Você está na página 1de 212

Ficha Técnica

Título: O HOM EM QUE NÃO LIGOU


Título original: THE M AN WHO DIDN’T CALL
Autor: Rosie Walsh
Edição: Carmen Serrano
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Revisão: Rita Almeida Simões
Capa: M aria M anuel Lacerda
Imagem da capa: Shutterstock
Fotografia da autora: Remco M erbis
ISBN: 9789892342467

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© 2018, Rosie Walsh Ltd


© 2018, Edições ASA II, S.A.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
edicoes@asa.pt
www.asa.leya.com
www.leya.pt

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.


Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Este livro é dedicado a todas as pessoas que já ficaram de rastos com a ausência de um
telefonema.

Especialmente àquelas que nunca imaginaram que se importariam com isso.


Talvez só possamos apaixonar-nos
se não conhecermos bem a pessoa por quem nos apaixonamos.

Alain de Botton
Ensaios de Amor
PARTE UM
CAPÍTULO 1

Meu amor,

Foi há exatamente dezanove anos, aquela manhã luminosa em que sorrimos e nos
despedimos. Nunca esteve em dúvida que nos voltaríamos a ver, pois não? Era apenas uma
questão de quando. Na verdade, nem sequer era uma questão. O futuro podia parecer tão
insubstancial como a orla ondulada de um sonho, mas continha-nos inequivocamente a ambos.
Juntos.
E, contudo, não foi o que aconteceu. Ainda hoje, tantos anos depois, não consigo conceber
esse facto.
Dezanove anos desde aquele dia. Dezanove anos inteiros! E continuo à tua procura. Nunca
deixarei de te procurar.
Muitas vezes, apareces-me quando menos espero. Há bocado, hoje mesmo, invadiu-me um
pensamento sombrio qualquer sem sentido, fiquei com o corpo contraído como um punho
metálico. E, de súbito, ali estavas: uma folha outonal de cores vivas a esvoaçar sobre um
relvado cinzento e baço. Abri-me e cheirei a vida, senti o orvalho nos pés, vi tons de verde.
Tentei agarrar-te, a essa folha vívida, a cabriolar, a contorcer-se, a rir. Tentei pegar-te na mão,
fitar-te diretamente, mas, como um ponto negro ótico, escapuliste-te silenciosamente nas franjas
do meu olhar, para fora do meu alcance.
Nunca deixarei de te procurar.
CAPÍTULO 2

Dia sete: quando ambos soubemos

Arelva estava húmida. Húmida e escura e cheia de atividade. Toda a sua extensão, até à orla
escura do bosque, vibrava com batalhões de formigas e caracóis vagarosos e aranhas
minúsculas com as suas teias finas. Por baixo de nós, a terra chamava a si os últimos resíduos de
calor.
Eddie, deitado ao meu lado, cantarolava entre dentes o tema da Guerra das Estrelas. O seu
polegar acariciou o meu. Lenta e gentilmente, como as nuvens que se deslocavam à frente da fatia
fina de Lua sobre nós.
– Vamos procurar extraterrestres – dissera ele, mais cedo, enquanto o céu violeta se adensava
para roxo. Ainda ali estávamos.
Ouvi o suspiro distante do último comboio a desaparecer no túnel, mais acima na colina, e sorri,
recordando como eu e Hannah costumávamos acampar aqui quando éramos pequenas. Num pequeno
campo neste mesmo pequeno vale, escondido daquilo que ainda me parecia ser um pequeno mundo.
Ao primeiro sinal de verão, Hannah implorava aos nossos pais que montassem a tenda.
Claro, diziam eles. Desde que acampem no jardim.
O jardim era nivelado. Ficava à frente da casa e via-se de quase todas as janelas. Mas isso nunca
era suficiente para Hannah, cujo espírito de aventura – apesar de ser cinco anos mais nova do que
eu – sempre foi superior ao meu. Ela queria o campo. O campo ficava na encosta da colina atrás da
nossa casa, que formava um pequeno planalto no cume, onde cabia pouco mais do que a tenda. Não
se via de lado nenhum senão do céu. Estava salpicado por discos duros de excrementos de vaca e
ficava tão alto que quase conseguíamos espreitar para dentro da chaminé da casa.
Os nossos pais não gostavam muito da ideia.
– Mas é perfeitamente seguro – insistia Hannah, naquela sua vozinha autoritária. (Que saudades
daquela voz!) – A Alex estará comigo. – Era a melhor amiga de Hannah, que passava os dias
praticamente enfiada em nossa casa. – E a Sarah. Ela pode proteger-nos, se aparecer algum
assassino.
Como se eu fosse um homem corpulento com um gancho direito infalível.
– E, se formos acampar, não tens de nos fazer jantar. Nem pequeno-almoço...
Hannah era como um pequeno trator – nunca ficava sem argumentos – e os nossos pais acabavam
invariavelmente por ceder. Ao princípio, acampavam connosco, mas por fim, à medida que eu me
adentrava na floresta densa da adolescência, permitiam que Hannah e Alex lá dormissem sozinhas,
comigo como guarda-costas.
Deitávamo-nos na velha tenda dos festivais do papá – uma coisa pesada, de lona cor de laranja,
como um pequeno bungalow – e ouvíamos a sinfonia de sons na relva lá fora. Muitas vezes, eu
ficava acordada muito depois de a minha irmãzinha e a amiga terem adormecido, a pensar na
proteção que poderia realmente oferecer se aparecesse alguém. A necessidade de proteger Hannah
– não só enquanto ela dormia naquela tenda, mas sempre – era como lava no meu estômago, um
vulcão mal contido. No entanto, o que poderia realmente fazer? Correr os intrusos a golpes de
karaté dos meus punhos adolescentes? Apunhalá-los com o pau de assar marshmallows?
Por vezes hesitante, insegura, foi como a minha diretora de turma me descreveu num boletim de
avaliação.
– Bem, de muito me serve este comentário – dissera a minha mãe, na voz que geralmente
reservava para ralhar com o nosso pai. – Ignora-a, Sarah. Podes ser insegura à vontade! É para isso
que servem os anos da adolescência!
Por fim, exausta pelas forças contraditórias da vontade de proteger e da impotência, acabava por
adormecer, acordando cedo para montar a combinação nojenta de coisas que Hannah e Alex
tivessem trazido para a sua famosa «sanduíche de pequeno-almoço».
Pousei a mão no peito e baixei as luzes da memória. Esta não era noite para tristezas, era uma
noite para o agora. Para Eddie e para mim, para a grande coisa ainda em crescimento que havia
entre nós.
Concentrei-me nos sons da clareira do bosque, à noite. O sussurro de invertebrados na vegetação,
os passos de mamíferos. O murmúrio verde das folhas em movimento, a cadência tranquila da
respiração de Eddie. Ouvi-lhe o coração, a bater regularmente através da camisola, maravilhada
com a sua constância.
– Mais se revelará – gostava o meu pai de dizer acerca das pessoas. – Só tens de esperar e estar
atenta, Sarah.
Mas estava atenta a este homem há uma semana e ainda não pressentira nele qualquer inquietação.
Em muitos aspetos, fazia-me lembrar o eu que me treinara a ser no trabalho: sólida, racional,
indiferente às marés inconstantes do setor... mas eu passara anos a praticar, enquanto Eddie parecia
ser simplesmente assim.
Perguntei-me se ele conseguiria ouvir a excitação que me pululava no peito. Há poucos dias, eu
era uma mulher separada, à beira do divórcio, com quase quarenta anos. E depois isto. Ele.
– Oh! Um texugo! – exclamei, ao ver pelo canto do olho uma silhueta a correr nas sombras. Será
o Cedric?
– O Cedric?
– Sim. Mas não deve ser ele. Quanto tempo vive um texugo?
– Uns dez anos, penso eu. – Eddie sorria; conseguia ouvir-lhe o sorriso na voz.
– Bom, então não é mesmo o Cedric. Mas podia ser filho dele. Ou talvez neto. – Fiz uma pausa. –
Nós adorávamos o Cedric.
Uma vibração de riso percorreu-lhe o corpo e passou para o meu.
– Nós quem?
– Eu e a minha irmã mais nova. Costumávamos acampar perto daqui.
Ele virou-se de lado, com o rosto perto do meu, e vi-o nos olhos dele.
– Cedric, o texugo. Eu... tu – disse, baixinho. Passou o dedo pela linha do meu cabelo. – Gosto de
ti. Gosto de nós os dois. Na verdade, gosto muito de nós os dois.
Sorri, fitando aqueles olhos amáveis e sinceros. Aquelas rugas de riso, o ângulo pesado do
queixo dele. Peguei-lhe na mão e beijei as pontas dos dedos, ásperas e marcadas pelas farpas,
depois de duas décadas a trabalhar madeira. Já me parecia conhecê-lo há anos. Há uma vida.
Parecia que alguém nos tinha destinado um ao outro, talvez à nascença, e empurrado e alinhado e
planeado e maquinado até finalmente nos termos conhecido, seis dias antes.
– Acabo de ter uns pensamentos muito lamechas – confessei, depois de uma longa pausa.
– Também eu. – Suspirou. – Parece que esta última semana teve uma banda sonora de violinos.
Ri-me, ele beijou-me o nariz e perguntei a mim própria como era possível que passássemos
semanas, meses – anos, até – a arrastarmo-nos pela vida, sem que nada realmente mudasse, e
depois, no espaço de poucas horas, o guião da nossa vida era completamente alterado. Se eu tivesse
saído mais tarde naquele dia, teria ido diretamente para o autocarro e nunca o teria conhecido, e
este novo sentimento de certeza não seria mais do que um murmúrio inaudível de oportunidades
perdidas e desencontros.
– Fala-me mais sobre ti – pediu ele. – Ainda não sei o suficiente. Quero saber tudo. A versão
completa e não editada da história da vida de Sarah Evelyn Mackey, incluindo as partes más.
Sustive a respiração.
Não era que não soubesse que isto acabaria por acontecer, mas ainda não tinha decidido o que
faria quando acontecesse. A versão completa e não editada da história da vida de Sarah Evelyn
Mackey, incluindo as partes más. Provavelmente ele seria capaz de aguentar. Havia uma armadura
neste homem, uma força silenciosa que me fazia lembrar um paredão junto ao mar, ou talvez um
velho carvalho.
Ele estava a passar a mão pela curva da minha anca e tronco.
– Adoro esta curva – disse.
Um homem tão confortável na sua própria pele que provavelmente eu poderia afundar nele
qualquer segredo, qualquer verdade, e ele aguentaria sem sofrer danos estruturais.
Claro que podia contar-lhe.
– Tive uma ideia – disse-lhe. – Vamos acampar aqui esta noite. Fingir que ainda somos jovens.
Podemos fazer uma fogueira, assar salsichas, contar histórias. Partindo do princípio de que tens
uma tenda, claro. Pareces-me o tipo de homem que tem uma tenda.
– Sou um homem que tem uma tenda – confirmou ele.
– Ótimo! Bom, então vamos fazer isso e eu conto-te tudo. Eu... – Virei-me e olhei para a noite. As
últimas flores do castanheiro na orla do bosque brilhavam levemente, como velas grossas. Um
ranúnculo amarelo baloiçou na escuridão, perto das nossas caras. Por motivos que nunca se dignara
a partilhar, Hannah sempre detestara ranúnculos.
Senti algo crescer-me no peito.
– É tão agradável estar aqui. Traz-me tantas recordações.
– Está bem. – Eddie sorriu. – Vamos acampar. Mas, primeiro, anda cá, se faz favor.
Beijou-me na boca e, por alguns instantes, o resto do mundo silenciou-se, como se alguém tivesse
carregado num interruptor ou rodado um botão.
– Não quero que amanhã seja o nosso último dia – disse ele, quando o beijo chegou ao fim.
Apertou mais os braços à minha volta e senti o calor animador do seu peito e barriga, as cócegas
suaves do cabelo curto sob as minhas mãos.
Este tipo de proximidade tornara-se para mim uma memória distante, pensei, inalando o seu
cheiro limpo. Quando Reuben e eu decidimos pôr um ponto final no casamento, já dormíamos cada
um numa ponta da cama, como suportes de livros numa estante, como se a extensão de lençóis
vazios entre nós fosse uma homenagem ao nosso fracasso.
– Até que o colchão nos separe – dissera eu, certa noite, mas Reuben não se rira.
Eddie afastou-se para eu lhe poder ver o rosto.
– Pensei... Ouve, até já pensei se devíamos cancelar os nossos planos. As minhas férias e a tua
viagem a Londres. Para podermos passar mais uma semana a rebolar na relva.
Soergui-me, apoiada num cotovelo. Quero-o mais do que alguma vez saberás, pensei. Fui
casada dezassete anos e, em todo esse tempo, nunca me senti como me sinto contigo.
– Mais uma semana como esta seria perfeito – respondi. – Mas não deves cancelar as tuas férias.
Eu ainda aqui estarei quando voltares.
– Mas não estarás aqui. Estarás em Londres.
– Estás amuado?
– Sim. – Beijou-me o pescoço.
Parecia insatisfeito.
– Se parares com os amuos, talvez vá esperar-te ao aeroporto – acrescentei. – Posso ser uma
daquelas pessoas com um cartaz com o teu nome e o carro estacionado no parque de curta duração.
Ele pareceu pensar no assunto durante um instante.
– Seria bom – disse, por fim. – Muito bom, mesmo.
– Combinado.
– E... – fez uma pausa, subitamente inseguro – e sei que talvez seja muito cedo para isso, mas,
depois de me contares a história da tua vida e de eu cozinhar umas salsichas que podem ou não
estar intragáveis, quero que tenhamos uma conversa séria sobre o facto de tu viveres na Califórnia e
eu viver em Inglaterra. Esta tua visita é demasiado curta.
– Eu sei.
Puxou um tufo de relva.
– Quando eu voltar das férias, teremos... o quê? Mais uma semana juntos antes de teres de voltar
aos Estados Unidos?
Assenti com um aceno. A única nuvem negra sobre a nossa semana juntos fora isto, a
inevitabilidade da separação.
– Bom, então acho que temos de... não sei. De fazer alguma coisa. De decidir alguma coisa. Não
posso simplesmente esquecer isto. Não posso saber que estás algures neste mundo e eu não estou
contigo. Penso que devíamos tentar encontrar uma forma de fazer com que isto resulte.
– Sim – concordei, baixinho. – Sim, eu também. – Enfiei a mão dentro da manga dele. – Tenho
estado a pensar no mesmo, mas, sempre que tentei falar nisso, perdi a coragem.
– A sério? – O riso e o alívio inundaram-lhe a voz, e percebi que devia ter sido preciso muita
coragem para começar esta conversa. – Sarah, és uma das mulheres mais confiantes que já conheci.
– Hum...
– És mesmo. É uma das coisas de que mais gosto em ti. Uma das muitas coisas que adoro em ti.
Tinham passado muitos anos desde que me vira forçada a começar a afixar a confiança a mim
própria, como um cartaz na frente de uma loja. Mas, embora agora já me saísse naturalmente –
embora falasse em conferências médicas no mundo todo, desse entrevistas aos noticiários e gerisse
uma equipa de pessoas –, ainda me sentia abalada quando alguém fazia comentários sobre a minha
confiança. Abalada ou talvez exposta, como se estivesse no cimo de uma colina durante uma
trovoada.
Depois, Eddie beijou-me de novo e senti tudo a dissolver-se. A tristeza do passado, a incerteza
do futuro. Era isto que tinha de acontecer a seguir. Isto.
CAPÍTULO 3

Quinze dias depois

–A conteceu-lhe
– Tipo o quê?
alguma coisa terrível.

– Morte. Bom, morte talvez não. Por outro lado, porque não? A minha avó caiu morta com
quarenta e quatro anos de idade.
Jo virou-se no banco do passageiro para olhar para mim.
– Sarah...
Não devolvi o olhar.
Ela olhou então para Tommy, que conduzia o carro pela M4, em direção a oeste.
– Ouviste isto? – perguntou.
Ele não respondeu. Tinha o maxilar contraído, a pele pálida nas têmporas a latejar como se
estivesse alguém lá dentro a tentar escapar.
A Jo e eu não devíamos ter vindo, pensei novamente. Convencemo-nos de que Tommy quereria o
apoio das suas duas amigas mais antigas – afinal, não era todos os dias que uma pessoa tinha de
estar lado a lado com o rufia que o atormentara na escola e ser fotografada pela comunicação social
–, mas, à medida que os quilómetros passavam, desolados e chuvosos, tornara-se evidente que
estávamos apenas a aumentar-lhe a ansiedade.
O que ele precisava hoje era de liberdade para espalhar confiança sintética, sem ser observado
pelas pessoas que melhor o conheciam. Fingir que eram apenas águas passadas. Vejam como me
tornei um consultor desportivo de sucesso, e estou a trazer o programa à minha antiga escola!
Vejam como estou contente por poder trabalhar lado a lado com o chefe do departamento de
Educação Física, o homem que costumava dar-me socos no estômago e rir-se quando eu
escondia o rosto na relva e chorava!
Para piorar as coisas, o filho de sete anos de Jo, Rudi, estava sentado ao meu lado no banco de
trás. O pai tinha uma entrevista de emprego e Jo não tivera tempo de encontrar ninguém para ficar
com ele. O menino vinha a ouvir com muito interesse a nossa conversa sobre o desaparecimento de
Eddie.
– Então a Sarah acha que o namorado morreu e a mamã está a ficar irritada – resumiu Rudi.
Estava a passar por uma fase em que destilava as conversas embaraçosas dos adultos em frases
curtas e simples, e era muito bom nisso.
– Não é namorado dela – corrigiu Jo. – Só passaram sete dias juntos.
O silêncio abateu-se novamente sobre o carro.
– Sarah pensa namorado de sete dias morto – disse Rudi, no seu sotaque russo. Rudi tinha um
colega novo na escola, Aleksandr, recentemente chegado a Londres de um local perto da fronteira
da Ucrânia. – Morto por serviços secretos. Mamã discorda. Mamã irritada com Sarah.
– Não estou irritada – disse Jo, em tom irritado. – Apenas preocupada.
Rudi pensou por um instante e disse:
– Eu achar que tu dizer mentira.
Jo não podia negar, por isso ficou em silêncio. Eu não queria discutir com ela, por isso também
fiquei em silêncio. E Tommy não dizia nada há duas horas, pelo que continuou em silêncio. Rudi
perdeu o interesse e regressou ao iPad e ao seu jogo. Os adultos tinham carradas de problemas
confusos e inúteis.
Vi Rudi destruir o que me parecia ser uma couve e, de súbito, fiquei nostálgica: pela inocência
dele, pela sua visão do mundo de criança de sete anos. Imaginei a Rudilândia, onde os telemóveis
eram aparelhos de jogo e não instrumentos de tortura psicológica, e onde a certeza do amor da mãe
era sólida como o batimento do seu coração.
Se havia algum interesse em ser adulto, hoje eu não estava a ver qual seria. Quem não preferiria
estar a matar couves e a falar com sotaque russo? Quem não preferiria que lhe fizessem o pequeno-
almoço e lhe escolhessem as roupas, quando a alternativa era um desespero maligno por causa de
um homem que lhe parecera tudo e, sem saber como, se tornara nada? E não falo do homem com
quem estive casada dezassete anos, mas de um homem com quem passei precisamente sete dias,
apenas. Não admirava que todos no carro achassem que eu era louca.
– Ouve, eu sei que isto mais parece uma saga adolescente – admiti, por fim. – E não duvido de
que estejas chateada comigo. Mas tenho a certeza de que lhe aconteceu alguma coisa.
Jo abriu o porta-luvas do carro de Tommy para tirar uma grande tablete de chocolate, da qual
partiu um pedaço com alguma violência.
– Mamã? – disse Rudi. – O que é isso?
Sabia perfeitamente o que era. Jo deu um quadradinho de chocolate ao filho sem dizer nada. Rudi
sorriu-lhe, o seu maior sorriso, o mais radiante, e – apesar da impaciência crescente – Jo sorriu
também.
– Não peças mais – avisou. – Ainda ficas maldisposto.
Rudi não disse nada, confiante de que ela acabaria por ceder.
Jo virou-se novamente para mim.
– Ouve, Sarah, não quero ser cruel, mas acho que tens de aceitar que o Eddie não morreu. Nem
está ferido, nem ficou com o telemóvel estragado, nem está a travar uma batalha com uma doença
mortal.
– A sério? Ligaste para os hospitais para verificar? Conversaste com o médico-legista local?
– Oh, valha-me Deus – disse ela, olhando para mim. – Por favor, diz-me que não fizeste nenhuma
dessas coisas, Sarah! Francamente!
– Francamente – murmurou Rudi.
– Para com isso – ralhou Jo.
– Tu é que começaste.
Jo deu mais chocolate ao filho e Rudi regressou ao ecrã do iPad. Fora o presente que eu lhe
trouxera da América, e dissera-me que o adorava mais do que tudo neste mundo. O que me fizera rir
e depois, para estupefação de Rudi, chorar um bocadinho, porque sabia que ele só podia ter
aprendido essa frase com Jo. Tinha-se revelado uma mãe extraordinária, esta Joanna Monk, apesar
da forma como ela própria fora criada.
– Então?
– Claro que não liguei para os hospitais – suspirei. – Vá lá, Jo. – Vi um bando de corvos levantar
voo de um cabo telefónico.
– Tens a certeza?
– Claro que tenho a certeza. O que queria dizer era que tu não sabes melhor do que eu aquilo que
aconteceu ao Eddie.
– Mas os homens estão sempre a fazer estas coisas! – explodiu ela. – Sabes bem que sim!
– Não percebo nada de namoros. Passei os últimos dezassete anos casada.
– Bom, acredita quando te digo que não mudou nada – respondeu Jo, amargamente. – Continuam a
não telefonar.
Virou-se para Tommy, que não reagiu. Qualquer confiança residual que tivesse fingido sobre a
grande inauguração de hoje evaporara-se como a neblina matinal, e praticamente não dissera uma
palavra desde a partida. Fizera-se indiferente por breves instantes na estação de serviço de
Chieveley, ao receber uma mensagem com a informação de que três jornais locais tinham
confirmado a sua presença, mas, minutos depois, chamara-me «Sarah» na fila para pagar, e Tommy
só me chamava Sarah quando estava extremamente ansioso. (Para ele, eu era «Harrington» desde
que tínhamos feito treze anos e ele começara a fazer flexões e a usar aftershave.)
O silêncio adensou-se e perdi a batalha que vinha a travar desde que tínhamos saído de Londres.
Vou a caminho de Gloucestershire, escrevi numa mensagem para Eddie, rapidamente. Vamos
apoiar o meu amigo Tommy, que vai lançar um projeto desportivo importante na nossa antiga
escola. Se quiseres ver-me, posso ficar em casa dos meus pais. Seria bom falarmos. Bjs, Sarah
Sem orgulho, sem vergonha. Pelos vistos, já estava para além disso. Fiquei a olhar para o ecrã do
telemóvel, à espera de um relatório de entrega.
Recebida, anunciou o aparelho alegremente.
Olhei para o ecrã, à espera de ver um balão de texto. Um balão de texto significaria que ele
estava a responder.
Nada de balão de texto.
Olhei de novo. Nada de balão de texto.
Olhei outra vez. Continuava a não haver balão de texto. Isto era o que faziam as raparigas ainda
na terna agonia da adolescência, pensei. Raparigas, ainda a aprenderem a amar-se a si próprias, à
espera, levemente histéricas, de um contacto do rapaz que tinham beijado num canto, na sexta-feira
anterior. Este não era o comportamento de uma mulher de trinta e sete anos. Uma mulher que viajara
pelo mundo, que sobrevivera à tragédia, que dirigia uma instituição de solidariedade.
A chuva estava a abrandar. Pela fresta da janela aberta chegou-me o cheiro pungente de alcatrão
molhado e terra húmida. Estou em agonia. Olhei distraidamente para um campo com fardos de feno
redondos, muito bem acondicionados em plástico preto reluzente, como pernas rechonchudas dentro
de collants. Em breve perderia o controlo. Mergulharia no abismo e cairia em queda livre se não
descobrisse o que acontecera.
Olhei para o telefone. Tinham passado vinte e quatro horas desde que retirara o cartão SIM e o
reiniciara. Estava na altura de tentar outra vez.

Meia hora depois, estávamos na estrada de duas faixas a entrar em Cirencester e Rudi perguntava
à mãe porque é que as nuvens estavam todas a andar em direções diferentes.
Encontrávamo-nos a poucos quilómetros do local onde eu o conhecera. Fechei os olhos e tentei
recordar o meu trajeto nessa manhã quente. Aquelas poucas horas simples da era Antes de Eddie. A
doçura azeda do cheiro das flores de sabugueiro. Sim, e de relva ressequida. O esvoaçar das
borboletas, atordoadas pelo calor. Havia um campo de cevada, uma carpete verde, ofegante e
inchada pelo ar quente. A explosão ocasional de um coelho assustado. E aquela estranha sensação
de expectativa que pairava sobre a aldeia nesse dia, o silêncio fervilhante, os segredos dispersos.
Espontaneamente, a minha memória acelerou alguns minutos para o momento em que vi Eddie
pela primeira vez – um homem simples e simpático, com olhos calorosos e expressão aberta, a
cuidar de uma ovelha fugitiva – e a infelicidade e confusão espalharam-se como ervas daninhas
sobre tudo o resto.
– Podes dizer-me que o pior cego é aquele que não quer ver – declarei, no silêncio do carro. –
Mas não foi só uma paixoneta. Foi... foi tudo. Ambos o sabíamos. É por isso que tenho a certeza de
que lhe aconteceu alguma coisa.
A ideia fazia com que me faltasse o ar.
– Diz qualquer coisa – insistiu Jo com Tommy. – Diz-lhe qualquer coisa.
– Trabalho em consultadoria desportiva – murmurou ele. O embaraço fê-lo corar. – Sou
especialista no corpo, não na cabeça.
– Quem é que trata das cabeças? – perguntou Rudi. Continuava atento à conversa.
– São os psicólogos – disse Jo, em tom saturado. – Os psicólogos e eu.
‘Ssicólogos. Pronunciava ‘ssicólogos. Jo nascera e fora criada em Ilford e era uma genuína
cockney. E eu adorava-a; adorava a sua franqueza e o seu temperamento volátil, adorava a sua
intrepidez (ausência de limites, diriam alguns) e, acima de tudo, adorava a fúria tremenda com que
ela amava o filho. Adorava tudo em Jo, mas hoje teria preferido não estar metida num carro com
ela.
Rudi perguntou-me se estávamos quase a chegar. Disse-lhe que sim.
– Aquilo é a vossa escola? – perguntou ele, apontando para uma zona industrial.
– Não, embora haja algumas semelhanças arquitetónicas.
– E aquilo? É a vossa escola?
– Não. Aquilo é um supermercado Waitrose.
– Quanto tempo falta para chegarmos?
– Pouco.
– Quantos minutos?
– Uns vinte.
Rudi deixou-se cair contra as costas do banco com ar desesperado.
– Isso é uma eternidade – resmungou. – Mamã, preciso de jogos novos. Posso comprar uns jogos
novos?
Jo disse que não e Rudi tratou de o fazer de qualquer maneira. Assombrada, vi-o ir ao site da
Apple e introduzir descontraidamente a identificação e a password de Jo.
– Ah... desculpa – murmurei. Ele ergueu os olhos para mim, com os caracóis louros a formar um
halo improvável, os olhos amendoados a brilhar de malícia. Fingiu correr um fecho sobre os lábios
e apontou para mim com ar de aviso. E, como eu amava aquela criança muito mais do que queria,
fiz o que ele me dizia.
A mãe virou a sua atenção para a outra criança no banco de trás.
– Ouve – disse, pousando a mão na minha perna. Pintara as unhas de uma cor chamada Seixos,
especialmente para o dia de hoje. – Acho que tens de enfrentar os factos. Conheceste um tipo,
passaste uma semana com ele, depois ele foi de férias e nunca mais te disse nada.
Os factos, de momento, eram demasiado penosos; eu preferia teorias.
– Teve quinze dias para te contactar, Sarah. Estás farta de lhe mandar mensagens, de lhe telefonar,
de fazer uma série de coisas que, francamente, eu não esperaria de uma pessoa como tu... e, ainda
assim, sem resposta. Já passei por isso, querida, e sei que magoa. Mas só vai parar de doer quando
aceitares a verdade e seguires em frente.
– Eu seguiria em frente, se soubesse realmente que ele na verdade não está interessado em mim.
Mas não sei.
Jo suspirou.
– Tommy, por favor, uma ajudinha.
Seguiu-se uma longa pausa. Haveria humilhação maior do que esta?, perguntei-me. Uma conversa
destas, com quase quarenta anos de idade? Três semanas antes, eu era uma adulta funcional.
Presidira a uma reunião da direção. Escrevera um relatório para um hospital pediátrico com o qual
a minha instituição de solidariedade ia começar a trabalhar. Comera e arranjara-me, nesse dia,
dissera piadas, atendera telefonemas, respondera a e-mails. E agora aqui estava eu, com menos
controlo sobre as minhas emoções do que o rapaz de sete anos sentado ao meu lado.
Olhei para as sobrancelhas de Tommy no espelho retrovisor, para ver se ele tencionava participar
na conversa. As suas sobrancelhas tinham adquirido vida própria depois de ele ficar careca, aos
vinte e tal anos, e eram agora barómetros mais fiáveis dos seus pensamentos do que a boca.
As sobrancelhas de Tommy estavam franzidas.
– O problema... – começou. Fez outra pausa e senti o esforço que estava a fazer para se desligar
dos seus próprios problemas. – O problema, Jo, é que estás a partir do princípio de que eu
concordo contigo nisto da Sarah. Mas não sei se concordo. – O seu tom era suave e cuidadoso,
como um gato a desviar-se do perigo.
– O quê?
– Vem aí um motim – sussurrou Rudi.
Na frase seguinte, as sobrancelhas de Tommy subiram.
– Sei bem que a razão pela qual a maioria dos homens não volta a ligar é o facto de não estarem
interessados, mas parece-me que pode haver aqui mais alguma coisa. Quer dizer, eles passaram
uma semana juntos. Uma semana inteira, imagina. Se o Eddie só andasse à procura daquilo que tu
sabes, teria desaparecido depois da primeira noite.
Jo soltou uma fungadela desdenhosa.
– Porquê desaparecer depois de uma noite, quando podia ter sete dias daquilo que tu sabes?
– Jo, vá lá! Isso é o que fazem os rapazes de vinte anos, não homens de quase quarenta!
– Estão a falar de sexo? – quis saber Rudi.
– Ah... não. – Jo estava chocada. – O que sabes tu sobre sexo?
Rudi, aterrorizado, regressou à sua atividade fraudulenta no iPad.
Jo observou-o durante algum tempo, mas ele manteve os olhos fixos no ecrã enquanto murmurava
com sotaque russo.
Respirei fundo.
– Não consigo esquecer-me de que ele se ofereceu para cancelar as férias. Porque o faria se...
– Tenho de fazer chichi – anunciou Rudi, subitamente. – E acho que não posso esperar nem mais
um minuto – acrescentou, antes que Jo tivesse tempo de perguntar.
Parámos em frente à universidade agrícola, do outro lado da estrada da escola secundária que
Eddie frequentara. Uma neblina cinzenta de dor turvou-me a visão enquanto olhava para ela,
tentando imaginar Eddie, aos doze anos, a entrar por aqueles portões. A carinha redonda, o sorriso
que lhe franziria o rosto em rugas de riso com o passar dos anos.
Estou a passar pela tua escola, escrevi-lhe numa mensagem, sem me conseguir conter. Só gostava
de saber o que te aconteceu.
Jo estava estranhamente animada quando ela e Rudi voltaram a entrar no carro. Disse que era um
dia muito bonito e que se sentia feliz por andar a passear no campo connosco.
– Eu disse-lhe que estava a ser má para ti – sussurrou-me Rudi. – Queres um pedaço de queijo? –
Deu uma palmadinha no Tupperware com as fatias de queijo rejeitadas das sanduíches que Jo lhe
dera pelo caminho.
Despenteei-o carinhosamente.
– Não – respondi, também em voz baixa. – Mas adoro-te. Obrigada.
Jo fingiu não ter ouvido a troca de palavras.
– Estavas a dizer que o Eddie se ofereceu para cancelar as férias – disse, alegremente.
E eu senti as brechas no meu coração alargarem-se porque, claro, sabia por que motivo ela tinha
tanta dificuldade em ser paciente. Sabia que, dos muitos homens a quem Jo entregara o coração e a
alma (e, muitas vezes, o corpo) nos anos antes do nascimento de Rudi, quase nenhum lhe voltara a
ligar. E aqueles que ligavam acabavam por ter sempre uma coleção de outras mulheres de reserva.
E, de cada uma dessas vezes, Jo deixara-se levar pela ilusão, porque não conseguia abandonar a
esperança de ser amada. Depois, surgira em cena Shawn O’Keefe, que a engravidara, e Shawn fora
viver com ela, certo de que Jo lhe daria casa e comida. Ao longo de todo este tempo, não tivera um
único emprego. Desaparecia noites inteiras sem lhe dizer onde estava. A «entrevista de emprego»
de hoje era, na realidade, pura ficção.
No entanto, Jo aceitava a situação há sete anos, porque se convencera a si própria de que o amor
desabrocharia se ela e Shawn se esforçassem um bocadinho mais, se esperasse mais algum tempo
que ele crescesse. Convencera-se de que podiam tornar-se a família que ela nunca tivera.
Sim, Jo sabia tudo sobre cegos que não querem ver.
Porém, a minha situação parecia ser de mais para ela. Tentara fazer-me a vontade depois do
desaparecimento de Eddie, esforçando-se por ouvir as minhas teorias, dizendo que talvez ele
ligasse no dia seguinte. Mas nunca acreditara numa única palavra e, agora, perdera a paciência.
Não deixes que ele te use como eu me deixei usar, era o que estava a dizer. Afasta-te já, Sarah,
enquanto podes.
O problema era que eu não podia.
Considerara a possibilidade de Eddie não estar pura e simplesmente interessado. Pesara essa
hipótese em cada um destes quinze dias de silêncio do meu telefone. Revivera e analisara cada
momento cintilante do tempo que passara com ele, à procura de falhas, de pequenos sinais de aviso
de que talvez ele não tivesse tanta certeza como eu, mas não encontrara nada.
Já quase tinha deixado de usar o Facebook, mas, de súbito, estava de novo em força na rede
social, constantemente, a esquadrinhar o perfil dele em busca de sinais de vida. Ou, pior... de outra
pessoa.
Nada.
Telefonei-lhe e enviei-lhe mensagens; até lhe mandei um tweet patético. Descarreguei o
Messenger do Facebook e o WhatsApp e passava o dia a ver se ele tinha dado sinais de vida. Mas
todas as aplicações me diziam sempre o mesmo: a última presença de Eddie David online dera-se
havia pouco mais de duas semanas, no dia em que eu saíra de casa dele e o deixara a fazer as malas
para a viagem a Espanha.
Arrasada pela vergonha e pelo desespero, até tinha descarregado uma data de aplicações de
encontros, para ver se ele lá estava registado.
Não estava.
Sentia uma necessidade brutal de controlar esta situação incontrolável. Não conseguia dormir;
pensar em comida dava-me a volta às entranhas. Não conseguia concentrar-me em nada e, mal o
telemóvel zumbia, saltava para ele com o frenesim de um animal faminto. A exaustão pesava sobre
mim o dia inteiro – grandes blocos fibrosos de exaustão que, por vezes, quase me sufocavam – e,
contudo, passava a maior parte da noite em claro, a olhar para as trevas do quarto de hóspedes de
Tommy, no Oeste de Londres.
O mais estranho era que sabia que isto não parecia coisa minha. Sabia que não era um
comportamento saudável e sabia que estava a piorar em vez de melhorar, mas não tinha força de
vontade nem energia para me sujeitar a uma intervenção.
Um dia, procurei no Google: Porque é que ele não telefonou? A resposta foi como um furacão
cibernético. Pela minha sanidade mental, fechei rapidamente a página.
Depois, procurara novamente Eddie online, esquadrinhara o seu site de carpintaria, à procura
de... Nesta fase, já nem sabia bem o que procurava. E, claro, não encontrara nada.
– Achas que ele te contou tudo sobre si? – perguntou Tommy. – Tens a certeza de que não está
com outra mulher, por exemplo?
A estrada desceu para um pequeno parque onde se reuniam carvalhos imponentes, como
cavalheiros num salão de fumo.
– Não está com outra mulher – respondi.
– Como sabes?
– Sei porque... porque sei. Ele era solteiro; estava disponível. Não apenas literalmente, mas
também emocionalmente.
O vislumbre de um veado a desaparecer num bosque de faias.
– Está bem. E outros sinais de alerta? – insistiu Tommy. – Alguma inconsistência? Nunca sentiste
que ele estivesse a esconder alguma coisa?
– Não. – Fiz uma pausa. – Embora, talvez...
Jo virou-se.
– O quê?
Suspirei.
– No dia em que nos conhecemos, ele desligou alguns telefonemas sem os atender. Mas foi a
única vez que tal aconteceu – acrescentei, rapidamente. – Daí para a frente, atendeu sempre o
telemóvel quando tocou. E nunca houve um telefonema que me parecesse estranho; eram sempre
amigos, ou a mãe, ou chamadas de trabalho... – E Derek, pensei subitamente. Nunca tinha chegado a
perceber bem quem era Derek.
As sobrancelhas de Tommy estavam a efetuar uma triangulação complexa.
– O que é? – perguntei-lhe. – Em que estás a pensar? Foi só no primeiro dia, Tommy. Depois
disso, atendeu o telefone sempre que tocou.
– Eu acredito. É só porque... – Calou-se, sem concluir a frase.
Jo manteve um silêncio ensurdecedor, mas ignorei-a.
– É só porque sempre achei que os namoros pela Internet são perigosos – disse Tommy, por fim. –
Sei que não o conheceste online, mas a situação é semelhante... vocês os dois não têm amigos em
comum nem uma história partilhada. Ele podia ter-se feito passar por qualquer pessoa.
Franzi a testa.
– Mas ele adicionou-me como amiga no Facebook. Porque o faria, se tivesse alguma coisa a
esconder? Tem Twitter e Instagram por causa do trabalho, e tem um site para o negócio. Que inclui
uma fotografia dele. E eu estive uma semana em casa dele, lembras-te? A correspondência vinha
dirigida a Eddie David. Se ele não fosse o Eddie David, carpinteiro, eu teria percebido.
Estávamos agora a atravessar o antigo bosque que se estendia por Cirencester Park. Pontos de luz
salpicaram as pernas nuas de Jo, enquanto ela olhava pela janela, aparentemente sem saber o que
dizer. Pouco depois, saímos do bosque e chegámos à curva da estrada onde ocorrera o acidente.
Ao pensar nisso, senti a minha respiração mudar, como se alguém tivesse sugado o oxigénio do
carro.
Minutos depois, emergimos para a luminosidade pós-chuva dos campos de cultivo. Fechei os
olhos, ainda incapaz, mesmo tantos anos depois, de olhar para a berma relvada onde diziam que os
paramédicos a tinham deitado e tentado impedir o inevitável.
Senti a mão de Jo no joelho.
– Porque estás a fazer isso? – Rudi tinha as antenas no ar. – Mamã? Porque é que puseste a mão
na perna da Sarah? Porque é que há flores atadas àquela árvore? Porque é que estão todos tão?...
– Rudi – interrompeu Jo. – Rudi, e se jogássemos ao «Eu vejo»? Eu vejo uma coisa começada
por «T»!
Houve uma pausa.
– Já estou crescido para isso – disse Rudi, altivamente. Não gostava de ser excluído.
Eu continuava com os olhos fechados, apesar de saber que já tínhamos passado o local.
– Um tinteiro – começou Rudi, com relutância. – Um triciclo. Um tigre.
– Tudo bem, Harrington? – perguntou Tommy, após uma pausa respeitosa.
– Sim. – Abri os olhos. Campos de trigo, muros de pedra, trilhos bifurcados como relâmpagos na
relva aparada pelos cavalos. – Tudo bem.
Nunca se tornara mais fácil. Dezanove anos tinham limado as arestas da dor, aplanado os nós
piores, mas ela continuava ali.
– E se falássemos mais sobre o Eddie? – sugeriu Jo. Tentei dizer «sim», mas não consegui. –
Quando quiseres – disse ela, com uma palmadinha na minha perna.
– Bom, não consigo pôr de lado a possibilidade de ele ter tido um acidente – disse, quando me
senti capaz de falar. – Ia fazer windsurf no Sul de Espanha.
As sobrancelhas de Tommy estudaram essa possibilidade.
– Suponho que é uma teoria razoável.
Jo recordou que eu era amiga de Eddie no Facebook.
– Terias visto alguma coisa na página dele, se se tivesse magoado.
– Não podemos afastar a hipótese de o telemóvel dele ter morrido – disse eu, em tom cada vez
mais desanimado à medida que as avenidas de esperança se fechavam. – Estava meio avariado,
ele...
– Querida – interrompeu Jo, carinhosamente. – Querida, o telemóvel dele não morreu. Chama
quando tu lhe ligas.
Assenti com um aceno infeliz.
Rudi, que comia batatas fritas, deu um pontapé nas costas do banco de Jo.
– Estou faaaaaarto.
– Para com isso – avisou ela. – E lembra-te do que combinámos sobre falares com a boca cheia.
Rudi, sem Jo ver, virou-se para mim e ofereceu-me um panorama das batatas fritas meio
mastigadas. Infelizmente, por razões que eu desconhecia, ele parecia ter decidido que esta era uma
piada privada entre nós.
Enfiei a mão na bolsa lateral da minha mala e fechei os dedos sobre a única réstia de esperança
que ainda tinha.
– Mas... a Ratinha – gemi, pateticamente. As lágrimas não estavam muito longe. – Ele deu-me a
Ratinha.
Segurei-a na palma da mão: macia, gasta, mais pequena do que uma noz. Eddie fizera-a de um
pedaço de madeira quando tinha apenas nove anos. Ela esteve ao meu lado durante muita coisa,
dissera-me. É o meu talismã.
Fazia-me lembrar o pinguim de bronze que o meu pai me dera para eu pôr na secretária, por
altura dos meus exames do ensino secundário. Era uma criatura de ar severo que me fitava
ferozmente desde que começava cada exame. Ainda hoje adorava aquele pinguim. Não me passaria
pela cabeça dá-lo a outra pessoa.
E a Ratinha tinha o mesmo significado para Eddie; eu sabia-o – e, apesar disso, ele dera-ma.
Guarda-a em segurança até eu voltar, dissera. Ela é muito importante para mim.
Jo olhou para trás e suspirou. Eu já lhe tinha falado sobre a Ratinha.
– As pessoas mudam de ideias – disse, calmamente. – Talvez ele tenha achado mais fácil ficar
sem o porta-chaves do que entrar em contacto contigo.
– Não é só um porta-chaves. É... – comecei a explicar, mas desisti.
Quando voltou a falar, a voz de Jo era mais carinhosa.
– Ouve, Sarah. Se tens a certeza de que lhe aconteceu alguma coisa, que tal esqueceres essas
mensagens privadas e escreveres qualquer coisa no mural de Facebook dele? Onde toda a gente
pode ver? Diz que estás preocupada e pergunta se alguém tem notícias dele.
Engoli em seco.
– O que queres dizer?
– Exatamente aquilo que disse. Pede informações aos amigos dele. O que te está a impedir?
Olhei pela janela, sem conseguir responder. Jo insistiu.
– Parece-me que a única coisa que poderia impedir-te é a vergonha. E se acreditasses mesmo, no
fundo do coração, que lhe aconteceu alguma coisa terrível, não estarias preocupada com a
vergonha.
Estávamos a passar pelo velho aeródromo do Ministério da Defesa. Uma manga de vento laranja
desbotada esvoaçava sobre a pista vazia e, de súbito, lembrei-me das grandes gargalhadas de
Hannah quando o papá lhe dissera, uma vez, que era tão irrequieta como uma manga de vento cor de
laranja. «Manga de pilinha!» gritara ela, e a mamã ficara dividida entre a gargalhada e a censura.
Rudi abriu a biblioteca de música de Jo no iPad e selecionou uma playlist chamada «Rap da
Costa Leste».
Se eu estava tão preocupada como dizia, porque não escrevera realmente qualquer coisa no mural
de Eddie? Será que Jo tinha razão?

As casinhas de pedra de Chalford começavam a surgir, teimosamente agarradas às encostas,


como se esperassem salvamento. A seguir a Chalford viria Brimscombe, e depois Thrupp e depois
Stroud. E, em Stroud, um grande comité de professores, alunos e imprensa esperava por Tommy na
nossa antiga escola. Eu tinha de me recompor.
– Espera – disse Tommy, de repente. Baixou o som do rap de Rudi e olhou para mim pelo
retrovisor. – Harrington, disseste ao Eddie que foste casada?
– Não.
As sobrancelhas dele ficaram descontroladas.
– Pensei que lhe tinhas contado tudo!
– E contei! Mas não fizemos um relatório dos nossos ex-namorados. Isso seria... bom, de mau
gosto. Quer dizer, estamos ambos perto dos quarenta... – Calei-me. Deveria tê-lo feito? – Falámos
em contar um ao outro a história da nossa vida, mas acabámos por nunca o fazer. Embora
tivéssemos esclarecido que estávamos ambos descomprometidos.
Tommy observava-me pelo espelho.
– Mas tu e o Reuben já atualizaram o site?
Franzi a testa, sem perceber onde ele queria chegar. Depois, percebi.
– Oh, não! – murmurei. Dedos gelados revolveram-me as entranhas.
– O que é? – gritou Rudi. – Do que é que estão a falar?
– Do site da instituição de solidariedade da Sarah – explicou Jo. – Há uma página inteira a falar
sobre a Sarah e o Reuben, a contar que fundaram os Doutores Palhaços nos anos noventa, quando se
casaram. E que ainda hoje gerem a instituição juntos.
– Oh! – exclamou Rudi. Pousou o iPad, encantado por ter finalmente conseguido deslindar o
mistério. – O namorado da Sarah leu e ficou de coração partido! É por isso que está morto, porque
uma pessoa não pode estar viva se o coração não funcionar!
– Desculpa, mas não me convences – disse Jo, calmamente. – Se ele passou uma semana contigo,
Sarah, se estava a levar a relação tão a sério como tu, isso não seria suficiente para o afastar.
Falaria contigo para saber a verdade, não desapareceria como um gato moribundo.
Eu, contudo, já estava na maldita aplicação do Messenger, a escrever-lhe uma mensagem.
CAPÍTULO 4

Dia um: o dia em que nos conhecemos

E stava um dia abrasador quando conheci Eddie David. O campo derretia em poças; os pássaros
escondiam-se nas árvores imóveis e as abelhas estavam embriagadas com a subida da
temperatura. Não parecia o tipo de tarde para uma pessoa se apaixonar por um perfeito
desconhecido. Era exatamente como qualquer outro dia 2 de junho em que eu fizera aquela
caminhada. Silencioso, pesado, pesaroso. Familiar.
Ouvi Eddie antes de o ver. Estava na paragem de autocarro, a tentar lembrar-me que dia da
semana era – quinta-feira, concluí, o que significava que tinha de esperar quase uma hora, ali, ao
calor escaldante, por um autocarro no qual certamente morreria assada. Comecei a caminhar em
direção à aldeia, à procura de sombras. Ouvi uma grande corrente de som, as crianças na escola
primária, interrompida pelo balido de uma ovelha algures mais à frente. Mééé, gritava. Mééé!
Em resposta à ovelha, ouvi uma gargalhada masculina, projetada no calor compacto como um jato
de ar fresco. Comecei a sorrir antes mesmo de ver o homem que a soltara. O seu riso resumia tudo
o que eu pensava das ovelhas, com as suas caras patetas e os seus olhinhos estúpidos.
Estavam um pouco mais para diante, no jardim da praça. Um homem sentado de costas para mim,
uma ovelha pouco mais à frente. A olhar para o homem com os olhinhos estúpidos. Baliu novamente
e o homem disse qualquer coisa que não consegui perceber.
Quando cheguei junto deles, percebi que estavam envolvidos numa grande conversa.
Parei na orla da relva ressequida, a observá-los, e senti uma pontada de reconhecimento e
nostalgia. Não conhecia aquele homem, mas era uma réplica encantadora de tantos dos rapazes que
tinham andado na escola comigo: um tipo grande e amável, de cabelo curto e pele tisnada, com o
uniforme local de calções com bolsos e t-shirt ruça. Era com certeza capaz de montar prateleiras,
sabia indubitavelmente fazer surf e, muito provavelmente, conduzia um Golf a cair aos bocados,
oferecido por uma mãe simpática mas aluada.
O tipo de rapaz com quem, conforme eu declarava nos meus diários da adolescência, me casaria
um dia. (O «um dia» referia-se a uma altura não especificada no futuro em que, como uma borboleta
a sair de um casulo monótono, eu me demitiria do meu posto de amiga simplória e desinteressante
de Mandy e Claire e emergiria como uma mulher ousada e bela, com o poder de atrair qualquer
homem em quem me dignasse reparar.) O marido seria desta aldeia – Sapperton, ou de uma aldeia
próxima – e conduziria definitivamente um Golf. (O Golf era uma coisa importante, fosse lá porque
fosse. Na fantasia, conduzíamo-lo até à Cornualha, para a lua de mel, onde eu o deslumbrava ao
correr destemidamente para o mar com uma prancha de surf debaixo do braço.)
Em vez disso, casara-me com um palhaço americano efeminado. Um palhaço mesmo, com caixas
de narizes vermelhos e ukeleles e chapéus engraçados. Dentro de poucas horas, ele acordaria,
quando o sol forte da Califórnia começasse a tingir as paredes do nosso apartamento. Talvez
bocejasse, rebolasse na cama e se aninhasse um bocadinho com a nova namorada, antes de ir
aumentar o ar condicionado e fazer um sumo verde repugnante qualquer para ela.
– Olá – disse.
– Oh, olá – disse o homem, erguendo o rosto. Oh, olá. Como se me conhecesse há anos. – Parece
que encontrei uma ovelha.
A ovelha soltou mais um mééé anasalado, sem desviar os olhos do rosto dele.
– Foi há poucos minutos – disse-me o homem –, mas estamos ambos a levar muito a sério esta
relação.
– Estou a ver. – Sorri. – Isso é legal?
– Não se pode legislar o amor – respondeu ele, alegremente.
Ocorreu-me então um pensamento inesperado: Tenho saudades de Inglaterra.
– Como é que se conheceram? – perguntei, aproximando-me um pouco mais.
Ele sorriu à ovelha.
– Bom, eu estava aqui sentado, um bocadinho abatido, quando apareceu esta jovem, do nada.
Começámos a conversar. E, quando dei por mim, estávamos a falar em ir viver juntos.
– Este jovem – corrigi. – Não percebo muito de ovelhas, mas até eu lhe posso dizer que não se
trata de uma senhora.
Após um momento, o homem inclinou-se e espreitou para baixo da ovelha.
– Oh.
A ovelha continuou a fitá-lo com os olhinhos estúpidos.
– Não te chamas Lucy? – A ovelha manteve o silêncio. – Ele disse-me que se chamava Lucy.
– Não me parece que se chame Lucy – confirmei.
A ovelha soltou outro balido e o homem riu-se. Uma gralha delirante levantou voo de uma árvore
atrás de nós.
Não sei como aconteceu, mas, nessa altura, eu já estava de pé ao lado deles. O homem, a ovelha e
eu, juntos no relvado ressequido no centro da aldeia. O homem olhava para mim. Tinha olhos da cor
de oceanos estrangeiros, pensei, cheios de calor e boas intenções.
Era bastante atraente.
Não espere ter sentimentos autênticos por outro homem senão daqui a muitos meses, tinham-me
dito nessa manhã. O conselho chegara-me por cortesia de uma aplicação ridícula chamada BreakUp
Coach, que a minha melhor amiga em Los Angeles, Jenni Carmichael, descarregara (sem
autorização) para o meu telemóvel, no dia depois de eu e Reuben anunciarmos a nossa separação.
Todas as manhãs a aplicação me enviava notificações não solicitadas sobre a fase de trauma
emocional em que eu me encontrava, e me dizia que era tudo perfeitamente normal.
Só que eu não estava a passar por trauma emocional nenhum. Mesmo quando Reuben me disse
que lamentava muito mas que achava que nos devíamos divorciar, tive de fazer um esforço por
chorar, apenas para não lhe ferir os sentimentos. Quando a aplicação me falava sobre o meu
coração despedaçado e o meu espírito quebrado, sentia-me como se estivesse a receber o correio
de outra pessoa.
Mas Jenni ficava feliz quando me via ler as mensagens, por isso não apaguei a aplicação. O bem-
estar emocional de Jenni – cada vez mais delicado, à medida que os trinta se aproximavam do fim,
levando consigo as esperanças de reprodução da minha amiga – dependia fortemente da sua
capacidade de cuidar dos necessitados.
O homem virou-se novamente para a ovelha.
– Bom, é uma pena. Pensei que tínhamos futuro, a Lucy e eu. – O telemóvel dele começou a tocar.
– Acha que conseguirá superar o desgosto?
Ele tirou o telemóvel do bolso e desligou a chamada.
– Oh, acho que sim. Pelo menos, espero que sim.
Olhei em volta, à procura de mais ovelhas, um pastor, um cão pastor prestável.
– Parece-me que devíamos fazer qualquer coisa pelo animal, não acha?
– Provavelmente. – O homem levantou-se. – Vou ligar ao Frank. É o dono da maior parte das
ovelhas da zona. – Marcou um número no telemóvel e eu engoli em seco, subitamente insegura.
Depois de resolvermos o problema da ovelha, teríamos de parar com as brincadeiras e falar a
sério.
Esperei, de pé na relva. A ovelha pastava desinteressadamente entre as ervas ralas à sua volta,
sem tirar os olhos de nós. Fora recentemente tosquiada, mas até o pelo curto parecia sufocante com
o calor.
Perguntei a mim própria o que faria a ovelha aqui. E porque estaria o homem a sentir-se abatido
quando ela aparecera. E por que raio estava eu a passar a mão pelo cabelo numa tentativa de o
ajeitar. Ele estava agora a falar com Frank em tom bem-humorado.
– Muito bem. Farei os possíveis. Certo – disse, olhando para mim. Tinha mesmo uns olhos
bonitos.
(Para com isso!)
– O Frankie ainda demora uma hora, pelo menos, a chegar aqui. Diz que a Lucy escapou de um
campo perto do pub. – Virou-se para a ovelha. – Ainda é longe. Estou impressionado.
A ovelha continuou a comer e ele olhou para mim.
– Vou tentar convencê-la a ir descendo a rua. Quer ajudar?
– Claro. Estava a pensar ir lá almoçar, de qualquer maneira.
Não estava a pensar ir lá almoçar. Na realidade, estava à espera do autocarro 54 para
Cirencester, porque havia pessoas em Cirencester e ninguém em casa dos meus pais. Na noite
anterior, uma enfermeira das Urgências da Royal Infirmary em Leicester ligara a dizer que o meu
avô fora internado com uma fratura na anca. O avô tinha noventa e três anos. Era também
terrivelmente ofensivo, mas não tinha mais ninguém a não ser a minha mãe e a irmã dela, Lesley,
que estava neste momento nas Maldivas com o terceiro marido.
– Vai – dissera eu à minha mãe, ao vê-la hesitar. Ela não gostava de me desiludir. Todos os anos,
em junho, montava uma produção elaborada para a minha visita: logística impecável, a casa cheia
de flores, comida requintada, numa tentativa de me persuadir de que a vida em Inglaterra era muito
melhor do que tudo o que a Califórnia tinha para me oferecer.
– Mas... – Vi-a baixar os ombros. – Mas ficas sozinha.
– Não te preocupes comigo – disse-lhe. – Além disso, se não estiveres lá para pedir desculpa por
ele, é muito provável que expulsem o avô do hospital.
Da última vez que estivera internado, o meu avô tivera um confronto infeliz com um médico a
quem ele insistia em chamar «um estudante imbecil».
A minha mãe debateu-se por um instante com as suas responsabilidades filiais e parentais.
– Deixa-me só passar aqui os próximos dias – dissera-lhe eu –, e depois vou ter contigo a
Leicester.
Ela olhou para o meu pai, ambos incapazes de decidir. E eu pensei: Quando é que estes dois se
tornaram pessoas tão indecisas? Este ano pareciam-me mais velhos, mais pequenos.
Especialmente a minha mãe. Como se o próprio corpo lhe estivesse grande. (Seria culpa minha?
Tê-la-ia eu encolhido, de alguma forma, com a minha insistência em viver no estrangeiro?)
– Mas tu não gostas de estar na nossa casa – disse o papá, incapaz de encontrar uma forma melhor
de o dizer. E o facto de ele não ter nada engraçado para dizer, para variar, deixou-me um nó na
garganta tão apertado que julguei sufocar.
– Claro que gosto! Que disparate!
– E não podemos deixar-te o carro. Como é que te deslocarás?
– Há autocarros.
– A paragem é a quilómetros daqui.
– Gosto de andar a pé. A sério, vão, por favor. Eu fico a relaxar, como estão sempre a dizer-me
para fazer. Posso ler e tentar dar conta da montanha de comida que tens em casa.
Assim, esta manhã, despedira-me deles ao fundo do caminho e vira-me subitamente sozinha, numa
casa em que – sim, era verdade – não gostava de estar. Principalmente sozinha.
O que significava que não estava a pensar ir almoçar sozinha ao pub. Para ser perfeitamente
franca, estava, sim, a tentar coagir este desconhecido a beber um copo comigo, apesar da
notificação matinal da aplicação que me avisara de que quaisquer jogos de sedução com outros
homens acabariam em lágrimas. Tente não se esquecer de que, neste momento, se encontra
estratosfericamente vulnerável, dizia, com a fotografia meio desfocada de uma rapariga a chorar
numa montanha de almofadas confortáveis.
O telemóvel do homem voltou a tocar. Desta vez, deixou-o tocar até se desligar sozinho.
– Muito bem, vamos lá tratar de ti – disse. Aproximou-se de Lucy, que lhe lançou um olhar
magoado, antes de virar costas e fugir. – Vá por aquele lado! – gritou-me ele. – Vamos ver se
conseguimos conduzi-la para o lado certo. Ah! Merda! – Saltitou sobre a relva e voltou atrás para
calçar os chinelos de enfiar no dedo.
Girei para a esquerda, o mais depressa que conseguia no calor pegajoso. Lucy guinou para a
direita, onde o homem a esperava, a rir. Reconhecendo que estava encurralada, a ovelha começou a
percorrer de má vontade a rua que levava ao pub, com um mééé ocasional de protesto pelo
caminho.
Obrigada, Deus, ou universo, ou destino, pensei. Por esta ovelha, por este homem, por esta sebe
inglesa.
Que alívio falar com alguém que não sabia nada da tristeza que todos esperavam que eu sentisse.
Que não inclinava a cabeça para o lado com expressão compreensiva enquanto me ouvia. Que
simplesmente me fazia rir.

Lucy tentou por várias vezes uma fuga para a liberdade ao longo da estrada para o pub, mas,
graças a um bom trabalho de equipa, conseguimos devolvê-la ao campo de onde escapara. O
homem partiu um ramo de árvore e prendeu-o na abertura da cerca por onde a ovelha passara.
Depois, virou-se para mim e sorriu.
– Pronto.
– Muito bem. – Estávamos ao lado do pub. – Deve-me uma cerveja.
Ele riu-se e disse que parecia uma exigência razoável.
E foi assim.
CAPÍTULO 5

S ete dias depois, Eddie e eu tínhamo-nos despedido. Mas fora uma despedida francesa: um au
revoir. Um até à próxima!. Não fora um adeus. Nem sequer perto de um adeus. Quando é que
«adeus» envolvia as palavras «acho que me apaixonei por ti»?
Eu seguira o rio Frome até casa dos meus pais, alegre e a cantarolar. A água estava
extraordinariamente brilhante nesse dia, salpicada por almofadas de musgo verde e canais de
gravilha clara, vigiada por cachos de tabúas. Passei pelo sítio onde Hannah caíra uma vez, a tentar
apanhar flores de ranúnculo, e surpreendi-me a mim própria quando me ri alto. Sentia o coração
cheio, a cantar com memórias dessa semana: conversas pela noite dentro, sanduíches de queijo,
gargalhadas com vontade, toalhas de banho a secar no suporte das cortinas. A massa do corpo de
Eddie, o vento a soprar suavemente entre as árvores fora do celeiro, como finos rastos de farinha,
e, uma e outra vez, as palavras que ele me dissera antes de eu sair.
Cheguei a Leicester nessa noite. No caminho para o hospital rebentou uma tempestade; a cidade
escureceu e as luzes vermelhas das Urgências deslizavam pelo vidro da janela do táxi como sopa.
Encontrei o meu avô numa enfermaria quente, rabugento mas abatido, e os meus pais, exaustos.
Nessa noite, Eddie não me ligou. Não me enviou qualquer mensagem com os detalhes do voo de
regresso. Estranhei levemente esta ausência de contacto enquanto vestia o pijama. Provavelmente
estava com pressa, disse a mim própria. Estava com o amigo. E: Ele ama-me. Havia de ligar!
Mas Eddie David não me ligara. E não me ligara, e continuara a não me ligar.
Nos primeiros dois dias, convenci-me de que estava tudo bem. Seria absurdo – uma loucura, até
– duvidar do que acontecera entre nós. Porém, à medida que os dias se transformaram penosamente
numa semana, dei por mim cada vez mais incapaz de conter a maré de pânico.
– Ele está a divertir-se imenso em Espanha – menti, quando cheguei a Londres para a estada
planeada com Tommy.
Poucos dias depois, ao almoço com Jo, fui-me abaixo.
– Ele não me ligou – admiti. Lágrimas de pânico e humilhação inundaram-me os olhos. – Deve
ter-lhe acontecido alguma coisa. Não foi só uma aventura, Jo. O que aconteceu entre nós mudou
tudo.
Tommy e Jo foram simpáticos comigo; ouviram-me, disseram-me que eu estava «a aguentar muito
bem», mas senti que estavam chocados pela desintegração da Sarah que conheciam. Não era eu a
mulher que dera a volta à sua vida depois de fugir para Los Angeles numa nuvem negra de tragédia?
A mulher que fundara uma instituição de solidariedade infantil extraordinária, que se casara com um
típico americano, a mulher que viajava agora pelo mundo a dar palestras?
Essa mesma mulher passou duas semanas a arrastar-se, cabisbaixa, pelo apartamento de Tommy,
reduzida a perseguir um homem com quem passara sete dias.
Nesse período, a Grã-Bretanha quase explodira na panela de pressão do referendo à União
Europeia, o meu avô fora submetido a duas cirurgias e os meus pais estavam agora praticamente
prisioneiros na casa dele. A minha instituição recebera um subsídio substancial e Jenni ia a meio do
último ciclo de inseminação artificial que o seu seguro estava disposto a pagar. Encontrava-me
numa paisagem de altos e baixos muito humanos, mas era um esforço interessar-me fosse pelo que
fosse.
Já vira amigas minhas fazerem isto. Vira-as, estupefacta, afirmarem que ele tinha o telemóvel
avariado; que partira uma perna; que fora atacado e estava a morrer sozinho numa valeta. Insistiam
em que deviam ter feito algum comentário insensível que o «espantara», daí a necessidade de
«esclarecer qualquer mal-entendido». Vira-as abandonarem o amor-próprio, ficarem de coração
partido, perderem a cabeça, tudo por causa de um homem que nunca lhes ligaria. Pior ainda, um
homem que elas mal conheciam.
E aqui estava eu. Sentada no carro de Tommy, sem amor-próprio, de coração partido e cabeça
perdida. A compor uma mensagem desesperada para explicar a Eddie que já não era casada. Que
fora uma separação muito amigável.
Tommy parou o carro perto dos portões da nossa antiga escola precisamente quando as gotas de
chuva começavam a pintar padrões delicados no para-brisas. Estacionou mal, o que não parecia
coisa dele, com uma roda em cima do passeio, mas – ainda mais estranho em Tommy – nem tentou
endireitar o carro. Olhei para a gorda sebe de faias, para os ziguezagues amarelos da estrada, o
sinal junto aos portões, e senti vibrar dentro de mim a velha nota de ansiedade. Pus o telemóvel na
mala. A mensagem para Eddie teria de esperar.
– Aqui estamos nós! – O peso do entusiasmo falso fez com que a voz de Tommy cedesse a meio,
como uma corda de roupa demasiado carregada. – Devíamos ir andando. O meu discurso é daqui a
cinco minutos!
Mas não se mexeu, e nós também não. Rudi olhou para nós.
– Porque é que não saem do carro? – perguntou, incrédulo. Ninguém respondeu. Após alguns
segundos, ele saiu e correu a toda a velocidade para os portões da escola. Vimo-lo, em silêncio,
abrandar para um passo casual, enfiar as mãos nos bolsos e parar descontraidamente à entrada, a
avaliar o potencial de divertimento no campo da escola. Depois de observar durante algum tempo,
voltou para o carro. Não estava muito contente.
Pobre Rudi. Não sei o que Jo lhe dissera sobre o dia de hoje, mas duvidava que lhe tivesse dito
toda a verdade. O lançamento de um programa desportivo numa escola secundária talvez tivesse
algum interesse se ele pudesse usar um dos relógios de fitness ou um dos coletes que mediam os
batimentos cardíacos que faziam parte do projeto, ou até se houvesse outras crianças da sua idade
com quem brincar. Mas os brinquedos tecnológicos que eram a joia da coroa do programa de
Tommy seriam demonstrados por uma tribo de «atletas promissores» selecionados pelo diretor do
departamento de Educação Física, e o participante mais novo tinha catorze anos.
Rudi parou ao lado do carro, com má cara. Jo saiu para falar com ele e Tommy, subitamente sem
palavras, inclinou-se para ver o seu reflexo no espelho retrovisor. Está aterrorizado, pensei, com
uma vaga de simpatia. Os rapazes da nossa escola não tinham sido simpáticos com o pequeno
Thomas Stenham. Um deles, Matthew Martyn, acusara Tommy de ser gay quando ele fizera doze
anos e a mãe, uma mulher exuberante, lhe instalara na cabeça um penteado à moda. Tommy chorara
e portanto, claro, o rótulo pegara. Matthew e companhia todos os dias pulverizavam a cadeira de
Tommy com uma fórmula «antigay»; enfiavam-lhe fotografias de homens nus dentro da secretária
de tampa. Aos catorze anos, Tommy começara a namorar com Carla Franklin; os outros diziam que
era só para disfarçar. Tommy começara a passar horas no ginásio caseiro da mãe, mas os seus
novos músculos só vieram piorar as coisas: começaram a espancá-lo no campo de jogos da escola.
Quando a família dele emigrou para os Estados Unidos, em 1995, Tommy arranjara uma obsessão
com exercício, gaguejava ligeiramente e não tinha um único amigo do sexo masculino.
Anos mais tarde – muito depois de ele voltar para Inglaterra –, uma advogada rica ligada às
tecnologias, chamada Zoe Markham, contratou Tommy como treinador pessoal. Nessa altura, ele já
tinha como clientes um bom número de londrinas bem-sucedidas, muitas das quais namoriscavam
descaradamente com ele.
– Acho que é uma espécie de fantasia para elas – disse-me, uma vez. Estava indeciso entre sentir-
se lisonjeado e revoltado. – Sou como um faz-tudo sexy com um cinto de ferramentas. Inteligente
mas musculado.
Zoe Markham, aparentemente, era diferente. Davam-se «fantasticamente» e tinham «uma ligação
genuína», e, o mais importante, ela via-o como «uma pessoa» e não apenas como um empregado
com o poder de a tornar magra e bela. (Ela já era ambas as coisas.)
Após alguns meses de flirt casual, Zoe ajudara-o a entrar na área da consultadoria desportiva
através de um velho amigo. Tommy convidara-a para jantar, para lhe agradecer. Ela levara-o para
casa e despira-se.
– Acho que está na altura de uma conversa a sério, não achas? – perguntara.
Era a primeira namorada séria de Tommy e, sem dúvida, a primeira que ele considerava
demasiado boa para ele. Para Tommy, ela era uma deusa, uma maravilha – o unguento para sarar
todas as suas velhas feridas.
– Quem me dera poder mostrar àqueles filhos da mãe da escola – disse-me, no dia em que ela o
convidou a mudar-se para o seu apartamento em Holland Park. – Quem me dera poder mostrar-lhes
que sou capaz de atrair uma rapariga como a Zoe.
E eu respondi:
– Sim, não seria fantástico? – sem nunca imaginar que poderia acontecer. Essas coisas nunca
aconteciam.
Só que, no caso de Tommy, acontecera.
Havia cerca de um ano, ele enviara a brochura do seu programa desportivo para o ensino
secundário a todos os diretores escolares do Reino Unido. O programa incluía uma doação de
tecnologia desportiva portátil – coletes que mediam os batimentos cardíacos, relógios de fitness,
esse tipo de coisas – por parte de um dos maiores clientes de Zoe, uma multinacional tecnológica, e
era o orgulho de Tommy. Quando recebeu um telefonema da diretora da nossa antiga escola, ficou
encantado.
– Ela quer que eu vá lá conhecer o responsável pelo departamento de Educação Física! – disse-
me, numa das nossas conversas por Skype. – Não é fantástico?
A situação tornou-se bastante menos fantástica quando descobriu que esse responsável era o tipo
que o atormentara na adolescência, Matthew Martyn.
Mas a conversa correra bem, assegurou-me Tommy. Um pouco tensa ao princípio, mas depois
Matthew dissera que eram todos uns idiotas em adolescentes e dera uma palmada no ombro de
Tommy e tratara-o por «companheiro». Mais tarde, como dois velhos amigos, tinham comparado
experiências: Matthew mostrara a Tommy uma fotografia da família e Tommy – sem querer
acreditar na sua sorte – mostrara a Matthew uma fotografia da sua namorada bela, elegante e
extraordinariamente tonificada, na sua esplêndida cozinha de Londres.
Quando cheguei ao apartamento de Tommy e Zoe em Londres, no princípio de junho, entretanto
distraída com a situação de Eddie, Tommy já instalara o programa na escola. Disse-me que os
velhos fantasmas estavam enterrados; que ultrapassara o que lhe acontecera na escola; que estava
até ansioso por voltar a ver Matthew Martyn na cerimónia de lançamento. E depois:
– A Zoe também vai – acrescentara, como se isso não tivesse grande importância. – Será ótimo
poder apresentá-la ao Matt.
Tive vontade de o abraçar. De lhe dizer que ele era fantástico como era. Que não precisava de
Zoe pendurada no braço para aumentar o seu valor. Mas não disse nada, claro, porque ele precisava
do meu apoio.
Zoe desistira, quatro dias antes do lançamento.
– Tenho de ir a Hong Kong com um cliente – dissera. – É muito importante. Lamento muito,
Tommy.
Mas não o suficiente, pensei. Ela sabia o que isto significava para Tommy, que ficara branco
como a cal.
– Mas... a escola está à tua espera!
Zoe franziu a testa.
– Calculo que sobreviverão à minha ausência. Estão a exibir-se perante a imprensa local, não
perante mim.
– Não podes ir um dia depois? – implorou ele. Foi quase insuportável de se ver.
– Não – respondeu ela, firmemente. – Não posso. Mas vais agradecer-me por ir nesta viagem. Vai
lá estar uma delegação do Departamento de Cultura, Media e Desporto. Ainda estou convencida de
que consigo arranjar-te um cargo num dos conselhos consultivos que eles gerem.
Tommy abanou a cabeça.
– Mas já te disse que não estou interessado.
– E eu já te disse que estás, Tommy.
Jo e eu tínhamo-nos oferecido para vir em lugar dela.
Se eu queria voltar à minha velha escola? Claro que não. Tinha esperanças de nunca mais lá pôr
os pés. Contudo, pensei, Tommy precisava de mim, e ajudar uma pessoa necessitada era
praticamente a única distração decente que me ocorria. Além disso, o que podia eu temer? Mandy e
Claire tinham saído da escola nos anos noventa. Nem elas, nem qualquer outra das pessoas de quem
eu fugira, aqui estariam hoje.
– Harrington. – Tommy virou-se para trás. – Estás aí?
– Sim, desculpa.
– Ouve, preciso de te dizer uma coisa.
Olhei para ele. As sobrancelhas de Tommy não anunciavam boas-novas.
– Quando recebi a mensagem sobre os jornais locais, há bocado, o Matthew disse-me outra coisa.
Ele... – Tommy respirou fundo, e percebi que a notícia era má. – O Matthew casou-se com a Claire
Peddler. Não falei nisso antes porque sabia que não ias gostar de ouvir o nome dela. Mas, quando
me enviou a mensagem a dizer que a imprensa local ia cá estar, disse ainda...
Não.
– ...que a Claire decidira vir também. E traz...
A Mandy.
– ...um grupinho de amigos do nosso tempo. Incluindo a Mandy Lee.
Inclinei-me para a frente e encostei a cabeça às costas do banco dele.
CAPÍTULO 6

Dia um: a bebida que durou doze horas

–S arah Mackey – disse eu. – M-A-C-K-E-Y.


