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Os Foragidos Do Ceu - Joan D. Vinge
Os Foragidos Do Ceu - Joan D. Vinge
VINGE
OS FORAGIDOS DO CÉU
The Outcasts of Heaven Belt
Tradução de Margarida Gomes e Eduardo Gomes
Eclesiastes
PROLOGO
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— Não, isso também não resulta. Veem logo que não é uma nave do
pré-guerra. — Bird Alyn abanou a cabeça; o seu cabelo, apanhado em dois
totós, lembrava espuma do mar em torno da sua cabeça.
— Nesse caso não há mais nada que eu possa sugerir para já.
Betha olhou, de modo interrogador, cada um dos outros rostos. Clewell
estava sentado firmemente, preso pelo cinto; Bird Alyn e Shadow Jack
estavam estendidos no ar, totalmente confiantes na ausência de gravidade. A
viagem de cinco dias fazendo sessenta graus em torno de Discus
transformara-os superficialmente: a pele e o cabelo brilhavam de limpeza; os
seus corpos, compridos e esgalgados, estavam metidos em ganga forte e
camisolas fofas. Mas o início da aceleração de uma gravidade esmagara-os no
chão como moscas e ainda se sentiam retraídos, com os músculos forçados e
dolorosos, e com a memória dessa gravidade. E havia outras lembranças
negras que cintilavam nos seus olhos famintos e nas suas palavras rápidas e
nervosas; memórias de um passado que Betha receava imaginar e que estava
contente por nunca o ter conhecido.
— Continuo a dizer que devem deixar a Demarquia em paz. — Shadow
Jack estendeu um pé pequeno, atingindo Rusty quando esta lhe passou perto.
— Devíamos ter ido para os Anéis. É muito mais seguro roubar-lhes o
hidrogênio. Se me tivessem perguntado...
— Não perguntei... Isso. — Betha esboçou um sorriso. — Quero
negociar e não roubar... Já conheço a «segurança» que há nos anéis de
Discus, Shadow Jack.
— Mas a Demarquia é pior. Conseguiram uma tecnologia superior.
— Superior em quê? Na realidade tu não sabes. E, de qualquer modo,
não andam à nossa procura. Com a tua nave para nos transbordar, podemos
entrar e sair de uma destilaria antes sequer de eles pensarem nisso. Mas que
iremos trocar pelo hidrogênio? — Mais uma vez repetiu mentalmente o
inventário, debatendo-se com o facto de sentir que só Eric saberia o que
estava certo, o que oferecer e o que dizer. Só Eric fora treinado para saber...
«Oh, Eric...»
Shadow Jack olhou carrancudo, encolhendo os pés. Bird Alyn apanhou
Rusty e pô-la a girar lentamente no ar com a cabeça a perseguir as patas.
Rusty apanhou a própria cauda e começou a lavá-la. Bird Alyn riu em
silêncio.
— A gata — disse Shadow Jack. — Podemos dar-lhes a gata.
— O quê? — Clewell endireitou-se, indignado.
— Com certeza. Já ninguém tem um gato. Mas na Demarquia escusam
de saber que nós não temos mais; em tempos Lansing tinha muitos animais. E
é exatamente o que a Demarquia procura: uma coisa realmente rara.
Provavelmente o dono da destilaria dá-vos metade do hidrogênio que tiver só
para ficar com Rusty.
— É ridículo — disse Clewell.
— Não... Talvez não seja, Pappy. — Betha abriu as mãos e Rusty
chegou-se a ela. — Penso que ele acertou. Rusty, gostarias de viver como
uma rainha? — Envolveu Rusty nos seus braços e mergulhou nas preciosas
memórias dos rostos dos seus filhos quando lhe deram os seus presentes de
amor. Sentiu a garganta apertada, sem palavras, procurando imaginar que
pagamento lhes seria pedido da próxima vez; e sabia que, qualquer que fosse
o preço emocional, teriam de o pagar, desde que com isso pudessem comprar
o bilhete de volta para Alvorada. Viu o desgosto profundo na cara de Bird
Alyn; viu-a lutar para o esconder, como ela escondia o seu. — Além disso...
Não fomos capazes de pensar em mais nada que não nos denuncie. Qualquer
equipamento que tentemos trocar será obviamente reconhecido como vindo
de fora do sistema. Já estaremos a correr bastantes riscos, mesmo assim.
— Sei disso. — Clewell baixou os olhos. — És o capitão.
— Sim, sou. — Betha avançou para o painel de controlo, cansada de
argumentar, cansada de adiar o inevitável. Não havia escolha: só uma coisa
importava: salvar a nave, e ela nunca devia esquecer este facto... Olhou para
as últimas leituras do painel, sem as ver. Agora a Ranger estava bem no
interior do espaço da Demarquia. Detectaram dúzias de asteroides e intenso
tráfego rádio. Identificaram Mecca, a maior das destilarias, a oito milhões de
quilômetros de distância, com uma velocidade de aproximação de dez
quilômetros por segundo — a apenas algumas horas de voo para a Ranger.
