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VOLUME: 3
TÍTULO: OS NOSSOS FILHOS SERÃO MUTANTES
AUTOR: BOB STICKGOLD / MARK NOBLE
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: EUROPA-AMÉRICA
ANO DA PUBLICAÇÃO:
PREÇO DA PUBLICAÇÃO:
PÁGINAS:
DISPONIBILIZAÇÃO
BOLSILIVRO-CLUB.BLOGSPOT.COM.BR
bolsilivroclub@gmail.com
BOB STICKGOLD/MARK NOBLE
OS NOSSOS FILHOS
SERÃO MUTANTES
Tradução de Lucília Filipe
PARTE I
Primavera
O major Stanley Johnson invejava as secretárias e os técnicos. O
trabalho deles terminava às cinco horas em ponto e às cinco e cinco já tinham
desaparecido, esquecendo o trabalho até ao dia seguinte. Mas Stanley
Johnson já não fazia parte do despreocupado grupo de investigação das nove
às cinco. Através da janela fixou o olhar com desalento na paisagem de
Maryland, adiando a tarefa desagradável de telefonar à mulher a participar-
lhe que mais uma vez não iria jantar. No horizonte, a umas sessenta milhas de
distância, ainda conseguia distinguir a mancha de ar poluído que era
Washington.
Aos quarenta e dois anos, Johnson estava a perder cabelo e a ganhar
«banhas» em volta da cintura, se bem que, fardado, ainda parecesse saudável
e em forma. Voltando à sua secretária, pegou na missiva proveniente da
Intelligence e leu-a pela sétima vez.
«Porque é que nunca havemos de fazer uma ultrapassagem de jeito
àqueles safados?», pensou. «Metemo-nos neste programa de pesquisas só há
um ano e descobrimos agora que eles já se lançaram nele há nove meses ou
mais. Será que nos conseguem roubar todas as ideias que temos? Ou será que
as nossas brilhantes invenções são assim tão fastidiosamente óbvias?»
Cinco dos mais importantes investigadores soviéticos de ADN1,
radicalmente subtraídos às vistas públicas. Karpov desapareceu há pelo
menos nove meses. Tal era o conteúdo da mensagem. O suficiente para dizer
a Johnson que os Russos também estavam a tentar. Encheu um copo de gim e
ergueu-o, num brinde trocista, enquanto murmurava: «À grande corrida
soviético-americana de manipulação de genes!» e esvaziou o copo.
Sábado, 1 de Agosto
— Meu Deus! Deixaste-o crescer! — Ann Merrill afastou-se para deixar
entrar Doc. Alto e esguio, exibia um farto bigode e uma abundante cabeleira
encaracolada, que para ela eram novidade, já que há dois anos não o via,
Doc deu-lhe um grande abraço.
— Ann, estás simplesmente maravilhosa. Charlie deu-me a notícia.
Estou encantado! — Aos trinta anos, ela ainda passava bem por uma
adolescente. O cabelo negro e comprido, os olhos atrevidos e atentos
desviavam a atenção da maioria das pessoas das insidiosas marcas do tempo,
que uma observação mais cuidadosa do seu rosto poderia revelar. — A
propósito, onde é que ele está? — Acrescentou.
— Estou a vigiar o vosso jantar para que não se queime. Venham para a
cozinha. — Charlie Cotten deitou a cabeça fora da cozinha e acenou a Doc.
— Isto está naquela fase em que ou se vigia ou se fica sem nada. — Virando-
se outra vez para dentro, gritou: — Esse cabelo está giro. Que é que os teus
doentes dizem a isso?
Ignorando a pergunta, Doc seguiu Ann até à cozinha, deitando de
passagem uma olhadela à casa; comentou:
— Parece que vocês arranjaram uma bela casa.
Tinham-na comprado havia apenas um mês e só se tinham mudado
naquela semana, depois de percorrerem a longa distância entre a Califórnia e
Boston. Situada em Cambridge, a casa ficava a uns escassos dez minutos de
caminho de Harvard Square e do metropolitano.
Ela encolheu os ombros.
— Ainda está muito vazia, mas dá-nos mais algum tempo e vais ver
como fica agradável e desarrumada.
Charlie riu-se. As suas mãos grandes e grosseiras estavam
inconscientemente ocupadas na preparação da refeição, enquanto ele
passeava o olhar pela cozinha.
— Ann sente horror só de pensar em ter uma casa como a dos pais, cuja
característica fundamental é a limpeza irrepreensível.
Mudou um grande tacho do fogão para o forno, limpou as mãos às calças
de ganga e virou-se para eles.
— O jantar está pronto dentro de vinte minutos. Vamos sentar-nos e
descansar.
Na sala comum, Ann escolheu um velho disco de Charlie Parker e foi
juntar-se a Doc e Charlie.
Doc sorriu-lhe.
— Ann, não calculas como estou feliz por saber que estás grávida.
Tenho perguntado a mim mesmo quando é que alguém do velho grupo se
meteria nisso. Com todos os miúdos que observo no consultório, comecei a
gostar de crianças.
— Bom, estou contente por saber que é essa a tua opinião, já que
ultimamente muita gente se refere às crianças de forma desagradável — disse
Ann.
Charlie interrompeu dizendo:
— Ah, isso é porque têm medo de aceitar essa responsabilidade e medo
de se sentirem presos como os seus pais. Se pensassem por um momento
(mas não pensam) no assunto, compreenderiam que não foram os filhos que
fizeram dos pais aquilo que eles eram.
— Bom, eu estou simplesmente encantado — repetiu Doc; virando-se
para Ann, disse: — Como é que isso tem corrido?
— Dispensava os enjoos, mas adoro a ideia de estar grávida, de saber
que tenho um ser humano a crescer aqui dentro — e deu umas palmadinhas
no estômago. — E, por aquilo que tenho ouvido, o meu enjoo não tem sido
dos piores. Digamos que me torna apenas as manhãs menos agradáveis.
— Isto faz-me desejar poder passar mais tempo em casa — acrescentou
Charlie. — Sinto-me um pouco como que deixado à margem, como se
estivesse a perder o acontecimento. Mas tenho de ter o laboratório montado
antes do início das aulas. Logo que comece a lecionar vai ser-me difícil pô-lo
em ordem.
— Que tal te sentes como professor? — Perguntou Doc.
Charlie encolheu os ombros.
— Ambivalente. Adoro a ideia de ter o meu próprio laboratório e de
poder começar a trabalhar naquilo de que gosto, mas receio que, entre o curso
que tenho de lecionar e o diabo do trabalho da comissão em que estou
metido, não consiga passar no laboratório tanto tempo como gostaria.
E Ann acrescentou:
— Ele não gosta que lhe chamem professor, fá-lo sentir-se demasiado
velho.
— É que é estranho. Toda a minha vida estive do outro lado do muro e
agora sou um «deles». É uma sensação esquisita, porque ainda me sinto o
garoto Charlie Cotten.
Doc riu-se.
— Bom, se bem me lembro, a ideia de que todos me deviam tratar por
«Doc», em vez de Fred, partiu de ti, por isso eu devia incitar a que te
tratassem por «Professor», em vez de Charlie. Seria bem feito.
Charlie franziu o sobrolho.
— Vou voltar a chamar-te Fred. Acho que afinal para ti não teve graça
nenhuma, pois não?
Doc encolheu os ombros e sorriu.
— Aprendemos a ser o que somos e não ligamos aos rótulos que nos
põem. É o que temos a fazer.
O cronômetro tocou na cozinha.
— É o jantar — anunciou Charlie. — Tu e Ann vão andando para a casa
de jantar, que eu já lá o levo.
Durante a refeição contaram alguns «mexericos» e puseram-se ao
corrente das últimas novidades. Ann e Charlie tinham passado os três anos
anteriores na Califórnia e pouco tinham contactado com Doc e com os
amigos de Boston. Era bom estar de volta!
Pouco depois Doc perguntou a Charlie em que ponto iam as
investigações. Em resposta, o rosto deste iluminou-se como o de um pai «de
fresco», que tem a oportunidade de exibir as fotografias da filhinha de duas
semanas. Começou por descrever as suas tentativas para localizar agentes
teratogéneos utilizando sistemas de culturas de tecidos. Quando Doc o
interrompeu para lhe pedir que explicasse rapidamente as técnicas, Charlie
acedeu entusiasticamente.
— Bem, como deves saber — começou —, os agentes teratogéneos são
produtos químicos que interferem com o processo de desenvolvimento
normal de um feto. É o que a talidomida faz: interfere com o
desenvolvimento dos membros; a rubéola causa um atraso pelo mesmo
processo e há quem afirme que o LSD também causa anomalias congênitas se
for tomado por uma mulher nos três primeiros meses de gravidez. Mas o
processo de rastreio é enfadonho, porque consiste essencialmente em
ministrar os produtos químicos a cobaias grávidas — ratos, hamsters, porcos-
da-índia e macacos — e procurar afecções congênitas. Portanto, o que eu
estou agora a tentar fazer é criar um processo em que cultivamos pequenas
quantidades de tecido nervoso humano em laboratório; depois de lhe
juntarmos possíveis agentes teratogéneos, procuramos alterações. Isto
tornaria o rastreio muito mais rápido, barato e seguro.
Ann interrompeu:
— Já chega de ciência para um serão. Se vocês começam, vão pela noite
fora.
Doc riu.
— Há coisas que não mudam, pois não?
— Queira Deus que não! Quase tudo tem mudado. Olha, desde que Ann
está grávida que já nem sequer nos drogamos.
Ann explicou:
— Impus-lhe isso. Com toda esta preocupação com os agentes
teratogéneos, não tomo quaisquer medicamentos desde antes da concepção e
não suporto ver o Charlie drogar-se, não podendo eu fazê-lo.
Doc concordou.
— Estava para te falar nisso. Para uma grávida, quanto mais puder evitar
os químicos, mais segura estará. Recomendo às mulheres que evitem até
tomar aspirina. É um processo demasiado importante para que se corram
quaisquer riscos.
— Mas é uma chatice! — Disse Charlie amuado. — Não tocamos em
nada desde aqueles Gloryhits, muito antes de Ann ficar grávida.
Ah, sim, os Gloryhits! Em poucos meses tinham-se tornado lendários. O
LSD aparecia em «vagas» e cada «vaga» tinha o seu nome: Owsley,
Sunshine, Microdots, Blotters, Chuckles, etc. E os Gloryhits. Era o melhor
ácido que Charlie e Ann tinham experimentado — uma pequena e única dose
e Charlie dava-se por feliz de ter estado em Boston nessa altura. Sorriram
ambos ao relembrarem o facto.
Apenas Doc parecia contristado.
— Que há? — Perguntou Ann, vendo Doc de sobrolho franzido.
— Não estou contente com esse ácido — disse. — Penso que
passávamos bem sem ele. — Virando-se para Charlie, acrescentou: — Onde
diabo o arranjaste? Também foi na costa oeste?
— Não! Bill Lauter arranjou-me dez comprimidos quando cá esteve no
ano passado. Mas porque é que estás tão assanhado? Mandámo-lo analisar e
não era perigoso — explicou Charlie.
Doc estava preocupado.
— Porque raio haviam vocês de tomar isso se sabiam que Ann podia
estar grávida?
Ann repreendeu-o.
— Deixa-te disso, Doc, não somos neolíticos! Tínhamos a certeza de que
eu não estava grávida quando o tomámos.
— Quanto tempo depois disso engravidaste?
Ann encolheu os ombros.
— Poucas semanas. O ácido era como que para dar sorte. Ainda temos
seis comprimidos guardados no frigorífico.
Doc parecia perdido nos seus pensamentos. Virando-se para Charlie,
perguntou inesperadamente:
— Aqui podes ter acesso às investigações Medline?
Confundido com a súbita mudança de assunto, Charlie encolheu os
ombros e respondeu:
— Estou certo que sim. Queres que investigue alguma coisa?
— Que é isso? — Perguntou Ann.
Doc ficou calmamente sentado, com a atenção concentrada nos seus
próprios pensamentos, enquanto Charlie explicava que o Medline era um
índice informático e um sistema de informações para jornais científicos que
era utilizado para uma rápida obtenção de listas de artigos sobre um
determinado assunto. Quando Charlie acabou de dar esta explicação olhou,
para Doc.
Este, ainda mergulhado nos seus pensamentos, disse:
— Bom, talvez eu passe por cá daqui a uns dias para falarmos sobre isso.
Ficaram sentados e conversaram durante um bocado, mas Doc
permanecia ligeiramente distraído. Finalmente levantou-se para se ir embora
e despediu-se dos dois à porta, dizendo:
— Sejam bem-vindos a Boston. Estou contente por os ter aqui instalados
ao pé de mim. Ainda bem que não ficaram no oeste.
Ann gracejou:
— Não podíamos. Era demasiado selvagem!
Acompanharam-no até ao carro.
— Só mais uma coisa — pediu Doc. — Far-me-iam o especial favor de
conservarem esses Gloryhits no frigorífico até eu voltar a falar convosco?
Ann insistiu:
— Doc, que há? Nunca te vi assim.
— Não é nada, tenho a certeza — respondeu. — É apenas uma
impressão esquisita que eu tenho, mas nada para se preocuparem. Nós, os
médicos, somos pagos para nos preocuparmos mais do que o necessário.
Despediu-se sorrindo e arrancou.
Primavera
Um encontro casual com um velho amigo de liceu dera ao então tenente
Johnson um primeiro vislumbre da sua ideia. No ano anterior, os encontros
da Federation tinham sido embaraçosos porque, quando interrogado sobre
para quem estava a trabalhar, Johnson mentira e fizera vagas referências à
indústria em vez de responder «para o exército». Temia que os velhos amigos
o pusessem de parte se soubessem que trabalhava em pesquisas de guerra
biológica. Não, a expressão estava errada ou, melhor, tinha sido banida por
um tratado internacional. Ele dirigia pesquisas biológicas para o exército,
integradas num projeto de pesquisas de saúde, instaurado para levar a cabo as
necessárias investigações no sentido de proteger as tropas americanas de
possíveis incidentes biológicos em diversas partes do mundo. Era possível
legitimar uma infinidade de projetos classificados, que estavam tão próximos
de pesquisas de guerra biológica como ninguém se atreveria a pensar. Mas
não era uma pesquisa de guerra biológica. Arriscava-se a perder o lugar se
deixasse escapar semelhante inconfidência no momento impróprio.
Felizmente que o ex-colega de Johnson estava tão entretido a falar da
sua própria investigação que não lhe levantou problemas. E das descrições do
seu amigo germinou uma ideia, que daí em diante foi a sua própria ideia. Nas
horas vagas tinha lido textos científicos, imaginando como deveria ser
conduzido cada passo do projeto. Os recentes progressos na manipulação
genética, a ciência da transferência de genes duma espécie para outra, quase a
tinham tornado vulgar. Por isso o seu e só o seu nome figurara na carta que
dirigiu ao general Westland, o superintendente de todas as pesquisas no
campo de «saúde e ramos afins» do exército. Ultrapassar os seus superiores
fora arriscado, mas os caminhos transformam-se por vezes em labirintos e
assim Johnson poderia ver-se irremediavelmente afastado da sua proposta.
Enquanto ele andasse perdido pelo labirinto, algum burocrata das «altas
esferas» teria subtraído a sua ideia ao general. Mas tinha esperança de que
agora ia chegar a recompensa que justificaria o risco anterior.
Sentado de forma tensa na sala de espera do gabinete de Westland, com
a mala de diplomata no colo, olhava em silêncio a secretária que respondia ao
zumbido do intercomunicador e falava nele em voz baixa. Virando-se para
Johnson, que estava aterrado, sorriu e fez sinal para a porta da esquerda.
Sempre em silêncio, ele levantou-se e caminhou devagar para o gabinete do
general.
Por momentos Johnson sentiu-se desorientado no enorme gabinete. A
uns quarenta passos dele, Westland levantou-se da sua secretária de torcidos,
dizendo em tom brincalhão:
— Entre, Johnson, aqui não comemos ninguém acima de soldado raso.
Surpreendido pela voz forte, mas de certa forma simpática, fechou a
porta e avançou rapidamente para a secretária do general.
Retribuindo a continência, sorriu.
— À vontade, tenente. Li a proposta que me mandou e mal pude conter a
minha imaginação!
— Obrigado, senhor.
— Claro que a minha experiência é em química, como sabe, e não em
biologia, por isso não estou em posição de poder julgar o seu valor
científico... — Parecia perdido nos seus pensamentos. Depois remexeu no
monte de papéis que estavam em cima da sua secretária e, ao encontrar o que
procurava, agitou um dossier e resmungou baixo: — Com grande trabalho
meu, consegui encontrar meia dúzia de biólogos cujos relatórios, que aqui
tenho, confirmam o interesse científico da proposta... — Olhou fixamente o
dossier e deitou-o de novo para cima da mesa. — Ou pelo menos é o que eles
dizem, depois que você abriu caminho pelo esterco. — Olhou para Johnson,
que ainda estava nervosamente em posição de à-vontade. — Sabe, tenente, há
vias pelas quais devia ter mandado uma tal proposta (teria sido muito mais
fácil para mim se o tivesse feito) e estava a pensar, tenente, porque teria
escolhido esta via. — Westland tirou uma pasta da gaveta e deitou uma
olhadela à carta que Johnson lhe mandara. — Porquê, tenente?
Johnson mudou a posição dos pés, nervosamente.
— Bom, acho que foi porque pensei que assim seria lida mais depressa e
que o processo poderia iniciar-se um pouco mais cedo.
— Hum! — Westland parecia irritado. — Sabe, tenente, não cheguei a
general por acaso e não o consegui esquecendo o lugar que a cada um cabe.
Talvez que a razão que me apresentou seja aquela por que me enviou isto
diretamente. Já tenho julgado mal certas pessoas e se assim é não há
problema; há vias a quem esta proposta pode ser entregue para que lhe seja
dado seguimento...
Johnson murmurou:
— Mas é minha! Não que eu queira todo o mérito, mas, quando a enviar
pelas vias competentes, toda a gente vai modificá-la um pouco e ficar com
um pouco dos créditos. Bom, isso está muito certo e não lhes regateio algum
crédito. Mas de certa forma, quando todos lhe tiverem mexido, não me
restará nada e já terão tornado o projeto irreconhecível. Isto é, pus muito
tempo e muita reflexão nesta proposta e penso que é estuporadamente boa,
desculpe, refiro-me à forma como a expus.
Surgiu um sorriso na cara de Westland e ele tirou do bolso um maço de
charutos.
— Bom, tenente, sente-se. Parece-me que agora podemos começar a
falar a sério.
Ali ficaram sentados o resto da tarde e todo o dia seguinte, planeando as
possibilidades de pesquisa, o material, o pessoal necessário, etc., etc.
Westland tinha fama de, quando encontrava um projeto digno de levar por
diante, não descansar nele. Mas Johnson estava aparvalhado ao observar a
rapidez com que o seu projeto passava do papel à realidade.
Ao fim do segundo dia Westland sugeriu:
Talvez o melhor que você tenha agora a fazer seja ir a casa e resolver por
lá os assuntos pendentes. O exército transfere-o para aqui e começa na
próxima semana. Podemos manter tudo armazenado enquanto você e a sua
mulher arranjam casa. Acabam por ser umas duas semanas, pelo menos, antes
que o material e não sei mais quê se comece de facto a juntar. Não se
preocupe com os pormenores da sua mudança, tratamos deles no fim disto e
serão concretizados no fim da semana.
E assim foi… Dentro de um mês o tenente Johnson foi promovido e
repromovido até chegar a major. O pessoal começou a dar entrada no seu
laboratório e o Projeto Vector começou a avançar. Por volta do fim do ano
havia a certeza de que o projeto resultaria, que o vírus podia ser criado num
período de tempo razoável. Havia no entanto um obstáculo. Agora, com os
Russos a trabalhar num projeto clandestino de manipulação de genes de sua
autoria, a definição do período de tempo razoável estava a tornar-se cada vez
mais curto.
Westland deu resposta pronta à alteração de circunstâncias e, duas
semanas depois de ter recebido a comunicação relativa ao trabalho dos
Russos naquele campo, deu consigo a fazer uma palestra a um grupo alargado
de pessoal da investigação.
Sentia que a palestra decorrera muito bem. Passeando o olhar pela
audiência de uns cento e vinte trabalhadores, concluiu as suas observações:
— Dei-vos uma ideia, assim o espero, da nossa situação aqui. Visto que
foi aprovada a aceleração do processo, o espaço do nosso laboratório
duplicou, o quadro de pessoal triplicou, e a nossa verba é quase ilimitada. No
entanto, e infelizmente, aqueles de vós que estão comigo desde o inicio
acharão agora tudo um pouco mais formal. Mas deixamos hoje bem claro que
este é um projeto crucial e que os seus objetivos têm de ser alcançados. Posso
dizer-lhes que aquilo que começou por ser um projeto de investigação
bastante reduzido cresceu consideravelmente. Encontramo-nos agora a
competir com outras nações no desenvolvimento destas técnicas. O projeto
nasceu sem a preocupação que outras nações pudessem a qualquer tempo
tentar criar tais técnicas e tinha como objetivo explorar o campo de processos
apropriados para responder a uma libertação intencional ou casual de novos
vírus criados por técnicas deste gênero. Mas temo que elas possam afinal vir
a ser armas mais potentes do que qualquer das até hoje conhecidas, inclusive
as armas convencionais ou nucleares. Potentes não pelo seu poder puramente
destrutivo, mas pela sua capacidade de utilizar a força no sentido de um
acordo politico, no caso de se verificar o rebentamento de futuras guerras.
Com o aumento de espaço, pessoal e verba, podemos alcançar os nossos
objetivos, mas só com a ajuda e energia de todos nós, trabalhando em
conjunto.
Ao regressar ao seu gabinete, o otimismo de Johnson começou a
decrescer. Westland não se iria deixar impressionar pela sua capacidade de
proferir discursos de propaganda. Westland queria apenas o maldito vírus e
nada mais o satisfaria. Claro que o aumento de quadro de pessoal facilitaria o
trabalho, desde que tudo corresse bem. Mas havia problemas imprevistos, que
não dependeriam apenas da força bruta do dinheiro. Por vezes há que nos
sentarmos e pensar nos resultados obtidos, deixando que os dados nos
venham à mente, antes de darmos o passo seguinte. Já no gabinete, os seus
pensamentos foram interrompidos pelo besouro do intercomunicador
anunciando a chegada do major Pearson.
O major Stephen Pearson pertencia à Military Intelligence2. Era alto,
magro e enérgico. Cruzava e descruzava constantemente as pernas, fechava e
abria as mãos. «Declaradamente um homem de gabinete», pensou Johnson.
Com todo aquele nervosismo, devia ser pouco útil no campo de batalha.
Pearson começou:
— Agradeço-lhe, major, pelo facto de me ter dispensado este momento.
Na Military Intelligence temos estado a tentar fazer ideia da espécie de
experiências que os Russos possam estar a tentar. Pensei que me poderia ser
útil discutir o projeto do vírus consigo. Talvez aprenda algo que nos ajude a
entender o que é que os Russos estão a preparar.
Pearson lançou um meio sorriso a Johnson.
Acenando ponderadamente, Johnson perguntou:
— Se não está em preparação qualquer comunicado oficial, talvez possa
eliminar o palavreado sobre a manutenção da saúde, não acha?
— Esteja à vontade, major — disse Pearson. — Não estou a gravar, e se
escrever alguma coisa é instintivo e far-lhe-ei os acrescentos necessários. —
Sorrindo de forma estranha, lamuriou: — É um dos males que ainda ficou
desde Watergate. Mesmo estampando um cartaz de «Altamente
Confidencial», já não se consegue afastar as comissões do Congresso. Por
isso, tudo o que é escrito será convenientemente expresso.
Johnson replicou:
— Ótimo, isso torna a discussão muito mais fácil. — Instalou-se na sua
cadeira, acendeu o cachimbo e pensou um pouco antes de começar: — Tudo
começou com uma conversa casual com um ex-colega que agora é um
importante professor universitário na costa leste. Ele está a trabalhar na
manipulação de genes em plantas e falou-me da facilidade em separar um
gene de qualquer tipo de organismo vivo e de o juntar a uma bactéria ou a um
vírus. Assim, a bactéria ou o vírus exprimirão a informação contida nesse
novo gene, seja ela qual for. Por exemplo, separaram da célula humana o
gene da insulina, juntaram-no ao cromossoma de algumas bactérias e estas
produziram insulina humana, que é muito melhor e mais barata do que a que
as empresas farmacêuticas costumam vender.
»Bom, uns dias depois de falar com este tipo, veio-me à cabeça a ideia
do Projeto Vector, quase na sua forma acabada. O botulismo é uma grave
intoxicação alimentar causada pela ingestão duma toxina produzida por uma
família de bactérias denominada Clostridium botulinum. O que eu perguntava
a mim mesmo era se seria possível extrair o gene que codifica essa bactéria e
inseri-lo num vulgar vírus de gripe. O vírus produziria então também a toxina
e teríamos em breve um vírus de gripe altamente mortal.
»Surge então um problema que é o de a maior parte das pessoas ser
resistente à gripe, mas isso pode contornar-se, visto que novas epidemias
estão constantemente a aparecer devido às mutações do vírus que o
modificam o suficiente para que os sistemas de defesa do organismo o não
reconheçam. Podemos acelerar este processo em laboratório e já produzimos
alguns tipos de gripe às quais ninguém conseguiria resistir.
Reparando que o cachimbo se tinha apagado, Johnson parou de falar
para o acender. Depois de se ter elevado uma nuvem de fumo que o satisfez,
continuou:
— O único problema que subsiste é o de como parar o vírus, uma vez
posto a circular. Vacinar-nos e assim imunizar-nos, bem como aos nossos
aliados, não resultaria. O vírus da gripe sofre mutação geralmente a um ritmo
lento; deste modo, as pessoas imunizadas contra o botulino gripal seriam
provavelmente atingidas por uma nova família a que não eram resistentes.
Essa família poderia matar toda a gente.
Johnson fez uma pausa. Há meses que não falava em pormenor, acerca
do projeto, com alguém que não estivesse diretamente a ele ligado. Estava
orgulhoso deste projeto, especialmente da solução para o problema de
restringir a difusão do vírus. Isso fora o seu verdadeiro golpe de gênio.
Encontrara a resposta numa coisa chamada genes mutadores. Tinham sido
descobertos no princípio dos anos 50 por geneticistas agrônomos que
trabalhavam com milho. Os genes mutadores ou genes-M provocavam com
uma frequência muito maior a mutação de genes que lhes eram adjacentes.
Johnson concluíra isso ao ligar um gene-M a um gene de botulino antes de ter
transferido este para um gene da gripe e verificara que os dois produziam
uma família que não era mortal. Os diferentes genes-M funcionavam a vários
níveis de eficiência e assim podiam produzir uma série de famílias de vírus,
algumas das quais se tornariam não mortais rapidamente e outras que
levariam muito tempo.
Explicou tudo isto a Pearson, à medida que ia também respondendo a
perguntas. Quando terminou e Pearson parecia já satisfeito com a explicação,
ficou completamente desorientado com a seguinte pergunta:
— Que quantidade de tecido produzem?
Johnson não conseguia entender a intenção da pergunta e começou por
responder lentamente:
— Bem, cultivamos algumas células nervosas que se destinam aos testes
com a toxina do botulino. — E encolheu os ombros, dizendo: — É um
processo-tipo, nada de muito sofisticado.
— Tem muito pessoal a trabalhar nisso?
— Não — respondeu Johnson. — É um processo do tipo direto que a
indústria farmacêutica automatizou há anos. Aqui temos só quatro pessoas a
trabalhar nisso.
Tentando descobrir se elas estariam a precisar de outras culturas de
tecidos, Johnson perguntou:
— Os Russos estão a fazer culturas de tecidos? Custa a crer que estejam
assim tão atrasados que precisem de mais do que de um punhado de técnicos.
— É o que nós pensávamos — acrescentou Pearson —, mas nem sequer
sabemos se o grupo que está a trabalhar na cultura de tecidos está ligado ao
mesmo projeto que o grupo do ADN. Acontece é que desapareceram
simultaneamente.
Nas duas horas seguintes, Pearson interrogou insistentemente Johnson
acerca do Projeto Vector, do trabalho de cultura de tecidos e esporadicamente
acerca de assuntos cuja relevância escapava a Johnson. Por fim Pearson
pareceu dar-se por satisfeito.
— Bem — concluiu, levantando-se. — Agradeço-lhe o tempo que me
concedeu, major. Foi-me, de facto, muito útil.
— Espero que sim — replicou Johnson, exausto.
— Creio que compreende que tudo o que dissemos é «Altamente
Secreto» e não deve ser discutido seja com quem for.
— Claro — respondeu Johnson.
Pearson deitou uma última olhadela ao bloco, que lentamente tinha
enchido durante as duas horas precedentes.
— Apenas uma última pergunta. Quem foi o colega que lhe deu a ideia?
Johnson pareceu confundido.
— O colega? Oh, refere-se a Haenners. Lloyd Haenners... Acho que
trabalha em Boston. Ele não me deu efetivamente a ideia, limitou-se a fazer-
me pensar.
— Sim, claro. — Sorrindo, Pearson tomou nota do nome.
— Porque é que pergunta? — Quis saber Johnson.
Pearson encolheu os ombros.
— Por preciosismo, mais nada.
Quarta-feira, 5 de Agosto
Só na quarta-feira é que Doc arranjou tempo para passar pelo laboratório
de Charlie. Tendo ido sem avisar, ficou decepcionado por Charlie estar
ausente; depois de ter mudado umas caixas da cadeira para a bancada, sentou-
se à espera de que o amigo chegasse. A forte iluminação e a desordem não o
ajudaram a sair da sua depressão e quase ficou surpreendido ao ver Charlie
aparecer com declarada boa disposição, acompanhado por uma bonita mulher
de cabelo castanho pelos ombros e de rosto agradável. De impecáveis batas
brancas, pareciam simbolizar os jovens cientistas dedicados.
— Olá, Doc! Que te trouxe até à torre de marfim? — Lembrando-se
então da sua conversa de sábado à noite, disse: — Ah, já sei, disseste que
passavas por cá. — Fez sinal à colega. — Gostava de te apresentar Beth
Cordell, que é a melhor licenciada do laboratório de Lloyd Haenners, que fica
do outro lado do átrio. — Beth recebeu o elogio com um sorriso. Charlie
continuou: — Beth, este é Fred Blake, um velho amigo que chegou a médico
e a quem, por castigo, chamamos Doc.
— Muito prazer — murmurou Doc delicadamente; virando-se para
Charlie, perguntou: — É má altura para falar?
— De maneira nenhuma — disse Charlie. — Estávamos só a contar
histórias do laboratório e eu contava-lhe umas de terror dos meus tempos de
liceu.
— Mas eu só as suporto em pequenas doses — disse Beth. — Falem
agora vocês, porque me parece assunto sério. — Virando-se para Doc,
acrescentou: — Podemos continuar noutra altura. — Disse adeus a Doc e saiu
do laboratório.
Doc levantou-se e serviu uma chávena de café duma cafeteira que estava
no peitoril da janela. Ficou ali um momento, olhando pela janela sem falar.
Por fim virou-se e voltou para o seu lugar, parecendo ter ficado exausto de
repente.
— Que há? — Perguntou Charlie, preocupado.
Doc inspirou fundo e expirou lentamente.
— Trata-se dos Gloryhits e de Ann. — Rodou o copo do café, bebeu um
golo e, olhando de novo para Charlie, disse: — Podia ter-te falado mais cedo,
mas queria confirmar a minha informação antes, para estar absolutamente
certo.
»Charlie, há qualquer coisa de errado nos Gloryhits. Têm estado a causar
abortos e malformações nos fetos em mulheres que os tomaram. — Hesitou
por um momento e continuou: — Quero influenciar-te no sentido de
interromperes essa gravidez.
Durante segundos Charlie olhou-o aparvalhado, mas, de repente, foi
como que invadido por uma onda de alivio.
— Valha-me Deus, Doc, não me assustes com essa! Ann não os tomou
quando estava grávida... Tomou-os, sim, um mês antes de engravidar. Temos
a certeza.
Mas Doc insistiu:
— Ai é que está o problema. Todas aquelas mulheres os tinham tomado
antes de engravidar. Não é um agente teratogénico, mas sim um mutagénico,
está a criar uma espécie de mutação.
Charlie recusava-se a acreditar.
— Doc, isso não faz sentido. Nunca se ouviu tal coisa.
Doc respondeu delicada mas insistentemente.
— Olha, Charlie, não posso utilizar contigo o tal truque de «o senhor
doutor é que sabe» porque não é o meu gênero e além disso tu sabes muito
mais de ciência natural do que eu. Não vou portanto competir contigo nesse
campo. Se me disseres que não faz sentido, aceito; que não se adapta a nada
do que já ouvi, de acordo; é por isso mesmo que quero fazer aquela pesquisa
Medline, para ver se encontro precedentes. Mas com ou sem qualquer teoria a
apoiar-me, tenho dados suficientes para afirmar que os Gloryhits estão a
causar abortos e monstruosas deformações em fetos e estou convencido de
que Ann devia provocar um aborto.
O espirito analítico, racional e calmo, de que Charlie se prezava,
desapareceu. Recusava-se a pensar racionalmente ou a ouvir os argumentos,
limitava-se em vez disso a negar, pura e simplesmente.
— Não pode ser — dizia. — Mas que espécie de dados julgas tu que
tens? Não pode ser.
Doc soltou um suspiro silencioso e descreveu a Charlie os elementos que
conseguira recolher nos últimos três meses: sete mulheres que tinham tomado
os Gloryhits um mês antes da concepção haviam abortado e a única coisa que
essas mulheres tinham em comum era o facto de terem tomado os Gloryhits.
Ele vira dois dos fetos. Ambos tinham testas monstruosamente aumentadas,
semelhantes à figura do gênio louco dos filmes de terror.
Charlie riu amargamente.
— Queres então fazer-me acreditar que não só é um mutagénico como
ainda que causa mutações especificas? Doc, não engulo essa. Isso foge
descaradamente a tudo quanto a ciência conhece.
Como Doc não respondesse, continuou:
— Disseste que dois estavam deformados. Que há com os outros cinco?
Eram normais?
Doc esforçou-se para que a sua voz parecesse calma.
— Não sei. Há um tipo qualquer de Nova Iorque que está a proceder a
um estudo dos fetos resultantes dos abortos naturais, para detectar qual o grau
de incidência das deformidades. Está a fazer autópsias e por isso não
consegui deitar a mão a qualquer deles. Todos os obstetras da zona estão a
colaborar. Não cheguei a ver os outros antes de serem recolhidos.
Charlie replicou:
— Vá lá, Doc, que diz o tipo que está a fazer o estudo? Se está a fazer
autópsias detalhadas, deve estar na posse de todos os dados que tu dizes ter.
Doc começava a ficar aborrecido.
— Acredita-me, Charlie, está bem? Estou há um mês a tentar contactá-
lo, mas dou sempre com um serviço de recepção de chamadas que me diz que
ele me telefonará, mas não me telefona.
— Então não consegues a informação?
— Acalma-te, Charlie. Tenho um amigo que é obstetra e que prometeu
telefonar-me quando o Greene, que é como o tal tipo se chama, aparecer de
novo, o que deve acontecer dentro de duas semanas, o mais tardar.
»Charlie, não corras riscos destes com o teu filho! Não me interessa o
que diz a ciência. Um destes fetos chegou até aos cinco meses e tenho um
mau pressentimento de que outros poderão chegar ao termo da gravidez.
Podes recomeçar, Charlie. Dentro de cinco meses estarás no ponto em que
estás hoje e na certeza de que vem ai um bebé saudável.
Charlie lançou-lhe um olhar penetrante e furioso.
— Dois meses para engravidar, não é, Doc? Bom, é melhor dizeres dois
anos, pois foi o tempo que levámos desta vez.
»Claro que por dois meses é fácil, mas por dois anos não. Se Ann abortar
espontaneamente, como todas as outras de que soubeste, então paciência.
Nesse caso não sei o que faremos. Talvez mandemos tudo passear e
desistamos. Mas depois de todo este tempo não vamos deliberadamente
desistir deste filho.
Dirigiu-se à cafeteira e encheu uma chávena. Olhando pela janela,
continuou: — Sabes, Doc, é que é desgastante esperar mês após mês, sempre
com medo de ter demasiada esperança. — Virou-se e encarou Doc. — Não
era capaz de suportar o mesmo outra vez. — Pousou os olhos no chão. —
Deixemos isto por agora, por favor. Ajudo-te nessa investigação Medline,
mas só na próxima semana, está bem?
Doc encaminhou-se para a janela e ficar ambos a olhar os prédios velhos
do outro lado da rua.
