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JOAN D.

VINGE
OS FORAGIDOS DO CÉU
The Outcasts of Heaven Belt
Tradução de Margarida Gomes e Eduardo Gomes

Aos nossos pais


NOTA DO EDITOR
Sobre Joan D. Vinge

Licenciada em Antropologia pela Universidade de San Diego em 1971,


Joan D. Vinge, antes de se dedicar à escrita profissional, trabalhou em
recuperação arqueológica. O seu interesse pela ficção científica levou-a a
considerar-se como «antropóloga do futuro». É casada com o escritor Vernor
Vinge, vivendo atualmente em Brooklyn, Nova Iorque.
A sua condição de antropóloga concede-lhe uma sensibilidade invulgar
para a ficção científica, comparável à prestigiada Ursula K. Le Guin,
apresentando-as como alternativas possíveis aos «velhos» escritores de ficção
científica.
Tem histórias publicadas em várias revistas, nomeadamente na Analog,
Omni, Orbit e Isaac Asimov’s Magazine e em várias antologias. O seu
primeiro trabalho publicado foi o conto «Tin Soldier», em 1974. Foi
galardoada em 1978 com o prêmio Hugo pela novela Eyes of Amber. No ano
seguinte recebeu novo Hugo na área do melhor conto curto com a peça
Fireship. Em 1980 é candidata ao Prêmio Nebula com o livro The Outcasts of
Heaven Belt, agora apresentado ao público português.
Joan D. Vinge aparenta ser uma «vencedora», pois o seu densíssimo e
gigantesco livro The Snow Queen arrecadou o tão ambicionado Hugo de
1981, na área do melhor romance.
Esta obra, The Snow Queen, será publicada, em breve, nesta coleção:
Transcrevemos algumas opiniões de escritores a propósito de The
Snow Queen:
Arthur C. Clarke: «Penso que este livro é um
futuro clássico. Fiquei deveras impressionado.»

Anne McCaffrey: «Um livro que gostaria de ter


escrito... Um esplêndido romance.»
Theodore Sturgeon: «Uma obra fora do
comum.»
Roger Zelazny: «Uma história interessante.
Recomendo como um dos melhores romances de
ficção científica.»
PRÉMIO HUGO

É a designação informal do Science Fiction Achievement Award e o


nome «Hugo» foi dado em honra de Hugo Gernsback, um dos primeiros
editores a divulgar este gênero literário. Este prêmio é atribuído em Setembro
de cada ano nos E. U. A. pela Convenção Mundial de Ficção Científica,
existindo desde 1953, polêmico e controverso, por vezes, mas sempre
ambicionado pelo prestígio que concede e pelas vendas que permite. A
tendência é um pouco chauvinista, visto A MAIORIA DOS PREMIADOS
SEREM AMERICANOS. Atualmente, o Prêmio Hugo é dado às seguintes
categorias: romance, novela (definida como uma obra com 17 500 a 40000
palavras), noveleta (7500 a 17500 palavras), contos curtos (com menos de
7500 palavras), editores (profissional e amador), ilustradores (profissional e
amador), revista especializada e obras cinematográficas, além de
ocasionalmente atribuírem prêmios especiais.
Dois é melhor do que um; porque têm uma boa recompensa pelos seus
trabalhos. Porque se caem, um ajuda o outro a levantar-se; mas desgraçado
do que está só quando cai; porque não tem ninguém para o ajudar.

Eclesiastes
PROLOGO

Há mais estrelas na galáxia que gotas de água no mar Boreal. Apenas


uma fração destas estrelas piscam e brilham, como flocos de neve
atravessando a luz, na noite sem fim do céu por cima do gelo. E de entre
esses milhares e milhares de estrelas visíveis o povo do planeta Alvorada
desejava uma: chamava-se Céu.
Algumas vezes, quando os ventos paravam, um silêncio frágil
instalava-se no lençol gelado da face da noite; e poderia parecer a um
astrônomo alvorano, na solidão do seu observatório, que se rompiam todas as
barreiras entre o seu planeta e as estrelas, que o próprio espaço interestelar
tocava levemente o seu pulso. O espaço batia-lhe à porta, a noite deslizava
cada vez mais, fundindo-se imperceptivelmente com a grande noite que
engolia todas as manhãs, e todos os alvoranos, e todas as miríades de estrelas
cujo número faria transbordar o mar.
E pensaria na nave espacial Ranger, que subira da frágil ilha de
Alvorada até essa noite sem fim: uma partícula de poeira prateada
transportada por uma forte brisa visível através das distâncias de catedral do
espaço, atraída de chama em chama através da escuridão...

***

Partira há muito tempo. E o que parecera à tripulação ser a imensidade


brava e brilhante da sua nave de fusão, reduzir-se-ia à insignificância, à
medida que deixavam o mundo, que era o seu lar, cada vez mais para trás —
à medida que a Ranger se tornava apenas mais uma partícula perdida entre
incontáveis partículas invisíveis na profundidade insondável da noite. Mas tal
como uma brasa num isqueiro, as suas vidas davam, à nave o seu coração
acolhedor de luz e vida. Passaram os dias, e os meses, e os anos... E os anos-
luz, enquanto sete homens e mulheres vigiavam as necessidades da nave e de
cada um. O seu passado compartilhado servia de exemplo ao presente com
imagens do mundo que deixavam para trás, visões do futuro que lhe
esperavam trazer. O seu destino era Céu e, como verdadeiros crentes,
achavam que a fé inspirava um significado mais profundo no traçar da rota
entre as estrelas e no cuidado dos tanques hidropónicos, nos seus silêncios e
nos seus risos, em todas as canções e memórias que traziam desde o lar.
E, por fim, uma estrela começou a separar-se das restantes, centrando-
se no visor da nave, tornando-se o foco da sua esperança conjunta. Anos
minguaram para meses e finalmente para semanas, porque, desacelerando
agora, desistindo quase da velocidade da luz, se preparavam para o encontro
com o novo sistema. Passaram a órbita de Sevin, o mais exterior dos mundos
do Céu, onde o novo sol ainda não era mais que um ponto gelado de luz.
Como crianças que se aproximam do Natal, a tripulação contava agora os
dias e previa o fim da jornada: todas as riquezas e maravilhas do Cinturão do
Céu.
Mas antes de atingirem o seu destino final encontraram mais uma
maravilha, que não era criação da humanidade — o gigante de gás Discus,
um oceano encapelado numa salva de anéis de prata. Observaram-no a
expandir-se, até que ocultou mais deste céu negro e alienígena do que a face
do seu próprio sol bloqueara no céu empoeirado do lar. Aproximaram-se da
rota arrastada do gigante, deslizando como um pirilampo cauteloso. E
enquanto a tripulação se reunia no salão, contemplando com temor este
esplendor, o capitão e o navegador descobriram algo de novo, algo de
inesperado, nos visores de bordo: quatro naves desconhecidas, propulsadas
por foguetes químicos antiquados, numa rota de intercepção...
«RANGER» (ESPAÇO DISCANO)
+ 0 SEGUNDOS

— Pappy, ainda se estão a aproximar?


— Ainda, Betha. — Clewell Welkin inclinou-se enquanto novas linhas
apareciam no fundo do visor. — Mas a velocidade mantém-se constante.
Devem ter reduzido a potência; não podiam manter eternamente dez
gravidades. Cristo! Não os deixes atingir-nos outra vez...
Mais uma vez Betha premiu o botão do intercomunicador.
— Vai correr tudo bem. Mais ninguém conseguirá aproximar-se de nós.
— A voz tremia-lhe, era a voz de alguém, não a de Betha Torgussen, e
ninguém respondia. — Vá lá, alguém, responda-me! Eric! Eric! Liga...
— Betha. — Clewell debruçou-se sobre o braço da cadeira almofadada,
agarrou-lhe o ombro.
— Pappy, não respondem.
— Betha, uma dessas naves não se está a afastar. Está...
Ela retirou-lhe a mão, procurando as leituras do visor.
— Olha! Querem abordar-nos. É isso; está a queimar combustível
químico e não podem desperdiçar tanto. — Suspendeu a respiração, as
articulações dos dedos crispadas no metal frio do painel. — Aproximam-se
de mais. Mostra-lhes a nossa cauda, Pappy.
Os olhos pálidos piscaram na face petrificada.
— Queres...?
Ela soergueu-se, afastou-se do painel e voltou a sentar-se.
— Clewell, eles tentaram matar-nos! Estão armados, querem abordar a
nossa nave, e fá-lo-ão, e só há uma maneira de os deter... Deixa-os atravessar
a nossa cauda, navegador.
— Sim, capitão. — Afastou-se dela em direção do painel e começou a
marcar a alteração de rota que poria fim à perseguição.
No momento final Betha comutou o visor de simulação para
observação exterior, apanhou a mancha âmbar da nave perseguidora trinta
quilômetros atrás deles — viu-a tornar-se transitoriamente dourada pela
alquimia das partículas supercarregadas do escape da sua nave. E observou o
outro escurecer outra vez até se confundir com a grande negridão pintalgada
de estrelas. Estremeceu, sem o sentir, e desligou a propulsão.
— Que... Que fazemos agora? — Clewell elevou-se da cadeira, contra
o cinto de segurança, à medida que a aceleração da nave cessava. A franja
branca do cabelo caía-lhe como geada.
À frente dela, no visor, surgiram os anéis de Discus, eclipsando a noite:
a salva de prata estriada, vinte faixas separadas de escuridão total e de branco
de luar, o estojo da murmurante joia vermelha de gás, que era o planeta
central. A mão pousava sobre o seletor, os olhos cintilavam com o brilho,
paralisando a sua vontade. Fechou os olhos e girou o seletor.
O seletor estava avariado. Ainda estão sentados à mesa, Eric e Sean e
Nikolai, Lara e Claire; levantaram os olhos para ela, rindo e respirando
novamente, e olharam através da cúpula para a glória de Discus na noite
vazia... «Meu Deus!», pensou. A sala estava vazia; eles tinham desaparecido.
«Meu Deus!» Apenas estrelas recortadas entre o plástico quebrado da cúpula
enchiam a escuridão que os engolira a todos... Não gritou, perdida no vácuo
sem som.
— Todos eles... Desapareceram. Todos. Aquele míssil... Destruiu a
cúpula.
Voltou-se para ver Clewell, cujo rosto estava branco e vazio; viu as
vidas deles, com tudo subitamente desaparecido. Pensou, assustada: «Ele
parece tão velho...» Desapertou o cinto descuidadamente, empurrou-se a ela
própria ao longo do painel até ao seu lado e pegou-lhe nas mãos. Ficaram
juntos, agarrados um ao outro, em silêncio.
Algo brando contorceu-se contra a sua cabeça; endireitou-se
subitamente quando garras como agulhas finas tocaram a carne do seu
ombro. «Rusty!» Conseguiu apanhar a gata, começou a flutuar e enfiou um pé
sob o varão que corria ao longo da base do painel. Uns olhos dourados
miravam-na num focinho malhado, redondo, com um nariz meio negro meio
laranja; uns bigodes sarapintados ergueram-se quando a boca formou um
miau? Lembrando os gonzos mal oleados de um portão. As mãos de Betha
agitaram-se num impulso de atirar a gata sala fora. «Que direito tem um
animal de estar vivo, quando cinco seres humanos estão mortos?» Afastou o
olhar quando Rusty estendeu uma pata apaziguadora para lhe tocar,
ronronando consolação para um desgosto incompreensível. Betha embalou-a,
beijou-lhe os pelos sedosos da cabeça, confortada pela brandura do seu calor.
Clewell olhou para a cauda agitada de Rusty, ensanguentada na ponta.
— Saiu mesmo à justa.
Betha concordou.
— Porque viemos nós ao Céu? — A voz tremeu-lhe.
Ela olhou-o.
— Sabes porque viemos! — Parou, procurando controlar-se. — Não
sei... Quero dizer... Quero dizer, pensava que sabia... — Há quatro anos,
quando deixaram Alvorada, tinha a certeza de tudo: o seu destino, a sua
felicidade, o seu casamento, a sua vida. E agora, súbita e incrivelmente,
apenas restava a vida. «Porquê?»
Porque a gente de Alvorada, o gélido mundo interior de uma desumana
estrela anã vermelha, tinha um sonho de Céu. Céu: um sistema de sol tipo G
sem qualquer planeta tipo Terra, mas um cinturão de asteroides ricos em
metais acessíveis. E com Discus, um gigante de gás rodeado por um
esplendoroso leito de água gelada, metano e amónia — as chaves elementares
da vida. O Cinturão, rico em minérios, e os gases gelados tornavam possível
— quase simples — realizar uma colônia autossuficiente na sua riqueza; céu
em todos os sentidos para os localizadores da cintura de asteroides do Sol,
que sempre dependeram da Terra para as necessidades básicas da
sobrevivência. E tornara-se um sonho para outra colônia, Alvorada, faminta
agora por qualquer coisa mais que a sobrevivência: o sonho de poderem
estabelecer contacto com o Cinturão do Céu, e negociar uma troca com a sua
fortuna superabundante.
O sonho que arrastara a nave espacial Ranger através de três anos-luz;
que fora despedaçado, com o salão destruído, pela realidade da morte súbita.
A desolação invadiu-lhe novamente os olhos; no seu espírito viu a forma de
haste de cem metros de comprimento da Ranger, cada linha tão familiar para
ela como as linhas do seu rosto, cada centímetro gravado na sua memória...
Viu-a rasgada por uma ferida fina e terrível; viu cinco rostos, perdidos agora
para ela, na escuridão, numa queda sem fim...
Clewell disse baixinho:
— Que fazemos agora?
— Continuamos... Continuamos como foi planeado.
— Queres continuar a tentar contactar com estes... — A mão apontou
para os destroços no écran. — Queres levá-los até casa pela mão, para
assassinarem toda a Alvorada? Não chega já...
Betha abanou a cabeça e agarrou-se aos braços da cadeira.
— Não temos outra alternativa! Já sabes isso. A bordo não temos
hidrogênio que chegue para imprimir outra vez à nave as velocidades de
aríete. Temos de nos reabastecer algures no Céu, ou nunca voltaremos a casa.
— Uma visão de casa surpreendeu-a: o fogo nos troncos negros, na noite
antes da partida... A cara de um rapazinho brilhando com lágrimas, enterrada
na sua camisa. «Mamã... Sonhei que tinhas de morrer para ir para o Céu.»
Recordando os soluços do filho ao acordar após um pesadelo, os seus
próprios olhos encheram-se de lágrimas e da escuridão infindável. Mordeu os
lábios. «Raios me partam, não sou nenhuma criança, tenho trinta e cinco
anos!»
— Pappy, não comeces a agir como um velho. — Olhou de soslaio e
viu a irritação dele tirar-lhe dez anos do rosto. Sem olhar, desligou o écran.
— Agora não temos qualquer escolha. Temos de continuar. — «Temos de os
fazer pagar», e os seus olhos faiscaram com o fulgor duro de safiras. Afastou
Rusty cuidadosamente e observou o seu andar felino e inútil enquanto andava
sem destino pela sala. — Temos combustível suficiente nos tanques para
viajar pelo sistema... Mas em quem confiar? Porque nos atacaram? E aquelas
naves, foguetes químicos... Só deviam existir num museu! Não faz sentido.
— Talvez fossem piratas, renegados. Não vejo outra possibilidade. —
A mão de Clewell cortou o ar, indecisa.
— Talvez. — Ela suspirou, sabendo que os renegados não tinham lugar
no Céu. Vendo-se obrigada a aceitar a ideia, esqueceu-se de que o rosto
zangado e despreocupado que lhe falara no visor lhe chamara, a ela, pirata.
— Vamos então para o Cinturão Principal, até Lansing, a capital, como foi
planeado. E então... Encontraremos uma maneira de conseguir o que
precisamos.
PLANETOIDE TOLEDO (ESPAÇO DA DEMARQUIA)
+ 30 QUILOSSEGUNDOS

Wadie Abdhiamal, negociador pela Demarquia, espreguiçou-se


voluptuosamente, arrancado do sono pelos acordes do telefone. Acendeu as
luzes apenas o suficiente para ver a sua silhueta e atendeu:
— Está? — No visor brilhou o rosto de mogno de Lije MacWong, e ele
apoiou um cotovelo na cama.
— Desculpa acordar-te, Wadie.
Resmungou:
— Aposto que tens muita pena! — MacWong gostava de se levantar
cedo. Wadie olhou de relance para o relógio digital na base do telefone. —
Alguém precisa de um negociador a esta hora da noite? As pessoas já não
dormem?
— Espero que estejam todos a dormir agora... Estás sozinho?
Wadie olhou por cima do ombro para o perfil escuro e suave de
Kimoru, com o cabelo negro revolto. Ela suspirou no sono. Tornou a olhar
para a imagem de MacWong, e viu pela reprovação nos olhos azul-claros que
MacWong já sabia a resposta. Aborrecido, mas dissimulando-o, disse:
— Não, não estou.
— Usa o auscultador.
Wadie obedeceu, desligando o som do alto-falante geral. Escutou, em
silêncio, nos poucos segundos que bastaram a MacWong para o arrancar do
torpor do sono.
— Vou descer o mais rápido possível.
Saltou da cama, meio a flutuar na fraca gravidade, e foi à casa de banho
lavar-se e barbear-se. Quando voltou encontrou Kimoru sentada na cama com
a roupa puxada até ao queixo. Ela piscou reprovadoramente as pálpebras
ainda mal abertas.
— Wadie, querido — disse em tom de despeito —, ainda nem sequer é
manhã! Porque estás já levantado? Sou assim tão aborrecida na cama? — Um
tom de desespero.
— Kimoru. — Atravessou o conforto do quarto para a beijar
demoradamente. — Não devias dizer-me coisas tão horríveis. O dever
chama-me, tenho de ir... Bem sabes como odeio levantar-me cedo.
Particularmente quando estás cá. Adormece outra vez, voltarei para te levar a
tomar o pequeno-almoço... Ou o almoço, se preferires. — Abotoou a camisa
com uma das mãos acariciando-lhe o queixo com a outra.
— Bem, está bem. — Deslizou para debaixo da coberta. — Mas não
venhas tarde. Sabes que tenho de conquistar um cliente para o velho e
querido Chang e Companhia aos cinquenta quilossegundos. — Bocejou. Os
dentes eram brilhantes e finos. — Não sei porque não arranjas um emprego
decente. Só um homem do Governo arranjaria um horário como o teu... Ou
teria de o arranjar.
«Ou uma gueixa...?» Continuou a vestir-se e não o disse em voz alta;
sabia que ela não tinha escolha e que lembrar-lhe este facto era desnecessário
e destituído de tato. Uma mulher que fosse esterilizada por defeitos genéticos
tinha poucas oportunidades ao seu alcance numa sociedade que via a mulher,
acima de tudo, como uma mãe em potencial. Se estivesse casada com um
marido compreensivo, um marido que desejasse que uma mãe-por-contrato
lhe desse herdeiros, poderia continuar a levar uma vida normal. Mas uma
mulher divorciada por esterilidade — ou uma mulher estéril solteira — tinha
apenas duas alternativas: ter um emprego subalterno, desagradável, exposta
às radiações sujas das baterias atômicas do pós-guerra; ou trabalhar como
gueixa, entretendo os clientes de uma corporação comercial. Era prostituição;
mas era aceite. Uma gueixa tinha poucos direitos e ainda menos prestígio,
mas tinha segurança, ambiente confortável, roupas finas, e dinheiro suficiente
para se sustentar quando passasse a primavera da vida. Era uma existência
estéril, mas a esterilidade física deixava-lhe pouca escolha.
Conhecendo as alternativas, Wadie não culpava nem censurava. E
muitas vezes tinha consciência de que, trabalhando para o Governo,
enveredara por uma carreira que muita gente respeitava menos que a
prostituição formal — e uma carreira que deixara a sua vida privada tão
vedada em relações reais como a de qualquer gueixa. Olhou para trás da sua
própria imagem no espelho, para Kimoru, que estava de novo a dormir com
um braço estendido sobre a metade vazia da cama. Ele não tinha filhos, nem
mulher. Muitas das mulheres com quem contactava socialmente eram como
Kimoru, gueixas que encontrava enquanto negociava contendas entre as
diversas corporações que as utilizavam. Evitava-as enquanto cumpria o seu
dever, porque evitava qualquer coisa que pudesse, mesmo remotamente, ser
considerada suborno. Mas nos seus tempos livres as gueixas gostavam de
escolher a sua própria companhia e ele possuía dinheiro suficiente para lhes
oferecer um tempo agradável.
Mas raramente permanecia num lugar o tempo suficiente para
reconhecer bem qualquer mulher; e as poucas mulheres formais que
conhecera tinham-no todas aborrecido com a sua conversa insípida e
infindável, a sua eterna vaidade.
Wadie escovou o cabelo castanho encaracolado e colocou
cuidadosamente na cabeça a boina mole. Era exigente no vestir, mesmo de
madrugada. Era de esperar. Agarrou um anel de prata com rubis e enfiou-o no
polegar. Tinha sido um presente de gratidão de duas pessoas que ajudara
muitos megassegundos atrás, uma equipa de marido-mulher prospetores.
Recordou mais uma vez essa mulher — uma mulher piloto, uma mulher forte
e saudável que decidira esterilizar-se para poder ir para o espaço. Na
realidade não era uma mulher; porque nenhuma verdadeira mulher rejeitaria
de boa vontade um lar e uma família. Essa mulher fora uma extravagância —
teimosa, sempre na defensiva, rigorosa até consigo própria; uma mulher
deslocada do seu lugar, do seu íntimo. E, contudo, o sócio casara com ela.
Aliás, ele também tinha algo de extravagante; um homem comum — um
mentiroso profissional — com escrúpulos. Não admirava pois que os dois
tivessem escolhido passar o resto das suas vidas algures, apanhando sucata
em mundos em ruínas...
Wadie abanou a cabeça a essa lembrança, olhando pelo espelho para o
passado. Perguntou mais uma vez a si mesmo, como já antes perguntara, que
química bizarra os colocara juntos e os mantinha ainda unidos. E, por alguns
instantes, interrogou-se, quase com inveja, porque é que tal química nunca
resultara com ele. Enfiou-se no casaco verde-escuro, abotoou o colarinho alto
por cima do bordado geométrico de seda. Diabo, tinha cento e cinquenta
megassegundos de idade — trinta e oito anos segundo o velho mundo —, a
maior parte dos quais passados a resolver os problemas dos outros, a viver a
vida dos outros em vez da sua. Se até agora não encontrara uma mulher que o
aceitasse tal como ele era, ou uma que o fizesse esquecer tudo o resto, nunca
mais a encontraria. Não estava a ficar mais novo; se quisesse um filho não se
podia dar ao luxo de esperar muito mais tempo. Quando acabasse esta nova
missão alugaria uma mãe-por-contrato para lhe dar um filho e o criar
enquanto estivesse ausente. Ao sair do apartamento olhou pela última vez
para a adormecida Kimoru e fechou a porta silenciosamente.

***

Wadie bocejou discretamente quando saiu do prédio e começou a


atravessar a praça sossegada. Ainda não era bem dia; a luz das lâmpadas
fluorescentes brilhava como a aurora no teto que imitava o céu, dez metros
acima da sua cabeça. As solas magnéticas das suas botas polidas produziam
um ruído abafado no metal polido da praça, um fator de segurança na baixa
gravidade do planetoide Toledo. A superfície da praça curvava-se ao longo
da face interna de um pedaço de ferro maciço, mas perfurado, colheita de um
mineiro rico, e constituía uma base sólida, que começava a mostrar,
desgraciosamente, a idade. A geométrica filigrana prateada de puro minério
de ferro sob os seus pés estivera, outrora, protegida por uma fina e resistente
película, mas agora ia-se oxidando, pois essa camada protetora gastara-se.
Podia seguir os rastos de ferrugem, vermelho-acastanhados à luz da
madrugada, através da praça e na parede malhada à entrada do centro
governamental. Sintomas de um mal mais profundo... Foi invadido por algo
semelhante ao pânico; por hábito respirou fundo, cortando o fio ao
pensamento, não admitindo que a doença pudesse ser terminal. Caminhou
para o centro, compondo os laços dos punhos. «Viver bem é a melhor
defesa», pensou com azedume.
Lije MacWong esperava-o lá dentro. Oficialmente, Wadie trabalhava
para os cidadãos da Demarquia; na realidade trabalhava para MacWong, a
Escolha do Povo: a democracia absoluta da Demarquia era um mar
imprevisível sob o frágil barco do Governo, e tinha já afogado um número
incontável de representantes incautos. Mas MacWong movia-se
instintivamente com a corrente da opinião popular, arriscando mesmo
algumas vezes alterar essa corrente para seguir a sua ideia sobre as
necessidades das pessoas. Tratava dos problemas das pessoas, e fazia-as
gostar disso. De tempos a tempos, Wadie procurava imaginar qual seria o
segredo de MacWong: e perguntava a si próprio se realmente o queria saber.
— Paz e prosperidade, Lije.
MacWong olhou para Wadie quando este entrou no gabinete, olhos
azuis e frios na calma do rosto escuro.
— Paz e prosperidade, Wadie. — Levantou-se, retribuiu o
cumprimento formal e afastou-se do aquário com relutância.
Wadie deu uma espreitadela aos peixes — três coisas brilhantes e
douradas, mais pequenas que um dedo, com barbatanas como teias
resplandecentes, movendo-se sinuosamente por entre as plantas marinhas na
água iluminada a verde. Os peixes dourados eram as únicas criaturas não
humanas que ele já observara e, tanto quanto sabia, MacWong ainda os
estava a pagar. Tirou a boina e ficou a observar a sua forma de cogumelo
mole a aplanar-se sobre a secretária frente a MacWong.
— Com o devido respeito, acredito que essas notícias sobre a
mensagem misteriosa do espaço exterior são genuínas e não estou aqui por
gostares de me ver sofrer. — Afundou-se lentamente na cadeira neocolonial
da secretária de MacWong e alisou cuidadosamente as rugas do casaco.
— Senta-te. — MacWong sorriu tolerantemente. — A «mensagem» é
genuína. Não são filmes de família os que te vou mostrar.
Debruçou-se cuidadosamente sobre o canto da secretária, evitando o
frasco de cabeças de animais em prata, e ligou um interruptor do
comunicador. Nada aconteceu. — Bolas! — Pegou num pesa-papéis de
platina com a forma de um gato enroscado e atirou-o ao painel. O impacte
não foi grande, mas o mural de Kleinfelter projetado na parede do fundo
apagou-se e foi substituído pela imagem de um rosto de mulher. — Não sei o
que vou fazer se alguma vez esta secretária deixar de funcionar. Já não as
fazem como dantes. — Com gentileza tornou a colocar o pesa-papéis no seu
lugar.
— Eles já nem as fazem, Lije. — Wadie pôs-se a seguir o bordado na
frente do casaco; os dedos pararam quando olhou para o visor. — Um
holograma? Onde é que arranjaste isso, MacWong?
— Apanhámos isto no ar, ou no espaço, não interessa, há trinta
quilossegundos. Trata-se de uma transmissão holográfica genuína;
demorámos dez quilossegundos a descobrir esse facto. E não é unidirecional.
Pensa na potência e na largura de banda que uma coisa como essa requer! Já
não conheço ninguém que saiba fazer isso.
— De qualquer modo não deve haver muita gente capaz disso... —
Interrompeu para observar e escutar, à medida que a voz da mulher subia de
volume. A pele dela era tão pálida que quase não tinha cor, assim como o
cabelo curto, flutuante; o rosto era comprido e anguloso. Usava uma camisa
clara aberta no pescoço, sem qualquer joia. Tinha uns trinta anos, calculou
ele, e não mostrava qualquer tentativa de esconder o facto; a sua simplicidade
era quase dolorosa. Deixou de pensar nisto e concentrou-se na voz. Ela falava
anglo, mas com um sotaque estranho; as palavras mais vulgares pareciam ter
sílabas extra na sua boca.
—... Por favor, completem a vossa identificação. Não sabíamos que
estávamos a violar o vosso espaço. Não somos, repito não, do vosso sistema
e nós... — Foi interrompida por um ruído quase inaudível; Wadie viu a sua
pele pálida corar de raiva, os olhos aguçarem- se como safiras afiadas. Virou-
se para MacWong.
— A frota do Anel — disse MacWong. — A emissão foi para outro
lado. O ruído foi tudo o que apanhámos.
A mulher olhou para, o lado do visor e disse algumas palavras que ele
não conseguiu ouvir, palavras insultuosas, imaginou ele; mas a voz dela era
firme quando voltou a encarar o visor.
— Não é uma nave cinturana, não somos demarquistas, e não
cometemos qualquer ato de «pirataria». Não têm qualquer autoridade sobre a
minha nave; recusamos autorização para virem a bordo. Mas se nos derem as
coordenadas para o vosso...
Mais uma vez foi interrompida; viu a tensão crescer nela, crispando-lhe
o rosto.
— Não estamos armados... — E com ar resoluto: — Mas negamos o
vosso «direito de confiscação». Pappy, arranja-nos... — Tornou a virar-se e a
sua imagem foi cortada por uma rajada de estática vermelha. Viu-a por mais
meio segundo, e depois o visor apagou-se.
— Então?
Wadie apertou a armação de metal da cadeira com as mãos.
— Destruíram-na? É tudo?
MacWong abanou negativamente a cabeça.
— A nave foi atingida mas escapou aos Anelanos... Exceto a um deles.
Conseguimos seguir alguns dos seus movimentos; a nave alienígena é dura de
roer, e quando um dos aparelhos anelanos que a perseguia se aproximou
demasiado, ela limitou-se a usar o escape para a fundir em sucata. Talvez
essa rainha viquingue indignada não esteja armada, mas é perigosa.
Wadie não disse nada, esperou.
— Não sabemos onde a nave está agora, ou mesmo a razão pela qual
está aqui. Mas tenho algumas ideias. Ela afirmou que era do exterior do
sistema, e eu acredito. Já não há ninguém no Cinturão que tenha uma coisa
tão sofisticada. E com uma mulher a manobrá-la... Particularmente uma
mulher com aquele aspecto...
— Talvez seja uma albina... Talvez seja do Cinturão Principal. Os
sucateiros não se importam com quem vai para o espaço; de qualquer modo
não têm proteção contra a radiação. Talvez tenham tido muita sorte nos
salvados. — Apesar de tudo, sabia que MacWong tinha razão; que a mulher e
o seu sotaque eram demasiado alienígenas.
MacWong olhou-o.
— Ninguém tem uma sorte dessas. Que se passa, Wadie, achas que o
milagre é demasiado grande para ti? Não é nenhuma fantasia de homem
vulgar, acredita-me. É uma nave do exterior, o primeiro contacto que tivemos
com o resto da humanidade em mais de três gigassegundos. E a rota que
seguem nos Anéis poderá levá-los à velha capital, Lansing. Se este raciocínio
está certo, só pode haver uma razão pela qual essa nave está aqui: não sabem
da guerra civil. Vieram do Céu à procura de ruas douradas, e quando
compreenderem que já não há nenhuma, nunca mais os tornaremos a ver.
Não podemos deixar que isso aconteça...
— Que vantagem nos traria agora uma nave? — Encarou o visor
branco da parede e, contra a sua vontade, sentiu outra pergunta tomar forma
obstinadamente.
— Aquela nave pode dar-nos todo o bem do universo. — MacWong
segurou no seu gato de platina. — Aquela nave é um tesouro, aquela nave é
poder... Aquela nave pode salvar-nos...
Wadie concordou, admitindo consigo próprio que só o imenso reator de
fusão da nave bastaria para dar à Demarquia o impulso necessário para
reconstruir as indústrias fundamentais. E só Deus sabia que outras
tecnologias — tecnologias funcionantes — podiam ter a bordo. A simples
posse de uma nave como aquela alteraria para sempre os negócios de neve da
Demarquia com os Anéis. Podiam até ultrapassar Discus e os Anéis, montar
destilarias próprias nas luas de Sevin...
Tanto quanto se podia recordar, vivera sempre com sinais de uma
sociedade que se separava gradualmente pelas costuras, isolada na terra de
desolação em que a guerra civil transformara o Cinturão do Céu. Devido à
sua localização periférica, a Demarquia sobrevivera relativamente intacta à
guerra civil. Mas o Cinturão Principal fora destruído, e agora o único
contacto da Demarquia com o exterior era a Grande Harmonia dos anéis
discanos, e os Anelanos estavam simplesmente a procurar sobreviver. A
Demarquia estava decaindo com ela, mas como tinha um maior caminho a
percorrer, Wadie descobrira que mais ninguém parecia ter-se apercebido da
verdade. Estavam cegos pelo interesse individual feroz e tradicional que era a
força da Demarquia... E talvez, agora, a sua fraqueza fatal.
Tornara-se um negociador, esperando unir as feridas que o seu povo
infligira a si próprio. Acreditara que de algum modo o elemento unificador, o
laço de necessidades comuns que agrupa todos os seres humanos, poderia ser
usado como uma força contra a desintegração e a decadência; de que a
Demarquia continuaria, que poderia encontrar uma resposta... E com esta
nave... A sua imaginação subia, mas recuou quando a pergunta o atingiu:
quem controlaria uma nave como aquela... E quem poderia controlar os que a
controlavam?
— Mas, como disseste, essa nave voltará para casa, assim que eles
virem o que sobrou de Lansing.
— Talvez. — MacWong sacudiu o pó do punho da camisa. — Mas
Osuna pensa que eles podem necessitar de se reabastecer primeiro. Daqui até
casa, seja ela onde for, é um longo caminho. Não é provável que, nestas
circunstâncias, voltem aos Anéis para conseguir combustível. Isto significa
que podem vir até nós; se precisam de hidrogênio processado, não há outro
lugar onde ir. Por isso estou a enviar toda a gente que posso dispensar.
Quero-te em Mecca. As destilarias farão dela um alvo de primeira, e és mais
experiente a lidar com... «Alienígenas»... Que qualquer outro do pessoal.
Wadie aceitou o cumprimento tático, a antipatia tática, recordando os
cinquenta milhões de segundos passados na Grande Harmonia dos anéis
discanos, e as coisas que lhe tinham mostrado e que nunca esperara ver.
Levantou-se, apanhando a boina.
— E se eles não estão na disposição de negociar?
— Não espero que eles estejam. Mas isso não importa; és pago para os
pores na disposição. Promete-lhes qualquer coisa, mas mantém-nos aqui,
encurrala essa nave, até que nós possamos controlá-la.
Wadie ajustou a boina e mirou a parede espelhada.
— Que queres dizer com «nós», Lije? Quem é que vai controlar essa
nave? Se não for o Governo, o povo verá isso. E o primeiro garoto da rocha a
ter uma...
MacWong não estava divertido.
— Por vezes penso se não passaste tempo demasiado com os Anelanos,
Abdhiamal. Raios, Wadie, ainda não ponho em dúvida a tua lealdade, após
duzentos megassegundos. Mas há quem o faça; quem pense que tu gostavas
realmente de ver aqui um governo centralizado. — Fez uma pausa. — Haverá
uma reunião geral para resolver o assunto assim que tivermos a nave. —
Inclinou-se por cima da secretária gargulada. — A Demarquia tem de ter essa
nave, e mais ninguém senão a Demarquia.
— És o patrão. — Wadie curvou-se.
— Não — corrigiu MacWong. — A Demarquia é o patrão. Nós damos
às pessoas o que elas pensam que querem. Nada mais tem qualquer
significado. Esquece isto e estás fora do emprego... Ou pior. Se fosse a ti,
nunca o esqueceria.
E, sabendo que MacWong nunca esqueceria, Wadie deixou o gabinete.
«RANGER» (EM TRÂNSITO, DE DISCUS PARA LANSING)
+ 130 QUILOSSEGUNDOS

Por fim, Betha abandonou o laboratório de hidropónica e começou a


subir pelo silêncio do vão central. Já não se conseguia lembrar de quantas
vezes subira por este vão durante os últimos dois dias; os deveres de uma
tripulação de sete eram um moinho de trabalho sem fim para uma tripulação
de dois. Passou pela oficina no quarto nível, continuou, atingiu o dormitório
no terceiro. Um nível mais acima, através do vão, o piscar da luz vermelha
sobre a porta selada do salão atingiu os seus olhos relutantes. Parou,
arrancada da fadiga por uma nova arremetida de mágoa.
Caminhou apressada pelo corredor que circundava o vão e que dava
acesso a sete quartos privados... E a tudo o que recordava cinco seres
humanos que para ela estavam perdidos para sempre. À sua direita, o quarto
de Lara; tudo no seu lugar, espelhando a precisão do espírito de Lara... A
firmeza tonificante da sua voz junto da marquesa na enfermaria da nave; o
seu cabelo encanecido, a preocupação dos seus olhos cinzentos que negavam
o desprendimento clínico. Havia um banco forrado, no quarto de Lara, feito
de uma vértebra de cetáceo; um Atlas Colorido das Doenças dos Peixes,
Anfíbios e Répteis. Tinha sido, em Alvorada, uma investigadora médica antes
de a sua família se tornar numa tripulação e ela se ter tornado na sua médica;
mas a biologia marítima fora a sua paixão, o seu verdadeiro amor. E o
espertalhão do Sean escrevera uma canção, Lara e o Leviatã, que a engolia
em versos acerca deste «monstro cetáceo», o Ranger...
Através da porta aberta, diretamente à sua frente, Betha podia ver uma
confusão de aparelhos eletrónicos, e a balalaica de Nikolai sobre a almofada
da sua cama. Imaginou-o calvo, barbudo, pensativo; com uma voz como um
eco saindo de um buraco... Um professor paciente, competente, um perito em
eletrónica — em casa era o homem das reparações, à disposição de metade de
Borealis. Lembrou-se dele rindo, esquivando-se ao sapato que ela atirara a
Sean por este chamar baleia à sua Ranger...Virou à esquerda, movendo-se ao
longo do vestíbulo curvo contra as correntes da memória, como uma mulher
atacando energicamente o mar. Recordando Clara, rosto de lua plácida,
cabelos encaracolados; pesada, pura filha de fazendeiro... O ruivo Sean, o
garoto no meio deles, com apenas vinte e quatro anos...
Betha hesitou, encontrando-se de súbito frente à sua própria porta. Deu
uma olhadela: a secretária em desordem, a roupa da cama amarrotada.
Moveu-se desesperadamente, como se pensasse afogar-se, até ao próximo
quarto... Até Eric. Eric van Helsing, cientista social, meio defensor dos
fracos, meio orador...
Tu és a chuva, meu amor, a doce água correndo pelo
deserto da minha vida.
As palavras da canção ocorreram desordenadamente ao seu espírito,
como o coração apressado de um vento do deserto em Alvorada, a paixão do
primeiro amor:
Deixa-me florescer primeiro para ti Deixa-me saciar
a minha sede em ti Partilhar contigo o melhor e o
pior...

As suas mãos retorceram-se, inconscientemente; seis alianças de ouro


roçaram umas nas outras, envolvendo os seus dedos, quatro na mão esquerda,
duas na direita.
Esposo, toma-me como mulher
Tu és a chuva...
Encostou-se à madeira do batente da porta, fechando os olhos; premiu o
rosto contra a sua frieza, sentindo o seu apoio sem compromisso. Ele tinha-se
ido embora; todos eles se tinham ido embora: a sua tripulação, a sua família...
Os seus maridos e as suas mulheres. A sua força, que vinha da
comparticipaçâo, desapareceu com eles, escoada no vácuo sem fim. Como
poderia ela continuar? A perda era um fardo pesado de mais, a vida um fardo
pesado de mais para o suportar sozinha...
Algo roçou as suas ancas; abriu os olhos, focando-os. A gata
espreguiçou-se entre os seus pés, ronronando desamparadamente.
— Rusty... — Baixou-se para a apanhar, revendo o dia da sua partida de
Alvorada: a gatinha, torcendo-se e miando, segura nas mãos sujas da sua
filha, Kiki, quando as crianças apresentaram solenemente os presentes que
tinham escolhido para cada um e para todos os pais. Encontravam-se
presentes uma dúzia de avós — e filhos e filhas, primos e primas, sobrinhos e
sobrinhas, os rostos orgulhosos e esperançados, banhados pela luz rubra do
crepúsculo eterno do perímetro da Face das Trevas.
Todos eles os aguardavam — todos eles eram parte dela. As crianças
esperavam, ela não estava sozinha. Mas todos eles se encontravam agora fora
do seu alcance, afastados por demasiado espaço e tempo; e era o seu dever, a
sua responsabilidade, levar-lhes de volta esta nave...
Ouviu um som no vestíbulo, mesmo frente à porta, ainda com Rusty
aninhada nos seus braços. Viu Clewell, apenas em calções, em pé à porta do
seu quarto, observando-a.
— Betha, sentes-te bem?
— Sim... Sim, estou apenas cansada, Pappy. — «Cansada de me
lembrar, mas lembrando-me. Como pode um súbito desgosto tornar toda a
minha alegria em dor?» Olhando-o, viu a mesma desolação, a mesma ferida
pela perda que a atormentava. Sentiu o medo subir novamente. «Oh, Clewell,
não me deixes perder-te.» — Posso... Compartilhar o teu quarto outra vez,
esta noite?
Ele concordou.
— Faz favor. De qualquer modo não conseguiria adormecer sozinho.
Seguiu-o até ao quarto e, na escuridão, desabotoou a camisa lisa de
algodão, tirou os sapatos e as calças. Instalou-se no saco duplo de dormir ao
lado dele, nos seus braços, e colocou os seus braços em tomo dele, com
gratidão, num gesto de longa familiaridade. Clewell não era o seu primeiro
marido, mas fora seu amigo durante mais anos do que os que ela podia agora
recordar. Ele completara vinte e sete anos no ano em que ela nascera, um tio
entre muitos; mas fora desde a infância o seu favorito de entre todos os
parentes da sua extensa família. Fora astrônomo antes de se tornar navegador
na Ranger; viajara desde Borealis ao longo do perímetro frio do dia, através
do mar Boreal e sobre a enrugada camada de gelo do glaciar da Face das
Trevas, até ao seu observatório sob a noite eterna. Algumas vezes levara-a
para umas breves férias observando as estrelas, livre dos deveres e
responsabilidades do clã a que até uma criança em Alvorada estava obrigada.
Quando completou quinze anos partiu para o seu treino técnico; e,
depois, para o seu primeiro emprego como engenheira numa fábrica
localizada na periferia desértica do Ponto Quente subsolar. Apaixonou-se por
Eric e casou com ele; e, a seu tempo, voltou a Borealis. Reentrou na vida de
Clewell como uma mulher crescida, e ela e Eric foram convidados a juntar-se
à família.
A sociedade em Alvorada era consequência do casamento múltiplo, e
os laços de parentesco constituíam a sua força e segurança. O casamento
entre os membros de um clã — os pais da família, os seus filhos, os próprios
filhos destes — era tabu social; mas fora da unidade central do clã, primas e
primos, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos, casavam livremente entre si, pois o
seu simples número providenciava os necessários controlos culturais e
biológicos. Um casamento podia ser realizado entre um único par ou entre
uma dúzia de pessoas, e cada família elaborava as suas próprias regras de
vida. Amizades especiais entre membros de uma grande família eram
comuns, e, ou o grupo no seu todo se adaptava, ou um subgrupo surgia. As
bodas eram motivo para uma festa geral, mas o divórcio era assunto comum e
privado para o grupo familiar. Três dos membros da família Clewell, que
Betha conhecera em criança, divorciaram-se dos restantes, e a sua primeira
mulher morrera ainda antes de ela e Eric se terem reunido ao grupo e, depois
deles, Clara e Sean.
Betha lembrava-se da cerimônia simples e breve do casamento e das
gigantescas e informais festas de família que se lhe seguiram. Em Alvorada
toda a gente adorava uma festa porque, a maior parte das vezes, tinham muito
pouco que celebrar. E agora passaria a haver muito menos, quer a Ranger
voltasse quer não...
Betha tornou-se consciente da mão de Clewell movendo-se suave e
ternamente pelas ancas. Mas a resposta quente e instintiva de meia vida
morrera nela. Enterrou a cara na almofada, abafando as palavras:
— Oh, Clewell, não consigo... Não consigo. Ainda não. Lamento...
Os braços dele voltaram a confortá-la.
— Não, Betha... Está tudo bem. Isto é tudo o que realmente preciso.
Apenas segurar-te.
Sentiu Rusty agitar-se e aconchegar-se entre os seus pés, ao fundo da
cama. Moveu-se mais para os braços de Clewell, apertando-o nos seus, e
escapou da memória para o sono.
«LANSING 04» (ESPAÇO DE LANSING)
+ 190 QUILOSSEGUNDOS

