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Ficha Técnica

Título: A Menina Que Roubava Morangos


Título original: The Strawberry Thief
Autor: Joanne Harris
Tradução: Ana Saldanha
Revisão: Simão Sampaio
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagens da capa: Shutterstock
ISBN: 9789892345734
 
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa
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2160-038 Alfragide – Portugal
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e a Rogers, Coleridge & White Ltd. London
© 2019, Edições ASA II, S.A.
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


JOANNE HARRIS
A MENINA QUE

ROUBAVA MORANGOS
Para ti.
Sim, para ti.
Sabes quem és.
Vento
1

Sexta-feira, 10 de março
á sempre um momento antes de uma tempestade em que o
H vento parece mudar de ideias. Assume uma certa
domesticidade; namorisca com as flores nas árvores; desafia a
chuva a sair das monótonas nuvens cinzentas. Este momento de
brincadeira é aquele em que o vento está mais cruel e perigoso.
Não mais tarde, quando as árvores caem e as flores não passam
de papel mata-borrão a entupir as sarjetas e as poças de água.
Não quando as casas caem como castelos de cartas, e muros que
se julgavam firmes e seguros são rasgados como papel.
Não, o momento mais cruel é sempre aquele em que uma
pessoa pensa que talvez esteja segura; que talvez o vento tenha
passado por fim; que talvez se possa construir de novo algo que
não possa ser levado num sopro. É esse o momento em que o
vento está mais insidioso. É o momento em que começa o
sofrimento. O momento do júbilo esperado. O demónio da
esperança na caixa de Pandora. O momento em que o grão do
cacau liberta o seu aroma no ar: um cheiro a queimado e a
especiarias e a sal; e a sangue; e a baunilha; e a tristeza.
Dantes eu pensava que era simples, essa arte. Fazer
indulgências inofensivas. Mas acabei por aprender que nenhuma
indulgência é inofensiva. Francis Reynaud orgulhar-se-ia de mim.
Bruxa durante quarenta anos e agora, por fim, tornei-me uma
puritana.
Zozie de l’Alba teria compreendido. Zozie, a colecionadora de
corações, cujo rosto ainda me aparece em sonhos. Por vezes,
ouço a sua voz no vento; o som dos seus sapatos nas pedras da
calçada. Por vezes, pergunto-me onde estará: se ainda pensa em
mim. Nenhuma indulgência é inofensiva, ela sabia-o. O poder é
tudo o que conta, ao fim e ao cabo.
O vento não se importa. O vento não julga. O vento leva o que
pode – o que necessita – instintivamente. Eu fui assim em tempos,
sabes? Sementes ao vento, ganhar raízes, semear de novo antes
de avançar para outras paragens. As sementes não ficam com a
planta que lhes dá origem. Vão para onde vai o vento.
Veja-se a minha Anouk, agora com vinte e um anos; foi para
onde vão os filhos sempre que seguem o flautista. Éramos tão
íntimas, ela e eu. Costumávamos ser inseparáveis. E, no entanto,
eu sei que um filho está connosco por empréstimo, a ser devolvido
um dia ao mundo, para crescer e aprender e se apaixonar.
Acreditei em tempos que ela poderia ficar aqui em Lansquenet-
sous-Tannes; que Jeannot Drou poderia mantê-la aqui; ele e, claro,
a chocolaterie, e a promessa de segurança. Mas foi Jean-Loup
Rimbault, em Paris, que decidiu as coisas. Jean-Loup, o rapaz com
o buraco no coração. Será que Anouk o preencheu? Só sei que ela
deixou um buraco no meu; um buraco que nem todo o chocolate
do México poderia encher, um espaço com a forma de uma menina
pequena com olhos tão escuros como o oceano.
E agora a minha Rosette, com os seus dezasseis anos, escuta a
voz do vento e percebo como está faminta; como é selvagem,
obstinada, volátil. O vento levá-la-ia com uma só rajada se ela não
estivesse presa como uma vela, se eu não tivesse tomado
precauções. E mesmo assim o vento continua a fustigar o cordame
que nos mantém em segurança. Continuamos a ouvir o seu canto
de sereia. E cheira a outros lugares. Fala de perigo e de luz do sol,
de aventura e alegria. Dança por entre as poeiras iluminadas, em
tons de pimentão e grão de pimenta. Fica preso na garganta como
um riso inesperado. E por fim leva-os a todos; tudo aquilo por que
labutaste. Tudo aquilo que disseste a ti mesma que poderias de
algum modo levar contigo. E tudo começa sempre num momento
de brincadeira, de magia – mesmo de alegria. Um instante de
claridade entre as nuvens. Um sabor a doçura; um toque de sinos.
Por vezes, até mesmo uma queda de neve.
Neve
1

Sábado, 11 de março
evou hoje. Uma semana depois de começar a Quaresma, um
N milagre que chegou cedo. A princípio, julguei que eram flores.
Flores a caírem do céu azul brilhante, a cobrirem os passeios. Mas
havia neve no parapeito da janela e cristais no ar cintilante.
Poderia ser um Acidente. Mas talvez fosse algo mais.
Quase nunca neva cá em baixo. Quase nunca faz frio, nem
mesmo no inverno. Não como em Paris, onde por vezes o Sena
ficava coberto com gelo fino e negro, e eu tinha de usar o casaco
de inverno desde o dia de Todos os Santos até à Páscoa. Aqui em
Lansquenet-sous-Tannes tem-se tempo frio talvez durante um
mês. Geada em dezembro. Brancura nos campos. E depois há o
vento. O frio vento norte que traz sempre lágrimas aos olhos. Mas
hoje houve neve. É um sinal. Alguém morrerá antes do amanhecer.
Conheço uma história sobre uma menina moldada na neve pela
mãe. A menina não pode ficar ao sol, mas um dia desobedece e
sai para brincar com os outros meninos. A mãe procura-a por toda
a parte. Mas só encontra as roupas dela no chão – BAM! – numa
poça de água.
Foi Narcisse quem me contou essa história. Narcisse, o dono da
loja de flores. É velho agora, e outra pessoa toma conta da loja à
semana, mas aos domingos ele ainda lá vai e senta-se à porta a
observar a rua, e nunca fala. Exceto, por vezes, comigo. Diz:
– Nós somos os calados, não somos, Rosette? Não tagarelamos
como pegas.
É verdade. Enquanto a maman faz chocolates e conversa, eu
prefiro ficar sentada em silêncio, a brincar com a minha caixa de
botões ou a rabiscar no meu bloco de desenho. Quando era
pequena, nunca falava. Cantava e por vezes berrava – BAM! – ou
imitava sons de animais, fazia sinais com os dedos ou chilreios de
aves. As pessoas gostam de aves e de animais. As pessoas não
gostavam lá muito de mim, e por isso eu não falava com elas, nem
sequer na minha voz-sombra, a que uso quando estou a ser outra
pessoa. Em vez disso, entrava numa ave e voava muito alto para
as nuvens. Outras vezes era um macaco, a balouçar-me nas
árvores, ou um cão, a ladrar ao vento. Mas mesmo assim as
pessoas não gostavam de mim; a não ser a maman e Anouk e
Roux e o meu melhor amigo, Jean-Philippe Bonnet. Mas a maman
agora está sempre a trabalhar, e Anouk está em Paris com Jean-
Loup, e Roux vai e vem, mas nunca fica muito tempo, e Jean-
Philippe (cuja alcunha é Pilou) está toda a semana na escola em
Agen e já não quer brincar.
A maman diz-me para não me preocupar. Ele não mudou
realmente assim tanto. Mas agora tem dezasseis anos e os outros
rapazes rir-se-iam e fariam pouco dele se brincasse com uma
rapariga.
Não acho que seja justo. Eu não sou uma rapariga. Por vezes,
sou um rapaz, como Pilou. Por vezes sou um macaco, um cão. Por
vezes sou outra coisa. Mas as outras pessoas são diferentes. Às
outras pessoas importam estas coisas. E é claro que eu não posso
ir à escola. A escola em Agen não me quis. Disseram à maman
que eu não me integraria nem falaria como devia. E depois havia o
Bam, que se recusava a comportar-se bem, e me faz berrar o
nome dele – BAM! E por vezes há Acidentes.
E por isso eu agora aprendo o que posso com livros e aves e
animais e por vezes até com pessoas. Pessoas como Narcisse, e
Roux, que nunca se importam quando eu não quero falar ou
quando a minha voz não é a de uma menina pequena, mas algo
selvagem e perigoso.
A maman costumava contar-me a história de uma menina
pequena cuja voz foi roubada por uma bruxa. A bruxa, que era
esperta e insidiosa, usava a voz jovem e doce da menina para
enganar as pessoas e as levar a fazerem o que ela queria. Só a
sombra da menina pequena conseguia falar, mas raramente era
doce. Em vez disso, só dizia a verdade, e por vezes era
implacável. Tu és como aquela menina pequena, dizia a maman.
Demasiado sábia para que os tolos te compreendam.
Bem, não sei se sou sábia. Mas é certo que tenho uma voz-
sombra. No entanto, não a uso com muita frequência. As pessoas
não gostam de ouvir a verdade. Até mesmo a maman prefere não
ouvir algumas das coisas que a minha sombra diz. E por isso eu
limito-me a usar gestos a maior parte do tempo ou não dizer nada.
E quando sinto a minha voz-sombra a querer soltar-se, berro –
BAM! – e rio-me e canto e bato com os pés, como fazíamos dantes
para manter afastado o vento mau.
Quando a neve começou a cair, a maman estava a trabalhar na
loja, a fazer chocolates da Páscoa. Coelhos e galinhas e cestos de
ovos. Mendiants e nougatines. Mamilos de Vénus e corações de
alperce e rodelas de laranja amarga. Todos embrulhados em
celofane e atados com fitas coloridas e metidos em caixas e
pacotinhos e sacos, prontos para oferecer na Páscoa. Eu não
gosto lá muito de chocolate. Gosto de chocolate quente e de
croissants com recheio de chocolate, mas não quero trabalhar
numa loja de chocolates. A maman diz que toda a gente tem algum
dom. No caso dela, é fazer chocolates e saber qual é o favorito das
pessoas. No caso de Roux, é imitar o chilrear das aves e conseguir
consertar praticamente tudo. No meu caso, é desenhar animais.
Toda a gente tem um animal, uma sombra do seu verdadeiro eu. A
minha é Bam, um macaco. A da maman é um gato bravo. Roux é
uma raposa com uma cauda farfalhuda. Anouk é um coelho
chamado Pantoufle. Pilou é um guaxinim. E Narcisse é um velho
urso preto, com o seu nariz comprido e o andar arrastado e os
seus olhinhos cheios de segredos. Algumas pessoas pensam que
Bam não é real. Até mesmo a maman lhe chama «o amigo
imaginário da Rosette», especialmente quando fala com pessoas
como Mme. Drou, que nem sequer consegue ver as cores. Isso é
porque, às vezes, Bam pode ser maroto. Tenho de o vigiar o tempo
todo. Por vezes, tenho de lhe berrar – BAM! – para o impedir de
causar um Acidente.
Mas a maman só finge que não o consegue ver agora. A maman
não quer ver. Pensa que seria mais fácil se fôssemos como as
outras pessoas. Mas sei que ela ainda vê Bam. Tal como vê qual é
o tipo preferido de chocolate dos seus clientes. Tal como vê as
cores que nos transmitem os sentimentos das pessoas. Mas agora
tenta esconder essas coisas, para ser como as outras mães.
Talvez pense que se o fizer eu também serei como os outros filhos.
Quando a neve começou a cair, a maman não reparou. Estava
com duas senhoras que se ocupavam a escolher animais de
chocolate. Senhoras com vestidos de primavera, sapatos de salto
alto e casacos de tons pastel. Uma chama-se Mme. Montour. Não
vive cá, mas já a vi por aqui. Vai à igreja aos domingos. A outra era
Mme. Drou, que nunca entra na loja para comprar chocolates, mas
só para saber o que se está a passar. Estavam a falar sobre um
rapaz que era gordo e não fazia o que lhe mandavam. Não sei
quem era o rapaz. Pensei em dois papagaios ou duas galinhas
cor-de-rosa, a cacarejarem e a alisarem as penas e todas
alvoroçadas. E vi que Mme. Montour se perguntava por que é que
eu não estava na escola.
Ninguém em Lansquenet se pergunta porquê. Ninguém em
Lansquenet fica surpreendido por eu às vezes ladrar ou berrar ou
cantar: Bam-Bam-Bam: Bam, badda-BAM! Mas eu via que a
maman estava a olhar para mim. Sei que se preocupa comigo.
Costumava haver Acidentes quando eu era pequena. Coisas que
não deviam acontecer, mas aconteciam. Coisas que nos tornavam
diferentes. E uma vez tentaram levar-me embora, quando eu ainda
era bebé. Alguém tentou levar a Anouk também, quando vivíamos
em Paris. Agora, a maman preocupa-se. Não há necessidade.
Hoje em dia eu tenho cuidado.
Desenhei um periquito cor-de-rosa que era Mme. Montour e uma
galinha que era Mme. Drou. Só alguns traços para a pequena
cabeça cor-de-rosa, o bico meio aberto de surpresa. Deixei-os em
cima do balcão, onde a maman poderia vê-los, e saí. O vento
vinha do norte, e havia pétalas no chão, mas quando parei para
olhar vi que as pétalas eram flocos de neve, a rodopiarem do céu
azul primaveril como confettis.
O padre estava de pé à porta da igreja, a parecer surpreendido
com a neve que caía. O nome do padre é Francis Reynaud. Eu
não gostava dele quando viemos para cá, mas agora penso que
talvez goste. E Reynaud quer dizer «raposa», o que é uma tolice,
porque qualquer pessoa pode ver que ele é realmente um corvo,
todo de preto, com o seu sorrisinho triste e torto. Mas gosto da
igreja. Gosto do cheiro a madeira encerada e a incenso. Gosto do
vitral e da estátua de São Francisco. Reynaud diz que São
Francisco é o santo padroeiro dos animais, que deixou a vida que
tinha para viver na floresta. Eu gostava de fazer isso, mas
construía uma casa numa árvore e vivia de nozes e morangos. A
maman e eu nunca vamos à igreja. Em tempos, isso podia ter
causado problemas. Mas Reynaud diz que não temos de ir.
Reynaud diz que Deus nos vê e olha por nós onde quer que
estejamos.
E agora aí vem a neve a rodopiar, a cair de um céu azul brilhante
como uma lanterna. Um sinal – talvez até um Acidente. Abro o
meu casaco como se fossem asas e grito – BAM! – para me
assegurar de que ele sabe que a culpa não é minha. Reynaud sorri
e acena com a mão. Mas sei que ele não vê o clarão de cores que
atravessa a praça. Não ouve a canção do vento nem sente o
cheiro a queimado. São todos sinais. Vejo-os a todos. Mas sei que
ele não sabe. Neve, de um céu azul límpido. Alguém vai morrer
antes do amanhecer.
2

Sábado, 11 de março
á vai ela. Que estranha é: a minha filha de inverno; a minha filha
L de fadas. Selvagem como um bando de aves, voa para toda a
parte num instante. Não há como a manter dentro de casa, como a
obrigar a sentar-se sossegada. Nunca foi como as outras meninas,
nunca como as outras crianças. Rosette é uma força da Natureza,
como as gralhas que se empoleiram no campanário e riem, como
uma queda de neve fora do tempo, como as flores no vento.
As mulheres – as mães – como Joline Drou ou Caro Clairmont
não compreendem. O receio de ter uma criança diferente é
inimaginável. Com quase dezasseis anos, Rosette continua a não
ser capaz de falar de maneira normal. Aos olhos delas, isso torna a
minha filha um fardo; digna de pena; incompleta. Para elas, é a
Pobre Rosette, assim como, nas minhas costas, eu sou a Pobre
Vianne; deixada com aquela criança para a criar sozinha e o pai
tão chocantemente ausente.
Mas Caro e Joline não sabem como Rosette me olha quando lhe
dou um beijo de boas-noites; ou como canta para si própria na
cama; ou como é capaz de desenhar qualquer animal ou ave ou
ser vivo. Só veem uma menina pequena que nunca irá crescer, e
isso, pensam elas, é a coisa mais triste que há. Uma menina
pequena que não irá crescer nunca se apaixonará, nunca casará,
nunca arranjará emprego nem se mudará para a cidade. Uma
menina pequena que não irá crescer será um fardo para sempre, e
a sua mãe nunca poderá fazer aquele cruzeiro à volta do mundo
que tinha planeado, dedicar-se a novos e excitantes passatempos
ou conviver no clube. Em vez disso, está condenada a ficar aqui,
na sonolenta Lansquenet-sous-Tannes; não exatamente o tipo de
terra em que se esperaria ficar para sempre.
Mas eu não sou Caro Clairmont nem Joline Drou ou Michèle
Montour. E a ideia de me enraizar num lugar, de não ser levada
pelo vento, é um sonho que tenho acalentado toda a vida.
Pequenos sonhos são tudo o que sempre tive; pequenos sonhos
são tudo o que espero. Um lugar em que as sementes que eu
semeie cresçam e desabrochem em algo que eu reconheça.
Roupas penduradas num guarda-fatos. Uma mesa, gravada com
marcas familiares. Um cadeirão, moldado à minha forma. Talvez
até um gato à porta.
Como vês, não peço muito. Deve ser possível alcançar estas
coisas. E, no entanto, sempre que penso que talvez tenha
silenciado as exigências incessantes do vento, ele começa a
soprar de novo. O tempo muda. Morrem amigos. As filhas crescem
e saem de casa. Até mesmo Anouk, a minha filha do verão, com
as suas mensagens e os seus telefonemas todos os domingos – a
não ser quando se esquece –, os olhos já iluminados com a ideia
de outros lugares, novas aventuras. Anouk era sempre a que
queria instalar-se, ficar. Agora, a órbita dela mudou, e é a estrela
dele que ela segue. Era inevitável, eu sei, e no entanto por vezes
dou comigo a desejar, a desejar sombriamente...
Mas não com Rosette. Rosette é minha. Uma criança especial,
diz Caro Clairmont, com a expressão compadecida que tanto
contradiz a repugnância genuína que sente. Deve ser um fardo,
pensa Caro. Uma filha que nunca crescerá; uma criança que
nunca poderá ser normal. Não faz ideia de que isto é precisamente
o que torna Rosette tão querida para mim.
Um gato atravessou-se no teu caminho na neve, e miou. O
Hurakan estava a soprar.
Não. Afasto-me da recordação. O inverno do gato na neve, a
gaiola dourada e o círculo de areia. Fiz o que tinha de ser feito,
maman. Fiz o que as mães fazem sempre. Não me arrependo de
nada. A minha filha está a salvo. E isso é tudo o que importa.
Verifico o telemóvel. Passei a andar sempre com ele desde que
Anouk voltou para Paris. Por vezes, envia-me uma fotografia –
uma pequena janela a dar para a sua vida. Por vezes, envia-me
mensagens escritas. Adorável husky de olhos azuis à porta da
estação de Metro! Ou: Nova gelataria no Quai des Orfèvres! Ajuda
saber que posso falar com ela ou ter notícias dela a qualquer
momento, mas tento não ser exigente ou mostrar-lhe que me sinto
ansiosa. As nossas conversas ao telefone são leves e divertidas:
falo-lhe sobre os meus clientes; ela fala-me das coisas que viu.
Jean-Loup está a estudar na Sorbonne; Anouk, que também
poderia ter estudado, arranjou emprego num cinema com várias
salas. Vivem juntos num estúdio alugado no 10.º arrondissement.
Imagino-o perfeitamente: num edifício velho, com humidade nas
paredes e baratas na casa de banho, parecido com as pensões
baratas em que ficávamos quando Anouk era pequena. Ela podia
ter ficado aqui a trabalhar comigo na chocolaterie. Em vez disso,
escolheu Paris – Anouk, que nunca quis outra coisa a não ser viver
num lugar como Lansquenet.
Volto para a cozinha. Há mendiants a arrefecer numa folha de
papel vegetal; pequenos discos de chocolate polvilhados com
pedaços de fruta cristalizada; amêndoas e pistácios cortados;
pétalas de rosa secas e folha de ouro. Os mendiants sempre foram
os meus favoritos: tão simples de confecionar que até mesmo uma
criança – até mesmo Anouk aos cinco anos de idade – conseguia
fazê-los sem supervisão. Uma cereja amarga para o nariz; uma
rodela de limão para a boca. Até os mendiants dela eram
sorridentes.
Os de Rosette são mais complexos, quase bizantinos na sua
conceção; os pedacinhos de frutos cristalizados dispostos em
engenhosas espirais. Brinca com botões da mesma maneira,
alinhando-os contra os rodapés, formando padrões complexos de
arcos e frontões no soalho de madeira. Faz parte da maneira como
ela vê o mundo; como representa as suas complexidades. Caro faz
um ar sério e fala sobre distúrbio obsessivo-compulsivo e diz que é
comum nas crianças a que chama especiais, mas não há nenhum
distúrbio em Rosette. Os padrões – os sinais – são importantes.
Para onde foi ela esta manhã, tão silenciosa e determinada? Faz
frio; o duro céu azul ressoa com o vento gelado das estepes
russas. Ela gosta de brincar na margem do Tannes ou nos campos
lá em baixo junto a Les Marauds, mas do que mais gosta é do
bosque ao lado da quinta de Narcisse, um bosque a que só ela
tem acesso autorizado sem se arriscar à fúria do seu proprietário.
Narcisse, que é dono da loja de flores em frente à chocolaterie, e
que fornece fruta e legumes aos mercados e às lojas ao longo do
Tannes, tem um afeto intenso e feroz por Rosette. Viúvo há trinta
anos, decidiu adotá-la como neta de empréstimo. Com outras
pessoas, é muitas vezes de uma antipatia que raia a rudeza. Mas
com ela é indulgente; conta-lhe histórias, ensina-lhe cantigas, que
ela canta sem palavras, mas com o maior entusiasmo.
«A minha ladra de morangos», é como ele lhe chama. «A minha
avezinha com a voz secreta.»
Bem, hoje a avezinha saiu para explorar a neve que caiu há
pouco. Não vai durar, mas por agora os campos estão debruados a
branco, com os pessegueiros todos em flor. Pergunto-me o que
dirá Narcisse. A neve assim tardia é uma maldição para as árvores
de fruto e as colheitas. Talvez seja por isso que a loja dele ainda
está fechada, embora o fim de semana seja muitas vezes a melhor
altura para vender flores. Onze e meia, e as últimas pessoas a sair
da missa já foram todas para casa, para junto das suas famílias,
sob neve inesperada, com os seus casacos de domingo e as
boinas e os chapéus todos enfeitados com penas brancas. Até
mesmo Reynaud já deve ter ido para casa, para a sua pequena
casa na Avenue des Francs Bourgeois, e a padaria de Poitou na
praça está a preparar-se para fechar para o almoço. Lá em cima, o
céu está azul e impiedoso. Nem sinal de nuvens. E no entanto a
neve continua a cair, como lanugem de cardos ao vento. A minha
mãe ter-lhe-ia chamado um sinal.
Eu, claro, sei que não é.
3

Quarta-feira, 15 de março
conteceu durante a noite, mon père. Encontraram-no de
A manhã. Não tinha vindo abrir a loja, como faz sempre ao
domingo, e a rapariga que está lá durante a semana foi a casa
dele e encontrou-o sentado na cadeira no alpendre, de olhos ainda
abertos, frio como a pedra. É claro, já tinha quase oitenta anos, de
qualquer maneira uma morte súbita é sempre uma surpresa,
mesmo para alguém que não deveria sentir choque nem pena.
Não que Narcisse se fosse importar muito se eu chorasse ou não
a sua morte. Nunca foi homem de ir à igreja e não guardava
segredo do seu desprezo por mim e por tudo o que represento.
Mas a filha dele, Michèle Montour, é uma paroquiana entusiástica,
embora ela e o marido, Michel, vivam do outro lado de Agen. São
sempre delicados e respeitosos para comigo, embora não possa
dizer que goste muito deles. É uma daquelas mulheres a quem
Armande Voizin costumava chamar «groupies da Bíblia», todas
sorrisos na igreja, mas azedas quando lidam com os socialmente
desfavorecidos.
Michel Montour é promotor imobiliário e conduz um todo-o-
terreno que nunca parece andar fora da estrada. Ambos gostam de
dinheiro, o que, suspeito, foi o que os fez reaparecer na vida de
Narcisse há dois anos e a razão pela qual se tornaram tão súbita e
sofregamente atenciosos. Antes disso, Narcisse nunca os via ou
mencionava sequer que tinha uma filha. E, embora ao longo
desses dois anos Michèle o tenha visitado todos os domingos à
tarde, se mostrasse preocupada com a saúde dele e lhe levasse
chocolates, não penso que Narcisse tenha acreditado na súbita
demonstração de afeto da filha. Talvez ele não gostasse muito de
mim, mas era um bom avaliador do carácter das pessoas. Severo,
com um sentido de humor seco e algo surpreendente que muitas
vezes se manifestava no seu trato com as gentes do rio e com a
pequena comunidade de Les Marauds – os imigrantes e as aves
de arribação, a quem dava autorização para acamparem,
trabalharem e viverem sem pagar renda nas suas terras. As suas
relações com Michèle e Michel eram secamente cordiais, nada
mais. Nunca se iludiu. A filha andava atrás do dinheiro dele.
Suspeito que quando Michel e Michèle se tornarem proprietários
daquelas terras, o seu interesse por Lansquenet cessará. Os
amigos que fizeram na vila são meros conhecidos. A sua vontade
de pertencerem à minha igreja – como as visitas de Michèle à
chocolaterie – era simplesmente um meio de consolidar o tipo
certo de perfil na vila. Narcisse deixara bem claro que queria que a
sua quinta continuasse a ser trabalhada. Queria que a sua loja de
flores se mantivesse como parte da nossa pequena comunidade.
Agora que Narcisse se foi, desapareceu também a necessidade de
manter o fingimento. A quinta será retalhada; a loja arrendada; a
terra vendida para a construção de casas. É isto o que acontece. O
trabalho de uma vida desmantelado em menos tempo do que
aquele que demora a fazer uma colheita.
Ou assim o supusera eu, mon père. Mas Narcisse surpreendeu-
me. De todas as pessoas a quem ele poderia ter pedido – amigos,
vizinhos, família – para serem o seu executor testamentário, foi a
mim que ele escolheu, para grande irritação de Michel e Michèle,
que devem ter julgado que tinham a herança mais ou menos
assegurada. Contudo, nem eu conhecia os pormenores do
testamento de Narcisse até ter sido lido hoje em Agen, logo a
seguir ao funeral do velho senhor. Foi um evento muito simples e
discreto no crematório, com tanta cerimónia quanta o breve serviço
permitiu. Era o que ele queria, disse Michèle com reprovação. É
claro que ela teria preferido algo mais adequado à sua posição
social. Talvez a oportunidade de usar um novo chapéu, de levar
um lenço aos olhos. Em vez disso, os amigos dela – os Clairmont,
os Drou – desdenharam da cerimónia não religiosa, e só restaram
os amigos de Narcisse – as gentes do rio, das barcaças, os
homens e as mulheres de Les Marauds – para prestarem uma
última homenagem ao velho senhor.
Estas são as pessoas que nunca vejo na minha igreja aos
domingos: pessoas com cabelo entrançado e tatuagens; pessoas
com vestes indianas e islâmicas. E, claro, Vianne e Rosette,
ambas vestidas com cores vivas, como que num desafio à própria
morte.
Roux não estava lá. Evita a cidade, preferindo ficar em Les
Marauds. O barco dele está ancorado junto às velhas fábricas de
curtumes, onde as gentes do rio têm a sua comunidade, fazendo
fogueiras na margem e cozinhando as suas refeições em potes de
ferro fundido. Houve uma época em que eu poderia ter-me sentido
relutante em aceitar estes visitantes. Recordo com vergonha o
homem que costumava ser. Mas Roux não o esqueceu e mantém-
se tão longe quanto pode. Se não fossem Vianne e Rosette, penso
que ele teria abandonado a região de vez. Nunca teve um lar nem
ficou num só lugar durante muito tempo. Mas gostava de Narcisse,
que lhe deu trabalho e abrigo quando mais ninguém em
Lansquenet o fez, e por isso fiquei surpreendido quando ele não
apareceu.
Roux também não compareceu à leitura do testamento. Sendo
quem é, só recebe o correio que quer receber, o que significa que
tudo o que tenha um selo oficial não lhe chega às mãos ou é
discretamente deitado para um dos caixotes do lixo na margem do
Tannes. Só Michel e Michèle Montour estavam comigo no
escritório da advogada em Agen, numa expectativa delicada de
uma surpresa discretamente prevista. Em vez disso, houve um
silêncio estupefacto, seguido por vozes erguidas e depois por uma
tempestade de perguntas incrédulas, todas dirigidas a mim, claro,
com Michel e Michèle a exigirem saber como eu conseguira
enganar o pobre Papa para ele deixar um bem valioso a um
homem que nem sequer tinha conta bancária ou casa própria...
O nome da advogada é Ying-Ley Mak: uma jovem elegante de
origem chinesa cujo francês perfeito e nome estrangeiro já fizeram
com que Michel e Michèle trocassem olhares significativos. Agora,
abespinhavam-se todos indignados, a olhar do padre para a
advogada, da advogada para o padre, o choque e a agitação a
intensificarem-se.
– Estritamente falando, as terras não foram deixadas a Monsieur
Roux – explicou Mme. Mak na sua voz baixa. – Ele é
simplesmente o curador legal de Rosette Rocher, a quem o seu pai
deixou a terra, e que ainda é menor.
– É criminoso – disse Michèle Montour. – Deve ter havido uma
influência indevida.
Chamei a atenção para o facto de nos últimos cinco anos Roux
mal ter visto Narcisse, a não ser talvez para o cumprimentar. –
Além disso – prossegui –, o seu pai não os excluiu propriamente
do testamento. Deixou-lhes a casa da quinta; o dinheiro; a maior
parte das terras de cultivo...
– Não têm qualquer valor – disse Michel Montour – sem o
bosque adjacente. Dezasseis hectares de uma mata de carvalhos,
próprios para lotear, já para não mencionar a madeira, que tem um
valor comercial significativo. Porque é que o meu sogro deixaria
tudo isso a um homem que mal conhece? Qual é a história por
detrás disto? E quando podemos revogar isto?
Calmamente, expliquei que, como executor testamentário de
Narcisse, não estava em posição de revogar nada.
– Mas isto não está correto! – disse Michèle, o seu verniz de boa
educação a começar a estalar. A pronúncia afetada que
geralmente usa, uma pronúncia arrastada do norte, voltou para o
seu padrão natural de inflexões nasais e picos estridentes. – Isto
não está correto! Nós somos a família dele. Viemos para cá para
olhar por ele. Até passámos a pertencer à igreja dele, por amor de
Deus... – Fez uma pausa na sua tirada para me fitar com um olhar
de suspeita. – Está realmente a tentar dizer-me, mon père, que é a
primeira vez que ouve isto? Que ele nunca falou do assunto com o
senhor?
Garanti-lhe que Narcisse não falara comigo e, não pela primeira
vez, ocorreu-me a ideia de que ele teria adorado esta cena de
crescente anarquia. Teria adorado o meu embaraço, a fúria dos
seus parentes e a incompreensão delicada de Mme. Mak, que não
previra nada disto.
– Ele deve ter deixado documentos – disse Michèle. – Alguma
espécie de mensagem para nós, pelo menos.
Mme. Mak disse: – O seu pai deixou um documento à atenção
de Père Reynaud. Deixa claro na carta que o documento em
questão que o acompanha é só para Père Reynaud e para mais
ninguém.
– Mas não faz sentido – gemeu Michèle. – Porque é que o Papa
nos faria isto? À sua própria família?
– Lamento muito – disse Mme. Mak. – Receio não poder discutir
os pormenores do caso. O seu pai deixou um testamento muito
claro. A quinta, exceto a velha mata de carvalhos, para a senhora.
A loja na vila, também para si. Os dezasseis hectares de mata,
juntamente com quaisquer estruturas e o seu conteúdo, a serem
mantidos num fundo por M. Roux, para entregar a Mlle. Rocher no
seu vigésimo primeiro aniversário.
– Que conteúdo? – disse Michèle Montour. – Está a dizer que há
algo mais? Uma estrutura? Que tipo de estrutura?
Mme. Mak limitou-se a abanar a cabeça e entregou-me uma
pasta verde grossa, atada com um fio cor-de-rosa e com o meu
nome escrito numa etiqueta numa letra manuscrita de outro século.
– Isto foi deixado para o senhor – disse ela. – O meu cliente
insistiu que o lesse até ao fim.
Mas Michèle não abandonara a luta. – O meu pai nunca teria
feito isto sem estar sob o efeito de alguma espécie de influência
indevida. Exijo ver essa pasta. Não pode recusar-se a mostrar-ma!
Mme. Mak abanou a cabeça. – Lamento, madame. O seu pai
deixou bem claro que ninguém a não ser M. le Curé...
– Não quero saber! – exclamou Michèle. – O meu pai era velho.
Já tinha perdido o tino. Não tinha o direito de nos fazer isto a nós,
a família dele, que o adorávamos. – Virou-se para mim, a pedir
apoio. – Mon père. Nós não somos pessoas ricas. Trabalhámos no
duro para chegar aonde chegámos. Vamos à igreja. Pagamos os
impostos. Temos um filho, cujos cuidados especiais nos custam
todo o dinheiro que ganhamos. E agora, quando o pobre rapaz ia
receber a herança... compreende que isto não é para nós, só
estamos a pensar no nosso rapaz...
– Um filho? – perguntei. Aquilo era novidade para mim. Nos dois
anos em que tinham vindo à minha igreja, nunca ouvira nem um
nem o outro mencionar um filho. Queria fazer-lhes perguntas sobre
o rapaz. Que idade tinha? Quais eram as suas necessidades
especiais? E porque é que a sua mãe não mencionava o nome
dele? Mas Michèle estava lançada e não podia ser silenciada
assim tão facilmente.
– Quem é esse tal Roux, de qualquer maneira? O que é que ele
quer? Porque não está aqui? O que é que o meu pai queria dizer
com quaisquer estruturas e conteúdo? Porque é que um homem
como o meu pai deixaria dezasseis hectares de terra a uma
criança? – Inspirou fundo, trémula. – E alguém pode, por favor,
dizer-me: quem diabo é Rosette Rocher?
4

Quarta-feira, 15 de março
oi Reynaud quem trouxe a notícia. Narcisse partiu deste mundo.
F Mas eu já sabia. Alguém andou a fazer das suas. Alguém
causou um Acidente. E agora ele deixou-me o seu bosque de
morangos, e toda a gente anda a falar de mim.
Julgam que eu não compreendo, mas compreendo. É o meu
bosque. Muito meu. E ninguém vai vendê-lo, cortar as suas
árvores ou tentar impedir-me de lá ir. Vou construir uma casa para
mim, entre os fetos e as silvas. Vou viver de avelãs e azedas e
morangos silvestres. E lá ninguém me vai incomodar ou rir das
coisas que eu faço, porque o bosque pertence-me a mim e mais
ninguém lá irá. A não ser Pilou, e mesmo esse só em ocasiões
especiais. E, talvez, se Anouk vier a casa...
Sinto saudades de Anouk. Não tanto como a maman, mas, de
qualquer maneira, parece que há algo de errado assim, sem ela.
Sempre fomos três, as três unidas contra o mundo. Anouk ficou em
Paris para estudar. Mas isso foi há mais de dois anos. Ela já devia
ter voltado para casa. Mas Jean-Loup vive em Paris, e Anouk quer
estar com ele. E a maman está diferente em pequenas coisas; e
fala demasiado alto e ri-se muito e preocupa-se quando saio
sozinha e por vezes chora de noite. Nunca chora alto. Mas eu sei.
Sinto o cheiro das lágrimas e sinto o vento puxar as persianas.
BAM! Aquele vento. Nunca para. Cheira a fumo e a especiarias.
Vem de todos os lados ao mesmo tempo; do sul quente; do leste
que chama; do oeste melancólico; do norte nebuloso. Brinca entre
as folhas caídas; puxa as madeixas ruivas do meu cabelo. Por
vezes, é um macaco. Por vezes, uma senhora com sapatos de
rebuçado. Mas nunca está longe, e agora está a aproximar-se. Se
eu o chamasse, traria Anouk de volta a Lansquenet numa rajada.
Se eu o chamasse, ela viria, e a maman voltaria a ficar feliz...
V’là l’bon vent, v’là l’joli vent
V’là l’bon vent, ma mie m’appelle...
Mas por vezes há Acidentes. É por isso que eu não chamo o
vento. Pelo menos não com a minha voz-sombra, a que só diz a
verdade. E a maman não sabe o quanto eu gosto de escutar o
vento. Não o ouve cantar para mim numa voz como tempo de
verão. Não sabe o quanto eu gosto de o chamar na minha voz-
sombra e como tenho de o repreender – BAM! – para voltar a
controlá-lo.
Mme. Clairmont acha que eu tenho uma coisa chamada
Síndrome de Tourette. Ouvi-a mencionar isso à maman,
especialmente em dias barulhentos. Mas Narcisse costumava
dizer: «Não rotulem a criança. Ela não é um embrulho.» E Mme.
Clairmont ficava com um ar contrariado e fazia-lhe uma cara de
limão azedo, e depois Narcisse piscava-me o olho e sorria e dizia
numa voz baixa e áspera que só eu conseguia ouvir: – Não lhe
prestes atenção. Ela tem Síndrome de Intrometida em alto grau.
Pode matá-la a qualquer momento.
Era uma piada. Compreendo isso agora. Não existe a Síndrome
de Intrometida. Não se pode morrer de bisbilhotice. Narcisse era
muitas vezes assim engraçado. Nem sempre se conseguia
perceber quando estava a brincar. Mas era meu amigo, desde
aquele dia em que me apanhou a roubar-lhe morangos. Antes
disso, eu não conhecia Narcisse. Pensava que ele era só um velho
rabugento que por vezes vinha à loja de chocolates. Nunca
comprava muita coisa – um coração de damasco ou uma única
fatia de bolo. Mas a maman gostava dele. Roux também gostava
dele. E ele nunca se ria de mim nem me falava como se eu fosse
surda ou falava sobre mim como se eu não compreendesse, como
faz sempre Mme. Clairmont.
Tento dizer-lhe que gosto de comunicar por sinais. Não porque
seja surda – BAM! – ou porque não consigo falar da maneira
normal, mas porque é seguro e fixe e não atrapalha as coisas.
Madame Clairmont não quer saber. É como um cãozinho de colo,
toda cheia de melindres. Faz-me ter vontade de lhe ladrar. E
quando ela fala com a maman é sempre naquela voz de leito de
morte: «Como está a pobre Rosette hoje? Vianne, não sei como
aguenta.» E a maman responde sempre: «A Rosette é o que me
faz aguentar, Caroline.»
Narcisse e eu tornámo-nos bons amigos há seis verões, quando
eu tinha nove anos. Um dia, quando Pilou estava nas aulas e eu
estava com o Bam à beira-rio, decidi ir explorar. Atravessei os
campos e encontrei um caminho pequeno para um bosque,
cercado por uma vedação de arame e com uma cancela com um
cadeado, para manter as pessoas de fora. Nunca gostei de coisas
fechadas. Apetece-me sempre ver o que está dentro. E foi o que
fiz: havia uma parte onde o arame estava solto do poste. Não era
suficientemente grande para um adulto passar, mas foi fácil eu
enfiar-me pelo buraco. O Bam, claro, pode ir a toda a parte. Como
o vento, vai aonde quer. E havia tantos lugares aonde ir. Moitas de
silvas. Árvores caídas. Fetos, violetas e maias, caminhos todos
forrados a musgo verde macio. E mesmo no meio do bosque havia
uma clareira, com um círculo de pedras e um velho poço no centro,
ao lado de um grande carvalho morto, e tudo – ramos caídos,
pedras dispostas, até o poço com a sua nora enferrujada –
drapeado e enfeitado e recamado com folhos e franjas de
morangos, com melros a debicarem os frutos e um perfume a
verão.
Não era como o resto da quinta. A quinta de Narcisse é muito
ordenada, com tudo no seu lugar. Um pequeno campo para
girassóis; um para couves; um para abóboras; um para
alcachofras. Macieiras para um lado; pêssegos e ameixas para o
outro. E nas estufas havia narcisos, túlipas, junquilhos; e na época
própria alfaces, tomates, feijões. Tudo ordenadamente plantado,
em renques, com redes para impedir os pássaros de roubarem.
Mas aqui não havia redes ou estufas ou espantalhos para afastar
os pássaros. Só aquela clareira de morangos e o velho poço no
círculo de pedras. Não havia balde no poço. Só a nora estragada e
a pia e uma grade a cobrir o buraco, que era muito fundo e não
totalmente a direito e estava cheio de fetos e tinha aquele cheiro a
pântano. Quando se olhava pela grade, podia ver-se um disco de
céu refletido na água e florzinhas cor-de-rosa a despontarem entre
as fendas na pedra velha. E havia uma espécie de corrente de ar a
vir lá de baixo, como se estivesse alguma coisa ali escondida e a
respirar, muito discreta.
Depois daquela primeira vez, voltámos lá muitas vezes. Bam e
eu comíamos morangos até não querer mais, sentados junto
àquele poço que já não era usado, e por vezes brincávamos e
corríamos e cantávamos e andávamos às voltas como esquilos.
Por vezes, eu fazia de conta que o círculo de pedras era um anel
de fadas e que o poço era um poço dos desejos que faria com que
os meus sonhos se tornassem realidade. Nesses dias, atirava uma
moeda ou uma pedrinha ou uma bolota pela grade enferrujada e
escutava o som que fazia ao cair lá muito em baixo, no escuro. E
pedia para ter um amigo com quem brincar e um bloco de desenho
de tamanho gigante e uma caixa grande de lápis de cor, das que
trazem cem cores, e que Anouk voltasse em breve e que nós
fôssemos outra vez uma família.
E depois um dia tive uma surpresa. Tinha estado a apanhar
morangos. Estava com sumo à volta da boca toda e um colar de
folhas de morangueiro ao pescoço. Tinha trazido um grande frasco
de vidro da loja. Estava a pensar que podia fazer compota, e a
cantar uma canção de fazer compota: Compota-Bam-Bam, Bam,
badda-compota...
E depois veio um som do caminho, algo como um cão a rosnar, e
era Narcisse, de pijama por baixo do seu velho sobretudo
castanho, e botas, os seus olhos por baixo de umas sobrancelhas
farfalhudas a fitarem-me furibundos, e a parecer-se mais com um
urso do que nunca.
– Que raio estás a fazer aqui? Isto é uma propriedade privada!
Eu nunca o tinha ouvido berrar. Pensei que talvez estivesse
furioso por eu ter tirado os morangos. Por isso, deixei cair o frasco
e fugi a correr tão depressa quanto podia. Ouvia-o a berrar atrás
de mim, a soar arrependido e furioso e triste, mas continuei a
correr, pelo bosque, passei por baixo da vedação e fui ao longo da
sebe em direção ao rio.
Não voltei ao bosque depois daquilo. Tinha muito medo de
Narcisse. Pensei que a ida dele lá talvez tivesse sido uma espécie
de Acidente. Em vez disso, ia brincar para Les Marauds e
mantinha-me do meu lado do rio e observava a quinta por trás da
sebe e via Narcisse com o seu trator.
Mas daí a três dias ele veio à nossa loja. Eu estava debaixo da
mesa – chiu! – a brincar com a minha caixa de botões. A sineta da
porta soou e eu vi as botas dele de debaixo da toalha de mesa
vermelha e branca. Ele caminhava como um urso, muito pesado e
lento. Soube logo que era Narcisse. Esperava que só tivesse vindo
comprar chocolates, não para contar à maman que eu tinha
andado a brincar no seu bosque privado. Por isso, entrei num
ratinho, muito calada e quieta. As botas entraram e pararam junto
à mesa. Eu sentia o cheiro delas, couro e terra de verão. A seguir,
ele levantou a toalha e eu vi que trazia um cesto na mão.
O cesto estava cheio de morangos.
Fiz um pequeno som de aviso, como uma ratazana num canto.
Ele sorriu e pousou o cesto. Eu sentia agora o cheiro dos
morangos. Depois, ele disse: – Para a ladra de morangos. Come
os que quiseres.
Por um momento, pensei que se fechasse os olhos ele não
poderia ver-me. Mas quando os abri outra vez, ele ainda ali estava,
a espreitar para debaixo da mesa com a sua barba gigante como
uma nuvem farfalhuda.
– Devo-te um pedido de desculpas – disse ele numa voz
bastante delicada. – Não tinha a intenção de te assustar ou de te
fazer fugir. Espero que possamos ser amigos, tu e eu.
Fiz um som de melro na brincadeira e deitei-lhe a língua de fora.
– A tua mãe disse-me que gostas de desenhar. Trouxe-te isto. –
E entregou-me um bloco de desenho novinho em folha e um estojo
com cem lápis.
Eu fiz um som de excitação e as chávenas todas que estavam
em cima da mesa dançaram. A maman disse: – Rosette, tem
cuidado! – Mas eu estava demasiado entusiasmada para parar. As
pedras das fadas e o poço dos desejos tinham-me enviado aquilo
que eu queria. Obriguei Bam a fazer uma dança da vitória e
depois, na primeira página do meu bloco, fiz um desenhinho rápido
de um macaco a abraçar um grande urso castanho e assinei:
Obrigada! Adoro-os!
Narcisse riu-se. – Não tens de quê. Vai ao bosque as vezes que
quiseres. É um lugar especial, só para pessoas especiais. Come
os morangos. Trepa às árvores. Mas mantém-te afastada daquele
poço velho. Não quero que caias lá dentro.
Acenei-lhe com a cabeça por detrás da toalha de mesa.
– Promete-me que vais ter cuidado, Rosette. Quero ter a certeza
de que compreendeste.
– Prometo – disse eu na minha voz-sombra, para lhe mostrar
que falava a sério.
Ele estendeu-me a mão. – Então, negócio fechado.
É claro que eu não cairia ao poço. Nunca punha o peso do corpo
em cima do tampo. Mas não podia manter-me afastada do poço.
Tinha de continuar a atirar moedas lá para dentro até Anouk voltar.
*
Depois disso, o bosque dos morangos tornou-se o meu local
preferido. No verão apanhava a fruta e corria ao longo dos
caminhos entre as árvores, e no outono apanhava bolotas e
deitava-me de costas a ver o céu por entre os ramos. Na
primavera, colhia violetas e flores do alho silvestre junto à margem
do rio. No inverno construía túneis debaixo das silvas, e ao longo
de todo o ano observava o poço e escutava a sua respiração e por
vezes atirava uma moeda ou uma pedrinha para a água e
segredava ao escuro.
E é por isso que não fiquei realmente surpreendida quando a
maman me disse que Narcisse me tinha deixado o bosque dos
morangos e o círculo de pedras e o poço dos desejos. Deve ter
querido que fossem para mim desde o princípio. Porque há uma
história naquele poço, uma história que ele quer que eu conheça.
A maman está sempre a dizer que são as histórias que nos
mantêm vivas; as histórias que as pessoas nos contam e se
espalham como lanugem de cardos no vento. E as histórias são
tudo o que fica de nós quando nos vamos, diz-me ela, enquanto o
frio vento norte entoa a sua canção melancólica a sobrepor-se ao
som da neve a derreter-se.
Sei a história de uma ave que anda entre a terra dos mortos e a
terra dos vivos. Essa ave leva mensagens dos mortos aos seus
entes queridos. Um homem chora a sua mulher morta. Todos os
dias, a ave mensageira vem sentar-se no peitoril da janela do
homem e canta. É uma canção de amor e esperança; uma
mensagem de além-túmulo, a dizer-lhe que a sua mulher ainda o
ama e está à espera. Mas o homem, na sua dor, não compreende.
Só compreende a sua perda. E por isso mata a ave mensageira
para a silenciar para sempre. Mas as outras aves já aprenderam a
sua linda canção. E por isso a canção passa por florestas e
campos e atravessa até o oceano até a mensagem de amor eterno
passar a ser cantada por todas as aves no céu.
A loja de Narcisse está vazia hoje; a montra toda tapada com
folhas de jornal. A maman diz que é porque os espíritos podem
ficar aprisionados nos reflexos. Isso deve ser verdade, porque
quando alguém morre cobrem-se os espelhos com panos. Por
vezes, param-se os relógios também, para que os mortos possam
entrar no Céu antes de o Diabo saber que horas são. Mas
Reynaud diz que isso não é verdade. Diz que não acredita em
espíritos. Eu digo por sinais: E então o Espírito Santo? Mas penso
que ele não compreende. E Narcisse não acreditava em Deus e no
Diabo ou mesmo em espíritos. É preciso acreditar em espíritos
para se tornar um espírito? Ele agora não está em lado nenhum?
Ou estará preso por detrás do vidro da montra da loja de flores?
Para mim, os espíritos são só pessoas com histórias inacabadas
para contarem ao mundo. Talvez seja por isso que tentam voltar. E
talvez eu possa dizer a Narcisse que está tudo bem, que estou a
olhar pelo bosque de morangos, que posso terminar a história
dele. Era no que eu estava a pensar hoje enquanto brincava no
bosque de morangos, enquanto caminhava ao longo da margem
do Tannes, enquanto olhava para dentro do poço dos desejos e
atirava lá para baixo uma moeda em nome dele...
Mas não havia sinal dele em lado nenhum. Devia estar preso por
detrás do vidro. E por isso, quando a maman estava a fechar a
loja, atravessei a praça para ir ver. Pus-me muito perto da montra e
espreitei pelos espaços entre as folhas de jornal. A loja está vazia
agora. Está quase escuro lá dentro, por causa do papel que tapa a
montra. As filas de bancos que ali costumavam estar para os
baldes com flores já se foram. O chão é de tábuas de madeira
despidas e nada mais. Só uns restos de flores e poeira. Mesmo o
velho calendário de sementes na parede se foi, deixando o seu
fantasma contra o estuque desbotado.
Afastei-me da montra para tentar ver os reflexos. Não havia
muito mais do que uma tira de vidro entre as folhas de jornal.
Perguntei-me se veria os olhos dele, a olharem das sombras. Mas
só conseguia ver o meu próprio rosto – o fantasma de mim
mesma, a olhar-me.
Disse: – Narcisse?
Na janela, vi Bam, a fazer caretas de marotice.
Não o mandei parar. Precisava de saber. Repeti, um pouco mais
alto: – Narcisse?
Começou a soprar um ventinho. Um ventinho de nada, um vento
brincalhão. Cheirava a primavera e a neve a derreter-se e a
prímulas e a promessas. Soprou-me ao ouvido como uma criança
na brincadeira, segredou como um poço dos desejos.
Eu disse: – Narcisse?
Puxou-me o cabelo. Dava a sensação de dedos a provocar.
Refletido no vidro, eu via Bam, ainda a fazer caretas e a rir-se.
Sabia que devia obrigá-lo a parar antes que ele fizesse alguma
coisa má, mas agora o vento estava na minha cabeça, a deixar-me
estonteada, a fazer-me dançar...
E depois algo se moveu. Vi alguém. Não Narcisse, mas outra
pessoa – uma mulher, de costas para mim, refletida no vidro da
montra. Uma mulher, ou uma ave, pensei – ou talvez tivesse algo
de ambas. Uma senhora toda de preto e branco, como talvez uma
pega...
Só a vi durante o tempo que me levou a afastar-me da montra,
mas o que vi fez-me pensar que talvez a tivesse visto algures
antes...
Afastei-me da janela. – BAM!
Voltei a olhar. A senhora tinha desaparecido. Talvez fosse um
espírito, pensei. Um espírito com uma história inacabada. Mas
agora conseguia ver alguma coisa através do vidro da montra, uma
coisa que tinha a certeza de que não estava lá antes. Uma só pena
preta nas tábuas do soalho, entre os restos de flores e a poeira.
5

Quinta-feira, 16 de março
oje a manhã estava soalheira e esplêndida, e a maman estava
H a fazer coisas da Páscoa. Havia ovos, galinhas, coelhos e
patos, todos de diferentes tamanhos e variedades de chocolate, e
a maman estava a decorá-los com folha de ouro, açúcar
granulado, rosas de açúcar e frutos cristalizados. Mais tarde, ia
embrulhá-los em celofane, como fabulosos ramos de flores, cada
um atado com uma fita comprida de uma cor diferente e toda
encaracolada, e pô-los todos em prateleiras nas traseiras da loja,
parte da sua decoração anual da Páscoa.
Esta manhã, a maman está feliz. Recebeu uma mensagem de
Anouk hoje. Ela vem a casa na Páscoa em vez de ficar em Paris
com Jean-Loup. Eu não lhe disse que tinha andado a atirar
moedas para o poço dos desejos todos os dias. Não queria
estragar a surpresa ou pô-la preocupada por eu poder cair ao
poço. E ter Anouk de volta vai ser divertido. Vamos fazer todos os
pratos preferidos dela. Eu vou mostrar-lhe o meu bosque e o meu
poço dos desejos. E talvez ela goste tanto dele que queira ficar, e
podemos voltar a estar as três juntas.
Mas continuo a não saber a história de Narcisse e do bosque dos
morangos. Toda a gente anda a falar dele hoje, a perguntar porque
é que ele mo deixou a mim. Entram para comprar chocolates, mas
na realidade o que querem é fazer perguntas. Porque é que o
Narcisse deixou as terras dele à Rosette? O que é que ela vai
fazer com elas? Quanto acha que valem? Ninguém parece
compreender que, para ele, era um lugar especial.
Ajudei a maman na loja o dia todo. Principalmente porque queria
ouvir o que as pessoas tinham a dizer sobre o meu bosque, mas
também para ver se alguém entrava na loja das flores, ou saía.
Tivemos muitos clientes. Primeiro foi Guillaume, que vem todos os
dias tomar um chocolate quente. Depois foi Mme. Clairmont, e M.
Poitou, o padeiro, e Mme. Mahjoubi, lá de baixo, de Les Marauds,
e Mme. Montour e Mme. Drou.
Mme. Montour não disse grande coisa. Não fez perguntas sobre
o bosque. Mas pôs-se a olhar para mim da mesa a que se sentou
junto à porta e a sorrir-me com os lábios, mas não com os olhos, e
a falar com a maman sobre a neve e não acabou de tomar o
chocolate quente. Mme. Montour já cá tem estado antes. Por
vezes, vem aos fins de semana, com Mme. Clairmont, depois da
missa. Mas esta foi a primeira vez que veio a meio da semana. E
foi a primeira vez que olhou para mim. Acho que a faço sentir-se
desconfortável.
E depois esqueci-me de Mme. Montour, porque Pilou apareceu à
porta. Foi uma surpresa, porque Pilou já não vinha à loja há algum
tempo.
– Pilou! – disse eu na minha voz-sombra, e Bam deu uma
cambalhota louca. Pilou já não vê Bam, e a maman lançou-me um
olhar de aviso, e os sinos na cortina da cozinha estremeceram e
soaram como pingentes de gelo.
Pilou acenou-me com a cabeça. Estava com uma camisola
vermelha e calças de ganga e trazia a pasta da escola. Volta cedo
da escola às quintas-feiras. Eu sei. Por vezes vejo-o sair do
autocarro. Por vezes, tem tempo para brincar, mas ultimamente
tem tido muito que fazer. Vinha com a mãe dele – Joséphine, que é
dona do Café des Marauds – e agora eu via que ele estava com a
cara tão vermelha como os saquinhos de seda pendurados à
porta.
Joséphine soltou um suspiro profundo. – Meu Deus, que dia! –
disse, sentando-se numa das cadeiras junto ao balcão. – Nem
imaginas como tenho andado atarefada. – Apontou para o bule de
chocolate quente em cima do balcão e disse: – Ainda sobra
algum?
A maman sorriu. – É claro que sim. E podes provar os meus
churros acabados de fazer, com molho de groselha ou chocolate, e
contar-me as novidades todas.
– Tu é que tens novidades para contar – disse Joséphine,
pegando na chávena de chocolate quente e acrescentando-lhe
natas batidas e marshmallows. – Ouvi dizer que o Narcisse deixou
a quinta dele à Rosette.
– Não toda – disse a maman, a polvilhar os churros acabados de
fazer com açúcar e canela. – Só a pequena mata de carvalhos ao
longo da propriedade.
Joséphine arregalou os olhos. – Isso é incrível. Tu já sabias? E
porque é que ele havia de a deixar à Rosette?
A maman encolheu os ombros. – Ele gostava da Rosette.
– O que é que vais fazer com a mata? Vendê-la?
A maman abanou a cabeça. – Como poderia? Pertence-lhe a
ela.
Da sua mesa, Mme. Montour ainda estava a olhar para mim por
cima da chávena de chocolate quente. Pilou continuava junto à
porta, corado e com um ar impaciente. Reparei que tinha cortado o
cabelo, um destes novos cortes da moda.
Queres provar os churros?, disse-lhe eu por gestos. São bons.
Mas Pilou limitou-se a abanar a cabeça. – Maman, temos de ir
embora. Ainda chego atrasado.
– Só um minuto – disse Joséphine. – Porque é que não falas um
bocadinho com a Rosette? Vão uns amigos dele lá a casa – disse
ela à maman. – São os anos da namorada dele. Mas ainda temos
bastante tempo. Senta-te, Pilou. Descontrai um bocado, por amor
de Deus. Come um churro.
Pilou sentou-se, mas não descontraiu e não comeu um churro.
Perguntei-me se estaria zangado por algum motivo. As cores dele
eram como uma fogueira. Depois, perguntei-me o que Joséphine
quisera dizer com os anos da namorada dele. Pilou não tem
namorada.
Fiz um som de ave e Bam fez chocalhar e tilintar a cortina de
contas. Mas Pilou não se riu, nem sorriu. De facto, não parecia
querer estar ali, o que me pôs triste. Dantes éramos tão bons
amigos, antes de ele ter ido para o lycée. Desenhei-o como um
guaxinim todo contrariado sentado em frente a um bolo de
aniversário.
Ele começou a sorrir, mas depois decidiu que não e voltou a
fazer cara de impaciente. – Anda lá, maman – disse. – Vamos
chegar atrasados!
Joséphine suspirou. – Desculpa lá, Vianne. Volto noutro dia.
E depois levantou-se sem sequer acabar de tomar o chocolate
quente, e Pilou disse: – Até à vista, Rosette – e atravessou a praça
a correr, com a pasta da escola atirada sobre as costas.
Por um momento, eu quis que ele escorregasse nas pedras da
calçada e se magoasse, mas só disse: – BAM! – E virei-lhe as
costas e vi que Mme. Montour se tinha ido embora.
A maman disse: – Por vezes, os rapazes são estúpidos. – E
serviu-me uma chávena de chocolate quente.
Eu abanei a cabeça. Ainda estava a sentir-me triste. E não
queria chocolate quente. Queria ficar só, no meu bosque, onde
ninguém me podia ver ou ouvir. Sabia que a maman estava a
tentar ajudar, mas, de alguma maneira, isso fazia-me sentir ainda
pior. A maman não se dá conta de que eu já não sou uma menina
pequena. Por vezes, penso que a maman ainda acredita que o
chocolate pode resolver qualquer problema.
6

Quinta-feira, 16 de março
coisa toda dá a sensação de ser uma partida. Pregada a Roux,
A a Mme. Montour e acima de tudo a mim, mon père. Sei que não
devia falar mal dos mortos, mas Narcisse foi sempre um homem
difícil: seco como uma mancheia de folhas no outono; não morria
de amores pela Igreja e gostava de me colocar em situações
desvantajosas.
Fui procurar Roux ao barco onde ele vive para lhe explicar a
situação. Ele tem-no ancorado junto às antigas fábricas de
curtumes, no extremo mais afastado de Les Marauds. Aquela parte
da vila de Lansquenet, em tempos quase em ruínas, tornou-se
outra comunidade, principalmente de famílias imigrantes:
magrebinos, sírios, norte-africanos e árabes. Abriram lojas que
vendem todo o tipo de alimentos ao longo do Boulevard des
Marauds. Lojas com nomes como Epicerie Bismillah e
Supermarché Bencharki; e uma série de minúsculas bancas a
venderem talhadas de melancia, leite de coco ou caixas de
chamuças caseiras, cada uma coberta por um lenço acetinado de
uma cor diferente.
Sei que os lenços são uma espécie de código para identificar
quem fez as chamuças. O de Fatima al-Djerba é vermelho; o da
filha dela, Yasmina, é amarelo. A filha de Yasmina, Maya, também
tem uma caixa – o lenço dela é branco, as chamuças grossas e
mal formadas. Mas Maya só tem dez anos, e por isso podemos
perdoar-lhe.
Roux estava a pescar no Tannes quando eu cheguei com a
notícia. O seu cabelo ruivo estava apanhado atrás numa espécie
de puxo, que poderia parecer efeminado num outro homem, mas
nele fazia com que parecesse um viking a caminho de saquear um
mosteiro. Também deixou crescer a barba, de um ruivo mais claro
do que o cabelo, que o faz parecer desconfiado e perigoso.
Escutou em silêncio enquanto eu explicava, sem nunca
despregar os olhos da boia que flutuava na água. Depois de eu
acabar de falar, virou-se para mim e disse simplesmente:
– Não quero as terras. Dê-as.
– Não posso dá-las, Roux. Você é o administrador delas em
nome da Rosette. Era o que o Narcisse queria, e eu sou o executor
testamentário dele.
– Então, que seja a Vianne – disse Roux.
Suspirei. – É o seu nome que está no testamento. Era a si que
ele queria.
– Porquê?
– Como é que eu hei de saber? – disse eu. – Porque é que ele
me nomeou executor testamentário? Porque é que deixou as
terras à Rosette? O Roux sabe tanto quanto eu. Fê-lo, é tudo o
que sei.
Roux emitiu um som rouco na garganta. – O idiota. Em que é
que ele estava a pensar?
Eu não compreendia porque é que era tão importante para ele
não ser o responsável pelas terras. Seria orgulho? Alguma espécie
de posição política? Ou o desconforto de ter de lidar com uma
situação oficial, de ter de ir a um escritório em Agen, de ter de
assinar papéis com o seu nome verdadeiro...
É claro que ele não me dirá a razão. Talvez faça essa
confidência a Vianne. Pergunto-me se mesmo ela sabe o nome
verdadeiro dele ou quer saber da sua história. Ele não tem
passaporte, não tem conta bancária; não vota nas eleições. Roux,
claro, é uma alcunha, baseada na cor do seu cabelo. Não tem
pais; nem família que alguma vez tenha mencionado. Parece ter
vivido toda a vida como observador, transeunte, mudando de
cidade para cidade de cada vez que um lugar começa a parecer
excessivamente familiar. Conheço essa sensação, embora nunca
me passasse pela cabeça dizê-lo a Roux. Conheço a sensação de
existir do lado de fora do grupo; de as conversas se interromperem
à minha aproximação; ficar cá fora, numa rua às escuras, a olhar
pelas janelas lá para dentro.
É claro que ser padre é um privilégio que também exige certos
sacrifícios. Um padre nunca pode ser como o resto da sua
congregação. Nunca pode apaixonar-se; nunca pode ter filhos;
nunca pode descontrair; nunca pode ser como os outros homens.
Nunca deve esquecer-se de quem é. Nunca deve perder de vista
que é o servo do Senhor. Do que é que Roux não consegue
esquecer-se? O que o mantém no rio?
– Narcisse não era a alcunha dele, sabe? – disse eu para
quebrar o silêncio. – Parece que era o nome próprio, o nome
cristão que lhe foi dado no batismo... quer dizer, se é que se pode
dizer isso, sem santo ou apóstolo com esse nome. – Eu sempre
partira do princípio de que o nome dele era uma piada, como
chamar a um talhante Jean Bon1, mas parece que o nome
verdadeiro dele era Narcisse Dartigen, de Moncrabeau, na
margem do Garonne. – Tem graça o que se fica a saber quando
alguém morre. Narcisse. Que pai chama ao seu filho Narcisse?
Roux olhou para mim. Vi que estava a pensar que eu falava
demasiado.
– Sempre me perguntei qual seria o seu verdadeiro nome, Roux
– disse eu ao fim de um momento.
– Pode continuar a perguntar-se – disse Roux.
Bem, não valia a pena insistir. Pensei que Roux faria o que era
necessário a seu tempo, ao seu ritmo. Para já, precisava de o
deixar acostumar-se às boas notícias. Porque são boas notícias,
acho eu. Rosette é filha dele, afinal. Com certeza deve ficar
contente por ela ser agora proprietária desta parcela de terra.
Rosette, que talvez nunca venha a ser como outras raparigas; que
talvez nunca venha a ter as oportunidades que Anouk terá. Com
certeza ele vai ficar contente por ela vir a ter o que ele nunca teve.
Uma parcela de terra só sua. Um lugar ao qual pertencer
realmente.
Regressei a casa passando por Les Marauds, pela banca das
chamuças. Desta vez, comprei uma de Maya, deixando o dinheiro
no prato ao lado da caixa coberta. Escolhi um triângulo espesso,
uma bolsa cheia de borrego picado e especiarias. Meti-a num saco
de papel. Seria o meu almoço, pensei, com uma salada de tomate
e talvez um copinho de vinho. Já não jejuo durante a Quaresma.
Perdi esse hábito há anos.
Maya espreitou da casa para ver quem estava a comprar os seus
pastéis. Quando me viu, soltou um grito: – M. Reynaud! É uma das
minhas! Comprou uma das minhas, M. Reynaud!
– A sério? – disse eu, fingindo-me surpreendido. – Tinham tão
bom aspeto que pensei que eram da Omi.
Maya riu-se. As chamuças de Omi al-Djerba tornaram-se uma
espécie de lenda, mais ainda porque Omi – que deve ter pelo
menos uns noventa anos – não cozinha há anos.
– O senhor sabia – disse Maya.
– É claro que sabia. Vim até cá de propósito para a comprar.
Maya voltou a rir-se. Tem os olhos cor de avelã, quase verdes,
em contraste com o moreno quente da sua pele. Ocorreu-me que
um dia – um dia em breve – ela virá a ser muito bela.
– Diz-me, Maya, o que farias se alguém, um amigo, te desse
dezasseis hectares de mata?
Maya arregalou os olhos. – Uma mata só minha?
Assenti com a cabeça.
Maya pensou um pouco. – Acho que me ia sentar lá às vezes –
disse. – Punha-me a ver os animais e as aves. Sentava-me a
pensar e a escutar o som do vento nos ramos. E às vezes levaria
os meus amigos para brincarmos e treparmos às árvores e talvez
construirmos uma casa numa árvore, mas principalmente ia saber
que a mata era minha, e isso bastava-me. Porquê?
– Porque – disse eu – o Narcisse deixou os seus dezasseis
hectares de mata de carvalhos à Rosette e não à família dele.
Maya disse: – Eles cortariam as árvores. Ele sabia que a Rosette
nunca faria isso.
– É isso que tu pensas?
– É claro que sim – disse Maya.
Talvez ela tenha razão, pensei enquanto atravessava Les
Marauds. Narcisse conseguia ser um sentimental. Queria proteger
o bosque. Ou talvez fosse simplesmente a sua derradeira forma de
irritar Michèle e Michel, que lhe haviam suportado o mau-humor e
tolerado as excentricidades e sorrido das suas piadas, fazendo-lhe
as vontades e trazendo-lhe pequenos presentes – um bolo, uma
garrafa do seu vinho preferido – e lhe tinham perguntado pela
saúde e exprimido preocupação pelas dores e maleitas dele ao
longo de dois anos, ao mesmo tempo que calculavam
mentalmente o valor de uma casa de quinta, uma loja e quarenta
hectares de terra.
Não ascenderia a muito, pensei, mesmo com a mata. A casa da
quinta estava velha e a precisar de obras e, se fosse à beira-mar
ou até mesmo numa terra como Agen ou Nérac, talvez tivesse
atraído o interesse de algum promotor imobiliário local. Mas aqui,
em Lansquenet-sous-Tannes, era só mais uma parcela de terra
num lugar onde terra era o que não faltava. Como Montour já tinha
dito, a madeira seria provavelmente o bem de maior valor na
propriedade. Sem ela, havia apenas a quinta; boa para plantar
flores e frutos, mas não aquilo a que se chamaria uma mina de
ouro; e a loja de flores na praça, que provavelmente conseguiriam
alugar a outro lojista.
Não havia dinheiro digno de nota. Também isso fora uma
surpresa. Nem ações, nem uma conta-poupança, nem sequer um
cofre. Na conta-corrente de Narcisse havia uns quinhentos ou
seiscentos euros. E, ao contrário da crença local de que ele devia
ter dinheiro escondido, uma busca na casa não revelara nada –
nem tábuas do soalho soltas, nem peúgas cheias de notas
escondidas por baixo da cama. Michel e Michèle devem ter ficado
furiosos por o seu investimento de dois anos ter rendido tão pouco.
Eu estava agora a chegar à praça. Era quase meio-dia, e,
embora ainda só fosse março, o sol já estava suficientemente
quente para queimar. A loja de flores de Narcisse estava fechada;
a montra coberta com folhas de jornal. Há uma tabuleta na porta
com os dizeres ARRENDA-SE. Michèle e Michel não perderam tempo.
Uma loja vazia custa dinheiro. Pergunto-me o que virá a ser. Talvez
uma loja de produtos artesanais, a vender bugigangas, talvez outra
loja de flores. Sempre houve lojas na praça; a padaria de Poitou; a
chocolaterie; a loja que vende produtos para cemitérios; a pequena
banca de frutos e legumes. De qualquer modo, seja o que for que
venha a ser, espero que reabra em breve: uma montra vazia é mau
para a praça e arrisca-se a ser alvo de vândalos.
Até lá, suponho que haverá o tipo de especulação que sempre
rodeia uma loja vazia. Lembro-me de quando Vianne Rocher veio
para a cidade há muitos anos. Aquela montra, tapada com papel
cor de laranja e dourado, como uma lanterna chinesa. Aquele
aroma a especiarias e a fumo de incenso, como algo das Mil e
Uma Noites. Tanta coisa mudou desde então; agora, Vianne e eu
somos quase amigos. Mas como me desagradou aquela lojinha,
com o seu toldo de cor viva e o aroma a baunilha e pimenta doce e
o travo amargo de cacau a evolar-se no ar. Como me apetecia
entrar, provar a mercadoria naquelas vitrinas! Agora, digo para
mim, podia. Contudo, embora não jejue na Quaresma, o chocolate
continua a parecer uma cedência excessiva à tentação. Talvez
amanhã, disse para comigo. Talvez eu passasse por lá mais tarde.
Talvez Vianne pudesse dar-me notícias do que ia acontecer à loja
de Narcisse ou lançar alguma luz sobre as razões dele para deixar
a sua mata de carvalhos a Rosette.
Contudo, tinha uma última coisa a fazer antes de falar com
Vianne Rocher. Um último dever a cumprir, antes de poder
sossegar outra vez. Atravessei a praça e dirigi-me a casa, ainda
com a chamuça de Maya. Comi-a com uma salada, adiando o
vinho até ao jantar. E depois fiz um chá, e, sentado no meu
cadeirão preferido, preparei-me para ler o documento que Narcisse
me deixara.
1 Jean Bon é homófono de jambon, presunto em francês. Como
Narcisse era florista, o padre julgara que as pessoas lhe tinham
posto como alcunha o nome de uma flor, narciso. (N. da T.)
7

Caro Reynaud
ue irónico que seja a si que eu faço a minha confissão.
Q Nunca gostei de si. Deve sabê-lo – e, no entanto, foi o único
em quem eu pude confiar. Se está a ler isto, estou morto. Que
estranho escrever estas palavras. Ao contrário de si, eu acredito
que a morte é o fim. Não há anjos, trombetas, julgamento.
Apenas as trevas. Isso é bom. O pesadelo seria encontrar todos
os meus amigos e a minha família à minha espera do outro lado.
Suponho que estará a perguntar-se porque fiz o testamento
assim. A minha filha Michèle deve andar aos saltos de fúria.
Também nunca gostei dela. De facto, provavelmente poderia
contar as pessoas de quem gostei genuinamente pelos dedos de
uma mão. Roux é uma delas. Vianne Rocher é outra. Mas é
Rosette, a minha ladra dos morangos, que encontrou o caminho
para o meu coração. Ficará a saber porquê se continuar a ler
esta narrativa até ao fim. E continuará. Sei que continuará. Estas
palavras são tudo o que resta de mim.
Mas tenho de começar muito atrás. A verdade é como uma
cebola; camadas de pele a serem descascadas para revelarem
um centro que faz chorar. O meu pai disse-me isso uma vez. O
meu pai, o assassino.
*
Já me doía a cabeça, père. A letra era quase ilegível. Como um
aluno preguiçoso, dei por mim a ler por alto o manuscrito à procura
dos pormenores importantes. Quem é que o pai dele tinha
assassinado? Suponho que acabarei por descobrir, mas acho
irritante que esta informação crucial seja retida. Ainda mais irritante
é saber que, de qualquer modo, terei de ler até ao fim – apesar da
letra que me provoca uma enxaqueca e dos insultos mal velados à
Igreja que é provável que estejam semeados por todo o texto.
Quem me dera poder simplesmente pô-lo de lado ou queimá-lo,
por ler, na lareira. Contudo, a última confissão de um homem tem
de ser ouvida – mesmo a de um homem como este. Tomei duas
Aspirinas e sentei-me mais uma vez para ler.
Contudo, mal tinha ainda aberto a pasta quando ouvi o som de
um veículo grande a virar para a travessa. Pus-me de pé e fui à
janela. A Avenue des Francs Bourgeois é estreita, ladeada por
tílias; o camião alto roçava nos seus ramos ao avançar. Vi que era
um camião de mudanças, com Michel Montour, de fato-macaco e
boné de basebol, ao volante. Acenou-me ao passar e compreendi
que se dirigia pela encosta abaixo para a quinta de Narcisse.
Teriam, ele e Michèle, decidido mudar-se para lá? Parece
provável, já que Michel trabalhava na área da construção civil.
Faria sentido, disse para comigo, renovar os edifícios antes de
tentar vender a propriedade. Fazia até sentido que ele se mudasse
para lá, para poupar tempo e manter debaixo de olho os materiais
de construção. Mas o tamanho do camião sugeria que toda a
família ia mudar-se – talvez até o misterioso filho, de cuja
existência eu acabara de me inteirar.
Talvez devesse ir visitá-los à quinta. Confesso, mon père, senti-
me tentado a ir – quanto mais não fosse para adiar por umas horas
a leitura do manuscrito de Narcisse. Porém, se os Montour
estavam a mudar de casa, uma visita talvez não fosse bem-vinda.
Talvez eu devesse aparecer por lá na semana seguinte, depois de
eles se terem instalado. No entanto, irritava-me que estivesse a
acontecer alguma coisa em Lansquenet sem o meu conhecimento
prévio. Um padre deve conhecer o seu rebanho. Este lapso
constituía uma falha. Eu devia ter perguntado a Vianne Rocher
quando tive oportunidade. Agora, se lá for, disse para comigo, ela
saberá que é porque vi o camião de mudanças.
Contudo, Joséphine Bonnet, a proprietária do café ao fundo da
rua, poderia certamente dizer-me o que está a passar-se. Ninguém
pensaria nada de mais se eu lá aparecesse. Toda a gente vai ao
café de Joséphine. E as pessoas conversam com ela quase tanto
como conversam com Vianne Rocher. Ela e Vianne são amigas,
claro, e os clientes dela contam-lhe coisas que não me contam a
mim na Confissão. Em tempos, isso ter-me-ia enfurecido. Agora,
por vezes dou comigo a querer confessar-me a ela.
Mea culpa. Queria ir ao café. O camião de mudanças era só uma
desculpa. Doía-me a cabeça, sentia-me cansado e estava a ficar
outra vez com fome. Um copo de vinho, disse para comigo, e
talvez uma fatia do tourteau que Joséphine tem atrás do balcão.
Não mais do que uma fatia – afinal, não seria correto,
especialmente na Quaresma – mas seria rude recusar, e a ideia de
ver Joséphine fez-me sentir fraco. Tenho vindo a dar-me conta nos
últimos anos que sou frequentemente fraco, père, mas que
raramente cedo à fraqueza. Não é um substituto da força; é antes
um sinal de cobardia. Suspeito que Deus não se deixa enganar.
8

