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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
Existe uma festa regional aqui na cidade, chamada de O Bom Jesus da Cana Verde,
não e muito conhecida fora do sul do Brasil, mas é bem popular aqui nos arredo-
res. Muita gente vem durante o mês de agosto para a festa religiosa, pois o san-
tuário da cidade é famoso por isso. Que acaba atraindo vários vendedores e até
um parque de diversões ambulante.
Este ano, eu esperava me confessar para ela. Ou o contrário. E podermos,
quem sabe, nos beijar e fazer coisas de namorados dentro da roda gigante, mas...
nada saiu como o esperado.
— Sou uma manticora.
— Uma o quê?
— Uma manticora — repetiu, calma.
— Calma, calma. Que que é isso, Larissa? — Deu a louca nessa menina ou o
quê? Sério que ela me fez vir aqui correndo só para me pregar uma peça? Tem
alguém nos filmando com o celular escondido por perto? — Me poupa, vai, não
acredito que vim cedo aqui pra ouvir isso...
— Não estou mentindo. Sei que é repentino, mas quis revelar a verdade a
você o quanto antes.
Parei naquele instante e olhei para ela.
— Quê?
— A Larissa foi morta.
Eu jamais conseguiria imaginá-la inventando algo assim.
A cara que a pessoa na minha frente fazia não era em nada parecido com a
Larissa que eu conhecia.
Mesmo sendo idêntica.
Isso me dava um nó no estômago difícil de colocar em palavras.
Ainda assim, eu não iria cair nesse papo tão fácil.
Como eu poderia, só com isso?
— Isso está indo longe demais para uma piada. — Deveria ser uma pegadi-
nha de mau-gosto, ou ela que ficou biruta de vez, só podia.
— Eu não sou a Larissa, mesmo que esteja usando a aparência dela. Eu não
sou um ser humano.
— Não, já deu, para com isso. Tem alguém filmando aqui perto? — Olhei em
volta. Minha voz começou a ficar mais aguda.
Seria verdade?
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Existe algo no comportamento humano capaz de explicar por que fui a escola
normalmente. Assisti as aulas, mesmo nada entrando em minha cabeça. A capa-
cidade humana de se ater à normalidade perante qualquer acontecimento ab-
surdo ou doloroso é impressionante.
A Larissa não veio à aula.
Eu passei a maior parte do dia olhando para a janela e tentando digerir o
que aconteceu. Não sou uma pessoa de muitos amigos, costumo ficar sozinho
quando ela falta à aula.
Fiquei alternando entre olhar para a janela e ficar mexendo na pulseira de
contas em meu braço. Foi um presente da Larissa. Mais um papo estranho dela.
Proteção contra o oculto ou sei lá. Ela me deu de presente há dois anos, de ani-
versário, e insistiu para que eu usasse sempre.
Na época, fiquei bravo, pensando que ela estava sendo mesquinha e não
queria me dar nada de aniversário. Mesmo tendo usado todo o dinheiro da mi-
nha mesada para o presente do aniversário dela.
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Mas ela fazia questão. Disse que era muito importante e pá. Nós brigamos
no dia. Acabei cedendo e passei a usar a pulseira no dia seguinte.
O sorriso dela quando me viu com esse presente caseiro.
Mesmo na época, ela já era uma garota muito bonita.
Segundo ela mesma essa manhã, eu nunca mais veria aquele sorriso.
Não podia ser verdade, eu tentava me convencer.
Mas algo em mim acreditava que era.
Saindo da escola, vagueei pela cidade, pegando caminhos aleatórios, não
queria ir para casa.
Recebi uma ligação da minha mãe enquanto andava sem rumo.
— Onde você se meteu?!
Eu não sabia mesmo onde estava, devo ter ficado dobrando esquinas a
esmo e me perdi na própria cidade.
— Desculpa, mãe, eu estava dando uma volta depois da aula e acabei per-
dendo a noção do tempo... — Minha voz saiu desanimada. Eu não queria preo-
cupá-la.
— Ai, você sabe que vem muita gente de fora nessa época, tome cuidado.
Mas liguei pra perguntar se você viu a Larissa. A mãe dela veio aqui desesperada,
parece que ela sumiu ontem à noite e não a encontram em lugar nenhum...
Ela havia desaparecido?
— Eu não vi ela — menti. Como eu poderia explicar para a família da Larissa?
Olhei ao redor, perdido, procurando algum indicativo de onde estava, ha-
via andado até perto do Santuário. Estava procurando por um atalho para casa
enquanto apenas respondia minha mãe com monossílabas quando vi um perfil
familiar.
Era a fonte de todos esses problemas.
— Desculpa, mãe, eu ligo depois. Preciso resolver algo.
E desliguei.
Haveria um sermão por desligar na cara dela, mas isso não importava agora.
Minha amiga de infância estava andando entre várias barracas sendo mon-
tadas. Ou a imagem dela.
Ela não havia sumido. Estava bem aqui.
Consegui alcançá-la e puxei seu braço.
— Ei, Larissa!
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— Acalme-se — repetiu.
Suas palavras carregavam algum poder, demorou um pouco, mas voltei a
raciocinar. Como se estivesse dopada, minha mente saía de seu estado frenético
e voltava a funcionar muito devagar.
— Respire fundo.
Obedeci. Sentido meu cérebro ir de oitenta para oito de repente.
Uma expressão de alívio se fez no rosto dela, mas seus olhos tinham um
pequeno brilho desapontado escondido.
Demorou uns cinco minutos, mas, gradualmente, voltei a mim.
Que poder era aquele?
— É esse tipo de reação que eu espero de humanos — disse e se agachou ao
meu lado. Sem jeito. Ela tentou me abraçar. Foi um abraço meio cru. De alguém
que não sabia o que deveria fazer. — Eu sinto muito.
Sua voz e expressão continuaram neutras, mas ela me soltou e desviou o
olhar.
Eu fiquei parado, vendo-a fitar o chão com o mesmo rosto da minha amiga.
Apertei minhas mãos.
Eu ao menos queria entender alguma coisa.
— Como ela morreu? — perguntei, com a voz baixa, sofrida.
“Larissa” olhou para mim, parecia surpresa, mesmo com o rosto inexpres-
sivo.
