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Operação Macho Alfa

A História de Babelyn

Copyright © 2018 R. B. MUTTY


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução não autorizada.

Esta história é parte da série O Amante do Tritão. Recomenda-se a leitura de O Príncipe da


Revolução antes da leitura deste livro.

Design da capa:
R. B. Mutty

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Sumário
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Epílogo 01
Capítulo 01

Mais uma vez eu vasculhei a caixinha de correio, enterrando


a mão até o fundo como se uma carta pudesse brotar por mágica.

Nada ainda, mas que inferno!


Frustrada, eu voltei para dentro da casa, às vezes espiando
para trás. Vai que o carteiro aparecesse bem quando eu estava de
costas? E então começaria a chover e as cartas derreteriam e…

Aaah, eu iria ter um ataque cardíaco!

Tentando recuperar a razão, eu fechei a porta e me escorei


nela, massageando minhas têmporas doloridas. Uma sereia da
ciência precisava ser racional. Não havia como alguém de dezessete
anos ter um ataque cardíaco por simples ansiedade, ainda mais uma
jovem saudável e enérgica como eu.

É isso aí, pensar cientificamente sempre me acalmava… só


que não. Quando notei, eu já estava na janela de novo, espiando
aquela maldita caixinha de correio com os dedos e o nariz grudados
no vidro. Ainda era fim de tarde, faltavam vinte e dois minutos e trinta
segundos para encerrar o expediente dos carteiros, então era
perfeitamente possível que minha carta chegasse ainda naquele dia.
Alguém puxou a barra da minha saia, me distraindo do meu
colapso nervoso.
Eu olhei para baixo e era o Cael. Em suas mãozinhas ele
segurava um pacote de batata frita congelada.

“De onde você tirou isso, Cael?” Eu perguntei, intrigada.


Nunca que um menino de cinco anos conseguiria alcançar o freezer.

“Faz pa eu?” Perguntou ele, com seus olhinhos cintilando em


pura meiguice.
Ai, mexer com culinária humana não era o meu talento.
Mesmo que eu vivesse entre humanos desde a infância não consegui
tomar gosto por sua culinária elaborada, e além do mais, batatas
eram super venenosas para o povo do mar. Não havia problema em
apenas manuseá-las, mas eu preferia não interferir na criação das
crianças.

Felizmente, logo o senhor Alisson apareceu para me salvar


daquela situação.
“Cael, onde você conseguiu isso?” O senhor Alisson pegou o
menino no colo e tentou cuidadosamente separá-lo o pacote sem
iniciar um berreiro. “Michel! Seu filho descobriu as batatas fritas na
sacola de compras!”

“Já vou resolver!” O Doutor Michel gritou da cozinha.


“Alguém disse batata frita?” Miranda chegou correndo, com
Domenic logo atrás. “Eu quero, eu quero!”

“Eu também!” Disse Domenic, e os dois se penduraram nas


pernas do Alisson como lobos famintos.

Ahm… talvez eu devesse lembrar que a perna prostética do


senhor Alisson não foi feita para crianças se pendurarem? Eu nunca
me acostumaria com a casa tão barulhenta e cheia.

Assim que o Doutor Michel apareceu da cozinha, com o


avental todo manchado de creme verde, ele tentou explicar para as
crianças alguma coisa sobre sopa de ervilhas e refeições saudáveis,
o que causou uma polêmica generalizada entre seus três filhos
adotivos. Crianças humanas pareciam ter dependência química por
alimentos sem valor nutritivo.

Enquanto eu assistia a confusão, com crianças correndo,


gritando e pulando por cima do sofá enquanto o Doutor tentava
resgatar o pacote de batatas, eu me perguntei como consegui
estudar em um ambiente tão caótico por tantos anos.
Eu morava com o Doutor Michel e o senhor Alisson desde os
meus oito anos, antes mesmo deles se casarem. No começo a gente
vivia em uma casinha modesta, junto com o Maikon e às vezes o
Shane, dois humanos meio loucos mas bem legais e interessantes.
Quando o Maikon e o Shane foram embora, o Doutor Michel e o
senhor Alisson decidiram se casar e começar sua nova vida em uma
linda mansão, que o Doutor Michel comprou com seu salário de
diretor de obstetrícia do Hospital de Honolulu. Poucos anos após o
casamento chegaram os três filhos adotivos, e com eles o fim de
qualquer tranquilidade.

Não era como se eu odiasse crianças. A Miranda, o Domenic


e o Cael eram adoráveis e até serviam de cobaia para meus
experimentos científicos às vezes, mas… como explicar… era difícil
assistir a energia daquela família sem reparar no fato de que eu fazia
apenas isso: assistia.
O Doutor Michel e o senhor Alisson nunca foram meus pais,
óbvio, mas batia certa dorzinha quando eu notava que, pouco a
pouco, o meu espaço na vida deles diminuía.

Falando nos meus pais, minha gratidão a eles era


imensurável, pois eles permitiram que uma sereia vivesse entre
humanos a fim de aprender sua cultura e avanços científicos, e eu
também era profundamente grata ao Doutor Michel e ao senhor
Alisson por me acolherem como filha de tutela, mas era evidente o
quanto aquele não era mais o meu lugar.

Se aquela carta não chegasse, eu nem queria imaginar o


tamanho do meu desespero.

Distraída pelos meus pensamentos amargos, fui


surpreendida por um toque gentil no meu ombro. Era o pobre do
Doutor Michel, todo descabelado e exausto, mas sorridente. Ele era
o tipo de cara que sorria sempre, especialmente quando sentia estar
fazendo coisas boas por outras pessoas. Por mais caótica que fosse
a sua nova vida, eu precisava admitir nunca tê-lo visto mais feliz.

“Nada ainda?” Ele olhou pela janela comigo.

“Talvez o carteiro tenha sido atropelado.” Eu disse.

O Doutor Michel riu alto e afagou minha cabeleira loira,


bagunçando as maria-chiquinhas que eu prendi com certo cuidado.
Eu não me considerava neurótica pela minha aparência, mas preferia
que ele lembrasse que eu já não era uma criança.

“Você fez tudo o que poderia ter feito, Babelyn, é a melhor


aprendiz que este velho médico poderia ter tido. Aquela universidade
seria louca em rejeitar um talento como o seu.”
“Obrigada, doutor.” Eu dei uma cotoveladinha nele, o
provocando. “E o senhor não é velho, tá bom? Que tipo de velho
trabalha doze horas por dia e ainda volta pra casa para fazer o jantar
e perseguir crianças?”

“Eu não persigo crianças, eu só… tento alcançá-las por


bastante tempo.” O doutor riu com uma doçura que apenas ele sabia
ter, então reparou em seu reflexo no vidro da janela. Ele ajeitou os
cachos da franja com os dedos. “Droga, estou bagunçado de novo,
não estou? O Alisson prefere meus cachos pra esse lado, e
curvando assim, eu acho… será que eu deveria cortar?”

“Você está sendo neurótico de novo.” Eu puxei as mãos dele


antes que arrancasse alguma mecha. “Ei, o irmão Dylan me convidou
para caçar com ele esta noite, mas posso ajudá-lo com a louça
antes, e aí o senhor…”

Um sininho ecoou do lado de fora. Ah, pelos sete oceanos!


Era a buzina de uma bicicleta!!

“Eu quem sou neurótico, é?” Doutor Michel arqueou a testa,


me assistindo deslizar os dedos no vidro que nem um cachorro diante
de uma máquina de frangos.

Aaaaah, era ele, era ele sim! O carteiro parou sua bicicleta
diante do nosso jardim, colocou algo na nossa caixinha e seguiu
pedalando até sumir de vista.

Eu e o doutor Michel trocamos olhares estáticos e surtados.


Ele podia fingir-se de tranquilo para me acalmar, mas com certeza
estava tão ansioso como eu pelo resultado.
“Você busca, ou eu busco?” Perguntou ele.
“Eu, aliás, você, aliás… As minhas pernas não se mexem!”
Eu tremia e saltitava no lugar, histérica e com o coração a mil.

“Calma, vai dar tudo certo, nós estudamos muito juntos e…


ok, eu vou! Aliás, melhor você ir! E se não for a carta certa?” O
doutor Michel entrou no modo chilique total.

Nós dois surtamos diante da janela que nem uma dupla de


gazelas, até que o senhor Alisson chegou entre nós e estendeu um
retângulo de papel.
“Eu mesmo fui buscar.” Disse o senhor Alisson, nos
desferindo um leve olhar de desaprovação. “Michel, precisamos
aumentar a dose do seu calmante?”

Eu ignorei o comentário daquele chato do senhor Alisson e


arranquei a carta das mãos dele. Era exatamente o que eu
esperava. No longo envelope branco havia o rebuscado brasão da
Universidade de Harvard em impressão dourada e logo abaixo o
nome do destinatário: Babelyn Makaira.

Esquece o que eu disse sobre ser impossível ter um ataque


cardíaco. Eu morreria ali mesmo, era emoção demais para uma
sereia tão baixinha e magricela como eu.

O doutor Michel me conduziu ao sofá da sala e sentou


comigo, super nervoso e preocupado.

“Babelyn, não importa o resultado, eu quero que saiba que


você fez o seu melhor e eu sempre estarei aqui para você.” Disse o
doutor Michel.

Eu agradeci com um gesto da cabeça e então, tremendo


mais do que algas na correnteza, comecei a rasgar o cantinho do
envelope.

Pouco a pouco, eu puxei o fatídico papel interno. O papel


que decidiria todo o resto da minha vida.

O nervosismo chegava a borrar minha visão. Precisei ler


várias vezes até confirmar o que estava escrito.
“Eu… eu passei.” Eu disse.

O senhor Michel pegou a carta e leu brevemente, então abriu


um sorriso enorme. Ele me abraçou e falou um monte de coisas que
eu nem consegui ouvir, porque eu chorava que nem uma louca.

Comovida além dos limites, eu abracei o doutor e tentei


agradecê-lo, mas acho que minha voz nem saía em meio a tantas
lágrimas.

Meses de estudo árduo e noites em claro, lendo muitos livros


complicados e treinando com provas simuladas que o doutor Michel
corrigia dia após dia, com seu pouco tempo livre. E no final tudo
valeu a pena.

Eu realmente consegui passar na Faculdade de Medicina de


Harvard. Um grande passo para uma sereia e um passo ainda maior
para mim.

Enfim, o meu grande sonho poderia se tornar uma realidade.

****
A euforia foi tanta que o doutor Michel até esqueceu-se da
sopa no fogão. Por sorte o senhor Alisson assumiu o controle da
cozinha, o que era bem raro, e eu e as crianças ficamos
encarregados de colocar a mesa.

O jantar foi hiper animado, com todos me parabenizando e


querendo saber os mil detalhes. Apenas quando a Miranda perguntou
sobre o prazo de resposta que eu percebi não ter lido nenhum
detalhe da carta. A alegria em ver o selo de aprovada foi tanta que
eu ainda nem conseguia respirar, só imaginando o meu futuro muito
louco, um futuro o qual nenhuma outra sereia jamais sonhou em
vivenciar.

Para começar, A Universidade de Harvard era longe, quase


do outro lado do mundo apesar de também pertencer aos Estados
Unidos. Seria uma longa viagem desde o Havaí até Massachusetts,
mas a melhor universidade do mundo não poderia estar melhor
localizada: pertinho do mar, onde eu poderia me banhar todos os
dias.
Enquanto eu ajudava o doutor Michel a lavar a louça, o
senhor Alisson lia os detalhes da carta para nós, contagiado pela
nossa empolgação embora ele não demonstrasse muito.

“Esta última página é um documento de confirmação, você


tem duas semanas para assinar e enviar de volta com suas outras
documentações.” O senhor Alisson franziu a testa. “Uma sereia tem
documentos?”

“Claro que eu tenho, o doutor Michel conseguiu até uma


certidão de nascimento falsa, né doutor?” Eu dei risada, o
provocando. “É tão conveniente que o senhor seja um médico
obstetra, e daqui a alguns anos eu também vou ser!”

O doutor quase derrubou a panela que esfregava. Alguém


íntegro como ele detestava precisar agir às margens da lei, como
por exemplo, falsificando certos documentos ou realizando partos
ilegais e altamente secretos… mas era um mal necessário e ele
sabia disso.

Se não fosse pelo doutor Michel, muitos humanos grávidos


jamais sobreviveriam ao parto. E eu não falava apenas de sua
profissão regular como médico obstetra, mas também de seu
segundo trabalho no submundo, que nós protegíamos como o maior
de todos os segredos.

Diferentemente dos humanos, o povo do mar dividia-se entre


fêmeas e machos, só que os machos, ou tritões, subdividiam-se em
dois gêneros secundários, os alfas e ômegas. Tritões ômegas
podiam engravidar, mas nem todo tritão alfa predestinava com uma
sereia ou com um tritão ômega. Alguns alfas predestinavam com
humanos, o que não era um grande problema no caso de parceiras
mulheres. O problema era quando um homem humano recebia a
semente.

Uma lembrança antiga me fez estremecer e eu rapidamente


afastei aquele pensamento. O tempo de mortes sanguinárias tornou-
se passado, o doutor Michel fazia questão de operar todos os
homens grávidos de tritões que chegassem a seu conhecimento, e
eu mesma acompanhei muitos desses partos arriscados para
aprender o máximo possível. Se dependesse dele — e de mim —
nenhum outro humano jamais conheceria o final horrível que o senhor
Isha conheceu.
Ai, eu era uma idiota de lembrar coisas tão tristes em um dia
tão feliz.

“Duas semanas me parece tempo o suficiente.” O Doutor


Michel terminava de lavar o último prato. “Também teremos tempo
de sobra para comprar uma casa no campus.”
Eu ri nervosa, imaginando uma casa só para mim em uma
das cidades universitárias mais populosas e caras do mundo. O
senhor Michel era generoso demais, mas eu não pretendia abusar de
sua fortuna. Me parecia muito mais sensato conseguir um quarto em
uma pensão de fraternidade, então era este o meu plano.

“Ei, papai Michel, papai Michel!” Domenic entrou correndo na


cozinha. “O Cael encontrou as jujubas!”
“O quê? Mas eu escondi em cima do armário…” O doutor
tirou o avental e secou o suor da testa. “Alis, amor, se importaria de
resolver isso?”

“Ahm… claro, eu vou lá.” Disse o senhor Alisson, tão


surpreso quanto eu. Desde quando o doutor Michel pedia qualquer
coisa para o Alisson, por menor que fosse? “Espero que ele esteja
apenas comendo aquelas jujubas, porque da última vez…”
“Se tiver jujubas no carpete pode deixar que eu limpo
depois.” O doutor passou a mão pela minha cintura, animado. “No
momento preciso arrastar a Babelyn para a casa do Gabe. Ele vai
enlouquecer quando souber da novidade.”
Eu sorri animada e ansiosa. Será que o primogênito Dylan
também se orgulharia de mim? Só de imaginar sua reação eu queria
correr para o mar e nadar às pressas até a mansão onde ele vivia
com o humano Gabriel, mas se o doutor fazia questão de me levar,
então melhor ainda. Ele merecia curtir aquela conquista tanto quanto
eu.
Capítulo 02

O senhor Gabriel nos abraçou apertado, super contente em


receber visitas. Ele ainda trajava um elegante terno com gravata
azul, pelo visto estava recém chegando do trabalho.

Irmão Dylan surgiu da cozinha pouco tempo depois, intrigado


pela barulheira eufórica do Gabe. Ele rosnou hostil para o doutor
Michel, eriçando os dentes.
“O que é esta invasão de território, maculador?” Irmão Dylan
eriçou os dentes, tentando parecer ameaçador apesar do avental de
florzinhas cor-de-rosa.

“Sua irmãzinha passou em Harvard, não quer lhe dar os


parabéns?” o doutor perguntou empolgado e radiante, e óbvio que o
senhor Gabriel começou a surtar com ele, maravilhado com a
novidade.

Irmão Dylan franziu a testa, curioso. A relação dele com o


doutor Michel sempre foi meio esquisita e engraçada. Normalmente o
nosso povo matava qualquer maculador que ousasse tocar em seu
predestinado de forma inadequada. Eu não sabia até que ponto o
senhor Gabriel fora maculado pelo doutor Michel no passado, mas, a
julgar pela cicatriz de dentes no pescoço do senhor Michel, podia-se
entender que o irmão Dylan já havia se vingado o suficiente.

De qualquer forma, era uma história antiga que eu achava


melhor não devolver à superfície. Tudo o que eu conhecia sobre a
relação daqueles três podia ser observada naquele instante: Michel e
Gabriel surtando juntos de alegria como os melhores amigos que
sempre foram, e o irmão Dylan assistindo com uma mistura esquisita
de raiva, ciúmes e alegria. Era óbvio o quanto ele gostava do senhor
Michel e o respeitava, até porque ele salvou a vida do Gabriel em
dois partos extremamente arriscados.
E quanto a mim… eu nunca sabia o que o irmão Dylan
pensava de mim, exatamente. Foi ele quem convenceu nossos pais a
permitir minha estadia com humanos para estudar, o que foi um ato
muito generoso de sua parte, mas tirando isso ele geralmente era
frio… e eu não sabia se sua frieza comigo era a mesma que ele tinha
com quer um fora de seu núcleo, ou se era por outro motivo.

Quando percebi eu tremia de nervosismo, enquanto ele me


analisava com seu habitual desinteresse. Era plenamente comum que
tritões adultos se preocupassem com seu predestinado, filhotes, e
nada mais, só que o irmão Dylan teve uma importância grande
demais na minha vida. Sua opinião como primogênito do clã e como
o meu querido irmão me importava muito.
Após absorver a informação por alguns instantes, irmão
Dylan arqueou a testa.

“O que raios é uma Harvard?” Ele apontou o dedo na cara do


doutor Michel. “Se você fez alguma coisa com a minha irmã,
maculador maldito, eu juro que vou…”
O senhor Gabriel logo colocou-se entre os dois, já bem
acostumado com situações assim.
“É uma universidade, Dylan! Ela vai aprender coisas. Vai ser
esperta como o Michel. Você gosta da inteligência dele, não é?”
Irmão Dylan cruzou os braços, ainda meio desconfiado.

“Que tipo de coisas vai aprender?” Ele perguntou para mim.

“Eu passei em medicina, o curso mais concorrido da


universidade mais concorrida. Não é super louco?” Eu tirei a carta da
bolsa e mostrei a ele. “Este é apenas o começo, óbvio. Pretendo me
especializar e ser uma mega obstetra famosa, como o doutor
Michel.”

“Não sou famoso… não entre os humanos, pelo menos.”


Doutor Michel riu, encabulado.
Meu irmão leu atentamente a carta em suas mãos e também
o documento de aceitação, quieto e concentrado enquanto meu
coração dava saltos. Até mesmo o Gabe parou de tagarelar, ansioso
sobre a opinião do Dylan sobre um assunto tão polêmico.

Ainda sério, irmão Dylan dobrou a carta novamente e me


devolveu, então ele sorriu.
“Quem diria que aquela pirralha rebelde chegaria tão longe,
um dia. ” Seus olhos verdes encontraram os meus cheios de ternura.
“Nossos pais ficarão radiantes com esta notícia. Parabéns.”

Eu abri um sorrisão gigante, ainda que um pouco assustada.

“Sério? Acha que eles vão descobrir sobre isso?”


“Certamente, porque pretendo escrever-lhes ainda hoje.
Papai Hian talvez tenha um ataque cardíaco, mas eles certamente se
orgulharão muito.” Irmão Dylan tirou seu avental e expôs sua
indumentária de costume: nada além de uma sunga azul de couro-de-
selkie. “Precisamos comemorar a ocasião com um peixe decente. O
que acha de uma caçada em alto-mar?”
Meus olhos verdes cintilaram em fascínio. Aquilo estava
mesmo acontecendo? Irmão Dylan nunca caçou comigo nas águas
profundas, sempre neurótico com a segurança da sereia frágil e
indefesa que eu era na visão dele.

Bem… eu podia ser uma sereia da ciência, mas também era


um predador dos oceanos e uma super caçada com o primogênito
era o maior prêmio que eu poderia desejar.
Eu segui o irmão Dylan até a praia particular dos fundos,
mas assim que ele abriu a porta de vidro alguém chamou por ele.

Nós olhamos para trás e lá estavam elas, a dupla de


desgraças da minha existência desfilando pelas escadas como top
models.
Penélope e Rebecca, as filhas gêmeas do irmão Dylan com
o humano Gabriel. Elas eram duas beldades de cinturinha minúscula,
peitos grandes e um bundão durinho e perfeito que elas sempre
rebolavam a cada passo em seus salto-agulha.

Costumava ser difícil diferenciar as gêmeas, idênticas com


seu cabelo castanho e olhos verde-esmeralda, mas recentemente a
Rebecca entrou em uma vibe de alto-design e cortou o cabelo
curtíssimo, tipo um chanel com a franja em diagonal. Era o tipo de
penteado que ficaria prepotente e ridículo em 99% das mulheres, e
Rebecca era o outro 1%. Ela parecia uma deusa da moda, ainda
mais com aquele vestido longo de paetê que ela costurou idêntico
para ela e a irmã.
A Penélope continuava com a cabeleira longa de sempre e
sempre fugia dos quinhentos cursos de design que a Rebecca a
pressionava a participar. Ela preferia aprender em casa com tutoriais
de YouTube, e o lance dela era maquiagem. Apesar de parecer
menos social que a irmã, sempre trancada em seu estúdio de
gravação, ela já contava com trezentos mil inscritos em seu canal de
YouTube sobre estética facial.

No fim as duas se complementavam, sempre vestindo as


mesmas roupas e maquiagem exageradas. O irmão Dylan permitia
tudo, menos que posassem como modelos para fotógrafos, o que já
seria considerado desrespeitoso em nossa cultura. Enquanto se
preocupassem apenas com a própria aparência — mesmo que esta
fosse sua única preocupação o dia inteiro — as gêmeas estavam
simplesmente agindo como sereias normais. Que tipo de sereia
desejaria qualquer coisa além de beleza, não é mesmo?

Eu senti uma vontade bem louca de meter o dedo na


garganta e vomitar, mas disfarcei e apenas sorri. Penny e Rebbie
podiam ser meses mais velhas que eu, mas tecnicamente eu era a
tia delas então precisava agir com maturidade.

“Oi Penny, oi Rebbie!” Eu abri minha carta de aprovação


diante delas. “Olhem só, eu passei em Harvard!”

“Legal, Babi.” Penélope passou reto por mim, esvoaçando


sua cabeleira de cachos perfeitos. “Papai Dylan, se importa de nos
dar uma carona? Vamos nos atrasar para nossa sessão de
drenagem linfática.”
O irmão Dylan pareceu ser pego de surpresa, porque torceu
o rosto em leve confusão.
“Vocês já tem carteira, meninas. A Ferrari está na garagem.”
Disse ele.

“Aquele carro de vinte anos atrás? O senhor sabe que não


podemos ser vistas dirigindo aquela coisa.” Penélope revirou os
olhos, como se fosse tão óbvio. “E não nos fale na Mercedes do
papai Gabe. Ninguém com menos de setenta anos deveria ser visto
naquele carro.”

“Ei, meu carro é bem maneiro. Tem até rádio!” Senhor


Gabriel fez um beicinho meio indignado, enquanto servia chá ao
Michel no sofá da sala.

Dessa vez as duas reviraram os olhos ao mesmo tempo.


Oh dor, oh, vida, dois carros de luxo para dirigir no bairro
mais nobre do Havaí, e nenhum deles era o modelo de último tipo.

“Por que não chamam um Uber, então?” Eu perguntei,


apenas para atiçá-las com o horror dos horrores. “Aliás, falando
sério, o que aconteceu com os Lamborghinis de vocês?”
As duas avermelharam um pouco, trocando olhares sutis,
mas que eu percebi na hora.

“Deixamos no lava-jato, óbvio. Os bancos de couro italiano


precisam de hidratação semanal para manter o aroma de carro
novo.”
Ahahah, eu conhecia aquela dupla de diabas, que até podiam
enganar o Dylan e o Gabe, mas a mim? Eu era tão sereia quanto
elas e podia perceber, mesmo embaixo daquele reboco que elas
chamavam de maquiagem, sua sutil expressão de constrangimento.

“Bem, pelo visto não temos escolha.” O irmão Dylan virou-se


para mim. “Você não se importa, certo, Babelyn? Podemos caçar
outro dia.”

“Somos eternamente gratas, papai Dylan.” Rebecca curvou o


corpo em reverência.
Epa, espera aí, como assim? Eu arregalei meus olhos em
espanto indignado enquanto que meu irmão se esquecia de mim para
resolver o problema idiota de suas filhas.

“Mas… mas irmão Dylan…” Eu murchei os ombros, amuada.


Seria a minha primeira grande caçada com ele… meu prêmio por
passar em Harvard…

“Deixa de drama, Babi, não vamos demorar nem cinco


horas.” Penélope deu uma piscadinha pra mim, vitoriosa. “Aliás, por
que não vem conosco? Uma sessão de vaporização com o Doutor
Gompertz faria maravilhas nesses cravos do seu nariz.”

Cravos? Eu não tinha cravo nenhum! Mas que dupla de


vacas!

Ah, elas iriam pagar.

“Desculpa, meninas, devo dispensar este convite tão


interessante.” Eu devolvi a piscadinha sarcástica da Penny e joguei
minhas maria-chiquinhas para trás, encarando o irmão Dylan com
doçura inocente. “Primeiro irmão, já que nossos planos estão
cancelados por hoje, por que não aproveita e passa no lava-jato, no
caminho de volta? Assim a Penny e a Rebbie terão seus carros de
volta ainda mais cedo.”

As duas gêmeas trocaram olhares de horror absoluto e


começaram a fazer mímica de não com as mãos, tentando me
impedir de continuar aquela conversa.

Sem perceber nada disso, o irmão Dylan sorriu para a


sugestão.

“Boa ideia, assim economizamos com a taxa de devolução.”


Ele pegou as chaves do carro e deu um beijinho no Gabe enquanto ia
para a garagem. “É desejo do meu predestinado que elas aprendam
o valor do dinheiro.”

“Exatamente. Como eu já disse mil vezes, podemos ser


ricos, mas não somos a família Kardashian… embora às vezes eu
duvide um pouco disso.” Gabe bebeu gracioso o seu chá com o
dedinho em pé, enquanto suas filhas passavam por ele como duas
divas… só que eram duas divas que tremiam por dentro, apertando
as mãos uma na outra em completo nervosismo.
Ah, a vingança era doce. Assim que o irmão Dylan saiu para
levá-las eu me sentei com o doutor e o senhor Gabriel e bebi um
gostoso copo de água salina gelada.

Eu só imaginava a reação das gêmeas quando mostrassem


ao Dylan os arranhões na lataria, ou seja lá o que fizeram com
aqueles carros esportivos caríssimos para que precisassem sumir
com eles.
Desta vez sim, e de uma vez por todas, aquela dupla de
Barbies aprenderia a nunca se meter com Babelyn Makaira.
****

Ok, por essa reviravolta eu não esperava.

“Os dois carros? Os dois??” Era a primeira vez que eu via


Gabriel tão furioso com as gêmeas, ou de modo geral. Veias
vermelhas pulsavam em seu pescoço. “Eram dois Lamborghinis
deste ano, com todos os acessórios de fábrica!! Eu ainda nem
comecei a pagar as duzentas prestações!!”
O irmão Dylan conseguia parecer ainda mais furioso. Se
havia algo que o deixava mal, era ver seu predestinado tão abatido.

“Ainda se fosse um único carro… como conseguiram jogar


os dois no mar?” Perguntou o irmão Dylan.

Chorando desesperadas e encolhidas no sofá da sala, as


gêmeas soluçavam tanto que mal se podia entendê-las.

“Tinha lama na pista, nós… nós não queríamos sujar as


rodas…”
“E aí desviaram pelo acostamento até cair de um penhasco!!
Em que velocidade estavam correndo? Vocês podiam ter morrido,
como não se machucaram??” Só faltava Gabriel soltar fogo pelo
nariz.

“Nós nos curamos no mar, não demorou muito, mas os


carros ficaram presos no fundo, não sabíamos o que fazer!”
Rebecca esfregou o pulso nos olhos úmidos, terminando de borrar
sua maquiagem. “Pedimos mil perdões, meus pais, pretendíamos
contar, mas…”
“Não tem mas!! Nós presenteamos um carro para cada filho
e em poucos meses vocês arrebentaram dois deles! Vocês podiam
ter morrido!!” Gritou Dylan.

“Não acredito que quase perdemos vocês por serem tão


irresponsáveis!” Gritou Gabriel.

No cantinho da sala, eu e doutor Michel nos entreolhamos.


Talvez fosse melhor a gente ir embora discretamente… mas
conhecendo o doutor ele ficaria apenas para garantir a segurança de
todos.

E nossa, aquele barraco pegou tanto fogo que meu coração


apertou pelas gêmeas. Nunca imaginei que fosse um segredo tão
grande.
Talvez fosse melhor eu ir para casa sozinha, então peguei
minha bolsa e fiz justamente isso, sem imaginar o tamanho da
confusão em que estava prestes a me meter.
Capítulo 03

Eu me enfiei embaixo do sofá, rastejei até o outro lado e me


enfiei por baixo das almofadas, revirando uma por uma e melecando
meus dedos em todo tipo de pirulito e chocolate abandonado pelas
crianças.

“Cadê, cadê, cadê??” Eu perguntei histérica, jogando as


almofadas pro ar.
“Nós vai bincá de caverna?” Perguntou Cael, logo atrás de
mim.

“Não, Cael, a tia Babelyn está procurando algo importante.”


Eu saltei por cima do sofá e investiguei atrás da lenha da lareira. Eu
realmente já não sabia onde procurar.
O senhor Alisson chegou da praia e percorreu um olhar
assustado pelo que costumava ser a sala de estar, e agora era uma
bagunça digna de um filme de apocalipse.

“Babelyn, você deu açúcar para as crianças de novo?”


Perguntou o senhor Alisson.
“Não, desta vez a bagunça é minha. Prometo ajeitar tudo, é
só que…” Eu tive uma nova ideia e corri pra cima do Cael, que deu
um gritinho assustado quando eu o virei de ponta cabeça e sacudi.
“Droga, não tá aqui também.”
A barulheira enfim atraiu a Miranda e o Domenic, que até
então estavam jogando videogame no quarto.

“A casa tá com outra infestação de besouros? Posso ficar


com um, dessa vez?” Perguntou Miranda.

“Não é nada disso.” Eu me esparramei no sofá, exausta.


“Vocês viram um envelope por aí? Eram duas páginas, uma carta e
um documento para assinar.”

“Você perdeu sua carta de aprovação??” O senhor Alisson


foi direto para a minha bolsa, na cadeira da sala. “Isso é impossível,
você trouxe de volta ontem, não trouxe?”

“Não adianta, não tá na bolsa, eu já vasculhei até por baixo


do forro.” Eu senti uma bola na garganta e uma vontade imensa de
chorar. “Eu não entendo, juro que guardei antes de voltar da casa do
irmão Dylan, eu acho… Quer dizer, se tivesse caído na casa dele, o
meu irmão já teria me avisado.”
Mais uma vez eu percorri a minha memória e tentei lembrar
de qualquer detalhe a mais. Na última noite eu me despedi de todos
durante a briga, fechei minha bolsa e voltei sozinha para casa.
Quando cheguei, o Domenic atendeu a campainha e eu deixei a bolsa
exatamente onde o senhor Alisson a vasculhava naquele instante,
para então ir encaixotar algumas coisas no meu quarto. O último
momento em que mexi na carta foi quando mostrei para as gêmeas.

Espera… ah, pelos sete oceanos, não podia ser!!


Tremendo de pânico e agora também de raiva, eu pedi que o
senhor Alisson me jogasse meu celular e então eu desci minha lista
de contato às pressas.
Eu fiz uma vídeo-chamada para a Penélope, e cada bipe de
aguardo era um salto desesperado no meu coração.
Finalmente Penélope atendeu. Eu pretendia interrogá-la
assim que sua carinha de boneca das trevas aparecesse na tela,
mas o que vi me deixou sem estrutura.

Ali estava Penélope, maquiada e graciosa como sempre…


exceto que ela usava um boné amarelo e vermelho sobre a
impecável cabeleira, e também uma camiseta vermelha e avental
amarelo com logotipo de fast-food. Atrás dela podia-se ver uma
vitrine de sanduíches.

“O que você quer?” Perguntou ela, azeda e emputecida.

Eu não consegui responder. Não havia palavras.


“Ahm… eu… ah…” Eu cocei atrás da cabeça, mais do que
confusa. “Adorei esse boné. É da Gucci?”

“Ah, Babi, vai tomar no seu…” Penélope bufou e se conteve


com todas as forças. Seus olhos pareciam duas esmeraldas
afundando em lava incandescente, ela era a pura representação do
ódio em pessoa, como se cada poro de seu corpo desejasse a
minha morte. “Não se faça de surpresa, sua diabrete loira! Era isto o
que você pretendia, não é mesmo? Meus pais querem nos matar, e
agora precisamos… ewww!!” Penélope deve ter encostado em algo
nojento, porque começou a abanar a mão com os lábios retorcidos.
“…precisamos pagar pelos Lamborghinis com o nosso próprio
dinheiro! Consegue imaginar um absurdo tão grande?”
Meu queixo caiu. O senhor Alisson até apareceu por trás de
mim para descobrir o motivo do meu choque e ele também
emudeceu. Era simplesmente surreal demais. Ele foi embora com as
crianças a passos lentos, bugado com aquela cena.
Outra atendente de lanchonete apareceu no canto da tela.
Eu a reconhecia, também.

“É aquela capeta nerd? Ah, não acredito que ela teve a


audácia de ligar.” Rebecca roubou o celular da irmã pare me encarar
frente a frente. Seu cabelo de Fashion Week ficava engraçado com
um boné por cima. “Babi, de todas as sacanagens que você podia
ter feito… olha pra isso! Eu já trinquei duas unhas nessa caixa
registradora, este lugar fede à bacon, e faz ideia de quanto vamos
receber servindo lixo calórico a humanos obesos? Não dá pra pagar
meio batom da Mac!!”
“Ahm… bem… talvez se vocês tivessem completado o ensino
médio…” Eu respondi hesitante e ainda muito chocada.

“Sereias não estudam, Babelyn. A função de uma sereia é


ser elegante e bonita para o seu macho alfa, e provê-lo com uma
prole saudável e de bons costumes.” Rebecca suspirou, como se
cada palavra destinada a mim fosse um esforço grande demais.
“Agora nosso despertar se aproxima e aqui estamos nós, estragando
nosso peeling de diamante com gordura de bacon frito!”
Penélope tentou roubar o celular de volta, as duas
competiram por ele e no fim apareceram juntas dividindo a tela. Era
difícil dizer qual das duas estava mais brava. Ou mais engraçada.

“Você pode estar se divertindo agora, mas — já


entendemos, gordinho, espera aí na fila que estamos nos resolvendo
com a inimiga! — Escuta, Babelyn, eu sei que você se acha muito
esperta…”
“De fato, o meu QI é dezesseis pontos superior ao de vocês
duas juntas.” Eu sorri com o canto dos lábios…

…e então algo que elas mostraram desmanchou meu sorriso


bem rápido.
Era a minha carta de aprovação. Penélope a balançava
triunfante diante da câmera.

“Oh, nossa, olha o que encontramos aqui, mas que


guardanapo interessante.” Rebecca fingiu que limparia o batom com
a minha carta, e recuou o gesto para apreciar o horror no meu rosto.
Penélope sorria com a mesma satisfação.
“Vocês mexeram na minha bolsa? Me devolvam isso!” Eu
rosnei para aquela dupla de súcubos.

“Está nos acusando de sermos ladras? Mas que absurdo,


Babi. Se estava no chão da nossa casa é nosso, não concorda?”
Penélope pegou a carta para se abanar no calorão daquela
lanchonete. “O que será que fazemos com isso agora? As toalhas de
bandeja estão acabando, acho que…”

Alguém rosnou do lado das gêmeas, atraindo sua atenção.

“Novatas, estão se maquiando durante o serviço de novo?


Olhem o tamanho dessa fila!”
“Ousa gritar conosco, humano? Meu nome é Penélope
Makaira e…”
“Precisamos de seis sanduíches de filé com cheddar, andem,
andem!”
As duas começaram a correr por trás do balcão e logo
desligaram o celular.

Por um tempo eu fiquei apertando meu próprio celular nas


mãos, incrédula e cheia de raiva.
Eu iria misturar óleo de bacon no xampu daquelas peruas.

****

Não tinha bacon em casa, mas felizmente ainda havia um


óleo bem queimado e velho onde o senhor Alisson havia fritado
diversas gerações de batatas fritas. Eu passei o óleo fedido para
uma garrafa, escondi na minha mochila à prova d’água e corri para o
mar. Era o jeito mais rápido de chegar na casa do irmão Dylan.

A mansão do Doutor Michel ficava pertinho da praia, mas eu


precisava ser cautelosa. Aquela era uma região turística então
sempre havia montes de humanos tomando sol e surfando nos mares
de azul-safira de Waikiki, e eles não podiam flagrar o que não
deveriam.

O básico, óbvio, era não vestir nada entre as pernas. Para


os machos da nossa espécie isso podia ser mais complicado,
homens de saia atraíam muito a atenção, mas ninguém estranhava
ver uma garota de vestido. As gêmeas se aproveitavam disso para
colecionar vestidões glamourosos de grife, enquanto que eu preferia
roupas como a que eu estava vestindo: uma alegre frente-única rosa
com estampas floridas.
Ok, talvez a gente fosse chamar um pouco a atenção se
percebessem que nunca usávamos calcinha por baixo… mas isto
eram apenas detalhes.

Eu corri até a parte rochosa da praia, que os banhistas


costumavam evitar por causa das ondas mais violentas. Em meio às
rochas havia o ponto perfeito para mergulho, escondida do olhar de
todos.
Após espiar umas vezes e me certificar de que ninguém
estava olhando, eu segurei firme nas alças da minha mochila e saltei
na água.

A transformação foi instantânea. Minhas pernas magrinhas


fundiram-se em uma longa cauda com barbatana de baleia e
escamas verde-oliva.
O doutor Michel adorava a cor das minhas escamas. A
maioria do clã Makaira possuía escamas verde-esmeralda, como o
irmão Dylan e as gêmeas, mas eu puxei um pouco do amarelado da
cauda do papai Arian. Era divertido pensar que havia um pouco do
sangue de oráculo em mim, embora aquela fosse apenas uma
mutação estética. Geneticamente falando, eu era uma sereia tão
comum quanto qualquer outra. Uma raridade em nosso povo, onde
90% dos nascimentos eram de tritões. Por este motivo eu era a
única menina dentre os vinte príncipes, a décima sexta prole dos reis
de Egarikena.
Depois de me mudar para o Havaí eu passei a conviver com
pouquíssimos do nosso povo. Por ironia trágica do destino, dois
destes indivíduos eram sereias como eu, e era difícil me lembrar de
algum momento em que a gente não estivesse se desprezando ou
brigando. Se Penélope e Rebecca fossem sereias tão normais
quanto pensavam ser, então eu não queria conhecer nenhuma outra
fêmea da nossa espécie, nunca.
Eu nadei rápido para me afastar dos banhistas, flamulando a
minha cauda contra a força das ondas. Naquele meio de tarde a
água estava morna e agradável, embora eu detestasse o fedor de
filtro solar que os turistas besuntavam por tudo.

Falando em fedor, eu me lembrei da minha vingança e segui


adiante para a casa do irmão Dylan, já pensando em alguma
desculpa para entrar no banheiro das gêmeas. Naquele momento
elas deviam estar trabalhando na lanchonete e o senhor Gabriel em
sua empresa, não seria difícil distrair o irmão Dylan e escapar para o
andar de cima, para então misturar uma generosa quantidade de
óleo de fritura no xampu francês daquelas capirotas siamesas.
No caminho para a casa delas, porém, uma sensação nas
ondas acabou por me distrair. Eu reconhecia tal presença, tão
incomum àquela hora do dia. Geralmente o irmão Dylan caçava mais
tarde para sempre receber Gabriel do trabalho com peixes
fresquinhos e prontos para assar, mas era cedo e o mar já anunciava
sua presença próxima.

Era sorte demais. Com a casa desocupada seria muito fácil


realizar meu plano, mas algo na presença do irmão Dylan não me
permitia seguir adiante. Havia muita tristeza e mágoa no sabor da
água.
Sentindo um aperto no coração, eu mudei a rota do meu
nado e me aventurei nas profundezas do alto-mar.

****

Não precisei nadar muito para encontrar o irmão Dylan. Na


verdade eu já suspeitava de sua localização e ele realmente estava
onde eu previa: sentado sobre a própria cauda no leito marinho,
diante de um antigo navio naufragado.

Eu me aproximei dele e sentei ao seu lado para admirar a


enorme embarcação.
Era bonito e ao mesmo tempo triste. Por todo o casco havia
centenas de gravuras, algumas não passavam de simples rabiscos
infantis, outras eram mais elaboradas, e algumas eram verdadeiras
obras de arte submarinas… ou pelo menos deviam ser antes de
terem sido destruídas. Longos cortes de navalha atravessavam as
gravuras de um lado ao outro. Restava muito pouco do trabalho
original de Hian II e eu lamentava nunca ter visto a obra completa.

O irmão Dylan já havia notado a minha presença, mas não


me cumprimentou. Ele apenas nadou para cima e deslizou a mão
pelas gravuras destroçadas. Raras vezes eu senti tanta dor em sua
expressão.
“Seu filhote é um tritão muito talentoso.” Eu disse a ele.
“Acha que exagerei com as gêmeas?” Perguntou ele.
Eu me surpreendi. Era incomum que o irmão Dylan pedisse a
opinião de qualquer um, e no fundo da alma eu queria dizer que sim,
nada era mais gratificante que imaginar aquelas duas virando
hambúrguer em uma chapa quente. Mas eu não poderia me gabar do
meu amplo intelecto se não percebesse as camadas por trás
daquela pergunta.

“Não sei, ahm… elas mereceram, eu acho? Quer dizer, não o


estou criticando, aprender sobre consequências é importante para
qualquer um.” Eu disse, cuidadosa.
O irmão Dylan massageou seu pulso, percorrendo com o
polegar uma cicatriz que nunca desapareceu.

“Encontrar o caminho certo já costumava ser difícil o


bastante com o chamado para guiar meus passos, mas e agora? Eu
tento acertar, e tento e tento, mas é como nadar com os olhos
fechados.” Ele suspirou cheio de dor. “O que seria de mim, sem
aquelas meninas? O que seria do Gabe? Não mereço a confiança
delas nem para saber que elas correram perigo?”
“Não creio que elas guardaram segredo por desconfiança,
meu irmão. Elas sabiam o quanto aqueles carros custaram uma
fortuna, deviam estar pensando em um jeito de tirá-los da água.”

“Eu verifiquei aquelas duas porcarias, já afundaram quase


totalmente na areia.” Ele admirou um dos desenhos infantis de Hian
II, que parecia ser um retrato do senhor Gabriel abraçando dois
bebês. “Eu precisava do Gabe calmo e de bom humor. Por que isso
foi acontecer agora, de todos os momentos?”
De todos os momentos? Como assim? O que havia de tão
importante para acontecer?
Ah, óbvio, eu conseguia ser tão lerda às vezes.

“Vai dar tudo certo, meu irmão.” Eu apertei seu ombro, mas
gestos de apoio eram tão esquisitos pra mim quanto para ele. “O
humano Gabriel aprendeu muito sobre nossa cultura nos últimos
anos. A predestinação das gêmeas não será um choque tão grande.”
“Mas e se elas…” O medo no coração do primogênito
reverberou intenso pela água.

“Elas predestinarão com tritões maravilhosos.” Eu interrompi


seus pensamentos, era melhor assim. “Quer dizer, olha para o
perfeccionismo daquelas duas, elas devem estar no topo da lista do
chamado!”
Irmão Dylan não pareceu muito mais calmo, mas qualquer
consolo a mais seria mentira da minha parte. Duas sereias
exemplares como a Penélope e a Rebecca mereciam o melhor que o
chamado tivesse a oferecer. Certamente, ao completarem seus
dezoito anos, elas despertariam para a fase adulta e então
receberiam os machos alfas perfeitos. Uma história feliz e muito
diferente daquela que acometeu o pobre Hian II.

Ai, perfeito, agora eu também estava revirada em náuseas


nervosas. Eu odiava pensar no chamado, ou no despertar, ou nos
meus dezoito anos que também se aproximavam.
“Seu predestinado também será nobre e respeitável,
Babelyn. Acredite em si mesma.” Disse o irmão Dylan.
Eu sorri, comovida com seu raro elogio. O irmão Dylan
certamente estava mais gentil e emotivo ultimamente, e eu gostaria
que fosse uma mudança por bons motivos… e não por causa de uma
preocupação terrível e perfeitamente justificável.
Se as gêmeas também sofressem da mesma maldição de
Hian II e predestinassem com um selkie, eu nem imaginava como o
irmão Dylan reagiria.

Mas… mas e quanto a mim? Eu temia predestinar com um


selkie, lógico, mas as minhas preocupações possuíam raízes ainda
mais profundas.
O que o irmão Dylan pensaria de mim, se soubesse que eu
não queria predestinar?

Bem, eu não perderia nosso tempo com um assunto tão


inútil, porque ao completar dezoito anos todas as sereias e tritões se
tornavam propriedade de seu suposto par ideal. Ao ômega a luz do
sol vai brilhar, pois é do alfa a luz do luar. Em apenas alguns meses
um tritão misterioso surgiria para clamar meu corpo, podendo me
localizar telepaticamente de qualquer lugar do mundo. Era impossível
evitar e era impossível fugir.
“Ainda quer caçar?” A pergunta do irmão Dylan me distraiu
da minha angústia.

Eu sorri para ele, radiante de tanta alegria.


“Claro! Aposto que com a ajuda da grande Babelyn o irmão
Dylan vai capturar o maior peixe de sua vida! Só espere para
conhecer minhas habilidades predatórias!”
O primogênito Dylan riu e nadou comigo até as profundezas
oceânicas, sua cauda musculosa de alfa vencia com rigor a força das
águas.

Durante todo o fim de tarde nós exploramos as fendas


abissais, perseguimos cardumes de badejos e até avistamos um
bando de deliciosos golfinhos, que o irmão Dylan me proibiu de caçar
ou o Gabe pediria o divórcio no mesmo dia.

O irmão Dylan não havia levado consigo seu habitual tridente


de caça, ainda assim pegamos um enorme e lindo espadarte, com
escamas prateadas e azuis e um longo focinho de espeto. Aquele
seria o jantar do núcleo do irmão Dylan e ele até me convidou para
comer com eles.
Eu concordei na hora, até me esquecendo do plano original
com o óleo de fritura. Haveria muitas oportunidades de recuperar
minha carta antes do fim do prazo, e eu sentia que jantar com as
gêmeas seria uma experiência muito fascinante.
Capítulo 04

Apesar de ainda aborrecido com as gêmeas, o senhor


Gabriel aproveitou-se do luxuoso jantar e tentou recuperar o clima
alegre daquela casa. Ele fez algumas piadinhas de tio tentando
arrancar risadas de alguém, mas falhou todas as vezes.

Claro que, como sempre, o senhor Gabriel falhava em ver o


verdadeiro motivo do peso naquele ambiente: a minha adorável
presença e meu sorriso satisfeito enquanto eu saboreava o denso
constrangimento das minhas sobrinhas peruas. E foi o jeito avoado
do senhor Gabriel que nos proporcionou a pergunta mais divertida
possível naquele jantar mortalmente quieto.

“E então, meninas, como foi seu primeiro dia de trabalho?”


Perguntou Gabriel.

Rebecca tremeu tanto que deixou cair um camarão em seu


vestido de sei-lá-qual-grife, e a cara da Rebecca transformou-se na
de um soldado que retornou dos horrores do Vietnã.

“Foi normal.” As duas disseram ao mesmo tempo.

A faca estava cravada, ainda que acidentalmente. Era a


minha vez de torcê-la.
“As gêmeas estavam me contando tudo a respeito, senhor
Gabriel. Parece que a Rebecca é um sucesso com os clientes e a
Penélope prepara uns hambúrgueres incríveis. Qual foi aquela
receita que você me passou, Penny?”
“Hambúrguer de eu-vou-te-matar ao molho de queijo.” Ela
rosnou para mim por entre os dentes.

“Mas que maravilha! Admito ter me preocupado um


pouquinho, pensei ter sido severo demais com as minhas princesas,
mas é incrível que estejam tirando bom proveito desta experiência.”
Gabriel comeu seu peixe com um sorriso super satisfeito no rosto.
“Podíamos fazer uma tarde do hambúrguer, não acha, Dylan? E as
meninas podem nos demonstrar o que aprenderam.”
“Tudo pelo meu predestinado.” Respondeu o irmão Dylan.
“Nossas filhas almejam o novo modelo de sapatos Louboutin para
seu iminente aniversário, mas podemos considerar uma chapa
industrial de fritura.”

Desta vez até o senhor Gabriel achou esquisito e abriu a


boca para se opor, mas eu fui mais rápida.
“Que coincidência enorme, meu irmão! As meninas estavam
envergonhadas de pedir depois do fiasco com os carros, mas é o
novo sonho delas poder praticar técnicas de hambúrguer em casa.”

“Sério?” Gabriel franziu a testa. “Bem… então acho que está


decidido. Dylan?”
“Já estou finalizando a compra.” Disse o irmão Dylan,
mexendo ágil no seu celular.

Ai, aquele estava sendo o melhor dia da minha vida. Se após


tanto massacre aquelas duas não aprendessem — ainda mais uma
vez — que não deveriam se meter Babelyn Makaira, então o cérebro
delas realmente se comparava ao de uma ostra.
Eu até poderia manter o assunto no trabalho das gêmeas,
mas deixei que Gabriel se esquecesse do assunto e apenas saboreei
nosso delicioso jantar, satisfeita como raramente me sentia.

Uma sereia da ciência não precisava ativar sua forma feral


para expor os dentes. Se as gêmeas queriam guerra, elas teriam
guerra até que a vitória fosse minha. E então elas perceberiam seu
erro e me devolveriam a minha preciosa carta, tudo era uma simples
questão de aguardar o momento certo… ou pelo menos era este o
plano.

****

Nem mesmo a humilhação no jantar foi o suficiente para


dobrar aquelas ogras teimosas. Penny e Rebbie se fizeram de
loucas quando perguntei da carta, então me vi forçada a atacar
novamente: perguntei ao irmão Dylan se poderia ficar para uma festa
do pijama.
Claro que não havia nenhuma festa do pijama, mas eu
perguntei no momento estratégico para que o senhor Gabriel
também ouvisse, e o humano ficou histérico com a ideia de uma festa
do pijama em sua casa. Eu e as gêmeas já éramos bem crescidinhas
para este tipo de coisa, mas mesmo na infância elas nunca se
interessaram em convidar amigos, então Gabriel adorou sentir
aquela réstia de normalidade em suas filhas. Mesmo que tal convite
fosse uma completa invenção minha.
Diante da empolgação do Gabriel as gêmeas não tiveram
coragem de protestar, então como resultado ali estava eu: ajeitando
o meu colchonete entre as duas camas no quarto super-perfumado
delas.

“É muita coragem querer dormir conosco, depois de tudo o


que fez.” Penélope penteava seu longo cabelo diante do espelho, tão
revoltada que os puxões da escova arrancavam fios. “Francamente,
Babelyn, não se surpreenda se acordar e encontrar suas maria-
chiquinhas ridículas dentro do lixo.”
“Ah, Penny, você não estragaria o meu cabelo. Imagina só
que tipo de vinganças eu conseguiria planejar?” Eu dei uma risadinha
maligna. “Espera, imaginação não é o forte de vocês, então vou dar
uma pista: piolhos.”

“Você é muito nojenta.” Penélope eriçou os lábios para mim,


estremecendo de horror. “Rebecca, você não vai falar nada?”
Até mesmo eu estranhei o silêncio da Rebecca. Geralmente
as duas se comportavam de forma idêntica. Quando uma estava
alegre, a outra também ria. Se uma sentia raiva, a outra se juntava
em qualquer briga que fosse, e por aí vai. As duas pareciam cópias
carbono uma da outra, então era muito estranho ver Rebecca
abatida enquanto Penélope mantinha sua pose de mestra das vadias.

“Sei lá, Penélope. Só devolva a carta, se quer tanto se livrar


dela.” Rebecca suspirou, abraçada aos próprios joelhos no canto da
cama.
“Como é que é?” Penélope deixou a escova de lado e pôs as
mãos na cintura. “Por causa desta piranhazinha loira nós perdemos
nossa sessão de cromoterapia para montar sanduíches, caso tenha
esquecido!”

“Quem mandou foi o papai Gabe, e… sei lá… que diferença


faz?” Rebecca agarrou apertado o cetim de sua camisola baby-doll,
tremendo e com o olhar nos pés. “Não é como se a gente fosse viver
aqui por muito mais tempo.”