Quinta-feira, 16 de março
bar do Café des Marauds estava mais cheio do que eu
O esperava. Vi vários dos clientes habituais mais velhos – Joseph
Foucasse, Louis Poireau e o velho médico, Simon Cussonnet –
mas na sua maioria as outras pessoas pareciam jovens, embora
só um rapaz fosse meu conhecido. Era o filho de Joséphine, Jean-
Philippe, e apercebi-me de que se tratava de uma festa.
É claro. Uma festa de anos. E havia um bolo numa extremidade
do balcão e jarros de sangria gelada e limonada. Uma festa de
adolescentes, com música, bolo e dança – de facto, todas as
coisas que me fazem sentir pouco à vontade. Virei-me para sair,
mas dei-me conta de que Joséphine me vira.
– Francis, não se vai embora...
Pensei que ela parecia bastante cansada, com o cabelo
castanho a escapar-lhe do chignon. Mas pelo batom e o vestido
vermelho que trazia – um vestido que não lhe conhecia – vi que
estava a fazer um esforço por parecer bem.
– Está ocupada – disse eu. – É melhor ir-me embora. Isto parece
uma festa de anos.
– Sim. Mas o bar está aberto – disse ela. – Entre e coma uma
fatia de bolo!
As festas nunca foram o meu meio natural, e teria preferido voltar
para casa. Mas Joséphine trouxe-me um copo de vinho e uma fatia
do bolo de anos num prato estampado com flores e eu sentei-me e
pus-me a vê-la a servir os convidados, com especiais cuidados
com o rapaz, que parecia ao mesmo tempo embaraçado e
tolerante. Tornou-se um belo jovem, com cabelo louro e os olhos
da sua mãe. Já é mais alto do que Joséphine, bem-parecido como
o pai, Paul-Marie Muscat, devia ser antes de o alcoolismo e o ódio
o transformarem num monstro. Lembro-me de o rapaz brincar com
Rosette Rocher quando eram mais novos, mas atualmente ele
tende a gravitar mais para os jovens do seu lycée, na sua maioria
de Agen ou de outras cidades e vilas ao longo do Tannes.
Uma rapariga bonita com cabelo louro escuro, de calças de
ganga e T-shirt com brilhos, parecia estar a ocupar-lhe grande
parte da atenção. Ela e ele estavam a partilhar uma fatia do bolo
de anos; vi-os darem as mãos furtivamente por baixo da mesa.
– É a namorada do Pilou, a Isabelle – disse Joséphine ao ver
que eu estava a olhar para eles. – Faz dezasseis anos hoje. Veio
para França aos três anos, mas é meio americana. – Pensei que a
voz de Joséphine soara pouco entusiástica ao dizer aquilo. É claro,
Joséphine é muito chegada ao filho; mais ainda porque ele é tudo
o que ela tem. O pai dele faleceu há vários anos, mas ele e
Joséphine estavam separados, e ninguém – muito menos Jean-
Philippe Bonnet – sente minimamente falta dele.
– É uma jovem bonita. É sério?
– Os pais dela convidaram-no para ir com eles passar o verão à
América – disse Joséphine.
À América. Joséphine já achava bastante difícil deixá-lo ir até
Agen. No entanto, teria de ser – como ambos sabemos –, se quer
que ele se torne adulto. Alguns pais têm facilidade em deixar os
filhos voar do ninho. Outros acham-no impossível. Eu não preciso
de ser padre ou de ter ouvido Joséphine Bonnet em confissão para
saber que ela vai achar a transição mais difícil do que a maioria
das pessoas.
– Por vezes, invejo a Vianne – disse ela, sentando-se à mesa ao
meu lado.
– A sério? – Fiquei perplexo. – Porquê?
Sei como ela e Vianne são amigas íntimas – embora Joséphine
já não passe pela chocolaterie tão regularmente como outrora.
Atribuo isso ao facto de os filhos delas já não serem tão próximos
como eram – ou talvez seja porque Joséphine está mais
independente.
Ela dirigiu-me um sorriso bastante melancólico. – A Rosette
nunca vai deixar de precisar dela – disse. – A Anouk pode sair de
casa, mas a Rosette nunca vai deixar de ser aquela menininha, a
brincar com o Vlad na margem do rio. – O Vlad é o cão de Pilou.
Em tempos, eram inseparáveis. Agora, o rapaz está na escola o
dia todo e o cão ficou velho e preguiçoso. Passa o tempo todo a
dormir junto ao balcão, mas reparei que ao ouvir o seu nome
ergueu uma orelha como que em resposta a um chamamento meio
esquecido.
– O seu filho vai sempre precisar de si – disse eu, sentindo-me
algo embaraçado. – A Joséphine é a mãe dele. – Mas o que sei
eu? A minha mãe andava sempre demasiado ocupada com os
seus assuntos para se importar se eu precisava dela ou não. Não
tenho filhos. Nunca os terei. A maior parte das crianças deixa-me
desconfortável, à exceção de Rosette Rocher e Maya Mahjoubi.
Estava meio à espera de que Joséphine me dissesse que não me
metesse onde não era chamado, mas em vez disso ela olhou-me
com uma expressão esperançada.
– Acha que sim? Não é minha intenção interferir com a vida
social dele, mas a ideia de ele crescer assim tão depressa... –
Baixou a voz, com os olhos no rapaz, que estava agora a rir-se,
sem saber que estávamos a falar dele. – Eu costumava pensar
que era diferente; que o meu filho nunca seria como os outros
rapazes. E é egoísta, eu sei. A Vianne disse-me há muito tempo
que os nossos filhos não são para nós, mas para os darmos. De
qualquer maneira, invejo-a. Ela vai sempre ter a filhinha dela.
O bolo era de limão e baunilha, o que, devo dizer, me
surpreendeu. A maior parte das pessoas compra os bolos na
chocolaterie. Comentei-o, em parte para desvanecer o tom
melancólico, mas Joséphine ficou com um ar furtivo e eu pressenti
que tinha dito alguma coisa errada.
– O Pilou não quer ir à loja. Passei por lá com ele, só por uns
minutinhos, e ele estava aflito. Acho que se sente culpado em
relação à Rosette.
Encolhi os ombros. – Por vezes, os rapazes podem ser tímidos.
Eu era.
Ela fez um sorriso mais genuíno. – Não sei porquê, mas nunca
consigo imaginá-lo em rapaz.
Nem eu, mon père. A minha infância cheira demasiado a fumo.
Olhei para Jean-Philippe Bonnet e por um momento desejei que o
meu sentimento de culpa fosse por algo tão inofensivo como ter
deixado de querer conviver com uma amiga de infância.
– A Rosette há de fazer outros amigos – disse eu.
– Espero que sim, Francis – disse Joséphine.
– E a Joséphine também – disse eu, a tentar desajeitadamente
reconfortá-la. – É uma mulher atraente. Admiro a sua dedicação ao
seu filho, mas, se quisesse casar outra vez... quero dizer, seria
natural.
Ela lançou-me um olhar estranhamente reprovador, e eu recordei
a mulher que ela era, há muito tempo, antes de Vianne Rocher
chegar à cidade de repente. Essa mulher odiava-me – em parte
por eu não conseguir controlar a violência do marido dela e
também porque eu era, de muitas maneiras, um homem odioso.
Uma das alegrias inesperadas dos últimos anos foi a amizade
crescente entre nós; por vezes, contudo, ela ainda me faz sentir
que é tudo uma ilusão, e se soubesse o que eu sou realmente
recuaria, repugnada.
– Não, acho que não – disse ela. – Já tive mais do que a minha
conta de estar casada. O Paul curou-me disso há muito tempo. –
Falava sem azedume, mas com uma determinação final.
Eu disse: – Este bolo de aniversário é bom.
– Deixe-me trazer-lhe outra fatia.
Perdoe-me, mon père. Mas Joséphine faz com que me seja fácil
esquecer que sou padre. É um talento perigoso que ela tem, e que
eu devia encarar com desconfiança. Para ser franco, também me
esqueci de lhe perguntar pelos Montour. Ela é tão calorosa, tão
acolhedora. Ilumina a sala como o lume na lareira. E que mal há,
afinal, em me sentar um pouco à luz do lume, a sentir o calor da
presença dela e a reconfortar-me com as suas palavras?
9

Quinta-feira, 16 de março
obre Rosette. Sei como se sente. Eu própria o senti já muitas
P vezes. Perder um amigo custa, e é o motivo pelo qual sempre
me esforcei tanto por me manter distante e não ser arrastada
demasiado profundamente para as vidas das pessoas à minha
volta. Nem sempre consegui. Perdi demasiados amigos. E ela
também perderá, se persistir em esperar demasiado da amizade
deles.
Quem me dera saber transmitir-lhe umas palavras de sabedoria;
algo que a reconfortasse. «Os rapazes são uns estúpidos», não é
propriamente suficiente. Nem o chocolate, claro, embora essa seja
a única magia que tenho. Ela olha para a chávena que lhe trouxe,
mas não bebe. Em vez disso, levanta-se e vai lá para fora, com
uma expressão tão carregada como a cor do chocolate.
Chamo-a. – Rosette! Não vás para longe!
Ela não responde e atravessa a praça, com o seu casaco
vermelho a adejar ao vento. Para onde terá ido, a minha filha de
inverno, tão silenciosa e contida? Suspeito que foi para o seu
bosque. O seu bosque. Soa tão estranho. Eu nunca possuí terra
ou uma casa ou até uma tesoura. O meu equipamento profissional
é todo alugado, fornecido por uma empresa de Marselha; a mesma
que me fornece o chocolate em bruto. As minhas colheres de pau
pertenciam a Armande; assim como a panela de cobre para fazer
compotas. São velhas e bem usadas; sinto a idade nelas. Foram
as mãos de Armande que moldaram e suavizaram a parte dos
utensílios em que pego; na sua maioria feitos à mão por alguém
que já morreu há muito, e com as cicatrizes das diversas marcas
do tempo.
Também eu tenho cicatrizes de várias marcas. Essa ideia
reconforta-me. Sou como a colher de pau; a tábua de cortar; a
mesa. A vida pegou em mim e fez de mim algo diferente. Mas o
que é que eu mudei? O que fiz para tornar as pessoas à minha
volta diferentes?
É um pensamento que me tem ocorrido cada vez mais ao longo
dos anos. Quando era nova, ainda acreditava que podia fazer a
diferença. Que podia mudar vidas sem nada mais a não ser a
bondade, o conforto e o chocolate. Agora já não tenho tanta
certeza disso. Olho para as pessoas à minha volta e pergunto-me
se, em vez de as ajudar, lhes fiz mais mal do que bem. Embora
Joséphine esteja livre do marido, apesar de todos os seus planos
nunca deixou Lansquenet. Guillaume chora a perda do cão que
substituiu o seu velho amigo Charly. Os Mahjoubi e os Bencharki
ainda vivem sob uma sombra. E Armande – há mais de dezasseis
anos na sua sepultura, e mesmo assim continuo a sentir a sua
perda tão profundamente como se tivesse perdido um membro. Ela
mudou-me. Mas o que fiz eu por ela, a não ser apressar-lhe a
morte?
Quando era nova, acreditava que podia passar pelo mundo como
o vento pela erva, mal lhe tocando, nunca tocada, a espalhar as
minhas sementes até ao céu. Quando era nova. É claro que não
sou velha. Mas a minha mãe, quando chegou à minha idade, já
trazia em si as sementes do cancro que viria a matá-la. Nunca
chegou a conhecer Anouk ou Rosette. Morreu ao chegar aos
cinquenta anos.
Cinquenta anos costumava parecer tanta idade. Cinquenta era
meio século. Mas agora dá a sensação alarmante de estar muito
perto. Fechei as persianas no lado da manhã da casa e subi as do
outro lado para ver as sombras alongarem-se. Ainda são muito
finas, mas consigo vê-las crescer tão depressa como dentes-de-
leão na primavera. Não há como as deter: as suas sementes
estarão em toda a parte até à hora do jantar. A minha mãe disse
que nunca se morre enquanto alguém precisar de nós. Se assim
for, enquanto eu tiver Rosette posso viver para sempre.
Pergunto-me como será o bosque dela. Nunca lá fui – seria uma
intrusão. Sinto-me contente por ela por o ter, penso; no entanto,
também me faz sentir inquieta. O que vai fazer Rosette com um
bosque?
Peguei nas cartas de Tarot da minha mãe ontem à noite, pela
primeira vez desde há meses. São-me tão familiares agora que
mal preciso de olhar para elas. A Morte. O Louco. A Torre. A
Mudança. Não me dizem nada que eu não saiba. Não me dizem
nada sobre Rosette.
Talvez Narcisse lhe tenha deixado o bosque para garantir que
ficaríamos em Lansquenet. Narcisse sempre gostou de Roux, e
Roux sempre ficou aqui contra a sua vontade. Roux não confia em
Lansquenet. Mesmo depois deste tempo todo, prefere viver no seu
barco, longe da comunidade. Por vezes, passa a noite na loja; mas
na maior parte das vezes sai cedo, ainda antes de Rosette
acordar; dorme sozinho sob as estrelas, com os sons do rio à sua
volta.
Para ser sincera, talvez prefira que assim seja. Roux sente-se
desconfortável em espaços fechados, inquieto como a própria
Rosette. Se ela não estivesse aqui, penso que ele já teria
avançado rio abaixo; teria avançado como os destroços levados
pelo Tannes quando está cheio. Se ela não estivesse aqui, talvez
também eu já tivesse avançado rio abaixo, para onde o vento
sopra constantemente e nada fica para sempre.
A loja de flores na praça foi arrendada. A tabuleta ARRENDA-SE foi
retirada e vi ontem que alguém pintou a porta. Em tempos, era de
um verde discreto; agora é de um púrpura vivo – uma cor que
Anouk adora, mas que, em Lansquenet, parece deslocada:
demasiado berrante, pouco prática.
Quem fez o trabalho de pintura? Surpreende-me não ter
reparado. Mas até agora ainda não vi ninguém entrar ou sair da
loja. Não há ainda indício de quem será a gerente da nova loja de
flores. Talvez não seja uma loja de flores; aquela porta púrpura
sugere outra coisa – talvez uma loja de recordações e bugigangas,
para os turistas. Uma loja nova numa vila como a nossa atrai
sempre a atenção. As pessoas ficam curiosas; tentam espreitar
pela montra tapada com papel. Mas não há ainda nada para se
ver: nenhuma carrinha de entregas, nenhum sinal de pessoas lá
dentro. Quase poderia ser eu lá dentro, a Vianne de há dezassete
anos, com Anouk e a sua trombeta de brincar a enxotar os
fantasmas. Essa Vianne não demoraria a saudar os recém-
chegados, fossem eles quem fossem. Essa Vianne tê-los-ia
convidado para tomarem um chocolate quente, oferta da casa.
Mas eu sou mais cautelosa. Aprendi. Sou uma pessoa diferente
agora.
Deixa-me desconfortável, de certa forma, pensar naquela outra
Vianne. Ela reconhecer-se-ia, pergunto-me, se me visse agora? E
o buraco no meu coração? Aquele buraco com a forma de Anouk,
através do qual o vento sopra cada vez com mais insistência?
Ela vem cá na Páscoa, diz. Enviou-me uma mensagem hoje de
manhã.
Pensei em irmos aí na Páscoa. Talvez ficar uns dias. Pode ser?
Não sei ao certo a que horas posso sair do trabalho. Digo-te
quando souber. A. xxx
É claro que pode ser. Ela precisa de perguntar? E, no entanto,
sinto-me inquieta. Aquele nós – refere-se a ela e a Jean-Loup –
torna a sua visita mais formal do que se viesse sozinha. E diz
irmos aí, não ir a casa. Uma palavra faz um mundo de diferença.
Uns dias. Quanto tempo é que ela quer dizer com isso? Um fim de
semana prolongado? Uma semana? Não mais. As visitas de
Anouk são sempre breves, por causa do emprego dela – por causa
de Jean-Loup. E sei que Paris lhe faz bem – tem um mundo a
explorar – mas nós fomos sempre tão próximas, ela e eu. Nunca
me passou pela cabeça que ela pudesse querer explorar sem mim.
A outra Vianne ter-se-ia rido da ideia de que Anouk poderia
querer sair de Lansquenet. Mas essa outra Vianne era ingénua:
ainda sem a terem marcado o tempo e os acontecimentos.
Permitia-se acreditar que talvez as coisas se mantivessem iguais:
que talvez a mudança fosse evitável. Agora, começo a duvidar se
essa outra Vianne era eu ou se sempre fui algo mais parecido com
o reflexo escuro de mim mesma que encontrei em Paris: Zozie de
l’Alba, a comedora de vidas, ainda viva na minha memória. Onde
está ela agora? Quem é ela agora? E porque é que sinto, ao fim
deste tempo todo, que talvez ainda esteja dentro de mim?
Espelhos
1

Sexta-feira, 17 de março
meu pai era um homem silencioso: tão silencioso que, por
O vezes, quase nos esquecíamos de que estava ali; de que era
capaz de falar. Costumava dizer que o irmão dele usara todas as
palavras que tinham: que quando foram separados à nascença,
um ficou com a voz e o outro com o coração.
Ele era gémeo. Mas tratar de gémeos era um fardo demasiado
pesado para a sua mãe, que já tinha quatro filhos, e o seu irmão
foi para o Norte, para uma prima em Nantes, e o meu pai foi
criado por Tante Anna – tia do meu pai, uma viúva cujo primeiro
marido tinha morrido na Grande Guerra e que casou a seguir
com o cunhado, só para o ver morrer de gripe antes de poderem
ter filhos.
Uma senhora magra e angulosa toda de preto, com uma cruz
prateada e preta nas rendas do pescoço e cabelo grisalho
afastado tão severamente do rosto que metade da pele ia
repuxada com ele. Aquela sua cruz. Lembro-me bem dela. A
parte preta era azeviche, a significar luto. A prata era para
condizer com o seu cabelo, porque, apesar de tudo, ela era
vaidosa e gostava da figura que apresentava ao mundo; a sua
elegância, talvez, ou uma agradável austeridade. De qualquer
modo, era católica por conveniência, como tantas pessoas eram.
Não seria correto, naquela época conturbada, admitir que se era
qualquer outra coisa.
Nunca nos passou pela cabeça, a mim e à minha irmã, que
pudéssemos ser judeus. E, no entanto, suponho que o éramos,
por nascimento: o nome de solteira da nossa mãe era
Zwolaskowki, e deram o nome dela à minha irmã, embora lhe
chamássemos Mimi; Naomi era demasiado pesado para uma
coisinha assim pequena como ela. É triste que eu me lembre
melhor da tia do meu pai do que da minha mãe. Mas a minha
mãe morreu quando eu tinha quatro anos, ao dar à luz a minha
irmã, e a tia – cujo nome fora em tempos Hannah, mas que
numa época conturbada aprendera a escrever da maneira como
era sempre pronunciado – encarregou-se dos cuidados
maternais com a mesma eficiência fria que aplicara com o meu
pai. Deram-me o nome dele, Narcisse, o que me enchia de
desespero em pequeno, mas acabei por me habituar, e, além
disso, como dizia o meu pai, eu podia ter recebido o nome do
irmão dele, Modeste.
*
Haverá muito mais disto, père? Dá a impressão de que o velho
senhor está a provocar-me deliberadamente. Há páginas e páginas
disto: de como a família mudou de casa; de como os irmãos
perderam o contacto; de como o outro gémeo, Modeste, casou,
mas foi morto pelos alemães. Narcisse tem um leitor cativo. Talvez
seja a sua retaliação por aqueles sermões enfadonhos que teve de
ouvir em pequeno. A tia-avó, deduzo, era bastante severa; forçava
os irmãos a irem à missa todas as semanas, enquanto o pai
tratava da quinta que fora em tempos do marido dela. Perdoe-me,
père. Paro por hoje. Em vez de ler, vou procurar Vianne Rocher,
como tencionava fazer no outro dia, na esperança de que ela
possa ser mais prestável do que Roux na questão da herança de
Rosette.
Não se encontrava mais ninguém na loja a não ser Rosette, que
estava a desenhar. Gosta de se sentar no chão para o fazer, e em
dias de movimento tem de se ter cuidado para não pisar as filas de
canetas de feltro, paus de giz e lápis de cor. Rosette tem quase
dezasseis anos, embora não pareça. Tem o rosto pequeno de uma
criança muito mais nova, que parece ainda mais pequeno devido
ao volume do seu cabelo ruivo em cachos. Olhou para cima
quando entrei, com um lápis preto na mão.
Uma súbita rajada de vento gélido vinda da porta levantou-me a
sotaina à volta dos joelhos. Rosette riu-se, e fez um som explosivo.
BAM!
Vianne espreitou por detrás da porta da cozinha. – Francis. Que
bom vê-lo. E durante a Quaresma, ainda por cima. – Sorriu, a dar-
me a entender que não era sua intenção troçar de mim. – Deixe
que lhe traga um chocolate quente.
Aceitei a chávena de porcelana, com o seu líquido escuro e doce
como o pecado. Bebi um gole e depois disse: – Vejo que o Michel
Montour decidiu restaurar ele próprio a quinta do Narcisse.
Vianne assentiu com a cabeça. – Vão mudar-se para lá com o
filho, o Yannick. Puseram a casa deles à venda.
Como é que ela sabe estas coisas, mon père? Como é que ela
sabe as coisas que não me chegam aos ouvidos? É claro, Michel e
Michèle Montour nunca pertenceram de facto ao meu rebanho.
Vinham por causa de Narcisse, e talvez eu tenha sido demasiado
severo no juízo que fiz deles. Se tencionam ficar para sempre,
talvez eu estivesse enganado quanto ao motivo original para virem
para cá.
– O que é que sabe sobre o filho?
Ela abanou a cabeça. – Pouca coisa. Tem quinze anos. Tem
estado num colégio interno, mas a Michèle diz que não correu
bem. Está a planear ensiná-lo em casa. Perguntou-me como é que
isso tinha resultado com a Rosette.
Ao ouvir o seu nome, Rosette ergueu a cabeça e dirigiu-me um
sorriso luminoso.
– E como é que correu com a Rosette? – perguntei.
Vianne sorriu. – Ela é feliz – disse.
Se fosse assim tão fácil, pensei. Talvez para Rosette seja. Mas
Vianne e eu sabemos que Rosette não teve o tipo de educação
que deveria ter tido. Sabe ler e escrever; sabe fazer contas; tem
um verdadeiro talento para o desenho. No entanto, ambos
sabemos que este não é o tipo de educação de que precisa uma
jovem de dezasseis anos. Mas Vianne mantém-se irredutível: não
vai arriscar-se a voltar a mandar Rosette para a escola. A última
vez foi um desastre, diz ela. Não haverá uma segunda tentativa.
– Ela sente saudades do Narcisse – disse Vianne Rocher. – Tem
tão poucos amigos, agora que a Anouk está em Paris; agora que o
Pilou está nas aulas. O Narcisse estava sempre a falar com ela, a
fazê-la rir, a contar-lhe histórias.
Olhei para Rosette. – Ela compreende? Aquilo do testamento do
Narcisse, quero dizer? – Parecia improvável; e, no entanto, ao
ouvir as minhas palavras, Rosette inclinou ainda mais a cabeça e
emitiu um pequeno chilreio.
– O Narcisse deixou-te umas terras – disse eu, falando lenta e
cuidadosamente. – Uma mata, perto do campo de girassóis.
Rosette voltou a emitir um chilreio. Soava como uma pega.
– Suponho que não compreende – disse eu. – Mas talvez a mata
possa ser vendida, e o dinheiro usado para o futuro dela?
– Não penso que fosse isso que o Narcisse queria – disse
Vianne.
– Quem sabe o que o Narcisse queria? – disse eu, talvez mais
rispidamente do que tencionava. – Ele sempre foi um homem
difícil. Talvez o que realmente quisesse fosse irritar a filha e o
genro, causar conflitos e forçar-me a ter uma série de encontros
desagradáveis. E, já que estamos a falar deste assunto, talvez a
Vianne pudesse dar uma palavra ao Roux, que de algum modo
parece convencido de que pode recusar-se a cumprir as suas
responsabilidades legais...
Vi Vianne sorrir e parei, dando-me conta de que estava a falar
demasiado alto. – Parece cansado – disse ela. – Olhe, prove um
dos meus mendiants. Chocolate preto, cerejas amargas e um
polvilhado de pimenta preta moída grossa. São novos. Diga-me o
que acha.
Abanei a cabeça. – Obrigado, mas tenho de ir embora. Deveres
da paróquia e coisas do género.
2

Sexta-feira, 17 de março
á vai ele, com o aceno ríspido de cabeça que eu costumava
L achar tão intimidante. Agora que o conheço melhor,
compreendo que ele desconfia de um tom caloroso; receia a
amizade. Ser Francis Reynaud é estar em perpétuo conflito entre o
instinto e a autodisciplina; a resistência e o abandonar-se aos
sentimentos. Dantes receava-o e detestava-o imenso, nos tempos
em que Anouk era pequena. Agora sou mais compreensiva. Há
algo de sombrio em Reynaud, mas não é um mau homem. Se
fosse, Rosette saberia. Rosette vê mais longe do que eu.
Já reparei que, desde a morte de Narcisse, Rosette anda mais
metida consigo do que o habitual. Usualmente, gosta de ajudar na
loja, mas nos últimos dias tem andado distante, inescrutável, até
mesmo para mim. Dou comigo à procura dos pensamentos dela, a
perscrutar as cores dela em busca de um sinal de algo que possa
dar-me uma pista sobre como estabelecer contacto com ela, mas
ela continua a ser um mistério, um quebra-cabeças que nunca
poderá ser solucionado.
Esta tarde, enquanto Reynaud esteve aqui, ela esteve a
desenhar no bloco que leva consigo praticamente para toda a
parte. Um bloco de capa dura, um presente de Anouk, na cor
favorita de Anouk. Dei comigo a admirar a maneira como a minha
filha cria estas imagens: os traços seguros e incisivos da caneta ou
do lápis. As linhas parecem quase aleatórias a princípio, mas cada
traço tem uma finalidade. Deve ter herdado este talento de Roux,
que tem sempre tanto jeito para fazer coisas. Sempre parti do
princípio de que as minhas filhas herdariam o meu jeito para o
chocolate, mas nem Anouk nem Rosette mostram um interesse
particular. Rosette tem os seus desenhos; os interesses de Anouk
tornaram-se-me menos claros ao longo dos anos. Em parte, deve-
se a Jean-Loup Rimbault, um jovem com ambições e sonhos, bem
como um grave problema de coração que o acompanha desde a
infância – é frequentemente hospitalizado, e por vezes temo pela
minha pequena Anouk, que colocou o seu coração tão firmemente
entre os dedos delicados dele.
Nunca fui dada a relacionamentos: sempre temi demasiado a
sua perda. Mesmo Roux – muito mais do que um amigo – continua
a não ser bem um companheiro. O nosso acordo é que isso nos
convém aos dois, e se por vezes dá uma sensação de alguma
solidão, alguma estranheza, digo para comigo que é melhor assim.
Posso concentrar-me em Rosette.
– O que estás a desenhar?
Rosette não respondeu, mas continuou a desenhar, com o nariz
quase a tocar no papel. Era uma cena mais complicada do que as
que ela usualmente prefere: desenhada principalmente a lápis,
mas com certos pormenores destacados a cor. Uma menina
pequena a correr por um caminho cheio de vegetação pela
floresta. A menina parecia-se com Rosette, na forma como ela se
desenha muitas vezes – uma criança de sete ou oito anos, com
cabelo aos cachos da cor de manga – vestindo uma capa de
Capuchinho Vermelho e trazendo um cesto com morangos na
mão. Por trás dela, no caminho, um lobo: de nariz no chão, olhos
brilhantes; esguio, escuro e ameaçador. Os olhos do lobo eram
estreitos e enganadoramente sonolentos, e Rosette tinha usado
um lápis vermelho-vivo para colorir a sombra gigante dele, uma
sombra tão comprida que enchia metade da página.
Algo no desenho me fez sentir ligeiramente inquieta, como se
contivesse alguma espécie de mensagem. Muitos dos desenhos
de Rosette contêm uma mensagem, mas esta parecia mais
próxima de alguns dos sonhos que eu costumava ter quando
vivíamos em Paris. Uma mudança do estilo habitual de Rosette.
Qualquer mudança me deixa sempre inquieta; significa que o vento
está em ação. E nós já recusamos o seu apelo há muito tempo. Há
anos que não lhe respondemos. E, no entanto, ainda o ouço, a
chamar-me, a sua voz já não persuasiva, mas abertamente,
sombriamente ameaçadora. Julgaste que conseguias esconder-te
de mim, Vianne Rocher? Julgaste que estavas segura na tua
casinha? Eu posso tirar-te tudo. A Anouk. A Rosette. Com um
sopro derrubo-te a casa.
Lancei de novo um olhar ao desenho de Rosette. Não pude
deixar de pensar que talvez se destinasse a mim, um aviso de algo
– talvez de um medo – que ela só conseguia exprimir através da
arte. Parece uma imagem das cartas de Tarot que a minha mãe
me deixou; explícitas, cheias de significado, carregadas de uma
ameaça secreta.
O Hurakan estava a soprar.
Não. A minha filha está a salvo do apelo do vento.
– O que é isso, Rosette? – perguntei.
Por um momento, pensei que talvez me dissesse. Ergueu os
olhos do desenho, fixou-os nos meus por um momento e depois o
seu olhar saltou para o lado, na direção da porta pintada de
púrpura da loja que era antes de flores, mas que poderia agora vir
a ser qualquer outra coisa...
– Rosette?
Olhei para a porta pintada de fresco; para o papel a tapar as
montras. Não havia nada a sugerir algo de estranho. Exceto talvez
uma tira quase impercetível de luz na porta; uma mancha de algo
que poderia ser uma sombra ou um reflexo...
Eu sei que ela é curiosa. Eu também sou. E sei que pensa que já
devíamos ter ido lá, que já devíamos ter ido levar um presente ao
novo proprietário.
Contudo, as coisas mudaram desde que cheguei a Lansquenet
nas fraldas do vento. A experiência ensinou-me que por vezes é
melhor ser cautelosa. Mas Rosette raramente é cautelosa. Ocorre-
me a ideia de que talvez ela tenha visto alguma coisa pela montra.
Talvez já tenha travado conhecimento com o esquivo ocupante...
– Foste lá dentro? – perguntei. – Entraste na loja do Narcisse?
Rosette nem sempre responde quando lhe faço uma pergunta.
Mas agora pensei que a sua falta de reação parecia talvez
excessivamente deliberada. Pegou num lápis azul escuro e pôs-se
a trabalhar nas sombras do seu desenho, desenhando-as em
vinhas retorcidas de uma regularidade pouco natural.
– Que tipo de loja é, Rosette? Viste o novo gerente?
Rosette nunca mente. Mas os seus silêncios são frequentemente
mais reveladores do que palavras. Ela viu alguma coisa. Tenho a
certeza. Algo que a perturbou. A imagem no seu desenho: o lobo
com a sombra vermelha e comprida, o emaranhado de vinhas –
tudo isso dá a entender que ela está a tentar compreender algo
demasiado complexo para poder ser desembaraçado de qualquer
das maneiras usuais. Eu tenho o meu chocolate, ela tem a sua
arte. Ambas são formas de adivinhação.
– Escuta, Rosette. Não quero que vás à nova loja. Não vás lá
sozinha. Não tentes espreitar lá para dentro. Espera até eu estar
pronta. Depois, podemos ir lá juntas, talvez levar ao dono uns
chocolates...
Ela lançou-me um olhar sombrio.
– Eu sei. Mas lembra-te, as pessoas nem sempre gostam de
visitas quando estão a instalar-se num novo lugar. Promete-me
que esperas, Rosette. Não vás sozinha àquela loja.
Ela não respondeu diretamente, fazendo antes um pequeno
chilreio como uma pega, e depois fechou o bloco de notas de
repente e saiu para a rua como uma criança a enveredar por uma
floresta.
3

Sexta-feira, 17 de março
u não disse nada à maman sobre a senhora no vidro da montra.
E Achei que era melhor não o fazer. Ela só se ia preocupar, e,
além disso, não há motivo para crer que o que vi foi um Acidente.
Os Acidentes são coisas ruidosas. Como em Paris, quando eu era
pequena, e as coisas voavam pelo ar e estilhaçavam-se quando eu
ficava muito perturbada. Esses tempos passaram. Sei o que fazer.
Arrumei o meu desenho acabado e voltei a sair pela porta
entreaberta.
A visita de Reynaud fez-me querer ir ver o meu bosque outra
vez. Gosto de dizer isso. O meu bosque. A minha clareira de
morangos. O meu caminho. As minhas árvores. A minha vedação.
O meu poço dos desejos. Essas coisas são minhas agora, disse
Reynaud. Não de Roux, não da maman, mas minhas. Minhas, para
eu fazer o que quiser nelas. Por vezes, a única coisa que quero é
estar só; cantar, berrar, correr, falar comigo mesma na minha voz-
sombra. E agora posso fazer isso sempre que quiser. O bosque, a
clareira e o poço – são todos meus para eu brincar. Já não invado
propriedade alheia. Sou a guardiã de um lugar sagrado.
Era no que eu estava a pensar ao atravessar os campos em
direção à quinta de Narcisse e à vedação de arame. A tarde estava
no final, mas o sol ainda estava quente e as aves cantavam por
toda a parte. Eu já não tinha necessidade de me esconder ou de
rastejar por baixo da vedação, mas fi-lo, por hábito, e porque ainda
não tenho a chave da cancela e porque gosto que as pessoas não
saibam onde estou. Posso fazer o que quiser quando estou aqui e
não me preocupar com Acidentes.
O Bam foi à frente. Vai sempre, a rir-se e a voar para as árvores.
Não tenho necessidade de me preocupar com ele aqui. É livre para
fazer o que quer. Um bando de melros voou para fora das árvores
com um som como de aplausos intermitentes. Chamei-os na minha
voz de melro e corri para a clareira dos morangos.
Ainda é muito cedo para haver morangos. Mas a clareira está
cheia com as suas folhas e suas florzinhas brancas, como estrelas
cadentes. O poço dos desejos também estava coberto, de modo
que só alguém que soubesse que ele estava ali é que realmente
repararia nele. Parece um montinho debaixo da vegetação; um
sítio onde fadas ou duendes poderiam viver. E já estava lá alguém,
sentado de costas para mim.
Por um instante pensei em fadas ou duendes. Mas não era uma
coisa nem outra, nem sequer alguém especial como Bam. Agora
eu via que era um rapaz; um rapaz bastante gordo, com cabelo
castanho desgrenhado e uma T-shirt que lhe ficava um bocadinho
pequena. Estava sentado na relva, a olhar para o emaranhado de
vegetação, e até mesmo as costas dele pareciam infelizes. Quase
fugi nesse momento, mas depois lembrei-me que este era o meu
bosque e que se alguém devia ir-se embora era o rapaz, que
parecia um urso, ali sentado nas folhas de morangueiro.
Como eu não queria dizer nada, fiz um som de ave, como uma
gralha a ralhar.
O rapaz não olhou para trás nem se mexeu. Fiz a gralha chamar
outra vez – CROOQUE! – e fiz as folhas dos carvalhos dançarem.
Ainda não sabia bem se estava contrariada ou curiosa por o ver ali.
Talvez estivesse um pouco de ambas as coisas. Pensei no que é
que ele estaria a fazer ali. Talvez fosse um cigano, a querer passar
a noite no meu bosque. Talvez eu lhe desse licença, disse para
comigo. Talvez ele pudesse ser o meu segredo.
– Ruque – disse eu, numa voz mais amigável.
Mesmo assim o rapaz não disse nada. Aproximei-me um pouco
mais. Talvez fosse surdo, pensei. Talvez estivesse a fazer de
conta. Sentando-me na relva ao lado dele, vi que era mais ou
menos da minha idade, mas maior, claro, com um rosto redondo e
pálido e uns olhinhos zangados.
– Vai-te embora – disse o rapaz.
Eu fiz outra vez o som da gralha, mais insistente desta vez. As
gralhas fazem voo picado sobre os animais que se aproximam
demasiado dos seus ninhos. O rapaz estava no meu sítio, afinal.
Eu é que com certeza não me ia embora.
– Para de fazer esses barulhos – disse o rapaz. – Eu sou muito
sensível. A minha mãe diz que não posso ser perturbado.
Ri-me. Não consegui conter-me. Ele parecia tão cómico e
zangado, ali sentado, a dizer-me o que não devia fazer. Se tivesse
ali os meus lápis, pensei, desenhava-o como um urso-pardo, gordo
e rabugento. Em vez disso, enchi as bochechas de ar e soprei, e
fiz as folhas e os ramos dançarem. Não de uma maneira má, mas
de uma maneira cómica, a brincar. Depois, cantei uma
cançãozinha: Bam-bam-bam, Bam-badda-BAM! E ri-me da
expressão dele.
O rapaz olhou para mim. – Tu és a Rosette Rocher – disse ele, e
a sua voz estava diferente. Não tão zangada agora, mas curiosa.
Ainda um urso, pensei, mas já não feroz. Talvez só à procura de
alguma coisa para comer, bagas ou mel ou bolotas.
– Ouvi falar de ti – disse o rapaz.
Encolhi os ombros. Muita gente já ouviu falar de mim.
– Eu sou o Yannick – disse o rapaz.
Pus as folhas a dançar outra vez. É o meu sítio: posso fazer o
que quiser. Até podia fazer com que ele se fosse embora. Mas
talvez não faça. Ele parecia tão triste. Um urso triste sem mel.
– Porque é que não dizes alguma coisa? – perguntou Yannick.
Voltei a encolher os ombros. Não gosto de falar. Prefiro fazer
gestos ou cantar, que não é muito diferente; ou guinchar como um
macaco ou ladrar como um cão. As pessoas gostam de cães. De
mim, nem por isso. Sei isso agora. Dantes não sabia. Julgava que
se fosse um cão as outras crianças iam gostar de mim. Mas
limitavam-se a achar que eu era esquisita, o que, para elas é pior
do que qualquer outra coisa. Até Pilou pensa que eu sou esquisita:
pelo menos, pensa assim quando está com os amigos. Eu não
tenho realmente amigos. A não ser Roux, Anouk, a maman e Pilou
– e Bam, claro.
Às vezes, a maman diz às pessoas que Bam é o meu amigo
invisível. Isso não é verdade. Ela consegue vê-lo, e Anouk
também, e algumas outras pessoas. Mas a maman diz que é mais
fácil do que tentar dizer-lhes o que Bam é realmente; e, além
disso, o que é que importa? Toda a gente é diferente. Algumas
pessoas são mais diferentes do que outras.
Yannick olhou-me atentamente. Os seus olhos não estão
zangados, como eu tinha pensado; só são mais pequenos do que
os da maior parte das pessoas. Depois, sorriu, um grande sorriso
rasgado que me fez rir.
– Tu és engraçada – disse ele.
Eu sei.
– És surda? Ou muda ou coisa do género?
Ri-me e abanei a cabeça e fiz as folhas dançarem e rirem-se
comigo. Yannick sorriu outra vez. Parece simpático quando sorri.
– OK. E se fôssemos comer qualquer coisa? Estou cheio de
fome.
Está bem. Onde?
– Conheço um sítio bom – disse Yannick. – Vem comigo. Eu
mostro-te.
Segui-o.
4

Sexta-feira, 17 de março
meu pai era uma alma delicada, tão receoso de Tante Anna
O como eu próprio. Pouco dado a exprimir-se, por opção e por
natureza, só tinha aprendido os rudimentos da leitura e da escrita
enquanto andou na escola, antes de ser chamado a ajudar na
quinta. Tante Anna guardara os boletins escolares dele; um para
cada período, todos numa bela letra antiga:
«Narcisse é calado e bem-comportado, mas não revela
quaisquer capacidades naturais.»
«Narcisse é calado e atento, mas confunde frequentemente as
letras do alfabeto. O estudo e a prática diligente melhorarão
significativamente as suas deficiências na leitura e na escrita.»
«Narcisse é um aluno atento, embora o seu problema de fala o
impeça de participar na recitação, e a sua incapacidade
persistente de distinguir certas letras significa que, mais uma
vez, é o último da turma.»
Durante muito tempo, mantive-me na ignorância da dislexia do
meu pai (embora só tenha ouvido a palavra pronunciada muitas
décadas depois da sua morte) e do seu misterioso problema de
fala. De facto, nunca me passara pela cabeça que o meu pai
pudesse não ser silencioso por opção, mas por de facto ter
medo de falar.
À mesa, nunca dizia uma palavra a não ser para agradecer a
refeição a Tante Anna, o que fazia com a humildade que
algumas pessoas reservam para Deus. Passava a maior parte do
tempo sozinho no seu jardim e na quinta, enquanto Tante Anna
tratava da casa, cozinhava as refeições e criava os filhos dele
como lhe parecia melhor, o que talvez fosse mais severamente
do que ele próprio teria preferido. Mas Tante Anna era a patroa
da quinta; a voz dela era a que imperava. E Tante Anna
acreditava que as crianças deviam ser bem-comportadas e
obedientes, irem à igreja, dizerem as suas orações e serem
respeitosas para com os adultos.
Tante Anna reparava em tudo: numa pinta de lama na bata da
escola; num botão que faltava numa camisa. E, embora
cumprisse o seu dever, não era carinhosa: olhava por nós para o
bem das nossas almas, não para o bem dos nossos corações de
criança. A minha irmã Mimi dava muito trabalho e consumições.
Demasiado pequena de nascença, e atreita a ataques e
convulsões, não se esperava que vivesse para além da infância;
e quando viveu, Tante Anna viu-o mais como uma maldição do
que como uma bênção.
Mais uma boca para alimentar, numa época em que a comida
nem sempre era abundante. Uma moça sem préstimo, numa
época em que se dava menos valor às raparigas do que ao
gado. E, ainda por cima, por simplesmente ter nascido causara a
morte da sua mãe – nenhuma destas coisas tornava a
sobrevivência de Mimi uma razão para rejubilar. Mas, contra
todas as probabilidades, Mimi sobreviveu – apesar da crença
abertamente expressa de Tante Anne de que ela estava
condenada à partida. Apesar do seu tamanho, da sua recusa em
comer, das suas convulsões, dos seus ataques de riso
inesperados, a pequena Mimi agarrou-se à vida e cresceu, como
o dente-de-leão persistente que consegue enraizar-se e florir até
mesmo nos sítios menos propícios. Mimi viveu; uma coisinha
persistente e raquítica que foi capaz, apesar de tudo, de tentar
crescer para a luz.
Poder-se-ia pensar que olhar por uma irmã mais nova com
problemas de saúde seria uma tarefa insuportável. Afinal, eu
tinha só quatro anos quando Mimi, como um presente
indesejado, passou a ocupar o lugar da minha mãe. Eu devia ter
odiado aquela coisinha que metia dó. Mas, de algum modo, isso
não aconteceu. Faminto de afeto como estava, aprendi a amar a
minha irmã, primeiro com o amor que uma criança pode dar a um
brinquedo estragado ou um cão rafeiro e depois com um
sentimento feroz de proteção. Não que o meu pai não fosse
afetuoso; simplesmente nunca aprendera a demonstrar afeto.
Quanto a Tante Anna, não era dada a demonstrações de
fraqueza. Criara o meu pai sozinha; já enterrara dois maridos.
Qualquer ternura que pudesse ter havido nela calcificara há
muito tempo. Agora, era como aquela cruz que usava; dura, de
arestas aguçadas e desapiedada. Lá no fundo, não era uma
mulher má ou cruel, mas não havia nela ponta de bondade;
apenas um sentido de dever que ela confundia com devoção
religiosa, mas que se devia mais ao seu orgulho e ao receio do
que poderiam dizer os vizinhos.
Criou-me sem ternura, mas com a noção de que um dia eu
seria um homem, um cidadão válido. Mimi não tinha esse
potencial. Como rapariga, não valia nada; era um fardo para a
família. Ninguém alguma vez quereria casar com Mimi, por
nenhum dote. Ela nunca aprenderia a falar ou seria capaz de
seguir as instruções mais simples. Continuaria a estar sujeita a
misteriosos ataques e convulsões, e, embora parecesse
perfeitamente contente – até feliz – com a sua sorte, Tante Anne
via-a como uma punição de Deus por algum pecado ainda não
declarado, e endureceu o seu coração em conformidade com
essa crença.
Digo tudo isto, Reynaud, para que possa compreender que a
minha antipatia para com a Igreja não tem nada de pessoal. A
religião de Tante Anne era tão fria como uma pedra, tão seca
como o pó; e o Deus dela nunca atendeu uma só das preces que
lhe dirigi.
*
Que tolice, mon père. Deus atende de facto preces? Deus não
tem tempo para escutar pequenas queixas. Narcisse julgava que
Deus largaria tudo para acorrer à vidinha dele? Estaria à espera de
intervenção divina de cada vez que alguma coisa corria mal? Está
a ver, o problema é este, mon père. As pessoas levam as coisas
demasiado à letra. Esperam que o universo gire em torno das suas
pequenas preocupações. Não têm o sentido das proporções, da
sua própria insignificância. Então, Deus não atendeu as suas
preces? Não julguem que estão sós. Deus não quer saber se
estamos sós ou se estamos a sofrer. Se Deus fez as estrelas,
porque havia de se importar se jejuamos na Quaresma ou se
bebemos álcool ou até se vivemos ou morremos...
Perdoe-me, père. A minha paciência com os paroquianos nunca
foi especialmente grande. Estas pessoas parecem pensar que
Deus lhes deve a Sua atenção. Ou, na ausência da d’Ele, que lhes
devo a minha. O meu rebanho contém animais bastante
mesquinhos; sempre a balirem; sempre a tresmalharem-se. E o
meu trabalho está longe de ser pastoral; consiste principalmente
em controlo de multidões. Não que consiga imaginar-me a fazer
qualquer outro; mas também eu tenho feito os meus sacrifícios.
Narcisse não é o único que apelou a Deus e não ouviu resposta.
Sem mais ninguém para dar vazão ao meu afeto, Mimi tornou-
se o meu alvo. Aquela estranha menina, que nunca aprendeu a
dizer mais do que uma dúzia de palavras, mas que sorria e ria
quase constantemente, foi-me mais próxima do que qualquer
outra pessoa que eu alguma vez tenha conhecido. Talvez seja
por isso que Rosette Rocher acabou por significar tanto para
mim. Recorda-me Mimi – ou, pelo menos, como Mimi poderia ter
sido se não tivesse morrido aos sete anos, cruel e
desnecessariamente, enquanto a atenção de Deus estava virada
para outro lado...
Já chega, père. Paro por hoje. Cada palavra dá a sensação de
um ataque – a mim, à Igreja, a Deus – e um padre só pode
aguentar até certo ponto. Esta confissão – se é do que se trata –
precisa de tempo, e ele sabe que, sejam quais forem os meus
defeitos, ficarei até ao fim. Contudo, por agora, irei até à quinta
para dar uma palavra a Michèle Montour. Talvez o esquivo Yannick
esteja lá. De qualquer modo, sempre arejo.
Foi o que disse para comigo quando me dirigia à quinta.
Contudo, a voz de Narcisse seguiu-me ao descer a Rue des
Marauds e ao atravessar os campos e avançar ao longo do
bosque. Uma voz muito persistente para alguém que teve tão
pouco a dizer-me em vida. Contudo, mon père, sempre ouvi
melhor do que todas as vozes dos mortos, talvez por ser quem sou
ou talvez por causa do que fiz. As vozes dos mortos são altas e
clamam por companhia.
Nunca fui um homem bom. Um homem justo, talvez, mas não
bom. Sei isto agora; demasiado tarde, é claro, para desfazer certos
atos. Só me resta avançar e tentar ser melhor do que era. O meu
pai, o assassino. Como ele escreve facilmente aquelas palavras.
Quem é que o pai dele assassinou? Não tenho a certeza se quero
saber. O pai não merece paz? Que bem faz trazer estas coisas de
volta à luz, coisas que deviam ter sido deixadas no escuro?
Ele terá confessado o seu crime, mon père? Terá sido absolvido,
há tanto tempo como o père me absolveu a mim? O meu crime foi
uma partida de rapaz, um acidente: e, além disso, o père dizia que
as ratazanas do rio eram parasitas; escumalha; ervas daninhas no
jardim do Senhor. Só as mãos eram minhas, disse. A vontade de
Deus fazia-se através de mim.
Anos mais tarde, vim a compreender que Deus não tinha nada a
ver com aquilo. E a minha culpa não podia ser absolvida por mon
père, algo que por vezes ainda me pesa na consciência. Digo por
vezes. Para ser sincero, há dias em que mal penso no assunto, e
quando o faço é muitas vezes como se fosse algo que me
aconteceu há muito tempo, quando era uma pessoa diferente.
Dizem que o corpo humano se altera todo a cada sete anos. As
células sanguíneas; as células ósseas. Tudo diferente. Larguei a
minha pele muitas vezes desde o incêndio na casa-barco no
Tannes. Devia ser agora um homem novo. Contudo, em dias como
este, quando o sol da manhã brilha de uma certa maneira nos
campos; quando o ar está fresco e as prímulas mostram os seus
rostos debaixo da sebe, o rapaz que fui em tempos parece muito
próximo, quase suficientemente próximo para lhe tocar...
Estava tão embrenhado nos meus pensamentos, mon père, que
quase dei um grito quando vi o rapaz. Em vez de gritar, soltei um
som estrangulado, ao que o rapaz respondeu com um grasnado de
alarme, e Rosette, que estava atrás dele quando ele saiu dos
arbustos, soltou uma das suas imitações de chilreio de ave.
– Rosette! – disse eu.
O rapaz lançou-me um olhar. Não se parecia nada com o rapaz
que eu fui em tempos – já que tinha cabelo castanho, um rosto
redondo e era algo rechonchudo – e no entanto ostentava um ar
de culpa. Reparei que trazia um frasco de dois litros do que me
parecia ser compota de morango. Tinha sido aberto – e
recentemente. Estava agora quase meio vazio, adornado com
marcas pegajosas de mãos.
– Isso é da quinta do Narcisse? – perguntei. Não havia mais
nenhuma quinta nas imediações.
O rapaz assentiu com a cabeça, ainda com um ar culpado.
– Então tu deves ser o Yannick Montour.
Mais uma vez, o rapaz assentiu com a cabeça. Não se parecia
nem com o pai nem com a mãe, que eram ambos de constituição
franzina, e o seu lábio superior fino e olhos pequenos davam-lhe
um aspeto algo petulante. Sorri e estendi a mão. – Eu sou Francis
Reynaud, o padre de Lansquenet – disse. – Já ouvi falar muito de
ti.
O rapaz pareceu ficar surpreendido. – Ouviu? – disse.
– Não, na verdade não – disse eu, e sorri. – De facto, és um
mistério. Mas depreendo que vens viver para cá?
O rapaz assentiu com a cabeça.
– Então, bem vindo a Lansquenet-sous-Tannes. – Apertei-lhe a
mão, que estava claramente pegajosa. Rosette voltou a fazer o
seu som de ave. Pensei que, se eu tivesse comido meio litro
inteirinho de compota de framboesa – mesmo com a ajuda de uma
amiga – estaria com sérios problemas. De qualquer modo, muitas
coisas são permitidas aos quinze anos que já não são possíveis
depois dos cinquenta e cinco. Comer compota do frasco é uma
delas.
Eu disse: – Vejo que já conheceste a Rosette. A mãe dela é dona
da loja de chocolates.
Yannick fez um ar de dúvida. – Não tenho autorização para
comer chocolate – disse ele, e pensei num outro rapaz que não
tinha autorização para comer chocolate. Luc Clairmont tornara-se
um belo jovem, sem vestígio da gaguez da sua infância, que visita
a mãe uma vez por ano e vive com a mulher em Paris. Se Caro
tivesse permitido que ele comesse chocolate, talvez as coisas
tivessem sido diferentes. Quem sabe? Estas coisas importam para
um rapaz.
Eu disse: – Por vezes, dizerem-nos para não fazermos alguma
coisa só leva a que queiramos fazê-la ainda mais. Por vezes, um
bocadinho daquilo que se quer muito é melhor do que a
abstinência total.
Yannick pareceu ficar surpreendido, como o rapaz que eu fui
teria ficado surpreendido. – Acho que sim – disse ele. – O que é
abstinência?
– Algo que os padres mencionam um pouco de mais, receio bem
– disse eu. – Especialmente durante a Quaresma.
O rapaz olhou para mim desconfiado, mas, ao ver que eu não
estava a troçar dele, sorriu. Quando sorri, o seu rosto ilumina-se e
recorda-me de algum modo Narcisse – não que o velho senhor me
sorrisse muito, mas, mesmo assim, há qualquer coisa. Alguma
vaga parecença de família.
O meu pai, o assassino. Porque é que essas palavras me afetam
tanto? Talvez tenha que ver com o rapaz, que parece bastante
estranho, talvez até um pouco lento de compreensão. Será por
isso que os pais o mantêm em casa? Se sim, então talvez seja
bom que Rosette e ele pareçam ter travado amizade. Não que
Rosette seja propriamente lenta de compreensão, mas não há
dúvida de que é diferente. Talvez ter um amigo da sua idade a
ajude a desenvolver-se de forma mais normal. Ia perguntar a
Rosette o que pensava da sua nova propriedade quando vi
Michèle Montour ao fundo do caminho e ouvi a sua voz erguer-se,
estridente:
– Yannick! O que estás a fazer aí?!
O rapaz virou-se e meteu-me o frasco de compota nas mãos. –
Por favor! Não diga à minha mãe. Por favor! – A seguir, enfiou-se
nos arbustos de onde viera, seguido de perto por Rosette, cujo
chilreio de gralha ouvi, já de dentro da mata.
Daí a um momento, Michèle Montour estava junto a mim.
Sapatos de salto alto, calças de bom corte e uma camisa de seda
branca imaculada – não propriamente, pensei, o tipo de traje
adequado para fazer uma mudança de casa. Tinha o rosto tenso
de irritação ao olhar para o frasco de compota nas minhas mãos.
– O meu filho pegou nisso? – perguntou.
Uma pequena mentira estratégica, père, é preferível a fazer outra
alma cometer o pecado da raiva. Além disso, Yannick parecera
desesperado.
– Ah, isto? – disse eu, olhando para o frasco. – Hum... foi um dos
meus paroquianos. Um presente.
– Um presente? – repetiu Michèle Montour.
– Bem, na verdade, mais um sacrifício – disse eu. – Sabe como
durante a Quaresma algumas pessoas têm dificuldade em resistir
à tentação. O meu paroquiano achou melhor... hum... livrar-se da...
Michèle Montour emitiu um som de sarcasmo. – O meu filho –
disse – come compulsivamente. É um problema de saúde que tem
de ser devidamente controlado. Se não for supervisionado, o
Yannick come sem parar. Isso é prejudicial, tanto para o aspeto
dele como para a saúde, e tem de se lidar com o problema
rigorosamente.
– Estou a ver. Deve ser duro para a senhora.
– Mon père, não faz ideia.
– Foi por isso que o tirou da escola?
Comprimiu os lábios. – O meu filho tem outros... problemas –
disse. – Problemas comportamentais e sociais. O meu marido e eu
pensámos que era melhor mantê-lo em casa.
Assenti com a cabeça. – Estou a ver.
E sim, estava a ver. Michèle Montour é extremamente vaidosa.
Ter um filho insatisfatório deve contrariá-la profundamente. Então é
por isto que ela não fala dele aos seus amigos; é a razão pela
qual, em quase dois anos, é a primeira vez que o vejo. Pressinto
que Michèle Montour adoraria gabar-se dos feitos do seu filho: das
suas proezas nos desportos; da atenção filial dele. Em vez disso,
tem de remoer o seu sacrifício; o facto de ter de o ensinar em
casa; a sua paciência e o seu sofrimento de mãe. Azedou-a, mas
assume um ar de verdadeira mártir quando me fala do assunto.
Conheço aquele ar; já o vi no rosto de Caroline Clairmont. Já ouvi
aquele tom de voz: – Mon père, eu tento não me queixar. Ser mãe
é uma cruz que carrego, e... não pense que estou a queixar-me,
père, mas ninguém sabe como tenho sofrido ao longo dos anos.
Ninguém a não ser o senhor, claro, mon père: não sei o que teria
feito sem a sua ajuda. – De facto, pouco fiz para ajudar a não ser
morder a língua e escutar. Caroline Clairmont usa o confessionário
mais como um meio de ostentar as suas desgraças do que para
procurar absolvição. Michèle Montour tem algo do mesmo estilo
passivo-agressivo, embora no caso de Caro Clairmont seja
acompanhado pelo tipo de tom de voz cansado e murcho que põe
a minha paciência à prova até aos seus limites, enquanto que no
caso de Mme. Montour assume um tom distintamente combativo.
Ela lançou um olhar reprovador ao frasco de compota meio
vazio. – Algumas pessoas... pessoas crédulas, mon père... não
acreditam que o meu filho Yannick sofra de um problema de saúde
genuíno. Deixam que as convença. Algumas até lhe dão doces.
Essas pessoas são cúmplices, mon père, do mau comportamento
dele. Espero que, se presenciar algo do género, saiba como
intervir.
– É claro. – Sentia-me corar. – É claro que o farei, Mme.
Montour. – E, de cabeça erguida, abandonei a cena, ainda com o
ridículo frasco nas mãos. Um chilreio de cotovia seguiu-me todo o
caminho ao longo da sebe de espinheiro, juntamente com o som
de passos, um par leve, outro bastante menos. Fingi não os ouvir,
mas deixei o frasco de compota no muro ao fundo da Avenue des
Francs Bourgeois. Não me virei para investigar os sons que ouvia
vindos da sebe de espinheiro, mas quando cheguei a casa o frasco
de dois litros de compota já tinha desaparecido.
5

Sexta-feira, 17 de março
ntão, aquele era Yannick. Agora, é meu amigo. É divertido e
E gosta de comer e por vezes fica incomodado e não olha para as
pessoas quando está a falar com elas. É esquisito os pais dele
serem quem são. Mme. Montour não gosta nada de mim. Só se
deu ao trabalho de aprender o meu nome quando descobriu aquilo
do testamento de Narcisse. Mas eu gosto de Yannick. É simpático;
e não se riu de mim e não tem outros amigos.
Eu compreendo isso. Fazer amigos não é fácil quando se é
diferente. E não é minha intenção sentir ciúmes quando vejo Pilou
entrar para o autocarro da escola com os amigos. Mas ele nunca
me acena. Devia acenar-me. Está tudo bem quando estamos
sozinhos, mas quando os amigos estão com ele – BAM! – é como
se não me visse.
Contei a Yannick. Ele compreendeu. – Eu dantes tinha um amigo
– disse ele. – Chamava-se Abayomi. Na escola primária, éramos
os dois miúdos que costumavam ficar sempre de fora. Depois,
fomos para o collège em Marselha, e havia uma data de outros
miúdos como ele, mas nenhum como eu.
Eu disse por gestos: Entendo. É uma seca.
– Então, porque é que tu não falas da maneira normal? Tiveste
um acidente?
Abanei a cabeça. Para quê dar-me ao trabalho? Isto resulta.
Yannick encolheu os ombros. – Tudo bem. Acho que se resulta,
resulta, eh?
Eu sorri. Estão a ver? Ele compreende. Não acha que eu seja
esquisita.
Depois de Yannick se ir embora, já era tarde. Havia sombras na
praça quando cheguei à chocolaterie. A maman estava na sala das
traseiras, ainda a fazer cestos da Páscoa. Ouvi-a cantar baixinho;
aquela canção que às vezes me cantava quando eu era muito
pequena:
V’là l’bon vent, v’là l’joli vent
V’là l’bon vent, ma mie m’appelle
Voltei a olhar lá para fora. A loja que antes foi de Narcisse, com
os jornais a tapar a montra, tem agora uma tabuleta por cima da
porta. A tabuleta diz: Les Illuminés. E agora reparei numa outra
coisa: já não havia papel a tapar a montra.
E a porta estava aberta.
6

Sexta-feira, 17 de março
ão tencionava entrar. Sabia que não devia. Assim como não
N tencionara espreitar por entre as folhas de jornal para o espaço
vazio por trás delas. Mas havia algo naquela porta que me fez
querer entrar. Talvez fosse a cor, como ameixas. A cor púrpura é a
preferida de Anouk. Ou talvez fosse por causa da senhora que eu
tinha visto no vidro da montra na manhã da primeira neve. Ou
talvez eu tenha sonhado isso. Sonho muito. A maman diz que os
sonhos são um sinal de que o vento está a mudar. Talvez esteja.
Talvez desta vez o vento traga alguma coisa que a faça feliz.
A porta estava entreaberta, como um olho. Abri-a toda para trás.
E depois pus-me a olhar em volta. Tinha sido uma florista, com
cestos e vasos dispostos por todo o soalho, e um balcão comprido
com folhas de celofane e fitas coloridas, e postais ilustrados e
prateleiras com aquelas coisas cerâmicas que só se veem nos
funerais. Agora estava diferente. Com Narcisse, estava cheia de
flores: grandes baldes atafulhados de rosas e crisântemos todos
despenteados e girassóis como jubas de leões e junquilhos todos
delicados. Com Narcisse, cheirava sempre a folhas, terra, verdura
e flores. E no chão havia sempre folhas e pétalas e fitas de palha e
os pedaços de terra seca que se soltavam das botas da
jardinagem de Narcisse.
Mas já não era uma florista. Agora, a loja estava limpa como um
hospital. O chão tinha sido encerado e havia um tapete comprido
de cor púrpura no meio. Também havia cadeiras púrpuras e uma
máquina de café toda brilhante. Na parte de trás havia uma cortina
de contas, onde era dantes o escritório, e na frente estava uma
cadeira grande de pele e uma data de luzes brilhantes e espelhos.
E ali, no espelho, estava ela, sentada numa das cadeiras púrpuras
e com botas bicudas de salto alto da cor de cerejas cristalizadas...
Era a senhora que eu tinha visto refletida na montra. Cabelo
comprido, roupas escuras, os braços todos cobertos de renda
preta grossa; uma saia que parecia penas. Mas não estava
ninguém na loja. Só no espelho. Olhei à volta à procura da
senhora, mas não a via em lado nenhum.
Fiz um som de gralha. Parecia errado usar palavras naquele sítio
de espelhos. No espelho, a senhora sorriu, e as contas na cortina
de contas dançaram e sacudiram-se...
Eu disse por gestos: Quem está aí?
Ela sorriu outra vez.
Quem é a senhora? O que quer?
A cortina de contas agitou-se. Parecia que estava a rir-se. E
agora eu ouvia a voz do vento, a soar muito perto de mim agora, a
segredar e a cantar:
O que quero? O que sempre queremos. Aquilo por que os do
nosso tipo sempre anseiam. Quero-te a TI, pequena Rosette.
Acima de tudo, quero-te a ti.
Fiquei a olhar fixamente. A cortina dançava e agitava-se. No
espelho, a senhora sorria. Fora dele, a loja estava vazia. Depois, a
senhora do espelho disse por gestos: A verdadeira questão,
pequena Rosette, é: o que queres tu?
Dei meia-volta e desatei a correr.
7

Sexta-feira, 17 de março
osette voltou depois das cinco horas, mas não veio à cozinha.
R Em vez disso, foi direta ao andar de cima, e ouvi-a brincar com
a caixa de botões, um ritual que ela associa a ordem, conforto e
alívio.
Algo a perturbou. Adivinho-o sempre; ela pode não falar grande
coisa, mas a casa reflete as suas emoções. Pelo canto do olho,
vejo Bam à espreita nas escadas, um brilho fugitivo nas sombras.
– Não queres o teu chocolate quente? – Normalmente, ela toma
uma chávena de chocolate quente às quatro horas, com um
croissant ou um pedaço de pão. Hoje, não me responde, mas da
cozinha posso ouvir o som de botões a serem dispostos, uma e
outra vez, no soalho. O que quer que a tenha incomodado, não
quer que eu saiba. Tento não me preocupar. Preocupo-me
demasiado, eu sei – com Rosette, com Anouk. Quando é que
passei a ser assim? Costumava ser destemida. Quando deixei de
o ser?
Lá fora, o ar está muito parado. A neve de abril derreteu. Um
trilho de um avião, lá no alto, arranha o azul fosco do céu. E há
corvos no telhado da igreja, em silhueta contra a luz que se
desvanece; empoleirados em silêncio e imóveis no cata-vento; a
pavonear-se nas pedras da calçada. Sinto uma súbita necessidade
de saber o que Anouk está a fazer neste preciso momento. Estará
com Jean-Loup, a passear ao longo da margem do Sena? Andará
às compras? Estará a ver televisão? Estará no trabalho? Estará
feliz? Volto a verificar o telemóvel. A mensagem dela de ontem
ainda ali está.
Pensei em irmos aí na Páscoa. Talvez ficar uns dias. Pode ser?
Não sei ao certo a que horas posso sair do trabalho. Digo-te
quando souber. A. xxx.
Sinto que devia estar mais contente por Anouk vir passar uns
dias, mas há algo no tom dela que me faz sentir inquieta. Será
excessivamente casual? Excessivamente vaga? É difícil saber. E
não indica uma data específica, embora saiba que preciso de
tempo para preparar as coisas. Para arejar o quarto dela, convidar
os seus amigos, confecionar todos os petiscos favoritos da sua
infância. Estará a tentar dizer algo mais? Será que vem, sequer?
O azul do céu desvaneceu-se agora, de azul fosco para violeta.
Lá em cima, Rosette ainda está a brincar com a sua caixa de
botões. Quando eu entrar no quarto dela, vou encontrá-los
dispostos em padrões complexos ao longo das tábuas do soalho,
debaixo das cortinas, ao longo dos rodapés, alinhados por ordem
de cor e tamanho. Rosette é sensível às cores – e a outras coisas.
Gostaria de saber o que a perturbou, mas perguntar diretamente
seria um erro. Ela dir-me-á quando – e se – quiser que eu saiba.
Fecho a chocolaterie. Não vai haver mais clientes hoje. E,
quando estou a fechar, reparo que a nova loja abriu por fim; a luz
cai da montra sobre as pedras escuras da calçada. Uma tabuleta
cor-de-rosa de néon – Les Illuminés – brilha por cima da montra.
Les Illuminés. Soa como uma loja de candeeiros toda chique. Se
o é, será cara; não imagino que se aguente muito tempo.
Lansquenet não é uma terra de ricos, e as pessoas que têm
posses para comprar bens de luxo fazem-no em Agen ou talvez
até em Marselha ou Toulouse. Suponho que os Montour conheçam
o gerente. Talvez seja por isso que arrendaram a loja tão depressa.
Ocorre-me a ideia por momentos de atravessar a praça para
espreitar lá para dentro. Mas, quando estou a pensar nisso, vejo o
reclame luminoso apagar-se e a figura de uma mulher aparecer à
porta, em silhueta contra a luz. Por um momento, parece-me
vagamente familiar, mas está demasiado longe para eu poder vê-la
claramente. Depois, a luz apaga-se e ouço o matraquear dos
estores a serem corridos na montra.
Um som tão familiar. Uma situação tão familiar. Não há com
certeza nada que justifique esta súbita sensação de inquietação; a
sensação de que alguém está a observar-me por trás do vidro com
os estores corridos. E há algo mais, também, mal vislumbrado no
lusco-fusco. Um vestígio de cores à volta da porta; um indício de
incenso; um rasto de fumo; o perfume de outros lugares.
Encontra-me. Sente-me. Encara-me.
Um desafio? Dá a sensação de ser um desafio. Ou talvez um
convite. O reclame luminoso cor-de-rosa deixou uma espécie de
imagem no ar, uma espécie de mancha, como gasolina na pedra
depois de uma chuvada de abril. E depois vem-me uma outra
recordação: o som de um par de saltos altos escarlates nas pedras
dos passeios de Paris...
Certamente não. São poucos os do nosso tipo. E, no entanto,
fico contente por ter pedido a Rosette que não entrasse sozinha na
loja. Há algo de atraente naquele sítio, uma sofisticação que não
tem nada que ver com o bonito reclame cor-de-rosa ou a porta
púrpura. Uma sofisticação perigosa, a prometer muito, e a
oferecer...
O que queres?
Encontra-me. Sente-me. Encara-me.
Fico a olhar durante algum tempo, mas não há mais movimento.
A mulher voltou para dentro. Conheço-a? Com certeza que não. E,
no entanto, há algo nela que acho perturbante. Aquele vestígio de
cores no ar. Ou talvez seja simplesmente a rapidez com que ela
reabriu a loja, tão pouco tempo depois da morte do proprietário.
Deve ser alguém de fora da vila, digo para comigo quando viro
costas. Alguém da vila teria esperado, por respeito.
No andar de cima, Rosette está a cantar baixinho. Vlam bam-
bam. Vlam badda-bam. Algo cheira a fumo de fogueira e açúcar
queimado e canela.
O Hurakan estava a soprar.
Não sei porque é que aquela única frase está sempre a voltar
para me assombrar. Aquela frase, e a recordação da neve, e o
gato, de pata erguida, na soleira da porta...
Pergunto: – Queres um chocolate quente agora?
Chega-me um pio em resposta. Depois, os passos de Rosette
nas escadas. Olha para a montra; assente com a cabeça.
– Houve alguma coisa que te incomodasse hoje?
Ela encolhe os ombros. Nas sombras por trás dela, vejo um
brilho de ouro. Sei sempre quando Rosette está a esconder
alguma coisa – Bam trai-a sempre. Vejo-o agora claramente, a
sorrir do cimo das escadas. Aconteceu alguma coisa. Um
Acidente? Já se passaram anos desde o último. Talvez ela já os
tenha ultrapassado. Estendo instintivamente a mão para Rosette,
mas ela é inescrutável; a sua mente uma bola de algodão-doce
emaranhada de pensamentos. Se tentar desembaraçá-los, ela vai-
se virar contra mim como um cata-vento.
Experimento uma magia mais humilde. – Pepitas no chocolate
quente?
Marshmallows cor-de-rosa e natas batidas. E uns para o meu
novo amigo. Ele também gosta de marshmallows cor-de-rosa.
Deito o chocolate na chávena preferida dela e remato com
marshmallows. Rosette bebe cuidadosamente, com ambas as
mãos à volta da chávena.
– Gostava de conhecer o teu novo amigo. Talvez pudesses trazê-
lo cá um destes dias.
Vai haver marshmallows?
– É claro que sim.
Ela sorri. Os seus olhos são límpidos como o verão. E, no
entanto, está a esconder alguma coisa, eu sei que sim: vejo-o nas
suas cores. Tento afastar o pensamento. Ela dir-me-á, quando
quiser. E, no entanto, não consigo deixar de ver Bam, nas
sombras, a sorrir-me; ou de ouvir, no som do vento, os passos de
sapatos de salto alto nas pedras da calçada...
8