O dono do pub colocou-me um copo de cidra à frente.
O homem da aldeia riu-se.
– Por acaso, sei soletrar Mackey. Mas obrigado. Chamo-me Eddie David.
– Desculpe. – Sorri. – Vivo na América. Acho que deve ser um apelido mais americano e, quando
estou aqui, muitas vezes tenho de o soletrar. Além disso, sou uma pessoa que gosta de clareza.
– Estou a ver – disse Eddie. Estava encostado ao balcão, de lado, a observar-me. Tinha uma nota
de dez dobrada entre os dedos grandes e morenos. Eu gostava da escala deste homem, do facto de
ele ser tão mais alto, mais largo, mais forte do que eu. Reuben era da minha altura.
Sentámo-nos no jardim do pub, um oásis de flores e mesas de piquenique no pequeno vale abaixo
da aldeia de Sapperton. A fita estreita do rio Frome desenrolava-se invisível à volta do prado para
além do parque de estacionamento do pub; rosas bravas tombavam de uma árvore. Havia duas
pessoas debruçadas sobre as suas cervejas, com um cocker spaniel ofegante a olhar para mim entre
as pernas delas. Assim que me sentei sob o grande guarda-sol, o cão aproximou-se e sentou-se aos
meus pés, instalando-se com um grande suspiro de autocomiseração.
Eddie riu-se.
Algures, no vale, o ruído desagradável de uma serra elétrica começou e parou. Alguns pássaros
aturdidos responderam do bosque acima de nós. Beberriquei a cidra fria e gemi.
– Oh, sim – disse.
– Sim – concordou Eddie. Brindámos e senti um desabrochar de prazer. Estar sozinha em casa
dos meus pais, esta manhã, perturbara-me mais do que estava disposta a admitir, e a caminhada em
Broad Ride não ajudara a melhorar o meu estado de espírito. No entanto, para limar as arestas do
dia, aqui estava uma cidra fresca e um homem assaz interessante. Talvez o dia ainda tivesse
salvação.
– Adoro este pub – disse-lhe. – Costumávamos vir aqui quando eu era pequena. A minha irmã
mais nova e eu andávamos à solta, a brincar no riacho, enquanto os meus pais e os amigos iam
ficando cada vez mais alegres.
Eddie bebeu um trago da cerveja.
– Eu cresci em Cirencester. Não é tão fácil andar à solta no meio de uma cidade. Mas viemos
aqui uma ou duas vezes.
– A sério? Quando? Que idade tem?
– Vinte e um – disse Eddie, com à-vontade. – Embora me digam que pareço mais novo.
Não se importou quando eu me ri.
– Trinta e nove – admitiu por fim. – Lembro-me de andar a correr neste jardim quando tinha uns...
nem sei, talvez dez. Depois a minha mãe mudou-se para cá no final dos anos noventa, e comecei a
frequentar mais o estabelecimento. E a Sarah, que idade tem? Talvez tenhamos andado à solta
juntos.
Uma pequena centelha de sugestão. A minha aplicação devia estar escandalizada.
– Oh, provavelmente não. Mudei-me para Los Angeles ainda em adolescente.
– A sério? É uma grande mudança.
Assenti com a cabeça.
– Um dos seus pais foi trabalhar para lá?
– Mais ou menos.
– Ainda lá estão?
– Não. Vivem perto daqui. Na direção de Stroud.
Desviei um pouco o rosto, como se isso me desculpasse de estar nas imediações de uma mentira.
– Então, Eddie, diga-me o que estava a fazer no parque de Sapperton, num dia de semana, a meio
da tarde.
Ele baixou-se para acariciar o cão.
– Vim visitar a minha mãe. Ela vive perto da escola. – Uma leve nota dissonante passou-lhe pela
voz. – E a Sarah, o que estava a fazer? – perguntou.
– Vinha de Frampton Mansell. – Acenei com a cabeça na direção da aldeia dos meus pais.
Ele franziu a testa.
– Mas não vinha do vale, vinha de cima.
– Bom... queria fazer um bocado de exercício, por isso subi a colina e vim por cima. Por Broad
Ride, na verdade... está muito mudado – acrescentei rapidamente. Isto está a tornar-se um campo
minado. – Tão denso! Antes, era amplo e imponente; as pessoas costumavam levar os cavalos lá
acima para galopar. Agora é pouco mais do que um trilho.
Ele assentiu.
– Ainda levam os cavalos, apesar de ser proibido. Hoje mesmo, ia sendo atropelado por um.
Sorri ao imaginar o que seria preciso para derrubar esta montanha de homem, mesmo para um
cavalo. E fiquei contente por ele também costumar andar nesse corredor verde e secreto.
– Eu parecia o Moisés de Sapperton – disse ele –, a abrir um mar Vermelho de cicutárias.
Ambos bebemos um gole das nossas bebidas.
– Então vive por estes lados?
– Sim – confirmou Eddie –, embora tenha muitas encomendas de Londres, por isso passo lá
bastante tempo. – De súbito, deu-me uma palmada na barriga da perna. – Um moscardo –
explicou, sacudindo o inseto morto da mão. – Estava a comer-lhe a perna. Desculpe.
Bebi um longo trago de cidra e senti o zumbido sensual e embriagante do álcool e do choque.
– São terríveis em junho, por estes lados – continuou ele. – São terríveis o ano todo, mas
principalmente em junho.
Mostrou-me dois altos vermelhos no antebraço.
– Um dos filhos da mãe apanhou-me esta manhã.
– Espero que o tenha mordido também.
Eddie riu-se.
– Por acaso, não. Passam muito tempo em cima de excrementos de cavalo.
– Sim, claro.
Antes de refletir no que estava a fazer, toquei nas picadas irritadas na pele dele.
– Pobre braço – disse, embora em tom casual, porque já estava embaraçada.
Eddie parou de rir e virou-se para mim. Os nossos olhos encontraram-se e havia uma pergunta
nos dele.
Fui eu que afastei primeiro o rosto.

Algum tempo depois, eu estava já confortavelmente embriagada. Eddie tinha ido buscar a nossa
terceira, talvez quarta rodada. Ouvi o tilintar da caixa enquanto o empregado registava o nosso
pedido, o barulho de algo que eu esperava que fosse um pacote de batatas fritas, e o zumbido
indolente de um avião a cruzar o céu.
A superfície áspera do banco da velha mesa de piquenique começava a parecer lixa na pele
macia das minhas coxas. Olhei em volta, à procura de uma mesa menos abrasiva, e, como não
encontrei nenhuma, deixei-me cair na relva como o cão de havia pouco. Sorri, feliz e embriagada. A
relva fez-me cócegas no ouvido. Não queria ir-me embora dali, nunca mais. Queria simplesmente
estar; sem telefone, sem responsabilidades. Só eu e Eddie David.
Enquanto olhava para o céu, com a terra quente debaixo de mim, apanhei um antigo fragmento de
memória. Isto, pensei, ensonada. O cheiro a relva quente, o leve sussurrar das folhas por trás do
zumbido dos insetos e de fragmentos de canções cantaroladas. Isto fora eu, antes. Antes de Tommy
se ter mudado para a América e de a adolescência me ter explodido debaixo dos pés como uma
mina, isto fora suficiente.
– Temos uma baixa – disse Eddie, descendo os degraus com uma cerveja, uma cidra e (maravilha
das maravilhas!) batatas fritas. – Disseste que aguentavas bem a bebida.
– Esqueci-me da cidra – admiti. – Mas é preciso que se note que não caí para o lado. Só me fartei
de estar sentada naquele banco áspero. – Soergui-me sobre os cotovelos. – De qualquer maneira,
preciso que abras imediatamente esse pacote de batatas fritas.
Eddie sentou-se na relva ao meu lado e tirou do bolso o que parecia ser um molho de chaves
incomodativo. Estavam unidas por um pequeno porta-chaves de madeira em forma de rato.
– Quem é esse rapaz? – perguntei, quando Eddie me passou o copo. – Gosto dele.
Eddie olhou para o porta-chaves. Após uma pequena pausa, sorriu.
– Ela chama-se Ratinha. Fui eu que a fiz, quando tinha nove anos.
– Fizeste-a? De madeira?
– Isso mesmo.
– Oh! Meu Deus, é muito bonita.
Eddie passou o dedo sobre a Ratinha.
– Passou por muita coisa ao meu lado – disse. – É o meu talismã. Enfim. À nossa. – Inclinou-se
para trás e apoiou-se nos cotovelos, com a cara virada para o Sol.
– Estamos a beber a meio do dia – constatei, alegremente. – Enquanto as outras pessoas
trabalham. E nós aqui sentados, a beber.
– Parece que sim.
– Estamos a beber a meio do dia e já estamos bastante embriagados. E estamos a divertir-nos,
acho eu.
– Vamos voltar à conversa, ou vais passar o resto da tarde a fazer constatações?
Ri-me.
– Como já te disse, Eddie, a clareza é importante. Mantém-me orientada.
– Está bem. Bom, eu vou comer umas batatas fritas e beber a minha cerveja. Avisa-me quando
acabares.
Abriu o pacote e passou-me as batatas.
Gosto dele, pensei.
Desde a nossa chegada a este jardim secreto, Eddie e eu tínhamos esquadrinhado as nossas
memórias de infância e encontrado centenas de interseções históricas. Tínhamos percorrido as
mesmas colinas, frequentado as mesmas discotecas; tínhamo-nos sentado no mesmo caminho à
beira-rio ao pôr do Sol, a contar as libelinhas que dançavam sobre os canaviais no velho canal de
Stroudwater.
Tudo isto separado apenas por uns dois anos. Imaginei-me com dezasseis anos, a conhecer Eddie
com dezoito, e perguntei-me se ele teria gostado de mim nessa altura. E se gostaria de mim agora.
Já lhe tinha falado sobre a minha instituição de solidariedade e ele ficara encantado e fizera
imensas perguntas. Compreendera imediatamente a diferença entre os nossos Doutores Palhaços e
os artistas normais que visitavam os hospitais pediátricos. E compreendera que eu o fazia porque
não podia deixar de o fazer, por mais que nos cortassem os subsídios, por mais frequentemente que
os nossos artistas fossem tratados como meros palhaços de circo.
– Uau! – exclamara, depois de eu lhe mostrar um vídeo de dois dos nossos Doutores Palhaços a
trabalharem com uma criança que receava a sua cirurgia iminente. Eddie parecia mesmo ter ficado
emocionado. – Isso é incrível. Eu... Muito bem, Sarah.
Ele, por sua vez, mostrara-me fotografias das mobílias e dos armários que fazia numa oficina na
orla do bosque de Siccaridge. Era esse o seu trabalho – as pessoas contratavam-no para fazer
coisas maravilhosas em madeira para as suas casas: cozinhas, armários, mesas, cadeiras. Eddie
adorava madeira. Adorava mobílias. Adorava o cheiro de verniz e o estalido de um entalhe ao
encaixar, contou-me; já desistira de tentar fazer outra coisa mais lucrativa.
Mostrou-me a fotografia de um velho celeiro: pequeno, de pedra, com o telhado levemente
inclinado, no meio de uma clareira de floresta que parecia saída de uma história de Hans Christian
Andersen.
– É a minha oficina. E também a minha casa. Sou um eremita da vida real; vivo num celeiro no
meio do bosque.
– Oh, que bom! Sempre quis conhecer um eremita! Sou o primeiro ser humano com quem falas nas
últimas semanas?
– Sim! – Mas, depois, corrigiu-se rapidamente: – Não. – Nos seus olhos vi uma sombra de algo
que não consegui identificar. – Não sou um eremita a sério. Tenho amigos e família e uma vida
ocupada.
Após uma pausa, sorriu.
– Não precisava de dizer isto, pois não?
– Provavelmente não.
Ele fechou a fotografia do celeiro no telemóvel, precisamente quando este começou a tocar. Desta
vez desligou-o, embora sem sinais óbvios de irritação.
– Bom, essa é a minha profissão e adoro o que faço. Embora haja anos em que praticamente não
ganho dinheiro nenhum. Esses são menos divertidos. – Uma aranha minúscula subiu-lhe pelo braço
e ele observou-a e empurrou-a com cuidado quando ela tentou entrar pela manga da t-shirt. – Há
alguns anos, até pensei em arranjar um emprego como deve ser, qualquer coisa com salário
garantido. Mas não consigo ter um emprego das nove às cinco. Acho que... bom, acho que teria
muitas dificuldades. Podia até morrer. Sei que aconteceria qualquer coisa má e que não
sobreviveria.
Pensei nisso por um instante.
– Irrita-me bastante quando as pessoas dizem esse tipo de coisas – respondi, por fim. – Acho que
só um número muito reduzido de pessoas gosta realmente de estar fechado num escritório das nove
às cinco. Mas não podes esquecer que a maioria não tem escolha. Tu és um privilegiado, por
poderes fazer armários numa oficina no meio das Cotswolds.
– É verdade – concordou Eddie. – E claro que percebo o que queres dizer, mas, ainda assim, não
sei se concordo. Defendo que toda a gente tem opção, em tudo. De uma forma ou de outra.
Olhei para ele.
– No que fazem, no que sentem, no que dizem. Simplesmente tornou-se aceite essa ideia de que
não temos escolha. Em relação a nada. Empregos, relações, felicidade. Está tudo fora do nosso
controlo. – Enxotou a pequena aranha para a relva. – Chega a ser frustrante, ver toda a gente
queixar-se dos seus problemas sem nunca quererem discutir soluções. Convencidos de serem
vítimas, dos outros, de si próprios, do mundo. – Aquele leve tom dissonante regressara-lhe à voz.
Após um instante, olhou para mim com um sorriso.
– Quem me oiça há de pensar que sou um imbecil.
– Um bocadinho.
– Não queria parecer pouco compreensivo. Só...
– Não faz mal. Percebo o que queres dizer. E é um ponto de vista interessante.
– Talvez, mas não me expressei da melhor maneira. Desculpa. É só porque... – Fez uma pausa. –
Ando um bocadinho saturado com a minha mãe. Adoro-a, claro, mas às vezes questiono se ela
quererá realmente ser feliz. E depois sinto-me mal, porque sei que o problema é pura química
cerebral e claro que ela quer ser feliz.
Coçou as pernas.
– És a primeira pessoa com quem falo nos últimos dias que não está cheia de pena de si própria.
Deixei-me levar. Desculpa. Obrigado. Fim.
Ri-me e ele reclinou-se para trás, deixando um dos joelhos cair para o lado, em cima da minha
perna.
– Ainda me estou a divertir mais do que me estava a divertir com a ovelha Lucy. Obrigado, Sarah
Mackey. Obrigado por prescindires da tua tarde de quinta-feira para beber copos comigo.
O meu peito encheu-se de espirais densas de prazer. E eu deixei, porque me estava a saber bem
ser feliz.
Pouco depois, Eddie foi à casa de banho e eu desinstalei a aplicação de Jenni do telemóvel.
Fosse por que motivo fosse, não me sentia tão bem na companhia de um homem – de qualquer
pessoa, na verdade – há muito tempo.
– Este vale tem qualquer coisa, não tem? – disse Eddie, mais tarde. Nem ele parecia já sóbrio. O
dono do pub fechara durante a tarde mas dissera-nos que podíamos ficar no jardim enquanto
quiséssemos.
– O caldeirão do diabo? – sugeri, abanando o rosto com a mão. – Para uma pessoa que vive no
Sul da Califórnia, tenho um calor desmesurado. Onde está o Pacífico quando precisamos dele? Ou
uma piscina. Um ar condicionado, no mínimo.
Eddie riu-se e inclinou a cabeça para mim.
– Tens piscina?
– Claro que não! Sou presidente de uma instituição sem fins lucrativos.
– Tenho a certeza de que há muitos executivos, em instituições sem fins lucrativos, com salários
suficientemente elevados para terem piscina.
– Bom, eu não. O apartamento onde vivo nem sequer é meu.
Ele olhou para o céu quente.
– Sim, o caldeirão do diabo é aqui – disse, com ar pensativo. – Mas há mais qualquer coisa, não
achas? Algo antigo, secreto. Este pequeno vale sempre me fez lembrar um bolso de trás. Aquele
sítio onde enfiamos todo o tipo de histórias e memórias, como velhos bilhetes de autocarro.
Não podia estar mais de acordo, pensei. Tinha mais bilhetes velhos enfiados neste vale do que
queria recordar. E, por mais anos que passasse longe, estavam sempre aqui quando eu regressava.
Ecos da minha irmã em cada curva do pequeno rio Frome; fragmentos de canções nas velhas faias;
a sensação da mão dela na minha. A superfície parada e espelhada do lago, tal como no dia em que
regressámos a casa do hospital. Continuava tudo aqui. Longe da vista, mas nunca longe do coração.

Ficámos ali deitados a conversar durante horas, sempre com uma parte dele a tocar numa parte de
mim. O meu coração a expandir-se e a contrair-se como metal quente.
Ia acontecer alguma coisa. Já tinha acontecido alguma coisa. Ambos o sabíamos.
A dada altura, Frank, o agricultor, veio ver das ovelhas e consertar a cerca e deu-nos uma Coca-
Cola e um pacote de queijo cheddar do seu saco de compras.
– Fico a dever-te uma – disse, e depois piscou o olho a Eddie como se eu não o conseguisse ver.
Bebemos a garrafa de Coca-Cola inteira e comemos o queijo quase todo. Perguntei aos meus
botões se a namorada nova de Reuben – que, ao que parecia, o levara a um bar de sumos no
primeiro encontro – alguma vez bebera várias canecas de cidra, deitada no jardim de um pub com
um desconhecido, e depois lanchara Coca-Cola e queijo cheddar. Descobri que me estava
borrifando para ela.
Sentia-me em casa. Não apenas com Eddie, mas aqui, neste vale onde crescera. Pela primeira vez
desde que era jovem, sentia que estava no meu devido lugar.

O nosso vale secreto finalmente arrefeceu um pouco quando o sol escaldante desapareceu do
outro lado do mundo. Uma raposa atravessou rapidamente o parque de estacionamento. Pequenos
grupos de pessoas entraram e saíram, o tinido de copos e talheres abafado pelo sussurro indolente
das árvores. Estrelas cintilantes salpicavam o céu negro.
Eddie estava a segurar-me na mão. Tínhamos voltado para a nossa mesa depois de o pub reabrir.
Comêramos qualquer coisa... lasanha? Nem me lembro. Ele estava a falar-me sobre a mãe, a
contar-me que a depressão dela começava novamente a piorar. Eddie ia partir de férias dentro de
uma semana com um amigo, para fazer windsurf em Espanha, e estava preocupado por ter de a
deixar, embora ela lhe garantisse que ficaria bem.
– Parece-me que és um bom filho – comentei. Ele não respondeu mas ergueu as nossas mãos
entrelaçadas e beijou-me os nós dos dedos.
E agora o pub estava a fechar pela segunda vez e, embora não tivéssemos discutido esse assunto,
embora eu ainda fosse tecnicamente casada e devesse estar emocionalmente traumatizada, embora
eu nunca tivesse ido para casa com um desconhecido – muito menos quando essa casa era um
celeiro literalmente no meio do nada –, era tão claro como a noite estrelada que eu ia para casa
com ele.
Com a ajuda da luz do meu telemóvel, porque o dele estava em tão mau estado que a lanterna já
não funcionava, percorremos de mão dada o trilho silencioso, passando por portões esquecidos e
poças de água negra.
Ele conduziu-me ao seu celeiro de eremita – que na realidade ficava numa clareira do bosque,
ladeado por belos castanheiros e arbustos de cicutárias –, mas aqui não havia elfos nem sátiros nem
fadas de cabelo sedoso, apenas um velho Land Rover militar e um pequeno jardim relvado e
escuro, para onde Eddie olhou com ar desconfiado enquanto procurava as chaves. Pareceu-me
ouvi-lo murmurar «Steve?», mas não disse nada.
Ele abriu a porta.
– Entra – disse, e nenhum de nós conseguia olhar diretamente para o outro porque ia acontecer,
agora, e ambos sabíamos já que isto era maior do que o que tivesse lugar nas próximas horas.
Enquanto passávamos pelas máquinas paradas da sua oficina, inalei o cheiro pungente de madeira
cortada e imaginei Eddie aqui, a aplainar, a martelar, a colar, a serrar. A fazer coisas maravilhosas
de materiais maravilhosos com aquelas grandes mãos tisnadas. Pensei naquelas mãos na minha pele
e senti a cabeça a andar à roda.
Passámos por duas portas pesadas – essenciais, explicou ele, para controlar a serradura – e,
finalmente, subimos um lanço de escadas até um grande espaço amplo, sem divisórias, cheio de
candeeiros antigos e traves ocultas nas sombras e rangidos suaves. Lá fora, as árvores agitavam-se
lentamente, preto contra preto, e uma nuvem fina passou sobre a Lua redonda.
Fui à cozinha beber um copo de água e ouvi-o atrás de mim. Fiquei ali parada alguns instantes, de
olhos fechados, a sentir a respiração dele no meu ombro nu. Depois, virei-me e encostei-me ao
lava-loiça enquanto ele me beijava.
CAPÍTULO 7

Meu amor,

Bom, sou casada. E tenho a horrível sensação de que já sabes disso.


Não menti quando te disse que não tinha ninguém. E decididamente não menti em relação ao que me fizeste sentir.
O Reuben e eu separámo-nos há três meses. O que pôs fim definitivo à relação foi o facto de eu não poder dar-lhe um bebé,
mas penso que ambos sabíamos já há muito tempo que tínhamos chegado ao fim do caminho. É uma longa história
(provavelmente demasiado longa para o Messenger do Facebook), mas foi complicado para ele.
Fiquei horrivelmente aliviada quando ele me pediu para conversar comigo; sabia o que me ia dizer. Só gostava de ter tido
coragem de o dizer eu, anos mais cedo. Sentei-me em frente dele com o carregador do telemóvel na mão, a enrolar e desenrolar
o cabo nos dedos até ele mo tirar, e depois chorei, porque sabia que ele precisava que eu chorasse.
É por isso, Eddie? É por causa do meu casamento que não me ligaste? Se é isso, por favor tenta lembrar-te do que sentiste
quando estávamos juntos. Foi tudo verdadeiro. Cada beijo, cada palavra, tudo.

Li a mensagem três vezes e depois apaguei-a. Em vez disso, escrevi:

Querido Eddie,

Desconfio que descobriste que sou casada. Adorava ter oportunidade de te explicar tudo, cara a cara, embora queira que saibas
desde já que o meu casamento acabou: o site está desatualizado. Não tinha – e continuo a não ter – ninguém na minha vida. E
quero ver-te, pedir desculpa e explicar.

Sarah

Tommy, Jo e Rudi há muito que tinham entrado. Eu estava encolhida no banco de trás do carro de
Tommy há quase meia hora.
Tinha de sair, mais cedo ou mais tarde.
CAPÍTULO 8

T ommy estava de pé numa pequena plataforma no meio do campo de jogos da nossa antiga
escola, a falar ao microfone. Fingia achar graça ao facto de o equipamento interromper o seu
discurso com ruídos eletrónicos.
Perscrutei a multidão ali reunida. Por que raio Mandy e Claire tinham vindo? Não teriam coisas
melhores para fazer? Não teriam empregos? Sentia como que os pulmões amarfanhados num espaço
apertado por trás do nariz. Não suportava a perspetiva de as ver. Muito menos agora, no estado em
que me encontrava.
– Olá – disse Jo, aparecendo inesperadamente ao meu lado. – Como vai isso?
– Bem.
– Vai correr tudo bem – tranquilizou-me, baixinho. – Mesmo que o Tommy se sinta na obrigação
de ficar um pouco, tudo isto não vai demorar mais de uma hora. E eu vou ficar de olho em ti.
Ouvimos, em silêncio, Tommy falar sobre Matthew Martyn. Uma inspiração para os alunos...
Trabalhou incansavelmente no programa... Faz toda a diferença trabalhar com pessoas como Matt...
– Ouve, eu... ah, elas estão por aí?
Jo enfiou a mão no meu braço.
– Não sei, Sarah – disse. – Não sei como elas são.
Acenei com a cabeça e tentei respirar fundo.
– Onde é que tens estado? – perguntou ela. – Escondida no chão do carro?
– Basicamente. Mandei uma mensagem ao Eddie. Sobre o facto de ser casada. Depois, pus
maquilhagem a mais. E aqui estou eu.
Ouviu-se uma pequena ovação e virámo-nos para ver Tommy passar o microfone a Matthew
Martyn. Matthew era um daqueles homens que passam tanto tempo a treinar que têm de andar com
os braços afastados do corpo, como pinguins. Ele e Tommy deram palmadas nas costas um do outro
e trocaram de lugar.
– Muito bem – disse Jo. – Acho que é melhor ir esperar por ele. Depois do discurso do Matthew,
é altura de circular e conviver. – Vi-a afastar-se, apressada.
Poucos minutos depois, Rudi aproximou-se com um copo de champanhe na mão.
– Isto é tão chato, Sarah – disse ele.
– Eu sei.
– E o Tommy está esquisito.
– É porque está nervoso – expliquei, retirando-lhe o champanhe da mão. – Nunca te portas bem?
– Não. – Rudi sorriu e apontou para uma pista de atletismo que não existia no meu tempo. Tinham
sido colocados obstáculos nas pistas mais perto de nós. – Posso ir saltar por cima daquelas coisas?
– Se prometeres saltar apenas os mais baixos.
– Épico! – E afastou-se a correr.
Memórias miseráveis escorreram-me da pele como suor enquanto olhava novamente em volta.
Odiava aquele lugar. E, por mais juvenil que isso fosse, odiava Matthew Martyn. Não me
interessava que ele fosse adolescente na altura: fizera outro rapaz chorar, repetidas vezes, e retirara
prazer disso. E agora estava a falar como se tivesse sido ele a conceber o maldito programa, e não
Tommy.
Ia a meio do champanhe de Rudi quando vi Mandy e Claire na parte de trás do público. A dez
metros de mim, talvez menos. Afastei o olhar antes de ser vista, trazendo comigo alguns detalhes
fragmentados: um vestido azul e amarelo, uma franja, um pneu nas costas, por cima do elástico do
soutien. Baixei o copo, com movimentos a fazer lembrar um robô numa animação de má qualidade.
Senti-me corar.
– Sarah Harrington? – ouvi então uma voz sussurrar perto do meu ombro esquerdo. – És mesmo
tu?
Virei-me e vi-me cara a cara com a minha professora de Inglês, a senhora Rushby. Tinha o cabelo
um pouco grisalho já, mas ainda preso naquele carrapito elegante que todas tínhamos tentado copiar
a dada altura da nossa vida escolar.
– Oh, olá! – sussurrei, com um toque de histeria na voz.
A professora Rushby, sem qualquer aviso, puxou-me para si num abraço apertado.
– Há anos que queria fazer isto – disse –, mas soube que tinhas ido para a América. Como estás,
Sarah? Como tens passado?
– Ótima! – menti. – E a professora?
– Muito bem, obrigada. Estou muito contente por saber que te corre tudo bem – acrescentou. –
Sempre tive esperança de que a mudança para a Califórnia fosse boa para ti.
Fiquei sensibilizada. Não só por ela ter desejado tempos melhores para mim, mas por se lembrar
sequer de quem eu era. Por outro lado, pensei, não era uma aluna muito típica quando me fui
embora.

Durante breves momentos, protegida da multidão pela professora Rushby, comecei a sentir leves
vestígios de confiança. Disse uma ou duas piadas e fiquei pateticamente contente quando ela se riu.
Alguém perderia alguma vez a vontade de impressionar a professora preferida? Tinham passado
mais de dezanove anos desde que fora sua aluna em Inglês avançado e aqui estava eu, a tentar fazer
piadas inteligentes sobre tragédias de vingança.
Felizmente, a professora Rushby mudou de assunto quando percebeu que eu não me lembrava do
nome de John Webster. Disse-me que tinha visto uma reportagem na televisão sobre a minha
instituição de solidariedade, quando estivera de férias com a família na Califórnia.
– Tem a ver com distração para crianças hospitalizadas, não é? Palhaços?
Relaxei enquanto me lançava em território mais seguro: o trabalho. Os Doutores Palhaços,
expliquei, como fizera já mil vezes, não eram bem palhaços. Tinham formação para dar apoio às
crianças, para tornar mais natural a sua experiência médica, tornar menos intimidante o meio
hospitalar.
Enquanto falava, olhei de relance para Mandy e Claire, ainda no mesmo sítio, atrás do grupo de
pessoas. O vestido azul e amarelo e a franja pertenciam a Claire; o pneu de gordura nas costas, a
Mandy. A sua estrutura, antes esguia, expandira-se pelo menos trinta quilos desde o tempo de
escola, algo que, provavelmente, eu devia ter desejado na altura. Agora era-me indiferente. Ela
olhou para mim e desviou rapidamente o olhar.
A professora Rushby pediu licença para ir dar qualquer coisa a outro professor e eu esvaziei o
copo de champanhe de Rudi, enquanto o alarme da passagem de nível – um som que não ouvia há
anos – soava à distância. E, por um segundo, vi-me de novo em meados dos anos noventa, uma
adolescente a debater-se com a insegurança e a arrogância emocional, exausta pelo mero esforço de
viver. Uma malha caída nos collants, uma tentativa débil de sorrir. A tentar tão arduamente ser
amiga de Mandy Lee e Claire Peddler.
A professora Rushby ainda estava ocupada e comecei a sentir-me exposta, por isso verifiquei se
tinha mensagens no Facebook. Esforcei-me por parecer tensa e concentrada, como se estivesse a
responder a um importante e-mail de trabalho.
Continuava sem notícias de Eddie.
Guardei o telemóvel e olhei para Rudi, que se preparava para tentar saltar um obstáculo
demasiado alto para ele.
– Rudi – chamei. – Não. – Com o dedo, fingi cortar o próprio pescoço.
– Eu consigo – gritou-me ele.
– Não, não consegues – respondi.
– Consigo, sim!
– Se avançares um centímetro que seja para esse obstáculo, Rudi O’Keefe, vou dizer à tua mãe
que andas a usar a password dela.
Rudi fitou-me, incrédulo. A tia Sarah nunca faria uma maldade dessas!
Não cedi. A tia Sarah faria sem dúvida alguma uma maldade dessas.
Vi-o virar-se, zangado, para os obstáculos mais pequenos, e reparei que alguém estava a olhar
para ele do pequeno monte relvado no centro da pista. Uma figura esguia, arrapazada, com calças
de ganga largas e uma gabardina caqui. Embora já não chovesse, tinha o capuz na cabeça. Um aluno
mais velho? Um fotógrafo? Passado alguns segundos, apercebi-me de que não era para Rudi que a
figura olhava, mas sim para a zona do campo onde eu me encontrava. Na verdade – olhei em volta
para confirmar, mas as únicas pessoas relativamente perto eram a professora Rushby e o outro
professor –, parecia, estranhamente, estar a olhar para mim.
Franzi os olhos. Homem? Mulher? Não conseguia ter a certeza. Por um segundo, até pensei se
seria Eddie, mas ele era mais largo do que esta pessoa. E muito mais alto.
Virei-me novamente, para ter a certeza de que não poderia estar a olhar para outra pessoa
qualquer. Não havia mais ninguém. Abruptamente, a silhueta começou a afastar-se, na direção de
um portão novo que dava para a estrada principal.
– Desculpa, Sarah – disse a professora Rushby, regressando para junto de mim. – Então diz-me
lá: como está o teu marido? Lembro-me de o ver na reportagem. Pareceu-me um homem muito
talentoso.
Olhei uma última vez por cima do ombro, no preciso instante em que a pessoa de gabardine fazia
o mesmo. Era para mim que estava a olhar. De certeza que era para mim. Mas, após uma fração de
segundo, virou-se e saiu do recinto escolar.
Um autocarro elétrico passou na estrada principal. Estreitos raios de sol passaram entre as
nuvens e algo se agitou no meu abdómen. Quem seria?
Vi a expressão da professora Rushby mudar quando lhe disse que eu e Reuben nos tínhamos
separado recentemente. Aí estava algo a que ia demorar algum tempo a habituar-me.
– Mas continuamos a gerir a instituição juntos. Foi uma separação muito amigável e adulta!
– Lamento muito – disse ela, de testa franzida e cruzando os braços de forma embaraçada. – Não
devia ter perguntado.
– Não faz mal. – Gostava de poder explicar-lhe como era fácil para mim, de forma quase
embaraçosa, falar sobre Reuben. Porque é que estava uma pessoa encapuçada a olhar para mim?
Isso é que eu queria saber.
– Bem, Sarah, tenho a certeza de que encontrarás a felicidade com outra pessoa.
– Espero que sim! – exclamei, e depois, para meu horror, acrescentei: – Na verdade, há outra
pessoa, mas... é complicado.
A professora Rushby fora claramente apanhada de surpresa pela confissão.
– Claro – disse, após uma pausa. – Que pena.
Que raio se passava comigo? Era a primeira vez que tentava ter uma conversa normal em duas
semanas!
– Desculpe – suspirei. – Devo parecer uma das suas alunas.
Ela sorriu.
– Ninguém é velho de mais para amar – disse, atenciosa. – Não me lembro quem o disse, mas
concordo plenamente.
Não me ocorreu nenhuma resposta adequada, por isso voltei a pedir desculpa.
– Sarah, se não tivéssemos milhares de anos de obras escritas sobre o sofrimento do amor... já
para não falar no questionar da fé e na perda de nós próprios que ele pode causar... eu estaria no
desemprego.
Sim, pensei, infeliz. Era isso mesmo. A perda de mim própria. Como podia eu alguma vez admitir
que preferia a ideia de Eddie estar morto a aceitar que ele pura e simplesmente mudara de ideias?
Eu era um monstro.
Tinha saudades de Sarah Mackey. Ela era tão regular. Era...
– AAAAAHHHHH!
Girei rapidamente sobre mim própria. Rudi devia ter tentado saltar um dos obstáculos mais altos
e estava caído no chão, agarrado à perna.
– Oh, foda-se – disse Jo, no segundo de silêncio que se seguiu. Correu para ele e todos os pais,
professores e jornalistas locais, toda a equipa de jovens de Matthew Martyn e o próprio Matthew,
viraram-se como uma só entidade, lançando adagas de desaprovação através do campo. Quem era
esta mulher que aparecera com Tommy? Porque é que o filho dela não estava na escola? E por
que diabo estava a falar de forma tão ordinária?
– Que bonito – ouvi uma mulher dizer. Era Mandy Lee. Reconheceria aquela voz em qualquer
lado.
Corri para o choroso Rudi e ajudei Jo a inspecionar-lhe a perna.
– Mamã – choramingou ele, uma palavra que não o ouvia usar há anos. Jo enrolou-se à volta dele,
beijou-o, disse-lhe que estava tudo bem. Um homem alto, de rosto decidido, aproximou-se de Jo e
anunciou que era o socorrista de serviço.
– Deixe-me ver o menino – pediu, e os berros de Rudi duplicaram de intensidade. Nunca fazia
nada pela metade, este rapaz.

Depois de Jo levar Rudi de táxi para a clínica de pequenos ferimentos no Hospital de Stroud,
dirigi-me à casa de banho com a vaga ideia de me recompor.
Passei a mão pela parede de tijolo do cubículo, consciente de que, por baixo de camadas de tinta,
o meu nome estava escrito ao lado do de Mandy e Claire, com mais algumas palavras fervorosas
sobre como nada alguma vez nos poderia separar. Irónico, na verdade, tendo em conta que, poucos
dias depois de termos consagrado a nossa indestrutibilidade à parede da casa de banho, elas tinham
decidido expulsar-me do seu grupinho de mesas e eu acabara a almoçar naquele mesmo cubículo.
Estava a chover lá fora, nesse dia, e não tinha outro sítio para onde ir. Lembro-me da vergonha que
senti quando o meu pacote de batatas fritas fez barulho e alguém – uma rapariga que nunca se
identificou – espreitou por baixo da porta para ver o que eu estava a fazer.
Puxei agora o autoclismo, pensando na pessoa não identificada que me observara de baixo do
capuz da gabardine momentos antes. Quem saberia sequer que eu estaria em Stroud hoje, além de
Eddie? Poderia a pessoa estar mesmo a olhar para mim? E, se assim fosse, porquê?
Vi se tinha mensagens antes de sair do cubículo, mas nada de Eddie. Ele não voltara a estar
online desde o dia em que nos tínhamos conhecido. Talvez Jo tivesse razão, pensei. Talvez devesse
escrever uma publicação no mural dele. Afinal de contas, tudo o que me impedia de o fazer era o
medo do que as pessoas haviam de pensar. Do que Eddie havia de pensar. E se, como dizia, estava
tão segura de que lhe acontecera alguma coisa má, essa seria a menor das minhas preocupações.
A ideia fez ricochete dentro de mim, como um pássaro preso numa sala.
Não!, pensei. Não é tão simples como isso. O motivo pelo qual ainda não escrevi no mural dele
é...
É o quê?
Tinha de escrever alguma coisa. Se Eddie estivesse mesmo moribundo numa valeta algures, se se
tivesse realmente afogado no estreito de Gibraltar, não fazia sentido estar com estes pruridos.
Abri a página de Facebook dele, respirei fundo e escrevi:
Alguém viu o Eddie recentemente? Não consigo entrar em contacto com ele e estou um pouco preocupada. Digam-me se têm
notícias dele. Obrigada.
E, antes que pudesse pensar muito no assunto, carreguei em «Publicar».
De súbito, a casa de banho encheu-se de sons que eu recordava bem. Conversas em vozes agudas,
bolsas de maquilhagem a abrir e fechar, escovas de rímel a entrar e a sair do frasco. Várias
mulheres falavam enquanto punham batom, perdidas de riso por continuarem a retocar a
maquilhagem nos espelhos da casa de banho da escola, tantos anos depois, e eu sorri mesmo sem
ter muita vontade.
Então ouvi:
– Viram a Sarah Harrington? – perguntou uma voz. – Que surpresa.
– Podes crer! – Era a voz de Mandy. – Foi muito corajosa por aparecer assim.
Murmúrios de assentimento.
– Emprestas-me o teu rímel? O meu está seco. – Torneiras a abrir e a fechar; o suspiro inútil do
secador de mãos que nunca funcionara como devia ser.
– Para ser honesta, fiquei um bocadinho desapontada de a ver – disse Claire. As outras mulheres
ficaram em silêncio. – Só queria passar uma tarde agradável, apoiar o Matt... ‘tão a ver?
‘Tão a ver? Eu também usara a expressão durante algum tempo, para me integrar.
– Sim – disse Mandy. – E claro que tem tanto direito de aqui estar como qualquer outra pessoa,
mas é... bom, é difícil. Pelo menos, para nós.
Claire concordou.
– Ela viu-me, mas fingiu não me ter reconhecido – continuou Mandy. – Por isso, fiz o mesmo. E tu
também devias, Claire, para não te enervares. – Era o tipo de liderança que a tornara popular nos
tempos de escola. Amanhã vamos ignorar a Claire. Vamos arranjar identificações falsas. Mas
para ti não, Sarah, pareces demasiado nova. – Tenho demasiado com que me preocupar neste
momento, não tenho espaço mental para a Sarah Harrington.
Mais murmúrios de assentimento.
– O Tommy Stenham está com bom ar – disse então Claire, em tom ligeiro. – Não acharam?
Oh, ela sempre fora mortífera a fazer isto! Introduzir outra pobre pessoa qualquer na conversa –
em tom inócuo mas com intenções assassinas – e esperar, ansiosa, que Mandy assumisse a
liderança.
– Muito bom ar, sim – concordou Mandy –, embora eu tenha ficado um bocadinho espantada com
a namorada dele. – Via-se que estava a conter o riso.
Tentei respirar sem fazer barulho.
– Oh, não é a namorada – disse Claire. – A namorada dele é advogada. O Matt é que viu uma
fotografia. Pelos vistos, é muito mais atraente do que aquela mulher com o miúdo que veio com ele.
– A surpresa, na verdade, é que ele tenha namorada – comentou Mandy.
Risos agudos. Mais torneiras. Mais toalhas. E depois começaram a recordar, em tom divertido
mas culpado, todas as coisas que os rapazes diziam de Tommy. Entre gargalhadas, todas
concordaram que era muito cruel. Agora lançadas, passaram ao comprimento e propriedade do
vestido de Jo, às proporções generosas do seu corpo, à cena embaraçosa que Rudi tinha feito, e eu
comecei a ferver. Ouvi-las falar sobre mim já fora mau, mas nada que eu não calculasse há anos que
elas seriam capazes de dizer. Mas Tommy? Jo? Não.
Assim, abri de rompante a porta do cubículo e encarei-as: esta fila de mulheres de trinta e sete
anos, com o cabelo cuidadosamente arranjado, perfume e roupas que nunca admitiriam ter
comprado especialmente para a ocasião. Todas se voltaram, de rímel na mão, com o batom a
reluzir. Todas olharam para mim, e eu olhei para elas.
E não disse nada. Sarah Mackey, oradora profissional, relações-públicas, especialista em
campanhas. Olhou em silêncio para as velhas amigas durante breves instantes e, depois, deu meia-
volta e fugiu.
CAPÍTULO 9

Dia oito: o dia em que parti

–E staErafoi uma
a melhor semana da minha vida – disse Eddie no dia em que nos separámos.
das coisas que adorava nele. Parecia dizer sempre aquilo que pensava; nada era
editado. Esta era uma experiência nova para mim, porque, quando regressava a Inglaterra, toda a
gente editava o que dizia ao pé de mim.
Com um sorriso, segurou-me no rosto com as mãos grandes e beijou-me outra vez. O meu coração
estava escancarado e a minha vida, a recomeçar. Nunca tivera tanta certeza de nada.
– Quero conhecer os teus pais – disse ele –, porque parecem muito simpáticos e porque foram
eles que te fizeram. Mas estou contente por não terem estado aqui estes dias.
– Concordo. – Passei-lhe o dedo pelo antebraço.
– Parece um ato extraordinário da providência... ali estava eu, sentado no jardim da aldeia, a
falar com uma ovelha, e tu entraste pela minha vida adentro como se estivesses nos bastidores, à
espera da tua deixa. E depois vieste comigo ao pub e... gostaste de mim. – Sorriu. – Pelo menos era
o que parecia.
– Muito. – Estiquei o braço e enfiei a mão no bolso dos calções dele. – Gostei muito de ti.
Lá fora, um melro cantou do seu ramo. Ambos nos virámos para ouvir.
– Última oportunidade – disse. Estendeu-me uma flor de espinheiro-alvar que crescia num vaso
no parapeito da janela. A primavera demorara a chegar e ainda havia flores a cobrir as árvores,
como natas batidas. – Última oportunidade. Queres que cancele as minhas férias?
– Não – respondi, com esforço. Rodei a pequena haste entre os dedos. – Vai e diverte-te. Envia-
me os dados do teu voo e estarei à tua espera em Gatwick de hoje a uma semana.
– Tens razão. – Suspirou. – Tenho de ir de férias e tenho de me divertir. Normalmente estaria
doido de alegria com a perspetiva de uma semana em Tarifa. Mas posso ligar-te, não posso? De
Espanha? Não quero saber do preço. Dá-me o teu número de telemóvel, e os números de todas as
pessoas com quem vais estar até eu poder ver-te outra vez. Podemos fazer uma videochamada pelo
Facebook. Ou pelo Skype. E falar.
Ri-me e franzi os olhos enquanto adicionava o meu número ao telemóvel dele, tentando ver
através das rachas do ecrã.
– Parece que passaste com um trator por cima deste telemóvel – disse-lhe, pousando a flor no
parapeito da janela.
– Deixa-me também o número fixo de casa dos teus pais – pediu ele. – E da casa onde vais ficar
em Londres. Como é que se chama o teu amigo? Tommy? Grava também a morada dele para eu te
mandar um postal. Mas vais primeiro a Leicester ver o teu avô, não é?
Acenei afirmativamente.
– Bom, grava também o número e a morada dele.
Ri-me.
– Acredita, não queres falar ao telefone com o meu avô.
Devolvi-lhe o telemóvel.
– Vou adicionar-te também no Facebook. – Abriu a aplicação e introduziu o meu nome. – Esta és
tu? De pé na praia?
– Sou eu.
– Muito californiana. – Olhou para mim e senti o coração dar um salto. – Oh, Sarah Mackey, és
encantadora.
Inclinou-se e beijou-me no ombro. Depois, na parte de dentro do cotovelo. Na base do pescoço.
Levantou-me o cabelo e beijou-me nas costas.
– Estou louco por ti – disse.
Fechei os olhos e inalei o cheiro dele. Da sua pele, das suas roupas, do sabonete que usáramos no
duche. Não conseguia imaginar sobreviver sem isto durante sete dias. E, por mais que tivesse
amado Reuben, nunca encarara uma separação dele como uma questão de sobrevivência.
– Sinto o mesmo. – Apertei-o com força. – Acho que sabes disso. Vou ter muitas saudades tuas.
Muitas.
– E eu tuas. – Beijou-me de novo, afastando-me o cabelo do rosto. – Ouve, quando voltar, quero
apresentar-te aos meus amigos e à minha mãe.
– Ótimo.
– E quero conhecer os teus pais, e os teus amigos ingleses, e o teu avô aterrorizador, se ele
sempre vier passar cá alguns dias.
– Claro que sim.
– E logo veremos o que havemos de fazer daí para a frente, mas vamos estar juntos, seja como
for, seja onde for.
– Sim. Eu, tu e a Ratinha. – Enfiei a mão no bolso dele e senti o pequeno porta-chaves de
madeira.
Ele fez uma pausa e, depois, disse:
– Fica com ela. – Tirou as chaves do bolso. – Guarda-a em segurança até eu voltar. Tenho sempre
medo de a perder na praia. Significa muito para mim.
– Não! Não posso ficar com ela! Não fiques zangado...
– Fica com ela – insistiu. – Assim, sabemos que nos voltaremos a ver.
Colocou a Ratinha na minha mão. Olhei para os olhinhos pretos e depois para Eddie.
– Está bem. – Fechei os dedos sobre ela. – Tens a certeza?
– Absoluta.
– Vou cuidar bem dela.
Beijámo-nos durante muito tempo, ele encostado ao pilar das escadas em caracol, eu apertada
contra o seu peito, a Ratinha na minha mão. Concordámos que seria melhor ele não se ir despedir
de mim à porta. Parecia demasiado definitivo, como uma separação a sério.
– Ligo-te mais logo – assegurou ele. – Não sei bem a que horas, mas ligo-te. Prometo.
Sorri. Era querido da parte dele reconhecer esse medo antigo de não voltar a ter notícias de
alguém. Mas eu sabia que ele me ia ligar. Sabia que faria tudo o que dizia que ia fazer.
– Adeus – disse, beijando-me uma última vez. Peguei na flor e desci as escadas.
Ao fundo, olhei para ele.
– Não fiques a ver-me sair – pedi. – Faz de conta que vou só comprar leite ou coisa do género.
Ele sorriu.
– Está bem. Até já, Sarah Mackey. Vemo-nos daqui a nada, quando voltares com o leite ou coisa
do género.
Ambos parámos um instante a olhar um para o outro. Ri-me, sem outro motivo senão pura
felicidade. Depois pensei: Diz. Diz, mesmo que seja uma loucura, mesmo que só nos conheçamos
há uma semana. Diz!
E ele disse. Encostou-se ao pilar, cruzou os braços e disse:
– Sarah, acho que me apaixonei por ti. É demasiado?
Soltei a respiração.
– Não. É perfeito.
Ambos sorrimos. Fora ultrapassado o ponto do qual não havia retorno possível.
Depois do que me pareceu ser muito, muito tempo, soprei-lhe um beijo e saí para a manhã
luminosa.
CAPÍTULO 10

Meu amor,

Hoje tenho sentido muito a tua falta, minha irmãzinha.


Tenho saudades do teu riso maroto e daqueles rebuçados de fruta que costumavas comprar
com a tua semanada. Tenho saudades daquele teclado que tinhas quando eras pequena, o que
tocava aquela música irritante quando carregavas no botão amarelo. Fingias que eras tu que
estavas a tocar e rias-te que nem uma perdida, convencida de que me enganavas.
Tenho saudades de encontrar provas de que tinhas andado a remexer no meu quarto na minha
ausência. Tenho saudades de como espalhavas a compota mesmo até à beira da côdea do pão,
para não haver dentadas sem doce.
Tenho saudades do som que fazias a dormir. Às vezes, fazia uma pausa no meu calendário
atarefado de angústia existencial adolescente e punha-me à escuta à tua porta. A respiração
suave. As estrelas no teto. O sussurro do edredão com a nave espacial, que insistiras em
comprar apesar de o empregado da loja dizer que era para rapazes.
Oh, meu Ouriço-Cacheiro. Tenho tantas saudades tuas.
As coisas não estão muito bem comigo, neste momento. Não sei o que fazer – sinto que estou
a enlouquecer.
Esperemos que não, que dizes?
Seja como for, amo-te. Sempre. Desculpa não ter encontrado nada mais alegre para dizer.

Beijos, Eu
CAPÍTULO 11

«S eGloucestershire»,
não conseguir contactar-me pelo telemóvel, é muito provável que esteja na oficina em
diz na secção «Contactos» da página de Eddie.
«A vida por aquelas bandas é bastante simples: tenho um fogão a lenha, uma chaleira
temperamental, uma secretária e pouco mais, no que diz respeito a luxos. Mas tenho telefone, para o
caso de ser atacado por ursos ou bandidos. Pode tentar apanhar-me no número 01285...»
Selecionei o número. «Marcar?» perguntou o meu telemóvel.
– Sarah? – Era Jo, na cozinha. – Podes vir ver esta sopa?
– Vou já! – Carreguei em «Marcar».
O telefone começou a tocar e a adrenalina explodiu dentro de mim, pressionando a pele como gás
num balão demasiado cheio. Encostei-me à parede, na esperança de que ele não atendesse, na
esperança de que atendesse. Sem saber o que diria se falássemos, sem saber o que faria se não
falássemos.
– Olá, fala Eddie David, carpinteiro. Lamento não estar aqui para atender. Deixe mensagem e
entrarei em contacto consigo o mais depressa possível, ou experimente ligar-me para o telemóvel.
Adeus!
Desliguei. Puxei o autoclismo. Perguntei a mim própria quando é que isto acabaria.

Há dezanove anos que passava o mês de junho em Inglaterra. Normalmente, ficava três semanas
em Gloucestershire, com os meus pais, e uma em Londres, com Tommy. Londres era suficientemente
perto de Gloucestershire para que isto resultasse bem. Desta vez, contudo, estava a ser muito
diferente. A imobilização súbita e total do meu avô impedira o regresso dos meus pais. Presos em
Leicester, a três horas de caminho, dividiam o seu tempo entre cuidar dele, tentar não o matar e
procurar uma pessoa para cuidar dele que não o tentasse matar. O resto do tempo era passado ao
telefone comigo.
– Sentimo-nos tão mal por tu estares aí e nós aqui – dissera-me a minha mãe, infeliz. – Não podes
mesmo ficar mais alguns dias?
Eu tinha acedido a ficar mais duas semanas e adiara o meu voo de regresso para o dia 12 de
julho. Prometera a Reuben que começaria a trabalhar de casa assim que as férias acabassem e, para
o provar, aceitara um convite para falar numa conferência de cuidados paliativos organizada pelo
nosso único parceiro britânico.
Contudo, até voltar ao trabalho, estava instalada em Londres. A perspetiva de regressar à casa
vazia dos meus pais – com a casa de Eddie a apenas um quilómetro e meio – era demasiado
desanimadora. Zoe estivera quase sempre fora, por isso era só eu e Tommy; precisamente aquilo de
que precisava.
Agora, porém, a mulher da casa regressara, de uma conferência comunitária sobre legislação
tecnológica. Apesar de cansada, mantinha a aparência impecável enquanto, de pé ao lado do fogão
numa camisa de seda sem mangas, mexia o tacho de massa chinesa que eu fizera para lhe dar as
boas-vindas.
À porta, algo desconfortável, observei-a. Era uma daquelas pessoas que nunca precisavam de
avental, mesmo quando vestia seda. Uma mulher de precisão e economia, Zoe Markham, não só em
discurso mas também em corpo. Ocupava apenas uma fina coluna de espaço que raramente achava
necessário expandir com gestos ou som. Na verdade, se não fosse o comportamento dela com
Tommy no primeiro ano da relação, eu nem sequer juraria que pertencíamos à mesma espécie. Ao
princípio, ela parecera-me reconfortantemente humana; não conseguia tirar as mãos de cima dele,
estava sempre a obrigá-lo a tirar selfies sentimentais, e até contratara um fotógrafo profissional
para os retratar enquanto treinavam juntos.
– Ah, Sarah – disse ela agora, erguendo os olhos. – Salvei o jantar. – Ofereceu-me um sorriso
frio.
Nunca se sabe o que as pessoas fazem na sua privacidade, pensei, mas imaginar Zoe escondida
numa casa de banho a ligar para a oficina de um homem que a ignorava há três semanas deu-me
vontade de rir.
Tommy, que não fazia ideia do motivo do meu riso, mas que estava nervoso como um gato esta
noite, riu-se também.
Zoe manteve-se imóvel como mármore enquanto eu servia, observando-me com os olhos
cinzentos. Era uma das coisas que mais me incomodavam nela. A escassez de palavras, esta maldita
vigilância incessante. (Tommy dissera uma vez que era essa qualidade que fazia dela uma advogada
tão bem-sucedida. «Não deixa passar nada», dissera-me ele, como se fosse uma característica
muito valorizada no mundo real.)
– Ouvi dizer que estás a definhar por causa de um homem – disse ela.
– Não me parece que definhar seja a melhor palavra – interveio Jo rapidamente. – Está apenas...
confusa.
Zoe olhou para Jo mas não disse nada.
Eu ficara surpreendida por ver Jo esta noite. Ela não gostava de Zoe e, aparentemente, nunca lhe
tinha ocorrido tentar disfarçar a antipatia. (Eu também não adorava Zoe, mas tinha feito um acordo
comigo mesma para continuar a tentar. Zoe perdera os pais no incêndio de King’s Cross em 1987 e,
quando uma pessoa tinha uma desculpa dessas, era preciso dar-lhe um desconto.)
Zoe prendeu uma madeixa de cabelo loiro atrás da orelha.
– Então o que é que se passa?
– Provavelmente o Tommy já te contou o essencial – respondi. – Passámos uma semana juntos.
Foi... bom, foi especial. Ele foi de férias, disse que me ligava antes de o avião descolar, não ligou,
e nunca mais soube nada dele. Estou convencida de que lhe aconteceu alguma coisa.
Ela franziu levemente a testa.
– Tipo o quê?
Sorri debilmente.
– Tenho estado a dar com o Tommy e a Jo em doidos com as minhas teorias. Provavelmente não
vale a pena repetir-me.
– De forma alguma – disse Tommy. – Estamos tão perplexos como tu, Harrington.
E Jo, que estava tudo menos perplexa mas que não conseguia ficar do lado de Zoe em nada,
concordou.
– É um mistério – disse. – A Sarah fez uma publicação na página de Facebook dele a perguntar se
alguém tinha notícias, mas ninguém respondeu. Não aparece no WhatsApp nem no Messenger há
várias semanas e a sua rede social está silenciosa.
– Redes sociais. – Zoe sorriu. – É plural. – Com um movimento hábil do pulso tirou do caldo um
caracol perfeito de massa. Mastigou durante alguns instantes, com ar pensativo. – Esquece-o –
aconselhou, por fim, em tom decidido. – Parece-me um tipo fraco. Mereces melhor do que um
homem fraco, Sarah.
A conversa virou-se então para os bombardeamentos na Turquia, mas, poucos minutos depois,
apercebi-me de que estava novamente a falar em Eddie. O que se passa comigo?, pensei,
desesperada. Em que é que me estou a tornar? Fizesse o que fizesse, por mais séria que fosse a
situação à minha volta, só parecia capaz de me concentrar numa coisa.
Talvez tenha de o esquecer, era o pensamento que insistia em reaparecer na minha mente. Talvez
tenha de aceitar que ele simplesmente mudou de ideias. Esse pensamento deixava-me imobilizada,
dormente e incrédula. Contudo, tinham passado três semanas desde a nossa despedida e, nesse
período, eu não soubera nada dele. E ninguém respondera – ninguém parecia sequer ter lido – o
meu pedido de informação no mural de Facebook de Eddie.
– Perdemo-la outra vez – disse Zoe.
Corei.
– Não, não, estava só a pensar na Turquia.
– Já todos amámos e perdemos alguém – disse Zoe, secamente. – Pelo menos o teu índice de
massa corporal baixou.
– Oh! – Fui apanhada de surpresa. – Achas?
Não era impossível. Andava sem apetite nenhum e todos os dias saía para correr, unicamente
porque isso me deixava com uma dor diferente no peito, com a qual sabia lidar.
– Consigo olhar para qualquer mulher do mundo e dizer-te o IMC dela – sorriu Zoe.
Não me atrevi a olhar para Jo, mas tinha a certeza de que «Consigo olhar para qualquer mulher
do mundo e dizer-te o IMC dela» era uma frase que surgiria em conversas futuras.
– É um dos benefícios dos desgostos amorosos – continuou Zoe. – Emagrecer, tonificar. Estás
fantástica! – Cruzou as pernas perfeitamente magras e tonificadas e pescou um camarão da tigela.
Quando acabei de comer, estava exausta. Demasiado exausta para desembrulhar os chocolates
artesanais que comprara com intenção de fingir que eu própria os fizera. Demasiado exausta, até,
para tentar disfarçar o facto de estar a abrir o Facebook de Eddie enquanto fazia café.
Assim, estava a olhar distraidamente para o mural dele há já algum tempo quando percebi que
alguém respondera finalmente ao meu pedido de informação. Duas pessoas, na verdade. Li as
publicações uma, duas, três vezes, depois atravessei a cozinha e pus o telemóvel à frente dos olhos
de Tommy.
Tommy leu também algumas vezes antes de passar o telefone a Zoe, que as leu uma vez, não disse
nada e estendeu o telefone a Jo.
Os meus pensamentos estavam num turbilhão.
– Bem – disse Tommy –, parece que te devemos um pedido de desculpa, Harrington. – Olhou para
Zoe, que provavelmente nunca pedira desculpa a ninguém em toda a sua vida.
Calor. Estava cheia de calor. Despi o casaco e deixei-o cair no chão. Senti a cabeça latejar
quando me inclinei para o apanhar. Estava demasiado calor.
– Raios – disse Jo, erguendo os olhos do ecrã. – Se calhar tinhas razão.
– Oh, vá lá! – riu-se Zoe. – Isto não quer dizer nada!
Mas, pela primeira vez desde que eu me lembrava, Tommy contradisse-a.
– Não concordo – declarou ele. – Acho que isto muda tudo.
Nessa tarde, alguém cujo nome eu não conhecia, um Alan qualquer coisa, respondera à minha
publicação:

Entrei no perfil dele pelo mesmo motivo e vi a sua publicação, Sarah. Ele está desaparecido em combate desde que cancelou as
nossas férias há duas semanas. Alguém lhe deu mais alguma informação? Diga-me se souber alguma coisa.

E depois outra pessoa, um Martin, escrevera:

Estava a pensar no mesmo. Há várias semanas que ele não aparece nos nossos jogos de futebol. É verdade que é um tipo um
bocado inconstante, mas isto não é normal. E lamento dizer que esta noite levámos uma tareia, 8-1. Um episódio vergonhoso na
nossa longa e magnífica história. Precisamos dele.

Segundos depois, o mesmo tipo, Martin, publicara uma fotografia de Eddie e escrevera:

Encontrem este homem. #OndeestaoWally

E finalmente:

É uma estupidez não se poder colocar pontuação em hashtags.

Olhei para a fotografia de Eddie, onde ele tinha uma cerveja na mão.
– Onde estás? – murmurei, horrorizada. – O que aconteceu?
No silêncio que se seguiu, o meu telefone tocou.
Todos olharam para mim.
Atendi. Era um número privado.
– Estou?
Depois de um longo silêncio – um silêncio humano –, a chamada caiu.
– Desligaram – informei.
– Parece-me que tinhas razão – disse Jo, após uma pausa. – Passa-se aqui qualquer coisa muito
estranha.
CAPÍTULO 12

Dia dois: a manhã seguinte

E u devia estar com jet-lag. Profundamente exausta e provavelmente ressacada; sem vontade
nenhuma de acordar antes do meio-dia, pelo menos. Em vez disso, acordei às sete da manhã e
sentia-me capaz de conquistar o mundo.
Ele estava ali. A dormir ao meu lado: Eddie David. Uma mão estendida, pousada na minha
barriga. Estava a sonhar. A mão sobre o meu umbigo estremecia de vez em quando, como uma folha
na brisa.
As cortinas ondulavam à medida que a manhã entrava silenciosamente pela janela aberta. Inspirei
uma grande golfada de ar, bebida diretamente do vale como água de uma nascente, e olhei em volta.
A Ratinha estava em cima de um antigo baú, com as chaves de Eddie.
Mal conhecia este homem, claro. Conhecera-o há menos de vinte e quatro horas. Não sabia como
ele gostava dos ovos, o que cantava no duche, se sabia tocar guitarra ou falar italiano ou desenhar.
Não sabia de que bandas gostara em adolescente nem como pensava votar no referendo.
Mal conhecia Eddie David e, apesar disso, sentia que o conhecia há anos. Parecia que ele
também tinha estado lá quando eu corria pelos campos com Tommy e Hannah e a sua amiga Alex, a
construir represas e sonhos. Explorar o corpo dele esta noite tinha sido como regressar a esse vale;
tudo era familiar e certo e exatamente como eu o deixara da última vez.
Antes disto, Reuben era o único homem com quem eu dormira. A nossa primeira vez tinha sido
confusa, breve e esperançosa; a união de duas almas perdidas, num quarto de hóspedes de alguém,
com o trovão do ar condicionado e uma banda sonora cuidadosamente planeada no leitor de CD. E
significara tudo para nós, na altura, mas nos anos que se seguiram sorríamos tristemente ao recordar
como fora mau. Esta noite, porém, não houvera qualquer embaraço. Nada de manipulações
atrapalhadas nem perguntas tímidas. Mordi o lábio e sorri envergonhada, olhando para o rosto
adormecido de Eddie.
Ele fungou, espreguiçou-se e rebolou para mais perto de mim. Não acordou. Simplesmente
esticou o braço e pousou-o sobre mim. Fechei os olhos, memorizando a sensação da pele dele na
minha, o peso suave da sua mão.
O mundo e os seus problemas insolúveis pareciam-me muito distantes.
Voltei a adormecer.

Quando acordei, passava do meio-dia e havia no ar o cheiro a pão quente.


Enfiei uma camisola de Eddie e saí silenciosamente do quarto, para a divisão ampla onde ele
vivia. A luz entrava pelas claraboias e pelas janelas empoeiradas, recortada e dividida por uma
rede de traves antigas, cheias de rebites e buracos e ganchos ferrugentos.
Eddie andava de um lado para o outro na cozinha aberta, a falar ao telefone com alguém. Finas
partículas de farinha pairavam sobre a bancada que ele estava a limpar com a mão livre, ondulando
numa nuvem cintilante sob a luz.
– Está bem – disse ele. – Está bem, Derek, obrigado. Igualmente. Falamos depois, ok? Adeus.
Após um breve instante de silêncio, ligou um rádio escondido atrás de umas garrafas de vidro no
parapeito da janela. Ouvi a parte final de «Son of a Preacher Man», de Dusty Springfield.
O telemóvel dele voltou a tocar.
– Olá, mãe. – Passou um pano por água e esfregou a bancada. – Oh, ela já chegou? Ótimo. Ainda
bem. Sim, eu... – Escutou, encostado à bancada. – Parece-me bem. Bom, diverte-te, está bem?
Passo por aí quando for para o aeroporto, se não falarmos antes. – Outra pausa. – Claro, mãe. Sim.
Adeus.
Pousou o telefone e espreitou para o forno.
– Olá – disse eu, por fim.
– Oh! Olá! – Eddie virou-se. – Estou a fazer pão! – Ofereceu-me um sorriso radiante e perguntei
a mim própria se isto não seria apenas um sonho psicadélico qualquer, uma tentativa desesperada
de fuga de um quotidiano de papéis de divórcio e procura de casa. Este homem esfuziante e
atraente, que aparecera numa parte do mundo que eu tanto temia, e pintara tudo de cores vivas.
Mas não era um sonho; não podia ser, porque a comoção no meu peito era demasiado forte. De
alguma forma, isto era real. (Beijar-nos-íamos na boca? Abraçar-nos-íamos, como se nos
conhecêssemos há anos?)
A cozinha estava separada do resto do espaço por um balcão, coberto por uma tábua bonita, larga
e polida. Sentei-me num dos bancos e Eddie sorriu, pôs o pano ao ombro e dirigiu-se a mim.
Inclinou-se sobre o balcão e respondeu à minha dúvida com um beijo decidido na boca.
– Gosto de te ver com a minha camisola – declarou.
Olhei para baixo. Era cinzenta, com os punhos coçados. Cheirava a ele.
Dusty Springfield deu lugar a Roy Orbinson.
– Estou muito impressionada por teres feito pão – afirmei.
– Cheira maravilhosamente. – Depois, franzi a testa. – Oh, espera lá. És uma daquelas pessoas
assustadoras com centenas de competências?
– Sou uma pessoa que consegue fazer muitas coisas mal, mas com grande entusiasmo –
respondeu. – Podes chamar-lhe competências, se quiseres. Os meus amigos chamam-lhe outras
coisas. – Puxou um banco do outro lado e sentou-se diante de mim, empurrando o sumo de laranja
na minha direção.
Senti os seus joelhos encostados aos meus.
– Fala-me lá de algumas dessas não-competências – pedi.
Ele riu-se.
– Hum... toco banjo. E ukelele. E estou a aprender mandolim, que é mais difícil do que eu
pensava. Oh, e aprendi há pouco tempo a arremessar um machado. Isso foi fantástico. – Fez os
gestos, acompanhados de um som gutural.
Sorri.
– E... bom, às vezes desafio-me a fazer coisas com pedras de calcário que encontro no bosque,
mas sou particularmente mau. E faço pão com bastante frequência, embora, mais uma vez, sem ter
grande jeito para isso.
Desatei a rir.
– Mais alguma coisa?
Ele passou o dedo pelas costas da minha mão.
– Não cries uma grande fantasia na tua cabeça de que sou um sobredotado, porque não é verdade.
Um alarme tocou e ele levantou-se para ver o pão. A noção de lugar que Eddie me transmitia era
tão forte, pensei, enquanto o imaginava a percorrer os bosques locais em busca de coisas para
esculpir. Era como se fizesse parte deste vale, como um carvalho. Partes dele voavam para o
mundo exterior na mudança da estação ou com o mau tempo, mas o seu âmago continuava na terra.
Nesta terra, neste vale.
Ocorreu-me subitamente que nunca me sentia assim em Los Angeles. Adorava a cidade: era a
minha casa. Adorava o calor, a escala grandiosa, a ambição, a sensação de anonimato que me
transmitia. Mas eu não era a areia dos seus desertos nem as ondas do seu oceano.
– O pão precisa de cozer mais um bocadinho – disse Eddie, voltando a sentar-se. – Em que estás
a pensar?
– Estava a pensar em ti como uma árvore e em mim como um deserto.
Ele sorriu.
– Isso não nos torna muito compatíveis.
– Não era dessa maneira. Estava a... Oh, ignora-me. Estava só a ser esquisita.
– Que tipo de árvore era eu? – perguntou.
– Pensei num carvalho. Um carvalho velho.
– Um carvalho é sempre bom. E faço quarenta anos em setembro, por isso velho também é
razoável.
– E estava a pensar em como me pareces enraizado. Embora digas que trabalhas bastante em
Londres, é como se... não sei. Como se fizesses parte da paisagem.
Eddie olhou para a janela. Do lado de fora, a alfazema ondulava sob a brisa.
– Nunca tinha pensado nisso dessa maneira – admitiu. – Mas tens razão. Por mais vezes que vá a
Londres montar uma cozinha, jogar futebol, estar com amigos... e dou sempre por mim a pensar
adoro esta cidade... volto sempre para o vale. Não posso deixar de voltar. Tens a mesma sensação
quando deixas Los Angeles?
– Bom, não. Não completamente. Mas é o sítio onde escolhi estar.
– Certo. – Havia uma leve desilusão no seu tom de voz.
– Mas é engraçado – continuei. – Ao ouvir-te falar sobre todas essas coisas que fazes, os teus
passatempos, apercebi-me de como tenho saudades de tudo isso. Em Los Angeles, podemos ter
acesso ao que quisermos, seja a que horas for, entregue à porta de casa ou descarregado da
Internet... quer dizer, já se fala em entregas por drones. Não há limites para o que é possível. Mas,
apesar de tudo isso, não me lembro da última vez que fiz qualquer coisa, tirando a cama. Raramente
faço exercício, não toco instrumento nenhum, não faço cursos.
Pareço tão insípida. Tão bidimensional.
Eddie fitou-me com ar pensativo.
– Mas que interessam os passatempos, se passas o teu tempo num trabalho que adoras? – Enrolou
uma madeixa do meu cabelo nos dedos.
– Hum – disse eu. – Gosto realmente do que faço, mas é... um desafio. Constante. Mesmo quando
venho de férias ao Reino Unido, estou a trabalhar.
Eddie sorriu.
– Opções – disse eu, por fim. – Vais recordar-me de que tenho escolha.
Ele encolheu os ombros.
– Ouve, não há muitas pessoas que construam uma instituição de solidariedade para crianças do
zero. Mas toda a gente precisa de descansar. De tempo para não pensar em nada. Mantém-nos
humanos.
Tinha razão, claro. Eu raramente delegava. Mantinha o trabalho perto de mim, envolvia-me nele;
era a única abordagem que conhecia. Porém, apesar de toda essa atividade, de todo esse
dinamismo, estaria eu realmente lá ? Estaria realmente presente na minha vida como Eddie parecia
estar na dele?
Isto não é conversa para ter com um homem que conheço há menos de vinte e quatro horas,
disse a mim própria, mas parecia incapaz de parar. Nunca tivera esta conversa com ninguém, nem
mesmo comigo. Era como se tivesse aberto a torneira e ela me explodisse nas mãos.
– Talvez não tenha a ver com o facto de viver na cidade, nem sequer com o trabalho em si –
continuei. – Talvez seja de mim. Às vezes olho para as outras pessoas e pergunto-me como
arranjarão tempo para fazer tudo o que parecem fazer além do trabalho. – Puxei uma cutícula. –
Enquanto tu... Oh, ignora-me. Estou a dizer disparates. Mas parece-me muito natural estar aqui... E
isso é confuso, porque normalmente, quando estou cá, mal posso esperar por me ir embora.
– Porquê?
– Oh, conto-te noutra ocasião.
– Claro. E eu ensino-te a tocar banjo. Sou péssimo, por isso estarás em boa companhia. – Virou a
mão para cima e pousou a minha nela. – Não me interessa se tens passatempos ou não. Não me
interessa o quanto trabalhas. Só sei que era capaz de passar o dia a falar contigo.
Olhei para ele, deslumbrada.
– És fantástico – disse-lhe baixinho. – Só para que saibas.
Olhámos um para o outro e Eddie inclinou-se e beijou-me. Um beijo longo, lento e ardente, como
uma memória despertada por música.

