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Estranho & Incomum

Autor: Tany Isuzu


Revisão: Tany Isuzu
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Existe algo que faça o seu coração bater mais rápido?


Um mero estudante do ensino médio como eu se sentiu o rei do mundo ao
encontrar uma cartinha com letra feminina presa no portão de casa. Era breve,
“encontre-me nos fundos da escola antes das aulas começarem”. Eu tinha mi-
nhas suspeitas sobre sua autora, no entanto, não queria colocar nenhuma car-
roça na frente dos bois.
Agradeci ao fato de minha mãe ter me tirado da cama mais cedo aquele dia,
mal continha minha alegria enquanto corria até lá, torcendo para dar tempo. Ah,
uma confissão! Eu era um felizardo!
Respirei fundo e fui diminuindo o ritmo até chegar ao local combinado, não
queria me passar como afobado. Mas, se fosse mesmo quem eu pensava, ela não
ligaria, provavelmente acharia fofo como me animo demais.
A menina na minha mente era a Larissa. Éramos amigos desde que me lem-
bro por gente. Até uns anos atrás, eu jamais imaginaria ficar tão feliz com a pos-
sibilidade de ouvir uma confissão dela, porém, com o passar dos anos, minha
amiga de infância foi ficando mais e mais linda. Estava se tornando uma beldade.
Sempre foi meio estranha, tinha uns papos meio doidos de coisas obscuras
que nunca entendi, o que a fazia ter poucos amigos. Mas era uma garota feliz e
cheia de vida. Eu seria um sortudo se recebesse uma confissão dela.
Ao chegar no local indicado, ainda era bem cedo, faltava meia hora para as
aulas começarem. No entanto, ela estava já lá. Virada de costas para mim, mas
deve ter me ouvido chegar, atrapalhado e nervoso. Ela se virou devagar para
mim e sorriu. Não era o seu sorriso de sempre, parecia mais travado e robótico.
Pensei que seria por estar tão nervosa quanto eu, por isso não conseguia agir
como sempre.
Entretanto, sua voz calma e sem vida me tirou dessa ilusão.
Existe algo que faça o seu coração bater mais rápido?
A destruição do que eu considerava normal fez isso comigo.
— Sou uma manticora — disse ela.
Dessa forma, exatamente dessa forma robótica e estranha, minha vida foi
jogada de pernas para o ar por quatro dias.

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Existe uma festa regional aqui na cidade, chamada de O Bom Jesus da Cana Verde,
não e muito conhecida fora do sul do Brasil, mas é bem popular aqui nos arredo-
res. Muita gente vem durante o mês de agosto para a festa religiosa, pois o san-
tuário da cidade é famoso por isso. Que acaba atraindo vários vendedores e até
um parque de diversões ambulante.
Este ano, eu esperava me confessar para ela. Ou o contrário. E podermos,
quem sabe, nos beijar e fazer coisas de namorados dentro da roda gigante, mas...
nada saiu como o esperado.
— Sou uma manticora.
— Uma o quê?
— Uma manticora — repetiu, calma.
— Calma, calma. Que que é isso, Larissa? — Deu a louca nessa menina ou o
quê? Sério que ela me fez vir aqui correndo só para me pregar uma peça? Tem
alguém nos filmando com o celular escondido por perto? — Me poupa, vai, não
acredito que vim cedo aqui pra ouvir isso...
— Não estou mentindo. Sei que é repentino, mas quis revelar a verdade a
você o quanto antes.
Parei naquele instante e olhei para ela.
— Quê?
— A Larissa foi morta.
Eu jamais conseguiria imaginá-la inventando algo assim.
A cara que a pessoa na minha frente fazia não era em nada parecido com a
Larissa que eu conhecia.
Mesmo sendo idêntica.
Isso me dava um nó no estômago difícil de colocar em palavras.
Ainda assim, eu não iria cair nesse papo tão fácil.
Como eu poderia, só com isso?
— Isso está indo longe demais para uma piada. — Deveria ser uma pegadi-
nha de mau-gosto, ou ela que ficou biruta de vez, só podia.
— Eu não sou a Larissa, mesmo que esteja usando a aparência dela. Eu não
sou um ser humano.
— Não, já deu, para com isso. Tem alguém filmando aqui perto? — Olhei em
volta. Minha voz começou a ficar mais aguda.
Seria verdade?

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Mas ela estava na minha frente!


— Para com isso, Larissa... Por favor — supliquei. Dei alguns passos para
trás e encostei as costas contra um muro.
— Sinto muito.
Era verdade mesmo? Ela continuar repetindo que sente muito doía como
pregos sendo enfiados em mim.
Eu não conseguia erguer a cabeça e encarar o que quer que estivesse na
minha frente. Mas, pelo volume de sua voz, pude supor que se aproximava de
mim.
— Por quê? Por que logo eu?
— Porque... — Sua breve pausa foi o bastante para que eu a fitasse de novo.
Fazendo uma cara realmente triste, eu queria, mas não conseguia pensar que se
tratava de fingimento. — Porque a Larissa amava você.
Olhei para ela, incrédulo.
Pisquei por um segundo.
Mas ela já não estava mais lá.

Existe algo no comportamento humano capaz de explicar por que fui a escola
normalmente. Assisti as aulas, mesmo nada entrando em minha cabeça. A capa-
cidade humana de se ater à normalidade perante qualquer acontecimento ab-
surdo ou doloroso é impressionante.
A Larissa não veio à aula.
Eu passei a maior parte do dia olhando para a janela e tentando digerir o
que aconteceu. Não sou uma pessoa de muitos amigos, costumo ficar sozinho
quando ela falta à aula.
Fiquei alternando entre olhar para a janela e ficar mexendo na pulseira de
contas em meu braço. Foi um presente da Larissa. Mais um papo estranho dela.
Proteção contra o oculto ou sei lá. Ela me deu de presente há dois anos, de ani-
versário, e insistiu para que eu usasse sempre.
Na época, fiquei bravo, pensando que ela estava sendo mesquinha e não
queria me dar nada de aniversário. Mesmo tendo usado todo o dinheiro da mi-
nha mesada para o presente do aniversário dela.

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Mas ela fazia questão. Disse que era muito importante e pá. Nós brigamos
no dia. Acabei cedendo e passei a usar a pulseira no dia seguinte.
O sorriso dela quando me viu com esse presente caseiro.
Mesmo na época, ela já era uma garota muito bonita.
Segundo ela mesma essa manhã, eu nunca mais veria aquele sorriso.
Não podia ser verdade, eu tentava me convencer.
Mas algo em mim acreditava que era.
Saindo da escola, vagueei pela cidade, pegando caminhos aleatórios, não
queria ir para casa.
Recebi uma ligação da minha mãe enquanto andava sem rumo.
— Onde você se meteu?!
Eu não sabia mesmo onde estava, devo ter ficado dobrando esquinas a
esmo e me perdi na própria cidade.
— Desculpa, mãe, eu estava dando uma volta depois da aula e acabei per-
dendo a noção do tempo... — Minha voz saiu desanimada. Eu não queria preo-
cupá-la.
— Ai, você sabe que vem muita gente de fora nessa época, tome cuidado.
Mas liguei pra perguntar se você viu a Larissa. A mãe dela veio aqui desesperada,
parece que ela sumiu ontem à noite e não a encontram em lugar nenhum...
Ela havia desaparecido?
— Eu não vi ela — menti. Como eu poderia explicar para a família da Larissa?
Olhei ao redor, perdido, procurando algum indicativo de onde estava, ha-
via andado até perto do Santuário. Estava procurando por um atalho para casa
enquanto apenas respondia minha mãe com monossílabas quando vi um perfil
familiar.
Era a fonte de todos esses problemas.
— Desculpa, mãe, eu ligo depois. Preciso resolver algo.
E desliguei.
Haveria um sermão por desligar na cara dela, mas isso não importava agora.
Minha amiga de infância estava andando entre várias barracas sendo mon-
tadas. Ou a imagem dela.
Ela não havia sumido. Estava bem aqui.
Consegui alcançá-la e puxei seu braço.
— Ei, Larissa!

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Mas o rosto que se virou para mim não era o dela.


Era o mesmo rosto sem expressão de antes.
— O que você quer?
Eu não respondi. Fiquei encarando seus olhos inexpressivos. “Larissa” se
irritou com aquilo e, com uma força inesperada, me puxou para longe. Fomos
para um pequeno bosque atrás da aglomeração de barracas e caminhonetes.
Ela me jogou contra uma árvore e pressionou meu corpo com seu braço.
Estávamos longe da vista de todos, dificilmente alguém perceberia duas pessoas
ali.
— Eu já passei o recado. Não venha até mim.
— Que recado o quê? Que papo é esse de que você morreu?
— Eu já disse que não sou ela. Sou uma manticora. — Então, como quem
tem uma ideia, ela deu alguns passos para trás. — Isso vai chocá-lo, mas quem
me deixou sem opções foi você.
— Como assim...?
Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela já não estava mais na
minha frente. Não, não havia um ser humano na minha frente.
Havia um monstro.
Um monstro indescritível.
Uma criatura além de qualquer compreensão. Seu corpo parecia ser for-
mado de várias partes de animais que eu conhecia, mas muito mais letais, eu não
compreendia o que era o que. Onde a criatura começava e onde terminava.
Mas eu sabia que ela poderia me matar como bem entendesse.
Minhas pernas perderam a força, meu corpo foi escorregando até cair no
chão.
Aquela criatura iria me matar. Eu queria gritar, mas não tinha voz. Era o
meu fim. Então fiz a coisa mais humana que me restava: vomitei.
Coloquei tudo para fora.
Então senti uma mão nas minhas costas.
— Acalme-se. — Ouvi-la dizer, com a voz da Larissa, de forma incisiva.
Olhei para cima, e vi o rosto da Larissa.
Não, o rosto daquela criatura na forma da Larissa.
Sem sinal do monstro de antes, eu ainda estava apavorado.
Não tinha como ficar bem após presenciar aquilo.

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— Acalme-se — repetiu.
Suas palavras carregavam algum poder, demorou um pouco, mas voltei a
raciocinar. Como se estivesse dopada, minha mente saía de seu estado frenético
e voltava a funcionar muito devagar.
— Respire fundo.
Obedeci. Sentido meu cérebro ir de oitenta para oito de repente.
Uma expressão de alívio se fez no rosto dela, mas seus olhos tinham um
pequeno brilho desapontado escondido.
Demorou uns cinco minutos, mas, gradualmente, voltei a mim.
Que poder era aquele?
— É esse tipo de reação que eu espero de humanos — disse e se agachou ao
meu lado. Sem jeito. Ela tentou me abraçar. Foi um abraço meio cru. De alguém
que não sabia o que deveria fazer. — Eu sinto muito.
Sua voz e expressão continuaram neutras, mas ela me soltou e desviou o
olhar.
Eu fiquei parado, vendo-a fitar o chão com o mesmo rosto da minha amiga.
Apertei minhas mãos.
Eu ao menos queria entender alguma coisa.
— Como ela morreu? — perguntei, com a voz baixa, sofrida.
“Larissa” olhou para mim, parecia surpresa, mesmo com o rosto inexpres-
sivo.
— Eu tenho o direito de saber — disse, após ficar pensando um pouco.
— Ela foi morta por uma fada.
— Uma fada?
— Sim.
Eu já não entendia mais nada.
Mas ela disse da mesma forma que anunciou a morte da minha amiga de
infância na manhã de hoje. Não deveria ser mentira. Por mais que fosse estranho,
eu confiava que aquela pessoa ou criatura não estivesse mentindo para mim.
Porque... o rosto dela...
— A Larissa foi morta porque eu falhei em matar uma fada nas redondezas.
A culpa foi minha. Eu deixei ela morrer.
Era o de uma pessoa dividida entre o luto e a raiva.
Por mais inexpressiva que sua natureza fosse, eram traços distinguíveis.