“Exato. Logo nossos predestinados virão nos buscar e eu


não pretendo ir embora antes da minha total vingança.” Penélope
balançou os ombros em desdém e voltou a se pentear, desta vez
com cuidado e dedicação. “Agora deixe de drama e me ajude com
estes bobes. O que seu alfa pensaria de uma sereia medrosa e
fraca?”
Nossa. Nunca na minha vida eu presenciei uma briga entre
aquelas duas, não que eu pudesse chamar aquilo de briga. No lugar
da Rebecca eu encheria aquela cabeluda de desaforos, mas a irmã
de cabelos curtos apenas levantou e foi ajudar a outra.

Por mais que eu odiasse aquela dupla e fantasiasse com o


dia em que elas arranhassem a cara uma da outra, eu não conseguia
ficar quieta para uma idiotice tão grande. Na minha visão, Penélope
sempre foi uma segunda Rebecca e vice-versa, mas aquilo… aquilo
era errado.
“Não acho que temer o despertar seja uma fraqueza.” Eu
disse para elas.
“Você pode achar o que quiser, Babelyn.” Penélope
espalhava um creme no rosto enquanto Rebecca enrolava seus
cachos. “O chamado premia sereias exemplares, como nós. Você
pode agir do jeito que quiser porque já está destinada ao fundo do
tacho.”
Mas que piranha horrível! Tá certo que minha maquiagem se
resumia a um batom e rímel em ocasiões especiais, e que eu não me
depilava a cada cinco dias nem vestia roupas de alta costura, mas
assim como elas eu era uma Makaira, a casta mais nobre do nosso
povo! Com certeza o chamado não me sacanearia por perseguir
outros objetivos… não é mesmo?

Rebecca terminou de ajeitar os cachos da Penélope, então


foi sua vez de receber assistência com os cinquenta cremes que
Penélope guardava em potinhos numerados.
“Você pode tentar nos destruir por aquela carta, Babelyn,
mas reconheça que estamos lhe fazendo um favor.” Penélope deu
uma risadinha arrogante, enquanto aplicava cremes no rosto da irmã.
“Não interessa se você passou em Harvard ou na faculdade da
esquina. Quando o seu predestinado chegar, você o acompanhará ao
seu território para provê-lo com o número de filhotes que ele julgar
apropriado. Nenhum amigo, nenhum parente para te auxiliar, apenas
bebês, bebês e mais bebês até o dia em que…”

Meus olhos nublaram com lágrimas e eu quis gritar para


aquela desgraçada calar a boca, mas para o meu choque a Rebecca
gritou antes mesmo de mim.

“Já chega, Penélope!” Ela socou a penteadeira e se


levantou, encarando furiosa a sua irmã.
Penélope também se assustou com a reação da irmã, mas
não tanto. Eu nunca as imaginei discutindo, mas era óbvio que aquele
não era seu primeiro desentendimento. Não sobre aquele assunto.
Tremendo de ódio, Rebecca nos deu as costas e abriu a
sacada, deixando entrar o vento gelado da noite enquanto ela ia
espairecer lá fora. A única reação da Penélope foi revirar os olhos e
continuar aplicando um patê verde nas maçãs do próprio rosto.

“De que adianta sentir raiva?” Penélope perguntou para o


próprio reflexo, deixando transparecer um amargor profundo. “Sentir
raiva não salvou o irmão Hian.”
Que idiota asquerosa. Mas, por algum motivo, algo na
expressão da Penélope não me permitia odiá-la completamente.
Ainda assim eu queria distância daquele poço de veneno infinito,
então também me levantei e fui para a sacada.

****

A mansão do senhor Gabriel era um luxo total. Dois andares


com praia particular em um dos melhores bairros de Honolulu.
Costumava ser simples para os tritões coletar tesouros marinhos
para seu predestinado, então certamente a dedicação do irmão
Dylan teve um papel importante para comprar um território tão caro,
ainda assim a astúcia do senhor Gabriel não podia ser
menosprezada. Por trás do jeito dócil e ingênuo daquele humano
escondia-se um gênio dos negócios, que conseguiu fazer sua própria
fortuna com seu shopping de artigos esportivos.
Apesar da vasta quantidade de quartos naquela mansão, as
gêmeas sempre preferiram dormir juntas, em camas de solteiro
idênticas no seu quarto cor-de-rosa e simétrico. Duas penteadeiras,
dois armários, duas chapinhas da mesma cor e marca… mesmo no
único banheiro do quarto seus acessórios eram quase totalmente
duplicados. Quando uma decidia livrar-se de alguma coisa a outra
fazia o mesmo, como na vez em que Penélope jogou fora todos os
seus bichinhos de pelúcia e Rebecca chorou na escola por três dias
porque fez a mesma coisa.
Eu adorava cor-de-rosa tanto quanto elas e até curtia a
decoração graciosa daquele quarto, embora fosse tão organizado
que eu tinha medo de caminhar e mudar alguma poeira de lugar.
Mas, naquele momento, eu me perguntava até que ponto ambas as
gêmeas gostavam de cor-de-rosa, ou se talvez fosse o gosto de
apenas uma delas, ou de nenhuma.

Por mais insuportáveis que fossem aquelas duas, era difícil


não reparar nas nossas semelhanças ou me apiedar quando menos
deveria.

Quando notei Rebecca chorando em sua cadeira de balanço,


o meu coração saltou apertado e eu me senti uma idiota por sofrer
com ela. Meu objetivo não era fazê-las chorar desde o começo?

“E aí.” Eu me aproximei, sorrindo tímida.


Rebecca levantou o rosto e secou rápido as lágrimas,
borrando toda a sua máscara facial.

“Que tipo de sereia fala e aí?” Ela revirou os olhos fingindo


desgosto, mas deslizou para o lado para que eu sentasse com ela.
“Sei lá, eu conheço poucas sereias, e elas são loucas.” Eu
sentei com ela e observei o pontilhado de estrelas no céu, que
refletia ondulante no mar logo abaixo. “Acho que a Penélope está
certa. Quer dizer, não sobre agir como uma naja demoníaca… ela
tem razão sobre vocês serem sereias exemplares.”
“Claro que somos. Olha para isso! É um corte geométrico
exclusivo do Alsace Russeau, só existem seis mulheres no mundo
com autorização legal para usar este penteado, e uma delas é a
Kate Middleton.” Ela apontou para seu cabelo, como se fosse uma
informação super óbvia. “Você talvez predestine com um plebeu
qualquer, mas nós? Não existe uma sílaba do chamado que não
tenhamos seguido à risca desde que nascemos.”

Eu considerei mandá-la tomar no cu, mas me contive.


Rebecca podia ser uma víbora, mas naquele momento era uma
víbora contorcendo-se para segurar as lágrimas.
“Se está tão confiante, então qual é o drama? Você irá
embora com algum machão de alta casta para ter seus quinhentos
filhos e receber caprichos exóticos, ou sei lá. Não é como se você
tivesse sonhos, que nem eu.”

“É isso o que pensa?” Ela balançou a cabeça, incrédula.


“Nossa, você é ainda mais tonta do que parece.”
“Dá licença, não fui eu quem zerou uma prova de matemática
na sétima série porque respondeu a todas as perguntas com
irrelevante.” Eu dei risada tentando aliviar o clima, mas não consegui.
“Alfas de boa linhagem costumam ser muito tolerantes. Talvez o seu
alfa até permita que frequente suas sessões de reiki e quiropraxia
egípcia. Olha para o irmão Dylan, por amor ao Gabriel ele até
mudou-se para esta ilha de humanos e lhe concede todos os
desejos.”
“Eu… eu sei… mas…” Rebecca suspirou, distraindo-se com
uma nuvem no céu. “…esquece, você não entenderia.”

“Como alguém que se formou na West Island com láureas


acadêmicas, posso afirmar que eu entendo qualquer coisa.”
“E é por isso que você é uma tonta.” Rebecca secou uma
última lágrima e se levantou, já recomposta. “Vá para casa, Babelyn,
esta sua guerrinha conosco é ridícula.”

“Bem, não fui eu quem comecei.” Eu voltei com ela para


dentro. “Devolvam a minha carta e isto termina aqui.”
Rebecca me olhou com o canto da visão e bufou, impaciente.

“Não podemos.” Disse ela. “Quer dizer, podemos, mas…”


“Mas o quê??” Eu perguntei, histérica. “O que fizeram com a
minha carta?”

Àquela altura Penélope já havia concluído sua máscara facial


e agora retocava o esmalte das unhas com toda a paciência do
mundo.
“Não grite, Babelyn, vai acordar nossos pais.” Disse
Penélope, já sem nenhum traço da emoção que vi mais cedo.
“Infelizmente, ocorreu um certo… esquecimento.”
“Esquecimento?” Eu perguntei, com o peito acelerando.

“Não foi exatamente um esquecimento. Nós prevíamos que


você tentaria recuperar aquele papel idiota, então deixamos no
armário da lanchonete.” Rebecca soltou uma risada fingida, só para
agradar a irmã. “Considere-se culpada por isso. Não teríamos como
deixa-la no nosso trabalho horrível, se não tivéssemos um trabalho
horrível.”
Monstras. Cobras. Demônias vestindo baby-doll da Dolce-
Gabbana. Como eu pude ter sentimentos pelos problemas daquelas
criaturas? Elas mesmas não possuíam um pingo de empatia comigo!
Elas me assistiriam rir por último quando eu predestinasse com o
meu próprio machão lindo, gostoso e legal, e que ainda me
permitisse frequentar a faculdade, de preferência sem filhos.

Desta vez fui eu a derrubar uma lágrima. Óbvio que eu


jamais teria tanta sorte.
Horrorizada com a ideia de aquelas duas me verem
chorando, eu passei minha mochila nas costas e abri a porta do
quarto.

“Quero a minha carta de volta amanhã mesmo ou vou


envolver meu irmão nesta história. Não me importo de jogar baixo,
vocês já perceberam isso.”
“Dispensamos suas ameaças, Babelyn. Vamos trazer sua
carta ao final do nosso expediente, então venha buscá-la.” Disse
Rebecca.

“Sério, Rebecca? Ah, pelos oceanos, você já foi menos


frouxa que isso.” Resmungou Penélope.
Eu sorri, enfim me animando após tanto estresse. Sei lá qual
era o problema da Rebecca, mas não me importava. Em poucas
semanas eu estaria desfilando pelos jardins de Harvard, carregando
livros raros e conversando com colegas e professores tão
inteligentes quanto eu.
Sim, a vida dos meus sonhos estava logo diante de mim e
nenhum comentário cínico me faria desistir do meu otimismo…
mesmo que meu otimismo tivesse data e hora para terminar.
Capítulo 05

Talvez fosse burrice acreditar na promessa das gêmeas,


mas o que eu podia fazer além de esperar? Durante todo o dia
seguinte eu empacotei minhas roupas e livros favoritos em caixas,
me preparando para a mudança enquanto contava os segundos até o
final da tarde.

O doutor Michel havia voltado mais cedo do hospital naquele


dia para ajudar o Alisson a consertar um chuveiro, ou coisa do tipo.
Era incrível que um humano de meia idade contivesse tanta energia,
e o doutor Michel transbordava bom humor por atender mais aquele
pedido de seu marido.
“Tem certeza de que não precisa de ajuda, doutor?” Eu
perguntei a ele, enervada por vê-lo equilibrado naquele banquinho.
64% dos acidentes domésticos ocorriam no banheiro e 75% eram
quedas, então uma queda no banheiro era estatisticamente
preocupante.

“É apenas um disjuntor queimado.” O doutor sorriu para mim,


balançando orgulhoso os pedaços do chuveiro. “Imagina a cara do
Alisson quando descobrir que salvei o seu banho da noite? Ele vai me
cobrir de beijinhos, não vai?”
Eu dei uma risada forçada. O doutor Michel encontrou sua
felicidade de um jeito bem estranho, mas era bom vê-lo sorrindo. O
médico da lenda, como ele era conhecido entre nosso povo, merecia
qualquer vida que desejasse ter… mesmo que nem em sonho eu
desejasse a ele um marido preguiçoso e exigente como o senhor
Alisson.
Ai, ai… eu não devia pensar nessas coisas, vai que o
chamado se inspirasse na hora de me castigar? Enquanto que as
boas sereias gastavam a infância trabalhando em sua aparência e
etiqueta eu me dediquei aos kits de química e concursos de
matemática. O chamado se divertiria horrores jogando para mim um
alfa possessivo, egoísta e carente, que controlasse cada minuto da
minha vida e exigisse o meu corpo todas as noites…

Um arrepio percorreu a minha espinha. Chega de


pessimismo. Em breve eu pegaria minha carta de aprovação com as
gêmeas e mandaria para Harvard, garantindo então a minha
matrícula e o futuro que eu tanto desejava.
Seja lá quem fosse o meu futuro alfa ele seria um cara
decente e compreensivo, que se manteria bem longe de mim até a
formatura, e depois talvez eu cedesse um pouquinho e lhe
presenteasse com um bebê ou dois.

É… nenhum alfa normal aceitaria condições tão absurdas.


“Por que está tremendo, Babi?” Perguntou o doutor,
enquanto prendia o chuveiro de volta ao lugar. “Você não disse que
encontrou sua carta?”

“Sim, sim, eu encontrei… é só que…” Eu me escorei na


bancada da pia e cruzei os braços, sentindo um aperto no peito. “…
acha que foi perda de tempo essa coisa sobre Harvard?”
O doutor terminou o conserto e tentou descer sozinho do
banco, então eu me joguei para ajudá-lo.
“Sabe, Babi, no meu trabalho eu acabo lidando com mães
muito jovens, adolescentes quase crianças que não fazem a menor
ideia do que querem na vida, então acabam tendo filhos sem
planejamento ou visão de futuro… é tão preocupante. O que quero
dizer é que você, quando tinha apenas oito anos, tomou decisões
mais sólidas do que muitos adultos jamais conseguiriam, e ainda
seguiu firme e em linha reta por este caminho. Tornar-se uma médica
é o seu grande sonho, não é?”

“Sim, mas… mas eu sou uma sereia. O senhor já deve


imaginar o que me aguarda.”
Apesar do meu desânimo, o doutor apenas sorriu
despreocupado enquanto fechava sua caixa de ferramentas. Não
fazia sentido ele estar tão calmo. A tragédia entre Hian II e aquele
selkie inimigo permanecia fresca nas lembranças de todos, uma
situação tenebrosa que poderia se repetir.

“Desculpe achar graça, mas tem certeza que nós dois não
somos pai e filha?” Perguntou o doutor. “Quando perseguimos um
objetivo por muito tempo é natural termos medo de alcançá-lo,
porque o que vem depois? Nestas horas lembre-se de que passar na
faculdade não é o fim, mas apenas o começo de uma jornada
incrível.”
Eu sorri para a doçura do doutor Michel, sempre tão ávido a
dizer os conselhos certos.
“Agradeço, doutor, mas… mas e meu alfa…?” Eu
avermelhei, hesitante sobre envolvê-lo em um assunto tão secreto
para o nosso povo. “Você sabe como funcionamos, não sabe? Logo
um alfa vai aparecer para querer… coisas.... comigo...”
Desta vez eu esperei mesmo ver preocupação sombria no
olhar do doutor, mas mesmo o cara mais nervoso e neurótico do
mundo permaneceu tranquilo e risonho para aquele fato.

“É disso que tem medo? Que algum tritão se meta na sua


vida?” O doutor riu e fez sinal para que a gente deixasse o banheiro.
“Ai, Babelyn, eu te conheço muito bem. No dia em que algum homem
apontar um dedo na sua cara, você arranca este dedo a dentadas e
come no café da manhã.”
Eu abri a boca, e meu espanto fez o doutor rir ainda mais
alto.

“Eiii, eu não sou tão violenta assim! Só me meti em quatro


brigas durante todo o período escolar, e em uma destas vezes nem
fui eu quem começou!”
“Foram seis brigas, eu mantenho guardada cada nota de
advertência dos seus professores.” Doutor Michel sorriu com o canto
da boca, enquanto descíamos as escadas até o térreo. “E teve
aquela vez em que você espancou um namoradinho com o buquê de
margaridas que ele te comprou, o menino precisou de terapia.”

“Não era um namoradinho! Era só um filhote de humano


idiota, com suas tradições românticas sem sentido! As gêmeas
lidavam com idiotas assim o tempo todo.” Eu revirei os olhos,
envergonhada ao me lembrar do quanto aquele menino chorou. “O
que isso tem a ver com o meu despertar, afinal? Se você me
conhece, sabe o quanto sou a pior sereia do mundo! Vou receber o
pior alfa que deve existir!”
“Você tem medo porque pensa no Hian, mas a personalidade
de vocês não poderia ser mais distante. Hian sempre foi do tipo que
aguentou e sofreu em silêncio, acreditando precisar provar algo para
alguém. Foi um erro horrível da minha parte não perceber o tormento
dele e jamais conseguirei me perdoar por isso, mas você, Babelyn?
Não a imagino sofrendo o menor dos inconvenientes sem armar o
maior escândalo.”

“Então quer dizer que… se eu tivesse qualquer problema…”

“Você me avisaria e no minuto seguinte eu estaria lá


enchendo o idiota de pauladas.” O doutor sorriu e flexionou seus
bíceps, tentando formar algum volume nos braços que já foram
fortes. “Eu tenho imensa preocupação com a sua felicidade e sei que
você reconhece o próprio valor. Minha jovem discípula dobraria o
mundo antes de se dobrar para um homem.”

O amargor no meu peito desapareceu. Talvez fosse o tom de


voz do doutor ou seu sorriso compreensivo, mas ouvi-lo sempre
trazia ondas calmas nos meus dias de tempestade.
Eu só esperava não perder toda esta calma quando voltasse
à casa das gêmeas, e já estava quase na hora de sair.

****
O senhor Gabriel atendeu a porta e sorriu empolgado por me
ver.
“Babelyn, você por aqui de novo? Entre, entre.” Ele me
convidou, enfático. “Como estão seus planos com a mudança? O Alis
comentou que você perdeu sua carta, conseguiu encontrar?”

“Mais ou menos, sim.” Eu respondi, disfarçando a minha


ansiedade. “A Penélope e a Rebecca já voltaram do trabalho?”

“Ah, sobre isso…” O senhor Gabriel desmanchou o sorriso.


“Elas não puderam ir trabalhar, hoje. Mais cedo elas passaram mal,
acho que pegaram alguma virose.” O senhor Gabriel massageou a
testa, frustrado. “Ai, é culpa minha por mandá-las trabalhar no meio
de tanta gente.”

Espera aí, como assim, elas adoeceram? Nossa espécie


raramente adoecia! Ai, aquelas víboras...
“Bem, se o senhor permitir, eu vou lá desejar melhoras.”

“Obrigado, Babelyn, eu fico feliz que as meninas tenham uma


amiga tão próxima.” Gabe sorriu para mim e foi resolver alguma
coisa na cozinha.
Sentindo que estava prestes a me aborrecer muito, eu corri
pelas escadas da mansão até chegar ao quarto daquelas farsantes,
já pensando em como desmascará-las. Será que elas nunca
aprenderiam?

Eu escancarei a porta do quarto e no mesmo instante


percebi algo atípico: Penélope e Rebecca estavam de pijama em
suas camas, muito suadas e ofegantes, mas aquilo não era doença
alguma. As duas sorriam e davam risada, abanando seu calorão com
uns leques ridículos.
“Cadê a minha carta?” Eu ericei os dentes em tom de
ameaça, já percebendo o quanto havia me ferrado.

“Oh, Babelyn, quem se importa com aquele papel bobo?”


Penélope passou um lencinho no pescoço suado, tendo calafrios ao
fazer isso. “Nós acabamos de ter a mais incrível das experiências.
Nossos predestinados se revelaram a nós, e agora tudo é tão lindo.”
“E tão quente.” Bufou Rebecca, esticada na cama como se
fosse derreter. “Esta camisola me irrita. Tudo me irrita. Parece ter
formigas na minha pele.”

Eu revirei os olhos. A ideia era que eu ficasse comovida a


ponto de me esquecer da minha faculdade? Aquela dupla de diabas
talvez merecesse minha atenção quando parassem de me sabotar.

“Deixa-me adivinhar, a minha carta de aprovação continua no


armário de uma lanchonete de shopping.” Eu perguntei, cruzando os
braços com impaciência.

“O nome dele Dawson, e ele é um Amalona másculo e viril,


digno das fantasias que eu nunca soube ter.” Penélope rolou em sua
cama, abraçada no travesseiro de um jeito esquisito. “Eu preciso
daquele homem, Babelyn. Preciso daqueles braços me agarrando,
daquela língua deslizando pelo meu pescoço…”
Eu torci o canto da boca. Mas do que porra aquela maluca
estava falando? Eu só queria a minha carta para então sumir dali.

Apesar de que, eu precisava admitir, me trazia alívio saber


que Penélope predestinou com um Amalona. Os Amalonas talvez
fossem o clã mais nobre depois dos Makairas e seus alfas, apesar
de serem os mais baixos dentre todos os clãs, também eram
conhecidos pelo senso de dever e dignidade.
“E você, Rebecca, predestinou com quem?” Eu perguntei.

Rebecca não parecia tão animada como a irmã. Ela levantou


toda preguiçosa e esfregou o suor da testa, me olhando com um ar
cansado.
“O nome dele é Jackson. Creio que sejam gêmeos entre si,
não concorda, Penélope?”

“Sim, pelo que você descreveu, eles são iguaizinhos! O


mesmo cabelo castanho, peitoral forte, olhos bicolores… ah, meu
novo amor é um sonho! Quando eu fecho os olhos posso até sentir o
cheiro.”
“Amor?” Eu perguntei, intrigada. “Mas Penélope, você nem
conheceu ele, ainda.”

“Já estamos nos conhecendo neste instante. Dawson gosta


de peixes com baixo teor de gordura, de fabricar colares de
conchas, e recitar poesias espontâneas.”
Ah, nossa, então a telepatia começava tão cedo assim? Era
meio fascinante, mas se o meu alfa me recitasse poesias a troco de
nada, acho que eu rasgaria meus tímpanos.

“Eles vão chegar daqui a cinco dias. Eu nunca imaginei que a


Ilha Orona fosse tão próxima.” Rebecca suspirou, desanimada.
“Sim, não é fantástico? Eu não suportaria esse calorão por
muito mais tempo. Olha pra isso, tem suor no meu cabelo!” Penélope
esticou seus cachos com uma expressão enojada. “Só imagine
aquele macho dos sonhos me carregando no colo para o mar, rumo
ao nosso próprio território. E então vou cavalgar ele dia e noite até
me gastar ou até não caberem mais crianças na nossa casa. Oh, é o
destino...”
Era meio esquisito ver a Penélope falando essas coisas com
tanta safadeza no rosto. Aquelas duas sempre foram comportadas e
elegantes e eu não sabia se dava risada ou se sentia nojo daquela
mudança tão brusca. Eu já imaginava que o despertar fosse uma
bomba hormonal nos ovários de qualquer sereia, mas aquilo era
assustador.

Ainda mais assustador foi o estrondo que ouvimos pouco


depois. Rebecca havia socado a parede com tanta força que
arrebentou seu leque de grife. Depois ela levantou emputecida e saiu
porta afora, grunhindo de raiva.
Nossa, aquela menina sabia deixar o quarto de forma menos
dramática? Eu começava a pensar que aquele fosse o normal da
Rebecca, mas pelo olhar da Penélope algo realmente não estava
certo.

“Eu não falei nada de errado... falei?” Perguntou ela.

“Tirando aquele excesso de informação traumatizante sobre


cavalgar um cara? Eu não faço ideia.”

“Ai, eu deveria ir atrás, só que… ah, esse calorzinho é até


gostoso… Sabia que quando o Dawson se toca, eu também…”
“Informação demais! Informação demais!” Eu balancei as
mãos. “Eu mesma vou vê-la, você fica aqui e… abraça esse seu
travesseiro, sei lá.”
Penélope nem respondeu, já estava sorrindo como uma
boba, com o olhar para o teto e o rosto mais vermelho que um
tomate.

Credo, se eu ficasse abobada assim no meu despertar, eu


pediria que me matassem com um tiro.
Capítulo 06

Eu deixei o quarto e logo notei que Rebecca não havia


descido. O senhor Gabriel bebia distraído seu copo de whisky
enquanto assistia televisão sozinho e nem pensar que ele ignoraria
uma filha chorando, se a tivesse visto.

Pensando nisso, eu desci as escadas e passei pelo lado


contrário ao da sala, logo notando uma luz acesa por baixo da porta
da suíte.
Há tempos eu não entrava naquele quarto, que ainda
pertencia ao Hian e ao Maikon embora eles nunca mais tivessem
retornado, nem tivessem planos de nos visitar algum dia. Talvez o
irmão Dylan estivesse limpando a poeira dos móveis, mas naquele
horário ele devia estar caçando o jantar. Só havia, então, uma
pessoa que poderia estar ali dentro.

Eu abri a porta discretamente para não atrair a curiosidade


do humano Gabriel e avistei Rebecca logo adiante, sentada na cama
de seu irmão mais velho enquanto mexia em alguma coisa.
Após fechar a porta com cuidado eu fui até ela, intrigada
pela coisa em suas mãos.

“Sabe, quando alguém vai embora de algum lugar, é porque


quer ficar sozinha.” Ela disse azeda, sem me olhar nos olhos.
“Posso ir embora, mas sinto que você não quer isso.” Eu
sentei ao seu lado. “Isto são coroas de plástico?”
Rebecca suspirou em desânimo e me entregou o par de
coroas. Eram dois acessórios baratos desses de loja de fantasia, em
um deles estava escrito melhor príncipe e no outro melhor princesa.

“Foi a única coisa que encontrei no armário. O irmão Hian


realmente levou tudo…” Ela pegou de volta a coroa de melhor
príncipe e percorreu o olhar pelos relevos coloridos. “Eu sei que ele
não teve escolha, sabe? Quer dizer, acho que ninguém concordou
com a decisão dele de esconder o Leviathan, mas todos nós
compreendemos. Ainda assim… dói…”
Eu torci a boca, me perguntando o que responder. As
gêmeas nunca me pareceram exatamente próximas do Hian II, mas
ele também sempre foi obsessivo pelo Maikon e nunca deu tanta
abertura aos outros. De qualquer forma, era meio surpreendente que
Rebecca sentisse saudades… ou qualquer tipo de sentimento que
não fosse repulsivo.

A coroa de melhor princesa cintilava nas minhas mãos, com


suas pedrinhas chinesas mal coladas nas pontas. Era a mesma
coroa do meu baile de formatura do ano anterior, então eu me diverti
imaginando Hian como uma princesa em seu próprio baile de ensino
médio. Ele deve ter ficado adorável para conseguir ganhar o prêmio
máximo.
“Vocês tem muita sorte. Dois Amalonas… pelo visto as
neuroses de vocês valeram a pena, no final.” Eu falei.
“Acha, mesmo? Quer dizer, eu estou feliz, lógico, mas tudo
isso… esta casa, esta rotina, é tudo o que nós conhecemos.”
Rebecca deixou de lado a coroa e jogou-se nos cobertores macios,
com o olhar no teto. “Eu não imaginava que a Penélope fosse ficar
tão feliz assim.”
Finalmente eu comecei a entender, e me senti uma burra por
não ter percebido antes.

“Você não quer se separar da Penélope, não é mesmo?”


“Ela é uma estúpida.” Rebecca amassou um dos
travesseiros no próprio rosto. “Nós sempre tivemos os mesmos
móveis, brinquedos, estojos de maquiagens e esteticistas favoritos.
Ela é burra de não perceber o quanto tudo vai mudar? Ou está
mesmo tão feliz por se livrar de mim?”

Eu não sabia o que responder. O intelecto da Rebecca


comparava-se ao de um plâncton, mas ela sabia o funcionamento da
nossa sociedade. Agora Penélope e o tal de Dawson eram
propriedade um do outro, e era o alfa quem escolhia o território.
Podia ocorrer de o alfa considerar a opinião de sua predestinada, da
forma como o irmão Dylan aceitou viver com Gabriel no Havaí, mas
da mesma forma ele poderia arrastar Penélope para qualquer lugar.
Igualmente, o futuro de Rebecca estava nas mãos de Jackson.
“Acho que é uma preocupação boba. Dawson e Jackson são
irmãos gêmeos, certo? Eles também devem desejar proximidade.
Não duvido que vocês se tornem as vizinhas mais insuportáveis do
mundo.”
“Será mesmo que viveremos tão próximas?” Rebecca livrou-
se do travesseiro para me olhar nos olhos. Eu não sabia se o
vermelhão em suas bochechas era do choro ou dos efeitos
embaraçosos do despertar. “E o papai Dylan, ou o papai Gabe? O
que iriam pensar?”
“Conhecendo o irmão Dylan, ele vai soltar fogos de artifício
pelos novos cunhados Amalona. O Gabriel vai curtir, também. Vocês
já conversaram com ele sobre os diferentes clãs, e essa coisa toda,
certo?”

Rebecca mordiscou os lábios, desviando nossos olhares.


“Ahm… bem…” Gaguejou ela.

“Rebecca… vocês contaram para o Gabriel sobre o


despertar de vocês?” Eu arqueei a testa. “Ou que logo vão aparecer
dois machos desconhecidos para conhecê-las e consumar o
vínculo?”
Mesmo sem resposta, a expressão da Rebecca já dizia tudo.
Inacreditável.

Ai, irmão Dylan… como primogênito do clã o senhor sempre


teria o meu maior respeito, mas às vezes você sabia ser um
completo retardado.

****

Pelo visto o humano Gabriel havia ignorado as


recomendações do Dylan e ligado para o Michel, preocupado com a
saúde de suas filhas. O doutor Michel prontamente foi visitá-las e eu
o acompanhei, com uma vaga esperança de que minha carta já
estivesse com elas.
E, claro, as duas beldades do inferno nem sequer haviam
deixado o quarto desde que estive ali na última noite, então minha
carta de aprovação continuava esquecida no armário de algum fast-
food.

Não adiantava muito me aborrecer e eu não queria causar


ainda mais atrito entre as meninas e o senhor Gabriel, então fiquei
quieta enquanto o doutor Michel media a temperatura e a pressão de
cada uma.
“Febre baixa, hipersensibilidade e pulsação acelerada… é
um quadro atípico, mas eu não me preocuparia muito.” O doutor tirou
o estetoscópio dos ouvidos e levantou da beirada da cama, onde
Penélope manteve-se prostrada desde que acordou.

“Acha que pode ser algo grave?” Perguntou o humano


Gabriel.

“Improvável, ou o Dylan estaria subindo pelas paredes com


quinhentos tipos de remédios. Onde está aquele peixe-boi, afinal?”

“Ah, ontem pela primeira vez ele dormiu fora de casa. Ele
disse algo sobre encontrar alguns parentes.” Gabriel coçou a testa,
pensativo. “É tão estranho ele sumir assim, não é? E com as
meninas doentes, ainda por cima.”
“É no mínimo suspeito, me mantenha informado quanto a
isso.” O doutor guardou seus equipamentos na maleta e juntos nós
deixamos o quarto, permitindo que as gêmeas descansassem. “Já
sobre as gêmeas, relaxe. Presumo que a situação se resolverá
sozinha.”

“Então esta virose logo vai passar?” Perguntou Gabriel.

“Virose?” O doutor parou no meio da escada e virou-se para


o Gabriel, com um sorriso constrangido no rosto. “Gabe, como eu
devo explicar… ahm… suas filhas já não são mais crianças.”
“Eu sei, Michel, não sou nenhum lerdo. Ainda mais cedo eu
estava embalando para presente uma fritadeira de hambúrguer para
o aniversário de dezoito anos delas. O que isso tem a ver com uma
virose, afinal?”

Nossa, foi difícil eu segurar o riso. O humano Gabriel era


maravilhoso como pessoa, mas dava pra notar de quem as gêmeas
herdaram sua astúcia.
Ainda assim, se o doutor Michel falasse demais, sabe-se lá
qual seria a reação do Gabriel. Eu mesma contei muito pouco a ele
sobre a maturação sexual da nossa espécie, mas era bem possível
que o doutor já tivesse deduzido o óbvio: que a visita surpresa ao
Hian II em breve se repetiria em dose dupla.

“Deixa que eu explico, doutor.” Eu pedi a ele, quando


chegamos na sala. “Veja bem, senhor Gabriel, quando uma
sereiazinha vira uma sereia adulta… coisas acontecem no nosso
corpo e… algumas coisas… mudam…”
Eu avermelhei e embaralhei minhas palavras. Uma sereia da
ciência deveria tratar com profissionalismo sobre qualquer assunto,
mas falar disso com um homem era tão embaraçoso!
“Aaaah, entendi. Elas estão naqueles dias, de novo. Que
confusão, é difícil deduzir quando é aquela época do mês, quando
minhas filhas parecem estar de TPM o tempo todo. Vou ver se o
Dylan já ligou o celular e mando ele comprar mais absorventes.”
Gabe mexeu contente e aliviado em seu celular, então sua expressão
murchou. “Ah, ainda desligado… onde se meteu aquele homem?”
Menstruação? Aquele período horrível em que humanas
sangravam pela vagina durante uma semana e de algum jeito não
morriam? Gabriel pensava mesmo que nossa biologia era tão
primitiva?

Oh, bem, o doutor Michel já estava na cozinha preparando


um chá, então a conversa podia terminar assim… provavelmente.
Não era como se a dedução do humano Gabriel estivesse tão longe
da realidade, mas era intrigante pensar em quantos pacotes de
absorventes deviam estar escondidos em algum buraco da casa.
Não era o meu papel instruir o predestinado do irmão Dylan
sobre coisas que ele mesmo preferia ocultar. Óbvio que eu
discordava de guardar tantos segredos, mas um tritão conservador
como o irmão Dylan não seria convencido a mudar de método. Ainda
bem que em poucos dias eu estaria em um avião rumo a Harvard e
não me envolveria muito no barraco gigantesco que estava prestes a
ocorrer.

Dava um pouco de pena ver a inocência do humano Gabriel,


eu me perguntava como ele continuava tão ingênuo após sucessivas
provas de que nosso povo não era assim tão confiável. Tritões e
sereias mentiam, esta era nossa natureza, mas não era preciso ser
um gênio para perceber certos padrões entre o comportamento das
gêmeas e os desconfortos que Hian II deve ter passado antes da
chegada de seu algoz.
Confiando nas minhas palavras, o humano Gabriel logo se
esqueceu do assunto e sentou-se com Michel para beber seu chá da
tarde. Eu até considerei sentar-me com eles, mas enrolar tanto ao
Gabriel quanto ao Doutor meio que embrulhou o meu estômago,
então eu me despedi e fui para a praia dos fundos. Um mergulho
gelado e uma boa caçada eram tudo o que eu precisava para
recuperar meu ânimo e tentar me esquecer daquela maldita carta,
que eu novamente precisava esperar para rever.

Eu deixei a mansão e toquei a areia macia com meus pés


descalços.
Naquela tarde fazia sol, não muito, o tipo de dia em que eu
podia estudar com vontade sem morrer de calor… era estranho
pensar que não havia mais pilhas de livros me aguardando em casa,
talvez eu devesse começar com a leitura da faculdade só para não
enferrujar meu cérebro.

Estudar e me esquecer das gêmeas — e do meu despertar


tão próximo — me parecia o plano perfeito, só que, assim que
cheguei no mar, acabei me deparando com alguém. O irmão Dylan
havia retornado carregando uma enorme enguia-maltesa por cima do
ombro.
Nossa, que peixe chique e exagerado para um almoço
comum de semana… aquilo só podia significar uma coisa.

“Irmão Dylan, o senhor fez alguma besteira, não fez?” Eu


perguntei a ele.
Meu irmão mais velho enfim deixou a água e recuperou suas
musculosas pernas na areia seca. Ele cruzou o dedo na boca
sinalizando que eu falasse baixo, seu olhar atento no interior da casa.
“Não fiz besteira alguma... Quer dizer, quase nenhuma.” Ele
sussurrou para mim. “Eu encontrei o pai alfa daqueles gêmeos.”

Ahn? Eu demorei um pouco a entender, então expandi meus


olhos em surpresa.
“O senhor encontrou os predestinados das gêmeas antes
mesmo delas? Mas irmão…”

“Não, eu não consegui. Esqueceu que perdi os poderes do


chamado?” Ele me mostrou a cicatriz em seu pulso, nervoso como eu
raramente o via. “Minha intenção era encontrá-los e conhecê-los,
talvez dar uma assustada, enfim… foi muita sorte encontrar o pai alfa
dos rapazes, e eles parecem ser um núcleo respeitável e de bons
valores.”
“Então qual o motivo de tanta preocupação?” Eu arqueei
minha testa, estranhando o quanto Dylan olhava para dentro da casa
e para o alto-mar repetidamente.

“Houve um erro de cálculos. Foi um milagre encontrar o pai


daqueles garotos pelo caminho, mas eles não são como nós…
eles… quer dizer, eles são idênticos a nós… o que significa…”
Eu segurei os braços do irmão Dylan antes que ele tivesse
um troço.

“Como assim, eles são idênticos a nós? O que houve meu


irmão?”
“A ilha Orona fica a cinco dias de Waikiki, mas isto para um
tritão comum… eles… eles tem uma lancha.”
“Quê?” Eu mal compreendia o chilique do irmão Dylan, mas
quando o entendi, até mesmo o meu sangue congelou. “Espera,
então aqueles caras…”

“Preciso esconder o Gabe. Aliás, preciso me esconder. Não,


talvez a melhor alternativa seja incendiar esta casa.”
“Se acalma, irmão, já não me basta os chiliques do Byron!
Vamos pensar de forma científica. O que o Gabriel sabe desta
situação, exatamente?”

“Absolutamente nada.”
Ok, isto não era nada bom… mas o importante era ser
otimista. Se aqueles gêmeos eram civilizados o bastante para
possuir uma lancha, provavelmente não seria um choque cultural tão
grande. Que tipo de pai não gostaria de homens bonitos e bem-
sucedidos para suas filhas, não é mesmo? E lanchas não eram tão
rápidas assim, não era como se…

A campainha tocou.
Eu e Dylan trocamos olhares surtados. Ele deixou sua caça
cair no chão e andou em círculos pela areia, então nós corremos
furtivamente para dentro da casa.

O doutor Michel permanecia confortável no sofá, bebendo


seu chazinho quente sem nenhuma preocupação no mundo, só que
agora ele estava sozinho. Gabriel já estava a caminho da porta de
entrada.
O irmão Dylan tremia tanto que parecia de gelatina,
observando em pânico cada movimento de seu predestinado. Gabe
parando diante da porta, levantando o braço, tocando a maçaneta…
“Calma, primeiro irmão, talvez seja o carteiro.” Eu sussurrei
para ele.

Daquele ângulo nós dois não conseguíamos ver a porta sem


revelar nossa presença ao doutor Michel, mas era possível ouvir.
“Pois não?”

“Saudações, digníssimo humano da lenda. Meu nome é


Dawson Amalona, e este é…”
“AAAaaaahh!!” Berrou Gabe.

É, acho que mesmo uma caça tão grande não salvaria o


irmão Dylan de ser, ele próprio, o jantar daquela noite.
Capítulo 07

Ah, mas que belo dia. O sol brilhava, os pássaros cantavam,


e o humano Gabriel perseguia dois tritões pela casa com um cabo de
vassoura.

Talvez eu devesse auxiliar o doutor Michel a separar a briga,


mas após tanto tempo estudando ou suportando as gêmeas, eu
merecia aquele pouco de diversão. Talvez fosse babaquisse da
minha parte, mas era engraçado demais ver dois caras
desconhecidos saltando do sofá para a mesa, correndo e gritando
enquanto tentavam desviar das vassouradas do Gabriel.
Sobre aqueles caras, era difícil diferenciar um do outro. Os
dois eram alfas musculosos, só um pouco mais altos que as gêmeas,
com cabelo espetado e cor-de-mel e olhos heterocrômicos. Pele
clara, saiotes longos e camisa social típicos do clã Amalona, rosto
quadrado… os outros detalhes eram difíceis de observar no meio de
tanta correria.

“Digníssimo ômega Gabriel, acreditamos estar ocorrendo um


severo engano em suas… ai!” Disse um deles, para logo depois
receber uma paulada nas costas.
“Voltem para o aquário de onde vocês escaparam! Ninguém
vai chegar perto das minhas filhas!!” Gritou Gabriel, em meio à sua
incessante caçada.
Já muito treinado a perseguir crianças, Michel corria atrás do
Gabe e tentava desarmá-lo sem cair no fogo cruzado.
“Gabe, se acalma, deixa os rapazes se explicarem!” Disse o
doutor.

“Não quero explicação nenhuma!” Gritou Gabriel. “Eles vão


me enganar que nem aquele outro monstro!”

“Monstro? Meu estimado sogro, há um óbvio equívoco em


sua constatação, nós somos os predestinados das… aah!! Não,
não!” O outro gêmeo ficou encurralado no canto da sala, na mira de
outra vassourada.

Atordoado pela própria raiva, o humano Gabriel desceu a


vassoura de mau jeito e a arrebentou contra a parede. O pobre
Amalona aproveitou a oportunidade para sair correndo, indo
encontrar seu irmão igualmente apavorado no meio da sala.
O tempo todo o irmão Dylan e as gêmeas apenas assistiam
ao pé da escada. A ansiedade das meninas em conhecer seus pares
devia ser imensurável, mas nenhum dos três era louco de se
aproximar do Gabriel.

Aquela família era tão divertida.


“Vocês estão servidas?” Eu ofereci meus flocos de camarão
às gêmeas, que assistiam tudo ainda descabeladas e de pijama,
com horror e fascínio em seus olhos verde-esmeraldas.

“Ele… ele é tão lindo, viril e rápido…” Os olhos da Rebecca


brilhavam, vidrados em um dos gêmeos como se houvesse qualquer
diferença física entre os dois.
“Uma pena que eles vão morrer a pauladas.” Penélope afinou
os olhos para o Dylan. “Ainda considera uma boa ideia ter escondido
isso do Gabe, papai?”

“Eu vou ser morto, sou o próximo da fila.” Gaguejou o irmão


Dylan, tentando se esconder atrás do corrimão.

Após mais um tempo de correria, Gabriel começou a cansar.


Enfim me pareceu o momento sensato de agir, então eu me juntei ao
doutor e logo conseguimos agarrá-lo por trás e desarmá-lo do que
sobrou da vassoura.
“Me solta, Michel! Você ouviu esses caras, eles vieram pelas
minhas filhas!!” Gabriel forçou o braço, tentando livrar-se do velho
doutor sem machucá-lo.

“Eu sei, Gabe, mas vamos resolver isso na conversa. São


apenas dois adolescentes, eles não parecem nada perigosos.”

“Aquele diabo albino também não parecia.” Devolveu Gabriel,


com os olhos inchados e a respiração ofegante.

“Vamos com calma, ou você mesmo vai acabar se


machucando. Eu acredito com sinceridade que desta vez não seja
um truque. E em mim você confia, não é?” Perguntou o Doutor.
O humano Gabriel enfim relaxou os músculos e se aquietou,
com o rosto baixo e os olhos molhados de lágrimas. Ele concordou
com um gesto da cabeça, amargurado.

Pobre senhor Gabriel. Era um tanto cômico ver dois tritões


alfas escondidos embaixo da mesa, aterrorizados com um humano
tão menor que eles, mas ainda assim doía perceber a angústia
profunda no coração do Gabriel. Não devia ser fácil conviver com a
lembrança da violência contra seu filhote mais velho, e ainda menos
com o conhecimento de que tudo aconteceu debaixo do teto daquela
mesma casa, sem que ele suspeitasse de nada até ser tarde
demais.
Eu nunca me interessei muito por filhos, mas se eu fosse
mãe e algo horrível acontecesse com algum filhote meu, acho que eu
também ficaria paranoica… uma vassoura seria uma arma fraca
demais para defender minha prole de ameaças tão terríveis.

Apesar de todos os traumas no passado, Gabriel não


precisou se acalmar muito para notar o tamanho de seu exagero.
Aqueles rapazes assustados podiam ser jovens e ingênuos, mas não
deixavam de ser tritões alfas. Se Dawson e Jackson contivessem
qualquer crueldade no coração, teriam atacado Gabriel muito antes
da quarta ou quinta paulada na cabeça. Havia a possibilidade de não
respeitarem Gabriel como o humano que ele era, mas o respeitavam
como sogro e, óbvio, por ser o ômega do digníssimo primogênito
Dylan Makaira.
Os irmãos Amalona podiam ser meio azarados, mas faziam
jus à inteligência de seu clã: segundo as leis da nossa espécie
Gabriel já não possuía autoridade alguma sobre as gêmeas, mas
aqueles dois conheciam a singularidade daquele núcleo ou, por
melhor dizer, daquela família.

Em outras palavras, se os gêmeos quisessem conquistar o


coração das gêmeas, precisariam conquistar a confiança do Gabriel
primeiro.

Preocupada em desarmar o humano Gabriel, eu nem percebi


Penélope e Rebecca retornando ao seu quarto. Quando espiei a
escada, onde então só havia o meu irmão encolhido e com medo de
apanhar, as gêmeas recém apareciam novamente, e desta vez
desfilando como se as escadas fossem uma passarela.
Ai, pelos oceanos, eu precisava aprender a trocar de roupa
tão rápido.

Diante de todos nós, as duas beldades supremas marcaram


sua imponente presença, rebolando no topo de seus saltos e com
glamorosos vestidos verdes, maquiagem de divas do pop e cabeleira
impecável. Até mesmo o Gabriel se esqueceu de seu tormento
interior para admirá-las, certamente duvidando da própria sanidade
mental. Aquelas loucas estavam agonizando em dores febris não
fazia nem meia hora, como era possível alguém se produzir tanto, e
em tão pouco tempo??
Poderosíssima e fingindo confiança — nem toda aquela
maquiagem conseguia ocultar o rubor do cio — Penélope jogou para
trás sua esvoaçante cabeleira e desfilou com a irmã em direção aos
seus parceiros.

“Está tudo bem, Dawson. Venha, permita-me conhecê-lo.”


Ela estendeu a mão para baixo da mesa, de onde os dois coitados
não tinham coragem de sair.

“Eles cheiram gostoso.” Rebecca sussurrou para a irmã.


“Eles cheiram muito, muito gostoso.”

“Acalme-se, Rebecca.” Penélope sussurrou de volta. “Vamos


fingir normalidade ao menos por enquanto.”
“Mas eu preciso dar uns amassos neste cara.” Rebecca
sussurrou de volta, então percebeu que apontava para o tritão
errado. “Quero dizer, neste cara.”
Eu dei risada, me aproveitando da minha aguçada audição
de sereia. Eu já podia prever umas confusões bem alarmantes
naquela dupla de casais, mas, considerando-se tudo, até que o
chilique do Gabriel terminou rápido e sem grandes tragédias. O que
restava então era uma boa dose de conversa civilizada, onde os dois
garotos demonstrariam os bons valores do clã Amalona.

Temerosos, Dawson e Jackson seguraram as mãos de suas


predestinadas — ou eu podia presumir que eles sabiam quem era
quem — e então saíram debaixo da mesa, o tempo todo espiando
Gabe e o pedaço de cabo de vassoura arrebentado pelo chão.
Naquele momento, aproveitando-se da distração de todos, o
meu irmão deixou seu esconderijo na pontinha dos pés e caminhou
silencioso pelo canto da sala, rumo à segurança da praia particular.
Ele passou cauteloso por trás do Doutor Michel e, assim que estava
prestes a conseguir escapar, Gabriel fez um gesto brusco para trás
e o agarrou pelo pescoço.

“Dylan, você me deve muitas explicações!” Gabriel afinou os


olhos como duas lascas de fogo azul.
O pobre irmão Dylan não conseguiu formar palavras,
provavelmente se perguntando o que Gabe ainda poderia fazer com
a ponta daquele cabo de vassoura. Eu quase me senti mal por ele,
mas, sinceramente, as gêmeas não eram as únicas precisando
aprender muitas coisas.

“Meu predestinado, a explicação é muito simples. Tão


simples, na verdade, que não julguei necessário…”
Gabe não deu a mínima para as palavras do meu irmão.
Ainda segurando Dylan pelo pescoço ele virou-se ao Doutor Michel.
“Michel, se importa de comprar outra garrafa de vinho?”

O doutor olhou para o Dylan, que devolvia um olhar


desesperado de quem pedia socorro.
“Ahm… Gabe…” O doutor passou a mão pelo ombro do
Gabriel, tentando acalmá-lo com uma massagem. “Aquela vassoura
era meio velha e podre, mas se você quebrar uma garrafa de vinho
na cabeça de alguém…”

“Não vou quebrar nada na cabeça de ninguém! Quero que dê


uma volta com a Babelyn e volte mais tarde. Preciso ter uma
conversa em particular com esta minha família.”
O irmão Dylan estava tão borrado que nem mordeu o Doutor
Michel pela audácia de massagear seu ômega.

Não me parecia sensato deixar Gabriel sozinho em uma casa


com diversos objetos cortantes, mas éramos apenas visitas em um
momento inoportuno. Mesmo bastante contrariado, o Doutor Michel
acabou cedendo e me pediu que eu o acompanhasse, então nós
deixamos a casa e fomos dar um passeio, já debatendo sobre os
melhores tipos de vinho que poderíamos encontrar. As chances de
acalmar Gabriel eram poucas, mas nós precisávamos tentar de tudo.

****
Nove da noite e não havia nenhuma ambulância ou viatura
policial diante da casa do irmão Dylan. Ótimo! Talvez o senhor
Gabriel já estivesse calmo e adorável como ele sempre foi. Sim, ele
devia estar sorridente e dócil, provavelmente no colo do irmão Dylan,
todo manhoso e feliz pelo sucesso de suas filhas.
Ahahah, quem eu queria enganar? Se eu fosse o humano
Gabriel eu estaria comendo sashimi de Dylan naquele momento, com
sopa de Amalona para acompanhar.

O Doutor também parecia nervoso, mas quando ele não


estava? Pelo menos ele raciocinou com astúcia e comprou cinco
potes de sorvete, que ele carregava em sacolas junto com as
garrafas de vinho.
O trajeto desde o nosso carro até a porta de entrada
pareceu durar para sempre, mas em nenhum momento ouvimos
gritos, o que era animador, não era? Ou talvez Gabriel já tivesse
matado todo mundo.

Nervoso, mas sempre valente, o Doutor Michel respirou


fundo e abriu a porta.
E foi naquela mesma noite que eu, Babelyn Makaira,
descobri que a sequência de desgraças na minha vida ainda estava
muito, muito longe de terminar.
Capítulo 08

A princípio tudo parecia em ordem. O meu irmão, Gabriel e


as gêmeas estavam sentados nos sofás da sala com o par de
gêmeos sentados nas poltronas diante deles. Apesar do clima de
interrogatório não havia nenhum cadáver de tritão ou sangue
escorrendo das paredes e isto já era um excelente sinal.

Eu entrei com o Doutor e nós cumprimentamos a todos,


então o Doutor foi procurar taças para o vinho e eu me juntei àquela
reunião arrepiante. Só então eu percebi que os rumos da conversa
não pareciam exatamente ótimos… pela cara das gêmeas, elas mais
queriam socar as paredes do que ouvir as palavras do Gabriel.
Muitas eram as histórias do primeiro encontro entre alfa e
ômega, e a maioria delas era absolutamente imprópria para
crianças. Como dois ímãs em constante atração, o desejo primal do
casal predestinado era grudar-se para nunca mais separar. A força
de atração mais óbvia era o ímpeto pela reprodução, mas diziam
haver muito mais, desejos ardentes como magma e eletrizantes
como uma tempestade. Uma sereia da ciência como eu sabia se
tratar de uma simples alteração hormonal e, chegado o momento do
meu grande encontro, eu certamente reagiria com calma e
distanciamento científico, mas aquelas duas burras não possuíam a
minha iluminação intelectual e naquele momento comportavam-se
como bichos primitivos.
Sim, por baixo da pose elegante e vestidos de grife aquelas
duas tremiam e se angustiavam, hipnotizadas pelo cheiro de seus
parceiros e ainda assim forçando-se a manter a postura de boas
moças. Será que Gabriel percebia a tortura que causava em suas
filhas? Até mesmo os dois alfas mal escondiam suas arfadas
nervosas, ocultando o próprio colo com um par de almofadas.
A conversa de outro dia com Rebecca retornou aos meus
pensamentos e eu quase me senti mal pelas gêmeas. Mesmo que
continuassem juntas, a vida que conheciam se acabara naquela
tarde. Eu não sabia muito sobre a ilha Orona, mas certamente não
devia haver muitos cosmetólogos ou lojas de perfume em uma
colônia de tritões.

Bem, havia uma enorme diferença entre quase me sentir mal


e me sentir mal de verdade, então eu disfarcei o meu sorriso e sentei
ao lado do irmão Dylan para acompanhar o desenrolar daquele
drama.
Gabriel ainda exibia traços do nervosismo de antes, mas
nada se comparava ao desespero da Penélope.

“Meu pai, insisto que reconsidere. Dawson é o tritão pelo


qual aguardei toda a minha vida!” Disse Penélope.
“E olha para o sorrisinho do Jackson, ele parece capaz de
desejar-me algum mal?” Perguntou Rebecca.