A noite dilatava-se em silêncio frente aos seus olhos perscrutadores;


confortavam-se na vastidão da sua indiferença pintalgada de estrelas. Eram
sucateiros, recolhendo os restos dos mundos; a noite dava-lhes guarida
porque não os julgava, e eles estavam gratos pela sua amoralidade.
Shadow Jack perscrutava a noite, ou a sua imagem no visor... Algumas
vezes o seu espírito perturbava-se nas entranhas escuras e fechadas da nave, e
a realidade começava a misturar-se com a imaginação. Estendeu as pernas,
coçou-se, penteou para trás o cabelo sujo que lhe caía para os olhos e que era
tão negro como a noite no visor em frente dele. Um olho era verde, o outro
azul; ambos estavam avermelhados e a sua cabeça pulsava ao ritmo das
batidas do coração. O nível de dióxido de carbono na cabina estava bem
acima de três por cento; e há muito tempo que deixara de lhe sentir os odores.
Tornou a sentar-se na cadeira, mirando um ponto errante no visor, uma
estrela que não era uma estrela — era algo infinitamente mais insignificante,
e infinitamente mais precioso.
— Penso que estamos suficientemente perto para começar a sondar.
Ouviu a voz de Bird Alyn, como sempre quase inaudível, mesmo na
calma do espaço que os rodeava. Engoliu duas vezes em seco, molhando a
garganta para as palavras.
— Está bem. Começa.
Ela avançou com a mão direita, e a mão esquerda, estropiada, ficou no
ar enquanto a outra dava ordem, no computador da unidade de
reconhecimento, que iniciaria uma nova análise. Shadow Jack observou os
longos dedos dela, com as unhas quebradas e sujas, a moverem-se sobre o
painel brilhante. Olhou, pela décima milésima vez, para a imundície da
cabina estreita: não encontrando ainda um milagre que transformasse a
carcaça de ferro-velho soldada numa nave comparável à beleza tecnológica
da unidade de reconhecimento. Quase pedindo desculpa apagou, com a
manga poida, as dedadas na frieza do painel. A unidade de reconhecimento
era a recompensa de salvados, uma coisa mais preciosa que a própria vida,
pois dava ao seu mundo uma hipótese de sobrevivência. Antes da guerra civil
tinha sido uma unidade de prospecção, programada para análise mediante
laser e radar de metais nos asteroides, de matérias orgânicas e de voláteis.
Agora sondava o velho em vez do novo, pesquisando artefactos nos restos
mortos, para manter as vidas dos vivos. Voltou a olhar o visor enquanto Bird
Alyn esperava, e viu números surgirem no plano brilhante do visor.
— Nada — disse Bird Alyn. — Sem reflexões metálicas, sem
radioatividade, sem qualquer afluente através da superfície... Nada, nada.
Nunca ninguém viveu ali...
— Sempre nada! — Bateu no espesso e escurecido vidro da vigia, num
universo fora do seu controlo.
— Talvez da próxima vez. Além disso, talvez alguém antes de nós
encontrasse o que precisava. Não somos a única nave... — A voz dela sumiu-
se.
— Sei disso! — A sua voz despedaçou-lhe os ouvidos e ergueu as
mãos. — Desculpa. Dói-me a cabeça.
— Também a mim.
Olhou-a de relance. Não era uma censura; os olhos dela, orlados de
vermelho, eram ternos antes de se afastarem, escondendo-se entre o seu rosto
e o algodão baço do seu cabelo, castanho em castanho em castanho. Sardas
castanho-escuras espalhavam-se pelo seu nariz.
— Achas que ainda há alguma água?
— Vou ver. — Retirou o cinto e flutuou para fora da cadeira, um pé nu
empurrando o painel. Alcançou a parede atrás dele e leu em silêncio o
indicador. — Sim, há alguma agora. — Ouviu o suspiro de Bird Alyn
enquanto forçou o bocal na junta hermética do copo de beber e esperava que
se enchesse. — Zero vírgula quatro litros. — Suspirou, também.
Beberam pelo tubo do copo, cada um por sua vez, saboreando a
insipidez da água morna; Bird Alyn esticou-se para apagar o visor. Hesitou,
inclinou-se.
— É estranho... Olha, os dados mudaram. Deve haver mais alguma
coisa ali; estamos a ter uma análise de vestígios de qualquer coisa. Metal...
Baixa radioatividade... — A voz dela subiu ao ponto de a poder ouvir sem
esforço.
Bolhas de água tocaram-lhe os olhos e lamberam-lhe as mãos e apertou
o copo com força demasiada.
— Um despojo?
Ela tocou com leveza nos controlos, mostrando uma imagem do
espelho Matkusov no casco. Uma agulha brilhante mantinha as estrelas na
escuridão.
— Uma nave murmurou.
— Oh, realidade, olha para aquilo...
— Nunca vi uma nave assim...
— Nunca houve nenhuma.
— Nunca desde a guerra. Tem de ser...
— Tem de ser... Um salvado. — Shadow Jack inclinou-se, tocou a nave
com um dedo molhado. — Reclamo-te, nave! Com uma nave como aquela...
Podíamos fazer tudo com uma nave como aquela.
— Está à deriva, sem propulsão. O que não significa que não esteja
morta... Encontrar isto, tão perto de Lansing...
— Está morta, deve ter mais de dois gigassegundos de idade. Qual a
nossa velocidade relativa? Podemos interceptá-la?
Os longos dedos dela fizeram a pergunta, o painel respondeu:
— Sim! — Olhou. — Se dermos impulso, em quatro ou cinco
quilossegundos.
— Está bem — concordou. — Damos o impulso.
Esperaram, apanhados na teia de sonhos privados, quando a agulha de
luz cresceu até um impossível inseto dourado, o corpo fino como um
filamento alargando-se para trás numa cauda bulbosa, em pera. «Um
milagre»... As palavras cintilaram no seu espírito e, sabendo que não existiam
milagres, acreditou, provocadoramente. Uma nave que lhes poderia dar água
para encher os pântanos, para levar de novo a vida à relva ressequida e às
árvores moribundas... Ao povo moribundo de Lansing.
A visão, na sua mente, voltou ao passado, aos campos de Lansing, até
aos limites do céu, onde trabalhara suspenso como uma nuvem a cinquenta
metros de altura, tecendo os remendos pegajosos para consertar a membrana
de plástico do mundo-mortalha. Algures abaixo dele, sob o frágil dossel das
árvores, Bird Alyn trabalhara nos jardins... Como numa visão da velha Terra,
recordou-a atravessando os campos amarelados para se encontrar com ele, ao
anoitecer, com passos que a faziam flutuar como uma nave. Quando levassem
de volta aquela nave tudo estaria bem... Tudo.
Olhou para Bird Alyn, para a mão dela — três dedos deformados e
desenervados, mais um polegar; sentiu-a apanhá-lo a olhar. «Nem tudo.»
Franziu as sobrancelhas numa autorepugnância impotente e olhou para a
noite, fazendo crepitar as articulações dos dedos enquanto recordava porque
nem tudo estaria bem. Lembrou-se do falso tom de segurança do seu pai, um
terço de vida atrás — quando deixou o seu único filho sentado na relva,
abandonado à luz mortal, e voltou sozinho às profundezas protegidas pela
rocha...
«RANGER» (ESPAÇO DE LANSING)
+ 195 QUILOSSEGUNDOS

Betha ouviu os passos dos intrusos ressoarem fracamente no casco da


Ranger enquanto se moviam para a escotilha principal.
— Pelo menos desta vez resolveram não cortar uma entrada pelo salão.
— As maneiras deles não me impressionam. Vais deixá-los entrar a
bordo? — Clewell ressaltou ligeiramente na parede quando empurrou um
copo coberto para o cubículo sob o painel.
Ela acenou.
— Pappy, temos estado a seguir aquela lata fina deles desde há cerca de
duas horas; dificilmente se poderá considerar uma nave de guerra. Devem
estar com problemas... A propulsão deixa fugir radiação. Além disso
necessitamos de informações, e não conseguimos muito tentando ouvir o
tráfego rádio de Lansing. Deixá-los vir a bordo é a maneira mais rápida e
segura que posso imaginar para obter alguns factos. — Esfregou os olhos até
o brilho fazer desaparecer a visão de todos os seus amores e único amor, e a
visão de uma nave perseguidora consumida por um fogo invisível. «Além
disso já houve morte suficiente.»
— E que acontece se, por acaso, são doidos como os outros?
— Tu mesmo disseste que nem todos deviam ser assim. — A mão dela
cobriu o fornilho do cachimbo. — Mas, mesmo que sejam, não apanharão a
nave. — Deixou o cachimbo flutuar enquanto verificava o programa de fuga,
um mosaico de luzes acesas no painel de controlo. — Basta conservares os
pés perto do pavimento.
Alguém entrara na escotilha. Pressentiu-os, mais do que os ouviu,
passarem a parede, sentiu o seu corpo tenso quando as luzes mudaram sobre a
entrada da câmara. A porta silvou ao abrir-se. Duas figuras altas, amorfas nos
fatos e capacetes blindados, flutuaram na sala. Pararam de repente, agarrando
o corrimão da parede. Uma voz abafada, acusadora, inquiriu:
— Que fazem aqui?
A boca de Betha estremeceu; espantada e incrédula, começou a rir.
— Q... Que estamos nós a fazer aqui?
Clewell resmungou.
— Podemos fazer-lhes a mesma pergunta; e não teria tanta graça.
Muita sorte têm vocês em estar aqui.
— Pensámos que a nave estava morta; nem sequer sabíamos que tinha
energia até que a escotilha funcionou. — O fato mais alto encolheu os
ombros. — Apanharam um buraco no casco e... Quer dizer, vocês sabem
manejar esta coisa, já a reclamaram?
— Nós não a «reclamamos», somos donos dela. — Betha entalou o
sapato sob a barra de retenção e rodou para os olhar de frente. — Sou o
capitão Torgussen. Este é o meu navegador. Deixámo-los vir a bordo porque
pensámos que estavam em dificuldades. A unidade de potência do vosso
aparelho está a perder radiação; vocês quase não se conseguem mover. Foi
por isso que nos interceptaram?
As viseiras prateadas nada lhe mostravam a não ser a sua própria face
distorcida. A voz mostrava-se indignada.
— Que quer dizer com perder? Não há qualquer problema com o nosso
motor. Nesta viagem já estamos fora há um megassegundo.
«Nenhum problema?» Betha olhou para Clewell, viu os olhos dele
muito abertos de espanto. Um megassegundo — um milhão de segundos —
quase duas semanas. Quem quer que estivesse à sua frente, qualquer que
fosse a loucura que os fizesse agir, iriam ter uma vida curta e doentia numa
nave como aquela.
O rosto coberto continuou:
— Interceptamos porque pensámos que esta nave era um salvado, e
queríamo-la. Parece-me que não é. — Uma mão enluvada ergueu-se do seu
flanco, traiçoeiramente, segurando um objeto brilhante.
— Mas tem de ser nossa. Por isso será, seja como for. Afastem-se
desses controlos. — A mão tremeu.
— Vão arrepender-se. Vocês os dois não conseguem, possivelmente,
manejar esta nave. — Cuidadosamente, Betha soltou-se da barra com os pés
alguns centímetros acima da alcatifa, e os olhos postos no painel. Quando
tocasse num botão a sala ficaria submetida à brusca aceleração de uma
gravidade: um dos estranhos cairia de cabeça, o outro de costas... «E se
partem os pescoços?» Hesitou. — Se vocês pensam...
Uma mancha de pelo malhado saltou de um suporte plástico da parede;
Rusty ronronou com prazer em torno das pernas dos dois estranhos. Betha
ouviu um deles arfar e saltar para trás, empurrando o companheiro.
— Cuidado! — Rusty saltou impetuosamente para o lado, apreciando a
brincadeira. — Que é? — As vozes deles subiram de tom.
Shadow Jack, tira isto de cima de mim. Betha sacou do cinto o controlo
remoto do computador e atirou-o. Atingiu o braço do desconhecido e a arma
deste voou pela sala. Clewell moveu-se para a apanhar no ar; e, na
expectativa, os assaltantes encostaram-se à parede.
— Rusty, vem cá, Rusty. — Betha estendeu a mão; orelhas malhadas
estremeceram. Vagarosamente, Rusty atravessou a sala para parar junto à sua
cintura, ronronando satisfeito. Betha coçou sob o queixo cor de marfim, fez
umas festas no dorso malhado e, abanando a cabeça, admoestou: — Rusty,
fazes-nos fazer figuras de parvos.
— Mau, esta é boa! — Clewell começou a inspecionar a arma; formas
estranhas eriçavam-se ao longo dela. — Isto é um abre-latas! Saca-rolhas,
garfo... Não sei o que isto é... — Desceu até ao pavimento. — Já ouvi falar de
felinofobias, mas nunca assistira a uma reação como a deles.
Betha segurou-se às costas de uma cadeira, sem sorrir.
— Vocês os dois! Tirem esses fatos. — Obedientemente eles despiram-
se, saindo dos fatos espaciais como borboletas dos casulos: um homem e uma
mulher... Um miúdo e uma miúda, incrivelmente altos e magros, nenhum
deles com mais de dezassete anos; descalços, com as roupas amarrotadas e
cheias de nódoas. Fungou quando o cheiro deles a atingiu. — Acabaram de
cometer um ato de pirataria. Agora digam-me porque não os hei de atirar pela
escotilha, sem os vossos fatos.— Esperou que a ameaça soasse tão verdadeira
ou tão terrível como ela queria.
O rapaz olhou para ela, num aceno de tosse abafada, a rapariga afastou-
se da parede.
— O caso era de vida ou de morte. — A voz dela, na garganta seca, era
tensa.
— Oferecemos-lhe ajuda. Não basta?
— Não se trata das nossas vidas. — Ela abanou a cabeça. —
Precisamos da nave para... Para... — Parou, afastando os olhos pela sala,
inspecionando-a.
— Bird Alyn, eles sabem bem porque precisamos da nave. — Quando
ele se voltou Betha viu no seu rosto um ódio terrível e impessoal. — Vocês
sabem como nós somos. Somos apenas vagabundos, nada vos fizemos.
Deixem-nos ir embora.
Betha riu-se de novo, não acreditando no que ouvia.
— Vocês «só» tentaram recrutar a minha nave. Eu «só» vos perguntei
se havia alguma razão para não vos atirar para o espaço. Mas vocês esperam
que os solte? Toda a gente do sistema Céu é doida? — A voz dela quase se
descontrolou.
— Não importa. — Largou timidamente o corrimão. — Morreremos de
qualquer maneira. Estão todos a morrer. Vocês ainda estão bem,
demarquistas. Para vocês nada significa deixarem-nos ir embora ou
deixarem-nos morrer.
Betha encontrou o seu cachimbo à deriva e procurou os fósforos num
bolso da camisa.
— Não somos «demarquistas», sejam eles quem forem. Viemos de
outro sistema para estabelecer contacto com o Cinturão do Céu; e desde que
cá estamos fomos atacados duas vezes, sem qualquer provocação: uma perto
dos anéis de Discus e outra por vocês. Agora, talvez acreditem ter alguma
espécie de «direito» de fazer o que fizeram, e talvez até me possam fazer
acreditar nisso. Ou talvez os leve para Lansing para serem julgados por
pirataria. — Os assaltantes mostraram-se surpreendidos. — Mas, primeiro,
vão-me responder a algumas perguntas... Para começar: quem são e de onde
vieram?
— Eu sou Shadow Jack — disse o rapaz — e ela é Bird Alyn. Viemos
de Lansing. — Parou, à espera.
— Mas é para aí que nós vamos... — Começou Clewell.
— Porquê? — Disse a rapariga, pestanejando.
— Porque é o centro governamental do Cinturão do Céu. — Betha
olhou inquisidoramente para ela. — A vossa capital deve estar a passar
tempos difíceis.
— Vocês são de verdade do exterior, não são? — Shadow Jack dobrou
as pernas como um buda, conseguindo fazê-lo sem dar uma cambalhota para
trás. — Não existe qualquer Cinturão do Céu há mais de dois e meio
gigassegundos.
— O quê?
Ele permaneceu parado, silencioso, Clewell gesticulou
ameaçadoramente para a gata.
— Houve uma guerra, a guerra civil. Tudo desapareceu, toda a
indústria. Ninguém consegue manter as coisas a funcionar, exceto a
Demarquia e os Anelanos. São os únicos suficientemente longe para terem
alguma neve nas suas rochas. Lansing é a capital do zero, do nada; quase toda
a gente do Cinturão Principal está agora morta.
— Não compreendo — disse Betha, recusando-se a entender: «Oh, meu
Deus, não deixes que a nossa única razão para vir até aqui tenha perdido o
seu sentido.» — Ouvimos dizer que o Cinturão do Céu tinha o ambiente
perfeito, que possuía a mais alta tecnologia de todas as colônias da Terra,
superior mesmo à própria velha Terra.
— Mas não se conseguiram manter. — Shadow Jack abanou a cabeça.
Betha viu subitamente a falha fatal que os colonizadores originais, já
Cinturanos, nunca tiveram em consideração. Sem um mundo para manter
uma atmosfera, ar e água — os fundamentos da vida —, tinham de ser
processados ou fabricados ou então não existiam. E sem uma tecnologia
capaz de processar e fabricar, num sistema sem o refúgio de um mundo
semelhante à Terra, qualquer Idade Média significaria a extinção.
Como se tivesse seguido os pensamentos dela, Shadow Jack continuou:
— No fim acabaremos todos por morrer, até mesmo a Demarquia. —
Olhou para o outro lado, forçando as palavras a sair. — Mas já não há água
na nossa rocha. Todos morrerão se tivermos de voltar do Céu sem ela. E já
não temos nenhuma nave para ir até aos Anelanos — a Discus — para
conseguir hidrogênio para fabricar mais água. Tivemos de procurar peças de
sucata suficientes para montar uma nave. É por isso que estamos aqui. Só
dentro de um gigassegundo voltaremos a estar suficientemente perto de
Discus para fazer uma nova viagem.
— Negoceiam com Discus o hidrogênio? — Clewell quebrou o
silêncio.
— Negociar? — Shadow Jack mostrava-se espantado. — Negociar o
quê? Nós roubamo-lo.
— Que acontece se os... Discanos os apanham no espaço deles?
Clewell procurou sob o painel o espaço hermético de beber e puxou
pelo tubo.
— Tentam matar-nos — disse Shadow Jack, estremecendo. — Talvez
fosse por isso que vos atacaram: pensaram que vocês vinham da Demarquia.
Ou talvez quisessem a vossa nave; toda a gente vai querer esta nave. Podem-
na manobrar só com duas pessoas...? — Os seus olhos desirmanados olharam
especulativamente.
— Não com duas pessoas não treinadas — disse Betha —, no caso de
vocês terem ainda algumas ideias. Nem sequer para nós é fácil. Havia mais
cinco pessoas na tripulação; os Discanos mataram-nas.
«E tudo para nada.»
Shadow Jack fez uma careta.
— Oh! — Betha viu a rapariga vacilar.
— Só mais uma pergunta. — Respirou fundo. — Digam-nos o que é a
«Demarquia», com a qual todos parecem confundir-nos.
Shadow Jack afastou o olhar, subitamente absorto, quando Clewell
acabou de beber. Bird Alyn lambeu os lábios e esfregou a boca com a mão
deformada.
«Sem água...» A recordação dos filhos dela, tão longe, há tanto tempo,
obscureceu os rostos esfomeados dos assaltantes. Olhou para os seus dedos,
para as finas alianças de ouro: quatro na mão esquerda, duas na direita.
— Então?
Shadow Jack aclarou a garganta e os seus olhos imploraram-lhe água.
— A Demarquia... Situa-se nos asteroides troianos desviados sessenta
graus de Discus. Tem a melhor tecnologia que atualmente existe. Foram eles
que produziram a bateria nuclear que move o nosso foguete elétrico; são os
únicos que ainda as conseguem fabricar.
— Se estão assim tão bem, porque têm eles de roubar os Discanos?
— Não precisam. Habitualmente trocam metais pela neve processada,
pela água, gases e hidrocarbonetos. Algumas vezes acontecem umas coisas,
digamos... Uns incidentes. Ambos querem ser os primeiros. Imagino que
pensam que um dia voltarão a construir o Cinturão. Mas estão enganados.
Mesmo que se deixem de guerrear um ao outro, será demasiado tarde.
Qualquer pessoa pode ver isso.
— Não és propriamente um otimista, pois não, rapaz? — Comentou
Clewell.
Shadow Jack coçou-se, carrancudo.
— Não sou é cego.
— Então, Clewell. — Betha, sentindo Rusty encostar-se ao seu
pescoço, colocou-a no ombro. As garras prenderam-se cuidadosamente no
casaco de ganga. — Que pensas disto? Pensas que é verdade? Nós... Fizemos
todo este caminho para nada?
Ele esfregou o rosto com as mãos. Viu as alianças dele brilharem com a
luz, três na mão esquerda, três na direita.
— Acho que é possível. É tão louco... Mas é a única maneira de
explicar o que nos aconteceu.
Ela concordou, mirou os rostos macilentos dos estranhos que estavam à
espera. «Não são propriamente anjos.» Vítimas de uma tragédia quase para
além da compreensão; uma tragédia que entrara na sua vida, e na dele, para
destruir os sonhos de outro povo, como destruíra o seu povo. Este Céu, como
todos os sonhos de Céu, era uma coisa bem frágil; talvez nunca nenhum deles
tivesse pretendido ser mais que um sonho... Acendeu o cachimbo acalmada
pela familiaridade do gesto, antes de procurar os dois rostos tensos e
expectantes.
— Vou fazer-vos uma proposta, Shadow Jack, Bird Alyn. Disseram
que Lansing precisa de hidrogênio para produzir água; nós precisamos dele
para combustível. Vamos agora à procura dele. Venham connosco e contem-
nos coisas que precisamos de saber sobre este sistema e, se formos bem-
sucedidos, compartilharemos convosco o que obtivermos.
— Como podemos nós saber que manterão a vossa palavra?
Betha elevou as sobrancelhas.
— E como poderemos nós saber se nos disseram a verdade?
Shadow Jack não respondeu e Bird Alyn olhou para ele carrancuda.
— Se foram honestos connosco, também seremos honestos convosco.
— Betha esperou.
Ele olhou para Bird Alyn; ela concordou:
— Creio que qualquer coisa será melhor que as nossas possibilidades
sozinhos... Mas que fazemos de Lansing 04? Não podemos desperdiçá-la...
— Podemos levar a vossa nave connosco. Talvez possamos reparar a
vossa blindagem.
A boca dele abriu-se; fechou-a, embaraçado.
— Nós... Podemos contactar pela rádio com Lansing e contar-lhes o
que sucedeu?
— Claro.
— Então, está combinado. Unimo-nos a vocês e dizemos tudo o que
sabemos. — Os dois relaxaram-se visivelmente, pendurados no ar como
bonecos de trapos.
— Não se esqueçam de uma coisa — disse Clewell cruzando os braços
— que o capitão quis dizer quando afirmou ser necessário treino para
manobrar a Ranger. Vamos acelerar a uma gravidade. Mesmo que nos tomem
a nave e contactem a vossa gente, eles nunca conseguirão alcançá-los. Tudo o
que vocês conseguiriam era uma viagem de ida eterna.
Shadow Jack pareceu querer responder, mas manteve-se calado.
— Sendo assim, vou ver a vossa nave. Clewell, podes levá-los para
baixo? Talvez... — Voltou a olhar; a falta de tato iludiu-a. — Podiam tomar
um duche.
— Um duche de quê? — Murmurou Bird Alyn.
Betha fez uma pausa, respirando fundo.
— Bem... De água.
— Infelizmente não temos champanhe. — Clewell deu um impulso na
direção da porta.
Shadow Jack riu nervosamente.
— Água que chega para nos lavarmos?
Betha acenou:
— Por favor, usem toda a que desejarem. Temos muita. E sabão. E
roupas limpas. Clewell...
— Com todo o gosto. — Levou-os com impaciência para fora da sala,
até às escadas; Rusty patinhou atrás deles. Por momentos Betha divagou, à
escuta, passando os olhos pelo verde-relva da alcatifa e pela cor de céu azul-
escuro das paredes, que tinham sido concebidas para evitar que sete pessoas
enlouquecessem durante mais de três anos de rigoroso confinamento.
Compreendeu o vasto e pernicioso vazio que enchera a sala, toda a nave, nos
poucos dias decorridos; tal como a grande desolação do outro lado do casco.
Escutou os chuveiros a começarem a funcionar e o rir abafado de excitação.
Clewell apareceu à porta, carregando Rusty.
— Espero que não se afoguem... Ainda que qualquer coisa seja uma
melhoria.
Ela olhou para o cachimbo na sua mão, recordando como ele o tinha
modelado para ela durante os últimos dias em Borealis. Para surpresa de si
própria começou a sorrir.
«RANGER» (EM TRÂNSITO, DE LANSING PARA DEMARQUIA)
+ 290 QUILOSSEGUNDOS

Bird Alyn movia-se devagar sob a luz verde do laboratório de


hidropónica da Ranger e o frágil corpo contraía-se no esforço de se manter de
pé sob uma gravidade. Murmurou baixinho, obviamente por causa do
desconforto, e foi arrastada ao passado pela humidade fria e constante, pelo
odor das maçãs e pelo zunzum dos insetos: sombras matizadas deslizando
sobre as calhas, mergulhando e irrompendo por entre o dossel de folhas,
numa chuva de faíscas de fogo veridiano sobre o líquido viscoso nos tanques
transparentes e cobertos.
O conjunto era estranhamente alienígena, como tudo no alienígena e
maravilhoso mundo desta nave espacial. Mas um feto ou uma árvore eram
sempre iguais, não interessando o modo como a gravidade, ou a sua ausência,
os contorcia. Eram coisas vivas que precisavam dela — que premiavam os
seus cuidados e atenções com uma folha, uma flor ou um fruto para dar vida
ao seu povo. Os únicos seres vivos que, de boa vontade, absorviam todo o
amor que dela lhes podia dar, que nunca lhes viravam as costas por ela ser
feia, tosca, estropiada...
Bird Alyn tirou a sonda de outro tanque, estudou as leituras e tornou a
colocá-la. Suspirou e deslizou pela parede do tanque até se sentar no chão,
massajando os pés doridos. Formigavam, com a preguiça de uma circulação
insuficiente. Inclinou-se para trás, olhando para cima através da mancha
verde; imaginou ver a translucência leitosa da cobertura de Lansing e Shadow
Jack trabalhando, em vez das filas de luzes fluorescentes.
Tinha contado os quilossegundos, todos os segundos de todos os dias
em Lansing, até Shadow Jack descer e se reunir a ela para a refeição do dia.
Silencioso, de mau humor, cheio de uma raiva fútil — mesmo assim ele era a
única pessoa no seu mundo a responder-lhe, a arrancar-se, cada dia, um
pouco do seu mundo sombrio para lhe dar provas de bondade... Algumas
vezes perguntava a si mesma até que ponto a sua bondade era isenta de
piedade; mas nunca se importou muito com isso. Estava simplesmente grata,
porque o amava, e sabia que o amor não tinha orgulho...
Desde a infância que compreendera que teria de trabalhar nos jardins da
superfície; ao longo de toda a sua vida percebera porquê — é que era
diferente, deformada. Os pais treinaram-na a usar um computador, pois
aceitaram que ela trabalharia num emprego onde o nível de radiação seria
alto; prepararam-na para trabalhar numa nave, para fazer o melhor que
pudesse pela sobrevivência do seu mundo. Mas, apesar disso, afastaram-se
dela, como pessoas que se afastam de um erro que arruinara as suas vidas,
como se afastam da vítima de uma doença terminal.
Nunca pusera, em causa a sua própria inferioridade, porque a filosofia
materialista ensinara-a que todo o indivíduo deve aceitar a responsabilidade
pelas suas próprias limitações. Foi quase com satisfação que foi trabalhar
para a superfície de Lansing; contente de escapar ao mundo das pessoas
normais, contente de se deixar perder na beleza dos jardins, solitária até entre
os seus companheiros deficientes.
E então encontrara Shadow Jack sentado na relva, confuso e assustado,
junto à entrada dos túneis... Shadow Jack, que crescera habituado a uma vida
normal de segurança e aceitação. A quem se dissera, de repente, que não era
normal, e que fora atirado, envergonhado e abandonado, para um mundo
estranho. Ela confortara-o, sem qualquer compaixão e sem ligar às suas
próprias necessidades; a necessidade dele ligara-o a ela, e tornara-os amigos.
Mas, à medida que iam crescendo, ela começou a querer mais do que
simples amizade; mesmo apesar de saber que isso estava errado, e que era
impossível. Na superfície de Lansing a necessidade destruía os costumes dos
túneis, até cada pessoa se tornar literalmente responsável pelas suas ações e
suportar todas as consequências dos seus atos. Vira coisas que teriam
aterrorizado os seus pais, e aprendera a ver que isso não fazia qualquer mal; a
ver que este era o único critério real para o que estava certo ou errado. E
havia coisas que lhe provocaram medo quando as compreendeu, mas estava
grata por Shadow Jack dormir ao lado dela todas as noites entre a relva fria e
fofa ou entre o abrigo dos pilares dos edifícios abandonados do governo.
Mas Shadow Jack nunca a tocaria, nunca a deixaria aliviar a raiva e o
vão ressentimento que nunca o largavam. E, inútil na sua futilidade,
mantinha-se em silêncio, sabendo que era errado uma deficiente querer um
marido; era impossível que alguma vez Shadow Jack pudesse amar uma
mulher feia, tosca, estropiada...
Bird Alyn viu alguém assustar os insetos e entrar no laboratório,
afastando arbustos e videiras. Pôs-se em pé, tentando ver a figura de Shadow
Jack... Ouviu uma voz de mulher chamar baixinho:
— Claire?
Bird Alyn pôs-se em bicos de pés, escondendo-se junto às flores, com a
camisa verde e as calças de ganga.
— O quê? — Vacilante, quase deixou cair a sonda. Segurou-a contra si
com a mão deformada. — Oh, Betha.
Betha olhou para ela e sacudiu a cabeça, estupidificada e
desconcertadamente.
Bird Alyn sorriu, baixando os olhos.
— P... Pensei que era Shadow Jack. Ele disse que vinha ver-me
trabalhar... — O seu sorriso desapareceu.
— Pappy encurralou-o; está a mostrar-lhe a oficina. — Betha tocou
num feto, puxou por uma folha amarelada, separando o passado morto do
presente. Olhou com o rosto pálido e cansado mostrando preocupação. —
Tens a certeza de que queres fazer isto, quando ainda estamos a uma
gravidade?
Bird Alyn assentiu.
— Vai tudo bem. Passo muito tempo sentada apenas a... Olhar, cheirar
e escutar. Passou tanto tempo desde que trabalhei nos jardins. Importa-se?
— Não... Não. Nem imaginas como aprecio o que fazes. Há trabalho
suficiente nesta nave para sete pessoas. E... Clewell já não é tão novo como
desejava ser. — Os olhos do capitão deixaram-na e perscrutaram as sombras
verdes. — Tens mesmo jeito, Bird Alyn... Quase te confundi com uma dríade
quando entrei.
— Que... Que é isso?
— Um espírito das florestas encantadas. — Betha sorriu.
— Eu? — Bird Alyn cingiu a sonda e riu do seu embaraço. — Oh, eu
não... Estas plantas tomam conta de si próprias; na verdade é fácil... Não é
como em Lansing... Aqui parecem tão diferentes, tão grossas e baixas...
— Estas? — Olhou Betha.
— Em Lansing as coisas continuam a crescer, não sabem quando parar;
são enganadoras, as raízes penetram e seguram-se na rocha... E com as
mutações... — Bird Alyn parou, subitamente consciente da sua voz.
Betha sentou-se num banco e baixou-se para ver uma forma estranha
meio escondida sob o ramo de videira.
— A guitarra de Claire. Era Claire que trabalhava na hidropónica e
costumava tocar para as plantas. É um instrumento musical — acrescentou
vendo a expressão confusa de Bird Alyn. — Todos nós vínhamos aqui à noite
e cantávamos. Ela costumava dizer que as plantas gostam da música e da
comunhão emocional. Claro que Lara afirmava que o que elas queriam era o
dióxido de carbono... E Sean dizia que era o ar quente, — A boca dela
curvou-se, pensativa. — E Eric... Eric dizia que era provavelmente um pouco
de cada coisa... — Levou a mão ao rosto e Bird Alyn contou, surpreendida,
quatro alianças de ouro antes que a mão se tornasse a baixar.
— Como... Como funciona? — Conhecera em tempos uma rapariga
que tinha um apito de cana. — Quero dizer... A guitarra. — Encostou-se a um
tronco, erguendo-se com esforço.
— Não te posso explicar bem como funciona, Claire era uma artista.
Mas é mais ou menos assim... — O capitão pôs a guitarra no colo, colocou os
dedos em posição sobre as cordas. Dedilhou um pouco.
Bird Alyn estremeceu.
— Oh...
Betha sorriu; os seus dedos moveram-se sobre as cordas e o fluir dos
sons modificou-se. Começou a cantar — quase que inconscientemente,
pensou Bird Alyn— numa voz quente e límpida, que emergia com o fluir da
música:
A compreensão vem do aprender
Nunca ninguém mudou sozinho o mundo
Vive a tua vida, não a desperdices com anseios,
Não a podes mudar, pequenita...
Bird Alyn sentiu a garganta presa, olhou a sua mão retorcida e fechou
os olhos com força.
Ouviu o capitão respirar fundo, preso nas suas recordações. A sua voz
clara estava um pouco tensa.
— Deveria ter escolhido uma coisa um pouco mais alegre.
— Por favor... Podia... Podia tocar mais um bocadinho? — Bird Alyn
olhou-a.
O rosto de Betha suavizou-se.
— Está bem... Não são grande coisa, apenas algumas velhas canções
populares. Mas é uma coisa estranha, o efeito que tem toda a gente junta a
cantar... Os laços que se criam entre as pessoas, o sentimento de unidade. Dá-
nos força para continuar quando as coisas estão difíceis. E é difícil odiar
alguém com quem se está a cantar; difícil estar zangado...
Juntos nós continuamos
A nossa canção nunca terá fim.
Irmã, irmão,
Pai, mãe,
Compartilham as suas vidas:
Mulher, homem, amigo...
Bird Alyn inclinou-se, como uma flor procurando a luz.
— Alvorada deve ser um sítio lindo!
Betha emitiu um som que não era bem uma gargalhada.
— Não, é... Sim. Sim... De certo modo. À sua própria maneira. — Os
seus dedos dedilharam mais uma vez as cordas.
— Gostaria de poder fazer isso... Conhece... Conhece algumas canções
de amor? — O capitão mirou-a fixamente; Bird Alyn compreendeu que, de
algum modo, dissera algo de errado.
— Ficarei contente em ensinar-te os acordes que conheço, Bird Alyn,
se quiseres aprender a tocar. Talvez as plantas sintam a falta da música.
Bird Alyn cruzou os braços.
— Eu... Eu penso que não tenho dedos que cheguem...
Por um segundo o rosto do capitão ficou imóvel, num acanhamento
embaraçado.
— Oh, bem, penso que, para ti, posso inverter as cordas; já vi uma vez
uma guitarra tocada com a mão esquerda. Queres que o faça? — Voltou a
sorrir.
— Oh, sim! — Bird Alyn saiu da sua concha, deixando distraidamente
a sonda no ar. Esta tocou-lhes nos dedos insensíveis e caiu no chão.
Instintivamente um pé nu e comprido esticou-se para a apanhar; mas Bird
Alyn perdeu o equilíbrio e caiu. — Raio de sorte! — Estendida no chão
tateou a sonda, abanou-a e verificou as leituras, enquanto uma vermelhidão
familiar lhe subia ao rosto.
O capitão aproximou-se, agarrou-a pelos braços e levantou-a sem
qualquer esforço.
— Estás bem? — A mão de Betha afagou-lhe o braço, como uma mãe
o poderia ter feito. — Leva um certo tempo, não é verdade, a quebrar os
hábitos de uma vida inteira.
Bird Alyn baixou os olhos, confundida pela solicitude.
— Alguma vez uma pessoa se conseguirá habituar a isto? Quero dizer
uma pessoa que não tenha nascido nesta gravidade...
Betha deu um passo atrás.
— Leva o seu tempo. A atração de Alvorada é menor que uma
gravidade, mas nós, na nave, temos estado sob uma gravidade desde há três
anos, e já nem sequer notamos a diferença. Li alguns estudos do Velho
Mundo sobre a adaptação a uma gravidade a partir de uma gravidade mais
baixa. É possível, mas leva cerca de um ano (trinta ou quarenta
megassegundos) para voltar a ter a mínima resistência que se tinha na
gravidade zero. E há, a longo prazo, efeitos tensionais no corpo. Mas
concluíam que era possível conseguir isso com bons cuidados médicos.
— Penso que prefiro ir para casa — disse Bird Alyn.
— Eu também — concordou Betha.
«Mas não podes.» Bird Alyn baixou os olhos enquanto corava de novo.
— Quero dizer... Digo sempre a coisa errada!
— Não. É tudo o que qualquer de nós quer, Bird Alyn. E vamos
consegui-lo. — Betha estudou o desenho dos anéis faiscando nos seus dedos;
apertou-os subitamente.
Bird Alyn escutou a água a pingar algures e pensou em lágrimas. Ouviu
mais alguém entrar no laboratório; desta vez reconheceu Shadow Jack.
Betha sorriu, um sorriso privado, de prazer, quando lhe seguiu o olhar.
Virou-se para o banco e apanhou a guitarra.
— Vou-te mudar as cordas. Mas agora é melhor regressar ao trabalho.
Estamos quase no espaço da Demarquia; não teremos de suportar a gravidade
por muito mais tempo. — Começou a andar em direção à porta, saudando
Shadow Jack quando se cruzou com ele. Bird Alyn observou o olhar dele fixo
em Betha, seguindo-a, com admiração que era quase adoração. Bird Alyn
sentiu o desejo despertar e recalcou-o como habitualmente. A boca cerrou-se
de dor como se se tivesse tornado uma faca.
Mas Rusty agitou-se nos braços de Shadow Jack, numa súbita
impaciência, quando a avistou. Shadow Jack deixou a gata cair, ainda meio
receoso pela sua estranheza. Rusty trotou para se encostar aos tornozelos nus
de Bird Alyn; esta inclinou-se e apanhou a gata, e uma língua de lixa lambeu-
lhe contente o queixo. Lembrou-se do bordado suspenso no quarto que era
agora o dela: o retrato de Rusty a ponto-cruz, e as palavras: UM LAR SEM
UM GATO PODE SER UM LAR PERFEITO, TALVEZ — MAS COMO
PODE COMPROVAR ESSE TÍTULO? Bird Alyn pôs-se a imaginar um
mundo cheio de música e de criaturas vivas; não um sonho vão, mas uma
realidade. O tipo de mundo que Lansing devia ter sido em tempos e que ela
nunca conhecera; o tipo de mundo que nunca voltaria a ser.
— Pensei que Rusty andava à tua procura — murmurou Shadow Jack,
senhor de si. — Aposto que se houvesse dez animais nesta nave, todos
quereriam estar contigo.
Ela encontrou, hesitante, os olhos dele, esquecendo tudo no milagre do
seu sorriso.
NAVE-ALMIRANTE «UNIDADE» (ESPAÇO DISCANO)
+ 300 QUILOSSEGUNDOS

Raul Nakamore, Mão da Harmonia, recostou-se no assento de


aceleração, acolchoado, sem peso, seguro pelos cintos. Ligou os leves
auscultadores a uma tomada no painel, em contacto pela rádio, mantendo a
discussão com o seu meio-irmão Djem. Com que então estava a desperdiçar
os recursos da Grande Harmonia... A arriscar a sua vida... A arriscar as
tripulações de três naves para perseguir um fantasma. Com que então estava a
deixar as Neves-da-Salvação desprotegidas de um ataque da Demarquia para
caçar uma nave que podia, a brincar, fazer círculos em volta das naves da
Grande Harmonia, mesmo as desta força Alto Delta-V. Uma nave do
exterior... Uma nave estropiada, que deixara atrás de si uma pequena nuvem
em expansão de destroços e de restos humanos. Uma nave que já por uma vez
iludira a sua garra, mas que podia não ser capaz de o fazer novamente. Valia
a pena arriscar. «Mas, pobre Djem, nunca veria mais além da ponta do seu
nariz.» Raul esboçou um sorriso.
Algures cinco mil quilômetros abaixo dele, em silhueta contra os
detritos prateados dos anéis de Discus, a massa de gases gelados que era
Neves-da-Salvação possuía a principal destilaria da Grande Harmonia. Fora
construída com a ajuda da Demarquia, e era crucial para a sobrevivência da
Harmonia e dos Demarquistas. O seu irmão, que era o responsável por
Neves-da-Salvação, faria tudo para manter a sua segurança. Mas se a
Demarquia decidisse atacar aqui, nos Anéis, nem mesmo esta «arma secreta»
os poderia impedir de provocar uma destruição fatal. E, apesar do que muitos
na marinha de guerra acreditavam, a Demarquia, de qualquer modo, nunca o
tentaria. Djem nunca seria capaz de ver isso, mas Raul poderia até apostar
nisso a sua carreira — tinha arriscado a sua carreira. A Demarquia nunca os
atacaria... A menos que tivessem aquela nave. Mas se a Grande Harmonia a
apanhasse primeiro...
— Sir. — Sandoval, o capitão careca da nave, interrompeu sem
cerimônia a sua linha de pensamento. — Tudo pronto para a ignição. A uma
ordem sua...
Raul acenou, enquanto desabotoava, no calor invulgar da sala de
controlo, o pesado casaco. «Estive demasiado tempo no subsolo...» Suspirou.
— Execute.
Sandoval regressou à sua cadeira e, pelo microfone, deu as ordens que
coordenariam as ações das outras duas naves com a sua. Não havia
comunicações vídeo; o vídeo era apenas usado para impressionar o inimigo.
Raul estudou a complexidade do painel de controlo: grupos de indicadores
cobrindo as paredes no espaço apertado à sua volta. A maior parte daquilo
eram equipamentos de computação do pré-guerra, instalados a fim de dar, em
combate, uma manobrabilidade superior a estas naves. Era uma secção da
força de defesa Alto Delta-V da Grande Harmonia, especialmente desenhada,
especialmente equipada, com uma relação combustível/massa de mil para
um. Embora Raul Nakamore se situasse nos mais altos escalões da marinha
da Harmonia, sempre fora de opinião que a sua existência desperdiçava de
modo inútil recursos desesperadamente necessários; e, por essa razão, nunca
antes estivera a bordo de uma destas naves. Mas agora a nave espacial fizera-
o mudar de ideias; e poderia mudar o próprio futuro.
Enterrou-se pesadamente no assento almofadado quando os foguetes de
combustível líquido foram ligados e o impulso cresceu até se manter a duas
gravidades, o que era mais do que ligeiramente doloroso para a sua
constituição de anelano. Olhou o cronômetro no painel. O impulso
continuaria durante mil e trezentos segundos, levando-os até dezasseis
quilômetros por segundo... E, nesse espaço de tempo, consumiriam sete mil
toneladas de combustível: os andares inferiores das três naves e de sete
depósitos. E, mesmo assim, levariam dois megassegundos a alcançar Lansing
— e a sua presa podia nem sequer lá estar. Raul reclinou-se, à espera,
tentando não imaginar o desperdício, mas sim lembrar-se do que o tornara tão
certo de que isso Valeria a pena...
***