– Queres ficar por aqui? – perguntou ele depois. – Se não tiveres nada que fazer? Mostro-te a
minha oficina, lá em baixo, e podes esculpir um ratinho para ti. Ou podemos ficar só sentados aos
beijos. Ou podemos tentar apanhar o Steve, que é um esquilo maldito que vive no meu jardim. –
Pousou as mãos nas minhas pernas. – É porque... Oh, que se lixe. Não quero que te vás embora.
– Está bem – respondi, lentamente, com um sorriso. – Parece-me maravilhoso. Mas a tua mãe?...
Pensei que estavas preocupado com ela.
– E estou – afirmou ele. – Mas... bom, ela não tem colapsos explosivos, é mais um declínio
gradual. A minha tia veio ficar com ela, porque eu vou de férias na quinta-feira. Vai mantê-la
debaixo de olho.
– Tens a certeza? Não me importo se precisares de a ir ver.
– Tenho a certeza. Ela ligou-me há bocado e disse que iam as duas ao centro de jardinagem.
Pareceu-me animada. Confia em mim – acrescentou, quando fiz um ar desconfiado. – Se a situação
estivesse sequer perto de ser grave, eu estaria lá. Já conheço os sinais.
Imaginei Eddie a observar a mãe, semana após semana, como um pescador a estudar o céu.
– Está bem – acedi. – Bom, nesse caso acho que é melhor falares-me sobre o Steve.
Ele riu-se e sacudiu-me uma migalha, ou talvez um inseto, do cabelo.
– O Steve aterroriza-me, a mim e a qualquer espécie de vida selvagem que tente instalar-se por
aqui. Não sei o que se passa com ele; parece passar o tempo quase todo na relva, a espiar-me, e
não em cima das árvores, onde devia estar. Só se levanta de cima do traseiro quando eu compro um
comedouro de pássaros. Não importa onde o pendure, ele consegue sempre entrar e comer tudo.
Desatei a rir.
– Parece-me um animal fantástico.
– E é. Gosto muito dele, mas também antipatizo solenemente com ele. Tenho uma bisnaga de água
de calibre militar... podemos tentar acertar-lhe mais logo, se quiseres.
Sorri. Um dia inteiro com este homem e o seu esquilo, neste cantinho escondido das Cotswolds,
que me recordava apenas as melhores partes da minha infância, era uma perspetiva deliciosa.
Olhei em volta, para os objetos da vida deste homem. Livros, mapas, banquinhos de madeira
feitos à mão. Uma taça de vidro cheia de moedas e chaves, uma velha máquina fotográfica
Rolleiflex. Em cima de uma estante, uma coleção de troféus de futebol extravagantes.
Dirigi-me a eles. The Elms, Battersea Monday, dizia o mais próximo de mim. Old Robsonians –
Campeões, 1.ª Divisão.
– São teus?
Eddie aproximou-se.
– São. – Pegou no mais recente e passou o dedo moreno pela parte de cima, fazendo cair um
pequeno rolo de pó. – Jogo numa equipa em Londres. Pode parecer estranho, tendo em conta que
vivo aqui, mas como vou lá muitas vezes montar cozinhas e... bem, tem sido difícil ver-me livre
deles.
– Porquê?
– Entrei para a equipa há vários anos. Quando estava a pensar viver mesmo em Londres. São... –
Riu-se. – São um grupo engraçado. Quando regressei a Gloucestershire, não consegui aposentar-me.
Ninguém consegue. Todos gostamos demasiado daquilo.
Sorri e olhei novamente para a coleção de troféus. Um deles tinha mais de vinte anos. Gostei de
saber que ele era capaz de manter amizades tanto tempo.
Depois, exclamei baixinho:
– Não! – Tirei da estante um livro, Pássaros, da coleção Collins Gem, exatamente a mesma
edição que eu tinha em criança. Passara horas debruçada sobre as suas páginas. Sentada no tronco
bifurcado da pereira no jardim, na esperança de que, se me deixasse ficar tempo suficiente, os
pássaros me viriam fazer companhia.
– Também tinha este livro! – disse a Eddie. – Sabia todos os pássaros de cor!
– A sério? Eu adorava este livro. – Abriu-o numa página perto do meio e tapou o nome do
pássaro com a mão. – Qual é este?
O pássaro tinha peito dourado e uma máscara de assaltante nos olhos.
– Oh, céus... Não, espera. Picanço-azul! Picanço-azul euro-asiático!
Ele mostrou-me outro.
– Alvéola!
– Valha-me Deus – disse Eddie. – És a mulher dos meus sonhos.
– Também tinha o livro das flores silvestres. E o das borboletas e traças. Era uma naturalista
precoce.
Ele arrumou o livro.
– Posso fazer-te uma pergunta, Sarah?
– Claro. – Adorava ouvi-lo dizer o meu nome.
– Porque vives numa cidade, se gostas tanto da natureza?
Fiz uma pausa.
– Simplesmente não posso viver no campo – respondi, por fim. Algo na minha expressão lhe deve
ter dito para não insistir, porque, depois de olhar para mim alguns segundos, virou costas e foi tirar
o pão do forno.
– Eu tinha o livro das árvores. – Olhou em volta, à procura de uma pega, e acabou por usar o
pano que tinha ao ombro. – Foi o meu pai que mo comprou. Na verdade, foi ele que me apresentou
à carpintaria, embora nunca lhe tivesse passado pela cabeça que eu faria carreira disso. No outono,
costumava levar-me quando ia buscar lenha. E deixava-me rachar alguns dos troncos maiores.
Fez uma pausa e sorriu.
– Era o cheiro. Ao princípio, apaixonei-me pelo cheiro, mas depois fiquei fascinado ao perceber
como era fácil transformar um tronco de ar grosseiro em algo completamente diferente. Num
inverno, comecei a lascar pedacinhos de lenha para fazer bonecos. Depois, fiz um suporte para o
papel higiénico e a marreta mais mal feita da História.
Riu-se.
– E depois a Ratinha. – Abriu o forno e tirou o tabuleiro. – O meu orgulho. O meu pai não ficou
muito impressionado, mas a minha mãe disse que era o ratinho mais perfeito que alguma vez vira.
Pôs um pão redondo e perfumado em cima de uma rede e fechou o forno.
– Ele deixou-nos quando eu tinha nove anos. O meu pai. Tem outra família na fronteira da
Escócia, algures a norte de Carlisle.
– Oh... – Sentei-me. – Deve ter sido difícil.
Ele encolheu os ombros.
– Foi há muito tempo.
Um silêncio confortável instalou-se na cozinha enquanto ele ia ao frigorífico buscar manteiga,
mel e o que parecia ser um frasco de compota caseira. Passou-me um prato com uma racha
(«Desculpa!») e uma faca.
– A tua mãe sabe que eu estou aqui? – perguntei, enquanto ele começava a cortar o pão.
– Ai! – Tirou a mão do pão e sacudiu-a. – Por que raio sou tão guloso? Está demasiado quente
para comer.
Ri-me. Se ele não se tivesse atirado ao pão, eu tê-lo-ia feito.
– Não – disse, desta vez protegendo a mão com o pano. – A minha mãe não sabe que estás aqui.
Não quero que pense que o seu único filho é um velho bode no cio e em época de acasalamento.
– Calculo que não.
– Talvez, se eu me portar bem, possamos acasalar outra vez – sugeriu, atirando uma fatia de pão a
escaldar para o meu prato.
– Claro – respondi, enfiando a faca na manteiga, que estava cheia de migalhas. Reuben, que
gostava de servir a manteiga à hipster, espalhada num pedaço de ardósia ou noutra pedra ridícula
qualquer, teria detestado.
– Acasalas muito bem – acrescentei, e não corei.
Eddie corou.
– Sim?
E, porque me pareceu não ter outra opção, levantei-me, contornei o balcão de madeira, abracei-o
e beijei-o com força na boca.
– Sim – confirmei. – O pão está quente de mais até para mim. Vamos voltar para a cama.
CAPÍTULO 13

Caro Alan,

Peço desculpa por estar a mandar esta mensagem sem nos conhecermos.

Respondeu à minha publicação no mural de Facebook de Eddie Davis, há pouco. Estou um bocadinho preocupada e queria
partilhar consigo a pouca informação de que disponho.

Antes das suas férias com o Eddie, passei uma semana com ele em Sapperton. Deixei-o na quinta-feira, dia 9 de junho, a fazer
as malas, e ele disse que me ligava do aeroporto.

Não voltei a ter notícias dele. Depois de o tentar contactar por várias vezes, desisti, partindo do princípio de que ele mudara de
ideias. No entanto, nunca fiquei completamente convencida disso e, quando vi a sua resposta, tive a certeza de que não estava
enganada. Envio-lhe o meu número de telemóvel. Ficava muito grata se quisesse partilhar comigo qualquer informação ou ideia
que possa ter. Não sou uma perseguidora louca! Só quero saber se ele está bem.

Cumprimentos,
Sarah Mackey

A s onze deram silenciosamente lugar à meia-noite. O meu telemóvel zumbiu e saltei para ele,
mas era apenas Jo, para dizer que chegara bem a casa. Não tinha resposta alguma de Alan.
Voltei a deitar-me na cama com o coração apertado no peito. Doía-me mesmo. Fisicamente. Por
que raio ninguém nos dizia que o coração partido não era apenas uma metáfora?
A meia-noite transformou-se em uma, depois duas, três. Imaginei Tommy e Zoe na sua cama
gigante ao fundo do corredor e perguntei-me se dormiriam abraçados. Lembrei-me do corpo de
Eddie enroscado no meu e senti uma saudade tão forte que parecia trespassar-me a pele. Depois,
passei um bocado muito revoltada comigo mesma porque, em Istambul, havia corpos em sacos de
cadáver enquanto Eddie era – muito provavelmente – apenas um homem que não me ligara.
Às quatro da manhã, depois de dar por mim online à procura de notícias sobre mortes na zona de
Eddie, saí silenciosamente do apartamento de Tommy. A alvorada começava a deixar marcas
cinzentas no céu escuro, e um varredor de ruas solitário estava já a trabalhar no passeio em frente
ao elegante prédio georgiano de Zoe. A cidade só estaria plenamente acordada daí a duas horas,
mas eu não aguentava nem mais um instante do silêncio sufocante e do turbilhão de teorias
catastróficas, cada uma mais terrível do que a anterior.
Em Holland Park Avenue, comecei a correr. Durante algum tempo acelerei facilmente, passando
por paragens de autocarro onde se abrigavam migrantes de ar cansado a caminho do trabalho, por
cafés com as grades ainda fechadas, por um homem embriagado a cambalear vindo de Notting Hill.
Silenciei mentalmente o barulho dos autocarros e táxis, ouvindo apenas o som dos meus ténis no
pavimento e o trinar do coro de pássaros madrugadores.
Este ritmo fácil não durou muito tempo. Quando a estrada começou a subir para Notting Hill,
senti os pulmões quase a explodirem, como era costume, e as pernas cederam. Fui a andar até à
saída para Portobello.
Não é nada estranho o que estou a fazer, pensei, enquanto recomeçava a correr. Londres já está
acordada. Passei por um café cheio de trabalhadores de fato-macaco; um homem abria um quiosque
de café em Westbourne Grove. Londres estava em movimento. Porque não havia eu de estar
também? Não tinha mal nenhum.

Só que, claro, não era bem assim, porque o meu corpo se sentia cansado e miserável e não vi
mais ninguém a correr durante todo esse tempo. E porque ainda eram apenas cinco menos um quarto
da manhã quando regressei a casa de Tommy.
Tomei um duche e enfiei-me na cama. Tentei não olhar para o telemóvel durante cinco minutos.
Uma chamada perdida, dizia o ecrã, quando desisti. Sentei-me. Era uma chamada de um número
privado, às 4h19m. Havia uma mensagem.
A mensagem consistia de dois segundos de silêncio, seguidos do som de um humano a carregar na
tecla errada. Após um instante, a pessoa conseguira desligar.
Pensei por um momento que talvez fosse Alan, o amigo de Eddie, mas, segundo o Facebook, ele
ainda não lera a minha mensagem.
Então quem?
Eddie?
Não! O Eddie não é esse tipo de pessoa! É falador, comunicador! Não é um maluquinho
qualquer que liga para as pessoas às quatro da manhã!

Quando acordei, perto da hora de almoço, Alan já tinha lido a minha mensagem mas não me
respondera.
Olhei para o telefone como uma pessoa demente, fazendo refresh ao ecrã uma e outra vez. Ele não
podia simplesmente ignorar aquela mensagem. Ninguém o faria!
Mas a verdade era que a lera e a ignorara. O dia passou; não tive qualquer notícia. E estava
assustada. Menos, a cada dia que passava, por Eddie, e mais, a cada dia que passava, por mim.
CAPÍTULO 14

R udi estava perfeitamente imóvel.


Olhou para as duas suricatas mais perto da cerca e elas devolveram o olhar, com as patas
pousadas na barriga macia. Rudi, sem se aperceber do que estava a fazer, endireitou-se e pousou as
suas próprias patas na barriga.
– Olá – murmurou em tom reverente. – Olá, surticatas.
– Suricatas – corrigi.
– Sarah, cala-te! Podes assustá-las!
Tommy chamou a atenção de Rudi para a chegada de outra suricata e Rudi virou-se rapidamente,
esquecendo de imediato que eu existia.
– Olá, surticata número três – sussurrou. – Surticatas, olá! São da mesma família? Ou apenas
grandes amigos?
Duas das suricatas começaram a escavar na areia. A terceira subiu a pequena colina arenosa para
dar a outro membro da tribo o que parecia ser um abraço. Rudi estava quase a tremer de
deslumbramento.
Jo tirou uma fotografia ao filho. Há cinco minutos, estava a ralhar com Rudi por qualquer coisa;
agora, sorria-lhe com um amor ilimitado. E, ao olhar para ela, ao tentar imaginar esse tipo de
devoção avassaladora e incomensurável, senti-o de novo. Uma pontada vinda do aglomerado de
sentimentos que mantinha escondidos num canto remoto. Era certo que nunca seria mãe, claro, mas a
dor da possibilidade perdida por vezes deixava-me sem ar.
Tirei os óculos de sol da mala.
Os meus pais tinham encontrado uma pessoa para cuidar do meu avô e regressariam a
Gloucestershire amanhã. Rudi pedira uma visita ao Jardim Zoológico de Battersea Park como
despedida antes de eu ir ter com os meus pais, embora, desconfiava eu, isso tivesse mais a ver com
um programa que vira recentemente na televisão sobre suricatas do que com a vontade de dizer
adeus à tia Sarah.
Olhei para o telemóvel, um reflexo que me era agora tão natural como respirar. Depois da
chamada perdida a meio da noite, na semana anterior, houvera outra há poucos dias, que durara uns
bons quinze segundos.
– Vou ligar à polícia – ameaçara eu, quando a pessoa do outro lado se recusara a falar. A
chamada fora imediatamente desligada e não houvera mais nada desde então, mas eu tinha a certeza
de que isto tinha algo a ver com o desaparecimento de Eddie.
Não andava a dormir nada de jeito.
Tommy espalhou o pequeno piquenique que preparara e Rudi veio a correr para comer e contou
uma anedota pouco engraçada sobre sanduíches de ovo e gases intestinais. Jo ralhou com ele por
estar a falar de boca cheia. Uma criança perto de nós lamentava-se por ter perdido a hora de dar
comer aos coatis. E eu ali fiquei, sentada no meio de todos, sem conseguir comer as minhas
sanduíches, com o estômago às voltas de angústia.
Pouco antes de deixar a escola em Inglaterra, estudara o livro Mrs Dalloway nas aulas de Inglês.
Os alunos, à vez, liam alto e exploravam a «técnica narrativa única» de Woolf, como dizia a
professora Rushby.
– «O mundo ergueu o chicote» – lera eu, em voz alta, ao chegar a minha vez. – «Onde cairá?»
Depois fizera uma pausa, surpreendida, e relera a frase. E, embora os meus colegas estivessem a
olhar para mim, embora a professora Rushby me estivesse a observar, sublinhara a frase três vezes
antes de continuar a ler, porque aquelas palavras descreviam tão bem como eu me sentia, na maior
parte do tempo, que fiquei estupefacta por outra pessoa que não eu as ter escrito.
O mundo ergueu o chicote; onde cairá?
Era isso!, pensara eu, aos dezassete anos. Esse estado de alerta perpétuo! A observar os céus, a
cheirar o ar, a preparar-me para a calamidade. Sou eu. E contudo aqui estava, dezanove anos
depois, a sentir-me exatamente na mesma. Teria alguma coisa mudado realmente? Teria a minha
vida confortável na Califórnia sido uma mera fantasia?
Olhei para a minha sanduíche de ovo, mas deu-me apenas vómitos.
– Eh – chamou Jo. – Que se passa?
– Nada. Estou só a apreciar o piquenique.
– Interessante – comentou Jo –, tendo em conta que ainda não comeste nada.
Após uma pausa, pedi desculpa. Disse-lhes que sabia que devia parecer louca. Disse-lhes que
estava a esforçar-me muito para me recompor, mas que não estava a ter grande sucesso.
– Ele partiu-te o coração? – perguntou Rudi. – O tal homem?
Todos pararam de falar. Nem Jo nem Tommy conseguiam olhar para mim. Mas Rudi olhou, com
os seus pequenos olhos rasgados e o seu entendimento infantil e perfeito do mundo.
– Ele partiu-te o coração, Sarah?
– Eu... Bem, sim – respondi, quando consegui falar. – Sim, infelizmente partiu.
Rudi baloiçou-se sobre os calcanhares, sem tirar os olhos de mim.
– Ele é um vilão – disse, depois de refletir cuidadosamente. – E um peido.
– É mesmo – concordei.
Rudi deu-me um abraço que me deixou muito perto das lágrimas.
Tommy tinha o meu telemóvel na mão e estava a olhar com ar pensativo para a página de
Facebook de Eddie.
– Não sei o que pensar deste homem – disse, após um longo silêncio.
– És tu e eu, Tommy.
– Por exemplo, de onde vem esta hashtag #ondeestaoWally? – perguntou Tommy. – Não acham
estranho? Ele chama-se Eddie.
Jo abriu um pacote de frutos secos para Rudi.
– Come devagar – avisou, antes de se virar para Tommy. – Onde Está o Wally? é uma série de
livros, seu pateta – explicou. – Não te lembras? Aqueles desenhos de multidões com o Wally lá
escondido pelo meio?
Rudi começou a comer as passas e a deitar fora os outros frutos secos.
– Eu sei o que é Onde Está o Wally – respondeu Tommy. – Só acho que é uma coisa estranha de
se dizer em relação a uma pessoa que se chama Eddie.
Abanei a cabeça.
– É só uma coisa que se diz quando estamos à procura de alguém. A esquadrinhar multidões.
Agulha num palheiro, esse tipo de coisa.
Tommy encolheu os ombros.
– Talvez sim, talvez não. Talvez ele seja outra pessoa completamente diferente.
Rudi animou-se.
– Achas que o Eddie é um assassino? – perguntou.
– Não – respondeu Tommy.
– Um vampiro?
– Não.
– Um raptor? – Jo explicara-lhe recentemente por que razão tinha de ter cuidado com os
desconhecidos.
Tommy olhou para o ecrã com ar pensativo.
– Oh, não sei – admitiu. – Mas há qualquer coisa esquisita em relação a este tipo. – Depois,
subitamente, endireitou-se. – Sarah! – exclamou. – Olha!
Tirei-lhe o telemóvel da mão e vi que ele tinha aberto o meu Messenger. E, depois, tudo se
precipitou em queda livre, como água numa cascata. Eddie estava online. Lera as minhas
mensagens. As duas. Estava online neste preciso momento.
Não estava morto. Estava vivo, algures.
– Por que raio estavas a ler as minhas mensagens? – perguntei, furiosa.
– Porque sou bisbilhoteiro – disse Tommy. – Queria ver o que lhe andavas a dizer, mas que
interessa isso? Ele leu as tuas mensagens! Está online!
– O que é que ele disse? – Rudi estava a tentar tirar-me o telemóvel. – O que é que ele te disse,
Sarah?
Jo confiscou o telefone e estudou demoradamente o ecrã.
– Odeio ter de te dizer isto – começou –, mas ele já leu as tuas mensagens há três horas.
– Porque é que não respondeu? – quis saber Rudi.
Era uma boa pergunta.
– Estou a ficar farto do teu namorado, Sarah – declarou Rudi. – Acho que ele é uma pessoa
horrível.
Seguiu-se um longo silêncio.
– Vamos ao túnel das suricatas – sugeriu Jo.
Rudi olhou para mim e, depois, para as suas preciosas suricatas, a dez metros de distância... dez
longos metros.
– Vai – disse-lhe. – Vai para junto dos teus. Eu estou bem.
– Esquece-o, Sarah – repetiu Jo, enquanto o filho se afastava em passo de corrida. De súbito,
parecia exausta. – A vida é demasiado curta para andares a correr atrás de quem te faz infeliz.
Seguiu Rudi. Tommy e eu olhámos para o ecrã. Impulsivamente, escrevi: Estás aí?
Segundos depois, a fotografia de Eddie apareceu ao lado da mensagem.
– Quer dizer que ele a leu – informou Tommy.
Eu não mordo, escrevi.
Eddie leu a mensagem. E depois – sem mais nem menos – ficou offline.
Levantei-me. Tinha de o ver. De falar com ele. Tinha de fazer alguma coisa.
– Socorro – disse. – O que hei de fazer, Tommy? O que hei de fazer?
Após uma fração de segundo, Tommy levantou-se e passou o braço sobre os meus ombros. Se eu
fechasse os olhos, era como se estivéssemos novamente em 1997, no aeroporto de Los Angeles, eu
encolhida contra ele na porta das chegadas, ele a conduzir-me para um enorme carro com ar
condicionado enquanto me dizia que ia correr tudo bem.
– Talvez a mãe dele esteja muito mal da depressão – arrisquei, desesperada. – Ele disse-me que
ela estava a ir-se abaixo, quando o conheci. Talvez a situação tenha ficado assustadora.
– Talvez – respondeu Tommy baixinho. – Mas, Harrington, se ele estivesse a levar a sério a vossa
relação, teria mandado uma mensagem, pelo menos. A explicar. A pedir-te para esperares algumas
semanas.
Não argumentei, porque não tinha argumentos.
– Vamos ver se ele responde – disse Tommy, apertando-me o ombro. – Mas, a menos que
responda rapidamente, e a menos que lhe tenha acontecido algo verdadeiramente extraordinário,
acho que devias pensar seriamente se queres ou não voltar a vê-lo. Não é nada simpático da parte
dele fazer-te passar por isto.
Atrapalhado mas com muita ternura, beijou-me na cabeça.
– Talvez a Jo tenha razão – disse. – Talvez tenhas mesmo de o esquecer.
O meu amigo mais antigo tinha o braço sobre os meus ombros. O homem que me ajudara a colar
os pedaços de mim, tantos anos antes, que me vira perder tudo e, de alguma forma, reconstruir a
minha vida. E agora, a poucos anos de chegarmos aos quarenta, estava a acontecer outra vez.
– Ela tem razão – admiti, entorpecida. – Têm os dois razão. Tenho de o esquecer.
E era o que tencionava fazer. O único problema era que não sabia como.
CAPÍTULO 15

I sto não é só um coração partido, pensei, nessa noite. Estava na cozinha de Tommy e Zoe, de
pijama, a comer batatas fritas. É mais do que isso.
Mas o quê?
O acidente? Teria alguma coisa a ver com o acidente?
Havia tantas lacunas na minha memória desse dia horrível. A distância, ou o trauma, ou talvez a
vasta diferença entre as minhas vidas inglesa e americana, tinham-me ajudado a bloquear uma boa
parte do que acontecera. No entanto, conhecia bem o que estava a sentir neste momento. Estes
sentimentos eram como velhos amigos.
À uma e meia da manhã decidi tentar usar esta energia e adiantar algum trabalho. Os meus
colegas eram demasiado delicados para dizer fosse o que fosse, mas eu sabia que teria alguém em
cima de mim em breve, se não despachasse as coisas atrasadas.
Voltei para a cama e abri o e-mail. E o meu cérebro – finalmente – ligou-se. Tomei decisões
grandes e decisões pequenas. Autorizei despesas e enviei um relatório à direção. Verifiquei a pasta
de e-mail do nosso site, porque nunca ninguém se lembrava de o fazer, e encontrei uma mensagem
de uma menina a perguntar se os nossos palhaços podiam visitar a sua irmã gémea que estava muito
doente num hospital em San Diego. Claro!, respondi, reenviando o e-mail para Reuben e para a
minha assistente, Kate. Mandem os palhaços! É um hospital que conhecemos! Por favor, equipa,
tratem de ter lá o nosso pessoal até sexta-feira.
Às três da manhã, apercebi-me de que o meu cérebro estava agora a trabalhar a uma velocidade
que não me agradava nada.
Às quatro, sentia que tinha enlouquecido.
Às quatro e um quarto decidi ligar a Jenni. Jenni Carmichael saberia o que fazer.
– Sarah Mackey! – exclamou ela ao atender. Ouvi os violinos da banda sonora de um filme
romântico antigo em fundo. – Que raio estás a fazer acordada a estas horas?
Obrigada, pensei, fechando os olhos. Obrigada, meu Deus, pela minha querida Jenni
Carmichael.
O meu casamento com Reuben fora um pouco embaraçoso. O lado dele da igreja estava cheio,
enquanto no meu estavam apenas os meus pais, Tommy, Jo e duas empregadas do café em Fountain
onde Reuben e eu tínhamos feito as primeiras reuniões da instituição. Hannah não estava lá. Apenas
um espaço vazio e silencioso no banco ao lado da minha mãe. E também não estavam lá quaisquer
amigos, porque ninguém em Inglaterra sabia sequer o que havia de me dizer, quanto mais atravessar
meio mundo pelo prazer de continuar sem saber o que me dizer.
Eu dissera à família de Reuben «nenhum dos meus amigos de Inglaterra pode vir», e a vergonha
derramara-se de mim como cerveja de um copo demasiado cheio.
Reuben e eu tínhamos passado uma lua de mel maravilhosa em Yosemite. Ali, escondidos numa
campânula de amor, éramos felizes. Mas quando, na parte final da viagem, nos vimos em São
Francisco, rodeados de grupos de jovens risonhos, a ausência de amigos magoara-me de novo.
E depois Jenni surgira na minha vida, como se tivesse sido enviada por estafeta. Jenni era da
Carolina do Sul. Não tinha qualquer interesse na indústria cinematográfica, ao contrário da maior
parte das pessoas que não eram da cidade: só queria «experimentar qualquer coisa nova». Enquanto
Reuben e eu passeávamos no Norte da Califórnia, recém-casados, Jenni estava a instalar-se como
administrativa no prédio de escritórios onde Reuben e eu tínhamos arrendado um gabinete, um
bloco de betão cinzento agachado à sombra da Autoestrada de Hollywood.
Quando regressámos, ela veio perguntar-me se tencionávamos pagar a renda em atraso em breve.
Nesse mesmo dia, paguei-lhe em dinheiro e pedi desculpa, aguardando atrás dela, embaraçada,
enquanto ela contava as notas. Vi que tinha metade de um bolo embrulhado em película aderente em
cima da secretária, e um pequeno leitor de CD no qual estava a ouvir o que parecia ser uma
compilação das «Melhores Canções de Amor». Ela ergueu os olhos para mim e sorriu enquanto
passava as notas com um dedal de borracha.
– Sou péssima com números – confessou. – Só estou a contar as notas para parecer eficiente. –
Voltou duas vezes ao princípio antes de desistir. – Vou confiar em si – declarou, guardando o
dinheiro num pequeno cofre. – Parece-me honesta. Quer uma fatia de bolo? Fi-lo ontem à noite. Por
este andar, vou acabar por o comer todo sozinha.
O bolo era delicioso e, enquanto o comia ao lado da secretária dela, Jenni contou-me a entrevista
que tivera com o estranho proprietário do prédio. Fazia uma imitação quase perfeita dele. Quero
ser amiga dela, pensei, enquanto ela saltava uma balada moderna para ouvir Barbra Streisand. Não
era nada parecida comigo, nem com qualquer outra pessoa que eu conhecesse, o que só me fazia
gostar ainda mais dela.
Teria acabado por lá chegar, de qualquer maneira. Teria feito amigos. Ainda trazia comigo as
cicatrizes do passado, mas já estava a desabrochar como Sarah Mackey, executiva: uma mulher
simpática, de confiança, às vezes espirituosa. Mas Jenni Carmichael foi a conduta; através dela,
comecei a conhecer pessoas, a achar que talvez conseguisse encontrar o meu lugar nesta cidade à
qual tanto queria chamar lar.
Três anos depois, Jenni era não só uma boa amiga, como uma peça importante na nossa
instituição. Quando Reuben e eu arrendámos um edifício mais definitivo em Vermont, apenas a dois
quarteirões do Hospital Pediátrico, ela despediu-se e veio trabalhar connosco. A nossa nova sede
não era grande coisa, rodeada por clínicas de aspeto duvidoso, lavandarias automáticas e
restaurantes de comida rápida, mas a renda era baixa e tinha um espaço amplo no rés do chão, que
viria a ser a academia de treino de Reuben para os novos Doutores Palhaços. Jenni foi inicialmente
a chefe administrativa, depois uma pessoa «que ajudava com os subsídios», até que por fim, após
alguns anos, a nomeámos vice-presidente de angariação de fundos.
Cerca de um ano depois de nos termos conhecido, ela forjara a sua própria história de amor
perfeita e vivia agora, feliz, entre Westlake e a parte histórica de Filipinotown, com um homem
chamado Javier, que arranjava carros de gente rica e lhe oferecia flores todas as semanas. Vivia
para as suas escapadelas românticas e falava de Javier como se fosse o próprio Deus.
Há onze anos que tentavam ter um bebé. Ela recusava-se a queixar-se, porque não tinha muito
tempo para queixas, mas era algo que a estava a matar. Lentamente, o problema estava a destruir a
minha amiga de dentro para fora. Por ela, eu até tinha rezado a um deus em quem nunca acreditara.
Por favor, dá-lhe um bebé. É tudo o que ela quer.
Se este último ciclo de inseminação artificial não resultasse, não imaginava o que Jenni faria.
Nem ela nem Javier tinham dinheiro para pagar os tratamentos depois de o seguro deixar de cobrir
as despesas.
– É a última oportunidade – dissera-me ela com ar corajoso quando nos despedimos no
aeroporto, antes da minha vinda.
Jenni ficara chocada com a minha separação de Reuben. Acho que isso veio abalar as suas
certezas sobre o amor: sim, havia pessoas a divorciarem-se a toda a hora, mas não as que faziam
parte da sua vida. A sua forma de superar o choque foi assumir o papel de salvadora, para o qual
parecia ter nascido. Descarregou aplicações para o meu telemóvel, acolheu-me no seu quarto de
hóspedes e fez uma grande quantidade de bolos.
– Então! – exclamou ela agora. – O Eddie já te contactou, certo? Está tudo em ordem?
– Na verdade, não – respondi. – Pelo contrário. Ele está de volta ao mundo... partindo do
princípio de que esteve sequer noutro lado... mas não respondeu a nenhuma das minhas mensagens.
Cortou completamente qualquer comunicação comigo.
– Espera aí, querida, deixa-me pôr o filme em pausa. – Ouvi a música parar. – Javier, vou atender
este telefonema na varanda. – Ouvi a porta de rede fechar-se atrás dela. – Desculpa, Sarah, podes
repetir isso tudo?
Repeti isso tudo. Jenni talvez precisasse de um momento para aceitar que a minha segunda
oportunidade de viver uma grande história de amor fora por água abaixo.
– Oh, merda. – Jenni nunca dizia asneiras. – A sério?
– A sério. Estou muito em baixo. Como já deves ter percebido, aqui passa das quatro da manhã.
– Oh, merda – repetiu ela, e ri-me sem grande vontade. – Conta-me tudo o que aconteceu desde as
nossas últimas mensagens. E afasta-te do computador. Mandaste-me uns e-mails um bocado
estranhos nas últimas horas.
Contei-lhe tudo o que acontecera.
– E é isto – concluí. – Provavelmente, acho que vou ter de o esquecer.
– Não – disse ela, em tom um pouco seco. Jenni não gostava de ver ninguém virar costas ao amor.
– Não te atrevas a desistir. Ouve, Sarah, sei que a maior parte das pessoas te vai dizer para
esqueceres esse homem, mas... eu não consigo desistir já dele. Tenho tanta certeza como tu de que
existe uma explicação.
Sorri tristemente.
– Como por exemplo?
– Não sei – respondeu ela, lentamente. – Mas estou decidida a desvendar este mistério.
– Eu também estava.
Ela riu-se.
– Havemos de conseguir. Para já, tens de te aguentar, ouviste? Por falar nisso... como te sentes em
relação a amanhã?
– Amanhã?
– O encontro com o Reuben e a Kaia. Num sítio qualquer de um filme ao pé do rio Tamisa, não é?
– O Reuben está em Londres? Com a namorada?
– Hum... sim? Ele disse-me que te tinha enviado um e-mail a combinar um café amanhã. Para te
apresentar à Kaia, para não a conheceres só quando voltares à Califórnia.
– Mas por que raio está ela em Londres? Por que raio está qualquer um deles em Londres? Tenho
de voltar para Gloucestershire amanhã! Eu... não percebo!
– A Kaia quis ir – explicou Jenni, atrapalhada. – Não ia a Londres há anos. E o Reuben ainda
tinha o bilhete das férias...
Recostei-me na cama. Claro. Reuben e eu tínhamos comprado os bilhetes para Londres em
janeiro, quando ainda estávamos presos naquele jogo solitário de marido e mulher. Eu vinha a
Inglaterra todos os anos, no aniversário do acidente, e ele costumava vir comigo quando podia...
embora isso já não acontecesse há alguns anos.
«Este ano vou», prometera. «Sei como sentes falta da tua irmã. Este ano estarei ao teu lado,
Sarah.»
E assim tínhamos comprado os bilhetes.
Algum tempo depois, ele pedira-me o divórcio.
– Mudei a data do meu voo para Londres – dissera, dias mais tarde. Estava a olhar para mim com
expressão triste e culpada. – Achei que não quererias que fosse contigo.
E eu respondera que sim, era boa ideia, e obrigada por te teres lembrado disso. Não voltara a
pensar na viagem dele. Francamente, não pensara em grande coisa naquela altura; basicamente,
estava a esticar-me cuidadosamente, a fletir novos músculos. A testar com curiosidade a Vida Sem
Reuben. A facilidade, a fluidez, a sensação de espaço e de futuro neste admirável mundo novo
eram, de certa forma, embaraçosas. Onde estava o luto?
– Ele comprou um bilhete para a Kaia – disse Jenni. Não estava a gostar desta conversa. –
Desculpa. Ele disse que te tinha enviado um e-mail.
– Provavelmente enviou. Eu é que ainda não cheguei a ele. – Fechei os olhos. – Bem, vai ser
interessante. Eu, o Reuben e a namorada nova do Reuben.
Jenni riu-se, atrapalhada.
– Desculpa – pedi, após uma pausa. – Não estou irritada contigo, apenas chocada. E a culpa é
minha, de qualquer maneira. Devia ter andado em cima dos e-mails.
Ouvi-a sorrir. Pouca coisa ofendia Jenni.
– Estás a reagir lindamente, querida. Tirando essa coisa de estar acordada a meio da noite.
Podias melhorar nesse aspeto.
Fechei os olhos.
– Oh, meu Deus, nem te perguntei como está a correr o ciclo de inseminação. Em que fase vais?
Quanto tempo falta para colherem os óvulos?
Jenni fez uma pausa.
– Oh, já fizeram isso. Fui lá a semana passada e colheram o que havia a colher. Mandei-te uma
mensagem no WhatsApp, não viste? Implantaram três embriões, porque é a minha última
oportunidade. Só sei como correu para a semana.
Inspirou como se fosse dizer mais qualquer coisa, mas calou-se. No silêncio que se seguiu,
abateu-se sobre mim uma tonelada de desespero.
– Jenni, lamento muito – disse-lhe, baixinho. – Desculpa. Pensava que ainda estavas na fase de
estimulação dos ovários. Céus... sei que não é desculpa, mas não tenho andado bem da cabeça.
– Eu sei – respondeu ela, animadamente. – Não te sintas mal. Estiveste sempre ao meu lado, em
todos os ciclos. Tens direito a cometer um erro!
Mas a sua voz era demasiado animada e eu sabia que a tinha desiludido. Na escuridão suave do
quarto de hóspedes de Zoe, senti-me empalidecer de raiva contra mim mesma.
Jenni respondeu a qualquer coisa que Javier gritara e avisou-me de que não podia demorar-se
muito.
– Ouve, Sarah, aqui fica a minha sugestão – disse. – Acho que devias começar do zero com o
Eddie. Como se tivessem acabado de se conhecer. Porque não lhe mandas uma carta? Fala-lhe
sobre ti, como se fosse um primeiro encontro. Conta-lhe as coisas que não tiveste oportunidade de
lhe contar. Por exemplo... ele sabe do acidente? Da tua irmã?
– Jenni... vamos falar sobre ti. Estamos fartas de tagarelar sobre mim e a minha vida patética.
– Oh, querida! Eu estou a cuidar de mim. Ando a visualizar e a fazer meditação e danças de
fertilidade e a comer uma data de porcarias saudáveis e nojentas. É tudo o que posso fazer. Mas tu
podes fazer muito mais. – Fez uma pausa. – Sarah, jamais esquecerei o dia em que me falaste sobre
o acidente. Foi a coisa mais horrível que alguma vez ouvi e isso fez-me amar-te, Sarah. Amar-te
mesmo. Acho que devias contar ao Eddie.
– Não posso mandar-lhe uma história triste para o fazer mudar de ideias!
– Não é isso que estou a dizer. Só acho que... – Suspirou. – Só acho que devias deixar que ele te
conhecesse mesmo. Todas as partes, mesmo aquelas que não gostas de mostrar às pessoas. Deixa
que ele saiba a mulher extraordinária que és.
Fiz uma pausa, com o telefone quente contra a face.
– Mas, Jenni, tive sorte de tu reagires como reagiste. Nem toda a gente reagiria da mesma
maneira.
– Não concordo.
Soergui-me nas almofadas.
– Então... ele ignora-me durante quase um mês e, de repente, começo a escrever-lhe sobre a
minha infância? Vai pensar que sou louca!
Jenni riu-se.
– Não vai nada. Tal como eu disse, vai apaixonar-se por ti. Como eu me apaixonei.
Deixei-me cair novamente para trás.
– Oh, Jenni, quem é que queremos enganar? Tenho de o esquecer.
Ela desatou a rir.
– Porque é que estás a rir?
– Porque não tens qualquer intenção de o esquecer!
– Tenho, sim!
– Não tens nada! – Riu-se outra vez. – Se quisesses esquecer o Eddie, se quisesses mesmo
esquecê-lo, Sarah Mackey, a última pessoa a quem ligarias a pedir conselhos seria eu.
CAPÍTULO 16

Dia cinco: uma faia e uma galocha

E ddie estava novamente ao telefone com Derek. Eu ainda não sabia quem era Derek, mas
calculei que estivesse de alguma forma relacionado com o trabalho, porque Eddie parecia mais
formal a falar com ele do que com o amigo que lhe ligara na véspera. A conversa desta tarde fora
breve, basicamente Eddie a dizer «certo» e «está bem» e «parece-me boa ideia». Poucos minutos
depois, desligou e entrou para arrumar o telefone.
Eu estava sentada no banco à frente do celeiro dele, a ler um velho exemplar de O Nosso Agente
em Havana, que encontrara na estante. Pelos vistos, continuava a adorar ler. Adorava que um
escritor a trabalhar para o MI6 tivesse criado um inofensivo vendedor de aspiradores, recrutado
para os Serviços Secretos para poder pagar o estilo de vida extravagante da sua bonita filha.
Adorava o facto de poder ler sobre este homem durante horas, sem parar uma única vez para pensar
na minha própria vida. Adorava como, com um livro na mão, sem necessidade urgente de estar em
lado nenhum nem de fazer nada, me sentia uma Sarah de que me esquecera completamente.
O tempo continuava quente, mas sentia-se já o frio no ar parado, a pairar como uma ave de rapina
antes de atacar. As minhas roupas, na corda de secar, estavam imóveis, por cima de um rododendro
que não se movia um centímetro. Bocejei e pensei que se calhar devia ir ver se estava tudo bem na
casa dos meus pais.
Sabia que não o faria. Na segunda noite que Eddie e eu tínhamos ido para a cama juntos, estava já
bem claro que ficaríamos aqui, neste mundo suspenso, até os meus pais voltarem de Leicester ou
Eddie ir de férias. Não queria estar separada dele nem pelo breve tempo que me levaria ir a casa e
voltar. O universo que conhecia parara, por agora, e eu não tinha qualquer desejo de o despertar.
No limiar do quintal, Steve, o esquilo, observava-me.
– Olá, seu criminoso – disse Eddie quando voltou a sair. Olhou para o esquilo e disparou uma
arma imaginária. Steve não mexeu um músculo.
Eddie sentou-se ao meu lado.
– Gosto de te ver com as minhas roupas – disse, com um sorriso, esticando o elástico dos boxers
dele que eu vestia e soltando-o contra a minha cintura. Eu tinha apenas esses boxers e uma t-shirt
dele, coçada nos ombros. Cheirava a Eddie. Bocejei outra vez e estiquei o elástico dos boxers que
ele tinha vestidos. Os pelos das minhas pernas estavam a começar a crescer. Nada disso importava.
Eu estava estúpida de felicidade.
– Vamos dar um passeio? – sugeriu ele.
– Porque não?
Ficámos no banco mais algum tempo, aos beijos, a esticar os elásticos, a rir de tudo e de nada.

Passava pouco das duas quando saímos. Eu voltara a vestir as minhas roupas, que cheiravam ao
detergente de Eddie e a sol.
Depois de seguirmos o rio durante alguns metros, Eddie saiu do trilho e começou a subir a colina,
para o coração do bosque. Os nossos pés afundaram-se no musgo intacto do chão da floresta.
– Há uma coisa que quero mostrar-te aqui em cima – disse Eddie. – É uma parvoíce, mas gosto
de vir ver se ainda cá está, de vez em quando.
Sorri.
– Pode ser a nossa atividade digna de nota do dia.
Não tínhamos concluído muitas atividades dignas de nota desde o início desta aventura. Tínhamos
dormido muito, feito amor, comido, falado durante horas. E passado horas sem falar. Lemos livros,
procurámos pássaros, criámos uma narrativa alargada sobre um cão que aparecera na clareira
enquanto estávamos a comer tortilha espanhola um dia, sentados no banco.
Em suma, embora estivesse a acontecer tudo, não estava a acontecer nada.
Apertei-lhe a mão e subimos pelo bosque. Mais uma vez, deslumbrou-me a estonteante
simplicidade de tudo. Havia o canto dos pássaros, havia o som da nossa respiração, e havia a
sensação de nos afundarmos no musgo. E, além de um sentimento de profundo contentamento, não
havia mais nada. Nem dor, nem culpa, nem dúvidas.
Estávamos quase no cimo da colina quando Eddie parou.
– Ali – disse, apontando para uma faia. – Uma galocha misteriosa.
Demorei algum tempo a vê-la, mas, quando por fim a vi, desatei a rir.
– Como é que fizeste aquilo?
– Não fui eu – garantiu-me Eddie. – Simplesmente avistei-a, um dia. Não faço ideia de como foi
parar lá acima, nem quem foi o responsável. Em todos estes anos que aqui vivi, nunca vi ninguém
nesta parte do bosque.
Muito, muito alto – quase uns vinte metros, provavelmente –, um ramo que em tempos se erguera
para o céu estava partido e, no toco desse ramo, alguém enfiara uma galocha preta. Desde então,
alguns ramos mais novos, verde-claros, tinham nascido por baixo, mas, tirando isso, o tronco era
perfeitamente liso e impossível de trepar.
Olhei para a galocha, perplexa com a sua existência, encantada por Eddie ter achado que era algo
que me devia mostrar. Passei-lhe o braço à volta da cintura e sorri. Sentia a respiração dele, o seu
coração, a t-shirt quase húmida depois da caminhada cansativa pela encosta.
– Um verdadeiro mistério – admiti. – Agrada-me.
Eddie fingiu arremessar uma galocha algumas vezes, mas desistiu. Era inconcebível.
– Não imagino como conseguiram – disse. – Mas adoro que o tenham feito.
Depois, virou-se e beijou-me.
– É uma coisa tão parva – disse. – Mas sabia que ias gostar. – Apertou-me contra si.
Beijei-o também, com força. Beijá-lo era tudo o que queria fazer.
Perguntei a mim própria como poderia voltar a Los Angeles quando, aqui, havia uma felicidade
destas. Aqui, no sítio que fora em tempos o meu lar.
Por fim, demos por nós deitados sobre as folhas, nus.
Eu tinha musgo no cabelo, provavelmente insetos também. Mas sentia apenas alegria. Tentáculos
profundos de alegria a esticarem-se dentro de mim.
CAPÍTULO 17

Querido Eddie,

Pensei muito antes de te escrever esta mensagem. Como posso estar – mais uma vez – a tentar
contactar-te, depois de me mostrares tão claramente que estás vivo e que não queres falar
comigo? Como é possível que esteja tão desesperada, tão disposta a ignorar o teu silêncio?
Mas, ontem à noite, dei por mim a pensar no dia em que fomos ver aquela galocha no bosque.
Que coisa tão pateta e maravilhosa; lembrei-me de estarmos a olhar para cima e a rir, e pensei:
Não estou pronta para desistir dele. De nós. Ainda não.
Portanto, aqui está: a minha última e desesperada tentativa de descobrir o que aconteceu. De
perceber como é que as coisas podem ter corrido tão mal.
Lembras-te da nossa última noite juntos, Eddie? Lá fora, sobre a relva, antes de irmos buscar
a tua tenda enorme e passarmos as horas seguintes a tentar montá-la? Lembras-te de que, antes
de ambos adormecermos de cansaço dentro da maldita tenda, eu ia contar-te a história da minha
vida?
Vou começar agora, do princípio. Pelo menos, os pontos mais importantes. Pensei que talvez
isso pudesse recordar-te do que gostavas em mim. Porque, por mais coisas que me tenhas
escondido, o facto de que gostaste de mim não foi mentira. Tenho a certeza disso.
Então cá vai. Chamo-me Sarah Evelyn Harrington. Nasci em Gloucester Royal às 16h13m do
dia 18 de fevereiro de 1980. A minha mãe era professora de Matemática numa escola primária
em Cheltenham e o meu pai era engenheiro de som. Passava muito tempo fora, em digressão
com bandas, até que começou a sentir demasiado a nossa falta. Depois, fez uma série de
trabalhos de som na área. E ainda faz. Não consegue parar.
Compraram uma velha casa no vale por baixo de Frampton Mansell, cerca de um ano depois
de eu nascer, e é aí que vivem desde então. Fica a uns quinze minutos a pé do caminho que leva
ao teu celeiro. Provavelmente conheces a casa. O meu pai e um amigo reabriram aquele velho
trilho no verão em que se mudaram para lá. Dois homens, duas motosserras, várias cervejas.
Estar naquele vale contigo fez com que o lugar me parecesse muito diferente. Fez-me lembrar
um Eu que já esquecera. E, como te disse na nossa primeira manhã, há bons motivos para isso.
O Tommy, que é o meu melhor amigo, nasceu poucos meses depois de mim, filho do casal
«ligeiramente problemático» (palavras do meu pai) que vivia na casa ao fundo do caminho.
Nós os dois tornámo-nos os melhores amigos um do outro e brincámos juntos todos os dias, até
àquele momento estranho e triste da adolescência em que brincar deixa de ter interesse. Até lá,
contudo, atravessámos riachos, empanturrámo-nos de amoras silvestres e abrimos túneis
através dos arbustos.
Quando eu tinha cinco anos, a minha mãe teve outro bebé – Hannah – e, alguns anos depois, a
Hannah juntou-se às nossas aventuras. Era totalmente destemida, a minha irmã.
Muito mais corajosa do que o Tommy e eu, apesar de ser vários anos mais nova. A melhor
amiga dela, uma menina chamada Alex, praticamente idolatrava-a.
Só agora, em adulta, é que me apercebo do quanto amava a minha irmã. De como também eu
a idolatrava.
O Tommy passava muito tempo em nossa casa porque a mãe era – como ele dizia – «doida».
Em retrospetiva, não sei se isso era justo, embora ela se preocupasse realmente de forma muito
profunda com coisas muito superficiais. Quando eu tinha quinze anos, eles mudaram-se para
Los Angeles e fiquei destroçada. Sem o Tommy, não sabia quem era. Quem eram os meus
amigos? A que grupo pertencia? Sabia apenas que tinha de me encaixar rapidamente com
alguém, antes de ficar de fora da vida social da escola e me tornar uma solitária sem remédio.
Assim, agarrei-me a duas raparigas, a Mandy e a Claire, com quem sempre me tinha dado
relativamente bem – apesar de não sermos exatamente amigas –, mas agora a relação era mais
intensa. Intensa e comprometedora. As raparigas conseguem ser tão cruéis.
Dois anos depois, estava ao telefone com o Tommy, às cinco da manhã, a implorar-lhe que
me deixasse ir viver com ele. Mas já chegaremos a essa parte.
Vou parar por aqui. Não quero simplesmente vomitar a história da minha vida para cima de
ti, porque podes não a querer ouvir. E, mesmo que queiras, não quero que pareça que me
considero a única pessoa à face da Terra com um passado.
Tenho saudades tuas, Eddie. Não pensei que fosse possível sentir tanto a falta de alguém com
quem se esteve apenas sete dias, mas sinto. Tanto que nem consigo pensar.

Sarah
CAPÍTULO 18

A li estava ele: Reuben. Sentado a uma mesa no café BFI, a falar com a namorada nova, cujo
rosto eu não conseguia ver. Ao pé da mão tinha o resto de um café, e tudo nele emanava um
brilho de autodomínio e masculinidade recém-descoberta.
Lembrei-me do rapaz tímido e magro que encontrara a tremer à porta de um restaurante mexicano,
tantos anos antes, com gel no cabelo e o pescoço coberto de aftershave barato. O tom trémulo e
inseguro da sua voz quando me convidara para sair, algumas horas depois. E olhem para ele agora!
Mais forte, mais corpulento, um autêntico herói californiano, com os calções à moda, os óculos de
sol, o cabelo deliberadamente revolto. Não consegui evitar um sorriso.
– Olá – disse, aproximando-me da mesa.
– Oh! – exclamou Reuben e, por um segundo, vi o jovem com quem me casara. O homem com
quem julgara que ficaria para sempre, porque uma vida permanente com ele naquela cidade alegre e
soalheira era tudo aquilo que pensava desejar.
– Olá! Deve ser a Sarah. – Kaia levantou-se.
– Como está? – disse, e estendi a mão. – Muito prazer.
Kaia era magra, de olhos claros. As marcas suaves da acne da juventude no queixo desapareciam
nas faces lisas; o cabelo escuro caía-lhe descuidadamente pelas costas.
Ela ignorou a minha mão estendida e beijou-me na face, segurando-me pelos ombros, com um
sorriso caloroso, e percebi nesse momento que o equilíbrio do poder deste dia penderia para o lado
dela. Era completa, esta mulher, e eu não.
– Ainda bem que conseguimos combinar este encontro – disse ela. – Há muito tempo que andava
ansiosa por atribuir uma cara ao nome.
Kaia era uma mulher com muito autocontrolo, se ainda não tinha dado uma cara ao meu nome
através do Google Images. Eu não possuía tanto autocontrolo e pesquisara-a mal soubera o seu
apelido, mas claro que Kaia não tinha qualquer pegada digital. Era demasiado pura.
Ela sentou-se, a sorrir, enquanto eu arrumava a mala debaixo da mesa e despia o casaco que me
estava a fazer surgir gotas de suor na testa. Ela era o tipo de mulher que às vezes eu via a meditar
na praia ao pôr do Sol, pensei, enquanto libertava os braços das mangas do casaco. Boa e terra a
terra, com sal na pele e o vento a soprar-lhe no cabelo.
– Então... – disse Reuben, sentando-se também. – Aqui estamos nós. – Abriu a boca mas depois
fechou-a, quando percebeu que não sabia o que dizer.
Kaia olhou para ele e a sua expressão suavizou-se. É a minha expressão, pensei, infantilmente. Eu
olhava assim para ele quando ele ficava perdido, e isso fazia-o sentir-se melhor.
– Ouvi falar tanto de si, Sarah – disse ela, olhando novamente para mim. Trazia um vestido
comprido com um padrão ikat ousado e um sortido de pulseiras de prata e, de alguma forma, era
mais elegante do que todas as pessoas à nossa volta. – E sei que uma pessoa é muito mais do que as
suas roupas – estaria a ler-me os pensamentos? –, mas tenho de dizer que adoro a sua saia.
Alisei-a com os dedos. Era uma das minhas melhores saias, na verdade, mas hoje não me estava a
sentir muito à vontade com ela. Como se fosse sexta-feira de vestuário casual e eu estivesse a
esforçar-me de mais.
– Obrigada – agradeci. Tentei pensar em alguma coisa para dizer que provasse que eu era mais
do que as minhas roupas, mas não me ocorreu nada.
Kaia pegou na carteira.
– Vou buscar bebidas. O que vai ser para si?
– Oh, que simpática. – Olhei para o relógio e fiquei desapontada ao ver que ainda não era meio-
dia. Com relutância, pedi uma gasosa com lima.
Ela levantou-se e Reuben imitou-a.
– Vou ajudar!
– Eu trato disto – disse ela. – Vocês os dois ponham a conversa em dia.
Mas Reuben insistiu e dei por mim sozinha à mesa.
E é isto, pensei. Este é o meu futuro. Gerir um negócio com o meu ex-marido, que namora
agora com uma instrutora de ioga. Uma das mais simpáticas. Vi-os dirigirem-se ao bar. Reuben
passou o braço pela cintura dela e, depois, virou-se com ar culpado para confirmar que eu não
estava a olhar.
Este é o meu futuro.
Seis semanas depois da nossa separação, Reuben entrara no escritório praticamente à beira de um
ataque de ansiedade.
– Sentes-te bem? – perguntei-lhe, espreitando por cima do computador enquanto ele ia contra um
dos armários.
Reuben virara-se de olhos arregalados.
– Conheci uma pessoa – disse abruptamente, encolhido à porta.
Um grande saco de narizes vermelhos caiu da prateleira do armário e ele apanhou-o e apertou-o
contra o peito.
– Desculpa – murmurou. – Não tinha planeado nada disto.
Aproximou-se de mim como um técnico de desarme de bombas a aproximar-se de uma mina,
perscrutando freneticamente o meu rosto. Deixou cair atrás de si um pequeno rasto de narizes, mas
nem reparou.
– Sinto-me tão mal por te dizer isto tão pouco tempo depois da separação – disse ele. – Queres
sentar-te?
Respondi que estava sentada.
Na verdade, fiquei estupefacta por perceber o pouco que a notícia me afetara. Era sem dúvida
estranho, mas estava mais curiosa do que ciumenta. Reuben tinha uma namorada! O meu Roo!
– Tens a certeza de que queres saber? – repetiu ele a cada pergunta minha.
Consegui saber apenas que Kaia trabalhava em part-time num bar de sumos em Glendale, que era
instrutora de ioga, que estava a tirar o curso de naturopatia e que Reuben estava completamente
perdido.
Agora, da mesa de café, via-a pedir as bebidas. Não era bela num sentido óbvio, ocidental, o que
de certa maneira só piorava as coisas. Simplesmente brilhava, de forma sã e saudável. E era boa
pessoa, parecia-me. Boa e Simpática, em contraste comigo, a Maníaca e Sombria. Reuben tocou-lhe
na ponta do nariz e riu-se. Costumava fazer isso comigo.
Isto seria tudo muito mais fácil, pensei, se as coisas entre mim e o Eddie tivessem corrido bem.
Mesmo que Reuben se pusesse de joelhos ali mesmo, no bar, e pedisse Kaia em casamento, eu teria
aplaudido e sorrido e provavelmente oferecer-me-ia para organizar o casamento.
Se Eddie tivesse ligado.
Senti o estômago às voltas e olhei para o telefone, como se isso pudesse ajudar.
E fiquei paralisada.
Aquilo era?... Seria mesmo?...
Um balão de texto. Um pequeno balão de texto cinzento, o que significava que Eddie – Eddie,
vivo, real, a respirar, algures no mundo – estava a escrever uma resposta às minhas mensagens.
Fiquei ali sentada, perfeitamente imóvel, a olhar para o balão, e a cidade desvaneceu-se à minha
volta.
– É tão agradável estar em Londres – disse Kaia, ao regressar com a minha bebida. Não! Vai-te
embora! – Já me tinha esquecido de como adoro esta cidade.
Olhei para baixo. O balão de texto ainda lá estava. Ele continuava a escrever. Senti um
formigueiro de terror, de êxtase. Terror e êxtase. Com esforço, sorri a Kaia. Ela tinha um daqueles
anéis que ficam a meio do dedo. Anos antes, comprara um para experimentar e deixara-o cair na
sanita de uma casa de banho pública na praia El Matador.
– Já conhecia Londres? – perguntei, contrariada.
O balão de texto ainda lá estava.
– Vim cá umas duas vezes em trabalho – respondeu ela. – Fui jornalista, noutra vida.
Estremeceu ligeiramente e esperei que ela continuasse. Não tinha, literalmente, nada para dizer.
(Isto! Era um daqueles momentos de que falara com a professora Rushby. A perda total de mim
própria. De boas maneiras, de sociabilidade, de controlo.)
Balão de texto: continuava lá.
– Mas percebi que não gostava realmente da minha vida. – Fez uma pausa, a pensar nessa época
em que não gostava realmente da sua vida. – Por isso procurei aquilo que me interessava, e
descobri que era nutrição, estar ao ar livre, manter o corpo forte e em paz. Abandonei a vida
acelerada e tirei o curso de instrutora de ioga. Foi uma das melhores coisas que alguma vez fiz.
– Oh, que bom – disse-lhe. – Namaste!
Kaia pegou na mão de Reuben por baixo da mesa.
– Mas depois, há dois anos, passei por um grande trauma e foi então que ocorreu a mudança mais
profunda...
Balão de texto: ainda lá estava.
– E percebi, quando comecei a emergir do fundo do poço, que não era suficiente ser fiel a mim
própria e às minhas necessidades. Tinha de alargar horizontes; tinha de ajudar os outros. Dar
livremente de mim própria, se isso não parece demasiado lamechas.
Corou.
– Oh, meu Deus, pareço uma completa maluquinha – riu-se, e lembrei-me de que isto não era
mais fácil para ela do que estava a ser para mim.
Reuben olhou para ela como se Kaia fosse a mãe de Cristo sentada ao lado dele.
– Não pareces nada uma maluquinha – disse. – Pois não, Sarah?
Pousei o telemóvel por um instante e olhei para ele. Estaria mesmo a pedir-me para fazer com
que a sua nova namorada se sentisse melhor?
– Bom, para resumir, ofereci-me como voluntária no Hospital Pediátrico – disse ela,
apressadamente. Queria parar de falar de si própria. – Como angariadora de fundos. Trabalho pelo
menos um dia por semana para eles, às vezes mais. E é tudo o que há a dizer sobre mim, na
verdade.
– Tenho sempre tempo para os angariadores de fundos do Hospital Pediátrico de Los Angeles –
respondi, contente por termos finalmente alguma coisa em comum. – São pessoas maravilhosas e
bons amigos da nossa instituição. Presumo que foi assim que se conheceram.
Kaia olhou para Reuben, que assentiu com ar inseguro. Não faz mal, queria eu dizer-lhe. Tenho
ciúmes da tua namorada, sim, mas só porque ela parece ter a vida orientada. Não por ainda sentir
alguma coisa por ti, meu querido.
O mais horrível nisto tudo, pensei, pegando novamente no telefone (o balão de texto continuava
lá) era que provavelmente eu me apaixonara mais profundamente por Eddie – com quem passara
apenas sete dias – do que por Reuben, com quem estivera casada dezassete anos. Era eu que me
devia sentir culpada, não Roo.
Virei o telemóvel para baixo em cima da mesa, enquanto esperava que a mensagem de Eddie
chegasse, e uma euforia aterrorizada invadiu-me. A espera chegara ao fim. Dentro de poucos
minutos, saberia.
Reuben, obviamente, não sabia o que contribuir para esta conversa, apesar de anos num trabalho
que o ensinara a comunicar em circunstâncias quase impossíveis. Depois de algumas tossidelas
pouco convincentes, começou a falar sobre o facto de em Londres não se sentir o sabor do cloro na
água da torneira, ou um disparate do género.
O meu telemóvel vibrou e agarrei-o imediatamente. Por fim. Por fim.
Mas era uma mensagem do meu pai.

Querida, se ainda não arrancaste para Gloucestershire, não vás. O teu avô foi despedido pelas pessoas que estavam a cuidar
dele. Já desistimos e vamos levá-lo para casa, onde podemos cuidar nós dele. Ficará no antigo quarto da Hannah. Por favor não
canceles a tua viagem para vir ter connosco. Gostamos muito de ti (e precisamos de ti...). Mas, se puderes adiar até amanhã,
agradecíamos muito. Beijinhos. Pai.

Abri imediatamente o Messenger, ignorando Reuben, Kaia, toda a gente.


Não tinha mensagem alguma. Eddie ainda estava online mas o balão de texto desaparecera.
Senti o coração afundar-se.
Com esforço, olhei para Kaia, que continuava a falar comigo.
– Vi dois dos vossos Doutores Palhaços numa enfermaria de oncologia há uns dois anos – estava
ela a dizer. Isto não pode estar a acontecer. Onde está a mensagem? – Havia um menino tão
doente, e triste, e zangado por causa do programa de quimioterapia, e fechou-se completamente
quando os vossos palhaços chegaram. Virou a cara para a parede e fingiu que eles não estavam lá.
– Já lhe expliquei que isso acontece frequentemente – disse Reuben em tom orgulhoso. – É por
isso que trabalham aos pares.
– É tão inteligente! – Kaia sorriu. – Trabalham um com o outro para que a criança possa decidir
se quer participar ou não, certo?
– Certo – confirmou Reuben. – Assim, são as crianças que detêm o controlo.
Oh, meu Deus. Que dupla enfadonha, e onde estava a minha mensagem?
– Então, ele virou-se e os vossos palhaços começaram a improvisar juntos e ele não conseguiu
resistir. Quer dizer, até eu estava a chorar de tanto rir! Quando eles saíram da enfermaria, o menino
estava perdido de riso.
De má vontade, assenti com a cabeça. Assistira a este tipo de coisas muitas vezes.
Desesperada por algo em que me concentrar que não fosse Eddie – qualquer coisa! –, lancei-me
numa história sobre a primeira vez que vira Reuben a trabalhar com crianças depois de ter treinado
um Doutor Palhaço. Kaia olhou para mim enquanto eu tagarelava, o queixo moreno pousado na mão
morena, a outra a segurar na de Reuben. Por fim, calei-me e olhei para o telemóvel, já a visualizar a
forma física da resposta dele, o comprimento da mensagem, o retângulo cinzento onde estaria.
Mas não tinha mensagem nenhuma. Não tinha mensagem nenhuma e Eddie estava outra vez
offline.
– Alguém quer beber mais alguma coisa? – perguntei, tirando a carteira da mala. – Vinho? –
Olhei para o relógio. – Já passam quinze minutos do meio-dia. É perfeitamente respeitável.
Enquanto esperava junto ao balcão, abracei-me a mim própria, embora sem saber se o fazia para
me reconfortar ou para não me desfazer.
Vinte minutos depois, altura em que o meu copo de vinho começara já a causar um leve
entorpecimento, Kaia pediu licença e foi à casa de banho. Vi as pernas esguias a moverem-se
debaixo da saia e tentei imaginar Kaia a ir buscar Reuben depois do trabalho para irem jantar fora,
ou talvez dar um passeio vespertino em Griffith Park. Kaia na nossa festa de Natal ou no churrasco
de verão; a almoçar com os pais de Reuben, que eram pessoas doces e nervosas, na sua casa em
Pasadena. Porque tudo isso ia acontecer. (Uma escolha muito melhor, imaginei a mãe de Roo a
dizer. Nunca deixara de temer que, um dia, eu voltasse para Inglaterra e levasse o filho dela
comigo.)
– Ela é encantadora – disse a Reuben.
– Obrigado. – Virou-se para mim, com expressão grata. – Obrigado por seres tão simpática.
Significa muito para mim.
– Nós precisávamos um do outro – disse eu após uma pausa, surpreendendo-nos a ambos. – E
agora já não precisamos. Conheceste uma rapariga simpática e estou muito feliz por ti, Roo. A
sério.
– Sim – disse ele, e quase consegui ouvir a alegria no fundo do seu coração.
Era como se Reuben tivesse respirado fundo, como se faz no início de uma aula de ioga, e nunca
mais tivesse voltado ao seu ritmo normal.
– Ouve – começou ele, atrapalhado. – Sarah, eu... tenho de te dizer, os teus e-mails de ontem à
noite pareceram-me invulgares. Parecias... pouco profissional. E enviaste aqueles documentos para
a direção sem falar com ninguém. Já para não mencionar que asseguraste a uma criança que ias
mandar os nossos palhaços ver a irmã dela sem sequer falar com o hospital em questão. Fiquei sem
saber o que fazer.
Kaia estava a regressar à mesa.
– Eu sei – respondi. – Tive um dia mau. Não voltará a acontecer.
Ele olhou para mim.
– Está tudo bem?
– Sim, estou apenas cansada.
Ele acenou lentamente.
– Bom, diz qualquer coisa se precisares. Cometemos erros quando não seguimos o protocolo.
– Eu sei. Ouve, precisamos de falar sobre a apresentação na unidade de cuidados paliativos.
– Está bem. Agora?
– Não podemos falar sobre isso à frente da Kaia.
Reuben franziu a testa.
– Oh, ela não se importa.
– Importo-me eu. São negócios, Roo.
– Não – disse Reuben, em tom gentil. – É uma instituição de solidariedade sem fins lucrativos.
Não são negócios. E a Kaia compreende. Está do nosso lado, não contra nós, Sarah.
Forcei um sorriso. Ele tinha razão. Ultimamente, parecia que toda a gente tinha razão exceto eu.

Reuben e Kaia saíram quarenta minutos depois. Reuben insistira em formular um plano para a
apresentação, apesar do que eu dissera. E eu cedera, pois não podia fazer outra coisa. Pelo menos,
Kaia oferecera-se para esperar por nós lá fora enquanto falávamos. («Não, não!», exclamara
Reuben. «Não é nenhum segredo.»)
Kaia despediu-se de mim com um beijo e um abraço.
– Foi um prazer conhecê-la – disse. – Mesmo.
E eu disse igualmente, porque na verdade não havia nada que não fosse agradável nesta mulher.

Depois de eles saírem, desliguei o telemóvel, liguei o computador portátil e trabalhei. Pessoas
entraram e saíram; saladas de atum e batatas fritas com pirâmides trémulas de maionese; copos de
vinho manchados de batom e canecas de cerveja. Lá fora, o sol estava encoberto por nuvens
cinzentas. Choveu, o vento soprou e o sol voltou. A humidade dissipou-se em vapor na margem do
rio; chapéus de chuva foram sacudidos.
Fora apenas no quinto dia da nossa aventura que eu olhara para Eddie David e pensara: era capaz
de passar o resto da vida contigo, era capaz de me comprometer com isso agora mesmo, e sei que
nunca me arrependeria.
Estávamos deitados na cama dele, debaixo de uma claraboia que ele dizia usar principalmente
para ver as estrelas e o tempo. O tempo abafado finalmente arrefecera e passava pelo campo uma
tempestade, com trovões e relâmpagos e a chuva a tamborilar no telhado do celeiro de Eddie.
Estávamos esticados cabeça com pés e Eddie massajou-me o pé distraidamente, enquanto olhava
para o céu tempestuoso.
– O que será que a ovelha Lucy pensa de tudo isto? – dissera. Ri-me, imaginando Lucy debaixo
de uma árvore a balir desconsoladamente.
– As tempestades em Los Angeles são uma loucura – disse-lhe. – Parece o fim do mundo.
Após uma pausa, ele perguntou:
– Como te sentes em relação ao regresso?
– Indecisa.
– Porquê?
Soergui a cabeça para o ver bem.
– O que é que achas?
Satisfeito, apoiou a cabeça no meu pé e disse:
– Bom, estás a ver, o problema é esse. Não sei se estou disposto a deixar-te ir.
E eu sorri-lhe e pensei: Se me dissesses para ficar, se me dissesses que podíamos começar uma
vida nova aqui, juntos, eu ficava. Apesar de só te conhecer há alguns dias, apesar de ter jurado
que nunca mais voltaria. Por ti, ficava.