Na verdade o tal sorrisinho do Jackson parecia um sintoma


de AVC, o pobre alfa estava tão assustado que seu rosto havia
congelado em uma constante expressão de eu não quero morrer.
Gabriel não desferiu o menor olhar à dupla de predestinados.
Ele simplesmente não queria ver ou ouvir, como se perceber o
engano fosse arrancar-lhe algum pedaço.
“Eu já disse que não. Se estes dois tivessem qualquer
importância na vida de vocês, eu já teria ouvido a respeito. Vamos,
admitam que nunca ouviram falar nestes farsantes!”

Ainda meio apavorado, meu irmão Dylan segurou bravamente


a mão do Gabriel, mantendo o olhar atento ao dele, como se fosse
um peixinho beliscando um tubarão.
“Meu predestinado, estes rapazes foram revelados às
nossas filhas dias atrás, não haveria como…”

“Não me venha com essa, Dylan!! Foi a mesma história da


outra vez e…” A voz do Gabriel fraquejou. “…e você sabe muito bem
como terminou.”
“Eu compreendo seus temores, meu amor, mas…”

“Foi difícil te perdoar, Dylan. Muito, muito, muito difícil. Não


faça eu me arrepender dos meus esforços.”
“Peço mil perdões.” O irmão Dylan prestou uma breve
reverência ao Gabriel e então voltou sua atenção às meninas. “Creio
que esta conversa pode-se dar por encerrada. Meninas, vocês
ouviram o seu pai ômega.”

Penélope, Rebecca e os gêmeos se entreolharam indignados


e incrédulos.
“Mas papai Dylan, o senhor prometeu convencer o papai
Gabe a…” Tentou Penélope.
“Meu predestinado já expressou sua opinião. Vocês duas
conhecerão melhor a seus predestinados antes de qualquer decisão
drástica. Lembrem-se do sangue humano que corre em suas veias e
este talvez se torne um desafio mais fácil.”
“Conhecê-los melhor? Qual a necessidade disso? Dawson e
Jackson são a outra metade de nossas almas, não há nada que…”

“Esta conversa está encerrada, meninas.” Dylan levantou-se


do sofá, encarando os rapazes com um olhar severo e ameaçador.
“E suponho que dois jovens Amalonas não possuam ressalvas quanto
a esta decisão.”
Coitados daqueles caras… mas era engraçado ver dois alfas
musculosos tremendo de medo de seus sogros das trevas.

Dawson e Jackson, óbvio, apenas concordaram com a


cabeça. Se fosse qualquer outro clã de tritões, aquela conversa
poderia ter terminado de mil formas imprevisíveis, mas o irmão Dylan
conhecia o código de honra do clã dos gêmeos. Mesmo que tritões
fossem conhecidos por suas mentiras, a lealdade dos Amalonas com
os Makairas superava até mesmo a natureza de nossa espécie.
“Os senhores têm a nossa promessa.” Os garotos disseram
em coro, prestando reverência ao mesmo tempo.

“Ótimo.” Disse Gabriel, ainda nada contente. “Eu deveria


expulsá-los daqui a vassouradas, então nem se atrevam a esquecer
das regras. Minhas filhas são os meus tesouros preciosos, vocês se
manterão à nossa vista em todos os momentos e não encostarão um
dedo nelas longe da minha vigilância.”
Uau, então essas eram as tais regras? Eu precisei segurar a
risada, só imaginando quanto tempo um tritão ou sereia conseguiria
suportar. Nem pensar que as gêmeas resistiriam, Gabriel piscaria
por meio segundo, e no segundo seguinte suas filhas
desapareceriam para acasalar no telhado, se fosse necessário.
“Meu querido pai, o que nos pede é totalmente inviável.”
Penélope tentava manter a calma, apesar do suor já descendo a
testa. “O senhor trabalha durante as manhãs e tardes e o papai
Dylan tem seus próprios afazeres. Não pode exigir nosso
distanciamento por tanto tempo!”

O debate poderia terminar ali, com Gabe dispensando os


resmungos das meninas e retornando ao quarto com o irmão Dylan,
onde ele certamente o xingaria até queimar-lhe os ouvidos… mas
então o Doutor apareceu com taças de vinho.
“E então, Gabe, já conheceu melhor estes jovens peixes?
Aqui, para vocês.” O doutor ofereceu taças a todos e apenas Gabriel
aceitou. Então ele sentou ao meu lado e bebericou empolgado de
seu próprio vinho, sorridente e interessado naquela novidade. “Não
se acanhem, falem alguma coisa. Vocês não podem beber vinho igual
ao Dylan, ou têm frescura igual às gêmeas?”

Após tantas vassouradas e tormento psicológico, os meninos


gaguejaram muito antes de conseguir soltar frases coesas.

“N-não podemos. Somos sangue-puros, não que tenhamos


qualquer preconceito com humanos, ou híbridas ou… ele vai nos
bater de novo, não vai?” Disse um deles.
O Doutor Michel olhou para o Gabriel, que já estava
espumando de ódio, como se cada palavra daqueles caras fosse um
insulto pessoal.
“O Gabe só precisa beber mais. Esperem até conhecê-lo
bem e ele será um docinho de sogro, né Gabe?” O Doutor riu
nervoso, percebendo que Gabe não se acalmava em nada. “Peixe-
Boi, acho que precisaremos de sorvete, também.”

“Será providenciado.” Dylan foi para a cozinha quase


correndo.
“Não preciso de sorvete!” Gritou Gabe, já avermelhado pela
bebida. “Estes dois trastes ficarão onde eu possa ver! Ninguém vai
machucar as minhas filhas, ninguém!” Ele encheu sua taça de novo e
bebeu tudo de uma só vez. “E sem essa de escaparem quando eu
estiver trabalhando! Eu já pensei na solução perfeita!”

“Essa vai ser ótima.” Eu dei risada, provocando as meninas.


“As meninas vão ter que usar um cinto de castidade? Vai ser hilário.”
“Não, claro que não.” Gabriel devolveu sua taça vazia e
passou o olhar por mim antes de voltar sua atenção às gêmeas.
“Querem sair com esses caras? Pois vão em frente, podem ter
quantos encontros quiserem, desde que a Babelyn fique com vocês.”

Quê? Como é que é? Eu ouvi o meu nome?


Percebendo o tamanho daquele absurdo, o Doutor Michel
segurou o braço do Gabe e tentou fazê-lo sentar de novo.

“Gabe, você tem motivos para se revoltar, mas vamos


pensar com calma. A Babelyn passou na faculdade, lembra? Ela vai
viajar em poucos dias.”
“Exatamente.” Gabriel riu, vitorioso. “Sem a Babelyn, sem
namoro. Simples assim.” Gabe virou-se para a cozinha com um olhar
predatório. “Você concorda com isso, né, Dylan?”
“Tudo o que desejar, meu predestinado!” Dylan gritou da
cozinha.

“Isto é uma afronta! O papai Dylan nem ouviu ao senhor!”


Disse Penélope.
“E o que eu tenho a ver com essa história?” Eu perguntei.

“É isso, ou vocês se encontrarão apenas vinte minutos por


noite, entre eu voltar do trabalho e o Dylan terminar o jantar. A
escolha é de vocês.” Disse Gabe.
A princípio tudo o que senti foi raiva e indignação, mas era
difícil me aborrecer quando as gêmeas pareciam tão frustradas.
Aquela dupla de piranhas marinhas enfim recebia o carma que tanto
merecia, e eu não poderia me importar menos.

Sentindo que meu nome não deixaria aquela discussão tão


cedo, eu me levantei e mexi no meu celular, fingindo ter recebido
alguma mensagem importante.
“Ah, nossa, a conversa está maravilhosa, mas eu preciso ir.”
Eu me levantei e prestei uma breve reverência. “Foi um prazer
conhecê-los, senhores Dawson e Jackson Amalona. Desejo-lhes um
próspero relacionamento com minhas sobrinhas. Adeus.”

“Babelyn, onde pensa que vai? Você ouviu nosso pai Gabe,
não pode apenas…” Resmungou Rebecca.
Eu ignorei as súplicas daquela duplinha de demônias e
rebolei até a saída, me sentindo uma diva mais poderosa do que
elas jamais foram. Pelas leis do nosso povo eu não devia obediência
alguma ao humano Gabriel, e ele próprio devia saber disso quando
me envolveu em sua condição absurda. Eu nunca passaria mais
tempo que o necessário com suas filhas e ele sabia disso.
Satisfeita após uma confusão tão divertida, eu me despedi
de todos e voltei para casa sem perceber um detalhe muito
importante. Um detalhe que eu pagaria caro por ter esquecido.
Capítulo 09

Enfim livre das longas noites de estudo, eu me permiti


acordar apenas quando o sol brilhava alto, iluminando meu quarto
através das frestas da cortina.

Eu me espreguicei lentamente, estranhando o silêncio na


casa. Geralmente eu acordava junto das crianças em meio ao caos
matinal, mas àquela hora o senhor Alisson já devia tê-las levado para
a escola. Eu devia estar bem cansada para não acordar em meio à
gritaria da hora do café.
Apreciando o raro silêncio daquela casa, eu me sentei na
cama e percorri os olhos pelo quarto, logo sentindo uma pontinha de
tristeza. Meu espacinho naquela mansão sempre foi abarrotado de
livros, decorações cor-de-rosa, aparelhos científicos e répteis em
conserva, mas naquele momento só havia caixas de mudança. Toda
a minha história com Doutor Michel e os humanos do Havaí em breve
ficaria no passado.

Meu telescópio, meus catálogos de artrópodes, meu


sismógrafo… se eu tivesse crescido em Egarikena eu não saberia
sequer o nome daquelas coisas e era assustador pensar nisso.

O esperado de uma sereia — e uma sereia de sangue real,


ainda por cima — era que valorizasse sua beleza e elegância como
um ato de respeito ao seu futuro macho alfa. Não eram expectativas
tão diferentes daquelas reservadas aos tritões ômegas, mas havia
toda uma preocupação com cabelo, maquiagem, roupas e depilação
que com os homens simplesmente não existia e aquela vida não era
para mim.
Felizmente, quando se é apenas mais uma em uma coleção
de vinte filhos, não é impossível escapar das exigências de seu pai
ômega.

Na primeira vez que fugi eu mal sabia correr, foi um milagre


eu não despencar das escadarias do palácio, montanha abaixo.
Papai Arian não demorou a me encontrar e me dar uma bela bronca
sobre amassar meu vestido e bagunçar meu longo cabelo, que ele
cuidava como se fosse uma mini-versão de sua própria cabeleira
platinada. Mesmo pequena eu podia notar o quanto eu era diferente.
Havia uma horda de serviçais cuidando da minha aparência quando
os meus irmãos menores só recebiam cuidados essenciais. Meus
irmãos passavam o dia brincando e treinando combate nos salões do
palácio enquanto eu precisava fazer as unhas, e o papai Hian sempre
levava os menores para explorar a ilha enquanto eu deveria ficar com
os cuidadores e proteger minha pele do sol. Como eles esperavam
que eu não fugisse de novo, e de novo?
Não era como se meus pais me odiassem ou não tentassem
me compreender. Depois da minha quinta fuga eles perceberam que
não podiam me trancar para sempre, então o sexto irmão Moyren se
ofereceu para cuidar de mim nas galerias submersas. Meus pais
cederam, desesperados em por fim na minha infelicidade.

Viver no núcleo do irmão Moyren foi, com certeza, a melhor


época da minha vida em Egarikena. Vivendo embaixo da água eu não
precisava me preocupar com o meu cabelo ou maquiagem, e podia
trajar vestidos simples e leves que facilitassem o nado. Para
melhorar tudo ainda mais, o predestinado do Moyren era um
Amalona super inteligente chamado Édrilan, e ele sempre me deixava
ir caçar com ele nas profundezas. Cada dia era uma aventura e por
um breve tempo eu senti, de verdade, que havia encontrado o meu
verdadeiro eu. Danem-se as tradições das sereias, Babelyn Makaira
seria uma desbravadora dos oceanos!
Percebendo para onde mergulhavam as minhas memórias, o
meu coração apertou ainda mais. Eu olhei para o lado, na minha
mesinha de cabeceira, onde agora restava o único objeto que não
tive coragem de encaixotar: Uma velha bonequinha de pedra,
esculpida à mão e ainda com o mesmo vestidinho de quando a
ganhei de presente.

Eu peguei a bonequinha na mão, me lembrando do quanto


ela costumava ser grande e pesada e agora era só um brinquedinho
pouco maior que uma Barbie.
“Senhor Isha… será que o senhor teria orgulho de mim?” Eu
sussurrei, me sentindo uma boba. Uma sereia da ciência já deveria
ter aprendido que a morte é o fim de tudo.

O que restava do senhor Isha era um túmulo em um planalto


de Egarikena, e nada mais. Até mesmo o irmão Byron já havia
superado sua morte e reencontrado o amor em outro humano, então
era estúpido que eu ainda sofresse tanto. Mas tudo bem ficar triste,
certo? Porque em breve nenhum outro tritão conheceria a dor de
perder um humano querido, e de forma tão tenebrosa.
Querendo me distrair daquelas memórias amargas demais,
eu devolvi a boneca à mesinha e fui me arrumar. O Doutor Michel
prometeu me ajudar com a reserva do jatinho quando retornasse do
hospital, e eu ainda precisava buscar minha carta de aprovação
antes disso.

Assim que me lembrei da carta de aprovação eu também me


lembrei das gêmeas e comecei a rir, me perguntando como estavam
se virando com o corpo ardendo nos fervores da luxúria, e ainda
assim proibidas de chegar perto de seus alfas.

Um barulho do lado de fora interrompeu meu riso. Passos


pesados correndo pela casa, portas abrindo e fechando…
Desconfiada, eu tirei meu pijama e peguei um dos poucos
vestidos ainda fora da mala, mas antes que eu pudesse vesti-lo
alguém escancarou meu quarto.

“Aaah!” Eu gritei, cobrindo a frente com o vestido. “Pe…


Penélope?”

“Eu a encontrei!” Penélope gritou para trás de si e então


entrou no quarto. “Babelyn, você vem conosco!”

Quê? Eu não conseguia entender nada e estava sonolenta


demais para pensar direito. Desde quando Penélope me visitava, e
espera… quem ela estava chamando, exatamente?
Outra pessoa correu escadaria acima e invadiu meu quarto.
Era a Rebecca, e ela parecia tão descontente quanto sua irmã de
cabelo comprido.

“Babelyn, não acredito que você nos forçou a atravessar a


cidade e te procurar nesta casa de oitocentos quartos! Você não tem
celular? Faz ideia do que o papai Dylan vai fazer conosco, se
descobrir que…”
Meu celular? Eu ignorei os resmungos das gêmeas e
encontrei o meu celular ao lado da cama. Eu nunca recebia ligações
durante a madrugada, então óbvio que deixei no silencioso. Haviam
63 ligações não atendidas e umas duzentas mensagens, a maioria
em capslock com desaforos e emojis passivo-agressivos.
“Babelyn, você está nos ouvindo? Precisamos sair agora!”
Disse Penélope. “Não nos faça perder mais um minuto neste lugar
horrível. Olha pra essas paredes cor-de-salmão, e estas caixas de
papelão são péssimas para o feng-shui do ambiente.”

Ai, ai, paciência… Eu vesti o meu vestidinho meio às


pressas, não querendo que aquelas duas peitudas zombassem do
meu corpo de tábua, e só então tentei entender o motivo daquela
balbúrdia. Era a primeira vez que as gêmeas me visitavam e me
surpreendia que conhecessem o endereço do Doutor Michel. A única
preocupação daquelas capetas sempre foi a própria imagem
pessoal, e elas nunca arriscariam sua preciosa reputação sendo
vistas com alguém como eu.
Seja lá o que elas queriam comigo, elas precisariam
encontrar outra trouxa para satisfazê-las. Ignorando seus
comentários ácidos sobre o meu quarto e as minhas coisas, eu
passei reto por elas em direção ao banheiro, bocejando e querendo
demais lavar o rosto com água gelada.

Assim que cheguei no meio do corredor, porém, um barulho


de papel arrepiou os pelos dos meus braços. Eu me virei novamente
para as gêmeas e logo reconheci a origem daquele som: era a minha
carta de aprovação, branquinha e intacta, e naquele momento
Penélope a abanava como uma bandeira, quase amassando o meu
inestimável documento.
“Devolvam-me isso, suas pavoas do inferno!”

Eu corri até elas e tentei pegar o papel, mas Penélope


ergueu alto e além do meu alcance, e quando saltei para alcançar ela
apenas passou para Rebecca, que passou de volta para a irmã, as
duas rindo e se divertindo às minhas custas.

“Calma, Babi, você terá sua carta boba de volta, só precisa


colaborar conosco.” Penélope guardou minha carta na sua bolsinha
da Gucci enquanto Rebecca me segurava no lugar.

“Colaborar?” Eu afinei os olhos, chocada com a audácia


daquela orca glorificada. “Podemos colaborar assim: vocês entregam
a minha carta, e eu não conto para o irmão Dylan que vocês fugiram
de casa para namorar escondido.”
As duas se entreolharam nervosas e desconfiadas, como se
não previssem aquela resposta. Como elas podiam ser tão burras?
Elas pensavam mesmo que podiam me manipular, quando eu mesma
possuía todas as minhas cartas na manga?

Desanimada, Penélope suspirou e me entregou a carta de


aprovação.
“Que seja, não podemos competir com a sua inteligência,
Babelyn. Você é esperta demais.” Disse Penélope.

Eu sorri orgulhosa e aliviada. Claro que eu era a mais


inteligente, e agora aquela sereia inteligente também estudaria em
Harvard e alcançaria novos patamares que ninguém do nosso povo
jamais sonhou em alcançar. Danem-se aquelas meninas e seus
dramas estúpidos, porque meus sonhos se estendiam logo adiante e
eu os agarraria com as duas mãos!
Uma risada maligna escapou da minha boca enquanto eu lia
satisfeita a minha querida cartinha… e então eu notei algo estranho.
Eu podia jurar que o logotipo de Harvard fora impresso em dourado,
mas agora estava em preto e branco.

Com um péssimo pressentimento, eu virei a carta e notei um


escrito de caneta rosa-pink na parte de trás.
Decepcionada, Babi? Esta carta é uma cópia, a original está
muito bem escondida. Quem é a burra agora, queridinha? -
Beijocas, Penny e Rebbie <3

Eu amassei aquela porcaria e rasguei, fervendo de raiva


enquanto aquelas duas dobravam-se de rir diante de mim.
“O que vocês querem de mim, diabas??” Eu vociferei,
expondo os dentes afiados da minha forma feral.

“Como assim? Você é tão esperta e não percebeu ainda?”


Penélope passou a mão por trás dos meus ombros como se
fôssemos velhas amigas. “Dawson e Jackson foram proibidos de nos
ver em sua ausência, então você andará conosco o tempo todo. É
simples.”

“E quando o papai Gabe desarmar as paranoias dele, você


terá sua carta de volta e poderá sumir para Hellberd, ou sei lá o
nome deste ninho de nerds.” Rebecca sorriu, bem mais contida que a
irmã, mas ainda assim se divertindo. “Vamos, Babi, não é uma
proposta tão indecente. Apenas alguns dias e o papai Gabe
perceberá os bons valores dos nossos predestinados.”
Eu esfreguei minha testa, sem acreditar naquela proposta
completamente estúpida. Minha viagem para Harvard ocorreria em
poucos dias, eu não podia perder meu tempo com os dramas idiotas
daquelas meninas.
Pensando bem, eu poderia contar ao meu irmão sobre as
armações das gêmeas, mas não queria causar ainda mais atrito
naquela família, ainda mais em um momento tão delicado para todos
eles. Ceder ao plano idiota e cheio de furos daquelas duas também
não me agradava, seria um golpe no meu orgulho lhes conceder
vitória, mas seriam apenas por alguns dias… certamente o senhor
Gabriel se afeiçoaria aos rapazes em pouco tempo, e então eu teria
liberdade para construir minha carreira na medicina.

O que eu mais odiava naquele dilema era perceber que não


havia dilema algum. A minha escolha já estava feita desde o começo,
e pelo motivo mais revoltante de todos: Penélope e Rebecca podiam
ser duas diabas vestindo Prada, mas elas eram minhas sobrinhas e
também colegas de escola durante muitos anos. Desde a quinta
série eu as observei de longe sendo populares, cercadas de amigos
e convites para festas, enquanto eu só tinha a mim mesma e
passava as noites de sábado analisando insetos no microscópio.
Elas nunca me convidaram para coisa alguma e, mesmo sabendo
que eu era apenas um meio para alcançar um objetivo, meu coração
batia rápido. Qual adolescente nerd não se empolgaria de andar com
as populares?
Engolindo todo o meu orgulho, eu concordei com a armação
daquelas traiçoeiras, que vibraram de alegria por pensar que, uma
vez na vida, ganharam de mim em alguma coisa.
Assim como qualquer filhote da nossa espécie eu nunca saí
em encontros ou tive namorados, mas tinha uma vaga ideia de como
funcionava. Namorar à moda dos humanos seria uma experiência
inédita até mesmo para as gêmeas e seus predestinados, então não
podia ser tão chato de se assistir, não é?
Capítulo 10

Quando chegamos na casa das gêmeas o humano Gabriel já


nos aguardava no jardim da frente e noooossa, ele estava muito
puto.

“Onde vocês se meteram?” Ele marchou na direção das


gêmeas. “Eu pensei ter sido bem claro sobre aqueles marginais,
vocês me prometeram que…”
“Papai Gabe, acalme-se, está vendo algum tritão conosco?”
Penélope abriu os braços em um gesto dramático e então me
abraçou de lado. “Nós fomos apenas buscar a Babelyn, que insistiu
em sair conosco, não é mesmo, Babelyn?”

Quanta falsidade naquele sorrisinho de cobra. Eu precisei me


concentrar muito para também sorrir e concordar com a cabeça.
“É, eu adoro passear com a nata da sociedade.” Eu ri
nervosa.

“Ela não é um amor, papai Gabe? A Babelyn mal conseguiu


dormir, pensando em nosso terrível drama familiar. Ela queria fazer
algo por nós, e ainda bem que o senhor lhe concedeu esta
oportunidade.”
O humano Gabriel arqueou a testa, desconfiado.
“Eu concedi o quê?” Perguntou ele.
“Ué, que a Babelyn nos acompanhasse em qualquer encontro
com nossos predes… ahm… namorados. Ela adora festas e
conhecer gente nova, e como poderíamos privar o Dawson e o
Jackson de interagir com nossa estimada tia?” Disse Penélope.
Gabriel coçou o queixo, pensativo, analisando o olhar
nervoso de cada uma de nós três. Qualquer pessoa com um mínimo
de perspicácia perceberia a cachoeira de cinismo que escorria da
boca daquelas duas, mas o Gabriel apenas sorriu com certa
insegurança.

“É, eu prometi isso, né… Babelyn, eu imaginei que já


estivesse de malas prontas, tudo bem mesmo você acompanhar
minhas filhas?”
“Será a minha grande festa de despedida!” Eu respondi,
conseguindo disfarçar a minha falsidade.

“Tá bem, tá bem…” Gabriel esfregou a testa, derrotado, e


voltou sua atenção às filhas. “Vocês podem encontrar aqueles caras,
mas não saiam de perto da Babelyn. Ela é a minha garantia de que
vocês estarão seguras.”
Penélope e Rebecca vibraram de emoção e abraçaram o
Gabriel, felizes como serpentes ao final de uma refeição. Elas
agradeceram umas duzentas vezes e então correram para dentro da
casa, já discutindo sobre modelos de vestido e bobagens do tipo.

Sozinho comigo nos jardins da casa, Gabriel se permitiu


murchar novamente. O meu coração apertou por ele e por todas as
lembranças horríveis que deviam retornar à sua memória.
“Senhor Gabriel, se me permite opinar, não creio de forma
alguma que aqueles rapazes sejam uma ameaça. O irmão Dylan já
deve ter lhe explicado sobre a lealdade e bons princípios do clã
Amalona, eles são o braço direito do clã Makaira desde a juventude
dos meus pais.”
“Clãs, lealdade, predestinados… Eu sei que em algum lugar
do oceano existe um reino mágico com tritões coloridos e montanhas
de cristal, mas estamos nos Estados Unidos e eu sou apenas um
revendedor de artigos esportivos. Não me importa qual reino fez o
que há tanto tempo atrás. O que me importa é a segurança dos
meus filhos. Eu não quero falhar de novo.”

“O primeiro irmão não lhe esconde estas informações por


maldade, senhor Gabriel. Da mesma forma que o senhor quer
proteger o Hian e as gêmeas, o irmão Dylan quer proteger o senhor.”
“Eu não preciso ser protegido, não da mesma forma que um
adolescente precisa. Quando conheci o Dylan não existia nada disso,
era tudo tão… simples. Ou talvez eu fosse apenas burro de não
perceber o quanto era complicado.”

Os lábios do humano Gabriel estremeceram. Ele tocou a


cicatriz sobre o olho e engasgou a voz, tentando não chorar.
Eu abracei apertado o humano Gabriel e deixei que chorasse
no meu ombro.

“O senhor não é burro, é apenas um pai que ama muito os


seus filhos e teve o azar de se envolver com a nossa espécie.” Eu
falei com calma. “Prometo que as gêmeas ficarão bem. E eu não sou
uma mentirosa sem-vergonha como o chato do primeiro irmão.”
O meu jeito de falar fez o humano se afastar chorando e
rindo ao mesmo tempo. Ele já parecia mais calmo quando me olhou
nos olhos.
“Nem me fale no Dylan, aquele pilantra vai dormir no sofá até
o final do ano. Ou talvez até o final da semana… ah, deveria ser
mais firme.” Ele bufou uma risada, observando melancólico à fachada
de sua ampla mansão. “Agradeço pela sua amizade com as gêmeas,
Babelyn. Devo admitir, estou surpreso com um sacrifício tão nobre
da sua parte.”

“Sacrifício?” Eu perguntei.
“Desculpe, talvez tenha sido uma palavra muito forte. É só
que você é tão realista e estudiosa, nunca te imaginei frequentando o
Camping de Astrologia Terapêutica.”

“O que do quê?” Suor gelado desceu pela minha testa.


Naquele instante as gêmeas retornaram ao jardim
completamente transformadas: Ambas trajavam longos vestidões
floridos e pesados, dúzias de pulseiras e colares de barbante
colorido, sandálias gladiador e bandanas tye-dye sobre o cabelo
solto.

“Ah, os rapazes já conseguiram o melhor lugar do camping,


estão terminando de montar as barracas.” Rebecca conversava
empolgada com a Penélope.
“Sim, e bem ao lado do workshop de incensos! Vamos poder
ouvir o Guru Flautzherald com todos os detalhes!” Penélope segurou
minha mão. “Vamos, Babi? Não faça essa cara, estamos levando um
baralho de tarô para você, também.”
Horrorizada sobre tudo, eu acenei brevemente ao humano e
deixei que as gêmeas me arrastassem até a limusine que alugaram.
Uma sereia da ciência jamais acreditaria em bobagens como
tarô e astrologia, mas uma coisa era certa: aqueles últimos dias só
podiam ser o meu inferno astral.

****

Que porra de lugar era aquele? O coitado do chofer da


limusine precisou subir diversos morros com seu carro comprido
demais, e qualquer tentativa de desistência fazia Penélope oferecer-
lhe um novo maço de dinheiro. Por algum motivo aquela louca queria
chegar ao camping bebendo champanhe em um carro de luxo, então
óbvio que em certo momento nós ouvimos um scróóóó e o a limusine
travou no lugar.

Eu desci do carro na estradinha lamacenta para confirmar


que sim, aquelas piradas subornaram um motorista até ele atolar seu
carro em uma lombada. O carro balançava precariamente como uma
gangorra, derrotado por uma estradinha rústica onde nenhuma
limusine jamais esteve.
O chofer também desceu para verificar. Sua consternação
lembrava muito a expressão do humano Gabriel, e provavelmente a
minha própria expressão naquele momento. Frustrações eram o
normal quando as gêmeas estavam envolvidas.

Eu pedi desculpas ao chofer e pesquisei no celular pelo


número do guincho, mas então Rebecca me puxou pelo braço e me
arrastou a continuar caminhando junto com sua irmã.
Após algum tempo de caminhada nós chegamos ao cume
daquele morro: uma ampla planície de grama verde com muitas
barracas e um palco provisório no canto oposto. Seria uma paisagem
linda se não fosse o ar fumacento, mais poluído que a área urbana
da ilha. Era uma mistura dezenas de churrascos sendo preparados
ao mesmo tempo, ambulantes servindo espetinho de queijo
defumado e, é claro, fumaça de ervas de legalidade duvidosa.

Eu acompanhei as meninas em direção ao amontoado de


barracas. Era difícil de andar sem tropeçar em alguém, muitas
pessoas dormiam ou namoravam em tapetes pelo chão, ou
dançavam preguiçosamente ao ritmo da banda, que tocava algum
tipo de reggae.
“Desde quando vocês frequentam este tipo de lugar?” Eu
torci os lábios, meio assustada com a quantidade de gente bêbada
que vi entrar em uma única barraca.

“Expandir horizontes é engrandecedor para a alma, Babelyn.


Veja isso, não estou fantástica com estes brincos de pluma?”
Rebecca me perguntou, super radiante.
“Vocês parecem uma mistura de ciganas com prostitutas
árabes.” Eu respondi.

“…E é por isso que você nunca será entrevistada no meu


canal de YouTube.” Penélope revirou os olhos, então algo que avistou
adiante a fez estremecer.
Logo adiante, dois rapazes idênticos acenavam animados
para nós. Assim como as gêmeas eles também combinavam nas
roupas, trajando saiotes longos e coloridos e escolhendo manter
expostos seus torsos esculturais de alfa com oito gominhos
perfeitos, que reluziam como se eles tivessem passado óleo.
Rebecca abriu um sorrisão e acenou de volta, então
apressou o passo para alcançá-los. Era meio engraçado vê-la
desviar de churrasqueiras e garrafas de cerveja no seu trajeto até a
barraca certa, mas também era bom vê-la alegre novamente.

“A Rebecca parece mais confiante, não é mesmo?” Eu sorri,


feliz por vê-la tão relaxada na companhia daqueles caras.
“É, é… ela sempre foi meio desse jeito.” Penélope seguiu
comigo, meio azeda.

“Desse jeito, como?” Eu arqueei uma sobrancelha.


“Assim, meio vadiazinha.” Penélope deu de ombros,
desdenhosa. “Deve estar doidinha pra consumar o vínculo, é tão
vulgar.”

Eu abri a boca, chocada que Penélope pudesse dizer tal


coisa da própria irmã. E aquela megera nem começou a rir ou fingiu
ter falado de brincadeira, ela apenas seguiu reto de encontro aos
três, com a elegância e requinte da mais nobre de todas as sereias.
“Penélope, olha pra você, que vestido fantástico!” Um dos
gêmeos abraçou Penélope e já chegou beijando sua boca, muito
sorridente e confiante. Penélope apenas aceitou o beijo meio
constrangida, então ele disfarçou e acenou para mim. “Você é
Babelyn Makaira, estou correto? Nossa, gratidão por ter quebrado
esse galho pra gente.”
“Ahm… não é nada, eu…” Minhas palavras embolaram na
garganta. Rebecca já estava trocando amassos com o outro cara?
Os dois rolavam pela toalha de piquenique como se fossem, ahn…
como se fossem um casal no cio.

Penélope aproveitou a distração e afastou-se do seu


predestinado. Ela massageou o lado da cintura onde ele havia a
abraçado como se estivesse batendo sujeira e então arqueou a testa
em desprezo e nojo para aquela cena de pegação.

Percebendo que eram observados, Rebecca e aquele cara


afastaram suas bocas e sorriram encabulados, embora o olhar da
Rebecca fosse de alguém que desejava muito mais.
“Ah, foi mal, oi!” O cara acenou pra mim, todo vermelho,
suado, e eu não queria nem ver a situação no meio de suas pernas.
“Babelyn, né? Da hora sua parceria com as gatas. Energias
positivas, irmã.”

Nossa, o problema era comigo, ou aqueles caras falavam


muito, muito esquisito?
“Não é problema nenhum, ahm… Dawson, certo?” Eu
respondi, rindo em completa timidez.

Os gêmeos se olharam e começaram a rir. O que trocava


amassos com a Rebecca sentou-se ao lado dela na toalha do
camping e abriu uma caixa de isopor, enquanto que o outro gêmeo
segurou Penélope — impressão minha ou ela estava tentando fugir?
— e a fez sentar também.
Eu não queria ser a única em pé, então juntei-me a eles e um
dos caras distribuiu garrafinhas geladas para todos nós.
“Tá certo, vamos esclarecer a confusão. Eu sou o Jackson.”
O predestinado da Rebecca apontou para o próprio rosto. “Olho
esquerdo verde, olho direito lilás. No maninho Dawson é o contrário.”
Nossa, era verdade! Uma sereia da ciência deveria ter
percebido a diferença mais cedo.

“E estas coisas duvidosas?” Penélope agitou sua garrafinha


com uma expressão de nojo.
“Licor de anêmona. É uma receita que nosso primo Édrilan
vem desenvolvendo e tá fazendo um sucesso sinistro em Egarikena,
aí às vezes ele manda algumas caixas para os nossos pais.”

“Nossa, álcool para tritões? Isso parece tão legal!” Rebecca


abriu a garrafinha empolgada e provou um gole. “É bom, mesmo.”
“Curtiu mesmo?” Dawson sorriu e cutucou a Penélope.
“Prove também, meu amor, essa parada é muito da boa.”

“Meu amor?” Penélope mantinha os lábios eriçados há tanto


tempo que parecia uma vítima de derrame. “Dawson, meu estimado
alfa, receio que seja cedo demais para certos tratamentos.”
Quê? Nossa, tadinho do Dawson, o cara travou em choque
tentando compreender o que ouviu, e devia ser ainda mais difícil
porque o som de fundo ao nosso lado eram mais amassos tórridos e
gemidos de Oh, Jackson, meu amor… Oh, Rebecca, luz da minha
alma…

Sinceramente, eu não saberia dizer qual daquelas duas me


deixava mais desconfortável.
Eu não culparia o pobre Dawson se ele começasse a chorar,
mas aqueles gêmeos transpareciam calmaria e paz por todos os
poros da pele. Quando absorveu a grosseria da Penélope o Dawson
apenas sorriu de novo, e ainda mais animado.
“Ah, repara só que viagem a minha. Perdão, amorzinho, o
volume de seus lábios poderia distrair o mais astuto dos Amalonas.”
Ele apertou as próprias bochechas e estremeceu de alegria, como
um bobo apaixonado. “Ainda precisamos terminar nosso plano.”

Assim que Dawson mencionou plano, Jackson e Rebecca


interromperam sua sessão de amassos e voltaram à nossa rodinha.
“Ah, verdade, o plano!” Jackson riu com os lábios inchados e
babados. Eww. “Espera, acho que guardei com os canapés.”

“Vamos ter canapés?” Rebecca se pendurou nos ombros do


Jackson, o assistindo vasculhar uma outra caixa térmica. E sim, dava
pra reparar que ela estava se esfregando.
“Dez sabores diferentes com as melhores caças, meu
docinho de água-viva. Dawson e eu acordamos de madrugada para
caçar e compor o cardápio.” Jackson deu uma olhadinha para
Rebecca com um olhar de garanhão safado e Rebecca deu risada,
então ele vasculhou o fundo daquela caixa e puxou algo. “Ah
encontrei!”

Ahn… a fumaça começava a afetar meu cérebro, ou aquilo


era uma lupa? O que aquilo tinha a ver com um piquenique de
maconheiros, ou seja lá que evento era aquele?
Para a minha surpresa, Jackson entregou a lupa para mim.
“Obrigada, eu acho?” Eu girei aquela coisa na minha mão,
tentando encontrar a pegadinha. “O que faço com isso?”
Rebecca revirou os olhos e deu risada como se a resposta
fosse óbvia.

“Ai, Babi, não seja grossa. Você adora essa coisa de ver
insetos, não é mesmo? Nós compramos este presente para você
descobrir uns bichinhos novos por aí.” Disse ela, já se acomodando
no colo do Jackson.
Aquele presente foi tão inusitado que eu travei, sem
palavras, e então eu comecei a rir do ridículo daquela situação.

“Boa tentativa, mas eu prometi ao humano Gabriel que eu


ficaria aqui.” Eu enfim abri a garrafa e saboreei o líquido delicioso e
adocicado, quase tão doce quanto a frustração no olhar dos gêmeos
e da Rebecca. “Além do mais, olha pra esse troço com lente de
plástico, quem realizaria estudos entomológicos com uma lupa
escolar?”

“Eu te disse, meu amor, para comprar uma lupa mais


decente.” Rebecca bufou e esfregou a testa. “Babelyn, você não
podia só dar uma voltinha? Dez minutos, duas horas, talvez?”

“Dez minutos é o suficiente.” Disse Penélope, mais acuada


que o normal.
“Nã-nã-não. Uma promessa é uma promessa e o senhor
Gabriel confiou que eu não sairia de perto.” Eu lambi meus lábios
molhados de licor, deliciada em aborrecer aquela dupla de vacas…
embora Penélope parecesse mais aliviada do que brava. “Agora…
onde estão aqueles tais canapés?”
Capítulo 11

Contra todas as minhas expectativas, minha tarde com o par


de gêmeos foi muito divertida! No começo eu me sentia tímida e
falava muito pouco, mas, não sei se pelo licor ou porque os gêmeos
eram muito sociáveis, eu acabei me soltando e conversei sobre mil
coisas. Sobre meu tempo em Egarikena, meus sonhos, minhas
aventuras na ilha de humanos… só não contei sobre a carta, porque
bem… eu não queria prejudicar as gêmeas, por mais que elas talvez
merecessem.

Rebecca e Jackson ficaram se pegando durante boa parte


da tarde, embora eu os tivesse proibido de sumir para dentro da
barraca. Restou, portanto, uma conversa divertida com o Dawson e
a Penélope, que permaneceu eriçada como um baiacu raivoso, se
esquivando a cada vez que Dawson encostava nela. Nós até
participamos do workshop de incensos, o que teria sido quase
interessante se eu ignorasse as teorias do Guru Flautzherald sobre
cada aroma ter sido uma raposa em sua vida passada.
Os gêmeos falavam de um jeito pacato e cheio de gírias,
bem diferente da formalidade no seu encontro com o humano
Gabriel. Com as gêmeas e comigo eles podiam ser eles mesmos e
conversar sobre seus próprios universos que… ok, eu não consigo
elogiar esta parte, eles curtiam coisas tão bobas quanto eu
imaginava. Horóscopo, tarô, miçangas, infusões de algas… Eles
sabiam tudo sobre todos os signos e se empolgaram muito
montando o meu mapa astral. Pelo visto o meu signo era gêmeos
com ascendente em peixes, ou coisa do tipo. Mais uma informação
inútil para a minha coleção.
Sabe-se lá como, as gêmeas conseguiram chamar uma
segunda limusine, e esta conseguiu chegar ao topo do morro. A
gente ainda bebia e dava risada quando entramos no carro, minha
barriga doía de tanto comer canapés deliciosos. Apenas Penélope
permanecia emburrada naquele clima tão alegre, a gente riu até
mesmo quando a limusine enguiçou na descida, mas desta vez os
rapazes estavam ali para salvar o pobre chofer. Foi mais uma
história engraçada para a gente comentar no caminho da mansão.

O sol terminava de se pôr quando o motorista estacionou


diante do território do irmão Dylan. Mais uma vez Gabriel aguardava
no jardim, batendo os pés e mexendo as mãos à beira de um
colapso nervoso.
Ele quase se jogou no carro e abriu a porta como se fosse
encontrar uma pilha de cadáveres.

“Meninas… oi…” Ele suspirou e apertou a mão no peito,


aliviado por vê-las bem. “Vocês se divertiram?”
“Siiiimm, papai Gabe, foi maravilhoso!” Rebecca desceu
tropeçando do carro e abraçou o humano Gabriel, rindo como uma
louca alegre. Ela balançou seus novos brincos na cara dele. “O
Jackson me ensinou a fazer um brinco de mandalas, veja!”

“Por que você está cheirando a sushi com cachaça,


Rebecca?” Perguntou ele.
Jackson e Dawson trocaram olhares apreensivos, encolhidos
no fundo da limusine.
“Relaxem, o irmão delas voltava bêbado pra casa o tempo
todo, o Gabriel não é nenhum chato.” Eu disse para os rapazes.

“Nosso irmão Hian é um homem, não é inapropriado para


ele.” Penélope cruzou os braços e revirou os olhos, putíssima.
Eu não entendia o problema da Penélope, e pelo visto nem o
predestinado dela. Dawson tentou aproximar-se dela do começo ao
fim do encontro e só recebeu desprezo e comentários ácidos. Aquela
vaca nem comeu os canapés de polvo que o Dawson preparou
especialmente para ela, o que até foi bom para mim, porque eu me
empanturrei.

Não querendo que o azedume da Penélope me


contaminasse, eu desci do carro e cumprimentei o humano Gabriel.
“Entregues e seguras!” Eu levantei a mão como uma
escoteira.

Gabriel não parecia muito contente pelo estado da Rebecca,


mas ele sorriu para mim com alívio.
“Obrigado, Babelyn. Você quer ficar por aqui, esta noite?
Posso ligar para o Michel, e ainda tem peixe do jantar no forno.”

“Siiiiim, uma festa! O Dawson e o Jackson estão convidados!


O que acha, Penélope? Vamos virar a noite que nem nos filmes!”
Disse Rebecca.
Penélope enfim desfilou para fora do carro, arrancando sua
bandana florida e jogando os longos cabelos para trás.
“Foi um dia longo, Rebecca. Estou exausta.” Ela olhou de
volta para o carro. Nem pensar que os gêmeos seriam loucos de sair
dali, com o Gabriel tão perto. “Agradeço por tudo, Dawson, até uma
próxima.”
Penélope cumprimentou seu pai com um beijinho no rosto,
deu-lhe boa noite e seguiu para dentro da casa.

“Eles fizeram alguma maldade?” Perguntou Gabriel.


“Claro que não, papai. Olha pra eles, que coisas mais
queridinhas.” Rebecca apontou para trás do banco da limusine, onde
os pobres infelizes tentavam se esconder. “Por favor, convide-os
para um chá, qualquer coisa, o Jackson é o tritão mais maravilhoso
dos oceanos, e ele já me prometeu um vestido de pérolas negras e
seda-do-mar, e também as estrelas do céu.”

“Alguma coisa aborreceu a Penélope. Estes fugitivos dos


anos setenta ficarão bem longe da minha casa, e você, mocinha, vai
controlar seu álcool da próxima vez.”
“Mas papaaaaaiii, ele me aaaamaaaa….” Rebecca quase
derreteu nos braços do Gabriel, caindo de bêbada. “Pensa em
quando conheceu o papai Dylan, já imaginou se precisassem ficar
longe e bem comportados?”

Gabriel expandiu os olhos, como se em sua imaginação ele


vivesse os tormentos do inferno.
“Ahm... eram outros tempos e eu sou a autoridade desta
casa.” Gabriel entregou Rebecca para mim e debruçou-se sobre o
carro, espiando os dois garotos aterrorizados. “Eu agradeço por
entregarem as minhas filhas em segurança. Tendo dito isso, eu
comprei uma vassoura nova, então fiquem espertos.”
Os dois quase se borraram nas calças.

“Ahm… de nada? Nós que o agradecemos… por… gerar


filhas… eu acho?” Disse Dawson.
Gabriel bufou, bateu a porta do carro, e fez sinal para que o
chofer levasse os garotos embora.

A limusine desapareceu no horizonte e Rebecca tentou


resmungar, mas acabou bocejando e dormindo no meu ombro.
Gabriel me ajudou a carregar Rebecca para dentro e eu só
aguardei a bronca que eu iria levar. Poxa, Gabriel pediu apenas que
eu acompanhasse as meninas, não que eu as policiasse como uma
velha careta.

Ao invés de brigar comigo, eu me surpreendi quando vi


Gabriel rindo.
“O que é engraçado?” Eu perguntei.

“Minhas filhas estão crescendo.”


“Ah, é, para um humano deve ser um crescimento meio
brusco, mas elas são adultas, agora.”
“Não estou falando dessa loucura de despertar e
predestinação. A Penélope brava, a Rebecca feliz… quando estas
duas já demonstraram opiniões tão diferentes sobre uma mesma
situação?”

Eu alisei minhas maria-chiquinhas e refleti, bastante confusa.


“O que isso tem a ver com as gêmeas estarem crescendo?”
Eu perguntei.
Gabriel riu de novo e me ajudou a deitar Rebecca no sofá.

“Desculpa, Babelyn, vocês três são igualmente tão jovens.


Não é algo que você precise entender agora.”
Eu murchei a boca, me sentindo insultada. Uma sereia da
ciência podia compreender qualquer coisa!

O irmão Dylan apareceu pela porta dos fundos carregando


uma pilha de lençóis recém-lavados. Ele logo começou com as
neuroses dele, achando que Rebecca estivesse à beira da morte por
beber umas garrafinhas a mais, então eu achei melhor apenas voltar
pra casa.

Por mais esquisito que fosse, eu mal podia aguardar para


sair com as gêmeas novamente, e só de imaginar os possíveis
encontros seguintes eu tive dificuldade para dormir, tão animada
quanto temerosa.

Se o meu próprio predestinado fosse tão legal quanto


Dawson e Jackson, talvez o meu despertar não fosse ser o fim do
mundo.
Eu só rezava, com toda a minha fé, que meu futuro alfa não
entendesse nada sobre signos.

****
Dawson e Jackson eram estranhos, mas não de um jeito
ruim. Eles curtiam coisas como tocar pandeiro, olhar as nuvens e
preparar chás de alga, e também debatiam numerologia como se
fosse um assunto bem sério.

Embora eu achasse bobagem, eu estava me surpreendendo


comigo mesma: Aqueles rapazes eram bem divertidos, e tão
educados e generosos quanto seria esperado de um Amalona. Em
momento nenhum eles se irritaram com a minha presença durante
seus encontros com as meninas, embora fosse óbvio o desconforto
de todos eles. A cada dia que se passava eu tinha mais trabalho
para observá-los e impedir que fugissem para consumar em algum
canto.
Cinco dias após a chegada dos gêmeos, a tensão hormonal
naturalmente alcançava seu ponto crítico. Tritões e sereias
precisavam acasalar. Era uma necessidade física. Entretanto ali
estava eu, jogando dominó com Dawson, Jackson e Rebecca em
uma mesa do parque, enquanto os três suavam no calorão tenebroso
do cio.

“Só cinco minutos. Vai ser rapidinho.” Suplicou Rebecca.


“Não.” Eu coloquei minha peça na mesa.

“Por favor, Babelyn, tenha piedade de nós.” Jackson se


abanou com um leque de crochê super cafona. “Você é muito
maneira, e tudo o mais, mas nós só queremos trocar uns beijinhos.”
“Podem se beijar, ué, vocês já fazem isso o tempo todo.”
“Babi, o Jackson não está falando de beijar os meus lábios.”
Rebecca secou o suor da testa e jogou sua pecinha com má
vontade.
“Não os lábios de cima, pelo menos.” Sussurrou Jackson,
como se eu não fosse ouvir.

Rebecca deu uma risadinha pervertida e logo desmanchou


sua alegria. Aquela louca fervia como um vulcão, as pontas das tetas
estavam tão duras que poderiam furar seu vestido a qualquer
momento.
Ai, por mais legal que a Rebecca estivesse sendo
ultimamente, torturá-la continuava sendo divertido. Talvez eu fosse
malvada mesmo, mas era engraçado tentar descobrir até onde
aquele casal suportaria.

Foi a vez do Dawson colocar sua peça na mesa. Ele apenas


jogou em silêncio, aborrecido.
Jackson deu um tapinha no ombro do irmão.

“Penélope já deve chegar, maninho. Se atrasou arrumando o


cabelo, tá ligado em como são as sereias.”
“Tô ligado na minha sereia, e ela detesta a minha presença
desde o primeiro dia.” Dawson jogou todas as suas peças na mesa e
escondeu o rosto nas mãos, além dos limites da frustração. “Não sei
onde estou errando.”

“Me deixa ligar para a minha irmã, de novo. Com certeza é


um motivo bobo, porque quem não adora jogar dominó?” Rebecca
disse em tom sarcástico, enquanto pegava o celular.
Só de ouvir a voz da Rebecca o Jackson teve um espasmo
de alfa enlouquecido por acasalar. Ele agarrou sua predestinada e
esfregou nela seu peitoral ridiculamente musculoso, mordiscando-a
tanto que Rebecca não conseguia completar a ligação.
“Relaxa, meu amor, nosso plano vai dar certo, e logo
teremos muitos outros joguinhos para experimentar.” Ele sussurrou
no seu ouvido, fazendo-a rir e se esquecer da vida. Ela largou o
celular e trocou uns beijos exagerados com aquele cara, do tipo que
fazia os turistas com crianças se afastarem da gente.

“De que plano eles estão falando?” Eu perguntei ao Dawson.


“Só uma bobagem.” Dawson bufou e levantou da mesa. “Vou
dar um giro, bom jogo aí, galera.”

Jackson percebeu o irmão saindo e tentou afastar a


Rebecca, que grudou nele igual um polvo.
“Larga as vibrações ruins, maninho, dominó é bem maneiro.”
Jackson precisou apertar as mãos na cara da Rebecca para
interrompê-la. “Amanhã essa parada se resolve, vai ser de boas,
cara.”

“De boas pra vocês dois, pombinhos apaixonados.” Dawson


passou sua mochila nas costas e foi embora, balançando o monte de
pulseiras e correntinhas que ele curtia montar pra vender na praia.
Dawson foi embora e o clima entre nós três murchou. Até a
Rebecca parou de tentar gastar a boca do Jackson com a língua e
se acalmou no lugar.

“Cara, o maninho Dawson tá muito na bad.” Disse Jackson.


“Não entendo a Penélope. Não consegui nem tirá-la da cama
hoje de manhã, e ela sempre acordou ao mesmo tempo que eu.”
Disse Rebecca.
Realmente, era muito estranho. Penélope sempre encheu os
nossos ouvidos sobre perfeição, elegância e aprender a agradar
nosso futuro macho alfa. E agora que seu alfa estava bem ali, ela
não queria nem chegar perto.

Rebecca enfim lembrou que pretendia ligar para a irmã e fez


uma vídeo chamada. A ligação apenas tocou por um tempo até cair
na caixa de mensagens.
“É, ela não atende…” Rebecca guardou o celular na bolsa,
aproveitando para dar uma deslizadinha estratégica na coxa do
Jackson. “Babelyn, você se importaria de…”

“Desiste, Rebecca, o humano Gabriel me fez prometer que


eu vigiaria vocês.” Eu suspirei e olhei meu próprio celular, onde
também não havia mensagens da Penélope. “O irmão Dylan está
quase conseguindo amolecer o Gabriel sobre esses caras, então
tenha paciência.”
“Olha pra este homem, Babelyn, olha para estes músculos
de machão gostoso!!” Rebecca apertou os peitos do Jackson como
se fossem um par de frutas. “Você sabe como nossa espécie
funciona, eu vou enlouquecer!!”

“Continua, tá gostoso.” Jackson sussurrou para ela, mas


Rebecca se afastou mesmo assim, frustrada como se a culpa fosse
minha.
“Você pode pensar que está ganhando este jogo, Babelyn,
mas agora tenho um Amalona lindo, másculo e inteligente para
tramar planos de verdade. Vamos ver por quanto tempo dura esta
sua determinação de boa moça.”
“Hnn… você promete ser malvada assim quando estivermos
a sós?” Jackson sussurrou em seu ouvido.

“Eu vou ser ainda pior.” Respondeu ela.


“Gente, eu também sou uma sereia! Audição aguçada,
lembram?” Eu exclamei, meio horrorizada, e então recolhi as peças
bagunçadas do dominó. “Quer saber, o sol já está se pondo e eu
cansei, então vocês continuam os namorinhos de vocês amanhã.”

“Claro, Babelyn.” Rebecca levantou-se com Jackson e me


ajudou a recolher as coisas com um sutil sorrisinho malévolo. “É
amanhã que meu namorinho com o Jackson começa de verdade.”
Capítulo 12

Como uma mulher da ciência, eu deveria ter suspeitado de


que algo não estava certo.

“Por que você foi me buscar em casa?” Eu perguntei para a


Rebecca enquanto atravessávamos uma das ruas movimentadas de
Waikiki. “E onde está o Jackson? Vocês não são, tipo, uma única
forma de vida unida através dos lábios?”
“Exagerada como sempre, Babi. Nós nem nos beijamos tanto
assim.” Ela sorriu para mim com os lábios ainda meio inchados pela
tarde anterior. “E uma surpresa é uma surpresa, não concorda?
Você vai adorar nossa programação de hoje.”