Mas levaria duas semanas à Lansing 04, desacelerando em cada metro de
caminho, para vencer o fosso de distância-e-velocidade entre eles e Mecca. O
estômago contraiu-se com a perspectiva; a blindagem extra que colocara a
bordo da nave de Lansing reduzia os níveis de radiação a um sexto do que
fora, mas mesmo assim as leituras ainda eram muito altas. Mas se a Ranger
se aproximasse mais de uma área habitada, o risco de detecção seria
demasiado grande.
A estrada para a Manhã
É cortada de lamentos
E coberta de sonhos desfeitos...
— Vou a Mecca, Pappy — disse por fim. — Vou arranjar o nosso
bilhete de volta a casa.
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O carro parou sobre as torres esguias que eram o seu destino, entre os
sacos-balão de armazenagem que brilhavam num fogo fantasmagórico —
amarelos, verdes e azuis suaves, que as luzes do solo excitavam numa
estranha fosforescência. Betha afastou o passado olhando para fora, para a
floresta brilhante de formas alienígenas. Ouviu a voz da mulher:
—... Como podem os campos de Lansing ser como os nossos campos
de cultura? Claro, nós não temos falta de água; temos a neve armazenada lá
em baixo em velhas cavidades de minas. Temos o suficiente, espero, para
durar para sempre.
Um orgulho que era inconscientemente avareza enchia-lhe o sorriso. O
homem do Governo olhou-a; Betha viu-o mostrar uma raiva fugaz e pensou
porquê. Shadow Jack, empurrado de repente para fora do assento, estabilizou-
se instintivamente. A tensão envolvia-a, de novo, como uma mola; tentou
adivinhar o que mostrava a face dele.
Seguiram o homem e a mulher no meio do ruído de fundo do rádio e da
algazarra impessoal dos trabalhadores da plataforma, até outra escotilha
montada na rocha sólida da superfície. Abaixo da comporta de ar penetraram
em túneis que desciam suavemente, sem o parecer, até ao coração da rocha.
Com o regresso da pressão do ar, Betha sentiu o fato ficar flexível, o que lhe
facilitava os movimentos. Os sons chegavam-lhe abafados pelo capacete
quando passava por novos grupos de cidadãos, todos misericordiosamente
absortos; pensou mais uma vez nos homens com câmaras do campo de
aterragem.
Seguiram uma corda ao longo da parede do corredor principal, onde as
fortes luvas dos fatos de pressão tinham escavado um sulco na superfície
picada. Acima e abaixo deles via-se o fim do túnel, abrindo-se para um
espaço ocupado por uma rede fina. Curiosa, flutuou até ao bordo da câmara.
— Oh... — Perdeu o fôlego num suspiro. Parou como Shadow Jack já o
fizera, trespassado pela beleza feérica imobilizada na pedra. A frente deles
abria-se um vacúolo, com um quilômetro ou mais de diâmetro: um geode
imenso, artificial, cheio de brilhantes espinhos de cristal, rombos ou
aguçados, arco-íris sobre arco-íris em torrentes de cores estridentes. O núcleo
oco, com ar, continha uma teia, filamentos de seda espalhados por alguma
aranha incrível...
As imagens começaram a formar-se no seu espírito; compreendeu que
ali era a cidade, o coração da vida no asteroide Mecca — que os espinhos de
cristal eram as suas torres, erguendo-se do chão por todos os lados...
Descendo do teto. «Porque não caem…?» O seu pensamento girou, caindo;
sentiu a mão de alguém segurar-lhe o braço. A sua mente sobressaltou-se e os
pés saltaram suavemente. Irada, forçou-se a olhar novamente a imensidade
estonteante da câmara. As pessoas eram como mosquitos ao longo dos fios da
teia: leves cordas estendidas nos espaços enormes. As torres tornaram-se
maiores, saindo do teto e do chão, enchendo o espaço interior, orientadas no
sentido da fraca mas inexorável gravidade. Os edifícios que enchiam os lados
curvos da cavidade eram mais baixos, mais pesadões, suportando maiores
tensões. As torres estremeciam delicadamente com as correntes suaves
provocadas pela ventilação; não eram superfícies cristalinas e sólidas, mas
tendas tremelicantes de tecido colorido sobre ligeiras estruturas metálicas.
— Era uma «cidade-modelo» antes da guerra. — Viu que fora o
homem do Governo que lhe agarrara o braço; ele largou-a, evitando
comprometer-se. — Costumava ser um centro de jogos. Agora fazemos jogos
mais práticos; a maioria destas torres pertencem a grupos mercantes. — O
homem desapertou o capacete, tirou-o e olhou para ela, em expectativa. — O
ar aqui é bom.
Betha foi com a mão ao capacete, mas apenas para ligar o alto-falante
exterior; a pele dela arrepiou-se, num desejo que ele a visse.