Sábado, 18 de março
ão me lembro da Guerra. Era demasiado novo quando
N acabou para ter recordações claras desses tempos. Mas
recordo os anos do pós-guerra; as amargas retaliações; as
pessoas que não eram servidas nas lojas. O meu pai não
participou em nada disso; preferia o trabalho na quinta a manter-
se a par dos mexericos da vila. Mas Tante Anne era um cata-
vento, a virar-se à feição do vento: um dia a recusar-se a falar
com Mme. Machin ou M. Truc; no seguinte a queixar-se por M.
Untel não a ter cumprimentado à saída da igreja.
O meu pai e eu não íamos à igreja. E a Mimi, claro, era
impossível mantê-la sossegada em qualquer lugar público. As
suas danças e movimentos constantes, já para não mencionar os
risos a despropósito e os gritinhos de aves que fazia – tão
parecida com Rosette, embora Mimi não tivesse nenhuma da
complexidade de Rosette – todas essas coisas faziam com que
fosse melhor mantê-la em casa e longe do homem cuja filha
tinha morrido com a gripe; da mulher cujo filho adolescente tinha
sido morto a tiro pelos alemães por dizer uma piada, dos pais
cujos filhos tinham ido para a frente de combate e não
regressaram; dos pais cuja filha dera à luz um bebé nazi.
Até mesmo eu conseguia adivinhar o que eles pensavam
sempre que viam a minha irmã. Porque não tinha sido Mimi?
Quem lhe sentiria a falta? Não era justo. Uma criança inútil, uma
criança deficiente tinha sobrevivido a metade das suas
contemporâneas. Uma criança inútil, deficiente, judia – oh sim,
ouvimos isso uma ou duas vezes. Nem toda a gente era tão
liberal como a História gosta de nos ensinar, e algumas pessoas
até culpavam os judeus pelo que acontecera na Alemanha.
Essas pessoas eram uma minoria, mas eu sabia que existiam.
Alguns eram nossos vizinhos, Reynaud, e embora eu não esteja
em posição de julgar, via-o nos olhos deles – porquê Mimi?
Porquê aquela criança, que nunca foi uma das nossas?
*
Bem, sim. É claro que ele tem razão. A guerra é um assunto
complicado, pouco adequado às certezas a preto e branco dos
historiadores. Mesmo em rapaz, eu já sabia que a virtude e a
vileza são em grande medida uma questão de perspetiva. Mas é
claro que eu pensaria assim, mon père. O senhor, melhor do que
ninguém, deve saber isso. Pergunto-me se Narcisse alguma vez
suspeitou quem ateou o incêndio no barco do rio? Seria por isso
que ele me odiava, ou simplesmente, como dá a entender, por não
gostar da Igreja Católica? Eu nunca contei a ninguém. Só a si, mon
père, em lágrimas, por trás da grelha escura do confessionário. E o
senhor absolveu-me, não absolveu? Tirou-me o fardo de cima.
Contudo, a absolvição e o perdão são duas coisas inteiramente
diferentes. Vejo-o, agora que sou constituído por células
inteiramente diferentes. O ato cheio de ódio permanece comigo,
como a marca de Deus em Caim. Contudo, se a absolvição não é
o suficiente para me limpar do meu crime, o que é? E onde devo ir
para o encontrar?
Eu sei. Estou ciente de que este manuscrito anda a atacar-me a
mente. Mas não o abandonarei. Devo tanto como isso, pelo
menos, a Narcisse, que por alguma razão mo deixou a mim. Que
razão é essa, mon père, não faço ideia neste momento; mas agora
tenho a certeza de que foi por mais do que malícia ou
ressentimento. Porém, está a fazer-se tarde, mon père. Não lerei
mais da história de Narcisse hoje. Hoje é a cerimónia do sétimo
dia.
Já passou uma semana desde a morte dele. Demora algum
tempo a preparar as coisas. E Narcisse não deixou instruções para
o que fazer com as suas cinzas; só uma pequena quantia para
cobrir as despesas, e um pedido – Nada de flores. Mas viveu em
Lansquenet mais tempo do que qualquer outra pessoa que eu
conheça; merece o seu espaço no cemitério, fosse qual fosse a
sua atitude para comigo. E sei que Michel e Michèle aprovarão; um
lugar no cemitério – mesmo um nicho – confere um certo estatuto.
E embora Narcisse tenha sido cremado – uma cerimónia secular,
como pedido – as suas cinzas serão colocadas num nicho no muro
do cemitério, com o local assinalado por uma placa de metal que
eu próprio paguei.
Eu sei. Parece um ato um pouco mesquinho, disfarçado de
piedoso. Contudo, Narcisse não era crente, e por isso o que
acontece às suas cinzas não devia ser de nenhum interesse para
ele. É-o para mim, contudo – e não simplesmente porque ele era a
ovelha negra do meu rebanho, père, ou porque não gosto de
perder. Muitas pessoas gostavam de Narcisse: pessoas que
gostariam de lhe prestar uma última homenagem. Esta cerimónia
na igreja dar-lhes-á essa oportunidade.
Esta manhã, procurei as sepulturas do pai e da tia-avó de
Narcisse. Nenhum deles está sepultado em Lansquenet – embora
eu tenha encontrado a sepultura da irmã, escondida à sombra de
um teixo que alargou tanto que a sua copa tapou uma dúzia de
sepulturas. Uma hora com uma tesoura, e fiquei com as mãos
cheias daquelas pequenas lesões vermelhas provocadas pela
seiva tóxica do teixo. Mas ali estava ela: a lápide; uma pedra que
deve ter sido cara, especialmente durante a guerra: uma coroa em
arenito a rodear a simples inscrição. O musgo e os líquenes
cresceram nas brechas, mas as palavras ainda são discerníveis:
Naomi Dartigen; 1942-1949
Agora ela é como todos os outros.
E agora tento imaginar a dor que acompanhou aquela frase.
Quem a terá escolhido? Certamente não foi a tia-avó, com toda a
sua piedade dura. O pai, então? Quem mais havia? Certamente
não foi Narcisse, que não devia ter mais do que onze anos quando
a irmã morreu. Não há menção na lápide de como aconteceu a
tragédia. Por outro lado, há muitas maneiras como uma criança
daquela época poderia ter morrido. Suponho que o manuscrito de
Narcisse me esclareceria: mas já li que chegue hoje. Começo a
sentir outra vez os olhos turvos e uma dor de cabeça. Talvez
precise de óculos novos.
Pego na minha soutane bem engomada; ponho um cabeção
branco limpo. Como não é um evento oficial, mantê-lo-ei simples:
nada de alba ou casula para Narcisse, só a soutane, o cabeção e
uma estola num tom discreto de violeta. Não me dei a grande
trabalho para divulgar a cerimónia. A vila tem a sua própria
maneira de disseminar informações; e quando eu chegar à igreja já
toda a gente estará à espera.
Michel Montour entregou a urna hoje de manhã. Uma urna de
plástico castanho, a imitar o bronze, e suficientemente pequena
para caber no nicho. Está na prateleira por cima do fogão de sala,
onde não há mais nada a não ser uma mancheia de moedas e
uma palma que ficou da Páscoa. É estranho estar a ler o
manuscrito dele na companhia das suas cinzas.
E agora pergunto-me, ao fechar o dossiê verde: se esta
confissão de Narcisse é para mim, porque é que sou eu que me
sinto penitente? Porque é que os meus pensamentos estão
sempre a voltar aos acontecimentos daquele verão, ao incêndio no
barco do rio, àquelas duas desgraçadas pessoas? As gentes do rio
são conhecidas, regra geral, por alcunhas. Os nomes são palavras
com poder. Saber o nome de um homem é estabelecer uma
ligação, e eu não queria nenhuma ligação com o crime. E, no
entanto, procurei-os, mon père. Encontrei-os no jornal. Não na
primeira página, mas na quarta, por baixo da notícia de um raio
que tinha incendiado uma igreja em Montauban. Pierre Lupin,
conhecido como Pierrot La Marmite, e Marie-Laure «Choupette»
Dupont, a sua companheira: com trinta e dois e vinte e oito anos
respetivamente, ambos sufocados pelo fumo no seu barco. Uma
vela deixada acesa foi indicada como a causa provável do
incêndio, embora toda a gente soubesse que o casal bebia;
provavelmente, estavam perdidos de bêbedos quando as roupas
de cama pegaram fogo. Pelo menos não sofreram, disse o senhor,
mon père. Mas não é o que toda a gente diz? Não é o que toda a
gente quer acreditar, que a Morte é uma libertação misericordiosa
e não uma ofegante agonia de terror e confusão?
Um copinho de vinho, mon père, para me acalmar os nervos
para a cerimónia. Eu não devia remoer estes acontecimentos
passados. Toda a gente morre. A vontade de Deus prevalece. Eu
só queria ainda acreditar nisto como quando o senhor ainda era
vivo. Mas agora não tenho confessor, mon père: ninguém para me
dizer como proceder – a não ser talvez o próprio Narcisse, ainda a
observar-me do além-túmulo.
Sirvo-me de um copo de Père Julien e ergo-o à urna de plástico.
– Narcisse, velho amigo – disse ao pó. – Agora és como todos os
outros.
9

Sábado, 18 de março
funeral de Narcisse é hoje. Bem, não exatamente o funeral. Já
O tivemos a parte do funeral, no centro de Agen. Mas isto é um
serviço memorial, o que significa que é para recordar Narcisse, o
que parece estranho, porque, como poderíamos esquecer? De
qualquer maneira, eu tive de usar um vestido, um verde com
florzinhas, e a maman usou o casaco azul-céu e o vestido com o
debruado aos folhos. Já estavam muitas pessoas na praça quando
saímos de casa. Não era longe: era só atravessar a praça e descer
na direção do cemitério. Há um muro caiado lá, com prateleiras e
pequenos nichos de pedra – um bocado como uma biblioteca para
os mortos. Até certo ponto, faz sentido. Como a maman diz, as
pessoas estão cheias de histórias.
Olhei à minha volta para ver quem estava lá. Talvez umas
cinquenta pessoas. Alguns dos homens de idade do café. E
Joséphine – mas não Pilou. Perguntei-me por motivo que ele não
estava ali. Nem sequer era um dia de aulas. Uma data de pessoas
de Les Marauds – na sua maioria mulheres, todas de preto, com
véus na cabeça como freiras, mas nelas é difícil dizer se é o preto
de todos os dias ou o preto dos funerais. Omi também estava aqui,
com Maya. Piscou-me o olho com o seu rosto de uva passa. E
estava Reynaud, também todo de preto para além da coisa
púrpura à volta do pescoço. Não é bem um lenço, não é bem um
xaile, mas é bonito. Acho que até ele tem de se vestir a preceito
quando é o funeral de alguém.
A nova loja que não é de flores está fechada hoje. Há uma
tabuleta a dizer FECHADO na porta e o reclame luminoso está
desligado. Será por causa do funeral? Olhei à minha volta para ver
se havia alguém fora do habitual. Mas não havia nem sinal de
alguém novo na vila. Só a senhora chinesa, Ying, que me sorriu e
acenou. E estava Yannick com os pais, o pai dele com um fato
cinzento escuro, a mãe com luvas de renda pretas e um chapéu
com um veuzinho às pintas. Yannick estava com gravata e um
casaco que parecia um pouco pequeno para ele, e parecia
acalorado e mal humorado. Enviei-lhe um discreto sopro de vento,
só para ele reparar em mim – BAM! Ele olhou para mim, mas só
por um segundo. Os seus olhos ressaltaram dos meus como
bolinhas.
A maman olhou para mim. Para com isso, Rosette.
Mas ele é meu amigo, disse eu por gestos. Sabes, o que gosta
de marshmallows cor-de-rosa?
Ela pareceu ficar surpreendida. – O Yannick Montour? Ele é que
é o teu novo amigo?
Perguntei-me se ela teria pensado que Yannick era um amigo
imaginário. Fez-me sentir subitamente triste e contrariada que até
a maman pudesse ficar surpreendida quando os meus amigos
afinal são pessoas reais, vivas.
Ele estava no meu bosque, disse-lhe por gestos. É simpático.
Compreende coisas.
A maman lançou um olhar esquisito a Yannick, como se ainda
estivesse ansiosa. Eu queria dizer-lhe que Yannick era simpático,
nada como os pais, mas Reynaud tinha começado a falar e por
isso não pude dizer mais nada. Ele falou sobre como cultivar
coisas era como uma espécie de comunhão com Deus, e que era
por isso que Narcisse era na realidade cristão, embora detestasse
a Igreja. Como aquilo não estava a fazer muito sentido para mim,
pus-me a olhar para Yannick e a tentar levá-lo a olhar para mim
fazendo com que as pedrinhas do caminho ressaltassem contra o
muro do cemitério. Depois, quando Reynaud acabou de falar, pôs
a urna com as cinzas numa das prateleiras de pedra pouco fundas
e aparafusou uma placa de metal ao muro por baixo dela. Há
espaço à justa entre o muro e o caminho para plantar morangos.
Vou trazer alguns da clareira. Narcisse ia gostar. Sei que sim.
Quando chegámos à praça outra vez, a loja que não é de flores
estava aberta e o reclame luminoso ligado. Vi Yannick parar à
entrada, como se algo novo lhe tivesse chamado a atenção. Vi que
havia um cata-vento de papel espetado num vaso de flores junto à
porta. Fazia um som matraqueado ao andar à volta. Umas cores
de arco-íris piscavam e brilhavam como um sinal secreto. Corri
para alcançar Yannick, mas Mme. Montour lançou-me um olhar.
– Despacha-te, Yannick – disse ela. – O que é que julgas que
estás a fazer aí atrás?
Yannick encolheu os ombros e rosnou, mais parecido com um
urso do que nunca. Devia ser esse o aspeto de Narcisse quando
era rapaz, pensei. Como um tipo de urso mais pequeno, de cabelo
castanho desgrenhado e ombros redondos. Aposto que Narcisse
ficaria contente por saber que Yannick e eu somos amigos agora.
Mas a mãe dele não parecia nada contente. Olhou para mim como
se eu lhe tivesse roubado o último par de atacadores dos sapatos.
Aquele é o meu amigo, disse eu à maman. Vamos convidá-lo
para tomar um chocolate quente.
Maman olhou para Mme. Montour e depois pegou-me na mão e
conduziu-me na direção da chocolaterie. – Talvez noutro dia,
Rosette. Este não é o momento certo para visitas.
Porque não hoje? É por a mãe dele não gostar de mim?
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – disse ela. Mas eu
via que ela estava a mentir.
Fiz um som de desprezo – Pfff! – e o chapeuzinho preto de Mme.
Montour atravessou a praça a rodopiar no ar e foi cair na sarjeta ao
longo da Avenue des Francs Bourgeois.
BAM! disse eu, para a maman pensar que não tinha sido culpa
minha. Ela lançou-me um olhar. Eu retribuí-lho. Não faço isso
muitas vezes. Os olhos são janelas, e por vezes quando se olha
por janelas veem-se coisas que não se deviam ver. Como a
senhora no vidro, a que parece uma ave, uma pega.
– Queres um chocolate quente, Rosette?
Não me apetecia, mas a maman pensa que o chocolate é uma
cura para tudo. Eu sentia-me mal por ficar zangada com ela e por
isso sorri e assenti com a cabeça. A maman pareceu ficar
contente, e eu senti-me um pouco culpada. Mas sabia que me
sentiria pior se deixasse que ela pensasse que o chocolate dela
não estava a resultar. Ela é Vianne Rocher, afinal. Sem chocolate,
o que é que tem?
10

Sábado, 18 de março
cerimónia correu bem, embora seja eu próprio a dizê-lo.
A Mantive-a tão ligeira quanto possível, com tão poucas alusões à
Igreja quantas poderiam esperar-se de um padre. Consegui até
encaixar uma piada – Armande Voizin teria aprovado – e uma onda
de divertimento percorreu a congregação.
Devo confessar que me agradou mais do que talvez devesse.
Não sou geralmente conhecido pelo meu sentido de humor, mas
há algo agradável no riso provocado pela própria pessoa.
Joséphine estava entre os presentes: vi-a sorrir e, por um
momento, quase me esqueci de onde estava, da mesma maneira
que um homem pode ficar cego com o súbito aparecimento do sol.
Eu sei. Devia evitá-la. Não pense que não estou ciente da
tentação que ela representa. Uma tentação toda ela de um só lado,
claro – a minha vocação proíbe tais fantasias. Mas podemos
continuar amigos, espero. Nisto, vejo progressos.
A caminho de casa passei pela nova loja. Les Illuminés, é como
se chama. Soa vagamente clerical, como se talvez vendesse
artigos funerários. Mas não há flores nem coroas lá dentro. Só uma
cadeira e alguns espelhos. Disse para comigo que devia entrar,
pelo menos para cumprimentar o novo proprietário e fazê-lo sentir-
se mais à vontade. Lansquenet sempre foi uma vila muito
tradicional. As pessoas de fora nem sempre são bem vindas,
especialmente em circunstâncias menos felizes, e uma visita de M.
le Curé garante a aprovação dos elementos mais conservadores.
Contudo, quando ia a passar pela montra, lancei um olhar aos
espelhos que forravam dois lados do interior e vi alguém refletido
ali, sentado na cadeira.
Narcisse?
Deve ter sido uma ilusão de ótica. A cadeira junto à montra
estava vazia. Contudo, no espelho estava Narcisse, tal como tinha
sido em vida. Olhei para a praça, para ver se mais alguém o tinha
visto. Mas não havia ninguém que estivesse suficientemente perto
para poder ver lá para dentro pela montra. Depois, voltei a olhar
para o interior da loja e em vez de Narcisse no espelho vi
Joséphine, a sorrir-me. Contudo, continuava a não estar ninguém
na cadeira – e, além disso, eu acabara de ver Joséphine na
cerimónia, trajando o seu vestido azul-marinho dos funerais,
embora aqui estivesse com um casaco de xadrez que já não usava
há anos.
É claro que era uma ilusão de ótica. Que mais poderia ser, mon
père? A Igreja Católica não aceita a crença em fantasmas. No
entanto, aquilo abalou-me, père. Afastei-me da montra a toda a
pressa. Ainda sinto um desconforto, como o princípio de uma
enxaqueca. Como é que vi Narcisse ali dentro? Não consigo ler a
confissão dele. Nem consigo tomar o café. Vou antes trabalhar no
jardim: apanhar ar fresco, arrancar umas ervas daninhas. E mais
tarde, talvez, quando tiver a cabeça desanuviada, vou à Les
Illuminés e apresento-me ao novo proprietário – que talvez seja um
cabeleireiro ou uma esteticista, com tratamentos de beleza a
metade do preço – e rir-me-ei da minha tolice e das sombras na
minha alma.
11

Sábado, 18 de março
iz o chocolate quente para Rosette, deixando a porta da
F chocolaterie aberta. Agora tenho a certeza: há algo estranho na
loja do outro lado da praça. Não é simplesmente o reclame
luminoso, e o nome – Les Illuminés. Não é simplesmente o facto
de as crianças se sentirem atraídas por ela como abelhas. Desde
que voltou a abrir, ainda não vi um único cliente, veículo de
entregas ou trabalhador perto daquele sítio. Nem sei ao certo o
que vende. E, no entanto, não consigo afastar a ideia de que algo
estranho está a acontecer ali.
Sonhei com Zozie l’Alba ontem à noite, pela primeira vez em
meses: o seu olhar direto; o seu encanto casual; o som dos seus
sapatos nas pedras da calçada. Sonho com Zozie e, subitamente,
aqui vem o vento de novo – aquele vento brincalhão que nos excita
a ambas e provoca aquilo a que chamamos os pequenos
Acidentes da Rosette.
É claro que não são acidentais. São cíclicos, como o vento, e, tal
como o vento, determinam a direção. Uma morte na vila; uma nova
loja; um novo companheiro de brincadeira para Rosette. Estas
coisas são todas sinais de mudança, tão certas como a Torre
atingida por um raio no baralho de Tarot da minha mãe. O mundo à
minha volta tornou-se uma floresta agoirenta de portentos e sinais.
A Morte. O Louco. A Torre. A Mudança. E entre eles todos, o
vento; o vento que nos faz rir e dançar; o vento em que Rosette
voa como uma ave; o vento que traz o furacão.
Trabalhar com chocolate ajuda-me sempre a encontrar o centro
de calma da minha vida. Está comigo há tanto tempo; nada nele
pode surpreender-me. Esta tarde estou a fazer pralinés, e o
pequeno tacho com chocolate no fogão está quase pronto.
Gosto de fazer estes pralinés à mão. Uso um recipiente cerâmico
por cima de um tacho de cobre pouco fundo: um método
complicado e antiquado, talvez, mas os grãos de cacau requerem
um tratamento especial. Vieram de longe e merecem toda a minha
atenção. Hoje, estou a usar uma cobertura feita de grãos Criollo: o
seu sabor é subtil, enganador; mais complexo do que os sabores
mais fortes do Forastero; menos imprevisível do que o híbrido
Trinitario. A maioria dos meus clientes não saberá que estou a usar
este grão de cacau dos mais raros; mas eu prefiro-o, embora seja
mais caro. A árvore é sujeita a doenças: a colheita é pouco
abundante; mas a espécie data do tempo dos Aztecas, do povo
olmeca, dos Maias. O híbrido Trinitario praticamente erradicou-a,
mas continua a haver alguns fornecedores que vendem a espécie
antiga.
Hoje em dia, consigo usualmente dizer onde foi cultivado
determinado grão, bem como identificar a sua espécie. Estes
vieram da América do Sul, de uma pequena quinta biológica.
Contudo, apesar de toda a minha competência, nunca vi uma flor
da árvore Theobroma cacao, que só dura um dia, como algo num
conto de fadas. Já vi fotografias, claro. Nelas, a flor da árvore do
cacau parece-se com a do maracujá: com cinco pétalas e aspeto
de cera, mas pequenas, como uma planta do tomate, e sem
aquele perfume verde e intenso. As flores do cacau não têm
perfume; mantêm o seu espírito dentro de uma vagem com a
forma aproximada de um coração humano. Hoje, sinto esse
coração a bater: uma aceleração dentro do tacho de cobre que em
breve libertará um segredo.
Mais meio grau de temperatura e o chocolate estará pronto. Um
filtro de vapor sobe palidamente da superfície brilhante. Meio grau,
e o chocolate estará no seu ponto mais tenro e moldável.
Rosette acabou de tomar o chocolate quente e foi até à praça.
Sinto a súbita necessidade de ler outra vez a mensagem de
Anouk. Há sempre tanto a interpretar nestes pequenos vislumbres
da vida dela. Pensei em irmos aí na Páscoa. Irmos, nós. Isso,
claro, significa ela e Jean-Loup também. Não é que eu não goste
de Jean-Loup: mas ela fica diferente quando está com ele; atenta,
a ponto de parecer ansiosa. É claro que se sente ansiosa: Jean-
Loup esteve gravemente doente durante a maior parte da sua
infância, e até mesmo agora é mais suscetível do que o normal a
infeções e complicações. Não que isso pareça incomodá-lo; mas
Anouk, por vezes, preocupa-se.
É egoísta, eu sei, mas há ocasiões em que me pergunto o que
teria acontecido se ela nunca tivesse conhecido Jean-Loup.
Embora na altura tenha ficado contente – Anouk tinha um amigo,
pelo menos –, quando voltámos para Lansquenet pensei que ela
pudesse esquecê-lo. Jeannot Drou também era seu amigo – e ele
teria ficado em Lansquenet, ou talvez algures perto, como Agen, e
eu vê-los-ia todos os dias, em vez de ficar a olhar de longe...
Pensei em irmos aí na Páscoa. Magoa-me que ela não diga ir a
casa. Talvez tenha acabado por encarar agora Paris como a sua
casa. Que irónico seria se Anouk, que durante tantos anos sonhou
com um lugar tal e qual como Lansquenet, um lugar calmo onde se
instalar, se tornasse como as folhas ao vento, como eu era na
idade dela. Por fim, respondo.
Sim, claro! Será maravilhoso vê-los a ambos! V. xxxx
Acrescento sempre um beijo extra. Mas agora aquela fila de
cruzes parece-se com algo num cemitério e o chocolate cheira a
fumo de tabaco e o vento dá a sensação de estar a soprar pelo
buraco aberto no meu coração.
É isto que acontece quando não presto atenção à tarefa entre
mãos: a cobertura começou a contrair-se, o que significa que
permiti que a temperatura subisse a mais de cento e vinte graus.
Daqui a uns segundos, será como terra: baça, espessa e
granulosa.
Ainda posso salvá-la, mas tenho de atuar rapidamente, antes
que o chocolate perca a sua elasticidade. Tiro-a do lume e adiciono
uma mancheia de pedaços de cobertura, mexendo
constantemente até os pedaços derreterem todos. O fedor quente
e seco de tabaco tornou-se o aroma de folhas queimadas; o doce
e simples aroma de uma fogueira em noites de outono.
Experimenta-me. Saboreia-me. Põe-me à prova.
O chocolate está agora menos quente: a consistência sedosa
voltou. Ponho de novo o tacho ao lume. Minúsculas pétalas de
vapor erguem-se da superfície brilhante. Parecem os fantasmas de
flores mortas. Prever o futuro com chocolate é uma habilidade que
a minha mãe nunca dominou. Era uma magia demasiado
doméstica, talvez; ou talvez ela simplesmente não confiasse nas
visões no vapor. Preferia as suas cartas do Tarot, as imagens
gastas e familiares. Mas o chocolate e eu somos velhos amigos:
juntos, já viajámos muito, e sempre nos compreendemos um ao
outro.
Experimenta-me. Saboreia-me.
Inalo por entre o fumo; agora, sinto o cheiro do cobre aquecido
do tacho; o aroma da mistura de chocolate. Os grãos de cacau por
tratar são vermelhos; a bebida do povo olmeca parecia sangue
misturado com água.
Põe-me à prova.
Vejo um bando de aves negras a erguerem-se num céu
vermelho: no fumo, os seus gritos são como minúsculos estilhaços
de prata. As aves negras são um sinal de perda; de que um ente
querido está de partida.
Narcisse? Mas o vapor do chocolate prediz o futuro, não o
passado. E agora vem do tacho de cobre o cheiro a tabaco e
cardamomo; a nota de coração do grão Criollo, clara e persistente
como a memória. Cheira a histórias contadas à noite à volta de
fogueiras e em quartos de hotel baratos. Cheira a amor fugidio e
apaixonado, a noites descontraídas sob estrelas estrangeiras.
Cheira ao rio e a todos os seus caminhos que levam ao mar
triunfante; e para além disso a Londres, a Moscovo, a Roma e a
Marrocos e ainda mais para além, para lugares que só vimos em
revistas, embora o vento nos recordasse ocasionalmente os
lugares ainda a serem vistos, a serem conhecidos, provocante e
sedutor.
E que tal Sydney? Reiquiavique? Madagáscar? Tóquio? Ou
preferias Bora Bora ou o Taiti ou os Açores? Vem comigo, segue-
me, confia em mim e eu dar-te-ei o mundo...
Contudo, o vento matreiro mente sempre: promete tanto e só traz
desgostos. A sua voz costumava soar como a da minha mãe, mas
agora soa como a de outra pessoa: ligeiramente arrastada,
divertida, um arranhão no fundo da garganta às gargalhadas.
Porque voam aquelas aves negras, e para quem? Não para
Anouk. Não para Rosette. Eu sacrifiquei demasiado para deixar as
minhas filhas irem com o vento. Quem, então?
Encontra-me. Sente-me. Encara-me.
O chamamento da loja do outro lado da praça ainda me ressoa
na mente. Quase poderia ser a minha voz, a voz da Vianne que eu
era quando Anouk nasceu, a ecoar ao longo dos anos como o
chamamento de um animal esfomeado.
Encontra-me. Sente-me.
Afasto a voz. Silêncio! Vai-te embora! Regresso mais uma vez ao
chocolate.
E agora a nota de base do grão: uma amora silvestre e amarga,
como frutos apanhados depois do virar do ano. Cheira a mata, a
folhas caídas e ao aroma escuro das especiarias de inverno. E
recorda-me algo – talvez um sonho ou alguma coisa que vi há
muito tempo...
É tudo o que o vapor mostra. Aquelas aves negras. Aquele céu
vermelho. Verifico o lume: apagou-se. Ou antes, alguém o apagou:
ele está de pé à porta, a observar-me em silêncio. Mesmo agora,
depois de todos estes anos, ainda não me acostumei à
profundidade e à qualidade dos silêncios de Roux. Este é atento,
consciente; o silêncio de uma coisa selvagem sem a certeza de ser
bem recebida.
– A cobertura estava a queimar-se – diz ele.
– Eu tinha tudo sob controlo.
– OK.
Já não via Roux desde antes da morte de Narcisse. O assunto
da mata de carvalhos tem-no mantido teimosamente à distância.
Nem Rosette falou ainda com ele, embora eu saiba que Reynaud
tentou. Mas Roux nunca teve uma casa ou terras a seu cargo.
Sempre desconfiou dessas coisas e das pessoas que lhes dão
valor.
– Fui ao túmulo do Narcisse – disse ele. – Estava demasiada
gente antes.
Sei porque não foi à cerimónia. Sempre detestou Reynaud, por
razões que posso compreender. Em tempos, eu tinha a esperança
de que Roux pudesse amolecer, mas ele guarda rancores da
mesma forma que outras pessoas acumulam bens materiais.
– É bom ver-te de novo. – Ele sorri. Ponho os braços à volta
dele. Cheira bem: um misto de fumo de madeira queimada, óleo e
sabão e o aroma agoirento do rio.
– O chocolate – diz ele.
O vapor arrefeceu. O chocolate está a começar a endurecer de
novo. Sobre a superfície paira um só ponto de interrogação
fantasmagórico. O que queres, Vianne Rocher? O que é que
queres realmente?
Sacudo o último resquício de vapor, e com ele – por algum
tempo, pelo menos – o som daquelas aves negras no vento.
Fecho os olhos. – O chocolate pode esperar.
E, no entanto, dou por mim a observar-nos com uma estranha
sensação de distanciamento; uma sensação de perda antecipada
que envolve todos os momentos na seda tecida de um casulo de
aranha; o cheiro dele é quente e bom e reconfortante. Mesmo
assim, não consigo esquecer completamente o som da voz da
minha mãe, e aquela frase que repete constantemente; uma frase
cujo sentido parece agora menos claro ainda do que na noite em
que a minha Rosette nasceu e eu lancei o círculo na areia:
Um gato atravessou-se no teu caminho na neve, e miou. O
Hurakan estava a soprar.
Fumo
1

Sábado, 18 de março
pesar da desaprovação de Tante Anne e das suas amigas,
A Mimi era uma criança feliz, sempre a rir e a sorrir. Adorava
brincar na água, ou simplesmente pôr-se a ver as gotas da chuva
caírem numa poça ou sobre um pedaço de chapa ondulada.
Também não se importava de se molhar, ficando sentada à
chuva horas a fio se a deixassem, a olhar para o céu e a emitir
aqueles chilreios.
Tante Anna fingia sentir-se horrorizada. «Ainda apanhas uma
constipação de caixão à cova!», dizia sempre. Mas era só para
manter as aparências: se Mimi apanhasse uma gripe que a
matasse, penso que Tante Anna seria capaz de se se sentir
aliviada. No entanto, apesar das convulsões e dos espasmos,
Mimi não era afetada por constipações e problemas de
brônquios. Como estava proibida de brincar sozinha nas
margens do Tannes, muitas vezes eu acompanhava-a para a ver
brincar no rio ou atirar pedrinhas da margem ou fazer barquinhos
com pedaços de madeira e lançá-los da pequena ponte de pedra
que separa a vila de Les Marauds. Embora houvesse algo de
errado em Mimi, ela era uma criança feliz, Reynaud. E qualquer
rivalidade entre irmãos que poderia ter surgido entre nós se ela
fosse uma criança normal estava ausente. Ela adorava-me
incondicionalmente e eu era o seu protetor – porque o Pai,
embora à sua maneira gostasse dela, vivia à sombra de Tante
Anna e receava a sua língua afiada.
Lembro-me de, numa ocasião, ela o ter surpreendido a brincar
com Mimi junto ao celeiro. Havia ali uma poça de água, quase
como um pequeno lago, que se juntara depois das chuvas. Eu
estava a chapinhar na água com as minhas galochas. O Pai
estava acocorado ao lado da poça, com uma mancha de lama a
secar em cada joelho, a mostrar à Mimi, então com três anos,
como pôr a velejar um barquinho feito de papel de jornal.
«Estás a ver? É assim,» disse o Pai, empurrando o barquinho
com um pau; fazendo-o avançar. Mimi fez um dos seus chilreios.
Era ainda suficientemente pequena para soar como um bebé
nesses tempos; mas esses eram os únicos sons que ela emitia.
O Pai nunca se importou – era um homem muito calado – mas
Tante Anna não tinha dó nem piedade. À mesa, era sempre:
«Senta-te direita, Naomi. Segura no garfo em condições. Não,
não... assim não.» E quando Mimi se enganava, Tante Anna
picava-a nas costas da mão com os dentes do seu garfo, de tal
modo que as mãozinhas de Mimi andavam sempre cobertas de
pintas vermelhas. Se o Pai tentava intervir, ela dizia: «Como é
que ela há de aprender se lhe fazes a vontade?» E depois
inclinava-se para Mimi e dizia: «Ora bem, Naomi. Diz ‘garfo’.»
Mas Mimi só conseguia emitir aquele som – aquele chilreio que
Tante Anna odiava – e Tante Anna convenceu-se de que ela só o
fazia para a irritar.
Nesse dia, quando Tante Anna dobrou a esquina do celeiro, a
voz de Mimi estava especialmente aguda e animada. Batia com
os pés metidos nas galochas; chilreava, encantada com o barco
de papel. E depois disse, muito claramente: «Baa!»
O Pai e eu olhámos para ela.
«A Mimi disse «barco»!» exclamei.
Mimi riu-se.
Tante Anna semicerrou os olhos por trás das lentes dos seus
óculos. Trazia aquela sua cruz preta, que reluzia na renda à volta
do pescoço. Eu adivinhei que estava furiosa por Mimi e o Pai
estarem a divertir-se. Mas o Pai não viu isso. Estava ocupado a
abraçar Mimi, que começou a rir outra vez. Eu não consegui
conter-me; ri-me também. Mimi estava tão engraçada, com o seu
rostinho e o seu enorme sorriso, qual fatia de melão...
Tante Anna aproximou-se, com os lábios comprimidos como
arame farpado.
«Que barulheira é esta?» perguntou. «Ouvia-os em casa.»
Isso não era verdade. Mal tínhamos feito barulho até há um
momento, quando Mimi disse a sua primeira palavra. O Pai ficou
com um ar embaraçado. Pousou Mimi. Tante Anna tinha ideias
muito definidas sobre como criar uma criança, que incluíam
manter os homens afastados de uma tarefa que Deus confiara às
mulheres; e as crianças manterem-se caladas e irem à igreja –
coisas que Mimi não parecia capaz de fazer. Ao ver Tante Anna,
começou a chilrear e a gesticular e a chapinhar na água com as
galochas, o tipo de comportamento que Tante Anna mais
detestava.
Tentei distrair Tante Anne com a notícia. «A Mimi acabou de
dizer ‘barco’,» disse-lhe.
Tante Anna olhou para mim. «Ai disse?»
Assenti com a cabeça. Via que o meu pai não ia dizer nada.
Raramente falava quando ela estava por perto. Penso que
achava que era mais seguro.
Dirigindo-se a Mimi, ela disse: «Muito bem. Vamos lá então
ouvir-te dizer a palavra, está bem?»
Mimi não disse nada, limitando-se a chilrear e a bater com os
pés.
«Vá lá, Mimi. O teu irmão diz-me que tu sabes dizer ‘barco’. Diz
‘barco’, Naomi.»
Mimi olhou para Tante Anna e gesticulou e chilreou e bateu
com os pés de tal modo que a água castanha esguichou para
toda a parte, incluindo para as botinhas de Tante Anna, que eram
pretas como a sua cruz e igualmente reluzentes.
Tante Anna olhou para mim. «Acho que alguém andou a dizer
mentiras», disse ela.
Abanei a cabeça. «O Pai também ouviu!»
Tante Anna olhou para o Pai. «Então?»
Virei-me para ele, ansioso, com a certeza de que, desta vez,
ele lhe faria frente, lhe ordenaria que voltasse para dentro de
casa – mas o meu pai simplesmente desviou o olhar e gaguejou
como um menino pequeno:
«Ta-tal-talvez ela te-tenha dito. Não po-posso ter a certeza.»
Tante Anna ergueu uma sobrancelha. «Estás outra vez a
gaguejar, Narcisse.» Pensei então, subitamente, que o meu pai
muitas vezes gaguejava quando falava com Tante Anna – o que
era raro; era um homem calado – embora não me recorde de ele
alguma vez gaguejar quando estava comigo. «E as pessoas
ainda se perguntam porque é que não conseguiste arranjar outra
mulher», disse Tante Anna com desprezo. «Suponho que ela
não podia ser esquisita. Precisava de um homem a toda a
pressa.» Eu sabia que estava a falar de Naomi Zwolaskowki, a
minha mãe, que falecera ao dar à luz Mimi. E, apesar de tudo,
senti curiosidade, porque o nome da minha mãe nunca era
mencionado em casa; nem pelo Pai nem por ninguém, e a sua
sepultura era no cemitério judeu em Agen e nós nunca lá íamos
pôr flores, embora eu soubesse que o meu pai queria fazê-lo.
Ao ouvir as palavras de Tante Anna, porém, o Pai pareceu
endurecer. «A Na-Naomi não e-era assim», disse. «Agra-
gradeço-lhe que nã-não fa-fale assim dela.» Era a primeira vez
que eu via o meu pai fazer frente a Tante Anna, por mais
insignificante que fosse a sua reação. Ele gostava de paz em
casa; retraía-se ao primeiro sinal de conflito. E aqui estava ele, a
silenciar Tante Anna. Senti-me muito orgulhoso dele.
Mas Tante Anna era feita de aço envolvido em arame farpado.
Lançou um dos seus olhares ao meu pai – de piedade misturada
com desprezo.
«Foste sempre um tolo, Narcisse», disse. «Ela tirou-te logo as
medidas. E tu fizeste-lhe a vontade... deste-lhe uma casa...»
«Por favor», disse o Pai, olhando para mim. «Não diante das
crianças.»
«As crianças!», repetiu Tante Anna. «A atrasadinha e o fedelho
alemão...»
Mas antes que ela pudesse terminar a frase, aquele homem
calado que gaguejava ao primeiro sinal de conflito tornou-se um
estranho. Deu três grandes passos em frente, de mãos cerradas
em punho, o rosto corado, passos zangados, a lançarem pelo ar
a água lamacenta. Tante Anna deixou-se ficar onde estava –
toda arranjada, com as suas botas reluzentes. Parecia – não
assustada, não propriamente, mas cautelosa, como um gato
perante um cão grande e feroz, mas que sabe onde atacar ao
certo.
Por um momento, o meu pai ficou ali, a encará-la. Depois,
desviou o olhar.
«Bem», disse Tante Anna em voz baixa. Da maneira como
disse aquilo, eu não pude ter a certeza se era uma pergunta ou
não. «O sangue fala, não é verdade? Mesmo quando a língua é
lenta, o sangue arranja sempre maneira.»
O meu pai baixou o olhar para as botas, e foi nesse momento
que eu comecei a chorar. Não por causa das palavras de Tante
Anna – não compreendera o seu significado – mas por causa do
ar do meu pai. Parecia um grande bronco analfabeto apanhado a
fazer uma asneira.
«Bem?», disse Tante Anna de novo, e desta vez era uma
pergunta.
«La-la», disse o meu pai.
«La-la o quê?», disse Tante Anna.
«Lamento muito», disse o meu pai, tremendo agora tanto com
o esforço que se formaram ondinhas à volta das suas botas,
como se estivesse a ter lugar um súbito tremor de terra.
«Espero bem que sim», disse Tante Anna com o seu sorrisinho
de lábios fechados. «E agora penso que vocês, crianças, deviam
vir comigo para casa antes que a Naomi apanhe uma
constipação de caixão à cova. E quanto a ti», dirigindo-se a mim
agora, «se gostas assim tanto de contar histórias, podes copiar
vinte versículos da Bíblia, na tua melhor letra.»
Era um dos castigos preferidos de Tante Anna; destinado
simultaneamente a demorar muito tempo (se acontecesse eu dar
um erro de ortografia, tinha de voltar a começar a página do
princípio) e a manter-me debaixo de olho. Quanto a Mimi, Tante
Anna fechou-a no quarto que partilhávamos e eu ouvi os
protestos dela toda a tarde – mas nunca mais a ouvi falar. «Baa»
foi tudo o que alguma vez disse.
*
Já escureceu. Devo ter lido durante mais tempo do que
tencionava. É estranho como a história me prende – uma história
de pessoas que, na sua maioria, já tinham morrido antes ainda de
eu nascer. Mas enquanto a sua história se mantiver inacabada,
Narcisse estará aqui comigo. Quase consigo vê-lo agora, instalado
no meu cadeirão, com os olhos a brilharem entre um emaranhado
de rugas. Talvez seja por isso que o vi ali, pela montra da florista.
Ou talvez – afinal, estamos na Quaresma – eu esteja com uma
baixa de açúcar no sangue.
Um cálice de brandy para Narcisse. E um para mim – não me
faço rogado. Estamos na Quaresma, afinal. Um tempo de reflexão
espiritual. Lá fora, está a chover; o lampião ao fundo da rua faz
brilhar a chuva como prata. Levanto-me para fechar a cortina e
vejo uma mulher a passar. Como tem a gola levantada a proteger-
se da chuva, consigo ver pouco dela a não ser o seu impermeável
preto brilhante e os fios prateados do seu cabelo, mas não é
ninguém que eu reconheça. Digo para comigo que a vila está cheia
de pessoas que já não reconheço. Na verdade, père, já mal me
reconheço a mim próprio nestes últimos tempos. Mudou tanta
coisa desde que o senhor faleceu. Mudou tanta coisa desde que
Vianne Rocher chegou a Lansquenet trazida pelo vento.
Vianne Rocher. Ora, porque pensei nela? Aquela mulher não era
nada parecida com ela. E, no entanto, havia algo na maneira como
andava; na maneira como virou a cabeça, descuidadamente; na
maneira como o seu cabelo, adornado com a chuva, se escapava
da gola do impermeável. Só a vi por um momento, mas recordou-
me Vianne, e julguei sentir no vento um cheiro a queimado, a fumo
de madeira a arder e a gasolina.
2

Domingo, 19 de março
oux quase nunca passa a noite cá. Às três da manhã começou
R a ficar inquieto, já desejoso de se ir embora. Deixei-o ir e dormi
até ao amanhecer, e sonhei que Roux, Anouk e Rosette se
transformavam numa nuvem de aves pretas e acordei com o som
dos sinos da igreja e alguém a bater-me à porta.
Olhei pela janela. Nove e meia – uma hora antes da hora de
abertura habitual aos domingos – e estava alguém lá fora; alguém
que reconheci pelo chapéu, o mesmo que ela usara no dia anterior,
na cerimónia em memória de Narcisse.
– Michèle, eu desço já! – disse, e, depois de vestir umas calças
de ganga e uma camisola escarlate, corri até ao andar de baixo
para abrir a porta, com Rosette a espreitar do cimo das escadas,
mas sem fazer menção de me seguir. Rosette não gosta de
Michèle Montour – não o esconde, embora goste do filho dela,
Yannick. Mas a mãe é uma daquelas senhoras que se vestem em
tons pastel e desdenham elegantemente de tudo, uma daquelas a
que Armande costumava referir-se como as «fãs da Bíblia». Para
ser franca, eu também não gosto por aí além dela, e, além disso,
sabia o que ela queria.
Abri a porta. – Michèle! Desculpe; deixei-me dormir. Entre e
sente-se. Posso oferecer-lhe algo para beber?
Os seus olhos são do tipo de cinzento prateado que me lembra o
nevoeiro no rio. O cabelo, num tom todo artístico algures entre o
prateado e o loiro, trazia-o apanhado na nuca. Pelas luvas e o
chapéu deduzi que viera da igreja.
– Obrigada. Talvez experimente um dos seus famosos
chocolates quentes.
– É capaz de demorar uns minutos – disse eu. – Ainda não tinha
aberto a loja.
– Obrigada – disse Michèle. – Não me importo de esperar.
Sentou-se numa das cadeiras junto ao balcão, na parte da frente
da loja, e eu via-a a observar-me a preparar o chocolate. Primeiro,
o leite gordo num tacho de cobre, aquecido mas não fervido.
Depois, as especiarias: noz moscada e cravinho, com um par
malaguetas, abertas a meio para libertar o picante. Três minutos
para as malaguetas aromatizarem o leite; a seguir, adiciono duas
mancheias de pedaços de chocolate preto – não chocolate em pó,
mas o que uso para fazer os pralinés – e mexo até o chocolate
derreter. Açúcar mascavado, a gosto; depois, volto a aquecer sem
deixar ferver e sirvo imediatamente numa chávena de porcelana,
com uma langue de chat ao lado.
Michèle pegou na chávena e pousou-a no parapeito da montra. –
Parece delicioso – disse, mas eu via pelos olhos dela que não
tinha vindo pelo chocolate quente. Pôs-se a mexer no biscoito.
Tem os dedos compridos, com as unhas pintadas da cor de fumo.
Mordiscou uma ponta do biscoito e depois pousou-o no pires.
– Pergunto-me se poderia dar-lhe uma palavrinha – disse ela,
com a animação superficial do seu tom de voz a contradizer o
sentido de urgência nos gestos.
– Sobre o quê? – Mas eu já sabia.
– É sobre a mata de carvalhos – disse Michèle. – Faz parte da
propriedade desde antes do Narcisse nascer. Ele não tinha nada
que a separar do resto da quinta; além de que diminui o valor da
propriedade, em termos de acesso, e...
O meu sorriso começava a ser um pouco forçado.
– Desculpe – disse eu. – Mas o que é que isso tem a ver
comigo?
Michèle lançou-me um olhar feroz. – Eu tentei entrar em contacto
com o seu... hum... o seu amigo, M. Roux, mas ele pareceu
relutante em...
Tentei imaginá-la a tentar falar com Roux. Duvidava que ela
tivesse sequer conseguido localizar o barco dele. As gentes do rio
são leais: encobrem-se uns aos outros. Qualquer sinal de uma
visita oficial ou atenção indesejada e toda a gente, muito
convenientemente, se esquece de rostos, nomes e locais de
ancoradouro.
– O Roux também não é responsável pela decisão – disse eu. –
Ele foi nomeado curador legal da minha filha, da Rosette.
Vi os olhos de Michèle pestanejarem à menção de Rosette. –
Sim, bem – disse ela. – Tenho a certeza de que a Rosette não quer
saber de um pedaço de mata. Talvez a senhora pudesse persuadi-
la de que é do interesse dela, assim como do nosso, devolvê-la à
propriedade.
Ouvi um pequeno som de indignação a vir das escadas e
apercebi-me de que Rosette estava a escutar a conversa. – O
Narcisse queria que ela ficasse com o bosque. Não me cabe a
mim persuadi-la de nada. Se, mais tarde, ela decidir vender...
– Essa criança! – exclamou Michèle. – Como é que essa criança
pode decidir seja o que for? – Parou de falar. Tentando
visivelmente recompor-se, prosseguiu: – Estamos dispostos a
recompensar a Rosette muito generosamente. Dificilmente ela
poderá ter um uso a dar à terra, ao passo que se nós
loteássemos... – Parou de falar. – Há questões de acesso, de
estacionamento – disse. – Seria muito mais fácil se pudéssemos
urbanizar o espaço devidamente, sem ter de contornar o bosque.
– Lamento, Michèle – disse eu, e encolhi os ombros. – Não
posso fazer o que me está a pedir.
O chocolate dela tinha arrefecido. Eu via a película a formar-se
na superfície do líquido, e a raiva a crescer dentro dela.
– Dez mil pela terra – disse ela, com os lábios quase rígidos de
desprezo. – Não consegue uma oferta melhor, sabe? O que não
falta é terra por estas bandas.
– A terra não é minha – disse eu. – É da Rosette. E quando ela
tiver vinte e um anos poderá considerar a sua proposta.
– Daqui a cinco anos! – exclamou Michèle, furiosa. – O que vai
acontecer em cinco anos? Ela vai transformar-se milagrosamente
numa pessoa normal? – Viu a minha expressão, e baixou a voz,
embora ainda estivesse a tremer de raiva. – Desculpe, Vianne,
mas é o que toda a gente já sabe. Essa criança nunca será
normal. E dez mil euros podiam ser um fundo para... para tratar
dela. – Agora, Michèle Montour adotou uma expressão de
conspiração. – Eu sei bem como é, sabe? – disse. – Deus sabe,
tenho-o visto com o meu próprio filho. E, pelo que consta, a sua
Rosette...
Interrompi-a. – Obrigada, Michèle. Mas já ouviu a minha
resposta. E agora, lamento muito mas tenho de trabalhar. Tenho de
abrir a loja. – Peguei na chávena intocada, com o biscoito meio
comido. Por um momento, os olhos dela desviaram-se para a
chávena, e depois para a cortina da cozinha, que começara a
ondular como se uma corrente de ar forte estivesse a agitá-la.
O vento. É tudo. O vento, pensei.
Das escadas, aquele som de novo; um cacarejo trocista, como
uma ave – uma gralha, talvez – a desafiar um inimigo.
Michèle abriu a carteira e começou a procurar uns trocos. –
Devia considerar a minha proposta, Vianne. Só vim cá por cortesia.
Mas sei que o Narcisse nunca deixaria aquela terra à sua filha se
estivesse bom da cabeça. Se tiver de contestar o testamento,
assim seja. Veremos o que acontece.
Por um segundo, julguei ver Bam, acocorado, ameaçador, aos
pés dela. Depois, com um estrondo, a porta da rua abriu-se com o
vento. Michèle pôs a mão na cabeça para impedir que o chapéu
voasse. O vento apanhou um punhado de notas da carteira dela e
espalhou-as pelo soalho. Michèle soltou um grito de exasperação e
correu atrás do dinheiro, quase derrubando a cadeira em que
estivera sentada.
– BAM!
Disparei um olhar de aviso a Rosette. Os seus olhos estavam
brilhantes e desafiadores, como os de um animal selvagem,
pequeno mas feroz.
Michèle tinha recuperado as suas notas. Agora, estava diante de
mim, de lábios comprimidos.
– O chocolate quente é oferta da casa – disse eu.
Michèle emitiu um som de desprezo. – Pensa que o seu
chocolate é tão especial – disse. – Já tomei muito melhor em
Marselha.
Nesse momento, uma rajada de vento vinda lá de fora arrancou
o chapeuzinho da cabeça de Michèle e fê-lo voar para a praça
como um inseto grande – um besouro, talvez – a escapar para o ar
turbulento. Ela soltou uma exclamação irritada e correu lá para fora
para o apanhar. A porta fechou-se com força nas costas dela.
Rosette estava ao fundo das escadas, com um ar
suspeitosamente inocente e o bloco de desenho numa das mãos.
Nele, tinha desenhado Michèle como uma cegonha predadora:
equilibrada numa perna magricela, com a carteira enfiada debaixo
da asa; os olhos comicamente arregalados, como se estivesse a
olhar para um peixe fugidio. O esboço era uma meia dúzia de
linhas, mas captava perfeitamente a expressão de Michèle.
– Eu já te disse, deixa-te dessas coisas – disse eu.
Rosette sorriu e abanou a cabeça.
– Falo a sério. Não pode haver mais Acidentes.
Rosette encolheu os ombros. Não gosto dela.
– Eu também não gosto dela, Rosette, mas coisas assim... –
Tentei enquadrá-lo de uma maneira que ela compreendesse. – Nós
devíamos estar a encaixar-nos aqui, não a chamar a atenção
sobre nós.
Rosette fez uma careta. Porquê?
– Tu sabes porquê.
Os olhos dela desviaram-se para a montra, através da qual a
nova loja com a sua porta púrpura parecia brilhar como um farol. Vi
uma sombra passar-lhe no rosto – uma sombra, e talvez um
desafio.
Recorri à minha magia de todos os dias. – E que me dizes a um
chocolate quente, Rosette? Com chantilly e marshmallows?
Por um momento, a sombra pairou, como uma ameaça
vislumbrada debaixo de água. A seguir, ela relaxou e sorriu. OK.
Acenei com a cabeça e fui buscar a chávena de Rosette, a que
Roux tinha feito para ela, deixando-a a desenhar, aparentemente
esquecida do desagradável incidente. E, no entanto, enquanto
deitava o chocolate na chávena, enquanto acrescentava as natas e
as pepitas e os marshmallows cor-de-rosa e brancos (com alguns
extra para Bam), não podia deixar de ouvir aquela voz na minha
cabeça, tão baixa como um trovão a aproximar-se:
Por agora.
3

Domingo, 19 de março
ão me importo. Estou contente por ter chamado o vento para
N ele implicar com Mme. Montour. A maman diz que eu não
devia, que nos faz parecer diferentes, mas, sabes que mais? Eu já
sou diferente, maman. Não há nada que possas fazer quanto a
isso.
Acabei de tomar o chocolate quente e peguei no bloco de
desenho e nas canetas. Meti-os na minha sacola, a cor-de-rosa, de
Paris, demasiado pequena para mim agora, mas poderosa, porque
é velha. Depois saí, e ela acenou-me a dizer adeus. Eu sabia
exatamente aonde ia.
Não disse à maman, claro. Ela tem andado a tentar manter-me
afastada do sítio. Diz que é porque o proprietário deve precisar de
se instalar primeiro. Não creio que ela acredite realmente nisso.
Acho que é uma desculpa. E há algo naquela loja nova, algo que
preciso de investigar. Não é só a senhora que vi no vidro da
montra ou o cata-vento no vaso de flores. Nem sequer é a porta
púrpura ou o nome – Les Illuminés. É a maneira como a maman
está a ignorar a loja – ou a tentar fazer-me crer que a está a
ignorar. É a maneira como ela anda sempre a olhar para o outro
lado da praça quando julga que eu não reparo. E há uma vibração,
uma espécie de brilho, como a luz do sol refletida na água. O tipo
de vibração que costumava pairar à volta da porta da chocolaterie.
Ela não sabe o que isso significa? Significa que alguém naquela
loja pode ser como nós. A tentar instalar-se num lugar onde as
pessoas não acolhem estranhos de bom grado. Porque é que ela
não vai à loja? Porque é que ainda não foi cumprimentar a pessoa
que é dona dela? Porque é que anda a fazer de conta que nós
somos iguais às outras pessoas todas? A fazer de conta que
somos como Mme. Clairmont, que faz com que pessoas como nós
não se sintam bem-vindas?
Talvez tenha medo, pensei. Afinal, eu sentia-me nervosa a
princípio. Mas não é assim que devíamos comportar-nos. Não
somos uns ratinhos assustados, a escondermo-nos na nossa
casinha. Somos aventureiras. Podemos chamar o vento. Não
devíamos ter medo de nada. E talvez a senhora no vidro da montra
esteja à espera para ver de que somos feitas. Afinal, foi ela quem
me perguntou o que eu queria.
E por isso acenei a despedir-me da maman e encaminhei-me
para os campos, e quando vi que ela já tinha ido para dentro, dei
meia-volta e atravessei a praça para a loja nova, e, ao abrir a porta
púrpura, senti o cheiro a madeira nova e incenso e chá e ouvi uma
sineta tocar na porta quando ela se fechou atrás de mim.
4

Domingo, 19 de março
or uns instantes, olhei à minha volta. A loja estava tal e qual
P como a tinha visto antes: uma máquina de café em cima de
uma mesa; umas cadeiras púrpuras e um tapete, depois aquela
cadeira de couro, como a de um cabeleireiro, ali toda reluzente e
cromada. Duas das paredes eram espelhos, a refletir as mesmas
coisas várias vezes. E ali, junto à porta, estava um retalho grande
de uma espécie de tapeçaria, numa moldura com vidro, com um
padrão de folhas azuis, vinhas, aves com pintas e florzinhas
brancas, e tudo tão junto e apertado que me fazia impressão nos
olhos e me fez semicerrá-los. E o mais engraçado era que eu tinha
quase a certeza de já ter visto aquele padrão algures...
Deixei-me ficar a olhar para ele, a tentar compreendê-lo. As
folhas pareciam-se um pouco com folhas de morangueiro, e
também havia morangos, o que me fez pensar no meu bosque de
morangos, escuro e estranho por trás do vidro. Mas havia tantas
coisas lá, tantas formas e cores, que era difícil focar os olhos. E o
padrão repetia-se, de maneira que parecia que as aves estavam
em movimento; a perseguirem-se umas às outras por entre as
folhas, as flores, as silvas e os molhos de morangos. E depois
aquela confusão caleidoscópica resolveu-se e eu vi alguém ali na
entrada entre a parte da frente e a parte de trás da loja, uma
entrada sem porta, só com uma cortina de contas de cor púrpura.
Era a senhora que eu tinha visto no vidro da montra e mais tarde
nos espelhos. Mas agora ela estava cá fora, no mundo real, a fitar-
me com olhos curiosos, como uma das aves na tapeçaria
pendurada na parede, toda pintalgada e com olhos brilhantes e
gananciosos.
Era alta, com cabelo muito comprido de um tom entre o prateado
e o louro, e por um momento pensei que era nova, talvez quase
tão nova como eu. Depois, vi que era velha – devia ter pelo menos
uns cinquenta anos – e que o que eu julgara que era uma camisa
estampada eram os seus braços compridos nus, cheios de
tatuagens, e trazia muitos anéis nos dedos. Olhei para baixo, para
os sapatos dela, mas só consegui ver um par de calças pretas
largas e compridas, com algo a despontar por baixo que parecia
serem pés, mas que eu via que não eram realmente pés.
– Olá – disse a senhora. – E quem és tu?
Fiz um som de gralha.
– Pareces um pouquinho nova de mais para entrar aqui – disse a
senhora com um sorriso, e eu pensei outra vez numa ave, uma
pega, sempre cheia de ganância por coisas brilhantes.
Encolhi os ombros e olhei à minha volta. Ainda não conseguia
ver que tipo de loja era. Olhei para o pedaço de tecido emoldurado
e emiti um som interrogativo.
A senhora pega sorriu e disse: – Esse é um dos meus padrões
favoritos. A Menina que Roubava Morangos, de Morris and Co.
Encontrei-o numa loja de antiguidades.
A Menina que Roubava Morangos! Eu queria explicar por que
motivo aquele nome me dava vontade de me pôr aos saltos de
surpresa e excitação. Mas, sem usar a minha voz-sombra, sabia
que não poderia dizer-lhe que era um nome que eu conhecia por
Narcisse, a alcunha que ele me tinha dado. Em vez disso, deixei
Bam entrar nos espelhos e fiquei a vê-lo dançar e correr atrás da
cauda por entre as folhas todas e os reflexos. As aves (achava que
eram tordos) corriam atrás dele de um lado para o outro, tão
engraçadas que até me ri.
A senhora ergueu uma sobrancelha. Tinha um brinco de
diamante nela, que brilhava e piscava quando se mexia. – Quem é
o teu amiguinho? – perguntou.
– BAM! – disse eu. Consegue vê-lo?
Ela sorriu. – Eu vejo coisas. Sou artista.
Eu também! Pus-me aos saltos, para indicar a minha aprovação.
A minha sacola cor-de-rosa, que trazia às costas, saltou para cima
e para baixo comigo.
– Mas o meu tipo de arte tem de sair bem à primeira. Não há
como desmanchar os pontos. Não há como apagar com uma
borracha, não há segundas tentativas. Se eu cometer um erro,
alguém terá de arcar com as consequências. Tenho de ter muito
cuidado.
Olhei para o tecido pendurado na parede. Era ainda mais
complicado do que eu julgara, com as aves (tinha agora a certeza
de que eram tordos) a perseguirem-se umas às outras por entre as
folhas azuis; um padrão repetido de morangos. Dava a ideia de ser
uma tapeçaria, ou talvez uma cortina ou uma colcha. Fosse o que
fosse, era a única peça de arte na loja.
Faz coisas assim? perguntei por gestos.
A senhora pega abanou a cabeça. – Não trabalho com têxteis.
O quê, então?
Meteu a mão no bolso das suas calças largas e tirou uma coisa
que parecia completamente diferente de qualquer tipo de lápis ou
caneta que eu alguma vez tivesse visto. Parecia uma parte de uma
arma de brinquedo: púrpura e cromado, com uma ponta aguçada.
Mas eu via agora que era mesmo uma caneta. Via onde devia
meter-se a tinta.
– Talvez nunca tenhas visto uma destas – disse a senhora,
mostrando-ma. – É um modelo muito recente. De uso muito
agradável, muito silenciosa. Muito menos traumatizante para a
pele.
Para a pele?
Olhei outra vez para ela, com os seus braços todos cobertos de
tatuagens. E soube então para que era a caneta especial e porque
precisava daqueles espelhos. E a cadeira, como uma cadeira de
dentista, feita para ser subida e baixada e rodada...
Estendi a mão e toquei-lhe no braço com um dedo espetado. A
pele dela naquela parte era um emaranhado: de espirais e rosas e
molhos de folhas. Reconheci o padrão da parede – as silvas azuis
escuras, as florzinhas brancas e as folhas de morangueiro, em
forma de coração. Mas estava quente; eu sentia-o. Toquei-lhe com
a mão aberta. Dava a impressão de que deveria poder sentir-se a
textura das flores e das folhas. Mas na realidade era só pele
macia, como a de qualquer outra pessoa.
– Não falas muito, pois não? Como te chamas?
Segredei Rosette na minha voz-sombra, com cuidado para não
falar demasiado alto.
Ela assentiu com a cabeça. – Rosette. Que bonito nome. Eu sou
a Morgane. Espero que venhamos a ser amigas. Que tipo de arte
fazes, Rosette?
Olhei para trás, para a minha sacola cor-de-rosa. Normalmente,
não mostraria os meus desenhos a uma estranha. Mas agora
sabia o nome dela e por isso suponho que já não era uma
estranha. Tirei o meu bloco de desenho, o de capas púrpuras que
Anouk me trouxe de Paris. Tem trezentas páginas. Muito espaço
livre para coisas novas.
Morgane abriu-o. Olhou para as páginas uma a uma. Fê-lo muito
lentamente, estudando cada desenho. Vi-a sorrir algumas vezes.
Demorou-se bastante no da menina pequena, perdida na floresta
de morangos. É muito mais complicado do que os meus desenhos
habituais, pensei. E agora, ao voltar a olhar para as sombras nele
e os emaranhados de silvas que eu tinha desenhado, via A Menina
que Roubava Morangos, tão claramente como se fosse um reflexo.
Morgane não disse nada. Virou a página e continuou a ver os
meus desenhos. Por fim, olhou para cima e disse: – São muito
bons, sabes? Tens um estilo tão depurado. Tanto humor. Esta
ave... – Mostrou-me o desenho de Reynaud como um corvo, um
desenho pequeno, só umas linhas; os olhos, o bico e a soutane
dele. – É o nosso curé, certo?
Eu ri-me e fiz Bam saltar e dançar por entre a folhagem azul
refletida.
– Queres ver alguns dos meus? – disse ela. Assenti com a
cabeça e ela entrou para o espaço por trás da cortina e veio de lá
com um álbum. Dentro havia centenas de fotografias de diferentes
pessoas com diferentes tatuagens.
– São todas únicas – disse Morgane. – Nunca faço o mesmo
desenho duas vezes. E peço aos meus clientes que pensem bem
sobre quando e porque vêm ter comigo. Porque só pode ser uma
vez. Nunca faço repetições.
Folheei o livro de fotografias. Havia todo o tipo de pessoas:
jovens e velhas, de todas as raças. Algumas tinham tatuagens
grandes e complicadas. Outras, tatuagens muito simples,
minúsculas. Mas em todas eu conseguia ver o estilo dela: denso e
realista e disciplinado, como A Menina que Roubava Morangos na
parede, que tem a minha alcunha e conseguiu de alguma maneira
infiltrar-se no meu desenho.
E depois detive-me numa fotografia. Uma imagem a preto e
branco de uma rapariga com uma tatuagem de um pequeno
coração. A tatuagem era muito simples – parecia um só traço – e,
no entanto, era tão perfeita, tão nítida; como caligrafia. Mas não foi
a tatuagem que me chamou a atenção. Foi a rapariga na
fotografia: uma rapariga que parecia ter uns vinte anos, a sorrir
para a objetiva, com uma simples T-shirt branca com a manga
arregaçada para deixar ver o pequeno coração preto no ombro...
E, embora ela fosse muito mais velha quando a conhecemos em
Paris, reconheci a rapariga com o coração. Por vezes, vejo-a em
sonhos, e sei que a maman também sonha com ela, porque a ouço
enquanto dorme, e sinto o vento selvagem chamar-me.
Morgane olhou por cima do meu ombro. – Essa foi uma das
primeiras – disse ela. – Em Paris, quando eu estava a começar.
Lembro-me deles todos, sabes? De todos os meus clientes. E as
fotografias são tudo o que tenho da arte que fiz para eles. Porque
a arte é como o amor. Torna-se feroz se a guardarmos para nós. A
arte é feita para ser dada, caso contrário apodrece.
Eu nunca pensara nisso dessa maneira. Olhei outra vez para
aquela imagem de Zozie de l’Alba na página, com um aspeto tão
jovem e inocente, os olhos cheios de luzes inquietas.
Quem é essa?
– Não perguntei. Limitei-me a dar-lhe aquilo de que ela
precisava.
E foi então que a sineta tocou e a maman entrou pela porta
púrpura, com um ar zangado, com um ar de medo, o cabelo todo
despenteado por causa do vento e o rosto tão pálido como uma
folha de papel...
5

Domingo, 19 de março
i-a pela janela. O seu cabelo de calêndula, o seu rosto vívido –
V como uma criança num conto de fadas, perdida num mundo de
espelhos. E nos espelhos vi Zozie – batom escarlate, cabelo
pintado de loiro – a observá-la com olhos esfomeados.
Tinha planeado apresentar-me. Abordar aquela mulher com
cautela, como abordaria qualquer outra vizinha, com um presente
de bombons com recheio de violeta, a condizer com o toldo
púrpura. Contudo, ao ver Rosette e Zozie lá dentro, deitei a
prudência para trás das costas e corri lá para dentro, esquecida
dos chocolates.
Ouvi tocar uma sineta quando entrei. Uma minúscula sineta
prateada, do tipo que O Louco usa no seu boné durante a
procissão da Páscoa. Uma rajada de vento de março entrou ao
mesmo tempo que eu, e dei comigo a olhar para o rosto de uma
mulher de cerca de sessenta anos, com cabelo comprido grisalho
e braços cobertos de tatuagens em tons de carvão e cinzento. Não
era nada como Zozie – e, no entanto, havia algo de Zozie nela: o
sorriso despreocupado; os olhos vivos e brilhantes. Olhei
rapidamente para os seus sapatos – Zozie de l’Alba adorava os
seus sapatos – e só vi um par de coisas num tom cinzento
azulado.
Eu disse: – Rosette. Volta para casa.
Rosette pôs um ar de desafio. A porta púrpura rangeu. Nos
espelhos, vi Bam, a sorrir e a fazer caretas.
– Rosette, volta para casa. Já!
Ela fez má cara, mas obedeceu, a arrastar os pés. Por trás dela,
Bam fez uma careta horrenda e seguiu-a aos tropeções, todo
alterado.
A mulher das tatuagens sorriu. – Deve ser a mãe da Rosette.
– Vianne.
Combati o impulso louco de perguntar: E que nome é que tu
adotaste desta vez? Mas a mulher tinha-se aproximado da porta.
Baixando-se a custo, pegou no pacote de bombons com recheio
de violeta. – Deixou cair alguma coisa.
– Que descuido o meu. Na verdade, trouxe-os para si.
A mulher olhou para o pacote, atado com uma fita violeta e uma
pequena flor de papel. – Bombons com recheio de violeta? São os
meus favoritos.
Estás a mentir, pensei. Esse encanto, que emana dela como o
perfume de flores colhidas à meia-noite, era sombriamente,
docemente provocador.
Provou um bombom. – Delicioso – disse. – Deve ser da loja do
outro lado da praça. Já a vi. É linda.
– Eu tinha a intenção de a vir visitar – disse eu. – Embora até
agora não me tivesse apercebido de que faz tatuagens.
Ela sorriu. – O que é que me denunciou? Mas sente-se. Tome
um café. Não posso prometer-lhe que seja tão bom como os seus
chocolates, mas é tudo o que tenho para já.
Sentei-me numa das cadeiras púrpuras posicionadas à volta da
máquina do café, mas não fiz menção de tirar uma bebida. A
mulher sentou-se em frente a mim. Ao fazê-lo, reparei nos seus
sapatos... não eram sapatos, mas pés; articulados na curva da
planta do pé e ligados a um parafuso de aço liso no tornozelo.
Segundo um antigo provérbio chinês, O mal não tem pés. É por
isso que as portas dos templos têm soleiras tão altas; para os
proteger de demónios errantes. Esta recém-chegada também não
tem pés – a ironia não me escapa. Penso em K’awiil, o deus maia
sem pés; a caminhar sobre andas de raios, montado na cauda da
sua serpente ao vento. A minha mãe adorava essas lendas; eu
achava-as demasiado estranhas, demasiado perturbadoras para
serem realmente divertidas. E, no entanto, o vento – o Hurakan – é
a minha constante há muitos anos; mais pessoal do que Gaia ou
Hestia ou Jesus.
Ela surpreendeu-me a olhar. – Desculpe – disse eu. Ora, porque
é que pedi desculpa?
Ela sorriu outra vez. – Não me importo – disse. – Fui amputada
abaixo do joelho. Tenho andado com próteses toda a vida. Estes
são os meus pés para todos os dias, mas tenho um par com um
aspeto mais natural, e sapatos bonitos para quando me apetece
vestir-me a preceito.
Estendeu-me a mão. – Sou a Morgane Dubois.
Cumprimentámo-nos. As mãos dela estavam inesperadamente
quentes. Senti-me como uma impostora: uma senhora da paróquia
a dar as boas vindas à recém-chegada à vila. Que ridículo, pensei.
Eu nem sequer pertenço aqui.
Morgane disse: – Já cá vive há muito tempo?
Tive de pensar na resposta. O tempo comporta-se de modo
diferente quando se fica no mesmo lugar por algum tempo: as
estações sucedem-se, a erva cresce, as marcas na mobília
escurecem com o tempo. Torna-se muito fácil pensar: é aqui que
eu pertenço agora; muito fácil acreditar no poder das raízes, dos
rebentos e das recordações.
Respondi: – Há cinco anos. – Dizer aquelas palavras em voz alta
fez-me sentir estranha. As pessoas como eu não pensam em
termos de anos: só em termos de dias, semanas, talvez meses. Os
anos são para as outras pessoas. Os anos são para os que não
ouvem o vento.
– Que sorte a sua – disse Morgane – Nunca estive mais do que
nove meses no mesmo sítio. Ao fim de algum tempo, sente-se o
impulso de ir para outro lugar, se é que me entende.
Tive de sorrir. – Acho que sim.
– Além disso, o trabalho acaba por se esgotar. Tenho de seguir a
feira.
– A feira?
– O espetáculo das monstruosidades. O lugar para onde vão os
que não pertencem a lugar nenhum para descobrirem quem são. –
Lançou-me um olhar interrogativo por cima da chávena de café. –
Uma tatuagem revela tanto quanto oculta. Para si, eu
recomendaria algo pequeno. Um animal, talvez uma ave... algo
que tenha um coração a bater.
– Refere-se... a uma tatuagem? Não faz o meu género.
– Não é fã de arte corporal?
– Nas outras pessoas, sim – disse eu. – Mas nunca quis ser
marcada dessa maneira.
Marcada. Que estranha escolha de palavra, pensei. E, no
entanto, é apropriada. As pessoas como nós não ostentam marcas
distintivas. Não exibimos cicatrizes nem recordações. Ao contrário
de Roux, cujo corpo inteiro é uma espécie de tapeçaria da sua vida
– os amores, o sofrimento, as batalhas, as alegrias, as muitas,
muitas viagens – a minha pele é um território não cartografado. A
ideia de permitir que esta mulher me use – ou mesmo Roux –
como sua tela fez-me sentir um frio inexplicável.
– Eu não penso na tatuagem como marca – disse ela. – Penso
nela como trazendo cá para fora algo que esteve escondido. Um
segredo. Uma confissão. Os Maias tatuavam o corpo, sabe, para
aplacar os deuses. Acreditavam que uma tatuagem podia revelar a
forma da alma por baixo da pele.
Eu sabia isso, claro. No meu ramo, tive de aprender muito sobre
a terra do sangue e do chocolate. Mas fez-me sentir desconfortável
ouvir Morgane falar tão abertamente dos Maias e da sua magia,
embora me ocorresse subitamente a ideia de que a minha mãe tê-
la-ia adorado.
– Para ser franca – disse eu –, não sei se vai ter muitos clientes
em Lansquenet. É de facto uma terra bastante conservadora,
comparada com algumas das cidades maiores. Posso perguntar
porque a escolheu?
Ela encolheu os ombros. – Por nenhuma razão em particular. Foi
um impulso. Acho que são muitas vezes os sítios que me
escolhem a mim, não o contrário.
– Bem, tenho de me ir embora – disse eu.
– Obrigada. Se mudar de ideias, sabe onde me encontrar.
*
Voltei para a chocolaterie invadida por uma profunda sensação
de inquietude. Morgane ficou a observar-me da porta, com as suas
calças pretas largas a esconder aqueles pés perturbadores. O que
quer que fosse que os antigos Chineses acreditassem, não tenho
razão para pensar que há algo de maléfico em Morgane; e, no
entanto, tudo nela me deixa inquieta. A sua chegada, na mudança
do vento. As cores à volta da entrada da loja dela. A maneira como
Rosette se sentiu atraída para ela apesar dos meus avisos de que
devia manter-se afastada. E agora a conversa dela sobre os Maias
parece demasiado a propósito para ser uma coincidência.
Para si, eu recomendaria algo pequeno. Um animal, talvez uma
ave... algo que tenha um coração a bater. O que é que ela quer
dizer? Uma tatuagem revela tanto quanto oculta. O que é que ela
viu em mim, pergunto-me, que a fez tirar essa conclusão?
De qualquer modo, não vai durar muito aqui. Lansquenet-sous-
Tannes tem uma maneira de expelir os que não lhe pertencem. Eu
que o diga: fui uma dessas pessoas. Os boatos e os mexericos
abundam aqui; mesmo um murmúrio pode ser o suficiente para
fazer alguém sentir-se indesejado. E haverá palavras segredadas,
eu sei – os murmúrios e os boatos são moeda de troca aqui. Uma
mulher da idade dela – e com aquelas tatuagens – pode já não
estar cá na Páscoa.
Essa ideia dá-me uma curiosa satisfação. Penso de novo nas
cartas da minha mãe. A Morte. O Louco. A Torre. A Mudança.
Rosette é demasiado curiosa para se manter afastada por muito
tempo. E Anouk vem em breve de Paris; a minha pequena Anouk,
que não precisa de outra Zozie a seduzi-la. A Morte. O Louco. A
Torre. A Mudança. Tantas mudanças já. As imagens no baralho de
cartas de Tarot servem para concentrar a mente. Como tal, podem
ser qualquer coisa; e, no entanto, há poder nelas, nascido de uma
tradição de séculos. A Morte. O Louco. A Torre. A Mudança. Será
que a arte de Morgane está de algum modo relacionada com a
minha? Uma tatuagem pode revelar tanto quanto oculta. Soa-me
como uma versão de: Experimenta-me. Saboreia-me. Põe-me à
prova.
Lanço um olhar à porta púrpura, fechada mais uma vez contra o
vento.
O que é que ela terá visto em mim agora mesmo? Um animal,
talvez uma ave. Algo que tenha um coração a bater. Ouço Rosette
no andar de cima, a soar contrariada, a bater com os pés nas
tábuas do soalho. Pergunto-me se Morgane terá visto Bam. E, se
sim, que mais viu?
Entro na cozinha. O aroma do cacau devia ser reconfortante,
mas, de algum modo, não o é. Os Maias tatuavam o corpo, sabe,
para aplacar os deuses. Se fosse assim tão fácil, penso. Se
houvesse uma maneira de o derramamento de sangue poder
aplacar o vento.
Tento imaginar alguém de Lansquenet a interessar-se pelo tipo
de tentação de Morgane. Demorou-lhes bastante tempo a aceitar
uma chocolaterie em frente à igreja – como poderiam então
alguma vez aceitar alguém como Morgane Dubois?
Os estores estão corridos quando volto a olhar para lá. Talvez
ela tenha um cliente, diz uma vozinha na minha cabeça. Talvez
mais alguém tenha ouvido o canto da sereia daquela porta
púrpura. Alguém que sempre quis secretamente fazer uma
tatuagem. Talvez ela tenha visto a pessoa a espreitar pela montra.
Talvez lhe tenha oferecido um café e lhe tenha contado lendas dos
Maias: «Para si, um animal, talvez uma ave...»
Não importa, digo para comigo. Até à Páscoa, ela vai-se embora.
6