O sorrisinho da Rebecca não me enganava. Aquela diaba


planejava alguma coisa, e eu só concordei pela curiosidade em
descobrir suas intenções. Ela não me disse o destino da nossa
caminhada, então nós apenas passeamos juntas como melhores
amigas, atraindo o olhar de todos os garotos que voltavam da praia.
Ok, na verdade eles deviam reparar mesmo na Rebecca,
que adotou de vez um estilo hippie-chic com um vestidão florido e
glamouroso, faixa de crochê no cabelo e muitos, muitos acessórios
de miçanga feitos pelo Jackson. Aqueles caras eram ricos e tinham
até uma lancha, por que raios vendiam artesanato na praia??

“Deve dar um frio na barriga…” Eu falei baixinho, meio que


pensando em voz alta.
“O quê?” Perguntou Rebecca.
“Ser observada o tempo todo. Quer dizer, você e a Penélope
parecem modelos, devem atrair muito a atenção dos homens
humanos em período de desenvolvimento hormonal.”

Rebecca cobriu a boca e riu como uma madame.


“É, suponho que aconteça bastante. Machos humanos
precisam caçar suas parceiras, afinal. Mas nenhum desses surfistas
molhados está olhando pra mim.”

Eu espiei para os lados mais uma vez. Aquela rua passava


perto da beira-mar então havia muitos barzinhos com mesa na rua e
uma praça com pista de skate. Todos os rapazes pareciam olhar na
nossa direção, então eu não fazia ideia do que Rebecca estava
falando.
Percebendo minha confusão, Rebecca riu ainda mais.

“Nossa, como alguém tão Harvard-isso-Harvard-aquilo pode


ser tão tonta?” Perguntou ela.
“Como assim?” Eu perguntei.

Ao invés de responder, Rebecca agarrou meus ombros e me


fez virar. Diante de nós havia a vitrine de um açougue.
“Nós vamos comprar carne?” Eu perguntei.
“Não, Babi! É para olhar o seu reflexo!” Disse ela.

Eu foquei no reflexo do vidro e ainda assim não entendi nada.


Será que tinha um pedaço de peixe nos meus dentes? Minhas maria-
chiquinhas loiras estavam que nem sempre, longas e escorrendo por
cima dos ombros, e o meu vestido era bem comum, nada
extravagante ou caro demais porque eu detestava ser um peso no
bolso do irmão Dylan. O sutil decote mostrava um pouco do meu
peito reto e nada interessante e eu nunca aprendi a andar de saltos,
então usava uma sandália básica, do mesmo tom rosado do vestido.
“Você grudou chiclete no meu cabelo, é isso?” Eu perguntei.

“Pelos oceanos, Babelyn, eu desisto.” Ela continuou andando


e eu a segui. “Para o nosso povo o interesse romântico dos humanos
é irrelevante, mas isto não significa que nós somos cegos. Você
deveria ser mais confiante.”
“Eu sou bem confiante!” Eu exclamei, indignada com o que
era o segundo insulto em poucos minutos. “Eu consegui passar em
Harvard, ok? Eu só não viajei ainda por causa das armações de
vocês, mas eu vou ser grande e importante, a primeira sereia médica
do mundo!”

“Tá certo, tá certo…” Ainda rindo, Rebecca verificou as


mensagens do celular. Então sua expressão se abateu um pouco.
“A Penélope não vai sair de novo?” Eu perguntei, notando a
foto de perfil da outra gêmea.

“Não entendo o problema dela. Ontem quando cheguei em


casa eu tentei questioná-la, mas ela apenas virou para o lado e fingiu
dormir. Tive a impressão de que estava chorando.”
“Acha que o Dawson… talvez…”

“Não, claro que não! Você conheceu aqueles lindos, Babi,


eles são como anjos queridos e musculosos com um interesse meio
excessivo por óleos aromáticos. Dawson está tão confuso quanto
todos nós.”
Eu olhei para o chão, assistindo meus passos nada sensuais
enquanto Rebecca desfilava em seu salto plataforma, um passo
diante do outro, rebolando os quadris tão maiores que os meus. O
que poderia ter causado uma mudança tão brusca na Penélope?
Antes da chegada dos alfas era a Rebecca quem parecia uma pilha
de nervos. Ela temia afastar-se da irmã gêmea após o despertar e
perder tudo o que conhecia… mas era bem óbvio que Jackson
apagou seus temores logo no primeiro beijo. E assim que Rebecca
se animou, Penélope começou seus próprios chiliques.

“Talvez a Penélope também tenha medo. Quer dizer, ela


talvez só tenha percebido agora que vocês poderiam se afastar,
embora eu não imagine os gêmeos se separando, ou separando
vocês duas.”
“A Penélope não é nenhuma burra, não tanto quanto você
pensa. Ela sempre soube que o despertar dividiria a nossa vida em
um antes e depois, apenas não se importava…” Rebecca jogou para
trás os tererês que Jackson fez em sua franja, suspirando. “Aquela
mulher é três minutos mais velha que eu e ainda assim parece uma
criança, de vez em quando.”

Eu pensei, pensei, e não consegui encontrar uma resposta.


Os problemas das gêmeas sempre tiveram raízes em futilidades e
bobagens, não me surpreenderia que Penélope estivesse deprimida
porque quebrou uma unha, mas, mesmo que fosse isso, o meu
coração batia apertado.
Talvez fosse por pena dos gêmeos, que eram legais de
verdade, ou talvez eu estivesse perdendo o meu bom senso, mas eu
queria que todos ficassem bem. Imaginar as gêmeas felizes com
seus predestinados me fazia sorrir, e eu queria muito que o humano
Gabriel tivesse a chance de descobrir os genros maravilhosos que o
chamado lhe proporcionou.

****

Ok, por essa eu não esperava.


“Um encontro em uma biblioteca?” Eu perguntei, admirando
os lindos jardins do Centro Municipal de Cultura.

“Qual a grande surpresa? Nosso encontro de ontem foi um


campeonato de dominó, pouca coisa é mais estranha do que isso.”
Rebecca seguiu animada para dentro do prédio.
Realmente fazia sentido, mas por que justo na melhor
biblioteca de Waikiki? Só podia ser uma coincidência, os únicos livros
na estante das gêmeas eram catálogos de sapatos e guias de
maquiagem. Elas com certeza nunca haviam pisado em uma
biblioteca e, por mais legais que fossem o Dawson e o Jackson, eu
duvidava muito de seu gosto por literatura.

Eu, é claro, frequentei aquela biblioteca quase tanto quanto a


escola. Não havia coisa melhor que sair de uma tarde cansativa de
aulas e se enfiar no ar condicionado geladinho em meio à milhares de
livros, e então selecionar as leituras da noite com toda a calma do
mundo e sentar nas confortáveis poltronas, acompanhada apenas do
silêncio e dos textos de grandes gênios.
Se eu mencionasse à Rebecca a Teoria da Evolução ou O
Universo em uma Casca de Noz, ela pensaria se tratar de bandas
de rock, então eu não compreendia, só esperava não passar muita
vergonha naquele lugar onde todos me conheciam.

Havia diversos outros espaços no Centro de Cultura, que por


sinal era lindo, com altas paredes brancas, esculturas e jardins
internos. Pensando bem até que era um lugar meio… romântico… de
um jeito esquisito. Havia alguns casais namorando nos bancos de
uma pequena exposição de arte, logo adiante, mas o Centro de
Cultura era um lugar de aprimoramento intelectual. Ter um encontro
ali era uma grave afronta à ciência.
Nós atravessamos a pracinha interna até chegar na
biblioteca. Rebecca parecia até admirada com a beleza daquele
lugar, mas foi quando reparou nas imensas e infinitas estantes de
livros que ela sorriu e saltitou de alegria. Não por causa dos livros,
lógico, mas porque Jackson estava em uma das mesas, montando
colares de miçanga com seu irmão.

“Jack, oii!!” Ela apressou-se até ele e o abraçou por trás,


radiante como uma criança. “Vejam quem eu trouxe!”
Dawson levantou a cabeça com certa esperança, mas
quando viu que era eu ele apenas deu um breve oi e voltou para seu
artesanato.

Jackson foi muito mais gentil e levantou-se para puxar duas


cadeiras, a de Rebecca ao seu lado e a minha na ponta da mesa.
Ele deu um beijinho apaixonado na Rebecca e pareceu um pouco
feliz demais com a minha presença.
“’É um imenso prazer tê-la novamente em meus braços,
Rebecca meu amor.” Disse ele.

“Oh, Jackson, cada segundo de distância é uma tortura


que…”
“Shhh!!” Chiou um senhor que lia jornal na mesa de trás.

Os dois se aquietaram, sentadinhos e comportados. Eu


também me sentei e percebi, para a surpresa de ninguém, que não
havia nenhum livro na mesa, apenas miçangas, barbantes e plumas.
Não havia nenhum lugar menos inadequado para se fazer pulseira?
“O que viemos fazer aqui?” Eu sussurrei.

Rebecca deu de ombros.


“Ué, estamos em uma biblioteca… vamos ler!” Disse ela.

“Rebecca, qual a última vez em que você leu qualquer


coisa?” Percebendo que ela já ia responder, eu complementei.
“Qualquer coisa que não estivesse escrita em um rótulo de xampu.”
Rebecca fechou a boca e não soube o que responder.
Jackson, cortês como sempre, chegou ao auxílio de sua
amada.

“A Rebecca queria agradecer por toda a sua ajuda, Babelyn,


e nós dois também. Então nós pensamos em um lugar que você
curtisse, e acho que acertamos.”
Eu sorri, surpresa que aqueles caras, e principalmente a
Rebecca, pudessem considerar os meus sentimentos.
“Obrigada, gente. Eu nunca participei de uma discussão de
livros, mas posso mostrar os meus favoritos. Tem um que se chama
Enciclopédia Definitiva dos Coleópteros que vocês precisam
conhecer. As ilustrações são incríveis.”

“Coleóptos parecem ótimos!” Rebecca sorriu. “Só, por favor,


nenhum livro com besouros. Eu ainda tenho trauma desses bichos.”

Eu arqueei a minha testa e achei melhor não me explicar.


Rebecca e os gêmeos já estavam sendo legais o bastante comigo, o
que era maravilhoso. Algumas vezes cheguei a pensar que eles
cansariam da minha presença constante, mas eles gostavam de
mim. Quem poderia imaginar que a nerd da escola cairia no círculo
de amizade dos super populares?

“Vou buscar alguns livros, prometo não demorar. Eu já


decorei a posição de cada estante.” Eu me levantei e atravessei os
corredores rumo ao setor de biologia.
Ah, eu me sentia no meu elemento! O cheiro de papel, o
colorido misterioso de milhares de lombadas de livro, apenas
aguardando para serem puxadas e revelarem todo tipo de conteúdo
fascinante… Naquela biblioteca havia livros de todos os gêneros,
mas os meus favoritos claro que eram os de biologia e medicina.
Desde criança, quando o Doutor Michel precisava me trazer e alugar
os livros para mim, o meu cantinho sempre foi em meio às
enciclopédias, catálogos e dicionários de doenças raras. Eu adorava
a biblioteca da mansão do Doutor, mas quando gastei todos os livros
dele e o Doutor me apresentou este lugar… nossa, foi como soltar
um peixinho de aquário em um oceano.
Minha promessa ao humano Gabriel, claro, permanecia na
minha mente. Eu não podia demorar e deixar aquele casal sozinho,
então escolheria apenas alguns livros essenciais.

Introdução ao universo dos insetos, Guia prático para a


genética humana, Dissertação Comentada de Obstetrícia… ahh,
como escolher?? Todos eram livros intrigantes e maravilhosos!!
Talvez eu devesse escolher um com palavras simples para que
entrasse no cérebro da Rebecca? Ou algum mais esotérico para os
gêmeos curtirem também? Eu não conhecia muitos livros para leigos,
então era difícil demais!!
Quando eu percebi, eu já estava depenando as estantes, me
cercando com as leituras mais maravilhosas e os textos mais
marcantes, tentando separar apenas os dez ou quinze melhores para
a nossa tarde de leitura.

“Ahm… c-c-c-com licença?” Disse uma vozinha ao meu lado.


Compenetrada em minha curadoria literária eu afinei os olhos
para o lado, aborrecida com a interrupção daquela criança.

Ahm… exceto que não era uma criança. Pela voz quase
sumida parecia ser, mas era um rapaz da minha idade. Camisa
xadrez de flanela, óculos gigante de aro grosso, um saiote de brim
que descia até os sapatos e o pior penteado que já vi na vida: as
mechas cor-de-mel caíam sobre o rosto que ele mantinha baixo, e
pareciam ter sido cortadas com uma tigela.
“Que foi?” Eu perguntei, querendo voltar logo para junto dos
outros.
“Eu… ah… ahm…” O cara espiou meu rosto brevemente e
voltou a se encolher, esfregando os braços em nervosismo. Para um
cara quase tão baixo quanto eu ele tinha uns bíceps enormes, que
ele tentava ocultar com a postura recurvada e com a camisa grande
demais. “Sa… sabe onde tem um… ahm… um livro de coleóptos?”

Algo não parecia nem um pouco certo.


“Três estantes para lá, no setor de biologia vegetal.” Eu
disse.

“O-obrigado.” Ele prestou uma reverência pela metade,


então corrigiu a postura e acenou como um humano faria. “Eu, ahm…
adoro livros de coleóptos, são minhas plantas fa-fa-favoritas, então
vou lá, e… ler todos eles…”
O cara tentou passar por mim e eu o segurei pelo braço. Se
alguém naquela biblioteca se sentia disposta a vestir sua coroa de
trouxa, esta pessoa não era eu.

“Você pare aqui agora mesmo!” Eu falei, fazendo-o se


arrepiar. “Você tem um cheiro bem interessante, não concorda?”
O cara estremeceu no lugar, completamente travado. Como
alguém conseguia atuar tão mal? Ele acreditava mesmo que podia
enganar Babelyn Makaira, e a ponto de não elaborar um plano de
improviso?

“De-de-deve haver um engano. Eu sou um… ci-cientista de


coleóptos e… estou p-procurando uma co-conhecedora destas p-p-
plantas para estudar comigo.”
“Que interessante, porque coleópteros não são plantas, são
insetos, e os livros deles estão na sessão de invertebrados. Um
cientista como você certamente sabe disso, não é mesmo?” Eu puxei
com força o seu bração musculoso, que ele hilariamente mantinha
frouxo como se não possuísse a menor força física. “Pare de se
fingir e olhe nos meus olhos. Você não é cientista coisa nenhuma,
você é um filhote de tritão!”
O rapaz hesitou um pouco e enfim subiu o rosto. A
espessura do aro dos óculos era tão absurda que eu não conseguia
ver seus olhos direito. O chamado curava qualquer tipo de transtorno
físico, nunca ouvi falar sobre nenhum tritão com problemas oculares.

“Você consegue enxergar qualquer coisa, espertinho?” Eu


cruzei os braços, o encarando. “Qual era o seu plano? Por que veio
aqui? Quem raios é você?”
O cara continuou se fazendo de nerd tímido, como se eu
fosse uma burra. E talvez eu fosse burra mesmo, porque só então eu
percebi o que ocorria.

Sentindo um aperto no peito e o fervor da raiva aquecendo


as minhas bochechas, eu corri e arrastei aquele cara até a mesa
onde aqueles gêmeos traidores deveriam estar e… ahm… na
verdade eles continuavam ali, conversando baixinho, provavelmente
sobre horóscopo.

“Rebecca Makaira, o que significa isso?” Eu arranquei os


óculos daquele musculosão trêmulo e, como eu imaginava, havia uma
íris lilás e a outra verde. “Mandou um Amalona me distrair enquanto
você fugiria para trocar amassos com o Jackson, não é mesmo?”
“Shhh!” Disse o velhinho na mesa ao lado, mas,
sinceramente, foda-se ele e todo mundo naquele lugar.
“Ela é esperta.” Jackson sussurrou para Rebecca.

“Eu te disse que não ia funcionar.” Ela sussurrou de volta


para ele.
“Agora que já pagamos mico, podemos ir embora?”
Perguntou Dawson. “Aceite, Jackson, vocês só irão consumar
quando o humano da lenda estiver confortável com isso.”

“Não me fale sobre estar confortável, maninho. Você já viu o


meio das minhas pernas? Já precisou enfiar o pau em um pote de
sorvete?? Porque não é nada agradável.”
“Seu órgão reprodutor é a última coisa que pretendo ver,
meu irmão.” Dawson suspirou. “E isso explica por que já havia um
furo no sorvete que eu pretendia usar. Ainda bem que abri um
segundo furo.”

“Rapazes, modos, por favor, eu ainda estou aqui.” Rebeca


se abanou com a mão, irritadiça e vermelha. O cheiro do Jackson já
acertava seus hormônios como um caminhão desgovernado.
Percebendo que aqueles farsantes me ignoravam, eu cruzei
os baços e grunhi indignada. O ator de quinta categoria permaneceu
ao meu lado, tremendo e olhando para os próprios pés como um
adolescente prestes a ter a cabeça enfiada num vaso sanitário.

Inacreditável. E a parte mais frustrante era perceber o


quanto meu peito doía, porque eu realmente fui trouxa demais. Claro
que as gêmeas e seus predestinados não queriam me aguentar por
um minuto que fosse. Que tritão ou sereia recém despertado iria
curtir uma nerd segurando vela, quando eles tanto queriam ficar
sozinhos para se divertir de verdade?
“Parabéns, o plano idiota de vocês falhou, mas vocês
conseguiram me fazer de idiota.” Eu disse, com os lábios tremendo
de mágoa. “Agora, precisavam mesmo duvidar tanto da minha
inteligência? Pensaram que era só vestir um quase alfa gostosão em
roupas mal compradas e fazer um penteado de filhotinho-da-mamãe,
e então eu me jogaria em cima dele e esqueceria de vocês?”

“Ahm… Babelyn…” Gaguejou Rebecca, constrangida.


“E tem mais, olha pra esses sapatos! Eu não sou nenhuma
patricinha da moda que nem vocês, mas nem um idoso vestiria um
troço desses antes do próprio funeral. E olha essa postura de bebê
levando bronca! Já viram um cara musculosão e com um rosto lindo
desses agindo desse jeito?”

“Babelyn, querida…” Rebecca tentou de novo, mas agora


aquela manipuladora falsa iria me ouvir.
“Enquanto você e a Penélope treinavam catwalking eu treinei
meu cérebro, tá bom? Nem meus concorrentes na olimpíada de
matemática tinham essa cara de nerd coitadinho. Pelos oceanos, se
este cara fosse vestido assim para a escola até os nerds da
olimpíada teriam vontade de amarrá-lo num poste!”

“Babelyn, este é o nosso primo Taimen. Ele é assim.” Disse


Jackson.
“Menos os óculos. Achamos que seria um toque especial
para conseguir te enganar.” Disse Dawson, o que fez os outros dois
afinarem os olhos pra ele. “O que foi? Ela já percebeu na armação
vergonhosa de vocês.”
Meu cérebro bugou.

Espera, então o plano era esse, mesmo? Fazer-me


apaixonar por um cara nerd igual a mim para que Jackson e Rebecca
pudessem consumar em algum canto? O que eles pensavam que eu
era, uma protagonista tonta de comédia romântica? E a maior
pergunta de todas: aquele cara não estava atuando??
Dawson bufou impaciente e se levantou. Ele foi até o seu
suposto primo e o puxou pelos ombros, endireitando sua postura e o
fazendo gritar de susto. Com a coluna reta ele era quase tão alto
quanto seus primos, o que não era muita coisa.

E nossa, mesmo aquele camisão tosco não ocultava o


peitoral enorme. O tecido até esticava um pouco, mostrando o relevo
dos mamilos, e o pescoço era tão grosso e forte que…
Aff, no que eu estava pensando?

“Desculpa, aí. Aqui estão os seus… óculos de mentira.” Eu


devolvi a armação para ele, que tentava se encolher de novo, mas
Dawson havia agarrado seu cabelo por trás, o forçando a olhar nos
meus olhos.
Suas íris eram lindas.

“Taimen, pelo amor dos oceanos, seja menos vergonhoso e


se apresente.” Disse Dawson.
O rapaz pegou os óculos com as mãos trêmulas e tentou
colocar no rosto, mas acho que notou que seria estupidez, então
apenas o guardou no bolso da camisa.
“P-p-prazer. Eu sou Ta-Taimen Amalona. E… ahm… oi…”

“Viu só? Nem doeu tanto assim.” Dawson o soltou e retornou


para sua cadeira.
“Não fique tão brava, Babelyn. Nossos passeios em grupo
têm sido muito divertidos, mas vamos admitir que ninguém está super
confortável com a situação. Em algum momento a Penélope vai
largar as neuroses dela e então podemos sair nós seis!”

“E então você se distrai com o Taimen e no minuto seguinte


estes dois estão fazendo um bebê atrás da primeira moita.” Disse
Dawson, e desta vez Jackson lhe deu uma cotovelada. “Ai! Tá bom,
eu fico quieto. E sozinho.”
Que completo absurdo. Eu me virei para o Taimen, que
tentava manter os ombros retos da forma como Dawson o corrigiu,
sem muito sucesso. Na minha mente se passavam quinhentos mil
insultos, tantos que eu não conseguia escolher um.

“Quer saber, dane-se tudo isso.” Eu passei minha mochila


nas costas e fui embora.
“Babelyn, não nos entenda mal, nós apenas…” Gritou
Rebecca.

“Shhhh!” Chiou o velhinho.


Eu ignorei eles e fui pra casa, com o coração em chamas e
lágrimas quentes ameaçando molhar meu rosto.
Dane-se sair com os populares, dane-se a minha promessa
ao humano Gabriel, e dane-se que Rebecca aparecesse grávida de
quinhentos filhos na manhã seguinte. O meu coração tinha o seu
limite.

Rebecca e Jackson, Penélope e Dawson… por fim eles não


passavam de quatro serpentes que não davam a mínima para os
meus sentimentos. E que tipo de idiota atravessa os oceanos para
ajudar os primos a enganar uma sereia desconhecida? Taimen era o
pior de todos!

Bem, se houve qualquer vantagem naquela amarga


desilusão, foi eliminar qualquer hesitação sobre contar ao irmão
Dylan sobre os truques das gêmeas. Eu iria recuperar a minha carta
por bem ou por mal e então desapareceria daquela ilha, em direção
aos meus sonhos e muito, muito longe de casais egoístas, dramas
sem sentido, e daquele quase-alfa esquisito que escondia por baixo
da franja os olhos mais lindos que já vi em qualquer tritão.
Capítulo 13

Debruçada nos ombros do Doutor Michel, eu o assisti trocar


mensagens com a equipe de decolagem no computador de seu
escritório. A cada frase trocada o meu coração apertava um
pouquinho mais, mas eu consegui disfarçar até o fim, fingindo o
entusiasmo que eu naturalmente deveria sentir naquele momento.
“Prontinho, consegui antecipar sua viagem.” O Doutor
desligou a tela e me espiou por cima do ombro. “Posso saber agora
o motivo de tanta pressa? O Gabe queria tanto fazer uma festa de
despedida, vai partir o coração dele.”

“Você sabe como eu sou com festas, Doutor. E eu também


sou péssima com despedidas.” Eu ri encabulada e nervosa. “E qual o
sentido de uma festa de despedida, nos dias de hoje? Ainda
pretendo manter contato pela internet.”
“Eu sei, mas videochamadas não são exatamente a mesma
coisa.” Ele girou a cadeira até ficar de frente para mim, com seu
típico sorriso que era tão feliz quanto dolorido. “Vou sentir demais a
sua falta, Babelyn.”

Eu abracei o Doutor e ele retribuiu o abraço. Não importava


quanto tempo passasse, eu sempre me sentiria uma criancinha
protegida nos braços dele.
“Nunca serei grata o bastante por tudo o que fez por mim,
médico da lenda.” Eu sorri com o canto da boca, levemente
sarcástica. “Agora podemos, por favor, nos esquecer do clima de
despedida? Podemos planejar algo legal ainda hoje, ou amanhã. Que
tal um jantar com um peixão caçado por mim?”
“Desde que o Dylan te acompanhe nesta caçada, eu não
tenho ressalvas. Não me leve a mal, Babi, não duvido da sua
capacidade como sereia, mas da última vez que você apareceu com
um tubarão vivo nas costas…”

“O Alisson teve uma arritmia e precisou ser internado, eu sei,


eu sei… posso aparecer com um peixe herbívoro, tipo um peixe-
papagaio bem gigante, daqueles de cem quilos, que tal?”
Pelo olhar torcido do Doutor Michel, aquilo era um óbvio não.

“…Certo, certo, vou solicitar a assistência do irmão Dylan. E


me certificar de que o peixe já está morto antes de pisar nesta
casa.”
“Você é uma boa menina, Babelyn.” O Doutor Michel afagou
a minha cabeça e se levantou, já pegando seu jaleco branco na
ponta da mesa. “Eu preciso voltar para o hospital, agora. E não
pense que me enrolou, eu ainda quero saber o motivo de tanta
pressa, então nos falamos mais tarde.”

“Sim, senhor. Tenha um bom trabalho.”


Eu e o Doutor Michel nos despedimos, então ele encontrou o
Alisson no caminho da garagem e os dois trocaram um beijinho antes
do Doutor ir embora, sempre apressado.
Logo o senhor Alisson também sairia para buscar o trio de
capetinhas na escola. Eu subi para o meu quarto e me tranquei,
querendo aproveitar o breve silêncio para espairecer a mente e
tentar me acalmar.
Droga, eu não queria estar tão à beira de lágrimas.

Será que fui impulsiva em antecipar a minha viagem? A minha


intenção era enviar a carta de aprovação antes e partir apenas na
semana seguinte, perto do início das aulas. Graças ao Doutor Michel
eu sequer precisaria deixar meus pertences para trás, pois ele
conseguiu reservar o mesmo jatinho que ele utilizou tantas vezes
para visitar seus pais no Brasil. E não só ele conseguiu uma reserva
tão de última hora, como conseguiu também antecipá-la sem
grandes problemas. Eu não queria nem pensar na quantidade de
dinheiro que ele gastou com isso.
Bem, muito em breve eu deixaria de ser um fardo para ele e
para o irmão Dylan. E também para as gêmeas.

Quase incapaz de conter as lágrimas, eu me joguei na cama


e enterrei a cara no travesseiro, sem reconhecer o que doía mais, a
minha raiva ou a minha tristeza.
Rebecca e Penélope me chantagearam, isto era um fato. Se
eu comecei a andar com elas e seus namorados era porque minha
aprovação em Harvard estava em jogo. O que eu nunca esperei foi
curtir de verdade a companhia de todos eles. Eu nunca tive muitos
amigos, apenas os poucos nerds do clube de ciências com quem eu
conversava sobre besouros às vezes, nunca me imaginei saindo com
gente popular e interessante e sempre achei que seria estúpido,
mas… não foi.
E eu sinceramente achei que aquele quarteto de idiotas
pensava o mesmo.
Ai… eu só podia ser burra, mesmo, precisava refazer meu
teste de QI o quanto antes. Por que dois casais ansiosos por
consumar gostariam da companhia de um quinto elemento? Eles
perceberam que não havia outra escolha e decidiram se divertir
dentro das circunstâncias, apenas isso. Desde o começo eles
pensavam num jeito de se livrar de mim, afinal. Sair com gente
popular era uma merda.

Perdida em meus pensamentos masoquistas, eu me


surpreendi com as batidas na porta. A princípio pensei que fosse o
senhor Alisson pedindo ajuda com algum equipamento eletrônico,
mas as batidas eram mais suaves.
“Babelyn?” Disse uma das gêmeas do outro lado da porta.
“Sou eu, a Rebecca. Posso entrar?”

Mas que vaca insuportável. Não bastava me chantagear,


magoar e enganar, ela ainda queria torcer a faca nas minhas costas?
“Entra.” Eu sentei na cama e soltei minhas maria-chiquinhas
bagunçadas, deixando meu cabelo fluir até a cintura.

Rebecca abriu a porta e entrou sem um pingo da audácia de


sua última invasão. Pelo olhar aquela víbora até parecia arrependida
e triste, mas nem pensar que eu baixaria a minha guarda de novo.
“Realize seu próximo encontro romântico no escritório do
senhor Gabriel, por tudo o que me importo. Cansei de ajudar vocês.”

“Eu sei, não estou aqui para isso.” Rebecca sentou ao meu
lado na cama. “Eu vim pedir desculpas. Creio que você nos entendeu
mal.”
“Se eu entendi mal não há motivos para pedir desculpas, não
é mesmo?” Eu murchei os lábios, magoada demais para soar
debochada. “Eu sei que eu estava sobrando, tá bom? Seus planos
com o Jackson devem passar bem longe de precisar aturar a minha
conversa e os meus gostos esquisitos.”

“Seus gostos não são esquisitos. O Jackson te adorou, Babi,


e o Dawson também. Ainda estou tentando entender qual é a da
Penélope, mas você era bem-vinda conosco. A gente só queria que
você não se sentisse tão…”
Tão feliz? Tão querida? Tão importante? Eu esperei
Rebecca desenrolar a língua com um amargor crescente no fundo da
minha alma, e a vadia não teve a dignidade de completar a frase.

“Minha ajuda já foi o suficiente, logo o humano Gabriel vai


ceder e abrir os braços para seus novos genros, então me faça o
favor de cumprir sua parte do acordo.” Eu afinei meus olhos com
frieza, uma cobra encarando outra. “Quero a minha carta de volta.
Meu avião sai em dois dias, esta é sua última chance de devolvê-la
antes que eu envolva o irmão Dylan na situação.”
“Eu entendi, tá? Se eu pudesse já teria devolvido aquela
coisa, você sabe disso. Para entrar nos vestiários da lanchonete e
abrir os armários é preciso passar um crachá, e…”

“…e a minha carta está no armário da Penélope, que


continua sendo uma vadia absoluta, certo?” Eu suspirei. Por que
nada podia ser simples?
“Ela está muito estranha, Babi. Não quero estressar ainda
mais o papai Gabe, mas estou muito preocupada. Ela quase nunca
deixa o quarto, fica ouvindo músicas tristes e às vezes percebo seus
olhos inchados, como se passasse o dia chorando. E o pior de
tudo… enquanto ela dormia eu investiguei embaixo da cama dela e
encontrei…” Rebecca baixou o tom de voz, aproximando-se do meu
ouvido. “…três potes de sorvete de 2500 calorias por litro. E
estavam vazios.”
“Nããão.” Eu respondi, extremamente sarcástica.

“Isto é sério, Babelyn! Eu sei que você odeia a Penélope,


mas tente ter um pouquinho de compaixão. Algo está errado e eu
não consigo descobrir o que é!”
“Talvez tenha crescido uma espinha no nariz. Vocês já
deixaram claro o quanto não querem lidar comigo, por que eu deveria
lidar com vocês?” Eu balancei os ombros, tentando fingir desdém e
falhando.

“Como eu já disse, você nos entendeu mal. Tá certo, eu e o


Jackson queríamos demais um tempinho a sós, mas a gente também
queria que você não se sentisse deslocada. Quando o Jackson
comentou sobre aquele primo dele, eu achei perfeito.”
“Ah, claro, vamos juntar o esquisitão com a esquisitona,
porque certamente ela não irá se ofender!” Eu bufei e dei voltas pelo
quarto, considerando arremessar minha boneca de pedra na cabeça
de certa sereia. Qual dos dois quebraria primeiro, eu me
perguntava…
“Foi tudo ideia minha, então, por favor, não odeie o
Jackson… e quanto ao Taimen…”
“O que tem ele?” Ouvir o nome fez meu coração saltar
estranho.

Assim que eu perguntei isso, notei um vulto na porta do


quarto. Não era um vulto repentino, mas de alguém que estava ali
desde o começo e eu não notei, porque era um cara sem presença
nenhuma.
Eu tentei olhá-lo nos olhos, que ele mantinha oculto sob a
franja de corte retinho. Novamente ele usava aqueles óculos
gigantes, embora sem as lentes, mas desta vez sua roupa era outra,
um conjunto bem básico de camiseta cinza e saiote longo com tênis
Converse, e ainda assim ele parecia um fugitivo de alguma seita
religiosa. Será que havia alguma roupa no mundo que ficasse bem
nele?

O meu coração deu outro salto. Eu precisava pedir que o


Doutor Michel verificasse minha pressão.
“Taimen Amalona.” Eu disse com aspereza. “Veio procurar
outro livro sobre coleóptos?”

Mantendo-se acuado, parcialmente escondido atrás da


porta, Taimen estendeu a mão e tentou me entregar algo pesado. A
sua mão tremia tanto que demorei a notar que era um livro. Mais
precisamente a Enciclopédia Definitiva dos Coleópteros.
“E-e-eu n-não sabia nada so-sobre estes bi-bichos, de-de-
descul-desculpe.” Ele me entregou o livro, ajoelhou e então prestou
uma enorme reverência até encostar a testa no chão. Nem os meus
pais costumavam receber tal nível de cumprimento, e eles eram os
reis dos mares quentes. “Ma-mas-mas eu ap-aprendi tu-tudo então
des-des-des...”
O cara parecia à beira de um troço, então o deixei
gaguejando para as paredes e folheei o livro que ele me entregou.

Como qualquer mulher da ciência saberia, a Enciclopédia


Definitiva dos Coleópteros é um livro de tiragem limitada, a biblioteca
municipal possui um único volume que eu múltiplas vezes estudei
depois das aulas, percorrendo folha por folha até decorar cada
página. Mesmo sendo o meu livro favorito na adolescência foram
necessários meses de dedicação até aprender tudo. E aquele cara
aprendeu tudo em uma noite??
Ah, não. Nem pensar.

“Pois muito bem, seu espertinho.” Eu joguei o livro para a


Rebecca e marchei na direção dele, fazendo aquele tritão apavorado
quase sair correndo. “Qual o nome da carapaça de um besouro?”
“Élitro.” Ele recuou até bater as costas na parede do
corredor.

“Qual o maior besouro do mundo?”


“B-b-be-besouro Hércules.” O cara grudou na parede e
continuou tentando ir para trás, como se quisesse ser absorvido
pelos tijolos.

“Não se ache esperto porque qualquer um sabe disso. Qual


coleóptero era considerado uma divindade no Antigo Egito?”
“Esc-escaravelho.” O safado nem parou para pensar. Eu
precisava jogar sujo com uma bem difícil.
“Qual o nome científico da joaninha australiana?” Eu cheguei
tão perto que podia ouvir os dentes dele batendo.

“Rodolia Cardinalis.” Ele sussurrou, por um instante espiando


meus olhos antes de encolher-se novamente. “Po-posso ler mais
livros, se quiser. Eu… eu go… gostei muito deste…”
Inacreditável. Eu pensei e pensei em alguma maneira daquilo
ser outro truque daquele quarteto de cobras. Nenhum ponto
eletrônico nos ouvidos, nenhuma anotação oculta, aquele tritão não
escondia nada além de um cheiro estranhamente gostoso e salino.

Eu limpei a garganta, mantendo minha pose de brava. Talvez


sim, aquele cara tivesse lido o meu livro de besouros favoritos e
aprendido muitas coisas ao longo da noite, mas a minha dignidade
jamais permitiria que eu o perdoasse tão facilmente.
“Você tem algo a ver com isso, Rebecca?” Eu me virei para
trás e avistei apenas a enciclopédia abandonada no meu travesseiro.

Ué, quando a Rebecca foi embora? Aquela naja peçonhenta


fugiu mesmo e me deixou sozinha com aquele tritão histérico?
Ah, perfeito, ela que fugisse pra trocar amassos com o
Jackson e voltasse bem grávida e cheia de chupões pra casa. O
senhor Gabriel gritaria tanto e tão alto que eu iria ouvir e gargalhar
no assento confortável do meu avião.

“Dá pra parar de tremer por um minuto?? Estou tentando ter


pensamentos vingativos, aqui!” Eu gritei para aquele cara.
Meus gritos tiveram o efeito mais contrário possível. Taimen
ergueu o olhar para mim, cintilando seus lindos olhos verde e lilás,
que ficariam tão mais lindos sem aqueles óculos gigantes. Pensando
bem, eles eram lindos por causa dos óculos. Se não fosse a
constante expressão de por favor não me espanque até a morte o
rosto dele não seria nada desagradável de se admirar por muitas
horas.
Enfim eu notei com detalhes a profundidade de suas olheiras,
sentindo uma boa dose de culpa. Não era problema meu que Taimen
tivesse virado a noite lendo, mas eu disse tantas coisas horríveis na
frente dele… a vida toda eu busquei distância dos meus colegas
populares por achar que eles julgavam minha aparência e os meus
trejeitos, e no fim era eu quem estava fazendo justamente isso.

“Desculpa por ontem. Quer dizer, você é um idiota por


colaborar com o plano daqueles caras, mas eu não deveria ter te
insultado.” Eu busquei algo em sua aparência que eu pudesse
elogiar, mas nossa… como roupas tão normais podiam servir tão mal
em alguém? “Não precisa mais usar estes óculos, mesmo que tenha
removido as lentes.”
Taimen travou, refletindo se iria apanhar ou não. Quando
enfim parou um pouquinho de tremer ele tirou a armação e a admirou
com um sorriso tímido nos lábios.

Eu sorri junto que nem uma idiota, surpresa pela doçura de


seu sorriso. Ele devia ser o tipo de cara para quem cada elogio era
raro e precioso.
“Ahm, é, hum… é meio bobo, acho. O Jackson me mandou
colocar isso, e a Rebecca falou de uns coleóptos… que agora sei
que são coleópteros, perdão por isso… mas foi através dessa
moldura que eu te vi pela primeira vez, então…”
Eu arqueei uma sobrancelha e levantei as mãos, o fazendo
calar.

“Espera aí, você não é gago?” Eu perguntei.


“Perdão, eu sou, eu… ahm… ah… eu não sou. Nossa, eu
pareço ser, não é?” Ele deu uma risadinha muito envergonhada e
colocou os óculos novamente, como se tentasse esconder-se atrás
deles. “Eu… eu só… fico bem nervoso… de-desculpa, isso nunca
aconteceu antes.”

“Nunca aconteceu o quê? Você gaguejar até explodir minha


pobre paciência?” Eu perguntei.
Taimen deslizou a mão pela testa e percorreu os dedos ao
longo do cabelo, por um instante revelando como ele seria lindo
escovando aquele penteado de tigela para trás. Então a franja voltou
a esconder seus olhos, e com eles qualquer semblante de quem
deveria ser um quase-macho-alfa.

“Hum… pelo contrário, eu… ahm… faz tempo que não


consigo falar tanto.” Ele me encarou de novo, cansado, mas
confiante. “Não fico tã-tão nervoso perto de você. Por que será
isso?”
Eu dei risada. Que olhos mais lindos, eu não conseguia
cansar de olhar. E, pensando bem, aquela camiseta sem sal não era
ruim. O peitoral de quase-macho-alfa aparecia na medida perfeita,
mostrando o volume do tórax sem apertar demais.

Passos na escada destravaram o meu transe.


“Ei, Babelyn, vou buscar as crianças. Você precisa de algo
do supermercado?”
“Não, senhor Alisson, eu agradeço! Estou bem, super ótima!”
Eu respondi, correndo para me despedir-me dele no corrimão
enquanto tentava parecer normal.

Mesmo alguém tapado como o senhor Alisson notou o


exagero na minha voz e no meu comportamento, mas, como sempre,
ele não fez muita questão de investigar.
“Quando o Michel voltar, peça pra ele consertar a geladeira.
Está fazendo um barulho estranho.”

“Sim, senhor!”

O senhor Alisson fechou a porta de entrada e eu ouvi o


motor de seu carro enquanto deixava a garagem.

Enfim eu pude voltar minha atenção ao Taimen. Sua voz


quase normal ainda dava piruetas na minha mente, como uma música
chiclete que eu odiava e ao mesmo tempo me controlava para não
cantar junto.
Tanto estresse acabaria desgastando a minha pobre
sanidade mental. Eu dei as costas para o Taimen e entrei no meu
quarto, então investiguei embaixo da minha cama até encontrar uma
caixa de ferramentas.

“Ei, Taimen.” Eu falei, puxando a caixa.

“O que foi?” Ele perguntou, ainda paralisado no lado de fora.


Eu consegui sair e descansar a pesada caixa de ferramentas
sobre a cama, então eu a abri e retirei alguns itens essenciais.
Com todo o meu leque de chaves de fenda entre os dedos,
eu sorri travessamente e admirei a confusão no rosto do Taimen.
“Quer me ajudar a consertar uma geladeira?”
Capítulo 14

Eu pensava que Taimen ajudaria pelo menos um pouquinho,


mas ele apenas me auxiliou a arredar a geladeira e então ficou
assistindo, sentado em uma cadeira. A princípio pensei que ele fosse
um preguiçoso chato que nem o senhor Alisson, mas seu olhar
denotava o quanto ele estava assustado. Muito, muito assustado.

Coberta de graxa nas mãos e no rosto, eu finquei a chave de


fenda nas grades atrás da geladeira e alcancei o motor logo abaixo.
Havia um parafuso meio frouxo, então eu o apertei e troquei a cinta
gasta de uma roldana, já aplicando um pouco de óleo e testando os
outros componentes que talvez precisassem de troca.
“Ufa, esta geladeira nem é tão velha, mas os encaixes são
um pesadelo. Me alcança a chave de boca número seis, Taimen. E
uns três… não… cinco parafusos iguais a esse.”

Eu estiquei minha mão para fora, ainda atolada em peças no


estreito espaço entre a parede e a grade quente da geladeira.
“Ahm… é seguro mexer com esta c-coisa? O humano pediu
para o outro humano consertar, talvez não… ahm… e se quebrar?”

“Já está quebrado, Taimen, é por isso que estou


consertando!” Eu fui eu mesma atrás das ferramentas corretas e
então voltei às obras. “O doutor Michel é um homem muito ocupado,
gosto de ajudá-lo quando posso e resolver estes probleminhas por
conta própria.”
“Mas… mas e… essas coisas todas… você sabe onde
colocar tudo? Não t-t-tem nenhum manual?” Ele inclinou o corpo,
tentando ver o que eu fazia. “Que-quero dizer, uma s-sereia como
você…”
“O que tem uma sereia como eu, Taimen?” Eu deixei o tubo
de óleo de lado afinei os olhos para ele, que se encolheu como um
ouriço medroso. “Sereias podem fazer tudo o que tritões fazem,
sabia? Nem todas são burras, incompetentes, egoístas e falsas.”

“P-p-perdão, eu não pretendia falar isso. Perdão. Eu ia d-


dizer que parece complicado e difícil. Você é m-m-muito inteligente.”
Ele baixou o rosto, encabulado. “Deve ser incrível, poder fazer
qualquer coisa.”
Eu apertei a última porca e passei um pano no motor, então
comecei a aparafusar a grade de volta ao lugar.

“Bem, eu não sou nenhuma Amalona, mas eu me esforço.”


Eu o espiei e dei uma risadinha. “Você também é mega-inteligente,
caso tenha esquecido. Não é qualquer um que aprende uma
enciclopédia em poucas horas. Se eu ainda tivesse o manual desta
geladeira, você faria um trabalho quase melhor que o meu.”
“Ah, duvido muito.” Taimen mordiscou as unhas, todo tímido e
inseguro. “Meus primos me acham super burro, na verdade. É di-di-
difícil ser um Amalona r-respeitável, quando… ahm… p-perdão…”

“Pelo que está se desculpando, dessa vez?” Eu me levantei e


sorri para mais um conserto bem feito. “Ah, ficou que nem nova.
Você deveria me ajudar, da próxima vez. Garanto que o Jackson o
Dawson ficariam impressionados, eles devem gostar de você, para
convidá-lo ao plano idiota deles.”
“Não imagino isto acontecendo. Eles não me convidaram,
apenas conversaram com os p-pais deles, que c-c-conversaram com
os m-m-meus… e meu n-núcleo não d-d-discordaria d-d-deles p-
porque…”

Eu franzi a testa para ele, enquanto me limpava de toda


aquela graxa. Impressão minha, ou a gagueira do Taimen piorava
muito quando ele sequer se lembrava de outros Amalonas?
“Os pais dos gêmeos são tritões importantes, é isto o que
está dizendo? Não imagino que a vida na ilha Orona seja muito difícil,
pelo que Jackson contou, vocês tem energia elétrica e muitos dos
confortos de uma comunidade humana.”

“Ah… s-s-sim e não. Eu n-não diria que os meus t-t-tios são


e-especialmente importantes, o D-Digníssimo Oráculo é o único
acima de t-t-todos nós. Mas nosso núcleo que é m-m-menos…
menos do que qualquer outro.”

“Como é? Vocês são quase todos Amalonas naquela ilha,


não são? E Amalonas são um clã de alta casta, não existe melhor ou
pior entre membros de um mesmo clã.”

Taimen tentou responder, mas só conseguiu falar gagueiras e


sílabas soltas, como se tivesse engasgado em uma espinha de
peixe.
Ai, ai… pelo visto eu não era a única com uma família
estressante, e não pretendia me desgastar ainda mais. Eram meus
últimos dias no Havaí, afinal de contas, e as pessoas legais da minha
vida não mereciam suportar o meu mau-humor.

“Vem, me ajuda a empurrar isso de volta. Ainda preciso


invadir uma lanchonete e quebrar um armário, e preciso pensar num
jeito de não ser presa no processo.”

Taimen enfim levantou e me ajudou a empurrar a geladeira.


Ver seus músculos de alfa trabalhando fez com que eu me
esquecesse de empurrar com ele, mas Taimen conseguiu ajeitar tudo
sozinho.
Ele bateu uma mão na outra e me entregou um pano limpo
para limpar meu rosto.

“Você planeja a-a-assaltar uma lanchonete? Não me parece


muito seguro.”

“Não exatamente. Tenho um documento importante no


armário da Penélope e quero tentar revê-lo sem envolver outras
pessoas. Ela está muito esquisita, eu ficaria mal se o irmão Dylan a
repreendesse em um momento difícil.” Eu esfreguei o pano no nariz e
guardei as ferramentas de volta n caixa. “Sou uma boba, eu sei,
aquelas gêmeas jamais fariam o mesmo por mim, e sem o crachá de
acesso eu não tenho nenhuma outra escolha. Mas ei, somos tritões e
sereias, fazer escolhas nunca foi muito a nossa coisa, não é
mesmo?”

Taimen me olhou pensativo e concentrado, então ele pegou o


pano das minhas mãos e esfregou na minha testa. Não era um gesto
gentil ou remotamente romântico, eu só devia parecer um monstro de
graxa, mesmo.
“Vou supor que Penélope Makaira possua o crachá n-
necessário, estou correto? Caso contrário não esconderia suas c-c-
coisas naquele lugar…” Ele me devolveu o pano e sorriu o sorriso
mais lindo que já vi em qualquer vertebrado com lábios. “Temos outro
jeito de recuperar seu documento. Um menos c-c-conflitante com as
leis locais, pelo menos.”
Sentindo um calor muito estranho no rosto, eu me apressei
em guardar tudo e dar uma geral na bagunça da cozinha. Se o
doutor Michel descobrisse que eu fiz reparos na casa ele se sentiria
um marido fracassado e trágico e eu já não podia lidar com mais
drama.

****

Eu esperava um plano mais elaborado vindo de um Amalona,


mas dizem que as melhores ideias são sempre as mais simples,
então eu concordei em seguir seu plano.

Não havia nenhum grande truque, apenas simples raciocínio


lógico: Eu deveria entrar no quarto das gêmeas e roubar o crachá de
acesso da Penélope. Era muito menos ilegal do que quebrar os
armários da lanchonete e a única complicação seria o azar de
esbarrar com as gêmeas.
Ainda assim, uma parte do plano não ficou bem clara… por
que eu deveria roubar o uniforme, também?

Já no jardim da casa do irmão Dylan, Taimen travou e eu só


notei vários passos adiante, quando eu quase abria a porta.
“O que houve? Vai dizer que tem medo de flores, também?”
Eu apontei com os olhos para as roseiras, sarcástica.
“Não, eu… eu… ah… meu cheiro… os primos vão saber…”

Nossa, bem pensado, até que Taimen era bem esperto.


Ninguém iria reparar no meu cheiro já que eu visitava o meu irmão
com frequência, mas o cheiro do Taimen logo nos entregaria.
“Espere-me no mar, isto não vai demorar muito.” Eu disse.

Taimen concordou e deu meia volta. Seus passos pareciam


um tanto mais confiantes que em nosso primeiro encontro. De costas
ele era praticamente um tritão normal, com ombros bem largos e
uma bunda que…
Concentração, Babelyn. Aquela talvez fosse sua única
chance de recuperar a carta de forma pacífica.

Sentindo acelerar o meu coração, eu abri a porta e


atravessei a sala furtivamente em direção aos quartos.
E óbvio que aquele plano simples encontrou formas de
complicar. E muito. Pra falar a verdade foi quase burrice minha
porque eu já sabia das crises bizarras da Penélope, então eu não
deveria ficar tão surpresa ao encontrá-la no corredor, com um
roupão e toalha enrolada nos cabelos.

Penélope ficou igualmente surpresa ao me avistar, e nem um


pouco contente.
“Olha quem vem vindo, o novo cachorrinho da Rebecca e
daqueles caras.” Ela encostou-se na parede e cruzou os braços,
como se sua postura já não denotasse um extremo desgosto pela
minha presença. “Eu já disse para a Rebecca e vou repetir, não
tenho o menor interesse no parque de diversões, aquele cheiro de
comida barata me dá ânsias.”

Parque de diversões? Então era aquele o suposto encontro


daquele dia? Poxa, eu sempre quis andar de montanha russa,
imaginar que Rebecca cancelou seus planos por ter me magoado era
comovente ao mesmo tempo triste e confuso.

“Você me conhece, Penny, não sou nenhuma mula de


recados. Não foi a Rebecca quem me mandou aqui. E nem o
Dawson, antes que me pergunte.”
Penélope estremeceu muito sutilmente, e logo disfarçou com
seu típico olhar de desdém. Qual das minhas palavras conseguiu
atingi-la? O nome do Dawson?

Saco, eu estava ali para roubar os pertences daquela víbora,


não para sentir compaixão por ela.
“Por que se banhou no banheiro do corredor? Você sempre
foi possessiva com o banheiro no seu quarto.” Eu perguntei.

“Papai Dylan estava trocando os encanamentos, mais cedo.


Ele acredita que uma ducha água salgada vai resolver todos os meus
problemas emocionais, não é fofo?” Ela deu de ombros, cínica, e
espiou o quarto ao lado com um azedume ainda maior que o normal.
Apesar de bastante diferentes na decoração, as mansões do
Doutor Michel e do Gabriel mantinham quase que a mesma
distribuição de cômodos. Embaixo ficavam as áreas coletivas e a
suíte do casal, e em cima os quartos. Há muito tempo o irmão Dylan
concedeu o quarto principal da casa para Hian e Maikon, então o
quarto térreo ficava sempre desocupado. O quarto que Penélope
admirava com tanto desprezo era, portanto, o quarto dos seus pais.
“Tem alguém ali dentro?” Eu perguntei, já sabendo que era
bobagem. Meu olfato não encontrava ninguém naquela casa além de
nós duas.

“Meus pais são uns idiotas. Todos vocês são.” Disse ela, em
um tom sombrio e monocórdio.
“Ei, pode me insultar o quanto quiser, mas o meu irmão…”

Penélope me empurrou para o lado e quase me derrubou.


Quando recuperei o equilíbrio ela já havia seguido adiante e entrado
no próprio quarto, mas, curiosamente, não bateu a porta na minha
cara como ela tanto adorava fazer.
Mas que cobra dos infernos. Como eu roubaria aquele
maldito crachá com ela dentro do quarto? O Taimen já devia estar
me aguardando e eu queria resolver aquilo antes da maldita
lanchonete fechar.

Talvez eu devesse pensar num plano antes de invadir o


quarto, mas Penélope conseguiu me irritar. Eu marchei para dentro
daquele ninho de surucucus e no mesmo instante meu queixo quase
caiu no chão.
Aquele… aquele era mesmo o quarto das gêmeas? Quer
dizer, metade dele permanecia exatamente igual, todo cor-de-rosa
com travesseiros de rendinha e luminárias francesas, era a metade
de frente para a sacada que me surpreendia. Em uma divisão
perfeita no meio do quarto as paredes agora eram verdes e azuis,
com muitos pôsteres, apanhadores-de-sonhos, luzinhas de Natal e
um mural com diversas fotografias da Rebecca e do Jackson se
divertindo. Já não havia o menor traço da simetria de antes, até as
dúzias de almofadas de firulas cor-de-rosa deram lugar a
travesseiros comuns e lençóis verde-água com estampa de pranchas
de surfe.
Nossa, mesmo após uma mudança radical era óbvio o
quanto Rebecca mantinha o bom gosto. Sua metade do quarto
permanecia linda, mas de um jeito muito diferente, e tão contrário à
decoração cor-de-rosa da Penélope que até parecia um efeito de
Photoshop.

Penélope notou a minha presença, é claro, mas não fez


questão de me expulsar. Ela estava sentada em sua cama de frente
para a parede, esfregando a toalha em seus longos cabelos
castanhos.
“Acredita que ela até comprou uma cama de casal? Nossas
camas permanecem as mesmas desde que largamos o berço, nunca
sequer as mudamos de lugar, e agora ela quer jogar fora.”