Estava sentado no seu gabinete, estudando inventários de naves que


nunca mais acabavam, quando o relatório confidencial lhe chegou às mãos:
uma nave espacial parecida com uma colher, de origem desconhecida, tinha
cruzado o caminho de uma patrulha naval... E destruíra uma das naves antes
de escapar. Estudou o relatório durante muito tempo, com o calor da estufa de
metano atrás de si e o gelado silêncio do futuro do Céu à sua frente. E então
reparou que anunciavam uma reunião e que a sua presença era requerida.
Saiu do gabinete e começou a andar pelos corredores sem fim,
levemente fumarentos e húmidos, da ala da marinha mercante. O complexo
do Governo ocupava a maior parte do sistema de túneis-e-vacúolos que
esburacava o subsolo do asteroide Harmonia, que fora o asteroide Perth nos
tempos antes da guerra civil, antes da fundação da Grande Harmonia. O frio
começou a repassar o pesado casaco castanho do seu uniforme; colocou uma
das mãos no bolso, usando a outra para se impulsionar ao longo da parede.
Para um anelano era um homem baixo — apenas um metro e noventa — e
pesado. Eram qualidades inevitáveis dele, e houvera tempos em que suportara
melhor o frio que a maioria dos outros. Mas fora um homem de carreira na
marinha de guerra, e passara a maior parte da sua vida de adulto em naves no
espaço, onde o menor dos problemas era o calor adequado. Mas desde a sua
promoção, há sessenta megassegundos, era um administrador e aprendera que
o único privilégio especial garantido a um administrador era o de ter trabalho
a dobrar.
Cruzou grandes câmaras cheias de funcionários públicos e vestíbulos
idênticos aos que acabara de deixar, depois ainda mais câmaras — como
sempre tinha a sensação de andar em círculos. Inconscientemente escolheu
um caminho que o levou ao centro de computação, guiado por hábitos
passados enquanto considerava o futuro. O passado e o presente
surpreenderam-no quando reparou onde estava: as filas cheias de rostos
jovens concentrados a calcular ou murmurando à sua passagem.
Olhou para o canto mais afastado da câmara, quase esperando ver o seu
próprio rosto ainda inclinado sobre a lousa, garatujando números. Trabalhara
nesta sala, mil e duzentos megassegundos atrás, iniciando a sua carreira ainda
rapaz, como computador de 4.a classe. Um computador no velho sentido,
porque a maquinaria sofisticada, que suportara o fardo das inúmeras
computações de Discus, fora destruída na guerra civil. Depois da guerra, a
Grande Harmonia aprendera da maneira mais difícil que nunca poderia
sobreviver sem informações precisas das relações dos planetoides maiores em
constante modificação. E, então, voltaram à computação humana, usando o
que era ineficiente e abundante para substituir o eficiente mas não existente,
como tantas vezes foram obrigados a fazer.
Uma criança brilhante podia fazer os cálculos mais simples, e, por isso,
usavam-se crianças brilhantes, libertando costas mais fortes para trabalhos
mais pesados. Raul lembrava-se de se sentar apertado num banco com outro
rapaz e uma rapariga, encostados uns aos outros para manterem o calor. O
seu nariz pingava e os lábios estavam gretados enquanto olhava com inveja
para as costas do seu meio-irmão Djem, que era mais velho cento e cinquenta
megassegundos e computador de 2.a classe. Quanto mais alto o escalão, mais
perto se sentavam da estufa no centro da sala... Quando Djem ascendera a 1.a
classe, Raul juntara-se-lhe, e fora premiado com calor e com uma das poucas
calculadoras de mão que ainda trabalhava.
O seu avô comum tinha provado a Conjectura de Riemann, e tomara-se
o matemático mais conhecido — e talvez o ser humano mais famoso — a
chegar do Cinturão do Céu; mas então surgira a guerra, e ele tornara-se
apenas mais um refugiado. Estava em férias nos anéis de Discus quando a
guerra começara, e a sua lealdade era suspeita. Mas a sua capacidade
matemática era inegável — e agora, duas gerações mais tarde, o resíduo do
seu gênio colocara os seus netos no caminho do êxito num novo regime.
«Apenas através da obediência ganhamos o direito de comandar...»
Raul deixou para trás a sala do computador e a sua juventude; o frio e as
admoestações morais, sensaboronas e universais, dos inevitáveis alto-falantes
nas paredes atingiam-lhe a consciência. Imaginou quanto tempo demoraria
até que as notícias sobre a nave especial alienígena atingissem as emissões
comunitárias, entre os Pensamentos do Coração e as palestras sobre a
decadência da Demarquia — e a maneira como tal notícia seria dada. Não
objetava contra a constante intromissão na sua vida. Estava habituado a isso.
Era uma parte tão integrante da vida que conhecia como era o frio.
Compreendeu que servia um objetivo: distrair as pessoas do frio e do trabalho
monótono e incessante das suas vidas diárias, reforçando o seu sentido de
unidade e dedicação ao grupo.
Mas não sentia ressentimento contra as emissões, nem sequer já as
levava a sério. Há muito tempo que compreendera que eram apenas
propaganda, igual às preleções lúgubres da própria Demarquia na sua
campanha antiharmoniosa... A Demarquia, que ainda vivia com calor e
conforto — graças às destilarias da Grande Harmonia —, mas que não queria
compartilhar esse conforto com a gente da Grande Harmonia. Recusava-se a
vender-lhes as baterias de fusão atômica, que era ainda a maior fonte do
poder da Demarquia para obter calor e iluminação, para as naves e para as
poucas fábricas que ainda funcionavam. Na Grande Harmonia não existia
nenhuma fábrica — à exceção das destilarias — que estivesse a operar a mais
de um por cento de eficiência; e virtualmente a única fonte de calor e luz
provinha da ineficiente queima de metano (porque os Anéis tinham um
excesso de voláteis, mas isso era tudo o que possuíam).
Raul afastou estes pensamentos do seu espirito, tal como afastava a
verdade mais dolorosa de que o seu povo, toda a gente do Cinturão do Céu,
estava condenado. Ter pena nada resolvia. Odiar era contraproducente. Raul
enfrentou a verdade, e recuou. Viu claramente a estrada a seguir: cada vez
mais íngreme e mais difícil e, por fim, impossível. Mas ele seguiu em frente,
um degrau de cada vez, fortalecido pela certeza de que fizera tudo o que era
humanamente possível.
Houve uma época em que absorvia cada palavra das emissões, e
acreditava em todas elas. Nesse tempo odiara a Demarquia com a paixão cega
da juventude; e, porque era jovem, competente e dispensável, fora enviado
numa missão de sabotagem ao espaço da Demarquia. Mas falhara na sua
missão. No entanto, para sua imensa humilhação, a perversidade da
mobocracia que governava as massas da Demarquia transformara-o num
herói popular. Tomando a peito a sua desapaixonada e última denúncia das
agressões da própria Demarquia... A Demarquia mandara-o de volta,
transformado num envergonhado mensageiro de boa vontade, para iniciar as
negociações para a construção da destilaria que iria beneficiar
simultaneamente a Demarquia e a Grande Harmonia.
Mas as relações entre a Harmonia e os Demarquistas nunca mais
melhoraram desde esse ato isolado de colaboração, cujo objetivo real residia
nas suas necessidades comuns: corporações demarquistas independentes
ainda violavam o espaço discano, e só a sua suprema fraqueza econômica os
impedia de se apropriarem dos recursos vitais da Harmonia. A Grande
Harmonia continuava a denunciar a Demarquia, e até a acusava da sua
própria existência marginal.
Mas, por causa da sua experiência com a Demarquia perdera para
sempre a convicção de que o bem e o mal eram tão bem demarcados como o
preto e o branco e de que toda a pergunta tinha uma resposta fácil. E quando
acabou por compreender que a Demarquia não era má de todo, apercebeu-se
de que a Demarquia também não era a responsável pela precariedade da
sobrevivência da Harmonia. Acabou por ver o destino, totalmente amoral e
totalmente inevitável, que arrastava a Grande Harmonia e a Demarquia pela
estrada sem regresso.
E quando viu que não havia regresso, nem outro caminho para seguir,
transferira-se da defesa para a marinha mercante; para servir onde acreditava
que poderia agir mais efetivamente, a tomar a viagem da Harmonia por essa
estrada tão suave quanto fosse possível.
Por fim, Raul chegou ao centro do complexo do Governo; sentiu os
remoinhos de ar frio atingi-lo quando entrou na vastidão do espaço aberto.
Acima da sua cabeça o teto era escuro e amorfo, mas ele sabia que a sua
abóbada era uma superfície de plástico transparente, e não rocha sólida.
Outrora estivera aberta às estrelas e à magnificência de Discus — quando os
anéis de Discus eram a fonte de água para todo o Cinturão do Céu. Mas agora
o domo transparente estava coberto por uma camada isoladora de neve; o
domo tornara-se um ponto de perda de calor demasiado importante.
Caminhou entre as múltiplas trajetórias de outros funcionários públicos
a vaguear, muitos deles da marinha como ele próprio. Correspondeu
automaticamente às suas saudações, com o espírito já na sala privada de
reuniões onde os seus colegas Mãos se sentavam em conferência com o
Coração.
Raul sentou-se calmamente no seu lugar, esperando que a reunião
tivesse início. O seu lugar era na ponta da longa mesa, o lugar mais longe da
posição do Coração, pois ele era o oficial mais novo a atingir o posto de Mão.
Cumprimentou Lobachevsky à sua direita, e deu uma olhadela pela sala
identificando os rostos dos oficiais e conselheiros ao longo da mesa. Notou
sem surpresa que se tinham dividido em fações opostas, como habitualmente
— a facção de defesa de um lado, a facção mercantil do outro. Como sempre,
sentara-se do lado da facção mercantil. Imaginando o tampo da mesa,
brilhante e nu, como uma espécie de terra-de-ninguém, esboçou um sorriso.
Uma única palavra silenciou os murmúrios especulativos; Raul olhou
para a cabeceira da mesa e levantou-se com os restantes, assinalando a
entrada do Coração — o triunvirato que controlava o fluxo e refluxo do poder
na Grande Harmonia. Chatichai, Khurama e Gulamhusein: tal como uma
multifacetada divindade hindu, indistinguíveis uns dos outros, ou do seu
pessoal, na monotonia acastanhada das suas roupas volumosas... Mas
inconfundivelmente separados por uma presunção indefinível — e pela
ambição desarmoniosa que os levara ao cume, e os fazia lutar para aí
permanecer. Raul conhecia os tipos de tensões que eles tinham de suportar e
estava grato por já ter subido acima do nível das suas próprias ambições.
Os três homens sentaram-se lentamente nos seus lugares, à cabeceira da
comprida mesa, num sinal para os oficiais fazerem o mesmo.
— Presumo que todos leram as comunicações que os trouxeram aqui —
disse Chatichai, tomando a iniciativa, como era seu hábito —, e, por isso,
presumo que todos sabem que há cinquenta quilossegundos a nossa marinha
de guerra encontrou uma nave totalmente diferente das que existem neste
sistema... — Fez uma pausa, olhando para a mesa; Raul reconheceu, sobre o
tampo desta, um gravador. — Este é o relatório do capitão Smith, que era
responsável pela patrulha que encontrou o aparelho. — Carregou num botão.
Raul apoiou-se na mesa, ouvindo, mas observando a mudança das
expressões à roda da mesa. De início tomaram o intruso por uma nave de
fusão da Demarquia a violar o espaço discano. Depois, quando se
aproximaram e uma voz de mulher respondeu à sua interpelação,
compreenderam que estavam perante algo de totalmente inesperado. A nave
afastara-se deles, acelerando continuamente a uns inconcebíveis dez metros
por segundo quadrado; destruíra uma das suas naves quase casualmente,
apenas com os efluentes mortais do seu escape. Mas fizeram fogo sobre a
nave em fuga e registaram uma pequena nuvem de destroços em expansão...
Uma onda de irritação e excitamento percorreu a mesa.
— Por que diabo não deu Smith as coordenadas de um porto a essa
mulher, quando ela as pediu? — Murmurou Lobachevsky a seu lado. —
Teria sido mais razoável que tentar apanhar a nave à força. Perder uma
nave... É típico dele. — Olhou, através da terra-de-ninguém, para a oposição.
A face de Raul manteve-se inexpressiva.
Chatichai ergueu os olhos e a voz.
— A questão que se nos põe agora, meus senhores, não é saber se o
Capitão Smith atuou no melhor interesse da Grande Harmonia... Mas como
deveremos atuar em relação a essa nave. Penso que ninguém aqui
presentemente discordará de que a nave veio do exterior do sistema... — Fez
uma pausa; ninguém discordou. — E penso que não é necessário explicar
aqui o que uma nave como essa poderia significar para a nossa economia...
Ou para a da Demarquia, se eles a conseguirem antes de nós. — Fez nova
pausa. — Mas é praticável, ou mesmo possível, pormos as mãos nessa nave?
E, suceda o que suceder, que medidas teremos de tomar para garantir que não
cairá nas mãos da Demarquia?
Raul estudou o brilho sombrio da superfície de plástico riscado da
mesa, enquanto ouvia meio desatento o debate em progressão ao longo da
mesa: a nave estava danificada... A nave ainda podia ultrapassar qualquer
coisa que o Cinturão do Céu pudesse enviar atrás dela. A nave podia recorrer
à Demarquia por causa do ataque... Não havia razão, agora, para crer que a
tripulação confiasse em alguém do Cinturão. A nave era a resposta à
sobrevivência da Harmonia... A nave era um fantasma, e, persegui-la, seria
apenas desperdiçar mais recursos que não estavam em condições de perder...
Raul olhou, ordenando os seus pensamentos. Raramente falava, a
menos que tivesse podido considerar todas as facetas de uma questão; há
muito tempo que tinha aprendido que o silêncio seletivo era um instrumento
mais eficaz que uma voz alta. Desde a sua promoção a Mão, usara o sistema
para arranjar para si próprio a reputação de conseguir o que queria, de
aumentar a eficiência da marinha mercante e a influência da facção mercantil.
Aproveitando um silêncio, entrou na discussão:
— Como todos sabem, tenho-me oposto ao desenvolvimento e à
manutenção da nossa força Alto Delta-V desde o princípio... — Mirou os
rostos à volta da mesa. Viu o ressentimento no lado oposto. Sentiu a
gratificação que se espalhava, a partir de Lobachevsky, no seu lado.
Acreditava, juntamente com uma minoria, que a Demarquia não constituía
um perigo real para a segurança da Grande Harmonia, que os recursos
utilizados para manter uma frota de defesa serviriam melhor os interesses da
Harmonia se fossem utilizados para apoiar o comércio nos Anéis, e mesmo
com a própria Demarquia. Porque compreendia que o status quo era a
deterioração, e que nada poderia subverter essa ordem... — Mas esta é uma
situação que eu nunca tinha previsto. Nesta situação, tenho de admitir que
estou contente por podermos dispor de uma força como a Alto Delta-V... E
sou a favor de a usar para perseguir essa nave... — Vozes indignadas pela
traição interromperam-no; viu a hostilidade reformular-se em surpresa à volta
da mesa. — Sei que é um risco. Sei que possivelmente é fútil; os pontos
contra nós capturarmos essa nave são demasiado altos. Mas não são
astronômicos; a nave está danificada, não sabemos com que gravidade. Pode
ser que desçam em Lansing, se é que Lansing ainda vive; para o saber valerá
a pena perder, valerá a pena arriscar. Temos o diabo desta força Alto Delta-V,
quer queiramos quer não... Vamos-lhe dar uma aplicação racional! Se
sabemos tudo isto sobre essa nave, podemos contar como certo que os
Demarquistas também o sabem... E também estarão interessados. Não
acredito que sejam uma ameaça sem essa nave; mas se nós não conseguirmos
a nave, e eles a conseguirem, tudo o que fizermos a partir daí será puramente
acadêmico.
»Proponho que a força Alto Delta-V disponível que esteja mais perto
fique pronta tão depressa quanto for possível para perseguir a nave espacial
até Lansing. E requeiro que me seja dado o comando...

***

A acrimónia do debate final esbateu-se no seu espírito tal como cessou


abruptamente a falsa gravidade de aceleração, deixando o seu corpo livre
numa súbita libertação de tensão. Por fim vencera, porque ninguém na sala
podia pôr em dúvida a sua sinceridade, ou a sua determinação, qualquer que
fosse o objetivo que propusesse a si próprio. E, por isso, estas naves
continuariam flutuando numa queda em direção a Lansing. E se os sistemas
de apoio de vida se aguentassem, descobririam... Alguma coisa; ou nada. As
cartas estavam lançadas; a Grande Harmonia jogara a sua última cartada.
«RANGER» (ESPAÇO DA DEMARQUIA)
+ 553 QUILOSSEGUNDOS

— Não, isso também não resulta. Veem logo que não é uma nave do
pré-guerra. — Bird Alyn abanou a cabeça; o seu cabelo, apanhado em dois
totós, lembrava espuma do mar em torno da sua cabeça.
— Nesse caso não há mais nada que eu possa sugerir para já.
Betha olhou, de modo interrogador, cada um dos outros rostos. Clewell
estava sentado firmemente, preso pelo cinto; Bird Alyn e Shadow Jack
estavam estendidos no ar, totalmente confiantes na ausência de gravidade. A
viagem de cinco dias fazendo sessenta graus em torno de Discus
transformara-os superficialmente: a pele e o cabelo brilhavam de limpeza; os
seus corpos, compridos e esgalgados, estavam metidos em ganga forte e
camisolas fofas. Mas o início da aceleração de uma gravidade esmagara-os no
chão como moscas e ainda se sentiam retraídos, com os músculos forçados e
dolorosos, e com a memória dessa gravidade. E havia outras lembranças
negras que cintilavam nos seus olhos famintos e nas suas palavras rápidas e
nervosas; memórias de um passado que Betha receava imaginar e que estava
contente por nunca o ter conhecido.
— Continuo a dizer que devem deixar a Demarquia em paz. — Shadow
Jack estendeu um pé pequeno, atingindo Rusty quando esta lhe passou perto.
— Devíamos ter ido para os Anéis. É muito mais seguro roubar-lhes o
hidrogênio. Se me tivessem perguntado...
— Não perguntei... Isso. — Betha esboçou um sorriso. — Quero
negociar e não roubar... Já conheço a «segurança» que há nos anéis de
Discus, Shadow Jack.
— Mas a Demarquia é pior. Conseguiram uma tecnologia superior.
— Superior em quê? Na realidade tu não sabes. E, de qualquer modo,
não andam à nossa procura. Com a tua nave para nos transbordar, podemos
entrar e sair de uma destilaria antes sequer de eles pensarem nisso. Mas que
iremos trocar pelo hidrogênio? — Mais uma vez repetiu mentalmente o
inventário, debatendo-se com o facto de sentir que só Eric saberia o que
estava certo, o que oferecer e o que dizer. Só Eric fora treinado para saber...
«Oh, Eric...»
Shadow Jack olhou carrancudo, encolhendo os pés. Bird Alyn apanhou
Rusty e pô-la a girar lentamente no ar com a cabeça a perseguir as patas.
Rusty apanhou a própria cauda e começou a lavá-la. Bird Alyn riu em
silêncio.
— A gata — disse Shadow Jack. — Podemos dar-lhes a gata.
— O quê? — Clewell endireitou-se, indignado.
— Com certeza. Já ninguém tem um gato. Mas na Demarquia escusam
de saber que nós não temos mais; em tempos Lansing tinha muitos animais. E
é exatamente o que a Demarquia procura: uma coisa realmente rara.
Provavelmente o dono da destilaria dá-vos metade do hidrogênio que tiver só
para ficar com Rusty.
— É ridículo — disse Clewell.
— Não... Talvez não seja, Pappy. — Betha abriu as mãos e Rusty
chegou-se a ela. — Penso que ele acertou. Rusty, gostarias de viver como
uma rainha? — Envolveu Rusty nos seus braços e mergulhou nas preciosas
memórias dos rostos dos seus filhos quando lhe deram os seus presentes de
amor. Sentiu a garganta apertada, sem palavras, procurando imaginar que
pagamento lhes seria pedido da próxima vez; e sabia que, qualquer que fosse
o preço emocional, teriam de o pagar, desde que com isso pudessem comprar
o bilhete de volta para Alvorada. Viu o desgosto profundo na cara de Bird
Alyn; viu-a lutar para o esconder, como ela escondia o seu. — Além disso...
Não fomos capazes de pensar em mais nada que não nos denuncie. Qualquer
equipamento que tentemos trocar será obviamente reconhecido como vindo
de fora do sistema. Já estaremos a correr bastantes riscos, mesmo assim.
— Sei disso. — Clewell baixou os olhos. — És o capitão.
— Sim, sou. — Betha avançou para o painel de controlo, cansada de
argumentar, cansada de adiar o inevitável. Não havia escolha: só uma coisa
importava: salvar a nave, e ela nunca devia esquecer este facto... Olhou para
as últimas leituras do painel, sem as ver. Agora a Ranger estava bem no
interior do espaço da Demarquia. Detectaram dúzias de asteroides e intenso
tráfego rádio. Identificaram Mecca, a maior das destilarias, a oito milhões de
quilômetros de distância, com uma velocidade de aproximação de dez
quilômetros por segundo — a apenas algumas horas de voo para a Ranger.
Mas levaria duas semanas à Lansing 04, desacelerando em cada metro de
caminho, para vencer o fosso de distância-e-velocidade entre eles e Mecca. O
estômago contraiu-se com a perspectiva; a blindagem extra que colocara a
bordo da nave de Lansing reduzia os níveis de radiação a um sexto do que
fora, mas mesmo assim as leituras ainda eram muito altas. Mas se a Ranger
se aproximasse mais de uma área habitada, o risco de detecção seria
demasiado grande.
A estrada para a Manhã
É cortada de lamentos
E coberta de sonhos desfeitos...
— Vou a Mecca, Pappy — disse por fim. — Vou arranjar o nosso
bilhete de volta a casa.

***

Clewell estava firmemente sentado no seu lugar, enquanto Bird Alyn


flutuava livre sobre a sua cabeça. Olhavam juntos enquanto a Lansing 04,
uma lata desgastada com um reator atado à cauda, se afastava na noite sem
fundo. Deixou de olhar a escuridão para ver a face de Bird Alyn, cujos olhos
escuros ainda estavam fixos no visor.
— Estou contente por estares aqui. Só, há demasiado... Vazio nesta
nave...
Ela piscou os olhos e moveu os braços como as asas de uma ave
quando se virou, no ar, para ele. Os seus olhos raramente encontravam os
dele — ou os de quem quer que fosse —, como se tivesse medo de ver a sua
própria imagem aí refletida.
— Gostaria... Gostaria que ela não tivesse levado Rusty.
Tinha de se esforçar para a ouvir; pensou outra vez se não estava a ficar
um pouco surdo.
Também eu. Ela fez o que pensou que era melhor... E tu gostarias
também que ela não tivesse levado Shadow Jack.
Ela continuava a olhar para baixo; a cabeça tremeu-lhe ligeiramente.
— Ela fez o que pensou ser melhor. — Pensou em Eric, que fora
treinado para saber o que era preferível; lembrou-se da angustiosa dúvida de
Betha, na escuridão privada do quarto. — Ela também significa tudo para
mim.
Finalmente, Bird Alyn olhou para ele.
— É... É o pai de Betha?
Ele riu.
— Não, criança; sou o seu marido. Um dos seus maridos.
— O seu... Marido? — Quase conseguiu vê-la corar. — Um dos seus
maridos? Quantos tem ela?
— Éramos sete, três mulheres e quatro homens. — Sorriu. — Creio que
isso não é muito vulgar por aqui.
— Não. — Foi quase um protesto. — E o resto deles está... No vosso
planeta?
— Eram a tripulação da Ranger.
Ela sobressaltou-se.
— Então... Estão todos mortos, agora.
— Sim, todos... — Parou, afastando o pensamento da sala vazia, um
nível abaixo, onde uma ferida horrenda se abria para as estrelas.
Deliberadamente tornou a olhar para Bird Alyn e viu-a embaraçada. —
Sabes, é possível estar apaixonado por mais do que uma pessoa.
— Sempre pensei que isso significasse que alguém teria de ser infeliz.
Abanou a cabeça, sorrindo, procurando imaginar que crenças estranhas
fariam parte da cultura de Lansing. E imaginou como tais costumes podiam
sobreviver, quando um povo estava a lutar pela própria sobrevivência.
Em Alvorada os primeiros colonos tinham lutado para sobreviver,
expatriados e exilados, escapando de uma Terra onde o mundo político se
virara do avesso. Chegaram à Terra Prometida após a sua descoberta —
encontrando pelo menos a lírica ironia do nome Alvorada. Presa pelas marés
à sua estrela anã vermelha, Alvorada virava eternamente a mesma face para o
sol sangrento e mantinha o outro lado sempre na noite gelada. Entre o deserto
subsolar e a capa gelada do lado das trevas situava-se um anel desabrigado,
uma nesga de terra habitável, a Faixa de Casamento... Até que a morte os
fizesse partir. O medo da morte e a necessidade de aumentar uma população
pequena e subitamente vulnerável quebrara os rígidos costumes dos seus
passados na Europa e na América do Norte. Já não eram o povo que outrora
tinham sido e, agora, olhando os duzentos anos de casamento-múltiplo e a
liberdade-em-segurança dos laços de parentesco numa família extensa,
poucos alvoranos viam lógica no seu próprio passado, ou qualquer razão para
voltar a ele.
Bird Alyn cruzou os braços, escondendo a mão aleijada. E Clewell
compreendeu que talvez o povo de Lansing também não tivesse possibilidade
de escolha nos seus costumes. Se os níveis de radiação eram tão altos como
os da Lansing 04, mesmo que fossem apenas um por cento desse nível, a
ameaça de lesões genéticas podia forçá-los a hábitos de casamento que
pareceriam estranhos, ou mesmo suicidas, noutro lugar qualquer. Todo o
Cinturão do Céu era uma armadilha e uma perfídia de um modo como
Alvorada nunca o fora; porque o Céu prometera uma vida de facilidades e
belezas a troco de uma alta tecnologia, mas condenara sem piedade a
fraqueza humana.
Clewell ficou em silêncio ao compreender que, embora Alvorada não
desse conforto, fazia-o com uma constância mesquinha, e que até mesmo a
beleza perdia o seu significado sem isso...
— Como é que tu e Shadow Jack acabaram por vir até aqui?
Ela contraiu-se com um leve ondular do seu corpo sem peso.
— Eu sei trabalhar com o computador; foram os meus pais que
programaram a unidade de reconhecimento. E Shadow Jack queria ser piloto
e fazer qualquer coisa para ajudar Lansing; ganhou uma lotaria.
— Os vossos pais deixaram-vos vir, em vez de virem eles próprios?
Subitamente viu Betha no seu espírito: uma adolescente esgalgada e
séria, ajudando-o a medir o universo incomensurável... Viu os seus filhos,
esperando-o do outro lado deste mar universal. Abafou uma raiva súbita
contra quem quer que tivesse enviado a filha ainda meio criada numa nave
contaminada, em vez de ir ele próprio.
Bird Alyn mirou a mão estropiada.
— Bem, só quando se trabalha no exterior é que se pode ir para o
espaço...
— No exterior?
— Lansing é um mundo coberto... Temos jardins de superfície, e uma
cobertura plástica para conservar a atmosfera. — Passou a mão pelo cabelo e
a boca contraiu-se. — Trabalha no exterior quem não pode ter filhos. — Por
um momento os olhos dela tocaram-no, ciumentos, quase acusadores, mas
voltou a olhar o visor, procurando isolar-se, refugiando-se nela própria. —
Parece-me que vou tomar um duche.
Ele riu delicadamente.
— Se tomas duches de mais, vais de certeza encolher!
— Talvez isso ajudasse. — Sem sorrir, ela afastou-se do painel.
Ele olhou para a noite estéril, onde estavam todas as suas esperanças e
onde estavam as ruínas de todos os sonhos dos seus mundos separados. A dor
invadiu-lhe o peito, e fez-lhe medo. «Ajuda-me, meu Deus, sou um velho.
Não me deixes ser velho de mais...» Apertou as mãos sobre a dor; ouviu o
chuveiro abrir-se e a voz de Bird Alyn erguer-se como o gorjeio de uma ave,
começando uma canção de embalar de Alvorada:
Nunca há alegria que não leve à pena,
Nem pena sem alegria.
Ontem torna-se amanhã;
Não o posso evitar, rapazinho...
«LANSING 04» (ESPAÇO DA DEMARQUIA)
+ 1,51 MEGASSEGUNDOS

— Lá está — disse Shadow Jack — a rocha Mecca.


Betha viu-a aparecer na vigia; um pedaço de rocha parecendo uma
batata de cinquenta quilômetros de comprimento, com cicatrizes feitas pela
mão da natureza e do homem. O eixo maior de Mecca apontava para o sol; a
face mais perto deles permanecia na escuridão, aureolada por uma eterna
coroa brilhante do sol. À medida que se aproximavam começou a ver as luzes
de aterragem; e, entre elas, imensas protrusões brilhantes, iluminadas por
baixo, lançando as suas sombras para se perderem na sombra do vácuo. Por
fim identificou-as como tanques de armazenagem — imensos balões de gases
preciosos. «Até que enfim...» Ela agitou-se no espaço estreito e obscuro
frente aos instrumentos; sentiu as suas emoções, até aí entorpecidas,
agitarem-se e tornarem-se vivas. Encheu os pulmões congestionados com o ar
morto e viciado e ouviu algures uma ventoinha barulhenta e ineficiente;
pensou se alguma vez conseguiria fazer reviver o olfato piedosamente morto
há muito tempo. Dava-lhe pouco conforto saber que a miséria claustrofóbica
da sua viagem teria sido pior sem as modificações que tinham feito a bordo
da Ranger. Dois estranhos de Lansing até podiam ensinar aos Alvoranos algo
sobre rudeza... A Ranger voltou ao seu pensamento, e, com ela, o saber
amargo de que poderiam ter cruzado o espaço de Demarquia até Mecca num
só dia em vez de quinze, num conforto perfeito — se as coisas tivessem sido
diferentes.
— Mas estamos aqui. Graças a Deus. E graças a ti, Shadow Jack. Foi
um bom trabalho. — A mão dela afagou sem pensar o braço dele, num gesto
destinado a outra pessoa. Ele saiu do seu mau humor habitual, primeiro para
olhar embaraçado e, depois, com qualquer coisa mais; começou a percorrer as
frequências de rádio. Estática e vozes invadiram o silêncio da cabina.
— Amou... Amou em especial um deles?
Ela suspirou.
— Sim... Sim, suponho que sim. É uma coisa que não se pode deixar de
sentir; amei-os tanto, a todos, mas um... — «Que não está aqui, quando
preciso dele.» Abanou a cabeça, a vista turvou-se e voltou a clarear quando
uma parcela do mundo real lhe surgiu na frente. — Olha para ali, Shadow
Jack. — Inclinou-se mais para a vigia, limpando a humidade do vidro. —
Uma nave-tanque a chegar.
Ele espreitou por detrás dela. Viram a nave, ainda iluminada pelo sol:
um tom metálico, um ar poderoso, um ventre de plástico inchado com os
gases preciosos e rodeado por três pernas de aço, apoio para os foguetes
nuclear-elétricos da nave.
— Olha o tamanho daquilo! Deve ter vindo dos Anéis. Não devem usar
aquilo em transportes locais. — Seguiu o arco de descida da nave com a
cabeça. — Ali em baixo deve ser o campo de aterragem.
Agora ela podia ver claramente o espaçoporto, uma suavidade de brilho
não natural sob a luz artificial, atulhado de gruas e rodeado por mais parasitas
mecânicos, uns cheios, outros vazios. Aparelhos mais pequenos moviam-se
por cima dele, como pirilampos vermelhos; viam-se reboques indolentes,
numa profusa incongruência temporária. «Outro mundo...» Ela escutou e
observou, combinando fragmentos da conversão rádio de um só lado com os
movimentos da dança lenta abaixo deles: aborrecimento e atenção viva, uma
explosão de raiva, uma piada mal compreendida sobre qualquer pormenor
técnico.
— Não deveriam estar a receber o nosso sinal?
Ele acenou.
— Estão a receber. Penso que só nos vão chamar quando lhes apetecer.
Rusty agitou-se no ar sobre o painel de controlo, tocando no cordão
helicoidal dos auscultadores.
— Pobre Rusty — murmurou Betha apanhando-a —, a tua viagem nesta
sauna está quase a acabar... — A secura da sua garganta tornou-se-lhe
dolorosa.
Shadow Jack virou-se, com ar culpado, e afagou o pelo desgrenhado de
Rusty.
— Bird Alyn ficou mesmo zangada por eu ter feito com que Rusty
viesse. Não queria perdê-la. Adora plantas, adora fazer crescer coisas...
Coisas que estejam vivas... — A boca dele contorceu-se, meio num sorriso,
meio com pena. — Creio que, para Bird Alyn, Rusty era a coisa mais
maravilhosa de todas.
— Sentes falta dela.
— Sim, eu... Quer dizer, bem, ela é a única que de facto sabe usar o
computador.
— Oh!
Shadow Jack olhou para ela, sabendo o que ela não dissera.
— Nós apenas trabalhamos juntos.
Ela acenou.
— Pensei que talvez vocês...
— Não, não fizemos. Não somos casados.
Ela sentiu a própria boca curvar-se, divertida e escandalizada.
— Admiro o vosso autodomínio.
Os seus olhos, azul e verde, abriram-se; ela viu mais uma vez a
escuridão atravessá-los.
— Não há vantagem em querer o que não podemos ter. A única coisa
que importa é mantermo-nos vivos. Se não conseguirmos água para Lansing,
então é o fim, e é estúpido fingir que não é. Não há vantagem em... Em... —
Ele olhou para o painel de controlo. — Estes estão a sonhar de dia. Porque
não nos respondem? Precisam de quê, de um milagre?
Uma voz interrompeu-o no alto-falante.
— Nave não registada... Que diabo está a fazer aqui, sem luzes de
sinalização?
Sem fala, Shadow Jack voltou-se para ela, que sorriu.
— Agora torce pelo hidrogênio.

***

Shadow Jack conduziu a nave, sob o brilho do sol, para um


ancoradouro no lado iluminado de Mecca.
— Não autorizados no campo principal. — Sujos bastardos! Porque
não podiam aterrar na face escura, como o faziam aquelas fascinantes naves-
tanques! Ele coçou-se, encostando-se para trás, e fez estalar os dedos.
— Suponho que não querem que algum turista se despenhe sobre a
destilaria. — Betha relaxou-se quando ouviu o som tranquilizador dos cabos
magnéticos a fixarem-se no casco.
Ele levantou-se do seu lugar.
— Isto não nos ajuda nada. Se alguma coisa correr mal, vamos levar
um tempo dos diabos para conseguir sair daqui. — Moveu-se para o armário
onde estavam os fatos espaciais.
Ela suspirou, concordando, esticando-se para apanhar Rusty.
— Vamos esperar que nada corra mal. — Pensou que quem lhe dera o
nome de «sombra» acertara.

***

Betha parou momentaneamente à saída da escotilha aberta, olhando


para onde o mundo acabava tão abruptamente: o horizonte era curto e parecia
o gume cintilante de uma lâmina corroída destacando-se contra a escuridão.
E, para além dele, as estrelas, quase invisíveis, incrivelmente distantes no
vazio sem luz. Viu cinco corpos destruídos, caindo nesse vazio onde ninguém
poderia parar a sua queda, onde nenhuma voz poderia jamais quebrar o
silêncio de uma eternidade só... Balançou, aturdida. Shadow Jack tocou-lhe
nas costas.
— Vá lá, saia. — A voz dele tremia, distorcida pela debilidade do alto-
falante.
Além da voz dele chegava-lhe aos ouvidos o arranhar infrutífero de
Rusty no interior da mala pressurizada; viu vultos caminharem em direção a
eles, movendo-se ao longo do cabo de segurança estendido entre as naves.
Deu um impulso demasiado forte para fora da escotilha, descrevendo um arco
desgracioso para o solo. Começou a ressaltar, mas agarrou a linha de
segurança e estabilizou-se. «Um erro...» E não podia dar-se ao luxo de
cometer outro. Estava a lidar com cinturanos, e seria melhor que atuasse
como eles. Sentiu a tensão afastar o nevoeiro da sua exaustão, enquanto via
Shadow Jack aterrar facilmente no campo de cascalho brilhante e bexigoso.
Por cima dele viu o sol Céu, um diamante girando na coroa da noite, frígido e
longínquo — bizarro em relação à memória do seu sol sangrento no céu
poeirento de Alvorada. Quando saiu da sombra de Lansing 04 pôde ver outras
naves ancoradas; no seu espírito a luz intensa marcou o grosseiro perfil das
formas deformadas, sobrepondo-se à memória da perfeição ascética da
Ranger.
— Vão ficar por cá muito tempo?
Não conseguia ver o rosto do homem do espaçoporto escondido pela
máscara do capacete; esperou que a sua viseira também a escondesse.
— Apenas o tempo necessário.
— Ótimo; o nível exterior da vossa radiação é médio-alto. Nada bom
para as plantas.
Olhou para o cascalho manchado, pensando se ele não estaria a dizer
uma piada. Riu-se, forçadamente.
— São as pessoas de Lansing? — Oito, dez ou mais figuras surgiram
atrás do homem, com grandes instrumentos que ela reconheceu serem
câmaras.
— Porque estão aqui?
— É verdade que...
— Pensei que toda a gente do Cinturão Principal tinha morrido...
Ela mudou a mala de Rusty, para agarrar melhor o cabo; as vozes deles
ecoavam no seu capacete.
— Queremos comprar algum hidrogênio da vossa destilaria. — Olhou
para o homem do espaçoporto. — Espero que não tenhamos de ir a pé para o
outro lado.
Desta vez ele riu.
— Não. Desde que sejam clientes que paguem...
Betha notou que ele estava armado.
—... Ouvi dizer que vocês, os do Cinturão Principal, quase sempre
pedincham e roubam. — As vozes continuaram. — Vocês têm mesmo
qualquer coisa para trocar pela neve?
— Como é que uma mulher atingiu a sua posição? É estéril?
— Que tem a caixa?
Eles rodeavam-nos como lobos; ela recuou, amedrontada.
— Eu não...
— Isso é connosco, sucateiros — disse subitamente Shadow Jack. —
Não estamos aqui para conversas. Não temos de aturar nenhum de vocês. —
Viu o guarda tornar-se rígido. — Bem, como vamos para a destilaria?
O queixo de Betha tremia, mas o guarda ergueu as mãos.
— Muito bem, gente da informação, larguem-nos. Tirem uma
fotografia da nave; eles não vieram de Lansing para posar para vocês. E não
se esqueçam de mencionar o Aluguer de Ancoragem de Mecca... Sem ofensa,
rapazes. Basta seguir o cabo até à barraca; há um carro à vossa espera. Bem-
vindos a Mecca.
— Eh, é verdade que...
Shadow Jack deslizou pelo cabo deixando-os para trás. Betha seguiu-o,
os movimentos dolorosamente indiferentes.
— Obrigado, rapazes — disse.
O guarda acenou ou saudou e Shadow Jack fez o mesmo.
— Cristo! Quem era aquela gente?
Ela olhou por cima do ombro quando entraram no carro fechado do
sistema de transportes terrestres; atrás deles alguém fechou a porta. Ouviu
Shadow Jack murmurar:
— Irreais.
Viu que havia duas pessoas na cabina, preferindo que estivesse vazia,
mas mesmo assim contente por serem só dois e esperando que não tivessem
câmaras. Em frente deles, através da cúpula de plástico, o monocarril estreito
como um filamento estendia-se sobre o brilho árido. Atrás da plataforma, à
sua direita, viu o que lhe pareceu uma escotilha circular colocada na
superfície da rocha; por cima dela via-se um cartaz: COOP HIDROPÓNICA.
Percebeu que o guarda não dissera nenhuma piada; o pedaço de pedra nua
que era Mecca era também um mundo autossuficiente, invadido por tubos e
vacúolos que mantinham a vida e todos os seus processos. Radiação em
excesso era prejudicial para as plantas...
Os pensamentos dela chocavam-se e reformulavam-se enquanto uma
inércia suave a encostava às costas do assento. Rusty fungava e arranhava
dentro da mala, provocando no seu capacete um barulho que lembrava
estática; subitamente, dolorosamente, lembrou-se do seu destino e do seu
objetivo. E se Eric a pudesse ajudar... Mas Eric desaparecera.
— Isto terá sido construído antes da guerra? — Olhou a viseira
espelhada de Shadow Jack, esperando uma resposta.
— Sim, foi. — A voz no seu capacete pertencia a um desconhecido.
Sobressaltou-se, tal como Shadow Jack. Viraram-se para observar os
outros dois ocupantes do carro; um, com as longas pernas cruzadas
displicentemente, clareou a viseira.
— Eric...! — A mão dela ergueu-se até ao seu capacete mas quedou
parada, quase sem peso.
Cabelo escuro encaracolado, um rosto magro e pensativo; o sorriso
pensativo que era quase o de uma criança. Os olhos castanhos mostravam-se
surpreendidos... Olhos de âmbar... Não como os de Eric, não.... «Eric está
morto.» Baixou a mão trêmula, deixando a viseira escura.
— D... Desculpe. Pensei... Pensei que era alguém que conheci.
Ele tornou a sorrir, educadamente.
— Não penso que seja o caso.
— Vocês são os que vieram de Lansing para negociar? — A segunda
voz era áspera como saibro. — Disseram-nos que este carro estava à vossa
espera.
Betha estremeceu, sem ser vista. Olhou para a figura mais baixa e, de
certo modo, mais volumosa; imaginou se seria possível encontrar um
cinturano gordo. Sentia-se ridiculamente pequena no seu metro e setenta e
cinco. A mulher aclarou o vidro do capacete mostrando um rosto de meia-
idade, com pele castanha, cabelo embranquecido e olhos brilhantes.
— Sim, somos nós. — Betha manteve a viseira escurecida para
esconder a sua palidez e sentiu a inquietação de Shadow Jack a seu lado.
— São as primeiras pessoas do Cinturão Principal que eu vejo. Como
estão as coisas por lá? É bom saber que não estão todos...
Rusty miou desoladamente e Betha sobressaltou-se quando o som lhe
atingiu os ouvidos.
— Meu Deus, que foi isto? — As luvas da mulher ergueram-se até aos
ouvidos cobertos pelo capacete.
— Fantasmas — disse Shadow Jack — de cinturanos mortos.
O rosto da mulher ficou parado, confuso. Betha observou o homem,
viu-o ao mesmo tempo sorrir e franzir as sobrancelhas; ele encontrou os
olhos dela escondidos pela viseira.
— Nunca ouvi um ruído como esse. Talvez tivéssemos passado por
cima de um cabo elétrico. — Ela apercebeu-se de que não só o gato mas
também o transmissor da mala deviam ser novidades que eram atualmente
desconhecidas no Céu.
A mulher parecia agitada.
— Desculpe-me. De qualquer modo não foi correto da minha parte. Foi
apenas porque vocês são uma tal novidade. Sou Rinee Bohanian, das
Agropónicas Bohanian. — Apontou para a superfície iluminada atrás deles.
— Sabem; negócio de família.
— Wadie Abdhiamal. — O homem inclinou-se. — Trabalho para a
Demarquia.
— Não trabalhamos todos para ela? — Perguntou a mulher.
— Para o Governo.
Ela espreitou-o com um ar suspeito que se aproximava da repugnância.
— Bem — continuou, olhando para Betha. — Como se chama? Sabe,
gostava de olhar para uma genuína mulher do espaço...
— Betha Torgussen. Tenho pena, mas o meu capacete está avariado. —
Fez figas com os dedos; ninguém se mostrou surpreendido. — E ele é...
— Shadow Jack — disse Shadow Jack. — Sou um pirata.
— Piloto — murmurou Betha, irritada, enquanto os outros riam.
— É um nome materialista. — O homem olhou para Shadow Jack. —
Há muito tempo que não encontrava um nome desses.
— Toda a gente tem um, em Lansing. Mas é só desejo. Não sobrou
nada para contemplar. — Estava quase tranquilo, e a dureza do tom inicial
quase desaparecera da sua voz.
O homem mirou Betha com ar interrogador.
— Nem toda a gente.
Olhou para a frente do carro, procurando um pretexto para interromper
a conversa. Ouviu a mulher perguntar ao homem o que fazia ele para o
Governo, mas não ouviu a sua resposta. Um terminal corria suavemente ao
seu encontro, como a sombra de uma nuvem cruzando as terras desérticas de
Alvorada. Atrás do terminal, paralelamente ao eixo da sombra, havia uma
linha de leviatãs: grandes vigas atarracadas de aço coroadas por anéis de
cobre, com fiadas de lâmpadas a piscar, vermelhas e verdes.
— Aquilo é o acelerador linear — disse a mulher. — É usado para
enviar carga que não tenha de se mover rapidamente, nem de ir longe... Mas
que é que de facto pensa um materialista?
Atravessaram o terminal, mergulhando subitamente na noite como se
alguém tivesse desligado o interruptor, e passaram entre as torres indistintas
do acelerador. O homem de cabelo escuro estava a ouvir Shadow Jack; sem
querer, deu por si a observar-lhe o rosto.
—... E se vos for dado um nome, o nome de qualquer coisa material,
supõe-se que isso vos reserva para algo de especial e modela de certa maneira
o vosso ser. Agora metade das pessoas nem sequer sabe o que o seu nome
significa...
Observou o desconhecido em silêncio, desamparada, mergulhada numa
súbita irradiação e tão gelada que estremeceu... Recordou Alvorada e os seus
primeiros dias de amor por Eric: recordou um engenheiro e um cientista
social num encontro casual no pátio de uma fábrica no perímetro do Ponto
Quente, e o metal ardente no calor sem fim do crepúsculo eterno... Recordou
os últimos dias em Alvorada: a película de gelo quebrada no crepúsculo sem
fim, onde a frente do glaciar estalava, corada de rosa e âmbar pelos fogos do
pôr-do-sol, despedaçando a sua imagem no mar Boreal. A sua família vivia
em Campo Borealis e, sendo a mais recente tripulação escolhida para a
Ranger, trabalhava em conjunto para aprontar um carregamento de
emergência, preparando-se para a viagem de 1,3 anos-luz até Uhuru, que
estava bloqueada pelo gelo.
Foram escolhidos de entre todos os voluntários desejosos de deixar
lares e empregos só porque outro mundo do seu círculo comercial precisava
de ajuda; mas nunca imaginaram a viagem para a qual, no fim de contas,
tinham sido incumbidos. Do Conselho Supremo chegara a notícia de que fora
recebida uma radio mensagem de Uhuru e de que já não era necessária ajuda.
Deram-lhes então um novo e inesperado destino, o sistema Céu, e um
objetivo que era mais do que a simples sobrevivência para outro mundo ou
para o seu próprio. Recordou a festa de despedida, o seu orgulho pela honra,
o orgulho das famílias da sua família... Recordou Eric saindo calmamente
com ela do salão cheio, brilhante de fogo, para uns breves momentos a sós
antes da viagem que iria durar anos. As suas mãos suaves e o calor
acariciante da sauna deserta; as suas risadas quando mergulhavam na neve...
O calor da paixão, o assolante frio de morte... Fogo e gelo... Fogo e gelo...
Gritou silenciosamente: «Eric, não me abandones agora... Dá-me forças.»
O carro deslizava na escuridão.