Segunda-feira, 20 de março
pesar do desprezo não verbalizado de Tante Anna, Mimi
A continuava a ser uma menina feliz. Aprendi a mantê-la
afastada quando Tante Anna recebia visitas, o que acontecia
todas as semanas, às quartas-feiras, depois da missa; e havia
chá e petits fours, e talvez uma tarte da pâtisserie. Às quartas-
feiras à tarde, as amigas de Tante Anna usavam luvas pretas e
falavam sobre o seu trabalho com «os pobres», como se Mimi e
eu não usássemos roupas arranjadas para nos servirem e botas
em segunda mão com as solas finas como a hóstia na missa.
Nesses dias, nós os dois mantínhamo-nos bem afastados, e,
como Tante Anna não podia ver o que estávamos a fazer,
aproveitávamos muitas vezes a oportunidade para escapar, ir
explorar os bosques e os campos vizinhos e brincar no rio.
Havia um lugar de que Mimi gostava particularmente; um lugar
onde havia um carvalho antigo ao lado de um velho poço. Havia
uma nora ao lado do poço, mas ninguém o usava já. Usava-se
antes o poço que havia na praça por trás da igreja, o que servia
o cemitério. Mimi costumava passar horas junto àquela nora, a
ver a água gotejar para a pia de pedra ao lado do poço enquanto
eu manobrava a nora enferrujada, ou a molhar as mãos na água
enlameada e a rir-se como uma tontinha. O poço estava coberto
com um tampo de madeira, aparafusado para evitar acidentes.
Mimi sabia que não devia trepar para cima daquele círculo podre
de madeira, para o caso de ele ceder e ela cair lá dentro. E,
apesar da deficiência dela, eu nunca era impaciente com ela
nem troçava dela, como outros rapazes na minha situação
poderiam ter feito. Sei que não vai acreditar nisso, Reynaud. A
paciência não é propriamente uma virtude que o senhor
imaginaria que eu tinha. Bem, talvez a minha memória não seja
tão boa como era; ou talvez Mimi conseguisse fazer-me dar o
meu melhor. De qualquer maneira, dávamo-nos bem. Eu era um
rapaz solitário, desatento na escola, silencioso e cabisbaixo.
Nisto era como o meu pai, ou assim mo dizia a minha tia. Não
havia nenhum carinho na comparação que ela fazia. Eu
pressentia que ela gostaria que eu fosse diferente, talvez que
fosse o tipo de rapaz que ajudava na igreja, que cantava no coro,
que planeava a sua Comunhão Solene. Recusava-me
terminantemente a fazer essas coisas, apesar da desaprovação
de Tante Anna – ou talvez até por causa dela. O padre – não o
seu antecessor, mas o que esteve cá antes dele –, embora
elogiasse a dedicação da minha tia à Igreja, era rígido no que
dizia respeito a crianças. Mas era impossível manter Mimi
sossegada durante os serviços religiosos, e, como era eu quem
olhava por ela, geralmente conseguia também escapar à missa.
Para a minha tia, isso significava um ponto negativo todas as
semanas, e ficava ressentida connosco. E assim continuava; a
minha infância tornou-se uma série ininterrupta de fugas,
reprimendas e punições. Até à carta de Rennes. A carta que veio
mudar tudo.
*
Eu chegara a meio do manuscrito de Narcisse. Teria continuado
a ler, mon père, se não tivesse ouvido alguém bater com força à
porta. Era Michèle Montour, e, pela expressão do seu rosto,
compreendi que tinha vindo queixar-se.
– Mon père – disse ela –, lamento ter tido de faltar à missa no
domingo. Mas estive a falar com a Vianne Rocher.
Oh. Perguntei-me se se esperava que convidasse a senhora a
entrar. Supus que sim; assim como se diz que os vampiros têm de
ser convidados a entrar antes de poderem alimentar-se. –
Suponho que esteja muito ocupada? – disse eu, com a esperança
de obter uma resposta afirmativa.
– Oh, não, mon père – disse Michèle Montour. – Posso sempre
dispor de tempo para o senhor.
De pouco tinham valido as minhas mornas boas-vindas. – Entre
– disse. – Eu faço um café.
Ela seguiu-me para a sala de estar, trazendo consigo um
perfume forte de gardénia. – Tem estado a ler a confissão do meu
pai – disse ela, semicerrando os olhos para ler as palavras
escrevinhadas. Sem dúvida à procura de uma menção do seu
nome, disse eu para comigo. Não que a fosse encontrar, pensei.
Até este momento, a confissão de Narcisse só se debruça sobre o
passado distante.
Fechei o dossiê. – É confidencial, receio bem – disse eu, e,
entalando-o debaixo do braço, fui fazer café para os dois. Se a
tivesse deixado sozinha com o texto, ela teria dado uma
espreitadela. Fazem sempre isso, as pessoas do tipo dela.
Ela seguiu-me até à cozinha, trazendo o perfume de gardénias
consigo. – A mulher é impossível – disse. – Suponho que devia ter
contado com isso.
– Que mulher? – disse eu, distraído, esperando que ela não
quisesse açúcar nem natas no café.
– A Vianne Rocher, claro – disse Michèle. – Dois torrões de
açúcar e natas, por favor, mon père. – Até parecia que a mulher
tinha adivinhado que eu não tinha nem uma coisa nem outra em
casa. Procurei no bolso do meu casaco e encontrei dois torrões de
açúcar embrulhados que tinha trazido do café de Joséphine. Não
uso açúcar, mas por vezes, quando estou em Les Marauds, a
pequena Maya gosta de dar açúcar aos cavalos.
– Receio bem que tenha de ser com leite – disse eu.
– É claro, mon père. Estamos na Quaresma – disse Michèle
Montour, o que me irritou ainda mais. Michèle Montour quer tanto
saber da Quaresma como da minha companhia; tinha vindo para
se queixar de Vianne Rocher, e mais especialmente de Rosette,
com quem Vianne se recusa a discutir o tópico do legado de
Narcisse.
– Não vejo porque é que ela tem de ser tão difícil – disse
Michèle. – Não deve estar a fazer grande negócio naquela lojinha
esquisita. Seria de pensar que aproveitaria a oportunidade de
ganhar uns dinheiritos.
Encolhi os ombros. – Talvez ela não considere que a terra seja
dela para a vender – disse.
– Isso é irrelevante – disse Michèle. – Aquela criança não pode
propriamente ser considerada uma pessoa responsável.
Bebi o café e não disse nada. Presumivelmente, Narcisse deixou
a Rosette a mata de carvalhos por uma razão.
– Ofereci-lhe uma bela quantia – prosseguiu Michèle, toda
irritada. – Só posso presumir que ela acredita que a terra vai
aumentar de valor. Talvez julgue que há lá algum tesouro
enterrado!
Soltou uma gargalhadinha desagradável, e ocorreu-me a ideia de
como é frequente os mentirosos confessarem a verdade ao
tentarem dizer o contrário.
– Mas falando a sério, mon père – prosseguiu ela. – O que é que
ele julgava que as pessoas iam pensar? O texto do testamento foi
redigido para dar a impressão de que há algo mais. Os dezasseis
hectares de mata, juntamente com quaisquer estruturas e o seu
conteúdo – citou ela, com uma exatidão que me fez pensar que
refletira sobre o assunto. – Não me diga que isso não se destinava
a insinuar que há mais alguma coisa naquele sítio para além da
mata?
– Talvez haja – disse eu, com uma ponta de malícia. – O
Narcisse era...
– Difícil, sim – disse Michèle. – Era um homem muito difícil.
Ninguém sabe o esforço que fizemos para o aplacar, mas ele
nunca...
– Eu ia dizer quixotesco.
– Oh. Isso também, claro – disse Michèle, e eu adivinhei que ela
não sabia o significado de «quixotesco». – Mas o meu pai era
mesmo assim. Gostava das suas piadinhas. É claro que não há
nada enterrado lá. É só uma tentativa dele de causar problemas. E
se ao menos aquela mulher ganhasse juízo e nos vendesse a terra
imediatamente, podíamos vender a propriedade toda muito mais
facilmente. Francamente, mon père... – baixou a voz – o dinheiro
dava-nos jeito. Cuidar do Yannick levou-nos quase todas as
nossas economias. Seria de pensar que aquela mulher teria
alguma compreensão, dado o facto de que também ela tem uma
filha especial. – Deu à palavra especial uma inflexão melosa, em
contraste com o tom bastante nasal do resto das suas palavras.
Acabei de tomar o café. – Compreendo – menti. – Mas o que
posso fazer?
– Podia conversar com ela – disse Michèle, irritantemente direta.
– Podia fazer com que ela falasse com o tal Roux. Ele não vai
nunca querer falar comigo. Já deixou isso bem claro. Nem sequer
esteve presente na leitura do testamento. Mas talvez o senhor
pudesse fazê-los ver a razão. Persuadi-los de que a terra não vale
nada. Caso contrário, vai haver falatório. Sabe como são as
pessoas daqui.
Sei, de facto. Também sei quando alguém está a tentar enganar-
me. Os Montour pensam que há algo mais do que carvalhos no
bosque de Narcisse. Um tesouro enterrado? Que absurdo! E, no
entanto, o velho senhor era desconfiado. Seria mesmo típico dele
ter enterrado o dinheiro numa caixa no chão em vez de o depositar
no banco. Mas, quanto a falar com Vianne ou com Roux...
– Duvido que surtisse efeito – disse eu. – E, além disso, eu sou o
executor do testamento do Narcisse. Interferir não estaria de
acordo com os desejos dele.
– Oh. – Vi que voltava o olhar para o dossiê do manuscrito de
Narcisse, que eu tinha colocado na bancada junto à chaleira. –
Mas se houver alguma coisa ali... – disse ela. – Algo que possa
indicar se foram enterrados valores lá... o senhor teria a obrigação
de dizer a alguém, não teria? Quero dizer, é só um exemplo, um
exemplo tonto, mas teria de dizer ao advogado ou, pelo menos, de
informar a família...
Suspirei. – Considero este documento sigiloso como uma
confissão – disse. – Não o revelaria a ninguém, assim como não
revelaria uma confissão sua.
– Mas o meu pai nem sequer era católico! – protestou Michèle. –
Com certeza, mon père...
– A questão não é se ele era católico, Mme. Montour. Os meus
votos não distinguem crentes de ateus... ou de hipócritas.
Deveria ter bastado. Vi que ela corava, com fúria, mais do que
outra coisa qualquer. – Bem, a mim parece-me ridículo – disse ela
– que um documento que poderia fazer a diferença entre o meu
filho ter os devidos cuidados ou ficar à mercê do Estado tenha de
ser mantido secreto para satisfazer o capricho de um velho que
provavelmente nem estava no seu perfeito juízo.
Contudo, algo que ela dissera me alertou. – O que quer dizer
com ficar à mercê do Estado?
Michèle Montour ergueu os olhos para os meus. – Mon père –
disse, adotando mais uma vez o tom meloso que usava sempre
que falava do problema do filho. – O meu marido e eu não vamos
poder cuidar do Yannick para sempre. Todo aquele dinheiro,
desperdiçado em escolas especiais e terapeutas, sem nenhuns
resultados, sem nenhuma gratidão. – Limpou os olhos com as
pontas dos dedos. – Um dia, já não estaremos cá – disse – e o
nosso filho vai ser obrigado a ir para uma instituição. Isto é, a
menos que consigamos angariar os fundos necessários para ele
poder ter os cuidados de que necessita.
Aquilo surpreendeu-me um pouco. Daquilo que vira do rapaz
Montour, não o achava incapaz de interagir com as pessoas, e
demonstrara até algum engenho ao assaltar a despensa de
Narcisse. – Julguei que o Yannick poderia ter uma vida
independente em adulto – disse eu.
Ela abanou a cabeça. – Oh não, mon père. O meu filho tem de
ser vigiado constantemente. O problema dele leva-o a comer
demasiado, a ponto de ser perigoso, e, se eu o deixasse sem
vigilância, podia morrer antes dos trinta.
Pensei no frasco de dois litros de compota e senti-me um pouco
desconfortável. – Já tinha mencionado isso – disse.
– Então, deve compreender a minha preocupação.
Eu não disse nada. Ao que julgo, há maneiras muito menos
drásticas de controlar o problema do que internar o rapaz numa
instituição. Mas essa era uma decisão para os pais dele, supunha.
Talvez até uma decisão para o próprio rapaz, se conseguisse um
dia escapar-lhes. Voltei a pensar no manuscrito de Narcisse e nas
suas descrições de Mimi. Como é que aquele rapazinho tão afável
se tornara um velho tão azedo e solitário? E porque é que o seu
afeto se virara para Rosette e não para a sua própria filha?
Suponho que sei a resposta. É difícil gostar de Michèle. A ironia é
que se em vez de esconder o seu filho problemático ela tivesse
aproximado o velho senhor e Yannick, Narcisse poderia ter-se
afeiçoado a Yannick como se afeiçoou a Rosette.
– Lamento muito – disse eu. – E compreendo.
– Mas recusa-se a mostrar-me o texto do meu pai.
Abanei a cabeça. – Impossível.
– Muito bem – disse Michèle. – Nesse caso, terei de procurar
ajuda noutro sítio. – Fez uma pausa e depois acrescentou: –
Francamente, mon père, sinto-me dececionada por o senhor tomar
o partido de alguém daquele tipo contra um elemento da sua
própria congregação.
– Alguém de que tipo? – perguntei.
Ela corou, furiosa. – Logo verá. Não pense que eu não sei o que
se está a passar. O tipo de pessoas a que ela chama amigos.
Aquelas mulheres árabes de Les Marauds. Aqueles nómadas, com
as tatuagens todas. E agora há até uma que arrendou a minha
loja, embora, se eu soubesse que tipo de negócio era, não lha teria
arrendado, apesar de só Deus saber como precisamos do
dinheiro...
– Espere um minuto. – Eu estava confuso. – De quem estamos a
falar?
Ela soltou uma gargalhada sem humor. – Não sabe? Ela disse
que era artista. Julgámos que ia abrir uma galeria de arte. E agora
descubro que é um estúdio de tatuagem, e o mais certo é que todo
o tipo de escumalha comece a parar por lá, dia e noite, e não me
diga que não foi a Vianne Rocher quem lhe passou a informação
de que havia uma loja para alugar. – Limpou uma lágrima de raiva
do olho. – Depois de todos os meus esforços para construir uma
reputação aqui, agora vou ser motivo de chacota. Ninguém me vai
levar a sério. E, a não ser que ela viole os termos do contrato, o
que pode ser que aconteça, só podemos ter essa esperança, vai
ficar lá doze meses inteirinhos, e será um milagre se ela não der
cabo do sítio...
– Vejo que está incomodada – disse eu. – Mas porque culpa
Vianne Rocher disso?
Ela soltou uma grande gargalhada. – Não julgue que não as vi –
respondeu. – As duas unha com carne, tanto a mãe como a filha.
Creio que aquela mulher, a Rocher, até lhe levou um presente de
boas-vindas para comemorar a chegada dela. Bem, só posso dizer
que espero que o senhor se sinta à vontade com esse tipo de
pessoa a instalar-se na vila. Se se tornar popular, talvez possa
abrir uma sex shop ao lado da igreja ou... porque não?... um
McDonald’s.
E com essa nota de condenação final, levantou-se do cadeirão e
saiu, com passos muito empertigados, como um grou ou uma ave
marinha à procura de uma presa debaixo de água.
7

Segunda-feira, 20 de março
entei voltar a ler, mas tinha perdido a capacidade de me
T concentrar. Em vez disso, decidi ir dar um passeio e talvez
parar para almoçar em Les Marauds ou no café, com Joséphine.
Contudo, a revelação de Michèle deixara-me curioso. Não
partilhava a sensação de ultraje dela, mas – um estúdio de
tatuagem na Place Saint-Jérôme? Em Les Marauds – sim, talvez
resultasse. As rendas são baixas, e as ratazanas do rio gostam de
tatuagens e de piercings. Mas aqui na praça, e com aquele nome,
que parece o de uma loja de artigos funerários...
Les Illuminés. Sim, talvez se refira às iluminuras da pele. Em
tempos antigos, os manuscritos eram muitas vezes encadernados
a pele, para preservar a caligrafia como joias que se escondia nas
suas páginas. Mas aquela loja – tão limpa e soalheira – não era
nada como eu imaginava que seria um estúdio de tatuagem.
Embora, é claro, para ser franco, mon père, eu nunca tenha estado
dentro de um estúdio de tatuagem na minha vida e, por
conseguinte as minhas expectativas baseavam-se todas em
preconceitos. Não me orgulho dos meus preconceitos e
atualmente tento não ser tão crítico como era em tempos, mas
devo confessar que a ideia de um estúdio de tatuagem em frente à
igreja me agradava tanto como a chegada de uma chocolaterie – e
no início da Quaresma, ainda por cima – agradara em tempos à
pessoa que eu era em mais jovem.
Perguntei-me quem seria a proprietária. Se Vianne Rocher lhe
dera as boas vindas, com certeza eu deveria fazer o mesmo? Sem
dúvida que fora minha intenção, mon père. O facto de ainda não o
ter feito era uma clara negligência do dever.
E não vira Joséphine refletida nos espelhos da loja? Será que
Joséphine tinha ido fazer uma tatuagem? Não parecia nada dela.
De facto, eu só conseguia pensar num habitante de Lansquenet
que pudesse apreciar a abertura de um estúdio de tatuagem, e ele
já estava tão extensamente iluminado que, provavelmente, o
desafio seria encontrar um pedaço de pele intocada.
Os estores estavam corridos quando cheguei à praça. Aqueles
estores de cor púrpura, tão parecidos com a pálpebra de um só
olho a piscar. Mas a tabuleta dizia Aberto, e por isso, com alguma
ansiedade, entrei, ouvindo uma pequena sineta ao abrir a porta.
Lá dentro, era tudo espelhos e cromados, como eu anteriormente
avistara de fora, com uma espécie de padrão denso refletido em
tudo. Folhas azuis, vinhas verdes e aves pintalgadas, como um
papel de parede antiquado numa mansão inglesa, embora
parecesse bastante deslocado num espaço, sob outros aspetos,
sem restrições. Cadeiras confortáveis à volta de uma mesa e uma
máquina de café; e uma cadeira de encosto bastante grande,
presumivelmente para o processo de tatuagem...
Havia duas pessoas sentadas nas cadeiras junto à máquina de
café. Uma era a mulher que eu avistara de passagem junto à
minha casa na noite de chuva – reconheci o seu cabelo loiro
acinzentado e o ângulo do seu maxilar –, com uma espécie de
veste comprida num veludo púrpura drapeado, aberta no pescoço
a revelar um par de tatuagens a condizer que floriam da sua
clavícula. A outra pessoa era Roux, aparentando estar
descontraído, com uma chávena na mão, e vestindo uma T-shirt
sem mangas que deixava à mostra as suas tatuagens nos braços.
Mal entrei, o sorriso no rosto dele desvaneceu-se e transformou-
se num ar inexpressivo e amuado. Roux nunca gostou de mim –
por razões que ambos compreendemos – e há muito tempo que
desisti de tentar penetrar a sua reserva.
– Por favor, não se levante – disse eu, quando Roux fez menção
de se pôr de pé. Dirigindo-me à mulher, disse: – Sou Francis
Reynaud. Somos vizinhos. Só queria dizer-lhe olá.
A mulher sorriu. – Morgane Dubois.
Roux emitiu um som de escárnio, não muito diferente de um dos
sons de aves de Rosette.
– Por favor, não se vá embora por minha causa – disse eu, ao
vê-lo pôr-se de pé. – Não era minha intenção vir incomodá-los.
– Já fiz o que tinha a fazer aqui – disse Roux. Dirigiu um gesto
amigável de despedida à mulher e, enfiando o casaco, um blusão
de couro muito gasto, forrado a pelo de ovelha, que usa há vinte
anos e se recusa a substituir, dirigiu-se para a porta e desapareceu
como um gato bravo.
– Desculpe – disse eu à mulher. – Espero não lhe ter espantado
o cliente.
A mulher dirigiu-me um sorriso lento que eu achei
inesperadamente doce. Julgara que era muito mais nova do que
eu, mas agora apercebi-me de que éramos mais ou menos da
mesma idade. Talvez sejam aquelas tatuagens vistosas que dão a
impressão de juventude; isso ou a vivacidade do rosto por baixo do
cabelo apanhado.
– Não o espantou – disse ela. – Foi só o primeiro dos nossos
encontros. Insisto sempre em ter dois antes de aceitar um trabalho.
– Oh. – Sentia-me um pouco surpreendido.
– Tatuar é um negócio sério – disse ela. – Um erro não pode
nunca ser apagado por completo. E, por mais que se encubra, o
cliente nunca se esquecerá de onde estava a antiga tatuagem e
sentirá o seu prurido no escuro.
Como marcas na alma, pensei, e senti um súbito arrepio de
inquietação. Certamente uma comparação inapropriada, pensei.
Cristo apaga tudo.
– Ainda bem que leva o seu trabalho tão a sério – disse eu. –
Vejo muitos jovens que parecem ter mais cuidado a escolher a
roupa que usam do que a arte na sua pele.
Ela voltou a sorrir. De facto, mon père, os jovens que eu acabara
de descrever vira-os na televisão, e algo na expressão de Morgane
me disse que ela o adivinhara.
– Penso que está a ser injusto para com os jovens – disse ela. –
E eu asseguro-me de que todos os meus clientes têm plena
consciência tanto da transação que realizamos como do que o
desenho significará para eles.
Transação. Uma estranha escolha de palavra, pensei, a lembrar
negócios com o Diabo. Perguntei-me como seria andar com uma
marca dessas na pele e o que essa marca poderia revelar.
Ela apontou para o padrão de folhas que despontava do seu
decote. – Alguns temas são universais. Os temas da Natureza
podem ajudar-nos a ligarmo-nos com o nosso mundo e alterar a
maneira como o apreendemos. – Olhou para mim, subitamente
séria. – Para si, mon père, algo simples – disse. – Algo radical e
puro. Talvez algo a ver com o fogo.
Estremeci. – Com o fogo?
Ela sabe, mon père. Recém-chegada e, de algum modo, já sabe.
Por um momento, senti-me nauseado, em pânico, com a certeza
de que, de algum modo, ela conseguira olhar para dentro de mim e
apontar uma luz na escuridão. Mas depois, afastando o ridículo
pensamento, consegui soltar uma risada e dizer: – Duvido que a
minha congregação aprovasse se eu aparecesse na missa com
uma tatuagem de uma chama.
Ela sorriu. – Oh, ficaria surpreendido se soubesse quantas
pessoas têm tatuagens. Nem todas optam por as mostrar. Por
vezes, uma tatuagem é algo tão pessoal que nem a família sabe.
Algumas pessoas levam-nas consigo para a cova.
Como pecados não perdoados, pensei.
– Posso oferecer-lhe uma bebida, mon père? De repente, parece
não estar a sentir-se bem.
Sentei-me. Devia ser dos espelhos, mas dei comigo a sentir
náuseas. Ela deu-me uma chávena de café antes de subir os
estores. A luz da rua era ofuscante, mas a náusea passou-me.
– Está um ambiente um pouco pesado aqui – disse eu.
– Algumas pessoas acham que sim. – Sentou-se em frente a
mim numa das cadeiras e vi que estava com botas de cor púrpura
por baixo da sua opulenta veste de veludo. – Está a sentir-se
melhor?
– Sim, obrigado. – Bebi o café. Era bom, mais forte do que o que
eu faço. – Então – prossegui, tentando levar a conversa para
caminhos mais normais. – Faz-se muito dinheiro com as
tatuagens? – No geral, supunha que não. Na minha experiência, o
tipo de pessoas que querem tatuagens não costumam ser pessoas
com dinheiro.
Ela sorriu, como se eu tivesse dito os meus pensamentos em voz
alta. Senti-me corar um pouco. – Remedeio-me – disse ela. – Peço
aos meus clientes que paguem o que a arte vale para eles em vez
de fixar um preço.
– Oh. – Soava bastante absurdo. E, no entanto, aquela mulher
estava a falar a sério. Recordou-me estranhamente Vianne
Rocher, nos primeiros tempos da chocolaterie. Quase esperava
que ela dissesse: Ponha-me à prova. Eu sei quais são os seus
favoritos.
Absurdo, é claro. Ela não é nada como Vianne. E, no entanto, a
falta de à-vontade que me faz sentir é estranhamente muito
familiar. Suponho que ela e Vianne já travaram amizade: não
consigo imaginar Roux a confiar nela, de outro modo. É claro que
Roux já tem tatuagens: imagino que a decisão é mais importante
quando se trata de uma pele ainda sem marcas.
Tentei olhar para o rosto de Morgane. Não parecia bem estar
sempre a olhar-lhe para aquelas tatuagens no decote. E, no
entanto – falando objetivamente – são lindas. Cachos de folhagem
estilizada, cada um deles rematado por três flores minúsculas.
Demorei um momento a aperceber-me de onde vira antes aquele
padrão: são da estampa junto à porta, da que parecia papel de
parede inglês. Olhando agora, via como fora inteligentemente
selecionado um elemento de um padrão mais complexo e
adaptado à curva delicada da clavícula. Apesar da linha nítida,
quase formal, achei-o inesperadamente erótico.
Ergui os olhos para os dela e vi que estava a sorrir.
– Desculpe – disse eu. – Não era minha intenção pôr-me a olhar
fixamente.
– Não tem mal – disse ela. – Essa foi a minha primeira.
– A sua primeira tatuagem?
– A primeira de todas. A maior parte dos artistas de tatuagem
começa por uma perna. Uma parte do corpo fácil, que possa ser
escondida debaixo da roupa se o desenho correr mal. Mas eu tinha
a confiança da juventude. E sempre preferi trabalhar com
espelhos.
– Quer dizer que foi a senhora quem fez esta tatuagem?
– Sem sombra de dúvidas – disse Morgane. – Algumas pessoas
usam voluntários para praticar. Mas eu sempre achei que isso era
desonesto. A tatuagem tem a ver com honestidade. Queria que os
meus clientes soubessem isso.
Tentei imaginar o processo de tatuar a própria pele usando
espelhos. – Honestidade – repeti.
– É claro. As minhas tatuagens não são camuflagem. Vejo-as
como fragmentos da alma a virem à superfície.
Não tinha a certeza do que responder. Fragmentos da alma.
Lembrei-me dos pedaços de madeira chamuscados e a arderem
na superfície do Tannes. Lembrei-me das gentes do rio a seguirem
caminho, ressentidas e impassíveis.
Tentei dizer uma piada. – Tenha cuidado. As almas são a divisa
da Igreja.
– E do Diabo – disse Morgane. – Toda a gente obtém aquilo por
que paga.
8

Segunda-feira, 20 de março
maman diz que não quer voltar a ver-me a falar com Morgane.
A Eu penso que se uma pessoa não quer ver alguma coisa, não
devia ir à procura dela. Da próxima vez, vamos ter de baixar os
estores ou encontrarmo-nos algures em segredo. Porque eu
continuo a querer estar com Morgane e ver o álbum de fotografias
dela e talvez até fazer uma tatuagem. Há algo em Morgane que
me faz sentir que não sou uma pessoa esquisita. Como se não lhe
importassem aquelas coisas que fazem com que as outras
pessoas me olhem fixamente ou, como Joline Drou e Caro
Clairmont, baixar a voz quando falam de mim.
A maman julga que eu não reparo nessas coisas. Julga que não
sei que sou muito diferente. Julga que se eu me mantiver calada e
me portar bem e nunca usar a minha voz-sombra talvez venha a
ser um dia como as outras pessoas e não uma menina pequena
feita de neve. Mas quando estive com Morgane ontem não me
senti nada diferente. Sabia que Morgane não se importaria se eu
falasse com ela na minha voz-sombra ou se visse Bam nos
espelhos ou mesmo se houvesse um Acidente. Não ficaria
surpreendida se soubesse porque viemos para Lansquenet e
porque a maman tem medo por vezes. E eu quero saber mais
coisas sobre ela, de onde veio, onde esteve, o que significa o
nome da loja dela e porque tem A Menina que Roubava Morangos
tatuada na clavícula. Por isso, andei contrariada toda a manhã e
recusei-me a tomar o chocolate quente, e a maman estava com
um ar triste e de quem tem uma dor de cabeça, e estavam sempre
a partir-se umas coisas pequenas. Também havia um vento: um
ventinho agreste que soprava nos cantos da praça e fazia dançar a
tabuleta da loja. Não era exatamente um vento mau – mas também
não era um vento bom.
– Porque não vais ver o teu amigo Yannick? – perguntou por fim
a maman com um sorriso pálido. – Podias levar-lhe uns
chocolates.
Era uma ideia bastante boa, mas eu sabia que não era a razão
pela qual a maman fizera essa sugestão. Não quer que eu vá
visitar Morgane e está a usar Yannick como desculpa. Mas eu via
que ela estava inquieta e não me apetecia ficar na loja. E por isso
peguei nos chocolates, que eram os favoritos dele (todos os
chocolates são) e peguei no meu bloco de desenho e atravessei os
campos até à casa de Yannick. Queria saber se ele tinha visto
Morgane e o que achava da nova loja, e depois, pensei, podíamos
jogar um jogo ou ir explorar o meu bosque de morangos. Mas
quando cheguei à casa da quinta, a mãe de Yannick veio abrir a
porta e olhou para mim daquela maneira tão sua e disse que
Yannick estava a dormir.
Era mentira. Vi logo que era. Pouco passava da hora do almoço.
Porque é que Yannick estaria a dormir? E depois pensei que talvez
estivesse doente e que talvez fosse culpa minha, de alguma
maneira, e de repente senti-me culpada. E se isto fosse um
Acidente que eu tinha causado por falar com Morgane? E se a
maman tivesse razão, e eu tivesse convocado o vento sem o
saber?
A mãe de Yannick continuou a olhar para mim e para a caixinha
que eu trazia na mão. Com o seu nariz comprido e afiado e os
seus olhos frios e sem expressão, fez-me pensar numa ave grande
e feia. Talvez um flamingo, pensei: feia e desproporcionada.
– Isso é uma caixa de chocolates? – disse ela numa voz aguda,
como se estivesse a falar com uma pessoa muito longe dela.
Não respondi. Ela sabia o que era a caixa. Em vez disso, pus-me
a ver Bam fazer caretas por trás da porta aberta e a escutar o
vento por entre as árvores e a desejar não ter vindo aqui. Mas a
mãe de Yannick revirou os olhos e disse «Chocolates!» outra vez,
naquela tonta voz aguda, e depois aproximou o rosto do meu e
disse, num tom muito diferente:
– Escuta-me, Rosette Rocher. O meu filho é um rapaz com
muitos problemas, e a última coisa de que precisa é de alguém
como tu a rondá-lo, a piorar as coisas. Por isso, podes esquecer o
Yannick, porque ele não te quer a ti ou aos teus chocolates.
Compreendes-me?
Compreendi. Compreendi que Mme. Montour queria impedir-me
de ver Yannick. E, subitamente, não me importei que houvesse um
Acidente. Quis que o vento a levasse numa rajada, e por isso disse
na minha voz-sombra:
– Mentirosa.
– Então, sempre és capaz de falar – disse ela.
Fiz o vento matreiro puxar-lhe a saia, de maneira que ela teve de
a segurar.
– Não me surpreende nada – disse ela. – O meu pai talvez tenha
acreditado nessa cena de menininha inocente, mas comigo não
resulta. E se pensas que te vou deixar ficar com a terra dele sem
dar luta, podes pensar outra vez.
– A minha terra. O meu bosque – disse eu, e o vento soprou um
pouco mais forte.
Mme. Montour não reparou. – O meu pai era um homem
perturbado – disse. – O que deixou no testamento confirma-o. Por
isso, não comeces já a contar o teu dinheiro. Ainda não é
demasiado tarde para as coisas mudarem.
E fechou a porta, de modo que Bam ficou na soleira, com um ar
feroz e a guinchar. O vento soprou pelas dobradiças e sacudiu as
telhas soltas no telhado, mas Mme. Montour não veio cá fora. Eu
sabia que ela estava atrás da porta, a espreitar pelo buraco da
fechadura, a escutar o som do vento e à espera de que eu me
fosse embora.
E por isso eu disse: – Cabra – na minha voz-sombra, e
começaram a voar telhas do telhado, uma a uma, como cartas de
um baralho. Duas, três, quatrocincoseis, voaram para o céu pardo
e estilhaçaram-se na tijoleira do pátio, onde ficavam os galinheiros.
Depois, corri pelos campos até ao meu bosque e sentei-me junto
ao poço dos desejos e comi os chocolates todos de Yannick.
Mas mesmo assim continuava a sentir-me triste e por isso peguei
no meu bloco de desenho e desenhei Mme. Montour como um
flamingo ganancioso. Fez-me rir, mas continuava a sentir-me triste.
Não é justo que seja a mãe de Yannick a decidir quem deviam ser
os amigos dele. E ela já tem a quinta e os campos. Porque quer o
meu bosque também?
Quem me dera que o vento a levasse embora, segredei para
dentro do poço dos desejos. Quem me dera que ela tivesse um
Acidente e se fosse embora no vento e nunca mais voltasse.
O poço segredou-me de volta – Que nunca mais voltasse! – e o
vento levou aquele murmúrio no seu sopro. Que nunca mais
voltasse! Que nunca mais voltasse! Soava-me como a voz
sussurrada a que Omi Mahjoubi chama waswas: a voz insistente e
raivosa do vento, por vezes sedutora, por vezes furiosa...
Arranquei o desenho do bloco e lancei os pedaços ao vento. Os
fragmentos de papel voaram como aves por cima da clareira dos
morangos. Talvez Narcisse esteja no vento, pensei. Talvez ele
esteja a ver. A maman diz que os mortos ainda estão aqui, desde
que alguém se lembre deles. Talvez seja por isso que ele me
deixou o bosque. Enquanto os morangos continuarem, ele estará
aqui. Enquanto eu o recordar.
Voltei para trás ao longo do rio. Estava a chover um pouco e
havia umas ondinhas na superfície castanha do Tannes. Roux
estava a queimar lixo ao lado de onde tinha o barco ancorado. O
fumo era branco, como penas numa coluna de ar a subir.
Viu-me e acenou. Corri para ele e dei-lhe um abraço. Ele
cheirava como cheira sempre que dorme cá fora junto à fogueira.
Quem me dera poder dormir ao ar livre às vezes. Quando for mais
velha, talvez o faça. Faço uma cova para uma fogueira no meu
bosque e vivo só de morangos.
– Devias ir para casa. Está a fazer-se tarde – disse ele.
Eu queria estar ao ar livre.
– Mas sabes que a Vianne fica preocupada.
Isso é verdade, pensei. Ela preocupa-se demasiado. Preocupa-
se com o rio. O vento. As outras pessoas. A chuva. Os fantasmas.
Eu nunca vou ter medo. Nem de fantasmas nem de nada. Disse
isso a Roux, mas ele só sorriu.
– Todos pensamos isso ao princípio – disse. – Quando
cresceres, vais compreender.
Só que eu nunca vou crescer. Ouvi tantas vezes dizer isso às
pessoas. Dizem-no como se fosse alguma espécie de maldição. Tu
não tens medo, disse-lhe eu.
Ele sorriu outra vez. – Ficavas admirada se soubesses o medo
que tenho.
Beijou-me no cabelo e disse: – Ouvi dizer que a Anouk vem cá a
baixo na Páscoa.
Cá a baixo, pensei. É uma maneira engraçada de falar; como se
Paris fosse uma montanha. Mas nunca ninguém ouvirá Roux dizer
vir a casa. Atirou um punhado de folhas para o lume e disse: – Sou
capaz de me pôr a caminho por uns tempos.
Pôr-se a caminho, diz ele. Entendo. Sei que gosta de viajar no rio
na primavera, para sacudir a poeira de Lansquenet dos sapatos.
Só que nos últimos seis anos o seu barco tem estado ancorado em
Les Marauds e eu tinha começado a pensar que estaria sempre.
Ele viu a minha expressão. – Rosette, eu volto. Não me ia
embora para sempre. Mas este sítio nunca fez o meu género. Há
demasiadas pessoas preconceituosas e metediças. E já estou aqui
há demasiado tempo. Há demasiado tempo.
Olhei para ele. Sabia o que isto era. Tinha a ver com Narcisse e
o meu bosque e ter de ser responsável. Narcisse deixou-me a
terra, mas Roux tem de se responsabilizar por ela em meu nome.
Isso significa ficar por aqui durante algum tempo, pelo menos até
eu fazer vinte e um anos. Mas Roux não gosta de se ver preso.
Não quer ter uma morada. Não quer um passaporte. Penso que,
se pudesse ser, nem queria ter nome. Apeteceu-me dizer: Tens de
ficar. O Narcisse deixou-te encarregado das coisas. Se te fores
embora, o que impede Mme. Montour de me tirar o bosque? Mas o
vento já tinha começado a mudar, a rasgar o fumo como se ele
fosse papel, e só me atrevi a dizer em voz alta «Narcisse» e
esperar que Roux compreendesse.
Ele virou-se de lado. Ouvi-o suspirar. – O velho sabia o que
estava a fazer – disse. – Pensou que assim poderia manter-me em
Lansquenet. Amarrar-me a um pedaço de terra, como ele se
amarrou à quinta dele. – Falava baixo, mas eu via que, por baixo
da calma toda, estava zangado – O que é que ele julgou que ia
acontecer, hé? Que eu ia acabar por gostar do sítio? Que ia
desistir de ser quem sou? E para quê?
Comecei a chorar. Não gostava de o ver assim zangado. E,
subitamente, ouvi o vento, o seu waswas trocista, persistente, e
compreendi que a culpa era minha. Tinha-o chamado para ele
levar Mme. Montour, e em vez disso ele ia levar Roux...
– Rosette... – começou ele a dizer.
Detesto isto, disse eu. Detesto ser assim diferente. Se eu fosse
como as outras pessoas, tu ias querer ficar.
– A culpa não é tua. Juro-te – disse Roux. Mas eu via que ele
estava a mentir. O vento estava agora à minha volta, a soprar fumo
para os meus olhos. Sentia o sabor das cinzas a voarem pelo ar,
como poeira, como areia, como pó. É isto que acontece, disse para
comigo, quando tentas chamar o vento. É assim que ele se vinga.
E continua a vingar-se até tudo se ir embora no seu sopro...
Desatei a correr. Roux chamava-me a um milhão de milhas de
distância. Mas eu já ia a meio caminho de casa, a correr ao longo
da margem do Tannes. E o vento corria ao meu lado, selvagem,
cinzento e faminto; a acompanhar-me passo a passo, como um
lobo de um conto de fadas assustador.
9

Segunda-feira, 20 de março
aí do novo estúdio de tatuagem a sentir-me estonteado e
S inquieto. Devia ter passado mais tempo do que eu julgara,
porque as sombras estavam a alongar-se. Morgane Dubois tem
uma tal maneira de fazer com que as coisas corriqueiras pareçam
agoirentas que uma coluna de fumo ou um bando de melros
ficaram subitamente cheios de significado. Na esperança de
recuperar o equilíbrio, decidira fazer café e continuar a ler a
história de Narcisse. Porém, quando cheguei a casa o dossiê
verde não se via em lado nenhum.
Procurei na bancada da cozinha, depois na minha secretária e
finalmente ao lado do cadeirão que considero o meu «cadeirão de
leitura». Estava lá o meu bloco de apontamentos; os meus óculos;
a chávena de café desta manhã. Mas do dossiê verde que
continha a confissão de Narcisse não havia sinal ou pista, a não
ser um perfume muito ténue, um aroma a gardénias murchas...
Bem, sim, mon père. Raramente penso em fechar à chave a
porta da rua quando saio. As pessoas de Lansquenet quase nunca
o fazem, a não ser as do tipo de Caro Clairmont, que acreditam
que o influxo de estrangeiros e ciganos do rio lá em baixo em Les
Marauds tornou a nossa terra mais sujeita a crimes. De facto, isso
é uma tolice. Não há crimes. Bem, pelo menos, quase nenhuns,
não desde que o velho François Giraudin partiu o pescoço a tentar
roubar chumbo do telhado da igreja. Além disso, o que é que eu
tenho, père, que alguém pudesse querer roubar? No entanto, a
confissão de Narcisse desapareceu, e aquele perfume confirma o
que eu já suspeitava – que Michèle Montour está por trás do
roubo. Ela podia facilmente tê-lo feito, pensei. Esperar até eu sair
de casa e depois voltar para trás e roubar o dossiê. Quem mais o
faria? A quem mais poderia interessar?
Tenciono ir à casa da quinta, mon père. Para confrontar a mulher
diretamente. E, no entanto, suspeito que se o fizer o ar de
probidade ofendida dela meramente servirá para minar ainda mais
a minha posição. A mulher é dura como uma pedra. Por baixo da
sua subserviência toda ofegante, não tem mais respeito pela Igreja
do que por aquele seu filho. Porque roubou o manuscrito? Com
certeza sabe que eu adivinharia quem o levara?
A andar de um lado para o outro, continuei a refletir sobre o
objetivo do roubo e a melhor coisa a fazer. E depois foi como se
sentisse uma pancada. O meu pai, o assassino. Por alguma razão
ainda não revelada, Narcisse decidira dirigir a sua confissão a mim
diretamente. E se algures nela ele tivesse incluído alguma
referência àquele incêndio no barco do rio, há mais de trinta anos?
Sentei-me, a sentir-me subitamente paralisado. O aroma a
gardénias tornara-se o aroma da margem do rio à noite; a cinza
das fogueiras; os potes ao lume; o fedor da lama do rio.
Subitamente, tudo fez sentido para mim: o desejo inexplicável de
Narcisse de me envolver depois da sua morte; a sua decisão de
escrever a confissão para mim; acima de tudo, o seu uso da
expressão: o meu pai, o assassino. E agora Michèle Montour tem o
dossiê, e vai ler a confissão e eu vou ficar...
Arruinado. Desmascarado. Condenado. Destruído.
De certo modo, não é mais do que aquilo que mereço. A sombra
do ato odioso já escureceu tanta da minha vida. De certo modo,
poderia ser um alívio ver as cortinas abrirem-se. Debato-me há
tanto tempo sob o peso deste fardo. Não seria mais fácil alijá-lo,
acabar com ele?
E, no entanto, o receio de ser desmascarado é quanto basta
para me fazer sentir cheio de frio e para os pelos finos dos meus
braços se eriçarem como picos de catos. Foi há tanto tempo, mon
père. Tanto mudou em mim desde então. Fui – bem, não redimido,
não exatamente, mas pelo menos subi na consideração das
pessoas que acabaram por significar algo para mim. Se elas – se
ela – ficassem a saber a verdade, a minha vida deixaria de ter
significado. Seria melhor estar morto, mon père, do que ver a
deceção dela...
Mas estou a ser excessivamente dramático, père. Não há
necessidade de entrar em pânico, ainda não. O que devo fazer?
Para começar, tenho de recuperar o manuscrito de Narcisse antes
que Michèle possa lê-lo. Está escrito em letra miudinha e difícil de
decifrar, e Michèle não pode ter avançado ainda muito. Ainda há
tempo para o recuperar.
Sirvo-me de um copo de vinho – só para ganhar coragem, mon
père, é tudo. Bebo-o, bastante lentamente, e sirvo-me de outro.
Digo para comigo que o tempo escasseia, mas sinto relutância em
entrar em ação, como um animal perseguido a esconder-se na sua
toca. O calor da lareira, a carícia do vinho – ambos conspiram para
me fazer adormecer. Mas desperto com um salto ao sentir o cheiro
a fumo, e, pegando no casaco de detrás da porta, saio para a rua,
onde o vento está a perseguir a flor do jasmim junto à casa e o céu
vermelho sobre os campos ecoa com os murmúrios das aves.
10

Segunda-feira, 20 de março
orri até ficar sem fôlego. Estava a ficar tarde e o céu girava
C como um cata-vento. O vento tinha amainado um pouco e as
nuvens estavam delineadas a cor-de-rosa. Estava a fazer-se tarde,
mas eu receava voltar para casa. E se o vento me seguisse? E se
tentasse levar mais alguém?
Segui pelo caminho ao longo do Tannes de volta para a velha
quinta de Narcisse. Continuava a querer ver Yannick e descobrir o
que a mãe dele tinha dito. Se eu voltasse, pensei, talvez pudesse
encontrar o quarto dele e trepar até lá e entrar por uma janela sem
a mãe dele dar conta. Ou então, se ele conseguisse sair de casa
sem mais ninguém o ver, talvez pudéssemos correr até ao meu
bosque e escondermo-nos, e alimentarmo-nos de nozes e bagas.
Estava a escurecer. O sol tinha-se posto num emaranhado de
nuvens de cor púrpura e a chuva começava a cair outra vez. Não
se via ninguém, mas depois ouvi um som no caminho por trás de
mim e escondi-me nas moitas para o caso de a maman ou Roux
terem vindo à minha procura. Mas não era a maman, nem Roux.
Era Reynaud, com um ar zangado e preocupado – via-o nas suas
cores. Estava com um sobretudo comprido e escuro, com a gola
virada para cima para se proteger da chuva, e parecia-se com um
sujeito mau num filme – um espião ou talvez um assassino.
Escondi-me nas moitas até ele passar e depois segui-o pelo
caminho abaixo e pelos campos na direção da quinta, não porque
quisesse, mas porque era para onde eu me dirigia também.
Perguntei-me o que ele andaria a fazer, a ir à quinta àquela hora.
Ele não gosta dos pais de Yannick. Qualquer pessoa o percebe.
Encrespa as suas penas de corvo sempre que eles estão por
perto.
Estava muito escuro nos campos. Não havia luzes, a não ser na
quinta; nem luar, por causa das nuvens. Isso era bom, porque
assim eu podia ver Reynaud sem ser vista. Segui-o até ao portão,
e depois fiquei a vê-lo dos arbustos enquanto ele se encaminhava
para a porta da rua e batia. Ao fim de algum tempo, alguém veio à
porta. Era a mãe de Yannick. Eu ouvia a voz dela muito
claramente, a soar como uma espécie de ave – talvez um picanço
– com um bico muito aguçado e ameaçador.
– Mon père, não quer entrar?
A voz dele é mais baixa e não consigo ouvi-la tão bem, mas sei
que ele não quer estar ali. Ouço: «Um momento do seu tempo», e
vejo que está furioso. Não é na voz dele, mas embora ele esteja de
costas voltadas para mim, vejo as suas cores flamejarem.
A voz dela é aguda e inocente. Mas sei que está a mentir. Mme.
Montour também tem cores: uma espécie de clarão cor-de-rosa
todo satisfeito. Ela não vai dar a Reynaud o que ele quer, diga ele
o que disser. Vai fartar-se de mentir. Pus-me à escuta, mas não
conseguia saber por que Reynaud estava tão perturbado. Algo
sobre Narcisse, penso. Algo sobre o meu bosque de morangos.
Aproximei-me um pouco, mantendo-me do lado da casa. Via a luz
amarela da janela de um quarto. Talvez fosse a janela de Yannick,
pensei, com a velha e grande macieira encostada à velha parede
de pedra. Seria fácil trepar por ela e espreitar lá para dentro. Fácil
para mim, pelo menos.
Subi ao terceiro grupo de ramos até chegar à janela. Era mesmo
o quarto de Yannick: vi que era pelas roupas que estavam
espalhadas pelo chão. Yannick não estava lá, mas eu vi que a
janela estava entreaberta. Enfiei os dedos por baixo do caixilho e
empurrei-o para cima. Trepei para dentro do quarto. Sou bastante
boa a trepar. Anouk diz que sou como um macaco.
O quarto dele era muito parecido com o meu, mas mais
desarrumado e com um grande televisor no chão e uma
Playstation ligada a ele. Yannick tinha estado a jogar um jogo de
tiros, mas parara a meio de uma cena. Um homem esfumado
estava acocorado por trás de uns penedos, com um arco. Eu ouvia
vozes no andar de baixo pela porta entreaberta.
Mme. Montour: – Garanto-lhe, mon père, que não sei do que
está a falar. Se alguém entrou em sua casa, sugiro que chame a
polícia. Realmente não me agrada a insinuação de que eu tenha
estado envolvida. – Era mentira. Eu sabia que era. A voz dela
soara exatamente como quando tinha dito que Yannick estava a
dormir.
– Mme. Montour, quero que saiba que mentir a um padre é
pecado. – Era Reynaud, com a voz muito ríspida, mas a mãe de
Yannick limitou-se a rir e disse:
– Está a fazer uma figura ridícula. Admite que deixou a porta
aberta. Qualquer pessoa podia ter entrado.
– E não ter roubado mais nada a não ser os papéis do seu pai?
Não me parece, Mme. Montour. É demasiada coincidência que o
dossiê tenha desaparecido no próprio dia em que me recusei a
mostrar-lho.
Estava a falar sobre Narcisse. Aproximei-me um pouco mais.
Tentei espreitar por entre as dobradiças, mas não conseguia ver
nada.
– Considero um insulto que acredite que eu alguma vez fizesse
uma coisa dessas. – A mãe de Yannick soa sempre muito satisfeita
consigo mesma quando está a mentir. – Sugiro que volte a sua
atenção para aqueles ciganos, o Roux e os amigos dele, que
param à beira-rio todo o dia e nunca parecem trabalhar. Se houve
um roubo, mon père, é muito mais provável que eles estejam
envolvidos. E o Roux, claro, tem um interesse pessoal em que o
testamento do meu pai seja cumprido. Talvez pense que há algo
mais a que possa deitar a mão.
Ela estava a chamar ladrão a Roux! Fiz um som de esquilo
zangado e tapei a boca com a mão. Por um momento, sustive a
respiração, esperando que não me tivessem ouvido.
E depois ouvi a voz de Reynaud, muito fria: – Não seja absurda,
Mme. Montour. Isto não tem nada a ver com o Roux. Os papéis
não têm nenhum valor. São simplesmente uma recolha de
pensamentos que o Narcisse sentiu que tinha de registar por
escrito. Contudo, se sabe quem os levou, o seu dever é comunicar
o roubo à polícia. Afinal, eu sou o executor do testamento do
Narcisse. Posso atrasar o processo se descobrir que aconteceu
algo de irregular.
Aquilo espicaçou-a. – Isso é uma ameaça? Soa-me a ameaça.
– É claro que não, madame.
– Porque um testamento pode ser anulado, especialmente
quando a pessoa que o fez era velha e claramente não estava no
seu perfeito juízo.
Mais mentiras. Narcisse estava no seu perfeito juízo. Ou será
que ela pensa que deixar-me o bosque a mim é prova de
demência? Perguntei-me mais uma vez aonde teria ido Yannick.
Não podia andar por longe, pensei. Sentei-me na cama para
esperar. A cama era maior do que a minha, e tinha uma espécie de
colcha felpuda. Saltei em cima do colchão. Era divertido. Tentei
mais uma vez. E depois o meu pé deu com uma coisa dura
debaixo da colcha felpuda; algo que tinha sido deixado por baixo
dela – deixado, ou talvez escondido...
Era uma espécie de dossiê verde-escuro, atado com um pedaço
de fita cor-de-rosa brilhante. Parecia velho, e tinha folhas dentro,
folhas soltas, escritas numa letra antiquada. Eu sei ler bastante
bem em livros, mas isto era mais difícil de decifrar: havia uma data
de rabiscos e floreados, como se a pessoa com a caneta na mão
não tivesse sido capaz de decidir se estava a escrever ou a
desenhar. Era bonito, mas também triste, e de repente apercebi-
me de que o dossiê tinha pertencido a Narcisse. Seriam estes os
documentos a que Reynaud se referia? Será que Yannick os tinha
tirado?
Olhei para o meu reflexo na janela escurecida. No vidro, parecia
muito pequena, sentada à chinesa em cima da cama de Yannick.
Como é que chegaste aqui? murmurei baixinho, na minha voz-
sombra. Por trás do vidro, o vento fez um som, um pequeno som
cantarolado, de encorajamento, mas eu não ia chamá-lo, não. Só
precisava de uma pequena ajuda.
E agora via como tinha acontecido, como uma sombra contra o
vidro. Vi Yannick, a jogar o seu jogo: Mme. Montour a entrar com o
dossiê, a dizer, Guarda-me isto, e fica no teu quarto. Depois,
quando ela foi abrir a porta, Yannick, sentindo fome e sabendo que
a mãe estava ocupada, desceu as escadas para a cave, para ver
que compotas poderiam estar guardadas lá em baixo...
Ouvi o som da porta da rua a fechar-se. Sabia que não podia
esperar por Yannick: Mme. Montour não tardaria a voltar ao quarto.
Mas Narcisse não quisera que ela lesse os seus papéis. Eu sabia
isso. E talvez houvesse neles alguma coisa sobre a razão por que
ele me tinha deixado o bosque, talvez até alguma coisa que eu
pudesse usar para fazer com que Roux mudasse de ideias quanto
a ir-se embora.
Não era realmente roubar, pensei. Afinal, Mme. Montour já o
tinha roubado a Reynaud. E por isso peguei no dossiê verde e
enfiei-o na minha mochila, depois saí pela janela para os ramos da
árvore, fechando a janela atrás de mim, e escapuli-me a coberto
do escuro.
11

Terça-feira, 21 de março
eynaud, lembro-me daquela carta de Rennes. Ainda recordo
R o dia em que chegou: a maneira como o sol de verão brilhava
no Tannes; o cheiro a petróleo e a fumo no ar; a maneira solene
como a carteira entregou a carta ao meu pai. Nós não
recebíamos muitas cartas. De facto, foi a primeira de que me
recordo realmente. O papel, como lanugem comprimida: as letras
tão direitinhas e decorativas como se estivessem gravadas numa
lápide funerária. Usualmente, as cartas eram para informar
alguém de uma morte na família, e o meu pai não tinha família –
a não ser Tante Anna, claro, e o seu irmão Modeste, que morrera
no início da guerra, estupidamente, durante uma emboscada,
deixando a sua viúva a gerir a quinta e a criar sozinha os três
filhos deles. Eu ouvira aquela história muitas vezes,
principalmente a Tante Anna, que gostava de se banhar na luz
refletida daquela tragédia sem sentir nenhuma da dor. O meu pai
só uma vez falara disso, de passagem; muito sucintamente.
«Eu já sabia», disse ele. «Nós éramos gémeos.» E era tudo o
que dizia sobre Modeste, o irmão que nunca conhecera.
A carta era do gabinete do presidente da Câmara de Rennes.
Informava o meu pai sobre as dívidas deixadas por pagar por
Mirabelle Dartigen, que fugira com os seus filhos alguns anos
antes, deixando a quinta e o pomar ao abandono. Avisava o meu
pai que, a não ser que o dinheiro fosse pago até ao final do ano,
a quinta e a terra seriam confiscadas e vendidas para indemnizar
os credores. Todo o dinheiro que sobrasse da venda iria para o
Estado, a não ser que um parente com laços de sangue o
reclamasse.
Tante Anna deixou bem clara a sua reprovação. «Tu não vais a
Rennes, tão longe! Não com todo o trabalho a fazer na quinta! E
as crianças? Já são bem bravas quando estás cá. Como esperas
que eu dê conta do recado?»
Por uma vez, o meu pai não recuou. «O rapaz pode olhar pela
Mimi», disse ele (referia-se sempre a mim como «o rapaz»). «Eu
não demoro mais do que uma semana.» E foi tudo o que ele
disse. A minha tia protestou, exortou, queixou-se. O meu pai não
se deixou demover. A viúva do seu irmão precisava dele, e,
embora ele não soubesse mais nada sobre ela a não ser o seu
nome, foi em seu auxílio como se a tivesse conhecido toda a
vida.
É claro que aqueles tempos eram diferentes. O costume da
província ditava que um irmão, se não fosse casado, deveria
casar com a viúva do seu irmão. Tante Anna disse-nos isto, com
uma satisfação azeda, na ausência do nosso pai. «Ele vai trazê-
la com ele, ouçam o que vos digo», anunciou-nos a nós, que
estávamos de cabeça baixa. «Nunca teve bom senso. Porque é
que desta vez seria diferente?»
Fingi não ouvir. Mimi estava a comer o feijão verde um a um,
com os dedos. Era um hábito infantil que Tante Anna detestava.
«Come a comida em condições», disse Tante Anna,
estendendo a mão para picar os dedos de Mimi com os dentes
do garfo.
Mimi não disse nada, mas olhou para Tante Anna por baixo do
cabelo. Tinha cabelo escuro muito encaracolado, demasiado
crespo para se poder pentear; demasiado crespo para se poder
entrançar. «Cheveux de nègresse», dizia Tante Anna, que eu
compreendia ser uma crítica, embora de quê não soubesse. Mimi
tinha parado de comer. As costas da sua mão estavam a
sangrar: quatro pequenas alfinetadas escarlates, como sementes
de morango na pele dourada.
«Ela não compreende», disse eu.
«Oh, compreende, sim», disse Tante Anna. «O teu pai talvez
tolere este tipo de comportamento, mas enquanto estiverem a
viver debaixo do meu teto, têm de ter maneiras, um e o outro.»
Olhei para Mimi, a dizer-lhe sem palavras que pegasse no
garfo imediatamente, imediatamente. Mimi retribuiu-me o olhar
com a cabeça inclinada, como um melro bebé.
«Come a comida, Naomi», disse Tante Anna numa voz
perigosa. «Come a comida como uma cristã, não com as mãos,
como uma selvagem.»
Mas a minha irmã limitou-se a olhar para ela por baixo daquela
sua moita de cabelo. A seguir, sorriu – um grande sorriso
ofuscante, sem ponta de malícia, mas Tante Anna deve ter visto
algo, algo que a fez inchar com raiva...
«Tu estás a rir-te de mim?», perguntou.
Tentei explicar que Mimi estava quase sempre a rir-se – ria
como um melro canta, sem malícia nem segundos sentidos –
mas Tante Anna não me quis dar ouvidos. Agarrou Mimi pelos
cabelos. Mimi começou a estrebuchar e a gritar.
Pus-me de pé, mas Tante Anna paralisou-me com uma só
sílaba. «Não!» Lembro-me de a ver de pé acima de mim, com
aquela pequena cruz preta na renda no pescoço a brilhar à luz
da lâmpada. Parecia-me ter mais de três metros de altura – uma
estátua esculpida em basalto e gelo, com os olhos a brilharem
como a lua no Tannes, frios, escuros e ameaçadores.
«Vais acabar o jantar, Narcisse», disse Tante Anna, dirigindo-
se a mim, «e a Naomi vai ficar no quarto do vosso pai até
aprender a ter boas maneiras.»
Eu devia tê-la defendido. Tentei, mas, aos onze anos, o mundo
dos adultos é um continente de monstros. A perspetiva de
defrontar Tante Anna em toda a sua majestade glacial era
demasiado para mim, e por isso baixei a cabeça e tentei ignorar
os gritos de Mimi enquanto Tante Anna a levava para o andar de
cima em direção aos quartos.
Daí a cinco minutos, a minha tia regressou, com um ar sombrio
e corada. Trazia a chave do quarto na mão, que pendurou na
corrente que usava sempre à cintura. Voltou a sentar-se no seu
lugar à mesa e acabou com grande alarde o feijão verde e as
batatas do seu prato. A seguir, serviu-se de um copo de vinho
tinto e bebeu-o bastante rapidamente, enquanto eu me esforçava
por não chorar, a engolir a custo a comida sem sabor em
grandes garfadas.
«Vá lá», disse Tante Anna com um sorriso que era fino como
uma foice e sem nenhuma alegria. «Por fim, um pouco de paz.»
Eu não disse nada, mas funguei, e senti o sabor avinagrado na
garganta.
«Usa o lenço de assoar, Narcisse», disse Tante Anna,
servindo-se de mais um copo de vinho tinto. «Se estás a ficar
com uma constipação, sugiro que não saias de casa amanhã.»
Eu disse que não estava a ficar com uma constipação.
«Ainda bem», disse Tante Anna. «Então, vais apanhar
morangos. Estão maduros, e quero fazer compotas para guardar
para o inverno.»
«E a Mimi?», perguntei.
«Não te preocupes com a Mimi. Aquele terreno com morangos,
junto ao velho poço, debaixo do carvalho grande. É onde vais
trabalhar esta semana. E se trabalhares no duro eu deixo-te
rapar o tacho da compota quando acabar.»
Era uma rara concessão, eu sabia. Devia sentir-me
agradecido. No entanto, a ideia de Mimi sozinha, fechada à
chave no quarto do meu pai enquanto eu trabalhava lá fora era
insuportável.
«Deixe-me levar a Mimi», disse eu. «Juro que ela se porta
bem. Ela dá-me ouvidos.»
Foi a coisa errada a dizer, claro. Os lábios de Tante Anna
comprimiram-se num fino arame de reprovação. «Se ela te dá
ouvidos a ti, Narcisse, não vem para o caso», disse ela. «O teu
pai tem-na mimado mais do que qualquer criança merece. Faz
uma figura ridícula, a adorá-la como a adora. Bem, desta vez, eu
é que mando. E até a Naomi aprender a dar-me ouvidos a mim,
a porta daquele quarto fica fechada à chave.»
Eu queria perguntar o porquê daquele quarto? Porque não o
que partilhávamos os dois? Mas não conseguia encontrar as
palavras. Sei que soa como uma desculpa infantil mas tinha
medo de discutir com a minha tia. O quarto do meu pai era
intimidante. A cama, com a colcha cinzenta, tão esticada que
parecia uma pedra; o guarda-fatos, com a porta gigante e o
espelho que distorcia ligeiramente os reflexos. E tinha também
um cheiro – a cera do chão, bolas de naftalina e roupas que
ninguém usava. Eu costumava pensar que havia fantasmas no
quarto do meu pai. O fantasma da minha mãe, no retrato de
estúdio fotográfico na prateleira da lareira; nas roupas dela,
ainda penduradas, com bolas de naftalina nos bolsos.
*
Eu tinha começado a ler a partir do lugar onde estava o
marcador. Devia ser onde Reynaud interrompera a leitura. Julgara
que poderiam ser assuntos legais, instruções sobre o que fazer
com a quinta. Não contava com uma história. Mas era o que aquilo
era. Mal cheguei a casa, fui para o meu quarto, abri o dossiê e
pus-me a ler.
A maman estava preocupada por eu ter chegado tarde.
Perguntou-me onde tinha estado, o que se passava, mas não lhe
disse nada. Queria saber mais sobre Narcisse e a menina
pequena, Mimi. Já é a minha personagem preferida. Tenho andado
a procurar na história mais informações sobre ela. Salto as partes
sobre Reynaud. Já o conheço, e, além disso, ele não faz parte
disto. Esta história pertence a Narcisse – e a Mimi. Quero saber o
que lhe acontece. E já detesto Tante Anna. É má. Espero que
morra no fim.
Adormeci com a história aberta em cima da almofada e quando
acordei era de manhã e algumas das folhas estavam no chão.
Levantei-me a toda a pressa e arrumei-as e escondi o dossiê verde
debaixo da cama. Fica em segurança ali. Ninguém vai vê-lo. A
maman nunca espreita para debaixo da cama.
– Estás a sentir-te melhor hoje? – perguntou a maman quando
eu desci para tomar o pequeno-almoço. Estava a tentar soar
despreocupada, mas eu sei quando está a fingir. As cores dela
estavam todas misturadas e tristes – como quando sente
saudades de Anouk. Como eu não queria que ela estivesse triste,
sorri e peguei em dois pains au chocolat.
– Chegaste tarde a casa ontem à noite – disse ela.
Estive na casa do Yannick, disse eu. E é verdade, fui mesmo à
casa de Yannick, embora ele não me tenha visto.
– A mãe dele disse alguma coisa? Sobre o Narcisse ou o
testamento, talvez?
Abanei a cabeça. Ela pareceu ficar aliviada.
– Bem, se ela disser alguma coisa, conta-me.
Assenti com a cabeça. OK. Decidi não lhe contar o que ela tinha
dito quando levei os chocolates. Nem que roubara o dossiê de
Narcisse. De algum modo, pensava que a maman não quereria
que eu lesse a história de Narcisse. Mas eu quero saber o que
acontece a seguir. Quero saber mais sobre Mimi. E se houver
alguma coisa no dossiê que eu possa usar para fazer com que
Roux fique, então com certeza roubá-lo não foi incorreto. Não tão
incorreto como chamar o vento...
– Sabes que podes convidar o Yannick cá para casa. Ele pode
provar o meu bolo de chocolate.
Pensei naquilo por um momento. A mãe de Yannick detesta-nos.
Por outro lado, Yannick adora chocolate. Seria fácil convencê-lo a
vir cá. Espero que Mme. Montour não o culpe pelo
desaparecimento do dossiê de Narcisse. Vou ter de o compensar
se isso acontecer. Com chocolate.
Sorri à maman e tentei não dar a impressão de que estava a
esconder alguma coisa. Esconder não é o mesmo que mentir, mas
por vezes pode dar essa sensação. De qualquer modo, penso que
é melhor se não lhe disser ainda nada. Sobre Narcisse, sobre
Roux ou sobre o facto de eu ter usado a minha voz-sombra
daquela maneira. Já tenho idade para fazer os meus próprios
planos e a maman já anda ansiosa que baste. Como Armande
costumava dizer:
O que ela não sabe não a pode magoar.
Tinta
1

Terça-feira, 21 de março
assim, mon père, não consegui recuperar a confissão de
E Narcisse. A culpa é minha, claro, mas quem poderia adivinhar
que aquela mulher fosse capaz de mentir tão descaradamente?
Pensamentos loucos de lhe entrar em casa às escondidas,
firmemente afastados. Père, foi nisto realmente que me tornei? E,
no entanto, se Narcisse incluiu alguma menção àquele incidente
de há tantos anos...
Incidente? A sério? Foi o que aquilo foi?
E agora a voz dele está-me na cabeça, como se já não bastasse
ter tudo isto na consciência. Sim, mon père, a voz de Narcisse, tão
seca como uma mancheia de folhas de outono, e perto, tão perto
como uma boca a segredar encostada à concha do meu ouvido.
Maravilhoso. Como se já não houvesse um número suficiente de
fantasmas na minha vida. Voltei para casa ontem à noite sem
esperança e esgotado, e o meu sono – o pouco que consegui
dormir – foi cheio de imaginações sombrias. Se ao menos eu
conseguisse dormir, mon père. Dormir e nunca mais acordar.
Esta manhã, tentei acalmar os nervos dedicando-me à
jardinagem. Agrada-me o ritual: arrancar as ervas daninhas,
plantar, os pequenos bolbos da primavera – crocos, tulipas,
narcisos – a erguerem a cabeça acima do solo numa ressurreição
jubilosa. Se ao menos nós fizéssemos o mesmo, mon père. Mas
só envelhecemos, mais nada.
O sol estava quente. Eu estava a transpirar. Não com a minha
soutane hoje, mas com calças de ganga e uma T-shirt de mangas
compridas. O bispo não aprova o uso da soutane num contexto
não-clerical. E o facto é que é menos prática quando uma pessoa
tem de se ajoelhar.
O meu pai, o assassino. É mais difícil agora levantar-me daquela
postura de joelhos. Dá mais a sensação de ser uma penitência,
que considero uma boa coisa, mas o processo de arrancar as
ervas daninhas e de plantar faz com que seja demasiado
agradável. Sempre tive dificuldade em conciliar o prazer com a fé.
Talvez seja por isso que Vianne Rocher sempre despertou
sentimentos fortes em mim. Ocorre-me a ideia de que talvez ela
possa ajudar-me com o meu problema – mas não. Não posso pedir
a ajuda dela. Esta confusão é da minha autoria.
Então, reze, disse a vozinha seca ao meu ouvido. Não é nisso
que é bom?
Será? Não me parece. Há algum tempo que não rezo, Narcisse.
A triste verdade é que não creio que Deus esteja realmente a
escutar. Outros, talvez, mas não me escuta a mim. No entanto,
pela primeira vez desde há meses, sinto a necessidade da Sua
presença.
Não tinha um crucifixo por perto, um altar perante o qual pudesse
ajoelhar-me. Só um balde com ervas daninhas e uma pá. E, no
entanto, dei comigo a rezar – Por favor – só aquelas duas
palavras, como uma criança assustada. Se me perguntassem que
mais queria dizer, talvez achasse impossível responder, mas
suponho que tinha a esperança infantil de que, de algum modo,
Deus compreendesse.
Apoiei-me na pá para me levantar, afastei o cabelo húmido dos
olhos. Chega de jardinagem por hoje. Olhei por cima do muro do
jardim e vi, para minha surpresa, um rosto redondo a fitar-me por
entre a sebe de fúcsia. Era Yannick Montour, que já conhecera de
passagem alguns dias antes.
A voz no meu ouvido disse: Está a ver. Resulta. Deus atendeu as
suas preces, meu filho.
– Não preciso do seu sarcasmo, obrigado.
Yannick Montour pareceu ficar perplexo. – O quê?
– Desculpa. Estava a pensar em voz alta. – Pus as mãos ao
fundo das costas, a sentir os músculos estalarem. – É bom ver-te
de novo, Yannick. A Rosette Rocher está contigo?
Timidamente, Yannick abanou a cabeça. Parecia embaraçado e
um pouco intimidado, e perguntei-me se a sua mãe o teria
mandado vir vigiar-me. Seria mesmo típico dela, pensei. Deleitar-
se com a sua vitória.
E então, mon père, tive uma ideia. Suponho que foi a voz de
Narcisse que a pôs lá, mas, de qualquer modo, apresentou-se-me,
radiante na sua clareza. Também sabe jogar esse joguinho, disse a
voz dele. E depois do incidente da compota de morango, eu sabia
exatamente que armas usar. Disse:
– Gostas de bolo, Yannick?
O rapaz arregalou os olhos.
– Bolo de chocolate? Bolo de moka? Bavaroise, com chantilly?
O rapaz pareceu lançar um olhar para o lado, como que para
assegurar-se de que era realmente a ele que eu estava a dirigir-
me. A seguir, assentiu com a cabeça, esperançado.
– A sério? Que coincidência. Por acaso eu ia agora à
chocolaterie na praça. Que me dizes a uma fatia de bolo? Uma
fatia de bolo e uma conversinha.
Seguiu-me sem uma palavra.
2

Quarta-feira, 22 de março
chover em Paris. Adoro-te. A. xxxx Os «xis» extra, a
A representarem beijos, transmitem uma espécie de
compensação ansiosa. Quando Anouk era pequena, dizia adoro-te
quando estava a preparar-se para fazer alguma asneira.
Começo a escrever: Também te adoro, mas depois penso
melhor. Em vez disso, envio-lhe uma fotografia, tirada com o meu
telemóvel, da igreja e da parede caiada do outro lado da praça; a
amendoeira em flor junto à porta, contra o pano de fundo do céu.
Contenho-me para não dourar a cena; não a colorir com os tons do
lar; não escrever volta para onde pertences em letras minúsculas e
secretas. Mas esse é um jogo perigoso, eu sei. Já não o jogamos.
Há demasiado em causa, e o vento é um parceiro de conspiração,
a prometer ouro e a não dar nada a não ser mancheias de folhas
de outono.
Mas resulta, diz a voz da minha mãe. Realmente resulta. Eu
chamei-te. Tal como tu chamaste a Rosette...
– Não. A Rosette era diferente.
É claro que era. Uma criança especial. Um gato atravessou-se
no teu caminho, na neve, e miou. O Hurakan estava a soprar. E tu
estavas só e com medo, e a perda estava a toda a tua volta...
– Para com isso. A Rosette não foi roubada. – A voz dela na
minha cabeça já não era assim tão clara desde antes de Rosette
nascer. Rosette, o meu anjo de inverno, concebida na perda e
nascida da perda e mantida em medo e clandestinidade.
Todas as criança são roubadas, diz a minha mãe. Mantemo-las
perto de nós tanto tempo quanto podemos. Mas um dia o mundo
volta a roubá-las. Foi o que disseste no dia em que ela nasceu. Foi
por isso que lançaste o círculo na areia.
– Isso era só um jogo, maman. – Um jogo para manter as
sombras afastadas. E ela é feliz, não é? Feliz como uma avezinha,
a cantar na sua gaiola dourada...
O Hurakan estava a soprar.
– Não.
Entro na cozinha. O cheiro a chocolate é forte, suficientemente
forte para silenciar a voz dela. O cheiro de outros lugares apressa-
se a preencher o vazio: o ozono do Pacífico; o cheiro forte e
salgado da Côte d’Emeraude. Ponho uma mancheia de grãos
Criollo no moinho. O seu cheiro está longe de ser doce. Sinto o
cheiro a oud e a sândalo e os aromas escuros de cominhos e
âmbar cinza. Sedutores, mas vagamente desagradáveis, como
uma mulher linda com o cabelo por lavar.
Um momento no moinho e os grãos estão prontos a serem
usados. A sua essência volátil enche o ar, libertada de uma forma
para outra. Os Maias tatuavam os seus corpos, sabes, para
aplacar o vento. Não, não o vento. Os deuses. Os deuses.
Acrescento água quente aos grãos e deixo que se filtrem. Ao
contrário dos grãos de café, libertam uma espécie de resíduo
oleoso. A seguir, adiciono noz moscada, cardamomo e malagueta
para preparar a bebida a que os Aztecas chamavam xocoatl –
água amarga. Esse sabor amargo é do que preciso. Penso em
Anouk, por fim a caminho de casa, e sinto o picante da malagueta
a riscar um caminho à toa na minha garganta. O vapor que se
ergue da chávena forma padrões complexos no ar; padrões que
me recordam a tapeçaria pendurada na parede do estúdio de
tatuagem; folhas e palmas e desenhos abstratos esboçados a
sépia no ar.
O sabor do chocolate é subitamente demasiado forte, demasiado
amargo para o meu palato. Deito fora o que resta na chávena e
vejo Roux mais uma vez ali de pé, com uma expressão pétrea e
paciente no rosto, como a de uma estátua antiga.
– Devias ter dito alguma coisa.
Ele encolhe os ombros, como se a transmitir a ideia de que as
palavras nunca foram a sua moeda de troca.
– Deixa que te faça um chocolate quente.
– Não, obrigado.
– OK. – Sento-me à mesa, na esperança de que ele venha
sentar-se comigo. Mas Roux não o faz; as suas marcas não são as
marcas familiares do lar, e fica ali de pé junto à porta, ainda com
aquela expressão teimosa no rosto.
Por fim, diz: – Fui ver aquele sítio.
Sei de imediato de que sítio fala. O estúdio de tatuagem. Les
Illuminés. Finjo um interesse que não sinto, ao mesmo tempo que
ignoro a sensação crescente de inquietude que alastra como uma
nódoa no ar.
– O que achaste?
Ele desabotoa a camisa. Uma sensação estonteante de déjà vu
quando vejo a nova escuridão sobre o seu coração, rodeada por
uma pele irritada que, sei, se desvanecerá com o tempo. É um
desenho familiar: uma serpente, com a cauda na boca, o
ourobouros que existe desde o tempo dos egípcios. Esta versão é
enganadoramente simples; um círculo perfeito, dinâmico, que
parece uma caligrafia. Mas vejo como o desenho foi
cuidadosamente colocado na pele; a linha que parece aplicada
com um pincel e formada por muitas pinceladas pequenas. A
cabeça da serpente é abstrata, e no entanto tem personalidade;
uma espécie de ferocidade brincalhona, como a de um cachorro a
morder a própria cauda. O sombreado é ligeiramente irregular,
como se executado à pressa com um pincel sobrecarregado de
pigmento seco, e parece-se um pouco com o pelo de um animal,
um pouco como penas pretas. Mas eu já conheço o estilo,
distintivo como o som da voz dela, e vejo a expressão no rosto
dela enquanto trabalhava no desenho.
– Não gostas?
– Estou um pouco surpreendida. Não faz nada o teu género agir
por impulso.
É verdade. Roux pondera bem as coisas. Pode nem sempre
discutir os seus planos, mas sei que qualquer decisão que tome
lhe andou às voltas na mente como madeira num torno; moldada e
alisada e acabada.
– Não foi um impulso. Falei com a Morgane. Nem sequer sobre o
trabalho dela, ao princípio. Falámos sobre todos os sítios onde ela
já esteve, todas as pessoas que conheceu. Foi agradável.
Foi agradável. Tento reprimir uma sensação de ressentimento.
Ele soa como um homem prestes a confessar alguma espécie de
traição. Alguma ligação ilícita, ou pior – alguma intimidade mais
profunda, mais estreita. Dou uma sacudidela mental a mim própria.
Não sou proprietária de Roux. Mais importante ainda, não quero
ser proprietária de Roux.
– Conheci-a. É encantadora – disse eu. (Era verdade.)
Ele acenou com a cabeça – Faz-me lembrar de ti. Tem a mesma
maneira delicada de olhar para o âmago das coisas. De fazer uma
pessoa ver o que já sabe, mas tem andado a esconder de si
própria.
– E o que é que ela te fez ver? – perguntei.
Encolheu os ombros. Tinha os olhos cheios de luzes inquietas.
Lá fora, o vento emitiu um som brincalhão, como um animal
semidomado que facilmente poderia voltar-se contra o seu
tratador. Eu sentia o coração a acelerar, em pequenos batimentos
superficiais e furiosos. A fúria era irracional, mas eu sentia-a, como
o vento, a preparar-se para virar de novo. Segredei uma fórmula
calmante: Tsk-tsk, vai-te!
Porém, já sabia pelo rosto dele que o vento se recusa a ser
aplacado. Aquela expressão, tão calma e implacável. A serpente a
comer-se a si própria, primeiro a cauda. Vivemos para repetir os
mesmos erros, para afastar de nós quem amamos, para partir
quando queremos ficar, para aguardar em silêncio quando
deveríamos falar. Na vida que escolhemos levar, a perda é a única
constante. A perda, que devora tudo – que, como a cobra, se
devora até a si mesma.
– Vais-te embora, não vais?
– Vianne, chegou a hora.
A voz sai-me monocórdica e cheia de ódio. – Tem a ver com o
testamento do Narcisse e tu seres o curador da Rosette?
Talvez fosse isso, disse a mim mesma. Roux nunca se sentiu à
vontade com a ideia de ser proprietário de terras. No mundo de
Roux, a propriedade é perigosa; as relações ainda mais. No
mundo de Roux, a vida não tem fricções, desliza como um rio,
apanhando detritos e depositando-os silenciosamente,
delicadamente, mais abaixo.
Ele disse: – Eu falo com o advogado. Vou garantir que a Rosette
fica bem.
– Não era isso o que queria dizer – disse eu, e agora a minha
voz era uma lâmina, com o gume a brilhar perigosamente à luz. –
A Rosette não precisa de ti por causa da terra. Precisa de ti porque
és o pai dela.
Era a coisa errada a dizer, eu sabia-o. – Só quando te convém,
Vianne. O resto do tempo, não faço ideia se me queres por perto.
És como o raio de um cata-vento. Escrava de todas as rajadas de
vento. Nunca sei realmente o que queres. Diz-me, Vianne. O que
queres?
Quero pedir-lhe que fique – e, no entanto, a voz da minha mãe
recorda-me que isto era inevitável, que tudo se paga. Disse: –
Quero que sejas livre.
Encolheu os ombros. – Sempre fui – disse.
Penso nas aves no céu e no aroma de chocolate queimado.
Quero dizer-lhe que não se vá embora, mas não há nada mais que
possa dizer.
– Acabou, não acabou?
Ele assentiu com a cabeça. – Vianne, acho que sim.
E depois foi-se embora, como uma braçada de aves, para a luz
do sol.
3

