em Nova Iorque? — Indagou Beth.
Doc franziu o sobrolho.
— Era uma falsa pista. Fui à morada e não havia lá nenhum Greene.
Houve alguém que se lembrou que um tal Dr. Greene alugara um
apartamento por um mês e depois se tinha mudado. Aparentemente só o
alugou o tempo necessário para estabelecer uma residência para a caixa
postal.
— Então ele também faz parte disto? — Perguntou ela. — Acreditas
agora em mim, quando digo que se passa algo?
Ele sorriu.
— Acredito, e parece que o Greene também está metido nisto. — O seu
sorriso não era de felicidade. — Mas duvido que estejas em perigo. Duvido
que eles se queiram expor.
— Quem? — Inquiriu Beth. — Quem são eles?
Doc abanou a cabeça.
— Não sei! Não sei mesmo!
Terça-feira, 12 de Janeiro
1
De manhã o chão estava atapetado duma camada de oito palmos de neve,
e não havia sinais de que fosse diminuir. Beth caminhou penosamente pela
neve, acompanhada por Doc, até à paragem do autocarro e depois separaram-
se. Teria sido inútil tentar conduzir. O autocarro subia e descia ruas com
dificuldade, abrindo lentamente caminho até ao centro médico. Temia
enfrentar o Darnell, mas ela e Doc tinham concordado que não poderia
limitar-se a ficar escondida. O pior era saber que ele se iria desfazer em
sorrisos e apresentar alguma explicação para as culturas de células nervosas.
Subiu as escadas e foi direita ao seu laboratório. Ele não estava.
Soltando um suspiro de alívio, dirigiu-se à sua secretária, pendurou o casaco,
sacudiu a neve e sentou-se. No meio da secretária estava um papel. «Beth»,
começava assim, «também observei alguns dos pratos e estou tão confuso e
perturbado como tu. Vou apanhar o avião da manhã para Iowa. Temos de
chegar rapidamente ao fundo da questão. Volto em breve. Tom.» Deitou o
papel para o cesto e riu-se. As suas constantes viagens a Iowa estavam a
tornar-se ridículas. Às vezes chegava a pensar que ele se limitava a ir a casa
dormir uns dois dias.
Mais tranquila, decidiu ir ver se Charlie estava com melhor disposição.
Mas viu logo que não, assim que entrou no gabinete dele.
— Está bem, então está bem — dizia ele ao telefone. — Venha então às
onze, mas não sei o que é que há a dizer-lhe. — Resmungou um adeus e
desligou. — Valha-me Deus! Será que ninguém me deixa em paz com esta
merda!
— Quem era? — Perguntou ela.
Ele olhou o telefone, aborrecido.
— Era o Kip. Aquele amigo dele, o Tommy, de Nova Iorque, aquele que
conhecia o Masco, veio a Boston e quer falar connosco.
— Que é isso de «connosco»?
— É assim. Diz que não dirá ao Kip. Quer é falar connosco. Com o Kip,
comigo, com o Doc, com toda a gente que está metida no assunto. Não tenho
a mínima noção do que ele pretende, nem me interessa.
Beth estava furiosa.
— Bom, paciência, mas lá fora o mundo continua, sabias, Charlie? Não
podes simplesmente fechar-te na torre de marfim! Cala-te e ouve. — Ela
desatou a contar-lhe todos os acontecimentos do dia anterior e o bilhete de
Tom naquela manhã. Depois lançou-se na sua explicação das ligações.
Charlie escutava em silêncio.
— Mas então e o vírus? — Perguntou.
Beth parou.
— Não sei — respondeu, insegura de si. — Mas talvez devêssemos
observar aqueles ratos. Esses pelo menos não foram roubados.
Charlie sorriu, de repente.
— Sabes uma coisa? Acho que aqueles é que deviam ter sido roubados.
Aqueles eram as experiências que não podiam ser repetidas, aquelas por que
Tom perguntou tão inocentemente. Se ele nos ouviu falar nisso... —
Levantou-se. — Vamos ver esses ratos!
Quando se apressaram em direção ao átrio, ouviram o telefone tocar no
laboratório de Beth. Não estava lá ninguém.
— Vai tu — disse ela. — Eu vou atender o telefone e já lá vou ter.
Foi ao laboratório e levantou o auscultador. Era uma voz de mulher.
— Posso falar com o Dr. Darnell?
Beth respondeu cautelosamente.
— Lamento, mas o Dr. Darnell não está aqui neste momento. Podia
deixar-me o recado?
— Bem, está bem — disse a mulher. — Daqui fala Mrs. Kling, da
Copley Square Travel Agency, e telefono para lhe dizer que o voo das onze e
meia para Dulles foi cancelado por causa da neve. Se ele...
— Para onde? — Interrompeu Beth.
— Para o aeroporto internacional de Dulles, em Washington —
respondeu.
— Tem a certeza? — Inquiriu Beth. — Ele fará ali qualquer ligação?
— Sim, tenho a certeza, minha senhora, e não há voos de ligação.
Marquei-lhe este voo várias vezes, nas últimas semanas.
— E foi sempre para Washington?
— Sim, sempre ida e volta para Washington.
Beth sentiu que mais alguma coisa se quebrava.