— Certo, Charlie. Por agora basta, mas pensa nisso e no risco e fala no
assunto à Ann. Deves fazê-lo, porque não é o tipo de decisão que possas
tomar sozinho. — Sem responder, Charlie continuava a olhar pela janela. —
É meu dever, como teu médico e como teu amigo, dar-te a minha opinião. Já
ta dei, mas quero que saibas que, seja qual for a vossa decisão, estarei
convosco para vos ajudar como puder. — Agarrou no casaco, dizendo: —
Passo por cá no princípio da próxima semana.
Charlie desviou o olhar da janela e enfrentou o de Doc mas, não
encontrando palavras para se exprimir, virou-se para a janela com as lágrimas
nos olhos. Ouviu os passos de Doc encaminharem-se para o átrio e ficou só
com os seus argumentos e as suas dúvidas.
Lenta e mecanicamente, tirou da caixa o material de vidro e os produtos
químicos que tinham chegado nessa manhã. Dizia para consigo que não havia
dados suficientes para tomar uma decisão inteligente. Não havia dados
suficientes.
Terça-feira, 11 de Agosto
Só na terça-feira seguinte é que Doc voltou a falar com Charlie. Ao
chegar deparou com Charlie e com um homem mais velho debruçados sobre
uma enorme peça de material eletrónico, todo ele coberto de mostradores e
luzes. Sentou-se silenciosamente atrás deles sem que se apercebessem e
observou como eles se agitavam em volta da máquina. Fez-lhe lembrar uma
máquina de jogos. Um deles ajustava o mostrador enquanto o outro batia num
quadro para que a agulha saltasse. Finalmente, e depois de uma série de
pancadas e de murros infrutíferos, desistiram. Frustrado, Charlie virou-se e
quase pisou Doc.
Ao vê-lo, explodiu:
— Não entendo como raio se podem gastar quinze mil dólares numa
peça de material e não conseguir que ela funcione! Agora vai ser uma semana
antes que consiga pôr as coisas a funcionar, a não ser que me desloque pela
cidade com as amostras e peça uma máquina emprestada a alguém.
Avançou para a cafeteira e deitou uma chávena. Apercebendo-se de
repente de que os outros dois ainda não se conheciam, pediu desculpa e
apresentou-os.
— Doc, este é Lloyd Haenners, o diretor do laboratório que fica do outro
lado do átrio, que me tem ajudado a instalar-me aqui.
Doc sorriu, correspondendo ao cumprimento de Lloyd.
— Beth Cordell trabalha consigo, não trabalha? Conheci-a na semana
passada.
— É verdade — respondeu Haenners. Com pouco mais de quarenta
anos, tinha uma constituição atlética. O seu cabelo estava um pouco
comprido, roçando a gola do casaco de bombazina. Com uma pequeníssima
barba, era o retrato do intelectual liberal que de facto era. — Ela é um dos
mais qualificados membros do meu laboratório. Diria que quase é
inestimável.
Conversaram durante uns minutos e depois Lloyd deixou Doc e Charlie
sozinhos.
Este puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Doc.
— Há uma semana que não te vejo. Que tal vão as coisas?
— Febris — respondeu Doc. — A modificação do ar tem sido diabólica.
Entre a poluição e as alergias, parece que há metade da cidade que não
consegue respirar. O pobre do Kip chamou-me no sábado à noite, entre duas
atuações, para me implorar que o ajudasse, queixando-se de que durante a sua
primeira atuação tinha espirrado o tempo todo.
Charlie riu-se.
— Onde é que ele está agora a atuar? Ann e eu temos estado a pensar em
ir vê-lo.
Kip, um dos amigos mais íntimos de Charlie, era um guitarrista
profissional; tinham-se conhecido na faculdade.
— Não era má ideia — respondeu Doc. — Ele vai voltar a atuar no
Hungry Fox dentro de algumas semanas. A Justine e ele queixaram-se de que
El Professor parece andar demasiado ocupado para rever os velhos amigos.
— Merda! — Murmurou Charlie. — Este laboratório não aparece
ordenado por si próprio. Ann também se tem queixado. Que raio, tenho
trabalhado aqui que nem um cão — e, com um gesto, abarcou o laboratório.
— Mas havemos de ver se Warren e Justine estão livres uma destas noites.
Podemos ir todos a um espetáculo. Talvez pudesse convidar também a Beth.
Doc aquiesceu.
— Claro, uma cara nova seria agradável. — Fez uma pausa e continuou:
— E Ann, como está?
— Oh, muito bem — respondeu Charlie, evitando a pergunta implícita.
O enjoo parece que já acabou e acho que ela se sente agora muito melhor. Foi
até Nova Iorque na sexta-feira última, para passar lá uma semana com uns
amigos que já não via há mais de um ano.
— Falaste com ela?
Charlie pareceu perturbado. Tinha evitado falar a Ann da possibilidade
de vir a perder o bebé ou de este apresentar deformações. A verdade era que
nem sequer ele próprio quisera admitir essas probabilidades. Evitava as
verdadeiras razões.
— Acho que não valia a pena chocá-la com tudo isso exatamente antes
de partir para férias. Ter-lhe-ia estragado a semana e afinal de contas não há
pressa. Já está muito adiantada para um aborto por meio de ventosa e muitos
dos obstetras prefeririam esperar até aos cinco meses, para provocar o aborto
nessa fase.
Doc não pareceu ficar satisfeito com a resposta.
— Tudo isso está muito certo, mas não podes adiar a discussão do
assunto por cinco meses. Isso não é justo para a Ann.
— Está bem, já sei — replicou Charlie bruscamente mas não vale a pena
estares a repisar o assunto. Falarei com ela logo que regresse. Olha lá: que
dizes a uma amniocentese? Não podemos analisar...
— Charlie, não estás a raciocinar! Através da amniocentese consegues
obter umas células fetais extraídas do saco amniótico, mas que ficavas a saber
com isso? Tens de saber o que pretendes com a amniocentese. Não estou a
querer atormentar-te, mas acho que vocês se sentirão melhor quando
discutirem o assunto um com o outro. — Rebuscou nos bolsos e tirou de lá
algo semelhante a uma lista de compras e acrescentou: — De qualquer modo,
não foi por isso que eu cá vim. Pensei que pudéssemos organizar essa
pesquisa informática, se tiveres tempo.
A tensão desapareceu do rosto de Charlie.
— Ótimo — disse, feliz por deixar a discussão sobre Ann e os abortos.
— Vamos para o meu gabinete. É lá que tenho as informações. — Passaram a
hora seguinte a organizar a investigação Medline. O serviço de informações
cruzadas instituído pelos National Institutes of Health3 era um sistema
avançado e bem delineado, o que significava que era bastante utilizado.
Levaria uma semana a obter a informação que Doc queria e que abrangia
mutagénicos, teratogénicos e alucinogénicos e deformações cranianas nos
recém-nascidos. Uma vez organizada a pesquisa, só lhes restava esperar.
Uma semana mais tarde, Doc voltou lá e deu com Charlie estudando
atentamente um grosso molho de folhas de computador. Levantando a cabeça
acenou a Doc, dizendo:
— Por acaso não sabes ler italiano, pois não? Não há dúvida de que só
devíamos ter recolhido dados em inglês. Fico sempre atrapalhado com estes
títulos noutras línguas. — Pegou na folha que continha, à vontade, uns
trezentos dados. — A maior parte parece-me irrelevante, mas acho que há
algumas que vale a pena aprofundar.
Doc puxou uma cadeira para junto da secretária e sentou-se.
— Há alguma coisa especialmente interessante?
— Nada de óbvio — respondeu Charlie e continuou: — Não há nenhum
título que diga: «LSD causa testas aumentadas em fetos», se é isso que queres
dizer. Mas há diversas informações sobre efeitos teratogénicos da maior parte
das drogas que tínhamos listado e há alguns dados interessantes sobre
malformações congênitas. — Entregou um rolo de informações a Doc. — Fiz
uma fotocópia da lista e podes estudá-la com toda a calma. Marquei aqueles
que achei que podiam ter interesse, mas deves investigar outros que te
pareçam importantes.
Doc apontou para a lista:
— Pelo número de marcas, parece que só estes já nos vão dar que fazer.
Charlie lançou um olhar maldoso ao equipamento eletrónico que estava
agora silencioso e disse:
— Aqui a nossa «Berta» vai para a revisão na próxima segunda-feira,
por isso vou poder dedicar parte desta semana à leitura. Acho que em três
dias de leitura superficial poderei ter despachado a maior parte da lista. E, a
propósito — acrescentou — iniciei uma pesquisa sobre o LSD e outras
drogas suscetíveis de causar mutações específicas, tais como a deformação da
cabeça, visto que pensas que é isso que está a acontecer.
— Não acreditas que isso esteja a acontecer? — Perguntou Doc com
surpresa.
— Isso? Mas que isso? Se te referes ao facto de que mulheres que
tomaram os Gloryhits tenham sofrido abortos naturais, claro que acredito; ou
de que dois destes fetos traziam a cabeça deformada, também acredito. Mas
não engulo essa de que o ácido ou algum dos seus componentes causaram
mutações específicas. Tenho falado no assunto a outros cientistas daqui e eles
olham-me como se fosse doido. Até pode ser que seja verdade, mas contraria
tudo o que se sabe sobre mutações. Para se acreditar nisso, só com grande
persuasão. — Charlie dobrou a folha e meteu-a na gaveta de cima da
secretária. Querendo mudar de assunto, disse: — Chegaste a conseguir falar
àquele tipo que recolheu os outros fetos?
Um ar de irritação perpassou no rosto de Doc.
— Isso depende do que entendes por «falar a». O Dan Studeman
telefonou-me quando o Greene chegou ao gabinete e consegui interceptá-lo
antes que saísse do edifício. Nunca vi ninguém mais infeliz por me ver. Nem
calculas as evasivas com que apanhei. Disse-me que estava apenas a
superintender o projeto, que eram outras pessoas que estavam a efetuar as
autópsias e que estas eram feitas por um sistema de código, que não podiam
dizer senão no fim quais os fetos que tinham vindo e de que médicos, que ia
ver o que poderia fazer mas que não me podia prometer nada. Recusou-me o
número do telefone do seu gabinete, dizendo que o serviço de recepção de
chamadas era a melhor forma de o contactar. Disse-me ainda que lamentava
não ter podido contactar-me mais cedo e que tinha falado a outras pessoas
que tomavam parte no projeto e que a decisão não partia só dele e que para
prestar declarações precisava duma autorização dos médicos e dos pacientes,
etc., etc.! Se soubesse porquê, diria que o tipo estava a furtar-se a dar-me a
informação, mas a verdade é que isso não faz sentido. Disse-lhe que não
estava a participar na investigação e que por isso não tinha que se preocupar
com a competição e creio que o Studeman lhe disse o mesmo. De qualquer
forma, e para resumir, a verdade é que dali não levei nada. Por fim prometeu
tentar arranjar-me a informação e pronto. Eu fui delicado e não tentei forçá-lo
demasiado, mas pressinto que não terei notícias dele até que cá volte, no
próximo mês. Foi um diabo duma conversa mesmo frustrante. — Encheu
uma chávena de café, bebeu um golo e deitou o resto pelo cano abaixo. —
Estou tão amachucado que nem sei o que faço. Só preciso agora é de um
pouco de cafeína e vou voltar para o meu consultório.
Sentou-se outra vez e tentou descontrair-se. Charlie perguntou:
— Não é muito difícil obter autorização para trabalhar com fetos
humanos? Talvez pudéssemos falar com a comissão, ou lá o que é, que deu a
aprovação.
— Para abortos naturais, não. As únicas restrições referem-se a abortos
provocados, quando se teme que o médico possa influenciar a paciente a
abortar — respondeu Doc.
Charlie abanou a cabeça espantado.
— Há realmente doidos à solta na academia. Enquanto a coisa se passa
de igual para igual e os resultados não são de importância imediata, ainda se
admite que aconteçam coisas destas, mas tu frisaste bem que este era um
assunto de importância clínica imediata, não frisaste?
— Claro! — Disse Doc, irritado. — Até fui mais longe. Uma doente
minha fez um aborto voluntário e acontece que tinha tomado um Gloryhit
poucas semanas antes da data em que pensa ter concebido. Bom, o Studeman
é que lhe fez o aborto e a meu pedido poupou o feto. Hei de trazer-to para
veres, Charlie. Tem a mesma deformidade.
»Falei nisso ao Greene, mas não foquei a relação com os Gloryhits.
Insisti no facto de doentes minhas estarem implicadas e de eu ter de as
aconselhar, precisando para isso de estar informado.
E isso não deu resultado?
— Resultado? Isso preocupou-o e disse-me que tinha de lhe devolver o
feto para proceder a um estudo. Fiz-lhe ver que tinha sido um aborto
provocado e que portanto era irrelevante para a sua investigação, visto que
ele andava à procura de fetos de abortos naturais. Mas depois começou a
inventar razões disparatadas. Por fim sugeriu que, se quisesse que ele
colaborasse mais, deveria observar a mesma forma de atuação. Assim que se
convenceu de que eu não me adiantaria, disse-me que iria ver o que podia
fazer e foi-se embora.
Charlie abanou a cabeça.
— Espantoso! Mas que safado! Seria mais fácil tomar decisões se
soubéssemos se os sete estão deformados ou se todos os outros apresentavam
a mesma malformação.
Doc concordou e, olhando para Charlie, perguntou.
— Aceito esse comentário como uma indicação de que tu e Ann ainda
não decidiram se ela deve ou não abortar.
Charlie evitou o seu olhar.
— Por amor de Deus, Doc, não há informações suficientes para nos
permitirem tomar essa decisão. Talvez tenhamos bases para decidir, se
encontrarmos algo nesta pesquisa literária ou se aquele vampiro nos fornecer
alguma informação concreta. Mas, pelo menos antes de termos analisado
todos aqueles artigos, não acho que possamos tomar qualquer decisão.
— A Ann concorda? — Perguntou Doc.
— Acho que concordará — murmurou Charlie.
— Concordará? — Doc estava furioso. — Cotten, não estás com certeza
a dizer-me que ainda não falaste com ela sobre isso?
Charlie levantou-se, caminhou para a janela e perguntou furioso:
— Falar com ela sobre quê? Dizer-lhe que vieste com ideias malucas
dizer-me que o nosso filho viria deformado e que ela devia provocar um
aborto? — Virou-se e olhou Doc bem nos olhos. — Ouve: se surgir alguma
coisa desses artigos ou daquele «vampiro», prometo-te que nesse mesmo dia
falo com ela.
Doc cortou-lhe a palavra.
— Que diabo de jogo é o teu? Charlie, não podes tratar Ann dessa
maneira. Ela tem o direito de saber disto; se tu te recusas a dizer-lho, digo-lho
eu.
— Está certo, está certo — respondeu Charlie, irritado. — Ela só voltou
de Nova Iorque ontem à noite. Dá-lhe pelo menos um dia de descanso. Vou
dar uma olhadela a estes artigos e depois falo com ela. Telefona-me na sexta-
feira, depois de eu ter tido oportunidade de ler alguns, está bem?
— Está bem — concordou Doc —, mas tens de falar á Ann.
— Está bem — disse Charlie. Doc levantou-se para sair. — Ah, antes
que te vás embora queria dizer-te que Warren e Justine disseram que para
eles está bem no sábado e a Beth disse que também queria ir. Podemos então
contar com isso?
— Ótimo. Falo-te na sexta-feira.
Agosto
— Faça favor de se sentar, major Johnson.
Pearson, delicadamente, ofereceu-lhe a mais confortável cadeira da sala.
A constante irrequietude do major Pearson dava a Johnson uma ligeira
sensação de superioridade e fazia-o superar o facto de estar a pisar terreno
estranho. Dos cinco homens presentes só Pearson lhe era familiar. Todos os
outros lhe pareciam mais calmos e mais argutos. Com Pearson nunca tinha a
certeza de estar a ser compreendido. Este começou por dizer:
— Agradecemos a sua vinda a Washington para nos falar.
Compreendemos que representa um grande incômodo para si, sobretudo no
ponto em que estão as suas pesquisas, mas acho que não seria de boa política
que todos nós fossemos vistos a andar por ai juntos. — Lançou a Johnson um
sorriso de entendimento que os outros fingiram não ver. Johnson
correspondeu delicadamente e esperou que Pearson continuasse. A presença
dos outros quatro fazia com que Johnson se sentisse pouco à vontade.
— Bom, major, deixe-me cá ver... Desde Junho passado que não falava
consigo, por isso talvez o melhor seja pôr-me ao corrente do que tem feito
desde então.
Pearson suspirou imperceptivelmente, pensando que por vezes é
fastidioso ter de ouvir certas respostas. Tinha lido pormenorizadamente os
relatórios de Johnson e dois microfones dissimulados estavam a captar para
um gravador todas as palavras, para análise posterior. Mas Pearson ouviu
com uma atenção muito maior do que Johnson pensava.
Desde Junho que o Projeto Vector tinha avançado rapidamente. Tinham
conseguido, cortando o Clostridium botulinum ADN e adaptando pequenas
partes deste a um cromossoma duma bactéria vulgar como o E. colli, isolar o
gene da toxina botulino mortífera. A verba aparentemente inesgotável que
Westland tinha posto à sua disposição permitira-lhes isolar milhares de
bactérias em busca de uma que produzisse a toxina e tinham-na finalmente
encontrado. O próximo passo seria no sentido de adaptar o gene mutador ao
gene do botulino.
Depois de ouvir a exposição de Johnson, Pearson parecia estar
mergulhado nos seus pensamentos. Por fim perguntou:
— Agora que o gene da toxina é o E. colli, qual é a taxa de perigo?
Johnson ficou chocado.
— É um milhão de vezes mais elevada! As bactérias do Clostridium
morrem quando expostas ao ar. É por isso que só se apanha uma intoxicação
alimentar com a comida enlatada de que o ar foi extraído. Mas o E. colli
existe por toda a parte. Neste preciso momento você tem biliões deles
alojados nos intestinos e alguns milhões deles associados ao gene botulino
eram suficientes para matar um homem.
Johnson agitou-se nervosamente.
— Calculo que as devidas precauções...
Johnson riu-se ao ver o mal-estar de Pearson e disse:
— Foram tomadas as maiores.
Pearson olhou para o seu pequeno bloco e, depois de um lapso de tempo
que pareceu longo, olhou para Johnson.
— De que precisaria para criar um vírus de cancro que fosse altamente
transmissível?
A pergunta apanhou Johnson completamente desprevenido.
— Bom — gaguejou —, não sei se temos conhecimentos suficientes...
— Isto não é um exame, Johnson. Você não está a ser testado.
Quem falava era um dos quatro que tinham estado calados e que Johnson
chegara a pensar serem mudos. Pearson concordou.
— Compreendo que nem sequer tenha pensado nisto alguma vez, a não
ser como uma possibilidade remota... O que pretendo é apenas uma ideia do
que seria necessário. — Parecia tão nervoso como Johnson.
— Bom — respondeu este —, se querem apenas um cálculo ousado dos
problemas que isso envolveria, acho que primeiro haveria que isolar um
elemento cancerígeno. Talvez, se se tivesse um vírus causador de cancro, se
pudesse pegar em todo o ADN viral e enxertá-lo noutro vírus mais
transmissível, mas não tenho a certeza. — Sentou-se a pensar no problema.
— Como é que selecionaria esses vírus que receberiam os ADN
cancerígenos? — Perguntou Pearson.
— Como? — Repetiu Johnson. — Acho que teria de ter células humanas
e tentar infectá-las. Acho que seria desejável fazê-lo em células de cultura.
Desenvolvê-las e tentar infectá-las.
— E isso seria um trabalho de rotina de cultura de células? — Inquiriu
Pearson.
— Não — respondeu Johnson lentamente. — Acho que não seria um
trabalho corrente, porque é muito difícil dizer quando é, que uma célula se
transformou... Isto é quando é que atingiu um estado canceroso. É um
trabalho muito sofisticado.
— E precisava de muita gente?
— Claro, precisava de duas dúzias dos maiores especialistas neste
campo.
Pearson parecia satisfeito. Levantou-se da cadeira e acompanhou
Johnson até à porta.
— Bom, major, foi-nos muito útil. Se precisar de mais alguma
informação sua, espero poder deslocar-me ao seu laboratório para
conversarmos.
Johnson estava espantado com a brevidade da entrevista.
— É tudo?
— Acredite-me, major, que nos foi imensamente útil. A minha secretária
ocupar-se-á dos pormenores do seu regresso. Mais uma vez, muito obrigado.
E Johnson encontrou-se sozinho com a secretária de Pearson.
***
Dentro do gabinete falavam todos ao mesmo tempo; foi o homem de
aspecto vulgar, o terceiro à esquerda de Pearson, que pôs fim à confusão.
— Quero saber a opinião de cada um de vós sobre a possibilidade de os
Russos estarem a trabalhar num vírus de cancro aplicável numa situação de
guerra.
O homem que estava à sua direita, o segundo à esquerda de Pearson,
objetou:
— Primeiro quero saber se ainda temos as transcrições de Asilomar e se
já foram ponderadas.
O número quatro interrompeu:
— Se me derem uns quatro minutos, poderei passar em revista todo o
quadro de Asilomar. — O número três concordou. — Em 1975,o encontro de
Asilomar celebrou-se como o resultado de uma comissão da National
Academy of Sciences4, para tentar traçar linhas de orientação internacionais
para o uso seguro da transmissão do ADN de um organismo para outro. Por
razões ainda não esclarecidas, foram convidados investigadores russos. Esta
delegação veio, obteve o máximo de informações que pôde, à custa duma
cedência mínima das suas informações, e fotografou todos os slides da
investigação apresentados pelos americanos.
»Se bem que as reuniões fossem gravadas, nunca se procedeu a uma
transcrição e as gravações nunca foram publicadas. Obtivemos cópias das
gravações, transcrevemo-las e estudámo-las. As conclusões são simples e
aterradoras. Qualquer pessoa presente naqueles encontros poderia, sem
grande esforço, pôr de pé um projeto semelhante àquele em que Johnson está
a trabalhar. Com bons cérebros, poderíam tentar o projeto cancro. De facto, e
em consequência da análise que efetuámos às gravações originais,
considerando que não estavam em suficiente segurança, desgravámo-las sub-
repticiamente. Se ninguém lhes chegou até agora, a partir daqui ninguém lhes
chegará.
»É de calcular, no entanto, que os Russos tenham cópias das gravações.
Devo acrescentar que os quatro membros da delegação russa estão entre
aqueles que desapareceram no ano passado. É tudo. — Não transparecia na
sua voz qualquer emoção.
O número dois falou em seguida:
— Alguém pensa que eles não estão a trabalhar num vírus de cancro?
Pearson inquiriu:
— Verificou-se se essa gente do vírus de cancro foi transferida para
laboratórios de guerra biológica?
— Não — respondeu o dois. — Tudo quanto sabemos é que três deles
desapareceram da circulação. Mas não sei onde poderão estar.
Fez-se silêncio por alguns segundos e finalmente o três falou:
— Então parece que vamos partir do princípio de que eles estão a tentar
essa via. — Olhou um por um, recebendo de cada um deles um sinal de
aquiescência, com a cabeça. — Isso só nos põe mais um problema. Como
sabem, além dos convidados assistiram também sem convite membros da
imprensa. Temos passado em revista cuidadosamente as fotografias tiradas
durante o encontro, para verificarmos as identidades desses repórteres. Neste
momento há dois que parecem não se ajustar. Não conseguimos identificar
um porque parece que não se inscreveu; o outro inscreveu-se como repórter
do Boston Globe. O nome condiz com um novo escritor de assuntos
científicos deles, mas a cara não. Temos utilizado literalmente todas as vias
para os caçarmos. Demos-lhes os nomes de código de Mohair e Gabardine.
Receberão amanhã um dossier sobre eles, mas não está lá nada que eu não
vos tivesse dito.
— Mais alguma coisa? — Perguntou Pearson.
Ninguém falou.
— Então encontramo-nos de novo na próxima quinta-feira. Saíram os
quatro em silêncio, deixando Pearson sozinho no seu gabinete.
Terça-feira, 18 de Agosto
Deprimido pela conversa que tivera com Charlie, Doc voltou para o
consultório, conduzindo durante duas milhas de engarrafamentos. Não lhe
agradava a ideia de ser ele a dizer a Ann; mas, se Charlie o não fizesse, teria
de ser mesmo ele. Estava confuso com o procedimento de Charlie. Seria
possível que tivesse mudado tanto enquanto estivera na Califórnia?
Trabalhou todo o dia, mas o pensamento fugia-lhe de vez em quando
para Charlie e Ann e para o feto que obtivera de Studeman. Odiava aquele
feto, mas ao mesmo tempo sentia-se fascinado por ele. Na sexta-feira
anterior, num momento de desespero, pusera-o numa prateleira alta, atrás de
um monte de coisas, para não o ver, mas isso não evitava que pensasse nele.
O dia de trabalho, como de costume, durou até tarde e só às seis e meia é
que saiu o último doente do seu consultório. Sharon e Karla, a recepcionista e
a enfermeira, estavam a arranjar-se para sair. «Vou dar só uma olhadela»,
pensou, irritado pela sua fascinação pelo feto. Arrastou um banco até às
prateleiras e subiu a ele para tirar o frasco.
Desaparecera. Ficou ali olhando fixamente o lugar vazio no fundo da
prateleira. Perturbado, procurou por trás dos outros frascos e boiões, porque
poderia ter sido empurrado lá para trás. Mas sabia que desaparecera. Virou-se
e chamou Karla e Sharon. Foi Karla quem entrou no consultório.
— A Sharon já saiu. Precisa de mim?
Ele continuava empoleirado no banco e sentia-se aparvalhado.
— De sexta-feira para cá fez alguma coisa ao frasco que continha o feto?
Ela abanou a cabeça.
— Pensei que o tinha cá mais abaixo, ali. — E apontou para o sítio onde
ele o pusera antes de o ter mudado.
— Não, mudei-o na sexta-feira passada. Então não lhe mexeu?
— Não.
— E Sharon mencionou alguma coisa que tivesse a ver com ele?
Karla franziu a testa.
— Nem uma palavra, nem sei porque o faria. E, ao menos, ela sabia
onde ele estava?
Doc saltou do banco e enfiou-se na sua cadeira.
— Não. Tem razão. Mudei-o na sexta-feira, ao fim do dia, e creio que
não falei nisso a nenhuma de vós. Mas onde diabo poderá estar?
— Pensa que alguém o levou?
— Mas se ninguém sabia que ele ali estava! — Doc explodiu, furioso. —
Na verdade, tirando nós os três, só o Studeman sabia que eu o tinha. — Um
pouco mais calmo, acrescentou: — Além disso, para que é que alguém o
quereria? — Olhou em volta e comentou: — Se realmente alguém se
introduziu aqui, desprezou muitas outras coisas por aquele feto.
Karla não disse nada.
— Raios! Telefonarei mais tarde a Sharon, pode ser que ela tenha
alguma ideia. Alguém o pôs em qualquer lado. — Ao dizer isto olhou para a
prateleira. — Afinal também não se perdia grande coisa.
Quinta-feira, 20 de Agosto
Recostando-se na cadeira, Lloyd Haenners riu.
— Que vergonha, Charlie, terias falhado logo a primeira pergunta do
exame final do ano passado. É contraditório em si um mutagénico ter um
efeito específico. As mutações, por definição, têm de ser casuais. — Sentia
um prazer perverso em apanhar um colega num erro tão primário. Agora era a
vez de Charlie.
Haenners criara nome desenvolvendo técnicas de criação de células
vegetais em condições de cultura de células. A planta do milho levava meses
a desenvolver-se, o que significava uma duração de meses para cada
experiência. Utilizando a técnica de cultura de tecidos, tornou-se possível
efetuar um largo número de experiências rapidamente e dentro das paredes
dum pequeno laboratório. Com o advento da manipulação de genes,
Haenners começara a desenvolver uma estirpe de milho resistente a doenças,
utilizando as técnicas de transferência de genes. Beth Cordell estava agora a
proceder à construção dum vírus que veicularia os genes até às células de
milho.
Charlie encolheu os ombros à interrupção de Lloyd.
— Isso era o que eu pensava, mas surgiu uma questão esquisita e
perguntei-me se haveria algo de novo nesse campo. Por exemplo, se a
talidomida não podia ser um mutagénico.
— Claro que não — roncou Lloyd. — Primeiro que tudo, só atua quando
uma mulher a tomou já grávida; em segundo lugar, os mutagénicos não
atuam assim.
Charlie sentiu-se aliviado, se bem que o estilo de Lloyd o irritasse.
Adotara Lloyd como modelo de atuação na vida, pelo êxito da sua
conciliação da investigação com a política. Haenners era sincero quando
falava da sua recusa em aceitar dinheiro do exército, se bem que muito do seu
apoio financeiro proviesse de fonte industrial, duma firma de pesquisas
agrárias chamada Crop Research Associates.
Charlie prosseguiu:
— Ótimo, mas vamos supor (é apenas uma hipótese) que uma mulher
ingere uma substância desconhecida e que duas semanas mais tarde concebe
um filho. Essa substância não poderia causar uma malformação específica?
— Bom, espera ai, agora não estás a falar necessariamente duma
mutação. Talvez se trate dum químico que danifica, por exemplo, a glândula
pituitária da mãe e isso causa, por uma forma qualquer e mais tarde, um
efeito teratogénico. Não sei se já aconteceu qualquer coisa desse gênero, mas
parece possível.
Poderia ter sido possível, mas não aconteceu de facto. A pesquisa feita
por computador convencera Charlie. Os agentes teratogénicos não se mantêm
no corpo durante duas semanas; e se bem que, interferindo com diversos
órgãos da mãe, possam vir a causar malformações no feto, estas eram sempre
devidas a uma falha nutricional generalizada e facilmente identificáveis.
Quase não havia forma de imaginar o tipo de acontecimento que Doc sugeria
que podia acontecer. Quase.
Era uma daquelas referências que o computador em certas alturas
forneceria sem razão aparente. Tratava-se dum velho jornal do princípio dos
anos 70. Um laboratório de pesquisas em Inglaterra estivera a trabalhar com
um vírus que se julgava causar certos tipos de cancro. Chamava-se um
adenovírus e fixava-se sempre num certo local dos cromossomas humanos. A
razão por que se fixava só nesse local e como é que causava o cancro não
estava esclarecida. Mas existiam cancros do sistema nervoso e era admissível
que um vírus específico se pudesse fixar num local dum cromossoma humano
no esperma, ou num óvulo, e vir a causar um tumor no cérebro. Era uma boa
ideia, só que tais vírus não existiam.
— E que dizes a um vírus? — Perguntou Charlie.
— Isso é desleal — disse Lloyd a sorrir. — Falaste num agente químico,
não biológico.
Charlie estava furioso com as técnicas de debate utilizadas por Lloyd e
cansado do jogo.
— Está certo, mas consideremos agora os agentes a vírus.
Lloyd pensou por um momento.
— Bem, tenho de admitir que teoricamente é possível. Sabes que a
rubéola pode causar afecções nervosas específicas em fetos, mas para isso é
preciso que a mãe a contraia enquanto está grávida. Tem de atuar enquanto o
sistema nervoso se está a formar.
— Por outro lado — objetou Charlie uma mulher pode contrair sífilis e
transmiti-la ao feto dez anos depois, sem que para isso tenha tido de ser
infetada durante a gravidez.
— A sífilis é uma infecção por bactérias e tu falaste de infecções a vírus,
Charlie.
Este já não aguentava mais. Falava do seu filho que estava para nascer e
Lloyd brincava com as palavras. Perguntou:
— Lloyd, não academicamente, mas na realidade: achas que poderia
acontecer algo deste gênero?
Haenners ficou surpreendido com a entoação e respondeu:
— Não. Talvez pudesse em teoria, mas não na prática.
Charlie suspirou de alívio.
— Obrigado — murmurou e levantou-se para se ir embora.
— Se estás interessado em vírus que afetam a genética daqueles que
contaminam, podias assistir aos seminários no nosso laboratório, de vez em
quando — sugeriu Lloyd. — É uma das abordagens que estamos a encarar,
para o problema das influências malignas. Acho que é o Bill que fala hoje,
mas devias falar com a Beth, porque é ela a encarregada.
De regresso ao seu laboratório, Charlie afundou-se na cadeira. Não havia
bases para afirmar que o palpite de Doc estava certo, mas não se sentia tão
confiante como uma hora antes. Estava esgotado pelas dúvidas e pela
confusão das duas últimas semanas. Altos e baixos. Ora certo da segurança
da criança, ora temendo pela sua vida. Sentia-se como uma palha no ciclone,
esperando ser pousada em qualquer lugar desconhecido. Deprimido e ainda
inseguro da sua decisão, deu uma olhadela aos resultados da investigação por
computador, mas não viu nada que não tivesse já visto. Por fim voltou a
organizar o seu laboratório.
Trabalhou decididamente durante o princípio da tarde, esquecendo por
completo a sugestão de Lloyd para que assistisse aos seminários, até que Beth
irrompeu pelo laboratório e se atirou para uma cadeira.
— Aquele idiota vai pôr-me fora de mim! — Exclamou, com as faces
vermelhas de raiva.
Charlie virou-se para ela com interesse:
— E quem é o feliz mortal que conquistou a tua eterna gratidão?
Os olhos dela brilharam de irritação.
— Aquele louco do Bill Hebb!
— O investigador adjunto de Lloyd?
— O seu famoso adjunto — respondeu zangada. — Como é que
conseguiu doutorar-se é que eu não entendo. Aquele idiota tem métodos de
empregado de lavandaria! É incrível que tenha gasto uma hora e quinze
minutos a dizer-nos que parece que as coisas correram mal no mês passado.
Depois disto ainda descobri que pegou no meu frasco de soluto de fosfato e
que lhe deitou um tipo diferente de fosfato, sem mudar o rótulo e sem sequer
me avisar. Isto equivale a dizer que as minhas experiências da última semana
estão estragadas. Ainda mato aquele tipo, juro que o faço! — Pôs-se em pé e
começou a andar às voltas pelo laboratório, tentando acalmar-se.
— Já é tempo de te afastares do laboratório por um bocado — sugeriu
Charlie. — E que tal se fôssemos até ao café? Eu também estou a precisar
duma pausa.
— Ótimo — disse ela —, mas receio não ser boa companhia.
***
De regresso ao seu gabinete, Charlie caiu pesadamente na cadeira: as
emoções extenuavam-no. Cumprindo a promessa, Beth tinha sido má
companhia. Como Charlie lhe oferecera um ouvido atento, estivera a atacar
não só Bill, mas também Haenners, pela forma anárquica como dirigia o
laboratório; finalmente tinha atribuído a responsabilidade à influência
perniciosa que sobre ele Bill exercia sem que disso se apercebesse. Para
piorar ainda a situação, quando Charlie tomou a defesa de Lloyd, ela virou-se
contra ele.
Normalmente não se sentia afetado pelas críticas feitas à sua vida de
cientista, mas as opiniões de Beth pareceram-lhe mais importantes,
especialmente à luz da aversão que sentira por Lloyd aquando da sua
discussão. Além disso, sentia que Beth o atraía e a sua atitude agressiva feria-
o.
Compreendia que também Ann não gostara de Lloyd desde que o
conhecera; um segundo encontro só servira para confirmar essa impressão.
Charlie atribuíra o facto ao ciúme, porquanto, sendo um novo amigo, Ann
não estava tão à vontade para o compartilhar; mas, se a opinião de Beth
corroborava a de Ann, então já não sabia que pensar.
Charlie pegou na cópia da pesquisa literária que ele e Doc tinham feito.
Nenhum artigo de interesse se lhe deparara e isso, pelo menos, era um alívio.
Estava a folheá-la para uma última observação quando o telefone tocou.
— Olá, Charlie! Daqui é Doc. Estou atarefado aqui no consultório e por
isso decidi substituir a visita por um telefonema. Que descobriste?
Charlie pousou a cópia na secretária.
— Nada, Doc, absolutamente nada. Não há mutagénico nem
teratogénico, absolutamente nada suscetível de causar uma tal malformação.
Existe de facto uma doença genética rara que parece assemelhar-se àquilo de
que falamos, mas os fetos nasceram sempre vivos. Acho que aquilo que
vimos é apenas o resultado duma coincidência muito improvável e que isso é
tudo sobre o assunto. Assim, parece-me que Ann e eu vamos ter um bebé
normal e ótimo.
Doc parecia aborrecido.
— Bom, então aceito que tenham conversado e decidido que é isso que
querem; não foi o que fizeram?
Charlie hesitou por um momento.