— Eu tenho o direito de saber — disse, após ficar pensando um pouco.
— Ela foi morta por uma fada.
— Uma fada?
— Sim.
Eu já não entendia mais nada.
Mas ela disse da mesma forma que anunciou a morte da minha amiga de
infância na manhã de hoje. Não deveria ser mentira. Por mais que fosse estranho,
eu confiava que aquela pessoa ou criatura não estivesse mentindo para mim.
Porque... o rosto dela...
— A Larissa foi morta porque eu falhei em matar uma fada nas redondezas.
A culpa foi minha. Eu deixei ela morrer.
Era o de uma pessoa dividida entre o luto e a raiva.
Por mais inexpressiva que sua natureza fosse, eram traços distinguíveis.
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Ela me jogou com força, quase caí no chão, mas consegui me equilibrar por
pouco. Me virei para encará-la, deparando-me com uma versão irritada da mi-
nha amiga de infância.
Era a imagem de uma mulher não querendo deixar transparecer que estava
brava e falhando miseravelmente.
Eu poderia rir se não soubesse que ela poderia me matar facilmente.
— O que você acha que está fazendo?
— Procurando você — falei como se fosse óbvio.
— Por quê? — Ela batia o pé enquanto perguntava.
— Como assim, “por quê?” Você chegou ontem do nada com esse papo de
que a Larissa... E aí fica andando pela cidade. E como assim ela foi morta por uma
fada? Nada mais fez sentido e... eu quero entender algo.
— Você não deveria se lembrar de mim... o que aconteceu? — Ela murmurou
mais para si do que para que eu ouvisse.
— Você achou que eu esqueceria isso de boa?
Mas ela não me ouviu, parecia pensativa, então, como se tivesse uma epi-
fania, seus olhos se arregalaram e ela agarrou meu pulso de repente, erguendo
até seu rosto. Como se confirmasse algo, ela suspirou e me soltou.
— Eu deveria ter imaginado... A Larissa foi uma idiota em te dar um amu-
leto protetor. O que ela tinha na cabeça? — disse, levando a mão direita até o
rosto.
— Ei, não fala isso da Larissa!
Ela voltou a olhar para mim, com sua expressão neutra.
— Foi uma escolha infeliz. Graças a isso, você não pode ser instigado ontem.
Instigado? Que raios?
— Pelo seu próprio bem — continuou ela. — Me entregue essa pulseira.
Por reflexo, eu joguei as mãos para trás do corpo, ela era rápida, mas não
queria me machucar, por isso consegui desviar.
— Nem ferrando!
— É essa pulseira que faz com que você me encontre. — Ela tentou correr
para as minhas costas, mas consegui puxar a mão para a frente no último se-
gundo e enfiar meu braço dentro da blusa do uniforme. — Não teste minha paci-
ência.
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— Espera, caramba!
A manticora me ignorou e continuou descendo a rua, ela parecia estar an-
dando, mas seu passo era bem rápido, fiquei sem ar antes de alcançá-la.
— Eu disse pra esperar! — Coloquei uma mão em seu ombro.
Aquilo a fez parar, estávamos chegando a uma área comercial, o que ela
tinha na cabeça, andando com a cara de uma garota desaparecida em uma região
movimentada?
— Por que você me seguiu?
— Porque... — Ainda buscando por ar, eu não tinha uma justificativa, mas,
se deixasse ela ir embora agora, perderia minha única oportunidade de fazer
qualquer coisa. — Porque... eu não quero que tudo acabe assim.
— Acabe assim? A Larissa não vai voltar, não importa o que ninguém faça.
— Sim, mas... Eu não me resolvi com isso ainda.
Ela me encarou, um pequeno indício de confusão escapou de seu rosto
inexpressivo.
— Eu não quero deixar que tudo acabe aqui. Em meias-respostas, com uma
explicação do caramba sobre tudo. Foi morta por uma fada? Você vai se vingar
por todos nós? Pra casa do caralho com tudo isso! Eu quero fazer algo para con-
seguir lidar com isso. — Senti meu rosto ficar pesado, meus olhos ficaram um
pouco úmidos enquanto eu falava, como se confessar tudo que eu estava sen-
tindo a ela fosse resolver algo. — A Larissa... A Larissa que eu via todo dia se foi,
assim, sem mais nem menos? Você aparece do nada e me anuncia isso, espe-
rando que eu aceite sentado? Não tem como! Eu nem sei qual foi a última coisa
que falei pra ela! Isso não pode ser real, eu não quero que isso seja real. Não quero
acreditar que é real, mas eu sei que é. E.. eu só... quero conseguir lidar com tudo
isso.
Levei uma mão ao rosto, com a outra ainda segurando a manticora.
Minha garganta doía.
— Você viu minha verdadeira forma, acha que vai conseguir fazer qualquer
coisa contra o que matou sua amiga?
— Ainda assim... eu quero tentar.
Encarei-a, decidido.
A manticora na forma da minha amiga de infância suspirou.
— Qual o seu problema e o da Larissa, honestamente?
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Fomos para uma barraquinha que vendia bebidas e doces perto da catedral.
Seria problemático se alguém me visse na cidade durante o horário de aula,
minha mãe ficaria sabendo em instantes. Não queria preocupá-la sem necessi-
dade.
Comprei duas garrafas de água e andamos até encontrarmos um local para
sentar. A manticora me prometeu que explicaria tudo se ficássemos a sós. Está-
vamos em silêncio desde então.
O local mais seguro era perto das barracas sendo montadas. De lá, fomos
até um muro com alguns tijolos apoiados, longe da vista de todos.
Vendo-a olhar a garrafa como se nunca tivesse lidado com o objeto antes
era engraçado. Acabei comprando porque precisava beber algo e pensar com
calma, e parecia errado não oferecer nada para ela.
— Como você abre isso? — perguntou, com rosto sério.
Não me aguentei e ri.
— Ei! Eu fiz uma pergunta séria!
— Foi mal, é que eu não esperava isso...
Quem diria que uma manticora não saberia abrir uma garrafa?
Indiquei a tampa com a minha e abri na frente dela, levando até a boca de-
pois. Ela imitou o movimento e pareceu maravilhada ao sentir o gosto da água.
Tomou todo o conteúdo em poucos goles.