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Mais ainda por serem rostos que eu nunca vi a Larissa fazendo.


Porém, uma coisa era certa...
Ela estava sofrendo, possivelmente mais do que eu.
— Mas... — disse após o pequeno silêncio que se formou entre nós. — Eu vou
matar essa fada e vingar a Larissa.
Seu ódio era palpável. Seus olhos ainda encaravam o chão.
Eu apenas fiquei boquiaberto. Era um mundo desconhecido a mim. Fadas.
Minha amiga morta. Essa criatura. Alguém pare, eu quero descer.
— Eu me descuidei, e você conseguiu me encontrar. — Ela se voltou para
mim, aproximando-se e colocando uma mão sobre os meus olhos, fechando-os.
— Isso não vai se repetir. Você vai esquecer que me revelei e vai voltar a sua vida
normal. Não posso trazer sua amiga de volta à vida, mas posso me vingar por
você e todas as pessoas que amavam ela. Portanto, agora, você vai voltar para
sua casa e depois vai aceitar que sua amiga morreu.
Senti a palma de sua mão, da mão da Larissa, se afastando.
Abri os olhos na mesma hora.
Mas ela não estava em lugar algum.
Olhei ao redor, nem sinal.
Onde ela poderia ter ido? E tão rápido?
E, acima de tudo...
— Você só pode estar de brincadeira...! — Soquei uma das árvores. — Quem
você pensa que é, porra!
Como se você pudesse entender qualquer coisa!
Como assim, a Larissa se foi?
Morta por uma fada?
O que raios isso tudo significa, caramba?!
Eu não posso ficar com meias-explicações assim!
E aquilo... aquilo! “Vai se vingar por nós!” uma ova! Quem você pensa que é
ou acha que tem o direito de decidir que vai carregar o pesar dos outros sozinha,
sem mais nem menos?!
Eu queria gritar. Eu queria chorar. Eu queria que tudo fosse um pesadelo.
Mas era real.
A dor no meu punho por ter batido na árvore era real.
O som dos pássaros era real.

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O calor do sol era real.


O fato de que eu jamais veria a Larissa novamente também.
Arrastei meu corpo até em casa. Era bem no meio da tarde. Apenas me jo-
guei sobre a cama e tentei lidar com tudo. O tempo passou sem eu me dar conta,
se passou um segundo ou algumas horas, mas ouvi o som do portão se abrindo.
Minha mãe devia ter chegado em casa.
Seus passos cheios de fúria eram perceptíveis a quilômetros. Ela adentrou
o quarto igual uma tempestade furiosa, batendo a porta. Mesmo com aquilo,
continuei deitado e sem responder.
— Miguel, você tem ideia do quanto eu liguei para você?! Sabe o quão pre-
ocupada eu fiquei?! — Seu rosto vermelho e cheio de lágrimas não me fez reagir.
— Desculpa, mãe...
— Você acha mesmo que desculpas são o bastante...
— Eu não achei a Larissa... — interrompi-a.
— Ah. — Ela engoliu em seco. Eu sei que foi estúpido da minha parte falar
aquilo, pois, segundo a “Larissa”, eu sou a única pessoa que sabe da morte da
Larissa ainda, mas não estou apto a uma sessão de sermões, por mais merecidos
que sejam. — Eu sinto muito, querido...
Ela sentou perto de mim na cama e, em uma diferença total de cinco segun-
dos atrás, começou a acariciar a minha cabeça.
— A família dela já avisou a polícia, mas não a encontraram ainda. Eu temo
que devemos nos preparar para o pior... A Larissinha era tão nova...
Ela soluçou um pouco.
Minha mãe nos acompanhou crescer lado a lado. Devia estar sendo difícil
para ela também. Seria difícil para todos. Eu nem quero imaginar como os pais
dela deveriam estar se sentindo...
Não percebi quando ela saiu do quarto, o sol já havia se posto do lado de
fora da janela.
Aos poucos, fui caindo no sono.
Fui envolvido por uma lembrança agridoce... De quando meu pai morreu, e
a Larissa ficou me confortando. Tínhamos apenas dez anos. Foi um acidente de
carro. Minha mãe não parava de chorar, ela sempre fui muito emotiva, mas pio-
rou bastante após a morte dele. Eu não derramei uma única lágrima durante o

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anúncio, o velório, a vinda de parentes. Precisava permanecer forte enquanto


minha mãe chorava. Eu era o homem da casa agora.
Porém, enquanto todos se despediam do corpo, e eu estava sentado lá, de
rosto tenso, uma pequena mão envolveu a minha.
— Está tudo bem chorar — disse a garotinha de vestido preto. Seu sorriso
era triste, seus olhos estavam um pouco inchados por ter chorado. Ela segurava
minha mão com força.
Eu não aguentei mais.
As lágrimas começaram a brotar. Por que meu pai? Por que eu teria que
ficar sem ele a partir daquele momento?
Aquela mesma garotinha puxou minha cabeça para perto de si e a abraçou.
Me senti protegido por seus bracinhos finos.
— Pode chorar — disse, baixinho, só para mim.
Eu chorei muito. Borrei seu vestido com minhas lágrimas, ranho, e tudo
que uma criança de dez anos pode fazer enquanto afoga suas mágoas em outra.
Ficamos ali por todo o velório. E ela ficou segurando forte a minha mão até
o corpo ser enterrado. Depois, voltamos para casa, ainda com ela segurando a
minha mão. Eu já havia parado de chorar, mas não soltei de sua mão.
No dia seguinte, ela foi em casa e me chamou para brincar.
E no dia seguinte também.
E no seguinte.
Parafraseando-a, “eu vou vir todos os dias para colocar um sorriso na sua
cara”.
E agora, Larissa?
Quem vai me fazer sorrir após a sua morte?

Acordei com o rosto inchado de tanto chorar.


Dei “bom-dia” para minha mãe, ela não parecia ter tido uma boa noite de
sono também. Eu iria para a aula hoje, rumores sobre o desaparecimento da La-
rissa já deveriam circular, a cidade não era tão grande.
— Após a aula acabar, volte direto para casa, ok? — disse a minha mãe en-
quanto pegava as chaves do carro e ia embora.
Murmurei uma resposta e me preparei para ir para a escola.

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Era assim que as coisas acabariam?


No entanto, eu não queria deixar isso acabar daquela forma.
Não vou deixar que o que quer que ela era... Uma manticora? O que quer
que fosse uma manticora resolvesse tudo da forma dela. Eu vou conseguir res-
postas.
Em vez de descer a rua como sempre, eu dei algumas voltas, evitando áreas
com muitas pessoas, e voltei para o local de ontem. Comecei a procurá-la.
Não a vi perto de nenhuma barraca já montada. Fiquei dando voltas, pro-
curando pela imagem da minha amiga. Mas nada.
Recebi olhares irritados após a quinta volta pelo terreno. Era a deixa para
sair dali. Eu não poderia sair perguntando pela cidade se alguém a viu, e se minha
mãe descobrisse que matei aula para isso... nem quero imaginar.
Fui em direção a catedral, nunca fui exatamente religioso, mas ao menos
eu poderia sentar e refletir lá.
Ela estava me esperando na entrada.
A mesma cara impassível.
Porém, senti um ar irritado quando ela abriu a boca e disse:
— O que você pensa que está fazendo?
Seu ar ameaçador era forte, seus olhos diziam que me matar seria brinca-
deira de criança para ela.
Mas eu não podia recuar.
— Você chega, diz que ela morreu e agora fica zanzando por aí com o corpo
dela. Já pensou na família dela, caramba?! — gritei a primeira coisa que estava
em minha mente, minha voz saiu dolorida, lágrimas ameaçaram escapar.
Eu próprio estava perdido no que deveria sentir.
Vê-la desfilando, com o mesmo corpo, o mesmo rosto da Larissa, era im-
possível suportar. Era doloroso demais.
Algumas pessoas ouviram um grito e vieram ver o que era, mas antes disso,
fui arrastado para longe outra vez. Sua força era desumana, resistir apenas me
faria torcer o braço.
— Calma, vai mais devagar... — Eu mal conseguia acompanhá-la.
Falar aquilo teve o efeito contrário, senti que meu braço seria arrancado do
corpo enquanto ela me fazia descer a rua por alguns quarteirões até ficarmos
sozinhos em um terreno baldio.

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Ela me jogou com força, quase caí no chão, mas consegui me equilibrar por
pouco. Me virei para encará-la, deparando-me com uma versão irritada da mi-
nha amiga de infância.
Era a imagem de uma mulher não querendo deixar transparecer que estava
brava e falhando miseravelmente.
Eu poderia rir se não soubesse que ela poderia me matar facilmente.
— O que você acha que está fazendo?
— Procurando você — falei como se fosse óbvio.
— Por quê? — Ela batia o pé enquanto perguntava.
— Como assim, “por quê?” Você chegou ontem do nada com esse papo de
que a Larissa... E aí fica andando pela cidade. E como assim ela foi morta por uma
fada? Nada mais fez sentido e... eu quero entender algo.
— Você não deveria se lembrar de mim... o que aconteceu? — Ela murmurou
mais para si do que para que eu ouvisse.
— Você achou que eu esqueceria isso de boa?
Mas ela não me ouviu, parecia pensativa, então, como se tivesse uma epi-
fania, seus olhos se arregalaram e ela agarrou meu pulso de repente, erguendo
até seu rosto. Como se confirmasse algo, ela suspirou e me soltou.
— Eu deveria ter imaginado... A Larissa foi uma idiota em te dar um amu-
leto protetor. O que ela tinha na cabeça? — disse, levando a mão direita até o
rosto.
— Ei, não fala isso da Larissa!
Ela voltou a olhar para mim, com sua expressão neutra.
— Foi uma escolha infeliz. Graças a isso, você não pode ser instigado ontem.
Instigado? Que raios?
— Pelo seu próprio bem — continuou ela. — Me entregue essa pulseira.
Por reflexo, eu joguei as mãos para trás do corpo, ela era rápida, mas não
queria me machucar, por isso consegui desviar.
— Nem ferrando!
— É essa pulseira que faz com que você me encontre. — Ela tentou correr
para as minhas costas, mas consegui puxar a mão para a frente no último se-
gundo e enfiar meu braço dentro da blusa do uniforme. — Não teste minha paci-
ência.

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— Até parece. Foi um presente dela, sem chance de eu entregar para... eu


nem sei o que você é direito, mandicora, mandioca, sei lá.
Ela parou seus avanços e caminhou para a minha frente de novo.
— Você é realmente estúpido, sabia? Ela tinha razão quanto a isso.
— Quê?
— Eu sou uma manticora. Pelo visto você nunca ouviu falar sobre minha
espécie antes.
— Manti...
— Manticora.
Ela deu alguns passos para trás e respirou fundo.
— A forma que você está vendo é temporária. Eu mostrei minha verdadeira
forma a você ontem, deveria ser o bastante para entendesse que não é para se
envolver comigo ou me procurar mais. Recomendo que pare de usar essa pul-
seira por alguns dias, logo vou dar um jeito sobre a ameaça que ronda essa região.
— Espera, eu não estou acompanhando...
— Essa sua pulseira. — Ela virou a cabeça e me fitou. — É um amuleto pro-
tetor, é por isso que você consegue me encontrar, e também é o motivo de eu
não conseguir forçar sua mente a esquecer de mim. — Depois desviou sua aten-
ção de mim e disse, baixinho: — Quem sabe a Larissa não poderia ter sobrevivido
se tivesse ficado com esse amuleto.
Ela havia me dado uma escolha.
Não, um aviso.
Mostrar sua forma a mim ontem foi um aviso.
Não era mais um mundo que eu conseguiria entender.
Ou do qual poderia escapar a salvo.
Mas era certo deixar que as coisas acabassem assim?
Rangi os dentes e me levantei, correndo.
— Espera!
Claro que não.
Eu estava fazendo a escolha errada.
A Larissa provavelmente não aprovaria meu comportamento.
Mas, agora, não tenho mais como perguntar para ela.
E eu não suportaria viver sabendo que perdi a única chance de entender
como perdi a minha melhor amiga.