— Eu dou-lhe o recado — respondeu delicadamente.
— Obrigada.
Beth desligou e, acordando de repente, correu atrás de Charlie.
2
Peter Alder conduzia com velocidade do aeroporto, sem se importar com
a neve traiçoeira. Darnell parecera-lhe quase histérico ao telefone e, se não o
apanhasse em casa antes de sair para o emprego, podia ser que deitasse tudo a
perder.
Aquilo não era do Darnell. Era um dos seus agentes de mais confiança e
de maior nível, era o único contacto com que Alder nunca se preocupara. Mas
fizera mal em depositar nele tanta confiança. Alder apercebeu-se de repente
de que Darnell cometera três erros críticos. Escalonou-os mentalmente:
primeiro, não ter retirado a primeira leva de ratos; depois, ter tirado os ratos
da segunda vez, mas não os substituindo; finalmente, ter deixado que aquele
acidente do derramamento se desse. «Meu Deus», pensou, «aquele acidente
fora há já quase um mês e ainda não fizera nada sobre isso! Aquele problema
tinha-o paralisado completamente.»
Conduziu cautelosamente, ultrapassando o prédio de Darnell, e foi
estacionar na outra esquina. Sentado no carro, tentava desesperadamente
acalmar-se o suficiente para que se não notasse. Finalmente, soltando um
suspiro longo e fundo, saiu naturalmente do carro, fechou-o e encaminhou-se
para o apartamento de Darnell.
Lá em cima bateu levemente à porta. Esperou e bateu de novo, contendo
dificilmente a vontade que sentia de bater com força. Olhou nervosamente
dum lado para o outro do patamar e tirou então do bolso a chave falsa. Era
uma loucura estar ali em Boston. Haveria lá pessoas que se lembravam dele e
dos seus contactos. Isso seria o fim. Isso faria estourar tudo! Empurrou a
porta e entrou.
Instintivamente sentiu que Darnell se tinha ido embora.
Desesperadamente, agora, dirigiu-se para o quarto. Tinha razão. As gavetas
estavam abertas e vazias. Compreendeu de repente o que é que tinha passado
por ele em bicos de pés no átrio. Correndo para fora do quarto, deteve-se no
fogão de sala e remexeu as cinzas ainda quentes. Darnell estivera a queimar
papéis, tinha deixado uma lata de gasolina no chão.
Lutou para se controlar. Agora tinha de ser duplamente cuidadoso, não
só porque Darnell estava declaradamente em pânico e em fuga, mas porque
também ele estava à beira de fazer o mesmo. Enquanto estivesse em Boston,
o projeto e ele estavam em grande perigo. Pelo menos o Darnell tivera o bom
senso de queimar os papéis. Mas teria feito o mesmo no laboratório?
— Porra — murmurou Alder —, tenho de me certificar pessoalmente.
3
O major Stanley Johnson estava de pé em frente da Joint Chiefs of Staff.
O general Westland lá estava, bem como o Pearson. Este leu o relatório,
metade à Joint Chiefs, metade a Johnson.
Em sete de oito cidades, pequenos surtos de gripe eram acompanhados
por um total de mortes entre cento e vinte e cento e trinta e cinco.
»Na oitava cidade parecia não haver casos de gripe que não resultassem
em morte. Em todas, calcula-se que morreram duas mil e quinhentas pessoas
e não havia indícios de paragem da epidemia. Além disto, temos ainda
relatórios das mortes em duas cidades vizinhas. E claro que houve um
portador da doença que a transmitiu a partir da primeira cidade. — Virou-se
para Johnson. — O major Johnson tem ideia do que terá acontecido.
Todos se viraram para Johnson. Ele mudava de pé, com ar de quem está
pouco à vontade.
— Bom, é só um palpite — começou por dizer. — Mas,
fundamentalmente, parece que o vírus da gripe perdeu o gene mutador sem
ter perdido o gene botulino. É possível, mas não é provável.
— Quais as probabilidades? — Perguntou alguém furioso.
— Uma num milhão — calculou Johnson.
— Pouca sorte, Johnson — murmurou alguém.
— Quais vão ser as baixas? — Perguntou outro.
Johnson encolheu os ombros.
— Depende da forma como conseguirem isolar as pessoas infetadas. —
Procurava desesperadamente no seu espirito uma saída, uma solução.
— Se a quarentena falhar?
Johnson encolheu os ombros.
— Toda a gente o apanha.
— E ninguém tem resistência a ele? Ninguém? — Westland estava em
choque. — Absolutamente ninguém?
Johnson pós os olhos no chão.
— Bom, talvez umas cem pessoas. Nós vacinámos o pessoal dos nossos
laboratórios e...
— Ninguém! — Gritou Westland. — Para todos os efeitos, ninguém no
mundo está imunizado?
Stanley Johnson levantou a cabeça e fez um sinal de assentimento.
4
Beth nem podia respirar quando chegou ao pé de Charlie, que estava na
sala dos animais.
— Charlie, ele foi a Washington. O Darnell foi a Washington e não a
Iowa!
Charlie levantou os olhos duma gaiola para onde estava a olhar.
— O quê? — Perguntou, visivelmente irritado com a interrupção. —
Porque é que estás a gritar?