Minha primeira impressão dela mudava aos poucos. Ainda parecia um
oposto total da Larissa, mas não era mais uma criatura fria e inexpressiva, como
pensei ontem. Presumi que apenas tivesse dificuldade em expressar emoções
como um ser humano. Mas, vendo-a feliz assim tendo tomado só um pouco de
água... era até fofa.
Parecia uma criança comendo um doce pela primeira vez.
— Vocês humanos criaram uma forma de comercializar água e carregar
sempre consigo, isso é tão prático! E essa água é tão limpa, totalmente diferente
da de um rio ou do mar desta terra!
— Nunca tomou um copo de água antes?
— Não. Fazem décadas desde a última vez que precisei tomar a forma hu-
mana. E nunca interagi de fato com outros humanos, embora observe vocês o
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bastante, sua cultura ainda me é muito estranha. A Larissa foi a primeira hu-
mana com quem conversei em toda minha vida...
A Larissa realmente adorava esquisitices, mas a ponto de conversar com
uma manticora? Ela sabia o que era uma manticora?
Como eu não disse nada, ela continuou a falar.
— Eu venho perseguindo uma fada há duas semanas, quando cheguei a esta
cidade, ela conseguiu me emboscar e me feriu gravemente. Eu estaria para mor-
rer, mas aí a Larissa me encontrou... Ela é a humana mais estranha que já vi. Não
teve medo da minha forma original, não, na verdade estava até interessada em
saber mais sobre a minha espécie. Ela levou restos de carniça e me abrigou nos
fundos de sua casa por alguns dias. Toda noite ela vinha e conversava comigo.
Era uma garota realmente estranha.
A Larissa não sentiu medo dela na forma de manticora?
Há um limite para o quão estranha uma pessoa pode ser.
Ela falava de umas coisas sem pé nem cabeça às vezes, quando foi que ela
descobriu sobre essas coisas?
Mas ela tem razão em uma parte...
— Eu consigo totalmente imaginar ela perguntando toda animada as coisas
para você? “Uma manticora? De onde você é? Do que você se alimenta?” Essa
sexta, após o jornal...
— Ela realmente fez essas perguntas... Era estranha. Sempre achei que hu-
manos reagiriam como você quando eu me mostrasse perante eles, mas ela nem
tremeu ao meu encontrar.
— Sinto muito ser um bundão — falei baixinho.
— Mas teria sido melhor se ela não tivesse se encontrado comigo.
Aquilo a fez pressionar os lábios.
Um silêncio desconfortável se seguiu até ela voltar a falar, olhando para o
chão:
— Criaturas como eu emitem um cheiro especial, que permite que outras
criaturas saibam onde estou. A Larissa passou tempo demais comigo, e acabou
pegando parte do meu cheiro, o que foi um convite de sobra para a fada.
Apertei a garrafa. O ódio por não saber de nada disso. Por ser incapaz, por
estar ignorante a tudo que aconteceu com a Larissa...
Mas eu precisava engolir esses sentimentos.
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Porém, não era o momento para pensar uma besteira dessas. Algumas pes-
soas se aproximavam de nós, ofereci a minha mão para ela, que hesitou um
pouco, mas aceitou. Então começamos a subir a rua. Eu não tinha um objetivo
em mente, mas não queria que qualquer um visse a Larissa, especialmente do
meu lado, enquanto ela estava desaparecida.
— Pessoas normais podem ver você?
— Não. Só você, graças ao amuleto protetor.
— Amuleto protetor... A pulseira?
A fim de evitar a avenida, acabamos dando uma longa volta por alguns
quarteirões, conferi a hora no celular enquanto andávamos, ainda de mãos dadas
com a manticora.
Eu não esperava, mas sua mão era quente.
Nada a diferenciava de uma pessoa normal.
— Sim. A Larissa quem deu a você, certo?
— É, foi um presente de aniversário...
— Aniversário? — Sua voz parecia confusa por um momento. — Esse amu-
leto impede que você seja instigado por forças superiores. Também permite que
você consiga me ver, o que é bem problemático. A Larissa deveria ter ficado com
ele em vez de ter dado a você, assim meu cheiro não teria ido para ela...
— Calma, mais devagar... — Meu ritmo foi desacelerando até finalmente pa-
rar quando reconheci uma casa no canto da rua.
Havíamos chegado no quarteirão de casa. A casa da Larissa era duas qua-
dras na frente. Droga. Olhei o relógio de novo. Faltava uns cinco minutos para às
onze. Eu poderia inventar de que passei mal e pedi para voltar para casa ou que
tive aula vaga... Mas como poderia explicar a manticora do meu lado?
Minha mãe voltaria para seu horário do almoço às onze e meia, eu tinha
tempo para pensar em algo.
— O que foi?
— Estamos chegando perto da minha casa, vai ser um problema se a minha
mãe nos ver... Tipo, eu matei aula, e estão procurando pela Larissa...
— Entendi.
Ainda sem soltar a minha mão, ela me puxou em direção da casa da minha
amiga de infância. Eu poderia fazer o caminho de olhos fechados.
Ela tirou uma cópia da chave do portão de um dos bolsos de sua calça.
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— Quê?
— Roubei essa cópia quando assumi a forma dela. Posso assumir a forma
dela, mas não posso criar roupas do ar. E também precisaria vir aqui e instigar
os pais dela em algum momento. Eles não estão aqui agora, podemos entrar e
conversar.
— Eu sei que os pais dela não estão aqui! Mas é de muito mau gosto, sabia!
— Esse é um valor meramente humano.
Ela já estava abrindo a porta da frente.
Eu precisava me lembrar de que ela não era humana.
Mesmo tendo visto com meus próprios olhos, eu tentei me enganar com
uma falsa normalidade enquanto conversávamos.
Segui a manticora para dentro da casa da Larissa.
Ela estava parada, olhando a sala de estar, não devia conhecer o interior
direito.