— Bem, de facto não falámos sobre o assunto, mas tens de concordar
que não há nada a dizer, Doc! — Continuou a falar sem lhe dar oportunidade
de argumentar. — Olha, tiveste uma ideia e pensámos que estaria certa, foi
por isso que fizemos a pesquisa literária; mas, afinal, a resposta obtida prova
que a tua ideia está errada. Não pode realmente ser o que pensavas e por isso
não há qualquer razão para nos preocuparmos. Vale a pena preocupar-nos,
isso sim, com o efeito da tensão nervosa no desenvolvimento do feto. Isso
está bem documentado e não vale a pena expor a Ann a qualquer tensão
desnecessária, principalmente tendo sido tão difícil engravidar. Este miúdo
significa demasiado para nós e eu não quero desencadear a confusão. Não sei
se há alguma causa comum por detrás dos abortos naturais que tu descobriste;
mas, mesmo que haja, o que duvido, é improvável que eu e Ann tenhamos a
ver com ela. Além disso, ainda que tenhamos e se viermos a perder o feto,
sentir-nos-emos muito mais à vontade para tentarmos de novo do que se
provocarmos um aborto e verificarmos que o feto era normal.
Houve um momento de silêncio e Doc perguntou então;
— Acabaste?
A pergunta apanhou-o desprevenido e respondeu:
— Não creio que haja muito mais a dizer.
— Charlie, não acredito que estejas a ser tão burro como isso! O grande
Charlie Cotten a proteger a sua companheira dos perigos do mundo exterior.
Charlie, desculpa, parece-me que aparentemente não me fiz entender da
última vez que falei contigo, Ann vai ser informada. Sou o médico dela e o
teu e cabe-me a responsabilidade de velar para que ela saiba. Não acredito
que te julgues no direito de decidires por ela!
Charlie estava furioso e assustado. Não queria sequer pensar em dizer a
Ann, mas também não queria que Doc o fizesse. Tentou parecer calmo e
razoável.
— Doc, não estou a fazer de Deus, mas não ganhamos nada em falar
com ela. Sabes tão bem como eu que, no fim, ela apoiará a minha opinião,
porque não sabe nada sobre o assunto. Li todos os escritos e tu próprio viste
os resultados. Procurámos os efeitos mutagénicos e teratogénicos do LSD,
mutações que afetassem o sistema nervoso e até mutagénicos que
provocassem uma afecção especial! Não há nada semelhante, é o que temos a
dizer. Até falei com um dos «cérebros» daqui, que está a trabalhar em
técnicas de manipulação de genes, e não há nada desse gênero.
Doc falou em voz calma e forte:
— Houve outro ontem. Outro aborto e outro feto deformado. Podes vir
ter comigo e ver com os teus olhos, se quiseres. Está no consultório do Dave
Butler. Outra coincidência, Charlie? Que probabilidades há de o ser? Tu é
que és o cientista.
Charlie não soube o que dizer.
— Hoje é quinta-feira. Na segunda telefono à Ann. Se até lá não tiveres
falado com ela, falo eu.
Charlie olhou em silêncio o telefone e desligou-o sem responder. Virou-
se para a folha de computador que continha a prova de que o receio de Doc
era infundado. Por fim empurrou a cadeira para trás e saiu do laboratório.
***
Ao sair do metro em Harvard Square, Charlie foi assaltado pela
aglomeração louca daquela que se tornara a maior zona comercial de
Cambridge, além do lar de cinco mil estudantes. Evitando o caminho direto
para casa, subiu a Brattle Street, virando no beco pavimentado por trás da
Coop. Parou ao cimo dum lanço de escadas que descia para o Hungry Fox,
apercebendo-se de que o seu subconsciente o conduzira até ali. Dentro do
café vazio encontrou Kip a ler o jornal.
O cabelo loiro caído pelas costas e a túnica de algodão bordada davam a
Kip o ar do típico hippie. Quando eram estudantes universitários Charlie e ele
tinham estado metidos em organizações políticas e, apesar de já não se verem
há três anos, ainda se sentiam ligados.
— Que é que traz o Professor até este antro húmido, entre as nove e as
cinco? — Perguntou alegremente.
— Olá, Kip. Deixa-me sentar primeiro um pouco, certo?
— Certo. — Kip via que o rosto de Charlie indicava cansaço e tensão.
Tinham feito muitas noitadas juntos, planeando e organizando, e por isso
cada um deles lia no rosto do outro como num livro. — Parece que tens
passado um mau bocado.
Charlie estava sentado em silêncio e recusara as batatas fritas que lhe
tinha estendido.
— Kip, achas que o Doc se tem portado de forma mais autoritária e
rabugenta, no aspecto médico e profissional, desde que eu me fui embora?
Tem sido mais chato contigo ou coisa do gênero?
Kip sorriu.
— Não mudaste, Charlie, mas eu também não. Nada de subterfúgios.
Que há?
Charlie sorriu agradecido e compreendendo melhor a razão por que
procurara Kip para desabafar. Ele era a única pessoa com quem Charlie podia
falar aberta e honestamente, sem temer ser atacado ou depreciado. Mesmo
com Ann sentia que havia demasiado em jogo para deixar andar sem
objeções. Com Kip a relação era de tal forma livre que conseguiam evitar
uma atitude defensiva ou ofensiva em relação ao que o outro dizia.
— Não imaginas como estou bera com o Doc. Sinto que estragou a
nossa amizade com um golpe cruel, ao querer brincar aos deuses.
— Que aconteceu? — Perguntou Kip delicadamente.
— Oh meu Deus, Kip, é tudo tão confuso! Já ouviste falar num ácido
chamado Gloryhits?
— Claro que já e é um material de primeira. — Kip parecia atrapalhado.
— Há alguma coisa sobre isso, que eu desconheça?
— Há. Talvez seja um pesadelo. Raios, eu também não sei! —
Lentamente Charlie despejou a história; ao falar pela primeira vez do assunto
com outra pessoa sem ser Doc, apercebia-se de como estava preocupado. No
fim estava a tremer. — Estava convencido de que Doc andava «à nora», mas
agora já não estou tão certo.
— De facto pareces demasiado preocupado para quem pensa que não há
problema — concordou Kip.
— Que raio! E se ele tem razão?
— Charlie, não compreendo o problema. Tu não queres perder a criança,
e isso entendo, mas se Ann abortar naturalmente será assim tão diferente de
provocar um aborto?
Charlie abanou a cabeça.
— Isso estava muito certo, mas não para Doc. Ele acredita que a
gravidez pode chegar ao termo, mesmo com uma malformação, e isso é uma
realíssima treta, porque ele não possui quaisquer dados em que se apoiar,
nem a mínima razão, e no entanto admite essa possibilidade. Acho que
afirmou isso só para me forçar a um aborto provocado e é por isso que estou
tão bera com ele. Se todos os casos resultaram em abortos aos cinco meses, e
resultaram mesmo, a discussão dele não tem bases. Por isso sinto como se ele
tivesse dado o alarme para ficar conhecido. Por isso te perguntei se ele estava
mais autoritário. Não me parece coisa do Doc, inventar um facto só para
convencer o doente.
— Não, esse não é o gênero dele — concordou Kip. — Não mudou
assim tanto desde que te foste embora, nem sequer de maneira que eu desse
por isso.
— Mas então como pôde ter dito aquilo? — Insistiu Charlie. — Não há a
mínima razão para que ele pense daquela maneira. Ele diz que é um
pressentimento e isso não me parece muito científico...
— Não tens de concordar com ele, mas não o avalies mal. Não creio que
te esteja a mentir. Não é o gênero dele.
— Mas que hei de eu dizer a Ann? — Perguntou. — Ainda que o
argumento de Doc esteja mais furado que um passador, mesmo assim tenho
de lho apresentar?
Kip concordou penalizado.
— Faz o mesmo que fizeste comigo. Não foi disparatado e acho que Doc
não exigiria mais, — Kip agitou o gelo que se derretia rapidamente na
bebida. — Vai ser duro, Charlie, bestialmente duro. Não te invejo, mas não
culpes o Doc, não foi ele que tornou as coisas difíceis. Elas é que o são, de
facto.
Charlie não estava satisfeito.
— Não sei, mesmo assim ainda estou chateado com ele. Parecia tão
insensível ao facto e mostrou tanta pena como um açougueiro por um
novilho. Acho que por uns tempos o dispenso bem.
— E então no sábado? — Perguntou Kip.
— Oh, merda! — Lamentou-se. — Esqueci-me completamente disso.
Olha, Kip, sê um bom rapaz e pede desculpa por nós não comparecermos. Se
eu falar no assunto à Ann, nenhum de nós vai querer ir, se não tivermos ainda
falado, também não quero ver o Doc.
Kip acenou a cabeça em sinal de compreensão, mas acrescentou:
— Fazes mal em pôr o Doc de lado dessa maneira, mas é contigo. Dir-
lhes-ei que não te sentias bem e que não tinhas a certeza de poder ir. E quanto
a essa mulher com quem trabalhas?
— Beth? — Inquiriu Charlie. — Acho que Doc lhe dará boleia e
portanto deve ir. Sê agradável para ela, porque de todos nós o único que ela já
conhece é Doc.
— Está bem, Charlie.
Charlie olhou para o relógio e suspirou. Ann devia esperá-lo para jantar
dentro de pouco tempo e não lhe agradava nada pensar no serão.
Pressentindo a situação, Kip levantou-se.
Permite-me que me retire agora, Charlie. Tenho ainda de ensaiar alguns
números antes do espetáculo e quero fazê-lo antes de jantar. — Agarrou na
caixa da guitarra.
Charlie levantou-se e começou a avançar para a porta.
— Certo, Kip, acho que também tenho de ir.
— Esta noite dedico uma música ao teu filho. É para dar sorte — gritou
Kip.
Domingo, 23 de Agosto
Charlie fora para casa nessa noite temendo a inevitável confrontação;
mas, de qualquer maneira, ainda conseguiu passar essa noite, sábado e a
maior parte do domingo sem tocar no assunto. Finalmente, depois do jantar
de domingo foi impossível adiar por mais tempo, porque no dia seguinte Doc
telefonaria a Ann.
— Parece que de repente ficaste assustado — queixou-se ela. O jantar
fora bom e eles tinham-se alongado acerca dos planos sobre a casa e o
quintal. Agora, ali na sala comum, Charlie mantinha-se calado, sentado e
incapaz de começar a conversa. Ao ver que ele não respondia, Ann ficou
ainda mais séria. — Charlie, que há? Tens andado à deriva, perdido nesse
olhar ligeiramente infeliz, durante todo o fim de semana. Queres contar-me?
Charlie acenou com a cabeça, mas permaneceu sentado e em silêncio,
sem se virar para Ann.
Ann veio para o seu lado. Pondo um braço em volta dele, virou- -lhe
ternamente a cara para ele.
— Vá lá, Charlie, diz-me o que há.
Ele começou a falar num tom monocórdico.
— Doc tem uma ideia maluca e insistiu em que eu ta expusesse. Eu
estou convencido de que ele não tem razão, e mesmo que a tenha não há nada
a fazer, mesmo assim, temos de discutir o assunto, porque nos afeta a ambos.
— Charlie, a que é que te referes? — Na voz de Ann havia uma nota de
apreensão.
— Doc pensa que o nosso filho sofre de uma malformação, devido aos
Gloryhits que tomámos, e que vais abortar aos cinco meses. — Charlie
despejou a frase com raiva na voz. — Em qualquer dos casos, temos dois
meses negros para esperar o que aconteça ou o que provavelmente não
aconteça. — Sentou-se em silêncio por um momento e por fim virou-se para
ela. Ann estava chocada e as lágrimas começavam a aparecer. — Ann, peço-
te desculpa de te ter atirado com uma destas, assim. Há duas semanas que
ando a tentar puxar o assunto, simplesmente não fui capaz. Tenho a certeza
de que ele está enganado e não queria preocupar-te, acho que era isso. Doc
convenceu-me de que tu devias saber e partilhar na tomada de decisão.
— O bebé não, Charlie!... Oh, meu Deus, isso não! — As lágrimas
correram-lhe pela face. — Que nada lhe aconteça. Suportarei tudo menos
isso!
Charlie abraçou-a, embalando-a ternamente.
— É isso que estou a querer dizer-te. O que Doc pensa é impossível.
Não passa duma ideia maluca que ele teve não sei bem como e que atirou
para o ar. Por isso temos de tratar do caso e preocupar-nos, mas garanto-te
que não há nada de grave com o nosso filho.
Ela soluçava apoiada no ombro dele.
— Charlie, eu não suportaria um filho deformado... Já sabes, não sabes?
Não quero dar à luz um filho aleijado. Não seria capaz de tratar dele!
— Mas, Ann, estou a dizer-te que mesmo que esteja deformado, como
Doc diz, abortará naturalmente aos cinco meses. A malformação é mortal e o
feto só consegue atingir metade do tempo de gestação. Por isso, na pior das
hipóteses, perdê-lo-emos nessa altura. Mas não vai haver qualquer
deformidade. — Nesse momento Charlie compreendeu que nunca diria a Ann
que Doc pensava que o feto podia sobreviver.
Olhando em frente, ela teve um sorriso forçado e disse:
— Afinal de contas, daqui a dois anos e meio podemos recomeçar a
mesma história. É assim?
— Ann, não vai acontecer nada! Tens de acreditar em mim. Não haverá
bebé deformado, nem aborto, o que vai haver é um bebé normal e saudável.
Ao dizer-lhe isto quase gritava. Ela dirigiu-lhe uma expressão dura e
vazia.
— Está bem, mas agora diz-me de que se trata. Diz-me porque é que
Doc julga que vamos perder o nosso filho.
E, pela segunda vez em três dias, Charlie contou a mesma história,
omitindo desta vez a possibilidade de uma criança deformada sobreviver. Era
absurdo, dizia para consigo. Nem sequer tinha a certeza de que Doc
acreditasse nisso. Ele apenas o mencionara uma ou duas vezes.
Falou a Ann da malformação e da relação com pessoas que tinham
tomado os Gloryhits, da pesquisa de literatura pelo computador, de como
nada se tinha descoberto e acerca da sua conversa com Lloyd.
— Disseste ao Haenners? — Perguntou Ann com desalento.
— Não, não foi bem isso — explicou Charlie. — Falei com ele como se
se tratasse duma possibilidade teórica de que algo desse gênero acontecesse.
Ela não pareceu convencida.
— Parece-me que lhe disseste mesmo. Não achas que ele desconfiou que
não se tratava duma conversa casual? — Ann mostrava-se agora zangada.
— Por amor de Deus, Ann, já te disse que não. Aliás, até tomou a coisa
como se se tratasse dum debate superficial. Afinal, porque é que te mostras
sempre tão irritada com ele? Seria assim tão terrível se alguém mais
soubesse?
— Não gosto dele, está bem? — Gritou ela. — Será que tenho de gostar
de todos os malditos dos cientistas teus amigos, sem ligar ao facto de serem
repugnantes? Só não quero que ele se dirija a mim nalguma festa, piscando-
me o olho e dizendo: «Olá, ouvi dizer que você vai ter uma criança
deformada.»
Afastou-se de Charlie à beira de uma crise de histeria. Ele puxou-a para
si e carinhosamente encostou-lhe a cabeça ao seu ombro. Ali ficaram
sentados em silêncio, tentando ambos acalmar-se. Charlie desejava ser ele a
chorar e Ann a confortá-lo.
— Charlie, por favor, não digas nada a mais ninguém. — A sua voz era
suave, implorando. — Acho que consigo viver assim, esperando, dois meses,
mas não quero falar com mais ninguém sobre isto. Não quero chorar em
frente de ninguém, não quero ter de ser forte. Não quero, positivamente, falar
do assunto. Prometes?
— Claro que prometo. — Não mencionou a conversa com Kip. Isso
ainda a preocuparia mais. Silenciosamente, advertiu a sua memória de que
deveria dizer a Kip que não falasse em nada.
Docemente, esfregando a nuca de Ann, murmurou:
— Agora esperamos. Esperamos que o feto se mexa. Nenhum dos outros
deu pontapés ou se moveu sequer. Se se mexer, estamos salvos.
Mas dois meses, Charlie, dois meses que iam ser tão lindos agora vão ser
horríveis.
— Eu sei — murmurou ele e finalmente chorou pelo seu filho.
PARTE II
Setembro
Stanley Johnson olhava pela janela o pôr-do-sol de meados de Setembro.
Havia nas árvores e na frescura do ar como que uma sugestão de proximidade
do Outono. Mas as janelas hermeticamente fechadas, o ar condicionado e as
luzes fluorescentes não deixavam a atmosfera de Outono penetrar no seu
gabinete. Para Johnson, o pôr-do-sol servia apenas como indicativo da
chegada de outro serão caseiro, perdido. No gabinete exterior ouvia Carol, a
sua secretária, a escrever à máquina. «Pelo menos ela recebe horas
extraordinárias», pensou.
A zona de estacionamento estivera sempre cheia nas últimas semanas.
As horas extraordinárias estavam a tornar-se mais regra do que exceção, à
medida que o grande acontecimento começava a levantar fumaça. E com a
fumaça vinha a inevitável pressão oriunda do gabinete de Pearson, na
Military Intelligence. Era impossível falar a Pearson, ou melhor, com
Pearson! Era fácil falar-lhe, mas dele só saiam vagos avisos de que de certa
forma as coisas eram mais sérias do que Johnson pensava e que o Projeto
Vector era mais importante do que poderia imaginar. E isso não lhe agradava.
De certa forma, quando pensara pela primeira vez no projeto, ele não passava
de facto disso: um projeto. Mas, agora, parecia ser mais uma arma do que
outra coisa, uma arma que pelo menos Pearson parecia julgar ser necessária e
depressa. Mesmo a visita do dia seguinte era inesperada, visto que Pearson
telefonara naquela mesma manhã a marcá-la, em vez de esperar pela reunião
mensal. Dissera a Johnson o assunto específico de que iriam tratar nessa
reunião. Disse-lhe ainda que exerceria sobre ele maior pressão e que ficaria
nessa noite acordado até tarde trabalhando com um dos seus homens para
decidir qual seria a melhor orientação a dar à reunião do dia seguinte.
Atrás dele, Peter Stanker continuava a discutir.
— Mas por que diabo não dizes: «Olhe, não temos suficientes
informações para lhe fornecer cálculos exatos, mas estes são os nossos
melhores palpites.» Não podem esperar que façamos o impossível!
Ele era a única pessoa ligada ao projeto que poderia falar tão
asperamente a Johnson. Era dez anos mais velho que ele, parecia não ter
qualquer interesse em subir mais e, atendendo à idade e ao seu cadastro
banal, embora imprevisível, Johnson não sentia que ele representasse
qualquer ameaça.
— Pete, adorava dizer isso. Mas aqueles safados não são cientistas e não
percebem nada do assunto. Aquilo são meninos de «capa e espada» e, quando
dizem que querem saber o número de operações até à aniquilação total,
julgam que é como se dissessem: «Descubram se o Joe Shmoe anda a passar
segredos aos Russos.» Pensam que podemos sacar de uma experiência e
mandar o computador reproduzi-la dez ou vinte vezes, limpinha e pronta.
Stanker acenou a cabeça compreensivamente. Não era situação que se
invejasse e em parte por essa razão ele sentia-se feliz por estar numa situação
de subalternidade.
— E o que é que tinha se declarasses que a determinação desse número
exige estudos atualizados em seres humanos, com o vírus de botulino que,
nem sequer isolámos ainda? — Perguntou, sem insistir demasiado. — Não
achas que seria uma resposta razoável?
Johnson afastou-se da janela e sentou-se à secretária. Os montes de
papéis em cima desta pareciam dar razão ao seu sentimento de desamparo.
— Mas quem é que disse que eles são gente razoável? Acho que se
tivesse que lhes dizer que procurassem outra pessoa a quem perguntar,
alguém que lhes forjasse um número, para depois colher os louros de ter
apresentado uma resposta, e se é isso que eles vão fazer, então antes quero
fornecer-lhes um parecer científico. Acho que nós estamos na posição ideal
para o fazer. — Stanker concordou com relutância. — Não consigo sequer
imaginar onde é que eles iriam buscar outro palpite, mas acho que
encontrariam alguém. Tens razão, Stan, se é essa a alternativa, acho que lhes
podemos dar um belo cálculo. Só assim é que compreenderão que não
estamos cem por cento seguros dos dados. Johnson suspirou: — Só espero
que me ouçam quando lhes disser.
Juntos debruçaram-se atentamente sobre os escassos dados que
possuíam, anotando frequentemente onde tinham de calcular e onde
ocasionalmente tinham de adivinhar e era uma e trinta da manhã quando
Carol acabou de dactilografar as suas conclusões. Johnson saiu finalmente do
edifício às duas horas, desejando a meia hora de viagem até casa, durante a
qual esperava «desatar» os nós que sentia no estômago. Pearson insistira para
que a reunião fosse às oito e meia, por isso Johnson ia dormir muitíssimo
pouco.
Os nós desfizeram-se finalmente às três e trinta. Caiu num sono agitado.
— O major Pearson, senhor.
Johnson olhou para o relógio. Eram oito e trinta e um.
— Mande-o entrar, se faz favor, Carol — falou para o intercomunicador,
perguntando a si próprio se Carol se sentiria tão cansada quanto ele. Tendo
dormido apenas três horas e meia, viera de casa sem tomar o pequeno-almoço
e engolira no bar um donut e um café não havia ainda dez minutos. A cabeça
latejava; estava irritado pela falta de sono e o seu estômago também não
estava satisfeito com o donut.
Pearson parecia satisfeito como de costume, se é que se pudesse chamar
àquilo satisfeito. Tinha sempre no rosto um esgar que nunca se abria
completamente num sorriso. «De facto», pensou Johnson, «o tipo está sempre
na mesma todas as vezes que o vejo.» Johnson levantou-se e apertou a mão
de Pearson.
— Bom dia, major, muito prazer em vê-lo.
Sorriu para ver por curiosidade se Pearson correspondia. Por um
momento o semiesgar abriu-se numa coisa que não chegava a ser um sorriso
completo.
— Obrigado, major. Alegra-me que tenha podido dar-me novas tão cedo.
— Sem mais barulho, sentou-se e abriu a pasta. — Receio que esteja a tornar-
se muito importante para nós a obtenção duma noção de quantas operações
faltam ainda para obter os vossos vários mutadores de genes que levam à
extinção. Precisamos de saber se estamos a falar de armas de guerra ou de
máquinas infernais. — Ao largar esta piada sorriu e começou o tal
movimento constante de cruzar e descruzar as pernas.
Johnson retribuiu-lhe com um sorriso um pouco nervoso. Pela primeira
vez, Pearson referira-se ao vírus como uma arma.
— Bom, digamos que, em princípio, não se trata dum vírus infernal.
Mesmo que o enxertemos de forma a que nunca se tome num vírus
inofensivo, haverá sempre alguns que, por acaso, resistirão à gripe e até
haverá alguns que serão resistentes à toxina botulina. Além disso, não se
esqueça de que as armas apocalípticas destroem toda e qualquer vida
humana, enquanto neste caso podemos vacinar alguns contra a toxina.
— E os filhos e os filhos dos filhos desses? — Perguntou Pearson.
Johnson sentia-se parvo. Talvez por estar cansado, pareceu-lhe que a
pergunta era mais astuta do que as habitualmente feitas por Pearson.
Respondeu lentamente:
— Bem, acho que nunca encarei o assunto por esse lado, mas porque
não?
— Talvez porque isso implicaria que houvesse um número de
sobreviventes suficiente para manter uma tecnologia capaz de produzir
antitoxinas. Não acha? — Sugeriu Pearson.
— Acho que sim — concordou Johnson, que estava declaradamente na
defensiva. — Mas há obviamente uma série de elementos desconhecidos que
uma resposta deste tipo envolve. Parece, por exemplo, óbvio que o gene
botulino seria preterido em favor dos vírus vulgares.
Pearson parecia surpreendido.
— Isso é novo para mim. Porque é que não começamos por ai?
Recostou-se na cadeira com o bloco na mão.
Johnson soltou um suspiro de alívio. Hoje ele não iria maçá-lo muito e
sentia-se muito melhor a tratar de pontos que tinha preparado e nos quais
estava à vontade.
— A razão consiste no facto de ele matar a pessoa que infecta —
continuou a explicar. — Um dos grandes problemas é que, ironicamente, o
vírus tem uma atuação demasiado mortífera. Se bem que, obviamente, não
tenhamos experimentado o vírus da gripe em seres humanos, podemos fazer
extrapolações partindo das experiências realizadas em animais, no sentido de
que uma pessoa contaminada morreria logo que um número mínimo das suas
células fosse infetado, porque a toxina é muito poderosa. De facto, a vítima
típica morreria antes de ter começado a espalhar a infecção, o que anularia a
possibilidade duma epidemia. Em teoria, haveria um dia ou dois de intervalo
entre o início da infecção e a morte. Assim, as pessoas que seriam primeiro
contaminadas morreriam e mais nenhumas seriam infetadas. Tendo isso em
atenção, isolámos um mutante que tem uma toxina botulina menos ativa
(aliás, milhares de vezes menos ativa) e que servirá perfeitamente os nossos
intentos.
— E a antitoxina botulina é eficiente contra a toxina mutante? —
Inquiriu Pearson.
— Não tenho a certeza — gaguejou Johnson. — Só recentemente é que
isolámos o mutante e ainda não tivemos tempo de verificar isso.
Na verdade, ele não tinha era posto essa hipótese.
— E então, preparou alguma antitoxina para o mutante?
— Não, mas estamos a caminho. Mas leva tempo.
— Então, neste momento, não tem a certeza de ter uma antitoxina capaz
de atuar eficientemente contra o vírus se, digamos, lhe perdêssemos o
controlo?
— Bem, não estamos ainda na fase da gripe, estamos na da pesquisa de
bactérias. — Johnson sentiu-se de repente aliviado por assim ser. O facto de
não ter preparado a antitoxina era um grave descuido e a consequência da
rapidez com que estavam a trabalhar.
— Claro, tinha-me esquecido — comentou Pearson. Tomou nota no
bloco. — Tenho a certeza de que estão a trabalhar no assunto tão rapidamente
quanto possível. — E o tal esgar abriu-se de novo.
— Claro que estamos — mentiu Johnson. O comportamento de Pearson
era completamente diferente do que fora anteriormente. «É mais astuto do
que eu pensava», disse Johnson para consigo. — Contudo, o vírus de gripe
ideal, atendendo apenas à sobrevivência do vírus, é aquele que não afeta o
hospedeiro e por isso pode ser espalhado tão generalizadamente quanto
possível. A gripe botulina, independentemente de quão se possa restringir a
sua letalidade, será menos ativa ao ser difundida. Assim, com o tempo, será
ultrapassada em desenvolvimento por outras gripes preexistentes. É uma
regra estabelecida no padrão evolutivo — concluiu.
Pearson parecia convencido.
— Certo. Mas então assim não teremos, pelo menos, a última das
máquinas de apocalipse. Temos alguma coisa de semelhante, não é?
— Semelhante sim, razoavelmente semelhante — concordou Johnson.
— A questão consiste em saber que parte da população seria atingida pelo
vírus. Acho que poderemos dizer que a mortalidade ultrapassará os 99%
naqueles que forem contaminados, mas toda a gente será contaminada?
Normalmente, quando surge uma epidemia de gripe, de l0% a l6% ou l7%
apanham-na. Possivelmente os índices mais baixos referem-se a gripes
vulgares, de tipo já conhecido, às quais as pessoas tinham criado resistências
desde os últimos surtos. Podemos provocar uma mutação na gripe que baste
para que o sistema de imunização, seja de quem for, o não reconheça. De
facto, até já o fizemos. Experimentá-lo numas duas centenas de voluntários
do exército e todos apanharam a gripe; portanto, sob esse aspecto, sabemos
que resulta.
— Bem, pelo menos esses sobreviveriam ao «bicharoco» infernal, agora
que estão imunizados, não é? — Disse Pearson, sorrindo.
— Acho que, de facto, aqueles foram os primeiros a ser imunizados,
razão por que tomámos precauções no sentido de que não o transmitissem a
mais ninguém — concordou Johnson. — Teoricamente, poderíam espalhar
uma epidemia e nesse caso toda a gente ganharia resistências, por isso foram
mantidos de quarentena, o que excedeu de longe o período considerado
necessário.
— Então porque é que não haveria um índice de mortalidade de 99 %?
— Perguntou Pearson.
— Bom, isso envolve todo um conceito de epidemiologia. Sempre que
um governo se vê a braços com uma epidemia, começa a restringir as
deslocações e a colocar de quarentena as áreas e as pessoas que estão
contaminadas. A real eficácia destas formas de atuação ainda não é
conhecida. Além disso, sempre que existe uma percentagem de 30% a 60%
de mortes, há problemas sanitários que começam a escapar-nos. Ninguém
quer mexer em cadáveres que ainda podem estar infetados. E, numa grande
cidade, como é que se garante a alimentação depois da quarentena? E quem
manterá a funcionar a eletricidade, o gás e a água? É um problema ainda sem
resposta. Por tudo isto, só poderemos falar de parte da população duma
cidade, que morreria ao ser apanhada de surpresa pelo vírus. Por isso acho
que poderemos dizer que com o vírus botulino simples obteremos 90% a 95%
de mortalidade. — Johnson deixou por dizer uma série de «ses» que,
atendendo à agressividade que Pearson demonstrava, iriam arranjar grandes
complicações.
— E espalhar-se-ia de cidade em cidade tão rapidamente como uma
epidemia de gripe? — Inquiriu Pearson.
— Sim — concordou Johnson —, a não ser nos casos em que as
deslocações fossem restringidas e iniciados processos de quarentena.
Pearson escrevinhava furiosamente no seu bloco, acenando com a
cabeça ora para Johnson, ora para si próprio — não estava esclarecido.
Acabando de tomar as suas notas, disse lentamente:
— Então, o vírus botulino simples teria um número quase infinito de
passagens até à extinção, salvo se se utilizasse a seleção natural?
— Se é assim que define «passagens até à extinção», respondo-lhe que
sim. Penso que a expressão pode ter várias definições.
— Que quer dizer? — Perguntou Pearson, perfeitamente confuso e
levantando os olhos das suas notas.
— Bom, a expressão «passagens até à extinção» está diretamente ligada
aos genes mutadores. Lembra-se que, quando lhe falei pela primeira vez no
projeto, lhe disse que um dos maiores problemas ainda presentes era o de que
a gripe sofre uma mutação de tantos em tantos anos e por isso mesmo as
pessoas imunes à botulina estariam sujeitas a ela alguns anos mais tarde,
quando o vírus tivesse sofrido uma pequena mutação. Teríamos de nos
assegurar que o vírus se extinguiria antes que isso acontecesse.
»A solução em que ficámos foi a de adicionar um gene mutador
anteposto a um gene de toxina botulina. Os genes-M foram descobertos nos
anos 50, no milho. Mais recentemente, encontraram-se em elevado número,
através de grupos de plantas e de animais e finalmente em bactérias. Os genes
mutadores provenientes de bactérias atuam aparentemente utilizando a
separação do cromossoma de um pequeno segmento contíguo de ADN.
Acontece assim que tudo o que está situado depois do gene mutador se perde.
Enxertando um gene mutador à frente de um gene de toxina botulina, causar-
se-á eventualmente a supressão do gene da toxina. Conseguimos obter genes
mutadores que separarão o ADN numa frequência que vai de uma em cada
dez divisões de células até uma em cada cem mil. No primeiro caso, sempre
que o vírus se reproduziu, haveria uma hipótese em dez de se perder o gene
da toxina. Assim, depois de dez replicações, apenas um terço dos vírus seria
ainda infeccioso.
— Isso dá a entender que não desapareceriam ainda assim muito
rapidamente — objetou Pearson.
— Esquece-se de quantas vezes o vírus se replica num só indivíduo —
explicou Johnson. — Se o vírus tiver de passar por trinta replicações antes
que a vítima desate a contagiar outras pessoas, apenas 4% dos vírus ainda
terão genes da toxina botulina e só morreriam 4 % dos indivíduos infectados
pela vítima.
Pearson parecia ainda confuso:
— Então como é que se extingue?
Johnson dirigiu-se ao quadro.
— Digamos que partimos de um número de cem indivíduos
contaminados pela gripe botulina. Todos eles morrerão. Digamos agora que
cada um deles contagia cinco pessoas, teremos assim quinhentos indivíduos
contagiados, mas lembre-se que, desses, apenas 4% estão contaminados com
a gripe botulina, já que o gene mutador desativou os restantes; assim, só vinte
apanharão a gripe botulina. Continuando. Os quinhentos infetarão dois mil e
quinhentos, dos quais vinte com gripe botulina infetarão cem. Mas
novamente apenas 4% apanharão uma gripe que não sofreu mutação; e assim,
desta vez, apenas quatro em dois mil e quinhentos apanham a gripe botulina.
Em seguida, os dois mil e quinhentos contaminarão cerca de doze mil
pessoas, mas os quatro portadores de gripe botulina infectarão apenas vinte e
destes apanharão de facto a gripe botulina só 4 %, ou seja, menos de uma
pessoa. «Passagens até à extinção» significa simplesmente o número de vezes
que o vírus é transmitido de um indivíduo para outro antes que haja menos
que uma pessoa a ser contaminada dum total de cem indivíduos infectados.
No nosso quadro exemplificativo, cem pessoas transmitiram-no a vinte, vinte
passaram-no a quatro e estas quatro contagiaram apenas quatro quintos, ou
seja, menos de uma pessoa; aqui, houve apenas três passagens até à extinção.
Resumindo, haveria apenas cento e vinte e cinco pessoas que morreriam, por
cada cem inicialmente contaminadas, e o vírus desaparece assim muito
rapidamente.
— Compreendo — disse Pearson lentamente, enquanto revia os números
que Johnson escrevera no quadro.
— O vírus simples, sem qualquer gene mutador, teria um número
infinito de passagens até à extinção, visto que quase não sofre qualquer
mutação — prosseguiu Johnson. — Ao defini-lo assim, não estamos a levar
em conta fatores como a seleção evolutiva de outros grupos de gripe. Por isso
é que disse que tudo depende da nossa definição. Acho que a nossa é a mais
restrita e prefiro pecar por excesso de precauções.
Pearson assentiu em sinal de concordância.
— Isso é sensato, mas voltemos às frequências. À medida que a
frequência das mutações diminui, o número de passagens até à extinção
aumenta, não é?
— Mais devagar — respondeu Johnson, enquanto se dirigia para o
quadro. — Se reparar no número de indivíduos que foram contaminados pelo
botulino de cada vez, verá que ele foi de cem para vinte e de quatro para
menos de um. Para se atingir a extinção tem de continuar a baixar o número
de pessoas contaminadas pelo botulino. Dai que, se 20% dos que foram
inicialmente infectados transmitiram os genes de botulino e cada um deles
transmitir o vírus a cinco ou mais pessoas, então os primeiros cem
contaminariam outros quinhentos. 20% destes, ou seja, cem indivíduos,
contrairiam o gene botulino.
Pearson continuava a acenar com a cabeça em sinal de assentimento,
enquanto anotava todos os números.
Johnson copiava os números dum bloco para o quadro.
Imaginando um número de trinta replicações numa pessoa, antes de
atingir a contagiosidade, e cinco pessoas contagiadas por cada pessoa, os
totais serão estes:
Dias de gestação 4 5 6 7 8 9
Percentagem de
deformações, ninhadas
pequenas
(«afetadas») 10 35 75 91 83 89
Percentagem de
deformações, ninhadas
grandes
(«não afetadas») 0 0 5 10 5 20
Percentagem de 4
controlos, deformados 0 0 0 0 0
»Aqueles 4%, nos de controlo foram devidos apenas a um feto. Não sei:
olhei-o e voltei a olhá-lo e era duvidoso, mas registei-o como deformado e
por isso aparece no quadro.
— E quanto aos não afetados? — Inquiriu Barbara. — Achas que é um
número verdadeiro?
— Ah, sim — respondeu Beth. — São os dez ao todo e é um número
demasiado elevado para ser casual.
Barbara fez uma anotação ao lado dos dados.
— Há mais uma coisa de que te deves lembrar — salientou Charlie —, é
que, nos dados de ninhadas afetadas, esses números não incluem os fetos que
possivelmente morreram e foram reabsorvidos. Se partirmos do princípio de
que esses também eram portadores de malformações, os números serão
devidamente mais elevados.
Barbara franziu o sobrolho.
— Parece-me que ao sétimo dia os números não poderíam ser muito
mais elevados.
Charlie acenou a cabeça.
— Acho que realmente no sétimo dia os números totalizados poderíam
estar próximo dos 100%.
Barbara olhou para os dados. Era a primeira vez que via tudo resumido e
esquematizado.
— Que pensam das ninhadas não afetadas e em que parece não ter
havido perdas de fetos? Há nessas algumas deformações?
Também desta vez não faziam ideia.
— Talvez — disse Charlie — venham a abortar numa fase mais
adiantada, a equivalente a cinco meses. Pensamos que o mesmo acontecerá
com os que estão deformados, no grupo dos afetados.