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— Espera, caramba!
A manticora me ignorou e continuou descendo a rua, ela parecia estar an-
dando, mas seu passo era bem rápido, fiquei sem ar antes de alcançá-la.
— Eu disse pra esperar! — Coloquei uma mão em seu ombro.
Aquilo a fez parar, estávamos chegando a uma área comercial, o que ela
tinha na cabeça, andando com a cara de uma garota desaparecida em uma região
movimentada?
— Por que você me seguiu?
— Porque... — Ainda buscando por ar, eu não tinha uma justificativa, mas,
se deixasse ela ir embora agora, perderia minha única oportunidade de fazer
qualquer coisa. — Porque... eu não quero que tudo acabe assim.
— Acabe assim? A Larissa não vai voltar, não importa o que ninguém faça.
— Sim, mas... Eu não me resolvi com isso ainda.
Ela me encarou, um pequeno indício de confusão escapou de seu rosto
inexpressivo.
— Eu não quero deixar que tudo acabe aqui. Em meias-respostas, com uma
explicação do caramba sobre tudo. Foi morta por uma fada? Você vai se vingar
por todos nós? Pra casa do caralho com tudo isso! Eu quero fazer algo para con-
seguir lidar com isso. — Senti meu rosto ficar pesado, meus olhos ficaram um
pouco úmidos enquanto eu falava, como se confessar tudo que eu estava sen-
tindo a ela fosse resolver algo. — A Larissa... A Larissa que eu via todo dia se foi,
assim, sem mais nem menos? Você aparece do nada e me anuncia isso, espe-
rando que eu aceite sentado? Não tem como! Eu nem sei qual foi a última coisa
que falei pra ela! Isso não pode ser real, eu não quero que isso seja real. Não quero
acreditar que é real, mas eu sei que é. E.. eu só... quero conseguir lidar com tudo
isso.
Levei uma mão ao rosto, com a outra ainda segurando a manticora.
Minha garganta doía.
— Você viu minha verdadeira forma, acha que vai conseguir fazer qualquer
coisa contra o que matou sua amiga?
— Ainda assim... eu quero tentar.
Encarei-a, decidido.
A manticora na forma da minha amiga de infância suspirou.
— Qual o seu problema e o da Larissa, honestamente?

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Fomos para uma barraquinha que vendia bebidas e doces perto da catedral.
Seria problemático se alguém me visse na cidade durante o horário de aula,
minha mãe ficaria sabendo em instantes. Não queria preocupá-la sem necessi-
dade.
Comprei duas garrafas de água e andamos até encontrarmos um local para
sentar. A manticora me prometeu que explicaria tudo se ficássemos a sós. Está-
vamos em silêncio desde então.
O local mais seguro era perto das barracas sendo montadas. De lá, fomos
até um muro com alguns tijolos apoiados, longe da vista de todos.
Vendo-a olhar a garrafa como se nunca tivesse lidado com o objeto antes
era engraçado. Acabei comprando porque precisava beber algo e pensar com
calma, e parecia errado não oferecer nada para ela.
— Como você abre isso? — perguntou, com rosto sério.
Não me aguentei e ri.
— Ei! Eu fiz uma pergunta séria!
— Foi mal, é que eu não esperava isso...
Quem diria que uma manticora não saberia abrir uma garrafa?
Indiquei a tampa com a minha e abri na frente dela, levando até a boca de-
pois. Ela imitou o movimento e pareceu maravilhada ao sentir o gosto da água.
Tomou todo o conteúdo em poucos goles.
Minha primeira impressão dela mudava aos poucos. Ainda parecia um
oposto total da Larissa, mas não era mais uma criatura fria e inexpressiva, como
pensei ontem. Presumi que apenas tivesse dificuldade em expressar emoções
como um ser humano. Mas, vendo-a feliz assim tendo tomado só um pouco de
água... era até fofa.
Parecia uma criança comendo um doce pela primeira vez.
— Vocês humanos criaram uma forma de comercializar água e carregar
sempre consigo, isso é tão prático! E essa água é tão limpa, totalmente diferente
da de um rio ou do mar desta terra!
— Nunca tomou um copo de água antes?
— Não. Fazem décadas desde a última vez que precisei tomar a forma hu-
mana. E nunca interagi de fato com outros humanos, embora observe vocês o

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

bastante, sua cultura ainda me é muito estranha. A Larissa foi a primeira hu-
mana com quem conversei em toda minha vida...
A Larissa realmente adorava esquisitices, mas a ponto de conversar com
uma manticora? Ela sabia o que era uma manticora?
Como eu não disse nada, ela continuou a falar.
— Eu venho perseguindo uma fada há duas semanas, quando cheguei a esta
cidade, ela conseguiu me emboscar e me feriu gravemente. Eu estaria para mor-
rer, mas aí a Larissa me encontrou... Ela é a humana mais estranha que já vi. Não
teve medo da minha forma original, não, na verdade estava até interessada em
saber mais sobre a minha espécie. Ela levou restos de carniça e me abrigou nos
fundos de sua casa por alguns dias. Toda noite ela vinha e conversava comigo.
Era uma garota realmente estranha.
A Larissa não sentiu medo dela na forma de manticora?
Há um limite para o quão estranha uma pessoa pode ser.
Ela falava de umas coisas sem pé nem cabeça às vezes, quando foi que ela
descobriu sobre essas coisas?
Mas ela tem razão em uma parte...
— Eu consigo totalmente imaginar ela perguntando toda animada as coisas
para você? “Uma manticora? De onde você é? Do que você se alimenta?” Essa
sexta, após o jornal...
— Ela realmente fez essas perguntas... Era estranha. Sempre achei que hu-
manos reagiriam como você quando eu me mostrasse perante eles, mas ela nem
tremeu ao meu encontrar.
— Sinto muito ser um bundão — falei baixinho.
— Mas teria sido melhor se ela não tivesse se encontrado comigo.
Aquilo a fez pressionar os lábios.
Um silêncio desconfortável se seguiu até ela voltar a falar, olhando para o
chão:
— Criaturas como eu emitem um cheiro especial, que permite que outras
criaturas saibam onde estou. A Larissa passou tempo demais comigo, e acabou
pegando parte do meu cheiro, o que foi um convite de sobra para a fada.
Apertei a garrafa. O ódio por não saber de nada disso. Por ser incapaz, por
estar ignorante a tudo que aconteceu com a Larissa...
Mas eu precisava engolir esses sentimentos.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Quando você fala em fada... Como uma fada atacou a Larissa?


— Qual a imagem que vocês têm de fadas?
Peguei meu celular e ativei o 3G, por sorte, havia torre ali. Procurei breve-
mente na internet até vir uma imagem da sininho. A manticora retraiu os olhos
em desgosto. Ela não disse, mas imaginei um “humanos são burros” escrito em
sua cara.
— Fadas são criaturas predatórias, até parece que apareceriam nessa forma
amigável. Essa imagem está totalmente errada. — Ela se levantou. — Elas pode
tomar formas ainda piores do que a minha original, mas os humanos acham que
são coisas lindas e fofinhas, tenha-me dó!
Ela estava fula. Era uma sensação nova ver um rosto que cresceu a meu
lado fulo daquela forma. Não que a Larissa nunca se irritasse, mas jamais dessa
forma.
Chegava a ser meigo, como uma criança emburrada.
— Existem vários tipos de fadas, mas as que atacam humanos são raras. São
presas para o meu tipo.
— Ela não poderia nos atacar agora?
— Não. Essa fada age durante a noite. Elas costumam pegar humanos soli-
tários e dificilmente devoram várias presas de uma vez. A Larissa deve ter sido
uma refeição equivalente a um mês para aquela fada desgraçada...
— E o corpo dela?
Ela parou por completo. Pareceu até parar e respirar.
Seus olhos se fecharam por alguns instantes antes de me responder.
— Estava em um estado lastimável quando a encontrei, não sobrava nada
para reconhecê-la além do cheiro. Eu a enterrei longe da casa dela.
— Entendi...
— Vai tomar? — Ela apontou para a garrafa de água em minhas mãos.
— Hã? — Eu tinha até esquecido dela. Tomei apenas dois goles rápidos, es-
tava com mais da metade do conteúdo ainda. — Hã... você quer?
Seu olhar expectante me venceu. Dei a água para ela.
A alegria daquela criatura ao tomar todo o conteúdo da garrafinha foi uma
boa mudança para nossa conversa. Era uma felicidade genuína.
Pensando bem, estávamos compartilhando da mesma garrafa...