***

O carro parou sobre as torres esguias que eram o seu destino, entre os
sacos-balão de armazenagem que brilhavam num fogo fantasmagórico —
amarelos, verdes e azuis suaves, que as luzes do solo excitavam numa
estranha fosforescência. Betha afastou o passado olhando para fora, para a
floresta brilhante de formas alienígenas. Ouviu a voz da mulher:
—... Como podem os campos de Lansing ser como os nossos campos
de cultura? Claro, nós não temos falta de água; temos a neve armazenada lá
em baixo em velhas cavidades de minas. Temos o suficiente, espero, para
durar para sempre.
Um orgulho que era inconscientemente avareza enchia-lhe o sorriso. O
homem do Governo olhou-a; Betha viu-o mostrar uma raiva fugaz e pensou
porquê. Shadow Jack, empurrado de repente para fora do assento, estabilizou-
se instintivamente. A tensão envolvia-a, de novo, como uma mola; tentou
adivinhar o que mostrava a face dele.
Seguiram o homem e a mulher no meio do ruído de fundo do rádio e da
algazarra impessoal dos trabalhadores da plataforma, até outra escotilha
montada na rocha sólida da superfície. Abaixo da comporta de ar penetraram
em túneis que desciam suavemente, sem o parecer, até ao coração da rocha.
Com o regresso da pressão do ar, Betha sentiu o fato ficar flexível, o que lhe
facilitava os movimentos. Os sons chegavam-lhe abafados pelo capacete
quando passava por novos grupos de cidadãos, todos misericordiosamente
absortos; pensou mais uma vez nos homens com câmaras do campo de
aterragem.
Seguiram uma corda ao longo da parede do corredor principal, onde as
fortes luvas dos fatos de pressão tinham escavado um sulco na superfície
picada. Acima e abaixo deles via-se o fim do túnel, abrindo-se para um
espaço ocupado por uma rede fina. Curiosa, flutuou até ao bordo da câmara.
— Oh... — Perdeu o fôlego num suspiro. Parou como Shadow Jack já o
fizera, trespassado pela beleza feérica imobilizada na pedra. A frente deles
abria-se um vacúolo, com um quilômetro ou mais de diâmetro: um geode
imenso, artificial, cheio de brilhantes espinhos de cristal, rombos ou
aguçados, arco-íris sobre arco-íris em torrentes de cores estridentes. O núcleo
oco, com ar, continha uma teia, filamentos de seda espalhados por alguma
aranha incrível...
As imagens começaram a formar-se no seu espírito; compreendeu que
ali era a cidade, o coração da vida no asteroide Mecca — que os espinhos de
cristal eram as suas torres, erguendo-se do chão por todos os lados...
Descendo do teto. «Porque não caem…?» O seu pensamento girou, caindo;
sentiu a mão de alguém segurar-lhe o braço. A sua mente sobressaltou-se e os
pés saltaram suavemente. Irada, forçou-se a olhar novamente a imensidade
estonteante da câmara. As pessoas eram como mosquitos ao longo dos fios da
teia: leves cordas estendidas nos espaços enormes. As torres tornaram-se
maiores, saindo do teto e do chão, enchendo o espaço interior, orientadas no
sentido da fraca mas inexorável gravidade. Os edifícios que enchiam os lados
curvos da cavidade eram mais baixos, mais pesadões, suportando maiores
tensões. As torres estremeciam delicadamente com as correntes suaves
provocadas pela ventilação; não eram superfícies cristalinas e sólidas, mas
tendas tremelicantes de tecido colorido sobre ligeiras estruturas metálicas.
— Era uma «cidade-modelo» antes da guerra. — Viu que fora o
homem do Governo que lhe agarrara o braço; ele largou-a, evitando
comprometer-se. — Costumava ser um centro de jogos. Agora fazemos jogos
mais práticos; a maioria destas torres pertencem a grupos mercantes. — O
homem desapertou o capacete, tirou-o e olhou para ela, em expectativa. — O
ar aqui é bom.
Betha foi com a mão ao capacete, mas apenas para ligar o alto-falante
exterior; a pele dela arrepiou-se, num desejo que ele a visse.
— Obrigado — tentou parecer insegura —, mas vou esperar. —
Shadow Jack, silencioso, permanecia de olhar fixo na cidade, taciturnamente
contente por estar surdo e mudo. — Pode-nos dizer em que torre podemos
encontrar alguém que nos possa vender hidrogênio?
— Hidrogênio? — O seu olhar espantado fixou-se na face de Betha,
coberta pela viseira. — Pensei que queriam ar ou água.
— E queremos. Precisamos de água... Temos oxigênio. Logo,
obviamente, precisamos de hidrogênio. — Rusty miou; ela fingiu não ouvir.
— Oh! — O rosto dele suavizou-se aceitando a explicação. —
Obviamente... Sabe, não é muito frequente encontrarmos uma mulher que
tenha escolhido ir para o espaço. É vulgar em Lansing?
— Ir para o espaço já não é vulgar em Lansing. — Betha relembrou
subitamente que os olhos castanho-dourados do estranho pertenciam a um
inimigo. — Pode-me apontar onde é o escritório da destilaria?
— Lá em baixo — apontou ele —, aquela longa ala de tons verdes no
chão; há montes de escritórios de destilarias naquele bocado: Tiriki, Flynn,
Siamang...
— Destilarias? Há mais do que uma? — «Deveria eu saber isso?»
Suspendeu a respiração.
— Com certeza. — Mas ele apenas sorriu, tolerante. — Aqui é a
Demarquia, o povo é quem manda; não gostamos de práticas monopolistas.
Atraiçoam o povo; não as podemos tolerar... Eu sei isso. Vou levar-vos a dar
uma volta.
— Não, na verdade...
— É o mínimo que posso fazer, depois de terem vindo de tão longe. —
Pôs dois dedos na boca e deu três assobios agudos. Betha vacilou e ele
surpreendeu-a com um gesto de desculpa. — É como por aqui se chama um
táxi, agora. As boas maneiras em Mecca estão a ir para o Inferno... O Céu
está a ir para o Inferno. — Riu forçadamente, como se não tivesse tido
intenção de dizer aquilo em voz alta. — Eu sou de Toledo.
— O que... Hum... Disse que fazia para o Governo? — Ela olhou
comprometidamente para a plataforma. A mulher do carro desaparecera.
«Porque é que ele permanece connosco?»
— Sou um negociador. Tento que as coisas não se tornem menos
civilizadas do que já são. — Riu repentina e forçadamente de novo. —
Resolvo disputas, elaboro acordos comerciais... Tomo conta de visitas
inesperadas.
Ela quase se virou, paralisada, quando viu os homens das câmaras do
ancoradouro emergirem do túnel.
— Shadow Jack! — Agarrou-lhe o braço. — Fica comigo, não deixes
que nos separem.
As vozes aproximaram-se deles.
—... Naquela decrépita nave?
— Com quem vão entrar em acordo?
— Quanto...
— Que têm vocês...
Os homens da informação e alguns habitantes locais cercaram-nos,
acotovelando e interrompendo. Viu o homem do Governo pôr-se de lado
quando o táxi atingiu a plataforma e parou. Betha teve de empurrar para o
alcançar, gesticulando para Shadow Jack. O táxi tinha uma cúpula e era
motorizado, sendo conduzido manualmente por um rapaz bem vestido de ar
aborrecido.
— Para onde?
— Para... Para Tiriki. E depressa. — Bateu com a cabeça na borda da
cúpula, sentiu os pés mergulhar num mar de ar e viu cristais a refletirem-se
acima e abaixo dela. Shadow Jack seguiu-a. O táxi mergulhou no precipício,
afastando-se da multidão sufocante.
—... Torgussen! — O homem do Governo chamou-a.
Olhou para trás; as mãos ergueram-se, tateantes, até ao capacete e
tiraram-no. Viu o rosto dele mudar: incredulidade... Reconhecimento...
Perda... «Para!» Não havia qualquer semelhança, não podia haver
reconhecimento... «Eric está morto!» Segurou-se a um dos bordos da cúpula,
sentindo as correntes de ar agitar o seu cabelo pálido e emaranhado, acariciar
o seu rosto escaldante. «Oh, meu Deus, quantas vezes isto me acontecerá?»
Shadow Jack debruçou-se olhando para todos os lados, ao passarem pelo sol
artificial enjaulado em vidro e suspenso no centro da caverna. Deixou-se
afundar devagar no assento, forçando os seus sentidos a absorver o que a
rodeava, esbatendo os ecos do passado.
A caverna estava cheia de sons, confusos e indistintos: risos, gritos, o
som abafado de mecanismos escondidos. Olhou, apercebendo-se agora das
diferenças de riqueza e elaboração entre as torres maciças: as varandas
colocadas em ângulos loucos; os buracos negros nas paredes de pedra, que
eram túneis de entrada para residências privadas. E gradualmente
consciencializou-se da mistura de odores que perfumavam o ar frio e filtrado;
respirou fundo, cheirando-os, saboreando-os, aliviando o peso da sua cabeça.
Impávido, o condutor olhou na direção dela, para o pináculo esmeralda que
era o seu destino.

***

Penetraram pela boca de plástico mole da entrada no teto, por um longo


corredor vazio que descia vinte e cinco metros até à base do edifício na rocha.
Betha começou a afundar-se nele, quase imperceptivelmente e sem ter a
sensação de queda. Começaram a passar por portas. Shadow Jack desapertou
o capacete, tirou-o e sacudiu a cabeça. Ela ouviu-o respirar fundo e perguntar:
— Onde estaremos? — O cabelo dele moldava-se como correntes sobre
o rosto molhado; afastou-o com a mão enluvada.
— Destilarias Tiriki. Foi o homem do comboio que as sugeriu. —
Hesitou, sem lhe querer dizer o que suspeitava.
— Bastardos! — A boca dele arrepanhou-se. — Gostaria de ver este
lugar rebentar. Não seriam tão... — A raiva fê-lo interromper-se.
Betha mirou-o, sentindo uma piedade que estava já perto do
aborrecimento. Estendeu a mão; a sua luva tocou o suave mas resistente
revestimento do ombro dele.
— Bem sei como te sentes... Bem sei. Mas as pessoas daquele carro
também sabem. Tira já o peso dos teus ombros ou eu própria o tiro: não
posso consenti-lo. Quero uma coisa desta gente, e tu também, e isso é mais
importante do que o que qualquer de nós sente. Por isso coloca um sorriso
doce na tua cara enquanto fazemos o acordo, e mantém-no mesmo que te
amordacem. — Surgiu-lhe um pensamento: «Sorri, sorri... E sê um vilão.»
Ela sorriu, respirando o ar frio e desejando que os olhos dele encontrassem os
seus. Lentamente ele ergueu a cabeça: quando finalmente a olhou, esta viu-o
sorrir pela primeira vez.
Alguém saiu por uma porta, quase ao lado dela. Quedou surpreendido,
olhando-a com franca incredulidade.
Ela esfregou o rosto mal lavado, embaraçada.
— Gostaríamos de negociar uma carga de hidrogênio. Pode dizer-nos a
quem nos devemos dirigir?
O rosto do outro formou uma máscara profissional.
— Com certeza. Decerto. Do outro lado do vestíbulo, o Departamento
de Compras. E obrigado por preferirem negociar com Tiriki. — Ele inclinou
formalmente a cabeça e passou por eles, empurrando-se de parede em parede,
subindo como um nadador na luz verde-mar-brilhante. Eles continuaram a
descer para as profundezas.
— Olha-me para esta porcaria. — Ouviram a voz antes mesmo de
chegarem à porta. — Que percebem eles disto? Nem um bocadinho!
— Pois não, Esrom.
Betha afastou as cortinas e entraram, usando nos rostos sorrisos rígidos
com a tensão.
— Até eu consigo fazer melhor. É o que temos de fazer: fazer nós
próprios. Temos de contratar alguns tipos da informação e usar o nosso
próprio papel...
— Sim, Esrom.
—... Dizer-lhes o nosso ponto de vista. Vê bem, Sia, «monopolista»...
A mulher de pele dourada e etereamente bela olhou para eles do outro
lado do balcão; as suas sobrancelhas ergueram-se. O homem de pele dourada
e espantosamente elegante virou-se, com um papel na mão. «Irmãos», pensou
Betha, «e impecáveis». Usavam verdes suaves e as cores sobressaíam de um
fundo de verde-mar-claro: a mulher com um vestido comprido bordado, o
homem com um casaco bordado e laços nos punhos. Imaginou o que eles
viam em troca; tentou alinhar o seu cabelo.
Mas o homem disse:
— Sia, alguma vez viste uma coisa assim? Olha-me aquela pele e o
cabelo. Juntos... — Os olhos escuros dele desceram até ao fato dela,
identificaram-no e voltaram a olhar-lhe o rosto. — Mas ela esteve no espaço.
— O ar interessado foi substituído por pena.
A mulher bateu-lhe no braço.
— Esrom, então? — Dirigiu-lhes um sorriso. — Em que podemos ser-
lhes úteis? — Alisou o ondulado e solto cabelo preto que lhe caía pelas costas
e meteu as madeixas sob o gorro rendado.
— Gostaríamos de vos comprar um carregamento de hidrogênio.
Betha sentiu-se corar enquanto eles olhavam fascinados. Tentou
esconder o seu aborrecimento. — Mil toneladas.
— Estou a ver... — O homem abanou lentamente a cabeça, talvez numa
saudação, parecendo vagamente surpreendido. Apanhou um bloco preso a um
corrente. — Querem que o enviemos numa nave?
— Não, nós próprios podemos levá-lo.
— Donde vêm? — A voz da mulher era tão delicada como o seu rosto,
mas não possuía qualquer ponta de brandura.
— Lansing. — Shadow Jack sorriu, alto, magro e genuíno, com um
olho azul e outro verde.
— Do Cinturão Principal! — Irmão e irmã olharam-nos de novo, desta
vez em silêncio, com um temor mórbido. Um noticiário apareceu num visor
atrás deles, com fotografias entre linhas impressas.
— É uma grande viagem — disse o homem serenamente.
— Quanto tempo demoraram?
— Muito tempo. — Betha apontou os seus rostos cansados e sujos, sem
necessidade de fingir uma fadiga na sua voz. — E demorará ainda mais para
voltarmos a casa. Por isso gostaríamos de despachar o assunto tão depressa
quanto possível.
— Com certeza. — Ele hesitou. — Que... Que têm para oferecer em
troca? Compreendem que estamos limitados ao que podemos ter...
«A caridade começa em casa.» Viu o sorriso de Shadow Jack mudar,
quando ela tirou as luvas. «Mas quem sou eu para os criticar por isso?»
Balanceou a mala que transportava Rusty sobre o balcão e abriu o fecho
hermético, ouvindo o assobio da pressão a igualizar-se. A cabeça malhada de
Rusty apareceu na abertura com as pupilas negras dilatadas de excitação e
brilhando verdes com a luz. O focinho palpitou e ela soltou-se, subindo no ar
como uma peça de roupa ao vento. Betha ouviu o arquejar da mulher, e
soltou a mala.
— Aceitam um gato?
— Um animal — disse a mulher em voz baixa. — Nunca pensei que
veria um... — Com receio estendeu uma das mãos. Betha fez festas a Rusty,
acalmando-a, e empurrou-a para ela. Rusty embateu suavemente na palma da
mão da mulher, cheirando, roçando-se de prazer no fino cetim da manga dela.
— Penso que vieram ao lugar certo. — As mãos esguias do homem
estremeceram. — O papá dar-vos-á toda a destilaria em troca desse animal!
— Riu-se. — Mas far-vos-á pagar o transporte para o Cinturão Principal.
— Há ainda muitos animais em Lansing?
— Não. — Betha sorriu, sentindo-se animada. — Um carregamento de
hidrogênio é o que basta.
— Temos jardins — disse Shadow Jack. — Lansing é uma rocha com
cobertura. Em tempos fomos a capital de todo o Cinturão do Céu. —
Levantou a cabeça.
— Decerto — disse o homem. — Está correto, foi. Tenho visto
fotografias. Lindo...
Rusty afastou-se da mulher e começou a enfiar uma pata nos buracos da
rede do porta-papéis. Os papéis dançaram e ela começou a ronronar
presumidamente contente por ser o centro da atenção de toda a gente. Os
olhos de Betha estavam fixos no noticiário da parede; sentiu-se gelar quando
viu o seu rosto projetado no visor e compreendeu que não era a cobertura
noticiosa da sua chegada a Mecca. Usando toda a sua força de vontade
afastou os olhos do visor e coçou Rusty por baixo do queixo.
O homem apercebeu-se dos seus movimentos e virou-se para o visor.
Os olhos dela seguiram-no, viram a sua imagem desvanecer-se e ser
substituída por um texto. O homem tornou a olhar para ela, confuso: e acenou
com a cabeça, numa expressão de delicadeza.
— Não ligue ao visor. Gostamos de saber todas as novidades, para
conhecermos o que se passa com a concorrência. De qualquer modo é tudo
estática... Os homens da informação dirão tudo desde que sejam pagos para
isso. — Apontou para uma página impressa que saía de uma ranhura no
balcão. Rusty saltou, ultrapassou o alvo e arrastou as páginas no ar.
— Aqui, coisinha pequenina, não te aleijes — murmurou a mulher com
as mãos presas de indecisão.
— Ela está bem — disse Betha aliviada mas irritada.
Uma leve reprovação surgiu no rosto da mulher.
— Importa-se se dermos uma olhadela à vossa nave?
Betha olhou para o homem.
— Não... Mas está do outro lado do aster... Da rocha.
Ele acenou.
— É fácil. — Havia um pequeno painel de controlo sob o visor da
parede; o homem dirigiu-se a ele. — Qual é a vossa designação?
— Lansing 04.
O homem tocou nos botões e as notícias desapareceram.
— Lansing 04... — Betha viu a sua nave surgir numa imagem em
contraste encadeante contra o campo iluminado pelo sol. — Penso que é
possível moverem mil toneladas com uma nave daquele tamanho. Qual é a
massa dela?
— Vinte toneladas sem massa de reação nem carga.
— Queremos ter a certeza de que é capaz, compreende. — Ele olhou-a.
— Penso que vão levar mesmo muitos megassegundos a voltar a Lansing.
Perscrutou o rosto dele procurando perturbação, mas só viu mera
solicitude.
— Havemos de conseguir; temos de conseguir.
— Com certeza. — O olhar dele desviou-se para Shadow Jack,
envolvendo-os, percebeu ela, com uma espécie de admiração.
— Vamos começar a tratar do vosso carregamento.
Rusty embateu na borda do balcão, provocando uma nuvem de
impressos e fumegando alto.
— Eh, então. — O homem virou-se tentando quase desesperadamente
apanhar Rusty. — O papá mata-nos se acontece alguma coisa a... — A voz
dele extinguiu-se e deixou escapar a gata, para apanhar uma folha. Betha viu
a sua cara na página que ele tinha na mão, desta vez sem desaparecer. —...
Nave espacial alienígena... — Ouviu o tom de derrota de Shadow Jack. Ela
derivou, segurando-se à beira do balcão até os dedos ficarem vermelhos.
Os Tiriki viraram-se para ela.
— É você — disse o homem, espantado. — Você é da nave espacial.
— E vieram ter connosco.
Um sorriso inconsciente espalhou-se nas suas faces, um olhar de franca
avareza, que Betha já vira na mulher a bordo do veículo.
— Não compreendo — disse ela renitentemente. — Viu a nossa nave;
viemos do Cinturão Principal. Havia imensas pessoas a tirarem-nos
fotografias no campo...
— Mas não esta fotografia. — A mulher negou com a cabeça, o cabelo
negro flutuando. Betha viu-os recordarem-se, reavaliando os dados. —
Ouvimos falar de vocês desde que entraram no sistema, há mais de um
megassegundo.
— E você não veio de tão longe até aqui na nave que vimos em apenas
um megassegundo. — O homem voltou a olhar para Shadow Jack. — Tu és
do Cinturão; talvez a nave seja tua. Que és, um pirata da neve?
— Não estamos a cometer qualquer pirataria. — Betha apanhou Rusty e
encostou-a ao seu fato. — Fizemos-lhe uma proposta: o gato em troca de um
carregamento de hidrogênio. Não temos mais nada que vos possa interessar,
sejamos nós donde formos. Façamos o acordo e vamos...
— Desculpe, mas... — O homem olhou para o papel — parece-me que
estamos interessados numa nave que pode ir de Discus... Para o Cinturão
Principal... Para a Demarquia... — Betha quase podia ver o cérebro dele a
calcular. —... Em um megassegundo e meio.
Que pensaria ele, imaginou Betha, se soubesse que só tinham levado
um terço desse tempo.
— Então, que querem de nós? — Conhecendo a resposta, agora sabia
que tinha falhado só porque não havia qualquer hipótese de entrar em Mecca
sem ser detectado.
— Querem a sua nave! Vamos sair daqui. — Shadow Jack dirigiu-se à
porta, mas parou de repente, como que congelado. Betha virou-se. Em frente
deles, com um casaco cor-de-vinho de corte perfeito e todo bordado, estava o
homem que trabalhava para o Governo. Impecável... Os olhos dele fixaram-
se nela e em Shadow Jack. Estacou incrédulo e ela soube que, desta vez, ele
olhava para os cabelos desgrenhados e sujos e para as faces listradas de suor.
Não era para a sua palidez — sabia, pela cara dele, que a sua face não tinha
para ele quaisquer segredos.
— Capitão Torgussen. — Ele inclinou-se. — E não de Lansing...
Obviamente.
— Tem vantagem sobre mim — disse Betha —, pois parece-me que me
esqueci do seu nome.
Ele sorriu. Mas endureceu quando, fazendo um arco, se virou para os
Tiriki.
— E que pretendem as Destilarias Tiriki dessa nave? — A mão dele
empurrou a frente do fato de Shadow Jack, fazendo-o de novo entrar na sala.
— Afinal não estavas a brincar, meu rapaz, quando nos dissestes o que fazias
na vida.
— Quem é você? — Perguntou a mulher, indignada.
— Wadie Abdhiamal, representante do Governo da Demarquia.
— Governo? — O homem fez uma careta. — Então isto não é nada que
te interesse, Abdhiamal. Desaparece antes que te metas em trabalhos.
— Isso é conversa monopolista, Tiriki. E penso que tens intenção de o
fazer. Estou aqui em missão de trabalho... Vim a Mecca para encontrar estas
pessoas e a nave deles. O Governo reclamou a nave em nome da Demarquia.
— O que o teu Governo diz não se escreve, Abdhiamal. — O homem
mirou a sua imagem refletida no tampo do balcão e reajustou a boina. —
Sabe bem que não têm nada para os apoiar. Encontrámos estes dois primeiro
e vamos conservá-los.
— A opinião pública apoiar-me-á. Ninguém vai deixar os Tiriki ter o
controlo absoluto dessa nave. Convocarei uma sessão pública...
— Usa o meu visor. — Apontou o homem. — Quando dissermos ao
povo como o Governo tem procurado a nave nas costas da Demarquia, não
vão ouvir uma palavra sequer do que disseres.
— Mas vocês não apanharão a nave espacial... E isso é o que me
interessa. Convoca uma reunião.
A mulher dirigiu-se ao visor.
— Só um minuto! — Betha virou-se desesperada, abarcando todos com
a vista. — Sessenta segundos (diz-se um minuto no sítio de onde venho) para
referir algumas coisas que parecem ter esquecido acerca da minha nave.
Primeiro, é a minha nave. Segundo, só eu sei onde se encontra. Terceiro, se
pensam que a apanham sem a minha total cooperação estão redondamente
enganados. A minha tripulação preferirá destruí-la a deixar que a apanhem...
E destruirão qualquer nave que esteja a menos de três mil quilômetros dela.
— Shadow Jack colocou-se ao lado dela, com uma interrogação no rosto. Os
outros estavam silenciosos, à espera; a frustração e a avidez deles atingiam-na
como chamas. — Então, e agora? Parece que estamos num impasse. Mas eu
vim aqui para fazer um acordo e ainda estou na disposição de o fazer... Pois
penso que não tenho por onde escolher. Tenho dúvidas que nos deixem sair,
em qualquer dos casos.
»Sendo assim... Suponhamos que cada um de vocês me diz porque
deseja tanto a minha nave, e depois eu direi quem a apanhará. E não me
ofenderão se mencionarem o que está reservado para mim... — Rusty
começou a procurar trepar para um sítio mais seguro no seu fato liso e
escorregadio. Viu Abdhiamal observar a gata, sorrindo fascinado antes de os
seus olhares se encontrarem. Abdhiamal não respondeu; esperando que a
oposição falasse primeiro, pensou ela. — Então? — Afastou-se receosa dele,
receosa de si própria, receosa de que ele percebesse.
Os Tiriki falaram um com o outro em voz baixa. Por fim encararam-na,
belos e determinados.
— A sua nave aumentaria o nosso negócio... E revolucionaria o
comércio na Demarquia. Do modo como as coisas estão não temos toda a
neve que precisamos à mão de semear; temos de ir aos Anéis, e é uma
viagem dura de fazer com os foguetes nuclear-elétricos. E os Anelanos ainda
o tornam mais dura, porque sabem que não podemos fazer nada que ponha
em risco a nossa parte dos gases. Se tivéssemos a sua nave não teríamos de
depender deles. A sua nave fará da Demarquia um lugar mais agradável para
viver... Poderá continuar a capitaneá-la, trabalhando para nós. Pagar-lhe-
emos bem. Fará parte da mais rica e poderosa companhia da Demarquia...
— E quando a Demarquia protestar, essa companhia fará da sua nave
uma superarma e tomará o poder. — Os olhos de Abdhiamal enfrentaram os
dela.
Betha sentiu as pálpebras tremerem; a imagem dele ficou desfocada
quando ela abanou a cabeça, negando.
— Ninguém usará a minha nave como arma. Nem sequer você,
Abdhiamal, se é para isso que a quer.
— O Governo pretende-a para que não se torne numa arma e traga uma
nova guerra civil. Deus sabe como a velha guerra ainda nos está a matar.
Alguém tem de ver se a nave é utilizada para o bem de toda a Demarquia, e
não seja virada contra nós. A tecnologia que têm a bordo pode ser o estímulo
que precisamos para reviver todo o Cinturão. Talvez sejamos capazes de
duplicar a vossa nave e construir uma nossa, reestabelecer comunicações
regulares com o exterior da Demarquia. Pode-nos ajudar...
— Não lhe dê ouvidos! — Disse a mulher. — Nós é que somos o
governo. Nós, o povo. Ele não tem nenhuma autoridade. E você será feita em
pedaços por qualquer um que queira a nave. Ele não a pode proteger. Fique
connosco. Tomaremos conta de si. — Betha reconheceu a armadilha por
detrás das palavras.
— Cuidarão de si muito bem — sussurrou Shadow Jack. A mão
enluvada dele prendeu o punho de Betha, apertando-o até magoar. — Não
faça isso, Betha! São todos uns mentirosos! Não pode confiar em nenhum
deles.
— Shadow Jack. — Ela virou-se devagar, a mão ainda presa na dele, e
olhou-o nos olhos. Ele largou-a, e Betha viu a raiva dele desaparecer,
deixando-lhe o rosto vazio. — E então o hidrogênio... Para Lansing?
— Mandar-lhe-emos um carregamento; tudo o que eles precisarem.
— E você? — Ela enfrentou de novo Abdhiamal. — É verdade que as
suas promessas não têm qualquer valor?
— O Governo só faz o que a Demarquia quer. Porque não pergunta à
Demarquia? Convocaremos uma reunião geral, e deixaremos que vocês os
informem de tudo a respeito da vossa nave. Dizer a todos a sua localização...
Mas também avisá-los para se manterem afastados... Dizer-lhes o que nos
disse. A partir daí ninguém ficará em posição de vantagem. Eu dir-lhes-ei o
que a vossa nave pode significar para todos eles, para todo o Cinturão. Toda a
gente terá um voto na decisão de como obter o maior proveito da
oportunidade e de maneira como as coisas devem ser feitas... A Demarquia
não lhes quer fazer qualquer mal, capitão. Mas nós precisamos da sua ajuda.
Dê-nos a nave e pode pedir de nós o que quiser.
— Tudo menos um bilhete de volta para casa. — Shadow Jack
procurou-lhe o rosto; ela desviou o olhar.
— Está bem. — Baixou-se para apanhar a mala de transporte de Rusty,
e obrigou-se a olhar mais uma vez para Abdhiamal. — Abdhiamal, arrisco a
sua via...
Ele sorriu e ela não conseguiu ver para além do seu sorriso; combateu o
desejo de acreditar nele.
— Obrigado. — Ele virou-se para os Tiriki. — Convoquem uma
reunião.
— Não. Esperem. — Betha abanou a cabeça. — Aqui não. Quero estar
na minha nave quando se fizer a comunicação. Se toda a gente souber onde
ela está, decerto algum lunático a tentará apanhar, diga eu o que disser. Tenho
de lá estar, para dar as minhas contraordens; não quero perder a minha nave
agora. Tenho a certeza de que você também não quer perdê-la, pois não? —
Olhou para ele. — Levá-lo-emos para a nave; podemos emitir de lá... De
resto, não vai fugir de si sem combustível, não é?
— Suponho que não. E suponho que tem razão. — Concordou com a
cabeça, olhando para os Tiriki. — Muito bem: aceito as suas condições.
— Vai com eles, Abdhiamal. — A voz de Esrom Tiriki tinha um tom
de gozo. — Isso dar-nos-á tempo suficiente para espalhar as novidades acerca
deste assunto; os homens da informação cortar-te-ão aos pedaços. Na altura
em que convocares a reunião serás o inimigo público número um. Ninguém
te escutará. Podes contar com isso. — A mão dele bateu na esquina do
balcão, cortando a discussão.
Ela viu o sorriso de Abdhiamal endurecer.
— Vamos então andando.
Empurrou Rusty, que protestou, para dentro da mala e selou o fecho.
Sentiu uma leve alegria pelo sacrifício recusado, e sentiu os olhos dos Tiriki
mudarem invejosamente atrás dela. Esboçou um sorriso.
— Como pode sorrir depois do que aconteceu? — Murmurou Shadow
Jack apanhando o capacete.
Suavemente ela disse:
— Nunca te tinha dito que há sempre uma razão para continuar a
sorrir?
«LANSING 04» E «RANGER» (ESPAÇO DA DEMARQUIA)
+ 1.73 MEGASSEGUNDOS

Wadie viu a nave espacial crescer no visor da cabina cheia e


malcheirosa da Lansing 04. A sua admiração cresceu com a imagem — assim
como a gratidão do seu coração. Esta era a nave do exterior, uma nave
construída para atravessar espaços interestelares a velocidades interestelares,
com um corpo graciosamente moldado para se proteger do corrosivo vento de
partículas do espaço. Nada tinha das feias angulosidades das naves do espaço
que estava habituado a ver; era de uma perfeição pragmática, e há gerações
que não havia uma nave como aquela no sistema Céu. As naves espaciais do
pré-guerra do Cinturão do Espaço tinham sido convertidas nas mais
mortíferas das naves de combate durante a guerra — e foram destruídas uma
a uma, tal como o fora o acesso às necessidades básicas da vida e o delicado
balanço da sobrevivência. Por fim, o Cinturão Principal tornara-se um vasto
mausoléu, e agora os sobreviventes isolados estavam a desaparecer, como
pedaços de neve a derreterem-se...
Olhou para a nuca de Shadow Jack. Doía-lhe a cabeça de uma forma
insuportável. Tornou a olhar o visor, contando os segundos que faltavam para
atingir a nave. Mesma que ela não fosse exatamente como ele a imaginara,
mesmo assim, seria um paraíso, uma fuga dos últimos duzentos
quilossegundos de indignidade sufocante dentro da loucura deste caixão de
metal ferrugento. E seria um escape em relação ao rapaz intratável e hostil e à
mulher pequena e brusca que também poderia ter sido um homem como
todas as outras mulheres que escolhiam para seu caminho o espaço. Viu-a
acalmar o gato com um sussurro, com os anéis brilhando nas suas mãos.
Olhou para baixo, para o anel de prata e rubis no seu próprio polegar, um
presente daquela outra mulher do espaço e do seu homem, e tentou imaginar,
embora fatigado, porque é que esta se incomodava a usar tantos anéis
quando, obviamente, não estava interessada na aparência.
A imagem da nave espacial afastou-a das estrelas; sem qualquer
restrição usou a sua ração de água para lavar a cara e as mãos.
«Não é uma nave.» Wadie recuou, a meio da escotilha da Ranger,
quando a sala se abriu à sua frente. «Isto é um mundo.»
— Aqui é a sala de controlo — disse-lhe o capitão passando por ele
com a voz rouca na sua garganta seca; ouviu os barulhos que fazia Shadow
Jack ainda às voltas com o fato de pressão, na escotilha atrás dele. Respirou
fundo o ar frio, e tossiu quando os seus pulmões surpreendidos reagiam.
— Olá, Pappy.
O capitão deu um impulso na parede, com uma falta de graça
indefinível que marcava mais a sua estranheza do que propriamente o rosto e
o cabelo. Moveu-se através da vastidão da sala de controlo em direção ao
painel de instrumentos. Wadie apercebeu-se subitamente de que a sala não
estava vazia e de que estava a ser examinado por uma rapariga e por um
homem baixo de pele clara.
— Betha...
Um sorriso espraiou-se pela barba grisalha — um velho, demasiado
velho para ainda estar no espaço, incrivelmente velho... Afinal a rapariga
magra, de pele escura, não estava a olhar para ele, mas para a escotilha atrás
de si. Era uma cinturana, ridiculamente vestida com umas calças largas
cingidas por um cinto comprido de mais.
— Não me vais querer dizer que isto foi tudo o que trouxestes? — O
velho fez um gesto na direção dele, meio a brincar, meio espantado. — Este...
Janota? Trocaste a nossa Rusty por isto?
Betha abanou a cabeça, divertida, dizendo com jovialidade:
— Não, não é «Shadow Jack e o Pé de Feijão», Pappy. Eu só disse que
não conseguimos a galinha de ovos de ouro... E nós é que talvez fôssemos
este tempo todo a galinha dos ovos de ouro.
Wadie sentiu Shadow Jack passar por ele com a gata nos braços. O
rapaz atirou-a pelo ar, dando-lhe impulso, e ela flutuou na sala perfeitamente
à vontade.
— Rusty!
Ela dava miadelas de prazer, movendo-se para as mãos familiares do
velho.
O rosto da rapariga cinturana deixou-o espantado ao transformar-se em
felicidade selvagem quando os olhos dela encontraram Shadow Jack.
Desviou a vista dela, voltando a olhar o velho.
— Sou Wadie Abdhiamal, representando a Demarquia. E
habitualmente mais apresentável do que neste momento. Parece-me que
duzentos quilossegundos naquela ratoeira não favoreceram a minha
aparência. — O velho riu-se.
Shadow Jack olhou de relance para Abdhiamal.
— Tenta, ao menos uma vez, durante um par de megassegundos.
O capitão derivou contra o painel de controlo e rugas de tensão
voltaram-lhe ao rosto, tornando-o ameaçador.
— Foi o inferno, Pappy. Não queria que nos recolhesses dentro do
espaço da Demarquia, mas não sabia quanto tempo o sistema de apoio de
vida iria aguentar-se. Nem sequer é adequado para dois, quanto mais para
três... — Esfregou o rosto espalhando a sujidade. — Estes dois dias foram
piores que as outras duas semanas. Mas tínhamos de o trazer. Era a única
maneira de lá sairmos. A rede de comunicações deles é incrível; já sabiam
tudo a nosso respeito... Toda a gente sabia, em cada um daqueles pedaços
isolados de rocha. E cada um deles só estava à espera de agarrar a nossa nave
e brincar aos deuses com ela... Tal como os Anelanos. Agora não podemos
confiar em nenhum deles; se queremos hidrogênio vamos ter de o tirar à
força.
— Capitão Torgussen — disse Wadie —, o Governo apenas quer...
— Sei o que quer, Abdhiamal. A minha nave. Disse-o claramente. Mas
a sua Demarquia tem de nos apanhar primeiro. — Os olhos dela olharam-no,
cortantes como vidro azul. — Desculpe, Abdhiamal, mas agora está no nosso
terreno. Considere-se nosso refém.
Shadow Jack riu, sentado no ar. A rapariga veio-se colocar ao pé dele
com um rosto inexpressivo.
Wadie nada disse. Viu o capitão hesitar.
— Não pareces muito surpreendido. Não acreditaste no que te disse em
Mecca, e mesmo assim ainda deixastes que isto acontecesse?'
— Não sabia se devia ou não acreditar em si. Depois do que vos
aconteceu, pensei que talvez você tivesse realmente deixado ordens para a
destruição da sua nave, e eu não quis correr riscos. E também não queria
correr riscos com os Tirikis. E se você esteve a mentir sobre a cooperação...
Bem, estou a bordo da sua nave; o que me dá outra oportunidade de a fazer
mudar de ideias. O Cinturão do Céu precisa da sua ajuda.
— Não vos devemos nada; avidez e hostilidade foi tudo o que
encontrámos no Cinturão do Céu.
— O que vos trouxe aqui em primeiro lugar, exceto confiarem, no facto
de que imaginavam, que estávamos bem instalados? Porque não podemos nós
ser também assim avaros? Cem milhões de pessoas (a maior parte dos
habitantes do Cinturão do Céu) morreram na primeira centena de
megassegundos da guerra. E os que ficaram... — Apontou para Shadow Jack
e para a rapariga. — Veja Lansing. O povo de lá não aguentará nem sequer
outra volta em torno do Céu. E todos nós teremos o mesmo destino, a menos
que tenhamos a vossa nave.
Ela franziu as sobrancelhas e prendeu um sapato sob a barra de
segurança colocada ao longo do painel.
— Mantém-se o facto de que nós temos direitos próprios, como seres
humanos (incluindo o direito de deixar este sistema se assim o decidirmos), e
vocês não estão interessados em nos dar esses direitos. É verdade que viemos
para comerciar, porque pensávamos que o Céu tinha coisas que nós
queríamos. Mas vocês não têm nada para nos oferecer, e não podemos
desperdiçar a nossa nave e o resto das nossas vidas para nada. Alvorada não
se pode dar a esse luxo. Acontece apenas que não temos recursos de sobra
para vos dar.
— Eu... Eu admito que não tomámos em consideração a vossa
posição... — Abdhiamal interrompeu-se, embaraçado pela crueza do facto. —
Cometemos um erro ao não termos em consideração a vossa posição. Foi um
erro estúpido. Mas não somos como os Anelanos; não é apenas a vossa nave
que queremos, é também a vossa cooperação. Ainda podemos ter coisas de
que vocês necessitem. E não será para sempre. Tudo o que queremos é
utilizar a vossa nave, o reator e a oficina, durante cento e cinquenta
megassegundos. Tratá-los-emos com imparcialidade. — Aquela parte dele
que tinha duvidado de MacWong perguntou: «Cumpriremos?» Os garotos
cinturanos olharam para eles, descrentes, simpatizando mais com os
estrangeiros do que com o homem do seu próprio sistema.
O capitão moveu-se, inquieto.
— Não acredito nisso. Tudo aquilo que vi mostrou-me que não posso
confiar na Demarquia. Nem sequer confiam uns nos outros. Mesmo se fosse
verdade cada palavra do que disse, alguém as faria ser mentira e nos
atacaria... Não sou cega, Abdhiamal, posso ver o que tem acontecido por
aqui, e sei ser verdade que precisam de ajuda. Se ao menos tivesse alguma
prova de que a Demarquia merecia os nossos esforços. Mas não tenho. Não
os podemos ajudar; vocês não nos deixarão. É impossível.
— Capitão, eu...
— O assunto está encerrado. — Algo na voz dela lhe indicou que
estava encerrado, irrevogavelmente, e que a razão era muito mais profunda
do que uma simples traição à verdade.
Sem o compreender, ele apenas acenou, e a sua fadiga e exasperação
deixaram-no derrotado.
— Com que fim sou então seu refém, capitão?
Os olhos dela semicerraram-se.
— Não sei. Seja qual for o nosso fim, para melhor ou pior... Será
também o seu, suponho. Ajudou-nos a sair de uma situação crítica,
Abdhiamal. Inadvertidamente, mas ajudou. Tentarei fazer o mesmo por si. Se
conseguirmos o hidrogênio de que precisamos, hei de arranjar maneira de o
enviar de volta à Demarquia antes de abandonarmos este sistema. Será
apenas... Uma inconveniência temporária. — Olhou para ele, por um
momento, de uma forma estranha; virando-se, agarrou-se ao barco do velho.
— Oh, Cristo! Pappy, estou tão cansada. Tão contente de estar de volta. —
Ele puxou-a para demasiado perto de si; segurou-a até ela ceder, beijando-o
uma vez, ternamente.
«Suficientemente velho para ser pai dela...» A surpresa fez uma careta
surgir na cara dele; cobriu-a quando eles olharam para ele. Só quatro nesta
grande sala vazia; e dois deles eram cinturanos. Demasiado vazia.
— Onde está o resto da vossa tripulação?
O velho olhou para Betha; esta fez um gesto com a cabeça.
— Não importa; acho que ele depressa acabaria por saber. — A mão
dela enfrentou o visor com um punho fechado. — Morreram todos em
Discus. E vamos lá voltar. Pappy, prepara uma rota para Discus. Não
podemos arriscar-nos a ficar aqui mais tempo. Abdhiamal, vamos ter de tirar
aos Anelanos aquilo de que precisamos e da maneira que pudermos; e isso
vai-me dar muito prazer. — Atirou as palavras à cara dele, em desafio, antes
de se virar para Shadow Jack e para a rapariga. — Vamos embora daqui tão
depressa quanto pudermos. Quero estar segura de que ninguém da Demarquia
nos pode pôr a mão em cima. Vamos fazer uma gravidade uns cinco ou seis
dias, de novo, para voltarmos aos Anéis.
— Valerá a pena. — Shadow Jack fez estalar os dedos. A boca da
rapariga contraiu-se, formando uma linha; concordou. Moveu-se para mais
perto de Shadow Jack, tocando-lhe levemente no braço. Ele olhou irritado
para a mão dela, mas não a afastou.
— Tens sede? — Perguntou ela.
Ele endireitou-se, saindo do seu flutuar descuidado, sorrindo
subitamente, e passou a mão pela boca.
— Tenho! — Afastou-se da parede e saíram os dois da sala.
O velho estava amarrado a uma cadeira, trabalhando no painel. O
capitão moveu-se no ar para apanhar um lápis e um cubo de metal que Wadie
não conseguiu identificar; empurrou a gata para um compartimento na
parede.
— Capitão...
Ela regressou ao painel.
— Que é?
— Queria autorização para usar o vosso rádio.
— Recusada. — Ela alcançou uma cadeira e desceu nela.
— Mas eu preciso de...
— Recusado. — Ela voltou-lhe as costas e deixou de lhe ligar quando
começou a mexer no painel. Ele esperou, apreciando o mau gosto da
combinação das paredes azul-pálidas com a alcatifa verde. Reparou numa
faixa de azul mais escuro na parede, uma seta na qual estava escrita a palavra
BAIXO.
— A nave de Lansing está segura. As coordenadas já entraram, Pappy?
— Já entraram. Estou pronto, quando tu estiveres.
— Está bem. Ignição... Trinta segundos. Pés no chão, todos!
As últimas palavras foram ditas num intercomunicador e ecoaram pelas
paredes, através do coração da nave. Wadie observou as mãos dela
movimentarem-se numa sequência sobre o painel e sentiu nos seus ombros a
familiar e leve mão da gravidade. E começou a descer: os pés tocaram o
pavimento, a pressão sobre as pernas continuou, aumentando para além do
ponto de familiaridade, para além do ponto de conforto. Ele ajudou as pernas
segurando-se com as mãos a uma barra presa na parede, recordando trinta
segundos a uma gravidade numa nave anelana, e compreendendo o que iriam
ser os próximos quinhentos mil segundos. A dor torturava-lhe os músculos; o
azul-sobre-azul da parede enchia-lhe o campo de visão: BAIXO... As suas
mãos apertaram mais e ele aguentou-se, suportando a dor, ignorando o
coração que batia como um punho contra as costelas.
Aguentou-se... E tentou afastar-se da parede quando a pressão que o
arrastava para baixo se estabilizou. Uma sensação de tontura fê-lo vacilar,
mas controlou-a, balançando-se precariamente quando o capitão e o velho se
afastaram dos seus lugares. Olharam para ele com piedade; o gato saiu da
parede por uma portinhola plástica, deu uma volta aos pés dele e lambeu-lhe
as botas, consolando-o com a sua língua. Dobrou os braços; olhou para o
chão e de novo para eles. Sorriu brandamente.
O capitão deu meia volta e saiu da sala. O gato disparou na sua peugada
com a cauda erguida como um mastro.
— Abdhiamal, não é? — O velho aproximou-se dele, estendendo a
mão. — Chamo-me Welkin, sou o navegador a bordo da Ranger.
Wadie acenou, apertou-lhe a mão, e tentou imaginar o motivo por que
ele lha tinha estendido. Reparou que a mão de Welkin brilhava com anéis de
ouro, como a de Betha Torgussen; e que o seu aperto de mão era forte e
firme... Mas o velho devia ser forte, uma vez que aguentava uma gravidade
— dez metros por segundo quadrado, a gravidade da velha Terra. Isto é como
viver na Terra. O barulho de uma queda e a voz de Shadow Jack, dorido,
«Raios!», subiu de algures de baixo deles. «Não admira que tenhamos
chamado Céu a este sistema.»
«RANGER» (EM TRÂNSITO DA DEMARQUIA PARA DISCUS)
+ 2,25 MEGASSEGUNDOS