Algo na voz da Penélope arrepiava os pelos dos meus


braços. Eu já não sabia se sentia raiva, curiosidade ou preocupação,
porque ela sempre foi uma mimadinha egoísta e ingrata, mas pelo
menos ela era horrível com um sorriso no rosto.
“Penny… o Dawson te machucou de alguma forma?” Eu me
aproximei, hesitante.

Penélope riu, ainda de costas, como se observar o papel de


parede rosa-pastel fosse mais interessante do que lidar comigo.
“Quem, o meu predestinado? Eu sou a melhor das melhores,
Babelyn, naturalmente fui premiada com o melhor de todos os
tritões. Dawson tem hobbies incomuns ao que estamos
acostumadas, mas ele é tudo o que qualquer sereia poderia desejar.”
“Então por que está fazendo isso com ele?” Eu levantei a
voz, indignada. “Dawson é um cara legal, assim como o Jackson,
mas preciso ver ele magoado e deprimido porque predestinou com
uma cobra sem coração. Você tem todo o direito de se achar
sortuda, mas eu me pergunto se ele pensa o mesmo!”

“Eu não gritaria tão alto se eu fosse você, Babelyn.”


Penélope acariciou a parede. Sua voz era cada vez mais monocórdia
e sombria, como se estivesse em transe. “Você se surpreenderia
com o quanto estas paredes são finas.”
O meu coração bateu acelerado. Aquela não era a Penélope.

“Ei, Penny, se aconteceu qualquer coisa você pode confiar


em mim.” Eu sentei ao seu lado e tentei olhar o que ela tanto
enxergava naquela parede, mas não havia absolutamente nada de
incomum. “O Dawson é o melhor dos melhores, certo? Você mesma
disse isso. Se houver qualquer problema ele pode te entender e te
ajudar. O Dawson não sente raiva alguma, só está tão preocupado
quanto todos nós.”
“Você sempre será uma tonta.” Penélope riu com um
escárnio desesperado no olhar. “Alfas são alfas, Babelyn. Tudo o
que eles fazem por nós, sereias, cada sorriso e cada agrado, é com
o simples intuito de perpetuar a espécie às nossas custas.”
Eu quis dizer que não era verdade, mas a minha voz travou
na garganta.
“E você pode dizer que é diferente, Penny? O chamado exige
a reprodução tanto para eles quanto para nós e você sempre se
preparou para este momento. Mesmo quando Dawson apareceu
você parecia tão animada em vê-lo, o que mudou??”

“Nada mudou, Babelyn. O passado sempre será um só,


então por que o futuro deveria ser diferente?”
Penélope, praticando filosofia? É, ela realmente não estava
nada, nada bem.

Confusa e sentindo calafrios de nervosismo, eu tentei sorrir


de um jeito tranquilizador.
“Ei, ei, não seja tão dura consigo mesma, Penny. Tudo isso é
uma mudança enorme para vocês duas, mas veja como a Rebecca
tem se transformado. Ela agora gosta de reggae e chás exóticos, e
não duvido que o Jackson logo adote uma obsessão por tratamentos
estéticos. Mudar não é ruim.”

Penélope virou o rosto bruscamente, me fuzilando com as


pupilas de agulha de sua forma feral.
“Quem você pensa que é para me dizer isso??” Ela gritou na
minha cara, expondo cada um dos seus dentes de navalha.

Eu me encolhi para trás, eletrizada pelo susto.


“P-Penny… Penélope, se acalma…” Eu estendi as mãos
diante do corpo, me protegendo. “Você é uma híbrida, se perder o
controle da sua forma feral…”
“A Rebecca é uma burra e uma idiota que fingiu se importar
com o que nós somos, para de repente virar outra pessoa!!” Ela
esbravejou com sua voz demoníaca. “Ou por que acha que ela cortou
o cabelo? Nós somos as gêmeas, aquela idiota não enxerga mais
isso?”
Meu coração parecia uma turbina. Aquilo era muito perigoso.
Sereias híbridas como a Penélope raramente mantinham o controle
de sua forma feral, eu não queria precisar lutar com ela.

“Vocês duas nasceram no mesmo dia, Penny, mas vocês são


pessoas diferentes. As duas sempre vão ter muito em comum, assim
como os gêmeos são muito parecidos entre si, mas não existem
duas pessoas iguais.”
“Não existem porque ela não quer!!” Penélope agarrou uma
das almofadas e dilacerou com as unhas como se fosse de papel.
Plumas encobriram todo o quarto. “Nós iríamos nos afastar e criar
nossos núcleos, mas tudo bem, porque uma sempre existiria dentro
da outra, idênticas em nossas perfeições. Mas se a Rebbie mudar…
Se a Rebbie mudar, então quem eu vou ser?”

Os olhos ferais da Penny brilharam em lágrimas e ela


começou a soluçar pesado. Ela se encolheu na pilha de plumas do
que restou de sua almofada e chorou desesperada, aos poucos
recuperando sua forma normal.
Por mais que eu detestasse a Penélope e tudo o que ela já
havia feito comigo, vê-la assim quase me fez chorar junto.

“Penny… escuta…”
“Não é justo, não é justo… nós deveríamos ser iguais… por
que só eu tenho essas memórias?”
“Que memórias, Penny? O que tá havendo com você?”

Penélope permaneceu embolada por alguns segundos, então


deu um longo suspiro e levantou da cama, já parecendo calma…
calma demais.
“Não preciso de uma segunda idiota fingindo se importar
comigo.” Ela abriu as portas do seu armário, que era tão rosa quanto
todas as outras coisas. Então ela mexeu nos fundos de uma
prateleira e tirou um conjunto vermelho com amarelo. “Você veio
pegar isto, não é mesmo?”

Eu olhei de perto e notei que era o uniforme de garçonete,


completo com o boné e até mesmo o crachá.
Percebendo o meu espanto, Penélope bufou como se
conversasse com uma retardada.

“Eu preciso de um tempo sozinha, Babelyn, mas não significa


que o Dawson não converse comigo por telepatia.” Ela empurrou
aquelas roupas no meu peito e me fez segurar. “Ele disse que um tal
primo dele estava agindo de forma suspeita e meteu uma pressão no
cara. Eu não entendi detalhes, mas o tal primo contou do complô
idiota de vocês.”
Ai, droga, eu não queria ter encrencado o Taimen. Será que
ele estava bem?

“E você vai simplesmente me entregar isso? Eu vou


recuperar a minha carta, sabia? E aí vocês não terão mais como me
manipular e me fazer de idiota.”
“Você já é uma idiota naturalmente, Babelyn.” Penélope
jogou-se em sua cama, toda deprimida e dramática. “Agora cai fora
daqui, tá bom? Do meu quarto e do Havaí, também.”
“Penny… eu não vou te esquecer, você sabe, né?”

“Claro que não vai, eu sou incrível e muito melhor do que


você, e meu peito não é chapado como uma prancha de surfe.”
Penélope riu do jeito debochado que era normal nela, o que me
aliviou um pouco. “Agora some daqui, da próxima vez que a gente se
ver, você será a sereia médica mais poderosa dos oceanos.”
Eu sorri e concordei com a cabeça, confiante.

“Prometo não decepcionar suas expectativas.”


E assim eu me despedi de Penélope, carregando nas mãos
o uniforme mais cafona de todos os tempos e também um pequeno
cartão branco que era a chave para todo o meu futuro.
Capítulo 15

Não foi difícil encontrar o Taimen. Ele era aquele pobre


homem-peixe se debatendo nas profundezas oceânicas, aprisionado
dentro de uma armadilha de caranguejos.

“Taimen? Ai, nossa.” Eu nadei rápido até ele e tentei


desarmar a portinhola. “Como? Quem fez isso??”
Claro que uma sereia da ciência podia deduzir o motivo
daquele ultraje, mas ver Taimen aprisionado daquele jeito me deixava
à beira de chutar alguma coisa, por mais tranquilo que ele mesmo
estivesse. Não era o tipo de tranquilidade de quem não queria me
preocupar, ele só parecia bem acostumado com situações assim.

“Não se p-preocupe comigo. Foi um d-d-descuido meu, meus


p-p-primos s-são Amalonas, então…”
“Você também é um Amalona, Taimen!” Eu vociferei, expondo
minhas presas ferais para arrebentar a grade de arame. “Por que
não enfrentou aqueles caras? Você não é menor do que eles, na
verdade…”

Eu corei e desta vez fui eu a gaguejar sílabas soltas.


Passado o pânico inicial, eu enfim notei o detalhe de que Taimen
estava despido. Aqueles bullies hippies certamente jogaram suas
roupas em alguma fenda de ouriços, mas aquele não era o ponto.
Taimen era… como dizer… um espécime de porte físico
considerável.
Quando notei eu estava simplesmente olhando para seus oito
gominhos bem definidos enquanto ele balançava a cauda
pateticamente, tentando ficar confortável no espaço muito pequeno e
cheio de carcaças.
“Ah, perdão.” Eu continuei a morder as grades e logo Taimen
era um tritão livre. No mesmo instante eu retornei à minha forma
aquática normal, não querendo ser vista na aparência monstruosa de
uma sereia feral.

Taimen espreguiçou sua cauda com alívio, fazendo-a cintilar


mesmo na pouca luz das profundezas. Suas escamas eram lindas e
na rara padronagem de seu clã: um degradê perfeito que começava
verde na cintura e terminava lilás na ponta da barbatana.
Após endireitar-se em uma posição normal, Taimen
massageou as marcas do engradado nos braços e sorriu, super
encabulado.

“N-n-n-não foi c-culpa do D-Dawson. Eu quem p-planejei


enganar sua p-p-p-predestinada então t-tá tudo bem.”
“Não tá tudo bem, Taimen! Olha pra você, não dá pra
entender uma sílaba do que está falando. Não pode deixar os outros
te aterrorizarem desse jeito!” Eu gritei, abanando minha cauda em
um gesto de irritação. “Se o Dawson estava sozinho, qual a sua
desculpa pra o deixar fazer isso? Você tem noção de que também é
um alfa?”

“S-s-s-sim, m-mas… m-m-mas eu….”

O sabor da água azedou com o profundo medo do Taimen, o


que era bem esquisito, porque eu não senti tanto pavor quando o
encontrei. Se aquele idiota não sentia medo ou raiva de ser enjaulado
que nem um cachorro malcomportado, então qual era a preocupação
dele?
“Ele te machucou?” Eu me aproximei para verificar. “Que
ódio, foi tudo culpa minha! Por que eu fui tão burra e te mandei
esperar no mar? Qualquer Amalona que se preze conseguiria
investigar outros tritões com o auxílio dos nossos sentidos sub-
aquáticos.”

Taimen permanecia encolhido, apavorado e triste até quase


chorar, a ponto de eu espiar por cima do ombro diversas vezes
achando que Dawson estava logo ali atrás, esperando para
incomodá-lo de novo. Mas ali só havia nós dois.
Eu pensei melhor na situação, e percebi que eu era uma
idiota.

“Quando eu mencionei qualquer Amalona que se preze eu


não estava te excluindo, Taimen. Existe um Amalona incrível dentro
de você, eu tenho certeza disso.”
Taimen forçou um sorriso, mas sob a água os seus
sentimentos eram um livro aberto. Ele ficou feliz com as minhas
palavras, e ao mesmo tempo triste, de um jeito diferente.

“Não p-precisa me consolar, eu sei que eu não sou. D-


desculpa por estragar tudo, foi um p-plano falho e eu acabei
revelando…”
“Seu plano não falhou, Taimen, na verdade foi a ideia
perfeita. O crachá e o uniforme estão escondidos nas pedras da
beirada. Deixei lá antes de vir ao seu encontro.”
Taimen sorriu só um pouquinho mais, finalmente conseguindo
me olhar nos olhos.
“Ah, era o mínimo que eu podia fazer, para compensar sobre
a b-biblioteca.” Ele disse, então começou a vasculhar a areia do
fundo.

“Você nem errou tanto assim, eu exagerei na minha reação.”


Eu respondi, sorrindo.
Espera aí, desde quando eu admitia meus erros com tanta
facilidade? Devia ser por pena daquele tritão histérico que precisava
urgentemente de terapia.

É, exceto que meu sentimento por ele não era exatamente


pena. E quando Taimen enfim achou seus óculos enterrados no fundo
e os ajeitou em seu rosto, eu me descobri sorrindo de novo.
“Nós p-perdemos muito tempo?” Perguntou Taimen.

Eu olhei para cima, onde a luz do mundo exterior ondulava


muito distante e com os suaves tons alaranjados do começo do
crepúsculo.
“O shopping da lanchonete fica aberto até de noite.” Eu nadei
de volta à praia, com Taimen me acompanhando ao lado. “Agora
poderia me contar o resto do seu plano? Roubar o armário com o
crachá vai ser fácil, mas qual a utilidade do uniforme?”

Taimen deu uma risadinha travessa e um pouco orgulhosa, e


eu fiquei confusa entre sorrir para aquela rara demonstração de
confiança, ou me preocupar sobre o que me aguardava.
Eu definitivamente devia ter escolhido me preocupar.
****

“Taimeeeen, isso é uma péssima ideia!” Eu resmunguei.

“É o plano perfeito.” Disse ele.


Ahh, uma sereia da ciência deveria ter previsto aquele
desfecho! Agora ali estava eu no banheiro do shopping, tentando não
olhar para aqueles espelhos gigantes ou eu morreria de vergonha.

Nada afetado pelo meu constrangimento, Taimen endireitou o


boné na minha cabeça, laçou o avental nas minhas costas e então
sorriu para mim através do reflexo.
“Ficou… convincente.” Ele coçou o queixo, pensativo.

Eu arrisquei olhar, e foi tão embaraçoso quanto das outras


vezes. Tá certo que eu não me importava com moda e alta costura,
mas aquela camiseta vermelha e barata e o avental amarelo-ovo não
tinham nada a ver comigo. Aliás, muita coisa não fazia sentido.
“Taimen, eu sou loira!” Eu mostrei a ele o crachá preso ao
avental, mais precisamente a foto da Penélope com uma expressão
de desgosto extremo. “Olha a diferença entre as nossas aparências,
eu nunca vou conseguir enganar o gerente! Eu nunca sequer preparei
um hambúrguer!”
“Não precisa fritar hambúrgueres. Se passar pela P-P-
Penélope é o caminho mais fácil até os armários do vestiário.” Ele
vasculhou a minha mochila sobre a bancada da pia, procurando
alguma coisa. “Você só vai esperar o gerente se distrair e… ahm…
eh… p-por que tem uma garrafa de óleo velho nas suas coisas?”
“É uma longa história.” Eu disse, muito encabulada e
querendo terminar logo com aquela bobagem. “Por que está
mexendo na minha mochila, afinal?”

Concentrado, Taimen bisbilhotou minhas roupas reserva e


enfim puxou aquilo que lhe interessava: duas bolas de meia.
Eu olhei pra ele completamente perdida. Uma sereia da
ciência jamais deveria perder uma linha de raciocínio, mas desde que
começou a relaxar na minha presença Taimen falava cada vez mais e
eu entendia cada vez menos.

Taimen me entregou o par de meias e mordiscou os lábios


em profunda timidez. Seria fofo, se não houvesse certo ar de
travessura. Ele estava se divertindo com aquilo, não estava?
“Para que eu vou usar essas… oh.” Eu afinei os olhos para
aquele par de bolinhas macias, chocada que o planejamento do
Taimen incluísse tantos detalhes.

Tentando manter a calma e não torcer o pescoço musculoso


daquela truta glorificada, eu simplesmente enfiei aquelas malditas
bolas de meia por baixo da camiseta e prendi sob o meu sutiã.
Ah, humilhação das humilhações. Enquanto eu me hipnotizava
no corpaço do Taimen ele apenas reparava no quanto eu era a
sereia mais despeitada dos oceanos.

Eu olhei meu reflexo novamente. Mesmo naquele uniforme


tenebroso eu ficava tão mais bonita com aquele artifício ridículo nos
peitos. Será que era esse tipo de orgulho que as gêmeas sentiam
sempre que olhavam para baixo? Dava pra entender o porquê delas
viverem diante de um espelho, e o porquê dos gêmeos as
idolatrarem como deusas.
“Ficou bom?” Eu perguntei, com vontade de chorar.

“Ahm… se p-permite minha opinião, ficou t-t-terrível.” Taimen


riu baixinho. “Deve enganar o gerente, mas você fica bem mais
bonita ao natural.”
Surpresa demais, eu me virei para o Taimen e analisei bem
sua expressão estúpida, quase oculta por baixo da franja enorme.
Não havia deboche algum naqueles lindos olhos bicolores. Ele ainda
parecia se divertir, mas sua diversão não era às minhas custas.
Aquele cara estava curtindo mesmo passar o dia comigo?

“Obrigada, Taimen.” Eu sorri para ele e guardei minhas


maquiagens na mochila.
No fim eu só tinha rímel e um simples lápis de olho, mas
Taimen ajudou a delinear longas linhas nas minhas pálpebras, então
eu quase parecia uma patricinha… do pescoço para cima, é claro. E
ignorando o boné.

Terminados os preparativos, eu entreguei a mochila para o


Taimen e deixei o banheiro de cabeça erguida e peito — peitões? —
estufado, pronta para arrasar como a melhor fritadora de bifes que o
Havaí já conhecera.
Capítulo 16

O gerente da lanchonete era um tiozinho bem baixinho e


gordo, com maionese no avental e o boné com a aba para trás. Ele
corria de um lado ao outro atrás do balcão, vistoriando o andamento
dos pedidos no horário mais lotado da lanchonete.

Ele passou o olho pelo meu crachá, apressado demais para


reparar em mim por mais de dez segundos.
“Penélope Makaira, atrasada de novo?” Ele pegou uma caixa
de alguma coisa e entregou para um dos funcionários, já fazendo um
gesto para que a faxineira limpasse o chão. “Dois dias de trabalho
para tirar semanas de licença, e vocês ainda encontram tempo de
pintar o cabelo? Onde está sua irmã? Temos pedidos atrasados!”

Eu espiei para trás, onde Taimen me assistia na fila com os


outros clientes. Ele me incentivou fazendo um sinal de positivo.
“Ahm… sim, senhor… senhor…” Eu li o crachá dele,
gaguejando tanto que eu me sentia o Taimen. “Senhor Charcoal. Já
vou assumir o caixa três.”

“Caixa, que caixa? Você quase chorou da última vez porque


as moedas eram muito sujas. Venha, novata, seu lugar é na prancha
de fritura.”
Oh, céus.
Eu fui para o fundo do restaurante, onde o senhor Charcoal
me entregou uma espátula.
“Francamente, se vocês não fossem filhas do proprietário
deste shopping, eu não teria essa paciência toda.” Ele correu de
volta aos clientes, todo suado e estressado. “Vai, vai. Qualquer coisa
leia os manuais na parede, eu tô velho demais pra treinar
adolescente.”

Todos os funcionários seguiram com suas atividades e eu


fiquei parada no meio daquela cozinha com cheiro de graxa e bacon,
perdida como uma boba.
Bem… melhor não perder tempo. Eu larguei a espátula em
uma mesa qualquer e corri pela porta dos fundos.

Aquela salinha era bem mais tranquila do que o caos no lado


de fora, era meio escura e com um vago fedor de suor e
desodorante velho. Havia alguns bancos, uma mesa com café e
biscoitos, e também um paredão de armários individuais.
Meus olhos se iluminaram com alegria e eu corri até lá. Era
muita sorte! E também não demorei a encontrar a etiqueta com o
nome da Penélope, era a única escrita em caneta cor-de-rosa, afinal.

Sentindo-me a melhor sereia ninja, eu soltei o crachá do


avental e deslizei o código de barras no cadeado. Após um clique
baixinho a porta rangeu e abriu, revelando um monte de maquiagens,
perfumes, escova e até secador de cabelo. Quem é que se
emperiquitava no vestiário de uma lanchonete??
Enfim, aquele monte de tralhas não me importava, e sim o
que havia encostado bem ao fundo: um retângulo branco e solitário
de papel.
Eu estendi a mão para pegar, mal controlando a minha
alegria. Era ela mesma, a minha preciosa carta de aprovação! Eu
podia reconhecer o logotipo dourado de Harvard, e até mesmo a
palavra aprovada aparecia em meio à pilha de bugigangas. Enfim,
vitória!

Com a ponta dos dedos eu toquei a maciez do papel… e


então alguém segurou o meu braço.
“Novata! Já está tirando outra folga?” O senhor Charcoal me
puxou para longe do armário. “Vocês duas têm alguma alergia a
trabalho? O senhor Gabriel criou vocês a leite com pera?”

“Pois fique sabendo que não, o senhor Gabriel nunca tentou


me envenenar, agradeço pela preocupação.” Eu respondi, tentando
agir naturalmente. “Já vou voltar para o serviço, só preciso de…”
“Quem precisa de alguma coisa são os clientes, agora faça
valer o seu salário mínimo e vá reabastecer nosso estoque de
nuggets de anchova. Não sei como tem gente que come aquela
porcaria, mas nós somos, de certa forma, um restaurante de praia
turística.”

Não, vocês são apenas um fast-food de shopping com


comida de última categoria. Espera, eu não podia responder isso,
não ainda.
“Sim, senhor.” Eu suspirei desanimada e voltei para a
cozinha. Mal sabia eu o quanto eu estava prestes a me ferrar.

Bastou uma fungada naquele ambiente oleoso e certo cheiro


adicional empinou minhas maria-chiquinhas.
Não, não, não, não podia ser. Eu corri até o balcão da frente
e todos os meus temores se provaram realidade. Eu conhecia
aqueles clientes! E um deles já estava discutindo com um atendente.
“Cara, na boa, esses nuggets demoram? A minha predest…
namorada está faminta.” Disse Jackson, debruçado no balcão ao
lado do Dawson. E então ele olhou para Taimen como se só então
tivesse notado sua presença, aquele patife. “Taimen, meu truta, mas
que coincidência. Também veio matar a larica? Te entendo, cara,
caçar nunca foi muito a sua onda, né não?”

Taimen gaguejou palavras incompreensíveis, murchando


contra a parede como um balão mergulhado em nitrogênio líquido.
“Não é que acertei meu palpite, primo?” Dawson sorriu
malvado e bateu a mão em seu ombro, imitando um gesto amigável,
mas com força demais. “Primeiro você admite que vai sacanear
minha predestinada, então nós conversamos de forma bem civilizada,
e você promete ficar na sua. E agora aqui estão os dois… e eu
reconheço a foto naquele crachá.”

Eu rosnei, furiosa com o quanto aqueles dois conseguiam


aterrorizar o Taimen. Não fazia sentido algum que um alfa fosse tão
submisso, mas se aqueles gêmeos conheciam esta fraqueza dele,
era um motivo a mais para não agirem como idiotas.
“Deixem o Taimen em paz, a Penélope me entregou isso de
boa vontade.” Eu falei, profundamente chateada.

Os dois olharam para mim e riram em deboche, nem


pareciam ser os gêmeos legais que eu tanto elogiei para todos.
“Que vergonha, Taimen, agora precisa que uma mulher te
defenda?” Dawson afagou o cabelo do Taimen, o fazendo se
encolher ainda mais.
“P-p-p-p-pe-perdão, D-Dawson, não vai se re-repetir.” A voz
do Taimen tremia tanto que ele parecia ter sentado em uma
britadeira.

Bem menos agressivo, mas parecendo concordar com


aquela implicância, Jackson apenas cruzou os braços e sorriu para a
cena, se divertindo.
“Taimen, Taimen… sua única obrigação era acompanhar esta
linda princesa em nossos encontros, para que ela não se sentisse
sobrando. Sereias devem resolver seus problemas entre si, sem a
interferência de um alfa enxerido demais.” Disse Dawson.

“Ma-mas… mas.. Ah… eh… eu… mas…” Taimen não


demonstrava a menor luta, seu olhar era o de alguém que sabia que
iria apanhar até perder o couro.
“Sabe o que é mais ridículo, Taimen?” Dawson beliscou a
bochecha dele e balançou, apavorando-o tanto que diversos clientes
pararam pra assistir. “Que você sempre foi assim, sempre prestativo
com a geral mesmo quando ninguém em Orona te aguenta. A
Babelyn aqui é uma princesa Makaira muito gente fina, mas ela só te
dá mole porque não tá ligada em quem você é.”

Meu coração acelerou. Do que raios Dawson estava


falando?
“Não coloquem palavras na minha boca, seus idiotas! Eu me
aproximo de quem eu quiser, então deixem o Taimen em paz!” Eu
rosnei.
Dawson pensou por um instante e acabou recuando.

“Que seja, que seja… Jamais seria nossa intenção


desagradar a filha do Digníssimo Oráculo-Rei.” Dawson deu as
costas e Jackson o acompanhou, mas antes de saírem ele espiou
Taimen por cima do ombro. “Se mexer com minha Penélope
novamente a coisa vai esquentar pro seu lado, trutinha. Um tolo com
sangue de traidor deveria conhecer seu lugar.”
Jackson afinou os olhos para o irmão, meio repreensivo, mas
escolheu não tomar nenhum lado e apenas foi embora com ele.

Mesmo quando os idiotas desapareceram Taimen


permaneceu congelado no mesmo canto, incapaz de me olhar nos
olhos.

“Ei, Taimen, o que o Dawson quis dizer com…”

“Como é, essa fila anda ou não anda?” Um dos clientes me


interrompeu.
Eu saltei com o susto e endireitei os ombros, nervosa.
Durante aquela breve discussão a fila triplicou de tamanho, se
estendendo até as mesas da praça de alimentação.

Que raiva, eu não queria atender aquele bando de humanos


mal-acostumados. Eu olhei de volta para Taimen na esperança de
que ele inventasse um plano, mas descobri que ele havia sumido.
“Taimen?” Eu fiquei na ponta dos pés e tentei encontrá-lo na
multidão, mas logo depois alguém agarrou o meu braço.
“Novata, pelo amor da madrugada, a senhorita sabe a
origem da palavra trabalho??” Perguntou o senhor Charcoal.
“Trabalho tem origem no latim tripalium, que significa ser
espancado por três bastões ao mesmo tempo.”

O senhor Charcoal empinou o canto do lábio e ficou me


olhando, perplexo.
“Ahm… enfim. Pelo visto o pedido dos nuggets foi cancelado
e a lanchonete já vai fechar. Por que não vai dar um passeio?” Ele
disse com tom de quem implorava para se livrar de mim.

A princípio eu me senti mal pelo senhor Charcoal, em


qualquer outra ocasião eu pediria desculpas e tentaria trabalhar com
alguma seriedade, mas a minha preocupação pelo Taimen falava
mais alto.
Após uma breve despedida eu retornei ao vestiário, troquei
para o meu vestido e guardei o uniforme no armário. Minha pressa
era tanta que eu quase me esqueci da minha carta, mas… sucesso!
Eu peguei a carta de aprovação de volta, dei um beijão no precioso
logotipo de Harvard e guardei na mochila.

Com a carta enfim de volta às mãos da dona, eu deixei a


praça de alimentação e também o shopping, o tempo todo me
perguntando onde Taimen poderia estar. Eu só esperava que o preço
por recuperar a minha carta não tivesse sido caro demais.
Capítulo 17

“Taimen? Taimen, onde você está?” Eu chamei por ele na


entrada do shopping.

Droga, como ele conseguiu sumir tão rápido? Alguém


baixinha como eu nunca o encontraria em meio à multidão, e meu
olfato também era inútil naquela enorme mistura de cheiros. Talvez
ele ainda estivesse dentro do shopping? Eu não fazia ideia.
Aah, que complicação! Eu não deveria me importar com um
quase-alfa que eu mal conhecia, mas aqueles gêmeos foram tão
horríveis. Eu nunca imaginei Jackson e Dawson acuando outro tritão
e se divertindo com o temor em seu olhar. E o que eles queriam dizer
com o que Taimen realmente era? Não importava o ângulo de
análise Taimen era um tritão comum, talvez medroso demais para um
alfa, mas havia nele um Amalona tão inteligente quanto qualquer
outro, ele só precisava acreditar nisso.

Uma gota pingou na minha cabeça e eu ergui meu olhar para


o céu acinzentado. Ah, perfeito, eu precisaria procurar o Taimen
embaixo da chuva.
“Taimen?” Eu corri para a praia, onde os banhistas se
apressavam em guardar suas coisas para ir embora. Será que ele
estava no mar? Improvável. “Ei, não me faça te procurar para
sempre! Não sei qual é esse segredo seu, mas não pode ser tão
ruim!”
Os humanos que passaram por mim me olharam como se eu
estivesse louca. Realmente, gritar para o nada era um método bem
ineficiente de encontrar alguém, até porque o chiado do vento
começava a aumentar, balançando os coqueiros com sua força.
Com o coração apertado e muitas dúvidas em minha mente,
eu corri para a mansão do irmão Dylan. Era bem mais distante que a
mansão do Doutor Michel, mas talvez com as gêmeas eu
encontrasse alguma resposta.

****

Eu cheguei ensopada. Minhas maria-chiquinhas escorriam


como duas minhocas por cima dos meus ombros e eu parecia um
gato afogado quando toquei a campainha do irmão Dylan. Uma
sereia não deveria se importar com um banho, mas o tecido do
vestido arranhava a minha pele e eu começava a temer uma
mudança de forma acidental.

O irmão Dylan logo abriu a porta e expandiu seus olhos ao


me ver.
“Babelyn, não é hora de estar na cama?” O irmão Dylan
apressou-se à lavanderia e voltou com uma toalha macia e seca, que
ele então me entregou.

“Não preciso dormir às dez da noite já faz anos, primeiro


irmão.” Eu esfreguei a toalha no cabelo e nos braços. “Diga-me, por
acaso avistou…”
Alguém chegou correndo e me abraçou tão forte que quase
me derrubou.
“Ai, Babelyn, Babelyn, é maravilhoso!!” Rebecca balançou
meus ombros com um sorriso de uma orelha a outra. “Papai Gabe
conversou com os rapazes e ele enfim se convenceu! Já podemos
sair em encontros quando bem desejarmos! Aaaaah, não é demais?”

Eu sorri para Rebecca, então me lembrei da cena na


lanchonete e meu coração amargurou. Os gêmeos com certeza eram
incríveis como predestinados, mas Rebecca merecia conhecer o
outro lado daqueles dois.
Eu quase abri a boca quando olhei adiante, para a sala, e
notei que não estávamos sozinhas. Lá estavam Gabriel, Penélope e
os gêmeos, que saboreavam biscoitos de algas enquanto
conversavam. O irmão Dylan também retornava para a mini-reunião
carregando uma bandeja de petiscos.

“Ahm… Isto é ótimo, Rebecca. Enfim um pouco de


privacidade para vocês.” Eu forcei um sorriso, não querendo murchar
sua imensa alegria.
“É incrível, não é mesmo? Ai, eu agradeço tanto por toda a
ajuda até agora… e sinto muito pela coisa com o Taimen, mas o
Jackson disse que já foi resolvido, então final feliz para todo mundo!”

“Como assim? O que foi resolvido?” Eu franzi a minha testa.


“Ué, você odiou aquele cara, então mandei o Jackson
dispensá-lo de volta à ilha Orona. É o mínimo que eu poderia fazer,
depois de toda a sua cooperação.” Rebecca deu pulinhos de alegria.
“Ahh, estou tão nervosa! Hoje ainda vou dormir em casa, não quero
que o papai Gabe se assuste com mudanças de rotina tão bruscas,
mas para amanhã o Jackson organizou grandes planos, apenas nós
quatro em seu enorme iate de dois quartos… era para ser uma
surpresa, mas não deu pra resistir investigar os pensamentos dele,
né? Ele e o Dawson até compraram óleos aromáticos que…”
Rebecca falou e falou, mas meu cérebro continuou bugado
na primeira parte.

Taimen voltou para a Ilha Orona sem sequer me dizer tchau?


Quer dizer, ele era apenas um quase-alfa chato e estranho que eu
conhecia há poucos dias, mas… poxa…
“Quando o Taimen partiu?” Eu interrompi seu falatório.

“Ué, sei lá. Hoje no fim da tarde?” Rebecca balançou os


ombros, fazendo tilintar sua vasta coleção de colares de miçanga.
“Enfim, como eu ia dizendo, a Penny continua meio pra baixo, mas o
Dawson a convenceu a passear conosco em um roteiro pelas…”

“Qual a direção da Ilha Orona, exatamente?” Eu perguntei,


aflita.

Jackson apareceu por trás da Rebecca e abraçou sua


cinturinha, beijando com afeto a curva do seu pescoço até lhe
arrepiar toda. Após uma breve troca de beijos ele sorriu para mim.
“A ilha dos Amalona fica lá por aquelas bandas.” Jackson
apontou com o braço para o sudoeste. “Não é tão perto, mas se a
minha predestinada quiser prolongar nossa lua de mel… eu posso lhe
apresentar o conforto do meu quarto de infância…”

“Oh, Jack, não seja bobinho. Meu maior desejo é ter nosso
próprio território.”
“E seu próprio ateliê de costura, já estou sabendo … meus
pais vão providenciar o melhor terreno para a construção do nosso
lar, e não haverá tecido no mundo que eu não consiga importar para
a nossa ilha. Quanto aos cavalos premiados…”
“Você pode ficar com dois deles, mas os outros permanecem
na casa dos seus pais, bem longe do lindo jardim que estou
planejando.”

“Tudo pela minha predestinada.”


Credo, que tipo de pessoa se interessava por miçangas e
cavalos premiados ao mesmo tempo? Jackson era um mistério que
não me interessava desvendar. Minha única preocupação era
Taimen, mas novamente eu estava sobrando.

Nos sofás a conversa continuava. Gabriel discutia algo com


Dawson e Penélope, que permaneciam abraçadinhos no sofá da
frente. Se o súbito gesto de amor era fingimento ou não, eu não
dava a mínima, até porque a voz do Dawson me trazia náuseas.
“Nossa gratidão pela sua confiança será eterna, humano
Gabriel. É minha palavra de honra que Penélope viverá como a
sereia mais feliz de todos os mares. Nossa casa terá um lindo quintal
aberto com vista para o Grande Lago Orona, e muito espaço para
as crianças brincarem.”

Penélope se arrepiou com a palavra crianças, mas ninguém


pareceu notar.
“Eu preferia as minhas meninas morando aqui perto, mas não
posso segurá-las para sempre, não é mesmo?” A voz do humano
Gabriel continha tanta tristeza quanto alegria. “Se esta sua ilha é tão
bonita quanto vocês dizem, talvez seja uma boa escolha… mas elas
nunca viveram entre tritões, antes.”
“Os Amalonas da ilha Orona são um povo, digamos, com
maior afinidade à cultura humana. Temos eletricidade, internet e
outros caprichos, acredito que não será uma adaptação difícil.”
Dawson deu um beijinho no cabelo da Penélope, que permaneceu
dura como um poste. “Lógico que minha predestinada poderá mudar
de ideia se julgar melhor, e, caso contrário, o senhor será mais do
que bem vindo a nos visitar.”

“Os progenitores destes jovens são os governantes da Ilha


Orona, que também é muito bem servida de instalações militares.
Nossas filhas não poderiam criar sua prole em um ambiente mais
seguro e apropriado.” Explicou o irmão Dylan.
Gabriel bufou e fingiu não ouvi-lo, era óbvio que meu irmão
ainda dormiria no sofá por um tempinho.

“Meu filho Hian jamais teve contato com outros tritões na


infância, e hoje eu percebo o erro em desconsiderar metade da
natureza que ele sempre teve. Talvez se ele tivesse interagido mais
cedo com outros tritões, ele…” Gabriel se interrompeu e balançou a
cabeça, limpando os pensamentos. “Não se enganem, ainda tenho
vontade de expulsá-los a pauladas, mas se eu esperasse das minhas
filhas um comportamento totalmente humano, eu apenas estaria
repetindo os mesmos erros.”
“Sua compreensão é a nossa dádiva, humano Gabriel.” Disse
Dawson, todo pomposo e sem um pingo da moleza hippie de quando
agia naturalmente. “Conforme o desejo da minha predestinada e sua
irmã, nossas casas serão construídas lado a lado, então descanse
na certeza de que elas sempre terão o apoio uma da outra.”
“Foi um desejo da Rebecca, não tenho nada com isso.”
Bufou Penélope por entre os dentes.

“O que disse, filha?” Perguntou Gabriel.


“Disse que estou contando os dias para conhecer o meu
futuro lar. O Dawson e o Jackson criam lindos cavalos de
competição, e o Dawson me prometeu um dos brancos.”

“Correto, e eu não medirei esforços na construção de nossa


residência. Conforme a tradição, nossa primeira prole se fará antes
da próxima primavera, então há pressa com os preparativos.”
“Nada que a logística dos Amalona não consiga administrar.”
O irmão Dylan sorriu para acalmar o humano Gabriel, que não digeriu
nada bem a ideia da Penélope parindo em menos de um ano.
“Anime-se, meu predestinado, genros tritões possuem inúmeras
vantagens com relação aos genros humanos. Traições e divórcios
são um conceito inexistente, e eles são absolutamente férteis.”

“Dylan, não me faça quebrar o seu pescoço.” Gabriel disse


secamente.
Meu irmão travou a boca e correu para buscar algo na
cozinha. Provavelmente o vinho.

Chateada, eu tirei minha mochila, me joguei na poltrona e


aceitei o fato de que eu era a última prioridade de todos naquela
casa. Eu não culpava o meu irmão ou o Gabriel porque aquela nova
permissão estabelecia um marco sem retorno na vida de todo o
núcleo. Agora as gêmeas poderiam ir embora quando desejassem
para ter qualquer tipo de vida além do controle dos pais. Devia ser
assustador para todos os envolvidos.
Já os gêmeos eu não conseguia perdoar direito. Eles eram
maravilhosos com as meninas, mas nenhuma boa índole justificava
aquele bullying com o Taimen, alguém de seu próprio clã e de seu
próprio sangue.

Meu coração batia apertado só de imaginar que eu nunca


mais veria aquele gago medroso. Talvez com mais tempo eu pudesse
persegui-lo pelo oceano e ao menos conseguir explicações ou
qualquer desfecho, o que me fazia sentir como uma idiota. Por que
fui antecipar a minha viagem? Em apenas dois dias eu também iria
embora, para muito longe do Havaí e de Ilha dos Amalona.
Eu não queria adicionar ainda mais apreensão ao clima
pesado daquela casa, então resolvi pensar nas boas notícias.
Admirar a minha carta com certeza me animaria de novo, então eu
abri a mochila e a puxei de dentro de um livro, onde a mantive
protegida de qualquer amassão ou chuva.

Assim que eu abri a carta, para a minha surpresa, um


papelzinho escapou de dentro e ondulou até o chão. E ele com
certeza absoluta não estava ali quando eu verifiquei o documento
antes de guardá-lo.
Eu peguei o bilhete e assim que eu li o meu coração deu um
salto.

Encontre-me no topo do vulcão ao norte. — Taimen


O papel caiu das minhas mãos trêmulas e eu não acreditei
que pudesse existir tanto nervosismo dentro de mim. Pelo menos não
por um homem.
A chuva torrencial golpeava os vidros da praia particular e
castigava os telhados da casa. Não havia nenhum outro detalhe no
bilhete, será que Taimen se referia àquela mesma noite? Ninguém
seria louco de aguardar no topo de um vulcão inativo durante uma
tempestade, mas por que outro motivo Taimen não incluiria data ou
horário? E se ele estivesse me aguardando lá desde mais cedo? E
se entendesse a minha ausência como desprezo e fosse embora
para sempre?

Quando percebi, eu já estava na porta da cozinha passando


a mochila nos ombros.
“Irmão Dylan, eu preciso do seu carro.”

O irmão Dylan estava mesmo organizando taças e o vinho


em uma bandeja de prata.
“Desde quando você dirige, Babelyn?” Ele arqueou uma
sobrancelha.

“Eu joguei Mario Kart uma vez.” Eu respondi.

O irmão Dylan esfregou o queixo, pensativo.

“Hmm… o caminho daqui até o território do maculador é


bastante simples. As chaves estão no vaso da entrada.”
Yes! A melhor parte sobre o irmão Dylan era que ele era
absurdamente metódico com certas coisas e mega inconsequente
com outras.
“Muito obrigada, primeiro irmão! Boa sorte com esta reunião,
especialmente quando o humano Gabriel descobrir a média de filhos
de uma sereia.”
“Qual é a média de filhos de uma sereia?” O humano Gabriel
arregalou os olhos enquanto eu atravessava a sala às pressas.

Sem perder mais um minuto sequer eu entrei na Ferrari azul


do irmão Dylan, descobri como ligar o motor e acelerei pelas ruas
escuras e tempestuosas de Waikiki.
Capítulo 18

Dizer que eu apenas dirigi nos videogames era um certo


exagero. O Doutor Michel me ensinou diversos conceitos básicos,
tipo a diferença entre o freio e o acelerador, mas dirigir nunca me
interessou muito. Claro que eu estudei diversos manuais de mecânica
naquela vez em que o motor da van do senhor Alisson ferveu e eu
ajudei o Doutor a consertar, o que foi uma valiosa contribuição ao
meu intelecto, mas havia certa distância entre a teoria e a prática.

Considerando-se tudo, eu até que dirigia como uma rainha do


asfalto. O fato de que a tempestade intimidou os outros motoristas
também ajudava bastante, porque não havia em quem colidir
conforme eu dirigia rumo ao vulcão.
Por coincidência ou não, foi naquele vulcão que ocorreu o
show de Reggae dias antes. Lembrar da minha tarde com os pares
de gêmeos foi animador e também amargo, porque eu já não sabia o
que pensar. Por que os gêmeos eram tão honestamente bons com
todo mundo, menos com o Taimen? O que era este tal sangue de
traidor, que era capaz de antagonizar tritões de natureza tão nobre?

As rodas patinaram no cascalho conforme eu subia a estrada


rumo ao topo. Diferente da maioria dos vulcões do arquipélago
havaiano, aquele em particular era inativo, então nada de lava
incandescente, crateras no topo, nem nada do tipo. Para quem
olhasse por fora era apenas uma montanha comum, coberta de
grama verde e muita vegetação nativa, onde não se podia construir
nada além dos eventuais palcos para shows. Não era o melhor lugar
para se passar a noite durante um temporal, isso com certeza.
Se eu fosse menos idiota eu teria anotado o número do
Taimen, mas dizem que quem não tem cabeça tem pernas, ou, neste
caso, uma Ferrari de alto luxo e nenhum bom senso.

Durante todo o caminho ao topo não encontrei um único


carro, ninguém seria louco de acampar no topo de um vulcão naquela
chuva dos infernos, o que apenas atiçava meu nervosismo. Não havia
ninguém lá em cima para quem Taimen pudesse pedir socorro.
Após uma longa espiral de aflição até o cume, eu estacionei
o carro na paisagem familiar daquele evento hippie e desci do carro.

Meus pés descalços afundaram na grama ensopada e a


chuva logo me encharcou novamente. Filetes de água gelada
desciam pelo meu rosto e pingavam pelo meu queixo.
“Taimen?” Eu pisei devagar, tentando evitar as poças d’água
na escuridão quase completa. A luz dos faróis fazia brilhar as gotas
de chuva até desaparecer na escuridão da floresta adiante, sem
revelar nada além do camping agora deserto.

Aquele lugar me causava arrepios, mas eu fui valente e me


aventurei em direção à floresta, apurando ao máximo a minha
audição e o meu olfato de sereia. Não demorou muito para que um
cheiro familiar se destacasse em meio ao aroma de grama molhada.
Eu segui o rastro sutil daquele cheiro e então avistei alguém
caído no começo da floresta onde a luz dos faróis mal alcançava. Ele
abanava sua cauda pateticamente, encharcado da cabeça aos pés.
“Ah, Taimen!” Eu corri até ele com o coração a mil. Por que
ele estava caído e tremendo tanto? O que eram aqueles
equipamentos ao lado dele?
Taimen ergueu o rosto e surpreendeu-se por me ver. Ele
estendeu a mão me mandando parar.

“B-Babelyn, n-n-não… n-não v-ven…” Exclamou ele.


“Aaaah!!”

Aconteceu muito rápido. Na minha pressa em ajudar o


Taimen eu me descuidei e meti o pé em uma poça particularmente
funda. A minha forma humana dissolveu-se no mesmo instante e eu
despenquei para frente, deslizando pela grama molhada como se
fosse um tobogã.
Taimen tentou me amparar, mas eu colidi nele como um trem
desgovernado. Nossas caudas se enroscaram e nós batemos contra
a árvore logo atrás dele.

Ouuch… na verdade nem doía tanto, mas a minha cabeça


rodopiava. Taimen também parecia atordoado, mas era um alívio
percebê-lo bem… quer dizer, exceto pela imensa tristeza em seu
olhar.
“Você se machucou muito?” Perguntou ele.

Eu tentei responder, mas então notei nossas caudas ainda


enroscadas, nossas escamas se esfregando umas nas outras, e
encabulei demais para responder.
Taimen entendeu errado o meu silêncio, porque seus olhos
bicolores cintilaram e misturaram lágrimas às gotas de chuva.
“Peço p-perdão. Eu pensei que você veria antes o bilhete e…
e t-também não previ o temporal apesar do céu nublado, sou um p-p-
péssimo Amalona.”
Eu desenrosquei as nossas caudas e toquei no rosto sempre
baixo do Taimen, querendo que ele olhasse nos meus olhos. A gente
permanecia na mesma posição em que caímos, Taimen sentado com
as costas naquela árvore e eu deitada sobre ele, sentindo o calor do
seu peito aquecer o meu.

Então eu notei o que eram aqueles equipamentos caídos


pela lama. Caixas de coleta, lanternas, rede de captura…
“Taimen, o que são estas coisas?” Eu perguntei, apesar de
ser uma pergunta tosca. Qualquer mulher da ciência reconheceria
equipamentos de coleta de insetos, especialmente eu.

“Ah, isso…” Taimen tentou esconder aquelas coisas atrás de


si mesmo, como se fosse possível. “Eu fui tão, tão burro… perdão,
de verdade… eu só desejava agradecê-la por me defender, mas a
chuva, este horário… não consigo nem recuperar minhas pernas
neste aguaceiro, errei t-t-tudo! Mas eu consegui pegar isto.”
“Isto o quê?” Eu perguntei.

Taimen hesitou um pouco, como se calculasse as minhas


possíveis reações e todas elas envolvessem eu arrancar sua cabeça
dos ombros. Era quase ofensivo ver sua confiança em mim regredir
sem grandes motivos, mas então ele pegou um dos potes e me
entregou.
A escuridão mal me permitia enxergar, então peguei uma
lanterna e acendi contra o plástico transparente. Dentro dele havia
um enorme besouro preto com pompons nas antenas e a cabeça
achatada.
“Um ateuchus lecontei.” Eu constatei, abismada. Era o maior
que eu já havia visto pessoalmente. “É um espécime perfeito.”

“Não p-precisa fingir se impressionar. Eu queria p-p-pegar


um daqueles gigantes que você mostrou no livro, mas achei apenas
este besouro rola-bosta. Não sirvo nem para capturar insetos, nada.”
Minha mente de cientista implorava por analisar cada patinha
daquele lindo besouro durante a noite inteira, mas a tristeza do
Taimen era mais importante.

“Ei, não acha que está exagerando por pouca coisa?” Eu


perguntei, insegura. Uma sereia da ciência possuía mil habilidades,
mas sensibilidade não era nenhuma delas. “Desculpa, eu sei como é
lidar com parentes insuportáveis, mas o Dawson agiu daquele jeito
apenas para te intimidar. Se você tremer, chorar e fugir estará
concedendo a vitória a ele.”
“E qual seria a novidade? Meus primos sempre foram os
melhores em t-tudo, os valorosos herdeiros que um dia governarão a
Ilha Orona. D-d-desde que meu núcleo fugiu de Egarikena a minha
vida é este in-in-inferno, e eu não consigo nem i-i-impressionar uma
sereia com uma caça de-decente.”

O meu rosto aqueceu. Então por isso estávamos nós dois


embaixo da chuva torrencial, literalmente atolados como duas baleias
na maré baixa? Porque Taimen quis se desculpar caçando um inseto
legal?
“Eu adoro besouros-hércules, Taimen, mas você jamais
encontraria um aqui na ilha, são espécimes asiáticos. Posso te
mostrar outros coleópteros gigantes quando o sol nascer, e estou
plenamente feliz com este bichinho, eles são meio raros.”
“Eles comem cocô.” Taimen torceu a boca.

“Uma sereia da ciência não se importa com essas coisas.


São as diferenças que tornam cada espécime fascinante e único.”
Taimen abraçou sua cauda degradê e sorriu para mim. O
ângulo baixo da lanterna o deixava com jeito de filme de terror, mas
ainda assim ele era doce. O olho esquerdo era verde como a grama
no verão, e o olho direito mais lilás do que as violetas da primavera.
Eu descobri que gostava de como o sua franja empinava sobre os
aros dos óculos, ocultando a beleza de sua expressão como se
fosse uma cortina cor-de-mel.

Eu saí de cima do Taimen e tentei recuperar as pernas, mas


era inútil. Enquanto a chuva não passasse a minha única escolha era
ficar ali, pensando besteiras inapropriadas que eu nem acreditava
estarem surgindo na minha mente.
Sentando sobre a minha barbatana, eu me perguntei se
deveria questioná-lo sobre mais cedo. O problema de ter um QI
muito acima da média era nunca saber se eu me importava com a
pessoa, ou se apenas buscava saciar minha curiosidade infinita.
Provavelmente era uma mistura dos dois, porque Taimen só podia
estar lembrando alguma coisa errada. Egarikena era a capital de
todos os tritões, governada pelos meus estimados pais. Papai
Aurelian jamais expulsaria tritões de sua ilha, nem permitiria que
sofressem tormentos.
Encalhados em uma poça, no topo de um vulcão inativo e
sob o frio ventoso da madrugada. Dificilmente a nossa noite poderia
ficar mais desconfortável, então decidi criar coragem e perguntar.
“Taimen, quando o Dawson mencionou sangue de traidor, o
que ele quis dizer com isso?”

Ele expandiu os olhos assustado, quase em pânico. Com


certeza fugiria correndo se pudesse recuperar as pernas, mas então
ele percebeu algo na minha expressão e se acalmou um pouco,
erguendo seu olhar para o brilho das gotas contra o negro do céu.
“Significa p-p-precisamente isso. Os d-detalhes são longos e
desimportantes.”

“Bem, nós não iremos a lugar algum, por um tempo.” Eu


abanei a ponta da cauda para lembrá-lo do motivo.
Taimen suspirou, deprimido.

“Eu tenho esse irmão, certo? Yoshan Amalona, o nome dele.


Ele era o t-t-terceiro irmão do nosso núcleo, alguns anos mais velho
que eu, e a gente vivia feliz com nossos pais e irmãos mais velhos
nas galerias de Egarikena.”
“Então vocês viviam em Egarikena? Eu não me lembro de tê-
lo visto por lá.”

“Também não lembro de tê-la avistado, mas eu nunca fui


muito de explorar os mares, preferia aprender sobre a arte do nosso
núcleo com o Yoshan, que... P-p-perdão, estou contando tudo na
ordem errada. Eu era p-pequeno quando nos mudamos da Ilha
Orona, os talentos do meu pai ômega na fabricação de joias
atraíram a atenção do Oráculo-Rei, que prometeu o fornecimento de
metais e p-pedras preciosas se ele se tornasse o joalheiro oficial da
Coroa. Papai aceitou dando saltos de alegria e então partimos para
começar uma nova vida em Egarikena. E, nossa, a ilha Orona
possuía paisagens bonitas, mas Egarikena… Egarikena era um
sonho.”
Eu dei de ombros, jamais entenderia o que enxergavam de
tão incrível naquele lugar. Egarikena era só uma ilha com uma
montanha de cristal e umas florestas com cachoeiras. Nada se
comparava às colônias humanas com seus milhares de avanços
científicos, bibliotecas, laboratórios, conhecimento infinito ao alcance
de uma tela de celular.

“Se gostavam tanto de Egarikena, por que voltaram para a


Ilha Orona?”
“Porque, bem… é como o D-Dawson insinuou. Certas
coisas… saíram dos planos.”

Taimen se abraçou e estremeceu, olhando para a escuridão


do céu e deixando que a chuva acertasse o seu rosto. Se era
simples timidez ou se ele estava disfarçando as próprias lágrimas,
era difícil dizer.
Meu coração batia apertado pela comoção em sua voz e
pelo esforço do Taimen em manter a firmeza nas palavras, querendo
ser ouvido e querendo ser entendido.

“P-perdão, perdão, me d-distraí.” Gaguejou ele, voltando a


me olhar através dos óculos espessos e da franja caída. “Esta parte
da história… como dizer… é nublada. Foi m-m-muito difícil para os
meus pais e eu era o último filhote do clã. Eles não p-p-podiam
chorar na minha frente, e eu t-t-t-tam-também não p-p-podia p-p-
p…”
Eu esfreguei os ombros gelados do Taimen, assustada com
o quanto ele tremia. Seu olhar não parecia focar em mim, sua mente
travou em algum lugar horrível de suas memórias.