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Porém, não era o momento para pensar uma besteira dessas. Algumas pes-
soas se aproximavam de nós, ofereci a minha mão para ela, que hesitou um
pouco, mas aceitou. Então começamos a subir a rua. Eu não tinha um objetivo
em mente, mas não queria que qualquer um visse a Larissa, especialmente do
meu lado, enquanto ela estava desaparecida.
— Pessoas normais podem ver você?
— Não. Só você, graças ao amuleto protetor.
— Amuleto protetor... A pulseira?
A fim de evitar a avenida, acabamos dando uma longa volta por alguns
quarteirões, conferi a hora no celular enquanto andávamos, ainda de mãos dadas
com a manticora.
Eu não esperava, mas sua mão era quente.
Nada a diferenciava de uma pessoa normal.
— Sim. A Larissa quem deu a você, certo?
— É, foi um presente de aniversário...
— Aniversário? — Sua voz parecia confusa por um momento. — Esse amu-
leto impede que você seja instigado por forças superiores. Também permite que
você consiga me ver, o que é bem problemático. A Larissa deveria ter ficado com
ele em vez de ter dado a você, assim meu cheiro não teria ido para ela...
— Calma, mais devagar... — Meu ritmo foi desacelerando até finalmente pa-
rar quando reconheci uma casa no canto da rua.
Havíamos chegado no quarteirão de casa. A casa da Larissa era duas qua-
dras na frente. Droga. Olhei o relógio de novo. Faltava uns cinco minutos para às
onze. Eu poderia inventar de que passei mal e pedi para voltar para casa ou que
tive aula vaga... Mas como poderia explicar a manticora do meu lado?
Minha mãe voltaria para seu horário do almoço às onze e meia, eu tinha
tempo para pensar em algo.
— O que foi?
— Estamos chegando perto da minha casa, vai ser um problema se a minha
mãe nos ver... Tipo, eu matei aula, e estão procurando pela Larissa...
— Entendi.
Ainda sem soltar a minha mão, ela me puxou em direção da casa da minha
amiga de infância. Eu poderia fazer o caminho de olhos fechados.
Ela tirou uma cópia da chave do portão de um dos bolsos de sua calça.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Quê?
— Roubei essa cópia quando assumi a forma dela. Posso assumir a forma
dela, mas não posso criar roupas do ar. E também precisaria vir aqui e instigar
os pais dela em algum momento. Eles não estão aqui agora, podemos entrar e
conversar.
— Eu sei que os pais dela não estão aqui! Mas é de muito mau gosto, sabia!
— Esse é um valor meramente humano.
Ela já estava abrindo a porta da frente.
Eu precisava me lembrar de que ela não era humana.
Mesmo tendo visto com meus próprios olhos, eu tentei me enganar com
uma falsa normalidade enquanto conversávamos.
Segui a manticora para dentro da casa da Larissa.
Ela estava parada, olhando a sala de estar, não devia conhecer o interior
direito.
Andei como se fosse a minha própria casa e fui para o quarto da minha
amiga. Suas cortinas cor-de-rosa, o ursinho de pelúcia velho sobre sua cama, a
escrivaninha e o armário que herdou dos avós há anos e se destoavam de todos
os outros móveis do quarto... Tudo me lembrava dela, das incontáveis vezes em
que vim aqui, sentei na única cadeira do quarto enquanto ela sentava na cama e
ficávamos conversando. Ela me mostrava alguma coisa estranha que pesquisou
na internet ou alguma coisa aleatória que leu em algum livro esquisito da avó,
eu respondia sempre que não tinha como aquilo ser verdade. Ela brigava comigo,
mas acabava me falando em detalhes, mesmo assim.
O que eu não daria para que a garota atrás de mim gritasse que foi tudo
uma pegadinha idiota e sentasse na cama, rindo da minha cara...
Sentei na cama, não queria tentar ver a Larissa sobre a imagem da manti-
cora, nem que por acidente. Não queria ver ela na mesma posição que a minha
amiga.
Precisava aceitar que não veria a Larissa de novo.
Eu provavelmente não entraria neste quarto de novo após hoje.
Não sei se conseguiria, ou se os pais dela deixariam.
Havia várias memórias as quais nunca dei o real valor aqui.
Eu queria muito que você me contasse sobre alguma coisa estranha nova,
Larissa. Deveria ter dado mais atenção.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Se soubesse a real importância, se soubesse que era real, eu poderia ter mu-
dado alguma coisa?
Respirei fundo e forcei meu rosto a conter as lágrimas.
— O que você falou... — Parei. Minha voz saiu trêmula. — O que você falou
antes sobre instigar...
— É uma qualidade, melhor, em termos que você entenda, é como um po-
der de forçar alguém a fazer algo que quero. Não é controlar a mente da pessoa,
mas sim induzi-la a pensar que ela queria fazer aquilo. Costumo induzir todos
os humanos que olham para mim a ignorar a minha presença. Por isso ninguém
repara enquanto ando pela cidade, mesmo sendo idêntica à Larissa.
— Faz sentido...
— Eu usaria isso para me livrar da fada e não alertar nenhum ente próximo
dela, mas não sabia que ela havia dado um amuleto para você. É provavelmente
o único amuleto que ela conseguiu criar. Queria que ela tivesse me dito isso en-
quanto ficava falando sem parar sobre você.
— Ela falou de mim?
— Sim. — Um pequeno sorriso se fez no rosto dela, a manticora sentou à
cadeira e deixou as duas mãos descansando sobre seu colo. — Ela falou muito
sobre você. Que era o único amigo que ela tinha desde a infância. E que era a
única pessoa que não a tratava diferente, apesar de tudo...
— Apesar de tudo? Tipo, como assim? A Larissa era meio estranha, compa-
rada ao resto, mas não tinha nada de errado com ela.
— Você realmente não sabe de nada, não é mesmo? É incrível que tenha
permanecido ao lado dela dessa forma.
— Espera, quê?
— A família dela é herdeira de uma linhagem de xamãs. Protetores destas
terras. Segundo ela, a capacidade para o místico pulava gerações e sua avó mor-
reu cedo demais para ensinar o básico. O que é uma pena, ela tinha muito talento
e potencial.
Olhei para a minha pulseira. Eu nunca fiquei sabendo daquilo.
Xamã? Protetora?
Tá, ela falava de coisas estranhas, e já me fez ajudar ela a perseguir uma tal
linha espiritual da terra quando éramos pequenos, mas... sério que essa conversa
toda sempre foi verdade?

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Quando pequena, ela acabava sendo deixada de lado, como a “esquisitona”


já que sugeria coisas estranhas, como caçar animais que ninguém nunca ouviu
falar, mas eu sempre pensei que fosse uma imaginação fértil demais.
— Ela era uma garota diferente. Mesmo tendo observado os humanos de
longe até então, eu podia entender isso. — A manticora se virou e começou a
procurar algo entre os livros na escrivaninha da Larissa. — Se eu não tivesse ca-
ído na armadilha da fada, não teria perdido minhas forças, e ela não teria mor-
rido. A culpa é minha, eu sinto muito.
Eu não tinha o que responder.
Culpar ela não resolveria nada.
Não traria a Larissa de volta.
E eu não tinha esse direito.
Não quando fiquei ao lado dela todos esses anos e nunca fiz ideia de nada
disso.
Ela se aproximou de mim e me entregou algo. Era um caderno surrado.
— Aqui. Eu sabia que ela tinha algo assim. — Peguei o caderno da sua mão.
— Toda xamã decide fazer recordações do seu aprendizado. Assim você deve en-
tender melhor. — Abri o caderno e comecei a folhear, era a letra da Larissa. — Ela
tinha medo de falar a verdade para você e que a abandonasse. Também temia
que se confessar seria ruim, que traria você para esse mundo. Ela gostava de ver-
dade de você.
A voz dela foi ficando triste, fingi ler o que estava escrito no caderno en-
quanto as palavras dela afundavam em mim
— Acho que amar é o mais correto para vocês humanos. Era algo claro até
para uma manticora como eu. Um sentimento puro. Ela ficava muito feliz e fa-
lava muito de você... por isso... por isso, achei que seria certo contar a verdade.
Não queria arrastá-lo para isso. Não vou conseguir convencê-lo a esquecer de
tudo, ainda que seja pelo seu próprio bem, vou? Mas prometo que vou protegê-
lo. Sei que ela me pediria isso nessa situação. E sei que também gostaria que eu
tivesse dito a verdade a você.
Eu me levantei e fui ao banheiro. Não queria que ela visse meu rosto após
escutar aquilo. Não queria falar, não conseguiria conter as lágrimas. Abri a tor-
neira e fechei a porta, deixei que a água lavasse tudo o que eu sentia.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Demorou um pouco, eu só lembrei de sair de lá quando meu celular vibrou,


indicando que era meio-dia.
Abri a porta e dei de cara com a “Larissa”.
Ela ficou me esperando na frente do banheiro?
— Você está mais calmo — disse. Não parece que viu a verdadeira forma de
uma manticora. Não pensei que fosse se recuperar do choque tão rápido.
— Bem... Foi um choque daqueles, mas... Sei lá, não foi tudo isso.
— Assim você me preocupa, eu sei que a Larissa era diferente para os hu-
manos, mas você também não é muito normal, não é?
— Quê? Para, eu sou totalmente normal...
— Comparado à Larissa, quem sabe. Mas um humano normal teria fugido
já.
Ela me acompanhava até a porta da frente. Uma expressão feliz surgiu em
seu rosto. Seu sorriso já era muito diferente do que eu estava acostumado a ver.
Mesmo sendo o mesmo rosto.
Ela não era a Larissa.
Nunca seria.
— Eu preciso ir agora, daqui a pouco a minha mãe vai chegar em casa —
falei, sem jeito. Coçando a parte de trás do pescoço. — O que você vai fazer?
— Vou continuar dando voltas por esta cidade, procurar por vestígios da
fada.
— Tá... E... hum... Do que eu deveria te chamar? Tipo, chamar de Larissa se-
ria estranho... Hã, então, você tem algum nome além de manticora...? É que, essa
é a sua espécie, né? Seria tipo você me chamar de humano direto...
Aquilo pareceu pegá-la desprevenida, ela parou um instante para pensar.
O silêncio me deixou desconfortável. Fitei o chão, procurando me focar em
alguma coisa e agradecendo o fato dos pais da Larissa não voltarem para casa no
horário do almoço como a minha mãe.
— Eu tenho um nome, mas é impronunciável com a língua humana. Não
vejo problema que me chame por manticora.
— Mas é estranho, sabe?
— É mesmo? — Ela inclinou a cabeça para o lado, confusa. — Então, do que
você deveria me chamar...
— Que tal eu te chamar de Manti?

22
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Manti?
— Manti, de manticora. Só um apelido. Melhor, né?
— Manti... — Ela repetiu baixinho para si, seu rosto se alegrou, pareceu sa-
tisfeita. — Tudo bem. Será Manti então. Até a noite, Miguel.
— Ok! Então, até.
Eu me virei após essa despedida, pronto para ir para casa, quando me to-
quei de que ela havia me chamado pelo nome. Girei nos calcanhares na mesma
hora, mas não havia sinal algum dela.
A Larissa deve ter contado.
Caramba, o que a minha amiga de infância tinha na cabeça para tagarelar
sobre a vida dela para uma criatura que viu pela primeira vez?
Se bem que isso é bem a cara dela.
Não pensa nem um pouco nas consequências do que sai falando por aí.
Não quer demonstrar, mas fica triste ao ser isolada.
Foi por isso que ficamos um do lado do outro por tanto tempo. Ela não me
deixou sozinho quando eu precisei, e eu faria o mesmo por ela.
Eu não estive lá quando precisava e agora queria compensar isso ajudando
uma criatura estranha.
É o sujo falando do mal lavado quando chamo a Larissa de estranha.
Posso até ouvir a Larissa me chamando de idiota.
Você que era a idiota por não querer me envolver nisso.
Olha só o que aconteceu?
Sua bobona.
Eu vou sentir sua falta.
Escondi o caderno dentro da camisa e entrei em casa. O resto do dia se pas-
sou como se nada estivesse fora do normal. Minha mãe continuava um pouco
tensa, devido a situação, mas ela não queria falar disso comigo.
Eu me sentia mal, mas não podia falar nada para ela.
Comecei a folhear o caderno assim que fiquei sozinho. Havia várias coisas
anotadas, desenhos confusos — ela nunca foi uma artista — e várias anotações
na borda. Poderia muito bem ser confundido com um caderno de escola.
As anotações eram coisas para ela mesma entender. Várias menções a li-
vros que a avó tinha, mas nada realmente útil para um leigo do assunto...

23
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Eu não tinha certeza do que poderia tirar dali, mas tentei entender o que
dava.
Havia algumas páginas com post-its, eram assuntos que ela estava focada
no momento. Uma das páginas era um tutorial para produzir a pulseira que ela
me deu. Pelo que entendi, o material necessário para formar esse amuleto pre-
cisava ser cultivado por anos...
Havia uma pequena anotação feita com caneta rosa no final da página.
“Espero que isso proteja o Miguel se algo acontecer comigo.”
“Ele pode não gostar do presente...”
“Mas eu não sei o que faria se alguma coisa atacasse ele.”
— Aquela idiota...
Eu não queria ficar emocional de novo, virei a página e tentei me focar.
Uma das últimas anotações era sobre manticoras. Perguntas aleatórias, do que
se alimentavam, como se transformavam... Devia ser baseado nas conversas com
a Manti.
Havia uma pergunta sublinhada nessa seção do caderno.
“A manticora disse que pode assumir a forma humana. Mas que forma ela
vai assumir? Ela vai copiar a forma de um ser humano?”
É uma pergunta bem válida. Se eu não visse em primeira mão, também ia
querer saber disso.
Aliás...
Por que ela assumiu a forma da Larissa?
Seria para poder falar comigo ontem? Para que eu acreditasse nela?
Mas era necessário mesmo assumir a forma dela?
Ou ela precisaria ver um humano de perto para isso? A Manti disse que só
havia observado os humanos de longe antes.
Ou poderia ser até para honrar a Larissa... a seu modo e maneira. A Manti
pareceu ter se apegado a Larissa, sendo a primeira humana com quem ela con-
versou.
A Larissa era muito amigável quando você superava a primeira camada de
esquisitice dela. Sou a prova viva disso.
Mas a Manti e a Larissa...
Elas eram incrivelmente diferentes, até gostaria de ver as duas conver-
sando.

24
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Uma pena que isso nunca vai acontecer.