Eram quase quatro horas quando acabei de fazer as malas. Liguei o telemóvel, embora, nesta
altura, já sem grandes expectativas. Porém, tinha uma mensagem de texto, de um número
desconhecido.
afasta-te do eddie, dizia.
Sem pontuação, sem introdução, sem maiúsculas. Apenas assim, afasta-te.
Sentei-me, aturdida. Reli a mensagem algumas vezes. Fora enviada às três em ponto.
Após alguns minutos, decidi ligar a Jo.
– Vem a minha casa – disse ela, imediatamente. – Vem já, querida. O Rudi está em casa do avô.
Vou dar-te um copo de vinho e, depois, vamos ligar para essa pessoa, essa pessoa transtornada, e
descobrir o que se passa. Está bem?
Chovia outra vez e a água sobre o Tamisa fazia com que o rio parecesse fazer uma birra, aos
saltos, aos gritos, tal como a tempestade que Eddie e eu tínhamos visto da cama dele. Esperei que a
chuva abrandasse durante alguns minutos e, depois, desisti e dirigi-me, sem casaco, à estação de
Waterloo.
CAPÍTULO 19

Meu amor,

Há bocado começaste a escrever-me qualquer coisa. O que ias dizer? Porque mudaste de
ideias? Não consegues mesmo falar comigo?
Vou continuar onde fiquei.
Poucos meses depois de eu fazer dezassete anos, houve um acidente de carro terrível em
Cirencester Road. Perdi a minha irmã, nesse dia, e perdi a minha vida... pelo menos, a vida que
sempre conhecera. Porque, depois de algumas semanas, percebi que não conseguia continuar a
viver ali. Nem em Frampton Mansell, nem em Gloucestershire, nem sequer em Inglaterra. Foi
uma época muito sombria.
Estava de rastos. Liguei ao Tommy, que vivia em Los Angeles há dois anos. Ele disse-me:
«Apanha o primeiro avião que conseguires.» E foi o que fiz. Literalmente: parti no dia seguinte.
Os meus pais foram maravilhosos. Muito altruístas, por me deixarem partir numa altura
daquelas. Não sei se teriam sido tão generosos, caso soubessem o que isso faria à nossa
família, mas, independentemente disso, puseram as minhas necessidades em primeiro lugar e,
na manhã seguinte, eu estava no aeroporto de Heathrow.
A família do Tommy vivia numa rua residencial chamada South Bedford Drive, tão larga
como a M4. Moravam numa casa estranha, castanho-clara, que parecia o cruzamento entre um
bungalow espanhol e uma mansão georgiana. No primeiro dia, olhei para aquela casa, agoniada
e tonta do calor e do jet-lag, e pensei que tinha aterrado na Lua.
Na verdade, estava em Beverly Hills.
– Eles não têm dinheiro para viver aqui – queixou-se o Tommy com ar grave enquanto me
mostrava a casa. Tinham uma piscina! Uma piscina! E um pátio com cadeiras e mesas e
trepadeiras e rosas e flores tropicais suspensas como nuvens cor-de-rosa. – A renda é
astronómica. Não imagino como conseguirão pagá-la, mas a minha mãe adora dizer às pessoas
em Inglaterra que tem um Saks ao virar da esquina.
Embora a mãe do Tommy estivesse quase irreconhecível, e ainda mais preocupada do que
antes com coisas como roupas e tratamentos e almoços nos quais certamente não devia comer
nada, foi suficientemente amável para perceber que eu precisava de uma fuga. Disse-me que
podia ficar o tempo que quisesse e ensinou-me onde comprar o exótico gelado de iogurte de
que o Tommy me falara nas suas cartas.
– Mas não comas de mais – avisou. – Não te posso deixar engordar.
Para lá do quadrado de relva bem aparada no jardim rodeado por uma cerca alta, estendia-se
uma cidade que me deixou estupefacta. Nunca me esquecerei da primeira vez que vi uma
estrada ladeada por palmeiras altas; os nomes das ruas em cartazes gigantes pendurados em
semáforos; quilómetro após quilómetro de casas baixas, rodeadas por jardins, construídas para
resistir a tremores de terra. O zumbido incessante dos aviões, os salões de manicure e as
montanhas escarpadas e os empregados para nos estacionarem o carro e as lojas de roupa
cheias de peças estupidamente caras e belas. Era tudo espantoso. Passei semanas apenas a
observar. As pessoas, as grinaldas de luzinhas minúsculas, a enorme extensão de areia dourada
e o Pacífico a rebentar todos os dias em Santa Monica. Era um milagre. Era Marte. E, por isso
mesmo, era perfeito.
Pouco depois de chegar, percebi que o convite do Tommy não fora puramente filantrópico.
Ele sentia-se sozinho. Sim, escapara à selvajaria implacável dos colegas, mas nada na sua
família, na sua relação consigo próprio ou na sua confiança na humanidade parecia ter mudado
para melhor. Aqueles primeiros indícios de obsessão com o corpo, que já tinha ao deixar
Inglaterra, pareciam ter desabrochado em algo muito mais sombrio. Não comia nada ou comia
tudo, fazia exercício duas e três vezes por dia, e tinha o quarto cheio de roupas das quais nem
sequer tirara as etiquetas. Pareceu envergonhado quando eu lá entrei, como se parte dele se
lembrasse de quem era antes de tudo aquilo.
Um dia, perguntei-lhe diretamente se era mesmo gay. Estávamos num mercado, na fila para
comprar tacos, e o Tommy já estava a murmurar uma mentira qualquer sobre não ter vontade de
comer. Lembro-me de estar a olhar para ele, a abanar a cara com o bilhete do parque de
estacionamento, e a pergunta brotou-me dos lábios sem que eu tivesse pensado muito.
Nenhum de nós estava à espera daquilo. Ele fitou-me durante alguns segundos e depois disse:
– Não, Harrington. Não sou gay. E que diabo tem isso a ver com tacos?
Atrás de nós, ouvimos uma gargalhada discreta. O Tommy encolheu-se; eu virei-me e vi uma
rapariga, uns dois anos mais velha do que eu, a rir abertamente.
– Desculpa – disse ela, com sotaque londrino. – Mas não pude deixar de ouvir. Tu, minha
amiga – apontou para mim, ainda a rir –, precisas de trabalhar a tua subtileza.
O Tommy concordou.
Eu também.
Uma hora sentados a uma mesa manca, a comer tacos, foi o princípio de uma amizade para
toda a vida. A rapariga, Jo, trabalhava como esteticista e vivia num apartamento miserável
perto dali. Nos meses seguintes, antes de ela ficar sem dinheiro e se ver forçada a voltar para
Inglaterra, conseguiu incutir em nós uma versão de felicidade e funcionalidade suficiente para
seguirmos em frente. Fez-nos falar – algo que não estávamos decididamente a conseguir fazer –
e obrigou-nos implacavelmente a ir a festas, à praia, a concertos gratuitos. É irascível e
impaciente, a nossa Jo Monk, mas também uma mulher de infinita bondade e coragem. Quando
não estou em Inglaterra, tenho muitas saudades dela.
Por fim, chegou setembro e eu tinha de regressar a Inglaterra para concluir o ensino
secundário. Só que não conseguia ir. Sempre que ligava para os meus pais e eles falavam no
regresso, eu desatava a chorar. Por fim, a minha mãe calava-se e o meu pai tinha de pegar no
auscultador da extensão que havia ao lado da casa de banho e fazer piadas. A mamã esforçava-
se ao máximo por parecer forte – alegre, até – mas um dia escapou-lhe, como se a sua própria
voz a tivesse apanhado distraída:
– Tenho tantas saudades tuas que me dói – murmurou. – Quero a minha família de volta.
Fiquei tão zangada comigo própria que nem sequer consegui responder.
Por fim, os meus pais acederam a que eu adiasse o último ano letivo para ficar mais algum
tempo. Vieram visitar-me e, embora fosse um alívio vê-los, a dor da ausência da Hannah era
lancinante. Eles insistiam em falar sobre ela, o que eu achava quase insuportável. Fiquei
aliviada quando se foram embora.
Depois, conheci o Reuben, arranjei trabalho e decidi que estava na altura de me tornar
alguém que eu conseguisse respeitar. Conto-te o resto para a próxima.

Sarah

PS: Amanhã vou a casa, ver os meus pais. O avô vai ficar algum tempo aqui com eles. Se
estiveres em Gloucestershire e disposto a conversar, liga-me.
CAPÍTULO 20

–S arah! – O meu pai, que parecia exausto, abraçou-me com força. – Graças a Deus – disse. –
Ainda bem que estás aqui. A nossa vozinha de calma e tranquilidade.
Ofereceu-me vinho, que recusei. Depois do encontro em Londres, na véspera, com Kaia e
Reuben, e da mensagem a avisar-me para me afastar de Eddie, fora a casa de Jo e bebera de mais.
O meu corpo informara-me esta manhã de que não toleraria qualquer bebida alcoólica durante
algum tempo.
– Oh, Sarah. – A minha mãe abraçou-me. – Sinto-me tão mal por estas semanas. Lamento mesmo
muito. – A minha mãe passava muito tempo a pedir desculpa pelas suas falhas, apesar de não ter
feito outra coisa senão amar-me e cuidar de mim desde o dia em que nasci.
– Para de dizer isso. Diverti-me imenso. Viram-me em Leicester. Não vos pareci feliz?
– Sim, acho que sim.
Ainda não sabia bem por que razão não lhes falara sobre Eddie. Talvez porque esta visita a casa
servisse para assinalar o aniversário do acidente, e não para ter uma semana de sexo com um
desconhecido. Ou talvez porque, quando cheguei a Leicester, já começava a ficar preocupada.
Ou talvez, pensei agora, estendendo um ramo de flores à minha mãe, porque parte de mim sempre
soubera que isto não ia acabar bem. A mesma parte de mim que olhara para Reuben no dia do nosso
casamento e pensara: Acabarei por ficar sem ele, um dia. Como fiquei sem a Hannah.
A mamã pôs as flores numa jarra e depois trocou-a por outra. E ainda uma terceira.
– Mete-te na tua vida – disse, quando me viu a olhar para ela. – Sou uma senhora reformada,
Sarah. Conquistei o direito a ser esquisita com os meus arranjos florais.
Sorri, silenciosamente aliviada. Da última vez que a vira, a minha mãe parecera-me diminuída,
de alguma forma, bidimensional, como uma caixa de cartão achatada para reciclar. O que não me
parecia nada bem porque, salvo uma quebra ou outra, ela sempre fora imensamente forte nos anos
após o acidente. Na verdade, a sua força de espírito fora a única coisa que apaziguara a minha
culpa por os ter deixado no meio de todo aquele sofrimento e caos.
Hoje, ela e o meu pai também estavam como eu os via sempre na minha mente: amáveis, sólidos,
confiantes. E ligeiramente alcoolizados, recordei a mim própria, enquanto a minha mãe se servia
de um copo de vinho, apesar de estarmos prestes a sair para o pub. Não os ponhas num pedestal.
Simplesmente lidaram com as coisas de forma diferente.
Olhei para o teto e baixei a voz.
– Como tem corrido? Como está ele?
– É um filho da mãe impossível de aturar – disse a minha mãe sem hesitar. – E eu posso dizê-lo
porque é meu pai, e gosto muito dele, e sei o que ele passou na vida. Mas não se pode negar: é um
filho da mãe impossível de aturar.
– É mesmo – concordou o meu pai. – Temos estado a contabilizar as queixas que ele já fez hoje.
Até agora vamos em trinta e três, e ainda falta um quarto para a uma. Porque não estás a beber?
– Estou ressacada.
A minha mãe baixou a cabeça.
– Sinto-me péssima quando digo mal dele – confessou. – Mas não se consegue estar com ele,
Sarah, tem dado connosco em doidos. O problema é que tenho muita pena dele, apesar de tudo. Já
está sozinho há tanto tempo. Tem uma qualidade de vida horrível, enfiado naquela casa sozinho,
sem ter ninguém com quem falar. – A minha avó, uma mulher tão gorda que parecia esférica nas
fotografias, morrera de um ataque cardíaco aos quarenta e quatro anos. Eu não chegara a conhecê-
la.
– Bom, pelo menos tem-vos aos dois. Tenho a certeza de que gosta da companhia, mesmo que não
pareça.
– Comporta-se como se tivesse sido raptado por terroristas. – A minha mãe suspirou. – Disse
mesmo isso hoje de manhã, quando lhe dei os comprimidos: «Não acredito que me raptaram e me
trouxeram para este fim de mundo.» Estive quase a acabar-lhe com o sofrimento.
O meu pai riu-se.
– És um anjo com ele – disse, e beijou-a carinhosamente. Afastei o olhar, ligeiramente repugnada
mas muito sensibilizada e, para dizer a verdade, um bocadinho invejosa. Ainda eram tão felizes
juntos. O meu pai levara a minha mãe a sair todos os dias até ela aceder a casar com ele;
telefonara-lhe, escrevera-lhe, enviara-lhe presentes. Levara-a a concertos e deixara-a sentar-se na
cabine de som com ele. Nunca a deixara pendurada. Nunca deixara de lhe telefonar.
Perguntei se havia de subir para dizer olá ao meu avô antes de sairmos para almoçar no pub.
– Felizmente para ti, ele está a dormir – disse a minha mãe. – Mas vai querer ver-te mais tarde,
de certeza.
Ergui uma sobrancelha.
– Tanto quanto alguma vez quer ver alguém, claro está.

Sentámo-nos na esplanada do Crown, embora não estivesse realmente calor para isso. As rajadas
de vento levantavam o cabelo da minha mãe como chamas alaranjadas, e o meu pai parecia
desequilibrado, ou talvez bêbado, porque o seu lado da mesa estava mais inclinado. No campo que
subia por cima da estrada, uma ovelha ajoelhara-se para pastar entre as urtigas. Ri-me e depois
parei de rir. Não sabia se alguma vez voltaria a achar graça a ovelhas.
– Conta-me lá essa história do violoncelo – pedi ao meu pai. No caminho, a minha mãe dissera-
me que ele andava a ter aulas.
– Ah! Bom, estava a beber um copo com o Paul Wise, no outono passado, e ele disse que tinha
lido no jornal que uma das maneiras de manter o cérebro jovem à medida que envelhecemos é tocar
um instrumento...
– E o teu pai pegou no carro, foi a Bristol e comprou um violoncelo – interrompeu a minha mãe. –
Era horrível, ao princípio, Sarah. Tocava mesmo mal. O Paul veio ouvi-lo...
– O filho da mãe fartou-se de rir – concluiu o meu pai. – Portanto, pratiquei como um maluco e
encontrei um professor em Bisley e já estou quase a passar para o Nível Dois. O Paul vai engolir o
que disse.
Levantei o copo para brindar ao meu pai, no momento em que um pica-pau tamborilou com o bico
duro no tronco de uma árvore. Baixei a mão. O som fazia-me lembrar tanto de Eddie, do tempo que
tínhamos passado juntos, que dei por mim incapaz de falar.
O meu estômago voltou a contrair-se.

Os meus pais falaram sobre o meu avô enquanto eu observava outra família, sentada junto de um
arbusto de delfínios ao fundo do jardim. Os pais eram parecidos com os meus: no início da
transição para a terceira idade; mais grisalhos, mais encolhidos, mas ainda firmemente instalados
nas suas vidas, não perdidos no passado. As filhas eram como eu imaginava que Hannah e eu
seríamos se pudéssemos estar as duas aqui sentadas hoje. A mais nova parecia estar a falar
veementemente sobre um tema qualquer e eu fiquei fascinada, a imaginar a minha irmã mais nova
em adulta. A Hannah adulta seria uma pessoa cheia de opiniões, pensei. Adoraria uma boa
polémica, nunca viraria costas a uma discussão – o tipo de mulher que está à frente de comités e é
secretamente temida pelos outros pais da escola.
– Sarah? – A minha mãe estava a olhar para mim. – Está tudo bem?
– Sim – respondi. E depois expliquei: – Estava a olhar para aquela família.
Os meus pais olharam.
– Oh, acho que o marido é amigo dos nossos vizinhos – disse ele. – Patrick? Peter? Qualquer
coisa com P.
A minha mãe não disse nada. Sabia o que eu estava a pensar.
– Só quero aquilo – disse eu baixinho. – Poder estar sentada a esta mesa com vocês os dois e
com a Hannah. Daria tudo para podermos estar aqui os quatro. A conversar, a comer.
A minha mãe baixou a cabeça e senti o meu pai ficar muito quieto, como acontecia sempre que eu
falava sobre Hannah.
– Nós também gostaríamos muito – disse a minha mãe, por fim. – Nem há palavras para dizer
quanto. Mas penso que aprendemos da pior maneira que é melhor concentrarmo-nos naquilo que
temos do que naquilo que não temos.
Uma nuvem encobriu o Sol e eu estremeci. Era típico de mim, este tipo de coisas. Deixar os meus
pais pouco à vontade, recordar-lhes como as coisas podiam ter sido.

Às seis da tarde tinha o coração aos saltos e os pensamentos dispersos como filamentos de um
dente-de-leão. Disse aos meus pais que ia sair para uma corrida, deixando-os com ar educadamente
estupefacto.
– É um novo regime de exercício – sorri, esperando que me permitissem manter essa ficção.
Revoltada comigo própria, subi para mudar de roupa. Não conseguia decidir o que era pior: que
este estado de adrenalina se tivesse tornado tão familiar, ou que não conseguisse encontrar outra
solução senão esgotar-me e mentir a quem gostava de mim.
Recorda-me lá, quando voltas para LA?, perguntou Tommy, por mensagem, mesmo antes de eu
sair.

Parto para Heathrow às 06h15m na terça. Prometo que não faço barulho.

OK. Então ficas connosco na segunda à noite, certo?

Se não houver problema. Tenho uma conferência em Richmond na segunda; devo chegar a tua casa por volta das 19h30m. Mas,
se não te der jeito, posso ficar no sofá da Jo. Imagino que tu e a Zoe estejam fartos de mim!

Não há problema nenhum. A Zoe está outra vez em Manchester. Então não estás cá no domingo à noite?

Negativo. Porquê? Vais receber outra mulher?

Ahah, não.

Ainda bem. Então vemo-nos na segunda-feira à noite, Tommy. Está tudo bem?

Tudo bem. E, na segunda-feira de manhã, vais diretamente para a conferência ou passas aqui primeiro?

Franzi a testa. Tommy e Zoe tinham sido extraordinariamente generosos com o seu quarto extra,
tanto nesta visita como em todas as anteriores, dando-me sempre uma chave e pondo-me à vontade
para usar o apartamento como se fosse meu. E, tirando uma vez ou outra em que jantávamos juntos,
não me lembrava de Tommy alguma vez me ter feito tantas perguntas sobre as minhas idas e vindas.
Ia passar pelo apartamento primeiro, mas posso ir diretamente para Richmond, se preferires,
respondi.
Não, disse Tommy. Podes vir. Até lá. E não te atrevas a ir à caça do Eddie enquanto aí estás, OK?
Não o procures, não passes à porta dele, não te vás pôr sentada no tal pub. Percebeste?
Percebi. Bom fim de semana e diverte-te com a tua amante secreta. Beijinhos.
Cuidadinho, escreveu ele. E depois: Estou a falar a sério, Harrington. Nem sequer tentes saber
dele, ouviste?
Por um instante, perguntei-me se Tommy estaria com esta conversa porque ele se ia encontrar com
Eddie. Pesei esta possibilidade durante uns bons minutos até me aperceber de como era ridícula.
Não podia negar que andava há dias a cozinhar a ideia de, numa das minhas corridas, passar por
Sapperton na esperança de ver Eddie. Embora não fizesse ideia se ele estava em Gloucestershire ou
em Londres. Ou no espaço sideral. E o que faria se o visse?
Mas sabia que ia correr até Sapperton e sabia que isso me faria sentir ainda pior, mas não
consegui ou não quis conter-me.

A corrida foi como eu calculava que seria ter um colapso nervoso. Eddie estava em todo o lado
para onde olhava: a vigiar-me nos ramos das árvores, sentado no velho canal, a passear no prado
entre as curvas sinuosas do rio. E, pouco depois, comecei a ver também Hannah, com as mesmas
roupas que vestia naquele dia, naquele dia horrível.
Quando me aproximava da ponte pedonal, vi uma mulher a caminhar na minha direção, vinda dos
lados de Sapperton. Ela, pelo menos, parecia real: gabardina, cabelo preso, sapatos práticos. Até
que parou, abruptamente, a olhar para mim.
Por motivos que não saberia explicar, parei de correr e olhei também para ela. Havia nela algo
familiar, no entanto eu sabia que nunca a vira. Estava demasiado longe para ter a certeza da sua
idade, mas daqui parecia bastante mais velha do que eu.
A mãe de Eddie? Seria possível? Olhei para ela mas não vi qualquer semelhança óbvia. Eddie
era largo, de rosto redondo, alto, enquanto esta mulher era extremamente magra e baixa, com queixo
pontiagudo. (E mesmo que fosse a mãe de Eddie, porque teria parado no meio do caminho a olhar
para mim? Eddie dissera que ela estava deprimida, não que era louca.) Além do mais, nem sequer
sabia que eu existia.
Após alguns segundos, ela deu meia-volta e começou a andar na direção de onde tinha vindo.
Caminhava com passo rápido, mas com a irregularidade de alguém para quem os movimentos não
são uma coisa fácil. Vira este passo muitas vezes em crianças que recuperavam de lesões.
Depois de ela desaparecer, continuei ali parada durante muito tempo.
Teria sido um confronto, ou a mulher simplesmente decidira pôr fim à sua caminhada e regressar
a casa? Afinal de contas, não havia outra maneira de voltar para trás naquela parte do caminho: ou
dava a volta por Frampton Mansell, que ainda ficava a alguns quilómetros dali, ou simplesmente
invertia o sentido e regressava diretamente a Sapperton.
Voltei para casa. Por várias vezes tive a certeza de que Eddie vinha no caminho, atrás de mim.
Mas, de cada uma dessas vezes, olhei e o trilho estava vazio. Até os pássaros pareciam silenciosos.
Não aguento isto, pensei, ao chegar ao alpendre dos meus pais, minutos depois. Não aguento
mais. Como é que eu chegara a este ponto, ao ponto de andar a vaguear pelo vale atrás de alguém
que já perdera?
Ao lado dos cabides, à entrada da porta, havia uma fotografia emoldurada de Hannah e eu no
campo atrás da casa. Eu estava sentada numa caixa de cartão, Hannah ao lado, com um raminho de
flores na mãozinha. Tinha as calças sujas de lama e terra das flores. Estava a olhar para a câmara
de testa franzida, com uma intensidade cómica que me fez doer o coração. Olhei para ela, para a
minha preciosa e pequena Hannah, e a perda engrossou como cola no meu peito.
– Tenho saudades tuas – sussurrei, tocando no vidro frio da moldura. – Tenho tantas saudades
tuas.
Imaginei-a a deitar-me a língua de fora, e estava a chorar quando dei de caras com o meu avô ao
cimo das escadas.
Estaquei.
– Oh! Avô!
Ele não disse nada.
– Fui dar uma corrida. Vim vê-lo depois de almoço, mas estava a dormir, por isso achei melhor...
Mas não conseguia. Não conseguia falar. Fiquei parada em frente do meu avô, eu com o
equipamento de corrida, ele com um roupão que não conseguira fechar bem, deixando ver por baixo
o algodão gasto do seu velho pijama azul, com um debrum azul-escuro. Senti o coração apertado. O
meu avô cheirava a um profundo cansaço. Chorei silenciosamente, com o rosto franzido à volta da
boca. Perdera Hannah e, agora, Eddie: sabia-o, não podia continuar a fingir o contrário, e aqui
estava o meu pobre avô, sozinho há quase cinquenta anos, desde que a minha avó morrera de ataque
cardíaco sentada na sua cadeira, a comer uma sandes de fiambre, e agora o avô devia estar a fazer o
seu exercício diário, porque tinha o andarilho à frente, e nenhum de nós sabia o que dizer ao outro.
Nenhum de nós fazia a mais pequena ideia.
– Vem ao meu quarto – disse ele, por fim.
O avô demorou muito tempo a instalar-se na poltrona que os meus pais tinham colocado no quarto
para ele. Enquanto isso, tentei limpar a cara e sentei-me na beira da velha cama de Hannah.
Pensei brevemente que ele tencionava realmente falar comigo, perguntar-me o que se passava.
Mas, claro, era o meu avô, e não fez nada disso. Via o meu sofrimento e queria ajudar, mas não
conseguia. Assim, ficou ali sentado a olhar para a janela e, de vez em quando, para um ponto da
parede ao lado da minha cara, até que eu comecei a falar.
Falei-lhe sobre a família que estava a almoçar no pub, e na sensação assustadora que me invadia
sempre que estava neste vale, mesmo tantos anos depois.
– Não há dia nenhum – disse-lhe – em que não pense na Hannah. Em que não anseie por poder
voltar a vê-la, nem que fosse por cinco minutos. Abraçá-la, percebe?
O avô inclinou a cabeça num aceno seco. Reparei que tinha esticado a roupa da cama e que
conseguira ajeitar a almofada antes de ir fazer a sua caminhada no corredor. Fiquei sensibilizada. A
necessidade de ordem, mesmo no meio do maior caos, era algo que eu compreendia bem.
– E depois pensei que as coisas estavam a mudar, avô. Conheci um homem, aqui em
Gloucestershire, enquanto a mamã e o papá estavam a cuidar de si.
Ou muito me enganava, ou ele erguera ligeiramente uma sobrancelha.
– Continua, por favor – disse ele, depois do que me pareceu uma eternidade.
Fiz uma pausa.
– Presumo que soube que eu e o meu marido nos separámos.
Mais uma vez, um aceno lento.
– Embora tenha sido preciso arrancar a informação a ferros – disse ele. – Quando passamos dos
oitenta, as pessoas acham que morreremos de choque se nos derem más notícias. – Fez uma pausa. –
Quer dizer, hoje em dia quase todas as pessoas da tua geração se divorciam, não é? Só fico
espantado por ainda se darem ao trabalho de casar.
Uma petinha-dos-prados azul pousou no comedouro pendurado do lado de fora da janela do
quarto, bicou qualquer coisa e levantou voo. Discos caleidoscópicos de sol da tarde rodavam no
banco sob a janela, onde Hannah costumava ter a sua coleção de ouriços-cacheiros de brincar. O
quarto estava quente e silencioso.
– Estavas a dizer?
Não estava a dizer nada, quase respondi, mas havia qualquer coisa na postura dele, nos seus
olhos, que me disse que ele queria saber. Que talvez estivesse realmente interessado. E, se optara
por falar com ele, tinha de estar preparada para uma resposta torta de vez em quando.
Assim, contei-lhe tudo. Desde o momento em que ouvira a gargalhada de Eddie no jardim da
aldeia, até à minha corrida junto ao canal de há pouco, e todas as coisas vergonhosas e
desesperadas que fizera desde o desaparecimento dele.
– Felizmente, o avô escapou-se às indignidades da perseguição digital, por ter crescido noutros
tempos – disse-lhe. – Mas não é uma experiência agradável. Nunca tem os resultados que
esperamos. – Era muito terapêutico, isto de falar com uma pessoa calada; não conseguia parar. –
Nunca nos dá o controlo da situação.
O meu avô não disse nada durante um longo momento.
– Não aprovo as tuas ações – disse, por fim. – Parecem-me idiotas e completamente inúteis.
– De acordo.
– Mas compreendo-as, Sarah.
Ergui os olhos; para variar, ele estava a olhar diretamente para mim.
– Eu apaixonei-me por uma mulher por quem teria derrubado edifícios, se pudesse. Amei-a até ao
dia em que ela morreu. Ainda a amo, tantos anos depois. Ainda hoje me custa.
– A avó.
Ele afastou o olhar.
– Não.
Um grande armário de silêncio escancarou-se entre nós. Lá em baixo, ouvi os meus pais a rirem
de alguma coisa; os sons abafados deram lugar à voz de Patsy Cline a sair da aparelhagem.
– Ruby Merryfield – disse o meu avô, por fim. – Foi o amor da minha vida. Toda a gente me dizia
que não me podia casar com ela, por isso não o fiz. Ela teve um amante quando era nova, e deu à
luz um filho que foi colocado numa família adotiva. Isso partiu-lhe o coração. Ninguém soube senão
os meus pais, porque o meu pai era médico dela. Proibiu-me de casar com ela. Travei uma batalha
feroz, Sarah, mas por fim tive de ceder, porque estava na Faculdade de Medicina e precisava do
apoio dele.
Agitou as mãos trémulas.
– Assim, deixei de a procurar e, um ano depois, casei-me com a tua avó e tivemos uma vida boa
juntos, a Diana e eu. Mas não houve um dia em que não pensasse na Ruby. Tinha saudades dela.
Escrevia-lhe cartas que não me atrevia a enviar. E, quando soube que ela tinha morrido de gripe, fiz
uma viagem de pesca que durou vários dias, porque adoeci de desgosto. Para os lados de Cannock.
Mas era um sítio demasiado bonito. Preferia ter ido a algum lado feio.
O avô tinha os olhos húmidos.
– Ela tinha uma gargalhada que parecia um passarinho, ao princípio, mas depois explodia num
riso muito invulgar de se ver numa senhora naquele tempo. Via a alegria da vida, onde quer que
fosse.
O avô encostou aos olhos as costas da mão, com a pele flácida e manchada. A luz estava a
desaparecer rapidamente do quarto.
– Nunca devia ter desistido dela – declarou.
A petinha-dos-prados voltou e ficámos a observá-la em silêncio.
– Não me arrependo completamente da minha decisão – continuou ele. – Tal como te disse,
gostava muito da Diana e chorei sinceramente a morte dela. E, sem ela, não teria tido a tua mãe e a
tua tia, embora só Deus saiba o trabalho que esta me deu.
O mais recente marido da minha tia chamava-se Jazz.
– Mas, se pudesse voltar atrás, não teria desistido – afirmou o avô. – Não acredito que o amor
seja como uma explosão. Não tem de ser dramático, ou ávido, ou qualquer outra dessas palavras
parvas que os escritores e os músicos utilizam. Mas acredito que, quando sabemos, sabemos. E eu
sabia, e desisti sem fazer tudo o que podia, e nunca me perdoarei por isso.
Fechou os olhos.
– Tenho de me deitar. E não, não preciso da tua ajuda. Podes fechar a porta quando saíres?
Obrigado, Sarah.
CAPÍTULO 21

Querido Eddie,

Na ausência de um pedido para parar de te escrever, vou continuar.


Estava no ponto em que decidimos que eu ficaria mais alguns meses em Los Angeles, embora
isso implicasse perder um ano letivo. Não me importei: não conseguia regressar.
Tinha um total de dois amigos e vivia na «suite de hóspedes» de uma casa em Beverly Hills,
com piscina e uma empregada a tempo inteiro. A única coisa que me recordava vagamente de
casa eram os plátanos de ambos os lados de South Bedford Drive. Só que não eram exatamente
como em casa, porque o verão fora brutalmente quente e, quando chegámos a setembro, as
árvores estavam ressequidas como bacon crocante.
A mãe do Tommy arranjou-me trabalho a limpar as casas de umas amigas, para poder ter
algum dinheiro: era a minha única opção, sem um visto de trabalho. Limpava as casas dos
Stein, dos Tyson e dos Garwin, e às quartas-feiras à tarde fazia as compras semanais da
senhora Garcia, que andava a tentar convencer-me a ser au pair dos filhos dela. Irritava-a
muito o facto de eu continuar a dizer não. Não percebia como diabo podia dar-me tão bem com
os filhos e recusar-me a cuidar deles, e eu não conseguia explicar-lhe porquê.
Pensava já ter atingido a minha altura definitiva mas recomecei a crescer, para cima e para
os lados. Agora tinha peito, e cintura, e rabo. Estava a ficar com a forma que tenho hoje,
suponho, e a tentar perceber que tipo de mulher queria ser. Forte, decidi. Forte, motivada e
bem-sucedida. Passara demasiados anos a ser fraca, tímida, passiva.
Um dia, em novembro, a filha da senhora Garcia, a Casey, partiu o braço no jardim de
infância. A au pair que a senhora Garcia acabara por contratar ficou com o irmão da Casey e
pediram-me para levar a menina de táxi ao hospital. A senhora Garcia vinha a caminho, de uma
conferência em Orange County. Insistiu para que eu levasse a filha ao Hospital Pediátrico de
LA, embora ficasse bastante longe – conhecia lá pessoas, disse; queria que a Casey visse um
rosto familiar enquanto esperava pela mãe.
Pobre Casey. Estava tão assustada e com dores; quando chegámos ao hospital, depois de
atravessar toda a cidade, ela batia os dentes e não conseguia sequer falar com os médicos.
Fiquei muito impressionada.
Assim que a senhora Garcia chegou, saí do hospital e fui à procura de uma loja de partidas
que alguém mencionara, perto do cruzamento de Vermont e Hollywood. Queria encontrar
qualquer coisa para fazer a Casey rir. Contudo, antes de lá chegar, cruzei-me com uma caterva
de crianças que saíam de um restaurante mexicano na esquina. Tinham balões e pinturas faciais
e pareciam estar a um milhão de quilómetros do sítio onde a Casey estava.
Pouco depois de uma mãe de ar cansado as mandar entrar novamente no restaurante, um
palhaço saiu e encostou-se à parede. Parecia esgotado. Tirou do bolso um maço de cigarros e
uma cerveja mexicana embrulhada num saco de papel. Ri-me quando ele a abriu e bebeu um
longo trago, aliviado. Era um palhaço engraçado, sem pinturas faciais nem cabeleira, apenas
um rapaz com um nariz vermelho e roupas excêntricas. E uma cerveja ilegal.
– Não é o que parece – disse ele, quando me viu. – Não estou mesmo a beber e a fumar numa
festa infantil.
Disse-lhe para não se preocupar e pedi indicações para a loja que procurava. Ele apontou
para um edifício coberto de graffiti e murais.
– Posso ir contigo? – perguntou o palhaço. – Estou traumatizado. Estudei com o Philippe
Gaulier em França. Devia estar num teatro, não a animar festas infantis.
Perguntei qual era a diferença e fiquei a saber que era bastante considerável.
– Tive uma ideia – disse-lhe, parando à porta da loja. – Se eu prometer não te denunciar por
estares a beber e a fumar à porta de uma festa infantil, fazes-me um favor? Um favor bastante
grande?
E assim este pobre rapaz, que provavelmente cheirava a cigarros e álcool, seguiu-me até ao
Hospital Pediátrico e fez uma visita à Casey.
À medida que nos aproximávamos do quarto nas Urgências onde Casey se encontrava, senti a
energia dele mudar.
– A partir de agora serei o Franc Fromage. Não me trates pelo meu nome normal – pediu ele,
embora eu não soubesse qual era o seu «nome normal».
Franc Fromage aproximou-se da cabeceira da Casey e empunhou um ukelele. Cantou uma
canção ao braço dela, por estar partido, e a Casey, embora ainda estivesse assustada e aflita,
não conseguiu conter o riso. E, depois, ele pediu-lhe para o ajudar a inventar o verso seguinte,
e ela concentrou-se de tal maneira nisso que se esqueceu de onde se encontrava e de como
estava assustada. Pouco depois, acedeu a deixar os médicos examinarem-lhe o braço.
Monsieur Fromage disse-me que tinha gostado muito da visita. Ficou entusiasmado e
começou a usar uma série de expressões teatrais e psicológicas que eu não compreendia. Fui
salva por uma enfermeira que veio pedir a Franc Fromage se podia voltar, porque todas as
outras crianças queriam conhecer o homem do ukelele e do nariz vermelho.
Quando finalmente se conseguiu ir embora, deu-me o seu número de telefone e – visivelmente
aterrorizado – disse-me que eu ficava a dever-lhe um copo.
– Chamo-me Reuben – informou em tom sério. – Reuben Mackey.
Assim, liguei-lhe e saímos juntos. O Reuben disse-me que andava a pesquisar o tema dos
palhaços em hospitais desde o nosso primeiro encontro e, pelos vistos, era algo que existia
mesmo e que tinha um método e estudos próprios. Um tipo qualquer em Nova Iorque fundara a
primeira instituição sem fins lucrativos desse género, nos anos oitenta. Quero estudar com ele,
disse o Reuben. Usar as minhas capacidades para ajudar as pessoas, não apenas para as fazer
rir.
Nessa noite não aconteceu nada. Acho que éramos ambos demasiado tímidos. Além disso, o
Tommy e a Jo estavam a vigiar-nos de uma mesa no café do outro lado da rua, «para o caso de
ele ser um daqueles palhaços assassinos», dissera a Jo.
Depois, a senhora Garcia pediu-me se podia levar Franc Fromage ao hospital outra vez,
porque iam tirar o gesso à Casey. Ele aceitou, na condição de eu lhe pagar outra bebida.
Não só ajudou a Casey a tirar o gesso, como passou horas com as outras crianças na
enfermaria de ortopedia. Só parou quando se apercebeu de que tinha as mãos a tremer de fome.
– Por favor, volte! – implorou uma das enfermeiras.
O problema era que ele não podia dar-se ao luxo de trabalhar de graça. Partilhava um
apartamento minúsculo em Koreatown, disse-me, e tinha todos os cêntimos contados.
Foi então que eu disse:
– E se eu angariasse dinheiro para fazeres este trabalho um dia por mês? – Disse-lhe que
trabalhava para uma série de famílias abastadas e que a notícia do que ele fazia no hospital
estava a espalhar-se rapidamente.
E foi assim que começou. A minha relação com um palhaço e o nascimento da nossa
instituição. Ele foi para Nova Iorque, onde teve formação com psicólogos pediátricos,
psicoterapeutas e profissionais das artes teatrais. Depois, voltou e arrancámos. Ele visitava as
crianças doentes e eu ficava nos bastidores a angariar dinheiro e a organizar, o que era perfeito
para mim. Queria estar envolvida – queria-o mais do que sabia –, mas não queria estar nas
luzes da ribalta.
E era boa no meu trabalho. O Reuben era bom no seu. As pessoas viam o que fazíamos,
ouviam falar em nós, e queriam que fôssemos visitar crianças doentes. Contratámos mais três
pessoas e o Reuben deu-lhes formação. Pouco tempo depois, fundámos a nossa primeira
academia de formação. Casámo-nos e arrendámos um apartamento em Los Feliz, perto do
Hospital Pediátrico. Anos mais tarde, os hipsters invadiram o bairro e o Reuben começou a
sentir-se em casa.
Quanto a mim, tinha um objetivo, uma direção, e não me sobrava tempo para pensar na vida
que deixara para trás. Tinha um homem que precisava que eu fosse forte quando ele era fraco, e
vice-versa. O nosso amor baseava-se em necessidade e forças recíprocas, e funcionava
perfeitamente.
Durante muito tempo, esse tipo de amor foi tudo aquilo que eu pensava precisar. Quando
prometi amá-lo e honrá-lo para sempre, estava a ser sincera. Mas, claro, mudei. À medida que
os anos passavam, deixei de precisar dele e, assim, o nosso equilíbrio ficou ferido de morte.
Gostávamos muito um do outro, Eddie, mas, sem esse equilíbrio de necessidade, a balança
ficou descontrolada. A minha incapacidade de lhe dar um filho foi a última gota. Depois do
acidente de carro, eu não suportava estar perto de crianças; não conseguia suportar a ideia de
ver uma criança a sofrer. A perspetiva de pôr um filho neste mundo – um bebé indefeso, como a
minha irmã fora em tempos – deixava-me numa tempestade de pânico cego.
Assim, limitei-me a ajudar as crianças, dos bastidores. Era suportável e era seguro. Era o
melhor que podia fazer, mas não era suficiente para o Reuben. Ele queria ter nos braços o seu
próprio filho, disse-me. Não conseguia imaginar um futuro em que tal não fosse possível.
Quando ele arranjou coragem para pôr fim à relação, percebi que não fazia ideia do que era
o amor. Porém, quando te conheci, soube finalmente como devia ser. Os poucos dias que
passámos juntos não foram apenas uma aventura para mim, e não acredito que tenham sido
apenas isso para ti.
Por favor, escreve-me.

Sarah
CAPÍTULO 22

GUARDADO EM: RASCUNHOS

Tens razão, Sarah. Não foi apenas uma aventura. E também não foi apenas uma semana; foi uma vida.
Tudo aquilo que sentiste em relação a nós, eu senti-o também. Mas devias parar de me contactar. Não sou quem pensas que sou.
Ou talvez seja quem tu pensas que não sou.
Céus, que confusão. Que grande confusão.
Eddie

A GADO, 00h12m
CAP ÍTULO 23

A pós apenas quatro dias com os meus pais em Gloucestershire, regressei a Londres. Ia almoçar
em Richmond com Charles, o nosso parceiro na cidade; depois, falaria na conferência de
cuidados paliativos que ele ajudara a organizar. Passaria a noite em casa de Tommy e iniciaria a
viagem de quase nove mil quilómetros, de regresso a Los Angeles, bem cedo na manhã seguinte.
Fiz a viagem de comboio para Londres em perfeito silêncio e imobilidade, sem saber se estava
entorpecida ou apenas resignada. Disse todas as coisas certas a Charles durante o almoço e, na
conferência, falei com precisão mas sem paixão. Charles, quando me despedi dele, perguntou-me se
estava tudo bem. A preocupação dele deixou-me à beira das lágrimas, por isso contei-lhe que me
tinha separado de Reuben.
– Por favor, não conte a ninguém – implorei. – Queremos anunciar de forma oficial, juntos, na
próxima reunião da direção...
– Claro – assegurou-me Charles. – Lamento muito, Sarah.
Senti-me uma fraude terrível.

Amanhã, prometi a mim mesma, no comboio em direção ao centro de Londres. Amanhã


recuperaria o controlo. Amanhã apanharia um avião e regressaria a Los Angeles, onde
redescobriria o entorpecimento do sol, a confiança e o meu melhor eu. Amanhã.
O comboio entrou na estação de Battersea Park e encostei a cabeça ao vidro sujo da janela,
observando o aglomerado de pessoas na plataforma. Toda a gente queria entrar no comboio antes
que os passageiros tivessem hipótese de sair. Vi ombros tensos, lábios apertados, olhos baixos.
Todos pareciam zangados.
Vi um homem com um equipamento de futebol vermelho e branco abrir caminho para sair do
comboio, com um fato dobrado sobre o braço. Dirigiu-se aos bancos vazios frente à minha janela e
olhei distraidamente para ele enquanto dobrava cuidadosamente o fato e o guardava no saco.
Passado algum tempo, endireitou-se e olhou para o relógio, passou os olhos por mim por uma
fração de segundo e pôs o saco ao ombro.
E depois, enquanto o meu comboio começava a afastar-se da plataforma, virei a cabeça para o
seguir com os olhos enquanto ele se dirigia às escadas, porque me apercebi de súbito do que dizia
na sua camisola. Old Robsonians. Est. 1996.
Na esperança de ter outro caminho para procurar Eddie, tentara muitas vezes lembrar-me do
nome da sua equipa de futebol. Contudo, para além da palavra «Old», não me ocorria mais nada. O
comboio começou a acelerar e eu fechei os olhos, concentrando-me na memória dos troféus de
futebol de Eddie. Old Robsonians? Era isso que diziam?
Lembrei-me do dedo de Eddie, a sacudir um rolo de poeira de cima de um dos troféus. Sim! Old
Robsonians, The Elms, Battersea Monday. Tinha a certeza!
Olhei novamente pela janela, embora a estação tivesse há muito ficado para trás. Para lá de uma
velha fábrica de gás, erguia-se o esqueleto de um enorme estaleiro de construção, sobre o qual se
movimentavam guindastes de altura estonteante.
Aquele homem jogava na equipa de futebol de Eddie.
Old Robinson futenik, escrevi, mas o Google sabia o que eu procurava. Apareceu um site.
Fotografias de homens que não conhecia. Links para reportagens, resultados de jogos, um artigo
sobre a digressão pelos EUA. (Seria aí que ele estava? Nos Estados Unidos?)
No canto da página, passei o feed de Twitter da equipa: resultados, piadas, mais fotografias de
homens desconhecidos. E, depois, a fotografia de um homem conhecido. Com data de uma semana
atrás. Eddie, ao fundo de uma fotografia tirada num pub depois de um jogo, a beber uma cerveja e a
falar com um homem de fato. Eddie.
Depois de olhar para a fotografia durante muito tempo, selecionei «Sobre Nós».
Os Old Robsonians jogavam nuns campos de relva artificial mesmo ao lado da estação de
comboio de Battersea Park, às segundas-feiras à noite. O pontapé de saída era às oito da noite.
Olhei para o relógio. Ainda não eram sete. Então porque estaria o outro homem a chegar tão
cedo?
Em Vauxhall, hesitei à porta do comboio, sem saber o que fazer. Não havia qualquer garantia de
que Eddie estivesse em Londres, ou fosse jogar esta noite. E, segundo o site, o campo de futebol
ficava numa escola: portanto, ou eu tencionava marchar decididamente até lá para o confrontar, ou
mais valia não ir. Não podia fingir que ia a passar por acaso.
As portas do comboio fecharam-se e continuei a bordo.
Na estação de Victoria, saí e parei, paralisada, no passeio apinhado. As pessoas passavam à
minha volta e iam contra mim; uma mulher disse-me diretamente para «não ficar aí parada como
uma idiota». Não me mexi. Praticamente nem reparei: só conseguia pensar na possibilidade de
Eddie, dentro de menos de uma hora, estar a jogar futebol a poucos minutos de onde eu me
encontrava.
CAPÍTULO 24

Meu amor,

Hoje é 11 de julho – o teu aniversário! Passaram trinta e dois anos desde o dia em que
abriste caminho para o brilho estonteante deste mundo, a agitar os punhos no ar como pequenos
tentáculos.
E lá saíste tu, para o colo quente e desfocado do amor.
– É demasiado pequena! – gritei, quando me deixaram visitar-te. Conseguia sentir as tuas
costelas frágeis à volta do pequeno coração. – É muito pequena. Como pode sobreviver?
Mas sobreviveste, Ouriço-Cacheiro. Lembro-me como se fosse hoje daquela inundação
fantástica de amor da qual não estava nada à espera. Não me importava que a mãe e o pai
passassem o tempo todo contigo. Queria que o fizessem. Queria que as tuas costelas ficassem
mais fortes, que engrossassem e fortalecessem à volta daquela pequena luz de vida no teu peito.
Queria que ficasses no hospital meses, não meros dias.
– Ela está ótima – diziam-me eles, repetidamente. O pai fez-me uma tarte de banana e café,
porque eu estava com tanto medo, por ti, que me fartei de chorar. Contudo, estavas ótima.
Aquele coraçãozinho continuou a bater, dia e noite, semana após semana enquanto as estações
mudavam e tu crescias e crescias.
Sabias que hoje é o teu aniversário, Ouriço-Cacheiro? Alguém te disse? Alguém te fez um
bolo, coberto de estrelas de chocolate, como tu gostavas? Alguém te cantou?
Bom, se ninguém o fez, eu cantei. Talvez me tenhas ouvido. Talvez estejas comigo agora,
enquanto escrevo esta carta. A rir porque a tua caligrafia é muito mais bonita do que a minha,
apesar de seres mais nova. Talvez estejas lá fora, a brincar na casa da árvore, ou a ler revistas
de raparigas no teu covil em Broad Ride.
Talvez estejas em todo o lado. É a ideia de que gosto mais. Lá em cima, nas nuvens rosadas.
Cá em baixo, na humidade da alvorada.
Onde quer que vá, procuro-te. E, onde quer que esteja, vejo-te.

Beijos. Eu
CAPÍTULO 25

N a minha última noite em Londres, fui assistir a um jogo de futebol de seis em Battersea, na
esperança de encontrar um homem que conhecera algum tempo antes, um homem que nunca me
telefonara.
O que fiz nessa noite ficaria muito além do limiar incerto da sanidade. Mas, ali parada à saída da
estação de Victoria, a tentar argumentar comigo própria, chegara à conclusão de que a minha
vontade de ver Eddie era mais forte do que a preocupação com as consequências.
E agora aqui estava eu, apertada num canto do comboio das 19h52m para London Bridge por
Crystal Palace, primeira paragem Battersea Park. A menos de dois minutos a pé da estação,
encontraria um campo de relva artificial e, nele – o meu estômago deu uma volta como uma
panqueca –, Eddie David. Equipado, a aquecer para o jogo das oito. Agora mesmo. A passar a bola
a um companheiro de equipa. A alongar os quadríceps.
O corpo dele. O seu corpo físico e sólido. Fechei os olhos e sufoquei uma vaga de desejo.
O comboio já estava a abrandar. O guincho dos travões, uma vaga pulsante de passageiros a
empurrar-me para os degraus, e depois – de forma súbita e chocante – vi-me em Battersea Park
Road. Atrás de mim, o grito amplificado dos vendedores de bilhetes, a guitarra de um artista de rua.
Por cima de mim, os gemidos e rangidos dos viadutos ferroviários e nuvens brancas e densas, como
merengues. E à minha frente, algures ao fundo de uma estrada de terra, Eddie David.
Fiquei ali parada algum tempo, a respirar lentamente. Mais duas vagas de passageiros se
espraiaram à minha volta. Um homem, com uma camisola de futebol vermelha e branca, com o
nome «PAGLIERO» em letras pretas nas costas, correu pela estrada em direção ao campo, tentando
ao mesmo tempo enviar uma mensagem no telemóvel e fixar as caneleiras nas pernas. O saco verde
que trazia ao ombro rodou e acertou-lhe na cara, mas continuou a correr.
Aquele homem conhece Eddie, pensei. Provavelmente, conhece-o há anos.
Quando o campo surgiu ao fundo da estrada, tudo o que vira online se confirmou. O campo estava
rodeado por todos os lados por altas cercas de arame, viadutos ferroviários, edifícios. Não teria
onde me esconder. E no entanto ali estava eu, no meu metro e setenta e cinco, a aproximar-me cada
vez mais, com a blusa elegante que levara à conferência.
Isto é a coisa mais ridícula que alguma vez farei na vida.
Mas as minhas pernas continuaram a andar.
Os jogadores no campo mais próximo de mim estavam a aquecer. Um árbitro correu para o centro
do terreno com o apito na boca. Tudo se movia lentamente, como uma velha cassete VHS a começar
a encravar. O ar cheirava a borracha queimada e a vapores de escape.
As minhas pernas continuaram a andar.
– Dá meia-volta e corre – disse a mim própria, num murmúrio alto. – Dá meia-volta e corre, e
podemos fingir que isto nunca aconteceu.
As minhas pernas continuaram a andar.
Foi nesse momento que me apercebi de que, além do PAGLIERO, não havia mais jogadores com
o equipamento vermelho e branco dos Old Robsonians. Havia uma equipa de azul e uma equipa de
laranja no campo mais perto de mim, e, no outro, uma equipa de preto e branco contra uma equipa
de verde.
PAGLIERO estava a guardar as caneleiras no saco. Passado algum tempo, endireitou-se e reparou
em mim.
– É jogador dos Old Robsonians? – perguntei.
– Sou, um jogador muito atrasado. Está à procura de alguém?
– Bom, da equipa toda, acho eu.
PAGLIERO tinha o sorriso malicioso de um rapaz.
– O jogo foi antecipado para as sete. Esqueci-me. Já jogaram.
– Oh.
Pegou no saco.
– Mas devem estar ali, a beber uma cerveja pós-jogo. Quer juntar-se a nós? – Apontou para o que
me pareceu ser um contentor.
Olhei melhor. Era mesmo um contentor. Típico de Londres. Uma cervejaria com cerveja
artesanal, provavelmente, num raio de um contentor sem janelas.
– Por favor, junte-se a nós – insistiu ele. – Gostamos de visitas.
PAGLIERO parecia demasiado desorganizado para ser um violador ou um assassino, por isso
segui-o, fazendo conversa de circunstância que nem sequer ouvi. Já não detinha o controlo da minha
mente, por isso estava tudo bem.
– Faça favor – disse PAGLIERO, abrindo a porta num dos lados do contentor.
Fiquei a olhar para o rabo nu de um homem adulto durante alguns instantes antes de perceber o
que se passava. Antes de perceber que estava a olhar para o rabo nu de um homem adulto, com uma
toalha ao pescoço e de costas para a porta, que cantava qualquer coisa com grande entusiasmo e
muito pouca harmonia. Outros homens, mais vestidos do que este, estavam sentados em bancos
corridos, a discutir sobre o jogo. À volta deles, uma selva de camisolas de futebol amarrotadas
diziam «SAUNDERS», «VAUGHAN», «WOODHOUSE», «MORLEY-SMITH», «ADAMS»,
«HUNTER».
À porta daquilo que, percebia agora, deviam ser os balneários, o homem adulto nu enfiou uns
boxers.
«Oh, não», disse algo dentro de mim, mas as palavras não me chegaram à boca. Atrás de mim, na
direção de PAGLIERO, ouvi um homem rir.
– Pags! – exclamou alguém. – Estás uma hora atrasado. – E depois: – Oh! Olá.
Regressei à vida.
– Peço desculpa – murmurei, e virei-me para sair. PAGLIERO, a rir, afastou-se para me deixar
passar.
– Bem-vinda! – gritou alguém. Saí com as pernas bambas e pensei que nunca conseguiria superar
isto. Tinha acabado de entrar num vestiário cheio de homens meio nus.
– Olá? – Um homem seguira-me. Este, pelo menos, estava completamente vestido.
Pôs um par de óculos no rosto e, dentro do contentor, ouvi o silêncio aturdido transformar-se
numa explosão de riso que pareceu durar para sempre.
Ele abanou a cabeça na direção da porta, como quem diz Ignore-os.
– Chamo-me Martin. Sou o capitão de equipa e treinador. Acabou de entrar no nosso vestiário e,
embora seja um gesto pouco ortodoxo, parece-me que talvez precise de ajuda.
– Preciso – murmurei, apertando a mala contra mim. Este devia ser o Martin que escrevera na
página de Facebook de Eddie. – Preciso de muita ajuda, na verdade, mas não sei se ma pode dar.
– Podia acontecer a qualquer pessoa – disse Martin, amavelmente.
– Não, não podia.
Ele pensou um pouco.
– Não, é capaz de ter razão. Em vinte anos, é a primeira vez que nos entra uma mulher pelos
vestiários adentro. Mas os Old Robsonians são uma equipa moderna, que acolhe de braços abertos
a inovação e a mudança. Tomar duche depois de cada jogo é um dos nossos princípios mais antigos,
mas não há razão para não podermos adicionar outras coisas ao ritual... convidados, talvez uma
banda ao vivo, esse tipo de coisas.
Do contentor, chegaram até nós gritos e gargalhadas e vozes masculinas. Uma nuvem de vapor,
dos duches, ergueu-se lentamente no ar da noite. Martin, o capitão de equipa, estava a rir-se de
mim, embora não de forma cruel.
Respirei fundo.
– Foi um engano terrível – disse. – Estava à procura do... – Calei-me subitamente. No meio do
horror, esquecera-me completamente do que ali tinha ido fazer.
Valha-me Deus. Entrara num vestiário masculino na esperança de ver Eddie David.
Cruzei os braços sobre o peito, como se estivesse a tentar manter unidos os fragmentos da minha
pessoa. O que lhe teria dito se o tivesse encontrado? O que teria feito, na verdade? Ele podia estar
lá dentro neste preciso momento, a limpar-se depois do duche e a ouvir com choque crescente, à
medida que se apercebesse de quem era a rapariga alta e bronzeada que acabara de entrar nos
vestiários.
Senti-me agoniada. Passa-se alguma coisa comigo, decidi. Passa-se mesmo alguma coisa comigo.
Uma pessoa normal não faz estas coisas.
– À procura de quem? De alguém dos Old Robsonians? Ou de outra equipa?
– Dos Old Robsonians, foi o que ela disse – respondeu PAGLIERO, saindo do contentor. – Já
agora, peço desculpa – disse-me. – Foi muito mau da minha parte. Apesar de ter feito os rapazes
ganharem a noite. Um dos nossos membros fundadores veio de Cincinnati para nos visitar... pensa
que a contratámos especialmente para lhe dar as boas-vindas.
Olhei para o chão.
– Foi uma boa partida – murmurei. – Não é preciso pedir desculpa. E, afinal, estava enganada.
Não vinha à procura de ninguém dos Old Robsonians, vinha...
– À procura de alguém dos Old Robsonians – disse Martin. – Mas quem? Somos todos casados!
Bom, exceto o Wally, mas esse... – Parou e olhou para mim. Antes mesmo que ele o dissesse, eu
soube o que ia dizer. – Por acaso é a Sarah?
– Ah... não?
Outros dois homens saíram do contentor.
– É verdade que... – começou um deles e, depois, viu-me. – Oh, é mesmo.
– Estes cavalheiros são o Edwards e o Fung-On – disse Martin, sem tirar os olhos do meu rosto.
– Estou a tentar decidir qual deles será nomeado Melhor Jogador da Noite. – Depois, ofereceu-se
subitamente: – Eu ajudo-a a voltar à estrada principal – e conduziu-me ao caminho de terra.
– Adeus! – gritou PAGLIERO, e Edwards e Fung-On, um dos quais seria Melhor Jogador da
Noite, fizeram continência. Ouvi os seus risos quando entraram novamente no contentor.
Depois de eles desaparecerem, Martin parou e olhou para mim.
– Ele não está cá esta noite – disse, por fim. – Não joga connosco todas as semanas. Passa a
maior parte do tempo no West Country.
– Quem? Desculpe, mas não estou a...
Martin fitou-me com ar compreensivo, mas percebi que sabia exatamente quem eu era. E que
sabia exatamente por que razão Eddie não me ligara.
– Então ele está em Gloucestershire? – perguntei, sem me conseguir conter. Os meus olhos
encheram-se de lágrimas escaldantes de humilhação.
Martin assentiu com um aceno.
– Ele... – Interrompeu-se abruptamente, como se se tivesse lembrado de que tinha uma
responsabilidade para com o companheiro de equipa. – Desculpe. Não devia falar sobre o Eddie.
– Não faz mal. – Fiquei ali parada, de ombros abatidos pelo peso da vergonha. Queria ir-me
embora, mas o desprezo por mim própria e o choque tinham-me imobilizado as pernas.
– Oiça, não tenho nada a ver com isso – disse ele lentamente, passando a mão pelo rosto. – Mas o
Eddie é meu amigo há anos e... Pare de tentar encontrá-lo, está bem? Tenho a certeza de que deve
ser muito boa pessoa e, se isso ajuda, não acho que seja maluca e ele também não, mas... pare.
– Ele disse isso? Disse que não acha que eu seja maluca? Que mais disse sobre mim? – As
lágrimas deslizaram-me pelo rosto e caíram no cimento sob os meus pés. Era inacreditável a
situação em que me encontrava. Aqui, com este homem. Este perfeito desconhecido, a suplicar por
migalhas.
– Acredite que não o quer encontrar – disse Martin, por fim. – Acredite em mim. Não quer
encontrar o Eddie David.
E deu meia-volta para regressar ao contentor, gritando ainda por cima do ombro que fora um
prazer conhecer-me e que esperava que eu não ficasse traumatizada para o resto da vida pelo que
vira ali dentro.
Um comboio passou no viaduto contíguo aos campos e eu estremeci. Tinha de ir para casa.
O problema é que já não sabia onde era a minha casa. Não sabia nada, na verdade, a não ser que
tinha de encontrar Eddie David. Independentemente do que este homem me dissera.
CAPÍTULO 26

E nfiei os calções de corrida. Eram 03h09m, precisamente sete horas depois de me ter afastado,
desorientada, do campo de futebol. O meu quarto cheirava a insónia.
Soutien desportivo, camisola de alças. Tinha as mãos a tremer. A adrenalina ainda se acumulava
em poças fervilhantes pelo meu corpo, a saltitar sobre a exaustão agonizante que devia esconder-se
por baixo. Tommy impedira-me de sair depois de eu aparecer equipada para correr, quando cheguei
a casa do campo de futebol. Fizera-me uma bebida quente e mandara-me para a cama.
– Nem quero pensar no que aconteceu nesse campo de futebol – dissera, em tom severo, mas
cinco minutos depois não aguentara, batera à porta do quarto e implorara-me que lhe contasse o que
acontecera no campo de futebol.
– Lamento muito – disse, baixinho, depois de eu lhe contar. – Mas ainda bem que conseguiste
admitir que há alguma coisa... bom, um bocadinho errada contigo. É preciso coragem.
– As cartas, Tommy, aquelas cartas todas que lhe tenho enviado pelo Facebook. Os telefonemas
para a oficina. Mandei uma mensagem ao seu amigo Alan. O que é que me passou pela cabeça?
– Um telefone silencioso traz ao de cima o nosso pior lado – disse ele. – Em toda a gente.
Ficámos sentados na minha cama durante muito tempo. Nenhum de nós falou muito, mas a
presença dele acalmou-me o suficiente para tentar dormir.
– Desculpa – disse eu, antes de ele sair para o seu próprio quarto. – Tornei-me outra vez um
fardo para ti. Não devias ter de passar a vida a salvar-me.
Tommy sorriu.
– Não fui eu que te salvei no passado, e não estou a salvar-te agora – disse. – Estou aqui para te
apoiar, Harrington, sabes bem que sim, mas também estou certo de que conseguirás resolver o
assunto sozinha. És uma sobrevivente. Uma das baratas da vida.
Com isto, conseguira fazer-me sorrir.
Agora, três horas depois, eu estava novamente a tentar atar os atacadores, mas as minhas mãos
pareciam descoordenadas. Estava tudo errado.
O táxi que me levaria ao aeroporto estava marcado para as cinco. Não conseguira dormir nada, e
já não ia conseguir. Tinha tempo mais do que suficiente para uma corrida, um duche e para
embrulhar o pequeno limoeiro que comprara para Tommy e Zoe como agradecimento. E daria
apenas uma voltinha curta; só o suficiente para me ajudar a dormir no avião.
Saí silenciosamente do quarto, grata por Zoe não estar em casa. Quando Tommy ia para a cama,
era onde ficava, mas Zoe levantava-se muitas vezes bem cedo para responder a e-mails da Ásia,
enrolada num elegante quimono de seda cinzenta. Por mais do que uma vez me apanhara a sair para
correr antes de o Sol ter sequer nascido.
Embora isto, pensei, olhando para o relógio – 03h13m –, isto não fosse correr. Era mais um
problema.
Olhei para o meu reflexo no grande espelho de Zoe no vestíbulo, emoldurado em madeira de uma
árvore trazida do jardim dos pais dela, já falecidos, em Berkshire. Zoe tinha razão: eu perdera
peso. Os meus braços pareciam escanzelados e o meu rosto estava mais fino, como se tivesse tirado
a tampa de um ralo e deixado escoar parte de mim.
Virei costas, envergonhada e um pouco assustada. Muitas vezes me questionara quanto ao grau de
consciência que os doentes mentais mantinham quando começavam a deteriorar-se. Seria fácil ou
difícil reconhecerem o declínio? Até que ponto seria a linha entre e ficção e realidade visível, antes
de desaparecer completamente?
Estaria eu doente?
Parei na cozinha para beber água. Tinha os músculos das pernas a estremecer impacientemente.
Já vai, disse-lhes. Já vai.
À porta da cozinha, estaquei abruptamente. O quê? Zoe? Mas ela estava em...
– Céus! – gritou a mulher na cozinha.
Fiquei parada, de boca aberta. Outro ser desconhecido nu, pouco mais de sete horas depois de
ver o último. A luz laranja sintética do candeeiro de rua tingia-lhe os seios e a barriga enquanto
tentava cobrir-se, atrapalhada. Uma torrente de impropérios brotou-lhe dos lábios.
Virei-me e tapei os olhos. E, depois, virei-me outra vez porque um pequeno fio no meu cérebro
começava a desenrolar-se: Esta mulher não é uma desconhecida.
– Para de olhar para mim – disse a mulher com maus modos, embora agora em tom menos feroz, e
senti a boca abrir-se de incredulidade quando finalmente reconheci a minha amiga mais antiga.
– Oh, meu Deus! – exclamei debilmente.
– Oh, meu Deus – concordou Jo, pegando numa coluna Bluetooth que estava em cima da bancada
para tapar os pelos púbicos.
– Jo? – murmurei. – Não, não, não. Diz-me que isto não é o que parece.
– Não é o que parece – resmungou Jo, trocando a coluna por um livro de culinária e finalmente
desistindo por completo. – Já te disse para não olhares para mim – acrescentou, baixando-se atrás
do balcão da cozinha.
Fiquei paralisada até um sussurro furioso se erguer do outro lado da cozinha:
– Sarah, importas-te de me dar qualquer coisa para eu vestir?
Sem dizer nada, saí para o vestíbulo e tirei um casaco do cabide. Dei-o a Jo e deixei-me cair num
dos bancos de Zoe.
– O que se passa aqui? – perguntei.
Jo endireitou-se enquanto vestia o que era, vi agora, um enorme casaco de esqui. Não respondeu
e enrolou as mangas, para conseguir ficar com as mãos de fora.
– Queres um par de calças de esqui? – perguntei, aturdida. – Uns bastões de esqui? Um capacete?
Jo, o que é isto?
– Podia fazer-te a mesma pergunta – disse ela, olhando para o casaco com ar de desagrado. –
Riquinhos estúpidos – acrescentou, presumivelmente falando sobre todas as pessoas ligadas ao
esqui. – O que estás a fazer aqui?
– Estou a dormir cá – respondi. – Como sabes muito bem. Vou dar uma corrida antes de seguir
para o aeroporto.
– São três e um quarto da madrugada! – exclamou Jo baixinho. – Ninguém vai correr a esta hora!
– Estás nua na cozinha do Tommy! – exclamei no mesmo tom. – Não comeces!
Jo puxou o fecho do casaco.
– Inacreditável – foi tudo o que conseguiu dizer.
Respirei fundo.
– Jo, andas a dormir com o Tommy? Os meus dois melhores e mais antigos amigos estão a ter um
caso? Já falamos sobre mim – acrescentei, antes que ela tentasse interromper.
– Estou de visita – disse Jo, por fim. – O Tommy deixou-me dormir no sofá.
– Experimenta outra desculpa – disse-lhe. – Experimenta outra, Joanna Monk. O Tommy foi para
a cama à meia-noite, ou assim pensava eu. E tu não estavas cá a essa hora. Mas agora estás, e estás
nua, e eu sei como gostas do teu pijama.
– Oh, merda – murmurou alguém. Ergui os olhos. Tommy estava à porta da cozinha, de roupão. –
Bem te disse que era má ideia – disse ele a Jo.
– Precisava de beber água! Não consigo beber água em torneiras de casa de banho, Tommy, sabes
disso. – O seu tom era combativo, o que significava que estava em pânico. – E, de qualquer
maneira, ela devia estar a dormir, não a sair sorrateiramente para correr. – Indicou-me com um
aceno de cabeça.
Pousei os cotovelos no balcão.
– Certo – disse. – Quero saber exatamente o que se passa aqui. E há quanto tempo. E como é que
isto é aceitável quando o Tommy tem uma relação séria. – Fiz uma pausa. – Bom, e tu também, Jo,
embora me perdoes se me importar menos com o Shawn.
Tommy aproximou-se e sentou-se em cima da ilha da cozinha, entre mim e Jo.
– Bem, sabes... – começou, e depois fez uma pausa.
A pausa tornou-se um silêncio, que ficou suspenso no ar como nevoeiro. Olhou para as mãos.
Puxou uma cutícula. Levou a mão esquerda à boca e mordeu o polegar.
– Também quero saber por que raio só estou a saber disto agora – acrescentei.
Jo sentou-se, subitamente.
– Andamos a dormir juntos – disse, em tom talvez um pouco mais alto do que seria necessário.
Tommy fez uma careta, mas não negou.
– E não estou lá muito convencida de que estejas assim tão preocupada com a Zoe, Sarah, mas... e
isto vale o que vale... ela anda a dormir com o cliente. O diretor da empresa que representa, que faz
aqueles relógios de fitness. Foi por isso que foi a Hong Kong. Ele convidou-a. E o Tommy sabe –
acrescentou, com firmeza. – Veio a minha casa na noite em que ela lhe contou, bebemos de mais e...
bom.
Tommy olhou para Jo com ar incrédulo. Depois, encolheu os ombros e baixou a cabeça, como que
em confirmação do que ela dissera. Estava vermelho como um tomate.
Mais um longo silêncio.
– Desculpem, mas isso não chega – disse eu, por fim. – Que queres dizer com «bebemos de mais
e... bom»? O álcool e o sexo não estão diretamente relacionados, sabes?
– Não me queiras apanhar com o teu palavreado – murmurou Jo.
– Oh, tem juízo.
Ela suspirou.
– Foi na noite em que viemos todos cá jantar – disse, sem me fitar nos olhos. – Aquelas massas
chinesas que fizeste, Sarah. Tu foste para a cama, toda angustiada por causa do Eddie, e eu fui para
casa. Depois, a Zoe deu a notícia ao Tommy e ele saiu de casa, furioso, mas ao fim de uns minutos
percebeu que não tinha para onde ir. Por isso ligou-me, em vez de voltar a entrar. E chamou um
Uber.
Um sorriso a que eu não estava habituada iluminou-lhe um canto do rosto. Olhou para Tommy,
talvez dividida entre a necessidade de respeitar a privacidade dele e a vontade de o dizer em voz
alta. De confirmar a relação.
Olhei para Tommy.
– Então apanhaste um táxi para Ilford e, quer dizer, estavas a planear... – Calei-me sem terminar a
frase. Nem conseguia dizer as palavras.
– Não – apressou-se ele a dizer. – De forma alguma. Mas isso não quer dizer que me arrependa –
acrescentou, quando o sorriso desapareceu do rosto de Jo.
– Estou a ver. Então isto é uma... uma aventura? Ou uma coisa séria? – perguntei.
Um longo silêncio. Depois Jo disse:
– Bom, eu amo-o. Mas não posso falar por ele.
Tommy levantou bruscamente a cabeça.
– Desculpa?
– Ouviste muito bem o que eu disse – retorquiu ela, abrindo e fechando furiosamente um dos
bolsos do casaco de esqui. – Mas isso é um assunto à parte. O motivo pelo qual não te dissemos
nada, Sarah, é que não contámos a ninguém. A Zoe disse ao Tommy que podia ficar aqui o tempo
que fosse preciso... até arranjar outro sítio para viver. Ela tem passado as noites com o seu
executivo, para que o Tommy pudesse contar-te quando achasse melhor. Ele acha que ela está a ser
muito generosa; eu acho que simplesmente não suporta ser vista como a má da fita.
Depois de pensar durante um instante, sorri. Isto, pelo menos, parecia-me verdade.
– Mas o problema não é ela, na verdade. É o Shawn. – Jo parou de brincar com o fecho. – Ele é
que é o problema.
– Porquê? O que é que ele fez?
– É mais o que ele pode fazer – disse Tommy, quando viu que Jo estava atrapalhada. – A Jo tem
medo de que ele transforme a história da custódia do Rudi num pesadelo, se descobrir que ela tem
outra pessoa. Portanto, quer separar-se e decidir a questão da custódia sem falar em mim. E
depois... bom, depois logo veremos o que acontece connosco, acho eu.
O rosto de Jo manteve-se inexpressivo mas eu vi... mesmo no meio do choque, vi. Ela estava
mesmo apaixonada por ele. E há muito tempo. Estava morta de medo de que isto não passasse de
uma aventura para Tommy. Um caso, só para esquecer Zoe. A pobre mulher mal conseguia olhar
para ele. Veremos o que acontece connosco não era, nem de longe, suficiente para ela.
Tommy, como se tivesse percebido isso, contornou a ilha e sentou-se ao lado dela. Vi-a olhar
para baixo quando ele lhe pousou a mão na perna e uma vaga de ternura apertou-me a garganta.
– Ele é um cabrão vingativo – disse Jo, baixinho. Shawn era território mais seguro do que os seus
sentimentos por Tommy. – Não posso deixar que ele descubra.
– Eu, cá, não acredito que ele conseguisse a custódia do filho – disse Tommy. – Está pior do que
nunca... esquece-se de ir buscar o Rudi à escola, passa a maior parte do tempo pedrado e até deixou
o Rudi sozinho em casa há algumas semanas. O pobre miúdo quase pegou fogo à casa a tentar fazer
um chá. O pai da Jo ficou com o Rudi esta noite. – Olhou novamente para Jo, mas ela fechara-se
como fazia sempre que revelava demasiado de si própria.
O relógio de parede moderno de Zoe avançou lentamente para as três e meia.
– Portanto é isso – disse Jo, incapaz de aguentar o silêncio. Pousou as mãos no balcão, com os
punhos cerrados. – E eu consegui abrir a alma no meio desta confusão. Desculpa – disse, olhando
de lado para Tommy. – Não me importo se for só sexo, a sério. Esquece o que eu disse. Estava a ser
parva. Sou uma exagerada, já me conheces.
Houve um silêncio desconfortável.
– Se calhar é melhor deixar-vos à vontade – sugeri.
– Fica! – ordenou Jo.
– Está bem, obrigado – disse Tommy, em simultâneo.
Hesitei, meio sentada, meio levantada.
– Não tenho muito jeito para estas coisas – disse Jo. Tinha as faces cor de tijolo. – Não me
devias deixar sozinha. Se saíres, vou acabar por dizer mais parvoíces.
Voltei a sentar-me, com um sorriso apologético para Tommy, mas ele estava imerso em
pensamentos, as sobrancelhas envolvidas em algo que excedia em muito os meus poderes de
interpretação. Desviei o rosto. Passei os olhos pela coleção de livros de culinária de Zoe,
destinados à mulher reprimida. Olhei para o retrato dela com Tommy, a treinarem juntos em
Kensington Gardens, ao princípio da relação, quando ela não conseguia tirar as mãos de cima dele.
Ao fundo da rua, um autocarro subiu Holland Park Road. Perguntei a mim própria quem seria
esse homem novo. Onde é que ele viveria. Zoe parecia impossivelmente rica aos olhos de uma
miserável como eu, mas a casa deste tipo devia meter o apartamento de Holland Park a um canto.
Devia ser extraordinariamente rico e bem relacionado. E – principalmente – adequado à Zoe.
Adequado de uma forma que Tommy nunca poderia ser, por mais que ela o pressionasse a subir na
carreira.
Por fim, Tommy respirou fundo e olhou para Jo.
– Ouve – disse, baixinho. – Eu amo-te. Amo-te, Jo. Só que tinha imaginado dizer-te... bom,
noutras circunstâncias.
Jo, que me pareceu ter deixado de respirar, não disse nada. Tommy passou o dedo pela bancada.
– És a única pessoa junto de quem nunca me senti embaraçado – continuou. – A única pessoa com
quem posso falar de tudo, sempre. Sinto a tua falta quando te vais embora. Apesar de me chamares
«imbecil privilegiado» vezes de mais. Apesar de seres o tipo de mulher irritante que me faz dizer
estas coisas em frente da Sarah.
A sombra de um sorriso passou pelo rosto de Jo, mas continuou sem olhar para ele.
– Quando me mudei para cá – continuou Tommy –, pensei que era feliz. Mas não era. Não era
nada feliz, e não sou feliz há anos. Mesmo há um mês, ainda conseguia convencer-me a mim próprio
de que isto – olhou em volta, para a cozinha imaculada de Zoe –, de que isto era o que eu queria.
Não é. O que eu quero é ser quem sou. Viver na minha própria pele, rir, ser real. E, contigo, rio-me
até às lágrimas, várias vezes por semana. Nunca me aconteceu isso com a Zoe.
Jo permaneceu em silêncio.
– Quer dizer, olha para a minha carreira. Nunca foi suficiente para ela que eu fosse treinador
pessoal. Tenho a certeza de que só patrocinou o meu negócio porque queria dizer às pessoas que o
namorado tinha uma empresa de consultadoria desportiva.
Jo mexeu no casaco até Tommy se inclinar para ela e lhe segurar na mão.
– Ouve – disse.
– Estou a ouvir – respondeu Jo, entre dentes.
Após um momento, Tommy riu-se.
– Nem acredito que estamos a ter esta conversa à frente da Harrington. Isto é... sem ofensa,
Harrington, mas é horrível.
– Não estou ofendida. E, se queres saber a minha opinião, acho que é lindo. Embora um
bocadinho estranho.
Jo ainda não tinha relaxado completamente.
– Desculpa – murmurou. – É assustador, para mim. Eu... tenho mais a perder do que tu.
Tommy pegou-lhe na mão.
– Não, não tens. Eu... Oh, por amor de Deus, importas-te de olhar para mim, sua doida?
Com relutância, ela assim fez.
– Estou aqui, Jo. Nisto. Contigo.
A adrenalina dissipara-se. Subitamente, vi-me sentada numa cozinha com os meus dois melhores
e mais antigos amigos, que estavam a declarar o seu amor um pelo outro, e tudo fez perfeito sentido.
Pensei naqueles meses que tínhamos passado juntos na Califórnia e perguntei-me porque nunca teria
pensado nisto. Estes dois passavam horas e horas juntos, faziam viagens, surfavam, preparavam
cocktails horrorosos na garagem dos pais de Tommy. Talvez não o tivesse visto por estar
demasiado sobrecarregada pela tristeza e pela culpa. Ou, talvez, simplesmente porque não
conseguia pensar num par mais improvável do que estas duas pessoas. Mas o amor não funcionava
assim, como eu começava a perceber. Aqui estavam eles, a encontrar-se às escondidas:
desastrados, sem se conseguirem conter, vulneráveis. Apaixonados e sem poderem fazer mais nada
senão estar juntos, apesar dos riscos.
– Bem – disse, lentamente. Sorri e o meu sorriso transformou-se num bocejo. – Vou demorar
algum tempo a habituar-me. Mas estou feliz.
Jo olhou para a mão de Tommy, que apertava a sua.
– É isso que eu quero – disse. – Ser feliz. Nesta altura da minha vida, é só o que me importa.
Senti um aperto no coração. Jo nunca falava assim.
Estava a ficar cheia de frio, apenas de calções e camisola de alças, mas naquele segundo quis que
este momento se prolongasse indefinidamente. Adorava estes dois. Adorava que eles se amassem
de formas que eu nunca conheceria. Adorava que estivessem tão desesperados por se ver que Jo
tinha entrado às escondidas depois de eu me ir deitar.
– Tenho de ir acabar de fazer a mala – disse. – Gostava de poder ficar.
– Está bem. – Tommy bocejou. – Mas, Sarah... Tenho de perguntar. Devemos estar preocupados
contigo?
– Eu... – Não sabia o que dizer. – Ultimamente, tenho-me assustado a mim própria.
– E a nós também, querida – concordou Jo. – Tens andado muito esquisita.
– Presumo que sabes a história do futebol?
Ela assentiu silenciosamente.
Passei as mãos pelo cabelo.
– Quando entrei naquele vestiário, tive um momento de clareza terrível. Foi como se tivesse
finalmente regressado ao meu corpo. E tive medo.
– Talvez devesses falar com um psicólogo – sugeriu Jo.
‘Ssicólogo. Sorri.
– Talvez. Não há falta deles em Los Angeles.
As sobrancelhas de Tommy suavizaram-se.
– Nunca fizeste nada tão desequilibrado em toda a tua vida – disse ele. – Não te esqueças disso.
– Se calhar porque não tinha telemóvel quando conheci o Reuben. Se calhar porque a Internet
praticamente ainda não existia nessa altura.
– Não... tu não és doida, Sarah. Se pelo menos metade daquilo que nos contaste é verdade, o
Eddie devia ter-te ligado.
Contornei a ilha da cozinha e abracei-os a ambos. Os meus amigos, os amantes.
– Obrigada, meu querido Tommy, minha querida Jo. Obrigada por não me abandonarem.
– És a minha melhor amiga – disse Tommy. – Além da Jo – apressou-se a acrescentar.