“Ei, ei, não precisa contar, se não quiser. Está tudo bem.” Eu
disse a ele.
“Foi horrível.” Ele soluçou e relaxou os músculos, aceitando o
meu toque. “Em um momento o meu irmão está despertando e
partindo empolgado, rumo ao encontro com seu ômega, e no instante
seguinte ele está de volta, ajoelhado no pátio de execução. Meus
pais e eu imploramos de joelhos por misericórdia, mas o Oráculo-Rei
mantinha-se inflexível. Meu irmão Yoshan havia assassinado d-d-dois
tritões, disse o Oráculo, mas eu sabia que era mentira. O meu irmão
era bom e justo, ele nunca…”

Eu estendi a minha mão, ordenando que Taimen calasse a


boca.
“Espera aí, que história é essa? Pensei que estivesse sendo
honesto comigo, Taimen, e agora você está dizendo que meu pai
mentiu? Ele é o Oráculo do nosso povo e ninguém é mais sábio e
justo do que ele, espera mesmo que eu vá acreditar nisso??” O meu
sangue ferveu em pura indignação. “Pode ser complicado aceitar que
seu irmão cometeu um crime, mas não acuse o meu pai de mentiroso
para se sentir melhor.”

Os olhos do Taimen tremularam na direção dos meus e algo


mudou em sua expressão. Ele sofria, e não apenas por se lembrar
do passado. Sua alma queimava de decepção e mágoa com a minha
resposta.
Que ódio, por que eu me sentia tão mal? Ali estava eu,
encalhada no quinto dos infernos porque aquele idiota decidiu caçar
insetos para me agradar, e eu ainda precisava ouvir mentiras
estúpidas! E se os gêmeos estivessem com a razão desde o
começo? E se Taimen fosse mesmo um tritão indigno e ardiloso? Eu
não queria acreditar naquilo, mas se Taimen dizia a verdade então
quem estaria mentindo?

“Desculpa, Taimen, eu não quis duvidar de você, é só que…


Eu sei que nossas leis envolvem torturas e pena de morte, mas eu
nunca vi meu pai aplicando este tipo de lei então é difícil imaginá-lo
executando alguém. Deve ser horrível perder um irmão desta forma.”
“Meu irmão não foi morto. O Oráculo apenas p-prendeu
Yoshan no subsolo, mas qualquer Amalona com meio cérebro p-
percebia as intenções dele. O Oráculo pretendia executar o irmão
Yoshan longe dos olhos dos outros Amalonas, que notavam o
absurdo em condenar um jovem honesto e sem histórico de violência.
Bastava apenas um suposto suicídio para o Oráculo livrar-se do
problema sem queimar sua reputação.”

Eu ericei meus dentes e rosnei, horrorizada com as mentiras


daquele idiota. Como ele se atrevia a pensar estas barbaridades??
Papai Arian talvez tenha sido relapso como pai, mas como
governante ele ganhou uma guerra, salvou o nosso povo e unificou
todas as colônias de tritões em um único e glorioso império, que se
espalhava por diversas colônias nos mares quentes. Ele trouxe
esperança e dignidade a todos os tritões e sereias, e agora Taimen
queria que eu acreditasse que ele executava tritões inocentes?
Meus instintos afloraram. Com os olhos finos e os dentes
afiados eu rosnei baixinho, alertando Taimen que também ativasse
sua forma feral se quisesse ter chance de sair inteiro. Mas ele
permaneceu quieto e triste, pouco surpreso com a minha
agressividade e meu desejo de defender a honra dos meus pais. Só
então eu percebi que este era o normal na vida dele. Taimen cresceu
sendo atacado por tudo e todos.

Eu desmanchei a minha forma feral e respirei fundo, tentando


me acalmar. Uma sereia comum destroçaria qualquer um que
insultasse o seu núcleo ou o Oráculo, e Taimen conseguiu fazer as
duas coisas ao mesmo tempo. Mas eu não era uma sereia comum,
eu era uma sereia da ciência.
“Por que está me contando isso, Taimen? Eu te respeitei e
acreditei que existia um cara legal dentro de você, qual o sentido em
me contar uma mentira tão grande?”

“P-p-porque você é inteligente, a sereia mais esperta que já


conheci.” Ele me disse sério e sem hesitar. “Você sabe que não é
mentira.”
Que absurdo! Ele continuava insistindo nesta bobabem! Meu
pai nunca executaria um tritão inocente! Este tal de Yoshan era um
assassino e Taimen recusava-se a aceitar que a justiça foi feita,
apenas isso!

Mas… mas e se fosse verdade?


“O que aconteceu depois?” Eu perguntei, com o coração
quase escapando do peito.
“Meu irmão era bondoso, popular e justo com todos. Ele
conseguiu que um amigo o ajudasse e então fugiu. Ele e seu
predestinado permanecem desaparecidos desde então.”

Eu franzi a testa.
“Então, se eu entendi bem, o seu irmão Yoshan realmente
matou dois tritões. Talvez ele tenha tido bons motivos ou não, mas
um assassino não é um traidor.”

“S-s-sim… ah.. Pois então…” Taimen gaguejou, perdendo a


pouca confiança que tinha. “Quando o Oráculo-Rei soube da fuga ele
mandou todos os soldados em perseguição, mas o Yoshan
conseguiu desaparecer, entende? Após alguns dias o Oráculo já não
conseguia detectá-lo com seus poderes, e ele pode rastrear
qualquer tritão ou sereia nos mares quentes, então… ahm…”
Eu pensei um pouco e abri a boca, chocada.

“Será possível? O seu irmão fugiu para os mares gelados?


Mas é território inimigo! Apenas selkies vivem por lá!”
Taimen engoliu amargo e não disse nada, mas eu
praticamente podia ler os seus pensamentos.

Se a história fosse verdade mesmo, e Yoshan escapara com


o predestinado para os mares de gelo, então só havia duas
possibilidades: ou Yoshan foi encontrado e morto pelos inimigos, o
que era o mais provável, ou então vivia seguro com os inimigos do
nosso povo. De uma forma ou de outra, Taimen podia considerá-lo
morto. Nenhum tritão aliado a selkies era digno de qualquer perdão.
Mais uma vez o meu coração se dividiu. A nobreza do meu
sangue de Makaira gritava para que eu castigasse Taimen por
tamanha afronta, que eu o denunciasse para que a justiça fosse
feita… e ao mesmo tempo a minha mente rodopiava, ciente da falta
de lógica no meu coração.
Taimen não era burro, então por que contaria tal história para
a filha do Oráculo? Ele queria tanto assim ser denunciado e
açoitado? Ou… ou ele acreditava tanto em mim que meu parentesco
com os reis não lhe importava?

Um irmão assassino, e ainda assim injustamente condenado.


Um complô, uma fuga e uma traição imperdoável. Eu já podia
visualizar Taimen confiando sua história aos primos e manchando
para sempre a sua reputação, e ainda assim ele tentava de novo ser
ouvido. Taimen preferia perder a paz e a dignidade do que viver o
que, para ele, era uma mentira.
E se eu não tentasse acreditar nele, eu não seria melhor que
aqueles hippies arrogantes.

“Conta tudo desde o começo, Taimen, cada detalhe que


conseguir lembrar.” Eu pedi, com o coração quase escapando da
boca.
Apesar do jeitão acuado, Taimen transparecia a vasta
inteligência de um Amalona. Mesmo me conhecendo há tão pouco
tempo ele reconheceu em mim o alguém que ele mais precisava:
alguém que enxergaria por baixo de qualquer máscara até encontrar
a verdadeira versão dos fatos.
Medroso e assustado? Com certeza, mas covarde? Nem em
um milhão de anos. E foi com esta estranha mistura de injúria e
respeito que eu ouvi, palavra por palavra, uma das histórias mais
surpreendentes de toda a minha vida.
Capítulo 19

As gotas na copa da árvore pingavam pesadas sobre as


nossas cabeças e o vento zunia baixinho até se tornar uma suave
brisa. A tempestade acalmou um pouco e o rosado do alvorecer
começava a surgir no horizonte.

Durante toda a noite Taimen me contou sua história, triste,


porém muito calmo, como se estivéssemos aninhados em um
confortável pufe diante da lareira. Era surreal demais para ser
verdade, mas, ao mesmo tempo, ninguém conseguiria inventar algo
tão absurdo.
“Então deixa ver se eu entendi. Na mesma noite em que seu
irmão foi preso a casa de vocês foi destruída por tritões vingativos?”

“S-sim… era uma residência espaçosa, no melhor setor das


galerias submersas. Todas as joias do atelier do papai, os móveis…
tudo foi saqueado ou destruído. Meus p-p-pais trancaram-se comigo
no cômodo dos fundos, não sei se teriam nos machucado.”
“E qual é a lógica? Seu irmão cometeu um crime, não vocês!
Os idiotas deveriam ser punidos pelas mesmas leis que puniram o
Yoshan!”

“Nós também pensamos nisso, que a qualquer momento os


soldados surgiriam ao nosso resgate, mas durante horas nós
ouvimos insultos e coisas quebrando sem que ninguém fizesse nada
a respeito. Acho que eles sabiam que não haveria p-punição. Da
noite para o dia o nosso humilde núcleo tornou-se o sangue daquele
assassino degenerado. E isto foi antes mesmo do Yoshan buscar
asilo nos s-selkies.”
“Seu irmão não buscou asilo! Seu irmão traiu nossa raça
para unir-se a inimigos perigosos!” Eu exclamei por reflexo e logo
baixei o tom de voz. Meu estômago embrulhava, queimando de
frustração e angústia. “Vocês deveriam ter procurado a ajuda dos
soldados ao invés de fugir. O meu pai não deixaria barato uma
violência tão sem sentido.”

“Não foi apenas o meu núcleo. Todos os Amalona de


Egarikena foram atacados, humilhados e expulsos de seus
territórios. Era como se… como se os vândalos tivessem sido
instruídos a isso... como se alguém, por medo da inteligência do
nosso clã, quisesse impedir uma rebelião após a execução do
Yoshan.”
“Está insinuando que o meu pai Aurelian mandou a população
expulsar todos os Amalona da ilha?”

“Um Amalona não acusa sem provas, mas… o único


Amalona que permaneceu em Egarikena foi o meu primo Édrilan,
predestinado do sexto príncipe Moyren. A p-padaria dele foi
destruída até não restar um tijolo sobre o outro, mas ele foi poupado
de qualquer retaliação. É uma grande coincidência, não acha?”
Taimen alisou para o lado o cabelo encharcado e então olhou fundo
nos meus olhos. “Seja lá quem orquestrou aquela perseguição, ele
não queria prejudicar um dos filhos do Oráculo.”
Meu coração acelerou. Moyren e Édrilan cuidaram de mim
por longos anos, eles eram doces e carinhosos, nunca me trataram
como se eu fosse menos que seus próprios filhotes. Era um alívio
saber que eles foram poupados, mas também fervia o meu sangue
imaginar o perigo e o medo deles, enquanto que todos os Amalonas
de Egarikena sofriam pelo crime de um só tritão.
Papai Aurelian nunca planejaria uma trama tão cruel… certo?

“Quantos Amalonas precisaram fugir naquela noite?” Eu


perguntei.
“Vários, quase todos. Nós escapamos apenas com as
roupas do corpo, sob gritos de ódio e a promessa de que seríamos
perseguidos e mortos. Os tritões do clã Amalona são menores e
pouco fortes, um combate corpo-a-corpo seria o nosso fim. Quando
o Oráculo apareceria para nos salvar? E por que havia soldados
reais entre os vândalos?”

Eu… eu não sabia o que responder. Que tipo de gente


expulsaria um clã inteiro de seus lares? Especialmente um clã nobre
e honesto como os Amalona? E tudo isso por medo… como se a
pessoa soubesse que a prisão e execução de Yoshan seria
interpretada como um erro.
O clã Amalona era distinto por muitos motivos. Eles eram
inteligentes, muito espertos, capazes de arquitetar estratégias
complicadas para qualquer problema. Devido ao seu talento e a
pouca proeza no combate corporal, a maioria dos Amalona
trabalhava como informantes e espiões a serviço dos meus pais.
Diziam que todos os Amalonas repassavam seus conhecimentos
entre si através das ondas do mar e que, portanto, todos eles eram
igualmente brilhantes e detentores das mesmas informações. O
segredo de um era o segredo de todos, e o papai Aurelian sabia
disso quando aprisionou Yoshan.
Mesmo compartilhando entre si tudo o que aprendiam,
Amalonas não sabiam de tudo. Havia algum segredo a mais, que
Yoshan descobriu durante sua viagem de encontro ao ômega. Taimen
não imaginava qual descoberta poderia ser tão revoltante a ponto de
Yoshan gritar e insultar o Oráculo na praça de execução, mas era
uma verdade pela qual Yoshan estava disposto a morrer.

Um assassino com todo o conhecimento existente sobre os


funcionamentos do reino e que acabou por descobrir o que não
devia… Yoshan não foi condenado apenas pelos assassinatos, mas
também pelos segredos que pretendia contar.
“Então vocês fugiram e dias depois Yoshan conseguiu
escapar. Não acha que têm peças faltando, nesta sua mentira? Se
Yoshan escapou pelo mar, ele teve tempo de sobra para repassar
através das ondas o tal segredo que ele descobriu.”

“E quem disse que ele não repassou?” Perguntou Taimen.


Meu coração saltou. Era um blefe. Não podia ser verdade,
porque não existia segredo algum.

“O que Yoshan revelou a vocês?”


Taimen deu uma risadinha triste, certamente voltando ao
passado. Seja lá o que Yoshan contou aos Amalonas, deve ter sido a
última vez que Taimen ouviu a voz do irmão.

“Não foi uma revelação, exatamente, foi mais tipo… um


enigma, eu acho? Apenas sangue tornará visível as cordas nos
braços das marionetes. Foi isso o que todos os Amalona ouviram
naquela noite, em mensagens trazidas pelas águas.”
“E o que isso significa?”

“Ainda é um imenso t-t-tabu discutir o assunto com outros


Amalonas, então se alguém descobriu, é impossível confirmar.”
Sangue… marionetes… o que significava? Um arrepio
desceu pela minha espinha e eu senti que, cedo ou tarde, todos nós
acabaríamos por descobrir.

O canto de um passarinho me distraiu brevemente. O sol já


brilhava no horizonte distante, através das frestas entre as nuvens
que se dissipavam.
Eu abanei minha cauda coberta de lama e pedaços de
capim, testando se conseguiria recuperar as pernas e me levantar.
Nada ainda, mas com o fim da chuva era apenas uma questão de
tempo.

“Para um clã super inteligente, Amalonas são bem idiotas.”


Eu disse, não evitando espiar para o peito do Taimen. Tanta água
deixou sua camisa muito, muito transparente, mas ele não pareceu
notar. “Então eles te desprezam por puro ressentimento? Porque as
atitudes do seu irmão causaram a expulsão de todo o clã?”
Eu nem acreditava nas minhas próprias palavras, quando foi
que eu mesma passei a acreditar no Taimen? E para aumentar o
meu nervosismo, Taimen concordou com a cabeça e sorriu
discretamente, tão deprimido e ao mesmo tempo feliz que eu o
ouvisse.
“Qualquer Amalona em nado nos mares quentes pôde ouvir
as palavras do Yoshan antes de seu sumiço no t-território inimigo. A
maioria considerou uma ameaça e alguns acreditaram ser um tipo de
código. Todos decidiram em consenso jamais comentar o caso, em
respeito ao Digníssimo Oráculo-Rei, mas eu e meus pais jamais nos
dobraríamos após uma injustiça tão grande. Uma coisa levou a outra,
e hoje todos os Amalonas desconfiam de nós e nos consideram
inferiores, Amalonas renegados e com sangue de traidor.”
Eu entreabri os lábios, pensando no que dizer, mas o que
poderia ser dito? Eu me considerava uma sereia inteligente, mas
tudo o que Taimen contou era novidade para mim, e nem mesmo o
irmão Dylan devia conhecer esta história.

Pensar no irmão Dylan acelerou meu peito. E se fosse ele a


ser acusado, condenado, forçado a fugir? Nossa relação fraternal
nunca foi muito afetuosa, mas o primogênito ocupava um espaço
imenso no meu coração. Dylan me tirou de Egarikena, apresentou ao
médico que eu tanto idolatrava e fez todo o possível para facilitar a
minha estadia entre os humanos, quando tantos outros tritões
preocupavam-se com a reprodução e nada mais.
Se alguém cometesse uma injustiça com o irmão Dylan eu
com certeza não me calaria, mesmo que o mundo se jogasse contra
mim. E ainda assim eu me recusava a ver papai Aurelian como o
vilão daquela história.

“B-Babelyn, você…” Taimen mordiscou o lábio e olhou para a


própria cauda, inseguro. “…você acredita em mim?”
Podia ser loucura, mas eu abri a boca para responder que
sim, eu acreditava. Só que no mesmo instante o barulho de um motor
ecoou ao longe e nós dois saltamos com o susto.
“Vem vindo alguém!” Taimen agarrou meu braço e tentou nos
esconder atrás das árvores, mas nossos corpos molhados
escorregaram um no outro e nós deslizamos pela lama como duas
moreias recém-pescadas. Cada tentativa do Taimen de nos levantar
causava um acidente novo, até que, em certo ponto, nós dois
rolamos barranco abaixo.

“Aaaaah! Taimen, por quê?” Eu gritei, tentando me segurar


no barranco escorregadio. Eu nunca fui uma sereia muito graciosa,
mas aquilo era ridículo.
Por algum milagre nós não batemos em nenhuma árvore pelo
caminho. Taimen foi o primeiro a acertar o chão e eu despenquei em
cima dele, enterrando a cara em sua barriga musculosa.

Ai, pelos sete oceanos, a falta de coordenação do Taimen


merecia ser estudada. Eu sentei ao lado dele e percebi com alívio
que minhas pernas estavam de volta… e tão cobertas de grama e
folhas que eu parecia um arbusto.
“D-d-d-desculpa, vinha vindo um c-c-carro e eu… e eu…”
Taimen sentou rápido e esfregou as mãos no meu rosto enlameado.
“P-peço perdão, eu não quis, eu… eu só tentei…”

Eu tentei não rir, mas acabou escapando. Taimen estava tão


engraçado coberto de lama e capim. Seus óculos haviam
desaparecido e o cabelo empinou para o alto como um moicano, ele
parecia um supervilão das histórias em quadrinhos.
Quando percebeu a minha risada, Taimen surtou de vez. Eu
não sabia o que se passava na cabeça dele durante essas crises
loucas de paranoia, mas sabia uma coisa…
“Eu acredito em você.” Eu disse, segurando suas mãos no
meu rosto. “Sinto muito pelo seu irmão e por tudo o que vocês
sofreram, eu nem imagino o quanto deve ser dolorido.”

Minhas palavras acalmaram o piti nervoso do Taimen, mas


era óbvio em seu olhar submisso o quanto compreensão não fazia
parte de sua rotina.
“B… Babelyn… ah… como dizer…” Ele gaguejou, muito
tímido e desviando o olhar de mim. Como ele podia ser tão bonito,
mesmo coberto de plantas?

“Pode falar o que quiser, Taimen, e eu vou ouvir.”


“Eu… ah… ahn… seu… o seu v… vestido…”

Com uma sobrancelha arqueada, eu desci o olhar e notei o


meu vestido todo empinado e torto, mostrando demais da minha
parte de cima e de baixo também.
“Ahh!!” Eu gritei, me levantando num salto e endireitando o
tecido grudento com toda a pressa. Eu era um desastre, um
completo, completo desastre.

Desta vez foi o Taimen quem riu. Ele também se levantou,


bateu o excesso de lama das roupas e me estendeu sua mão.
“Acho melhor a gente buscar nossas coisas.” Disse ele.
Um pouco mais calma, mas ainda mortalmente encabulada,
eu sorri e lhe entreguei a minha mão.
“Sim, devemos nos apressar. Logo o irmão Dylan vai sentir
falta do carro e nós temos pouco tempo para planejar.” Eu segurei
sua mão — bem maior e mais firme do que eu previa — e então
segui pela trilha de volta ao topo.
“Planejar o quê? Perguntou Taimen, desconfiado.

“Não é óbvio?” Eu o espiei por cima do ombro com um


sorriso maroto nos lábios. “Vamos nos vingar daqueles gêmeos
babacas, é óbvio!”
“O quê? M-m-mas eles são os f-f-filhotes do governante da
Ilha Orona. Eles são im-importantes e…”

“E também são grosseiros e idiotas com quem não merece.


Relaxa, Taimen. Nós sobrevivemos a uma noite sob um temporal e
deslizamos barranco abaixo sem grandes acidentes. Nós somos, sei
lá, imortais?”
“É…” Taimen riu, ainda meio inseguro. “O que poderia ser
mais tenso do que isso?”
Capítulo 20

O céu já estava azulado quando chegamos em nosso


destino: o grande e lindo cais de Waikiki. Muitos veleiros e iates
luxuosos estavam distribuídos ao longo de passarelas de madeira,
incluindo os barcos do meu irmão e do Doutor Michel. Muitas
lembranças divertidas voltaram à minha mente, envolvendo pescarias
e festas em alto-mar com os humanos e meu irmão.

Desta vez, porém, não estávamos ali para embarcar para


algum churrasco ou aniversário em alto-mar. Eu desci do carro já
analisando o ar com o meu olfato, e Taimen abriu a porta do
acompanhante logo depois.
“N-não creio que e-e-estou vivo. Como sobrevivemos? Este é
o m-mundo real?” Taimen cambaleou para fora da Ferrari, tão
histérico que não conseguia fechar as mãos ou dobrar os joelhos.

Eu bati a porta e me espreguicei, suspirando para tanto


exagero.
“Ei, eu não dirijo tão mal assim! As ruas é que são muito
estreitas!” Eu contornei até o lado do passageiro para investigar os
arranhões na lataria. “É só passar uma tinta e vai ficar como novo, o
irmão Dylan tá precisando mesmo reformar este carro velho.”

“Da p-p-próxima vez e-e-eu d-dirijo, ok?”


“Bem, se você tem carteira de motorista, a culpa é sua por
não me contar.” Eu dei de ombros e abri a mala, de onde peguei a
minha mochila e verifiquei se meu besouro ainda estava bem em seu
frasco. “Espere aí, Cocô, temos um plano maligno para realizar.”
“Você chamou seu besouro de Cocô?” Taimen me seguiu em
direção às guaritas de acesso ao cais. “P-porque estamos aqui,
afinal? A gente nem dormiu, meus primos devem ter percebido que
não voltei para o hotel.”

“Não importa, é até melhor que eles fiquem desconfiados.


Vai deixar tudo ainda mais divertido quando eles descobrirem.” Eu
mostrei minha carteirinha de sócia ao rapaz da guarita, que autorizou
nossa entrada.
“Descobrirem o quê?” Taimen me seguiu tropeçando, todo
nervoso e atrapalhado, estranhando o motivo de eu estar com a
minha mochila nas costas.

“Você é um Amalona, Taimen, pode descobrir sozinho.”


Taimen resmungou mais algumas coisas, mas eu o deixei pra
lá e me concentrei no meu olfato. Em meio ao cheiro forte de
maresia e madeira úmida havia uma infinidade de rastros de
humanos, gatos e gaivotas. Localizar o barco certo seria difícil, mas
o cheiro de alfa era distinto o bastante para que houvesse
esperança.

Muito concentrada, eu empinei meu nariz de sereia e


atravessei as palafitas estreitas, disposta a farejar cada uma
daquelas lanchas até encontrar o cheiro daqueles dois babacas.
“Ei, Babelyn…” Disse Taimen.
“Agora não, Taimen. Estou tentando encontrar a lancha dos
seus primos.”
“Mas…”

“Shh… estou no rastro certo. O olfato de uma sereia é


insuperável, eles estão por aqui…”
“Ahm…”

Eu continuei minha busca intensa, passando pelos caminhos


estreitos e farejando até o nariz quase doer. Taimen podia ser um
Amalona, mas sereias em geral possuíam melhor olfato que nossa
contraparte masculina, então eu queria exibir meus talentos.
“É nesta passarela aqui.” Eu apontei adiante, onde dúzias de
lanchas e iates ondulavam nas águas calmas, amarrados em postes
de madeira. Pelo visto Taimen havia se perdido, então eu continuei
seguindo os rastros, e… acertei a cara no peito de alguém.

Ahh, que vergonha! Eu massageei o meu nariz e me preparei


para pedir mil desculpas, mas então percebi o cheiro familiar e olhei
para o tal obstáculo. Era o Taimen, e ele parecia super nervoso,
como se eu tivesse quebrado a cara em seu peitoral, ou sei lá.
“Taimen, quando você…”

“Eu estava t-tentando falar… já conheço a lancha dos meus


primos, é esta aqui.” Taimen apontou para o lado, exatamente onde
o rastro de cheiro terminava.
Meu rosto aqueceu de tanta vergonha e eu ri nervosa e
confusa. Óbvio que Taimen reconheceria a lancha dos primos dele!
Por que eu estava cometendo tantos erros bobos, nos últimos dias?
Enfim, pelo menos não demoramos em nossa busca. Aquela
lancha era branca, reluzente e muito bonita, tão grande que mais
parecia um iate. Não era de se estranhar que coubessem dois
quartos em algum lugar ali dentro, havia até mesmo uma piscina e
um barzinho no deque! Era uma lancha chique demais para uma
dupla de hippies viciados em incenso.
Com um salto ágil eu subi na lancha, e Taimen quase teve um
ataque cardíaco.

“O que está fazendo? Meus primos vão p-passear com suas


predestinadas, esta noite. Eles logo vão aparecer para organizar as
coisas!”

“Então só precisamos ser rápidos.” Eu verifiquei a portinha


que conduzia à área interna e sorri ao percebê-la destrancada.
“Vem, anda logo.”

Taimen engoliu seco e subiu na lancha, tão desastrado que


eu precisei segurá-lo pelo braço ou ele despencaria na água.
Satisfeita com a cooperação dele, eu o puxei até os quartos.
O espaço coberto era elegante, com carpetes cor-de-vinho e
luminárias à moda antiga, mas nada tão especial, considerando-se
que o doutor Michel e o irmão Dylan também eram podres de ricos e
seus barcos eram até maiores que aquele. De qualquer forma, era
como os gêmeos haviam descrito: havia dois quartos idênticos e um
banheiro ao final do corredor.

Até mesmo com o banheiro eu dei sorte: havia, além da pia e


do vaso, uma grande banheira de hidromassagem com todo tipo de
frasco ao redor. Óleos aromáticos, hidratantes, máscaras faciais… a
maioria dos produtos ainda estava lacrado, sugerindo que fariam
parte da noitada sensual com as gêmeas.
Aquele monte de perfumes e óleos não me interessava,
óbvio. O meu objetivo estava mais atrás, entre as torneiras da
banheira: Os frascos de xampu masculino, estes com alguma
aparência de uso frequente.

“B-B-Babelyn, p-p-porque estamos aqui?” Taimen olhava


para trás constantemente, suando frio. “Nosso cheiro… eles vão
descobrir!”
Eu tirei a mochila dos ombros e a vasculhei sobre a bancada
da pia.

“Deixe que descubram. Eles não têm como adivinhar o


motivo da nossa visitinha.”
Taimen franziu a testa, ficando ainda mais confuso — e
nervoso — quando eu tirei da mochila a garrafa de óleo de fritura.

Meus olhos iridesceram com um brilho maligno e empolgado


conforme eu abria a tampa e contaminava o banheiro com o cheiro
de bacon velho. Eu ri para o Taimen, que àquela altura mais queria
jogar-se no mar e fugir nadando de volta pra casa.
“Taimen, você sabe o que fazer.” Eu disse.

“Ahm… eu… eu sei o que você quer que eu faça, B-Babelyn,


mas n-não podemos. É errado.”
Eu entreguei a garrafa ao Taimen e ele se viu obrigado a
segurá-la para não arrebentar no chão.
Taimen estremecia como um bambu verde, abraçado naquela
garrafa como se fosse uma lampreia querendo mordê-lo. Enquanto
isso eu peguei um dos frascos de xampu e abri.
Hum… era um aroma bem gostoso de limão com menta.
Combinava com aquela dupla de hippies, mas sabe o que combinaria
ainda mais? Um belo banho de bacon seboso, para ensinar-lhes
respeito com os mais indefesos.

Eu estendi o frasco aberto para o Taimen e ele saltou para


trás. Sério, tudo assustava aquele cara?
“N-não sei se é uma boa ideia.” Disse ele.

“Bem, você tem um jeito de descobrir.” Eu sorri triunfante.


“Não é nenhuma grande maldade, Taimen, apenas uma lembrança
que voltará sempre que eles decidirem agir como idiotas de novo.
Acredite, será muito mais libertador do que você imagina.”
Taimen afinou os lábios, grunhindo em profundo conflito
interior. Algo em sua expressão tímida causou breves saltos no meu
peito. Será que era normal um alfa ser considerado adorável?
Porque eu não conseguiria descrever de outra forma o rosado em
suas bochechas, ou a forma como seus olhos heterocromáticos
desapareciam por trás da franja longa demais.

O frasco na minha mão começou a pesar, mas eu permaneci


naquele transe esquisito, admirando aquele cara medroso enquanto
ele fazia alguma coisa. Então Taimen expandiu os olhos se
assustando, e eu só percebi o motivo tarde demais.
Pesado e escorregadio, o frasco cheio de xampu e óleo
velho deslizou dos meus dedos e estourou no chão. O plástico
rompeu ao meio e a mistura fedorenta espirrou nas nossas pernas, e
nos móveis, e até no teto.
Taimen deu um gritinho para a cena catastrófica e correu
para pegar a toalha de rosto.

“Ah! Perdão, p-p-perdão!” Taimen passou a toalha no caldo


bege que escorria pelos meus joelhos. “P-p-pensei que fosse s-
segurar, eu, eu…”
“Eeeeeca… Relaxa, foi culpa minha.” Eu apertei minhas
têmporas, me sentindo uma idiota. Eu não costumava ser nada
distraída. “Ei, eu já disse que tudo bem. Calma, vamos apenas feder
a lanchonete de posto de gasolina por algumas horas.”

Taimen ergueu seus olhos cintilantes e preocupados,


abraçado na toalha como se fosse uma criança com um ursinho de
pelúcia. Até ensebado ele conseguia ser fofo.
“O que vamos fazer? T-T-Tem óleo até na tampa do vaso.
Nunca vamos conseguir limpar tudo.” Ele olhou ao redor, mortificado.

“Ué, vamos deixar assim.” Eu balancei os ombros, sorrindo


para a minha brilhante capacidade de improviso. “Mudança de
planos, agora a lancha inteira vai feder a bacon.”
“Isto é meio… deselegante.” Resmungou Taimen.

É, era completamente deselegante, mas nem pensar que eu


limparia aquela desgraça, ainda mais para aquela dupla de idiotas
que ainda me revoltava um pouquinho. Talvez sabotar a noite de
consumação das gêmeas tenha sido um exagero, mas eu também
me ferrei naquela história. Isto precisaria servir de consolo para
todos os envolvidos.
Ah, danem-se as justificativas. Eu guardei as provas do
crime, peguei Taimen pelo braço e saí do banheiro antes que aquele
fedor me causasse ânsias.
“Que tal assim, nós podemos tomar um longo banho de mar,
caçar algo apetitoso e matar a fome enquanto nos livramos deste
cheiro.” Eu disse a ele.

“C-c-caçar? Parece bom.” Ele respondeu, relaxando um


pouco. “Você gosta de celacanto?”
“Celacanto, aqueles peixões primitivos? São deliciosos, mas
também super raros… você é um bom caçador?”

“Não, não exatamente… mas se você for…” Ele avermelhou,


se encolhendo de vergonha.
Inacreditável. Eu deveria me indignar, não deveria? Mas eu
só consegui rir, me divertindo.

“Tá certo, vou tentar caçar um celacanto pra gente.” Eu dei


tapinhas no ombro dele, enquanto atravessávamos o corredor. “Você
prefere cru, ou podemos…”
O som de passos lá fora congelou meus ossos. Taimen e eu
paralisamos como estátuas de gelo, minhas mãos a centímetros de
abrir a porta que nos separava da liberdade.

“…não estou proibindo, meu amor, só pedindo mais


paciência. O mano Jackson planejou esta noitada faz mó tempão, ele
quer deixar tudo nos trinques antes de recebê-las.” Disse uma voz
masculina que se aproximava.
“E você não tem opinião, Dawson? Pensei que estivesse
mais ansioso por um encontro comigo.” Disse Penélope.
“E eu estou. Juro que contei os segundos até poder trocar
uns beijos, mas não podemos aguardar até a noite? Desejo caçar
petiscos frescos de seu agrado, cobrir nossa cama em pétalas de
rosa…”

“Não finja que não está ansioso, aposto que até mesmo seu
irmão está aproveitando o cinema com a Rebecca para uma
rapidinha nos assentos dos fundos.”
“Meu irmão não é este tipo de cara, e duvido que sua irmã
seja.” Disse Dawson, aborrecido. A maçaneta da porta começou a
girar. “Só uma passada rápida, de boas? Não terminamos nenhum
preparativo, queremos deixar tudo perfeito para a nossa grande
noite.”

A porta começou a abrir. O que fazer?? Eu travei sem


encontrar resposta. Seria impossível escapar pelas janelinhas
redondas e não havia nenhuma outra saída.
Taimen me puxou pelo braço até um dos quartos. Ele fez
sinal com a mão para que eu abaixasse, e juntos nós dois nos
enfiamos embaixo da cama.

“Eles vão me m-m-matar, eles vão me matar…” Sussurrava


Taimen, em pânico. “Vou d-dormir na armadilha de lagostas durante
meses.”
“Shh. Eles não tem como farejar a gente.” Eu apontei para
os respingos de óleo no meu rosto. “Eles vão sentir o fedor e sair
correndo, então nós fugimos.”
Taimen concordou com a cabeça e encolheu-se quietinho ao
meu lado, no estreito espaço entre o carpete e o estrado da cama.
Logo depois, Penélope e Dawson entraram no quarto e
Penélope fechou a porta. Ela ria e rebolava, sem lembrar em nada a
sereia deprimida e assustada de dias antes.

“Que fedor, o maninho precisa repensar os incensos que ele


compra.” Dawson farejou o ar, enojado, mas nem tentou investigar a
fundo. “Gostou daqui? Imagino que esteja acostumada a aposentos
maiores.”
“É perfeito… para um barco, quero dizer. Espero um quarto
muito maior em nossa futura mansão.”

“Já lhe prometi tudo isso. Podemos ir, agora? E tente fingir
uma surpresa quando o Jackson apresentar a lancha. Nós ainda nem
compramos as velas e... o que está fazendo?”
Muito curiosa, eu tentei espiar algo que não fosse os
tornozelos daqueles dois. Nem precisei me arriscar muito, porque
logo ficou óbvio o motivo do espanto do Dawson: o vestido da
Penélope desceu todinho aos seus pés, e seu sutiã logo depois.

Eu e Taimen nos entreolhamos, certamente fazendo a


mesma expressão de ai, que merda.
Mal sabia eu que a tensão esquisita estava apenas
começando.

“Penélope, meu amor, nós não…”


“Shh. O seu corpo tem sido bem honesto, meu predestinado,
suas palavras também deveriam ser…” Penélope fez algo que
causou um gemido no Dawson. “Quem liga pra pétalas, incensos e
velas? Sou a sua ômega, Dawson, pode me agarrar e fazer implorar
pela vida.”
“Penny, eu prometi ao Jackson que… espera aí, o quê?”

Penélope subiu na cama, rangendo o estrado sobre nós dois.


Eu cobri a boca do Taimen para que ele não engasgasse de susto.
“Não sejamos hipócritas, Dawson, você é meu alfa e tem
poder absoluto sobre mim. Se você me espancar e me forçar
exatamente agora, quem poderia impedi-lo?” Penélope deu uma
risada sombria.

“Quê? Eu nunca… você é louca!” Rosnou Dawson.


“Prefere começar me insultando? Pois vá em frente.
Conheço os seus pensamentos. Você chora de noite se perguntando
o que fez para ficar comigo ao invés da minha irmã.”

“Tá me zoando? Eu nunca me liguei em outra além de você,


Penélope, é você quem me rejeita, e agora isso… sei lá que viagem
passa nesta sua cabeça!” Gritou ele. “Vista-se agora e pare com
esta palhaçada.”

“Eu me pergunto o que o Jackson pensaria, se soubesse… o


seu querido irmão gêmeo cobiçando a predestinada dele.” Penélope
mexeu-se sobre a cama, fazendo sabe-se-lá o quê. “Não o culpo por
desejar a gêmea normal, mas não é justo, sabe... Nós duas
deveríamos ser iguaizinhas, cópias carbono uma da outra.”

“Meu amor… escuta, vamos conversar com calma.” Dawson


engoliu seco, estremecendo. “Penélope, solta esta faca.”
Meu coração disparou. Espera aí, como assim, faca??
Eu tentei me arrastar para fora, mas o peso da Penélope
abaixou demais a cama. Eu estava presa e não sabia como ela
reagiria se eu apenas gritasse. Que tipo de situação bizarra
acontecia acima de nós??

“É tudo culpa minha, eu sei… nós deveríamos ser idênticas


em tudo, mas eu escolhi preservar certas memórias apenas no meu
coração e agora estou pagando o preço. Mas não é tarde demais,
Dawson, ainda posso ser perfeita.”
“Penélope, meu amor, fica de boas, o que você vai…”

O som de alguma coisa rasgando embrulhou o meu


estômago. Antes que eu pensasse o pior, longos fios castanhos
cederam ao pé da cama. Aquilo era… cabelo?
“Viu só? Agora somos iguaizinhas por completo! Você já
pode me dominar como o alfa que você é Dawson! Vá em frente! Me
machuque e me destrua por dentro e por fora!”

“Essa parada é louca demais pra mim.” Dawson agarrou a


Penélope e pareceu que começariam uma briga, mas ele logo se
afastou. “Eu vou ficar com isso. Se eu encontrar outra faca na sua
bolsa, vou ter que contar para os seus pais.”
“Que diferença iria fazer? Eu sou a sua propriedade agora,
um simples útero com pernas.”

Dawson rosnou de ódio.


“É este o tipo de opinião que pensa que eu tenho? Sai da
minha cama. Agora.”
“Isto é uma ordem, meu predestinado? Seu corpo parece
desejar o contrário.”
Dawson vociferou alguma coisa e ele mesmo foi embora,
marchando pesado.

“Idiota…” Penélope levantou-se da cama e vestiu-se


novamente. Ela deixou o quarto um pouco depois, sem se preocupar
em recolher todo o cabelo do chão.
Por um bom tempo eu e Taimen continuamos quietos,
chocados, como se aquela cena pudesse ter sido um filme bizarro ou
uma ilusão auditiva.

“B…Babelyn…” Gaguejou Taimen, horrorizado. “…a sua


sobrinha tem problemas.”
“É…” Eu respondi, abismada. “Ela tem problemas bem
grandes.”
Capítulo 21

Taimen estacionou o carro cuidadosamente na garagem do


irmão Dylan, conseguindo pará-lo sem arrancar nenhum dos
retrovisores.

“Eu pensava que o irmão Dylan era o único tritão que sabia
dirigir bem, mas você até que tem talento.” Eu soltei meu cinto de
segurança, um tanto impressionada. “Existem muitos carros na ilha
Orona? Você tem um?”
“Ahm… na verdade tem apenas cavalos, mas eu te assisti
dirigindo antes, então foi só fazer exatamente o contrário.” Taimen
desceu do carro e contornou para me abrir a porta.

“Ei, eu não sou uma motorista tão terrível! Ok, talvez um


pouco…” Eu também desci e abri a mala para pegar as minhas
coisas. “Qual é a dos Amalonas com cavalos, afinal? Nunca ouvi falar
de tritões com animais de estimação.”
“Ah, já viu o formato da Ilha Orona em um mapa? É como um
enorme anel com água dos humanos no centro. Alguém decidiu criar
um percurso de corrida em torno da ilha e acabou se t-tornando uma
tradição.” Taimen me ajudou com os equipamentos de coleta que ele
mesmo havia comprado. No fim acabei ganhando eles de presente,
também. “Antes que me p-pergunte, eu odeio cavalos. Eles mordem
e tem um olhar assustador.”
Eu dei risada, imaginando Taimen fugindo de cavalos
constantemente.
“Deve ser complicado ter medo de cavalos em uma ilha cheia
deles.”

“Ah, eu nem ligo… T-t-todos os alfas são fissurados em


treinar e reproduzir aqueles bichos, e os ômegas, por serem mais
leves, quase sempre se especializam como jóqueis. É só um hobby,
ainda somos espiões do Oráculo mesmo depois do que aconteceu,
mas prefiro joias.”
“Joias?” Eu desci o olhar pela aparência completamente sem
sal daquele quase-alfa. Nenhum anel, nada.

“Ah n-n-não para mim, quer dizer…” Taimen escondeu o


corpo com as mãos como se estivesse pelado. “Depois da nossa
expulsão os meus pais proibiram qualquer uso de pedrarias dentro
de casa, eles odeiam as lembranças, nunca mais produziram um
único brinco que fosse… e eram peças tão b-b-bonitas, mesmo
pequeno eu admirava as criações deles…”
“Você quer continuar o trabalho dos seus pais, não quer?” Eu
sorri, mais uma vez fascinada. “É um sonho muito legal. E aposto
que se contar para os seus pais, eles vão entender.”

“S-s-sério? Ahm… ok, posso tentar… nunca lidei com pedras


preciosas, nem nada assim, mas…” Taimen sorriu discretamente,
com seus olhinhos brilhando com um sutil entusiasmo. “Vou me
esforçar muito e criar alguma joia que você queira usar.”
Olha só… não é que o Taimen conseguia ter firmeza na voz?
Epa, por que eu estava sorrindo que nem uma tonta, de
novo? Durante todo o trajeto até a casa do meu irmão eu senti o meu
coração no pescoço, preocupada que a Penélope pudesse fazer
alguma besteira e aquela louca não atendia o celular, e agora eu
parecia estar nadando num oceano de merengue. Será que eu
precisava tomar remédios para a concentração? Era como se a voz
do Taimen fosse gás hélio levantando o meu cérebro até as nuvens.
Eu dei um longo bocejo. Ai, é, devia ser o sono.

“Desculpa, Taimen, no final perdemos tanto tempo nos


limpando que nem conseguimos caçar juntos, mas…”
“Tudo bem, eu sei. Seu clã é importante e… isto é legal
também.” Ele coçou atrás da cabeça, super encabulado. “Ah… B…
Babelyn…”

Eu já estava passando da garagem para dentro da casa,


então espiei Taimen por cima do ombro.
“O que foi?”

“Ehm… Sobre aquele celacanto… Eu vou tentar caçar um…


quer dizer… eu vou caçar um deles para você amanhã, então
gostaria de almoçar comigo?”
Se a minha mandíbula não estivesse presa no crânio, ela
teria caído no chão. Nunca na minha vida senti tanto calor no rosto.

Apesar do meu completo embaraço, eu sorri e concordei


com a cabeça, adorando a forma como Taimen também sorria de
volta.
“Vou adorar almoçar sua caçada, Taimen. Nos encontramos
no alto-mar, perto das fendas de vapor?”
“Começarei a minha busca imediatamente.” Ele baixou a
cabeça em um gesto cortês, estremecendo no esforço de conter
toda a sua empolgação. “Então… ahn… eu… até amanhã.”

Eu acenei para ele, também disfarçando o quanto meu


coração era um turbilhão de choques elétricos. Mesmo depois de o
Taimen ir embora eu continuei olhando para a porta da garagem
como uma abobada.
“Babelyn, algum problema?” Perguntou uma voz atrás de
mim.

Eu me virei e avistei o irmão Dylan. Ele mal havia chegado na


garagem e seu olhar de falcão já havia localizado o arranhão na
lataria da Ferrari. Ele não parecia muito contente.
“Peço mil perdões por demorar na devolução do carro.” Eu
disse, como se o problema fosse ser aquele. “Todos os acidentes
foram culpa minha, o Taimen dirige como um deus grego e… ahm…
deuses gregos não dirigem carros, né?”

“Quem é Taimen? Aliás, não importa. A Penélope voltou


abatida pra casa de novo, faz ideia do que pode ser o problema?”
Irmão Dylan alisou seus cabelos negros para trás e bufou,
exasperado. “Peço perdão por envolvê-la nisso, mas já não sei o que
fazer.”
Ufa, então Penélope realmente estava em casa. Eu não
compreendia quase nada daquela situação, mas se a Penny não
queria envolver seus pais talvez eu devesse ficar quieta.
“Deve ser apenas nervosismo, a noite da consumação é um
evento preocupante para todas as sereias e tritões.” Eu falei,
dolorida por dentro. Para uma sereia, eu era péssima em mentir sem
remorso. “Posso conversar com ela, se o senhor permitir.”
“Não vejo maldade nos predestinados das meninas, mas se
houver algo errado sobre eles o Gabe já prometeu que vai pedir o
divórcio desaparecer do mapa. Não quero perdê-lo de novo, não vou
suportar.”

“Os gêmeos são legais, irmão Dylan, relaxe quanto a isso.”


Eu dei tapinhas no braço dele, sem acreditar que estava elogiando
aqueles dois parvos. “Uma conversinha entre meninas é tudo o que a
Penélope precisa para se abrir.”
O irmão Dylan concordou com um gesto exausto. Ele parecia
tão esgotado e triste que eu precisava me controlar para não sentir
raiva do Gabriel. Aquele humano quase sempre era um anjo, mas
quando precisava lidar com as singularidades da nossa espécie ele
se tornava um demônio. Quando ele perceberia o quanto tritões
eram sensíveis a brigas de casal?

Enfim, não era o momento de eu bancar a super-irmã e


sacudir o humano Gabriel até que largasse de atormentar o irmão
Dylan. Por mais injusto que parecesse, Gabriel tinha bons motivos
para odiar a nossa cultura.
“Prometo lhe manter informado.” Eu acompanhei o irmão
Dylan para a sala, deixei minhas tralhas no sofá e então segui
adiante pelas escadas até o segundo andar.
O irmão Dylan pegou um pano que havia ficado sobre a
mesa e continuou sua faxina dos móveis.
“Agradeço, Babelyn. Ah, precisa da minha assistência na
casa do médico, amanhã cedo?”

Eu arqueei uma sobrancelha. Ajuda para quê? Eu deveria ter


dormido um pouco após o desastre na lancha, mas a minha
preocupação com aquela gêmea satânica falou mais alto.
Falando em Satanás, alguém apareceu ao meu lado,
descendo as escadas.

“Ei, Papai Dylan, já conseguiu horário com aquele cabeleir…


você aqui de novo, Babelyn?”
Eu me virei para a Penélope e tive um arrepio de horror. Não
havia restado nada de sua linda cabeleira castanha, apenas algumas
mechas curtinhas que deveriam parecer um corte chanel, mas
pareciam um acidente com o cortador de grama.

O irmão Dylan fez uma cara de baiacu encurralado,


totalmente sem palavras.
Oh, nossa.

“Penny, será que podemos conversar?” Eu perguntei.


Penélope revirou os olhos em profundo desgosto e voltou
para o quarto. Sei lá se aquilo era um sim ou um não, mas eu a segui
logo atrás com toda a minha inocência.
Eu deveria ter me preparado emocionalmente para o que
veria.
Aquele… aquele era o quarto das gêmeas, certo? Aquele
exato mesmo quarto que costumava rosa, depois ficou metade rosa
e metade verde… e que agora era totalmente verde.
Ok, considerando-se o quanto os gêmeos eram parecidos
entre si, eu não estranharia a Penélope adquirir o mesmo gosto por
mobília de praia, pôsteres e quadro magnético com fotografias
cafonas, mas sua metade do quarto não estava apenas parecida
com a da Rebecca, era uma cópia exata. Os travesseiros na mesma
posição, os mesmos apanhadores-de-sonho sobre a cama, e — eu
precisei olhar de perto ou não acreditaria — as exatas mesmas fotos
no quadro metálico! Não fotos da Penélope e do Dawson, o que
quase faria sentido, mas as fotografias da Rebecca com o Jackson
repetiam-se nos dois lados do quarto, como se fosse um espelho do
mundo dos pesadelos.

Eu não sabia se parabenizava a Penélope por redecorar o


quarto tão rápido, ou se ligava pra Rebecca e sugeria nunca mais
voltar pra casa. O que era aquilo tudo?? Rebecca iria ter um ataque
cardíaco!
“Ahm… adorei o penteado novo.” Eu sorri para ela, tentando
agir naturalmente.

“Pfft. Você e o papai Dylan não sabem mentir. Acredita que o


cabeleireiro da Rebecca tem seis anos de fila de espera para novos
clientes? Eu tentei fazer igual e ficou assim. Patético.” Ela caminhou
em círculos pelo quarto e se admirou no espelho, séria e soturna.
“Talvez se eu convencê-la a raspar o cabelo…”
Eu avistei a tesoura no canto da penteadeira e me lembrei da
cena com a faca. Penélope não era tão louca a ponto de machucar
alguém, mas eu peguei a tesoura por precaução.
“Senta ali na cama, posso tentar consertar.” Eu disse.

Penélope deu uma risadinha debochada, mas obedeceu e


sentou em sua cama, de frente para a parede.
“Que seja, acho que nem você consegue estragar ainda
mais.” Ela puxou para o lado um tufo da franja que escondia um corte
raso demais. Se a Rebecca lembrava as supermodelos da Fashion
Week, a Penélope lembrava… sei lá, a Britney Spears em 2007?

Geralmente eu mesma aparava as minhas pontas quando o


cabelo crescia demais, então não podia ser tão impossível ajeitar
aquela desgraça.
Eu dei um longo bocejo sonolento, me ajeitei logo atrás da
Penélope e comecei a picotar.

Se consertar o penteado dela seria difícil, imagina começar


alguma conversa? A Penélope permanecia quieta como um zumbi,
mesmo em condições normais ela pouco se abria comigo.
Bem… não seria a minha primeira vez tendo uma conversa
tensa e esquisita com ela.

“E então… como vai o Dawson?” Eu tentei.


“Você é ridícula, Babelyn. Sei que estava escondida em
algum lugar daquele barco. Você ouviu tudo, não ouviu?”
“Como você sabe?”

“Ah, faça-me o favor. Só o Dawson para acreditar que


aquele fedor era algum tipo de incenso. Espalhar óleo de fritura é o
tipo de vingança idiota que só você pensaria.”
Poxa, as minhas vinganças não eram tão idiotas assim!
Embora eu precisasse admitir que elas estavam ficando meio
previsíveis.

“Talvez eu tenha ouvido alguma coisa…” Eu deslizei uma


mexa escura entre dois dedos e cortei retinho, alinhando com as
partes menos tortas. “Escuta, é normal sentir ansiedade sobre a
consumação, mas todas as sereias…”
“O que você entende de consumar, Babi? Eu mesma pensei
que tinha todas as respostas, mas a realidade…” Penélope balançou
a cabeça em desdém, quase se machucando na ponta da tesoura.
“Eu fico feliz pela Rebecca, não me entenda errado, só não acho
justo…”

Com o coração torcido, eu criei coragem de perguntar.


“…O que não é justo, Penny?”

Com um ar sombrio em seus gestos Penélope tocou a


parede, que ainda fedia um pouco embora a tinta já estivesse seca.
“Você já deve ter ouvido as histórias. Meu irmão traiu as
intenções do chamado e foi punido com o pior dos predestinados.
Mas já conhece os detalhes, Babi? Por quanto tempo, e onde…”

Eu vasculhei a minha memória, tentando me lembrar de


detalhes menores sobre a tragédia. Claro que eu conhecia as linhas
gerais do ocorrido, mas não seria apropriado perguntar as minúcias.
E por que isto importava para a Penélope, afinal? Espera… ah, não
podia ser…
Penélope riu, triste e meio macabra.
“Não entendeu ainda, Babi? Pensei que você fosse a sereia
inteligente. Do outro lado desta parede fica o quarto dos meus pais,
mas nem sempre foi assim. Naquela época, tantos anos atrás, foi o
quarto do meu irmão…”

“Penny…” Meu coração acelerou, já prevendo onde ela iria


chegar.
“Os gritos, as súplicas, o choro desesperado do meu querido
irmão… eu tinha apenas sete anos e mesmo assim pude ouvir tudo.
E eu não era nenhuma imbecil, eu sabia o que significava…”
Penélope socou a parede com força, rosnando de ódio. “Até aquela
época eu sempre havia compartilhado tudo com a Rebecca, cada
fofoca, gosto ou desinteresse. Mas uma tristeza tão imensa… eu
não tive coragem. Eu quis que a Rebecca fosse feliz, e ela realmente
cresceu sem peso no coração. Enquanto isso, eu…”

“Os desejos do chamado são mais fortes que todos nós,


Penny, o que aconteceu com Hian II não foi culpa sua.”
“Como não foi? Eu ouvi tudo desde o primeiro dia, eu poderia
ter contado para o papai Gabe, mas eu era apenas uma sereia idiota
acreditando que eu podia ser perfeita. Por tanto tempo eu desprezei
o irmão Hian, acreditei nos horrores que o chamado contava sobre
ele, então tentei me convencer de que ele merecia…”

“Você o defendeu, Penny. Mesmo crianças, você e a Rebbie


foram valentes e combateram um selkie adulto para ajudá-lo.”
“Mas a que preço? Eu podia tê-lo ajudado tão mais cedo.”
Penélope escondeu os olhos nas mãos e chorou. “O irmão Hian
jamais mereceu tanto sofrimento. Quem merece um predestinado
cruel sou eu, então por quê? Por que o chamado me presenteou com
um Amalona bondoso??”
Aquilo era demais para o meu coração. Com os olhos
borrados de lágrimas eu tentei conter a minha comoção e deixei a
tesoura de lado, então abracei a Penélope por trás. Ela tremia entre
soluços de tristeza.