Quarta-feira, 22 de março
epois de Roux se ir embora, sentei-me à mesa da cozinha e
D chorei. Eu nunca choro. Nunca choro. No entanto, as lágrimas
não paravam de vir, lágrimas que caíam na madeira velha e pálida,
deixando manchas escuras como gotas grossas de chuva.
A verdade é que eu tinha começado a pensar que Roux era a
minha mesa da cozinha. Permanente; fiável; com todas as marcas
e as cicatrizes do uso, de tal modo que ao longo dos anos acabei
por acreditar que ele era meu. Bem, estava enganada. Nada é
meu. Tudo o que tenho é por empréstimo. A loja. Os utensílios. As
receitas. Tudo menos Rosette.
Sei de quem é a culpa. É de Morgane Dubois. Um nome
inventado, com certeza. Sei-o por experiência própria: ao longo
dos anos, os meus nomes têm mudado como as estações. E
desenvolvi um instinto para ver para lá do quotidiano, para a
camada oculta por baixo. Mas não vejo nada em Morgane. Nada a
não ser aquelas aves negras, aquelas folhas de morangueiro
entrelaçadas.
Ela chegou até nós num vento mau. Vi-a nas cartas de Tarot e no
vapor do chocolate. E, enquanto eu observava das sombras,
Morgane começou a operar as mudanças. Narcisse foi o primeiro.
Roux, o segundo. A flautista de Hamelin toca a sua melodia e as
cabeças erguem-se; os olhos brilham; o ar enche-se de espirais
rodopiantes de confettis. A flautista toca a sua melodia e todos
sentem o apelo do vento; a viragem das estações; a dança dos
dias. É uma melodia simples de início; enganadoramente simples;
enganadoramente doce. Mas cresce como o rio, tem o batimento
do sangue, até se tornar uma maré viva, com Morgane Dubois na
crista da onda, sem querer saber de dor e de perda; implacável e
insaciável...
E o pior é que sei que eu própria poderia ter sido tal e qual como
ela, sem as minhas filhas a ancorarem-me. Poderia ter sido aquela
coisa inumana, a alimentar-me dos que me rodeiam. Será por isso
que receio Morgane? Porque me recorda demasiado a pessoa que
eu poderia ter sido? A pessoa em que poderia tornar-me, se
permitisse que isso acontecesse? E se eu me tornasse outra
pessoa, poderia Morgane Dubois tomar o meu lugar?
Parece ridículo, dito dessa forma. E, no entanto, ela e eu somos
muito parecidas, imagens em espelho uma da outra. Ambas temos
dons semelhantes. Ambas operamos as mudanças. Ambas temos
o talento de fazer manifestar nas outras pessoas o que elas
necessitam de ver em si mesmas – coragem; força; a capacidade
de perdoar. Não é por acaso, claro, que ambas somos lojistas. As
pessoas do nosso tipo já vendiam as suas mercadorias antes de
os romanos invadirem a França; antes de Montségur e La Roche
Aux Fées. Vendíamo-las de carroças, e a pé. Trocávamo-las pelo
que podíamos. Não chocolate, nessa época, mas... nunca se
tratou de chocolate.
E agora? Eu costumava dizer a mim mesma que o chocolate era
mais delicado. Um tipo inofensivo de magia, um animal
domesticado. Mas os animais nunca são completamente mansos.
Um gato à noite é diferente de um gato durante o dia. Um gato que
se atravesse no nosso caminho à noite está repleto de um
significado sombrio.
Quando lancei o círculo na areia, Rosette ainda mal tinha três
dias de vida. Uma criança sossegada, a minha Rosette, pelo
menos até o vento mudar. Mas o vento andava a soprar atrás de
nós há meses, e havia neve no ar, e eu estava exausta, e Anouk
andava sempre a perguntar por que partíramos de Lansquenet. E
o gato pareceu-me um sinal, e, em vez de cantar a rima da minha
mãe – a que mantém os gatos mansos e começa por Où va-t-i,
Mistigri? eu deixei que o gato se atravessasse no meu caminho na
neve e usasse a sua voz para os meus fins...
Chamaram à condição dela cri-du-chat. Um problema genético,
disseram, que significava que a minha filha seria sempre diferente
das outras crianças. Aquele seu grito gemido, como um gato; a
forma delicada e pequena da sua cabeça; as dificuldades
comportamentais e de aprendizagem que poderiam desenvolver-
se mais tarde – tudo isso seria de esperar, disseram, de uma
criança com cri-du-chat. Algumas pessoas elogiaram a minha
coragem, mal sabendo como me sentia aliviada. A minha filha
nunca me seria tirada. O Hurakan passara ao largo.
Porém, tudo tem um preço. O mundo está num equilíbrio
delicado. Uma filha fica e a outra vai-se embora. Uma mulher
chega; um homem despede-se. E agora este confronto discreto
mas significativo: a chocolaterie e o estúdio de tatuagem.
Experimenta-me. Põe-me à prova. Saboreia-me.
Cada uma tem o seu dialeto diferente, mas ambas falamos a
mesma língua, como os sinos da igreja na praça e o muezzin na
mesquita, cada um deles a chamar os fiéis à oração: Encontra-me,
encara-me, sente-me.
Este chocolate ficou estragado, claro. O cheiro forte do cacau
queimado é como o cheiro de uma casa destruída pelo fogo e
invadida por gatos bravos. A arte de Morgane alguma vez se terá
voltado contra ela? Ela terá alguma vez errado o alvo? O estúdio
de tatuagem parece enganadoramente calmo agora, com o sinal
luminoso a brilhar, róseo. Porém, por trás da montra, quem sabe?
Talvez esteja a observar-me, à espera da minha jogada seguinte.
Sabe que fez uma inimiga. Antes de Roux, eu estava disposta a
dar-lhe o benefício da dúvida. Um clarão à volta da porta dela: os
desafios segredados de longe. Essas coisas poderiam ser
inocentes; apesar das minhas desconfianças, eu poderia ter
aprendido a aceitá-la. Poderíamos até ter-nos tornado amigas.
Mas agora, depois disto, não há volta atrás. Esta cidade não pode
conter-nos às duas.
Nos tempos antes de Zozie, talvez eu não tivesse visto o perigo.
Era demasiado confiante nessa altura. Quase deixei que ela me
levasse. Agora, estou de sobreaviso. Agora, tenho de defrontar a
ameaça sem mais hesitações. Já desperdicei demasiado tempo.
Ela já tem vantagem sobre mim. E quanto tempo demorará até que
Rosette ouça o apelo da porta púrpura? Quanto tempo passará até
também ela seguir a Flautista de Hamelin?
Antes de tudo, tenho de fazer com que a comunidade adote a
minha maneira de pensar. Isso implica encontrar um ponto de
entrada no mundo de ludíbrio dela. Não posso fazê-lo escondendo-
me na chocolaterie. Tenho de usar as minhas capacidades, as
capacidades que a minha mãe me ensinou e que tento ignorar há
tanto tempo. Tenho de combater Morgane Dubois usando as suas
próprias armas. E talvez algumas que são exclusivamente minhas
– aprendidas numa vida na estrada. Morgane pode ser a Flautista,
mas eu tenho uma melodia própria; uma melodia que é cantada há
milhares de anos, atravessando oceanos e continentes.
Vou até ao fogão; pego na panela onde está o chocolate
estragado. Está chamuscada, mas não gravemente; deixá-la de
molho resolverá o problema. Depois disso...
Cuidado, Morgane. Julgaste que eu não era perigosa? Que o
chocolate era demasiado doce, demasiado macio para rivalizar
com a tua tinta e as tuas agulhas? O chocolate é uma arte antiga.
Vem de muito longe. E sob a macieza, a doçura – aguarda. E é
amargo.
4

Quinta-feira, 23 de março
enho um novo aliado, mon père. Tinha razão; Michèle Montour
T roubou de facto o dossiê verde da minha casa, e estava a
mentir com todos os dentes na noite em que a fui confrontar.
Mas a história não acaba aqui. Parece que Michèle deixou o filho
encarregado de guardar a confissão de Narcisse naquela noite,
mas que, de algum modo, ela desapareceu do quarto dele, onde
ele a deixara. Michèle suspeita de mim – como se, por milagre, eu
fosse capaz de estar a falar com ela à porta e, de alguma maneira,
trepar até à janela do quarto do filho dela para roubar o dossiê ao
mesmo tempo – e mandou Yannick descobrir onde se encontra
atualmente.
Contudo, Yannick tem um ponto fraco, que muito me apraz
explorar. Caiu-me nas mãos por uma dentada de chocolate – para
ser mais exato, bastante mais do que uma dentada, mas valeu
cada centime que gastei com ele. No fim da nossa conversa, ele já
tinha comido quatro mendiants, duas fatias de Bavaroise e uma
embalagem de ovos de chocolate pequenos cobertos de açúcar
cristalizado, pintados de modo a parecerem ovos de pardal, e
prometeu dizer alguma coisa – a mim, não à mãe – se descobrir o
paradeiro do dossiê verde.
Ele sabe alguma coisa. Disso tenho a certeza. Mas também
acredito que me está a contar toda a verdade que pode. Os meus
anos de sacerdócio ensinaram-me a distinguir entre uma mentira
declarada e uma verdade parcial. Yannick não confia o suficiente
em mim para me revelar o que suspeita – ainda não. Porém, a sua
amizade com Rosette significa que está desejoso de ajudar, e –
que Deus me perdoe – eu sou suficientemente matreiro para tentar
explorar esse ponto fraco.
– A tua mãe pensa que pode usar o dossiê do Narcisse para
contestar o testamento. Se ela conseguir provar que ele não
estava de posse das suas faculdades mentais, talvez consiga
tentar fazer com que a decisão dele de deixar o bosque à Rosette
Rocher seja anulada.
Yannick lançou-me um olhar furtivo por cima da fatia de
Bavaroise. – Isto é mesmo bom – disse. – A maman não me deixa
comer bolo.
– Bem, uma fatia não pode fazer mal – disse eu.
– Mas eu ando sempre com fome. A maman diz que nasci assim.
Farto-me de comer, mas nunca me sinto cheio. Quem me dera
conseguir jejuar como o senhor.
Eu sorri. – O jejum é sobrevalorizado. A Vianne podia contar-te
uma ou duas histórias sobre isso.
Contudo, Vianne Rocher não parecia muito interessada em
conversar hoje. Para ser franco, parecia preocupada; e Rosette
tinha saído, presumivelmente para explorar os seus novos
domínios. Yannick pareceu sentir-se dececionado com a ausência
da sua nova amiga, mas ficou para o bolo e os chocolates,
comendo-os com pequenas dentadas cuidadosas, o rosto meio
escondido por baixo da franja.
Nunca me olha nos olhos. De facto, mal ergue o olhar do prato,
embora a minha primeira impressão de que ele era de
compreensão lenta tenha sido substituída pela sensação de que é
simplesmente um rapaz desajeitado e pouco habituado a falar com
adultos. Pela minha parte, tenho pouca aptidão para estabelecer
laços com crianças, mas hoje recebi uma ajuda inesperada na
pessoa de Maya Mahjoubi, que chegou com um pequeno grupo de
amiguinhos do outro lado do rio, de Les Marauds.
Vi-os do outro lado da praça, a olharem para a montra do estúdio
de tatuagem. Depois, atravessaram para a chocolaterie, com
Maya, a mais nova, à cabeça. Havia dois rapazes de doze ou treze
anos; uma rapariga com mais ou menos a mesma idade, de hijab,
e Maya, sem hijab, com um vestido verde e cor de laranja muito
berrante e vistoso.
– M. le Curé ! – gritou, vendo-me ali sentado com Yannick junto à
porta. – Julguei que os padres não comiam chocolate!
Sorri, e expliquei que, por vezes, comem, embora eu próprio
prefira não ceder à tentação, especialmente durante a Quaresma.
Ela riu-se e depois olhou com curiosidade para Yannick, que
parecia muito pouco à vontade, como se receasse que a sua mãe
entrasse a qualquer momento.
– Eu sou a Maya – disse ela.
Yannick pareceu ficar alarmado.
– A Maya é uma amiga da Rosette – expliquei.
– Eu também – disse Yannick.
Maya disse: – Tu és o Yannick Montour. Ouvi falar de ti à minha
Omi.
A sensação de alarme de Yannick não pareceu diminuir, antes se
intensificou. Em voz baixa, perguntou: – Quem é essa?
– A Omi sabe tudo – disse Maya, a rir-se. – Basicamente, é o
Yoda. – Mais uma vez, dei comigo cheio de admiração pela
confiança natural de Maya. Yannick, um rapaz bastante
desajeitado, com os seus olhos pequenos e a sua expressão
furtiva, parece menos adulto do que ela, embora ela deva ser cinco
anos mais nova do que ele.
– A minha Omi diz que os teus pais querem tirar o bosque à
Rosette. Querem vender a madeira. É verdade?
Yannick encolheu os ombros, a dar a entender: Quem sabe o
que a minha mãe é capaz de fazer?
– Mas tu não vais deixar, pois não? – disse ela. – A minha Omi
disse que eles são simplesmente gananciosos. O Narcisse deixou
o bosque à Rosette, e eles não têm o direito de lho tirar.
Yannick lançou-me um olhar de lado, a que eu respondi com um
sorriso de lábios fechados. Disse: – O testamento foi redigido
legalmente e eu tenho a meu cargo a sua execução. Descansa,
Maya. Não há absolutamente hipótese nenhuma de alguém tirar o
bosque à Rosette.
Pensei mais uma vez no dossiê verde. Até agora, só tenho
pensado nele em termos da minha própria proteção. Contudo, se
Michèle Montour realmente pensou em usá-lo para contestar o
testamento, então Rosette e Vianne também sofreriam...
Tanto mais se justifica encontrá-lo, então. Põe o teu novo
discípulo em campo...
Mas será que a predileção de Yannick por doçarias seria o
suficiente para ele suportar a força da personalidade da sua mãe?
E, para começar, seria correto eu explorar o seu ponto fraco?
Maya acenou vigorosamente com a cabeça, o que indicava que
– para ela, pelo menos – o assunto estava concluído. – Devias vir
à loja – disse ela. – Faço umas chamuças incríveis. Até M. le Curé
diz que são as melhores que já comeu. E a minha mãe faz
biscoitos de coco e uns bhajis realmente excelentes. Devias vir
prová-los.
Yannick dirigiu-lhe um sorriso tímido. – Obrigado. Talvez vá.
Um dos rapazes, Nicolas, falou, com os olhos a brilharem de
excitação. – Ouvi dizer que a loja nova é um estúdio de tatuagem.
– Bem, não comecem a ficar com ideias – disse eu. – São todos
demasiado novos para fazerem tatuagens.
O pequeno grupo foi percorrido por uma pequena onda, de
excitação e revolta.
– A senhora diz que as tatuagens são haram – disse Maya. –
Mas que podemos entrar e conversar com ela, se ela não estiver
com um cliente.
– Falaste com ela?
– Ela veio à nossa loja. Gosto dela. Chama-se Morgane.
Não tinha a certeza se aprovava que as crianças parassem por
aquele sítio. Nem os pais achariam bem, se soubessem. Há algo
no estúdio de tatuagem, algo fechado e secreto. Apesar dos
espelhos, das cores, das luzes, há uma sensação de algo escuro.
Ou talvez só os culpados o sintam. Talvez a escuridão seja minha.
Apercebi-me de que Vianne Rocher estava de pé por trás do
balcão. Andara atarefada na parte de trás da chocolaterie até as
crianças entrarem na loja, mas agora eu via que estava a escutar
atentamente. Teria sido o nome Morgane Dubois a atrair-lhe a
atenção? Ou seria outra coisa que me fazia sentir que ela estava
inquieta?
– O que vai ser, então, Maya? – disse ela, e a sua voz estava tão
amigável como sempre, mas eu conheço-a há muitos anos e sei
quando algo não está bem. – Tenho castelos de cardamomo,
mendiants, trufas de coco e estaladiços de amêndoas verdes. Ou
preferias um cornet-surprise, com todo o tipo de formas de
chocolate diferentes – ovos, galinhas, coelhos, patos e pequenos
presentes para toda a gente?
As crianças decidiram partilhar um cornet. Vianne deu-lhes o
pacote, e elas voltaram para a praça, a tagarelar excitadamente.
Yannick disse: – Tenho de ir embora. Obrigado pelo chocolate,
M. le Curé.
Sorri. – E então, o nosso acordo mantém-se? Dizes-me, mal...
mal saibas alguma coisa?
Ele assentiu com a cabeça.
– Muito bem, Yannick. Obrigado. Espero ver-te de novo muito em
breve.
– Sim – disse Vianne. – Tens de voltar. A Rosette vai ter pena de
não te ter visto.
5

Quinta-feira, 23 de março
e alguma maneira, parece muito improvável que Reynaud
D estivesse a comprar chocolates a um rapazito. Especialmente
quando o rapazito é o filho de Michèle Montour, de quem vejo bem
que ele não gosta: Reynaud não sabe esconder os seus
sentimentos tão bem quanto julga, e as suas cores traem-no
sempre.
Estive na cozinha durante a maior parte da conversa deles, mas
ouvi o suficiente para ter uma noção da urgência dele. Yannick –
ou a sua mãe – tem algum tipo de informação que Reynaud
gostaria de possuir. Algo sobre o testamento de Narcisse: algo a
que ele dá muita importância. Talvez Narcisse tenha revelado
alguma coisa na sua confissão final; a confissão que Michèle
Montour crê que poderia caucionar a sua alegação de que
Narcisse não estava no seu perfeito juízo para decidir o que
aconteceria aos seus bens. Ou talvez ela continue convencida de
que há ainda algo a encontrar algures na mata de carvalhos...
Nem uma palavra de Roux. Admito que, depois de ontem, tinha a
esperança de que ele telefonasse. Mas não há sinal nem dele nem
do seu barco no rio esta manhã. Terá já partido? Ou terá descido o
rio para lá de Les Marauds, fora de vista da ponte?
Olhei para o outro lado da Place Saint-Jerôme e vi que, mais
uma vez, os estores púrpura da montra estavam corridos. Mais um
cliente, pensei. Como é que ela os atrai? Não há dúvida de que,
tanto quanto tenho visto, Morgane raramente se aventura a sair. E,
no entanto, a pequena Maya sabe o seu nome, o que significa que
já é conhecida em Les Marauds. Como é que ela consegue?
Esperará até cair a noite? E como arranja os clientes?
As tatuagens são haram. Isso é bom. Les Marauds, com a sua
comunidade predominantemente muçulmana, desconfiará dela.
Reynaud também vai tomar o meu partido. Suficientemente
conservador para deplorar as tendências atuais, com um pouco de
encorajamento poderia tornar-se meu aliado nisto. Uma palavra à
sua congregação, e Morgane poderia passar a ser persona non
grata.
Yannick Montour já se foi embora. Reynaud está também a
preparar-se para sair. Vi-o tirar duas notas de dez euros da
carteira.
– Isto é suficiente?
– É mais do que suficiente. Espere, vou fazer-lhe o troco.
Demorei-me na caixa, a deixar que o aroma da minha nova
fornada de chocolates se espalhasse da cozinha. Grãos Criollo
acabados de moer; uma pitada de pimenta negra; outra de sal;
depois, tamarindo, baunilha e uma dose generosa de Armagnac.
– É simpático da sua parte fazer-se amigo do Yannick – disse eu.
– A Rosette parece gostar dele. É uma pena a mãe que tem, claro,
mas não podemos responsabilizá-lo.
Reynaud fez um sorriso culposo, o que o fez parecer
surpreendentemente jovem. – Não gosto de falar mal de
ninguém...
– Oh, mas fale, Reynaud. Por favor, fale.
Ele disse: – Não diz nada de bom sobre mim, claro. Mas pessoas
como a Michèle Montour fazem vir à tona o que tenho de pior.
Sabe que ela veio a minha casa e exigiu que lhe entregasse a
confissão do Narcisse? E quando eu, muito naturalmente,
recusei... – Parou de falar a meio da frase e eu perguntei-me o que
tencionara dizer.
– Posso acreditar nisso – disse eu com um sorriso. – Ela tem
andado a tentar comprar o bosque da Rosette. Ofereceu-me dez
mil euros. Depois, quando recusei, ameaçou contestar o
testamento.
– Também me disse isso a mim – admitiu Reynaud.
– Talvez o senhor devesse falar com a Ying – disse eu. – Sabe, a
advogada? E quando o fizer... Abri a porta da cozinha, deixando
que o aroma do cacau se espalhasse no ar – podia perguntar-lhe
pela nova loja.
– A nova loja? – Os olhos de Reynaud já se tinham desviado
para a porta entreaberta da cozinha. O aroma volátil do cacau,
acentuado pelo álcool e as especiarias, era tentador.
– O novo estúdio de tatuagem – disse eu. – Suponho que os
Montour o arrendaram. É uma pena que não tenham em
consideração as necessidades da comunidade em vez de
arrendarem a loja à primeira pessoa que lhes apareceu.
Ele acenou com a cabeça, os olhos ainda postos na porta da
cozinha. – A Michèle diz que foi levada a crer que estava a
arrendá-la a uma artista local.
– Isso não me surpreende nada – disse eu. – Provavelmente, ela
sabia que não lhe arrendariam a loja se lhes contasse a verdade.
Talvez tenha antecedentes com o anterior senhorio. E agora anda
a encorajar as crianças a pararem por lá – prossegui. – Não
admira que as pessoas andem a falar.
– Andam? – Reynaud parecia vagamente alarmado. O aroma do
xocoatl era agora quase avassalador.
– E o senhor deve estar dececionado – disse eu. – Depois de
todo o trabalho que teve a juntar as duas metades da vila, isto
deve realmente preocupá-lo. Para além do ultraje que sentem os
nossos habitantes mais antiquados, é mais do que provável que
um estúdio de tatuagem na praça provoque outra dissensão entre
nós e a comunidade muçulmana.
Sabia que estava a ser pouco subtil. Mas o aroma do chocolate
estava fortíssimo, e eu queria plantar as sementes possíveis antes
que o seu feitiço começasse a desvanecer-se.
– O que é isso que está a fazer? – perguntou ele. – Tem um
cheiro tão diferente. Tão estranho.
Sorri. – É uma receita nova. Tenho a esperança de conseguir
aperfeiçoá-la até à Páscoa.
Ele abanou a cabeça, como que a desanuviá-la de sonhos
desagradáveis. – Fico à espera de a provar então – disse.
Entreguei-lhe o troco. – Volte em breve.
– Voltarei. Obrigado, Vianne.
E depois foi-se embora, atravessando em passos decididos a
praça, onde as flores da amendoeira estavam já a começar a cair
como neve.
6

Sexta-feira, 24 de março
imi ficou no quarto todo o serão. Ouvi-a gritar que queria sair,
M numa voz como um gato vadio. Tante Anna ignorou-a, e eu
também – pelo menos até Tante Anna ter ido para a cama –
depois fui à socapa até à porta do quarto e tentei reconfortar
Mimi.
A princípio, não consegui fazer com que me ouvisse. Ela
estava a fazer demasiado barulho. Mas depois pensei em meter
um bilhete por baixo da porta – Mimi não sabia ler, claro, mas eu
sabia que ela veria o bilhete e talvez viesse investigar. E por isso
fiz um desenho de mim em pijama, sentado à porta do quarto,
com Mimi do outro lado, e Tante Anna, a dormir na sua cama, e
enfiei o desenho por baixo da porta até onde pude.
Mimi parou de chorar. Ouvi o som dos seus pés descalços a
aproximarem-se no soalho encerado. A seguir, o som do bilhete
a roçar no soalho quando ela pegou nele, e o pequeno crocitar
que ela emitia quando se ria.
«Chiu», disse eu. «Sou eu, o Narcisse. Ouves-me?»
De novo aquele som.
«Não posso abrir-te a porta. Está fechada à chave, e a Tante
Anna tem a chave. Mas eu estou aqui. Não precisas de chorar.»
O crocitar de novo, e um som de pés, com ela a aproximar-se
tanto quanto podia da porta e a sentar-se no soalho encerado.
«Tens fome? Trouxe-te uma coisa.»
Não era muito. Uma daquelas bolachas vitaminadas que
costumavam dar às crianças pobres na escola. Mas era
suficientemente fina para passar pela fresta por baixo da porta, e
eu não precisava que Mimi me dissesse que não tinha comido
nada ao jantar. Ela pegou na bolacha e ouvi-a comê-la, com uns
pequenos sons secos, como um gato a roer um osso de galinha.
«Trago-te outra amanhã», disse eu. «Por agora, quero que
durmas.»
Um som de protesto, que traduzi mentalmente como: «Não vás
embora.»
«Eu não vou embora», disse eu. «Fico aqui mesmo. Trouxe o
meu cobertor. Durmo no chão. Tu vais poder ouvir-me respirar.»
Um risinho, que poderia ser de medo, nervos ou divertimento.
«Está tudo bem, Mimi», disse-lhe de novo. «Não te vai
acontecer nada. Eu vou ficar aqui. Prometo.»
Demorei cerca de meia hora a fazer com que ela se deitasse e
ficasse sossegada, mas por fim consegui; e muito mais tarde
também eu adormeci, embrulhado no meu cobertor. Não era lá
muito confortável, mas dormi muito melhor no chão do que teria
dormido na minha cama sabendo que Mimi estava só e com
medo no quarto do meu pai. Além disso, eu era jovem. Os jovens
dormem bem. É uma capacidade que perdemos com a idade,
como o riso e a inocência. De facto, estava tão ferrado no sono
que, quando Tante Anna saiu do seu quarto às oito horas e veio
ver Mimi, eu ainda estava a dormir a sono solto junto à porta do
quarto, embrulhado no meu cobertor.
Um grito de fúria e surpresa despertou-me, assarapantado, de
um sono profundo. Por um momento, não tive a certeza de onde
estava ou até do que estava a acontecer. Depois, vi as botas de
Tante Anna, aqueles botins brilhantes tão negros como a cruz
que trazia ao pescoço, e soube que estava metido em sarilhos,
mais graves do que nunca. Levantei-me de um salto, a gaguejar
umas desculpas, mas ela interrompeu-me com um gesto.
«És alguma espécie de cão, para estares a dormir no chão?»,
perguntou.
Comecei a explicar mais uma vez, mas Tante Anna estava
imparável.
«Eu não te disse que a Naomi devia ser deixada sozinha?»,
disse ela. «Como é que ela vai aprender a fazer o que lhe
mandam se tu persistes em fazer-lhe as vontades?» Suspirou, e
eu adivinhei que o tom ameno da sua voz não era o som da
indulgência. «Julguei que eras uma criança razoável, mas és tão
mau como o teu pai», prosseguiu. «Muito bem. Se queres dormir
como um cão, podes fazê-lo lá fora, no pátio, e fazer as tuas
refeições como um cão, no chão.»
A princípio, pensei que era mais uma das hipérboles de Tante
Anna. Mas, quando desci para tomar o pequeno-almoço, não
tardou a ficar claro que não era.
«Aonde é que pensas que vais?», disse ela, quando eu ia
sentar-me no meu lugar do costume. «Os cães não comem à
mesa. Comem de um prato no chão.» E deitou o leite numa taça
azul e branca esbotenada que não reconheci, que pôs no chão
da cozinha, com um pedaço de pão ao lado, e disse: «Aí tens.
Toma o teu pequeno-almoço.»
Olhei para a taça azul e branca no chão. Por um momento,
pensei em pregar-lhe um pontapé. Mas depois lembrei-me de
Mimi, ainda fechada à chave no quarto e apercebi-me de como
Tante Anna poderia facilmente castigar-me.
«E a Mimi?», perguntei. «Não vai tomar o pequeno-almoço?»
«Eu vou ver da Naomi quando tu acabares», disse Tante Anna,
deitando café-au-lait na sua pequena chávena de porcelana.
«Para já, penso que é melhor deixá-la sozinha a refletir sobre o
seu comportamento.»
Ajoelhei-me no chão e bebi o leite. Sabia que Tante Anna
estava a observar-me. Fez de conta que não me via enquanto
torrava uma fatia de pão e a barrava com compota de morango.
Eu também teria gostado de comer compota no pão, mas não
me atrevi a pedi-la. No estado de espírito em que Tante Anna se
encontrava, seria bem capaz de se vingar em Mimi.
Passei o dia no terreno dos morangueiros, a apanhar
morangos para fazer compota. Os morangos eram pequenos, e
muito doces – perfeitos para o tipo de compota que Tante Anna
preferia – mas eram difíceis de apanhar, tão maduros que
praticamente se desfaziam entre os meus dedos. Demorei muito
tempo a encher os dois baldes com que ela me mandara para ali
e já era o fim da tarde quando voltei para a quinta. Quando
cheguei, a primeira coisa que vi foi o cobertor da minha cama no
chão junto à porta e a taça azul e branca ao lado – com restos,
ao que parecia, frios e pouco apetitosos.
Tante Anna levou os baldes com morangos para a cozinha.
«Não, tu não», disse secamente, quando fiz menção de a seguir.
«Tu vais dormir no pátio, com os outros animais.»
Por um momento, não acreditei bem que ela fosse cumprir a
sua ameaça. Porém, quando me empurrou da soleira e fechou a
porta atrás de si, soube que estava decidida a manter-se
irredutível até eu vergar. Prometi a mim mesmo que não
vergaria; contudo, ao olhar para o cobertor ali no chão ao lado da
taça, comecei finalmente a choramingar.
Lembre-se, Reynaud, de que eu era muito novo: o meu pai
deixara-me com Mimi a meu cargo; estava com fome e cansado
e o meu lar já não era o meu lar. Tinha a esperança de que Tante
Anna estivesse a pregar-me uma partida cruel; que mais cedo ou
mais tarde abrisse a porta, mas o tempo foi passando, chegou a
noite, e eu vi que ela falara a sério.
Era verão. A noite estava límpida e fria, mas não
suficientemente fria para me preocupar. Já antes dormira ao ar
livre em noites de verão, e agradara-me a experiência. Mas isto
era diferente; o pátio era grande e despido e cheio de sombras.
As galinhas estavam no galinheiro; as coelheiras empilhadas
pareciam ameaçadoras à luz das estrelas. Enrosquei-me no
cobertor, o mais perto possível da porta. Sentia o cheiro dos
restos de comida na taça azul e branca na soleira da porta. Mas
àquela luz as cores tinham desaparecido. Tudo era a preto e
branco. Fiquei ali deitado muito tempo, sem dormir, a fitar as
estrelas. Finalmente, adormeci.
*
Bem. Não gosto nada desta história. As pessoas nela são todas
tão más. Porque é que têm de ser assim tão más? Detesto Tante
Anna. Detesto não saber o que está a acontecer a Mimi. E detesto
o pai de Narcisse também, ir-se assim embora para tratar de
assuntos e deixar os filhos sozinhos. Espero que Tante Anna morra
em breve. Espero que Mimi chame o Hurakan e o vento leve, para
sempre, a tia numa rajada.
Tinha de parar de ler, de qualquer maneira, porque eram horas
do pequeno-almoço e a maman não gosta que não tome o
pequeno-almoço. Deu-me um pain au chocolat e disse-me que vira
Yannick, que ele tinha vindo à loja ontem e que prometera voltar
em breve. Fico contente por ele não estar metido em trabalhos por
eu ter roubado a história de Narcisse. E a maman gosta dele:
consigo percebê-lo. Fez-me todo o tipo de perguntas.
– Porque é que o Yannick não anda na escola? Pareceu-me um
jovem simpático, bem educado.
Encolhi os ombros. Talvez ele não goste da escola.
– Talvez seja isso. – Passou-me para as mãos um cesto com
fitas e rosas de papel. – Não te importas de embrulhar estes ovos?
Tenho de fazer umas galinhas de chocolate.
Assenti com a cabeça. Gosto de embrulhar ovos. Gosto do
celofane enrugado e das fitas compridas e encaracoladas.
Também gosto de decorar as galinhas e de lhes acrescentar uns
toques finais – bicos, olhos, cristas, penas – com um chocolate
mais claro.
– Da próxima vez que o Yannick vier cá, talvez possam ajudar a
planear a montra da Páscoa.
Bati palmas, e fiz Bam dar cambalhotas no chão. Também
devíamos convidar o Pilou, disse por sinais.
– Talvez – disse a maman, e sorriu. – Mas o Pilou agora anda
muito ocupado. Com os deveres da escola e tudo.
Sei o que isso quer dizer. Quer dizer que ela acha que ele não
virá. Mas Pilou é meu amigo: é claro que virá. Além disso, gostava
que ele conhecesse Yannick: penso que se dariam mesmo bem.
A maman disse: – Ainda temos três semanas. Vai haver muito a
planear. E a seguir são as férias. Talvez o Pilou venha nessa
altura.
É verdade. Muitas vezes, esqueço-me de coisas como essas.
Talvez seja porque não ando na escola. Bem, não oficialmente, de
qualquer maneira. A maman diz que as minhas leituras, os meus
desenhos, o facto de eu ajudar na loja e todas as coisas que Roux
me ensina são mais do que suficientes para compensar. Algumas
pessoas, como Joline Drou, não concordam. Joline dá aulas na
escola da vila. O filho dela, Jeannot, por vezes vem à chocolaterie,
embora não tanto como quando Anouk ainda vivia cá. Talvez ele
venha visitar-nos quando a Anouk vier a casa, estava eu a pensar,
quando subitamente ali estava ele, a sair da loja de Morgane. É
engraçado como isso acontece por vezes. Pensa-se em alguém e
essa pessoa aparece, quase como um Acidente...
Acenei-lhe. Olá, Jeannot! Mas ele estava demasiado longe para
me ver e por isso eu mandei o vento sacudir os ramos da
amendoeira e polvilhá-lo com pétalas. Isso fê-lo olhar na minha
direção. Sorriu e começou a encaminhar-se para a chocolaterie.
Jeannot! Vem ver os meus ovos da Páscoa!
Ele compreende os meus gestos. E não se ri de mim nem faz
caretas nem finge não me ver, como os rapazes da idade de Pilou
fazem por vezes. Estava com uma T-shirt de uma banda e um
blusão de ganga, e parecia estar satisfeito, mas também culpado,
como um cão com um osso secreto.
Conheceste a Morgane, disse eu.
Ele assentiu com a cabeça.
E então? Sentei-me a uma mesa e fiz-lhe sinal para que se
sentasse. Toma um chocolate. Acabado de fazer. E conta-me tudo.
Jeannot sentou-se, mas vi que os seus olhos se desviavam para
a maman. – Não contes à minha mãe – disse e sorriu e arregaçou
a manga do blusão.
Não posso crer! Disse eu, e fiz Bam dançar ao longo do balcão.
A maman também parecia surpreendida, mas não disse nada
naquele momento. – Andava a pensar fazer uma tatuagem há
anos – disse Jeannot. – Só não sabia o que queria. Mas depois
esta loja abriu e... – sorriu. – Subitamente, pareceu fazer todo o
sentido.
Olhei mais de perto para a tatuagem no lado de dentro do pulso
dele. Estava coberta com uma camada transparente de uma coisa
protetora qualquer, mas via-se claramente. Era uma cabeça de
dentes-de-leão, tal e qual como as que há à beira da estrada; com
as sementes sopradas pelo vento. O desenho era pormenorizado;
delicado. E era mesmo o estilo de Morgane; não exatamente
realista, e com aquelas cores pouco naturais...
– É um desenho interessante – disse a maman. – O que te fez
escolhê-lo?
Jeannot encolheu os ombros. – Acho que significa que estou a
avançar. A ir para onde o vento me levar. Não teria pensado nesse
desenho, mas quando ela acabou de o fazer eu soube que estava
certo. Ela tinha feito exatamente o que eu queria.
– Foi a Morgane quem o escolheu? – perguntou a maman.
Ele assentiu com a cabeça. – É o que ela faz sempre. Diz que os
clientes nunca sabem o que querem até o terem. Tem tudo a ver
com confiança, diz ela. E tem razão. Francamente, se tivesse sido
eu a escolher, provavelmente acabaria com uma cobra ou uma
caveira ou um raio ou alguma coisa de mau gosto. – Sorriu e
bebeu mais um gole de chocolate quente. – De qualquer maneira,
está feito. Dá a sensação de que a tenho há anos.
Fica-te bem, disse eu. Eu gosto!
A maman não disse nada.
– Se a minha mãe descobre, dá-lhe uma coisinha má – disse
Jeannot. – Mas eu já tenho vinte e um anos. Não posso ficar em
casa para sempre.
A maman serviu-lhe uma chávena de moka e rematou-a com
chantilly. Jeannot pegou na chávena e bebeu. – Mmmm. Mme.
Rocher, isto é maravilhoso. – Durante todo este tempo, ainda não
aprendeu a chamar-lhe Mlle. Rocher.
– Então, vais-te embora de Lansquenet? – perguntou a maman
em voz baixa.
– Logo que arranje alguma coisa. Não é que não goste disto.
Mas há tanto mais fora daqui, à espera de ser descoberto. A
Anouk sabe isso, não sabe? Está fora, a ter aventuras.
A maman sorriu, mas eu via que ela estava a perguntar-se o que
ele quereria dizer. É claro, ele mantém-se em contacto com Anouk
– pela Internet e pelo telemóvel. Até chegou a ir a Paris uma vez,
mas só ficou alguns dias. Sei que a mãe dele não achou bem. Ela
nunca aprovou realmente Anouk.
– As aventuras são sobrevalorizadas – disse a maman, voltando
a encher-lhe a chávena. – Depois de se terem visto tantos lugares
como a Anouk e eu já vimos, começa-se a compreender que as
pessoas são mais ou menos as mesmas em toda a parte.
Jeannot sorriu. – Talvez eu acredite nisso quando tiver a sua
idade – disse. – Por agora, sou livre de fazer o que quiser. Livre
por fim! – A seguir, acabou de tomar o chocolate quente e saiu
para a praça, a parecer um cão todo contente a quem tiraram a
trela pela primeira vez.
Depois de ele se ir embora, olhei para a maman. As cores dela
estavam todas baralhadas. Tentei dizer-lhe que não fora intenção
de Jeannot chamar-lhe velha; que estava apenas empolgado, mas
isso não pareceu convencê-la. Ou talvez fosse outra coisa que lhe
estava a pôr as cores todas nubladas e escuras. Talvez fosse a
tatuagem dele. Talvez não gostasse dela.
Não gostas da tatuagem dele? perguntei.
– Mantém-te afastada daquele lugar – disse ela.
Mas a Morgane é minha amiga!
– Ela não é tua amiga. Tu não sabes nada sobre ela. Lembras-te
do que aconteceu em Paris, na última vez que alguém fingiu ser
nossa amiga?
Está a falar de Zozie, pensei. De Zozie, que aparecia no livro de
tatuagens. Por um momento, perguntei-me se devia contar à
maman. Mas depois decidi que talvez não. Era só uma fotografia,
nem sequer a cores. Além disso, Morgane não é como ela. Não é
nada como Zozie.
7

Domingo, 26 de março
ais uma ronda de confissões, mon père. Um tédio na sua maior
M parte: pequenos pecados e misérias corriqueiras. Joline Drou
anda às turras com o filho; Caro Clairmont quebrou o jejum.
François Pinson anda a acalentar pensamentos sobre uma
senhora com metade da idade dele, que, por sorte, não faz ideia
de que é objeto do embeiçamento do velho senhor. Guillaume
Duplessis usa o confessionário para chorar a morte do seu cão
velho; o filho mais novo de Laurent Dumont, Pierre, julga que me
choca contando-me uma série de delitos totalmente implausíveis.
Mas a única confissão que me interessa realmente continua a
escapar-me. A história de Narcisse continua por terminar, embora
a sua voz ainda me soe na mente; seca e, surpreendentemente,
não sem bondade, embora falando com um sentido crescente de
urgência.
Tique-taque, segreda-me ao ouvido quando subo ao púlpito.
Tique-taque, diz, enquanto conduzo as orações. Tique-taque, diz
durante o sermão. Quanto mais tempo aquele dossiê estiver fora
das suas mãos, mais perigoso se torna. Quem julga que já o leu?
Michèle Montour? O filho dela? Quem mais? Vianne Rocher? Caro
Clairmont? Talvez até Joséphine?
Michèle Montour veio à igreja hoje, mas não ficou para a
confissão: pela expressão atenta nos seus olhos, pressinto que
veio para me vigiar. Yannick não estava com ela, nem Michel. Ela
passou por mim à porta da igreja, os olhos como lâminas, mas
manteve-se em silêncio. Vejo que quer perguntar-me o que
aconteceu ao dossiê de Narcisse, mas era um lugar demasiado
público, e, além disso, não quer dar-me a vantagem nesta batalha
mental.
Então, ainda não o leu. Isso significa que o dossiê ainda deve
andar por aí. O meu telefonema à advogada não resultou em nada
significativo. Mme. Mak é irritantemente correta, recusando-se
calmamente a discutir algo mais do que o meu papel na execução
do testamento de Narcisse. Há pouco mais a fazer, assegura-me.
Talvez alguns documentos para assinar. É tudo muito simples.
Isso significa que Michèle Montour ainda não abordou a
advogada. Por conseguinte, a sua ameaça de contestar o
testamento de Narcisse deve estar ligada ao dossiê. Mais uma
razão para o querer de volta, mas não há mais nada que eu possa
fazer. Yannick está do meu lado. Quando souber alguma coisa,
virá ter comigo. Até lá, a melhor coisa a fazer é nada.
Hoje, saí decidido a fazer precisamente isso, mon père. Um
pouco de jardinagem, talvez; ou um passeio ao longo do Tannes.
As ratazanas do rio estão a chegar, como fazem frequentemente
por volta da Páscoa, ficando por algumas semanas e depois
avançando rio acima. Vi seis ou sete barcos novos atracados junto
a Les Marauds: as pessoas de um grupo à volta de uma fogueira
olharam para cima ao avistarem a minha soutane de padre.
Reconheci duas delas, amigas de Vianne, que conheço só por
Blanche e Zézette. Blanche é uma mulher imponente da África
Ocidental; Zézette, uma jovem delgada com a cabeça rapada e
muitas tatuagens.
– M. le Curé ! – chamou Blanche quando eu ia a atravessar a
ponte. – Venha cá a baixo dizer olá à Saphir! Estamos a fazer uma
festa de anos!
Saphir é a filha de Zézette. Não a via há algum tempo: supunha
que devia ter uns doze ou treze anos. Mas apercebi-me ao vê-la
que os meus cálculos estavam completamente errados: Saphir é
agora uma jovem, com o tipo de beleza de fazer descair o queixo
em que nem um padre pode deixar de reparar.
– Fez dezoito anos na quarta-feira – disse Zézette, quando me
atrevi a perguntar. – Para os anos dela, paguei-lhe a sua primeira
tatuagem! Quer dar uma olhada?
Comecei a dizer que de maneira nenhuma, não havia nada que
eu quisesse menos, mas Saphir já tinha arregaçado a manga da
sua blusa. Naquela parte macia entre a axila e o cotovelo vi um
conjunto de flores de um amarelo pálido, com folhas verdes, como
o padrão de um papel de parede da época vitoriana ou uma
imagem de um velho livro de ilustrações botânicas. Um dos
desenhos de Morgane Dubois, com certeza: tão fresco na pele da
jovem como o orvalho numa daquelas folhas verde-claras...
– É uma prímula – disse Saphir. – A flor do meu dia de anos,
segundo o calendário Revolucionário.
– Ai sim? – Eu estava a sentir calor. Desejei ter mudado de roupa
antes de vir dar um passeio; melhor ainda, desejei ter ido na
direção oposta, onde não me teria encontrado com ninguém.
– 22 de março seria o primeiro dia do mês de crescimento.
Germinal, era como lhe chamavam. O mês das abelhas e dos
crocos.
– Foi a Morgane Dubois quem te disse isso?
Saphir assentiu com a cabeça. – Foi ela quem escolheu o
desenho.
– Confiaste nela para o fazer?
– Claro que sim – respondeu Saphir. – Ela é uma artista.
Encolhi os ombros. Não sei muito sobre tatuagens. De qualquer
modo, se fizesse uma, acho que quereria controlar o resultado. É
claro que nunca faria uma tatuagem. A ideia em si é ridícula.
Nunca diga nunca, Reynaud. Tique-taque.
Sacudi a cabeça, como que para remover um inseto que
estivesse a zunir-me ao ouvido. Zézette lançou-me um olhar
divertido e passou-me para as mãos um prato de madeira. – Uma
fatia de bolo, M. le Curé?
– Obrigado. – É claro que eu não podia recusar. As gentes do rio
têm um código próprio. Recusar a sua hospitalidade seria um
insulto. E por isso aceitei a fatia de bolo – o que me fez pensar em
Joséphine e na festa que ela organizara para a menina de Jean-
Philippe – e sentei-me na margem do rio.
A fogueira era pequena, circunscrita por um anel de pedras do
rio. O fumo tinha um aroma forte: abeto, macieira e sálvia silvestre.
Recordou-me algo, algo que não conseguia identificar. Mais uma
vez, desejei ter tomado outro caminho da igreja para casa.
– Perguntava-me como um estúdio de tatuagem conseguiria
arranjar clientes aqui – disse eu entre duas dentadas de bolo
(nozes e gengibre, caseiro e bom).
– Oh, a notícia espalha-se bastante depressa – disse Zézette. –
E a Morgane é muito boa. Olhe! – Levantou a parte da frente da
blusa dela para mostrar uma nova tatuagem na barriga. – Ela fez
isto no outro dia, para combinar com a que fez à Saphir.
Mais uma vez, tentei não olhar, mon père. Mas o desenho atraía
a atenção. Outra imagem botânica, desta vez de uma folha de
sicómoro com todos os pormenores, com um galho e um par de
chaves no lado, a parecer mesmo pronta a ser soprada pelo
vento...
– É só pele, M. le Curé. – Zézette parecia divertida com o meu
embaraço. – Talvez o senhor devesse fazer uma tatuagem
também. Um crucifixo. Ou uma pomba santa. Ou talvez uma
palma, para a Páscoa.
Estremeci. – Não me parece.
Saphir fez o tipo de sorriso que se vê no rosto da Virgem. –
Nunca diga nunca, mon père.
Engoli o último pedaço de bolo e fui-me embora a toda a pressa.
8

Segunda-feira, 27 de março
m estúdio de tatuagem em Lansquenet. Supusera que nunca
U teria sucesso. No entanto, em duas semanas, parece ter
infetado metade da vila.
O problema é pior do que eu supunha. Ao passar pelo rio hoje,
ouvi dizer que Zézette e Saphir têm novas tatuagens; que Jojo
LeMollet vai fazer uma na próxima semana e que Blanche tem
marcação para quinta-feira. Morgane tem feitiços que se
equiparam aos meus e conhece o seu público tão bem como a sua
arte, a passar palavra sobre ela por toda a comunidade do rio.
Como é que eu pude deixar isto acontecer tão depressa? Porque
me escondi durante tanto tempo? Devia ter agido imediatamente,
mal suspeitei dela. As pessoas da laia dela são como dentes-de-
leão, tão alegres e soalheiros e inofensivos a princípio, e depois,
subitamente, estão por todo o lado; as suas raízes infiltram-se em
todas as brechas, invadem todos os canteiros. Assim foi Zozie;
assim é Morgane. O nome dela está no ar como sementes. Mesmo
em Les Marauds, já deixou a sua marca. Ao passar pela loja de
Mahjoubi, ouvi duas mulheres a falarem dela, e depois, no
Boulevard P’tit Baghdad, dois homens novos, sentados a uma
mesa cá fora.
– Dizem que ela é espantosa – disse um deles, um rapaz não
mais velho do que Yannick, com um bigode incipiente, mas
esperançoso, e um keffieh à volta dos ombros. – Quem me dera
poder fazer uma, mas ia ouvir das boas.
O outro rapaz acenou com a cabeça. – O Pilou disse que ia fazer
uma, mas a mãe dele de maneira nenhuma vai permitir.
Estaquei à menção do filho de Joséphine. Será que Pilou queria
realmente uma tatuagem? É claro, está numa idade em que uma
coisa dessas parece sofisticada. Como fumar ou andar de mota ou
namorar com uma rapariga americana. Mas é um sinal de como a
influência de Morgane está a aumentar aqui. Toda a vila apanhou a
doença: mesmo aquela parte de Les Marauds que considera as
tatuagens haram.
Doença. Soo como Francis Reynaud. Mas sinto-o em cada
nervo, em cada célula. Aquele feitiço perigoso. Aquela doença que
alastra como uma nódoa negra debaixo da pele. Vi o barco de
Roux esta manhã, ainda atracado no outro extremo de Les
Marauds, mas não havia sinal dele entre os grupos de pessoas
reunidas na margem do rio ou a beberem café nos seus conveses.
Tentei não me sentir demasiado esperançada. Talvez ele tencione
ir rio abaixo com o resto das gentes do rio. Talvez fique até
terminar a visita de Anouk.
Este ano, o domingo de Páscoa calha a 16 de abril. Faltam três
semanas para a visita de Anouk. Três semanas para tratar de
Morgane Dubois, assim como do meu trabalho todo. Tratar dela.
Também essa é uma expressão que deveria pertencer a Francis
Reynaud. Contudo, ao mesmo tempo que uma parte de mim se
revolta contra a presença dela, sinto também uma espécie de
leveza. Talvez até de retidão.
Quando Zozie de l’Alba entrou a passos largos na minha vida,
pensei que estava ali para me salvar. O humor e a coragem dela
tornavam-na a irmã que eu nunca tivera, a amiga de que a minha
Anouk necessitava. Como Morgane, era encantadora. Como
Morgane, percetiva. E quando por fim compreendi o preço da
amizade de Zozie, já ela quase me tinha consumido; a minha vida,
o meu coração, as minhas filhas...
Desta vez, conheço a minha inimiga. Desta vez, sei onde me
posiciono. E, acima de tudo, tenho um aliado na pessoa de Francis
Reynaud, que neste momento está de joelhos, não a rezar mas a
arrancar as ervas daninhas no seu jardim, onde aqueles invasores
anuais – dentes-de-leão, tasna, convólvulo – enterram encantados
as suas raízes nos canteiros preparados com tanto carinho para os
narcisos, os crocos, os jacintos e as péonias.
9

Segunda-feira, 27 de março
á morangos a crescerem entre os meus bolbos. Silvestres, as
H suas sementes vindas sabe Deus de onde, a espetarem os
seus dedinhos pálidos por entre as tulipas e os crocos. O
morangueiro silvestre é uma planta invasiva; não tanto como os
dentes-de-leão, mas aquelas folhinhas em forma de coração
ocultam uma potente sede de conquista, lançando os seus
estolhos para toda a parte, cada um deles um posto avançado a
preparar-se para uma futura invasão.
E, no entanto, não consigo levar-me, père, a controlar a sua
exuberância alegre. Embora mais ou menos sem valor em termos
de fruto, as florzinhas brancas e as folhas bonitas fazem um
excelente tapete no solo, impedindo os cardos e a tasna de
aparecerem sem abafarem os meus narcisos. E, além disso, no
verão poderá haver um número suficiente daqueles minúsculos
morangos para pôr numa tarte ou aromatizar um copo de vinho
branco doce. Isto é, se os pássaros não os roubarem primeiro.
Também eles gostam da doçura dos morangos.
Esses morangueiros vão alastrar, Reynaud, disse a voz de
Narcisse na minha cabeça. Deixe-os ficar, e num mês os seus
canteiros só vão ter morangos.
– Há aqui coisas piores do que morangos silvestres.
– Ai sim? – disse uma voz acima de mim, e por um momento
perguntei-me como Narcisse podia soar tanto como Vianne
Rocher...
Olhei para cima. Ela estava a observar-me do outro lado do muro
do jardim, onde a sebe de fúcsia silvestre e de rosmaninho já
começava a florir. Trazia uma blusa amarela e um lenço a condizer
na cabeça.
– Se quer que deem fruto – prosseguiu ela –, tem de tirar os
estolhos. Os estolhos não querem realmente fazer frutos. Só
querem fazer mais morangueiros. A Anouk achava que era cruel,
deitar fora aquelas pequenas plantas todas. Quando vivíamos em
Paris, tentei cultivar morangueiros em vasos. Mas a Anouk andava
sempre a salvar os estolhos do balde da compostagem. Eles
querem estar com os amigos, dizia ela.
Sorri e endireitei as costas doridas. – As crianças têm ideias
esquisitas – disse.
– Eu costumava tentar explicar – disse Vianne. – Os estolhos
roubam à planta mãe. Tiram-lhe a energia e fogem para o mais
longe possível dela. Mas são bebés, dizia ela. Não se pode
explicar isso a bebés.
Riu-se, um som ligeiramente pesaroso. Sei que sente muitas
saudades de Anouk. Recordei-me subitamente de Joséphine, a
olhar para Pilou com a namorada. Por vezes, invejo a Vianne, tinha
ela dito. A Rosette nunca vai deixar de precisar dela.
É isto ser mãe ou pai, mon père? Esta sensação perpétua de
perda? Se sim, então talvez eu me sinta contente por nunca vir a
experimentá-la em primeira mão. E, no entanto, invejo-lhes aquela
alegria que nunca compreenderei. Mon père, nunca se perguntou
porque é negada aos padres essa ligação? Com certeza o amor de
um pai pelos seus filhos ecoa o amor de Deus pelo seu povo? E se
nós não podemos ter essa experiência, como podemos expressar
verdadeiramente a Sua vontade?
– Ouvi dizer que a Anouk vem a casa em breve – disse eu.
– Sim, mas só durante cerca de uma semana.
– Que bom. Vai dar-lhe uma oportunidade para ver os velhos
amigos. Ela não se sente tentada a ficar para sempre, e ajudar na
chocolaterie?
Vianne encolheu os ombros. – Em tempos, julguei que sim.
Pensei mais uma vez em Jean-Philippe Bonnet. – Suponho que,
quando se é jovem, um sítio como Lansquenet não parece lá muito
excitante.
– Talvez seja por isso que Morgane Dubois decidiu abrir o
negócio dela aqui. Talvez seja por isso que metade da vila
adoeceu com a febre das tatuagens.
Metade de Lansquenet? Isso era com certeza um exagero. E, no
entanto... pensei em Zézette e em Saphir. Quantas outras pessoas
das gentes do rio estarão a esconder tatuagens recentes?
– Talvez as gentes do rio – disse eu. – As tatuagens fazem parte
da sua cultura. – Mas o nosso povo... com certeza que não.
Vianne Rocher pareceu hesitar, escolhendo cuidadosamente as
palavras. – Penso que não faz ideia de como estas coisas podem
alastrar rapidamente – disse-me. – O filho da Joline Drou, o
Jeannot, mostrou a sua nova tatuagem à Rosette há dias.
– A Joline Drou! Então é por isso que ela... – parei de falar,
apercebendo-me de que estava prestes a quebrar o sigilo do
confessionário. Mas isso com certeza explicaria a tensão entre
Joline e o filho, e se Jeannot tinha de facto feito uma tatuagem era
só uma questão de tempo até os amigos dele seguirem a
tendência.
– É claro, ele tem vinte e um anos – prosseguiu Vianne. – É livre
de cometer os erros que quiser. Mas os jovens em Lansquenet não
estão tão preparados para vida como os miúdos da cidade. O
Jeannot sempre foi imaturo para a idade, imaturo e bastante
influenciável. Talvez seja lisonjeiro para ela ter uma influência tão
forte: introduzir a sua arte a tantos jovens pela primeira vez. A sua
arte e talvez outras coisas.
Ela tinha razão, claro, pensei. Uma vila como a nossa é
suscetível às loucuras passageiras mas fortes da juventude. Já as
vi todas. Durante um mês – ou talvez três – todos os jovens andam
obcecados. Depois o vento muda e eles partem para outra coisa.
Por vezes há um acidente – um tornozelo partido, um joelho
esfolado – mas a maior parte das vezes não há nada a provar o
breve momento de loucura. Exceto no caso de Morgane Dubois...
– Que outras coisas? – perguntei.
– Quem sabe? Mas a Maya Mahjoubi e os amigos dela andam
sempre pelo estúdio. E o Yannick Montour, o Jean-Philippe Bonnet,
até a Rosette. Nenhum deles tem idade para ser cliente. E, no
entanto, ali está ela, a encorajá-los, a atraí-los... porquê?
Acenei com a cabeça, a sentir-me ligeiramente alarmado.
Perguntei-me o que diria Joséphine se soubesse que o seu filho
era um dos que param no estúdio de tatuagem. Os rapazes são
como são, suponho, mon père; embora eu nunca tenha sido um
desses rapazes. E, no entanto, embora concorde com ela,
surpreendeu-me ouvir Vianne Rocher falar tão eloquentemente
contra uma estranha na vila. Deveria agradar-lhe; em vez disso,
senti que os nossos papéis tinham de algum modo sido invertidos.
Afinal, quem era Morgane? Apenas uma mulher com uma
deficiência física a tentar ganhar a vida. Os meus sentimentos para
com ela no dia em que nos conhecemos resultavam da minha
insegurança. Aqui, no meu jardim, entre os bolbos, sentia-me mais
inclinado a ser tolerante.
– Nunca teria imaginado que a Vianne se sentisse ameaçada por
uma nova pessoa na vila. – Disse-o como piada, mas Vianne não
sorriu. Em vez disso, lançou-me um olhar severo.
– Isto é sério, Francis. Não vê que ela é perigosa?
Perigosa. Que palavra sinistra, como o cheiro a fumo no ar. É
uma palavra que o senhor usava repetidamente, mon père, no ano
em que chegaram os ciganos do rio.
– Com certeza está a exagerar – protestei debilmente.
Ela abanou a cabeça. – O senhor sentiu-o – disse. – Sentiu-o
quando falou com ela. Há algo um pouco pernicioso nela, Francis.
Sinto-o. Acredite em mim. – Estendeu a mão para tocar na minha.
– Acredite em mim – repetiu.
Por um momento, senti-me estranhamente desligado de mim
próprio. Talvez estivesse estonteado por ter estado de joelhos
tanto tempo; talvez fosse uma reação a não ter tomado o pequeno-
almoço nessa manhã. Porém, ao toque dela, senti uma descarga,
como uma espécie de energia latente. Senti um súbito calor no
rosto; um cheiro a fumo nas narinas. E não a experimentei eu
próprio, père? Aquela sensação de perigo à volta de Morgane, a
sensação de algo prestes a explodir? A sua arte e talvez outras
coisas. Álcool, drogas, pornografia? Talvez ela tenha deitado
alguma coisa na minha bebida naquele dia. Isso explicaria o meu
desconforto.
Eu disse: – É claro que tem razão, Vianne. Eu tinha a esperança
de que não chegasse a isto. Mas, se tiver de tomar alguma
medida, fá-lo-ei.
Ela acenou com a cabeça. – Ótimo. O que vai fazer?
Boa pergunta. Por onde deveria começar? Talvez devesse falar
com Morgane. Uma palavra de aviso deveria bastar para sublinhar
a importância de ela se adaptar à nossa comunidade. E se não? O
nosso povo é conservador, cuida dos filhos. Ainda vão à igreja.
Dar-me-iam ouvidos. Um ou dois sermões bem escritos deveriam
trazer as ovelhas tresmalhadas ao redil. E se não? Há outros
meios, mon père. Meios que preferiria não usar, mas que – se ela
é perigosa – não hesitarei em aplicar para a proteção do meu
rebanho. Só se ela for perigosa...
– O que for preciso – disse por fim.
Afinal, já o fiz antes.
10

Segunda-feira, 27 de março
meu pai esteve ausente treze dias. Treze dias de Tante Anna;
O treze dias que pareceram meses. Dormi mais quatro noites
no pátio e apanhei morangos durante todo dia, de tal modo que
ao fim desse tempo tinha as mãos manchadas de púrpura com o
sumo deles e até o seu cheiro me dava vómitos.
Durante esse tempo, não ouvi um único som de Mimi no
quarto. Por várias vezes, tentei trepar até à janela do quarto do
meu pai, mas a árvore mais próxima estava demasiado longe,
mesmo que Mimi soubesse abrir-me a janela. Pareceu-me vê-la,
uma só vez, à distância, o seu rosto um borrão branco imóvel, a
olhar do quarto às escuras como uma máscara fúnebre de
gesso. Tentei atrair a sua atenção acenando-lhe e chamando-a,
mas ela não se mexeu, até eu acabar por duvidar se a tinha visto
de facto.
Na manhã do quarto dia, Tante Anna abriu a porta, com um
avental debruado a renda por cima do seu vestido cinzento de
cambraia, com a cruz preta, como sempre, numa fita ao pescoço.
Olhei-a com esperança de ver um sinal de que Mimi e eu
estávamos perdoados, e desta vez, como que em resposta, ela
sorriu e fez-me um gesto para eu me aproximar.
«Que me dizes a tomares o pequeno-almoço?», disse.
«Croissants com manteiga e compota de morango, e talvez uma
tigela de café-au-lait?»
Assenti com a cabeça, demasiado espantado para falar, meio à
espera de que ela se risse e me fechasse a porta na cara outra
vez. Mas Tante Anne limitou-se a sorrir de novo, um sorriso tão
raro quanto perturbante.
«Entra então, Narcisse. Despacha-te, antes que o teu café
arrefeça.»
Segui-a para dentro de casa, perguntando-me vagamente por
que motivo ela não me tinha dito para ir lavar as mãos. Até eu via
que estavam a precisar muito de ser lavadas: uma combinação
de sumo de morango e poeira e falta de asseio tinham-nas
manchado de um tom púrpura de cadáver. Mas Tante Anna não
reparou que eu parecia um selvagem imundo nem fez nenhum
comentário quando eu meti o croissant quase inteiro na boca, e
subitamente comecei a sentir-me como se algo de mau estivesse
a acontecer. Tante Anna nunca sorria, a não ser que estivesse a
receber as suas amigas. Nunca me oferecia café-au-lait nem
fazia croissants para o pequeno-almoço. E nunca deixava passar
uma oportunidade de criticar os meus modos ou de lamentar as
minhas mãos imundas ou de reparar nas minhas roupas sujas.
Por um momento, o coração saltou-me no peito – será que o
nosso pai estava para chegar? – mas depois vi que o lugar de
Mimi à mesa não tinha sido posto, e o pedaço de croissant ficou-
me preso na garganta como se se tivesse transformado numa
pedra.
«Onde está a Mimi, Tante Anna?»
Tante Anna fez de novo aquele sorriso e eu apercebi-me de
que não havia nada de bondoso ou natural nele. Era
simplesmente um fletir de músculos sem sentido, tal como a luz
nos olhos dela não tinha nada que ver com os pensamentos que
lhe andavam na cabeça. Ela podia ser uma boneca de tamanho
natural ou uma estatueta de gesso – e aquele pensamento foi
acompanhado por um súbito clarão de medo e de compreensão.
Afastei a tigela do café, derramando os restos na toalha de
mesa, e pus-me de pé tão de repente que a minha cadeira caiu
para trás sobre a tijoleira.
«Onde está a Mimi?», voltei a perguntar. «Porque é que ela
não está aqui também a tomar o pequeno-almoço?»
Por um momento, os lábios de Tante Anna comprimiram-se, e
eu quase tive a esperança de que ela me esbofeteasse ou me
chamasse ingrato, malcriado, rude – qualquer coisa menos
aquela tolerância que me enchia de apreensão. Nesse momento,
ela suspirou, o tipo de suspiro que reservava para as suas
amigas da igreja quando falavam da morte de um vizinho ou do
aumento do preço do peixe ou do escândalo de uma criança
nascida com um defeito físico ou fora do casamento.
«A tua irmã nunca esteve bem de saúde», disse ela, e ao ouvir
aquelas palavras uma parte da minha mente começou a subir
como um balão e a vogar, liberta, para um céu que estava
subitamente cheio de estilhaços. Abaixo de mim, muito abaixo,
ouvia a voz de Tante Anna dizer: «Ela andava sempre a ter
aquelas convulsões. O teu pai sabia disso. E tu também.»
Tentei falar, mas só conseguia ouvir um jorro de ar nos ouvidos
e o som do grande tambor que era o meu coração a contar os
segundos. Badam. Badam. Badam. Badam.
Tante Anna estava demasiado longe de mim para eu poder ver
a expressão dos seus olhos. Mas conseguia imaginá-la: aquela
expressão de simpatia fingida, de justa satisfação. Eu disse:
«Não», mas de uma grande altura, a olhar para a cena lá em
baixo. Sabia que ela me estava a dizer que Mimi estava morta.
Mas a ideia recusava-se a ficar no seu lugar. Erguia-se, erguia-
se como um balão de ar quente, a deixar tudo para trás. Badam.
Badam. Badam.
«Mentirosa», disse eu, numa voz que parecia vir de uma
distância de quilómetros. «A tia odiava a Mimi. Odiava-a.»
«Não odiava nada», disse Tante Anna. «E rezo a Deus para
que te perdoe essa linguagem imoderada. A Naomi era uma
criança muito doente. Deus levou-a, na Sua misericórdia.»
Reynaud, eu tinha só dez anos. Não tinha maneira de
processar a minha dor. E, além disso, parecia tudo tão irreal; o
balão de ar quente dos meus pensamentos a subir no ar, a
minha tia ali parada como um monólito, muitos quilómetros
abaixo de mim.
«Eu quero ver a Mimi», disse por fim em voz trémula.
«Não me parece que seja boa ideia», disse Tante Anna.
Ignorei-a. «Quero ver a Mimi», repeti, e depois ela agarrou-me,
com os polegares a apertarem-me os braços, e vi a luz mortiça
nos seus olhos e adivinhei que havia algo mais para além do
horror da morte de Mimi – algo ainda não descoberto.
«Onde é que ela está?», perguntei.
«Na cave.» Os olhos de Tante Anna eram como moedas de
prata. «Está mais fresco lá do que no resto da casa.»
Tentei pensar na pequena Mimi, como carne numa mesa, na
cave. Comecei a sentir picos nos olhos, mas de raiva, daquele
tipo de raiva impotente e desesperada que só uma criança pode
conhecer.
«Há quanto tempo é que ela lá está?», perguntei, e agora a
minha voz estava mais perto, como se o balão tivesse começado
a vogar lentamente para baixo. «Há quanto tempo é que ela lá
está, Tante, e porque é que não chamou o padre?»
Tante Anna encolheu os ombros. «É mais fresco lá em baixo»,
repetiu, como se isso fosse resposta. «Ora, porque não acabas
de tomar o pequeno-almoço?» disse, como se a morte de Mimi
não passasse de uma interrupção da nossa refeição. «Podes
provar a minha compota de morango. E depois vamos juntos à
igreja falar com Père Grégoire.»
Mais uma vez, senti aquela corrente de hélio de irrealidade.
Como é que ela podia falar de compota de morango? Como
podia falar do pequeno-almoço? Mimi estava morta. Nunca mais
voltaria a brincar nos baixios do Tannes. Nunca mais exibiria o
seu sorriso brilhante ou soltaria as suas risadas como água
rumorejante. Nunca aprenderia a dizer o meu nome nem
qualquer outra palavra a não ser «barco»...
Tante Anna soltou um suspiro de exasperação. «Por amor de
Deus, acaba de tomar o café, Narcisse, e para de fazer disto um
drama. Tu sempre soubeste que a Mimi não era uma criança
normal. Tinha imensos problemas. Não estava realmente
destinada a sobreviver. Foi uma misericórdia que as coisas
acontecessem assim. Quando fores mais velho, vais
compreender.»
Ouvi as palavras, mas a minha mente não parecia relacioná-
las. Mimi nunca cresceria. Mimi nunca compreenderia. Olhei para
a mesa do pequeno-almoço: para o jarro do leite; o prato com
croissants acabados de fazer; o grande frasco de compota com a
colher de pega comprida em cima da toalha de mesa de linho
impermeabilizado. Vi Tante Anna ocupar o seu lugar, a boca tão
cerrada como a bolsa de uma viúva, e depois, em vez de me
sentar, virei-me e corri para a porta da cave.
«Narcisse!» A voz de Tante Anna era severa. Mas eu era
jovem, e ela era lenta, e cheguei às escadas antes dela. Havia
um postigo de vidro fosco perto do teto, a banhar a divisão numa
luz azul fria, e eu vi um presunto fumado e um par de faisões,
ainda não completamente secos, pendurados de ganchos no
teto. Ao longo das paredes, havia prateleiras de conservas de
todas as cores imagináveis; compotas, geleias, pâtés, terrinas,
carnes em gelatina e vegetais; couve e barba-de-bode em picles;
cerejas, pêssegos e peras em brandy. E ali, no centro da divisão,
deitada no balcão de granito onde Tante Anna preparava as
carnes, estava Mimi, de camisa de noite, parecendo muito
pequena e muito macilenta, como se tivesse morrido alguns dias
antes.
Atrás de mim, a minha tia desceu as escadas, a bater com os
pés e a ralhar. Mas não lhe prestei atenção. Toda a minha
atenção estava concentrada em Mimi; nas marcas roxas à volta
dos pulsos, no pó nas solas dos seus pés descalços...
Reynaud, não me gabo de ser um homem com uma
perspicácia excecional. Nem fui um rapaz especialmente esperto
ou perspicaz. E, no entanto, vi tudo num momento breve e
penetrante de claridade. Virei-me e olhei para Tante Anna – a
cruz ao pescoço, os olhos zangados, o cabelo apanhado para
trás num puxo grisalho apertado...
*
Detesto esta história. Detesto-a. BAM! Quem me dera nunca ter
pegado no dossiê. Já é mau que Narcisse tenha morrido, mas ele
era velho, e Mimi era nova. As pessoas novas não deviam ter de
morrer. Fechei o dossiê com força – BAM! – e depois, como sabia
que a maman entraria no meu quarto, enfiei-o na minha mochila e
desci as escadas a correr – Badabam!
– Rosette? – A maman sabe sempre quando eu estou
perturbada. – O que aconteceu? Aonde vais? – Mas eu não podia
dizer-lhe, por causa de Mimi e por causa do vento que já me
mordia os calcanhares. Não podia trazer o vento até à nossa porta.
Tinha de o levar para longe, sabia, fazê-lo correr pelos campos até
se cansar, fazê-lo correr como um cão enraivecido até se
transformar num cachorro outra vez.
Não sabia aonde ia, a princípio. Em qualquer outra ocasião
normal, iria até Les Marauds para estar com Roux, e beberíamos
café-au-lait cá fora junto à fogueira e nem um nem o outro diríamos
grande coisa, mas, de algum modo, o vento acalmar-se-ia. Mas
esta não era uma ocasião normal. Já não vejo Roux desde
segunda-feira passada. O barco dele ainda cá está, mas está todo
fechado como uma concha de ostra, e ele não tem vindo à loja
nem sequer para tomar um chocolate quente. Pergunto-me se
estará zangado comigo. Pergunto-me se estarei zangada com ele.
Sinto-me zangada com uma data de pessoas ultimamente: com
Roux, Pilou, Mme. Montour, a maman – até mesmo com Narcisse,
por ter escrito aquela história, por me fazer gostar de Mimi, talvez
até por estar morto, porque nada disso faz sentido e ninguém sabe
porque acontece.
E por isso fui até ao cemitério e encontrei Narcisse na sua urna
de plástico e tirei o dossiê da mochila e atirei-o ao chão e disse-lhe
na minha voz-sombra: – Porque é que apanhaste os morangos?
Devias ter estado a olhar pela Mimi. E agora ela está morta, e tu
também, e nada disto faz sentido.
O vento soprava com mais força do que nunca, a arrancar as
flores das árvores. Mas ninguém costuma vir ao cemitério, a não
ser no Dia de Todos os Santos e aos domingos. Ninguém me
ouviria hoje, a não ser talvez o vento. Senti vontade de chorar, mas
eu nunca choro.
E depois alguém por trás de mim disse: – Quem é a Mimi?
E ali estava Morgane, sentada à sombra de uma grande árvore
velha, toda de preto, só com o cabelo a brilhar nas sombras como
algo saído de um conto de fadas. Fiquei tão surpreendida por a ver
que quase me esqueci que me sentia perturbada, e o vento
estremeceu, depois soluçou, e começou a desaparecer outra vez.
Agora, eu via que ela estava sentada em cima da pedra de uma
sepultura muito antiga, uma sepultura a que tinham sido
arrancadas as ervas daninhas e onde se via uma grinalda de
arenito.
Ela pôs-se de pé e encaminhou-se para mim. Anda muito direita,
como uma dançarina em cima de andas. Pegou no dossiê verde
de Narcisse e alisou as pontas amassadas. Depois, abriu-o na
primeira página.
E de repente eu apercebi-me de que tinha feito uma coisa má.
Tinha roubado a história de Narcisse. Não ao tirá-la a Yannick, mas
ao lê-la. Acho que já sabia isso, mas ver Morgane com o dossiê
nas mãos subitamente tornou-mo claro. Aquela história não se
destinava a mim. Eu sabia desde o princípio. Destinava-se a
Francis Reynaud, e era ele quem devia lê-la. Perguntei-me se
Morgane deixaria de gostar de mim agora que sabia que eu era
uma ladra. Mas Morgane não parecia zangada. Limitou-se a voltar
a atar o dossiê de novo com a sua fita escarlate. A seguir, sorriu e
disse: – Rosette, isto devia voltar para o Curé Reynaud. Afinal,
está-lhe dirigido.
Eu sabia que ela tinha razão. Mas não queria ir falar com
Reynaud. Ele nunca compreende o que eu digo, e, além disso, se
eu lhe contar o que aconteceu posso meter Yannick em trabalhos.
E ainda queria mesmo saber o que tinha acontecido à tia. Ou será
que não? Agora que Mimi estava morta, não tinha a certeza se
realmente me interessava o final da história.
– A decisão é tua, Rosette – disse Morgane. – Mas se quiseres a
minha ajuda, eu estou aqui.
Pensei naquilo durante uns momentos. Ela esperou que eu
decidisse. Tem uma maneira tão calma de olhar para uma pessoa,
a sorrir, que todos os meus pensamentos maus e furiosos
começaram a afastar-se como fumo.
– Confia em mim – disse Morgane.
OK.
Fiquei a vê-la sair do cemitério, a andar de um modo muito
cuidadoso, com o dossiê debaixo do braço. E depois fui sentar-me
durante algum tempo à sombra do grande teixo velho e olhei para
o nome na pedra da sepultura onde Morgane tinha estado sentada,
e li a inscrição, gravada bem fundo no arenito amarelo:
Naomi Dartigen: 1942-1949
Agora ela é como todos os outros
Ratazanas
1