Beth tentou acalmar-se, contando-lhe os pormenores do telefonema.
— Estás a ver? Essa história toda de ir a Iowa é aldrabice. Quem quer
que seja que ele vai ver está em Washington! Ele parecia impassível perante a
afirmação dela.
— Charlie, isso não te afeta nada?
— Não — disse ele com voz furiosa —, já nada me surpreende. —
Parecia disposto a chicotear quem se lhe atravessasse no caminho. Apontou
para as gaiolas. — Olha!
Confusa, ela olhou as duas primeiras gaiolas. Pareciam conter ninhadas
de tamanho normal. Mas na terceira havia apenas um recém-nascido.
— Oh meu Deus, não! — Virou-se para Charlie. O ratito tinha a cabeça
deformada.
Charlie levantou, em silêncio, a parte superior da primeira gaiola e
pegou na mãe pela cauda, sacudindo os ratinhos. Por fim ficaram apenas dois,
ambos visivelmente deformados.
— Mas como? — Perguntou Beth com a voz trêmula de medo. — Como
é possível que estejam na mesma?
— Como? — Perguntou Charlie. — Porque o vírus do Bill Hebb foi pelo
cano abaixo e espalhou-se pelo ambiente e é o mesmo contaminante que os
Gloryhits. O maldito vírus é que causa a deformação!
— Oh, meu Deus — murmurou Beth. — Que é que isso significa?
— Que significa? Pergunta ao Darnell. Como diabo posso saber qual o
seu grau de infecciosidade? Pelo que sei, muito tempo passará antes que
nasçam crianças normais em Boston! — Voltou a meter as gaiolas nas
prateleiras. — Olha lá, haverá alguma possibilidade de o Darnell voltar? —
Sem esperar resposta, saiu do laboratório.
— Não sei — disse ela correndo atrás dele. — O voo dele foi cancelado,
por isso pode voltar. — Mas não havia, lá em baixo, nem sombra de Tom.
— Merda! — Murmurou Charlie. — Não me admirava se ele se tivesse
ido de vez! — Olhou em volta. — Não digas nada a ninguém sobre aqueles
ratos lá de cima. Vamos dar o grande estouro nisto!
— Mas, Charlie, quem são eles? Quem é que o Darnell terá ido ver a
Washington?
— Como é que eu posso saber? — Rosnou Charlie. — Talvez o exército.
Talvez a C. I. A. Que diabo, tanto quanto sei, ele informa a Embaixada da
Rússia. — Calou-se, admirado com a ideia. — De facto — comentou —, não
me surpreenderia se todos três estivessem a controlar este laboratório. Mas
vamos descobrir quem está por trás disto!
— Ah, estás ai? — Kip meteu a cabeça no laboratório. — Bem me
pareceu ouvir a tua voz.
Charlie ficou atrapalhado com a presença dele.
— São onze horas, lembras-te? — Perguntou Kip, que trouxera consigo
Tom.
— Valha-me Deus, Kip, agora não tenho tempo!
— Vá lá, Charlie — pediu Beth. — Acho que devíamos saber o que é
que o Tommy tem para me dizer. — Não precisou de dizer mais. A morte de
Ralph Masco poderia ser a chave da questão.
— Certo — concordou Charlie contra vontade. — Vamos para o meu
gabinete.
Tommy estava lá, sentado, quando eles chegaram. Tudo parecia
fantástico a Charlie. O seu gabinete tinha o mesmo aspecto de sempre:
confortável, acadêmico, cuidadosamente afastado do mundo exterior. Sentiu-
se perdido e confuso com o que estava a fazer.
— Mas Tommy era quem parecia pior. Estava sentado, virado para a
porta, olhando para fora a toda a hora, como um coelho assustado, pronto a
fugir.
— Onde é que está o tal doutor? — Indagou.
— Oh, merda — disse Charlie. — Nunca cheguei a telefonar-lhe. Tenho
estado tão... — Calou-se, lembrando-se novamente do que se tinha passado
naquela manhã. Continuava a vir-lhe à ideia, sempre que podia. —...
Atarefado — concluiu.
— Também quero que ele aqui esteja — disse Tom. — Telefono-lhe
agora.
— Porra! — Trovejou Charlie. — Se quer dizer alguma coisa, diga, ou
ponha-se a cavar daqui! Estou cansado deste jogo estúpido!
Tommy olhou aterrorizado para Charlie.
— Certo! Certo! Valha-me Deus, eu só queria que ele aqui estivesse
também. Posso dizer aos três. Não se exaltem, certo? — Charlie esperava que
ele desembuchasse. Tommy virou-se para Kip. Kip, desculpa ter-te tratado
tão mal quando lá foste, ontem, mas tinha de ser! Esta história do Masco é
algo de tão grande que eu não me quero meter nisso!
— Vá lá — disse Kip tentando acalmá-lo. — Conta-nos lá o que se
passou.
Tommy olhou para os três.
— Bem, eu fui ao apartamento do Masco, na semana passada, quando
voltei. Pensei que descobriria o que eles sabiam. Bom, assim que comecei a
fazer perguntas, caíram-me todos em cima. Pediram-me a identificação e
disseram-me que me prendiam se não a tivesse.