“Você nunca foi uma sereia ruim, Penny. Você foi apenas
uma criancinha lidando com uma situação difícil demais.”
“Por que o irmão Hian sofreu tanto? E eu sempre fui tão fria
e distante… agora ele foi embora para o continente e eu nunca tive
coragem de pedir desculpas.”

“Ei, ei, da última vez que falei com ele, o Hian estava
plenamente saudável e empolgado com sua vida de fazendeiro. Você
ainda terá muitos anos para conversar com ele, Penny. O Hian II é
um tritão valoroso, ele certamente não a culparia por nada. E nem a
Rebecca, ou o Dawson.”
Penélope esfregou o rosto molhado e virou-se para me olhar
nos olhos. Sem a maquiagem ou sua cabeleira de megahair ela
parecia tão… frágil.

“Você acha mesmo?” Ela sorriu com angústia. “Quer dizer,


não que importe. Eu já nem existo para a Rebecca, e o Dawson me
detesta com todos os motivos.”
Eu peguei a tesoura de novo e continuei a ajeitar sua franja,
aparando com cuidado.
“Precisa muito para um alfa odiar sua ômega. Por que não
tenta conversar com ele? Não precisa explicar tudo agora, mas ele
vai gostar de saber que não é culpa dele.
Penélope concordou com a cabeça, quase me fazendo cortar
errado.

“Pode ser estúpido, mas eu esperei de verdade nossa


primeira noite juntos. Não vou conseguir sem que o Dawson saiba a
verdade. Eu… eu vou tentar conversar com ele, hoje mesmo.”
“Aposto que ele ficará feliz e você perderá um peso enorme
dos seus ombros.” Eu sorri com travessura e afastei a tesoura para
admirar o resultado. Até que ficou um corte muito legal, curtinho e
repicado. “Não precisa ter pressa, também. Aposto que os rapazes
vão demorar dias para limpar o fedor da lancha.”

“Babelyn, aqueles dois conhecem mais óleos aromáticos do


que eu conheço tonalidades de base. Com certeza controlar um mau
cheiro não será problema para eles.” Penélope riu e levantou-se para
olhar no espelho. “Ai… preciso encontrar uma loja de perucas com
urgência.”
“Você é uma vaca ingrata.” Eu respondi, rindo e com os
olhos começando a pesar de sono.

Penélope também riu e preparou alguns potes de maquiagem


enquanto conversava comigo.
Eu a ouvi com esforço, satisfeita por tê-la animado e
torcendo que todos ficassem bem, dali em diante. Era difícil ouvir
bobagens sobre maquiagens e roupas quando as minhas pálpebras
pesavam dez quilos.
Deixando que Penélope falasse sozinha, eu me aninhei em
sua cama macia e abracei o travesseiro. Ainda estava meio molhado
de lágrimas, mas dane-se. Eu estava tão sonolenta…
O sono não demorou a chegar, e com ele a estranha
sensação de que eu estava esquecendo algo muito importante.
Capítulo 22

“Babelyn? O que está fazendo aqui?” Perguntou uma voz


masculina.

Eu grunhi, querendo apenas cinco minutinhos a mais de sono,


mas então a pessoa começou a me sacudir e eu precisei abrir os
olhos, aborrecida.
Hum… desde quando o humano Gabriel me visitava de
manhã cedo? Eu tentei perguntar o porquê da preocupação em seu
rosto, mas apenas bocejei enquanto ele atendia o celular.

“Oi, Michel. Sim, eu ia te ligar neste instante. Dormindo na


cama da Penélope, acredita?”
Cama da Penélope? Quê? Eu me levantei nos meus
cotovelos e olhei ao redor, avistando a decoração esverdeada com
redes e pôsteres de reggae. O sol iluminava intensamente o quarto,
através da sacada.

Eu levantei num salto. Ai, pelos sete Oceanos! O almoço


com o Taimen!
“Senhor Gabriel, que horas são?” Eu perguntei, saltando da
cama.
“Você sumiu desde ontem. São onze e dez da manhã.”
Respondeu ele. “O Michel e o Dylan estão te procurando como dois
loucos, Babelyn, você não costuma se atrasar assim.”
“Eu sei, mas ainda dá tempo! O Taimen talvez atrase
também, e… espera, aí. Como sabe do meu almoço com o Taimen?”
“Almoço com quem?” O senhor Gabriel levantou a
sobrancelha com a cicatriz. “A sua viagem, Babelyn. O jatinho
fretado vai sair daqui a duas horas, você já terminou suas malas?”

Meu sangue virou pedra e o tempo congelou diante dos meus


olhos.

Minha mudança para Massachusets. A carta que eu nunca


enviei porque entregaria pessoalmente. O começo das aulas se
aproximando.

“Por favor, avisa o doutor que já estou chegando!”


“Posso te dar uma carona, você não…”

“É mais rápido correndo!”


Aquilo era mentira, óbvio, mas eu surtei a tal ponto que
apenas passei a mochila nas costas e disparei como uma louca
varrida.

Ai, nossa, nossa, nossa. O que estava acontecendo com a


minha concentração?? Eu tanto lutei para recuperar minha carta,
apenas para esquecer que existia? E esqueci que antecipei a
viagem, também! Eu só podia ser uma idiota!
Eu disparei pelas ruas de Waikiki com os pés descalços e o
vestido manchado de óleo. Vários turistas pararam pra olhar a doida
desesperada, mas quem ligava? Eu perdi o meu futuro dormindo!
Sei lá como, mas eu consegui chegar à quadra da minha
casa em poucos minutos. Eu me sentia veloz como uma sereia
Trevally… e azarada como uma vaca no brejo.
Logo à minha frente, no caminho até a mansão do Doutor
Michel, Dawson aguardava como se esperasse alguém. E claro que
este alguém era eu, porque ele sorriu ao me ver.

“Ah, Babelyn. Eu passei para dar um oi, então o Digníssimo


Dylan avisou do seu desaparecimento… tá tudo bem?”
“Agora não, Dawson, resolva seus dramas com a Penélope
sozinho, só desta vez.” Eu passei por ele e o babaca começou a me
seguir.

“Este é o motivo de minha visita. Eu gostaria de agradecê-la.


Não sei o que conversaram, mas ontem a Penélope estava… meio
bem? Nossa consumação vai esperar um tempo, mas ela se divertiu
no passeio de lancha. Foi muito agradável.”
Aquele cara ainda estava falando? Dane-se os dramas dele,
eu precisava chegar logo em casa e terminar minhas malas.

Claro que não podia ser tão fácil. Assim que eu cheguei à
entrada, Dawson parou na minha frente e bloqueou a porta com seu
corpão de alfa. Eu nunca quis tanto morder a jugular daquele cara.
“Escuta, eu sei que você me despreza pelo que fiz com o
Taimen… entenda que a cultura da Ilha Orona…”

“Dawson, você poderia ser revoltante outro dia? Estou com


muita, muita pressa.”
“Eu sei, hoje cedo o Taimen nos procurou na lancha, estava
desesperado por não encontrar nenhum celacanto. Ele implorou que
a gente não contasse nada, então eu e Jackson o ajudamos a pegar
um peixe legal para o almoço de vocês. Será que com isso
merecemos o seu perdão?”
Puta que o pariu. O almoço com o Taimen!

“Dawson, eu preciso de um favor. Aliás, não. Ahhh, como eu


resolvo isso?” Eu esfreguei meu cabelo, correndo em zigue-zague
pelo jardim da casa.
Prioridades, prioridades! Estudar em Harvard foi o meu maior
sonho desde que entrei para o ensino médio. Eu não podia jogar tudo
fora por um cara que conheci naquela mesma semana.

“O que deu em você? Por favor, eu já lidei com loucura de


sereia por uma vida inteira.” Disse Dawson.
Droga, eu me sentia o pior lixo que já existiu, mas não havia
ali uma escolha a ser feita. A vida de centenas de humanos dependia
do meu sucesso profissional.

“Escuta, eu… eu estraguei tudo. Nunca contei para o Taimen


que eu viajaria em breve, e agora meu avião já chegou e eu preciso
atravessar o mundo para nunca mais voltar.”
Dawson expandiu os olhos, chocado.

“E eu e meu irmão quem somos horríveis com o trutinha?


Pelos oceanos, Babelyn, eu nunca vi nosso primo empolgado com
qualquer coisa, até estes últimos dias.”

“Eu sei, não torna isso ainda mais difícil pra mim! O Taimen é
muito legal, é só que…” Meus olhos empoçaram com lágrimas, eu
nunca senti tanta raiva de mim mesma. “Desculpa, avisa ele que eu
preciso ir.”
Dawson ficou sem palavras, então eu apenas lhe dei as
costas e me fechei dentro de casa.
Eu ainda nem tinha acalmado meu coração quando o senhor
Alisson me segurou pelos ombros.

“Babelyn, você tá bem? O Michel virou a cidade te


procurando, você nunca dormiu fora de casa!”
O senhor Alisson tinha a sensibilidade de uma porta, mas
ainda assim eu o abracei e desabei de tanto chorar.

“Eu estraguei tudo! Eu sou uma sereia horrível!”


Completamente travado e confuso, o senhor Alisson afagou
as minhas costas.

“Calma, não estamos tão atrasados assim. O Dylan chegou


cedo para ajudar, já estamos todos terminando de carregar a van.”
Não era por isso que eu estava chorando, aliás, talvez fosse
também, eu já nem sabia mais.

Quando espiei para o lado do senhor Alisson, percebi que ele


dizia a verdade. Lá estavam o Doutor Michel, o irmão Dylan e até as
crianças carregando caixas e malas para dentro da van.
O Doutor Michel me avistou e correu até mim, dramático que
nem sempre, derrubando as malas pelo caminho.
“Babelyn, você está viva! Nenhum tubarão te comeu!” Ele
ajoelhou diante de mim e me abraçou.

“Perdão, doutor, perdi a hora dormindo.”


“Sim, o Gabe contou, mas tudo bem. Eu e o peixe-boi
conseguimos terminar tudo, né, peixe-boi?”
“Eu carreguei 95% de todas as caixas.” Rosnou o meu
irmão, enquanto transportava mais uma das minhas bolsas.

“Isto é porque você é um brutamontes com força desumana,


e nós te amamos por isso.” O doutor abriu um sorrisão implicante.
O irmão Dylan rosnou encabulado e se apressou para a
garagem.

“Ai, ai… aquele peixe vai sentir sua falta, Babi. Não se
esqueça de ligar pra ele todos os dias.” Disse o Doutor.
Eu concordei com a cabeça, tentando ocultar a profunda dor
no meu peito. Eu deveria me sentir aliviada por receber tanto apoio,
e realmente estava comovida, mas… o Taimen…

Quer saber? Talvez fosse exagero meu. Taimen pouco me


conhecia e não iria demorar a me esquecer, ainda mais depois de eu
ser uma completa vadia com ele.
“Você está chorando, Babelyn?” O doutor tocou meu rosto
molhado. “Todos nós sentiremos sua falta, mas são apenas alguns
anos, podemos conversar pela internet sempre que quiser. E você
vai fazer amigos por lá, talvez até encontre um namorado, já
pensou?”

Ah, maldição, até o Doutor Michel sendo insensível comigo, o


caso era muito grave!
Eu não queria chorar e complicar ainda mais um dia tão
difícil. A culpa era toda minha por esquecer da minha vida e das
minhas responsabilidades, e tudo porque um tritão medroso era legal
e amável comigo.
Segurando a minha tristeza, eu sorri para todos e agradeci a
ajuda. Até mesmo as crianças colaboravam em uma rara
demonstração de disciplina, eu não podia desprezar o esforço de
todos por conta dos meus próprios erros.

O senhor Alisson já havia separado uma muda de roupas


para a viagem, então eu subi para o meu quarto e quase tive uma
crise ao vê-lo quase todo vazio. Só restava a minha cama, um
armário vazio e a minha boneca de pedra, que me olhava sobre o
colchão como se me julgasse.
Eu troquei de roupas, soltei o meu cabelo bagunçado de
mendiga e o prendi novamente em duas maria-chiquinhas perfeitas.
Segundo o relógio do meu celular, naquele exato momento o Taimen
me aguardava no lugar combinado, e só perceberia o bolo quando eu
já estivesse no meio do céu.

Ahh, quanto mais eu pensava nisso, mais eu me sentia um


demônio sem alma!
Antes que eu tivesse uma crise nervosa, eu peguei a boneca
e olhei fundo em seus olhos inexpressivos.

Não havia porque sentir dúvidas. Desde a terrível morte do


Isha que eu jurei a mim mesma salvar todos os homens humanos
vítimas da predestinação com o nosso povo. No que dependesse de
mim, nenhum filhote precisaria nascer à custa da morte de ninguém.
E eu seria uma completa ridícula se abandonasse este
objetivo para me divertir com um tritão que eu mal conhecia.
Eu guardei a boneca e meus últimos pertences na mochila,
onde o meu besouro assistia a tudo em sua cápsula de vidro.
“É, Cocô, parece que seremos apenas nós dois, de agora
em diante.” Eu sorri para o meu inseto, tentando afastar lembranças
boas que agora voltavam doloridas como vinagre.

Determinada, eu fechei a mochila, admirei pela última vez o


quarto da minha infância, e então fui embora rumo à minha nova vida.
Capítulo 23

Apesar de toda a correria, nós conseguimos chegar a tempo.


O jatinho particular aguardava na pista secundária do Aeroporto
Internacional de Honolulu, pronto para decolagem.

Como a van surrada do senhor Alisson ficou totalmente


cheia, ele dirigiu sozinho enquanto o Doutor Michel levou a mim e as
crianças logo atrás, em seu próprio carro. Quando nós descemos na
pista de decolagem eu percebi outros carros bem familiares ao lado
da van.
Eu ainda não conseguia esquecer o Taimen, me perguntando
se ele ainda me aguardava, ou se estava chorando, ou com ódio de
mim. Alguém frágil como ele sofreria demais com um abandono tão
grande, e ainda assim eu não conseguiria encará-lo de frente para
me desculpar.

A minha viagem para Harvard deveria ser o momento mais


feliz da minha juventude, entretanto eu segurava as minhas lágrimas
e me sentia a pior das sereias. Perceber todos os que estavam ali
para a minha despedida apenas aumentou a minha culpa ainda mais.
O humano Gabriel, irmão Dylan, e até mesmo as gêmeas
auxiliavam com as bagagens, carregando-as ao compartimento de
carga do avião. Senhor Alisson estava assinando papeladas com o
piloto.
Todos estavam ali para se despedir de mim. Eles nem
imaginavam o quanto eu era uma sereia horrível e sem alma, que
naquele exato instante estava ferindo o coração de um quase-alfa
inocente. Se pelo menos eu tivesse sido menos avoada! Se ao
menos eu tivesse contado ao Taimen sobre a minha viagem, nada
daquilo estaria acontecendo.
Eu não deveria me sentir mal. Era só um tritão qualquer, que
com certeza me via como uma sereia qualquer, certo? Então por que
o meu peito parecia em chamas?

“Babelyn! Ah, você chegou a tempo, fico tão aliviado.”


Gabriel jogou-se em mim e me abraçou apertado. “Eu preparei
aqueles petiscos de lula que você gosta, estão todos no frigobar ao
lado do seu banco.” Ele aproximou o rosto e continuou sussurrando.
“Também escondi algumas garrafas de licor de anêmona que os
gêmeos me presentearam e eu achei terrível, mas eles disseram que
você gostou. Espere o Dylan dormir antes de bebê-las, ele sempre
dorme rápido em viagens.”
Eu expandi meus olhos, surpresa.

“O irmão Dylan vai ir comigo?”


“Claro que sim, ou como você transportaria todas estas
coisas? Geralmente os jovens mudam-se para a faculdade com uma
mala ou duas, mas quem sou eu para reclamar de exageros?” Disse
Gabriel.

Ah, nossa, eu não queria causar um inconveniente ao irmão


Dylan, mas ao mesmo tempo eu me animava, feliz que ele pudesse
fazer tanto por mim. Tritões raramente se afastavam do
predestinado sem grandes motivos, então o humano Gabriel
certamente tinha dedo naquela história.
Rebecca uniu-se a nós, batendo as mãos empoeiradas em
seu vestidinho de grife com um sorriso animado em seu rosto de
maquiagem impecável. Penélope chegou logo depois, séria, embora
muito mais relaxada do que na tarde anterior. Ela realmente
encontrou uma peruca idêntica ao seu cabelo pré-piripaque e parecia
ter recuperado a confiança.

“O papai Dylan está carregando as últimas malas. Não se


distraia tanto assim de novo, Babi.” Disse Rebecca, com um tom
brincalhão.
“Vocês estão sozinhas aqui? Onde estão os gêmeos?” Eu
perguntei, espiando os arredores.

“Quem entende os homens? Dawson sumiu da lancha em


pleno alto-mar, depois voltou e levou Jackson com ele. Então os dois
sumiram e a gente não sabia pilotar e… resumindo a história, tem
uma lancha abandonada em algum lugar do oceano.” Disse
Penélope.
“Sim, nós precisávamos nos despedir de certa demônia
loira.” Rebecca riu com travessura. “Mas não se preocupe, acho que
conseguiremos reencontrar o barco. Basta seguir o cheiro de
gordura hidrogenada.”

Eu não estava preocupada com a lancha, apenas espantada


que as gêmeas estivessem ali por mim. Elas me odiavam, não
odiavam? A gente sempre se pegou pelo pescoço desde a minha
chegada no Havaí.
“Meninas, vocês…” Meus olhos nublaram e eu esfreguei as
mãos no rosto, tentando secar as lágrimas antes mesmo que
caíssem. “…vocês sempre vão ser as diabas siamesas mais
satânicas que eu já conheci. Vou sentir saudades.”
As gêmeas me abraçaram e eu chorei nos ombros delas, tão
triste, assustada e feliz ao mesmo tempo.

“Você também é péssima, Babi. Já nos despedimos uma vez


e aqui estou eu, pagando mico de novo.” Disse Penélope. “Obrigada
por tudo.”
“E estoure a boca do balão em Harvard, futura sereia
médica.” Disse Rebecca.

“Estoure a boca do balão? Pelos oceanos, Rebbie, você


deve procriar com o Jackson, e não absorver o cérebro dele.” Disse
Penélope, espantada.
Nós três rimos juntas, e então o irmão Dylan acenou para
nós, já na porta do avião.

“Babelyn, precisamos ir!” Disse o meu irmão.


As turbinas do avião começaram a trabalhar, zunindo alto em
meio à vasta pista de concreto. Meu coração disparou na mesma
velocidade.

O Doutor Michel e o senhor Alisson também se aproximaram


para se despedir de mim. Eu troquei abraços com todos novamente,
tentei fazer o Doutor parar de chorar — uma missão impossível — e
então segui adiante até a escadinha do avião.
Eu nem sabia se estava chorando de alegria ou de tristeza,
só esperava que o meu coraçãozinho pudesse suportar. E que
Taimen me perdoasse algum dia.
Lutando para vencer meu nervosismo, eu dei o primeiro
passo na escadinha, ciente que meu passo seguinte seria o último
em solo havaiano por muitos meses, talvez anos.

“Babelyn, espera!” Gritou um rapaz ao longe.


Taimen? O meu coração saltou enquanto eu me virava, mas
óbvio que não era ele.

Jackson e Dawson corriam até nós, esforçando-se para


carregar juntos uma enorme caixa de presente.
O que era aquilo, uma geladeira?? Eu nunca vi uma
embalagem tão grande, e estava lindamente embrulhada em papel
colorido com um laço de fita.

Eu não sabia o que dizer, nem mesmo o doutor Michel me


surpreendia com presentes tão grandes.
“Nossa, então vocês realmente conseguiram.” Rebecca disse
ao seu predestinado. “Pobre criatura…”

“Shh!” Penélope mandou a irmã calar.


Os dois gêmeos passaram pelas meninas, ofegantes devido
ao peso que carregavam. Eles deixaram a caixa diante dos meus
pés e secaram o suor do rosto.
“Princesa Babelyn, nossa convivência foi breve, mas
gratificante. Esperamos de todo o coração que este presente a faça
reconsiderar a péssima impressão que lhe causamos.” Disse
Jackson.
Ah, agora eles estavam falando cordialmente? Eu não
deveria ceder tão fácil, mas… eu não me sentia no direito de julgar
ninguém, depois do que fiz com Taimen.

“Obrigada, rapazes. Sei que farão as gêmeas muito felizes.”


Eu sorri, meio amargurada, e me virei para o irmão Dylan, que ainda
aguardava na porta do avião. “Ahm… será que isto cabe?”
“Só temos um jeito de descobrir.” Disse o irmão Dylan.

Eu subi para dentro da aeronave, abrindo espaço para que


meu irmão e os gêmeos carregassem aquele trambolho para dentro
da cabine. Será mesmo que o bagageiro já estava cheio? Eu não me
lembrava de ter encaixotado tantas coisas.
“Não precisavam ter feito isso.” Eu disse, enquanto eles
ajeitavam a caixa deitada diante do barzinho.

“Sim a gente precisava.” Dawson suspirou, aliviado por livrar-


se do peso. “Era a nossa última chance de cair em suas boas
graças, Babelyn. Um Amalona de respeito valoriza a própria
reputação, e também suas amizades.”
Eu sorri para eles, não querendo parecer ingrata ou incapaz
de perdoar, mas era difícil não sentir dor. Taimen era um Amalona
assim como eles e jamais teve a oportunidade de recuperar sua
reputação. Mas seria injusto da minha parte desprezar os esforços
daqueles caras. Apesar de todos os erros cometidos, eles sempre
desejaram a minha amizade sincera.
“Valeu, caras. E desculpem também pela coisa do óleo no
banheiro.”
“Tá de boas, estamos quase concluindo a limpeza. Aliás,
Jackson, nossas meninas também estão aqui, onde será que elas
atracaram a lancha?” Disse Dawson.

“É uma boa pergunta.” Jackson balançou os ombros,


confuso.
Eu sorri nervosa, torcendo que aquele luxuoso barco não
tivesse encontrado nenhum rochedo em seu passeio solitário.

“Bem, as turbinas já devem estar terminando de aquecer.” Eu


me ajoelhei diante do presente e comecei a puxar a fita. “É melhor eu
abrir rápido isto aqui, e…”
“Não!” Os dois saltaram em mim e seguraram os meus
braços.

“É um presente especial.” Disse Dawson.


“Muito, muito especial.” Completou Jackson. “Prometa abrir
apenas em sua nova casa. O Digníssimo Dylan deve conseguir
carregar, estou correto?”

“Se dois Amalonas conseguem transportar, não será


problema algum para um Makaira.” Disse o meu irmão. “Agora
desçam. Se este avião voar com vocês aqui dentro, precisarei
arremessá-los no mar.”
Os rapazes concordaram e se despediram brevemente de
nós. Então eles desceram e pouco depois um comissário de bordo
fechou a porta.
“Peço aos passageiros que afivelem os cintos de segurança.
Caso necessitem de qualquer serviço basta chamar no painel em
suas poltronas, estarei na cabine de pilotagem durante o voo.” Disse
o jovem comissário.
Não era nossa primeira viagem de jatinho, e nem mesmo
nossa primeira viagem com aquela equipe de decolagem, então eu e
o irmão Dylan pudemos nos ajeitar confortáveis nas poltronas que
ficavam uma de frente para a outra. Eram grandes e macias como o
sofá de uma sala, e tão confortáveis que eu previa o irmão Dylan
dormindo muito, muito em breve.

O avião acelerou, zunindo alto suas turbinas até alçar voo.


Através da janelinha eu assisti Waikiki diminuir até se tornar
um pontinho na ilha de Oahu. Então Oahu também tornou-se apenas
um pontinho verde dentre tantos outros do arquipélago havaiano. Aí
chegamos à altura das nuvens e tudo ficou branco e silencioso.

O balanço tranquilo do jatinho era como um sonífero para o


meu irmão. Antes que ele apagasse, porém, havia uma coisa que eu
precisava perguntar.
“Ei, primeiro irmão…”

“Sim?” Ele abriu o frigobar e puxou um pacote dos petiscos


de lula, por muito pouco não flagrando o licor contrabandeado.
“Ahm… sobre o nosso pai, o Digníssimo Oráculo… se ele
estivesse negligenciando outros clãs, ele contaria para os filhos,
certo?”

O irmão Dylan me ofereceu o pacote aberto. Eu peguei um


dos petiscos e então ele também se serviu, bastante relaxado.
“Existem representantes de quase todos os clãs convivendo
em Egarikena, Babelyn. Se algum destes clãs fosse marginalizado,
certamente chegaria ao nosso conhecimento. Por que me pergunta
isso?”
Eu baixei a cabeça, pensativa e muito surpresa. Nem mesmo
o precioso primogênito, que meus pais sempre idolatraram, conhecia
a realidade?

“Não sei… não é por nada…” Eu respondi.


“Nosso tempo em Egarikena foi breve e em tempos
distantes, há anos confiamos apenas nas notícias do Byron, e ele
não é exatamente envolvido na política do nosso clã.”

“Então devemos perguntar para outros tritões? Talvez


investigando as outras colônias…”
“Babelyn, Egarikena não é mais o nosso lar.” Ele disse,
deixando transparecer certo aborrecimento. “Nosso pai ômega é,
antes de tudo, o oráculo do nosso povo. A palavra do oráculo é a lei
e a única verdade que devemos reconhecer.”

“Eu sei, peço perdão.” Eu bufei em desânimo. “E também


agradeço pela sua companhia. Lamento que o Gabriel o tenha
forçado a me acompanhar, mas também fico feliz. É bom tê-lo por
algumas horas a mais.”
“O Gabe não me obrigou a nada.” Ele deu uma risadinha
incrédula. “Quando o médico contou sobre a quantidade de malas,
pedi ao Gabe permissão para acompanhar minha irmãzinha. Imaginei
que seria uma solicitação difícil, mas ele adorou se livrar de mim.
Não entendo aquele humano.”
Eu também ri, me perguntando como o irmão Dylan
conseguia ser tão tonto. O Gabriel devia estar radiante pelo meu
irmão demonstrar compaixão por outra pessoa além dele. Eu
certamente me sentia nas nuvens.

O irmão Dylan com certeza mudou muito desde que eu o


conheci.

“Sabe, primeiro irmão, o campus de Harvard fica pertinho do


oceano. Deve ter peixes muito diferentes naquela região, então se
quiser caçar comigo antes de voltar pra casa…”
Um ronco interrompeu minhas palavras tímidas. Eu olhei para
frente e avistei meu irmão em sono profundo, quase deixando cair
seu lanche.

Eu soltei o cinto brevemente e salvei o pacote de petiscos. O


Gabriel não ficaria nada feliz se a gente os deixasse cair no chão.
Feliz apesar dos meus erros, eu voltei para o meu lugar e
terminei de comer, me sentindo abençoada por ter uma família tão
unida e cheia de consideração. Ainda demoraria muitas horas até a
nossa chegada ao Aeroporto Internacional de Boston, então logo eu
também tiraria um longo e confortável cochilo.
Capítulo 24

Uma sensação gelada no meu estômago me fez abrir os


olhos.

O quê…? Onde eu estava? O avião caiu e eu não percebi?


Porque só havia água pra todo lado e um brilho esquisito me
iluminando por baixo, e também galáxias cintilantes que não
combinavam com nenhum mapa astronômico que eu conhecesse.
Opa, opa, opa… já me falaram daquele lugar. Eu tive um
calafrio de pânico e espiei os arredores, buscando qualquer prova de
que era mentira. Minha cauda balançava na água cristalina e parada
demais, minhas roupas e até os elásticos de cabelo haviam
desaparecido e não se ouvia o menor som além da minha respiração
errática. A julgar pelas observações em análise, aquele só podia ser
o meu despertar.

Nããão! Que piada do chamado era aquela? Eu estava plena


viagem aérea, provavelmente dormindo na minha poltrona em rumo
ao meu grande e próspero futuro como médica obstetra! Não havia
espaço para mais nada na minha vida, especialmente para um…
um… alfa!
Eu cobri meus seios expostos e olhei ao redor, histérica. Ele
estava ali, não estava? Um tritão genérico e desconhecido com o
poder de me arrastar para qualquer fim de mundo no alto-mar.
Ah, mas nem pensar! Eu procurei aquela desgraça em meio
à água infinita, pronto para lhe dizer umas boas verdades. Mesmo
que o chamado zoasse comigo me despertando no pior momento
possível, eu não iria ceder aos caprichos de nenhum alfa ridículo.
“Onde caralhos você está?” Eu girei o corpo, mergulhei e
voltei à superfície, tentando não me revoltar. Não era culpa daquele
alfa, eu deveria segurar meu ódio para quando ele tentasse alguma
gracinha. Ah, se aquele bonito não ganharia algumas dentadas no
pescoço.

Mas e se as gêmeas estivessem certas sobre o meu


temperamento deplorável? E se o meu alfa fosse mau?
Eu me abracei e estremeci, de repente desejando qualquer
coisa, menos encontrá-lo. Eu era forte e valente e não me dobraria
para nenhum alfa sem luta, mas também era apenas uma sereia
baixinha e sem massa muscular. Em uma briga de egos entre um alfa
e uma ômega não seria difícil apostar no vencedor.

“Apresente-se, maldito! Eu tive aulas de caratê na escola!”


Eu disse, tentando manter uma voz simpática apesar do que dizia. É,
eu não estava causando uma boa primeira impressão.
A superfície da água ondulou por trás de mim. Eu me virei e
dei um berro.

Tinha alguém bem nas minhas costas!! Ele era grande,


musculoso e ridiculamente gostoso, apesar do cabelo caído no rosto
e da postura de quem se preparava para ter a cabeça enfiada no
vaso.
Meu coração já acelerado disparou como as turbinas de uma
usina eólica em um temporal.
“Taimen! O que está fazendo no meu despertar?” Eu
perguntei, confusa e enfática.

“Eu… eh… ahn… isto é bem… d-desculpa…” Ele tremia.


Será que levou a sério a história do caratê? “Eu tentei te chamar,
você não me viu, aí eu… me aproximei e… desculpa.”
Taimen estava ali desde o começo, naquele oceano sem
coisa nenhuma? E eu não o vi antes? Como alguém podia ter tão
pouca presença??

Para tudo, então se o Taimen estava ali, só podia significar


uma coisa…
“Nós despertamos! Nós despertamos um com o outro, não
entende, Taimen? Eu sou a sua predestinada, e você é meu alfa, e
nós dois…” Meus olhos brilhavam e eu sorria tanto que minhas
bochechas doíam. Por que eu me sentia tão feliz? Eu só podia estar
enlouquecendo pelo excesso de informação, e isto não apagava os
meus péssimos erros. Minha alegria se dissolveu. “Peço perdão,
você ainda está me aguardando para o almoço, mas eu fui uma
sereia horrível, distraída e egoísta. A verdade é que nem estou mais
no Havaí, mas atravessando o mundo, porque…”

Eu me interrompi, percebendo o quanto Taimen estava


desconfortável e nervoso. Quer dizer, ainda mais do que o normal.
Quando tentei tocar seu ombro em um gesto de apoio, a minha mão
o atravessou.
Taimen balançou a cabeça e afastou a franja, revelando seus
lindos e assustados olhos bicolores. Era um momento estranho para
notar o quanto ele estava pelado? Não era a minha primeira vez
notando o seu torso exposto e a musculatura de sua cauda degradê,
era só que… eu percebi que nunca me cansaria de olhar.
“B-Babelyn… eh… ah, eu notei que… quer dizer…” Taimen
esfregou os cabelos e respirou fundo, como se cada palavra fosse
difícil de pronunciar. “Eu soube do p-p-problema que… que não é
problema e… só que meus primos… ai, isso é embaraçoso…”

“O que tem seus primos? E o que é embaraçoso? Taimen,


você não está me entendendo, eu errei e fui embora do Havaí, estou
em pleno voo em um jatinho fretado e… ah, pelos oceanos, você terá
que vir nadando até mim. Ou talvez possa comprar uma passagem?
A viagem de encontro ao ômega geralmente é mais tradicional, mas
não vou te culpar se…”
“N-n-não acho que vá ser necessário.” Ele disse,
avermelhando.

“Por quê? Você não pretende me encontrar? Escuta, eu sei


que fui uma vadia completa, devia ter te avisado que iria embora,
mas quando estou com você o meu intelecto avançado se torna uma
sopa de algas. Vamos tentar resolver isto direito, ok?”
“Eh… s-sim. Isto n-não… quer dizer… sou muito grato ao
chamado pela nossa união.” Ele sorriu meio torto, havia uma sincera
alegria em seu rosto, mas também um desespero incompreensível.
“Ai, nossa, isto é muito vergonhoso, eu… se puder… venha você de
encontro a mim?”
Quê? Mas olha só, que audácia a daquele alfa! Eu podia ser
uma sereia muito progressista e liberal, mas certas partes da nossa
cultura eram românticas! Se fosse para conviver e procriar com
aquele cara, por mais legal que ele fosse, eu esperava ao menos o
esforço de tê-lo nadando até mim.
Se bem que… será que eu podia mesmo recusar, quando eu
mesma desejava quebrar todas as regras? Que moral eu teria
depois para soterrar Taimen com a quantidade de limites que eu
pretendia estabelecer até a minha formatura?

Uma sereia nadando até o seu alfa… até que o chamado


sabia castigar com certo senso de humor.
“Vou precisar de alguns dias até me organizar na pensão, e
depois prometo te encontrar. Mas já aviso que não tenho a
resistência de um alfa, ok? Então me espere em Waikiki, ou em
Orona, ou sei lá, com muita paciência.”

Taimen afinou os lábios e torceu o rosto, me olhando com


cara de quem pensava ai, meu Deus, por onde eu começo?
“Então… ah… s-s-sobre isso… não precisa d-demorar tanto.
D-digo, se eu esperar demais vou morrer, provavelmente.”

“Não seja dramático, Taimen. Se tem tanta pressa venha


você mesmo, ou então compre uma passagem de… ei! O que está
acontecendo?”
A água e o céu ondularam e borraram. A imagem do Taimen
dissolveu-se em meio aos tremores e eu chacoalhei entre ondas
cada vez mais altas, sentindo-me em uma máquina de lavar.
“Taimen!” Eu gritei em meio à barulheira das ondas, mas
ninguém respondeu. O brilho do chamado me aqueceu e se
intensificou até tudo se tornar luz.

****

Eu acordei saltando e o cinto de segurança me derrubou de


volta na poltrona.
Tudo permanecia igual à antes de eu dormir. O irmão Dylan
ainda roncava na poltrona de frente para a minha e as nuvens
passavam do outro lado da janela, clareando ainda mais o azul
intenso do céu. Pelo visto não dormi por muito tempo, mas eu sentia
como se tivesse adormecido durante anos. Era tão… diferente. E
não de um jeito confortável.

Eu soltei o cinto e tropecei em direção ao banheiro. Algo não


estava nada certo, minha cabeça doía e meu ventre parecia feito de
arame farpado. O avião seguia em percurso tranquilo e ainda assim
eu me sentia em um redemoinho, precisando me concentrar a cada
passo para não me arrebentar no chão.
Para piorar a minha sofrível situação, no caminho ao
banheiro tropecei naquela caixa gigante. Eu empurrei e chutei aquele
trambolho para o lado e precisei correr para chegar a tempo.

Assim que eu me tranquei no banheiro eu caí de joelhos e


virei tudo o que tinha no estômago. A dor era intensa demais, a
ponto de eu não conseguir endireitar as costas.
Droga, maldito despertar, e em um momento tão
inconveniente! Quer dizer, seria mil vezes pior durante uma prova
final em Harvard, mas em um avião eu não podia buscar o conforto
do mar.
Os ômegas homens costumavam brincar sobre a sorte das
sereias por não escorrerem lubrificante ao menor pensamento
impróprio, mas eu não me importaria de ser uma cachoeira
constrangedora se pelo menos aquela dor me desse descanso.

<< Ei… ahn… B-Babelyn…>>

“Não me vem com telepatia de predestinados agora, Taimen!


Estou tentando não arrancar os meus ovários com as unhas!” Eu
rosnei, enfim conseguindo me levantar e dar descarga. “É tudo culpa
sua por ser uma distração enorme nos meus grandes planos de vida!
Eu tinha tudo certinho e planejado desde a infância, aí você chega e
tudo são confetes e algodão-doce!”

<<Babelyn, me escuta, eu…>>

“Ah, quem vai me escutar é você! E se acostume, porque


agora o seu cérebro e o meu são uma coisa só! E como você já
deve sentir, minhas glândulas já estão liberando altas doses de
adrenalina e estrogênio.”
<<O que é estrogênio?>>

“Significa que estou putaça, Taimen! Fica quieto um minuto e


me deixa pensar, porque você virou a minha vida do avesso!” Eu
chutei a porta do banheiro e saí cuspindo fogo. “Eu poderia ter
predestinado com um tritão qualquer e metido um pé na bunda dele
sem o menor remorso! Mas aí você surge, e eu fico agindo como
uma abestada, e agora somos predestinados e ao invés de eu estar
brava eu estou feliz pra caralho!”

<<Ahm… você parece bem brava, na verdade.>>

“Eu não estou brava!” Eu rosnei com os dentes expostos,


procurando qualquer coisa que eu pudesse matar. “E se vier com
aquela besteira sobre alteração de humor em sereias recém-
despertadas, eu me jogo agora deste avião e volto nadando para
quebrar a sua cara fofa e inesquecível!”
Não havia nenhum inimigo que eu pudesse destruir, então eu
chutei aquela caixa idiota com um presente idiota que eu nem
merecia ganhar porque eu também era idiota! E então eu chutei
aquele trambolho de novo, dessa vez com tanta força que o negócio
tombou para o lado.

“Mmhff!!” gritou Taimen. “Bmmblyn, mf sctt puffvo…”


“Você não reclame, Taimen, porque eu sempre, sempre
planejei a minha vida acadêmica dos sonhos, na fraternidade que eu
mesma escolhi, frequentando o campus mais cobiçado do mundo. E
agora — sim, exatamente agora — eu já quero mudar algumas
coisas e me mudar para uma casinha à beira-mar, onde eu possa
estudar de dia e voltar para você e nossos filhotes de noite!”
O irmão Dylan surgiu e me segurou pelo braço antes que eu
arrebentasse o meu pé descalço naquela caixa.

“As gêmeas também demoliram metade da casa quando


despertaram. Logo vai passar, controle-se.” Disse ele.
Eu me forcei a relaxar o corpo, embora eu quisesse xingar o
Taimen, e aqueles gêmeos, e todo mundo que eu conhecia.

Percebendo que eu não causaria a queda daquele avião, o


irmão Dylan me soltou e sorriu, meio constrangido.

“Então enfim chegou o seu momento, irmãzinha.” Ele falhava


em parecer despreocupado. “Quem é o predestinado de sorte?”

“Sorte? O Taimen não tem sorte nenhuma, porque eu sou


uma vadia desalmada que fugiu para o outro lado do mundo
enquanto ele só queria me agradar com um peixe. E ele é um bobo
que não sabe caçar uma sardinha, mas eu fingiria acreditar que foi
ele, e a gente almoçaria juntos nas fendas do alto-mar e seria
romântico. Mas eu nunca desejei romance, eu sempre quis ser uma
médica e agora quero matar alguém!”
Eu marchei furiosa para o barzinho, já de olho em umas
garrafas bem quebráveis. O irmão Dylan me segurou de novo antes
de uma tragédia.

“Certo, certo, vamos por partes. Você predestinou com este


tal de Taimen. Ele é um tritão de boa índole ou devo matá-lo o
quanto antes?”
“Como é? Ele é um anjo, irmão Dylan! Um anjo Amalona
medroso e com terríveis problemas de dicção, mas eu preciso ver
ele, e o meu quadril parece feito de fogo e acho que estou tendo
uma crise de sudorese e pirexia! Liga para o Doutor! Celular pega
aqui em cima?”

O irmão Dylan balbuciou alguma coisa, pensando em uma


resposta enquanto me olhava como se eu fosse uma paciente
psiquiátrica.
“Acho que entendo porque tantos alfas aguardam horas
antes de encontrar sua sereia, mesmo quando predestinam
próximos.” O irmão Dylan me soltou e sutilmente bloqueou o caminho
da adega com whiskies importados. Ele conhecia a irmã que tinha,
mesmo que eu nunca tivesse sentido tanta fúria. “Que tal um
exercício terapêutico? Tente comunicar-se com o seu alfa, com
alguma concentração você poderá até mesmo localizá-lo.”

“Localizá-lo?”
“Quando eu me afastava do Gabe, localizá-lo por telepatia e
me certificar de sua segurança sempre me acalmava. Foi muito difícil
me adaptar à vida sem este poder, então recomendo que valorize o
seu.” Ele olhou com discreta tristeza para a cicatriz em seu pulso.

Pobre irmão Dylan, mesmo com suas limitações telepáticas


ele escolheu me acompanhar para Cambridge e ainda precisava lidar
com a minha raiva esquisita. Uma sereia da ciência sempre colocava
seu intelecto acima das emoções, eu precisava me controlar.
Decidida a seguir o conselho do meu irmão, eu fechei os
olhos e tentei encontrar alguma parte nova da minha psique. Foi
muito fácil conversar com o Taimen, já existia certa ligação entre nós
dois, então encontrá-lo não podia ser difícil.

<< Babelyn, e-eu estou aqui! >>

Aham, claro que Taimen estava onde ele estava, mas onde
seria ali, exatamente? Não havia se passado tanto tempo, ele ainda
devia estar nos arredores de Waikiki, entretanto minha recém-
adquirida telepatia estava demorando a pegar no tranco. Por que eu
sentia como se meu alfa se estivesse bem ao meu lado?
“É impressão minha, ou esta caixa se mexeu?” O irmão
Dylan arqueou as sobrancelhas.

Eu dispersei minha concentração e olhei para baixo.


Realmente, a caixa parecia um pouquinho mais para frente.
“Mfnn stfff amaarrff affi dnnnrr” Disse o Taimen.

Eu revirei os olhos para as gagueiras sem sentido dele,


então reparei na expressão de espanto na cara do irmão Dylan.
Ele… ele também ouviu aquilo? Pensando bem, a voz soava
diferente de suas mensagens telepáticas.
De repente algo clicou dentro do meu cérebro. Eu e meu
irmão trocamos um olhar de não pode ser e olhamos ao mesmo
tempo para a enorme caixa.
Nós dois ajoelhamos às pressas e começamos a rasgar o
embrulho. O irmão Dylan arrancou os laços de fita, eu puxei o papel
de presente e juntos nós dilaceramos a caixa de papelão logo
abaixo.
Dentro do misterioso presente havia… uma armadilha de
lagostas. E dentro da armadilha de madeira e ferro um tritão se
debatia, gemendo através de sua mordaça.

“Ai, pelos sete oceanos! Como? Por quê?” Eu mordi as


grades e correntes, tentando libertá-lo.
“Um tritão embrulhado para presente…” O irmão Dylan
levantou-se esfregando a testa, perplexo. “A armadilha de lagostas
era mesmo necessária?”

Eu enterrei os dentes em uma última parte da portinhola,


então a grade estourou e Taimen era um tritão livre. De novo.
Lentamente, Taimen conseguiu espremer-se pelo buraco que
eu abri. Ele ainda estava molhado e vestindo apenas um saiote, o
que sugeria que aqueles palhaços apenas surgiram no local do nosso
encontro e o sequestraram. E aqueles tais palhaços teriam a minha
eterna gratidão.

Agora que estava fora da jaula, Taimen conseguiu soltar a


mordaça e a primeira coisa que fez foi sorrir para mim, ao mesmo
tempo muito envergonhado e também muito feliz.
“P-p-peço p-perdão, Babelyn. Eu deveria ter perguntado
sobre os seus c-compromissos. E-eu não me importo sobre a coisa
do almoço, de verdade. Ainda podemos remarcar para outro dia?”
Eu queria rir. Eu queria chorar. Eu queria socar o peito do
Taimen e gritar sobre como ele podia ter avisado antes. Mas, acima
de tudo, eu queria beijá-lo.
Sentindo turbilhões elétricos no meu coração e um
verdadeiro incêndio florestal no meu baixo ventre, eu agarrei Taimen
pelos ombros, aproximei nossos corpos e… então um par de mãos
nos agarrou pela cabeça e forçou para trás, nos separando de novo.

Com as presas afiadas de sua forma feral o irmão Dylan


rosnou para o Taimen, que quase se borrou todo.
“Minha irmãzinha é uma sereia de respeito, seu Amalona com
tremilique. Identifique suas verdadeiras intenções!” Vociferou ele,
quase o erguendo do chão pelo topo da cabeça, como uma bola de
boliche.

“Meu irmão, está tudo bem! Ele é o Taimen Amalona de


quem falei. É o meu predestinado!”
O irmão Dylan desmanchou a postura de machão bravo e
torceu a boca para mim de um jeito cômico.

“Você predestinou com isto aqui??” Perguntou ele. Dava pra


notar que ele pretendia continuar com alguns insultos, mas felizmente
lembrou-se dos bons modos e soltou a nós dois, limpando a
garganta e endireitando a pose. “Neste caso, prossigam.”
“Não vou beijar ele com você olhando, primeiro irmão!” Eu
resmunguei, enfática.

“Ok, ok, então eu vou… continuar a viagem na cabine do


piloto. E tentar não pensar muito sobre o que vai acontecer aqui.”
“G-g-gratidão, Digníssimo Príncipe Dylan, prometo que…”
“Veja lá o que vai prometer, seu Amalona tique-tique. É da
minha irmãzinha que você está falando.”

“Meu irmão, onde está seu respeito!” Eu abracei o Taimen de


lado antes que ele desmaiasse de medo. O pobre infeliz estava mais
branco que as nuvens do céu.
O irmão Dylan bufou.

“O respeito deveria vir dele. É cunhado Dylan, de agora em


diante.” Ele nos deu as costas e foi em direção à cabine de
pilotagem. “Apenas não façam nada que derrube esta aeronave.”
Assim que o irmão Dylan fechou-se com o piloto e o
comissário, eu sorri em profundo alívio.

“Acho que meu irmão gostou de você.” Eu disse.


“Acho que eu preciso respirar dentro de um saco plástico.”
Respondeu Taimen.

“Vem, aquelas poltronas são confortáveis como sofás.” Eu


puxei Taimen pela mão, quase saltitando de tanta euforia. “A
propósito, me diga…” Eu abri a porta do frigobar como se fosse um
baú do tesouro, sorrindo para ele com toda a minha recém-
descoberta devassidão. “…você já experimentou licor de anêmona?”
Capítulo 25

Após uma longa viagem o avião pousou com segurança no


Aeroporto Internacional de Boston.

Quando o comissário abriu a porta já havia uma equipe de


carregadores movendo as bagagens para uma carreta de transporte.
Pelo visto eu e o irmão Dylan não precisaríamos carregar tanta coisa
nas costas até o campus, o que era a única boa notícia em tempos
recentes.
Segurando as minhas lágrimas e com um sorriso de
desespero frustrado no rosto, eu fui a primeira a descer as escadas.
Logo atrás de mim vinha o irmão Dylan carregando nos braços o
Taimen desmaiado.

“Pode falar, irmão Dylan. Eu sou uma retardada.” Eu disse,


querendo me matar de vergonha.
“Tudo isso com apenas duas garrafas de licor? Foram doze
horas de voo, tem certeza que ele não está em coma?” O irmão
Dylan sacudiu Taimen em seus braços.

Taimen grunhiu alguma coisa e abraçou o pescoço do meu


irmão.
“Hrnn… não quero alimentar os cavalos…” Disse ele, e então
apagou de novo.
“…Certo, não é um coma.” Meu irmão precisou segurar o
riso.
Eu suspirei, me sentindo a mais burra das criaturas
aquáticas. Um tempão sozinhos no conforto de um jatinho particular,
e a minha consumação foi arruinada por algumas taças de álcool.
Quem mandou tentar ser descolada como os gêmeos?

“Por favor, não conta sobre isso para as meninas.” Eu


supliquei esfregando as têmporas.
Meu irmão não respondeu nada, mas eu podia imaginá-lo
com as bochechas infladas, segurando-se para não rir.

Nós deixamos a pista de decolagem, atravessamos o


enorme Aeroporto Internacional e então eu entrei no táxi. O irmão
Dylan colocou Taimen ao meu lado e então sentou no banco da
frente.
Assim que o taxista dobrou a primeira esquina, Taimen caiu
em cima do meu ombro e roncou alto. Imaginei que o meu irmão
finalmente explodiria de tanto rir, mas ele estava ocupado anotando
alguma coisa em um bilhete.

“Neste endereço, por favor.” Pediu ele.


O taxista concordou com a cabeça e seguiu conosco pelas
avenidas de Boston.

Eu arqueei a minha testa, estranhando o porquê do meu


irmão passar o endereço em um bilhete escrito. Aliás, quando eu
disse a ele o nome da minha pensão?
Bem, considerando-se as neuroses do meu irmão, ele deve
ter interrogado o doutor Michel e então elaborado uma ampla
pesquisa sobre a distância da pensão até a faculdade — doze
minutos andando —, o acesso mais próximo e seguro ao oceano —
Península dos Cervos, à uma hora e vinte minutos de ônibus — e até
mesmo o tempo para a chegada da polícia no caso de alguma
emergência — 22 minutos em dia sem trânsito. Ele pensava mesmo
que podia ser mais detalhista do que eu? Não havia nenhum aspecto
da minha nova vida que eu não tivesse analisado com precisão.
…Exceto, é claro, que agora eu estava predestinada a um
cara medroso, dócil e lindo, que não podia beber algumas taças de
álcool sem capotar durante metade de um dia. E uma predestinação
significava um bebê. Oh, pelos oceanos! Se o mastro do Taimen não
tivesse morrido junto com o resto dele eu provavelmente já estaria
com um bebê a caminho!

Como se inicia uma próspera vida universitária com um bebê


dentro da barriga?
“B-Babelyn, você tá t-t-tremendo.” Taimen levantou devagar
e teve um choque ao olhar pra fora. “O avião tá caindo!!”

Eu agarrei o braço daquele fiasco de tritão e o fiz deitar no


meu ombro novamente. Meu senso de humor começava a despencar
novamente e eu queria sentir seu cheiro de alfa para confortar meus
instintos homicidas.
Tudo o que consegui, é claro, foi aquecer no meio das
pernas. Sereias raramente lubrificavam em momentos inoportunos,
mas assim que eu levantasse o taxista iria pensar que eu virei um
balde de água no carro.
Ai, ai... tanto tesão por um cara que realmente apagou de
novo e começou a babar no meu ombro. A minha autoestima não
precisava daquilo.
Frustrada como eu estava, eu baixei o vidro e observei a
paisagem enquanto o vento batia no meu rosto.

Boston era enorme, e por enorme eu queria dizer enorme.


Era como se pegassem o centro de Honolulu e aumentassem a
escala. Os prédios eram muito mais altos, espremidos uns nos
outros e começando a acender suas luzes coloridas para a noite que
se aproximava. Os parques também eram grandes, com gramados
muito mais verdes e densos que as praças arenosas do Havaí.
Também não havia coqueiros e nem vulcões no horizonte, mas sim
muitas espécies de flora e fauna desconhecidas que eu mal podia
esperar para analisar.
Quando percebi eu estava maravilhada com Boston, e tudo
melhorou ainda mais quando atravessamos a ponte até Cambridge.
Óbvio que uma sereia da ciência já havia pesquisado fotos pela
internet, mas ver os sobrados de tijolinho e ruas arborizadas de perto
era inacreditável. Eu não sabia se eu ria ou se eu chorava de tanta
emoção ao reconhecer certos pontos turísticos que antes não
passavam de um namoro à distância pela internet.

A cada segundo que passava o meu sonho se mostrava mais


real. Os mesmos rios, os mesmos bistrôs com mesas na varanda, a
mesma horda de estudantes correndo para a aula com pilhas de
livros na mochila e nos braços. E em poucos dias eu me uniria àquela
manada de aprendizes da ciência.
Eu me lembrei das fotografias que mais me impressionaram,
todas elas retratando o lindo campus de Harvard e suas muitas
casas de fraternidade. Minha fraternidade de escolha era o lar das
estudantes com as melhores notas e excelente desempenho
acadêmico. E elas também eram lindas e pareciam ser incríveis e
preocupadas com o futuro, exemplos de mulheres que eu pretendia
me tornar.
Segurando o meu coração em expectativa, eu esperei que o
carro dobrasse mais uma esquina e enfim chegasse à tão sonhada
Harvard, mas então o motorista seguiu em frente e a placa de
trânsito escrito Campus Universitário à esquerda ficou para trás.