— Mas, fundamentalmente, temos de esperar para ver — concluiu Beth.
Barbara concordou.
— Mais alguns dias e devemos ter o que queríamos. Faltam doze dias
para o termo, não é?
— Certo — confirmou Charlie. — Da próxima terça-feira a oito dias.
— Parece-me que é tudo. Não é, Charlie? — Perguntou Beth.
— Que me lembre, é. Porque não revês tu agora os teus resultados,
Barbara?
— Ótimo. Não preciso do quadro. — Ela folheou alguns papéis. —
Quando falaram de fetos deformados vocês referiram-se sempre a esta
deformação específica, consistente no aumento de tamanho da cabeça. A
primeira coisa que quis saber é se haveria outras malformações que eu
pudesse detectar. Trabalhei, sobretudo, com fetos de oito a nove dias de
tempo, porque os outros são demasiado pequenos para que se faça alguma
coisa, mas também observei alguns dos mais pequenos. Resumindo: não
encontrei nada. Existia aqui e ali uma anormalidade, mas encontrei-a tanto
nos ratos de controlo como nos que foram submetidos a experiência, e numa
frequência semelhante à que se vê normalmente. Por isso, quando se fala de
anomalias causadas por este ácido ou pelo contaminante que ele contém, só
estamos a referir-nos ao aumento de tamanho da cabeça.
»O aumento é geralmente do tipo telencefálico: aumento da parte
anterior do cérebro. Dá a impressão de que duplicou todo o sistema de células
nervosas no telencéfalo. Dentro de dias, quando tivermos fetos maiores, vou
fazê-los observar mais pormenorizadamente por um neuranatomista, mas
resumidamente é disso que se trata.
Barbara sorriu.
— Bem, pouco mais há. Só deixei por dizer o que a deformação não é.
Não é nada de que já tivesse visto ou ouvido falar alguém meu conhecido.
Não é um tumor, não é um descontrolo geral de células, não é uma disfunção
dos neurônios. O telencéfalo apresenta os padrões normais de tipos de
células, de camadas e de divisões. Só que, por qualquer razão, há mais células
em cada camada do que deveria haver. Não sou um biologista especializado
em desenvolvimento, mas parece que todas as células se dividiram uma vez
extra, antes de pararem o desenvolvimento, se é que isto faz sentido. Até os
olhos são maiores.
— Os olhos? — Perguntou Beth. — Pensei que era só o telencéfalo.
— Isso é uma parte — explicou Charlie. — O olho é um alto da parte
posterior do cérebro que sobressai da face da cabeça. A visão não é como o
ouvido ou o olfato, em que as células periféricas enviam informações para o
cérebro; os olhos são de facto, uma parte do cérebro.
Beth encolheu os ombros.
— Certo.
Barbara voltou a sentar-se.
— E é tudo.
Durante um momento todos permaneceram sentados. Beth olhou para
Barbara e para Charlie.
— Parece sensato, ou não, continuarmos a atuar como até aqui? À luz
destes factos, haverá algo que tenhamos de modificar?
Foram interrompidos por uma pancada na porta. Bill Hebb espreitou.
— Olá, Charlie, a Beth está ai? — Olhou em volta e localizou-a. —
Estás ocupada? — Indagou.
Beth mostrou-se irritada.
— Estou!
Bill encolheu os ombros.
— Bom, quando acabares, podes ensinar-me a utilizar a capela de
escoamento vertical?
Barbara pareceu confusa.
— Uma capela de escoamento vertical?
Bill fez uma careta.
— Obrigam-nos a utilizá-la quando trabalhamos com estes vírus, se bem
que eles sejam inofensivos. — Ele estava obviamente aborrecido com tal
exigência.
— Trata-se de filtros — explicou Beth, ignorando por completo o
comentário de Bill. — Trabalhando dentro deles, asseguramo-nos de que
quaisquer vírus que saíssem dos frascos ou dos tubos de ensaio seriam
recapturados e não entrariam no ambiente.
Bill virou-se para a porta.
— Bom, eu estou no meu laboratório a trabalhar até tu estares livre. — E
começou a retirar-se.
— Espera aí! — Gritou Beth. — Que-vais fazer até lá?
Ele voltou a encolher os ombros.
— Vou começar a trabalhar nos vírus que a CRA me enviou. As células
estão a desenvolver-se bem.
Beth deu um salto na cadeira.
— Vais começar a trabalhar com os vírus em cima da bancada?
— Claro, e porque não?
Beth estava furiosa e, virando-se para Barbara e Charlie, disse — Vocês
continuem e acabem sem mim. Isto vai demorar, afirmo-lhes eu. —
Desalvorou porta fora, com Bill Hebb atrás.
Dirigiu-se ao laboratório do Tom Darnell, que ficava do outro lado do
átrio, e foi encontrá-lo sentado à secretária a escrever.
— Está na hora da conversa! — Disse-lhe, puxando uma cadeira para
junto da secretária.
Tom ficou surpreendido com o tom de Beth. Bill ficou em pé, a curta
distância deles.
— Que há? — Indagou Tom.
— Há que estou fula! — Retorquiu Beth. — Pensei que ias
superintender no trabalho do Bill, no que respeita àquela coisa do CRA.
— E vou — respondeu ele calmamente.
— E isso inclui deixá-lo trabalhar com o vírus em cima da bancada?
Tom virou-se para Bill.
— Pensei que ias utilizar a capela de escoamento vertical, de modo que
nenhum vírus extraviado pudesse passar para o ar. — Havia na frase um quê
de mordacidade.
Bill encolheu os ombros.
— Eu estava à espera que... Que Beth me demonstrasse como utilizá-la.
Tom olhou para Beth e ela explodiu:
— Mas ele ia servir-se da bancada até que eu tivesse tempo de lhe fazer
a demonstração!
Bill olhava para um e para outro, obviamente desinteressado da
discussão.
— Eu posso esperar, até que me possas demonstrar, se quiseres.
Beth ripostou:
— Se eu quiser?! Incrível, simplesmente incrível! Será que tens estado a
trabalhar, durante todo este tempo, no desenvolvimento de células, em cima
da bancada?
— Claro. Onde é que havia de estar? — Disse ele.
Ela olhou para Bill, que permanecia impassível perante a fúria dela.
— Quando tiver tempo venho buscar-te para veres como é. Não abras
nenhuma dessas cápsulas de vírus antes! Percebes?
Bill virou-se para sair.
— Sim, percebo — disse-lhe com ar trocista.
Beth esperou que ele saísse para se dirigir a Tom.
— Isto não pode continuar — declarou. — Sabias que ele estava a
trabalhar sem a segurança duma capela?
Tom respondeu cautelosamente:
— Sabia que ele estava a efetuar alguns trabalhos sem capela.
— Mas o que é que sabes acerca do tipo de células que ele está a
utilizar? Sabes que contêm alguns vírus ou plasmídeos? É realmente uma
estupidez utilizar essa espécie de células fora duma capela de segurança, sem
que primeiro se tenha passado horas a investigar o que elas de facto contêm!
— Então talvez devesses perguntar-me primeiro se as células tinham
sido testadas, antes de te atirares a mim dessa maneira — respondeu ele
calmamente.
Beth foi apanhada de surpresa.
— Queres dizer que foram testadas? Obedecendo a parâmetros que
Lloyd aprovaria? — Ela não queria apenas um atestado passado pelos da
indústria, que eram muitas vezes levados por razões diferentes das da
segurança pública.
— O que eu quero dizer é que, num laboratório civil, onde as pessoas
tentam manter-se de boas relações uns com os outros, seria sensato acertar
pontos sobre se há ou não problemas, antes de se lançarem num assalto em
larga escala. — Ele mostrava-se preocupado. — Todas estas experiências
foram discutidas com o Lloyd e ele deu a sua aprovação. Eu nunca pensaria
em agir doutra maneira.
Beth não sabia que dizer.
— Mas que dizes ao facto de o Bill trabalhar com o vírus sobre a
bancada e em espaço aberto? Tem paciência, mas isso é perigoso.
— É evidente que, se é perigoso ou não, isso depende da natureza do
vírus, mas concordo que ele não o devia fazer e já lhe disse que não o fizesse.
Agradeço teres-me chamado a atenção para essa divergência e daqui em
diante vou manter uma vigilância mais apertada sobre ele.
Falava num tom de porta-voz da administração.
Beth estava perplexa. Maldosamente perguntou:
— Quanto tempo mais ele vai ficar a trabalhar por cá?
— Provavelmente até meados de Março. É quando pensamos que ele
acabe o trabalho aqui.
Beth levantou-se e saiu, dizendo por cima do ombro:
— Quanto mais depressa melhor!
Charlie e Barbara iam a sair do laboratório, naquele momento. Ficaram
admirados com a sua explosão.
— Grrr! — Murmurou ela. — As coisas, ali, estão a atingir o ponto de
ruptura.
— Parece-me que não percebi bem aquilo — disse Charlie. — Vais
connosco lá abaixo tomar café?
— Vou com vocês, mas acho que preciso mais dum sedativo do que dum
café — respondeu Beth. Enquanto desciam, explicou o que se tinha passado.
— Parece que estás a deixar preocupada toda a gente por lá. Eu pensei
que o Darnell era um tipo sensato — disse Charlie.
— Também eu — respondeu Beth. — Mas parece-me que ele está a pôr
os seus vínculos de confraria acima da segurança pública.
— Pensei que havia normas muito rígidas, para esse tipo de pesquisas —
insinuou Barbara.
— E há — confirmou Beth. — Mas não são formas de atuação
compulsivas. Os cientistas são todos boa gente, não têm de ser controlados,
sabes? Nunca poderíam fazer alguma coisa de errado.
Charlie objetou:
— Ora vamos, isso não é verdade. Há uma constante pressão e vigilância
para obrigar à submissão, tal como tu fizeste agora. E, se bem que não haja
sanções pela não obediência, há uma comissão permanente que investiga as
queixas, se se tiver de chegar a esse extremo.
— Certo — concordou Beth. — Mas, durante todo este tempo, acho que
a comissão não fez absolutamente nada.
— O que significa que não houve queixas — insistiu Charlie.
— O que não quer dizer mais nada além de que os cientistas não cortam
na casaca uns dos outros.
— Talvez — concedeu Charlie.
Sábado, 19 de Dezembro
Ralph Masco estava deitado de lado e passeava lentamente um dedo pela
parte de trás das coxas dela. Ela enroscou-se, chegando-se para ele.
— Faz cócegas.
Ele puxou-a para si e beijou-a. Duas horas antes ainda ela era uma
estranha que vira no elevador do prédio. Mudara-se para o apartamento vago
no andar de baixo havia duas semanas, e assim é que ele gostava. Ela devia
estar nos vinte e muitos, o seu corpo era quase perfeito e tinha aprendido
muito durante a vida.
Percorrendo-lhe a espinha com um dedo ela perguntou: — Tens por ai
alguma droga?
— De que é que querias? — Indagou.
— Só uma erva suave.
— Espera ai.
Ele levantou-se e foi descalço até ao compartimento ao lado. Um minuto
depois surgiu com um saquito cheio de erva e um cachimbo. Ela sentou-se na
cama, de pernas cruzadas. Fumaram durante algum tempo em silêncio.
— Mmmmm... — Ela sorriu preguiçosamente. — Isto é mesmo bom.
Tive receio de trazer alguma comigo no avião e, desde que aqui cheguei, não
tinha conseguido encontrar nada.
Ele entregou-lhe o saco.
— É teu.
— A sério?!
— Considera isso uma oferta da casa.
Ela inclinou-se e pendurou-se-lhe ao pescoço.
— Obrigada.
Fumaram mais um pouco e voltaram a fazer amor.
— Este é realmente um bom fim de semana — disse ela. — Destes tive
poucos em Norfolk.
Ralph riu-se.
— Acredito.
Ela contornou com o dedo o traço da cicatriz.
— Como é que fizeste isto?
— Com uma garrafa partida — respondeu-lhe.
Ela estremeceu e imagens de brigas de rua percorreram-lhe o espírito.
— Já foi há muito tempo — disse ele.
— Sabes onde é que eu poderia arranjar algum ácido? — Perguntou-lhe
ela.
Ele sorriu e respondeu:
— Acho que arranjaste uma boa fonte, onde poderás obter o que
precisares.
— A sério? — Perguntou ela a sorrir. — Que bom! — Aconchegou-se
mais a ele. — Lidas com grandes quantidades?
Ele enrolou uma perna à volta dela.
— O suficiente para me manter. Não sou ambicioso.
— Ótimo — respondeu a rapariga. — Não gosto de gente ambiciosa.
Pelo menos por dinheiro. — E riu-se com a piada. — Aposto que aquele tipo,
aqui há umas semanas, não te comprou muito. Não tinha ar disso.
Ele ficou atrapalhado.
— Qual tipo?
— Aquele... Quando é que foi? Faz hoje duas semanas. Foi mesmo... Foi
no sábado de manhã, já me lembro. Todo bem vestido, de casaco e gravata e
sapatos de cabedal preto, muito engraxados. Não tinha tipo de drogado.
Masco passou os dedos pela cicatriz, nervosamente.
— Não sei de quem é que estás a falar. Talvez fosse outra pessoa do
prédio e não eu.
Mas ela insistiu.
— Tenho a certeza, porque foi nessa altura que reparei como eras giro.
— Bom, voltemos atrás, está bem? Por onde é que tens andado? —
Perguntou.
Ela rolou, afastando-se dele.
— Tenho tentado imaginar quem seria aquele tipo. — Franziu o
sobrolho, aborrecida.
— Esquece isso! — Gritou-lhe. — Não era ninguém. E isso não
interessa para nada.
— Bom, escusas de gritar! — Lamentou-se ela.
Ele sorriu.
— Tens razão. Desculpa. — E puxou-a de novo para ele. — Vais ver
como vai ser bom.
Ela voltou a escapar-se.
— Não, enquanto não me disseres quem era ele. Agora quero saber. Era
um chui ou coisa do gênero?
Ele saltou da cama.
— Desampara-me a loja, está bem? O gajo não era ninguém e, se é
assim tão importante para ti, vai mas é à procura dele. Não quero falar dele.
— Começou a andar em volta do quarto.
Ela levantou-se da cama, aproximou-se, enrolou-se nele e disse
ternamente:
— Anda cá. Eu não tenho nada com isso. Era apenas por curiosidade.
Ele acariciou-lhe o cabelo.
— Bem, esquece isso, de uma vez para sempre. Foi realmente um mau
bocado. Quem me dera nunca o ter conhecido.
Puxou-o de novo para a cama.
Não muito longe, os gravadores giravam em silêncio.
Segunda-feira, 21 de Dezembro
O telefone arrancou Charlie a um sonho desagradável. Olhou para o
relógio. Eram duas da manhã. «Um final típico duma segunda-feira», pensou.
Estendendo o braço às escuras, encontrou o telefone e arrastou o auscultador
até ele.
— Está?
— És tu, Charlie?
— Sou. Quem fala?
— Sou eu, o Kip. Estou em Nova Iorque. Estás acordado?
Charlie atirou o pé para fora da cama e sentou-se.
— Acho que sim. Estamos a meio da noite, sabias?
— Eu sei e peço-te desculpa, mas os músicos vivem a horas impróprias.
— Bom, que raio é que me queres? Se me telefonaste só para conversar,
mato-te.
— Encontrei-o.
— A quem?
— Ao Larry Seigal, Mario Caletti. Aqui chama-se Ralph Masco.
— Agarraste-o?
— Tenho um amigo que o conhece. Tem de ser o mesmo tipo. A
descrição assenta-lhe que nem uma luva, incluindo o pormenor da cicatriz em
W. E, para culminar, mudou-se para cá por volta de 1 de Junho.
Charlie estava agora bem acordado.
— Apanho o primeiro comboio da manhã. Poderemos falar com ele?
— Acalma-te. O meu amigo trabalha. Podemos ir falar com ele à noite.
Está cá às cinco.
— Onde?
— Quarenta e quatro West End. Apartamento A.
Lá estarei.
Sexta-feira, 25 de Dezembro
Chuviscava em Washington no Natal. Ao fim da tarde, Pearson voltou
ao escritório, tentando estabelecer em que ponto se encontrava no assunto
Gabardine. A agente destinada a Ralph Masco, portara-se excepcionalmente
bem. Estava maravilhado com as habilidades dela. Ali, no último momento
possível, ela conseguira a confissão. Pegou na transcrição. «Foi realmente um
mau bocado. Quem me dera nunca o ter conhecido.» Que é que ele tinha a
ver com aquele passador de droga? Meu Deus, se ao menos ele lhe tivesse
posto microfones, ou coisa assim. Será que o Gabardine tem algo a ver com
esta história do ácido? Pôs o gravador a girar pela décima vez.
«— Já lá vou, já lá vou. Quem é?»
(Ininteligível.)
«— Olá, Tommy, entra, Quem são os teus amigos?
»— Olá, Ralph. Este é o Charlie e o Kip, que acho que já conheces.
»— Claro. Como estão?
»— Bem... Ralph. E tu?
»— Oh, cá vamos. Tens andado afastado da cidade, ultimamente. Acho
que não te punha a vista em cima desde há um tempo.
»— Não. Desde Junho.
»— Bem, acho que o defeito é da cidade, pá. Adoro isto aqui.
»— Parece que estás aqui muito bem instalado.
»— Está bestial. Mexo-me o suficiente para me manter vivo.
»— Bom, sentimos a tua falta em Boston, sabes? Toda a gente lá ainda
se lembra daqueles Gloryhits que levaste. Gostariam de mais, se tu tivesses
alguma coisa.
»— Ah, sim? Eu não gostei muito deles. Algumas pessoas a quem os dei
também me disseram que eram demasiado rápidos e por isso desisti deles.
»— Verdade?
»— Isso foi chato, porque também os queriam em Providence.
»— Oh, sim? Também os queriam em Providence?
»— E em Middletown e em New Haven...
»— Mas afinal o que é isto?
»— Queríamos o ácido. É tudo. Foi uma pena teres saído da cidade
naquela altura. Podias ter feito uma fortuna com ele.
»— Sim, talvez devesse ter ficado. Nunca fui grande comerciante. Só
assim se explica que viva neste apartamento.
»— Tens ouvido falar da Sally Carter ultimamente?
»— De quem?
»— Da Sally Carter, de New Haven. Não te lembras? Aquela que teve
um aborto pouco antes de tu teres desaparecido da cidade.
»— Ah, sim, já me lembro. Não nunca mais ouvi falar dela. Eu mal a
conhecia. Era só «bom dia», «boa tarde».
»— Mas tu levaste a coisa a peito, quando ela perdeu o miúdo.
»— Sim, bem, aquilo foi mesmo um raio duma sorte!
»— Sorte?
»— Sim, tê-lo perdido.
»— Acho que sabes tão bem como nós que não se tratou de sorte.
»— Oh, Tommy, que é que se passa aqui com os teus amigos? Não se
dará o caso de estarem a atuar em nome de alguém?
»— Ralph, eles querem saber qual a proveniência dos Gloryhits.
— Eles desconfiam que foi devido a eles que Sally e outras mulheres
perderam os filhos. E sabem que tu também já suspeitavas. Ninguém está a
culpar-te, só queremos saber donde veio o ácido.
»— Oh Tommy deixa-te disso, já lá vai um ano. Um gato-pingado
qualquer apareceu por ai com um ácido barato e eu comprei-lho.
»— Quem mais lhe comprou?
»— Valha-me Deus, sei lá! Havia lá uma porrada de gajos. Sei lá quem
comprou e quem não comprou.
»— Como é que se chamava o tipo que o vendeu?
»— Merda, pá! Não consigo lembrar-me duma coisa dessas!
»— Ralph, para lá com isso. Tu mostraste-me aquele teu livro onde
anotas cada compra e venda que fazes.
»— Pois, mas esse não está lá.
»— Porra!
»— Não, pá, é verdade. Eu mostro-te... Olha, vê por ti. Cá está:
Dezembro, um tal Blotter. Janeiro, um Chuckles; Fevereiro, nada. Nada
mesmo. Nem sequer anotei as vendas. Vês? Nada em Boston. Nada em New
Haven. Não consta simplesmente do livro.
»— Porquê?!
»— Sei lá. Distrai-me. Esqueci-me... Palavra que me esqueci mesmo.
Olha, pá, não sei onde é que o arranjei! Não me lixes, ’tá bem?
»— Por amor de Deus, Ralph, tens estampado na cara a palavra
mentiroso. Nunca te vi assim! Quem é que queres proteger? Será que estás a
dar cobertura a um ácido perigoso? Assim, podes acabar mal e depressa.
»— Deixem-se disso, ’tá bem? A pele é minha. Não posso dizer-lhes.
Podem espancar-me, mas eu não posso dizer-lhes.
»— Referes-te à Mafia?
»— Sim, é a Mafia... Porra, não é. Sei lá quem são; só conheço um
contacto. Olhem, eu vou tentar pôr-me em contacto com eles, certo? Vou
tentar saber o que é que aquilo continha. Talvez eles saibam e me digam.
Dêem-me uma semana. Eu vou ver o que é que descubro. Mas é tudo. Se me
disserem que não, não vos direi nada.
»— O que é que estás a pensar?
»— Não serve de nada espremerem-me!
»— Bem, voltaremos então dentro de uma semana.
»— Estarás aqui?
»— O que é que esperam que vos diga? Que não? Não vou esconder-me
de vocês.
»— Certo.
»— Desculpe ter de ser assim, Ralph, mas é que se tratava mesmo de
ácido muito perigoso.
»— Eu sei, pá, eu sei. Acham que me mudei para aqui para me divertir?
Nunca mais quis ouvir falar daquela merda.»
Pearson desligou o gravador. Tinha as mãos suadas. Boston, New
Haven, Middletown: três das cidades que tinham sido detectadas pela
pesquisa. Seria que o ácido causava abortos? Os investigadores tinham já
observado esse ponto e não tinham encontrado nada de tão óbvio. Porquê
especialmente aquele lote? E qual seria a ligação de Gabardine ou Jim Karl
com tudo aquilo? Tinha em frente do nariz uma interpretação óbvia, mas que
lhe iria estragar o Natal.
Segunda-feira, 28 de Dezembro
1
Ann e Charlie tiveram um lindo Natal, cheio de neve. Esperavam Disney
dentro de cinco semanas e cada vez lhes era mais difícil acreditar que pudesse
haver algo de mal com o seu filho. Ou talvez se esforçassem cada vez mais
para não acreditar. De qualquer forma a ideia estava bem longe deles e as seis
semanas seguintes pareciam-lhes maravilhosas. Disney dava pontapés e socos
e rebolava-se dum lado para o outro. Por vezes batia dentro de Ann a ritmo
staccato. Com estetoscópios que Charlie pedira emprestados, ficavam
deitados escutando os fortes e bem definidos batimentos do coração. Iam ter
um bebé.
Na segunda-feira, Kip e Charlie viajaram até Nova Iorque, esperando
saber algo sobre o ácido. Larry Seigal, aliás Ralph Masco, ultrapassara o
prazo de uma semana para descobrir qualquer coisa. Nem Kip, nem Charlie
sabiam o que fariam precisamente se ele não tivesse nada a dizer.
Quando lá chegaram, não havia sinais dele. Estavam no átrio à espera
que ele regressasse quando apareceu uma mulher muito atraente e no fim da
casa dos vinte.
— Olá! Que desejam?
— Andamos à procura de Ralph Masco. Sabe se ele está por aqui? —
Kip estava admirado. Era a primeira vez que alguém em Nova Iorque se
prestava a ajudá-lo.
— Acho que não tem cá estado, nos últimos dias. Pensei que tivesse ido
passar o Natal fora. Vocês são amigos dele?
— Mais ou menos — arriscou Charlie. — Ele anda a tentar encontrar-
nos uma coisa.
Ela sorriu.
— Compreendo.
Charlie pensou que ela se estava a referir à droga.
— Quer deixar algum recado? — Indagou. — Eu vê-lo-ei quando voltar.
— Não, deixe lá — rematou Kip. — Nós passamos por cá daqui a uns
dias.
Ela encolheu os ombros.
— Certo. Até qualquer dia.
Já de volta, no elevador, Charlie inquiriu:
— Que pensam disto?
Kip manteve-se calado até chegarem lá abaixo.
— Acho que devíamos voltar para a semana.
Charlie insistiu:
— Onde é que pensas que ele possa estar?
Kip respondeu-lhe:
— Olha, o cientista és tu, faz tu as previsões. Eu, como sou músico,
limito-me ao acompanhamento. Talvez tenha ido passar o Natal a qualquer
lado, ou talvez se tenha sumido. Daqui por uma semana saberemos.
— E que é feito do teu amigo Tommy? — Indagou Charlie. — Não
achas que ele pode saber qualquer coisa?
— Desse sei eu que foi passar o Natal fora. Disse-me na semana passada
que iria. — Kip dirigiu-se para a entrada do metro. — Queres procurar o
Greene?
— O quê?
— Bom, temos o número da caixa postal, talvez conseguíssemos saber
quem a alugou.
O sorriso no rosto de Kip mostrava bem o prazer que ele sentia em
ultrapassar Charlie. Este riu-se e deu-lhe uma palmada nas costas.
— Conduz tu a dança, Sherlock.
Kip cravou vinte cêntimos a Charlie e parou numa cabina. Depois de
uma curta discussão com a telefonista, conduziu Charlie para a estação de
metro.
— Circular em Nova Iorque é uma arte — disse, enquanto tiravam um
passe local. — Só duas mudanças e em vinte minutos estamos lá. — Entre
saltos e encontrões abriram caminho pelo metro de Nova Iorque, emergindo
finalmente para a luz vinte e cinco minutos mais tarde. — Perdemos o
comboio. Por isso é que demorámos mais cinco minutos — explicou Kip.
O homem que estava ao balcão era uma caricatura de um empregado de
correios — pequenino, gorducho e de óculos a escorregarem do nariz.
— Vêm apresentar alguma queixa desta gente? — Indagou, deitando um
olhar a um monte de impressos em branco.
— Oh, não! — Respondeu Charlie. — Só queria falar com eles.
— Mandaram dinheiro e nunca mais chegou? — Perguntou. — Isso é
uma fraude e temos inspetores que se encarregam de vigiar isso. Geralmente
trata-se de engano ou de atraso no preenchimento dos impressos, mas por
vezes é mesmo fraude descarada.
— Ah, sim — respondeu Charlie.
— Então é disso que se trata? — Repetiu o funcionário. — Para isso há
um impresso especial.
— Não, não. Só queríamos falar com eles.
— Partiu-se, hem? Ou nunca chegou a funcionar? Com eles tudo é de
esperar.
— Não — Charlie insistiu —, não lhes comprámos nada. Eles andam a
recolher... — Kip deu-lhe um grande pontapé no tornozelo. — Eles andam a
recolher informações sobre uma coisa e gostaríamos de saber quais os
resultados que obtiveram. — A voz ia-lhe saindo arrastada.
O funcionário olhava-o, abanou a cabeça e voltou a ocupar-se dos
impressos.
— Bom, se só querem saber quem é que alugou, há para aqui um
impresso para isso.
— Podíamos dar-lhe só o número da caixa postal — sugeriu Charlie. —
E o senhor não podia procurar!
— Procurar? — Perguntou o funcionário. Resfolegou e disse: — Com
que então procurar, hem? Meu filho, isto é o United States Post Office. —
Apontou a Charlie um lápis com borracha. — Lidamos com milhões de
papéis por dia. Adoramo-los. — Por fim enfiou pela abertura do guichet um
impresso. — Aqui têm. Sim, senhor, adoramo-los e não perdemos a
oportunidade de obter mais um. Quer ir à casa de banho?
Charlie estava baralhado.
— Não.
— Ah, ah! — Gritou o indivíduo triunfantemente. — Isso é a única coisa
para que não têm de preencher impressos. — Riu à socapa e estendeu um
impresso. — Se o enviar daqui, nem tem de pôr selo.
Charlie continuava baralhado.
— Mas não posso limitar-me a dar-lho e o senhor preenche-o ao fim?
O funcionário abanou a cabeça e olhou para Kip.
— O seu parceiro é de compreensão lenta?
— Ele não é de cá — explicou Kip. — Quanto tempo é que isto vai
demorar?
— Uma semana, dez dias — respondeu o funcionário. — Só que ainda
estamos a trabalhar em coisas do Natal e portanto talvez vá até duas semanas.
— Olhou para a morada do remetente. Era a de Doc. — Boston, hem? Talvez
se extravie.
— O quê? — Gritou Charlie.
— Foi uma piada. — Sorriu, e desceu o letreiro de Encerrado e,
virando-se para uma mulher que estava atrás deles disse: — Já fechei, dirija-
se ao guichet ao lado.
Charlie e Kip deixaram a mulher a gritar ao guichet vazio. Kip começou
a rir à gargalhada.
— Charlie, acabas de assistir a um espetáculo raro.
— Referes-te ao funcionário semilouco?
— Não. Bem-disposto, o que é realmente um caso raro.
— Ele era doido — insistiu Charlie.
Kip continuou a rir.
— Bem, talvez. Os padrões de sanidade em Nova Iorque são um pouco
inferiores aos de qualquer outro lado. — Conduziu novamente Charlie até ao
metro. — Não fiques desesperado. Pelo menos preenchemos o impresso. Em
breve teremos a informação.
— Perda de tempo — murmurou Charlie. — Completa perda de tempo.
Mas Kip discordou.
— Pelo menos preenchemos o impresso para localizar o Greene. Isso há
de revelar qualquer coisa. Trouxemos pouca sorte ao Masco, mas pelo menos
conhecemos alguém que parece controlá-lo.
— Só que sabe Deus onde poderemos encontrá-lo. — Charlie sentia-se
deprimido.
— Que parvo! — Repreendeu-o Kip. — No doze K.
— Hã?
— No doze K. Ela abriu a porta e entrou enquanto estávamos à espera do
elevador. Para cientista não és lá muito observador. — Kip estava em ótima
forma.
— Em Nova Iorque parece que desabrochas — comentou Charlie em
tom bem-humorado pela esperteza de Kip.
Foram de metro até Pelham Bay Parkway, a conversar sobre a cidade e o
seu ambiente. Chegaram finalmente ao carro e regressaram a Boston. Não
tinham ainda viajado cinco minutos quando Charlie murmurou qualquer coisa
para consigo, desviou o carro para a berma e entrou numa bomba de gasolina.
— O carro? — Perguntou Kip apreensivo. Nunca pensara que o velho
Volvo ainda andasse e muito menos que não caísse aos bocados.
— Não. A minha cabeça — respondeu Charlie e saiu do carro. — Tinha
prometido ao Doc telefonar, logo que encontrássemos algo. — Dirigiu-se a
uma cabina. Remexeu os trocos e ligou para o consultório de Doc.
— Consultório do Dr. Blake. — Era Sharon, a secretária.
— Olá, Sharon, daqui fala o Charlie Cotten. É uma chamada interurbana.
Posso falar com o Doc?
— Bem, ele está acompanhado — disse ela. — Vou ver se demora
muito. — Deixou-o à espera enquanto Charlie ia tirando mais moedas do
bolso.
— Olá Charlie? — Era o Doc.
— Sou eu. Olá. É uma interurbana, por isso vou ser rápido. O Ralph
Masco não estava. Uma mulher que o conhece diz que ele tem estado fora há
tempo, ela pensa que terá ido passar o Natal a casa, ou coisa do gênero. Por
isso e por agora é um beco sem saída. O Kip e eu vamos tentar novamente
para a semana. Preenchemos também um impresso para sabermos o nome e
morada do proprietário da caixa postal do Greene, o que nos deve dar uma
pista. Mas isso vai levar umas semanas até que o correio de andamento ao
raio do impresso, por isso também por ai estamos num impasse.
— Parece que não foi uma viagem muito proveitosa — comentou Doc.
— Realmente, não — concordou Charlie —, se bem que tenha
contribuído para me levantar o moral. Acho que pelo menos tenho a sensação
de que estamos a esforçar-nos mais, agora.
— Talvez. Olha lá, falaste com a Beth?
— Desde ontem, não. Porquê?
— Ela telefonou por volta do meio-dia. Quer falar contigo, não me disse
de quê. Parecia muito misteriosa. De qualquer forma, ela disse que ficaria no
teu laboratório até conseguir contactar contigo, por isso talvez devesses
telefonar-lhe para lá.
— Certo. Talvez a Ann e eu apareçamos por ai esta noite. Ela tem
andado a queixar-se de que nunca te vê.
— Eu estou em casa.
— Ótimo. Falo contigo depois. — Desligou e marcou o número da
telefonista, pedindo-lhe uma chamada a pagar no seu laboratório. Beth
respondeu e aceitou a chamada.
— Olá, Charlie. Tenho estado a tentar contactar contigo. — Ela parecia
nervosa.
— Eu sei. Acabei de falar com o Doc e ele disse-me que te telefonasse.
Que há?
Ela fez uma pausa antes de responder.
— Quanto tempo demoras a chegar ao laboratório? — Perguntou.
— Cinco ou seis horas — disse. — Mal acabei de sair de Nova Iorque. É
mais provável que demore cinco, porque vou evitar o trânsito desviando por
New Haven.
Ele ouviu-a inspirar fundo.
— Charlie, alguns dos ratos drogados deram hoje à luz.
— E então?
— E alguns deles eram deformados.
— Charlie gelou.
— Mortos?
— Não. Parecem absolutamente saudáveis.
— Estão a mamar e tudo?
— Charlie, estão a portar-se de forma perfeitamente normal!
— Quantos são?
— Não sei. Três. Não, quatro; dois numa ninhada e um em cada, de
outras duas.
— Ninhadas de que tamanho? — As perguntas pareciam surgir
naturalmente e ele ia escutando impassível.
— Dois eram duma ninhada normal, eram doze ao todo. Mas as que
tinham só um, eles eram os únicos da ninhada. Charlie, eu ainda não disse a
ninguém, nem sequer ao Doc!
Ele tentou controlar os seus pensamentos desenfreados.
— Olha — sugeriu por fim porque é que não vais para casa? Eu vou
buscar-te quando ai chegar e podemos ir os dois ao laboratório. Não serve de
nada ficares aí.
— Não — murmurou. — Não posso. Tenho de ver se eles sobrevivem,
ou se nascem mais. Fico aqui no laboratório.
— Beth, estás a estourar contigo!
— Por amor de Deus, Charlie, não discutas. Vemo-nos quando voltares.
— E desligou.
Charlie ficou ali com o auscultador na mão, como se esperasse que algo
acontecesse. Por fim desligou e esfregou a cara, tentando afastar a confusão.
Mas sem resultado. Um minuto depois levantou-se e dirigiu-se para o carro.
— Sem dizer palavra, entrou e pô-lo a trabalhar.
— Que aconteceu? — Perguntou Kip.
— Nada — respondeu Charlie sem inflexão. — Falei ao Doc do dia de
hoje. — Concentrou-se na autoestrada.
— Charlie! Pareces semimorto. Que é que aconteceu?
Ele abanou a cabeça.
— Deve ser do cansaço do dia.
— Queres que eu conduza? — Perguntou Kip apreensivo. Charlie não
estava obviamente em si.
Charlie encolheu os ombros e encostou à berma.
— E porque não? — Disse, chegando-se para o lado para dar lugar a
Kip. De novo a caminho, Charlie deixou-se mergulhar na sonolência,
tentando desesperadamente fugir à realidade.
2
Peter Alder olhava em silêncio enquanto Greene andava para cá e para lá
na pequena sala. A televisão continuava a berrar, enquanto transmitiam um
jogo de hóquei sem qualquer interesse. «Ao fim de quarenta anos», pensou,
«ainda utilizamos os jogos de basebol e o barulho de torneiras como meios de
defesa contra os bisbilhoteiros.»
Greene virou-se para ele em ar de desafio.
— Já te disse que é demasiado perigoso para continuarmos! Talvez se
possa continuar noutras cidades, mas temos de desistir de Boston. E esse
serviço de entregas também não me está a agradar. Isso dá-lhes a
possibilidade de nos encontrarem o rasto, possibilidade que não deve existir.
Alder, se isto soa, os reflexos serão a nível mundial!
Alder puxou dum cigarro, calmamente. Desde que tinham começado a
chegar os resultados de Boston que ele esperava uma coisa do gênero. E as
coisas ainda tinham piorado quando Patterson levou a coisa até ao fim. Olhou
Greene intensamente, tentando determinar com precisão qual a sua
disposição.
Greene, se te acalmares pode ser que consigamos pensar numa solução
que seja satisfatória para ambos. Mas só se te controlares! Senta-te.
«Repercussões.» Meu Deus, tens cá um jeito para minimizar! Duvido que o
nosso governo tenha algo mais do que uma pálida ideia daquilo que estamos
a fazer e não confiamos no exército para mais do que um palpite, com medo
das fugas. Já estivemos em terrenos mais apertados do que este e não é agora
que vamos entrar em pânico.