Eu peguei no sono sem perceber enquanto lia, querendo ou não, era difícil
de acompanhar. Quando acordei, já estava escuro. Minha mãe já havia chegado
e estava vendo novela na sala. Conversamos um pouco antes de eu me trancar
no quarto de novo, esperando que a novela dela terminasse.
Abri a janela do quarto e voltei a minha atenção para o caderno.
Peguei umas folhas de fichário e comecei a anotar algumas coisas. Havia
coisas que eu ainda tinha que perguntar para a Manti. O caderno da Larissa não
era nenhuma Wikipédia desse mundo sobrenatural...
Enquanto virava as páginas e chegava quase ao fim das anotações. Ouvi um
leve farfalhar de folhas no quintal. Minha janela ficava de frente para ele, então
não precisei pensar duas vezes para saber o que era.
— Olá — disse ela, sentada na beirada da janela.
— Você faz muito isso de sumir e aparecer em um piscar de olhos?
— É bem mais rápido se nenhum humano me perceber.
— Faz sentido.
Ela não fez menção de entrar no quarto, acabei precisando indicar com a
mão, ou ela continuaria ali.
Para uma criatura que poderia facilmente me esmagar com qualquer mem-
bro em sua verdadeira forma, ela foi estranhamente reservada em entrar no
quarto.
— Não encontrei sinais da fada. Aquela maldita está se escondendo bem, e
após ter devorado um humano, ela deve estar esperando que eu saía daqui para
poder dar as caras. Ei, por que os outros humanos daqui estão se reunindo na-
quele lugar? Achei que vocês tivessem parado com a vida nômade há séculos.
— Ah, é o pessoal que veio para a festa do Bom Jesus da Cana Verde...
— Festa?
— É, um festival, sabe? Tem um motivo religioso, mas acaba sendo mais
gente vendendo coisa e se divertindo. Meio que isso.
— Hum, não imaginava que humanos ainda realizavam rituais festivos... No
fim, parece que vocês tendem a repetir os mesmos costumes, não importa o lu-
gar.
— Acho que um estudante do ensino médio é a última pessoa que conse-
guiria argumentar contra a isso. Nunca fui bom em aulas de história também.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Esse festival já começou? Por que você não foi?


— Vai começar só amanhã mesmo, mas as pessoas vem antes para montar
tudo e pá... Sabe, coisas de humanos.
— Faz sentido.
Isso estava ficando surrealmente normal já.
Poderia ser uma conversa entre duas pessoas da mesma idade, não fosse
uma delas uma manticora.
— Muitas pessoas se reúnem lá?
— Bastante, chega até a ficar impossível andar na rua uma hora. Mas os pri-
meiros dias são mais calmos.
Ela pensou um pouco, levando a mão até o rosto. Como se uma lâmpada se
acendesse sobre sua cabeça, seu rosto se iluminou.
— Ótimo! A fada não tem como ignorar essa quantidade de pessoas, com
certeza vai procura por outra vítima antes de ir embora. Podemos atraí-la dessa
forma!
— Mas como vamos atrair ela?
Sua animação se desfez no mesmo instante.
Era claro que ela não queria explicar o motivo, mas, após pressionar os lá-
bios e respirar fundo, ela prosseguiu:
— Eu peguei a forma da Larissa para isso. Fadas são seres arrogantes, ela
não vai ignorar uma presa que deveria ter matado estar andando por aí. Agora
eu só preciso de uma isca para atraí-la o bastante e matá-la de uma vez por todas.
Então era esse o motivo.
Lá se foi uma das minhas perguntas.
Mas agora eu sabia o que deveria fazer.
— E se eu for a sua isca?
— Hã?
— E se eu ficar andando com você durante a noite? Se ela for seguir você,
tem como você descobrir? Vocês sentem o cheiro uma da outra?
— Eu consigo sentir a presença dela antes de ela perceber que sou eu e não
a Larissa, mas isso é...
— Então vamos fazer assim! Amanhã eu vou com você no festival e tenta-
mos atrair ela! Quando você perceber que ela está nos seguindo, vamos para um

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

local afastado, e você finge que está se afastando em mim, para pegar ela despre-
venida! Aí é só dar o golpe final antes de ela me pegar! Que tal?
— É arriscado demais! Não posso usar você como isca!
— É a melhor forma de pegarmos ela! Você vai conseguir pegar a fada antes
que ela me ataque, não vai?
— Eu devo conseguir, mas mesmo assim...
— Sem mas! E eu conheço bem a área da festa, fui lá todo ano com a Larissa,
podemos evitar pessoas que a conheçam e sei de caminhos mais rápidos entre o
Santuário e o camelódromo, eu vou ser útil!
— Ainda assim...
Mas antes que ela pudesse argumentar qualquer coisa, Manti pulou para
fora da janela. Meu quarto não era grande, mas tenho certeza de que aquilo se
classificaria como um salto olímpico. E antes que eu pudesse falar algo, a porta
do quarto se abriu do nada e minha mãe entrou com uma cara irritada.
— Miguel, sabe que horas são?
— Na verdade não...
— É quase uma da manhã, vá dormir! O que você estava gritando no quarto?
— Eu estava discutindo com um pessoal da escola, desculpa.
— Vai dormir, você tem aula amanhã, e eu preciso acordar cedo, não me
faça tomar seu celular. E feche a janela, a cidade fica perigosa nessa época.
— Sim, sim, eu vou. Desculpa.
Ela saiu do quarto, resmungando. Sorte que estava com sono e irritada de-
mais para perceber que meu celular estava carregando atrás da porta que abriu.
Nem quero imaginar o que aconteceria se ela me pegasse conversando com
uma garota idêntica à Larissa.
Devo ter erguido a voz sem perceber enquanto conversava.
E havia perdido minha oportunidade de perguntar o que queria para a
Manti.
Só me restava ir dormir e torcer para termos mais oportunidade de con-
versar no dia seguinte.

Eu não posso dizer que superei, muito menos que aceitei, devidamente. Apenas
segui com o que era a minha rotina, ir para a escola, fingir prestar atenção nas

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

aulas. Algumas pessoas vieram me perguntar sobre a Larissa, precisei fingir que
estava abatido e muito preocupado.
Ninguém havia visto qualquer sombra dela desde que a família alegou o
desaparecimento. Ou seja, era verdade, a Manti conseguiria revirar esta cidade
toda sem que ninguém a visse além de mim.
Tudo teria dado certo se não fosse o adolescente intrometido e o amuleto
de proteção idiota.
Não que eu duvidasse dela, fosse por aquele poder de instigar que ela falou
ou não, podia bater de pé junto de que aquela manticora falava a verdade para
mim.
Ela poderia ter seguido atrás da fada.
Poderia ter ignorado tudo que a Larissa deixou para trás.
Mas decidiu me contar sobre a morte dela.
Eu sou grato por isso.
Poderia ser melhor não saber de nada e ainda ter a esperança de que ela
pudesse estar só desaparecida ainda.
Mas agora, ao menos, eu tenho algo para me focar.
É egoísta da minha parte querer ajudar a matar a fada?
Ou foi egoísta da parte da Manti esperar que eu não me metesse nisso?
No fim, provavelmente somos dois seres tentando lidar com a perda de al-
guém querido. Deve ser o motivo pelo qual conseguimos conversar ou sequer
nos entender, de alguma forma.
Ligados por uma pessoa que nunca mais estará conosco.
Os professores avisaram algo sobre tomarmos cuidado, porque muitas pes-
soas de fora vinham para a cidade nessa época, e nos comportarmos durante
esse período. Havia mais carteiras vazias na sala, mas provavelmente eram pes-
soas aproveitando o que já estava montado do que realmente algo preocupante.
Eu não lembro de nenhum desaparecimento ou morte que rolou nessa
época. Talvez tenha sido abafado por alguma criatura como a Manti? Outras
manticoras eram amigáveis como ela?
Estou começando a entender a curiosidade da Larissa para com tudo isso.
Ri sozinho enquanto subia a rua para casa. Não havia combinado com a
Manti como nos encontraríamos hoje, mas sei que ela não me abandonaria. Por
bem ou por mal, eu posso ser útil a ela.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

E falando no diabo...
Ela me esperava na frente da minha casa.
— Achei um rastro da fada.
Manti explicou que encontrou um resquício do cheiro da fada enquanto
percorria os limites da cidade, o rastro parava pouco antes da aglomeração de
carrinhos de comida. A fada deve ter percebido a aglomeração de pessoas e pro-
vavelmente procurava uma nova vítima, como a Manti disse ontem.
Precisaríamos atraí-la logo...
Acabou que combinamos de sair assim que minha mãe dormisse, e eu de-
veria voltar antes de ser muito tarde, para que ela não percebesse.
Decidi aproveitar o resto do período da tarde para dormir, assim não ficaria
tão cansado à noite.
Sonhei com a Larissa descobrindo que morri e se culpando por não ter me
protegido. Ela chorava sobre uma lápide. A seu lado, Manti também chorava.
Ela consegue chorar? Perguntei-me no sonho.
Como se assistisse a um filme em pedaços, vi as duas correndo atrás de uma
fadinha, como aquelas dos filmes. Podiam ser duas Larissas, mas saber quem era
quem era tão óbvio quanto saber a diferença entre dia e noite. Manti era rápida
e precisa, tomou a liderança logo, a Larissa corria para acompanhá-la, mas ficava
facilmente para trás.
Elas encurralaram a fadinha.
Porém, perto de dar o golpe final, nenhuma das duas se moveu.
A fada aproveitou a situação e atacou a Larissa.
Não!
Foi quando acordei. Meu coração estava acelerado. Eu respirava com difi-
culdade. Não sei se meu grito ficou no sonho ou foi real. O sol começava a se por
pela janela. Precisava me acalmar.

A noite se seguiu sem complicações, mas eu permanecia inquieto. Fiz uma muda
de roupas, pensei no que deveria levar, vi o que eu tinha de dinheiro comigo,
será que precisaria de mais? Será que precisaria, para começo de conversa?
Fiquei dando voltas pelo quarto enquanto esperava a Manti.
Não tranquei a janela, mas ela ainda bateu antes de entrar.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Manticoras são mais educadas do que se pode imaginar.


— Olá, Miguel.
— Oi — disse, novamente sem jeito. — Então, hum, vamos?
Ela assentiu, mas nenhum de nós se moveu. Afinal, iríamos pela porta da
frente?
Devo estar com essa dúvida estampada na cara, pois ela indicou a janela.
— Melhor fazermos o mínimo de barulho.
Concordei.
Fomos até o portão. Agora um novo problema: eu não tinha como pular ele.
Não sou exatamente sedentário, mas o portão da minha casa é alto e tem uma
cerca elétrica. Mas, antes que pudesse pensar em mais desculpas, Manti segurou
meus braços e pulou.
Saltamos uns seis metros acima do chão. Como ela consegue fazer isso com
um corpo humano?
Certo, é só a forma humana, mas, mesmo assim...
— Pronto — disse, ao aterrissarmos. — Que cara é essa? Esperava que fos-
semos sair como? Atravessando o portão?
— Me deixa vai, eu não salto dessa altura todo dia. Diferente de você.
Manti riu baixinho da minha reação. Não bastasse isso, agora ela aprendeu
ironia. Mas era uma caixinha de surpresas essa manticora.
— Bom, vamos? — Ofereci a mão para ela.
Ela aceitou e fomos em direção à festa do Bom Jesus da Cana Verde. Nor-
malmente, eu iria com a Larissa na missa noturna, mas nem a minha e muito
menos a família dela estaria disposta a isso agora. Minha família nunca foi che-
gada em ir à missa, mas é difícil evitar quando a cidade tem uma tradição forte
dessas. A família da Larissa, exceto ela, era mais chegada. Lembro de até tenta-
ram catequizar nós dois quando pequenos, mas a garotinha bateu tanto o pé con-
tra que deixaram para lá.
Sempre nos divertimos mais andando entre os camelôs, minha mãe se ofe-
recia para nos supervisionar, unindo o útil ao agradável. Devo ter puxado esse
lado dela, parando para pensar.
E era o que eu estava fazendo, dando várias voltas, passamos pela mesma
barraca vendendo bonecas de pano pela terceira vez, deixei a Manti guiar, mas
o passo dela era instável.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Hum... vem cá, ninguém consegue ver a gente? Ou só você e eu pareço