Cinquenta quilossegundos mais tarde Wadie subia a escada deserta, um


degrau de cada vez — desejava gatinhar e sabia que ninguém o estava a ver,
mas estava decidido a ter controlo sobre alguma coisa, nem que fosse só
sobre a sua dignidade. Investigara os níveis inferiores da área habitacional da
nave: os aposentos da tripulação; a estranheza luxuriante de um laboratório
de hidropónica adaptado a uma gravidade; a oficina — esta última memória
era quase uma raiva. Observara tudo menos a secção do segundo nível, por
detrás de uma porta estanque onde piscavam uma luz vermelha de alarme. E
em toda a parte ficara petrificado pelo incrível desperdício — de água, de ar,
de espaço —, numa matriz de austeridade monótona que era primitiva
quando comparada à sofisticação da Demarquia. Pensou na ironia da ideia de
que os Alvoranos se consideravam a si próprios pobres, embora em algumas
coisas eles fossem o povo mais rico que conhecia.
Alcançou o cimo das escadas, encostando-se ao corrimão até que as
tonturas passassem e a pulsação diminuísse. Os músculos doíam-lhe quando
estava de pé e, quando andava, a dor queimava-lhe as pernas trementes como
um ferro em brasa. Fez o melhor que podia para pôr em ordem as suas roupas
novas antes de entrar na sala de controlo.
Os outros já lá estavam a observar qualquer coisa no visor. O capitão e
Welkin estavam sentados em cadeiras. Shadow Jack e a rapariga estavam
estendidos na alcatifa, distribuindo o seu peso pela maior área possível. A
rapariga estava a tentar fazer elevações com o corpo rígido desde os joelhos
quando ele olhou. Viu os ombros dela tremer, viu-a colapsar com a cara na
almofada. Ficou estendida no chão, derrotada:
— Não consigo.
— Então não faças — disse Shadow Jack, acrescentando com ar mais
gentil: — Em breve estará acabado, Bird Alyn; não temos de nos habituar a
isto. — Ele estava a atirar cartas ao ar e a observar a sua incrível queda para o
chão. — Olha quem acordou finalmente!— Disse Shadow Jack quando olhou
para trás. O gato passou ao lado da cabeça dele e sentou-se sobre as cartas.
Wadie inclinou-se de uma forma casual, mantendo cuidadosamente o
equilíbrio. Ninguém lhe retribuiu o cumprimento e a indignação subiu nele
até se lembrar que aqui não podia esperar civismo. Piratas... Quase sorriu,
lembrando-se de qual fora o significado dessa palavra quando aplicada a um
cinturano, em tempos idos, quando o único cinturão de asteroides era o do
Sol. Estudou o rosto de Betha, que agora estava limpo, tal como o cabelo
cuidadosamente cortado curto; viu qualquer coisa nos olhos dela que o
sobressaltou. Ela baixou os olhos, acendendo um cachimbo. A doçura
confusa do que se estava a queimar evocou nele memórias instintivas de
coisas que nunca vira.
— Pelo menos desta vez tem um ar de comerciante aldrabão — disse
Welkin.
Wadie olhou a camisa de trabalho de algodão azul e as calças de ganga
também azul, que lhe ficavam dez centímetros acima da canela. Enfiara as
calças dentro das botas polidas, botas que lhe envolviam as pernas e as
faziam pesar como chumbo.
— Pelo menos estou limpo. — Cruzou cuidadosamente o aro da porta e
atravessou a sala, mantendo a cabeça erguida e as costas direitas. Alcançou a
cadeira giratória mais próxima e sentou-se, recostando-se comodamente e
respirando de novo. A rapariga olhou para ele com respeito. Shadow Jack
mirou-o carrancudo, murmurou qualquer coisa e empurrou a gata, espalhando
as cartas.
— Capitão... — Wadie virou-se no assento, reordenando os
pensamentos. Parou quando se apercebeu das imagens que estavam no visor.
— Têm estado a monitorizar as emissões da Demarquia? — Seis imagens
diferentes apresentavam-se no visor, cada uma de uma frequência de emissão
diferente. Identificou um noticiário geral, três documentários de corporações
e dois debates locais de arbitragem.
O capitão concordou.
— Tem sido... Elucidativo.
— Houve qualquer coisa dos Tirikis a respeito da vossa nave?
— Sim, notícias; e houve um... — Tornaram a olhar para o visor
quando dois dos segmentos desapareceram subitamente, substituídos por uma
estrela octogonal num galardão dourado, sobre um fundo negro. Enquanto
olhavam o símbolo invadiu, um por um, os outros segmentos. — Que é isto,
Abdhiamal?
— É a chamada para uma reunião geral; cada demarca que desejar
participar pode seguir o debate final, que agora vai começar, e votar nos
assuntos em questão. — Lembrou-se dificilmente que deixara Mecca há
duzentos e cinquenta quilossegundos e que outro tanto passara desde que
enviara o último relatório. — Penso que será o debate a respeito da vossa
nave e do que aconteceu em Mecca. Os Tirikis começaram a promovê-lo no
mesmo segundo em que abandonámos a rocha; e ninguém me ouviu. Gostaria
de seguir o debate. E gostaria de ter hipótese de me defender, se me abrisse
um canal.
Ela pôs o cachimbo de lado.
— Está bem, vamos seguir a reunião. Pode ouvi-la; mas não o posso
deixar falar.
— Porque não? A sua nave está a salvo. E eles podem-na seguir pelo
rasto, não precisam de uma emissão rádio para se orientar...
— Não preciso que você lhes revele os nossos planos. Prefiro que eles
os adivinhem.
— Capitão, preciso de falar com eles. Esta reunião pode significar o
meu emprego. — Todos olharam para ele, sem responder. Ele teve de engolir
a sua irritação. — Viu... A rede de comunicações que temos; é de antes da
guerra e ainda funciona perfeitamente. É ela que faz funcionar a Demarquia...
Cada demarca tem igual prioridade no acesso a ela, e qualquer pessoa pode
comunicar qualquer assunto que conheça. Todos os que tiverem envolvidos
ou interessados podem debater o assunto. Se for preciso faz-se uma votação
geral, e o voto é lei.
— Um governo da multidão? — Perguntou Welkin. — Uma tirania da
maioria.
— Não. — Apontou para a gota dourada no visor, símbolo da
distribuição em forma de gota por cento-e-quarenta-milhões-de-quilómetros
dos asteroides troianos. — Aqui não. Não podemos ter uma multidão unida
através de milhões de quilômetros de espaço. O que mantém o interesse
próprio do votante confinado à sua própria rocha. São independentes como o
inferno, estão bem informados e julgam os casos. Um júri de pares.
— Então porque está tão preocupado em perder o emprego?
— Porque não estou lá para me defender; os Tirikis podem proclamar o
que quiserem, e se ninguém ouve a outra versão da minha boca, que vão eles
pensar, exceto que a deles é a verdade? O meu patrão irá responder-lhes em
meu lugar, e nem sequer sabe o que aconteceu. Se eu não lhes posso dizer,
posso arrastá-lo comigo para o fundo. O Governo flutua em água e, se se
balança o barco, este afunda-se.
O capitão inclinou-se para a frente, apertando as mãos uma na outra.
— Lamento, Abdhiamal, mas devia ter tido isso em consideração antes
de ter vindo comigo. Agora não posso deixá-lo falar... Ainda quer escutar?
Ele acenou que sim. Todos os símbolos menos um tinham desaparecido
do visor; enquanto ele olhava o tempo de chamada passou e o último símbolo
também desapareceu. A reunião geral tinha começado.
—... Já devíamos ter posto as nossas naves de fissão a perseguidos. —
Wadie apoiou o pescoço no descanso do assento, quando o último argumento
de Lije MacWong chegava ao fim no visor. — Fizemos tudo o que pudemos
para seguir os desejos da Demarquia. Também para nós demasiadas coisas
continuam obscuras; apenas sabemos o que vocês também sabem. Sou um
funcionário civil: nem mais, nem menos. Se me quiserem demitir de trabalhar
no interesse do povo, é um vosso privilégio. Mas não sinto ter feito alguma
coisa que atraiçoasse a vossa confiança. — Uma faixa de cor surgiu no fundo
do visor, mudando lentamente no violeta para o azul; a participação na
votação era já de oitenta por cento e continuava a subir.
Wadie observou as mãos castanhas bem cuidadas cruzadas sobre o
tampo da secretária gargulada e os olhos constrangedoramente pálidos que já
antes tinham desafiado a Demarquia e vencido. Desapareceram de repente; os
segundos passaram. No visor piscou uma linha: REFUTAÇÃO: ESROM
TIRIKI. Sentiu a boca contrair-se quando o rosto dourado e sereno de Tiriki
surgiu com os olhos fulgindo como metal.
— Mantém-se o facto de que o Governo...
O capitão recostou-se, com os dedos batendo ritmicamente e em
silêncio nos braços da cadeira.
— Este é um dos duendes, Pappy. Bonitão, não é? — Levantou os
olhos. — E sedento do nosso sangue. Como é que se dizia antigamente?
«Cheira-me a inglês, esteja vivo ou esteja morto...» — Interrompeu-se e
respirou fundo. — João e o Pé de Feijão... Que se passa a respeito de naves
de fusão, Abdhiamal? Estava convencida de que tinha dito que a Demarquia
dependia de naves de fissão ou de foguetes fissão-elétricos...
Ele fez um aceno.
— Temos três pequenos aparelhos de fusão do pré-guerra; são a nossa
marinha de guerra, se lhe quiser chamar assim. Mas vocês têm um grande
avanço sobre eles. Não vos conseguirão apanhar antes de chegarem a Discus.
— Mas poderá significar para nós menos tempo para manobrar quando
lá estivermos — lembrou Betha.
—... O agente governamental Abdhiamal atraiçoou-nos e raptou os do
exterior que tinham vindo ter connosco para negociar. Já passaram duzentos
quilossegundos sem que ele tenha dado sinais de vida. Os conhecimentos
deles poderiam ter beneficiado toda a Demarquia, poderiam mesmo salvar o
Céu... Mas por causa deste «homem do Governo» perdemos para sempre a
tripulação e a nave. Tenham isto em consideração quando tomarem a vossa
decisão final. — A faixa de luz por baixo da sua imagem mostrava um tom
violeta cada vez mais escuro.
As mãos de Wadie retorceram-se. REFUTAÇÃO FINAL: LIJE
MACWONG, indicou o visor.
— Lamento ter de o dizer, mas, honestamente, não posso negar a
acusação final do demarca Tiriki. Wadie Abdhiamal, um negociador do meu
departamento, ultrapassou de tal forma a sua autoridade que o considero
criminoso. No passado houve dúvidas sobre a sua lealdade devido às suas
conhecidas simpatias pelos Anelanos e eu, francamente, considero que é
possível que ele os pretenda ajudar pondo a nave nas mãos deles. Só quero
repetir que ele agia sem o meu conhecimento, nem o consentimento de
qualquer outra pessoa do Governo. Foi ele que cometeu o crime e, como
qualquer criminoso, deveria ser considerado culpado...
Wadie endireitou-se, sentindo que algo lhe irritava o pescoço.
—... De traição contra a Demarquia...
— Lije! — Sussurrou ele, incrédulo, desejando que o rosto de mogno
se virasse e que os olhos pálidos encontrassem os seus.
—... E por isso, colegas demarcas, quero que reconsiderem a questão
básica antes de tomarem uma decisão. Não deverá ser um simples voto de
desconfiança contra um governo que vos tem servido bem; deverá ser o
julgamento do destino de um homem que atraiçoou as esperanças de todos
nós. Peço por isso um libelo de acusação contra Wadie Abdhiamal,
negociador do Governo, por traição...
— Bastardo! — Levantou-se e dirigiu-se, como um pesadelo, para o
painel.
—... Que ele nunca torne a pôr os pés em qualquer território da
Demarquia, sob pena de morte. Ele atraiçoou todos nós...
— Deixe-me falar. — Procurou alcançar as filas de botões.
O capitão agarrou-lhe o braço.
— Não.
—... Mais uma vez saliento que os vasos de guerra propulsados por
fusão sejam enviados em perseguição da nave alienígena; temos de evitar que
eles alcancem os nossos inimigos. Temos de conseguir essa nave para nós!
PROPOSTA, apareceu no visor: LIBELO DE ACUSAÇÃO CONTRA
WADIE ABDHIAMAL, NEGOCIADOR. ACUSAÇÃO: TRAIÇÃO. PENA:
MORTE. NEGANDO A ACUSAÇÃO FEITA: NEGLIGÊNCIA DO
GOVERNO.
Afastou-se do painel. Os dedos mexeram-se nervosamente mas baixou
a mão. Voltou ao seu lugar sentando-se pesadamente e viu os votos
começarem a ser rejeitados; APROVADO, REJEITADO: OS números aumentavam de
segundo a segundo. Por baixo deles a faixa de percentagem de votantes virara
do vermelho ao laranja e depois para amarelo. Quinhentos segundos até que
atingisse o violeta... Quinhentos segundos para chegarem os últimos votos
das rochas troianas mais afastadas. Um intervalo insignificante, pelos padrões
do pré-guerra no Cinturão, pois cento e quarenta milhões de quilômetros
eram uma distância insignificante. A sua proximidade tinha significado a
sobrevivência para os Troianos, depois da guerra; para ele, agora, significava
morte ao deixar que os homens votassem sem hesitação e sem reflexão.
Esperou. Os outros esperaram com ele, em silêncio. A propulsão da nave
enchia o silêncio de vibração, quase se tornando num som intrometido, que
era a única constante no súbito caos do universo.
PROPOSTA APROVADA. Acharam-no culpado, dezanove em cada vinte, e
condenaram-no a morrer. Observou a ordem de morte ser repetida e depois
desaparecer, como uma coisa já esquecida, num novo ciclo de debate sobre o
uso da nave de fusão. Ergueu as suas mãos, pesadas como chumbo, e deixou-
as cair de novo; sorriu, olhando para os outros.
— Até que enfim sei como MacWong se mantém no emprego há tanto
tempo.
O capitão desligou o debate, enchendo o vazio como o vazio do futuro
dele.
— Parece-me que estou a compreender a diferença entre «demarquia» e
simples democracia — disse, calmamente, Welkin.
— Welkin, não tem o direito de julgar a moral do Cinturão do Céu.
— Tem esse direito — disse Shadow Jack sentando-se e estendendo as
pernas. — A tripulação desta nave foi... — Procurou as palavras. — Estavam
todos casados, eram uma família; estavam todos juntos. E todos eles
morreram nos Anéis, exceto... — Olhou de relance para Welkin e Betha
Torgussen, tornou a olhar para Wadie e depois baixou os olhos, retorcendo os
dedos. — Todos eles morreram.
Wadie observou a mão do capitão apoiada no ombro do velho. E disse,
numa voz átona:
— Não sou casado. E agora nunca o serei. — Ela olhou para ele, sem o
compreender, pedindo com os olhos uma inútil desculpa e mostrando,
surpreendentemente, pena. Ele levantou-se; ressentido da intrusão inesperada
e indesejada da simpatia dela.
— Bem, capitão, arruinou a sua última oportunidade para um acordo
construtivo com a Demarquia. Para meu bem, espero que tenha agora mais
sorte com os Anelanos do que teve da última vez. — Saiu da sala e desceu as
escadas em espiral. Ninguém o seguiu.
«RANGER» (EM TRÂNSITO, DA DEMARQUIA PARA DISCUS)
+ 2,40 MEGASSEGUNDOS

Betha estava sentada sozinha frente ao painel de controlo, na meia


escuridão da sala, olhando a brilhante torrente sem fim do tráfico televisivo
da Demarquia, tornado mudo por sua decisão, que ainda os seguia depois de
duzentos milhões de quilômetros. Apanhada num feitiço de revulsão
hipnótica, maravilhava-se pelo movimento perpétuo da máquina de
comunicação de massas da Demarquia, tentando imaginar como é que um
cidadão — demarca? — Podia tomar alguma vez uma sã decisão sob o
constante martelar de uma centena de diferentes distorções da verdade. E,
recordando os homens da informação no campo de Mecca, devia ter sabido o
bastante para acreditar em Wadie Abdhiamal e deixá-lo falar...
Desligou abruptamente as emissões e focou no visor o crescente de
Discus. Visualizou a Ranger no seu espírito, um ponto infinitesimal, isolada
nos quinhentos milhões de quilômetros de escuridão profunda, seguindo a
rota do regresso a Discus em torno do sol desde o monte de rochas que era a
Demarquia. Lembrou-se então de que não estava inteiramente sozinha.
Expandindo a visão da sua mente viu os cargueiros da Demarquia, grotescos
e pesados, carregados de minérios e voláteis, avançando também naquela
desolação; naves que levavam uma centena de dias para atravessar o espaço
que a Ranger atravessava em seis. Era agora um fosso dificilmente
transponível; e a sobrevivência da Demarquia, assim como a dos Anéis,
dependia disso. E um dia não haveria naves...
Mas agora, seguindo a cauda violeta do exaustor da Ranger, observou o
que podiam ser três naves de fusão, fracamente assinaladas mesmo pelos
detectores mais sensíveis da nave.
Acusou a Demarquia pela mania obsessiva da sofisticação, pela alegria
artificial, pelo desperdício inútil das emissões. Loucos, revoltando-se na sua
independência fanática quando deveriam estar a trabalhar em conjunto.
Viviam em autossuficiência, sem qualquer governo estável para os controlar,
sem quaisquer laços honestos de amizade, mas só o mesmo egoísmo que
qualquer outro cidadão... E as mulheres deles: inúteis, frívolas, pomposas, o
desperdício supremo numa sociedade que necessitava desesperadamente de
todos os recursos, incluindo os próprios recursos humanos.
Fragmentos de conversas misturavam-se no seu pensamento, e
lembrou-se de repente sobre o que Clewell dissera sobre a aleijada Bird Alyn.
Talvez, de certo modo, elas fossem um recurso, mulheres sãs e férteis que
tinham de ser protegidas, numa sociedade onde os níveis de radiação eram
sempre anormalmente altos; mulheres que tinham deixado a proteção
aumentar até um modo de vida tão artificial como era tudo o mais no mundo
deles... Talvez o risco de lesão genética se situasse na raiz de toda a
incompreensível involução dos seus costumes sexuais. Pessoas desesperadas
fazem coisas desesperadas; até mesmo o povo de Alvorada, no início...
Virou-se ligeiramente no assento para olhar Shadow Jack a dormir no
chão, perdido num sonho pacífico, com um livro de paisagens de Alvorada
aberto a seu lado. Pensou se aquelas medidas desesperadas da Demarquia
também seriam verdade para Lansing. A mão dela apoiou-se no painel,
acariciando os seus anéis, quando Wadie Abdhiamal entrou na sala.
— Capitão. — Wadie fez uma mesura de pedido. Ela acenou-lhe e viu-
o atravessar a sala: o demarca perfeito, compulsivamente polido,
compulsivamente imaculado. E tão desajeitado como uma criança dando os
seus primeiros passos, andando sob gravidade um. O rosto dele parecia
fatigado, mostrando os efeitos da tensão e da perda de líquidos. Recordou-se
de o ter visto a usar a água de beber para lavar a cara, a bordo da Lansing 04,
pensando que ninguém estava a dar por isso... Betha afagou, distraída, o seu
próprio cabelo.
— Encontrou tudo o que tem necessitado, Abdhiamal? Comeu? — Ele
não se reunira aos outros quando comeram juntos na sala de jantar.
Abdhiamal sentou-se.
— Sim... Uma coisa qualquer. Não sei o que era. — Parecia doente só
de se lembrar disso. — Julgo que nunca me conseguirei habituar a comer
carne.
— Como... Se sente?
— Agoniado. — Ele riu-se, autodepreciando-se, como se fosse mentira.
Olhou para o visor vazio. Rusty materializou-se aos seus pés e subiu-lhe até
ao colo fungando o focinho. Ele repeliu-a com uma das mãos escura e
meticulosa; Betha reparou no anel de prata maciça cravejado de rubis que ele
usava no polegar.
— Lamento. — Betha tirou o cachimbo do bolso de trás das calças,
acalmando as mãos na sua forma familiar.
— Não tem nada a lamentar. — Ele mexeu-se e Rusty resmungou
lastimosamente com a cauda a agitar-se. — Porque o capitão tinha razão e eu
tomei a decisão certa ao vir consigo. Não se pode deixar que a Demarquia
apanhe a sua nave; ninguém no Cinturão do Céu pode... Não estou a dizer
isto pelo que me aconteceu... — Algo na voz dele lhe disse que isso não era
totalmente verdade. — Mesmo que não seja já o meu dever, ainda entregaria
a sua nave à Demarquia se tivesse tal oportunidade... Se pensasse que os
salvaria. Mas não os salvaria. O Governo é demasiado fraco, nunca serão
capazes, pelo menos, de manter um equilíbrio. — Os dedos dele
mergulharam nos braços moles da cadeira; o seu rosto não mostrava qualquer
expressão. — Por isso dir-lhe-ei o seguinte: ajudá-los-ei a sair daqui, em tudo
aquilo que eu possa ajudar. Qualquer coisa que eu possa fazer, qualquer coisa
que queiram saber. A título de meu último serviço à Demarquia: comprar-
lhes um pouco mais de tempo e salvá-los deles próprios. — Os seus olhos
fixaram-se em Discus, que surgira no visor. — Se tenho de ser um traidor,
serei um bom traidor. Sempre tive orgulho no que faço.
Betha, com o rosto quente, deixou de lhe seguir cada um dos
movimentos.
— Se realmente é isso que quer dizer, Abdhiamal... Quero a sua ajuda,
quaisquer que sejam os seus motivos pessoais. Preciso de saber tudo o que
me possa dizer sobre os Anelanos... Sobretudo o número e a localização das
suas destilarias. Não importa o facto de eles serem primitivos, pois teremos
de planear cuidadosamente como lhes roubar alguma coisa usando uma nave
especial desarmada... E, como você disse, até agora não alcancei qualquer
êxito em conseguir o que quero. A estratégia foi sempre o ponto forte de
Eric... Nunca foi o meu ponto forte.
— Pelo contrário: enganou-nos a todos, em Mecca. — Brindou-a com
um sorriso irônico. — Acho que posso dar-lhe coordenadas suficientemente
precisas; passei muito tempo nos Anéis aqui há uns duzentos e cinquenta
megassegundos atrás, quando os ajudámos a ampliar a destilaria principal. Na
verdade, eu... — Interrompeu-se bruscamente. — Conte-me alguma coisa
sobre Alvorada, capitão. Diga-me como o seu povo faz as coisas. Não parece
aprovar o modo como nós as fazemos.
Betha estudou-lhe as palavras, tentando encontrar uma razão escondida
atrás da brusca mudança de assunto que ele fizera; apenas certa de que ele na
realidade não queria um resposta, mas simplesmente uma distração. «E é o
que vou dar-lhe.»
— Não, não posso dizer que aprovo, Abdhiamal. Mas isso é assunto da
Demarquia, exceto quando se atravessa no meu caminho... Creio que posso
dizer que valorizámos os nossos parentescos... Não só como seres humanos,
mas especialmente como parentes de sangue. Já conhece a nossa unidade
familiar de casamento múltiplo. — Ela olhou, distante; os olhos dele não
fizeram qualquer comentário, mas sentiu-o comprometido. — Acima dessa
unidade há o nosso «clã», não no sentido técnico que tinha no Velho Mundo,
exceto na medida em que nos indica com quem não nos podemos casar... A
família de pais, os descendentes, os próprios filhos. Todos os parentescos se
estendem para além do clã... Algumas vezes quase até ao infinito. Todos nós
tentamos tomar conta dos nossos; toda a gente em Alvorada tem parentes
para onde quer que vá... Exceto que uma pessoa que não deseja compartilhar
do trabalho descobre que até os seus próprios parentes não ficam contentes
por dividir eternamente os frutos do trabalho...
»A única estrutura social formalizada acima de nível de clã é o que nós
chamamos a «metade»...
Perdeu o som da sua própria voz, e até a consciência dolorosa da
presença de Abdhiamal, com as memórias vividas que enchiam os espaços
entre as palavras com súbita saudade. A metade Borealis: uma unidade
econômica arbitrária para distribuição de bens e serviços. A metade Borealis:
o seu lar, o seu trabalho, a sua família, o seu mundo... Uma criança a rir-se (a
sua filha ou ela própria) ao cair de costas para fazer moldes de anjo nos
montes de neve...
— As nossas indústrias funcionam independentemente, tal como as
vossas... Mas eu suponho que vocês as chamariam «monopolistas».
Cooperam, não para lucros, mas porque têm de cooperar, ou então falham. O
sistema funciona porque nunca temos o suficiente de nada, sobretudo de
pessoas. A minha família de pais e muitos dos meus parentes mais próximos
têm uma exploração florestal na metade Borealis... A minha mulher Clara
também lá trabalhava. Algumas famílias especializam-se no comércio, mas
Clewell, eu e os nossos esposos éramos um pouco de cada coisa... —
Recordou o fim do dia no crepúsculo sem fim com a família reunida em torno
da longa mesa de madeira escuta, enquanto as crianças lhes serviam o jantar.
O suave calor do fogo, o pôr-do-sol que nunca desaparecia do céu sobre a
casa semi-subterrânea. O cavaquear acerca dos pequenos triunfos do dia, a
agradável sensação de fadiga... As boas-vindas pelo regresso ao lar de um
esposo cujo trabalho o afastara durante dias ou, por vezes, semanas. Eric,
voltando de arbitrar uma disputa demorada...
Olhou para Wadie Abdhiamal, recostado na cadeira na sala de controlo
da Ranger. Um negociador... «Eu resolvo disputas, elaboro acordos
comerciais...» Abdhiamal olhou-a com uma expressão levemente confusa.
Ela sacudiu a cabeça. «Para com isso. Para de ser uma louca!»
— Eu... Quase me esquecia... Temos também um Conselho Supremo. É
uma espécie de parlamento, constituído por procuradores das diversas
metades, eleitos por um certo período. Trata do pequeno comércio planetário
que mantemos e dos carregamentos de emergência. Foi dele que partiu a
proposta da nossa viagem até ao Céu. Pouco intervém nas nossas vidas do
dia-a-dia...
— Então, de certo modo, vocês são como nós — disse Abdhiamal —,
sem um governo forte e centralizado, e também com orgulho de serem
independentes...
— Não. — Mais uma vez ela abanou a cabeça, negando mais do que
com as palavras. — Somos como uma família. Conseguimos fazer as coisas
através da cooperação, e não da competição, como o faz a Demarquia. O
vosso sistema é um paradoxo: o indivíduo tem controlo absoluto e, ao mesmo
tempo, não tem qualquer controlo, se não está de acordo com a maioria.
Cooperamos e transigimos porque sabemos que todos precisamos uns dos
outros mesmo para sobreviver... E considerando a posição em que neste
momento está a Demarquia, eu diria que dificilmente se podem dar ao luxo
de continuar a pôr o interesse próprio de cada um acima de tudo o mais.
Abdhiamal piscou os olhos, como se as palavras dela o tivessem
atingido na cara. Mas apenas estremeceu.
— Será desnecessário dizer que não nos vemos a nós próprios sob esse
prisma. Parece-me que a vossa ideia de cooperação se aproxima mais das
ideias da Grande Harmonia dos Anelanos. — Na voz dele não havia
sarcasmo. — Também eles valorizam a cooperação acima de tudo, porque o
têm de fazer; depois da guerra não foram tão afortunados como a Demarquia.
Mas têm um estado socialista e uma forte marinha de guerra; conseguem a
cooperação pela força das armas. E, na realidade, isso não é cooperação
nenhuma; é por isso que são anátema, no que respeita à Demarquia. Não
acreditam na natureza humana individual, mesmo quando baseada em laços
familiares.
Betha combateu um súbito e irracional ressentimento.
— Até agora tem dado resultado connosco. Mas nós também não
matamos qualquer desconhecido que nos venha pedir ajuda.
— Talvez nunca tivessem tido um bom motivo para isso, capitão.
Betha ficou rígida. Na face dele, e mesmo mais profundamente,
surgiram instantaneamente desculpas; ela viu refletir-se a frustração e a
desorientação de um estrangeiro apanhado num universo alienígena. Ele era
um homem sem família... E, agora, sem amigos, sem mundo e sem futuro. E
ela suspeitava que não era um homem habituado a cometer erros — ou sequer
habituado a compartilhar um fardo, ou a compartilhar a vida... «Não era
como Eric.»
— Peço desculpa, capitão. Por favor aceite as minhas desculpas. —
Abdhiamal hesitou antes de continuar. — E... Também quero pedir desculpas
pela minha falta de tato depois da reunião geral.
— Eu compreendo. — Viu o aborrecimento nos olhos dele; levantou-se
e não viu esse aborrecimento transformar-se numa espécie de necessidade. —
Se me permite... — Ela afastou-se, procurando uma desculpa, um escape. —
Tenho... Tenho de ver Clewell lá em baixo, na oficina.
— Importa-se que vá consigo? — A voz dele surpreendeu-a.
Betha hesitou, a meio da sala.
— Bem, eu... Não, porque me havia de importar?
Ele levantou-se, pondo Rusty no chão. A gata afastou-se, desgrenhada,
e atravessou a sala até onde Shadow Jack ainda dormia com a cara agora
enterrada na almofada. Rusty instalou-se na almofada ao lado dele e estendeu
uma pata protetora sobre os seus dedos fechados.
— Pobre Rusty. — Betha olhou-a. — Tem estado tão só desde que...
Estava habituada a tantas atenções.
— Poderia ter tudo o que quisesse em Mecca.
— Teria sido adorada. Não é a mesma coisa.
Betha desceu um lance da escada em caracol e esperou por ele no
patamar. Ele enfrentou cada degrau com uma força de vontade
impressionante: os joelhos quase se dobravam e a sua mão apertava
fortemente o corrimão. Parou ao lado dela com um ar aparentemente
descuidado, olhando por cima do corrimão de madeira polida; o vão
prolongava-se por quatro andares, perfurando a agulha oca que era o casco na
nave. Os círculos concêntricos de uma escotilha de serviço estavam lá no
fundo.
— É um bom exercício. — Betha mantinha-se encostada à parede,
evitando a visão do precipício.
Ele mirou-a com um sorriso inocente. A porta atrás dele estava
hermeticamente fechada e o piscar da luz vermelha projetava as sombras
deles no vão da escada.
— Que está atrás desta porta? — A mão dele apalpou a superfície fria
da porta.
— Aí era a sala de estar. Foi onde todos morreram quando sofremos os
estragos no casco. Não está pressurizada. Por favor, não toque em nada. —
Ela afastou-se dele, olhando as próprias mãos, e continuou a descer as
escadas, deixando-o para trás.
Quando Betha chegou à oficina, no quarto nível, ouviu o som de uma
serra manual.
— Pappy! — Ela gritou e ouviu os ecos espalharem-se no cilindro oco
que era a oficina.
— Estou aqui, Betha!
Ela seguiu os ecos da resposta, começou a andar e as solas de borracha
dos seus sapatos faziam um som abafado no chão de madeira. O ruído
irregular das botas polidas de Abdhiamal aproximava-se, mas ela não olhou
para trás.
— Jesus! Pappy, por que não usas os talhadores para fazer isso?
Clewell levantou os olhos do trabalho quando eles se aproximaram e
mirou o bloco de lasers em cima da bancada.
— Porque é um passatempo.
— O que significa que ficas aqui horas em pé, dando cabo das costas,
para fazer uma coisa que poderias programar e ter feita num minuto.
— A impaciência da juventude. — Pegou na serra e a ponta do bloco
de madeira soltou-se e caiu.— Acabei. — A mão dele subiu até ao peito mas,
vendo-a olhar, continuou a erguê-la até ao queixo.
— Espertinho. — Ela olhou ofendida, com as mãos nas ancas. — Eu...
Hum, pensava que ias verificar as minhas estimativas sobre a possibilidade
de remendar aquele buraco no casco...
— Também fiz isso. Parece-me que as estimativas estão certas. Mas
agora não podemos fazer nada enquanto estivermos sob uma gravidade. —
Olhou para ela de uma forma estranha.
Abdhiamal curvou-se para apanhar a ponta do bloco desperdiçada e
apalpou a sua superfície rugosa.
— Diga-me, que é esta coisa? É fibrosa.
— É madeira. Matéria orgânica. Vem do tronco das árvores — disse
Clewell. — Para ser mais exato, é carvalho-falso. É duro, mas trabalha-se
bem.
— O chão também? Tudo fibras de plantas... Madeira?
Ele acenou que sim.
— É mais fácil usá-la assim que convertê-la em plástico. O carvalho-
falso cresce dois centímetros por dia no mar Boreal.
A mão de Abdhiamal acariciava o metal gravado do tampo da bancada;
olhou para os talhadores e para o escudo de proteção que estava suspenso por
cima deles.
— Lasers? — A mão fechou-se, vazia, enquanto mirava a sala e
apontava com ar displicente para as largas portas cortadas no casco e que
abriam diretamente para o espaço... E para os eletromagnetos montados no
teto. Betha viu-o responder a si próprio às perguntas que não pusera.
— E para que serve este equipamento, este aqui?
Betha seguiu a direção da mão dele, vendo em pensamento o ruivo
Sean a trabalhar, destemidamente desajeitado; Nikolai ensinava-o com
paciência. Afastou este pensamento.
— Para reparar os microcircuitos do nosso equipamento eletrónico.
— Têm a vossa própria instalação de energia por fusão... Se quiserem
podem reproduzir qualquer peça desta nave nesta sala, não podem?
— Teoricamente. Há algumas que eu não gostaria de tentar fazer. A
viagem ia ser muito longa; tínhamos de estar preparados para tudo. —
«Exceto para isto.»
— Meu Deus! Se Park e Osuna pudessem dar uma olhadela a este
lugar!
— Quem? — Clewell soltou a madeira do torno.
— São «engenheiros». — O desdém esmagou a palavra.
— E que há de errado com os engenheiros? — Betha cruzou os braços
na cintura e arqueou as sobrancelhas.
— Que está certo neles? — Abdhiamal fez um gesto curioso. — São
um bando de canibais. Colocam remendos em cima de remendos,
desmancham uma coisa para com as peças fazerem outras três e então
desmontam uma destas...
— A mim isso parece-me rico de recursos.
— Mas eles regozijam-se com isso! Pensam que é criação, mas é
destruição. Se ao menos eles lessem um bocadinho, se tivessem um mínimo
de imaginação, saberiam o que é realmente a criação. As coisas que em
tempos conseguíamos fazer... Ninguém as conseguiu fazer melhor. Mas é
como querer ter vida no vácuo.
— Ou talvez tenha posto as prioridades erradas, Abdhiamal! Para que
se terão eles de torturar com o passado, pois tudo o que dispõem para
trabalhar são relíquias? Pelo menos estão a fazer qualquer coisa pelo povo e
não a viver à custa dos outros como alguns janotas! — Betha tirou-lhe o
bocado de madeira das mãos sentindo as farpas espetarem-se-lhe na pele.
Abdhiamal ficou surpreendido quando ela lhe virou as costas e se afastou a
grandes passadas na direção da porta, com a raiva ecoando.
Clewell sorriu ao ver a expressão atônita de Abdhiamal.
— Abdhiamal, acabaste de dizer isso tudo a uma engenheira.
Abdhiamal estremeceu.
— Nunca devia ter saído da cama... Há dois megassegundos. —
Estendeu a vista pela vastidão da sala vazia. — Parece-me que digo sempre o
que não devo à... Sua mulher. Pensei que ela era piloto.
Clewell escutou o som dos passos de Betha a desaparecer à medida que
subia as escadas. Tentou perceber o novo fardo que ela trouxera de Mecca —
que se mostrava nos seus olhos e em cada uma das suas ações, e que ela não
podia compartilhar nem sequer com ele..
— Era engenheira em Alvorada, antes de ser escolhida para capitanear
a Ranger. Há partes nesta nave que foram desenhadas por ela: trabalhou na
unidade de propulsão. — Viu novamente surpresa nos olhos escuros de
Abdhiamal. — É a primeira nave espacial para que tivemos recursos desde a
Baixa.
— Baixa?
— Fome... Emergência. — Surgiram-lhe memórias de um passado de
dureza e sofrimento, com demasiada facilidade, arrastadas pela ainda fresca
memória da perda recente. Uma enorme fadiga obrigou-o a encostar-se à
bancada. Afastou o bocado de madeira para o lado imaginando o seu próprio
corpo como uma bandeira antiga batida pelas tempestades e decadente.
Suspirou. — Em Alvorada, pequenas alterações da atividade solar ou
perturbações da nossa órbita podem significar desastre. Quando eu era
rapaz... No último quarto do meu décimo ano... Entrámos num «período
quente»... — Viu a camada de gelo da face noturna a fundir-se e icebergues
desgarrados obstruindo as águas do mar Boreal. O próprio mar subira meio
metro, inundando indústrias costeiras vitais; as searas apodreceram nos
campos por causa do excesso de chuvas. Vira o seu pai matar uma ninhada de
gatinhos porque não tinha nada com que os alimentar. E ele chorara apesar de
o seu próprio estômago vazio doer por falta de alimento. «Ainda, depois
destes anos todos...» — O clima levou anos a estabilizar-se, passou a maior
parte da minha vida até que as coisas voltassem ao «normal». Neste momento
estamos numa Alta e Uhuru está estabilizado... São os nossos vizinhos mais
próximos; originalmente este voo estava planeado para lhes dar ajuda. Foi
por isso que tivemos possibilidade de arriscar a Ranger para vir ao Céu. —
Sentiu o vento cortante sobre a neve do glaciar no lado escuro, onde o céu
cintilava com estrelas como se fosse gelo estilhaçando-se. — É por isso que
não nos podemos dar ao luxo de permanecer aqui. Mesmo que voltemos a
Alvorada de mãos vazias, pelo menos terão a nave.
Abdhiamal abanou a cabeça.
— Estou a compreender. Já disse à... Sua mulher, ao capitão Torgussen,
que desejo fazer tudo o que puder para vos ajudar a voltar para Alvorada...
Para o próprio bem do Céu. Da maneira como as coisas estão a correr, a
vossa permanência aqui vai fazer o Céu em pedaços e não uni-lo... — Por um
momento Abdhiamal fez Clewell lembrar-se de alguém, mas a imagem
dissipou-se.
Avaliou, surpreendido, as palavras de Abdhiamal — e mais ainda
surpreendido por descobrir que acreditava nelas. «Teremos encontrado um
homem honesto?»
Juntos encontraremos coragem.
A nossa canção nunca terá fim...
— Que é isto? — Disse Abdhiamal.
— Bird Alyn. — Clewell ouviu a música suave e vacilante subir do
laboratório de hidropónica. — Betha ensinou-lhe alguns acordes na guitarra;
eu ensinei-lhe mais algumas canções enquanto estávamos... À espera. —
Ouviu Bird Alyn dedilhar as notas como se arranhasse a guitarra. — Não sei
se Claire aprovaria, mas as plantas parecem apreciar a sua sinceridade. —
Sorriu. — Não o que se canta ou como se canta, mas como nos faz sentir.
Abdhiamal sorriu educadamente. O seu olhar passou pelo tampo
riscado da bancada e pelo chão, inspecionando de novo a sala; o sorriso
cresceu.
— Sabe, por vezes tenho a sensação estranha de estar a viver num
sonho; que, de algum modo, me esqueci de como me acordar a mim próprio.
— Um traço de desespero aflorava-lhe a voz.
— Bird Alyn disse-me a mesma coisa. Com a diferença que eu penso
que ela queria mesmo dizer isso.
— Vinda do Cinturão Principal, provavelmente ela sente-o... Talvez eu
também o sinta. — Abdhiamal aclarou a garganta fazendo, embaraçado, um
ruído estranho. — Welkin, gostaria de lhe fazer uma pergunta pessoal. Se não
se importar.
Clewell riu.
— Na minha idade não tenho muito que esconder. Pergunte.
Abdhiamal fez uma pausa.
— Acha... Difícil receber ordens da sua esposa?
Clewell afastou-se da mesa, endireitando-se.
— Porque havia isso de me fazer qualquer diferença?
Abdhiamal olhou-o estranhamente.
— Francamente, nunca encontrei uma mulher em que confiasse o
suficiente para lhe deixar tomar as decisões por mim.
Clewell recordou o que vira nos monitores sobre a sociedade da
Demarquia e percebeu porque é que para Abdhiamal isso poderia parecer
estranho.
— Betha Torgussen foi escolhida para comandar a Ranger porque era a
mais qualificada e mais bem dotada para tomar decisões rápidas. Todos
concordámos com a escolha. — Apertou as maxilas do torno da bancada, sem
saber se estava divertido ou aborrecido. — Responda-me também a uma
pergunta pessoal: que pensa da minha mulher? — Observou uma reação
instintiva surgir e desaparecer antes de chegar aos lábios de Abdhiamal. «Um
homem honesto...»
— Não sei. — Abdhiamal arqueou ligeiramente as sobrancelhas, talvez
para si próprio. — Mas tenho de admitir que ela tomou, desde que a conheço,
decisões melhores do que as minhas. — Deu uma risada. — Mas escolheu o
espaço em vez de... — Os olhos dele voltaram-se para Clewell mais uma vez
cheios de dúvida e de confusão.
— Porque não tem a Demarquia mulheres no espaço? A minha
impressão sobre a vida dos Cinturanos foi sempre a de que todos fazem o que
bem lhes apetece. Homens e mulheres.
— Antes da guerra, talvez. Mas agora temos de proteger as nossas
mulheres.
— De quê? De viverem? — Clewell agarrou o bocado de madeira e
começou a mudá-lo de mão, agora mais aborrecido do que divertido.
— Da radiação! — Era a primeira vez que ouvia Abdhiamal erguer a
voz. — De lesões genéticas. As unidades de fissão que fornecem energia às
nossas naves e fábricas são demasiado sujas. A despeito de tudo o que
fizemos, o número de recém-nascidos defeituosos é vinte vezes maior do que
era antes da guerra.
Clewell pensou em Bird Alyn.
— E os homens?
— Podemos preservar o esperma. Mas não os óvulos.
— Vocês perderam mais do que pensam com essa guerra. —
Abdhiamal ficou silencioso e de face impávida. Clewell desapertou a pulseira
de couro, que fora um presente de despedida de um dos seus filhos, e tirou-a.
— Reconhece este símbolo? — Apontou para o desenho esmaltado no círculo
de cobre quando Abdhiamal pegou na pulseira.
— Yin e yang?
Ele acenou.
— Sabe o que ele significa?
— Não.
— Significa homem e mulher. Em Alvorada simboliza duas metades
iguais fundidas num todo biológico perfeito. Um ponto branco no preto, um
ponto preto no branco... Para nos lembrar que os genes do homem entram na
criação de toda a mulher e que os genes da mulher entram na criação de todo
o homem. Não somos homens e gado, Abdhiamal, somos homens e mulheres.
Os nossos genes cruzam-se: somos todos seres humanos. Vai ver que faz
sentido, se meditar um pouco no assunto.
— Estranho... — Abdhiamal tornou a sorrir, sem se comprometer. —
Não sei porquê, mas não pensei que o yin e o yang fizessem parte da herança
cultural de Alvorada.
— O seu povo e o nosso vieram ambos, inicialmente, da mesma velha
Terra. De início yin e yang pouco significado tinham para nós. Tínhamos
nessa altura muitos símbolos para nos separar. Agora só precisamos de um.
— Yin e yang e a rainha viquingue... — Murmurou Abdhiamal com um
sorriso lastimoso. — E Wadie no País das Maravilhas. Porque havia mais
homens que mulheres na sua... Família?
«Porque acontecia que era assim que funcionava.» Clewell quase lhe
respondeu com a verdade. Fez uma pausa.
— Meu filho, se tem de me perguntar porque é que um casamento
necessita de mais homens que mulheres, é mais novo do que eu pensava que
era. — Fez uma careta. — E não é porque eu estou já na curva descendente
da vida.
Abdhiamal recuou; a descrença perturbou-lhe o decoro. Estendeu-lhe a
pulseira.
Clewell negou-se a recebê-la.
— Fique com ela. Use-a... Pense no assunto, quando magicar na razão
por que somos estranhos para si.

***

Betha voltou à sala de controlo; Shadow Jack e Rusty ainda estavam, de


cabeças lado a lado, na alcatifa verde-relva. Passou cuidadosamente por eles
para se sentar frente ao painel de controlo e focar Discus no visor: um
pequeno crescente de prata como a meia-lua de uma unha do polegar. Aquilo
era tudo o que agora interessava, e nada mais. Levaria esta nave para casa,
desta vez seriam bem-sucedidos. Nada se devia intrometer no caminho desse
objetivo, nenhum homem, vivo ou morto, nenhuma memória...
A mão magoada ardia-lhe. Encostou-a ao frio do painel, deixando nele
uma mancha de sangue. O pensamento cruzou três anos-luz e meia vida até
ao pátio de uma fábrica no perímetro do Ponto Quente, inspecionando o ideal
tornado real. Tinha ido para o exterior para ver o seu primeiro projeto de
engenharia passar pela sequência da linha de montagem — incrivelmente
prateado sob a luz ofuscante do meio-dia, incrivelmente belo... Ela estava no
seu terceiro quarto do seu vigésimo ano, ainda saída há pouco tempo do
perímetro gelado. A dourada chuva de calor, o fustigar do vento seco do
deserto, a total desolação do perímetro entonteciam-na; o orgulho misturava-
se com a exaltação, e havia um certo estudante-trabalhador... Desejou que ele
estivesse a seu lado e lhe dissesse como o projeto era belo. E depois ele
perguntar-lhe-ia... Luvas ásperas agarraram-lhe os braços e fizeram-na virar-
se.
— Então, tentilhão, queres ficar cega? — Viu a adorada e bronzeada
face de Eric van Helsing a rir-se atrás da viseira do seu capacete. Agarrou-o
pelo acolchoado do seu fato térmico. — Dizem que os engenheiros são muito
renitentes em virem para o sol. É melhor voltares para dentro.
— Para um cientista social não aprendeste muito sobre motivação, Eric
van Helsing. — Zangada porque ele arruinara tudo — e porque, como uma
louca, esperara por ele — afastou-se, quase correndo, pelo pátio de cascalho
que nunca mais tinha fim, escapando-se para a fria e ofuscante escuridão do
edifício mais próximo. Parou imóvel no corredor, lutando contra as lágrimas,
e ouviu-o entrar pela porta...