Andei como se fosse a minha própria casa e fui para o quarto da minha
amiga. Suas cortinas cor-de-rosa, o ursinho de pelúcia velho sobre sua cama, a
escrivaninha e o armário que herdou dos avós há anos e se destoavam de todos
os outros móveis do quarto... Tudo me lembrava dela, das incontáveis vezes em
que vim aqui, sentei na única cadeira do quarto enquanto ela sentava na cama e
ficávamos conversando. Ela me mostrava alguma coisa estranha que pesquisou
na internet ou alguma coisa aleatória que leu em algum livro esquisito da avó,
eu respondia sempre que não tinha como aquilo ser verdade. Ela brigava comigo,
mas acabava me falando em detalhes, mesmo assim.
O que eu não daria para que a garota atrás de mim gritasse que foi tudo
uma pegadinha idiota e sentasse na cama, rindo da minha cara...
Sentei na cama, não queria tentar ver a Larissa sobre a imagem da manti-
cora, nem que por acidente. Não queria ver ela na mesma posição que a minha
amiga.
Precisava aceitar que não veria a Larissa de novo.
Eu provavelmente não entraria neste quarto de novo após hoje.
Não sei se conseguiria, ou se os pais dela deixariam.
Havia várias memórias as quais nunca dei o real valor aqui.
Eu queria muito que você me contasse sobre alguma coisa estranha nova,
Larissa. Deveria ter dado mais atenção.
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Se soubesse a real importância, se soubesse que era real, eu poderia ter mu-
dado alguma coisa?
Respirei fundo e forcei meu rosto a conter as lágrimas.
— O que você falou... — Parei. Minha voz saiu trêmula. — O que você falou
antes sobre instigar...
— É uma qualidade, melhor, em termos que você entenda, é como um po-
der de forçar alguém a fazer algo que quero. Não é controlar a mente da pessoa,
mas sim induzi-la a pensar que ela queria fazer aquilo. Costumo induzir todos
os humanos que olham para mim a ignorar a minha presença. Por isso ninguém
repara enquanto ando pela cidade, mesmo sendo idêntica à Larissa.
— Faz sentido...
— Eu usaria isso para me livrar da fada e não alertar nenhum ente próximo
dela, mas não sabia que ela havia dado um amuleto para você. É provavelmente
o único amuleto que ela conseguiu criar. Queria que ela tivesse me dito isso en-
quanto ficava falando sem parar sobre você.
— Ela falou de mim?
— Sim. — Um pequeno sorriso se fez no rosto dela, a manticora sentou à
cadeira e deixou as duas mãos descansando sobre seu colo. — Ela falou muito
sobre você. Que era o único amigo que ela tinha desde a infância. E que era a
única pessoa que não a tratava diferente, apesar de tudo...
— Apesar de tudo? Tipo, como assim? A Larissa era meio estranha, compa-
rada ao resto, mas não tinha nada de errado com ela.
— Você realmente não sabe de nada, não é mesmo? É incrível que tenha
permanecido ao lado dela dessa forma.
— Espera, quê?
— A família dela é herdeira de uma linhagem de xamãs. Protetores destas
terras. Segundo ela, a capacidade para o místico pulava gerações e sua avó mor-
reu cedo demais para ensinar o básico. O que é uma pena, ela tinha muito talento
e potencial.
Olhei para a minha pulseira. Eu nunca fiquei sabendo daquilo.
Xamã? Protetora?
Tá, ela falava de coisas estranhas, e já me fez ajudar ela a perseguir uma tal
linha espiritual da terra quando éramos pequenos, mas... sério que essa conversa
toda sempre foi verdade?
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— Manti?
— Manti, de manticora. Só um apelido. Melhor, né?
— Manti... — Ela repetiu baixinho para si, seu rosto se alegrou, pareceu sa-
tisfeita. — Tudo bem. Será Manti então. Até a noite, Miguel.
— Ok! Então, até.
Eu me virei após essa despedida, pronto para ir para casa, quando me to-
quei de que ela havia me chamado pelo nome. Girei nos calcanhares na mesma
hora, mas não havia sinal algum dela.
A Larissa deve ter contado.
Caramba, o que a minha amiga de infância tinha na cabeça para tagarelar
sobre a vida dela para uma criatura que viu pela primeira vez?
Se bem que isso é bem a cara dela.
Não pensa nem um pouco nas consequências do que sai falando por aí.
Não quer demonstrar, mas fica triste ao ser isolada.
Foi por isso que ficamos um do lado do outro por tanto tempo. Ela não me
deixou sozinho quando eu precisei, e eu faria o mesmo por ela.
Eu não estive lá quando precisava e agora queria compensar isso ajudando
uma criatura estranha.
É o sujo falando do mal lavado quando chamo a Larissa de estranha.
Posso até ouvir a Larissa me chamando de idiota.
Você que era a idiota por não querer me envolver nisso.
Olha só o que aconteceu?
Sua bobona.
Eu vou sentir sua falta.
Escondi o caderno dentro da camisa e entrei em casa. O resto do dia se pas-
sou como se nada estivesse fora do normal. Minha mãe continuava um pouco
tensa, devido a situação, mas ela não queria falar disso comigo.
Eu me sentia mal, mas não podia falar nada para ela.
Comecei a folhear o caderno assim que fiquei sozinho. Havia várias coisas
anotadas, desenhos confusos — ela nunca foi uma artista — e várias anotações
na borda. Poderia muito bem ser confundido com um caderno de escola.
As anotações eram coisas para ela mesma entender. Várias menções a li-
vros que a avó tinha, mas nada realmente útil para um leigo do assunto...
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Eu não tinha certeza do que poderia tirar dali, mas tentei entender o que
dava.
Havia algumas páginas com post-its, eram assuntos que ela estava focada
no momento. Uma das páginas era um tutorial para produzir a pulseira que ela
me deu. Pelo que entendi, o material necessário para formar esse amuleto pre-
cisava ser cultivado por anos...
Havia uma pequena anotação feita com caneta rosa no final da página.
“Espero que isso proteja o Miguel se algo acontecer comigo.”
“Ele pode não gostar do presente...”
“Mas eu não sei o que faria se alguma coisa atacasse ele.”
— Aquela idiota...
Eu não queria ficar emocional de novo, virei a página e tentei me focar.
Uma das últimas anotações era sobre manticoras. Perguntas aleatórias, do que
se alimentavam, como se transformavam... Devia ser baseado nas conversas com
a Manti.
Havia uma pergunta sublinhada nessa seção do caderno.