Terça-feira, 28 de março
uando fui a Les Marauds esta manhã vi que o barco de Roux já
Q não estava atracado; e o resto dos nómadas – Blanche,
Zézette, Saphir, Mahmed – preparava-se para descer o rio, a
meterem os seus pertences em sacos, a arrumarem panelas e
tachos, a apanharem o lixo, a comprarem mantimentos, a cobrirem
as fogueiras com cinza. O que terá provocado este êxodo? Julgo
poder adivinhar a resposta. A flautista de Hamelin começa pelas
ratazanas antes de avançar para as crianças. Quantas delas
vieram até ela, em segredo, por trás daquela porta púrpura?
Quantas delas ouviram o seu chamamento?
Sente-me. Encontra-me. Segue-me.
Reynaud tem andado a esforçar-se por ajudar. Os seus sermões
são quase inflamados. Esta manhã, ao que todos dizem, falou
sobre a corrupção no nosso seio, mas não chegou a dizer o nome
de Morgane. Tenho de voltar a falar com ele; o efeito da nossa
última conversa não foi tão duradouro como eu esperava. E
Reynaud anda preocupado: os seus pensamentos estão tingidos
com tristeza e fumo. Nunca o achei fácil de ler, é demasiado
fechado para isso, mas nos últimos tempos parece volátil, como
papel prestes a entrar em combustão. A morte de Narcisse abalou-
o de um modo que não compreendo. Eles nunca foram amigos, e
no entanto o velho senhor fazia parte da infância dele. Será por
isso que vejo o fumo? Ou será que oculta outra coisa?
Rosette também tem andado distante; relutante em ajudar na
chocolaterie, mas aparentemente indiferente ao êxodo das gentes
do rio. A sua excitação com o legado de Narcisse, a sua amizade
com Yannick Montour significam que não se tem comportado como
habitualmente nos últimos dias, saltando ao ouvir sons
inesperados ou por vezes som nenhum, como um gato num dia de
vento. E há algo mais nela, algo quase como fúria. Não sei de
onde vem. A minha filha do inverno foi sempre tão doce, tão
previsivelmente errática. Mas agora anda tempestuosa, impetuosa;
bate com as portas e corre para o andar de cima, com Bam, uma
gárgula sorridente, a segui-la, fazendo caretas. Ontem à noite,
voltou para casa com lágrimas nos olhos e terra debaixo das
unhas, o que me leva a pensar que talvez tenha estado a plantar
flores na campa de Narcisse. Um passatempo inofensivo, digo
para comigo, que a mantém afastada do estúdio de tatuagem do
outro lado da praça.
Quanto a Morgane, mantém-se esquiva, pelo menos no que me
diz respeito. Ainda não a vi sair da loja uma única vez, embora
outras pessoas me tenham dito que sai: Guillaume viu-a duas
vezes junto à igreja e Joséphine viu-a no dia da feira, com um
cesto de beringelas e uma braçada de goivos.
– Reconheci-a pela tua descrição – disse ela, quando veio à
chocolaterie esta manhã para tomar uma chávena de moka e
encomendar chocolates para dar a Pilou e aos amigos dele na
Páscoa. – É verdade que não tem pés?
Disse-lhe que sim, tanto quanto sabia Morgane usava próteses.
Joséphine pareceu duvidar, mas disse que Morgane estava de
botas. – Suponho que poderiam ser próteses – disse. – Não falei
muito tempo com ela.
Bebeu um gole de moka, mas vi que começava a corar.
Joséphine não queria que eu soubesse quanto tempo estivera a
falar com Morgane. E havia algo nos seus pensamentos – um
debruado de cor; um fio de fumo – que era quase como
duplicidade...
– Estás a pensar em fazer uma tatuagem? – perguntei, num tom
humorístico para sugerir como a ideia era ridícula. Ao mesmo
tempo, aproximei-me dela com os meus pensamentos e vi uma fita
brilhante; um matizado de luz na folhagem. Um galho de carvalho,
com uma bolota, e um par de folhas de um verde forte...
Senti que se me esvaía a força das pernas.
– Já fizeste uma tatuagem – murmurei.
Joséphine pareceu ficar sobressaltada e depois soltou uma
risada de embaraço e corou ainda mais.
– Não digas ao Pilou – pediu, e por um momento pareceu-me a
mulher que eu conhecera há anos, a roubar chocolates da minha
loja e a escondê-los do marido. – Ele nunca vai vê-la – disse ela. –
É aqui. – Pôs a mão em concha sobre a barriga. – Folhas de
carvalho, para força e resistência. E uma bolota, pelo Pilou, para
que o tenha sempre perto de mim. – Soltou mais uma daquelas
risadas de embaraço. – É uma loucura, não é? – disse. – Nunca
pensei que faria algo assim, mas não conseguia deixar de pensar
na ideia. E depois, um dia, pronto, entrei no estúdio. Ela estava lá.
Eu não sabia o que pedir. Mas depois de começarmos a conversar,
senti...
– Sentiste como se ela te tivesse lido a mente
Joséphine riu-se. – É isso mesmo! – disse. – E eu que pensava
que tu eras a única.
2

Terça-feira, 28 de março
uando ela se foi embora, fechei a loja e deixei-me ficar cá fora
Q por uns momentos. As flores da amendoeira já se foram,
substituídas por novos rebentos verdes. Cheira a primavera e a
relva aparada e a terra revolvida nos campos além. Agora é o mês
de Germinal no calendário republicano; o mês dos jacintos, das
abelhas, das violetas e das prímulas. É também o mês do vento; o
mês de novos começos, e nunca o senti tão fortemente como
agora; aquela sensação de possibilidade; aquela leveza irresistível.
Parece tocar uma música no ar; o filamento mais fino de som, não
mais substancial do que o roçar de uma teia de aranha sobre a
ponta da asa de uma borboleta morta.
Encontra-me. Sente-me. Segue-me.
Duas pessoas podem jogar a esse jogo, Morgane. Envio uma
vibração pelo ar, o aroma do grão Criollo, os aromas da baunilha,
de açúcar queimado e de sangue.
Experimenta-me. Saboreia-me. Põe-me à prova.
Por um momento, quase pensei que a música parava a meio de
uma frase. As cores no ar pareceram deslocar-se, uma
sobrancelha a erguer-se, divertida. Um desafio? É só desse gesto
de boas vindas que preciso. Dirijo-me à porta púrpura. Está
entreaberta, como se ela, de algum modo, estivesse à espera da
minha visita, e os estores estão corridos.
O que é que eu queria? Mal sabia: talvez confrontar aquela
mulher por fim, ou ver com os meus próprios olhos que feitiços ela
tem. Dei comigo junto à porta púrpura: entrei sem bater primeiro.
Sabia o que esperar – e, no entanto, o impacto do que vi não foi
menor do que na primeira vez em que pus os pés lá dentro: os
espelhos; as luzes; A Menina que Roubava Morangos refletido em
todas as superfícies. E eu própria, uma intrusa, a observar por
entre as folhas.
Uma mancha de movimento, refletida nos espelhos a toda a
minha volta. Um emaranhado de cabelo aos caracóis, como
algodão-doce, pintado de um púrpura extravagante. Virei-me. Não
estava mais ninguém naquele espaço. E, no entanto, nos
espelhos, vi-a de novo, quase suficientemente perto para
conseguir tocar-lhe...
– Anouk?
Não havia dúvida de que era ela. Cabelo púrpura, sorriso
rasgado, olhos como o planeta visto do espaço. Era Anouk por trás
do espelho, a parecer tão jovem e no entanto tão adulta. Os filhos
estão sempre a mudar, a dançar pelos anos que passam. Anouk
aos nove anos; Anouk aos doze; Anouk aos vinte, e para além...
Fiz o sinal contra o azar. Mas não havia nada a banir. Estava só
eu naquele espaço. Anouk tinha desaparecido. E, no entanto, eu
sabia que Morgane a tinha enviado para me desafiar. Já conhece o
meu ponto fraco, pensei: as armas a usar contra mim. Olhei-me
nos espelhos; pensei que o meu rosto parecia pálido àquela luz. E
a toda a minha volta havia aves e aquelas folhas impossivelmente
azuis e flores estilizadas, sem perfume.
Pigarreei, mas não veio ninguém. Morgane devia ter saído,
pensei. E por isso virei-me para me ir embora, mas, ao fazê-lo,
chamou-me a atenção uma pilha de livros no canto da pequena
mesa junto à grande cadeira das tatuagens. Pareciam álbuns de
fotografias. É claro, pensei. Isto é a obra dela. O seu arquivo de
desenhos. Dominada por uma grande curiosidade, peguei num
álbum, abri-o. Como adivinhara, estava cheio de fotografias.
Algumas eram polaroides, desbotadas pelo tempo, algumas
riscadas, como registos antigos. Mas todas elas eram das suas
obras; das pessoas que colecionara. Jovens, velhos, brancos,
escuros; tinha-os a todos no seu álbum, e, avançando para as
fotos mais recentes, vi os meus amigos e vizinhos: Roux, sem
sorrir e sem camisa, a olhar a direito para a objetiva; Joséphine,
com um sorriso tímido e ligeiramente desfocada. Jeannot Drou
estava ali também, e Zézette e Blanche, e a filha delas, Saphir, e
Jojo LeMollet, Sofia Zidane, e Nadine Poitou e Saïd Lellouche. Até
Ying, a advogada, com uma mão erguida a mostrar o ramalhete de
flores de ameixieira no pulso. E, mais uma vez, na última página,
Anouk, com o seu cabelo púrpura e o seu sorriso como a chegada
do verão...
Atirei com o livro para a mesa. Era impossível. Era um truque. Tal
e qual como o truque com os espelhos. A mulher sabia que eu viria
aqui. Deixara-me este livro como um aviso.
Não te metas comigo, Vianne Rocher. Não interfiras no meu
negócio.
Fechei o álbum abruptamente, com a certeza de que Morgane
entrara no estúdio. Virei-me, mas o espaço estava ainda vazio,
com aves pintalgadas e fetos refletidos em todas as superfícies.
Fui pôr o álbum no seu lugar. Ao fazê-lo, contudo, reparei num
dossiê pousado em cima da mesa. Mais pequeno do que o álbum,
verde, e atado com um pedaço de fita cor-de-rosa como a que é
usada pelos advogados; julguei reconhecê-lo, embora de onde não
tinha a certeza. Peguei nele. Abri-o na página onde se encontrava
um marcador – um desenho de um macaco a ler um livro e a rir-se.
Folheei o resto do dossiê. Estava cheio de folhas soltas. Escritas
numa letra miudinha, em tinta que variava de azul-clara a um preto
enferrujado. Um diário? A letra sugeria uma outra época, uma
época em que as crianças tinham de escrever em papel pautado e
praticar a caligrafia. E então, subitamente, apercebi-me de que
aquela era a confissão de Narcisse, dada por Ying a Francis
Reynaud na leitura do testamento. Como viera parar às mãos de
Morgane? E como é que um desenho de Rosette estava a ser
usado como marcador?
Pensei que talvez tudo isto tivesse algo que ver com Michèle
Montour. Afinal, ela não fez segredo do seu ressentimento contra o
testamento de Narcisse. Teria pedido auxílio a Morgane para se
apoderar do documento? E o interesse de Morgane por Rosette
estaria relacionado com o legado de Narcisse?
Fosse como fosse, disse para comigo, o documento não era da
conta dela. Devia ser restituído a Francis Reynaud. Pus o dossiê
debaixo do braço e saí para a praça. A sineta soou quando saí do
estúdio, mas nada mais assinalou a minha partida. Também a
praça estava quase sem ninguém, à exceção de umas crianças
que vinham a atravessar da padaria de Poitou. Dirigi-me para a
chocolaterie em passos discretos, voltei a abri-la e fui sentar-me
atrás do balcão. O dossiê estava pousado na bancada, com o
marcador de Rosette a despontar dele. Só uma página, disse para
comigo. Só para ver se menciona a Rosette.
Sabia que estava a violar uma confidência. Sabia que a
confissão se destinava a Reynaud. Mas nesse momento só
conseguia pensar no facto de Morgane ter lido o dossiê, pelo
menos até à página do marcador. E se havia alguma informação ali
que ela pudesse usar contra mim ou contra Rosette...
Abri o dossiê e comecei a ler.
3

Quarta-feira, 20 de março
eynaud, foi tão fácil. Nem sequer pensei duas vezes. Lembro-
R me de Tante Anna nas escadas e de Mimi na bancada de
pedra e dos frascos de conservas e picles e geleias a brilharem
naquela luz submarina. O homicídio é aquela luz fria e azul. O
homicídio é como os quadrados numa manta de retalhos,
variados e multicores.
Lembro-me de a ver pairar acima de mim ao cimo dos degraus
da cave. Lembro-me das suas botinhas pretas brilhantes ao nível
dos meus olhos. Sem sequer pensar, estendi um braço e puxei
um tornozelo com meia. Ela soltou um grande grito de
indignação, que se transformou num uivo de alarme quando se
desequilibrou e começou a cair. Recuei de um salto para lhe dar
espaço, e ela caiu de braços estendidos sobre o chão da cave e
eu ouvi o som do seu pulso e da sua clavícula a partirem-se. Era
só uma meia dúzia de degraus. Não o suficiente para a matar
logo, mesmo com sorte. Mas então, Reynaud, tirei um frasco de
compota de morango de uma das prateleiras – um frasco de
cerâmica de dois litros, da compota que Tante Anna fizera essa
semana – e, antes que ela pudesse reagir ou gritar ou
compreender o que eu estava a fazer, deixei que a força da
gravidade fizesse o que eu não era capaz de fazer e arremessei
o frasco contra a nuca dela, tendo o cuidado de usar a sua base,
que não se quebraria sob o impacto.
Eu sei. Soa como algo feito com frieza. Não foi, Reynaud.
Sentia-me mais desperto do que alguma vez estivera. Sentirmo-
nos despertos nem sempre é bom. Mas eu sentia-me como se
uma janela tivesse acabado de se abrir para o mundo; uma
janela através da qual eu podia ver a verdade. Talvez tenha sido
assim que Adão e Eva se sentiram quando comeram da Árvore
do Conhecimento. Como se o seu mundo antes não fosse mais
do que uma tela, muito bem pintada com cenas pastorais, por
trás das quais a verdade aguardava pacientemente que um deles
a afastasse para o lado.
E, no entanto, apesar de todos estes pensamentos bíblicos, o
seu Deus nunca me parecera menos real do que naquele
momento. Só eu era real, Reynaud; e sabia que nunca mais
seria o mesmo. Alguns atos são transformadores. Mesmo aos
onze anos eu sabia isso. Nunca mais voltaria a brincar junto ao
Tannes ou a passear pelos bosques ou a apanhar morangos da
mesma maneira, agora que era um homicida.
Tante Anna não morreu de imediato. Ainda durou uns minutos.
O seu rosto tinha assumido uma forma estranha e um olho tinha-
lhe desaparecido para dentro da cabeça. O outro fitava-me. Era
azul e estava brilhante e eu não conseguia perceber se o brilho
era de fúria, de medo ou de ódio. Ela não disse uma palavra, no
entanto. Mas eu ouvia-a respirar. E o sangue estava a escorrer
lentamente e a acumular-se à volta dela; manchava-lhe de
vermelho a renda da gola; delineava-a nas lajes da cave. Por fim,
a respiração parou. O brilho dos olhos ficou vidrado. O sangue
estancou.
O frasco não se tinha partido. É preciso muito para partir a
base de um daqueles frascos. Limpei-o com o meu lenço e voltei
a pô-lo na prateleira. A Guerra tinha-me passado ao lado em
grande medida, mas eu sabia o suficiente para me lembrar de
que os alimentos eram um bem a nunca desperdiçar.
*
Demorei horas a ler as páginas com aquela escrita cerrada. Li
sozinha, no meu quarto, até tarde, e nunca deixei de ouvir a voz de
Narcisse; a voz do Narcisse que conhecia, mas também a voz do
rapazinho que ele fora, o que tinha levado este ato para a sua
sepultura e ainda sentia suficientemente o seu peso para querer
confessá-lo a Reynaud.
Porquê Reynaud, logo ele? Narcisse não era crente. Nunca
sequer gostara de Reynaud, e, no entanto, o impulso de se
confessar a ele era claramente demasiado forte para lhe resistir.
Porquê? Há respostas aqui, sei-o. Por isso é que tenho de ficar
com este dossiê – pelo menos até as ter descoberto. Sei que não
era a mim que se destinava, mas tenho de o ler até ao fim. E o que
saberá Rosette de tudo isto? Terá consciência da existência deste
documento? Gostava de lho perguntar diretamente, mas receio
que ela não me responda. Há algo aqui que os liga a todos –
Narcisse, Reynaud, Rosette, Morgane. – Algo sobre a mata de
carvalhos que agora pertence à minha filha. Michèle Montour já
acredita que há um segredo à volta desta mata. Se eu conseguisse
descobri-lo...
Um gato atravessou-se no teu caminho na neve, e miou. O
Hurakan estava a soprar.
Aquelas frases. Por que as ouço com tanta frequência, à noite,
quando o mundo está a dormir? A princípio, pensei que era a voz
da minha mãe; soa quase como ela. A seguir, pensei que
reconhecia a voz de Zozie de l’Alba. Mas agora penso em
Morgane Dubois e na maneira como me falou quando nos
conhecemos, na maneira como me fala até mesmo agora daquela
montra com os estores descidos.
Sente-me. Encontra-me. Encara-me.
Mais uma vez pego nas cartas da minha mãe. A Morte. O Louco.
A Torre. A Mudança. Por baixo delas, tiro o Três de Espadas: a
carta da tristeza mais profunda. A seguir, o Quatro de Ouros:
poder. Depois o Quatro de Paus: vitória. Mas para quem? Morgane
e eu somos esferas perigosas, postas numa órbita em risco de
colisão. Uma de nós quer cavalgar o vento; a outra quer silenciá-lo.
Uma de nós quer ser um carvalho com raízes bem fundas; a outra
quer ser sementes de dentes-de-leão. E assim, para o bem da
minha filha e para meu bem: uma de nós terá de partir.
O telefone na mesa de cabeceira emite um som – um só toque,
como um minúsculo sino. Anouk. Deve estar a fazer uma noitada.
E eu estava tão ocupada com o texto de Narcisse que me esqueci
de lhe enviar a habitual mensagem de boa noite.
Chego mais cedo. Sozinha. Até sexta. Tenho novidades! A. xx
Pergunto-me que novidades serão. Soa a mudança, e no meu
mundo a mudança nem sempre é tão excitante como a minha filha
de verão esperaria. A mudança é muitas vezes perigosa; a sua voz
demasiado como a voz do vento.
Escrevo: É claro. Até sexta! xxx
E, no entanto, algo em mim gostaria que ela tivesse mantido o
plano anterior. Tivera a esperança de que Morgane já tivesse
partido quando Anouk chegasse. Anouk confia facilmente. Não
verá nenhum perigo. Vai adorar a porta púrpura, pintada numa cor
igual à do cabelo dela. Vai ficar fascinada com Morgane, com os
seus pés de metal e as suas muitas tatuagens. E eu não vou poder
impedi-la de ouvir aquele murmúrio, aquela ordem...
Encontra-me. Sente-me. Segue-me.
Quarenta e oito horas não é muito tempo. E, no entanto, vejo o
que tem de ser feito. Quarenta e oito horas para mudar o vento.
Para corrigir o curso das nossas vidas, para mudar o caminho
cruel do Hurakan. Quarenta e oito horas para afastar Morgane,
como um nevão fora da época. A princípio, afigura-se uma tarefa
impossível. Morgane Dubois parece imune ao meu tipo de
persuasão. Mas conheço alguém que não o é. Alguém que é
capaz de tomar todo o tipo de medidas. Alguém que compreenderá
porque ela não pode ser tolerada. Alguém que já demonstrou ser
mais do que meramente suscetível ao encanto do grão de cacau.
Experimenta-me. Saboreia-me. Põe-me à prova.
Até agora, Francis Reynaud não reagiu tão bem como eu
esperava à ameaça de Morgane. Tem sido mais fraco, mais
tolerante do que eu contava. Os seus sermões têm sido pouco
convincentes, abordando mais o mal em geral do que o mal
específico representado pelo negócio de Morgane. Sei-o porque
Caro Clairmont me falou sobre o assunto na loja: depois de um dos
meus chocolates especiais, torna-se bastante expansiva.
– M. le Curé está a perder o jeito – diz-me ela com um ar de
desprezo. – Os sermões dele já quase não fazem sentido, e na
semana passada, no confessionário, nem senti que ele estivesse
sequer a escutar...
Mas Reynaud é o coração de Lansquenet. A sua influência vai
muito além da comunidade que frequenta a igreja. Com Francis
Reynaud do meu lado, ainda tenho uma hipótese de vitória.
Mesmo em quarenta e oito horas, juntos, podíamos fechar-lhe a
porta. Afinal, eu ainda sou Vianne Rocher. E conheço todos os
favoritos dele.
4

Quarta-feira, 29 de março
annick Montour anda a evitar-me. Aparentemente, nem mesmo
Y o isco dos bolos é suficiente para o fazer rebelar-se contra a
influência da mãe. É uma deceção, père. Eu tinha a esperança de
que o dossiê desaparecido me tivesse sido já devolvido. Será que
o rapaz me anda a mentir? Será que Mme. Montour ainda o tem na
sua posse?
Ao longo da última semana, tenho rezado e sofrido e transpirado
em partes iguais. Não consigo comer; não consigo dormir; e os
meus sermões são uma coisa divagante, uma vergonha, sem
estrutura e repetitivos. Comecei o sermão de ontem com a
intenção de citar Levítico 19:28 – Não fareis incisões no vosso
corpo por um morto, nem tatuagens na pele. Eu sou o SENHOR – e
acabei antes a falar, muito mais tempo do que o usual nos
sermões da semana, sobre a marca de Caim e sobre como um
crime nunca pode ser apagado, nem mesmo além-túmulo.
Aquela mulher, Morgane, no seu estúdio de tatuagem, olha para
mim com uma espécie de preocupação – não sei se devido ao
conteúdo dos meus sermões ou se vê que estou a ir-me abaixo e
se pergunta qual será a causa. Seja como for, não preciso da
compreensão dela – nem da de ninguém. O meu jardim é o meu
único escape, e vingo-me nos morangueiros silvestres, já que não
posso dirigir a vingança contra os meus atormentadores humanos.
Omi Mahjoubi, demasiado velha para ter tento na língua,
comenta o que os outros não se atrevem a comentar. – Parece
doente, M. le Curé – diz ao passar pelo meu jardim. – Demasiadas
waswas, e poucas chamuças da minha pequena Maya.
Ela tem razão. Quem me dera poder dizer-lho. Mas a minha
confissão não é para os ouvidos dela. Se ainda acreditasse em tais
coisas, poderia apanhar um autocarro para Agen e procurar outro
confessor. Mas o senhor, mon père, absolveu-me do meu pecado,
e no entanto ele tem crescido, como as plantas dos morangos, a
duplicar-se uma e outra vez, célula escura e cancerosa por célula
escura e cancerosa, quando eu acreditava que se tinha ido. Mais
tarde, apercebi-me de que o senhor, mon père, não andara a
seguir o plano de Deus, mas o seu. Isso fez da sua absolvição
uma fraude e tornou o meu arrependimento nulo e sem efeito. Mas
agora a quem deveria confessar-me? A Père Henri Lemaître, o
padre jovem da vila vizinha? Talvez ao bispo, cujo amor por Deus
está em segundo lugar, a seguir ao seu amor pela papelada? As
vítimas do meu crime – Pierrot, com a alcunha de La Marmite, e a
sua companheira, Choupette – já há muito desapareceram. Até
mesmo as gentes do rio os esqueceram. E, no entanto, o crime em
si mantém-se. Deixa uma marca que não pode ser apagada.
Se pelo menos eu pudesse ter a certeza de que os Montour não
leram o documento de Narcisse. Se pelo menos conseguisse
acreditar no rapaz quando me diz que o dossiê simplesmente
desapareceu – como a resposta a uma prece. Mas Deus não
atende às minhas preces. Tenciona ficar a ver-me morrer em
silêncio.
Passaram por mim hoje quando eu estava a trabalhar: o rapaz
abotoado num fato que lhe ficava mal, como se fosse a uma
entrevista para um emprego. Tentei chamar-lhe a atenção, mas ele
estava com a mãe e afastou-se à pressa sem olhar para mim.
Mme. Montour foi mais ousada, lançando-me um sorriso triunfante,
e reparei que também ela estava com roupas mais próprias para ir
à missa do que para ir às compras. Dominou-me uma súbita
suspeita. Teriam ido a Agen? Teriam ido falar com a advogada?
Um telefonema para o escritório de Mme. Mak revelou-se pouco
satisfatório. A secretária dela confirma que Mme. Montour tinha
uma marcação, mas recusa-se a dizer-me porquê. Talvez ela
tencione contestar o testamento. Esta explicação – embora
plausível – não contribui nada para me tranquilizar. Não chego a
perguntar diretamente se o dossiê verde está envolvido. Não quero
que se saiba que o perdi. Digo para comigo que a atitude de Mme.
Montour pode ser um bluff, uma tentativa de me fazer mostrar as
minhas cartas. Digo para comigo que ainda há esperança de que o
dossiê me seja devolvido, mas a minha voz está longe de ser
convincente.
Se eu fosse outra pessoa, talvez me voltasse para Vianne
Rocher em busca de conselho. Mas Vianne está atarefada a
preparar-se para a visita da filha, e, além disso, tão perto da
Páscoa, a loja está sempre cheia de clientes. O que posso fazer?
Comecei a tomar um cálice de Armagnac todas as noites, para me
ajudar a dormir. Mas os meus sonhos são estranhos, e acordo
cansado, de olhos pesados e desesperado. Por vezes, tento dizer
a mim mesmo que isto está tudo na minha cabeça: que talvez não
haja, na confissão do homem, nenhuma menção do que eu fiz. No
entanto, mantém-se a minha certeza. Por que outro motivo me
provocaria ele com as palavras: meu pai, o assassino?
Sete dias, mon père. Sete dias. Mais do que demorou a fazer o
mundo. Qualquer coisa seria melhor, mon père, do que esta
espera incessante. Até mesmo a morte seria preferível a esta
calma antes da tempestade. Não receio a morte. Só receio que
possa haver vida depois da morte. Ando sempre a recordar um
poema que aprendi de cor na escola primária, um poema de Vitor
Hugo, intitulado A Consciência. O fratricida Caim, atormentado
pela presença do Olho de Deus, tenta escapar-lhe. Contudo, para
onde quer que vá, o Olho de Deus está sempre a observá-lo. Por
fim, em desespero, Caim enterra-se vivo, na esperança de
encontrar repouso no escuro. E o último verso do poema, o que
nunca deixa de me fazer estremecer, é:
Mas o Olho estava no túmulo, e estava a ver Caim.
Mon père. Será esta a minha punição? Não ver Deus, mas sentir
o Seu Olho em mim para sempre? Ou será o olhar de Pierre Lupin,
conhecido como Pierrot la Marmite? Pierrot e Choupette. Soam
como personagens de desenhos animados de um programa infantil
da televisão. Eu não cheguei a ver os rostos deles. Não
apareceram fotografias nas notícias, mas estão muito nítidos na
minha cabeça: o homem um brutamontes, flácido, feio; a mulher,
uma coisinha franzina, com tatuagens.
Para si, algo radical e puro. Talvez algo a ver com o fogo.
Morgane sabe, mon père. A quem mais terá contado? Tem
muitos clientes. Será que respeita o equivalente ao segredo do
confessionário? Ou segredará os seus segredos a todo o vento
que passa?
5

Quinta-feira, 30 de março
epois de dar o dossiê a Morgane, pensei muito. Pensei no
D bosque dos morangos e no motivo pelo qual Narcisse mo quis
deixar. Principalmente por causa de Mimi, suponho, porque eu lha
recordava. E pensei na história dela e em como deveria ter
acabado e fiz um desenho de Narcisse e Mimi a partirem no barco
de Mimi e da horrível tia a ficar para trás, para ser comida por
patos na margem do rio.
Isso fez-me sentir um pouco melhor. As imagens contam
histórias tão bem como as palavras, e as palavras não são
realmente aquilo de que mais gosto. Mas uma imagem pode tornar
o que aconteceu no que devia ter acontecido, e isso é um tipo de
magia que nem sequer se pode fazer com chocolate.
Pensei também em Morgane. Penso muito em Morgane. Vejo
que a maman não gosta dela. Diz que é uma má influência. Mas
tantos dos nossos amigos têm tatuagens que realmente não
compreendo porque é que ela as detesta tanto. Ou talvez seja só
Morgane que ela detesta. Pode ser isso. Já a ouvi na chocolaterie,
a falar com os clientes. Mas tento não escutar o que ela diz. Anda
tão diferente ultimamente, mesquinha, maliciosa e zangada. A voz
dela não é zangada – mas consigo ver as cores por trás das
palavras que diz, e parecem agora as cores de Reynaud, todas
baralhadas e confusas e assustadas. Não gosto de pensar que a
maman anda com medo, principalmente de Morgane. Além disso,
a maman nem sequer conhece Morgane. Tenho a certeza de que
se a conhecesse não tardaria a ser amiga dela. Talvez eu possa
ajudá-la a mudar de ideias. Ela bem precisa de uma amiga, e
Morgane consegue fazer amizade com qualquer pessoa...
E por isso, esta manhã, quando a maman estava ocupada com
um cliente, voltei ao estúdio de tatuagem. Levei outra vez o meu
livro de desenhos, para mostrar a Morgane a minha nova arte.
Mostrei-lhe o desenho de Mimi e Narcisse, e ela olhou para ele
durante muito tempo.
– És muito dotada – disse por fim. – Sabes, o teu estilo podia
facilmente transpor-se para desenhos de tatuagens.
Eu não tinha a certeza disso. Disse: Deve dar uma sensação
esquisita, desenhar na pele.
Ela riu-se. – Esquisita? Podes crer que sim. Rosette, tatuar é
uma arte, e mais do que isso. Já existe há milénios. Os Maias, os
Egípcios, os Moches. Por que o faziam? Ninguém sabe. Talvez
para aplacar os deuses. Talvez para obter as energias dos
desenhos que escolhiam para si. Mas todo o ato de criação é um
ato de poder. É mágico: transformador. Deixa uma marca
permanente no mundo. E não é para isso que serve a arte, na
realidade?
Ela di-lo melhor do que eu. Mas eu já tinha pensado nisso. As
imagens são mágicas. As palavras não são precisas. E as palavras
podem mentir, mas as imagens não.
Eu disse: Acredito na magia.
– É claro que acreditas. A tua mãe é feiticeira, não é?
Estávamos a tomar o pequeno-almoço: croissants com recheio
de chocolate e café. Os croissants são da padaria de M. Poitou; o
café estava quente e muito escuro. Eu não devia tomar café.
Ela olhou para mim e sorriu. – Julgas que não reconheço uma
feiticeira quando a vejo? – disse. – Prever o futuro com chocolate,
ou prevê-lo com tinta: não há realmente grande diferença. Queres
experimentar?
Acabei de tomar o café. Era bom. A maman diz que me põe
hiperativa. Mas Morgane toma muito café, e ela não é hiperativa:
de facto, é a pessoa mais calma que conheço. E adoro a maneira
como ela fala comigo – como se fôssemos colegas ou coisa do
género – e a maneira como compreende sempre, mesmo quando
eu não falo por palavras.
– Bem? – disse Morgane.
Eu não devia, disse a minha voz-sombra.
Ela ergueu uma sobrancelha. – Porque não? – perguntou.
Por vezes, há Acidentes.
Morgane acenou com a cabeça e olhou para mim. Estava a
sorrir, mas eu sabia que também estava séria. – A vida é um
acidente – disse. – Não se pode viver a vida com medo. Além
disso, isto não é perigoso. É só um pequeno ensaio. – Pousou a
chávena vazia do café e passou-me para as mãos a máquina de
tatuagem. – Eu mostro-te como a usar – disse. – Precisas de ter a
mão firme, é tudo; e de apanhar o jeito ao meio.
O meio, como fiquei a saber, era uma folha de qualquer coisa
semelhante a vinil branco e macio.
– Supostamente, dá a mesma sensação que a pele – disse
Morgane. – Já não o uso há algum tempo, mas gosto de ter
sempre umas folhas à mão.
Olhei para a máquina de tatuagem. Parecia um desenho bonito e
simples. Encostei a agulha à folha de ensaio e fiz uma pequena
marca. BAM!
– Continua... não tenhas medo. Tenta desenhar alguma coisa –
disse Morgane.
E foi o que fiz – um macaco – muito lentamente, a manter a
agulha num certo ângulo contra o pedaço de plástico. Nos
espelhos, Bam fazia caretas e andava aos tombos por entre as
folhas de morangueiro.
– Deixa-me ver. Nada mau – disse Morgane.
Algumas das linhas não saíram muito nítidas.
– Isso é porque não pressionaste com suficiente firmeza. Tenta
outra vez, e não te esqueças de fazer sempre pressão de forma
uniforme.
Desta vez resultou melhor, pensei. A linha era forte e escura e
verdadeira. O truque é manter o controlo da linha e avançar a um
ritmo que parece muito, muito mais lento do que o normal. Quando
desenho, desenho muito depressa, como penas sobre o papel. Isto
era como desenhar com melaço. Mas a pele não é realmente
como papel. Não se está simplesmente a desenhar sobre a pele,
está-se a desenhar através dela, para o que está por baixo.
Morgane olhou para a imagem. – Ótimo. Agora, olha para os
espelhos.
Quer dizer, para o meu reflexo?
– O reflexo é só uma outra palavra para pensamento. E
desenhar significa apenas passar para o outro lado. Limita-te a
olhar e a pensar e passa-o para o outro lado, como um fio no
buraco de uma agulha.
Encolhi os ombros. Vou tentar.
Nos espelhos, Bam tagarelava e dançava.
– Pede ao teu amiguinho para parar por um bocado.
Morgane consegue ver Bam tão bem quanto eu. Mais uma razão
para gostar dela. Acenei impacientemente a Bam, que me deitou a
língua de fora e depois recuou.
– Ótimo. Agora, tenta outra vez – disse Morgane. – Não penses
demasiado. Tenta só ver.
Parecia estranho a princípio, olhar para a folha de ensaio de
baixo para cima e de trás para a frente. Fez-me sentir um pouco
enjoada, a tentar calcular a perspetiva. As minhas mãos estavam
descontroladas, como aves a bicarem uma tela.
– Não te concentres nessas coisas – disse ela. – Nem sequer
olhes para a imagem. Tenta só ver.
Desenhei uma linha. Parecia a margem do rio.
– Está bom assim – disse Morgane. – Continua. Pensa talvez em
alguém que conheças. Que tal M. le Curé ?
Sorri e desenhei um corvo preto triste a sobrevoar a água. E
depois sombreei-o, escuro e lento, fazendo espirais de fumo
erguerem-se da água. Não olhei para o papel de ensaio nem para
as minhas mãos ou mesmo para a imagem que estava a desenhar.
Deixei só que surgisse, como algo que tivesse estado submerso
durante muito, muito tempo, a erguer-se das sombras e a vir
lentamente à superfície.
Quando olhei para cima, Morgane estava a sorrir. Os seus olhos
estavam muito brilhantes e azuis.
Que tal foi?
– Vê por ti.
Olhei para a folha. Estava melhor desta vez. As linhas eram
firmes, ininterruptas. Mas era um desenho simples, como algo num
bloco de madeira. Eu sabia que seria capaz de fazer melhor, mas
não estava mal, para uma primeira tentativa.
Olhei para os instrumentos junto à cadeira. Havia outras peças
para a máquina: peças especiais para sombrear, para fazer cores
diferentes, pontilhar.
Essas a seguir, disse eu.
– Da próxima vez. Darias uma boa artista de tatuagem, Rosette.
Aquilo fez-me sorrir, e Bam pôs-se a dançar por entre as folhas e
os espelhos. Morgane olhou para ele e também sorriu. – Penso
que ele aprova.
Eu disse: Quero experimentar em pele a sério.
Ela sorriu. – Tens entusiasmo. Isso é bom, Rosette. Mas talvez
seja melhor usares peles de ensaio antes de começares a tatuar a
pele humana. Além disso, em quem começarias?
Em mim, claro, disse eu. Em quem mais?
Ela riu-se. – Primeiro, mais prática. Depois veremos.
6

Quinta-feira, 30 de março
iquei até chegar o primeiro cliente dela. Depois disso, ela
F mandou-me embora. Ninguém deve ficar a ver, diz ela. Caso
contrário, a magia não resulta.
Tinha faltado ao almoço, mas não fazia mal, porque já tinha
comido quatro croissants e tomado imenso café com açúcar e
natas. Podia ter voltado para a chocolaterie, mas ainda me sentia
demasiado entusiasmada com a ideia de aprender a fazer
tatuagens para pensar em chocolates da Páscoa, e por isso meti
as minhas peles de ensaio na mochila cor-de-rosa e fui até à
quinta de Narcisse – bem, suponho que devia chamar-lhe a quinta
Montour agora – na esperança de encontrar Yannick. Queria
mostrar-lhe as minhas peles de tatuagem. Sabia que ele ia gostar
tanto delas quanto eu. E ainda precisava de lhe explicar que levara
a história de Narcisse. Esperava que ele não ficasse aborrecido.
Esperava que ele compreendesse que eu estava a tentar pedir
desculpa.
Fui pelo caminho para o meu bosque de morangos, mantendo-
me junto à sebe. A sebe pertence ao bosque, o que significa que
me pertence a mim agora. É da minha responsabilidade. Apanhei
um par de garrafas de plástico que tinham ido parar à valeta e
troquei umas palavras com uns corvos que andavam a incomodar
um melro que estava a fazer o ninho. Não queria expulsá-los, mas
quero que eles saibam que eu é que mando agora. Ninguém é
incomodado quando sou eu que mando. Levo as minhas
responsabilidades a sério.
Estava a verificar o buraco de entrada na vedação quando vi que
a cancela grande estava aberta. Tenho a chave do cadeado, mas
nunca precisei de a usar. Prefiro a minha velha maneira de entrar e
sair. Fui até à cancela, olhei para ela e vi que o cadeado estava
estragado. Tinha sido cortado, usando algo como um alicate dos
fortes, e, agora que prestava atenção, ouvia vozes vindas do
interior do bosque, da clareira dos morangos.
Por um minuto, não soube o que fazer. Estava demasiado furiosa
para organizar os meus pensamentos. Ao meu lado, Bam fez uma
careta horrível e guinchou como um macaco. O murmúrio de vozes
cessou, como se alguém tivesse ouvido o guincho, e depois, daí a
uns segundos, começaram outra vez: uma grave, a outra aguda,
como dois mochos a chamarem-se um ao outro.
Entrei pela cancela aberta, pegando no cadeado estragado.
Perguntei-me quem estaria no meu bosque e o que eu faria para
os pôr dali para fora. Yannick estar lá era uma coisa – ele é meu
amigo, afinal –, mas isso não significa que qualquer pessoa possa
entrar sem ser convidada. Além disso, tinham estragado o meu
cadeado. Era invasão de propriedade.
Consigo andar bastante depressa, desde que Bam não se porte
mal. Desta vez, ele avançou tão silenciosamente como um tigre à
caça, com os olhos brilhantes e os dentes arreganhados.
Perguntei-me o que faria se fossem ladrões ou um bando de
rapazes de Les Marauds que tivessem entrado no bosque para
fumar e beber vinho barato da garrafa.
Mas não eram rapazes de Les Marauds. Quando cheguei à
clareira dos morangos, vi Mme. Montour e Yannick, não muito
longe do velho poço. Yannick trazia uma coisa que parecia um
aspirador portátil. Mme. Montour estava com umas botas pretas
brilhantes, e fez-me pensar na Tante Anne de Mimi, com as suas
botas e a sua cruz de prata. Havia uma pá espetada no solo ao
lado dela e quatro montes de terra na clareira que não estavam lá
na minha visita anterior. Parecia que uma toupeira dos desenhos
animados tinha estado em ação por toda a clareira. E havia mais:
eu via algumas ferramentas encostadas ao meu poço dos desejos
– um martelo e um pé de cabra. E alguém tinha tirado à força a
grelha de metal que servia de tampo ao poço e algumas das
pedras no rebordo, de maneira que pareciam dentes partidos...
Fiquei em silêncio por um minuto, a ver o que eles estavam a
fazer. Yannick estava a passar a coisa que parecia um aspirador
lentamente sobre o solo, e compreendi por fim o que era. Era um
detetor de metais. Enquanto o observava, o detetor soltou um
apito, e Mme. Montour pegou na pá começou a abrir um buraco na
relva...
Eu não queria crer. A princípio, fiquei demasiado surpreendida
para me sentir furiosa. Mas depois a fúria começou a crescer em
mim e apercebi-me de que não poderia contê-la. Dava a sensação
de um vento brando ao princípio, talvez até uma brisa de verão,
mas era quente e cheirava a fumo e eu reconheci que era
perigosa. Já há muito tempo que não havia um Acidente perigoso,
mas eu via que desta vez o vento poderia facilmente levar-me
consigo.
Disse: – BAM! – tão alto quanto pude, na esperança de o
controlar.
Yannick e a mãe viraram-se. Vi Yannick arregalar os olhos. A
coisa que parecia um aspirador caiu-lhe das mãos para o chão.
Mas Mme. Montour não ficou surpreendida. Em vez disso, fez
um som zangado a mandar-me calar e disse: – Por amor de Deus,
Yannick! Não temos o dia todo. – Não parecia culpada ou sequer
embaraçada por estar a invadir propriedade alheia, só irritada por
me ver, como se eu fosse quem estava no lugar errado.
Emiti um pequeno som de aviso, tudo o que consegui fazer sem
usar palavras más.
A mãe de Yannick encolheu os ombros. – Eu sei que,
tecnicamente, esta terra é tua – disse –, mas isto é importante.
Quero dizer, de que te servem dezasseis hectares? A não ser que
tenciones vendê-los, e nesse caso não te importará se damos ou
não uma espreitadela. – Virou-se para Yannick. – Não fiques aí
parado! Pega no detetor de metais. Há alguma coisa nesta clareira
para além de tampas de garrafas e moedas, e temos de saber o
que é. Somos a família dele, afinal. Ele não tinha o direito de nos
esconder isto.
Yannick lançou-me um olhar pesaroso, como que a dizer
Desculpa. Mas eu não tinha tempo para aquilo. Estava a sentir-me
estonteada com a fúria. Bailavam-me nos olhos uns pontinhos
vermelhos, como as faíscas de uma fogueira de São João.
Oh, isto é mau, pensei. Isto é mau. Isto é território de furacão.
Via Bam nos carvalhos, a balouçar-se loucamente de ramo em
ramo, o pelo como chamas. O furacão vinha aí.
Fiz sinal a Yannick. Tens de te ir embora.
– Oh, não me venhas com essa – disse Mme. Montour. – Eu sei
que consegues falar quando queres. E sei o que me roubaste,
enquanto eu estava a falar com o Reynaud.
Eu disse: Vão-se embora na minha voz-sombra. As folhas nas
árvores começavam a abanar. O vento estava a intensificar-se. Era
só um ventinho, mas já estava a ficar frio, e eu sentia as nuvens a
aproximarem-se, a rondarem a clareira como água a descer por
um cano.
Mme. Montour não pareceu reparar. – Entraste na minha casa à
socapa – disse. – Eu podia fazer queixa de ti à polícia.
Eu disse: Você roubou o dossiê do Narcisse.
– Não fiz tal coisa – disse Mme. Montour. – O Reynaud não tinha
o direito de mo sonegar. O Narcisse era meu pai, não teu, e tenho
o direito de saber o que ele te deixou exatamente.
Por favor. Vá-se embora, disse eu. Vá-se embora, ou eu conto à
maman.
A mãe de Yannick falou num tom de desprezo. – Então, viemos
dar uma vista de olhos ao teu bosque privado. Não é propriamente
crime ser curioso. Não nos demoramos... pois não, Yannick? Só
mais cerca de uma hora...
Nessa altura, eu começava a sentir-me em pânico, além de
furiosa. Vão-se embora. Os dois. Vão-se embora e não voltem. E
desta vez não era uma voz-sombra, mas algo que sacudia as
folhas como chapas de metal, a voz que convoca o Hurakan.
Acima de nós, as nuvens começavam a adensar-se. Eu sentia-as
girar como lã num fuso. Sabia que estava a causar um Acidente,
mas não conseguia parar; naquele momento, não queria saber se
ambos fossem levados pelo vento.
Este era o meu sítio, o sítio de Narcisse. Este era o meu refúgio
privado. E Mme. Montour entrara nele sem autorização, pusera-se
a revistá-lo com um detetor de metais, tinha arrancado a grelha do
poço dos desejos, fizera buracos na clareira dos morangos. E pior,
Yannick ajudara-a. Sentia-me como se fosse toda feita de
pequenas sementes vermelhas, mantidas juntas pelo calor e pelo
fumo, prontas para se dispersarem com o vento...
Yannick parecia nervoso. – Maman... – Acima dele, as árvores
eram colunas de fumo, as suas folhas como pedaços de latão
brilhante. Começaram a cair grandes gotas de chuva, duras e
quentes como moedas. – Maman, acho realmente que devíamos ir
embora.
Um ramo estalou ameaçadoramente por cima da cabeça deles.
Bam estava aos pulos em cima do ramo, a guinchar.
– Devíamos ir embora – repetiu Yannick, e depois, voltando os
seus olhinhos escuros para mim, disse: – A culpa não é minha. Ela
obrigou-me... – antes de se virar e começar a correr para casa,
com o detetor de metais debaixo do braço.
– Yannick! Volta já aqui! – berrou Mme. Montour, mas a chuva
caía com força, embora eu ainda estivesse seca, no centro daquilo
tudo. Acima dela, o ramo da árvore estalou e oscilou.
Vá agora, antes que aconteça uma coisa má disse eu na voz do
Hurakan, e Mme. Montour lançou-me um dos seus olhares e disse:
– Tu és uma doida perigosa. Afasta-te de mim e do meu filho. –
Depois, seguiu Yannick pelo caminho, sem correr, não exatamente,
mas com aqueles pequenos tacões pretos a martelarem,
apressados, o caminho de terra batida, e o grande ramo tombou
mesmo atrás dela – BAM! – num estrondo de metal e madeira, e
os pequenos tacões pretos martelaram mais depressa, até ela e
Yannick desaparecerem de vista.
Sentei-me nos morangos. Toda eu estava a tremer. Mas a rajada
de vento tinha parado. A chuva tinha parado. O céu estava azul.
Até as folhas das árvores estavam paradas, embora alguns dos
novos rebentos tivessem sido arrancados e atapetassem o chão
como farrapos verde-claros.
Bam estava de novo no chão, com a cauda enroscada à volta
das patas. Eu fiz um som a sossegá-lo, para lhe dizer que o perigo
já passara – por agora. E depois peguei na pá que Yannick e a
mãe dele tinham deixado ficar e comecei a encher as covas que
eles tinham cavado na minha clareira e voltei a pôr as plantas dos
morangos arrancadas e calquei a terra solta, de tal maneira que,
quando acabei, mal se via onde haviam estado os buracos ou que
alguma coisa tivesse mudado.
Mas o poço dos desejos era outra coisa. Não havia como voltar a
pôr a grelha no sítio ou consertar as pedras partidas à volta. Agora,
podia-se olhar lá para dentro, para o escuro, e ver o círculo de céu
a olhar para cima, como a pupila de um enorme olho, a conceber
pensamentos de vingança.
7

Quinta-feira, 30 de março
al dormi ontem à noite. Os meus sonhos foram piores do que
M os tormentos do Inferno. E por isso esta manhã fui à igreja
para rezar aos pés de São Jerónimo. Há anos que não visitava o
patrono da igreja da nossa vila, mas neste momento a minha
necessidade tornara-se já tão grande que estava disposto a
considerar até a hipótese desta solução.
Uma confissão bastante tardia, père. Não sou grande crente nos
ensinamentos de São Jerónimo. O senhor dava um imenso valor à
obra dele, eu sei, e durante muitos anos também eu fui seu
discípulo. Mas as críticas venenosas dele contra as mulheres, a
repugnância pelo corpo delas e o desprezo pela sua mente têm-
me ultimamente feito desconfiar tanto das palavras dele como da
sua tradução da Bíblia, a Vulgata. Recordo-me também de como
orei com todas as minhas forças depois do incêndio em Les
Marauds e de como o senhor, mon père, citou as palavras dele:
«Melhor casar do que viver abrasado.»
A maneira como o disse parecia sugerir que o casal que morreu
no incêndio no barco do rio de algum modo o merecera, por não
serem casados, por estarem a dormir, talvez por estarem
embriagados, e que eu fora meramente o instrumento de uma
qualquer inteligência superior. Rezei para que, se o tivesse sido,
père, a taça terrível me tombasse das mãos; que Deus
regressasse ao Seu lugar no meu coração; que eu pudesse voltar
a ser rapaz. Mas o senhor deixou bem claro que eu tinha uma
dívida para com Deus, uma dívida que só poderia ser paga com a
minha vida, e por isso eu troquei a minha culpa por uma vida
dedicada ao Seu serviço.
Mas você julgou que podia ter mais, diz a voz que está comigo
desde que abri o dossiê de Narcisse. Pensava que era a voz de
Narcisse, mas começo a duvidar. Narcisse era um homem de
poucas palavras, e esta voz é ao mesmo tempo fluente e
eloquente. Julgou que podia esconder-se por trás de Deus, diz a
voz quando me ajoelho aos pés do santo de gesso. Mas, à medida
que o tempo ia passando, compreendeu que Deus era apenas
uma sombra sobre o Sol e que era apenas uma questão de tempo
até você ficar à luz.
Nem sequer sei o que isso significa, père. Costumava pensar
que Deus era a luz. Pensava que, se ele pudesse perdoar-me,
qualquer coisa seria possível.
Incluindo a sua amizade com a Joséphine? diz a voz seca num
tom humorístico. Julgou que podia fazer-se de inocente aos olhos
dela. O que diria ela se soubesse o que você fez? Como pensa
que olharia para si então?
Eu sei exatamente como ela me olharia, mon père: com olhos
tão lisos como espelhos. E algo dentro de mim morreria, uma coisa
que anda a crescer aí há anos, como um rebento de uma árvore
oca. Fecho os olhos e tento rezar – tudo menos isso, por favor: é
melhor a morte e a danação eterna do que isso – mas parece
absurdo esperar que São Jerónimo demonstre alguma
compreensão por mim. Estou envolto pelas chamas da tristeza: a
cabeça lateja-me como se um martelo batesse nela; tenho os
olhos e as narinas cheios de fumo.
E então ouço um som, père. Um som de passos leves atrás de
mim. Jã não estou só na igreja; alguém está de pé junto à porta.
Desponta um suor frio. Será que, inadvertidamente, falei alto?
Pareço culpado, de alguma maneira? Os passos vêm do fundo da
igreja, da zona do confessionário. Talvez tenha vindo alguém
confessar-se. Ponho-me de pé; viro-me e, ao fazê-lo, vejo a porta
a fechar-se delicadamente sobre um clarão escarlate...
Quem seria? Uma mulher, de vermelho. Mas quem? E porque se
foi embora sem dizer uma palavra?
O postigo do confessionário ficou entreaberto. Aproximo-me dele
e em cima do banco vejo um dossiê verde atado com uma fita cor-
de-rosa brilhante. Por um momento, não consigo mexer-me. A
minha prece – a minha prece egoísta e blasfema – foi de algum
modo, milagrosamente, atendida.
Pego na confissão de Narcisse. As mãos tremem-me como
folhas de choupo. Isto será a resposta a uma prece ou um
veredicto final? Seja o que for, tenho de saber. Não posso viver
sem saber ao certo, mesmo que confirme o pior, mesmo que
signifique o meu fim. Com a cabeça a latejar, as mãos a tremer, a
boca seca como pó, abro o manuscrito onde interrompi a leitura e,
mais uma vez, começo a ler.
8

Terça-feira, 30 de março
assei os três dias seguintes a aguardar a inevitável
P descoberta do meu crime. Criado no centro de uma
tempestade católica, toda a minha educação baseada nos mitos
da culpa e da justiça divina, simplesmente nunca me passou pela
cabeça que pudesse escapar à punição.
E por isso, Reynaud, aguardei que o olho de Deus se virasse
na minha direção. Aguardei que o fardo da culpa se instalasse
sobre os meus ombros. Mas nem uma coisa nem a outra
aconteceram. Dormi sem sonhar na minha pequena cama. Comi
os ovos das galinhas de Tante Anna – os ovos que só ela se
permitira comer – e acabei o pão que ela cozera. Depois disso,
comecei a comer um dos presuntos que ela tinha guardado para
o inverno e fruta fresca do pomar e vegetais do quintal e queijo
da despensa.
Cobri Tante Anna e Mimi com dois rolos pesados de oleado,
mas nem mesmo a frescura da cave era suficiente para deter
completamente a decomposição.
Uma vez, o padre foi lá a casa perguntar por que Tante Anna
não tinha ido à igreja, e eu soube que esse seria o momento em
que o meu crime seria descoberto. Mas disse-lhe que ela estava
com uma enxaqueca (Tante Anna era atreita a enxaquecas) e
que estava deitada no quarto dela, e, para minha surpresa, o
padre foi-se embora, e quando regressou o meu pai já estava em
casa e a sua autoridade tinha sido restaurada.
Admito que não pensara muito no que diria ao meu pai. Nunca
tivera tendência para contar histórias mirabolantes, e, além
disso, os cadáveres na cave contavam a sua própria história
macabra. Ele chegou já tarde uma noite – era uma quinta-feira,
acho eu – com uma sacola com papéis e fotografias, e deu
comigo a dormir, com a luz ainda acesa e a porta do meu quarto
aberta. Tante Anna nunca teria permitido nem uma coisa nem
outra, claro: mas o reinado de Tante Anna tinha terminado.
Se o meu pai me tivesse dado tempo para pensar, talvez eu
tivesse tentado mentir. Contudo, mal me perguntou por que
motivo a cama de Mimi estava vazia, toda a trágica história saiu
de jorro – o prato azul e branco; os morangos; a porta fechada à
chave e o frasco de cerâmica. Embora soasse absurdo quando o
contei ao meu pai – «A Mimi morreu. Eu matei a Tante Anna» –
ele manteve-se muito calmo, tão calmo como o Jesus de gesso
que estava pendurado por cima da cama de Tante Anna, a
escutar num silêncio que poderia ter parecido intimidante se ele
não tivesse pegado na minha mão e não a tivesse segurado com
força.
«Mostra-me», disse ele. E por isso levei-o até à cave e mostrei-
lhe os rolos de oleado. Ele espreitou por baixo deles, com o rosto
impassível, e depois disse: «Preciso de pensar», e sentou-se na
laje junto a Mimi e acendeu um cigarro fininho e fumou-o muito
lentamente, segurando-o na concha da mão como aprendera a
fazer na Guerra.
Nunca tinha considerado o meu pai uma espécie de pensador.
De facto, ouvira muitas vezes Tante Anna chamar-lhe um bronco
e um imbecil. Mas aquela passividade calada sempre escondera
um núcleo mais profundo. A persistência que o fizera ir procurar
a viúva do seu irmão virou-se agora para o meu problema, que,
sem palavras e sem recriminações, se tornara agora o nosso
problema.
«Desculpa», disse eu, quando o meu pai olhou para cima.
Parecia a coisa adequada a dizer. E, no entanto, continuava sem
sentir remorsos, nada a não ser dor pela morte da pobre Mimi e
pena do meu pai e medo de poder vir a morrer na guilhotina ou,
talvez, de ser executado como traidor.
Ele olhou para mim. «As desculpas não vão resolver isto»,
disse. «Temos de pensar numa explicação.»
E por isso eu sentei-me no chão da cave, como um menino da
escola à espera da hora do conto, e pus-me a escutar o meu pai,
enquanto ele acendia outro cigarro e andava de um lado para o
outro entre os presuntos pendurados e as prateleiras com
frascos de compota de morango, e por vezes falava, como se
para consigo, naquela voz suave e refletida. Em toda a minha
vida nunca ouvira o meu pai falar tão fluentemente como naquela
noite. Fazia-o agora, como se a morte de Tante Anna o tivesse
libertado do feitiço que o mantivera em silêncio toda a sua vida.
«Eu dantes gaguejava muito», disse ele. «Gaguejava quase
desde a mais tenra infância. A Anna costumava corrigir-me.
Usou todos os métodos possíveis. A compreensão estava para lá
das suas possibilidades. A paciência era impossível. Os métodos
dela eram o ridículo e a culpa, de tal modo que, de cada vez que
eu abria a boca, parecia uma declaração de guerra. Costumava
imaginá-la como uma galinha, a bicar as palavras na minha
língua. Perguntei-me muitas vezes se o meu irmão teria o
mesmo problema de fala. Se sim, curaram-no dele. Mas eu tinha
a Tante Anna. Mantive-me emudecido.»
Sorriu e soprou fumo para o ar. À luz da lamparina tinha uma
auréola dourada, como a de um santo.
«Tive de ir ao Norte, compreendes?», disse. «Era essencial.
Não por causa da viúva, mas porque a viúva se recordava dele.
Do meu irmão. Do gémeo que nunca cheguei a conhecer, levado
para longe de mim na primeira infância.» Esmagou o cigarro com
o tacão do sapato. «Narcisse e Modeste. Que nomes tão
antiquados. Uma piada, talvez. A mim deram-me o nome do
rapaz lindo que morria de amores por si mesmo ao ver-se
refletido. Ele era Modeste, o sossegado. O que se sacrificava.
Isso tornava-nos opostos, ele e eu, reflexos um do outro.»
Escutei, fascinado, a história que o meu pai contava. Não a
compreendi toda, mas já tinha idade para saber que esta história
não se destinava a mim. Era a confissão do meu pai, Reynaud –
uma confissão que nenhum padre alguma vez ouviria – e,
enquanto ele continuava, eu compreendi que era também a sua
maneira de dizer adeus.
*
Mais uma confissão. Do pai, desta vez. Também teria de lhe dar
a ele a absolvição? Parece haver absolvição para todos, exceto, é
claro, para mim, mon père – eu tenho de carregar a minha culpa
para sempre. A absolvição resulta mesmo quando uma pessoa já
está morta? Ou caberá a Deus dá-la depois disso? Não coube
sempre a Deus? E, nesse caso, como pode alguém ter alguma vez
a certeza de que foi perdoado? Virei a página e continuei a ler:
*
A viúva do meu irmão andava fugida desde o fim da Guerra.
Algo a ver com os nazis. Negócios no mercado negro; talvez
mais. Falatórios na vila. Não perguntei. Acabei por a descobrir
em Nantes. Estava a viver numa pensão com os seus três filhos,
e fazia trabalhos de costura. Estava doente. Não conseguia
andar. Tivera de abandonar a quinta. Apresentei-me, mas nem o
meu nome nem o do meu irmão pareciam dizer-lhe algo. Vim a
descobrir mais tarde que ele tinha mudado de nome próprio
ainda em criança. Não o censuro. Talvez eu tivesse feito o
mesmo, se Tante Anna mo tivesse permitido.
O meu pai esmagou o cigarro no chão onde o sangue da
minha tia se tinha derramado. «Falar dá sede», disse ele,
parecendo surpreendido. «Não sabia. Não estou habituado a
falar tanto!» Foi até às prateleiras de garrafas e frascos;
escolheu uma garrafa de cidra. Ainda me lembro do som da rolha
a saltar, festivo naquele lugar de morte. Havia espuma no bocal
da garrafa; os fantasmas de verões passados douraram o ar.
«Fiz o que podia. Paguei as dívidas dela. Devia isso ao meu
irmão. Em troca, ela deu-me um velho álbum de fotografias.
Imagens da vida do meu irmão, Da sua infância. Da sua vida de
adotado. Parece-se muito comigo, mas mais novo, agora,
corajoso no seu uniforme do exército. Alistou-se logo nos
primeiros tempos e morreu no primeiro combate. Tinha trinta
anos. Mais velho do que a maioria. Mais um ano, e poderia ter
sido dispensado do serviço militar.»
O meu pai bebeu mais um gole da garrafa e arrotou. A seguir,
voltou a olhar para Tante Anna debaixo do oleado e fez um
sorriso retorcido, como se mesmo agora tivesse consciência da
sua reprovação silenciosa. Ergueu a garrafa no que parecia um
brinde irónico e prosseguiu:
«Narcisse, talvez te tenhas perguntado porque nunca me
alistei. O facto é que queria. Tentei, mas a idade já estava contra
mim. Além disso, o facto de gaguejar desde a infância tornava-
me difícil comunicar. Tentei várias vezes – cheguei até a
escrever uma carta ao Commissaire – mas de cada vez que me
apresentava a minha voz recusava-se a funcionar.
«Tante Anna ficou encantada. ‘Sempre soube que eras um
fraco’, disse. ‘Nem sequer és capaz de morrer pelo teu país.
Imagina só seres uma coisa tão sem valor que até morrer é de
mais para ti.’»
Ele conseguiu imitar a voz dela tão convincentemente que
quase me senti alarmado, Reynaud. Era como se ela tivesse
rastejado para dentro da boca dele e estivesse a usar-lhe a voz.
«Eu já vivia com ela há vinte e nove anos», prosseguiu o meu
pai. «Só Deus sabe porque ela me acolheu, mas nunca foi uma
mãe para mim. Aos olhos dela, eu nunca cresceria: seria sempre
aquele rapazinho, o rapazinho que nunca fora bem um filho. Mas
depois conheci a Naomi. Conheci a tua mãe, e tudo mudou.»
*
Ah, de novo aquela velha história, père. O amor é transformador.
O amor redime. Já ouvi esta história tantas vezes, a mulheres
esperançadas, com dentes partidos: a homens esperançados a
viverem em negação. O amor muda tudo. O amor tornou-me uma
pessoa melhor. É este sonho que lhes vendem, mon père. Esta é a
sua esperança de salvação. E, no entanto, o mundo continua a
girar, com todo o seu fardo de pecado e desgraça. O amor mudou
o pai de Narcisse, diz ele; e, no entanto, ficou na quinta de Tante
Anna, a suportar os embates das críticas dela. O amor atravessa
continentes, e, no entanto, ele nunca saiu da sua vila até o
homicídio o forçar a fazê-lo.
*
O meu pai fez uma pausa por um momento, e sorriu. «Até essa
altura, eu não sabia o quanto uma pessoa pode mudar a vida de
outra. Mas a Naomi fê-lo. Fê-lo, de algum modo. A Naomi via-
me. Ouvia-me, mesmo quando eu estava em silêncio. Veio para
cá imediatamente antes da Guerra, com um grupo de refugiados
polacos. Tinha dezanove anos. Eu tinha vinte e cinco. Ela foi
viver com uma família judia lá em baixo, no Boulevard des
Marauds. Veio para a quinta no verão, para ajudar a apanhar
fruta e para a colheita. Nesses tempos, o trabalho agrícola era
muito duro. Tínhamos campos de milho e de trigo, três pomares,
um vinhedo, um campo de morangos, assim como batatas,
cebolas, couves, nabos, feijões e alcachofras. Precisávamos de
contratar pessoal, e a Naomi e os outros estavam lá. Tornámo-
nos amigos. Ela era engraçada e bondosa. Um dia, pedi-a em
casamento.»
O meu pai acabou de beber a cidra. Eu via que, na mente dele,
estava muito longe da cave; da bancada; da coisa debaixo do
oleado. Tinha o rosto animado; os olhos estavam vivos e
brilhantes com o passado.
«É claro que a Tante Anna protestou. Uma judia! Uma
estrangeira! Eu estaria louco? Devia estar, porque, por uma vez,
ela não conseguiu fazer-me alterar a minha decisão. Casei
discretamente com a Naomi, numa sinagoga em Agen, e ela veio
viver connosco na quinta. É claro que a Tante Anna a odiava.
Mas precisava de mim ali, e, além disso, a Naomi estava ao meu
lado. Sei que não te lembras bem dela, Narcisse, mas a tua mãe
era muito forte. Mais forte do que qualquer outra pessoa que eu
tenha conhecido; forte e doce como licor de pêssego.»
Tentei recordar-me da minha mãe, Reynaud. Lê-se todo o tipo
de histórias em que as crianças se recordam das mães por uma
canção de embalar, uma certa palavra, uma certa fragrância ou
sensação. Mas eu só conseguia recordar a fotografia ao lado da
cama do meu pai: a única fotografia de casamento, tirada por um
homem em Agen dezoito meses antes de eu nascer. O meu pai,
desajeitado no seu fato, com um sorriso tão largo como a grelha
de um trator; a minha mãe, pequena e sem nada digno de nota,
com o seu cabelo escuro meio escondido por baixo de um
chapéu de cor clara. Mimi, com as suas feições miúdas, parecia-
se um pouco com ela. Entristecia-me não conseguir recordar
nada sobre ela, e por isso limitei-me a dizer: «Eu sei», e esperei
que ele ficasse satisfeito com isso.
O meu pai deixou-se ficar sentado em silêncio por algum
tempo ao lado do corpo de Mimi. O seu sorriso tinha-se
desvanecido, e eu sabia que ele estava de volta ao momento
presente.
«Foi a Tante Anna quem assistiu ao parto da Mimi, sabes?»,
disse ele, pousando a garrafa vazia de cidra. «Tu nasceste no
hospital – assistido por uma parteira – mas quando a Mimi
nasceu, Agen já era território ocupado e até mesmo nas vilas as
coisas se tinham tornado demasiado perigosas. Em vez de se
arriscar a atrair as atenções, a Tante Anna assistiu ao parto – e a
tua mãe teve uma hemorragia fatal, porque nós não fomos
capazes de a salvar.»
«Não sabia», disse eu.
Ele encolheu os ombros. «Eras demasiado pequeno para
compreender.»
E agora, pensei, sou um assassino. Que viagem tinha feito, de
filho sem mãe até isto. Que viagem – bem, Reynaud, o senhor
deve saber. Também a fez.
*
E aqui está. Sabia que chegaria, quando a história estivesse a
aproximar-se do fim. A mão começou a tremer-me. Sentia a
cabeça como uma granada ativa. Era disto que eu estivera à
espera: das poucas linhas incriminadoras que fazem a diferença
entre o Céu e o Inferno. Queria lê-las, mas a minha mente parecia
incapaz de registar as palavras. A letra floreada bailava-me diante
dos olhos como os padrões da tapeçaria de Morgane. Apesar de
ter espaço à minha volta, sentia-me incapaz de me mexer.
E então, mais uma vez, ouvi o som da porta da igreja a abrir-se.
Libertado da minha paralisia, fechei rapidamente o dossiê e
escondi-o debaixo do banco. Absurdo, eu sei; e, no entanto, não
conseguia livrar-me da ideia de que quem lhe pusesse a vista em
cima saberia imediatamente os seus segredos. Virei-me, e vi
Vianne Rocher de pé junto ao confessionário. Trazia um casaco
vermelho-vivo, e na luz esverdeada da igreja parecia
singularmente deslocada. Nunca vem à missa. Aqui, em Saint
Jerôme, vi-a talvez duas vezes em vinte anos. Levantei-me para a
cumprimentar. Ela desceu a coxia e vi que trazia na mão uma
caixa prateada, atada com uma fita vermelha comprida.
– Espero não vir incomodá-lo.
– É claro que não. – Não era bem uma mentira. Confesso que
senti um certo alívio com esta interrupção inesperada. Doía-me a
cabeça, tinha a visão toldada do esforço de ler a letra de Narcisse
e apercebi-me de que tinha deixado os óculos em casa.
– Pensei que talvez lhe agradasse algo doce – disse ela. – Tem
andado com um ar cansado ultimamente.
Tive de me rir. – Um pouco – disse.
– A Páscoa é uma época de muito trabalho para todos nós.
Se ela soubesse, disse para comigo. Se pelo menos o meu
trabalho fosse como o dela: as minhas preocupações tão doces e
inofensivas como perguntar-me quantas galinhas de chocolate ou
cornets-surprise pôr na montra.
– Tenho andado a fazer experiências com uma coisa nova. Algo
um pouco mais potente do que as trufas e os mendiants do
costume. – Passou-me para as mãos a caixa prateada. – Pensei
que podia provar um destes para me dar a sua opinião. Para me
dizer se a receita resulta.
Peguei na caixa. Era muito pequena e leve, mas sentia o cheiro
do que estava dentro – complexo e cheio de especiarias.
– Mas estamos na Quaresma – disse eu.
– Não por muito mais tempo – disse Vianne. – Além disso, isto é
investigação, não gula. Preciso de testar o seu palato.
Abri a caixa. Um só chocolate, perfeitamente redondo, rematado
por uma cobertura que é um círculo escarlate, e com um brilho
extraordinário. Como é que ela consegue pôr os chocolates assim
tão brilhantes? E porque acho que parece um olho?
– Vá lá. Prove-o, Francis – disse ela.
Hesitei. Sentia o aroma escuro e intenso – ela usa só os grãos
mais especiais, enviados de uma plantação numa ilha ao largo da
costa ocidental da África – o chocolate aromatizado com
especiarias, cujos nomes soam como ilhas num arquipélago
desaparecido. Diz-me os nomes – Cumaru. Baunilha. Açafrão.
Cravinho. Gengibre Verde. Cardamomo. Pimenta rosa. Eu nunca
viajei, père, e no entanto esses nomes levam-me a outras partes, a
ilhas por descobrir, onde até as estrelas são diferentes.
Pego no chocolate. É perfeitamente redondo, um berlinde entre
os meus dedos. Eu costumava brincar com berlindes, há muito
tempo, quando era pequeno. Aproximava-os dos olhos e fazia-os
girar para ver as cores a rodopiar através do vidro. Meti o
chocolate inteiro na boca. A cobertura vermelha sabe a morango,
mas o centro é escuro e macio e cheira a outono, maduro e doce;
a pêssegos caídos por terra e a maçãs assadas com canela. E
quando o sabor me invade a boca e começa a revelar as suas
subtilezas, sabe a carvalho e a tamarindo, a metal e a melaço. E,
mais uma vez, estou junto ao Tannes, a sentir o cheiro do fumo e
da terra, e quero contar-lhe tudo. Quero que ela ouça a minha
confissão...
– Encontrei o documento do Narcisse naquele sítio novo das
tatuagens – disse ela. – Pensei que devia devolver-lho. Não se
preocupe, não o li – acrescentou, quando me viu estremecer. – Só
li o suficiente para saber o que era.
Eu sentia a boca em brasa. – Ela tinha-o? – perguntei.
– Suponho que deve tê-lo tirado – disse Vianne Rocher. – Não
sei porquê.
Estendi a mão para a confissão de Narcisse e apertei o dossiê
contra o peito. – Ela leu-o? – perguntei.
Vianne encolheu os ombros. – Não me admiraria nada – disse. –
Talvez esteja a trabalhar para a Michèle Montour.
Olhei para ela.
– Oh, sim – disse ela. – Estou a par disso. Adivinhei quando o
Francis trouxe o Yannick à minha loja. A Michèle tem andado a
arranjar problemas desde que veio para Lansquenet. E agora dá a
ideia de que a Morgane anda a ajudá-la desde o princípio. Eu
sabia que havia uma razão para a Michèle ter arrendado a loja
assim tão depressa. Elas têm andado a colaborar para o minar a
si... para nos minar a ambos, Francis...
À minha dor de cabeça juntava-se agora a sensação de ela
andar à roda. O sabor do chocolate era como estar enterrado vivo
em doçura.
– Ela tem de se ir embora, Francis – disse Vianne. – Custe o que
custar, tem de se ir embora.
Acenei que sim com a cabeça. Vianne tinha razão, claro. Eu
andara tão preocupado com os Montour que me esquecera de
Morgane. Agora, via tudo claramente. Fora ela quem me tirara o
dossiê de Narcisse – sem dúvida por ordem de Michèle. Devia
andar a espiar-me desde o início, a tentar descobrir os meus
pontos fracos. Mas cometera um grande erro ao partir do princípio
de que eu era impotente. Subitamente, senti que me percorria um
tremendo acesso de energia. A dor de cabeça desapareceu.
Experimentei antes uma nova autoconfiança, uma certeza que não
sentia desde que começara a ler a confissão de Narcisse. De que
tivera tanto medo? Porque demorara tanto tempo a ver que eu é
que tinha a autoridade?
– Tem toda a razão – disse. – Eu encarrego-me dessa mulher.
Hoje. – Entreguei-lhe a caixa prateada em que trouxera o
chocolate.
– Era bom? – perguntou Vianne Rocher.
Asssenti com a cabeça. – Muito bom – disse. – Não sei o que lhe
pôs, mas sinto-me realmente como um novo homem.
Ela sorriu. – Imaginei que sim – disse.
Segui-a lá para fora, para a luz.
9