Tu és a chuva, meu amor, a doce água


Correndo pelo deserto da minha vida...
Alguém entrou na sala; Betha sentiu o aroma de maçãs. Procurou a face
redonda de Claire e o emaranhado de cabelos dourados... E encontrou mais
uma vez Bird Alyn, magra, escura e desajeitada: uma dríade em camisola cor-
de-rosa e calças de ganga, com flores no cabelo... Agora era Bird Alyn e não
Claire, que cuidava da hidropónica.
Shadow Jack espreguiçou-se quando Bird Alyn se baixou a seu lado,
com rosetas rosa-escuras na face. Betha virou-se para o visor, escondendo um
sorriso.
—... Queres maçãs?
— Oh... Obrigado, Bird Alyn. — Ele riu, compenetrado. — Pensas
sempre em mim.
Ela perguntou-lhe qualquer coisa em voz baixa.
— Que se passa contigo? Não! Quantas vezes te tenho de dizer isso?
Vai-te embora, deixa-me sozinho.
Betha sentiu como que um murro no estômago. Ouviu Bird Alyn
levantar-se e fugir, tropeçando no aro da porta. Betha virou-se no assento
para encarar Shadow Jack, que, ajoelhado, olhou espantado quando ela o
ajudou a levantar-se.
— Talvez não seja nada que me diga respeito, Shadow Jack, mas que
diabo se passa contigo?
— Não se passa nada comigo! Pensa que toda a gente tem de ser como
você? Nem toda a gente o é; vocês são um bando de sujos perversos! — A
voz dele tremia. — Agoniam-me. — Saiu da sala e ela ouviu-o descer as
escadas muito depressa.
Betha ficou parada, segurando os braços da cadeira, imaginando onde
iria encontrar força para se erguer... Rusty encostou-se-lhe às pernas,
ronronando. Baixou-se com lentidão e pôs a gata ao colo, pensando no
significado e na promessa de um tempo em que o Céu não passaria de mais
uma estrela perdida entre as incontáveis estrelas perdidas no crepúsculo.
— Rusty, tu és tudo com que eu posso contar. Que faria eu sem ti? — A
pequena e rugosa língua de Rusty beijou-lhe duas vezes a palma da mão
numa suave carícia. — Oh Rusty — segredou —, tu tornas-nos todos avaros.
— Betha pôs-se em pé devagarinho e olhou para a porta vazia.

***

Como as águas de um mar de sonho havia sombras a mover-se sobre as


calhas húmidas e verdes. Bird Alyn soluçava encostada às frias barras
hexagonais do banco, tocado pelos dedos frágeis de um feno pendurado.
—... Não é justo, não é justo... — O amor dela era um tormento, porque
só se alimentava de sonhos. Ele nunca a tocaria, nunca lhe acariciaria o
cabelo... Nunca a amaria, e ela nunca deixaria de querer o seu amor.
Ouviu-o entrar no laboratório, e o soluçar ficou-lhe na garganta.
Endireitou-se, de olhos fechados com o queixo pingando lágrimas.
— Não chores, Bird Alyn. Desperdiças água. — Shadow Jack parou na
frente dela, mãos nas ancas, vendo as suas lágrimas cair.
Ela abriu os olhos mirando-o através das lágrimas e sentiu mais
marejarem-lhe os olhos.
— Temos... Muita água, Shadow Jack. — A miséria enrolava-se dentro
dela, apertando-a como uma mola tensa. — Não estamos em Lansing; aqui as
coisas são diferentes.
Os olhos dele negaram, mas não disse nada, carrancudo.
Bird Alyn voltou-se no banco.
— Mas eu não sou... Eu sei que não sou. Porque me acontece isto?
Porque sou tão feia, quando te amo tanto?
Ele deixou-se cair no assento ao lado dela, e tirou-lhe as mãos do rosto,
uma perfeita e outra deformada.
— Bird Alyn, não és! Tu não és... Tu és linda. — Ela viu a sua imagem
nos olhos dele e viu que era verdade. Ele continuou: — Mas... Tu não me
podes amar.
— Não posso evitá-lo... Como posso evitá-lo? — Os seus dedos
húmidos afagaram o rosto dele. — Amo-te.
Ele agarrou-a com brusquidão, colocou-lhe os braços sobre as costas e
apertou-a contra si. Ela estremeceu surpreendida, mas deixou de chorar e de
tremer.
—... Amo-te, Bird Alyn... Desde sempre... Não sabias?
As mãos dela lançaram-se em torno dos ombros dele, para o mergulhar
nos seus sonhos. A alegria invadiu-a como uma canção...

Deixa-me florescer primeiro para ti,


Deixa-me saciar a minha sede em ti...
— Não... — Ele recuou bruscamente, largando-a. Apoiou-se nas calhas
frias, respirando pesadamente. — Não. Não. Não podemos. — As mãos dele
cerraram-se.
— Mas... Amas-me... — Bird Alyn estendeu-se atônita e desapontada.
— Porque não podemos? Por favor, Shadow Jack... Por favor. Não tenho
medo...
— Que queres que eu te faça, engravidar-te?
Ela hesitou, abanando a cabeça.
— Isso pode não acontecer.
— Acontece, sabes bem isso. — Ele vergou-se para a frente. — Queres
sentir o bebé crescer dentro de ti e nascer... Sem mãos nem braços, ou sem
pernas, ou sem... Ter de o pôr no exterior, como a minha mãe fez? És
defeituoso! E nunca deixarei que isso te aconteça por minha causa.
— Mas não acontecerá. Shadow Jack: aqui, na nave, tudo é diferente.
Têm uma pílula, se quiserem nunca ficam grávidas. Deixar-nos-ão... — Bird
Alyn aproximou-se dele afagando-lhe o cabelo negro como a noite. — Uma
única pílula dura muito tempo.
— E que acontecerá quando se forem embora?
— Nós... Ficaremos sempre com... Recordações. Saberemos,
poderemos recordar como se sente, como é tocar e beijar e... Abraçarmos um
ao outro...
— Como posso manter-me sem te tocar de novo, sem te tornar a beijar,
sem te tornar a abraçar, se souber como é? — Os olhos dele fecharam-se
desesperados. — Não conseguirei. Se nunca mais te tornasse a ver... Mas
verei. Ver-te-ei cada dia até ao fim da minha vida; como poderei então parar?
Como poderás tu? Acontecerá.
Ela abanou a cabeça, suplicante, o rosto ardente e sem conseguir evitar
as lágrimas quentes que lhe queimavam os olhos.
— Não posso fazer isso, Bird Alyn. Agora não. Nem nunca. Não
poderia suportar o que seria de mim... O que seria de ti. Porque vimos nós
esta nave? Porque é que isto nos aconteceu a nós? Estava tudo tão bem até...
Até... — Apertou as mãos uma na outra, fazendo os dedos estalar.
Suavemente ela estendeu a mão até agarrar a dele; os dedos juntaram-
se, bronze ao pé de bronze. Por causa desta nave o mundo deles viveria... E
por causa dela nunca mais nada estaria bem na vida deles. Ouviu, algures,
água a correr como lágrimas; uma flor morta caiu entre eles, tocando nas
calhas estéreis.
Betha partiu em silêncio, tal como tinha chegado, e silenciosamente
subiu as escadas.
RANGER» (ESPAÇO DISCANO)
+ 2,70 MEGASSEGUNDOS

Discus, uma cornalina listada do tamanho de um punho, estava num


plano prateado: os anéis, quase encostados, eram uma película de luz em
fusão cortada por jorros de luz, espalhando-se na direção do visor. Wadie
flutuava no centro da sala de controlo, mantendo o pensamento concentrado
na silhueta que quebrava o fundo de esplendor: Neves-da-Salvação, orbitando
a trinta raios de Discus, para além dos gradientes mais impregnados de
gravidade; Neves-da-Salvação, que se chamara Bangkok nas cartas de
navegação do pré-guerra, era a maior destilaria dos Anéis. Era uma das cinco
que existiam, mas produzia dez vezes mais do que as outras; por um lado
porque as operações eram realizadas por uma bateria nuclear construída pela
Demarquia; por outro, porque podia enviar carregamentos usando um
acelerador linear, também pertencente à Demarquia, mas aqui muito mais útil
porque as distâncias eram menores. Os foguetes primitivos, a oxi-hidrogénio,
dos Anelanos eram naves-tanques desesperadamente ineficientes.
Recordou como era Neves-da-Salvação quando ali chegara com os
engenheiros da Demarquia: um cinzento infindável de neve e pedra; um frio
que penetrava nos ossos de um homem até ele já não se lembrar do que era
calor; uma pequena população cinzenta, um povo com espaço arrendado no
purgatório. Um povo fanático até ao ponto de insanidade, aos olhos da
Demarquia. Ele fora enviado para conseguir que demarcas e anelanos não
cortassem as gargantas mutuamente — enviado porque mais ninguém
qualificado desejara ir. Ali permanecera para ver que dois grupos
incompatíveis e desconfiados nunca esqueciam a sua meta comum: aumentar
o abastecimento de voláteis. E nos cinquenta megassegundos que passara
nesse exílio sinistro e solitário, acabara por conhecer alguns homens que só
podia considerar amigos e observara mais coisas da Grande Harmonia dos
Anelanos do que qualquer outro demarca. Acabara por compreender a vida
dos Anelanos, cronicamente marginal onde quer que fosse; por ver, quase
dolorosamente, o que os fazia suportar a sua ideologia coletivista e opressiva:
o saber que todos tinham de cooperar ou então não sobreviveriam...
A voz de Betha trouxe-o de volta ao presente. Focou os olhos no local
onde ela estava suspensa: frente ao visor, com o cabelo flutuando ao de leve,
livre da gravidade, com as mangas da camisa arregaçadas. Ficou imóvel, com
o presente a abafar o passado. Do conforto higiênico e colorido da sala de
controlo sobressaiu uma pobreza lúgubre que lhe fez subitamente parecer
frívola a simplicidade de Alvorada.
Alvorada... Poderia ele alguma vez compreender este povo tão
claramente como compreendera os Anelanos? Quanto tempo demoraria a
sentir-se à vontade com um povo que ofendia o seu sentido de propriedade de
todas as maneiras imagináveis? Cujo comportamento escapava a todas as
suas tentativas para o classificar tal como a água que nos escorre entre os
dedos... Quatro quilossegundos atrás tinha ido ao nível superior para arranjar
alguma comida e encontrara o capitão e Welkin na sala de jantar, assim como
Bird Alyn tocando guitarra. Estavam todos a cantar como se daí a quatro
quilossegundos não fossem cometer um ato de pirataria ou enfrentar uma
prova cujo desfecho significaria liberdade e vida para todos eles...

Juntos encontraremos coragem,


A nossa canção nunca terá fim...
Ou talvez, apercebeu-se de repente, eles cantassem porque estavam
demasiados conscientes e temerosos desse facto. Não o que se canta, ou
como se canta, dissera Welkin, mas como isso nos faz sentir. Subitamente,
consciente do seu próprio papel nessa prova, foi arrastado pela sala para se
lhes juntar por algo mais forte que a curiosidade... Só para ver a face de Betha
cerrar-se e perder o entusiasmo quando o viu; só para a ver levantar-se da
mesa, quebrando o ritmo da canção, e sair abruptamente da sala.
—... Não posso acreditar nestas leituras, Pappy. Acolá deviam estar a
ser fritos, mas não estão. Não há magnetosfera, nem blindagem contra as
radiações... Sabe alguma coisa acerca disto, Abdhiamal? — O capitão olhou-
o de relance, sem lhe procurar os olhos.
Ele olhou para além dela, para o visor.
— Apesar de tudo, aqui é o Céu, capitão. Os campos de radiação de
Discus são bastantes fortes, mas não atingem muito mais longe que os Anéis.
Esta foi uma das coisas que nos trouxe para este sistema... As rochas e as
bolas de neve em torno de Discus estão acessíveis como nunca tiveram em
torno do velho Júpiter. — Encarou-a nos olhos. — Não parece muito
preocupada com o facto de nós estarmos a fritar...
— Construímos boas blindagens em Alvorada, ou há muito tempo que
estaríamos fritos. — Ela cortou a conversa como o fazia sempre agora, e
olhou para Bird Alyn suspensa perto do teto por cima dela. — Bird Alyn,
procura-me a frequência local de comunicação. — A sua voz era calma.
Bird Alyn obedeceu e, dando um impulso no teto, desceu até ao painel
para apanhar uns auscultadores.
— Onde está Shadow Jack? — Perguntou Welkin.
Bird Alyn, sem tirar os olhos do painel, disse qualquer coisa inaudível.
— O quê?
—... Não sei... — Disse —... Pensa que não pode enfrentar... —
Encolheu os ombros. A sala encheu-se com estática quando ligou o receptor.
A estática converteu-se abruptamente em palavras. As palavras tornaram-se
mais claras quando Bird Alyn as sintonizou. — Aqui...
— Que estão a emitir?
— Penso que estão a falar com uma nave; uma nave-tanque. Ouvi dizer
«hidrogênio».
— Ótimo... Vamos então interrompê-los de forma rude. — O capitão
alcançou o botão de emissão. — Abdhiamal, tens a certeza de que eles
saberão quem nós somos?
— Absoluta. Nesta altura até mesmo os Anelanos tiveram tempo de
espalhar as notícias sobre o que aconteceu a esta nave. E se a propaganda
deles for tão extremista como é habitual, considerar-vos-ão carniceiros.
Respeitarão a vossa ameaça.
— Muito bem. — Molhou os lábios e premiu o botão. — Neves-da-
Salvação, Neves-da-Salvação, respondam...
O alto-falante guinchou irritado; Bird Alyn tirou os auscultadores da
cabeça.
— Quem é? Saia já desta frequência! Está em curso a docagem de um
carregamento misto. Vocês...
A mão do capitão apoiou-se no botão cortando-lhe a palavra.
— Digam-lhes que esperem, temos coisas importantes para vos dizer.
— Quem é?
— Aqui é... — Ela hesitou. —...a nave que a vossa marinha de guerra
atacou há dois megassegundos atrás... A nave do exterior. — Soltou o botão.
Não veio nenhuma resposta.
— Impressionou-os. — Wadie sorriu, sem qualquer ponta de humor.
Surgiu uma voz diferente, uma voz que era estranhamente familiar a
Wadie, ordenando à nave-tanque que se colocasse numa órbita de espera.
Welkin dirigiu-se ao painel de comando, ao lado de Bird Alyn, e um novo
segmento do visor irrompeu numa tempestade de estática.
— Estamos a receber uma banda larga. — Marcou uma sequência no
painel; o visor mostrou uma tripla imagem distorcida. Fez uma correção e
formou-se uma única imagem a preto e branco. Viram um rosto chupado,
estrábico, por detrás de uns óculos de aros metálicos; um homem de meia-
idade num casaco acolchoado e pesado e com um grosso gorro de malha. —
Estamos já a transmitir razoavelmente — disse Welkin. O capitão concordou,
parecendo ter a certeza da habilidade do velho.
— Que querem daqui? — A voz familiar correspondia a um rosto
familiar, rígido de irritação ou de medo. «De irritação...» Djem Nakamore era
demasiado teimoso e dogmático para tomar conhecimento de outra coisa.
Wadie saiu da linha de visão quando Nakamore olhou ferozmente para Betha
Torgussen.
A face dela endureceu, enfrentando Nakamore.
— Queremos mil toneladas de hidrogênio processado enviadas para a
nossa nave por uma trajetória que vos vou indicar. Se não cumprirem estas
ordens, destruirei a vossa destilaria e morrerão todos. — O tom duro parecia
surgir-lhe naturalmente; Wadie ficou surpreendido.
Observou a mudança nas expressões deles; os dois desconhecidos que
estavam atrás de Djem Nakamore mostraram francamente medo. Nakamore
endireitou-se, flutuando para fora do centro do visor.
— Não nos destruirão. Até a Demarquia os quereria matar se o
fizessem.
— Não somos do vosso sistema; vocês nada são para nós. A Demarquia
também não é nada. Espero que vão todos juntos para o Inferno depois do
que nos fizeram; mas Neves-da-Salvação chegará lá primeiro, a menos que
obedeçam às minhas ordens.
—...Eles falam a sério... — Ciciou uma voz ao fundo. Nakamore virou-
se de repente e cortou o som. Falou com os outros cujos olhos ainda estavam
fixos no visor, com os rostos tensos e a respiração condensando-se no ar frio
enquanto falavam. Nakamore tornou a voltar-se para o painel, situado baixo
de mais para se poder ver no visor, e ligou o som. — Não temos mil
toneladas de hidrogênio à mão. Nunca temos tanta quantidade e, além disso,
acabamos de enviar um grande carregamento.
Wadie negou.
— Nunca deixam que a quantidade armazenada seja tão baixa. A
produção é de quase três mil toneladas por megassegundo e têm pelo menos
quatro vezes essa quantidade em reserva para o caso de a destilaria ter de
parar para reparações.
O capitão virou-se para o olhar, cortando o som da emissão.
— Está assim tão familiarizado com o funcionamento da destilaria?
Wadie concordou.
— Já lho disse... Passei quase cinquenta milhões de segundos lá em
baixo. Vi montar a destilaria e vi-a começar a laborar. Sei o que ela é capaz
de produzir. E conheço aquele homem.... — Recordou o rosto de Djem
Nakamore e a cabeça calva tornada avermelhada pela luz de uma estufa
primitiva queimando metano; recordou a expressão divertida do meio-irmão
dele, Raul, quando estava de visita. Ouviu o silvo da água que, em pingos,
caía do teto e se tornava em vapor ao tocar a superfície engordurada da
estufa, enquanto esperava que Djem ponderasse a sua próxima jogada, tão
infantilmente previsível, que o faria perder a centésima, ou a milésima,
partida de xadrez a favor de Wadie. Teimoso, didático e desprovido de
imaginação... Honesto, correto e dedicado ao seu dever. Não um competidor,
como o próprio Djem lhe tinha tantas vezes dito, sem qualquer ressentimento,
para o espírito rápido e tortuoso de Wadie — mas mesmo assim demasiado
teimoso para continuar a tentar ganhar. Wadie ajustava os tapa-orelhas do
boné pesado, tirava uma mão do bolso para mover a rainha, xeque-mate —...
Conheço aquele homem. Force-o; não é... Suficientemente desleal para saber
que você está a fazer bazófia. E fará tudo para manter intacta a destilaria. —
Subitamente compreendeu que poderia ter acontecido ser Raul quem os
estava a enfrentar agora e contentava-se, para o bem de todos, por não ser ele.
Enquanto falava mantinha os olhos fixos ao longe, evitando a imagem do
visor brilhante e os olhos de Betha Torgussen.
O capitão teve um leve estremecimento antes de se virar de novo para a
imagem de Nakamore no visor.
— Não acredito nisso. Tem vinte e cinco mil segundos para nos dar o
hidrogênio ou ser destruído...
— É impossível!... Levará pelo menos uns cem mil segundos.
— Mentira — sussurrou Wadie, abanando de novo a cabeça. — Ele
está a tentar encurralá-la; a Harmonia Central mantém muitas unidades navais
neste volume de espaço e ele tem esperanças de que alguma delas chegue
aqui a tempo.
Concordando com ele, repetiu numa voz átona:
— Tem vinte e cinco quilossegundos. Sei que têm aí em baixo um
acelerador linear de alta capacidade. Use-o. Tomem nota das coordenadas...
— Indicou cuidadosamente os números.
Quando ela acabou de falar, Nakamore olhou para trás dela, irado e
batido, mas sem o revelar no rosto.
— Estás aí a dar-lhe as respostas, Wadie?
Wadie ficou imóvel... Sem palavras. Por fim deu um impulso no painel,
ficando no campo de visão de Nakamore.
— Sim, Djem, sou eu.
— Apanhámos a emissão dos debates da Demarquia... E vimos como te
baniram. Pensei que tu... — O rosto de Nakamore endureceu, com a ira justa
de um homem para quem a lealdade era tudo; com a dor de um homem traído
por um amigo. — Fomos loucos em não perceber o que tu e os teus...
Alienígenas da nave espacial tentariam. Porquê ficar só com mil toneladas de
hidrogênio? Porque não apanham todo?
— Mil toneladas é tudo quanto precisamos, Djem. E necessitamos
mesmo ou eu não te meteria nisto. — Sem combustível a nave espacial
encurralada e seria uma presa fácil para o primeiro grupo suficientemente
rápido para a alcançar. E então a Grande Harmonia, a Demarquia ou qualquer
outro grupo seriam a presa. Então as traições não seriam apenas bazófias.
Assim era o melhor; era a única escolha que lhe era possível fazer, a única
escolha sensata. Se ele pudesse apenas... Começou: — Djem, eu... — Mas as
palavras não saíram.
Nakamore esperou: os olhos negros mostraram-se impiedosos. De
repente inclinou-se para a frente para alcançar o painel.
— Traidor. — O seu rosto desapareceu e, com ele, a última hipótese de
asilo para um homem banido. No visor ficou apenas Discus.
O capitão ficou especado com o olhar fixo no visor e a boca cerrada,
como um frágil manequim dourado. Welkin olhou para Wadie, apologético
mas sem proferir palavra, salvando-o do embaraço de uma resposta
espirituosa que não conseguiria dizer.
—... Pensa que eles farão o que queremos? — Bird Alyn segurou a
ponta solta do seu cinto. — Que faremos se eles não o fizerem?
— Farão. — Wadie recuperou a sua voz e a sua compostura. — Em
cinquenta milhões de segundos Djem Nakamore nunca me ganhou uma
partida de xadrez.
— Foste perfeita, Betha. — Welkin voltou-se e os seus olhos fatigados
procuraram o rosto dela. — Eric não poderia tê-lo dito de forma mais
convincente.
— Se Eric fosse vivo, não estaríamos a fazer isto.
Wadie concordou, aliviado.
— Eu próprio quase acreditei que era verídica cada uma das palavras
que disse.
Ela riscou um fósforo.
— Que é que o faz pensar que não é verdade, Abdhiamal? — Betha
acendeu o cachimbo, enfrentando-o com a mesma dureza com que enfrentara
as Neves-da-Salvação. — Que têm feito os Anelanos por nós ultimamente?
— De facto. — Abdhiamal curvou-se tristemente, olhando para
Welkin. — Aprendi bem a lição... Nunca mais insultarei um engenheiro. —
Empurrou-se em direção à porta.

***

Betha viu-o desaparecer na escada, chocada com a frieza que lhe


impedira de pedir desculpas.
— Betha... Seria capaz... Vai realmente... Destruir a destilaria? —
Murmurou Bird Alyn com um ar infeliz.
Betha viu-lhe a cara assustada.
— Não, claro que não, Bird Alyn, nunca faria isso. Na realidade não
sou uma... Carniceira.
Bird Alyn concordou piscando os olhos e manobrou em direção à porta.
Clewell afagou a barba.
— Então porque agiste como se o fosses? Também foste demasiado
convincente para mim. Ou já não estás a representar?
A vergonha fez-lhe arder a cara, expulsando dela a frieza.
— Bem sabes que sim, Pappy. Mas o danado desse Abdhiamal...
Clewell ergueu um pouco a cabeça e desapertou o cinto de segurança.
— Ele não é assim tão mau... Para um «janota do diabo». Aguentou-se
muito bem com uma gravidade... Com tudo aquilo por que passou. —
Queria-lhe dizer que ela não facilitara muito as coisas a Abdhiamal.
— É um impostor; teve sorte em não se ter aleijado. — Betha olhou-o,
irritada.
— Ele é um homem orgulhoso, Betha. Pode ser que não se considere
como tal... Mas seja quem for que aguente ficar em pé sob uma gravidade e
sorrir enquanto a gravidade o faz em bocados, ou é leal... Ou tem a minha
admiração. De certo modo ele lembra-me...
— Ele não é, de modo nenhum, parecido com Eric.
As sobrancelhas de Clewell ergueram-se.
— Não era isso que eu ia dizer. Lembra-me tu própria. — Levantou
uma das mãos, fazendo parar a indignação que ela mostrava. — Mas já que
mencionaste isso, há qualquer coisa nele... Talvez um certo ar, ou mesmo
uma semelhança física. Talvez seja por isso que goste dele mesmo sem o
querer; talvez seja isso que te preocupa. Algo te preocupa.
— Oh, Pappy... — Levou a mão à boca até os anéis a magoarem. — É
verdade. Cada vez que olho para ele, tudo o que ele faz, recorda-me... Mas
ele não é Eric. Não é um dos nossos, é um deles. Como posso eu sentir-me
assim? Como posso parar de querer... De querer... — Tentou fugir, mas a
mão firme e rugosa de Clewell prendeu-lhe o pulso.
Clewell afagou-lhe o cabelo flutuante.
— Não sei, Betha, não sei a resposta. — Deu um suspiro. — Não sei
porque é que proclamam que a idade é sabedoria. Idade é apenas ficar velho.

***

Shadow Jack movia-se inquieto, encerrado no espaço extremamente


vazio do quarto onde dormia, perseguido pelo fantasma de um estranho:
manuais de economia, a letra de uma canção que não fazia sentido, uma
camisola tricotada à mão suspensa no meio do ar — a presença de um
homem morto espalhava-se por gavetas e armários na confusão de restos de
uma vida. Rusty subiu-lhe para os ombros e a sua muda aceitação suavizava-
lhe a vergonha do exílio. Acariciou-a distraído, ouvindo apenas o tiquetaque
do relógio: divisões sem significado marcando os segundos sem fim. Pensou
se conseguiriam apanhar aos Anelanos o que queriam; pensou como poderia
voltar a encarar Betha Torgussem... Pensou como poderia encarar o resto da
sua vida.
O pequeno rosto não humano de Rusty ergueu-se-lhe do ombro com as
orelhas espetadas.
— Bird Alyn? — Foi até à porta e viu Wadie Abdhiamal entrar noutro
quarto. Ouviu a voz de Abdhiamal, meio em sussurro: — Raio de mulher!
Seria até capaz de cuspir na face de Deus.
Shadow Jack moveu-se no vestíbulo e parou à porta de Abdhiamal,
imóvel.
— Que aconteceu, ela cuspiu na sua cara?
Abdhiamal virou-se e, por um momento, o seu rosto mostrou
exasperação. Alisou distraído a camisa de trabalho e suavizou a sua
expressão.
— Sim... Foi qualquer coisa semelhante.
— Que aconteceu lá em cima? Conseguimos o hidrogênio?
— Provavelmente... Porque não estavas na sala de controle?
Shadow Jack fez uma careta.
— Não podia. Eu... Eu chamei a Betha uma pervertida.
— Tu o quê? — Abdhiamal olhou-o não acreditando no que ouvia.
Shadow Jack agarrou o aro da porta para se ir embora, mas o desespero
fê-lo voltar.
— Posso... Falar contigo... De homem para homem?
Abdhiamal convidou-o a entrar com um gesto; o seu rosto mostrava-se
sério.
— Provavelmente... Acerca de quê?
Shadow Jack aclarou a garganta; Rusty saltou-lhe do ombro, subindo
como uma nave a decolar e avançou para Abdhiamal.
— Porque é que nunca se casou?
Abdhiamal riu, surpreendido.
— Não sei. — Olhou para a gata e estendeu a mão para a apanhar e pôr
sobre o peito. — Talvez porque nunca encontrei uma mulher que fosse capaz
de cuspir na face de Deus.
Os olhos de Shadow Jack ficaram muito abertos; e, ao olhar para
Abdhiamal, tentou imaginar qual dos dois estava mais surpreendido.
Abdhiamal tornou a rir, comprometido.
— Mas de qualquer modo duvido.
— Quer dizer... Disseste anteriormente que agora nunca te casarias.
Pensei que era... Por outra razão qualquer. — Dirigiu-se à porta.
— Era.
Fez uma pausa, ganhando fôlego para continuar.
— Viajei muito. Isso quer dizer que estive exposto a altos níveis de
radiação e a potenciais lesões genéticas. Temos meios de conservar esperma
de modo que os homens possam ao menos viajar e, mesmo assim, ter filhos
saudáveis. Mas com a pena que me deram, agora estou legalmente morto.
Destruirão o meu depósito de esperma. — Abdhiamal respirou fundo. — E
fui esterilizado.
Shadow Jack olhou-o, deixando sair as palavras.
— Seria tão feliz se fosse estéril! — Abanou a cabeça. — Não queria
dizer... Não queria dizer dessa maneira. Mas nós nunca nos poderemos casar,
Bird Alyn e eu, porque nem eu nem ela somos estéreis. Somos defeituosos.
Nunca poderemos ter filhos, mas poderíamos...
Abdhiamal coçou debaixo do queixo de Rusty.
— É uma operação simples. Não são capazes de a fazer em Lansing?
— Podiam... Mas não fazem. — A miséria esmagou-o como um peso.
— Se és materialista, presume-se que serás responsável pelos teus atos.
Presume-se que arcarás com as consequências, sem esperar que alguém o
faça por ti. Como a minha mãe, quando a minha irmã nasceu e lhe disseram
que era muito defeituosa... A minha mãe teve de a pôr no exterior... Nunca
mais consentiu que o meu pai lhe tocasse. — Olhou para as próprias mãos. —
Mas, de qualquer modo, a tecnologia médica é muito má. Às vezes chego a
pensar que eles não querem perder o pouco que resta.
A voz de Abdhiamal foi de uma gentileza profissional.
— Como foste julgado defeituoso? Para mim pareces-me saudável.
As mãos de Shadow Jack apertaram metal.
— Nessa altura talvez não fosse defeituoso. Mas a minha irmã era. E
eles precisavam de mais braços no exterior e, por isso, disseram-me que tinha
de trabalhar na superfície. É o que também te acontece se tiveres uma lesão
marginal, como é o caso de Bird Alyn. Foi onde a encontrei...
Onde descobrira como a vida devia ter sido outrora, vivida na beleza
dos jardins e não na frieza da pedra. E onde descobrira que a sua vida não
terminava só porque deixara a proteção das paredes de pedra; nem acabavam
o sentimento, a fé e a esperança. Mas passara demasiados megassegundos a
remendar a cobertura esfarrapada do mundo, demasiados megassegundos
numa nave contaminada... E não havia milagres para curar uma mão
estropiada ou para remendar o coração de um homem.
Shadow Jack bateu no aro da porta.
— Tudo me sai errado! Não queria chamar a Betha... O que lhe chamei.
Mas ela teve tantos maridos; até teve filhos! E isso quando Bird Alyn e eu
nem sequer nos podemos ter um ao outro... Põe-me doido. Betha perdeu tanto
e eu... Eu disse-lhe aquilo. Ajudou-nos depois de lhe tentarmos roubar a nave
como todos os outros...
— Tentaram? E ela perdoou-lhes?
Shadow Jack concordou, sentindo-se ridículo.
— Tudo o que tínhamos era um abre-latas... Acho que ela pensou que
éramos loucos.
— E... Disseste que ela tinha filhos? — Abdhiamal olhou para a larga
pulseira de couro que lhe envolvia o pulso.
— Sim. Ir para o espaço é para eles como... Como fazer outra coisa
qualquer. Não significa o fim de nada. — Mordeu a língua, ao lembrar-se do
que acontecera à tripulação da Ranger.
— Se ela te perdoou o tentares roubar-lhe a nave, espero que também te
perdoe por lhe chamares pervertida. Mais depressa do que me perdoará por
fazer comentários sobre os engenheiros.
Shadow Jack franziu as sobrancelhas, sem compreender.
O rosto de Abdhiamal empalideceu.
— Parece-me que nós os dois temos mais do que um problema em
comum. Aliás como todos os grupos no Cinturão do Céu têm os mesmos
problemas. E já nem tenho a certeza que haja uma solução simples para
qualquer de nós.
Shadow Jack virou-se e viu Bird Alyn no fundo do vestíbulo.
Encontrou os olhos dela que o arrastavam sem esperanças como as cadeias
inexoráveis da gravidade.
— Não há sequer soluções. Desculpa roubar-te tempo, Abdhiamal.

***

Wadie fechou a porta, levando ainda distraidamente a gata. Imaginou o


futuro de Lansing, o pesar e a morte nos seus jardins — e viu em Lansing o
futuro de todo o Céu... O futuro? O silêncio oprimiu-lhe os ouvidos,
ensurdecendo-o. O fim. A Demarquia era apenas mais um bocado de neve a
derreter-se. Não havia solução. Nada que ele alguma vez fizesse — nada do
que ele já tinha feito — afastaria a morte. Tentara fazer crer a si próprio que o
seu trabalho tinha alguma relevância e valor, que existia algo de criativo nas
suas negociações, uma força de união para manter o equilíbrio contra a
desintegração e a decadência. Mas estava errado. Sempre fora demasiado
tarde. Era o danado de um janota, vivendo à custa dos outros... E
desperdiçando a sua vida na ilusão de que estava a salvá-los a todos.
Desperdiçando a sua vida: deitara fora a última hipótese de ter uma vida sua,
um lar, uma família, um relacionamento real. E tudo o que ele fizera, fora e
acreditara tinha deixado de ter qualquer significado. Tinha sido tudo para
nada — e tudo seria nada no fim. Nada.
Rusty contorceu-se no seu abraço como uma criança impaciente. Ao
soltá-la o seu braço raspou na grelha do ventilador e a mão apanhou um
quadrado plano com um palmo de tamanho que estava preso na corrente de
ar. Uma fotografia — um holograma — de um homem e uma mulher,
banhados por uma luz ofuscante, parados em frente de uma habitação feia e
meia enterrada no solo. A mulher era Betha Torgussem, de cabelos
compridos enrolados em tranças. E o homem, alto, de cabelo preto e um rosto
magro e queimado do sol... Seria Eric? A voz dela chegou-lhe de repente,
num veículo em Mecca. «Eu... Eu pensei que era alguém que conheci.»
Wadie passou um dedo sobre a imagem. Fantasmas...
A voz de Betha Torgussen soou num alto-falante na parede informando
a tripulação de que Nakamore cedera.
«RANGER» (ESPAÇO DISCANO)
+ 2,74 MEGASSEGUNDOS

— Tudo bem, Pappy, os cabos estão seguros. Realmente ultrapassamo-


nos a nós próprios na precisão com que nos aproximámos desta carga!
Começa a puxá-la para dentro.
Betha levantou o queixo do botão do micro, prendendo-se com a mão à
segurança do cabo de aço preso à armação entre os cilindros de hidrogênio.
Sentiu o puxão brusco quando os guinchos começaram a puxar a última parte
do combustível em direção da luminescência brilhante da Ranger.
— Este é o último, Betha. — A voz de Clewell encheu-lhe o capacete,
sorrindo. Ela imaginou-lhe o sorriso e até o sentiu mesmo através do casco da
nave.
— É mesmo. Conseguimos, Pappy! Vamos conseguir!
Pela viseira blindada do capacete viu refletirem-se no casco de prata da
Ranger as cores de prata e rubi de Discus, subindo acima de um horizonte
verde sombrio enxameado de depósitos, marcado por um pequeno ponto
negro. A sombra de Neves-da-Salvação... Ou um buraco andrajoso rasgado
no brilho do metal. Olhou para longe, quase com tonturas, para a pequena
silhueta de Shadow Jack brilhantemente vestida, a mais de cinquenta metros,
na outra extremidade do conjunto de cilindros. E olhou o vazio; imaginou a
impiedosa atração da gravidade de Discus puxando-a para a noite sem fim...
Como sucedera antes a outros cinco. Fechou os olhos, agarrada ao cabo, e
abriu-os de novo para olhar a superfície sólida dos tanques e para Abdhiamal,
inapto e incomunicativo, no outro extremo do carregamento. Quase
mergulhava na proteção maciça da Ranger; em breve teriam feito todo o
trabalho. «Mais uma vez, só mais uma vez...» O suor molhava-lhe o rosto;
sacudiu a cabeça dentro do capacete. «Cos diabos, não cairás...»
— Betha! — Era a voz de Bird Alyn, elevando-se claramente sobre o
ruído de fundo do alto-falante do capacete. Betha viu-a: um mosquito atrás do
enorme guincho preso à pele da nave. — A carga não se está a aproximar!...
Abdhiamal, a sua ponta... A ponta do cabo... Está presa entre os tanques...
— Vou soltá-la.
— Abdhiamal, espere. — Betha viu-o desaparecer na ponta da carga e
deixou de ver o clarão do seu foguete de propulsão. — Pappy, solta já o cabo
da frente! — Pegou na sua unidade de orientação presa à cintura e propulsou-
se atrás dele até ao fim do mundo. Olhando, viu-o a pairar perto do centro da
roda de tanques com o cabo preso entre dois cilindros. Viu-o agarrar o cabo,
apoiar os pés e puxar — Abdhiamal, pare, pare— viu o cabo ficar livre... Viu
quando os tanques se moveram por baixo dela e a ancoragem do cabo se
soltou do casco, arqueando-se silenciosamente na sua direção como uma
cobra a atacar. Recuou desesperadamente, sabendo... sabendo...
— Clewell!
O rosto dela esmagou-se contra o vidro do capacete numa explosão de
estrelas quando o cabo a apanhou pelo peito atirando-a para longe da nave.
Lutou para respirar, sentindo o sangue na boca e os pulmões torturados pela
dor; viu a nave como um brilhante molinete sair do seu campo de visão;
escuridão, sangue e prata fundida, escuridão... Procurou o botão do foguete
de propulsão, mas as suas mãos estavam vazias. E estava a cair.
«Não...» Betha começou a gritar.

***

Wadie acabara de sentir o cabo soltar-se quando a voz do capitão o


alcançou, dizendo-lhe para parar. Endireitou-se, subitamente sem apoio,
olhando surpreendido — para ver o que tinha feito, ver os tanques ressaltar, o
cabo desprender-se como um chicote e atirar Betha para longe... Viu o
foguete dela voar livre, às voltas, como um simples clarão de luz.
— Oh, meu Deus... — Ouviu os gritos de Bird Alyn e Shadow Jack a
fazer eco ao seu próprio grito, mas nenhum som de Betha Torgussen; mandou
os outros ficarem onde estavam enquanto a perseguia na noite.
A imensidade do isolamento abafava-o, enchendo como areia a
desolação negra-e-brilhante, arrastando-a e empurrando-o para trás... Tal
como o isolamento que ele próprio construíra o afastara da verdade durante
toda a sua vida. Aproximou-se devagar da forma espiralada que era Betha,
agonizantemente devagar, apenas alguns centímetros em cada segundo...
Vendo na sua imaginação um fato dilacerado, um cadáver gelado, com o
rosto pálido e imóvel acusando-o mesmo após a morte pela hipocrisia dos
anos que desperdiçara. E, no entanto, desejando, mais do que jamais desejara
alguma coisa na sua vida, encurtar o fosso entre eles, e ver em vez disso que
não era tarde de mais...
E, após um tempo tão longo como a sua vida, a sua mão enluvada
agarrou um tornozelo. Puxou-a para ele e usou a sua unidade propulsora para
parar a queda. Apanhou-lhe o capacete entre as mãos, sentiu-a agarrar-se
fracamente a ele, enquanto ele procurava ver-lhe o rosto atrás do vidro
silencioso e coberto de vermelho. Repetindo, louco de alívio:
— Betha... Betha... Betha... Está bem?
O rosto enublado dela caiu para a frente e o queixo premiu o botão do
micro.
— Eric... Oh, Eric. — Ouviu-a soluçar. — Não me deixes ir... Cairei...
Não deixes, não deixes... — Os braços dela apertaram-no convulsivamente, e
o silêncio formou-se de novo entre eles.
Ele bateu no vidro temperado:
— Não deixarei... Está tudo bem... Não a deixarei ir.
A superfície dos Anéis de Discus cegava-o com a sua frígida glória, tão
imutável como a morte; virou-lhes as costas, e começou a avançar em direção
à nave pequenina, cruzando o negro deserto de areia da noite. Ela manteve o
rádio silencioso; ele não tornou a procurar o rosto dela atrás do vidro
vermelho de sangue, respeitando a privacidade da sua mágoa, sentindo os
fantasmas de cinco seres humanos moverem-se com eles. E, por fim, ouviu a
voz dela dizer-lhe o seu nome, agradecendo-lhe e tornando-o a dizer...
— Que aconteceu?
— Ela está bem?
— Betha, está bem?
As vozes de Shadow Jack e Bird Alyn ressoaram no seu capacete
quando os encontrou, os seus rostos cobertos virados para Betha e estendendo
para ela as mãos enluvadas.
— Está ferida. Ajudem-me a levá-la para dentro. — Ela pouco se
mexeu quando a seguraram e manteve-se em silêncio enquanto passavam a
comporta de ar.
Entraram na sala de controlo ainda com as mãos dela rigidamente
agarradas ao fato dele. Wadie olhou para o painel procurando Welkin;
clareou a viseira, subitamente consciente que nada se mexia.
— Welkin? — Viu uma mão imóvel sobre o braço da cadeira, e sentiu
um aperto na garganta.
Betha ergueu a cabeça como estivesse a ouvir e não pudesse responder.
Deixou de o agarrar e empurrou-o.
— Pappy? — A sua voz tremeu e ela curvou-se no ar com as mãos a
apertar o estômago. — Pappy... Estás aí? — Ouviu um suspiro quando tentou
levantar as mãos. — Alguém... Tirem-me o capacete. Não consigo ver.
Pappy?
— Betha... — Começou Shadow Jack, mas parou.
Bird Alyn avançou para soltar o capacete de Betha, e levantou-a
devagar, recuando perante o rosto coberto de sangue.
Mas Betha já se tinha virado, abanando a cabeça para clarear a sua
confusão, puxando distraidamente pelas luvas. Ficou especada quando viu a
mão pendente do velho.
— Oh, Jesus. — A mão dela voou, agarrando-se ao fato de Bird Alyn,
procurando um apoio. Bird Alyn colocou um braço em torno dela, ajudando-a
a atravessar a sala. Wadie seguiu-as.
— Pappy... — A voz dela apagou-se quando chegou ao pé dele.
Welkin abriu os olhos quando Betha lhe tocou a face, focando
incompreensivelmente, com a mão direita carregando no peito. Ela riu, ou
soluçou, afagando-lhe o ombro.
— Graças a Deus! Graças a Deus... Pensei... Estavas tão frio...
— Betha. Estás...
— Estou bem. Estou ótima. — Colocou uma mão tremente na própria
face e olhou os dedos ensanguentados. — Apenas... Sangue no nariz. Que...
Que aconteceu?
— Dor... No peito, parecia que estava a ser esmagado; desceu-me pelo
braço... Deve ser o coração. Tinha medo de me mexer. Quando vi no visor...
O que te aconteceu...
— Não. Não penses nisso... Já passou. Vamos conseguir, Pappy. Ainda
vamos conseguir fazer. Fecha os olhos, não te mexas, não te preocupes,
descansa. Nós cuidaremos de ti. — Ela conseguiu sorrir, com mais sangue
escorrendo-lhe pelo queixo e a mão acariciando suavemente o rosto dele.
— Não seria melhor levá-lo para a enfermaria? — Wadie, ao lado dela,
hesitou, forçando as palavras a sair.
— Não. — Welkin abanou a cabeça com os olhos fechados. — Ainda
não. Acabem primeiro o trabalho.
— Ele está bem. De qualquer modo não o devemos mover ainda.
Graças a Deus que estamos em gravidade zero... — Betha tirou um lenço de
um compartimento sob o painel, originando uma pequena tempestade de
papéis a flutuar. Limpou o rosto e, estremecendo, cuspiu com cuidado. Wadie
viu-a novamente controlar os movimentos, viu a dor, e o corpo dela pender
quando saiu da vista de Welkin. Bird Alyn recuou até ficar ao lado dela, de
boca aberta; Betha estremeceu, endireitou-se e sacudiu a cabeça. — Tudo
bem. Pappy disse o que temos de fazer. Vamos acabar o trabalho. Nada nos
fará parar agora! Eu trabalharei com o guincho. Bird Alyn: volta para o
exterior... E verifica se a carga está segura. Shadow Jack, estabelece uma
carta de navegação para Lansing. Diz-me só o que precisas de saber, eu
depois verificarei os teus cálculos... Abdhiamal...
Os olhos dele encontraram os dela, lutando contra o que esperava ver.
— Mantenho-me fora do seu caminho?
Com o rosto impávido ela disse:
— Vá à enfermaria e traga-me uma seringa de analgésico para Clewell.
Estão já cheias e prontas, no estojo de primeiros socorros. — Agarrou-se às
costas de uma cadeira e sacudiu a cabeça. — Traga antes duas seringas. E
depois... — Os olhos dela trespassaram-no —... Mantenha-se fora do meu
caminho, Abdhiamal!
«GRUSINKA-MARU»
(EM TRÂNSITO. DA DEMARQUIA PARA DISCUS)
+ 2,75 MEGASSEGUNDOS