Ainda ali estavam quando reapareci, quarenta minutos depois, com a mala. Comiam torradas de
pão branco, o tipo de pão que Zoe nunca teria tolerado. Pareciam estar juntos há anos.
Pousei a mala ao pé da porta.
– Pronto.
Tommy levantou-se.
– Ouve, Harrington. Uma última coisa antes de ires. Eu... bem, tenho de admitir, continuo
desconfiado em relação ao Eddie.
– Oh, e eu também, Tommy. Eu também.
Ele fez uma pausa.
– É só que... parece uma grande coincidência que o tenhas conhecido naquele sítio, naquela
altura.
Um pássaro ensaiou o primeiro trinado na árvore em frente ao apartamento de Zoe.
– Como assim? Sabes alguma coisa que eu não saiba?
– Claro que não! Só estou a dizer... pensa no que estavas a fazer no dia em que o conheceste. A
assinalar o aniversário do acidente, a caminhar por Broad Ride. Penso que devias perguntar a ti
própria por que razão o Eddie estava lá também. Nesse dia, precisamente. – As suas sobrancelhas
tinham adquirido vida própria. – Será que ele tem alguma coisa a esconder?
– Claro que ele... Não. Não, Tommy.
Concedi um ou dois minutos do meu tempo a essa ideia e, depois, afastei-a completamente. Era
impossível. Completamente impossível.
CAPÍTULO 27

Querido Eddie,

Escrevo-te para pedir desculpa.


Ignorei todos os teus sinais e bombardeei-te, em vez de me afastar. Nunca devia ter escrito,
nunca devia ter ligado. E certamente que não devia ter aparecido no teu jogo de futebol ontem à
noite. (Suponho que já te contaram.) Nem imaginas como estou envergonhada. Sei que não fará
agora qualquer diferença, mas a pequena centelha de orgulho que me resta obriga-me a dizer-te
que não é a maneira como me comporto normalmente.
Por motivos que não compreendo completamente, o nosso encontro e o teu silêncio
subsequente parecem ter trazido ao de cima muitos sentimentos antigos relacionados com o
acidente de automóvel em que estive envolvida há dezanove anos. Penso que isso terá
contribuído para o meu comportamento louco.
Estou em Heathrow, prestes a entrar no avião para Los Angeles. O Sol brilha e estou
desesperadamente triste por partir desta maneira, sabendo que nunca mais te verei, mas, ao
mesmo tempo, aliviada por voltar para onde tenho um trabalho que me mantém ocupada,
amigos, uma oportunidade de viver de novo como mulher solteira. Vou analisar bem o que
aconteceu, tentar perceber por que razão agi como agi contigo. Vou resolver isto. Vou resolver-
me.
Ainda assim, sinto-me na obrigação de dizer que achei muito cobarde e desrespeitoso da tua
parte cortares a comunicação comigo desta maneira, e espero que penses duas vezes antes de
fazeres o mesmo a outra mulher. Mas aceito que foi o que decidiste fazer nesta situação e aceito
também que deves ter tido as tuas razões.
Finalmente, queria agradecer-te. Aqueles dias que passámos juntos foram dos mais felizes da
minha vida. Lembrar-me-ei deles durante muito tempo.
Tudo de bom para ti, Eddie, e adeus.

Beijo, Sarah
CAPÍTULO 28

GUARDADO EM: RASCUNHOS

Por favor, não vás. Não partas.


Parei de escrever para te ligar, mas não consegui.
Provavelmente já estás no ar. Vou sair e olhar para o céu.
Eddie

APAGADO, 10h26m
PARTE DOIS
CAPÍTULO 29

–B em-vinda a casa! – gritou Jenni.


Apesar de atravessar o Atlântico há anos, eu ainda não me habituara ao jet-lag. A pressão no
peito, quando saí para o sol encandeante e para o calor quase sólido, os ziguezagues que me
atravessaram a visão durante a viagem de táxi pela 110. Da primeira vez que fizera esta viagem, em
1997, passara os primeiros dois dias convencida de que estava gravemente doente.
– Tive saudades tuas, Sarah Mackey – disse Jenni, puxando-me para um abraço. Cheirava a
bolos.
– Oh, Jenni, eu também. Olá, Frap – disse, acariciando o cão de Jenni com gestos cansados.
Frap – diminutivo de Frappuccino, um dos vícios de Jenni – tentou levantar a perna contra mim,
como fazia sempre, mas consegui desviar-me mesmo a tempo.
– Oh, Frappy – suspirou Jenni. – Por que diabo estás tão determinado em urinar na Sarah?
Inclinei-me para a frente e segurei-lhe nos braços.
– E então?
Ela não conseguiu fitar-me nos olhos.
– O teste de gravidez? Não era hoje?
– Não, amanhã. – Virou-se. – Estou supernervosa, por isso quanto menos falarmos nisso, melhor.
Entra, instala-te no sofá.
Entrei para um paraíso de ar fresco, com perfume a chocolate, e reparei que Jenni tinha adquirido
outra peça de arte. Esta era a silhueta abstrata de uma mulher grávida, feita de milhares de
minúsculas impressões digitais. Um terapeuta que ela andava a consultar recomendara-lhe
visualização positiva durante o processo de inseminação; isto devia ser parte da resposta dela. O
quadro estava pendurado por cima da poltrona onde Javier se sentava desde as 17h15 até ir para a
cama, às 22h30. Em cima do balcão que separava a sala da cozinha estava um bolo de chocolate de
duas camadas e uma garrafa de espumante rosé num balde de gelo.
Sorri, exausta e à beira das lágrimas, quando Jenni foi à cozinha e começou a deitar colheradas
de gelado para dentro do liquidificador.
– Jenni Carmichael, és muito querida e muito malvada. Não te pagamos o suficiente para andares
a comprar champanhe e bolos.
Jenni encolheu os ombros, como quem diz De que outra maneira podia receber-te?
Juntou mais ingredientes ao liquidificador – poucos dos quais se assemelhavam a comida – e
ligou-o, gritando para se fazer ouvir sobre o ruído:
– Mandei o Javier jogar bilhar com os amigos para podermos conversar à vontade. E não podia
receber-te sem uma overdose de açúcar. Não estaria certo.
Deixei-me cair no sofá enorme, coberto de almofadas lilases, e senti uma vaga de alívio tão
intensa que quase doía. Aqui, estaria segura. Podia refletir, recalibrar, seguir em frente.
Jenni desligou o liquidificador.
– Optei pelo sabor de pastilha elástica.
– Valha-me Deus. A sério?
Jenni riu-se.
– Hoje não estou para brincadeiras – foi tudo o que me respondeu.

Duas horas mais tarde, depois de termos bebido os nossos batidos, comido várias fatias do bolo
gigante e acabado com um pacote grande de batatas fritas, recostei-me e arrotei.
Jenni fez o mesmo e riu-se.
– Nunca arrotava antes de te conhecer – confessou.
Toquei no pé dela com o meu, demasiado cheia e pesada para me mexer mais do que isso.
– Foi um festim maravilhoso. Obrigada.
– Oh, não tens de agradecer. – Sorriu e esfregou a barriga. – Muito bem, Sarah, eu não devo
beber, mas tu tens de provar o champanhe cor-de-rosa, está bem?
Olhei para a garrafa e senti uma forte repulsa física.
– Não consigo – disse-lhe. – Obrigada, querida, mas bebi demasiado com a Jo esta semana e
desde então que não consigo olhar sequer para álcool.
– A sério? – Jenni parecia chocada. – Nem um copinho?
Mas eu não conseguia. Nem mesmo por ela.
Depois, contei-lhe tudo. Mesmo as partes mais horríveis no campo de futebol, quando, ao mesmo
tempo que me via perante o rabo de um desconhecido, me vira também perante o facto
incontornável de que perdera o juízo. Jenni soltou exclamações indignadas e solidárias e suspiros
e, quando lhe mostrei a última mensagem que escrevera a Eddie, emocionou-se. Não fez pouco de
mim por nenhuma destas coisas. Nem sequer ergueu uma sobrancelha. Simplesmente acenou como
se todas as minhas ações fossem perfeitamente compreensíveis.
– Não podemos deixar escapar o amor por entre os dedos – afirmou. – Fizeste bem em tentar
tudo. – Olhou para mim. – Estavas apaixonada por ele, não estavas?
Após uma pausa, assenti.
– Apesar de saber que não é normal uma pessoa apaixonar-se em apenas...
– Oh, cala-te – disse Jenni, baixinho. – Claro que uma pessoa pode apaixonar-se numa semana.
– Suponho que sim. – Puxei uma linha na bainha da camisola. – Seja como for, quero voltar
àquilo que conheço. Quero ganhar o concurso para a unidade de cuidados paliativos em Fresno;
quero pôr o George Attwood na direção em Santa Ana. Está na altura de seguir em frente.
– A sério?
– Sim. Não voltarei a tentar contactar o Eddie. Na verdade, vou eliminá-lo do meu Facebook.
Agora mesmo, contigo como testemunha.
– Oh – disse Jenni, sem grande entusiasmo. – Suponho que é o melhor. Mas é tão triste. Pensei
mesmo que era o homem ideal para ti, Sarah.
– Também eu.
– O facto de o teres conhecido naquele dia, naquele lugar... era tudo tão perfeito. Até me deu
arrepios.
Não respondi. Estava a tentar esquecer o que Tommy me dissera em relação a isso. A explicação
de Jenni, por outro lado, era mais reconfortante. Uma grande coincidência romântica; uma
sobreposição de acasos incrível. Isso agradava-me.
Olhei de lado para ela.
– Está tudo bem?
Ela suspirou e fez que sim com a cabeça.
– Estou só triste por ti. E cheia de hormonas.
Encostei-me ao lado dela, enquanto esperava que o Facebook encontrasse Eddie na minha lista de
amigos.
O meu estômago deu uma volta.
– Ele eliminou-me primeiro – murmurei. Recarreguei o perfil dele, para ver se mudava alguma
coisa. Não mudou. Adicionar amigo?, perguntava.
– Oh, Sarah – murmurou Jenni.
A dor gelada regressou-me ao peito, como se nunca tivesse desaparecido. O anseio sem fundo,
como um poço no qual uma pedra cairia para sempre.
– Eu... – Engoli em seco. – Bom, parece que já está.
Nesse momento, Frappuccino ganhou vida quando a porta se abriu e Javier entrou em casa.
– Olá, Sarah! – disse, com a estranha continência com que me cumprimentava sempre, em vez de
um abraço. Javier só era uma pessoa de contacto físico com Jenni e com carros.
– Olá, Javier. Como estás? Obrigada por nos teres dado este bocadinho sozinhas. – Sentia o
corpo mole e inerte.
– De nada – respondeu ele, e dirigiu-se à cozinha para ir buscar uma cerveja. Jenni beijou-o ao
passar por ele para ir à casa de banho.
– Tomaste bem conta da minha menina? – perguntou ele, sentando-se na poltrona e abrindo a
cerveja.
– Bom, ela é que tem estado a tomar conta de mim – admiti. – Sabes como ela é. Mas estarei aqui
para a apoiar amanhã, Javi. Posso ficar o dia todo, se ela precisar de mim.
Javier bebeu um trago de cerveja e olhou para mim com expressão confusa.
– Amanhã?
Estudei-lhe o rosto. Havia qualquer coisa que não estava bem.
– Hum... sim – respondi. – Quando ela receber os resultados do teste?
Javier pousou a garrafa no chão e percebi subitamente o que se passava.
– Foi hoje – disse ele, secamente. – Não resultou. Ela não está grávida.
O silêncio ecoou entre nós.
– Calculo que a Jenni quis dar-te oportunidade de falares primeiro sobre os teus... hum,
problemas – continuou ele. – Sabes como ela é.
– Oh, meu Deus – murmurei. – Javi, lamento muito. Eu... raios, porque é que acreditei nela? Eu
sabia que era hoje.
Olhei rapidamente para a porta.
– Como é que ela está?
Ele encolheu os ombros, mas o seu rosto disse-me tudo o que precisava de saber. Estava perdido.
Fora do seu elemento. Durante anos, houvera sempre opções, esperança, e o trabalho de Javier fora
manter Jenni concentrada nelas. Isso protegera-o do peso avassalador do medo dela e dera-lhe um
papel ativo. Agora não havia mais nada e a mulher dele – que, apesar de todas as suas limitações
emocionais, Javier amava com todo o seu ser – estava mergulhada no sofrimento. Ele já não tinha
um papel a desempenhar, nem esperança a oferecer.
– Não tem falado muito. Ficou em silêncio na clínica. Acho que está a evitar pensar nisso, pelo
menos por enquanto. Pensei que te contasse e que chorasse, que desse vazão às emoções, percebes?
Foi por isso que saí. Normalmente, quando não consegue falar comigo, fala contigo.
– Oh, não. Oh, Javi, tenho tanta pena.
Ele bebeu um gole da cerveja e afundou-se na poltrona, de olhos postos na janela.
Olhei para a porta. Ainda nada. O tiquetaque do relógio na parede da cozinha parecia uma
bomba.
Passaram vários minutos.
– Ela foi à casa de banho de propósito – disse eu, de repente. – Para se esconder. Sabia que tu me
ias contar. Devíamos... devíamos ir buscá-la. – Levantei-me, mas Javier já estava de pé.
Atravessou a cozinha, de ombros curvados.
Aguardei atrás dele, impotente, enquanto o ouvia bater à porta da casa de banho.
– Querida? – chamou. – Querida, deixa-me entrar...
Após uma pausa, a porta abriu-se e ouvi: o som desesperado da mulher dele, a minha querida
amiga, que adiara a sua dor para poder cuidar da minha, a soluçar e a tentar respirar enquanto as
lágrimas e o desespero explodiam brutalmente de dentro dela.
– Não aguento – chorou. – Não aguento. Javi, não sei o que fazer.
E aquele som insuportável de pura infelicidade foi abafado pelo algodão fino da camisa do
marido.
CAPÍTULO 30

Q uando finalmente se acalmou, Jenni sentou-se no sofá entre mim e Javier e devorou
metodicamente tudo o que ainda não tínhamos comido. Eu ignorei o grito do meu cansaço e
jet-lag e fiquei com ela até à meia-noite, comendo um pedacinho de bolo de vez em quando, para
ficar acordada.
Agora a manhã chegara: a manhã quente e luminosa com a qual sonhara, a primeira manhã de
volta a Los Angeles. Na minha última semana em Inglaterra, convencera-me de que esta primeira
manhã traria consigo renovação e esperança: uma noção de perspetiva que não conseguira encontrar
em Londres nem em Gloucestershire. Sentir-me-ia feliz. Com um objetivo.
Na realidade, estava maldisposta e desconfortável, e cheia de frio depois de uma noite com o ar
condicionado no máximo. Enrosquei-me na cama do quarto de visitas de Jenni, demasiado exausta
para me levantar e o desligar. Olhei para o meu reflexo no espelho do outro lado do quarto. Parecia
inchada, pálida, doente. Antes mesmo de me aperceber do que estava a fazer, estendi a mão para o
telemóvel, com intenção de ver se Eddie respondera à minha mensagem de despedida. Não
respondera, claro, e o meu coração encheu-se de dor.
Adicionar amigo?, perguntou o Facebook, quando olhei para o perfil dele. Só para confirmar.
Adicionar amigo?

Uma hora depois, ainda à espera de serenidade, saí de casa para uma corrida. Ainda não eram
oito horas e Jenni e Javier – para variar – estavam deitados.
Sabia que correr não era muito boa ideia, depois de um voo transatlântico e de uma noite de
tumulto emocional. Já para não falar na noite em claro antes de sair de Londres, ou no facto de o
termómetro no alpendre de Jenni ir já a caminho de uns escaldantes 35 graus. Mas não conseguia
ficar parada. Não conseguia estar comigo própria. Precisava de me mover tão depressa que nada se
pegasse a mim.
Tinha de correr.

Ao fim de trezentos metros em Glendale Avenue, lembrei-me do motivo pelo qual nunca corria
nesta cidade. Parei na esquina de Temple, cambaleante, e fingi estar a alongar os quadríceps para
me agarrar ao poste de um candeeiro. O calor era sufocante. Ergui os olhos para o Sol, hoje
desfocado e indistinto por trás de uma leve neblina, e abanei a cabeça. Tinha de correr!
Tentei de novo, mas, ao aproximar-me de Hollywood Freeway as minhas pernas cederam, e dei
por mim sentada na relva ao lado do campo de ténis municipal, agoniada e tonta. Fingi estar a
apertar os atacadores e admiti a derrota.
Consegui ouvir algures a voz de Jo a dizer-me que eu era completamente estúpida e que não tinha
respeito nenhum pelo meu corpo. E concordei com ela; concordei plenamente, recordando como
costumava sentir-me triste e com pena das mulheres escanzeladas que via a correrem pelas colinas
de Griffith Park naquele calor abrasador.
Regressei a casa de Jenni, tomei duche e chamei um táxi. Não me parecia que Jenni tivesse
intenções de ir trabalhar tão cedo, e eu não conseguia ficar ali sentada nem mais um segundo.

No caminho para os nossos escritórios em East Hollywood, planeei a apresentação da semana


seguinte aos diretores de uma empresa de cuidados paliativos na Califórnia. Estávamos tão
habituados a que os nossos serviços fossem agora solicitados por instituições médicas, que eu
estava um pouco destreinada na arte das vendas. O trânsito estava parado em Vermont, por isso saí
em Santa Monica e percorri os últimos dois quarteirões a andar, ensaiando a apresentação
mentalmente enquanto o suor me escorria pelas costas.
E depois: Eddie?
Um homem num táxi, parado no engarrafamento na Vermont. Na direção do meu escritório.
Cabelo curto, óculos escuros, uma t-shirt que tive a certeza de reconhecer.
Eddie?
Não. Era impossível.
Comecei a caminhar na direção do carro. O homem lá dentro, que eu poderia jurar que era Eddie
David, olhava para a proliferação confusa de sinais de trânsito e consultava o telemóvel.
O tráfego começou finalmente a andar e ouviram-se buzinas. Eu estava no meio de uma estrada de
seis faixas. Precisamente quando me vi obrigada a dar meia-volta, o homem tirou os óculos escuros
e olhou para mim. Porém, antes que conseguisse ver-lhe os olhos e ter a certeza de que era Eddie,
tive de correr para não ser atropelada.
Eddie?

Mais tarde, depois de os meus colegas me mandarem embora («Nós tratamos disto, Sarah, vai
descansar»), mas incapaz de ficar parada, decidi ir a pé para casa. Parei naquele mesmo
cruzamento movimentado durante quinze minutos, a esquadrinhar todos os carros e táxis. Uma
ambulância aérea aterrou no telhado do Hospital Pediátrico e eu mal reparei.
Era ele. Sabia que era ele.
CAPÍTULO 31

R euben e eu fizemos em silêncio a viagem de avião até Fresno. Lá fora, os restos de um sol
amarelo derretiam sobre as nuvens; cá dentro, o civismo estava suspenso entre nós por um fio
frágil. Na manhã seguinte faríamos a apresentação à direção da empresa de cuidados paliativos e
Reuben já estava zangado comigo.
Na segunda-feira de manhã, ele chegara ao escritório com Kaia e chamara-nos a todos à sala de
reuniões, onde não conseguira fitar-me nos olhos.
– Bom, tenho ótimas notícias – começou.
– Oh, fantástico! – exclamou Jenni. Ainda não parecia recomposta, mas estava a esforçar-se.
– A semana passada, enquanto estávamos em Londres, a Kaia enviou alguns e-mails a um velho
amigo, um tipo chamado Jim Burundo, que está na direção de uma série de escolas privadas para
alunos com necessidades especiais aqui em Los Angeles. A Kaia falou-lhe sobre o nosso trabalho,
enviou alguns vídeos, e ele contactou-a para perguntar se podíamos começar a fazer visitas
regulares dos Doutores Palhaços!
Seguiu-se um curto silêncio.
– Oh – disse eu, por fim. – Fantástico. Mas... Reuben, não temos pessoas suficientes, neste
momento, para assumir um compromisso desses.
E Jenni acrescentou:
– Reuben, temos de avaliar os custos disto e ter um valor alvo para angariar os fundos
necessários. Preciso de...
Reuben ergueu as mãos para interromper.
– Eles cobrem os seus custos – disse, em tom orgulhoso. – Pagam cem por cento das nossas
despesas. Podemos contratar novos Doutores Palhaços, dar-lhes formação, e a empresa do Jim paga
tudo.
Fiz uma pausa.
– Mesmo assim, temos de visitar primeiro a escola, Roo. E marcar reuniões. E um milhão de
outras coisas. Não podemos simplesmente...
Reuben interrompeu-me com um sorriso que continha – de forma bastante chocante – um aviso.
– A Kaia fez uma coisa maravilhosa – disse ele, cuidadosamente. – Deviam estar contentes!
Vamos voltar a expandir-nos!
Jenni parecia demasiado em baixo para intervir.
Kaia levantou a mão, hesitante, como se estivesse na escola.
– Não estava à espera de que o Jim dissesse imediatamente que sim – explicou. – Espero não ter
causado complicações.
– Vou marcar algumas reuniões para podermos tratar da planificação – disse Reuben. – Mas, para
já, acho que devemos um grande agradecimento à Kaia.
E, com isto, começou a bater palmas.
Todos nos juntámos a ele. A minha vida, pensei. Valha-me Deus, a minha vida.
A primeira reunião tivera lugar dois dias depois. E, embora parecesse que ia ser possível,
embora, sim, a empresa de Jim cobrisse todos os custos, incluindo de formação – Claro, digam-nos
só aquilo de que precisam –, eu estava enervada. Estava tudo a acontecer demasiado depressa.
Porém, ao tentar abordar o assunto com Reuben esta manhã, ele respondera-me com maus modos.
Dissera-me para ser menos fria e mais grata.
Olhei de lado para ele quando o avião começou a descer para Fresno. Ele adormecera, com o
rosto flácido e relaxado. Conhecia tão bem aquele rosto. Aquelas pestanas compridas e negras; as
sobrancelhas perfeitas; as veias nos vales profundos das órbitas. Olhei para aquele rosto familiar e
senti um frémito de inquietação. Eu já devia ter voltado ao normal, pensei, quando o avião se
inclinou e o sol lançou formas douradas e geométricas sobre o rosto de Reuben. Já devia estar a
sentir-me bem.
Mais tarde, depois de jantarmos numa churrasqueira perto do hotel, saí e sentei-me ao ar livre, ao
lado da pequena piscina que provavelmente nunca era usada. Tinha uma cerca alta de rede à volta, e
as poucas espreguiçadeiras estavam cobertas de bolor.
Pela primeira vez, resolvi pensar melhor sobre o que Tommy me dissera em relação a Eddie,
antes de eu me vir embora. O que poderia significar o facto de eu e Eddie nos termos encontrado
naquele lugar, àquela hora, naquele dia. Se ele teria alguma coisa a esconder. Ao princípio,
parecera-me uma teoria absurda: Eddie simplesmente saíra nessa manhã para espairecer da
preocupação com a mãe, e demorara-se no jardim porque encontrara uma ovelha. Seria errado
procurar significados ocultos no nosso encontro.
O problema era que eu – finalmente – começava a ouvir os pensamentos que sussurravam na
periferia da minha consciência nas últimas semanas e começavam agora a formar um padrão. E não
me agradava aquilo que via.
Entrei quando os primeiros relâmpagos surgiram no céu, incapaz de afastar a sensação de que
havia uma crise iminente.

Na manhã seguinte, a reunião foi precedida de uma visita guiada à unidade de cuidados
paliativos.
Tal como para todas as pessoas, suponho, estes sítios eram difíceis para mim – afinal de contas,
poucos locais na vida tratavam a morte com tanta certeza. No entanto, afivelei a minha melhor
expressão neutra; empurrei o medo para o fundo de mim e certifiquei-me de que respirava
lentamente. E estava a sair-me bastante bem, achava eu, até entrarmos na sala da televisão, onde vi
uma rapariga numa cadeira perto da janela.
Olhei para ela.
– Ruth? – Estava enrolada numa manta macia, muito pálida e horrivelmente magra.
Ruth ergueu os olhos e, após o que me pareceu uma pausa agonizante, sorriu.
– Oh, meu Deus – disse. – Não estava nada à espera disto.
– Ruth! – Reuben aproximou-se para a abraçar.
– Cuidado – pediu Ruth, baixinho. – Parece que os meus ossos estão muito quebradiços. Não
queres partir-me ao meio. Já sabes que a minha mãe adora pôr pessoas em tribunal.
Reuben abraçou-a com cuidado e eu fiz o mesmo.
Ruth fora uma das nossas primeiras doentes, no tempo em que éramos apenas eu e Reuben e mal
tínhamos ouvido falar em Doutores Palhaços. Na altura, ela era um bebé pequeno, frequentemente
no hospital para ser operada, e sempre soubéramos que a sua esperança de vida – se sobrevivesse à
primeira infância – seria muito limitada.
Mas, meu Deus, esta rapariga tinha lutado. Tal como a mãe, uma mãe solteira que conseguira
angariar dinheiro para procurar cuidados neonatais no Hospital Pediátrico de Los Angeles porque
havia lá um médico que era especialista na rara doença genética de que Ruth sofria. A sua atitude
«não aceitar não como resposta» incentivara-nos repetidamente a nunca desistirmos do nosso
trabalho.
Eu não tinha o hábito de me encontrar com as crianças doentes. Achava-o demasiado penoso.
Mas Ruth tinha algo a que não conseguia resistir. Mesmo quando o meu trabalho deixou de envolver
visitas aos hospitais, continuei a ir vê-la, porque não conseguia deixar de o fazer.
E agora aqui estava ela, com quinze anos e meio, enrolada numa manta polar azul com a Lua
estampada, com o suporte do soro ao lado da poltrona. Minúscula e desconjuntada, com o cabelo
fino e ralo. Por um momento, fiquei muda, com o choque a apertar-me a garganta.
– Mas que boa surpresa – disse, por fim, sentando-me ao lado dela.
– O quê, encontrar-me num sítio destes com ar de galinha depenada? – perguntou ela, em voz
débil. – Gostas das minhas mãos? Olha. Parecem patas de galinha. Oh, vá lá! – exclamou, quando
eu tentei discordar. – Não vais tentar dizer-me que estou com ótimo aspeto, pois não? Porque, se
vais, é melhor ires-te embora. – Sorriu com os lábios gretados e senti algo rasgar-me o coração.
– Então sempre voltaste para casa – disse Reuben. – Para a soalheira Fresno.
– Sim. Achei que o mínimo que podia fazer era bater a bota perto de casa – disse ela. – A pobre
mamã está exausta.
E, sem aviso, desatou a chorar. Chorava silenciosamente, como se já não tivesse energia para
produzir som ou lágrimas.
– Que porcaria – disse. – E onde andam os vossos palhaços? Onde está um nariz vermelho
quando precisamos dele?
– É precisamente disso que viemos aqui falar – respondeu Reuben, limpando-lhe as lágrimas com
um lenço de papel. – Mas, mesmo que isso não vá para a frente, vamos mandar um Doutor Palhaço
visitar-te. Desde que não te consideres demasiado crescida para essas coisas.
– Não – respondeu ela, em voz fraca. – Eles nunca falaram comigo como se eu fosse uma criança.
Da última vez que vi o Doutor Zee, ele disse que ia ajudar-me a escrever um poema para o meu
velório. É fantástico com as palavras quando não está armado em engraçadinho. Podem mandá-lo a
ele?
– Vai ser o primeiro ponto na agenda da nossa reunião – garanti-lhe. – De certeza que o Zee vai
querer vir.
– Gosto tanto deles – disse Ruth. Recostou-se na cadeira, com o esforço de falar connosco a
roubar-lhe rapidamente a energia do corpo. – Têm sido a única constante ao longo destes anos
todos. As únicas pessoas ainda mais parvas do que eu. Sem ofensa – disse, na direção de Reuben. –
Sei que começaste como palhaço.
Ele sorriu.
– Queres ajuda para voltar ao teu quarto? – perguntei a Ruth, prendendo melhor a manta à volta
dela. Tinha um nó na garganta. Como era possível? Ruth, tão engraçada e esperta, com o seu rabo-
de-cavalo ruivo e aqueles olhos verdes como salsa. Porque estava a vida dela a chegar ao fim,
pouco depois de ter começado? Porque é que ninguém conseguia fazer mais nada?
– Sim – murmurou ela. – Preciso de uma sesta. Maldita sejas, já me fizeste chorar.
Quando a deixámos no quarto, minutos depois, limpei uma lágrima de raiva e Reuben pegou-me
na mão.
– Eu sei – disse ele. – Eu sei.

Depois da apresentação à direção, saímos para um pátio soalheiro para beber um café. O vice-
presidente da instituição chamou-me à parte para fazer mais perguntas.
Eu devia ter percebido. Devia ter calculado, pelas perguntas que ele me fizera antes.
Encontrávamos muitas vezes pessoas como este homem, que não conseguiam ver para além dos
narizes vermelhos e se recusavam a distinguir os nossos artistas de palhaços de festa.
– A questão – disse ele, com os óculos minúsculos no nariz, o queixo a tremer e um tom de altivez
– é que a minha equipa tem anos de formação. Não sei se estou à vontade com a perspetiva de os
obrigar a trabalhar com... bom, com palhaços.
A paixão que motivara a nossa apresentação dissipara-se. Apoderou-se de mim uma vontade
avassaladora de fugir.
– O seu pessoal terá sempre a cargo os cuidados médicos das crianças – recitei, com esforço.
Olhei para um pássaro na árvore por cima dele. – Encare os nossos palhaços como qualquer outro
artista de entretenimento. A única diferença é que eles tiveram meses de formação especializada.
Ele olhou para o café de testa franzida e disse que o seu pessoal também tinha uma excelente
formação, por acaso, mas não precisava de usar roupas disparatadas ou de andar com instrumentos
musicais. E, de repente – embora anos neste trabalho me tivessem ensinado a nunca, nunca, tentar
discutir com pessoas como este homem –, dei por mim a fazer isso mesmo.
– Pode concentrar-se no lado mais divertido do que eles fazem, se quiser – comecei. – Mas
inúmeros médicos e enfermeiros nos disseram, ao longo dos anos, que aprenderam técnicas e
ferramentas muito úteis connosco.
O homem levantou o rosto.
– Oh! – exclamou. O sol refletiu-se nas suas lentes. – Então está a dizer-me que o nosso pessoal
pode aprender alguma coisa com uma data de atores desempregados?
Reuben, que estava um pouco afastado com o resto do grupo, virou-se.
– Isso é exatamente o que eu não estou a dizer – respondi. Fitei-o nos olhos como se estivéssemos
envolvidos num duelo. O que é que eu estava a fazer? – Tudo o que estou a dizer... como saberia, se
me tivesse dado ouvidos... é que o feedback dos profissionais médicos é esmagadoramente
positivo. Mas esses profissionais possuem um mínimo de humildade.
– Senhora Mackey! Por acaso disse o que eu penso que disse?
Reuben juntou-se rapidamente a nós.
– Posso ajudar com alguma coisa? – perguntou.
– Não me parece – respondeu o homem. – A sua sócia estava apenas a dizer-me que o meu
pessoal pode aprender umas coisas com os vossos palhaços. Incluindo humildade, imagine.
Portanto, estou apenas a ver se terei percebido bem.
– Senhor Schreuder... – começou Reuben, mas o outro homem cortou-lhe a palavra.
– Tenho uma equipa para gerir. Bom dia.
O pássaro levantou voo e desapareceu ao fundo da rua. Olhei para ele, desejando poder fazer o
mesmo.
– Que raio se passa contigo? – quis Reuben saber, assim que entrámos no táxi.
– Desculpa.
– Desculpa? – Estava furioso. – Podes muito bem ter-nos custado este contrato, Sarah. E não
fazia mal, se fosse só uma questão de dinheiro, se fôssemos nós os únicos prejudicados, mas não é,
não somos. Lembra-te da Ruth. E de todos os outros miúdos, e das outras quatro unidades que eles
têm.
Na parte da frente do táxi, ouvi fragmentos de uma voz latino-americana e música cumbia.
Respirei fundo algumas vezes. Se estivesse no lugar de Reuben, também estaria furiosa.
– Por amor de Deus, Sarah! – explodiu ele. – O que se passa?
O motorista concluíra finalmente o seu telefonema e estava a ouvir a nossa conversa com
interesse. Contudo, não teve muita sorte, porque eu não tinha nada a dizer.
Após uma longa pausa, Reuben perguntou:
– É por causa de mim e da Kaia? – Estava a olhar fixamente para o trânsito do outro lado da
autoestrada. – Porque, se é, temos mesmo de conversar. Eu...
– Não tem nada a ver com a Kaia – interrompi. – Embora, se queres que seja franca, acho que ela
não se devia meter onde não é chamada.
– Então o que é? Há algum tempo que andas estranha. Sarah, fomos casados dezassete anos –
disse Reuben. – Ainda te conheço.
– Não, não conheces.
Uma mãe com dois filhos atravessaram a estrada no semáforo à nossa frente. Uma das crianças ia
no carrinho, a agitar as pernas; a irmã saltitava à frente deles com um pequeno trompete de festa, a
apitar com todas as suas forças. Hannah tinha um trompete daqueles. Às vezes soprava-o na minha
orelha quando acordava antes de mim, e eu ficava furiosa. E ela ficava histérica e corria de um lado
para o outro com o trompete, a apitar e a rir.
Quando o semáforo mudou e o táxi arrancou, percebi que estava a chorar.

Mais tarde, estava encostada à janela suja no aeroporto, a ver os aviões cruzarem o céu cor de
ferrugem do final do dia, quando o telemóvel tocou. Só ao terceiro toque percebi que era o meu.
– Jenni?
– Oh, Sarah, ainda bem que atendeste.
– Está tudo bem contigo?
– Mais ou menos. Mas, ouve, aconteceu mesmo agora uma coisa estranhíssima.
Esperei.
Reuben acenou-me. Os últimos passageiros estavam a desaparecer na entrada para o avião.
– Acabo de ver o Eddie, Sarah. No nosso prédio.
– Sarah! – chamou Reuben. – Vamos!
Fiz-lhe sinal para esperar e fiquei com a mão no ar, como se estivesse à espera de ser
contabilizada.
– Olhei tantas vezes para a fotografia dele – estava Jenni a dizer. – Nunca o confundiria com
outra pessoa. Estava a falar com a Carmen, na receção, mas, quando saí, ele já se tinha ido embora.
– Oh...
Continuei estupidamente de braço no ar.
– Perguntou à Carmen se tu estavas e foi-se embora sem deixar mensagem.
– Oh...
– Era ele, Sarah. Era ele, de certeza absoluta. Fui olhar para uma fotografia dele logo a seguir,
para confirmar. E a Carmen disse que ele tinha sotaque inglês.
– Jenni, tens a certeza? Tens cem por cento de certeza?
– Cem por cento.
– Está bem.
– Sarah? Que raio se passa? – Reuben parecia outra vez zangado.
– Tenho de ir – disse a Jenni, num murmúrio. – Tenho de apanhar o avião.
CAPÍTULO 32

Querido Eddie,

Da última vez, prometi que seria a minha última mensagem.


O problema é que começo a perguntar-me quem tu realmente és. O meu amigo Tommy
perguntou-me há pouco tempo se eu achava que poderias ter tido alguma coisa a ver com o
acidente. Pus a ideia de lado sem hesitar, mas agora não tenho tanta certeza.
Foste tu que estiveste hoje no meu escritório? Foste tu que vi parado no trânsito a semana
passada? Se sim, porquê? O que andas a fazer?
Eddie, por acaso sabes exatamente quem eu sou? Por que motivo nunca regressei a
Inglaterra?
És a pessoa que eu temo que possas ser?
O mais provável é que leias isto e penses: De que diabo está esta mulher a falar? Porque
não me deixa em paz? Será louca?
Mas e se não for isso que estás a pensar? E se souberes exatamente do que eu estou a falar?
Não consigo deixar de questionar, Eddie. Não consigo.

Sarah
CAPÍTULO 33

Excerto do Stroud News & Journal


11 de junho de 1997

A polícia deteve um homem, no âmbito do acidente fatal ocorrido na A419, perto de Frampton
Mansell, no início deste mês. O detetive John Metherell confirmou a noite passada que um homem
de dezanove anos, de Stroud, foi detido sob a suspeita de ter causado o acidente, por condução
perigosa.
O acidente, que deixou uma família local devastada, desencadeou exigências de um melhor
controlo da velocidade nessa estrada isolada. Foi também manifestada alguma frustração por a
polícia ainda não ter efetuado qualquer detenção.
Desde o acidente, a Polícia de Gloucestershire tem procurado um homem – descrito na altura
como adolescente ou no início da casa dos vinte – que fugiu do local do acidente pelos campos ou
trilhos locais. Novas informações recebidas na segunda-feira levaram à sua identificação e
detenção.
O nosso jornal não conseguiu obter confirmação atempada de que o suspeito tenha sido
formalmente acusado.
CAPÍTULO 34

D eitei-me na cama do quarto de hóspedes de Jenni, a ouvir Javier carregar a carrinha lá fora.
No rádio dele, um homem falava rapidamente em espanhol sobre o fogo que grassava
descontroladamente nas colinas ressequidas da Califórnia. El fuego avanza rápidamente hacia
nosotros, disse. O fogo aproxima-se rapidamente de nós. Quando disse a palavra «fogo», a sua
voz abrandou, acariciando cada sílaba como uma chama a lamber papel. Fu-e-go.
Jenni estava a ouvir Diana Ross no duche, embora não cantasse. A caldeira roncava. O gato dos
vizinhos miava aflitivamente, o que significava que Frappuccino estava no quintal.
Virei-me de costas e esfreguei a barriga.
Havia um homem, algures, um homem sem nome, no qual eu pensava há dezanove anos. Não
conhecia o seu rosto nem a sua voz, não sabia nada dele a não ser o apelido, mas sempre soubera
que o reconheceria quando ele me encontrasse. Olharia nos olhos dele e saberia.
E era por isso que Eddie David não podia ser esse homem, disse a mim própria. Apesar de o
apelido não estar certo, eu tê-lo-ia pressentido assim que o visse. Eu saberia.
O fogo aproxima-se rapidamente de nós.
Sem aviso, saltei da cama, corri para a casa de banho e vomitei.

– De ressaca a um dia de semana! – Kaia sorriu com os olhos bonitos, para que eu percebesse
que não me estava a julgar. – Fazes-me sentir velha, Sarah.
Agachei-me em frente do nosso pequeno frigorífico, cheio de saladas e sanduíches embrulhadas,
e fechei os olhos. Não conseguia comer o almoço. Nem sequer conseguia olhar para ele.
– Não devias estar impressionada – respondi. – E devias julgar-me. Eu mereço. – Endireitei-me.
– Todos passámos já por isso – disse Kaia. Estava debruçada sobre qualquer coisa junto da
chaleira, como se quisesse esconder-me o que era. Espreitei por cima do ombro dela, infeliz, e vi,
como esperava, uma salada de ar extremamente saudável.
Quem me dera que ela não fosse tão boa a lidar comigo, pensei. Que não fosse tão simpática.
Só estava a esconder a salada para que eu não me sentisse mal. Acima de tudo, desejei que ela não
estivesse aqui, no nosso escritório. Na véspera, a desculpa para aparecer fora trazer informações
de uma recente reunião de angariadores de fundos no Hospital Pediátrico, mas hoje não dera
qualquer explicação. Simplesmente aparecera às dez e sentara-se em frente de um computador. Até
Jenni estava aborrecida.
Voltei à minha secretária com um copo de água numa mão e um tremor na outra. Reuben e Kaia
saíram para almoçar no nosso pequeno terraço.
Tentei ler os meus e-mails mas, mais uma vez, as palavras pareciam não fazer sentido. Tentei
beber a água, mas o meu estômago não estava para isso. Gelo!, disse-me. A água tem de estar
gelada! Arrastei-me novamente até à cozinha e encontrei o tabuleiro de gelo vazio no congelador.
Regressei à secretária e vi o meu marido e a namorada a namorarem lá fora. Kaia estava sentada ao
colo de Reuben.
– Não consigo fazer isto – disse alguém.
Eu, percebi após alguns instantes. Tinha sido eu a dizê-lo.
Quase me ri. Aqui estava eu, trémula, enjoada, tonta, e agora a falar sozinha. Que se seguiria?
Sons de animais? Correr nua pela rua?
– Não consigo – ouvi-me dizer novamente. A voz vinha de uma parte de mim que não conseguia
controlar. – Não consigo fazer isto. Nada disto.
Escapei rapidamente para a sala de reuniões.
Para com isso, disse a mim própria, depois de fechar a porta. Para imediatamente. Contornei a
mesa, fingi estar a enviar uma mensagem a alguém e olhei outra vez para eles. Kaia beijou a testa de
Reuben. Um gato vadio observava-os do telhado de uma clínica de botox nas imediações. Atrás
deles erguiam-se as silhuetas dos arranha-céus da baixa.
– Não consigo fazer isto.
Para!
Qualquer pessoa ficaria perturbada ao ver o ex-marido apaixonar-se outra vez, pensei,
racionalmente. Não fazia mal estar perturbada.
Só que o motivo não era Reuben e Kaia.
O fogo aproxima-se rapidamente de nós.
Tentei impedir as palavras que me subiam aos lábios, mas não tinha forças.
– Quero ir para casa – disse.
A sala de reuniões zumbia baixinho.
– Para – murmurei, com os olhos cheios de lágrimas quentes. – Para. A tua casa é aqui.
Não, não é. Isto nunca foi mais do que um esconderijo.
Mas adoro esta cidade! Adoro-a!
Isso não faz com que seja a tua casa.
Jenni entrou.
– Sarah – chamou. – Sarah, o que se passa? Estás a falar sozinha.
– Eu sei.
– É por causa do Reuben? Posso pedir à Kaia que se vá embora, se quiseres. Não deviam estar a
comportar-se daquela maneira.
Respirei fundo. Porém, enquanto esperava pelas palavras certas, Jenni saiu intempestivamente.
Fiquei a olhar para a porta estupidamente, e, quando percebi o que ela ia fazer, era tarde de mais.
Kaia e Reuben ergueram os olhos. Jenni disse qualquer coisa; eles sorriram e assentiram com a
cabeça. Quando entrou, Reuben assobiava, mas algo na sua expressão me disse que sabia o que aí
vinha.
Não, pensei, debilmente. Isto não. O problema não é isto. Mas Jenni já estava lançada. Parou de
pé à cabeceira da mesa e falou num tom de voz que eu ouvira apenas três, talvez quatro vezes,
desde que a conhecia.
– Kaia, estamos muito gratos por nos ajudares, mas penso que temos de esclarecer exatamente em
que projetos estás a ajudar, e se há ou não uma carga de trabalho excessiva algures na equipa.
Porque, se há, temos de analisar a situação. Não é apropriado estares aqui, a ajudar conforme te
apetece. Ninguém autorizou tal coisa.
Silêncio. Reuben olhou para mim, com ar chocado.
Kaia empalidecera.
– Claro – começou, embora eu soubesse que ela não sabia o que dizer a seguir. – Eu... bem,
estava só a tentar ajudar com algumas coisas que o Reuben precisava de despachar... A assistente
da Sarah, a Kate, pareceu... – Brincou com o anel que tinha a meio do dedo e percebi que as mãos
dela tremiam.
Isto não é o problema nem a solução, pensei. Estava tão cansada. Tão desesperadamente
cansada.
– Desculpem – disse Kaia após uma pausa. – Não queria intrometer-me. Percebo que,
provavelmente, tenho passado muito tempo aqui... – Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Instintivamente, dei um passo para ela, mas Jenni deteve-me.
– Eu trato disto – disse, passando um lenço de papel a Kaia. Não tentou consolá-la. Vi,
horrorizada, a minha amiga direcionar toda a sua raiva e desapontamento para a mulher que chorava
sentada à mesa da nossa sala de reuniões.
Reuben estava paralisado.
– Eu... perdi um... Ajuda-me muito estar aqui... – Kaia começou a recuar; parecia um animal meio
morto. – Peço desculpa. Mas isto ajuda-me. Mas não venho mais. Eu... – Dirigiu-se à porta.
E, de repente, percebi.
– Kaia – chamei, baixinho. – Espera um segundo.
Ela hesitou.
– Aquela história que me contaste, no dia em que nos conhecemos – comecei, e o rosto dela
pareceu perder os contornos, de alguma forma, como uma tenda sem postes a ondular ao vento. – A
história do menino na enfermaria de oncologia, que os nossos palhaços ajudaram. – A tenda abateu-
se por completo e ali estava: um ser humano profundamente arrasado. – Era teu filho? – perguntei.
Reuben olhou para mim. Kaia respirou fundo, lenta e tremulamente, e assentiu com um aceno.
– O Phoenix – disse. – Era o meu filho, sim.
Fechei os olhos. Pobre mulher.
– Como soubeste? – perguntou Reuben, estupefacto.
Nessa manhã, ao abrir a correspondência, eu encontrara uma carta de um casal chamado Brett e
Louise. Quatro meses depois de perderem o filho, tinham finalmente conseguido pegar na caneta e
diziam que esta era a primeira carta que iam enviar. Muito obrigado... Tornaram as últimas
semanas da vida dele muito melhores... Há alguma forma de podermos ajudar a vossa
organização?... Gostaríamos muito de fazer algum trabalho de voluntariado... Seria fantástico
poder retribuir um pouco... Sentirmo-nos úteis...
Isso fizera-me pensar em Kaia novamente, e no motivo de ela aqui estar. Não estava convencida
de que fosse apenas por causa de Reuben.
Alguns dias antes, tínhamos recebido um telefonema, a dizer que uma das crianças com quem
trabalhávamos havia meses estava em remissão e pronta para voltar a casa. Kaia, que nunca
conhecera essa criança, desatara a chorar.
– Uma segunda oportunidade – ouvi-a dizer a Kate, a minha assistente, que nos trouxera a notícia.
– Uma segunda oportunidade de viver. Oh, que grande bênção.
E era uma grande bênção. Todos tínhamos ficado felizes. Mas eu ficara a observar Kaia, muito
depois de os outros terem regressado ao trabalho, e ocorrera-me que talvez alguém na vida dela não
tivesse tido uma segunda oportunidade.
E agora, enquanto a via tentar desesperadamente explicar-se a Jenni, parecera-me óbvio que o
menino cuja história me contara no dia em que a conhecera só podia ser seu filho. Ela perdera um
filho e, com ele, uma parte insubstituível de si própria. E a dada altura, depois de conseguir sair da
cama, de conseguir voltar a respirar, começara a trabalhar em instituições de solidariedade porque
– tal como os pais que nos tinham escrito hoje, como eu e como tantos outros – sentia que era a
única forma possível de retirar algo bom de uma coisa má. De seguir em frente.
– Lamento muito – disse-lhe.
Ela assentiu.
– Eu também. E peço desculpa por passar aqui demasiado tempo. O meu companheiro e eu
separámo-nos o ano passado; não conseguimos ultrapassar a situação. Por isso tenho estado...
sozinha. Não que isso seja problema vosso, mas... de certa maneira ajuda-me, estar aqui.
Fechei os olhos. Estava tão cansada.
– Eu compreendo.

Vi-os sair. Jenni estava sentada numa cadeira ao fundo da mesa, abatida.
Aproximei-me e pousei-lhe a mão no ombro.
– Para com isso – ralhei, carinhosamente. – Não podias saber.
Jenni abanou a cabeça mas não disse nada.
– Ouve, Jenni, estou sensibilizada por te dispores a defender-me, a mim e à equipa, como fizeste.
Foste educada, foste simpática, deste-lhe um lenço. Que mais podias ter feito?
– Podia não ter dito nada – respondeu ela, com a voz embargada pelo sentimento de culpa. –
Podia tê-la deixado em paz.
Esfreguei-lhe os ombros e olhei pela janela. Uma das minhas pernas começou a tremer e sentei-
me ao lado dela.
– O pior é que estamos no mesmo barco, a Kaia e eu – disse Jenni, abatida. – Falta-nos uma
parte. Embora ela tenha chegado mesmo a ter um filho, Sarah, que perdeu, e... Oh, meu Deus,
consegues imaginar uma coisa dessas?
Quando ela se recompôs, disse-lhe que precisava de sair.
– Tenho de passar pela clínica. Não estou... não estou a funcionar muito bem neste momento, pois
não?
– Não – respondeu Jenni, com franqueza, e eu quase sorri. – Mas como queres que o médico te
ajude? Não vais pedir medicação, pois não?
Fiz uma pausa.
– Não – respondi. – Só preciso de... de falar.
Ela franziu a testa.
– Sabes que podes falar comigo, certo?
– Sei. E obrigada, mais uma vez. Pelo que fizeste. Sei que foi com as melhores intenções.
Jenni suspirou.
– Oh, eu sei. Vou fazer um bolo enorme para ela. De legumes, ou pozinhos verdes, ou coisa do
género. Vai ser delicioso.
Momentos depois, a porta do prédio fechou-se atrás de mim. Senti o soco abafado do ar de julho
à hora de almoço e apoiei-me na ombreira da porta. Queria dormir, mas não suportava o silêncio
em casa de Jenni e Javier. Queria sentar-me ao ar fresco, mas não podia voltar ao trabalho.
Queria...
Endireitei-me, sobressaltada.
Eddie. Queria Eddie. Mas devia haver algum curto-circuito nas profundezas do meu cérebro,
porque ele estava ali.
Ali.
Do outro lado de Vermont Avenue. À espera de que o semáforo mudasse. A olhar diretamente
para mim.
Não!
Sim.
Fiquei paralisada. Olhei para ele. Um autocarro vermelho comprido passou entre nós durante o
que me pareceram horas. Depois, desapareceu e ele continuava lá. Ainda a olhar para mim.
Estava entorpecida. De súbito, senti um estranho silêncio, desenquadrado do trovão do trânsito
que passava entre nós. As luzes mudaram e o verde para os peões convidou-me a ir ter com ele,
mas não o fiz porque ele estava a caminhar na minha direção, ainda de olhos postos em mim. Vestia
calções, os mesmos calções que trazia no dia em que nos conhecemos. Os mesmos chinelos de
enfiar no dedo. Ouvi o barulho dos seus pés no alcatrão em brasa e vi os braços a baloiçar, os
mesmos braços que me tinham embrulhado como um presente enquanto eu dormia.
Eddie vinha aí. Do outro lado do mundo, do outro lado da estrada.
Até que, de súbito, se virou e recuou para o outro lado. O semáforo dos peões ficou vermelho,
apitou uma vez, duas, três, e o trânsito recomeçou a circular. Eddie olhou para mim por cima do
ombro e começou a descer a rua.
Quando o semáforo mudou outra vez e consegui atravessar a estrada a correr, ele já desaparecera
em Lexington Avenue. Parei na esquina de Lexington e Vermont, estupefacta com a enormidade dos
meus sentimentos. Mesmo agora, após semanas de humilhação.
Nada mudara. Continuava apaixonada por Eddie David. Só que agora sabia – não podia continuar
a negá-lo – exatamente quem ele era.
Comecei a andar em direção à clínica.

O Sol estava a afundar-se a oeste da cidade. Por baixo de mim, estradas prateadas desapareciam
no horizonte, numa neblina tremeluzente e no fumo da poluição. Os helicópteros partilhavam o ar
com aves de rapina que navegavam nas correntes térmicas; nos trilhos escavados nas encostas,
como cicatrizes, os caminhantes pareciam insetos.
Estava aqui em cima há duas horas. Mais, provavelmente. Sozinha, no meu banco preferido perto
do miradouro em Griffith Park. Os turistas tinham já partido, na sua maioria, ansiosos por sair
daqui antes que a escuridão caísse. Alguns ficaram, ansiosos por fotografar o pôr do Sol perfeito.
E, entre eles, eu ficara sentada em silêncio, a tentar esquecer o que o médico me dissera, a tentar
concentrar-me na minha semana com Eddie. À espera de que a pista se revelasse. Ainda não a
encontrara, mas estava perto. Era espantoso o que podíamos encontrar, depois de sabermos o que
procurar.
Já revira todo o nosso tempo juntos quase até ao fim, e agora, enquanto o Sol sangrava sobre o
Pacífico invisível, pensava na nossa última manhã juntos. A claridade lá fora, a sensação de perda
enquanto nos despedíamos, a excitação pelo que o futuro nos reservava. Ele estava encostado ao
pilar das escadas. A janela estava aberta e senti o cheiro adocicado e seco da flor de espinheiro-
alvar, o aroma acre da relva quente. Tinha os olhos fechados. Ele estava a beijar-me, com uma mão
ao fundo das minhas costas. Encostou o nariz ao meu, de olhos fechados, e falámos. Ele deu-me uma
flor, tomou nota dos meus números, adicionou-me no Facebook, deu-me a Ratinha para tomar conta.
Disse: Acho que me apaixonei por ti. É demasiado?
Não, respondi eu. É perfeito. E depois saí.
Imaginei-o a virar-se depois de eu sair, a subir o resto dos degraus. A pegar no chá que deixara lá
em cima. Talvez tenha feito uma pausa para beber um gole. Ainda tinha o telemóvel na mão, porque
tínhamos acabado de trocar informações. Talvez se tenha sentado numa cadeira ao pé da janela e
olhado para o meu perfil de Facebook. Talvez andasse para baixo no ecrã e...
Peguei no telemóvel.
Senti-me estranhamente calma ao procurar a minha página de Facebook. E, claro, ali estava. Uma
mensagem simpática de Tommy Stenham no dia 1 de junho de 2016.

Bem-vinda a casa, Harrington! Espero que tenhas feito boa viagem. Estou ansioso por te ver.

Voltei a calçar-me. Desci ao miradouro e chamei um Uber. Enquanto esperava que chegasse, tirei
o telemóvel do bolso e comecei a escrever. Tinha a minha resposta.
CAPÍTULO 35

Eddie,

Sei quem és.


Durante anos, tive sonhos sobre o momento em que te conheceria. Os sonhos tinham lugar nos
recantos mais sombrios da minha mente e, neles, tu nunca tinhas rosto nem voz. Mas estavas
sempre lá, e era sempre horrível.
E depois estavas lá, estavas mesmo lá, naquele dia de junho, sentado no jardim de Sapperton,
com uma ovelha. Sorriste-me, pagaste-me bebidas e eras maravilhoso. E eu não fazia ideia.
O mundo sabe-me ao mesmo que me soube no verão em que fiz dezassete anos. Como bílis na
garganta.
Precisamos de falar. Cara a cara. Em baixo mando-te o número do meu telemóvel americano.
Por favor, liga. Podemos combinar um encontro.

Sarah
CAPÍTULO 36

–S arahDescalcei
Mackey – disse Jenni. – Por onde tens andado? Estou farta de te ligar.
as sandálias de cabedal e empoleirei-me num dos bancos altos.
– Desculpa, tinha o telefone sem som. Está tudo bem?
Jenni ignorou a minha pergunta e foi buscar-nos água.
– Posso dar-te um refrigerante, se preferires – disse, ao estender-me o copo. Tinha os olhos
raiados de sangue e percebi que devia estar na cama desde que chegara do trabalho.
Desatei a chorar.
– O que se passa? – Jenni voltou para junto de mim. Cheirava a champô de coco e a
marshmallow. – Sarah?...
Como podia eu explicar esta situação sórdida e infeliz a uma mulher que acabara de perder a sua
última oportunidade de ter a família que tanto desejava? Era impensável. Ela ouvir-me-ia e ficaria
horrorizada. E depois esmagada, porque não havia nada – absolutamente nada – que pudesse fazer
para me ajudar a resolvê-la.
– Diz-me – ordenou Jenni em tom severo.
– O médico disse que está tudo bem – menti, após uma longa pausa. Assoei-me. – Tudo bem.
Falta ver o resultado das análises, mas de resto está tudo normal.
– Sim?...
– Mas... eu...
O meu telemóvel começou a tocar subitamente.
– É o Eddie! – exclamei, correndo como uma louca pela sala à procura do telemóvel.
– O quê? – Jenni, subitamente com reflexos de relâmpago, tirou-o da minha mala e atirou-mo. – É
ele? – perguntou. – É o Eddie?
E o meu peito estava apertado e a latejar porque era ele, e a situação era insuportável. Nunca
poderia ficar com ele. Encontrara-o, finalmente, e não tínhamos futuro.
– Eddie? – atendi.
Houve uma pausa, e depois a voz dele disse olá. Tal como eu sonhara que aconteceria, mas desta
vez era real. Familiar e estranha, perfeita e desoladora. A voz dele.
A minha aguentou-se apenas o suficiente para lhe dizer que sim, podia encontrar-me com ele
amanhã de manhã, e sim, podia ser na praia de Santa Monica; combinámos encontrar-nos ao pé do
sítio que alugava bicicletas, no cais, às dez.
– Já começava a pensar que era mentira que Los Angeles ficasse junto ao oceano – disse ele.
Parecia cansado. – Ando de um lado para o outro há dias e não o vi nem uma vez.
E depois a chamada terminou e eu enrosquei-me ao canto do sofá de Jenni e chorei como uma
criança.
CAPÍTULO 37

Meu amor,

Olá, Ouriço-Cacheiro.
Passaram quase duas semanas desde o dia do teu aniversário mas ainda penso em ti todos os
dias. Não é só nos aniversários.
Às vezes, gosto de imaginar o que andarias a fazer se ainda aqui estivesses. Hoje imaginei-te
a viver na Cornualha; uma artista jovem e falida com tinta no cabelo. Nesta versão, estudas
Belas-Artes em Falmouth e vives num velho edifício degradado no alto de uma colina,
partilhado com os teus amigos artistas. Gostas de écharpes e, provavelmente, és vegetariana, e
andas sempre ocupada a tentar obter bolsas do Conselho das Artes, a organizar exposições, a
dar aulas de pintura a crianças. És eletrizante.
Depois, surge o pêndulo da dor e lembro-me de que não estás na casa excêntrica na colina.
Estás espalhada num cantinho tranquilo em Gloucestershire, um zumbido baixinho de memória
onde havia antes o raio de sol da minha irmã.
Será que sabes o que vou fazer amanhã de manhã? Será que sabes com quem vou encontrar-
me na praia? E, se sabes, será que me perdoas?
Porque não posso deixar de ir, meu pequeno Ouriço-Cacheiro. Tenho de saber como estavas
no dia em que morreste: o que estavas a fazer, o que estavas a dizer, até o que estavas a comer.
Quando tive de identificar o teu corpo, encolhi-me a um canto, sem forças, como uma coisa
derretida. Demorei horas a conseguir levantar-me, pegar no carro e voltar para casa. Porém,
quando lá cheguei, encontrei metade de uma torrada ao lado do lava-loiça. Fria e dura, com a
marca dos teus dentinhos num dos cantos. Como se tivesses pensado em dar mais uma dentada
mas depois tivesses mudado de ideias e ido fazer outra coisa.
Que mais comeste nesse dia? Cantaste uma canção? Mudaste de roupa? Estavas feliz,
Ouriço-Cacheiro?
Tenho de fazer estas perguntas. E tenho de perceber por que razão, apesar de tudo, continuo a
amar a pessoa que te roubou de nós.
Sinto que estou a desiludir-te imensamente por ir a este encontro amanhã. Espero que
compreendas os meus motivos.
Amo-te.

Beijos, Eu
CAPÍTULO 38

V i um grupo de jovens a jogar voleibol enquanto esperava por Eddie. Perguntei-me se ele
apareceria, sequer, e se não seria muito mais fácil, melhor, se não aparecesse.
A maré estava baixa, distante, a praia sossegada. Um leve manto de nuvens pairava entre Santa
Monica e o sol forte. O ar cheirava a qualquer coisa caramelizada e doce – açúcar derretido,
talvez, ou farturas –, um cheiro de infância que me iluminou um velho cantinho da memória. Longas
férias em Devon. Areia grossa, pernas e braços salgados, rochas escorregadias. O tamborilar
delicado da chuva na nossa tenda. A trocar sussurros pela noite dentro com a minha irmãzinha, cuja
presença na minha vida nunca me ocorrera questionar.
Olhei para o relógio.
No campo de voleibol, os jovens acabaram o jogo e começaram a arrumar as suas coisas. As
tábuas do passadiço estremeceram ruidosamente quando passou alguém de patins. Passei os dedos
húmidos pelo cabelo. Engoli em seco, bocejei, abri e fechei as mãos.

A voz de Eddie, quando surgiu, estava atrás de mim.