Quinta-feira, 30 de março
deio Yannick. Odeio-o. BAM! A fingir que é meu amigo e depois
O a agir nas minhas costas assim. A chuva tinha-se tornado
chuva normal, a segredar por entre o dossel de folhas, e eu ainda
estava ali na clareira, sentada no rebordo do poço, o rosto voltado
para o céu. Posso gritar aqui se quiser. Posso cantar e dançar e
correr. Por isso, gritei com a voz de uma ave zangada e depois
com a voz de um gato bravo até sentir a garganta dorida e os
olhos vermelhos e a arder.
Como se atrevem? Como se atrevem? É o meu bosque. O meu
sítio. O sítio de Mimi. Talvez seja realmente por causa de Mimi que
me senti tão furiosa com Yannick. Este bosque é tudo o que resta
dela. Foi por isso que Narcisse mo deixou. Sabia que eu olharia
por ele. Por ela. Porque eu sou como ela. Ele sabia isso. Eu não
sou como todos os outros.
Sinto saudades de Pilou. Quem me dera que estivesse aqui. Ele
vai voltar da escola hoje às quatro horas e sair do autocarro e ver
os amigos e não pensar em mim. A maman diz que os rapazes
podem ser estúpidos, às vezes. Mas Pilou nunca foi estúpido.
Costumávamos divertir-nos tanto a brincar com Vlad junto ao rio.
Não acho que ele tenha realmente mudado. Se falássemos, penso
que conseguiria fazê-lo compreender.
Mas eu não falo. Esse é que é o problema. Só na minha voz-
sombra, e isso por vezes pode ser perigoso. Não vou usar a minha
voz-sombra com Pilou. Nunca se sabe o que poderia acontecer.
Um Acidente com Mme. Montour, ou com Yannick, é uma coisa.
Mas com Pilou um Acidente seria pior. Talvez muito pior. Mas, por
outro lado, Pilou não é como Yannick. Se eu lhe contasse o que
aconteceu, sei que compreenderia.
Estava a pensar tudo isto sentada no meu bosque, a escutar o
pingar das gotas da chuva nas folhas. Estava abrigada pelas
árvores e a chuva fazia tudo cheirar a terra, a verde, e havia
pequenos insetos a rastejarem até às pontas das folhas de erva e
a pendurarem-se nelas como gotinhas, a sentirem a chuva. Decidi
esperar que Pilou chegasse a casa e depois contar-lhe tudo sobre
Yannick, Narcisse e Mimi. Ele ia compreender, sei que ia.
Esperei até ouvir o relógio da torre da igreja dar as quatro horas.
O autocarro de Pilou chega às quatro e dez. Depois, corri para a
paragem do autocarro no Boulevard des Marauds e esperei que
Pilou saísse. A princípio, não o vi. Ele vinha com uma rapariga. Eu
não teria reparado nela se ela não estivesse com a camisola dele
vestida. Era uma camisola castanha que eu reconhecia,
demasiado grande para ela. Corri para os dois e abracei Pilou. A
rapariga da camisola lançou-me um olhar.
– Rosette! – Ele não parecia muito contente. – O que estás a
fazer aqui?
Tive de me rir. Eu vivo aqui, Pilou. Acenei com o queixo para a
rapariga. Quem é ela?
Pilou olhou para a rapariga, que ainda estava a olhar para mim. –
Isabelle, vai indo – disse-lhe ele. – Deixa-me resolver isto, e vou já
ter contigo.
Deixa-me resolver isto. Não gostei da maneira como ele falou
sobre mim, como se eu fosse uma tarefa inesperada. Fiz um som
trocista de melro, mas não estava a sentir-me nada animada.
A rapariga lançou-me outro olhar. BAM! Era uma rapariga de
pernas altas, o tipo de rapariga que tem bom aspeto mesmo
quando está com uma camisola castanha velha de Pilou que é
pelo menos dois tamanhos acima do que o que ela usa. Prometi a
mim mesma desenhá-la mal tivesse oportunidade – talvez uma
gazela, que rima com o seu nome e condiz com ela, com as suas
pestanas compridas e as suas pernas magricelas.
– Não te demores – disse ela, e sorriu a Pilou e deu-lhe uma
palmadinha no braço. Não foi grande coisa, mas eu consigo
deduzir muito do que as pessoas dizem sem palavras, e aquela
palmadinha parecia-se muito com: Ele é meu.
Esperei até ela desaparecer de vista. Andava como se estivesse
com roupa de alta costura em vez de uma camisola castanha
andrajosa em que Vlad se deita às vezes a dormir. Acenei com a
cabeça para o sítio onde ela tinha estado.
Quem é? E porque é que está a usar a tua roupa?
Ele suspirou. – Estava com frio. É a Isabelle. A minha namorada.
Ri-me. Era risível. Depois, lembrei-me de ouvir Joséphine dizer
qualquer coisa sobre a namorada de Pilou. Na altura, não
acreditei. Pilou não tem namoradas. Pilou é como eu: pensa que
esse tipo de coisa é totalmente ridículo.
Pilou fez má cara. – Não faças isso, Rosette. Estou a falar a
sério. É um namoro muito a sério.
Encolhi os ombros. O que é que isso quer dizer?
– Quer dizer que cresci. Quer dizer que talvez queira mais do
que esta vila para o resto da vida. Os pais dela convidaram-me
para a casa deles em Nova Iorque. Nova Iorque, Rosette! Em toda
a minha vida nem sequer fui uma vez a Marselha. A minha mãe
anda sempre a dizer que queria ver o mundo. Mas nunca o fez.
Limitou-se a ficar aqui. A gerir o pequeno café dela.
Eu queria dizer: Mas há Lansquenet. Há todo um mundo a
descobrir aqui mesmo. Tu ainda nem sequer viste o meu bosque.
Há umas anémonas pequeninas a crescerem debaixo dos
carvalhos. Há melros, e daqui a um mês o chão vai estar cheio de
morangos silvestres. Dantes eram cultivados, mas tornaram-se
bravios. Mas não tem mal. Quando os morangos são silvestres,
são mais doces. Podias ajudar-me a apanhá-los um dia. Podíamos
fazer compota de morangos silvestres. Podias trazer o Vlad. Ele ia
gostar. Lembras-te dos velhos tempos? Quando tu e eu o Vlad
brincávamos a fazer diques junto ao rio? Eram bons tempos.
Foram os melhores tempos. Não podes acreditar que crescer e ver
Nova Iorque e ter uma namorada poderia alguma vez competir
com os tempos que passávamos juntos...
Mas tudo o que disse, na minha voz-sombra, foi: Vlad, e soou
estranho e triste.
Pilou suspirou. – Oh, Rosette – disse. – Eu sei que tu nunca vais
compreender. Nós vamos ser sempre amigos, mas a Isabelle... –
Os olhos dele iluminam-se quando diz o nome dela. Baixou a voz e
olhou à volta, mas o autocarro já tinha partido e os outros miúdos
já tinham todos ido para casa. A rua estava deserta. – Não contes
a ninguém – disse ele. – Estamos apaixonados. Até temos
tatuagens iguais.
Olhei para cima. Fizeste uma tatuagem?
Ele sorriu-me. – A minha mãe nunca vai reparar – disse. – Mas
olha...
Abriu os dedos e mostrou-me, no espaço entre o indicador e o
médio, uma flor minúscula, com cinco pétalas, de um azul pálido,
com um ponto de sol no centro...
– É um malmequer – disse ele. – Ela também tem uma, no
mesmo sítio. Esconde-a debaixo de um anel de amizade. Foi por
isso que fizemos as tatuagens. Quer dizer que nos vamos casar
um dia.
Fiz um som estridente de gralha. Mas não me apetecia nada rir.
Pilou, casado? Pilou, a partir para um sítio como Nova Iorque ou
Marselha?
Mas tu só tens dezasseis anos, disse eu.
Ele encolheu os ombros. – E depois? A minha mãe casou-se aos
dezoito.
Sim, e vê o que lhe aconteceu.
Penso que ele não compreendeu o que eu disse. Olhou para
mim daquela maneira que me recorda Mme. Clairmont – como se
não tivesse praticamente a minha idade, mas fosse mais velho,
muito mais velho.
Eu disse: É por isso que andas a evitar-me? Por causa da
Isabelle?
Ele encolheu os ombros. – Rosette, tenho de me ir embora –
disse. – A Isabelle tem um bocado de ciúmes de ti. Sabe que
somos só amigos, mas, tipo, gostava de ter crescido comigo, como
tu e eu.
Só que eu nunca cresci, disse eu, e obriguei Bam a dar uma
cambalhota. Mas ou Pilou não viu ou estava demasiado ocupado a
pensar em Isabelle.
Os rapazes são tão estúpidos, disse eu, usando a minha voz-
sombra desta vez, mas ele já estava a começar a correr, a correr
atrás de Isabelle como um cão estúpido e todo entusiasmado a
tentar alcançar um veado. Daria um bom desenho, pensei. Mas,
não sei porquê, não me apetecia desenhar. Em vez disso, pensei
em Vlad, e senti uma espécie de buraquinho no meu coração,
como se alguma coisa o tivesse furado e o ar estivesse
subitamente a escapar dele.
Os rapazes são tão estúpidos, disse outra vez, embora não
estivesse ali ninguém para me ouvir, e senti o vento espevitar-se,
tal e qual como um cão a erguer-se quando o chamam, e soube
que poderia convocá-lo, talvez até fazê-lo levar Isabelle...
Mas isso não alteraria nada. O próprio Pilou o dissera. Ele tinha
crescido. Se não fosse Isabelle, seria outra. Alguma outra rapariga.
As pessoas seguem em frente. Fazem outros amigos. Crescem.
Mudam. Vão-se embora.
Mas eu não, pensei. Eu não mudo. Não sou como os outros. Sou
a Menina de Neve, que não tem autorização para brincar com os
amiguinhos ao sol. Porque, se o fizer, um dia vão encontrar as
minhas roupas abandonadas no chão e nada restará de mim, a
não ser uma poça de água...
10

Quinta-feira, 30 de março
sperei até escurecer, mon père. Pensei que poderia dar-me
E uma melhor hipótese de encontrar a Dubois sozinha. Não que
ela tenha horário de abertura, e por isso nem mesmo assim podia
ter a certeza de que ela não estaria com um cliente. Mas não
estava: a porta encontrava-se entreaberta, e eu entrei, depois de
bater e não obter resposta.
O estúdio de tatuagem estava vazio. Um ténue resquício de
incenso no ar; um perfume de pluméria. Pessoalmente, não me
agrada o aroma do incenso. Até mesmo o aroma da igreja me
parece demasiado intenso, demasiado potente para ser sagrado.
Quando era rapaz, admirava o grande turíbulo de prata na igreja e
inspirava o fumo e imaginava-me a balouçá-lo sobre as cabeças
das pessoas. Gostava do franquincenso nesses tempos: punha-me
a cabeça a andar à roda de um modo bastante agradável. Mais
tarde, apercebi-me de que ficava ligeiramente intoxicado. O poder
intoxica, claro. O senhor já o sabe.
– Olá? – disse eu. – Mme. Dubois?
Pressenti um movimento por trás de mim. Virando-me, julguei ver
Roux, refletido na parede em frente. Foi uma surpresa – pensara
que o estúdio de tatuagem estava vazio e, além disso, ouvira dizer
que ele se ia embora de Lansquenet. E, no entanto, aqui estava
ele, a observar-me por trás da sua cortina de cabelo. Pestanejei, e
já não havia ali ninguém. Mais uma das ilusões de Morgane.
Conheço-as agora, disse para comigo. Não têm poder sobre mim.
Virei-me e vi que o espelho não era agora mais nada a não ser
aves e folhas, e eu próprio, como uma criança numa floresta, e a
ventoinha do fumo na sua rotação lenta.
– Mme. Dubois? – Tinha noção de que a voz me saíra mais
ríspida do que tencionara. Mas ver assim Roux no espelho fizera-
me perder a compostura. Soava agitado, perdido, e nesse preciso
momento Morgane saiu da divisão na parte de trás da loja, com um
aspeto calmo e elegante no seu vestido comprido de seda escura
e pesada, e com um copo na mão.
– É Mlle. Dubois – disse ela. – Mas talvez devesse chamar-me
Morgane.
Acenei com a cabeça, sabendo que nunca o faria. A formalidade
acompanha a soutane; e, tal como a soutane, serve de defesa.
– Talvez queira uma bebida – disse ela. – Nesta altura do fim do
dia, gosto de mudar do chá verde para algo um pouco mais forte.
Abanei a cabeça. – Não, obrigado.
Ela sorriu. – Então, espero que não se importe se eu beber. É
uma margarita. É a única coisa que consigo fazer na cozinha. –
Bebeu um gole, a parecer ao mesmo tempo nova e velha, com o
seu cabelo comprido claro e as suas muitas tatuagens. O cabelo
dela é louro ou de um grisalho prateado? Mesmo agora, é difícil
perceber. E o vestido dela? É azul ou púrpura ou verde? Seja de
que cor for, é refletor, brilha como óleo em água. Talvez ela seja da
idade de Vianne ou da idade da mãe de Vianne: oscila de uma
idade para a outra à medida que a vou vendo de diferentes
ângulos. É claro que estes espelhos não ajudam: é difícil ver as
coisas como elas são.
Apontei para o dossiê de Narcisse, que trazia debaixo do braço.
– Ouvi dizer que esteve de posse disto – disse. – Mme. Dubois,
não se importa de explicar?
Olhou para o dossiê. Não parecia surpreendida. Isso foi
dececionante; eu contava com algum tipo de sinal, por mais
pequeno que fosse, de que abalara a sua compostura. Mas ela
mantinha-se calma, inabalável; ali de pé nas suas sedas, como
uma figura de uma pintura vitoriana. As suas próteses eram
invisíveis sob o tecido que roçava o chão, e movia-se tão
languidamente que eu quase conseguiria acreditar que estava a
flutuar acima do chão como um fantasma ou um fogo-fátuo. E, no
entanto, não havia nada de insubstancial nela. Pelo contrário, é
mais pesada do que a média. Anda muito direita, muito segura de
si. E sou eu a sentir-me fraco na presença dela, como se o mais
leve vento me pudesse soprar para longe.
– Tem a certeza de que não quer uma bebida?
– Talvez só uma pequena – digo eu.
Ela sorriu e foi atrás da cortina, regressando quase de imediato
com um jarro cheio de gelo e um copo. – O dossiê não tem
importância – disse. O seu tom de voz tornava aquela frase uma
declaração. – Há outra coisa de que necessita. Adivinho-o.
Abanei a cabeça e bebi um gole. O sabor a lima era fresco e
forte, a disfarçar a potência do álcool. Perguntei-me se não teria
cometido um erro ao desafiá-la abertamente. Mas era demasiado
tarde para recuar agora. Começara a irradiar-me um calor do fundo
do estômago; um calor que se abria como uma mão em leque para
as têmporas e o pescoço.
– Tirou o dossiê? – perguntei.
Ela sorriu. – Não exatamente. Veio parar-me às mãos. Pensei
que talvez o quisesse de volta.
– Leu-o?
Ela bebeu um gole. – Isso tem importância?
Os dedos de calor tinham-me chegado ao rosto. – Leu-o? –
perguntei outra vez.
– Não, não o li, Francis. Mas vejo que é importante para si.
– As últimas palavras de um homem são sacrossantas – disse
eu. – É o legado de Narcisse.
Ela fez de novo aquele seu meio sorriso, como que a contemplar
mistérios. – O Narcisse. Ouço falar tanto sobre ele – disse. – Se
acreditasse em espíritos, poderia sentir-me tentada a pensar que
ainda estava aqui, a observar-nos.
Fiz um som de desdém, a dar a entender que não ligava a
superstições. É claro que poderia argumentar-se que os católicos
acreditam no Espírito Santo, o que tacitamente implica uma crença
no tipo de espírito não santo. Morgane prosseguiu:
– Sabia que as pessoas costumavam acreditar que a alma de
uma pessoa morta podia ficar presa num espelho? É por essa
razão que muitas pessoas de idade aqui ainda cobrem os espelhos
depois de uma morte e param os relógios, para dar ao falecido
tempo de chegar ao Céu antes que o Diabo descubra que ele está
morto.
Olhei por cima do ombro dela, desnudado para mostrar uma
coroa de folhas de morangueiro. Nos espelhos, vi-me a mim
próprio, apanhado num matagal de folhas azuis e castanhas. Os
espelhos estão posicionados para projetar a tapeçaria para toda a
parte: o efeito é como o de uma torre de cartas, a refletir
interminavelmente aquelas flores e aves nada naturais, aquela
folhagem totalmente impossível. De súbito, apercebi-me do quanto
detestava A Menina que Roubava Morangos: os seus padrões
arregimentados, as suas cores pardas e insistentes.
– Meu Deus, como pode suportá-lo? – perguntei.
– Todos vemos o que precisamos de ver. Alguns veem liberdade;
outros, constrição. Alguns veem os seus entes queridos; outros, a
morte deles.
Morte. Mais uma vez julguei sentir o cheiro a fumo; ouvi o som
de vozes de muito longe, do outro lado do rio em chamas.
Perguntei-me: se ficar aqui, verei Pierrot e Choupette, de mãos
dadas, como os meninos perdidos na floresta, a espreitarem deste
matagal?
– E o Roux? O que é que ele viu?
– Não falo sobre os meus clientes.
– Não. É claro que não. – Mais uma vez, senti o cheiro a fumo;
aguado e amargo. – Ele não gosta lá muito de mim – disse. –
Penso que não gosta realmente de ninguém daqui, a não ser da
Vianne e da Joséphine. Talvez seja por isso que se tem mostrado
tão renitente em se encarregar da terra que a Rosette herdou.
Talvez sinta que isso está de algum modo a forçá-lo a ficar aqui.
Embora pudesse pensar-se que um homem daqueles se sentiria
grato pela oportunidade de pertencer a uma comunidade como a
nossa.
Morgane serviu mais uma bebida. – Ele já tem uma comunidade.
– As ratazanas do rio? – Tive de me rir. – Ninguém escolhe
aquele estilo de vida. A andar de vila em vila, na apanha da fruta, a
fazer biscates? Está bem quando se tem vinte anos, talvez, mas o
homem tem uma filha que precisa dele. Precisa de crescer e
assumir as responsabilidades em vez de brincar aos piratas no rio.
Morgane sorriu. – Talvez – disse. – Mas toda a gente tem uma
história. – Bebeu um gole e virou-se para olhar para os espelhos. –
Há anos, em Lansquenet, quando ainda era rapaz, Francis, houve
um terrível incêndio no Tannes. Foi no verão, o rio estava baixo, os
barcos todos juntos como fardos de palha. E, como fardos de
palha, arderam, uns atrás dos outros. Podia ter havido mais
vítimas mortais. Só morreram duas pessoas. Um casal, a dormir no
seu barco. O Roux tinha seis anos nessa altura. Tinha saído à
socapa para dormir na margem, desobedecendo aos pais. E mais
tarde, quando eles já estavam mortos, culpou-se por não estar
dentro do barco. – Voltou a sorrir. – É claro que é absurdo. O
Francis e eu sabemos de quem é realmente a culpa.
Pousei lentamente o meu copo. Sentia a cabeça a andar à roda,
como as estrelas. Sentia-me como uma borboleta espetada na
agulha de um colecionador. Disse em voz trémula: – Pensei que
não falava sobre os seus clientes.
– Eu não estava a falar dele – disse ela. – Mais uma bebida,
Francis, antes de se ir embora?
Assenti com a cabeça. Tinha a mente em pedaços. Era por isso
que eu o tinha visto hoje? Era por isso que ele me odiava? Seria
Roux o filho de Pierrot e Choupette, regressado para os vingar? E
agora a recordação do incêndio regressa em força, como um
furacão. O cheiro a fumo pelo Tannes; o fedor forte e húmido da
lama do rio; os gritos desesperados da criança na margem. Não
admira que ele me odeie. Mesmo que não saiba, o instinto deve tê-
lo alertado. Mas o que posso eu fazer? O passado está morto. Eu
sou uma pessoa diferente. Cada célula do meu corpo mudou –
exceto o conhecimento que trago dentro de mim, o cancro que
continua a alastrar.
Todos vemos o que precisamos de ver. Alguns veem liberdade;
outros, constrição. Alguns veem os seus entes queridos; outros, a
morte deles.
É isto o que ela vê em mim? É isto o que Roux vê em mim? E, se
sim, como posso ter a esperança de escapar ao Olho de Deus?
Mudei-me para a cadeira na parte de trás do estúdio. Ouvi o
tilintar dos cubos de gelo. Nos espelhos, com uma profundidade de
milhares, uma dúzia de versões diferentes de mim convergiam
lentamente numa só. Arregacei a manga e encostei a cabeça ao
encosto de pele.
– Tem a certeza de que quer isto? – disse ela.
Assenti com a cabeça. – Vai doer?
Ela sorriu. – Pode doer um pouco – disse. – Mas, por outro lado,
Francis, tudo dói, não é?
11

Sexta-feira, 31 de março
rimeiro, o círculo na areia, delimitado por velas coloridas.
P Vermelho para desejo; azul para calma; verde para
crescimento; cor-de-rosa para amor. E preto, para obras da meia-
noite, segredos não ditos, histórias não contadas.
Vi-o partir depois da meia-noite. A caminhar muito lentamente,
com as suas cores lívidas a perturbarem o ar. De algum modo, ela
quebrou Reynaud. Apesar da coragem dele, apesar da sua raiva,
apesar do poder que eu lhe dei. Tudo o que me resta agora para a
combater é a magia de último recurso, a magia que jurei que
nunca usaria, a magia que convoca o Hurakan.
A minha mãe disse-me sempre que havia magia nas histórias. As
histórias dizem-nos quem somos, quem fomos e quem esperamos
vir a ser. As histórias dão forma às nossas vidas, uma narrativa
subjacente. E por vezes as histórias permitem-nos contar aquelas
coisas que não podem ser ditas – segredos até para nós mesmos
– fora das convenções dos contos de fadas.
Sei uma história sobre uma criança cuja voz podia convocar o
Hurakan. A sua mãe amava-a muito, mas a menina era muito
selvagem e a mãe receava que um dia o vento ouvisse o apelo
dela e a levasse. E por isso fez um feitiço, com areia e fumo e luz
das estrelas. Atou-o com o grito de um gato que se atravessou no
seu caminho na neve que caía e lançou-o sobre a criança
adormecida para que, quando ela acordasse, a sua voz tivesse
desaparecido, deixando só o grito do gato no seu lugar.
Privada da sua voz, a filha não podia ser como as outras
crianças. Não podia chamar o vento nem crescer como as outras
meninas. E com isto a mãe ficou contente, porque queria dizer que
a sua filha ficaria sempre e para sempre ao seu lado. Mas nunca
contou a ninguém como a criança perdera a voz. Escutava o grito
do gato e sabia que o vento as tinha poupado.
É claro que não foi exatamente assim. A parafernália da minha
mãe – a areia, as cartas, as velas – só lá estava para dar cor e
espetáculo; adereços teatrais, para transformar uma história em
ritual. A verdadeira magia era outra; algo menos evidente. Algo
impelido pelo desespero. Algo impelido pelo desejo.
Um gato atravessou-se no teu caminho na neve, e miou. O
Hurakan estava a soprar.
Compreenda-se que eu estava com medo. Andava com medo
desde o nascimento de Anouk. Ser mãe é conhecer o amor e a
perda em partes iguais. E Anouk estava já a crescer tão depressa;
a estender os braços para o mundo com um apetite tão voraz. Eu
sempre soubera que a perderia um dia; a questão nunca foi se a
perderia, mas para quem a perderia. Para Zozie, dos sapatos de
rebuçado? Ou para Jean-Loup Rimbault?
Mas Rosette – Rosette poderia ser diferente. Esperava poder
ficar com ela. E por isso lancei o círculo na areia e convoquei o
Hurakan para a minha vontade...
Do outro lado da praça, uma vidraça reflete a luz na minha
montra. Também Morgane está acordada esta noite. Talvez
pressinta atividade. Talvez também ela tenha um círculo na areia e
velas a acender contra mim.
A areia é de uma praia, muito distante, onde a minha mãe e eu
passámos uma vez a noite. Espalhei-a nas traves do soalho numa
espiral mística. Ehecatl, o deus do vento, era representado por
uma espiral: os Aztecas usavam uma concha, cortada para revelar
a espiral no seu interior, como parte dos seus rituais secretos.
Vl’à l’ bon vent, v’là l’ joli vent...
É claro que não quero fazer-lhe mal. Só quero que se vá embora.
Vermelho para desejo; azul para calma; verde para crescimento;
cor-de-rosa para amor. Amanhã – ou antes, hoje, suponho –
chegará Anouk, sem Jean-Loup. Isso deixa-me feliz – não que não
goste de Jean-Loup, mas prefiro ver Anouk sem ele. Anouk fica
diferente na presença dele. Ri-se; sorri de uma maneira diferente.
A presença dele altera a maneira como ela se move, torna-a
estranhamente embaraçada. E há sempre preocupação;
preocupação, porque Jean-Loup esteve doente durante uma
grande parte da sua infância; preocupação, porque para Jean-
Loup Rimbault até uma constipação pode ser perigosa e a mais
pequena infeção poderia requerer outra estadia no hospital.
Porque é que ela vem agora sem ele? Disse que tinha
novidades. Terão rompido? Essa ideia enche-me com uma
esperança absurda, como vinho num copo partido. Lá fora, a voz
do vento torna-se o rugido de um tigre adormecido.
Vl’à l’ bon vent, v’là l’ joli vent...
Vl’à l’ bon vent, ma mie m’ appelle...
Vermelho para desejo; azul para calma. Um gato atravessou-se
no teu caminho na neve, e miou. Na montra do outro lado da
praça, vejo um vislumbre de sombra. Será Morgane a olhar para
mim? Talvez. Não há maneira de saber. Ouço o som das folhas da
amendoeira na praça. O vento está a levantar-se. A noite está em
chamas. Terá ela consciência da minha presença agora?
Encontra-me. Sente-me. Segue-me.
Acho que não. Sente-se um tremor no ar escuro e elétrico.
Acompanha-o um aroma a chocolate amargo misturado com
ozono. Sinto as nuvens a juntarem-se agora; pespontadas com
raios incipientes. O que quer que ela possua, quaisquer que sejam
os seus feitiços, os seus truques, isto vai dominá-los. É uma magia
que resulta sempre – embora tenha o seu preço.
A luz no outro lado da praça apaga-se. São quase três da
manhã. As velas estão a começar a bruxulear: a que se apagar
primeiro será a que determina o resultado. Vermelho para desejo.
Azul para calma. Verde para crescimento. Cor-de-rosa para amor.
E preto – preto como o olho da tempestade, o centro da espiral. A
vela preta bruxuleia: o Hurakan desperta.
Vl’à l’ bon vent, v’là l’ joli vent...
Encontra-me. Sente-me. Segue-me.
12

Sexta-feira, 31 de março
assei a noite acordado. O sono, mon père, é impossível. O meu
P coração bate com força e recusa-se a voltar ao seu ritmo
normal. Sinto o braço arranhado e dorido sob a película protetora.
Por baixo, a pele parece inflamada, uma mancha disforme de
cores. O que pretende representar, mon père? Um raio? Uma
coluna de fumo? O Olho de Deus?
– Seja paciente – disse ela. – Por vezes, a pele demora um dia
ou dois a sarar.
O que é que eu fui fazer? O que é que eu fui fazer? Devo ter-me
deixado possuir por um acesso de loucura. Lembro-me de estar no
estúdio de tatuagem, a beber cocktails com Morgane. Lembro-me
de me sentar na cadeira e de sentir as agulhas na pele. Não posso
atribuir as culpas à bebedeira. De facto, sinto-me perfeitamente
sóbrio. E, no entanto, não consigo dormir, estou deitado num
desassossego, com o vento lá fora a passar de um murmúrio
agourento ao uivo de uma mulher furiosa, a gritar por entre as
nuvens esfarrapadas.
Agora é quase de manhã, e sei que o sono já não é uma opção.
E por isso tento ler o manuscrito de Narcisse até ao fim. Contudo,
agora que o suspense se foi – agora que Morgane sabe o meu
segredo – não me sinto compelido a continuar. Aconteça o que
acontecer, tenho de confessar. Não posso deixar que um homem
inocente viva com uma culpa que me pertence a mim. E depois de
confessar a Roux, todos os olhos se voltarão para mim. E por isso
sento-me e espero pelo amanhecer e sinto a marca queimada no
braço; o símbolo sob a película de plástico, vislumbrado apenas
pelos espelhos.
– Como sabe o que as pessoas querem? – pergunto-lhe, de
olhos fechados, na cadeira.
– Eu não dou aos meus clientes o que eles querem – responde
Morgane, e adivinho pelo tom da voz dela que está a sorrir. – Só
lhes dou aquilo de que necessitam. – E depois sinto a agulha a
traçar o seu caminho lento e reflexivo e rendo-me ao som do
chilrear das aves canoras metálicas.
– Sei uma história – diz-me ela – sobre um rapaz que tinha um
segredo. O segredo era tão pesado que o rapaz mal conseguia
carregá-lo. E, à medida que foi crescendo, também o terrível peso
que carregava ia aumentando, até por fim se tornar tão grande que
ele tinha a certeza de que o resto do mundo devia vê-lo. E assim o
homem em que o rapaz se tornara cresceu torto e solitário.
Afastava os amigos, com receio de que pudessem descobrir o seu
segredo. E, à medida que o tempo passava, o segredo passou de
pesado a insuportável, e mesmo assim o homem optou por
continuar a carregá-lo, porque era tudo o que ele alguma vez
conhecera.
Compreenda, père, ela tinha acertado em cheio. Nunca outra
pessoa alguma vez chegou perto. Mantenho os olhos fechados e
finjo dormir e sigo o caminho da agulha sobre o meu braço, na
esperança de conseguir adivinhar o tipo de desenho que ela
escolheu.
– Este homem – prossegue ela – não era nenhum santo. Nem
era mau de todo. Mas era uma criatura de absolutos, incapaz de
ceder. Enquanto carregasse o segredo, pensava, nunca seria parte
dele e mais ninguém o julgaria pela coisa terrível que o rapaz
fizera.
Abro os olhos por um momento. Vejo-me, no teto, com Morgane,
no espelho, rodeado por folhas, aves pintalgadas e morangos.
– E depois um dia o homem conheceu uma bruxa – diz Morgane
com a sua voz sorridente. – A bruxa disse ao homem que se ele
lhe pagasse em ouro ela transformaria o seu terrível segredo num
fruto e que se ele o comesse ficaria livre do seu fardo de toda uma
vida. E então o homem pagou à bruxa em ouro e comeu o fruto
que ela lhe deu. Tinha um sabor azedo, e o homem teve
subitamente receio de que pudesse ser veneno. Toda a noite
esteve febril; dava voltas e mais voltas na cama; e toda a noite lhe
passaram pela cabeça as palavras da bruxa, que agora, no seu
delírio, lhe pareciam cada vez mais sinistras.
«– Bem, se vou morrer – disse o homem –, pelo menos posso
fazê-lo honestamente. – E abriu de par em par as janelas e as
portas, e da sua cama de febre e dor gritou ao vento o seu
segredo. E o vento astuto levou-o para todas as partes, de modo a
que toda a gente o ouvisse. Algumas pessoas ficaram chocadas.
Outras, furiosas. Mas a maior parte das pessoas que o ouviram
sentiu pena do homem que passara a sua vida só com o seu
segredo. E vieram até junto ao seu leito, uma a uma, trazendo-lhe
flores, comida e perdão.
«O homem moribundo fechou os olhos e dormiu. E, quando
acordou, a febre tinha desaparecido e com ela o seu terrível fardo.
Tudo o que restava do seu segredo era uma mancheia de
sementes do fruto mágico. E então ele plantou as sementes e pôs-
se a ver que tipo de árvore cresceria. Mas, quando o fez, descobriu
que era apenas uma vulgar macieira, com frutos duros e um pouco
azedos que só serviam para os pássaros. E o homem começou a
compreender que talvez – só talvez – a mulher que ele julgara ser
uma bruxa fosse uma mera nómada de passagem com uma
mancheia de frutos para vender e uma técnica de vendas original.»
O que significa aquela história? Porque não perguntei a
Morgane? Talvez estivesse um pouco embriagado ontem à noite,
embora esta manhã me recorde perfeitamente. Sinto um ardor e
um prurido na pele, por baixo da película de plástico, como se de
urtigas. Olho para o relógio. Seis e trinta e cinco. Preparo mais
uma cafeteira de café. Ando a tomar demasiado café, père;
perturba-me o sono. E, no entanto, parece-me que me desanuvia a
mente, pelo menos como uma medida temporária.
Mais uma hora e será altura de me preparar para a missa desta
manhã. Tenho de estar sóbrio para isso, père. Talvez uma
caminhada, para desanuviar a mente. Escolho o caminho junto ao
rio. Cheira a chuva e a alho silvestre. Deve ter havido uma grande
tempestade ontem à noite; as árvores ficaram sem flores. Ainda é
demasiado cedo para sair fumo das chaminés dos barcos do rio.
Não vejo o barco de Roux entre os cerca de meia dúzia que estão
atracados junto à ponte. Pergunto-me se já terá partido – e sinto-
me ligeiramente alarmado com a onda de alívio impotente que
acompanha esse pensamento.
E então vejo-o, ancorado mais a baixo. Uma faixa de fumo da
chaminé diz-me que o homem está acordado. Mas tenho uma
missa a dizer, confissões a ouvir, um rebanho a cuidar. Digo para
comigo que falarei com ele logo à tarde. Não posso deixar de
encarar este dia como se fosse o meu último dia na Terra –
amanhã, tudo mudará.
Ao chegar à Place Saint Jérôme, vejo, sem surpresa, que o
estúdio de tatuagem está fechado. Os estores estão corridos; até a
tabuleta foi tirada do seu lugar por cima da loja. É claro, os clientes
dela não vêm logo de manhã cedo. Como eu, preferem vir a
coberto do escuro. Talvez a encontre depois da missa – pelo
menos para exigir saber o significado daquela história. Mas agora
vejo um pedaço de papel colado à porta: uma só folha de papel
branco e duro, marcada com uma palavra nítida a preto...
ARRENDA-SE.
A Flautista
1

Sexta-feira, 31 de março
cordei com o som dos sinos da igreja e a luz da manhã a lançar
A o seu puzzle de folhas sobre a parede caiada de branco do
quarto. O céu estava azul depois da chuva; sentia-se um aroma a
terra húmida e verdura. Rosette já tinha saído, deixando um
desenho de uma ave em pleno voo pregado à porta aberta da
cozinha e o caroço de uma maçã em cima da mesa. Então, pelo
menos tomou o pequeno-almoço. Menos uma coisa com que me
preocupar.
Abri a loja, sabendo que haveria poucas hipóteses de ter
clientes. Poucas pessoas decidem comprar doçarias durante a
missa. Depois, dependendo do conteúdo do sermão, alguns
podem encaminhar-se vagamente na direção da chocolaterie e
entrar, como que por acaso. Entretanto, fiz os preparativos para a
chegada de Anouk. Tenho sempre o quarto dela pronto, para o
caso de ela aparecer sem avisar, mas hoje também mudei os
lençóis para condizerem com as violetas junto à cama e pus o seu
velho coelho de peluche na almofada ao lado da camisa de noite,
embora ela já seja demasiado crescida para ele há muito tempo e
vá sorrir ao ver o meu sentimentalismo.
Deixo a janela aberta durante algum tempo. O ar está doce com
o canto das aves. Já estou a planear o que fazer para o jantar
quando ela chegar – tarde e cansada, sem Jean-Loup, e com
notícias. Que tipo de notícias? Será que vem para ficar?
Olho para o outro lado da praça e vejo que o estúdio de
tatuagem está em silêncio. Não há sinal de movimento lá dentro;
não há sinal de clientes. Forço-me a ignorá-lo, embora esteja cheia
de vontade de espreitar pelos estores. Tudo dá a sensação de
estar limpo hoje, limpo e fresco depois da chuva, e os únicos
indícios da tempestade de ontem à noite são as flores que
atapetam as pedras da calçada, uma camada espessa como neve
no chão.
Há um papel pregado na porta. De onde estou, não consigo lê-lo.
Os sinos tocam para a missa, e agora os fiéis passam, a
atravessar a praça como folhas caídas, alguns a dirigirem-se para
o cemitério, outros para a padaria de Poitou. Uma pessoa para
junto ao sinal manuscrito, uma pessoa com um casaco de xadrez.
É Joséphine. Reconheço o andar dela. Mas já não lhe via aquele
casaco há algum tempo, e ela não costuma ir à igreja.
Estaca para ler o papel na porta. Vira-se para chamar alguém. É
uma das empregadas de mesa do café, Marie-Ange Lucas.
Conheço-a bem. Os bombons com recheio de creme de café são
os preferidos dela, e come-os com um ar amuado, como se
estivesse com a esperança de que fossem outra coisa. Também
Marie-Ange está de costas para mim agora, mas vislumbrei o seu
perfil. Parece quase entusiasmada, com as mãos pálidas a
agitarem-se como asas de pássaros a levantarem voo. E agora
Joline Drou aproxima-se, formando assim um trio. Joséphine tenta
espreitar pelos estores da montra. Joline faz o mesmo; põe a mão
em pala sobre os olhos para tentar ver para lá do reflexo do vidro.
Deve ter acontecido alguma coisa, então. Joline vira-se mais
uma vez para as outras duas. O seu conflito com Caro Clairmont
deve manter-se: de outro modo, nunca se dignaria falar com
Joséphine.
Experimenta-me. Saboreia-me. Põe-me à prova.
Envio uma ténue sugestão na direção delas; acompanhada pelos
aromas misturados de açúcar quente, noz moscada, baunilha e
natas, com o travo escuro do grão Criollo por baixo de tudo, como
um punhado de acordes menores sob uma melodia mais leve.
Experimenta-me. Saboreia-me.
E é claro que elas vêm até mim, como vêm sempre. Joséphine
vem primeiro, depois Marie-Ange com a sua boca amuada e os
seus olhos brilhantes e invejosos.
– A Morgane foi-se embora! – disse Joséphine. – Espreitei pelos
estores, não há lá nada!
Joline acenou com a cabeça. – O papel diz ARRENDA-SE. Deve ter
partido durante a noite. Como é que ela conseguiu fazer isso? A
mobília, aqueles espelhos todos, as máquinas dela, como é que
fez a mudança tão depressa?
– E porque é que havia de se mudar? – disse Marie-Ange. – Eu
ia fazer uma tatuagem. Estava a pensar... um par de asas de anjo?
Ou talvez uma estrela. Acham que ela se foi mesmo embora?
Escondi um sorriso. – Quem sabe? – disse. – Talvez fiquemos a
saber pormenores mais tarde.
Não foram as únicas a reparar no desaparecimento de Morgane.
Mais de uma dúzia de clientes comentou o papel na porta – entre
eles Guillaume Duplessis, que usa o seu passeio diário para
recolher todo o tipo de informações.
– Mme. Rocher, é um mistério. – Depois destes anos todos,
ainda prefere chamar-me Mme. Rocher. – Veio com o vento, foi-se
com o vento, quase me recorda uma outra pessoa, que chegou
com o vento do carnaval.
Encolhi os ombros. – Acha que sim? Não somos nada parecidas.
– Oh, não sei, Mme. Rocher. Falei demoradamente com ela,
sabe? Achei-a muito acessível. Falámos sobre o velho Charly, e o
Patch, e como é difícil perder um amigo.
Guillaume já perdeu o seu cão há pouco mais de três meses.
Várias pessoas se ofereceram para lhe arranjar outro, mas ele diz
que, na sua idade, está demasiado velho para aceitar a
responsabilidade.
– O que aconteceria quando eu morresse? – diz com a sua
intensa convicção habitual. – Como poderia ter a certeza de que o
cão era devidamente tratado quando eu me fosse? E, além disso,
os cães são animais fiéis. Ele ia sentir a minha falta. Ia sofrer.
Que típico de Guillaume, pensei, pôr os sentimentos de um cão
imaginário acima da sua própria necessidade e solidão.
– Mas a Morgane Dubois mostrou-me como poderia mantê-los
comigo para sempre – disse ele. – Eu estava muito nervoso a
princípio. Mas quando vi o trabalho que ela tinha feito para outras
pessoas, soube que podia confiar na decisão dela.
– O senhor também? – perguntei, espantada.
– Acha que sou demasiado velho para esse tipo de coisa. Admito
que também o pensava. Mas depois pensei, se não agora,
quando? – E arregaçou a manga da camisa para revelar um
desenho linear de dois cães num cesto. Era um desenho simples e
distinto, e, no entanto, a artista conseguira captar o espírito de
ambos os cães: a energia do Jack Russell: a expressão bastante
triste do seu idoso antecessor. E havia algo no estilo, que, de
algum modo, julguei reconhecer...
Pensei no marcador de livros; naquele com o macaco amarelo.
Aquela tatuagem não é o estilo usual de Morgane. Não tem
nenhuma da complexidade sufocante dos outros desenhos de
Morgane. Será que Rosette partilhou a sua arte com Morgane?
Parece muito provável. E, nesse caso, que mais terá partilhado
com ela?
2

Sexta-feira, 31 de março
ntem à noite, sonhei com Morgane. Ou talvez fosse com a
O maman. No meu sonho, não conseguia perceber a diferença.
Maman-Morgane estava com sapatos vermelhos e tinha pés
normais, como toda a gente.
Ela disse: – Rosette, vou-me embora. O meu tempo aqui está
quase a chegar ao fim. Podes seguir-me se quiseres, mas há algo
que terás de fazer antes que eu possa levar-te comigo.
Olhei para ela. O que tenho de fazer?
Maman-Morgane disse: – Corta os pés. Usa isto. Quase não dói.
– E passou-me para as mãos a caneta da tatuagem. Eu vi que já
estava descalça. E com a caneta desenhei um tracejado à volta
dos tornozelos e escrevi as palavras CORTAR POR AQUI na barriga
das pernas.
– Estás a ver? – disse Morgane. – Agora és livre.
– Livre? – disse eu. – Mas eu queria ser como todas as outras
pessoas. – E no meu sonho apercebi-me de que não estava a usar
a minha voz-sombra, mas uma voz que nunca ouvira antes. E
soava tão estranha e tão maravilhosa que parei de falar e fiquei só
a olhar para ela.
– Essa é a tua voz real – disse Morgane. – A que perdeste
quando nasceste. Mas agora podes reavê-la... desde que deixes
ficar os pés.
– Mas como é que eu vou andar sem pés?
Ela riu-se e disse: – Não vais precisar. Vais voar.
Depois acordei, e ainda estava escuro, e o vento estava a fazer
um som de lamento. E a sobrepor-se a ele eu ouvia a maman
cantar baixinho no quarto dela:
Vl’à l’ bon vent, v’là l’ joli vent
Vl’à l’ bon vent, ma mie m’ appelle
É uma velha canção que ela costumava cantar-me quando eu
era bebé. Também a cantava a Anouk; mas sei que comigo era
diferente. Usava-a para nos adormecer às duas, mas comigo era
mais do que uma canção de embalar. Era uma história, um feitiço –
por vezes até um aviso.
Começa com o vento, a chamar uma senhora que está a pensar
no seu amor. E na canção ela chama ao vento bom vento, vento
bonito, porque não quer ir embora, porque tem de lisonjear o vento
para o manter sob o seu controlo. E o amor dela está a chamá-la,
e o vento está a chamá-la também, e sabemos que o vento é mais
forte do que o amor; mais forte, talvez, do que qualquer outra
coisa.
Isso é só o refrão. Há outros versos, também; versos que contam
a história, mas não é uma história nada agradável, embora seja
uma canção de embalar. É sobre uma menina que tem três patos
num laguinho junto à casa dela. Dois são pretos e um é branco. O
filho do rei, que andava à caça, faz pontaria para um pato preto,
mas dispara sobre o branco por engano, e quando ele morre cai-
lhe ouro do bico e diamantes dos olhos. As suas penas brancas
esvoaçam para longe no vento e três senhoras misteriosas juntam-
nas todas para fazer uma cama para a menina e a mãe dela
dormirem para sempre.
Nunca gostei muito daqueles versos. Era triste para o pobre do
pato branco, apesar do ouro e dos diamantes. E as senhoras
pareciam-se demasiado com as Bondosas, ou as Norns, as três
deusas do destino na mitologia escandinava, ou as Parcas, e a
cama de penas parecia agradável a princípio, mas dormir para
sempre é assustador. Dormir para sempre soa como a morte ou
como a maldição da Bela Adormecida. Mas será que o filho do rei
me acordaria? Ou eu dormiria para sempre?
A maman costumava dizer-me que era uma canção sobre o
sacrifício e como quando se prescinde de alguma coisa por amor
se pode obter algo ainda melhor. Mas eu não acho que a menina
quisesse diamantes. Ela só queria que os seus patos estivessem
em segurança e contentes.
– Mas os patos por vezes voam para longe – disse a maman, e
foi quando me lembrei do meu sonho e me perguntei por que ela
estaria a cantar aquela canção, sozinha no quarto dela.
E por isso, muito silenciosa, saí da cama e fui até à porta. O meu
quarto fica ao cimo de um pequeno escadote, como o cesto de
gávea num barco, e o escadote por vezes range um pouco, mas
eu tenho muito jeito para não fazer barulho. Desci muito
lentamente, assegurando-me de que mantinha o peso constante
ao passar de degrau para degrau, e quase não fiz ruído nenhum.
A maman ainda estava a cantar, naquela voz muito suave, como
uma voz-sombra, que só usa quando canta aquela canção. A porta
do quarto dela estava entreaberta. Ela nunca a fecha. Eu via uma
faixa de luz a estender-se para o patamar. Espreitei pela fresta e vi
umas velas a arderem e uma espiral de areia nas tábuas do
soalho, tudo disposto num círculo...
Sei o que aquilo significa. Não preciso do som do vento nas
árvores para me dizer o que é. A espiral é o símbolo de Ehecatl, o
deus do vento. Ela estará a tentar causar um Acidente? Talvez
tenha sentido o Hurakan e esteja a tentar convencê-lo com falinhas
mansas a voltar a adormecer. Ou talvez queira convocá-lo – mas
para quem estará a fazê-lo?
Fiquei a observar a maman durante muito tempo, mas ela
limitou-se a ficar sentada a cantar. Não só o refrão, mas todos os
versos, vezes sem conta. Pela fresta na porta eu sentia o cheiro a
cera de vela e a incenso. Algo forte e cremoso, como cedro rosa
ou sândalo branco. Fez-me sentir sonolenta. Deitei-me no chão e
escutei o vento que se levantava e o som da maman a cantar.
Lá fora, o vento também cantava. Ouvia-o nos fios. A sua voz era
suave mas potente, a ronronar como um tigre. E depois devo ter
adormecido, porque tive outro sonho, desta vez sobre os patos no
lago e o filho do rei e a cama de penas e as três senhoras a
juntarem penugem de pato.
– Temos de dormir para sempre? – disse na minha nova voz, não
na voz-sombra.
A maman ergueu os olhos do círculo e respondeu, numa voz que
me lembrava a de Morgane:
– Por vezes, os filhos voam para longe. Fazemos o que podemos
por os manter junto a nós.
Quando acordei de novo, estava na minha cama, que não é de
penas, mas de algo normal, com molas, e os corvos estavam a
berrar Guerra! Guerra! e a perseguirem-se uns aos outros pelo
céu.
A maman diz-me sempre que os sonhos são lições disfarçadas.
Levantei-me muito silenciosamente e peguei na minha mochila cor-
de-rosa. Era bastante cedo, e a maman ainda estava a dormir. Eu
não queria contar-lhe o meu sonho, porque assim ela ficaria a
saber que eu a tinha espiado. Pensei que talvez pudesse
perguntar a Morgane o que ela achava que significava o meu
sonho. Morgane sabe muito sobre sonhos. Diz que as histórias, as
imagens e os sonhos fazem todos parte de um rio que passa por
todos os mundos que existem, e que toda a gente mergulha o pé
ou a mão nele de vez em quando.
Mas, quando cheguei ao estúdio de tatuagem, vi que estava
fechado e que os estores estavam corridos e havia um sinal a dizer
ARRENDA-SE na porta.
ARRENDA-SE? Ela foi-se embora sem mim? E porquê?
Foi por isto que a maman chamou o vento?
Encostei o rosto ao vidro para espreitar por entre as tiras dos
estores. O espaço estava vazio. Já não estava lá A Menina que
Roubava Morangos; nem os espelhos; nem as cadeiras. Só
algumas folhas de jornal nas tábuas nuas do soalho e algo ao
canto...
Não conseguia ver bem o que era por causa dos reflexos no
vidro. Mas parecia uma caixa, uma caixa de sapatos, talvez,
deixada nas sombras. Tentei olhá-la de mais perto, mas não havia
maneira de escapar àqueles reflexos. E depois julguei ver algo a
mexer-se, algo dentro do espaço às escuras, e senti uma súbita
vaga de esperança. Ela ainda estaria ali? Estaria a esconder-se de
mim?
Corri para a porta e bati. Bati com tanta força quanto pude, mas
ninguém veio abrir. Então, tentei de novo a porta, e segredei na
minha voz-sombra:
Abre-te. Quero entrar.
E com essas palavras a porta abriu-se, embora eu soubesse que
estava fechada à chave, e ouviu-se o toque de uma sineta que já
não estava lá pendurada...
3

Sexta-feira, 31 de março
conhecimento é um fardo, Reynaud. Pesa tanto como a
O culpa. Suponho que já o deve saber, ouvindo como ouve as
pessoas em confissão; absolvendo os outros dos seus pecados
enquanto aperta o seu contra o peito como um filho. E, tal como
um filho, ele cresce, assim como o meu cresceu e preencheu
toda a minha vida. Nunca contei a ninguém, sabe? Nem à minha
mulher nem à minha família. A minha mulher, Eloise, era uma
boa alma, mas não teria compreendido. Quanto a Michèle e ao
marido – bem. Preciso de dizer mais alguma coisa? É claro que
a culpa é minha. Permiti que a pobre Eloise a estragasse com
mimos. Michèle era todo o amor que ela tinha, e o que deveria
ter ajudado a minha filha a desabrochar e a desenvolver-se
tornou-a antes mesquinha e atrofiada. Culpo-me a mim mesmo.
Eu era distante. Sabia-o mesmo então, e, no entanto, não
conseguimos impedir-nos de repetir os padrões da infância. Um
morangueiro, plantado num solo diferente, não deixará de
crescer como morangueiro. Podemos querer pêssegos, ameixas
ou peras. Mas a nossa natureza está pré-determinada. Foi por
isso que lhe escrevi, Reynaud. Porque, apesar das nossas
diferenças, temos pelo menos isto em comum. Ambos estamos
danificados. Mas o senhor, pelo menos, nunca terá filhos.
Depois de o meu pai acabar de contar a sua história, levámos
o corpo de Tante Anna lá para fora. Usámos o carrinho de mão
para o levar pelo caminho até ao bosque que ficava ao lado do
campo de morangos. Não falámos sobre o assunto, nenhum de
nós queria o corpo dela junto à casa. A seguir, atirámo-la para
dentro do poço – um velho poço muito fundo, até às
profundezas. Não dissemos nada enquanto fazíamos aquele
serviço. Nem sequer dissemos uma oração. A seguir, cobrimos o
poço com o seu tampo de madeira e fomos para a cama, e eu
dormi como um animal, sem sonhos, até o meu pai me acordar
às dez horas, com a notícia de que o padre vinha a caminho.
Por um momento, senti-me aprisionado nas garras do pânico.
Mas o meu pai limitou-se a sorrir e disse:
«Pensei numa história.»
*
Mesmo depois da minha longa caminhada, não consegui tomar o
pequeno-almoço esta manhã. Nem consegui concentrar-me na
missa. Pronunciei as velhas palavras familiares sem pensar no seu
significado, sem sentir nada a não ser o prurido da agulha de
Morgane na minha pele e o maior prurido que resultara da terrível
notícia da identidade dos pais de Roux.
No confessionário, foi ainda pior. Apetecia-me gritar com
impaciência quando as pessoas, umas atrás das outras, vieram
confessar-me os seus pecadilhos – de orgulho, de raiva, de gula.
Eu queria confessar-me a elas – Fui eu! Eu ateei o incêndio que
matou duas pessoas em Les Marauds! – E, ao mesmo tempo,
apetecia-me rir, chorar, arrancar o cabelo – e, mesmo assim,
obriguei-me a ficar sentado em silêncio por trás do postigo do
confessionário, com o prurido, as picadas e a ardência. O dossiê
verde de Narcisse estava ao meu lado. Mais um assunto por
terminar. Restam ainda seis páginas do manuscrito. Só então me
verei livre dele.
Para um último dia na Terra, mon père, poderia ter sido mais
inspirador. Deveria haver algo mais do que esta rodada de tarefas
e deveres diários. Eu queria que houvesse significado. Defronto-
me com o impensável. Mas todas as outras pessoas continuam a
ser as mesmas: Caro Clairmont e Joline Drou, a olharem uma para
a outra por cima dos bancos da igreja; Guillaume Duplessis no seu
passeio matinal, pela primeira vez sem a trela do seu cão morto.
Na padaria de Poitou há uma fila de pessoas. Em Les Marauds,
haverá o aroma a fritos com especiarias e a chá com açúcar e
leite; o som das vozes das crianças a brincarem. Se eu morresse
hoje, quanto tempo demoraria a ser esquecido? E quem lamentaria
a morte de um homem como eu – um hipócrita, um homicida?
Tenho de ver Roux hoje, eu sei. É meu dever confessar, e, no
entanto, como uma criança, estou sempre a adiar. Como as
páginas que restam da confissão de Narcisse, parece uma
fronteira estrangeira, para lá da qual não há mais nada a não ser o
caos. Passei pela chocolaterie – na esperança de que Vianne
pudesse ter uma cura milagrosa para o meu problema – e
encontrei-a de excelente disposição, a fazer um arranjo de flores e
a cantarolar baixinho.
Sorriu-me quando entrei com o dossiê verde debaixo do braço. –
Acabei de fazer chocolate quente – disse. – Posso tentá-lo?
Apetecia-me dizer que sim. Mas tinha o estômago cheio de
arame farpado e a cabeça a latejar.
– Sim, eu sei. Estamos na Quaresma – disse Vianne. – Mas, por
vezes, tem realmente de se permitir um miminho. – Acenou na
direção do estúdio de tatuagem. – Ouvi dizer que a nossa amiga
se foi embora ontem à noite.
Acenei com a cabeça. – É o que parece.
Ela pôs a jarra em cima de uma mesa. – Talvez não tivesse
posses para a renda. Ou talvez se tenha dado conta de que não se
integrava aqui. Seja como for, ainda bem. A vila pode voltar ao
normal agora. – Fez uma pausa e olhou para mim. – Pareceu-me
vê-lo sair da loja dela. Bastante tarde, por volta da meia-noite. Ela
disse-lhe alguma coisa?
Abanei a cabeça. A tatuagem no meu braço dava a sensação de
ser luminosa, como se Vianne pudesse vê-la através da manga e
da película plástica. Não lhe contei o que estava a fazer à meia-
noite no estúdio de tatuagem, mas pressenti a curiosidade dela, e,
por trás da curiosidade, a preocupação. Foi isso – a preocupação
dela por mim – que achei insuportável. Queria poder fazer-lhe
confidências. Queria mais do que qualquer outra coisa no mundo
poder sentar-me a uma mesa e beber uma chávena de chocolate e
contar-lhe todos os meus problemas. Mas quando ela souber o
meu segredo, père, também ela se afastará de mim com
repugnância. Como poderia não o fazer? Como poderia alguém
não o fazer? E por isso não disse nada, tentei sorrir e fui-me
embora com uma sensação de desespero calmo, à procura de
Joséphine. Eu sei. Ela e Roux são velhos amigos. E, no entanto,
eu queria vê-la. Mais uma vez, antes de a notícia do que eu fiz se
espalhar por toda a vila. Um último momento de paz, antes que
tudo mude.
Contudo, quando cheguei ao Café des Marauds, só encontrei
Marie-Ange. Joséphine tinha saído, disse ela. Não dissera quando
voltaria. Não haveria um último momento, então. Nenhuma
suspensão temporária da sentença. O meu dever era inescapável.
Tinha de encontrar Roux e de me confessar a ele. Depois disso –
amanhã tudo isto pertencerá a um mundo em que eu já não
estarei. Pergunto-me se Narcisse alguma vez terá pensado: Como
serão as coisas quando eu já não for vivo? Perturbá-lo-ia? Ou
sentir-se-ia contente por se livrar do peso do seu fardo de toda a
vida?
Virando para Les Marauds, apercebi-me de que ainda trazia
comigo o dossiê de Narcisse. Restavam por ler seis páginas
densamente escritas. Em dez minutos, terminaria. História
contada, confissão feita. Por fim, ficarei livre dele.
4

Sexta-feira, 31 de março
stava escuro dentro da loja. BAM! É claro, pensei: os estores
E estão corridos. Cheirava muito vagamente a incenso e ao odor
bafiento de uma casa vazia. Era um cheiro que me fazia pensar
que ninguém estava ali há muito tempo.
Ao canto, via Bam, a parecer pequeno e desbotado. E havia a
caixa, com o seu tampo de cartão, deixada junto à porta como um
presente. Escrita em maiúsculas no tampo estava uma só palavra:
ROSETTE. Abri-a. E dentro havia um maço de folhas de ensaio de
tatuagem, a caneta de tatuagem de Morgane, uma taça para tinta,
um carregador e um frasco de tinta de tatuagem num cinzento
carvão. Não havia nenhuma nota, nenhuma mensagem. Só o kit
de tatuagem, a tinta, a taça e o montinho de folhas de ensaio.
Pensei no meu sonho e na Morgane do sonho a dizer-me para
cortar os pés. Não tinha sido um sonho realmente assustador,
embora pudesse sê-lo. Devia ser uma mensagem, pensei; e
peguei no que estava dentro da caixa e meti tudo na minha
mochila e saí silenciosamente da loja vazia e fui pelo caminho
junto ao rio para o meu bosque. Queria pensar, e esse é o lugar
onde consigo pensar melhor, rodeada por árvores, em silêncio,
com o meu poço dos desejos e só as aves por companhia.
No campo viam-se os estragos da grande tempestade de ontem
à noite. Folhas arrancadas cobriam o chão como maços de papel
rasgado. Uma grande árvore tinha caído – não uma das minhas,
mas um dos grandes choupos na Rue des Francs Bourgeois. E o
céu adquirira um tom rosado estranho, todo toldado com aves em
tropel. Não havia estragos que eu visse no meu bosque, a não ser
numa meia dúzia de pedaços de solo, onde Yannick e a mãe dele
tinham andado a cavar, e, claro, na grelha de metal e nas pedras
que eles tinham tirado do poço.
Encontrei um sítio seco onde me sentar, à chinesa, num pedaço
de pedra deixado ali. Bam veio sentar-se ao meu lado, em silêncio
por uma vez e bastante esfumado. Havia tantos pensamentos a
fervilharem-me na mente: tantas coisas a desembaraçar. A minha
mãe a dizer, na voz de Morgane:
Por vezes, os filhos voam para longe. Fazemos o que podemos
por os manter junto a nós.
E depois o círculo na areia, e a canção, que ela usa para falar
com o vento.
O que fizeste ontem à noite, maman? Mandaste embora a
Morgane? Fizeste isso para me manteres em segurança?
Devia perguntar-lhe. Sei que sim. Mas por vezes a maman
mente-me. Fá-lo porque gosta de mim, como fazem muitos
adultos. Fá-lo porque tem medo. Eu sei. Consigo ver as cores dela.
De que tens medo, maman?
Sei uma maneira de descobrir. Podia usar a minha voz-sombra; a
que diz sempre a verdade. Não há ninguém para me ouvir no meu
bosque; ninguém que me impeça de descobrir. E eu podia usar o
meu bloco de desenho para me ajudar a ver mais claramente.
Como Morgane me ensinou a fazer com a tinta de tatuagem e os
espelhos.
Tirei da mochila o bloco e o estojo dos lápis. Ando sempre com
eles. Pousei o bloco na beira do poço. Pensei que talvez o poço
pudesse ser o meu espelho, embora não conseguisse ver grande
coisa lá para baixo. Mas o poço estava cheio de murmúrios,
amigáveis e encorajadores. E por isso comecei a desenhar, e
enquanto desenhava ia trauteando a canção do vento – Bam bam
bammm – bam badda-bammm – não suficientemente alto para
causar um Acidente, mas o suficiente para ficar no estado de
espírito adequado.
A princípio, desenhei um lago, com patos, e uma menina
pequena com a mãe a verem os patos da margem. A menina
parecia-se um pouco comigo e a mãe parecia-se muito com a
maman, com o seu cabelo preto e o seu vestido vermelho. Havia
algumas árvores à distância, e pensei que poderia ser o meu
bosque, por isso desenhei Bam nos ramos, empoleirado ali como
uma ave dourada.
Parei para olhar para o meu desenho. Nada mau. E então cantei
as palavras da canção, na minha voz-sombra que nunca mente, e
senti o vento a espetar as orelhas, como um animal a farejar a
chuva:
«V’là l’bon vent, v’là l’joli vent
V’là l’bon vent, ma mie m’appelle,
V’là l’bon vent, v’là l’joli vent
V’là l’bon vent, ma mie m’attend.»
Acima de mim, nos carvalhos, julguei sentir movimento. Podia
ser uma rajada de vento ou esquilos nos ramos. E então avancei
para o verso, aquele sobre os patos no lago.
«Derrière chez nous y’a un étang...»
Acima de mim, aquele movimento do vento de novo, como algo
vivo no cimo das árvores. E no poço dos desejos ouvi o eco da
minha voz a cantar, quebrado em fragmentos como reflexos num
lago espelhado.
Depois cantei o verso seguinte, aquele sobre o filho do rei, e o
outro sobre o pato branco com ouro e diamantes no bico e o outro
sobre as três senhoras a juntarem penas para fazer uma cama...
Agora o vento estava a ficar mais forte. Ouvia a sua voz no poço,
a suspirar, a gemer e a sussurrar. O que queres, Rosette? dizia.
Conta-me. O que queres realmente?
E por isso convoquei a minha voz-sombra e olhei para dentro do
poço dos desejos. Estava escuro lá dentro e cheirava a água
estagnada, a fetos e a ervas daninhas e a coisas que só florescem
à noite. E disse:
Porque é que eu sou diferente? Porque é que não cresci, como o
Pilou? Porque é que vejo as coisas que vejo? Porque é que não
sou como os outros?
E depois, de repente, soube.
Soube o que significava o sonho de ontem à noite, e porque a
maman tinha convocado o vento e porque sou tão diferente e por
que ela tem medo de Acidentes. E depois disse naquela outra voz,
a voz que reconhecia do meu sonho:
– Foste tu que o fizeste, não foste, maman? Fizeste-o para me
impedir de voar para longe.
E a voz do poço, a voz que soa como a minha voz-sombra e
nunca mente, respondeu em mil sussurros e reflexos:
Sim.
5

Sexta-feira, 31 de março
padre de Lansquenet naquela época era um homem muito
O velho chamado Père Matthieu. Passara por ambas as
Guerras Mundiais e tudo o que ouvira nas sombras do
confessionário conferira-lhe um olhar distante, como se estivesse
perpetuamente a observar o horizonte à espera de ver um navio.
Já sabia que o meu pai tinha ido a Rennes tratar de uns
assuntos da família, e a história do meu pai jogou com isso.
Escutei-o enquanto explicava ao padre que se tinha ausentado
durante uma semana e ao regressar dera com o filho e a filha
fechados num quarto e nem sinal de Tante Anna.
«Ela era muito dura com as crianças», disse ele. «Muitas
vezes, fechava-os dentro de casa quando desobedeciam ou
agiam sem pensar. Mas, desta vez, soube logo que havia algo
de errado. Quando abri a porta do quarto, encontrei o meu filho
quase sem sentidos, e a minha filha...» Nesse momento, os
olhos encheram-se-lhe de lágrimas. «A minha filha tinha
tendência para ter convulsões, mon père. Já devia estar morta
há algum tempo. A princípio, julguei que o meu filho também
estava morto. Já não comia nem bebia há dias.»
Era uma mentira simples; suficientemente simples para o padre
acreditar nela. Ele escutou a história em silêncio, com os olhos
semicerrados como que para se proteger de um sol invisível. E o
meu pai foi convincente. Não havia dúvida de que a sua dor não
era fingida. Quando acabou de contar a história, o padre
levantou-se do cadeirão junto à lareira e disse: «Para onde acha
que a sua tia terá ido?»
O meu pai ergueu as mãos, impotente. «Só consigo pensar
que lhe deve ter acontecido algo de mau. Ela nunca deixaria as
crianças fechadas à chave sem comida durante tanto tempo.
Talvez tenha perdido os sentidos algures ou caído ao rio. Eu ia
pedir o seu auxílio para organizar uma busca.»
Lansquenet sempre foi uma pequena comunidade muito unida.
Quando se soube a história, os nossos amigos e vizinhos vieram
em força ajudar-nos. O meu pai liderou as buscas. Procurámos
nas margens do rio, nos bosques, na zona à volta da quinta.
Alguns dos homens usaram cães de caça, mas o cheiro de Tante
Anna estava por toda a parte, e o poço desativado junto ao
arvoredo passou despercebido e permaneceu intocado.
Não sei quem foi, Reynaud, que mencionou primeiro as gentes
do rio. Mesmo naqueles tempos, elas já lá estavam, embora a
Guerra tivesse sido dura para com os ciganos. Agora, tinham
saído mais uma vez da clandestinidade e subiam e desciam o rio
com a mudança das estações. Um bando deles tinha atracado os
barcos nos baixios de Les Marauds, junto às velhas fábricas de
curtumes – naqueles tempos, ainda abertas e a empestarem o
ar. Tem de compreender, Reynaud. Eu era uma criança, assim
como o senhor quando fez o que fez. Traumatizado pela morte
de Mimi e pelo meu terrível ato. Aterrorizado com a possibilidade
de ser descoberto; a dormir pouco, a comer ainda menos, com a
cabeça cheia de suposições. A ideia de que alguém pudesse
assumir a culpa e levá-la consigo – rio abaixo, mesmo até ao
mar – era incrivelmente, sombriamente apelativa. E por isso, por
sugestão do meu pai, ajudei a plantar uma suspeita nas mentes
dos meus vizinhos e amigos. Vira um homem, um estranho,
disse, a rondar a quinta à noite, imediatamente antes de Tante
Anna ter desaparecido.
«Que tipo de homem?»
«Um homem alto, moreno, com uma cicatriz na cara.»
Tinha tirado a descrição de um dos livros que lera na escola.
Não fazia ideia de que acabara de descrever um dos ciganos do
rio. Mas o povo de Lansquenet não precisava de mais
encorajamento. A ideia de que Tante Anna pudesse ter sido
vítima de um cigano era muito mais plausível do que a verdade
que estava ali mesmo debaixo dos seus narizes.
Prenderam o homem, de origem grega, cujo nome era Yannis
Vasiliou. Tinha sessenta e dois anos; era um homem solitário
com uma reputação dúbia. Constava que durante a Guerra
trabalhara no mercado negro. Tinha antecedentes de violência,
cumprira uma pena de cinco anos na prisão por agressão e
durante esse período arranjara a cicatriz que tanto contribuiu
para o condenar. Declarou-se inocente, claro; mas quando o seu
barco foi revistado, encontraram uma série de objetos roubados
– nada da nossa quinta, mas mais do que o suficiente para
confirmar as suspeitas de que ele assassinara Tante Anna
quando ela o apanhara a rondar a quinta, e que se livrara do
cadáver na esperança de evitar que as suspeitas recaíssem
sobre si. Um tribunal em Agen declarou-o culpado, e foi
guilhotinado em Toulouse, onde tantas pessoas tiveram o
mesmo destino às mãos dos alemães.
O meu pai nunca mais voltou a ser o mesmo. Nunca falava
sobre o caso de Vasiliou, embora guardasse uma caixa cheia de
recortes de jornais na parte de trás do guarda-fatos dele. Voltou
a gaguejar, pior do que nunca, até eu mal conseguir lembrar-me
da sua voz, e a imagem daquela noite tornou-se esfumada e
distante na minha memória. Mandou-me para o colégio em Agen
até eu fazer dezasseis anos: na sua maioria, os meus colegas
eram rapazes do campo, forçados a frequentar um colégio
interno porque viviam demasiado longe para ir à escola todos os
dias. Eu só via o meu pai durante as férias, e mesmo nessas
ocasiões ele estava muitas vezes demasiado ocupado,
deixando-me por minha conta. Criara um novo projeto, que lhe
ocupava muito tempo: decidira encomendar e plantar centenas
de carvalhos à volta do arvoredo ao lado do campo de milho.
Tinha contratado um grupo de pessoas do rio para tratarem da
quinta por ele e dedicava a maior parte do seu tempo a este
novo e misterioso projeto. Toda a gente tinha uma teoria
diferente sobre aquilo. A mais popular era que o meu pai estava
a tentar criar as condições perfeitas para as trufas. As trufas dão-
se muito bem em matas de carvalhos, e havia muito mais
dinheiro nas trufas do que no trigo ou nos girassóis. A segunda
teoria, quase tão popular como a primeira, era que desde a
morte de Mimi ele nunca mais fora o mesmo. Tornara-se cada
vez mais metido consigo; só parecia falar realmente com as
gentes do rio que trabalhavam na sua quinta. E os carvalhos
demoram décadas a crescer – mesmo que tivesse a sorte de
conseguir que aparecessem trufas no local, não seria com
certeza durante a sua vida. E, no entanto, persistia: plantou mais
de dez mil árvores – algumas a partir de bolotas, outras de
rebentos – nos oito anos entre a morte de Mimi e a dele.
Quando terminei os estudos, ele estava ainda mais distante do
que quando Tante Anna era viva. O seu projeto ocupava-lhe todo
o tempo, embora fosse ainda menos claro para mim o que ele
estava a fazer ao certo. O seu projeto – não poderia chamar-se-
lhe um bosque – estendia-se até à margem do Tannes, à
exceção de uma pequena clareira com uma forma irregular, que
fora em tempos um campo de morangueiros. Na clareira estava
o poço em que tínhamos sepultado Tante Anna, agora tapado
com uma sólida grelha de metal cravada no cimento. A princípio,
pensei que talvez o meu pai quisesse manter o campo de
morangueiros, mas, com o passar do tempo, e vendo que não
fazia nenhuma tentativa de cultivar ou apanhar o fruto,
compreendi que os morangos não faziam parte do seu projeto.
Deixado por minha conta, descontrolei-me um pouco. Comecei
a beber. Havia uma rapariga na vila, uma rapariga bonita, Eloise
Goujon. Engravidei-a quando tinha dezoito anos e ela quase
vinte e um. Casámos na igreja da vila, sob o olhar atento do avô
dela. O meu pai esteve presente, mas mal falou, mal participou
na festa. Lembro-me de ele me dizer, logo a seguir à cerimónia:
«Quero que fiques com a mata de carvalhos, Narcisse. Pela
Mimi, e pelos teus filhos, quando os tiveres.» E abraçou-me pela
primeira vez desde que eu era pequeno, e segredou:
«O amor é a coisa que só Deus vê.»
Na altura, perguntei-me se não estaria embriagado. Não havia
dúvida de que cheirava a vinho, embora eu não o tivesse visto
beber. Contudo, nos anos que se seguiram à morte de Mimi, o
meu pai mal pronunciara uma frase sem gaguejar. O nome de
Mimi não lhe aflorava aos lábios desde o funeral. Quanto à
referência a Deus – o meu pai não era católico. Já não ia à
igreja, nunca lia a Bíblia. Também não o atraía o judaísmo,
apesar da influência de Naomi. Na sua opinião, o Deus da Torá
não era mais bondoso do que o Deus que sacrificara o seu filho
por causa de uma maçã roubada. Mas foi a última coisa que me
recordo de o meu pai me dizer.
Seis meses depois, morreu, deixando-nos a quinta, a mim e a
Eloise. O cura da vila – um jovem recentemente nomeado após a
morte de père Matthieu – acedeu a fazer vista grossa às
circunstâncias. O meu pai tinha feito uma confissão, a primeira
em mais de vinte anos. É claro que o jovem padre não revelou
exatamente o que ele lhe dissera. Porém, quando o meu pai se
enforcou de uma viga na cave, foi o padre que fez constar que o
velho Dartigen tinha morrido de uma queda – não propriamente
uma mentira, mas o suficiente para garantir um funeral decente.
Não deixou nenhuma mensagem. Nenhum diário. Contudo, na
parte de trás do guarda-fatos dele, encontrei os recortes de
jornais relativos à morte de Yannis Vasiliou, cuidadosamente
guardados numa caixa de sapatos, e escrito na tampa em tinta
vermelha: ASSASSINO.
Aquela palavra, Reynaud. Aquela terrível palavra. Durante dez
anos, mantivera-se por dizer entre nós. Agora, fitava-me do
tampo da caixa; acusadora; condenatória. Interpretei-a como
uma mensagem do homem que nunca me perdoara. E porque
haveria de o ter feito? Era eu quem deveria ter salvado Mimi.
Fora eu quem sacrificara um estranho para me proteger. Pior
ainda, fora eu quem o deixara a carregar o fardo da recordação,
enquanto prosseguia com a minha vida, como se tivesse de
algum modo direito a todas as coisas que ele abandonara...
Queimei a caixa de sapatos na lareira, juntamente com o seu
conteúdo. Nunca falei a Eloise do caso Vasiliou ou de Tante
Anna ou de tudo o que dizia respeito àquilo. Ela era uma
rapariga bondosa, sem imaginação, criada pelos avós durante a
Guerra. Só queria um lar e filhos e uma família. Eu dei-lhe tudo
isso – mas a maior parte de mim mantive-a escondida dela. O
meu pai morreu quando o fardo se tornou demasiado pesado
para ele continuar a carregá-lo. Eu carreguei o meu até agora.
Cuidei dele e vi-o crescer. Em sessenta anos, as árvores do meu
pai transformaram-se numa mata de carvalhos. Nunca
compreendi realmente porque ele teve a necessidade de plantar
as árvores, mas sempre me senti perto dele lá, como se, de
algum modo, as árvores tivessem mantido uma parte do espírito
dele com elas.
As árvores são muito clementes, Reynaud. Dão a sua sombra
tanto aos vivos como aos mortos. A inocência e a culpa não são
nada para elas. Não vou dizer-lhe que o meu espírito está lá,
mas, se acreditasse em espíritos, poderia ser que sim. Seja
como for, vou deixar o bosque a Rosette. Ela desfrutará dele,
como Mimi o teria adorado, se tivesse vivido.
*
O barco de Roux estava ancorado à sombra das árvores, na
parte do rio mais para baixo de Les Marauds. O ar estava suave,
com mosquitos e o perfume das flores das árvores na margem. Um
filamento de fumo cor de jacinto erguia-se da pequena chaminé do
barco. Sentei-me na margem, o melhor que podia com a minha
soutane volumosa, e tirei o cabeção. Por um momento, fechei os
olhos, a escutar os pequenos sons do rio; o sussurro das folhas
nas árvores; a reparar no aroma bem distinto dos caniços; nas
vozes que se erguiam e baixavam à distância, no Boulevard des
Marauds. Havia abelhas no dossel verde acima da minha cabeça e
o odor de algo a arder. Abri os olhos e vi a porta do barco-casa
aberta e um homem no convés – um homem com cabelo ruivo e
um ar desconfiado.
– Um sítio estranho para se sentar – disse Roux.
Inspirei fundo. – Estava à sua espera.
– Ai sim? – A sua voz ficou ainda mais desconfiada.
– Tenho algo a confessar.
6