— Quem eram eles? — Interrompeu Charlie.
— Dois tipos. Um chamado Patterson e um baixote de que não me
lembro o nome. — Charlie baixou a cabeça em sinal de entendimento. —
Mostrei-lhes a minha carta de condução e tomaram nota do meu nome e tudo.
Então o baixote disse-me: «Parece-me que você não entendeu.» Não percebia
de que é que estavam a falar. Então o Patterson disse que o Masco se perdera
por meter o nariz onde não era chamado e por falar a estranhos quando não
devia. «E, agora, porque é que você quer meter o bedelho?», perguntou. Não
sabia que dizer. Dei uma desculpa parva e o Patterson disse-me então que eu
fazia melhor esquecer que conhecera o Masco e não falar a ninguém no
assunto. — O seu olhar espantado continuava a dirigir-se para a porta. —
Eles disseram que ficariam a vigiar-me.
— Então porque é que cá veio? — Perguntou Beth.
— Porque pensei que, se dissesse a outras pessoas, eles não podiam
apanhar-me tão facilmente, porque havia quem soubesse que me tinham
ameaçado!
— Teria sido seguido? — Perguntou Charlie. Não queria que esse
Patterson, fosse lá ele quem fosse, soubesse quantos dados já possuíam.
— Não... — Respondeu Tommy. — Eu vim de carro e não havia
maneira... — Os outros não viram o homem entrar. Só viram a cara de
Tommy ficar cor de cinza e os lábios começarem-lhe a tremer. — Oh, meu
Deus — murmurou, colando-se às costas da cadeira. — Conseguiram seguir-
me.
Charlie virou-se e olhou para a porta, onde não estava ninguém.
— Que é que está a dizer?
— O amigo de Patterson acabou de entrar. — Olhou desesperadamente
em volta do gabinete. — Têm de me esconder... Por favor, têm de me
esconder!
Charlie apontou para o divã e ele e o Kip começaram a afastá-lo da
parede, enquanto Beth se dirigia ao átrio. Viu um vulto dirigir-se para o seu
laboratório. Aterrorizada, seguiu-o, incapaz de evitar a confrontação. Entrou
cuidadosamente no laboratório.
— Olá, Beth. — Esta saltou ao ouvir a voz de Jim Karls que avançava
para a cumprimentar. — Lembras-te de mim? Em Squaw Valley?
— Ela fez um sinal de concordância.
— Claro! — Disse. — Quero dizer, é claro que me lembro. — Tentou
sorrir mas não conseguiu.
Karls pareceu não dar por isso.
— Ando à procura do Tom. Ele está por ai?
Não confiando na voz, ela acenou com a cabeça. Ouvia atrás de si as
vozes de Charlie e de Kip, que se encaminhavam para o átrio. Ouviu-os
entrar no laboratório, mas não se virou.
— Charlie, Kip — disse, com voz trêmula este é o Jim Karls dos
encontros de Squaw Valley.
Charlie murmurou qualquer coisa, entre a respiração, que Beth não
conseguiu ouvir. Mas ouviu Kip dizer: «Tens razão!» Kip passou por ela
olhando mais de perto para Karls.
Este olhou nervosamente para ele e depois para Charlie, que se deslocara
para bloquear a porta. Karls sorriu e estendeu a mão a Kip.
— Muito prazer.
Kip limitou-se a olhá-la. Sorrindo de forma tensa disse para Beth, sem
tirar os olhos de Karls:
— Beth, gostaria de te apresentar um velho amigo de Charlie e meu. O
Peter Alder.
Karls empalideceu. O reconhecimento foi mútuo. O seu espirito corria.
Que saberiam eles do projeto? Se soubessem do que se tratava, estava tudo
acabado, com certeza. Desesperadamente, instintivamente, tentou esconder-
se.
— Desculpe — respondeu —, deve ter-me confundido com outra
pessoa. O meu nome é Jim Karls. — Tentou, em vão sorrir.
— Lembras-te. Beth? — Disse Charlie por detrás dela, com uma voz
surpreendentemente ameaçadora. — O tal agente provocador que Kip
descobriu que trabalhava para a C. I. A.? Lembras-te que Doc disse que eles
eram espertos de mais para o deixarem em Boston, onde poderíam
reconhecê-lo? Parece que afinal não são assim tão espertos!
Por um momento Karls gelou, depois aproximou-se lentamente da porta.
— Isto é absurdo! — Gritou, e tentou empurrar Charlie para sair. Mas
Charlie agarrou-o por um braço e não o largou.
— A maldita C. I. A.! — Gritou-lhe na cara. — Isto já põe ordem nas
coisas, não põe, Beth?
Beth olhou para Karls.
— A tua pergunta em Squaw Valley! Perguntaste se seria possível
produzir gênios provocando o aumento do crânio. Todos se riram da
pergunta, mas tu já estavas a pô-la em prática.
— Duvido — rosnou Kip. — É mais provável que estivesse a testá-la.
Tenho a certeza de que, se conseguissem que a coisa resultasse, seria a C. I.
A. que produziria os gênios para seu próprio uso e de mais ninguém.
Karls mexeu-se para se soltar, mas Kip agarrou-o, também.