– Sarah?
Fiz um compasso de espera antes de me virar para ele, para este homem que vivera na minha
cabeça durante tantos anos.
Mas, quando olhei para ele, vi apenas Eddie David. E senti apenas as coisas que sentira antes de
saber quem ele era: o amor, as saudades, o desejo. O vuuch! quando o meu corpo se acendeu como
um forno a gás.
– Olá – disse-lhe.
Eddie não respondeu. Fitou-me e lembrei-me do dia em que o conheci. De ter pensado que os
olhos dele eram da cor de oceanos estrangeiros: cheios de calor e boas intenções. Hoje, estavam
frios, quase vazios.
Mudei o peso de um pé para o outro.
– Obrigada por teres vindo.
Um pequeno estremecimento nos ombros dele.
– Há duas semanas que ando a tentar falar contigo. Tenho estado em casa do meu amigo Nathan.
Mas... – Calou-se e encolheu os ombros.
– Claro. Compreendo.
Uma família vestida de amarelo, em bicicletas alugadas, pedalou sobre o passadiço entre nós e
ele recuou, sem deixar de olhar para mim.
Descemos até à praia e sentámo-nos na areia, onde ela começava a descer para a água. Durante
muito tempo olhámos para o Pacífico a rebentar sobre si próprio; lençóis de espuma prateada numa
viagem interminável, sem destino. Eddie tinha os braços à volta dos joelhos. Descalçou um dos
chinelos e enterrou os dedos do pé na areia.
O choque do desejo quase me tirou o ar.
– Não sei como fazer isto, Sarah – disse ele, por fim. Tinha os olhos vidrados. – Não sei o que
dizer. Tu... – Abriu as mãos, com ar impotente.
Em tempos, Eddie tivera uma irmã, uma menina muito querida chamada Alex, de cabelo loiro e
revolto. Cantava muito. Tinha grandes olhos azuis, cheios de vida e de planos, e adorava rebuçados
de fruta. Era a melhor amiga da minha irmã.
Senti o estômago apertado ao recordar essa imagem, à espera daquilo que sabia que se seguiria.
– Mataste a minha irmã – disse Eddie. Respirou fundo e eu fechei os olhos.
A última vez que ouvira aquelas palavras fora no grande gravador de mensagens Panasonic ao
lado do telefone dos meus pais. Tinham passado uma ou duas semanas do acidente, e Hannah tivera
finalmente alta do hospital. Recusara-se a entrar no carro comigo; recusara-se sequer a ir para casa.
Fizera uma cena e, por fim, tiveram de chamar uma ambulância de transporte de doentes para a
levar. A minha mãe foi com ela, e o meu pai e eu fomos de carro.
Quando entrámos em casa, a luz vermelha do gravador estava a piscar – uma imagem que,
ultimamente, eu começara a temer – e havia uma mensagem da mãe de Alex, que, na altura, estava
internada num hospital psiquiátrico. A voz dela era como porcelana partida. A vossa filha não
ficará impune. Não pode ficar impune. A Sarah matou a minha bebé. Matou a minha Alex e vai
para a prisão, hei de certificar-me disso. Não merece ficar em liberdade. Não merece estar livre
quando a Alex está... está...
Ela vai certificar-se de que tu vais para a prisão, ecoara Hannah, fitando-me com ar furioso, em
lágrimas. Tinha o corpo coberto de cortes e nódoas negras. Mataste a minha melhor amiga. Não
mereces estar aqui quando ela não está. Desatara a chorar. Odeio-te, Sarah. Odeio-te! E foram as
últimas palavras que me disse. Passaram dezanove anos; dezanove anos, seis semanas e dois dias, e
ela nunca mais me dirigiu uma única palavra, por mais que eu tentasse, por mais intervenções que
os nossos pais tivessem encenado.
– Tenho tanta pena, Eddie – murmurei. Esfreguei os tornozelos com as mãos trémulas. – Se isso te
servir de alguma coisa, nunca me perdoei a mim própria. E a Hannah também nunca me perdoou.
– Oh, sim, a Hannah. – Olhou para mim e desviou imediatamente os olhos, como se eu o
repugnasse. – Disseste-me que tinhas perdido a tua irmã.
– Bem... e perdi. – Tracei uma linha irregular na areia. – A Hannah deixou de falar comigo.
Cortou-me da vida dela, permanentemente. Portanto sinto-me como se não tivesse realmente uma
irmã.
Ele fitou brevemente a linha que eu traçara na areia.
– A Hannah nunca mais falou contigo?
– Nunca mais. E sabe Deus que eu tentei.
Ele ficou calado algum tempo.
– Não posso dizer que esteja muito surpreendido. Ela manteve o contacto com a minha mãe.
Podes imaginar as conversas. – A sua voz era gelada. – Mas isso é outra história. A verdade é que
tens uma irmã. Mesmo que ela não queira ter nada a ver contigo, tens uma irmã.
Fiz uma pausa. Desejei poder fugir. Eu sou a mulher para quem ele mal consegue olhar. Sou a
mulher cuja morte provavelmente desejou durante todos estes anos.
– Lamento muito que a tua irmã fosse a melhor amiga da minha, Eddie. Lamento muito ter saído
com elas de casa naquele dia. Lamento muito não ter reagido da melhor maneira quando ele...
quando aquele tipo... – Engoli em seco. – Não consigo acreditar que és o irmão da Alex.
Eddie encolheu-se.
– Quero que me contes tudo – pediu, e percebi o esforço que estava a fazer por manter um tom de
voz neutro.
– Eu... Tens a certeza?
O seu corpo – aquele corpo forte, quente, maravilhoso, com o qual eu sonhara tantas vezes – fez
um breve aceno de assentimento.
E assim fiz.

Tentei tanto assegurar o meu lugar no grupo de amigos de Mandy e Claire naquele verão... foi um
esforço miserável e esgotante. Nas semanas que se seguiram aos exames, elas encontravam-se todos
os dias, mas só me convidavam para estar com elas algumas vezes.
– Céus, Sarah, não sejas paranoica – disse Mandy, quando finalmente arranjei coragem para a
confrontar.
Éramos adolescentes. Claro que eu era paranoica.
No tempo que passavam juntas, tinham desenvolvido um novo código de comportamento que se
recusavam a partilhar comigo, por isso as minhas primeiras semanas no décimo segundo ano foram
como atravessar um campo minado. Dizia as coisas erradas, falava sobre as pessoas erradas e
vestia as roupas erradas, e só me apercebia de que já estava ultrapassada quando apanhava um
revirar de olhos pelo canto do olho.
No dia do meu décimo sétimo aniversário, cheguei à escola e descobri que elas tinham deixado
de se sentar no canto habitual da sala de convívio e tinham passado para outro lugar. Não fazia
ideia se estava convidada ou não.
No segundo período, Mandy começou a namorar com um rapaz de Stroud, a cidade onde ficava a
nossa escola. Chamava-se Greggsy. Tinha vinte anos e, por isso, era um excelente partido: não
interessava que tivesse uma cara de fuinha desagradável nem que a sua relação com a lei fosse
duvidosa. Claire ficou doente de inveja e passava o tempo todo atrás deles. Comecei a perder a
esperança, certa de que esta seria a última gota para mim. As raparigas que namoravam com
homens mais velhos eram de um calibre superior. Eram sexuais, bem-sucedidas, independentes;
livres das ansiedades borbulhentas das outras adolescentes.
Mandy talvez levasse Claire consigo quando puxasse a escada atrás dela, pensei, mas de certeza
que não me levaria a mim.
Porém, um dia em março, Mandy disse em tom casual que Bradley Stewart andava a fazer
perguntas sobre mim. Bradley Stewart era primo de Greggsy. Conduzia um Astra. Era um dos
rapazes mais atraentes daquele grupo desagradável e eu fiquei pateticamente contente.
– Sim? – perguntei, sem levantar os olhos do rótulo de Diet Coke que estava a arrancar. Era
importante jogar da maneira certa: se parecesse demasiado interessada, Mandy usaria as minhas
próprias palavras para me envergonhar, posteriormente. – Suponho que não é dos piores.
– Eu arranjo-te um encontro – anunciou ela, descontraidamente. Claire, com quem Mandy
discutira nesse dia, ficou furiosa, e percebi que esta oportunidade nunca teria surgido se elas não
estivessem zangadas.
Não combinámos uma saída a dois, porque ninguém fazia isso naquela época. Simplesmente
encontrámo-nos na rua pedonal em frente ao Pelican, com todos os outros adolescentes que ali iam
para beber. Bebíamos garrafas de Hooch e Smirnoff Ice e tentávamos ser engraçados e espertos.
Bradley, com o seu cabelo preto e ténis pretos e olhos penetrantes, conseguiu persuadir-me a ir com
ele até ao edifício do parque de estacionamento em London Road, para «beber um copo».
Empurrou-me contra a parede e começou a beijar-me. Enfiou as mãos debaixo da minha camisola e
eu deixei, apesar de ele ser bruto e impaciente. Enfiou as mãos dentro das minhas calças de ganga e
eu deixei. Não queria, mas não tinha experiência quase nenhuma com rapazes e não me surgiria tão
cedo outra oportunidade como esta. Ele tentou fazer sexo comigo; eu disse que não. Pediu-me para
lhe fazer sexo oral, e acabou por se contentar com que eu, muito nervosa, o masturbasse. Não
gostei, mas ele gostou, e isso bastava para mim.
Depois, ele não me ligou e eu fiquei de rastos. Passei dias a olhar para o telefone de casa, e por
fim desisti e marquei o número dele, quando não aguentei mais. Ninguém atendeu. Até apanhei o
autocarro para a casa dele, perto de Stroud. Passei em frente à porta dele três vezes em meia hora,
ensopada pela chuva, cheia de esperança e sem esperança nenhuma.
– Devias ter dormido com ele – disse-me Mandy. – Ficou a pensar que andavas com outro. Ou
então que és frígida.
Claire, que estava de volta às suas boas graças, riu-se.
Eu já sentia desvanecer-se aquela pequena centelha de importância que adquirira quando Bradley
me levara para o parque de estacionamento. Assim, pedi a Mandy para lhe dizer que estava
disposta a dar-lhe o que ele queria (palavras dela) e Bradley ligou-me.
Tornámo-nos um casal, mais ou menos. Convenci-me de que era amor, e não me passou pela
cabeça que pudesse merecer melhor. Nem teria querido melhor: agora fazia parte do gangue e
estava à vontade em todo o lado. Vivia naquele patamar mais elevado, com Mandy, e nem pensar
que voltaria a descer.
Bradley falava-me muitas vezes das outras raparigas que gostavam dele e o meu coração
adolescente ficava gelado de terror. Passava dias sem me dizer nada, nunca me acompanhava à
paragem de autocarro e insistia muitas vezes em ir sem mim ao Maltings, uma discoteca
questionável e de má fama, para poder «ser ele próprio». Por mais de uma vez, tomou esta decisão
enquanto estávamos na fila para entrar, sabendo que eu não tinha para onde ir se não pudesse
dormir em casa dele. No dia em que passei no exame de condução, nem sequer me deu os parabéns.
Simplesmente sugeriu que me metesse no carro e fosse a casa dele para fazermos sexo.

– Parece um tipo às direitas – disse Eddie.


Encolhi os ombros.
Ele fitou-me brevemente e lembrei-me da nossa primeira manhã juntos, quando nos tínhamos
sentado frente a frente no balcão da cozinha dele. Nós os dois, o cheiro a pão e a esperança.
Depois, afastou o olhar, como se não suportasse olhar para mim.
– Importas-te se formos diretos ao assunto? – pediu baixinho. – Compreendo por que razão me
estás a contar essas coisas, mas... mas eu preciso de saber.
– Desculpa. Claro. – Lutei contra os acordes de pânico crescente. Há anos que não falava sobre o
que acontecera naquele dia. – Eu... E se caminhássemos um bocadinho? Está demasiado calor para
ficarmos parados.
Após um instante, Eddie levantou-se.
Passámos pela guarita azul-pastel do salva-vidas e subimos para o passadiço, que se estendia até
Venice. Pessoas de bicicleta e patins passavam por nós; as gaivotas esvoaçavam por cima. As
nuvens matinais tinham-se dissipado e o ar tremeluzia agora com o calor.

Era verão, uma tarde de segunda-feira em junho. Os meus pais tinham ido fazer qualquer coisa a
Cheltenham e deixaram-me a tomar conta de Hannah depois das aulas. Alex estava lá em casa com
Hannah. Depois de uma hora a fingir que faziam os trabalhos de casa, disseram-me que estavam tão
aborrecidas que podiam mesmo morrer e pediram-me para as levar a Stroud para comer um
hambúrguer. Eu disse que não. Por fim, concordámos em ir até Broad Ride passear e fazer um
piquenique. Elas tinham construído uma represa lá em cima, anos antes, quando construir e cuidar
de uma represa ainda era uma forma aceitável de passar o dia. Agora, há muito desinteressadas
desse tipo de coisas, gostavam de ir para lá ouvir música e ler revistas.
Eu estava sentada num tapete a pouca distância delas, a ler um dos meus manuais escolares. Não
tinha qualquer interesse nas suas conversas sussurradas sobre um rapaz qualquer da turma, mas elas
tinham doze anos e não tencionava perdê-las de vista. Hannah era demasiado exibicionista para ser
responsável pela sua própria segurança. Não compreendia o lamaçal da vida; as consequências da
fanfarronice de uma miúda de doze anos.
Estava um dia quente, com nuvens finas e estreitas no céu, e eu sentia-me tão em paz como era
possível sentir-me naquela altura. Até que ouvi o som de um carro e o ritmo de música demasiado
alta. Ergui os olhos e o meu coração saltou e depois afundou-se. Bradley ligara-me antes de
sairmos de casa, a dizer que queria que eu o fosse buscar. O carro dele não pegava, disse-me.
Talvez eu pudesse emprestar-lhe algum dinheiro para o arranjar?
Não, respondi a ambos os pedidos. Estava a cuidar de duas crianças de doze anos; além disso,
ele já me devia setenta libras.
– Pedi o carro emprestado ao Greggsy – disse agora, enquanto se aproximava de mim com um
dos seus raros sorrisos. – Uma vez que não tiveste a decência de me ir ajudar. – Olhou para Hannah
e Alex com interesse. – Tudo bem, miúdas?
– Olá – disseram elas, de olhos arregalados.
– Desde quando é que o Greggsy conduz um carro desses? – perguntei. Era um BMW. Artilhado,
como Bradley e Greggsy gostavam dos seus carros, mas um BMW.
– Arranjou algum dinheiro – disse Bradley, levando o dedo ao nariz, num gesto conspirador.
Hannah pareceu excitada.
– Caiu do bolso de alguém?
Bradley riu-se.
– Não. É legal.
Ele não conseguia estar muito tempo parado. Após cerca de dez minutos na manta, sugeriu que
fizéssemos «uma corrida» com os nossos carros.
– Nem pensar – respondi. – Estou com as miúdas.
Já tinha entrado numa corrida com ele, uma vez: Bradley contra Greggsy, na variante de Ebley,
uma noite, já tarde. Tinham sido os vinte minutos mais assustadores da minha vida. Quando a
corrida acabou, no novo parque de estacionamento de Sainsbury, baixei a cabeça para o peito e
chorei. Eles riram-se de mim. Mandy também, embora estivesse tão assustada como eu.
Hannah e Alex, contudo, à beira da prancha de lançamento para a adolescência, acharam que era
uma ideia fantástica.
– Sim, vamos fazer uma corrida – disseram, como se o carro que o meu pai me emprestara fosse
um bólide desportivo e não uma lata velha com um motor sedento e uma junta de colaça com os dias
contados.
Mas elas não se calavam, Hannah e Alex, e Bradley espicaçava-as. Não é a autoestrada M5,
Sarah. É só uma estradinha perdida no meio do nada. Alex começara a sacudir o cabelo loiro
para trás por cima do ombro e Hannah imitava-a, embora de forma menos convincente.
A minha necessidade de proteger Hannah não diminuíra com a passagem dos anos. Quando muito,
tornara-se mais forte à medida que ela se transformava de criança destemida em rapariga
presunçosa. Portanto, recusei. Uma e outra vez. Bradley começou a ficar irritado; eu estava a ficar
nervosa. Nenhum de nós estava habituado a que eu dissesse não.
No entanto, a decisão deixou de ser minha quando Hannah, a rir, correu para o carro de Bradley e
entrou para o lugar do passageiro. Bradley correu para trás do volante num abrir e fechar de olhos.
Comecei a gritar com eles, mas ninguém me ouviu porque o carro que Bradley pedira emprestado
tinha um escape duplo e ele estava a pisar o acelerador. Arrancou a toda a velocidade para
Frampton e senti o estômago às voltas.
– Hannah! – gritei. Corri para o meu carro, com Alex atrás de mim.
– Merda! – sussurrou ela. Parecia impressionada e assustada. – Eles foram mesmo!
Obriguei-a a pôr o cinto de segurança. Disse-lhe que não devia dizer asneiras. Rezei.

– E lá fomos nós – disse, parando no meio do passadiço.


Eddie virou-me costas e olhou para o mar, com as mãos enfiadas nos bolsos.
– Estavas no jardim da aldeia porque tinhas estado a percorrer Broad Ride – disse eu. – Não foi?
No dia em que nos conhecemos? Estavas ali exatamente pela mesma razão que eu.
Ele assentiu com a cabeça.
– Foi a primeira vez que fui lá no aniversário da morte dela. – A sua voz era tensa, como se
estivesse a esforçar-se por não perder o controlo dela. – Normalmente, passo esse dia com a minha
mãe, que vai buscar os velhos álbuns de fotografias e chora. Mas naquele dia... não consegui fazê-
lo. Queria estar lá, ao sol, a pensar coisas boas sobre a minha irmã.
Eu. Eu é que fizera isto. Eu e a minha fraqueza, a minha monstruosa estupidez.
– Todos os anos percorro aquela estrada no dia dois de junho – disse-lhe. Queria enrolar-me
nele, absorver o seu sofrimento, de alguma maneira. – Vou lá acima porque Broad Ride foi o reino
delas, nessa tarde. Tinham verniz de unhas e revistas e nenhuma preocupação na vida. É para essa
parte que regresso nas minhas memórias.
Eddie olhou de lado para mim.
– Que revistas? Lembras-te? Que verniz? O que estavam a comer?
– Era a Mizz – respondi, baixinho. Claro que me lembrava. Revivera aquele dia vezes sem conta
na cabeça ao longo de toda a minha vida adulta. – Tinham-me pedido emprestado o meu verniz.
Viera como brinde numa revista. Chamava-se Sugar Bliss. Tínhamos folhados de salsicha da Linda
McCartney, porque elas estavam as duas a passar por uma fase vegetariana. Batatas fritas de queijo
e cebola e uma tigela de salada de fruta. E a Alex levara algumas guloseimas às escondidas.
Lembrava-me como se fosse ontem; as vespas a pairarem sobre a fruta, os óculos escuros novos
de Hannah, as várias tonalidades de verde.
– Skittles – disse Eddie. – Aposto que levaram Skittles. Eram os favoritos dela.
– Isso mesmo. – Não conseguia olhar para ele. – Skittles.

Apanhei-os na estrada principal. Bradley estava a tentar virar à direita, para Stroud, mas uma fila
de carros atrás de um trator lento tinha-o atrasado.
Mantém a calma, disse a mim própria, enquanto saía do carro e corria para a porta do lado do
passageiro do carro dele. Tira-a daqui e faz de conta que é tudo muito engraçado. Ele não se vai
irritar se...
Bradley viu-me e virou rapidamente à esquerda, com o motor a rugir. Corri de novo para o meu
carro.
– Podes acelerar, se quiseres – disse Alex. O carro de Bradley já quase desaparecera de vista. –
Podes dar o máximo. Não me importo.
– Não. Ele vai abrandar e esperar por mim para fazermos uma corrida. Já sei como ele é. –
Sentia o sangue a latejar nos ouvidos. Por favor, meu Deus, não deixes que aconteça nada à Hannah.
Não deixes acontecer nada à minha irmãzinha. Olhei para o conta-quilómetros. Oitenta quilómetros
por hora. Abrandei. Depois acelerei. Não aguentei.
Alex ligou o rádio do carro. Estava a tocar uma banda de rapazes americanos, os Hanson, com
uma canção palerma e viciante chamada «MMMBop». Dezanove anos depois, ainda não consigo
ouvi-la.
Após poucos minutos, vi Bradley a acelerar em direção a nós na faixa contrária, a cem, talvez
cento e dez quilómetros por hora.
– Mais devagar! – gritei, fazendo-lhe sinal de luzes. Ele devia ter feito inversão de marcha mais à
frente.
– Calma! – disse Alex. Sacudiu o cabelo, nervosa. – A Hannah está bem!
Bradley passou por nós a toda a velocidade, a apitar, e depois fez um pião e ficou virado para a
frente do nosso lado da estrada, atrás de nós.
– Um pião com o travão de mão! – exclamou Alex, maravilhada. Abrandei até estar quase parada,
observando-os pelo espelho retrovisor. Sustive a respiração até ter a certeza de que ele dominara o
carro e estava a conduzir novamente atrás de nós. Conseguia vê-la ali, no banco da frente, uma boa
cabeça mais baixa do que ele. Uma criança, por amor de Deus.
Ela estava imóvel, a olhar em frente. Hannah só ficava assim tão quieta quando estava com medo.
– Como sabes o que é um pião? – ouvi-me perguntar. Estava a conduzir devagar, com os quatro
piscas ligados. Por favor, para. Devolve-me a minha irmã. Abri a janela e apontei freneticamente
para a berma.
– Foi o meu irmão que me disse – respondeu Alex. – Ele anda na universidade.
Por um momento, fiquei zangada por o irmão dela – um idiota qualquer – achar que tinha piada
ensinar à irmã o que era um pião. Mas, depois, Bradley deixou-se ficar para trás, acelerou em
direção a nós e travou com os pneus a chiar, mesmo no último segundo. Soltei uma exclamação
abafada. Ele fê-lo outra vez. E outra, e outra. Tentei parar várias vezes, mas, sempre que o fazia, ele
tentava ultrapassar-me. Assim, continuei a conduzir, como ele queria. Não podia deixar que
arrancasse à minha frente e desaparecesse com a minha irmã.
Continuámos assim até começarmos a aproximar-nos da descida perto do cruzamento de
Sapperton e do bosque. Nessa altura, ele já devia estar a ficar farto, porque não parou quando
acelerou atrás de mim, e bateu na traseira do meu carro. Não com muita força, mas ainda assim a
suficiente para me deixar em pânico. Só tinha carta há três semanas.
– Merda – disse Alex, desta vez mais baixinho do que antes. Ainda tentava parecer entusiasmada,
mas era evidente que estava com medo. Tinha os dedos finos apertados à volta do velho cinto de
segurança esgaçado.
Começámos a descer, sempre com Bradley a apitar e a fazer sinais de luzes atrás de mim. Estava
a rir-se. E, depois – embora estivéssemos a entrar numa curva sem visibilidade –, guinou para me
ultrapassar.
Tudo pareceu ficar suspenso, como uma gota de água na torneira, pronta para cair e se desfazer.
Um carro apareceu na curva, na outra faixa, tal como eu sabia que aconteceria.
Bradley estava quase lado a lado comigo. Nunca conseguiria evitar a colisão.
A minha irmã. Hannah.
O meu sistema de reação instintiva assumiu o controlo nesse momento, disse eu à polícia mais
tarde. Sabia-o porque o que aconteceu a seguir não foi uma questão de escolha; foi simplesmente o
que aconteceu. O meu cérebro deu instruções aos meus braços para virarem o volante para a
direita, e o carro guinou para a direita.
Se perderes o controlo do carro, nunca apontes para uma árvore, dissera-me o meu pai quando
me ensinara a conduzir. Aponta sempre para um muro ou uma cerca, porque são coisas que cedem.
Uma árvore não cede.
E a árvore não cedeu, quando o lado do passageiro do carro – o lado onde estava a pequena e
querida Alex Wallace, com o seu cabelo loiro e os seus Skittles e o seu verniz de unhas – embateu
contra ela.
A árvore não se mexeu, mas Alex sim.

Obriguei-me a olhar para Eddie, mas ele continuava a olhar para o mar. O globo brilhante de uma
lágrima deslizara-lhe lentamente pela face, e agora sacudiu-a e apertou a cana do nariz. Porém,
após alguns segundos, deixou cair a mão e, com ela, as lágrimas. Ali de pé, chorou, este homem
grande e carinhoso, e senti ainda com mais força aquilo que sentira ao longo destes anos. Aquele
ódio por mim própria, o desespero de querer fazer algo, mudar as coisas, e o desespero
subsequente de saber que não podia. O tempo avançara, deixando Alex para trás. Deixando Eddie
em pedacinhos, e a minha irmã incapaz de me perdoar.
– Passei anos a pensar no que faria se um dia te conhecesse – disse Eddie, por fim. Limpou os
olhos com os braços e virou-se para mim. – Odiava-te. Não conseguia acreditar que aquele traste
tivesse sido preso e tu não.
Assenti, porque também me odiava.
– Eu perguntei por que razão não era também punida – expliquei, inutilmente. – Mas insistiam em
dizer que eu não tinha feito nada ilegal. Não estava a conduzir de forma perigosa nem
irresponsável.
– Eu lembro-me. O agente da polícia teve de o explicar à nossa família. – O tom de Eddie era
inexpressivo. – Não fez qualquer sentido para a minha mãe.
Fechei os olhos, porque sabia o que ele ia dizer a seguir.
– Tudo o que sei é que escolheste salvar a tua irmã e, por causa disso, a minha morreu.
Apertei os braços à volta do corpo.
– Não foi essa a minha escolha – murmurei. As lágrimas bloqueavam-me a passagem do ar. – Não
fiz essa escolha de forma consciente, Eddie.
Ele suspirou.
– Talvez não. Mas foi o que aconteceu.
A polícia veio falar connosco no hospital. O BMW era roubado, disseram.
Por que diabo acreditara eu no que ele me dissera? Porque dera ouvidos a fosse o que fosse que
ele me dissera? Um pânico doentio invadiu-me ao pensar em tudo o que dera àquele homem. A
minha virgindade. O meu coração. O meu amor-próprio. E, agora, a vida de uma criança. A melhor
amiga da minha irmã.
Uma testemunha vira o condutor a correr pelos campos, fugindo do acidente. Quem era?
– Quem era? – repetiu o meu pai, confuso. Estava sentado ao lado da minha cama e segurava-me
na mão. A mamã estava do outro lado, um escudo humano entre a filha e a polícia. – Quem era,
Sarah?
– O meu namorado. Bradley.
– O teu quê? – O meu pai ficou ainda mais perplexo. – Tens namorado? Mas há quanto tempo? E
porque não nos disseste?
E eu virei a cabeça e chorei com o rosto na almofada, porque agora era tudo muito óbvio. Era
óbvio que Bradley era um ser humano desprezível – sempre fora um ser humano desprezível – e era
óbvio que, no fundo, por baixo daquelas camadas densas de insegurança adolescente, eu sempre o
soubera.

As minhas ações podem ter salvado a minha irmãzinha da morte, mas não a protegeram de todo o
mal. Bradley guinara para o espaço que eu deixara livre, embatendo com o lado do carro em que
Hannah se encontrava na traseira do meu. Hannah foi submetida a duas cirurgias em dois dias.
Estava na enfermaria do piso por cima do meu, com um traumatismo, ferimentos graves e, pela
primeira vez em doze anos, silenciosa.
Bradley, cujo nome eu dera à polícia, tinha desaparecido.
– Procurem em casa do Greggsy – disse-lhes, e ele foi preso nessa tarde.
Depois de ter alta, passei duas semanas sentada ao lado da cama de Hannah, até ela ter também
alta. Não fui à escola; mal fui a casa. Não me lembrava de quase nada, a não ser dos apitos
discretos das máquinas e do zumbido de atividade na ala pediátrica. O medo, quando uma das
máquinas de Hannah fazia um som diferente; o sentimento de culpa, como um maçarico no meu
peito. Ela estava quase sempre a dormir; às vezes, chorava e dizia que me odiava.
A polícia insistiu para que eu não fosse acusada de qualquer crime, por mais que a família de
Alex estivesse determinada em ver-me punida. O sentimento de culpa intensificou-se. Testemunhei
contra Bradley no tribunal de Gloucester e sofri uma reprimenda por implorar ao juiz que me
julgasse também.
Não conhecia a família de Alex. Eram quase sempre os meus pais que a iam buscar e levar,
porque – como dizia a minha mãe – «a mãe da Alex às vezes está em baixo». Depois do sucedido,
sofrera um colapso nervoso, disseram no tribunal. Além disso, estava sozinha com os filhos desde
que Alex era pequena, por isso o filho fora obrigado a deixar a universidade para cuidar dela.
Nenhum dos dois apareceu no tribunal.
Um dos jurados olhou para mim nessa altura. Era uma mulher talvez da idade da minha mãe,
capaz de imaginar como seria perder um filho. Fitou-me diretamente no rosto e a sua expressão
dizia: Isso também é culpa tua, minha cabra. Também é culpa tua.
Carole Wallace conseguiu telefonar-nos três vezes antes de as enfermeiras da ala psiquiátrica
perceberem que não era ao filho que ela estava a ligar e lhe retirarem acesso ao telefone. Eu era
uma assassina, dissera ela, uma vez diretamente ao meu pai, outras duas no nosso gravador de
mensagens. Os vizinhos deixaram de convidar os meus pais para jantar e de lhes falar quando
passavam por eles. Acho que, na realidade, não me culpavam; simplesmente não sabiam o que dizer
a qualquer um de nós.
– Às vezes o elefante é grande de mais para a sala – disse o meu pai.
Hannah recusava-se a comer à mesma mesa que eu. As pessoas olhavam de lado para os meus
pais no supermercado. A fotografia de Alex continuou a aparecer na imprensa local. Voltei para a
escola, mas, ao fim de poucas horas, soube que o meu tempo ali tinha chegado ao fim. Corriam
rumores. Claire disse que eu devia ter sido condenada por homicídio. Mandy não falava comigo
porque eu denunciara o primo de Greggsy à polícia. Mesmo alguns dos professores não conseguiam
olhar para mim.
Nessa noite, os meus pais sentaram-se comigo e disseram-me que iam pôr a casa à venda. O que
é que eu achava de uma mudança para Leicestershire? A minha mãe crescera lá.
– Todos precisamos de começar de novo, não achas? – perguntou, com o semblante carregado de
preocupação e cansaço. – Com certeza que encontraremos uma escola para concluíres os estudos.
A minha mãe era professora. Sabia que isso era impossível a meio do ano. Foi então que percebi
como ela estava desesperada.
Subi as escadas, liguei a Tommy e apanhei um avião para Los Angeles no dia seguinte.
Parti para que a família de Alex pudesse fazer o luto em paz, sem o risco de se cruzar comigo.
Parti para que os meus pais não tivessem de se mudar para o outro lado do país, para que tivessem
oportunidade de recomeçar sem a sombra titânica da filha a encobrir tudo. Parti à procura de
refúgio num sítio onde ninguém sabia o que eu tinha feito, onde não seria «aquela rapariga».
Mas, principalmente, fui para Los Angeles para ser a mulher que desejava ter sido no dia em que
conhecera Bradley. Forte, confiante, sem medo de ninguém. Alguém que nunca, nunca, nunca
tivesse medo de dizer não.

Eddie e eu estávamos agora perto de Venice, o passadiço ladeado de lojas e bancas de venda de
bugigangas baratas e tatuagens de hena. Algures, um altifalante tocava música; vários sem-abrigo
dormiam debaixo das palmeiras. Dei dois dólares a um homem com uma mochila remendada. Eddie
fitou-me com rosto inexpressivo.
– Preciso de me sentar – disse ele. – Tenho de comer qualquer coisa.
Sentámo-nos numa esplanada, onde fomos alvo de uma mulher louca com um papagaio e de um
acordeonista ambulante. Eddie não tinha resposta para as perguntas da louca e limitou-se a olhar
com ar ausente para o músico que se baloiçava à nossa volta.
– Posso levar-te a Abbot Kinney, se quiseres – sugeri. – É outra rua, aqui perto. Mais clássica, se
isto for demasiado excêntrico para ti.
Reuben adorava Abbot Kinney.
– Não, obrigado. – Por um momento, quase sorriu. – Desde quando é que eu sou clássico?
Encolhi os ombros, subitamente embaraçada.
– Não cheguei a ter oportunidade de saber.
Ele olhou de lado para mim e vi o que podia ser uma centelha de calor nos seus olhos.
– Acho que ficámos com uma boa ideia um do outro.
Amo-te, pensei. Amo-te, Eddie, e não sei o que fazer.
O bolo dele chegou. Imaginei a minha vida a estender-se perante mim sem Eddie David, e senti-
me tonta de pânico. E depois imaginei-o a ele, tantos anos antes, a imaginar uma vida que se
estendia perante ele sem a irmã.
Ele comeu o bolo em silêncio.
– A minha instituição – disse eu, por fim. – A minha instituição foi criada para a Alex.
– Pensei nisso.
– Para a Alex e para a Hannah. – Puxei uma pele ao lado da unha. – A Hannah já tem filhos. Vi
fotografias. Ao princípio, mandava-lhes presentes nos aniversários, mas por fim ela mandou uma
mensagem através da minha mãe a pedir-me para parar. Isto mata os meus pais. Tentaram tudo para
nos reunir. Pensaram que ela acabaria por ceder. Talvez o tivesse feito, se eu estivesse em
Inglaterra... não sei. Era tão teimosa, quando era pequena. Suponho que continua a ser assim em
adulta.
Eddie olhou para a praia.
– Não podes subestimar o impacto que a minha mãe terá tido nela. Nunca deixou de te odiar. Por
vezes, foi a única coisa que a manteve agarrada à vida, esse ódio.
Tentei não imaginar a casa da mãe de Eddie, com a raiva antiga agarrada às paredes como velhas
manchas de nicotina. Tentei não imaginar a minha irmã nessa casa, com Carole Wallace; as palavras
que diriam; o chá que beberiam. Embora, estranhamente, também fosse possível encontrar algum
conforto nessa imagem. Na possibilidade de que a rejeição absoluta da parte da minha irmã
pudesse ter sido incentivada por outra pessoa.
– Achas que é em parte por isso? – perguntei, virando-me para ele. O meu desespero era
palpável. – Achas que a tua mãe foi alimentando esse ódio ao longo destes anos todos?
Eddie encolheu os ombros.
– Não conheço muito bem a tua irmã. Mas conheço a minha mãe. Eu provavelmente teria reagido
de forma diferente em relação a ti se não tivesse passado dezanove anos a ouvi-la.
Parecia prestes a dizer mais qualquer coisa, mas fechou a boca.
– Desde então que tenho muita dificuldade em estar perto de crianças – disse-lhe. – Recusei
empregos na área da educação, nunca tomei conta de criança nenhuma, só ia aos hospitais com o
Reuben quando não havia alternativa.
Fiz uma pausa.
– Até me recusei a ter um bebé. Ele obrigou-me a fazer terapia, mas nada me faria mudar de
ideias. Quando via uma criança... qualquer criança... via a tua irmã. Portanto não me aproximava. É
mais fácil assim.
Eddie comeu o resto do bolo e apoiou a testa na mão.
– Quem me dera que tivesses usado o teu nome de família quando nos conhecemos. Quem me
dera que tivesses dito «Chamo-me Sarah Harrington».
Arranquei a pele do dedo.
– Não vou voltar a usar Harrington, nem mesmo depois do divórcio. Nunca mais quero ser a
Sarah Harrington.
Eddie estava a esmagar as migalhas no prato com o indicador.
– Ter-nos-ia poupado muito sofrimento.
Assenti com a cabeça.
– E os teus pais iam mudar-se para Leicester. Tiveram um cartaz a dizer VENDIDA em frente da
casa durante semanas.
– Eu sei. Mas eu mudei-me para Los Angeles, e o problema era eu. O comprador desistiu e eles
decidiram ficar. Penso que, nessa altura, já tinham percebido que eu não ia voltar.
Um longo silêncio instalou-se entre nós.
– Posso perguntar porque usas o nome Eddie David? – perguntei, quando o silêncio se tornou
insuportável. – Suponho que te chamas Eddie Wallace.
– David é o meu nome do meio. Comecei a usá-lo depois do acidente. Durante algum tempo, toda
a gente reconhecia o meu nome e havia uma... nem sei... uma espécie de comiseração sufocante,
acho eu, quando percebiam quem eu era. Era mais fácil ser Eddie David. Ninguém conhecia o
Eddie David. Tal como ninguém conhecia a Sarah Mackey.
Passado algum tempo, olhou para mim mas voltou a afastar o olhar, como água a regressar ao
mar.
– Daria tudo para ter percebido quem tu eras antes de ser tarde de mais – disse ele. – Nem
acredito que não juntei dois e dois. – Coçou a cabeça. – Sabes que o libertaram ao fim de cinco
anos?
Fiz que sim com a cabeça.
– Ouvi dizer que se mudou para Portsmouth.
Eddie não disse nada.
– Foi o meu Facebook, não foi? – quis saber. – Viste a publicação em que o Tommy me tratava
por Harrington.
– Vi-a uns vinte segundos depois de teres saído. E, durante o primeiro minuto, antes de o choque
se instalar, só pensei: Não. Finge que não viste isto. Isto tem de desaparecer, porque não consigo
não estar com ela. Só passou uma semana, mas ela é... – Corou. – Ela é tudo – concluiu. – Foi
isso que pensei.
Ficámos sentados em silêncio durante muito tempo. Eu tinha o coração acelerado. As faces de
Eddie estavam levemente rosadas.

Depois, falou-me sobre a mãe e sobre a depressão dela, que explodira após a morte de Alex e se
deteriorara num cocktail complexo de problemas mentais dos quais nunca mais se libertou por
completo. Contou-me que ela se mudara para Sapperton depois de recuperar minimamente do
colapso inicial, porque queria estar «perto» da filha morta. Eddie, consciente de que ela estava
demasiado vulnerável para viver sozinha, abandonara quaisquer esperanças de regressar à
universidade e fora viver com ela durante algum tempo. Entretanto, convencera Frank, o pastor de
ovelhas, a arrendar-lhe um velho celeiro na orla do bosque de Siccaridge, que transformara aos
poucos numa oficina e depois, assim que a mãe teve condições de ficar sozinha, na sua própria
casa.
– O meu pai pagou – explicou. – Depois de nos ter deixado, o dinheiro era a solução dele para
tudo. Depois do funeral da Alex, não conseguia telefonar, nem vir visitar-nos, mas não tinha
problemas em mandar dinheiro. Assim, decidi não ter problemas em o gastar.
Falou-me sobre o dia em que descobrira quem eu era. Como as árvores fora do celeiro tinham
parecido cair em cima dele enquanto me reformulava na sua mente como Sarah Harrington, a pessoa
que matara a sua irmã. Contou-me que cancelara as férias em Espanha. Suspendera todas as
encomendas. Um dia, foi ver como estava a mãe e encontrou-a inconsciente de tantos medicamentos
e sentiu-se terrivelmente culpado.
– Seria catastrófico se ela descobrisse sobre nós – disse ele, baixinho. – Embora tenha sido
bastante catastrófico mesmo sem ela saber. Caí num poço fundo. Não ia ao Facebook, não via os e-
mails, nada. Simplesmente isolei-me. Fartei-me de fazer caminhadas. Pensei muito, falei sozinho.
Estalou os nós dos dedos.
– Até que o meu amigo Alan veio ver se eu estava vivo e me disse que tu tinhas entrado em
contacto com ele.
Depois suspirou.
– Devia ter-te respondido – disse. – Peço desculpa por não o ter feito. Tinhas razão... não é
maneira de tratar ninguém. Comecei a escrever-te uma mensagem, por várias vezes, mas não
confiava na minha capacidade de falar contigo.
Tentei não imaginar o que diriam essas mensagens.
– Mas adorei a história da tua vida. As tuas mensagens. Quando não recebia nenhuma durante
algum tempo, sentia falta delas. Reli-as muitas vezes.
Engoli em seco, tentando não atribuir demasiado significado a isto.
– Alguma vez me ligaste? – perguntei, hesitante.
Ele abanou a cabeça.
– Tens a certeza? Recebi... recebi alguns telefonemas em que ninguém dizia nada. E... bom, uma
mensagem, a dizer-me para me afastar de ti.
Ele pareceu confuso.
– Oh... Falaste-me disso numa das mensagens, não foi? Desculpa, não dei grande atenção. Penso
que presumi que estavas a inventar.
Fiz uma careta.
– Disseram-te mais alguma coisa?
– Não. Mas pensei... Ouve, pensei se não teria sido a tua mãe. Há alguma maneira de que ela
pudesse ter descoberto? Vi uma mulher, no caminho do canal entre a casa dos meus pais e a tua... E
quando fui ao evento desportivo do Tommy na minha antiga escola, vi uma pessoa com o mesmo
casaco. Quer dizer, não posso ter a certeza de que era a mesma pessoa, mas estou convencida disso.
Não estava a fazer nada de muito estranho, mas de ambas as vezes senti que ela me observava. E
talvez de forma hostil.
Eddie cruzou os braços.
– Que estranho – disse. – Mas é impossível que fosse a minha mãe. Ela não faz a mais pequena
ideia do que aconteceu. De qualquer maneira, ela... – Calou-se. – Ela não tem capacidade para esse
tipo de coisas. Telefonemas, seguir pessoas... está para além do que ela é capaz. Ficaria
completamente stressada só de pensar em tal coisa. Na verdade, ficaria descontrolada.
– E não pode ter sido mais ninguém?
Eddie estava genuinamente confuso.
– Não – disse, e acreditei nele. – A única pessoa a quem contei foi ao meu melhor amigo, Alan, e
à mulher dele, Gia. Oh, e ao Martin da equipa de futebol, porque ele também viu a tua publicação
na minha página de Facebook. Mas tenho confiança em todos eles.
Inclinou-se para a frente com expressão concentrada, mas não deve ter encontrado qualquer
resposta porque, após alguns instantes, encolheu os ombros e endireitou-se.
– Não faço ideia – disse. – Mas podes ter a certeza de que não foi a minha mãe.
– Está bem. – Descalcei um chinelo e dobrei a perna debaixo do corpo. Eddie parecia novamente
infeliz. Fez força com um dedo na borda do prato, que se inclinou como um disco voador, e rodou-o
de um lado para o outro.
– Porque estás aqui, Eddie? – perguntei-lhe, por fim. – Porque vieste?
Ele olhou para mim. Fitou-me sem reservas e senti um aperto no estômago.
– Vim porque me mandaste aquela mensagem a dizer que ias voltar a Los Angeles e eu entrei em
pânico. Ainda estava zangado, mas não podia deixar-te simplesmente sair da minha vida sem pelo
menos falar contigo. Sem ouvir o que tinhas para dizer. Sabia que a versão da minha mãe não podia
ser a única.
– Compreendo.
– Comprei uma passagem e pedi ao meu amigo Nathan se podia ficar em casa dele. Liguei à
minha tia e pedi-lhe para ficar com a minha mãe. Foi como ver outra pessoa a fazer todas estas
coisas, na verdade. Sabia que não devia vir, mas não consegui conter-me. E também não podia
impedir-te, porque já estavas no avião quando me escreveste.
Porém, ao chegar a Los Angeles, Eddie dera por si paralisado. Por três vezes tentara confrontar-
me; por três vezes o sentimento de culpa em relação à irmã o fizera refugiar-se novamente na
obscuridade da cidade. Encostei-me na cadeira. Até falar comigo era, para ele, como uma traição.
– Porque não me falaste sobre o teu passado? – perguntou, quando eu chamei o empregado e pedi
a conta. – Contaste-me tanta coisa sobre ti. Porque nunca mencionaste o que aconteceu?
Tirei dinheiro da carteira.
– É uma coisa que não conto a ninguém. A última pessoa a quem o contei foi a minha amiga Jenni,
há dezassete anos. Se nós... caso nós... – Pigarreei, atrapalhada. – Se a nossa relação tivesse
avançado, contar-te-ia. Na verdade, quase te contei, na última noite. Mas distraímo-nos com outras
coisas.
Eddie estava pensativo.
– Eu, pelo contrário, estou habituado a contar às pessoas. Na verdade, tenho de o fazer
frequentemente, por causa dos altos e baixos da minha mãe. Mas aquela semana contigo pareceu-me
tão diferente de tudo. Eu não era o Eddie filho da Carole, o tipo que perdeu a irmã e tem de passar
metade do tempo a cuidar da mãe. Era simplesmente eu. – Guardou o telemóvel no bolso. – Pela
primeira vez em anos, não pensei no passado. De todo. E a minha mãe estava com a irmã, porque eu
estava de partida para Espanha, por isso nem sequer precisava de pensar nela.
Levantou-se, com um sorriso estranho.
– O que é irónico, na verdade, tendo em conta com quem estava.
Deixei o dinheiro na mesa e caminhámos até à beira-mar. As pequenas ondas desenrolavam-se
suavemente à volta dos nossos pés, recuando depois para o infinito azul do Pacífico. O horizonte
tremeluzia à distância, indistinto.
Enfiei a mão no bolso. A Ratinha. Passei o dedo sobre ela uma última vez, antes de a estender a
Eddie na palma da minha mão.
Ele fitou-a durante muito tempo.
– Fi-la para a Alex – disse. – Quando ela fez dois anos. A Ratinha foi a primeira coisa decente
que fiz com madeira.
Com ternura, pegou-lhe e segurou-a em frente do rosto, como se estivesse a aprender novamente a
sua forma. Imaginei-o a entalhar este pequeno pedaço de madeira, talvez na garagem do pai, ou
simplesmente sentado à mesa da cozinha, e doeu-me o coração. Um menino de rosto redondo a fazer
um ratinho de brincar para a irmãzinha.
– A Alex achava que a Ratinha era um ouriço-cacheiro, quando era pequenina. Só que não
conseguia dizer «ouriço-cacheiro» e fazia-me rir. Comecei a chamar-lhe Ouriço-Cacheiro e ficou. –
Colocou-a no porta-chaves e guardou-o no bolso.
Eu estava sem mais ideias para atrasar o inevitável. O mar avançava e recuava. Nenhum de nós
falou.
Vimos as gaivotas e os maçaricos a esvoaçarem sobre um piquenique de família e uma onda
rebentou contra nós, mais depressa do que conseguimos recuar. Ele ficou com os calções molhados.
Eu fiquei com a saia molhada. Rimo-nos, ele desequilibrou-se e quase caiu e, por um segundo,
consegui sentir o cheiro dele: a sua pele, o cabelo lavado, o cheiro de Eddie.
– Regresso a Inglaterra amanhã – disse ele, por fim. – Ainda bem que tivemos esta conversa, mas
não sei se há mais alguma coisa que possamos dizer. Ou fazer.
Não, pensei, desesperada. Não! Não podes virar costas a nós os dois! Está aqui! A nossa ligação
continua aqui, no ar, entre nós!
Contudo, as palavras não me saíram da boca, porque essa decisão não era minha. Eu conduzira o
carro que embatera numa árvore, com Alex no banco do passageiro, e ela morrera, ali mesmo ao
meu lado. O tempo não podia mudar isso. Nada podia mudar isso.
Eddie pegou-me nas mãos e abriu-me os dedos fechados com força. Eu tinha as marcas das unhas
nas palmas.
– Nunca poderíamos voltar ao que tivemos da primeira vez – disse ele, passando o polegar pelas
marcas das unhas, como um pai a esfregar o joelho esfolado de um filho. – É impossível.
Compreendes isso, não compreendes, Sarah?
Acenei afirmativamente, com expressão que sugeria concordância, ou talvez resignação. Ele
largou-me as mãos e olhou para o mar durante algum tempo. Depois, sem qualquer aviso, inclinou-
se e beijou-me.
Demorei alguns instantes a acreditar que estava mesmo a acontecer. Que o rosto dele estava junto
do meu, a sua boca na minha, o seu calor, a sua respiração, tal como imaginara tantas vezes.
Durante alguns segundos, fiquei perfeitamente imóvel. Mas depois retribuí o beijo, extasiada, e ele
apertou-me contra si, tal como fizera da primeira vez. Beijou-me com mais força, eu beijei-o, e as
gaivotas e os gritos das crianças desapareceram.
Porém, quando eu começava a entregar-me completamente, ele parou e apoiou o queixo na minha
cabeça. Ouvi a sua respiração, acelerada e irregular.
– Adeus, Sarah – disse, então. – Cuida de ti.
Os braços dele soltaram-me e partiu.
Fiquei a vê-lo afastar-se, com as mãos caídas ao lado do corpo. Cada vez mais longe. Cada vez
mais longe.
Só quando ele estava já no passadiço é que disse em voz alta aquilo que não conseguira dizer
antes, nem mesmo a mim própria.
– Estou grávida, Eddie. – E as minhas palavras foram levadas pelo vento, como eu queria.
CAPÍTULO 39

P ousei a mão na barriga. Estou grávida. Trago um bebé no ventre. Jenni estava a falar a Javier
sobre um investigador de genética eslovaco que conhecera na sala de espera da clínica de
acupuntura, na véspera. Javier escutava atentamente, enquanto, ao mesmo tempo, ouvia a
funcionária a servir os pedidos ao balcão. O último número chamado fora o oitenta e quatro. A
nossa senha, enrolada entre os dedos de Javier, era a oitenta e sete.
Imaginei células a multiplicarem-se, tantas semanas antes. Células de Sarah, células de Eddie.
Células de Sarah-e-Eddie, a dividirem-se em mais células de Sarah-e-Eddie. A Internet dizia que o
embrião seria agora do tamanho de um morango. Havia na página uma imagem gerada por
computador, e parecia uma criança minúscula. Olhei para aquela imagem durante o que me
pareceram horas e senti coisas que nunca sentira, coisas às quais não conseguia sequer dar nome.
Estou grávida de nove semanas.
Mas nós tínhamos tido cuidado! De todas as vezes! E como podia estar grávida se pesava menos
dois quilos?
– Disse-me que tem sido um esforço comer, por falta de apetite – explicara-me a médica. – A
perda de peso não é invulgar quando a grávida sofre de enjoos.
Náuseas. Fadiga. As hormonas aos saltos, enjoo a certos alimentos, o cérebro cheio de nevoeiro.
A verdadeira surpresa, pensei, não era tanto o facto de estar grávida, mas sim não ter conseguido
identificar tantos sintomas óbvios.
Nessa manhã, chegara uma encomenda para mim. Eu estava deitada na cama, a preencher os
impressos para a ecografia, e sentia-me tão deslocada da realidade que, por um instante, pensara
seriamente que podia ser Eddie. Eddie, enrolado dentro de uma caixa, pronto a saltar para fora e
gritar: «Mudei de ideias! Claro que quero estar contigo... a mulher que matou a minha irmãzinha!
Vamos criar uma família!»
Em vez disso, desembrulhei uma ovelha de brincar, com pequenos cascos de cabedal e coberta de
lã, e um bilhete ao pescoço a dizer – na letra de Eddie – LUCY. Havia também uma carta, dentro de
um envelope que cheirava estranhamente a sorvete. Tirei-a.
No alpendre de Jenni, enrosquei-me numa cadeira e olhei para a selva de aparelhos de ar
condicionado e antenas parabólicas que se estendia abaixo de mim. Passei as pontas dos dedos
pelas leves marcas que a caneta de Eddie deixara no papel ao escrever o meu nome. Sabia o que
era esta carta. Era o ponto final definitivo numa relação que terminara havia dezanove anos, antes
mesmo de começar, mas eu queria mais alguns minutos antes de ver esse último ponto final. Mais
alguns minutos de negação preciosa e venenosa.
Observei um gato durante algum tempo. O gato olhou para mim. Respirei lentamente, como
alguém que sabe que o drama acabou, que sabe que foi vencida. Depois de o gato se afastar com ar
desdenhoso, de cauda no ar, abri o envelope com o polegar.
Querida Sarah,

Obrigado pela tua honestidade ontem. Foi muito reconfortante saber que a Alex estava feliz
naquele dia.
Queria poder dizer-te que está tudo bem, mas não está, nem pode estar. Por esse motivo, acho
melhor que não voltemos a falar – seria demasiado confuso tentarmos ser amigos. No entanto,
desejo-te tudo de bom, Sarah Harrington, e lembrar-me-ei sempre do tempo que passámos
juntos. Foi muito importante para mim.
Que coincidência terrível, não é? Com tantas pessoas no mundo...
Seja como for, queria mandar-te algo para te fazer sorrir. Sei que tudo isto foi duro também
para ti.
Sê feliz, Sarah, e cuida de ti.

Eddie

Li o bilhete três vezes antes de o voltar a guardar no envelope.


Sê feliz, Sarah, e cuida de ti.
Encostei a cabeça à parede e olhei para o céu. Estava leitoso e expectante, salpicado de nuvens
da cor de delícias turcas. Um bando de pássaros passou e, acima deles, um avião a subir.
Não dissera a Jenni nada sobre o bebé. Não suportava essa perspetiva; não conseguia dizer-lhe
que engravidara por acidente apesar de o ter tentado evitar, quando há mais de dez anos ela
dedicava todos os seus recursos emocionais, físicos e financeiros à criação da sua própria família.
Olhei para a barriga, tentando imaginar a minúscula pessoa que ali começava a formar-se, e senti
algo estranho no coração, como se o meu peito estivesse a ser comprimido. Seria prazer? Ou
pânico? O bebé já tinha coração, dissera-me a médica. Apesar da fraca nutrição, do vinho e do
stress que eu lhe transmitira. Tinha o seu próprio coraçãozinho, que batia duas vezes mais depressa
do que o meu, e poderia vê-lo amanhã, na ecografia.
Olhei para o céu. Ele já estaria no ar? Ou ainda no aeroporto à espera de embarcar? Soergui-me
na cadeira. Tinha de ir ao aeroporto. Procurá-lo. Impedi-lo de partir. Por este bebé, tinha de o
convencer, de o persuadir de que...
De que o quê? De que eu não era Sarah Harrington? De que não atirara a irmã dele contra uma
árvore naquele dia?
Fiquei ali sentada, a tamborilar com os dedos nas pernas, até Javier deixar Frappuccino sair
para o quintal, onde o cão me urinou na perna. Desatei a rir, depois a chorar, e perguntei a mim
própria como poderia ter um bebé quando passara toda a minha vida adulta a evitar crianças.
Perguntei a mim mesma como podia trazer uma pessoa para este mundo, quando o pai dela não
queria ter nada a ver comigo. Contudo, de alguma forma, sabia que era tarde de mais para voltar
atrás. Sabia que queria este bebé de formas que nem sequer compreendia.
Continuei perdida nestes pensamentos durante horas. Jenni, quando finalmente se levantou da
cama, tentou cuidar de mim, mas não tinha mais nada para dar. Passámos duas horas sentadas lado a
lado num silêncio pesaroso.
Quando Javier achou que não aguentava esta carga emocional nem mais um minuto, ofereceu-se
para nos levar ao Neptune’s Net em Malibu – um café de motards –, para comermos peixe frito. Era
a solução dele para todos os problemas sérios. Conduziu dobrado sobre o volante, embora eu não
saiba se o fez para chegarmos depressa ao consolo da comida, ou para se proteger do turbilhão de
sentimentos que o rodeava.
E agora aqui nos encontrávamos, apertados num banco como sardinhas em lata. O restaurante
estava apinhado. Todas as mesas estavam ocupadas e a entrada, cheia de pessoas à espera de lugar.
Nós, os sentados, ignorávamo-los. Eles, os levantados, fitavam-nos determinadamente. A música
era abafada pelo rugido ensurdecedor de conversas, de Harley-Davidsons a acelerar lá fora, e do
crepitar furioso da pescaria dessa manhã no óleo quente. Era tudo menos calmo mas, de alguma
forma, ajudava um pouco.
– Oitenta e sete! – chamou a mulher atrás do balcão, e Javier levantou-se de um salto e gritou, em
voz rouca de alívio:
– Sí! Sí!
Jenni raramente fazia comentários sobre a limitada capacidade emocional do marido, mas hoje,
só para mim, revirou rapidamente os olhos. Depois, lançou-me um dos seus olhares e perguntou-me
o que ia fazer em relação a Eddie.
– Nada – respondi. – Não posso fazer nada, Jenni. Sabes muito bem. Eu sei muito bem. Até o
Javier sabe muito bem.
Javier pousou silenciosamente um cesto de marisco à nossa frente e entregou-nos as nossas
bebidas. Depois, com um suspiro de alívio discreto mas perfeitamente audível, virou-se para o seu
prato de tacos de camarão, calamares dourados e batatas fritas picantes com queijo, pois sabia que
ninguém esperaria qualquer contribuição sua para a conversa tão depressa.
– Ele não deixou mesmo nenhuma porta aberta? Nem uma centelha de esperança?
– Nem uma partícula – respondi. – Ouve, Jenni, vou dizer isto mais uma vez. Imagina que tinha
sido a tua irmã, a Nancy. Imagina que um homem ia contra uma árvore com a tua querida Nancy e a
matava. Alguma vez admitirias a hipótese de ter uma relação com ele? Francamente?
Jenni baixou os talheres, derrotada.
– Noventa e quatro! – gritou a empregada ao balcão.
Espetei uma vieira com o garfo.
E depois pensei, de repente: Será que devia estar a comer isto? Tinha a certeza de que já vira
amigas grávidas a evitarem marisco. Olhei para a refeição que tinha à minha frente. Marisco e um
grande copo de Mountain Dew. A cafeína não era também proibida?
Mais uma vez, as placas tectónicas da minha vida deslizaram sob mim. Estou grávida de nove
semanas.
– Come vieiras antes que eu acabe com tudo, Sarah – disse Jenni em tom abatido. – Sinto outro
ataque de fome descontrolada a aproximar-se.
Recusei.
– Mas tu adoras vieiras.
– Eu sei... mas hoje não estou com grande apetite.
– A sério? Bem, pelo menos experimenta este molho de queijo azul com as batatas fritas. Acho
que o fizeram mesmo com queijo. É bom.
– Oh, chega-me o ketchup. Come tu.
Jenni riu-se.
– Sarah Mackey, tu detestas ketchup. Nem vieiras, nem queijo azul... até parece que estás
grávida. Ouve, por favor não te mates à fome, querida. Não serve de nada e, além disso, a vida sem
comida não tem interesse nenhum.
Ri-me, um pouco alto de mais. Peguei numa vieira para provar que estava bem, e que não estava
de certeza grávida, mas não consegui. Não consegui obrigar-me a comê-la. Tinha um bebé do
tamanho de um morango a crescer dentro de mim, um bebé que não desejara nem planeara, mas,
mesmo assim, não conseguia comer a vieira. Jenni franziu levemente a testa.
– Mais vale ignorares-me – disse eu, numa voz carregada de falsa jovialidade. Javier ergueu os
olhos. – Hoje estou com um apetite esquisito.
– Seria a derradeira ironia, não seria? – disse Jenni. – Tu engravidares!
– Ha! Imagina!
Jenni voltou à sua comida mas, segundos depois, olhou novamente para mim.
– Quer dizer, não estás grávida, pois não?
– Claro que...
Não fui capaz. Não conseguia mentir-lhe. Por isso, calei-me.
Jenni pousou o garfo no prato.
– Sarah? Não estás grávida, pois não?
Senti o rosto a arder. Olhei para baixo, para o lado, para qualquer lado menos para Jenni.
– Não é por isso que... Não é por isso que tens andado mal-disposta? Que foste ao médico?
Javier olhou fixamente para mim. Não te atrevas, dizia a expressão dele. Não te atrevas.
Jenni estudou-me o rosto e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
– Porque é que não estás a dizer nada? Porque é que não me respondes?
Fechei os olhos.
– Jenni... Oh, meu Deus, Jenni, eu...
Ela levou a mão à boca. Fitou-me, incrédula, e as lágrimas transbordaram-lhe dos olhos.
– Não pode ser... Não podes estar grá... Valha-me Deus, Sarah.
Javier passou o braço sobre os ombros da mulher num gesto protetor. Depois de respirar fundo,
olhou para mim e, no seu rosto, vi a primeira emoção tangível que lhe via em quinze anos: fúria.
– Jenni – comecei, baixinho. – Ouve, querida. Quando fui à médica, ela disse... Fez umas análises
e disse... Jenni, lamento muito...
– Vais ter um bebé.
– Eu... sim. Nem imaginas como lamento.
No silêncio perfeito da nossa mesa, o meu telemóvel começou a tocar.
– É o Eddie? – murmurou Jenni, porque, mesmo depois de a amiga a deixar de rastos, não podia
desistir.
– Não sei... Apaguei o número dele. Mas é um telemóvel do Reino Unido.
– Atende – disse ela, em tom inexpressivo. – Atende. É o pai do teu filho, afinal de contas.
Quando cheguei à porta com o telemóvel na mão, ocorreu-me que devia virar-me e olhar para o
rosto de Jenni uma última vez. Uma última vez antes de quê?
Virei-me, sem compreender bem este impulso, mas uma mulher corpulenta estava a sentar-se num
dos lugares à frente da nossa mesa e encobria-me a visão.
Assim, abri caminho entre os comensais na esplanada, passei pelos motards, pelas motas, e desci
em direção à estrada. Não sabia se Jenni conseguiria ultrapassar isto. Se a nossa amizade
sobreviveria.
Abatida, atendi o telefone.
Houve alguns segundos de atraso enquanto uma voz percorria os cabos telefónicos submersos no
oceano Atlântico.
Depois ouvi:
– Sarah?
– Sim?
Após um momento, a voz disse:
– É a Hannah.
– Hannah?
– Sim. Ah... Hannah Harrington.
Estendi a mão para me equilibrar, mas não havia nada a que pudesse segurar-me. Assim, agarrei
no telemóvel com ambas as mãos, porque era a única coisa sólida que tinha.
– Hannah?
– Sim.
– A minha irmã Hannah?
– Sim.
Um instante de silêncio.
– Imagino que isto deve ser um choque.
– A tua voz – murmurei. – A tua voz. – Apertei mais o telefone. Ela começou a dizer qualquer
coisa mas a voz dela perdeu-se no estrondo de várias motas que entravam no parque de
estacionamento, todas equipadas com motores potentes.
– Desculpa? – gritei. – O quê? Hannah?
– Já me consegues ouvir? – ouvi-a dizer. – Estou quase aos berros... – Os motards, agora
parados, continuavam a acelerar as motas sem motivo aparente. Uma fúria despropositada ergueu-
se no meu peito.
– Calem-se! – gritei. – Por favor, parem com isso!
Do outro lado da estrada, um caminho de aspeto tranquilo parecia estender-se em direção ao mar
distante. Tenho de atravessar a estrada, pensei, desesperadamente, enquanto os carros passavam
velozmente à minha frente e as motas aceleravam atrás de mim. Tenho de atravessar a estrada,
imediatamente.
– Ainda aí estás? – perguntou ela.
– Sim! Estás a ouvir-me?
– Muito mal. Que raio se passa aí?
Eu sabia como Hannah era: os meus pais costumavam mandar-me fotografias, até se tornar
demasiado penoso para mim vê-las. Era quase impossível imaginar que a mulher naquelas
fotografias estava agora a falar comigo. A mulher com o marido de cabelo encaracolado, dois filhos
e um cão. A minha maninha.
– Ouve, Hannah, deixa-me atravessar a estrada. Estou num café de motards, há muito barulho,
mas do outro lado está mais sossegado...
– És motard ?! – exclamou ela com os vestígios de um sorriso na voz.
– Não, eu não. Eu... espera, deixa-me só chegar ao outro lado. Por favor, não desligues... – Vi um
intervalo no tráfego em direção a sul. Por algum motivo inexplicável, não me virei para ver a outra
faixa. Simplesmente desatei a correr. Em direção ao mar, em direção a Hannah.

Não ouvi nada; não vi nada. Nem o som ribombante de um camião a toda a velocidade. Nem o
guincho dos travões, nem os gritos de pânico na esplanada. Não ouvi a minha própria voz, que saiu
de mim num grito gutural e depois se silenciou abruptamente, como uma ambulância a desligar a
sirene porque já não vale a pena ter urgência, e não ouvi o grito de Jenni ao sair a correr do
restaurante.
Não ouvi nada.
PARTE TRÊS
CAPÍTULO 40

Eddie

Meu amor,

São 03h37m e aterrei em Heathrow há quase dezoito horas.


Não estava ninguém à minha espera, claro, porque a única pessoa que sabia que eu vinha era
a mãe. Fingi indiferença enquanto perscrutava o mar de cartazes de boas-vindas que não diziam
o meu nome. Assobiei um trecho de uma canção do Bowie.
No caminho para o parque de estacionamento de longa duração, telefonei à mãe. Por motivos
que ainda não percebi, desta vez ela parece ter achado a minha ausência particularmente difícil.
Talvez tenha sido por causa da distância. Não é a primeira vez que estou duas semanas fora. De
qualquer maneira, disse-me que passara a noite em claro, com medo de que o avião caísse.
«Foi horrível», disse-me. «Estou tão cansada que mal consigo falar.» No entanto, deve ter tido
uma recuperação imediata porque passou dez minutos a queixar-se das coisas que a irmã não
tinha feito na minha ausência. «Ainda não levou a reciclagem. Continua lá fora ao pé do portão!
Não suporto olhar para a janela. Eddie, achas que consegues passar por cá antes de ires para
casa?»
Pobre tia Margaret.
Ao que parece, a mãe ia tendo um ataque de pânico quando a tia Margaret tentou levá-la à
consulta do psiquiatra, portanto tenho de ir eu com ela para a semana. Diz que não consegue
lidar com a confusão de carros, pessoas, hospitais. Pelo menos, sem mim. A conversa estava
carregada de sentimento de culpa. O meu, por me ter ido embora – embora a mãe esteja sempre
a dizer-me que tenho de viver a minha vida –, e o dela, porque sabe que é isto que acontece
quando o tento fazer.
Fui buscar o Land Rover e segui pela M4. De regresso a Gloucestershire, a Sapperton, a esta
vida. Ouvi rádio durante algum tempo, porque me ajudava a não pensar na Sarah. Parei na
estação de serviço em Membury para comer uma sandes de queijo.
E depois aconteceu algo estranho quando passei por Cirencester Road: não abrandei no
cruzamento de Sapperton. Nem sequer fiz pisca; simplesmente continuei a andar. Fui até à saída
de Frampton, mas também não virei aí. Dei por mim no Parque de Minchinhampton. Estacionei
no reservatório, comprei um gelado e dei uma volta por Amberley, e depois passei pelo Black
Horse. Bebi uma cerveja e fiquei ali umas duas horas, a olhar para o vale de Woodchester.
Não sei bem o que me passou pela cabeça. Tudo me parecia estranhamente distante, como se
estivesse a ver filmagens de mim próprio numa câmara de segurança. Só sabia que não podia ir
a casa da mãe.
Nesta altura, ela já me tinha enviado várias mensagens e tentara ligar-me algumas vezes, com
medo de que eu tivesse tido um acidente na estrada. Por isso disse-lhe que estava bem e que
tinha ficado retido a fazer uma coisa, mas disse-o mais por não saber realmente o que estava a
fazer do que por querer esconder-lhe alguma coisa. Por volta das quatro, estava de volta a Tom
Long’s Post e foi aí que as coisas se tornaram realmente preocupantes porque, em vez de virar
para Sapperton, dei por mim a virar à esquerda, em direção a Stroud.
Bebi uma cerveja no Golden Fleece e fui visitar o Alan e a mulher, Gia. Foram maravilhosos
encantadores. Tão simpáticos e compreensivos. Partilharam comigo o jantar da Lily e
disseram-me que tinha feito bem em me afastar da Sarah. Não faziam ideia de que estava a
esconder-me da minha própria mãe.
A Lily recusou-se a ir para a cama. Sentou-se ao meu colo e desenhou sereias. Desde que
conheci a Sarah, sinto uma estranha leveza quando estou com a Lily, uma tristeza premente
misturada com o amor e o afeto que sinto pela menina do meu melhor amigo. Acho que a Sarah
quebrou algum selo dentro de mim. Depois de anos a pôr essa ideia de lado, começo a
conseguir imaginar-me com um filho meu. A Lily desenhou uma sereia a caneta na minha mão e
senti uma trincheira profunda abrir-se em mim, como uma fissura no leito do oceano.
Mandei uma mensagem à mãe e disse-lhe que havia um problema com o Alan e não podia
passar lá por casa essa noite. Apareço de manhã, prometi. Ela não ficou contente, mas aceitou.
Sabe que não tenho o hábito de faltar aos meus compromissos.
Quando finalmente abri a porta de casa, senti alívio e desespero. Adoro aquele celeiro, mais
do que alguma vez imaginei que conseguiria amar tijolos e cimento, mas é também um triste
lembrete dos factos da minha vida. Para uma pessoa de fora, o meu celeiro diz «Boa Vida!
Copos de Picpoul fresco enquanto o Sol se põe atrás das árvores! Jantar de legumes orgânicos
enquanto os pássaros fazem o ninho! Água cristalina das Cotswolds, a brotar fresca do solo!»
Não fazem ideia de como me sinto encurralado. Mesmo que lhes contasse como as coisas são
com a mãe, ninguém acreditaria.
Mais tarde, dei uma arrumação à oficina e organizei as coisas para amanhã. Não fiz jantar.
Quando entrei na cozinha, fui acometido pelas recordações da Sarah e eu naquele mesmo
espaço, a cozinhar e a falar e a rir, as nossas mentes a galopar a toda a velocidade para o
futuro. E claro que, depois disso, não consegui cozinhar sozinho, em silêncio. Portanto, comi
uma taça de frutos secos e deitei-me. Deixar a Sarah foi a coisa certa a fazer, recordei a mim
próprio, enquanto lavava os dentes. Reparei que estava ligeiramente bronzeado.
Depois, deitei-me debaixo da minha claraboia, com as estrelas a deslocarem-se lentamente
pelo céu, e dei os parabéns a mim próprio pela minha força moral, pela minha determinação,
pela minha força de vontade. Muito bem, rapaz. Não foi fácil, mas tinhas de o fazer.
Só que, quanto mais tempo esperava pelo sono, menos acreditava nisso.
Levantei-me e tentei ver televisão durante um bocado, para me distrair. Mas só vi uma
reportagem sobre um terrível acidente na M25, com várias mortes e feridos graves, e, quando
dei por mim, tinha uma voz dentro da cabeça a perguntar-me como me sentiria se a Sarah
morresse. (Uma grande ajuda.) E se recebesses um telefonema a dizer que ela estivera
envolvida num acidente?, perguntou-me a voz. Ou que fora apanhada num tiroteio de gangues?
Ou atropelada por um camião? Continuarias a achar que tinhas feito a coisa certa?
Apaguei o televisor e voltei para a cama, mas agora a ideia já se instalara. Como um gancho
ferrugento na minha consciência. A puxar e a rasgar. Se a Sarah morresse, continuarias a achar
que tinhas feito a coisa certa?
E o problema é esse, Alex, porque – para ser honesto comigo próprio – não continuaria a
pensar assim. Se a Sarah morresse, arrepender-me-ia para o resto da minha vida.
Vivi bem nestas últimas duas décadas. Lutei e consegui erguer-me do sofrimento e regressar
à vida. Mas deixei que a mãe fosse mais importante do que eu, sempre, porque me parecia não
ter outra opção. Que ser humano decente não cuidaria da mãe se ela precisasse de ajuda? Mas
algo mudou quando deixei a Sarah naquela praia. Escolher a minha mãe não me parecia ser a
coisa certa. E ainda não me parece.
São 03h58m. Estou literalmente a rezar para o sono chegar.

Beijos, Eu
CAPÍTULO 41

–A quele homem não tira os olhos de mim.