Sexta-feira, 31 de março
confissão faz bem à alma, dizem. Não sei. A minha alma é
A escura. Escura como um vitral num lugar onde ninguém reza.
Fui uma criança solitária. Um rapaz sem amigos e com uma família
unida pelas aparências da fé. O meu pai era alcoólico: rezava ao
Senhor aos domingos e nos dias de semana bebia meia garrafa de
uísque por dia, e vinho às refeições; assim como apéritif e digestif,
e café-cognac ao pequeno-almoço. A minha mãe reconfortava-se
onde podia, nos braços de vários homens. O único ponto estável
da minha vida era a igreja, onde M. le Curé falava comigo como se
eu fosse um homem da idade dele, não um rapaz de sete ou oito
anos, e onde podia desfrutar da paz e da santidade longe das
provocações e dos insultos dos meus pares e das raivas perpétuas
da minha mãe.
M. le Curé não era um homem paciente nem especialmente
bondoso. Fora ambicioso, em tempos, embora as suas esperanças
de um cargo elevado tivessem morrido. Os boatos de uma
colocação anterior algures no Norte de França, que ele
abandonara muito subitamente, sugeriam algum escândalo prévio,
mas para mim ele parecia a imagem do que um padre devia ser:
duro como um carvalho; reto e forte; resistente a fraquezas.
Foi M. le Curé que me encorajou a deixar de ler romances e a
estudar as palavras de Santo Agostinho. Era ele quem me
consolava quando os outros rapazes eram maus para mim, e me
disse que eu era melhor do que eles, porque sabia como sofrer.
Disse-me que eu estava destinado a coisas maiores do que a vida
na vila, e guiou-me na direção da Igreja como uma potencial
vocação. Foi ele quem me ensinou que as congregações são
como carneiros: precisam de um cão feroz para as manter sob
controlo, para não caírem nas garras do lobo. E foi ele quem me
ensinou que trazer a ordem ao caos é a função primária da Igreja,
que até a bondade pode ser inadequada e que a lei de Deus é
superior a tudo.
Não estou a dizer isto para ser perdoado. De facto, não estou
realmente a dizê-lo. As palavras que tento exprimir a Roux são
frases pobres, caóticas; nada como as palavras cuidadosamente
escolhidas da confissão de Narcisse. M. le Curé ficaria abismado
com a minha falta de eloquência. Mas as palavras não são
suficientes para dizer tudo o que necessito de confessar. As
palavras são coisas fracas em face do homem cuja vida roubei.
Roux, eu matei os seus pais.
Não pode haver desculpa, eu sei. A minha idade; o facto de ter
pensado que os barcos-casas estavam desocupados; o facto de
ter sido levado a acreditar que os meus atos eram justos. Nada
disso desculpa o facto de ter sido eu quem ateou o incêndio que
causou a morte de duas pessoas. Só uma pequena fogueira, na
margem do rio; e, no entanto, transformou-se num grande
incêndio. E, embora eu me tenha confessado e tenha sido
absolvido pelo próprio M. le Curé, ele não tinha o direito de me dar
essa absolvição nem eu de a receber.
Sei-o agora. Sempre o soube. Talvez fosse por isso que passei a
odiá-lo, Roux, a si e a todas as gentes do rio. Não devido ao que
são, mas devido ao que eu fiz. E, devido ao que fiz, fiquei
separado das outras pessoas. Talvez seja por isso que as odiava
também, com todas as suas tolas amizades. Achava-me mais
puro, mais duro do que elas – duro como um diamante, forjado no
fogo – mas durante todo esse tempo continuei a invejá-las. Teria
dado tudo para apagar aquele erro.
Não é minha intenção dar a entender que, porque sofri, devia ser
absolvido. Compreendo que nada pode alterar o que fiz naquele
verão. No entanto, depois de ler o dossiê de Narcisse, vejo que há
uma coisa que posso fazer. Posso contar-lhe a si. Posso
confessar-me à única outra pessoa cuja vida tem sido marcada
pelo que eu fiz.
Não estou a pedir o seu perdão. Simplesmente quero que saiba
o quanto lamento o que fiz. Não tenho desculpa. Sou um cobarde
e um assassino. Morgane disse que o Roux se culpava pela morte
dos seus pais. Mas era uma criança. Era inocente. Eu estou aqui
para reclamar o que é meu. Veja, a marca de Caim no meu braço,
aqui para toda a gente ver...
As palavras jorraram de mim como sangue, e a única coisa que
consigo ver agora é o rosto dele; os seus olhos, tão cinzentos
como o oceano. Eu não podia esperar compreensão, só o ódio que
mereço. Arregacei a manga, revelando a película que cobria a
minha tatuagem ainda pouco nítida – e, naquele momento, por trás
dele, junto à porta da cabina, vi outra pessoa. Era Joséphine.
Estava com calças de ganga e um top que me agradava – azul,
com flores amarelas. Trazia o cabelo preso, e umas madeixas
suaves e castanhas pendiam-lhe para o rosto. Disse que queria
vê-la, disse a voz seca e desapiedada de Narcisse. Bem, teve o
que queria, mon père. Afinal, as preces sempre são atendidas.
Ela devia ter estado na cabina, pensei. Devia ter ouvido todas as
minhas palavras. Por um momento, fiquei ali em silêncio,
consciente de todos os pormenores. O vento, os pequenos sons
do Tannes, o perfume das flores caídas. Dentro de mim, havia um
silêncio mais profundo do que o oceano.
Finalmente, ela sabe, pensei. E não posso culpar mais ninguém
a não ser eu. Estava destinado a acontecer: eu sempre soubera
que ela acabaria por descobrir. Era uma infantilidade minha
imaginar que poderia agarrar-me a algo de bom no dilúvio da
minha vida. Mais ainda acreditar que pudesse merecer perdão.
Como se do fundo do rio, ouvi a voz dela. As palavras
chegavam-me de tão longe que só conseguia ouvir um som como
de enxurrada, como algo num escafandro. Tinha a visão toldada; o
estômago doía-me; os meus pés estavam a quilómetros dali. Desci
a cambalear o caminho do rio, sem saber para onde ia; consciente
apenas de que precisava de me afastar imediatamente daquele
lugar. Alguém me chamou. Não me virei. Não havia nada para que
me virar. Corri ao longo do Tannes, deixando-os por fim para trás,
juntamente com o som do rio. Avancei ao longo das casas na Rue
des Marauds, cortei pelos campos lavrados e dei comigo no
pequeno caminho de terra batida que leva à mata de carvalhos de
Narcisse.
É este o sítio, disse para comigo. É aqui que porei fim à vida,
entre os morangueiros em flor que não viverei para ver
amadurecer. Como o homem na história, espero que a morte
possa de algum modo redimir-me. Não rezo, a não ser à
esperança tenebrosa e blasfema de que talvez possa por fim
desaparecer, evaporar-me no ar e não ser recordado por
ninguém...
7

Sexta-feira, 31 de março
onheço a história de uma menina cuja voz foi roubada por uma
C bruxa. Oh, não era uma bruxa má; só triste e assustada.
Apenas tinha as suas meninas; uma menina de verão e uma
menina de inverno, ambas nascidas selvagens e cheias de vida e
curiosidade. E o vento, o vento invejoso, soprava à volta da casa
da bruxa, a chamá-las, a chamá-la, a recordar-lhe que a magia tem
um preço que tem de ser pago um dia, na totalidade.
Mas a bruxa conhecia o vento desde sempre. E pensou que
talvez pudesse enganá-lo, e ser como as outras mães e viver
numa vila tranquila algures, só com o tipo de magia que pode ser
escondida em chocolate.
E por isso roubou a voz da menina e sacrificou-a ao vento, para
que só a sombra da menina pudesse falar. E, assim, manteve a
sua filha em segurança, de modo a que só em sonhos ela pudesse
voar para longe...
Mas agora eu estou desperta, maman. Sei que não há
Acidentes. Só o vento a recordar-nos a nossa dívida por sermos
quem somos. Só a magia que vive em todos nós e se estende a
toda a gente. Não podes manter uma criança como um pato no
lago, com as asas cortadas para enganar o vento. O vento só se
deixa enganar por algum tempo, e, quando volta, vem com toda a
força e raiva do Hurakan.
E agora o vento sopra de novo e eu ouço a sua voz, uma voz
que podia ser de qualquer pessoa: de Morgane Dubois, de Vianne
Rocher ou até de Zozie de l’Alba...
Ou podia ser minha. Eu tenho uma voz. Só nunca a usei muito.
Pensei que não era seguro usá-la. Pensei que não me pertencia.
Mas agora posso reclamar de novo a minha voz. Posso usá-la. Sei
como.
Acima de mim, nas árvores, o vento está a começar a portar-se
mal. Ouço-o a provocar-me lá do fundo do poço dos desejos. Sei o
que quer. Digo-lhe: – BAM! Agora eu é que mando.
Sei o que quero fazer primeiro. Procuro uma nova página no meu
bloco de desenho. Desenho a casa da quinta de Narcisse. Yannick
e a sua mãe estão cá fora; desenho a mãe com uma cabeça de
flamingo, Yannick como um urso castanho triste. Também sei como
fazer as vozes. Todas aquelas vozes de aves e animais vão ser
úteis, afinal.
Yannick está a berrar. «Não é justo! Nunca me deixas ter
amigos!»
A mãe dele soa zangada e estridente, como o vento. «Isso não é
verdade, Yannick», diz. «Quero que tenhas amigos normais,
não...»
«O quê?»
Sei que ela está a referir-se a mim. A voz de Yannick é quase um
rugido: um urso a defender o seu mel. Quase me rio alto ao pensar
aquilo, mas não quero excitar o vento.
«Normal?», diz ele. «Queres dizer, não como eu?»
«Tu não és uma aberração, Yannick», diz ela. «Só estás a
passar por uma fase. Se pelo menos conseguisses fazer um
esforço, tenho a certeza...»
«Eu fiz um esforço», diz Yannick. «Mas sob a superfície sou
sempre eu. É como se tivesses vergonha de mim, maman. A
esconderes-me assim. A fingires que sou um inválido. A fingires
que vou ficar melhor um dia. A pensar que vou ser diferente.»
«Mas, Yannick...», diz a mãe dele, e agora soa como se
estivesse prestes a chorar. Sinto um pouco de pena dela. É mãe,
afinal. Só quer o melhor para ele. «Yannick», diz. «Tu és o meu
único filho. Eu só quero ver-te feliz.»
«Então, deixa-me ser eu próprio», diz ele. «Sempre fui assim.
Nunca vou ser diferente. E a partir de agora vou escolher os meus
amigos e seguir o meu caminho, ser uma aberração se quiser. É
assim que vou ser feliz, maman.»
Ele tem razão, claro. Não há nada de errado em ser uma
aberração. As aberrações são extraordinárias. É o que nós somos,
Yannick e eu. Somos extraordinários. Oh, e mais uma coisa,
Yannick. «Quero que deixes a Rosette em paz. Nada de voltar a
falar sobre o bosque dela. Nada de te pores a cavar à procura de
um tesouro. OK?»
O vento solta um gemido de rebeldia. Silencio-o com um gesto.
Desenho uma imagem de Mme. Montour a dar a Yannick um pote
de mel. Depois viro a página. A voz para. No silêncio que se
segue, ouço o som de passos no caminho e aparece uma pessoa
na clareira. É Reynaud. Está com um aspeto terrível. Acocoro-me
ao lado do poço e rastejo para debaixo dos arbustos para me
esconder. Reynaud não me vê. Penso que não vê nada.
O que está a fazer aqui? Este bosque é meu. Está a invadir
propriedade alheia, uma ofensa. Os padres deviam saber melhor o
que ofende. Não dizem: perdoai-nos as nossas ofensas? Mas há
algo de errado em Reynaud; as suas cores estão descontroladas e
feias e loucas, e está a falar para si mesmo numa voz baixa, um
pouco como a minha voz-sombra, em frases incompletas que não
fazem sentido. Ouço mon père e confissão e ratazanas do rio e
Joséphine. A seguir, aproxima-se do poço e espreita lá para dentro
e murmura qualquer coisa. Não consigo entender as palavras, mas
elas ecoam do poço, esvoaçando como uma nuvem de traças.
Espero que não tenha formulado um desejo. Receio que, se o
fez, ele possa realizar-se.
8

Sexta-feira, 31 de março
á era o fim da tarde, e eu estava a fazer trufas. Estava de
J costas, mas adivinhei de imediato a presença da minha filha
pelo som da sua respiração.
– Anouk.
Ela estava junto à montra e tinha o rosto virado para a luz. Voltou
a pintar o cabelo – de cor-de-rosa, desta vez, como algodão doce
– e, embora lhe fique bem, pergunto-me porque sente a
necessidade de mudar a sua cor com tanta frequência. Ela é, e
sempre foi, linda, com os seus olhos escuros como os limites do
céu. Tem o cabelo encaracolado como algodão doce e já a ficar
escuro na raiz. O cor-de-rosa faz com que a sua pele pareça mais
pálida; tira-lhe o brilho de nectarina. Por vezes, pergunto-me se ela
andará a tentar diferenciar-se de mim.
– Maman. – Abraça-me desajeitadamente; dá a sensação de ter
perdido peso. Aos nove anos, Anouk era forte como um
cachorrinho e cheia de alegria. Agora, é como um bando de aves,
delicada e pronta a voar.
– Que bom que é ver-te.
– A ti também.
Há outra coisa que é nova, vejo-o: uma vibração nas suas cores.
Anouk foi sempre fácil de ler, mas, à medida que vai ficando mais
velha, as suas cores têm mudado; deslocam-se, tornam-se mais
complexas. Quero perguntar-lhe quais são as novidades, mas sei
que ela mas contará quando chegar o momento.
– Queres um chocolate quente?
Ela acena que sim com a cabeça. Não bebeu chocolate quente
mais do que três vezes desde que era criança. Portanto, isto
significa algo importante, talvez até algo perturbador. Sei que não
devo perguntar-lhe o quê ainda: que o chocolate faça o seu
trabalho.
Sirvo a bebida na chávena de Anouk, a que mais ninguém usa.
O chocolate cheira a terra molhada depois da chuva e a
cardamomo e a sândalo e a chá verde feito de fresco e
aromatizado com rosas. Ela sempre gostou do aroma a rosas, e
agora, embora raramente o beba, incluo sempre um pouco de
água de rosas no chantilly.
Bebe em goles pequenos e cuidadosos, ciente da potência
daquela bebida amarga. Enquanto o ar tranquilo se instala numa
nova forma à volta dela, envio pequenos tentáculos, um
questionamento das suas cores; um murmúrio como uma canção
de embalar que trauteia para consigo:
Experimenta-me. Diz-me. Confia em mim.
Ela pousa a chávena. Parece-me ver por trás dela um súbito
clarão de cinzento. Mais uma recordação da infância – não vejo
Pantoufle há anos. Quase dá a sensação de que Anouk está à
procura de um eu anterior, talvez na esperança de encontrar um
canal de comunicação...
– Como está o Jean-Loup?
Ela sorri ao ouvir o nome dele. – Está ótimo. – Uma pausa. –
Arranjou emprego.
– Já? – Jean-Loup está no último ano da faculdade. Ainda lhe
faltam os exames. – Que tipo de emprego?
Os seus olhos brilham. – É o emprego de sonho dele, a trabalhar
com um grupo de preservação da vida selvagem. Enviou-lhes
amostras do trabalho dele, as fotografias, o que escreve. Querem
que vá lá de avião em julho. Está muito entusiasmado.
– De avião? A algum sítio na Europa?
Ela abana a cabeça. – À Nova Zelândia. E depois à Austrália.
Austrália? – Por quanto tempo?
– Um ano, para começar. Depois, se der certo...
Um ano. Para começar. – E depois disso?
Ela encolheu os ombros. – Depende. Na realidade não sei.
Sinto a cabeça a andar à roda. – Não faz sentido. Com certeza
deve haver fotógrafos no hemisfério sul. E o problema de saúde
dele? O coração?
– Maman, são uma instituição de beneficência. São
progressistas no que diz respeito à contratação.
– Não era isso que eu queria dizer, Anouk. – Tentei encontrar as
palavras certas, mas formá-las era como apanhar fumo. O coração
começava a dar-me saltos no peito; sentia uma espécie de zunido
nos ouvidos, e mais uma vez pensei na minha mãe, nos poucos
meses antes de ela morrer; na maneira febril como parecia e
soava, aninhada contra mim na cama de uma qualquer pensão
anónima ou quarto de hotel, com o ar condicionado a emitir aquele
mesmo zunido distante, e a minha mãe a dizer:
– Que me dizes, chérie? Nunca vi o Cruzeiro do Sul. Que me
dizes da Austrália? Nova Zelândia? Das Ilhas Whitsunday?
A minha mãe andava com mapas na cabeça como eu andava
com receitas. Ambos impossíveis, claro: aquelas terras distantes
tão exóticas como as tagines condimentadas e as laksas e as
callaloo que eu só vira em livros ou nas ementas dos restaurantes
que nunca tínhamos posses para frequentar. E mesmo assim ela
continuava a fazer planos, mesmo quando já mal conseguia andar:
as Ilhas Virgens, Taiti, Bora Bora, Fiji. Pouco importava que
estivesse doente, que estivéssemos na penúria, que vivêssemos
do que conseguíamos ganhar cada dia, a servir às mesas. Aquela
faísca de desafio nos seus olhos – era o que via agora em Anouk.
– O que eu queria dizer – disse eu –, é se... é seguro?
Anouk lançou-me um olhar vivo que era curiosamente adulto. –
Nem sempre se pode estar seguro – disse. – O Jean-Loup tem
vivido com isso a vida toda. Sabe que pode morrer amanhã ou que
pode viver até aos oitenta anos. Ninguém sabe. É por isso que ele
quer ver o mundo. Não daqui a um mês; não daqui a um ano. Mas
agora. Porque agora é tudo o que há.
– E tu? – Eu já não conseguia suportar mais. Já sabia a
resposta.
– Vou com ele.
Como poderia não ir? A minha filha está apaixonada. Não pode
deixá-lo. O amor, esse devorador de corações, esse vento que
varre tudo o que construímos.
– Para a Austrália? – disse eu.
Anouk, cujo único desejo em criança era ficar num lugar como
Lansquenet. Tudo estava a ficar dormente. Sentia-me como a
sobrevivente de uma explosão tremenda: com o rebentamento
ainda estampado nas retinas; com os ouvidos a tinirem com o
zumbido do choque.
– Para a Austrália? – repeti.
– Só por um ano, a princípio. Temos o Skype e o FaceTime e e-
mail e... por favor. Por favor, maman. Por favor não chores.
– É claro que não. Vai ser uma aventura.
Ela acenou com a cabeça. – Casámo-nos – disse. – Na semana
passada, em Paris, na mairie du dixième arrondissement.
Queríamos fazê-lo discretamente. Não esteve ninguém presente, a
não ser as duas testemunhas que conhecemos imediatamente
antes. – Fez uma pausa, pousou a chávena do chocolate quente e
agora eu via-lhe as lágrimas nos olhos. – Diz-me que não ficaste
triste, maman. Diz-me que podes sentir-te feliz por nós.
Há sempre um momento depois da tempestade em que o vento
se instala numa rotina mais suave. Assume uma certa
domesticidade: namorisca com as nuvens no céu azul brilhante;
puxa pelas árvores como uma criança brincalhona, prometendo
mais uma vez portar-se bem. Mas este momento de brincadeira é
quando o vento está no seu pior. Mais tarde, quando a promessa
tiver sido quebrada como tantas vezes antes, dizemos a nós
mesmos: outra vez, nunca mais. E depois, quando julgamos que
levou tudo o que poderia levar, aquela ténue esperança regressa,
de que desta vez, talvez desta vez...
Abraço-a com força. Digo: – É claro que posso. Eu adoro-te,
Nanou. Se tu estás feliz, eu estou feliz.
– Tirámos umas fotografias. Queres ver?
Sorrio-lhe. – É claro que quero.
As fotografias estão num álbum, um álbum em segunda mão,
sem dúvida comprado no Marché aux Puces. Na capa, uma
imagem da velha Montmartre nos seus tempos áureos,
desvanecida pelo tempo; um céu da cor das memórias. Dentro, ela
está de calças de ganga; com uma coroa de flores nos seus
caracóis de algodão doce, a segurar uma faixa de véu que
esvoaça ao vento como a bandeira de um barco de piratas.
Confettis de papel, como flores, como neve, como os confettis que
esvoaçavam no dia em que viemos no vento do carnaval.
Ouço a voz da minha mãe na cabeça. Os filhos estão só por
empréstimo, diz. Um dia, temos de os devolver. A minha mãe
nunca me devolveu. A minha mãe optou antes por me deixar.
Pergunto-me se Anouk ouvirá a minha voz na sua cabeça. Ou se
simplesmente se afastará para uma órbita diferente?
O sorriso dela nas fotografias parece diferente: um sorriso que só
Jean-Loup vê. É claro que os dois não tinham posses para
contratar um fotógrafo profissional. Recordo que Jean-Loup será
em breve um fotógrafo profissional. O rapaz com o coração
quebra-cabeças e a minha filha agora unidos. Não serão
demasiado jovens? Talvez. Mas não era eu demasiado jovem para
ter uma filha? E quão mais velha me sinto eu, vinte e um anos
depois?
Viro a página. Aqui estão algumas fotografias de ambos. Jean-
Loup parece mais alto do que recordo; mais alto, mais bonito e
muito mais seguro de si. O adolescente desengonçado que
conheci transformou-se num belo homem. Ao lado dele, Anouk é
uma mancha; iluminada com riso e alegria. Não há poses em
nenhuma destas fotografias, mas pressinto o olhar de um
profissional. E depois vejo um rosto familiar, meio desviado da
objetiva, com o seu cabelo prateado apanhado em movimento, a
cortar o ar como uma foice...
O mundo para por um instante. Tudo começa a voar para longe.
– Quem é aquela? – consigo perguntar.
– Oh, é a artista de tatuagem. Foi uma das nossas testemunhas.
Pensámos que era fixe fazermos uma tatuagem de casamento em
vez de trocarmos alianças.
E agora mostra-me o pulso, e eu sinto o mundo desmoronar-se.
Tudo está a arder; o céu rasga-se como papel. Uma rosa silvestre,
tão pálida como o amor jovem, com as suas pétalas ainda mal
desabrochadas, com as suas gavinhas a alastrarem-lhe pelo pulso
abaixo. O padrão é estranhamente familiar; os seus tons pastel
sombreiam as veias de um azul suave do lado de dentro do braço
de Anouk.
– Gostas?
– É lindo. – Nem sequer tenho de mentir.
– Ainda bem – diz Anouk, abraçando-me. – Sinto-me como se a
tivesse desde sempre.
9

Sexta-feira, 31 de março
poço em que Narcisse e o pai dele se livraram do corpo de
O Tante Anna ainda está lá, numa clareira no bosque. Há um
pequeno caminho da cancela que lá vai dar. Pergunto-me
vagamente porque Narcisse optou por manter o local da sepultura
– no lugar dele, eu teria preferido encher o poço e deixar que as
silvas o cobrissem. Em vez disso, Narcisse optou por fazer uma
clareira à volta do poço, uma clareira repleta de sulcos e coroas de
morangos silvestres.
Mas alguém esteve aqui recentemente. A terra foi revolvida em
várias partes da clareira. Suspeito que tenha sido Michèle Montour,
com a sua conversa de um tesouro enterrado. E há pegadas na
erva, e uma área junto ao poço onde alguém passou um tempo
considerável.
Rosette? Um lápis abandonado indica-me que provavelmente
tenho razão. Ocorre-me a ideia de que, se morrer aqui,
provavelmente a criança vai encontrar-me. Isso não seria nada
bom. Não tenho nenhum desejo de fazer mais mal a ninguém. Só
quero desaparecer e nunca mais ser visto por ninguém.
Surpreendentemente, este simples plano está cheio de
complicações. Não posso enforcar-me numa árvore, por receio de
Rosette encontrar o meu cadáver. Uma overdose de comprimidos
em minha casa implicaria que alguém – talvez os vizinhos –
tivesse de comunicar à polícia os indícios de algo em
decomposição na casa ao lado. Atirar-me ao Tannes talvez
resultasse, mas eu nado extremamente bem, père, e, além disso, a
ideia de a pequena Maya ou um dos amiguinhos dela me
descobrirem na margem do rio faz-me sentir náuseas. Aplica-se o
mesmo a saltar da torre da igreja ou a atirar-me para debaixo de
um comboio. Um suicida deixa tanto trabalho às outras pessoas,
père. Tanto potencial para fazer mal aos outros; tantos deveres por
cumprir.
Por esta hora, suponho que Roux e Joséphine já terão
espalhado a notícia por Lansquenet. Tudo o que pensei que tinha –
a minha reputação, o meu rebanho, a minha vida – exibido para
ser desprezado e desdenhado. Todas as pessoas saberão que o
homem que se dizia seu guia não passava de um impostor. Caro
Clairmont e as suas amigalhaças, que me bajulavam pelo meu
estatuto. Poitou, o padeiro. Joline Drou. Ying-Ley Mak. Os
Bencharki. As gentes do rio. A empregada de mesa mal-encarada
do café. O carteiro. O Bispo. Vianne Rocher. Omi Al-Djerba. A
pequena Maya.
E Joséphine – a minha Joséphine, segreda a voz blasfema na
minha cabeça. Palavras que nunca pude dizer, mesmo antes da
minha confissão. Agora, claro, nunca serão ditas. Isso, suponho,
deveria ser um alívio. Ela sabe que sou um homicida, mas pelo
menos nunca saberá isso.
Olho para dentro do poço aberto. O buraco parece fundo, e
cheira a chuva e a vegetação apodrecida. Penso em Caim, a tentar
esconder-se do Olho de Deus. Pergunto-me se a queda seria o
suficiente para me matar ou se me afogaria lentamente, como uma
ratazana num barril de água da chuva. Tenho medo de morrer,
mon père. E, no entanto, também tenho medo de viver. Talvez
sempre tenha tido, mon père. Talvez seja essa a minha tragédia.
Subitamente, lembro-me de que ainda não vi a minha tatuagem.
A pele por baixo da película de plástico ainda está inflamada e
sensível. Mas Morgane não precisava que eu visse a imagem que
me desenhou? Não haverá alguma mensagem que eu deveria
compreender?
Arregaço a manga da minha soutane e tiro delicadamente a
película protetora. O ar na pele dá uma sensação boa, fresca e
reconfortante. Procuro a marca de Caim – o Olho, a chama, o raio
– mas não há nada. Não há nenhum desenho. Só uma área de
pele um pouco mais sensível do que o resto, como um escaldão.
O que é isto? Será uma piada? Um truque?
Inspeciono o braço todo. Nada. A mancha de cores violentas que
eu vira está tão ausente como a própria Morgane. Mas havia uma
tatuagem. Deve ter havido uma tatuagem. Eu vi-a. Senti-a. Disse
alto:
– Havia mesmo uma tatuagem. Sei que havia.
As minhas palavras voltaram para mim do poço, partidas em
pedaços.
E depois, mais uma vez, penso na história do homem que tinha
vivido toda a vida com um segredo tão tenebroso que só a morte
poderia absolvê-lo. Foi assim que ela me levou a declarar o meu
segredo? Será isto a última frase de uma piada de que sou eu o
alvo?
O homem da história dela salvou-se, claro. A confissão libertou-o
do seu pecado. Mas não me libertará do meu. Roux não pode
absolver-me. Toda a minha vida tem sido uma série de piadas
amargas, de erros terríveis. Tudo o que tem acontecido ao longo
dos anos levou-me a isto.
Há um pedaço de metal ao lado do velho poço. Atiro-o para
dentro, pelo ar fresco e húmido, e fico à escuta do som que fará ao
bater na água. Só o ouço ao fim de muito tempo, de muito longe no
escuro. Olho para baixo e vislumbro o disco prateado do céu
refletido na profundeza distante. E agora, da garganta do poço,
quase consigo ouvir o som de vozes; estridentes, como as de
crianças a brincarem. Um truque da acústica do poço, talvez.
Recorda-me a história do Flautista de Hamelin e de como com a
sua música atraiu para debaixo de terra as crianças dessa cidade.
Só escaparam duas, uma coxa e outra cega, mas passaram o
resto da vida a sonhar com o que poderia ter acontecido se fossem
como as outras.
Quanto ao homem por trás de tudo isso, que se recusou a pagar
ao flautista o que lhe era devido, afogou-se no rio ou escondeu-se
debaixo da terra, como Caim, dependendo da versão que se leia.
Dou-me conta de que perdi o dossiê verde que contém a
confissão de Narcisse. Devo tê-lo deixado cair, suponho, algures à
beira-rio. Mas não posso voltar lá. Aconteça o que acontecer, o
meu caminho termina aqui. O meu dever para com Narcisse está
cumprido.
Agora tenho de pagar o resto da minha dívida, a que devo a
Deus Todo Poderoso. Olho por olho. Vida por vida. É a hora de
pagar ao flautista.
10

Sexta-feira, 31 de março
agora sei o que o Hurakan levou na vez de Morgane Dubois, e
E o mundo desmorona-se como um castelo de cartas, como a
Torre no baralho da minha mãe, espalhando as peças da minha
vida entre as trufas e os nougatines.
Anouk vai-se embora. A minha Anouk. Este momento que temo
há tanto tempo. Eu própria uma criança roubada, sei no meu
íntimo que todas as crianças são roubadas. Correm com a lebre,
derretem com a neve, seguem o Flautista de Hamelin. E, por
vezes, esvoaçam como confettis ao vento...
Anouk subiu ao quarto para desfazer a mala, deixando-me a
preparar o jantar. Algo rápido e simples, pensei: uma salada de
tomates maduros, servida com queijo de cabra assado, pão fresco
e um prato de belas azeitonas castanhas. Consegui esconder a
minha ansiedade até ela sair da cozinha, mas tremem-me as mãos
enquanto corto os tomates. Um pouco de azeite, sal marinho,
cebolinho, uma mancheia de manjericão fresco. A comida é a
coisa que nos une a todos, que volta a reunir-nos. A comida é a
coisa que podemos providenciar quando não há mais nada que
possamos fazer. É por isso que a servimos nos funerais. Para nos
recordar que a Vida continua sempre.
O relógio da igreja dá as seis e meia. É tarde. Rosette já devia
ter voltado. A loja do outro lado da praça parece morta: não há
sinal de movimento. Digo para comigo que Morgane partiu –
silenciosamente, discretamente, como eu faria há vinte anos, a
responder ao apelo do vento. Mas não acredito. Suspeito que
ainda tem um coelho para tirar da cartola. Uma última cartada.
O queijo de cabra está quase pronto. Lá em cima, ouço o duche.
Rosette já devia ter chegado: sabe que Anouk veio visitar-nos de
Paris. Será que Morgane a levou? Não. E, no entanto, o receio
mantém-se na minha mente, enroscado como uma minhoca numa
cereja. Embora as luzes estejam todas apagadas no estúdio de
tatuagem, há algo que me atrai o olhar para a montra às escuras.
Talvez um reflexo. Mas depois vejo uma mancha dourada na beira
da montra...
Desligo o forno e vou à porta. Verificar o que se passa demorará
uns dois minutos, não mais. Anouk está no duche, e não há mais
ninguém à vista. Atravesso a praça a correr e espreito pela montra
com os estores corridos. Não há espelhos lá dentro; nenhum sinal
de atividade humana. E, no entanto, pressinto uma presença ali;
algo que brilha nas sombras como o trilho dourado de um animal
mítico...
Dirijo-me à porta. Começo a bater. Mas a porta já está aberta. O
fecho deve estar estragado, ou talvez Morgane se tenha esquecido
de a fechar à chave quando se foi embora. Abre-se para o perfume
de violetas e tuberosa.
Rosette está sentada no chão, no último feixe tardio de luz do
sol. À sua volta, espalhadas nas tábuas do soalho, há folhas do
bloco de desenho dela e lápis de cores e algo mais – um kit de
tatuagem com uma caneta e uma taça e algo como um carregador.
Ela não olha para cima quando eu entro, mas diz numa voz
estranha, mas muito clara: – Estava à tua espera, maman.
É uma voz que nunca ouvi. Grave, como o som de ondas numa
praia, e, embora estranha, é de certo modo familiar. Já ouvi algo
como ela antes, em sonhos, e no vento do carnaval e entre os
barcos no Sena e por entre as folhas de árvores no outono. Não é
muito diferente da voz da minha mãe ou da minha ou talvez até da
de Anouk – mas ouvi-la agora, depois deste tempo todo, vinda da
Rosette, faz-me estremecer.
– Estás a falar – digo. – Como é que isso pode ser?
Ela olha-me sem sorrir. Os seus olhos são como um punhado de
estrelas. – É verdade, o que tu fizeste? – pergunta, e agora
consigo ouvir a voz do vento a falar através da minha filha. – É
verdade que me roubaste a voz para poderes manter-me contigo?
Por um momento, contemplo a hipótese de mentir à minha filha.
Mas não vale a pena, não agora que ela sabe. As minhas filhas
não são como as outras raparigas. As minhas filhas veem mais do
que as outras raparigas. As minhas filhas são filhas do vento, e só
o vento pode reclamá-las.
– Queria manter-te segura, Rosette. Eu amo-te.
– O amor nunca é seguro.
Sorri. Poderia ser Anouk a falar. Primeiro Anouk, e agora
Rosette. O vento levou tudo. Ela aponta para os desenhos
espalhados no soalho poeirento. Vejo um desenho de um lago,
com patos, e um caçador escondido. A caneta de tatuagem de
Morgane está ao lado dela, enfiada no carregador.
– O que estás a fazer com isso?
Ela encolhe os ombros. – Tenho estado a aprender a usá-la.
– Para quê?
– Porque é uma espécie de magia – diz ela. – Os povos antigos
por todo o mundo tatuavam o corpo para homenagear os deuses.
Alguns acreditavam que uma tatuagem podia revelar a forma da
alma.
São quase as palavras de Morgane, e a voz é quase a de
Morgane ou a minha ou a de Anouk ou a da minha mãe. Apercebo-
me de que as nossas vozes foram sempre muito semelhantes.
Somos as filhas do vento: o vento sopra através de nós, quer
queiramos quer não.
– Onde está a Morgane? – pergunto.
– Foi-se embora.
– Porque é que te deixou os instrumentos dela?
Ela olha para mim. Os seus olhos estão escuros como as nuvens
de uma tempestade que se aproxima. – Porque eu vejo coisas.
Todas vemos. Vemos aquilo de que os outros precisam. Por vezes,
até lhes damos. Deixa que te mostre o que consigo fazer.
Sento-me ao lado dela no chão. Quero dizer-lhe tantas coisas.
Mas agora sou eu quem não tem voz, e o vento está a dilacerar-
me, a espalhar-me como penas.
– Não chores, maman – diz Rosette.
Não estou a chorar. Eu nunca choro. Como o poder passa
facilmente de uma geração para outra. Ontem, Rosette era a
minha menina; hoje, num instante, sou eu a dela. Pouso a cabeça
no ombro dela e fecho os olhos. Apetece-me dormir. Apetece-me
dormir numa cama de penas até ao fim de tudo.
– O que queres mostrar-me? – pergunto.
Rosette pousa a mão no meu cabelo. – Mais tarde, maman. Sê
paciente. Agora, quero contar-te uma história.
O Corvo
1

onheço uma história sobre um menino triste que se transformou


C num corvo. Não era realmente um rapaz mau, mas a maldade
e a tristeza são duas aves pretas que quase sempre voam juntas.
E, à medida que crescia a sua tristeza, também aumentava a sua
convicção de que era mau e de que não era merecedor de nada.
E, pouco a pouco, isso transformou o menino numa ave ríspida e
rouca, que se alimentava de carne putrefacta, troçava dos fracos e
invejava a sua felicidade.
Foi Narcisse quem me contou essa história, claro. Contou-me
tantas histórias. Histórias sobre uma menina como eu: histórias
sobre uma bruxa má. Agora sei que a menina era Mimi e a bruxa
era Tante Anna. E histórias sobre um corvo triste, que penso que
era Francis Reynaud.
O corvo tinha um segredo profundo e escuro. Era ainda mais
escuro do que o segredo que o transformara em corvo
inicialmente. E carregava esse segredo, em silêncio e triste, para
onde quer que fosse, sob a forma de uma só pena pálida,
escondida debaixo da asa. Ninguém a via a não ser o corvo. E, no
entanto, tornava-o diferente. Fazia-o ansiar pelo menino que fora.
Fazia-o ansiar por coisas mais doces. E fazia-o ansiar por amor,
embora o amor estivesse sempre fora do seu alcance.
Estava de pé junto à abertura do poço, a olhar para o escuro lá
dentro. Tinha pegado num pedaço de metal do chão; agora, atirou-
o para dentro do poço e eu ouvi o som dele ao bater na água muito
lá em baixo. Estava a vê-lo das moitas, sem saber bem o que fazer
ou dizer. Narcisse avisara-me sobre aquele velho poço, como era
fundo, como era perigoso. E, mesmo assim, eu não conseguia
acreditar realmente no que Reynaud estava a pensar fazer...
Emiti um pequeno som de pega do meu esconderijo por trás das
árvores. Reynaud não o ouviu. O vento estava calado como um
rato a dormir. Eu sabia que precisava de algo mais. Mas Reynaud
dar-me-ia ouvidos? Ou será que o meu aparecimento o faria cair?
Convoquei a minha nova voz de autoridade e saí para a clareira.
Disse: – Sou eu, M. le Curé. Posso perdoar-lhe a sua invasão de
propriedade alheia, a sua ofensa. Mas tem de descer daí.
Por um segundo, pensei que Reynaud poderia saltar. Virou-se, e
cambaleou em cima do poço. Tinha os olhos muito abertos, como
janelas. Aproximei-me um pouco mais. Agora estava ao lado do
poço. Olhei para cima, para Reynaud, e disse: – Desça daí. Pode
cair.
Ele olhou para mim. Eu via que não tinha a certeza se eu estava
ali ou não. Disse:
– Rosette Rocher? És tu?
Assenti com a cabeça.
– Mas tu consegues falar.
– É claro que consigo. Agora, por favor, desça daí.
Ele abanou a cabeça.
Tentei ler de novo as suas cores. Reynaud nunca foi fácil. Há
tanto ruído de fundo nele – nunca nada é simples. Mas agora não
era mais nada a não ser dor e arrependimento – púrpura e
carmesim e preto em redemoinho – e apercebi-me de que se eu
tivesse chegado um minuto mais tarde ele teria saltado para dentro
do poço e teria morrido ali no escuro.
– O senhor não quer saltar – disse eu.
Ele riu-se. Era uma risada alegre. – Tenho a marca de Caim –
disse. – Queres saber o aspeto que tem? – E arregaçou a manga
da soutane e mostrou-me uma mancha de pele cor-de-rosa no
braço. – Ela fez-me isto, para me ajudar – disse ele. – Disse que
era do que eu precisava. – A seguir, soltou aquela risada outra vez,
que soava como algo a partir-se.
– Refere-se à Morgane?
Assentiu com a cabeça. – Ela disse que revelaria alguma coisa.
Algo que eu precisava de saber. Mas quando olhei não havia nada.
Mas ainda a sinto. A marca de Caim. E agora...
Peguei na mão dele. – Desça daí.
– Tu não sabes o que eu fiz, Rosette. Se soubesses, odiar-me-
ias.
Duvidei. Não me parecia que isso fosse verdade. Não se odeia
alguém assim de repente, mesmo quando essa pessoa fez uma
coisa má. É como o Yannick, a entrar sem licença no meu bosque.
Ou Pilou, a evitar-me por causa da tonta da namorada. Por vezes,
as pessoas fazem coisas más. Isso não as torna pessoas más.
Mas eu ouvia passos no caminho e sabia o que isso queria dizer.
Queria dizer que não tinha muito tempo até que viesse alguém
interromper-nos.
– Desça daí, M. le Curé – disse. – Ninguém o odeia. Nem
sequer...
E depois ouvi o restolhar de alguém a entrar na clareira, e vi
Roux e Joséphine no caminho dos morangos. Reynaud soltou um
gemido baixinho e senti que se afastava de mim. E por isso agarrei
na soutane dele e puxei-o para trás com toda a força que tinha, de
maneira que ele se desequilibrou e caiu em cima da erva e dos
morangos.
Roux trazia o dossiê de Narcisse. Joséphine vinha de mão dada
com ele. As cores de Roux estavam zangadas e confusas; as de
Joséphine assustadas e suaves. Ela correu para Reynaud, que
estava sentado na relva onde caíra, com as mãos no rosto.
– Está bem, Francis? Magoou-se?
Reynaud não disse nada. Deixou-se ficar ali sentado na relva,
com um ar de quem quer morrer.
– Porque é que fugiu? – prosseguiu ela. – Procurámo-lo uma
data de tempo. E depois encontrámos o seu dossiê, onde o tinha
deixado cair no caminho, e seguimo-lo até aqui. O que se passa?
– Desculpe – disse ele. Soava como um corvo bebé, caído
demasiado cedo do ninho. Uma pessoa tenta salvá-los, ajudá-los a
voar, mas na maior parte das vezes morrem de susto.
– O que estava a tentar fazer? – perguntou ela. – Podia ter caído
e morrido.
Reynaud continuava a não olhar para ela. – Eu já lhes contei –
sussurrou. – Já lhes contei o que fiz.
– Contou-nos uma história que não faz sentido nenhum – disse
Roux numa voz que soava ríspida, mas que eu sabia que era só
de preocupação. – Algo sobre os meus pais terem morrido num
incêndio no Tannes? Reynaud, os meus pais vivem em Marselha.
Estão bem. Nunca sequer tiveram um barco. E aquele incêndio no
Tannes não foi há décadas? E será que aconteceu de facto?
– Aconteceu. Eu estava lá – disse Reynaud. – Fui eu quem ateou
o fogo. Morreram duas pessoas. Chamavam-se Pierre Lupin e...
Roux interrompeu-o. – E quando foi isso? Foi há muitos anos.
Você devia ser ainda criança, Reynaud. Não podia ter a intenção
de fazer mal a ninguém. As crianças andam sempre a fazer coisas
estúpidas. Porquê trazer isso à baila agora? O mundo segue em
frente. E o que o fez pensar que essas pessoas eram os meus
pais?
– Foi a Morgane Dubois que me disse.
Roux parecia mais perplexo do que nunca.
– Ela fez-me uma tatuagem – disse Reynaud. – Disse-me que
me ajudaria. Mas não está nada aqui. – Mostrou-lhes o braço. –
Nada para ver a não ser um vazio.
Joséphine pousou a mão na testa dele. – Está com febre,
Reynaud – disse. – Precisa de ir ao médico, não a uma artista de
tatuagens. Ande daí. – Estendeu-lhe a mão. – Venha comigo.
Vamos levá-lo ao Dr. Cussonet. Ele dá-lhe alguma coisa para o
acalmar.
– Eu não preciso de acalmar – disse Reynaud. – Ninguém pode
dar-me aquilo de que preciso.
– Eu acho que posso – disse eu.
Roux e Joséphine pareceram ficar surpreendidos. – Não estás a
comunicar por sinais – disse Joséphine.
– Encontrei a minha voz – disse-lhes. – E penso que posso
ajudar M. le Curé a encontrar aquilo de que anda à procura.
– Como? – perguntou Reynaud.
Abri outra vez a minha mochila cor-de-rosa e tirei dela o kit de
tatuagem de Morgane. – Ela deu-mo. Tenho andado a praticar.
Ele ficou a olhar para o kit durante muito tempo. Estendeu a mão
para tocar no cromado. Eu via que ele não achava que nada
daquilo estivesse realmente a acontecer. Roux e Joséphine
estavam ali, com um ar de crianças perdidas na floresta. Quando
tiver tempo, vou desenhá-los como uma raposa e um coelho com
olhos grandes, a olharem para um corvo bebé. Depois, vi as cores
de Reynaud mudarem para algo menos triste e atormentado. Ainda
havia muito cinzento ali dentro, mas eu começava a compreender
que talvez houvesse alguma coisa que pudesse fazer.
– O senhor queria ver a verdade – disse eu. – E agora, o que
tem a perder?
Por um momento, pensei que ele não teria coragem.
Mas assentiu com a cabeça. – Fá-lo – disse.
2

Sexta-feira, 31 de março
essa foi a minha primeira tatuagem, maman. Não deu a mesma
E sensação das folhas de ensaio, mas mantive a linha. Foi fácil. A
tinta era cinzenta, como a linha do horizonte de Paris num dia
nublado. Usei a parte da pele que Morgane já tinha preparado para
mim. A pele ainda estava sensível, mas era adequada. Eu já sabia
do que ele precisava. Roux e Joséphine sentaram-se junto ao poço
a observarem-me à distância. Eu não queria que olhassem para
mim enquanto trabalhava. Fechei os olhos. Sempre vi melhor as
coisas dessa maneira.
Prever o futuro com tinta é mais fácil do que prevê-lo com
espelhos ou com chocolate. Pelo menos para mim. A tinta era de
um cinzento nublado, como fumo, como algo a arder debaixo da
pele. Fiz pressão, e senti resistência. Fiz um pouco mais de
pressão. Agora, quase conseguia sentir o cheiro do fumo. Cheirava
a folhas mortas e a petróleo. Depois, vi uma fila de grandes aves
negras a sobrevoarem um rio. Era o Tannes; via-o agora, cinzento
como o fumo que se erguia. O rio estava em chamas, sabia, e eu
conseguia voar acima dos baixios de lama dura e ver os barcos ali
encalhados. A seguir, vi uma forma escura de pé na margem do
rio.
Soube imediatamente quem era. M. le Curé, claro, com os olhos
tão cinzentos como pedras do rio. M. le Curé, cuja marca estava
por toda esta história desde o princípio, ali de pé com as suas
vestes negras, rodeado por aves de má sorte.
Reynaud estremeceu. Abri os olhos e limpei as pequenas gotas
de sangue do braço dele. – Está bem?
Ele acenou com a cabeça.
– A Morgane contou-lhe uma história – disse eu. – Agora deixe-
me contar-lhe outra.
*
Conheço uma história sobre um menino que era na realidade um
corvo disfarçado. Este menino gostava de se pôr a ver os ciganos
quando eles passavam nas suas caravanas e os barcos do rio que
eles pintavam de cores vivas do arco-íris. Adorava ouvir a música
que tocavam junto ao rio, e ficava a vê-los, de olhos arregalados,
enquanto eles cantavam e dançavam e praticavam a sua magia
secreta. Mas os ciganos nunca reparavam nele nem o convidavam
para se sentar junto à fogueira deles, e o menino foi ficando cada
vez mais furioso e jurou que um dia se vingaria.
O menino cresceu e tornou-se padre: um corvo negro com uma
voz rouca. E tornou-se amigo de meninos que eram solitários e
desajeitados e estavam furiosos e tristes, e transformou-os em
corvos como ele e mandou-os ir atrás dos ciganos. O bando de
corvos fazia todos os possíveis por frustrar os ciganos.
Espalhavam boatos, histórias e mentiras. Contavam histórias
sombrias de corrupção. E quando veio a Guerra e os ciganos
foram arrebanhados e levados, o padre e o seu bando de corvos
ficaram encantados por saberem que tinham razão.
Passou algum tempo. O padre envelheceu. O seu bando de
corvos abandonou-o. Menos um, um menino triste que não era
como os outros. E o velho homem ensinou ao menino tudo o que
sabia; despejou toda a sua raiva e todo o seu ódio nos ouvidos
recetivos do menino; para o transformar num corvo, como ele. E
quando um dia os ciganos regressaram, mandou o menino sob a
forma de um corvo levar o desastre ao acampamento dos ciganos,
e esfregou as mãos todo contente.
Por um momento, abri de novo os olhos. Reynaud estava de pé,
rígido, com a cabeça desviada da agulha. O desenho estava quase
a meio; as linhas tão suaves como a penugem de aves.
Mas o menino não era ainda completamente um corvo. No último
momento, sentiu medo. Fez uma pequena fogueira na margem
perto de onde os barcos do rio estavam atracados, mas não se
deixou ficar a ver. Em vez disso, desatou a correr e o fogo apagou-
se, não deixando nada a não ser erva crestada.
Mas o velho homem estava a vigiá-lo. Pelo seu telescópio, viu
que o seu discípulo fracassara. E quando caiu a noite foi ao sítio
onde o menino tinha acendido a fogueira e ele próprio pegou fogo
aos barcos e ficou a vê-los arder do seu esconderijo. E quando
chegou a manhã e o menino veio a correr dar-lhe a notícia, o padre
– talvez para o punir – deixou que o menino assustado acreditasse
que fora ele quem cometera o crime.
Senti que Reynaud estremecia de novo.
– Pronto – disse eu. – Estou quase a terminar.
E, embora também ele se tivesse tornado um corvo, uma só
pena pálida isolou o menino de todos os outros. A pena pálida
assinalava-o como diferente. Ao longo da sua vida, tentou tornar-
se tal e qual como o seu mentor quisera, mas falhava uma e outra
vez, fraquejando no momento errado. De cada vez que os ciganos
chegavam, ele não conseguia fazer o que tencionava, e por fim
compreendeu que nunca seria verdadeiramente um corvo, por
causa daquela única pena pálida.
E por isso resolveu arrancá-la e ser como todos os outros.
Contudo, quanto mais o fazia, mais pálida a pena voltava a
crescer, até todos os outros corvos a verem e se afastarem,
sabendo que ele não era um deles. O corvo que fora em tempos
um menino interpretou isso como sinal da sua culpa, sem saber
que era o oposto. Até que um dia apareceu uma menina – uma
menina pequena das gentes nómadas. E contou-lhe uma história
sobre um menino que cresceu a pensar que era um corvo, porque
um velho feiticeiro lhe tinha lançado um feitiço mau. E, por fim,
quando acabou por se aperceber de que nunca fora um corvo,
perdeu as penas uma a uma para revelar o homem que sempre
fora...
Abri os olhos. Tinha terminado. Não havia quase sangue
nenhum. – Quer olhar agora?
Reynaud assentiu com a cabeça. Tinha os olhos humedecidos. E
por fim as suas cores tinham começado a mudar – os cinzentos
lamacentos e os castanhos sombrios a transformarem-se em algo
como o amanhecer. – A tua história – disse ele.
– Não é minha – disse eu. – É sua.
3

Sexta-feira, 31 de março
quela criança não é a minha filha, pensei. Parece tal e qual
A Rosette, com os seus grandes olhos escuros e o seu cabelo da
cor de mangas, mas a voz é a de uma estranha. Ou, talvez, não a
de uma estranha: a sua voz é a de Morgane Dubois e a de Zozie
de l’Alba e a do Hurakan, e sei que não posso mantê-la em
segurança ou mantê-la sequer, nunca mais.
Conheço uma história, diz-me ela. E depois fala-me sobre
Reynaud e sobre prever o futuro com a tinta da tatuagem. Sinto-
me surpreendida com a minha surpresa. A minha filha tem dons.
Eu sabia-o, claro, mas a profundidade da sua visão é algo que eu
não reconhecera realmente. Sempre foi boa a desenhar, mesmo
quando era muito pequena. Pensei que o talento vinha de Roux.
Talvez seja por isso que não lhe prestei atenção durante tanto
tempo. Mas agora apercebo-me de que durante todo esse tempo
Rosette estava a falar através da sua arte; a mostrar-nos as coisas
que via, silenciosamente, em cores.
– Fico contente por teres sido capaz de ajudar o Reynaud – digo.
– Eu tentei, mas não consegui.
– Ele precisava de mais do que de chocolate. – Não havia
nenhuma aspereza na sua voz, mas senti-a naquele lugar onde só
os nossos filhos podem atingir-nos.
E quem me dará a mim aquilo de que preciso? Não o disse em
voz alta, mas sabia que Rosette me ouvira. Sabia até o que ela
diria a seguir, naquela sua voz nova e estranha, que é também a
voz da minha mãe, a de Zozie, a de Morgane e a de tudo e de
todos que regressam para me recordar que a vida é de
empréstimo e que todas as coisas que encontramos pelo caminho
– amantes, filhos, felicidade – têm de ser devolvidas no fim. Em
vez disso, porém, ela virou-se para mim e disse:
– A Morgane deixou mais uma coisa, maman. Aqui. Vem ver.
Rosette pôs-se pé. Eu estava emperrada por ter estado sentada
no soalho, e ela estendeu-me a mão para me ajudar a levantar.
Assim, com um gesto, o equilíbrio de forças muda da mãe para a
filha, sem que uma ou a outra reparem sequer; e o mundo gira
impercetivelmente no seu eixo e instala-se na sua nova posição.
Mudança.
– Aqui. Na divisão das traseiras – disse Rosette.
Voltei a olhar para o kit de tatuagem pousado em cima do soalho.
Via o último raio de sol a brilhar por entre as tiras dos estores.
Aquele espaço cheirava a serrim, a incenso, a tinta e aos
fantasmas de flores há muito mortas, e eu já sabia o que estava
para vir. Vira-o antes, nas cartas da minha mãe. A Morte. A Torre.
A Mudança. O Louco.
Segui-a para a divisão das traseiras – um espaço que nunca
antes vira, nem sequer nos tempos de Narcisse. Era muito
parecida com a parte de trás da chocolaterie, mas com superfícies
de trabalho de madeira antiga em vez das minhas de granito gasto,
e estava perfeitamente limpa e nua – à exceção de algo pousado
em cima do balcão junto à porta. Duas coisas, de facto; um par a
condizer; a brilhar, sombrio, na luz que se infiltrava pela janela.
Eram as próteses dos pés de Morgane, agora não se parecendo
nada com pés, mais como um par de sapatos feios, saído de um
conto de fadas feio, deixados para alguém os usar enquanto a sua
dona abria as asas e voava para longe...
Fitei-os estupidamente. – Os pés dela. Porque é que deixou ficar
os pés?
Rosette abanou a cabeça. – Talvez não precisasse deles – disse.
– Ou talvez fosse uma mensagem. – E contou-me o sonho que
tivera, um sonho em que Morgane lhe dizia que cortasse os pés
para poder voar...
E agora eu sabia o que ela ia dizer. A Morte. O Louco. A Torre. A
Mudança. As cartas nunca mentem. Simplesmente dizem as
coisas que, bem lá no fundo, sabemos que são verdade. Que tudo
na vida é de empréstimo, e tem de ser devolvido por fim. Roux.
Anouk. E agora Rosette, agora que encontrou a sua voz, também
ela irá embora. Nada – ninguém – pode detê-la agora. É como os
estolhos dos morangos a crescer, afastando-se da planta-mãe,
esfomeados de novo solo, esfomeados de mudança. Se não forem
controladas, as plantas do morango reclamarão o seu carácter
silvestre; as suas folhas ficarão mais pequenas; os seus
minúsculos frutos doces e mirrados. A Mudança. A Torre. A Morte.
O Louco. Fui louca ao pensar que podia retê-la. Louca ao pensar
que Morgane Dubois era a minha única inimiga.
Ela olha para mim. – Maman, chegou a hora.
– Sim, eu sei. – A minha menina deixada pelas fadas. Tornaste-
te tão corajosa e doce, tão curiosa e forte. Vou sentir saudades
tuas, mas sei que também tu tens de seguir a tua vida. Tentei
manter-te junto a mim. Estava errada. Os filhos não são nossos
para sempre, mas nossos para os dar ao futuro.
Arregaço a manga até ao cotovelo. A parte de dentro do meu
pulso é de um moreno mais pálido. Há veias aqui, azuis como uma
pisadura, uma cicatriz de um qualquer acidente há muito tempo.
Estou marcada de tantas maneiras: estrias no ventre e nas ancas;
cicatrizes nos joelhos e nos nós dos dedos. Sardas do sol nos
braços e no rosto; ainda pálidas, mas a ficarem mais escuras.
Rugas na testa; rugas de expressão à volta dos olhos. Como a
mesa na chocolaterie, ostento os estragos do tempo. Não o
lamento. Significa que vivi. Significa que vivi bem.
Agora, vou ter uma outra marca. Uma marca que me dará a
minha filha. Aqui, no pulso, entre a veia azul e a cicatriz. Recordar-
me-á que tenho uma filha, algures no universo. O que será? Uma
ave em pleno voo? Uma vela azul, a dirigir-se para o mar? Flores
sopradas pelo vento? Um macaco dourado? Um coração
destroçado?
Há uma cadeira velha debaixo do balcão. Talvez já lá estivesse
antes de Morgane. Rosette puxa-a para mim. – Senta-te. Vais ficar
mais confortável aqui do que no chão. – Tem razão, claro. O chão
é demasiado duro para eu ficar sentada muito quieta durante o
tempo necessário. Rosette vai à parte da frente da loja; regressa
com o seu kit de tatuagem. Muda o aparo na caneta de tatuagem.
Liga-a ao carregador. Faz um zumbido baixo, como o de uma
abelha.
– Estás pronta, maman? – pergunta.
Sim. Não. Sempre. Nunca.
– Não te preocupes, maman. Isto não demora muito.
Dezasseis anos. Fecho os olhos. Não pergunto se vai doer. Em
vez disso, concentro-me no som; no zumbido ténue da abelha.
Penso em Anouk aos seis anos, em Rosette, Pantoufle e Bam.
Penso em Roux e na maneira como ele sorria no dia em que o vi
pela primeira vez no Tannes. Penso no rosto da minha mãe antes
de o cancro deixar a sua marca nela. A minha mãe era mais nova
do que eu sou agora quando morreu. Já vivi mais tempo do que
ela. E, no entanto, ainda está comigo, assim como as minhas filhas
estarão sempre comigo, por mais longe que estejam. Talvez seja
isto o que Rosette quer dizer quando me diz que sabe do que eu
preciso.
As agulhas são quase indolores. Até mesmo a cadeira
abandonada de Narcisse é surpreendentemente confortável. De
olhos fechados, apercebo-me de como me sinto cansada; de como
tenho andado cansada há meses, talvez há anos. Ouço o zumbido
da abelha e recordo as histórias da minha mãe, histórias que
começavam com as palavras: Sei de uma história que as abelhas
costumavam contar...
Apercebo-me de que o zunido parou. Abro os olhos. Ela
terminou. Quero olhar para baixo, para a minha tatuagem acabada,
mas nesse preciso momento toca uma sineta na porta – uma
sineta que já se foi, juntamente com a sua dona sombria – e
alguém entra na parte da frente da loja.
Conheço muito bem aqueles passos. Leves como os de uma
raposa nas tábuas do soalho: vermelhos como uma raposa à luz
do fim do dia. – Imaginei que te encontraria aqui.
– Julguei que já tinhas ido embora.
Ele encolhe os ombros. – Ainda não.
E lá fora ouço o som do vento, o bom vento norte, o vento
bailarino, a segredar na voz da minha mãe: Estás a ver, Vianne.
Tudo volta.
4

Sexta-feira, 31 de março
oltei para casa a pé ao longo do Tannes, a ver a parte final do
V pôr do sol. As luzes no rio começavam a acender-se; as
lanternas nos barcos do rio, as luzes suaves nas janelas. Cheirava
a fumo de madeira queimada, a especiarias, a óleo e aos bons
aromas dos cozinhados no Boulevard P’tit Baghdad. E, no entanto,
algo está diferente. Demorei algum tempo a compreender o quê. E
depois, de súbito, apercebi-me do que era. O aroma do fumo no rio
já não parece perturbar-me.
Então, isto é a absolvição, mon père. Esta é a sensação da
inocência. Depois destes anos todos, por fim, pus de lado o meu
fardo. Rosette Rocher curou-me. Fez-me olhar para dentro de mim
e mostrou-me o que eu precisava de ver. Não sou culpado de atear
o incêndio. Foi o senhor quem o fez, mon père. Fê-lo para se
apoderar de mim, para me manter para sempre ao seu lado. Eu
devia odiá-lo. E, no entanto, não o odeio. Deve ter sido muito
infeliz. Talvez até me amasse, à sua maneira amarga e perversa. E
eu mantive-o perto de mim todos estes anos, como um segredo
demasiado terrível para ser confessado, mas agora posso libertar-
me por fim. Também o senhor pode finalmente ser livre.
Tenciono destruir o dossiê de Narcisse. Mal chegue a casa,
pensei, vou queimá-lo na lareira. Também ele merece a
absolvição, uma oportunidade para ser recordado com
benevolência. E, afinal, era só uma criança quando cometeu o ato
que o acompanhou até à sepultura, fazendo mirrar todas as
relações, todos os sonhos que se atreveu a sonhar. Narcisse
merece o perdão também, e entre dentes murmuro a oração da
absolvição. Alguém como o Bispo talvez reprovasse o facto de eu
quebrar as regras da Igreja desta maneira, mas o nosso Salvador
quebrava as regras. Agrada-me pensar que Ele compreenderia.
Ao abrir o dossiê verde de Narcisse, apercebi-me de que havia
ainda uma página que, na minha pressa, deixara por ler. Dobrada
mesmo no fim do manuscrito, quase não dera por ela. Agora,
desdobrei a folha e, no clarão do sol do fim do dia e das luzes que
brilham sobre o rio, li as palavras finais de Narcisse, e depois
fechei a sua confissão uma última vez e dirigi-me para o Café des
Marauds. Um último brinde ao velho Narcisse. E se ela me
acompanhar – bem, veremos. Uma coisa de cada vez, Reynaud.
*
Num verão, quando eu ainda era jovem, um biplanador antigo
aterrou num dos campos que deixara em pousio nesse ano. A
mulher que o pilotava cobrava por uma voltinha nele, e já cerca
de uma dúzia de pessoas estava a ver e à espera junto à
cancela.
«É o proprietário?», perguntou a piloto, tirando o capacete. Era
uma jovem de pele escura, com cabelo encaracolado e um
sorriso que brilhava quase tanto como o sol.
Eu disse que sim.
«Se me deixar usar o seu campo, ofereço-lhe uma volta no
meu avião», disse ela.
Senti-me um pouco indeciso a princípio. Mas nunca tinha
andado de avião, embora já tivesse visto bastantes a riscarem o
céu lá muito em cima. Imaginei-me a olhar cá para baixo, para a
quinta, a vila, a minha terra, e concordei, quanto mais não fosse
para ficar com aquela vista para sempre gravada na mente.
Admito, Reynaud: foi um pouco assustador. Mas a vista era tão
maravilhosa como eu esperara e o som do vento era empolgante
e, se eu acreditasse em Deus, poderia ter sentido o Seu olho em
mim enquanto via o meu mundo desenrolar-se lá em baixo como
um rolo de tecido. Via a quinta e os campos de girassóis e o meu
furgão, do tamanho de um cubo de açúcar, e as pessoas
espalhadas por ali, de rosto voltado para o céu.
E depois vi-o. O bosque do meu pai; cerrado já, com vinte anos
de crescimento, mas ainda não completamente desenvolvido.
Uma mata meio crescida de carvalhos à volta daquela pequena
clareira, que, com a minha nova perspetiva, eu via que tinha a
forma de um coração.
Fitei a clareira lá em baixo. O coração era inconfundível;
estreitado na base, com o campo de morangos no centro; um
grupo de árvores a formar a fenda. Quanto tempo levara ao meu
pai, pensei, a planear aquela formação, a plantar as árvores?
Quantos cálculos teve de fazer para criar esta visão do olho de
Deus? Pensei nos anos que eu estivera no colégio; nos anos em
que sentira a sua ausência. Recordei o desdém que sentira pelo
seu pequeno passatempo. E, finalmente, compreendi o que ele
tentara dizer-me na noite do meu casamento.
«O amor é a coisa que só Deus vê.»
Perguntara-me na altura o que ele quereria dizer. O meu pai
raramente falava de amor; raramente demonstrava afeto. Talvez
fosse devido à influência de Tante Anna ou talvez as poucas
palavras que possuía tivessem sido usadas com Naomi. Mas
aqui estava por fim, vi-o: o prado em forma de coração no
bosque, um testamento silencioso ao sofrimento; uma última e
duradoura promessa.
O amor é a coisa que só Deus vê. Suponho que o senhor,
Reynaud, diria que é porque ele vê dentro dos nossos corações.
Bem, se ele alguma vez olhar para dentro do meu, não verá mais
do que já lhe contei a si. A confissão talvez seja boa para a alma.
Mas o amor é ainda melhor. O amor redime-nos mesmo quando
nos julgamos irredimíveis. Nunca amei realmente a minha mulher
– não da maneira como ela merecia. Os meus filhos e eu nunca
fomos próximos. Talvez isso fosse culpa minha, afinal. Mas Mimi
– sim, amei Mimi. E amei Rosette Rocher, que era tão parecida
com ela. Um dia, espero que Rosette veja o prado em forma de
coração no seu bosque e saiba que o amor nos rodeia, quer ela
consiga vê-lo quer não. E o senhor, Reynaud. Espero que um dia
consiga sentir o que só Deus vê, mas que cresce dos corações
das pessoas como nós: os defeituosos; os marcados por
cicatrizes; os destroçados. Espero que o encontre um dia,
Reynaud. Até lá, cuide de Rosette por mim. Assegure-se de que
ela fica a saber a minha história. Diga-lhe que tome conta do
meu bosque. E que continue a apanhar os morangos.
Dia das Mentiras/de Todos os Tolos
1

Sábado, 1 de abril
o dia das mentiras, e a chocolaterie está cheia de movimento.
É Os meus peixinhos de chocolate são os mais vendidos hoje,
cada um deles com o seu irmão pintado à mão, um desenho
concebido por Rosette com muito carinho, e que, de acordo com a
tradição deste dia, deve ser pregado à socapa nas costas de uma
pessoa amiga sem ela dar conta, para ser usado todo o dia a não
ser que uma alma caridosa a alerte. Já vi os meus peixinhos de
papel nas costas de crianças na praça, assim como nas de alguns
dos seus parentes, entre eles o velho Mahjoubi, cuja fingida
ignorância da piada fez a sua neta, Maya, rir a bandeiras
despregadas.
Hoje, os meus clientes estão cheios de perguntas e de
curiosidade. Os Montour vão-se embora, ao que ouço; parece que
já arranjaram comprador para a quinta. Yannick Montour contou-
me quando entrou para comprar o seu peixe de chocolate. E
ouviram M. le Curé rir em voz alta na igreja hoje – um som até
agora desconhecido do povo de Lansquenet.
Joline Drou – que se senta sempre no banco da frente na igreja –
julgou ver alguma coisa no braço dele através da porta entreaberta
da sacristia. Algo como uma tatuagem, disse ela, naquele tom de
voz ofegante que adota quando fala de algo escandaloso.
– Não M. le Curé – diz Caro, que tem andado com um peixe de
papel preso às costas do seu casaco desde a missa. Suspeito que
quem lhe pregou a partida foi a própria Joline, ou talvez Pilou, ou
até mesmo Roux, que passou toda a manhã no estúdio de
tatuagem a ajudar Rosette a mudar as suas coisas para lá.
Sim, é um pouco nova: Mas não vai mudar-se para longe. Uma
artista de tatuagem precisa de espaço para trabalhar, e a renda é
bastante acessível. Estranhamente, Anouk não ficou surpreendida:
diz que sempre soube que Rosette não fora feita para trabalhar
com chocolate. – É demasiado instável – disse. – Não tem a
disciplina necessária.
Tive de me rir ao ouvir aquilo. Que Anouk, com os seus vinte e
um anos, acabada de casar e prestes a atravessar o mundo,
soubesse mais do que eu sobre isso – e, no entanto, há uma
sabedoria em ambas e uma determinação destemida.
Eu também a tive, em tempos. Hoje, penso que talvez pudesse
voltar a encontrá-la, como algo que julgara ter perdido para
sempre, trazido de volta com a maré alta. Tudo volta.
– Queres ajuda? – disse Anouk, vendo-me pegar nos grandes
frascos de vidro de uvas passas, cerejas cristalizadas, enfeites e
amêndoas para decorar os mendiants.
Sorri. – É claro. Os meus preferidos.
Já se passou muito tempo desde a última vez que Anouk quis
ajudar-me a fazer chocolates. Agora fá-lo como uma criança
poderia brincar uma última vez com os seus brinquedos favoritos
antes de os pôr de lado para sempre. Amêndoas, casca de limão
cristalizada, grandes cerejas pretas, cardamomo e um polvilho de
ouro comestível para realçar o chocolate negro. Em tempos
vendidos por vendedores ambulantes de porta em porta, estes
mendiants são reis e rainhas da estrada, dourados, brilhantes e
fabulosos.
– Fiz caras dos meus – disse ela.
Sorri-lhe. – Sempre fizeste.
A Morte. O Louco. A Torre. A Mudança. Desta vez, fui eu a louca,
a tola. Receei o vento durante tanto tempo; escondi-me da
verdade. Agora, dá a sensação de que o céu se desanuviou depois
de uma tempestade. O telhado da minha casa foi destruído, mas o
sol está a brilhar. As minhas filhas cresceram finalmente, e agora,
em vez de perda, sinto um estranho tipo de potencial.
Qualquer coisa pode acontecer, Vianne, diz-me a voz da minha
mãe na cabeça. A Morte. O Louco. A Torre. A Mudança. A roda
continua a girar, a girar até tudo dar a volta completa. Do outro
lado da praça, eu via a porta da loja. Estava aberta. Havia alguém
à porta, a tirar cuidadosamente a tinta púrpura com um maçarico e
uma faca. Não lhe via o rosto, mas reconhecê-lo-ia em qualquer
parte: as espirais tatuadas nos braços; o cabelo ruivo atado num
puxo.
Roux disse-me que Rosette prefere escolher a sua própria
decoração. Amarelo, talvez cor-de-rosa, diz ela. Roux prometeu
ficar para a ajudar. Deliberadamente, não perguntei quanto tempo
ia ficar. Talvez uma semana. Talvez um ano. Como Anouk diria,
provavelmente, o presente é tudo o que importa.
– Pareces diferente – disse Anouk.
– Diferente?
– Fica-te bem.
O desenho de Rosette é simples, tatuado na parte de dentro do
meu pulso. Um estolho de morango, com a folha não maior do que
um trevo, ladeado por um minúsculo morango silvestre e uma flor
com cinco pétalas. Ainda está um pouco dorido, mas, como Anouk
provavelmente me diria, isso significa que ainda estou viva.
Conheço a história de uma mulher que sabia do que as pessoas
precisavam. O seu dom era olhar para dentro dos corações delas e
encontrar a coisa que estava em falta. E, no entanto, no que dizia
respeito ao seu próprio coração, a mulher era estranhamente
impotente. E, de cada vez que usava o seu dom, sentia
desaparecer um pedaço de si, o que a fazia sentir-se triste e
assustada. E agarrava-se às peças do seu coração como
mancheias de folhas contra o vento, mas quanto mais se agarrava
mais o vento gritava e soprava e ameaçava.
E então, um dia, uma estranha chegou à vila dessa mulher. Uma
estranha como ela, com o dom de descobrir os segredos das
pessoas, de as levar a revelar os seus desejos mais profundos e
os seus terrores mais recônditos. A estranha era destemida,
esquiva e forte, e o uso dos seus dons, longe de a enfraquecer, só
a tornava mais forte.
Isso desassossegou a mulher, que tentou confrontar a estranha.
Contudo, apesar de tudo o que tentava fazer, a estranha parecia
ultrapassá-la, até por fim ela convocar o vento e lhe ordenar que
fizesse o seu pior. Toda a noite o vento gritou e soprou. E quando
acabou, a estranha tinha-se ido, soprada para longe no escuro.
E, no entanto, a mulher continuava com medo. Embora a
estranha se tivesse ido embora, a sua voz, o som dos seus
passos, o seu perfume persistiam, como se, de algum modo, ela
própria tivesse sido deslocada e o vento tivesse encontrado o
caminho para os espaços dentro dela e tivesse soprado para longe
o seu coração.
Porém, pouco a pouco, a voz do vento começou a falar com a
mulher. Disse-lhe que tudo volta, que se libertarmos o que
amamos voltará para nós como a maré. E, finalmente, ela
compreendeu que estivera apenas a lutar contra si mesma. Não
havia nenhuma misteriosa estranha, nenhuma adversária obscura.
Fora sua a voz do vento: raivosa, crítica, intimidante. E agora que
o vento voltara a amainar, ela compreendia que estava livre. Livre
de ir ou ficar como decidisse: livre de usar os seus dons como
entendesse; livre de amar sem temer a perda.
Pus os braços à volta de Anouk e dei-lhe um beijo.
– Bom trabalho – disse. – E agora, que me dizes a uma chávena
de chocolate quente, para celebrar?
Ela assentiu com a cabeça. – Eu faço-o.
É claro. Ela sabe a receita. Diretamente do grão Criollo, adoçado
com xarope de cana, aromatizado com baunilha e especiarias e
rematado com uma colherada de chantilly e uns flocos de
malagueta. Fá-lo tão bem quanto eu, talvez até melhor. Serve uma
chávena para cada uma. Estendo a mão; ela detém-me.
– Espera.
Sorrindo, estende o braço por trás de mim. Sinto o pequeno
puxão do alfinete quando ela tira o peixe de papel das minhas
costas. O seu riso é caloroso, e sinto-o como luz do sol na minha
pele manchada.
– A Rosette?
Ela abana a cabeça e sorri. Nos olhos brilha uma expressão
marota. Sinto um acesso de júbilo para com o mundo, porque as
minhas filhas fazem parte dele.
Volto a beijá-la. – Apanhaste-me – disse. – Agora, e se
tomássemos esse tal chocolate?
A receita é minha, mas não é totalmente familiar. Um pouco
menos de açúcar, um pouco mais de baunilha, ou cardamomo, ou
talvez curcuma. De qualquer modo, é doce e bom e cheira a outras
paragens, a coisas maravilhosas por descobrir. Mas cheira
também ao lar; ao aroma das folhas da figueira ao sol e aos
pêssegos de Armande ao lume. Cheira ao luar no Tannes e ao
perfume da pele tatuada de Roux contra a minha. Cheira ao
passado e ao futuro, e de súbito apercebo-me de que já não receio
nada do que o futuro possa trazer. O buraco no mundo foi de
algum modo preenchido. Estou de novo inteira, e livre.
– Tem um sabor diferente – digo. – O que mudaste?
– É segredo profissional. – Ela sorri.
E depois vejo-o no ar. Uma vibração tão pálida e passageira que
era quase invisível. A minha filha de verão tem dons seus, dons
que são diferentes dos meus ou dos de Rosette. Para onde a
levarão? Para onde irá ela? Que ventos, que oceanos percorrerá?
Que vidas mudará para sempre?
Acabei de tomar o chocolate quente. – Está muito bom. Ainda
melhor do que o meu, acho.
– É claro que está. Fui eu que o fiz – disse Anouk. – O meu foi
sempre melhor.
Deu-me um dos mendiants já acabados. Uma grande cereja
preta para o nariz; uma tira de casca de limão cristalizada para a
boca. Tinha transformado em rostos todos os seus chocolates.
Feições acrescentadas com folha de ouro, amêndoas, uvas
passas, sementes de papoila. Todos os chocolates diferentes,
todos marcados com a sua assinatura:
Ama-me. Alimenta-me. Liberta-me.
E todos os chocolates estavam a sorrir.
Agradecimentos
É necessária toda uma vila para criar um livro. Alguns livros
podem até construir vilas – pelo menos na mente dos seus leitores.
Este é o quarto livro nesta série de histórias interligadas sobre a
vila de Lansquenet-sous-Tannes, construído sobre os alicerces
lançados há mais de vinte anos por muitos, muitos editores,
editores de texto, designers gráficos, publicitários, livreiros,
vendedores, bloggers e leitores, sem os quais eu nunca teria tido a
oportunidade de voltar ao mundo de Chocolate. Todos eles
merecem crédito, embora nomeá-los a todos seja impossível. Mas
sabem quem são. Isto é obra vossa. Não vos esqueci.
Contudo, para este livro em particular, devo sentidos
agradecimentos a toda a boa gente na Orion; às editoras Gillian
Redfearn e Clare Hey; à editora de texto Sally Partington; a Jon
Wood; a Charlotte Abrams-Simpson pela sua maravilhosa capa; à
encarregada da publicidade Rebecca Gray e à promotora de
vendas Lynsey Sutherland; às encarregadas de vendas Jennifer
Wilson, Jo Carpenter e Rachael Hum; à diretora executiva Katie
Espiner e à editora executiva Sarah Benton; e a todos os livreiros,
bloggers e representantes de vendas que têm trabalhado para
manter os meus livros nas prateleiras. Um agradecimento também
ao meu agente, Peter Robinson, e ao meu amigo Christopher
Fowler, que esteve presente desde o início. E, claro, ao Kevin e à
Anouchka, que sempre me apoiaram mesmo antes de tudo ter
começado, e sem os quais talvez eu nunca tivesse escrito nada.
A dívida final, como sempre, é para com os leitores, sejam eles
quem forem: recém-chegados à festa ou velhos amigos
reencontrados. As histórias não vivem num vácuo; necessitam de
um público para sobreviver. Obrigada pela vossa atenção, e, para
os que são já velhos amigos neste mundo, obrigada pela vossa
lealdade. Escrevi este livro para todos. Espero que vos agrade.

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