— Obrigado — tentou parecer insegura —, mas vou esperar. —
Shadow Jack, silencioso, permanecia de olhar fixo na cidade, taciturnamente
contente por estar surdo e mudo. — Pode-nos dizer em que torre podemos
encontrar alguém que nos possa vender hidrogênio?
— Hidrogênio? — O seu olhar espantado fixou-se na face de Betha,
coberta pela viseira. — Pensei que queriam ar ou água.
— E queremos. Precisamos de água... Temos oxigênio. Logo,
obviamente, precisamos de hidrogênio. — Rusty miou; ela fingiu não ouvir.
— Oh! — O rosto dele suavizou-se aceitando a explicação. —
Obviamente... Sabe, não é muito frequente encontrarmos uma mulher que
tenha escolhido ir para o espaço. É vulgar em Lansing?
— Ir para o espaço já não é vulgar em Lansing. — Betha relembrou
subitamente que os olhos castanho-dourados do estranho pertenciam a um
inimigo. — Pode-me apontar onde é o escritório da destilaria?
— Lá em baixo — apontou ele —, aquela longa ala de tons verdes no
chão; há montes de escritórios de destilarias naquele bocado: Tiriki, Flynn,
Siamang...
— Destilarias? Há mais do que uma? — «Deveria eu saber isso?»
Suspendeu a respiração.
— Com certeza. — Mas ele apenas sorriu, tolerante. — Aqui é a
Demarquia, o povo é quem manda; não gostamos de práticas monopolistas.
Atraiçoam o povo; não as podemos tolerar... Eu sei isso. Vou levar-vos a dar
uma volta.
— Não, na verdade...
— É o mínimo que posso fazer, depois de terem vindo de tão longe. —
Pôs dois dedos na boca e deu três assobios agudos. Betha vacilou e ele
surpreendeu-a com um gesto de desculpa. — É como por aqui se chama um
táxi, agora. As boas maneiras em Mecca estão a ir para o Inferno... O Céu
está a ir para o Inferno. — Riu forçadamente, como se não tivesse tido
intenção de dizer aquilo em voz alta. — Eu sou de Toledo.
— O que... Hum... Disse que fazia para o Governo? — Ela olhou
comprometidamente para a plataforma. A mulher do carro desaparecera.
«Porque é que ele permanece connosco?»
— Sou um negociador. Tento que as coisas não se tornem menos
civilizadas do que já são. — Riu repentina e forçadamente de novo. —
Resolvo disputas, elaboro acordos comerciais... Tomo conta de visitas
inesperadas.
Ela quase se virou, paralisada, quando viu os homens das câmaras do
ancoradouro emergirem do túnel.
— Shadow Jack! — Agarrou-lhe o braço. — Fica comigo, não deixes
que nos separem.
As vozes aproximaram-se deles.
—... Naquela decrépita nave?
— Com quem vão entrar em acordo?
— Quanto...
— Que têm vocês...
Os homens da informação e alguns habitantes locais cercaram-nos,
acotovelando e interrompendo. Viu o homem do Governo pôr-se de lado
quando o táxi atingiu a plataforma e parou. Betha teve de empurrar para o
alcançar, gesticulando para Shadow Jack. O táxi tinha uma cúpula e era
motorizado, sendo conduzido manualmente por um rapaz bem vestido de ar
aborrecido.
— Para onde?
— Para... Para Tiriki. E depressa. — Bateu com a cabeça na borda da
cúpula, sentiu os pés mergulhar num mar de ar e viu cristais a refletirem-se
acima e abaixo dela. Shadow Jack seguiu-a. O táxi mergulhou no precipício,
afastando-se da multidão sufocante.
—... Torgussen! — O homem do Governo chamou-a.
Olhou para trás; as mãos ergueram-se, tateantes, até ao capacete e
tiraram-no. Viu o rosto dele mudar: incredulidade... Reconhecimento...
Perda... «Para!» Não havia qualquer semelhança, não podia haver
reconhecimento... «Eric está morto!» Segurou-se a um dos bordos da cúpula,
sentindo as correntes de ar agitar o seu cabelo pálido e emaranhado, acariciar
o seu rosto escaldante. «Oh, meu Deus, quantas vezes isto me acontecerá?»
Shadow Jack debruçou-se olhando para todos os lados, ao passarem pelo sol
artificial enjaulado em vidro e suspenso no centro da caverna. Deixou-se
afundar devagar no assento, forçando os seus sentidos a absorver o que a
rodeava, esbatendo os ecos do passado.
A caverna estava cheia de sons, confusos e indistintos: risos, gritos, o
som abafado de mecanismos escondidos. Olhou, apercebendo-se agora das
diferenças de riqueza e elaboração entre as torres maciças: as varandas
colocadas em ângulos loucos; os buracos negros nas paredes de pedra, que
eram túneis de entrada para residências privadas. E gradualmente
consciencializou-se da mistura de odores que perfumavam o ar frio e filtrado;
respirou fundo, cheirando-os, saboreando-os, aliviando o peso da sua cabeça.
Impávido, o condutor olhou na direção dela, para o pináculo esmeralda que
era o seu destino.
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