Olho para a minha mãe, encostada ao banco mas com o pescoço esticado para a frente, como
uma tartaruga. Depois olho para o homem, que é enorme, coitado, absolutamente gigantesco, e está
sentado em três cadeiras a beber uma garrafa de dois litros de Diet Coke. Por cima da cabeça dele,
uma varejeira bate contra o vidro da janela, uma e outra vez, como uma criança a contar a mesma
piada repetidamente porque alguém se riu dela há meia hora.
Observo o homem durante algum tempo, mas ele não olha para a minha mãe. Está a ler um
panfleto do Sistema Nacional de Saúde intitulado «Vamos Conversar».
– Não está a olhar para ti – murmuro. – Mas podemos sentar-nos noutro lado, se preferires.
Aponto para uma fila de cadeiras verdes, viradas para o lado contrário àquele onde se encontra
este homem perfeitamente inocente, mas sei que ela vai recusar. Ao fundo da fila de cadeiras está
uma mulher com o bebé a dormir no carrinho e a minha mãe não tolera crianças. O mês passado
trancou-se na casa de banho do médico de família, porque um menino de dois ou três anos lhe
ofereceu legos na sala de espera.
– Acho que vou ficar aqui – diz ela, por fim. – Desculpa, Eddie, não quero armar confusão, mas
podes ficar de olho nele?
Aceno afirmativamente e fecho os olhos. Está demasiado calor aqui dentro. Não tem nada a ver
com o sol lá de fora; é aquele calor mole de salas de espera de médicos, ateado por respirações
ansiosas e corpos pouco usados.
– Tens saudades da praia? – pergunta a minha mãe. Tem aquele tom que usa sempre que receia
aborrecer-me. Mais animado do que o normal, carregado de uma leveza forçada. – De Santa
Monica?
– Não, nem por isso. Falei-te sobre a praia?
Ela diz que sim com a cabeça e lança uma olhadela de lado ao homem da Diet Coke, antes de se
virar novamente para mim.
– Pareceu-me maravilhoso – acrescenta, e pergunto-me que mentira pouco convincente lhe terei
dito, na minha neblina de jet-lag, sobre aquele dia na praia. Detesto mentir-lhe. É difícil não pensar
que a vida foi traiçoeira para com a minha mãe, por isso é extra-angustiante quando tenho de fazer o
mesmo. Por mais que saiba que é para o bem dela.
A minha mãe vira o rosto e os meus pensamentos regressam ao funeral que vi passar nesse dia,
em direção a Frampton Mansell. O carro funerário ia cheio de flores silvestres, ramos e ramos, a
caírem pelos lados do caixão como as margens de um riacho. Era seguido por três carros pretos
vazios. Deve ser uma pessoa jovem, pensei. Os idosos raramente tinham tantas pessoas. Perguntei a
mim próprio quem iriam buscar. Que família triste e desesperada estaria reunida numa casa
qualquer nas imediações, a beber café, a ajeitar as roupas pretas desconfortáveis e a pensar, uma e
outra vez: Como é possível que isto nos esteja a acontecer?
Olhara de través para a minha mãe quando o carro funerário passara, na esperança de que aquilo
não a afetasse demasiado.
Vi-lhe uma expressão desagradável no rosto.
– Parece que vão na direção de Frampton Mansell – comentou ela, em tom estranhamente
satisfeito. Rancoroso, mesmo. – Esperemos que tenha sido aquela rapariga a morrer. Aquela Sarah.
– Depois, olhou para mim, como se estivesse à espera de que eu concordasse.
Durante alguns minutos, não consegui dizer nada. Simplesmente respirei pela boca – uma espécie
de Reação de Emergência que recordo bem das semanas após a morte de Alex. Senti-me mal.
Fisicamente mal, como se tivesse uma faixa a apertar-me o peito. Tentei com todas as minhas forças
enterrar o que ela acabara de dizer, mas não consegui.
Não admirava que Sarah se tivesse mudado para o outro lado do mundo, pensei, enfraquecido.
Como poderia ter sobrevivido aqui?
A varejeira na janela silencia-se durante um momento e penso agora que Sarah aprovaria
certamente flores silvestres num caixão. Na semana que passámos juntos, estava sempre a trazer
ramos delas para casa. Encheu quase todas as minhas canecas.
«Não há nada mais bonito», dizia, sorrindo.
Apenas tu, pensava eu. Tu és a coisa mais bonita que já entrou nesta casa.
Tirando o meu amigo Baz, que trabalha na Unidade de História Natural em Bristol, Sarah é a
primeira pessoa que conheço com menos de sessenta anos que percebe alguma coisa da natureza.
Lembro-me da forma como a sua voz se ergueu num crescendo de entusiasmo quando a interroguei
sobre os pássaros naquele livro da coleção Collins Gem. Picanço-azul! Alvéola! E depois a
gargalhada dela, maravilhosamente rouca e cheia de vida.
Meu Deus, dói tanto. Como eu nunca poderia imaginar.
Viro-me para a minha mãe, para reforçar perante mim mesmo que Sarah é a última mulher à face
da Terra com quem poderia ter uma relação. É a tua mãe, digo a mim próprio. A tua mãe, uma
mulher com problemas psicológicos há quase duas décadas. Uma mulher que não se lembra das
texturas da vida, do ritmo do mundo, porque se isolou completamente. Ela precisa de ti.
A minha mãe finge apoiar a cabeça nas mãos, como se estivesse exausta, mas está apenas a
observar o tipo da Diet Coke por entre os dedos.
– Mãe – murmuro. – Não te preocupes com ele.
Nem sei se me ouve.
Quando fui a casa de Alan, na outra noite, ele disse-me que devia instalar o Tinder. Respondi que
sim, porque era o que ele queria que eu dissesse, e depois tive de ir à casa de banho, como que
para puxar o autoclismo sobre o meu horror. Tinder? Ninguém nos diz que a vida continua a ser
complicada depois de fazermos a Coisa Certa. Que não há qualquer recompensa além de uma vaga
noção de integridade moral. Já regressei há onze dias e, quando muito, ainda me sinto pior do que
no dia em que deixei Sarah naquela praia.
Tinder! Por amor de Deus!
– Onde está o Arun? – sussurra a minha mãe. – Estamos à espera há que tempos.
Olho para o relógio. Passaram dez minutos desde que chegámos.
– Achas que ele está doente, Eddie? – pergunta. – Achas que se despediu? – O seu rosto
ensombra-se com essa perspetiva.
– Não. – Seguro-lhe no cotovelo. – Deve estar só atrasado. Não te preocupes.
O psiquiatra da minha mãe, Arun, é uma das duas únicas pessoas, além da família, com quem ela
consegue falar sem ficar assoberbada. A outra é Derek, o enfermeiro psiquiátrico local, que
consegue lidar com ela melhor do que qualquer um de nós. Recebe uma ou outra visita de vez em
quando: a vigária, Frances, aparece quando pode, porque a minha mãe acha muito stressante ir à
igreja com «aquela gente toda». E Hannah Harrington, a irmã de Sarah, costumava visitá-la também
regularmente, embora a minha mãe não fale nela há muito tempo, o que me leva a pensar que talvez
as visitas estejam a rarear. Mas nem Hannah nem a vigária ficam muito tempo. Ao fim de meia hora,
a minha mãe já está a andar de um lado para o outro, a arrumar e a limpar, e a olhar ansiosamente
para o relógio como se tivesse de estar em algum lado.
A capacidade de Arun chegar à minha mãe deve-se, em parte, ao facto de ser realmente um
homem muito simpático, e em parte porque, acho eu, ela tem um fraquinho por ele. E claro que ele
não se despediu. Nem está doente. Ter-nos-iam avisado se assim fosse, provavelmente enviado
outro psiquiatra. Mas agora ela meteu a ideia na cabeça, tal como eu meti na cabeça aqueles
pensamentos enfurecedores sobre Sarah.
E se a Sarah morresse? Continuarias a achar que tinhas feito a coisa certa? A pergunta
continua a introduzir-se em tudo, como humidade. De onde é que veio? Porque não desaparece?
A Sarah está bem, digo a mim próprio, irritado. Estará quase de certeza a dormir a esta hora, a
milhares de quilómetros dali, na casa da amiga. A inspirar e a expirar. Membros relaxados, rosto
descontraído.
Quando percebo que estou a imaginar-me deitado ao lado dela, a passar-lhe o braço pela cintura,
levanto-me.
– Vou ver quanto tempo falta – digo à minha mãe.
A senhora da receção sabe que não estou a perguntar para mim. SUE, diz o cartão dela.
– São os próximos a entrar – diz bem alto, para que a minha mãe a consiga ouvir. Atrás de si, tem
uma fotografia da família. Um homem de ar simpático, duas crianças, uma delas mascarada de leão.
Será que Sue olha para famílias como a minha e pensa Graças a Deus que eu não sou assim? Foi
basicamente o que a minha última namorada, Gemma, disse quando nos separámos. Terminou a
relação ao fim de três meses, porque não aguentou que, pelo menos uma vez por semana, eu tivesse
de largar tudo para resolver uma urgência qualquer relacionada com a minha mãe.
Senti-me mal por causa de Gemma durante algum tempo – em seis anos, era a terceira namorada
que as exigências de lidar com a minha mãe tinham espantado – mas há alguns meses cruzei-me com
ela em Bristol, de mãos dadas com um tipo que se apresentou como Tay e me disse ser artista de
rua. Tinha um carrapito. E percebi, enquanto eu e Gemma trocávamos palavras de circunstância ali
no meio da rua, que nenhum de nós estivera alguma vez louco pelo outro.
Loucos um pelo outro – como eu e Sarah. Era assim que uma pessoa tinha de se sentir. Tem de ser
bom a esse ponto.
Quando me sento novamente, a minha mãe está a ajeitar o cabelo com a ajuda de um espelho de
bolso. Hoje, o seu penteado tem os contornos de uma bola de râguebi.
– É um penteado que se usava muito nos anos sessenta – diz. Mira-se no espelho. – Achas que é
demasiado?
– De forma alguma, mãe. É muito bonito.
Na verdade, o penteado é (a) demasiado armado e (b) está inclinado para a direita como a Torre
de Pisa, mas sei que ela o fez a pensar em Arun.
Guarda o espelho e começa a mexer no telemóvel. Após alguns segundos, percebo que está a
fingir enviar mensagens a alguém para poder discretamente tirar fotografias do pobre tipo sentado
ao canto, presumivelmente para servirem de prova depois de ele a assassinar brutalmente. Se Arun
Sopori não aparecer depressa, com as suas belas feições de Caxemira e o seu sorriso caloroso, o
dia vai acabar muito mal. E eu tenho mesmo de voltar ao trabalho.
Nesse momento, oiço a voz de Derek.
– Olá, Carole.
Entra com passo indolente – Derek nunca tem pressa – e aperta-me a mão, sentando-se depois ao
lado da minha mãe.
– Como vai isso hoje? – Ela estica as pernas à frente dele e sinto-a começar a relaxar enquanto
lhe diz que, para ser franca, já esteve melhor.
– Que penteado espetacular que traz hoje – diz ele, quando ela acaba de se queixar.
– Acha? – Já a vejo sorrir.
– Sem qualquer dúvida, Carole. Espetacular.
Bendito sejas, Derek! Costuma visitá-la todas as semanas e, às vezes, penso que é como um
mágico – consegue ver coisas de que mais ninguém se apercebe, consegue fazê-la falar quando mais
ninguém consegue. Nunca perdeu a calma, nem uma única vez, por mais descontrolada que ela
esteja.
– A tua mãe tem um diagnóstico específico? – perguntara-me Sarah um dia. Eu tinha acabado de
cortar a relva na clareira porque esperava conseguir seduzi-la a voltar a Inglaterra com o cheiro de
relva acabada de cortar. Quando terminei, sentámo-nos a beber licor de gengibre e ela cheirou o ar,
satisfeita. Depois, virou-se para mim, sem mais nem menos, e fez essa pergunta sobre a minha mãe,
diretamente, sem preâmbulos, o que só me fez gostar ainda mais dela.
Mesmo assim, ao princípio não quis responder. Queria ser o homem com um celeiro de pedra nas
Cotswolds que faz pão e licor de gengibre e leva uma vida extremamente interessante, não o homem
que tem de evitar vários telefonemas diários da mãe. Mas era uma pergunta razoável e merecia uma
resposta razoável.
Assim, preparei-me para debitar a lista de diagnósticos que ela tinha recebido ao longo dos anos:
a depressão crónica; o distúrbio de ansiedade generalizada; o distúrbio de personalidade do grupo-
C, que estava algures entre ser ansiosa e dependente e obsessivo-compulsiva; a perturbação de
stress pós-traumático; a depressão psicótica que podia ser bipolar. Porém, quando abri a boca,
apoderou-se de mim um grande cansaço. Algures, pelo caminho, eu tinha desistido dos rótulos. Os
rótulos davam esperança de recuperação, ou pelo menos de melhorias, e a minha mãe estava doente
há quase vinte anos.
– É complicado – acabei por dizer. – Se a minha tia não estivesse com ela esta semana, calculo
que teria recebido muitos telefonemas. Provavelmente já teria tido de a ir ver.
Desejo, agora, ter-lhe contado mais. Mas de que teria servido? Só teria posto fim ao nosso tempo
juntos. Teríamos percebido quem o outro era em poucos minutos e eu nunca teria chegado a saber o
que era ser tão feliz. Ter tanta certeza.
– Senhora Wallace. – Ergo os olhos. A minha mãe leva as mãos ao cabelo/bola de râguebi.
Depois, encosta-se a mim, subitamente tímida, enquanto Derek e eu a acompanhamos até Arun, que
a espera à porta do consultório.
CAPÍTULO 42

V árias horas depois, estou livre.


Caminho no crepúsculo suavizado pela chuva miudinha, a cantarolar uma melodia qualquer
entre dentes. Sigo principalmente por trilhos de terra, mas de vez em quando passo por uma estrada.
Terra molhada, alcatrão molhado, folhas molhadas. Eddie molhado. Aqui e ali, caem gotas da beira
do meu capuz.
Vou dando pontapés a uma pedra e penso na sessão de hoje da minha mãe. De acordo com os
últimos relatórios de Derek, Arun quer ajustar-lhe a medicação, o que me parece boa ideia. Não me
passou despercebido que ela está a resvalar para a paranoia – ao princípio pensei que talvez fosse
apenas uma reação temporária à minha ausência, mas Derek diz que já tinha visto alguns sinais de
alarme antes de eu partir.
Aprendi há muitos anos que os milagres não existem, por isso não estou à espera de uma mudança
monumental, mas, com um pouco de sorte, o novo cocktail de Arun talvez trave a espiral
descendente vertiginosa e evite uma crise, e isso é mais do que suficiente para mim. Por mais
fantásticos que sejam os profissionais de saúde mental da equipa, por mais brilhante que seja a
pesquisa, por mais eficazes que sejam os tratamentos, não podem transplantar o cérebro da minha
mãe.
O melhor de tudo foi que ela saiu da consulta relativamente bem-disposta: tão bem-disposta, na
verdade, que consegui convencê-la a irmos beber chá e comer um bolo a Cheltenham. Ela comeu
uma grande fatia de bolo de aveia e só desconfiou de que um homem estava a planear matá-la. Até
conseguiu rir-se de si própria.
Quando a deixei em casa, para poder voltar à oficina, disse-me que eu era o homem mais
bondoso e mais bonito à face da Terra e que tinha tanto orgulho em mim que nem havia palavras.
Portanto, foi agradável.
Mais tarde, Derek ligou-me.
– Como está? – perguntou.
– Bem – respondi.
– De certeza?
Disse-me que eu lhe tinha parecido exausto.
– Lembre-se, estou sempre disponível se estiver com problemas, Eddie.

Meia hora depois, chego a Bisley e começa a chover torrencialmente.


– Bonito – comento com um corvo empoleirado num poste. Ele levanta voo, presumo que para
algum lugar mais confortável, e sinto uma pontada de inveja. A minha mãe pode ter boas
perspetivas de sair da zona de perigo, por agora, mas na minha vida nada mudou. Não sou livre e
não posso ter Sarah. E Derek não pode fazer nada – por mais cordelinhos que consiga puxar nos
serviços de saúde mental – para alterar isso.
– Muito bem, Ed – diz Alan, minutos depois. Olha para mim com a sua expressão mais severa,
que não é muito severa. – Parece que estamos mal.
Alan é uma das pessoas mais simpáticas e gentis que conheço. Esta noite, cheira a morangos e a
azedo e tem a camisola coberta de nódoas cor-de-rosa. Lily fez uma birra que envolveu um iogurte
de morango quando ele lhe disse que não podia ler-lhe uma história antes de dormir.
Sorrio-lhe, embora não me lembre de alguma vez me ter sentido menos alegre.
– Eu sei. Dá-me mais uma semana ou duas para despachar esta história com a...
Não consigo dizer o nome dela.
– ...com... a senhora... e depois trato disso.
A senhora?
Alan é demasiado bondoso para se rir.
Fui convocado ao pub para discutir os planos do meu quadragésimo aniversário, que tem lugar
daí a menos de quatro semanas. Até agora, não organizei nada, e Alan diz que está «preocupado».
Se calhar tenho de ir ver de ti, disse-me ontem, por mensagem. Começa a fazer planos e por favor
não deixes crescer a barba.
Escolhera o Bear, em Bisley, para a intervenção. É um pub antigo e maravilhoso, e faz-nos
lembrar a ambos os dias de glória da juventude, mas não fica em caminho para nenhum de nós.
Mais tarde teremos de dividir uma dispendiosa viagem de táxi e Alan terá de arranjar maneira de
vir buscar o carro amanhã. Mas tenciona mudar-se em breve para a aldeia e quer estudar o
panorama cervejeiro do local, e a mim sabe-me bem estar aqui a conversar, depois de um dia de
hospitais e construção de cozinhas.
Hannah Harrington vive a poucas casas daqui. Encontrei-a em Stroud há uns dois anos, na loja de
comida saudável, imagine-se. Eu estava a comprar qualquer coisa não particularmente saudável,
como banana frita, mas ela trazia os braços cheios de farelo de aveia e todo o tipo de outras coisas
que se tornaram curiosamente indispensáveis para as pessoas da classe média. Era talvez a quarta
ou quinta vez que a via desde a morte de Alex e – como sempre – fiquei impressionado com as
extraordinárias semelhanças entre a Hannah de doze anos e a Hannah adulta.
Perguntei a mim mesmo o quanto teria a minha irmã mudado, se fosse viva.
Hannah disse-me que ela e o marido tinham comprado uma casa em Bisley. Falámos um pouco
sobre os preços das casas e sobre empreiteiros e, depois, cada um seguiu o seu caminho. Quem me
dera que ela me tivesse dito que Sarah se mudara para a América. Quem me dera que ela tivesse
dito: «Eh, lembras-te da minha irmã má? Pirou-se para o estrangeiro, há uma data de anos, portanto
tu e a Carole não precisam de se preocupar com a possibilidade de a encontrarem!»
Alan põe uma cerveja à minha frente e senta-se.
– Estás a pensar na senhora? – pergunta.
– Sim. Faz-me parar.
Ele dá-me uma palmada no braço e diz:
– Para com isso, Ed. Imediatamente.
Depois, olha para mim e vejo nos seus olhos o fascínio de quem é casado há muito tempo.
– Em que estavas a pensar? Havia alguém nu?
Sorrio.
– Não.
– Então em quê?
– Apenas como tudo isto podia ter sido evitado. Que eu teria percebido em segundos quem ela
era, se soubesse que se tinha mudado para a América.
Alan fica pensativo. Bebe um bom trago da sua caneca de cerveja e reparo que as nódoas de
iogurte se estendem aos calções. Até tem uma mancha cor-de-rosa nos pelos das pernas.
– No entanto, mesmo que tivesses percebido, talvez não tivesse sido suficiente – diz. – Disseste-
me que te apaixonaste por ela praticamente de imediato.
Recordo aqueles primeiros minutos na companhia de Sarah. Como a achara esperta e engraçada,
e bonita. Como arrastara a brincadeira da ovelha por muito mais tempo do que devia, só por querer
continuar a falar com ela.
– Mas foi suficiente. Afastei-me assim que percebi. E nessa altura já estava perdidamente
apaixonado. Olha lá, não me tinhas mandado parar de pensar nela?
Ele ri-se.
– Sim, desculpa.
Alan é a pessoa que os outros pensam que eu sou. À vontade consigo próprio, há pouca coisa que
o perturbe a sério. O tipo de homem que está sempre à beira do riso, mesmo quando acabou de
perder o comboio (o que lhe acontece com frequência) ou a carteira (também). Ficámos amigos no
dia em que o vi enfiar o dedo em missão de exploração nasal durante o discurso de boas-vindas à
escola secundária, e em vez de ficar atrapalhado ele sorrira e continuara o que estava a fazer. Mais
tarde, desafiara-me para jogar às cartas e não se importara minimamente de perder.
Nunca falámos em ser amigos porque estávamos demasiado ocupados a jogar futebol e a fingir
não reparar nas raparigas, mas tornámo-nos realmente o melhor amigo um do outro. Parceiros no
crime; frequentemente metidos em sarilhos. Até fomos suspensos da escola uma vez, por fazermos
uma substância que parecia vómito e a atirarmos da janela da casa de banho para o sítio onde os
professores rebeldes iam fumar, os que usavam blusões de cabedal e não cortavam o cabelo tanto
quanto deviam. Pensei que a minha mãe me ia matar, mas, quando entrámos no carro, ela desatou a
rir. Ria-se muito, nesse tempo.
– Rapazes – disse, abanando a cabeça.
Quase trinta anos depois, Alan e eu provavelmente parecíamos não ter mudado muito.
Eu, porém, já não sou como Alan. Aquele Eddie juvenil e descomplicado perdeu-se quase de
certeza da primeira vez que encontrei a minha mãe inconsciente, numa poça de vómito, rodeada por
frascos de comprimidos. E, se não se perdeu nessa altura, talvez se tenha extinguido na segunda vez,
ou na terceira, quando a encontrei na banheira com os pulsos cortados a deixar rastos vermelhos na
água. E, se essas três primeiras tentativas não acabaram comigo, a quarta resolveu o assunto, anos
depois de ter tido alta do hospital psiquiátrico, muito depois de eu pensar que já se tinham acabado
as viagens de ambulância e os internamentos e as noites à procura de trocos para a máquina de
venda automática do hospital.
Não me entendam mal: estas duas últimas décadas não foram sempre más, nem por sombras.
Tenho muitos amigos, uma vida social decente (para um eremita residente num celeiro) e até tive
namoradas. Trabalho numa coisa que adoro e vivo num sítio maravilhoso e, quando preciso de sair
daqui, tenho uma tia muito paciente que fica com a minha mãe.
Mas depois conheci Sarah e lembrei-me de como a vida podia ser. A leveza, a descontração, as
gargalhadas. A vida cantada numa nota maior.
Muitas vezes perguntei a mim próprio se lhe terei mostrado uma versão falsificada de Eddie
David durante a semana que passámos juntos. Uma versão mais feliz e livre. Mas não creio que
tenha sido isso que aconteceu. Penso que ela simplesmente pôde ver uma versão de mim que eu há
muito esquecera; uma versão que apenas ela parecia capaz de ressuscitar.
– É complicado, Ed – suspira Alan, inclinando-se para limpar o iogurte da perna. – Lamento
muito.
Com firmeza, garanto-lhe que hei de ultrapassar isto.
Bebo um gole de cerveja e recosto-me na cadeira, pronto para falar sobre os problemas que Lily
está a ter na escola primária, ou sobre a notícia surpreendente de que o nosso amigo Tim foi traído
pela mulher grávida.
Mas Alan ainda não acabou.
– Tens a certeza? – pergunta. – Desculpa, Ed, mas não me parece que estejas a ultrapassar coisa
nenhuma. Estás com péssimo aspeto.
Apanha-me desprevenido com este comentário.
– Sim, tenho a certeza – asseguro, mas parece mais uma pergunta do que uma afirmação. – De
qualquer maneira, que opção tenho? Se me juntasse com a Sarah, acabaria com a minha mãe. E digo
isto de forma muito literal.
Alan faz uma careta.
– Eu sei. Não discordo. Mas não foi isso que te perguntei. Perguntei se tinhas a certeza de que
estavas a ultrapassar a situação.
Fita-me diretamente e sinto a verdade, por baixo da pele, anos e anos de verdade a pressionarem
desesperadamente para sair, contidos apenas pelas finas camadas de derme e epiderme.
– Não – admito, após uma pausa. – Não estou.
Ele acena afirmativamente. Ele sabe.
– Estou no limite. Estou desesperado e não sei o que fazer.
Rodo o copo uma e outra vez, lutando contra o ardor nos olhos.
– Não durmo. Não consigo concentrar-me. Só consigo pensar na Sarah. Sinto-me... bom,
desesperado, por saber que cortei todas as possibilidades de alguma coisa. E, desde que vim de
Los Angeles, cuidar da minha mãe começou a parecer-me impossível. Dou constantemente por mim
a pensar não consigo continuar a fazer isto. Mas não tenho essa opção, Alan, porque o que vai ela
fazer, se eu perder a cabeça e desaparecer? Merda.
– Merda – concorda Alan, baixinho.
Não confio na minha própria voz e fico em silêncio.
Alan bebe um gole de cerveja.
– Às vezes pergunto-me se não precisarás de mais ajuda com a tua mãe, Ed. No outro dia, a Gia
falou-me de uma amiga qualquer que cuida do marido há quinze anos. Uma história horrível... caiu
da bicicleta e ficou totalmente paralisado... Bom, seja como for, essa amiga dela teve um
esgotamento nervoso o mês passado. Embateu numa barreira que não conseguia ultrapassar. Não
aguentava nem mais um minuto. E não é que já não goste do marido. Ama-o terrivelmente.
Faz uma pausa, bebe mais um trago.
– Fez-me lembrar de ti. Calculo que tudo isto esteja a desgastar-te.
Solto um som que não quer dizer nada, porque na verdade não quero ter esta conversa. Gemma
foi a última pessoa que tentou dizer-me que acabaria por me ir abaixo se não encontrasse uma
forma de ter um pouco mais de liberdade pessoal. Optei por entender as palavras dela como uma
crítica à minha mãe e tivemos uma grande discussão, mas no fundo sabia que ela provavelmente
tinha razão.
– Mas não há ninguém que possa fazer o que eu faço – digo, agora. – Ela não precisa
propriamente de alguém que lhe dê banho, ou que lhe faça a comida... precisa apenas de alguém em
quem confie do outro lado do telefone, ou para passar por lá quando as coisas se descontrolam.
Levo-a às compras, organizo as coisas, converso com ela. Sou um amigo, não um cuidador.
Alan assente, mas não me parece que ele veja as coisas da mesma maneira que eu.
– Pensa nisso – diz. – Mas quanto à Sarah... Fizeste a coisa certa. Fizeste a única coisa que
podias fazer.
– Hum-hum.
– Pensa no Romeu e na Julieta. Ou no Tony e na Maria.
O amor de Alan pelo teatro musical, normalmente, é fonte de grande regozijo para mim, mas esta
noite não estou com paciência para o West Side Story.
– Eles sabiam que era errado estarem juntos – insiste ele –, mas arriscaram e acabaram mortos.
Tu foste mais esperto. Resististe, o que exige muito mais coragem.
– Oh, é bom saber disso, Alan. Obrigado. Mas o verdadeiro problema é que tenho de deixar de a
amar e não sei como.
Alan fica com ar pensativo.
– Já me tenho perguntado como é que isso funciona. Desapaixonares-te de alguém. O que é que
uma pessoa tem de fazer? Por que raio não há um manual publicado sobre isso? – Tem o cabelo cor
de feno espetado dos lados da cabeça enquanto reflete sobre o problema. Alan nunca teve de deixar
de amar ninguém. Ele e Gia estão casados há nove anos, juntos há dezanove. Antes dela, houve
apenas Shelley, cujo coração Alan (com grande peso na consciência) partiu, e meia dúzia de
raparigas da escola com quem estava basicamente apenas a tentar dominar a sua eterna ereção de
adolescente.
Como é que se deixa de amar alguém? O amor que eu sentia por Sarah não era apenas uma versão
de algo que já vivia em mim; era algo construído do zero, algo que eu próprio construí. Quando nos
despedimos, era tão palpável como ela.
Como posso matá-lo? Mesmo que deixe que seja o tempo a desgastá-lo, continuaria a ter
fragmentos espalhados dentro de mim. A rouquidão inesperada da gargalhada dela, o seu cabelo
espalhado na almofada. O som do balido de uma ovelha, a imagem da Ratinha entre os seus dedos
esguios.
– Não faço ideia de como se consegue deixar de amar alguém – confesso, por fim. Alan está
novamente a estudar-me. – Suponho que simplesmente esperamos por... nem sei pelo quê. Que a
intensidade se dissipe? Neste momento, contudo, sinto-me uma panela de pressão.
– Talvez seja por isso que tantos poetas escrevem sobre desgostos amorosos. Ajuda-os a libertar
a pressão. Como uma sangria. Descarregar rapidamente os sentimentos acumulados.
– Pois – suspiro. – Uma descarga rápida soa bem. Libertação.
Após uma pausa, ambos desatamos a rir.
– Se quiseres ir para casa tratar dessa descarga rápida, não me importo – diz Alan.
Levanta-se e vai ao bar. Olho para os tornozelos dele e sorrio. É de constituição normal, Alan,
mas tem tornozelos tão finos que consigo contorná-los com uma mão. E ele detesta quando o faço.
A arca refrigeradora zumbe. Numa cozinha distante, alguém limpa pratos.
Olho para o relógio: 20h40m. O que será que Sarah está a almoçar? Não suporto esse
pensamento.
Alan volta com as cervejas e senta-se, a esfregar as mãos de satisfação com a perspetiva dos
bifes que acabou de pedir, e neste momento não há nada que eu queira mais do que ser ele. Ser Alan
Glover, cheirar levemente a iogurte, estar seguro na vida, ser responsável apenas pelo bem-estar da
sua encantadora filha.
– Vou à casa de banho – digo.

No caminho de regresso à mesa, reparo que está um casal sentado numa mesa ao canto. Vestem-se
de preto e percebo de imediato que há qualquer coisa que não está bem com eles. Não falam,
embora a mulher esteja agarrada ao homem como se se defendesse de um vento forte.
Ao mesmo tempo que vejo que ela está a chorar, percebo que a conheço. Abrando, para a
conseguir ver melhor, e após alguns segundos reconheço Hannah Harrington. A irmã de Sarah. A
menos de dois metros de mim, apoiada num homem que presumo ser seu marido. Tem o rosto
vermelho, desfigurado pela tristeza, mas consigo vê-la a ela. Uma sombra de Sarah. Tal como
estava na praia quando a deixei – aturdida, infeliz, totalmente silenciosa.
Hannah não me vê enquanto regresso silenciosamente à nossa mesa. Falo a Alan do carro
funerário que vi a dirigir-se à aldeia de Sarah nessa manhã. Depois, porque tenho o estômago às
voltas, digo-lhe que, se Hannah está a chorar, é porque foi com certeza alguém que a família de
Sarah conhecia muito bem.
– A Sarah pode ter vindo ao funeral – murmuro, e a minha voz tem um leve tom de loucura. –
Pode estar a meia dúzia de quilómetros daqui, Alan!
Alan fica alarmado.
– Não vás à procura dela – diz, por fim.
Os nossos bifes chegam pouco depois e ele acaba por comer também o meu.
Passado algum tempo, levanto-me para ir buscar mais uma rodada e vejo que Hannah e o marido
já se foram embora. Não consigo deixar de pensar em quem terá morrido. Por um momento terrível,
até me passa pela cabeça que tenha sido Sarah.
É irracional, claro, mas à medida que a noite avança tenho cada vez mais dificuldade em afastar
essa ideia. Encaixa demasiado confortavelmente nos pensamentos intrusivos que me assaltaram ao
regressar de Los Angeles. Aquela voz, a perguntar-me se continuaria a pensar que tinha feito a
coisa certa caso Sarah morresse.
Embebedo-me de forma embaraçosa e, a dada altura, dou um murro na mesa, furioso com o
desespero geral da situação.
Não sou homem de dar murros em mesas. Quando Alan diz que se calhar vem comigo para minha
casa para beber uísque e ver os Jogos Olímpicos, não discuto. Se estivesse no lugar dele, se calhar
também não me deixava sozinho.
CAPÍTULO 43

Meu amor,

Basta: tenho de esquecer a Sarah. Não basta dizer a mim próprio para o fazer e depois passar
o tempo a pensar nela: tenho de cortar os pensamentos assim que me aparecem. Porque, além
de inúteis, são perigosos. Depois de escaparem, espalham-se mais depressa do que um vírus e
não os consigo controlar – e, quando olho para a minha mãe, vejo até que ponto eles podem
levar-me.
Portanto é assim, Ouriço-Cacheiro. Está na altura de exercer o tal poder de escolha de que
estou sempre a falar.
Obrigado por seres minha testemunha. Como sempre.

Beijos, Eu

R eleio a carta antes de pegar no envelope, como se estivesse a tentar agarrar-me a Sarah por
mais alguns instantes. O sol matinal entra pela janela, sobre a floresta de detritos que reside na
minha secretária: catálogos empoeirados, faturas, uma régua, uma série de lápis e restos de papel,
chávenas de chá frio. Através destes obstáculos, um dedo estreito de luz chega ao retângulo de
papel lilás em que acabo de escrever. Aponta para a carta, parece quase seguir as palavras
conforme as árvores se movem lá fora. Depois, passa uma nuvem, devora o Sol e a carta fica
novamente iluminada apenas pela luz fraca e cinzenta da manhã.
Pego num envelope lilás precisamente quando um rangido lá em cima me anuncia que Alan
acordou. Uma voz abafada:
– Ed? Ei, Ed!
Alan adormeceu no sofá enquanto escrevia uma mensagem a Gia sobre o estado da minha saúde
mental. Tenho de ficar de olho nele, escrevera, antes de adormecer. Para que Gia não ficasse
preocupada, acabei de escrever a mensagem e enviei-a. Ele passou-se no pub, escrevi. É melhor
eu dormir aqui. A Gia é extraordinariamente tolerante no que diz respeito a Alan e eu.
Alan ressonava de vez em quando. A equipa da Grã-Bretanha ganhou a competição de natação
sincronizada masculina. Fiquei sentado no sofá, a tentar não pensar em Sarah.
Sons de ressaca por cima de mim. Alan deve andar na cozinha, como um urso esfomeado, à
procura de coisas saborosas a que possa deitar as garras. Vai querer uma grande chávena de chá,
pelo menos quatro torradas e uma boleia para o trabalho. Provavelmente algumas roupas
emprestadas, também, porque as dele estão todas sujas de iogurte de morango.
E eu fornecerei alegremente todas estas coisas, porque Alan é um verdadeiro amigo. Ele sabia
que eu precisava de companhia ontem à noite. Sabia que estaria infeliz por causa de Sarah e sabia
também, de alguma forma, que as coisas com a minha mãe não estão muito bem. O mínimo que
posso fazer é preparar-lhe umas torradas.
Regresso à minha carta, enfio-a num envelope lilás e escrevo o nome de Alex à frente.
Silenciosamente, para que Alan não me oiça, dirijo-me às gavetas por baixo da minha bancada de
trabalho e abro a que diz ESCOPROS.
Lá dentro, há um mar suave de papel lilás. Uma triste arca do tesouro; o meu segredo sombrio. A
gaveta está outra vez a ficar cheia: algumas das cartas ao fundo já ameaçam cair para a gaveta de
baixo, onde guardo realmente os escopros. Com cuidado, puxo-as para a frente. É estúpido, na
verdade, mas odeio pensar que alguma se pode perder. Ou ficar amachucada, dobrada, ou
danificada de qualquer forma.
Respiro lentamente e olho para elas.
Não escrevo sempre – talvez de duas em duas semanas, menos se estiver muito ocupado – mas,
ainda assim, esta é a terceira gaveta que encho nestas duas décadas. Passo a mão sobre as cartas,
com ternura, envergonhado. Que se passa com ele?, imagino as pessoas a dizerem. Ainda está tão
agarrado a uma criança morta? Devia procurar ajuda.
Foi uma senhora chamada Jeanne Burrows, terapeuta do luto, que me sugeriu que escrevesse à
minha irmã morta. Eu não suportava a perspetiva de nunca mais poder falar com ela; deixava-me
tonto de pânico. Escreva-lhe uma carta, sugerira Jeanne. Diga-lhe como se sente, que tem
saudades dela. Diga-lhe as coisas que lhe teria dito se soubesse o que ia acontecer.
Naquelas horas de silêncio que passava entre o tribunal, o hospital psiquiátrico e a casa vazia da
minha infância, estas cartas reconfortavam-me. Tinha amigos, claro: até tinha uma namorada nova
em Birmingham, onde acabara o primeiro ano de universidade. A irmã da minha mãe, Margaret,
telefonava todos os dias, e o meu pai veio de Cumbria para ajudar a organizar o funeral da filha.
Mas ninguém sabia realmente o que fazer comigo, ninguém sabia o que dizer. Os meus amigos eram
bem-intencionados, mas inúteis, e a minha namorada desapareceu assim que a decência lho
permitiu. O meu pai passava a maior parte do tempo ao telefone com a mulher, para adiar a sua
própria dor.
Escrevi a primeira carta no meu quarto vazio na universidade, no dia em que fui buscar o resto
das minhas coisas. Na altura, a minha mãe estava a ser tratada numa unidade segura. Já era evidente
que eu não voltaria para o segundo ano.
Porém, depois de escrever a carta, dormi. Dormi a noite toda e, embora tenha chorado ao ver o
envelope lilás na manhã seguinte, sentia-me menos... sufocado. Como se tivesse feito um pequeno
furo e deixado escapar parte da pressão. Nessa noite escrevi outra carta, depois de desfazer as
malas em Gloucestershire, e nunca mais parei.
Fiz uma marcação com Jeanne para daqui a alguns dias. Ela continua a dar consultas na sua casa
em Rodborough Avenue. A sua voz está exatamente na mesma e, não só ainda se lembrava de mim,
como disse que estava encantada por ter notícias minhas. Disse-lhe que queria falar com ela
porque o meu envolvimento com Sarah Harrington reabrira algumas «velhas feridas», mas não sei
se é bem isso. Simplesmente, sinto – tenho sentido desde que voltei – que está tudo mal. Como se
tivesse regressado à vida errada, à cama errada, aos sapatos errados.
O que é verdadeiramente alarmante é que tenho a sensação de que, sem que eu tivesse dado por
isso, as coisas já estão assim há quase vinte anos.
Olho em volta para a minha oficina, a minha casa segura, o meu retiro. O lugar onde martelei e
serrei e descarreguei a fúria e o desespero. Onde bebi centenas de milhares de chávenas de chá,
cantei em coro com o rádio, arranquei uma montanha de farpas dos dedos, apanhei uma ou outra
bebedeira. Não sei o que teria feito se não tivesse isto.
E, na verdade, é à minha mãe que tenho de agradecer. O meu pai, o responsável original pelo meu
fascínio pela madeira, sempre foi veementemente contra a ideia de eu ganhar a vida a fazer isto.
Nos dez anos entre o dia em que ele fugiu com a Victoria «Merdosa» (o nome que Alan inventara
para ela na altura e que acabou por ficar) e o dia da morte de Alex, o meu pai continuou a interferir
na minha vida e nas minhas decisões como se ainda se sentasse à cabeceira da mesa. Ficou furioso
quando lhe disse que estava a pensar tirar um curso profissional de fabrico de mobiliário em vez de
ir para a universidade.
– Tens um cérebro académico! – gritou-me ao telefone. – Não te atrevas a desperdiçá-lo! Vais
destruir as tuas perspetivas de carreira!
Naquele tempo, a minha mãe ainda conseguia tolerar conflitos.
– Que importância tem se ele não quer ser o raio de um contabilista? – dissera, tirando-me o
telefone das mãos, com a voz trémula de raiva. – Por acaso já viste as coisas que ele faz, Neil?
Provavelmente não, uma vez que raramente te dás ao trabalho de cá vir. Mas deixa-me que te diga
que o nosso filho tem um talento excecional. Portanto, deixa-o em paz.
Foi ela que me comprou a minha primeira plaina, uma bela Stanley, antiga. Ainda hoje a uso. E,
portanto, é sempre a ela que estou grato, quando penso naquilo que tenho.
– Bonjour – diz Alan, com a voz um pouco entaramelada. Está ao fundo das escadas, vestido
apenas com calças e uma meia. – Preciso de chá, torradas e uma boleia, Eddie. Podes ajudar-me?
Uma hora depois, estamos a estacionar em frente da casa dele, no alto de Stroud. Mantenho o
motor ligado enquanto ele entra a correr para enfiar roupas apropriadas para o trabalho (rejeitou
terminantemente tudo o que lhe ofereci) e olho para o velho cemitério na encosta por baixo de mim,
um tabuleiro de xadrez de perda e amor. Não está lá ninguém, a não ser um gato a passear-se sobre
uma fila de lápides.
Sorrio. É mesmo coisa de gato. Porquê caminhar respeitosamente na relva quando pode caminhar
desrespeitosamente sobre o túmulo de um ser humano?
Oiço um sino de igreja, algures – devem ser nove horas –, e lembro-me do funeral que vi ontem.
O carro funerário, polido e silencioso e desconcertante em todos os aspetos. A expressão
cuidadosamente grave do condutor, as cascatas de flores silvestres sobre o caixão, aquele medo
estonteante que acompanha tudo o que nos recorda a mortalidade humana. Cruzo os braços sobre o
peito e sinto-me subitamente agoniado.
Quem morreu? Quem foi?
Mas depois lembro-me do que prometi à minha irmã há pouco mais de uma hora. Chega de pensar
em Sarah. Nem agora, nem nunca. E fecho uma cortina sobre essa parte da minha mente, forçando-
me, em vez disso, a planear o dia de trabalho que tenho pela frente. Em primeiro lugar, uma
sanduíche de bacon no café em Aston Down.
– Miau! – chamo o gato, mas ele está ocupado a planear a morte de um pobre musaranho
qualquer.
CAPÍTULO 44

Seis semanas depois

O outono chegou. Sinto o seu cheiro no ar, áspero e básico e – sempre achei – estranhamente
apologético. Como se estivesse um tanto envergonhado por desmantelar os sonhos embriagantes
do verão para anunciar mais um inverno cruel.
Contudo, o inverno nunca me incomodou. Há qualquer coisa requintadamente etérea neste vale,
quando o chão está coberto de geada e as árvores lançam sombras longas sobre a terra nua. Adoro
ver o fumo a sair de uma chaminé solitária, o reluzir de luz numa janela distante, como num conto
de fadas. Adoro como os meus amigos aparecem descaradamente, sem serem convidados, para se
poderem sentar em frente da minha lareira e comer os guisados reconfortantes que parecem achar
que eu faço todos os dias, só porque vivo num celeiro rural.
Estranhamente, a minha mãe também parece sempre um pouco mais feliz no inverno. Penso que é
porque se torna mais aceitável ficar enfiada em casa quando a temperatura baixa. O verão traz
consigo expectativas de maior socialização e atividades ao ar livre, enquanto no inverno a sua
pequena existência não precisa de muitas explicações ou defesa.
Mas hoje ainda estamos apenas em setembro e eu ainda estou de calções enquanto subo a encosta
no bosque de Siccaridge. Calções e uma camisola que ainda não consegui lavar porque a última
pessoa a vesti-la foi Sarah.
Acelero um pouco o passo. Sinto um leve ardor nos músculos das pernas à medida que subo a
encosta, demasiado depressa para permitir que os meus pés se afundem no terreno mole. Começo a
cantar a parte de Merry Clayton na canção «Gimme Shelter». As únicas pessoas que me conseguem
ouvir cantar sobre violações e homicídios ao virar da esquina são os pássaros, que provavelmente
já antes me consideravam doido.
A minha voz chega à reta final da canção, quando Clayton está basicamente a gritar, e desato a rir.
A minha vida não está lá muito tranquila ultimamente, mas recusar-me a pensar em... bom, em
coisas inúteis... dá-me sem dúvida algum descanso.
O problema é que Jeanne Burrows não concorda com o meu plano de bloquear todos os
pensamentos sobre Sarah. As minhas sessões com ela fazem-me sentir muito melhor, muito menos
sozinho, mas apesar disso ela aperta-me os tomates todas as semanas. Nunca pensei que fosse
possível apertar os tomates de alguém de forma tão profundamente amável, gentil e respeitadora,
mas é o que Jeanne parece fazer.
A sessão de hoje, contudo, foi inédita.
Quando estava a chegar ao fundo de Rodborough Avenue, onde Jeanne vive, vi, imagine-se,
Hannah Harrington a tirar o carro do estacionamento em frente da casa de Jeanne. Estava
concentrada na manobra, por isso não me viu, mas consegui olhar bem para ela. Não estava muito
diferente da última vez que a vi: chorosa, cansada, perdida.
Claro que me perguntei imediatamente por que razão Hannah estaria a consultar Jeanne e, quando
dei por mim, o velho motor do medo estava a trabalhar na potência máxima. Teria sido o pai ou a
mãe de Sarah a pessoa que morrera? Sarah devia estar muito infeliz. Ela contara-me, naquelas
longas mensagens, como se sentira culpada, ao longo de todos estes anos, por insistir em continuar
a viver a milhares de quilómetros dos pais. Decidi que tinha o dever de a ajudar.
– Quero telefonar à Sarah Harrington – anunciei a Jeanne mal entrei. – Posso fazer isso aqui,
consigo?
– Entre e sente-se – disse ela, calmamente. Oh, que maravilha, imaginei-a a pensar. Aqui vamos
nós.
Poucos minutos depois, eu acalmara-me e aceitara que não tinha nada que ligar a Sarah
Harrington, mas claro que isso levou a uma conversa sobre ela. Jeanne voltou a perguntar se eu
achava que bloquear todos os pensamentos sobre Sarah estava a ajudar-me a esquecê-la.
– Sim – respondi, obstinadamente. E depois: – Talvez. – E depois: – Não.
Falámos sobre o processo. Disse-lhe que estava farto de as coisas não estarem a correr bem, mas
que não sabia que mais podia fazer.
– Só quero ser feliz – murmurei. – Quero ser livre.
Jeanne riu-se quando me queixei de não haver um manual para deixar de amar alguém. Admiti que
fora Alan o autor da piada, e depois ela lançou-me um olhar neutro e disse:
– Já que estamos a falar de libertação, Eddie, gostava de saber o que pensa sobre isso... em
relação à sua mãe. Como se sente quando se imagina livre dos seus deveres para com ela?
Fiquei tão chocado que tive de lhe pedir para repetir.
– Que tal lhe parece a ideia de aliviar parte desse fardo? – perguntou ela em tom amável. – Foi
assim que o descreveu a semana passada. Deixe cá ver... – Olhou para os seus apontamentos. – Um
«fardo de pesadelo», foi o que disse.
Senti-me corar. Puxei uma linha solta no sofá, sem conseguir fitá-la nos olhos. Como se atrevia a
ir buscar uma coisa daquelas?
– Eddie, quero recordar-lhe que não é vergonha nenhuma... absolutamente nenhuma... achar que é
difícil. Os cuidadores familiares podem sentir muito amor e lealdade pelo seu familiar, mas sentem
também ressentimento, desespero, solidão e uma série de outras emoções de que não gostariam que
o doente tivesse conhecimento. Às vezes chegam a um ponto em que têm de fazer uma pausa. Ou
mesmo de repensar completamente a situação.
Olhei para o chão. Mais cuidado!, era o que queria gritar. Está a falar da minha mãe! Mas não
disse nada.
– Em que está a pensar? – quis saber Jeanne.
Não fico zangado com frequência – tive de aprender a controlar-me, pela minha mãe –, mas de
súbito senti-me furioso. Demasiado zangado para dar valor ao que ela tentava fazer por mim. Para
me sentir agradecido por ter esperado várias semanas antes de tocar no assunto. Queria pegar na
jarra de bocas-de-lobo que ela tinha em cima da lareira e atirá-la contra a parede.
– Não faz a mais pequena ideia – disse, a uma terapeuta com trinta e sete anos de experiência.
Se Jeanne ficou chocada, não o mostrou.
– Como se atreve? – continuei, em tom cada vez mais alto. – Como se atreve a sugerir que eu lhe
vire costas e a abandone? A minha mãe tentou matar-se quatro vezes! A cozinha dela parece uma
farmácia de hospital! É a pessoa mais vulnerável que conheço, Jeanne, e é a minha mãe. Por acaso
tem mãe?
Demorei quase meia hora a acalmar-me e a pedir desculpa. Jeanne fez-me perguntas amáveis e
respeitadoras e eu respondi apenas com monossílabos, mas ela continuou. A empurrar-me, com
aquelas perguntas inteligentes, cada vez para mais perto de admitir que estava a aproximar-me
perigosamente de um ponto de rotura com a minha mãe. Com a vida. A incentivar-me a reconhecer,
a contragosto, que talvez tivesse sido a minha própria dor que me impedira de agir mais cedo.
Jeanne parecia convencida de que Derek podia ajudar a encontrar uma solução.
– É o trabalho dele – repetiu, várias vezes. – É enfermeiro psiquiátrico, Eddie, e o trabalho dele
é ajudar-vos a ambos.
E eu repeti que nunca poderia passar a minha mãe a Derek. Por mais maravilhoso que ele fosse.
– Sou a única pessoa com quem ela quer falar quando precisa de ajuda – expliquei. – Não
confiaria em mais ninguém.
– Não pode ter a certeza disso.
– Mas tenho! Se eu lhe dissesse que não podia ligar-me... mesmo que lhe dissesse apenas que não
podia ligar-me tantas vezes... ou me ignoraria e continuaria a fazer o mesmo, ou ficaria
perigosamente doente. Conhece o historial dela. Sabe que não estou só a ser pessimista.
Nesta altura, a nossa hora tinha chegado ao fim sem que fizéssemos qualquer progresso concreto,
mas prometi-lhe que para a semana continuaria sem fazer birras.
Jeanne riu-se e disse que eu estava a progredir muito bem.

Chego finalmente ao cimo da colina e paro sob a faia que vim ver. (Fica a poucos metros da
galocha misteriosa.) Em junho, quando andava a vaguear pelo campo, com a cabeça repleta de
pensamentos zangados e confusos sobre Sarah, reparara que esta árvore estava a definhar e a perder
as folhas... e agora está muito pior. Suponho que seja um escaravelho qualquer, já que não vejo
qualquer agente patogénico óbvio na casca da árvore, mas é certo que já não tem salvação. Pouso a
mão no tronco, entristecido por imaginar esta besta magnífica a ser derrubada por uma serra
elétrica.
– Lamento – digo, porque me parece errado não dizer nada. – E obrigado. Pelo oxigénio. E por
tudo.
Inspeciono as árvores circundantes (a galocha ainda lá está) e depois desço a colina, de mãos nos
bolsos. O meu cérebro está sempre a tentar empurrar-me na direção de Sarah e da visita da irmã
dela a uma terapeuta do luto, mas resisto. Forço-me a pensar antes na árvore. A árvore é um
problema que sei resolver. Amanhã ligo para a Direção de Vida Selvagem de Gloucestershire para
ver se querem ajuda para a cortar.
Quando chego ao meu celeiro, estou a sentir-me novamente bastante normal.
Depois entro e vejo a minha mãe de pé ao lado da gaveta de cartas lilases. A minha gaveta
secreta de cartas lilases, de que ninguém sabe, exceto eu e Jeanne. E percebo que a minha mãe está
a ler – a ler muito calmamente – uma das minhas cartas para Alex. Segura-a com uma mão e tem
uma expressão desagradável no rosto.
Tenho de parar um instante para ter a certeza de que isto está realmente a acontecer. Para ter a
certeza de que a minha mãe – a minha querida mãe – está a cometer uma violação de privacidade
deste calibre. Mas, nesse momento, ela vira a carta para ler o verso da página e sei que não há
qualquer dúvida.
A incredulidade transforma-se em fúria.
– Mãe? – digo. A minha mão aperta a ombreira da porta como um torno.
Num movimento súbito, ela esconde a carta atrás das costas e vira-se para mim.
Releio mentalmente a mensagem que lhe enviei antes de sair: Vou dar um passeio. Só para te
avisar de que deixo o telemóvel em casa para ter algum sossego. Estou de volta daqui a duas horas,
mais ou menos.
Exagero sempre no tempo que penso demorar a fazer qualquer coisa, para ela não entrar em
pânico se eu não disser nada.
– Olá, querido! – É outra vez aquela voz, a voz que usa quando sabe que foi longe de mais
comigo. Mas hoje está ainda mais aguda. – Foste muito rápido.
– O que estás a fazer?
– Eu...
Abate-se sobre nós um silêncio denso e assustado enquanto ela pesa as suas opções. Está tudo
parado. Até as árvores lá fora parecem ter feito uma pausa, como que à espera de confirmação da
traição. Mas ela não consegue. Não consegue dizer-me a verdade.
– Ouvi um barulho – diz, num tom de voz tão falsamente natural que parece que está num
programa infantil de televisão. – Parecia um rato. Tens tido problemas com ratos, Eddie? Foi aqui
perto. Estava à procura... abri algumas gavetas... Espero que não te importes...
Continua a desculpar-se desta maneira até que eu grito... não, até que eu berro:
– HÁ QUANTO TEMPO ANDAS A LER AS MINHAS CARTAS?
O silêncio é tão absoluto que me faz lembrar o fundo do mar.
– Encontrei algumas cartas, sim, mesmo antes de tu chegares – acaba ela por dizer. – Mas não as
li. Passei os olhos por uma e pensei oh, não é nada da minha conta, por isso estava a guardá-la
quando tu...
– Não me mintas! Há quanto tempo andas a ler as minhas cartas?
A minha mãe leva as mãos ao rosto e começa a tirar os óculos, mas depois muda de ideias e
deixa-os ficar, agora tortos, como um balancé. Olho para ela e não vejo a minha mãe. Apenas raiva,
um caldeirão fervilhante de fúria.
– Há quanto tempo andas a ler as minhas cartas? – pergunto, pela terceira vez. Acho que nunca
falei com ela neste tom. – E não mintas – aviso. – Não me mintas outra vez. Estou a falar a sério,
mãe.
O que se segue apanha-me completamente desprevenido. Espero lágrimas, espero ver a minha
mãe de joelhos no chão a implorar o meu perdão, mas de repente ela vira-se e atira a carta ao ar
como se fosse uma multa de estacionamento ou qualquer outro insulto à sua existência. A folha de
papel paira até ao chão, lentamente.
– Como tu me tens mentido? – diz. – Como tu me mentiste quando disseste que querias ir a Los
Angeles passar umas «férias»? Como me mentiste quando disseste que querias ver o teu amigo
Nathan e fazer surf ? Como me mentiste sobre a «emergência» do Alan no dia em que chegaste?
Com uma intencionalidade que acho hipnotizante, ela avança e apoia as mãos na bancada no
centro da oficina.
– Como me mentiste em relação àquela... àquela rapariga? – Fita-me desvairadamente, como se
estivesse à procura do filho no rosto de um assassino em série. – Como foste capaz? Como foste
capaz de dormir com ela, Eddie? Como conseguiste trair a tua irmã dessa maneira?
Devia andar a ler as minhas cartas há meses.
Não admirava que estivesse tão paranoica e carente desde que eu voltara de Los Angeles. E não
admirava que tivesse feito todos os possíveis por me impedir de lá ir. Geralmente, quando lhe digo
que estou a planear uma viagem, ela fica satisfeita, porque isso lhe permite convencer-se a si
própria de que eu ainda tenho vida própria. Mas, desta vez, agira como se eu fosse emigrar para a
Austrália.
– Aquela rapariga – repete, com um estremecimento. Parece que está a falar de um violador ou
um pedófilo, não de Sarah Harrington. Embora, para a minha mãe, não deva haver qualquer
diferença moral. – Fui sincera no que disse, no outro dia. Espero que fosse ela que ia naquele carro
funerário.
– Valha-me Deus, mãe! – sussurro, estupefacto. – Depois de tudo o que passaste, serias capaz de
desejar o mesmo sofrimento a outra pessoa? A sério?
Ela solta uma exclamação desdenhosa. A minha mente salta em todas as direções, encontrando
pistas por todo o lado. Foi por causa disto que ela começou a piorar outra vez. Há meses que sabe
da existência de Sarah.
– Foste tu que lhe ligaste? – pergunto, calmamente. – Para o telemóvel? Foste tu que lhe mandaste
aquela mensagem ameaçadora? Foi por isso que quiseste um telemóvel novo em julho?
Tenho andado a receber muitas chamadas de telemarketing, dissera-me na altura. Estou a ficar
enervada, Eddie. Preciso de um número novo.
– Sim. Fui eu que lhe telefonei. E não me arrependo. – Tem vestida uma camisola de malha cor-
de-rosa. Por algum motivo, o cor-de-rosa torna toda esta sordidez ainda mais chocante.
– E estavas na escola antiga dela naquele dia? E junto ao canal perto da casa dos pais dela?
– Sim. – Estava quase a gritar. – Alguém tinha de fazer alguma coisa. Não podia permitir que ela
te infetasse. És tudo o que me resta! Alguém tinha de fazer alguma coisa – repete, quando eu fico em
silêncio. – E tu não ias fazer nada, obviamente. A chorar pelos cantos, a dizer à tua pobre irmã o
quanto amas a mulher que a matou... – Cala-se. Está novamente a falar num sussurro venenoso. Eu
deixei de ouvir as palavras. Só consigo pensar: Fazes alguma ideia do que eu passei para tentar
poupar-te a isto? De como me tenho sentido sozinho? Fazes alguma ideia do que sacrifiquei por
ti?
Ao fim de algum tempo, apercebo-me de que ela parou de falar. Tem os olhos muito abertos e
cheios de lágrimas.
– Como é que arranjaste o número de telefone da Sarah? – pergunto, apesar de já saber a
resposta. – Como soubeste que ela estaria na escola naquele dia? Tens andado também a ver o meu
telemóvel?
Ela diz que sim.
– E a culpa é tua, Eddie, por isso não te zangues comigo. Eu tinha de intervir. Tinha de proteger a
Alex... disto.
Uma lágrima desliza-lhe pela face, mas a sua voz continua firme.
– A culpa é tua – repete. – Tu, que tanto gostas de falar em escolha! Fizeste uma escolha e
escolheste essa mulher. Essa rapariga.
Abano a cabeça, agoniado. O ódio dela é tão intenso e vital como nas semanas após a morte de
Alex, intacto após todos estes anos.
– A culpa é tua – repete mais uma vez. – E recuso-me a pedir desculpa.
E, com isto, sinto uma rotura na pele – aquelas camadas, tão esticadas e finas ao longo de tantos
anos, cedem, e jorra tudo. O ressentimento, a raiva, a solidão, a ansiedade, o medo... tudo explode
de mim como água de uma conduta rebentada. Naquele momento, sei que não posso continuar assim.
Acabou-se.
Encosto-me à porta, exausto. E, quando falo, é em tom estranhamente calmo e nivelado, como se
estivesse a ler a previsão do tempo.
– Não – digo. (Boas condições meteorológicas na baía da Biscaia.) – Não, mãe, não podes pôr
as culpas em cima de mim. Não sou responsável pelas tuas ações. Não sou responsável por aquilo
que sentes nem por aquilo que pensas. Vem tudo de ti. Nada disso é meu. Tu escolheste ler as
minhas cartas. Escolheste perseguir a Sarah. Escolheste transformar aquilo que me aconteceu nestes
últimos meses... e, para que conste, tem sido um inferno... numa espécie de grande traição. Fizeste
isso tudo sozinha; eu não fiz nada.
Ela começa a chorar a sério, embora ainda pareça furiosa.
– Não sou responsável pelos teus problemas, mãe. Nem a Sarah. Fiz o que podia por ti... dei o
meu melhor, sempre... enquanto tu invadias o último resto de privacidade que eu julgava ter.
Ela abana a cabeça.
– Sim, conheci a Sarah, e sim, apaixonei-me por ela. Mas cortei todas as relações com ela no
minuto... no segundo... em que descobri quem ela era. E tudo o que fiz desde então fiz a pensar no
que era melhor para ti. Não para mim, para ti. E, mesmo assim, culpas-me?
Vejo-a pensar na resposta. Começa a entrar em pânico. Não que tenha ouvido o que eu lhe disse,
ou pensado nisso, ou (Deus nos livre) percebido que talvez eu tenha alguma razão; é mais porque
está habituada a que, neste ponto das nossas discussões, eu já tenha cedido, e começa a aperceber-
se de que isso não vai acontecer desta vez.
Assim, faz aquilo que eu sabia que acabaria por fazer: coloca-se no papel da vítima.
– Está bem – diz, e as lágrimas correm-lhe pelo rosto. – Está bem, Eddie, a culpa é minha. Eu é
que tenho culpa de ter esta vida horrível e miserável, sempre fechada em casa, de ter de tomar
aqueles medicamentos todos. A culpa é toda minha.
Observa-me o rosto, mas eu continuo impassível.
– Pensa o que quiseres, Eddie, mas não fazes ideia de como a minha vida é difícil.
Uma vez que cuido dela há dezanove anos, parece-me que está a ser injusta.
Somos como dois peões num tabuleiro de xadrez. Ela quebra primeiro o contacto visual, com
certeza para que eu me sinta como o agressor. Baixa os olhos para a bancada com ar infeliz, as
lágrimas a pingarem para as marcas de serra na madeira.
– Não me deixes, Eddie – diz, por fim, como eu sabia que diria. – Lamento muito ter feito o que
fiz. Mas fiquei arrasada por causa de ti e... e dela. Isso destruiu-me.
Fecho os olhos.
– Não me deixes, Eddie – repete.
Contorno a bancada e abraço-a. Um ser humano frágil e pequeno, tão fácil de esmagar. Abraço-a,
tenso, e penso na minha ex-namorada Gemma. Este era o momento que ela nunca conseguira
realmente compreender. O momento em que, mesmo depois de a minha mãe me levar ao limite das
minhas capacidades, continuava a ser meu dever confortá-la, dizer-lhe que estava tudo bem. A
capitulação era totalmente inexplicável para Gemma. Mas suponho que, tal como a maioria das
pessoas, ela nunca viveu a experiência de ser responsável pelo bem-estar mental de outra pessoa.
Nunca perdeu uma irmã e depois, quase, a mãe.
Desta vez, contudo, é diferente. Estou a abraçar a minha mãe porque tenho de o fazer, mas dentro
de mim o cenário já mudou.

Está a chover quando a ponho no Land Rover e a vou levar a casa. O céu está coberto de nuvens
cinzentas e gordas, que colidem umas nas outras como pensamentos irados. Peço silenciosamente
desculpa a Sarah. Onde quer que ela esteja. Não te desejo a morte, digo-lhe. Só te desejo
felicidade.
Na casa da minha mãe, aumento o aquecimento e faço-lhe uma torrada antes de ela se deitar. Dou-
lhe um comprimido para dormir e seguro-lhe na mão até adormecer. Nunca tive a experiência de
ver os meus filhos a dormir, mas imagino que será uma sensação semelhante. Ela parece ao mesmo
tempo perdida e tranquila, enroscada sobre a minha mão como se fosse uma boia de salvação, a
respiração quase inaudível.
Depois, saio e telefono a Derek. Deixo-lhe uma mensagem no gravador a dizer, em tom muito
calmo, que atingi o limite e preciso de ajuda.
Depois de voltar para casa, vejo três episódios de uma série qualquer da Netflix – exausto mas
incapaz de dormir – e passo o resto da noite quase toda sentado no meu banco de jardim, enrolado
no edredão, a conversar com Steve, o esquilo.
CAPÍTULO 45

Dezembro – três meses depois

Meu amor,

Ho, ho, ho! Feliz Natal.


Vou ficar contente quando este ano chegar ao fim.
Esta é a primeira carta que te escrevo em mais de três meses. Suponho que tenho tido muito
em que pensar. Também tenho andado ocupado a tentar mudar a mãe sem que ela dê por isso. É
o plano do Derek: libertar-me dissimuladamente. Ele tem sido excecional, claro.
Marcou uma reunião com a Frances, a vigária que visita a mãe há anos. Ela disse que há
algumas pessoas nas imediações que gostam de visitar os paroquianos mais isolados. O Derek
disse que a ideia era criar uma amizade entre a mãe e um voluntário – por mais que isso
pudesse demorar –, de modo que, com o tempo, ela confiasse o suficiente nessa pessoa para
querer ir com ela às compras, ou a uma consulta de vez em quando. Outra pessoa, além de mim,
a quem pudesse ligar, alguém que abrisse o seu mundo um bocadinho.
Assim, um senhor chamado Felix começou a ir visitá-la com a Frances, uma vez por semana.
O Felix combateu na Guerra do Golfo. Perdeu um braço por lá. Depois, a mulher deixou-o,
porque não conseguia lidar com o problema dele, e mais tarde perdeu o filho também no
Iraque, em 2006. Portanto, o Felix tem conhecimento em primeira mão de perda e sofrimento. E
no entanto, Ouriço-Cacheiro, sabes que mais? É um homem tão alegre! Só estive com ele duas
vezes, mas pareceu-me um indivíduo muito positivo. É curioso ouvi-los falar, a ele e à mãe: a
reação dela a praticamente tudo é negativa, enquanto a dele é infalivelmente positiva. Às vezes,
quando ele está a falar, parece que a oiço pensar: Mas este homem será completamente doido?
«Dê-lhe mais algumas semanas», disse-me o Derek no outro dia. «Parece-me que não deve
faltar muito para ela estar disposta a sair de casa com ele.»
O Derek até a persuadiu a passar o Natal com a irmã, para me dar descanso.
Portanto... aos poucos, estou a ganhar um bocadinho mais de espaço. Um bocadinho mais de
oxigénio. De vez em quando, tenho vislumbres de mim próprio, de como eu era antes de tudo
isto. De como fui durante aquela semana com a Sarah. De como era quando era novo. E é uma
boa sensação.
Enfim, aqui estou eu, no dia de Natal, no quarto de hóspedes da casa nova do Alan, em
Bisley. São 05h45m e a Lily já está acordada, a bater à porta do quarto do Alan e da Gia. Perdi
a cabeça e comprei-lhe uma montanha de presentes. O Alan diz que sou um maldito egoísta e
que o vou deixar mal visto.
Para já, contudo, estou a olhar pela janela ainda sem cortinas para um céu cor de chumbo e a
pensar em ti. Minha querida, minha preciosa Alex.
Não faço ideia se estás por aí, algures. Se tens estado atrás do meu ombro estes anos todos, a
ler as palavras que te escrevi, ou se não és mais do que uma vibração de energia gasta. Seja
como for, espero que saibas o quanto foste amada, o quanto sentimos a tua falta.
Sem ti, ou sem estas cartas, não sei se teria sobrevivido. Na morte foste como em vida:
bondosa, colorida, calorosa, uma amiga. Senti-te, através destas páginas lilases. A tua
vitalidade e palermice, a tua curiosidade, a tua bondade, a tua inocência, a tua doçura. Fizeste-
me continuar a pôr um pé à frente do outro. Ajudaste-me a respirar quando a vida me
estrangulava.
Mas chegou a altura de continuar sozinho, como a Jeanne diz. De caminhar pelo meu próprio
pé. Assim, meu querido Ouriço-Cacheiro, esta será a nossa última carta.
Eu vou ficar bem. A Jeanne tem a certeza disso e, na verdade, eu também. Tenho de ficar;
vejo todos os dias, na nossa mãe, como seria a alternativa.
Até vou ceder à insistência do Alan e começar a sair com outras pessoas. Não quero, mas
aceito que tenho de pelo menos dar uma oportunidade a mim próprio de amar outra pessoa.
Porque a questão é esta: a mãe não consegue mudar, mas eu consigo. E vou mudar. Vou passar
o inverno, acabar as minhas encomendas e aceitar outras. Vou começar a dar workshops no
verão para os jovens. Vou instalar o raio do Tinder. E vou pôr-me em forma, e treinar mais o
trabalho com pedra, e ser um padrinho estupendo para a Lily. E vou fazer tudo isto com um
sorriso no rosto, porque é assim que as pessoas pensam que sou, e é assim que quero voltar a
ser.
Esta é a minha promessa, Ouriço-Cacheiro. A ti e a mim próprio.
Nunca te esquecerei, Alex Hayley Wallace. Nem por um dia. Vou amar-te até ao fim da vida.
Sentirei sempre a tua falta e serei sempre o teu irmão mais velho.
Obrigado por aí estares. Na vida e na morte.
Obrigado e adeus, meu querido Ouriço-Cacheiro.

Beijos, Eu
CAPÍTULO 46

Princípio de março – três meses depois

N o dia em que a minha vida muda para sempre, estou a preparar-me para o meu primeiro
encontro marcado pelo Tinder. Sinto-me estúpido e nervoso. (Não ajuda nada que Alan esteja
a enviar-me uma mensagem por hora, à hora certa, para se certificar de que não volto atrás.) Ela
chama-se Heather, tem um cabelo bonito e parece inteligente e engraçada. Mesmo assim, não quero
ir. Na verdade, dei por mim a pensar se poderia pregar um prego na mão para ter a desculpa de
passar a tarde nas Urgências.
Não confessei estes pensamentos a Alan.
É também o sexagésimo sétimo aniversário da minha mãe, por isso trouxe-a a Stroud para
almoçar. Estamos no Withy’s Yard, que sempre foi um sítio seguro para ela – talvez porque fica
escondido num velho beco de pedra, quase invisível para os transeuntes –, e hoje está muito
faladora. Felix levou-a às compras ontem, e parece que ele é melhor nisso do que eu. O único
defeito é que não consegue carregar tantos sacos, porque só tem um braço.
Francamente, oiço só com metade da minha atenção, porque estou a imaginar os silêncios
terríveis e os risos estranhamente agudos desta noite... por isso demoro algum tempo a perceber que
a minha mãe se calou.
Levanto a cabeça. Ela está paralisada, a olhar para a direita, com a colher de sopa suspensa a
poucos centímetros da tigela. Sigo o seu olhar.
Ao princípio, não os reconheço. Parecem-me apenas duas pessoas de meia-idade a comer
saladas. Ela veste uma camisa aos quadrados e está a falar ao telemóvel. Ele tem um casaco de
bombazina e olha para ela. Tal como a minha mãe, ambos parecem ter parado de comer. Sinto uma
vaga pontada de reconhecimento ao fitar o perfil do homem, mas nada mais.
Porém, assim que olho novamente para a minha mãe, sei exatamente quem são. As únicas pessoas
capazes de ter este efeito nela. Largou agora a colher dentro da sopa e o cabo está a desaparecer
lentamente, como a proa de um navio naufragado.
Olho outra vez para os pais de Sarah Harrington e reconheço-os. Claro que sim; vinham muitas
vezes buscar Alex para ir lá a casa, ou deixar a pequena Hannah para passar a tarde com ela.
Lembro-me de serem sempre simpáticos. De tal forma que, às vezes, eu também queria ir brincar
em Frampton Mansell. Pareciam tão sólidos juntos; uma família como deve ser, enquanto a minha
era composta por um pai a centenas de quilómetros, com um bebé novo a caminho, e uma mãe
incapacitada pela amargura e pela depressão.
Ocorrem-me dois pensamentos distintos: primeiro, o que vou fazer com a minha mãe? Ela não
pode ficar aqui, a duas mesas de Michael e Patsy Harrington. E, segundo, se não foi Patsy nem
Michael Harrington que morreu o ano passado, quem foi?
Oiço distintamente a mulher a dizer: «Vamos a caminho.» E depois levantam-se os dois e saem,
sem parar sequer para endireitar as cadeiras ou pedir desculpa à senhora atrás do balcão. A mãe de
Sarah veste o casaco enquanto se dirigem apressadamente à estrada principal. A minha mãe e eu
ficamos sentados alguns instantes em silêncio, no meio do zumbido de conversas e do tinido de
talheres. Só quando a máquina de café começa a trabalhar é que olhamos um para o outro.