“A manticora disse que pode assumir a forma humana. Mas que forma ela
vai assumir? Ela vai copiar a forma de um ser humano?”
É uma pergunta bem válida. Se eu não visse em primeira mão, também ia
querer saber disso.
Aliás...
Por que ela assumiu a forma da Larissa?
Seria para poder falar comigo ontem? Para que eu acreditasse nela?
Mas era necessário mesmo assumir a forma dela?
Ou ela precisaria ver um humano de perto para isso? A Manti disse que só
havia observado os humanos de longe antes.
Ou poderia ser até para honrar a Larissa... a seu modo e maneira. A Manti
pareceu ter se apegado a Larissa, sendo a primeira humana com quem ela con-
versou.
A Larissa era muito amigável quando você superava a primeira camada de
esquisitice dela. Sou a prova viva disso.
Mas a Manti e a Larissa...
Elas eram incrivelmente diferentes, até gostaria de ver as duas conver-
sando.
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local afastado, e você finge que está se afastando em mim, para pegar ela despre-
venida! Aí é só dar o golpe final antes de ela me pegar! Que tal?
— É arriscado demais! Não posso usar você como isca!
— É a melhor forma de pegarmos ela! Você vai conseguir pegar a fada antes
que ela me ataque, não vai?
— Eu devo conseguir, mas mesmo assim...
— Sem mas! E eu conheço bem a área da festa, fui lá todo ano com a Larissa,
podemos evitar pessoas que a conheçam e sei de caminhos mais rápidos entre o
Santuário e o camelódromo, eu vou ser útil!
— Ainda assim...
Mas antes que ela pudesse argumentar qualquer coisa, Manti pulou para
fora da janela. Meu quarto não era grande, mas tenho certeza de que aquilo se
classificaria como um salto olímpico. E antes que eu pudesse falar algo, a porta
do quarto se abriu do nada e minha mãe entrou com uma cara irritada.
— Miguel, sabe que horas são?
— Na verdade não...
— É quase uma da manhã, vá dormir! O que você estava gritando no quarto?
— Eu estava discutindo com um pessoal da escola, desculpa.
— Vai dormir, você tem aula amanhã, e eu preciso acordar cedo, não me
faça tomar seu celular. E feche a janela, a cidade fica perigosa nessa época.
— Sim, sim, eu vou. Desculpa.
Ela saiu do quarto, resmungando. Sorte que estava com sono e irritada de-
mais para perceber que meu celular estava carregando atrás da porta que abriu.
Nem quero imaginar o que aconteceria se ela me pegasse conversando com
uma garota idêntica à Larissa.
Devo ter erguido a voz sem perceber enquanto conversava.
E havia perdido minha oportunidade de perguntar o que queria para a
Manti.
Só me restava ir dormir e torcer para termos mais oportunidade de con-
versar no dia seguinte.
Eu não posso dizer que superei, muito menos que aceitei, devidamente. Apenas
segui com o que era a minha rotina, ir para a escola, fingir prestar atenção nas
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aulas. Algumas pessoas vieram me perguntar sobre a Larissa, precisei fingir que
estava abatido e muito preocupado.
Ninguém havia visto qualquer sombra dela desde que a família alegou o
desaparecimento. Ou seja, era verdade, a Manti conseguiria revirar esta cidade
toda sem que ninguém a visse além de mim.
Tudo teria dado certo se não fosse o adolescente intrometido e o amuleto
de proteção idiota.
Não que eu duvidasse dela, fosse por aquele poder de instigar que ela falou
ou não, podia bater de pé junto de que aquela manticora falava a verdade para
mim.
Ela poderia ter seguido atrás da fada.
Poderia ter ignorado tudo que a Larissa deixou para trás.
Mas decidiu me contar sobre a morte dela.
Eu sou grato por isso.
Poderia ser melhor não saber de nada e ainda ter a esperança de que ela
pudesse estar só desaparecida ainda.
Mas agora, ao menos, eu tenho algo para me focar.
É egoísta da minha parte querer ajudar a matar a fada?
Ou foi egoísta da parte da Manti esperar que eu não me metesse nisso?
No fim, provavelmente somos dois seres tentando lidar com a perda de al-
guém querido. Deve ser o motivo pelo qual conseguimos conversar ou sequer
nos entender, de alguma forma.
Ligados por uma pessoa que nunca mais estará conosco.
Os professores avisaram algo sobre tomarmos cuidado, porque muitas pes-
soas de fora vinham para a cidade nessa época, e nos comportarmos durante
esse período. Havia mais carteiras vazias na sala, mas provavelmente eram pes-
soas aproveitando o que já estava montado do que realmente algo preocupante.
Eu não lembro de nenhum desaparecimento ou morte que rolou nessa
época. Talvez tenha sido abafado por alguma criatura como a Manti? Outras
manticoras eram amigáveis como ela?
Estou começando a entender a curiosidade da Larissa para com tudo isso.
Ri sozinho enquanto subia a rua para casa. Não havia combinado com a
Manti como nos encontraríamos hoje, mas sei que ela não me abandonaria. Por
bem ou por mal, eu posso ser útil a ela.
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E falando no diabo...
Ela me esperava na frente da minha casa.
— Achei um rastro da fada.
Manti explicou que encontrou um resquício do cheiro da fada enquanto
percorria os limites da cidade, o rastro parava pouco antes da aglomeração de
carrinhos de comida. A fada deve ter percebido a aglomeração de pessoas e pro-
vavelmente procurava uma nova vítima, como a Manti disse ontem.
Precisaríamos atraí-la logo...
Acabou que combinamos de sair assim que minha mãe dormisse, e eu de-
veria voltar antes de ser muito tarde, para que ela não percebesse.
Decidi aproveitar o resto do período da tarde para dormir, assim não ficaria
tão cansado à noite.
Sonhei com a Larissa descobrindo que morri e se culpando por não ter me
protegido. Ela chorava sobre uma lápide. A seu lado, Manti também chorava.
Ela consegue chorar? Perguntei-me no sonho.
Como se assistisse a um filme em pedaços, vi as duas correndo atrás de uma
fadinha, como aquelas dos filmes. Podiam ser duas Larissas, mas saber quem era
quem era tão óbvio quanto saber a diferença entre dia e noite. Manti era rápida
e precisa, tomou a liderança logo, a Larissa corria para acompanhá-la, mas ficava
facilmente para trás.