— Não vais a lado nenhum enquanto nós não dissermos! — Gritou Kip.
Os dois arrastaram-no até à secretária de Darnell e obrigaram-no a sentar-se.
De repente Karls apercebeu-se de que o jogo tinha acabado e vociferou:
— Seus grandes estúpidos! Vocês deixavam este país ir por água abaixo
até todos nos porem os pés em cima! Nós podíamos produzir seres humanos
que governariam o mundo, um mundo americano!
Começou a falar mais, mas o telefone tocou. Charlie deitou um olhar a
Beth.
— Pode ser o Tom. Atende! — Virou-se para Karls. — Se emites um
som, ficas sem dentes! — Pegou num martelo que estava em cima da
bancada e ergueu-o ameaçadoramente. Beth respondeu.
— Sim, está, mas pode telefonar-lhe depois? — Escutou e empalideceu.
— Só um momento — murmurou. Virou-se para Charlie, sabendo que era
cedo, era muito cedo. — É para ti — disse, dando-lhe o telefone.
Sem compreender, Charlie entregou a Kip o braço de Karls e pegou no
telefone.
— Está, Charlie?
— Sim.
— É a Ann. Vem buscar-me. Já estou em trabalho de parto. Vamos ter o
bebe. Vem duas semanas mais cedo.
Ela nunca se sentira tão contente.
POSFÁCIO
Ficção científica ou facto científico?
Quando este romance foi concebido, a engenharia genética, a ciência do
ADN recombinante, era um campo novo, quase desconhecido fora dos
círculos científicos profissionais. Mas desde então tem crescido, quer nas
suas capacidades tecnológicas, quer no interesse do público. Assim, ao
terminarmos o romance vimo-nos confrontados de quão verosímil é agora a
linha-mestra da história. Como resposta parcial a essa pergunta, delineamos
este posfácio, que trata de algumas das ideias levantadas no romance. A
resposta definitiva tem, infelizmente, de esperar pela decisão dos futuros
escritores.
A C. I. A.
Em Junho de 1975, a Comissão Rockefeller para a C. I. A declarou que,
durante os anos 40, 50 e 60, a C. I. A. levou a cabo estudos sobre certas
drogas com influência no comportamento, tais como o LSD. Já em 1953,
estas drogas eram aplicadas a indivíduos sem o seu conhecimento, testes
estes que causaram pelo menos uma morte [1], Mesmo assim, esses testes
prosseguiram até 1963. Nunca se saberá quantos testes deste tipo foram
efetuados, visto que a maior parte dos registos relacionados com este
programa (cerca de 150 processos, ao todo), foram deliberadamente
destruídos em 1973.
Não está esclarecido até que ponto o exército ou até o presidente têm
conhecimento de tais testes. Em 1975, foram descobertos os stocks de
venenos do sistema nervoso, em quantidade suficiente para matar dezenas de
milhares de pessoas. Violando abertamente os tratados internacionais
assinados pelos Estados Unidos, os stocks foram mantidos, mesmo depois de
ter sido ordenada, pelo então presidente Ford, a destruição de todas as armas
de guerra biológica [2].
Não se pode saber se a C. I. A. encararia a possibilidade de enveredar
por um projeto de criação duma «raça superior». Contudo, essa ideia não é
daquelas universalmente rejeitadas, mesmo por conhecidos cientistas. Há
tempo, em 1962, tais ideias foram discutidas, em Londres, na conferência da
Fundação CIBA [3]. Uma ideia aí discutida era a do aumento do número de
células do cérebro num indivíduo, injetando uma hormona no feto em
desenvolvimento, antes que o número definitivo de células cerebrais esteja
constituído. Outra seria a utilização de vírus como veículos de novo ADN,
nos fetos humanos, produzindo assim modificações hereditárias nos genes.
Estas duas ideias, em conjunto, constituem o projeto da C. I. A., apresentado
neste romance.
As forças militares
Se os militares ainda não produziram nem experimentaram o tipo de
gripe botulina de Stanley Johnson, não foi à falta de o terem já tentado.
Publicações científicas provenientes, durante os anos 60, de Fort Detrick, o
«laboratório militar de pesquisas para a defesa biológica», sugeriam que
estavam a investigar ativamente a peste, o carbúnculo, a febre-amarela, a
febre Q, a tularemia, a encefalomielite, entre outras doenças [4]. Há também
fortes indícios de que o exército chegou mesmo a armazenar agentes de
guerra biológica no Sueste Asiático, durante a guerra no Vietname [5]. Em
1972, um relatório vindo de Detrick discutia as tentativas de engenharia
genética [6]. Este documento relatava as tentativas de transferência de genes
da peste bubônica para outras bactérias menos perigosas. Estas experiências,
que foram declaradas infrutíferas, poderíam talvez ser feitas com relativa
facilidade utilizando as novas técnicas de enzimologia de ADN
recombinante.
Quanto a testes militares com esses agentes, foram recentemente
fornecidas informações relacionadas com os testes de guerra bacteriológica,
levados a cabo pelo exército, dentro dos Estados Unidos. Entre 1949 e 1969,
o exército levou a cabo 239 testes de guerra bacteriológica ao ar livre em S.