um bocó dando voltas sem fazer nada?
— Estou expandindo minha área, enquanto você ficar do meu lado e não
interagir com ninguém, não haverá problemas — respondeu ela, sem olhar para
mim. — Está com muito mais pessoas do que eu esperava. É sempre assim?
— Na verdade, está mais vazio do que deveria, você precisa ver amanhã e
depois, que é quando vai ficar realmente cheio.
— Sério? Por que se aglomerar tanto... Não consigo encontrar o rastro da
fada mais... — Ela sussurrou a última parte.
— Vamos dar algumas voltas, pode ser o caminho que estamos pegando
também. — Apertei sua mão e mudei nossa direção.
Não havia nenhuma ordem pré-estabelecida aqui, mas uma pessoa acostu-
mada a vir todo ano saberia seu caminho tranquilamente. Dobrei algumas esqui-
nas, e cortei caminho por meio de uma barraca grande que vendia bolsas. Manti
havia aberto a boca para falar algo, mas já estávamos fora da aglomeração.
— Surpresa? Hehe, eu não falei da boca pra fora quando disse que conseguia
nos achar de boa. — Podia sentir meu nariz empinando enquanto afalava aquilo.
— Impressionante — disse ela, sorrindo para mim.
Seu sorriso era bonito.
Não por ser o mesmo sorriso da minha amiga de infância.
Não, ele tinha um charme próprio.
É difícil explicar.
Desviei o olhar e cocei um pouco.
— Mas, hum, nada da fada?
— Não — disse, balançando a cabeça.
— Ela provavelmente deve ter vindo averiguar o movimento antes do pico
de hoje, deve ter sido que nem você, na real. Ela não esperava tanta gente ainda...
Eu acho. Por quanto tempo ela costuma ficar ativa de noite?
— Nosso hábito é caçar até o raiar do sol.
— Temos muito chão para andar ainda... Espera, “nosso”?
— Sim, fadas são uma presa minha, especialmente as que predam de hu-
manos, então é lógico que eu caçaria no mesmo horário para encontrá-las, não?
— É... isso faz muito sentido.

31
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Dei a volta no lugar com a Manti. Não havia o medo de nos encontrarem,
mas precisaríamos mesmo ficar até a manhã assim? Não sei se aguentaria. Aliás,
ela não precisa dormir?
— Manticoras ficam acordadas em ciclos de dias e dormem várias horas se-
guidas depois, geralmente após nos alimentarmos — disse ela do nada.
Aquilo me assustou e quase larguei sua mão.
— Você estava fazendo a mesma cara da Larissa, então, pensando por nossa
conversa, achei que fosse fazer a mesma pergunta que ela fez quando mencionei
sobre meu período de caça.
— Sou tão previsível assim? — sussurrei.
— Um pouquinho, às vezes. É mais reconfortante saber que você reage
como um humano normal a certas coisas, diferente da Larissa. Eu nunca espera-
ria encontrar um ser humano que não tivesse medo da minha verdadeira forma,
ou que tentasse me ajudar por conta própria.
— É, era uma coisa bem dela mesmo.
— Mas você também não fica tão atrás, eu nunca imaginaria que um hu-
mano estaria disposto, melhor, tentaria me ajudar de qualquer maneira. Vocês
dois são bem, hum, qual era a expressão? Fora da casinha?
— Pensando com calma, é... — Aquilo trouxe outra pergunta à minha mente.
— Se você soubesse que eu tinha o amuleto ou que fosse ajudar você, ainda teria
me contado sobre a morte da Larissa?
Ela parou de andar.
Me virei para ela, esperando sua resposta.
— Sim. Era o certo a fazer. Eu não entendo direito as emoções humanas,
também não sei expressá-las direito. Você já deve ter percebido. Mas... a Larissa
era bem clara em tudo que sentia, sua admiração, sua curiosidade, sua vontade
de ajudar, sua preocupação, eram óbvios até para mim. E quando ela falava de
você, era como se brilhasse, todos os dias, ela falava sobre você, sobre como era
legal, como ficava ao lado dela, como ela queria poder falar mais sobre ser uma
xamã em treinamento, mas tinha medo de envolver você em algo perigoso... Ela
gostava de verdade de você, por isso, me pareceu o justo a fazer.
Senti um aperto no peito.
Larissa, você é mesmo uma idiota.
Por que não falou isso enquanto estava viva?

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Obrigado, de verdade... — murmurei, ela não respondeu nada, mas sei


que havia me escutado.
Andamos mais um pouco, porém não estávamos realmente fazendo qual-
quer progresso, Manti observava os arredores, mas, quando eu direcionava qual-
quer olhar para ela, a manticora só negava com a cabeça.
Conferi meu celular, meia noite e meia.
— Não acho que vamos conseguir nada andando assim — disse ela, de re-
pente. — E seria ruim que você ficasse fora até tão tarde, certo?
— Não, eu aguento mais um tanto.
— Melhor não abusar da sorte, você já está dando sinais de cansaço. Seu
ritmo diminuiu e seus olhos estão ficando pesados.
Ela tinha razão. Eu estava lutando contra um bocejo. Maldita rotina de
acordar às seis horas para chegar no colégio às sete.
Demos meia volta. Eu estava frustrado. E provavelmente era perceptível,
pois a Manti começou a falar de novo.
— Vamos traçar uma estratégia melhor amanhã.
— Sim...
Estou sendo consolado por uma manticora.
Sou bem patético, caramba.
Não fiz nada de real para ajudar e ainda fico com essa cara de cachorro sem
dono. A frustração devido à minha própria inutilidade só aumentava.
Ainda tinha um tempo até chegarmos em casa, por isso aproveitei para per-
guntar algo que ficou na minha mente.
— Sobre esse negócio de instigar que você faz... como funciona exatamente?
— Eu já expliquei sobre isso.
— Sim, mas é que anteontem você me instigou, mesmo com o amuleto, né?
— Ah. — Ela entendeu onde eu queria chegar. — Sim. O amuleto impede que
você seja normalmente instigado, mas não faz milagres se sua mente estiver em
um estado facilmente influenciável, como após um grande choque. Foi assim que
consegui que se acalmasse naquela hora. Em condições normais, é como se a pes-
soa sentisse que não deve reparar em algo, então, a menos que tenha noção exata
de que deve me procurar, dificilmente me encontraria.
— Hum, é um poder bem conveniente...

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— É o que permite a existência da minha espécie. Ou acha que os humanos


nos manteriam por perto em nossa verdadeira forma?
— Bem, é... Você tem razão, nem todo mundo estaria disposto a fazer o Te-
lecurso 2000 sobre manticoras.
— Tele... o quê?
— Deixa para lá.
Eu podia ver a minha rua já.
Seria melhor me despedir dela e voltar para casa, minha mãe já deve estar
no quinto sono, eu conseguiria abrir o portão sem ela perceber.
— Manti...
— Miguel — interrompeu ela. — Você não tem culpa alguma da morte da
Larissa. Você não tinha como saber de nada, quem forçou que tivesse consciên-
cia de tudo fui eu. Não foi um pedido dela, foi uma escolha minha. A Larissa po-
deria até desejar que você nunca soubesse. Eu só a conheci por alguns dias e pre-
sumi que ela fosse desejar aquilo, mas não tenho como saber de fato. Por isso,
me desculpe. Me desculpe por colocar você no meio de tudo isso.
Ela evitava olhar para mim, o remorso em sua voz era palpável.
— Não tem o que se desculpar, eu preferia ficar sabendo. É melhor do que
perder a minha amiga e nunca descobrir a verdade. Nem o corpo dela será en-
contrado, certo? Isso é... horrível. Já é ruim não poder falar para a família dela
sobre isso, mas não saber de nada... seria pior ainda. Ao menos é o que eu penso.
Por isso, não precisa se desculpar.
Ela ficou em silêncio por um momento, depois abriu a boca, mas fechou
logo em seguida como se pensasse no que dizer.
— Ela tinha razão sobre você, Miguel.
E então, eu vi o sorriso mais lindo deste mundo em seu rosto.
Diferente de qualquer sorriso que a minha amiga de infância faria.
Mais belo que qualquer outro sorriso que vi antes.
Mais genuíno. Mais fofo.
Fiquei mesmerizado.
— Tentaremos de novo amanhã.
— S-Sim... — Falei, bobo.
— Precisa que eu salte o muro com você?
— N-Não, eu acho que posso entrar pelo portão da frente.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Certo. Então, até amanhã.


Eu me virei na direção do portão e procurei a chave em meu bolso, sabia
que ela não estaria mais lá quando eu me virasse de novo. Mas eu não queria que
ela visse meu rosto vermelho, iluminado pelo brilho da lua.
Foi a primeira vez que me senti assim de verdade.

Nessa noite, sonhei que passeava pelas lojinhas de camelô da festa do Bom Jesus
da Cana Verde ao lado de uma garota. Fazíamos tudo que sempre sonhei em fa-
zer ao ter uma namorada. Passeamos, vimos coisas diferentes, eu comprei uma
joiazinha besta para ela, ela me falou para olhar as carteiras e arrumar um cinco
de gente grande, fomos até o parque de diversões ambulante, andamos nos car-
rinhos de bate-bate, perseguimos as crianças que saíram traumatizadas, recla-
mamos de não poder ir na montanha russa mais, devido ao tamanho limite do
brinquedo, e então fomos na roda gigante.
Uma vez eu pensei em fazer tudo isso com a Larissa.
Quando ela deu sinais de que se tornaria uma mulher linda. Mas nunca re-
almente a vi como alguém além da minha amiga de infância.
A garota ao meu lado nesse sonho não era a Larissa.
Era a Manti.
Com o mesmo sorriso com o qual se despediu de mim.
Eu sabia o que aquilo queria dizer, mas achei que seria um desrespeito à
minha amiga se admitisse.
Se bem que, eu consigo imaginar o que ela diria.
E o que ela desejaria para mim.
Da mesma forma que eu desejaria o mesmo para ela em seu lugar.
Anos ao lado de uma pessoa dão nisso.
Acordei bem devagar, sentindo meu corpo passar do estado de sono para o
desperto aos poucos. Poderia ter sido tudo um sonho. Eu poderia, na verdade,
estar na segunda-feira.
Mas, não, a realidade era outra.
E eu estava começando a aceitá-la.
O que me dava mais raiva ainda.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Segui com o que estava acostumado no meu dia a dia, café da manhã, cum-
primentei a minha mãe, fui para a escola. Olhei para trás rapidamente e vi, de
relance, o perfil da Manti acenando para mim. Pisquei e ela já havia sumido, po-
deria pensar que estou doido, ou não.
Ela ficou me esperando sair de casa há quanto tempo?
As aulas seguiram normais, o interesse no caso da Larissa já havia virado
em pesar. Pelo visto algum professor recomendou que me deixassem em paz,
visto que quase ninguém veio falar comigo sobre ela hoje.
Eu agradecia isso.
Precisava colocar os pensamentos em ordem.
Voltei para casa, sem sinal da Manti no caminho. Posso ter imaginado ela
acenando para mim de manhã... O resto do dia foi como qualquer outro. Tem algo
de estranho na capacidade de agir como sempre, mesmo em meio a tanta coisa
acontecendo de uma vez.
Eu não queria dormir de tarde. Não queria outro sonho como os dois últi-
mos.
Achei melhor ficar relaxado, mas não tinha nada que fazia o tempo passar.
Ver TV parecia inútil, eu não estava com paciência para ler qualquer coisa, já ha-
via preparado tudo que achei que poderia precisar... Aí me veio à mente reler o
caderno da Larissa. Não toquei nele desde então.
Como aquele pedaço da minha mente com o qual eu não queria lidar.
Sentei à escrivaninha do meu quarto e comecei a folhear o caderno. Mal
eram duas da tarde... Eu teria tempo de sobra.
Revi tudo desde o começo. As anotações dela começavam a fazer mais sen-
tido, mas não era um mundo que eu conseguiria compreender tão fácil.
E após vencermos a fada?
O que aconteceria?
A Manti iria embora, e eu seria forçado a encarar a morte da Larissa?
Eu não queria pensar nisso.
Virei as páginas, até chegar na seção sobre a manticora. Pude entender as
perguntas muito melhor agora. Era engraçado. Como elas se alimentam, o que
normalmente fazem.
“A manticora com quem converso não tem muito contato com as demais
da espécie. Seriam todas assim?”