Elas encurralaram a fadinha.
Porém, perto de dar o golpe final, nenhuma das duas se moveu.
A fada aproveitou a situação e atacou a Larissa.
Não!
Foi quando acordei. Meu coração estava acelerado. Eu respirava com difi-
culdade. Não sei se meu grito ficou no sonho ou foi real. O sol começava a se por
pela janela. Precisava me acalmar.
A noite se seguiu sem complicações, mas eu permanecia inquieto. Fiz uma muda
de roupas, pensei no que deveria levar, vi o que eu tinha de dinheiro comigo,
será que precisaria de mais? Será que precisaria, para começo de conversa?
Fiquei dando voltas pelo quarto enquanto esperava a Manti.
Não tranquei a janela, mas ela ainda bateu antes de entrar.
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Dei a volta no lugar com a Manti. Não havia o medo de nos encontrarem,
mas precisaríamos mesmo ficar até a manhã assim? Não sei se aguentaria. Aliás,
ela não precisa dormir?
— Manticoras ficam acordadas em ciclos de dias e dormem várias horas se-
guidas depois, geralmente após nos alimentarmos — disse ela do nada.
Aquilo me assustou e quase larguei sua mão.
— Você estava fazendo a mesma cara da Larissa, então, pensando por nossa
conversa, achei que fosse fazer a mesma pergunta que ela fez quando mencionei
sobre meu período de caça.
— Sou tão previsível assim? — sussurrei.
— Um pouquinho, às vezes. É mais reconfortante saber que você reage
como um humano normal a certas coisas, diferente da Larissa. Eu nunca espera-
ria encontrar um ser humano que não tivesse medo da minha verdadeira forma,
ou que tentasse me ajudar por conta própria.
— É, era uma coisa bem dela mesmo.
— Mas você também não fica tão atrás, eu nunca imaginaria que um hu-
mano estaria disposto, melhor, tentaria me ajudar de qualquer maneira. Vocês
dois são bem, hum, qual era a expressão? Fora da casinha?
— Pensando com calma, é... — Aquilo trouxe outra pergunta à minha mente.
— Se você soubesse que eu tinha o amuleto ou que fosse ajudar você, ainda teria
me contado sobre a morte da Larissa?
Ela parou de andar.
Me virei para ela, esperando sua resposta.
— Sim. Era o certo a fazer. Eu não entendo direito as emoções humanas,
também não sei expressá-las direito. Você já deve ter percebido. Mas... a Larissa
era bem clara em tudo que sentia, sua admiração, sua curiosidade, sua vontade
de ajudar, sua preocupação, eram óbvios até para mim. E quando ela falava de
você, era como se brilhasse, todos os dias, ela falava sobre você, sobre como era
legal, como ficava ao lado dela, como ela queria poder falar mais sobre ser uma
xamã em treinamento, mas tinha medo de envolver você em algo perigoso... Ela
gostava de verdade de você, por isso, me pareceu o justo a fazer.
Senti um aperto no peito.
Larissa, você é mesmo uma idiota.
Por que não falou isso enquanto estava viva?
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Nessa noite, sonhei que passeava pelas lojinhas de camelô da festa do Bom Jesus
da Cana Verde ao lado de uma garota. Fazíamos tudo que sempre sonhei em fa-
zer ao ter uma namorada. Passeamos, vimos coisas diferentes, eu comprei uma
joiazinha besta para ela, ela me falou para olhar as carteiras e arrumar um cinco
de gente grande, fomos até o parque de diversões ambulante, andamos nos car-
rinhos de bate-bate, perseguimos as crianças que saíram traumatizadas, recla-
mamos de não poder ir na montanha russa mais, devido ao tamanho limite do
brinquedo, e então fomos na roda gigante.
Uma vez eu pensei em fazer tudo isso com a Larissa.
Quando ela deu sinais de que se tornaria uma mulher linda. Mas nunca re-
almente a vi como alguém além da minha amiga de infância.
A garota ao meu lado nesse sonho não era a Larissa.
Era a Manti.
Com o mesmo sorriso com o qual se despediu de mim.
Eu sabia o que aquilo queria dizer, mas achei que seria um desrespeito à
minha amiga se admitisse.
Se bem que, eu consigo imaginar o que ela diria.
E o que ela desejaria para mim.
Da mesma forma que eu desejaria o mesmo para ela em seu lugar.
Anos ao lado de uma pessoa dão nisso.
Acordei bem devagar, sentindo meu corpo passar do estado de sono para o
desperto aos poucos. Poderia ter sido tudo um sonho. Eu poderia, na verdade,
estar na segunda-feira.
Mas, não, a realidade era outra.
E eu estava começando a aceitá-la.
O que me dava mais raiva ainda.
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Segui com o que estava acostumado no meu dia a dia, café da manhã, cum-
primentei a minha mãe, fui para a escola. Olhei para trás rapidamente e vi, de
relance, o perfil da Manti acenando para mim. Pisquei e ela já havia sumido, po-
deria pensar que estou doido, ou não.
Ela ficou me esperando sair de casa há quanto tempo?
As aulas seguiram normais, o interesse no caso da Larissa já havia virado
em pesar. Pelo visto algum professor recomendou que me deixassem em paz,
visto que quase ninguém veio falar comigo sobre ela hoje.
Eu agradecia isso.
Precisava colocar os pensamentos em ordem.
Voltei para casa, sem sinal da Manti no caminho. Posso ter imaginado ela
acenando para mim de manhã... O resto do dia foi como qualquer outro. Tem algo
de estranho na capacidade de agir como sempre, mesmo em meio a tanta coisa
acontecendo de uma vez.
Eu não queria dormir de tarde. Não queria outro sonho como os dois últi-
mos.
Achei melhor ficar relaxado, mas não tinha nada que fazia o tempo passar.
Ver TV parecia inútil, eu não estava com paciência para ler qualquer coisa, já ha-
via preparado tudo que achei que poderia precisar... Aí me veio à mente reler o
caderno da Larissa. Não toquei nele desde então.
Como aquele pedaço da minha mente com o qual eu não queria lidar.