—... E como tencionas explicar o que o teu homem fez agora,


MacWong? Deve ter sido ele que indicou aos estrangeiros como conseguir
aquele hidrogênio. Agora tem a certeza de que não podemos apanhar a nave
espacial antes de ela abandonar este sistema. — Esrom Tiriki movia-se
descuidadamente no espaço superpovoado da sala de controlo da nave.
— Já não é «meu homem», demarca Tiriki. Foi declarado traidor —
repetiu MacWong com enfado. — «É um traidor, para minha grande
surpresa. Porquê? Vingança? Uma hipótese razoável...» — De qualquer
modo, ele também não entregou a nave espacial aos Anelanos.
— Mas tu disseste que ele o faria.
— Era uma hipótese razoável.
MacWong sentiu uma tensão desusada que lhe apertava os músculos do
pescoço — causada pela aceleração da nave e pelo efeito que o desconforto
estava a ter em todos os outros. Lamentou a má sorte que fizera das
Destilarias Tiriki um dos proprietários desta nave de fusão, e permitira a
Esrom Tiriki estar aqui como seu representante. Tiriki — e a sua companhia
— sofrerá uma humilhação considerável quando os seus planos pessoais em
relação à nave foram postos a nu; até os dois representantes colegas de Tiriki
começaram a mostrar a sua reprovação ao perderem a calma. MacWong
também lamentava que Tiriki não se controlasse o suficiente para sofrer em
silêncio.
O representante da Nchibe tornou a solicitar a atenção indesejada de
Tiriki, e MacWong flutuou passando por um homem da informação,
bocejando e bajulando, vestido com a libré de Nchibe. Tinham captado a
resposta dos Anelanos e enviaram-na para a Demarquia — como o faziam, e
continuariam a fazer, em relação a toda a informação crucial surgida durante
a perseguição. O povo, o deus volúvel a quem ele oferecera Wadie
Abdhiamal e outros bodes expiatórios em sacrifício, até mesmo ali se
mantinha de olho nele. Mas agora, pela primeira vez, o povo mantinha-se em
silêncio, porque qualquer resposta também seria captada pela nave espacial e
revelaria a perseguição. Possivelmente, pela única vez na sua carreira, ele
tinha uma margem na tomada de decisões; ainda não estava certo de como se
podia dar ao luxo de a apreciar.
Porque a próxima decisão que teria de tomar — e mais tarde responder
por ela — era se deveriam continuar a perseguir a nave espacial ou se
voltariam à Demarquia. E a decisão não era óbvia como parecia... A nave
espacial carregara mil toneladas de hidrogênio — mais do que o suficiente
para escapar do sistema, segundo o que Osuna lhe dissera. Combustível
suficiente para aumentar criticamente a sua velocidade e manobrabilidade.
Tinham eles feito aquilo também por vingança? Fosse como fosse, duvidava
disso. Já antes haviam destruído uma nave; desta vez poderiam destruir
muitas mais... Poderiam ter destruído a destilaria principal. Mas não o
fizeram. Experimentou uma curiosa mistura de fascínio e alívio.
Mas, da primeira vez que a nave espacial penetrara no sistema, tinha
ido para Lansing; e havia um lasingano a acompanhar a mulher em Mecca.
Se a sua tripulação tivesse feito alguma espécie de acordo com Lansing, isso
explicaria muitas coisas. E significaria que a nave não se dirigiria diretamente
para fora do sistema; de que ainda havia uma hipótese de as naves da
Demarquia a apanharem.
MacWong viu o piloto da nave aproximar-se de Tiriki e dos outros e
interrompê-los com deferência. E que aconteceria se apanhassem a nave
espacial? Deu uma olhadela à vigia ao seu lado vendo o rasto longo e violeta
do exaustor da outra nave a atravessar a noite. Quando o momento chegasse
estariam a milhões de quilômetros da Demarquia — estas três armadas e os
homens que as controlavam: homens ambiciosos, homens gananciosos pelo
poder, homens como Esrom Tiriki. Não importava o que o povo decidira em
relação à nave espacial: nessa altura não haveria maneira da Demarquia
forçar estes homens a obedecer-lhe... E ninguém seria suficientemente rápido
a compreender o facto. A sua proximidade de Tiriki e o seu isolamento em
relação ao povo fizera-lhe compreender o que Abdhiamal soubera
instintivamente desde o início: que a nave espacial podia ser a salvação, mas
podia também, em vez disso, transformar-se no isco de uma armadilha
mortal.
Suspirou. «Sempre foste um homem melhor do que eu, Wadie; e esse
foi o teu problema...» E talvez este facto explicasse melhor a traição de
Abdhiamal do que o fazia qualquer especulação sobre vingança. Ficara mais
do que penalizado por fazer de Abdhiamal um homem sem mundo... Mas no
fim talvez tivesse sido a melhor decisão que jamais tomara. E talvez agora
tivesse a oportunidade de pagar, pelo menos em parte, a Abdhiamal,
mantendo a boca calada sobre o que sabia, apesar de ser o orador do povo.
— Demarcas... — Os três homens da companhia e o piloto olharam
para ele; viu um homem focar as lentes de uma câmara. — Penso que todos
nós já sabemos que falhou a nossa tentativa para alcançar a nave espacial.
Mas pelo menos não caiu em mãos inimigas. Está a sair deste sistema;
podemos por isso poupar um maior dispêndio dos nossos próprios recursos e
voltar para casa...
— Talvez ainda a não tenhamos perdido, demarca MacWong. — Tiriki
mostrou-lhe um sorriso todo delicado, ainda mais desagradável que a sua
anterior petulância.
— Acabam de nos ser dadas algumas informações novas a respeito da
nave espacial. — O sobrinho de Estevez apontou para o piloto da nave. —
Lin-piao diz que a nave não está a sair do sistema; voltou para trás na direção
do Cinturão Principal.
— Para Lansing — disse Tiriki —, estão a voltar para Lansing.
— Ainda temos hipóteses de a apanhar; Lin-piao afirma que ela está a
acelerar a apenas um quarto de uma gravidade.
MacWong hesitou vendo os três unidos, finalmente, no propósito de
continuar a missão. E, por detrás deles, toda a Demarquia observava num
julgamento silencioso. A Demarquia sabia o que eles sabiam e também sabia
que ele, MacWong, instigara esta perseguição. O povo não sabia tudo — mas
tinham alguma vez aprendido tanto? Ele ainda podia pressionar a favor de
uma retirada... Mas agora eles aceitá-la-iam?
— Se o povo sente que não vale a pena um esforço suplementar na
perseguição à nave espacial e isso não é desejo da Demarquia, espero que nos
comuniquem. — Falou de frente para as câmaras com uma ênfase cuidadosa.
— Entretanto... — Sentiu o intuito de sete pares de olhos e a pressão de mil
outros atrás deles. — Tendo em consideração esta nova informação, parece-
me que devemos continuar a nossa missão. Tenho pessoalmente alguns dados
relativos à entrada da nave no nosso sistema e às suas necessidades de
combustível, que apoiam a teoria de que se estão agora a dirigir para Lansing.
— «Desculpa, Wadie.» Observou os rostos relaxarem-se, mostrando
satisfação e complacência. «Mas é minha função dar ao povo o que ele quer.»
Alinhou com eles, sorriso com sorriso e satisfação com satisfação.
— Demarcas... — O piloto puxou com ar importante pelo debrum do
seu casaco dourado da companhia. — Quando acabarmos de alterar o rumo
podemos mesmo assim não ser capazes de a alcançar. Mesmo que a nave
espacial só possa suportar um quarto de gravidade, quando desacelerarmos
para Lansing...
O piloto parou a medida que a desaprovação se espalhava entre eles
como uma doença. MacWong avaliou o seu significado como o faria um
médico; e prescreveu o remédio que ele sabia que iria curar qualquer lesão na
sua própria credibilidade.
— Penso que isso não poderá tornar-se um problema, demarcas. Se
consideraram a seguinte linha de ação...
«RANGER» (EM TRÂNSITO DE DISCUS PARA LANSING)
+ 2,96 MEGASSEGUNDOS

Wadie caminhou pelo corredor até ao quarto de Betha, devagar por


causa de um quarto de gravidade e da fadiga provocada pelo trabalho no
espaço... E pelo mesmo emaranhado de emoções que agora o impedia a
enfrentá-la. A recordação do céu discano, obscurecido com destroços
flutuando, brilhante e cheio de luas em crescente, perseguia-o: a consciência
de uma vitória dispendiosa ganha e quase perdida de novo por causa dos seus
próprios atos; duas vidas, o que restava da tripulação de Alvorada, quase
perdidas — e com elas uma parte de si mesmo que ele apenas começava a
descobrir...
Chegou à porta aberta e parou à entrada, voltando novamente ao
presente.
A cabeça de Rusty surgiu subitamente de um casulo na roupa da cama e
ficou a observá-lo, reconhecendo-o como alguém familiar, enquanto ele
entrava no quarto. O capitão estava sentado à secretária, de costas para ele,
com a atenção mergulhada nos mostradores e papéis espalhados à sua frente.
Chávenas de café vazias enchiam o tampo da secretária; na parede, por cima
da cabeça dela, havia um cartaz: DEZ ANOS ATRÁS NEM SEQUER
CONSEGUIA SOLETRAR «ENGENHEIRO», E AGORA SOU UM. Ele
sorriu até que a ouviu suspirar num tom que era um pequeno gemido. Nos
seus olhos formou-se a visão das costelas dela, partidas e ligadas, e de uma
nódoa negra do tamanho do braço dele.
Voltou-se abruptamente para tomar a sair do quarto e viu uma
fotografia na parede, colocada sobre uma larga seta verde a apontar BAIXO:
reconheceu Betha Torgussen e Welkin e... Eric, desta vez barbudo e a sorrir.
Ao pé deles estavam mais duas mulheres, dois homens e sete crianças
enfiadas em roupas grossas; todos pálidos, a rirem-se, sobressaindo a três
dimensões, alegremente desalinhados contra um fundo de neve. Uma família
que sabia conviver... E, de algum modo, com a febre da avareza fútil que
ardia em todo o Céu, o seu convívio não parecia já tão alienígena ou tão
bizarro...
Rusty espreguiçou-se na cama, fechando os olhos e ronronando
inquisidora. Betha virou-se na cadeira, controlando uma careta de dor, os
seus olhos rápidos e nervosos questionando a sua presença.
— Betha... Gostaria de lhe falar, se não se importa. Penso que há
algumas coisas que preciso de lhe dizer. — Atravessou o quarto.
— Está bem, Abdhiamal. — Os olhos dela fixaram-se no pulso dele,
onde estava a pulseira de Clewell. — Sim, talvez o deva fazer. — A
expressão do rosto dela mudou. — Mas primeiro diga-me como está Clewell.
Como suporta ele a aceleração?
— Bastante bem, segundo me parece. Está muito fraco, mas não é
louco... — «E ninguém é louco.» Invadiu-o uma súbita admiração pelo velho.
— Suponho que eu não teria a coragem de estar aqui se não acreditasse que
ele vai ficar bom... Mas como está? Que está a tentar provar? Por que diabo
não está a descansar... — Parou, não sabendo bem com quem estava zangado.
A boca dela, ferida, apertou-se.
— Porque prefiro estar dorida do que morta. E, tem razão, estou a
tentar provar qualquer coisa. Apontou para o terminal do computador; a sua
expressão suavizou-se. — Eu... Não lhe devia dizer nada acerca disto, mas...
Detectei um rasto de hidrogênio e hélio, desviado para o vermelho pelo efeito
de Doppler; penso que é um rasto de fusão de hidrogênio apontado na direção
oposta à nossa. Neste momento está ainda trinta milhões de quilômetros atrás
de nós... Mas estamos a ser seguidos.
— Pode detectar um rasto afastado essa distância? Os vossos
instrumentos são melhores que os nossos. — Ficou de novo impressionado.
— São? Ainda bem... Mas com estas latas de combustível amarradas ao
casco não nos podemos mover mais depressa do que quem está atrás de nós.
O que preciso de saber é se as naves vêm da Demarquia ou de Discus; e, se
são da Demarquia, qual pensa ser o seu objetivo. Ainda quererão apanhar a
nave, ou pretendem apenas destruir-nos?
Ela inclinou-se sobre a secretária, e os tendões dos braços contraíram-
se levemente.
— Uma boa pergunta. As naves são da Demarquia. Mais ninguém as
possui; os Anelanos têm apenas foguetes de oxi-hidrogênio. As nossas... As
«naves de fusão» da Demarquia são propriedades das companhias mais
poderosas, mas em épocas de «emergência nacional» a Demarquia comanda-
as. O que quer dizer que a história de MacWong sobre eu vos entregar aos
Anelanos foi bem aceite... — Parou. — Ele sabe que é uma mentira
descarada; e, conhecendo-o como eu o conheço, penso que está aqui porque
ainda quer esta nave, e que essa foi a única maneira que conseguiu imaginar
para obter as naves para a perseguir.
— Mas, nesse caso, ele também deve saber que ainda lhe podemos
escapar, agora que temos o combustível; mesmo que paremos em Lansing. Se
tiverem de dar uma volta para acompanhar a nossa desaceleração, já nós
teremos escapado muito tempo antes de nos alcançarem. Se não desaceleram,
ultrapassar-nos-ão... E, nesse caso, tudo o que poderão fazer é destruir-nos na
passagem. — Os dedos dela tamborilavam nervosamente no tampo.
Ele concordou.
— Ele também sabe disso. Mas quer esta nave intacta para a
Demarquia, e ele não é do tipo dos que escavam quartzo pensando que é gelo.
Planeou decerto qualquer coisa, mas eu não faço ideia do que seja.
— Pelo menos sabemos onde estão, e eles não sabem que sabemos. Se
estavam a contar com a surpresa para nos apanhar numa armadilha,
perderam-na. — Ela mexeu-se na cadeira, apoiando-se com força no tampo
da secretária. — Suponho que saberemos mais umas coisas quando
começarmos a desacelerar e virmos que eles fazem o mesmo. Mesmo se eles
não reduzirem a velocidade... Bem, depende do que me puder dizer sobre o
alcance das suas armas, mas penso que ainda podemos parar tempo suficiente
em Lansing para deixar o hidrogênio extra... E então acelerar em ângulo reto
com eles com tempo suficiente para escapar. Quando conseguirem alterar a
rota estaremos já fora deste sistema para sempre.
— Fora do nosso sistema para sempre. E ficaremos... — Olhou-a no
rosto forte e gentil, admirando-se por sempre o ter visto até aí como plano.
As mãos dele crisparam-se num desejo súbito de a tocar.
Ela compreendeu-o e o rosto corou-se-lhe. Olhou para ele de um modo
estranho, quase acolhedor, e levantou uma mão.
— Senta-te, Abdhiamal... Wadie Abdhiamal. Ficarás... Muito melhor
sem nós, sim.
Ele deixou-se cair no assento almofadado da parede depois de desviar
as roupas nele amontoadas.
— Betha, não há palavras que possam pedir desculpas pelo que nós te
fizemos. E quando se trata de coisas que te fiz por causa da minha
estupidez... Meu Deus! Quase... Te matei. Todas as coisas que disse, sem
querer...
As mãos dela reduziram as palavras ao silêncio.
— Nunca pretendi arruinar a tua vida, Wadie... Devo-te tantas
desculpas como tu me deves a mim. Mais até. É tarde de mais para as
esquecer, agora?
Ele encostou-se, descansando a cabeça na parede com os olhos fixos
nela.
— Nunca é tarde de mais. Mas não sou... Muito bom a expressar as
minhas emoções, Betha. Nem sequer sou bom a admiti-las a mim próprio. —
Tomou fôlego. — E de repente há montes de coisas que queria que fossem
diferentes. Mas há tão pouco tempo... — Calou-se, sentindo a presença de
fantasmas. — Aquela fotografia do outro lado do quarto: é... Eric que está a
teu lado?
Ela foi apanhada de surpresa. Acenou que sim, com o rosto tranquilo.
— Foi o meu primeiro marido. Era também... Uma espécie de
negociador. Fomos monógamos durante oito anos até casarmos com a família
de Clewell.
— Tiveram filhos?
— Os gêmeos, Richard e Kirsten; o rapaz e a rapariga que estão à
minha frente. Agora têm cerca de onze anos... — Ela sorriu. — Todos eles
são meus filhos. Mas os gêmeos nasceram de mim. Usam o meu nome.
Todos os nossos sete filhos que estão ainda em casa ficaram com a minha
família.
— Deixaste os filhos... — Interrompeu-se a si próprio antes que a
tomasse a magoar. «Nós mudámos; mas a mudança vem sempre muito
depressa... E muito tarde.» E só faltavam cem quilossegundos para chegarem
a Lansing.
Ela olhou-o de relance, confundida.
— Sim, deixámo-los com os meus pais, na quinta florestal. — E,
compreendendo-o, acrescentou: — Metade do mundo é nossa família quando
se está a crescer em Alvorada. Estreitam-nos nos braços, contam-nos
histórias, constroem-nos brinquedos... Há sempre alguém que fica contente
de nos ver. Nós não abandonamos os nossos filhos. Mas tem sido muito duro
não assistir a tanto tempo do seu crescimento. Pelo menos Clewell e eu ainda
veremos como cresceram... — Baixou os olhos, remexendo papéis; ele viu o
regresso de mais um tipo de dor.
— Shadow Jack e Bird Alyn... É por eles que estás a arriscar tudo, para
comprar mais alguns segundos de vida a um mundo moribundo?
Ela hesitou.
— Não sei. Não tinha pensado nisso... Mas parece-me que é isso...
Gostaria... Gostaria de saber como fazer mais por eles.
— Com que então, sabes como é para eles a vida em Lansing?
Ela acenou que sim.
— Eu próprio não estou lá muito a encará-la de frente. Mas eu retirei-
me de tudo o que era melhor... Literalmente. — Ele sorriu. — Não o lamento.
Fi-lo por uma boa causa.
Ela agarrou numa chávena, mas voltou a pousá-la.
— Que vais fazer em Lansing, Abdhiamal?
Ele tornou a sorrir ao ouvir o seu nome; o sorriso parou quando se
recordou.
— Sentar-me e ver o mundo acabar, ao que julgo. Todos os mundos.
Não uma explosão, mas em agonia.
— Não és obrigado a isso, bem o sabes.
Sentiu-a tocar-lhe como se o tivesse feito com a mão. Abanou a cabeça.
— Talvez o seja. Talvez seja a minha penitência por fingir que não há
amanhã.
— Não acreditas nisso?
— Não sei. — Ele estremeceu. — Já não sei no que acredito. — Só
sabia que estava vivo num vasto mausoléu e com medo de olhar a morte. —
Mas eu pertenço aqui, ao Céu; se é que isso faz algum sentido. Assusta-me
com o Inferno, mas tenho de ver o que se vai passar. De qualquer modo,
obrigado. — Ele viu-a sorrir, desapontada.
— Podes mudar de ideias.
— Mais cedo poderia mudar o Céu... Irônico, não é? Começámos com
tudo e Alvorada sem nada... E olha quem falhou.
— Nós também quase falhámos... E mais do que uma vez. — Betha
encarou a parede, olhando através dos tempos. — O mesmo sucedeu a Uhuru,
a Hellhole e Lebensraum. Mas nós fomos ajudados.
— Por quem?
— Uns pelos outros. Planetas como Alvorada são tão marginais que
qualquer pequeno percalço se transforma num desastre... Mas são o tipo mais
comum de planeta habitável; na nossa área do espaço são todos como
Alvorada. Mas os nossos mundos estão ao alcance uns dos outros.
Arranjámos um circuito comercial, e quando um de nós fica na mó de baixo
os restantes ajudam-no a endireitar-se de novo. E foi por isso que
sobrevivemos. É tudo o que fazemos: sobreviver. Mas é o suficiente... Terá
de ser para sempre o suficiente, agora que a nossa jornada até aqui falhou.
»Sabes, cada um tem as suas próprias ironias... Alvorada surgiu após
uma grande reviravolta política na Terra. O nosso vizinho mais próximo,
Uhuru, é habitado por alguns dos que foram inicialmente os nossos
«inimigos» quando caiu o império deles na velha Terra. A necessidade faz
mais estranhos companheiros de cama do que a política nunca fez.
Ele riu-se subitamente.
— Como nós cinco bem o sabemos.
— Sim. — Ela prendeu-o com os olhos, os dedos colocados sobre os
lábios.
— Se tivesses vindo antes da guerra, Betha, talvez nós os cinco
acabássemos por fazer algo de bom. O Céu poderia ter aprendido qualquer
coisa sobre o compartilhar. Agora é tarde de mais; não sobrou nada para
compartilhar.
Ela tomou a mudar de posição, com um gemido.
— Wadie... Disseste que o saber que colocou a tecnologia do Céu no
alto nível que atingira ainda estava intacto. De que, se conseguissem
reconstruir a vossa indústria básica, poderiam ainda tornar a fazer funcionar o
Céu, e que tudo voltaria a ser como dantes. Disseste que a Ranger poderia
significar a diferença... E se... Se vos ligássemos à nossa rede de comércio? É
realizável; a distância daqui até Alvorada não é muito maior do que as
distâncias que já percorremos. Se vos dermos os meios para se recuperarem,
podiam em troca darmos o que nós sempre desejámos, uma vida mais rica
para todos os nossos mundos... E nunca teriam de ver isto acontecer de novo!
Ele escutou a voz dela vibrante de inspiração; sentiu de repente como
se a dor e a pena tivessem saído dela apenas para se instalarem nele.
— Isso foi o que eu disse; mas estava errado.
— Errado?
— Já nos afundámos de mais. Agora já não podemos recuperar; a morte
é uma doença que nos infectou a todos. Nunca mais voltaremos a trabalhar
juntos, mesmo que seja para salvar as nossas vidas.
— Mas se eles ao menos compreendessem que há esperanças para
todos...
— Como os farás compreender? Já viste como eles escutam bem... —
Bateu com a mão no banco. — Não escutarão!
— Não, não escutarão... — Betha começou a sorrir, penalizada,
negando com a cabeça. — Wadie Abdhiamal: como chegaste a este ponto?
Tu a dizeres que eles não escutam, e eu a dizer que sim... Como aconteceu
compreendermo-nos melhor um ao outro do que nos compreendemos a nós
próprios?
Ele abanou a cabeça, sentindo um sorriso aflorar-lhe aos lábios, a raiva
esvaindo-se apenas por olhar para ela.
A mão dela moveu-se hesitante e tocou a pulseira de couro no pulso
dele; ele agarrou-lhe a mão e os dedos emparelharam, castanhos e pálidos.
Ela olhou para ele e depois para as mãos. Retirou a sua mão da dele e disse
calmamente, sem se dirigir a ninguém:
— E nenhum deles viveu feliz para sempre...
NAVE ALMIRANTE «UNIDADE» (ESPAÇO DE LANSING)
+ 3,00 MEGASSEGUNDOS

«Uma incursão.» Enquanto ele, Raul Nakamore, estivera a caçar o


fantasma da nave do exterior, ela tinha literalmente dado voltas em torno
dele. E, ainda por cima, fizera uma incursão à destilaria que as naves por ele
requisitadas tinham por missão defender. Tudo isto quando ele ainda estava
preso na trajetória inicial — e fútil — para Lansing, sem sequer ter
combustível suficiente para que uma tentativa de continuar a perseguição não
fosse apenas uma quimera. Raul tamborilou irritado no braço da cadeira, não
tendo melhor maneira de espraiar a sua frustração.
E, apesar de tudo, os relatórios que receberam indicavam que a nave
espacial não se dirigira diretamente para fora do sistema; na realidade
indicavam que a nave podia estar a seguir a sua própria rota e a regressar a
Lansing. Raul olhou para o painel de instrumentos, vendo que já tinham
decorrido vinte e sete centenas de quilossegundos e apenas faltavam vinte e
três quilossegundos para chegar a Lansing. Parecia a fábula da tartaruga e da
lebre — tornada mais lenta pela massa do hidrogênio roubado, a nave
espacial nunca atingiria Lansing primeiro do que eles; se é que era Lansing o
seu destino. Mas porque seria? Porque brincariam estes estrangeiros aos
piratas de Lansing, quando já tinham sofrido perdas nos Anéis? Vingança?
Mas mais facilmente poderiam ter destruído a destilaria e, em vez disso,
apenas roubaram mil toneladas de hidrogênio: muito pouco para prejudicar a
Grande Harmonia, demasiado para a propulsão da nave.
E quem lhes ensinara como podiam roubar fora Wadie Abdhiamal...
Wadie Abdhiamal da Demarquia. Tornado um fora-da-lei pela Demarquia,
segundo lhe dissera Djem, e considerado um traidor por votação do seu
próprio povo, por ter ajudado a nave espacial a escapar. E se havia coisas
sobre as quais ele, Raul, tinha certezas, uma delas era a de que Abdhiamal
não era um traidor. Então porque atraiçoara o futuro do seu povo? Porque
atraiçoaria os seus amigos?
Porque eles tinham sido amigos; e porque, atraiçoando-os, cortara a si
próprio a hipótese do único porto onde podia encontrar exílio.
Talvez tivesse sido forçado a isso. Mas Djem era de opinião que
Abdhiamal não agira como um homem forçado... Raul sabia que Djem
perdoaria a Abdhiamal — pela traição à sua amizade, mesmo se outras razões
não existissem. O que havia em relação à nave, ou quem estava nela, que
fazia um homem como Abdhiamal desejar sacrificar tudo? Talvez nunca
viesse a saber. Mas se essa nave os seguia até Lansing...
Raul esticou-se e virou-se para ver Sandoval, que estava sentado com
uma expressão de aborrecimento no seu perfil de falcão. Um bom oficial,
pensou Raul. Se achava que esta missão da nave e da sua tripulação era
infrutífera ou inútil, nunca o mostrara. Raul guardava para si as próprias
dúvidas e especulações. Vinte e três quilossegundos para Lansing. E talvez
não ficasse desapontado, apesar de tudo...

***

A visão de Discus, reduzido quase a uma insignificância, confortou


Raul quando saiu da escotilha, descendo para a superfície de pedra de campo
de ancoragem de Lansing. Lembrou-se de, há muito tempo, ter olhado para o
céu na Demarquia: Discus era aí só um ponto brilhante, uma entre as
milhares de estrelas, e tão inatingível como as estrelas. Lembrou-se do
sentimento de isolamento e desolação que então o atingira. Mas desta vez,
agora invisível mas muito mais ao alcance da mão, estava a nave que deixara
numa órbita baixa sobre Lansing para garantir a segurança. Moveu-se
cautelosamente enquanto esperava pela mão-cheia de homens das duas naves
ancoradas, dissipando a tensão e contraindo músculos pouco usados; grato,
após quase três megassegundos, pelo retorno da gravidade normal. No campo
estavam outras três naves. Estudou-as com uma curiosidade passageira,
apercebendo-se de que até Lansing possuía os foguetes nuclear-elétricos que
a Grande Harmonia não tinha; mas compreendeu também que estas naves
estavam em tão mau estado que até mesmo a Harmonia passaria melhor sem
elas. Abaixo dele (o ângulo da tração da fraca gravidade fê-lo usar este
termo) o plástico semitransparente que cobria nove décimos da rocha que era
Lansing mostrava-se manchado de verde e dourado, misturados devido ao seu
ângulo de visão. Pensou em neve, no tom dos gases impuros cristalizados
pelo frio.
Aqui era Lansing, que fora outrora a orgulhosa capital de Cinturão do
Céu, um mundo único no seu gênero. O seu sistema ecológico fechado
recriara a velha Terra, e tal facto fizera com que a sua população tivesse
sobrevivido à guerra; e também porque, como capital, fora apenas um sítio
decorativo e nada mais. Sabia que Lansing estava reduzida à pirataria desde a
sua última passagem perto de Discus; tentou imaginar a que estariam
reduzidos agora. A sua tripulação estava nervosa e hostil. Dera-lhes ordens
para permanecerem com os fatos de pressão mesmo no interior do asteroide,
para os isolar de qualquer contágio — e para os isolar de quaisquer outros
incidentes que pudessem surgir de um confronto frente a frente com os locais.
Começaram a andar em direção à única escotilha visível sobre a
pequena colina para lá das naves. Raul deu uma olhadela à antena de rádio
solitária na crista da colina nua. Estava meio iluminada pela luz fria do sol
distante e mergulhada na sombra à medida que, eterna mas
imperceptivelmente, o planetoide girava. Não havia nenhuma luz a brilhar ao
longo do seu mastro para avisar as naves que ancorassem. O seu operador
rádio mostrara-se incapaz de detectar qualquer emissão de Lansing. Tentou
imaginar se as comunicações deles se teriam avariado completamente, se eles
por acaso saberiam que as naves tinham aterrado... Ou se — teve uma
premonição desagradável — não poderiam estar todos mortos.
Um dos seus homens fez girar a roda da escotilha cravada na rocha;
viu-a começar o ciclo. Os homens atrás dele aguardavam, sem impaciência,
sem alívio, sem qualquer sensação de triunfo por terem alcançado o seu
objetivo. Ouvia apenas uns sons ciciados, uns murmúrios de desconforto, que
o seu rádio captava. O silêncio deles surpreendeu até se aperceber que era
apenas a continuação do seu próprio silêncio; era como se o isolamento e o
manto de morte que cobriam o Cinturão Principal — como a tenda que cobria
este mundo — os tivesse afetado a todos. A escotilha abriu-se. Ante a visão
do vão escancarado das portas do Inferno, Raul entrou no mundo subterrâneo.
A câmara fez novo ciclo, substituindo o vácuo pela atmosfera no
espaço cheio entre as escotilhas. Raul sentiu o seu fato perder a rigidez da
armadura e olhou para trás, certificando-se de que ninguém lhe desobedecia e
abria o capacete. Após quase três megassegundos respirando um ar
duvidosamente reciclado, ele bem sabia como era forte a tentação. Verificou
a carabina, colocada no gancho do seu braço.
A escotilha interior abriu-se. Olhou para o rosto espantado de meia
dúzia de homens e mulheres, imóveis de surpresa. Compreendeu que não
estavam à espera dele. Deu um impulso para o corredor à procura de um sinal
de chefia entre os rostos assustados; mas só viu imundície, remendos e roupas
em farrapos. Entretanto ouviu começar uma discussão entre os homens, e
levantou a sua voz.
— Muito bem, quem...
Uma mulher, que tanto podia ser nova como velha, separou-se dos
outros para se dirigir a ele, trazendo qualquer coisa embrulhada em trapos;
viu uma camada de lágrimas a cobrirem-lhe o rosto e os olhos negros fixos
nele com uma urgência peculiar. Ouviu a voz dela, tremida:
—... Um milagre, é um milagre... — Antes de conseguir reagir, ela pôs
o embrulho nos seus braços; depois empurrou-se e desapareceu pelo túnel
que descia.
Surpreendido, olhou para o embrulho mal feito e deu por si com um
recém-nascido nos braços. O bebé não fazia qualquer barulho; quando viu
porquê, afastou o olhar.
— De quem é este bebé? — A voz dele endureceu de raiva, de
negação.
Um dos homens aproximou-se, mostrando ainda no rosto o medo, com
uma espécie de desespero forçando-o a avançar.
— É meu... Nosso. Por favor... Por favor, dê-mo. — Algo no tom da
sua voz fazia do bebé um objeto. Estendeu os braços; uma manga flutuou,
livre, rasgada até ao ombro. As unhas dele estavam sujas de porcaria negra; a
sujidade marcava-lhe as linhas da mão.
Raul ergueu devagar a criança, indeciso. O pai tomou-a, quase lha
arrancando dos braços. Abruptamente, o homem empurrou o círculo de
tripulantes armados e atingiu a escotilha. Atirou o bebé lá para dentro, a mão
encontrou a placa de controlo, bateu-lhe com um murro e a comporta iniciou
um ciclo.
Raul viu Sandoval saltar, mas o homem encostou-se à parede, cobrindo
a placa, quando a porta se começou a fechar. O punho enluvado de Sandoval
atingiu o peito da camisa e rasgou o tecido podre; o homem afastou-o com
um pé. A escotilha fechou-se, apesar de Sandoval o tentar evitar com as
mãos. A luz mudou de verde para vermelho.
— Porque raio tu...? — Sandoval voltou-se, enquanto dois tripulantes
seguravam o homem entre eles.
— Sandoval! — Raul levantou uma mão. — Já basta. Já basta... Foi...
Um assassínio misericordioso. Larga-o.
— Sir. — Sentiu a raiva de Sandoval presa atrás do visor do capacete.
Raul sacudiu a cabeça, afastando a lembrança das suas três filhas e dois
filhos, todos eles já crescidos e saudáveis. Viu o pai descair contra a parede
quando os tripulantes o soltaram. O homem puxou tristemente pelos bordos
esgarçados da sua camisa rasgada, como se o rasgão fosse uma ferida mortal.
Raul tornou a olhar para o túnel e viu que o resto dos mirones
desaparecera. Moveu-se até ao prisioneiro atravessando a raiva surda da
tripulação e o anel de rostos imóveis. O homem encolheu-se e ergueu as
mãos para se defender.
— Tinha de o fazer... Tinha de o fazer. Alguém tinha de o fazer; ela
sabia disso, mas não o queria admitir! Toda a gente o dizia. De qualquer
modo teria morrido... Não teria? Não teria? Você viu-o, era defeituoso... —
Baixou as mãos para agarrar o braço de Raul. — Viu-o?
O punho de Raul combateu a vontade de afastar a mão. Respirou fundo.
— Sim. Vi-o... Não teria vivido.
O homem começou a choramingar, agarrando-se à manga.
— Obrigado... Obrigado...
Raul abanou-o com rudeza, sentindo qualquer coisa entre piedade e
desprezo.
— Quem és tu?
O homem olhou-o, pasmado e estupidificado.
— O teu nome — disse Raul. — Identifica-te.
— Wind... Wind Kitavu. — O homem endireitou-se, soltando o braço
de Raul, quando a razão lhe voltou aos olhos; olhos de velho num rosto
jovem. — Quem... Que fazem aqui?
— Fazemos perguntas. Primeira: há aqui alguém responsável e, se há,
podes levar-nos até ele?
Wind Kitavu acenou que sim, mirando distraidamente as bocas de meia
dúzia de carabinas.
— O primeiro-ministro, a assembleia. Sei onde ficam as câmaras.
Levá-los-ei... — Os dedos dele procuraram de novo o rasgão da camisa e
juntaram nervosamente os bordos. — Vocês não são os... — Raul observou a
pergunta formar-se nos lábios dele, e viu-o engoli-la. — Querem que os leve
lá?
Raul fez um gesto para os seus homens se afastarem; deixou primeiro
passar Wind Kitavu e começou a segui-lo, imitado pelos seus homens.
Reparou que uma das pernas do prisioneiro era mais curta que a outra e que
ele coxeava. «As portas do Inferno; a capital do Céu.»
Não se dirigiam para a superfície, como ele esperava. Wind Kitavu
manteve-se nas passagens subterrâneas, onde homens e mulheres de olhos
mortiços e cabelo viscoso os viam passar, mostrando uma mistura de medo e
de espanto maravilhado, mas, sobretudo, mostrando confusão. Mas não
traição. Sentiu a sua cautela transformar-se numa sensação de depressão.
Uma mulher afastou-se da parede e pôs-se ao lado de Wind Kitavu.
—... Nave espacial...? — Wind Kitavu negou com a cabeça e ela
derivou livre e a sua face endureceu. Raul viu desespero nos olhos dela e o
seu mau humor aumentou.
A uma ordem sua Wind Kitavu indicou o caminho para o centro de
comunicações e ele mandou Sandoval, com dois dos seus homens, investigar.
Continuou com os outros, tentando imaginar o que iriam encontrar quando
alcançassem as câmaras da assembleia.
Fosse o que fosse que estivesse à espera, nada o teria preparado para
aquilo que encontrou. Alguém os avisara da sua chegada: sete figuras
esperavam-no, perdidas na vastidão de uma câmara de paredes rugosas que
ele sentiu instintivamente que devia ter sido feita para armazém e não para
salão de recepção. E, como gemas de cristal na ganga de rocha sem valor,
cinco homens e duas mulheres brilhavam, resplandecentes, nos seus trajes
oficiais. Um dos homens, quando Raul o viu, ainda estava a ajustar
apressadamente as pregas da toga. O que estava mais perto avançou, fazendo
da sua progressão flutuante uma cerimônia e mantendo no rosto uma
formalidade impávida. Raul estudou as intrincadas camadas sobre camadas
de brocado quando o oficial se aproximou: as fibras absorviam e realçavam a
luz, reenviando aos seus olhos um espetáculo de luz cintilante. Começou a
ver, ao comprovar a limpidez da joia, as áreas onde ela diminuía ou faltava.
As roupas estavam manchadas e gastas, roídas pelo tempo. O homem tinha
um turbante mole na cabeça, feito do mesmo material; o seu rosto enrugado e
as mãos nodosas estavam limpas e faziam um contraste escuro contra o brilho
do traje.
Raul aguardou em silêncio até o oficial chegar ao pé dele. Os outros
seis membros da assembleia, com o seu próprio esplendor puído e simplório,
seguiam-no devagar. Os olhos do grupo estavam fixos na arma de Raul, e não
no seu rosto. Por fim, o homem desviou o olhar da arma para o fixar no vidro
do capacete, procurando-lhe os olhos.
— Sou Silver Tyr — a voz surpreendeu-o pela inesperada arrogância
—, presidente da assembleia de Lansing, primeiro-ministro do Cinturão do
Céu...
O homem calou-se quando uma risada ecoou no capacete de Raul; por
um momento ficou sem compreender que não era o seu próprio riso
reprimido, mas sim o de um dos seus tripulantes. Levantou uma das mãos
para parar o riso, ouvindo no seu espírito a algazarra de escárnio que a
câmara faria do som.
— E vocês são...? — O primeiro-ministro forçou as palavras com uma
dignidade rígida, exigindo respeito não por um sombrio velho, mas pelo facto
inegável do sonho perdido através do tempo, do que todos eles tinham sido
outrora, antes de terem perdido a graça.
— Raul Nakamore, Mão da Harmonia. — E, quase sem pensar, ergueu
em continência uma mão enluvada contra a contaminação mas aberta à
amizade. — Não queremos causar qualquer mal ao vosso povo; só
pretendemos a sua cooperação enquanto aqui permanecermos.
O primeiro-ministro estendeu uma mão, com a hesitação de um homem
que espera vê-la decepada.
— E porque vieram até este lugar, Sir?
Raul apertou-lhe a mão, antes de responder.
— Viemos caçar piratas, Excelência. — Desencantou o título pouco
habitual de uma quase esquecida lição de história. Notou o conhecimento mal
dissimulado de culpa em mais do que um rosto.
Sentindo-se visado, o primeiro-ministro disse, quase protestando.
— Mas isso aconteceu há quase um gigassegundo atrás, Mão
Nakamore... E foi um ato de necessidade, como deve saber. Certamente não
fizeram este caminho todo, depois de ter passado tanto tempo, só para punir...
— Não estou a falar da vossa última incursão aos Anéis, Excelência...
E penso que sabe isso. Estou a falar da nave espacial exterior do sistema Céu,
que destruiu uma nave da nossa marinha e fez uma incursão à nossa principal
destilaria... E vai passar por Lansing na sua rota de saída deste sistema.
— Sir... — Raul ouviu a voz de Sandoval, e virou-se com o ruído de
mais homens a entrarem na sala.
Sandoval e os dois tripulantes juntaram-se ao grupo escoltando uma
mulher de feições delicadas mas irritada. Pele castanha, olhos castanhos,
cabelo castanho a ficar grisalho nas têmporas: Raul avaliou-a como ela o
avaliou. Sentiu a fúria dela bater como uma chicotada de silencioso desprezo
quando olhou para os membros da assembleia. O seu olhar tornou a encontrar
o dele e a fúria começou a desaparecer; pensou num fogo limitado e
controlado, mas ainda a arder no fundo.
— Sir, encontrámos esta mulher na sala do rádio. Afirma que as
comunicações estão avariadas.
Assentiu com a cabeça; virou-se de novo para o primeiro-ministro
quando este disse:
— Não sabemos nada sobre uma nave espacial. Viu as únicas naves
que temos. Nem sequer já conseguem alcançar Discus...
— Encara a realidade, Silver Tyr! — A voz da mulher, afiada como
uma faca, cortou-lhe as palavras. — Ele vê perfeitamente que estás a mentir;
todos vós conseguis tanto cobrir a verdade como essas túnicas cobrem os
vossos trapos. Se ele não sabia antes a verdade, sabe-o agora. O melhor que
temos a fazer é cooperar, do modo como ele disser, e ter esperanças de que
ele deseje negociar...
— Flame Siva! Irás trair as únicas pessoas do universo que tiveram
suficiente consideração por nós ao ponto de nos ajudarem? E a tua própria
filha...
— Sem aleijão, sem defeito, é a minha filha. — A voz dela atraiçoou-a.
Raul sentiu o calor do desapontamento amargo das cinzas das suas palavras.
A figura curvada do aleijado Wind Kitavu encolheu-se, hesitantemente. —
Mas, de qualquer modo, isso é irrelevante, dadas as circunstâncias.
Um arrepio percorreu as linhas do rosto do primeiro-ministro.
— Dois do nosso povo estão a bordo da nave espacial. Disseram-nos
que a Grande Harmonia atacou a nave primeiro. Dá-lhes a razão e o direito de
retaliar contra vós, e vocês não têm qualquer queixa legal a fazer, segundo o
nosso parecer. Não temos intenção de cooperar em qualquer tentativa de a
capturar.
— Compreendo. — Raul compreendeu o arrepio, sabendo que não
havia nada que pudesse fazer àquela gente, porque já lhes destruíra a sua
última esperança. — Afortunadamente para vocês, nós de facto não
precisamos da vossa cooperação... Mas não toleraremos qualquer
interferência. Pretendemos esperar aqui até que essa nave chegue. — Estudou
as respostas deles; sabendo, de certeza e com uma espécie de alegria calejada,
de que assim seria. — Uma das minhas naves mantém-se em órbita sobre
Lansing; se encontrarmos a mínima resistência, o capitão tem ordens para
furar a vossa tenda. Se querem viver o tempo que ainda vos resta, não se
atravessem no nosso caminho.
— Até mesmo em Lansing não corremos ao encontro da morte, Mão
Nakamore. — O primeiro-ministro olhou para a arma de Raul.
— Sobretudo em Lansing — disse Flame Siva. — Somos materialistas,
Mão Nakamore, realistas. Pelo menos parece que nos consideram assim. Fez
uma pausa. — Quais são os vossos planos em relação à nave e à sua
tripulação? Apanhá-la-ão intacta?
Raul deu uma risada curta.
— É o que iremos tentar. Mas preferirei avariá-la definitivamente em
vez de a deixar fugir. E também queremos a tripulação viva, para nos mostrar
como funciona a nave. Mas se se recusarem a deixar-nos entrar a bordo... A
pirataria é um grave crime, qualquer que seja a lei, punível com a morte. —
Viu os membros da assembleia agitarem-se, cintilantes.
— Ela já perdeu a maior parte da sua tripulação por vossa causa —
murmurou a mulher quase que para o chão.
— Ela? — Disse Raul, surpreendido. — Está certo. — Recordou um
pormenor estranho e a detecção de restos humanos. — Ela: a mulher-piloto.
Com que então a sua tripulação está incompleta?
— Dois dos nossos estão com eles — repetiu ela. Ele compreendeu que
era mais do que a simples afirmação de um facto: «a sua filha», dissera o
primeiro-ministro. A mão dela ergueu-se, agitada; passou-a pelo pescoço e
pelo cabelo grisalho, controlando um gesto que ele reconheceu como de
traição. — O capitão prometeu-nos o hidrogênio que precisamos para
sobreviver, se eles a ajudassem a consegui-lo para a sua nave... O hidrogênio
que vocês nunca compartilhariam connosco, a menos que vo-lo tirássemos à
força.
Ele esperou, sem responder, porque ela não dissera aquilo em tom de
desafio.
— Que nos dariam em troca de eu vos ajudar a apanhar a nave intacta?
De novo surpreendido, ele perguntou:
— E que podes tu fazer para garantir isso?
Cruzou as mãos delicadas sobre os braços finos; umas mangas que
eram demasiado compridas escorregaram para trás.
— Deixe-me acabar de reparar o rádio... Forneça-me as peças, se por
acaso as tiver. — Olhou para cima com o olhar duro e brilhante.
Deixe-me contactar a nave quando ela se aproximar, para lhes garantir
que se podem aproximar em segurança, para que vos seja fácil apanharem-
nos.
— Até nós podemos fazer isso.
— Não, não podem. A minha... A nossa gente a bordo da nave conhece
o rádio daqui e os seus problemas, e conhecem-me a voz. Uma voz estranha
fá-los-ia suspeitar que havia alguma coisa mal... E o mesmo sucederia se o
rádio ficasse silencioso.
— Marcou um ponto — disse Raul, concordando.
— Deixar-nos-ão ficar o hidrogênio se eu fizer isso? — Desta vez o
olhar não mostrava qualquer chama.
— Se a nave escapar, pode voltar com o hidrogênio! — Gritou Wind
Kitavu. — Não desperdices a nossa única hipótese...
Ela virou-se, calando-o com o olhar. Raul tentou perceber o que esse
olhar mostrava. Mas ela tornou a encará-lo.
— Fá-lo-ão?
Sabendo como era fácil mentir, ele, no entanto disse:
— Irei requerer autorização. Talvez a consiga, talvez não.
Esperou pela resposta dela e ficou confuso, como se ela tivesse
desejado que ele mentisse, como se desejasse uma desculpa para cometer
traição. Ou era algo mais? Pensou em Wadie Abdhiamal.
— E que sucede à tripulação? Se... Apanharem a nave intacta.
— Se os apanharmos vivos? — «A filha dela...» encontrou nisso uma
explicação pelo menos suficiente. — Com que então sempre te importas com
ela?
Flame Siva estacou; os seus olhos eram cinzas e a voz tinha perdido a
força.
— Sim... Claro que me importo... — E, subitamente desafiante:
— Todos eles importam! Estão a tentar salvar-nos! — Parou, mordendo
os lábios.
Raul desviou-se ligeiramente.
— Se eles não nos resistirem, soltaremos a tua filha e o outro aqui; se é
isso que queres. — «O que será castigo suficiente.» — Quanto aos outros...
Há um traidor da Demarquia a bordo, que lhes forneceu as informações para
atacarem a destilaria. Não penso que ele tenha qualquer opção. — «Mas eu
ainda quero uma explicação.» — E a tripulação do exterior... O que ainda
resta dela, espero que colaborem com a nossa marinha, de uma maneira ou de
outra.
— Nunca os deixarão partir. — Não era uma pergunta.
— Não penso que, quer a tripulação quer a nossa marinha, estejam
alguma vez em posição de negociar sobre esse ponto.
Ela concordou, ou abanou a cabeça, um movimento peculiar para o
lado.
— Aqui fazemos o que podemos... E apanhamos o que podemos.
Somos responsáveis pelas nossas próprias ações. — De novo o desafio, o
ressentimento, o fogo... Ela enfrentou os fantasmas de carne e osso que eram
a assembleia de Lansing. — Aceitamos as consequências.
— Sandoval. — Raul fez-lhe sinal para avançar. — Leva-a de volta e
deixa-a trabalhar no rádio. E, aconteça o que acontecer, não a deixes emitir
nada, repito, nada, até que eu te dê ordens para isso.
— Sim, Sir. — Sandoval fez uma leve saudação e levou-a, de cabeça
erguida, flanqueada pelos guardas.
Raul destacou mais dois homens para montarem guarda à escotilha,
ficando com um ao pé de si. O primeiro-ministro e os membros da
assembleia esperavam, mais uma vez conscientes — como ele estava — da
sua falta de propósito e de controlo.
O primeiro-ministro virou-se para Wind Kitavu, e a sua túnica abriu-se
como um botão de uma flor.
— Tu, que fazes aqui?
— Sabes bem o que eu estava a fazer. — Wind Kitavu saltou em arco,
afastando-se da parede. — O bebé. Todos vocês sabem, não façam de conta
que não sabem!
O primeiro-ministro recuou, num movimento pouco digno.
— Então nada esperes de nós! Sabias o que iria acontecer. Aceita os
teus erros... Volta para o teu trabalho. — Coçou um braço.
Raul viu sujidade incrustando o braço do pulso até ao cotovelo, quando
a manga se levantou. Ouviu um dos seus homens rir alto quando viu a
sujidade; desta vez nada fez para o calar. Voltou-se.
— Wind Kitavu.
Wind Kitavu parou o seu derivar em direção à porta.
— Vais para a superfície?
Ele disse que sim com a cabeça; o seu rosto não tinha qualquer
expressão.
— Vou dizer à minha... Mulher o que sucedeu ao bebé.
— Nesse caso vamos contigo. Quero ver esses malditos jardins.
— Malditos jardins... — Fez eco, na voz de alguém que não era ele;
Wind Kitavu dirigiu-se à saída. Raul nem sequer se voltou para
cumprimentar o primeiro-ministro de todo o Cinturão do Céu.
Raul seguiu o seu guia silencioso através de mais túneis, mas desta vez
sentiu-os subir. O brilho cresceu e viu um ponto de luz à sua frente alargar-se
à medida que ele subia ao seu encontro — uma luz tão intensa que só podia
ser a do sol. Mas, desta vez, ele aproximava-se da luz de um modo que seria
natural para a espécie humana através dos incontáveis anos da sua existência,
um modo que para ele era inteiramente novo e inesperado: atravessou
livremente para a luz do dia, simplesmente, sem se deter em nenhuma
barreira.
E parou, absorvendo e absorvido pela encadeante verdura que o cercou
quando emergiu da colina. Teve uma súbita e vivida recordação das estufas
hidropónicas da Harmonia, do calor e da humidade que fazia delas um
inferno de suor para a maior parte dos cidadãos. O tripulante recuou para a
entrada do túnel; ele chamou-o com dureza. Todos os cidadãos eram
obrigados a um serviço periódico na hidropónica, uma provação que era
partilhada por todos. Na sua juventude prestara serviço na hidropónica; mas,
como Mão da Harmonia, já não necessitava de o fazer. «Talvez a posição
tenha os seus privilégios.»
Mas o punhado de trabalhadores esfarrapados que se juntaram ali não
parecia estar mais desconfortável do que os que estavam nos túneis. Isolado
pelo fato, nunca poderia experimentar a realidade dos jardins, de como a vida
tinha sido na Terra. Dois futuros esperavam aqui, com ele, no balanço da vida
e da morte — e de qualquer modo, ele não voltaria a ter esta oportunidade...
Tornou a encarar o círculo de faces taciturnas e sujas e as deformidades
genéticas que os marcavam como um estigma. Por cima de todos eles,
parcialmente encoberta pelo emaranhado e rendado das frágeis árvores, o teto
do céu era uma membrana transparente, também ela desfigurada por manchas
de remendos toscos. Em tempos devia ter havido algo mais, um campo de
forças a protegê-los das radiações... Uma proteção há muito perdida. Na
Grande Harmonia o trabalho permanente nas hidropónicas era dado como
punição. Aqui era também punição, mas de um modo diferente; aqui era pelo
crime de ter sido uma vítima... Manteve o capacete, de novo com a ideia de
contaminação em mente: não a contaminação por doenças, mas a mais
perniciosa contaminação: a do espírito. No fim de contas, aquele não era o
lugar que ele queria sentir.
— Que há agora? — Um deles agarrou a manga de Wind Kitavu,
puxando-lhe a camisa rasgada até ao ombro. — Agora estão a usar fatos para
nos pregarem sermões?
Wind Kitavu soltou-se, tornando a pôr a camisa sobre o braço.
— Não... — A voz dele desceu e a mão gesticulou enquanto explicava
o que se estava a passar. Raul perdeu as palavras, pois um suave movimento
da atmosfera provocava um ligeiro sibilo. Observou o movimento dos ramos
das árvores e observou uma expressão, que se lhe estava a tornar familiar,
espalhar-se de rosto em rosto no grupo dos trabalhadores: uma desolação tão
total que nem sequer podia ser transformada em raiva.
Por sua vez, Wind Kitavu fez uma pergunta e o homem que o fizera
parar apontou vagamente para longe. Sem pedir licença e sem sequer olhar
para trás, Wind Kitavu deixou-os, desaparecendo por entre os arbustos e
deixando atrás de si uma chuva de pétalas de tom pastel. O bebé. Raul nada
fez para o fazer parar, percebendo onde ele ia e não tendo qualquer desejo de
testemunhar o encontro. Os outros trabalhadores começaram a dispersar,
continuando a olhar receosamente para ele, com os pés nus a pisar o tapete
primaveril da vegetação.
Raul tornou a olhar o túnel, ainda vazio, atrás de si. Só então reparou
que as luzes do teto que iluminavam o subterrâneo não tinham chama.
Eletricidade... Em algum lado esta gente ainda tinha um gerador que
funcionava, provavelmente uma bateria atômica do pré-guerra — ou mesmo
de alguma troca posterior com a Demarquia. Mais uma vez tomou em
consideração que a Grande Harmonia não tinha nada disto por causa da
Demarquia. Se não fosse a sua abundância de neve, a Grande Harmonia
estaria numa situação pior que Lansing — e a única situação pior era a morte.
A Demarquia fê-lo pensar em Wadie Abdhiamal e no mistério que
rodeava o seu encontro iminente. Vira Abdhiamal atuar como negociador em
Neves-da-Salvação: inexperiente, inseguro da sua posição, mas extorquindo
cooperação de ambos os lados com um instinto para a imparcialidade que
dissolvia as barreiras culturais como uma faca aquecida penetrava num bloco
de gelo. E, como capitão de uma nave, transportara Abdhiamal a reuniões em
Harmonia Central e a metade das rochas habitáveis dos Anéis. Vira o homem
ser ignorado, insultado, ativamente ameaçado, mas sem nunca perder a
paciência... E ficara surpreendido, desconfiado e, por fim, contente quando
Abdhiamal o interrogava sobre assuntos da política governamental da
Harmonia. Contente, no fundo, por ver que Abdhiamal escutava, aprendia e
fazia uso dos seus conhecimentos para o bem de todos.
A única fraqueza que encontrara em Wadie Abdhiamal era a sua
incapacidade de enfrentar uma coisa — a inevitabilidade do fim do Céu.
Descobrira que Abdhiamal acreditava que ainda havia uma solução; enquanto
ele, Raul, tal como o povo de Lansing, há muito que vira que a única solução
era a morte. E mesmo assim começou a suspeitar que o otimismo obsessivo
de Abdhiamal encobria uma convicção tão forte como a sua de que o Céu
estava condenado... E, mais do que isso, encobria um medo profundo e
patológico: Abdhiamal não era um homem que pudesse aceitar o facto de que
tudo o que fazia não tinha, no fundo, qualquer significado. Não poderia
continuar naquela estrada sabendo que o fim estava à vista; tropeçaria e
cairia, esmagado pelo fardo do seu próprio conhecimento. E, por isso, algum
recanto da mente de Abdhiamal fechara nele a verdade, enterrando-a sob uma
mentira que lhe permitia continuar. Raul invejara a Abdhiamal a Demarquia,
onde a comparativa riqueza o ajudava a proteger as suas ilusões. E pensara
para si próprio se alguma coisa o poderia forçar a admitir a verdade...
Mas com a nave espacial — até ele, Raul, tinha de novo descoberto a
esperança no que ela podia oferecer ao Céu... E, especificamente, à Grande
Harmonia. Porque tentaria justamente Abdhiamal, de entre todos, garantir
que nenhum dos governos pusesse as mãos naquela nave? Abdhiamal era um
homem imparcial — mas seria imparcial ao ponto de ser louco e genocida? E
a mulher que pilotava a nave... Porque correria ela tantos riscos para cumprir
uma promessa feita a um sítio como Lansing? Eram ambos loucos ou, pelo
contrário, seriam eles? Ou era algo que ele não estava a ver?... Havia
certamente coisas de mais que ele não conseguia ver. Mas se ela mantivesse a
sua promessa, se aquela nave estivesse mesmo a cair-lhe nas mãos... Aquela
seria a única resposta que ele precisaria. Para sempre.
«RANGER» (ESPAÇO DE LANSING)
+ 3,09 MEGASSEGUNDOS