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Dê um nome para ela, poxa. Ficar chamando só de manticora é muito triste.


Mas está aí algo no qual devo ser mais estranho que a Larissa.
Cheguei na última página, e agora vi um asterisco em caneta azul no fim. O
que significaria? Mesmo tendo visto o caderno todo, era a primeira vez que en-
contrava algo assim. Folheei o resto do conteúdo, faltavam poucas páginas... En-
tão um pedaço de papel surgiu.
Era uma folha de fichário dobrada com bastante cuidado, não aumentava
em nada o volume o caderno, por isso não percebi a existência dela ainda. O pa-
pel ficou bem prensado contra as páginas finais, isso explica não ter caído até
agora... A Larissa devia apoiar alguma coisa em cima do caderno, acho.
Desdobrei a folha com cuidado e li o conteúdo.
Eram mais anotações referentes à manticora.
“Hoje não tivemos uma das aulas, aproveitei para ler um dos livros da vovó
enquanto o Miguel dormia.”
Nossa, isso foi no meio da semana passada. E ei, eu não durmo sempre em
aula!
Seria tipo um diário? Ela nunca me disse se mantinha um, mas, com tudo
que descobri nesses últimos dias, não ficaria surpreso. Continuei lendo.
“E realmente tem algo sobre manticoras! Vou perguntar para a que está nos
fundos de casa hoje. Eu ainda tenho medo dos meus pais encontrarem ela...
“Quase não tem coisa além do que ela já me disse, exceto um pedaço, pre-
ciso mesmo perguntar isso a ela, segundo o livro, manticoras podem tomar a
forma do último animal que devoraram. Isso incluiria humanos?
“Ela disse que comer humanos não é uma prática dela, mas e das outras
manticoras? E se ela comesse um ser humano, assumiria a forma dele?
“Mais tarde eu pergunto para ela e passo isso a limpo no caderno.”
Espera.
Espera um pouco.
Não pode ser.
Algumas peças que nem sabia que estavam faltando se encaixaram de re-
pente.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Esperei a noite chegar. Sem coragem de dormir e sonhar com o que descobri.
Liguei a TV e fiquei esperando pela minha mãe, assisti a novela com ela, dei boa
noite assim que ela começou a bocejar. Sem pensar muito, ela me deu boa noite
de volta e foi para seu quarto.
Esperei mais um pouco.
Quando pude ouvir roncos vindo do quarto dela, soube que era a hora.
Abri o portão da frente com cuidado e fiquei esperando.
Manti surgiu do meu lado antes que eu pudesse me dar conta.
— Boa noite.
— Oi.
— Achei que fosse me esperar para pularmos o portão de novo.
— Uma vez já estava de bom tamanho. Bom, vamos?
— Sim.
Ela me ofereceu a mão dessa vez, receoso, acabei aceitando. Mas quem a
levou fui eu, nos aproximamos das barraquinhas para que eu perguntasse.
— Você veio aqui de tarde?
— Sim, o movimento é menor, mas presente, porém não encontrei o vestí-
gio da fada, ela deve estar tomando mais cuidado.
— Hum — murmurei.
Comecei meu pequeno tour com ela, andamos por várias barracas. Manti
olhava aos arredores, mas volta e meia a peguei conferindo uma ou outra bar-
raca com algo diferente.
— Quer dar uma olhada?
Ela me olhou, parecia um pouco envergonhada. Eu podia ler cada vez mais
seu rosto, que antes era tão inexpressivo.
Levei ela para algumas, ela olhou bolsas, roupas, bonecas, parecia uma ga-
rota normal. Foco no parecia.
Não compramos nada, porque não tinha muito sentido.
Mas ela pareceu se divertir olhando as coisas, como uma criancinha vendo
pela primeira vez. Ficava fascinada pelas coisas mais bobas.
Demos mais algumas voltas, tomando cuidado para não esbarrar em nin-
guém, tinha quase o dobro de pessoas de ontem.
Porém, eu vi algo no canto do olho e acabei parando, puxei a Manti comigo
até uma extremidade do lugar. Soltei da mão dela por instantes para ir até um

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

carrinho de churros. O que uma manticora acharia de churros? É um interesse


puramente cientifico, não estou usando para justificar minha súbita vontade de
comer algo doce.
Aproveitei e comprei uma garrafinha de água para ela.
Não sei se churros vai cair bem com água, mas ela vai gostar.
Voltei até minha companheira, que estava há mais ou menos uns dois me-
tros longe do carrinho. Ela me fitava, confusa com meu comportamento.
— Aqui, experimenta — disse, oferecendo o doce.
— O que é isso?
— Se chama churros, é um doce.
— Comida humana é bem diferente. — Ela deu uma mordida, então parou
e encarou o conteúdo. — Tem algo dentro...? Isso é doce...
— É o recheio. Peguei de doce de leite. O meu favorito.
— Hum... É diferente.
Ela continuou comendo, mas não pareceu gostar muito. Terminou o chur-
ros e fez uma cara azeda. Manticoras não gostam de doces, anotado.
Seus olhos brilharam quando recebeu a garrafa de água. Manti ficou
olhando para a minha mão, como se esperasse algo a mais.
Ela ficava bonitinha fazendo essa cara.
Assim que me peguei pensando aquilo, puxei-a para longe dali.
— Nada da fada, né?
Ela balançou a cabeça.
— Tem muitas pessoas, não acho que ela viria até aqui agora. Tem algum
lugar de onde eu possa ter uma visão melhor?
— Hum...
Havia um lugar. Mas levá-la lá...
Não, não era hora para hesitar. O importante era encontrar aquela fada.
Levei a Larissa até a área do parque de diversões ambulante. Todo ano ha-
via um boato novo sobre alguém que morreu em um dos brinquedos. Por sorte,
a roda-gigante veio este ano. Comprei um ingresso, combinei com Manti de que
ela entraria primeiro, assim que abrissem a porta, e eu entraria depois, evitando
que pessoas reparassem nela.
Enquanto estávamos na fila, fiquei olhando ao redor.
Nenhum rosto de alguém que me reconheceria de primeira. Ótimo.

39
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Perguntei se ela poderia fazer com que as pessoas só reparassem em mim


brevemente. Ela disse que sim, aquilo me aliviou um pouco.
Na nossa, digo, minha vez, Manti foi tão rápida para entrar que nem preci-
sei esperar um pouco na frente da porta aberta. O banco era pequeno, dois adul-
tos precisariam ficar bem próximos e levemente agachados para caber. Eu torci
para que aguentasse nós dois, considerando que a manticora deveria pesar o
mesmo que a Larissa, acreditei que daria certo.
A porta se fechou e não demorou para começar a se mover, para que a pró-
xima pessoa na fila pudesse entrar.
Foi só então que notei a proximidade que eu estava dela. Estávamos senta-
dos um do lado do outro, encostados. Muito. Perto. Um. Do. Outro.
— Do que os humanos chamam isso?
As palavras dela me trouxeram de volta a realidade. Parcialmente.
A proximidade ainda me incomodava.
— Roda-gigante.
— Ela vai sair rodando?
— Não, ela vai ficar parada, mas essas “casinhas” em que estamos vão se
mover, quando chegarmos ao topo, você vai conseguir ver a área toda, eu acho.
— Hum, e por que os humanos consideram isso um entretenimento?
— Sei lá, é legal.
— Mas por quê?
— Não me faça pergunta difícil.
Demoraria um pouco para chegarmos ao topo, mas a manticora parecia in-
teressada em matar esse tempo conversando.
— Esse festival é chamado de “Bom Jesus da Cana Verde”. Eu já ouvi falar
dessa figura que vocês cultuam chamada de Jesus, mas nunca fiquei sabendo que
ele poderia ser associado a uma cana verde. Como isso ocorreu?
— Hum, bem...
Ela devia achar divertido perguntar coisas que eu não conseguiria explicar,
um pequeno sorriso se fez em seu rosto ao ver minha falta de jeito.
— Ok, a realidade é que eu não faço ideia!
— Mesmo morando nesta terra há tanto tempo?
— Sim! Não faço a menor ideia! Isso começou antes de eu nascer e continu-
ará até depois de eu morrer se duvidar! Nunca fiquei curioso sobre o motivo, só

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

é algo que está aqui e pronto! Seria tipo eu perguntar qual o sentido de fadas
devorarem humanos, entende?
— Elas fazem isso para se alimentar.
— Mas por quê?
— Humanos emitem vários tipos de energia, cada qual pode ser absorvido
de uma forma, dependendo do tipo de fada...
— Espera, tem mesmo uma explicação? E você sabe?
— Óbvio.
Um a zero.
Droga. Fiquei amuado e fiz um biquinho. Ela riu mais alto dessa vez.
— Você fica bonitinho quando faz essa cara.
Espera, eu ouvi certo?
— Eu fico o quê?
Mas, antes que ela fosse responder, havíamos chegado ao topo. Ela quase
jogou o rosto pela pequena janela que tinha de um dos lados, analisando tudo.
— Encontrei.
— Sério?!
— É onde o cheiro dela sumiu mais cedo, parece isolado, pela falta de luz.
Ela deve estar esperando ali perto até que algum humano apareça sozinho.
Observei a direção na qual ela apontava.
Era umas duas ruas abaixo de onde a concentração de pessoas começava,
era perto de um campo aberto. Poucas pessoas passariam por lá, mas ainda de-
veria ter quem pegasse aquele caminho.
— Podemos descer daqui agora — disse ela, não foi uma pergunta.
— Vai chamar muita atenção se a porta abrir do nada, ou ele for abrir depois
e não tiver ninguém dentro.
— Então é melhor esperarmos?
Assenti.
Finalmente, uma pista.
Demoraria um pouco para terminar o ciclo da roda-gigante. Manti conti-
nuava animada para conversar.
— Ei, o que você gostava na Larissa?
— Hein? Quê?