Acabamos por ir a uma loja em Cirencester Road, onde compramos sopa para levar e comer em
casa da minha mãe; depois de os Harrington saírem, ela disse que o seu almoço de aniversário
estava estragado e recusou-se a comer mais.
Até agora, a nossa conversa sobre eles resumiu-se ao seguinte:
Eu:
– Estás bem?
Ela:
– Não quero falar sobre isso.
Não insisti. Mas não consigo pensar noutra coisa. Os pais de Sarah. As pessoas que a fizeram.
Para onde iriam com tanta pressa? O que se passaria? Não me pareceu um telefonema de boas
notícias.
Sarah é parecida com a mãe. Na verdade, também é parecida com o pai. Podia ter ficado a olhar
para a cara deles durante horas, a esquadrinhar-lhes os rostos em busca de traços dela.
Quando chegamos a casa da minha mãe, aqueço a sopa e ponho pão a tostar. Cheira muito bem,
mas sei que ela não vai comer. Parece zangada comigo, embora eu não saiba bem porquê. Estaria à
espera de que eu fosse bater aos pais de Sarah por a terem criado? Ali, na cozinha da minha mãe,
sinto-me oco e inquieto, e pergunto-me mais uma vez quem terá morrido em agosto. Ao fundo do
quintal, debaixo da ameixieira, há uma pequena mancha dourada de celidónias que brotam
corajosamente entre a relva. Lembro-me de ver as flores silvestres no caixão e sou obrigado a
ralhar severamente comigo próprio pela direção que os meus pensamentos estão a tomar.
Tal como previ, a minha mãe não quer comer.
– Estragaram-me o dia – repete. – Não tenho apetite.
– Está bem – digo. – Bom, eu vou comer. Podes voltar a aquecer a tua mais tarde, se te apetecer.
– Apanhava uma indigestão. Não se pode aquecer comida duas vezes.
Abro a boca para dizer «Mãe, é só sopa de tomate!», mas desisto. Não vale a pena.
Assim, ao som solitário da minha colher na tigela, como a sopa, molhando nela grandes nacos de
pão quente com manteiga. Acabo, lavo a loiça, dou o presente de aniversário à minha mãe, que ela
diz que abrirá mais tarde, e por fim pego no casaco.
– Posso ficar mais um bocado a conversar, se quiseres – digo. A minha mãe está encolhida no
canto do sofá como um gato.
– Eu estou bem – diz, secamente. – Obrigada por teres vindo.
Vou dar-lhe um beijo.
– Adeus, mãe. Feliz aniversário. – Faço uma pausa à porta. – Amo-te.
Estou quase a sair quando ela me chama.
– Eddie?
– Sim?
Volto a entrar e este é o momento que mudará tudo, embora eu ainda não o saiba.
– Há uma coisa que devias saber – diz ela, sem olhar para mim.
Sento-me, desconfiado, na poltrona em frente. Por cima do ombro dela está uma fotografia de
Alex no baloiço, pouco depois de ter começado a escola primária. Está a gritar de alegria enquanto
voa na direção do fotógrafo. Totalmente extasiada. Ao longo dos anos, pensei várias vezes se a
minha mãe não terá engravidado de propósito para tentar impedir que o nosso pai a deixasse – a
relação com Victoria «Merdosa», ao que parece, já durava há bastante tempo – mas sempre que
olho para aquela fotografia lembro-me de que não importa. Alex não trouxe senão alegria às nossas
vidas, com pai ou sem ele.
– Ver os Harrington estragou-me o dia – repete a minha mãe depois de uma pausa. Morde uma
unha.
– Eu sei – respondo, resignado. – Já me disseste.
Ela olha em volta e passa a mão sobre a mesinha, para ver se tem pó.
– Não sei como conseguem perdoar à filha...
Levanto-me, preparado para me ir embora, mas algo no rosto dela faz com que me sente no braço
da poltrona. Ela sabe qualquer coisa.
– Mãe, o que é que me queres dizer?
– A Hannah, pelo menos, é boa rapariga – diz ela, ignorando-me. – Ainda me visita, sabes? Ainda
se importa, apesar de os pais não quererem saber. – Faz uma pausa, abrindo e fechando os dedos. –
Se bem que, para dizer a verdade, não a veja desde antes do Natal. Tivemos uma pequena
discussão.
– Sobre o quê?
Ela continua a olhar para todo o lado menos para mim.
– Sobre a bruxa da irmã dela.
– A Sarah? – inclino-me para a frente e olho para ela. – O que é que a Hannah disse sobre a
Sarah?
A minha mãe encolhe os ombros. Tem o rosto contraído e, de súbito, sinto medo do que ela está a
esconder.
– Mãe? – Tenho o coração aos saltos. Isto tem qualquer coisa a ver com o facto de os pais de
Sarah terem saído a correr do restaurante hoje. – Mãe, por favor, diz-me.
Ela suspira. Endireita as pernas e senta-se numa posição formal, como se estivesse a ser
entrevistada, com as mãos cruzadas no colo.
– A Hannah passou por cá pouco antes do Natal. Disse-me que tinha uma notícia que eu talvez
achasse difícil de ouvir. Bom, não estava enganada.
Para, como se não conseguisse encontrar as palavras, e começo a ficar agoniado. O que
aconteceu à Sarah? Oh, meu Deus, o que aconteceu à Sarah? Abro e fecho as mãos, mas não sei o
que elas tentam agarrar.
– O que é que ela te disse? – pressiono.
A minha mãe não responde.
– Mãe, é muito importante que me digas.
Ela contrai o maxilar. Não me lembro da última vez que estive tão nervoso. Por fim, diz:
– A Sarah voltou para Inglaterra. Regressou em agosto do ano passado.
O sangue regressa-me ao rosto e encosto-me para trás. Pensei que ela me fosse dizer... pensei que
fosse dizer...
Nunca deixei de me perguntar de quem seria aquele funeral. Que vida estaria a ser chorada e
recordada com aquelas lindas flores silvestres. Fiz os possíveis por pôr de lado as teorias
paranoicas, mas essas dúvidas corrosivas nunca desapareceram. E se ela morreu? E se era a Sarah
que ia no carro funerário?
Sarah está viva, está bem. Está em Inglaterra.
Demoro algum tempo a compreender todas as implicações.
– Espera – digo, endireitando-me. – Disseste que ela voltou para cá? Para Inglaterra?
A minha mãe salta do sofá com uma energia que raramente lhe vejo. Para à minha frente, tensa de
fúria.
– Como podes ficar tão contente? – sussurra. – Olha para a tua cara, Eddie. Estás doido? Ela...
– Onde é que ela está? – interrompo. – Onde é que a Sarah está a viver?
A minha mãe abana a cabeça e dirige-se à janela.
– Com os pais, tanto quanto sei – murmura. Após um momento, vira-se e volta para o sofá, onde
olha para a fotografia de Alex. Suspeito de que o faz para eu ver. Olha para a tua pobre irmã.
– A viver com os pais, como uma parasita. Sem um tostão e... ao que parece... grávida. – Leva a
mão à boca, como se não quisesse ter dito aquilo. Após uma pausa, senta-se novamente, fecha os
olhos e encosta-se no sofá. Estremece. – Quer dizer, se com a idade dela ainda não endireitou a
vida, que esperança lhe resta?
Olho para ela.
– Grávida? A Sarah está grávida?
Sinto uma dor tão aguda que é como se ela me tivesse cravado um punhal no peito.
A minha mãe não responde.
– Mãe!
Ela faz um breve aceno afirmativo com a cabeça, com repugnância palpável.
– Grávida – confirma.
– Não – digo, embora a palavra não me chegue bem à boca.
Não. Não, não, não.
Sarah não pode ter um filho de outro homem. A imagem da minha mãe fica desfocada e sinto a
cabeça a explodir de infelicidade, cem tonalidades diferentes, a espalhar-se em todas as direções.
Mas, depois, a montanha-russa desce, mais uma vez, e surge outra sensação: esperança. A
velocidade a que estes sentimentos se sucedem é estonteante. Mas a esperança fica – dois, três,
quatro, cinco segundos... Não desaparece. Pode ser meu, estou a pensar. Pode ser meu.
– Ela voltou porque o avô morreu – diz a minha mãe, secamente. – O funeral que vimos
provavelmente era o dele.
Fico aliviado por ter sido o avô dela, mas estou demasiado chocado para me sentir culpado por
esse pensamento. Sarah está grávida, e o filho pode ser meu.
– Que mais sabes, mãe? Por favor, diz-me.
Ela pega na tigela de sopa ainda intacta e leva-a para a cozinha. Sigo-a como um cão fiel.
– Mãe...
– Foi a Hannah que ligou à irmã para lhe dar a má notícia – diz, por fim. A sua voz é quase um
murmúrio. – Pelos vistos, o choque de ouvir a voz da Hannah ao telefone quase a matou.
Atravessou a estrada sem olhar, quase foi atropelada por um camião. Estúpida. Mas... – pousa a
tigela de sopa e olha em volta, para a cozinha imaculada – ...para o bem ou para o mal, o camião
guinou e não lhe acertou.
A minha mãe cala-se. Está a ficar agitada; tem a respiração acelerada e não consegue parar
quieta. E eu também não. Sarah está aqui, em Inglaterra, e grávida. Sigo a minha mãe novamente até
à sala, onde a respiração dela piora.
Com um distanciamento mecânico, ajudo-a a fazer um dos exercícios respiratórios que Derek lhe
ensinou. Dou-lhe instruções para expirar devagar, e pergunto-me por que motivo estará a falar
agora, depois de ter guardado este segredo durante tantos meses. Não é do interesse dela dizer-me
que Sarah está de volta, muito menos que está grávida. A minha mãe odeia a ideia de eu sequer
pensar em Sarah Harrington.
Acho que isto tem alguma coisa a ver com os pais de Sarah. Tem alguma coisa a ver com o facto
de eles terem saído do restaurante à pressa. Olho desesperadamente para a minha mãe enquanto ela
tenta recuperar o controlo da respiração. Diz-me!, quero gritar. Diz-me tudo! Em vez disso,
pergunto gentilmente:
– E sabes mais alguma coisa? Como ela está? Como têm corrido as coisas?
– Parece que tem andado muito deprimida – diz a minha mãe, após algum tempo. – Recusou-se a
dizer-lhes quem era o pai do bebé.
A esperança começa a florescer.
– O funeral foi a primeira vez que viu a Hannah em quase vinte anos. A Hannah disse-me que ela
e a irmã... concordaram que já tinham perdido o suficiente. Decidiram fazer as pazes.
A minha mãe parece enojada pelas palavras que lhe saem da boca, e percebo agora o motivo da
sua discussão com Hannah. Durante anos, conseguiu mantê-la do seu lado: isto deve ter-lhe
parecido uma deserção terrível.
– Então a Sarah tem estado este tempo todo a viver em Frampton Mansell? Há seis meses?
Ela assente com a cabeça e olha rapidamente para mim.
– Presumo que não a viste, então. – Acho que é bastante claro pela minha cara que não a vi.
– Tens a certeza absoluta de que ela está grávida, mãe? – As palavras ficam-me presas numa
parte seca da garganta.
Ela olha para mim e uma expressão de desapontamento ensombra-lhe o rosto. Percebe o que isto
significa para mim.
– Tenho a certeza.
– Quando é que nasce? O bebé?
– Não sei. – Torce as mãos. Vejo que está a mentir.
O que quer que seja que a levou a contar-me tudo isto, está a travar uma guerra terrível dentro
dela. Começa a respirar profundamente outra vez.
– Não fazes mesmo ideia de quando nasce? – insisto. Não aguento. – Nem uma vaga ideia? Vou
acabar por descobrir, de qualquer maneira – acrescento. – Mais vale dizeres-me já.
A minha mãe fecha os olhos.
– Vinte e sete de fevereiro. Há seis dias – acaba por dizer. – O que significa que o bebé deve ter
sido concebido em junho do ano passado. – Faz uma careta de desagrado quando as palavras lhe
saem dos lábios.
Silêncio absoluto.
– E ninguém sabe quem é o pai?
– Um desconhecido qualquer, imagino – diz a minha mãe em tom afetado, mas não acredita no que
está a dizer. Sabe perfeitamente o que significam estas datas.
Estou a tremer quando me agacho em frente dela, mas as minhas pernas não estão a funcionar
bem, por isso acabo por tombar para o lado e ficar sentado no chão, à frente dela, como uma
criança que vai ouvir uma história.
– Estás a dizer-me isto porque achas que é meu? Mãe? É isso que achas?
Ela abre os olhos, que se enchem de lágrimas.
– Não posso admitir que a Sarah Harrington tenha o meu neto – diz, baixinho. – Eddie, não
aguento uma coisa dessas... Mas... – Tem a voz a tremer. – Mas não consigo deixar de pensar que o
bebé pode já ter nascido, e que pode ser...
Olho para ela, mas não a estou a ver. Sarah. O meu bebé. Tudo ondula como um milharal ao
vento.
Tento organizar os pensamentos.
– Porque achas que os pais dela saíram tão depressa do restaurante? Achas que aconteceu alguma
coisa má? – Tenho de me apoiar no braço para ficar direito.
Algures à minha frente ela diz:
– Não sei. Mas fiquei extremamente preocupada desde que isso aconteceu. Foi por isso que
decidi contar-te.
Volta a fazer o exercício de respiração, pela terceira vez.
Pouso-lhe a mão trémula no joelho enquanto ela inspira e expira. Tenho de encontrar Sarah.
– Mãe... – digo. – Ajuda-me.
Após uma pausa interminável, ela respira fundo mais uma vez e aponta com a cabeça para o
telefone.
– O número dos Harrington ainda deve estar ali. Na agenda.
Levanto-me e atravesso a sala, consciente de como este gesto é enorme para ela, do que lhe deve
ter custado. Ainda é uma pessoa boa, a minha mãe. Ainda é capaz de amar, por mais triste que a sua
vida se tenha tornado.
Há muitos anos que não me sentia assim em relação a ela.
O número ainda lá está. Abaixo de «Nigel Harlyn», um contabilista que era amigo do meu pai, e
«Harris Canalizações de Cirencester». Apontado por uma mãe atarefada de outros tempos: Patsy
Harrington – Mãe da Hannah amiga da Alex – 01285...
Começo a marcar o número no meu telemóvel, mas este – claro – já o conhece. Sarah deu-mo em
junho, quando o bebé não devia ser mais do que algumas células.
– Mãe – digo, cuidadosamente. – Tenho de ir. Está bem? Tenho de saber o que aconteceu. Se
precisares de alguém, tens o número das Urgências, e o número do Derek e do Felix. Mas não vai
ser preciso. Vais ficar bem. Tenho de ir. Tenho de... – Não consigo dizer mais nada. Dou-lhe um
beijo na cabeça e saio, com as pernas bambas, em direção ao carro.
E a minha mãe não diz nada. Sabe que pode ser o seu neto, e isso é maior do que tudo o resto.
Não o consegue dizer – preferia morrer a admitir tal coisa – mas na verdade quer que eu vá saber.

– Espero bem que não estejas a ligar para dizer que vais desistir – diz Alan, assim que atende o
telefone. – Por amor de Deus, Ed...
– A Sarah teve um bebé – interrompo. – Ou está prestes a ter. E tenho a certeza de que é meu.
Tentei ligar para os pais dela mas não está ninguém em casa. Preciso do número de telemóvel da
Hannah.
Uma longa pausa.
– O quê? – pergunta ele, por fim. Está a comer qualquer coisa, como sempre. Alan trabalha num
escritório de arquitetos. Os colegas ficam sempre estupefactos com a quantidade de provisões que
ele tem na secretária, «pelo sim, pelo não». – Estás a falar a sério?
– Sim.
– Uau! – exclama, depois de pensar no assunto por um segundo.
– Preciso do número da Hannah.
– Sabes muito bem que não te posso dar informações de um cliente. – Alan fez recentemente os
planos para uma divisão da casa de Hannah em Bisley. Quando me contou, concordámos que não
falaríamos nesse assunto, mas o acordo estava agora suspenso.
– A Gia e a Hannah às vezes iam beber café depois do ioga – digo rapidamente. Isso há uns sete
anos. – A Gia deve ter o número dela. Só estarás a poupar tempo se o procurares no computador,
que está mesmo à tua frente, em vez de ligares para a tua mulher. Alan, a sério, dá-me o número.
Alan começa a murmurar, como se isso o fizesse passar despercebido num escritório silencioso.
– Está bem. Mas por favor manda também uma mensagem à Gia a pedi-lo, para que eu possa
dizer, se me perguntarem: «Não, foi a minha mulher que lhe deu o número.»
Estou quase aos gritos.
– Dá-me o raio do número, Alan!
Ele dá.
– Calculo que vais cancelar o encontro de logo – diz, com um suspiro.

O telemóvel de Hannah está desligado. A voz dela no gravador é parecida com a de Sarah,
apenas mais despachada e profissional. Provavelmente será assim que Sarah soa quando está a
falar numa conferência, ou na televisão.
Um filho. O meu filho. Tenho a cabeça a andar à roda outra vez. O céu é de um branco sujo. As
mãos tremem-me.
Olho para o relógio: 15h45m. Ocorre-me que os filhos de Hannah já devem ter saído da escola. E
que, com um pouco de sorte, ela ou o marido os terão ido buscar. Os sentimentos sucedem-se tão
depressa que mal os consigo identificar. Só sei que tenho de a encontrar.
Ligo o Land Rover e dirijo-me a Bisley. Tento não pensar na minha mãe, sozinha em casa, a
debater-se com o que, para ela, deve parecer um pesadelo. Mas depois penso: Ela já sabe disto há
três meses. Três meses!
Acabou por me contar, recordo a mim próprio; tenho de o fazer. O ódio por Sarah impediu a
minha mãe de sentir a maior dor – a dor mais insuportável – durante muito, muito tempo. Tem sido o
seu melhor remédio. Aquele aceno na direção do telefone, essa bênção relutante, é um gesto que
não posso minimizar.
A paisagem de inverno passa por mim, molhada e desoladora. Tento imaginar Hannah a
encontrar-se com a irmã pela primeira vez, depois de a minha mãe passar tantos anos a sussurrar-
lhe o seu veneno ao ouvido. E imagino Sarah, igualmente aterrorizada e esperançosa. Desesperada
por dizer a coisa certa. Por reconquistar Hannah.
Não admira que ela não tenha dito a ninguém quem é o pai. Seria como lançar uma granada para o
seio desta família em recuperação.
15h51m.
– Só espero que a Hannah não tenha uma ama – murmuro, ao chegar aos arredores de Bisley. –
Espero que seja ela ou o marido a abrir a porta.
Estou a conduzir demasiado depressa e, para minha surpresa, não quero saber. Os últimos meses
de estoicismo, de Fazer a Coisa Certa, estão agora reduzidos à loucura, ao masoquismo cego que
sempre foram. Há menos de quinze minutos que sei que Sarah vai ter o meu filho e já me esqueci
completamente de tudo o que tenho andado a dizer a mim próprio para me manter afastado dela.
Tudo o que me importa agora é vê-la.
Um bebé. Sarah vai ter o meu bebé.

Reconheço o marido de Hannah assim que ele abre a porta, daquela noite em que dei o murro na
mesa do pub.
– Fedorento! – grita ele, quando um labrador preto sai a correr de casa, com uma manta
esfarrapada na boca. O cão salta para cima de mim, com a cauda a girar de alegria. – Fedorento!
Para com isso!
Agarra na coleira do cão e esforça-se por o segurar.
– Fedorento? – pergunto. Há muitas horas que nada me fazia sorrir.
– Cometemos o erro de deixar que fossem os miúdos a escolher o nome. – O homem sorri com ar
embaraçado. – Em que posso ajudar?
O Fedorento tenta novamente saltar para mim e faço-lhe festas com uma mão, enquanto tento
explicar o impossível a um perfeito desconhecido.
– Sim, desculpe. Chamo-me Eddie Wallace. Conheço a Hannah há muitos anos. Ela...
– Oh, sim – interrompe ele. – Sim, eu sei quem é. O irmão mais velho da amiga de infância da
Hannah... – Cala-se, atrapalhado, mas não sei se é por se ter esquecido do nome de Alex ou por não
querer mencionar a minha irmã morta.
– A Alex – ajudo, porque não tenho tempo para pausas embaraçosas.
Ele acena afirmativamente. Dentro de casa, oiço um baque surdo e o som de crianças aos gritos.
Ele olha nervosamente por cima do ombro mas parece ficar tranquilizado, quando uma das vozes
grita qualquer coisa como «prepara-te para morrer pela espada!».
Olha de novo para mim e sinto-me enlouquecer de desespero. Preciso de informações, já.
O Fedorento fareja-me a braguilha.
– Hum... isto pode parecer estranho, mas... mas penso que a irmã da Hannah deve ter tido
recentemente um bebé, ou estar prestes a tê-lo. Quer dizer, suponho que até pode estar a tê-lo neste
momento...
O homem sorri.
– Sim! A Hannah está no hospital com ela. A pobre Sarah está em trabalho de parto há dois dias.
É amigo dela? – Depois, faz uma pausa e tenta conciliar o facto de eu ser Eddie Wallace com a
ideia de eu poder ser amigo de Sarah. A confusão transforma-se em alarme quando se apercebe de
que pode ter acabado de me dizer algo que eu não devia saber.
Por um momento não consigo dizer nada, por isso fico ali parado, a fazer festas ao Fedorento. O
cão sorri-me e, apesar do turbilhão emocional em que me encontro, sorrio-lhe também. Depois,
decido ser franco com o marido de Hannah. Não tenho tempo para inventar desculpas em que ele
pode nem sequer acreditar.
– Não propriamente um amigo... mas o pai do bebé.
Silêncio.
O homem olha para mim.
– Desculpe?
– Eu próprio não fazia ideia até há cerca de meia hora... – Ele franze a testa. Para ele, é
inconcebível que eu possa ser o pai do bebé de Sarah. Engulo em seco. – É uma longa história, mas
eu não estaria a bater-lhe à porta se não tivesse a certeza de que o bebé é meu.
Silêncio.
– Oiça... sou apenas um tipo decente que acabou de descobrir que é pai, ou que está prestes a ser
pai, e não vou impor a minha presença à Sarah contra a vontade dela, nem nada do género, mas... –
Calo-me abruptamente porque, para meu horror, estou a ficar com a voz embargada. – Só quero
estar ao lado dela, se ela quiser. Se puder.
– Certo – diz ele, por fim.
O Fedorento senta-se aos meus pés, a olhar para mim. Percebo que sou uma desilusão.
– Sem querer também pressioná-lo, a verdade é que só quero ir para lá e ajudar, se puder, ou
dizer-lhe que a amo, ou... não sei. Portanto, será que pode dizer-me se ela está em Stroud ou em
Gloucester? Ou noutro lado qualquer?
O homem cruza os braços.
– Tenho de falar com a Hannah primeiro – diz, por fim. – Espero que compreenda.
Claro que compreendo. E também quero dar-lhe um murro no nariz.
Respiro fundo e assinto com a cabeça.
– Claro. Mas o telemóvel da Hannah está desligado. Já tentei falar com ela.
Ele assente.
– Sim, é o mais certo. – Mas insiste em ligar-lhe, afastando-se no corredor para que eu não o
consiga ouvir quando ele disser «Não vais acreditar nisto...».
Instantes depois, volta.
– Não atende – diz. Gira o telemóvel na mão, sem saber o que fazer. É pai, e compreende; vejo
que me quer ajudar. Mas isto não é uma situação normal.
Começo a entrar em pânico. É possível que ele se recuse a dizer-me.
– Eu podia simplesmente aparecer em Stroud, ou em Gloucester... Mas pode dizer-me pelo menos
como o trabalho de parto está a correr? – pergunto. Nesta altura, aceito qualquer coisa. Qualquer
migalha que ele esteja disposto a atirar-me. O Fedorento suspira e encosta a grande cabeça
quadrada à minha perna.
O homem faz uma pausa.
– Tudo o que sei é que já dura há dois dias. E que a tiraram da enfermaria das parteiras e a
transferiram para a enfermaria dos médicos.
– O que é que isso significa?
– Connosco, no parto da Elsa, aconteceu porque as coisas não estavam a correr lá muito bem –
admite ele. – Mas pode ser qualquer coisa... provavelmente está apenas cansada e quis qualquer
coisa mais forte para as dores. Se fosse a si, não me preocupava muito.
– Por favor, diga-me onde está a Sarah. – O meu tom de voz é demasiado elevado mas acho que
pareço mais desesperado do que ameaçador. – Por favor. Eu sou um tipo normal. Não sou um
psicopata. Só quero estar lá.
Ele suspira, derrotado.
– Está bem, está bem. Estão no Gloucester Royal. Acho que a maternidade se chama Centro
Feminino. Mas esteja preparado, porque não o vão deixar entrar, a menos que a Sarah dê
autorização. Eu vou mandar uma mensagem à Hannah para a avisar. Não devia estar a fazer isto,
mas... bom, ponho-me no seu lugar.
Respiro fundo de alívio e procuro instintivamente com a mão a cabeça preta do Fedorento. É
reconfortante, quente e – sim – provavelmente fedorenta.
– Obrigado – agradeço baixinho. – Muito obrigado.
– Papá? – Uma voz de criança vinda de cima. Atrás dele, vejo uma cabeça aparecer, de pernas
para o ar, ao cimo das escadas, com o cabelo castanho pendurado. – Quem é esse senhor?
– Boa sorte – diz ele, ignorando a filha. A sobrinha de Sarah, Elsa, que ela julgava que nunca
conheceria. Ele inclina-se e aperta-me a mão. – Sou o Hamish.
– Eddie – digo, apesar de provavelmente já lhe ter dito. – Nem imagina como lhe estou grato.
E parto a toda a velocidade.
CAPÍTULO 47

Aviagem
mim.
é uma das meias horas mais longas da minha vida. Quando chego à A417, estou fora de

A Alex havia de adorar ter um sobrinho ou sobrinha, penso, enquanto espero numa rotunda. (E:
Como é possível que o semáforo ainda esteja vermelho?) Principalmente, adoraria que o sobrinho
fosse familiar de Hannah.
E eu? Claro que quero um filho. Há anos que sei isso, acho eu, mas nunca me pareceu possível –
pelo menos até conhecer Sarah. Depois, deixou de ser uma fantasia remota e começou a parecer um
desejo óbvio.
Amo-a, penso, enquanto acelero a fundo. Ela fez com que tudo parecesse possível.
Sarah Harrington traz o meu filho no ventre há tantos meses. A par do seu sofrimento, da sua
tristeza, e da perda do avô. Mudou-se para o outro lado do mundo, regressando a um sítio onde
nunca julgara poder voltar, e conseguiu de alguma forma reparar a cicatriz que dividia a sua
família. E tudo sozinha. Convencida de que eu não queria sequer uma amizade com ela.
Recordo a tristeza insuportável nos seus olhos quando falou de Hannah e dos filhos, e pergunto-
me novamente como terá sido para estas duas mulheres tentar reconstruir uma relação em
circunstâncias tão extraordinárias. Espero que isso tenha deixado Sarah feliz. Espero que o facto de
Hannah estar ao seu lado enquanto dá à luz signifique que se tornaram tão próximas como merecem
ser. Tão próximas como duas irmãs devem ser.
HOSPITAL 1,5 km, diz o sinal. Ainda falta um quilómetro e meio. Passo sob uma ponte
ferroviária e subo uma colina, maldizendo o tráfego entre dentes. Passo, demasiado devagar para o
meu gosto, por uma loja de peixe frito com batatas fritas. Cá fora, sob a luz fraca, um homem tem
um saco de plástico cheio de pacotes quentes de comida pendurado no pulso. Está ao telefone, a rir,
completamente ignorante do homem desesperado preso no engarrafamento num Land Rover.
Um minuto depois, passo por um sinal a dizer que o hospital fica a quinhentos metros, mas mesmo
assim ainda é longe de mais. Outro semáforo fica vermelho. Não consigo parar de praguejar.
O Land Rover está silencioso, tirando o tiquetique antiquado do pisca. Imagino Sarah, a minha
linda Sarah, deitada numa cama, exausta. Penso em todos os partos que vi em filmes: gritos
terríveis, parteiras em pânico, médicos aos gritos, alarmes de urgência a disparar. É como se
alguém tivesse pegado numa colher de gelado e me tivesse esvaziado. O medo deixa-me oco e sem
peso. E se alguma coisa corre mal?
Viro à esquerda, recordando a mim próprio que todos os dias há tantos partos sem qualquer
complicação – tem de haver, caso contrário a raça humana não teria sobrevivido – e, finalmente, o
edifício castanho do Gloucester Royal aparece à minha frente.
O hospital está movimentado. Suponho que a doença não faz pausas. Várias pessoas atravessam a
estrada à minha frente. Há lombas de velocidade por todo o lado. O primeiro parque de
estacionamento está cheio e só me apetece gritar. Quero parar à frente da porta mais próxima e
abandonar o carro aí.
E sei, finalmente, como Sarah se sentiu no dia em que arrancou em perseguição do namorado e da
irmã. Compreendo o terror que se apoderou dela, o instinto que a fez sair da estrada para impedir
um acidente ao qual Hannah nunca teria sobrevivido. Sei que não o fez por não se importar com
Alex. Foi o amor e o medo que a fizeram rodar aquele volante. O mesmo amor e medo que, neste
momento, sinto por ela. Faria tudo para ter a certeza de que nada lhe acontece. Seria capaz de
bloquear a estrada num hospital. De ultrapassar os limites de velocidade. E, na situação em que
Sarah se viu em 1997, também eu guinaria para a direita, se isso significasse salvar a pessoa que
mais amava.
CAPÍTULO 48

H amish tem razão, claro: não me deixam entrar. A mulher do outro lado do intercomunicador
parece estupefacta por eu estar sequer a tentar.
– Há algum sítio onde possa esperar? – pergunto-lhe. – Informei a pessoa que está com a Sarah
de que estou aqui... Ah, e sou o pai do bebé, na verdade, se isso serve de alguma coisa... Pelo
menos, acho que sou...
Nesta altura, a mulher deixa de me responder. Se calhar foi chamar a segurança.
Encontro uma pequena zona de espera na entrada do Centro Feminino e sento-me debaixo de
umas escadas rolantes, em frente dos elevadores. Provavelmente, prendiam-me se os tentasse
utilizar. E aqui, na realidade bem iluminada de um corredor de hospital – com famílias normais,
casais normais por todo o lado –, a estupidez do que estou a fazer é, subitamente, tão clara, que
quase solto uma gargalhada.
O que é que eu pensava? Que Hannah ia largar a irmã para ver as mensagens, talvez responder
aos e-mails? Que leria a mensagem de Hamish e pensaria Oh, fantástico! O pai é o Eddie Wallace!
E apareceu no hospital! Que maravilha! e viria cá fora para me mandar entrar?
Escondo o rosto nas mãos e pergunto-me se Hamish estará a fazer o mesmo, em Bisley.
Se quero ter alguma esperança de reconquistar Sarah, será preciso muito mais do que correr para
o hospital. Seis meses, viveu ela a menos de dois quilómetros de mim. Seis meses que teve para me
contactar, para me dizer que ia ser pai, e não ouvi uma palavra dela.
Porém, embora saiba que é quase de certeza em vão, fico. Não consigo ir-me embora. Não posso
voltar-lhe novamente costas.
O elevador abre-se e levanto os olhos, sobressaltado, mas claro que não é Sarah com um bebé ao
colo, mas sim um homem de ar cansado, com um cartão plastificado ao pescoço e um maço de
cigarros já meio fora do bolso.
Temos sempre escolha, disse-lhe eu, no dia em que nos conhecemos. Não somos apenas vítimas
da nossa vida. Podemos escolher ser felizes. E contudo eu escolhi não ser feliz, apesar de tudo o
que dissera. Virei costas a Sarah Harrington e a esta coisa entre nós, esta coisa que aparece uma
vez na vida, e escolhi o dever. Uma vida meio vivida.

Passam uma, duas, três horas. Pessoas entram e saem, trazendo consigo rajadas de ar gelado que
rapidamente fica abafado. Uma lâmpada avaria-se; pisca intermitentemente mas, antes que eu possa
sequer pensar em ir avisar alguém, aparece um homem para a substituir. Rezo silenciosamente pelo
sistema nacional de saúde. Por Sarah. Pela minha mãe, cujos sentimentos relativos a esta situação
nem sequer consigo imaginar. Talvez Felix tenha aparecido. Felix, com o seu bom humor e a sua
determinação em se manter positivo, independentemente das rasteiras da vida.
A dada altura, depois de a escuridão ter envolvido o edifício, uma família junta-se a mim na sala
de espera, uma mãe, um pai e uma criança. O menino tem cabelo loiro encaracolado e uma carinha
malandra e travessa com a qual simpatizo de imediato. Estuda o espaço à sua volta, declara que é
aborrecido e pergunta à mãe o que vai fazer a esse respeito. Ela está a mexer no telemóvel com
expressão preocupada. Diz qualquer coisa ao marido sobre o horário de visitas.
Depois, a criança diz – e o meu coração para:
– Mamã, porque é que o bebé da Sarah não tem pai? Porque é que é a irmã dela que a está a
ajudar e não o pai do bebé?
Olho para o colo, com a cara a arder.
A mãe responde:
– Não digas nada dessas coisas à Sarah, querido. Se conseguirmos entrar para a ver, podes falar-
lhe sobre tudo, menos sobre pais. Rudi, estás a ouvir?
– Sim, mas...
– Se me prometeres que não falas nesse assunto, amanhã levo-te à fábrica de gelados perto de
Stroud de que te falei.
Tenho o coração aos saltos. Arrisco um olhar para o rapaz, que não está minimamente interessado
em mim.
– És o homem que lhe partiu o coração? O que a fez chorar por não lhe telefonar?
Só me apetece rasgar a pele e fugir do meu próprio corpo.

A mulher – é Jo, a amiga de Sarah – recebe um telefonema. Afasta-se na direção dos elevadores
para atender e Rudi brinca com o pai. Só que não pode ser o pai, porque, depois de lhe ganhar ao
«papel, pedra, tesoura» cinco vezes seguidas, trata o homem por Tommy.
Tommy! O amigo de infância de Sarah! Embora isso não bata completamente certo com aquilo
que ela me contou nas suas mensagens. Sei essas mensagens de cor, e ela nunca mencionou que Jo e
Tommy eram um casal. Talvez eu tenha percebido mal? Quem me dera saber mais sobre Sarah e a
sua vida. Quem me dera saber o que comeu ao pequeno-almoço no dia em que entrou em trabalho
de parto, como correu a gravidez, como é ter uma relação com a irmã tantos anos depois. Quem me
dera saber que ela está bem.
Quando Jo volta, começa a arrumar as coisas. Por cima da cabeça de Rudi, troca um olhar com
Tommy e abana a cabeça.
– Mamã? Onde vais? Mamã! Quero ver a Sarah!
– Vamos para casa dos pais da Sarah – diz ela ao filho. – Eles telefonaram e convidaram-nos a
dormir lá. Está a ficar tarde, tu tens de ir para a cama e a Sarah não pode receber visitas hoje. E
talvez amanhã também não.
– Então quando é que a podemos ver?
A expressão de Jo é inescrutável.
– Não sei – admite.
Segue-se uma cena desagradável: é evidente que Rudi adora Sarah e não tem qualquer intenção
de se ir embora. Mas, por fim – furioso –, veste o casaco. E estão prestes a sair quando Tommy
passa por mim e hesita. Continua a andar, depois para outra vez e sei que ele está a olhar para mim.
E, após uma fração de segundo, ergo o rosto e olho para ele, porque estou desesperado. Se uma
conversa terrivelmente embaraçosa com o amigo mais antigo de Sarah ajudar, estou disposto a tudo.
– Desculpe – diz ele, quando o nosso olhar se encontra. – Desculpe, pensei que fosse outra
pessoa...
Vira-se mais uma vez, e mais uma vez para.
– Não, você... Você não é o Eddie?
Jo, que está ao fundo das escadas rolantes, gira sobre si própria e olha para mim. Ambos me
fitam em silêncio. Rudi lança um olhar distraído na minha direção, mas está demasiado irritado
para me dar atenção. Vejo Jo murmurar uma imprecação – embora não saiba se motivada por raiva
ou choque – e, depois, sai com o filho por uma porta automática.
Levanto-me e estendo a mão a Tommy, que a aperta, embora demore algum tempo.
– Como é que soube? – pergunta. – A Sarah entrou em contacto consigo? – Está muito vermelho,
mas não sei bem porquê. Eu é que devia estar envergonhado.
– Só soube esta tarde. É uma longa história. Mas a Hannah sabe que eu estou aqui, acho eu.
Antes de ele conseguir pensar numa resposta, continuo:
– Como está ela? Está tudo bem? O bebé já nasceu? A Sarah está bem? Desculpe... sei que
pareço doido, e sei que fiz a Sarah passar um mau bocado o ano passado, mas... não suporto esta
incerteza. Só quero saber se ela está bem.
Tommy cora ainda mais. As suas sobrancelhas parecem ter vida própria, como se estivesse a
compor mentalmente um discurso ou a resolver um enigma.
– Francamente, não sei – responde, por fim. – A Jo esteve agora a falar com a mãe da Sarah.
Presumo que não quis dizer-me o que se passa em frente do Rudi.
– Merda – digo. – Isso quer dizer que as notícias não são boas?
Tommy parece aflito e impotente.
– Não sei – repete. – Espero que não. Quer dizer, os pais dela estiveram aqui e foram para casa,
portanto provavelmente é só... Oiça, tenho de ir. Eu... – Cala-se, enquanto recua em direção à saída.
– Desculpe – termina, e desaparece.

É meio da noite. Ando de um lado para o outro, como as pessoas nos filmes. Agora compreendo.
Ficar sentado seria como estar quieto enquanto alguém me encostasse metal em brasa à pele.
Partilho a sala de espera com um homem idoso, de pijama, mas nenhum de nós dirigiu a palavra
ao outro. Ele parece tão ansioso como eu. Um avô, talvez. Tal como eu, pouco mais pode fazer do
que bocejar, abanar as pernas e olhar de vez em quando para a porta do bloco de partos.
Decidi que o purgatório deve ser assim. Um adiamento eterno. Uma espera intensa em escala de
medo menor. Imobilidade absoluta, à exceção dos ponteiros do relógio.
Alan tem tentado tranquilizar-me – está farto de me mandar artigos sobre partos. «A Gia quer que
eu te diga que o parto não tem de ser como aqueles horrores que se veem na televisão», escreveu há
pouco. «As mulheres estão sempre a dar à luz, em todo o mundo. Ela diz para esqueceres esses
dramas produzidos e visualizares a Sarah a respirar fundo. A trazer um bebé ao mundo entre
inspirações e expirações profundas.»
Ou coisa parecida. Devia levá-lo a sério, mas estou fora de mim.
Desesperado, começo a reler as mensagens que Sarah me enviou no verão passado. Releio tudo,
desde o dia em que saiu do meu celeiro, até ao dia antes de nos encontrarmos em Santa Monica.
Releio-as duas vezes, três vezes, a tentar encontrar algo que sei que não podem dizer-me.
Depois, a porta do bloco de partos abre-se e o meu coração dá um salto. Mas é só uma
funcionária, a enfiar o chapéu, a bocejar, a pôr as mãos nos bolsos do casaco. Passa por nós sem
olhar duas vezes, obviamente exausta.
Não aguento isto.
Regresso à primeira mensagem que Sarah me mandou, vinte minutos depois de nos termos
despedido.
Estou em casa, diz. Passei uns dias maravilhosos contigo. Obrigada por tudo. Beijos
Também foi maravilhoso para mim, escrevo agora. Na verdade, foi a melhor semana da minha
vida. Mal acredito no que aconteceu.
Vou a caminho de Leicester e estou a pensar em ti, escrevera ela, algumas horas mais tarde.
Eu também estava a pensar em ti, escrevo. E, embora admita que os meus pensamentos não eram
tão bonitos e simples como os teus, nessa altura, quero que saibas que, apesar de tudo, eu estava
desesperadamente apaixonado por ti. Foi isso que tornou a situação ainda mais penosa: estava
completa e absolutamente apaixonado por ti. Nem queria acreditar que tu existias. Ainda não
acredito.
Depois, as mensagens dela começaram a ficar preocupadas.
Olá... está tudo bem? Chegaste a horas a Gatwick?
Engulo em seco. É doloroso ver o pânico dela a crescer, sabendo que o podia ter impedido.
Leio mais algumas mensagens e depois paro, porque me sinto demasiado culpado.
És a melhor pessoa que já conheci, escrevo. E soube disso no primeiro dia que passámos juntos.
Adormeceste e eu pensei: quero casar com esta mulher.
Amo-te, Sarah, escrevo. Acho que estou a chorar. Quem me dera estar aí contigo, a apoiar-te. Só
quero que tu e o bebé estejam bem.

Desculpa por não ter estado ao teu lado. Quem me dera ter estado. Quem me dera que tivéssemos feito isto juntos. Eu devia ter
sido mais corajoso. Devia ter percebido que conseguiria resolver as coisas com a minha mãe. Não devia ter deixado que nada
me impedisse de estar contigo.

Estou decididamente a chorar. Uma lágrima cai sobre o ecrã do telemóvel. Tendo limpá-la com o
punho e fica tudo desfocado. Depois cai outra, e percebo que estou à beira de começar a soluçar.
Levanto-me e começo novamente a andar de um lado para o outro. Saio, e o ar lá fora está frio
como o mar Ártico, mas isso seca-me imediatamente as lágrimas, portanto fico ali. O parque de
estacionamento está agora calmo. As árvores nuas baloiçam sob a brisa cortante, à luz acobreada
dos candeeiros.

Envio-te toda a minha força e coragem, embora saiba que não precisas. És uma mulher extraordinária, Sarah Harrington.
A melhor que conheço.

Tenho os dedos a tremer. Facas geladas entram-me pelo casaco aberto à frente, mas deixei de me
preocupar comigo.

Por favor, quando estiveres preparada para isso, podemos tentar de novo? Podemos passar um pano sobre tudo o que
aconteceu? Mesmo aquilo que eu julguei que não conseguiríamos ultrapassar? Podemos recomeçar? Nada me faria mais feliz do
que estar contigo. Tu, eu, este bebé. Uma pequena família.

Amo-te, Sarah Harrington.


Oiço a sirene de uma ambulância e uma rajada de vento paralisante atinge-me o rosto.

Amo-te. Perdoa-me.
CAPÍTULO 49

Sarah

E stou a girar lentamente, suspensa sobre a minha própria vida. Há hexágonos e octógonos, talvez
os mosaicos do teto, ou talvez apenas os pormenores da coisa onde estava a apoiar os braços
há pouco, aquela cadeira...
Houve muitos detalhes ínfimos de mobiliário durante este tempo paralelo, coisas para as quais
olhei durante tanto tempo que se tornaram gigantescas, e assumiram padrões, e dançaram: um
caleidoscópio no céu.
Tempos felizes. Imagens positivas. Coisas que estimulem a oxitocina. É nisso que devo pensar.
Reproduzo momentos felizes no meu ecrã mental. Ali está o pónei gordo que pertencia à mulher que
vivia naquela casa atrás da do Tommy...
Dor. Uma cascata ensurdecedora de dor. Mas: Confio no meu corpo, repito, porque foi o que me
disseram para fazer. Confio no meu corpo. Ele está a trazer-me o meu bebé.
Ali está Hugo, o gato do Tommy, aquele gato engraçado que nunca bebia água suficiente no verão.
A parteira está novamente a fazer qualquer coisa ao meu abdómen. Faixas apertadas. Desde que
passei para esta sala que estão a monitorizar o coração do bebé com um aparelho que parece uma
experiência laboratorial. Um sensor para as suas contrações, outro para o bebé, recorda-me ela,
ao ver a minha expressão. Aceno com a cabeça e tento regressar às memórias felizes.
Há uma criança chamada Hannah; tem doze anos. Tem o braço ao peito, o olho negro e inchado, a
pele salpicada de cortes e nódoas negras. A sua melhor amiga morreu e ela odeia-me.
Não, isto não é feliz. Procuro alguma coisa melhor através das camadas de dor e cansaço. Inspiro
e prendo a respiração quatro segundos, solto-a em seis. Ou era oito? Confiem no vosso corpo,
diziam eles nas aulas. Confiem no vosso corpo. Confiem no processo do trabalho de parto.
Mas entrei num túnel, e é tão fundo que não sei bem onde estou. Acho que há drogas. Sim: uma
injeção na coxa, e aquela coisa ao pé da minha boca. Mordo e inspiro histórias doces enquanto
começo a subir outra montanha. Faz-me flutuar... alguém tenta tirar-mo, mas estou a morder com
força.
Há uma sala cheia de equipamento médico e aquela mesma menina, Hannah, só que agora é
diferente: é outra vez minha irmã, mas é uma mulher, com família e carreira. É a minha
acompanhante durante o parto. Anda a fazer terapia, porque não gosta muito de si própria. Diz que
foi horrível comigo.
Mas não foi horrível. Nunca foi horrível. Hannah está na base de dados de boas memórias que me
ajudam a percorrer este túnel. Inspiro o deslumbramento que senti no coração quando a vi pela
primeira vez, quando ela apareceu em casa dos nossos pais na manhã do funeral do avô. Como
parou à minha frente, rígida, e depois se atirou para os meus braços, e a alegria incomensurável que
senti ao abraçar a minha irmã pela primeira vez em quase duas décadas.
Mais formas e padrões; um álbum de recortes em movimento. Estou apenas meio consciente das
outras pessoas no quarto, das coisas que estão a fazer ao meu corpo, das instruções gentis.
Lembro-me de um café em Stroud, a Hannah e eu no nosso primeiro encontro a sós, em adultas.
Os silêncios, os risos nervosos. Os pedidos de desculpa, de ambas, e ver o meu pai a chorar
quando lhe contei que a Hannah me convidara a ir lá a casa conhecer a família dela.
Mas... o meu bebé. Onde está o meu bebé?
O mar rebenta sobre si próprio, uma e outra vez, e um cuco canta as suas duas notas num bosque
sombrio. Eddie está a rir. Estão a examinar-me outra vez. Pessoas, muitas pessoas, a olharem para
um ecrã que imprime traços irregulares...
Onde está o meu bebé?
O meu bebé. O meu bebé, que eu fiz com o Eddie.
Eddie. Amava-o tanto.

Eddie. É o nome que Hannah está a dizer-me. Está a falar-me sobre Eddie. Diz que ele está lá
fora. Parece chocada, estupefacta, mas agora tenho de ouvir a médica, que me tira o tubo do gás
anestésico e começa a falar lenta e claramente.
– Infelizmente, não podemos esperar mais – diz. – Temos de tirar este bebé cá para fora: ainda
não tem a dilatação completa... a amostra de sangue fetal indica... oxigénio... ritmo cardíaco...
Sarah, compreende o que lhe estou a dizer?
– O Eddie? – pergunto. – Lá fora?
Mas há mais palavras da equipa médica e depois a cama-cadeira começa a mexer-se; está a sair
do quarto.
O túnel desvanece-se. Vejo os azulejos do teto. A voz da Hannah ao pé do meu ouvido.
– Concordaste em fazer cesariana – está ela a dizer. – O bebé está em dificuldades. Mas não te
preocupes, Sarah, isto acontece muito. Vais já para o bloco operatório e o bebé estará cá fora daqui
a poucos minutos. Vai correr tudo bem...
Pergunto-lhe por Eddie, porque receio que tenha sido apenas uma das histórias do túnel
caleidoscópico. Estou tão cansada.
Falta de oxigénio?
Mas é um facto real, não um facto do túnel: Eddie está à minha espera. Está lá fora. Tem estado a
mandar mensagens para o meu telemóvel; diz que me ama.
– E está farto de pedir desculpa – diz-me Hannah. Parece estupefacta. – O Eddie Wallace –
murmura, até que alguém lhe pega no cotovelo e lhe diz que tem de vestir a bata para entrar na sala
de operações. – O pai do teu filho. Quem diria.
Eddie diz que me ama. O meu bebé está em dificuldades.
Depois, os médicos caem todos em cima de mim, a falar ao mesmo tempo, e tenho de os ouvir.
CAPÍTULO 50

Eddie

E ndireito-me bruscamente na cadeira: a porta do bloco de partos está a abrir-se. Percebo que
devo ter adormecido. Sinto-me terrível. E gelado, todo a tremer. Porque não trouxe um gorro,
ou umas luvas? Porque não planeei isto como deve ser? Por que diabo fiz tudo mal feito, desde o
instante em que Sarah saiu do meu celeiro em junho?
– Está aqui algum Eddie Wallace? – pergunta a enfermeira à porta.
– Sim! Sou eu!
Ela faz uma pausa e depois indica-me com um sinal a zona dos elevadores, onde podemos falar
sem o meu companheiro da sala de espera ouvir. Ele também tinha adormecido, mas agora fita-me
com olhar invejoso.
Setas de medo percorrem-me o corpo como nos vídeos que nos mostravam nas aulas de Ciências,
e movo-me demasiado devagar. A enfermeira espera, de braços cruzados, e vejo que ela está a
olhar para o chão.
Percebo rapidamente que isso não me agrada nada.
Percebo ainda mais depressa que, se ela me der más notícias, a minha vida nunca mais será a
mesma.
Assim, nos primeiros segundos, não consigo ouvir o que ela diz porque estou totalmente
ensurdecido pelo medo.
– É um menino – repete ela, quando percebe que eu não ouvi nada. Começa a sorrir. – A Sarah
deu à luz um lindo menino há cerca de uma hora. Neste momento, estamos a fazer alguns exames à
mãe e ao bebé, mas a Sarah pediu-me para lhe dizer que é um menino e que, em princípio, está tudo
bem.
Olho para ela, estupefacto.
– Um menino? Menino? A Sarah está bem? Teve um menino?
Ela sorri.
– Está muito cansada, mas bem. Portou-se lindamente.
– E foi ela que quis que me viesse dizer? Ela sabe que eu estou aqui?
Ela acena afirmativamente.
– Sabe. Soube quando a estávamos a levar para a cesariana. Foi a irmã que lhe disse. E o seu
filho é lindo, Eddie. Um bebé absolutamente maravilhoso.
Dobro-me sobre mim próprio com um soluço de deslumbramento, de alegria, de alívio, de
assombro, de um milhão de coisas que nem consigo identificar. Parece uma risada. Pode muito bem
ser uma risada. Tapo a cara com as mãos e choro.
A mulher pousa-me uma mão nas costas.
– Parabéns – diz, algures por cima de mim. Consigo ouvi-la sorrir. – Parabéns, Eddie.
Por fim, consigo endireitar-me. Ela está a virar-se para voltar para dentro. É inacreditável pensar
que se prepara para trazer mais vidas ao mundo. Que este milagre é, para ela, normal.
Um menino! O meu filho!
– A Sarah está a recuperar no quarto e tem de ficar alguns dias na enfermaria pós-parto.
Infelizmente já não pode entrar esta noite, mas as visitas na enfermaria começam às duas da tarde –
informa-me. – Embora, claro, isso dependa da vontade dela.
Aceno, estupidamente, alegremente.
– Obrigado – murmuro, enquanto ela começa a andar. – Muito obrigado. Por favor, diga-lhe que a
amo. Que estou tão orgulhoso dela. Que...
Não choro desta maneira desde o dia em que me disseram que a minha maninha tinha morrido.
Mas esse foi o pior momento da minha vida, e este é o melhor.
Passado muito tempo, saio a cambalear do hospital. Lá fora, o vento amainou e uma leve luz
cinzenta começa a filtrar-se entre a escuridão da noite. Está tudo silencioso, exceto o som das
minhas lágrimas e fungadelas. Não se ouve sequer um carro à distância, apenas eu e estas notícias
gigantescas, estonteantes.
– Sou pai – murmuro, no vazio da pré-alvorada. – Tenho um menino.
E repito-o várias vezes, porque não tenho mais palavras. Encosto-me à parede fria e tento
recalibrar a minha visão do universo, de modo a incluir este milagre, mas é impossível: não
consigo imaginar. Não consigo compreender. Não consigo acreditar. Não consigo nada.
Um carro entra no parque de estacionamento e dirige-se lentamente ao lugar para deficientes à
minha frente. A vida continua. O mundo está a acordar. Este mundo contém o meu filho. Isto é tudo
dele. Este ar, esta madrugada, este homem a chorar, a quem um dia ele talvez chame pai.
Depois, o meu bolso vibra e vejo o nome de Sarah e a palavra «Mensagem» e lá estou eu outra
vez, a chorar descontroladamente, antes de a conseguir ler.
Ele é lindo, escreve ela. É a coisa mais espantosa que já vi.
Olho para o telemóvel, de respiração suspensa, enquanto ela escreve outra mensagem.

É parecido contigo.

Por favor, vem conhecer o nosso menino amanhã.

E depois a última: Eu também te amo.


CAPÍTULO 51

Sarah

É dia 2 de junho. Mais um dia 2 de junho em Broad Ride: o vigésimo para mim, apercebo-me,
enquanto tento prender o cabelo com um elástico. Hoje corre uma brisa forte, que empurra as
nuvens pelo céu, que as penteia e enrola em espirais. A brisa apanha as madeixas do meu cabelo e
fá-las dançar para longe dos meus dedos.
Penso naquele ano em que choveu tanto que as urtigas ficaram todas deitadas rente ao solo, e no
ano em que o vento me arrancou o chapéu da cabeça. Penso no ano passado, em que estava tanto
calor que o ar à minha volta parecia compacto e até os pássaros estavam calados, escondidos nas
suas árvores. Foi o ano em que conheci Eddie e tudo isto começou.
Eddie. O meu Eddie. Embora esteja exausta e com tanta falta de sono que mal consigo ter-me de
pé, sorrio. Sorrio sem me conseguir conter, e o meu estômago dá uma cambalhota.
Isto ainda me acontece, um ano inteiro depois de o ter encontrado no jardim da aldeia. Ele diz
que também lhe acontece, e sei que está a dizer a verdade porque o vejo no seu rosto. Às vezes,
pergunto-me se será um efeito secundário da batalha que tivemos de travar para nos encontrarmos e
para ficarmos um com o outro. No entanto, na maior parte do tempo, sei que é assim porque é assim
que deve ser.
Como se sentisse o coração da mãe a inchar, Alex funga e aninha-se mais contra o meu peito.
Ainda está a dormir, apesar da quantidade de pessoas que lhe fez festinhas e soltou exclamações
deliciadas na última hora. Fecho os braços à volta dele, enrolado no meu pano fabricado em
Stroud, e beijo-lhe a cabecinha quente, uma e outra vez. Tê-lo comigo – mesmo quando estou tão
cansada que dormiria de bom grado numa casota de cão – é como acender uma luz. Eu não fazia
ideia de que se podia amar alguma coisa, ou alguém, desta maneira.
No dia depois de o Alex nascer, quando Eddie entrou no meu quarto com um esquilo de peluche
na mão, a tremer, pálido de terror, tive a certeza de que conseguiríamos ficar juntos. Dei-lhe o filho
e ele olhou para mim absolutamente assombrado, chorou descontroladamente e chamou «miúdo» ao
Alex. Mais tarde, quando a enfermeira lhe arrancou Alex dos braços, Eddie olhou para mim por um
momento e disse-me que me amava. Acontecesse o que acontecesse, afirmou, era meu, se eu o
quisesse.
Assim, veio comigo para casa dos meus pais assim que tive alta do hospital. Voltou para o seu
celeiro apenas algumas semanas depois. (Fez um berço. Um berço! E pendurou a Ratinha em cima.)
E, embora a mãe dele se recusasse a falar sobre mim, embora lhe telefonasse constantemente
durante o dia, embora eu estivesse completamente falida e houvesse uma fuga no telhado do Eddie,
apesar de eu ter uma mastite e me sentir péssima, nunca me senti tão feliz. Nessa primeira manhã,
nem saímos da cama. Ficámos ali deitados, com o nosso filho, a alimentá-lo, aninhados uns nos
outros, a dormitar, aos beijos, a mudar fraldas e a sorrir.
Ao princípio, Eddie atendia dois, talvez três dos telefonemas da mãe por dia, embora
rapidamente os tivesse reduzido a um. Era duro para ele.
– Impossivelmente duro – disse ele, depois de acordar uma manhã e ver que tinha três chamadas
perdidas. – As chamadas durante a noite são as piores.
Tremiam-lhe as mãos quando lhe ligou, sentado na cama enquanto eu dava de mamar a Alex numa
cadeira. Ela estava «bem», disse, quando acabou de falar com ela.
– Foi só uma noite má. Mas há duas décadas que tem pelo menos uma noite má por mês, e
sobreviveu. Tenho de ter mais confiança.
Mesmo depois de anos a imaginar, torturada, a infelicidade da família Wallace, a extensão das
responsabilidades de Eddie para com a mãe foi um choque para mim. Porém, quando me pediu
desculpa pelo número de telefonemas, pela quantidade de vezes que ainda a visitava, disse-lhe para
não pedir desculpa. De todas as mulheres à face da Terra, recordei-lhe, com certeza ninguém
compreendia melhor do que eu.
Compreendia também que tinha acontecido a Eddie algo maior do que a doença da mãe, e era a
paternidade. A paternidade, com todos os instintos e emoções indescritíveis que a acompanham.
Alex chegou à vida de Eddie, minúsculo, quente, com ar de quem estava a resolver todos os
mistérios do mundo e, sem dizer uma única palavra ao pai – sem mexer um dedo –, mudou a
paisagem das responsabilidades de Eddie para sempre.
Agora, quando a mãe dele telefona, ele rejeita a chamada e manda-lhe uma mensagem mais tarde,
mas a maior parte da sua atenção é para Alex. Para mim.
– Tenho apenas de rezar para que a minha mãe esteja bem – disse-me um dia. – Para que aquilo
que ainda lhe posso dar seja suficiente. Porque não consigo dar-lhe mais, Sarah. E não o farei. Este
homenzinho precisa de mim. É ele que eu tenho de manter vivo, agora.

Mesmo assim, sei que o magoa o facto de a mãe não ter aparecido hoje. Eu sabia que ela não
viria; ele sabia que ela não viria – viu Alex apenas seis vezes em três meses, e insistira de cada
uma delas para que Eddie estivesse presente – mas os seus ombros abatidos quando chegou a hora
de começar partiram-me o coração.
Quando a Jenni e o Javier anunciaram os seus planos de vir passar o mês de junho connosco,
Eddie e eu decidimos dar uma festa de boas-vindas para o Alex. Com dois ateus como pais,
dificilmente algum dia seria batizado, por isso planeámos uma pequena cerimónia para ele, à nossa
maneira. Só alguns amigos, algumas palavras, e depois o assunto mais sério de comer e beber.
Jenni tem estado muito em baixo nestes últimos dez meses. Falamos pelo menos duas vezes por
semana, e houve momentos muito maus, mas sinto que o pior está a passar. Parece-me bem-disposta
desde que chegaram, ontem de manhã. Disse-me que ela e Javier se sentem agora prontos para
pensar em como será a vida sem filhos (viajar, talvez, disse) e está até a pensar em fazer uma pós-
graduação em «qualquer coisa fixe». O pobre Reuben vai ficar desolado se a perder também.
Foi Eddie que teve a ideia de fazer a festa aqui, em Broad Ride, no dia 2 de junho. No sítio onde
Alex e Hannah tinham o seu covil. Achei que era perfeito.
Mas, claro, tal como todas as outras partes da nossa relação, nada correu como planeado. O
Fedorento, o cão da minha irmã, devorou a maior parte da comida durante a cerimónia – incluindo
um grande bolo de chocolate –, pelo que o Hamish está neste momento com ele no veterinário e os
filhos dela não param de chorar, com medo de que o animal tenha finalmente comido tanto que não
sobreviverá. Alan, o melhor amigo do Eddie, estava muito nervoso por ter de fazer um discurso e
bebeu tantas cervejas que já dormia quando chegou a sua vez de falar. A mulher está amuada com
ele. E depois descobrimos Rudi a beijar a filha mais velha de uma das minhas amigas das classes
de ioga para mães e bebés, numa gruta de arbustos secreta, embora ele tenha oito anos e ainda
devesse achar as raparigas irritantes pelo menos até aos doze, e embora a amiga do ioga me tenha
dito a semana passada que estava muito contente por a filha não ser inapropriadamente sexualizada
como a maioria das crianças nos dias que correm.
Jo não conseguia parar de rir, o que não ajudou nada a acalmar a situação.
No entanto, estamos todos aqui, exceto Hamish e, claro, a mãe de Eddie. Jenni, Javier, a minha
irmã e a família dela, Alan e Gia, que têm sido tão simpáticos e tão acolhedores para mim – e
Tommy e Jo, que estão perdidos na sua própria história de amor. Nunca tinha visto nenhum deles tão
feliz, embora a situação com Shawn tenha sido complicada desde que Jo lhe contou sobre Tommy.
Mas ela tem algo que nunca tinha realmente tido antes: um verdadeiro companheiro. Os problemas
hão de resolver-se.
E, claro, os meus pais estão aqui, observando deliciados cada pequena interação das filhas.
Ainda não conseguem acreditar que eu estou de volta, que a Hannah e eu conseguimos voltar a ser
amigas, que podemos estar juntos em família. E, claro, estão obcecados com o Alex. O meu pai
escreveu uma peça de violoncelo dedicada a ele. Tenho o terrível pressentimento de que vai insistir
em tocá-la mais tarde.
Pego em mais uma fatia de quiche, enquanto posso – Alex deve estar a acordar – e procuro
Eddie.
Ali. Vem a caminhar na nossa direção, de mãos nos bolsos, a sorrir. Acho que nunca me fartarei
daquele sorriso.
– Olá – diz. Beija-me uma vez; depois outra. Olha para o nosso filhote. – Olá, miúdo – murmura.
Alex está a acordar, claro. Entreabre um olho, franze o rosto e dá-me uma cabeçada no peito,
novamente a dormir. O pai beija-o na cabeça, que tem o cheiro mais perfeito do mundo, e surripia-
me um pedaço de quiche.
Alex acorda de novo mas, desta vez, parece que vai ficar acordado. Ensonado, olha para o pai,
cujo rosto é como uma abóbora sorridente e ridícula no seu campo de visão e – depois de pensar
um bocadinho – sorri. E Eddie derrete-se todo, como sempre.
Começa a tirar o filho do pano e, de súbito, vejo-nos como se estivesse de fora, estas duas
pessoas que olharam uma para a outra por cima de uma ovelha fugitiva há um ano. As rajadas de
esperança e expectativa, o desenrolar imparável de um passado do qual nem sequer estávamos
conscientes. Muita coisa mudou desde então; e há muito mais para vir. Agora, contudo, nada pode
deter-me. Não há recantos escuros, não há avalanche iminente. Apenas a vida.
E quem diria que a solução era Eddie Wallace? Que Eddie, logo ele, seria a pessoa que me faria
parar de fugir? Que tornaria possível para mim parar, respirar, gosta de mim própria? Quem diria
que seria Eddie Wallace, de quem me escondi durante tantos anos, que me faria querer tão
desesperadamente voltar para casa? Que me permitiria estender as minhas raízes e encontrar
finalmente o meu lugar?
Quando ergo os olhos, vejo Carole Wallace.
Está parada, um pouco afastada do nosso grupo, de braço dado com um homem cuja outra manga
pende, vazia, ao lado do corpo. Deve ser o Felix. O meu corpo imobiliza-se e o meu coração bate
mais depressa. Não sei se estou preparada para isto. Egoisticamente, nem sei se quero. Não aguento
uma cena no dia do Alex.
Mas aqui está ela, e já vem a caminhar entre as pessoas, em direção a nós.
Vem ter com o Eddie, penso. Nem sequer olhará para mim. Eddie está a levantar Alex acima da
cabeça, rindo da expressão de assombro e confusão do filho. Carole e a minha mãe veem-se uma à
outra ao mesmo tempo. A minha mãe detém-na, pousa-lhe a mão no braço, diz qualquer coisa, sorri.
Carole parece chocada. Olha para a minha mãe, pestaneja, atrapalhada, e por fim consegue
responder. Talvez haja um sorriso no seu rosto, mas, se há, é muito breve. A minha mãe diz mais
qualquer coisa, aponta para o piquenique e Felix sorri calorosamente, acena com a cabeça e
agradece. Olha para Carole, mas esta virou-se novamente para mim e para Eddie e recomeçou a
andar.
– Eddie – chamo, baixinho. Ele ainda está a falar com o filho. – Eddie, a tua mãe chegou.
Ele gira sobre si próprio e sinto o seu corpo ficar tenso e alerta. Por um instante febril, tenta
decidir o que fazer. Faz menção de começar a andar, para a intercetar antes de ela chegar junto de
mim, mas depois para. Para, ergue a cabeça e pega-me na mão. Com a outra, segura Alex junto ao
corpo, acariciando com o polegar o algodão macio das jardineiras em miniatura de Alex.
Ergo os olhos para ele. Uma veia lateja-lhe na têmpora. Tem os tendões do pescoço esticados e
sei que a vontade dele é avançar, fazê-la parar. Mas fica. Aperta-me a mão com mais força. Somos
um casal, está-lhe a dizer, e amo-o por isso. Já não sou apenas eu. Agora somos nós.
Carole olha apenas para o filho. Quando se aproxima, Felix deixa-se ficar para trás. Sorri-me
com simpatia, mas isso não chega para me fazer crer que vai correr tudo bem. Por cima do ombro
dele, os meus pais estão a olhar. Jo está a olhar. Alan está a olhar. Na verdade, estão todos a olhar,
embora a maioria finja não estar.
– Olá, Eddie, meu querido – diz ela, quando chega junto de nós. Só nesse momento parece
aperceber-se de que Felix não está com ela. Olha para trás, nervosa, mas ele não se mexe e ela
decide ficar onde está. – Pensei que podia ver vir o Alex no seu dia especial.
Eddie aperta-me mais a mão. Está a começar a doer.
– Olá, mãe – diz, em tom alegre e descontraído, como se estivesse tudo bem. E eu penso: És tão
bondoso. Há anos que fazes isto. Que tentas que ela se sinta segura, independentemente do que
está a acontecer dentro de ti. És um homem extraordinário.
– Alex! – murmura ele. – Alex, a avó está aqui!
Alex está a ficar com fome: não para de baixar a cabeça para o peito de Eddie, como se fosse
encontrar lá algum leite.
– Queres pegar-lhe? – pergunta Eddie à mãe. – Acho que deve estar quase na hora de ele comer,
mas talvez ainda consigas uns minutos de sossego.
Carole não olha para mim, mas sorri e abre os braços. Cuidadosamente, gentilmente, Eddie
passa-lhe o nosso bebé. Espera até ela o segurar; depois, beija o filho no alto da cabeça.
Eddie recua e pega-me novamente na mão. Carole abre um sorriso que nunca imaginei ver-lhe no
rosto, aquele rosto que não me saiu da cabeça durante tantos anos.
– Olá, meu querido – murmura. Os seus olhos enchem-se de lágrimas e vejo onde Eddie foi
buscar os seus lindos olhos cor de oceano. – Olá, meu menino lindo. Oh, a avó gosta tanto de ti,
Alex. Tanto, tanto!
Eddie estende a mão para acariciar um dos pezinhos rechonchudos de Alex. Depois olha para
mim de lado e aperta-me a mão.
– Mãe – diz, calmamente. – Mãe, quero apresentar-te a Sarah. A mãe do meu filho.
Há uma longa pausa, durante a qual Carole Wallace fala com o neto baixinho e este começa a
contorcer-se no colo dela. Eddie larga-me a mão e abraça-me. Carole não levanta a cabeça.
– És mesmo querido – murmura ela a Alex. – És um bebé tão querido!
– Mãe.
Depois, lentamente e com hesitação, Carole Wallace olha para mim. Olha para mim, por cima da
cabeça do meu filho, através de duas décadas de sofrimento que só agora, que sou mãe, consigo
verdadeiramente compreender. E por um segundo – uma fração de segundo – sorri.
– Obrigada pelo meu neto – diz, com a voz a tremer. – Obrigada, Sarah, por este menino.
Beija Alex e depois afasta-se, regressando à segurança da companhia de Felix, e as conversas
recomeçam à nossa volta. O vento amainou e o sol está quente. As pessoas estão a despir casacos e
camisolas. As ervas altas abanam violentamente quando uma das crianças corre por entre os caules,
e um pequeno bando de borboletas esvoaça sobre a relva que nos rodeia, protegendo-nos do
passado, das histórias que contámos a nós próprios durante tantos anos.
Passo o braço pela cintura de Eddie e sinto-o sorrir.
AGRADECIMENTOS

E m primeiro lugar, obrigada a George Pagliero e Emma Stonex, por aquele estranho dia de calor
em que todos concordámos que eu tinha de escrever este livro sem mais delongas. E pelo
tremendo apoio e entusiasmo que se seguiram.
O meu caloroso obrigada a Pam Dorman, minha editora, pela sua brilhante sabedoria editorial,
pela forte visão para este livro e pela profunda compreensão dele. O meu agradecimento a Brian
Tart, Kate Stark, Lindsay Prevette, Kate Griggs, Roseanne Serra, Jeramie Orton e o resto da equipa
na Pamela Dorman Books//Viking. É realmente uma honra fazer parte de uma lista tão excecional.
Gratidão eterna a Allison Hunter, a minha incansável agente nos EUA, que quase me matou numa
aula de exercício, mas depois me compensou ao assegurar um contrato editorial de sonho. À minha
agente no Reino Unido, Lizzy Kremer, que organizou tudo de forma tão extraordinária e sem a qual
me veria perdida. Obrigada também a Harriet Moore e a Olivia Barber.
Obrigada a Sam Humphreys de Mantle, no Reino Unido, por ter gostado desta história desde o
primeiro minuto, e pelo trabalho de edição incisivo e ponderado que o tornou muito melhor do que
teria sido. Obrigada também aos outros editores pelo mundo fora que o adquiriram. Ainda não
consigo acreditar! A minha gratidão para Alice Howe da David Higham Associates, e para o seu
fenomenal departamento de direitos de tradução: Emma Jamison, Emily Randle, Camilla Dubini,
Margaux Vialleron e Annabel Church.
Um sincero agradecimento aos Old Robsonians, uma equipa de futebol verdadeira por quem
tenho um carinho especial. Doaram uma soma muito generosa à instituição de solidariedade infantil
CLIC Sargent, em troca de uma menção neste livro.
Agradeço a Gemma Kicks e à maravilhosa instituição de solidariedade Hearts & Minds, pela sua
generosa ajuda quando eu estava a pesquisar instituições de solidariedade de Doutores Palhaços.
Fiquei maravilhada e inspirada ao ver a diferença que os seus Doutores Palhaços fazem na vida das
crianças, todos os dias. Obrigada também a Lynne Barlow, do Hospital Pediátrico de Bristol.
Obrigada a Emma Williams, enfermeira psiquiátrica comunitária; a James Gallagher, fabricante
de armários; e a Victoria Bodey, mãe de rapazes. Obrigada aos muitos amigos que responderam a
uma série interminável de perguntas (muitas vezes profundamente pessoais) no Facebook.
Obrigada a Emma Stonex, Sue Mongredien, Katy Regan, Kirsty Greenwood e Emma Holland,
pelo precioso feedback sobre o manuscrito nas suas várias fases. E, acima de tudo, à minha querida
parceira de escrita, Deborah O’Donoghue, sem a qual não sei se teria conseguido escrever este
livro. Muitas das grandes ideias deste livro vieram de ti, Deb: obrigada. Mal posso esperar por ver
o teu romance nas prateleiras.
Obrigada aos meus SWANS (Autores e Romancistas de South West), pelo apoio, grandes
almoços e gargalhadas. Às senhoras da CAN, pelo mesmo. Obrigada, Lindsey Kelk, pela minha
viagem de pesquisa a Los Angeles e pelas discussões, na sua maioria, muito pouco eruditas.
Obrigada a Rosie Mason e família, pelos muitos dias inesquecíveis a brincar naquele vale
maravilhoso, e a Ellie Tinto, por manter o espírito de Margery Kempe vivo e muito ímpio.
Obrigada, Lyn, Brian e Caroline Walsh, que sempre me encorajaram em tudo o que faço e que
tanto se orgulharam de mim enquanto eu me lançava como escritora em nome próprio. E obrigada,
acima de tudo, ao meu querido George e ao nosso homenzinho minúsculo, perfeito e engraçado, que
mudou para sempre o meu entendimento do amor.

Você também pode gostar