Greene deixou-se cair na cadeira.
— Não estou em pânico, certo? No fundo, o que eu acho é que devias
aliviar-me desses indivíduos que andam em cima de mim.
— Temos pessoas a trabalhar nisso. Se elas não tivessem estragado o
arranjinho, o problema já tinha desaparecido. Tínhamos um agente a tentar a
afastar da cena o bom do Dr. Blake, mas estragou tudo.
»Não te conto isto para ter alguém com quem partilhar os meus
problemas, mas para te fazer notar que precisamos de ti em Boston. Não só
porque nos estás a recolher os fetos e isso já seria razão suficiente, mas neste
momento és um dos melhores elos de ligação com o que aqueles safados
estão a fazer.
— Bom, continuo a pensar que foi uma estupidez utilizar gente ao acaso.
— Fez um gesto largo indicando, pela janela, Manhattan. — Teria sido muito
mais fácil tê-lo experimentado nos nossos.
Alder suspirou. Em breve deixaria de dizer fosse o que fosse a Greene.
— Dizes que devíamos ter experimentado nos nossos. Porquê? —
Perguntou.
Greene pareceu embaraçado.
— Porquê? Porque podemos confiar neles, evidentemente!
— Confiar neles, em quê?
— Em que não badalem o assunto.
— Qual assunto? — As perguntas iam saindo monotonamente.
— O dos abortos. Nem sequer se viria a saber das malformações.
Alder abanou a cabeça.
— Pensas realmente que poderíamos encontrar mulheres de confiança,
dispostas a trazer dentro delas um filho durante três a cinco meses, sabendo
de antemão que iriam perdê-lo?
Greene espetou o queixo.
— Penso! Pelo seu país, estariam dispostas. A nossa gente está bem
treinada. — Corou de irritação. — Mas em vez disso fomos experimentá-lo
nestes hippies... Na América, nada menos! Melhor fora nas selvas da
América do Sul!
Alder olhava-o com ar sombrio.
— Mas se utilizássemos a nossa gente e eles soubessem (era essa a nossa
sugestão), que aconteceria se as gravidezes chegassem a termo?
— Queres dizer, se a experiência falhasse?
Alder inclinou-se na cadeira.
— Não. Se tivesse êxito.
Greene parecia não entender.
— Não te compreendo.
— Eu sei — disse Alder, recostando-se na cadeira — e isso deve-se ao
facto de eu estar aqui e tu lá fora. Por isso não sabes o que se passa! —
Voltou a inclinar-se para a frente. — Repito: os abortos são falhanços! O que
nós pretendemos é que nasçam vivos, e isso é apenas o começo. Como é que
conseguirias manter essas crianças em segredo durante os próximos dez
anos? Como é que impedirias as pessoas de dizerem que um elevado número
dos nossos colaboradores tinham crianças levemente, mas permanentemente,
deformadas? Não, nunca poderia ser alguém que estivesse em contacto
connosco. Porque, mesmo que a princípio o não notassem, seria visto e
virtualmente compreendido.
»E porquê os drogados? Porquê na América? Porque temos agentes aqui,
milhares deles, que poderíam exercer vigilância sobre essas crianças, fossem
elas para onde fossem. E temos pessoas como tu, que podem recolher os fetos
provenientes dos abortos. Nem sequer temos de saber quem tomou o ácido.
Saberemos os resultados quando os virmos. Mas, e mais importante que tudo
isso, quem suspeitaria? Um grupo de drogados que têm abortos espontâneos
ou descendência defeituosa — quem é que procuraria outra explicação?
«Drogas perigosas», diriam. «Que lhes fique de emenda.» E pronto, não se
falava mais nisso.
— Só que — murmurou Greene — não foi o que eles disseram e não se
sabe como isto acabará. Eu estou lixado, se volto a Boston!
Alder pouso o cigarro no cinzeiro e olhou pela janela.
— Já chegámos até aqui; iremos até ao fim. — Voltou-se e encarou
Greene. — Só precisamos de mais um mês. Consegue-nos isso e mantém-nos
afastados de nós, enquanto desmantelamos a máquina; depois podemos
desaparecer todos com o vento. — Sentou-se em silêncio, pensando por uns
momentos e aguardando a resposta de Greene. Como ela não surgisse,
continuou: — Greene, ouve lá. Temos setenta e cinco pessoas metidas neste
projeto, das quais apenas três conhecem todo o plano. Este número não pode
ser nem será aumentado, mas posso dizer-te isto: primeiro, tal como já te
disse, estes abortos são falhanços, mas já os esperávamos. Pudemos observá-
los em experiências anteriores com ratos e macacos. O teu trabalho consiste
em obter-nos esses fetos humanos, para que os comparemos com os dos
animais. É de importância vital para o projeto que estabeleçamos esta relação.
Por isso temos dez pessoas a trabalhar no nosso laboratório de Jérsia,
analisando cada um que tu trazes. E sem eles não podemos saber se
conseguimos ou não. Mas posso prometer-te que se descobrirmos que resulta
nas pessoas, da mesma maneira que nos ratos e nos macacos, então — e só
então — começaremos a utilizá-lo no nosso povo.
3
Charlie chegou ao laboratório por volta das oito, naquela noite, e
telefonou a Ann dizendo que chegaria tarde. Beth estava perturbadíssima.
— O Fred telefonou pouco depois de ti.
— A dizer o quê?
— Os obstetras da cidade receberam hoje uma carta do Greene.
— A dizer o quê?
— A dizer: «Obrigado, a experiência acabou.»
— Queres dizer que ele acabou? — Exclamou Charlie. — Nem sequer
vem buscar os fetos que foram recolhidos?
— Pediu às pessoas que mandassem os que tivessem para a caixa postal,
assegurando-lhes que seriam reembolsados de todas as despesas de envio. E é
tudo. O Doc ficou muito preocupado com isto.
Charlie deambulou furiosamente pelo laboratório.
— Bom, realmente hoje foi um dia em cheio!
— Ele disse que tinhas uma pista qualquer sobre o paradeiro de Greene.
— Oh, merda. Preenchemos um raio dum impresso, para ver se
descobríamos quem alugou a caixa postal e qual o endereço dessa pessoa.
Mas isso vai levar duas semanas. O sacana tinha a informação num ficheiro
mesmo por trás dele, mas insistiu na merda das formalidades. Por isso temos
de ficar sentados, à espera.
— Bom, desde que telefonaste nasceu mais um. Agora temos cinco e
todos são que nem um pero. Queres vê-los?
Charlie hesitou.
— Está bem. Mostra lá.
Ela levou-o ao compartimento onde estavam os animais em prateleiras
de gaiolas. Quatro das etiquetas tinham um grande X a vermelho. Ela tirou-as
e pô-las em cima da mesa.
— Estes são os novos duma ninhada de tamanho normal — disse.
Charlie limitou-se a acenar a cabeça. Por fim inclinou-se e olhou para dentro
de uma das gaiolas. Beth retirou o gradeamento de metal, que constituía a
parte superior. Era uma ninhada normal, os pequenitos lutavam
desesperadamente para alcançar as tetas. A mãe olhou preguiçosamente para
Charlie e voltou a deitar a cabeça. Ele não conseguiu distinguir os
deformados.
Beth pegou na mãe pelo rabo e sacudiu levemente para a separar dos
filhos.
— São sempre os últimos a despegar-se — murmurou. Por fim, dois
deles soltaram-se e Charlie pôde ver claramente as enormes cabeças. Sentiu-
se agoniado. Pousando a rata, Beth puxou-lhe uma cadeira. Senta-te — disse
ela. — A mim aconteceu-me o mesmo. — Voltou a tapar a gaiola. — Os
deformados são todos assim. São que nem um pero.
Charlie cruzou os braços em cima da mesa e deitou a cabeça sobre eles.
Parecia-lhe um pesadelo. Sem levantar a cabeça, perguntou:
— Mas porque é que estão vivos?
Beth limitou-se a abanar a cabeça.
— Têm um raio duma saúde, Charlie! Pensei que podiam morrer a
qualquer momento, mas agora estão tão saudáveis. Por vezes observei-os
durante meia hora. Conseguem sempre uma teta. São mais fortes que os
outros.
Houve um tremor na voz de Charlie.
— E agora?
Sentamo-nos e esperamos, penso eu. Tenho observado de meia em meia
hora, a ver se há mais, a ver se há mortos. Acho que não precisamos de ficar
os dois, mas esta noite não vou conseguir dormir, já sei.
— Não — disse Charlie. — Eu fico também. Vou telefonar à Ann.
Levantou-se para ir telefonar.
— Charlie, vais dizer-lhe?
Ele estacou de repente. Virou-se para ela e disse:
— Ainda não.
Beth concordou com um sinal de cabeça e sem argumentar. Agradecido
por essa atitude, ele voltou-se e encaminhou-se para o seu gabinete. «É como
uma ‘viagem’ provocada pela droga», pensou. «O corpo continua a funcionar
bem enquanto o espirito se revolta por não compreender o que se está a
passar.» A sua mão pegou no telefone e marcou os números, a sua boca deu
uma desculpa qualquer a Ann, mas o, seu espirito gritava de dor e confusão.
Desligou o telefone e afundou-se na cadeira. Beth entrou e, sem dizer uma
palavra, sentou-se na outra cadeira. Durante a noite mais dois nasceram,
vivos e sãos. De manhã eram sete ratitos saudáveis e deformados. A luz do
dia veio emprestar um toque de realidade aos acontecimentos daquela noite.
No snack, enquanto tomavam café, passaram em revista os resultados.
— Sabes uma coisa? — Disse Beth. — Todos nasceram um dia mais
cedo.
— O quê? — Estavam ambos semiadormecidos.
— Bom, olha — insistiu Beth, virando para ele o diário. — Não
esperamos mais ninhadas senão lá para qualquer momento de hoje. Os de
ontem nasceram um dia mais cedo.
Charlie encolheu os ombros.
— Nascem muitas vezes um dia mais cedo. Vinte por cento das vezes,
creio eu.
— Sim, acho que tens razão — murmurou Beth.
Mas na quarta-feira ficou bem claro que não tinha. Ao todo havia doze
ratos deformados, vivos, agora com dois dias e todos prosperavam. E todos
eles tinham nascido um dia mais cedo. As outras ninhadas nascidas de tempo
eram compostas por ratos normais
Barbara Waterper, que não sabia nada de Ann e Disney, estava
confundida ao vê-los tão deprimidos.
— Pessoalmente não vejo porque é que vocês hão de estar tão infelizes
ou porque é que pensam que os resultados não são esclarecedores. —
Percorreu com o dedo o diário. — Agora sabemos duas coisas. Primeira,
quinze por cento dos ratitos nascidos de ratas a quem o ácido foi
administrado são deformados, mas saudáveis. Segunda, a presença dum ratito
deformado, numa ninhada, implica que a ninhada tivesse nascido um dia mais
cedo.
— Mas e os seres humanos? — Indagou Charlie.
— Oh — disse ela. — Tens razão. Tinha-me esquecido que há seres
humanos que tomaram a droga. Isso significa que podem existir mulheres que
tragam em si fetos vivos e deformados. Acho que isso é possível. — A ideia
não lhe agradou. — Isso seria realmente trágico.
Charlie não conseguia aceitar. Levantou-se e saiu do escritório.
— Diz-lhe! — Gritou para Beth ao deixar o laboratório.
Vagueou pelo átrio, tentando em vão desatar os nós que sentia no
estômago. Em qualquer sítio um frasco caiu e partiu-se, o que voltou a pôr-
lhe os nervos em pé. Havia alguém que estava a divertir-se. Caminhou até ao
repuxo e bebeu um golo de água, sem vontade. Sentia-se à beira do colapso.
Ainda não dissera a Ann, a Doc ou a quem quer que fosse. Beth mantivera o
segredo. Vagueando pelo átrio, entrou no laboratório de Lloyd Haenners. Bill
estava a limpar um estardalhaço no chão e ainda se viam vidros partidos.
Charlie sorriu.
— Perdeu uma experiência? — Perguntou.
Bill pareceu levemente contrariado.
— Estes frascos são tão escorregadios, escapam-se-nos das mãos!
Levantou-se e passou uma esponja por água no lavatório, depois deixou-
a de novo cair ao chão. Passou-a pelo chão com o pé, apanhando o resto do
desastre. Curvou-se, apanhou-a e passou-a novamente por água. — Era quase
metade do meu stock de vírus. A sorte foi ter dois frascos.
— Foi mesmo sorte — disse Charlie. Aquele Hebb havia de ser sempre
o mesmo. Sentindo-se um pouco melhor, regressou ao seu gabinete.
Barbara veio ter com ele e pegou-lhe na mão.
— Charlie, desculpa. Eu nem imaginava.
Charlie sorriu levemente.
— Estamos todos a tentar adaptar-nos à ideia. Mas não espalhes.
Já não doía; por agora estava dormente. Virando-se para Beth comentou:
— O Bill acabou de perder metade do stock dos vírus. Foi o frasco que
ouviste estilhaçar-se.
Beth empalideceu.
— Onde é que ele o partiu? — Perguntou avidamente.
— No laboratório dele — respondeu Charlie. — Estava a limpá-lo com
uma esponja... — E de repente também ele foi atingido pela noção do que
tinha acontecido. Seguiu Beth, que saia do laboratório, e gritou: — O safado
acabou de os deitar pelo cano!
Quando chegaram ao laboratório de Bill, deram com a água fria aberta
com a máxima força e correndo pelo cano abaixo.
— Grande idiota! — Gritou Beth. Ela tivera esperança que ele os tivesse
ali deitado e deixado ficar. Muitos teriam sido apanhados. Agora não havia
nada a fazer. Olhou para Bill que tinha um ar confuso. — Seu grande
estúpido!
PARTE III
Sexta-feira, 1 de Janeiro
A véspera de Ano Novo chegou sem que qualquer festejo tivesse sido
planeado. Kip estava fora da cidade, a dar um grande concerto, e Warren e
Justine ainda não tinham regressado da visita que tinham ido fazer aos pais
dela em Vermont. Ann telefonou por fim a Doc e pediu-lhe que ele e Beth
fossem passar o serão com eles. Entre os dois, conseguiram arrastar Beth e
Charlie para fora do laboratório.
Foi um serão pacato. Ann esperava o bebé para dai a cinco semanas.
Tinha os pés suficientemente inchados para que se lhe tornasse penoso estar
de pé por muito tempo e já se cansava facilmente. Mas sentia-se
fundamentalmente bem-disposta e feliz pelo seu «estado». Disney
pontapeava furiosamente e ela estava convencida que até tinha nódoas negras
dentro dela.
Foi uma noite estranhamente pacífica. Tinham concordado em não trazer
à baila o assunto do Greene ou do Bill Hebb, ou das experiências com os
ratos ou o que quer que fosse relacionado com eles. Fazia lembrar a Charlie o
tempo, que lhe parecia ir muito distante, em que a vida era mais simples.
Mas na sexta-feira, 1.° de Janeiro, Beth e Charlie voltaram ao
laboratório. A experiência com os ratos terminara por uns dias e uma nova
série de ratos já lá estavam prontos para ser usados na repetição da
experiência. Beth estava sentada na cadeira de Charlie, quando ele chegou.
Quando ele entrou, ela fez rodar a cadeira.
— Tu é que ficas com a cadeira das visitas — disse ela. — Eu estou
demasiado espapaçada para me levantar.
Charlie deixou-se cair na cadeira.
— Quanto tempo é que conseguiste dormir?
— Pouco — queixou-se. — O Fred estava excitadíssimo por causa da
carta.
— Carta? Que carta? — Indagou Charlie.
— Ele não te disse? Ontem perdeu a cabeça e mandou uma carta
registada ao Greene, ao cuidado da caixa postal, dizendo que se não fosse
contactado dentro da data que estipulava, moveria imediatamente uma ação
judicial. Eu li-a antes dele a enviar. Estava cheia de fraseado legalista. Ele
tinha pedido a um amigo advogado que lhe arranjasse o vocabulário correto.
Acho que agora espera ter quaisquer notícias.
Charlie estava impressionado.
— Talvez receba. Só Deus sabe, tudo o mais falhou. Ele está mesmo
disposto a apresentar queixa se nada acontecer?
Beth encolheu os ombros.
— Ele não tem a certeza. Isso iria trazer à luz tudo e poderia ser
complicado em termos quer de publicidade, quer de legalidade, visto que a
posse do ácido é ilegal. Penso que ele também te quer falar sobre isso.
Charlie aquiesceu.
— Talvez devêssemos sentar-nos e falar calmamente do assunto esta
semana. Esperemos não ter de enveredar por esse caminho, mas não estou
grandemente impressionado com a colaboração do Greene. — Bocejou. —
Também não dormi lá muito — admitiu.
— E que há acerca daquele derramamento? — Perguntou. — Há
novidades?
— Não muitas — respondeu Beth. — O Tom está fora uma semana, a
fazer esqui, e ninguém sabe onde. Tentámos contactar com a Crop Research
Associates, mas parece que nunca lá está ninguém. Talvez toda aquela
maldita gente tenha ido de férias.
— Falaste acerca disso com o Lloyd?
— Oh, o Lloyd é um burro! — Lamentou-se Beth. — Sim, falei com ele
e ele telefonou ao Bill e tiveram «uma longa conversa muito a sério»,
palavras textuais. Mas o Lloyd insiste em que não há nada a fazer até o Tom
voltar ou conseguirmos contactar a CRA. Sobretudo, diz ele que é demasiado
tarde para fazer algo e que de qualquer forma até talvez sejam inofensivos. —
Ela estava obviamente irritada com a reação de Tom.
— Afinal, que era aquilo? — Perguntou Charlie.
— Acreditas se te disser que o Lloyd não sabe? — Inquiriu Beth. — Ele
deixa o Bill fazer estas experiências sem saber de que tipo de células ou de
que vírus se trata! E o Bill também não sabe! É uma palhaçada autêntica.
Charlie estava espantado.
— Mas como pode ele trabalhar neles, sem saber do que se trata?
Beth explicou naturalmente.
— Enviam-lhe os nutrientes para as células e tudo, a única coisa de novo
é que ele está a tentar utilizar as nossas técnicas para introduzir o vírus nas
células e verificar depois se elas lá estão. Pelo que ele sabe, tanto podiam ser
células cancerosas como vírus de peste negra.
Charlie sorriu.
— A peste negra é uma bactéria, e tu sabe-lo.
— Eu sei — lamentou-se ela. — Pelo menos trata-se obviamente de
células de plantas e de vírus, mas de qualquer forma preocupo-me por pensar
que podem interferir nas células animais. Não faço ideia de que vírus se trata
ou se está contaminado com qualquer outra coisa. Há certas preparações de
vírus verdadeiramente nojentas.
Charlie concordou.
— Isso foi ventilado na segunda convenção de Asilomar- a importância
de se ter um stock de vírus, virgem, antes que se possa afrouxar os métodos
de vigilância. Estou admirado de o Lloyd ter reagido de forma tão calma.
— Oh, ele não reagiu calmamente. Ficou muito preocupado, como era
de esperar. Só que no fim não fez nada.
— Se bem que pouco havia que se pudesse fazer — fez notar Charlie.
— Para começar — insistiu Beth —, podia ter posto o Hebb fora do
laboratório!
— Olha lá, essa parece-me um pouco extremista! — Replicou Charlie
com um sorriso.
Ela lamentou-se:
— Charlie, não te atires a mim como o Lloyd. Há dois anos que o Bill
anda a lixar tudo aqui, sem se ralar nada com as consequências. E o Tom é
melhor. Pelo cuidado e atenção demonstradas, é evidente que não estava a
cumprir a sua função de vigiar o Bill. Quando será altura de dizer: «Basta!»?
O Bill não poderia fazer pior do que fez a semana passada.
Ele lançou a Beth um olhar enigmático.
— Queres investigar o vírus?
— Que queres dizer com isso?
Ele apontou para a sala ao lado e para os ratos que lá estavam,
aguardando a experiência com o ácido.
— Vá lá. Não precisamos de todos para o ácido. Vamos aplicar o vírus a
alguns deles e acasalá-los de seguida. Se o vírus sobreviver, poderemos
investigar o seu efeito nos fetos e nas mães. Não há um sítio onde os isolar de
maneira que estejam seguros?
Beth concordou com um sinal de cabeça.
— Lá em cima, no quarto andar, é onde guardam os animais com vírus
perigosos e infecções. Acho que não estão nem de longe cheios. Acabaram de
o construir no ano passado, por isso há espaço para se expandirem. — Ela
levantou-se da cadeira. — Anda, vamos verificar.
Uma hora mais tarde tinham feito a ronda das novas acomodações, com
o diretor, e estavam a mudar os animais lá para cima, juntamente com um
frasco de vírus. O diretor levava o seu trabalho a sério e manteve-se junto
deles enquanto administravam o vírus aos ratos, os mudavam para as suas
instalações e limpavam.
— Vocês não tinham o direito de contar comigo, aqui, hoje — disse ele
a brincar. — O dia de Ano Novo parece-me que é feriado, mas nunca
ninguém disse isso a estes animais.
Charlie riu-se.
— Bem, agradecemos muito a sua ajuda acompanhando-nos durante a
primeira vez que efetuámos esta operação. Há aqui muitos sítios em que se
poderia escorregar.
Ele concordou.
— Manter os vírus em recipiente não é tarefa fácil, e eu detestaria ver
alguns deles cá fora. É minha norma pessoal acompanhar toda a gente,
quando aqui vêm pela primeira vez. Já imaginaram o que aconteceria se
alguém, por negligência, deixasse alguns desses vírus escapar-se?
Domingo, 3 de Janeiro
Patterson olhou, pela janela do décimo terceiro andar, para o trânsito que
serpenteava por Manhattan.
— Não me agrada — disse. — Aqueles microfones parecem material
militar e, se o exército o tem sob vigilância, é porque andam atrás de alguma
coisa. — E deixou cair as fotografias em cima da mesa.
Alder pensou por um momento.
— Ele sabe que tem os microfones em casa?
— Claro que não! — Desabafou Patterson. — Nem sequer sabe dos
nossos microfones. E por falar nisso: eles ainda estão operacionais?
Alder confirmou.
— Mas isso não quer dizer que não tenham sido localizados. Não
desliguei nenhum dos deles, a não ser o do telefone, e esse parecerá que foi
por acidente.
Patterson afundou-se na cadeira.
— Por isso, quem quer que tenha colocado os outros microfones tem
provavelmente uma gravação da reunião com aqueles três tipos. Tommy,
Charlie e... Quem é o outro?
Alder esmagou o cigarro.
— Kip. O terceiro chamava-se Kip, sejam lá eles quem diabo forem.
Claro que, se os outros microfones já lá estavam, também registaram a
conversa. — Acendeu outro cigarro. — Sem falar na minha breve conversa
com ele.
— O que levanta a questão da tal mulher que perguntou por ti — fez
notar Patterson.
Alder concordou.
— Temos alguém a segui-la neste momento; tanto quanto podemos
dizer, é insuspeita. Mas não pressagia boa coisa. Surgiram de repente
demasiadas atenções concentradas nele. Em Washington também não estão
satisfeitos com isto. Não querem qualquer interferência do exército e estão a
exercer pressão no sentido de os manterem no desconhecimento de tudo isto.
Entretanto, querem que nós restabeleçamos a ordem por aqui.
Patterson franziu o sobrolho.
— Bom, parece que é melhor irmos a isso.
Terça-feira, 5 de Janeiro
Beth olhava tranquilamente o rosto de Tom durante a sua reação à
notícia do derramamento do vírus. Compreendeu, de súbito, que o Darnell era
uma pessoa mais complicada do que ela pensava. Num só momento pôde ver
várias emoções perpassar-lhe pelo rosto e regressar depois à sua expressão
calma habitual.
— Não posso crer que Bill seja assim tão estúpido. Que fizeram, acerca
disso?
Beth respondeu naturalmente;
— Oh, ele deitou-os pelo cano abaixo com muita água corrente, por isso
era simplesmente tarde de mais quando lá cheguei. Eu e Lloyd gritámos-lhe,
mas foi tudo. Claro que o Bill não entendia porque é que estávamos tão
preocupados com um vírus de milho.
Novamente as emoções voltaram a perpassar-lhe pelo rosto quando Tom
mencionou Lloyd.
— Como é que o Lloyd soube? — Indagou.
— Contei-lhe eu — disse Beth, desafiando-o a objetar.
— Bom — respondeu cautelosamente —, isso provavelmente era o
melhor que havia a fazer. Foi uma pena ele estar fora.
— Porquê? — Insistiu Beth. — Que é que ele teria feito?
Ele não ficou satisfeito com o repto e respondeu com uma evasiva;
— Não sei. Talvez o vigiasse mais de perto e o tivesse apanhado antes
dele ter deitado o vírus fora.
Beth encolheu os ombros. Tom arranjava sempre maneira de se furtar às
respostas.
— O ponto está em que tínhamos de o vigiar permanentemente. De que
serve uma coisa desse tipo?
Tom enrugou a testa.
— Bem sabes que não fui eu quem o escolheu. Mas o CRA está decidido
a ter alguém com muita experiência do laboratório de Lloyd a observar as
suas técnicas mais eficazes neste tipo de trabalho. Por mim, teria gostado
muito mais da nossa primeira escolha. — Sorriu para ela. — Já tomaste
alguma decisão desde a última vez que nos vimos?
Beth abanou a cabeça.
— Ainda estou à espera que me apareça algo por aqui. — Mas voltou ao
assunto. — Tom, que vírus é aquele que o Bill entornou?
— Não tenho a certeza do nome, mas é alguma coisa com que eles estão
a trabalhar na CRA.
— Vá lá, Tom, isso não me diz nada. Trata-se de um vírus de plantas,
perigoso? Tem algum ADN recombinado? De que é que se trata?
Mas Tom não se demoveu.
— Beth, garanto-te que desconheço os pormenores. Estas coisas estão
fechadas a sete chaves, como segredos industriais, e só informam as pessoas
que têm realmente necessidade de saber.
— E não achas que nós agora temos necessidade de saber? — Insistiu
ela.
— Talvez — disse ele —, talvez tenhamos. — Parecia estar a ponderar.
— Olha, eu vou a Iowa, provavelmente nesta quinta-feira, e nessa altura vou
tentar saber. Tenho a certeza de que conseguiremos a informação de que
precisamos.
— Vais lá já outra vez? — Perguntou Beth. — Não estiveste lá ainda há
poucas semanas?'
— Bom, as coisas estão num ponto giro; há muitas decisões de fundo a
tomar e eles gostariam de ouvir a minha opinião.
Beth desistiu.
— Certo, mas prometes que vais indagar sobre os vírus?
— Prometo.
— E também sobre o tipo de células.
Beth sorriu vagamente.
— Obrigada. Se vir o Bill entrar, queres que lhe diga que pretendes falar
com ele?
Tom franziu a testa.
— Não. Eu próprio o procurarei, senão aparece-me quando eu estiver a
meio de qualquer coisa e não possa falar-lhe. Faz sempre isso.
Ela atravessou o átrio, no intuito de ir falar com Charlie acerca da
relutância de Tom em discutir o incidente. Estava ele ao telefone quando ela
entrou. Ele levantou os olhos e apontou para uma cadeira. Parecia apreensivo.
— Patterson? — Perguntou ao telefone. — O mesmo? — Ela ouvia a
voz da pessoa que falava do outro lado do fio, mas não conseguia distinguir
as palavras. — Então, descobriste alguma coisa?... Não, isso era talvez o
melhor que havia a fazer. Está bem, depois falo contigo, quando voltares. A
Beth está sentada mesmo aqui. Olha lá, e que há sobre o teu amigo
Tommy?... E o doze K?.. Está bem, parece que fizeste o que pudeste.
Telefonas-me logo que chegares? Obrigado. Adeus.
Desligou o telefone e ficou a olhar para ele. Finalmente ergueu o olhar.
— Era o Kip — explicou. — Estava em Nova Iorque, à procura do
Ralph Masco.
— O passador? — Indagou Beth. — O tal que vendeu os Gloryhits?
— Sim — respondeu Charlie. — Morreu.
Beth ficou petrificada.
— Morreu? — Havia um toque de medo na sua voz. — Foi assassinado?
— Provavelmente — explicou Charlie. — Foi um caso de atropelamento
e fuga. Houve uma testemunha, que estava no quarteirão seguinte e que diz
ter parecido propositado. Não está nada esclarecido.
»Parece que quando a polícia lhe revistou o apartamento encontrou um
grande fornecimento de droga. Foi então que decidiram chamar a brigada de
homicídios.
— Souberam isso pela polícia? — Inquiriu Beth.
— Não. Quando eu e o Kip lá estivemos, encontrámos aquela mulher
que conhecia o Masco e ele informou-se através dela. Ela estava
completamente apavorada. Parece que, naquela noite, ele disse que não se
podia encontrar com ela porque ia ter com um tipo. Mas nunca lá chegou.
Beth estava pálida.
— Têm algumas pistas?
— O Kip não sabia. A tal mulher também não sabia de nenhuma e o Kip
achou que não havia necessidade de ir meter-se com a Polícia, que
certamente havia de querer logo saber quem ele era e quem não era.
— Que é que disseste do Patterson? — Perguntou ela.
Charlie franziu o sobrolho.
— Parece que a polícia — a polícia urbana — foi mais ou menos posta
fora de jogo. Não ficou ainda bem esclarecido quem está a investigar, mas
havia um tipo chamado Patterson que estava de serviço. O Kip conseguiu
uma boa descrição dele e eu e o Doc vamos investigar se se trata do mesmo
tipo que estava metido na armadilha preparada.
— Achas que estão ligados? Como é que poderiam estar?
— Bem — disse Charlie — se a armadilha preparada ao Doc estava de
qualquer forma ligada aos Gloryhits, isso poderia constituir um elo de
ligação. — Ele estava armar em cientista. — Mas é difícil imaginar quem
poderia fazer ideia de que o Doc estava de qualquer forma ligado aos
Gloryhits, ou até que Masco o estava.
— Talvez o Patterson seja um agente da brigada federal de narcóticos —
sugeriu Beth. — Se o Doc ia ser incriminado com uma dose monumental de
heroína, sabe Deus o que terão encontrado em casa do Masco.
— Isso é uma conclusão simples — concordou Charlie.
— E como cientista...
— Tenho de aceitar a explicação mais simples. — Charlie acabou a frase
por ela e riu-se por um momento. — Ganhaste.
Mas a boa disposição depressa desapareceu.
— Acho que devia telefonar ao Doc — disse. — Ele não vai gostar
disto. Parece que as nossas pistas nesta história depressa se desvanecem.
— Talvez não seja tão fácil como parece nos filmes — sugeriu Beth. —
Mas não vale a pena telefonares porque, de qualquer forma, o Doc deve cá
estar dentro de dez minutos. Vamos jantar fora e hoje é a vez de ele conduzir.
— Uma união igualitária — comentou Charlie com um sorriso.
Beth retribui-lhe o sorriso. — Se estiveres disposto a pagar a gasolina e a
manutenção do carro, estou disposta a conduzir eu. Mas, a 1 dólar e 10
cêntimos o galão, parece-me que é demasiado.
Charlie levantou a mão num gesto de defesa.
— Desculpa. Desculpa. Retiro o que disse. Foi um comentário estúpido.
Beth aceitou as desculpas. Ficaram por momentos sentados e calados,
pensando no Masco.
Beth mudou de assunto.
— Que se está a passar com os ratos a quem aplicámos o vírus? Devem
estar a sofrer uma evolução.
Charlie encolheu os ombros.
— Só lá vão quatro dias. É pouco tempo de gravidez.
Beth pediu desculpa.
— Parece que o tempo custa outra vez a passar. Que tencionas fazer com
eles?
— Pouca coisa. Vou aplicar todo o meu esforço a repetir o estudo sobre
o ácido. Vou deixar os ratos que têm o vírus chegarem ao fim do tempo e ver
se o tamanho das ninhadas é normal ou quê.
— Nada de cesarianas? — Perguntou Beth um pouco surpreendida.
Charlie soltou um grande suspiro.
— Oh, meu Deus, sei lá! Talvez possamos fazer algumas, lá para os
quinze dias. Sinto-me tão amedrontado com esta história do ácido, que não
tenho muita energia para o resto. — Pensou por um momento. — Claro, com
os diabos, podemos fazer de facto algumas cesarianas. Não levam tempo
nenhum.
— Ora, desse entusiasmo é que eu gosto. — Doc entrou de um salto no
gabinete de Charlie. — Claro que podemos despachar algumas cesarianas e
talvez uma apendicectomia ou duas até, antes do almoço. Conheço cirurgiões
assim. Vocês os dois vão enriquecer em três tempos.
Beth sorriu.
— Que acaso te traz por aqui tão cedo?
Ele riu-se.
— Há realmente dias que acabam mesmo a tempo. Não há nada a fazer.
— Virando-se para Charlie acrescentou: — Como vai isso?
O sorriso desapareceu do rosto de Charlie.
— Más notícias — disse. — O Masco morreu, provavelmente foi
assassinado.
— O quê? Estás a brincar?
Charlie abanou a cabeça.
— Quem me dera que estivesse. O Kip acabou de telefonar de Nova
Iorque. — E voltou a contar a história.
— Parece ser o mesmo Patterson — disse Doc quando Charlie acabou.
— Mas, valha-me Deus, a descrição adapta-se a metade da América e a 95%
dos chuis à paisana.
— Mas o Kip diz que não pensa que o tipo seja um chui, porque não se
portava absolutamente nada como se o fosse.
— Foi a mesma impressão que eu tive — concordou Doc. — Com mil
diabos, estou certo de que se trata do mesmo. — Franziu o sobrolho. —
Achas que é um andarilho da droga?
— Como? — Perguntou Charlie.
Doc abanou a cabeça.
— Toda esta história me faz lembrar o Peter Alder.
— Quem? — Inquiriu Beth.
— Um porco — explicou Doc. — Aqui há... Quê? Há uns dez anos,
quando Charlie e eu estávamos metidos na política, houve esse tal tipo, o
Peter Alder, que se revelou um provocador. Preparou uma armadilha a umas
quantas pessoas e denunciou-as por sabotagem. Forjou provas contra um belo
grupo de investigação científica que tinha andado a pesquisar a aplicação, no
campo militar, de investigações científicas. Mas, afinal, foi tão espalhafatoso
que acabaram todos por se safar da armadilha. O Alder saiu da cidade à
pressa, logo que o julgamento acabou.
— Era um agente policial? — Perguntou Beth.
Charlie abanou a cabeça e franziu a testa.
— Não, não era nada disso. Era demasiado esperto para tal. Primeiro
pensámos que fosse um simulacro de cientista que tinha sido caçado por
drogas ou coisa do gênero e depois utilizado pela polícia.
»Mas depois — acrescentou — compreendemos que nem sequer era
nada disso porque se esforçava na acusação tão obviamente.
— Eu sei — acrescentou Charlie. — Ia a falar nisso. — Virou-se para
Beth e disse: — Por fim concluímos que pertencia ou ao F. B. I. ou à C. I. A.
ou coisa do gênero.
— Oh, quer dizer que nunca chegaste a saber? — Perguntou Doc.
— Saber o quê? — Inquiriu Charlie.
— Os resultados da investigação do Kip.
— Não, nem sequer ouvi falar em qualquer investigação do Kip. Que
foi?
Doc explicou:
— Quando o governo federal procedeu à revisão da lei da informação,
Kip decidiu retroceder e tentar desenterrar a história de Peter Alder. Esteve a
pesquisar em Washington e passou uns dias a revistar velhos memorandos do
F. B. I. Havia um em que se dizia ter sido impossível descobrir algo sobre o
passado de Peter Alder. Isto antes de ele se tornar informador. Havia depois
outro, já posterior às provas forjadas, insinuando que Alder tinha ligações
com a C.I.A. Faziam referência ao facto de ele estar ligado a uma «agência
independente». Kip pensou que se referiam à C. I. A.
— Não voltaste a vê-lo depois disso? — Perguntou Beth.
Doc fez um sinal negativo com a cabeça.
— Nunca mais. Tenho a certeza de que a C. I. A. o afastou de Boston e o
reinstalou em qualquer parte com novo nome e profissão. Havia aqui muita
gente que o conhecia. Não podia ficar por cá.
— Bom, pobre Masco, se calhar nem era um agente da C. I. A. Parece
que poderia estar mais perto era da Mafia — disse Beth.
— A C. I. A. não é lá muito melhor — fez notar Doc.
— Bem, de qualquer maneira quanto à origem do ácido atingimos um
beco sem saída. Que novidades tens acerca do Greene?
Doc encolheu os ombros.
— Só lá vão quatro dias, por isso ainda não estou demasiado
preocupado. — Fez uma pausa e apareceu-lhe no rosto uma expressão
preocupada. — Se ele recusar, não sei o que farei depois. Se ele for a tribunal
por causa disto, vai aparecer em todos os jornais.