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— O que você gostava nela? — repetiu, sem olhar para mim, ainda fitando
a janela. — Eu só ouvi dela, mas queria saber de você também.
— Eu, hum... eu gostava de como ela era animada. Ficar do lado dela nunca
era chato, e estávamos sempre juntos. Acho que é isso.
— Não tem mais nada?
— Hã?
— Ela falou tanto de você, achei que ficaria falando mais dela.
— Não sei direito o que você quer ouvir. Assim, ela era a minha melhor
amiga, a minha amiga de infância, eu gostava muito dela assim. E é isso. Não te-
nho tanto para falar sobre ela.
— É mesmo?
Ela suspirou.
Estaria decepcionada? Eu estava comigo mesmo. Eu entendi, de ontem
para hoje, que nunca realmente enxerguei ela como uma namorada. Ela sempre
será a minha melhor amiga que conheci desde pequeno. Eu pensava que seria
legal namorá-la, não porque estava apaixonado, mas porque ela era bonita.
Eu sou um cara horrível.
Essa é a verdade.
Mas mentir sobre meus sentimentos, ainda que fosse para a Manti, seria
errado.
Seria mentir para a Larissa também.
Finalmente chegou nossa vez de sair, minha parceira mal esperou e logo
acelerou o passo, ela me puxou pela mão, precisei correr para acompanhá-la.
Em menos de cinco minutos, estávamos no lugar.
Acho que foram mais de quatro quilômetros...
Eu estava recuperando o fôlego enquanto ela averiguava os arredores.
Sério, como ela consegue?
Pensei um pouco em tudo o que aconteceu.
No fim, eu precisava perguntar. Ou nunca teria paz.
— Manti.
Ela se virou para mim.
— O que foi? Ainda não achei o rastro dela, mas fique atento, a fada não
deve estar longe.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

— Você... — Engoli em seco. — Você precisa me dizer. O que aconteceu de


verdade com o corpo da Larissa?
Ela congelou. Todos os seus movimentos pararam. Seu rosto estava virado
para o lado, de forma que o cabelo não me permitia ver sua expressão.
— Eu disse que enterrei ela. Não estava reconhecível.
— Onde você enterrou?
— Aos fundos da casa dela.
Pronto. Era o que eu menos queria.
— Você tinha dito que enterrou longe da casa dela.
— Eu...
— Manti, o que aconteceu com o corpo dela? Você... — Respirei fundo. —
Você devorou o corpo da Larissa?
Ela ficou em silêncio.
Não fez qualquer movimento.
Não olhou para mim.
— Manti... Você... tinha dito que ela foi a primeira humana que se aproxi-
mou de você por vontade própria, que ajudou você, isso não significou nada?
Você, por algum acaso, sentiu alguma coisa, qualquer coisa, em relação aos hu-
manos, em relação a mim, nesses últimos dias? Ou eu e a Larissa fomos só mais
um pedaço da sua jornada de caçadas?
Não era para honrar a Larissa.
Nunca foi.
Eu sou um idiota por acreditar nisso.
Eu sou um idiota por acreditar nela.
Como pude acreditar em uma criatura dessas?
Ela devorou a Larissa... e provavelmente me devoraria no fim também.
Havia uma fada mesmo para perseguirmos?
Ou ela apenas me atraiu para cá para se livrar de mim?
— Miguel...
Ela começou a falar, sua voz saiu fraca, quase pronta para chorar, porém,
seu corpo foi jogado para longe do nada.
Foi rápido demais para que eu visse.
Em um instante ela estava na minha frente e de repente havia desaparecido.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Não fosse pelo som forte de algo caindo a vários metros do meu lado, eu
poderia jurar que ela havia fugido.
— É aquela manticora... Ela não desiste, que saco. — Escutei uma vozinha
falar. — Bem que estranhei ver a presa que matei outro dia andando por aí. Ela
deve ter terminado com a carniça, a safada.
Um pequeno ponto brilhante, deveria ser menor do que a minha mão.
Aquilo era a fada?
— Mas olha só. Que manticora generosa, me trouxe um lanchinho de pre-
sente. Ou ela estava guardando você para depois?
Ela falava de mim. Mesmo sendo uma luzinha voadora, ele conseguiu jogar
a Manti para longe. Eu não teria chance de fugir.
A fada veio com tudo em minha direção, vi dentes afiados de relance
quando, fechei meus olhos e levei as mãos até o rosto, esperando pelo pior,
quando...
Um som forte. Como um carro freando do nada.
A fada havia sido repelida.
— O quê?! Como?! — Ela tentou se jogar contra mim de novo e de novo, mas
foi repelida todas as vezes.
O amuleto protetor!
Obrigado, Larissa.
— Manti! — gritei, não sei o quanto o amuleto conseguiria repelir os ataques
da fada. Mas o ponto brilhante voador se colocou na minha frente.
A fada estava na minha cola, era agora ou nunca, eu não via o corpo da
Manti, mas sabia a direção na qual ela foi jogada. Corri com tudo que as minhas
pernas permitiriam. Precisava dar tempo!
Ela tentou me atacar de novo, dessa vez, em vez de tentar proteger o rosto,
tentei socá-la com o punho que estava com o amuleto. A força do impacto nos
jogou para trás, por pouco não perdi o equilíbrio, no entanto, a fada não esperou
e logo partiu para cima de mim.
— Não ache que aquela manticora de uma figa vai te ajudar, humano!
Antes que ela chegasse em mim, uma onda forte de ar a fez perder o rumo,
indo parar atrás de mim.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Ouvi um rugido. Parei e olhei para trás, Manti, em sua verdadeira forma,
havia nos alcançado, ela se jogou na direção da fada, que parece repelir qualquer
que seja o membro que ela bateu nela.
A fada tentou atacar a parte de cima do corpo da manticora, que ergueu o
que eu acho que era uma das patas e a jogou no chão, mas antes que conseguisse
terminar, a pequena criatura escapou e tentou dar a volta no grande corpo da
Manti, que a impediu balançando algum membro traseiro... acho que aquela era
a parte de trás dela, parecia, ao menos.
Como alguém descreve uma batalha desse tipo? Provavelmente ficaria le-
gal em algum clipe do youtube com uma abertura de animê tocando, mas não
era hora de pensar isso!
A fada parecia estar em desvantagem clara, o corpo da Manti repelia seus
ataques e a cauda dela... aquilo era uma cauda? Rebatia a fada com facilidade.
Mas o pisca-pisca voador era mais rápido. Conseguiria fugir nesse ritmo.
Eu precisava fazer algo, qualquer coisa. Mas como me jogaria de cara na-
quela briga? Seria arriscado demais. O que eu poderia fazer?
Eu corri em direção ao combate das duas.
Uma decisão idiota.
Mas eu não podia deixar aquela fada fugir.
Pela Larissa. Pela Manti.
Por tudo que esses quatro dias significaram.
Por mim mesmo.
A fada estava quase tomando distância do grande corpo a manticora
quando me joguei contra ela. A criaturinha não me viu, preocupada em fugir de
sua predadora, por isso não deve ter desviado.
Segurei um braço com o outro e saltei na direção da fada, forçando um soco
nela. Em um último esforço, o poder do amuleto a repeliu na direção da manti-
cora, que a devorou... se aquilo que estou pensando for a boca dela...
A pulseira no meu braço se desfez e as contas caíram no chão, quebrando-
se.
Devo ter usado tudo que tinha.
Mas era o fim.
Era o fim desses quatro dias.
E da minha estadia nesse mundo misterioso.

45
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Eu caí de bunda no chão. Ainda incrédulo que havia acabado.


Não, ainda havia algo a resolver. Algo que eu precisava tirar a limpo.
Caso contrário, não poderia encarar a mim mesmo outra vez.
Se eu sobrevivesse, é claro.
— Você está bem?! — Ela veio correndo até mim, na imagem da minha me-
lhor amiga. Seu rosto e vozes tinham uma preocupação claras.
— S-Sim...
Ela me ofereceu uma mão para levantar, e aceitei.
— Aquilo foi perigoso demais! O que você tinha na cabeça!
— Eu não queria que ela fugisse...
Ela tinha razão quanto ao perigo. Mas era a única coisa que pensei em fazer.
Manti pareceu se acalmar um pouco.
— Foi graças a você que finalmente aquela fada se foi. Agora não é mais uma
ameaça a humano algum. O amuleto da Larissa era mais poderoso do que pensei...
— É, mas parece que foi o fim dele.
— Realmente.
Ficamos em silêncio, olhando um para o outro. Manti estava com um rosto
emotivo, o completo oposto de quanto a encontrei pela primeira vez. Ela fechou
os olhos, parecia que poderia chorar a qualquer instante.
— Ei, Manti. Você pode falar a verdade para mim agora, né? Você me enga-
nou esse tempo todo?
— Não, eu...
— Você pretende me devorar?
Ela ficou chocada com a minha pergunta. Abriu a boca, mas sua voz não
saiu.
— É verdade que eu devorei o corpo da Larissa.
Fiquei em silêncio, ouvindo ela.
— Manticoras não costumam predar humanos, mas não quer dizer que não
podemos. Eu ainda estava fraca quando encontrei o corpo dela. Fazia quase um
dia que a Larissa não foi falar comigo, por isso levei meu corpo pela cidade, pro-
curando o cheiro dela. E a encontrei naquele estado. Entendi na hora o que havia
acontecido. E a culpa foi toda minha. Se eu não tivesse falado com ela. Se eu não
tivesse deixado que ela ficar perto de mim. — Lágrimas começaram a escorrer.
— Eu causei a morte dela. O mínimo que eu poderia fazer era caçar a fada, mas

46
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

eu precisava de forças para isso... Então eu devorei ela. Era a coisa lógica a se
fazer no momento, mas, agora, depois de ter passado tempo com você, eu me
sinto horrível por isso.
No fim, nós dois estávamos fazendo algo egoísta e por nós mesmos.
Meu peito doía. Eu sabia bem o motivo, mas não queria aceitar.
— Eu nunca pensei que me importaria tanto com seres humanos. Esses dias
foram únicos para mim. Especialmente... especialmente porque eu pude passá-
los ao seu lado. Não era só por você ser teimoso e estranho, mas por ter ficado ao
meu lado, por ter conversado comigo como se eu fosse um ser humano normal.
Quanto você disse que pensava na Larissa como uma amiga de infância, eu me
senti aliviada e culpada, porque, eu... eu... tudo isso...
As lágrimas caíam com força do seu rosto.
Mas ela sorria. Um outro sorriso que me encantou.
E um sorriso que me deixava com um forte aperto no peito.
— Eu apreciei tudo isso. Mais do que deveria. Mais do que tinha qualquer
direto. Miguel, eu quero ficar ao seu lado. Eu quero ficar perto de você. Eu quero
conversar mais com você. Eu quero ter mais experiências divertidas e ver mais
coisas interessantes. Eu não quero te deixar. Eu...
Eu sabia o que ela iria dizer.
Não queria admitir, mas o sentimento era mútuo.
Eu me aproximei dela.
E a beijei.
Nesses últimos dias, eu me apaixonei por ela. Por uma garota tão linda
quanto a minha falecida melhor amiga. Por uma manticora que me ajudou a vin-
gar essa amiga e que dividia os sentimentos de luto comigo.
Devo ser mais estranho que a Larissa.
Foi um beijo demorado e lento. Como em filmes. Uma lágrima solitária es-
correu pelo meu rosto.
Nos desconectamos aos poucos. Eu a soltei antes de terminar o beijo. Sabia
o que viria a seguir. Sabia o que aconteceria ao abrir os olhos.
Por mais que eu quisesse. Por mais que nós dois desejássemos.
Nosso beijo terminou. Abri meus olhos devagar.
Manti não estava mais em lugar algum.
Eu sabia que seria assim.

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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!

Mas meu coração ainda doía.


Arrastei meu corpo, pé ante pé, até a minha casa.
Sem me importar em trocar de roupa, sem me importar em ver qualquer
machucado que meu rosto possa ter. Eu deitei e dormi. E chorei.
Chorei pela minha melhor amiga, que eu fingi que queria vingar, chorei
pela criatura que eu jamais veria novamente, chorei por tudo que aconteceu nes-
ses últimos dias. Sem sonhar com nada, eu acordei mais tarde que o habitual no
dia seguinte.
Existe algo no comportamento humano capaz de explicar o motivo pelo
qual eu levantei da cama, tomei café da manhã e fui para a escola. Meu mundo
parecia vazio. Porém, eu ainda me lembrava de tudo o que aconteceu.
Quem sabe como um último presente antes de ir embora.
Eu queria pensar assim.
Existe algo que faça o seu coração bater mais rápido?
O meu primeiro amor fez isso comigo.
Em algum momento, essas lembranças se tornarão um sonho distante, as-
sim como minhas memórias com a Larissa. Um dia eu não lembrarei mais de
como ela se parecia, de como a Manti e ela eram diferentes.
Mas eu nunca vou esquecer do que senti nesses quatro dias.
E do meu primeiro amor estranho e incomum.

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