Francisco, Nova Iorque e Key West, na Florida. Um teste efetuado em S.
Francisco, utilizando o que se considerava como sendo um tipo inofensivo de
bactéria, Serratia marcescens, foi seguido de onze casos de pneumonia tipo
Serratia e de uma morte. Apesar disso, foram utilizadas as mesmas bactérias
em 1966, em testes levados a cabo na rede de metropolitano de Nova Iorque
[7], Não sabemos se foram feitas mais experiências de campo ou se foram
utilizadas substâncias mais perigosas, mas talvez valha a pena não esquecer
que uma arma que nunca foi testada não é de confiança e portanto é inútil na
preparação de planos estratégicos.
Teoricamente, o desenvolvimento e armazenamento de material de
guerra biológica está proibido por tratado internacional. A efetividade dessa
interdição é que não está bem clara. As negociações sobre um tratado
semelhante, que proibiria o material de guerra química chegou a um impasse
pela invenção «dos agentes binários» [8]. Estes são recipientes que contêm
dois químicos inofensivos, separados por uma fina parede, a qual, uma vez
perfurada, origina a mistura dos dois compostos e a produção dum gás de
nervos, altamente mortal. A justificação apresentada pelo exército é a de que,
até que a fina parede seja perfurada, coisa que não acontece antes de a arma
ser utilizada, não existe «o gás de nervos mortal» — e assim o
armazenamento desta arma não está a violar o tratado. Resta-nos, pois, pensar
que, partindo destas «subtilezas», se irá permitindo o armazenamento de
armas de guerra biológica.
Empresas industriais
Um interessante grupo que ficou fora de cena, durante o recente afluxo
de atenção prestada à engenharia genética, têm sido as empresas industriais
interessadas na aplicação desta tecnologia. Além da indústria agrária, as
maiores empresas industriais metidas no assunto são as firmas farmacêuticas.
Como as forças militares e os serviços secretos, são talvez as maiores
ameaças no sentido do uso malévolo da engenharia genética. Estas indústrias
põem provavelmente a maior ameaça de danos involuntários, quer aos seres
humanos, quer ao meio ambiente.
Já não faltará muito tempo para que as empresas farmacêuticas venham a
utilizar microrganismos específicos na produção de compostos de uso clinico,
tais como a insulina e as hormonas de crescimento humano. Os lucros
envolvidos em tais produções de bactérias são astronômicos. Mas, para essas
companhias, o lucro depende de ser o primeiro e a regra tende a ser a
velocidade, em vez da segurança. Podemos encontrar casos e casos de
acidentes industriais que causaram danos graves, quando não fatais, em
funcionários da fábrica e a residentes na área circunvizinha. Um dos mais
graves foi o da ICMESA, uma associada da Hoffman-La Roche, que libertou
no ar, acidentalmente, quatro libras e meia de dioxina química, contaminando
cerca de 10 000 acres de terra, próximo de Milão, em Itália [9], O composto é
tão poderoso que uma trilionésima parte mata uma cobaia. Foi declarado que
uma reclamação dos residentes na zona foi retida a pedido da companhia e só
foi entregue quando vários residentes foram hospitalizados. Noutro caso foi
pedida uma indenização de muitos milhões de dólares à Allied Chemical
Corporation, relativamente aos danos causados a vários funcionários da
fábrica que trabalhavam com o pesticida kepone. Ao anunciar a decisão, o
juiz declarou que elementos executivos da empresa tinham deliberadamente
retido queixas de funcionários que já apresentavam sinais de danos
neurológicos, queixas que informavam que os pesticidas com que
trabalhavam tinham todas as probabilidades de estar na origem das suas
afecções neurológicas [10].
Parece provável que a utilização industrial da engenharia genética
levantará em breve os mesmos problemas que estão a ser hoje em dia
levantados pelas fábricas de energia nuclear, onde o medo duma catástrofe
tem sido uma força extremamente poderosa no sentido de acautelar [11].
Ataque, acidente ou coincidência?
Negando os riscos da pesquisa no campo da engenharia genética, diz-se
que um conhecido cientista afirmou recentemente que, ao fim de quatro anos
de trabalho no ADN recombinante por todo o país, nem uma única doença
tinha resultado. Esta declaração aponta para um dos maiores perigos deste
tipo de pesquisas. Como é que se pode identificar uma doença que foi
causada por uma nova bactéria ou um novo vírus experimental, recentemente
sintetizado?
Com fábricas de energia nuclear é fácil detectar a radioatividade em
zonas que podem ter sido afetadas. Mas com organismos biológicos, como é
que se sabe o que se procura? Como é que se distingue um vírus ou uma
bactéria geneticamente construído doutro normal e que até provavelmente
nunca tinha sido detectado? E com a preocupação da indústria tentando
encobrir os acidentes ou até fornecendo propositadamente dados falsos sobre
o perigo dos seus produtos [12], como é que se poderia distinguir entre a
libertação acidental dum novo organismo poderoso e um ataque?