— Bem, se é isso que tens a fazer, porque não? — Inquiriu Beth. — É
obviamente importante obter essa informação e talvez ainda andem Gloryhits
por ai à solta noutra zona do país. Não custaria nada passar a palavra.
— Disparate — objetou Charlie. — Os passadores começariam a chamá-
los por outro nome e pronto.
— Mesmo assim, talvez fosse bom fazer um pouco de publicidade —
insistiu Beth.
— De qualquer maneira, a semana ainda não acabou — lembrou Charlie.
Quinta-feira, 7 de Janeiro
Dois dias depois Doc telefonou, excitado, a Charlie.
— O Greene telefonou! — Anunciou.
— Bestial! — Exclamou Charlie. — Que aconteceu?
— Foi formidável! — Respondeu Doc. — Todo ele era doçuras. Disse
que tinha a intenção de voltar a procurar-me, mas estivera ocupado com outro
assunto. Pediu imensas desculpas e tudo.
— Mas concordou? — Inquiriu Charlie.
— Absolutamente. Disse que ficara um pouco preocupado com o tom da
carta e que eu lhe enviasse uma declaração pormenorizada do que pretendia,
para que assim estivesse defendido. Prometeu que eu teria os dados na minha
mão uma semana depois de receber a carta.
Charlie soltou um «ufa!» de alegria.
— Incrível! E já lhe mandaste?
— Se já lhe mandei? O safado acabou de desligar há dois minutos.
Ainda nem tive tempo de me sentar.
— Com que então estava um pouco preocupado com o tom da carta? —
Charlie riu-se.
— Acho que sim — resmungou Doc evasivamente. — Se não fosse
assim, é claro que nunca mais tinha notícias dele.
— Claro que não. Já disseste à Beth ou queres que eu diga?
— Não, mas deixa-me ser eu a telefonar-lhe. Quero ver a reação dela.
— Vais telefonar já?
— Vou.
— Certo, então eu vou atravessar o átrio para poder ao menos assistir.
Depois falo contigo.
— Certo. Olha, ouve lá, podemos juntar-nos hoje à noite, para falarmos
acerca do que irá na carta?
— Claro. Depois de jantar? A Ann disse que hoje faria ela o jantar e não
queria sobrecarregá-la com demasiado trabalho.
— Ótimo. Como vai ela?
— Cansada — respondeu Charlie. — Hoje é dia 7, não é? Ela espera o
bebé de hoje a duas semanas, o que significa que já estamos na fase do «a
qualquer momento». Agora acabaram-se-me as viagens a Nova Iorque.
— Apesar disso só está cansada?
— Sim, não é nada de cuidado. O inchaço das pernas desapareceu, e
agora mexe-se bem, só tem de carregar com mais quatorze quilos e isso custa.
— Bom, parece que ela se está a portar muito bem — disse Doc. — Diz-
lhe que estou ansioso por vê-la hoje à noite.
— Está bem. — Charlie desligou e dirigiu-se para o laboratório de Beth.
Ela estava sentada à secretária a ler. Sorriu para Charlie.
— Oh, estás a ler ficção. Isso não é permitido — declarou ele.
Ela fez uma careta.
— O Tom foi para Iowa e eu não vou dar tempo ao Hebb de fazer outra
asneira. Não vou tentar fazer mais experiências até o Tom regressar. Estou a
falar a sério, quanto a vigiar o Bill.
Foram interrompidos pelo telefone. Charlie olhava encantado, enquanto
Beth recebia as novidades. Ela virou-se para ele.
— Já sei — disse-lhe Charlie. — Já falei com ele.
Ela voltou a falar para o telefone.
— Fred, é tão bom! Nunca pensei que uma ameaça surtisse efeito, mas
não há dúvida que acertaste... Certo. Até logo. — Desligou o telefone e disse
para Charlie: — É formidável!
— Eu sei — respondeu ele com um sorriso. — Vim cá para assistir à tua
reação. Talvez seja agora que vamos ter sorte. — Mas Beth enrugou a testa.
— Será que eu disse algo errado? — Perguntou ele.
— Não — respondeu-lhe ela, abanando a cabeça. — Estava só a pensar
que a nossa última pista foi quando localizámos o Ralph Masco. — Ficaram
ambos calados por um momento. — Já sabes mais alguma coisa disso?
— O Kip tentou telefonar para o amigo dele, mas não conseguiu
localizá-lo. Não sei se voltou a tentar.
— Isso ainda me traz preocupada — disse ela —, embora não o
conhecesse antes daquilo. Quem me dera poder acreditar que foi mesmo um
acidente.
— Mas parece que não foi — disse Charlie. — E devia ter sido a pessoa
que lhe telefonou naquela mesma noite.
— Porquê? — Indagou Beth.
— Porque tinham de lhe preparar a armadilha... Levá-lo a pé até
qualquer lado onde pudessem atropelá-lo sem correrem demasiado risco de
terem testemunhas.
Ela estremeceu.
— Então o Masco devia conhecê-lo.
Charlie concordou. Olhando para fora viu o Bill Hebb que voltava ao
trabalho.
— Está de volta a tua cruz.
— Hem — suspirou Beth. — Vou conceder-lhe uns minutos para que ele
comece a fazer as suas trapalhadas e depois apareço.
— O Darnell demora-se muito?
— Não sei. Ele saiu de repente. Tenho a certeza de que foi por causa do
acidente com o vírus, mas ele afirmou que não. Em situação normal não se
ausentaria mais de duas semanas, mas disse que algo tinha surgido. Anda a
portar-se cada vez mais como se fosse lacaio de alguém. Começo realmente a
desgostar-me dele.
Charlie concordou.
— Eu sei. Tentei falar com ele acerca do acidente e mostrou-se evasivo.
Nem sequer consegui arrancar-lhe qual o tipo de vírus.
— Ele assegura que não sabe, mas prometeu «interessar-se pelo assunto»
durante esta viagem, como ele disse. Por isso, tenhamos esperança de que
dentro de uns dias já saibamos mais qualquer coisa.
— Ele sabe das experiências? — Perguntou Charlie.
— Não. Não quero dizer que lhe esteja a esconder o facto, mas não vou
desatar a dar-lhe informações, se ele não mas dá também.
— Parece que a amizade está a ir por água abaixo.
— Meu Deus, Charlie, tenho de me ir embora daqui — lamentou-se ela.
— Estou quase disposta a aceitar aquela oferta de Los Angeles.
— Quanto a emprego, nada de novo? — Perguntou ele.
— Até agora, nada. O Lloyd tem tido grandes dificuldades e começa a
pensar que é por não ter sido demasiado insistente.
— Olha lá, já tentaste o departamento do Sid Cramer? — Sugeriu
Charlie.
— No M. I. T.? — Perguntou Beth. — Disseram-me que ele já não tinha
vagas.
— Não tinha, mas eu falei com ele ontem e ele desconfiava que um dos
elementos da sua equipa jovem da faculdade estava decidido a ir-se embora,
mais ou menos inesperadamente, dentro de alguns meses. Assim, ficaria essa
vaga em aberto.
Beth ficou excitada.
— Vou já preparar uma carta. Eu estava para escrever-lhe logo ao
princípio, mas o Lloyd disse-me que não havia vagas.
— E eu vou dar-lhe uma apitadela. Pode ser que ajude — acrescentou
Charlie.
— Acho que o Lloyd o conhece muito bem, por isso talvez agora se
consiga alguma coisa! — Concordou Beth.
Sexta-feira, 8 de Janeiro
— Devias ter vindo cá ontem à noite — disse Charlie. — Escrevemos a
carta ao Greene e até a Ann colaborou. Foi uma carta bonita.
— Não vai responder — lamentou-se Beth.
— Nem penses. Caçámo-lo e ele admitiu que assim foi. Pedimos-lhe
dados sobre fetos específicos e uma fotocópia das notas dele sobre os fetos.
Pedimos também informações sobre deformações semelhantes, em outras seis
cidades. Isso foi ideia da Ann. O Greene deve ficar com os cabelos em pé.
Porque não imagina sequer que o Doc estivesse informado de que se estavam
a efetuar estudos noutras cidades.
Beth enrugou a testa.
— Espero que não o pressionemos demasiado.
— Olha, se conseguirmos um quarto daquilo que pedimos, já temos que
nos chegue. Além disso, continuas a esquecer-te que o Greene pouco importa
dar-nos ou não a informação.
Beth encolheu os ombros.
— Bem, então agora podemos tentar o mesmo truque com o vírus que o
Bill entornou.
— Que história é essa? — Inquiriu ele.
— O Tom ainda não voltou, é esperado hoje, parece-me — queixou-se
ela, frustrada. — Aqueles malditos estão a safar-se com facilidade. Olhem
para nós, os grandes e radicais cientistas dum raio, aqui sentados feitos
parvos por causa daquele acidente.
— E que é que querias que fizéssemos, que déssemos um tiro no Bill?
Passou no rosto de Beth um traço de felicidade.
— Eu digo-lhes o que é que devíamos fazer e no fundo até lhes agradeço
a ideia que me deram.
— Vá lá, continua — insistiu Charlie.
— Olha, lembras-te de teres mencionado a existência de um grupo de
jurados federais destacados para investigarem coisas como a não aplicação
das diretrizes estabelecidas em Asilomar?
— Sim — respondeu Charlie lentamente.
— Vamos denunciar o acidente do derramamento.
— Mas não sabemos se é ADN recombinante.
— Nem o Bill e o Tom, ou pelo menos não sabiam quando o
derramamento ocorreu. Charlie, trata-se de um caso típico. Eles nem sequer
sabiam com que estavam a trabalhar! Assim nem podiam saber se os graus de
proteção que estavam a fingir que empregavam eram suficientes.
Charlie não estava a gostar.
— Isso vai fazer aqui um estrago...
— Charlie, não te armes agora em liberal, comigo. Quando eu te disse
que os cientistas eram demasiado elitistas para se denunciarem mutuamente,
tu negaste esse facto. Bom, agora desafio-te a denunciar isto.
Ele estava furioso. Furioso por ela o ter na conta de um hipócrita, furioso
por ela o estar a colocar no papel de homem integrado no sistema e ainda
mais furioso por as suas acusações o tocarem de perto. Mesmo assim, ainda
hesitava.
— Espera pelos resultados da experiência com os ratos.
— Porquê?
— Bom, porque ela pode fornecer-nos algum dado. Se obtivermos
alguma indicação de que o vírus provoca quaisquer anomalias, sentir-me-ei
mais à vontade para fazer depois um grande barulho sobre o assunto e isso
obrigá-los-á a mexerem-se mais depressa.
— E ser-te-á mais fácil enfrentar o Lloyd? — Sugeriu ela.
— Está bem, porra, também é por isso! Mas de qualquer modo vou
apresentar queixa. — Pronto. Tinha dado o salto. Sentia-se bem e estava de
novo no meio da luta. — Achas que devíamos dizer ao Lloyd? — Perguntou.
— Não.
Apercebendo-se de que tinham estado a falar alto de mais, Beth sentiu-se
de repente enervada e espreitou para o átrio.
— Olá, Beth, tenho andado à tua procura. — Era o Tom Darnell.
— Olá — respondeu nervosamente. Ele era capaz de tê-los ouvido no
átrio. Se calhar até muito distintamente. — Quando é que voltaste de fora?
— Só esta manhã. Queria dizer-te que falei com o meu patrão sobre o
vírus e ele convenceu-me de que é absolutamente seguro. Pesquisaram todo
aquele tipo de células à procura de vírus e não encontraram nenhum. O vírus
só pode infetar células vegetais e, além disso, nem sequer é um vírus muito
poderoso. Fizeram algumas mutações neles, tal como tu fizeste nos teus. Isso
não desculpa o acidente do Bill, nem a mim por o não ter vigiado mais
atentamente. Quase me esfolaram por isso e começam a pensar que deviam
ter dado mais atenção à minha opinião sobre o Bill. Mas parece que o Lloyd
lhes escreveu uma carta de recomendação, o que os convenceu.
Beth enrugou a testa.
— Não percebo como é que o Lloyd pode ter feito uma coisa dessas.
— Talvez ele devesse passar mais tempo no laboratório — gracejou
Tom. — Tenho é de ir falar com o Bill. Discutiu-se o facto de ele ir para
Iowa mais cedo do que estava planeado.
— Quanto mais cedo melhor — retorquiu Beth.
Tom sorriu.
— Até logo.
Ela voltou a entrar no gabinete de Charlie.
— Calculo que o Tom já tenha regressado — declarou ele.
— Pois é.
— Esbarraste com ele quando ia a entrar?
Ela franziu o sobrolho.
— Não ele estava mesmo à porta.
— Achas que ouviu alguma coisa? — A ideia não lhe agradava.
— Ele portou-se como se nem sequer soubesse que eu cá estava.
— Ufa! Que alivio! — Exclamou Charlie.
— Não sei — disse Beth. — Eu fui lá porque me apercebi de que
estávamos a gritar. É impossível que não nos tivesse ouvido.
— A não ser que tivesse acabado de entrar — sugeriu Charlie.
— Foi um bocado esquisito. Ele estava apenas encostado à parede, junto
à porta. — Ela parecia confusa.
— É óbvio que estava a escutar — disse Charlie a rir. — Deixa-te disso,
estás a sonhar com conspirações.
— Bom, e quanto a dizer-se ao Lloyd? — Perguntou Beth, retomando a
discussão onde tinha ficado.
— Acho que devíamos dizer — afirmou Charlie.
Ela encolheu os ombros.
— Bom, já que adiamos a apresentação da queixa até as experiências
com os ratos estarem prontas, vamos adiar também isto. Tal como tu disseste,
se obtivermos um resultado será mais fácil dar-lhe uma justificação. —
Acrescentou a sorrir: — Não tenho um prazer especial em ser eu a dizer-lhe.
Afinal de contas, de quem é que nos estamos a queixar?
— Que queres dizer com isso?
— Estamos a falar como se fosse só do Bill e Tom que nos estamos a
queixar.
— E não é?
— Não, não é. Isto é o laboratório de Lloyd e é ele quem superintende. É
assim que ele quer e é assim que é. Por isso, é ele o responsável por tudo
quanto aqui acontece.
— Oh, deixa-te disso — interveio Charlie. — Ele limitava-se a permitir
que o Bill utilizasse o local.
— Que queres dizer com o «limitava-se»? Tu emprestas o teu carro a um
bêbado, ele atropela alguém e tu não tens qualquer culpa?
— Legalmente, receio que não — disse Charlie.
— Oh, Charlie, merda! Imagina que se tratava de alguém que não
conhecias. Agirias da mesma forma?
— Não — admitiu. — Tomaria a mesma atitude que tu. Tens razão.
Beth voltou a afundar-se na cadeira, exausta.
— Bom, vamos aguardar os resultados das experiências com os ratos.
Sábado, 9 de Janeiro
Na noite seguinte, Charlie não conseguiu dormir. Ann e ele tinham ido
ao cinema, uma velha tradição de sábado à noite, que tinham recentemente
retomado. Quando chegaram a casa, Ann estava estafada e adormecera de
imediato. Charlie acabara por desistir e levantara-se. Eram quase duas horas.
Tinha passado um bocado, na sexta-feira, a redigir um rascunho da queixa,
mas esquecera-se de o trazer para casa. Agora estava irritado, porque decidira
trabalhar um pouco nele no domingo. Decidiu meter-se no carro e ir até ao
laboratório.
As ruas vazias brilhavam com a neve amontoada e as veredas pareciam
estranhamente calmas. Conduzia em silêncio, sentindo a quietude da cidade
normalmente agitada. Subiu no elevador até ao terceiro andar. Perfeitamente
acordado, tinha esperança de conseguir dormir quando voltasse para casa.
Os seus passos ecoavam fortemente no átrio vazio. Lá ao fundo, viu luz
que vinha do seu laboratório. Pensou que seria Beth. «Não, sou o único a
sofrer de insônias.» Mas a pessoa que saiu do laboratório não era Beth. À
distância não conseguiu distinguir as características do estranho, a não ser
que era um homem e de compleição física normal. Ao ver Charlie, dirigiu-se
para o lado oposto do átrio e encaminhou-se para a escada.
«Quem raio seria aquele?», perguntou Charlie para consigo, enquanto se
apressava em direção ao fundo do átrio. Ao entrar no laboratório deparou
com cinco engradados de ratos. A roubar ratos? Seria a coisa mais louca de
que já ouvira falar. Era verdade, os engradados estavam cheios de ratos-
fêmeas grávidos.
— Oh, merda — resmungou como é que vou conseguir tirá-los todos?
Encaminhou-se para a sala onde estavam os animais e acendeu a luz. O
que viu ainda o confundiu mais. Não faltava nenhum rato! Pegou no telefone,
ligou para o gabinete de segurança e chamou um homem.
— Não compreendo. Tem ratos a mais?
— Exatamente — respondeu Charlie. — Só posso pensar que foram
roubados a alguém e quem quer que os roubou só teve tempo de chegar até ao
meu laboratório. Talvez ainda não tivesse os suficientes ou qualquer coisa.
O agente de segurança coçou a cabeça.
— Não faz sentido, mas eu tomo nota.
— Talvez devesse tentar saber se outras salas onde há ratos foram
danificadas — sugeriu Charlie.
O agente de segurança olhou para o relógio.
— Eu saio às três, mas talvez alguém do próximo turno possa verificar
isso. Apontou para os engradados. — Que quer que faça a esses?
Charlie suspirou.
— Vou pô-los aqui na minha sala. Precisam de comida e de água.
— Que coisas tão feias — disse o homem. — Não sei quem poderia
querê-los.
Segunda-feira, 11 de Janeiro
1
Na segunda-feira, Charlie recebeu um telefonema do gabinete de
segurança.
— Investigámos junto de toda a gente que anda a fazer experiências com
ratos e ninguém deu por falta de nenhum.
— Isso não pode ser — insistiu Charlie. — Tenho-os agora mesmo
instalados aqui no meu laboratório. Não caíram do céu.
— Olhe, professor, eu sei que o senhor tem ai esses cinco engradados de
ratos. Estou a telefonar-lhe só para lhe dizer que não vieram de nenhum
laboratório deste edifício.
— E do edifício de biologia? — Perguntou Charlie. — Ou do de
fisiologia?
— Bom, primeiro que tudo — respondeu nós só controlamos a
segurança do centro médico. Para isso tem de contactar com o gabinete de
segurança, situado na zona central da universidade. Mas não entendo porque
é que alguém que rouba ratos carrega com eles até ao terceiro andar do centro
médico!
— Tem a certeza de que não falhou ninguém? — Perguntou Charlie.
— Professor, há quinze anos que desempenho esta função e parece-me
que desempenhei sempre as minhas funções de forma correta.
— Está certo — concordou Charlie. — Não consigo imaginar donde é
que teriam surgido.
— Bem, acho que são seus, se é que os quer.
Charlie riu-se.
— Obrigado.
Desligou o telefone quando Beth ia a entrar.
— Como vai isso? — Perguntou ela. Ele tinha-lhe contado a história
logo de manhã.
— Oh, estava a falar com o agente de segurança. Diz que ninguém deu
por falta dos ratos.
— Então donde é que eles poderíam ter surgido?
— Não faço a mínima ideia — admitiu Charlie. — A única coisa que sei
é que tenho ratas grávidas numa quantidade que é o dobro do que preciso.
Beth riu-se e ia a dizer qualquer coisa quando o telefone tocou. Charlie
levantou o auscultador.
— Está lá?... Sim, é... Está bem. — Virou-se para Beth. — Uma
chamada do reitor da universidade. — Fez uma careta para indicar que não
estava nada impressionado.
— Está, Dr. Cotten?
— Sim.
— Daqui, reitor Armstrong. Estava a pensar se teria um minuto livre.
— Claro. Em que posso ser-lhe útil? — Para Beth se divertir, fez a
continência ao telefone.
— Estou a falar-lhe por causa dum acidente que ocorreu no laboratório
do Dr. Haenners, aqui há uns dias. Creio que o senhor está a par do tipo de
material que foi derramado.
O humor varreu-se do rosto de Charlie.
— Estou, sim — respondeu delicadamente.
— Bom, é que aconteceu esta manhã uma coisa muito estranha. Recebi
uma chamada de Washington, duma pessoa do governo...
— Sim?
— E disseram-me que tinham sido informados desse acidente e que não
é nada de perigoso, mas faz parte dum projeto bastante melindroso em que o
governo está a trabalhar. Queriam certificar-se de que não seria dada ao
assunto qualquer publicidade. — Armstrong calou-se esperando a reação.
— Compreendo — disse Charlie lentamente. — Contudo eu tinha a
impressão de que isto fazia parte dum projeto industrial de pesquisa.
— Bem — lançou Armstrong o governo está sempre a transferir
pequenos projetos para a indústria e poderia acrescentar que a universidade
também.
— Claro. E deverei entender que se trata duma pesquisa de certa forma
secreta? — Perguntou Charlie.
— Oh, não — insistiu Armstrong. — Não é trabalho confidencial.
Aquilo que me disse o indivíduo com quem falei foi que o projeto estava de
certo modo ligado a um possível acordo internacional que está a ser
negociado.
— Isso não é muito específico — fez notar Charlie.
— Eu sei isso e até já falei sobre o assunto com o Dr. Haenners. Nós
ainda reagimos ao facto de certos tipos de pesquisa serem levados a cabo na
universidade. Penso até que o Dr. Haenners decidiu cancelar o trabalho. De
qualquer modo, a pessoa que o faz vai em breve mudar-se para as instalações
industriais.
— Também tenho essa impressão — respondeu Charlie. — Mas não
entendo bem porque é que me telefona a mim. Foi o Dr. Haenners que
sugeriu?
— Não, não. A pessoa que telefonou de Washington pediu-me que
falasse consigo e com o Dr. Haenners, no sentido de tentar estabelecer um
acordo para que não houvesse procedimento excepcional em relação ao
acidente.
— Compreendo — disse Charlie. — Sim, acho que compreendo. Claro
que o Dr. Haenners concordou.
— Sim, concordou em absoluto.
Charlie respondeu evasivamente.
— Bom, asseguro-lhe que não vou andar por aí a espalhar seja o que for
sem falar primeiro consigo.
O reitor ficou calado por um momento.
— Há alguma razão para o fazer?
— Não, nenhuma — disse Charlie tentando aparentar naturalidade mas
detesto fazer promessas desse tipo sem meditar um pouco nelas.
— Ah, sim, com certeza. Não quero forçá-lo. Porque é que não pensa
por uns dias e depois telefona-me?
Lentamente, Charlie concordou.
— Está certo. Assim farei.
— Então está bem e obrigado pelo tempo dispensado.
— Não tem de quê. — Desligaram ambos.
— Que foi tudo isso? — Perguntou Beth.
— Penso — disse Charlie ainda a tentar entender — que o nosso amigo
Tom ouviu realmente a nossa conversa no outro dia.
— Acerca da queixa? E que é que isso tem a ver com o reitor
Armstrong?
Ele contou-lhe o telefonema.
Beth lançou um longo assobio; depois perguntou, furiosa:
— Mas que diabo se está a passar aqui? — Levantando-se da cadeira
disse: — Acho que devíamos falar com o Tom.
— Espera aí — respondeu Charlie. Talvez devêssemos pensar primeiro
um pouco. O Tom deve ter contactado a CRA depois de ter escutado a nossa
conversa. Só assim se explica que eles quisessem que eu fosse contactado,
bem como o Lloyd.
— Claro, mas que treta é essa do governo?
Charlie abanou a cabeça.
— Vamos perguntar ao Lloyd.
Atravessaram o átrio. O Lloyd estava em estado de choque e confessou:
— Estou completamente perplexo! E isto não me agrada nada. Já disse
ao Bill que tem de largar o balcão de trabalho no princípio da semana que
vem. E disse ao Tom que de agora em diante faço tenção de me informar de
tudo quanto ele pensa fazer aqui dentro. Estou mesmo preocupado com isto.
Pesquisas secretas do governo! Não quero nada disso aqui dentro! — Charlie
nunca o vira tão preocupado.
— Já falaste sobre o assunto com os tipos da CRA ou com o Tom?
Haenners respondeu:
— Já falei com o Tom, mas ele não parece saber grande coisa. Ficou
combinado que ele iria de avião a Iowa neste fim-de-semana, tentar saber de
que projeto se trata exatamente.
— Mas eu pensava que ele já tinha feito isso — lamentou-se Charlie.
— Não — disse Beth em tom sarcástico —, ele só descobriu que não
havia razão para nos preocuparmos. É quase tão fácil ele dar informações
como o Greene.
— Quem? — Inquiriu Haenners.
— Uma pessoa que nós conhecemos — disse Charlie. — Mas porque é
que não ligas para a CRA e não falas tu? Isso parecia mais sensato.
Haenners parecia furioso.
— Claro que parecia, mas tu não lidas com eles há cinco anos. Nem uma
vez, sequer, consegui chamar ao telefone alguém de lá que soubesse fosse o
que fosse. Na melhor das hipóteses, consegue-se que nos telefonem dai a um
dia ou dois. Falei com o Tom e decidimos que o melhor que ele tinha a fazer
era ir lá. Interrompi o projeto, por isso agora não sinto que haja assim uma
pressa tão grande.
— Ou para a semana — corrigiu Beth.
— Na próxima segunda-feira — disse o Haenners. — Não há razão para
se lhe fazer perder experiências que possa ter em curso.
— Ah, não, claro! — Respondeu Beth asperamente.
— Só o que eu não entendo... — Começou Haenners. — Bom, raios me
partam, não entendo nada disto, mas também não entendo porque é que te
telefonaram a falar disto.
— Também eu não — disse Beth apressadamente, antes que Charlie
pudesse dizer fosse o que fosse. — Mas não te disseram quando falaram
contigo?
— Não.
— Bom — disse Charlie pegando na deixa de Beth. — Acho que isso é
o menos. — Levantou-se para se ir embora. — Diz-me, se souberes alguma
coisa, está bem?
— Certamente.
Beth levantou-se também.
— Ah, Lloyd, queria perguntar-te se tinhas tido oportunidade de falar ao
Sid Cramer.
— Sim, de facto falei com ele hoje de manhã, mesmo antes de o
Armstrong telefonar. Quer que vás falar com ele um dia destes e que leves o
teu curriculum vitae e cópias dos teus artigos. Talvez recebas a carta dele
amanhã. — Sorrindo, acrescentou— Acho que desta vez conseguiste.
Beth franziu a testa.
— Já não tenho grandes esperanças, mas vamos a ver.
Ela e Charlie saíram do gabinete. De regresso ao seu, Charlie olhou para
a folha da sua queixa.
— Bom, parece que esta vai ficar pendurada por uns tempos.
— Só por uns tempos? — Perguntou Beth.
— Bem, se as experiências com os ratos demonstrarem alguma coisa,
então preencho-a. — Ela sorriu.
— Melhor para ti. — Sentou-se. — Estás a ver o que eu quero dizer com
isso de o Lloyd ser um burro?
Charlie pareceu surpreendido.
— O quê? Eu pensava que ele tinha feito, efetivamente, algo de bom.
— Claro. Depois de lhe ter telefonado o reitor da universidade a avisá-lo
de que há pesquisas secretas do governo, a decorrerem no seu laboratório sem
ele ter sequer conhecimento e que até houve um acidente e tudo, ele concede
ao Bill uma semana! Uma semana, porquê? É uma desculpa que está a dar-
lhe. É o mesmo que o Lloyd dizer-lhe: «Olha, Bill, detesto fazer-te isto, mas
tem de ser.» Acho que o Hebb deveria ter logo sido posto fora no momento
em que o Haenners soube. E o Tom! Pela maneira como tem atuado, acho
que seria tão capaz de ter causado o derramamento como o Bill!
— Talvez — concordou Charlie, — Então o Tom vai voltar a Iowa. Está
a tornar-se um viajante com assinatura.
— Eu sei — disse Beth. — Cada vez penso coisas mais estranhas sobre
ele. Como é que se explica que esteja tão tranquilo com tudo isto? E porque é
que continua a insistir em que nada sabe sobre o vírus, a não ser que a CRA
diz que é inofensivo? Acho que já nem sequer nisso acredito.
— Bom, pode ser que esta viagem esclareça finalmente as coisas.
2
Em Washington, o major Pearson olhava fixamente o obstetra e pensava
para consigo convictamente: «Os sacanas atacaram-nos mesmo!» Estavam lá
os cinco, na terça-feira à noite, já muito tarde, para uma reunião de
emergência.
— Acho que podemos guardar os nossos palpites para mais tarde. Há
mais perguntas a fazer antes de dispensarmos o Dr. Muller?
— Ficou com a impressão de que o indivíduo que recolhia os fetos
estava a boicotar a investigação?
Muller não tinha a certeza.
— Por vezes parecia, mas noutras dava a impressão de ser uma tremenda
pouca sorte. Mas conseguiu descobrir que havia uma série especial de LSD
em todas as cidades onde Greene andava a fazer a recolha.
— Ele forneceu o nome do passador, em Nova Iorque? — Perguntou um
deles.
— Não — respondeu o Muller. — Estava visivelmente preocupado com
o facto de o tipo ter sido assassinado ou pelo menos morto.
— Que quer dizer com «pelo menos morto»?
— Ah, desculpem. — Muller esquecera-se de dar pormenores, da
primeira vez que contara. — Aparentemente, morreu num acidente.
Atropelamento e fuga. A testemunha disse que parecia mesmo que o
condutor se dirigira deliberadamente para o tipo, por isso depreendo que se
tratasse de crime.
O outro enrugou a testa.
— Tratava-se do Masco, não é?
Por uns minutos, todos ficaram calados, tentando articular os factos, para
decidirem se haveria mais perguntas.
— Olhe, ao todo, quantos abortos pensa você que tenha havido? —
Perguntou Pearson por fim.
Muller encolheu os ombros.
— Só posso fornecer um cálculo — disse, enquanto fazia contas de
cabeça. — Talvez uns dez em cada cidade. É espantoso como o LSD se
espalha por aqui. Talvez, por isso, haja uns setenta e cinco a cem ao todo.
— Bem, se não há então mais perguntas, talvez devêssemos dar início à
sessão. — Não houve objeções. — Obrigado, Dr. Muller. Queria perguntar-
lhe se poderia esperar na sala ao lado enquanto decorre a sessão. Talvez o
chamemos para lhe fazer outras perguntas.
— Com certeza — disse Muller, levantando-se para sair.
— Vai achar a sala muito confortável.
— Obrigado — respondeu Muller e saiu. A porta fechou-se com um
clique sonoro.
Todos se olharam em silêncio.
— Estamos de acordo quanto a termos sido atacados? — Ninguém
objetou. — Poderia alguém fazer uma listagem daquilo de que já temos a
certeza?
— Eu posso fazer isso. Ponto um: sabemos que Jim Karls é o nome
suposto dum indivíduo que tem assistido às reuniões sobre ADN
recombinante. Ele tomou providências para ocultar a sua identidade. Ponto
dois: os Russos estão a trabalhar em qualquer coisa que podemos calcular
tratar-se dum projeto de guerra biológica com ADN recombinante. Ponto
três: Karls estabeleceu contacto, em Nova Iorque, com um passador de droga
que foi depois assassinado. Ponto quatro: o passador vendeu uma remessa
específica de LSD em oito cidades e o ácido causou um aumento espantoso
da taxa de abortos quando tomado antes da concepção. Isto é diferente da
ação do LSD, e por isso presume-se que seja devido a qualquer coisa
introduzida no LSD. Ponto cinco: alguém tem andado a recolher os fetos
resultantes dos abortos, nas oito cidades, e perdeu-se o rasto dessa pessoa.
»A conclusão, se me permitem, é que Karls, como agente russo, tem
andado a fazer duas coisas: primeira: a reunir informações sobre pesquisas
americanas em ADN recombinante; segunda: a dirigir um programa secreto
de testes duma arma biológica de concepção russa.
»Acho que essa é a única explicação possível.
Os outros baixaram a cabeça em sinal de assentimento.
— Nesse caso — prosseguiu Pearson gostaria de retirar o meu pedido de
adiamento e pedir a este grupo que informe a Joint Chiefs of Staff7 que
pensamos que uma espécie de represália, talvez utilizando a gripe botulina,
deve ser imediatamente desencadeada.
Terça-feira, 12 de Janeiro
ALTAMENTE SECRETO. SÓ PARA SER LIDO.
A partir desta data, 12 de Janeiro é concedida autorização para
desenvolvimento do agente Black, de potência real de 1.25 (Um ponto dois
cinco), para contaminação inicial de 100 (cem) pessoas por alvo, 8 (oito)
alvos, números de código de 62 (sessenta e dois) a 69 (sessenta e nove), folha
de código 142 (cento e quarenta e dois)
(Assinado) John Cordon
pela Joint Chiefs of Staff
ALTAMENTE SECRETO. SÓ PARA SER LIDO.
Stanley Johnson ficou a olhar fixamente a carta, depois rasgou-a ao meio
e atirou-a para o lixo. Não sabia porquê, mas nunca esperara que se chegasse
àquilo. Westland falara com ele na véspera, dizendo-lhe que estava a chegar
um pedido especial de material, mas não adiantara mais, a não ser para frisar
que não haveria perguntas a fazer nem explicações a dar.
Os stocks de vírus estavam no frigorífico, cem frascos para cada stock de
mutadores. O menor era do tipo 1.25, o que tinha menor alcance. Mesmo
assim, falavam em matar mil pessoas utilizando apenas oito alvos.
Apercebeu-se de que nem sequer sabia onde estavam os alvos. Rússia?
China? No Médio Oriente? Nem queria saber. Tirou oito frascos, verificando
e voltando a verificar os rótulos. Cada um deles continha vírus desenvolvidos
a partir dum único vírus. Cada um deles fora verificado quanto à presença da
toxina botulina. E cada um dos oito vírus originais fora desenvolvido a partir
dum único vírus no qual a velocidade do gene mutador tinha sido
multiplicada uma vez e um quarto. A única coisa que se poderia ter feito para
se assegurar de que estavam corretos teria sido observar os mutadores em
cada um dos cem frascos individualmente e não houvera tempo de o fazer.
Embalou os frascos em gelo seco e chamou um correio militar. Cinco
minutos depois iam a caminho.
Sexta-feira, 15 de Janeiro
Na sexta-feira, Beth apareceu no laboratório de Charlie completamente
transtornada. Estava a dissecar alguns dos ratos dos do ácido — com catorze
dias de gravidez — e os resultados eram uma duplicação dos verificados nos
testes anteriores, com números quase idênticos de deformação. Ele levantou
os olhos e reparou na expressão dela.
Pareces perturbada.
— E estou — respondeu Beth. — Acabei de receber um estranho
telefonema.
— Hã? — Charlie interrompeu o trabalho e perguntou-lhe o que era.
— Telefonou um tipo a dizer que era amigo do Bill Hebb e que o Bill se
tinha ido embora para Iowa e se eu podia limpar-lhe a bancada dele.
Charlie riu-se.
— E que tem isso de estranho? Parece-me mesmo coisa dele.
— Não, não parece — insistiu Beth. — Ainda ontem estivemos a falar e
ele estava preocupado por ter de se ir embora tão depressa. Disse-me que
tinha uma grande experiência em curso que iria conseguir concluir a tempo,
talvez no domingo à tarde. Ontem, à hora de saída, estava mesmo
entusiasmado com a experiência.
— Talvez cá tivesse vindo à noite e tivesse visto que a experiência
falhara. Acontece todos os dias e eu até compreendo que ele tenha
desaparecido depois de ter falhado uma experiência importante.
— Sim, tudo isso faz sentido — disse Beth —, só que ele nunca aqui
vem à noite. Mesmo quando tem em curso experiências em que está
empenhadíssimo, prefere saltar pontos a vir cá depois das cinco para os
aclarar. Além disso, estive aqui ontem, até à uma da manhã. — Calou-se por
um momento. — E, Charlie, ele nunca se lembraria de me telefonar a pedir
que fizesse as arrumações por ele. Nunca faria uma coisa dessas. Limitar-se-
ia a sair e a nunca mais dizer nada.
Charlie encolheu os ombros.
— Então que é que pensas disto?
— Não sei. Com esta história da pesquisa secreta do governo e tudo, isto
está a tornar-se assustador.
— Talvez a CRA o tenha convencido a ir imediatamente. O Lloyd disse
qualquer coisa sobre estarem a apressar tudo. Talvez o fizessem mudar-se de
um momento para o outro e depois nos telefonassem a avisar.
— Não sei — repetia Beth. — Só queria ter uma forma de entrar em
contacto com ele.
— E que há com o Tom? Fizeste-lhe alguma pergunta sobre isto?
Ele foi hoje de manhã para Iowa.
— Talvez o Bill tenha ido com o Tom — sugeriu Charlie. — É provável
que o Tom saiba quando é que ele volta.