Eu deitei o Taimen contra a porta e me debrucei entre os


dois bancos.
“Com licença, mas estamos indo para o lado errado.” Eu
disse para o taxista.

“Estou seguindo o GPS, mocinha. É este aparelho aqui.” Ele


apontou para o celular no painel, sorrindo para mim.
Eu bufei, indignada. Eu conhecia mais sobre localização via
satélite do que aquele gordinho arrogante aprenderia por uma vida
inteira! E não me interessava o itinerário daquele aplicativo fajuto, eu
exigia respeito!

“Hormônios, Babelyn.” O irmão Dylan fez um gesto para que


eu parasse de bufar. “O endereço está correto, confie no seu irmão.”
Ainda revoltada, eu me aquietei e tentei não pensar no
calorão pulsante nas minhas partes baixas, ou no quanto meus
mamilos rígidos doíam de tanto arranhar contra o meu vestido, ou no
fato do meu predestinado falhar com suas obrigações! Se a intenção
fosse fazer um agradável passeio panorâmico pela cidade eu iria
matar a todos dentro daquele carro.
Obediente ao primeiro irmão, eu fiquei quieta enquanto meus
sonhos se tornavam um pontinho cada vez mais distante na janela de
trás.

Cinco minutos depois, o táxi dobrou em uma pequena rua


com chão de ladrilho e amplas calçadas arborizadas e floridas.
Mesmo em uma cidade universitária havia vilas elegantes assim, com
casas de dois andares, jardins enfeitados e cerquinhas de madeira
branca. Aquela rua nem sequer tinha saída, então deduzi que o
motorista fosse enfim perceber seus erros. Só que ao invés de dar
meia volta, ele encostou e estacionou o carro.
“O que estamos fazendo aqui?” Eu perguntei.

Meu irmão desceu do carro e abriu a minha porta para que


eu também descesse. Enquanto ele pagava ao taxista eu fiquei
olhando os arredores, me perguntando se a Kappa-Nu teria mudado
de endereço. Apesar de grandes, aquelas casas não pareciam ser
pensões de fraternidade.
Taimen apareceu ao meu lado, sonolento e esfregando os
olhos.

“Babelyn, acho que eu não gosto de licor.” Disse ele.


“Ainda bem, porque nunca mais te deixo beber uma gota que
seja.” Eu acariciei o pescoço dele, feliz em vê-lo consciente de novo.
“Faz ideia de porque estamos aqui?”
“Perdão, receio que n-não esteja no meu conhecimento. Mas
o seu irmão me entregou isso.” Ele mostrou um chaveiro com um
caduceu dourado super elegante, escrito médica embaixo. Preso a
este chaveiro havia uma única chave.
Só então eu entendi e o meu coração acelerou em espanto
por diversos motivos. Em primeiro lugar, uma sereia da ciência
deveria ter deduzido aquela reviravolta muito mais cedo, e em
segundo lugar, caralho, aquele lugar lindo era a minha nova casa??

O primeiro irmão surgiu entre nós e apoiou as mãos em


nossos ombros. Era raro vê-lo tão feliz quando estava longe do
Gabriel.
“Tudo começou quando o maculador comprou um loft para te
surpreender, então eu precisava fazer melhor e comprei um
apartamento com vista para o mar. Aí ele comprou um duplex com
piscina na cobertura. Uma coisa levou à outra até que eu quase
comprei uma ilha, mas o Gabe descobriu nossa competição e nos
fez escolher sua casa dos sonhos juntos. Esperamos que goste.”

Eu não encontrei palavras… enquanto eu enlouquecia e fazia


uma besteira atrás da outra, o irmão Dylan e o Doutor Michel só
pensavam em como me fazer feliz.
“Sou muito grata, meu irmão.” Eu quase me inclinei, como
seria um cumprimento apropriado ao primogênito da minha linhagem,
mas liguei o foda-se e o abracei apertado.

“Se não quiser aqui, claro que pode morar naquela


fraternidade… ou em alguma das onze propriedades que acabei
adquirindo naquele dia. Rejeite qualquer residência que aquele
maculador te oferecer, e também evite a cabana da floresta, só
descobri o problema com os ursos depois que comprei.”
Eu admirei aquela casa, desta vez com novos olhos. Eu era
mesmo a dona daquele lugar tão fofo, com duendes no jardim e
hibiscos nas floreiras? E a casa em si era toda de tijolinhos
vermelhos, à moda antiga. Era legal demais.

Nunca me imaginei morando sozinha. Por mais que eu fosse


uma estudante reclusa eu gostava da conversa agradável do Doutor,
dos conselhos do meu irmão e até mesmo da implicância das
gêmeas, e a falta de todo aquele carinho me mataria de tanta
saudade. Para fugir da solidão, uma pensão de fraternidade sempre
foi a minha única escolha. Nunca me passou pela cabeça que,
apesar de não morar com outras estudantes, eu não estaria sozinha.
Por uma fração do tempo em que eu admirei aquele jardim,
também imaginei uma criança brincando com as decorações de
cimento e outra escalando a macieira. Eu ainda nem havia explorado
o lado de dentro, mas algo já me dizia que aquilo era muito mais que
uma casa. Aquele era o meu lar.

“Eu nunca vi tantas casas sem nenhum c-cavalo.” Taimen


sorriu. “Já gostei daqui."
“Gostaria de eleger este como o nosso território, meu alfa?”
Eu sorri com implicância.

“D-depois do discurso do seu irmão, acho que se eu


discordar ele arranca as minhas escamas.” Ele abriu o portãozinho
de madeira e me concedeu passagem. “Tenha as honras, minha
predestinada.”
“Não é que você consegue parecer um alfa apropriado?”
Disse o meu irmão, e assim que eu passei ele se aproximou do
ouvido do Taimen, como se eu não fosse ouvir. “Se maltratar a minha
irmãzinha de qualquer jeito, a fizer derramar uma única lágrima, aí
sim arranco suas escamas e enfio cada uma pelo buraco do seu…”
“Irmão Dylan!” Eu resmunguei, já na porta da casa.

“…nariz.” Meu irmão se corrigiu às pressas.


Taimen estremeceu e correu para o meu lado. Até quando
ele levaria qualquer ameaça absurda a sério?

“Foi brincadeira do meu irmão, relaxe.” Eu beijei sua


bochecha e passei a chave na fechadura. A porta se abriu com um
clique metálico. “Se você me maltratar, eu mesma lhe darei um
destino muito pior que a morte.”
Taimen paralisou de tanto medo e então eu entrei sozinha na
casa, pronta para explorar cada cantinho. O caminhão de mudanças
chegou pouco depois e então nós três juntos carregamos todas as
coisas para dentro.

Quando já era tarde da noite, mal se podia caminhar na


espaçosa sala. A casa já havia sido comprada com alguns móveis
essenciais, como sofás e estantes para livros, mas ainda havia muito
a se aprimorar.
Diferente das gêmeas eu não me considerava uma
especialista em decoração, mas, mesmo após horas carregando
coisas, eu me sentia capaz de moldar cada detalhe daquela casa ao
meu próprio gosto. E o Taimen com certeza me ajudaria!
“Ei, Taimen, em qual dos quartos prefere montar sua oficina
de joias?” Eu perguntei, secando o suor da testa.
Taimen não conseguiu me responder. Em uma tentativa de
imitar o irmão Dylan, ele tentou carregar três caixas de roupa em
cada braço, caiu e soterrou a si mesmo. O meu irmão estava
escavando minhas pilhas de calcinhas na tentativa de encontrá-lo.

“Os genes deste cara não deveriam continuar.” Meu irmão


achou o Taimen e o libertou puxando pela cabeça.
Ah, mas seus genes continuariam, sim. Se dependesse do
calorão no meu corpo, Taimen e eu seríamos Adão e Eva
repovoando os oceanos.

Encabulada, eu recolhi minha caixa de roupas íntimas e tirei


uma meia que ainda estava presa na orelha do Taimen. Não havia um
jeito não constrangedor de pedir o que eu desejava, mas o irmão
Dylan identificou o problema antes mesmo que eu falasse.
“O quarto maior já tem uma cama, eu arrumei com os seus
lençóis e fronhas, acredito que deva estar a seu agrado.” O irmão
Dylan deu uma piscadinha de cumplicidade para mim. “Se não
precisam mais da minha assistência, descansarei no oceano esta
noite.”

“Na verdade tem camas em todos os…” Começou Taimen.


“Agradecemos a sua gentileza, irmão Dylan!” Eu cobri a boca
do Taimen. “O encontraremos ao primeiro raio de sol para o
desjejum!”

O meu irmão foi embora, e com isso novamente me vi


sozinha com o Taimen. Apenas nós dois, um sofá, diversas camas e
o fervor crescente dos nossos corpos.
Antes de predestinar eu não queria bebês, da mesma forma
que não queria um alfa, ou o fim da minha liberdade. A princípio eu
mesma estranhei a minha súbita mudança de opinião, de repente
permitindo que meus instintos de sereia tomassem o controle do meu
senso crítico, mas quando olhei nos olhos do Taimen tudo fez
sentido.

Taimen não era o meu controle, da mesma forma eu não era


a seu objeto de reprodução. Nós éramos a liberdade um do outro.

Frequentar a faculdade grávida seria uma experiência


esquisita, mas a minha natureza de sereia já me causara perrengues
muito maiores. Se havia alguém capaz de tornar viável uma loucura
tão grande, este alguém era o Taimen. Meu predestinado podia ser
medroso e desastrado, mas ele também era o meu macho alfa e
futuro pai dos meus filhos.

Eu puxei Taimen pela mão até o quarto, e apenas no meio do


caminho ele compreendeu os rumos daquela noite. Sua excitação
reverberou dentro de mim e eu quase me joguei nos degraus para
fazer ali mesmo.
“Ei, Babelyn, tem certeza? Quer dizer, p-podemos esperar,
eu te espero o tempo que for preciso.” Ele passou a mão no bolso,
super encabulado, e tirou alguma coisa. “Eu… ahm.. Eh… t-tenho
camisinhas, quer dizer, seu irmão meteu elas no meu b-bolso, mas
posso comprar também, se preferir, e…”

Camisinhas? É, talvez fosse uma boa ideia, pelo menos até


os meus hormônios se acostumarem com o despertar.
“Agradeço pela cortesia, Taimen.” Eu sorri com travessura e,
assim que entramos no quarto, eu peguei um dos envelopes em sua
mão e o abri devagar com os dentes, tentando descobrir a minha
sensualidade. “Você está certo, ter bebês é uma decisão que
envolve tempo e responsabilidade.”
Taimen sorriu e concordou, e então nós dois nos jogamos na
cama para a noite mais intensa e enlouquecedora de toda a minha
vida. Depois de tantas reviravoltas, o que poderia dar errado?
Capítulo 26

Sete da manhã. Eu e Taimen ainda estávamos na cama, os


dois pelados e olhando fixo para um pedaço de látex todo melado
sobre os lençóis. Taimen ria de nervoso e eu mantinha meu olhar de
tédio consternado.

“Como assim, Taimen, apenas como?” Eu sentia já ter feito


aquela pergunta umas dez vezes, mas era inacreditável.
“Deve ter sido a intensidade. Lembra a hora que você disse
ei, vamos tentar de cabeça para baixo? Acho que foi então.”

“Um alfa não deve culpar a ômega por esse tipo de acidente,
Taimen! É rude! Mas sim, a camisinha deve ter estourado naquela
hora.”
Taimen tentava não rir, aquele safado orgulhoso. Como era
possível um alfa ser tão desastrado? Tá certo que logo na nossa
primeira noite ele me deu uns dois… ok, seis orgasmos, mas isso
não era motivo para ele se achar o machão pica das galáxias!

“Calma, B-Babelyn, não é um p-problema tão sério. A


maioria dos ômegas precisa de diversas tentativas para vingar a
semente.” Ele deu um beijinho no meu rosto, o que me causou todo
tipo de arrepios gostosos. Eu deveria estar indignada, e não
querendo mais!
“É, tem razão.” Eu retribuí com um beijinho estalado nos
lábios, que foi meio sabotado pela minha franja no meio do caminho.
Eu devia estar parecendo um leão loiro, da mesma forma que o
Taimen parecia… sei lá… um lindo e sensual leão de juba cor-de-
mel? “Vamos ser mais sensatos de agora em diante, ok? Quero
muito, muito expandir o núcleo com você e eu sei que meu corpo vai
doer horrores por conta disso, mas preciso me adaptar ao primeiro
semestre sem um feto pesando sobre os meus intestinos. E você
também precisa...”
Tu-tuc. Tu-tuc. Tu-tuc. Tu-tuc. Tu-tuc. Tu-tuc.

Eu e Taimen nos encaramos com um silêncio mortificado. A


gente não respirava, não conseguia falar nada, apenas sentia aquela
nova vibração ecoando dentro das nossas almas.
Após um longo tempo, Taimen abriu um sorrisão.

“Eu vou ser papai!!” Ele exclamou.


Eu acertei o travesseiro na cara dele, quase o derrubando da
cama.

“É isso o que tem para me dizer, Taimen? Temos uma casa


inteira para mobiliar e decorar, uma cidade e uma cultura
completamente novas para conhecermos, e eu tenho uma faculdade
dificílima prestes a começar e… e eu vou ser mãe! Eu vou ser
mamãe, Taimen!” Eu comecei a rir e chorar ao mesmo tempo,
abraçando a minha barriguinha seca como se já pudesse sentir
alguma coisa. “Eu vou ser mãe e nosso filhote vai ter o pai mais
desastrado e lindo do mundo!”
“E a mãe mais determinada e inteligente.” Ele me abraçou
apertado e beijou as minhas lágrimas. Aquela tragédia de alfa
segurava-se para não chorar também, nossa felicidade ecoava como
um terremoto intenso no coração um do outro. “E está sentindo?
Acho que é um menino.”
“Sim, será o menino mais fofo e esperto dos oceanos. Mas
nem pensar que ele viverá como um tritão das colônias, precisamos
escolher a melhor creche e a melhor escola, e quero que ele estude
piano e… ai, é muita coisa para pensar! Como fica a minha
faculdade, eu deveria estar pensando nisso agora? Eu sou a mãe
mais desnaturada e egoísta que existe?”

Taimen segurou firme os meus ombros e me olhou de um


jeito calmo e reconfortante. Sua pele ainda brilhava um pouquinho
pelo suor da nossa noite ocupada, e suas íris bicolores cintilavam
com a mais plena felicidade. Era estranho que desta vez fosse ele a
precisar me acalmar.
“Estudar como os humanos é o seu sonho, Babelyn. Posso
aprender sobre joias com nosso pequeno no colo, e cuidar dele
sempre que precisar. Temos muito tempo para pensar nestes
detalhes, mas não quero que desista do que é importante para
você.”

Eu sorri para o Taimen, comovida. Será que ele percebeu o


quão pouco estava gaguejando, ultimamente? Era bem sexy ouvi-lo
falando com tanta desenvoltura.
“Não me deixe com vontade de começar tudo de novo,
Taimen. Venha, precisamos tomar banho logo antes que meu irmão
crie mofo de tanto nos esperar.” Eu me levantei e abri a caixa onde
deviam estar as toalhas, bastante confortável apesar de estar
totalmente nua.
“Eu tenho a impressão de que ele não ficará surpreso com o
nosso atraso.” Taimen me ajudou a procurar no meio das bagagens e
logo encontramos os artigos de banheiro e roupas limpas. “E eu
tenho a impressão de que nós vamos nos atrasar mais ainda.”

“É, por quê?” Eu arqueei uma sobrancelha.


Taimen me abraçou por trás e beijou sensualmente a curva
do meu pescoço, descendo a mão perigosamente abaixo do meu
umbigo. Seus músculos peitorais pressionaram firmes contra as
minhas costas.

“Porque nosso novo banheiro tem uma banheira de


hidromassagem.”

****

Onze da manhã. Por algum milagre o meu pobre irmão ainda


nos aguardava para o café da manhã, sentado em uma pedra no
leito marinho. Eu me sentia a sereia menos pontual do mundo, e,
pelo sorrisão besta e realizado na cara do Taimen, eu não podia nem
inventar uma mentirinha sobre o motivo do atraso.
Ah, quer saber, quem se importava com detalhes, quando eu
tinha novidades imensas para contar?
“Meu irmão!” Eu acelerei o nado até ele, sorrindo radiante.
“Irmão Dylan, temos notícias imensas e inacreditáveis!”
O irmão Dylan expandiu os olhos e empalideceu.
“São trigêmeos?” Perguntou ele.

“Ahn? Não, é só um. Mas esta é a novidade, eu e o Taimen


vamos ser pais!” Eu abracei apertado o Taimen, ainda sem conseguir
acreditar no tuc-tuc-tuc que ecoava dentro de nós.
“Oh, entendi.” O irmão Dylan coçou atrás da cabeça, meio
confuso. “Peço perdão se menosprezei seu predestinado em algum
momento, Babelyn, mas nunca o julguei incompetente a ponto de não
conseguir acasalar direito.”

Eu revirei os meus olhos.


“Eu sei que engravidar é o esperado de qualquer ômega,
mas poderia, por favor, fingir que está surpreso? Nossa intenção era
esperar até a minha formatura, mas enfrentamos um certo incidente.”

Meu irmão franziu a testa, tentando muito compreender


aquele contexto.
“Então eu errei? Este Amalona não consegue nem sequer
acasalar direito?”

“C-C-consigo sim.” Taimen estufou o peito, alegre demais


para se importar com o insulto. “Esta noite, inclusive, eu consegui
que a Babelyn…”
“Taimen, veja o que vai falar ao meu irmão!” Eu dei um tabefe
no braço dele.
“Ai, desculpa.” Disse ele, rindo enquanto lembrava de coisas
inapropriadas.
Meu irmão Dylan também começou a rir, e muito. Ele me
abraçou e também puxou ao Taimen, fazendo-o nos abraçar
também.

“Eu só estou brincando, percebi na alegria de vocês qual


seria a novidade e estou muito, muito feliz.” Ele beijou o topo da
minha cabeça, transbordando felicidade e orgulho. “Aguardarei com
ansiedade a chegada deste estimado sobrinho. Ou seria sobrinha?”

“Sobrinho.” Eu respondi, me sentindo tonta por cair na


implicância dele, e também querendo chorar de alegria tudo de novo.
“Espero não estragar tudo vivendo entre humanos, ou frequentando a
faculdade… vamos ser um núcleo tão pouco convencional.”
“Eu tenho certa experiência com núcleos pouco
convencionais, posso ajudá-los com alguns conselhos desde que eu
seja o tio favorito.”

Ahm… eu não sabia se o irmão Dylan era a melhor pessoa


para pedir conselhos sobre a criação de um filho, mas eu realmente
apreciava o gesto. Seria ótimo ter a ajuda de alguém quando o
Taimen entrasse em pânico sobre como trocar uma fralda, eu
suspeitava que até mesmo dar mamadeira seria um desafio imenso
demais para o meu pobre alfa assustado.
“Querida, você deveria me dar mais crédito.” Ele pediu ao
afastar-se do abraço, sorrindo encabulado. “Eu sei o que fazer, bebi
muita m-mamadeira na infância.”

“Ah, tá certo, Taimen, e você se lembra de quando era


bebê? Aliás, mamar e preparar mamadeira são coisas totalmente
distintas!” Eu disse.
“Eu lembro sim, é só… chupar o lado com a borracha, eu
acho?”
“Em primeiro lugar, não entre nos meus pensamentos de
novo, e em segundo lugar, vou te inscrever em um curso de
maternidade amanhã mesmo.” Eu belisquei o nariz daquele bobo.

Taimen respondeu alguma bobagem sobre aula de pilates de


casal e a gente começou a discutir e brigar enquanto o irmão Dylan
assistia e dava risada, como se a gente fosse um espetáculo. Só
paramos quando ouvimos o ronco de seu estômago.
“Agora que pulamos o café da manhã, podemos ao menos
almoçar?” O irmão Dylan perguntou, de olho em um cardume
distante. “Os jovens de hoje em dia são desregrados demais.”

“Pedimos perdão, Digníssimo Dyl… eh.. Quer dizer…


cunhado Dylan.” Taimen dobrou o corpo em reverência.
O irmão Dylan não parecia se importar muito com a total
quebra de sua rotina, e eu não conseguia deduzir se era o jet-lagging
da viagem ou se ele estava tentando ser mais… flexível? A segunda
opção era a mais fascinante e a que eu mais queria acreditar.
Mesmo após tantos anos de união com o humano Gabriel meu irmão
ainda se esforçava para aprender com os próprios erros e a tentar
ser alguém melhor. Era bonito e muito romântico.

Talvez algum dia o irmão Dylan até mesmo abandonasse de


vez as mentiras e descobrisse que um tritão podia ser feliz com a
honestidade e confiança mútua. Era uma lição dificílima para o nosso
povo aprender, ainda mais aqueles de gerações mais antigas, mas
eu suspeitava de que com tanta dedicação ele estava a caminho de
conseguir.
“Encontrou alguma refeição legal, enquanto nos aguardava?”
Eu nadei com ele e o Taimen em direção às profundezas.

“Descobri todas as espécies marinhas do hemisfério norte.”


Respondeu o meu irmão.
“Nós não demoramos tanto assim!” Eu cutuquei ele, que deu
risada da minha indignação.

“D-d-descobriu mesmo? M-m-mas são milhares de criaturas,


descobriu até as microscópicas?” Perguntou Taimen, impressionado.
“É brincadeira dele, Taimen. Pelo amor dos oceanos,
aprenda a reconhecer um insulto!” Eu disse.

Taimen encolheu-se todo, gaguejando milhares de desculpas


e o irmão Dylan apenas continuou rindo, ele divertia-se horrores com
a nossa companhia.
“Precisamos comemorar a concepção da minha estimada
irmãzinha, acredito que meu achado irá agradá-los profundamente.”
Disse o meu irmão, enquanto mudava de direção até entrar em um
complexo de cavernas submarinas.

Nós seguimos meu irmão pelas águas cada vez mais escuras
daquelas passagens estreitas e pedregosas, e então, em uma parte
onde a caverna se expandia novamente, um facho de luz vindo de
uma rachadura no topo iluminava uma ampla galeria secreta.
E no meio daquele espaço nadava um cardume de peixes
grandes cor-de-mostarda, com um formato que eu só reconhecia
pelos livros de biologia cretácea.
“Celacantos!” Taimen sorriu, com os olhos brilhando. Ele
acelerou na direção do cardume, já expondo os dentes e mirando no
maior dos peixes. “Hoje o almoço é por minha conta.”

Eu fiquei para trás, não querendo atrapalhar o meu querido


alfa em sua primeira caçada para a sua ômega.
“Obrigada por isso, irmão Dylan.” Eu sorri para ele. “Como
sabia da história dos celacantos? Espera… você sabia sobre o
conteúdo da caixa de presentes, também?”

“Você é a sereia da ciência, Babelyn. Encontre suas


respostas.” Ele piscou para mim e então assistiu a caçada do
Taimen, que era… ahm… talvez desastrosa fosse uma palavra muito
forte. Peculiar? Alternativa? “Ai, ai… tanto trabalho para encurralar
estes peixes onde não pudessem fugir… se aquele cara bater a
cabeça em outra parede, é capaz que entre em coma de verdade.”
“Ele vai conseguir, irmão Dylan.” Assim que eu disse isso,
Taimen desistiu do peixe maior, tentou pegar um filhote e estourou a
testa em uma pedra afiada. “Ele vai conseguir… ter uma concussão.
É melhor eu ajudar ele.”

“É esta a genética que será incorporada ao clã Makaira…”


Meu irmão soava mais horrorizado a cada segundo. “O chamado age
de formas misteriosas.”
No final, eu e o irmão Dylan ajudamos o Taimen e juntos nós
conseguimos capturar todos os celacantos mais gordinhos. Então,
em uma praia deserta a alguns quilômetros dali, o meu irmão nos
ensinou a montar uma fogueira e juntos nós saboreamos o delicioso
banquete de peixes assados. Foi uma experiência que marcou o
começo de várias mudanças na minha vida e me fez sentir que, com
certeza, aquela era a primeira felicidade de muitas outras que
estavam por vir.
Capítulo 27

Para quem passou a vida morando em ilhas, Cambridge era


um lugar meio frio e de pouco vento. Eu já previa um primeiro inverno
difícil se o frescor das noites de primavera já me deixavam tão
arrepiada, mas dormir em si não seria problema algum: Taimen me
abraçava protetor e quentinho durante toda a noite, me envolvendo
como uma conchinha em seu corpo largo e musculoso. Ele às vezes
grudava em mim até demais e tossia engasgado no meu cabelo, o
que era meio engraçado e fofo, mas ele acabaria se acostumando
às minhas longas madeixas loiras.

Os passarinhos já cantavam lá fora, mas eu não queria abrir


os olhos. Após retornarmos do almoço nós gastamos a tarde inteira
abrindo caixas, rasgando plástico bolha, faxinando a casa e
organizando armários. Ainda faltava muito para aquela casa
efetivamente se parecer com um lar, mas felizmente o irmão Dylan
nos ajudaria ao máximo antes de ir embora.
Apenas na madrugada nós decidimos encerrar os trabalhos,
e apenas porque o Taimen torceu o pulso enquanto montava meu
telescópio, sabe-se lá como. Nós tomamos um breve banho marinho
para recuperá-lo no silêncio da noite e o irmão Dylan aproveitou para
adormecer outra noite nas profundezas.

Como o voo do meu irmão sairia apenas no início da tarde


havia um tempinho extra para dormir bastante e recuperar as
energias. Aquele era o último dia para entregar a carta de
aprovação, mas havia tempo de sobra após a despedida no
aeroporto e eu ainda aproveitaria para me matricular nas disciplinas
do primeiro semestre.
Aquele dia prometia ser uma montanha russa de emoções, e
isto que eu nem podia imaginar a ligação que me aguardava.

O celular vibrou ao lado do travesseiro e eu alcancei aquela


porcaria toda sonolenta. Os passarinhos cantando, a luz da janela
ainda sem cortinas e agora o meu celular conspiravam para que eu
não dormisse mais.
“Hnn, quem…” Eu resmunguei, e então percebi que era uma
vídeochamada da Penélope.

Eu não queria as minhas sobrinhas vendo o estado lastimável


da nossa cama e muito menos o Taimen pelado, semimorto e
agarrado nas minhas tetas, então eu levantei rápido, vesti meu
pijaminha e fechei a porta para fora do quarto.
Eu atendi a ligação e coloquei o celular diante do rosto,
pouco ligando que Penélope fosse ver a minha cara de pós-sexo.
Seria um jeito criativo de revelar minha predestinação.

Penélope apareceu com Rebecca na tela, as duas rindo


como um par de hienas. O oceano noturno aparecia ao fundo e
Rebecca segurava um elegante coquetel de alguma coisa. As duas
estavam vermelhas, com as alças do vestido caindo dos ombros e o
tererê no cabelo da Rebecca estava enroscado na argola do brinco.
Dava pra ouvir um som de reggae ao fundo.
Dupla de putas, eu esperava surpreendê-las e elas também
me aparecem com cara de pós-sexo e bêbadas, ainda por cima! Eu
devia ter encontrado algum copo para segurar também.
“Baaaabelyn, queridinha, você está péssima!” Rebecca
brincou com uma mecha na peruca da irmã, quase derrubando sua
bebida de tanto rir.

“E vocês estão maravilhosas, né, lindas?” Eu joguei meu


cabelo bagunçado para trás. Aquilo molhado na minha franja era
saliva do Taimen? Ahm… pensando bem, aquela era a melhor das
alternativas. “Por que ligaram tão cedo?”
“Dá licença? Ainda são onze da noite, e nós… ooh!”
Penélope cambaleou com Rebecca no chão oscilante e a proa da
lancha empinou ao fundo. “A gente tá comemorando, adivinha?
Conseguimos encontrar a lancha!”

“E os gêmeos só choraram de desespero um pouquinho. Tão


másculos.” Rebecca brindou.
Nossa, eles procuraram aquele barco caríssimo durante todo
aquele tempo? Os pobres gêmeos precisariam de um coração forte
para lidar com aquelas diabas encarnadas.

“Fico feliz por vocês. A festa aí deve estar ótima.” Eu arqueei


a testa e sorri com orgulho e implicância. “Mas adivinhem, eu
também tenho meus próprios motivos para comemorar.”
“Você lutou contra um búfalo e ganhou? Porque só isto
explica o estado do seu cabelo.” Disse Penélope.

“Ah, sério, Penny, é sobre o estado do meu cabelo que você


quer conversar?” Eu afinei os olhos, curtindo a forma como ela calou
a boca. “Eu predestinei com o Taimen.”
“Não.” Rebecca abriu a boca em choque, e antes que eu me
gabasse ainda mais ela começou a rir. “Ai, tentei, mas não consigo
fingir surpresa. Desculpa, Babi, era tão óbvio.”

“Óbvio, como? O chamado escolhe quem ele quiser, podia


ter sido qualquer tritão, mas foi ele! Não acha isso uma coincidência
enorme?”
“Fala sério, Babelyn. Você é toda generosa, boa moça e….
Quase educada. O chamado lhe presentearia algum tritão qualquer,
mas isto se você não conhecesse ninguém. E a química de vocês
dois, nossa… é como sei lá… combinar hélio e hidrogênio.” Disse
Penélope.

“Estou abismada que você conheça dois elementos


químicos, Penny, mas hélio é um gás nobre e não se combina com
nenhum outro elemento.” Eu respondi.

“E aquele cara nunca saiu correndo por ouvir estas suas


asneiras e testemunhar sua personalidade escabrosa. Estava escrito
nas estrelas, meu bem.” Falou Rebecca.

Que dupla de demônias sofríveis! Mas elas não perdiam por


esperar, pois a minha maior e mais incrível novidade ainda estava
por vir!
“Parem de rir como as emissárias do inferno que vocês são
e escutem só, vocês não vão acreditar…” Eu sorri cheia de
arrogância, sabendo que a semente não vingaria tão cedo no
pântano daquelas jararacas.
“Espera, espera, nós temos uma novidade melhor!” Disse
Rebecca, trocando olhares cômicos com a irmã.
Meu sangue gelou.

“Não se atrevam a contar primeiro.” Eu disse.


“Nossa novidade é em dose dupla!” Penélope saboreava o
ódio nos meus olhos.

Eu fechei a mão no meu ouvido.


“Não estou ouvindo e vou contar primeiro!” Eu disse.

E então Rebecca e Penélope concordaram uma com a outra,


colocaram juntas a mão em uma bolsa e… Puxaram um papel.
Eh… não era bem aquilo o que eu estava esperando. Eu
deveria sentir alívio, mas assim que notei o que era aquela maldita
coisa, eu desejei do fundo da alma que as diabas anunciassem uma
gravidez de quadrigêmeos.

Letras pequenas, uma assinatura embaixo e o grande


logotipo dourado de Harvard na parte de cima.
Ai, por todos os oceanos. Não, não, não podia ser!! Eu tremi
de horror e quase derrubei o celular. Não era possível, eu coloquei
minha carta de aprovação no meu armário e então… o Doutor Michel
embalou com as outras coisas, não? Todos sabiam da importância
daquele documento, se o tivessem encontrado, teriam guardado com
o resto da bagagem. Por algum motivo eu nem considerei procurá-lo
desde minha chegada a Cambridge.
“Surpresa, queridíssima? Nós avisamos que a nossa
surpresa tinha o tamanho de duas. Você é tão esquecida!” Brincou
Rebecca.
“E hoje é o último dia, não é mesmo? Que pena, parece que
você precisará cursar medicina em algum cursinho à distância. Ou,
melhor ainda, vai desistir de bobagem e se tornar uma bela dona de
casa, sempre na cama esperando seu alfa voltar da caça.”

As duas riram alto, gargalharam ao agitar no ar o papel de


brasão dourado, como uma bandeira de vitória. Como elas podiam
ainda rir de mim, depois de tudo o que eu fiz por elas? E quando elas
encontraram aquilo? Se tivessem enviado logo pelo correio, talvez
fosse dar tempo.
“Vocês duas são cobras horríveis!” Eu disse, à beira de
lágrimas.

E então as duas acalmaram o riso, sorriram vitoriosas e


viraram o papel de costas. Atrás do documento havia um grande
escrito em caneta cor-de-rosa.
Seu precioso documento está na caixa do microscópio.
Aproveite demais sua faculdade, queridíssima! – Das suas gêmeas
do coração, Penny e Rebbie <3

Eu abri a boca, sentindo o meu coração na língua e com a


visão borrada pelo pânico. Precisei ler diversas vezes até entender o
que a mensagem significava.
“Isto… isto também é uma cópia?” Eu perguntei, com as
pernas bambas.

As duas comemoraram e se abraçaram como se tivessem


ganhado o campeonato de Miss Vadias.
“Ahh, ela caiu mesmo, caiu como uma patinha loira!”
Rebecca comemorava. “Após anos de tentativas nós enfim
conseguimos, irmã!”
“Quem diria que foi só passar caneta dourada naquele
logotipo. Os rapazes são gênios, Rebecca, gênios!”

“Nós somos inteligentes, Penny!”


“Me abraça!”

As duas celebraram comovidas enquanto eu só assistia e


transformava todo o meu chilique em raiva e consternação.
“Vocês queriam me matar do coração?? Eu estou grávida,
seu par de piranhas loucas!” Eu bufei, me acalmando logo depois.
“Mas parabéns, vocês conseguiram me zoar de verdade. Só
demorou dezoito anos.”

As duas sorriram para mim, muito animadas, orgulhosas de


si mesmas e também surpresas. Acabei contando minha grande
surpresa por acidente.
“Grávida é? A loirinha nerd não perdeu tempo.” Penélope
teve um arrepio de emoção. “Mas não pense que empatou o jogo
conosco, meu bem. Adivinha o que temos na barriga?”

“Além de suco de anêmona e canapés de lampreia das


profundezas.” Rebecca balançou seu copo.
“Não me digam, então vocês também?” Eu me espantei
muito, pensando que sentiria inveja ou até mesmo derrota, mas eu só
conseguia me sentir muito, muito feliz.
“Aham, e pode se preparar, meu bem, porque no Natal
queremos você aqui fazendo tour pelas boutiques e comprando
enxoval para os nossos tritõezinhos.” Disse Penélope.
“Até parece que o meu tritãozinho vai se vestir como um
mini-playboy mimado.” Eu quis chorar de novo, desta vez de
felicidade. “Eu mal posso esperar.”

Alguém falou alguma coisa no fundo da ligação. Rebecca


espiou alguma coisa por cima da câmera e acenou para mim.
“O Jack terminou de preparar os sashimis. Até mais, Babi,
manda um abraço para o papai Dylan!”

Rebecca foi embora contente e cantarolando. Para alguém


que bebia um simples suco ela estava muito doida.

Sozinha na conversa com a Penélope eu enfim percebi a


diferença em seu olhar. Ela parecia feliz e não como antes do seu
despertar, ela parecia mais relaxada do que jamais a vi, nem mesmo
sua aparência meio bagunçada a aborrecia, quando em qualquer
outro momento ela teria um chilique por errar o tom de vermelho do
batom.

“Você e o Dawson se acertaram, pelo visto.” Eu disse.


“Foi a conversa mais difícil que já tive com qualquer pessoa,
mas você tinha razão, Babi. Ele merecia saber que o problema não
era com ele.” Ela deu de ombros, deixando escapar um pouco de
tristeza. “O Dawson ficou devastado pela história, mas me
compreendeu… Sinceridade até que não é a pior coisa do mundo.”

“Alguns segredos são menos pesados quando os outros nos


ajudam a carregar.” Eu disse pra ela.
“Em algum momento quero conversar com a Rebecca
também, e com o irmão Hian… mas uma coisa de cada vez. A futura
mamãe aqui merece curtir seu primeiro dia de grávida!” Ela sorriu e
rebolou no ritmo de reggae. “Ai, até que estas músicas dos gêmeos
não são horríveis. E eu posso me acostumar com a quantidade de
incensos.”
“Você e o Dawson serão um casal maravilhoso, Penny. Fico
feliz por vocês dois, de verdade.”

“Obrigada, Babi. Você e o Taimen também, ahn… também


vão conseguir criar um filho até a idade adulta, provavelmente.”
Penélope suspirou e sentou-se no banco que contornava o deque do
barco. Ela olhou nostálgica para as estrelas distantes. “Na semana
que vem nos mudaremos para a Ilha Orona. Venha nos visitar
quando puder, prometa?”
“Bem, alguém precisa ensinar a vocês demônias como se
cria um bebê inteligente e perfeito através de métodos científicos.”

“E então os nossos bebês vão dar uma surra no seu bebê.”


Penélope riu, me provocando.
“Não se o meu bebê andar armado com besouros. Muitos,
muitos besouros escondidos nas fraldas para colocar no cabelo dos
inimigos.”

“Você sempre será nojenta, Babelyn!”


Nós duas desatamos a rir, e então a voz do Dawson soou
não muito longe.

“Meu amor, foi este o peixe que solicitou?” Perguntou ele.


“Ah, moréia-mostarda é a minha favorita!” Ela respondeu
animada ao seu predestinado e voltou sua atenção a mim. “Boa sorte
com tudo, Babelyn, nos falamos!”
Nós nos despedimos e terminamos a ligação.

Por algum tempo eu fiquei encostada na parede, com o olhar


na tela escura e com um sorriso nos lábios. As gêmeas eram
mesquinhas, vingativas e absurdamente fúteis, mas nossa, como eu
sentiria falta delas.
E então, claro, eu corri até a caixa do microscópio e lá
estava ela, a minha preciosa carta que ainda cheirava vagamente a
hambúrguer. Eu a abracei com alívio e olhei adiante, avistando pela
janela da sala o sol que brilhava entre as nuvens.

Eu acordei o Taimen e nós nos arrumamos entre beijinhos e


planos bobos sobre o futuro. O que comprar para a geladeira?
Quando seria o dia de ir ao cinema? Será que deveríamos adotar um
gato? Era como se eu o conhecesse uma vida inteira, já não
conseguia imaginar uma vida sem aquele bobo desastrado, que
conseguiu arrancar o registro do chuveiro durante nosso banho
quente e sensual e nos inundar com um jato de água gelada.
A gente ainda terminava de enxugar o desastre no banheiro
quando o irmão Dylan apareceu. Ele se arrumou com o terno azul-
marinho e gravata que o senhor Gabriel mais gostava nele, pegou
sua pequena bagagem e juntos nós chamamos um táxi até o
aeroporto.

Depois das despedidas ao meu irmão eu assisti pela janela


do aeroporto até que o jatinho se tornasse um pontinho preto no céu.
Taimen secou uma lágrima que escapou do meu rosto e então, aí
sim, fomos juntos até a minha tão sonhada Harvard.
É incrível como a vida não conhece um ritmo sensato.
Durante anos a minha rotina se resumiu a estudar muito, ir e voltar
da escola e cultivar momentos felizes com o Doutor Michel e sua
família. E então de repente ali estava eu, do outro lado do mundo,
predestinada com o alfa mais amável do mundo, grávida, com a
minha própria casa e um novo documento em minhas mãos, este o
mais precioso de todos: meu cartão de acesso aos prédios do
campus, completo com a minha foto sorridente e a melhor frase de
todas: Babelyn Makaira — Estudante de Medicina da Universidade
de Harvard.
Epílogo 01
Nove meses depois

Conforme o prometido, assim que consegui minha licença


maternidade em Harvard eu e Taimen fomos visitar as gêmeas na
Ilha Orona.

Aquele lugar era tão bonito quanto sugeriam as fotos que as


gêmeas mandavam. A ilha – um atol, mais precisamente – era
basicamente as bordas elevadas de uma cratera muito antiga, um
anel de terra, rochedos e corais com uma incrível lagoa verde-menta
no centro. A parte terrestre era muito diversificada, com enormes
falésias, florestas equatorianas e uma parte bem plana com grama e
areia branca à beira mar, e era ali que se concentravam a maioria
das casas dos Amalonas.
Também era na região de planície que passeavam os
cavalos. Os muitos, muitos cavalos.

Quanto às casas, em si, o lugar enganava bem como uma


comunidade de humanos. Cada residência, apesar de construída em
madeira rústica, era ampla e bem estruturada, como os chalés de
uma estação de esqui, exceto que aquele lugar jamais conheceria o
menor floco de neve. Era pleno inverno, e mesmo assim o sol ardia
intenso no céu.
O irmão Dylan e seu predestinado também marcaram
presença, assim como o Doutor Michel, mas não era sua primeira
visita à ilha, então eles logo se acomodaram como ilustres visitantes
no casarão dos pais dos gêmeos. Contrariando as próprias
expectativas, o senhor Gabriel adorou sua nova família expandida e
não perdia a oportunidade de visitar e provar a culinária requintada
dos Amalona.
As gêmeas também superaram suas dificuldades iniciais —
se é que existia qualquer desafio em morar nas suntuosas mansões
paradisíacas que os gêmeos lhes construíram — e passavam a
tarde toda se bronzeando no sol e bebendo suco, cuidadosas com o
enorme balão que esticava suas barrigas até saltar o umbigo.

Foi meio decepcionante ver todos tão acomodados porque


era a minha primeira visita e eu queria conhecer a pista de corrida de
cavalos e procurar insetos interessantes, mas o Taimen logo
desaprovou a ideia porque... bem... eu meio que estava me
contorcendo em pleno trabalho de parto.
Bem que eu gostaria de estar curtindo a praia ou escovando
pôneis, algo que Rebecca jurou ser muito terapêutico, mas assim
que cheguei precisaram me carregar direto ao quarto de hóspedes
da casa da Penélope e me deitar com o barrigão apontado para o
teto. Taimen corria em pânico para todos os lados, tropeçando em
todo mundo.

Como tudo o que envolvia o Taimen, nada saiu exatamente


conforme os planos. A minha intenção era chegar com calma na ilha,
conhecer tudo e todos com toda a paciência do mundo, e cinco dias
depois realizar o parto juntamente com as gêmeas, no que deveria
ser a data apropriada. Só que o bebê decidiu ter pressa.
Por sorte o Doutor Michel foi precavido e também chegou
cedo. A princípio o humano Gabriel queria a gente em Waikiki, mas
logo concordamos todos que seria uma complicação desnecessária.
Os dois partos secretos de Hian II foram complicados de se planejar,
e muita coisa podia ter dado errado. O Doutor Michel já não era tão
jovem para tanta correria e não seria justo arriscar a sua carreira
como diretor do hospital. Realizar os três partos na ilha Orona era a
opção mais lógica e tranquila.
Claro que tranquilo não definia o Taimen naquele momento.
Desde que o bebê começou a se mexer estranho ele parecia um
cachorro pinscher, andando histérico ao meu redor e fazendo mil
perguntas enquanto que o meu irmão era o único realmente me
ajudando. Mas ei, Taimen ficava até que gostoso vestido com roupas
verdes de centro cirúrgico. Eu gostava de como a touca segurava
seu cabelo longe dos olhos.

“Tem c-c-certeza que é agora? Ai, e se for um Amalona? E


se for um Makaira? E se eu deixar c-c-c-cair no chão? Eu vou
desmaiar com o sangue, tem como não sair sangue?”
Eu suspirei, com o olhar na elegante luminária do teto. Talvez
fosse frieza da minha parte, mas eu não conseguia me sentir tão
nervosa assim. Óbvio que se eu estivesse sozinha com aquele alfa
histérico a situação seria diferente, mas ali no quarto estavam o meu
irmão Dylan, Gabriel, as gêmeas e os gêmeos, além dos pais deles
e os pais do Taimen. Era uma multidão de gente trazendo baldes de
água, toalhas, e até mesmo me foi trazido um robe confortável de
flanela, que eu vestia naquele momento. Alguns dos espectadores já
tinham boa experiência com partos e ninguém além do Gabriel
demonstrava nervosismo. E nem mesmo o nervosismo do humano se
comparava ao do Taimen.
O Doutor começou a montar o equipamento de ultrassom, já
de jaleco, máscara e com o estetoscópio passando por trás do
pescoço.
“Ei, amor, venha aqui.” Eu chamei Taimen com um gesto da
mão.

Taimen sentou ao meu lado e segurou a minha mão. Seus


olhos eram puro medo e apreensão, com um doce toque de
felicidade. Ele mexia insistente no bolso do jaleco.
“E se eu fizer algo errado?” Perguntou ele.

“Você ensaiou um bilhão de vezes, tudo vai dar certo.” Eu


disse a ele.
O equipamento de ultrassom apitou ao ligar e o Doutor fez
um gesto para a multidão. A partir daquele momento apenas quem
vestia roupas cirúrgicas poderia permanecer, o que era um exagero
para o nosso povo hiper-resistente a doenças, mas eu não queria
desprezar os preparativos do Doutor.

Após me desejar bons votos, quase todos deixaram o quarto


e fecharam a porta. Ficamos apenas eu, Taimen, o Doutor e as
gêmeas.
Tão imensamente grávidas quanto eu, Penny e Rebbie
sentaram-se em poltronas para assistir meu grande momento. Elas
estavam felizes por mim, mas claro que um tanto receosas. Em
apenas alguns dias todo aquele procedimento se repetiria com elas.

“Pronta para vê-lo pela primeira vez, Babi?” O doutor sorriu


para mim enquanto espalhava gel no leitor de ultrassom.
Eu sorri para ele, não querendo ser rude, mas era impossível
não ter perguntas quando o quarto da Penélope agora se parecia um
hospital clandestino.
“Precisamos mesmo vê-lo no ultrassom primeiro?” Eu
perguntei, massageando o balão rígido que era a minha barriga. O
bebê inquieto chicoteou a cauda bem onde deslizei com o polegar.

“Claro que precisamos, você ainda não estudou as disciplinas


de obstetrícia? Devemos garantir que o bebê deite na posição
correta antes de você empurrar.” Disse ele.
Eu e o Taimen trocamos olhares. Nas poltronas ao lado, as
gêmeas franziram a testa entre si.

“…Empurrar?” Eu perguntei.
O Doutor encostou o scanner gelado na minha barriga e
concentrou-se em achar o foco correto. Um chiado verde e preto
ondulava rápido na tela. Ele também pressionou o estetoscópio logo
abaixo do meu umbigo.

“Batimentos cardíacos normais… ali, estão vendo a cauda?


Opa, sumiu de novo.” Ele continuou mexendo, sem reparar na
confusão no olhar de todo mundo. “Avise-me quando sentir duas
contrações seguidas para que eu aplique a epidural.”
“Como assim, contrações?” Penélope sussurrou para
Rebecca, que balançou os ombros em confusão.

Eu ri e suei gelado. Por que eu sentia ter cometido um grave,


grave erro de comunicação?

“Doutor… não precisa…” Eu gaguejei.


“Oh, perdão, vocês preferem surpresa, não é mesmo?”
Animado, ele virou a tela em um ângulo que somente ele podia ver e
continuou escaneando minha barriga. “Deve ser incrível saber o sexo
do bebê desde o primeiro dia de gestação, mas entendo, muitas das
minhas pacientes preferem ver o filho pela primeira vez ao vivo.
Minha experiência com parto de tritões ainda é pequena, mas já
perdi a conta de quantas pacientes mulheres eu já tive então
relaxem. Parto normal não é tão assustador quanto dizem na
televisão.”
Eu ri de nervoso.

Taimen parecia também ter notado o mal entendido.


Enquanto o doutor se concentrava na tela do ultrassom ele tirou a
adaga ritualística do seu bolso e me fez uma cara cômica de será
que começamos ou não?
Eu balancei a mão para que ele escondesse a adaga de
novo. Ai, pelos oceanos, como eu começaria a explicar?

“Doutor…” Eu disse.
“Já começaram as contrações?” O Doutor Michel enfim
virou-se para nós, sorridente. E então ele congelou no lugar.

Taimen ainda segurava a adaga, ajoelhado ao meu lado na


cama de casal, e tanto nós dois quanto as gêmeas olhávamos para o
doutor com sorrisos muito nervosos na cara.
O Doutor processou a informação por alguns momentos e
esfregou as têmporas.

“Vocês só podem estar de brincadeira.” Disse ele. “Babelyn,


você é uma mulher.”
“Uma sereia.” Eu respondi.
“E sua forma humana não tem uma vagina?”

“Claro que tem, ou como eu receberia a semente?” Eu tentei


parecer descontraída, como se aquele erro de comunicação tivesse
sido um simples esquecimento bobo.
O Doutor torceu a testa, mais confuso a cada segundo.

“Mas… mas não faz sentido! Como é que… o encontro dos


gametas… Está me dizendo que o bebê não sai por onde o esperma
entrou?”
Rebecca puxou a Penélope e sussurrou no ouvido dela.

“Bebês humanos nascem pela vagina??” Perguntou ela à


irmã, que estava igualmente chocada. Como aquelas duas
concluíram o ensino fundamental?
O doutor parecia tão confuso, eu tive um pouco de pena.

“Ei, se serve de consolo, Doutor, sereias podem parir pela


vagina também… só que as entranhas podem sair junto, então já viu.
Ainda assim o parto sem alfa das sereias é um pouco menos fatal
que no caso dos tritões ômegas. Quase sempre o útero e os
intestinos crescem de novo.”
Com uma cara de choque e os olhos imensos, o Doutor
desligou o ultrassom e tirou o estetoscópio dos ouvidos.
“Eu… eu nem sei o que comentar sobre isso.” Ele balançou
as mãos em um gesto de desistência exasperada. “Vão em frente,
façam a coisa mágica de vocês.”
Tadinho do Doutor, tão velho e ainda encontrava formas de
se surpreender com a nossa espécie.
Eu apertei a mão do doutor e quis lhe transmitir a minha
confiança. Da mesma forma, senti-lo ali comigo me trazia um
conforto imensurável. O médico da lenda que conduziu meus passos
desde que eu era uma menininha… era uma honra sem limites tê-lo
ali comigo naquele momento tão importante. Mesmo que ele fosse
apenas assistir a mágica acontecer.

O Doutor deu um beijinho na minha testa e se levantou para


assistir ao lado. Conhecendo ele, o Doutor já tinha um plano B e um
plano C caso qualquer coisinha desse errado, mas eu sabia que não
era necessário. Taimen era um desastre para muitas coisas, mas no
último ano ele se tornou um alfa sério e provedor, que caçava peixes
de dia — no supermercado, mas enfim — e satisfazia sua ômega à
noite. E ele ainda conseguiu um estágio em uma joalheria próxima de
casa, e só recebia elogios por seus esforços.

Taimen podia não confiar muito em si mesmo, mas eu lhe


confiaria a minha vida e a minha alma sem pensar duas vezes.

Com o coração acelerado, eu abri a frente do robe e expus a


gigantesca barriga com a qual convivi pelos últimos meses. Meus
olhos cintilaram de comoção e eu sorri para o Taimen com ternura.
Eu não precisei dizer nada para ele concluir que havia chegado a
hora.
Taimen respirou fundo e firmou a adaga na mão. Era uma
lâmina escura e cravejada de pedras preciosas no punho, foi através
dela que o próprio Taimen veio ao mundo.
Após criar coragem por alguns instantes, Taimen deslizou a
adaga em seu polegar e cobriu uma lateral da lâmina com o seu
sangue. Então ele a passou para mim e eu repeti o gesto, gemendo
baixinho de dor.
Eu espalhei meu sangue no lado oposto da lâmina e então a
devolvi para o Taimen. Eu sentia o olhar de todos em nós, ansiosos e
cheios de expectativa, mas naquele momento todo o meu olhar e
atenção eram dedicados ao Taimen, e ao pequeno tritãozinho que
em breve seria parte de nossas vidas.

“Pronto para a maior loucura das nossas vidas, meu


predestinado?” Eu perguntei, sorrindo.
Taimen engoliu o nervosismo e também sorriu para mim,
concordando com a cabeça. Então ele desceu a lâmina até a ponta
tocar abaixo do meu umbigo.

“Dois caminhos, um destino.” Ele entoou, trocando sorrisos


comigo.
As palavras mágicas do ritual se iluminaram dentro da minha
alma, tão místicas quanto verdadeiras.

“Duas almas, um só coração.”


Operação Macho Alfa

FIM
Agradecimentos especiais aos meus
queridos apoiadores!
Caroline L. Souza
Josiela de Souza
Igor Paulino da Silva
Kamila dos Santos Oliveira
Alice Lívia dos Anjos
Akio Nanase
Catarina Wilhelms
Carina
Maria Janaína Silva de Almeida
Vanderlei Gadotti
Jordão Rocha
Yago Pereira
Carol Lacerda
Josiela de Souza
Igor Paulino da Silva
Adriana M. Didi
Kathy Seraph
Felipe Mendes de Souza
Klara Vieira
Lara Evangelista
Gabrielle Lima
Jociane M. dos Santos
Karen B. de Jesus
Felipe Mendes de Souza

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A história continua em
Maikon, a Princesa de Egarikena
Pétalas de Vidro
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Série O Amante do Tritão

O Amante do Tritão (Livro 1)


O Amante do Tritão: Edição de Colecionador
Ondas em Rebentação (Livro 2)
Romance ao Som de Violão
Noite de Despertar
Casa de Marionetes
O Príncipe da Revolução (Livro 3)
Operação Macho Alfa
Maikon, a Princesa de Egarikena

Pétalas de Vidro

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