Dois acontecimentos estranhos ocorreram no princípio de 1976. Em
Fevereiro, várias centenas de soldados, do forte Dix, em Nova Jérsia, foram
atacados de gripe. Morreram pelo menos doze, incluindo um de dezoito anos,
e estavam aparentemente atacados por um tipo de vírus «novo e mais
alarmante» [13], O resultado foi uma ordem presidencial para se imunizar os
Americanos contra este novo tipo de gripe suína, assim chamada pela
semelhança com aquela que normalmente ataca os porcos. Mas, enquanto
milhões de americanos estavam a ser vacinados, a doença desapareceu
estranhamente, sem que se registasse mais um só caso em todo o país. Era
como se a doença tivesse sofrido uma mutação.
Em Julho, decorridos uns escassos cinco meses, a Doença do Legionário
atacou em Filadélfia. Registaram-se 129 casos, incluindo 28 mortais. Se bem
que os primeiros sinais fossem duma infecção bacteriana diferente de algo
anteriormente conhecido, não está esclarecido se alguma vez a verdadeira
causa virá a ser conhecida [14].
Naquela altura não se encarou a hipótese de a doença ser resultante de
pesquisas de guerra bacteriológica, e tanto a C. I. A. como o exército
gravaram desmentidos de qualquer ligação com o surto [15]. Em Setembro,
outros relatórios sugeriram que a doença fora o resultado dum teste secreto
russo sobre guerra biológica [16]. Entretanto, a doença mortal desaparecera
sem deixar vestígios e sem provocar infecções secundárias. Como se tivesse
sofrido uma mutação.
Assim permanece a questão intimamente ligada à pesquisa com vista à
produção de formas imprevisíveis de vida viral e bacteriana: como é que se
diferencia, numa miniepidemia, um acidente de um ataque? Até se
descobrirem respostas seguras a esta pergunta, permanece como um grave
problema o risco de acidentes não detectados ou de ataques.
As universidades
A maior parte da atenção prestada ao controlo e possível interdição das
pesquisas do ADN recombinante tem partido do mundo acadêmico. A razão
para que assim seja reside no facto de terem sido os membros desta
comunidade os primeiros a levantar sérias questões relacionadas com estes
perigos possíveis [17], O resultado delas foi a Conferência de Asilomar sobre
Moléculas de ADN Recombinante, patrocinada pela National Academy of
Sciences. A conferência, que incluía sobretudo investigadores acadêmicos,
mas também representantes da indústria e do Governo, traçou
deliberadamente diretrizes que sugeriam a restrição de muita desta
investigação a instalações de segurança especiais e recomendavam a
proibição de certos tipos de pesquisa em ADN recombinante [18], O National
Institute of Health8 (NIH), uma subdivisão do Departament Health,
Education and Welfare9, instituiu subsequentemente diretrizes semelhantes,
as quais se tornaram compromissos legais para os investigadores subsidiados
pelo NIH.
O futuro
Tal como aqui foi dito, não há restrições legais a qualquer investigação
de engenharia genética, ao seu desenvolvimento e produção, salvo nos casos
subsidiados pelo NIH. As empresas industriais não estão sujeitas a qualquer
controlo e o mesmo acontece com a pesquisa acadêmica não subvencionada
pelo NIH. A única legislação apresentada ao Congresso, até à data, e que
estabeleceria restrições a este tipo de pesquisa a nível nacional, foi retirada
pelos seus próprios patrocinadores em Novembro de 1977, depois de grande
movimentação por parte dos investigadores. Se bem que ainda haja discussão
sobre a legislação federal, esta está por materializar — e se essa lei virá a
controlar a produção industrial, bem como a investigação, é o que ainda não
sabemos. Pareceria despropositado, em relação ao estabelecido, serem
impostas restrições à pesquisa acadêmica que não fossem aplicáveis
igualmente, se não mais rigidamente, à pesquisa industrial, ao
desenvolvimento e á produção.
Quer na academia, quer na indústria, a fama e a fortuna esperam os
investigadores que deem os primeiros passos em «grandes descobertas» neste
campo. O resultado destes incentivos é a veemente competição, na qual a
velocidade é fundamental. E é em tais circunstâncias que aumenta o perigo de
violações da segurança intencionais ou acidentais. Em Junho de 1977, uma
equipa de investigadores da Universidade da Califórnia, em S. Francisco,
revelaram que tinham isolado o gene controlador da produção de insulina e
que o tinham transferido para uma bactéria. A equipa, que tinha vindo a
competir com uma semelhante de Harvard, recebeu as aclamações mundiais
pelo seu feito. Mais tarde descobriu-se que a equipa da UCSF tinha utilizado
no seu trabalho métodos proibidos pelas diretrizes da NIH. Apesar dum
desmentido de violação intencional da lei, foi declarado que «ficara assente
que toda a gente sabia que o método não era garantido [19]. Além disso, um
investigador da UCSF queixou-se de que «as pessoas deixavam de falar
quando se entrava na sala, ou mudavam de assunto quando se tentava falar de
como ia o projeto da insulina» (19). Parece razoável que, para os mais
perigosos tipos de pesquisa, nos quais se têm de tomar medidas muito severas
para evitar a fuga de bactérias e vírus potencialmente perigosos (de nível P3 e
P4), deveriam ser construídas uma quantidade de instalações. Parece
vergonhosamente ameaçador o facto de se permitir que cada universidade e
cada empresa farmacêutica possa construir as suas próprias instalações, para
se poder integrar na corrida ao lucro e à fama. Talvez aqui, onde os riscos são
maiores, os grupos industriais e acadêmicos deveriam ser chamados a
colaborar, para reduzir ao mínimo a repetição de experiências potencialmente
perigosas.