— Espero que o Tom não seja o único a conhecer o jogo todo —
murmurou Beth.
Segunda-feira, 18 de Janeiro
Na segunda-feira, porém, as respostas de Tom pareciam boas de mais
para serem verdade.
— Nem calculam o alívio que senti ao saber o que era — disse ele. —
Esse pormenor de se tratar duma pesquisa secreta do governo trazia-me sobre
brasas! — Era de novo o mesmo Tom, sempre amigo de todos. — Afinal, o
governo apareceu com esta supersoja, como eles lhe chamam, que aumenta a
produção de soja, da mesma forma que o superarroz aumenta a produção de
arroz. Mas o busílis está em que é invulgarmente sensível a doenças de
plantas. Por isso fizeram o seguinte contrato com a CRA: inserir na planta um
plasmódio chamado PL 142. O plasmódio é portador da informação genética
de resistência a um grande número de doenças-padrão das plantas. Na
natureza, encontra-se ligado a um vírus, que também ataca a planta da soja.
Aparentemente o vírus combina-se bem com o plasmódio, porque impede a
planta de ser infetada por qualquer outra coisa. Por isso a CRA está a tentar
transpor o vírus para as células da planta e depois selecionar células do tecido
de cultura que sejam resistentes a outras doenças, mas que não estejam
contaminadas pelo vírus. Isso só acontecerá na altura em que o vírus for
separado do plasmódio. Ai é que reside o fator supersecreto da pesquisa.
— Bem, isso já me faz sentir melhor! — Disse Lloyd. — Já andava a ter
pesadelos, sobre a possibilidade de estarmos a fabricar material de guerra
bacteriológica, secreto. — Riu-se nervosamente. — Mas não devia ter
deixado aquilo acontecer no meu laboratório, sem saber mais alguma coisa
sobre o assunto. Não voltará a suceder.
— Duvido — murmurou Beth a Charlie; perguntou: — Sabes alguma
coisa sobre a ida de Bill para Iowa?
— Já foi? — Perguntou Haenners, deitando uma olhadela à confusão em
que estava a bancada dele.
— Sim, já foi — disse Tom. — Realmente fez até a última parte do
percurso, desde Chicago, comigo. Saiu de Boston num avião umas horas
antes do meu, mas os aviões para Iowa não são assim tão frequentes.
— E que se faz com as coisas dele? — Indagou Charlie. — Nem sequer
levou os livros do laboratório.
— A CRA paga a mudança, de certeza — disse Tom. — Desta
cangalhada do laboratório é que não sei... Talvez possamos juntar isto tudo e
eu levo-lhe para o apartamento dele antes de virem os homens da mudança.
Haenners franziu o sobrolho.
— Realmente ele deixou a bancada numa confusão.
Tom olhou para Beth.
— Ele disse-me que ia pedir a um amigo que te telefonasse a pedir que
lhe arrumasses aquilo. Pediu muita desculpa, mas parece-me que decidiu
mudar-se muito à pressa.
— Essa agora — disse Beth. — Parece-me que é um bocado tarde pedir
o favor depois de já se ter ido embora do laboratório. É como se eu não
pudesse rejeitar.
— Vamos todos ajudar — sugeriu Haenners.
— Não te incomodes — respondeu Beth. — Será um prazer apagar os
últimos sinais da passagem de Bill por este laboratório.
Charlie riu-se.
— Não é lá muito vulgar as pessoas mudarem-se antes de chegarem os
homens das mudanças? — Perguntou a Tom. — Pensei que eles não podiam
entrar numa casa sem que alguém lá estivesse.
— O Bill deu-me as chaves — disse Tom, pescando-as de dentro do
bolso. — Eu disse que ia lá ao apartamento quando viessem os homens das
mudanças.
— Ele teve sorte de te encontrar a caminho de Chicago — comentou
Beth. — Custava-lhe a acreditar que Bill pudesse alguma vez pedir muita
desculpa.
Tom ia a responder quando o telefone tocou. Levantou o auscultador,
disse: «Está lá», e passou-o a Beth.
— É para ti.
Ela falou calmamente para o telefone. Lentamente a sua expressão foi
mudando para a de prazer.
— Claro, isso parece-me ótimo... É formidável. Vou falar com o Dr.
Haenners e volto a falar consigo esta semana, quando tivermos uma
estimativa melhor, mas essa já me parece boa... Obrigada. Muito obrigada. —
Desligou o telefone e virou-se para a audiência expectante. — O Sid Cramer
acaba de me dar o lugar!
Charlie e Lloyd romperam em «vivas!». Charlie deu-lhe um grande
abraço.
— Ótimo! Parabéns! Não podias ter-te saído melhor.
Haenners apertou-lhe a mão.
— Cheguei a estar preocupado, por uns tempos, sabes?
Ela sorriu.
— Eu sei. Também eu estava.
Tom deu-lhe os parabéns.
— Tenho de confessar que de certo modo lamento. Mas acho que ficarás
mais satisfeita ali do que em Iowa.
— Bem, o Sid Cramer é o presidente de um dos mais importantes
departamentos de genética do nosso país. Não o trocaria por nada — afirmou
Beth.
— Nem sequer sabia que tinhas concorrido ao lugar — comentou Tom.
— É o que perdes em ir a toda a hora a Iowa — disse Beth, arreliando-o.
— Talvez — concordou com um sorriso. — Bom, parabéns.
Saiu do laboratório e deixou os outros a festejarem a sério.
Terça-feira, 19 de Janeiro
Na terça-feira, Doc e Beth foram jantar fora para festejar.
— Sabes — comentou ele — antes de começar tudo isto, primeiro com o
ácido e depois com o vírus, eu costumava esperar sempre que as coisas
corressem pelo melhor. Afinal, talvez até ainda corram. — Ele estava quase
tão contente como ela, por causa do emprego.
Agora ela já podia ficar na zona de Boston sem comprometer a sua
carreira.
— Não sei — desafiou-o ela. — Dantes estava convencida de estar farta
da costa leste e de que queria mudar-me para a Califórnia.
— Ná, tudo o que as pessoas lá sabem fazer é estender-se ao sol e
esturrar os miolos — respondeu Doc, e apertou-lhe a mão. — Estou tão
contente por ficares por cá, sem ser só por minha causa! Acho que isso iria
acabar por nos trazer problemas.
Beth concordou. Mas, à medida que iam falando, ela ia-se apercebendo
de uma tensão subjacente em Doc.
— Que é que me estás a esconder? — Perguntou por fim, apreensiva.
— Hã? Ah, é uma coisa mais acerca do ácido. Prometi a mim mesmo
dizer-te amanhã.
— É mau? — Perguntou ela.
— Mais tarde — prometeu ele. — Vamos ao nosso jantar.
— Não, vá lá. Que é?
Ele desistiu.
— Umas boas, outras más. Que queres primeiro?
— As más.
— Bem, não sei se já reparaste que o Greene já ultrapassou o prazo de
resposta?
— Ah, sim? Não tinha dado por isso. Há quanto tempo?
— Não muito — disse Doc. — Meti a carta para ele no correio fez na
quinta-feira passada oito dias, por isso penso que a deve ter recebido fez
ontem oito dias. Isso dava-lhe só um atraso de um dia.
— E isso é assim tão mau?
— Não; mas, para não deixar as coisas arrastarem-se, pensei em
telefonar para aquele serviço de recepção de mensagens e deixar-lhe recado
dizendo que eu estava a ficar inquieto.
— E então?
— Já não aceitam recados para o Greene.
— Quando é que foi isso?
— Deixaram de receber há uma semana, na segunda-feira, que deve ter
sido exatamente quando o Greene recebeu a carta.
A expressão de alegria de Beth ia-se tornando cada vez mais sombria.
— Ainda podes contactá-lo pela caixa postal?
— Aqui vai o resto, penso eu. Recebi o impresso do correio sobre a
caixa postal dele. — Parou por um momento. — Está alugada a um tal Felix
Greene em 540 Cathedral Parkway. Mas viram que o aluguer da caixa
terminou a semana passada e não foi renovado. Por isso também não posso
contactá-lo por ai.
— E que há sobre o telefone de casa — sugeriu Beth agora que já tens o
nome e a morada?
— Já tentei. Não consta na lista. Não há nenhum Felix Greene —
Enrugou a testa. — Estas são as más notícias.
Beth deu-lhe uma palmada nas costas da mão.
— Então não vamos tirar nada dele.
— Não sei — respondeu Doc. — O Kip vai lá amanhã. Talvez lhe peça
que vá a casa do tipo intimidá-lo, ou ao menos ver se ele ainda lá está. Tenho
o mau pressentimento de que se evaporou.
— Mas isso é uma loucura — objetou Beth. — O tipo tem casa e
emprego. Se até tinha a caixa em seu nome e tudo, não podia ser arraia-
miúda. Onde é que se poderá ter metido? E onde é que será esse instituto de
investigação para quem ele estava a trabalhar?
— Ah, esqueci-me disso — lamentou Doc. — Estava tão empenhado em
tentar sacar-lhe os dados que nunca me preocupei em saber a que instituto
estava ligado. Telefonei hoje a meia dúzia de obstetras e nenhum deles sabia.
Não está esclarecido se o Greene chegou a dizer a alguém.
Ela abanou a cabeça tristemente.
— Então não há quase nenhuma possibilidade.
Foram interrompidos pela empregada que lhes trazia a comida. Estavam
com fome e comeram em silêncio. Passado algum tempo, Doc disse:
— De qualquer modo, estamos aqui para festejar o teu emprego e não
para falar do vampiro.
Beth sorriu.
— É verdade. Já quase me tinha esquecido. — Estendeu o braço sobre a
mesa e apertou a mão dele. — Foi uma grande luta.
Comeram em agradável silêncio, felizes por saberem que ela tinha um
bom emprego, na cidade.
— Ummm — disse Beth com a boca cheia —, quais eram as notícias
interessantes? Disseste que havia duas coisas.
— Ah, é verdade. Tinha-me esquecido. Recebi há pouco um telefonema
dum obstetra de New Haven. Foi o Studeman que mo mandou.
— Acerca de quê?
— Acontece que ele se está a dedicar também ao problema dos abortos
naturais e veio a Boston para falar do assunto com alguém da Faculdade de
Medicina de Harvard. Sugeriram-lhe que falasse com o Studeman e ele
mandou-o para mim. Bom, ao fim de pouco tempo, falei-lhe do ácido e disse-
lhe saber também que havia um caso em New Haven. Isso depois de o ter
feito jurar silêncio sobre o caso, pelo menos até ao parto de Ann. Não me
parece que, baseado no que eu lhe disse, vá fazer grande coisa.
Enquanto Beth e Doc comiam a sobremesa, a conversa fluía entre o
emprego dela, a relação entre eles, o ácido e o vírus. Por muito que
preferissem os dois primeiros temas, os outros dois continuavam a
intrometer-se.
— Que é que esse obstetra de New Haven pensa da malformação? —
Perguntou Beth.
— Eu não lhe contei nada disso — respondeu Doc. Beth olhou-o de
forma inquiridora e ele explicou:
— Não me senti à vontade para falar nisso. Daqui a duas ou três
semanas, já tu e o Charlie repetiram a experiência, a Ann já terá dado à luz e
podemos pensar na forma de prosseguir com isto. É um risco falar-lhe nos
Gloryhits, mas isso pelo menos podemos provar-lhe. Quanto às
malformações, não quis arriscar-me a deitar tudo a perder, agora.
Beth sorriu.
— Parece-me razoável. Acho que eu devia ter feito o mesmo. — Voltou
à sobremesa e depois acrescentou: — Fred, há algo que está mesmo a
preocupar-me e gostaria de te falar nisso. É um tanto esquisito. Prometes que
me ouves?
Doc acenou com a cabeça em sinal de concordância.
— Fred, descreve-me a malformação — pediu ela.
Doc encolheu os ombros.
— A mal formação consiste num aumento geral da parte posterior do
cérebro, acompanhada pelo necessário aumento do tamanho do crânio. —
Olhou para ela, esperando uma explicação da razão da pergunta.
— Fred, lembras-te de quem é o Jim Karls?
Doc abanou a cabeça.
— O nome é-me conhecido, mas não consigo localizá-lo.
— É o amigo do Tom, de Squaw Valley.
— Ah, já sei. Foram eles que te salvaram da multidão, segundo me
constou.
Beth fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Mas lembras-te de eu te contar uma das perguntas que ele fez durante
uma das reuniões?
Doc abanou a cabeça.
— Ele perguntou se era possível transferir genes para aumento da
capacidade craniana e aumentar assim a inteligência do receptor.
Doc empalideceu.
— Não queres sugerir que...
— Que ele não só está a desenvolver a técnica, como também a aplicá-
la. — Ela terminou a frase em tom declarativo.
Doc ficou sentado por momentos, sem dizer palavras, depois abanou a
cabeça.
— Absurdo — disse baixinho. — E o Tom Darnell está a trabalhar nessa
técnica, no teu laboratório, certo?
— Sim! — Gritou Beth em voz demasiado alta para um restaurante.
Depois, mais baixo, disse:
— Achas que o Karls fez aquela pergunta por acaso? Que ele e Tom se
encontraram lá por acaso? Que Tom ouviu por acaso a nossa conversa sobre
denunciarmos o acidente do derramamento, o que teria posto tudo a claro e
que levou Washington a exercer pressão para que o caso fosse abafado?
Doc encolheu os ombros.
— É demasiado inconsistente, Beth. Porque é que estás tão inclinada a
considerar isto uma gigantesca conspiração?
— Mas tudo se articula tão bem! — Insistiu Beth.
— Exceto no que se refere ao facto de Tom estar a trabalhar em células
vegetais e vírus de plantas e à forma como poderia isto estar ligado ao
passador Masco, em Nova Iorque. E onde é que se encaixava o Greene?
— O Greene? — Gritou Beth. — Claro! O que eles queriam era aqueles
fetos. E aquele que te desapareceu, Fred, falaste nele ao Greene!
Doc pensou por um momento.
— Mas estás a dizer que eles os queriam vivos, supergénios... Não é isso
que estás a insinuar?
— É — concordou Beth. — Talvez quisessem afastar os fetos abortados,
para que ninguém notasse. Ou talvez seja o primeiro teste efetuado em seres
humanos e nem sempre resulte.
— Isso parece-me demasiado forçado — disse Doc. — E ainda não
arranjaste papel para o Tom. É ele o elo que mantém de pé a tua ideia e não
tens função para ele, a não ser o seu trabalho em ADN recombinante. Se ele
estivesse a trabalhar com células e vírus de células humanas, talvez eu
acreditasse em ti, mas não está.
— Não, não está — concordou Beth —, mas há algo de esquisito nessa
coisa da supersoja. — Calou-se por um momento e acrescentou: — Se ao
menos ele estivesse a falar verdade!
Doc soltou um suspiro longo.
— Vá lá, não vamos discutir esta noite, está bem? — Disse baixinho.
— Está bem, mas continuo a acreditar no que disse.
Ele pôs-lhe um dedo nos lábios.
— Nem mais uma palavra sobre isso, esta noite, de nenhum de nós.
Ela beijou-lhe o dedo, tristemente.
Quarta-feira, 20 de Janeiro
1
Na quarta-feira estava um frio de rachar e Charlie levou meia hora a pôr
o velho Volvo a trabalhar. Preferia ir de metro a estar a lutar com o carro, mas
Ann insistira. Ela esperava o bebe nas duas próximas semanas e podia dar à
luz a qualquer momento.
Mas Charlie não sentia pressa. Nunca falara a Ann nos 15% dos ratos
nascidos mais cedo e deformados. Um dia de antecipação num rato equivalia
a duas semanas de antecipação num ser humano e ele rezava para que Disney
viesse tarde. Os resultados da repetição da experiência deviam ser concluídos
no dia seguinte, mas os dados até agora tinham sido idênticos.
Ann deu-lhe um beijo de despedida.
— Passa um dia bom — disse-lhe — e não te metas em mais
experiências dessas de três semanas.
Ele sorriu.
— Amanhã termino todas as minhas experiências de longa duração e não
me meto noutra enquanto Disney não tiver outro nome.
— É um lindo mês — disse ela.
Ele concordou. Ia tirar um mês de licença de paternidade, tudo o que lhe
era autorizado.
— Até logo à noite.
No laboratório, pegou no correio e dirigiu-se ao seu gabinete. Como não
havia nada na correspondência que lhe parecesse interessante, resolveu ir
observar os ratos.
— Que raio! — Correu de prateleira para prateleira. Todas as gaiolas
estavam vazias. — Impossível! — Murmurou. Voltou a olhar à volta. Era
óbvio que tinham desaparecido. Atravessou o átrio a correr, esperançado em
que Beth os tivesse usado para qualquer coisa. — Tom, viste por ai a Beth?
— Perguntou.
— Não, ainda não chegou — respondeu. — Posso fazer qualquer coisa?
Charlie abanou a cabeça.
— Alguém roubou os meus ratos.
— Roubou? Tens a certeza?
Charlie encolheu os ombros.
— A não ser que Beth fizesse alguma coisa com eles.
— Para que era a experiência? É difícil de repetir?
— Não, era apenas uma experiência que estava a fazer para um amigo
— mentiu Charlie. — Pode repetir-se.
— Ah — Tom estava nitidamente a pensar em qualquer coisa, mas
passou. — Mando lá a Beth logo que ela chegue — declarou.
— Obrigado.
Charlie dirigiu-se ao seu gabinete mas, já no átrio, lembrou-se de que
havia outros ratos, esses, sim, insubstituíveis. Apressou-se a ir lá acima, à
zona de quarentena. Visto que o Darnell tinha entornado o resto dos vírus,
aquelas experiências não podiam ser repetidas. Encontrou à porta o vigilante.
— Estes seus ratos parecem a ponto de dar à luz — comentou.
— Já os viu hoje? — Perguntou Charlie.
— Sim, senhor, ainda não há vinte minutos. Alguns não parecem estar
grávidos, mas cerca de metade aparentam estar no fim do tempo.
Charlie deixou escapar um suspiro de alívio.
— Sim, esperam para depois de amanhã. — Lembrou-se de que
tencionava fazer algumas cesarianas na passada segunda-feira. Talvez quando
Beth chegasse fizessem algumas. Dirigiu-se para o laboratório.
— Quer alguma coisa? — Gritou-lhe o vigilante.
— Não, obrigado — respondeu Charlie.
Já de volta ao seu laboratório, decidiu telefonar para o gabinete de
segurança. Talvez os ratos tivessem aparecido em qualquer outro lado. Mas
estava com pouca sorte.
— Não, senhor, não há notícia de alguém ter ratos a mais. O senhor é
que os tinha da última vez, não era?
— Era — respondeu Charlie irritado.
— Bem, se aparecer alguma coisa, telefonamos-lhe.
Murmurou um «adeus» e pousou cuidadosamente o auscultador no
descanso. Deu consigo a meditar se estaria a ser intrujado por alguém e, se
assim era, por quem. Sentia-se como se estivesse a perder o contacto com a
realidade. «Será que estou a entrar em depressão?» Mas não que raio, o
mundo real é que estava a enlouquecer, não ele. Porque diabo havia alguém
de lhe ter roubado os ratos? Não fazia qualquer sentido.
— Andas à minha procura? — Era Beth.
Charlie franziu o sobrolho.
— Calculo que não te serviste dos ratos para nada ontem à noite? —
Pela expressão dela já sabia a resposta.
— Não. Porquê?
— Desapareceram — disse ele muito calmamente, porque estava
demasiado cansado para se irritar.
Beth é que não esperava.
— Desapareceram? — Gritou. — Que queres dizer com isso? Que ratos?
Charlie pegou numa régua e começou a brincar com ela, focando mais
nela a sua atenção do que em Beth.
— Os ratos do vírus ainda lá estão em cima. Só desapareceram os ratos
do ácido. Desapareceram. Sumiram-se, simplesmente. — Disse aquilo como
se fizesse uma previsão meteorológica das condições do tempo.
— Disseste ao Tom? — Perguntou ela.
— Disse.
— Que tal a reação dele? — Perguntou.
— Atenciosa.
— Ficou surpreendido ou parecia estar à espera?
Charlie encolheu os ombros.
— Beth, pergunta-lhe tu. Eu estou desfeito. Completamente desfeito. Já
não tenho mais forças para empregar nisto. Talvez depois do Disney nascer,
talvez nessa altura. Mas, por agora, não, por favor. — Parecia totalmente
abatido, sentado na sua cadeira e virando e revirando a régua.
Beth explodiu de raiva. Seria que toda a gente a iria abandonar?
— E quanto aos ratos do vírus? Também vais esquecer-te deles? —
Perguntou.
Ele inspirou profundamente e expirou lentamente o ar. Depois, e sempre
olhando a régua disse:
— Não, desses vamos tratar. Esta manhã ainda não havia ninhadas, mas
vou ver amanhã outra vez e todos os dias até terem dado à luz, todos. Pelo
menos farei uma contagem das ninhadas e conservarei metade delas em
formol. A outra metade ficará à espera até serem maiores.
— Eu sei — respondeu ela secamente. — Eu colaborei no planeamento
da experiência. — Parecia que vinham à superfície toda a sua raiva, a sua
frustração e o seu medo. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, depois
virou-se e saiu.
Charlie pousou a cabeça na secretária, tentando ao mesmo tempo pensar
e esquecer tudo. Ficou numa apatia de sonho e de semiobscuridade e nada
mais.
O telefone acordou-o. Olhou para o relógio. Tinha passado mais de uma
hora. Voltou a tocar. Atravessaram-lhe a mente, ainda semiadormecida,
imagens terríveis de Ann, em trabalho de parto duas semanas mais cedo.
Confuso, pegou no telefone.
— Está?
— Charlie? Daqui é Kip.
— Ah, o que há? — Todo o terror e confusão lhe saíram da mente e
ficou por fim completamente acordado.
— Passei por cá para ver o Tommy e saber se tinha descoberto mais
alguma coisa.
— Alguma novidade sobre o Masco? — Perguntou interessado, apesar
do seu cansaço.
— Charlie, está a passar-se algo de estranho.
— Disso não há dúvida. — Charlie sentia o cansaço apoderar-se
novamente dele, bem como o desejo de abandonar tudo e de ir para casa e
ficar apenas junto de Ann. — Continua — disse num suspiro. — Que é
agora?
— Não sei — disse Kip. — Fui a casa do Tommy e bati. Quando abriu e
me viu, bateu-me com a porta na cara. Bati de novo e ele disse-me que me
safasse dali, senão chamava a polícia! Quando gritei durante mais algum
tempo, deixou simplesmente de responder. — Parou, esperando um
comentário da parte de Charlie. — De qualquer modo, fui a uma cabina e
liguei para ele. Quando me ouviu a voz desligou e, quando voltei a telefonar,
não atendeu! — Charlie não dizia nada. — Charlie, estás ai?
— Sim, estou aqui. Temos então outro beco sem saída... Que é que há de
tão surpreendente nisso?
Kip não sabia o que dizer.
— Charlie, não faz sentido!
— Nada disto faz! — Retorquiu Charlie furioso. — Mas eu não posso
fazer nada, está bem?
— Que é que há, hem?
— Não há nada. Estou apenas um pouco cansado, como toda a gente.
Estou farto desta embrulhada.
— Charlie, aconteceu alguma coisa?
— Não, não aconteceu nada... Oh, merda, desapareceram os meus ratos,
mas isso não foi nada, foi apenas a última gota. Estou farto desta história
toda, seja ela qual for. Tudo são becos sem saída, uns atrás dos outros. Talvez
devêssemos aceitar a sugestão e desistir de tudo.
— Charlie, falaste nisso à Beth? — Kip sentia-se desamparado, a duas
milhas de distância.
— Sim — respondeu Charlie — e ela também está fula comigo. Olha,
agora estou ocupado. Depois falo contigo. — Desligou o telefone antes que
Kip pudesse responder e, agarrando no casaco, desalvorou porta fora.
2
Do outro lado do átrio, Beth viu-o sair. «Que se lixe», pensou. «Quando
toca a ser de mais, o bom do Charlie Cotten limita-se a pirar-se. Há de ser um
bom professor.» Ela sabia que não acreditava naquilo, mas era o que sentia.
Já era de mais ter o Fred a não acreditar na sua ideia, mas agora Charlie batia
em retirada a pretexto de que estava demasiado cansado. Sentia-se
completamente só. Do outro lado da sala, atrás dela, ouvia Tom a trabalhar
calma e firmemente. Desde o incidente ele estava ainda mais calmo, falando
com ela ainda menos que antes. Fazia-a sentir que estava a trabalhar em
presença de qualquer força maléfica.
No entanto, uma parte de si acreditava na afirmação de Doc, de que tinha
conspirações metidas na cabeça, e concordava com Charlie em que deveriam
deixar correr as coisas por uns tempos. Compreendia que era uma forma de
esquizofrenia, o facto de não saber se devia ou não acreditar naquilo em que
acreditava. De certa forma, não o fazer seria negar a sua própria realidade.
Sentou-se à sua secretária, demasiado esgotada para trabalhar. Como
precisava fazer qualquer coisa para distrair as ideias, decidiu arrumar a sala
do Bill Hebb. Haveria de certeza algum prazer em apagar os últimos traços
daquele idiota. «Não, idiota não», pensou. «Os idiotas não podem ser
censurados pelos seus atos.»
Foi para a sala ao lado e observou o local. Era um pesadelo onde não
havia qualquer vestígio de ordem. Como é que Tom alguma vez conseguira
dar com os stocks de vírus, era coisa que a ultrapassava. Mas tinha-os
encontrado e destruído, com uma energia invulgar. Porque seria que ele os
teria querido fazer desaparecer tão depressa? Ainda não entendera bem o
Tom.
Começou pelo fundo da bancada. Não havia ordem a estabelecer, nem
organização de qualquer espécie. Até nem conseguia dizer quais os vidros
limpos e sujos. Por fim decidiu que tudo teria de ser esterilizado, por questão
de segurança. Por isso, silenciosa e eficientemente, carregou o carrinho de
material de recipientes cheios de uma coisa que não sabia o que era. Estava
espantada com a quantidade de coisas que tinham cabido na bancada dele.
Quando já não conseguia meter mais nada no carrinho, empurrou-o até
às autoclaves e meteu tudo lá dentro. Ficariam a esterilizar durante meia hora.
«Não», pensou, «é melhor uma hora.» Depois levá-los-ia à lavagem. Ligou as
autoclaves e voltou para o laboratório do Hebb.
Ao canto da sala estava a incubadora onde ele desenvolvera as culturas
de tecidos. Pensou para consigo: «Será que o Tom deixou aqui algumas?» Foi
direita a ela e abriu a porta. Deixara. A incubadora estava cheia de pratos de
células. Teriam de esperar até que os outros vidros estivessem esterilizados,
então poderia tratar deles. Mas isso ainda demoraria uma hora, por isso
começou a dirigir-se para o seu laboratório.
Parou à porta, com um sorriso no rosto. Pensou qual seria o aspecto das
células de supersoja e tentou imaginar a expressão «Altamente secreto»,
escrita em cada célula por um cretino dum funcionário governamental.
Pegando num prato coberto, levou-o pelo laboratório até à tenda esterilizada
onde o Bill devia ter feito o trabalho. A sua limpeza demonstrava o contrário.
Pondo o prato sob um microscópio, tentou focá-lo sobre as células. «Oh, meu
Deus!», murmurou. Estava completamente desfocado. Passou os dez minutos
seguintes a pô-lo em condições, pensando como é que alguém o poderia ter
assim desfocado, mas depois riu-se consigo. Esquecera-se que era do Bill
Hebb que estava a tratar. Finalmente as células no prato saltaram à vista na
lente bem ajustada.
Sentou-se ali, olhando as células e mal respirando. Como num sonho,
dirigiu-se à incubadora e tirou de lá todos os pratos com tecido. Observou as
células que continham, um a um. Por fim, as lágrimas caiam-lhe na lente,
impossibilitando-a de continuar. Onde é que estava Charlie, Fred ou alguém
com quem pudesse falar? Pegou nos pratos e voltou a pô-los na incubadora,
limpou a cara e voltou para o seu laboratório. Ficou ali sentada, tentando
compreender como é que tudo se conjugava. Não eram células vegetais. Eram
células nervosas!
Atrás dela ouviu Tom pôr qualquer coisa no laboratório e sair. Seguiu o
som dos seus passos pelo átrio e ouviu o som de abrir e fechar o que fora o
laboratório de Bill. Uns minutos depois ouviu-a abrir-se e fechar-se de novo e
o som de rodas de um carrinho atravessar o átrio. Sorrindo amargamente, foi
à porta ao lado e observou. Tom tirara da incubadora todos os pratos com
culturas de tecidos. Ainda como num sonho, regressou ao seu laboratório e
sentou-se. Tom deitou-lhe um olhar quando voltou.
— Demasiado tarde — disse ela com um sorriso doloroso.
Ele fixou-a interrogadoramente.
— Já os observei.
Pegando no casaco, saiu antes que ele lhe pudesse responder.
3
O ar frio e húmido fustigou a face de Beth quando saiu do edifício. Os
seus pés viraram à esquerda, dirigindo-se para a área central da universidade,
mas não tinha onde ir. Sentia-se nervosa e assustada pela observação que
fizera a Tom. Fosse o que fosse em que ele estava implicado, já tinha causado
pelo menos a morte de Masco. Tinha havido no rosto dele, quando ela lhe
dissera que tinha visto as células nervosas, uma frieza como nunca vira.
Porque é que havia de lhe ter dito? Era como se ele fosse um reles gangster,
era... Nem sabia o quê.
Precisava desesperadamente de falar com alguém, mas quem? Não podia
ir ter com o Charlie, na disposição em que ele estava. E Doc — rir-se-ia outra
vez? Não poderia admitir isso, agora. Percebeu de repente que era com Ann
que queria falar. Virando-se de repente, dirigiu-se para uma cabina. Mas na
cabina parou. Não tinha falado à Ann nos ratos deformados que tinham
nascido e ela prometera a Charlie que não o diria.
Sentiu-se terrivelmente só, afastada de todos os amigos, afastada pela
própria razão pela qual precisava de ajuda. Compreendeu pela primeira vez
como o assunto do ácido interferira em todos os aspectos da sua vida. Deitou
uma olhadela por cima do ombro, esperando ver o Darnell, mas não havia
ninguém à vista. Chamou um táxi e mandou-o seguir para Common, vendo
sempre se era seguida. Seria que estava a enlouquecer? Se o seu mal era
paranoia, estava agora completa. Compreendeu que estava a fugir dum
desconhecido.
Caminhou pelas ruas de Boston, perdendo-se na multidão, vagueando
por armazéns, tentando desesperadamente distrair-se. Por fim, desesperada,
entrou num cinema, pensando de que é que se esconderiam os outros que lá
estavam.
Por volta das cinco estava exausta. Não querendo ir para o seu
apartamento, decidiu finalmente telefonar ao Doc. Estava semiconvencida de
não estar boa da cabeça. Todos agiam tão bem, tão normalmente. «Exceto o
Ralph Masco», pensou. Precisava de falar com alguém, qualquer pessoa.
Telefonou para o consultório de Doc.
— Olá, Sharon, sou eu. Posso falar com o Fred? — A sua voz soava
perfeitamente normal.
— Ele não está — disse Sharon. — Tomou um avião para Nova Iorque,
para ir investigar a morada daquele tal Greene. Tentou telefonar-lhe, mas
você não estava nem no laboratório, nem em casa, disse ele.
— Ah, não, não estava. Ele disse quando voltava?
— Logo à noite, acho eu. Tem um horário normal para amanhã. Posso
ficar com o recado? — Perguntou em tom encorajador.
— Não, não, eu depois falo com ele. — Desligou o telefone, confusa. No
apartamento dele estaria segura? Patterson também estivera envolvido na
morte de Masco. Sentou-se na cabina, olhando pelo vidro. Sentia-se como se
quisesse ali ficar, protegida pela cabina.
A exaustão invadiu-a e um arrepio de frio atravessou-lhe o corpo. Tinha
de fazer alguma coisa. Levantou-se entorpecida e saiu para o frio, tomando a
direção da casa de Doc. A neve começara a cair, pesada e húmida, enquanto
ela percorria os últimos quarteirões que a separavam do apartamento de Doc,
sempre na expectativa de ser alvejada de um carro que passasse.
Deu a volta à chave e abriu a porta do apartamento. Estava vazio e
quente, e exatamente como sempre estivera. Caminhou de divisão em
divisão, tocando os objetos como para se certificar de que eram reais. Tudo
estava normal. Simplesmente normal. Fechou e voltou a fechar a porta,
verificou as janelas e só então comeu qualquer coisa.
Mais tarde, no fundo do seu espirito, ouviu umas pancadas que lhe
chamavam a atenção. Abriu os olhos no silêncio. O quarto estava às escuras;
adormecera. As pancadas recomeçaram.
— Beth? Estás ai?
Era a voz de Doc. Correu para a porta, lembrando-se de que estava
fechada por dentro, e abriu-a. Era Doc, como habitualmente. As lágrimas
bailaram-lhe nos olhos e, atirando-se para os braços dele, deixou finalmente
expandirem-se todo o medo e ansiedade.
Mais tarde contou-lhe os acontecimentos do dia: o desaparecimento dos
ratos, o facto de Charlie se ter retirado do caso, as culturas de tecido nervoso,
a sua revelação a Tom e a sua fuga pela cidade. Ele escutava em silêncio.
— Isso então já nos diz do papel de Tom — afirmou por fim.
Permaneceu sentado a pensar em tudo.
— Que aconteceu em Nova Iorque? — Indagou Beth.
Doc franziu o sobrolho.
— Era uma falsa pista. Fui à morada e não havia lá nenhum Greene.
Houve alguém que se lembrou que um tal Dr. Greene alugara um
apartamento por um mês e depois se tinha mudado. Aparentemente só o
alugou o tempo necessário para estabelecer uma residência para a caixa
postal.
— Então ele também faz parte disto? — Perguntou ela. — Acreditas
agora em mim, quando digo que se passa algo?
Ele sorriu.
— Acredito, e parece que o Greene também está metido nisto. — O seu
sorriso não era de felicidade. — Mas duvido que estejas em perigo. Duvido
que eles se queiram expor.
— Quem? — Inquiriu Beth. — Quem são eles?
Doc abanou a cabeça.
— Não sei! Não sei mesmo!
Terça-feira, 12 de Janeiro
1
De manhã o chão estava atapetado duma camada de oito palmos de neve,
e não havia sinais de que fosse diminuir. Beth caminhou penosamente pela
neve, acompanhada por Doc, até à paragem do autocarro e depois separaram-
se. Teria sido inútil tentar conduzir. O autocarro subia e descia ruas com
dificuldade, abrindo lentamente caminho até ao centro médico. Temia
enfrentar o Darnell, mas ela e Doc tinham concordado que não poderia
limitar-se a ficar escondida. O pior era saber que ele se iria desfazer em
sorrisos e apresentar alguma explicação para as culturas de células nervosas.
Subiu as escadas e foi direita ao seu laboratório. Ele não estava.
Soltando um suspiro de alívio, dirigiu-se à sua secretária, pendurou o casaco,
sacudiu a neve e sentou-se. No meio da secretária estava um papel. «Beth»,
começava assim, «também observei alguns dos pratos e estou tão confuso e
perturbado como tu. Vou apanhar o avião da manhã para Iowa. Temos de
chegar rapidamente ao fundo da questão. Volto em breve. Tom.» Deitou o
papel para o cesto e riu-se. As suas constantes viagens a Iowa estavam a
tornar-se ridículas. Às vezes chegava a pensar que ele se limitava a ir a casa
dormir uns dois dias.
Mais tranquila, decidiu ir ver se Charlie estava com melhor disposição.
Mas viu logo que não, assim que entrou no gabinete dele.
— Está bem, então está bem — dizia ele ao telefone. — Venha então às
onze, mas não sei o que é que há a dizer-lhe. — Resmungou um adeus e
desligou. — Valha-me Deus! Será que ninguém me deixa em paz com esta
merda!
— Quem era? — Perguntou ela.
Ele olhou o telefone, aborrecido.
— Era o Kip. Aquele amigo dele, o Tommy, de Nova Iorque, aquele que
conhecia o Masco, veio a Boston e quer falar connosco.
— Que é isso de «connosco»?
— É assim. Diz que não dirá ao Kip. Quer é falar connosco. Com o Kip,
comigo, com o Doc, com toda a gente que está metida no assunto. Não tenho
a mínima noção do que ele pretende, nem me interessa.
Beth estava furiosa.
— Bom, paciência, mas lá fora o mundo continua, sabias, Charlie? Não
podes simplesmente fechar-te na torre de marfim! Cala-te e ouve. — Ela
desatou a contar-lhe todos os acontecimentos do dia anterior e o bilhete de
Tom naquela manhã. Depois lançou-se na sua explicação das ligações.