Sentei à escrivaninha do meu quarto e comecei a folhear o caderno. Mal
eram duas da tarde... Eu teria tempo de sobra.
Revi tudo desde o começo. As anotações dela começavam a fazer mais sen-
tido, mas não era um mundo que eu conseguiria compreender tão fácil.
E após vencermos a fada?
O que aconteceria?
A Manti iria embora, e eu seria forçado a encarar a morte da Larissa?
Eu não queria pensar nisso.
Virei as páginas, até chegar na seção sobre a manticora. Pude entender as
perguntas muito melhor agora. Era engraçado. Como elas se alimentam, o que
normalmente fazem.
“A manticora com quem converso não tem muito contato com as demais
da espécie. Seriam todas assim?”
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Esperei a noite chegar. Sem coragem de dormir e sonhar com o que descobri.
Liguei a TV e fiquei esperando pela minha mãe, assisti a novela com ela, dei boa
noite assim que ela começou a bocejar. Sem pensar muito, ela me deu boa noite
de volta e foi para seu quarto.
Esperei mais um pouco.
Quando pude ouvir roncos vindo do quarto dela, soube que era a hora.
Abri o portão da frente com cuidado e fiquei esperando.
Manti surgiu do meu lado antes que eu pudesse me dar conta.
— Boa noite.
— Oi.
— Achei que fosse me esperar para pularmos o portão de novo.
— Uma vez já estava de bom tamanho. Bom, vamos?
— Sim.
Ela me ofereceu a mão dessa vez, receoso, acabei aceitando. Mas quem a
levou fui eu, nos aproximamos das barraquinhas para que eu perguntasse.
— Você veio aqui de tarde?
— Sim, o movimento é menor, mas presente, porém não encontrei o vestí-
gio da fada, ela deve estar tomando mais cuidado.
— Hum — murmurei.
Comecei meu pequeno tour com ela, andamos por várias barracas. Manti
olhava aos arredores, mas volta e meia a peguei conferindo uma ou outra bar-
raca com algo diferente.
— Quer dar uma olhada?
Ela me olhou, parecia um pouco envergonhada. Eu podia ler cada vez mais
seu rosto, que antes era tão inexpressivo.
Levei ela para algumas, ela olhou bolsas, roupas, bonecas, parecia uma ga-
rota normal. Foco no parecia.
Não compramos nada, porque não tinha muito sentido.
Mas ela pareceu se divertir olhando as coisas, como uma criancinha vendo
pela primeira vez. Ficava fascinada pelas coisas mais bobas.
Demos mais algumas voltas, tomando cuidado para não esbarrar em nin-
guém, tinha quase o dobro de pessoas de ontem.
Porém, eu vi algo no canto do olho e acabei parando, puxei a Manti comigo
até uma extremidade do lugar. Soltei da mão dela por instantes para ir até um
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é algo que está aqui e pronto! Seria tipo eu perguntar qual o sentido de fadas
devorarem humanos, entende?
— Elas fazem isso para se alimentar.
— Mas por quê?
— Humanos emitem vários tipos de energia, cada qual pode ser absorvido
de uma forma, dependendo do tipo de fada...
— Espera, tem mesmo uma explicação? E você sabe?
— Óbvio.
Um a zero.
Droga. Fiquei amuado e fiz um biquinho. Ela riu mais alto dessa vez.
— Você fica bonitinho quando faz essa cara.
Espera, eu ouvi certo?
— Eu fico o quê?
Mas, antes que ela fosse responder, havíamos chegado ao topo. Ela quase
jogou o rosto pela pequena janela que tinha de um dos lados, analisando tudo.
— Encontrei.
— Sério?!
— É onde o cheiro dela sumiu mais cedo, parece isolado, pela falta de luz.
Ela deve estar esperando ali perto até que algum humano apareça sozinho.
Observei a direção na qual ela apontava.
Era umas duas ruas abaixo de onde a concentração de pessoas começava,
era perto de um campo aberto. Poucas pessoas passariam por lá, mas ainda de-
veria ter quem pegasse aquele caminho.
— Podemos descer daqui agora — disse ela, não foi uma pergunta.
— Vai chamar muita atenção se a porta abrir do nada, ou ele for abrir depois
e não tiver ninguém dentro.
— Então é melhor esperarmos?
Assenti.
Finalmente, uma pista.
Demoraria um pouco para terminar o ciclo da roda-gigante. Manti conti-
nuava animada para conversar.
— Ei, o que você gostava na Larissa?
— Hein? Quê?
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— O que você gostava nela? — repetiu, sem olhar para mim, ainda fitando
a janela. — Eu só ouvi dela, mas queria saber de você também.
— Eu, hum... eu gostava de como ela era animada. Ficar do lado dela nunca
era chato, e estávamos sempre juntos. Acho que é isso.
— Não tem mais nada?
— Hã?
— Ela falou tanto de você, achei que ficaria falando mais dela.
— Não sei direito o que você quer ouvir. Assim, ela era a minha melhor
amiga, a minha amiga de infância, eu gostava muito dela assim. E é isso. Não te-
nho tanto para falar sobre ela.
— É mesmo?
Ela suspirou.
Estaria decepcionada? Eu estava comigo mesmo. Eu entendi, de ontem
para hoje, que nunca realmente enxerguei ela como uma namorada. Ela sempre
será a minha melhor amiga que conheci desde pequeno. Eu pensava que seria
legal namorá-la, não porque estava apaixonado, mas porque ela era bonita.
Eu sou um cara horrível.
Essa é a verdade.
Mas mentir sobre meus sentimentos, ainda que fosse para a Manti, seria
errado.
Seria mentir para a Larissa também.
Finalmente chegou nossa vez de sair, minha parceira mal esperou e logo
acelerou o passo, ela me puxou pela mão, precisei correr para acompanhá-la.
Em menos de cinco minutos, estávamos no lugar.
Acho que foram mais de quatro quilômetros...
Eu estava recuperando o fôlego enquanto ela averiguava os arredores.
Sério, como ela consegue?
Pensei um pouco em tudo o que aconteceu.
No fim, eu precisava perguntar. Ou nunca teria paz.
— Manti.
Ela se virou para mim.
— O que foi? Ainda não achei o rastro dela, mas fique atento, a fada não
deve estar longe.