Não falamos no controlo das utilizações da engenharia genética, feitas
pelas forças militares e pelos serviços secretos. Além de estarem proibidos
por tratado internacional, parece bem claro que este trabalho não devia ser
permitido. Mas não cremos nestas promessas e protestos e pensamos que, da
forma como as coisas estão neste momento, é impossível controlá-las. Isto
leva a uma infinidade de ambiguidades. Temos estado a falar como se a
investigação militar, industrial e acadêmica fosse composta de três entidades
distintas. Realmente, nada há de menos verdadeiro, pois que o dinheiro das
forças militares e da indústria é que sustentam a investigação acadêmica e os
investigadores industriais e os acadêmicos oferecem-se aos militares como
consultores. Por isso, quando se apoia um apoia-se qualquer dos outros três.
E por agora não há saída para este dilema.
Resta-nos um certo medo e uma certa esperança. Não há dúvida de que
existem possíveis benefícios, na tecnologia da pesquisa e desenvolvimento do
ADN recombinante e que este desenvolvimento e pesquisa acarretam graves
riscos. Ao abordarmos este dilema, há dois pontos que devemos ter presentes.
Primeiro; não há panaceias nisto do aparecimento do ADN recombinante.
Não há curas para o cancro, doenças cardíacas e defeitos congênitos,
previsíveis nestes meses ou anos mais próximos. Segundo: pode surgir a
qualquer momento um acidente e as consequências poderíam ser mais graves
que todos os benefícios juntos. Se bem que isso não seja provável, continua a
ser possível a humanidade ser destruída por um erro.
REFERENCIAS
«Relatório ao Presidente pela Comissão para as atividades da C. I. A.
dentro dos Estados Unidos». U. S. Govemement Printing Office.
Washington. 1975. P. 226ff.
New York Times, 17 de Setembro de 1975. P. 1
Ver G. Wolstenholme, ed., Man and his Future. Churchill. Londres.
1963
S Hersh, Chemical and Biological Warfare: America's Hidden Arsenal.
Bobbs-Merril, Nova Iorque 1968, p. XIII.
J. Cookson & J. Nottingham. A Survey of Chemical and Biological
Warfare, Sheed and Ward, Londres, 1969, p. 310.
W. Lawton & H. Stull. Journal of Bacteriology, vol. 110, Pp. 926-929,
1972.
New York Times, 9 de Março de 1977, P. 1.
Nature, vol. 253. Pp. 82-83, 1975.
New York Times, 29 de Julho de 1976. P. 3, e 31 de Julho de 1976, p. 3.
[10] New York Times, 6 de Outubro de 1976. P. 1. e 31 de Dezembro de
1976, p. 20.
[11] Ver por exemplo, «Too Hot to Handle», by R. Severo, New York
Times Magazine, 10 de Abril de 1977.
[12] Nature, vol. 264. Pp. 308-309, 1976.
Time Magazine, 5 de Abril de 1976, p. 50.
Morbidity and Mortality Weekly Report, 3 de Setembro de 1976, p. 271
ff.
[15] New York Times, 8 de Agosto de 1976. P. 1. e 31 de Agosto de
1976, p. 11.
National Examiner. 27 de Setembro de 1976. P. 5.
Science, vol. 181. P. 11 14, 1973.
Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 72, pp. 1981-
1984. 1975.
Science, vol. 197. P. 1342, 1977.
NOTA BIOGRÁFICA
BOB STICKGOLD (doutorado em Bioquímica pela Universidade de
Wisconsin) é um cientista investigador de neurobiologia na Faculdade de
Medicina de Harvard. De 1972 a 1975 foi membro pós-graduado do
Conselho da Universidade de Stanford, nos departamentos de Genética e
Bioquímica. É autor ou coautor de onze artigos publicados, sobre genética e
neurobiologia. É casado e tem uma filha Gosta de praticar squash e ciclismo.
MARK NOBLE (doutorado em Genética pela Universidade de Stanford)
é membro pós-graduado do Conselho da Universidade e trabalha em
neurobiologia no departamento de Zoologia do University College de
Londres. Casado com Barbara Hyams, é um conhecido ilustrador de
medicina e um emérito cavaleiro
Notes

[←1]
Ácido desoxirribonucleico. (N. da T.)
[←2]
Serviços Secretos Militares. (N. da T.)
[←3]
Institutos nacionais de saúde. (N. da T.)
[←4]
Academia Nacional de Ciências. (N. da T.)
[←5]
American Medical Association (Ordem dos Médicos americana).
(N. da T.)
[←6]
Rede de Pesquisa Epidemiológica. (N. da T.)
[←7]
Junta de Chefes de Estado-maior (N. da T.)
[←8]
Instituto Nacional de Saúde. (N. da T.)
[←9]
Ministério da Saúde, Instrução e Bem-Estar. (N. da T.)

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