Charlie escutava em silêncio.
— Mas então e o vírus? — Perguntou.
Beth parou.
— Não sei — respondeu, insegura de si. — Mas talvez devêssemos
observar aqueles ratos. Esses pelo menos não foram roubados.
Charlie sorriu, de repente.
— Sabes uma coisa? Acho que aqueles é que deviam ter sido roubados.
Aqueles eram as experiências que não podiam ser repetidas, aquelas por que
Tom perguntou tão inocentemente. Se ele nos ouviu falar nisso... —
Levantou-se. — Vamos ver esses ratos!
Quando se apressaram em direção ao átrio, ouviram o telefone tocar no
laboratório de Beth. Não estava lá ninguém.
— Vai tu — disse ela. — Eu vou atender o telefone e já lá vou ter.
Foi ao laboratório e levantou o auscultador. Era uma voz de mulher.
— Posso falar com o Dr. Darnell?
Beth respondeu cautelosamente.
— Lamento, mas o Dr. Darnell não está aqui neste momento. Podia
deixar-me o recado?
— Bem, está bem — disse a mulher. — Daqui fala Mrs. Kling, da
Copley Square Travel Agency, e telefono para lhe dizer que o voo das onze e
meia para Dulles foi cancelado por causa da neve. Se ele...
— Para onde? — Interrompeu Beth.
— Para o aeroporto internacional de Dulles, em Washington —
respondeu.
— Tem a certeza? — Inquiriu Beth. — Ele fará ali qualquer ligação?
— Sim, tenho a certeza, minha senhora, e não há voos de ligação.
Marquei-lhe este voo várias vezes, nas últimas semanas.
— E foi sempre para Washington?
— Sim, sempre ida e volta para Washington.
Beth sentiu que mais alguma coisa se quebrava.
— Eu dou-lhe o recado — respondeu delicadamente.
— Obrigada.
Beth desligou e, acordando de repente, correu atrás de Charlie.
2
Peter Alder conduzia com velocidade do aeroporto, sem se importar com
a neve traiçoeira. Darnell parecera-lhe quase histérico ao telefone e, se não o
apanhasse em casa antes de sair para o emprego, podia ser que deitasse tudo a
perder.
Aquilo não era do Darnell. Era um dos seus agentes de mais confiança e
de maior nível, era o único contacto com que Alder nunca se preocupara. Mas
fizera mal em depositar nele tanta confiança. Alder apercebeu-se de repente
de que Darnell cometera três erros críticos. Escalonou-os mentalmente:
primeiro, não ter retirado a primeira leva de ratos; depois, ter tirado os ratos
da segunda vez, mas não os substituindo; finalmente, ter deixado que aquele
acidente do derramamento se desse. «Meu Deus», pensou, «aquele acidente
fora há já quase um mês e ainda não fizera nada sobre isso! Aquele problema
tinha-o paralisado completamente.»
Conduziu cautelosamente, ultrapassando o prédio de Darnell, e foi
estacionar na outra esquina. Sentado no carro, tentava desesperadamente
acalmar-se o suficiente para que se não notasse. Finalmente, soltando um
suspiro longo e fundo, saiu naturalmente do carro, fechou-o e encaminhou-se
para o apartamento de Darnell.
Lá em cima bateu levemente à porta. Esperou e bateu de novo, contendo
dificilmente a vontade que sentia de bater com força. Olhou nervosamente
dum lado para o outro do patamar e tirou então do bolso a chave falsa. Era
uma loucura estar ali em Boston. Haveria lá pessoas que se lembravam dele e
dos seus contactos. Isso seria o fim. Isso faria estourar tudo! Empurrou a
porta e entrou.
Instintivamente sentiu que Darnell se tinha ido embora.
Desesperadamente, agora, dirigiu-se para o quarto. Tinha razão. As gavetas
estavam abertas e vazias. Compreendeu de repente o que é que tinha passado
por ele em bicos de pés no átrio. Correndo para fora do quarto, deteve-se no
fogão de sala e remexeu as cinzas ainda quentes. Darnell estivera a queimar
papéis, tinha deixado uma lata de gasolina no chão.
Lutou para se controlar. Agora tinha de ser duplamente cuidadoso, não
só porque Darnell estava declaradamente em pânico e em fuga, mas porque
também ele estava à beira de fazer o mesmo. Enquanto estivesse em Boston,
o projeto e ele estavam em grande perigo. Pelo menos o Darnell tivera o bom
senso de queimar os papéis. Mas teria feito o mesmo no laboratório?
— Porra — murmurou Alder —, tenho de me certificar pessoalmente.
3
O major Stanley Johnson estava de pé em frente da Joint Chiefs of Staff.
O general Westland lá estava, bem como o Pearson. Este leu o relatório,
metade à Joint Chiefs, metade a Johnson.
Em sete de oito cidades, pequenos surtos de gripe eram acompanhados
por um total de mortes entre cento e vinte e cento e trinta e cinco.
»Na oitava cidade parecia não haver casos de gripe que não resultassem
em morte. Em todas, calcula-se que morreram duas mil e quinhentas pessoas
e não havia indícios de paragem da epidemia. Além disto, temos ainda
relatórios das mortes em duas cidades vizinhas. E claro que houve um
portador da doença que a transmitiu a partir da primeira cidade. — Virou-se
para Johnson. — O major Johnson tem ideia do que terá acontecido.
Todos se viraram para Johnson. Ele mudava de pé, com ar de quem está
pouco à vontade.
— Bom, é só um palpite — começou por dizer. — Mas,
fundamentalmente, parece que o vírus da gripe perdeu o gene mutador sem
ter perdido o gene botulino. É possível, mas não é provável.
— Quais as probabilidades? — Perguntou alguém furioso.
— Uma num milhão — calculou Johnson.
— Pouca sorte, Johnson — murmurou alguém.
— Quais vão ser as baixas? — Perguntou outro.
Johnson encolheu os ombros.
— Depende da forma como conseguirem isolar as pessoas infetadas. —
Procurava desesperadamente no seu espirito uma saída, uma solução.
— Se a quarentena falhar?
Johnson encolheu os ombros.
— Toda a gente o apanha.
— E ninguém tem resistência a ele? Ninguém? — Westland estava em
choque. — Absolutamente ninguém?
Johnson pós os olhos no chão.
— Bom, talvez umas cem pessoas. Nós vacinámos o pessoal dos nossos
laboratórios e...
— Ninguém! — Gritou Westland. — Para todos os efeitos, ninguém no
mundo está imunizado?
Stanley Johnson levantou a cabeça e fez um sinal de assentimento.
4
Beth nem podia respirar quando chegou ao pé de Charlie, que estava na
sala dos animais.
— Charlie, ele foi a Washington. O Darnell foi a Washington e não a
Iowa!
Charlie levantou os olhos duma gaiola para onde estava a olhar.
— O quê? — Perguntou, visivelmente irritado com a interrupção. —
Porque é que estás a gritar?
Beth tentou acalmar-se, contando-lhe os pormenores do telefonema.
— Estás a ver? Essa história toda de ir a Iowa é aldrabice. Quem quer
que seja que ele vai ver está em Washington! Ele parecia impassível perante a
afirmação dela.
— Charlie, isso não te afeta nada?
— Não — disse ele com voz furiosa —, já nada me surpreende. —
Parecia disposto a chicotear quem se lhe atravessasse no caminho. Apontou
para as gaiolas. — Olha!
Confusa, ela olhou as duas primeiras gaiolas. Pareciam conter ninhadas
de tamanho normal. Mas na terceira havia apenas um recém-nascido.
— Oh meu Deus, não! — Virou-se para Charlie. O ratito tinha a cabeça
deformada.
Charlie levantou, em silêncio, a parte superior da primeira gaiola e
pegou na mãe pela cauda, sacudindo os ratinhos. Por fim ficaram apenas dois,
ambos visivelmente deformados.
— Mas como? — Perguntou Beth com a voz trêmula de medo. — Como
é possível que estejam na mesma?
— Como? — Perguntou Charlie. — Porque o vírus do Bill Hebb foi pelo
cano abaixo e espalhou-se pelo ambiente e é o mesmo contaminante que os
Gloryhits. O maldito vírus é que causa a deformação!
— Oh, meu Deus — murmurou Beth. — Que é que isso significa?
— Que significa? Pergunta ao Darnell. Como diabo posso saber qual o
seu grau de infecciosidade? Pelo que sei, muito tempo passará antes que
nasçam crianças normais em Boston! — Voltou a meter as gaiolas nas
prateleiras. — Olha lá, haverá alguma possibilidade de o Darnell voltar? —
Sem esperar resposta, saiu do laboratório.
— Não sei — disse ela correndo atrás dele. — O voo dele foi cancelado,
por isso pode voltar. — Mas não havia, lá em baixo, nem sombra de Tom.
— Merda! — Murmurou Charlie. — Não me admirava se ele se tivesse
ido de vez! — Olhou em volta. — Não digas nada a ninguém sobre aqueles
ratos lá de cima. Vamos dar o grande estouro nisto!
— Mas, Charlie, quem são eles? Quem é que o Darnell terá ido ver a
Washington?
— Como é que eu posso saber? — Rosnou Charlie. — Talvez o exército.
Talvez a C. I. A. Que diabo, tanto quanto sei, ele informa a Embaixada da
Rússia. — Calou-se, admirado com a ideia. — De facto — comentou —, não
me surpreenderia se todos três estivessem a controlar este laboratório. Mas
vamos descobrir quem está por trás disto!
— Ah, estás ai? — Kip meteu a cabeça no laboratório. — Bem me
pareceu ouvir a tua voz.
Charlie ficou atrapalhado com a presença dele.
— São onze horas, lembras-te? — Perguntou Kip, que trouxera consigo
Tom.
— Valha-me Deus, Kip, agora não tenho tempo!
— Vá lá, Charlie — pediu Beth. — Acho que devíamos saber o que é
que o Tommy tem para me dizer. — Não precisou de dizer mais. A morte de
Ralph Masco poderia ser a chave da questão.
— Certo — concordou Charlie contra vontade. — Vamos para o meu
gabinete.
Tommy estava lá, sentado, quando eles chegaram. Tudo parecia
fantástico a Charlie. O seu gabinete tinha o mesmo aspecto de sempre:
confortável, acadêmico, cuidadosamente afastado do mundo exterior. Sentiu-
se perdido e confuso com o que estava a fazer.
— Mas Tommy era quem parecia pior. Estava sentado, virado para a
porta, olhando para fora a toda a hora, como um coelho assustado, pronto a
fugir.
— Onde é que está o tal doutor? — Indagou.
— Oh, merda — disse Charlie. — Nunca cheguei a telefonar-lhe. Tenho
estado tão... — Calou-se, lembrando-se novamente do que se tinha passado
naquela manhã. Continuava a vir-lhe à ideia, sempre que podia. —...
Atarefado — concluiu.
— Também quero que ele aqui esteja — disse Tom. — Telefono-lhe
agora.
— Porra! — Trovejou Charlie. — Se quer dizer alguma coisa, diga, ou
ponha-se a cavar daqui! Estou cansado deste jogo estúpido!
Tommy olhou aterrorizado para Charlie.
— Certo! Certo! Valha-me Deus, eu só queria que ele aqui estivesse
também. Posso dizer aos três. Não se exaltem, certo? — Charlie esperava que
ele desembuchasse. Tommy virou-se para Kip. Kip, desculpa ter-te tratado
tão mal quando lá foste, ontem, mas tinha de ser! Esta história do Masco é
algo de tão grande que eu não me quero meter nisso!
— Vá lá — disse Kip tentando acalmá-lo. — Conta-nos lá o que se
passou.
Tommy olhou para os três.
— Bem, eu fui ao apartamento do Masco, na semana passada, quando
voltei. Pensei que descobriria o que eles sabiam. Bom, assim que comecei a
fazer perguntas, caíram-me todos em cima. Pediram-me a identificação e
disseram-me que me prendiam se não a tivesse.
— Quem eram eles? — Interrompeu Charlie.
— Dois tipos. Um chamado Patterson e um baixote de que não me
lembro o nome. — Charlie baixou a cabeça em sinal de entendimento. —
Mostrei-lhes a minha carta de condução e tomaram nota do meu nome e tudo.
Então o baixote disse-me: «Parece-me que você não entendeu.» Não percebia
de que é que estavam a falar. Então o Patterson disse que o Masco se perdera
por meter o nariz onde não era chamado e por falar a estranhos quando não
devia. «E, agora, porque é que você quer meter o bedelho?», perguntou. Não
sabia que dizer. Dei uma desculpa parva e o Patterson disse-me então que eu
fazia melhor esquecer que conhecera o Masco e não falar a ninguém no
assunto. — O seu olhar espantado continuava a dirigir-se para a porta. —
Eles disseram que ficariam a vigiar-me.
— Então porque é que cá veio? — Perguntou Beth.
— Porque pensei que, se dissesse a outras pessoas, eles não podiam
apanhar-me tão facilmente, porque havia quem soubesse que me tinham
ameaçado!
— Teria sido seguido? — Perguntou Charlie. Não queria que esse
Patterson, fosse lá ele quem fosse, soubesse quantos dados já possuíam.
— Não... — Respondeu Tommy. — Eu vim de carro e não havia
maneira... — Os outros não viram o homem entrar. Só viram a cara de
Tommy ficar cor de cinza e os lábios começarem-lhe a tremer. — Oh, meu
Deus — murmurou, colando-se às costas da cadeira. — Conseguiram seguir-
me.
Charlie virou-se e olhou para a porta, onde não estava ninguém.
— Que é que está a dizer?
— O amigo de Patterson acabou de entrar. — Olhou desesperadamente
em volta do gabinete. — Têm de me esconder... Por favor, têm de me
esconder!
Charlie apontou para o divã e ele e o Kip começaram a afastá-lo da
parede, enquanto Beth se dirigia ao átrio. Viu um vulto dirigir-se para o seu
laboratório. Aterrorizada, seguiu-o, incapaz de evitar a confrontação. Entrou
cuidadosamente no laboratório.
— Olá, Beth. — Esta saltou ao ouvir a voz de Jim Karls que avançava
para a cumprimentar. — Lembras-te de mim? Em Squaw Valley?
— Ela fez um sinal de concordância.
— Claro! — Disse. — Quero dizer, é claro que me lembro. — Tentou
sorrir mas não conseguiu.
Karls pareceu não dar por isso.
— Ando à procura do Tom. Ele está por ai?
Não confiando na voz, ela acenou com a cabeça. Ouvia atrás de si as
vozes de Charlie e de Kip, que se encaminhavam para o átrio. Ouviu-os
entrar no laboratório, mas não se virou.
— Charlie, Kip — disse, com voz trêmula este é o Jim Karls dos
encontros de Squaw Valley.
Charlie murmurou qualquer coisa, entre a respiração, que Beth não
conseguiu ouvir. Mas ouviu Kip dizer: «Tens razão!» Kip passou por ela
olhando mais de perto para Karls.
Este olhou nervosamente para ele e depois para Charlie, que se deslocara
para bloquear a porta. Karls sorriu e estendeu a mão a Kip.
— Muito prazer.
Kip limitou-se a olhá-la. Sorrindo de forma tensa disse para Beth, sem
tirar os olhos de Karls:
— Beth, gostaria de te apresentar um velho amigo de Charlie e meu. O
Peter Alder.
Karls empalideceu. O reconhecimento foi mútuo. O seu espirito corria.
Que saberiam eles do projeto? Se soubessem do que se tratava, estava tudo
acabado, com certeza. Desesperadamente, instintivamente, tentou esconder-
se.
— Desculpe — respondeu —, deve ter-me confundido com outra
pessoa. O meu nome é Jim Karls. — Tentou, em vão sorrir.
— Lembras-te. Beth? — Disse Charlie por detrás dela, com uma voz
surpreendentemente ameaçadora. — O tal agente provocador que Kip
descobriu que trabalhava para a C. I. A.? Lembras-te que Doc disse que eles
eram espertos de mais para o deixarem em Boston, onde poderíam
reconhecê-lo? Parece que afinal não são assim tão espertos!
Por um momento Karls gelou, depois aproximou-se lentamente da porta.
— Isto é absurdo! — Gritou, e tentou empurrar Charlie para sair. Mas
Charlie agarrou-o por um braço e não o largou.
— A maldita C. I. A.! — Gritou-lhe na cara. — Isto já põe ordem nas
coisas, não põe, Beth?
Beth olhou para Karls.
— A tua pergunta em Squaw Valley! Perguntaste se seria possível
produzir gênios provocando o aumento do crânio. Todos se riram da
pergunta, mas tu já estavas a pô-la em prática.
— Duvido — rosnou Kip. — É mais provável que estivesse a testá-la.
Tenho a certeza de que, se conseguissem que a coisa resultasse, seria a C. I.
A. que produziria os gênios para seu próprio uso e de mais ninguém.
Karls mexeu-se para se soltar, mas Kip agarrou-o, também.
— Não vais a lado nenhum enquanto nós não dissermos! — Gritou Kip.
Os dois arrastaram-no até à secretária de Darnell e obrigaram-no a sentar-se.
De repente Karls apercebeu-se de que o jogo tinha acabado e vociferou:
— Seus grandes estúpidos! Vocês deixavam este país ir por água abaixo
até todos nos porem os pés em cima! Nós podíamos produzir seres humanos
que governariam o mundo, um mundo americano!
Começou a falar mais, mas o telefone tocou. Charlie deitou um olhar a
Beth.
— Pode ser o Tom. Atende! — Virou-se para Karls. — Se emites um
som, ficas sem dentes! — Pegou num martelo que estava em cima da
bancada e ergueu-o ameaçadoramente. Beth respondeu.
— Sim, está, mas pode telefonar-lhe depois? — Escutou e empalideceu.
— Só um momento — murmurou. Virou-se para Charlie, sabendo que era
cedo, era muito cedo. — É para ti — disse, dando-lhe o telefone.
Sem compreender, Charlie entregou a Kip o braço de Karls e pegou no
telefone.
— Está, Charlie?
— Sim.
— É a Ann. Vem buscar-me. Já estou em trabalho de parto. Vamos ter o
bebe. Vem duas semanas mais cedo.
Ela nunca se sentira tão contente.
POSFÁCIO
Ficção científica ou facto científico?
Quando este romance foi concebido, a engenharia genética, a ciência do
ADN recombinante, era um campo novo, quase desconhecido fora dos
círculos científicos profissionais. Mas desde então tem crescido, quer nas
suas capacidades tecnológicas, quer no interesse do público. Assim, ao
terminarmos o romance vimo-nos confrontados de quão verosímil é agora a
linha-mestra da história. Como resposta parcial a essa pergunta, delineamos
este posfácio, que trata de algumas das ideias levantadas no romance. A
resposta definitiva tem, infelizmente, de esperar pela decisão dos futuros
escritores.
A C. I. A.
Em Junho de 1975, a Comissão Rockefeller para a C. I. A declarou que,
durante os anos 40, 50 e 60, a C. I. A. levou a cabo estudos sobre certas
drogas com influência no comportamento, tais como o LSD. Já em 1953,
estas drogas eram aplicadas a indivíduos sem o seu conhecimento, testes
estes que causaram pelo menos uma morte [1], Mesmo assim, esses testes
prosseguiram até 1963. Nunca se saberá quantos testes deste tipo foram
efetuados, visto que a maior parte dos registos relacionados com este
programa (cerca de 150 processos, ao todo), foram deliberadamente
destruídos em 1973.
Não está esclarecido até que ponto o exército ou até o presidente têm
conhecimento de tais testes. Em 1975, foram descobertos os stocks de
venenos do sistema nervoso, em quantidade suficiente para matar dezenas de
milhares de pessoas. Violando abertamente os tratados internacionais
assinados pelos Estados Unidos, os stocks foram mantidos, mesmo depois de
ter sido ordenada, pelo então presidente Ford, a destruição de todas as armas
de guerra biológica [2].
Não se pode saber se a C. I. A. encararia a possibilidade de enveredar
por um projeto de criação duma «raça superior». Contudo, essa ideia não é
daquelas universalmente rejeitadas, mesmo por conhecidos cientistas. Há
tempo, em 1962, tais ideias foram discutidas, em Londres, na conferência da
Fundação CIBA [3]. Uma ideia aí discutida era a do aumento do número de
células do cérebro num indivíduo, injetando uma hormona no feto em
desenvolvimento, antes que o número definitivo de células cerebrais esteja
constituído. Outra seria a utilização de vírus como veículos de novo ADN,
nos fetos humanos, produzindo assim modificações hereditárias nos genes.
Estas duas ideias, em conjunto, constituem o projeto da C. I. A., apresentado
neste romance.
As forças militares
Se os militares ainda não produziram nem experimentaram o tipo de
gripe botulina de Stanley Johnson, não foi à falta de o terem já tentado.
Publicações científicas provenientes, durante os anos 60, de Fort Detrick, o
«laboratório militar de pesquisas para a defesa biológica», sugeriam que
estavam a investigar ativamente a peste, o carbúnculo, a febre-amarela, a
febre Q, a tularemia, a encefalomielite, entre outras doenças [4]. Há também
fortes indícios de que o exército chegou mesmo a armazenar agentes de
guerra biológica no Sueste Asiático, durante a guerra no Vietname [5]. Em
1972, um relatório vindo de Detrick discutia as tentativas de engenharia
genética [6]. Este documento relatava as tentativas de transferência de genes
da peste bubônica para outras bactérias menos perigosas. Estas experiências,
que foram declaradas infrutíferas, poderíam talvez ser feitas com relativa
facilidade utilizando as novas técnicas de enzimologia de ADN
recombinante.
Quanto a testes militares com esses agentes, foram recentemente
fornecidas informações relacionadas com os testes de guerra bacteriológica,
levados a cabo pelo exército, dentro dos Estados Unidos. Entre 1949 e 1969,
o exército levou a cabo 239 testes de guerra bacteriológica ao ar livre em S.
Francisco, Nova Iorque e Key West, na Florida. Um teste efetuado em S.
Francisco, utilizando o que se considerava como sendo um tipo inofensivo de
bactéria, Serratia marcescens, foi seguido de onze casos de pneumonia tipo
Serratia e de uma morte. Apesar disso, foram utilizadas as mesmas bactérias
em 1966, em testes levados a cabo na rede de metropolitano de Nova Iorque
[7], Não sabemos se foram feitas mais experiências de campo ou se foram
utilizadas substâncias mais perigosas, mas talvez valha a pena não esquecer
que uma arma que nunca foi testada não é de confiança e portanto é inútil na
preparação de planos estratégicos.
Teoricamente, o desenvolvimento e armazenamento de material de
guerra biológica está proibido por tratado internacional. A efetividade dessa
interdição é que não está bem clara. As negociações sobre um tratado
semelhante, que proibiria o material de guerra química chegou a um impasse
pela invenção «dos agentes binários» [8]. Estes são recipientes que contêm
dois químicos inofensivos, separados por uma fina parede, a qual, uma vez
perfurada, origina a mistura dos dois compostos e a produção dum gás de
nervos, altamente mortal. A justificação apresentada pelo exército é a de que,
até que a fina parede seja perfurada, coisa que não acontece antes de a arma
ser utilizada, não existe «o gás de nervos mortal» — e assim o
armazenamento desta arma não está a violar o tratado. Resta-nos, pois, pensar
que, partindo destas «subtilezas», se irá permitindo o armazenamento de
armas de guerra biológica.
Empresas industriais
Um interessante grupo que ficou fora de cena, durante o recente afluxo
de atenção prestada à engenharia genética, têm sido as empresas industriais
interessadas na aplicação desta tecnologia. Além da indústria agrária, as
maiores empresas industriais metidas no assunto são as firmas farmacêuticas.
Como as forças militares e os serviços secretos, são talvez as maiores
ameaças no sentido do uso malévolo da engenharia genética. Estas indústrias
põem provavelmente a maior ameaça de danos involuntários, quer aos seres
humanos, quer ao meio ambiente.
Já não faltará muito tempo para que as empresas farmacêuticas venham a
utilizar microrganismos específicos na produção de compostos de uso clinico,
tais como a insulina e as hormonas de crescimento humano. Os lucros
envolvidos em tais produções de bactérias são astronômicos. Mas, para essas
companhias, o lucro depende de ser o primeiro e a regra tende a ser a
velocidade, em vez da segurança. Podemos encontrar casos e casos de
acidentes industriais que causaram danos graves, quando não fatais, em
funcionários da fábrica e a residentes na área circunvizinha. Um dos mais
graves foi o da ICMESA, uma associada da Hoffman-La Roche, que libertou
no ar, acidentalmente, quatro libras e meia de dioxina química, contaminando
cerca de 10 000 acres de terra, próximo de Milão, em Itália [9], O composto é
tão poderoso que uma trilionésima parte mata uma cobaia. Foi declarado que
uma reclamação dos residentes na zona foi retida a pedido da companhia e só
foi entregue quando vários residentes foram hospitalizados. Noutro caso foi
pedida uma indenização de muitos milhões de dólares à Allied Chemical
Corporation, relativamente aos danos causados a vários funcionários da
fábrica que trabalhavam com o pesticida kepone. Ao anunciar a decisão, o
juiz declarou que elementos executivos da empresa tinham deliberadamente
retido queixas de funcionários que já apresentavam sinais de danos
neurológicos, queixas que informavam que os pesticidas com que
trabalhavam tinham todas as probabilidades de estar na origem das suas
afecções neurológicas [10].
Parece provável que a utilização industrial da engenharia genética
levantará em breve os mesmos problemas que estão a ser hoje em dia
levantados pelas fábricas de energia nuclear, onde o medo duma catástrofe
tem sido uma força extremamente poderosa no sentido de acautelar [11].
Ataque, acidente ou coincidência?
Negando os riscos da pesquisa no campo da engenharia genética, diz-se
que um conhecido cientista afirmou recentemente que, ao fim de quatro anos
de trabalho no ADN recombinante por todo o país, nem uma única doença
tinha resultado. Esta declaração aponta para um dos maiores perigos deste
tipo de pesquisas. Como é que se pode identificar uma doença que foi
causada por uma nova bactéria ou um novo vírus experimental, recentemente
sintetizado?
Com fábricas de energia nuclear é fácil detectar a radioatividade em
zonas que podem ter sido afetadas. Mas com organismos biológicos, como é
que se sabe o que se procura? Como é que se distingue um vírus ou uma
bactéria geneticamente construído doutro normal e que até provavelmente
nunca tinha sido detectado? E com a preocupação da indústria tentando
encobrir os acidentes ou até fornecendo propositadamente dados falsos sobre
o perigo dos seus produtos [12], como é que se poderia distinguir entre a
libertação acidental dum novo organismo poderoso e um ataque?
Dois acontecimentos estranhos ocorreram no princípio de 1976. Em
Fevereiro, várias centenas de soldados, do forte Dix, em Nova Jérsia, foram
atacados de gripe. Morreram pelo menos doze, incluindo um de dezoito anos,
e estavam aparentemente atacados por um tipo de vírus «novo e mais
alarmante» [13], O resultado foi uma ordem presidencial para se imunizar os
Americanos contra este novo tipo de gripe suína, assim chamada pela
semelhança com aquela que normalmente ataca os porcos. Mas, enquanto
milhões de americanos estavam a ser vacinados, a doença desapareceu
estranhamente, sem que se registasse mais um só caso em todo o país. Era
como se a doença tivesse sofrido uma mutação.
Em Julho, decorridos uns escassos cinco meses, a Doença do Legionário
atacou em Filadélfia. Registaram-se 129 casos, incluindo 28 mortais. Se bem
que os primeiros sinais fossem duma infecção bacteriana diferente de algo
anteriormente conhecido, não está esclarecido se alguma vez a verdadeira
causa virá a ser conhecida [14].
Naquela altura não se encarou a hipótese de a doença ser resultante de
pesquisas de guerra bacteriológica, e tanto a C. I. A. como o exército
gravaram desmentidos de qualquer ligação com o surto [15]. Em Setembro,
outros relatórios sugeriram que a doença fora o resultado dum teste secreto
russo sobre guerra biológica [16]. Entretanto, a doença mortal desaparecera
sem deixar vestígios e sem provocar infecções secundárias. Como se tivesse
sofrido uma mutação.
Assim permanece a questão intimamente ligada à pesquisa com vista à
produção de formas imprevisíveis de vida viral e bacteriana: como é que se
diferencia, numa miniepidemia, um acidente de um ataque? Até se
descobrirem respostas seguras a esta pergunta, permanece como um grave
problema o risco de acidentes não detectados ou de ataques.
As universidades
A maior parte da atenção prestada ao controlo e possível interdição das
pesquisas do ADN recombinante tem partido do mundo acadêmico. A razão
para que assim seja reside no facto de terem sido os membros desta
comunidade os primeiros a levantar sérias questões relacionadas com estes
perigos possíveis [17], O resultado delas foi a Conferência de Asilomar sobre
Moléculas de ADN Recombinante, patrocinada pela National Academy of
Sciences. A conferência, que incluía sobretudo investigadores acadêmicos,
mas também representantes da indústria e do Governo, traçou
deliberadamente diretrizes que sugeriam a restrição de muita desta
investigação a instalações de segurança especiais e recomendavam a
proibição de certos tipos de pesquisa em ADN recombinante [18], O National
Institute of Health8 (NIH), uma subdivisão do Departament Health,
Education and Welfare9, instituiu subsequentemente diretrizes semelhantes,
as quais se tornaram compromissos legais para os investigadores subsidiados
pelo NIH.
O futuro
Tal como aqui foi dito, não há restrições legais a qualquer investigação
de engenharia genética, ao seu desenvolvimento e produção, salvo nos casos
subsidiados pelo NIH. As empresas industriais não estão sujeitas a qualquer
controlo e o mesmo acontece com a pesquisa acadêmica não subvencionada
pelo NIH. A única legislação apresentada ao Congresso, até à data, e que
estabeleceria restrições a este tipo de pesquisa a nível nacional, foi retirada
pelos seus próprios patrocinadores em Novembro de 1977, depois de grande
movimentação por parte dos investigadores. Se bem que ainda haja discussão
sobre a legislação federal, esta está por materializar — e se essa lei virá a
controlar a produção industrial, bem como a investigação, é o que ainda não
sabemos. Pareceria despropositado, em relação ao estabelecido, serem
impostas restrições à pesquisa acadêmica que não fossem aplicáveis
igualmente, se não mais rigidamente, à pesquisa industrial, ao
desenvolvimento e á produção.
Quer na academia, quer na indústria, a fama e a fortuna esperam os
investigadores que deem os primeiros passos em «grandes descobertas» neste
campo. O resultado destes incentivos é a veemente competição, na qual a
velocidade é fundamental. E é em tais circunstâncias que aumenta o perigo de
violações da segurança intencionais ou acidentais. Em Junho de 1977, uma
equipa de investigadores da Universidade da Califórnia, em S. Francisco,
revelaram que tinham isolado o gene controlador da produção de insulina e
que o tinham transferido para uma bactéria. A equipa, que tinha vindo a
competir com uma semelhante de Harvard, recebeu as aclamações mundiais
pelo seu feito. Mais tarde descobriu-se que a equipa da UCSF tinha utilizado
no seu trabalho métodos proibidos pelas diretrizes da NIH. Apesar dum
desmentido de violação intencional da lei, foi declarado que «ficara assente
que toda a gente sabia que o método não era garantido [19]. Além disso, um
investigador da UCSF queixou-se de que «as pessoas deixavam de falar
quando se entrava na sala, ou mudavam de assunto quando se tentava falar de
como ia o projeto da insulina» (19). Parece razoável que, para os mais
perigosos tipos de pesquisa, nos quais se têm de tomar medidas muito severas
para evitar a fuga de bactérias e vírus potencialmente perigosos (de nível P3 e
P4), deveriam ser construídas uma quantidade de instalações. Parece
vergonhosamente ameaçador o facto de se permitir que cada universidade e
cada empresa farmacêutica possa construir as suas próprias instalações, para
se poder integrar na corrida ao lucro e à fama. Talvez aqui, onde os riscos são
maiores, os grupos industriais e acadêmicos deveriam ser chamados a
colaborar, para reduzir ao mínimo a repetição de experiências potencialmente
perigosas.
Não falamos no controlo das utilizações da engenharia genética, feitas
pelas forças militares e pelos serviços secretos. Além de estarem proibidos
por tratado internacional, parece bem claro que este trabalho não devia ser
permitido. Mas não cremos nestas promessas e protestos e pensamos que, da
forma como as coisas estão neste momento, é impossível controlá-las. Isto
leva a uma infinidade de ambiguidades. Temos estado a falar como se a
investigação militar, industrial e acadêmica fosse composta de três entidades
distintas. Realmente, nada há de menos verdadeiro, pois que o dinheiro das
forças militares e da indústria é que sustentam a investigação acadêmica e os
investigadores industriais e os acadêmicos oferecem-se aos militares como
consultores. Por isso, quando se apoia um apoia-se qualquer dos outros três.
E por agora não há saída para este dilema.
Resta-nos um certo medo e uma certa esperança. Não há dúvida de que
existem possíveis benefícios, na tecnologia da pesquisa e desenvolvimento do
ADN recombinante e que este desenvolvimento e pesquisa acarretam graves
riscos. Ao abordarmos este dilema, há dois pontos que devemos ter presentes.
Primeiro; não há panaceias nisto do aparecimento do ADN recombinante.
Não há curas para o cancro, doenças cardíacas e defeitos congênitos,
previsíveis nestes meses ou anos mais próximos. Segundo: pode surgir a
qualquer momento um acidente e as consequências poderíam ser mais graves
que todos os benefícios juntos. Se bem que isso não seja provável, continua a
ser possível a humanidade ser destruída por um erro.
REFERENCIAS
«Relatório ao Presidente pela Comissão para as atividades da C. I. A.
dentro dos Estados Unidos». U. S. Govemement Printing Office.
Washington. 1975. P. 226ff.
New York Times, 17 de Setembro de 1975. P. 1
Ver G. Wolstenholme, ed., Man and his Future. Churchill. Londres.
1963
S Hersh, Chemical and Biological Warfare: America's Hidden Arsenal.
Bobbs-Merril, Nova Iorque 1968, p. XIII.
J. Cookson & J. Nottingham. A Survey of Chemical and Biological
Warfare, Sheed and Ward, Londres, 1969, p. 310.
W. Lawton & H. Stull. Journal of Bacteriology, vol. 110, Pp. 926-929,
1972.
New York Times, 9 de Março de 1977, P. 1.
Nature, vol. 253. Pp. 82-83, 1975.
New York Times, 29 de Julho de 1976. P. 3, e 31 de Julho de 1976, p. 3.
[10] New York Times, 6 de Outubro de 1976. P. 1. e 31 de Dezembro de
1976, p. 20.
[11] Ver por exemplo, «Too Hot to Handle», by R. Severo, New York
Times Magazine, 10 de Abril de 1977.
[12] Nature, vol. 264. Pp. 308-309, 1976.
Time Magazine, 5 de Abril de 1976, p. 50.
Morbidity and Mortality Weekly Report, 3 de Setembro de 1976, p. 271
ff.
[15] New York Times, 8 de Agosto de 1976. P. 1. e 31 de Agosto de
1976, p. 11.
National Examiner. 27 de Setembro de 1976. P. 5.
Science, vol. 181. P. 11 14, 1973.
Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 72, pp. 1981-
1984. 1975.
Science, vol. 197. P. 1342, 1977.
NOTA BIOGRÁFICA
BOB STICKGOLD (doutorado em Bioquímica pela Universidade de
Wisconsin) é um cientista investigador de neurobiologia na Faculdade de
Medicina de Harvard. De 1972 a 1975 foi membro pós-graduado do
Conselho da Universidade de Stanford, nos departamentos de Genética e
Bioquímica. É autor ou coautor de onze artigos publicados, sobre genética e
neurobiologia. É casado e tem uma filha Gosta de praticar squash e ciclismo.
MARK NOBLE (doutorado em Genética pela Universidade de Stanford)
é membro pós-graduado do Conselho da Universidade e trabalha em
neurobiologia no departamento de Zoologia do University College de
Londres. Casado com Barbara Hyams, é um conhecido ilustrador de
medicina e um emérito cavaleiro
Notes
[←1]
Ácido desoxirribonucleico. (N. da T.)
[←2]
Serviços Secretos Militares. (N. da T.)
[←3]
Institutos nacionais de saúde. (N. da T.)
[←4]
Academia Nacional de Ciências. (N. da T.)
[←5]
American Medical Association (Ordem dos Médicos americana).
(N. da T.)
[←6]
Rede de Pesquisa Epidemiológica. (N. da T.)
[←7]
Junta de Chefes de Estado-maior (N. da T.)
[←8]
Instituto Nacional de Saúde. (N. da T.)
[←9]
Ministério da Saúde, Instrução e Bem-Estar. (N. da T.)