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Não fosse pelo som forte de algo caindo a vários metros do meu lado, eu
poderia jurar que ela havia fugido.
— É aquela manticora... Ela não desiste, que saco. — Escutei uma vozinha
falar. — Bem que estranhei ver a presa que matei outro dia andando por aí. Ela
deve ter terminado com a carniça, a safada.
Um pequeno ponto brilhante, deveria ser menor do que a minha mão.
Aquilo era a fada?
— Mas olha só. Que manticora generosa, me trouxe um lanchinho de pre-
sente. Ou ela estava guardando você para depois?
Ela falava de mim. Mesmo sendo uma luzinha voadora, ele conseguiu jogar
a Manti para longe. Eu não teria chance de fugir.
A fada veio com tudo em minha direção, vi dentes afiados de relance
quando, fechei meus olhos e levei as mãos até o rosto, esperando pelo pior,
quando...
Um som forte. Como um carro freando do nada.
A fada havia sido repelida.
— O quê?! Como?! — Ela tentou se jogar contra mim de novo e de novo, mas
foi repelida todas as vezes.
O amuleto protetor!
Obrigado, Larissa.
— Manti! — gritei, não sei o quanto o amuleto conseguiria repelir os ataques
da fada. Mas o ponto brilhante voador se colocou na minha frente.
A fada estava na minha cola, era agora ou nunca, eu não via o corpo da
Manti, mas sabia a direção na qual ela foi jogada. Corri com tudo que as minhas
pernas permitiriam. Precisava dar tempo!
Ela tentou me atacar de novo, dessa vez, em vez de tentar proteger o rosto,
tentei socá-la com o punho que estava com o amuleto. A força do impacto nos
jogou para trás, por pouco não perdi o equilíbrio, no entanto, a fada não esperou
e logo partiu para cima de mim.
— Não ache que aquela manticora de uma figa vai te ajudar, humano!
Antes que ela chegasse em mim, uma onda forte de ar a fez perder o rumo,
indo parar atrás de mim.
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Ouvi um rugido. Parei e olhei para trás, Manti, em sua verdadeira forma,
havia nos alcançado, ela se jogou na direção da fada, que parece repelir qualquer
que seja o membro que ela bateu nela.
A fada tentou atacar a parte de cima do corpo da manticora, que ergueu o
que eu acho que era uma das patas e a jogou no chão, mas antes que conseguisse
terminar, a pequena criatura escapou e tentou dar a volta no grande corpo da
Manti, que a impediu balançando algum membro traseiro... acho que aquela era
a parte de trás dela, parecia, ao menos.
Como alguém descreve uma batalha desse tipo? Provavelmente ficaria le-
gal em algum clipe do youtube com uma abertura de animê tocando, mas não
era hora de pensar isso!
A fada parecia estar em desvantagem clara, o corpo da Manti repelia seus
ataques e a cauda dela... aquilo era uma cauda? Rebatia a fada com facilidade.
Mas o pisca-pisca voador era mais rápido. Conseguiria fugir nesse ritmo.
Eu precisava fazer algo, qualquer coisa. Mas como me jogaria de cara na-
quela briga? Seria arriscado demais. O que eu poderia fazer?
Eu corri em direção ao combate das duas.
Uma decisão idiota.
Mas eu não podia deixar aquela fada fugir.
Pela Larissa. Pela Manti.
Por tudo que esses quatro dias significaram.
Por mim mesmo.
A fada estava quase tomando distância do grande corpo a manticora
quando me joguei contra ela. A criaturinha não me viu, preocupada em fugir de
sua predadora, por isso não deve ter desviado.
Segurei um braço com o outro e saltei na direção da fada, forçando um soco
nela. Em um último esforço, o poder do amuleto a repeliu na direção da manti-
cora, que a devorou... se aquilo que estou pensando for a boca dela...
A pulseira no meu braço se desfez e as contas caíram no chão, quebrando-
se.
Devo ter usado tudo que tinha.
Mas era o fim.
Era o fim desses quatro dias.
E da minha estadia nesse mundo misterioso.
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eu precisava de forças para isso... Então eu devorei ela. Era a coisa lógica a se
fazer no momento, mas, agora, depois de ter passado tempo com você, eu me
sinto horrível por isso.
No fim, nós dois estávamos fazendo algo egoísta e por nós mesmos.
Meu peito doía. Eu sabia bem o motivo, mas não queria aceitar.
— Eu nunca pensei que me importaria tanto com seres humanos. Esses dias
foram únicos para mim. Especialmente... especialmente porque eu pude passá-
los ao seu lado. Não era só por você ser teimoso e estranho, mas por ter ficado ao
meu lado, por ter conversado comigo como se eu fosse um ser humano normal.
Quanto você disse que pensava na Larissa como uma amiga de infância, eu me
senti aliviada e culpada, porque, eu... eu... tudo isso...
As lágrimas caíam com força do seu rosto.
Mas ela sorria. Um outro sorriso que me encantou.
E um sorriso que me deixava com um forte aperto no peito.
— Eu apreciei tudo isso. Mais do que deveria. Mais do que tinha qualquer
direto. Miguel, eu quero ficar ao seu lado. Eu quero ficar perto de você. Eu quero
conversar mais com você. Eu quero ter mais experiências divertidas e ver mais
coisas interessantes. Eu não quero te deixar. Eu...
Eu sabia o que ela iria dizer.
Não queria admitir, mas o sentimento era mútuo.
Eu me aproximei dela.
E a beijei.
Nesses últimos dias, eu me apaixonei por ela. Por uma garota tão linda
quanto a minha falecida melhor amiga. Por uma manticora que me ajudou a vin-
gar essa amiga e que dividia os sentimentos de luto comigo.
Devo ser mais estranho que a Larissa.
Foi um beijo demorado e lento. Como em filmes. Uma lágrima solitária es-
correu pelo meu rosto.
Nos desconectamos aos poucos. Eu a soltei antes de terminar o beijo. Sabia
o que viria a seguir. Sabia o que aconteceria ao abrir os olhos.
Por mais que eu quisesse. Por mais que nós dois desejássemos.
Nosso beijo terminou. Abri meus olhos devagar.
Manti não estava mais em lugar algum.
Eu sabia que seria assim.
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