— Não consegues apanhar Lansing, Pappy? — Betha desviou por


momentos a atenção do programa de encontro no painel.
Clewell afastou um pouco o auscultador da cabeça.
— Não. Pus a nave a monitorizar todo o espectro. Se alguém falar nós
ouvimo-lo.
— Talvez o emissor se tenha avariado — disse Shadow Jack. — Passa
metade do tempo avariado. Têm um trabalhão para o manter operacional. —
Bird Alyn flutuava ao lado dele e por cima da cabeça de Betha olhando a
imagem ampliada de Lansing no visor. Betha observava a suavidade
enevoada da tenda que passava lá em baixo: uma mortalha para pessoas
moribundas, que viveriam um pouco mais graças à Ranger.
Discus estava por cima e à esquerda, encoberto e indistinto, uma
delicada joia para os dedos. E, algures na escuridão próxima, havia três naves
de fusão da Demarquia. Nenhuma delas começara a desaceleração para
emparelhar com Lansing e com a Ranger. A sua missão era de assassínio...
Betha passou uma vista de olhos pelos últimos dados sobre a rota; menos de
dez minutos para deixarem o hidrogênio.
— Bem, o nosso tempo está um bocado limitado... Decerto que Lansing
não se importará se vos deixarmos, e aos tanques, numa órbita baixa e, depois
disso, fugirmos daqui. — Sorriu para Shadow Jack e Bird Alyn, forçando um
tom quente na sua voz. — Ficarão contentes de vos ver voltar a casa com
oitocentas toneladas de hidrogênio.
— Ficarão — disse Shadow Jack. Os dois acenaram com as cabeças
com as faces brilhantes e limpas sorrindo corajosamente sobre os colares dos
seus fatos de pressão. — Mas... Têm a certeza de que irão ficar bem depois
de nós abalarmos? — A voz dele tinha um tom arrastado e parecia
envergonhada. — Só... Vocês os dois? — Olhou para o rosto chupado de
Clewell e fez estalar os dedos.
Pelo canto do olho Betha viu Wadie olhar para ela... O impecável
Abdhiamal, de casaco bordado a vários tons. Sorriu, apesar do que sentia.
— Ficaremos bem — disse ela, com uma confiança que o seu próprio
corpo dorido e magoado não tinha. Não ia falar nas culpas dele para o fazer
mudar de ideias. Tinham já chegado até aqui; arranjariam uma maneira de
fazer o resto, fosse como fosse. Mais tarde... Pensaria nisso mais tarde. —
Não faças estalar os dedos, Shadow Jack. Vais arruinar as articulações dos
dedos.
Shadow Jack esboçou um sorriso e enfiou as luvas nas mãos.
Wadie tocou no ombro dela:
— Olha.
Enquanto estiveram a falar, a Ranger fizera um quarto de volta em
torno de Lansing. No horizonte próximo via-se uma protusão brusca de rocha
nua com a tenda em torno dela como as nuvens em torno de uma montanha.
— A montanha — disse Bird Alyn. — É lá que estão as antenas-rádio,
a ancoragem... Ali é uma das nossas...
— Eh! — Shadow Jack bateu-lhe no braço. — Aquela nave não é das
nossas! Nunca vi nada assim; donde terá vindo?
— Talvez seja um salvado.
— Não, olha, está acolá outra.
Betha aumentou a ampliação.
— Pappy, parecem-se com...
—... Anelanos, anelanos... Fujam, é uma armadilha, uma... — Uma voz
de mulher ecoou no alto-falante e, de repente, calou-se.
— Mãe! — Bird Alyn deixou escapar um pequeno grito.
— Aquelas naves ali parecem foguetes químicos. — Quando Clewell
acabou a frase a sua voz parecia folhas secas batidas pelo vento.
A mão de Wadie apertou o ombro de Betha.
— Meu Deus, aquelas naves são anelanas; a cinquenta milhões de
quilômetros de Discus... — A voz tornou-se-lhe aguda, sem querer crer no
que via. — A Demarquia sabia que a Grande Harmonia tinha algumas forças
de ataque com uma relação de massas muito grande, mas nada como isto.
Para estarem aqui agora, usando apenas foguetes químicos, devem ter
começado a viagem logo após os terem atacado. E mesmo assim
necessitaram de uma proporção de massas superior a mil para um...
Uma nova voz falou no alto-falante.
— Nave do exterior! Fala Mão Nakamore da Grande Harmonia.
Mantenham a vossa órbita atual. Não ativem a vossa propulsão ou serão
alvejados. Uma das minhas naves está já a aproximar-se de vós para a
abordagem.
Betha olhou para baixo, para a montanha sem ar onde estavam os três
aparelhos anelanos, cada um deles não sendo mais que uma massa de tanques
de propelentes rodeando um minúsculo módulo tripulado. Por fim viu um
deles começar a subir, o seu jorro invisível levantando nuvens de poeira da
superfície. «Apanhados numa armadilha...» As mãos dela apoiaram-se nas
ancas. O máximo que a Ranger podia conseguir era uma gravidade de
aceleração; e agora só podia fazer um quarto disso, com a carga amarrada ao
casco. Os foguetes químicos dos Anéis podiam acelerar a várias gravidades
durante tempo mais que suficiente para os apanharem.
Os segundos passavam; a nave anelana ergueu-se lentamente, quase de
forma insolente, na sua direção. Os minutos passaram... E com eles a última
esperança de a Ranger escapar também à frota da Demarquia. «Cristo, porque
temos de perder tudo agora, quando estávamos tão perto de ganhar!»
Wadie prendeu um pé na calha sob o painel, imobilizando-se.
— Betha, aquele era Raul, o meio-irmão de Djem Nakamore. É Mão da
Harmonia, um oficial da sua marinha de guerra. Um oficial de alta graduação.
Deixa-me falar com ele. Provavelmente ele sabe o que eu fiz em Neves-da-
Salvação, mas, em tempos, fomos amigos.
— É melhor esperar, Abdhiamal — disse calmamente Clewell. —
Temos mais companhia, a emitir sofisticadamente em banda larga. — Tocou
num botão e um novo segmento do visor começou a brilhar.
— Lije MacWong — disse Wadie; Betha viu a graça natural dele
desaparecer do seu corpo.
— Capitão Torgussen: se está a receber esta emissão, vai compreender
que a Demarquia tem estado a perseguir a sua nave. O intervalo distância-
velocidade entre nós é agora suficientemente pequeno para que não possam
escapar aos nossos mísseis; não tentem deixar o espaço de Lansing.
Betha podia ver, atrás do rosto satisfeito de MacWong, uma sala de
controlo com metade do tamanho da sala da Ranger e um oficial da nave com
um casaco dourado. Mais atrás viu câmaras apontadas ao visor e um bando
de demarcas parecendo bonecos de madeira pintados de cores brilhantes —
representantes de companhias vigiando os seus interesses. Viu Esrom Tiriki e
a boca contraiu-se.
Fez sinal a Clewell para transmitir.
— Estou a ouvi-lo, MacWong. E estou impressionada. Vieram atrás de
nós este caminho todo só para destruir a minha nave? Agora não nos podem
capturar; tudo o que podem fazer é destruir-nos ao passarem.
Ela hesitou. Os olhos azuis de MacWong ainda estavam
impavidamente fixos no visor. Compreendeu, aborrecida, que mesmo a
aproximarem-se a oitocentos quilômetros por segundo as naves da
Demarquia estavam ainda a milhões de quilômetros de distância; a própria
luz demorava meio minuto a vencer a distância.
Por fim MacWong reagiu olhando para trás dela, para Wadie. Por um
instante ela viu desculpas e pena; um segundo depois só viu triunfo.
— Pelo contrário, capitão Torgussen. Não temos intenção de destruir a
nave espacial... Se obedecerem às nossas instruções. As nossas naves
passarão perto de vós dentro de aproximadamente quatro mil segundos. Têm
esse tempo todo para desmontar e desativar a vossa propulsão. Se, até essa
altura, não tiverem provado de uma forma satisfatória que a vossa nave ficará
imobilizada até nós voltarmos, serão alvejados e destruídos. O povo quer a
sua nave intacta, capitão, mas se não a puderem ter não a tencionam deixar
cair nas mãos de quaisquer outros.
Betha reclinou-se, com os braços rigidamente apoiados no painel.
— Wadie... Afinal ele não é parvo de todo. — A Ranger estava nas
mandíbulas de uma armadilha; e cada uma das suas mandíbulas desconhecia
a existência da outra. Quando as mandíbulas se fechassem sobre a sua nave,
teriam de se destruir também uma à outra. Deixou-se afastar do painel,
forçando um sorriso. — Receio que também tenha um problema, MacWong.
Teríamos partido antes de vocês chegarem, se não fosse termos sido aqui
detidos por alguém... Mão Nakamore, tenho a certeza de que tem estado a
escutar. Importa-se de comentar os factos? — Ela esperou, saboreando o
amargo de uma satisfação inútil.
Clewell ciciou:
— Os Anelanos estão a transmitir vídeo, para não serem
ultrapassados... — Outro segmento do visor brilhou com uma imagem a preto
e branco. A sala de controlo anelana era pequena e a tripulação estava presa a
camas almofadadas; todo o espaço estava ocupado por equipamentos: uma
imagem dos primeiros tempos das viagens espaciais. Um anelano forte
usando no capacete a insígnia dos anéis discanos estava perto da câmara, o
rosto inflexível sob uma barba hirsuta. — Fala Mão Nakamore da Grande
Harmonia. As minhas forças capturaram a nave espacial do exterior e, se ela
tentar cumprir as vossas exigências, nós destrui-la-emos. Temos várias
bombas de fusão do pré-guerra em nosso poder. Se nos tentarem impedir de
ficar com esta nave, faremos tudo para também os destruir.
Betha olhou interrogadoramente para Wadie.
— Pode de facto ter as bombas; salvados da guerra. — Wadie estudou
os cordões bordados da frente do seu casaco. — Se ele puder manobrar com
elas até ao caminho por onde MacWong vai passar, não terá de ser muito
preciso, mesmo que as tripulações da Demarquia levem um megassegundo a
morrer das radiações. Coisas como essa aconteceram durante a guerra, com
tripulações de homens mortos lutando o seu combate final. Aliás, foi assim
que conseguimos intactas estas três naves de fusão... — Ele ergueu os olhos.
— Nakamore nunca deixará que a Demarquia apanhe a Ranger, mesmo que
isso signifique que ele tenha de morrer.
Betha viu o traço de consternação que traiu MacWong quando este viu
Nakamore; a incredulidade franca no rosto do oficial da nave e no de Esrom
Tiriki. Viu-as mudar de novo para raiva e desconfiança, e ouviu MacWong
começar uma resposta mal-humorada.
— Nesse caso iremos todos morrer, e eles também... Assim como o
Céu. — A voz dela elevou-se. — E para quê? Tudo isto é insensato...
— E pensas que eles também não sabem isso? — Wadie aproximou-se
dela, quase a tocando de novo. — Sabem isso tão bem como nós. Mas estão
aqui numa armadilha, como nós estamos; tudo o que tem vindo a acontecer
nos últimos dois gigassegundos e meio depois da guerra, todas as frustrações
e medos conduziram a isto... Tinha de acabar assim. Até a vossa canção o
diz: «Nunca ninguém mudou um mundo.»
Ela afastou-se dele.
— É o povo que deve desejar a mudança! Não tem de acabar assim. Se
eles pudessem ver que ainda há um futuro... Mesmo agora ainda pode haver
futuro, mas nem sequer tu o vês; não o verás. Tens razão, o que tu queres é a
morte... O suicídio é o egoísmo supremo, e eu nunca tinha visto um povo tão
disposto a cometê-lo. — Ela desapertou o cinto, empurrando-se do assento e
afastando-se mais dele, com a respiração cortada pela dor provocada pelos
movimentos súbitos. — Mereci-o. Que vão todos para o diabo!
Ele agarrou-lhe o pulso. Furiosa viu Shadow Jack afastar-se, olhando,
quando Wadie a puxou de novo para o visor.
— MacWong, Raul, fala Abdhiamal. Quero falar convosco.
Nakamore concordou e Betha pensou que vira nele um sorriso; esperou
e viu MacWong começar um discurso:
— Desculpa, Abdhiamal, mas és um homem morto. Nada tens a dizer à
Demarquia. — MacWong deu uma olhadela para os lados, quase sem mexer
a cabeça. Betha olhou para trás dele, para Tiriki.
— Somos todos homens mortos, a menos que me escutem! Por causa
desta nave, sobre a qual nem vocês nem Nakamore têm quaisquer direitos,
assim como eu também não tenho. Por amor de Deus, MacWong, havia sete
pessoas nesta nave, que veio de três anos-luz desde outro sistema até ao Céu;
e cinco deles já morreram por causa disso. E agora vão destruir os restantes,
juntamente com as melhores naves que restam à Demarquia e aos Anéis?
Vocês são tudo o que resta do Cinturão do Céu, e a vossa única preocupação
é pôr as próprias tripas ao sol. Estão a matar-se a vós próprios porque têm
medo de morrer. Capturar a nave espacial não salvará o Céu: antes pelo
contrário, acabará com ele.
»Mas vocês não podem deixar isso acontecer. — Acenou para Betha
que, ao lado dele, estava silenciosa e surpreendida. — Esta gente veio para
negociar connosco porque queria uma vida melhor. E, apesar do que vocês
lhes fizeram, ainda deseja negociar. Há todo um anel de comércio entre
mundos, cada um deles apoiando os outros para que nenhum deles caia no
mesmo erro em que nós caímos. Também nos podem salvar. O Cinturão do
Céu pode voltar a ser o que foi se nos juntarmos a eles. — Fez uma pausa,
olhando para o visor e procurando uma reação. — Deixem a nave espacial
sair do Céu, em vez de a destruir. Atingirão o mesmo objetivo, mas terão
tudo a ganhar e nada a perder.
— Wadie, sempre foste capaz de convencer Djem de que o frio era
quente. — Betha procurou um sinal de troça no rosto de Nakamore e ficou
surpreendida quando não o encontrou. — Mas desta vez até para mim fazes
sentido... Eu não quero destruir a nave espacial nem as minhas naves. Se
pudesse sair desta trapalhada deixando a nave espacial sair do sistema,
deixaria. Da maneira como as coisas estão, seria o suficiente para pôr a nave
fora do alcance de todos... E o ponto que não esqueço é que a única razão por
que a apanhamos foi que essa mulher, o capitão Torgussen, voltou a Lansing
como prometera que faria. — Nakamore procurou os olhos de Betha,
curiosamente respeitoso. — Penso que também voltariam para nos ajudar.
Betha estremeceu com uma dor súbita e mordeu os lábios.
— O meu desejo é deixá-la partir, capitão. Mas que é que pensa
MacWong?
Betha viu MacWong ainda a ouvir a transmissão de Nakamore, refazer
sub-repticiamente o laço da frente da sua camisa. Atrás dele os homens da
informação transmitiam cada um dos seus movimentos e das suas palavras
para a Demarquia: MacWong estava preso por alfinetes sobre o olhar do
público como um inseto sobre um vidro. Por fim disse:
— A sua sugestão viola o mandato da Demarquia para esta missão.
Tenho apenas autoridade para capturar a nave ou para a destruir; não a posso
deixar partir.
— Mesmo que a queiras soltar! Mesmo se todos nós morrermos por tu
não a deixares partir! — As palavras de Nakamore queimavam com desdém;
o seu rosto taciturno transformara-se, de repente, como se estivesse a fazer a
um discurso. Betha compreendeu subitamente que ele devia estar consciente
que havia uma audiência para o seu discurso. Wadie começou a sorrir, quase
maravilhado. — Fantoche. Chamas à Harmonia uma «ditadura», mas nós
damos mais liberdade ao indivíduo do que a vossa mobocracia do povo
jamais deu ou dará. Tenho o poder e a liberdade de escolha para parar com
esta estupidez. Mas tu não. O teu povo não confia num homem o suficiente
para lhe deixar usar o raciocínio com que ele nasceu; pesam-te as palavras
cada vez que abres a boca.
»Mas, MacWong, como te vão dizer desta vez o que deves fazer?
Nunca imaginaram que iriam precisar de um controlo segundo a segundo à
distância de centenas de milhões de quilômetros através de uma imensidade
como esta. Quando a Demarquia ouvir isto e realizar os debates, as emendas
e as votações, já tudo estará acabado para nós, e aquilo que eles quiserem já
não significará grande coisa... Mas tu não tomarás a decisão por ti próprio
porque tens demasiado medo do sistema e desses meninos-bonitos e
anarquistas que estão por detrás de ti. A fraqueza básica e a ineficiência da
tua lei da multidão fará com que a Demarquia destrua as suas próprias naves,
e as minhas, e destrua a última esperança que este sistema tem de viver.
Sempre soube que o vosso «governo» era uma farsa... E até tu, agora, não
podes negar esse facto. Riria de boa vontade se a tragédia não fosse tão
grande. Porque é o que tudo isto é: uma tragédia.
Betha observou uma raiva impotente fraturar a máscara de
complacência de MacWong e, pela primeira vez, viu emoção viva nos rostos
dos demarcas que estavam atrás dele... E viu os da informação registarem
tudo para que toda a Demarquia pudesse ver e compartilhar a sua indignação.
MacWong escondeu a raiva.
— Capitão Torgussen, as nossas naves passarão pela sua dentro de três
mil e seiscentos segundos. Se tenciona seguir as nossas instruções, sugiro que
nos contacte dentro de pouco tempo. — A imagem dele desapareceu de
repente.
Betha disse baixinho:
— Pappy, tenta monitorizar as comunicações de MacWong com a
Demarquia; diz-me como é que esta explosão de palavras piorou as coisas.
Nakamore ajustou a gola do seu casaco rígido e grande, perdendo a
raiva dos olhos e da voz.
— Ele voltará a falar; pelo menos, assim o espero.
— Os meus parabéns pela... Tua promoção a Mão, Raul. — Betha viu
Wadie curvar-se, imperturbável.
— O meu dever é aceitar, o meu desejo é servir. — Nakamore negou a
honra com um gesto, estranhamente embaraçado. — Gostaria de te poder
dizer o mesmo, Abdhiamal. Mas não conheço as regras de etiqueta da
Demarquia para com os traidores.
Wadie sorriu forçado.
— Não há nenhuma.
— Foste o único demarca razoável que encontrei, e foi possivelmente
por isso que a multidão te caiu em cima. Não aprovo o teu ato de pirataria
contra a Harmonia... Mas finalmente começo a ver porque o fizeste e porque
queres ajudar essa gente. Duvido que Djem alguma vez o venha a
compreender...
— Sei disso... E lamento. Mas não havia por onde escolher. Nunca teria
acontecido se...
— Se não tivéssemos atacado a nave espacial quando ela apareceu pela
primeira vez? Tens razão. Foi estúpido da nossa parte. Se tivéssemos tido o
bom senso suficiente para a dirigir para uma das nossas bases, a Grande
Harmonia teria agora uma nave espacial. Mas não o fizemos, e tudo o que
conseguimos foi a morte. Mas sabíamos que a nave fora atingida, e a
Harmonia Central calculou que valia a pena arriscar para eu a apanhar aqui.
— Foi uma longa viagem — disse Wadie. — Demorarão muito tempo
a voltar a casa se o que estamos a ver é todo o propelente que vos resta.
— Eu sei. Mesmo sem uma batalha, demoraremos vinte
megassegundos a voltar à nossa linha mais exterior... Se os nossos sistemas
de apoio de vida aguentarem. E então ficaremos lá a congelar os nossos
traseiros, à espera de um carregamento de combustível que nos permita voltar
ao interior da Harmonia. — Nakamore coçou o queixo; parecia cansado. —
Mas conseguimos alimentos e ar em Lansing.
Shadow Jack empurrou o ombro de Betha para dizer à câmara;
— Porque não rasgas a tenda e os matas depressa, bastardo?
Nakamore encolheu os ombros.
— Meu rapaz, para mim vocês são todos piratas. Mas nós não tirámos
assim tanto. Encara isso como uma troca pelo hidrogênio que roubaram da
Harmonia.
— Onde está a minha mãe? — Gritou subitamente Bird Alyn, tremendo
de angústia. — Que fizeram à minha mãe?
Nakamore olhou espantado para ela; Betha viu-o começar a perceber o
que se passava.
— Bem... A tua mãe vai ter uma dor nos queixos por umas centenas de
megassegundos. Mas à parte disso está melhor do que tu... Ou de que nós...
Agora. Falando no assunto; Capitão Torgussen, tem a minha permissão para
colocar essa carga de gases numa órbita baixa em torno de Lansing. Depois
sou de opinião que as nossas naves se desloquem algumas centenas de
quilômetros. Quando a força da Demarquia chegar, o fogo-de-artifício será
letal num bom volume do espaço; não há qualquer razão para Lansing fazer
parte desse espaço. Alguém poderá ganhar alguma coisa com isto. — Virou-
se, para dar ordens à tripulação.
— Obrigada — disse Betha. Viu o sorriso curioso que ainda estava no
rosto de Wadie virado para o visor. — Quem é este homem? Não o consigo
compreender.
Wadie virou-se para ela, e o sorriso cresceu.
— A sanidade ainda não desapareceu de todo do Céu, Betha. Nem
mesmo nos Anéis... Raul é um homem decente; mas mais do que isso, não é
estúpido. Disse-te que o irmão dele nunca me ganhou uma partida de xadrez.
Durante todo o tempo que passei nos Anéis só ganhei duas partidas a Raul.
Ele ainda pode ter algumas surpresas na manga.
Betha esfregou os braços.
— Tudo o que sei é que enfureceu deliberadamente a Demarquia até ao
ponto em que eles não ficarão satisfeitos até nos verem todos no Inferno. Seja
o que for que ele pense estar a fazer, não gosto nada de lhe servir de isco.

***

A Ranger afastou-se lentamente de Lansing. Betha viu-o ficar mais


pequeno no visor, um mundo de beleza travessa, subindo e descendo em
ondulações suaves sob um filme de plástico transparente remendado aqui e
ali. As árvores subiam até quase atingir a tenda como franjas rendadas;
frágeis fontes de folhas sobre o grão maduro... E campos de relva moribunda.
Viu o verde-veludo dos parques ainda bem regados... E a terra pelada de
pântanos secos. As pessoas moviam-se como num ballet de sonho entre os
minaretes e as colunas dos edifícios do governo, no mundo que fora outrora o
símbolo da magnificência do governo, no mundo que fora outrora o símbolo
da magnificência, e extravagância, do Céu. O último mundo que ela veria...
Olhou para o rosto calmo de Clewell, de olhos fechados, flutuando na cadeira
e escutando a resposta da Demarquia. Receosa da calma tornou a olhar,
afagou, Rusty que ronronava, e tentou recordar as faces queridas dos que já
perdera e dos que estavam no mundo que era o seu lar, que nenhum deles
voltaria a ver. Agora não havia qualquer conforto, qualquer satisfação, nesta
derradeira vingança que o Céu infligiria a si próprio em retribuição pelas
mortes deles e dela própria. Uma consciência terrível invadiu-a, a consciência
da futilidade das últimas semanas passadas e mesmo dos últimos quatro anos.
— Betha... — Wadie mantinha os olhos fixos no visor. — Não sei
como salvar esta nave. Mas podemos abandonar a Ranger e usar a Lansing
04 para nos levar a Lansing. Tudo o que Nakamore quer é o fim da nave, não
o das nossas vidas. Se utilizarmos os fatos todos conseguiremos fazê-lo.
— Não. — Betha apertou com os braços os músculos doridos da
barriga. — Não abandono a Ranger. Mas vocês ponham os fatos e saiam.
Não há nenhuma razão que os obrigue a ficar; pelo menos salvem-se.
— Que queres dizer com isso de não abandonares a nave? — Wadie
impulsionou-se do painel e veio agarrar-se ao braço da cadeira dela. — É
apenas uma nave, Betha; não controla a tua vida. Não estás amarrada a ela
por cadeias.
Ela acenou com a cabeça.
— Tu ainda não compreendeste, pois não? Depois de tanto tempo...
Esta é a minha nave. Tomei parte no seu desenho e na sua construção. A sua
tripulação eram as pessoas que eu amava; esta viagem significava tudo para
nós, o futuro do nosso mundo... Tudo aquilo que me liga ao meu povo, ao
meu passado, ao meu lar. Não posso abandoná-la. Não quero perder tudo e
viver para sempre no lugar onde isso vai acontecer. Não quero viver assim.
— E agora quem está a entregar-se ao egoísmo supremo?
A boca dela fechou-se.
— Não vai ferir ninguém, se não a mim própria... — Compreendendo,
ao ver o rosto dele, que não era verdade.
— Está bem, e... E com respeito a Clewell?
— No que me diz respeito? — Clewell abriu os olhos, irritado, ainda
preso ao painel de comunicações. — Não tenho intenção de trocar a Ranger
por aquela escória-tamanho-família que está ali.
— Vá pró diabo, estás a torná-la ainda mais teimosa. Porque não lhe
diz que ela está errada?
— Ela é minha mulher, não minha filha. Tem o direito de decidir por
ela própria. E eu também... Vivi já demasiado, se é que vivi para ver este dia.
O meu corpo já conhece a verdade. — Tornou a fechar os olhos. — Agora
deixem-me fazer o meu trabalho; monitorizar a Demarquia a esta distância
não é nada fácil.
— Que nos possa trazer algum bem. — Wadie voltou ao painel,
massajando os músculos doridos do pescoço. — Muito bem, então... Eu
também fico. Penso que mereço esse direito. Perdi tudo o que sempre prezei
por causa desta nave.
Betha manteve um ar impávido, tirando toda a emoção da sua voz.
— Não consegues fazer chantagem comigo para me fazeres mudar de
ideias, Wadie.
Ele curvou-se solenemente.
— Não é essa a minha intenção. Deixa-me o privilégio de tomar a
minha decisão, uma vez que esperas que eu aceite a tua. Prefiro morrer como
um mártir do que como um traidor.
Ela suspirou, cravando as unhas na palma das mãos. «Obrigada.»
— Então tudo bem. Visto isso só vocês os dois irão para Lansing.
Bird Alyn levantou a cabeça do ombro de Shadow Jack e ficou a flutuar
agarrada a ele.
— Não, Betha, nós não vamos.
— Bem, escutem-me...
— Não — disse Shadow Jack. — Fizemos tudo o que queríamos fazer
por Lansing. Mas não há ninguém que possa fazer nada por nós. Preferíamos
ficar... Juntos... Agora, mesmo por pouco tempo, do que ficar separados para
sempre. — Ele olhou para a porta.
— Percebo. — Betha acenou com a cabeça, quase sem ouvir a própria
voz. — Venham cá, ambos. — Eles flutuaram obedientemente. Betha tirou
um anel de ouro de cada uma das suas mãos. Depois tomou as mãos
esquerdas deles, uma de cada vez, e enfiou um anel num dedo fino e
escorreito e outro num dedo fino e estropiado. Colocou as mãos juntas para
evitar que os anéis flutuassem livres. — Pela autoridade que me é concedida
como capitão desta nave, declaro-vos marido e mulher... Que o vosso amor
seja tão profundo como a escuridão e tão constante como o sol.
As mãos deles agarraram a dela por um momento; sentiu as de Shadow
Jack tremerem. Virou-se e ouviu-os deixar a sala. Os olhos de Clewell
tocaram-na numa caricia.
— Pappy, deixa o rádio por um minuto. Temos de deixar àquela gente
algum hidrogênio...
Faltavam mil e setecentos segundos para o encontro.

***

Vista a trezentos quilômetros de distância, Lansing era um crescente


verde meio escondido na escuridão. Suficientemente longe, assim o esperava
Betha, para sobreviver aos fogos que arderiam no Céu. Por todos os lados
havia o vazio enchendo os anos-luz até às estrelas. E a Ranger fora
construída para unir essas distâncias a velocidades que se aproximavam da
velocidade da luz. Mas nunca as voltaria a atravessar... Estava encalhada
como uma baleia na praia, nestas costas desoladas do Céu, apanhada numa
armadilha por naves primitivas com armas primitivas, numa derrota final e
irônica.
— Quinhentos segundos — disse Wadie. Rusty enroscou-se
serenamente no seu braço e começou a lavar uma das patas.
Betha acendeu o cachimbo e inalou o odor familiar e calmante do
fumo.
— Isso é quando passará a primeira nave; vão passar com intervalo de
uns cem segundos umas das outras. Mas não interessa... Agora já não
podemos cumprir a ordem de MacWong.
Clewell riu subitamente, aliviado.
— Então, Pappy, de que diabo estás a rir?
Ele pediu desculpa com a cabeça.
— Da reação da Demarquia ao discurso de Nakamore: a sua justa
indignação por serem chamados aquilo que são.
— Então aumenta o som — disse Abdhiamal, estranhamente alegre. —
Quero ouvir isso.
Uma forte estática misturada com um discurso distorcido encheu a sala.
Clewell baixou o volume.
— Desculpem, mesmo com amplificação é preciso uma certa prática
para perceber isto.
Quatrocentos segundos.
Clewell tirou os auscultadores.
— Meu Deus, Betha, penso que agora estão a votar... A votar se nos
hão de deixar ir embora.
Betha empurrou-se da cadeira e foi bater no painel com um gemido.
— Pappy, não podes aclarar a transmissão?
— Tentarei. As naves de MacWong estão próximas, devemos estar na
direção do feixe vindo da Demarquia.
Conseguiu uma imagem no visor; Betha viu letras, ilegíveis devido à
estática, e reconheceu o modelo de uma votação geral da Demarquia. Uma
faixa de amarelo dourado brilhava no fundo do visor.
— Demoram quinhentos segundos a fazer uma contagem total.
— Quinhentos! Cristo! — Sentiu Wadie aproximar-se e a manga dele
tocar-lhe no braço. — Pappy, chama a nave de MacWong.
— Já tentei. Não estão a falar.
Ela quase conseguia ler os números, quase que os via mudar. E, ao lado
daquela imagem toldada pela estática, os dispositivos da Ranger projetavam
o rasto das três naves que se aproximavam num céu pleno de estrelas. Três
naves que agora pareciam faróis, com os jatos dos exaustores à sua frente,
desacelerando. No brilho procurou um rasto mais pequeno, a semente da
destruição. «Dá-nos tempo, MacWong...» Clewell deixou o seu lugar e
colocou-se a seu lado; ela deu-lhe o braço. Os dígitos do cronômetro
diminuíram como a areia numa ampulheta, erodindo-lhes as vidas. Cem
segundos até a primeira nave passar... Sessenta... Cinquenta... Apercebeu-se
de que parara de respirar.
— Cederam! Quarenta segundos; essa nave já não pode disparar contra
nós.
O rosto de MacWong apareceu por baixo da contagem.
— Capitão Torgussen. — Eles viram a tensão no rosto dele e nos dos
que o rodeavam. — Estamos mesmo agora a receber os resultados de uma
votação da Demarquia. A maioria aceita a vossa ajuda a Lansing como prova
de boa vontade, capitão, e permite uma modificação da nossa missão...
Espero que estejas a ouvir, Nakamore; acabaste de assistir à demonstração da
real flexibilidade e força do povo, da sabedoria e justiça do sistema
demàrquico.
Olhou para os lados, para os homens das câmaras, e voltou a encarar o
visor.
— Capitão Torgussen, a Demarquia permitirá que partam... Se nos
assegurar que a Demarquia será o centro de distribuição da vossa ajuda
quando voltarem ao Céu. — Os olhos dele pediam-lhe que prometesse tudo.
No centro do visor Betha viu a segunda nave da Demarquia passar por
eles.
A imagem de Nakamore surgiu no visor.
— Sabes bem que não posso aceitar tal coisa, MacWong. — A sua voz
era velada, já não pretendendo abranger um povo inteiro.
— Não peço que o controlo fique na Harmonia. Apenas que não fique
nas tuas mãos.
Betha ficou parada, compreendendo que Nakamore mesmo assim os
deixaria partir. Uma promessa feita à força não era uma promessa... E não
trazia qualquer solução. Tinha de haver uma maneira de contentar os dois
lados, ou a próxima nave de Alvorada a chegar ao Céu cairia nos mesmos
perigos mortais. Ouviu chegar alguém atrás dela, e virou-se: eram Shadow
Jack e Bird Alyn, calmamente de mãos dadas.
— Que aconteceu? — Bird Alyn tirou o cabelo sedoso e flutuante dos
olhos e observou o visor.
Betha tornou a encarar o visor onde os olhos pálidos de MacWong
esperavam uma resposta.
— Será Lansing! Digam aos vossos povos, Nakamore e MacWong. As
condições de Alvorada são as seguintes: a nossa ajuda será distribuída por
intermédio de Lansing, a capital do Cinturão do Céu. Nenhum dos vossos
governos será favorecido, todos serão tratados com igualdade.
Eles olharam para ela, parecendo imagens irreais; viu Tiriki reagir,
mexendo a boca
—...Um truque... Quero essa nave destruída...
Wadie colocou-se atrás dela.
— Lansing é inofensivo, Lije! A Demarquia aceitará; tu sabes que
aceitará!
MacWong recuou quando Tiriki lhe agarrou o ombro; Betha viu a raiva
no rosto de Tiriki. Ela olhou para os dados do computador:
A última nave passará a apenas trinta quilômetros; podem alvejar-nos à
queima-roupa. — Apontou para o visor. — Se não virmos a nave passar,
seremos poeira entre as estrelas...
Atrás dela, Shadow Jack disse solenemente:
— Queres dizer que estaremos mortos.
MacWong soltou-se das garras de Tiriki. Ela não lhe podia ver o rosto,
pois ele virou-se para as lentes da informação e deu uma ordem...
Nakamore começou a rir.
— Obrigado, filho do caos!
Um rasto violeta pálido quase invisível, iluminou a escuridão do visor
durante o tempo de uma batida de coração, e desapareceu. A terceira nave
passara.
«RANGER» (ESPAÇO DE LANSING)
+ 3.15 MEGASSEGUNDOS

As colheitas podem murchar na planície


O sol pode queimar-nos, a chuva enlouquecer...
Clewell amarrou-se na cadeira de navegador, sentindo uma nova força
e satisfação encher a fraqueza oca das suas pernas. Olhou para as imagens
refletidas no painel: Shadow Jack com Bird Alyn nos seus braços, enquanto
ela serenava a infeliz gata que flutuava a meio da sala.
Partilhar ajuda-nos na dor...
Os representantes do Cinturão do Céu... Clewell sorriu, vendo-os
muitos anos mais velhos e sábios, muitos anos no futuro, voltando a Lansing.
— Nunca pensei que diria isto, mas sinto-me capaz de viver outros
sessenta anos...
Bird Alyn apoiou os pés na parede para se aproximar dele.
— Ainda não acredito que tudo isto é real, Pappy. Como aconteceu
isto? Como conseguimos nós escapar? — Shadow Jack beijou-lhe o rosto; ela
deu uma risadinha.
Wadie afastou-se do visor, onde Lansing estava na noite vazia: uma
crisálida esperando para renascer num novo ciclo de vida.
— Nada esteve certo no Cinturão do Céu durante dois biliões e meio de
segundos, Bird Alyn. Ha ali uma centena de milhões de cadáveres e só Deus
sabe quantos vivem no Inferno... — Bird Alyn sorriu vacilante; Shadow Jack
abraçou-a. O passado ensombrou-lhes os olhos.
Wadie abanou a cabeça.
— Já devemos ter pago mil vezes os nossos erros. Diabo, é tempo de
termos um pouco de sorte! Já não é sem tempo!
As faces deles suavizaram-se. Clewell viu Betha desviar os olhos do
painel, cobrindo outras memórias e outras penas.
— Sim, é. Pappy — a voz dela era doce —, tudo seguro, o céu está
vazio. Começa a traçar a nossa rota; já é altura de voltar a casa.
Wadie colocou-se ao lado dela; Clewell viu a mão dele erguer-se,
hesitante, e afastar-se ainda incerta. Estivera ao lado dela dias e dias:
ajudando, aprendendo... Observando Betha Torgussen com uma atenção que
nada tinha a ver com a tecnologia da nave. O homem que seria um herói
quando a nave voltasse, dissera MacWong; mas que, por agora, era ainda um
traidor... E o único consultor comercial que satisfazia simultaneamente a
Demarquia e os Anéis. Um bom homem, pensou Clewell; o homem certo. Tal
como outro homem que amara a sua mulher e sido seu amigo.
Clewell sentiu mais uma vez os olhos de Betha tocarem-lhe, tão azuis
como um campo de flores, mas ainda ensombrados por recordações e dor. «O
tempo cura tudo...» e agora eles teriam todo o tempo que necessitassem. Ela
mudou a imagem no visor. Mostrou-lhe inúmeras estrelas; e uma entre esses
milhões — pequena, vermelha e constante— iria guiá-los até casa.
O riso flutuou na sala e pelas escadas abaixo quando Bird Alyn e
Shadow Jack, descuidados e despreocupados, puseram para sempre o passado
para trás das costas.
Rusty subiu-lhe aos ombros, ronronando em total harmonia com a
recordação da canção:
Partilhar ajuda-nos na dor,
Porque nada é fácil, meu filho
Viu os rostos dos seus outros filhos que, tinha esperança, viveriam para
ver o mundo melhor que tanto custara e tanto demorara a chegar.
— Rusty — disse baixinho —, já não era sem tempo...

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